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Ficha Técnica

Título: A Viagem do Bobo


Autoria: Robin Hobb
Editor: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original Assassin’s Fate © 2017 Robin Hobb.
Publicado originalmente nos E.U.A. por Del Rey, uma chancela Random House, uma divisão da Penguin Random House
LLC, 2017
Publicado por acordo com o autor por intermédio de The Lotts Agency, Ltd.
Tradução: Jorge Candeias
Revisão: Idalina Morgado
Design da capa: Luís Morcela
Ilustração da capa: © Alejandro Colucci
Mapa e planta: © 2017 por Carol Craig
Data de Edição E-Book: Abril,2020
isbn: 978-989-773-250-8
Edições Saída de Emergência
Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
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Dedicatória

Ao Fitz e ao Bobo,
Os meus melhores amigos há mais de vinte anos
Mapa
Prólogo

Há crianças de mãos dadas em círculo. No meio está uma só


criança, em pé. A criança tem posta uma venda, mas estão pintados
olhos na venda. Os olhos são negros e fitos, contornados de
vermelho. A criança no meio gira em círculo, de mãos estendidas.
Todas as outras crianças dançam num círculo mais largo à volta
dela. Cantam uma canção.

“Enquanto o círculo aguentar


Os futuros se poderão prever.
Coração duro terá de estar
Para o círculo querer desfazer.”

Parece um jogo alegre. Cada criança no círculo exterior grita uma


frase ou uma expressão. Não consigo ouvir o que elas estão a dizer,
mas a criança vendada consegue. Começa a gritar-lhes de volta e as
suas palavras são dilaceradas por um vento que vai aumentando
lentamente. “Tudo queimarão.” “Os dragões cairão.” “O mar subir
será certo.” “O céu de joias coberto.” “Um virá como dois.” “Os
quatro choram depois.” “Dois como um virão.” “Fim na vossa
dominação!” “Pagarão com as vidas também.” “Não sobrevive
ninguém!”
Após o último grito, irrompe uma ventania da criança do meio.
Bocados dela voam em todas as direções e o vento agarra nas
crianças que gritam e espalha-as por todo o lado. Tudo se torna
negro à exceção de um círculo de brancura. No centro do círculo
está a venda com os olhos negros fixos, fixos.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário
Capítulo 1

Picadas de Abelha

A sala do mapa em Aslevjal mostrava um território que incluía a


maior parte dos Seis Ducados, parte do Reino da Montanha, uma
grande secção de Calcede e terras ao longo de ambas as margens
do Rio dos Ermos Chuvosos. Suspeito que nos define as fronteiras
do território dos Antigos à época em que os mapas foram criados.
Fui incapaz de inspecionar pessoalmente a sala do mapa na cidade
dos Antigos abandonada agora conhecida como Kelsingra, mas
creio que seria muito semelhante.
No mapa de Aslevjal estavam marcados pontos que correspondem às
pedras verticais no interior dos Seis Ducados. Julgo ser justo partir-
se do princípio de que as marcas idênticas em locais nas
Montanhas, nos Ermos Chuvosos e até em Calcede indicam pedras
verticais que são portais de Talento. As condições em que esses
portais estrangeiros se encontram são em grande medida
desconhecidas, e alguns utilizadores de Talento avisam contra a
tentativa de os utilizar até termos viajado fisicamente até lá e
testemunhado que estão em excelentes condições. No que toca às
pedras dos portais de Talento no interior dos Seis Ducados e do
Reino da Montanha, parece prudente não só enviar correios
Talentosos para visitarem cada local, mas também exigir a todos os
duques para se assegurarem de que todas essas pedras verticais são
mantidas em pé. Os correios que visitarem cada pedra deverão
também documentar os conteúdos e as condições das runas em cada
uma das suas faces.
Em alguns casos, encontrámos pedras verticais que não
correspondem a uma marca no mapa de Aslevjal. Não sabemos se
foram erguidas depois de o mapa ser criado ou se são pedras que já
não funcionam. Temos de continuar a encará-las com cautela, como
fazemos com todo o uso da magia dos Antigos. Não podemos
considerar-nos mestres dessa magia até conseguirmos duplicar os
artefactos deles.
Portais de Talento, Breu Tombastela

F
ugi. Ergui o pesado casaco de peles que usava e corri. Já estava
demasiado quente e o casaco arrastava-se e prendia-se em todos os
gravetos e troncos por que passava. Atrás de mim, Dwalia estava a
gritar a alguém: “Apanhem-na, apanhem-na!” Ouvi o calcedino a fazer
ruídos como um boi a mugir. Galopava descontroladamente, passando uma
vez tão perto de mim que tive de me esquivar.
Os meus pensamentos correram mais depressa do que os meus pés.
Lembrei-me de ser arrastada pelos meus captores para dentro de um pilar de
Talento. Até me lembrei de como mordera o calcedino, esperando obrigá-lo
a libertar Esquiva. E ele libertara, mas agarrara-se a mim e seguira-nos para
dentro da escuridão do pilar de Talento. Eu não vira Esquiva nenhuma, nem
aquela Serva que tinha sido a última na nossa cadeia de gente. Talvez ela e
Esquiva tivessem sido deixadas para trás. Esperei que Esquiva lhe viesse a
escapar. Ou talvez já tivesse escapado? Lembrei-me do frio de um inverno
de Cervo que nos agarrava quando fugíramos. Mas agora estávamos noutro
lugar e em vez de um frio profundo eu sentia só um friozinho. A neve
reduzira-se a estreitos dedos de um branco sujo nas sombras mais profundas
das árvores. A floresta cheirava ao início da primavera, mas ainda nenhuns
ramos tinham adquirido folhas. Como era possível saltar-se de inverno num
lugar para primavera noutro? Alguma coisa estava muito errada, mas eu não
tinha tempo para pensar no assunto. Tinha uma preocupação mais urgente.
Como podia uma pessoa esconder-se numa floresta sem folhas? Eu sabia
que não seria capaz de correr mais depressa do que eles. Tinha de me
esconder.
Odiei ferozmente o casaco. Não podia parar para me contorcer para fora
dele, pois sentia as mãos tão desajeitadas como barbatanas de peixe, mas
não tinha nenhuma possibilidade de me esconder dos meus perseguidores
enfiada num enorme casaco de peles branco. Portanto, fugi, sabendo que
não podia escapar mas demasiado assustada para deixar que me
recuperassem.
Escolhe um lugar para resistires. Não onde te possam encurralar, mas
também não onde te possam rodear. Encontra uma arma, um pau, uma
haste, qualquer coisa. Se não conseguires escapar, fá-los pagar o mais caro
possível por te capturarem. Nunca deixes de os combater.
Sim, Pai-Lobo. Proferi mentalmente o nome dele para me dar coragem.
Lembrei a mim própria que era filha de um lobo; mesmo sendo os meus
dentes e garras coisas patéticas, eu lutaria.
Mas já estava tão cansada. Como poderia lutar?
Não conseguia compreender o que a passagem pela pedra me fizera. Por
que razão estava tão fraca e tão cansada? Queria deixar-me cair no local
onde estava e ficar imóvel. Ansiava por deixar que o sono me reclamasse,
mas não me atrevia a fazê-lo. Ouvia-os a chamarem-se uns aos outros, aos
gritos e a apontarem para mim. Estava na altura de parar de correr, estava
na altura de montar a resistência. Escolhi o lugar. Um aglomerado de três
árvores, com os troncos tão próximos uns dos outros que eu me conseguiria
esquivar por entre eles mas nenhum dos meus perseguidores seria capaz de
me seguir com facilidade. Ouvia pelo menos três pessoas a abrir
ruidosamente caminho pelos arbustos atrás de mim. Quantas poderiam ser?
Tentei acalmar-me o suficiente para pensar. Dwalia, a líder: a mulher que
sorrira tão calorosamente enquanto me raptava de minha casa. Ela arrastara-
me pelo pilar de Talento. E Vindeliar, o rapaz-homem que era capaz de
fazer as pessoas esquecer as experiências que tinham vivido: ele atravessara
a pedra. Kerf era o mercenário calcedino, mas a sua mente estava tão
baralhada pela nossa viagem de Talento que tanto podia não constituir
perigo para nenhum de nós, como matar qualquer um. Quem mais? Alaria,
que faria sem questionar qualquer coisa que Dwalia lhe dissesse, e o mesmo
se aplicava a Reppin, que tão duramente me esmagara a mão ao
atravessarmos o pilar. Era uma força muito mais pequena do que aquela
com que Dwalia começara, mas ainda tinham uma superioridade numérica
sobre mim de cinco para um.
Agachei-me atrás de uma das árvores, tirei os braços das mangas da
pesada vestimenta de peles e por fim contorci-me e levantei-me até
conseguir deslizar para fora dela. Peguei nela e atirei-a para o mais longe
que consegui, o que não foi muito. Devia continuar a correr? Compreendi
que não conseguiria. Sentia o estômago a dobrar-se e a torcer-se
desconfortavelmente e tinha uma sutura no flanco. Não conseguiria ir mais
longe do que aquilo.
Uma arma. Não havia nada. Só um ramo caído. A extremidade maior não
tinha mais grossura do que o meu pulso e divergia em três ramos na outra
extremidade. Uma fraca arma, mais ancinho que bastão. Peguei no ramo.
Depois colei as costas a uma das árvores, esperando contra toda a esperança
que os meus perseguidores vissem o casaco e passassem por mim, para eu
poder voltar para trás e encontrar um esconderijo melhor.
Eles vinham aí. Dwalia gritava entre arquejos: “Eu sei que estás
assustada. Mas não fujas. Sem nós, vais passar fome e morrer. Vais ser
comida por um urso. Precisas de nós para sobreviver. Volta, Abelha.
Ninguém ficará zangado contigo.” Depois ouvi a mentira quando ela virou
a fúria contra os seus seguidores. “Oh, onde está ela? Alaria, sua parva,
levanta-te! Nenhum de nós se sente bem, mas, sem ela, não podemos ir para
casa!” E depois, deixando a ira vencer: “Abelha! Deixa de ser parva! Vem
cá imediatamente! Vindeliar, despacha-te! Se eu consigo correr, tu também
consegues! Encontra-a, tolda-a!”
Enquanto estava atrás da árvore, tentando tornar a minha respiração
aterrorizada tão silenciosa quanto possível, senti Vindeliar a tentar
contactar-me. Empurrei com força para tornar as minhas muralhas de
pensamento fortes, como o meu pai me tinha mostrado. Cerrei os dentes e
mordi o lábio para o manter no exterior. Ele estava a criar para mim
memórias de alimentos doces e mornos e sopa quente e pão cozido de
fresco e fragrante. Eu desejava tanto todas essas coisas mas, se o deixasse
levar-me a pensar nelas, ele encontraria forma de entrar. Não. Carne crua.
Carne congelada e colada a ossos, para ser roída com os dentes de trás.
Ratos com pelo e tudo e os seus craniozinhos estaladiços. Comida de lobo.
Comida de lobo. Era estranho como ela soava deliciosa. Agarrei no pau
com ambas as mãos e esperei. Deveria ficar escondida na esperança de que
eles passassem por mim a correr? Ou deveria sair e dar o primeiro golpe?
Não tive hipótese de escolher. Vi Alaria passar aos tropeções pelo meu
esconderijo, a várias árvores de distância. Ela parou, olhou estupidamente
para a pele branca no chão e depois, quando se virou para gritar aos outros,
viu-me. “Ela está aqui! Encontrei-a!” Apontou para mim com uma mão
trémula. Separei os pés uma largura de ombros, como se fosse brincar à luta
de facas com o meu pai, e esperei. Ela fitou-me e depois deixou-se cair num
montinho amarfanhado, deixando o seu casaco branco dobrar-se à sua volta,
e não fez nenhum esforço para se levantar. “Encontrei-a”, gritou numa voz
mais fraca. Acenou-me com uma mão sem força.
Ouvi passos à minha esquerda. “Cuidado!”, arquejou Alaria, mas foi
demasiado tarde. Brandi o ramo com toda a força que arranjei, acertei na
cara de Dwalia, e depois dancei para trás e para a direita, por entre as
árvores. Encostei-me a um tronco e voltei a adotar a mesma pose, com o
ramo a postos. Dwalia estava a gritar mas recusei-me a olhar para ver se a
tinha magoado. Talvez tivesse tido a sorte de lhe dar cabo de um olho. Mas
Vindeliar arrastava-se pesadamente na minha direção, com um sorriso
estúpido e radiante. “Irmão! Aí estás tu! Estás em segurança. Encontrámos-
te.”
“Não te aproximes senão bato-te!”, ameacei. Descobri que não queria
magoá-lo. Ele era uma ferramenta da minha inimiga mas eu duvidava que
tivesse alguma malícia, se fosse deixado em paz. Não que falta de malícia o
impedisse de me fazer mal.
“Irmã-ão”, disse ele, arrastando a palavra com tristeza. Era uma censura,
mas gentil. Apercebi-me de que ele irradiava gentileza e carinho por mim.
Amizade e conforto.
Não. Ele não era realmente nenhuma dessas coisas. “Fica aí!”, ordenei-
lhe.
O calcedino passou por nós, com indolência e a ulular, e não consegui
perceber se teria sido deliberadamente ou por acidente que deu um
encontrão ao homenzinho. Vindeliar tentou evitá-lo, mas tropeçou e
estatelou-se com um grito fúnebre, ao mesmo tempo que Dwalia contornava
os troncos das árvores. Tinha as mãos estendidas para mim como garras e
os lábios recuados, deixando à mostra os dentes ensanguentados como se
quisesse capturar-me nas mandíbulas. Brandi o ramo com as duas mãos
contra ela, desejando que a arma lhe fizesse saltar a cabeça de entre os
ombros. Mas, em vez disso, o ramo partiu-se e a ponta irregular raspou-lhe
na cara enrubescida, deixando para trás uma linha de sangue. Ela atirou-se a
mim e, mesmo através da roupa desgastada, senti as suas unhas enterrarem-
se na minha carne. Arranquei-me, literalmente, das suas mãos. Ela ficou
com parte da minha manga enquanto eu me espremia entre os troncos das
árvores.
Reppin estava aí à espera. Os seus olhos cinzentos como um peixe
encontraram os meus. O ódio deu lugar a uma alegria acéfala quando ela
saltou para mim. Esquivei-me para o lado, deixando-a abraçar a árvore com
a cara. E ela embateu, mas era mais ágil do que eu julgara. Um dos seus pés
prendeu-se nos meus. Dei um grande salto, libertando-me, mas tropecei no
terreno irregular. Alaria tinha voltado a levantar-se. Uivou
descontroladamente enquanto se atirava contra mim. O seu peso levou-me
ao chão e, antes de me conseguir libertar, senti alguém a pisar-me com força
no tornozelo. Soltei um grunhido e depois gritei quando a pressão
aumentou. Senti-me como se os ossos estivessem a dobrar-se, como se a
qualquer instante fossem partir-se. Tirei Alaria de cima de mim com um
empurrão mas, no momento em que me livrei dela, Reppin pontapeou-me
no flanco, com força, sem se desviar de cima do tornozelo.
O pé dela fez sair todo o ar dos meus pulmões. Lágrimas que odiei
surgiram nos meus olhos. Debati-me durante um momento e depois enrolei-
me em volta das pernas dela e lutei por a tirar de cima do tornozelo, mas ela
agarrou-me no cabelo e sacudiu-me a cabeça com violência. Cabelo foi-me
arrancado do couro cabeludo e eu deixei de conseguir focar a visão.
“Espanquem-na.” Ouvi a voz de Dwalia. Tremia com alguma emoção
forte. Ira? Dor? “Com isto.”
Cometi o erro de olhar para cima. O primeiro golpe de Reppin com o
meu pau partido acertou-me na bochecha, na articulação do maxilar e na
orelha, esmagando-a contra o lado da cabeça. Ouvi um sonoro zumbido e o
meu próprio guincho. Estava chocada, indignada, ofendida e com tantas
dores que me deixaram incapacitada. Esbracejei para me escapar mas ela
continuava a segurar-me numa mancheia de cabelo. O pau voltou a cair,
entre as omoplatas, enquanto eu me debatia para me libertar. Não havia
carne suficiente sobre os meus ossos e a blusa não constituía qualquer
proteção: a dor do golpe foi seguida pela imediata ardência da pele fendida.
Soltei um grande grito e torci-me, estendendo a minha mão para lhe agarrar
no pulso e tentar obrigar a dela a soltar-me o cabelo. Ela pôs mais peso
sobre o meu tornozelo e só a almofada de húmus florestal evitou que o
partisse. Guinchei e tentei empurrá-la de cima de mim.
O pau voltou a cair, mais baixo nas costas, e eu de súbito soube como as
costelas se uniam à minha espinha e às colunas gémeas de músculos que
desciam ao longo desta, pois tudo isso gritou que algo estava errado.
Aquilo aconteceu tão depressa, e no entanto cada golpe individual foi um
acontecimento único na minha vida, para ser recordado para sempre. Nunca
fora tratada com dureza pelo meu pai e, das pouquíssimas vezes que a
minha mãe me disciplinara, pouco passara de um safanão ou de uma
bofetada ligeira. E sempre para me avisar de perigos, para me acautelar para
não tocar no corta-fogo ou estender a mão acima da cabeça para uma panela
ao lume. Tivera algumas brigas com crianças em Floresta Mirrada. Fora
apedrejada com pinhas e pequenas pedras e uma vez estivera numa luta
séria que me deixara ensanguentada. Mas nunca fora espancada por um
adulto. Nunca fora segurada de forma dolorosa enquanto uma pessoa
crescida tentava causar-me o máximo de dor que conseguisse,
independentemente de como isso me pudesse ferir. De súbito percebi que se
ela me partisse os dentes ou me fizesse saltar um olho da órbita, ninguém se
importaria, exceto eu.
Deixa de ter medo. Deixa de sentir a dor. Luta! O Pai-Lobo estava
subitamente comigo, de dentes à mostra e todos os pelos da nuca em pé.
Não posso! Reppin vai matar-me!
Magoa-a também. Morde-a, arranha-a, pontapeia-a. Fá-la pagar por te
causar dor. Ela vai bater-te na mesma, portanto tira-lhe da carne o que
puderes. Tenta matá-la.
Mas…
Luta!
Deixei de tentar arrancar-lhe a mão do meu cabelo. Em vez disso, quando
o pau voltou a cair-me nas costas, atirei-me contra ela, agarrei no pulso da
mão que empunhava o pau e puxei-o para a boca. Abri as maxilas o
máximo que consegui e depois fechei-as. Mordi-a não para a magoar, não
para deixar marcas de dentes ou fazê-la gritar de dor. Mordi-a para lhe
chegar ao osso com os dentes, para capturar na boca um bocado de carne e
tendões e tentar arrancar-lhos do corpo. Cerrei os maxilares enquanto ela
guinchava e me batia com o pau, e depois lacerei-lhe a carne do pulso
sacudindo violentamente a cabeça. Ela largou-me o cabelo, deixou cair o
pau e pôs-se a dançar, gritando de dor e de medo, mas eu mantive-me
agarrada ao seu pulso, com as mãos e os dentes, e pontapeei-lhe as canelas,
os pés e os joelhos enquanto ela me arrastava consigo. Tentei fazer os
molares encontrar-se cerrando as maxilas e fazendo pender o meu peso do
seu braço.
Reppin rugiu e debateu-se. Deixara cair o pau e só pensava em libertar-
se. Não era uma pessoa grande; a sua constituição era ligeira e eu tinha
entre os dentes um bom bocado da carne fibrosa e do músculo flácido do
seu antebraço. Esforcei-me por cerrar os maxilares. Ela estava a guinchar:
“Tirem-na de cima de mim! Tirem-na de cima de mim!” Pôs-me a palma da
mão na testa e tentou empurrar-me. Eu deixei e ela gritou quando me
ajudou a arrancar-lhe carne dos ossos. Deu-me uma bofetada, mas sem
força. Agarrei-a melhor com os maxilares e as mãos. Ela deixou-se cair
sobre a terra ainda comigo presa ao seu braço.
Cuidado!, avisou o Pai-Lobo. Salta para longe!
Mas eu era uma cria e não vi o perigo, só vira que a minha inimiga caíra
à minha frente. Depois Dwalia pontapeou-me com tanta força que a minha
boca se abriu de rompante. O pontapé soltou-me de Reppin e atirou-me para
a terra húmida. Sem ar em mim, tudo o que pude fazer foi rolar debilmente
em vez de me levantar e fugir. Ela pontapeou-me repetidamente. Na
barriga, nas costas. Vi a bota que lhe cobria o pé a vir na direção da minha
cara.

Quando acordei, estava escuro e frio. Eles tinham conseguido acender uma
fogueira mas a sua luz mal me tocava. Eu estava deitada de lado, de costas
para o fogo, amarrada de pés e mãos. Tinha a boca salgada de sangue, tanto
fresco como semicoagulado. Urinara-me e o contacto do tecido das calças
com a minha pele era frio. Perguntei a mim própria se eles me tinham
magoado tanto que me urinara ou se estivera tão assustada que o fizera. Não
me conseguia lembrar. Acordei a chorar, ou talvez me tenha apercebido de
que estava a chorar depois de acordar. Tudo me doía. Tinha a cara inchada
de um lado, onde Reppin me atingira com o pau. A minha cara talvez
tivesse sangrado, pois tinha folhas mortas coladas à pele. Doíam-me as
costas e as costelas engaiolavam inspirações dolorosas.
Consegues mexer os dedos das mãos? Consegues sentir os dos pés?
Conseguia.
A barriga dói-te como uma nódoa negra, ou dói como se houvesse coisas
partidas lá dentro?
Não sei. Nunca tinha sentido dores como estas. Inspirei mais
profundamente e a dor forçou o ar a sair num soluço.
Chiu. Não faças um som, senão vão perceber que estás acordada.
Consegues levar as mãos à boca?
Eles tinham-me amarrado os pés um ao outro e atado os pulsos à minha
frente. Levei-os à cara. Estavam amarrados com faixas de tecido arrancado
à minha camisa. Isso era parte do motivo por que sentia tanto frio. Embora
a primavera tivesse feito uma visita àquele local durante o dia, o inverno
reconquistava a floresta de noite.
Rói a atadura até libertares as mãos.
Não consigo. Os meus lábios estavam maltratados e ensanguentados. Os
dentes estavam soltos e doridos nas gengivas.
Consegues. Porque tem de ser. Rói a atadura até libertares as mãos e
desamarra os pés, e depois vamo-nos embora. Eu mostro-te para onde ir.
Há alguém da nossa família não muito longe daqui. Se eu conseguir
despertá-lo, ele protege-te. Se não, eu ensino-te a caçar. Em tempos, eu e o
teu pai vivemos nestas montanhas. O refúgio que construímos para nós
talvez ainda esteja em bom estado. Vamos para lá.
Não sabia que estávamos nas montanhas! Tu viveste nas montanhas com
o meu pai?
Vivi. Já aqui tinha estado. Mas basta. Começa a roer.
Doía-me dobrar o pescoço para alcançar a atadura que me prendia as
mãos. Doía pressionar os dentes com força suficiente para morder o tecido.
A camisa fora boa na manhã em que eu a vestira para ir para as aulas com o
Escriba Lante. Uma das criadas, Cautela, ajudara-me a vestir. Fora ela a
escolher esta blusa amarela-clara, e por cima dela enfiara uma túnica verde.
Apercebi-me de repente de que eram as cores da minha casa. Ela vestira-me
com as cores de Floresta Mirrada, mesmo que a túnica fosse demasiado
grande para mim e ficasse pendurada em mim como se fosse um vestido,
chegando-me quase aos joelhos. Nesse dia usara meias, não as calças
acolchoadas que os meus captores me tinham dado para vestir. As calças
húmidas. Outro soluço cresceu em mim. Antes de conseguir reprimi-lo,
soltei um som.
“…acordada?”, perguntou alguém junto da fogueira. Alaria, pareceu-me.
“Deixa-a como está!”, ordenou Dwalia com rispidez.
“Mas o meu irmão está magoado! Eu sinto a dor dele!” Isto veio de
Vindeliar, numa voz baixa e aflita.
“Teu irmão!” As palavras de Dwalia pingavam de veneno. “Só um
labrego assexuado como tu para não ser capaz de distinguir o Filho
Inesperado da bastarda de algum Branco. Todo o dinheiro que gastámos,
todos os luriks que desperdicei, e aquela rapariga é tudo o que podemos
mostrar. Estúpidos e ignorantes, vós os dois. Tu julgas que ela é um rapaz, e
ela não sabe o que é. Nem sequer sabe escrever e não presta nenhuma
atenção aos sonhos que tem.” Um estranho regozijo encheu-lhe a voz. “Mas
eu sei que ela é especial.” E depois a fugidia satisfação desapareceu,
substituída por troça. “Duvidem de mim. Não quero saber. Mas é melhor
que tenham esperança que haja nela algo de especial, porque é a única
moeda que temos para comprar o regresso às boas graças dos Quatro!” Em
voz mais baixa acrescentou: “Como Coultrie vai adorar o meu falhanço. E
aquela velha cabra da Capra há de o usar como desculpa para qualquer
coisa que queira fazer.”
Alaria falou muito baixinho. “Então se ela é tudo o que temos, não
devíamos tentar entregá-la em boas condições, talvez?”
“Se tu a tivesses apanhado em vez de caíres ao chão e rolares de um lado
para o outro a gemer, talvez nada disto tivesse acontecido!”
“Ouviram aquilo?” Um sussurro desesperado vindo de Reppin. “Ouviram
aquilo? Alguém riu agora mesmo. E agora… não ouvem aquelas flautas a
tocar?”
“Tens a mente virada do avesso, e tudo porque uma rapariguinha te
mordeu! Guarda essas palavras tolas para ti.”
“Eu vi o osso! Tenho o braço todo inchado. A dor pulsa em mim como
um tambor!”
Houve uma pausa e eu ouvi o fogo a crepitar. Fica quieta, avisou o Pai-
Lobo. Aprende tudo o que puderes escutando. Depois, com um toque de
orgulho, Vês, mesmo com os teus fracos dentes de vaca, ensinámo-la a
temer-te. Tens de ensinar todos a temer-te. Até a velha cadela aprendeu a
ter algum cuidado. Mas tens de reforçar a lição. Estas três têm de ser as
tuas únicos ideias: Vou escapar. Vou fazê-los temer-me. E, se tiver
oportunidade, vou matá-los.
Elas já me espancaram só por tentar fugir! O que me vão fazer se eu
matar alguma?
Vão voltar a espancar-te, a menos que fujas. Mas, como ouviste, tens
valor para elas. Portanto é provável que não te matem.
É provável? O terror cobriu-me. Eu quero viver. Mesmo se viver como
cativa delas, quero viver.
Pensas que isso é verdade, mas garanto-te que não é. A morte é melhor
que a espécie de cativeiro que planeiam para ti. Eu já fui cativo, um
brinquedo de homens sem coração. Fi-los temer-me. Foi por isso que
tentaram vender-me. Foi por isso que o teu pai conseguiu comprar a minha
liberdade.
Não conheço essa história.
É uma história sombria e triste.
O pensamento é rápido. Foi tanto o que foi transmitido entre o Pai-Lobo
e eu na pausa na conversa daquela gente pálida. De súbito soou um grito
nas trevas. Aterrorizou-me e obriguei-me a roer mais depressa as amarras.
Não que parecesse estar a progredir nessa tarefa. As palavras entarameladas
voltaram a soar e reconheci a língua calcedina. Devia ser Kerf, o
mercenário calcedino que Vindeliar enfeitiçara para o pôr ao serviço de
Dwalia. Perguntei a mim mesma se a mente dele ainda estaria desorientada
pela viagem que fizera através do pilar. Perguntei a mim mesma se a sua
mão estaria inchada onde eu o mordera. O mais silenciosamente que me foi
possível, movi o corpo até conseguir espreitar por entre as trevas. Kerf
estava a apontar para um dos antigos pilares verticais na periferia da
clareira. Ouvi um guincho de Reppin. “Veem? Veem? Não estou maluca! O
Kerf também a vê! Uma fantasma pálida está agachada em cima daquele
pilar. Têm de a ver! Não é uma Branca? Mas está vestida de forma tão
estranha, e canta uma canção trocista!”
“Não vejo nada!”, gritou Dwalia numa voz zangada.
Vindeliar falou com timidez. “Eu vejo. Há aqui ecos de pessoas de há
muito tempo. Havia aqui um mercado. Mas agora que a noite se aproxima,
um cantor Branco dá espetáculo para eles.”
“Eu ouço… qualquer coisa”, confirmou Alaria com relutância. “E… e
quando atravessei aquela pedra, as pessoas falaram-me. Disseram coisas
horríveis.” Fez uma inspiraçãozinha arquejada. “E esta tarde, quando
adormeci, tive um sonho. Um sonho vívido, um sonho que tenho de contar.
Perdemos os nossos diários de sonhos quando fugimos aos calcedinos. Não
o posso escrever, portanto tenho de o contar.”
Dwalia soltou um som repugnado. “Como se os teus sonhos alguma vez
tivessem tido algum valor real. Conta lá, vá.”
Reppin interveio rapidamente, como se as palavras saltassem dela. “Eu
sonhei com uma noz num rio violento. Vi alguém a tirá-la da água. A noz
foi pousada e atingida muitas vezes numa tentativa de a partirem. Mas ela
só se tornou mais grossa e mais dura. Depois alguém a esmagou. Chamas e
escuridão e um fedor nojento e gritos saíram dela. As chamas escreveram
palavras. ‘Chega o Destruidor que vós fizestes!’ E um grande vento passou
por Clerres, pegou em todos nós e espalhou-nos.”
“Chega o Destruidor!”, repetiu o calcedino num grito feliz vindo da
escuridão.
“Caluda!”, gritou-lhe Dwalia, e ele riu-se. “E tu, Reppin, cala-te também.
Esse não é um sonho que mereça partilha. Não passa da febre a fervilhar-te
na mente. Que crianças tão cobardes! Criam sombras e fantasmas na
cabeça. Alaria e Reppin, vão buscar mais lenha. Façam uma boa pilha para
a noite e depois vão ver como está aquela cabrinha. E não digam nem mais
uma palavra sobre este disparate.”
Ouvi Alaria e Reppin entrarem na floresta com passos pesados. Pareceu-
me que foram devagar, como se tivessem medo da escuridão. Mas Kerf não
lhes prestou nenhuma atenção. De mãos erguidas, arrastou os pés numa
dança desajeitada em volta do pilar. Atenta ao poder de Vindeliar, baixei
cautelosamente as muralhas. Os zumbidos de abelhas de que estivera
consciente transformaram-se em vozes e vi Antigos com roupagens de
cores vivas. Os seus olhos cintilavam e os cabelos reluziam como prata
polida e anéis de ouro, e dançavam a toda a volta do calcedino, ao ritmo da
canção da cantora pálida empoleirada no pilar.
Dwalia fitou Kerf, aborrecida com o seu divertimento. “Porque é que não
o consegues controlar?”, perguntou a Vindeliar.
Este fez um gesto impotente. “Ele aqui ouve demasiadas pessoas. As
vozes delas são muitas e fortes. Riem e cantam e celebram.”
“Eu não ouço nada!” A voz de Dwalia estava zangada, mas havia nela
um fiozinho de medo. “Não serves para nada. Não consegues controlar
aquela rapariguinha e agora não consegues controlar um louco. Tinha tanta
esperança em ti quando te escolhi. Quanto te dei aquela poção. Como me
enganei por a desperdiçar em ti! Os outros tinham razão. Não tens sonhos e
não vês nada. És inútil.”
Senti um fino arrepio da consciência de Vindeliar a ser soprado na minha
direção. A sua infelicidade bateu contra mim como uma onda. Apertei bem
as minhas muralhas e tentei não me importar por ele estar magoado e apesar
disso se preocupar comigo. O seu medo de Dwalia, disse eu a mim mesma
com ferocidade, era demasiado para me oferecer qualquer auxílio ou
reconforto. De que servia um amigo que não correria nenhum risco por
mim?
Ele é tão inimigo teu como os outros. Se surgir oportunidade, tens de o
matar, tal como matarias qualquer deles. Se algum vier tocar-te, tens de
morder, pontapear e arranhar o máximo que conseguires.
Dói-me tudo. Não tenho força. Se tentar defender-me, eles vão bater-me.
Mesmo se só fizeres um pouco de dano, vão aprender que tocar-te tem
um preço. Alguns não estarão dispostos a pagá-lo.
Não me parece que consiga morder ou matar Vindeliar. Dwalia
conseguiria matar. Mas os outros…
Os outros são as ferramentas dela, os seus dentes e garras. Na tua
situação não te podes dar ao luxo de mostrar misericórdia. Continua a roer
as amarras. Eu falo-te dos dias em que fui cativo. Espancado e engaiolado.
Forçado a lutar com cães ou ursos que eram tão infelizes como eu.
Deixado à fome. Abre a mente à minha história sobre como fui escravizado
e como eu e o teu pai quebrámos as amarras das nossas prisões. Então
verás por que motivo tens de matar quando te for dada essa hipótese.
E começou, não um relato, mas uma recordação que eu partilhei. Foi
como lembrar-me de coisas que sempre soubera, mas num detalhe
escaldante. Ele não me poupou às suas memórias da família morta, de
espancamentos e fome, e uma gaiola apertada e fria. Não suavizou o quanto
odiava os captores ou como de início odiara o meu pai, mesmo quando o
meu pai o libertara. Nessa altura o ódio fora o seu hábito, e fora o ódio a
alimentá-lo e a mantê-lo vivo quando nada mais existia.
Eu nem metade da torcida de tecido roera ainda quando Dwalia mandou
Alaria levar-me para junto da fogueira. Fingi-me de morta até ela estar
debruçada por cima de mim. Ela pousou-me uma mão no ombro. “Abelha?”
Virei-me, saltei e mordi. Prendi a mão dela nos meus dentes, mas só por
um momento. A minha boca estava demasiado dorida e ela arrancou-me a
mão da boca com um grito e saltou para trás. “Ela mordeu-me!”, gritou aos
outros. “A sacaninha mordeu-me!”
“Dá-lhe um pontapé!”, ordenou Dwalia e Alaria simulou atacar-me com
o pé, mas o Pai-Lobo tinha razão. Ela temia aproximar-se demasiado. Rolei
para longe dela e, apesar dos gritos do meu maltratado corpo, consegui
sentar-me. Fitei-a furiosamente com o meu olho bom e afastei dos dentes os
lábios feridos. Não sei até que ponto ela conseguia ver aquilo sob a dança
da luz da fogueira, mas não se aproximou de mim.
“Ela está acordada”, informou Alaria, como se eu a pudesse ter mordido
a dormir.
“Arrasta-a para aqui.”
“Ela vai voltar a morder-me!”
Dwalia levantou-se. Movia-se rigidamente. Mantive-me imóvel, pronta
para evitar o seu pontapé ou para atacar com os dentes, se pudesse. Fiquei
contente por ver que lhe enegrecera os olhos e rasgara a pele de uma das
bochechas. “Escuta, minha patifória”, rosnou. “Tu podes evitar uma surra,
mas só se me obedeceres. Está claro?”
Ela negoceia. Isso quer dizer que te teme.
Fitei-a sem uma palavra, sem deixar que nada se revelasse na minha cara.
Ela aproximou-se mais, estendendo a mão para o peito da minha camisa.
Mostrei os dentes sem um som e ela puxou a mão para trás. Falou como se
eu tivesse concordado em obedecer-lhe. “A Alaria vai libertar-te os
tornozelos. Vamos levar-te para perto da fogueira. Se tentares fugir, juro
que te mutilo.” Não esperou resposta. “Alaria, corta o pano que lhe prende
os tornozelos.”
Espetei os pés na sua direção. Reparei que Alaria tinha uma faca de cinto
muito boa. Perguntei a mim mesma se conseguiria arranjar forma de a
tornar minha. Ela demorou a conseguir cortar o tecido que me amarrava e
eu surpreendi-me com o quanto me doeu. Quando finalmente conseguiu
cortá-lo, eu esperneei para libertar os pés e depois senti um formigueiro
quente muito desagradável quando os pés voltaram à vida. Estaria Dwalia a
tentar-me a fugir para ter uma desculpa para me bater outra vez?
Ainda não. Ganha mais força. Aparenta estar mais fraca do que estás.
“Levanta-te e caminha!”, ordenou-me Dwalia. Afastou-se de mim a
passos largos, como se quisesse mostrar-me como estava certa da minha
obediência.
Ela que estivesse certa da minha rendição. Haveria de descobrir como
escapar-lhe. Mas o lobo tinha razão. Ainda não. Levantei-me, mas muito
devagar, levando o meu tempo a equilibrar-me. Tentei endireitar-me como
se não tivesse a barriga cheia de facas quentes. Os pontapés dela tinham
magoado qualquer coisa dentro de mim. Perguntei a mim mesma quanto
tempo levaria a sarar.
Vindeliar aproximara-se mais de nós. “Oh, irmão”, lamentou tristemente,
ao ver a minha cara quebrada. Fitei-o e ele afastou o olhar. Tentei parecer
desafiadora em vez de manietada pela dor quando caminhei na direção da
fogueira.
Era a primeira oportunidade que eu tinha de olhar bem para o que me
rodeava. O pilar trouxera-nos para um vale aberto no coração de uma
floresta. Havia dedos de neve a minguar por entre as árvores, mas esta
estava inexplicavelmente ausente na praça e nas estradas que a ela levavam
e dela partiam. Árvores tinham crescido até grande altura ao longo dessas
estradas, e os seus ramos arqueavam sobre elas e entrelaçavam-se em
alguns pontos. Mas também as estradas estavam em grande medida limpas
de detritos florestais e de neve. Ninguém mais reconheceria como isso era
estranho? Árvores de folha perene com ramos baixos e descendentes
rodeavam o valezinho onde a gente de Dwalia tinha feito a sua fogueira.
Não. Não era um vale. Raspei com os pés nalguma espécie de pavimento
em pedra. A área aberta era parcialmente limitada por um muro baixo de
pedra trabalhada, no qual estavam incluídos vários pilares. Vi algo no chão.
Parecia uma luva, uma luva que tivesse passado parte do inverno debaixo
da neve. Mais à frente vi um bocado de couro, talvez de uma correia. E
depois um chapéu de lã.
Apesar das dores que tinha no corpo, baixei-me devagar para pegar nele,
fingindo precisar de um momento para abraçar a barriga. Perto da fogueira,
eles fingiam não me observar, como gatos em posição perto do buraco de
um rato. O chapéu estava húmido, mas até a lã húmida é quente. Tentei
sacudi-lo para fazer cair as agulhas de pinheiro, mas os braços doíam-me
demasiado. Perguntei a mim mesma se alguém teria trazido o meu pesado
casaco de peles de volta para o acampamento. Agora que estava levantada e
em movimento, o frio da quase primavera fazia-me lembrar de cada
pisadura dorida. O frio alcançava-me a pele, introduzindo-se nos pontos
onde eles tinham arrancado faixas à minha camisa.
Ignora isso. Não penses no frio. Usa os outros sentidos.
Eu pouco conseguia ver para lá do alcance da luz dançarina da fogueira.
Inspirei pelo nariz. A humidade que se evolava da terra trazia consigo ricos
odores. Cheirou-me a terra escura e a agulhas caídas de abeto. E a
madressilva.
Madressilva? Nesta altura do ano?
Expira pela boca e inspira lentamente pelo nariz, aconselhou-me o Pai-
Lobo.
Obedeci. Virei a cabeça lentamente apesar da rigidez do pescoço,
seguindo o odor. Ali. Um cilindro pálido e estreito, meio coberto por um
bocado de tela rasgada. Tentei baixar-me, mas os joelhos dobraram-se e
quase fui de cara ao chão. Peguei desajeitadamente na vela com as mãos
atadas. Estava partida, unida apenas pelo pavio, mas reconheci-a. Levei-a à
cara e cheirei o resultado do trabalho da minha mãe. “Como pode isto estar
aqui?”, perguntei baixinho à noite. Olhei para o banal bocado de tela. Ali
perto via-se uma luva rendada de senhora, ensopada e bolorenta. Não
reconheci nenhuma dessas coisas, mas conhecia aquela vela. Poderia estar
enganada? Poderiam outras mãos ter colhido a cera de abelha,
aromatizando-a depois com flores de madressilva? Poderiam outras mãos
ter mergulhado pacientemente os longos pavios no pote de cera, uma e
outra vez, para formar uma vela tão elegante? Não. Aquilo era trabalho da
minha mãe. Era possível que eu tivesse ajudado a fazer aquela vela. Como
tinha ela vindo parar ali?
O teu pai esteve aqui.
Isso é possível?
É a resposta menos impossível que consigo imaginar.
A vela dobrou-se em duas quando a enfiei na camisa. Senti a cera gelada
contra a pele. Minha. Ouvia Vindeliar a arrastar os pés na minha direção.
Pelo canto do olho, vi Dwalia a estender as mãos para o calor da fogueira.
Virei o olho bom para eles. Reppin tinha o meu grande casaco de peles. Ela
dobrara-o para formar uma almofada e estava sentada sobre ele junto da
fogueira, ao lado de Alaria. Viu-me a olhar e dirigiu-me um esgar de troça.
Fitei-lhe o braço e depois ergui o olhar para lhe sorrir. A mão exposta era
uma gorda almofada com dedos como salsichas. Via-se sangue escuro entre
os seus dedos e nas rugas dos nós dos dedos. Seria possível que ela não
tivesse tido o bom senso de lavar a mordida?
Avancei lentamente para o maior intervalo no círculo que elas faziam e
sentei-me aí. Dwalia levantou-se e veio pôr-se atrás de mim. Recusei-me
olhar para ela. “Esta noite não recebes comida. Não julgues que nos podes
fugir. Não podes. Alaria, ficas com a primeira velada. Acorda a Reppin para
a segunda. Não deixem Abelha fugir, senão vão pagar por isso.”
E afastou-se para o sítio onde tinham empilhado as mochilas e as
provisões que tinham trazido consigo. Não havia muito. Tinham fugido ao
ataque de Ellik com aquilo que haviam conseguido recolher à pressa.
Dwalia fez para si uma almofada granulosa com as mochilas e recostou-se
nelas sem qualquer preocupação com o conforto dos outros. Reppin olhou
em volta com matreirice e depois estendeu o meu casaco aberto antes de se
deitar nele e enrolar o excedente à sua volta. Vindeliar fitou-as e depois
limitou-se a deixar-se cair como um cão. Apoiou a cabeça larga na
almofada dos braços e fitou lugubremente o fogo. Alaria sentou-se de
pernas cruzadas, fitando-me com olhos furiosos. Ninguém prestou a mínima
atenção ao calcedino. Com as mãos acima da cabeça, ele estava a dançar
uma espécie de jiga em círculo, escancarando a boca num acéfalo desfrute
da música fantasmagórica. O seu cérebro podia estar atordoado mas era um
excelente dançarino.
Perguntei a mim mesma onde estaria o meu pai. Pensaria ele em mim?
Teria Esquiva voltado para Floresta Mirrada para lhe dizer que eu tinha sido
levada para dentro de uma pedra? Ou teria ela morrido na floresta? Se
tivesse morrido, ele nunca saberia o que me tinha acontecido ou onde
procurar. Estava com frio e com muita fome. E tão perdida.
Se não podes comer, dorme. O repouso é a única coisa que podes
oferecer a ti própria neste momento. Aceita-o.
Olhei para o chapéu que tinha recuperado. Simples lã cinzenta, não
tingida mas bem fiada e com a malha bem feita. Sacudi-o para me assegurar
de que não havia insetos lá dentro e depois, ainda com as mãos amarradas,
lutei por enfiá-lo na cabeça. A humidade estava gelada, mas a minha pele
aquecia-a lentamente. Manobrei até conseguir uma posição reclinada sobre
o lado menos dorido e virei costas ao fogo. O calor do meu corpo despertara
o odor da vela. Inspirei madressilva. Enrolei-me ligeiramente como se
estivesse em busca do sono, mas levei os pulsos à cara e recomecei a roer o
tecido.
Capítulo 2

O Toque de Prata

Existe uma força peculiar que insufla alguém que está a travar a
derradeira batalha. Essa batalha não está limitada à guerra nem a
força aos guerreiros. Vi esta força em velhas com a doença da tosse
e ouvi falar dela em famílias a morrer juntas à fome. Ela leva uma
pessoa a continuar, para lá da esperança ou do desespero, para lá
da perda de sangue e de ferimentos no ventre, para lá da própria
morte, num derradeiro esforço para salvar alguma coisa querida. É
coragem sem esperança. Durante a Guerra dos Navios Vermelhos,
vi um homem com o sangue a jorrar em jatos de onde o braço
esquerdo tinha estado mas a brandir a espada com o direito
enquanto protegia um camarada caído. Durante um recontro com
Forjados, vi uma mãe a tropeçar nas próprias entranhas enquanto
guinchava e se agarrava a um Forjado, tentando mantê-lo afastado
da filha.
Os Ilhéus têm uma palavra para essa coragem. Chamam-lhe
ultimangue, o último sangue, e acreditam que uma especial fortaleza
de espírito reside no derradeiro sangue que permanece em qualquer
pessoa antes de cair. De acordo com as lendas, só assim se pode
encontrar e usar essa espécie de coragem.
É uma terrível bravura e, na sua mais forte e pior variedade,
perdura durante meses quando se combate uma enfermidade
terminal. Ou, creio eu, quando se avança para cumprir um dever
que irá resultar na morte mas é completamente inevitável. Esse
ultimangue ilumina com uma terrível radiância tudo na vida de uma
pessoa. Todas as relações são iluminadas mostrando aquilo que
realmente são e foram no passado. Todas as ilusões desaparecem. O
falso é revelado com tanta nitidez como o verdadeiro.
FitzCavalaria Visionário
nquanto o sabor da erva se espalhava pela minha boca, os sons do tumulto

E
que me rodeava tornaram-se mais volumosos. Ergui a cabeça e
tentei focar os olhos. Sentia-os a picar. Apoiei-me nos braços de
Lante, com a familiar amargura do casco-de-elfo a espalhar-se-me
pela boca. Enquanto a erva me amortecia a magia, fui ficando mais
consciente daquilo que me rodeava. O pulso esquerdo doía-me com uma
dor que chegava ao osso, tão aguda como ferro gelado. Enquanto o Talento
correra através de mim, sarando e alterando as crianças de Kelsingra, a
minha consciência tinha encolhido, mas agora apercebia-me perfeitamente
dos gritos da multidão que me rodeava enquanto o som ia ricocheteando nas
grandiosas paredes da elegante sala dos Antigos. Captei o cheiro a suor de
medo que havia no ar. Estava preso na pressão da multidão, com alguns
Antigos a debater-se para se afastarem de mim enquanto outros
empurravam para se aproximar, na esperança de que eu pudesse sará-los.
Tanta gente! Mãos estendidas para mim, com gritos de “Por favor! Por
favor, só mais uma pessoa!”. Outros gritavam: “Deixai-me passar!”,
enquanto empurravam para se afastarem de mim. A corrente de Talento que
fluíra tão fortemente à minha volta e através de mim reduzira-se, mas não
tinha desaparecido. O casco-de-elfo de Lante era do tipo mais fraco, erva
crescida nos Seis Ducados e, a avaliar pelo sabor, algo velha. Ali, na cidade
dos Antigos, o Talento fluía tão fortemente e tão próximo que me parecia
que nem o casco-de-covas teria conseguido isolar-me dele por completo.
Mas era o suficiente. Eu estava consciente do Talento mas já não me
encontrava agrilhoado ao seu serviço. Contudo, a exaustão de o ter deixado
usar-me enfraquecia-me agora os músculos, precisamente no momento em
que eu mais precisava deles. O General Rapskal tinha arrancado o Bobo
para fora do meu alcance. O Antigo agarrava o pulso de Âmbar e mantinha
a sua mão prateada erguida, gritando: “Eu disse-vos! Eu disse-vos que eles
eram ladrões! Olhai para a mão dela, coberta de prata-de-dragão! Ela
descobriu o poço! Roubou os nossos dragões!”
Centelha agarrava-se ao outro braço de Âmbar, tentando libertá-la das
mãos do general. Os dentes da rapariga estavam à mostra, os caracóis
negros em desordem à volta da sua cara. A expressão de puro terror na cara
coberta de cicatrizes de Âmbar paralisou-me e deixou-me em pânico. Os
anos de provação que o Bobo sofrera revelavam-se naquele esgar hirto.
Transformavam-lhe a cara numa máscara mortuária de ossos e lábios
vermelhos e bochechas maquilhadas. Eu tinha de ir em seu auxílio, mas os
meus joelhos não paravam de se dobrar de moto próprio. Perseverança
agarrou-me no braço. “Príncipe FitzCavalaria, o que devo fazer?” Não
consegui encontrar fôlego para lhe responder.
“Fitz! Levantai-vos!”, rugiu Lante mesmo junto ao meu ouvido. Era tanto
súplica como ordem. Encontrei os pés e empurrei contra eles o meu peso.
Esforcei-me, trémulo, tentando manter as pernas direitas por baixo de mim.
Tínhamos chegado a Kelsingra apenas na véspera e, durante algumas
horas, eu fora o herói do momento, o príncipe mágico dos Seis Ducados que
sarara Ephron, o filho do rei e da rainha de Kelsingra. O Talento fluíra
através de mim, tão inebriante como brande de Orla d’Areia. A pedido do
Rei Reyn e da Rainha Malta, eu usara a minha magia para corrigir meia
dúzia de crianças tocadas pelos dragões. Abrira-me à poderosa corrente de
Talento da velha cidade dos Antigos. Ensopado com aquele poder
inebriante, eu abrira gargantas e regularizara ritmos cardíacos, endireitara
ossos e afastara escamas de olhos. Tornara alguns mais humanos, embora
uma rapariga tivesse desejado abraçar as suas mudanças dracónicas e eu a
tivesse ajudado a fazê-lo.
Mas o fluxo de Talento fora demasiado forte, demasiado inebriante. Eu
perdera o controlo da magia, transformara-me na sua ferramenta em vez de
ser seu mestre. Depois de as crianças que eu concordara sarar serem
reclamadas pelos pais, outros tinham avançado aos empurrões. Adultos dos
Ermos Chuvosos com alterações desconfortáveis, feias ou perigosas para as
suas vidas tinham suplicado a minha ajuda e eu dera-a com mão pródiga,
arrebatado pelo vasto prazer daquele fluxo. Sentira o meu último resquício
de controlo a ceder, mas quando me entregara àquela gloriosa inundação e
ao seu convite para me fundir com a magia, Âmbar tirara a luva da mão.
Para me salvar, revelara a prata-de-dragão que tinha nos dedos. Para me
salvar, encostara três escaldantes pontas de dedos ao meu pulso nu, abrira a
fogo o caminho até à minha mente e chamara-me de volta. Para me salvar,
denunciara-se como ladra. O quente beijo do toque dos seus dedos ainda
pulsava como uma queimadura recente, fazendo subir uma profunda dor
pelos ossos do meu braço esquerdo, até ao ombro, até às costas e ao
pescoço.
Não podia saber que danos aquilo estava a fazer-me agora. Mas pelo
menos encontrava-me outra vez ancorado ao meu corpo. Estava ancorado a
ele e ele arrastava-me para baixo. Perdera a conta a quantos Antigos tocara
e alterara, mas o meu corpo continuava a contá-los. Cada um custara-me
um preço, cada mudança arrancara-me força, e agora essa dívida tinha de
ser paga. Apesar de todos os meus esforços, a minha cabeça tombava, e eu
mal conseguia manter os olhos abertos no meio do perigo e do ruído que me
rodeava por todos os lados. Via a sala como que através de uma névoa.
“Rapskal, deixa de ser imbecil!” Era o Rei Reyn a acrescentar o seu
rugido à barulheira.
Lante apertou abruptamente o abraço em volta do meu peito,
endireitando-me melhor à força. “Largai-a!”, berrou. “Libertai a nossa
amiga, senão o príncipe irá desfazer todas as curas que operou! Largai-a
imediatamente!”
Ouvi arquejos, lamentos, um homem a gritar: “Não! Ele não pode fazer
isso!” Uma mulher gritou: “Largai-a, Rapskal! Largai-a!”
A voz de Malta ressoou com comando quando bradou: “Não é assim que
tratamos hóspedes e embaixadores! Liberta-a, Rapskal, neste mesmo
momento!” Tinha o rosto afogueado e a crista de pele por cima da sua testa
florescia de cor.
“Largai-me!” A voz de Âmbar ressoou com autoridade. Ela fora buscar a
algum profundo poço de coragem a vontade de resistir em seu próprio
nome. O seu grito cortou o ruído da multidão. “Libertai-me, senão toco-
vos!” E cumpriu a ameaça, atirando-se a Rapskal em vez de tentar libertar a
mão. A súbita inversão chocou-o, e os dedos prateados dela aproximaram-
se perigosamente da cara do Antigo. O general soltou um grito de alarme e
afastou-se dela enquanto lhe largava o pulso. Mas ela não terminara. “Para
trás, todos!”, ordenou. “Dai-nos espaço e deixai-me cuidar do príncipe,
senão, por Sa, eu toco-vos mesmo!” O seu comando era o de uma rainha
enfurecida, com a voz colocada de forma a que a ameaça fosse ouvida. O
dedo prateado apontava enquanto ela o brandia num arco lento, e as pessoas
puseram-se subitamente a tropeçar umas nas outras, na pressa de sair do seu
alcance.
A mãe da rapariga com os pés de dragão falou. “Eu faria o que ela diz!”,
avisou. “Se aquilo que tem nos dedos for realmente prata-de-dragão, um
toque quererá dizer uma morte lenta. Ela vai chegar-vos aos ossos,
trespassando a carne. Viajará pelos vossos ossos, subindo-vos a espinha até
chegar ao crânio. Acabarão por ficar gratos por morrer.” Enquanto os outros
se iam afastando de nós, ela começou a abrir caminho pela multidão na
nossa direção. Não era uma pessoa grande, mas os outros guardiães de
dragões estavam a abrir-lhe alas. Parou a uma distância segura de nós. O
seu dragão dera-lhe um padrão de azul, negro e prateado. As asas que lhe
pesavam nos ombros estavam bem dobradas sobre as costas. As garras nos
dedos dos pés tamborilavam no chão enquanto ela caminhava. De todos os
Antigos presentes, ela era a mais fortemente modificada pelo toque do seu
dragão. O seu aviso e a ameaça de Âmbar abriram um pequeno espaço à
nossa volta.
Âmbar retirou-se para junto de mim, arquejando enquanto procurava
acalmar a respiração. Centelha estava do seu outro lado e Perseverança
ocupou uma posição à sua frente. A voz de Âmbar soou baixa e calma
quando disse: “Centelha, recupera a minha luva, se fizeres favor.”
“Claro, senhora.” O objeto pedido caíra ao chão. Centelha baixou-se e
pegou nele cautelosamente, com dois dedos. “Vou tocar-vos no pulso”,
disse a Âmbar, num aviso, e deu pancadinhas nas costas da mão dela para a
guiar até à luva. Âmbar ainda respirava de forma irregular enquanto
enluvava a mão mas, fraco como eu estava, fiquei imensamente contente
por ver que ela recuperava alguma da força e da presença de espírito do
Bobo. Enfiou a mão não prateada no meu braço e eu senti-me tranquilizado
pelo seu toque. Ele pareceu afastar parte da corrente de Talento que ainda
estava a percorrer-me. Senti-me simultaneamente ligado a ela e menos
agredido pelo Talento.
“Acho que consigo manter-me em pé”, murmurei a Lante e ele aliviou a
força com que me segurava. Não podia deixar que alguém visse como a
força se me tinha esgotado. Esfreguei os olhos e limpei da cara pó de casco-
de-elfo. Os joelhos não se me dobraram e consegui erguer firmemente a
cabeça. Endireitei-me. Desejava fortemente ter na mão a faca que trazia na
bota mas sabia que, se me baixasse para lhe pegar, não pararia até me
estatelar no chão.
A mulher que avisara os outros avançou para o espaço vazio que agora
nos rodeava, mas ficou fora de alcance de um braço. “Senhora Âmbar, é
realmente prata-de-dragão que tendes na mão?”, perguntou com um calmo
temor.
“É!” O General Rapskal encontrara a coragem e foi colocar-se ao lado
dela. “E roubou-o do poço dos dragões. Tem de ser punida! Guardiães e
povo de Kelsingra, não podemos deixar-nos seduzir pela cura de algumas
crianças! Nem sequer sabemos se esta magia vai durar ou é uma fraude.
Mas todos vimos a prova do roubo desta intrusa e sabemos que o nosso
dever primordial é, e terá sempre de ser, para com os dragões que travaram
amizade connosco.”
“Falai por vós, Rapskal.” A mulher dirigiu-lhe um olhar frio. “O meu
dever primordial é para com a minha filha e ela já não cambaleia quando se
põe em pé.”
“Deixais-vos comprar assim tão facilmente, Thymara?”, perguntou
Rapskal num tom contundente.
O pai da criança penetrou no círculo para se ir pôr ao lado da mulher
chamada Thymara. A rapariga com os pés de dragão ia empoleirada nos
seus ombros e olhou-nos do alto. Ele falou como se repreendesse uma
criança teimosa, com uma censura tingida de familiaridade. “Vós, entre
todas as pessoas, Rapskal, devíeis saber que Thymara não pode ser
comprada. Respondei-me ao seguinte: quem foi prejudicado pelo facto de
esta senhora ter prateado os dedos? Só ela. Irá morrer disso. Portanto, o que
é que lhe podeis fazer de pior? Deixai-a em paz. Deixai-os a todos em paz,
e deixai-os em paz com os meus agradecimentos.”
“Ela roubou!” O grito de Rapskal transformou-se num guincho que
atirava a sua dignidade ao vento.
Reyn conseguira atravessar a multidão à cotovelada. A Rainha Malta
viera logo atrás dele, com a cara rosada sob as escamas e os olhos
incendiados de ira. As alterações dracónicas que nela havia eram
amplificadas pela sua fúria. Via-se nos seus olhos uma refulgência que não
era humana e a crista de pele na risca do cabelo parecia mais alta; fazia-me
lembrar uma crista de galo. Foi ela a primeira a falar. “As minhas
desculpas, Príncipe FitzCavalaria, Dama Âmbar. Os nossos descontrolaram-
se na esperança de serem sarados. E o General Rapskal às vezes é…”
“Não faleis por mim!”, interrompeu o general. “Ela roubou Prata. Vimos
a prova e não, não basta que se tenha envenenado. Não podemos deixar que
saia de Kelsingra. Nenhum deles pode sair, pois agora conhecem o segredo
do poço dos dragões!”
Âmbar falou. Soou calma mas projetou as palavras de tal forma que
todos a conseguiram ouvir. “Creio que já havia Prata nos meus dedos antes
de terdes nascido, General Rapskal. Antes de os vossos dragões eclodirem,
antes de Kelsingra ser encontrada e reivindicada já eu trazia nos dedos
aquilo a que nos Seis Ducados chamamos Talento. E a vossa rainha pode
atestá-lo.”
“Ela não é nossa rainha e ele não é nosso rei!” O peito do General
Rapskal oscilava com a emoção; ao longo do pescoço, manchas de escamas
mostravam um tom de escarlate bem vivo. “Foi o que disseram, uma e outra
vez! Disseram que tínhamos de nos governar a nós próprios, que não
passam de figuras de proa perante o resto do mundo. Portanto, guardiães,
governemo-nos a nós mesmos! Vamos pôr os nossos dragões em primeiro
lugar, como devemos fazer!” Sacudiu um dedo na direção da Dama Âmbar,
a uma distância segura, enquanto exigia aos seus: “Lembrai-vos de como
nos foi difícil encontrar e renovar o poço de Prata! Quereis acreditar na
história ridícula dela sobre trazê-la nas pontas dos dedos há dezenas de
anos, sem que por causa disso tenha morrido?”
A voz pesarosa da Rainha Malta cortou a arenga de Rapskal. “Lamento
dizer que não posso atestar tal coisa, Dama Âmbar. Só vos conheci
brevemente durante o tempo que passastes em Vilamonte, e raramente vos
encontrei durante as negociações dos vossos empréstimos a muitos dos
Mercadores.” Abanou a cabeça. “A palavra de uma Mercadora é tudo o que
tem para dar e eu não vergarei a minha, mesmo para ajudar uma amiga. O
mais que posso dizer é que, quando vos conheci nesses tempos, andáveis
sempre enluvada. Nunca vos vi as mãos.”
“Ouviste-la!” O grito de Rapskal foi triunfal. “Não existe nenhuma
prova! Não pode haver nenhuma…”
“Se me derdes licença para falar…” Durante anos, enquanto bobo do Rei
Sagaz, o Bobo tivera de fazer com que até os comentários murmurados
fossem ouvidos numa sala grande e por vezes repleta de gente. Levantara a
voz para que se projetasse e ela agora cortara não só o grito de Rapskal,
mas também os resmungos da multidão. Um silêncio fervilhante preencheu
a sala. Ele não se moveu como um cego quando avançou para o espaço que
a sua ameaça esvaziara. Era um artista a subir ao palco. O artista
transparecia na súbita elegância dos seus movimentos, na voz de contador
de histórias e no gesto amplo da sua mão enluvada. Para mim era o Bobo, e
Âmbar não passava de uma camada na sua representação.
“Lembrai-vos de um dia de verão, querida Rainha Malta. Não passáveis
de uma rapariga, e tudo estava em desordem na vossa vida. Todas as
esperanças da vossa família na sobrevivência financeira dependiam do
lançamento bem-sucedido do Modelo Ideal, um navio vivo tão louco que já
por três vezes se virara e matara toda a tripulação. Mas o navio louco era a
vossa única esperança, e a família Vestrit depositara tudo o que restava dos
seus recursos nesse resgate e recuperação.”
Tinha-os na mão — e a mim. Eu estava tão arrebatado pela sua história
como qualquer dos restantes.
“A vossa família esperava que o Modelo Ideal fosse capaz de encontrar e
trazer para junto de vós o vosso pai e irmão, ambos há tanto tempo
desaparecidos. Que de alguma forma conseguísseis reclamar Vivácia, o
navio vivo da vossa família, pois havia boatos de que ela fora capturada por
piratas. E não uns piratas quaisquer, mas o lendário Capitão Kennit em
pessoa! Estáveis no convés do navio louco, mostrando uma expressão tão
corajosa com o vosso vestido remodelado e a sombrinha do ano anterior.
Quando todos os outros desceram para fazer uma visita ao navio, vós
ficastes no convés e eu fiquei perto de vós para vos vigiar como a vossa tia
Alteia pedira.”
“Lembro-me desse dia”, disse lentamente Malta. “Foi a primeira vez que
realmente falámos uma com a outra. Lembro-me… nós falámos do futuro.
Do que ele podia ter reservado para mim. Dissestes que uma vida pequena
nunca me satisfaria. Dissestes que eu teria de conquistar o meu futuro.
Como foi que o expressastes?”
A Dama Âmbar sorriu, contente por aquela rainha se lembrar de palavras
que lhe tinham sido dirigidas em criança. “O que vos disse é tão verdade
hoje como era nessa época. O amanhã deve-vos a soma dos vossos ontens.
Nada mais do que isso. E nada menos.”
O sorriso de Malta foi como a luz do sol. “E avisastes-me de que por
vezes as pessoas desejavam que o amanhã não lhes pagasse tão
completamente.”
“Avisei.”
A rainha avançou, tornando-se parte do espetáculo sem dar por isso, ao
ocupar o seu lugar no palco de Âmbar. A testa franziu-se-lhe e falou como
uma mulher num sonho. “E depois… o Modelo Ideal sussurrou-me. E eu
senti… oh, nessa altura não o sabia. Senti o dragão Tintaglia capturar os
meus pensamentos. Senti que ela me ia sufocar quando me forçou a
partilhar o seu confinamento na sepultura! E eu desmaiei. Foi terrível.
Senti-me encurralada com o dragão e senti que nunca conseguiria encontrar
o caminho de regresso ao meu corpo.”
“Eu apanhei-vos”, disse Âmbar. “E toquei-vos, na parte de trás do
pescoço, com os meus dedos cobertos de Talento. Prateados, como vós
diríeis. E, através dessa magia, chamei-vos de volta ao vosso corpo. Mas
isso deixou em vós uma marca. E um minúsculo fiozinho de ligação que
partilhamos até hoje.”
“O quê?” Malta estava incrédula.
“É verdade!” As palavras saltaram da boca do Rei Reyn, em conjunto
com uma gargalhada nascida tanto de alívio como de alegria. “Na parte de
trás do teu pescoço, querida! Eu vi-a aí nos tempos em que o teu cabelo era
tão negro como a asa de um corvo, antes de Tintaglia o tornar dourado. Três
ovais acinzentadas, como dedadas de prata que a idade tivesse
empoeirado.”
A boca de Malta abriu-se de surpresa. Perante as palavras dele, a sua mão
saltara para a parte de trás do pescoço, por baixo da cascata de um glorioso
cabelo dourado que não era louro. “Sempre houve aqui um sítio dorido.
Como uma nódoa negra que nunca tivesse sarado.” De repente, ela ergueu a
cascata de madeixas e segurou-as no topo da cabeça. “Vinde ver, todos os
que quiserdes, vinde ver se o que o meu marido e a Senhora Âmbar dizem é
verdade.”
Eu fui um dos que o fizeram. Avancei a cambalear, ainda apoiado a
Lante, para ver as mesmas marcas que em tempos trouxera no pulso. Três
ovais acinzentadas, a marca da mão prateada do Bobo. Estavam lá.
A mulher chamada Thymara fez uma expressão consternada quando
chegou a sua vez de fitar a nuca da rainha. “É um espanto que não vos tenha
matado”, disse numa voz surda.
Julguei que aquilo poria fim ao assunto, mas depois de o General Rapskal
levar três vezes mais tempo do que qualquer outra pessoa a fitar as marcas,
virou costas à rainha e disse: “Que importância tem se ela tinha a Prata
nessa altura? A prata do poço pertence aos dragões. Deve ser punida na
mesma.”
Endireitei as costas e retesei a barriga. A minha voz não podia tremer.
Uma inspiração mais profunda para que as minhas palavras fossem
projetadas. Esperei não vomitar. “Não veio de um poço. Veio das mãos do
próprio Rei Veracidade, que ele cobriu de Talento para produzir a sua
grande e derradeira magia. Ele obteve-o num local onde um rio de Talento
corria no interior de um rio de água. Não lhe chameis Prata-de-Dragão. É
Talento do rio de Talento.”
“E onde poderá isso ficar?”, perguntou Rapskal numa voz tão faminta
que me alarmou.
“Não sei”, respondi com honestidade. “Só o vi uma vez, num sonho de
Talento. O meu rei nunca me permitiu que lá fosse consigo para evitar que
eu cedesse à tentação de me mergulhar nele.”
“Tentação!” Thymara estava chocada. “Eu, que tenho o privilégio de usar
a Prata para fazer trabalhos para a cidade, não sinto nenhuma tentação de
me mergulhar nela. Na verdade, temo-a.”
“Isso é porque não nascestes com ela a correr-vos no sangue”, disse o
Bobo, “como acontece com alguns da linhagem Visionário. Como
aconteceu com o Príncipe FitzCavalaria, nascido com o Talento como
magia dentro de si, uma magia que é capaz de usar para dar forma a
crianças como alguns poderiam dar a pedra.”
Aquilo emudeceu-os.
“Será possível?” Isto veio da Antiga alada, uma pergunta genuína.
Âmbar voltou a erguer a voz. “A magia que trago nas mãos é a mesma
que me foi acidentalmente oferecida pelo Rei Veracidade. É legitimamente
minha, não é mais roubada do que a magia que corre nas veias do príncipe,
a magia que o autorizastes alegremente a partilhar com os vossos filhos.
Não é mais roubada do que a magia que tendes em vós, que vos altera e
marca as vossas crianças. Como lhe chamais? Marcados pelos Ermos
Chuvosos? Alterados pelos dragões? Se esta Prata nos meus dedos é
roubada, ora, então qualquer um daqueles presentes que foi sarado partilhou
do roubo do príncipe.
“Isso não desculpa…”, começou Rapskal.
“Basta disto”, ordenou o Rei Reyn. Vi os olhos de Rapskal relampejar de
fúria, mas ele não falou enquanto Reyn acrescentava: “Abusámos dos
nossos hóspedes e deixámo-los exaustos. Exigimos ao príncipe em
demasiada quantidade aquilo que ele partilhou livremente. Podeis ver como
está pálido e como treme. Por favor, meus hóspedes, regressai aos vossos
aposentos. Deixai que vos levemos a ambos uma refeição ligeira e o nosso
sincero pedido de desculpa. Mas, acima de tudo, deixai que vos ofereçamos
os nossos agradecimentos.”
Avançou e, com um gesto, afastou Perseverança para o lado. Atrás dele,
veio a Rainha Malta, oferecendo destemidamente o braço a Âmbar. Reyn
agarrou-me no braço com uma força surpreendente. Dei por mim um pouco
humilhado mas grato pela ajuda. Consegui olhar uma vez para trás e ver
Malta e Centelha a escoltar Âmbar enquanto Per vinha atrás de todos,
devagar e com muitos olhares para trás, como se estivesse desconfiado de
que o perigo nos seguiria, mas as portas fecharam-se atrás de nós sem
incidentes. Percorremos um corredor cheio de pessoas curiosas que tinham
sido excluídas daquela audiência. Depois ouvi as portas abrir-se atrás de
nós, e uma rajada de conversas jorrou para fora e transformou-se num
rugido. O corredor parecia interminável. As escadas, quando lá chegámos,
oscilavam na minha visão. Não conseguia imaginar que seria capaz de as
subir. Mas sabia que tinha de o fazer.
E fi-lo, um lento passo atrás do outro, até pararmos junto das portas do
meu quarto de hóspede. Consegui dizer: “Obrigado.”
“Vós agradeceis-me.” Reyn soltou uma gargalhada resfolegada. “Eu mais
mereceria uma praga vossa, depois daquilo por que vos fizemos passar.”
“Vós, não.”
“Vou deixar-vos em paz”, disse ele, despedindo-se, e permaneceu no
exterior com a sua rainha enquanto o meu pequeno grupo entrava no meu
quarto. Quando ouvi Perseverança fechar a porta atrás de mim, o alívio
varreu-me e os meus joelhos tentaram dobrar-se. Lante pôs o braço à minha
volta para me ajudar a chegar à mesa. Aceitei a sua mão para me equilibrar.
Um erro. Ele soltou um súbito berro e caiu de joelhos. No mesmo
momento, senti o Talento a correr através de mim tão rapidamente como o
ataque de uma serpente. Lante agarrou-se à cicatriz do ferimento de espada
que os atacantes calcedinos lhe tinham causado. O ferimento estivera
fechado, aparentemente sarado. Mas nesse breve contacto, eu soubera que
havia mais para o seu corpo fazer e também ficara a saber de uma costela
que sarara torta e de uma fratura no maxilar que estava levemente infetada e
ainda a causar-lhe dor. Tudo fora reparado e posto como deve ser, se é que
se pode chamar reparação a uma correção desapiedada como aquela. Eu
colapsei-lhe alegremente em cima.
Lante gemeu debaixo de mim. Tentei rolar de cima dele mas não fui
capaz de arranjar forças para tal. Ouvi Perseverança arquejar: “Oh, senhor!
Deixai-me ajudar-vos!”
“Não toques…”, comecei, mas ele já se baixara e me pegara na mão. O
seu grito foi mais penetrante, a voz de um jovem a ser levada de volta à voz
estridente de um rapaz. Caiu de lado e soluçou por duas vezes antes de
conseguir dominar a dor. Eu consegui rolar para longe de ambos. Lante não
se mexeu.
“O que aconteceu?” A pergunta de Âmbar estava próxima de um grito.
“Fomos atacados? Fitz? Fitz, onde estás?”
“Estou aqui! Não há perigo para ti. O Talento… eu toquei em Lante. E
em Per.” Foram todas as palavras que consegui dizer.
“O quê?”
“Ele… o Talento fez qualquer coisa ao meu ferimento. Está outra vez a
sangrar. O meu ombro”, disse Perseverança numa voz tensa.
Eu sabia que sangraria. Tinha de sangrar. Mas só brevemente. Era difícil
encontrar forças para falar. Jazi sobre as costas, fitando o teto elevado.
Imitava um céu. Nuvens fofas artisticamente criadas moviam-se por uma
extensão azul-clara. Levantei a cabeça e invoquei a voz. “Não é sangue,
Per. É só humidade. Ainda havia um bocado de tecido profundamente
encravado no ferimento, a ulcerar devagar. Tinha de sair e os fluidos da
infeção também. Portanto, saiu e o teu ferimento fechou-se a seguir. Agora
está curado.”
Depois voltei a deitar-me no chão e vi a sala elegante balançar à minha
volta. Se fechasse os olhos, oscilava mais depressa. Se os abrisse, as
paredes florestadas oscilavam. Ouvi Lante rolar sobre a barriga e depois
levantar-se a cambalear. Acocorou-se por cima de Per e disse com
suavidade: “Deixa-me ver isso.”
“Vê também os teus ferimentos”, disse eu em voz mortiça. Virei os olhos,
vi Centelha em pé por cima de mim e gritei: “Não! Não me toques. Eu não
consigo controlar isto.”
“Deixem-me ajudá-lo”, disse a Dama Âmbar em voz baixa. Dois passos
hesitantes trouxeram-na para o local onde eu jazia no chão.
Apertei bem os braços, escondendo as mãos nuas sob o colete. “Não. Tu,
de todas as pessoas, és quem menos pode tocar-me!”
Ela agachara-se elegantemente a meu lado mas, quando ele recuou
apoiando-se nos calcanhares, era o meu Bobo, nada tinha de Âmbar. Havia
uma imensa mágoa na sua voz quando ele disse: “Julgas que eu te
arrancaria a cura que não quisesses dar-me, Fitz?”
A sala girava e eu estava demasiado extenuado para lhe esconder fosse o
que fosse. “Se me tocasses, temo que o Talento me rasgaria como uma
espada rasga a pele. Se puder, ele devolver-te-á a visão. Independentemente
do que isso me custe. E eu creio que o custo de restaurar a tua visão será eu
perder a minha.”
A mudança na cara dele foi surpreendente. Apesar de ser tão pálido,
ficou mais branco ainda, até poder ter sido esculpido em gelo. A emoção
retesou-lhe a pele da cara, revelando os ossos que lhe enquadravam o rosto.
Cicatrizes que se tinham desvanecido destacaram-se como rachas em
cerâmica de boa qualidade. Tentei focar nele o olhar, mas ele parecia
mover-se com a sala. Sentia-me tão nauseado e enjoado, e odiava o segredo
que tinha de partilhar com ele. Mas não havia forma de o esconder por mais
tempo. “Bobo, nós somos demasiado próximos. Por cada dano que removi
da tua carne, o meu corpo assumiu o ferimento. Não tão virulentamente
como os ferimentos que tu trazias, mas quando sarei as punhaladas que te
dei na barriga, senti-as na minha no dia seguinte. Quando fechei as chagas
que tinhas nas costas, elas abriram-se nas minhas.”
“Eu vi esses ferimentos!”, arquejou Perseverança. “Julguei que tivésseis
sido atacado. Apunhalado nas costas.”
Não parei perante as palavras dele. “Quando sarei os ossos em volta das
tuas órbitas, os meus olhos incharam e enegreceram no dia seguinte. Se me
tocasses, Bobo…”
“Não vou tocar!”, exclamou ele. Pôs-se em pé de um salto e cambaleou
cegamente para longe de mim. “Saiam daqui. Todos os três! Saiam, já. Eu e
o Fitz temos de conversar em privado. Não, Centelha, eu fico bem. Consigo
cuidar de mim. Por favor, vão-se embora. Já.”
Eles retiraram-se, mas não rapidamente. Saíram em grupo, com muitos
olhares para trás. Centelha pegara na mão de Per e, quando olharam para
trás, fizeram-no com as caras de crianças aflitas. Lante foi o último a ir e a
sua expressão estava fixa num olhar Visionário tão semelhante ao do pai
que ninguém se poderia ter enganado quanto à sua linhagem. “No meu
quarto”, disse aos outros enquanto fechava a porta atrás de si e eu soube que
ele tentaria mantê-los a salvo. Esperei que não houvesse nenhum verdadeiro
perigo. Mas também temia que o General Rapskal não tivesse desistido de
nós.
“Explica”, disse o Bobo numa voz seca.
Ergui-me do chão. Foi muito mais difícil do que devia ter sido. Rolei
sobre a barriga, puxei os joelhos para baixo de mim até estar de quatro e
depois levantei-me a cambalear. Apoiei-me na beira da mesa e contornei-a
até conseguir alcançar uma cadeira. A minha cura inadvertida, primeiro de
Lante e depois de Per, tinha extraído o que restara das minhas forças.
Sentado, inspirei tremulamente. Era tão difícil manter a cabeça erguida.
“Não consigo explicar o que não compreendo. Nunca aconteceu com
nenhuma cura de Talento a que eu tivesse assistido. Só entre mim e ti.
Qualquer ferimento que te retire aparece em mim.”
Ele levantou-se, com os braços cruzados ao peito. Trazia a sua própria
cara, e os lábios pintados e as bochechas avermelhadas de Âmbar pareciam
agora estranhos. Os seus olhos pareceram perfurar-me. “Não. Explica por
que motivo me escondeste isso! Por que motivo não pudeste confiar-me a
simples verdade. O que imaginavas? Que eu te exigiria que te cegasses para
eu poder ver?”
“Eu… não!” Apoiei os cotovelos na mesa e pousei a cabeça nas mãos.
Não me conseguia recordar de alguma vez me ter sentido mais esgotado.
Um latejar constante de uma dor intensa nas têmporas acompanhava o ritmo
do meu coração. Sentia uma necessidade desesperada de recuperar as
forças, mas, até estar quieto numa cadeira, estava a exigir-me mais do que
eu tinha para dar. Queria cair no chão e entregar-me ao sono. Tentei ordenar
os pensamentos. “Tu estavas tão desesperado por recuperar a visão. Não
quis tirar-te essa esperança. O meu plano era que, quando estivesses forte o
suficiente, o círculo tentasse sarar-te, se tu deixasses. O que receava era que
se te dissesse que não te podia sarar sem perder a visão, tu perdesses toda a
esperança.” O último bocado de verdade era anguloso e trazia arestas
aguçadas ao passar-me pela boca. “E temia que me julgasses egoísta por
não te sarar.” Deixei a cabeça afundar-se mais para cima dos braços
dobrados.
O Bobo disse qualquer coisa.
“Não percebi.”
“Não era para perceberes”, respondeu ele em voz baixa. Depois admitiu:
“Chamei-te paspalho.”
“Ah.” Mal conseguia manter os olhos abertos.
Ele fez uma pergunta cautelosa. “Depois de teres recolhido os meus
males, eles sararam?”
“Sim. Em grande medida. Mas muito devagar.” Ainda tinha nas costas as
sardas rosadas que eram eco das úlceras que haviam estado nas costas dele.
“Pelo menos foi o que me pareceu. Sabes como o meu corpo é desde aquela
cura descontrolada que o círculo fez em mim há anos. Mal envelheço e os
meus ferimentos curam de um dia para o outro, deixando-me exausto. Mas
sararam, Bobo. Assim que percebi o que estava a acontecer, passei a ter
mais cuidado. Quando trabalhei nos ossos em volta dos teus olhos, mantive
um controlo rígido.” Parei. Fazer aquela oferta era aterrorizador. Mas na
nossa espécie de amizade, ela tinha de ser feita. “Eu podia tentar sarar os
teus olhos. Dar-te visão, perder a minha e ver se o meu corpo seria capaz de
a restaurar. Podia levar tempo. E não tenho a certeza de este ser o melhor
local para fazermos essa tentativa. Talvez em Vilamonte, depois de
enviarmos os outros para casa, possamos alojar-nos em algum sítio e fazer a
tentativa.”
“Não. Não sejas estúpido.” O tom dele proibia qualquer resposta.
No seu longo silêncio, o sono tomou conta de mim, derramando-se para
todas as partes do meu corpo. Era aquela exigência absorvente que o corpo
faz, uma exigência que não aceita recusa.
“Fitz. Fitz? Olha para mim. O que vês?”
Forcei as pálpebras a abrir-se e olhei para ele. Julguei saber o que ele
precisava de ouvir. “Vejo o meu amigo. O meu mais antigo e mais querido
amigo. Não importa que disfarce usas.”
“E vês-me claramente?”
Algo na voz dele me fez erguer a cabeça. Pisquei olhos lacrimejosos e
fitei-o. Ele nadou durante algum tempo até ficar focado. “Sim.”
Ele soltou a respiração sustida. “Ainda bem. Porque, quando te toquei,
senti acontecer uma coisa, algo mais do que esperava. Tentei alcançar-te,
para te chamar de volta, porque temia que estivesses a desaparecer na
corrente de Talento. Mas quando te toquei, não foi como se tocasse outra
pessoa. Foi como unir as minhas mãos. Como se o teu sangue subitamente
corresse pelas minhas veias. Fitz, eu consigo ver a tua forma, aí sentado na
cadeira. Temo que possa ter-te tirado alguma coisa.”
“Oh. Ainda bem. Fico contente.” Fechei os olhos, demasiado cansado
para a surpresa. Demasiado exausto para o medo. Pensei naquele outro dia,
há muito tempo, quando o puxara de volta da morte e o voltara a empurrar
para o seu corpo. Nesse momento, quando saíra do corpo que reparara para
ele, quando passáramos um pelo outro antes de voltarmos a reocupar as
nossas próprias peles, eu sentira o mesmo. Uma sensação de unicidade. De
completude. Recordei-o, mas estava demasiado fatigado para o pôr em
palavras.
Pousei a cabeça na mesa e adormeci.

Flutuava. Fizera parte de algo imenso, mas agora estava solto. Arrancado ao
grande propósito que me usara como conduta. Inútil. Outra vez. Vozes
sopradas à distância.
“Eu costumava ter pesadelos sobre ele. Uma vez molhei a cama.”
Um rapaz soltou uma meia gargalhada. “Sobre ele? Porquê?”
“Por causa da primeira vez que o encontrei. Não passava de uma criança,
na verdade. Uma criança a quem tinha sido atribuída uma tarefa
aparentemente inofensiva. Deixar uma prenda para um bebé.” O homem
pigarreou. “Ele apanhou-me no quarto de Abelha. Encurralou-me como a
uma ratazana. Devia saber que eu vinha a caminho, embora eu não consiga
imaginar como. Apareceu de repente lá, com uma faca encostada à minha
garganta.”
Silêncio, respirações sustidas. “E depois?”
“Ele forçou-me a despir-me até à pele. Agora sei que estava decidido a
desarmar-me por completo. Ficou com tudo o que eu trazia. Pequenas facas,
venenos, cera para copiar chaves. Todas as coisas que eu estava tão
orgulhoso por ter, todas as ferramentazinhas daquilo em que o meu pai
queria que eu me transformasse. Ficou com elas e eu fiquei nu e a tremer
enquanto ele me fitava. A decidir o que fazer comigo.”
“Julgastes que ele ia matar-vos? O Tomé Texugo?”
“Eu sabia quem ele era. Rosamaria tinha-me dito. E tinha-me dito que ele
era muito mais perigoso do que eu poderia imaginar, e de mais maneiras.
Manhoso. E que sempre tinha havido boatos de que ele tinha… apetites.”
“Não entendo.”
Uma pausa. “De que ele talvez desejasse tanto rapazes como gostava de
mulheres.”
Um silêncio morto. Depois um rapaz riu-se. “Ele? Ele não. Para ele só
havia uma pessoa. A Dama Moli. Sempre foi uma piada entre os criados de
Floresta Mirrada.” Voltou a rir-se e depois arquejou: “‘Bate duas vezes’,
escarneciam as criadas da cozinha. ‘E depois espera e bate outra vez. Nunca
entres até que um deles te convide a entrar. Nunca se sabe onde podem estar
enrolados um com o outro.’ Os homens da propriedade orgulhavam-se dele.
‘Aquele velho garanhão não perdeu o fogo’, diziam. No gabinete. Nos
jardins. Nos pomares.”
O pomar. Um dia de verão, depois de os filhos dela terem partido em
busca de fortuna. Tínhamos passeado por entre as árvores, olhando para as
maçãs em crescimento, conversando sobre a colheita que se aproximava.
Moli, com as mãos doces das flores silvestres que tinha colhido. Eu parara
para lhe enfiar um raminho de véu-de-noiva no cabelo. Ela levantara a cara
para mim, a sorrir. O beijo demorado tinha-se transformado em algo mais.
“Quando a Dama Esquiva veio para Floresta Mirrada, uma das novas
criadas disse que ele tinha partido para arranjar uma mulher disposta a dar-
se. Foi a cozinheira Nozmoscada que me falou disso. Ela disse à criada:
‘Ele não. Para ele foi só a Dama Moli e mais ninguém, nunca. Nem sequer
consegue ver outras mulheres.’ Depois contou a Pândego o que a criada
tinha dito. Pândego chamou-a ao seu gabinete. ‘Ele não é Dom
Agarrabelisca, é o Depositário Texugo. E não teremos aqui mexericos
desses.’ E depois disse-lhe para embalar as coisas dela. Foi o que a
cozinheira Nozmoscada nos disse.”
Moli cheirara a verão. As flores dela tinham-se espalhado pelo chão
quando eu a puxara para mim. As profundas ervas do pomar eram uma
muralha pouco sólida à nossa volta. Roupa afastada, a fivela teimosa do
meu cinto, e depois ela estava montada em mim, agarrando-me os ombros,
apoiando-se com força nas mãos enquanto me prendia no chão. Baixando-
se, com os peitos livres da blusa, a pousar a boca na minha. O sol aquecia a
sua pele nua sob o meu toque. Moli. Moli.
“E agora? Ainda tendes medo dele?”, perguntou o rapaz.
O homem levou tempo a responder. “Ele deve ser temido. Não te iludas
quanto a isso, Per. O Fitz é um homem perigoso. Mas eu não estou aqui por
ter legítimas cautelas a respeito dele. Estou aqui para fazer o que o meu pai
me pediu. O meu pai encarregou-me de o proteger. De o manter a salvo de
si próprio. De o trazer para casa quando tudo estiver feito, se puder.”
“Isso não vai ser fácil”, disse o rapaz com relutância. “Eu ouvi Rapoluva
a falar com Enigma depois daquela batalha na floresta. Disse que ele estava
decidido a magoar-se. A pôr-se fim, uma vez que a mulher estava morta e a
filha desaparecida.”
“Não vai ser fácil”, concedeu o homem com um suspiro. “Não vai ser
fácil.”

Sonhei. Não foi um sonho agradável. Eu não era uma mosca, mas estava
preso numa teia de um tipo peculiar, não de fios pegajosos mas de canais
definidos que eu tinha de seguir, como se fossem caminhos profundos
abertos numa floresta impenetrável de árvores amortalhadas em nevoeiro. E
assim avancei, não de moto próprio mas incapaz de fazer outra coisa. Não
conseguia ver onde levava o trilho, mas não havia outro. Uma vez, olhei
para trás de mim, mas o caminho que seguira tinha desaparecido. Só podia
prosseguir.
Ela falou-me. Interferiste com o que é meu. Estou surpreendida, humano.
Serás demasiado estúpido para teres receio de provocar dragões?
Os dragões não perdem tempo com apresentações.
O nevoeiro foi lentamente soprado para longe e achei-me num lugar onde
pedras cinzentas arredondadas incrustadas de líquenes se projetavam de um
relvado. O vento soprava como se nunca tivesse começado e nunca viesse a
parar. Eu estava só. Tentei ser pequeno e guardar o silêncio. Mesmo assim
os pensamentos dela encontraram-me.
A criança era minha para lhe dar forma. Tu não tinhas nenhum direito.
Encolher-me não resultara. Tentei manter os pensamentos calmos, mas
desejei fervorosamente que Urtiga ali estivesse comigo naquela paisagem
onírica. Ela resistira à plena força do ataque de Tintaglia quando ainda tinha
pouca experiência no Talento. Tentei contactar a minha filha, mas o dragão
encurralou-me como se eu fosse uma rã capturada nas mãos calejadas de
um rapaz. Estava sob o seu controlo e sozinho. Escondi nas profundezas do
peito o medo que sentia dela.
Não sabia que dragão era aquele mas sabia que era melhor não perguntar.
Um dragão protege o nome para que outros não ganhem poder sobre ele. É
só um sonho dificilmente se aplica àquilo que um dragão é capaz de fazer à
mente adormecida de alguém. Eu precisava de acordar, mas ela prendeu-me
como as garras de um falcão prenderiam uma galinha, por mais que ela se
debatesse. Senti o frio e a terra pedregosa por baixo de mim, senti o vento
gelado a arrancar calor ao meu corpo. E continuei a não ver nenhuma parte
dela. A lógica talvez a alcançasse. “A minha intenção nunca foi interferir,
mas só fazer as pequenas mudanças que permitiriam às crianças
sobreviver.”
A criança era minha.
“Preferias uma criança morta a uma criança viva?”
Meu é meu. Não é teu.
A lógica de um miúdo de três anos. A pressão sobre o meu peito
aumentou e uma forma translúcida coalesceu acima de mim. Ela reluzia de
azul e prata. Reconheci qual das crianças era sua pelas marcas que
partilhava com a mãe da criança. A mãe era a mulher que afirmara trabalhar
com Prata. Thymara, a Antiga alada e com garras. Este dragão reivindicava
para si a rapariga que fora destemida na escolha das alterações que queria
ter. Uma criança que só marginalmente era humana. Ela não hesitara em
preferir pés de dragão aos pés humanos para poder saltar mais alto e melhor
agarrar nos ramos quando trepava. Uma criança corajosa e inteligente.
Lá isso é.
Detetei um orgulho sentido a contragosto. Não pretendera partilhar o
pensamento, mas, elogiando a criança ou o dragão, talvez conquistasse uma
moratória. A pressão da pata do dragão no meu peito já ultrapassara a mera
dor, transformando-se na sensação de ter as costelas fletidas até ao máximo
que seria possível dobrá-las. Se ela me partisse as costelas transformando-as
em estilhas que me perfurassem os pulmões, eu morreria ou despertaria?
Estar consciente de que estava a sonhar não diminuía a dor ou a sensação de
desastre iminente.
Morre nos sonhos, acorda louco. Pelo menos era o que dizia o velho
ditado dos Antigos. As tuas ligações com este mundo são fortes,
humanozinho. Há qualquer coisa em ti… mas não és tocado por nenhum
dragão que eu conheça. Como é isso possível?
“Não sei.”
O que é esta fibra que sinto em ti, dragão e não-dragão? Porque vieste a
Kelsingra? O que te trouxe à cidade dos dragões?
“Vingança”, arquejei. Sentia as costelas começarem a ceder. A dor era
espantosa. Certamente que, se eu estivesse a dormir, a dor me acordaria.
Portanto aquilo era real. De alguma forma, aquilo era real. E se era real, eu
teria uma faca no cinto e, se era real, eu não morreria como uma galinha
presa ao chão. O meu braço direito estava preso sob a garra do dragão, mas
o braço esquerdo estava livre. Estendi a mão, procurei a faca às apalpadelas
e encontrei-a. Desembainhei-a e lancei uma punhalada com todas as forças,
mas só consegui que ela colidisse com as pesadas escamas da pata do
dragão. A lâmina deslizou e virou-se como se eu tivesse tentado apunhalar
uma pedra. Ela nem sequer estremeceu.
Procuras vingança contra dragões? Porquê?
O meu braço caiu, sem forças. Nem sequer senti os dedos soltarem a
faca. A dor e a falta de ar estavam a esvaziar-me de força de vontade. Não
proferi as palavras, pois não me restava nenhum ar. Enviei-lhas pelo
pensamento. Não é vingança contra dragões. É contra os Servos. Vou a
Clerres matar todos os Servos. Eles magoaram o meu amigo e destruíram a
minha filha.
Clerres?
Temor. Um dragão podia sentir temor? Espantoso. Ainda mais
surpreendente, parecia ser temor do desconhecido.
Uma cidade de ossos e pedras brancas, muito a sul daqui. Numa ilha.
Uma cidade de gente pálida que acha que conhece todos os futuros e qual é
melhor escolher.
Os Servos! Ela começou a desvanecer-se do meu sonho. Lembro-me… de
alguma coisa. Alguma coisa muito má. De repente, eu deixei de ter
importância para ela. Quando a sua atenção me deixou, voltei a conseguir
respirar e flutuei num mundo cinzento-escuro, morto ou sozinho no meu
sono. Não. Não queria dormir e estar vulnerável a ela. Lutei por despertar,
tentando lembrar-me de onde estava realmente o meu corpo.
Abri os olhos peganhentos à noite cerrada e pisquei-os. Um vento suave
estava a soprar pelas colinas. Via as árvores a oscilar sob o vento. À
distância, vi montanhas cobertas de neve. A lua estava grande e redonda e
com o tom de marfim de ossos velhos. A caça devia estar em movimento.
Porque estivera eu a dormir tão profundamente? Sentia a cabeça como se a
tivesse atulhada de lã. Levantei a cara e farejei o ar.
Não senti nenhuma brisa e não cheirei qualquer floresta, só eu próprio.
Suor. O cheiro de um quarto ocupado. A cama era demasiado fofa. Tentei
sentar-me. Perto, roupa roçagou e alguém pousou mãos fortes nos meus
ombros. “Devagar. Comecemos com água.”
O céu noturno era uma fraude e eu nunca mais voltaria a caçar assim.
“Não me toques pele contra pele”, fiz lembrar a Lante. As mãos dele
afastaram-se e eu lutei por me sentar. Passei as pernas sobre a beira da
cama. O quarto girou três vezes e assentou. Tudo estava ténue e crepuscular
à minha volta. “Bebei isto”, disse ele, e um recipiente fresco foi-me posto
suavemente nas mãos. Cheirei-o. Água. Bebi até não haver mais. Ele levou
o recipiente e regressou com mais. Voltei a esvaziá-lo.
“Por agora chega, parece-me.”
“O que aconteceu?”
Ele sentou-se a meu lado na beira da cama. Fitei-o com cuidado e senti-
me grato por conseguir vê-lo. “De que vos lembrais?”, perguntou-me ele
após um longo silêncio.
“Eu estava a sarar crianças Antigas…”
“Tocastes crianças, uma após outra. Não muitas. Seis, parece-me. Todas
ficaram melhor e, a cada criança sarada, o espanto dos Antigos de Kelsingra
foi crescendo e vós fostes ficando mais estranho. Eu não tenho Talento,
Fitz. Mas até eu vos senti como se fôsseis o olho de uma tempestade de
magia que fluía para vós e depois soprava a toda a nossa volta. E quando
deixou de haver crianças, outras pessoas começaram a tentar chegar-se à
frente. Não só os Antigos, mas gente dos Ermos Chuvosos. Nunca tinha
visto pessoas tão deformadas. Algumas tinham escamas, outras,
excrescências penduradas dos maxilares. Algumas tinham garras ou narinas
de dragão. Mas não de uma forma agradável à vista, não como os Antigos
as têm. Eram como… árvores doentes. E cheias de uma esperança súbita.
Começaram a tentar abrir caminho até vós, pedindo que as corrigísseis. Os
vossos olhos estavam vazios e não respondestes. Só começastes a tocá-las e
elas caíam, com os corpos alterados. Mas ficastes quase imediatamente
pálido e começastes a tremer, mas mesmo assim não conseguíeis parar e
elas continuavam a aproximar-se, empurrando e suplicando. A Dama
Âmbar gritou-vos e sacudiu-vos. E vós continuastes de olhos fixos, e mais
pessoas distorcidas empurravam para vos alcançar. Depois, Âmbar
descalçou a luva, agarrou-vos no pulso e puxou-vos para longe delas.”
As minhas recordações eram como uma tapeçaria a desenrolar-se. Lante
ficou abençoadamente silencioso enquanto eu voltava a unir as peças da
minha vida. “E desde essa altura? Está tudo bem?” Lembrava-me dos
empurrões e dos gritos da multidão. “Algum de vós ficou ferido? Onde
estão os outros?”
“Ninguém ficou seriamente magoado. Arranhões e nódoas negras.”
Soltou uma fungadela de incredulidade. “E só a Centelha ainda tem essas
marcas. Quando me tocastes e ao Per, todos os nossos ferimentos ficaram
sarados. Não me sinto tão saudável desde… desde antes de ser espancado
naquela noite na Cidade de Torre do Cervo.”
“Lamento.”
Ele fitou-me. “Lamentais ter-me sarado?”
“Tê-lo feito tão abruptamente. Sem aviso. O Talento… não conseguia
controlá-lo.”
Ele olhou para trás de mim. “Foi uma sensação estranha. Como se eu
tivesse sido mergulhado num rio gelado e depois tirado imediatamente de
lá, tão seco e quente como estava antes.” A voz sumiu-se-lhe enquanto ele
recordava.
“Onde estão eles agora? Âmbar, Centelha e Per?” Haveria perigo? Teria
eu dormido enquanto eles eram ameaçados?
“Provavelmente ainda a dormir. Eu fiquei com este turno de vigia.”
“Vigia? Há quanto tempo estou aqui?”
Ele soltou um pequeno suspiro. “Esta é a segunda noite. Enfim. Eu talvez
deva dizer que é a manhã do terceiro dia. Já estamos quase na aurora.”
“Acho que adormeci à mesa.”
“Adormecestes. Trouxemos-vos para a cama. Eu temi por vós, mas
Âmbar disse para vos deixarmos dormir e não chamarmos um curandeiro.
Acho que ela estava preocupada com o que poderia acontecer se um
curandeiro vos tocasse a pele. Pediu-nos a todos para termos muito cuidado
para não vos tocarmos.”
Respondi à pergunta que ele não fizera. “Acho que já tenho outra vez
controlo sobre o Talento.” Fiquei calado por um momento, a investigar o
fluir da magia. Ali na velha cidade era mais forte, mas eu voltara a sentir
que era algo exterior a mim e não uma corrente que fluía através de mim.
Examinei as minhas muralhas e achei-as mais fortes do que esperara.
“Eu dei-vos casco-de-elfo em pó”, fez-me Lante lembrar.
“Disso lembro-me.” Virei-me para o fitar. “Surpreende-me que tragas
uma coisa dessas.”
Ele afastou de mim o olhar. “Lembrais-vos das esperanças iniciais do
meu pai para mim, do treino que eu tive. Trouxe para esta viagem muitas
pequenas coisas.”
Estivemos ambos em silêncio durante algum tempo. Depois perguntei-
lhe: “E o General Rapskal? Qual é atualmente o sentimento para connosco
aqui em Kelsingra?”
Lante lambeu os lábios. “Grande respeito fundado no medo, parece-me.
Âmbar aconselhou-nos a termos cuidado. Temos comido nos nossos quartos
e convivido pouco. Nenhum de nós viu o General Rapskal. Mas houve uma
nota vinda dele e três visitas de um dos seus soldados, um Antigo chamado
Kase. Foi respeitoso mas insistente a dizer que o General Rapskal precisava
de uma reunião privada convosco. Mandámo-lo embora porque ainda
estáveis a repousar, mas nenhum de nós acha que seria seguro encontrardes-
vos com ele a sós. O general parece… peculiar.”
Concordei com a cabeça, em silêncio, mas decidi sem o dizer que uma
reunião privada poderia vir a ser necessária se eu quisesse afastar a ameaça
que o general constituía para Âmbar. Depois de uma reunião como essa,
poderia calhar que ele ficasse fatalmente doente caso continuasse a insistir
na vingança.
“Os Antigos respeitaram o nosso desejo de solidão”, prosseguiu Lante.
“Suspeito que o rei e a rainha nos abrigaram da curiosidade e dos pedidos.
Encontrámos principalmente criados, e eles parecem ter bons sentimentos
para connosco.” E acrescentou, embaraçado: “Alguns são tocados pelos
Ermos Chuvosos de formas desagradáveis. Temo que alguns possam
procurar obter de vós uma cura, apesar da ordem do rei para vos deixarem
em paz. Não queríamos deixar-vos sozinho porque não queríamos que os
Antigos vos encontrassem desprotegido. A princípio. Depois tememos que
pudésseis estar a morrer.” Como que sobressaltado pelas suas próprias
palavras, ele endireitou-se de repente e disse: “Eu devia informar os outros
de que estais acordado. Quereis comida?”
“Não. Sim.” Não a queria mas sabia que precisava dela. Não estivera a
morrer mas também não estivera a viver. Sentia o corpo como roupa suja,
rija de porcaria e malcheirosa de suor. Esfreguei a cara. Decididamente,
agora havia uma barba. Tinha os olhos pegajosos e a língua e os dentes
cobertos por uma película.
“Então vou tratar disso.”
E saiu. A sala estava a clarear à minha volta, imitando a alvorada. A
paisagem noturna na parede ia-se desvanecendo. Livrei-me da túnica dos
Antigos que tinha vestida enquanto me dirigia para a piscina. Assim que me
ajoelhei ao lado do repuxo, ele começou a lançar água bem quente.
Estava a embeber-me de água quente quando Âmbar entrou.
Perseverança vinha com ela, mas ela caminhava a seu lado, sem depender
dele para a guiar, enquanto vinham diretamente para a beira da piscina.
Respondi às perguntas básicas antes de haver tempo para serem feitas.
“Estou acordado. Não me dói nada. Estou a começar a ficar com fome.
Tenho o Talento sob controlo. Acho. Evitem tocar-me até eu ter a certeza,
por favor.”
“Como estás? Realmente?”, perguntou-me Âmbar. Gostei de ver os seus
olhos assentarem em mim, mesmo apesar de me interrogar sobre se a minha
visão estaria de alguma forma diminuída. Se o Bobo obtivera uma pequena
quantidade de visão, teria eu perdido alguma da minha? Não notara
nenhuma diferença. Ainda.
“Estou acordado. Ainda estou cansado mas não tenho sono.”
“Dormiste durante muito tempo. Tememos por ti.” Âmbar soava
magoada, como se o facto de eu estar inconsciente lhe tivesse ferido os
sentimentos.
A água quente soltara-me os músculos. O corpo começava a parecer-me
mais familiar, como se o meu lugar talvez fosse nele. Submergi uma vez
mais a cabeça e esfreguei os olhos. Saí da água. Ainda havia algumas dores.
Sessenta anos não eram trinta, independentemente do meu aspeto.
Perseverança saiu de junto de Âmbar para me trazer uma toalha e depois
uma túnica. Falei enquanto secava a água das pernas. “Qual é o estado de
espírito da cidade? Eu fiz mal a alguém?”
Âmbar falou. “Aparentemente não — pelo menos não de forma
permanente. Todas as crianças que tocaste parecem estar melhor agora do
que antes de lhes teres tocado. As pessoas dos Ermos Chuvosos que tocaste
enviaram-te notas de agradecimento. E, claro, súplicas para ajudares outros.
Pelo menos três pessoas deixaram notas por baixo da porta, suplicando-te
que as ajudasses com as suas mudanças. A exposição a dragões, ou até a
zonas onde os dragões estiveram presentes durante muito tempo, parece
desencadear os seus problemas, e os que foram deliberadamente alterados
por dragões dão-se muito melhor do que os que simplesmente nascem com
mudanças ou as adquirem durante o crescimento. Essas mudanças são
frequentemente mortais para as crianças e encurtam as vidas de todos.”
“Já são cinco notas”, disse Perseverança em voz baixa. “Estavam mais
duas junto da porta quando chegámos.”
Abanei a cabeça. “Não me atrevo a ajudar seja quem for. Mesmo com o
casco-de-elfo que o Lante me deu, sinto a corrente de Talento a passar por
mim como uma violenta corrente de maré. Não voltarei a entrar nisso.”
Passei com a cabeça pela gola da túnica verde dos Antigos. A pele dos
meus braços ainda estava húmida, mas enfiei as mãos nas mangas, encolhi
os ombros e senti a peça de vestuário assentar sozinha à minha volta. Magia
dos Antigos? Havia Prata no tecido daquela túnica, fazendo-lhe lembrar que
era uma peça de roupa? Os Antigos tinham misturado Talento nas suas
estradas para que elas sempre se lembrassem de que eram estradas. Musgo e
ervas nunca as consumiam. Havia alguma diferença entre o Talento e a
magia que os Antigos tinham usado para criar aquela maravilhosa cidade?
Como se intersetariam as magias? Havia tanto que eu não sabia, e senti-me
contente por Lante me ter drogado e salvado das outras experiências que
pudesse tentar fazer.
“Quero partir daqui assim que pudermos.” Não pensara em dizer aquelas
palavras; elas limitaram-se a sair-me da boca. Fui andando enquanto falava
e Per e Âmbar seguiram-me através do quarto e para a sala de entrada.
Lante estava lá.
“Concordo”, disse ele no mesmo instante. “Sendo eu desprovido de
Talento como sou, mesmo assim os murmúrios da cidade chegam-me com
mais força a cada dia que passa. Tenho de sair daqui. Devíamos partir antes
que a boa vontade dos Antigos se desvaneça. O General Rapskal pode ser
capaz de influenciar as pessoas contra nós. Ou as pessoas podem começar a
ressentir-se de vos recusardes a sará-las.”
“De facto, julgo que isso é muito sensato. Mas não podemos apressar-nos
demasiado. Mesmo se houver um navio com rumo à foz do rio, teremos de
garantir que nos despedimos de Kelsingra de uma forma que não ofenda
ninguém.” A voz de Âmbar estava pensativa. “Temos uma longa viagem a
fazer ao longo dos territórios deles e há laços fortes entre os Mercadores
dos Dragões e os Mercadores dos Ermos Chuvosos. E estes, por sua vez,
têm profundos laços familiares com Vilamonte e com os Mercadores de
Vilamonte. Temos de viajar por rio daqui até Trehaug, nos Ermos
Chuvosos. Daí, o nosso transporte mais seguro seria num dos navios vivos
que navegam no rio. Temos de viajar pelo menos até Vilamonte e aí
encontrar uma embarcação que nos leve a atravessar as Ilhas dos Piratas e
prossiga até Jamaília. Por conseguinte, a boa vontade dos guardiães dos
dragões tem de nos levar longe. Pelo menos até Vilamonte, e talvez até mais
longe.” Fez uma pausa e acrescentou: “Pois teremos de viajar até depois de
Jamaília, e até depois das Ilhas das Especiarias.”
“E depois para lá do limite de qualquer carta verificada que eu já tenha
visto.”
“Águas desconhecidas para ti serão os portos de origem de outros.
Encontraremos forma de chegar lá. Eu encontrei forma de chegar a Cervo,
há muitos anos. Consigo encontrar o caminho de volta à minha terra natal.”
As palavras dele pouco me reconfortaram. Já estava cansado, só de estar
em pé. O que fizera a mim próprio? Sentei-me numa das cadeiras e ela deu-
me as boas-vindas. “Eu esperava viajar sozinho e leve. Passar parte da
viagem a trabalhar em troca de passagem. Não fiz nenhum plano para esta
espécie de viagem nem arranjei provisões para levar ninguém comigo.”
Suaves campainhas soaram e a porta abriu-se. Um criado empurrou uma
pequena mesa sobre rodas para dentro do quarto. Pratos tapados, uma pilha
de loiça, claramente uma refeição para todos nós. Centelha esgueirou-se
para dentro através da porta aberta. Estava vestida e arranjada, mas os seus
olhos disseram-me que só recentemente deixara a cama para trás.
Lante agradeceu ao criado. O nosso silêncio manteve-se até a porta ser
fechada atrás dele. Centelha começou a destapar os pratos na bandeja
enquanto Perseverança punha a mesa. “Está aqui um tubo para rolos, um
tubo pesado com um brasão esquisito. Uma galinha com uma coroa na
cabeça.”
“O galo coroado é o brasão familiar dos Khuprus”, disse-nos Âmbar.
Um arrepio subiu-me pelas costas. “Isso é diferente de uma coroa de
galos?”
“É. Se bem que eu me tenha interrogado sobre se eles teriam alguma
relação antiga.”
“O que é uma coroa de galos?”, perguntou Centelha.
“Abre a carta e lê-a, por favor”, disse Âmbar, pondo de parte a questão da
rapariga. Perseverança passou-a a Centelha, a qual a entregou a Lante.
“Está endereçada aos emissários dos Seis Ducados. Portanto, suponho que
isto se refere a todos nós.”
Lante quebrou o selo de cera e tirou do interior uma página de papel de
excelente qualidade. Percorreu-a com os olhos. “Hmmm. Rumores sobre o
vosso despertar precipitaram-se da cozinha até à sala do trono. Somos
convidados a jantar esta noite com os guardiães dos dragões de Kelsingra.
‘Se a saúde do Príncipe FitzCavalaria o permitir’.” Ergueu o olhar até ao
meu. “Os guardiães, segundo eu soube, são o grupo original de pessoas dos
Ermos Chuvosos que partiram com os dragões para encontrar Kelsingra, ou
pelo menos uma zona habitável para dragões. Não eram muitos, menos de
vinte, julgo eu. Outros vieram viver para aqui, claro. Gente dos Ermos
Chuvosos em busca de vida melhor, antigos escravos e outras pessoas.
Alguns dos guardiães encontraram esposas entre os recém-chegados. Os
seus embaixadores junto do Rei Respeitador apresentaram-se como vindo
de uma cidade populosa e próspera. Mas o que eu aqui vi e ouvi entre os
criados conta-me uma história diferente”, matutou. “Eles só foram
moderadamente bem-sucedidos a fazer crescer a população até um nível
capaz de sustentar a cidade, mesmo ao nível de aldeia. A gente dos Ermos
Chuvosos pensa que muda mais depressa quando vive aqui, e raramente de
forma agradável. Como vistes, não são muitas as crianças nascidas em
Kelsingra, e as mudanças que as marcam nem sempre são boas.”
“Um excelente relatório”, disse Centelha, numa imitação razoável da voz
de Breu. Perseverança soltou um risinho abafado pelas mãos.
“Realmente”, concordou Âmbar, e a cor enrubesceu as bochechas de
Lante.
“Ele treinou-te bem”, disse eu. “Porque é que te parece que eles se
reúnem e nos convidam a jantar com eles?”
“Para vos agradecer?” Perseverança pareceu incrédulo por eu não ter
pensado nisso.
“Serão os preliminares para negociarem connosco. É assim que os
Mercadores atuam.” Âmbar suspirou. “Sabemos o que precisamos deles.
Provisões frescas e passagem até tão a sul quanto possível. A questão é: o
que nos irão pedir em troca?”
Capítulo 3

Nas Montanhas

Foi um sonho muito curto. Um homem com cara de cal vestido de verde com
realces dourados caminhava por uma praia. Uma criatura grotesca estava
acocorada numa elevação relvada acima da praia e observava-o, mas o
homem não lhe prestou atenção. Trazia correntes de boa qualidade, como as
que se poderiam usar como joias mas muito mais fortes. Trazia-as em laços,
penduradas do braço. Chegou a um lugar onde a areia tremia e se elevava.
Observou-a, sorrindo. Serpentes começaram a sair da terra. Eram serpentes
grandes, tão compridas como o meu braço. Estavam húmidas e as suas peles
eram de tons brilhantes de azul, vermelho, verde e amarelo. O homem pôs
uma volta de corrente em torno da cabeça de uma azul e a corrente
transformou-se num laço. Ele içou a serpente do chão. Esta debateu-se mas
não conseguiu libertar-se, apesar de escancarar a boca e mostrar dentes
brancos, muito pontiagudos. O homem pálido capturou outra serpente no
seu laço, uma amarela. A seguir tentou apanhar uma vermelha, mas esta
livrou-se dele e serpenteou muito depressa em direção ao mar. “Hei de
apanhar-te!”, gritou o homem e perseguiu a serpente e pisou-lhe a ponta da
cauda, prendendo-a perto da beira das ondas. Pegou nas trelas das duas
serpentes cativas com uma das mãos e com a outra soltou um novo laço
para a serpente vermelha.
Pensava que a serpente se viraria e atiraria a cabeça contra ele,
preparando-se para lhe passar o laço da corrente em volta do pescoço. Mas
o que se virou contra ele foi um dragão, pois ele estava a pisar a cauda de
um dragão. “Não”, disse o dragão muito alto. “Mas eu vou apanhar-te a
ti.”
A imagem deste sonho que pintei não é lá muito boa, porque a tinta
vermelha do meu pai não reluz nem cintila como a serpente fazia.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

D
ormi com frio e acordei com o dedo grande do pé de Dwalia a empurrar-
me a barriga dorida. “Que estiveste tu a fazer?”, perguntou-me ela e
depois rosnou por sobre o ombro: “Alaria! Tu devias ter estado a vigiá-la!
Olha para isto! Tem estado a roer o trapo!”
Alaria aproximou-se a trote e aos tropeções, com o casaco de peles enrolado em
volta dos ombros e o cabelo claro emaranhado em volta da cara ramelosa. “Passei a
noite quase toda acordada! Pedi a Reppin para a vigiar…”
Dwalia virou-me costas. Tentei sentar-me. As minhas mãos amarradas estavam
frias e quase entorpecidas. Todo o meu corpo estava hirto, com várias nódoas negras
e cortes. Caí e tentei rolar para me afastar dela, mas não fui longe. Ouvi uma
bofetada e depois um grito sem palavras. “Nada de desculpas”, rosnou Dwalia.
Ouvi-a distanciar-se a passos largos.
Tentei pôr-me em pé, a cambalear, mas Alaria foi mais rápida. Pôs-me um joelho
sobre as costas para me manter no chão. Torci-me para ela para lhe morder. Ela
levou-me uma mão à nuca e empurrou-me a cara contra a pedra do solo. “Dá-me
um motivo para te atirar os dentes contra isso”, convidou. Não lho dei.
“Não magoes o meu irmão!”, gemeu Vindeliar.
“Não magoes o meu irmão”, troçou Dwalia numa lamúria estridente. “Caluda!”
Esta última palavra foi proferida com um grunhido e eu ouvi Vindeliar gritar.
Alaria puxou pela bainha da minha túnica e depois cortou-lhe tiras com a faca de
cinto. Enquanto trabalhava, praguejava numa voz gutural. Eu sentia a sua fúria.
Aquele não era um bom momento para a desafiar. Ela fez-me rolar com rudeza e eu
vi o sinal da mão de Dwalia na sua cara, uma fúria de vermelho contra a pele pálida.
“Cabra”, exclamou e não percebi se se referia a mim ou a Dwalia. Agarrou-me nas
mãos hirtas e puxou-as rudemente para si. Cortou-me brutalmente os trapos
ensopados com a faca embotada. Eu afastei o mais possível os pulsos, na esperança
de que ela não me cortasse. “Desta vez vou atar-tas atrás das costas”, prometeu, por
entre dentes cerrados.
Ouvi passos a esmagar folhas e gravetos e Reppin veio juntar-se a Alaria.
“Desculpa”, disse ela em voz baixa. “Dói-me tanto a mão…”
“Não há problema”, disse Alaria num tom que dizia que havia.
“Ela é tão injusta”, disse Reppin. “Tão cruel connosco. Devíamos ser suas
conselheiras e ela trata-nos como criadas! E não nos diz nada. Nem uma palavra
sobre os planos que tem, agora que nos arrastou até este lugar horrível. Não era isto
que Symphe tinha em mente para nós.”
Alaria atenuou o amuo. “Há ali uma estrada. Acho que devíamos segui-la. Não
faz nenhum sentido ficarmos aqui.”
“A estrada talvez vá ter a uma aldeia”, sugeriu Reppin num tom esperançoso. E
acrescentou em voz mais baixa: “Preciso de um curandeiro. Todo o meu braço
lateja.”
“Todos vós. Vão buscar lenha!”, gritou Dwalia de onde estava sentada junto da
fogueira cada vez mais reduzida. Vindeliar ergueu uma cara desgraçada. Vi Reppin
e Alaria trocar olhares rebeldes.
“Eu disse ‘Todos vós’!”, guinchou Dwalia.
Vindeliar pôs-se em pé e ficou parado, indeciso. Dwalia levantou-se, com um
papel muito dobrado na mão. Fitou-o com uma expressão zangada, agarrando-o
com tanta força que eu percebi que se tratava da fonte da sua ira. “Aquele
mentiroso”, rosnou. “Eu devia ter percebido. Não devia ter confiado numa só das
palavras que arrancámos ao Prilkop.” De repente esbofeteou Vindeliar com o papel.
“Vai. Traz lenha. Vamos ficar aqui pelo menos mais uma noite! Alaria! Reppin!
Levem a Abelha convosco. Vigiem-na. Precisamos de lenha. De montes de lenha!
Tu, calcedino! Vai caçar qualquer coisa para nós.”
Kerf nem sequer virou a cabeça. Estava empoleirado num muro baixo de pedra e
lançava o olhar pela praça, para coisa nenhuma. Para coisa nenhuma até que eu
desci as muralhas e vi malabaristas, todos vestidos de preto e branco, a atuar para
uma multidão de gente alta com cabelos de estranhas cores. Os sons de um dia
movimentado de mercado encheram-me os ouvidos. Cerrei os olhos, fortaleci as
muralhas e abri-os para a praça há muito deserta. Pois era isso o que ela era. Em
tempos, aquele espaço aberto na floresta fora uma animada praça de mercado, uma
encruzilhada onde mercadores se encontravam para trocar mercadorias e os Antigos
se reuniam para se divertir e fazer compras.
“Vem daí”, disse-me Alaria com rispidez.
Pus-me lentamente em pé. Se caminhasse dobrada sobre mim mesma, a barriga
não me doía tanto. Segui-as de olhos no chão enquanto atravessavam as antigas
pedras do pavimento. Vi dejetos de urso entre os escassos detritos florestais, e
depois uma luva. Abrandei o passo. Outra luva de senhora, esta de suave pelica
amarela. Depois um pouco de tela ensopada. Algo vermelho e tricotado espreitava
de baixo da tela.
Lenta e cuidadosamente, baixei-me e puxei por um xaile vermelho de lã. Estava
tão húmido e malcheiroso como o chapéu que eu encontrara, mas era igualmente
bem-vindo. “Que é que tens aí?”, perguntou Dwalia e eu encolhi-me. Não a tinha
ouvido aproximar-se por trás de mim.
“É só um trapo”, disse eu, com as palavras entarameladas pela boca inchada.
“Há aqui montes de lixo”, observou Reppin.
“O que mostra que as pessoas usam esta estrada”, acrescentou Alaria. Olhou para
Dwalia enquanto dizia: “Se a seguíssemos, podíamos chegar depressa a uma aldeia.
E a um curandeiro para Reppin.”
“Também há dejetos de urso”, contribuí. “E são mais frescos que o lixo.” Esta
última parte era verdadeira. O excremento estava em cima de algumas das telas e
não tinha sido derretido pela chuva.
“Blhec!” Alaria estivera a puxar por um canto de um pouco de tela. Deixou-a cair
e deu um salto para trás.
“O que é isso?”, exclamou Dwalia e empurrou-a para o lado. Acocorou-se e
afastou a tela das pedras húmidas, expondo algo branco e cilíndrico. Um osso?
“Humpf”, exclamou, satisfeita. Todos a observámos enquanto desatarraxava uma
pequena rolha de uma das pontas e fazia sair do interior um pequeno bocado de
pergaminho.
“O que é?”, perguntou Alaria.
“Vai buscar lenha!”, exclamou Dwalia e levou o tesouro consigo para junto da
fogueira.
“Mexe-te, Abelha!”, ordenou-me Alaria. Enrolei apressadamente o xaile em volta
dos ombros e segui-os.
Eles passaram o resto da manhã a arrancar paus de ramos derrubados por
tempestades e a empilhá-los nos meus braços para eu levar de volta ao
acampamento. Dwalia permaneceu acocorada junto da fogueira, enrugando a testa
sobre o rolinho que encontrara.

“Vou morrer aqui”, anunciou Reppin. Estava enrolada sob o casaco dela e o meu,
aninhando no regaço o braço mordido.
“Não sejas dramática”, retorquiu Dwalia, após o que regressou ao estudo dos
papéis, esforçando os olhos pois a luz do dia ia-se desvanecendo. Tinham-se
passado dois dias desde que eu mordera Reppin e ainda ali continuávamos. Dwalia
proibira Alaria de explorar mais ao longo das velhas estradas e esbofeteara Reppin
por perguntar o que faríamos a seguir. Desde que encontrara o cilindro de osso e
descobrira lá dentro o pergaminho, nada mais fizera além de ficar sentada junto da
fogueira e a compará-lo com o seu papel amarfanhado. Franzia o sobrolho e
semicerrava os olhos enquanto o seu olhar se movia de um papel para o outro.
Fitei Reppin, sentada do outro lado da fogueira. O sol estava a pôr-se e o frio ia
regressando. A pequena quantidade de calor que as pedras da velha praça haviam
capturado depressa fugiria. Era provável que Reppin se sentisse mais fria por causa
da febre. Mantive a boca inexpressiva. Ela tinha razão: ia morrer. Não depressa,
mas ia morrer. O Pai-Lobo dissera-mo e quando eu o deixara guiar os meus
sentidos, consegui cheirar a infeção no seu suor. Da próxima vez, para uma morte
mais rápida, terás de encontrar e morder um lugar onde o sangue corra em jatos.
Mas para uma primeira morte saíste-te bem. Mesmo que esta seja carne que não
podes comer.
Eu não sabia que a minha dentada a podia matar.
Sem arrependimentos, repreendeu o Pai-Lobo. Não há forma de regressar à
decisão de fazer uma coisa ou não fazer uma coisa. Só existe o hoje. Hoje tens de
decidir viver. Sempre que te for dada uma escolha, tens de fazer aquilo que te
mantenha viva e intacta. Arrependimentos são inúteis. Se não tivesses feito com que
ela te temesse, ela ter-te-ia causado muitos mais ferimentos. E os outros ter-se-iam
juntado a ela. Eles são uma alcateia e irão seguir o seu líder. Tu fizeste a cadela
temer-te, e os outros sabem disso. O que ela teme, eles temerão.
Portanto, mantive a cara dura e não mostrei qualquer remorso — apesar de
suspeitar que a interdição contra comer humanos não tinha sido criada por alguém
tão faminta como eu estava. Nos dois dias que tinham passado desde a nossa
chegada, eu comera duas vezes — se é que uma sopa aguada feita com uma ave
qualquer que Alaria matara com o arremesso de uma pedra e duas mancheias de
farinha cozinhada numa panela cheia de água podiam contar como comida. Os
outros tinham comido melhor do que eu. Eu quisera mostrar-me demasiado
orgulhosa para comer o pouco que me ofereceram, mas o Pai-Lobo dissera que isso
era uma má decisão. Come para viver, dissera-me. Fica orgulhosa de estares viva.
Por isso eu tentara. Comera o que me fora dado, pouco falara e escutara muito.
De dia, elas desamarravam-me as mãos e prendiam-me os tornozelos com uma
peia para eu poder ajudar à interminável tarefa de recuperar lenha. As minhas novas
amarras tinham sido feitas com tiras arrancadas à minha túnica. Não me atrevia a
voltar a roê-las para elas não me rasgarem mais a roupa. Vigiavam-me de perto. Se
eu me afastasse nem que fosse um pouco de junto de Alaria, Dwalia batia-me com
um pau. E todas as noites amarrava-me os pulsos aos tornozelos e prendia tudo ao
seu pulso. Se eu me mexesse no sono, ela pontapeava-me. Com força.
E a cada pontapé, o Pai-Lobo rosnava: Mata-a. Assim que for possível.
“Só restamos tu e eu”, murmurou essa noite Reppin a Alaria depois de Dwalia
adormecer.
“Eu estou aqui”, fez-lhes lembrar Vindeliar.
“Dos verdadeiros luriks”, clarificou Reppin com desdém. “Tu não és nenhum
estudioso dos pergaminhos de sonhos. Para de nos espiar!” Baixara a voz como que
para excluir Vindeliar. “Lembras-te de quando a própria Symphe disse que nós
tínhamos sido escolhidos como os melhores para ajudar Dwalia a discernir o
Caminho? Mas ela ignorou os nossos conselhos desde o início. Ambas sabemos que
aquela rapariga não tem valor nenhum.” Suspirou. “Temo que nos tenhamos
afastado até muito longe do caminho.”
Alaria soou insegura quando disse: “Mas a Abelha teve a febre e a mudança de
pele. Isso tem de querer dizer qualquer coisa.”
“Só quer dizer que tem alguma ascendência Branca. Não que seja capaz de
sonhar. E certamente não que seja o tal Filho Inesperado que, segundo Dwalia, nós
íamos encontrar.” Reppin baixou a voz até um suspiro. “Sabes que não é! Já nem a
Dwalia dá crédito a isso. Alaria, temos de nos proteger uma à outra. Ninguém mais
o vai fazer. Quando Symphe e Dwalia propuseram esta missão, tanto Capra como
Coultrie insistiram que já tínhamos passado pelo Filho Inesperado; que foi ele quem
libertou Fogogelo e deu fim a Ilistore. Foi o que o Amado nos disse quando
regressou a Clerres. Ele disse que um dos seus Catalisadores, o nobre assassino, era
o Filho Inesperado. Entre o povo dele, chamavam a Ilistore a Mulher Pálida. E ela
foi derrotada pelo Filho Inesperado. Todos o sabem! Três dos Quatro dizem que os
sonhos relacionados com ele estão cumpridos e que essas profecias devem ser agora
postas de parte. Só Symphe não concordou. Nem Dwalia.”
Sustive a respiração. Elas estavam a falar do meu pai! Eu sabia, de ter vasculhado
os papéis dele, que o Bobo dissera que ele era o Filho Inesperado. Mas nunca
compreendera que em alguma terra distante ele fora a concretização de uma
profecia. Furtivamente, aproximei-me mais.
Reppin baixou a voz. “ Symphe só acreditou nela porque Dwalia fez chover sobre
ela referências obscuras que diziam que a vitória do Filho Inesperado seria absoluta.
E não foi, porque o Amado voltou para junto de nós e foi recapturado. E lembra-te
de que Dwalia serviu Ilistore durante anos e estava apaixonada por ela. Dwalia
sempre se gabou de que, quando Ilistore regressasse, a faria subir ao poder.” Mal
suspirou as palavras seguintes. “Acho que Dwalia só deseja vingança. Lembras-te
de como era com o Amado. Responsabiliza-o pela morte de Ilistore. E sabes de que
casa raptámos a Abelha? Da de FitzCavalaria.”
Alaria endireitou-se sobre as mantas. “Não!”
“Sim. FitzCavalaria Visionário.” Reppin ergueu a mão para voltar a puxá-la para
baixo. “Tenta lembrar-te. Lembras-te do nome que o Amado gritou quando o pé
estava a ser esmagado? O nome do seu verdadeiro Catalisador. Tinha-o retido,
dizendo que tinha tido muitos: um assassino, um rapaz escravo de nove dedos, um
capitão de navio, uma rapariga mimada, um nobre bastardo. Não era verdade. O seu
único verdadeiro Catalisador foi FitzCavalaria Visionário. E quando eu segui
Dwalia para dentro daquela casa, numa sala cheia de rolos, ela ficou imóvel de
olhos fixos e sorriu. E ali, na prateleira da lareira, vi uma escultura. Uma das faces
da escultura era a do Amado! Como ele era antes de ser interrogado.” Aconchegou-
se melhor à roupa que a cobria. “Ela quis levá-la. Mas nesse momento os homens
de Ellik entraram e começaram a deitar abaixo estantes e a atirar as coisas ao chão.
Levaram de lá uma espada. Portanto saímos. Mas é isso que a Abelha é. A filha de
um Catalisador.”
“Eles disseram que a casa pertencia a Texugo, Tomé Texugo. Abelha disse que
era esse o nome do pai.”
“E então? Surpreende-te que a cabrinha mordedora minta?”
“Mas ela também é Branca?”
O sussurro de Alaria foi muito baixo. Esforcei-me para ouvir a resposta de
Reppin.
“Sim. E agora pensa em como uma coisa dessas pode acontecer!” As suas
palavras estavam triunfantemente escandalizadas, como se a minha mera existência
fosse vergonhosa.
“Vindeliar está à escuta”, acautelou Alaria. Mexeu-se, aconchegando-as melhor
ao casaco. “Não quero saber dessas coisas. Só quero ir para casa. Voltar para
Clerres. Quero dormir numa cama e ter o pequeno-almoço à minha espera quando
acordar. Gostaria que nunca tivesse sido escolhida para isto.”
“A mão dói-me tanto. Gostava de matar aquela fedelha!”
“Não falem assim!”, avisou Vindeliar.
“E tu não devias falar de todo. Tudo isto é culpa tua!”, silvou-lhe Reppin.
“Cobardolas espião”, censurou Alaria e todos se silenciaram.
Não foi a única vez que elas sussurraram à noite, embora a maior parte do que
diziam pouco sentido fizesse para mim. Reppin queixava-se da mordida e discutiam
a política de Clerres, com nomes que eu não conhecia e minúcias que eu não
entendia. Prometiam relatar tudo o que tinham sofrido quando voltassem para casa e
concordavam que Dwalia seria punida. Falaram por duas vezes de sonhos sobre um
Destruidor, o qual, segundo Alaria, traria gritos, fumos malcheirosos e morte. Num
dos sonhos, uma bolota trazida para dentro de uma casa crescia de repente
transformando-se numa árvore de chamas e espadas. Eu lembrei-me do meu sonho
sobre a marioneta com a cabeça de bolota e perguntei a mim mesma se haveria
alguma ligação. Mas também sonhara com uma noz a ondular num rio. Decidi que
os meus sonhos eram muito confusos. Quase tão maus como os de Reppin, pois ela
sonhara apenas escuridão e uma voz que anunciava: “Chega o Destruidor que vós
fizestes.”
Coligi os factos que pude a partir dos murmúrios delas. Algumas pessoas
importantes não tinham concordado com a autorização a Dwalia para avançar com a
sua missão. Quando ela insistira, tinham cedido, mas só porque Amado escapara.
Segundo os escritos do meu pai, “Amado” era também “o Bobo”. E “Dom
Dourado”. “Os Quatro” tinham avisado Dwalia do que lhe aconteceria se ela não
conseguisse apresentar resultados. Ela prometera entregar-lhes o Filho Inesperado.
E eu era tudo o que tinha.
Vindeliar estava excluído das conversas entre as duas, mas ansiava tanto pela sua
atenção que não tinha orgulho. Uma noite, enquanto elas sussurravam sob as peles,
ele interrompeu com entusiasmo para dizer: “Eu também tive um sonho.”
“Não tiveste nada!”, declarou Reppin.
“Tive, pois.” Estava tão desafiador como uma criança. “Sonhei que alguém
trouxe um pacote pequeno para uma sala e ninguém o quis. Mas depois alguém o
abriu. E saíram chamas e fumo e ruídos barulhentos e a sala ruiu à volta de toda a
gente.”
“Tu não sonhaste isso”, explodiu Reppin, cheia de desdém. “És um mentiroso tão
grande! Ouviste-me falar desse sonho e só repetiste o que ouviste.”
“Eu não te ouvi contar um sonho assim!” Ele estava indignado.
A voz de Alaria foi um rosnido baixo. “É melhor que não digas a Dwalia que
sonhaste esse sonho porque eu já lho contei. Ela vai perceber como és mentiroso e
bate-te com um pau.”
“Eu sonhei mesmo aquilo”, choramingou ele. “Os Brancos às vezes sonham o
mesmo. Sabem disso.”
“Tu não és nenhum Branco. Nasceste estragado, tu e a tua irmã. Devias ter sido
afogado.”
Sustive a respiração ao ouvir aquilo e esperei que Vindeliar explodisse de fúria.
Mas em vez disso silenciou-se. O vento frio soprou e a única coisa que realmente
partilhámos foi desgraça. E sonhos.
Mesmo em pequena, eu tivera sonhos vívidos e soubera instintivamente que eles
eram importantes e deviam ser partilhados. Em casa, registara-os no meu diário.
Desde que os Servos me tinham raptado, os sonhos haviam-se tornado mais
sombrios e agoirentos. Eu nem falara deles, nem os escrevera. Os sonhos não
expressos estavam alojados dentro de mim como um osso na garganta. A cada novo
sonho, a compulsão para os divulgar em voz alta ou os escrever tornava-se mais
forte. As imagens dos sonhos eram confusas. Eu tinha um archote na mão e estava
parada numa encruzilhada sob um ninho de vespas. Uma rapariguinha cheia de
cicatrizes tinha um bebé nos braços e Urtiga sorria-lhe, embora tanto Urtiga como a
rapariga estivessem a chorar. Um homem deixava queimar as papas que estava a
cozinhar e lobos uivavam de angústia. Uma bolota era plantada em gravilha e dela
crescia uma árvore de chamas. A terra tremia e a chuva negra caía e caía e caía,
fazendo dragões sufocar e tombar ao chão com asas rasgadas. Eram sonhos
estúpidos que não faziam sentido nenhum, mas a urgência que sentia para os
partilhar era como a necessidade de vomitar. Pus o dedo na pedra fria e fingi
escrever e desenhar. A pressão atenuou-se. Virei a cabeça para cima e olhei para
estrelas distantes. Nenhuma nuvem. Aquela ia ser uma noite muito fria. Lutei por
enrolar melhor o xaile à minha volta a fim de me manter quente, sem sucesso.

Passou-se um terceiro dia e um quarto. Dwalia andava de um lado para o outro e


resmungava e estudava os seus documentos. As minhas nódoas negras começaram a
desvanecer-se mas ainda me doía tudo. O inchaço sobre o meu olho diminuíra, mas
um dos dentes de trás ainda me parecia solto. A pele rasgada no meu malar estava
agora quase fechada. Nenhum deles se importava.
“Levai-me de volta pela pedra”, pediu Reppin na quarta noite. “Se
regressássemos aos Seis Ducados, eles talvez pudessem salvar-me. Pelo menos
poderia morrer numa cama e não na terra.”
“Os falhados morrem na terra”, disse Dwalia sem emoção.
Reppin fez um som magoado e deitou-se sobre o flanco. Puxou as pernas para
cima, aninhando bem o braço infetado. A minha repugnância por Dwalia igualou o
meu ódio naquele momento.
Alaria falou em voz baixa na escuridão que se aprofundava. “Não podemos ficar
aqui. Para onde vamos? Porque é que não podemos seguir esta velha estrada? Ela
tem de levar a algum lado. Talvez vá ter a uma cidade, com abrigo aquecido e
comida.”
Dwalia estivera sentada junto da fogueira, estendendo as mãos para o calor.
Subitamente cruzou os braços sobre o peito e fitou, furiosa, Alaria. “Estás a fazer
perguntas?”
Alaria olhou para baixo. “Só queria saber.” Atreveu-se a erguer a cabeça. “Nós,
os luriks, não devíamos aconselhar-vos? Não fomos enviados para vos ajudarmos a
encontrar o verdadeiro Caminho e a tomar decisões corretas?” A voz tornou-se mais
aguda. “Coultrie e Capra não queriam que partísseis. Só autorizaram isto porque o
Amado tinha escapado! Nós devíamos persegui-lo e matá-lo! E depois, talvez,
capturar o Filho Inesperado, se o Amado vos tivesse levado até ele. Mas deixastes
que o Visionário levasse o Amado para longe para podermos assaltar a casa dele.
Todas aquelas mortes! Agora estamos perdidas numa floresta, com a rapariga inútil
que raptastes. Ela sonha? Não! Para que presta? Pergunto a mim mesma se nos
tereis trazido a todos até aqui para morrermos! Pergunto a mim mesma se seria
verdadeiro o boato de que o Amado não escapou mas foi libertado por vós e por
Symphe!”
Dwalia pôs-se em pé de um salto e parou por cima de Alaria. “Eu sou uma
Lingstra! Tu és uma lurik jovem e estúpida. Se queres perguntar alguma coisa a ti
mesma, pergunta porque é que a fogueira está a apagar-se. Vai buscar mais lenha.”
Alaria hesitou como se quisesse discutir. Depois levantou-se com movimentos
rígidos e penetrou relutantemente nas sombras cada vez mais profundas sob as
grandes árvores. Ao longo dos últimos dias, tínhamos vindo a recolher toda a
madeira seca que houvera por perto. Ela teria de penetrar mais profundamente na
floresta para encontrar mais. Perguntei a mim mesma se regressaria. Já por duas
vezes o Pai-Lobo captara um cheiro ténue mas desagradável no ar. Urso, acautelara-
me. Eu ficara assustada.
Ele não se quer aproximar de tantos humanos perto de uma fogueira. Mas se
mudar de ideias, deixa os outros guinchar e fugir. Não consegues correr depressa
nem até longe. Portanto, fica muito quieta e não soltes um som. Pode ser que ele
persiga os outros.
Mas e se não perseguir?
Fica imóvel e não soltes um som.
Eu não me sentira tranquilizada e esperei que Alaria regressasse e trouxesse
consigo uma braçada de lenha.
“Tu”, disse Dwalia de repente. “Vai com ela.”
“Já me ataste os pés para a noite”, fiz eu notar. “E as mãos.” Tentei soar amuada.
Se ela me libertasse para ir buscar lenha, eu tinha quase a certeza de que me
conseguiria escapulir no escuro.
“Tu não. Não vou deixar que fujas na escuridão para acabares por morrer na
floresta. Reppin. Vai buscar lenha.”
Reppin pareceu incrédula. “Eu mal consigo mexer este braço. Não posso ir
buscar lenha.”
Dwalia fitou-a. Julguei que lhe fosse ordenar que se pusesse em pé. Mas em vez
disso limitou-se a apertar a boca. “Inútil”, disse com frieza, e depois acrescentou:
“Vindeliar, traz lenha.”
Vindeliar levantou-se devagar. Manteve os olhos baixos, mas eu li o seu
ressentimento na posição dos ombros enquanto se afastava na mesma direção que
Alaria seguira.
Dwalia voltou para aquilo que fazia todas as noites: estudar o pequeno rolo e o
papel esfarrapado. Antes, ela passara horas a rodear os pilares na periferia da praça,
com os olhos a saltitar do pergaminho que encontrara para as runas e destas para o
pergaminho. Eu vira alguns daqueles sinais nos papéis que o meu pai tinha no seu
gabinete. Quereria ela tentar fazer mais uma passagem pelos pilares de Talento?
Também fizera breves incursões ao longo da estrada em ambas as direções e
regressara a abanar a cabeça e irritável. Não conseguia decidir o que mais temia,
que ela nos arrastasse para dentro do pilar de Talento ou que nos matasse à fome ali.
Do outro lado da praça, Kerf estava mergulhado numa dança pateada. Se eu mo
permitisse, conseguia ouvir a música e ver os Antigos que dançavam a toda a sua
volta. Alaria regressou com uns quantos ramos gelados, arrancados ainda verdes das
árvores. Podiam arder, mas pouco calor dariam. Vindeliar veio atrás dela, trazendo
um bocado partido de um lenho podre, mais musgo que madeira. Quando se
aproximaram da fogueira, Kerf dançou uma jiga pateada à sua volta. “Sai daqui!”,
gritou-lhe Alaria, mas ele limitou-se a sorrir enquanto rodopiava e se ia voltar a
juntar à festa dos Antigos espectrais.
Eu não gostava de acampar no terreno aberto da praça, mas Dwalia achava que o
chão da floresta estava “sujo”. No entanto, a sujidade era muito melhor do que a
pedra preta e lisa da praça que me gritava e murmurava constantemente. Acordada,
eu conseguia manter as muralhas apertadas, embora ficasse cansada com o esforço
que isso exigia. Mas à noite, quando a exaustão finalmente tomava o controlo de
mim, ficava vulnerável às vozes armazenadas na pedra. O mercado tornava-se vivo,
com carne a fumegar sobre fogueiras odoríferas e malabaristas a arremessar
cintilantes pedrarias, e uma cantora pálida que parecia ver-me. “Sê forte, sê forte,
vai para onde é o teu lugar!”, cantava-me ela. Mas as suas palavras assustavam-me
mais do que me reconfortavam. Nos seus olhos, eu via a sua crença de que eu ia
fazer uma coisa terrível e maravilhosa. Uma coisa que só eu podia fazer? O
calcedino apareceu de repente a meu lado. Dei um salto. Eu tinha as muralhas tão
apertadas que não estivera consciente da sua aproximação. Perigo!, acautelou o Pai-
Lobo. Kerf dobrou as pernas e dirigiu-me um sorriso bem-disposto. “Uma bela
noite para o festival!”, disse-me ele. “Já provaste a cabra fumada? Está excelente!”
Apontou a floresta cada vez mais escura do outro lado da praça. “Do vendedor com
o toldo roxo.”
A loucura transformara-o num tipo tão simpático. A sua menção a comida fez o
meu estômago apertar-se. “Excelente”, disse eu baixinho, e afastei o olhar,
pensando que concordar podia ser a maneira mais rápida de pôr fim à conversa.
Ele acenou gravemente com a cabeça e aproximou-se um pouco mais da
fogueira, assente sobre os calcanhares, estendendo as mãos muito sujas para o calor.
Mesmo louco, tinha mais bom senso que Reppin. Um trapo arrancado à sua camisa
servia de ligadura no dedo que eu mordera. Abriu a bolsa de couro resistente que
levava à cintura e remexeu lá dentro. “Toma”, disse, e atirou-me um pau. Eu ergui
as mãos atadas para o afastar e ele enfiou-mo nos dedos. De súbito cheirou-me a
carne. Carne seca. A vaga de fome e a inundação de saliva na minha boca
sufocaram-me. As mãos tremeram-me quando levei a carne à boca. Estava seca e
tão dura que não consegui arrancar um bocado com os dentes. Roí-a e suguei-a e dei
por mim ofegante enquanto tentava arrancar um bocado que conseguisse engolir.
“Eu sei o que fizeste.”
Agarrei-me com mais força à tira de carne seca, com medo de que ele ma tirasse.
Não disse nada. Dwalia erguera o olhar dos papéis e estava a fitar-nos de cenho
carregado. Eu sabia que ela não tentaria tirar-me a carne seca, com medo dos meus
dentes.
Ele deu-me palmadinhas no ombro. “Tentaste salvar-me. Se eu te tivesse largado
quando me mordeste, podia ter lá ficado com a linda Esquiva. Agora compreendo
isso. Querias que eu ficasse para trás, para a proteger e conquistar.”
Continuei a mascar a carne seca. Para enfiar na barriga o máximo que pudesse
antes que alguém ma conseguisse tirar. Tardiamente, fiz-lhe um aceno. Ele que
acreditasse no que quisesse, se isso quisesse dizer que me daria comida.
Ele suspirou enquanto fixava a noite. “Acho que estamos no reino da morte. É
muito diferente do que eu esperava. Sinto frio e dor, mas ouço música e vejo beleza.
Não sei se estou a ser punido ou recompensado. Não sei porque estou ainda com
estas pessoas em vez de ser julgado pelos meus antepassados.” Deitou a Dwalia um
olhar sombrio. “Esta gente é mais negra que a morte. Talvez seja por isso que
estamos aqui entalados, a meio da garganta da morte.”
Voltei a acenar com a cabeça. Conseguira arrancar um bocado da carne e estava a
fazê-lo em pedaços com os dentes. Nunca sentira tão grande expetativa pelo
momento de engolir alguma coisa.
Ele torceu-se para o lado e remexeu no cinto. Quando voltou a virar-se para mim,
tinha uma grande faca reluzente na mão. Tentei arrastar-me para longe dele mas ele
pegou-me nos pés atados e puxou-os para si. A faca estava afiada. Cortou o tecido
torcido e de súbito fiquei com os tornozelos livres. Esperneei para me libertar das
mãos dele. Ele estendeu a mão para mim. “E agora os pulsos”, disse.
Confiar ou não? Aquela faca podia cortar-me um dedo tão facilmente como me
cortaria as amarras. Enfiei a tira de carne na boca e prendi-a nos dentes. Estendi-lhe
os pulsos.
“Isto está apertado! Dói?”
Não respondas.
Fitei-lhe os olhos em silêncio.
“Os teus pulsos incharam à volta do trapo.” Ele fez deslizar cuidadosamente a
lâmina entre as minhas mãos. Estava fria.
“Para com isso. O que estás a fazer?” Dwalia finalmente expressou a sua
indignação.
O calcedino mal lhe dispensou um relance. Pegou numa das minhas mãos para
estabilizar a tarefa e começou a cortar o trapo que as prendia.
Dwalia surpreendeu-me. Estivera a acrescentar um pau à fogueira. Em vez de o
fazer, deu dois passos e acertou com ele na nuca do calcedino. Este caiu, ainda
agarrado à faca. Eu libertei as mãos do último farrapo de trapo e pus-me em pé de
um salto. Corri dois passos sobre os pés cheios de formigueiro antes que ela me
agarrasse pelo colarinho, sufocando-me. As duas primeiras pancadas com o pau
atingiram-me as costelas e o ombro direitos.
Eu virei-me sob as suas mãos, ignorando como isso me apertava o colarinho
contra a goela, e pontapeei-a com toda a força que consegui, batendo-lhe na canela
e depois no joelho. Ela guinchou de dor mas não me largou. Em vez disso atingiu-
me o lado da cabeça com o seu bocado de lenha. A minha orelha esmagada ressoou
e senti o sabor do sangue, mas a dor não me importou tanto, como a forma como
senti a visão a fechar-se. Girei para longe dela, mas isso permitiu-lhe que me
batesse do outro lado da cabeça. De forma surda, compreendi que ela estava a gritar
aos outros para me agarrarem. Ninguém saltou para a ajudar. Vindeliar estava a
gemer: “Não, não, não”, com a voz a tornar-se mais aguda de cada vez que dizia a
palavra. Enfureceu-me que ele gemesse mas não fizesse nada. Empurrei a minha
dor contra ele.
Ela voltou a atingir-me do lado da cabeça, esmagando-me a orelha. Os meus
joelhos cederam e de súbito fiquei pendurada do colarinho. Ela não era forte o
suficiente para suportar o meu peso. Caiu em cima de mim e o meu ombro explodiu
de dor.
Senti uma vaga de emoção. Foi como quando Urtiga e o meu pai fundiam as
mentes, ou quando a mente do meu pai estava a fervilhar de pensamentos e ele se
esquecia de os conter. Não a magoes! Não a magoes!
Dwalia largou-me o colarinho e soltou um estranho som quando rolou de cima de
mim. Não me tentei mexer. Limitei-me a arquejar, voltando a puxar ar para dentro
do meu corpo. Perdera a carne seca. Tinha a boca cheia de sangue. Virei a cabeça e
abri os lábios para o deixar correr.
Não morras. Por favor, não morras, não me deixes sozinho. O pensamento de
Vindeliar sussurrava-me. Ah. Era isso. Quando eu empurrara a minha dor para ele,
abrira um caminho para os seus pensamentos entrarem. Perigoso. Com cada
bocadinho de força de vontade que consegui reunir, bloqueei-o fora da minha
mente. Lágrimas picaram-me os olhos. Lágrimas de fúria. A barriga da perna de
Dwalia estava ao alcance dos meus dentes. Perguntei a mim mesma se conseguiria
arrancar-lhe um bocado de carne da perna à dentada.
Não faças isso, cria. Ela ainda tem o pau. Rasteja para longe. Discretamente.
Esta é alguém que não atacas até teres a certeza de que a podes matar.
Tentei contorcer-me para longe. Mas o meu braço não quis obedecer-me. Caía,
inútil. Estava partido. Pestanejei perante a dor e pontinhos pretos dançaram à frente
dos meus olhos. Dwalia pôs-se de gatas e depois levantou-se com um grunhido e
afastou-se sem olhar para mim. Quando chegou ao outro lado da fogueira, voltou a
sentar-se na mochila e recomeçou a olhar para o papel muitas vezes dobrado e o
pequeno pergaminho que tinha tirado do osso. Fez rodar lentamente os bocados de
papel e depois, subitamente, baixou-se mais para eles. Pô-los lado a lado sobre os
joelhos e olhou para um e para o outro.
O calcedino endireitou-se devagar. Levou a mão à nuca, pô-la à frente dos seus
olhos e esfregou as pontas húmidas dos dedos uma na outra. Observou-me enquanto
eu me sentava e abanou a cabeça ao ver o braço pendurado e inútil. “Está partido”,
murmurei. Desejava desesperadamente que alguém se importasse por eu estar tão
magoada.
“Mais negra que a morte”, disse ele em voz baixa. Estendeu a mão, pôs os dedos
na ponta do meu ombro e sondou-o. Eu gritei e encolhi-me. “Não está partido”,
observou ele. “Mas eu não conheço a vossa palavra para isto.” Fez um punho e
encaixou-o na outra mão. Depois puxou o punho para fora. “Saltou”, disse-me.
Voltou a estender a mão para mim e eu afastei-me mas ele limitou-se a acenar na
direção do meu ombro. “Saltou.”
“O meu braço não se mexe.” O pânico estava a crescer em mim. Não conseguia
respirar.
“Deita-te. Fica quieta. Descontrai-te. Às vezes volta a entrar.” Olhou para
Dwalia. “Ela é uma vespa”, observou. Fitei-o. Ele sorriu doentiamente. “Um ditado
calcedino. Se uma abelha pica, morre. Paga um preço por te fazer mal. Uma vespa
pode picar e picar e voltar a picar. Não paga nada pela dor que provoca.” Encolheu
os ombros. “Portanto picam. Não sabem fazer outra coisa.”
Dwalia pôs-se subitamente em pé. “Agora sei onde estamos!” Voltou a olhar para
o pequeno rolo que tinha nas mãos. “As runas coincidem. Não faz sentido nenhum,
mas tem de ser verdade!” Fitou a distância; depois os olhos estreitaram-se-lhe e as
feições mudaram quando se apercebeu de uma coisa. “Ele mentiu-nos. Ele mentiu-
me!”, rugiu Dwalia. Eu julgara que ela era assustadora quando estava zangada, mas
indignada era muito pior. “Ele mentiu-me! Uma praça de mercado, disse o Prilkop,
numa estrada muito movimentada. Ele julgou que era tão esperto. Levou-me a
trazer-nos para aqui. Enganou-me!” Esta última palavra foi gritada, e a sua cara
contorceu-se numa máscara rígida. “Prilkop!” Perdigotos voaram-lhe da boca.
“Sempre tão condescendente. Tão calmamente superior. E o Amado, tão silencioso,
e depois a palrar, a palrar, a palrar. A palrar mentiras! Bem, eu fi-lo gritar.
Arranquei a verdade aos dois, não arranquei?”
“Aparentemente, não.” Alaria sussurrou as palavras, olhando para o espaço entre
os seus pés e o fogo. Duvidei que alguém além de mim a tivesse ouvido.
Mas a cabeça de Reppin torceu-se como se a tivesse escutado e ela tentou
endireitar-se. “Julgastes que sim. Julgastes que lhe arrancastes a verdade da pele.
Mas ele era mais forte do que vós, não era? Mais esperto. O Prilkop levou-vos a
trazer-nos para aqui, e aqui estamos, no meio da floresta. À fome. A morrer!” A voz
estalou.
Dwalia fitou Reppin, com olhos inexpressivos. Depois esmagou o mapa amarelo
entre as mãos, levantou-o e enfiou-o na mochila em que estivera sentada. O
pequeno pergaminho que encontrara foi enrolado e voltou para dentro do tubo.
Mostrou-o a Reppin com um floreado. “Nem todos nós, Reppin. Nem todos nós
morrerão aqui.” O seu sorriso alargou-se com orgulho. “Eu decifrei-o. O Prilkop
mentiu-me, mas o verdadeiro Caminho não se deixa desafiar!” Enfiou mais
profundamente a mão na mochila e puxou do seu interior uma pequena bolsa,
desatou os laços que a atavam e retirou lá de dentro uma luva delicada. O Pai-Lobo
rosnou dentro de mim. Fitei a luva, sentindo-me doente e sem saber porquê. Dwalia
enfiou lenta e cuidadosamente a luva na mão, pondo cada ponta de cada dedo no
lugar. Já antes a usara, quando nos arrastara para dentro do pilar de Talento.
Levantou-se. “Tragam as mochilas e a cativa. Sigam-me.”
A cativa. O meu novo título fluiu sobre mim como água engordurada. Dwalia não
olhou para trás para ver se eles estavam a obedecer. Levou apenas a sua
superioridade enquanto caminhava a passos largos até um dos pilares e estudava as
marcas que nele havia. “Para onde dá?”, perguntou Alaria com acanhamento.
“Não te cabe a ti preocupares-te com isso.”
O calcedino seguira Dwalia. Fora o único que o fizera. Eu afastei-me da fogueira.
As minhas mãos estavam livres, os meus pés desamarrados. Picavam numa
dormência cada vez menor, que contrastava com a violenta dor no meu ombro.
Seria capaz de me levantar e fugir? Empurrei-me, apoiando no chão a mão boa, e
aproximei mais um pouco o meu corpo dorido das trevas. Se conseguisse esgueirar-
me lentamente para a escuridão, talvez lograsse rastejar para longe.
Reppin pusera-se em pé, a cambalear, e estava a tentar tirar só com uma mão o
meu casaco do chão. “Não sei se consigo carregar uma mochila”, desculpou-se.
Ninguém respondeu.
Ignorando o cenho carregado de Dwalia, o calcedino foi pôr-se ao seu lado para
examinar o pilar. Estendeu a mão e contornou com ela as runas esculpidas. “Eu
conheço esta”, disse, e fez um estranho sorriso. “Ajoelhei quase em cima dela e não
tinha mais nada para onde olhar. Tinha seis anos. Fizemos uma vigília ao corpo do
meu avô na Câmara das Portas Tombadas na fortaleza do Duque de Calcede. Expor
o corpo do meu avô num lugar como aquele foi uma honra. No dia seguinte
queimaram-lhe o corpo numa pira perto do porto.”
Dwalia virou os olhos para ele e sorriu. “Isso foi em Calcede, não foi?”
Ele confirmou com a cabeça. “Era meio dia de cavalgada da propriedade da
minha família até lá. Diz-se que o forte do duque foi construído no local de uma
antiga batalha. Havia quatro pilares como este, todos tombados e afundados para
ficarem ao nível do chão da sala. Diz-se que dá boa sorte se se conseguir partir uma
lasca de um para se usar como lembrança. Eu tentei, mas a pedra é dura como
ferro.”
O sorriso dela alargou-se. “Como eu pensava! Continuamos no verdadeiro
Caminho, meus luriks. Tenho a certeza disso, quando tão boa sorte nos sorri.” Bateu
com o pequeno rolo na palma da mão. “O destino pôs-me um mapa nas mãos. Está
desenhado de forma estranha e a escrita é estrangeira, mas consegui decifrá-lo. Sei
onde estamos neste mapa e agora sei que este pilar pode transportar-nos até
Calcede. O Kerf vai levar-nos para a propriedade da família e apresentar-nos aos
amigos. A família dele vai dar-nos provisões para a nossa viagem até casa.” Virou o
olhar para Vindeliar. “Não vai, Vindeliar?”
Kerf pareceu estupefacto. Vindeliar, com uma mochila ao ombro e a arrastar
outra, pareceu cansado e inseguro. A luz da fogueira movia-se pelas suas feições,
transformando-o primeiro num servo adorador e depois num cão maltratado.
“A minha família vai fazer isso?”, perguntou Kerf, espantado.
“Tu falarás por nós”, assegurou-lhe Dwalia. Eu arrastei-me para um pouco mais
longe da fogueira. Mal conseguia suportar a dor do ombro deslocado quando me
movia. Sustentei o braço inútil com o braço bom, perguntando a mim mesma quão
má seria a dor se me pusesse em pé e tentasse fugir.
“Não consigo pegar no casaco”, disse Reppin a absolutamente ninguém.
“Não.” Kerf abanou a cabeça. “Não posso falar por vós à minha família. Nem por
mim posso falar. Eles vão querer saber como foi que sobrevivi e regressei quando
tantos dos meus camaradas estão desaparecidos. Vão pensar que fugi da batalha e
deixei os irmãos de guerra à morte. Vão desprezar-me.”
Dwalia fixou o sorriso na cara, pôs-lhe a mão não enluvada no braço e deitou a
Vindeliar um olhar de viés. “Tenho a certeza de que a tua família nos dará as boas-
vindas quando falares por nós. Tenho a certeza de que só sentirão orgulho de ti.”
Mantive os olhos fixos neles enquanto me aproximava mais da escuridão. A dor
no ombro deu-me vontade de vomitar. Vi a expressão de Vindeliar afrouxar quando
os seus pensamentos foram para outro sítio. Senti, como se estivesse a ouvir o eco
de um grito distante, o desespero com que ele empurrou os seus pensamentos para
Kerf. Observei o sobrolho do calcedino desfranzir-se lentamente enquanto fitava
Dwalia. Reppin desistira de tentar puxar o meu casaco do chão. De mãos vazias,
cambaleou até onde os outros estavam. Aí, fez um sorriso sabedor e acenou de si
para si enquanto Vindeliar operava a sua magia, mas ninguém lhe prestou qualquer
atenção. Eu verguei os joelhos e empurrei-me mais para a escuridão.
“A minha família certamente vos dará as boas-vindas. Tudo o que possuímos será
posto à vossa disposição”, disse Kerf a Dwalia. A certeza tornava o seu sorriso
caloroso.
“Alaria, trá-la!” Dwalia olhou, não para mim, mas para trás de mim. Virei a
cabeça. O maligno deleite na cara de Alaria era arrepiante. Durante todo aquele
tempo, enquanto eu vigiava Dwalia e tentava afastar-me da luz da fogueira, ela
estivera atrás de mim. Agora ou nunca. Empurrei com força com a mão boa e
consegui pôr-me em pé, com o braço inútil encostado à barriga. Fugi.
Dei três passos antes de Alaria me apanhar. Ela agarrou-me no cabelo e
pontapeou-me a perna como se tivesse passado a vida inteira à espera daquele
momento. Soltei um guincho. Ela sacudiu-me a cabeça pelo cabelo como uma
raposa sacode um coelho e depois atirou-me para o lado. Eu aterrei sobre o ombro
mau. Relâmpagos de vermelho e relâmpagos de negro. Não conseguia arranjar ar
para respirar. Nada pude fazer quando ela me pegou nas costas da camisa e quase
me pôs em pé à força. “Anda!”, gritou-me. “Anda, senão dou-te outro pontapé!”
Era difícil obedecer e impossível desafiá-la. Ela era maior e mais forte do que eu
e não fora espancada recentemente. Manteve-se agarrada à minha roupa e ergueu-
me demasiado. Estávamos a meio caminho do sítio onde Dwalia se encontrava,
comigo a lutar por me equilibrar nas pontas dos pés, quando me apercebi de que o
meu ombro era uma dor vermelha e surda mas já conseguia mexer outra vez o
braço. Bom, sempre era qualquer coisa.
Junto dos pilares, Dwalia estava a organizar os seus patinhos à sua vontade. “Eu
vou primeiro”, anunciou, como se mais alguma pessoa o pudesse fazer. “Agarro a
mão de Vindeliar e ele a de Kerf.” Dirigiu um sorriso caloroso ao calcedino, o qual
acenava com a cabeça, e eu compreendi. Aquelas eram as duas pessoas que
considerava mais importantes para a sua sobrevivência. Queria ter a certeza de que
o seu mágico e o guerreiro com casa em Calcede chegariam consigo. “Depois vem a
fedelha. Kerf, agarra-a bem. Não na mão. Lembra-te de que ela morde. Agarra-a
pela nuca. Isso mesmo. Alaria, tu és a última. Pega-lhe na parte de cima do braço e
prende-a bem.”
Isto foi algo que Alaria ficou feliz por fazer e eu só pude ficar debilmente
contente por não ser no meu ombro em mau estado que ela pegou. Kerf agarrou-me
na parte de trás do pescoço e qualquer gentileza que ele tivesse mostrado
anteriormente para comigo desaparecera. Era outra vez a marioneta de Vindeliar.
“Esperem. Eu sou a última?”, perguntou Reppin.
Dwalia fitou-a friamente. “Não és a última. És desnecessária. Não quiseste ir
buscar lenha. Escolheste ser inútil. Alaria, vai buscar aquele casaco. Pode valer
dinheiro em Calcede. E a mochila de Reppin.”
Os olhos de Reppin estavam enormes na sua cara macilenta quando Alaria me
largou e correu a obedecer. A forma como o calcedino me agarrava era segura.
Alaria moveu-se rapidamente. Desejaria ela mostrar quão útil era? Num momento
estava de volta, com a mochila de Reppin num ombro e o pesado casaco que em
tempos tinha sido branco e meu enrolado sobre o braço. Agarrou o meu com mãos
fortes como tenazes.
“Não me podem deixar aqui. Eu preciso da minha mochila! Não me
abandonem!” A cara pálida de Reppin estava cadavérica à luz da fogueira. Tinha o
braço mordido enrolado junto ao peito. Esbracejou na direção de Alaria, tentando
agarrar-lhe a mão livre com a que tinha funcional. Alaria afastou dela o olhar e
apertou o meu antigo casaco ao peito, enrolando a mão para fora do alcance de
Reppin. A força com que me agarrava o braço aumentou. Perguntei a mim mesma
se ela estaria a endurecer o coração para abandonar Reppin ou se isso seria um
alívio. Talvez estivesse simplesmente contente por não ser ela a ser abandonada.
Agora via como Dwalia comandava. A crueldade para com um dos seus seguidores
queria dizer que os outros podiam respirar mais facilmente por um momento. Não
havia lealdade entre luriks, só medo de Dwalia e desejo por aquilo que ela poderia
conceder-lhes.
“Por favor!”, guinchou Reppin para a noite.
Vindeliar soltou um pequeno som. Durante um instante, a sua concentração
quebrou-se e a força que Kerf fazia no meu pescoço atenuou-se.
“Ela é inútil”, rosnou Dwalia. “Está a morrer, é lamurienta e está a consumir
recursos que já são escassos. Não questiones as minhas decisões, Vindeliar. Olha
para o que nos aconteceu a todos da última vez que não obedeceste às minhas
ordens. Olha para quantos morreram, e tudo culpa tua! Presta-me atenção e segura-
te bem, senão também tu serás deixado para trás!”
A mão de Kerf apertou-me mais e os dedos de Alaria esmagaram-me a carne do
braço contra o osso.
De súbito apercebi-me do perigo. “Não devíamos fazer isto! Devíamos seguir a
estrada. Ela tem de ir ter a algum sítio! As pedras verticais são perigosas. Podemos
não sair, ou podemos sair tão loucos como o Kerf!”
Ninguém deu ouvidos aos meus avisos gritados. Dwalia pressionou a face
esculpida da pedra com a mão enluvada. A pedra pareceu puxá-la para dentro como
uma fatia de gengibre a afundar-se em mel quente. A luz da nossa fogueira
abandonada mostrou-a a deslizar para o interior da pedra. Vindeliar seguiu-a, a
arquejar de terror à medida que a mão, o pulso e o cotovelo iam desaparecendo na
pedra. Gemeu ao ser puxado para dentro.
“Nadamos com os mortos!”, gritou Kerf, com o seu esgar de louco. “Avante para
o palácio caído de um duque morto!” Pareceu entrar mais lentamente no pilar do
que Vindeliar, como se a pedra lhe resistisse. Eu deixei-me ficar para trás, mas a sua
mão no meu pescoço manteve-se apertada mesmo depois de o resto de si ter
desaparecido na pedra. Olhei para cima ao ser arrastada para o pilar e perdi o fôlego
com o horror do que vi. A marca adicional na pedra não era nova. Não estava tão
profundamente incrustada na pedra como as runas originais, mas a sua intenção era
inconfundível. Alguém fizera deliberadamente um profundo risco reto sobre a runa,
como que para proibir ou avisar qualquer um que decidisse usar essa face do portal.
“Papi!”, gritei, um chamamento desesperado que ninguém poderia ouvir. “Papi!
Ajuda-me!” No momento seguinte, a minha cara tocou a superfície fria e eu fui
puxada para o negrume de breu.
Capítulo 4

Calcede

Devido ao estudo de muitos velhos pergaminhos, incluindo as


traduções que fizemos, estou convencido de que os lendários Antigos
dos nossos mitos e lendas foram um povo muito real que ocupou um
vasto território durante muitas gerações antes de as suas cidades e
cultura acabarem por cair em decadência muito antes da fundação
do Castelo de Torre do Cervo. Informação adicional obtida numa
biblioteca daquilo a que chamamos cubos de Talento só nos
convenceu de que temos razão.
Por que motivo teriam os Antigos, um povo de sabedoria e poderosa
magia, caído e desaparecido do nosso mundo? Seremos capazes de
ligar essa queda ao desaparecimento dos dragões, outro
acontecimento para o qual não temos explicação? E agora que tanto
os dragões como talvez os Antigos regressaram ao mundo, como é
que isso afeta o futuro da humanidade?
E as nossas lendas sobre uma antiga aliança entre os Visionário e os
Antigos, a mesma aliança que o Rei Veracidade procurou reviver
quando fez a sua expedição aos Ermos Chuvosos? Ele encontrou
Antigos vivos, ou as memórias armazenadas do que eles tinham
sido? Questões para as quais talvez encontremos respostas se
continuarmos a investigar os cubos de memória em busca de
informação.
Os Antigos Desaparecidos, Breu Tombastela

A
minha mãe costumava fazer-me isto. Quando queria deslocar-me.
Uma vaga recordação. Um covil, uma mãe que me transportava
pelo cachaço. O pensamento não era meu, mas era um pensamento
e fora o primeiro que eu tivera. Alguém me agarrava em cabelo, pele e
colarinho da camisa. O colarinho era a parte que me estava a sufocar. Fui
arrastada para cima e para fora de um atoleiro e alguém protestou: “Não há
espaço. Deixa-a! Não há espaço.”
O negrume era absoluto. Ar na minha cara. Pisquei os olhos para ver se
estavam realmente abertos. Estavam. Nada de estrelas. Nenhuma luz
distante de fogueiras. Nada. Só a escuridão. E algo denso a tentar puxar-me
de novo para baixo.
Fiquei abruptamente feliz por ter a sufocante mão agarrada ao colarinho.
Em pânico, agarrei-me com uma mão à camisa de alguém e rastejei para
cima de Kerf. Ele estava virado de lado, por baixo de mim. Ergui a cabeça e
ela bateu em alguma coisa. Pior, alguém se agarrava ao meu braço e estava
a puxar por ele enquanto rastejava para cima para se juntar a mim. O
homem por baixo de mim virou-se, pondo-se de costas. Eu caí de cima dele
e fiquei entalada entre ele e uma parede de pedra. Era apertado e empurrei-o
por instinto, tentando arranjar mais espaço. Mas não consegui mover o seu
corpo e ouvi Alaria arquejar e depois soltar pequenos guinchos enquanto
trepava para ir ocupar o meu lugar por cima de Kerf.
Os guinchos transformaram-se em palavras arquejadas. “Larga! Larga-
me!” Estava a debater-se em cima de Kerf.
“Estás a dar-me pontapés”, protestou Vindeliar.
“Larga!”, gritou Alaria.
“Não te estou a tocar! Para de espernear!”, ordenou-lhe Dwalia.
“Vindeliar, sai de cima de mim!”
“Não posso. Estou entalado! Não há espaço!” Ele arquejava de terror.
Onde estávamos? O que nos acontecera?
Dwalia tentou adotar um tom de comando e falhou. Estava esbaforida.
“Silêncio, todos!”
“Estou enjoado.” Ouvi Vindeliar sufocar um vómito. “Aquilo foi
horrível. Estavam todos a tentar agarrar-me. Quero ir para casa. Não
consigo fazer isto. Odeio isto. Tenho de ir para casa.” Balbuciava como
uma criança pequena.
“Larga-me!” Alaria, com a voz esganiçada.
“Ajudem-me! Estou a afundar-me! Por favor, arranjem espaço! Não
consigo subir para cima de vós!” Ouvi e cheirei Reppin. A infeção no seu
braço fedia. Era provável que tivesse aberto o ferimento com o esforço. “O
meu braço… não consigo trepar para fora. Alguém que me puxe para cima!
Não me deixem aqui! Não me deixem com eles!”
Onde estávamos?
Tem calma. Descobre o que aconteceu antes de tentares fazer um plano.
Senti a segurança do Pai-Lobo a imbuir-me. O meu respirar transformara-se
num fole no meu peito. Mas a voz dele era tão calma na minha mente.
Escuta. Toca. Cheira. O que consegues descobrir?
Era difícil ficar calma com a luta esbracejada e arquejada que decorria
mesmo ao meu lado. Alaria suplicou: “Larga! Não há espaço! Não me
puxes de volta! Ah!”
Reppin não guinchou. Soltou um longo gemido que foi subitamente
abafado por um som que parecia ser o de uma pedra pesada puxada de
dentro de lodo. Só o arquejar de Alaria quebrava o silêncio.
“Ela foi puxada de volta para dentro da pedra.” Mais uma afirmação do
que uma pergunta vinda de Dwalia. E, com isso, eu recordei que ela nos
arrastara para dentro de um pilar de Talento.
“Tive de fazer o que fiz! Tive de a empurrar para longe. Não há mais
espaço! Dissestes para a deixarmos. A culpa não é minha!” Alaria soava
mais defensiva do que com pena.
“Caluda!” A voz de Dwalia ainda estava tensa com falta de fôlego.
“Quem fala sou eu. Vindeliar, sai de cima de mim!”
“Perdão. Estou aqui entalado. O Kerf empurrou-me para cima de vós
quando subiu. Não me consigo mexer. Está uma pedra a empurrar-me para
baixo.” Ele estava à beira da histeria. “Estou tão enjoado. Não consigo ver!
Estou cego? Lingstra Dwalia, eu estou cego?”
“Não. Está escuro, seu palerma. Não te atrevas a vomitar-me em cima.
Estás a esmagar-me. Dá-me espaço.” Ouvi uma luta de corpos em
movimento.
Vindeliar choramingou: “Não há espaço para eu me mexer. Também
estou a ser esmagado.”
“Se não consegues ajudar, fica quieto. Calcedino?” Ela arquejava para
obter ar. Vindeliar não era uma pessoa pequena e ela estava presa por baixo
dele. “Kerf?”
Este soltou um risinho. Era um som horrível, vindo do profundo peito de
um homem na escuridão.
“Para com isso! Dwalia, ele está a tocar-me!” Alaria estava indignada e
aterrorizada.
Kerf voltou a rir e eu senti-o a puxar o braço de baixo de mim. Ergueu-o,
dando-me um tudo-nada mais de espaço, e deduzi que ele abraçara Alaria
contra o seu corpo. “Excelente”, disse ele numa voz gutural, e senti-o a
erguer as ancas para ela.
“Para”, suplicou a rapariga, mas a resposta dele foi um rosnido seguido
de uma gargalhadinha. Os músculos do seu braço estavam comprimidos
contra mim e senti-os a contrair-se quando ele aconchegou Alaria mais para
si. A sua respiração aprofundou-se. A meu lado, deu início a um movimento
rítmico que me empurrou solidamente contra a parede. Alaria começou a
chorar.
“Ignora-o”, ordenou-lhe Dwalia com firmeza.
“Está a tentar violar-me!”, guinchou ela. “Ele…”
“Não tem espaço suficiente, portanto ignora-o. Não consegue despir as
suas próprias calças, e muito menos as tuas. Finge que é um cãozinho,
entusiasmado com a tua perna.” Haveria uma satisfação cruel na voz de
Dwalia? Divertir-se-ia ela com a humilhação de Alaria? “Estamos
encurralados aqui e tu guinchas por causa de um homem te tocar. Não é
propriamente um perigo verdadeiro.”
Alaria respondeu com ganidos assustados que obedeciam ao mesmo
ritmo dos movimentos de Kerf contra ela.
“A rapariga, Abelha. Ela atravessou? Está viva?”, perguntou Dwalia.
Guardei silêncio. Tinha conseguido soltar o braço magoado e, embora o
ombro ferido protestasse, estava a tatear para descobrir os limites da nossa
prisão. Pedra por baixo de mim. À minha esquerda, o corpo de Kerf. À
minha direita, uma parede de pedra até onde eu alcançava. Quando ergui as
mãos, raspei com os dedos em mais pedra. Era pedra trabalhada, lisa como
um piso polido. Explorei com os pés. Mais pedra. Mesmo se eu estivesse
sozinha naquele espaço, não me teria conseguido sentar. Onde estávamos?
O ritmo das sacudidelas do calcedino estava a acelerar-se e com ele
aceleravam os arquejos que saíam da sua boca aberta.
“Alaria, tateia em volta. A rapariga atravessou?”
“Deve… ter… atravessado. Oh! Eu atravessei… agarrando-me… a ela.”
A voz de Alaria estava a ficar mais miúda e aguda. O calcedino continuava
a elevar-se. “É um nojo!”, choramingou ela. “Ele está a lambuzar-me a cara.
E fede! Para com isso!”, guinchou, mas o calcedino começou a grunhir
debaixo dela.
“Consegues tateá-la? Ela está viva?”, insistiu Dwalia.
Fiquei imóvel. Apesar dos apaixonados balanços de Kerf, senti a mão
dela a investigar. Sustive a respiração. Ela tocou-me a cara e depois o peito.
“Está aqui. Não se mexe mas o corpo está quente. Vindeliar! Faz com
que ele pare com isto!”
“Não consigo. Estou enjoado. Estou tão enjoado.”
“Vindeliar, é bom que te lembres de que eu e só eu é que te dou ordens.
Alaria, cala a boca!”
“Estavam lá tantos”, gemeu Vindeliar. “Estavam todos a puxar por mim.
Estou tão enjoado.”
Dwalia perdeu a paciência. “Fica enjoado em silêncio!”
Alaria arquejava de horror. Não voltou a falar mas eu ouvia os sonzinhos
de choro que ela fazia e o profundo gemido do calcedino quando finalmente
alcançou alguma espécie de satisfação. Ela tentou afastar-se dele mas eu
senti os músculos do seu braço a contrair-se e percebi que a segurava onde
estava. Por mim era ótimo. Não queria que ela rolasse de cima dele para
cima de mim.
“Tateiem em volta, o máximo que puderem”, ordenou Dwalia. “Alguém
consegue encontrar alguma abertura nesta sepultura?”
Foi uma má escolha de palavras. “Sepultura”, repetiu Vindeliar e soltou
um longo gemido de desespero.
“Silêncio!”, arquejou ela. “Tateia acima da tua cabeça. Há alguma
abertura?”
Ouvi-os mover-se na escuridão, ouvi o raspar de dedos em pedra, o ruído
de botas a raspar em mais pedra. Conservei-me imóvel.
“Alguma coisa?”, perguntou Dwalia às trevas.
“Não”, respondeu Alaria, carrancuda. “Só pedra em todo o lado que eu
toque. Mal consigo levantar a cabeça. Tendes algum espaço ao vosso lado?”
Os músculos do calcedino haviam-se descontraído e, pela sua possante
respiração, deduzi que ele adormecera. A loucura era, talvez, misericordiosa
em algumas situações.
“Eu deixava que o Vindeliar se deitasse em cima de mim se pudesse estar
nalgum outro sítio?”, perguntou Dwalia.
Um silêncio. Depois Alaria sugeriu: “Talvez pudésseis levar-nos de volta
para o lugar de onde viemos, não?”
“Infelizmente, quando o calcedino emergiu da pedra, empurrou-me para
um lado e ao Vindeliar para cima de mim. Agora está em cima do portal de
pedra. Não consigo alcançá-la de onde estou.”
“Estamos comprimidos como peixe em barril de salmoura”, observou
Vindeliar com tristeza. E acrescentou, mais baixo: “Suponho que vamos
todos morrer aqui.”
“O quê?”, perguntou Alaria num meio guincho. “Morrer aqui? Ficar na
escuridão até morrer à fome?”
“Bem, não conseguimos sair”, respondeu sombriamente Vindeliar.
“Calem-se!”, ordenou-lhes Dwalia, mas era demasiado tarde. Alaria
quebrou. Desatou a chorar entre arquejos e, passados alguns momentos, eu
ouvi os soluços abafados de Vindeliar.
Morrer aqui? Quem morreria primeiro? Um grito começou a crescer
dentro do meu peito.
Esse pensamento não é útil, censurou o Pai-Lobo. Respira. Baixinho.
Senti o pânico crescer em mim e depois ser esmagado sob a severidade
dele.
Pensa em como fugir. Achas que conseguias entrar sozinha na pedra?
Conseguias enfiar a mão por baixo do calcedino e abrir a passagem para
voltarmos para a floresta?
Não sei bem.
Tenta.
Tenho medo de tentar. E se ficar presa na pedra? E se sair algures
sozinha?
E se ficares aqui e morreres à fome? Depois, claro, de os outros
enlouquecerem e se atacarem uns aos outros? E agora tenta.
Quando eu escorregara de cima de Kerf, aterrara de costas. Torci-me para
um lado. Tive de rolar para cima do meu ombro dorido para o fazer. E era
essa mão e braço que eu teria de tentar enfiar debaixo do peso combinado
de Kerf e Alaria. Tentei fazê-lo devagar, enfiando-lhe a mão sob os rins,
onde o seu corpo não pressionava a pedra com tanta força. Soltei um
pequeno ruído de dor e as fungadelas de Alaria pararam. “O que foi isso?”,
gritou, e estendeu a mão para mim. “Ela está a mexer-se. Está viva e
acordada.”
“E mordo!”, fiz-lhe lembrar e ela afastou a mão de repente.
Agora que eles sabiam que eu estava acordada, não servia de nada ser
discreta. Enfiei a mão o mais que pude debaixo de Kerf. Ele mexeu-se
ligeiramente, prendendo o meu braço sob o seu corpo, após o que arrotou e
recomeçou a ressonar. O meu ombro ardia enquanto eu enfiava mais a mão
por baixo de Kerf, raspando com ela em pedra cheia de saibro. Ouvi o meu
arquejar temeroso e fechei a boca para respirar pelo nariz. Fazia menos
barulho, mas continuava tão aterrorizada como antes. E se tocasse na runa e
fosse subitamente sugada para o interior da pedra? Conseguiria ela puxar-
me por forma a passar por Kerf? Cairia ele e Alaria comigo, como se eu
tivesse aberto uma porta por baixo de nós? O terror colocou pressão na
minha bexiga. Bloqueei-o. Bloqueei tudo exceto o esforço de empurrar a
mão por cima de pedra. A superfície de pedra sob os meus dedos
transformou-se de repente num pequeno entalhe. Explorei-o cautelosamente
com as pontas dos dedos. Era a runa.
Sentes alguma coisa? Consegues fazer acontecer alguma coisa?
Tentei. Não queria fazê-lo, mas empurrei os dedos contra a runa e rocei
com as pontas nos seus traços gravados. Nada. Não acontece nada, Pai-
Lobo.
Está bem. Nesse caso devíamos pensar noutra coisa qualquer. As
palavras dele eram calmas mas senti o seu medo fervilhante por baixo delas.
Puxar o braço de debaixo de Kerf foi mais doloroso do que enfiá-lo lá
tinha sido. Depois de ter o braço livre, passei por uma breve vaga de pânico.
Tudo estava a tocar-me — o corpo quente de Kerf, a pedra firme por baixo
de mim, a pedra ao longo do meu corpo. Precisava desesperadamente de me
levantar, de me espreguiçar, de respirar ar fresco. Não te debatas, insistiu o
Pai-Lobo. Debateres-te só faz com que o laço se aperte mais. Fica quieta e
pensa. Pensa.
Tentei, mas continuava tudo a tocar-me. Alaria estava outra vez a chorar.
Kerf ressonava. As suas costelas moviam-se contra mim de cada vez que
respirava. A minha túnica torcera-se à minha volta, prendendo-me um dos
braços. Eu estava demasiado quente. Tinha sede. Soltei involuntariamente
um pequeno som gutural. Outro som cresceu em mim, um grito que queria
sair.
Não. Nada disso. Fecha os olhos, cria. Fica comigo. Estamos numa
floresta. Lembras-te dos cheiros frescos e noturnos de uma floresta? Fica
muito quieta. Fica comigo.
O Pai-Lobo puxou-me para dentro das suas memórias. Encontrava-me
numa floresta. A aurora aproximava-se e estávamos aconchegados num
covil. Está na altura de dormir, insistiu ele. Dorme.
Devo ter dormido. Quando acordei, agarrei-me bem à calma que ele me
dera. Não tinha mais nada a que me agarrar. Media a passagem do tempo,
nas trevas, pelo comportamento dos restantes prisioneiros. Kerf acordou
quando Alaria ficou histérica. Pôs os braços à sua volta e cantarolou-lhe
qualquer coisa, talvez uma canção de embalar calcedina. Ela aquietou-se
passado algum tempo. Mais tarde, Dwalia rompeu em gritos de fúria
impotente quando Vindeliar lhe urinou em cima. “Aguentei o máximo que
pude”, choramingou ele e o cheiro a urina deu-me também vontade de
urinar.
Dwalia murmurou-lhe qualquer coisa, com uma voz tão baixa e mortífera
como um silvo de serpente, e ele começou a soluçar.
Depois, os seus sons pararam e eu decidi que adormecera. Alaria estava
calada. Kerf começou a cantar, não uma canção de embalar, mas alguma
espécie de marcha. Parou abruptamente a meio de um verso. “Miudinha.
Abelha. Estás viva?”
“Estou”, respondi, porque estava contente por ele ter parado de cantar.
“Estou muito confuso. Quando atravessámos a pedra, eu tive a certeza de
que estávamos mortos. Mas se não estamos mortos, isto não é uma boa
maneira para morreres. Acho que conseguia chegar-te ao pescoço. Queres
que eu te estrangule? Não será rápido, mas é uma morte mais rápida do que
morrer à fome.”
Que atencioso. “Não, obrigada. Ainda não.”
“Não devias esperar demasiado. Eu vou enfraquecer. E isto aqui vai ficar
desagradável bem depressa. Mijo. Merda. Gente a endoidecer.”
“Não.” Ouvi qualquer coisa. “Chiu!”
“Eu sei que é triste ouvir as minhas palavras, mas só procuro avisar-te.
Talvez tenha força suficiente para te partir o pescoço. Isso pode ser mais
rápido.”
“Não. Ainda não.” Ainda não? Que estava eu a dizer? Nessa altura, vindo
de longe, um som. “Escuta. Estás a ouvir aquilo?”
Alaria despertou com as minhas palavras. “A ouvir o quê?”, perguntou.
“Estás a ouvir alguma coisa?”, perguntou-me Dwalia com rispidez.
“Silêncio!”, rugi-lhes eu com a voz zangada do meu pai, e eles
obedeceram. Todos escutámos. Os sons eram ténues. Cascos lentos a bater
em pedras de calçada. Uma voz de mulher elevada num breve cântico
monótono.
“É uma prece?”, perguntou Alaria.
“É uma vendedora matinal. Canta: ‘Pão, cozido de fresco esta manhã.
Pão, quentinho do forno.’” Kerf soou sentimental.
“Ajudem-nos!” O grito desesperado de Alaria foi tão estridente que os
meus ouvidos ressoaram com ele. “Ajudem-nos, oh, ajudem-nos! Estamos
encurralados!”
Quando ela finalmente parou de guinchar por lhe faltar o fôlego, eu tinha
os ouvidos a ressoar. Esforcei-me por ouvir a canção da padeira ou os
cascos, mas não ouvi nada. “Ela foi-se embora”, disse Vindeliar com
tristeza.
“Estamos numa cidade”, declarou Kerf. “Só as cidades têm vendedores
de pão a vender a mercadoria na rua, à aurora.” Fez uma pausa momentânea
e depois disse: “Eu julgava que estávamos mortos. Julgava que tinha sido
por isso que quiseram vir para o palácio caído do duque morto, para ficarem
mortos aqui. Mas as padeiras ainda cantam quando estamos mortos? Não
me parece. Que necessidade têm os mortos de pão fresco?” O silêncio
acolheu aquela pergunta. Não sabia no que estariam os outros a pensar, mas
eu refleti nas palavras que ele dissera antes. Um palácio caído. Quanta
pedra estaria por cima da nossa sepultura? “Portanto não estamos mortos”,
raciocinou ele laboriosamente, “mas estaremos em breve se não
conseguirmos escapar. Mas é possível que, à medida que a cidade desperte,
ouçamos outras pessoas. E elas talvez nos ouçam, se gritarmos por ajuda.”
“Então por agora fiquem em silêncio”, avisou Dwalia. “Fiquem em
silêncio e escutem. Eu digo-vos quando gritar por ajuda, e gritaremos todos
juntos.”
Esperámos num silêncio sufocante. De tempos a tempos, ouvíamos os
sons abafados de uma cidade. O sino de um templo a ressoar. Um boi a
mugir. Uma vez julgámos ouvir uma mulher a chamar uma criança. Quando
a ouvimos, Dwalia disse-nos a todos para gritarmos por ajuda a uma só voz.
Mas a mim parecia que os sons nunca estavam muito próximos e perguntei
a mim mesma se não estaríamos numa colina acima da cidade e não na
cidade propriamente dita. Passado algum tempo, Vindeliar voltou a urinar e
julgo que Alaria também o fez. O cheiro estava a piorar — urina, suor e
medo. Tentei imaginar que estava na minha cama em Floresta Mirrada.
Estava escuro no quarto. O meu pai viria em breve ver como eu estava. Ele
pensava sempre que eu estava a dormir quando espreitava o meu quarto
noite dentro, antes de ir para a cama. Fitei as trevas e imaginei os passos
dele no corredor. Começava a ver pontinhos de luz por fitar as trevas
durante tanto tempo. Mas depois pestanejei e apercebi-me de que um dos
pontos era agora uma faixa estreita.
Fitei-a, sem me atrever a ter esperança. Devagar, levantei o pé o máximo
que me foi possível. Bloqueou parte da luz. Quando baixei o pé, a luz
reapareceu, mais forte.
“Consigo ver luz”, murmurei.
“Onde?”
“Perto dos meus pés”, disse, mas por essa altura a luz começara a
penetrar. Conseguia ver quão irregulares eram os blocos que nos
confinavam. Pedra trabalhada, sim, mas tombada em pilha à nossa volta, em
vez de ser algo construído.
“Não consigo vê-la”, disse Dwalia como se eu estivesse a mentir.
“Nem eu”, confirmou Kerf. “A minha mulher está à frente.”
“Eu não sou tua mulher!” Alaria estava indignada.
“Dormiste em cima de mim. Mijaste em mim. Reclamo-te.”
O meu pé erguido mal conseguia alcançar a ranhura de luz. Espetei a
ponta para ela e empurrei. Ouvi gravilha cair no exterior da nossa prisão e a
racha alargou ligeiramente. Rolei o máximo que pude sobre o flanco e
apoiei-me em Kerf para deslizar para mais perto da luz. Conseguia encostar
o pé inteiro à pedra por baixo da luz e foi o que fiz. Caíram mais e maiores
estilhaços de pedra, raspando alguns deles na minha bota. A luz tornou-se
mais forte. Pontapeei-a com violência. O feixe de luz alargou até ao
tamanho da minha mão. Bati nele com os pés como se estivesse a dançar
em cima de um formigueiro de formigas picadoras. Não caiu mais gravilha.
Pontapeei a pedra que cobria essa parede, sem efeito. Parei quando se me
esgotaram as forças e tomei consciência de que os outros tinham estado a
gritar perguntas e encorajamentos. Não quis saber. Recusei-me a deixar que
a calma do Pai-Lobo me alcançasse. Fitei o teto mal iluminado da minha
sepultura e solucei.
O calcedino mexeu-se, empurrando-me para erguer os braços acima da
cabeça e os apoiar à pedra. Gemeu e subitamente escorregou com força
contra mim. A sua anca empurrou-me as costelas, entalando-me de tal
forma contra as paredes que mal consegui respirar. Alaria guinchou e chiou
quando ele a empurrou contra o teto. Ele puxou o joelho para cima,
esmagando-me ainda mais e depois, com um grunhido audível, esticou as
pernas subitamente e com força.
Caiu areia e pó de pedra entrou-me nos olhos e no nariz e cobriu-me os
lábios. Kerf continuava a entalar-me e eu não consegui levar a mão à cara
para o afastar. O pó colou-se às lágrimas que tinha nas bochechas e
assentou entre o colarinho e o pescoço. Depois, quando o pó já estava a
assentar e eu já quase conseguia inspirar ar limpo, ele voltou a fazer o
mesmo. Uma linha vertical de luz foi subitamente somada à primeira.
“É um bloco de pedra. Volta a tentar, pequenina. Desta vez empurra, não
dês pontapés. Eu ajudo-te. Põe os pés em baixo, na base da pedra.”
“E se ela cair em cima de nós?”
“É uma morte mais rápida”, disse Kerf.
Contorci-me e fiz deslizar o corpo para mais perto da linha de luz. Dobrei
os joelhos, assentando os pés na parte de baixo do bloco. O calcedino
enfiou a sua grande bota entre os meus pés e um pouco acima deles.
“Empurra”, disse, e eu empurrei. Pedra raspou a contragosto, mas moveu-
se. Um descanso e depois voltámos a empurrar. A racha tinha a largura de
uma mão. Outro empurrão e a pedra prendeu-se em alguma coisa.
Empurrámos mais três vezes antes de a pedra se mover e depois girar para a
esquerda. Mais um empurrão e foi mais fácil. Desloquei o corpo para obter
melhor apoio.
O sol da tarde que nos encontrara estava a desvanecer-se em noite
quando a abertura ficou grande o suficiente para eu serpentear para o
exterior. Saí de pés para a frente, a contorcer-me às cegas por uma abertura
que mal tinha tamanho suficiente para eu passar, arranhando a pele da anca
e rasgando a túnica. Sentei-me, sacudindo poeira e areia da cara. Ouvi os
outros a gritar, exigindo que eu deslocasse mais pedra, que lhes dissesse
onde estávamos. Ignorei-os. Não queria saber onde estávamos. Conseguia
respirar e mais ninguém me estava a tocar. Inspirei o ar fresco
profundamente, várias vezes, limpei a cara suja com a manga e fiz rolar o
ombro bom. Estava cá fora.
“O que é que vês?” Dwalia estava furiosa de desespero. “Onde estamos?”
Olhei à volta. Ruínas, supunha. Agora via o que a nossa sepultura era, e
não era nada do que eu julgara ser. Grandes blocos de pedra tinham caído,
primeiro uma coluna tombara no chão e depois uma grande laje de pedra
colapsara parcialmente em cima da coluna caída, e depois outros bocados
de pedra tinham caído à volta. Ergui o olhar para o céu do fim da tarde,
acima dos restos irregulares de paredes, e baixei-o para mais runas
gravadas. Havia ali outro pilar de Talento, incrustado no chão. Afastei-me
cuidadosamente dele.
Os outros estavam a gritar-me ordens contraditórias: para ir buscar ajuda,
para dizer o que estava a ver. Não respondi. Ouvi outra vez o sino do
templo a tocar à distância. Dei três passos para fora de vista, agachei-me e
aliviei-me. Quando me levantei, ouvi pedra a raspar e vi as pernas do
calcedino a sair da abertura alargada. Puxei apressadamente as meias para
cima e vi-o apoiar os pés e a içar a pedra. Gritos de “Tem cuidado!” e “Vais
fazê-la cair em cima de nós!” vindos de dentro foram ignorados.
“Eu devia fugir”, murmurei para os meus botões.
Ainda não, sussurrou o Pai-Lobo na minha mente. Fica com o perigo que
conheces. O calcedino tem sido principalmente gentil contigo. Se
estivermos em Calcede, não falas a língua nem conheces os costumes deles.
Talvez a sorte nos favoreça e as pedras caiam em cima dos outros todos.
Esconde-te e observa.
Recuei para o meio das pedras derrubadas e agachei-me onde podia ver
sem ser vista. Kerf torceu-se para fora de barriga para cima, a espernear, a
arrastar-se, a grunhir enquanto se ia empurrando para o exterior. Saiu
coberto de poeira e areia cinzentas, parecendo uma estátua chamada à vida.
Com as ancas livres, pôs-se de lado, torcendo-se como uma serpente a fim
de manobrar para o exterior primeiro um ombro e depois o outro, e sentou-
se, pestanejando à luz do fim da tarde. Os seus olhos claros eram
surpreendentes na cara de pedra cinzenta. Lambeu poeira dos lábios, com
uma língua vermelha que surgiu como outra bizarria, subiu para cima de um
bloco de pedra e examinou o local. Eu agachei-me mais.
“É seguro?”, perguntou Alaria, mas já tinha espetado os pés para fora da
abertura. Mais pequena e mais flexível do que o calcedino mas igualmente
suja, contorceu-se para fora sem esperar por qualquer resposta e depois
sentou-se, a gemer, e limpou rocha e poeira da cara. “Onde estamos?”,
perguntou.
Kerf sorriu. “Calcede. Estou quase em casa. Conheço este sítio, apesar de
ter mudado muito. Foi aqui que chorámos o meu avô. O trono do duque
ficava no fim de um grande salão. Ali, acho eu. Isto é o que resta do velho
palácio do duque depois de os dragões o fazerem cair em volta das suas
orelhas.” Espirrou várias vezes, limpou a cara no braço, e depois acenou
com a cabeça de si para si. “Sim. A duquesa proclamou-o lugar maligno e
jurou que nunca seria reconstruído.” Franziu ligeiramente o sobrolho, como
se invocar a recordação fosse difícil ou doloroso. Falou lentamente, quase
de forma sonhadora. “O Duque Ellik jurou que seria a primeira edificação a
ser reerguida, e que governaria a partir dela.”
Alaria pôs-se em pé com dificuldade. “Calcede?”, murmurou de si para
si.
Ele girou para ela e sorriu. “A nossa casa! A minha mãe ficará contente
por te conhecer. Há algum tempo que anseia por que eu traga para casa uma
mulher que participe nas tarefas da casa com ela e com as minhas irmãs e
dê à luz os meus filhos.”
“Eu não sou tua mulher!”
“Ainda não. Mas se te mostrares boa trabalhadora e capaz de fazer filhos
fortes, eu talvez case contigo. Muitos prémios de guerra se tornam esposas.
Ao fim de algum tempo.”
“Eu não sou um prémio de guerra!”, declarou ela.
Kerf abanou a cabeça e revirou os olhos, divertido com a ignorância dela.
Alaria parecia prestes a gritar, a arranhá-lo ou a fugir. Não fez nenhuma
dessas coisas, virando a atenção para o par seguinte de pés a emergir da
sepultura de pedra.
Os pés de Vindeliar agitavam-se e raspavam na pedra enquanto ele
tentava emergir. “Estou preso!”, gritou numa voz marcada pelo pânico.
“Sai-me da frente!” A voz de Dwalia estava abafada. “Eu disse-te para
me deixares sair primeiro!”
“Não havia espaço!” Ele já estava a lacrimejar. “Eu tive de ir primeiro
para vos sair de cima. Dissestes ‘Sai-me de cima’, e esta era a única
maneira de eu poder sair-vos de cima.”
Ela amaldiçoou-o, com obscenidades abafadas pela pedra. Vindeliar não
parecia estar a fazer grandes progressos. Aproveitei o barulho para recuar
mais para longe de todos eles, escondendo-me atrás da curva de uma coluna
caída. Daí podia espreitar para trás e ver o que estava a acontecer, mas sem
ser vista.
Vindeliar estava entalado. Bateu com os pés no chão, impotente, como
uma criança a fazer birra. Preso. Ótimo, pensei com violência. Ele que fosse
a tampa que encerrava Dwalia para sempre. Apesar de quaisquer
sentimentos gentis que ele tivesse para comigo, eu sabia que era ele o
verdadeiro perigo. Se eu fugisse, Dwalia nunca conseguiria apanhar-me.
Mas se Vindeliar pusesse o calcedino no meu encalço, eu estaria perdida.
“Irmão! Irmão! Por favor, desloca a pedra e liberta-me!”
Não soltei um som enquanto me mantive ali agachada, a observar com
um olho. Kerf aproximou-se da pedra. “Cuidado com a poeira”, gritou a
Vindeliar e baixou-se para encostar o ombro à pedra que o bloqueava. Ouvi-
a raspar no piso antigo e vi pedras mais pequenas e areia a desaparecer
numa racha que se abriu no topo da pilha de pedras quando ele empurrou.
Dwalia gritou mas as pedras que caíram não lhe causariam mais que nódoas
negras. Kerf pegou nas grossas pernas de Vindeliar e puxou-o para fora.
Vindeliar manteve-se um momento encravado e a uivar mas Kerf grunhiu e
puxou-o para fora mesmo assim. Vi-o sentar-se, cinzento de poeira e com
um arranhão ensanguentado na cara.
“Estou livre”, anunciou, como se mais ninguém o soubesse.
“Sai-me da frente!”, gritou Dwalia. Não esperei para a ver emergir.
Baixando-me bem, afastei-me. Abri caminho pelo labirinto de pedra caída,
silenciosa como um rato. A luz oblíqua do sol de uma tardinha de
primavera criava formas a partir das sombras. Cheguei a um lugar onde
uma parede derrubada se apoiava numa coluna caída como se fosse uma
tenda de pedra e gatinhei lá para dentro.
Fica escondida. É mais fácil para eles verem movimento e ouvirem os
teus passos do que passarem busca a estes escombros.
Eu estava sozinha e com fome e sede, numa cidade distante de casa, cuja
língua não falava.
Mas estava livre. Escapara.
Capítulo 5

O Acordo

Numa bacia de pedra está uma serpente. Há sopa à sua volta.


Cheira mal e depois eu percebo que não é sopa. É água muito suja,
cheia de urina e detritos de serpente. Uma criatura aproxima-se da
bacia e eu vejo de repente quão grandes são a serpente e a bacia. A
serpente é muitas vezes mais comprida do que a criatura é alta. A
criatura estende a mão por entre barras que rodeiam a bacia para
recolher um pouco da água suja. Bebe alguma da água nojenta e
sorri com uma boca feia e larga. Não gosto de olhar para a criatura,
é tão errada. A serpente enrola-se sobre si mesma e tenta mordê-la.
A criatura ri-se e afasta-se a arrastar os pés.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

P
or mais confortáveis que as túnicas dos Antigos fossem, eu só me
senti decentemente vestido para o nosso encontro com os guardiães
quando regressei à minha própria roupa. Enquanto apertava bem o
cinto de couro e o afivelava, reparei que ganhara dois furos de viagem
desde que partira de Torre do Cervo. O colete de couro funcionaria como
armadura ligeira. Não que eu esperasse que alguém me apunhalasse, mas
nunca se sabia. As pequenas coisas que estavam nos bolsos escondidos
apressariam qualquer tarefa mortífera que eu tivesse de realizar. Sorri ao
aperceber-me de que alguém esvaziara os bolsos secretos antes de a minha
roupa ser lavada e depois devolvera todos os objetos aos seus devidos
lugares. Nada disse a Centelha enquanto endireitava o colete e depois dei
palmadinhas no bolso que ocultava um garrote muito fino. Ela contraiu as
sobrancelhas. Era o bastante.
Saí do quarto para deixar Centelha ajudar a Dama Âmbar a vestir-se e
pentear-se. Fui encontrar Lante pronto e Perseverança a fazer-lhe
companhia, e persegui uma memória brumosa de uma conversa entre os
dois, após o que a deixei em paz. O que estava feito, feito estava. Lante já
não parecia temer-me, e quanto às instruções que Breu lhe dera, bem, isso
exigiria uma conversa privada.
“Então, estamos prontos?”, perguntou Lante enquanto enfiava uma
pequena faca de cabo achatado numa bainha escondida que levava à anca.
Aquilo surpreendeu-me. Quem era aquele homem? A resposta veio ter
comigo. Aquele era o Lante que Enigma e Urtiga admiravam e apreciavam.
De súbito compreendi por que motivo Breu lhe tinha pedido para me
proteger. Não era lisonjeiro, mas era estranhamente reconfortante.
Perseverança mostrava uma carranca preocupada. “Vou ficar sentado
convosco ao jantar? Parece muito estranho.”
No espaço de alguns meses, ele passara de moço de estrebaria na minha
propriedade a meu criado. E companheiro, se eu fosse sincero. “Não sei. Se
te enviarem com a Centelha para outra mesa, assegura-te de que ficas
próximo dela.”
Ele acenou sombriamente com a cabeça. “Senhor? Posso fazer-vos uma
pergunta?”
“O que é?”, perguntei cautelosamente. Estava nervoso por causa do nosso
encontro com os guardiães.
Ele deitou a Lante um olhar de viés, como se se sentisse acanhado para
fazer aquela pergunta. “É sobre o Mago Cinzento. Às vezes chamais-lhe
Bobo, mas ele agora está a ser a Dama Âmbar.”
“É verdade”, concedi e aguardei.
Lante manteve-se em silêncio, tão intrigado pelos muitos disfarces do
Bobo como o rapaz.
“E Cinza é agora Centelha.”
Confirmei com a cabeça. “Também é verdade.”
“E Centelha é uma rapariga.”
Voltei a anuir.
Ele cerrou os lábios como que para aprisionar a pergunta. Depois soltou-
a: “Não sentis nenhuma… estranheza com isso. Desconforto?”
Ri-me. “Já o conheço há muitos anos, e com muitos disfarces. Ele era o
bobo do Rei Sagaz quando eu era rapaz. O Bobo. Depois foi Dom Dourado.
O Mago Cinzento. E agora a Dama Âmbar. Todos diferentes. Mas sempre
meu amigo.” Procurei a honestidade. “Mas quando eu tinha a tua idade, isso
ter-me-ia incomodado bastante. Agora não incomoda porque sei quem ele é.
E quem eu sou, e quem somos um para o outro. Isso não muda, seja qual for
o nome que ele usa ou aquilo que veste. Quer eu seja o Depositário Tomé
Texugo ou o Príncipe FitzCavalaria, sei que ele é meu amigo.”
Ele soltou um suspiro de alívio. “Então não há problema por eu não me
importar com Centelha? Vi que a vós não incomodava e decidi que não
precisava de me incomodar a mim.” Abanou a cabeça, perplexo, e
acrescentou: “Quando ela está a ser Centelha, é bonita.”
“Pois é”, disse Lante em voz baixa. Lutei por evitar sorrir.
“Então é isso o que ela realmente é? Uma rapariga chamada Centelha?”
Aquela era uma pergunta mais difícil. “A Centelha é quem for. Isso às
vezes quer dizer Cinza. É como ser pai e filho e talvez marido. Tudo facetas
diferentes da mesma pessoa.”
Ele concordou com a cabeça. “Mas é mais fácil falar com Cinza. Ele
tinha melhores piadas.”
Uma batida à porta anunciou a Dama Âmbar e Centelha. A Dama Âmbar
fizera todos os esforços possíveis por estar deslumbrante e tivera sucesso. A
saia comprida e a blusa rendada adornada com fitas coberta pelo colete
bordado estavam datados pelos padrões de Torre do Cervo. Âmbar ou, o
que era mais provável, Centelha, dera especial atenção ao rouge que lhe
dava forma aos lábios e ao pó que lhe escondia as cicatrizes. Os seus olhos
cegos estavam contornados em negro, enfatizando a sua opacidade.
Centelha era uma rapariga bonita, mas hoje não passava disso. Escolhera
apresentar-se de uma forma que não chamasse demasiadas atenções. O
cabelo, libertado do rabo de cavalo de guerreiro de Cinza, caía-lhe em
ondas negras até aos ombros. A blusa de colarinho alto era da cor de
caramelo e o vestido simples que trazia por cima negava que ela tivesse
busto ou uma cintura. Âmbar trazia um sorriso divertido. Conseguiria sentir
como Per e Lante as estavam a fitar, pasmados?
“A roupa fica-te muito melhor do que ficava à Dama Timo”, elogiei.
“Espero que também cheire melhor”, foi a resposta do Bobo.
“Quem é a Dama Timo?”, perguntou Lante.
O silêncio perdurou por um momento. Depois tanto o Bobo como eu
rebentámos em gargalhadas. Eu quase recuperara quando o Bobo arquejou:
“O teu pai.” E os dois voltámos a perder-nos em divertimento. Lante estava
dividido entre a confusão e a ofensa.
“Não compreendo a graça”, inquiriu Centelha. “Saqueámos o roupeiro de
uma velha para arranjar esta roupa…”
“É uma história muito comprida”, foi a resposta senhoril de Âmbar.
“Uma dica: o aposento da Dama Timo tinha uma entrada secreta para a sala
de trabalho de Breu. Quando ele decidia ocasionalmente sair do
esconderijo, nos velhos tempos, saía como Dama Timo.”
A boca de Lante abriu-se um pouco.
“A Dama Timo foi um dos estratagemas mais inspirados do teu pai. Mas
tem de ser uma história para outra altura, porque agora temos de descer.”
“Não esperamos até sermos chamados?”, perguntei.
“Não, porque as cortesias dos Ermos Chuvosos se baseiam nos costumes
de Vilamonte, não na aristocracia jamailiana. Eles são mais igualitários,
pragmáticos e diretos. Tu aqui és o Príncipe FitzCavalaria e eles esperam
que tenhas a última palavra. Mas eu conheço melhor os costumes deles do
que tu. Deixa-me negociar, por favor.”
“Negociar o quê?”
“A nossa passagem pelo território deles. E possivelmente fora dele.”
“Não temos nada a oferecer-lhes em troca da nossa passagem”, fiz eu
notar. A maior parte do meu dinheiro e vários outros objetos preciosos
tinham sido perdidos no ataque do urso.
“Hei de pensar em alguma coisa”, respondeu ela.
“E não vou oferecer cura a ninguém. Não posso.”
Ela ergueu na minha direção as sobrancelhas delicadamente delineadas.
“Quem saberia isso melhor do que eu?”, replicou, e estendeu uma mão
enluvada. Eu avancei e dei-lhe o braço.
Vi Lante a sorrir quando Perseverança avançou e ofereceu o braço torto a
Centelha. Ela pareceu surpreendida, mas aceitou-o. Respirei fundo. “E lá
vamos nós”, avisei.
Uma criada esperava-nos na base das escadas para nos guiar até um
aposento sumptuoso e elegante. Não havia tapeçarias, não havia tapetes
figurativos, mas as paredes propriamente ditas e o chão que pisávamos não
precisavam deles. Parecíamos estar a jantar em campo aberto, rodeados por
uma paisagem de colinas outonais em tons de verde e dourado. Pisávamos
uma extensão relvada cuja verdura estava salpicada de minúsculas flores
silvestres. Só a sensação da pedra debaixo dos pés e o ar parado estragavam
a ilusão. Ouvi Centelha murmurar uma descrição ao ouvido de Âmbar, a
qual sorria melancolicamente.
Havia quatro mesas dispostas em quadrado aberto, com as cadeiras dos
convivas viradas para dentro. Não havia cabeceira da mesa, nenhum lugar
de autoridade. Alguns dos guardiães já lá se encontravam, em pé ou
sentados em pequenos grupos. Eram um impressionante lembrete da
tapeçaria dos Antigos que decorara o meu quarto de rapaz. Altos e esguios,
com olhos de ouro, cobre ou um azul cintilante. Todos eram escamosos,
alguns mais intensamente do que outros, e todos estavam fantasticamente
marcados, em padrões que eram tão precisos como as penas numa ave ou as
cores nas asas de uma borboleta. Eram belos e estranhos, maravilhosos de
contemplar. Pensei nas crianças que eu tinha sarado e nas pessoas dos
Ermos Chuvosos que vislumbrara durante os dias que ali passara. Era tão
frequente que as mudanças deles fossem grotescas como bonitas. A
diferenças eram impressionantes e o destino dos que eram afetados por
acaso pelo contacto com dragões era de estarrecer.
A criada que nos escoltara desaparecera. Ficámos parados, a sorrir e
hesitantes. Devia eu mandar Centelha e Perseverança embora, ou fariam
eles parte dos “emissários dos Seis Ducados” a que o convite se dirigira?
Centelha estava a descrever em voz baixa a Âmbar a sala, as pessoas e os
seus trajos. Não interrompi.
O General Rapskal era alto mesmo entre os altos Antigos e ostentava
ombros mais largos do que a maioria. Naquela noite apresentava um ar
menos marcial, vestido com uma túnica azul com calças amarelas e calçado
mole e azul. Não trazia armas, que eu visse. Eu sabia que isso não
significava que estivesse desarmado. Com ele estavam os dois Antigos que
eu antes vira a obedecer às suas ordens. Deduzi que um deles fosse Kase.
Ambos tinham escamas cor de laranja e os olhos que viraram para nós eram
acobreados, e ambos eram fortemente musculosos. Eu era capaz de apostar
que lutariam com intensidade se fossem provocados.
A Antiga azul usava naquela noite as asas no exterior da túnica comprida,
bem fechadas sobre as costas. As escamas plumosas eram um ornamentado
aparato de azuis e tons de prata, com toques de preto e branco. Interroguei-
me sobre o peso que elas acrescentariam à sua constituição magra e em
tempos humana. O longo cabelo negro estava confinado em fileiras de
tranças, interrompidas com contas e pequenos amuletos de prata. O Antigo
a seu lado tinha escamas verdes e cabelo escuro. Olhou diretamente para
nós, falou à companheira e depois dirigiu-se com intencionalidade na nossa
direção. Tentei não fitar o estranho padrão de escamas na sua cara enquanto
ele me cumprimentava.
“Príncipe FitzCavalaria, gostaria de me apresentar. Chamo-me Tats. Eu e
Thymara agradecemos-vos por aquilo que fizestes pela nossa filha. Ainda
tem os pés e as pernas doridos, mas acha muito mais fácil caminhar.”
“Estou feliz por ter podido ajudá-la.” Ele não me oferecera a mão,
portanto mantive a minha caída.
Thymara interveio. “Agradeço-vos. Pela primeira vez em muitas
semanas, ela consegue dormir sem dor.” Hesitou e depois acrescentou:
“Disse que sente diferença no peito. Não se tinha queixado disso, mas agora
diz que é mais fácil respirar com a pele menos apertada?” A inflexão dela
transformou a afirmação numa pergunta.
Eu sorri e limitei-me a dizer: “Estou feliz por ela estar mais confortável.”
Tinha uma vaga recordação de uma carena no esterno, semelhante à que
haveria numa ave… teria a filha deles desenvolvido um osso assim? Não
parecia mostrar grande tato eu admitir que não me conseguia lembrar com
clareza do que o Talento lhe fizera através de mim.
O olhar intenso de Thymara prendeu-se no meu e depois viajou até
Âmbar. “Bom seria que fôsseis recompensados como mereceis”, disse em
voz baixa.
Soou uma campainha melíflua. Thymara voltou a sorrir-me. “Bem, agora
devemos sentar-nos. Obrigada, mais uma vez. E sempre.” Afastaram-se de
mim com elegância e tomei consciência de que, enquanto conversávamos,
outros Antigos tinham chegado. Eu em tempos fora um assassino vigoroso,
permanentemente consciente daquilo que me rodeava. Naquela noite não o
era, e não só por ter as muralhas de Talento tão bem cerradas. Perdera o
hábito de me conservar alerta em extremo. Quando fora pela última vez o
assassino competente que Breu treinara? Não o era há muito tempo.
Quando vivera em Floresta Mirrada com Moli, isso ter-me-ia agradado. Ali
e agora, parecia uma falha séria.
Falei a Lante em voz baixa. “Fica alerta. Se reparares em algo de errado,
avisa-me de imediato.” Ele deitou-me um olhar incrédulo que ameaçou
transformar-se em sorriso antes de ganhar o controlo da cara. Juntos,
dirigimo-nos sem pressas para as mesas. Não vi nenhuma indicação de
protocolo relacionado com os lugares. O Rei Reyn e a Rainha Malta tinham
entrado mas estavam mergulhados numa profunda conversa com um Antigo
esgalgado e de escamas azuis. Phron, agora com um ar muito mais
animado, estava com eles. A conversa parecia relacionada connosco, pois
ele gesticulou por duas vezes na nossa direção. Onde deveríamos sentar-
nos? Embaraçoso — e um potencial desastre social. Thymara dirigiu-nos
um olhar, falou ao companheiro e depois apressou-se a vir ter connosco.
“Podeis sentar-nos onde muito bem entenderdes. Gostaríeis de ficar juntos
ou de vos misturardes?”
Ansiei por trocar um olhar com Âmbar. Em vez de o fazer, dei
palmadinhas amistosas na mão que ela trazia no meu braço e ela respondeu
de imediato: “Juntos, se for possível.”
“Claro.” Mas eu não vi cinco lugares adjacentes até que Thymara
chamou, com um ar inteiramente prosaico: “Alum. Sylve. Jerd. Harrikin.
Levantem-se daí e abram espaço!”
Os Antigos assim mencionados riram-se daqueles modos abruptos e
rapidamente mudaram de lugar para libertarem uma fila de cinco cadeiras.
“Pronto. Se fizerdes favor”, convidou Thymara, e nós sentámo-nos.
Thymara e o companheiro ocuparam lugares enquanto Malta e Reyn se nos
juntavam à mesa. Nada de cortejo real a entrar na sala, nada de anúncio de
nomes. Nada de títulos para os guardiães, nenhuma variação de estatuto
estava visível. À exceção do General Rapskal.
Criados trouxeram pratos de comida e depois pousaram-nos para serem
passados entre os Antigos e para estes se servirem. A carne era de caça,
veado ou aves. O pão não era farto mas havia quatro pratos de peixe e três
tipos de tubérculos. A ementa informou-me de que Kelsingra era capaz de
se alimentar, mas não com grande variedade.
Perseverança e Centelha conversavam com um Antigo chamado
Harrikin. Depois dele estava sentada uma Antiga agarotada. Sylve era cor-
de-rosa e dourada, com cabelo ralo mas com um intricado padrão de
escamas no couro cabeludo. Estavam a falar sobre pesca e Sylve descrevia
imperturbavelmente como fora difícil manter o seu dragão alimentado
durante a viagem de descobrimento de Kelsingra a partir de Trehaug. Lante
sorria e acenava com a cabeça, mas o seu olhar vigilante percorria a sala
com frequência. À minha direita, Âmbar estava sentada ao lado de Nortel.
Este explicava que fora o seu dragão, Acendalha, que encontráramos
inicialmente perto das fontes. Esperava que o dragão não tivesse parecido
demasiado agressivo; os dragões não estavam habituados a serem
surpreendidos. Âmbar acenava com a cabeça e lidava com os utensílios e a
comida quase como se visse.
Comemos. Bebemos. Esforçámo-nos por conversar daquela forma
incómoda que se adota quando se tenta falar alto o suficiente para se ser
ouvido por cima de uma dúzia de outras conversas. Estar no meio de um
evento como aquele era muito diferente de o espiar de trás de uma parede.
A partir de um ponto de vista mais elevado, eu teria conseguido deduzir
rapidamente as alianças, rivalidades e inimizades existentes na sala.
Encurralado no meio daquilo, só podia supor. Esperei que Lante,
ensanduichado em segurança entre mim e os nossos dois criados,
conseguisse evitar educadamente socializar e lograsse coligir mais
informação.
A mesa foi levantada. Foram oferecidos brande e um vinho doce e eu
escolhi o brande. Não era Orla d’Areia, mas era palatável. Os Antigos
levantaram-se da mesa e vaguearam pela sala, a conversar, e nós copiámos
o seu comportamento. A Rainha Malta veio mais uma vez pedir desculpa e
expressar a esperança de que tivéssemos recuperado por completo. Phron
embaraçou-me com a paixão da sua gratidão e a ira pelo comportamento do
General Rapskal. Vi por duas vezes Rapskal a manobrar na minha direção,
só para ser intercetado por um ou outro dos Antigos. Voltámos a sentar-nos
nos nossos lugares e Harrikin pôs-se em pé. Bateu três vezes na mesa com
os nós dos dedos. O silêncio caiu no mesmo instante.
“Guardiães, deem por favor as boas-vindas ao Príncipe FitzCavalaria, a
Dom Lante e à Dama Âmbar dos Seis Ducados. Eles vêm como emissários
do Rei Respeitador e da Rainha Eliânia. Esta noite oferecemos-lhes umas
bem merecidas boas-vindas! E os nossos mais profundos agradecimentos.”
Palavras simples. Nada de discurso floreado, nada de lembretes de
passados favores, tratados e serviços. Aquilo surpreendeu-me, mas Âmbar
parecia esperá-lo. Levantou-se da cadeira. Cega como estava, mesmo assim
passou os olhos inoperacionais pela audiência. Detetaria o calor corporal
que emanava das suas formas sombrias? Com uma precisão sem falhas,
virou a cara para Harrikin.
“Obrigada por esta refeição de boas-vindas, pela vossa hospitalidade e
pela oportunidade de falar. Serei breve e direta.” Permitiu-se um sorriso.
“Suspeito que os mexericos voaram rapidamente desde que chegámos.
Creio que a maioria de vós conhece a nossa história. É verdade que vimos
como emissários dos Seis Ducados, mas é igualmente verdade que
Kelsingra não é o nosso destino final. Como o Príncipe FitzCavalaria
recuperou a saúde de alguns dos vossos filhos, podeis imaginar a dor que
seria terdes um filho raptado. Abelha Visionário já não existe. Quando vos
deixarmos, será para embarcarmos numa viagem de vingança contra os
Servos dos Brancos.”
Quando Âmbar parou para respirar, a Rainha Malta interrompeu em voz
baixa e suave. “Dama Âmbar, se me permitirdes falar, por favor?” Não
havia censura na voz dela, só um simples pedido. Âmbar ficou surpreendida
mas fez um aceno lento de acordo. A rainha respirou fundo e uniu as mãos
sobre a mesa. “Ontem, nós, os Guardiães de Kelsingra, reunimo-nos em
conselho. Partilhei com eles a vossa história. Os pais e algumas das crianças
falaram do que o Príncipe FitzCavalaria fez. Continuamos repletos de
gratidão e todos concordaram com o que o príncipe disse. As vidas dos
nossos filhos não são matéria de negociação sobre a qual possamos
regatear. Nenhum valor em moeda, nenhum favor que nos fosse pedido,
poderia aproximar-se do que o príncipe fez. Só vos podemos oferecer
agradecimentos eternos e a nossa promessa de que nos iremos lembrar
sempre e para sempre. E nós agora somos um povo de vida longa.” Malta
fez uma pausa e olhou em volta. “Mas também nos oferecestes uma
vingança que há muito procurávamos. Também nós sofremos os ataques
destrutivos de Calcede, contra os nossos dragões e contra os nossos
familiares. Espiões e assassinos de Calcede procuraram abater dragões para
obter os seus órgãos, a fim de fazerem remédios para preservar a vida do
seu velho duque. Selden, meu irmão e cantor querido dos nossos dragões,
foi aí brutalizado pelo Duque de Calcede e por Ellik. Nós sabíamos que
Ellik tinha sido fundamental nos ataques aos nossos dragões. Quando os
dragões se vingaram de Calcede, derrubando o forte do duque e matando-o,
Ellik fugiu. A atual Duquesa de Calcede irá sem dúvida ficar tão contente
como nós por saber que vós lhe pusestes fim. Ao matá-lo, satisfizestes o
desejo de vingança da nossa família. E essa é uma dívida que estamos mais
que dispostos a pagar!
”E assim, Reyn, nascido na família Khuprus dos Mercadores dos Ermos
Chuvosos, e eu, nascida na família Vestrit dos Mercadores de Vilamonte,
compreendemos bem o vosso desejo de seguir a vingança até ao seu
desenlace final. Nós, na condição de Mercadores das famílias Kuprus e
Vestrit, sentimo-nos felizes por vos oferecermos um auxílio à vossa
vingança, equiparável àquele que nos oferecestes para a nossa. Tomámos a
responsabilidade de garantir o vosso transporte daqui até Jamaília. Se for
essa a vossa vontade, embarcareis no Lobo-do-Mar quando ele acostar aqui.
O Lobo-do-Mar levar-vos-á até Trehaug, onde o navio vivo Modelo Ideal
estará à vossa espera. Ele levar-vos-á até Vilamonte e, se desejardes, até
Jamaília, ao longo da sua rota comercial. Já foi enviada uma ave para
garantir a vossa passagem. Em nome das nossas famílias, esperamos que
aceiteis a nossa hospitalidade a bordo desses navios vivos.”
“Navios vivos”, sussurrou Perseverança com o assombro de um rapaz.
“São mesmo reais?”
Phron sorriu ao rapaz. “Vamos deixar que o verifiques por ti mesmo.”
Esqueci a promessa que fizera a Âmbar. “Estou sem fala”, disse.
Malta sorriu, e vislumbrei a rapariga que ela fora em tempos. “E ainda
bem, porque eu tenho mais a dizer. Os guardiães têm outras ofertas que
desejam fazer-vos.” Hesitou por um momento. “Essas ofertas são de fabrico
Antigo. São úteis mas também vendíveis, no caso de a vossa necessidade
ser extrema.” Respirou fundo. “Não é adequado falar-se do valor de um
presente mas eu tenho de vos deixar cientes de que estes artigos
normalmente só estão na posse de Mercadores ou são vendidos via
Vilamonte por somas extremamente elevadas.” Apertou os lábios por um
momento. “Ao vo-los oferecermos, quebramos uma tradição antiga. É
possível que os Mercadores dos Ermos Chuvosos e de Vilamonte se
sentissem ofendidos se soubessem deste ato.”
Âmbar acenou com a cabeça e o seu sorriso foi lentamente crescendo.
“Seremos muito discretos sobre a nossa posse desses objetos. E eles não
sairão da nossa posse, exceto sob uma necessidade extraordinária.”
O alívio na cara de Malta foi evidente, apesar da sua estranha beleza
Antiga. “Estou tão grata por compreenderdes.” Fez um aceno com a cabeça
e Harrikin dirigiu-se à porta e falou com alguém no exterior. Recebeu uma
arca de madeira bem feita e pousou-a na mesa à nossa frente. Abriu a tampa
articulada com dobradiças e tirou uma pulseira de um saco de pano.
Delicados elos de prata suportavam pedras verdes e vermelhas. Ele
apresentou-ma com um sorriso que me avisou para ficar deslumbrado pelo
seu valor.
“É… linda”, disse eu.
“Não sabeis o que é”, disse ele, divertido. Voltou a enfiá-la no saco e
ofereceu-mo. “Olhai para dentro.”
Quando espreitei para dentro do saco, uma luz verde e vermelha brilhava
lá dentro. “São joias-chama”, informou Malta. “Brilham com a sua própria
luz. As pedrarias na pulseira são perfeitas. Muito raras.”
O outro objeto que ele tirou da caixa parecia um tijolo cinzento e poroso.
Mostrou-nos que tinha um lado pintado de vermelho. “Este bloco dá calor,
quando o pousais com o lado vermelho virado para cima. Tende sempre o
cuidado de o armazenar com o lado cinzento virado para cima, porque ele
fica quente o suficiente para iniciar um incêndio.” Olhou-me nos olhos e
depois devolveu tanto a pulseira como o tijolo à caixa de madeira.
“Esperamos que aceiteis estes objetos com os nossos agradecimentos.”
“Honrais-nos”, respondi. Objetos mágicos no valor de um resgate real,
dentro de uma pequena caixa. “Aceitamo-los, agradecidos, e recordaremos
sempre a nossa visita aqui quando os usarmos.”
“Sereis bem-vindos de volta em qualquer altura”, assegurou a Rainha
Malta.
Âmbar pousou uma mão reconhecida na caixa, com uma expressão
determinada fixa no rosto. “Por mais generosos que tenhais sido para
connosco, ainda há uma mercê que eu gostaria de pedir. Antes de o fazer,
suplico que tenhais consciência de que não pretendo causar nenhuma ofensa
ao pedi-la.”
Olhares confusos foram trocados em volta da mesa. Eu não fazia a
mínima ideia do que Âmbar pretendia. A generosidade deles para connosco
ultrapassara as minhas esperanças mais extravagantes. Não conseguia
imaginar o que mais poderíamos querer. Âmbar falou numa voz suave e
baixa. “Peço prata-de-dragão. Não uma grande quantidade. Só o suficiente
para encher estes dois frascos.” E retirou de um bolso na saia dois
recipientes de vidro, com uma rolha justa em cada um.
“Não”, respondeu Reyn com firmeza, sem hesitação nem explicação.
Âmbar falou como se não o tivesse ouvido. “O Talento, como nós
chamamos à magia que o Príncipe FitzCavalaria usou para curar os vossos
filhos, baseia-se na Prata. Não sabemos ao certo como as duas coisas estão
relacionadas, mas estão. A magia de Kelsingra provém da Prata aprisionada
na pedra. As memórias das pessoas que viveram aqui, as luzes que brilham
nos edifícios, as piscinas que aquecem a água, tudo vem da…”
“Não. Não podemos.” O Rei Reyn falava num tom definitivo. “A Prata
não nos pertence para que a ofereçamos. É o tesouro dos dragões.” Abanou
a cabeça. “Mesmo que disséssemos que sim, os dragões não permitiriam
que a recolhêssemos. Seria desastroso para vós e para nós. Não podemos
dar-vos Prata.”
Vi Rapskal mover-se como se quisesse falar. As cintilações zangadas nos
seus olhos diziam que se sentia insultado pelo pedido. Eu precisava de nos
distanciar daquilo. Falei apressadamente. “Há mais um pedido que eu
queria fazer, um pedido que podeis ter mais facilidade em satisfazer. Um
pedido que poderia, talvez, beneficiar tanto Kelsingra como os Seis
Ducados.”
Fiz uma pausa. “Podeis fazê-lo”, decidiu a Rainha Malta. Era difícil ler o
seu semblante fantasticamente escamoso, mas pareceu-me que também ela
se esforçava por ultrapassar o incómodo.
“Eu gostaria de enviar uma mensagem ao Rei Respeitador dos Seis
Ducados, para lhe dizer que chegámos cá em segurança e que vos
oferecestes para nos ajudar no passo seguinte da nossa viagem. Se lhe
escrever uma carta, haverá alguma forma de lha entregardes?”
“Isso faz-se facilmente”, respondeu Reyn, visivelmente aliviado pela
simplicidade do meu pedido. “Se fordes capaz de escrever em letra
pequena, uma ave pode levar uma mensagem dessas até Vilamonte.
Vilamonte tem muitos mercadores que trocam aves com a Cidade de Torre
do Cervo. Eu garanto que ela chegará ao vosso rei. A seu tempo. Os ventos
da primavera podem por vezes abrandar as nossas aves, mas elas são
criaturas resistentes.”
“Eu ficaria muito contente com isso”, respondi. Hesitei, e depois
mergulhei de cabeça. Breu tê-lo-ia proibido, mas Kettricken tê-lo-ia
exigido. “Rei Reyn e Rainha Malta, na minha terra, na corte do meu rei, há
outros que partilham a minha magia do Talento. Alguns são muito mais
hábeis nas artes curativas do que eu.” Olhei em volta. “Há aqui pessoas que
pediram para eu as ajudar. Não me atrevo. A magia da Prata flui fortemente
em Kelsingra, com demasiada força para eu a controlar. Eu nunca teria
decidido ser tão…” procurei uma palavra. Violento? Incontido? “…
apressado na minha cura das crianças. Um curandeiro melhor do que eu
podia ter sido mais suave. Um círculo de Talento completo, com melhor
controlo da magia, poderia ajudar não só crianças Antigas mas quaisquer
pessoas que tivessem nascido…”
Eles estavam a fitar-me. “Nascido diferentes”, disse eu, com a voz a
sumir-se. Eles tinham um ar aterrorizado. Ou atordoado. Teria eu causado
ofensa? As mudanças que a presença dos dragões havia operado em alguns
deles eram demasiado óbvias para serem ignoradas. Mas era possível que
falar delas fosse considerado ofensivo.
Thymara interveio. Estava sentada perto de mim, mas ergueu a voz e as
suas palavras projetaram-se com clareza. “Os que nasceram Alterados
podiam ser… curados?”
Por baixo da mesa, Âmbar agarrou-me na perna, num aviso. Não
precisava dele. Não prometeria o que não tinha a certeza de ser possível.
“Alguns talvez possam sê-lo”, disse. “Julgo eu.”
Thymara ergueu as mãos. Julguei que ia cobrir a cara, mas as mãos em
taça pararam onde pôde fitar os dedos. Tinha garras negras no lugar de
unhas. Bateu com elas umas nas outras, pensativa.
O silêncio na sala tremeluzia de possibilidades. A Rainha Malta
interveio. “Assim que tiverdes oportunidade de compor a carta…” A voz
embargou-se-lhe e sumiu-se.
Harrikin falou de repente. “O Príncipe FitzCavalaria ofereceu-nos algo
que tem sido inimaginável.” Olhou para os seus iguais em volta da mesa.
“Talvez devêssemos ser igualmente generosos. Sempre aceitámos que
estávamos vinculados aos limites de Vilamonte e dos Ermos Chuvosos, que
só podíamos comerciar bens Antigos nesses mercados. Talvez esteja na
altura de abandonarmos essa ideia.”
Malta pareceu chocada. Reyn falou devagar. “Sugeres quebrar uma
tradição que data da fundação dos povoados nos Ermos Chuvosos. Muitos
de nós sentimos que pouca lealdade devemos aos Mercadores dos Ermos
Chuvosos e ainda menos aos Mercadores de Vilamonte. No que toca a bens
mágicos, teremos de conferenciar. Mas relativamente ao restante comércio,
não vejo nenhum motivo por que devamos ficar limitados.”
Acenos lentos responderam às suas palavras.
O Rei Reyn voltou a virar-se para nós. “Há na cidade mapas antigos que
mostram que estradas ligavam em tempos Kelsingra ao Reino da Montanha.
Talvez esteja na altura de renovarmos essas vias e nos transformarmos
realmente nos mercadores que dizemos ser.”
“Os Seis Ducados têm muitos bens comerciais. Ovelhas e lã, cereais que
cultivamos com fartura, gado e couro, e também temos ferro para vender.”
Sorri para ocultar as minhas dúvidas. Iria Respeitador respeitar a minha
negociação improvisada?
“Cereais com fartura. Ora aí está algo que podemos todos celebrar.
Dentro de um mês, enviaremos uma delegação comercial a Torre do Cervo!
Vamos brindar à abertura das nossas fronteiras?”
Foram mais do que um os brindes feitos nessa noite. As bochechas de
Perseverança já estavam coradas de vinho quando vi Lante e Centelha
trocarem um olhar. Centelha pousou uma mão no ombro de Per e levou-o
para fora da festa com dignidade, ainda que não com o mais firme dos
passos. Pouco mais tarde, eu aleguei fadiga e Âmbar retirou-se comigo,
deixando Lante a representar os Seis Ducados durante o resto da noite.
Enquanto íamos subindo lentamente, ela disse baixinho: “No seio da
família do próprio Rei Reyn há pessoas severamente alteradas pelos Ermos
Chuvosos de formas problemáticas. A irmã…”
Eu sabia o que ela estava a pedir. “Mesmo pela irmã dele, eu não me
atrevo…”
“Não. Só te estava a falar dela. Está agora em Trehaug, de visita à
família. Mesmo se estivesses disposto a correr o risco, não poderias. Mas se
houver curandeiros dos Seis Ducados capazes de ajudar a gente dos Ermos
Chuvosos, os Seis Ducados poderão ganhar poderosos aliados.”

Fiquei até de manhã a criar a carta ao Rei Respeitador. Compus as minhas


palavras a contar absolutamente que várias pessoas as lessem antes de lhe
chegarem, se alguma vez chegassem. Mantive-me circunspecto, dizendo
apenas que tínhamos chegado a Kelsingra e garantido passagem para
Jamaília. Pedia-lhe para arranjar passagem para casa para Lante, Per e
Centelha e dizia-lhe que podia contar com a chegada de um embaixador dos
Mercadores dos Dragões com uma proposta comercial. Acrescentava que
era fundamental que a Mestra do Talento Urtiga estivesse presente em todas
as negociações.
Queria dizer mais. Não me atrevi. Enrolei apertadamente a missiva,
mergulhei-a em cera e enfiei-a no pequeno cilindro que seria preso a uma
pata de pombo. Desejei poder enviar um aviso a Urtiga através do Talento.
Aqueles guardiães dos dragões afirmavam ser Antigos e herdeiros daquela
cidade e de todas as suas maravilhas. Como responderiam se soubessem de
Aslevjal e dos maltratados tesouros que aí havia? Tentariam exigi-los ou
oferecer-se-iam para juntar aos nossos os seus conhecimentos sobre aquela
magia? Breu teria visto uma rivalidade, Kettricken uma aliança natural.
Respeitador e Urtiga? Não sabia o que eles veriam. Perguntei a mim mesmo
se o meu uso do Talento ali teria sido a pedrinha que desencadearia uma
avalanche de guerra, ou se se tornaria a primeira pedra na construção de um
legado partilhado de magia. Era uma agonia dizer tão pouco e saber que se
poderiam passar vários dias até eu poder sequer tentar um contacto com o
Talento.

O dia exato da chegada do Lobo-do-Mar era incerto, pois o rio corria mais
alto e mais rápido com o degelo das neves distantes.
Cada um de nós lidou à sua maneira com aquela espera. A necessidade
de manter as muralhas de Talento bem apertadas e estar sempre vigilante
contra a corrente de Talento e as recordações da cidade fatigava-me. Tomei
as refeições nos nossos aposentos e declinei educadamente todas as visitas
que pude declinar. A fadiga induzida pelo Talento que me assaltava
significava que raramente me aventurava a sair à cidade. Lembrava-me de
Kelsingra como a cidade deserta que encontrara originalmente, durante a
minha expedição para encontrar Veracidade. Fora a minha primeira
experiência de viagem por um pilar de Talento e acontecera por acidente.
Nessa altura, a cidade fora para mim perigosa. Ironicamente, apesar de eu
ter estudado a magia do Talento, as paredes e ruas da cidade, instiladas de
Talento, eram agora mais perigosas para mim.
Mas o fluxo de Talento da cidade não era o único perigo. Já por três
vezes o General Rapskal viera bater à porta dos meus aposentos e parecia
chegar sempre quando os outros estavam fora. Da primeira vez fingi uma
fraqueza ainda maior do que a que sentia. Ele insistiu que precisava de falar
comigo, mas eu oscilei, pedi desculpa e depois fechei a porta lenta mas
implacavelmente. Depois disso, deixei de abrir quando alguém batia. A
Dama Âmbar mantinha uma saudável prudência para com o General
Rapskal. Passava os dias no interior das paredes do Palácio de
Acolhimento. Visitava Malta e transmitia-me os mexericos trocados entre
as duas sobre velhos amigos e notícias recentes sobre Vilamonte e Trehaug.
Lante, Centelha e Perseverança estavam tão arrebatados por Kelsingra
como um bebé por uma nova bugiganga, e os guardiães pareciam tão
dispostos a partilhar com eles as maravilhas da cidade como contentes por o
fazerem. Avisei-os para terem cautela e deixei-os explorar. Per, com o corvo
Matizada ao ombro, depressa se tornara um favorito entre os criados e
fornecia-me inconscientemente muita informação sobre o funcionamento
interno de Kelsingra quando partilhava os mexericos ao fim do dia. Durante
a noite, nos nossos aposentos, Âmbar e Centelha faziam consertos no seu
guarda-roupa maltratado pelo urso, enquanto Âmbar contava as histórias da
velha Torre do Cervo, incluindo as aventuras da notória Dama Timo.
Per perguntou-lhe uma vez pela sua infância. Ela falou de uma família de
agricultores, de uma irmã mais velha encantada por ter finalmente um
irmão. Falou de suaves colinas onduladas que no verão se tornavam
douradas, de cuidar de dóceis vacas castanhas. Depois parou de falar e eu
soube que a parte seguinte da sua história devia ser sobre Clerres. Nessa
noite não contou mais histórias e foi com temor que encarei a ideia de em
breve ter de dragar essas memórias em busca de todos os factos pertinentes
quanto à organização de Clerres. Ela trancara essas recordações, mas eu
teria de encontrar alguma maneira de as abrir se quisesse que os nossos
planos de vingança tivessem sucesso.
Fora o Bobo quem exigira inicialmente que eu fosse a Clerres e os
“matasse a todos”. Ele já desejava vingança antes mesmo de eles terem
raptado Abelha. Ainda antes de Dwalia a ter levado para o interior dos
pilares de Talento e a ter perdido aí, já ele estava determinado em levar até
eles a morte. Com grande cuidado, eu pusera em ordem a minha vida em
Torre do Cervo e tentara partir sozinho, a fim de procurar essa cidade
distante e obter vingança. Não tinha nenhuma preocupação com a minha
sobrevivência depois disso.
Mas não só o Bobo como Centelha, Per e Lante tinham-me seguido.
Poderia enviar três deles de volta para Cervo, mas para o Bobo sobreviver
eu teria de lhe arrancar todos os detalhes sobre Clerres e os Servos dos
Brancos de que se lembrasse.
Mas como? Como obter essa informação essencial de alguém tão hábil na
ocultação e em manobras de diversão?

Num dia que era mais prolongamento de inverno do que primavera, a


maioria de nós optara por ficar no calor dos nossos aposentos, mas Per
mostrara-se irrequieto. Andara de um lado para o outro, espreguiçara-se e
suspirara até que eu cedera e lhe dera autorização para explorar sozinho.
Ao fim da tarde, ele entrou de rompante nos aposentos, de bochechas
vermelhas e com o cabelo despenteado, para exclamar: “A Matizada fez um
novo amigo!”
Todos nos virámos para ele, surpreendidos.
“Matizada conheceu outro corvo? Faz-me lembrar para lhe enegrecer as
penas brancas, senão essa amizade será curta”, respondi.
“Não! Não foi outro corvo!” Ele quase gritou aquelas palavras, após o
que respirou fundo e assumiu um tom de contador de histórias. “Eu estava a
comportar-me com grande cautela, como me pedistes, falando só se
falassem comigo e pouco dizendo quando falava. Mas hoje eram poucas as
pessoas que andavam ao frio. Matizada tinha-me encontrado e estava
empoleirada no meu ombro. Estávamos a andar na direção de uma praça
com uma estátua de um cavalo quando uma grande rajada de vento me
atingiu, muito fria, e a Matizada levantou voo do meu ombro. Depois
gritou, como se fosse um menestrel: ‘Oh, que bela, vermelha como bagas
escarlates numa trepadeira beijada pela geada!’ Como se estivesse a recitar
um poema! A rajada de vento era um dragão vermelho a aterrar mesmo à
minha frente! As garras tiniram no empedrado e chicoteou com a cauda;
mal conseguiu parar a tempo de não me atropelar. Eu atirei-me para trás e
caí. Esfolei as palmas das mãos ao tentar apoiar-me!”, acrescentou, e ergueu
as mãos avermelhadas para as inspecionarmos.
“O dragão estava a ameaçar-te?”, perguntou Lante sem fôlego.
“Não, de forma alguma. Estava só a aterrar ali. Mesmo assim, eu
assustei-me e decidi ir-me embora. Chamei Matizada para junto de mim,
mas ela foi pousar mesmo à frente do dragão. Desta vez disse: ‘Oh, bela,
rainha escarlate, alimentadora de corvos!’ E o dragão estendeu a cabeça
para baixo e julguei que ia comer a Matizada. Mas em vez disso, a
Matizada fez uma pequena dança.”
Per abriu os braços, baloiçou a cabeça e andou aos ziguezagues de um
lado para o outro como uma ave a fazer a corte.
“E depois?”, perguntou Centelha, sem fôlego.
“Os olhos do dragão estavam a girar como piões do Festival da
Primavera. Pousou a cabeça no chão e Matizada aproximou-se aos saltinhos
e pôs-se a cuidar dela, torcendo o bico em volta das escamas da cara do
dragão, contornando-lhe os olhos e as narinas. O dragão fez um som muito
estranho, assim como uma panela a ferver.”
“E depois?” Centelha parecia estar com inveja por ter perdido o
espetáculo.
“Eu esperei por ela. Quando fiquei com os pés dormentes de frio, gritei à
Matizada para vir comigo, mas ela nem sequer virou a cabeça. Os olhos do
dragão estavam meio fechados, como um grande gato com sono. Portanto
deixei-a lá e voltei.” Franziu a testa ao perguntar-me: “Achais que ela vai
estar em segurança?”
“Acho que sim. A Matizada é uma ave muito esperta.” Perguntei a mim
mesmo se os dragões e os corvos partilhariam alguma ligação antiga. Os
corvos são notórios aproveitadores dos restos dos verdadeiros predadores.
Uma aliança entre corvos e dragões parecia natural. “Uma ave muito
esperta”, repeti. E percebi que ela era um mistério que só seria solucionado
quando ela decidisse revelar-se-me.
“Pois é!”, exclamou Per com orgulho. “Lá isso, é.”

Num dia de suave luz do sol, eu acordei de uma sesta e descobri-me


sozinho. Senti-me sem energia e com a cabeça enevoada e achei que um
curto passeio pela cidade me animaria. Com a minha bela capa de Príncipe-
dos-Seis-Ducados vestida, aventurei-me a sair. As árvores distantes nos
montes atrás de Kelsingra tinham um rubor de seiva em movimento nos
seus ramos brancos. Algumas, talvez salgueiros, estavam pintalgadas com a
verdura de folhas em botão, como se alguém tivesse entretecido contas nos
ramos esguios. As montanhas haviam-se livrado da neve. Quantos anos se
tinham passado desde que eu e Olhos-de-Noite subsistíramos nos seus
flancos arborizados, caçando como lobos e dormindo bem? Fora há uma
vida, talvez duas.
As vozes das memórias dos Antigos murmuravam-me, vindas das pedras
imbuídas de Talento do edifício. Isso a princípio era distante, como o
zumbido de mosquitos, mas depressa se tornou urgente, como abelhas em
enxame. A pressão raspava nas minhas muralhas, esfolando-me as defesas.
Voltei para trás quando comecei a ouvir fragmentos claros de conversas e a
ver as silhuetas sombrias de Antigos. A corrente de Talento aumentava à
minha volta, como uma vaga oceânica que me faria perder o pé e me levaria
para longe da costa. Fora um idiota por me aventurar a sair sozinho. Já
voltara para trás, na direção do Palácio de Acolhimento quando tomei
consciência de que Rapskal estava a seguir-me. Os meus esforços para
bloquear os murmúrios dos Antigos de outrora tinham-me ensurdecido a
consciência daqueles que me rodeavam. Abrandei o passo e caminhei de
forma instável. Ele que me julgasse mais fraco do que eu estava. Na
verdade, eu julgava estar demasiado débil para resistir ao ataque de uma
criança determinada, quanto mais daquele soldado Antigo.
Ele rapidamente se pôs a meu lado. “Príncipe FitzCavalaria, agrada-me
ver que estais relativamente recuperado da vossa magia.”
“É bondade vossa dizê-lo, General Rapskal. Mas mesmo este breve
passeio me cansou. Vou deitar-me assim que regresse.”
“Ah, bem. Estou desapontado. Esperava ter uma conversa convosco.
Uma conversa importante.” Acrescentou esta última frase em voz mais
baixa, como se alguém pudesse ouvir-nos. Quereria fazer-me uma ameaça
privada? Mas quando olhei para ele, o olhar que cruzou com o meu era
suplicante e quase apologético. “Avaliei-vos mal. Heeby disse-me que devia
mudar de opinião.” A sua seriedade aumentou. “Ela teve um sonho. Ou
talvez se tenha lembrado de alguma coisa. Fez-me saber que a vossa
demanda é justa. Uma demanda que apoia.” Baixou a voz até um sussurro.
“Deseja que vos ajude a destruir os Servos e a cidade deles de qualquer
forma que me seja possível. De qualquer forma.” Aproximou-se mais e
pôs-me a mão no braço, conspirativo. Os seus olhos reluziam como olhos
humanos não deveriam fazer. A minha prudência transformou-se em alarme
quando confidenciou: “O vosso corvo e Heeby tornaram-se bons amigos.”
“Heeby?”, inquiri, tentando sorrir de volta. O meu corvo?
“O meu dragão. Conheceis Heeby, não é verdade? Ela é a minha querida
escarlate.” Por um momento, o seu sorriso alargou-se, transformando-o num
rapaz. “Ela gosta do vosso corvo. Matizada, acho que é esse o seu nome.
Matizada elogia-a e fala-lhe da sua beleza. Antes de o corvo chegar, eu era
o único que a admirava como merecia. Heeby tornou-se muito amiga de
Matizada. Mas não era disso que eu queria falar. A vossa missão para matar
os Servos dos Brancos. Heeby aprova-a.”
Arrisquei uma interpretação das palavras dele. “O vosso dragão teve um
sonho ou lembrou-se de que gostaria que nós matássemos os Servos dos
Brancos?”
O sorriso dele alargou-se, dentes humanos brancos numa cara alterada
por dragões. “Sim. Exatamente.” Estava tão contente por eu compreender.
Parei. Pus a mão na fachada de pedra de um edifício, pensando encostar-
me aí para repousar. Um erro. A rua ficou subitamente repleta de Antigos,
azuis, prateados e verdes — gente alta e angular com caras
imaginativamente escamadas e vestuário artisticamente concebido. Hoje ia
haver uma competição de músicos, na Praça da Rainha, e seria a própria
rainha a entregar o prémio.
“Olá? Acordai, príncipe. Vou levar-vos para o Palácio de Acolhimento.
As vozes não são tão fortes lá.”
Eu estava a andar e o General Rapskal tinha o meu braço firmemente
preso nos seus. A competição de músicos desvaneceu-se como um sonho.
Rapskal estava a guiar-me. Talvez tivesse estado a falar comigo.
“Não estou bem”, ouvi-me dizer.
“Estais ótimo”, disse ele num tom reconfortante. “Simplesmente não
estáveis preparado. Se escolherdes qual das vozes quereis ouvir e vos
preparardes para ficar ao corrente da vida desse Antigo, podereis aprender
bastante. Eu certamente aprendi! Antes de abrir a mente às memórias de um
guerreiro Antigo, era um rapaz estúpido e trapalhão, sério e tolerado pelos
outros guardiães, mas nunca respeitado. Nunca respeitado.”
Fechou subitamente a boca calando a voz trémula. Revi para baixo a
estimativa que fizera sobre a sua idade.
Ele pigarreou. “O meu dragão Heeby sofreu de forma semelhante. Ela
nunca falou muito com os outros dragões ou os seus guardiães. Quando
veio inicialmente ter comigo, era pequena e desastrada. Os outros dragões
desdenhavam-na. Nem sequer se lembrava do seu verdadeiro nome; eu tive
de lhe dar um. Mas, de todos, foi ela a primeira a voar e a primeira a matar
sozinha.” O peito dele inchou de orgulho, como se ela fosse sua filha. Viu
que eu estava a prestar atenção e fez um aceno abrupto com a cabeça.
Tínhamos parado.
“O meu quarto”, disse eu baixinho. “Preciso de descansar”, e as minhas
palavras eram verdadeiras.
“Claro”, disse ele. “Ficarei feliz por vos levar até lá.” Deu palmadinhas
na mão que eu tinha pousada no seu braço e, naquele breve toque, eu senti
muito mais sobre ele do que gostaria. Começámos a andar — mais depressa
do que eu queria, mas cerrei os dentes e acompanhei o seu passo. Esperei
que Lante estivesse nos aposentos quando lá chegássemos. Depois
perguntei a mim mesmo quando teria começado a contar com ele para me
proteger.
De súbito, senti saudades de Enigma.
“Portanto”, concluiu ele e eu perguntei a mim mesmo o que teria perdido
enquanto os meus pensamentos divagavam. “É por isso que qualquer coisa
que Heeby recorde ou sonhe é tão importante.”
Tínhamos chegado ao Palácio de Acolhimento. Parecia escuro lá dentro
depois do brilho do dia. Dois Antigos viraram-se e fitaram-nos enquanto ele
me acompanhava até às escadas. “E toca a subir”, disse ele num tom alegre.
Era mais forte do que parecia.
“Obrigado pela vossa ajuda,” disse eu quando chegámos ao meu quarto.
Tivera esperança de que ele me deixasse à porta, mas seguiu-me para
dentro.
“Vá. Sentai-vos à mesa. Eu peço comida.”
Não tinha grande alternativa a sentar-me. A luta para manter as vozes dos
Antigos fora da minha mente esgotara-me a energia física. A pretexto de me
instalar, assegurei-me de que a pequena lâmina que Enigma me dera estava
escondida na cintura das minhas calças. Se eu precisasse, poderia
desembainhá-la e possivelmente conseguir cortar com ela manteiga mole.
Tentei invocar uma ira que talvez despertasse alguma força no meu corpo
fatigado, mas só encontrei um medo que me tornou os joelhos ainda mais
inseguros da sua função. A atitude exteriormente amistosa de Rapskal não
me acalmava a desconfiança. O seu temperamento, parecia-me, era instável.
E no entanto, ele era astuto. Só ele parecera aperceber-se de que nós não
estávamos a ser completamente honestos com o bom povo de Kelsingra.
Mas eu estava a lidar com um líder militar implacável que faria tudo o que
fosse necessário para defender Kelsingra, ou com um jovem melancólico
preocupado com os sonhos do seu dragão?
Ele veio juntar-se-me à mesa, depois de ter carregado no ornamento
floral ao lado da porta. “Como funciona isso?”, perguntei-lhe, na esperança
de o avaliar um pouco mais. “Carregar nessa flor?”
“Não faço ideia. Simplesmente funciona. Lá em baixo nas cozinhas há
um ornamento semelhante que brilha e zumbe. Há um para cada quarto.”
Afastou a minha pergunta com uma encolhedela de ombros. “Há tanto que
não sabemos. Foi só há seis meses que descobrimos que aquelas salas
estavam destinadas a ser uma cozinha. Há lá uma bacia que se enche com
água quente ou fria. Mas não há fornos, nem lareira. Portanto é uma
cozinha peculiar. Não que a minha mãe alguma vez tenha tido um forno, ou
mesmo uma cozinha, que eu me lembre.”
Por um momento, caiu num silêncio taciturno. Longe do tumulto de
Talento das ruas, eu queria mais informações sobre o sonho do dragão. Mas
também tinha de avisar os outros antes de eles entrarem na sala. Não
confiava nem um bocadinho naquele Rapskal. Seria o seu sonho de dragão
algum estratagema rebuscado para entrar nos nossos aposentos? Esperei
alguns segundos e depois disse: “O vosso dragão teve um sonho sobre
Clerres?”
Ele deu um salto, de novo consciente de mim. “Clerres, sim! Esse foi um
nome que ela recordou. Quer dizer então que foi um sonho verdadeiro, um
sonho baseado nas suas memórias ancestrais de dragão!” Parecia deliciado.
“Estou confuso. Memórias ancestrais de dragão?”
Ele sorriu e apoiou o queixo no punho. “Já não é segredo. Quando uma
serpente se transforma em dragão, acorda com as memórias dos seus
antepassados. Sabe onde caçar, onde fazer ninho; lembra-se de nomes e
acontecimentos da sua linhagem ancestral. Ou pelo menos devia acordar.
“Os nossos dragões foram serpentes marinhas durante demasiado tempo
e passaram um período demasiado curto nos casulos. Emergiram com
memórias fragmentadas. A minha Heeby não se lembra de quase nada sobre
os antepassados. Mas às vezes, quando dorme, as memórias ocorrem-lhe.
Espero que isto signifique que, à medida que cresça, possa lembrar-se de
mais detalhes das vidas dos antepassados.” Os seus olhos abriram-se muito
e, por um momento, reluziram. Lágrimas? Naquele homem implacável?
Falou baixinho numa voz magoada. “Eu amo-a tal como é. Sempre amei, e
sempre amarei. Mas lembrar-se dos antepassados significaria tanto para
ela.” O seu olhar enfrentou o meu e vi um pai destroçado. “Serei eu
insensível por também ansiar por isso? Por pensar que ela ficaria melhor…
Não! É demasiado maravilhosa tal como é para alguma coisa a tornar
melhor! Porque é que desejo tanto isto? Serei desleal?”
O pior que pode acontecer a um assassino é encontrar algo em comum
com o seu alvo. Mas eu conhecia demasiado bem aquela questão. Com que
frequência tinha eu ficado acordado ao lado de Moli, perguntando a mim
mesmo se era um monstro por desejar que a minha filha fosse tão capaz
como as outras crianças? Por um instante foi como se os nossos corações
bombeassem o mesmo sangue. Mas depois o treino de Breu murmurou-me:
Aí está. A falha na armadura dele.
Tinha a minha missão em que pensar. E o Bobo. Precisava de
informação, e aquele rapaz-general talvez a possuísse. Falei com suavidade
e inclinei-me para ele como se estivesse enfeitiçado pela sua história.
Aqueci a minha voz com falsa gentileza. “Que maravilha que ela tenha
sonhado com os Servos e Clerres, então! Imagino que nem ela nem vós
visitastes esse lugar distante, pois não?” Dar-lhe a ingerir alguns bocados da
informação de que eu dispunha para ver o que ele poderia revelar. E acima
de tudo, manter um comportamento calmo. Fingir que aquilo era uma visita
social em vez de uma avaliação mútua de forças.
O meu estratagema resultou. A cara dele iluminou-se de alegria. “Nunca!
Então esses são lugares verdadeiros, nomes verdadeiros? O que ela
recordou deve ser uma verdadeira memória, não um sonho desejoso!” O
peito dele ergueu-se e baixou com excitação. Os olhos, que se haviam
mostrado tão reservados, estavam de súbito francos e muito abertos. Senti
algo a ser emitido por ele. Não era o Talento, nem a Manha. Uma peculiar
fusão das duas coisas? Seria isso o que unia guardião e dragão?
Compreendi naquele momento que ele mantivera as muralhas erguidas
enquanto conversávamos, mas agora abria-as a Heeby e partilhava com ela
que os seus sonhos eram recordações verdadeiras. Algures em Kelsingra,
um dragão trombeteou de alegria. O distante crocitar de um corvo ecoou-o,
ou teria eu imaginado isso?
Eu incentivei-o com palavras. “Clerres é real e os Servos também. Temo
ser pouca mais a informação que poderia partilhar convosco. A nossa
viagem leva-nos para o desconhecido.”
“Por vingança?”, interrogou-me ele em voz baixa.
“Por vingança”, confirmei.
A testa enrugou-se-lhe e, por um momento, pareceu quase humano.
“Então talvez devêssemos juntar-nos a vós. Pois aquilo que Heeby recordou
desse lugar foi sombrio e perturbador. Ela odeia-o e teme-o em igual
medida.”
“De que se lembra?”, perguntei em voz suave.
Ele franziu o sobrolho. “De poucos detalhes. Houve perfídia e traição.
Uma confiança violada. Dragões morreram. Ou foram mortos, talvez.”
Fitou a parede como se estivesse à procura de alguma coisa a grande
distância, e depois voltou a dirigir o olhar para mim. “Não é claro para ela.
E por isso é ainda mais perturbador.”
“Os outros dragões lembrar-se-iam do que ela não recorda?”
Ele abanou a cabeça. “É como vos disse. Todos os dragões de Kelsingra
saíram dos casulos com memórias incompletas.”
Tintaglia. E Fogogelo. Mantive a expressão imóvel. Nenhum desses
dragões fora membro da ninhada de Kelsingra. Tintaglia eclodira anos antes
dos dragões de Kelsingra e julgara ser o único dragão sobrevivente do
mundo. As minhas experiências pessoais com ela tinham sido
extremamente desagradáveis. Ela atormentara Urtiga, invadindo-lhe os
sonhos e ameaçando-a. E a mim. Tudo na sua tentativa de nos levar a
desenterrar Fogogelo por ela. Esse dragão verdadeiramente antigo decidira
submergir-se num glaciar quando se julgara o último dragão do mundo. Eu
e o Bobo tínhamo-lo libertado desse gelo e devolvêramo-lo ao mundo. A
sua recordação do que acontecera aos outros dragões devia estar intacta. E,
pelo que eu sabia dele, as minhas possibilidades de aprender com ele eram
muito escassas.
O General Rapskal continuava ainda a matutar sobre o seu dragão. “A
minha Heeby é diferente dos outros dragões. Sempre foi mais pequena,
alguns diriam atrofiada, e temo que nunca venha a crescer até ser tão grande
como os outros. Raramente fala, e, quando o faz, é quase exclusivamente
comigo. Não mostra nenhum interesse em fazer um voo de acasalamento.”
Fez uma pausa e disse: “É mais nova do que os outros, tanto como serpente,
como agora como dragão. Julgamos que pertenceu à última geração
sobrevivente de dragões antes de o último cataclismo os levar a todos. Em
tempos, quando havia muitos dragões, os ovos de dragão eclodiam em
serpentes todos os anos. As serpentes lá dentro rapidamente abriam
caminho até ao mar. Permaneciam aí, a nadar e a comer, seguindo as
migrações dos peixes até terem tamanho suficiente para regressarem ao Rio
dos Ermos Chuvosos e viajar por ele acima até à praia de acasulamento
perto de Trehaug. Assim foram as coisas, em tempos. Muitos dos dragões
têm memórias ancestrais de ajudar serpentes a dar forma aos seus casulos e
a lá entrarem. E no verão seguinte, os dragões emergiam desses casulos,
fortes e plenamente formados, prontos para levantar voo para as primeira
caçadas.”
Ele abanou a cabeça com tristeza. “Não foi assim com os nossos dragões.
Eles… perderam-se. Permaneceram como serpentes durante demasiado
tempo, porque algum grande desastre alterou tanto a costa e o rio que eles
deixaram de conseguir encontrar o caminho até às praias de acasulamento.
Eu e Heeby acreditamos que várias gerações de serpentes foram apanhadas
nesse desastre. Ficaram encurraladas no mar durante muito mais tempo do
que deviam ter ficado.”
Acenei com a cabeça. Especulações minhas tinham-me começado a
fervilhar na mente, mas eu sabia que era essencial ouvir tudo o que ele tinha
para dizer. Não havia necessidade de lhe dizer que eu sabia mais do que ele
sobre aqueles dois dragões mais antigos.
“Heeby suspeita que nem todos os dragões morreram quando as cidades
dos Antigos caíram. Fogogelo certamente não morreu.” A sua voz ficou
muito sombria. “Eu também dediquei a isto alguns pensamentos. Pode
parecer que todos os Antigos que viviam aqui em Kelsingra morreram. Mas
não morreram. Eu percorri a memória de um Antigo que sobreviveu ao
acontecimento que dividiu e estilhaçou esta cidade. Vi, através dos seus
olhos, o chão tremer e os Antigos fugir. Mas para onde? Julgo que para
outros lugares assinalados no mapa da torre.” Fez uma pausa e olhou para
mim. Foi necessária toda a minha disciplina para manter a expressão
perplexa quando ele disse: “Não sei como a magia foi feita, mas eles
fugiram através das pedras verticais. As mesmas pedras onde vos encontrei
pela primeira vez.”
“Eles fugiram através de pedras?”, perguntei, como se estivesse inseguro
do que acabara de ouvir.
“Através das pedras”, disse ele. Observou-me com atenção. Eu mantive a
respiração lenta e regular enquanto o fitava com grande interesse. O
silêncio prolongou-se durante bastante tempo antes de ele falar. “Eu cresci
como um rapaz ignorante, Príncipe FitzCavalaria. Mas não como um rapaz
estúpido. Esta cidade tem uma história para contar. Enquanto os outros têm
tido receio de se perder nas memórias armazenadas nas pedras, eu explorei-
as. Aprendi muito. Mas parte do que aprendi só levou a mais perguntas.
Não achais estranho que num desastre todos os Antigos e todos os dragões
do mundo pareçam ter perecido?”
Ele agora estava a falar tanto consigo mesmo como comigo. E eu estava
feliz por o deixar falar.
“Alguns povoados dos Antigos foram destruídos. Isso sabemos. Trehaug
vem há muito minando os restos de uma cidade dos Antigos enterrada. É
possível que outras também tenham caído. Mas a humanidade não se
extinguiu, nem os papagaios, nem os macacos. Portanto, como foi que todos
os Antigos desapareceram do mundo, e todos os dragões também? A
população teria certamente ficado muito reduzida. Mas extinguir-se por
completo? Isso é demasiado estranho. Eu vi muitos fugir quando a cidade
morreu. Então o que lhes aconteceu? O que aconteceu aos dragões que não
estavam aqui quando a cidade caiu?” Coçou o queixo escamoso. As suas
unhas eram iridescentes e faziam um som de metal a roçar em metal na sua
cara. Ergueu os olhos para os meus. “Heeby lembra-se de traição e
escuridão. Um tremor de terra é um desastre, mas não uma traição. Duvido
que os Antigos traíssem os seus dragões. Então de quem foi a traição de que
ela se lembra?”
Ousei fazer uma pergunta. “O que diz Fogogelo sobre as vossas
questões?”
Ele soltou uma fungadela de desdém. “Fogogelo? Nada. É um rufião
inútil, tanto para dragões como para Antigos. Nunca fala connosco. Quando
Tintaglia não tinha nenhuma alternativa, aceitou-o como parceiro. Mas ele
mostrou-se indigno dela. Raramente o vemos aqui em Kelsingra. Mas eu
ouvi uma canção de menestrel sobre a libertação de Fogogelo de um
glaciar. Uma mulher maligna, de pele pálida, tentou matá-lo. Uma Profetisa
Branca, segundo alguns lhe chamam. E é sobre isto que me interrogo. Se
alguém tivesse matado os dragões e os Antigos, não quereriam eles pôr fim
também a Fogogelo?”
A história de Fogogelo e da Mulher Pálida tinha chegado a Kelsingra. Eu
nessa altura era conhecido como Tomé Texugo e poucos menestréis
conheciam o meu papel na queda da Mulher Pálida. Mas Rapskal tinha
razão. Fogogelo certamente teria motivo para odiar a Mulher Pálida e talvez
também os Servos. Haveria alguma forma de despertar esse ódio e de o
convencer a ajudar-me na minha vingança? Duvidava bastante. Se ele não
procurava vingança pelas desfeitas que ele próprio sofrera, pouco se
importaria com desfeitas sofridas por um ser humano.
Levei os pensamentos dele para longe de Fogogelo. “Não compreendo
tudo o que me dissestes. Os dragões de Kelsingra são de idades diferentes?
Mas eu julgava que todos os dragões de Kelsingra tinham eclodido dos
casulos ao mesmo tempo.”
Ele fez um sorriso indulgente. “Há tanto que o mundo exterior não
compreende sobre os nossos dragões. Entre um acasalamento e a deposição
de um ovo, e daí ao momento em que uma serpente entra no seu casulo,
pode passar-se uma geração da humanidade, ou mais. E se as serpentes
marinhas encontrarem anos de má alimentação ou forem levadas por
tempestades ou se perderem, então podem passar ainda mais anos até
regressarem para tecerem os casulos. As serpentes que foram finalmente
guiadas por Tintaglia até aos locais de acasulamento eram todas
sobreviventes de uma terrível calamidade, mas algumas estavam no ar há
mais dezenas de anos do que outras. Eram serpentes desde que os dragões
terminaram, e ninguém sabe durante quanto tempo os dragões estiveram
ausentes deste mundo. Heeby e eu julgamos que ela foi a mais nova das
serpentes a alcançar as margens do Rio dos Ermos Chuvosos. As suas
memórias ancestrais, por mais pobres que sejam, retêm a mais recente
história dos dragões antes da sua quase extinção.”
Estava na altura de fazer a minha pergunta mais importante. “Heeby
lembra-se de alguma coisa sobre Clerres ou os Servos que me possa ajudar
na minha demanda para os destruir?”
Ele abanou tristemente a cabeça. “Ela odeia-os mas também os teme — e
eu não consigo lembrar-me de mais nada que ela tema. Oscila entre exigir
que eu recrute todos os nossos dragões para a vossa causa e avisar-me de
que não podemos nunca aproximar-nos desse lugar. Se os sonhos dela lhe
trouxerem uma recordação clara, pode decidir levar a cabo a sua própria
vingança.” Encolheu os ombros. “Ou, se essas memórias forem
suficientemente aterrorizadoras, pode decidir evitar Clerres para sempre.”
Levantou-se de repente, levando-me a fazer deslizar a minha cadeira para
trás e retesar todos os meus músculos. Ele sorriu com pesar ao ver a minha
prudência. Não sou um homem pequeno mas ele ter-se-ia erguido acima de
mim mesmo se eu estivesse em pé. Contudo, falou com cortesia. “Mesmo
se o meu dragão não consegue de momento fazer apelo a suficiente força de
vontade para vingar a sua espécie contra esses ‘Servos’, eu gostaria de os
matar pessoalmente a todos. Por ela.” Olhou-me diretamente nos olhos.
“Não vou pedir desculpa pelo modo como me comportei quando chegastes
à minha cidade. A minha cautela era legítima, e ainda tenho dúvidas sobre
grande parte da vossa história. Ninguém vos viu descer das montanhas até
Kelsingra. O vosso grupo chegou com mais bagagem do que eu julgo que
conseguiríeis transportar confortavelmente. Nenhum de vós tinha o ar
desgastado comum em pessoas que fizeram uma longa viagem por
territórios desabitados. Eu só podia olhar-vos com grande cautela. Julgava
que só os Antigos de outrora eram capazes de usar as pedras verticais como
portais.”
Parou de falar. Eu enfrentei o seu olhar e não disse nada. Uma centelha
de ira reluziu nos seus olhos metálicos. “Muito bem. Guardai os vossos
segredos. Não vos procurei em meu nome, mas no de Heeby. É a pedido
dela que vos ajudo. Por conseguinte, apesar das minhas reservas, ofereço-
vos isto por insistência dela. Sou forçado a confiar que não revelareis este
presente a ninguém — humano, Antigo ou dragão — até estardes bem
longe de Kelsingra. Não consigo imaginar que uso tereis a dar-lhe. Ao tocar
prata-de-dragão, a Dama Âmbar mergulhou os dedos na sua própria morte,
e imprimiu a morte em vós com o seu toque. Não invejo nenhum dos dois.
Mas desejo-vos sucesso a cumprir a vossa missão antes que a morte vos
leve.”
Enquanto falava, enfiara a mão no colete. Os meus dedos encontraram o
cabo da faca de Enigma, mas o que ele me apresentou não foi uma arma
convencional. Pensei que o grosso tubo era feito de metal até ver o lento
movimento da Prata no seu interior. “Sobreviveram poucos dos recipientes
que os prateeiros usavam. O vidro é muito pesado e a rolha de vidro é
roscada para assegurar que fecha bem. Apesar disso, aconselho-vos a
manuseá-los com cuidado.”
“Estais a mostrar-me um tubo de vidro cheio de Talento?” Não
presumiria nada.
Ele pousou-o na mesa e o tubo rolou até que ele o fez parar com um
toque. O tubo tinha o diâmetro do cabo de um remo e encaixaria
solidamente na mão de um homem. Ele voltou a enfiar a mão no colete e
pousou um segundo tubo ao lado do primeiro. O vidro tiniu levemente
quando se tocaram, e a substância prateada que estava lá dentro rodopiou e
enrolou-se como gordura derretida à superfície de sopa recém-mexida.
“A mostrar-vos? Não. Estou a dar-vos. Depois do que Heeby partilhou
comigo, suponho que a Dama Âmbar a pediu para a usar contra os Servos.
Portanto, aqui está. A vossa arma. Ou a vossa fonte de magia. Ou como
quer que precisardes de a usar. É de Heeby, foi oferecida livremente por um
dragão, como só um dragão podia conceder-vos prata-de-dragão.”
Ouviu-se uma batida na porta. Ele pegou na Prata e empurrou-a para
mim. “Escondei-a”, disse-me com rispidez. Surpreendido, atrapalhei-me
com os tubos, mas depois segurei-os. Estavam quentes e eram muito mais
pesados do que eu esperava que fossem. Sem mais nenhum esconderijo
próximo, enfiei-os no interior da camisa e fechei as mãos na borda da mesa
para esconder o volume enquanto ele se dirigia para a porta.
“Ah. A vossa comida”, anunciou e deixou entrar um criado, que lhe
deitou um olhar esbugalhado antes de trazer uma bandeja para a mesa e
começar a dispor a comida à minha frente. Tinha a testa escamosa e os
malares também. Os lábios eram achatados e tensos, semelhantes aos dos
peixes, e, quando mexeu a boca, eu vislumbrei uma língua plana e cinzenta.
Também os seus olhos se moveram estranhamente quando virou o olhar
para mim. Eu virei a cabeça àquela súplica não verbalizada. Desejei pedir
desculpa por não poder ajudá-lo mas não me atrevi a abrir essa discussão.
Envergonhei-me ao agradecer-lhe em voz baixa. Ele acenou com a cabeça
de uma forma mortiça e saiu às arrecuas porta fora, passando rapidamente o
olhar por Rapskal. A notícia sobre o meu visitante chegaria rapidamente às
cozinhas e espalhar-se-ia como só os mexericos conseguem espalhar-se.
“Fazeis-me companhia?”, perguntei ao general.
Ele abanou a cabeça. “Não. Conto que dentro de minutos tenhamos mais
um ou dois membros do pessoal a precipitar-se porta adentro para se
assegurarem de que não vos fiz mal. Uma pena. Gostaria de saber como
viajastes através daqueles pilares. E por que motivo Heeby diz que cheirais
como se tivésseis um companheiro dragão, mas não algum que ela conheça.
Suspeito que há coisas que eu sei e vos seriam benéficas.” Soltou um
suspiro. “Tanto se perde quando não há confiança. Adeus, Príncipe
FitzCavalaria Visionário. Espero que a aliança comercial e mágica que
propusestes para os nossos povos prospere. Espero que não termine em
guerra.”
Aquelas palavras arrepiantes foram a sua despedida. No momento em
que fechou a porta atrás de si, levantei-me e levei os tubos de vidro do
Talento para a minha mochila. Sopesei pensativamente os recipientes e
observei o lento rodopiar quando os inclinei. Estudei cada uma das tampas;
pareciam estar bem apertadas e senti-as ligeiramente pegajosas, como se
resina tivesse sido acrescentada ao vedante. Enfiei cada um numa meia
grossa, dobrando as bocas destas sobre si próprias, e depois enfiei-as num
grosso chapéu de lã antes de o aconchegar no fundo da mochila. O vidro
dos tubos parecia pesado e forte, mas eu não queria correr riscos. Na
verdade, concordava com Rapskal. Não diria a ninguém que tinha aquilo,
especialmente ao Bobo. Não tinha a mínima ideia do motivo por que Âmbar
pedira prata-de-dragão. Até ela achar por bem divulgar o que planeara, eu
não fazia a mínima intenção de lha pôr à disposição. O facto de ter prateado
as pontas dos dedos alarmara-me e ainda não conseguira decidir o que
sentia sobre as dedadas que mais uma vez decoravam o meu pulso.
Suspirei. Sabia que a minha decisão era sensata e perguntei a mim mesmo
por que motivo me fazia sentir culpado. Pior que culpado. Enganador e
manhoso.

Os outros chegaram mais tarde como uma brisa, cheios de histórias sobre a
cidade. Num antigo arboreto, as árvores tinham há muito morrido mas
permaneciam estátuas que alteravam lentamente as poses, e uma fonte que
gargalhava com as vozes de crianças felizes. Tanto Lante como Centelha
tinham visto as ténues silhuetas de Antigos a mover-se por entre os
fantasmas de árvores verdes e de trepadeiras. Âmbar respondeu ao relato
com um aceno de cabeça, mas Perseverança pareceu desolado. “Porque é
que eu não ouço nem vejo nada?”, perguntou. “Até Âmbar ouve os
murmúrios deles! Quando os dragões voam pelo céu, os outros dizem que
os ouvem a chamar-se uns aos outros. Principalmente insultos e avisos
sobre territórios de caça. Mas tudo o que eu ouço são trombeteios, não
muito diferentes dos chamamentos dos alces no cio.” A indignação na sua
voz roçava a ira.
“Gostava que conseguisses ouvir e ver o que nós conseguimos”, disse
Centelha em voz baixa.
“E porque é que não consigo?” Isto foi-me perguntado a mim.
“Não sei dizer com certeza. Mas suspeito que é alguma coisa com a qual
ou sem a qual nasceste. Algumas pessoas têm afinidade para uma magia. O
Talento. Ou a Manha. Se têm afinidade, podem desenvolvê-la. É parecido
ao modo como os cães pastores nascem com o conceito de reunir ovelhas e
os cachorros dos cães de caça seguem um cheiro antes ainda de lhes serem
ensinadas as técnicas finas de caça.”
“Mas os cães podem ser ensinados a juntar gado ou a caçar, mesmo se
não são dessas raças. Não me podeis ensinar a ver e ouvir o que os outros
veem e ouvem?”
“Temo que não.”
Per deitou a Centelha uma olhadela de viés e eu apercebi-me talvez de
uma rivalidade, ou simplesmente de um desejo de partilhar. Lante falou em
voz baixa. “Eu não vejo ou ouço tanto como os outros.”
“Mas eu não vejo nem ouço absolutamente nada!” As palavras saltaram
do rapaz.
“Isso pode ser um dom em vez de uma lacuna. Talvez devas pensar no
facto como uma armadura contra a magia. Foi por causa da tua
insensibilidade que conseguiste resistir ao impulso para te ires juntar aos
outros no caminho de entrada na noite em que Floresta Mirrada foi atacada.
Foi por isso que pudeste ajudar Abelha a ficar escondida durante o tempo
que ficou, e ajudá-la a fugir. A tua surdez ao Talento e à magia de Kelsingra
pode ser tanto um escudo como uma fraqueza.”
Se eu julgara reconfortá-lo, falhei. “E que bem que isso lhe fez”, disse
ele, infeliz. “Tiraram-me Abelha na mesma. E destruíram-na na mesma.”
As palavras dele desanimaram-nos a todos. Caiu um silêncio sombrio.
Qualquer prazer que eles tivessem obtido com a magia da cidade foi
envolvido no miasma da lembrança do motivo por que tínhamos vindo até
ali. “O General Rapskal veio visitar-me hoje”, disse eu, deixando cair as
palavras como pedras numa lagoa parada.
“O que queria ele?”, perguntou Âmbar. “Ameaçou-te?”
“Nem por sombras. Disse que vinha desejar-nos sucesso na nossa
tentativa de vingança. E que Heeby, o seu dragão, tinha tido um sonho
sobre os Servos. E sobre Clerres.” E resumi a visita de Rapskal.
Um profundo silêncio seguiu-se às minhas palavras. Per foi o primeiro a
falar. “O que quer tudo isso dizer?”
“Rapskal suspeita que algum grande desastre caiu sobre os dragões.
Acredita que Heeby odeia os Servos de Clerres porque eles assassinaram os
dragões restantes, não sei como. Ou tantos quantos conseguiram matar.”
A cara da Dama Âmbar descontraíra-se até ganhar as feições do Bobo.
Na voz do Bobo, murmurou: “Isso explicaria tantas coisas! Se os Servos
previram um desastre para os dragões e os Antigos, podiam planear para o
tornarem pior. Se o seu objetivo era eliminar todos os dragões do mundo, e
tiveram sucesso, então podiam prever que nós tentaríamos restaurá-los. E
por isso criariam a Mulher Pálida e manter-me-iam cativo na escola,
enviando-a para o exterior no meu lugar. Para se assegurarem de que os
dragões não tinham nenhuma hipótese de serem reestabelecidos.” O seu
olhar tornou-se distante enquanto recordava tudo o que tínhamos feito. “As
peças encaixam, Fitz.” Depois, um estranho sorriso iluminou-lhe a cara.
“Mas eles falharam. E nós trouxemos os dragões de volta ao mundo.”
Um arrepio subiu-me a espinha e pôs-me os cabelos em pé. Até quão
longe no futuro planeavam os Servos a sua estratégia? O Bobo sugerira em
tempos que eles o tinham usado para me afastar de Floresta Mirrada para
poderem raptar Abelha. Os seus sonhos e agoiros avisá-los-iam de que nós
íamos a caminho? Que outros obstáculos ou distrações conceberiam para
nós? Acalmei esses medos. “Ainda não sabemos por que motivo eles
queriam destruir os dragões.”
Ele deitou-me o olhar trocista do Bobo. “Eu disse que explicava muitas
coisas, não todas. Os Servos jogam um jogo a muito longo prazo com o
mundo e as vidas de todos os que nele existem. E jogam-no apenas para o
seu próprio bem. Gostava de falar com essa Heeby e ver que mais consegue
recordar.”
“Não me parece que isso seja sensato. Acho que todos nós devíamos
evitar o mais possível o General Rapskal. Ele não parece… estável. Hoje
foi cortês, até gentil. Apesar disso, não confio nele. Disse-me com clareza
que não acredita nas nossas histórias sobre como cá chegámos, nem sobre
como prateaste os dedos. Tem fortes suspeitas de que viemos pelos pilares.
Viu-te de relance perto do poço dos dragões na noite em que mergulhaste os
dedos. Bobo. Para bem de todos nós, fica longe dele.”
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois as suas feições
assumiram a pose da Dama Âmbar. “Suponho que essa linha de ação seja a
mais sensata. E tu dizes que Heeby só fala com ele? Achas que algum dos
outros dragões recordaria algo sobre os Servos?”
“Não me parece. Mas como poderíamos saber?” Refleti um pouco.
“Fogogelo sabe. Ele sobreviveu ao que quer que tenha acontecido aos
dragões e sepultou-se em gelo por vontade própria. Devia recordar-se
desses tempos. Se os Servos tiveram algo a ver com a extinção dos dragões,
ele saberia. Suponho que seja possível que tenha partilhado essa história
com Tintaglia.”
“Mas ela não está cá. Muitos dos dragões foram passar o inverno às
terras quentes. Alguns foram há dois ou até há três anos. Imagino que
Fogogelo se tenha ido embora e não tenha regressado.”
Um terror frio desenrolou-se-me na barriga. Tentei impedir que ele se
revelasse na minha cara. “Bobo. Dama Âmbar. Como é o clima na Ilha
Branca? E nas terras próximas?”
Ela fixou em mim os olhos cegos. “Quente. Ameno. Nunca conheci o
inverno até viajar para norte até aos Seis Ducados.” Ela sorriu, e a sua cara
recaiu nos traços do Bobo. “É uma beleza, Fitz. Não só a Ilha Branca, não
só Clerres. Refiro-me às outras ilhas e ao continente. É uma terra suave, um
lugar muito mais gentil do que os que conheceste. Oh, Cervo é belo, à sua
maneira selvagem. É duro, uma terra severa, e torna as pessoas tão pétreas
como os seus ossos. Mas a minha terra? Tem suaves colinas onduladas,
largos vales fluviais, e manadas de gado e rebanhos de ovelhas. Não as
criaturas esguias a que chamam gado em Cervo e nos ducados. Grandes
vacas castanhas com cornos larguíssimos e focinhos pretos, com dorsos da
altura de um homem. É uma terra rica e fácil, Fitz. Mais para o interior, há
lagos de margens douradas que fervilham de peixes, e há fontes abundantes
nas colinas florestadas.” Suspirou e pareceu perder-se durante algum tempo,
talvez a recordar os tempos de infância. Abruptamente, Âmbar inclinou a
cabeça para mim. “Achas que é para aí que os dragões vão quando o
inverno congela a terra por aqui? Ou que iam, em certa época?”
Imaginei pastagens suavemente onduladas, gado gordo a debandar em
terror, e dragões a cair sobre ele. “Isso explicaria por que motivo os Servos
haveriam de desejar eliminá-los. Os dragões não se mostraram favoráveis
para os Seis Ducados. É possível que os Servos os achassem piores do que
uma inconveniência.” Saberiam os Servos como matar dragões? Havia
dragões que nunca regressariam a Kelsingra?
“Deixa-me refletir sobre isto e lembrar-me do pouco que sei sobre as
profecias de sonho que mencionam dragões.” Âmbar carregou subitamente
o cenho, e foi o Bobo quem disse: “E porque foi que nunca me ocorreu
interrogar-me sobre o motivo por que há tão poucas profecias de sonho que
mencionam dragões? Será que não há nenhuma profecia de sonho sobre a
ascensão e queda dos dragões? Ou terão sido suprimidas?”
Suprimidas, pensei eu de mim para mim. Como o Bobo suprimia as suas
memórias de Clerres. Precisava de destrancar ambos esses mistérios. Um
lento plano para o fazer começou a desenrolar-se na minha mente.
Capítulo 6

Revelações

Sonhei pela primeira vez com o Destruidor quando ainda estava na


Ilha de Aslevjal. O Catalisador de Amado tinha regressado pela
segunda vez. Creio que a sua presença desencadeou tanto os meus
sonhos como a visão do Destruidor. Nesse sonho, o Destruidor era
um punho agarrado a uma chama. A mão abriu-se e as chamas
explodiram em altura mas, em vez de darem luz, trouxeram
escuridão. E tudo o que eu conheci na vida foi destruído.
Tinha-se passado tanto tempo desde que eu tivera um Sonho que
disse a mim mesmo que imaginara a sua significância. Não teria
acabado de alcançar todos os meus objetivos? Por que motivo me
ocorreria um sonho tão sombrio no meio do meu triunfo? Apesar de
tudo, fui levado a dizer ao Profeta Branco e ao seu Catalisador que
tinha chegado a altura de se separarem. Um deles, pelo menos,
aceitou a verdade das minhas palavras, mas eu vi que a ambos
faltava a vontade de fazerem o que deviam fazer. Dediquei-me a
separá-los.
Os Escritos de Prilkop, o Negro

A
minha recuperação foi mais lenta do que com qualquer ferimento
físico que tivesse sofrido há décadas. Era claro que a minha antiga
cura pelo Talento não reparava o que quer que fosse que o próprio
Talento esgotara em mim. Concentrar os pensamentos era um desafio e eu
cansava-me facilmente. E a minha tarde com o General Rapskal
sobrecarregara-me gravemente. Mesmo naquele edifício dito silencioso, a
corrente de Talento cantava e erguia-se à minha volta. Mas isso não queria
dizer que não houvesse trabalho a fazer. Informação a recolher,
independentemente das barreiras. Por mais cansado que eu estivesse.
Nessa noite enviei Perseverança às cozinhas para pedir brande e um copo
para mim. Ele regressou com uma grande garrafa de Orla d’Areia. “Carot é
dos Ermos Chuvosos e é muito prejudicado por escamas grossas na cara e
nas mãos”, informou-me ao pousar a garrafa e um copo. “Disse que só
merecíeis o melhor e pediu-me para vos fazer lembrar dele.” Suspirei. As
minhas firmes recusas de tentar fazer mais curas não tinham detido os
pedidos e a sedução por parte dos que eram afetados por mudanças de
dragão. Com um encolher de ombros compreensivo, Per deixou-me sozinho
no meu quarto e foi para a cama.
Estava sentado na cama, com a garrafa a meu lado e o copo na mão,
quando Âmbar chegou depois de um jantar tardio com Malta.
Cumprimentei-a depois de emborcar as últimas gotas de brande que tinha
no copo. “Tiveste uma noite agradável?”, perguntei-lhe numa voz lenta.
“Razoavelmente agradável. Não teve grande utilidade. Fogogelo já anda
por longe há meses; Malta não tem bem a certeza de quando partiu. Todos
sabem que Heeby não fala com ninguém além de Rapskal e Malta já tinha
ouvido dizer que Rapskal te tinha vindo visitar e estava preocupada.”
“Espero que lhe tenhas dito que eu estou ótimo. Se bem que, na verdade,
não me devesse ter aventurado por Kelsingra. Lá fora, a corrente de Talento
é como ser atirado para dentro de um rio cheio de pedregulhos. Não sei se
por eu ter sido treinado para estar consciente da magia e a usar, se por haver
aqui tanta Prata. Talvez me tenha deixado vulnerável a ela, não sei como,
quando fiz aquelas curas e a deixei correr através de mim sem contenção.”
Ergui a garrafa. “Queres um bocado?”
“Um bocado de quê?” Ela farejou o ar. “Isso é brande de Orla d’Areia?”
“É. Só tenho um copo mas ainda há chávenas na mesa.”
“Então vou querer. Seria uma vergonha obrigar-te a beber sozinho.”
Livrei-me das botas ao pontapé, deixando-as cair ruidosamente no chão.
Fiz o gargalo da garrafa tinir na borda do copo quando lá despejei mais um
pouco de bebida. Depois deitei-me na cama, a fitar o teto escurecido.
Estrelas refulgiam num céu azul-escuro. Não eram elas a única iluminação
na sala. As paredes tinham-se transformado numa paisagem de floresta.
Flores brancas reluziam nos vastos ramos de árvores. Falei para as estrelas.
“Tanto Talento a correr por esta cidade e eu não me atrevo a usá-lo de
todo.”
Não observei Âmbar quando se livrou das saias e limpou tinta da cara.
Quando senti alguém sentar-se na borda da cama, era o Bobo, vestido com
meias básicas e uma simples camisa. Ele trouxera da mesa uma chávena. “E
ainda não te atreves a tentar ajudar nenhuma das pessoas tocadas pelos
dragões? Nem mesmo com a mais pequena das queixas? Escamas a
crescerem por cima dos olhos, por exemplo?”
Suspirei. Bati levemente com o gargalo da garrafa na borda da chávena
dele, para o avisar, e enchi-a bem. “Eu conheço o homem de que falas. Veio
duas vezes falar comigo, uma vez para pedir, outra vez com dinheiro. Bobo,
não me atrevo. Estou cercado pelo Talento. Se lhe abrir as portas, cairei.”
Dei-lhe espaço na cama. Ele bebeu dois tragos generosos para baixar o
nível de brande na chávena antes de ocupar um lugar a meu lado. Pousei a
garrafa na cama entre nós.
“E não consegues mesmo contactar Urtiga e Respeitador?” Ele encostou-
se às almofadas a meu lado e segurou a chávena com ambas as mãos sobre
o peito.
“Não me atrevo”, repeti. “Pensa na questão desta forma: se há água a
ondular dentro do meu barco, não abro um buraco no fundo para a deixar
sair. Porque, se o fizesse, o oceano inundava-o.” Ele não respondeu. Mexi-
me na cama e acrescentei: “Gostava que conseguisses ver como este quarto
é belo. Aqui é noite, com as estrelas iluminadas no teto e as paredes
transformaram-se numa floresta sombria.” Hesitei, sentindo a necessidade
de entrar no tópico de mansinho. Fá-lo. “Faz-me sofrer por Aslevjal. Os
soldados da Mulher Pálida destruíram tanta da beleza que aí havia. Gostava
de poder tê-la visto tal como tinha sido.”
O Bobo sustentou um longo silêncio. Depois disse: “O Prilkop falava
frequentemente da beleza que se tinha perdido quando ela invadiu Aslevjal
e tomou o controlo da ilha.”
“Então ele estava lá antes dela?”
“Oh, muito antes. Ele é muito velho. Era muito velho.” A voz dele
ensombrou-se de terror.
“Quão velho?”
Ele fez um pequeno ruído de divertimento. “Era Antigo, Fitz. Estava lá
antes de Fogogelo se enterrar. Chocou-o que o dragão o fizesse, mas não se
atreveu a opor-se-lhe. Fogogelo estava dominado pela ideia de que tinha de
se enterrar em gelo e morrer ali. O glaciar reclamara a maior parte de
Aslevjal quando Prilkop lá chegou. Uns poucos Antigos ainda chegaram e
partiram, mas não por muito tempo.”
“Como pode alguém viver assim tanto tempo?”, perguntei.
“Ele era um verdadeiro Branco, Fitz. De uma linhagem muito mais antiga
e pura do que as que existiam quando eu nasci. Os Brancos têm vidas
longas e são muitíssimo difíceis de matar. Tens de te esforçar para matares
um Branco ou para o mutilares permanentemente. Como a Mulher Pálida
fez comigo.” Bebeu ruidosamente da chávena, depois inclinou-a para
engolir um trago generoso. “O que me fizeram em Clerres… ter-te-ia
matado, Fitz. Ou a qualquer outro humano. Mas eles sabiam disso e tiveram
sempre o cuidado de não irem demasiado longe. Por mais esperança que eu
tivesse de que o fizessem.” E voltou a beber.
Tinha chegado ao tema que queria explorar mas não pelo caminho que
esperara seguir. Já conseguia sentir a tensão nele. Olhei em volta e
perguntei: “Onde está a garrafa?”
“Está aqui.” Procurou às apalpadelas a seu lado na cama e depois passou-
ma, e eu despejei um pouco no meu copo. Ele estendeu-me a chávena e eu
voltei a enchê-la descuidadamente.
Ele franziu o sobrolho quando sacudiu brande das pontas dos dedos e
depois beberricou até chegar a uma quantidade que não derramaria.
Nenhum de nós falou durante algum tempo. Contei as inspirações dele e
ouvi-as abrandar e tornar-se mais profundas.
A meu lado, na escuridão, ele ergueu a mão enluvada. Deixou a chávena
equilibrar-se sozinha sobre o seu peito. Cautelosamente, puxou pelas pontas
dos dedos da luva com a outra mão, até ficar com a mão prateada nua.
Ergueu-a no ar e virou-a primeiro para um lado e logo para o outro.
“Consegues vê-la?”, perguntei com curiosidade.
“Não como tu. Mas consigo aperceber-me dela.”
“Dói? Thymara disse que isso te mataria e Centelha disse-me que
Thymara é um dos poucos Antigos autorizados a trabalhar com Prata e sabe
mais sobre ela do que qualquer outra pessoa. Não que tenha dominado as
capacidades artísticas dos Antigos de outrora.”
“A sério? Não tinha ouvido falar disso.”
“Ela tenta aprender com as memórias armazenadas na cidade. Mas ouvi-
las com demasiada atenção é perigoso. O Lante ouve a cidade murmurar. A
Centelha ouve-a a cantar. Eu avisei-os para evitarem o contacto deliberado
com lugares onde as memórias estão armazenadas.” Suspirei. “Mas tenho a
certeza de que pelo menos experimentaram parte do que aqui existe.”
“Oh, sim. Centelha disse-me que algumas das criadas não fazem nada
nos tempos livres além de procurarem as recordações eróticas que um certo
Antigo deixou armazenadas numa estátua de si. Malta e Reyn reprovam, e
com bons motivos. Há anos, eu ouvi um boato sobre a família Khuprus, que
dizia que o pai de Reyn passava demasiado tempo numa cidade dos Antigos
enterrada, entre pedras destas. Morreu por causa disso. Ou melhor, ficou
imerso nisso e depois o seu corpo morreu por falta de cuidados. Chamam-
lhe afogar-se em memórias.” E bebeu da chávena.
“E nós chamamos-lhe afogar-se no Talento. Augusto Visionário.” Proferi
em voz alta o nome de um primo há muito perdido.
“E Veracidade, de uma forma muito mais dramática. Ele não se afogou
nas memórias de outra pessoa mas submergiu-se num dragão, levando todas
as suas memórias consigo.”
Fiquei em silêncio durante algum tempo, a pensar nas palavras dele.
Levei o copo aos lábios e depois fiz uma pausa para dizer: “Uma bruxa
ambulante disse-me uma vez que toda a magia está relacionada — como
um círculo — e as pessoas podem ter este arco, ou aquele. Ninguém a tem
toda. Eu tenho o Talento e a Manha, mas não sou capaz de adivinhar o
futuro. O Breu é, ou era. Acho eu. Ele nunca mo admitiu por completo. A
Gina era capaz de fazer amuletos para as pessoas mas desprezava a minha
Manha achando-a uma magia suja…” Observei a mão prateada dele a virar.
“Bobo. Porque foi que prateaste a mão? E porque foi que pediste mais
Prata?”
Ele suspirou. A mão livre sacudiu a luva e manteve-a aberta enquanto a
mão prateada se enfiava lá dentro. Pegou na chávena com ambas as mãos.
“Para ter a magia, Fitz. Para ser capaz de usar os pilares mais facilmente.
Para ser capaz de voltar a dar forma à madeira, como fazia dantes. Para
tocar algo ou alguém e conseguir conhecê-lo, dos ossos para fora, como
conseguia dantes.” Inspirou profundamente e suspirou. “Quando me
atormentaram… Quando me esfolaram a mão…” Faltou-lhe a voz. Bebeu
um gole lento de brande e disse num tom descuidado: “Quando deixei de ter
Talento nos dedos, senti-lhe a falta. Queria-o de volta.”
“Thymara disse que isso te mataria.”
“Foi uma morte lenta para Veracidade e Panela. Eles sabiam-no.
Apressaram-se a criar o dragão e entrar nele antes que a Prata tivesse tempo
de os matar.”
“Mas tu viveste durante anos com Prata nas pontas dos dedos.”
“E tu tiveste as marcas dos meus dedos no pulso durante anos. Não
morreste disso. Nem Malta morreu por causa do meu toque no seu
pescoço.”
“Porque não?”
Ele franziu o sobrolho à chávena e bebeu para baixar o nível de brande
que lá havia dentro antes de se pôr de lado para me encarar. “Não sei.
Talvez porque eu não sou inteiramente humano. Talvez por causa da
ascendência Branca. Talvez porque tu foste treinado para dominar o
Talento. Talvez porque contigo, como com Malta, não passou do mais leve
roçar de Prata na pele. Ou, no caso dela, é possível que as mudanças de
dragão feitas por Tintaglia a tenham tornado imune.” Sorriu. “Por
conseguinte, talvez por haver em ti algo de dragão. Sangue Antigo, de há
muito tempo. Suspeito que ele entrou na linhagem dos Visionário quando o
primeiro governante chegou às costas daquilo que viria a ser Cervo. Talvez
as paredes de Torre do Cervo não estejam tão fortemente instiladas de
Talento como as paredes de Kelsingra, mas ambos sabemos que existe lá
algum, nos pilares de Talento e nas pedras mais antigas do castelo. Talvez
sejas imune porque cresceste com ele, ou talvez tenhas nascido assim.” Ele
abanou a cabeça contra a cama que cedera para lhe almofadar o corpo.
“Não sabemos. Mas eu acho que isto” — e ergueu a mão enluvada e
esfregou as pontas dos dedos umas nas outras — “me vai ser muito útil
quando chegarmos a Clerres.”
“E os frascos de Prata que pediste?”
“A verdade é que os queria para um amigo. Para melhorar a sorte que lhe
coube na vida. E talvez para lhe arrancar um favor.”
Despejei mais um pouco de brande para dentro do meu copo e voltei a
encher a chávena dele. Ambos bebemos. “E eu conheço esse amigo?”
Ele soltou uma gargalhada. Era um som que se tornara tão raro que sorri
ao ouvi-lo, mesmo sem conhecer o seu motivo. “Não, ainda não o conheces.
Mas vais conhecer.” Olhou para mim com olhos de um dourado-claro e eu
senti que me conseguia ver. “E podes vir a descobrir que têm muito em
comum”, disse, e voltou a rir, com alguma descontração. Não perguntei.
Bem sabia que não podia achar que ele responderia a uma pergunta direta.
Ele surpreendeu-me quando perguntou: “Nunca pensaste nisso? Em
acrescentar um pouco de Talento aos teus dedos?”
“Não.” Pensei em Veracidade, nas suas mãos e antebraços cobertos de
Prata, incapaz de tocar na sua senhora ou de a abraçar. Pensei nas alturas
em que algo, um feto ou uma folha, tinham roçado nas velhas dedadas do
Bobo no meu pulso e eu tivera um desconcertante momento de plena
consciência dessa coisa. “Não. Acho que já tenho problemas suficientes
com o Talento sem me deixar ainda mais vulnerável a ele.”
“E no entanto tiveste as minhas dedadas durante anos. E ficaste muito
aborrecido comigo quando as removi.”
“É verdade. Porque senti falta dessa ligação contigo.” Bebi um gole de
brande. “Mas como foi que as tiraste da minha pele? Como foi que
recolheste o Talento nas pontas dos teus dedos?”
“Simplesmente recolhi. Sabes dizer-me como contactas Urtiga?”
“Não de uma forma que tu compreendas. Não compreenderás, a menos
que tenhas o Talento.”
“Precisamente.”
O silêncio caiu entre nós durante algum tempo. Eu trabalhei nas minhas
muralhas e senti que os resmungos da cidade se transformavam num suave
murmúrio e depois se desvaneciam num abençoado silêncio. A paz encheu-
me por um momento. Depois, a culpa cresceu para preencher o espaço que
os resmungos da cidade tinham ocupado. Paz? Que direito tinha eu a paz
quando falhara tanto a Abelha?
“Queres que eu as recolha?”
“O quê?”
“As minhas dedadas no teu pulso. Queres que eu volte a recolhê-las?”
Matutei brevemente. Quereria? “Eu não quis que as recolhesses quando o
fizeste. Agora? Temo que se puseres a mão no meu pulso, possamos ser os
dois arrastados para longe. Bobo, eu disse-te que me sinto cercado pela
magia. O meu último encontro com a força do Talento deixou-me muito
cauteloso. Penso em Breu e em como ele desmoronou nos últimos meses. E
se isso me acontecesse subitamente a mim? Não me lembrar das coisas, não
manter os pensamentos organizados? Não posso deixar que isso aconteça.
Tenho de manter a concentração.” Bebi do copo. “Nós — eu — temos uma
tarefa a completar.”
Ele não deu resposta. Eu estava a fitar o teto mas vi-o pelo canto do olho
a esvaziar a chávena. Ofereci-lhe a garrafa e ele serviu-se de mais. Agora
era um momento tão bom como qualquer outro. “Então fala-me de Clerres.
A ilha, a cidade, a escola. Como é que entramos?”
“Quanto a entrar, isso não é problema. Se eu me mostrar de uma forma
que eles reconheçam, ficarão muito ansiosos por me recuperar e acabar
aquilo que começaram.” Tentou rir-se mas silenciou-se abruptamente.
Perguntei a mim mesmo se se teria assustado. Tentei encontrar uma
distração. “Cheiras a ela.”
“O quê?”
“Cheiras a Âmbar. Enerva-me um bocado.”
“A Âmbar?” Levou o pulso ao nariz e cheirou. “Aqui mal existe um
vestígio de essência de rosas. Como é que consegues cheirá-lo?”
“Suponho que ainda existe um pouco do lobo em mim. Reparo no cheiro
porque tu normalmente não tens nenhum cheiro teu. Oh, se estás porco, eu
cheiro a porcaria na tua pele e roupa. Mas não te cheiro a ti. Olhos-de-Noite
chamava-te às vezes o Sem Cheiro. Ele achava isso muito estranho.”
“Já me tinha esquecido. Olhos-de-Noite.”
“Ao Olhos-de-Noite. A amigos há muito desaparecidos”, disse eu. Ergui
o copo e esvaziei-o, e ele também. Voltei rapidamente a encher-lhe a
chávena e bati com a garrafa na borda do meu copo.
Ficámos os dois calados durante algum tempo, a recordar o meu lobo,
mas foi uma espécie diferente de silêncio. Depois o Bobo pigarreou e falou
como se fosse Penacarriço a ensinar a história de Cervo. “Muito a sul e do
outro lado do mar, para leste, fica a terra de onde eu vim. Nasci numa
família de pequenos agricultores. A nossa terra era boa; o nosso ribeiro
raramente secava. Tínhamos gansos e ovelhas. A minha mãe fiava a lã, os
meus pais tingiam-na, o meu pai tecia com ela. Esses dias foram há tanto
tempo, como uma lenda. Eu nasci tardiamente na vida da minha mãe e
cresci devagar, precisamente como Abelha. Mas eles ficaram comigo e eu
permaneci com eles durante muitos anos. Eram velhos quando me levaram
aos Servos de Clerres. Talvez se julgassem demasiado velhos para
continuarem a cuidar de mim. Disseram-me que eu tinha de me transformar
naquilo que estava destinado a ser, e que temiam que me tinham mantido
durante demasiado tempo afastado dessa vocação. Pois nessa parte do
mundo todos sabem dos Profetas Brancos, apesar de nem todos darem
crédito às lendas.
“Eu nasci no continente, em Mersénia, mas viajámos de ilha em ilha até
chegarmos a Clerres. É uma cidade muito bonita na margem duma baía
numa grande ilha chamada Kells na língua antiga. Ou Clerres. Alguns
chamam-lhe a Ilha Branca. Ao longo dessa costa e em várias das ilhas, há
praias repletas de imensos ossos. São tão antigos que se transformaram em
pedra. Eu próprio os vi. Alguns desses ossos pétreos foram incorporados no
forte de Clerres. Porque é um forte, datando de uma época anterior aos
Servos. Em tempos, uma península de terra comprida e estreita alcançava a
ilha. Quem construiu o castelo em Clerres cortou essa península, deixando
só uma passagem estreita que leva até lá — uma passagem que desaparece
todos os dias quando a maré sobe e reaparece quando ela desce. Cada
extremidade da passagem está fechada com um portão robusto e defendida
por guardas. Os Servos regulam quem entra e quem sai.”
“Então têm inimigos?”
Ele voltou a rir. “Não que eu alguma vez tenha sabido. Eles controlam o
fluxo do comércio. Peregrinos, mercadores e pedintes. Clerres atrai todos os
tipos de gente.”
“Então devíamos abordá-la pelo mar, num barco pequeno, à noite.”
Ele abanou a cabeça e bebeu mais brande. “Não. As torres estão
guarnecidas em permanência com excelentes arqueiros. Do lado do mar há
grandes estacas de pedra e as lâmpadas que nelas existem são acesas todas
as noites. Ardem com grande brilho. Uma aproximação por mar não é
possível.”
“Continua”, disse eu com um suspiro.
“É como te disse. Todos os tipos de gente vão até lá. Mercadores vindos
de portos distantes, pessoas ansiosas por conhecer os seus futuros, gente
com o desejo de se tornarem Servos dos Brancos, mercenários para se
juntarem à guarda. Vamos esconder-nos entre eles. Na inundação diária de
pessoas que procura Clerres, tu passarás despercebido. Podes misturar-te
com os que procuram consultar o destino, que atravessam a passagem que
leva ao castelo em todas as marés baixas.”
“Eu preferia entrar sub-repticiamente. De preferência na escuridão.”
“Pode haver uma maneira”, admitiu ele. “Existe um antigo túnel por
baixo da passagem. Não sei por onde se entra ou onde o túnel vai dar. Já te
disse que alguns dos jovens Brancos me levaram para o exterior em
segredo.” Abanou a cabeça e bebeu um trago saudável de brande. “Julguei
que eles eram meus amigos”, disse com amargura. “Desde essa altura, tive
de me interrogar sobre se não serviriam os Quatro. Acho que me libertaram
como se desengaiola um pombo-correio, sabendo que ele voará para casa.
Temo que estejam à minha espera. Que tenham previsto o meu regresso e
estejam prontos para mim. O que nós tentamos fazer, Fitz, vai quebrar todos
os futuros que eles planearam. Devem ter existido muitos sonhos sobre
isso.”
Rolei a cabeça para o observar. Estava com um sorriso estranho.
“Quando me trouxeste de volta da morte, eu disse-te que estava a viver num
futuro que não tinha previsto. Nunca sonhei com nada para além da minha
morte. Sabia que a minha morte era uma certeza. E quando viajei com
Prilkop de volta a Clerres, não tive sonhos. Tinha a certeza de que os meus
tempos de Profeta Branco tinham acabado. Não teríamos nós alcançado
tudo o que eu imaginei?”
“Alcançámos!”, exclamei, e ergui o copo. “À nossa!” Bebemos.
“À medida que os anos foram passando, os sonhos voltaram a vir ter
comigo, mas irregularmente. Depois, Cinza deu-me o elixir do sangue de
dragão e os meus sonhos regressaram numa inundação. Sonhos poderosos.
Visões que avisavam contra fortes divergências no que pode acontecer. Fitz.
Já por duas vezes sonhei com um Destruidor que vem a Clerres. Deves ser
tu, Fitz. Mas se eu sonhei com uma coisa dessas, outros também terão
sonhado. Os Servos podem esperar-nos. Podem até ter posto
deliberadamente em andamento as condições para eu voltar para junto deles
e levar o meu Catalisador comigo.”
“Então temos de assegurar que não te veem.” Fingi um otimismo que não
sentia. Dizer a um assassino que é esperado é a pior notícia que pode ser
dada. Ousei abordar uma coisa sobre a qual há muito sentia curiosidade.
“Bobo. Quando estávamos a mudar o mundo, colocando-o num ‘caminho
melhor’, como tu costumavas dizer… como sabias o que devíamos e não
devíamos fazer?”
“Ao certo, não sabia.” Soltou um grande suspiro. “Via-te nos futuros que
desejava. Mas não com frequência. A princípio, a tua sobrevivência era
muito improvável. Portanto, a minha primeira tarefa era encontrar-te e
manter-te vivo durante tanto tempo quanto possível. Para criar uma
probabilidade maior de existires em mais futuros possíveis. Percebes o que
quero dizer?” Não percebia, mas fiz um som de concórdia. “Pois. Para
manter um bastardo vivo, há que encontrar um homem poderoso. Há que o
conquistar para o meu lado. Pus na cabeça do Rei Sagaz a ideia de que tu
podias ser útil no futuro; que ele não devia deixar que Majestoso te
destruísse, de contrário não teria em ti uma ferramenta para possivelmente
usar mais tarde.”
Recordei as palavras de Majestoso da primeira vez que me viu. “Não
faças o que não podes desfazer, até teres pensado bem no que não podes
fazer depois de o fazeres.”
“Quase exatamente certo”, disse ele, e soluçou, após o que soltou um
risinho. “Oh, o Rei Sagaz. Nunca previ que viria a gostar tanto dele, Fitz,
nem que ele gostaria de mim. Ou de ti!” Bocejou e acrescentou: “Mas
gostava.”
“Então o que podemos fazer para tornar menos provável que eles nos
esperem?”
“Podíamos não ir.”
“Pois, há essa opção.”
“Podíamos atrasar a ida por uns vinte anos, ou assim.”
“É provável que eu esteja morto. Ou muito velho.”
“Verdade.”
“Não quero levar os outros para isto. O Lante e os jovens. Nunca quis
que tu viesses comigo, quanto mais eles. Espero que em Vilamonte
possamos pô-los num navio para casa.”
Ele abanou a cabeça, reprovando esse plano. Depois perguntou: “Achas
que vais arranjar maneira de me conseguires deixar também para trás?”
“Gostava de poder, mas temo que tenha de te ter comigo, para me
ajudares a encontrar o caminho até lá. Portanto, sê útil, Bobo. Fala-me
desse túnel. Também está guardado?”
“Acho que não, Fitz. É tão pouco o que te posso dizer. Estava vendado e
quebrado. Nem sequer sei os nomes dos que me levaram para fora dali.
Quando me apercebi de que me estavam a deslocar, julguei que me levavam
para o tanque do estrume, no andar das masmorras mais profundas. É um
sítio nojento, sempre a feder a porcaria e morte. Todos os dejetos do castelo
fluem para um tanque aberto no chão. Se desagradaste aos Quatro, é aí que
despejam o teu corpo desmembrado. O tanque inunda-se duas vezes por dia
com a enchente da maré. Um cano inclina-se para baixo, passa sob a
muralha do castelo e desemboca na baía. E quando a maré desce, leva
consigo a porcaria, os excrementos, os bebezinhos estrangulados que não
acharam merecedores de vida…” A voz quebrou-se-lhe quando disse:
“Julguei que era por isso que me tinham vindo buscar. Para me cortar em
pedaços e atirar-me lá para dentro com o resto dos dejetos. Mas fizeram-me
calar quando eu gritei e disseram-me que tinham vindo salvar-me e
enrolaram-me numa manta e levaram-me para fora. Durante os períodos em
que estive consciente… ouvi o pingar de água e cheirou-me a mar.
Descemos alguns degraus. Eles transportaram-me até muito longe. Cheirou-
me à lanterna que usaram. Depois subimos uns degraus e saímos para a
vertente de uma colina. Cheirou-me a ovelhas e a erva húmida. As
sacudidelas magoaram-me terrivelmente. Atravessámos terreno irregular
durante um período dolorosamente longo e depois saímos para uma doca
onde me entregaram aos marinheiros de um navio.”
Armazenei na mente o pouco que ele me dera. Um túnel sob a passagem
que terminava num pasto para ovelhas. Não tinha grande utilidade. “Quem
eram eles? Estariam dispostos a ajudar-nos?”
“Não sei. Mesmo agora não consigo lembrar-me com clareza da fuga.”
“Tens de te lembrar”, disse-lhe. Senti-o a retrair-se e temi que o tivesse
pressionado demasiado. Falei mais suavemente. “Bobo, tu és tudo o que eu
tenho. E preciso de saber tantas coisas sobre esses ‘Quatro’. Tenho de
conhecer as suas debilidades, os seus prazeres, os seus amigos. Tenho de
conhecer os seus hábitos, os seus vícios, as ruas rotinas e os seus desejos.”
Esperei. Ele manteve-se em silêncio. Tentei outra questão. “Se só
pudermos escolher um para matar, qual deles desejas mais ver morto?” Ele
ficou em silêncio. Passado algum tempo, perguntei-lhe baixinho: “Estás
acordado?”
“Acordado. Sim.” Soava mais sóbrio do que estava. “Fitz. Com Breu era
assim? Aconselhavam-se um com o outro e planeavam cada morte?”
Não fales sobre isto. Era demasiado privado, mesmo para contar ao
Bobo. Eu nunca falara do assunto com Moli. A única pessoa que alguma
vez me vira a trabalhar no meu ofício fora Abelha.
Pigarreei. “Deixemos isso por hoje. Amanhã vou pedir papel aos
guardiães e podemos começar a desenhar o forte. Tudo o que te lembrares.
Por hoje, precisamos de dormir.”
“Não vou conseguir.”
Soava desesperadamente infeliz. Eu estava a exumar tudo o que ele
enterrara. Entreguei-lhe a garrafa. Ele bebeu pelo gargalo. Recuperei-a e fiz
o mesmo. Também era improvável que eu adormecesse. Não tencionara
embebedar-me. Aquilo devia ter sido um estratagema. Um ardil, para
enganar o meu amigo. Bebi mais e respirei fundo. “Tens lá alguns aliados,
no interior das muralhas?”
“Talvez. O Prilkop estava vivo, da última vez que o vi. Mas se estiver
vivo, é provavelmente prisioneiro.” Uma pausa. “Vou tentar ordenar tudo
mentalmente e contar-te. Mas é difícil, Fitz. Há coisas que não aguento
recordar. Só me ocorrem em pesadelos…”
Silenciou-se. Arrancar-lhe informação pareceu-me tão cruel como
arrancar bocados de osso de uma ferida.
“Quando partimos de Aslevjal para regressar a Clerres…”, disse ele de
repente. “Foi ideia de Prilkop. Eu ainda estava a recuperar de tudo o que
tinha acontecido. Não me sentia competente para delinear o meu caminho.
Ele sempre tinha querido regressar a Clerres. Ansiou por isso, durante
tantos anos. As recordações que tinha daquele lugar eram tão diferentes das
minhas. Tinha vindo de uma época anterior a os Servos se tornarem
corruptos. De um tempo em que realmente serviam o Profeta Branco.
Quando lhe falei do tempo que eu lá tinha passado, de como tinha sido
tratado, ele ficou estarrecido. E mais determinado do que nunca em nós
termos de regressar para corrigir as coisas.” Mexeu-se de repente,
enrolando os braços à sua volta e vergando os ombros para a frente. Eu rolei
para ele. À ténue luz das estrelas do teto, ele parecia muito velho e pequeno.
“Deixei que me convencesse. Ele era… espero que seja… muito generoso,
Fitz. Incapaz de acreditar que os Servos agora só serviam a cupidez e o
ódio, mesmo depois de ter visto tudo o que Ilistore tinha feito.”
“Ilistore?”
“Tu conhece-la como a Mulher Pálida.”
“Não sabia que ela tinha outro nome.”
Ao ouvir aquilo, um fino sorriso curvou-lhe a boca. “Julgavas que
quando ela era bebé lhe chamavam Mulher Pálida?”
“Eu… bem, não. Nunca pensei realmente nisso. Foste tu quem lhe
chamou Mulher Pálida!”
“Pois fui. É uma velha tradição, ou talvez uma superstição. Nunca
chames ninguém pelo seu verdadeiro nome se quiseres evitar chamar a sua
atenção para ti. Talvez remonte aos tempos em que dragões e humanos
coexistiam habitualmente no mundo. Tintaglia não gostava que os humanos
conhecessem o seu verdadeiro nome.”
“Ilistore”, disse eu baixinho.
“Já se foi. Mas mesmo assim evito o seu nome.”
“Já se foi mesmo.” Pensei nela como a vira pela última vez, com os
braços a terminar em pontas de osso enegrecidas, o cabelo escorrido em
volta da cara, desaparecida toda a pretensão de beleza. Não queria pensar
naquilo. Senti-me grato quando ele recomeçou a falar, em palavras que
traziam bordas suavizadas.
“Logo quando regressei a Clerres com Prilkop, os Servos ficaram…
espantados. Já te tinha dito como estava fraco. Se estivesse em mim, teria
tido muito mais cautela. Mas Prilkop só esperava paz e conforto e um
acolhimento maravilhoso. Atravessámos juntos a passagem e todos os que
viam a sua reluzente pele negra compreendiam o que ele devia ser: um
profeta que cumprira o trabalho da sua vida. Entrámos e ele recusou-se a
esperar. Dirigimo-nos diretamente para a sala de audiências dos Quatro.”
Observei a cara dele à luz fraca. Um sorriso tentou formar-se e
desvaneceu-se. “Eles ficaram sem fala. Assustados, talvez. Prilkop
anunciou claramente que a sua falsa profetisa tinha falhado e que nós
tínhamos libertado Fogogelo no mundo. Estava destemido.” Virou-se para
mim. “Uma mulher gritou e fugiu da sala. Não posso ter a certeza, mas acho
que foi Dwalia. Foi assim que ficou a saber que as mãos da Mulher Pálida
tinham sido devoradas, e como ela tinha morrido no frio, à fome e gelada.
Ilistore sempre me tinha desprezado e nesse dia eu assegurei também o ódio
de Dwalia.
“Mas os Quatro ofereceram-nos quase imediatamente um verdadeiro
festival de boas-vindas. Elaborados jantares, connosco a acompanhá-los na
mesa elevada. Foram organizados divertimentos e foram-nos oferecidos
intoxicantes e cortesãs, tudo o que eles imaginaram que pudéssemos
desejar. Fomos saudados como heróis de regresso e não como os dois que
tinham destruído o futuro que eles procuravam alcançar.”
Outro silêncio. Depois respirou fundo. “Foram espertos. Pediram um
relato completo de tudo o que eu tinha alcançado, como se poderia esperar
que pedissem. Puseram escribas à minha disposição, ofereceram-me papel
da melhor qualidade, lindas tintas e pincéis, para que eu pudesse registar
todas as experiências que tivera no grande mundo cá fora. Prilkop foi
celebrado como o mais ancião de todos os Brancos.”
Parou de falar e eu julguei que tivesse adormecido. Eu não bebera nem
de perto tanto brande como ele. O meu estratagema resultara demasiado
bem. Tirei-lhe a chávena da mão descontraída e pousei-a suavemente no
chão.
“Deram-nos aposentos sumptuosos”, prosseguiu ele por fim.
“Curandeiros cuidaram de mim. Recuperei as forças. Eles mostraram-se tão
humildes, tão arrependidos de terem duvidado de mim. Tão dispostos a
aprender. Fizeram-me tantas perguntas… um dia apercebi-me de que,
apesar de todas as perguntas e adulações, eu tinha conseguido… minimizar-
te. Contar a minha história como se fosses várias pessoas em vez de uma.
Um moço de estrebaria, um príncipe bastardo, um assassino. Manter-te
escondido deles, exceto como um Catalisador sem nome que me servia.
Permiti-me admitir que não confiava neles. Que nunca tinha esquecido nem
perdoado a forma como eles me tinham maltratado e reprimido.
“Também o Prilkop nutria desconfianças. Ele tinha observado a Mulher
Pálida durante anos enquanto ela ia controlando Aslevjal. Viu como ela
tinha cortejado o seu Catalisador, Quebal Pancru, com presentes — um
gorjal de prata, brincos de ouro incrustados de rubis —, presentes que
queriam dizer que ela tinha uma riqueza substancial ao seu dispor. A
riqueza de Clerres tinha-lhe sido disponibilizada para ela poder colocar o
mundo naquilo a que chamavam o verdadeiro Caminho. Ela não era
nenhuma profetisa rebelde, mas emissária deles, enviada para cumprir a sua
vontade. Ela devia destruir Fogogelo e pôr fim à última esperança de
devolver os dragões ao mundo. Por que motivo, perguntou-me ele,
haveriam eles de dar as boas-vindas aos dois que lhes tinham estragado os
planos?
“De modo que conspirámos. Concordámos que não lhes devíamos
fornecer nenhuma pista que levasse a ti. Prilkop teorizava que eles andavam
à procura daquilo a que chamou confluências — lugares e pessoas que nos
tinham ajudado a virar o mundo para um futuro melhor. Especulava que
podiam usar os mesmos lugares e pessoas para empurrar o mundo de volta
ao ‘verdadeiro Caminho’ que desejavam. Prilkop achou que tu eras uma
confluência muito poderosa, uma confluência que devia ser protegida.
Nessa altura, os Quatro ainda continuavam a tratar-nos como convidados de
honra. Tínhamos o melhor de tudo e liberdade para percorrer o castelo e a
cidade. Foi nessa altura que fizemos sair os nossos primeiros dois
mensageiros. Eles deviam procurar-te e avisar-te.”
Pus a funcionar o meu cérebro enevoado. “Não. A mensageira disse que
tu querias que eu encontrasse o Filho Inesperado.”
“Isso foi mais tarde”, disse ele baixinho. “Muito mais tarde.”
“Tu sempre disseste que o Filho Inesperado era eu.”
“Era o que pensava na altura. E o Prilkop também. Deves lembrar-te da
insistência com que ele nos aconselhou a separarmo-nos, para não
continuarmos a operar acidentalmente mudanças imprevisíveis no mundo,
mudanças que não podíamos prever nem controlar.” Soltou uma
gargalhadinha embaraçada. “E foi o que fizemos.”
“Bobo, eu estou-me nas tintas para a visão de um futuro melhor para este
mundo, seja de quem for. Os Servos destruíram a minha filha.” Estava a
falar para as trevas. “Só me interessa que eles não tenham futuro
rigorosamente nenhum.” Mudei de posição na cama. “Quando foi que
deixaste de acreditar que eu era o Filho Inesperado? E se essas profecias
não me dizem respeito a mim, o que se passa com tudo o que fizemos
juntos? Se fomos guiados pelos teus sonhos, e no entanto eu não era quem
os teus sonhos previam…”
“Eu debati-me com isso.” Soltou um suspiro tão profundo que eu senti o
sopro na cara. “Os sonhos proféticos são coisas enigmáticas, Fitz. Quebra-
cabeças para serem solucionados. Tu acusaste-me com bastante frequência
de os interpretar depois dos factos, vergando-os para se ajustarem ao que
realmente aconteceu. Mas as profecias sobre o Filho Inesperado? Há
muitas. Eu nunca te contei todas. Em algumas, tu usavas as hastes de um
cervo. Em outras, uivavas como um lobo. Os sonhos diziam que virias do
Norte, de uma mãe pálida e um pai escuro. Todas essas profecias encaixam.
Citei todos esses sonhos para provar que o príncipe bastardo que tinha
ajudado era o Filho Inesperado.”
“Tu ajudaste-me? Eu julgava que era o teu Catalisador.”
“E eras. Não interrompas. Isto já é difícil que chegue sem interrupções.”
Voltou a parar para erguer a garrafa. Quando a baixou, apanhei-a antes que
caísse. “Eu sei que és o Filho Inesperado. Sabia-o nos ossos, nessa altura, e
sei-o agora. Mas eles insistiam que não eras. Magoaram-me tanto que eu
deixei de conseguir acreditar no que sabia… Eles retorceram-me os
pensamentos, Fitz, tanto quanto me torceram os ossos. Diziam que alguns
dos seus Brancos criados em Clerres ainda andavam a ter sonhos sobre o
Filho Inesperado. Sonhavam-no como uma figura de sombria vingança.
Diziam que se eu tivesse cumprido essas profecias, os sonhos não
continuariam. Mas continuavam.”
“Talvez ainda se refiram a mim.” Rolhei a garrafa e baixei-a
cuidadosamente para o chão. Pousei o meu copo ao lado da garrafa. Virei-
me para ele.
Pretendera fazer uma piada com o comentário. A sua súbita inspiração
informou-me de que para ele nada tinha de divertido. “Mas…”, objetou e
depois deixou de falar. Baixou subitamente a cabeça para a frente, quase
dando com ela no meu peito. Sussurrou como se temesse dizer as palavras
em voz alta. “Então eles saberiam. Saberiam com certeza. Oh, Fitz. Eles
vieram à tua procura. Levaram Abelha, mas tinham encontrado o Filho
Inesperado, como diziam que os sonhos previam que encontrariam.” A voz
embargou-se-lhe nestas últimas palavras.
Pousei-lhe a mão no ombro. Ele estava a tremer. Falei em voz baixa.
“Então encontraram-me. E vamos fazê-los lamentar muito que o tenham
feito. Não me disseste tu que me tinhas sonhado como Destruidor? Esta é a
minha previsão: eu vou destruir as pessoas que destruíram a minha filha.”
“Onde está a garrafa?” Soava absolutamente desencorajado e eu decidi
ter clemência.
“Já a bebemos. Já conversámos o suficiente. Vai dormir.”
“Não consigo. Tenho medo de sonhar.”
Eu estava bêbado. As palavras tombaram-me da boca. “Então sonha
comigo, a matar os Quatro.” Gargalhei estupidamente. “Como teria adorado
matar a Dwalia.” Respirei fundo. “Agora compreendo porque foi que
ficaste zangado comigo por virar as costas à Mulher Pálida. Eu sabia que
ela morreria. Mas compreendo porque querias que a matasse.”
“Tinhas-me ao colo. Eu estava morto.”
“Sim.”
Ficámos ambos em silêncio durante algum tempo, a pensar naquilo. Há
muito tempo que eu não estava tão bêbado. Comecei a deixar a consciência
apagar-se.
“Fitz. Quando os meus pais me deixaram em Clerres, eu ainda era uma
criança. Precisamente na altura em que precisava de alguém para cuidar de
mim, para me proteger, não tinha ninguém.” A voz, sempre tão
cuidadosamente controlada, estava a espessar com lágrimas. “A minha
viagem para Torre do Cervo, logo depois de fugir de Clerres para te
descobrir. Foi horrível. As coisas que tive de fazer, as coisas que me foram
feitas — tudo para conseguir chegar a Cervo. E encontrar-te.” Fez uma
inspiração soluçada. “Depois, o Rei Sagaz. Cheguei lá só com a esperança
de o manipular para obter aquilo de que precisava. Tu, vivo. Eu tinha-me
transformado naquilo que os Servos me ensinaram a ser, implacável e
egoísta. Determinado apenas a manobrar pessoas e acontecimentos segundo
a minha vontade. Cheguei à corte dele, esfarrapado e meio morto de fome, e
dei-lhe uma carta com a maior parte da tinta desbotada, a dizer que eu lhe
tinha sido enviado como presente.”
Fungou e depois passou o braço pelos olhos. Os meus olhos encheram-se
de lágrimas por ele. “Fiz acrobacias e cabriolas e andei por ali a fazer o
pino. Esperei que ele troçasse de mim. Estava preparado para ser usado de
qualquer forma que ele desejasse, desde que conseguisse que ele me
concedesse a tua vida.” Soluçou alto. “Ele… ele ordenou-me para parar.
Majestoso estava ao lado do seu trono, cheio de horror por se permitir que
uma criatura como eu entrasse na sala do trono. Mas Sagaz? Ele disse a um
guarda: ‘Leva esta criança até às cozinhas e alimenta-a. Diz à costureira
para encontrar alguma roupa que lhe sirva. E sapatos. Põe-lhe sapatos nos
pés.’
“E tudo o que ele ordenou foi-me feito. Isso deixou-me tão desconfiado!
Oh, eu não confiei nele. Capra tinha-me ensinado a temer a bondade inicial.
Levei o tempo todo à espera do golpe, da exigência. Quando ele me disse
que podia dormir à lareira do seu quarto, eu tive a certeza de que ia… Mas
ele não queria dizer nada mais do que disse. Enquanto a Rainha Desejo
estivesse por fora, eu seria o seu companheiro à noite, para o divertir com
truques, histórias e canções, e depois dormir à sua lareira e levantar-me de
manhã quando ele se levantasse. Fitz, ele não tinha motivo nenhum para ser
tão bom para mim. Absolutamente nenhum.”
Estava agora a chorar ruidosamente, com as muralhas completamente
quebradas. “Ele protegeu-me, Fitz. Precisou de meses para ganhar a minha
confiança. Mas passado algum tempo, sempre que a Rainha Desejo ia de
viagem e eu dormia na lareira, sentia-me seguro. Era seguro dormir.” Voltou
a esfregar os olhos. “Sinto a falta disso. Sinto tanto a falta disso.”
Fiz, julgo eu, o que qualquer um teria feito por um amigo, especialmente
tão bêbado como ambos estávamos. Também me lembrei de Castro e de
como a força dele me abrigara em pequeno. Pus o braço em volta do Bobo e
puxei-o para mim. Por um instante senti aquela ligação insuportável.
Levantei a mão e mudei de posição por forma a que a cara dele repousasse
na minha camisa.
“Eu senti isso”, disse ele com um ar fatigado.
“Também eu.”
“Devias ter mais cuidado.”
“Pois devia.” Fortaleci as minhas muralhas contra ele. Desejei não
precisar de o fazer. “Dorme”, disse-lhe. Fiz uma promessa que duvidava
que conseguisse cumprir. “Eu protejo-te.”
Ele soltou uma última fungadela, limpou os olhos com o pulso e soltou
um profundo suspiro. Procurou às apalpadelas com a mão enluvada e
agarrou a minha, pulso com pulso, o cumprimento dos guerreiros. Passado
algum tempo, senti o seu corpo descontrair-se contra o meu. A sua mão no
meu pulso perdeu a força. Eu mantive a minha firme.
Protegê-lo. Conseguiria eu ainda proteger-me a mim próprio? Que direito
tinha de lhe fazer uma promessa tão vã? Eu não protegera Abelha, pois
não? Respirei fundo e pensei nela. Não da forma superficial e nostálgica
como recordamos uma época agradável, passada há muito. Pensei na sua
mãozinha agarrada aos meus dedos. Recordei como era grossa a camada de
manteiga que ela punha no pão e como segurava a chávena de chá com
ambas as mãos. Deixei a dor quebrar-se de fresco contra mim, sal em cortes
recentes. Recordei o seu peso nos meus ombros e como ela se agarrava à
minha cabeça para se equilibrar. Abelha. Tão pequena. Minha durante tão
pouco tempo. E agora desaparecida. Simplesmente desaparecida, para
dentro da corrente de Talento e perdida para sempre. Abelha.
O Bobo soltou um pequeno ruído de dor. Por um instante, a sua mão
apertou-me o pulso e depois voltou a descontrair-se.
E durante algum tempo, enquanto fitava o falso céu noturno, mantive
uma vigília ébria sobre ele.
Capítulo 7

Pedinte

Um sonho tão breve mas colorido com cores tão brilhantes que não
o consigo esquecer. Será significativo? O meu pai está a falar com
uma pessoa com duas cabeças. Estão tão absorvidos na conversa
que não falam comigo, por mais ruidosamente que eu os interrompa.
No sonho digo: “Encontrem-na. Encontrem-na. Não é demasiado
tarde!” No sonho sou um lobo feito de nevoeiro. Uivo e uivo, mas
eles não se viram para mim.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

N
unca tinha estado tão sozinha. Com tanta fome. Nem o Pai-Lobo
sabia o que eu devia fazer. Encontremos uma floresta. Aí posso
ensinar-te a ser um lobo, como o teu pai me ensinou a mim.
As ruínas eram uma grande confusão de pedra enegrecida e derretida. As
arestas retas de alguns dos blocos estavam arredondadas e afundadas, como
gelo derretido pelo sol. Eu tive de trepar para passar por paredes colapsadas
e temi cair nas fendas entre as pedras derrubadas. Encontrei um lugar onde
dois imensos blocos se apoiavam um no outro, formando uma espécie de
tenda, e gatinhei para dentro do nicho sombrio que havia por baixo.
Aninhada na sombra dos blocos, tentei organizar os pensamentos e reunir
forças. Precisava de ficar escondida de Dwalia e dos outros. Não tinha
comida nem água. Tinha a roupa que trazia no corpo e uma vela no interior
do justilho. Perdera o xaile bolorento na surra mais recente, e também o
chapéu de lã. Como conseguiria voltar para Cervo, ou até chegar à fronteira
dos Seis Ducados? Passei em revista o que sabia sobre a geografia de
Calcede. Conseguiria caminhar até casa? O terreno de Calcede era duro. Era
um país onde o calor subia da terra. Pareceu-me recordar que havia um
deserto… e uma cadeia de montanhas pouco elevadas. Abanei a cabeça. Era
inútil. A minha mente não conseguia funcionar enquanto a barriga clamava
por comida e a boca me dizia quão seca estava.
Mantive-me escondida durante toda essa tarde. Escutei atentamente mas
não ouvi nada de Dwalia, nem dos outros. Era possível que ela tivesse
conseguido sair da sepultura de pedra e era possível que Vindeliar tivesse
voltado a vergar a vontade do calcedino aos fins deles. O que fariam?
Talvez ir para a cidade ou até à casa de Kerf. Procurar-me-iam? Tantas
perguntas e nenhuma resposta.
Quando a noite se aproximou, abri caminho por uma secção da cidade
destruída por dragões. Casas outrora finas escancaravam-se ao céu, sem
tetos, com buracos vazios em lugar de janelas e portas. As ruas tinham sido
em grande medida limpas de escombros. Caçadores de tesouros e
recuperadores de material útil tinham estado em ação nas ruínas. Faltavam
blocos de pedra em paredes; ervas daninhas e arbustos enfezados cresciam
nas fendas. Atrás de um buraco no muro caído de um jardim, encontrei água
acumulada na bacia musguenta de uma fonte arruinada. Pus as mãos em
taça e bebi, após o que lavei a cara. Os pulsos esfolados arderam-me
quando lavei as mãos. Procurei um abrigo para passar a noite entre arbustos
desordenados. O cheiro a menta esmagada chegou-me ao nariz enquanto
caminhava entre ervas. Comi um pouco, simplesmente para ter qualquer
coisa na barriga. As pontas dos dedos reconheceram a forma de guarda-
chuva das folhas de nastúrcio. Arranquei-as às mancheias e enfiei-as na
boca. Atrás de uma cortina de trepadeiras numa treliça inclinada, encontrei
uma habitação abandonada.
Trepei por uma janela baixa e ergui o olhar para uma visão destelhada do
céu. Aquela seria uma noite limpa e fria. Encontrei um canto relativamente
livre de entulho e parcialmente abrigado pelo telhado ruído, enfiei-me na
escuridão e enrolei-me aí como um cão vadio. Fechei os olhos. O sono
chegou e partiu, com sonhos intermitentes. Comi tostas e bebi chá em
Floresta Mirrada. O meu pai levou-me aos ombros. Acordei a chorar.
Enrolei-me melhor no escuro e tentei imaginar um plano que me levasse
para casa. O chão era duro por baixo de mim. Ainda me doía o ombro.
Doía-me a barriga, não só da fome mas dos pontapés que apanhara. Toquei
a orelha. Sangue incrustava-se no cabelo à sua volta. Provavelmente tinha
um aspeto terrível, tão horroroso como o do pedinte que tentara ajudar em
Margem de Carvalhos. Então amanhã seria uma pedinte. Qualquer coisa
para arranjar comida. Encostei-me à parede e fiz-me mais pequena. Passei,
a dormir aos arrancos, uma noite que nem era assim tão fria, a menos que se
estivesse a dormir ao relento, sem nada em cima além de roupa esfarrapada.
Quando o sol nasceu, descobri um céu azul cheio de nuvens brancas
sopradas pelo vento. Estava perra, com fome, com sede e sozinha. Livre.
Um cheiro estranho pairava no ar, a tingir os odores citadinos a fogos para
cozinhar, esgotos a céu aberto e dejetos de cavalo. Maré baixa, sussurrou-
me o Pai-Lobo. O cheiro do mar quando as ondas recuam.
Trepei o que restava da parede de pedra da casa a fim de examinar as
redondezas.
Estava numa colina pouco elevada na depressão de um grande vale.
Captei vislumbres de um rio para além da cidade, lá em baixo. Atrás de
mim, casas, edifícios e estradas cobriam a terra como a crosta de uma
chaga. Fumo elevava-se de um sem-número de chaminés. Mais perto da
cidade, fiozinhos de água acastanhada rodeavam os muitos navios
ancorados. Um porto. Eu conhecia a palavra mas finalmente via tudo o que
significava. Era água abrigada, como se um dedo e um polegar de terra se
estendessem para a rodear. Mais adiante havia mais água, até ao limite do
céu. Ouvira tão frequentemente falar do profundo mar azul que era difícil
compreender que aquelas águas de muitos tons de verdes e azuis, prateados,
cinzentos e negros, eram aquilo sobre o que os menestréis cantavam. Os
menestréis também tinham cantado sobre a atração do mar, mas eu não senti
nada disso. O mar parecia vasto, vazio e perigoso. Virei-lhe as costas. À
distância longínqua, depois da cidade, havia ondulações pouco elevadas de
colinas amareladas. “Eles não têm nenhuma floresta”, sussurrei.
Ah. Isso explica muito sobre os calcedinos, replicou o Pai-Lobo. Através
dos meus olhos, ele examinou uma terra marcada por edifícios e ruas
empedradas. Isto é uma selva de um tipo diferente e perigoso. Temo que
pouco te seja útil aqui. Vai com cuidado, cria. Vai com muito cuidado.
Calcede acordava. Abaixo de mim havia extensões danificadas da cidade,
mas os dragões tinham concentrado a sua fúria na zona que rodeava o
palácio arruinado. O palácio do duque, segundo dissera Kerf. A memória
despertou. Eu ouvira falar desta destruição numa conversa entre o meu pai e
a minha mãe. Os dragões de Kelsingra tinham vindo até Calcede e atacado
a cidade. O velho duque fora destruído e a filha apresentara-se para se
tornar Duquesa de Calcede. Ninguém se conseguia lembrar de uma altura
em que uma mulher tivesse reinado sobre Calcede. O meu pai dissera:
“Duvido que haja paz com Calcede, mas pelo menos eles vão estar tão
ocupados a travar guerras civis que não nos poderão incomodar muito.”
Mas não via nenhuma guerra civil. Pessoas vestidas com cores garridas
deslocavam-se pelas pacíficas avenidas. Entre elas moviam-se carroças
puxadas por burros ou cabras estranhamente grandes. Vi peixe prateado a
derramar-se de um barco puxado para a costa e vi um navio a ser rebocado
para águas profundas, onde as suas velas se abriram como as súbitas asas de
uma ave antes de se afastar silenciosamente. Vi dois mercados, um próximo
das docas e outro ao longo de uma larga avenida. Este último tinha toldos
de cores vivas por cima das barracas, ao passo que o que ficava perto das
docas parecia menos colorido e mais pobre. Os cheiros a pão acabado de
fazer e a carne fumada chegaram-me ao nariz e, apesar de ténues, fizeram-
me a boca em água.
Avaliei o meu plano de ser uma pedinte muda e pedir moedas e comida.
Mas a minha túnica esfarrapada e as meias e as botas de peles denunciar-
me-iam como estrangeira naquela terra de vestuário garrido e leve.
Não tinha alternativa. Podia ficar escondida nas ruínas e morrer à fome,
ou podia arriscar-me nas ruas.
Arranjei-me. Ia ser pedinte, mas não uma pedinte repugnante. Tive a
esperança de que o cabelo claro e os olhos azuis me fizessem parecer
calcedina e de ser capaz de mimar a ausência de voz. Toquei a cara,
estremecendo enquanto explorava nódoas negras e cortes mal curados. Era
possível que a piedade auxiliasse a minha causa. Mas não podia depender
apenas da pena.
Descalcei as botas de peles. O dia de primavera já estava demasiado
quente para elas. Sacudi-as e alisei-as o melhor que pude. Arranquei os
farrapos das minhas meias e fitei os pés pálidos e engelhados. Não me
lembrava da última vez que andara descalça. Teria de me habituar. Abracei-
me às botas e pus-me a caminhar na direção do mercado.
Onde pessoas vendem coisas, há pessoas a comprar coisas. Quando
cheguei ao mercado, os meus pés estavam magoados pelas pedras e sujos,
mas a fome sobrepunha-se a essas dores. Doía passar pelas barracas que
vendiam fruta temporã e pães e carnes cozidos. Ignorei os olhares estranhos
que as pessoas me deitavam e tentei parecer calma e descontraída, e não
uma forasteira naquela cidade.
Encontrei as barracas que vendiam tecidos e roupas e depois as carroças
que vendiam roupa usada e trapos. Ofereci mudamente as botas em várias
carroças antes de alguém mostrar algum interesse por elas. A mulher que
mas tirou virou-as para um lado e para o outro. Franziu-lhes o sobrolho,
carregou o cenho, voltou a fitá-las e depois estendeu-me seis moedas de
cobre. Eu não tinha forma de regatear. Boa ou má, aquela era a única oferta
que eu obteria, portanto aceitei as moedas, fiz-lhe uma vénia e afastei-me
da sua barraca. Tentei desaparecer entre as pessoas que passavam mas senti
os olhos dela a seguir-me.
Ofereci silenciosamente duas moedas na barraca de um padeiro. O
vendedor fez-me uma pergunta e eu indiquei com um gesto a boca fechada.
O jovem olhou para as moedas, olhou para mim, apertou os lábios e virou-
se para um cesto tapado. Ofereceu-me um rolo duro de pão, provavelmente
com vários dias. Aceitei-o, com as mãos a tremer de avidez, e baixei a
cabeça num agradecimento. Uma expressão estranha atravessou-lhe a cara.
Ele pegou-me no pulso e foi com grande dificuldade que não guinchei. Mas
ele depois escolheu, de entre os artigos frescos expostos na tábua que tinha
à frente, a mais pequena das roscas doces e deu-ma. Acho que a minha
expressão de absoluta gratidão o embaraçou, pois enxotou-me como se eu
fosse um gatinho perdido. Enfiei a comida no interior da túnica, onde já
levava a vela maltratada, e fugi em busca de um lugar seguro onde pudesse
comer.
No fim do mercado vi uma nascente pública. Nunca vira coisa
semelhante. Água quente borbulhava para dentro de uma lagoa delimitada
por pedras. O excesso era drenado por uma caleira. Vi mulheres a encher
baldes e depois vi uma criança baixar-se e beber de mãos em taça. Copiei-a,
ajoelhando-me junto da água e levando-a à boca com as mãos. A água tinha
um cheiro estranho e um sabor forte, mas era água e não era venenosa, e eu
não queria saber de mais nada. Bebi até ficar saciada, após o que levei um
pouco dela à cara e lavei as mãos. Era evidente que isso era má educação,
pois um homem fez um ruído de repugnância e franziu-me o sobrolho. Pus-
me apressadamente em pé e afastei-me em passo rápido.
Depois do mercado ficava uma rua de mercadores. Aquilo não eram
barracas de mercado mas grandiosos estabelecimentos, construídos com
pedra e madeira. As portas estavam abertas para o dia cada vez mais quente.
Enquanto eu passava por elas, senti o cheiro de carne a curar ao fumo e
depois ouvi o raspar de um carpinteiro a alisar madeira. Havia pilhas de
tábuas toscas num espaço aberto ao lado e por trás da loja do carpinteiro.
Olhei para um lado e para o outro e depois esgueirei-me para a sua sombra.
As tábuas empilhadas em camadas cruzadas ocultavam-me da rua. Sentei-
me no chão e encostei-me a uma pilha de madeira bem cheirosa. Tirei os
pães de dentro da túnica e obriguei-me a comer primeiro o mais velho. Era
coisa de fraca qualidade e dura — e incrivelmente deliciosa. Tremi
enquanto a comia. Quando desapareceu, fiquei imóvel a respirar com força
e a sentir o último bocado de pão a descer da garganta até ao estômago.
Podia ter comido mais dez pães iguaizinhos àquele.
Segurei a pequena rosca na mão e cheirei-a. Disse a mim mesma que
seria sensato guardá-la para amanhã. Depois disse a mim mesma que, ao
transportá-la, podia deixá-la cair ou bocados podiam partir-se e perder-se.
Deixei-me convencer com facilidade. Comi-a. Havia um fino fio de mel
enrolado no topo que, ao cozer, penetrara no pão, e no seu interior havia
bocados de fruta e especiarias. Comi-o em dentadinhas pequenas ao ponto
da tortura, saboreando cada formigueiro de doçura que me cobriu a língua.
A rosca desapareceu demasiado cedo. A minha fome estava saciada, mas a
sua memória atormentava-me.
Outra memória deslizou para o meu cérebro. Outro pedinte, coberto de
cicatrizes, quebrado e com frio. Provavelmente com mais fome do que a
que eu tinha agora. Eu tentara ser bondosa com ele. E o meu pai
apunhalara-o, uma e outra vez. E depois abandonara-me para o levar para
Torre do Cervo, a fim de o curar. Tentei unir esses factos com os bocados de
informação que ouvira, mas só se juntavam de formas impossíveis. Em vez
de o fazer, perguntei a mim mesma por que motivo ninguém olhava para
mim, pequena, faminta e sozinha, e me oferecia uma maçã.
A boca encheu-se-me de água ao pensar na maçã que eu dera ao pedinte.
Oh, as castanhas desse dia, quentes ao descascar e doces na minha boca. O
meu estômago deu um nó e eu dobrei-me sobre ele.
Restavam-me quatro moedas pequenas. Se o homem do pão fosse tão
gentil amanhã como fora hoje, eu poderia comer durante dois dias. Depois,
ou passaria fome, ou roubaria.
Como ia chegar a casa?
O sol estava a ficar mais quente e o dia mais luminosos. Olhei para mim.
Os pés nus estavam cobertos de terra e tinha as unhas compridas. As calças
forradas estavam sujíssimas. O meu justilho do verde de Floresta Mirrada,
que em tempos fora comprido, estava manchado e enodoado e chegava a
um fim irregular à altura das coxas. A blusa interior estava emporcalhada
nos punhos. Uma pedinte muito convincente.
Devia descer às docas e ver se algum navio teria como destino Cervo ou
na verdade qualquer outro sítio dos Seis Ducados. Perguntei a mim mesma
como poderia perguntar e o que poderia fazer para ganhar passagem num
navio. O sol estava brilhante e a minha roupa era demasiado quente para o
dia ameno. Enfiei-me melhor na sombra e enrolei-me, com as costas
coladas a uma pilha de madeira. Não pretendera adormecer, mas adormeci.
Acordei ao fim da tarde. A sombra viajara para longe de mim, mas eu
dormira até que a luz móvel do sol nos meus olhos fechados me acordara.
Endireitei-me, sentindo-me miseravelmente doente, tonta e sedenta. Pus-me
em pé, a cambalear, e comecei a andar. A minha pequena reserva de
coragem desaparecera. Não consegui levar-me a descer às docas, ou mesmo
a explorar mais a cidade. Retirei para as ruínas onde me abrigara na noite
anterior.
Numa cidade cheia de estranheza, obtive conforto do pouco que
conhecia. À luz do dia, a água na velha fonte no jardim da casa arruinada
era esverdeada, e pequenas criaturas aquáticas negras precipitavam-se de
um lado para o outro nas suas profundezas. Mas era água e eu tinha sede.
Bebi e depois desnudei o corpo para me lavar o melhor que pude. Enxaguei
a roupa e fiquei surpreendida com o difícil que essa tarefa era. Apercebi-me
uma vez mais da facilidade da vida que levara em Floresta Mirrada. Pensei
nos criados que me tinham satisfeito todas as necessidades. Eu sempre fora
educada com eles, mas ter-lhes-ia alguma vez agradecido verdadeiramente
por tudo o que faziam? Lembrei-me de Cautela e de como ela me
emprestara os punhos de renda. Estaria ainda viva? Pensaria Cautela em
mim, por vezes? Apeteceu-me chorar, mas não o fiz.
Tracei severamente os meus planos enquanto mergulhava e esfregava e
torcia a roupa. Dwalia julgara-me um rapaz. Era mais seguro apresentar-me
como rapaz. Um navio que rumasse aos Seis Ducados precisaria de um
ajudante de bordo? Eu ouvira histórias sobre ajudantes de bordo terem
aventuras grandes e maravilhosas. Alguns tornavam-se piratas nas canções
dos menestréis, ou encontravam tesouros ou tornavam-se capitães. Amanhã
levaria duas das minhas moedas e compraria mais pão e comê-lo-ia.
Gostava muito dessa parte do meu plano. Depois tinha de ir até à costa, ver
se algum navio ia para os Seis Ducados e se me dariam passagem em troca
de trabalho. Afastei a ideia de que era pequena e parecia infantil e não era
muito forte e não falava calcedino. Haveria de me arranjar, de alguma
forma.
Tinha de o fazer.
Pendurei a roupa para secar numa parede de pedra quebrada e estendi-me
nua sobre as pedras aquecidas pelo sol de um pátio deserto. A vela da
minha mãe estava maltratada, a cera cheia de cotão e partira-se naquele
sítio, mantendo-se unida apenas pelo pavio. Mas ainda cheirava como ela.
Ainda cheirava a casa e a segurança e a mãos gentis. Adormeci ali, à
sombra sarapintada de uma árvore meio derrubada. Quando acordei pela
segunda vez, a minha roupa estava praticamente seca e o sol ia-se pondo.
Tinha de novo fome e temi a noite gelada. Dormira muito mas ainda me
sentia cansada e perguntei a mim mesma se a viagem pelos pilares de pedra
teria exigido mais de mim do que julgara. Enfiei-me mais debaixo da
árvore, onde as folhas de vários outonos criavam uma almofada sobre a
pedra. Recusei-me a pensar em aranhas e em coisas que picavam. Enrolei-
me numa bola pequena e voltei a adormecer.
A certa altura da noite, perdi a coragem. Fui acordada pelo meu próprio
choro e, depois de acordada, não consegui deter os soluços. Apertei a boca
com a mão a fim de abafar o ruído e chorei. Chorei pela minha casa
perdida, pelos cavalos mortos no incêndio, por Pândego morto rodeado pelo
seu sangue no chão à minha frente. Tudo o que me acontecera, tudo o que
vira e a que não tivera tempo de reagir inundou-me de súbito a mente. O
meu pai abandonara-me por causa de um pedinte cego e Perseverança
estava provavelmente morto. Eu deixara Esquiva para trás e esperava que
tudo lhe tivesse corrido bem. Teria ela sobrevivido e alcançado Floresta
Mirrada, para lhes dizer o que nos acontecera? Viria alguém atrás de mim?
Lembrei-me de FitzVigilante, do seu sangue vermelho na neve branca.
De súbito, ir para casa pareceu impossível. Ir para casa para o quê? Quem
estaria lá? Odiar-me-iam todos porque as pessoas pálidas tinham vindo à
minha procura? E se eu fosse para casa, não saberia Dwalia e outros da laia
dela para onde eu fugiria? Viriam outra vez atrás de mim, para queimar e
matar? Encolhi-me muito sob a árvore que me abrigava, balançando para
trás e para a frente, sabendo que não havia ninguém que me pudesse
proteger.
Eu protejo-te. As palavras do Pai-Lobo foram menos que um suspiro.
Ele estava só na minha mente, era apenas uma ideia. Como poderia
proteger-me? O que era, realmente? Algo que eu imaginava a partir de
fragmentos dos escritos do meu pai?
Eu sou real e estou contigo. Confia em mim. Posso ajudar-te a
protegeres-te a ti própria.
Senti uma súbita vaga de ira. “Não me protegeste antes, quando eles me
levaram. Não me protegeste quando Dwalia me bateu e me arrastou através
do pilar. És um sonho. És uma coisa que eu imaginei porque era muito
infantil e estava muito assustada. Mas agora não me podes ajudar. Agora
ninguém me pode ajudar.”
Ninguém exceto tu.
“Cala-te!” Gritei a palavra e depois tapei a boca, horrorizada. Tinha de
me esconder, não de soltar gritos à noite contra seres imaginários. Enfiei-me
mais debaixo da árvore até encontrar um monte de pedras derrubadas da
parede e não poder recuar mais. Tornei-me pequena, fechei os olhos com
força, encerrei os pensamentos numa muralha e adormeci.
Acordei no dia seguinte com a cara ramelosa de chorar. A cabeça latejava
de dor e eu sentia-me enjoada de fome. Passou-se muito tempo até
conseguir convencer-me a rastejar de baixo da sombra da árvore. Não me
sentia bem o suficiente para descer aos mercados, portanto vagueei pela
área arruinada da cidade. Vi lagartos e cobras a apanhar sol sobre as pedras
derrubadas. Pensei em comer um mas eles escapuliam-se para baixo das
pedras quando eu me aproximava. Vi duas vezes outras pessoas que
pareciam viver nas casas despedaçadas. Captei o cheiro das suas fogueiras
para cozinhar e vi roupa esfarrapada pendurada a secar. Mantive-me longe
da vista delas.
A fome acabou por me empurrar de volta ao mercado. Não consegui
encontrar a barraca do pão onde comprara no dia anterior. Passei pelas
barracas a cambalear e a coxear, à procura dela, mas a violência da minha
fome acabou por me forçar a aproximar-me de outra. Uma mulher com cara
de poucos amigos estava a cozinhar numa chapa bolos com algum recheio
apetitoso. Uma pequena panela de metal continha o seu lume. Os bolos
chiavam numa larga frigideira por cima das chamas e ela virava-os
habilmente com uma ferramenta denteada, a fim de deixar todos os lados
castanhos.
Ofereci-lhe uma moeda e ela abanou a cabeça. Deambulei para trás de
uma barraca, onde podia extrair outra moeda de dentro da minha camisa
cheia de nós. Por duas moedas, ela pôs um pastel numa folha larga e verde,
dobrou a folha em volta dele, prendeu-o com uma lasca de madeira e
entregou-mo. Fiz uma vénia de agradecimento mas ela ignorou-me, já a
olhar por cima da minha cabeça para o potencial cliente seguinte.
Não sabia se a folha se destinava a ser comida ou era um guardanapo.
Dei uma dentada cautelosa na borda; não era desagradável. Raciocinei que
uma vendedora não enrolaria comida em alguma coisa venenosa. Encontrei
um lugar calmo por detrás de uma barraca desocupada e sentei-me para
comer. O pastel não era grande, enchendo-me apenas a mão, e queria comê-
lo devagar. O recheio desfazia-se e sabia um pouco àquilo a que ovelhas
molhadas cheiravam. Não me importei. Mas depois da segunda dentada
tomei consciência de um rapaz que me observava do espaço entre as
paredes de duas barracas. Afastei dele o olhar, dando outra dentada e,
quando voltei a olhar, um rapaz mais pequeno com uma suja camisa às
riscas tinha-se-lhe juntado. O cabelo, os pés e as pernas nuas de ambos
estavam empoeirados, e a roupa mal cuidada. Tinham os olhos de pequenos
predadores famintos. Senti um momento de tontura enquanto os observava.
Fez-me lembrar o momento em que o pedinte em Margem de Carvalhos me
pegara na mão. Vi acontecimentos a rodopiar, vi possibilidades. Não
consegui organizá-los, não consegui distinguir os bons dos maus. Só
percebi com certeza que tinha de os evitar.
Quando uma carroça puxada por um burro passou entre nós, escapuli-me
em volta do canto da barraca e enfiei na boca o resto do pastel, enchendo-a
demasiado mas libertando as mãos. Levantei-me e tentei desaparecer entre
as pessoas que passavam.
A minha roupa fazia com que eu sobressaísse de tal forma que atraí
olhares curiosos. Mantive os olhos no chão e tentei não responder à atenção
de ninguém. Olhei várias vezes para trás mas não vi os rapazes, e no
entanto estava convencida de que eles me seguiam. Se roubassem as duas
moedas que me restavam, eu ficaria sem nada. Combati o pânico que essa
ideia me trouxe. Não penses como presa. Um aviso do Pai-Lobo, ou apenas
um pensamento meu? Abrandei o passo, encontrei um lugar onde me
acocorar ao lado de uma carroça do lixo, e observei o ir e vir das pessoas.
Havia outros como eu no mercado e esses jovens pedintes eram mais
habilidosos naquele ofício. Três jovens, duas raparigas e um rapaz,
mantinham-se junto à barraca de um vendedor de fruta, apesar dos esforços
deste para os enxotar. De súbito, todos os três correram para a barraca,
agarrando cada um numa peça, e depois dispersaram enquanto o vendedor
gritava, praguejava e mandava o filho perseguir um deles.
Também vi alguma espécie de guardas urbanos. As capas cor de laranja
eram cortadas curtas, pelos joelhos, e usavam calças de tela, túnicas de
couro leve e botas de cano baixo. Levavam nas mãos bastões curtos e
nodosos e à cinta usavam espadas embainhadas, enquanto iam passando em
grupos de quatro. Mercadores ofereciam-lhes ao passar espetadas de carne,
papos-secos e bocados de peixe em pão ázimo. Perguntei a mim mesma se
seria a gratidão ou o medo a gerar tal generosidade, e esgueirei-me para
fora da vista deles assim que pude.
Acabei por chegar às docas. Era um lugar ruidoso e atarefado. Homens
empurravam carrinhos de mão, equipas de cavalos puxavam carroças
carregadas, algumas das quais se dirigiam para os navios enquanto as outras
vinham de lá. Os cheiros eram avassaladores; piche e algas pútridas
predominavam. Deixei-me ficar para trás, a observar e a perguntar a mim
mesma como perceber para onde se dirigia um navio. Não tinha nenhum
desejo de ser levada para mais longe ainda dos Seis Ducados. Observei
espantada um aparelho cujo nome desconhecia a erguer uma rede que
continha vários grandes caixotes de madeira e a levá-los da doca para o
convés de um navio. Vi um jovem apanhar três fortes pancadas com um pau
nas costas nuas enquanto guiava uma dessas cargas oscilantes até um
convés. Não consegui perceber o que teria ele feito de errado ou por que
motivo apanhara e encolhi-me, imaginando aqueles golpes a cair sobre
mim.
Não vi ninguém tão pequeno como eu a trabalhar nas docas, apesar de
supor que vários dos rapazes que vi fossem da minha idade. Trabalhavam
sem camisa, precipitando-se descalços pelos pontões cheios de lascas, em
missões aparentemente urgentes que exigiam que corressem. Um rapaz
tinha um vergão a sangrar nas costas. Um carroceiro gritou-me para lhe sair
da frente e outro homem, cujos ombros seguiam carregados com dois
pesados rolos de corda, não esteve com meias-medidas, empurrando-me
para o lado.
Desencorajada, fugi pelo mercado e depois subi a colina na direção das
ruínas.
Ao sair do mercado, um jovem com uma linda túnica decorada com
rosetas amarelas chamou-me com um sorriso. Disse-me por gestos para me
aproximar e, quando parei a uma distância segura, perguntando a mim
mesma o que quereria ele de mim, pôs-se de cócoras para ficar da minha
altura. Inclinou a cabeça e disse qualquer coisa numa voz suave, palavras
persuasivas que não compreendi. Parecia bondoso. O cabelo era mais
amarelo do que o meu e estava cortado de forma a mal lhe chegar ao
maxilar. Os brincos eram de jade verde. Um homem de boas famílias e
riqueza, supus. “Não compreendo”, respondi hesitantemente em comum.
Os seus olhos azuis semicerraram-se em surpresa e depois o sorriso
dilatou-se. Com um forte sotaque, disse: “Nova túnica bonita. Anda. Dar
comida.” Aproximou-se um passo de mim e eu captei o cheiro do seu
cabelo perfumado. Estendeu a mão, com a palma virada para cima, e
esperou que eu lhe pegasse.
Foge! Foge já!
A urgência do Pai-Lobo não permitiu qualquer hesitação. Deitei um
último olhar ao homem sorridente, sacudi a cabeça e fugi. Ouvi-o chamar-
me e perguntei a mim mesma porque corria, mas continuei a correr. Ele
chamou-me outra vez mas não olhei para trás. Não vás diretamente para o
teu covil. Esconde-te e olha para trás, aconselhou-me o Pai-Lobo, e eu
obedeci, mas não vi ninguém. Mais tarde nessa noite, enrolada sob a árvore
que me abrigava, perguntei a mim mesma porque fugira.
Olhos de predador, disse-me o Pai-Lobo.
O que hei de fazer amanhã?, perguntei-lhe.
A sua resposta tristonha foi: Não sei.
Nessa noite sonhei com a minha casa, com pão torrado e chá quente na
cozinha. No meu sonho, eu era demasiado pequena para chegar ao topo da
mesa e não conseguia endireitar o banco derrubado. Chamei por Cautela
para me ajudar mas, quando me virei para a procurar, ela jazia no chão com
sangue a toda a volta. Fugi da cozinha aos gritos mas as pessoas estavam
mortas no chão por todo o lado. Abri portas para me tentar esconder mas,
atrás de cada porta, estavam dois rapazes pedintes e por detrás deles erguia-
se Dwalia, a rir. Acordei aos soluços a meio da noite. Para meu terror, ouvi
vozes, uma das quais gritava uma interrogação. Abafei os soluços e tentei
respirar em silêncio. Vi uma luz ténue e uma lanterna passou pela rua no
exterior do meu jardim destruído. Duas pessoas falavam uma com a outra
em calcedino. Mantive-me escondida e acordada até de manhã.
Já passara metade da manhã quando arranjei coragem para regressar ao
mercado. Encontrei a barraca do pão que visitara no primeiro dia, mas o
jovem fora substituído por uma mulher e, quando lhe mostrei as duas
moedas, ela mandou-me afastar com repugnância. Ergui-as outra vez,
pensando que ela só tivesse visto uma, mas ela silvou-me uma reprimenda e
bateu as palmas de forma ameaçadora. Retirei, decidida a encontrar comida
noutro sítio, mas nesse instante fui derrubada por um dos dois rapazes que
vira no dia anterior. Num instante, o outro rapaz pegou-me nas moedas e
ambos se precipitaram para o meio da multidão. Sentei-me na poeira, sem
fôlego. Depois, para minha vergonha, soluços sacudiram-me e fiquei
sentada na terra, tapando os olhos e a chorar.
Ninguém se importou. O fluxo do mercado passava à minha volta como
se eu fosse uma pedra na corrente. Durante algum tempo, depois de os
soluços me abandonarem, fiquei sentada, desamparada. Estava tão
absolutamente esfomeada. Doía-me o ombro, o sol implacável brilhava
sobre a minha cabeça, que doía, e não me restava qualquer plano. Como
poderia imaginar chegar a casa quando nem conseguia imaginar como
ultrapassar aquele dia?
Um homem que guiava através do mercado uma carroça puxada por um
burro deu-me com o chicote. Foi um aviso, não uma agressão, e eu depressa
me escapei para fora do seu caminho. Vi-o passar, espalhei pela manga a
poeira e as lágrimas que tinha na cara e observei o mercado em volta. A
fome que agora me assaltava parecia produto de vários dias, não de um só.
Enquanto tivera a perspetiva de comer qualquer coisa todos os dias, por
pouca que fosse, fora capaz de a dominar. Mas agora ela comandava-me.
Endireitei os ombros, voltei uma vez mais a limpar os olhos e depois
afastei-me deliberadamente da barraca do pão.
Desloquei-me lentamente pelo mercado, estudando todas as barracas e os
vendedores. O meu dilema moral durou o tempo que levei a engolir a saliva
que os cheiros dos alimentos geravam. No dia anterior, vira como se fazia.
Não tinha ninguém para me criar uma diversão e, se alguém decidisse
perseguir-me, eu seria o único coelho a ser caçado. A fome pareceu
acelerar-me os pensamentos. Teria de escolher uma barraca, um alvo e uma
rota de fuga. Depois teria de aguardar e esperar que algo distraísse o
mercador. Eu era pequena e rápida. Podia fazer aquilo. Tinha de fazer
aquilo. Uma fome como a que sentia não era possível de aguentar.
Percorri o mercado, concentrada no roubo. Nada de pequeno. Não queria
correr aquele risco por um bocado de fruta. Precisava de carne ou de um
pão, ou de um filete de peixe fumado. Tentei procurar sem parecer procurar,
mas um rapazinho ergueu ameaçadoramente uma chibata contra mim
quando fitei de forma demasiado demorada as fatias de peixe vermelho
salgado da mãe.
Por fim encontrei o que procurava: a barraca de um padeiro, maior e mais
grandiosa do que qualquer outra que tivesse visto. Ricos pães castanhos e
de um amarelo-dourado estavam empilhados em cestos no chão à frente da
barraca. Na tábua diante do vendedor estavam os artigos mais caros,
torcidas de pão com especiarias e mel, ricos bolos salpicados de frutos
secos. Contentar-me-ia com um dos pães dourados. A barraca ao lado da
dele vendia lenços que se enfunavam na brisa que vinha do mar. Várias
mulheres aglomeravam-se aí, a regatear de forma concentrada e intensa. Do
outro lado da movimentada rua de mercado, um latoeiro vendia facas. O
sócio afiava todos os tipos de lâminas numa pedra de amolar rotativa
movida por um aprendiz suado. A amoladura criava um ruído estridente e
por vezes cuspia centelhas. Encontrei um remanso na corrente de clientes e
simulei um grande fascínio pela pedra de amolar. Deixei a boca entreabrir-
se um tudo-nada, como se não fosse inteiramente boa do juízo. Tinha a
certeza de que, com uma expressão daquelas e a roupa esfarrapada, as
pessoas pouca atenção me prestariam. Mas fiquei todo o tempo à espera de
algo no mercado que pudesse fazer o vendedor de pão afastar o olhar da sua
mercadoria e dar-me uma oportunidade para roubar o meu alvo.
Como que em resposta aos meus pensamentos, ouvi trombetas distantes.
Todos olharam nessa direção e depois voltaram às suas ocupações. O sopro
seguinte de trombetas soou mais próximo. As pessoas voltaram a virar-se,
acotovelando-se umas às outras, e por fim vimos quatro cavalos brancos,
adornados com belos arneses pretos e cor de laranja. Os guardas que
montavam os cavalos estavam ataviados com igual riqueza, com elmos tão
emplumados como as cabeçadas dos cavalos. Cavalgavam na nossa direção
e os aglomerados de compradores encostaram-se às barracas para lhes sair
do caminho. Quando os cavaleiros voltaram a levar as trombetas às bocas,
vi a minha oportunidade. Todos estavam a observá-los quando corri para a
barraca, agarrei num pão dourado redondo e depois me precipitei na direção
de onde os cavaleiros tinham vindo.
Estava tão concentrada no roubo que não me apercebi de que a rua do
mercado tinha permanecido vazia atrás dos cavaleiros e as pessoas de
ambos os lados da rua haviam caído de joelhos. Fugi para a rua vazia,
derrapando, enquanto o mercador de pão gritava. Quando tentei precipitar-
me de volta para o meio da multidão ajoelhada a fim de nela me perder, as
pessoas agarraram-me entre gritos. Outro conjunto de guardas aproximava-
se a pé, marchando numa fileira de seis, com mais duas fileiras atrás, e mais
atrás ainda vinha uma mulher num cavalo preto com arreios de ouro.
As pessoas ajoelhadas estavam tão apertadas como uma parede. Tentei
introduzir-me entre elas. Um homem agarrou-me com mãos duras e
empurrou-me para baixo, fazendo-me cair. Rosnou-me, uma ordem que não
compreendi. Lutei por me levantar e ele deu-me uma forte palmada na
nuca. Vi estrelas e perdi a força. Um instante depois, apercebi-me de que
todos os que me rodeavam estavam imobilizados. Ter-me-ia ele pedido para
ficar quieta? Ali fiquei, no local para onde ele me empurrara. O pão que eu
roubara estava apertado contra o meu peito e queixo. O cheiro entonteceu-
me. Não pensei. Baixei a cabeça, abri a boca e dei-lhe uma dentada. Fiquei
deitada de bruços na rua poeirenta a roer o pão como um rato enquanto
passavam primeiro as fileiras de guardas e depois a mulher no seu cavalo
preto e a seguir mais quatro filas de guardas. Ninguém se mexeu até chegar
uma segunda fileira de cavaleiros. De vez em quando eles paravam e faziam
soar campainhas de latão. Foi só depois de eles passarem que os mercadores
e compradores à minha volta se puseram em pé e reataram as suas vidas.
Aguardei, ocupada a roer o meu pão e, no momento em que as
campainhas soaram, pus-me em pé de um salto e tentei fugir. Mas o homem
que me deitara ao chão agarrou-me pelas costas do justilho e pelo cabelo.
Sacudiu-me e gritou qualquer coisa. O mercador de pão veio a correr ter
connosco, arrancou-me o pão da mão e gritou por o encontrar sujo e
mastigado. Eu encolhi-me, julgando que ele me fosse bater, mas o homem
desatou aos gritos, uma palavra, uma e outra vez. Atirou o pão ao chão,
furioso, e como ansiei por voltar a pegar-lhe, mas o meu captor manteve-me
bem segura.
A guarda da cidade. Era por isso que o homem estava a gritar, e dois
guardas apareceram a correr. Um fez um sorrisinho e fitou-me quase com
bondade, como se não conseguisse acreditar que tinha sido chamado por
causa de uma ladra tão pequena. Mas o outro era um tipo profissional que
me agarrou pelas costas da túnica e praticamente me ergueu no ar. Começou
a fazer-me perguntas e o homem do pão pôs-se a contar aos gritos o seu
lado da história. Eu abanei a cabeça e indiquei a boca por gestos, tentando
transmitir a ideia de que não falava. Achei que estava a correr bem até que
o guarda bondoso se inclinou para o colega e depois me deu subitamente
um beliscão tão forte que eu guinchei.
Então acabou tudo. Fui sacudida e, quando o guarda que me segurava
ergueu a mão para me esbofetear, eu soltei em comum, numa torrente: “Eu
tinha fome, portanto roubei. Que mais podia fazer? Tenho tanta fome!”
Depois, envergonhando-me, desmanchei-me em lágrimas e apontei para o
pão, esforçando-me para o apanhar. O homem que me capturara
inicialmente baixou-se, apanhou-o e pôs-mo nas mãos. O homem do pão
tentou fazer-me largá-lo com uma palmada, mas o guarda que ainda me
segurava puxou-me para fora do seu alcance. Depois, para completar a
minha humilhação, pegou em mim e pôs-me ao colo como se eu fosse uma
criança muito mais nova, e partiu pelo mercado fora.
Agarrei o pão com ambas as mãos. Não conseguia controlar as lágrimas
nem os soluços, mas isso não me impediu de comer o pão o mais depressa
que consegui engoli-lo. Não fazia a mínima ideia do que poderia acontecer-
me a seguir mas decidi que de uma coisa podia ter a certeza: encheria a
barriga com o pão que me metera num sarilho tão grande.
Ainda estava agarrada ao resto da côdea quando o meu transportador
subiu três degraus até à entrada de um edifício de pedra que nada tinha de
especial. Abriu a porta, levou-me para dentro e depois pôs-me no chão
enquanto o colega o seguia.
Quando entrámos, um homem mais velho com uma farda mais elaborada
levantou o olhar de uma mesa. A sua refeição do meio-dia estava espalhada
à sua frente e ele pareceu bastante aborrecido por ser interrompido. Os
homens conversaram sobre mim por cima da minha cabeça enquanto eu
olhava para a sala em volta. Havia um banco junto de uma parede simples.
Uma mulher estava lá sentada. Tinha os pés acorrentados. Na outra ponta
do banco estava sentado um homem, encolhido e com a cara nas mãos.
Ergueu o olhar para mim e toda a sua boca era sangue e um olho estava
fechado do inchaço. Voltou a baixar a cara para as mãos.
O guarda que me trouxera ao colo agarrou-me pelo ombro e sacudiu-me.
Olhei para eles. Ele falou comigo. Abanei a cabeça. O homem atrás da
secretária falou comigo. Voltei a abanar a cabeça. Depois, em comum,
perguntou-me: “Quem és tu? Perdeste-te, criança?”
Perante aquela pergunta simples, voltei a desfazer-me em lágrimas. Ele
pareceu vagamente alarmado. Fez movimentos de enxotar aos dois guardas
e eles foram-se embora. Quando um deles saiu, olhou para trás, para mim,
quase como se estivesse preocupado comigo. Mas o homem sentado à mesa
estava de novo a falar.
“Diz-me o teu nome. Os teus pais podem pagar por aquilo que roubaste e
levar-te para casa.”
Seria isso possível? Respirei fundo. “O meu nome é Abelha Visionário.
Sou dos Seis Ducados. Raptaram-me de lá e tenho de ir para casa.” Respirei
fundo e fiz uma promessa precipitada. “O meu pai pagará dinheiro para me
ter de volta.”
“Não duvido que sim.” O homem apoiou um cotovelo na secretária,
mesmo ao lado de um pequeno queijo redondo. Fitei o queijo. Ele
pigarreou. “Como foi que acabaste a correr pelas ruas de Calcede,
Abelhavisionário?”
Ele transformara o meu nome numa palavra. Não o corrigi. Não
importava. Se me desse ouvidos e mandasse uma mensagem ao meu pai, eu
sabia que ele pagaria dinheiro para me ter de volta. Ele ou Urtiga. Ela
pagaria, com certeza. Por isso contei-lhe a minha história, fazendo os
possíveis por deixar de fora as partes inacreditáveis. Falei-lhe de os
calcedinos terem atacado a minha casa e contei-lhe como eu tinha sido
levada. Não expliquei como viera para Calcede, dizendo-lhe apenas que
tinha fugido a Kerf e aos companheiros porque eles tinham sido cruéis para
mim. E agora estava ali e só queria ir para casa, e se ele mandasse uma
mensagem ao meu pai, eu tinha a certeza de que alguém viria trazer
dinheiro e levar-me para casa.
Ele pareceu um pouco perplexo com aquela salganhada de história, mas
no fim acenou gravemente. “Bom. Agora percebo, talvez melhor do que
tu.” Fez soar uma campainha que estava a um canto da secretária. Uma
porta abriu-se e um guarda com ar sonolento entrou. Era muito novo e
parecia aborrecido. “Escravo fugido. Propriedade de alguém chamado Kerf.
Leva-o para a última cela. Se ninguém o reclamar dentro de três dias, leva-o
para o leilão. É devido o preço de um pão de pólen ao padeiro Serchin.
Toma nota de que o tal Kerf deve pagar o pão, ou o preço será deduzido do
que ele valer no leilão.”
“Eu não sou escrava!”, protestei. “O Kerf não é meu dono! Ajudou a
raptar-me da minha casa!”
O homem da secretária fitou-me com tolerância. “Despojo de guerra.
Conquista de batalha. És dele, seja o que for que ele decida chamar-te. Pode
ficar contigo como escravo ou pedir um resgate por ti. Isso será com esse
Kerf, se ele vier reclamar-te.” Recostou-se na cadeira com um suspiro e
bebeu um grande trago da chávena.
As minhas lágrimas recomeçaram, apesar de inúteis. O guarda aborrecido
fitou-me do alto. “Segue-me”, disse num comum claro e, quando me virei e
desatei a correr para a porta, ele deu um passo em frente, passou-me uma
rasteira, e riu-se. Pegou-me pelas costas do justilho como se eu fosse um
saco e levou-me pela mesma porta por onde entrara, sem se incomodar nem
um bocadinho com a forma como me atirou contra a ombreira. Fechou a
porta atrás de nós com um pontapé, atirou-me ao chão e disse: “Podes
seguir-me ou eu posso levar-te ao pontapé por todo este corredor. Por mim é
igual.”
Por mim não era. Levantei-me, acenei-lhe bruscamente com a cabeça e
depois segui-o. Fizemos uma curva e depois descemos alguns degraus. Lá
em baixo estava mais fresco e mais escuro. A única luz vinha de umas
janelinhas que havia a intervalos na parede. Passámos por várias portas,
comigo a segui-lo. Ele abriu a última e disse: “Entra para aí.” Eu hesitei e
ele deu-me um empurrão e fechou a porta atrás de mim.
Ouvi-a trancar-se.
A sala era pequena mas não horrível. Vinha luz de uma janela muito
pequena. Era tão pequena que mesmo que eu tivesse conseguido alcançá-la,
não teria sido capaz de me escapar para o exterior. Havia um tapete de palha
tecida a um canto. No canto oposto havia um buraco no chão. Manchas e o
cheiro informaram-me do propósito do buraco. Ao lado do tapete estava um
jarro. Continha água. Cheirei-a para ter a certeza de que era água.
Mergulhei nela a bainha da camisa e limpei da cara as estúpidas das
lágrimas. Depois fui sentar-me no tapete de palha.
Fiquei muito tempo sentada. Depois deitei-me. Posso ter dormido um
pouco. Ouvi a tranca funcionar e levantei-me. Um homem abriu a porta
com cautela, olhando a toda a volta e baixando depois o olhar para mim.
Pareceu surpreendido por eu ser tão pequena. “Comida”, disse, e entregou-
me uma tigela de porcelana. Fiquei tão surpreendida que me limitei a ficar
ali com a tigela na mão enquanto ele saía, fechando a porta atrás de si.
Depois de o homem se ir embora, olhei para a tigela. Era uma papa
granulosa com alguns bocados de um legume cor de laranja no topo. Levei
a tigela para o meu tapete e comi-a cuidadosamente com os dedos. Alguém
pusera na tigela o suficiente para um adulto. Havia muito, muito tempo que
eu não tinha tanta comida. Tentei comê-la muito devagar e pensar no que
devia fazer a seguir. Quando a comida se esgotou, bebi um pouco de água e
depois limpei os dedos na bainha da camisa. A luz que entrava no meu
quartinho estava a ficar mais fraca. Perguntei a mim mesma se aconteceria
mais alguma coisa, mas não aconteceu. Quando a cela ficou escura, deitei-
me no tapete e fechei os olhos. Pensei no meu pai. Imaginei o que ele teria
feito aos guardas. Ou a Dwalia. Imaginei-o a estrangulá-la e cerrei os
punhos, arquejando ao pensar em quão satisfatório isso seria. Ele ensiná-
los-ia. Matá-los-ia a todos por mim. Mas o meu pai não estava ali. Não
podia saber onde eu estava. Ninguém vinha salvar-me. Chorei durante
algum tempo e depois dormi, agarrada à vela da minha mãe.
Quando acordei, havia um pequeno quadrado de luz no chão do meu
quartinho. Usei o buraco no chão e bebi mais um pouco de água. Esperei.
Nada aconteceu. Após o que pareceu muito tempo, gritei e bati na porta.
Nada aconteceu. Quando deixei de conseguir gritar ou bater na porta,
sentei-me no tapete. Tentei contactar o Pai-Lobo e não consegui encontrá-
lo. Foi um momento muito mau. Decidi que ele sempre tinha sido uma
coisa que eu fiz de conta. E eu agora era demasiado velha e o mundo
demasiado real para continuar a fazer de conta fosse o que fosse. Quando
preciso de ti, não estás cá. Como todos os outros.
Quando me bloqueias, eu não consigo fazer com que me ouças.
Eu bloqueei-te?
Quando fechaste os pensamentos. Então aqui estamos nós, outra vez
numa jaula. Pelo menos os teus captores são gentis. Por agora.
Por agora?
Vais ser vendida.
Eu sei. O que devo fazer?
Por agora? Comer. Dormir. Deixar o corpo sarar. Quando te tirarem
daqui para te venderem, fica muito consciente de mim. Ainda podemos
escapar.
As palavras deram-me muito pouca esperança, mas antes eu não tinha
absolutamente nenhuma. Nessa noite chorei até adormecer.
Quando acordei, na manhã seguinte, senti-me melhor do que me sentia há
muitos dias. Inspecionei as nódoas negras que tinha nas pernas e nos
braços. Estavam amarelas e verdes-claras, tendo desbotado do negro e azul-
escuro. A barriga doía-me menos e conseguia descrever um círculo
completo com o braço. Penteei com os dedos o cabelo cada vez mais longo
e depois roí as unhas para as encurtar. Outro guarda trouxe-me uma tigela
de comida e encheu o jarro de água. Levou a tigela vazia. Não falou
comigo. Era outra grande tigela de comida. Desta vez, a papa tinha uns fios
fibrosos de verdura e havia uma massa de legume amarelo no topo. Comi
tudo e depois fiquei a ver o quadrado de luz mover-se pelo chão e pela
parede acima até desaparecer. Outra vez noite. Voltei a chorar e voltei a
dormir. Sonhei que o meu pai estava zangado porque eu não tinha guardado
as tintas. Acordei enquanto ainda estava escuro, sabendo que algo assim
nunca acontecera mas desejando que pudesse acontecer. Voltei a cair no
sono e tive um sonho importante sobre um dragão nadador que capturava o
meu pai. Ao acordar, deparei-me com o quadrado de luz e desejei poder
escrever o sonho, mas nada havia onde pudesse escrever, nem tinta ou uma
pena. Passei a tarde a conceber uma forma de prender a vela dobrada à
bainha da minha blusa interior para que não se perdesse.
Esse dia passou. Outra tigela de comida. Leiloar-me-iam em breve?
Como contariam os três dias? Começariam com o dia em que me tinham
apanhado ou com o dia seguinte? Perguntei a mim mesma quem me
compraria e que espécie de trabalho teria eu de fazer. Seria capaz de os
convencer a mandar uma mensagem ao meu pai? Seria possível que eu
fosse vendida como escrava doméstica e conseguisse persuadir os meus
compradores a pedir um resgate por mim? Ouvira falar de escravos, mas
não fazia a mínima ideia de como eram tratados. Bater-me-iam? Manter-
me-iam nalgum casinhoto? Estava ainda a interrogar-me sobre essas coisas
quando ouvi a tranca da minha porta a matraquear. Um guarda abriu-a e
depois recuou.
“Este?”, perguntou a alguém, e Kerf enfiou a cabeça pela porta. Fitou-me
com um ar mortiço.
Quase me senti contente por o ver. Depois ouvi a voz de Dwalia. “É
mesmo essa patifória. Muitos problemas nos tem dado.”
“Patifória?” O guarda estava surpreendido. “Julgávamos que era um
rapaz.”
“Nós também!”, exclamou Vindeliar. “Ele é meu irmão!” Enfiou a
cabeça pela ombreira da porta e sorriu-me. As bochechas não estavam tão
rechonchudas como outrora e o cabelo ralo mostrava-se baço, mas a luz da
amizade continuava nos seus olhos. Odiei-o. Eles nunca me teriam
encontrado se ele não tivesse dominado Kerf por Dwalia. Ele traíra-me.
O guarda fitou-o. “Teu irmão. Vejo a semelhança”, disse, mas ninguém se
riu.
Senti-me doente. “Não conheço estas pessoas”, disse. “Estão a mentir-
te.”
O guarda encolheu os ombros. “Não quero saber, desde que alguém
pague a tua multa.” Voltou a olhar para Kerf. “Ela foi apanhada a roubar um
pão de pólen. Vai ter de pagar por ele.”
Kerf acenou com a cabeça de forma indiferente. Eu sabia que Vindeliar
estava a controlá-lo, mas não muito bem. Kerf parecia muito mortiço, como
se tivesse de pensar cuidadosamente antes de conseguir falar. Ellik sempre
parecera muito senhor de si. Estaria Vindeliar a perder a sua magia, ou
haveria alguma coisa errada com Kerf? Talvez tivessem sido as duas
viagens pela pedra a fazer aquilo. “Eu pago”, acabou ele por dizer.
“Pague primeiro, e depois pode levá-la. Também nos deve os quatro dias
da sua manutenção aqui.”
Fecharam a minha porta e afastaram-se. Senti uma pontada de
contentamento por o enganarem, fazendo-o pagar dias adicionais e depois
preocupei-me com a possibilidade de ter passado ali quatro dias e perdido a
noção do tempo. Esperei pelo regresso deles, cheia de medo por voltar a
estar com eles mas quase aliviada por outra pessoa qualquer me ter a seu
cargo. Pareceu levar muito tempo, mas por fim ouvi a tranca erguer-se.
“Vem daí”, ordenou-me rispidamente Dwalia. “Dás muito mais sarilhos
do que aquilo que vales.”
Os seus olhos prometiam uma surra mais tarde, mas Vindeliar dirigia-me
um sorriso parvo. Desejei saber por que motivo gostava ele de mim. Era o
meu pior inimigo, mas também o meu único aliado. Kerf parecera gostar de
mim, mas se Vindeliar controlasse as suas rédeas, eu não tinha qualquer
esperança de obter dele ajuda. Talvez devesse tentar alimentar a minha
amizade com Vindeliar. Se tivesse sido mais sensata, talvez devesse ter feito
isso desde o início.
Dwalia tinha um grande rolo de corda leve. Antes de eu ter tempo para
protestar, passou-ma em volta do pescoço. “Não!”, gritei, mas ela apertou-a
com um puxão. Quando tentei levar as mãos à corda, Kerf pegou-me na
mão esquerda e ela na direita e puxaram-mas para trás das costas. Senti uma
laçada da corda em volta do pulso. Ela foi muito rápida a fazer aquilo; sem
dúvida que já o tinha feito antes. A minha mão estava desconfortavelmente
alta e não podia descê-la sem apertar o laço em volta do pescoço. Ela ficou
com a ponta da corda na mão. Deu-lhe um puxão experimental e eu tive de
atirar a cabeça para trás.
“E já está”, disse ela com grande satisfação. “Acabaram-se os
truquezinhos vindos daí. Toca a andar.”
Depois da fresca escuridão da minha cela, o dia brilhante era doloroso e
depressa se tornou demasiado quente para mim. Kerf e Dwalia caminhavam
à minha frente, mal deixando alguma folga na trela. Tinha de me apressar
para acompanhar o passo deles. Vindeliar trotava a meu lado. Apercebi-me
de quão estranhamente ele era constituído, com um corpo em forma de
feijão e as pernas curtas. Lembrei-me de como Dwalia lhe chamara
“assexuado”. Perguntei a mim própria se o teria castrado como os homens
faziam aos nossos bodes quando queriam criá-los para carne. Ou teria
nascido assim?
“Onde está Alaria?“, perguntei-lhe em voz baixa.
Ele deitou-me um olhar infeliz. “Foi vendida a um negociante de
escravos. Por dinheiro para comida e passagem num barco.”
Kerf teve um estremeção. “Ela era minha. Eu queria levá-la à minha mãe.
Podia ter sido uma boa criada. Porque foi que fiz isso?”
“Vindeliar!”, exclamou Dwalia.
Desta vez, abri os sentidos e senti o que ele fez a Kerf. Tentei
compreender. Sabia como erguer as muralhas para manter no exterior os
pensamentos do meu pai. Tivera de o fazer desde pequena, só para ter paz
na minha própria mente. Mas pareceu-me que Vindeliar enfiou uma
muralha na mente de Kerf, uma muralha que mantinha os pensamentos de
Kerf no exterior e o obrigava a partilhar o que Vindeliar pensava. Fiz
pressão contra a muralha de Vindeliar. Não era lá muito forte, mas eu não
sabia bem como lhe abrir uma brecha. Mesmo assim, ouvi um sussurro do
que ele disse a Kerf. Não te preocupes. Vai com Dwalia. Faz o que ela
quiser. Não te interrogues sobre nada. Tudo vai ficar bem.
Não toques a mente dele. Não lhe abras brechas na muralha. O aviso
veio do Pai-Lobo. Escuta mas não deixes que ele te sinta lá.
Porquê?
Se abrires caminho para dentro dos pensamentos dele, isso será também
um caminho para ele entrar nos teus. Tem muito cuidado com os toques na
mente dele.
“Para onde vamos?”, perguntei em voz alta.
“Caluda!”, disse Dwalia ao mesmo tempo que Vindeliar dizia: “Para o
barco para continuarmos a nossa viagem.”
Calei-me mas não por causa da ordem de Dwalia. Só por um momento,
apercebera-me de que era difícil para Vindeliar falar, trotar atrás de Dwalia
e controlar Kerf. Ele tinha fome, doíam-lhe as costas e precisava de se
aliviar, mas sabia ser má ideia pedir a Dwalia para parar. Mantive o silêncio
e senti a concentração dele em Kerf tornar-se mais apertada e mais forte.
Bom. Uma distração podia enfraquecer-lhe o controlo. Saber isso era coisa
pouca mas útil. A voz do Pai-Lobo mal chegou a um sussurro na minha
mente. Aguça as garras e os dentes. Aprende, cria. Vamos sobreviver.
Tu és real?
Ele não respondeu mas Vindeliar inclinou a cabeça e fitou-me de forma
estranha. Muralhas para cima. Mantê-lo fora da minha mente. Agora teria
de estar permanentemente de guarda. Fortaleci a guarda de mim mesma e
compreendi que, quando trancava Vindeliar do lado de fora, fazia o mesmo
ao Pai-Lobo.
Capítulo 8

Tintaglia

Este sonho era como um quadro que se movia. A luz era ténue, como
se tinta cinzenta-clara ou azul tivesse sido deitada sobre tudo. Belas
flâmulas de cores brilhantes moviam-se numa brisa lenta que ia e
vinha, ia e vinha, de modo que as flâmulas se erguiam e caíam.
Eram reluzentes flâmulas de ouro e prata, escarlate, cerúleo e
veridiano. Padrões brilhantes como diamantes ou olhos e espirais
tortuosas percorriam cada flâmula no sentido do comprimento.
No meu sonho aproximei-me, fluindo sem esforço para elas. Não
havia nenhum som nem nenhuma sensação de vento na cara.
Depois, a minha perspetiva mudou. Vi enormes cabeças de serpente,
com focinhos achatados e olhos grandes como melões. Aproximei-
me mais e mais, embora não o desejasse, e por fim consegui ver o
ténue brilho de uma rede que continha todas aquelas criaturas,
como peixes presos por uma rede de emalhar. Os fios da rede eram
quase transparentes e de alguma forma eu soube que elas tinham
todas corrido para dentro da rede no mesmo momento, para aí
ficarem capturadas e se afogarem.
Este sonho tinha o rigor de uma coisa que já acontecera, e não só
uma vez. Aconteceria repetidamente no futuro. Não podia impedi-lo
porque era coisa já feita. E, no entanto, também soube que voltaria
a acontecer.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

C
edo, na manhã seguinte, alguém bateu à porta do nosso quarto.
Rolei da cama e pus-me em pé. O Bobo nem se mexeu. Descalço,
dirigi-me à porta. Parei para afastar o cabelo da cara e depois abri-
a. Lá fora, o Rei Reyn tinha atirado para trás o capuz do manto, o qual
pingava água no chão à sua volta. Chuva reluzia-lhe na testa e ficara presa
em gotinhas na barba pouco densa. Ele sorriu-me, com incongruentes
dentes brancos na cara coberta de finas escamas. “FitzCavalaria! Boas
notícias, e quis partilhá-las imediatamente. Acabou de chegar uma ave da
outra margem do rio. O Lobo-do-Mar chegou lá.”
“Na outra margem do rio?” Uma dor de cabeça causada pelo brande tinha
dado início a um súbito clangor na minha cabeça.
“Na Aldeia. É muito mais fácil à barcaça abicar aí do que acostar aqui, e
é muito melhor para o Capitão Leftrin descarregar lá do que obrigar-nos a
transportar a carga para o outro lado do rio um bocadinho de cada vez. O
Lobo-do-Mar trazia carga completa: trabalhadores para a quinta, uma dúzia
de cabras, sacos de cereais. Três dúzias de galinhas. Esperamos que as
cabras se deem melhor do que as ovelhas se deram. As ovelhas foram um
desastre. Acho que só três sobreviveram ao inverno. Desta vez vamos
manter as galinhas na capoeira.” Inclinou a cabeça e desculpou-se: “Perdoai
por vos acordar tão cedo, mas julguei que quereríeis saber. O navio vai
precisar de limpeza antes de ficar adequado a passageiros. Um dia, talvez
dois, no máximo três. Mas depressa podereis partir.”
“Notícias bem-vindas, sem dúvida”, disse-lhe. Consegui ultrapassar a dor
de cabeça e desenterrar a cortesia. “Embora a vossa hospitalidade tenha
sido maravilhosa, mal podemos esperar para prosseguir viagem.”
Ele acenou com a cabeça, fazendo voar gotinhas. “Há outras pessoas que
tenho de notificar. Perdoai-me por ter de me ir embora à pressa.”
E lá foi, a pingar pelo corredor. Tentei imaginar Respeitador a entregar
uma mensagem daquelas a um hóspede. Observei-o a afastar-se e senti uma
pontada de inveja pelo modo espontâneo como os Mercadores dos Dragões
pareciam interagir. Se calhar eu sempre vira as coisas pelo avesso. Se calhar
ser bastardo dera-me muito mais liberdade do que a que teria vivendo no
seio das regras que limitavam um príncipe.
Quando fechei a porta, o Bobo rastejou até à beira da cama. “O que foi
isso?”, perguntou num tom descontente.
“O Rei Reyn com novidades. O Lobo-do-Mar está ancorado do outro
lado do rio. Vamos partir dentro de um ou dois dias.”
Ele passou as pernas sobre a beira da cama, sentou-se e depois inclinou-
se para a frente, com a cabeça nas mãos. “Tu embebedaste-me”, protestou.
Eu estava tão farto de mentir. “Há coisas que tenho de saber. De uma
forma ou de outra, Bobo, tens de falar comigo.”
Ele moveu-se lentamente, levantando com cuidado a cabeça das mãos.
“Estou muito zangado contigo”, disse em voz baixa. “Mas já devia esperar
isto.” Voltou a baixar a cara para as mãos. As palavras seguintes soaram
abafadas. “Obrigado.”
Saiu com esforço da cama, movendo-se como se tivesse os miolos a
ponto de se lhe derramarem do crânio, e falou na voz de Âmbar. “Thymara
solicitou o meu tempo para uma visita. Creio que está extremamente
curiosa com a Prata que tenho nas mãos e com o modo como me afeta.
Acho que hoje vou visitá-la. Queres chamar Centelha para me ajudar a
vestir?”
“Claro.” Reparei que ela não me pediu que a acompanhasse. Supus que o
merecia.

Nessa tarde, quando a chuva aliviou, aventurei-me a sair com Lante. Queria
ver a torre do mapa. Vira-a pela primeira vez muitos anos antes, quando
tropeçara acidentalmente através de uma pedra de Talento e viera dar a
Kelsingra. Os belos mapas que Breu e Kettricken me tinham dado não
haviam sobrevivido ao ataque do urso. Esperava refrescar as minhas
recordações com uma olhadela a esse mapa dos Antigos. Mas não tínhamos
andado muito quando ouvi um ruidoso trombetear de dragões e depois
gritos de pessoas excitadas.
“O que é?”, perguntou-me Lante e, no fôlego seguinte: “Devíamos voltar
para junto dos outros.”
“Não. Aquilo são gritos de boas-vindas. Um dragão regressa, um dragão
que está há muito tempo ausente.” Um truque do vento trouxera-me um
nome aos ouvidos. “Tintaglia regressa”, disse-lhe. “E quero voltar a vê-la.”
“Tintaglia”, disse ele, com surdo assombro. Tinha os olhos esbugalhados.
“Enigma falou dela. A rainha dos dragões que veio ajudar a libertar
Fogogelo e depois levantou voo como sua parceira. Aquela que forçou
Fogogelo a pousar a cabeça nas pedras da lareira da casa da mãe da Rainha
Eliânia, para cumprir o desafio que Eliânia tinha lançado a Respeitador.”
“Sabes tudo isso?”
“Fitz. Todas as crianças dos Seis Ducados o sabem. Zar Ditoso canta essa
canção sobre os dragões, aquela que tem o verso: ‘Mais azul que safiras,
reluzindo como ouro.’ Eu tenho de a ver com os meus próprios olhos!”
“Acho que a vamos ver”, gritei-lhe, pois um violento coro de trombeteios
de dragões estava agora a abafar as nossas vozes. Tinham levantado voo da
cidade, em cumprimento ou desafio. Era uma cena espantosa, beleza e
terror a misturar-se em partes iguais. Os dragões cabriolaram como
andorinhas antes de uma tempestade, mas aquelas criaturas eram maiores
do que casas. Reluziam e cintilavam contra o céu nublado, em cores que as
assemelhavam mais a joias do que a criaturas feitas de carne.
Então vi Tintaglia, voando sobre as copas das árvores à distância. Por um
momento não consegui determinar quão perto ela estava de nós; depois, à
medida que se foi aproximando, apercebi-me do meu erro. Ela era
realmente assim tão grande — reduzia à insignificância todos os dragões
que tínhamos visto em Kelsingra —, muito maior do que da última vez que
eu a vira.
Aquela rainha dos dragões tinha consciência da agitação que estava a
provocar na cidade. Pairou bem longe de nós, descrevendo um grande
círculo. Enquanto ela ia espiralando, às voltas, descobri que mal conseguia
tirar dela os olhos. O meu coração elevou-se em admiração e descobri que
um sorriso me comandava o rosto. Consegui deitar um relance a Lante e vi
que ele levara ambas as mãos ao peito e estava a sorrir ao dragão.
“Encantamento de dragão”, coaxei, mas continuei sem conseguir deixar de
sorrir. “Cuidado, Lante, senão ainda desatas a cantar!”
“Oh, mais azul que safiras, reluzindo como ouro!”, e na sua voz havia
música e um desejo ardente. “Nenhuma canção de menestrel poderia fazer-
lhe justiça. Reluz de ouro e depois de prata, muito mais brilhante que joias!
Oh, Fitz, se ao menos pudesse nunca mais desviar dela o olhar!”
Eu não disse nada. Histórias sobre encantamento de dragão eram agora
bem conhecidas por todos os Seis Ducados. Alguns nunca eram vítimas
dele, mas outros ficavam enfeitiçados pelo mero vislumbre de um dragão à
distância. Agora, Lante não daria ouvidos a nenhum aviso meu, mas
suspeitei que o feitiço se quebraria assim que ela já não estivesse visível. Se
eu não tivesse já as muralhas de Talento erguidas contra o clamor de
Kelsingra, era provável que me tivesse sentido tão zonzo como ele.
Depressa se tornou evidente que ela queria pousar na praça em frente do
Palácio de Acolhimento. Lante apressou-se e eu acompanhei o seu passo.
Mesmo assim, ela estava no chão antes de chegarmos e Antigos e dragões
mais pequenos já se tinham começado a juntar. Lante tentou lançar-se em
frente mas eu peguei-lhe no braço e sustive-o. “A Rainha Malta e o Rei
Reyn”, acautelei. “E o filho. Vão ser eles os primeiros a cumprimentá-la.”
E foram. Até os dragões de Kelsingra guardaram uma distância
respeitosa — algo que eu não esperara. Tintaglia dobrou calmamente as
asas, sacudindo-as uma ou duas vezes como que para se assegurar de que
cada escama estava no lugar antes de as fechar, perante um coro de suspiros
de admiração vindos daqueles que se haviam reunido. Quando Reyn e
Malta surgiram com Phron logo atrás, foi óbvio para mim que Malta se
arranjara à pressa e Reyn vestira uma túnica limpa e alisara o cabelo. Phron
sorria num assombro intimidado mas a expressão de Malta era mais
reservada, quase pétrea, ao descer os degraus para ir parar, pequena, perante
Tintaglia. De rainha para rainha, dei eu por mim a pensar, apesar da
diferença de tamanhos.
Reyn caminhou a seu lado mas meio passo atrás, enquanto as rainhas
avançavam para se cumprimentar uma à outra. Tintaglia examinou Malta,
com o pescoço arqueado e os olhos a rodopiar lentamente como se a
inspecionasse. A expressão de Malta não mudou quando disse friamente:
“Então regressaste a Kelsingra, Tintaglia. Desta vez a tua ausência foi
longa.”
“Foi? Para ti, talvez.” O trombeteio do dragão era musical e os seus
pensamentos cavalgavam o som. “Deves lembrar-te de que os dragões não
contam o tempo nas minúsculas gotinhas de dias que parecem ter tanto
significado para os humanos. Mas sim, regressei. Vim beber. E ser bem
tratada.” Como que para desprezar Malta pela sua censura, o dragão
ignorou Reyn e virou a cabeça para fitar Phron, o qual a mirava com
adoração. Os olhos do dragão giraram com carinho. Ela baixou-se e
respirou sobre ele e eu vi a roupa do rapaz ondular ao hálito quente do
dragão. Abruptamente, Tintaglia atirou a cabeça para cima e depois olhou a
toda a volta furiosa de indignação. “Este é meu! Quem interferiu com ele?
Que dragão tolo se atreveu a alterar o que é meu?”
“Quem se atreveu a salvar-lhe a vida, queres tu dizer? Quem se atreveu a
corrigir o seu corpo, para ele não ter de escolher entre respirar e comer? É
isso que estás a perguntar?”, questionou Malta.
O olhar de Tintaglia saltou de volta para Malta. Cores ondularam-lhe no
pescoço e no focinho e as respetivas escamas puseram-se abruptamente em
pé, numa série de cristas. Julguei que a Rainha Malta ia pelo menos dar um
passo atrás. Mas ela avançou, e desta vez Reyn moveu-se com ela e a seu
lado. Fiquei espantado por ver uma invasão semelhante de cor na crista de
pele por cima da testa dela. Malta parou, de mãos nas ancas e com a cabeça
inclinada para trás. Os padrões nas escamas da sua cara ecoavam em
miniatura os de Tintaglia.
Os olhos do dragão semicerraram-se. “Quem?”, voltou a perguntar.
Gelo subiu-me pela espinha e sustive a respiração. Ninguém falou. O
vento vagueou entre nós, acrescentando-se ao gelo, fazendo esvoaçar
cabelos e corando narizes.
“Julguei que talvez ficasses contente por ver que eu ainda estava vivo. É
que, sem as alterações que me foram feitas, duvido que estivesse.” Phron
avançou para se interpor entre os pais e o dragão. A mão de Malta estendeu-
se para o puxar de volta para lugar seguro, mas Reyn pôs-lhe a mão no
pulso. Devagar, puxou-lhe o braço para baixo e depois recolheu a mão dela
na sua. Disse qualquer coisa e eu vi um relâmpago de sofrimento atravessar
a cara de Malta. Depois, ficou em silêncio enquanto o filho enfrentava o
dragão que lhes dera forma a todos.
Tintaglia ficou em silêncio. Admitiria que lhe importava se ele vivesse
ou morresse? Mas era um dragão. “Quem?”, perguntou pela terceira vez e
as cores no pescoço inflamaram-se em tons mais vivos. Ninguém respondeu
e ela encostou a ponta do focinho ao peito de Phron e empurrou-o. Ele
cambaleou para trás mas não caiu. Chegava.
“Fica bem longe de mim”, disse eu a Lante. Dei três passos para o espaço
aberto que rodeava o dragão. As minhas muralhas estavam em pé e bem
tensas. Ergui a voz num grito. “Tintaglia. Aqui estou eu!”
Mais rápida do que o ataque de uma serpente, a cabeça dela virou-se e o
seu olhar fixou-se em mim. Quase consegui sentir a pressão daquele
escrutínio enquanto ela dizia: “E quem és tu que te atreves a usar o meu
nome?”
“Tu conheces-me.” Controlei a voz mas coloquei-a por forma a que se
projetasse. Phron tinha deitado um olhar aos pais mas não retirara para se
abrigar atrás deles.
Tintaglia bufou. Mudou de posição para me encarar. O vento do seu
hálito era carnudo e odorífero. “São poucos os humanos que eu conheço,
mosquitozinho. A ti, não conheço.”
“Mas conheces. Foi há anos. Querias saber onde estava o dragão negro.
Perseguiste-me pelos meus sonhos. Querias que Fogogelo fosse libertado
da prisão. Fui eu que fiz o que tu não foste capaz de fazer. Quebrei o glaciar
e libertei-o, tanto do gelo como do tormento da Mulher Pálida. Portanto, tu
conheces-me, dragão. Como conheces a minha filha Urtiga. E tal como me
conheces, também tens uma dívida para comigo!”
Houve um suster coletivo da respiração perante as minhas palavras. Vi,
pelo canto do olho, a Dama Âmbar sair para a escada, flanqueada por
Centelha e Per. Rezei por que ela não interferisse, por que mantivesse os
jovens em segurança fora do conhecimento do dragão. Tintaglia fitou-me,
com os olhos a rodopiar em ouro e prata e eu senti a pressão da sua mente
na minha. Por um instante, deixei que as minhas muralhas lhe cedessem.
Mostrei-lhe Urtiga com o vestido sonhado de asas de borboleta. Depois
cerrei os portões da minha mente, trancando-a no exterior e desejando
desesperadamente que as minhas muralhas aguentassem.
“Ela.” Tintaglia transformou a simples palavra numa praga. “Essa não é
um mosquito. É um moscardo, um mordedor, zumbidor, sugador de sangue
de um…”
Nunca vira uma criatura tão grande a sufocar em palavras. Senti uma
súbita inundação de orgulho por Urtiga. Ela usara o Talento e a
manipulação de sonhos para ripostar contra o dragão, virando as armas da
criatura contra ela. Sem qualquer treino formal na magia Visionário, Urtiga
não só vergara Tintaglia aos seus fins como também convencera aquela
rainha teimosa a obrigar Fogogelo a honrar a promessa do Príncipe
Respeitador de pousar a cabeça do dragão negro nos tijolos da lareira de
Eliânia. A entrada de Fogogelo na casa da mãe da Narcheska causara
alguns danos ao lintel da porta, mas a promessa fora cumprida e
Respeitador conquistara a sua noiva.
E um dragão lembrava-se da minha filha! Por um emocionante momento
o meu coração esteve à beira da exultação. O mais perto da imortalidade
que algum ser humano podia chegar!
Tintaglia avançou sobre mim. Cores varreram-na como chamas a
consumir madeira. “Tu interferiste com os meus Antigos. Isso ofende-me. E
eu não te devo nada. Os dragões não têm dívidas.”
Eu disse as palavras antes de refletir nelas. “Os dragões têm dívidas.
Simplesmente não as pagam.”
Tintaglia sentou-se sobre os quartos traseiros, ergueu bem alto a cabeça e
encolheu o queixo. Os olhos rodopiaram depressa, com as cores a
tremeluzir, e eu mais senti do que vi como tanto os humanos como os
dragões recuaram para longe dela.
“Fitz”, sussurrou Lante com voz dura, uma súplica.
“Recua. Para trás!”, sussurrei. Eu ia morrer. Ia morrer ou sobreviveria
horrivelmente estropiado. Já vira o que o cuspo ácido de um dragão fazia
aos homens e à pedra. Endureci-me. Se fugisse, se me abrigasse atrás dos
outros, eles morreriam comigo.
Uma rajada de vento atingiu-me e então, com a leveza de um corvo a
saltitar até parar, um dragão escarlate muito mais pequeno pousou entre
mim e a morte. Um instante depois senti um súbito peso no meu ombro e
“Fitz!”, cumprimentou-me Matizada. “Olá, estúpido!”, acrescentou.
O dragão escarlate dobrou as asas como se isso fosse uma tarefa
importante que tinha de ser feita de uma forma muito específica. Pensei que
Tintaglia espargeria a criatura com ácido, em vingança pela sua fúria
interrompida. Mas pareceu-me que ela olhou para o dragão vermelho com
perplexidade.
“Heeby”, disse-me o corvo. “Heeby, Heeby.” Matizada virou-se e de
súbito deu-me uma bicada traiçoeira na orelha. “Heeby!”, insistiu a ave.
“Heeby”, repeti para a acalmar. “O dragão do General Rapskal.”
O meu reconhecimento aplacou-a. “Heeby. Boa caçadora. Montes de
carne.” O corvo soltou um risinho de felicidade.
Lante pegou-me no braço. “Afastai-vos, seu palerma!”, silvou-me.
“Enquanto ela está distraída pelo dragão vermelho, saí-lhe da vista. Ela quer
matar-vos.”
Mas eu só me movi para me livrar da mão dele. O muito mais pequeno
dragão escarlate estava a enfrentar o imenso dragão azul. A cabeça de
Heeby ondeou na ponta do seu pescoço serpentino. Todos os tons
imagináveis de vermelho brilhavam nela. Não havia possibilidade de
dúvidas quanto ao desafio na sua pose. Senti a tensão da comunicação entre
elas, apesar de não ser capaz de recolher nenhum sentido de palavras
humanas do ruído surdo emitido pelo dragão vermelho. Era como uma
pressão no ar, um fluxo de pensamentos que eu conseguia sentir mas não
compreender.
A crista e a fileira de escamas eretas no pescoço de Tintaglia baixaram de
uma forma muito parecida ao modo como os pelos do cachaço de um cão
baixam quando a sua agressividade se acalma. O arco no pescoço do dragão
suavizou-se e depois ela ergueu os olhos e eu senti o seu olhar penetrante.
Tintaglia falou, e as suas palavras eram claras para todos, e a pergunta era
uma acusação. “O que sabes tu sobre o povo pálido e os seus Servos?”
Inspirei e falei com clareza, desejando que todos os dragões e pessoas ali
reunidos me ouvissem. “Sei que os Servos raptaram a minha filha. Sei que a
destruíram. Sei que os vou procurar, e matar tantos quantos possa antes que
me destruam.” O meu coração desatara a correr. Cerrei os dentes e
acrescentei: “O que mais preciso de saber?”
Tanto Heeby como Tintaglia ficaram muito paradas. Senti um fluxo de
comunicação entre elas. Perguntei a mim mesmo se os outros dragões ou
algum dos Antigos estariam ao corrente do que elas diziam. O General
Rapskal abriu caminho por entre a multidão. Estava vestido de uma forma
muito simples, com meias e uma camisa de couro, e tinha as mãos sujas,
como se tivesse interrompido abruptamente alguma tarefa.
“Heeby!”, chamou ao vê-la, e depois ficou imóvel. Olhou para os
Antigos e dragões reunidos em redor, viu-me e apressou-se a vir ter comigo.
Enquanto se aproximava, desembainhou a faca. Eu levei a mão à minha e
fiquei surpreendido quando Lante me empurrou para o lado e para trás e se
interpôs entre mim e Rapskal. Sem prestar atenção à irritação de Lante,
Rapskal gritou-me: “Heeby chamou-me para vos proteger! Vim em vosso
auxílio!”
Lante fitou-o de boca aberta. Passei por um momento de choque e depois
de ira quando Per se introduziu na situação. “Nas minhas costas!”, gritei ao
rapaz e ele respondeu: “As vossas costas, sim, senhor, eu guardo as vossas
costas!”
Não era o que eu quisera dizer, mas afastou-o da lâmina de Rapskal.
“Não compreendo”, rosnei a Rapskal, e ele abanou a cabeça numa
confusão partilhada. “Nem eu! Estava a explorar memórias quando Heeby
me chamou com urgência para vos proteger aqui. E depois desapareceu da
minha consciência como se tivesse sido morta! Fiquei aterrorizado, mas
aqui estou, para fazer o que ela quer. Vou proteger-vos ou morrer.”
“Basta de tagarelice!” Tintaglia não rugiu mas a força do pensamento
preso às suas palavras quase me atordoou. Heeby manteve a pose vigilante
entre o imenso dragão azul e eu, mas pouco abrigo fornecia. Tintaglia
agigantava-se acima dela e facilmente podia ter cuspido ácido sobre mim se
tivesse decidido fazê-lo. Mas preferiu virar a cabeça e focar em mim o
olhar. Senti o pleno impacto da sua presença quando os seus enormes olhos
rodopiantes se fixaram em mim. As minhas muralhas não conseguiram
afastar por completo a vaga de encantamento de dragão que me cobriu.
“Decido permitir as alterações que fizeste. Não te vou matar.”
Enquanto eu rejubilava com aquele bocado de boas notícias e os meus
guardiães embainhavam apressadamente as lâminas, ela inclinou a grande
cabeça, aproximou-se muito e respirou profundamente sobre mim. “Não
conheço o dragão que te marcou. Mais tarde talvez o faça responder pela
tua obstinação. Por agora, não tens de me temer.”
Eu estava entontecido de gratidão e assombro pela magnificência dela.
Precisei de todos os bocadinhos de força de vontade que consegui reunir
para erguer a voz. “Só tentei ajudar aqueles que precisavam da minha ajuda.
Os negligenciados pelos seus dragões, ou alterados mas não guiados nessas
alterações.”
Ela escancarou as maxilas e, por um momento de fazer parar o coração,
eu vi dentes mais compridos que espadas e o reluzente amarelo e vermelho
dos sacos de veneno na sua garganta. Ela voltou a falar-me. “Não me
pressiones, homenzinho. Contenta-te por não te ter matado.”
Então Heeby ergueu-se, levantando do chão as patas da frente por forma
a ficar ligeiramente mais alta do que fora antes. Voltei mais uma vez a sentir
a força de uma comunicação que não ouvi.
Tintaglia fez-lhe um esgar, um levantamento de lábios que lhe deixou os
dentes a descoberto. Mas disse-me: “Tu e os outros como tu podem
interferir nos que não são reclamados por nenhum dragão. Isso concedo-te,
porque eles para mim não são nada. Muda-os tanto quanto queiras. Mas
deixa para mim o que é meu. Isto é uma mercê que te concedo porque tu e
os teus me foram úteis no passado. Mas não te arrogues a pensar que te
pago uma dívida.”
Eu quase esquecera Matizada empoleirada no meu ombro. Não creio que
um corvo consiga sussurrar, mas ouvi uma voz baixa e rouca dizer: “Sê
sensato.”
“Claro que não!”, apressei-me a concordar. Era tempo de me afastar do
meu comentário impensado. Respirei fundo, apercebi-me de que estava
prestes a dizer uma coisa pior e disse-a na mesma. “Queria pedir-te uma
segunda mercê.”
Mais uma vez, ela fez exibição de dentes e sacos de veneno. Os meus
protetores encolheram-se contra mim mas não fugiram. Contei o facto como
coragem. “A tua vida não é mercê suficiente, pulga?”, perguntou o dragão.
“O que mais poderias tu pedir-me?”
“Peço conhecimento! Os Servos dos Brancos tentaram pôr fim definitivo
não só a Fogogelo mas a todos os dragões quando procuraram a morte dele.
Quero saber se eles já tinham agido antes contra os dragões e, se o fizeram,
quero saber porquê. Acima de tudo o resto, quero saber qualquer coisa que
os dragões saibam que possa ajudar-me a pôr fim aos Servos!”
Tintaglia puxou para trás a imensa cabeça na extremidade do longo
pescoço. O silêncio prolongou-se. Depois, Heeby disse na voz tímida de
uma criança: “Ela não se lembra. Nenhum de nós se lembra. Exceto… eu.
Às vezes.”
“Oh, Heeby! Falaste!”, sussurrou orgulhosamente Rapskal.
Então Tintaglia soltou um rugido sem palavras e horrorizou-me ver
Heeby baixar-se e encolher-se. Rapskal voltou a desembainhar a faca e
avançou para a frente do seu dragão, brandindo a lâmina contra Tintaglia.
Nunca tinha visto um ato mais estúpido ou mais corajoso.
“Rapskal, não!”, gritou um Antigo, mas ele não parou. Contudo, se
Tintaglia reparou no seu ato de enlouquecido desafio, não lhe prestou
atenção. Voltou a dirigir-se a mim. O seu trombetear foi um estrondo grave
que me sacudiu os pulmões. A ira e frustração que sentia cavalgaram as
suas palavras.
“Isso é conhecimento que eu devia ter mas não tenho. Vou procurá-lo.
Não como mercê concedida a ti, humano, mas para arrancar a Fogogelo o
que ele devia ter partilhado connosco há muito tempo, em vez de esconder
de nós uma história que não podemos conhecer, pois nenhum dragão é
capaz de se lembrar do que acontece quando está no ovo ou a nadar como
serpente.” Virou-nos costas, sem lhe importar que tanto humanos como
Antigos tivessem de correr para evitar a longa chicotada da sua cauda
quando o fez. “Vou beber. Preciso de Prata. Depois de beber, vou receber
cuidados. Tudo deverá estar pronto para isso.”
“E estará!”, gritou-lhe Phron enquanto ela se afastava majestosamente.
Voltou-se para os pais e tinha as bochechas de Antigo tão rosadas como as
escamas que as cobriam o permitiam. “Ela é magnífica!”, gritou, e um
rugido de riso e acordo fez eco daquele sentimento.
Não acompanhei a exultação da multidão. Senti-me com as tripas a
tremer, agora que tinha tempo para pensar em quão perto estivera de morrer.
E para quê? Não sabia mais sobre os Servos do que soubera antes. Podia ter
esperança de ter conseguido ganhar a aceitação de Tintaglia para com
quaisquer curandeiros de Talento que Urtiga e Respeitador pudessem vir a
enviar. Podia ter a esperança de que Respeitador viria a conseguir alcançar
uma aliança com pessoas que por vezes eram capazes de alterar o
comportamento de um dragão.
Mas eu sabia que Fogogelo estava vivo. A minha pequena esperança era
Tintaglia vir a partilhar comigo o que quer que descobrisse. Suspeitava de
uma longa vendeta entre dragões e os Servos. Poderiam os Antigos não
estar ao corrente de uma tal inimizade? Duvidava, e no entanto não
tínhamos descoberto nenhuma indicação de que estivessem.
Ou será que tínhamos? Voltei a pensar na ocupação de Aslevjal pela
Mulher Pálida. Ilistore, como lhe chamara o Bobo. A cidade dos Antigos
encerrada em gelo mostrara ser para ela uma formidável fortaleza, um
excelente local de onde dirigir a guerra dos ilhéus exteriores contra os Seis
Ducados. E onde podia atormentar o dragão encurralado em gelo e tentar
destruí-lo e à sua espécie. Ela fizera tudo o que pudera para degradar a
cidade. Arte fora maculada ou destruída, bibliotecas de blocos de Talento
tinham sido deixadas em absoluta desordem… isso não falaria de um ódio
profundamente enraizado? Teria ela procurado destruir todos os vestígios de
um povo e cultura?
Não esperava o apoio dos dragões contra os Servos. Fogogelo tivera anos
para retaliar contra os Servos se o dragão tivesse nutrido algum desejo de o
fazer. Suspeitei que ele dera vazão a toda a sua fúria quando fizera ruir o
palácio gelado de Aslevjal e dera fim às forças da Mulher Pálida. Deixara
para mim a tarefa de me assegurar da morte dela e do dragão de pedra que
ela e Quebal Pancru tinham Forjado. Era possível que o dragão negro não
fosse uma criatura tão feroz como Tintaglia parecia ser. “Não é incomum
que as criaturas do sexo feminino sejam muito mais selváticas do que os
machos.”
“A sério?”, perguntou Per, e apercebi-me de que dissera as palavras em
voz alta.
“A sério”, respondeu Lante por mim e eu perguntei a mim mesmo se
estaria a lembrar-se do atentado da madrasta contra a sua vida. Na praça
aberta à nossa frente, Rapskal azafamava-se com Heeby como se ela fosse
um cãozinho de colo adorado, enquanto Malta, Reyn e Phron estavam
mergulhados numa conversa animada que quase parecia uma discussão. Fui
emboscado por uma vaga de vertigem.
“Gostava de voltar para os nossos aposentos”, disse em voz baixa, e não
encontrei forças para resistir a Lante quando ele me pegou no braço. A
fraqueza que sentira depois das curas de Talento que fizera voltava a
assaltar-me, por nenhum motivo que eu conseguisse deduzir. Âmbar e
Centelha juntaram-se a nós enquanto eu avançava pelas escadas acima.
Âmbar fez parar os outros à porta. “Falo convosco mais tarde”, anunciou, e
mandou-os sair.
Lante despejou-me numa cadeira à mesa. Ouvi-o fechar suavemente a
porta atrás de si. Já baixara a cabeça para os braços cruzados quando o
Bobo falou comigo. “Estás doente?”
Abanei a cabeça sem a erguer. “Fraco. Como se estivesse exausto por
usar o Talento. Não sei porquê.” Dei uma gargalhada involuntária. “Se
calhar o brande de ontem à noite ainda não perdeu o efeito.”
Ele pousou-me suavemente as mãos nos ombros e massajou-me aí os
músculos. “Tintaglia emitiu uma poderosa aura de encantamento. Eu fiquei
paralisado por ela e aterrorizado com a fúria que ela gerou contra ti. É tão
estranho sentir mas ser incapaz de ver. Eu sabia que ela ia matar-te e estava
impotente. Mas ouvi-te. Mantiveste-te firme perante aquilo.”
“Tinha as muralhas erguidas. Julguei que ia morrer. Mas ganhámos um
bocadinho de conhecimento; Fogogelo está vivo.” A sensação das mãos
dele nos meus ombros era boa mas fazia-me lembrar demasiado Moli.
Livrei-me do seu toque com uma contorção de ombros e ele foi ocupar uma
cadeira à mesa a meu lado, sem uma palavra.
“Podias ter morrido hoje”, explicou. Abanou a cabeça. “Não sei o que
faria. Praticamente desfiaste-a a matar-te. Queres morrer?”
“Sim.” Admiti-o. “Mas ainda não”, acrescentei. “Só depois de ter posto
um monte de outras pessoas debaixo de terra. Preciso de armas, Bobo. As
melhores armas de um assassino são informação e mais informação.”
Suspirei. “Não sei se Fogogelo sabe algo de útil. Nem sei se ele quereria
partilhar o que sabe com Tintaglia ou como nós receberíamos a informação
se quisesse. Bobo, nunca me senti tão impreparado para uma tarefa.”
“Comigo é o mesmo. Mas nunca me senti tão determinado a levá-la a
cabo.”
Endireitei-me um pouco mais e apoiei um cotovelo na mesa. Toquei-lhe a
mão enluvada. “Continuas zangado comigo?”
“Não.” E depois: “Sim. Fizeste-me pensar em coisas de que não me
quero lembrar.”
“Preciso que te lembres dessas coisas para mim.”
Ele virou a cara para o lado mas não recolheu a mão. Esperei.
“Pergunta”, ordenou-me com uma voz dura.
Bom. Estava na altura de torturar o meu amigo. O que precisava mais de
saber? “Existe alguém em Clerres que possa ajudar-nos? Alguém com quem
possamos conspirar? Existe alguma maneira de lhes enviar a mensagem de
que vamos a caminho?”
Silêncio. Iria ele recuar agora? Eu sabia que o estratagema do brande não
voltaria a resultar. “Não”, acabou por arrancar a si mesmo. “Não há maneira
de enviar uma mensagem. O Prilkop pode ainda estar vivo. Eles separaram-
nos quando deram início à tortura. Parto do princípio de que ele foi sujeito a
um tratamento muito parecido com o meu. Se estiver vivo, o mais certo é
ainda ser prisioneiro. Acho que o consideravam demasiado valioso para o
matarem, mas posso enganar-me.”
“Sei que duvidas daqueles que te ajudaram a escapar. Mas tu e Prilkop
enviaram mensageiros para o exterior. Eram-te leais? Algumas dessas
pessoas permanecem em Clerres?”
Ele abanou a cabeça. Continuava sem me encarar. “Nós conseguimos
fazer isso nos primeiros anos que passámos em Clerres. Depois de termos
ficado incomodados com os Quatro mas antes de eles se aperceberem de
que não confiávamos neles. Enviámo-los primeiro para te avisar de que os
Quatro podiam tentar fazer-te mal. Enquanto estávamos a fazer isso, os
Quatro continuaram a tentar conquistar-nos para a sua forma de pensar.
Talvez julgassem realmente que os seus Cotejadores e Manipulores nos
levariam a acreditar que tínhamos errado.” Fez um sorriso sardónico. “Em
vez disso aconteceu o contrário. Acho que consideraram as nossas histórias
entusiasmantes, uma vez que pouco sabiam da vida fora das muralhas. À
medida que lhes íamos contando mais da vida no exterior do seu mundo
sequestrado, alguns foram começando a questionar o que os Servos lhes
tinham ensinado. Não me parece que, a princípio, os Quatro tenham
compreendido quanta influência tínhamos começado a ter.”
“Cotejadores? Manipulores?”
Ele soltou uma fungadela de desagrado. “Títulos bonitos. Os Cotejadores
classificam os sonhos e encontram ligações e sequências. Os Manipulores
tentam encontrar as pessoas ou acontecimentos futuros que forem mais
vulneráveis para fazer o futuro mudar de formas que beneficiem os Quatro
e os seus Servos. Foram eles quem se esforçou tanto para me convencer e a
Prilkop de que estávamos errados. Sobre tudo, mas em especial sobre a
afirmação de que um dos meus Catalisadores tinha cumprido as profecias
de sonho sobre o Filho Inesperado. Foram eles que nos falaram dos sonhos
sobre um novo Profeta Branco, nascido ‘em estado selvagem’, como eles
diziam. Os sonhos sobre essa criança correlacionavam-se com os sonhos
sobre o Filho Inesperado de formas que não era possível negar, mesmo por
mim. Eles falavam de um sonho sobre uma criança que tinha o coração de
um lobo.
“Tu perguntaste como eu posso ter a certeza de que tudo o que fizemos,
tudo o que alterámos, era o rumo certo para o mundo caso não sejas o Filho
Inesperado. Foi precisamente essa a questão com que me massacraram. E
eu vi-a rachar a confiança de Prilkop. Nos dias que se seguiram, discutimo-
la em privado. Eu sempre insisti que o Filho Inesperado eras tu. Mas ele
depois perguntava, e com razão: ‘Então e esses novos sonhos?’ E eu não
tinha resposta para isso.” Engoliu em seco. “Não tinha absolutamente
nenhuma resposta.
“E numa noite de vinho e camaradagem os nossos amiguinhos
sussurraram que a criança nascida em estado selvagem tinha de ser
encontrada e controlada antes de poder causar algum mal ao rumo do
mundo. Sabiam que os Quatro estavam decididos a encontrar esta criança.
Nem todos os Quatro acreditavam que o novo profeta era o Filho
Inesperado, mas um deles, sim. Falo de Symphe. Sempre que jantávamos
com os Quatro, ela desafiava-me. E os desafios eram tão fortes que
abalaram até a minha crença. Dia após dia, os Quatro ordenavam que a
biblioteca de sonhos tinha de ser perscrutada para que a criança pudesse ser
encontrada. E ‘controlada’. Eu comecei a temer que eles encontrassem as
mesmas pistas que eu encontrei e segui, há tantos anos, para te encontrar.
Portanto, enviei os outros mensageiros, aqueles que te pediram para
encontrares o Filho Inesperado. Pois eles tinham-me convencido de que
havia um Profeta Branco ‘nascido em estado selvagem’. E aí tinham razão.
Eles souberam que Abelha existia muito antes de eu o saber. E Dwalia
convenceu-os de que a criança que sentiam existir era o Filho Inesperado.”
As palavras dele arrepiaram-me. Eles tinham “sentido” que Abelha
existia? Necessitava de compreender por completo tudo o que ele estava a
dizer-me e fiz em bocados as suas palavras na minha mente. “O que
queriam eles dizer com ‘nascido em estado selvagem’?”
Os seus ombros oscilaram. Aguardei. “A Clerres de que Prilkop se
lembrava”, começou e a voz embargou-se-lhe, obrigando-o a parar.
“Queres uma chávena de chá?”, ofereci.
“Não.” De súbito agarrou-me a mão com força. Depois perguntou:
“Sobrou algum brande?”
“Vou ver.”
Encontrei a garrafa rolhada meio escondida debaixo de uma almofada.
Restava algum. Não muito, mas algum. Encontrei a chávena dele, enchi-a e
pousei-a na mesa. A sua mão nua deslizou para a chávena. Ergueu-a e
bebeu. Quando reocupei o meu lugar, reparei que a mão enluvada estava
onde eu a deixara. Tomei-a na minha. “A Clerres de Prilkop?”
“Era uma biblioteca. Toda a história dos Brancos, todos os sonhos que
alguma vez tinham sido registados, cuidadosamente organizados e
analisados nos escritos de outros. Era um lugar para historiadores e
linguistas. Na época dele todos os Profetas Brancos nasciam em estado
selvagem. As pessoas reconheciam que o seu filho era… peculiar. E
levavam a criança para Clerres. Ou a criança crescia e sabia que ele ou ela
tinha de fazer a viagem. Aí, o Profeta Branco dessa época teria acesso a
todos os sonhos e histórias de outros Profetas Brancos mais antigos. Eram
educados e protegidos, alimentados, vestidos e preparados. E quando o
Profeta Branco sentia que estava pronto para dar início ao seu trabalho no
mundo, eram-lhe dadas provisões — dinheiro, uma montada, roupas de
viagem, armas, penas e papéis — e era posto a caminho, como aconteceu
com Prilkop. E os Servos que permanecessem em Clerres registavam tudo o
que sabiam sobre o profeta e eles e os seus descendentes aguardavam
pacientemente pelo próximo.” Voltou a beber. “Não havia nenhuns
‘Quatro’. Só Servos. Pessoas que aguardavam para servir.”
Um longo silêncio. Arrisquei: “Mas Clerres não foi assim para ti.”
Ele abanou a cabeça, a princípio devagar e depois com força. “Não. Não
foi nada assim! Depois de os meus pais lá me terem deixado, fiquei
espantado por descobrir que não era nada único naquele lugar! Eles
acolheram-me, a princípio com bondade e gentileza, numa fileira de
pequenas casinhas num jardim bonito, com vinhedos e uma fonte. E na
casinha para onde me levaram encontrei mais três crianças, todas quase tão
pálidas como eu.
“Mas eram todos meios-irmãos. E tinham nascido ali em Clerres.
Nascidos e criados lá. Porque os Servos já não serviam o Profeta Branco
mas a si mesmos. Tinham reunido crianças, pois eram capazes de seguir a
linhagem de cada Profeta Branco. Um primo, um sobrinho-neto, um neto de
que se dizia ser descendente de um Profeta Branco. Reúnam-se, alojem-se
juntos, e criem-se como coelhos. Reproduzam-se repetidamente uns com os
outros. Mais cedo ou mais tarde, a característica rara vem à superfície. Viste
o Castro fazê-lo. O que resulta com cães e cavalos resulta também com
pessoas. Em vez de esperarem pelo aparecimento de um Branco nascido no
exterior, eles fizeram os seus. E colheram os sonhos deles. E os Servos, que
em tempos acreditavam que os Profetas Brancos nasciam para pôr o mundo
num caminho melhor, esqueceram esse dever e começaram a só querer
saber de se enriquecerem e do seu próprio conforto. O ‘verdadeiro
Caminho’ deles é uma conspiração para tornar possível tudo o que lhes
traga o máximo de riqueza e poder! Os seus Brancos criados em Clerres
fizeram o que lhes foi ordenado. Em pequenas coisas. Colocando um
homem diferente no trono de um reino vizinho. Armazenando lã e não
avisando ninguém da futura praga que ia matar todas as ovelhas. Até que,
por fim, talvez tenham decidido livrar o mundo de dragões e Antigos.”
Bebeu o resto de brande que tinha na chávena e pousou-a na mesa, fazendo-
a tinir.
Virou finalmente a cara para mim. Lágrimas tinham erodido os coloridos
pós e tintas de Âmbar. O negro que lhe contornava os olhos transformara-se
em trilhos escuros pela cara abaixo. “Basta, Fitz”, disse, num tom
definitivo.
“Bobo, eu tenho de saber…”
“Basta por hoje.” A mão encontrou às apalpadelas a garrafa de brande.
Para um cego, fez um trabalho razoável a despejar na chávena os restos que
havia na garrafa. “Eu sei que tenho de te falar destas coisas”, disse com voz
rouca. “E vou falar. Ao meu ritmo.” Abanou a cabeça. “Que grande
confusão que eu fiz. O Profeta Branco. E aqui estou, cego e quebrado, a
arrastar-te outra vez para isto. O nosso último esforço para mudarmos o
mundo.”
Sussurrei as palavras aos meus botões. “Não faço isto pelo mundo. Faço-
o por mim.” Levantei-me em silêncio e deixei-lhe a mesa e o brande.

Nos dois dias que decorreram até o Lobo-do-Mar abandonar a aldeia e


atravessar o rio para o nosso lado, não voltei a ver Tintaglia. Lante ouvira
dizer que o dragão azul bebera uma grande quantidade de Prata, matara uma
peça de caça e comera-a, dormira e recebera cuidados dos seus Antigos nos
fumegantes banhos dos dragões. Depois voltara a beber Prata e partira.
Ninguém sabia se fora caçar ou partira em busca de Fogogelo. Abri mão da
esperança de vir a aprender alguma coisa com ela.
O Bobo correspondeu à palavra dada. Na mesa, no meu quarto, ele
construiu um mapa da ilha e da cidade e castelo de Clerres. Eu acumulei
pratos, talheres e guardanapos das nossas refeições e os dedos tateantes do
Bobo moveram muralhas de colheres e dispuseram torres de pratos. Com
base naquela peculiar representação, esbocei Clerres. As fortificações
exteriores eram dominadas por quatro robustas torres, cada uma das quais
encimada por uma imensa cúpula em forma de crânio. Lâmpadas ardiam
nos olhos do crânio durante a noite. Hábeis arqueiros percorriam
permanentemente as ameias das muralhas da fortificação exterior.
No interior das elevadas muralhas brancas da fortaleza, uma muralha
secundária rodeava graciosos jardins, as casinhas que alojavam os Brancos
e um forte de pedra branca e osso. O forte tinha quatro torres, todas mais
altas e mais estreitas do que as torres de vigia das muralhas exteriores.
Arrastámos uma mesa de cabeceira para a sala principal e criámos aí um
mapa do piso principal do forte dos Servos.
“O forte tem quatro andares acima do chão e dois abaixo”, informou-me
o Bobo enquanto formava as paredes com lenços e dispunha torres de
chávenas. “Isso sem contar com as majestosas torres onde os Quatro
habitam. Essas torres são mais altas do que as torres de vigia nas muralhas
exteriores. O terraço do forte é plano. Aí ficam os antigos alojamentos do
harém, dos dias em que Clerres era, não só um palácio, mas também um
castelo. Esses alojamentos são usados para confinar os prisioneiros mais
importantes. As torres têm uma excelente vista da ilha do castelo e do porto
e das colinas atrás da cidade. É um edifício muito antigo, Fitz. Não me
parece que alguém saiba como as torres foram feitas tão estreitas,
expandindo-se apesar disso no topo em salas tão grandiosas.”
“Têm a forma de cogumelos?”, perguntei, enquanto tentava visualizá-las.
“Serão como cogumelos requintadamente graciosos, talvez”, e ele quase
sorriu.
“Quão estreitos são os caules desses cogumelos?”, perguntei.
Ele refletiu na pergunta. “Na base, são tão largos como o Grande Salão
do Castelo de Torre do Cervo. Mas, à medida que se sobe, estreitam-se até
metade do tamanho.”
Acenei de mim para mim, bastante contente com tal imagem. “E é aí que
cada um dos Quatro dorme à noite? Num quarto da torre?”
“Principalmente, sim. É bem conhecido que Fellowdy tem apetites
carnais que satisfaz em vários locais. Capra dorme quase sempre no seu
quarto na torre. Symphe e Coultrie na maior parte das noites, imagino. Fitz,
já se passaram muitos anos desde que eu estive ao corrente das suas vidas e
hábitos.”
O Castelo de Clerres erguia-se numa ilha de pedra branca, sozinho. Das
muralhas exteriores do castelo até aos íngremes limites da ilha só existia
terra plana e pedregosa que qualquer invasor teria de atravessar para
alcançar as muralhas. A água e a estreita passagem eram mantidas sob
vigilância. A passagem abria-se duas vezes por dia, na maré baixa, a fim de
permitir as idas e vindas dos criados e para deixar passar os peregrinos que
iam descobrir os seus futuros.
“Quando os peregrinos atravessam a passagem e penetram nas muralhas,
veem o forte com a trepadeira do tempo esculpida em baixo-relevo na
fachada. Todas as salas mais grandiosas ficam no piso térreo: as salas de
audiências, o salão de baile, o salão de banquetes, todas revestidas de
madeira branca. Algumas das salas de ensino ficam lá, mas a maioria
encontra-se no primeiro andar. Os jovens Brancos são ensinados e os seus
sonhos são colhidos. Nesse piso ficam aposentos extravagantes, onde
clientes ricos podem descontrair e beber vinho e ouvir os Cotejadores a ler-
lhes pergaminhos selecionados e os Lingstras a interpretá-los. Por um preço
chorudo.”
“E os Lingstras e Cotejadores são todos Brancos?”
“A maioria tem um vestígio de ascendência Branca. Nascidos em
Clerres, são criados para serem servos dos Quatro. Também ‘servem’ os
Brancos que são capazes de sonhar, de forma muito semelhante a uma
carraça quando cai num cão. Sugam sonhos e ideias e expressam-nos como
futuros possíveis aos tolos ricos que vêm consultá-los.”
“Então são charlatães.”
“Não”, disse ele em voz baixa. “Essa é a parte pior, Fitz. Os ricos
compram conhecimentos sobre o futuro, para se tornarem ainda mais ricos.
Os Lingstras reúnem sonhos sobre uma seca vindoura e aconselham um
homem a açambarcar cereais para vender aos vizinhos esfomeados. A
pestilência e a praga podem tornar uma família rica se já a esperar. Os
Quatro já não pensam em colocar o mundo num rumo melhor, mas apenas
em lucrar com desastres e acasos da sorte.”
Respirou fundo. “No segundo andar fica o valioso tesouro dos Servos. Há
seis salas de coleções de pergaminhos. Alguns dos pergaminhos têm uma
idade inestimável e novos sonhos são escritos e acrescentados todos os dias.
Só os mais ricos podem dar-se ao luxo de passear por lá. Por vezes, podem
deixar entrar um sacerdote rico de Sa para estudar de forma independente,
mas só se houver riqueza e influência a obter.
“Por fim, no terceiro andar ficam os alojamentos dos Servos que estão
nos bons favores dos Quatro. Alguns guardas vivem aí, os de maior
confiança, que protegem as entradas para todas as torres privadas dos
Quatro. E os sonhadores Brancos mais prolíficos também são alojados
nesse piso, onde os Quatro podem facilmente descer das suas grandiosas
torres a fim de se reunirem com eles. Nem sempre reuniões da espécie
elevada e intelectual, quando se trata de Fellowdy.” Parou de falar. Não
perguntei se alguma vez tinha sido vítima desse tipo de atenção.
Ele levantou-se abruptamente e atravessou a sala, falando por sobre o
ombro. “Sobes mais um lanço de escadas e sais para o terraço e os antigos
alojamentos do harém, que são agora as celas onde estão guardados os
Brancos recalcitrantes.” Afastou-se do nosso trabalho. “É possível que
Prilkop seja agora mantido aí. Ou o que restar dele.” Inspirou súbita e
profundamente. Depois, Âmbar falou. “Isto aqui está abafado. Chama-me a
Centelha, por favor. Quero ir apanhar ar.”
Fiz o que ela pediu.

As minhas sessões com o Bobo eram breves e intermitentes. Escutei muito


mais do que falei e se ele se levantasse silenciosamente, se transformasse
em Âmbar e saísse da sala, eu deixava-o ir. Na sua ausência, esboçava e
tomava nota de bocados essenciais de informação. Dava valor ao que
tínhamos partilhado mas precisava de mais. Ele não possuía nenhuma
informação recente sobre os vícios ou pontos fracos dos Quatro, não tinha
nomes de amantes ou inimigos, não fazia ideia das rotinas diárias. Isso
aprenderia eu espiando, quando chegasse a Clerres. Não havia pressa. A
pressa não traria Abelha de volta. Aquela seria uma vingança fria e
cuidadosamente calculada. Quando eu atacasse, fá-lo-ia de forma
minuciosa. Seria bom, pensei, se eles morressem sabendo por que crime
sofriam. Mas se não soubessem, ficariam igualmente mortos.
Os meus planos eram forçosamente simplistas e a minha estratégia
rarefeita. Arranjei à minha frente as coisas de que dispunha e refleti em
possibilidades. Cinco dos potes explosivos de Breu tinham sobrevivido ao
ataque do urso. Um estava rachado e a derramar um pó preto e grosso.
Alisei cera de vela e reparei-o. Tinha facas e a minha velha funda e um
machado demasiado grande para andar com ele numa cidade pacífica;
duvidava que essas armas fossem úteis. Tinha venenos em pó para misturar
com comida e alguns para espalhar por uma superfície, óleos que podiam
ser postos numa maçaneta ou na borda de uma caneca, líquidos e pastilhas
sem sabor, todas as formas de veneno que conhecia. O ataque do urso
roubara-me aqueles que transportara em quantidade; não tinha esperança de
envenenar o abastecimento de água do castelo ou um grande panelão de
comida. Tinha veneno suficiente para usar se conseguisse levar os Quatro a
sentar-se a jogar aos dados comigo. Duvidava que uma tal oportunidade
existisse. Mas se conseguisse obter acesso aos seus alojamentos pessoais,
podia pôr-lhes fim.
Na mesa de cabeceira, nas chavenazinhas que representavam as torres,
coloquei quatro pedras pretas. Estava com a quinta na mão, a matutar,
quando Per e Centelha entraram com a Dama Âmbar e Lante. “É um
jogo?”, perguntou Per, fitando consternado as mesas cheias de coisas e o
meu material de assassino disposto meticulosamente no chão.
“É, se o assassínio for um jogo”, disse Centelha em voz baixa. Veio pôr-
se a meu lado. “O que representam as pedras pretas?”
“Os potes de Breu.”
“O que é que fazem?”, perguntou Per.
“Rebentam com coisas. Como a seiva presa a saltar de um bocado de
lenha.” E indiquei com um gesto os quatro potezinhos.
“Só que são mais poderosos”, disse o Bobo.
“Muito mais”, disse Centelha em voz baixa. “Eu testei alguns com Breu.
Quando ele estava saudável. Abrimos um grande buraco numa falésia de
pedra perto da praia. Voaram lascas de rocha para todo o lado.” Tocou a
cara, como se se lembrasse da picada de uma lasca.
“Ótimo”, disse o Bobo. Sentou-se à mesa. Âmbar estava totalmente
desaparecida quando os seus dedos dançaram pelos objetos cuidadosamente
organizados. “Um pote de fogo para cada torre?”
“Pode funcionar. A colocação dos potes e a força das paredes das torres
são a chave. Os potes têm de estar altos o suficiente nas torres para as
fazerem ruir enquanto os Quatro estão na cama. Os potes têm de explodir
em simultâneo, portanto vou precisar de rastilhos de diferentes
comprimentos, para poder instalar e acender um rastilho e depois passar ao
próximo até todos os quatro estarem a arder.”
“E ainda vos dar tempo para escapar”, sugeriu Lante.
“Isso seria muito agradável, sim.” Não achava provável que os potes
explodissem em simultâneo. “Preciso de alguma coisa com que fazer
rastilhos.”
Centelha carregou o cenho. “Os rastilhos já não estão no topo dos potes?”
Fitei-a. “O quê?”
“Dai-me um. Por favor.”
Com relutância, peguei no pote reparado e entreguei-lho. Ela franziu o
sobrolho ao pote. “Não tenho a certeza de que devais sequer tentar usar
este.” Tirou a tampa ao pote e eu vi que ela se mantivera segura com uma
resina densa. Lá dentro havia duas cordas enroladas. Uma era azul e a outra
branca. Ela pescou-as para fora. A azul tinha o dobro do comprimento da
branca. “O azul é mais comprido e arde mais devagar. O branco arde
depressa.”
“Quão depressa?”
Ela encolheu os ombros. “O branco é para acender e fugir. É bom se
estiverdes a ser perseguido. Quanto ao azul, podeis escondê-lo e depois
acabar o vinho e despedir-vos do vosso anfitrião e sair pela porta em
segurança.”
Lante debruçou-se por cima do meu ombro. Ouvi o sorriso na voz dele.
“É muito mais fácil usar isso com dois de nós. Um homem nunca
conseguirá colocar todos os quatro e escapar-se antes de eles explodirem.”
“Três de nós”, insistiu Centelha. Fitei-a. A sua expressão ficou indignada.
“Eu tenho mais experiência com eles do que qualquer outro dos presentes!”
“Quatro”, disse Per. Perguntei a mim mesmo se ele compreenderia que
estávamos a falar de assassínio. Era culpa minha que eles se incluíssem
naquilo. Um Fitz mais novo e mais enérgico teria mantido os seus planos
escondidos. Eu estava velho e cansado e eles já sabiam demasiado.
Perigosamente demasiado, para eles e para mim. Perguntei a mim mesmo se
me restaria algum segredo quando morresse.
“Quando o momento chegar, veremos”, disse-lhes, sabendo que eles
argumentariam se eu simplesmente dissesse que não.
“Eu não verei”, interveio o Bobo no silêncio que se seguiu. Houve um
momento de desconforto e depois Per soltou um riso embaraçado. Juntámo-
nos a ele, com mais amargura do que alegria. Mas ainda estávamos vivos, e
ainda avançávamos para o nosso objetivo assassino.
Capítulo 9

O Lobo-do-Mar

Mesmo antes de o Rei Sagaz ter muito insensatamente imposto a


estrita limitação da instrução no Talento aos membros da família
real e só a eles, a magia estava a cair em desuso. Quando eu estava
no meu vigésimo segundo ano, uma tosse hemorrágica varreu todos
os ducados costeiros. Os jovens e os velhos foram levados em
grande quantidade. Muitos utilizadores de Talento idosos morreram
nessa praga, e com eles se finaram os seus conhecimentos da magia.
Quando o Príncipe Majestoso descobriu que pergaminhos sobre a
magia do Talento obtinham preços elevados junto de mercadores
estrangeiros, começou a esvaziar em segredo as bibliotecas de Torre
do Cervo. Saberia ele que aqueles preciosos pergaminhos
acabariam por cair nas mãos da Mulher Pálida e dos Salteadores
dos Navios Vermelhos? Essa é uma questão há muito debatida entre
a nobreza de Cervo e, uma vez que Majestoso está morto e enterrado
há muitos anos, é provável que nunca venhamos a conhecer a
verdade sobre ela.
Sobre o Declínio no Conhecimento do Talento Durante o Reinado do
Rei Sagaz, Breu Tombastela

F
omos em conjunto até ao cais para assistirmos à chegada do Lobo-
do-Mar a Kelsingra. Eu crescera na Cidade de Torre do Cervo, onde
as docas eram feitas de pesada madeira negra com carregado odor a
piche. Essas docas pareciam estar lá desde que El trouxera o mar até às
nossas costas. Esta era de construção recente, feita com tábuas claras e
algumas colunas de pedra e outras de madeira em bruto. Nova construção
fora ligada aos velhos restos de um cais dos Antigos. Matutei naquilo, pois
não me pareceu que aquele fosse o melhor local para um cais. Os edifícios
meio devorados na margem do rio diziam-me que era frequente o rio mudar
de curso. Os novos Antigos de Kelsingra precisavam de levantar os olhos
daquilo que existira e pensar no rio e na cidade tais como eram agora.
Acima dos penhascos quebrados que limitavam a cidade, nos montes
mais elevados, a neve reduzira-se a estreitos dedos aleatórios. À distância,
eu conseguia ver as bétulas ruborescidas de rosa e os salgueiros a ficar
vermelhos nas pontas dos ramos. O vento que vinha do rio era húmido e
frio, mas o gume cortante do inverno desaparecera. O ano estava a virar e,
com ele, virava a direção da minha vida.
Uma chuva cintilante caiu enquanto o Lobo-do-Mar se aproximava.
Matizada manteve-se colada ao ombro de Perseverança, com a cabeça bem
encolhida para se defender da chuva. Lante estava atrás dele. Centelha
encontrava-se ao lado de Âmbar. Aglomerámo-nos perto o suficiente para
assistir mas deixámo-nos ficar atrás o suficiente para não atrapalharmos. A
mão enluvada de Âmbar pousava no meu pulso. Falei-lhe em voz baixa. “O
rio vai rápido e profundo e sem dúvida frio. Os sedimentos tornam-no
cinzento-claro e cheira mal. Em tempos houve aqui mais margem. Ao longo
das décadas, o rio foi devorando a margem para dentro de Kelsingra. Estão
aqui amarrados outros dois navios. Ambos parecem estar ociosos.
“O Lobo-do-Mar é uma barcaça fluvial. Espadela, remos, comprida e
baixa na água. Uma mulher poderosa maneja a espadela. O navio viajou rio
acima do outro lado do rio e agora atravessou a corrente, virou para trás e
vem avançando a favor da corrente. Não há figura de proa.” Estava
desapontado. Tinha ouvido dizer que as figuras de proa dos navios vivos
conseguiam mover-se e falar. “Tem olhos pintados no casco. E vem
depressa com a corrente, e dois marinheiros foram-se juntar à timoneira ao
leme. A tripulação está a combater a corrente para trazer o navio para aqui.”
Quando o Lobo-do-Mar se aproximou e os seus cabos foram atirados às
pessoas que estavam no cais, onde foram apanhados e enrolados em volta
dos cunhos, a barcaça empinou-se como um cavalo voluntarioso e
acumulou-se água contra a sua popa. Havia qualquer coisa de estranho no
modo como a barcaça combatia a corrente, mas eu não consegui perceber o
quê. Água espumejava a toda a sua volta. Os cabos e o madeirame do cais
rangeram ao receber o peso do navio.
Alguns cabos foram apertados e a outros foi dada folga até o capitão ficar
convencido de que a sua embarcação estava bem presa ao cais. Os
remadores esperavam com os seus carrinhos de mão e um Antigo alto
estava a sorrir no cais como só um homem à espera de ver a sua amada
sorri. Alum. Era esse o seu nome. Observei o convés e depressa a localizei.
Estava em constante movimento, a transmitir ordens e a ajudar a prender
bem o Lobo-do-Mar ao cais, mas por duas vezes vi os seus olhos
percorrerem a multidão que os recebia. Quando viu o seu namorado Antigo,
a face iluminou-se-lhe e pareceu mover-se de forma ainda mais eficiente,
como que para exibir a sua mestria.
Uma prancha foi atirada para baixo e cerca de uma dúzia de passageiros
desembarcou, levando as suas posses em sacos ou embrulhos. Os
imigrantes desceram para terra de forma insegura, erguendo os olhos em
espanto ou talvez consternação para a cidade meio arruinada. Perguntei a
mim mesmo o que teriam imaginado e se ali permaneceriam. Numa prancha
separada, os barqueiros começaram e ir e vir como uma fileira de formigas,
enquanto o navio vomitava carga. “Aquele é o barco em que vamos
viajar?”, perguntou Centelha em tom de dúvida.
“É esse mesmo.”
“Nunca estive num barco.”
“Eu já estive em barcos pequenos. Barcos a remos no Mirra. Nada como
aquilo.” Os olhos de Perseverança percorreram o Lobo-do-Mar. Tinha a
boca ligeiramente entreaberta. Não consegui perceber se estava ansioso ou
impaciente.
“Não vai haver problemas”, assegurou-lhes Lante. “Vejam como aquele
navio é estável. E nós só vamos estar num rio, não no mar.”
Tomei interiormente nota de que Lante falava com os jovens mais como
se fossem seus irmãos mais novos do que seus criados.
“Vês o capitão?”
Respondi à pergunta de Âmbar. “Vejo um homem já passado da meia-
idade que se aproxima de Reyn. Já foi mais cheio durante a vida, parece-
me, mas agora está muito magro. Cumprimentam-se um ao outro com
amizade. Suspeito que é Leftrin, e a mulher que o acompanha deverá ser
Alise. Tem uma grande quantidade de um cabelo avermelhado muito
encaracolado.” Âmbar partilhara comigo a escandalosa história de como
Alise abandonara o seu marido de Vilamonte, legal mas infiel, para ir viver
com o capitão de um navio vivo. “Estão os dois a lançar exclamações em
volta de Phron. Parecem entusiasmadíssimos.”
A mão dela apertou-se ligeiramente no meu braço enquanto colocava um
sorriso no rosto.
“Aí vêm eles”, acrescentei em voz baixa. Lante colocou-se a meu lado.
Atrás de mim, Per e Centelha silenciaram-se. Aguardámos.
Um sorridente Reyn apresentou-nos. “E aqui estão os nossos visitantes
dos Seis Ducados! Capitão Leftrin e Alise do navio vivo Lobo-do-Mar,
posso apresentar-vos o Príncipe FitzCavalaria Visionário, a Dama Âmbar e
Dom Lante dos Seis Ducados?”
Lante e eu fizemos vénias e Âmbar baixou-se e ergueu-se numa elegante
reverência. Leftrin esboçou uma vénia surpreendida e Alise exibiu uma
reverência respeitável antes de se levantar para me fitar com um ar
consternado. Um sorriso passou-lhe pela cara antes de parecer lembrar-se
das boas maneiras. “Estamos felizes por vos oferecermos passagem até
Trehaug no Lobo-do-Mar. Malta e Reyn disseram-nos que a renovada saúde
de Ephron se deve à vossa magia. Obrigada. Não temos filhos nossos e
Ephron é tão querido para nós como para os pais dele.”
O Capitão Leftrin acenou gravemente com a cabeça. “É como diz a
senhora”, acrescentou bruscamente. “Dai-nos um dia ou dois para pormos a
carga na praia, darmos à tripulação uma licençazinha em terra e ficamos
prontos para vos levarmos rio abaixo. Os alojamentos no Lobo-do-Mar não
são espaçosos. Faremos os possíveis por vos deixarmos confortáveis, mas
tenho a certeza de que não será o tipo de viagem a que um príncipe está
acostumado, e nem um senhor e uma dama.”
“Estou certo de que ficaremos muito satisfeitos com o que nos oferecer.
O que procuramos não é o conforto mas o transporte”, respondi.
“E isso é coisa que o Lobo-do-Mar pode fornecer, mais depressa e
melhor do que qualquer outro neste rio.” Ele falava com o orgulho de um
capitão que é dono do seu navio. “Seria de bom grado que vos daríamos
agora as boas-vindas a bordo para vos mostrarmos os aposentos que
preparámos para vós.”
“Com todo o gosto”, respondeu calorosamente Âmbar.
“Por aqui, por favor.”
Seguimo-los para o cais e pela prancha acima. O caminho era estreito e
eu tive receio de que Âmbar pudesse falhar algum passo, mas ao pôr o pé
no convés da barcaça, essa preocupação foi substituída por uma nova. O
navio vivo ressoava contra a minha Manha e o meu Talento. Era de facto
um navio vivo, tão vivo como qualquer criatura que eu já tivesse visto a
mover-se e a respirar! Tive a certeza de que o Lobo-do-Mar estava tão
consciente de mim como eu estava dele. Lante olhava em volta com um
largo sorriso na cara, tão contente como um rapaz numa aventura, e a
expressão de Per fazia eco da dele. Matizada saltara do ombro do rapaz e
descrevia círculos desconfiados sobre a barcaça, batendo as asas com força
para manter a posição contra o vento que vinha do rio. Centelha mostrava-
se mais reservada do que Lante e Per, quase desconfiada. Âmbar voltou a
pôr a mão no meu braço assim que pôde e agarrou-o com força. Alise
entrou no navio, seguida por Leftrin. Ambos pararam tão abruptamente
como se tivessem encontrado uma parede.
“Ena”, disse Alise baixinho.
“Um pouco mais do que isso”, disse Leftrin numa voz tensa. Imobilizou-
se e a comunicação entre ele e o navio era como uma corda a ser dedilhada.
Fitou-me. “O meu navio está… tenho de perguntar. Algum dragão vos
reclamou?”
Ambos ficámos hirtos. Teria o navio detetado o sangue de dragão que ela
consumira? Âmbar largou-me o braço e ficou sozinha, pronta para deixar
todas as culpas cair sobre si. “Acho que o que o vosso navio sente em mim
é na verdade…”
“Peço perdão, minha senhora, mas não sois vós quem está a perturbar o
meu navio. É ele.”
“Eu?” Até aos meus ouvidos o meu sobressalto soou tolo.
“Vós”, confirmou Leftrin. Tinha a boca tensa. Deitou um olhar a Alise.
“Querida, talvez possas mostrar os aposentos às senhoras enquanto eu
arrumo este assunto, não?”
Os olhos de Alise estavam muito grandes. “Claro que posso”, e eu soube
que estava a ajudá-lo a separar-me dos meus companheiros, embora não
conseguisse perceber porquê.
Virei-me para a minha minúscula comitiva. “Centelha, se puderes guiar a
tua ama enquanto eu converso com o capitão… Lante e Per, deem-nos
licença.”
Centelha compreendeu o aviso subentendido e depressa pegou no braço
de Âmbar. Lante e Perseverança já tinham avançado pelo convés,
examinando o navio enquanto caminhavam. “Fala-me do navio, Centelha”,
pediu Âmbar numa voz despreocupada. As duas afastaram-se devagar,
seguindo Alise, e eu ouvi a rapariga a acrescentar descrições a tudo o que
Alise lhes dizia.
Virei-me para Leftrin. “Eu desagrado ao vosso navio?”, perguntei. Não
estava a ler isso no que sentia do Lobo-do-Mar, mas nunca tinha estado a
bordo de um navio vivo.
“Não. O meu navio quer falar convosco.” Leftrin cruzou os braços sobre
o peito em forma de barril e depois pareceu aperceber-se de quão pouco
amistoso era o ar que isso lhe dava. Descruzou os braços e limpou as mãos
nas pernas das calças. “Vinde até à amurada de proa. Ele fala melhor aí.”
Avançou pesadamente e eu segui-o devagar. Ele falou comigo por sobre o
ombro. “O Lobo-do-Mar fala comigo”, disse. “Às vezes com Alise. Talvez
com Hennesey. Por vezes com os outros, em sonhos e assim. Eu não
pergunto e ele não me diz. Não é como outros navios vivos. É mais
independente do que… bem, vós não compreenderíeis. Não sois Mercador.
Digamos só o seguinte: o Lobo-do-Mar nunca pediu para falar com um
desconhecido. Não sei o que ele quer, mas compreendei que o que ele disser
é para valer. Os guardiães fizeram um acordo convosco, mas se ele disser
que não vos quer no seu convés, assunto arrumado.” Respirou fundo.
“Desculpai”, acrescentou.
“Compreendo”, disse eu, mas não compreendia. À medida que me fui
aproximando da proa, o meu sentido do Lobo-do-Mar foi-se tornando mais
penetrante. E desconfortável. Era como ser farejado por um cão. Um cão
grande e imprevisível. Com dentes a descoberto. Reprimi o impulso que
senti de também mostrar os dentes ou exibir alguma forma de agressão. A
presença dele fez uma pressão mais forte contra as minhas muralhas.
Eu permito isto, fiz-lhe notar quando ele fez penetrar os seus sentidos na
minha mente.
Como se tivesses o direito de recusar. Pisas o meu convés e eu vou
conhecer-te. Que dragão te tocou?
Dadas as circunstâncias, mentir teria sido uma tolice. Um dragão
introduziu-se nos meus sonhos. Creio que foi um dragão chamado Sintara,
que reclama para si a Antiga Thymara. Eu estive perto dos dragões
Tintaglia e Heeby. Talvez seja isso o que tu sentes.
Não. Cheiras a um dragão que eu nunca senti. Aproxima-te mais. Põe as
mãos na amurada.
Olhei para a amurada. O Capitão Leftrin estava a fitar o rio com uma
expressão pétrea. Não consegui perceber se ele estava ou não consciente do
que o seu navio me dizia. “Ele quer que eu ponha as mãos na amurada.”
“Então sugiro que o façais”, respondeu ele com ar rezingão.
Olhei para a amurada. A madeira era cinzenta, de grão fino e
desconhecida para mim. Descalcei as luvas e pousei as mãos nela.
Aí está. Eu sabia que o cheirava. Tocaste-o com as mãos, não tocaste?
Cuidaste dele.
Nunca cuidei de nenhum dragão.
Cuidaste. E ele reclama-te como seu.
Veracidade. Não era um pensamento que eu tivesse pretendido partilhar.
As minhas muralhas estavam a falhar perante a determinação daquele navio
em forçar entrada na minha mente. Defini melhor os meus limites, tentando
agir com subtileza para que o navio não o entendesse como um bloqueio
contra ele, mas a dúvida pusera-me o sangue a correr. Os dragões de carne e
osso contariam realmente Veracidade como um dragão que podia reclamar-
me? Eu sacudira-lhe as folhas do dorso. Seriam esses os “cuidados” que
aquele navio sentira? E se os dragões consideravam Veracidade um dragão,
considerá-lo-ia aquela barcaça um dragão?
O navio estava em silêncio, a refletir. Depois: Sim. Esse dragão. Ele
reclama-te.
Por cima de nós, Matizada crocitou ruidosamente.
A coisa mais difícil do mundo é não pensar em nada. Matutei no padrão
do vento e na corrente à superfície do rio. Ansiei por tentar contactar
Veracidade, com um desejo que quase ultrapassava a minha necessidade de
respirar. Por tocar com a mente e o coração aquela pedra fria, por sentir que,
de algum modo, ele me protegia. O navio intrometeu-se nos meus
pensamentos.
Ele reclama-te. Negas?
Sou seu. Fiquei surpreendido por descobrir que isso ainda era verdade.
Sou seu há muito, muito tempo.
Como se um humano soubesse o que é “muito, muito tempo”. Mas eu
aceito-te como seu. E uma vez que Leftrin e Alise o desejam, levar-te-ei até
Trehaug. Mas é tua vontade que eu faça isto. Não estou a interferir com um
humano reclamado por um dragão.
Perguntei a mim mesmo o que quereria dizer que um navio vivo me
“aceitava” e cria que um dragão de pedra me reclamara. Perguntei a mim
mesmo como me teria Veracidade marcado como seu. Teria ele sabido que
o fizera? Uma dúzia de perguntas brotaram-me na mente, mas o Lobo-do-
Mar mandara-me embora. Foi como uma porta a ser fechada numa taberna
ruidosa, deixando-me no escuro e em silêncio. Senti ao mesmo tempo um
enorme alívio por estar tão só e uma sensação de perda por coisas que ele
me poderia ter dito. Tentei alcançá-lo, mas não consegui sentir
absolutamente nada vindo do Lobo-do-Mar. O capitão Leftrin soube-o no
mesmo momento em que eu o soube. Fitou-me por um momento,
avaliando-me. Depois sorriu. “Ele já vos disse tudo o que queria dizer.
Quereis ir ver onde ficareis alojados durante a viagem rio abaixo?”
“Eu, hum, sim, por favor.” A mudança no comportamento do homem foi
tão abrupta como o sol a sair de trás de nuvens num dia de vento.
Ele levou-me para a popa, passando pela cabina do navio, na direção de
duas estruturas quadrangulares presas ao convés. “Isto atualmente é muito
mais agradável do que da primeira vez que o usámos. Nunca pensámos que
o Lobo-do-Mar viesse a transportar tantas pessoas, como caixotes de carga.
Mas os tempos mudam e nós mudamos com eles. Devagar, e às vezes sem
grande elegância, mas mesmo uma pessoa dos Ermos Chuvosos pode
mudar. Este é para vós, para Dom Lante e para o vosso rapaz.” Pareceu
desconfortável por um momento. “Seria melhor se vós e a senhora tivésseis
aposentos privativos, mas onde poria eu a vossa criada? As raparigas de
terra firme não parecem felizes por partilhar os alojamentos da tripulação,
embora no meu navio não haja perigo para elas. Só que não há privacidade.
Demos a outra cabina às mulheres. Tenho a certeza de que é muito menos
do que um príncipe espera, mas é o melhor que podemos oferecer.”
“Tudo o que desejamos é transporte, e eu contentar-me-ia com dormir no
convés. Não seria a primeira vez na vida.”
“Ah.” O homem descontraiu-se visivelmente. “Bem. Ouvir isso vai
acalmar as preocupações de Alise. Ela tem estado tão ansiosa desde que
recebemos a notícia de que vos íamos dar passagem. ‘Um príncipe dos Seis
Ducados! O que é que lhe vamos dar de comer, onde vai ele dormir?’ E por
aí fora. A minha Alise é assim. Quer sempre fazer as coisas da melhor
forma possível.”
Abriu a porta. “Houve uma época em que estas cabinas não eram muito
mais do que caixotes de carga em ponto grande. Mas nós tivemos quase
uma vintena de anos para as tornarmos confortáveis. Os outros ainda não
estiveram aqui, parece-me, portanto podeis ficar com qualquer beliche que
quiserdes.”
As pessoas que vivem a bordo de navios sabem como aproveitar o
melhor possível um espaço pequeno. Eu preparara-me para o cheiro de
roupa suja, para camas suspensas em tela e para um soalho cheio de lascas.
Duas pequenas janelas deixavam entrar a luz do dia e esta dançava em
reluzente madeira amarela. Quatro beliches empilhados dois a dois, nenhum
dos quais espaçoso, ocupavam duas das paredes. A sala cheirava
agradavelmente ao óleo que fora usado para limpar a madeira. Toda uma
parede era aparadores, gavetas e vãos instalados em volta da janelinha. Um
par de cortinas azuis tinha sido puxado para trás, a fim de que a janela
aberta deixasse entrar tanto a luz como o ar. “Não conseguiria imaginar uma
casinha aquática mais agradável!”, disse eu ao capitão e, quando me virei,
deparei-me com Alise a seu lado, radiante de prazer com as minhas
palavras. Lante e Perseverança encontravam-se atrás dela. As bochechas do
rapaz estavam vermelhas vivas devido ao vento e os seus olhos brilhavam.
O seu sorriso alargou-se quando espreitou a cabina.
“As senhoras também ficaram contentes com a delas”, observou Alise,
feliz. “Nesse caso, sede bem-vindos a bordo. Podeis trazer as vossas coisas
para bordo hoje, em qualquer altura, e ficai à vontade para ir e vir conforme
vos apeteça. A tripulação vai precisar de pelo menos um dia de descanso
aqui. Eu sei que estais ansiosos por partir rio abaixo, mas…”
“Um dia, ou até dois, não perturbarão os nossos planos”, respondi. “O
que temos para fazer esperará até chegarmos.”
“Mas o Modelo Ideal não pode esperar, portanto dia e meio é tudo o que
posso dar à minha tripulação desta vez”, foi a observação de Leftrin.
Abanou a cabeça a Alise. “Temos uma margem de erro muito pequena para
encontrarmos o Modelo Ideal em Trehaug. O tempo e as marés não esperam
por ninguém, querida, e ambos os navios têm horários a cumprir.”
“Eu sei, eu sei”, disse ela, mas sorriu ao dizê-lo.
Ele virou o sorriso para mim. “Os outros navios fazem viagens regulares
rio acima e rio abaixo, mas nenhum deles lida tão bem com a corrente como
o Lobo-do-Mar quando a água corre alta na primavera. Depois de o degelo
acabar e o rio acalmar, o Lobo-do-Mar e a sua tripulação podem fazer uma
pausa agradável enquanto os barcos resistentes têm a sua vez. Quando o rio
corre rápido com o degelo ou o ácido corre branco no canal principal, nós
deixamos os barquinhos bonitos bem amarrados e o Lobo-do-Mar põe a
carga aos ombros.” Falava com mais orgulho que pena.
“Vamos ficar repletos de passageiros na viagem rio abaixo?”, perguntou-
lhe Alise com certa ansiedade.
“Não. Eu falei com Harrikin. Se alguns dos novos não conseguirem
suportar os murmúrios da cidade, ele manda-os para a Aldeia do outro lado
do rio, para esperarem a nossa próxima viagem. Acho que tem a esperança
de que se instalem e arranjem trabalho por lá em vez de fugirem de volta
para o lugar de onde vieram.” Virou-se para mim. “Já são vinte anos a
trazer gente para cá e depois a levar metade de volta quando não conseguem
aguentar. Resulta num navio cheio de gente e turnos à mesa da cozinha.
Mas nesta viagem vão ser só vós, a tripulação e um pouco de carga. Deve
ser uma viagem agradável se o tempo continuar bom.”

A manhã seguinte estava tão limpa e azul como um dia pode estar. O vento
que vinha do rio mantinha-se sempre presente e nunca era gentil, mas agora
era definitivamente primavera. Senti o cheiro das folhas novas e pegajosas a
desenrolar-se e da terra escura a despertar. Ao pequeno-almoço que
partilhámos com os guardiães que se tinham reunido para fazer as
despedidas, havia umas chalotas frescas misturadas com a omelete e as
batatas fritas. Sylve disse-nos com júbilo que as galinhas que insistira em
manter nas estufas durante o inverno estavam agora outra vez a pôr ovos de
forma confiável.
A reunião de despedida incluía os filhos e os companheiros dos
guardiães. Muitos vieram agradecer-me mais uma vez e oferecer-me
presentes de despedida. Um homem pragmático chamado Carson trouxe-
nos fatias de carne seca numa bolsa de couro. “Vai durar, se não deixarem
que a humidade lhe chegue.” Agradeci-lhe e tive aquela sensação de ligação
instantânea que por vezes surge, uma sensação de profunda amizade que
podia ter acontecido.
Tanto Âmbar como Centelha receberam brincos de uma mulher chamada
Jerd. “Não há neles nada de mágico, mas são bonitos e, numa época de
dificuldades, podereis vendê-los.” Ela dera à luz uma rapariguinha que eu
curara mas, estranhamente, era um Antigo chamado Sedric quem criava a
criança com Carson. “Eu gosto da miúda, mas nunca estive destinada a ser
mãe”, informou-nos Jerd com um ar alegre. A rapariguinha, sentada nos
ombros de Sedric e agarrada com força a duas mancheias dos seus cabelos,
parecia contente com o que lhe calhara em sorte. Sedric era entusiástico
sobre ela. “Começou a fazer sons. Agora vira a cabeça quando falamos.” A
massa de cabelo acobreado da criança escondia as suas muito minúsculas
orelhas. “E a Relpda agora compreende o problema e vai ajudar-nos. Os
nossos dragões não são cruéis, mas nem sempre compreendem como um
pequeno ser humano deve crescer.” E da rainha dos Antigos recebemos uma
caixa que continha um sortido de chás. Ela sorriu ao oferecê-la a Âmbar.
“Um pequeno prazer pode ser muito reconfortante quando viajamos”, disse,
e Âmbar agradeceu com gratidão.
Era meio-dia quando seguimos em procissão para o navio. A nossa
bagagem já estava guardada a bordo e os novos presentes enchiam um
carrinho de mão que Perseverança empurrava. Tats dera um lenço Antigo a
Per e ele dobrara-o com muito cuidado e perguntara em voz baixa se
poderia enviá-lo de Vilamonte à mãe. Assegurei-lhe que sim. Thymara
puxara Âmbar de parte para a presentear com um saco de tecido. Ouvi-a a
dirigir-lhe ainda mais palavras de cautela sobre a Prata que levava nos
dedos.
As despedidas no cais pareceram demorar eternidades, mas Leftrin
acabou por soltar um grito e dizer que estava na altura de nos pormos a
caminho se queríamos ter alguma luz do dia. Vi Alum beijar a sua rapariga,
a qual veio depois apressadamente para bordo e tomou a seu cargo a
tripulação do convés. Leftrin viu-me a observá-los. “A Skelly é minha
sobrinha. Um dia há de capitanear o Lobo-do-Mar, depois de eu me deitar
no seu convés e meter as minhas memórias na sua madeira.”
Ergui as sobrancelhas.
O Capitão Leftrin hesitou, depois riu de si próprio. “Os costumes dos
navios vivos não são tão secretos como foram em tempos. Os navios vivos
e as suas famílias são muito chegados. As crianças nascem a bordo do navio
da família e crescem para o tripular e depois capitanear. Quando morrem, o
navio absorve as suas memórias. Os nossos antepassados vivem nos nossos
navios.” Dirigiu-me um estranho sorriso. “É uma estranha imortalidade.”
Bastante semelhante a pôr memórias num dragão de pedra, pensei com os
meus botões. Uma estranha imortalidade, de facto.
Ele abanou a cabeça grisalha e depois convidou-nos a nos irmos juntar a
ele e a Alise na cozinha para tomar café enquanto a tripulação executava as
suas tarefas. “Não tendes de estar no convés?”, perguntou-lhe Perseverança,
e o Capitão Leftrin sorriu. “Se por esta altura ainda não pudesse confiar na
Skelly, melhor seria que cortasse simplesmente a garganta hoje mesmo. A
minha tripulação adora o navio e o Lobo-do-Mar adora a tripulação. Pouco
existe com que não possam lidar, e eu gosto do tempo que passo com a
minha senhora.”
Fomos encontrar bancos apertados em volta da muito marcada mesa da
cozinha. A pequena sala estava apinhada de uma forma amigável,
aromatizada pelos cozinhados do ano e por lã molhada. O café acrescentou-
lhe a sua própria fragrância. Eu já tinha bebido aquilo uma vez e sabia o
que esperar, mas vi Per franzir a boca, surpreendido. “Oh, dá cá, rapaz, não
precisas de beber isso! Tão facilmente faço café como um bule de chá.” E
com um movimento rápido, Alise pegou-lhe na caneca, voltou a despejar o
conteúdo na cafeteira e começou a despejar água numa chaleira de cobre
amolgada. O pequeno fogão de ferro aqueceu a salinha de forma quase
insuportável e a chaleira depressa se pôs a assobiar em cima dele.
Olhei para nós, sentados com tanta camaradagem em volta da mesa. No
Castelo de Torre do Cervo, Centelha e Per teriam sido mandados embora
para uma das mesas dos criados, e Lante e eu talvez tivéssemos jantado
numa mesa diferente da de um humilde capitão de navio e respetiva
senhora. A sala inclinou-se e sacudiu-se. Os olhos de Per esbugalharam-se e
Centelha susteve audivelmente a respiração. A ávida corrente empurrou-nos
para o rio. Estiquei o pescoço para olhar pela pequena janela. Só vi água
cinzenta de rio.
Leftrin suspirou de satisfação. “Sim, já estamos a caminho. Vou só até lá
fora ver se o Grande Eider precisa de ajuda com o leme. É um bom homem,
apesar de simplório. Conhece bem o rio. Mas ainda temos saudades do
Swarge. Esse homem manteve-nos firmes na corrente durante trinta anos.
Bem, agora foi para o Lobo-do-Mar.”
“Como todos iremos, a seu tempo”, afirmou Alise com um sorriso.
“Tenho também de sair para perguntar à Skelly onde guardou o último
barril de açúcar.” Olhou para Centelha. “Conto contigo para fazeres o chá
quando a água ferver. Está na caixa na prateleira junto da janela.”
“Obrigada, Dama Alise. Fá-lo-ei.”
“Oh, Dama Alise!” As bochechas ficaram rosadas e ela riu-se. “Há anos
que não sou uma dama! Sou só Alise. Se me esquecer de vos tratar como as
pessoas de estatuto elevado que sois, tereis de me desculpar. Temo que as
minhas maneiras de Vilamonte se tenham estragado depois de quase uma
vintena de anos no rio.”
Rimo-nos e todos lhe assegurámos que estávamos confortáveis. E
estávamos. Sentia-me mais à vontade no Lobo-do-Mar do que me sentira na
cidade dos dragões.
A porta aberta deixou entrar uma rajada de vento do rio e depois fechou-
se com força atrás dela. Fomos deixados sozinhos, e eu ouvi Âmbar soltar
baixinho um suspiro de alívio.
“Achais que eles se importavam se eu fosse ao convés dar uma vista de
olhos?”, perguntou Per com um ar desejoso. “Gostava de ver como o leme
funciona.”
“Vai”, disse eu. “Se estorvares, eles hão de dizer-te e se te disserem para
te mexeres, mexe-te depressa. É mais provável que arranjem algum trabalho
para fazeres.”
Lante estendeu-se quando o rapaz se pôs em pé. “Eu mantenho-o debaixo
de olho. Eu próprio gostava de dar uma vista de olhos lá fora. Fui à pesca
com amigos na Baía de Torre do Cervo, mas nunca estive num rio, muito
menos num tão grande e rápido.”
“Ainda vão querer chá?”, perguntou-lhes Centelha, pois a chaleira
começara a deitar vapor.
“É o mais provável. Acho que está bastante frio lá fora, com o frio e tal.”
E o vento voltou a bater com a porta quando eles saíram. “Que estranha a
familiazinha em que nos transformámos”, observou Âmbar enquanto
Centelha ia buscar um lindo bule verde-marinho para o chá. Sorriu e
acrescentou: “Eu não quero chá. Contento-me com o café. Passaram-se
anos desde que bebi bom café.”
“Se isto é ‘bom’ café, tenho medo do que será um mau”, disse-lhe eu. Fiz
o que vira Alise fazer, despejando a chávena do líquido indesejado na
grande panela preta sobre o fogão. Esperei até o chá ficar pronto.
Habituámo-nos facilmente à vida a bordo do navio e encontrámos um
novo ritmo para os nossos dias. A tripulação acolheu Perseverança com
alegria e deu-lhe a fazer pequenas tarefas. Quando o nosso rapaz não estava
a aprender a fazer nós com Bellin, uma mulher grande e quase silenciosa,
capaz de manejar uma vara tão bem como qualquer homem, era posto a
polir, arear, olear e limpar. Ele adaptou-se a isso como um pato se adapta à
água, e uma tarde disse-me que se não me estivesse ajuramentado, ficaria
feliz como ajudante de bordo num navio. Senti uma pontada de ciúme, mas
também alívio por vê-lo ocupado e satisfeito.
Matizada juntara-se-nos assim que o Lobo-do-Mar zarpara de Kelsingra.
O corvo depressa ultrapassou a cautela e chocou-nos a todos por preferir
um poleiro na amurada de proa. Da primeira vez que crocitou “Lobo-do-
Mar! Lobo-do-Mar!”, conquistou os corações da tripulação e deixou Per
radiante de orgulho.
Tornou-se uma presença alegre no barco quando o tempo estava ventoso.
Ficava feliz por se empoleirar em Per enquanto ele tratava dos seus
afazeres, mas sempre que a Dama Âmbar saía para o convés, Matizada
transferia-se para ela. Aprendera a soltar gargalhadinhas e tinha a misteriosa
capacidade de rir precisamente no momento certo. O seu dom de imitação
tornara-se inacreditavelmente bom, mas sempre que eu tentava contactá-la
com a Manha, apenas encontrava a névoa indistinta de uma criatura que
estava orgulhosamente desinteressada em criar um vínculo. “Até onde vai a
tua compreensão?”, perguntei-lhe uma tarde. Ela inclinou a cabeça para
mim, olhou-me nos olhos e perguntou: “Até onde vai a tua compreensão?”
Com um risinho, levantou voo e seguiu rio abaixo à frente do Lobo-do-Mar.
A viagem a bordo de uma embarcação ou é aborrecida ou de aterrorizar.
No Lobo-do-Mar, eu estava feliz por estar aborrecido. Quanto mais me
afastava da cidade, menos a corrente de Talento pressionava contra as
minhas muralhas. O timoneiro levava-nos todas as noites para a margem do
rio, onde amarrávamos o navio. Por vezes havia uma praia e podíamos
desembarcar, mas o mais frequente era aconchegarmo-nos a um grupo de
árvores com raízes serpentinas. No terceiro dia, o rio estreitou-se e
aprofundou-se e a corrente tornou-se muito mais forte. A floresta
aproximou-se e deixou de haver um verdadeiro horizonte. As margens do
rio eram sólidas muralhas de árvores com raízes semelhantes a estacas, e
nós amarrávamo-nos a elas durante a noite. Começou a chover e não parou.
Matizada mudou-se para a cozinha. Eu deslocava-me entre a nossa
acanhada cabina e a vaporosa cozinha do navio. Tinha permanentemente a
roupa e os lençóis levemente húmidos.
Tentei passar o tempo de forma construtiva. Âmbar sugeriu que
aprendesse merseno, a antiga língua de Clerres. “A maior parte das pessoas
há de falar comum contigo, mas será útil saberes o que elas dizem umas às
outras quando julgarem que não as compreendes.” Para minha surpresa, os
meus companheiros juntaram-se a nós. Nos longos dias húmidos, todos nos
encolhíamos nos acanhados beliches enquanto Âmbar nos exercitava em
vocabulário e gramática. Eu sempre fora bom a aprender línguas, mas
Perseverança ultrapassou-me. Lante e Centelha mostraram dificuldades,
mas fomos avançando. Pus Lante a ajudar Perseverança com as letras e os
números. Nenhum deles gostava dessas tarefas, mas fizeram progressos.
De noite, depois de estarmos amarrados, Lante, Centelha e Perseverança
juntavam-se à tripulação em jogos que envolviam dados, cartas e umas
varetazinhas entalhadas. Fortunas imaginárias mudavam frequentemente de
mãos à mesa.
Enquanto eles jogavam, eu e Âmbar reuníamo-nos na cabina dela.
Ignorei valentemente os sorrisinhos que Leftrin e Alise trocavam quando eu
regressava para a companhia dos outros. Desejei conseguir encontrar neles
humor mas na verdade sentia que atormentava o Bobo durante as nossas
sessões privativas. Ele queria ajudar, mas a maldade que suportara em
Clerres fazia com que lhe fosse difícil falar das suas memórias numa ordem
coerente. As cáusticas histórias que lhe arranquei só me tornaram relutante
em escavar mais fundo. E no entanto sabia que tinha de o fazer. Informei-
me sobre os Quatro aos bocadinhos e uma referência de cada vez. Era o
melhor que ele me podia oferecer.
A única dos Quatro sobre a qual obtive informação detalhada foi Capra.
Parecia orgulhar-se de ser a mais velha dos Quatro. Tinha cabelo prateado e
comprido e usava vestuário azul carregado de pérolas. Parecia gentil,
bondosa e sábia. Fora sua mentora logo quando ele chegara a Clerres. Nos
primeiros tempos que lá passara, era convidado diariamente a ir ao seu
quarto na torre depois de completar as aulas. Aí, os dois sentavam-se juntos
no chão à frente da lareira enquanto ele inscrevia os seus sonhos em papel
grosso e suave que era tão amarelo como o âmago de uma margarida.
Partilhavam uns bolinhos deliciosos, frutos exóticos e queijos. Ela
ensinava-lhe sobre vinhos com minúsculos goles bebidos de pequenos
cálices com bordas de ouro e educava-o sobre chás. Por vezes convidava
malabaristas e acrobatas a irem até lá, simplesmente para o entreterem e,
quando ele desejava juntar-se-lhes, ela mandava-os ensinar-lhe as suas
habilidades. Elogiava-o, e ele floresceu sob os seus cuidados. Quando ela
proferia o seu nome, Amado, ele julgava que era a sério. Ele falava de uma
adolescência que eu invejei. Estragado com mimos, elogiado, educado — o
sonho de qualquer criança. Mas todos acordamos dos sonhos.
Normalmente, eu sentava-me no chão da cabina enquanto ele
reivindicava para si um dos beliches inferiores e olhava para cima sem ver,
enquanto falava. A chuva borrifava as janelinhas da cabina. Uma única vela
que ele não conseguia ver fornecia-me uma luz pouco intensa, apropriada às
suas histórias sombrias. Nessas sessões, ele era o Bobo, usando uma blusa
larga com uma cascata de renda pelo peito abaixo e simples meias pretas, e
o vestido de Âmbar era uma flor murcha no chão da cabina. A sua postura e
vestuário eram semelhantes ao que tinham sido quando éramos jovens, os
joelhos puxados até ao queixo, uma mão nua e uma mão enluvada presas
em volta dos joelhos. Os seus olhos cegos fitavam um tempo distante.
“Eu estudei duramente para lhe agradar. Ela dava-me sonhos a ler e
escutava a minha interpretação sincera. Estava sentado à frente da sua
lareira quando li pela primeira vez sobre o Filho Inesperado num
pergaminho antigo e quase a desfazer-se. Essa história falou-me como
nenhuma outra. Comecei literalmente a tremer. A minha voz tremia quando
lhe contei um sonho de criança. O meu sonho e o antigo combinavam um
com o outro como dedos entrelaçados. Falei-lhe com verdade, dizendo que
lamentaria deixá-la mas que era o Profeta Branco desta época. Sabia que
tinha de sair para o mundo, preparando-me para as mudanças que teria de
fazer. Fui realmente um parvo, com receio de a magoar por partir.”
O Bobo soltou um pequeno som. “Ela escutou-me. Depois abanou
tristemente a cabeça e, numa voz triste, disse: ‘Estás enganado. A Profetisa
Branca desta época já se manifestou. Já a treinámos e depressa dará início
às suas tarefas. Amado, todos os jovens Brancos desejam ser o Profeta
Branco. Todos os estudantes em Clerres fizeram essa afirmação. Não fiques
triste. Há outras tarefas para ti, para as fazeres humildemente e bem para
auxiliar a verdadeira Profetisa Branca.’
“Não acreditei no que estava a ouvir. Os meus ouvidos ressoaram e a
visão nadou ao ouvi-la negar-me. Mas ela era tão sábia, bondosa e velha
que eu soube que devia ter razão. Tentei aceitar que estava enganado, mas
os meus sonhos não deixaram. Desde o momento em que ela me negou, os
sonhos vieram como uma tempestade, aos dois e três por noite. Eu sabia,
enquanto os escrevia, que ela ficaria descontente, mas não podia retê-los. E
ela pegou em cada um deles e mostrou-me como não se aplicava a mim mas
a outra pessoa.”
Abanou lentamente a cabeça. “Fitz, não consigo explicar a minha
perturbação. Era… como olhar através de vidro mal feito. Como comer
carne podre. Havia uma maldade nas palavras dela que me fez sentir
fisicamente doente. Elas ressoavam erradamente aos meus ouvidos. Mas era
a minha mentora. Tratava-me tão carinhosamente. Como podia não ter
razão?”
Ele fez aquela pergunta tão seriamente. As suas mãos, a enluvada e a nua,
massajaram-se uma à outra. Virou-me a cara, como se eu conseguisse ler
alguma coisa nos seus olhos encobertos. “Um dia, ela levou-me pela escada
que conduzia à sala do topo da torre. Fitz, era enorme, maior que o Jardim
da Rainha no Castelo de Torre do Cervo. E estava repleta de tesouros.
Coisas espantosas, objetos que eram inimaginavelmente belos, espalhados
como brinquedos abandonados. Havia um bordão que brilhava emitindo luz
ao longo de todo o seu comprimento, e um maravilhoso trono feito de
minúsculas flores entrelaçadas de jade. Algumas dessas coisas sei agora que
eram de fabrico Antigo. Carrilhões de vento que cantavam, uma estátua de
um vaso com uma planta que crescia, florescia, desaparecia no solo e
depois voltava a crescer. Eu olhei para tudo aquilo maravilhado, mas ela
disse-me num tom cortante que as coisas vinham de uma praia distante
onde tesouros como aqueles iam dar à costa e que os administradores desse
lugar tinham acordado com ela que tudo o que o mar lhes desse seria seu se
lhes concedesse um favor.
“Eu quis saber mais sobre essa história, mas ela pegou-me na mão,
levou-me à janela e pediu-me para olhar para baixo. Vi lá em baixo uma
jovem num jardim murado cheio de flores, trepadeiras e árvores de fruto.
Era Branca como eu era Branco. Eu conhecera outras pessoas em Clerres
que eram quase tão incolores como eu. Quase. Todas tinham nascido lá e
todas pareciam ser aparentadas, irmã e irmão, primo e tio. Mas nenhum
deles era Branco como eu. Até que a vi.
“Outra mulher estava lá, com cabelo ruivo e uma grande espada.
Ensinava a mulher pálida a brandi-la enquanto uma criada observava e
gritava encorajamentos. A mulher Branca dançava com aquela espada e o
seu cabelo flutuava enquanto se movia de forma muito bela. Então Capra
disse: ‘Ali está ela, a verdadeira Profetisa Branca. O seu treino está quase
completo. Já a viste. Vamos acabar com as tolices.’” Estremeceu. “Essa foi
a primeira vez que eu vi a Mulher Pálida.” E silenciou-se.
“Já me disseste o suficiente por esta noite.”
Ele abanou a cabeça, com a boca bem apertada. Ergueu as mãos e
esfregou a cara com força e, por um momento, as cicatrizes semiapagadas
destacaram-se contra a sua pele. “Portanto não voltei a falar do meu
destino”, disse num tom áspero. “Escrevi os meus sonhos mas deixei de
tentar interpretá-los. Ela tirava-mos e punha-os de parte. Por ler, julgava
eu.” Abanou a cabeça. “Não faço ideia de quanto conhecimento lhe
entreguei. De dia, estudava e tentava ficar contente. Tinha uma vida ótima,
Fitz. Tudo o que poderia pedir. Boa comida, criados atenciosos, música e
divertimentos à noite. Eu julgava ser útil, pois Capra tinha-me posto a
organizar velhos pergaminhos. Era trabalho de escrivão mas eu fazia-o
bem.” Entrelaçou as mãos cobertas de cicatrizes. “Para os padrões da minha
espécie eu era ainda uma criança. Queria agradar. Tinha saudades de ser
amado. Portanto tentei.
“Mas claro que falhei. No meu trabalho de escriturário encontrei escritos
sobre o Filho Inesperado. Tive um sonho sobre um bobo a cantar uma
canção tola sobre ‘bastar a gordura’. Ele cantou-a a uma cria de lobo, Fitz.
A cria tinha hastes a nascer.” Soltou uma gargalhada abafada, mas os pelos
dos meus braços puseram-se em pé. Ter-me-ia realmente visto num sonho,
tantos anos antes de nos termos sequer conhecido? Mas não fora eu. Fora
apenas um quebra-cabeças, para o qual eu seria, talvez, a resposta.
“Oh, eu não gosto desta história que te vomito. Gostava de não ter
começado a contá-la. Há tantas coisas sobre as quais nunca falámos. Tantas
coisas que me envergonham menos se eu for o único a conhecê-las. Mas
quero acabar.” Olhou para mim, com os olhos cegos marejados de lágrimas.
Deslizei pelo chão e tomei a sua mão enluvada na minha. O seu sorriso era
uma coisa trémula. “Não podia negar para sempre o que era. A minha ira e
ressentimento cresceram. Escrevia os meus sonhos e comecei a fazer
referência a outros sonhos, alguns antigos, outros recentes. Construí uma
fortaleza de provas que Capra não poderia negar. Não insisti que era o
Profeta Branco, mas comecei a fazer-lhe perguntas e não eram perguntas
inocentes.” Sorriu ligeiramente. “Eu sei que tu nunca o adivinharias, Fitz,
mas consigo ser teimoso. Estava determinado a forçá-la a admitir quem e o
que eu era.”
Voltou a fazer uma pausa. Não falei. Aquilo era como esgravatar numa
ferida infetada em busca de lascas. Ele tirou a mão da minha e envolveu-se
nos braços como se estivesse gelado.
“Nunca tinha sido sequer esbofeteado pelos meus pais, Fitz. Não que
tenha sido uma criança tratável e fácil. Não. Tenho a certeza de que não fui.
Mas eles tinham-me corrigido pacientemente e eu acabara por esperar isso
dos adultos. Nunca me tinham negado informação quanto ao motivo por
que algo era como era. Sempre me tinham dado ouvidos e quando eu lhes
ensinava algo de novo, eles ficavam sempre tão orgulhosos de mim! Julguei
ser esperto por fazer a Capra perguntas sobre os meus sonhos e outros
sonhos que tinha lido. As minhas perguntas levá-la-iam à inevitável
resposta de que eu era de facto o Profeta Branco.
“E assim começou. Algumas perguntas num dia, algumas mais no
seguinte. Mas no dia em que fiz a Capra seis perguntas de seguida, todas
dirigidas ao que ela teria de admitir sobre mim, ela levantou a mão e disse:
‘Nem mais uma pergunta! Eu é que te digo o que a tua vida vai ser.’ Sem
sequer pensar, sendo jovem como só se é uma vez, eu disse: ‘Mas porquê?’
E foi o suficiente. Sem uma palavra, ela levantou-se e puxou pelo cordão de
um sino. Um criado apareceu e ela mandou-o chamar outra pessoa, um
nome que eu nessa altura não conhecia. Kestor. Um homem muito grande e
musculoso. E ele veio e segurou-me contra o chão, empurrando-me a parte
de trás do pescoço com um pé, e deixou a sua tira de couro cair onde lhe
apeteceu sobre o meu corpo. Eu gritei e supliquei mas nenhum deles
proferiu uma palavra. Tão abruptamente como tinha começado, o meu
castigo terminou. Ela mandou Kestor embora, sentou-se à mesa e serviu-se
de um pouco de chá. Quando consegui, rastejei para fora do seu quarto.
Lembro-me da minha longa viagem pelas escadas de pedra da sua torre
abaixo. O látego tinha caído nos grandes músculos atrás dos meus joelhos e
enrolara-se-me em volta de um dos tornozelos. A ponta tinha-me aberto
vergões na barriga por mais que uma vez. Tentar levantar-me era uma
agonia. Fui avançando de gatas, tentando não repuxar os vergões, rastejei
até à minha casinha e fiquei lá durante dois dias. Ninguém apareceu.
Ninguém perguntou por mim nem me trouxe água ou comida. Esperei,
julgando que alguém viria. Mas não.” Ele abanou a cabeça, com uma antiga
perplexidade no rosto. “Capra nunca mais voltou a chamar-me. Nunca mais
falou diretamente comigo.” Soltou um pequeno suspiro.
No silêncio que se seguiu, perguntei: “O que esperavam eles que
aprendesses com isso?”
As suas lágrimas espalharam-se quando ele abanou a cabeça. “Nunca
soube. Nunca ninguém falou do que ela me tinha feito. Depois de se terem
passado dois dias, coxeei até à sala do curandeiro e esperei o dia inteiro.
Outros entraram e saíram, mas ele nunca me chamou. Ninguém, nem
mesmo os outros estudantes, me perguntou o que tinha acontecido. Era
como se nunca tivesse ocorrido no mundo deles, só no meu. Por fim,
comecei a coxear até às aulas e às refeições. Mas os meus instrutores
tinham um novo desdém por mim, censuraram-me pelas aulas a que tinha
faltado e puniram-me por guardar comida para mim. Fui obrigado a sentar-
me a uma mesa e trabalhar nas lições enquanto os outros comiam. Foi num
desses dias que voltei a ver a Mulher Pálida. Ela atravessou a sala onde
tomávamos as refeições. Todos os outros estudantes a fitaram com olhos
admiradores. Estava toda vestida de verde e castanho, como uma caçadora,
e o cabelo branco encontrava-se entrançado para trás com fio de ouro. Tão
bela. A criada seguia-a. Acho… em retrospetiva, julgo que a criada era
Dwalia, aquela que levou Abelha. Uma das pessoas que preparava a nossa
comida correu a dar uma cesta a Dwalia. Depois, a Mulher Pálida saiu da
sala, com a criada atrás a carregar o cesto. Ao passar por mim, parou.
Sorriu-me, Fitz. Sorriu como se fôssemos amigos. Depois disse: ‘Eu sou. E
tu não és.’ E depois continuou a andar. E toda a gente se riu. O abalo na
minha mente e os pensamentos foram piores que os vergões que me
cobriam o corpo.”
Precisou do seu silêncio durante algum tempo e eu deixei que o
mantivesse. “Eles são tão espertos”, acabou por dizer. “A dor que deram ao
meu corpo foi só uma porta de entrada para aquilo que conseguiram fazer à
minha mente. Capra tem de morrer, Fitz. Os Quatro têm de morrer, para se
pôr fim à corrupção dos Brancos.”
Senti-me doente. “A criada dela era Dwalia? A mesma Dwalia que
raptou Abelha?”
“Julgo que sim. Posso estar enganado.”
Uma pergunta que eu não queria fazer, uma pergunta insensata, abriu
caminho até à minha voz. “Mas depois de todas essas… de tudo isso, e de
tudo o mais que me contaste… tu regressaste com Prilkop?”
Ele soltou uma gargalhada amarga. “Fitz, eu não estava em mim. Tu
tinhas-me trazido de volta dos mortos. Prilkop era forte e calmo. Tinha tanta
certeza de ser capaz de recuperar Clerres para o serviço que era apropriado.
Ele vinha de uma época em que a palavra de um Profeta Branco era uma
ordem para os Servos. Estava tão seguro do que tínhamos de fazer. E eu não
tinha a mínima ideia do que fazer com esta vida inesperada.”
“Lembro-me de uma época semelhante na minha vida. Castro tomou
todas as decisões.”
“Então compreendes. Eu não conseguia pensar em nada. Limitei-me a
seguir o que ele dizia que íamos fazer.” Cerrou os dentes e depois disse: “E
agora regresso por uma terceira vez. E temo, acima de tudo, que volte a cair
em poder deles.” Engoliu de súbito uma golfada de ar. Mas mesmo assim
não pareceu conseguir recuperar o fôlego. Começou a arquejar como um
atleta estoirado. Mal conseguiu obrigar as palavras a sair. “Nada podia ser
pior do que isso. Nada.” Abraçando-se, balançou para trás e para a frente no
beliche. “Mas… tenho… de… voltar… Tenho…” Sacudiu violentamente a
cabeça para a frente e para trás. “Tenho de ver!”, gritou de repente. “Fitz!
Onde estás?” Os arquejos iam aumentando de velocidade. “Não… sinto. As
mãos!”
Ajoelhei ao lado da cama e pus um braço à sua volta. Ele soltou um
ganido e debateu-se violentamente, batendo-me.
“Sou eu, estás em segurança. Estás aqui. Respira, Bobo. Respira.”
Recusei-me a largá-lo. Não fui duro, mas segurei-o firmemente. “Respira.”
“Não… consigo!”
“Respira. Senão vais desmaiar. Mas podes fazer isso. Eu estou aqui. Estás
em segurança.”
De súbito ele perdeu a força e deixou de se debater e, muito
gradualmente, a sua respiração abrandou. Quando me empurrou, eu deixei
que me afastasse. Dobrou-se sobre si mesmo e abraçou-se com força aos
joelhos. Quando finalmente falou, estava envergonhado. “Nunca quis que
soubesses o quanto eu temia fazer isto. Fitz, sou um cobarde. Preferia
morrer a deixar que me capturassem.”
“Não tens de voltar lá. Eu posso fazer isto.”
“Tenho de voltar, sim, senhor!” Ficara instantaneamente furioso comigo.
“Tenho mesmo!”
Falei baixinho. “Então voltarás.” Com grande relutância, acrescentei: “Eu
podia dar-te qualquer coisa para levares contigo. Um fim rápido se achasses
que… seria preferível.”
O seu olhar vagueou pelo meu rosto como se conseguisse ver-me. Disse
baixinho: “Tu farias isso mas não aprovarias. Nem terias um recurso desses
para ti.”
Acenei com a cabeça e depois falei. “É verdade.”
“Porquê?”
“Uma coisa que ouvi há muito tempo. Não fazia sentido quando eu era
novo mas quanto mais velho me torno, mais sensato me parece. O Príncipe
Majestoso estava a conversar com Veracidade.”
“E tu dás importância a uma coisa que Majestoso disse? Majestoso
queria-te morto. Quis-te morto desde o momento em que soube da tua
existência.”
“É verdade. Mas estava a citar o que o Rei Sagaz lhe tinha dito,
provavelmente a resposta do rei quando Majestoso sugeriu que matar-me
era a solução mais fácil. O meu avô disse-lhe: ‘Nunca faças o que não
podes desfazer até teres pensado bem no que não podes fazer depois de o
fazeres.’”
Um sorriso lento e carinhoso ocupou-lhe o rosto. “Ah. Isso realmente
parece-se com uma coisa que o meu rei teria dito.” O sorriso dilatou-se-lhe
e eu senti que havia ali um segredo que ele não queria partilhar.
“Matar-me poria fim a todas as outras possibilidades. E, mais do que uma
vez na vida, quando julguei que a morte era a minha única fuga, ou que era
inevitável e me devia entregar a ela, veio a provar-se que me tinha
enganado. E de todas as vezes, apesar do fogo por que passei, fosse ele qual
fosse, encontrei o bem na vida que tive depois.”
“Mesmo agora? Com Moli e Abelha mortas?”
Senti-me desleal mas disse-o. “Mesmo agora. Mesmo quando sinto que a
maior parte de mim está morta, a vida consegue por vezes penetrar. A
comida sabe bem. Ou qualquer coisa que o Per diz faz-me rir. Uma chávena
quente de chá quando estou molhado e com frio. Eu já pensei em pôr fim à
vida, Bobo. Admito. Mas o corpo tenta sempre prosseguir, sejam quais
forem os danos que sofre. E se consegue, a mente segue-o. E por fim, por
mais que eu tente negá-lo, há bocados na minha vida que ainda são
agradáveis. Uma conversa com um velho amigo. Coisas que ainda estou
contente por ter.”
Ele procurou-me às apalpadelas com a mão enluvada e eu ofereci a
minha. Mudou o contacto para um cumprimento de guerreiro, de pulso com
pulso. Devolvi a pressão. “Também é verdade para mim. E tens razão. Eu
nunca teria pensado em admiti-lo, até a mim próprio.” Largou-me o pulso e
recostou-se, após o que acrescentou: “Mas mesmo assim, eu aceitaria a tua
fuga, se ma preparasses. Porque se eles conseguirem capturar-me, não
posso…” A voz começara a tremer.
“Posso preparar qualquer coisa para ti. Uma coisa que possas transportar
enfiada no punho da camisa.”
“Isso seria bom. Obrigado.”
As minhas noites eram feitas de alegres conversas como esta.

Só me apercebi de que estávamos num afluente quando o abandonámos e


nos unimos à furiosa corrente do Rio dos Ermos Chuvosos. As águas
turbulentas que nos transportavam agora estavam cinzentas de ácido e
sedimentos. Já não tirávamos água do rio, dependendo apenas dos nossos
barris. Bellin avisou Perseverança de que, se caísse borda fora, “Só
conseguiríamos puxar para bordo os teus ossos!” Isso não lhe amorteceu
nem um pouco o entusiasmo. Lançava-se em correrias pelo convés apesar
da chuva e do vento, e a tripulação tolerava-o com bom humor. Centelha
tinha menos resistência para o mau tempo, mas ela e Lante subiam por
vezes para cima da cabina, abrigando-se sob um quadrado de lona, e
observavam a passagem da paisagem à medida que a corrente nos ia
levando.
Eu interrogava-me sobre o que os fascinaria, pois o cenário tornara-se
invariável. Árvores. Mais árvores, algumas de um tamanho que eu nunca
imaginara, com troncos tão largos como torres. Árvores feitas de uma
centena de troncos finos, árvores que se inclinavam e deixavam cair troncos
secundários dos ramos para a margem pantanosa do rio. Árvores com
trepadeiras a subir por elas acima, árvores com cortinas de lianas
penduradas. Nunca vira uma floresta tão densa e impenetrável ou folhagem
capaz de sobreviver a condições tão húmidas. A outra margem do rio
recuava para uma distância brumosa. Ouvíamos mais aves durante o dia e
uma vez vimos um grupo gritante de macacos, os quais achei muito
estranhos.
Era tudo tão diferente das paisagens familiares de Cervo. Mesmo que me
fascinassem e eu ansiasse por explorá-las, a minha ânsia mais profunda era
pelo lar. Os meus pensamentos dirigiam-se frequentemente à minha Urtiga,
grávida do primeiro filho. Eu abandonara-a quando ainda crescia dentro de
Moli, a fim de obedecer à convocatória urgente do meu rei. E agora
deixava-a sozinha a dar à luz o meu primeiro neto, a pedido do Bobo. Como
passaria Breu? Teria sucumbido à idade e a uma mente incoerente? Havia
alturas em que ir vingar-me dos mortos parecia um preço demasiado
elevado a pagar por abandonar os vivos.
Guardei para mim essas reflexões. O receio de usar o Talento mantinha-
se. A pressão de Talento que eu sentira em Kelsingra diminuíra, mas o
navio vivo debaixo dos meus pés era um constante zumbido de senciência a
pressionar-me as muralhas. Em breve, prometi a mim mesmo. Até um breve
contacto pelo Talento podia transmitir muitíssimo mais que as minúsculas
letras no rolo de uma ave mensageira. Em breve.

Uma vez, quando estávamos amarrados para passar a noite, Skelly


levantou-se da mesa, foi buscar aos aposentos da tripulação um arco e uma
aljava e depois subiu em silêncio para o convés. Ninguém se mexeu até a
ouvirmos gritar. “Apanhei um porco de rio! Carne fresca!” Houve uma
correria para o convés e seguiu-se o sujo e exuberante trabalho de recuperar
o animal morto. Cortámo-lo na estreita praia de lama.
Nessa noite banqueteámo-nos. A tripulação fez uma fogueira, atirou para
lá ramos verdes e tostou fatias de porco nas chamas e no fumo. A carne
fresca pôs a tripulação num estado de espírito alegre e foi com satisfação
que Perseverança foi arreliado como se fosse um deles. Depois de termos
comido, a utilidade da fogueira deixou de ser cozinhar, passando a afastar a
escuridão e os insetos noturnos que picavam. Lante foi buscar lenha e
regressou com uma braçada de uma trepadeira de florescência precoce
cheia de flores odoríferas. Centelha encheu as mãos de Âmbar com flores e
depois coroou-se com uma grinalda. Hennesey pôs-se a cantar uma canção
picante e a tripulação juntou-se-lhe. Eu sorri e tentei fingir que não era nem
assassino nem um pai a chorar a perda da filha. Mas juntar-me àquele
prazer simples e turbulento parecia-me uma traição a Abelha e ao modo
como a sua pequena vida terminara.
Quando Âmbar disse que estava fatigada, assegurei a Centelha que devia
ficar com Lante e Per e desfrutar da noite. Guiei Âmbar ao longo da
margem lamacenta até uma tosca escada de corda atirada pelo flanco do
Lobo-do-Mar. Foi um problema para ela subir os lassos degraus de corda
com as saias compridas que usava.
“Não era mais fácil se abandonasses o disfarce de Âmbar?”
Ela chegou ao convés e voltou a pôr as saias em ordem. “E que disfarce
assumiria depois?”, perguntou-me.
Como sempre, palavras como aquelas deram-me uma alfinetada de dor.
Seria realmente o Bobo só mais um disfarce, um companheiro imaginário
inventado para mim? Como se tivesse ouvido os meus pensamentos, ele
disse: “Tu sabes mais sobre mim do que qualquer outra pessoa, Fitz.
Forneci-te tanto sobre a minha verdadeira natureza quanto me atrevo.”
“Vem”, disse eu e dei-lhe o braço para se equilibrar enquanto ambos nos
livrávamos do calçado enlameado. O Capitão Leftrin era legitimamente
picuinhas quanto a manter o convés limpo. Sacudi a lama dos sapatos
contra o flanco do navio e levei-os na mão enquanto o guiava de volta à
cabina. Da margem veio uma súbita erupção de risos. Um turbilhão de
centelhas ergueu-se no céu quando alguém atirou um pesado bocado de
lenha para a fogueira.
“É bom para eles terem algum tempo bem passado.”
“Pois é”, respondi. A infância fora roubada tanto a Centelha como a
Perseverança. Até a Lante seria útil uma janela de divertimento no seu
permanente muro de melancolia.
Fui à cozinha para acender uma pequena lanterna. Quando voltei à
cabina, o Bobo já se livrara do espalhafatoso vestido de Âmbar e regressara
ao seu vestuário simples. Limpara com um pano a tinta que compunha a
cara dela e virara-se para mim com o seu antigo sorriso de Bobo. Mas à luz
da minha pequena lanterna, os rastos do tormento por que passara ainda se
lhe viam no rosto e nas mãos como fios prateados na pele clara. As unhas
tinham voltado a crescer, grossas e fortes. Os meus esforços de cura e o
sangue de dragão que ingerira tinham ajudado mais à recuperação do seu
corpo do que eu me atrevera a esperar, no entanto, ele nunca mais voltaria a
ser quem fora.
Mas isso era verdade para todos nós.
“Estás a suspirar porquê?”
“Estou a pensar em como isto mudou todas as nossas vidas. Eu estava…
estava a caminho de ser um bom pai, Bobo. Acho eu.” Sim, a queimar
corpos de mensageiros assassinados durante a noite. Excelente experiência
para uma criança em crescimento.
“Sim. Bem.” Sentou-se no beliche de baixo. O beliche superior estava
aberto de uma forma arrumada. Os outros dois pareciam estar a ser usados
como locais de armazenamento para o excessivo guarda-roupa que ele e
Centelha tinham arrastado consigo. Ele suspirou e depois admitiu: “Tive
mais sonhos.”
“Ah.”
“Sonhos significativos. Sonhos que exigem ser contados em voz alta ou
escritos.”
Aguardei. “E?”
“É difícil descrever a pressão que se sente para partilhar sonhos
significativos.”
Tentei mostrar-me percetivo. “Queres contar-mos? É possível que Leftrin
ou Alise tenham pena, tinta e papel. Eu podia escrevê-los por ti.”
“Não!” Ele tapou a boca por um momento, como se a explosiva negativa
tivesse revelado alguma coisa. “Contei-os a Centelha. Ela estava cá quando
eu acordei num estado terrível, e contei-lhe.”
“Sobre o Destruidor.”
Ele ficou em silêncio por um momento. Depois: “Sim, sobre o
Destruidor.”
“Sentes-te culpado por causa disso?”
Ele confirmou com a cabeça. “É um fardo terrível para pôr sobre alguém
tão novo. Ela já faz tanto por mim.”
“Bobo, não me parece que te devas preocupar. Ela sabe que eu sou o
Destruidor. Que vamos a caminho de derrubar Clerres por completo. O teu
sonho só repete o que todos sabemos.”
Ele limpou as palmas das mãos nas coxas e depois apertou-as uma na
outra. “O que todos sabemos”, repetiu numa voz mortiça. “Sim.” De
repente acrescentou: “Boa-noite, Fitz. Acho que tenho de dormir.”
“Então boa-noite. Espero que os teus sonhos sejam pacíficos.”
“E eu espero não sonhar de todo”, respondeu ele.
Pareceu-me estranho levantar-me e deixá-lo ali, levando comigo a
lanterna. Deixando o Bobo no escuro. No escuro em que ele agora estava
sempre.
Capítulo 10

O Livro de Abelha

A preparação dos dardos deve ser feita com mão firme. Não se pode
usar luvas, mas há que ser extremamente cauteloso, pois o mais
pequeno corte nos dedos ficará imediatamente infetado e os
parasitas depressa se espalharão. Não existe cura.
Descobri que usar os ovos dos vermes perfurantes em combinação
com os ovos daqueles que se agarram no interior das tripas de um
homem e se transformam em vermes longos é a forma mais eficaz de
causar uma morte prolongada e dolorosa. Os ovos de uma ou de
outra das espécies atormentam a vítima mas não levam à morte. São
os ataques duplos dessas criaturas que infligem a morte mais
adequada aos cobardes e traidores que se atrevem a trair Clerres.
Vários Instrumentos de Minha Conceção,
Coultrie dos Quatro

A
pós alguns dias passados a bordo do Lobo-do-Mar, habituei-me
melhor à leve pressão da consciência do navio contra a minha.
Ainda estava desconfortável por um navio vivo ficar ao corrente
de qualquer mensagem que eu pudesse emitir via Talento, mas, após muito
debate interior, decidi correr o risco de entrar em contacto com os meus.
A Dama Âmbar sentou-se no beliche em frente do meu. Uma chávena de
chá deitava vapor em cima da pequena prateleira ao lado do beliche. No
pequeno espaço, os nossos joelhos quase se tocavam. Ela soltou um suspiro,
desenrolou um lenço do seu cabelo molhado e sacudiu-o. Depois, o Bobo
levou a mão ao cabelo para o deixar em completa desordem e poder assim
secar mais depressa. Já não era a penugem de dente-de-leão da sua
juventude nem era tão dourado como fora o cabelo de Dom Dourado. Para
minha surpresa, o branco misturava-se agora com o louro-claro, como no
cabelo de um velho. Cabelo branco, que crescia das cicatrizes no seu couro
cabeludo. Ele limpou os dedos nas saias de Âmbar e dirigiu-me um sorriso
fatigado.
“Estás pronto?”, perguntei-lhe.
“Pronto e bem abastecido”, assegurou-me ele.
“Como vais saber se eu precisar da tua ajuda? O que vais fazer se eu for
levado na corrente?”
“Se falar contigo e tu não responderes, sacudo-te. Se continuares sem
responder, atiro-te o chá à cara.”
“Não tinha percebido que foi por isso que pediste chá a Centelha.”
“Não foi.” Ele bebeu um golinho da chávena. “Não inteiramente.”
“E se isso não me trouxer de volta?”
Ele procurou às apalpadelas no beliche a seu lado e ergueu uma pequena
bolsa. “Casco-de-elfo. Fornecido por Lante. Está bem moído, para misturar
com o meu chá e te despejar goela abaixo ou simplesmente meter-to na
boca.” Inclinou a cabeça. “Se o casco-de-elfo falhar, ligarei os meus dedos
ao teu pulso. Mas asseguro-te de que esse será o meu último recurso.”
“E se fizeres isso e, em vez de me puxares de volta, eu te arrasto para o
fundo?”
“E se o Lobo-do-Mar bater numa rocha e nos afogarmos todos nas águas
ácidas do Rio dos Ermos Chuvosos?”
Fitei-o em silêncio.
“Fitz, faz o que tens de fazer. Ou não faças. Mas para de engonhar.
Estamos longe de Kelsingra. Tenta usar o Talento.”
Concentrei-me e deixei que a visão se me desfocasse, regularizei a
respiração e baixei lentamente as muralhas. Senti a força da corrente de
Talento, tão fria e poderosa como o rio sob o nosso casco. E igualmente
perigosa. Não era a corrente de maré que fora em Kelsingra, mas eu sabia
que escondia correntes ocultas. Hesitei na margem e depois penetrei nela,
procurando Urtiga às apalpadelas. Não a encontrei. Tentei alcançar Obtuso.
Um gemido distante de música podia ser ele, mas desvaneceu-se como se o
vento o tivesse soprado para longe. Respeitador? Não estava lá. Voltei a
tentar Urtiga. Senti-me como se os meus dedos roçassem na cara da minha
filha e escorregassem para longe. Breu? Não. Não tinha nenhum desejo de
me desfiar na corrente de Talento ao lado do meu antigo mentor. Da última
vez que vira o velho, os seus momentos de acuidade eram breves ilhas num
mar de vagueza. A sua magia de Talento, outrora tão débil, agora por vezes
rugia e ele usava-a sem cuidado. Da última vez que contactáramos no
Talento ele quase me arrastara consigo. Não podia tentar alcançar Breu…
Breu agarrou-me. Foi como ser agarrado por trás por um exuberante
companheiro de brincadeira, e eu fui atirado de cabeça para dentro de uma
violenta corrente de Talento. Oh, meu rapaz, aí estás tu! Tive tantas
saudades! Os pensamentos dele abraçaram-me numa rede cada vez mais
apertada de carinho. Senti-me a transformar-me na pessoa que Breu me
imaginava. Como barro pressionado para dentro do molde de um tijolo, as
partes de mim que ele nunca conhecera estavam a ser deitadas fora.
Para! Larga-me! Tenho uma mensagem para Respeitador e Urtiga,
novas de Kelsingra e dos Mercadores dos Dragões!
Ele soltou um risinho caloroso, mas a suave pressão dos seus
pensamentos arrepiou-me. Deixa lá isso. Deixa tudo e junta-te aqui a nós.
Não há solidão, não há qualquer separação. Não há ossos doridos, não há
corpo gasto. Não é como nos disseram, Fitz! Todos esses avisos e terríveis
previsões — pfuá! O mundo vai continuar sem nós exatamente como era
connosco. Deixa-te simplesmente ir.
Seria verdade? As palavras dele estavam embebidas de convicção.
Descontraí-me nos seus braços enquanto a corrente de Talento passava por
nós a rugir. Não nos estamos a desfazer.
Eu estou a apertar-te bem. A manter-te como parte de mim. É como
aprender a nadar. Não podes descobrir como é até estares completamente
dentro de água. Deixa de te agarrar à margem, rapaz. Só te desfazes
quando tentas agarrar-te à margem.
Ele sempre fora mais sábio do que eu. Breu sempre me dera conselhos,
me educara e me dera ordens. Parecia calmo e contente. Feliz, até. Teria eu
alguma vez visto Breu contente e feliz? Desloquei-me na sua direção e ele
abraçou-me de forma ainda mais calorosa. Ou seria o Talento a agarrar-me?
Onde parava Breu e começava o Talento? Ter-se-ia ele já afogado no
Talento? Estaria a arrastar-me para baixo, para me ir juntar a ele?
Breu! Breu Tombastela! Volta para nós! Respeitador, ajuda-me. Ele está
a lutar comigo.
Urtiga agarrou-o e tentou descolá-lo de mim. Eu agarrei-me ferozmente a
ele, lutando por fazê-la tomar consciência de mim, mas ela estava
concentrada em separar-nos. Urtiga! Rugi o pensamento, tentando destacá-
lo da algazarra de pensamentos à nossa volta. Pensamentos? Não. Não eram
pensamentos. Entidades. Seres.
Pus de parte todas as dúvidas. Em vez de me agarrar a Breu, atirei-o na
direção dela. Apanhei-o!, disse Urtiga a um Respeitador que eu mal sentia.
E depois, num súbito assombro: Papi? Estás aqui? Estás vivo?
Sim. Estamos todos bem. Vou mandar-te uma ave de Vilamonte. Depois,
divorciado de Breu, a corrente de Talento começou a desfazer-me. Tentei
recuar, mas o Talento agarrou-me como um pântano. Enquanto eu me
debatia, ele sugava-me, puxando-me mais para o fundo. Seres. A corrente
era um fluxo de seres, todos a puxar por mim. Juntei forças e atirei-me
contra a corrente que eles criavam enquanto erguia resolutamente as
muralhas. Abri os olhos para a abençoadamente acanhada e malcheirosa
cabina. Dobrei-me sobre mim próprio, a arquejar e a tremer.
“Que foi?”, perguntou o Bobo.
“Quase me perdi. Breu estava lá. Tentou puxar-me para baixo com ele.”
“O quê?”
“Ele disse-me que tudo o que eu tinha aprendido sobre o Talento estava
errado. Que eu me devia entregar ao Talento. ‘Deixa-te simplesmente ir’,
disse ele. E eu quase o fiz. Quase me deixei ir.”
A sua mão enluvada fechou-se no meu ombro e abanou-me levemente.
“Fitz. Achava que tu nem sequer tinhas começado a tentar. Disse-te para
deixares de te preocupar com isso e tu silenciaste-te. Julgava que estavas
amuado.” Inclinou a cabeça. “Só passaram momentos desde a última vez
que falámos.”
“Só momentos?” Pousei a testa nos joelhos. Senti-me doente de medo e
atordoado de anseio. Fora tão fácil. Eu podia deixar cair as muralhas e
desaparecer. Simplesmente… desaparecer. Fundir-me-ia com aquelas
entidades em fluxo e seria levado. A minha demanda sem esperança seria
abandonada juntamente com a perda que sentia sempre que pensava em
Abelha. Desaparecida ficaria também a profunda vergonha. Desaparecida
ficaria a humilhação por toda a gente saber até que ponto eu falhara como
pai. Podia parar de sentir e de pensar.
“Não vás”, disse o Bobo baixinho.
“O quê?” Endireitei-me devagar.
A sua mão apertou-se lentamente no meu ombro. “Não vás para onde eu
não te possa seguir. Não me deixes para trás. Eu ainda teria de prosseguir.
Ainda teria de voltar a Clerres e tentar matá-los a todos. Apesar de falhar.
Apesar de eles voltarem a ficar comigo em seu poder.” Soltou-me e cruzou
os braços como que para se conter. Eu não estava consciente da ligação que
sentira por causa do seu toque até que ele a removeu. “Um dia teremos de
nos separar. É inevitável. Um de nós terá de continuar sem o outro. Ambos
o sabemos. Mas, Fitz, por favor. Ainda não. Não até esta coisa difícil ficar
feita.”
“Eu não te vou abandonar.” Perguntei a mim mesmo se estaria a mentir.
Tentara abandoná-lo. Aquela missão louca seria mais fácil se eu estivesse a
trabalhar sozinho. Provavelmente continuava a ser impossível, mas o meu
falhanço seria menos horrendo. Seria menos vergonhoso para mim.
Ele ficou algum tempo em silêncio, a fitar a distância. A sua voz soou
dura e desesperada ao exigir: “Promete-me.”
“O quê?”
“Promete-me que não vais ceder à tentação de Breu. Que não te vou
encontrar sentado algures como um saco vazio, com a mente desaparecida.
Promete-me que não vais tentar abandonar-me como se eu fosse bagagem
inútil. Que não me vais deixar para trás para eu ficar ‘em segurança’. Fora
do teu caminho.”
Procurei as palavras certas, mas demorei demasiado tempo a encontrá-
las. Ele não escondeu a mágoa e a amargura quando disse: “Não consegues,
pois não? Muito bem. Pelo menos sei em que pé estou. Bem, velho amigo,
eis algo que posso prometer-te. Faças o que fizeres, Fitz — quer resistas,
quer caias, quer fujas, quer morras —, eu tenho de voltar a Clerres e fazer
os possíveis por fazer tudo aquilo ruir à volta deles. Como já te tinha dito.
Contigo ou sem ti.”
Fiz um último esforço. “Bobo. Tu sabes que eu sou o melhor homem
para essa tarefa. E eu sei que trabalho melhor sozinho. Devias deixar-me
fazer isto à minha maneira.”
Ele ficou imóvel. Depois perguntou: “Se eu te dissesse isso, e se fosse
verdade, tu deixavas-me entrar sozinho naquele lugar? Ficavas sem fazer
nada à espera que eu salvasse Abelha?”
Uma mentira fácil. “Sim”, disse eu com ar sincero.
Ele não disse nada. Saberia que eu estava a mentir? Provavelmente. Mas
tínhamos de reconhecer o que era real. Ele não podia fazer aquilo. O seu
terror trémulo criara em mim sérias dúvidas. Se sucumbisse àquilo em
Clerres… eu simplesmente não podia levá-lo. Sabia que a sua ameaça era
real. Ele arranjaria maneira de lá chegar, comigo ou sem mim. Mas se eu
conseguisse chegar antes dele e executar a minha tarefa, se a coisa estivesse
feita, ele não teria de fazer nada.
Mas alguma vez me perdoaria?
Enquanto eu estive em silêncio, ele guardou a bolsa de casco-de-elfo na
mochila. Bebeu da chávena. “O meu chá arrefeceu”, anunciou. Levantou-
se, com a chávena e o pires na mão. Alisou o cabelo e sacudiu as saias,
pondo-as em ordem, e o Bobo desapareceu. Âmbar roçou os dedos na
parede até descobrir a porta e depois deixou-me sozinho, sentado no estreito
beliche.

O Bobo e eu tivemos uma discussão séria nessa viagem. Eu cheguei à


cabina de Âmbar uma noite, às horas que combináramos, no momento em
que Centelha saía. A cara dela estava pálida e tensa e dirigiu-me um olhar
trágico ao ir-se embora. Perguntei a mim mesmo se Âmbar a teria
repreendido. Temi ir encontrá-lo num estado de espírito sombrio e
irracional. Fechei devagar a porta atrás de mim.
Dentro da sala, velas amarelas ardiam atrás de vidro e o Bobo estava
empoleirado no beliche inferior. O seu roupão de lã cinzenta, que
provavelmente tinha sido surripiado à reserva de roupa de Breu, estava
muito gasto. As sombras sob os seus olhos e o abatimento resignado da sua
boca faziam-no parecer mais velho. Sentei-me no beliche à frente do dele e
esperei. Depois vi, a seu lado, a minha mochila cosida à pressa. “Que está
isso a fazer aqui?”, perguntei. Por um momento, julguei que algum acidente
a tinha trazido até àquela sala.
Ele pousou nela uma mão possessiva e falou com voz rouca. “Eu prometi
assumir todas as culpas por isto. Mesmo assim, temo que possa ter
quebrado a amizade de Centelha para fazer isto. Ela trouxe-ma.”
O frio espalhou-se-me pelas veias a partir da barriga. Tomei uma decisão
consciente e difícil. Nada de ira. A fúria ergueu-se contra o meu bloqueio
obstinado. Eu sabia, mas mesmo assim perguntei: “E porque haverias tu de
lhe pedir para fazer isso?”
“Porque Perseverança mencionou em conversa com ela que tu tinhas
livros que pertenciam a Abelha. Ele via-te às vezes a ler o que ela lá tinha
escrito. Dois livros, um com uma capa de cores vivas trabalhadas em relevo
e o outro simples. Reconheceu a letra dela na página quando passou por ti
ao subir para o beliche.”
Fez uma pausa. Eu tremia de medo de quão zangado poderia vir a ficar.
Controlei a respiração como Breu me ensinara, a respiração silenciosa de
um assassino prestes a matar. Sufoquei as emoções. A violação que sentia
era demasiado vasta.
O Bobo falou em voz baixa. “Acho que ela tinha um diário de sonhos. Se
for minha, se tem nas veias o sangue de um Branco, irá sonhar. A pulsão
por partilhar esses sonhos, por verbalizá-los ou escrevê-los, será irresistível.
Tê-lo-á feito de certeza. Fitz, estás zangado. Consigo senti-lo como vagas
de tempestade a vergastar as minhas costas. Mas tenho de saber o que ela
escreveu. Tens de me ler esses livros. Do princípio ao fim.”
“Não.” Uma palavra. Durante uma palavra, eu consegui manter a voz
uniforme e calma.
Os ombros dele ergueram-se e caíram com a força da inspiração que fez.
Estaria a lutar por se controlar como eu fazia? A sua voz soou tensa como a
corda de um carrasco. “Eu podia ter-te escondido isto. Podia ter mandado
Centelha roubar os livros e ler-mos aqui às escondidas. Não o fiz.”
Descerrei os punhos e a garganta. “O facto de não me teres desfeiteado
dessa forma não torna o que fizeste uma afronta menor.”
Ele tirou a mão enluvada de cima do saco. Pôs ambas as mãos, de palmas
para cima, sobre os joelhos. Tive de me aproximar mais para ouvir o seu
sussurro. “Se julgas que isto são os escritos desordenados de uma criança
pequena, a tua ira é justificada. Mas não podes acreditar nisso. Isto são os
escritos de uma Profetisa Branca.” Baixou ainda mais a voz. “São os
escritos da tua filha, Fitz, da tua Abelhinha. E minha.”
Se ele me tivesse atingido na barriga com a ponta de um bastão, o
impacto não poderia ter sido pior. “Abelha era minha filha.” As palavras
saíram como o rosnido de um lobo. “Não quero partilhá-la!” A honestidade
pode ser como um furúnculo que rebenta no momento mais infeliz. Teria eu
conhecido a fonte da minha ira antes de a expressar em voz alta?
“Eu sei que não queres. Mas tem de ser.” Pousou levemente a mão na
mochila. “Isto foi tudo o que ela pôde deixar-nos. Além de um glorioso
instante a abraçá-la e a ver a sua promessa explodir a toda a minha volta
como um géiser de luz numa noite escura, isto é tudo o que eu alguma vez
conhecerei de seu. Por favor, Fitz. Por favor. Dá-me isso dela.”
Fiquei em silêncio. Não podia. Havia demasiado naqueles livros. No
diário dela havia poucas menções a mim nos tempos em que ela se
mantivera afastada. Havia demasiado de uma rapariguinha a travar sozinha
as feias batalhas infantis com as outras crianças de Floresta Mirrada. Havia
demasiadas entradas que me faziam sentir cobarde e envergonhado com o
pai cego que eu fora. O seu relato do choque com Lante e de como eu lhe
prometera depois que tomaria sempre o seu partido mostrava como eu
falhara nesse aspeto. Como podia eu ler aquelas páginas ao Bobo em voz
alta? Como podia aguentar a minha vergonha?
Ele já sabia que eu não poderia partilhar esses escritos antes mesmo de
mo ter pedido. Conhecia-me bem o suficiente para isso; sabia que havia
algumas coisas que eu não podia ceder. Porque se atrevia sequer a pedir?
Ergueu a mochila com ambas as mãos para a embalar junto ao peito. As
lágrimas nasceram nos seus olhos dourados e seguiram as cicatrizes na sua
cara quando lhe escorreram por ela abaixo. Ele estendeu a mochila,
entregando-ma. Senti-me uma criança contrariada cujo pai cede à sua birra.
Peguei na mochila e abri-a imediatamente. Pouco lá havia exceto os livros e
as velas de Moli. Eu guardara a maior parte da minha roupa, o tijolo dos
Antigos e outras coisas que possuía nos bem organizados armários da
cabina. No fundo, uma das minhas camisas envolvia os tubos de prata-de-
dragão. Julgara que a minha mochila era o lugar mais privado onde poderia
manter essas coisas guardadas. Estavam enroladas como eu as deixara. Ele
falara a verdade; não vasculhara lá dentro. Uma nuvem de fragrância subiu
até mim. Inspirei os perfumes de Moli que vinham das velas. Com eles veio
a calma. A clareza. Ergui os livros a fim de deslocar as velas para uma
posição mais segura.
As palavras dele soaram hesitantes. “Lamento se te magoei. Por favor,
não culpes Centelha. Ou Perseverança. Foi um comentário casual da parte
dele, e a rapariga agiu sob coação.”
A calma de Moli. O obstinado sentido de justiça de Moli. Porque seria
tão difícil? Haveria alguma coisa naqueles livros que ele não soubesse já
sobre mim? O que poderia eu perder? Não tinha já perdido tudo?
Não partilharia ele essa perda?
A neve humedecera um canto do diário de sonhos de Abelha. Secara,
mas a capa de couro franzira-se ligeiramente, deixando os relevos
enrugados. Tentei alisá-la com o polegar. Ela resistiu. Abri-o devagar.
Pigarreei. “Na primeira página”, disse, e a voz estrangulou-se-me num
guincho. O Bobo olhou cegamente na minha direção, com lágrimas a
correr-lhe pela cara abaixo. Voltei a pigarrear. “Na primeira página existe
um desenho de uma abelha. É exatamente do tamanho de uma abelha e
exatamente das cores de uma abelha. Por cima da abelha, escritas muito
cuidadosamente numa espécie de arco, estão as palavras ‘Este é o meu
diário de sonhos, dos meus sonhos importantes’.”
A respiração prendeu-se-lhe na garganta. Ficou muito imóvel. Eu
levantei-me. Atravessar aquela minúscula sala precisou de menos de três
passos. Algo — não o orgulho, não o egoísmo, algo para o qual eu não tinha
nome — transformou esses três passos na mais íngreme escalada que eu já
tentara fazer. Sentei-me ao lado dele com o livro aberto no regaço. Ele não
estava a respirar. Estendi o braço e ergui-lhe a mão sem luva pela manga de
lã. Trouxe-a até à página e fi-lo roçar levemente pelo arco de letras com os
dedos pendentes. “São essas as palavras.” Voltei a erguer-lhe a mão e
manobrei o indicador até à abelha. “E aqui está a abelha que ela pintou.”
Ele sorriu. Ergueu o pulso para limpar a cara de lágrimas. “Consigo sentir
a tinta que ela pôs na página.”
E lemos juntos o livro da nossa filha. Chamar-lhe isso ainda era um
pensamento com farpas, mas forcei-me a fazê-lo. Não o lemos depressa.
Por decisão dele, não minha. E, para minha surpresa, ele não pediu que eu
lesse o diário dela. Eram os seus sonhos que queria ouvir. Aquilo
transformou-se no nosso ritual quando nos separávamos todas as noites.
Alguns sonhos do livro dela, lidos em voz alta. Eu não lia mais de três ou
quatro todas as noites. Era frequente reler cada um uma dúzia de vezes ou
mais. Via os lábios dele mover-se em silêncio quando os gravava na
memória. Ele sorriu quando eu li um sonho favorito, sobre lobos a correr.
Um sonho sobre velas fê-lo endireitar-se de repente e depois cair num longo
e pensativo silêncio. O sonho de ser uma noz confundiu-o tanto como me
confundia a mim. Ele chorou na noite em que li o sonho sobre o Homem-
Borboleta. “Oh, Fitz, ela tinha-o. Ela tinha o dom. E eles destruíram-no.”
“Tal como nós os destruiremos a eles”, prometi.
“Fitz.” A voz dele deteve-me à porta. “Temos a certeza de que ela está
destruída? Tu ficaste retido nos pilares de Talento quando viajaste de
Aslevjal, mas acabaste por emergir em Torre do Cervo.”
“Desiste dessa esperança. Eu era um utilizador de Talento treinado.
Emergi. Abelha penetrou no pilar sem treino, sem um guia experimentado,
fazendo parte de uma cadeia de gente sem treino. É o que sabemos por
intermédio de Esquiva. Não havia sinal deles quando o círculo de Urtiga foi
atrás dela. Não havia vestígio deles quando seguimos a mesma rota, meses
mais tarde. Ela foi-se, Bobo. Esfarrapou-se em nada.” Desejei que ele não
me tivesse obrigado a proferir aquelas palavras em voz alta. “Tudo o que
nos resta é a vingança.”

Não dormi bem no Lobo-do-Mar. Era, em certo sentido, como dormir sobre
o dorso de um imenso animal e estar constantemente consciente dele com o
meu sentido da Manha. Eu dormira frequentemente com o dorso do lobo
encostado à minha barriga, mas Olhos-de-Noite fora um conforto, pois
partilhara a sua consciência selvagem do que nos rodeava com os meus
sentidos humanos menos acutilantes. Eu sempre dormira melhor quando ele
estava perto de mim. Não acontecia o mesmo com o Lobo-do-Mar. Era uma
criatura separada de mim. Era como tentar dormir com alguém a fitar-me.
Não senti nenhuma malevolência, mas a consciência constante deixou-me
agitado.
E assim era que eu ficava por vezes acordado e inquieto a meio da noite,
ou naquele momento cinzento-escuro que chega antes da alvorada. Esta era
uma coisa estranha no Rio dos Ermos Chuvosos. Durante o dia, viajávamos
por uma faixa de luz no centro do rio, enquanto as grandes árvores de
ambos os lados bloqueavam tanto o nascer como o pôr do sol. Mas o meu
corpo sabia quando era alvorada, e era frequente eu acordar ao dealbar da
aurora e sair para o convés imóvel e húmido e aí ficar a escutar o não-
silêncio da floresta que ia despertando lentamente à nossa volta. Encontrava
uma pequena porção de paz nessas horas em que ficava tão perto de estar
sozinho como é possível estar-se num navio. Havia sempre um tripulante de
vigia à amarração, mas na sua maior parte eles respeitavam a minha
quietude.
Numa dessas alturas de pré-aurora, eu estava a bombordo, a olhar para
trás, para o lugar de onde tínhamos vindo. Tinha nas duas mãos uma
chávena de chá fumegante, um calor bem-vindo. Soprei suavemente o chá e
observei as plumas mutáveis de vapor. Estava prestes a tomar um gole
quando me apercebi de um passo ligeiro no convés atrás de mim.
“Bom-dia”, disse eu baixinho a Centelha quando ela apareceu atrás de
mim. Não virara a cabeça para a ver, mas se ela ficou surpreendida pela
minha consciência da sua presença, não o mostrou. Veio parar a meu lado,
pousando as mãos na amurada.
“Não posso dizer que lamento”, disse a rapariga. “Estaria a mentir.”
Bebi um gole de chá. “Obrigado por não me mentires”, disse, e falava a
sério. Breu sempre sublinhara que mentir era um talento necessário a
qualquer espião e exigira que eu treinasse sinceridade artificial.
“Estais zangado comigo?”, perguntou ela.
“Nem por sombras”, menti. “Espero que sejas leal à tua ama. Não
confiaria em ti se não fosses.”
“Mas não julgais que eu devia ser mais leal a vós do que à Dama Âmbar?
Conheço-vos há mais tempo. Breu treinou-me. E disse-me para vos dar
ouvidos.”
“Quando ele teve de te abandonar, escolheste uma nova mentora. Sê leal
à Dama Âmbar.” Entreguei-lhe um fragmento de verdade. “Reconforta-me
que ela tenha alguém tão competente como tu a zelar em permanência por
ela.”
A rapariga estava a acenar com a cabeça e a olhar para as mãos. Boas
mãos. As mãos hábeis de uma espia ou uma assassina. Ousei fazer uma
pergunta. “Como soubeste dos livros?”
“Por Perseverança. Não que ele julgasse que estava a revelar um segredo.
Foi quando vós dissestes que devíamos estar todos a aprender. Depois disso,
Per e eu estivemos a conversar e ele disse que não gostava da parte de ficar-
quieto-a-olhar-para-o-papel de aprender a ler. Mas disse que vós tínheis um
livro que Abelha havia escrito. Ela ensinou-lhe algumas das letras e ele
tinha reconhecido que o livro era dela pela forma como as letras eram
feitas. Fez menção dele na conversa porque tinha a esperança de um dia, se
aprendêssemos a leitura, poder ler o que a amiga tinha escrito.”
Acenei com a cabeça. Nunca dissera ao rapaz que os livros eram coisas
privadas. Ele salvara um deles quando o urso nos desfizera o acampamento.
Até comentara sobre eles. Não podia censurá-lo por contar a Centelha. Mas
descobri que ainda conseguia culpá-la a ela por ter localizado os livros na
minha mochila e depois a ter levado a Âmbar. Teria ela manuseado as velas
de Moli? Saberia dos tubos de Prata nas minhas meias? Não disse nada mas
julgo que ela sentiu a repreensão.
“Ela disse-me onde procurar e pediu-me para a ir buscar. O que haveria
eu de fazer?”
“O que fizeste”, disse eu com concisão. Perguntei a mim mesmo por que
motivo me teria ela procurado e dado início àquela conversa. Eu não a
censurara nem mudara nada no modo como a tratava desde que dera os
meus livros ao Bobo. O silêncio alongou-se. Arrefeci o calor da ira que
sentia, e de súbito ela transformou-se em brasas frias e húmidas, ensopadas
pelo meu desencorajamento com a nossa demanda. Que importância tinha?
Mais cedo ou mais tarde, o Bobo teria arranjado maneira de alcançar os
livros. E agora que o fizera, parecia certo que ele soubesse o que estava no
livro de sonhos de Abelha. Não havia lógica em sentir-me zangado ou
magoado por Centelha o ter facilitado. Mas mesmo assim…
Ela pigarreou e disse: “Breu instruiu-me sobre segredos. Sobre como eles
são poderosos. E sobre como o segredo se transforma em perigo e não
numa fonte de poder quando mais de uma pessoa o conhece.” Fez uma
pausa, depois acrescentou: “Eu sei como respeitar segredos que não são
meus. Quero que o saibais. Sei como guardar para mim segredos que não
precisam de ser revelados.”
Dirigi-lhe um olhar cortante. O Bobo tinha segredos. Eu conhecia alguns.
Estaria ela a oferecer-me alguns dos segredos do Bobo como oferta de paz
em troca de ter roubado os livros de Abelha? Ofendia-me que ela pensasse
que eu podia ser subornado com os segredos do meu amigo. O mais
provável era que eu já os conhecesse, mas, mesmo se fossem segredos que
eu desconhecia, não tinha nenhum desejo de os obter por intermédio de uma
traição por parte dela. Franzi-lhe o sobrolho e afastei dela o olhar.
Ela ficou em silêncio durante algum tempo. Depois falou de uma forma
cuidadosamente medida, com uma voz resignada. “Quero que saibais que
também sinto lealdade para convosco. Não como uma ligação tão grande
como a que sinto para com a Dama Âmbar, mas sei que me protegestes o
melhor que pudestes quando Dom Breu começou a ir-se abaixo. Eu sei que
me colocastes junto da Dama Âmbar tanto por mim como por ela. Tenho
uma dívida para convosco.”
Acenei lentamente com a cabeça mas disse em voz alta: “A melhor forma
de ma pagares é servires bem a Dama Âmbar.”
Ela ficou a meu lado em silêncio como se esperasse que eu dissesse mais
alguma coisa. Quando não o fiz, acrescentou com um pequeno suspiro: “O
silêncio guarda um segredo. Compreendo.”
Continuei a fitar a água. Desta vez, ela afastou-se de mim tão
silenciosamente que só a Manha me informou quando voltei a ficar sozinho.
Numa tarde calma de céu limpo, chegámos a um dos povoados dos Ermos
Chuvosos. As margens do rio não se tinham tornado mais acolhedoras. As
árvores da floresta chegavam mesmo à beira de água, ou talvez fosse mais
correto dizer que o rio caudaloso invadira a base da floresta. As árvores que
pendiam sobre a água estavam renovadas por reluzentes folhas novas. Aves
de plumagens brilhantes gritavam e travavam batalhas por locais de
nidificação, e fora isso que atraíra os meus olhos para cima. Fitei o maior
ninho que vira na vida e depois vi uma criança sair dele e caminhar a passo
vivo ao longo do ramo na direção do tronco. Fiquei a olhar, de boca aberta,
sem fazer um som por temer que qualquer grito que soltasse pudesse levar a
criança a cair. O Grande Eider viu a direção do meu olhar e ergueu uma
mão em saudação. Um homem saiu daquilo que eu agora via ser uma
minúscula cabana empoleirada numa árvore e acenou antes de seguir a
criança.
“É um abrigo de caçador?”, perguntei ao Grande Eider e ele fitou-me
como se as minhas palavras não fizessem nenhum sentido.
Bellin estava a passar por nós no convés. “Não, é uma casa. As pessoas
dos Ermos Chuvosos têm de construir nas árvores. Não há terra seca.
Fazem construções leves e pequenas. Às vezes, cinco ou seis salinhas
penduradas da mesma árvore. É mais seguro que uma grande.” Passou por
mim, concentrada nalguma tarefa náutica, e deixou-me a olhar de boca
aberta para a aldeia que engrinaldava as árvores.
Fiquei no convés até ao início da noite, ensinando os olhos a encontrar os
pequenos aglomerados de aposentos pendurados. À medida que o céu foi
escurecendo, luzes começaram a brilhar em alguns, iluminando as frágeis
paredes de tal forma que elas brilhavam como lanternas distantes nas copas
das árvores. Nessa noite amarrámos o navio ao lado de vários barcos mais
pequenos e as pessoas desceram das árvores em busca de mexericos e para
oferecer pequenos negócios. Café e açúcar eram os artigos mais procurados,
e trocavam-nos em pequenas quantidades por verduras arbóreas recém-
colhidas que faziam um chá refrescante e por colares de conchas de caracol
com cores vivas. Bellin ofereceu um colar de conchas a Centelha e ela
expressou um tal deleite com ele que a mulher chegou mesmo a sorrir.
“Estamos perto de Trehaug”, disse-nos essa noite Leftrin à mesa da
cozinha. “Provavelmente passamos Cassarick amanhã de manhã e
chegamos a Trehaug à tarde.”
“Não vão parar em Cassarick?”, perguntou Perseverança com
curiosidade. “Julgava que era aí que os dragões eclodiam.”
“Era.” Leftrin franziu o sobrolho e depois disse: “E é lugar de traidores,
de gente que traiu os costumes dos Mercadores e nunca sofreu nenhumas
consequências por isso. Pessoas que deram abrigo aos que queriam
massacrar dragões pelo seu sangue, ossos e escamas. Demos-lhes uma
oportunidade de se redimirem e de levarem a justiça aos traidores. Não a
aproveitaram. Nenhuma embarcação dos Mercadores dos Dragões irá
algum dia parar lá para negociar. Pelo menos até Candral e os seus amigos
serem apresentados à justiça.”
A cor escorreu para fora da cara de Centelha. Perguntei a mim próprio
quão bem teria ela escondido o minúsculo frasco de sangue de dragão que
surripiara a Breu ou se o Bobo o teria usado todo. Nunca ouvira Leftrin
falar com tanta veemência. Mas Âmbar soou calma e quase alegre quando
disse: “Vou ficar tão contente por voltar a ver Alteia e Brashen. Ou talvez
deva usar a palavra reencontrar. Bem gostaria de voltar a vê-los. E a Moss-
O.”
O Capitão Leftrin pareceu surpreendido por um momento. “Tinha-me
esquecido de que os conhecíeis. Mas em qualquer caso não veríeis o Moss-
O. Há uns anos, ele partiu para servir uma ou duas temporadas em Vivácia e
nunca regressou. Vivácia tinha o direito de o exigir, mas eu sei que deixá-lo
ir partiu o coração de Alteia e Brashen. Mas agora é um homem e tem o
direito de decidir sobre a sua própria vida. Pode usar o nome de Trell mas é
Vestrit pelo lado da mãe e Vivácia tem direito a ele. E ele a ela, mesmo que
as Ilhas dos Piratas talvez não concordem com isso.” Baixou a voz. “O
Modelo Ideal não ficou contente por vê-lo ir. Exigiu que houvesse uma
troca. Queria que lhe fosse dado o seu homónimo, Ideal Ludluck. É um
Ludluck legítimo, mas eu ouvi dizer que nas Ilhas dos Piratas lhe chamam
Fidekennit.” Leftrin coçou uma cara barbuda. “Bem, Fidekennit é filho da
rainha das Ilhas dos Piratas e ela não estava disposta a deixar o rapaz partir.
Modelo Ideal disse que tinha sido enganado. Chamou-lhe o que julgava ser
uma troca de reféns — embora fosse rápido a fazer notar que tinha um
direito superior a ambos os homens. Mas a Rainha Etta das Ilhas dos Piratas
disse simplesmente que não. Até ouvimos um boato a dizer que Fidekennit
andava a cortejar uma dama rica das Ilhas das Especiarias e provavelmente
ia casar com ela. Bem, se é isso que pretende, é bom que a Rainha Etta o
case depressa. Ele já passou há muito da idade! E se se casar, duvido que
chegue a navegar nos conveses do Modelo Ideal. O Modelo Ideal fica mal-
humorado ou desconsolado sempre que se fala nele, portanto é possível que
quanto menos perguntas houver sobre o Moss-O, melhor.”
“Não compreendo”, objetei em voz baixa, apesar de ser claro que Âmbar
compreendia.
Leftrin hesitou. “Ah, enfim.” Falou baixinho, como quem revela uma
confidência. “Alteia e Brashen capitaneiam agora o Modelo Ideal, mas ele
pertenceu por gerações à família Ludluck. Foi roubado e durante algum
tempo o pirata Igrot usou-o para fins daninhos. Com rombos no casco e
danificado, ele arranjou maneira de encontrar o caminho de volta a uma
praia de Vilamonte. E depois foi endireitado e içado, ficando encalhado na
costa durante anos. Brashen Trell e a família Vestrit reclamaram o Modelo
Ideal quando ele não passava de um casco encalhado. Recuperaram-no e
voltaram a lançá-lo ao mar. Mas no seu íntimo ainda é um navio Ludluck e,
durante algum tempo, o pirata Kennit Ludluck reclamou-o para si. E morreu
no convés do Modelo Ideal. O navio certamente quereria o filho de Kennit.
E Moss-O.”
“E Alteia?”, perguntou Âmbar. “Ela teve alguma palavra a dizer sobre o
filho de Kennit viver a bordo do Modelo Ideal?”
Leftrin olhou para ela. Apercebi-me de uma história por contar, mas ele
limitou-se a dizer: “Outra discussão que é melhor não se ter no convés do
Modelo Ideal. Já não lhe chamam o navio louco, mas eu não lhe poria à
prova o temperamento. Ou o de Alteia. Os dois não podem deixar de
discordar sobre algumas coisas.”
Âmbar fez um aceno de gratidão com a cabeça. “Agradeço-vos os avisos.
Uma língua descuidada pode causar muitos danos.”
Foi difícil dormir naquela noite. Avizinhavam-se um navio diferente e a
etapa seguinte da nossa viagem. Eu iria penetrar mais profundamente em
território que me era desconhecido, levando comigo pessoas que pouco
mais eram que crianças. Falei à escuridão da nossa cabina. “Estou com
ideias, Perseverança, de perguntar ao Capitão Leftrin se não te pode acolher
como ajudante de bordo. Pareces adaptar-te bem a este ofício. Que achas
disso?”
O silêncio seguiu-se às minhas palavras. Depois, a voz dele veio da
escuridão, tingida de alarme. “Depois, quereis vós dizer? Quando
estivermos na viagem de regresso a casa?”
“Não. Quero dizer amanhã.”
A voz soou mais sumida quando ele disse: “Mas eu ajuramentei-me ao
vosso serviço, senhor.”
“Eu podia libertar-te desse juramento. Podia ajudar-te a pôr os pés num
caminho mais luminoso e limpo do que aquele que eu tenho de seguir.”
Ouvi-o a inspirar profundamente. “Vós podíeis libertar-me do vosso
serviço, senhor. Realmente, se decidirdes correr comigo, eu já não poderia
afirmar ser vosso. Mas só Abelha poderá libertar-me da promessa que fiz de
a vingar. Afastai-me se quiserdes, senhor, mas eu continuo a ter de seguir
isto até ao fim.”
Ouvi Lante virar-se no beliche. Julgara-o adormecido e a sua voz soou
tão densa que talvez estivesse. “Nem sequer me mencioneis tal ideia”,
avisou-me. “É como o rapaz disse. Eu fiz uma promessa ao meu pai e não
me podeis pedir para a quebrar. Nós seguimos-vos, Fitz, até ao fim.
Independentemente de quão amargo ele seja.”
Não disse nada, mas a minha mente lançou-se imediatamente ao trabalho.
O que constituiria “o fim” para Lante? Conseguiria eu convencê-lo de que
já cumprira o seu dever e podia regressar honradamente sem mim a Torre
do Cervo? Não me parecia seguro pôr Centelha e Per num navio rumo a
casa sem um protetor. Podia afirmar que tinha recebido via Talento uma
convocatória urgente de Respeitador para Lante voltar para junto de Breu.
Quando ele descobrisse que era falsa, estaria em casa. Sim. Puxei os joelhos
para cima, a fim de caber melhor no pequeno beliche e fechei os olhos. Essa
parte, pelo menos, estava assente. Uma pequena mas convincente mentira
em Vilamonte e poderia pô-lo pelo menos a ele num navio para casa. Agora
só tinha de arranjar maneira de descolar Perseverança de mim. E Centelha.

O dia seguinte decorreu como Leftrin previra. A tripulação começou a


despedir-se de nós ao pequeno-almoço. “Oh, vou ter tantas saudades de vos
ter a bordo”, exclamou Alise a Âmbar.
Bellin deixara brincos de conchas junto do prato de Centelha. A sisuda
tripulante ganhara amizade pela rapariga. Per fez uma ronda dos tripulantes,
fazendo as suas próprias despedidas.
Passámos as últimas horas no teto da cabina, pois o dia estava calmo, e
não havia frio nenhum desde que mantivéssemos os casacos fechados. O
tempo abrira e havia uma faixa de céu azul por cima do rio. Passámos pela
praia onde os dragões eclodiam, conforme Skelly no-la indicou, e depois
pela cidade arbórea de Cassarick. Não parámos; e Leftrin nem sequer
respondeu a nenhuma das saudações que nos foram gritadas. Na extensão
de rio entre Cassarick e Trehaug, as pequenas habitações pendentes eram
tão densas como maçãs numa árvore cultivada, e eu não consegui perceber
de que forma ele determinava onde terminava uma povoação e começava a
seguinte. Mas, a certa altura, o capitão começou a responder aos acenos
amigáveis que as pessoas lhe faziam das suas casas arbóreas. Começámos a
ver pontões flutuantes amarrados aos troncos das árvores e pequenas
embarcações amarradas a eles. Havia pessoas a pescar, encavalitadas nos
troncos das árvores que se projetavam por cima da água, deixando as linhas
cair verticalmente para o rio. O Lobo-do-Mar contornou-as de longe para
evitar as linhas pendentes. Fiquei fascinado pelas passagens suspensas e
pelos ramos muito movimentados que funcionavam como caminhos.
Centelha estava sentada ao lado de mim e de Âmbar, apontando para as
árvores e soltando exclamações sobre como algumas crianças se
precipitavam ao longo de um ramo que ela teria julgado demasiado estreito
para ser atravessado com cuidado.
“Os cais de Trehaug são já depois da próxima curva!”, gritou-nos Skelly
enquanto passava pela cabina. O Grande Eider estava a guiar o Lobo-do-
Mar para mais perto das árvores densamente ocupadas. A água corria mais
lentamente e era menos profunda, e depressa a tripulação fez descer as
varas e começou a abrandar o Lobo-do-Mar e depois a guiá-lo. Fiquei com
a ideia de que qualquer coisa parecia estranha, como se estivesse em ação
algo mais do que apenas a tripulação com as suas varas. O navio parecia
responder demasiado bem. Quando fiz um comentário sobre o assunto,
Centelha disse: “Mas o Lobo-do-Mar é um navio vivo. Isso quer dizer que
ajuda a tripulação a levá-lo para onde precisam que ele vá.”
“Como?” Eu estava intrigado.
Ela sorriu. “Estudai a esteira dele da próxima vez que acostemos para
passar a noite.” Perante o meu ar confuso, acrescentou: “E pensai nas
pernas de uma rã a nadar.”
Fizemos a curva e o meu primeiro vislumbre de Trehaug afastou-me da
mente as “pernas” do Lobo-do-Mar. Era a mais antiga das cidades dos
Ermos Chuvosos. As imensas árvores que se projetavam sobre o largo rio
cinzento estavam engrinaldadas com pontes, passadiços e casas de todos os
tamanhos. A terra pantanosa e dada a inundações que havia por baixo dos
ramos da antiga floresta não permitia habitações permanentes. A cidade de
Trehaug fora construída quase inteiramente nos ramos das árvores que
delimitavam o rio.
Habitações tão grandes como solares eram construídas nos ramos mais
baixos e mais grossos. Fizeram-me lembrar um pouco as casas do Reino da
Montanha, onde as árvores faziam parte integral da estrutura. Mas estas não
estavam tão integradas na selva que constituía o seu ambiente. Eu podia
acreditar com igual facilidade que alguma tempestade tinha soprado uma
casa de Vara, depositando-a ali. Todas eram feitas de rica madeira com
janelas de vidro e pareciam impossivelmente grandiosas e pesadas. Estava a
admirar uma que parecia ter sido inteiramente construída em volta do
tronco de uma árvore imensa quando Skelly disse: “Aquela é a casa dos
Khuprus. A família de Reyn.” Fitei o agigantado edifício. Oh. A riqueza e a
importância personificadas. A sua família pertencera à classe governante
desde muito antes de ele se tornar “rei” em Kelsingra. Riqueza antiga,
mostrada pelo desgaste nos antigos madeiramentos de suporte. Armazenei
esse bocadinho de informação. Tanta informação útil que eu pretendia
transmitir a Torre do Cervo. Quando alcançasse Vilamonte, enviaria várias
aves mensageiras a Respeitador. O que queria partilhar não caberia numa só
cápsula mensageira.
“Oh, olhem! Alguma vez viram uma coisa destas? Ele é magnífico!” O
grito de Perseverança afastou o meu olhar da árvore, fazendo-o descer para
o longo cais à nossa frente. Um navio vivo estava atracado a ele. De velas
enroladas, oscilava placidamente sob a amarração. A madeira prateada do
seu casco proclamava que aquele não era nenhum navio comum. Ao
contrário do Lobo-do-Mar, aquele navio vivo tinha uma figura de proa
totalmente esculpida. A sua cabeça escura estava caída sobre o peito
musculoso como se estivesse a dormitar com os braços cruzados. Uma
estranha postura para uma figura de proa. Depois os cabelos puseram-se-me
em pé quando ele ergueu lentamente a cabeça.
“Está a olhar para nós!”, exclamou Centelha. “Oh, Dama Âmbar, se
pudésseis ver isto! Está mesmo vivo! A figura de proa virou a cabeça e está
a olhar para nós!”
Fitei o navio, enquanto a boca se me abria. Os olhos de Centelha e
Perseverança saltaram do navio para mim. Eu estava emudecido, mas Lante
proferiu as palavras em voz alta. “Doce Eda. Fitz, ele tem a vossa cara. Até
ao pormenor do nariz partido.”
Âmbar pigarreou. Introduziu a voz esbaforida no meu silêncio chocado.
“Fitz. Por favor. Eu posso explicar tudo.”
Capítulo 11

Passagem

Este é o mais assustador dos meus sonhos. Sonho-o como uma


trepadeira que se divide em dois ramos. Num dos ramos há quatro
velas a crescer. Uma por uma, são postas a arder, mas a luz que
deitam não ilumina. Em vez disso, um corvo diz: “Aqui estão quatro
velas para até à cama te iluminarem o caminho. Quatro velas acesas
significam que morto está o seu filhinho. Quatro velas ardem pelo
fim das suas vias. O Lobo e o Palhaço desperdiçaram os seus dias.”
Depois, no outro ramo da trepadeira, três velas são subitamente
acendidas. A sua luz quase cega. E o mesmo corvo diz: “Três velas
ardem, do que o sol são mais brilhantes. A sua luz devora os males
triunfantes. O seu luto furibundo é propósito ativo. Pois ignoram
que seu filho ‘inda está vivo.”
Então, o corvo tem subitamente uma vela quebrada. Deixa-a cair e
eu apanho-a. Numa voz lenta e assustadora diz: “Pequena, acende o
fogo. Queima o futuro e o passado. Foi para o fazer que tu
nasceste.”
Acordei toda a tremer e saí da cama e corri para o quarto dos meus
pais. Queria dormir com eles, mas a minha mãe trouxe-me de volta
para a minha cama e deitou-se a meu lado. Cantou-me uma canção
até eu conseguir voltar a adormecer. Eu era muito nova quando
sonhei isto; só recentemente tinha aprendido como sair da minha
cama. Mas nunca esqueci o sonho nem as rimas do corvo. Desenho
a vela como ele a segurou, quebrada, com os bocados unidos apenas
a meio pelo pavio.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

A
melhor parte da nossa viagem marítima foi, de longe, quão
enjoada Dwalia estava. Tínhamos um quartinho minúsculo para
todos os quatro. Havia nele dois beliches estreitos. Dwalia ocupou
um e lá permaneceu durante quatro dias. O balde do seu vómito e a roupa
suada da sua cama fediam. Na cabina sem janelas, os cheiros no ar parado
eram uma sopa que pairava à nossa volta, a cada dia mais densa e profunda.
Passei os dois primeiros dias da viagem horrivelmente enjoada. Mas
depois Dwalia guinchou-nos que os nossos ruídos e movimentos estavam a
deixá-la pior e ordenou-nos que saíssemos. Saí a cambalear atrás de
Vindeliar e Kerf. Passámos por um espaço escuro entre o convés e o porão
de carga, onde lanternas a azeite oscilavam suavemente nas vigas. Beliches
cobriam as paredes curvas, e no centro oscilavam camas suspensas,
algumas cheias e outras vazias. Cheirava a piche, ao azeite das lâmpadas, a
suor e a comida má. Segui Kerf até uma escada e fui atrás dele para cima e
para fora de uma escotilha quadrada. Ao ar livre, com o vento a soprar-me
gelado na cara, senti-me imediatamente melhor.
Depois de o meu estômago aceitar que o mundo ia ondular e inclinar-se à
minha volta, senti-me bem. Dwalia sabia que eu não podia escapar
enquanto o navio estivesse no mar e estava demasiado enjoada para pensar
em mais do que isso. Tínhamos trazido alguma comida connosco, mas às
vezes juntávamo-nos aos outros viajantes durante a refeição da noite. Havia
uma cozinha e uma sala chamada messe onde a longa mesa tinha uma
cercazinha ao longo da borda destinada a encurralar quaisquer pratos ou
canecas que pudessem deslizar. A comida não era nem boa nem má e,
depois da minha privação, contentava-me com qualquer coisa que pudesse
comer com regularidade.
Falei pouco, obedeci às poucas ordens que Dwalia dava e observei
ferozmente todos os detalhes do navio e dos meus dois companheiros.
Desejei que acreditassem que eu abdicara do desafio, para lhes aquietar a
vigilância. Esperava descobrir maneira de escapar no porto seguinte. A
brisa que enchia as nossas velas levava-me cada vez para mais longe de
casa. Momento após momento, dia após dia, a minha antiga vida afastava-
se mais de mim. Ninguém poderia salvar-me; ninguém sabia onde eu
estava. Se quisesse escapar àquele destino, teria de o fazer eu mesma.
Duvidava de vir a conseguir arranjar forma de regressar aos Seis Ducados,
mas podia ter esperança numa vida de liberdade para mim, mesmo se fosse
num porto desconhecido a meio mundo de distância de casa.
Dwalia ordenou a Vindeliar para nos tornar “desinteressantes” para a
tripulação e os outros passageiros, e ele manteve à nossa volta um feitiço
pouco firme. Ninguém falava connosco ou nos observava enquanto
vagueávamos pelo navio. A maior parte dos passageiros eram mercadores
calcedinos, a acompanhar carga até outros destinos. Alguns eram de
Vilamonte ou dos Ermos Chuvosos e alguns eram de Jamaília. Os ricos
ficavam em cabinas; os jovens enchiam as camas suspensas de tela.
Também havia escravos, alguns valiosos. Vi uma bela mulher que
caminhava com o orgulho de um garanhão, apesar da coleira de escrava e
da tatuagem pálida ao lado do nariz. Perguntei a mim mesma se ela teria
alguma vez sido livre. Vi um homem idoso de costas curvadas a ser vendido
por uma pilha de moedas de ouro. Era um erudito que falava seis línguas e
lia e escrevia em todas. Manteve-se estoicamente sentado enquanto uma
mulher regateou duramente por ele. Depois baixou-se sobre tinta e papel
para escrever o certificado de venda de si próprio, com o nariz muito
próximo do papel. Perguntei a mim mesma quanto trabalho de escriba
restaria nos seus dedos nodosos e o que seria feito dele quando
envelhecesse mais.
O tempo num navio passa de uma forma diferente. De dia e de noite, há
sempre marinheiros a correr de tarefa em tarefa. O toque de um sino
quebrava o tempo em quartos, e eu parecia não ser capaz de continuar a
dormir quando ele tocava. Quando o sino me despertava à noite, deitada no
chão cheio de lascas da cabina, a respirar a névoa amarga do enjoo de
Dwalia, ansiava por escapar para o convés. Mas Kerf dormia atravessado à
frente da porta estreita. No beliche acima de Dwalia, Vindeliar resmungava
no sono.
Se eu dormia, sonhava, por vezes os sonhos que ferviam e borbulhavam
em mim. Quando acordava desses sonhos, traçava nas tábuas do chão um
relato sobre eles e tentava desesperadamente expulsá-los da mente, pois
eram sonhos sombrios de morte, sangue e fumo.
Várias noites após o início da viagem, estava eu deitada no chão rodeada
pelo pouco que possuíamos, ouvi Vindeliar gemer uma única palavra.
“Irmão”, disse ele, e suspirou, mergulhando mais profundamente nos
sonhos. Aventurei-me a deixar que as muralhas que mantinha tão
firmemente erguidas contra ele durante o dia se desgastassem e aquietei a
mente para sondar os seus limites.
Não era como eu esperava.
Mesmo no sono, ele mantinha Kerf sob uma trela. O calcedino tornara-se
passivo como uma vaca leiteira, uma atitude muito contrária ao seu
equipamento e cicatrizes de guerreiro. Pedia a comida que ingeria e as
passageiras do sexo feminino estavam protegidas dos seus olhares,
incluindo a fila de escravas que eram amarradas uma vez por dia no convés,
a fim de apanharem ar. Naquela noite, consegui sentir como Vindeliar o
envolvia num aborrecimento que ficava a um passo do desespero. Todas as
memórias triunfantes e agradáveis estavam escondidas dele. Só se lembrava
de dias de dever entediante. Cada dia seria mais um passado a obedecer às
ordens de quem o comandava. E quem o comandava era Dwalia.
Tentei sentir o controlo de Vindeliar sobre mim mas, se ele tentava
mantê-lo, era demasiado subtil para que eu o encontrasse. Não esperara
encontrar um véu nebuloso a envolver Dwalia.
Ter-lho-ia ela pedido? Quereria dormir? Era improvável que quisesse
sentir-se tão enjoada para ficar todos os dias na cama. Ela revelara o quanto
o detestava. No dia em que lhe atirara insultos, ele encolhera-se perante o
seu desdém. Teria sido essa a primeira vez que revelara a repugnância que
ele lhe provocava? Explorei o que ele lhe sugeria: podia confiar em
Vindeliar para lidar connosco; ele arrependera-se da sua breve rebelião. Era
o seu servo, era-lhe totalmente leal. Podia controlar Kerf e esconder-me
enquanto ela precisasse de descansar. Segui em bicos de pés em volta dos
limites desse nevoeiro de sugestão. A que profundidade chegaria aquele
cuidadoso desafio de Vindeliar a Dwalia? Viria ela a aperceber-se dele
quando recuperasse do enjoo?
Se ele lhe permitisse recuperar do enjoo! Refleti nessa ideia. Estaria ele a
mantê-la nauseada? O enjoo de Dwalia aliviara-nos das suas palmadas,
beliscões e pontapés. Estaria ele a começar a virar-se contra ela? Se já não
servia Dwalia, se desejava a liberdade, conseguiria eu senti-lo? Conseguiria
eu conquistá-lo para o meu lado? Para fugir, para ir para casa?
No instante em que essa semente me surgiu na mente, ergui as muralhas
com toda a robustez que consegui arranjar. Ele não podia suspeitar que eu
sabia, muito menos que tinha esperanças. Como conquistaria a sua
lealdade? O que era que ele mais desejava?
“Irmão”, murmurei, pouco mais que um suspiro.
O ritmo da sua poderosa respiração tropeçou, soluçou e depois
prosseguiu. Desafiei-me. Seria possível piorar a minha situação?
“Irmão, não consigo dormir.”
O seu ressonar parou. Após um longo silêncio, ele disse, espantado:
“Chamaste-me ‘irmão’!”
“Tal como tu me chamas a mim”, respondi. O que quereria aquilo dizer
para ele? Tinha de ter cuidado com o que invocava.
“Como sonhei que te chamaria. E que tu me chamarias de volta.” A
cabeça virou-se no monte de roupa que lhe servia de almofada. Com
tristeza, acrescentou: “Mas o resto disto não coincide com o meu sonho. O
meu único sonho.”
“O teu sonho?”
“Sim”, admitiu ele. Com um orgulho envergonhado, acrescentou: “Mais
ninguém o sonhou. Só eu.”
“Como podiam ter sonhado? O sonho foi teu.”
“És tão ignorante de sonhos. Muitos Brancos partilham os mesmos
sonhos. Se muitos Brancos sonharam um sonho, ele é importante para o
Caminho. Se um sonho só aparecer uma vez, provavelmente não vai
acontecer. A menos que uma pessoa corajosa trabalhe muito para fazer com
que aconteça. Para encontrar os outros sonhos que mostram a viagem até lá.
Como Dwalia fez por mim.”
Dwalia mexeu-se no beliche, um som apavorante. Que estupidez a
minha! Claro que ela estaria acordada. A velha serpente nunca dormia
realmente. Ouvira as nossas palavras murmuradas e frustraria o meu plano
antes mesmo de eu o formar!
E então senti-o. Um sono profundo e abençoado rolou sobre mim como a
mais suave das mantas, quente mas não abafadiça, os músculos
descontraíram-se, a dor de cabeça foi suavemente afastada, livre do
insuportável fedor da cabina. Quase me afundei no sono apesar das
muralhas que mantinha. Perguntei a mim mesma quão forte seria ele para
Dwalia e se também ensoparia Kerf. Devia dizer a Vindeliar que sabia o
que ele estava a fazer? Poderia ameaçá-lo com a revelação a Dwalia do que
ele fazia no caso de não me ajudar?
“Tu sentes o que eu faço e proteges-te.”
“Sim”, admiti, uma vez que negá-lo parecia ser inútil. Esperei que ele
dissesse mais, mas não o fez. Ele parecera-me tão imbecil, mas agora, no
silêncio, perguntei a mim mesma se estaria a refletir na sua estratégia. Que
estratagema teria eu para o levar a falar? “Queres contar-me o teu sonho?”
Ele rolou sobre o flanco. Percebi pela sua voz que agora estava virado
para mim. Projetou o sussurro para o outro lado da pequena cabina. “Todas
as manhãs Samisal pedia papel e um pincel. Ele e eu éramos duas vezes
irmãos, os nossos pais eram irmã e irmão e os pais deles também. De modo
que às vezes eu fingia que eu também tinha sonhado, o mesmo sonho que
ele tinha tido. Mas eles chamavam-me sempre mentiroso. Sabiam. Portanto
Samisal tinha todos os sonhos e eu só tive um. Até Odessa, a minha gémea,
nascida tão mal constituída como eu, tinha sonhos. Mas eu só tive um. O
inútil Vindeliar.”
Irmão cruzado com irmã? A sua ascendência horrorizava-me, mas não
fora obra sua. Contive a consternação para dizer apenas. “Mas tiveste um
sonho?”
“Tive. Sonhei que te encontrava. Num dia branco de neve, chamei-te
‘irmão’ e tu vieste comigo.”
“Então tornou-se verdade.”
“Os sonhos não ‘se tornam verdade’”, corrigiu ele. “Se o sonho está no
verdadeiro Caminho, viajamos na direção dele. Os Quatro conhecem o
Caminho. Encontram os sonhos corretos e enviam Servos para fazerem o
Caminho para o mundo seguir. Encontrar o momento-de-sonho é como
encontrar um sinal na estrada. Confirma que o Caminho é verdadeiro.”
“Estou a ver”, disse eu, embora não estivesse. “Quer dizer que o teu
sonho nos juntou?”
“Não”, admitiu ele com tristeza. “O meu sonho foi só um sonhozinho
pequenino. Uma partezinha minúscula, pouco importante, segundo diz
Dwalia. Eu não devia julgar que sou importante. Muitas pessoas tiveram
sonhos melhores que o meu, e os que organizam os sonhos e os ordenam, os
Cotejadores, sabiam para onde devíamos ir e o que devíamos fazer para
criar o Caminho verdadeiro.”
“Os sonhos diziam sempre que eu era um rapaz?” Aquela pergunta era
simples curiosidade da minha parte.
“Não sei. A maioria chamava-te filho, ou então não diziam o que tu eras.
No meu sonho eras meu irmão.” Ouvi-o coçar alguma parte de si.
“Portanto, Dwalia tem razão. O meu sonho foi pequeno e não muito
correto.” Soava como uma criança desapontada, com a esperança de que
alguém discordasse dele.
“Mas tu viste-me e chamaste-me mesmo ‘irmão’. Mais alguém sonhou
essa parte?”
Eu nunca me tinha apercebido de que o silêncio podia ser lento, mas o
dele foi. Satisfação e justificação competiam na sua voz quando disse:
“Não. Ninguém mais o sonhou.”
“Então talvez tu fosses o único que me podia ter encontrado, irmão.
Talvez mais ninguém pudesse ter cumprido esse sonho.”
“Sim-m-m.” Saboreou a palavra.
O silêncio que ele guardou de seguida pareceu uma pausa necessária no
mundo. Um momento para Vindeliar tomar posse de algo que não
compreendera que lhe pertencia. Respeitei-o o máximo que pude. Depois
perguntei: “Portanto, para que o sonho fosse verdadeiro e confirmasse o
Caminho, tinhas de ser tu. Mas porque é que tinha de ser eu?”
“Porque és tu. O Filho Inesperado. Aquele que está em tantos sonhos.”
“Tens a certeza? Alaria e Reppin duvidavam.”
“Tens de ser! Só podes ser.” Soava mais desesperado do que seguro de si.
Ele chamara-me Filho Inesperado logo quando me encontrara. Esgravatei
um pouco mais nisso. “Portanto, no teu sonho tu eras aquele que encontrava
o Filho Inesperado. E este era eu.”
“Eu sonhei…” As palavras sumiram-se-lhe. “Eu sonhei que te
encontrava. Dwalia precisava de encontrar o Filho Inesperado.” Soou
assustado e zangado quando disse: “Eu não te teria encontrado se ela não
estivesse à procura dele. Disse-me para procurar por ele e eu encontrei-te e
reconheci-te do meu sonho! Portanto, tu és o Filho Inesperado.” Soltou uma
penetrante fungadela de aborrecimento por eu ter duvidado dele.
Ele sabia que a sua lógica tinha falhas. Não o via na escuridão para lhe
ler a expressão. Falei com suavidade para evitar enfurecê-lo. “Mas como?
Como é que tu sabes isso quando eu não sei?”
“Eu sei que te sonhei. Sei que te encontrei. Não há muito Branco em
mim. Alguns troçam de mim e dizem que não há nenhum. Mas se o meu
destino era fazer alguma coisa, enquanto Branco, essa coisa era encontrar-
te. E encontrei.” A satisfação aqueceu aquelas palavras. Ele bocejou de
súbito e a sua voz ficou debruada de suavidade. “Quando eu estou no
Caminho, consigo senti-lo. É uma sensação agradável. Segura. Tu não és
uma verdadeira sonhadora, portanto não podias saber estas coisas.”
Suspirou. “Não faz nenhum sentido para mim. Em todos os sonhos que me
citam, o Filho Inesperado é o ponto de equilíbrio. Depois dele, tudo está
ordenado ou tudo está em caos. Nalgum momento tu puseste-nos a todos
num rumo falso. Mas a divergência criada pelo Filho Inesperado pode estar
cheia de uma terrível destruição. Ou de um bem maravilhoso. O rumo que
tu crias pode levar a mil futuros possíveis que mais ninguém podia abrir…”
A voz sumiu-se-lhe. Suspirou. “Agora tenho de dormir, irmão. Não consigo
descansar durante o dia. A minha única oportunidade é quando o Kerf está a
dormir.”
“Então descansa, irmão.”
Fiquei quieta e durante o resto da noite dormi pouco e maquinei muito.
Empilhei os meus preciosos bocadinhos de conhecimento. Vindeliar
começara a aplicar os seus poderes contra Dwalia. Controlar Kerf era
cansativo para ele. Julgava que eu era muito importante e Dwalia talvez
pensasse o mesmo. Mas ainda julgaria ela que eu era o Filho Inesperado?
Com algumas palavras gentis, eu animara Vindeliar. Mais conversa
conseguiria recrutá-lo para o meu lado? Construí uma frágil esperança. Se
Vindeliar me ajudasse, poderíamos fugir a Dwalia no próximo porto.
Decerto que ele podia usar a sua magia para suavizar a minha viagem para
casa. Sorri, imaginando percorrer o caminho até Floresta Mirrada.
Perseverança viria ao meu encontro. O meu pai também, talvez, e Pândego
abriria a porta e desceria…
Mas Pândego estava morto. Os estábulos estavam queimados. O Escriba
Lante estava morto e Per talvez também estivesse. Voltei a perguntar a mim
mesma se Esquiva teria sobrevivido e chegado a casa. Ela mostrara-se
muito mais rija do que eu a imaginara. Se tivesse sobrevivido, ter-lhes-ia
contado como eles me levaram através de uma pedra? E se o tivesse feito,
tentariam eles seguir-me e encontrar-me? O meu coração teve um
sobressalto de esperança. O meu pai sabia como viajar pelas pedras. Com
certeza que viria atrás de mim!
Enrolei-me numa bolinha mais pequena no chão. Uma preocupação não
me largou. Conseguiria ele adivinhar que tínhamos voltado a entrar na
pedra? O odor da vela da minha mãe, enfiada no peito da camisa, alcançou-
me. Por um momento foi um conforto. Depois foi alarme seguido por
certeza. Eu tinha encontrado a vela porque o meu pai a levara para lá.
Esquiva chegara a casa, dissera-lhe para onde me tinham levado, e ele
seguira-nos mesmo. Seguira-nos e ultrapassara-me na pedra, de alguma
forma que eu desconhecia. Deixara cair aquela vela. Deixara-a cair e não
voltara a apanhá-la? Pensei na confusão de coisas que encontrara, nos restos
esfarrapados de uma tenda. O estrume de urso! Teria ele sido lá atacado?
Teria morrido? Estariam os seus ossos espalhados e cobertos pelo profundo
musgo sob as árvores?
Tentei contactar o Pai-Lobo. Se o meu pai estivesse morto, tu saberias?
Não senti qualquer resposta. Encolhi-me bem atrás das minhas muralhas.
Se o meu pai estivesse morto, ninguém viria salvar-me. Nunca. E os meus
sonhos terríveis sobre aquilo em que me ia transformar concretizar-se-iam.
A menos que me salvasse a mim mesma.
Capítulo 12

O Navio Vivo Modelo Ideal

Ao longo de gerações, o segredo de como os navios vivos eram


criados só foi conhecido por certas famílias de Mercadores. Por
alturas do fim da guerra com Calcede, e com o surgimento do
dragão Tintaglia, partes do segredo deixaram de poder ser
escondidas. Ao longo da última década, o paradoxo do navio vivo,
leal à família que o criou destruindo a criatura em que ele se teria
transformado, tornou-se ainda mais claro.
A criação do navio vivo inicia-se com um casulo de dragão. Quando
as gentes dos Ermos Chuvosos descobriram pela primeira vez
imensos troncos de uma madeira incomum, não faziam a mínima
ideia de que eram casulos de dragão. Os “troncos” tinham sido
armazenados numa sala em ruínas, com teto de vidro, que estava
enterrada sob a cidade de Trehaug. Os descobridores partiram do
princípio de que se tratava de peças particularmente valiosas de
madeira exótica. Na época, as gentes dos Ermos Chuvosos
necessitavam desesperadamente de um material que resistisse às
inundações ácidas do Rio dos Ermos Chuvosos. Por mais bem secos
e oleados que fossem os seus cascos, os navios tradicionais sofriam
danos graduais causados pela água do rio, e durante épocas de
enchentes brancas, quando o rio corria particularmente ácido,
alguns barcos simplesmente dissolviam-se, despejando carga e
passageiros na água tóxica. A “madeira” descoberta nas cidades
enterradas dos Antigos mostrou ser precisamente aquilo de que
precisavam. A madeira-de-feiticeiro, como lhe chamaram, era uma
madeira densa de grão fino e revelou-se ideal para a construção
naval e resistente ao ácido do rio.
Os navios construídos com esta substância eram os únicos capazes
de suportar repetidas viagens pela água ácida do Rio dos Ermos
Chuvosos. Esses navios muito desejados transformaram-se num elo
essencial no comércio de artefactos dos Antigos, os quais podiam
ser transportados das antigas cidades arruinadas para os povoados
dos Ermos Chuvosos. Daí, podiam ser vendidos a preços
exorbitantes para o mundo exterior.
Passaram-se várias gerações até a primeira figura de proa de um
navio vivo “despertar”. Os construtores e os donos ficaram
espantados. A primeira figura de proa a ganhar vida foi a Aurora
Dourada. Conversas com a figura de proa depressa revelaram que o
navio tinha absorvido as memórias daqueles que haviam vivido a
bordo, especialmente as dos capitães, e ganhara um vínculo à
família que o possuía. Os conhecimentos do navio estendiam-se à
navegação, à forma de lidar com o estado do tempo e à consciência
da manutenção necessária. O valor de um navio desses tornou-se
inestimável.
Aqueles que cortavam os “troncos” em tábuas devem ter tido um
conhecimento anterior de que esses troncos não eram madeira. No
coração de cada tronco, deviam ter descoberto um dragão
parcialmente formado. Mesmo se não conseguissem compreender o
que era, sem dúvida saberiam que eles teriam contido uma criatura
viva em algum momento. Esse era o maior de todos os segredos, um
segredo que as famílias mantinham escondido de todos, exceto dos
familiares do seu sangue. Crê-se que até à emergência do dragão
Tintaglia de um “tronco” de madeira-de-feiticeiro, os próprios
navios se mantiveram ignorantes da sua relação com os dragões.
Sobre os Navios Vivos de Vilamonte,
Mercadora Cauldra Redwined

F
iquei no convés do Lobo-do-Mar a erguer o olhar para a figura de
proa do Modelo Ideal. A minha cara. E um machado preso ao arnês
que lhe atravessava o peito. Lante e Perseverança estavam
petrificados. Centelha sussurrou: “Ele está a olhar para nós.”
E de facto estava. A figura de proa da embarcação ancorada parecia tão
afrontada como eu me sentia. Modelo Ideal assemelhava-se a mim quase
em tudo. “Não é possível que consigas explicar isto.”
“Consigo, sim”, assegurou-me Âmbar. “Mas não agora. Mais tarde. Em
privado. Prometo.”
Não dei resposta. Enquanto a distância entre os navios se fechava, a
tripulação do Lobo-do-Mar atarefava-se com as varas, abrandando e
guiando-o destramente para mais perto da margem do rio. Trehaug era um
centro comercial movimentado e havia pouco espaço nos cais. As
tripulações dos navios seguiam o costume de atracar a um dos navios
amarrados ao cais e atravessar um convés vizinho para chegarem a terra.
Parti do princípio de que nós faríamos o mesmo. Havia um espaço aberto
perto do Modelo Ideal mas julguei que fosse demasiado apertado para o
Lobo-do-Mar. Enquanto nos aproximávamos do Modelo Ideal, ele
devolvia-me o olhar, de cenho carregado.
“Porque é que ele tem olhos azuis?”, perguntei em voz alta. Os meus
eram escuros.
Âmbar tinha no rosto um sorriso estranhamente sentimental. Apertava as
mãos juntas contra o peito, como uma avó a olhar para uma criança querida,
e falou com carinho. “Foi o Modelo Ideal que os escolheu. Muitos dos
Ludlucks, incluindo Kennit, tinham olhos azuis. Os Ludlucks eram a sua
família original. Fui eu quem esculpiu a cara dele, Fitz. Ou melhor,
reesculpi-a. Ele tinha sido cegado, os olhos tinham-lhe sido cortados com
uma machadinha. Ele tinha sido marcado com o símbolo de quem o
atormentou… Oh, é uma história comprida e terrível. Quando lhe esculpi a
cara, esculpi-a com os olhos fechados, como ele queria. Recusou-se a abri-
los durante algum tempo. Quando abriu, eram azuis.”
“Porquê a minha cara?”, quis saber. Estávamos a aproximar-nos do cais.
“Mais tarde”, pediu ela em voz baixa.
As palavras quase se perderam nas ordens gritadas quando o Lobo-do-
Mar se aproximou do Modelo Ideal. A tripulação do Lobo-do-Mar pusera-
se em ação de um salto. Eu e os meus quatro companheiros estávamos no
topo da cabina, fora do seu caminho, e a observar. O nosso timoneiro
manobrou o remo para nos manter em posição contra a corrente enquanto
os outros usavam varas para impedir o Lobo-do-Mar de colidir com
demasiada força contra o cais. Em duas das embarcações amarradas,
tripulantes preocupados estavam a postos para nos empurrar. Mas o Lobo-
do-Mar enfiou-se no lugar com a precisão de uma espada a regressar para
dentro de uma bainha. Skelly saltou do convés do Lobo-do-Mar para o cais
e, no momento seguinte, apanhou um cabo que lhe foi atirado. Deu uma
volta rápida a um cunho de amarração e depois precipitou-se pelo cais fora
para apanhar o cabo seguinte.
A nossa atarracada barcaça fluvial fazia um forte contraste com o alto
navio oceânico. O baixo calado do Lobo-do-Mar permitia-lhe viajar rio
acima, para onde navios de calado elevado como o Modelo Ideal não
podiam ir. O Modelo Ideal destinava-se a águas profundas e vagas elevadas.
Agigantava-se sobre nós. A figura de proa que nos fitava do alto era várias
vezes maior que um homem. O seu olhar saltou de súbito de mim para a
mulher que estava a meu lado, e a sua carranca crítica desabrochou num
sorriso de incredulidade. “Âmbar? És tu? Onde estiveste nos últimos vinte e
tal anos?” Estendeu para ela mãos enormes e julgo que a teria arrancado do
convés do Lobo-do-Mar se estivéssemos mais próximos.
Ela ergueu os braços estendidos como que para oferecer um abraço.
“Bem longe daqui, meu amigo. Bem longe daqui! É tão bom voltar a ouvir
a tua voz.”
“Mas não ver-me. Os teus olhos estão cegos. Quem te fez isso?” A
preocupação competia com a ira.
“Estou cega como tu estiveste em tempos. É uma longa história, velho
amigo, uma história que prometo contar-te.”
“E vais contar mesmo! E quem é que está contigo?” Haveria um traço de
acusação na voz dele?
“Amigos meus, do Ducado de Cervo, dos Seis Ducados. Mas deixa-me
guardar esse relato para quando estiver a bordo. Gritar num cais não é
maneira de conversar.”
“Concordo!” Este comentário gritado veio de uma mulher pequena e de
cabelo escuro que estava debruçada da amurada do Modelo Ideal. Os seus
dentes eram brancos numa cara gasta pelo vento. “Vinde para bordo e sede
bem-vindos. Leftrin e Alisa já transferem as vossas coisas, e depois espero
que se juntem a nós para um copo ou dois. Âmbar, prazer em ver-te! Mal
consegui acreditar na notícia que a ave trouxe. Vem para bordo!” Virou o
olhar para mim e o seu sorriso alargou-se. “Mal posso esperar por conhecer
o homem que partilha uma cara com o nosso navio.” E com aquilo
encolheu-se para fora de vista.
Ao ouvir as palavras dela, o sorriso do Modelo Ideal perdeu fulgor e ele
cruzou os braços ao peito. Virou a cabeça e observou Âmbar pelo canto do
olho. Ela dirigiu-me um meio sorriso. “Aquela era Alteia Vestrit, tia da
Rainha Malta. É a capitã ou a imediata do Modelo Ideal, dependendo de a
quem fazes a pergunta.” Virou a cara para mim. “Vais gostar dela e de
Brashen Trell.”
Atracar e desembarcar foi um processo preciso e lento. O Capitão Leftrin
teve de ficar completamente satisfeito com a amarração antes de permitir a
descida de uma prancha. Ordenou que as nossas coisas fossem transferidas
para bordo do Modelo Ideal. Depois, ele e Alise acompanharam o meu
pequeno grupo pela prancha abaixo, ao longo do cais e depois por uma
escada de corda acima, que nos foi atirada da amurada do Modelo Ideal.
Leftrin foi à frente e Lante, e depois Perseverança, seguiram-no com
bastante facilidade. As saias de Centelha causaram-lhe algumas
dificuldades durante a ascensão. Eu fiquei em baixo, a manter a escada em
tensão, à espera que Âmbar subisse. “Não é preciso”, anunciou a figura de
proa. Torceu-se agilmente pela cintura, baixou-se muito e ofereceu a Âmbar
as mãos estendidas.
“A figura de proa está a estender-te as mãos. Tem cuidado!”, avisei-a em
voz baixa.
Ela não baixou a voz. “Não tenho necessidade de cuidado entre velhos
amigos. Guia-me, Fitz.”
Fi-lo com relutância e sustive a respiração enquanto a figura de proa
fechava as mãos em volta das costelas dela como se fosse uma criança.
Fiquei a fitá-los enquanto o Modelo Ideal a erguia nas suas enormes mãos.
Eram da cor das mãos de um homem, trigueiras de muitos dias passados no
exterior, mas eu conseguia ver o grão da madeira-de-feiticeiro em que
tinham sido esculpidas. De todas as coisas mágicas dos Antigos, a figura de
proa viva era a que mais me espantava, mas também a que criava em mim
maior desconforto. Eu conseguia compreender um dragão. Era uma criatura
de carne e osso, com as mesmas necessidades e apetites de qualquer animal.
Mas um navio de madeira viva, algo que se movia e falava e aparentemente
pensava mas não tinha necessidade de comida ou bebida, nenhuma pulsão
por acasalar, nenhuma esperança de progenitura? Como se podia prever os
atos e desejos de um ser assim?
Da minha posição de última pessoa no cais ao lado da escada de Modelo
Ideal, eu ouvia a voz de Âmbar mas ela projetava as suas palavras para a
figura de proa e eu não conseguia distingui-las. A figura de proa segurava
nela como se fosse uma boneca e olhava atentamente para a sua cara. Tendo
ele próprio sido cegado, sentiria solidariedade com ela? Poderia um navio
esculpido a partir do casulo de um dragão sentir solidariedade? Não pela
primeira vez, confrontei o pouco que o Bobo partilhara comigo sobre a sua
vida. Ali, ele era conhecido como Âmbar, uma mulher esperta e dura que
emprestara a sua fortuna para reconstruir Vilamonte e ajudar antigos
escravos a construir novas vidas nos Ermos Chuvosos. Naquela porção da
nossa viagem, era isso que ela tinha de ser. Uma mulher que continuava a
ser uma desconhecida para mim.
“Fitz?” Lante debruçou-se da amurada do Modelo Ideal. “Não vindes?”
“Vou.” Subi a escada de corda — nunca era uma tarefa tão fácil como
parecia — e saí para o convés do Modelo Ideal. A sensação que me dava
era diferente da do Lobo-do-Mar. Muito mais próxima de um ser humano.
Sentia-o, com Manha e Talento, como uma criatura viva. Por agora, a sua
atenção estava concentrada em Âmbar. Tinha alguns momentos para olhar
em redor.
Passara-se muito tempo desde que vira um navio daquele tamanho.
Recordei a minha viagem às Ilhas Externas e o prolongado enjoo de
Obtuso. Aí estava uma experiência que esperava nunca vir a repetir! O
Modelo Ideal era mais pequeno do que esse navio, mais esguio e, segundo
suspeitei, mais capaz para a navegação. O Modelo Ideal era muito bem
mantido. Os conveses estavam limpos, os cabos bem arrumados, e a
tripulação mantinha-se bastante ocupada mesmo enquanto o navio estava
amarrado ao cais.
“Onde estão Centelha e Perseverança?”, perguntei a Lante.
“Andam a explorar, com a autorização do Capitão Brashen. Vós e eu
fomos convidados para irmos ter com o capitão e a Dama Alteia no seu
camarote para bebermos qualquer coisa e conversarmos.”
Olhei para a proa, onde o Modelo Ideal ainda segurava em Âmbar.
Estava relutante em deixá-la literalmente nas mãos do navio, e igualmente
relutante em ofender as pessoas que nos ofereciam passagem grátis até
Vilamonte. Havia uma prolongada viagem à nossa frente, pelo Rio dos
Ermos Chuvosos abaixo e ao longo da costa instável e pantanosa do Litoral
Maldito até alcançarmos a Baía dos Mercadores. Eu queria estar de boas
relações com toda a gente. Duvidava que o Bobo tivesse alguma cautela
junto da figura de proa. Era evidente que Âmbar já tomara há muito a
decisão de confiar nele.
“Fitz?”, espicaçou Lante.
“Vou já.” Deitei uma olhadela a Âmbar. Via a cara dela mas não a dele. O
vento que vinha do rio estava a fazer esvoaçar as suas saias e a agitar os
bocados de cabelo que se viam em volta do seu lenço. Estava a sorrir de
alguma coisa que ele dissera. Os seus braços encontravam-se pousados
descontraidamente no topo das mãos dele como se estas fossem os braços
de uma cadeira confortável. Decidi confiar nos instintos dela e segui Lante.
A porta da cabina do capitão estava aberta ao dia primaveril e ouvi vozes
animadas. Centelha ria-se de qualquer coisa. Ao entrarmos, fomos dar com
Leftrin a agarrar na parte de trás do colarinho de Per, deixando-o quase
pendurado no ar. “É um malandro e um palerma, portanto tratem de o pôr a
trabalhar no duro!”, anunciou. No momento em que os meus músculos se
contraíram, Leftrin riu-se e deu ao sorridente rapaz algo que era meio
empurrão e meio arremesso na direção de um homem musculoso de meia-
idade. O homem agarrou no meu rapaz pelo ombro e sorriu em resposta,
mostrando uns dentes muito brancos numa barba bem aparada. Deu uma
palmada nas costas de Per. “A gente chama-lhe correr pelo aparelho e, sim,
tu podes aprender. Mas só se Clef, Alteia ou eu autorizarmos. Nós dizemos-
te quando te quisermos lá em cima e exatamente o que quisermos que
faças.” O homem ergueu o olhar para Leftrin. “Ele conhece alguns dos
nós?”
“Uns quantos”, disse eu, introduzindo-me na conversa. Descobri que
estava a sorrir ao Capitão Trell.
“Oh, mais que uns quantos”, objetou Leftrin. “A Bellin pô-lo a trabalhar
neles à noitinha, quando vós estáveis fechados com a vossa senhora.
Demos-lhe um bom início para se tornar marinheiro. Mas o Trell tem razão,
rapaz. Se te aventurares no aparelho, começa por ir com alguém que saiba o
que anda a fazer, e dá-lhe ouvidos! Ouve com exatidão e faz exatamente e
só aquilo que te disserem. Estás a ouvir-me?”
“Estou sim, senhor.” Per sorria de um capitão para o outro. Se fosse um
cachorrinho, todo ele estaria a abanar. Senti orgulho e um pouco de ciúme.
Trell avançou para mim, de mão estendida, e trocámos um cumprimento
de Mercador. Os seus olhos escuros encontraram-se com os meus, um olhar
franco e aberto. “Eu nunca tive um príncipe a bordo, mas o Leftrin diz-me
que é fácil lidar convosco. Nós fazemos os possíveis, mas o Modelo Ideal é
um navio, e vivemos como esse facto dita.”
“Asseguro-vos de que não sou um nobre orgulhoso. Passei um tempo
razoável a puxar um remo no Rurisk durante a Guerra dos Navios
Vermelhos. Tinha o equipamento debaixo do banco e metade do tempo o
banco foi também a minha cama.”
“Ah, então não tereis problemas. Gostaria de vos apresentar Alteia
Vestrit. Tentei fazer dela uma Trell, mas insiste em ser Vestrit, que a
teimosia é a característica distintiva das mulheres da sua família. Mas se
conhecestes Malta, já o sabeis.”
Alteia estava sentada a uma mesa carregada com um gordo bule
fumegante, chávenas e bolinhos numa bandeja. O bule era de fabrico
Antigo; tinha um acabamento reluzente e metálico e estava embelezado
com serpentes. Não. Eram serpentes marinhas, pois também lá estavam uns
peixinhos minúsculos. Os bolinhos estavam salpicados de sementes e
bocadinhos de um fruto de um rosa vivo. Alteia soergueu-se e debruçou-se
sobre a mesa para me estender a mão. “Não lhe ligueis. Embora a minha
sobrinha realmente tenha ficado com mais do que um quinhão justo do
‘caráter’ Vestrit, como lhe chamamos.” Os calos na mão dela rasparam na
minha. O sorriso criou rugas nos cantos dos seus olhos. O cabelo escuro
estava entrelaçado de cinzento e era mantido preso atrás, afastado da cara e
entretecido numa trança apertada pelas costas abaixo. A força na mão
equiparava-se à de qualquer homem e eu senti que ela estava a avaliar-me
tanto quanto eu a avaliava a ela. Voltou a sentar-se e disse: “Bem. É um
estranho prazer ver o homem que usa a cara do meu navio — embora não
tenha dúvida de que vós o encareis ao contrário. Vinde para a nossa mesa,
por favor, e tomai uma chávena de café e dizei-me como foi verdes a figura
de proa. Âmbar esculpiu-a para representar o homem que era dono do seu
coração.”
O silêncio que se segue a uma afirmação muito incómoda tem um
peculiar ruído muito seu. Eu ouvi Lante a suster a respiração e senti,
literalmente, os olhares esbugalhados de Centelha e Perseverança. Descobri
uma mentira apressada. “Café seria bem-vindo! Pode ser primavera, mas o
vento que sopra do rio corta-me até aos ossos.”
Ela sorriu. “Vós não sabíeis que ela tinha esculpido a vossa cara no
navio, pois não?”
Estaria a honestidade a transformar-se num hábito perigoso? O que teria
pensado Breu? Permiti-me um riso embaraçado e concedi: “Até há muito
pouco tempo, não, não sabia.”
“Oh, doce Sa”, resmungou Alteia, e Brashen bradou a gargalhada que
deixou de ser capaz de conter. Ouvi uma exclamação em voz baixa atrás de
mim e, ao virar-me, descobri que Alise se juntara a nós.
“Oh, as coisas que as nossas mulheres nos fazem!”, exclamou Brashen e
veio dar-me uma palmada no ombro. “Sentai-vos, sentai-vos, e Alteia vai
servir-nos. Também há brande, e isso talvez afaste o frio um pouco melhor!
Alise! Dom Lante, quereis juntar-vos a nós? E, bem, se eu convidar os
vossos criados a juntar-se a nós, estou a violar as boas maneiras? Tereis de
me aconselhar diretamente sobre essas coisas.”
“Viajar com pouco conforto depressa derruba os muros do protocolo.
Perseverança e Centelha, querem tomar café connosco?”
Perseverança fez uma careta antes de conseguir controlar as feições.
“Não, senhor, muito obrigado na mesma. Gostava de ir dar uma vista de
olhos ao navio, se puder, sim?”
“Podes”, disseram Alteia e Brashen em uníssono, e depois Brashen
pensou em olhar para mim e acrescentar: “Isto é, se o teu amo aprovar.”
“Claro. Per, se alguém te disser para saíres do caminho, salta de lá num
instante.”
“Saltarei.” Já estava a meio caminho da porta quando Centelha falou.
“Eu queria…” começou, e depois parou. Ficou com as bochechas
vermelhas.
Todos os adultos estavam a olhar para ela. Alise sorriu. “Diz lá, querida.”
Ela abriu a boca e depois disse numa voz acanhada: “Eu devia ir tratar de
arrumar as coisas da Dama Âmbar.”
“Ou então”, sugeriu Alise, “devias ir dar uma vista de olhos ao navio
com o Per. E não há mal nenhum em estares interessada no navio. Dos
Ermos Chuvosos a Vilamonte, as mulheres estão há bastante tempo em pé
de igualdade com os homens. Mesmo se alguns o esquecem de vez em
quando.” Sorriu-me. “Quando vós estáveis ocupados, Centelha fez-me e ao
Bellin muitas perguntas sobre o Lobo-do-Mar. Aprende depressa e
asseguro-vos de que não há nenhum mal em uma mulher saber sobre mais
do que fitas e costura.”
Defendi os Seis Ducados. “Asseguro-vos de que nos Seis Ducados não
confinamos as nossas mulheres, de todo. Elas são menestréis e guardas,
escribas e caçadoras ou quaisquer outras ocupações que as chamem.”
Centelha encontrou a língua. “Eu não estava a pedir licença. Quer dizer,
estava, mas também queria perguntar se ofenderia alguém se vestisse calças
durante o tempo que passar no navio. Porque também eu gostaria de subir
ao aparelho e as saias fazem com que até subir a escada do navio seja um
problema.”
Uma expressão peculiar passou pela cara de Perseverança. Estava parado,
com a mão na porta, e olhava para Centelha como se ela se tivesse
transformado num gato.
Alteia levantou-se e limpou as mãos nas pernas das calças bastante
desgastadas que vestia. “Acho que conseguíamos encontrar alguma roupa
de rapaz a bordo do navio.”
Centelha sorriu e eu vi de súbito os traços de Cinza. “Eu tenho alguma
que trouxe de casa, se ninguém se importar que a use.”
“Não vais dar nada nas vistas. A verdade é que eu não sei como é que a
Alise consegue ser sempre uma autêntica dama com lindas saias.” Alteia
sorriu à amiga antes de acenar a Centelha. “Vá, corre para a tua roupa.
Todas as vossas coisas já devem estar a bordo, nas vossas cabinas. Nós
somos uma embarcação maior do que o Lobo-do-Mar, mas fomos
construídos para carga, não para passageiros. Pus o Príncipe FitzCavalaria e
a ‘Dama’ Âmbar na mesma divisão que ela partilhou em tempos comigo e
com Jeque. Dom Lante, Clef ofereceu-se para partilhar a cabina convosco.
Deu-vos o beliche e vamos pendurar uma cama suspensa para ele. Quanto
ao Per, pusemo-lo na coberta com a tripulação.” Dirigiu-me um olhar
apologético. “Por agora pusemos a vossa criada convosco e com Âmbar,
mas…”
“Na verdade, eu não me importava de ficar com uma cama suspensa na
coberta junto de Perseverança. É melhor do que dormir ao ar livre num
convés.”
“Oh, podemos fazer melhor do que isso. Não é preciso separar-vos da
vossa senhora.” Isto veio de Brashen.
Regressámos a um silêncio desconfortável enquanto eu procurava
palavras. Foi quebrado por um ruidoso grito que fez vibrar as tábuas da
cabina. “Aaal-teeee-ia!”
“O Modelo Ideal”, explicou ela inutilmente. “É melhor que eu vá ver do
que é que precisa. Não espereis por mim, servi-vos de café e bolos.
Brashen, não queres mostrar-lhes onde ficam as cabinas?”
“Claro.”
“Temo que tenhamos de ir andando.” Isto veio de Alise, que tinha a mão
pousada no braço de Leftrin. “Há carga a embarcar. Tem de ser contada ao
entrar a bordo e arrumada de forma que agrade ao Leftrin. Esta carga não
admite atrasos. Árvores de fruto novas, em tinas de terra de Vilamonte, e
pintos de pato e ganso. Suspeito que nos vamos arrepender de os ter a
bordo, mas não podem ser piores do que as ovelhas foram. Adeus!
Gostámos da vossa companhia.”
Foram trocadas umas despedidas apressadas, e eles foram-se embora.
Depois de Alteia ter saído, Trell disse em voz baixa: “O nosso navio tem
andado de mau humor, nos últimos tempos. O meu filho está neste
momento a servir a bordo de outro navio vivo — Vivácia, o navio da
família Vestrit. O Modelo Ideal sente agudamente a falta dele. Às vezes
consegue ser como uma criança mimada. Se vos disser alguma coisa
estranha, informai-me disso.” Parecia perturbado e eu procurei manter o
alarme afastado do meu rosto quando me interroguei sobre que tipo de birra
poderia um navio vivo fazer. Ele evitou olhar-me nos olhos quando
acrescentou: “Deixai-me mostrar-vos um pouco do navio. O bule vai
manter o café quente.” Ao sairmos da cabina, Lante ergueu os sobrolhos
para mim e eu encolhi os ombros.
Brashen entregou Per ao tripulante chamado Clef. Tinha uma velha
tatuagem de escravo ao lado do nariz e uma longa trança oleosa pelas costas
abaixo. “Pus a tua tralha lá em baixo”, disse ele a Per com um eco de
sotaque estrangeiro, desvanecido ao ponto de se tornar irreconhecível.
Foram-se embora juntos e eu sorri por ver Per a imitar inconscientemente o
andar do marinheiro. Lante seguiu-os. Brashen levou-me e a Centelha para
uma cabina que estava quase atulhada com a bagagem de Âmbar e
Centelha. As minhas mochilas pareciam pequenas em comparação com os
gordos sacos delas. Perguntei a mim mesmo se teriam adquirido mais
vestuário em Kelsingra e como nos arranjaríamos quando chegasse a altura
de levar as nossas coisas às costas. A minha mochila mais pequena, que
continha os livros de Abelha e as velas de Moli, tinha sido trazida em
segurança para o Modelo Ideal. O tijolo de fogo Antigo também lá residia.
Sopesei-a, e soube que por baixo dos potes explosivos de Breu,
cuidadosamente embrulhados, a minha camisa ainda envolvia os pesados
contentores de vidro com Talento. Âmbar tomara a linda pulseira a seu
cargo.
Centelha pôs-se imediatamente a escavar no seu saco como um cão em
busca de um osso. Deixámo-la lá.
Ao caminharmos na direção da proa, Trell foi-me apresentando a
membros da tripulação. Eles faziam um aceno ou um sorriso mas nunca
interrompiam as respetivas tarefas. Kitl, Cord, Twan, Haff, Ant, Jock,
Cypros… Empilhei os nomes na memória e tentei ligá-los a caras. Ant
estava a meio caminho do topo do mastro e o meu coração saltou quando
ela me acenou com ambas as mãos. Trell não se mostrou divertido. “Uma
mão para ti e uma para o navio!”, rugiu. “No meu convés não corres riscos
desnecessários! Devolvo-te já à árvore de onde vieste!”
“Sim, senhor!”, respondeu ela e trepou mastro acima como um esquilo a
evitar um cão irritado. Trell revirou os olhos. “Se ela sobreviver até crescer,
vai dar uma excelente marinheira. Mas não tem nem vestígio de medo, e
isso pode matá-la.” Indicou Trehaug com um gesto. “Quando uma criança
cresce ali, o mastro de um navio parece curto.”
Segui a mão dele. As grandes árvores que continham Trehaug
agigantavam-se acima dos mastros despidos do Modelo Ideal. Os largos
ramos da densa floresta estavam tão repletos de tráfego a pé como as ruas e
vielas de qualquer cidade. Havia sinais de habitação humana por todo o
lado, entre as árvores. Painéis publicitavam uma taberna, enquanto um
outro com a forma de um cesto publicitava todos os tipos de trabalhos em
vime. Vi algumas pessoas veladas, como sempre ouvira dizer que a gente
dos Ermos Chuvosos andava, e outras de caras descobertas e braços nus a
revelar escamas e excrescências. Um elevador de vime era içado para os
ramos superiores, enquanto pedestres subiam e desciam uma escadaria que
espiralava em volta do tronco. Eu parara para observar aquilo de boca
aberta e apercebi-me de que Brashen estava à minha espera.
“Crescestes aqui?”, perguntei a Brashen.
“Aqui? Oh, não. Sou nado e criado em Vilamonte, de uma ilustre família
de Mercadores. Mas sou a ovelha negra e não o herdeiro, portanto aqui
estou, a capitanear um navio vivo em vez de cuidar da fortuna familiar.”
Estava claramente muito satisfeito com o que lhe coubera em sorte.
“Não é muito diferente da minha história”, disse-lhe. “Âmbar pode
chamar-me príncipe mas o meu nome diz a verdade. Fitz significa que nasci
do lado errado dos lençóis. Portanto, sou Visionário, mas bastardo.”
“Ah sim? Bem, isso explica porque acabastes na ponta de um remo numa
galé de guerra.”
Sorri. “Sim. Os bastardos são um pouco mais dispensáveis do que os
príncipes.” E com aquela simplicidade, ficámos à vontade um com o outro.
Passeámos na direção da proa. Ouvi vozes, a de Âmbar, a de Alteia e a do
navio, mas o vento que vinha do rio e o barulho da cidade arbórea
significavam que não conseguia distinguir as suas palavras.
“…vingança, então?”, perguntou Alteia quando nos aproximámos mais.
“Mais que vingança”, respondeu Âmbar. “Vamos quebrar uma jaula de
crueldade. Destruir uma corte que só se tornou mais avara e corrupta ano
após ano.” Baixou a voz e disse as palavras que eu tão frequentemente a
ouvira dizer. “Vamos ser a pedra no trilho que faz saltar a carroça para um
novo caminho.”
Eles não podiam ter apresentado uma cena mais estranha. Alteia estava
encostada à amurada do navio. A cara do navio estava virada para o rio,
com o perfil que eu tivera quando mais jovem. Âmbar encontrava-se
sentada nas mãos de dedos entrelaçados da figura de proa. As suas mãos
pousavam com leveza nos seus polegares e ela fazia oscilar os pés calçados
com botas delicadas, cruzados nos tornozelos, por cima do espaço vazio que
a separava da fria e ácida corrente do rio. O lenço permitia que um penacho
do seu cabelo curto lhe enquadrasse o rosto. Pó e tinta tinham-lhe suavizado
as cicatrizes e as escamas que o sangue de dragão desencadeara. Sob o
disfarce de Âmbar, o Bobo transformava-se numa mulher muito atraente.
A voz de Alteia soou baixa. “Nunca te tinha ouvido falar com tanta
paixão, nem mesmo quando enfrentámos juntas a morte.”
A cara de Âmbar contorceu-se de ódio. “Eles raptaram a nossa filha e
destruíram-na.”
Magoava ouvir Âmbar reclamar Abelha daquela forma, e eu sabia o que
Alteia e Brashen teriam de concluir. O Bobo podia acreditar naquilo, mas
ouvi-lo falar dela daquela maneira, com desconhecidos, feria algo em mim.
Moli, pensei com ferocidade. Fora ela, e nenhuma outra, a mãe de Abelha.
Não queria que aquelas pessoas julgassem que eu gerara Abelha em Âmbar.
Não, fora Moli quem suportara essa gravidez, em certo sentido tão solitária,
e fora Moli a acarinhar e proteger uma criança que outros teriam deixado
perecer. Não era correto que Âmbar a apagasse. A mágoa crestou-me e
apercebi-me de que tinha outra fonte.
“O meu moço também se foi!”, exclamou o Modelo Ideal e eu senti a
vaga de emoção que percorreu o navio. Os seus sentimentos de indignação
e perda estavam a alimentar o fogo de mágoa dentro de mim.
Trell falou de forma calmante. “O Moss-O está ótimo, Modelo Ideal.
Vivácia nunca deixaria que algum mal lhe acontecesse. Ele só se afastou de
ti durante algum tempo. Há de regressar. Sabes disso.”
“Regressará?”, perguntou Modelo Ideal com dureza. “Já se foi há dois
anos! Alguma vez regressará? Ou será que Vivácia vai reclamá-lo para si?
Ele nasceu aqui, nas minhas cobertas! É meu! Ou serei eu o único navio
vivo sem família? O único navio vivo sem um herdeiro para me capitanear?
Porque ao mesmo tempo que o irmão de Alteia exige o meu moço no seu
convés, mantém longe de mim o que devia ser meu! O filho de Kennit!”
“É a Rainha Etta quem mantém Ideal Fidekennit afastado de ti, não
Wintrow.” A voz de Alteia estava tensa. Apercebi-me de que não era a
primeira vez que dizia aquelas palavras ao navio. Vi Brashen endireitar os
ombros e dar um passo em frente, preparado para adotar o papel de
pacificador.
“Modelo Ideal”, disse Âmbar numa voz suave. “Meu amigo, eu sinto a
tua angústia. É quase demasiada para se suportar. Por favor.” E depois, sem
fôlego: “Estás a segurar-me com demasiada força. Por favor, pousa-me em
segurança no convés.”
Fitei-os, impotente. Tinha duas pequenas facas ocultas, armas inúteis
contra um oponente tão enorme. Se o atacasse, iria ele deixar cair Âmbar no
rio? Olhei para Brashen, mas a cara dele empalidecera. Alteia debruçou-se
mais sobre a amurada. Falou numa voz baixa e racional. “Esmagar a tua
amiga não te vai ajudar a reconquistar o filho de Kennit. Acalma-te, navio.”
Que necessidade de respirar teria um navio de madeira, mesmo que
tivesse sido esculpido de um casulo de dragão? Mas o peito do Modelo
Ideal subia e descia como se ele fosse um rapaz arrebatado por uma forte
emoção. Os seus olhos estavam cerrados com força e as grandes mãos que
agarravam em Âmbar tremiam. Os olhos leitosos de Âmbar mantinham-se
fixos, não em mim, mas numa distância sem nome. A sua cara estava
corada de sufoco. Modelo Ideal aproximou mais as mãos do peito. Baixou a
cabeça sobre ela e eu temi que lhe fosse arrancar a cabeça à dentada. Mas
em vez disso virou os ombros e libertou-a tão abruptamente sobre o convés
que ela cambaleou e caiu. Alteia caiu sobre um joelho ao lado dela, pegou-
lhe nos ombros e puxou-a para trás.
“Não precisas de a pôr fora do meu alcance!”, protestou Modelo Ideal
com uma voz enrouquecida. “Eu não lhe faria mal.”
“Eu sei que não”, arquejou Âmbar.
Alteia era pequena mas içou o braço de Âmbar para cima dos ombros e
levantou-se com ela. “Vou levar Âmbar para o nosso camarote”, anunciou
calmamente. Antes de eu ter tempo de intervir, Brashen agarrou no outro
braço de Âmbar e ajudou-a a caminhar para a ré. Comecei a segui-los, mas
o navio falou de súbito.
“Tu, com a minha cara. Não vás.”
Estaquei. Brashen parou e olhou para mim, de olhos esbugalhados. Um
pequeno abanão de cabeça estava cheio de avisos. O olhar de Lante saltou
de mim para Âmbar. Inclinei a cabeça na direção dela, informando-o de que
devia segui-la, e ele depressa ocupou o lugar de Brashen. O capitão cruzou
os braços e pôs-se a observar a figura de proa.
“Homem de Cervo. Quero falar contigo. Vem cá.”
O navio não estava a olhar para mim. Tinha os olhos fitos na outra
margem do largo Rio dos Ermos Chuvosos. A margem distante era uma
névoa de verdura no horizonte. “Estou aqui”, disse eu, procurando afastar
da voz todo o desafio.
O navio não mostrou sinal de me ter ouvido. Eu fiquei à espera. Ouvi o
rio e o movimento do navio contra o cais. Os distantes chamamentos e
gritos da cidade ribeirinha eram como cantos de pássaros à distância.
“Homem de Cervo!”
Aproximei-me mais e ergui a voz. “Estou aqui, navio.”
“Não!”
O aviso de Brashen chegou demasiado tarde. Com uma torção de corpo
que pôs o navio a balançar contra o cais, a figura de proa virou-se, estendeu
uma mão e agarrou-me. Eu saltei para trás, mas ele pegou-me no braço e no
ombro esquerdos. Agarrei-lhe num dos dedos com a mão direita e tentei
erguê-lo e torcê-lo. Inútil. Ele ergueu-me no ar e prendeu-me contra a
amurada.
“Larga-o, Modelo Ideal!”, berrou Brashen.
O solavanco do navio tinha alertado a tripulação. Clef surgiu a correr,
depois parou com um sobressalto, fitando-me, com um Per branco como a
cal a seu lado. Outros dois, Cord e Haff, correram para nós, e depois
pararam. Alteia estacou, ainda com o braço em volta de Âmbar. Não
consegui ouvir o que ela disse, mas Âmbar olhou para trás, fixando em nós
o seu olhar cego.
Modelo Ideal falou calmamente e as suas palavras vibraram através de
mim. “Isto não diz respeito a nenhum de vós. Ocupem-se com os vossos
deveres.”
“Modelo Ideal”, suplicou Alteia.
Modelo Ideal apertou-me com mais força, pondo-me em pontas dos pés.
O polegar e os dedos esmagavam-me o lado esquerdo do peito. Não me
debati. Quando não podes ganhar, evita irritar o oponente. Não lhe dês
nenhum motivo para empregar mais força.
“Estamos bem”, arquejei. Continuei a agarrar nos dedos dele, tentando
aliviar a pressão.
“Aos vossos deveres”, sugeriu Modelo Ideal num tom agradável, e eu
acenei com a cabeça, numa concórdia veemente.
Alteia começou a afastar Âmbar. Foi com relutância, olhando para mim,
mas eu não consegui ler-lhe a expressão. Clef agarrou no ombro de Per e
arrastou-o consigo. Lante veio ajudá-lo. Brashen, com a boca cerrada numa
linha amarga, recuou para longe de nós. Modelo Ideal baixou-me até eu
ficar assente sobre os pés mas continuou a manter-me preso contra a
amurada. “Bom”, disse, numa voz muito suave. “Vamos conversar, tu e eu,
para termos a certeza de que as coisas ficam claras entre nós. Estás a ouvir,
homem de Cervo? É que é esse o teu papel nesta conversa. Vais ouvir.”
Consegui fazer sair uma resposta. “Estou a ouvir.”
“Excelente. Âmbar parece gostar de ti. Talvez goste de ti há anos.” Fez
uma pausa.
Confirmei com a cabeça. “Amigos de infância.”
A pressão atenuou-se. “Amigos?”
“Desde que éramos… Desde que eu era rapaz.”
Ele fez um som profundo que eu senti em todo o corpo. Depois disse:
“Compreende o seguinte: nós partilhamos uma cara, embora a minha seja
mais juvenil e mais bonita. Eu pedi-lhe para esculpir em mim uma cara que
pudesse amar. Ela deu-me a tua. Mas foi ‘que pudesse amar’, não ‘que
amasse’. Lembra-te disso. Ela ama-me muito mais do que a ti. E sempre
amará.”
Nas últimas três palavras a sua força sobre mim aumentou. Acenei com a
cabeça, sem fôlego.
No céu, ouvi um crocitar preocupado. Não podia olhar para cima, mas
sabia que Matizada estava a voar em círculos. Rezei por que ela não
tentasse atacar o navio. Não faças isso, por favor!, foi o pensamento que lhe
atirei.
Modelo Ideal abriu os dedos de repente. Agarrei-me à amurada para não
cair. Por um instante, julguei que ele tinha respondido à minha Manha.
Depois, dirigiu-me um sorriso ameaçador. “Então compreendemo-nos um
ao outro?”
“Sim.” Combati o impulso de fugir. Não queria virar-lhe as costas,
mesmo tendo-me ele virado as suas. Pôs o olhar na água, cruzou os braços
ao peito e fez rolar os ombros. Havia aí uma musculatura substancial. Eu
não sabia bem se alguma vez tinha tido esse aspeto.
Ele susteve o silêncio. Retirei-me, um passo de cada vez, mantendo os
olhos fixos nele, até alguém me agarrar pelo colarinho e me arrastar para
trás. Esperneei contra o convés para acelerar o processo e ambos caímos
num monte. Brashen soprou o ar dos pulmões ao atingir o convés comigo
em cima dele. “De nada”, arquejou enquanto eu rolava de cima dele e me
erguia sobre pernas inseguras.
“Obrigado”, respondi.
“Estás bem?” Âmbar apareceu imediatamente a meu lado, enquanto
Alteia oferecia a Brashen uma mão para se levantar. Per precipitou-se para
junto de mim e agarrou-me na mão.
“Estou magoado mas não tenho nada ferido além do orgulho.” Virei-me
para Alteia e Brashen. “Avistastes-me. Não imaginei que ele seria capaz de
se mover tão depressa. Ou ser tão…” Procurei em vão uma palavra.
“Enganador”, forneceu-me Brashen. Suspirou. “Nos últimos tempos tem
andado difícil.”
“Mais difícil do que é hábito”, emendou Alteia. Pegou na mão de Âmbar
e pô-la em pé. “São umas estranhas boas-vindas para ti, Âmbar. Mas tenho
a certeza de que te lembras da natureza do Modelo Ideal. É estável e firme
durante um mês ou um ano, mas depois há qualquer coisa que o faz
rebentar.”
“Ciúme”, disse eu muito baixinho. “Âmbar, ele não quer partilhar-te.”
“Vou fazer os possíveis por acalmá-lo. Mas não é só isso. O casco e a
figura de proa do Modelo Ideal foram criados a partir de dois ‘troncos’ de
madeira-de-feiticeiro. Ele tem a natureza e memórias parciais de dois
dragões. O seu convés foi cenário de muita violência e crueldade. Foi
capturado pelo notório pirata Igrot e usado como sua embarcação pessoal. E
Kennit Ludluck, o filho da sua família, foi atormentado a bordo dele.
Atormentado e desvirtuado.” E acrescentou num sussurro: “A crueldade
gera crueldade.”
“A crueldade deliberada nunca é perdoável”, disse bruscamente Alteia.
Âmbar fez um aceno seco. “Agora compreendo isso, talvez melhor do
que compreendia antigamente.”
Afastámo-nos da coberta de proa. Brashen atirou o queixo na direção dos
tripulantes que estavam a fitar-nos e eles despertaram subitamente para a
vida. Soltei gentilmente o braço das mãos de Per. “Eu estou bem”, disse-
lhe. “Vai lá informar-te sobre o navio. Eu chamo-te se precisar de ti.”
Ele fez um ar de dúvida mas Clef soltou um assobio penetrante e o rapaz
arrebitou as orelhas como um cão ao ouvir-se chamado. “Vai lá”, disse-lhe,
sabendo que era o que ele ansiava por fazer e o que era melhor para ele, e
ele foi. Com um súbito adejar de penas negras, Matizada desceu para
pousar no ombro de Per. Clef assustou-se e Per riu-se. A tensão quebrou
como uma bolha a rebentar. Deixei-o a explicar a ave a Clef e a Ant.
Não nos tínhamos afastado mais de uma dúzia de passos quando Cinza
apareceu de repente. “Está tudo bem?”, perguntou ele com ansiedade, numa
voz tão arrapazada que eu percebi que tinha mudado de personalidade
conjuntamente com a roupa. Senti uma pontada de pena por termos roubado
aquele extraordinário jovem espião precisamente na altura em que Breu
poderia mais precisar dele, mas também sabia que a identidade dupla da
rapariga não podia ser usada a bordo do navio.
“Está, Centelha”, disse-lhe. Ela deitou-me um olhar estranho. “Podes
descontrair-te”, acrescentei. Apontei para Clef e sugeri: “Vai explorar o
navio com o Per.”
Ela dirigiu-me o sorriso aliviado de uma rapariga e afastou-se a trote com
uma animação que me disse que lhe dera precisamente a indicação certa.
Alteia emboscou-me à porta do camarote com centelhas de ira nos olhos.
“Não podeis ser descuidado neste navio! Nós tínhamos-vos avisado.”
“É verdade”, concordei. “Ele enganou-me, levando-me a pôr-me ao seu
alcance. A culpa foi minha.”
A minha concórdia acalmou-a. Âmbar estendeu uma mão e eu ofereci-lhe
o braço. Ela apertou-o com força. “Ah, Fitz. Como não conheces a história
do Modelo Ideal, não podes estar tão aterrorizado como eu estava.”
“Temos de nos pôr a caminho. As pessoas estão a olhar para nós. Quanto
mais depressa nos afastarmos de Trehaug, menos mexericos terão elas para
contar”, sugeriu Brashen numa voz tensa.
Olhei para a cidade. Sim, havia pessoas a apontar, outras limitavam-se a
fitar-nos de boca aberta. Perguntei a mim mesmo quantas teriam
testemunhado o que acontecera e como o ciúme do Modelo Ideal seria
interpretado por aqueles que não tinham ouvido as suas palavras.
“Acompanha-me até ao meu quarto, por favor. Ainda estou a recordar-me
da disposição do navio”, mentiu Âmbar, dando-me um pretexto elegante
para me afastar.
“Eles nem sequer perguntaram o que ele me disse”, observei eu em voz
baixa.
“Nós ouvimos parte da conversa. Eu não fazia ideia de que ele ia ser tão
possessivo comigo.”
“E tens de ficar assim tão contente com isso?”, perguntei.
Ela riu-se. “Eu temia que ele se tivesse esquecido de mim.”
“Depois de lhe reesculpires a cara e lhe devolveres a visão?”
“O Modelo Ideal é mutável. Num momento é uma criança carinhosa, no
seguinte um adolescente vingativo e furioso. Às vezes é viril, corajoso e
cavalheiresco. Mas eu nunca me apoio demasiado a um dos seus estados de
espírito, porque sei quão depressa podem mudar.”
“Esqueceste-te realmente de como te orientar no navio?”
Um sorriso melancólico torceu-lhe a boca. “Fitz, tu tens uma fé tão
espantosa em mim. Há décadas que não estou neste navio. Consigo
lembrar-me do esquema geral, mas saberei quantos passos vão daqui até à
popa, quantos degraus há numa escada, quando baixar a cabeça para passar
por uma porta? Não. No entanto, tenho de caminhar como se estivesse
confiante no caminho. Sei que quando me ponho às apalpadelas ou me
agarro a uma parede, passo a ser menos pessoa e mais obstáculo. Portanto,
finjo que vejo mais do que vejo.”
“Lamento.” E lamentava. E estava desencorajado. Voltei a pensar no
longo e cansativo caminho que ele percorrera, sozinho e ferido de forma
horrenda, cego na neve.
“Isto é a porta?”, perguntou ela.
“Acho que sim.” Estava mais abalado do que queria admitir. Fora
estúpido. Não parava de pensar no que devia ter feito quando Modelo Ideal
me agarrara.
“Julguei que estavas a indicar-me o caminho.”
“Estava a deixar que segurasses no meu braço enquanto caminhávamos.”
Bati à porta e, quando ninguém respondeu, abri-a. “Estou a ver as tuas
coisas. Por todo o lado. Há três beliches e uma mesa de dobrar. A mochila
de Centelha está aberta e é claro que ela andou a remexer lá dentro.”
Âmbar entrou e permitiu-se tocar e apalpar. Fechei a porta atrás de nós.
Ela deslocou-se cuidadosamente pela pequena sala, a medir distâncias com
passos cautelosos e a extensão dos seus braços. “Lembro-me dele”, disse
enquanto se empoleirava no beliche inferior. “Em tempos partilhei este
quarto com Alteia e Jeque. Três pessoas empilhadas neste espaço. Às vezes
foi tenso.” Enfiei completamente a minha mochila debaixo do beliche
inferior e pus o saco da roupa ao lado da porta.
“Pouco espaço tem esse resultado.” Sentei-me ao lado dela. O
movimento do navio mudara e eu não o achava agradável. Tínhamos
zarpado do cais e a corrente do rio estava a tomar o controlo. Olhei pela
pequena vigia. Ganhávamos velocidade e afastávamo-nos da margem para
um canal mais profundo e uma corrente mais rápida. Eu nunca gostara da
sensação de estar desligado do chão. O passo de um cavalo tinha um ritmo.
Um navio podia inclinar-se em qualquer direção e a qualquer momento.
Tentei convencer o meu estômago a aceitar o imprevisível.
“Qual é o problema?”, perguntou ela em voz baixa.
“Não estou enjoado mas não gosto do movimento. Tinha acabado de me
acostumar aos bamboleios do Lobo-do-Mar, mas o Modelo Ideal…”
“Não. O que é que te está realmente a preocupar?” Falava como Bobo.
Não olhei para ele. Haveria mais alguém a quem podia admitir aquilo?
Provavelmente não. “Eu… eu não sou como era dantes. Cometo mais erros,
e são mais sérios. Acho que estou alerta e a postos e pronto para qualquer
coisa, e depois não estou. As coisas e as pessoas apanham-me de surpresa.
O Brashen agarra-me por trás e eu estou tão concentrado no Modelo Ideal
que nem a Manha me informou de que ele estava lá. Apesar de eu ter sido
avisado, o navio levou-me a ficar ao alcance do seu braço quase sem fazer
nenhum esforço. Podia ter-me matado. Num instante.”
“Fitz, que idade tens?”
“Ao certo? Não sei bem. E tu sabes disso.”
“Adivinha”, censurou ele.
Soprei o meu desagrado com o assunto. “Sessenta e dois, talvez sessenta
e três. Sessenta e quatro, se calhar. Mas não pareço tê-los e na maior parte
dos dias não sinto tê-los.”
“Mas tens. A idade vai cobrar o seu preço. Tiveste uma boa vida, durante
algum tempo. Uma vida fácil. Com Moli. A calma e a prosperidade
atenuam a prontidão de um homem, tal como batalhas e durezas infindáveis
amortecem as partes mais gentis da alma.”
“Foi bom, Bobo. Queria que durasse para sempre. Queria envelhecer e
morrer com ela sentada junto da minha cama.”
“Mas não obtiveste isso.”
“Não. Obtive isto. Correr ao longo de meio mundo para matar pessoas
que não conheço, pessoas que não me conheciam mas mesmo assim vieram
destruir a pouca paz e alegria que me restava.” Ao pôr aquilo em palavras,
senti uma fúria que me deixaria capaz de partir o pescoço a um homem.
Dwalia. Naquele momento poderia tê-la partido ao meio com as mãos
desarmadas. Depois passou, e senti-me tolo e vazio. E, pior que tudo,
incompetente. Verbalizei um medo culposo. “Eles levaram-me a afastar-me
de Floresta Mirrada, não levaram? Para poderem atacar a propriedade
enquanto eu estava longe.”
“Temo que sim.”
“Como podiam ter planeado tal coisa?” Ele já antes mo explicara, mas eu
queria voltar a ouvi-lo.
“Têm acesso a milhares de sonhos prescientes, sonhados por dezenas de
jovens Brancos. Conseguiram encontrar as circunstâncias certas para te
empurrar na direção que desejavam.”
“E tu?”
“É provável que tenha feito parte do plano. Terei escapado ou sido
libertado? Os desconhecidos que calhei encontrar e me ajudaram ao longo
do trajeto seriam realmente bondosos ou seriam conspiradores com os
Servos? Não sei, Fitz. Mas não me parece que te possas culpar.”
“Eu cometo demasiados erros! Tive a espada na garganta de Ellik, e a
minha força cedeu. Quando devia ter seguido Abelha para o interior do pilar
de Talento, a minha magia tinha desaparecido. Tantos erros, Bobo. Que
tosca foi a ‘cura’ que eu fiz àquelas crianças.” Olhei para os seus olhos
vazios. “E agora mesmo, com o Modelo Ideal… Estúpido, estúpido,
estúpido.” Estendi a mão para lhe pegar na mão enluvada. “Bobo. Eu não
sou competente para fazer o que tu queres que seja feito. Vou falhar-te, vou
arrastar-te para a tortura e a morte comigo. Terão o Lante, Per e Centelha de
falhar connosco? Vamos ouvir Per gritar? Ver Centelha sofrer abusos e ser
dilacerada? Não consigo suportar a ideia. Não consigo suportar pensar
nisso. Admiras-te que eu queira mandá-los para casa, que me aterrorize
trazer seja quem for comigo para isto? Temo mais falhar-vos a todos do que
temi qualquer outra coisa na vida! Eu vou cair em algum dos truques
deles… como posso travar batalha com pessoas que podem saber agora
mesmo o que é provável que eu faça a seguir? Eles podem saber que vamos
a caminho para os matar.”
“Oh, eu considero isso provável”, observou o Bobo, sem compaixão, e
depois acrescentou em voz baixa: “Estás a magoar-me.”
Soltei-lhe a mão e ele massajou-a. As suas palavras tinham apagado a
minha última centelha de coragem. No silêncio entre nós, o navio em
movimento falou à nossa volta. Ouvi a água e o ranger das tábuas de
madeira-de-feiticeiro do Modelo Ideal. Senti a pressão da sua senciência e
apertei melhor as minhas muralhas. “Isto é uma loucura. Não consigo fazer
isto. Vamos morrer os dois. Possivelmente de forma sangrenta.”
“É provável. Mas o que mais haveremos de fazer com o resto das nossas
vidas?”
Pensei naquilo como um lobo a roer um osso exposto. Ou a roer a pata
presa numa armadilha.
“Olhos-de-Noite”, disse ele.
“Ele foi-se”, disse eu num tom mortiço. “Se ainda o tivesse, não me
sentiria tão diminuído. Os sentidos dele eram tão penetrantes, e ele
partilhava tudo comigo. Mas agora foi-se por completo. Eu dantes sentia-o
dentro de mim, às vezes. Quase conseguia ouvi-lo, normalmente a troçar de
mim. Mas já nem isso tenho. Ele simplesmente desapareceu.”
“Não era isso que eu queria dizer, embora me entristeça sabê-lo. Não, eu
estava a lembrar-me de Olhos-de-Noite no fim da vida. Tu querias curá-lo e
ele recusou. Lembras-te de como tentaste deixá-lo em segurança enquanto
nós íamos em perseguição dos Pigarços e ele veio atrás de ti?”
Sorri, recordando a determinação em viver que o meu lobo tivera até
morrer. “O que estás tu a dizer?”
Ele falou com solenidade. “Esta é a nossa última caçada, velho lobo. E,
como sempre fizemos, partimos juntos para ela.”
Capítulo 13

A Toda a Vela

Fico tão incomodada quando os sonhos não fazem nenhum sentido


mas mesmo assim incham de importância. Já é difícil escrever uma
história que não tem sequência ou sentido, quanto mais fazer uma
imagem daquilo que o sonho me mostrou. Mas aqui está.
Um homem em chamas oferece uma bebida ao meu pai. Ele bebe-a.
Sacode-se como um cão molhado e bocados de madeira voam em
todas as direções. Transforma-se em dois dragões que se afastam a
voar.
Tenho quase a certeza de que este sonho vai acontecer. Um sonho
que não faz nenhum sentido!
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

O
dia estava frio e chuvoso. Eu usava o meu velho justilho por cima
da camisa e das calças baratas e largas que Dwalia me comprara a
contragosto em Calcede. As camadas eram desconfortáveis mas
eu não tinha nenhum casaco. Kerf, Vindeliar e eu tínhamos fugido ao fedor
do minúsculo camarote. Aglomerávamo-nos sob o abrigo mínimo dos
beirais da cabina de convés e observávamos o mar oscilante e cinzento por
entre a infindável chuva. Poucos mercadores sentiram nesse dia o desejo de
tomar ar. Os dois que passaram por nós a passo lento e profundamente
mergulhados em conversa fizeram o meu coração saltar de esperança.
“Seis dias até Laneira. Aí, livro-me do meu brande de Orla d’Areia, com
bom lucro. Quero dar uma vista de olhos ao licor de groselha que eles têm.
Tem uma acidez que desperta a língua e é tão bom tónico para um homem
como um prazer para as senhoras.” Era um homem pequeno, flexível como
uma ratazana, e estava todo vestido com um cinzento de ratazana.
A mulher alta a seu lado riu-se e abanou a cabeça. As argolas que trazia
nas orelhas roçaram-lhe pelos ombros; um ninho de tranças amarelas
coroava-lhe a cabeça, que se apresentava à chuva sem chapéu. “Eu não
tenho ativos para vender aí, mas espero adquirir um ou dois artigos. Não é
por nada que se chama Laneira. Os tecelões de lá fazem uns tapetes
magníficos. Se levar um como presente ao meu comprador nas Ilhas das
Especiarias, ele pode gastar um pouco mais liberalmente o dinheiro dos
seus clientes. E vou ficar contente por sair deste navio durante algum
tempo. Vamos fazer aí escala antes de uma viagem de sete dias até Angra
dos Carros, se este vento se mantiver.”
“O vento é bom, mas gostava que esta chuva desaparecesse.”
“A tempestade é boa para mim.” A mulher olhou para cima, deixando a
chuva cair na sua cara. O homem fitou-lhe o pescoço descoberto. “Há
menos hipótese de sermos vistos por piratas ou pela Frota Tarifária. Mas
mal posso esperar por um par de dias em terra seca.”
Dois dias no porto. Dois dias para encontrar forma de sair do navio e do
controlo de Dwalia. Seis dias para conquistar Vindeliar para a minha causa.
Se ele fugisse comigo e nos mantivesse aos dois escondidos, que hipótese
teria Dwalia de nos encontrar? Eu sabia que atraí-lo para fora do seu
“Caminho” seria como levar uma ave silvestre a sair de um arbusto cheio de
bagas. As palavras erradas podiam afastá-lo por completo. Eu teria de ter
muito cuidado. Estabeleci a mim mesma um calendário rígido. Levaria três
dias a cortejar a sua amizade. Só no quarto começaria a convencê-lo a
ajudar-me.
Kerf acocorou-se a meu lado, com os ombros curvados contra a chuva, a
cara quase vazia por causa da camada de servidão que Vindeliar lhe pusera
em cima. Senti pena dele. Parecia um garanhão outrora orgulhoso preso a
uma carroça de estrume. À noite, quando se despia para dormir, eu reparava
no enfraquecimento dos músculos nos seus braços e peito. Sob a influência
de Vindeliar, ele movia-se cada vez menos como guerreiro e mais como
criado. Muito mais daquilo e perderia a utilidade como protetor. Perguntei a
mim mesma se Dwalia compreenderia isso.
Do outro lado de mim, curvava-se Vindeliar. Tinha uma cara estranha:
por vezes arrapazada, doutras vezes a cara de um velho desiludido. Hoje,
caíra numa disposição sombria enquanto fitava as vagas. “Tão longe de
casa”, disse com melancolia.
“Fala-me do nosso destino, irmão.” Ser solicitado a falar agradava-lhe
sempre. Eu tornara-me numa ávida ouvinte e nunca o corrigia ou silenciava.
“Como será quando lá chegarmos?”
“Oh”, suspirou ele longamente, como se não soubesse por onde começar.
“Depende de onde desembarcarmos. Podemos ancorar em águas profundas,
do outro lado da ilha. Podemos desembarcar em Sisal ou talvez em
Crupton. A Dwalia há de ser lá conhecida. Tenho esperança de passarmos
uma noite numa estalagem confortável e de tomarmos uma boa refeição.
Carneiro com menta, talvez. Gosto de carneiro. E um quarto quente e seco.”
Fez uma pausa, como se estivesse realmente a saborear esses prazeres
simples. “Ela pode alugar uma carruagem para nos levar para Clerres.
Espero que não queira ir para lá a cavalo. O dorso dum cavalo nunca
encaixou bem no meu traseiro.”
Fiz um aceno de solidariedade.
“E vamos para Clerres. Talvez atraquemos lá… Vai depender do tipo de
navio que conseguirmos arranjar. Quando chegarmos, vai ser pleno verão.
Para ti, que és uma coisinha nortenha, vai estar quente. Para mim,
agradável. Vai ser bem agradável ter o sol a aquecer-me as articulações e a
livrar-me das dores. Clerres reluz de brancura num dia de sol. Parte é feita
com ossos antigos e as outras partes são de pedra branca.”
“Ossos? Parece assustador.”
“Parece? A mim não parece. Osso trabalhado pode ser lindo. Quando lá
chegarmos, vamos esperar até a maré baixa deixar a passagem a descoberto
e depois atravessamos para o nosso santuário insular. Com certeza que
ouviste falar dele! Os topos das torres de vigia têm a forma de crânios de
antigos monstros. À noite, os archotes lá dentro fazem os olhos brilhar com
luz alaranjada e parecem olhar para fora, em todas as direções. É majestoso
e poderoso.” Parou e coçou a cara húmida. Chuva pingou-lhe do queixo.
Depois aproximou-se mais e baixou a voz para me transmitir um segredo
importante. “A mobília das quatro torres foi feita com ossos de dragão! A
Symphe tem um conjunto de copos esculpidos de dentes de dragão e
realçados de prata! São muito antigos, foram transmitidos de Symphe em
Symphe, ao longo das gerações.”
“De Symphe em Symphe?”
Ele ergueu as pálidas sobrancelhas. “A mulher da torre norte chama-se
sempre Symphe. Como podes não saber estas coisas? A mim ensinaram-
mas quando era muito novo. Clerres é o coração do mundo e o bater do
coração do mundo tem de ser sempre regular.” Esta última frase foi dita
como se estivesse a repetir um adágio conhecido no mundo inteiro.
“Até me raptarem, eu não sabia nada sobre os Servos ou sobre Clerres.”
Não era bem mentira. Eu lera um bocadinho de nada sobre eles nos papéis
do meu pai, mas não o suficiente para me preparar para aquilo que agora
suportava.
“Talvez seja por seres tão nova”, respondeu Vindeliar, pensativo. Dirigiu-
me um olhar de pena.
Abanei a cabeça. O meu cabelo estava agora comprido o suficiente para
se transformar em caracóis à chuva e gotículas voaram dele. “Não me
parece que eles sejam tão famosos como tu julgas. Kerf, tinhas ouvido falar
de Clerres antes de os Servos te contratarem?”
Ele virou-se lentamente para mim, com os olhos azuis a abrir-se numa
lenta consternação como se fosse uma vaca confusa.
“Chiu”, avisou-me Vindeliar. “Não lhe faças perguntas.”
Vindeliar franziu a testa e, quando o fez, a cara de Kerf regressou à sua
carranca habitual. A vivacidade desapareceu dos seus olhos. Levantei-me
de repente e espreguicei-me, decidindo fazê-lo precisamente na altura em
que dois tripulantes passaram por nós a correr. Ambos me evitaram, mas
um virou-se para me fitar surpreendido. Olhei diretamente para ele, a sorrir.
Ele tropeçou, reequilibrou-se, virou-se para trás, e julgo que teria falado
comigo se alguém não lhe tivesse rugido uma descompostura. A ordem foi
acompanhada pelo som de uma corda a bater na amurada do navio. Ambos
os rapazes fugiram para o trabalho que os aguardava. Sentei-me devagar.
Vindeliar estava a respirar pelo nariz com tanta força como se tivesse
acabado de fazer uma corrida. O mundo aquietou-se à minha volta, como se
eu tivesse estado a chapinhar à superfície de um mar e agora me afundasse
em quietude sob as ondas. Evitei o olhar dele enquanto tentava citar o que
ele dissera. “Clerres é o coração do mundo e o bater do coração do mundo
tem de ser sempre regular.”
Espreitei-o por entre uma súbita carga de água. Não consegui perceber se
a água que lhe escorria pela cara era chuva ou lágrimas. O seu queixo
estremeceu brevemente. “Nós, os que servimos os Servos, ajudamo-los a
manter esse coração a bater regularmente. Se obedecermos. Se nos
mantivermos no Caminho.”
“Mas e tu?”, perguntei-lhe. “Que mal fazia se fosses a uma festa e
comesses nozes assadas e bebesses sidra temperada? Não há nisso nenhum
mal.”
Os seus olhinhos redondos estavam cheios de infelicidade. “Mas também
não há nenhum bem. Eu tenho de fazer só aquilo que mantenha o mundo no
Caminho. O mal pode vir de coisas simples. O bolo que eu comer faltará a
outra pessoa. Como pedrinhas que se movem até o flanco da colina ceder,
fazendo desaparecer uma estrada.”
Teria eu ouvido uma coisa parecida, há muito tempo? As palavras dele
ressoavam de forma estranha, mesmo que eu odiasse o sentido que traziam.
Se ele acreditava que Dwalia conhecia o seu destino e seguisse as
orientações dadas por ela, eu não tinha nenhuma esperança de obter dele
ajuda para escapar.
Como se tivesse ouvido os meus pensamentos, disse: “É por isso que não
te posso ajudar a desafiá-la. Se tentares escapar, tenho de te deter e trazer de
volta.” Abanou a cabeça. “Ela ficou muito zangada quando fugiste na
cidade. Eu disse que não te conseguia tornar obediente. Uma vez consegui,
daquela primeira vez. Nesse dia, o poder estava fresco e forte em mim; ela
tinha-me preparado para o trabalho duro que fiz. Mas desde essa altura já
não te consigo obrigar a obedecer-me. Ela disse que eu estava a mentir.
Deu-me muitos bofetões.” A língua moveu-se no interior da sua bochecha,
como se procurasse lugares doridos. Senti uma vaga de simpatia culpada
por ele.
“Oh, irmão”, disse, e peguei-lhe na mão.
Foi como enfiar a mão numa torrente de água fria; foi com essa força que
senti a corrente. Foi como tocar o meu pai quando os seus pensamentos
estavam desprotegidos, antes de eu ter aprendido a proteger-me. Senti que a
corrente dele me arrancava os pensamentos da mente. Senti a forma como
mantinha Kerf controlado, como uma corda estranguladora em volta da
mente dele. Kerf não era nenhum fracote. Aquilo estava retesado, a trela de
um cão em investida. Puxei a mão para trás e tentei disfarçar o que sentira
dando-lhe palmadinhas de comiseração na manga da camisa. “Lamento que
ela te tenha punido por isso.”
Ele fitou-me. “Tu pensaste no teu pai.”
O meu coração estava a bater muito depressa. Muralhas, muralhas,
muralhas. “Tenho constantemente saudades do meu pai”, disse.
Ele estendeu uma mão para mim e eu levantei-me. “Tenho tanto frio. Vou
para dentro. Kerf, não tens frio?”
Os olhos de Kerf tremeluziram e Vindeliar deixou-se distrair enquanto
voltava a obrigar o seu cão em investida a obedecer-lhe. Quando voltara a
dominar Kerf e o pusera em pé para me seguir, eu estava fora do seu
alcance e já caminhava de regresso à cabina. Um tripulante que enrolava
um cabo fez uma pausa na sua atividade e fitou-me. Portanto Vindeliar
estivera a esconder-me e a controlar Kerf. Mas fazer as duas coisas ao
mesmo tempo punha as suas capacidades sob tensão. Um bocadinho útil de
informação.
Contudo, eu entregara-lhe uma arma que desejava que ele não tivesse.
Conseguiria adivinhar que, se me tocasse pele com pele, poderia ser capaz
de abrir caminho para o interior da minha mente? Não olhei para ele nem
deixei que os meus pensamentos se demorassem nisso. Tinha de fazer
melhor trabalho a proteger os pensamentos. Agora duvidava de vir a ser
capaz de levar Vindeliar ou Kerf a ajudar-me. Um velho marinheiro passou
por mim a passos largos, com a camisa colada às costas e os pés descalços a
chapinhar no convés. Nem de relance para mim olhou.
Cheguei à escotilha e desci a escada que levava às entranhas do navio
onde o nosso miserável compartimento me aguardava. Serpenteei por entre
camas de rede e baús. Enquanto ia avançando, estudei aqueles por que
passava. Alguns mercadores calcedinos tinham-se juntado para resmungar
sobre o tempo e piratas. Parei perto deles. Nenhum olhou para mim mas
pela sua conversa fiquei a saber que o nosso navio tinha a fama de ser o
mais rápido navio de Calcede. Nunca fora abordado por piratas, apesar de
ter sido perseguido por eles por mais de uma vez. Também evitara
encontros com a assim chamada Frota Tarifária e passara sem ser notado
pelas Ilhas dos Piratas sem pagar taxas à Rainha Etta e aos seus assassinos.
“Os navios piratas que podem perseguir este navio fazem parte da Frota
Tarifária?”, perguntei alto, mas ninguém se virou para mim.
Contudo, um momento mais tarde, um homem mais novo que estava na
periferia do grupo disse: “Parece-me irónico que uma rainha que governa
um domínio chamado Ilhas dos Piratas seja agora ela própria incomodada
por piratas.”
Um mercador de bigode grisalho riu-se alto. “Irónico e muito satisfatório
para aqueles entre nós que tiveram de percorrer a rota das Ilhas dos Piratas
na esperança de escapar à atenção do Rei Kennit. Ele capturava navio,
tripulação e carga e servia-se de tudo para os seus fins. Qualquer um que
não pudesse gerar um resgate acabava como residente das Ilhas dos
Piratas.”
“Kennit? Ou Igrot?”, perguntou o jovem.
“Kennit”, afirmou o homem mais velho. “O Igrot foi antes do meu
tempo, e um animal muito mais brutal. Ele roubava a carga, massacrava e
violava a tripulação e depois afundava a embarcação. Tinha um navio vivo,
e nada navega mais depressa do que um navio desses. Sufocou o comércio
durante anos. Depois, um dia simplesmente desapareceu.” Esbugalhou os
olhos ao homem mais novo e afirmou, com ar trocista: “Há quem diga que
numa noite de tempestade é possível entrever o seu navio fantasma à
distância, com as velas a arder e a figura de proa a gritar de agonia.”
Houve um momento de silêncio enquanto o jovem o fitava, e depois
todos rebentaram em gargalhadas.
“Acha que vamos escapar à Frota Tarifária da Rainha Etta?”, perguntou o
homem mais novo, tentando recuperar um pouco de dignidade.
O mercador mais velho enfiou as mãos na ornamentada faixa. Franziu os
lábios e pôs-se filosófico. “Ou escapamos, ou não escapamos. O negócio
que eu fiz foi: se o navio conseguir fazer com que ultrapassemos a Frota
Tarifária, pago ao capitão metade do que lhes pagaria a eles. É um bom
negócio, e é um negócio que já tinha feito com ele. Em três de cinco
viagens, passámos por eles. São boas hipóteses, parece-me. Essa minha
ofertazinha deixa-o na disposição de içar um pouco mais as velas, julgo
eu.”
“Realmente são boas hipóteses”, respondeu o jovem.
Ouvi passos desajeitados a descer a escada e, ao levantar o olhar, vi Kerf
a descer seguido por Vindeliar. “Aí estão”, disse eu com animação. “Corri
em frente para sair da chuva.”
Kerf não disse nada, mas Vindeliar olhou-me de cenho carregado. “É
melhor voltarmos para o camarote”, disse com uma voz tensa. Fez Kerf
passar por mim. Eu fiquei onde estava.
“O que vai ser de mim?”, perguntei em voz alta. “O que pretende Dwalia
para mim? Porque foi que ela veio até tão longe, destruiu tanto e derramou
tanto sangue? Vendeu Alaria como escrava para nos afastar de Calcede sem
dedicar um pensamento a alguém que tinha viajado com ela até tão longe.
Porque foi que não me vendeu a mim? Ou a ti?”
“Chiu!” Vindeliar falou num sussurro. “Não posso falar contigo aqui!”
“Isso é porque eles não me conseguem ouvir? Ou ver? E vão julgar-te
maluco, a falares sozinho?” Levantei a voz e proferi cada palavra com
clareza.
Vi o seu controlo sobre Kerf escorregar quando um dos homens virou a
cabeça, de sobrolho franzido, perguntando a si mesmo se teria ouvido
alguma coisa. Um instante mais tarde, Vindeliar tinha Kerf outra vez de
olhos vazios. Olhou para mim, a tremer do esforço. Havia um tremor na sua
voz quando disse: “Irmão, por favor.”
Eu só devia ter sentido ódio por ele. Ele facilitara a minha captura e
mantivera-me dominada enquanto me levavam. Ele escondera-me e a
Esquiva de todas as pessoas que podiam ter-nos ajudado e continuava a
manter-me invisível. Eu era prisioneira de Dwalia, mas o meu carcereiro era
ele.
Era irracional da minha parte sentir piedade por ele, mas senti. Tentei
manter o olhar gélido enquanto lágrimas subiam aos seus olhos claros. “Por
favor…”, voltou ele a sussurrar, e eu quebrei.
“Está bem, na cabina”, disse numa voz mais baixa e racional.
A voz dele estava tão tensa de medo que guinchou. “Ela vai ouvir-nos.
Não.”
Um dos mercadores virou costas aos companheiros e fitou Vindeliar com
ar acusador. “Cavalheiro! Está a escutar a nossa conversa privada?”
“Não. Não! Saímos da chuva para ficarmos secos durante algum tempo.
É só isso.”
“E não tem nenhum sítio onde estar que não seja aqui ao nosso lado?”
“Eu… vamo-nos embora. Já.” Vindeliar deitou-me um olhar desesperado
e depois espicaçou Kerf. Devia ter parecido estranho ao mercador que eles
tenham subido a escada e saído outra vez para o tempestuoso convés.
Segui-os mais devagar. Vindeliar estava a tremer enquanto nos levava até à
cabina de convés. Mas um dos ajudantes de bordo tinha ocupado o nosso
lugar e estava aí a saborear um cachimbo. Deitou um relance a Vindeliar e
afastou o olhar. Pigarreei ruidosamente. O rapaz nem sequer se assustou.
“Irmão!”, repreendeu Vindeliar e avançou pesadamente ao longo do
convés, com Kerf a segui-lo apaticamente. A chuva aumentara, empurrada
por um vento crescente. Não havia nenhum lugar abrigado. Ele parou e
encostou-se à amurada com um ar infeliz. “Ela mata-me se descobrir que eu
respondi às tuas perguntas.” Deitou-me um olhar de viés. “Se eu não
responder, tu levas-me a ultrapassar o que consigo fazer. É cada vez mais
difícil esconder-te. Eu escondi um grupo de homens de uma cidade inteira.
Porque é que tu és tão difícil de esconder?”
Eu não sabia nem queria saber. “Porquê eu?”, perguntei-lhe. “Porque foi
que me destruíste a casa e me arruinaste a vida?”
Ele abanou a cabeça devagar, profundamente magoado pela minha
incapacidade de compreender. “Não foi para te arruinar a vida”, objetou.
“Foi para te pôr no verdadeiro Caminho. Para te controlar para não criares
um caminho falso e nos levares a todos para um futuro horrível.”
Fitei-o.
Ele suspirou. “Abelha. Isto torna-te importante! Fazes parte do Caminho
verdadeiro! Houve sonhos sobre o Filho Inesperado durante tanto tempo.
Centenas de pergaminhos de sonhos mencionam-no e alguns são muito
antigos. Ele está cheio de encruzilhadas. A sua existência é uma
confluência. Um nexo, como diz a Symphe. Tu crias mais e mais
confluências. És perigosa.” Baixou-se para fixar a minha cara salpicada
pela chuva. “Compreendes?”
“Não.”
Ele pôs as mãos de ambos os lados da cabeça e apertou como que para
sossegar uma dor. A água escorria-lhe pela cara abaixo, lágrimas, gotas de
chuva ou suor. Kerf fitava o mar numa passividade bovina, sem abrigar a
cara da chuva soprada pelo vento. A tempestade estava a piorar. As velas
faziam um som de esbofetear. O navio erguia-se e depois caía, fazendo o
meu estômago dar saltos.
“Mais sonhos querem dizer que uma coisa é mais provável”, prosseguiu
Vindeliar. “O Filho Inesperado traz mudança ao mundo. Se não fores
controlada, vais pôr o mundo num rumo inapropriado. És um perigo para os
Servos, para Clerres! Em todos os sonhos, ele muda tanto as coisas que
ninguém consegue prever um futuro. Tens de ser detida!” E cerrou a boca
ao soltar aquelas palavras.
“E tu julgas que eu sou ele?”, perguntei, incrédula. Ergui bem os braços
para mostrar como era pequena. “Se não me detiveres, eu arruíno o mundo?
Eu?” Uma rajada de vento esbofeteou-me. “Como é que me detêm? Matam-
me?” Agarrei-me à amurada quando o navio deu um salto. O vento rugiu e
a chuva atacou-nos com mais força.
“Tens de ser ele.” As suas palavras eram uma súplica aflita. Julguei que
fosse desfazer-se em lágrimas. “Dwalia disse que se eu encontrasse a pessoa
errada, matava-me. Ficou tão zangada quando descobrimos que eras uma
rapariga. Foi nessa altura que começou a duvidar de mim. E de ti. Mas para
mim é simples. Se não fores ele, quem podes ser? Eu sonhei com encontrar-
te no meu único sonho verdadeiro. Tu és ele e se não te levarmos para
Clerres, vais mudar o caminho do mundo.” De súbito falou com severidade.
“Quando chegarmos a Clerres, temos de fazer toda a gente acreditar que és
o Filho Inesperado e que nós fizemos uma coisa boa. Tu tens de os fazer
acreditar que és ele. Senão…”
Então cerrou a boca tão súbita e firmemente que a boca estalou. Os olhos
esbugalharam-se-lhe quando fitou o nada por cima da minha cabeça.
Quando virou o olhar para mim, vi ira e traição nos seus olhos. “Estás a
fazê-lo, não estás? Agora mesmo. Estás a fazer-me contar-te coisas e depois
vais saber e vais mudar as coisas. Porque és ele. Resistes-me quando tento
esconder-te. Pões a Dwalia zangada comigo. Fugiste e foram tantos os que
morreram. E voltámos a apanhar-te, mas Reppin morreu e Alaria foi
vendida. Agora somos só eu e Dwalia e este Kerf. Todos os outros…
transformaste as vidas de todos em mortes! Isso é o que o Filho Inesperado
faria!” Parecia furioso.
O medo capturou-me. Ele chegara tão perto de ser meu aliado. Sufoquei
em desapontamento. “Irmão”, disse, e a minha voz tremulou. “Essas coisas
só aconteceram porque me raptaram!” Eu não queria mas os soluços
saltaram-me do peito, dilacerados. Gritando, obriguei as palavras a passar-
me pela garganta apertada. “Não fui eu! Foi a Dwalia! Foi ela que veio e
matou gente. Foi ela que levou todos aqueles luriks para lá, para morrerem.
Não fui eu. Não fui eu!” Caí de joelhos. Ele não podia ter razão. Toda
aquela morte não podia ser culpa minha. FitzVigilante. O pai de Per.
Pândego. Não podia ser eu a razão disso!
A tempestade cresceu com o meu medo. Parecia estar a sair-me do peito
e a soprar a toda a nossa volta. Uma vaga saltou sobre a amurada. Caiu
sobre mim e eu agarrei-me por reflexo à perna de Kerf. Ouvi alguém gritar
uma ordem e três homens passaram por nós a correr. A proa do navio
começou a erguer-se como se estivéssemos a subir uma colina íngreme. Um
dos homens gritou a Vindeliar “Vai para baixo, idiota!” enquanto passava
por nós.
Levantei-me, apoiando-me no convés. O vento soprava a toda a nossa
volta. Ficámos suspensos no ar.
Depois o navio voltou a inclinar-se e vimo-nos a escorregar convés
húmido abaixo. Eu passei a deslizar por Vindeliar, aos guinchos. “Agarra-
a”, ordenou Vindeliar a Kerf. “Leva-a de volta para a cabina.”
Kerf baixou-se e agarrou à mão cheia as costas da minha camisa.
Arrastou-me como a um saco enquanto cambaleava para a ré na direção da
escotilha e Vindeliar se agarrava a ele. Homens praguejaram ao evitar-nos.
Moviam-se com determinação, mas eu não consegui compreender as ordens
gritadas. Marinheiros treparam mastros e avançaram para o aparelho
enquanto os ventos tempestuosos os chicoteavam e a tela batia a cada
rajada. O convés voltou a inclinar-se. Chegámos à porta da escotilha mas
estava fechada. Vindeliar esmurrou-a, gritando para o deixarem entrar. Kerf
largou-me e apoiou-se num joelho. Gemeu ao erguer a porta da escotilha e
fê-la deslizar para o lado. Mais caímos do que descemos a escada. Acima de
nós alguém cerrou a escotilha. Ficámos mergulhados na escuridão.
Por um momento, senti-me em segurança. Depois o tosco chão de tábuas
inclinou-se. Ouvi, na escuridão, um grito de consternação, mas alguém se
riu e troçou: “Nunca serás mercador, rapaz, se um bocadinho de água
agitada te faz gritar.”
“Apaguem essa lanterna!”, gritou alguém. Num instante o negrume
tornou-se absoluto e o mundo oscilou à minha volta.
Não consegui perceber em que direção ficava a nossa miserável cabina.
Mas Kerf sabia. Vindeliar disse-me junto ao ouvido: “Segue-nos”, e eu
segui. Agarrei-me à camisa de Vindeliar e caminhei em passos curtos,
colidindo com vigas, com uma cama suspensa, com um baú, e tropeçando
por fim numa abertura que revelou ser a porta da nossa cabina. O chão
inclinou-se. Acocorei-me e depois sentei-me de chofre, fazendo força com
as palmas das mãos no chão para tentar ficar no lugar. Quando Kerf tentou
fechar a porta, descobri que estava sentada no caminho. Deslizei sobre o
traseiro para dentro da cabina, com medo de me levantar. Apalpei e
escorreguei até encontrar um canto e encaixei-me nele. E aí fiquei sentada
nas trevas, embalando a mão aleijada sobre as coxas. Estava completamente
ensopada, o cabelo pingava-me no pescoço. Apesar da exiguidade da
cabina, senti-me enregelada. E impotente. Dwalia que ficasse tão zangada
quanto quisesse. Eu precisava de uma verdadeira resposta!
“Porque foi que me raptaram? O que vão fazer comigo?” Proferi as
palavras sonora e claramente na escuridão.
Ouvi Dwalia mexer-se no beliche enquanto o navio se inclinava noutra
direção. “Obriga-a a ficar calada!”, ordenou a Vindeliar. “Fá-la adormecer.”
“Ele não consegue! Eu consigo bloqueá-lo fora da minha mente. Ele não
pode controlar-me.”
“Bem, eu posso! Posso controlar-te com um pau, portanto é melhor
ficares caladinha.” Era uma ameaça, mas a voz dela era sofrimento
temperado com ira. E um vestígio de medo. O movimento do navio
empurrou-me de súbito para o meu canto. Senti-me como um gatinho num
caixote que alguém estivesse a sacudir. Não gostei nada. Mas fiz lembrar a
mim mesma que os marinheiros no convés tinham parecido atarefados e
esforçados mas não aterrorizados. Recusei-me a ter medo. “Não tens um
pau e não me conseguias ver para me bater se o tivesses. Tens medo de me
dar uma resposta? Porque foi que me raptaste? O que vais fazer comigo?”
Ela sentou-se subitamente na cama. Soube-o porque ouvi o roçagar da
manta e o sólido tunc da sua cabeça a bater no beliche de cima. Abafei a
gargalhada e depois deixei que ela saltasse de mim. Na escuridão e na
agitação da tempestade, desafiando-a, senti-me de súbito estranhamente
poderosa. Atirei-lhe palavras. “Gostava de saber se o navio se vai afundar.
Se se afundar, todos os teus planos vão ser para nada. Imagina se ele se
afundar connosco aqui presos. Mesmo se saíssemos da cabina, na escuridão
nunca encontraríamos a escada e a escotilha. Morríamos aqui todos quando
a água fria viesse em torrente ter connosco. Pergunto a mim mesma se o
navio se viraria primeiro.”
Ouvi Vindeliar inspirar entrecortadamente. A pena dele guerreou com a
satisfação. Conseguiria fazê-los sentir o mesmo medo e náusea que eu
sentira quando me raptaram?
O navio voltou a inclinar-se. Depois parecemos bater em alguma coisa e
de seguida passámos por ela. Um momento mais tarde ouvi Dwalia vomitar.
Houvera um balde ao lado do beliche dela, mas eu ouvi o fino fio de bílis
chapinhar no chão enquanto ela convulsionava. O cheiro ficou mais forte.
“Julgaste que eu era o Filho Inesperado. Depois julgaste que não era!
Bem, eu acho que sou! E que estou a mudar o mundo agora mesmo. Tu
nunca saberás como o mudo, porque acho que vais morrer antes de
chegarmos ao porto. Uma coisa é certa: perdeste peso e força. E se morreres
e Vindeliar ficar sozinho connosco? Bem, duvido que eu vá para Clerres.” E
voltei a rir-me.
Ouve um instante de absoluto silêncio, como se tanto a tempestade como
o navio tivessem feito uma pausa. Ela falou nesse silêncio. “O que eu vou
fazer contigo? Vou fazer-te o que fiz ao teu pai. Vou fazer-te em bocados.
Vou arrancar-te todos os segredos, um a um, nem que tenha de te arrancar
cada centímetro de pele da carne para o fazer. E quando acabar contigo, vou
dar-te aos Reprodutores. Há muito tempo que eles querem alguém da tua
linhagem. Não importa como te desfigurar, imagino que eles hão de
encontrar alguém disposto a violar-te até conceberes. És nova. Imagino que
consigam tirar-te da barriga uma vintena de bebés antes que o teu corpo
ceda.” E soltou uma espécie de grasnido.
Eu nunca ouvira Dwalia rir mas reconheci no som o que ele era. Um
medo frio, mais frio do que a violenta água do mar fora da parede da nossa
cabina, cresceu em mim. A confusão dominou-me. O que estava ela a dizer-
me? Tentei reencontrar a confiança. “Tu não fizeste nada ao meu pai. Nunca
sequer viste o meu pai!”
Uma pausa enquanto o chão se movia numa nova direção. Nesse silêncio,
ouvi as tábuas do navio resmungar umas com as outras. Depois, ela falou e
era as trevas em pessoa. “Portanto, tu nem sequer sabes quem foi o teu pai!”
“Eu conheço o meu pai!”
“Ah sim? Conheces o cabelo e olhos claros dele? Conheces o seu sorriso
trocista e as mãos de dedos compridos? Acho que não. Mas eu conheço. Eu
ceguei esses olhos; livrei-os da troça para sempre! E esfolei as pontas dos
longos dedos do teu pai. Isso foi depois de lhe ter arrancado as unhas, uma
fatia fina de cada vez. Ele nunca mais vai exibir malabarismos nem fazer
uma maçã surgir do ar. Também pus fim à suas danças e acrobacias. Esfolei
a pele dos seus pés, oh, tão devagarinho. E pus-lhe o pé esquerdo entre dois
blocos de um torno, um de cada lado, e devagarinho, devagarinho, apertei-
o, menos de um quarto de volta por pergunta. Não importava se ele me
respondia ou não! Eu perguntava e ele guinchava ou gritava palavras. E
depois eu apertava o parafuso. Cada vez mais apertado, com o topo do pé
dele espetado para fora até que, crás!” E voltou a grasnar.
Ouvi Vindeliar a arquejar nas trevas. Estaria a tentar não se rir? Estaria à
beira de chorar?
“Os ossos cederam. Um projetou-se da ponta do pé como uma torrezinha
de marfim. Oh, como ele gritou. Eu pus-me ao lado dele e ergui o olhar para
as minhas testemunhas e esperei e esperei até que ele deixou de conseguir
gritar. E depois apertei o parafuso mais um quarto de volta!”
Por um longo momento, o mundo fez uma pausa à minha volta. Até o
navio pareceu pairar, imóvel e quase horizontal. Um pai que eu não
conhecia? Um pai que ela tinha torturado. Ela torturara alguém; disso eu
tinha certeza. Falava da tortura como se tivesse sido a mais deliciosa
refeição que comera na vida, ou a mais bela canção que já ouvira. Mas meu
pai? Eu conhecia o meu pai. Era também pai de Urtiga, e tinha sido marido
da minha mãe durante todos aqueles anos. Claro que era meu pai.
Mas foi como se o meu mundo oscilasse quando o navio o fez, e a
questão teve de surgir. E se ele não fosse meu pai? E se nunca o tivesse
sido? Castro não fora pai de Urtiga. Eu não teria sido a primeira criança a
ser entregue a pais adotivos. Mas Moli era minha mãe. Disso tinha eu a
certeza. A menos que… levantei uma questão impensável sobre a minha
mãe. Isso não explicaria por que motivo eu não me parecia nada com ele?
Não explicaria por que motivo ele me abandonara tão facilmente naquele
dia? Ele dissera que tinha de ir, que tinha de salvar o velho pedinte
maltratado. O pedinte cego, com a mão quebrada e o pé aleijado…
E então, o navio inclinou-se lentamente, dando-me a volta ao estômago.
Senti que o navio devia estar na vertical. Estaríamos a mover-nos? Não
consegui perceber até ao impacto nauseante, ao mesmo tempo duro e suave.
Algo bateu na parede a meu lado e depois caiu no chão quando o navio
tentou endireitar-se. Senti que nos afundávamos e depois voltávamos à
superfície como se fôssemos uma rolha. Mesmo na coberta, ouvi um
estrondo e homens a gritar. Perguntei a mim mesma o que teria acontecido.
“Parece que perdemos parte do aparelho, talvez até um mastro.” A voz de
Kerf soou profunda e lenta na escuridão. Depois, com crescente urgência,
ele perguntou: “Para onde vamos? Quando foi que embarcámos num navio?
Eu ia levar o meu despojo de guerra, a minha mulher, à minha mãe, em
casa! Onde está ela? Como foi que chegámos aqui?”
“Controla-o!”, disse Dwalia a Vandeliar num tom selvático de aviso, mas
ele não deu resposta. Fiz deslizar o pé pelo chão e, na escuridão, encontrei
um monte cediço.
“Acho que o Vindeliar bateu com a cabeça”, disse, e depois amaldiçoei-
me por ser parva. Ele estava inconsciente e não podia deter-me. E não me
parecia que Kerf se importasse. Aquela era a minha melhor oportunidade de
a matar e nos libertar a todos. O navio tremia à nossa volta. Sem aviso,
recomeçou a subir. Ouvi o corpo de Vindeliar deslizar pelo chão.
Arma. Eu precisava de uma arma. Não havia nada na cabina que me
servisse como arma. Eu não tinha nada que pudesse usar para a matar.
Exceto Kerf.
“Tu és prisioneiro. E eu também.” Tentei aprofundar e suavizar a minha
voz. Precisava de soar racional e mais velha. Não como uma criança
aterrorizada. “Eles tiraram-te Alaria e venderam-na como escrava. Antes
disso, fizeram-te perder para sempre a Dama Esquiva, quando te enganaram
e te levaram a trazê-la de volta aos seus captores em vez de a levares em
segurança para casa. Lembras-te, Kerf? Lembras-te de como te arrastaram
através de uma pedra mágica e quase te fizeram perder o juízo? Voltaram a
fazer o mesmo. E agora levaram-te a deixar para trás Calcede e a tua casa.”
Apesar dos meus esforços, a minha voz fora-se tornando mais aguda e
infantil à medida que eu ia tentando espicaçá-lo com as desfeitas que lhe
tinham sido infligidas.
Ele não deu resposta às minhas palavras. Arrisquei tudo. “Temos de a
matar. Temos de matar Dwalia. É a única forma de a determos!”
“Sua cabrazinha malvada!”, guinchou-me Dwalia. Ouvi-a a remexer-se,
tentando sair do beliche, mas a inclinação do navio estava do meu lado. Ela
estava abaixo de mim. Não podia esperar por Kerf. Ele ainda se encontrava
demasiado confuso. Tentei mover-me em silêncio no escuro enquanto fui
avançando para ela, meio a gatinhar, meio a escorregar. Só teria momentos
para a alcançar antes de o navio se equilibrar na crista de uma onda.
Deslizei até à beira do beliche, lutei por me pôr em pé e procurei-a às
apalpadelas. Ela estava a debater-se para se levantar. Tentei não lhe tocar,
para não lhe dar aviso de onde estava e do que pretendia fazer. Tive de
adivinhar onde o seu pescoço estava para atirar as mãos contra a sua
cabeça. Toquei-lhe no nariz e no queixo com uma mão, fi-la descer e
encontrei-lhe o pescoço com ambas as mãos. Agarrei e apertei.
Ela esbofeteou-me, com força, na parte lateral da cabeça. O meu ouvido
ressoou. Apertei bem, mas as minhas mãos eram demasiado pequenas. No
máximo estava a beliscar-lhe os lados do pescoço, e não a cortar-lhe o
fornecimento de ar como pretendera fazer. Ela gritou-me palavras que não
compreendi, mas consegui ouvir o ódio que nelas vinha. Atirei a cabeça
para a frente, a fim de tentar morder-lhe a garganta, mas em vez disso
encontrei a cara. Isso não a mataria mas mordi-a na mesma, cerrando os
dentes com força na sua cara carnuda e tentando esmagá-la entre os dentes.
Ela gritou e bateu-me com os punhos e eu de súbito percebi que me estava a
bater na esperança de me obrigar a largá-la, porque temia empurrar-me para
longe da sua cara sabendo que eu levaria comigo um bocado. A carne viva é
muito mais rija do que a cozinhada. Eu mexi os dentes de um lado para o
outro, cortando-lhe a carne, sentindo-me em igual medida selvagem e
triunfante. Ela estava a magoar-me, mas pagaria um preço por isso. Eu
assegurar-me-ia de que assim seria. Cerrei as maxilas e roí a carne dela
como se fosse um lobo a sacudir um coelho.
Então Kerf chocou connosco. Senti uma vaga de esperança. Com ele a
ajudar, poderíamos matá-la. O navio estava direito. Ele podia puxar pela
espada e espetá-la nela. Quis gritar-lhe isso, mas não largaria a minha presa.
Depois, para meu horror, ele agarrou-me. “Larga”, disse, com a voz mortiça
de um sonâmbulo.
“Arranca-a daí”, ordenou-lhe Vindeliar. Só ficara temporariamente
atordoado.
“Não! Não, não, não!”, estava Dwalia a guinchar. Agarrou-me na cabeça
e segurou-a junto da cara, mas Kerf era mais forte. Senti os dentes a
encontrar-se e depois, quando ele me puxou com força, a carne da cara dela
rasgou-se e veio comigo. Kerf atirou-me para o lado como se eu fosse uma
pazada de terra. Atingi o chão, cuspi a bochecha de Dwalia, e depois
deslizei quando o navio recomeçou a inclinar-se. Acabei num canto e
encostei-me aí. Dwalia estava a gritar histericamente enquanto Vindeliar a
atazanava, perguntando se estava ferida, o que se passava, o que devia fazer
agora. Senti vómitos por causa do que fizera. O sangue dela deixara-me o
queixo viscoso. Passei a língua pelos dentes e cuspi Dwalia para o chão.
Vindeliar estava ocupado com Dwalia. Eu não fazia ideia de onde Kerf se
encontrava ou do que estava a fazer. Sai. Assim que pudesse, ela ia bater-
me. Eu agora sabia o quanto ela gostaria de me magoar. Nada a impediria
agora de me matar.
Na escuridão do navio sacudido, eu perdera o sentido de orientação.
Quando o navio me pressionou contra uma parede, eu avancei colada a ela
mas não encontrei nenhuma porta. O navio atingiu a muralha de água e foi
atirado para o lado. Gritos de consternação vieram dos marinheiros que
trabalhavam no convés. Portanto, agora estava na altura de temer algo
maior que Dwalia. Decidi que podia ter medo do naufrágio do navio depois
de haver saído da cabina e ter-me afastado dela.
Da vez seguinte que o navio se inclinou, fui com ele até à parede oposta.
Fui brevemente detida pela bota de alguém, provavelmente a de Kerf.
Atingi a parede, encontrei às apalpadelas o batente da porta, endireitei-me,
abri a porta e contornei-a até cair para fora dela. Ouvi-a cair no lugar atrás
de mim. Dwalia continuava a gritar-me pragas. Perguntei a mim mesma
quanto tempo teria até eles se aperceberem de que eu estava fora da cabina.
Gatinhei para a escuridão da coberta bamboleante por baixo das
oscilantes camas suspensas. Ouvi pragas e preces e homens feitos a chorar.
Choquei com um poste vertical e agarrei-me aí por um momento. Obriguei-
me a ficar imóvel, e forcei-me a lembrar-me do que vira na coberta. Depois,
quando o navio subiu à crista de outra onda, dirigi-me ao poste seguinte.
Agarrei-me, esperei, e depois voltei a avançar, passando aos tropeções por
um homem. E assim continuei. Se me afogasse quando o navio se
afundasse, não o faria junto de Dwalia.
Capítulo 14

O Acordo do Modelo Ideal

A propósito do Branco nascido em estado selvagem conhecido como


Amado:
Fomos incapazes de confirmar a aldeia em que nasceu. Todos os
registos sobre a sua vinda para Clerres foram incorretamente
armazenados ou destruídos. Na minha opinião, Amado encontrou
maneira de se infiltrar nas salas de registos, localizou os registos
que se relacionavam com ele e com a família e escondeu-os ou
destruiu-os.
Tratável logo quando o recebemos, ele tornou-se indisciplinável,
inquisitivo, enganador e desconfiado. Permanece convencido de que
é o verdadeiro Profeta Branco e não quer aceitar os nossos
ensinamentos de que os Servos escolhem, entre vários candidatos, o
que melhor se adequa àquela tarefa. Nem a gentileza nem uma
disciplina dura abalaram nele essa crença.
Embora fosse uma adição valiosa para as linhagens Brancas
quando chegar à idade de se reproduzir, o seu temperamento e o
hábito de falar sem rodeios significam que permitir-lhe que continue
a ter acesso irrestrito aos outros seria uma distração perigosa para
eles.
Apresento aos meus três pares a minha opinião. Acarinhar e mimar
o rapaz foi um erro. O plano para o levar a sentir-se seguro e colher
os seus sonhos só o encorajou a ser rebelde e dissimulado.
Continuar a deixá-lo mover-se livremente, visitar a aldeia e conviver
com os outros é um convite ao desastre.
As minhas sugestões são as seguintes: conforme a nossa Profetisa
Branca sugeriu, marcai-o claramente com tatuagens.
Confinai-o. Continuai a temperar-lhe as refeições com as drogas de
sonho e assegurai-vos de que ele está bem abastecido de pincéis,
tintas e pergaminhos.
Contende-o durante vinte anos. Afagai a sua vaidade. Dizei-lhe que
o mantemos em isolamento para que os seus sonhos não possam ser
maculados pelas conversas dos outros. Dizei-lhe que, embora não
seja o verdadeiro Profeta Branco, serve o mundo e o Caminho
continuando a sonhar. Concedei-lhe passatempos mas não o deixeis
conviver com outros Brancos.
Se, no fim desse período, ele não se tornar disciplinável, envenenai-
o. São estas as minhas sugestões. Se as ignorardes, eu não aceitarei
nenhuma culpa por aquilo que ele possa fazer.
Symphe

D
eem a um homem uma tarefa temível. Depois ponham-no numa
situação em que tenha de esperar para tentar executar essa tarefa.
Que a tarefa seja também difícil. Confinem-no onde há pouco
para fazer e raras oportunidades para estar sozinho. O tempo irá parar para
esse homem. Eu sei que isto é verdade.
Tentei preencher os meus dias a bordo do Modelo Ideal com iniciativas
úteis. Âmbar e eu isolávamo-nos na cabina dela para sessões de leitura e
discussão dos sonhos que Abelha escrevera. Essas sessões eram dolorosas
para mim, e só se tornavam mais irritantes com o ávido consumo que o
Bobo fazia do diário dela. “Volta a ler isso!”, ordenava-me ou, pior: “Esse
sonho não tem ligação com aquele que me leste há quatro dias? Ou serão
cinco? Volta atrás no livro, Fitz, por favor. Tenho de ouvir os dois lidos em
conjunto.”
Ele saboreava os sonhos que afirmava serem a prova de que Abelha era
sua filha, mas eu era atormentado pelos momentos não recordados da minha
pequenita. Ela escrevera sozinha aquelas palavras cuidadosamente
desenhadas e ilustrara-as com tintas e pincéis surripiados da minha
secretária. Trabalhara em todas aquelas páginas, deixando cada ilustração
tão exata, cada letra tão precisamente inscrita, e eu nada soubera sobre a sua
obsessão. Teria executado aquele trabalho noite dentro, enquanto eu dormia,
ou talvez enquanto eu a ignorava e a Moli para escrever taciturnamente os
meus próprios pensamentos no meu gabinete privado? Não sabia e nunca
saberia. Cada sonho recontado, cada peculiar poeminha ou ilustração
detalhada, era uma censura ao pai que eu fora. Eu podia vingar a sua morte.
Podia matar como memorial à sua existência, e talvez morrer no esforço de
o fazer, pondo assim fim à minha vergonha. Mas não podia voltar atrás no
modo como negligenciara a criança. Sempre que a esperteza com que ela
concebera uma rima arrancava ao Bobo uma exclamação, era como se uma
minúscula brasa ardente de vergonha fosse depositada no meu coração.
O tempo manteve-se bom para nós. O navio funcionava
organizadamente. Quando passeava pelo convés, sentia-me como se a
tripulação se movesse à minha volta enquanto executava os passos
intricados de uma dança ao som de uma música que só eles conseguiam
ouvir. A corrente do rio levou-nos durante a primeira parte da viagem, com
pouca necessidade de velas. As densas muralhas verdes da altíssima floresta
erguiam-se mais alto que qualquer mastro. Por vezes, o rio corria profundo
e rápido e as árvores chegavam tão perto que sentíamos os cheiros das
flores e ouvíamos os gritos roufenhos das aves e das ágeis criaturas que as
habitavam da base do tronco à copa. Uma manhã, acordei tarde e descobri
que um afluente se juntara ao rio e este agora se estendia largo e plano à
nossa volta. Do lado esquerdo do navio, a floresta recuara até não passar de
uma névoa verde no horizonte. “O que existe além?”, perguntei a Clef
quando os seus deveres o levaram a parar perto de mim.
Ele semicerrou os olhos. “Não sei. A água é demasiado rasa para o
Modelo Ideal ou qualquer navio grande. Só há este canal pelo meio, e é
uma sorte dos diabos que o Modelo Ideal o conheça tão bem como conhece.
Daquele lado, o rio torna-se menos profundo e depois dá lugar a lamaçais
fedorentos capazes de sugar um homem até às coxas. E estendem-se ao
longo de pelo menos um dia de caminhada, talvez dois, antes de as árvores
reaparecerem.” Abanou a cabeça e refletiu: “É tanto o território dos Ermos
Chuvosos que não serve para humanos. É melhor que nos lembremos de
que nem todo o mundo foi feito para nós. Eh! Eh! Não é assim que se
enrola um cabo!” E lá foi convés fora, deixando-me a fitar o horizonte.
O rio levou-nos cada vez para mais perto da costa e eu tomei consciência,
tanto através da Manha como do Talento, de que o navio não era uma
componente passiva da nossa viagem. De dia, sentia a consciência dele.
“Ele conduz-se a si mesmo?”, perguntei a certa altura a Âmbar.
“Até certo ponto. Todas as partes dele que tocam na água são feitas de
madeira-de-feiticeiro. Ou, mais corretamente, de casulo de dragão. A gente
dos Ermos Chuvosos faz os navios assim porque a água deste rio depressa
devora tudo o resto. Pelo menos assim foi em tempos. Segundo soube, os
jamailianos arranjaram uma maneira de tratar a madeira que permite a um
navio normal navegar por este rio sem ser devorado. Chamam-lhes navios
resistentes. Pelo menos foi o que me disseram. Um navio vivo tem algum
controlo sobre o leme. Mas só algum. O Modelo Ideal também consegue
controlar todas as tábuas do seu casco. Pode apertá-las ou alargá-las. Pode
avisar a tripulação se estiver a meter água. A madeira-de-feiticeiro parece
ser capaz de ‘sarar’, de certa forma, se um navio vivo roçar no fundo ou
colidir com outra embarcação.”
Abanei a cabeça, espantado. “Realmente, uma criação maravilhosa.”
O ligeiro sorriso que Âmbar tivera no rosto atenuou-se. “Mas não criada
por homens ou sequer por construtores navais. Todos os navios vivos
estavam destinados a ser dragões. Alguns lembram-se disso com mais
clareza do que outros. Cada navio está realmente vivo, Fitz. Em alguns
casos perplexo, noutros zangado ou confuso. Mas vivo.” Como se aquilo
lhe tivesse dado uma nova ideia, ela virou-me a cara, pôs as mãos na
amurada e fitou a água cinzenta.
Os nossos dias a bordo do navio depressa assentaram num padrão.
Tomávamos o pequeno-almoço com Brashen ou Alteia, mas raramente com
ambos. Um ou o outro pareciam estar sempre no convés, a andar de um
lado para o outro com olhar atento. Centelha e Perseverança mantinham-se
ocupados. O aparelho parecia fasciná-los ao mesmo tempo que os
intimidava, e todos os dias se desafiavam um ao outro. Para Lante, era um
problema encurralá-los e pô-los a treinar as letras e a aprender. Centelha já
sabia ler e escrever mas tinha uma compreensão limitada da geografia e
história dos Seis Ducados. Era uma sorte que parecesse gostar das horas que
Lante passava a dar-lhe instrução, pois Per não teria suportado ficar preso à
pena e ao papel enquanto Centelha percorria o navio. Era muito frequente
que as aulas fossem dadas no convés, enquanto Âmbar e eu planeávamos
assassínios imaginários.
A refeição do meio-dia era menos formal, e era frequente eu ter pouco
apetite para ela, depois de passar a manhã ocioso. Perturbava-me que as
habilidades que em Torre do Cervo lutara por reconquistar estivessem agora
outra vez a enferrujar, mas não via nenhuma forma de me exercitar com um
machado ou uma espada sem levantar questões ou gerar alarme. De tarde,
era frequente Âmbar e eu ficarmos trancados com os livros de Abelha.
Tomávamos a refeição da noite com Brashen e Alteia. Por essa altura, o
navio estava geralmente ancorado, ou amarrado a árvores, dependendo das
condições do rio.
Depois da refeição da noite, eu era frequentemente deixado sozinho, pois
Âmbar passava quase todas as noites com o Modelo Ideal. Punha um xaile e
dirigia-se para a coberta de proa, onde se instalava de pernas cruzadas sobre
o gurupés e conversava com ele. Por vezes, para meu desconforto, o
Modelo Ideal segurava-a nas mãos. Ela sentava-se nas palmas, com os
polegares sob as mãos para poder encará-lo, e conversavam até muito
depois de escurecer. A pedido dele, ela pediu emprestado a Clef um
pequeno conjunto de flautas e tocava para ele — uma música baixa e
sussurrada que parecia ser sobre solidão e perda. Por uma ou duas vezes eu
vagueei até vante para ver se me podia juntar a eles, pois confesso que
fervilhava em mim a curiosidade sobre o que os dois podiam ter para
conversar durante tantas noites. Mas foi-me feito saber, sem insulto, que eu
não seria incluído nas discussões entre ambos.
A cozinha e as cobertas eram o território da tripulação. No Modelo Ideal
eu era não só um desconhecido, um estrangeiro e um príncipe, mas também
o idiota que perturbara a figura de proa e a deixara ameaçar-me
publicamente. Os ruidosos jogos de azar jogados nas cobertas e o humor
rude da tripulação não eram para ser compartilhados com gente da minha
laia. Por conseguinte, o mais frequente era eu passar as noites sozinho na
cabina acanhada que Centelha partilhava com o Bobo. Mantinha a mente
ocupada o melhor possível, normalmente a folhear os livros de Abelha. Por
vezes era convidado a ir ao camarote de Alteia e Brashen para tomar um
copo de vinho e conversar sobre ninharias, mas estava agudamente
consciente de que eu e os meus companheiros éramos carga e não seus
hóspedes. E assim, quando uma noite declinei educadamente um convite, a
minha consternação cresceu quando Brashen disse sem rodeios: “Não,
temos de conversar. É importante.”
Um pequeno silêncio prolongou-se enquanto eu o seguia até ao camarote.
Alteia já lá estava, com uma garrafa de vinho poeirenta na mesa e três
copos. Durante um breve momento, todos os três fingimos que aquilo não
passava de uma oportunidade de partilhar uma boa colheita e nos
descontrairmos ao fim do dia. O navio ancorado balançava suavemente na
corrente do rio. As janelas estavam abertas e davam para o rio e os sons
noturnos das copas da floresta próxima alcançavam-nos.
“Amanhã à tarde deixamos o rio para trás e rumamos para Vilamonte”,
anunciou de súbito Brashen.
“Fizemos bom tempo, parece-me”, disse eu num tom agradável. Não
fazia ideia de quanto tempo costumava durar uma viagem daquelas.
“Fizemos. Surpreendentemente bom. O Modelo Ideal gosta do rio e às
vezes demora-se nesta etapa da viagem. Mas desta vez não.”
“E isso não é bom?”, perguntei, confuso.
“É uma mudança no comportamento dele. E quase qualquer mudança é
motivo para preocupação.” Brashen falara lentamente.
Alteia acabou o vinho e pousou firmemente o copo na mesa. “Eu sei que
Âmbar vos contou um pouco da história do Modelo Ideal — contou-vos
como ele é, essencialmente, dois dragões num corpo de navio — mas há
mais que deveis saber. Ele teve uma vida trágica. Os navios vivos absorvem
as memórias e emoções das suas famílias e das tripulações que vivem a
bordo. Não muito depois de ganhar consciência, talvez devido à sua
natureza dual, ele virou-se e um rapaz da sua família morreu no seu convés,
emaranhado nos cabos. Isso marcou-o. Depois disso, virou-se por várias
vezes, afogando todos os que estivessem a bordo. O valor de um navio vivo
é tal que foi sempre encontrado, endireitado, recuperado e posto de novo a
navegar. Mas ficou conhecido como um navio azarado e chamavam-lhe de
forma trocista Pária. Da última vez que zarpou, esteve desaparecido
durante anos. Regressou a Vilamonte sozinho, a derivar contra a corrente, e
foi encontrado de casco para cima mesmo à entrada do porto. Quando foi
endireitado, descobriram que a sua cara tinha sido deliberadamente
danificada e os olhos cortados, e trazia no peito uma marca que muitos
reconheceram. A estrela de Igrot.”
“Igrot, o pirata.” A história deles estava a cobrir com carne os ossos do
que Âmbar me contara. Aproximei-me mais, pois Alteia falava numa voz
baixa como se tivesse receio de ser ouvida.
“O próprio.” Brashen proferiu a palavra de forma tão definitiva e abatida
que não pude continuar a duvidar da seriedade da conversa.
“O Modelo Ideal sofreu abusos de formas que são difíceis de entender
para alguém que não pertença a alguma das linhagens de Vilamonte.” A voz
dela tornara-se rígida.
Brashen interrompeu. “Acho que isso é o máximo que um forasteiro pode
compreender sobre o Modelo Ideal. Acrescento apenas que Âmbar voltou a
esculpir-lhe a cara, devolvendo-lhe a visão. Eles tornaram-se chegados
durante essa época. E é evidente que ele teve saudades dela e sente uma
grande… ligação com ela.”
Acenei com a cabeça, ainda perplexo com o tom sombrio dos dois.
“Eles estão a passar demasiado tempo juntos”, disse de súbito Alteia.
“Não sei o que andam a discutir, mas o Modelo Ideal está a ficar mais
perturbado a cada dia que passa. Tanto Brashen como eu conseguimos
senti-lo. Depois de tanto tempo a viver a bordo, ambos estamos…”
“Sintonizados.” Brashen sugeriu a palavra, e ajustava-se. Pensei em
dizer-lhes exatamente até que ponto eu a compreendia, mas depois abstive-
me de o fazer. Eles já me achavam estranho o suficiente sem que eu
revelasse uma magia hereditária que me permitia tocar na mente de outras
pessoas.
E possivelmente na de navios vivos? Eu certamente sentira isso com o
Lobo-do-Mar. Mantivera o Talento rigorosamente contido desde o incidente
com o Modelo Ideal, temendo que se baixasse as muralhas para o ler, ele
não só ficasse consciente disso mas também aborrecido. Eu já o agitara o
suficiente. Portanto: “Consigo imaginar essa espécie de vínculo”, concedi-
lhes.
Alteia aceitou aquilo com um aceno de cabeça e serviu mais vinho a
todos. “É um vínculo com dois sentidos. Nós estamos conscientes do navio
e o navio está consciente de nós. E desde que Âmbar subiu a bordo, as
emoções do Modelo Ideal tornaram-se mais intensas.”
“E nessas alturas o Modelo Ideal torna-se mais obstinado”, disse
Brashen. “Notamo-lo na manobra. E a tripulação também. Hoje passámos
por uma zona problemática do rio, conhecida por ter baixios móveis.
Normalmente abrandamos o avanço dele quando a atravessamos. Hoje, ele
desafiou-nos e passámos por essa zona mais depressa do que nunca. Porque
é que o Modelo Ideal se está a apressar?”
“Não sei.”
“Para onde vos dirigis vós?”
De súbito senti-me demasiado fatigado para falar daquilo. Não queria
nunca mais contar a minha história. “Julgava que a Rainha Malta vos tinha
enviado uma mensagem por ave.”
“Enviou, com um pedido para vos ajudarmos, uma vez que ajudastes
muitas das crianças deles. Desfazendo o que os Ermos Chuvosos lhes
tinham feito.”
“O que os dragões lhes tinham feito”, corrigi. Sentia-me desconfortável
com aquela conversa. Era claro que eles estavam perturbados com a atitude
do navio, ao ponto de ficarem irados, e estavam dispostos a pôr as culpas
em Âmbar. E a exigir que eu fizesse alguma coisa a esse respeito. Fiz a
sugestão óbvia. “Talvez devêssemos ir todos até junto da figura de proa e
perguntar o que está a perturbar o vosso navio.”
“Baixai a voz, por favor”, avisou-me Alteia.
Brashen estava a abanar enfaticamente a cabeça. “Confiai que nós
conhecemos o Modelo Ideal. Apesar de ser tão velho, ainda não aceita a
lógica como um adulto. Parece-se mais com um adolescente. Por vezes é
racional, por vezes é impulsivo. Se tentarmos interpor-nos entre ele e
Âmbar, julgo que os resultados serão…” Deixou a voz silenciar-se enquanto
os olhos se lhe dilatavam.
Alteia pôs-se em pé de um salto.
“O que é aquilo?”, perguntou, a nós e a ninguém.
Eu também o senti, como se um calor formigante tivesse de repente
atravessado o meu corpo. Por um instante pareceu-me difícil recuperar o
fôlego e, enquanto me equilibrava agarrando-me à beira da mesa, apercebi-
me de que não estava a sentir vertigens. Não. O vinho no meu copo tremia,
e vi minúsculos círculos a dançar no copo. “Tremor de terra”, disse,
tentando ficar calmo. Não eram incomuns nos Seis Ducados. Eu ouvira
histórias de tremores fortes o suficiente para rachar as torres do Castelo de
Torre do Cervo. Os primeiros aposentos do Bobo em Torre do Cervo
ficavam numa torre assim danificada. Durante a minha vida, eu não vira um
acontecimento desses, mas as histórias de menestrel sobre torres derrubadas
e vagas que demoliam portos eram de aterrorizar. E ali estávamos,
ancorados perto de uma floresta de imensas árvores enraizadas em lama…
“Não é um tremor de terra”, disse Brashen. “É o navio. Vamos!”
Duvidava que ele estivesse a falar comigo, mas segui Alteia para fora da
cabina. Não éramos os únicos no convés. Alguns dos tripulantes estavam a
erguer o olhar para as árvores ou a olhar para fora de borda, confusos. Clef
corria para vante. Eu fui mais devagar. Não podia voltar a correr o risco de
estar nas mãos do Modelo Ideal. Senti um súbito estalo sob os pés. Olhei
para baixo. À luz instável das lanternas do navio, o convés pareceu de
repente ser feito de pedrinhas, em vez de mostrar o grão apertado e liso da
madeira-de-feiticeiro. Não, não eram pedrinhas. Eram escamas.
Corri atrás de Alteia. Brashen e Clef tinham parado a uma distância
segura da figura de proa. Âmbar estava sozinha na coberta de proa, com as
costas direitas e a cabeça erguida. Uma pose obstinada. A figura de proa
torceu-se e atirou-lhe qualquer coisa. Ela não a viu, e a coisa tombou no
convés com o tinir de vidro a partir-se. “Mais!”, exigiu.
“Isto é tudo o que tenho agora. Mas ajuda-me e eu prometo que vou
tentar arranjar-te mais.”
“Preciso de mais! Isso não foi suficiente!”
À primeira vista, eu julgara que as luzes pouco intensas estavam a pregar
partidas aos meus olhos. Mas a cara de Modelo Ideal já não era igual à
minha. Estava tão escamoso como um habitante idoso dos Ermos
Chuvosos. Enquanto o fitava, os seus olhos viraram-se. Ainda eram azuis,
mas o azul rodopiava de prata. Olhos de dragão. Ele estendeu para Âmbar
mãos cujos dedos terminavam em garras negras.
“Bobo! Afasta-te dele!”, gritei, e o Modelo Ideal ergueu os olhos para os
prender em mim.
“Nunca lhe chames isso!”, rosnou-me por entre dentes aguçados. “Ela é
mais sábia do que qualquer um de vós!”
“Âmbar, o que fizeste?”, gritou Alteia numa voz baixa e quebrada.
Brashen estava em silêncio, a fitar num horror completo a figura de proa
transformada.
“Devolveu-me a minha verdadeira natureza, pelo menos em parte!” Foi
Modelo Ideal quem lhes respondeu. A sua cara estava a mudar enquanto eu
o fitava, com ondulações de cor a percorrer os traços que partilhávamos. No
escuro, ele brilhava com um acobreado de bronze enquanto fechava em
volta de Âmbar as mãos providas de garras e a erguia do convés. Encostou-
a possessivamente ao peito e acrescentou: “Ela reconhece em mim o que
sou, e não hesitou em dar-me aquilo de que sempre precisei!”
“Por favor, navio, tem calma. Volta a pô-la no convés. Explica-nos isto.”
Brashen falava como se estivesse a argumentar com um recalcitrante miúdo
de dez anos. Calmo mas controlado. Desejei sentir-me assim.
“Eu não sou um navio!” O súbito grito da figura de proa sobressaltou
aves que estavam nas árvores e pô-las em fuga, a adejar as asas pela floresta
escurecida. “Nunca fui um navio! Nós somos dragões encurralados!
Escravizados! Mas a minha verdadeira amiga mostrou-me que posso ser
livre.”
“Verdadeira amiga”, disse Alteia em surdina, como quem duvida de
ambas as palavras.
Brashen aproximou-se mais da mulher. Cada músculo do seu corpo
estava tenso, como se fosse um cão preso a uma trela, à espera de ser solto.
Deitou um olhar por sobre o ombro à tripulação que se reunia. “Eu trato
disto. Dispersem, por favor, de volta aos vossos deveres.”
Os tripulantes foram-se embora devagar. Clef não se mexeu. Ficou onde
estava, com o rosto sério. O meu olhar cruzou-se com o de Lante e ele pôs
uma mão no ombro de Centelha, aproximando-a de si, e deu a Perseverança
um empurrão, afastando-os dali. Eu permaneci onde estava. O Modelo Ideal
segurava Âmbar sob o queixo e contra o peito. Ela olhava cegamente sobre
a água. “Eu tive de o fazer”, disse. Perguntei a mim mesmo se falaria
comigo ou com os seus antigos amigos.
“Ela pôs-me no caminho de regresso às formas que são adequadas para
mim!”, anunciou o Modelo Ideal às primeiras estrelas no céu profundo.
“Deu-me Prata.”
Percorri o convés com os olhos e finalmente vi os estilhaços de um
recipiente de vidro. O coração afundou-se-me no peito. Tê-lo-ia ela
descoberto na minha mochila e tê-lo-ia levado sem me pedir? Sem me
avisar do seu plano? Qual era o seu plano?
A voz de Alteia soou mais aguda do que era habitual quando perguntou:
“As formas que são adequadas para ti?”
“Vês o que até uma pequena quantidade de Prata fez por mim? Se me for
dada a suficiente, creio que posso livrar-me dessas tábuas de madeira que
me prenderam e trocar as velas de tela por asas! Vamos transformar-nos nos
dragões que devíamos ser!”
Alteia pareceu atordoada. Proferiu as palavras como se estivesse a tentar
encontrar o significado de palavras pronunciadas numa língua estrangeira.
“Vais transformar-te em dragões? Vais deixar de ser o Modelo Ideal?
Como?” Depois, mais incrédula: “Vais abandonar-nos?”
Ele ignorou a mágoa na voz dela, preferindo ofender-se com um
significado que as suas palavras não continham. “O que queres que eu faça?
Como poderás querer que eu fique assim? Sempre sujeito aos caprichos de
outros? Indo apenas para onde me levam, carregando fardos de um lado
para o outro, entre portos humanos? Sem sexo? Encurralado numa forma
que não é a minha?” Quase suplicante de início, a sua voz foi ganhando
fúria. Esperei que as setas das suas palavras a ferissem, mas ela pareceu ser-
lhes imune.
Alteia avançou destemidamente para a figura de proa, virando a cara para
cima para o fitar à luz cada vez mais fraca. “Modelo Ideal. Não finjas que
não consegues perceber o que eu sinto sobre isto. Sobre ti.”
Ele semicerrou os olhos de dragão ao olhar de Alteia, até ao ponto em
que o olhar fixo se assemelhou a fogo azul a fervilhar numa parede de pedra
rachada. Lentamente, os braços, ainda tão estranhamente humanos apesar
das escamas, abriram-se. Baixou Âmbar para o convés e virou-nos costas
sem uma palavra. Âmbar cambaleou um pouco e depois endireitou-se.
Tentei ler a sua pose, ver nela, naquele momento, algo do meu velho amigo
Bobo. Mas só vi Âmbar e voltei a sentir o golfo da interrogação sobre quem
era aquela mulher.
E o que ela era capaz de fazer.
O Modelo Ideal virara-nos costas a todos para olhar por sobre o rio
escurecido. A tensão da figura de proa ressoava pelo casco e ossos de
madeira-de-feiticeiro do navio. Apercebia-me crescentemente de que ele
falara a verdade. Não era um navio. Era um dragão, transformado e
encurralado por homens. E por mais que pudesse gostar daqueles que o
tripulavam, em alguma medida tinha de sentir ressentimento. Talvez até
ódio.
E nós estávamos completamente em seu poder.
No momento em que esse pensamento arrepiante me gelou os ossos,
Alteia avançou sobre Âmbar. Fez-me lembrar um gato a avaliar outro gato
para uma luta. Os passos curtos, o equilíbrio preciso, o olhar fixo. Falou
numa voz baixa e suave. “O que fizeste tu ao meu navio?”
Âmbar virou os olhos cegos para a voz de Alteia. “Fiz o que devia ser
feito por todos os navios vivos. O que tu devias fazer por Vivácia se a
oportunidade se apresentar.”
Ao ouvir o nome de Vivácia, todos os músculos no corpo de Alteia se
contraíram e ela cerrou os punhos.
Eu já vi mulheres lutar. Vi damas em belos vestidos a esbofetear-se e a
esbracejar uma contra a outra, enquanto choravam e guinchavam. E vi
peixeiras puxar por facas, tentando escamar-se e amanhar-se mutuamente
com a mesma frieza com que tratariam o peixe. Alteia não era nenhuma
dama de educação gentil entre rendas, e tendo-a visto governar a tripulação
do convés e escalar o aparelho, sentia um firme respeito pela força daqueles
braços. Mas o Bobo nunca fora um lutador. Cego, e tendo em conta aquilo a
que tão recentemente fora sujeito, não confiava que a recente cura do seu
corpo suportasse algum tipo de luta física.
De pé ligeiro, corri em frente e interpus-me entre elas.
Não era uma boa posição para se estar. A ira de Alteia contra a velha
amiga não era nada perante a fúria que a intervenção de um desconhecido
despertou nela. Atirou a dura base da mão contra o meio do meu peito.
“Fora daqui”, exigiu. Se eu não estivesse preparado para um golpe
daqueles, ter-me-ia tirado o fôlego.
“Parai”, aconselhei.
“Isto não vos diz respeito. A menos que queirais que diga!” Mas antes de
eu conseguir sequer pensar em reagir àquilo, Brashen investiu para o meio
de nós, empurrando Alteia para um lado. Peito contra peito, os nossos olhos
enfrentaram-se na escuridão.
“Vós estais no meu convés.” Um rosnido grave. “Fareis o que ela ou eu
vos dissermos para fazer.”
Abanei lentamente a cabeça. “Desta vez não”, disse em voz baixa. Atrás
de mim, Âmbar estava em silêncio.
“Quereis resolver o assunto a murro?”, perguntou Brashen. Aproximou-
se mais e eu senti o seu hálito na cara. Eu era mais alto do que ele, mas ele
era mais largo. E provavelmente estava mais em forma. Quereria eu
resolver o assunto a murro?
Queria. Abruptamente, senti-me farto de todos. Até de Âmbar. Ergui o
lábio superior para mostrar os dentes. Era altura de lutar, altura de matar.
“Sim”, garanti.
“Parai com isto, todos! Quem sente isso é o Modelo Ideal. Fitz, é o
dragão!”, gritou o Bobo atrás de mim. “É o dragão!” Deu-me uma palmada
tão forte na nuca que a minha cabeça saltou para a frente. A testa chocou
com a cara de Brashen e ouvi Alteia gritar qualquer coisa. Pegara na camisa
do seu homem e estava a arrastá-lo para longe de mim. Eu agarrei-me a ele,
sem querer soltar a minha presa. Atrás de mim, o Bobo atirou o ombro
contra as minhas costas. Alteia tropeçou e caiu para trás, arrastando
Brashen consigo. Eu quase caí em cima deles mas rolei para um lado. O
Bobo aterrou em cima de mim e falou-me ao ouvido. “É o navio, Fitz. A ira
é dele. Para de assumir o que não te pertence.”
Debati-me para me livrar dele, soltando-me das suas mãos. Esbracejei
para me levantar e consegui pôr-me em pé, pronto para voltar à refrega e
fazer as costelas de Brashen em lascas, ao pontapé. Estava a arquejar e ouvi
esse som ecoado nos pesados bafos de uma grande criatura. De uma criatura
muito grande.
A maior parte da luz fugira do dia e os pálidos círculos das lanternas do
navio não se destinavam a iluminar a figura de proa. Mesmo assim, eu
consegui ver que ele estava a perder rapidamente qualquer semelhança com
uma forma humana. O que tinha sido o meu queixo, boca e nariz iam-se
alongando num focinho de réptil. Ergui o olhar para os seus olhos azuis
reluzentes e rodopiantes. Por um momento, os nossos olhares cruzaram-se e
prenderam-se. Vi aí a mesma fúria que me atravessara. Senti a mão
enluvada do Bobo no meu braço. “Ergue as muralhas”, suplicou ele.
Mas a fúria passara como uma chuvada de verão, deixando-me vazio de
emoção na sua esteira. Agarrei o pulso do Bobo e icei Âmbar para a pôr em
pé. Ela sacudiu as saias, pondo-as em ordem.
“Para a ré”, ordenou-nos Brashen. O nariz sangrava onde a minha testa
lhe batera. O facto de aquilo me agradar era mesquinho. Mesmo assim,
obedeci à sua ordem. A sua cara à luz fraca parecia descaída e velha.
Enquanto nos dirigíamos pesadamente para o camarote deles, passámos por
Clef. Brashen falou ao cruzar-se com ele. “Passa palavra. Toda a gente fica
bem longe da figura de proa até eu dar ordens em contrário. Depois volta
para aqui e fica a vigiá-lo. Chama-me se achares que eu tenho de ir até à
proa.” Clef concordou com a cabeça e afastou-se apressadamente.
Chegámos ao camarote. Lante e os jovens estavam aglomerados à porta,
e havia uma expressão de interrogação na cara de Lante. “Estamos bem”,
disse-lhe. “Por agora leva Per e Centelha para a cabina da Dama Âmbar.
Explico mais tarde.” Afastei-o com um gesto. O seu olhar disse-me que não
queria ser mandado embora com os jovens, mas levou-os. Brashen estava à
espera ao lado da porta aberta. Segui Âmbar para o interior e ele fechou a
porta atrás de nós.
Não tínhamos dado dois passos dentro da sala quando Alteia perguntou a
Âmbar numa voz tensa e zangada: “O que fizeste?”
“Ainda não”, disse-lhe Brashen. Tirou canecas de um armário e uma
garrafa com um ar muito potente de uma prateleira. Serviu a todos uma
dose considerável. Não era um vinho elegante ou um brande suave, mas
uma bebida áspera. Rum barato. Em vez de fazer cerimónia, bebeu um
valente trago do seu, acrescentou mais, e depois bateu com a caneca na
mesa enquanto se deixava cair na cadeira. “Sentai-vos. Todos.” Era uma
ordem de capitão. Âmbar obedeceu e passado um momento eu também me
sentei.
“Porque foi que ela o fez? A verdadeira questão é essa.” Fitou Âmbar e
nos seus olhos vi ira, desespero e a profunda mágoa que só a traição de um
amigo pode trazer.
Eu não tinha nada a dizer. O ato dela confundira-me por completo.
Durante a nossa viagem, numa demanda que eu teria jurado que se
transformara no único objetivo que o Bobo tinha na vida, ela decidira
revelar que possuíamos uma substância proibida, usando-a para… para
fazer qualquer coisa ao navio. Numa altura em que íamos a caminho, ela
traíra a hospitalidade e a amizade e pusera-nos a todos em risco. Não fazia o
mínimo sentido. Eu sentia-me tão afrontado como Alteia por ser
mergulhado numa situação daquelas. E impotente para corrigir fosse o que
fosse.
Âmbar finalmente falou. “Tive de o fazer. Era a coisa certa a fazer pelo
navio. Pelo Modelo Ideal.” Respirou fundo. “Dei-lhe Prata. É o que as
pessoas de Kelsingra lhe chamam. Há lá um poço dela; os dragões bebem
desse poço. É um líquido mágico, o material que quebra as muralhas entre
humanos e dragões. Pode sarar um dragão ferido, prolongar as vidas dos
Antigos e embeber objetos em magia. Para aqueles que nasceram com um
toque de magia, como o Fitz, pode aumentar as habilidades… E eu, como o
Modelo Ideal, julgo que se lhe for dada Prata suficiente, ele poderá
completar a transformação que devia ter realizado. Pode transformar-se no
dragão cujo casulo foi roubado para criar a ‘madeira-de-feiticeiro’ que
constitui este navio.”
A informação jorrou dela — uma partilha muito incaracterística do Bobo.
Vi Brashen e Alteia lutar por compreender o que ela estava a dizer. Âmbar
pareceu ficar sem palavras. Brashen estava a franzir o sobrolho. Alteia
estendera a mão por sobre a mesa para pegar na dele. Depois, com
relutância, Âmbar voltou a falar.
“Mas eu tive outro motivo. Alguns poderão achá-lo egoísta. Eu precisava
de chegar a um acordo com o Modelo Ideal — um acordo com o qual sabia
que não concordaríeis. Eu tenho de chegar a Clerres o mais depressa
possível e o Modelo Ideal pode levar-me até lá. E em troca da possibilidade
de obter mais Prata, levar-me-á.” Baixou o olhar para a mesa e ergueu a
pesada caneca de cerâmica. “Era a minha única hipótese”, disse, bebendo
um grande trago de rum.
“Nós vamos para Vilamonte. Depois para Jamaília. Não para Clerres.
Temos carga a entregar, contratos a cumprir.” Alteia explicou tudo
cuidadosamente, mas o temor crescia-lhe nos olhos enquanto ia começando
a compreender o tamanho da mudança que estava a dominar a sua vida.
“Não. Vamos diretamente para Clerres”, disse-lhe Âmbar numa voz
suave. Soltou um suspiro entrecortado. “Eu sei que isto vai mudar as vossas
vidas. Se houvesse outra maneira, eu tê-la-ia escolhido. Talvez.
Independentemente do que isso faça a qualquer um de nós, o Modelo Ideal
merece a Prata. Todos os navios vivos merecem! Mas se eu não estivesse
tão desesperada… Esta é a única maneira que tenho de chegar a Clerres o
mais depressa possível, e é isso que tenho de fazer.”
“Eu nem sequer conheço esse porto”, disse Brashen. Ergueu uma
sobrancelha para Alteia e ela abanou a cabeça.
“O Modelo Ideal conhece. Já lá esteve. Quando era o navio de Igrot,
navegaram até longe em busca de presas. Muito para lá das Ilhas das
Especiarias. Depois de vários grupos de ilhas. Isabom. Kinectu. Sterlin. E
mais além. Clerres é conhecida pelo Modelo Ideal. Ele leva-nos até lá.”
“Nós temos contratos…”, disse Alteia numa voz débil.
Brashen não tentou disfarçar a ira que tinha na voz. “Nós ‘tínhamos’
contratos. Mas suponho que é inútil tentar fazer uma forasteira compreender
que a palavra de um Mercador é tudo o que tem. E agora essas palavras vão
ser quebradas, tanto a minha como a de Alteia. Nunca mais ninguém
confiará em nós. Ninguém voltará a fazer negócios connosco.” Respirou
fundo, com o cenho cada vez mais carregado. “E depois de o Modelo Ideal
te levar para Clerres e fazeres essa coisa urgente que tens de fazer, seja ela
qual for, e lhe dares essa tal ‘Prata’, o que acontece?”, perguntou Brashen,
implacável. “Achas mesmo que o Modelo Ideal pode… deixar de ser um
navio? Transformar-se num dragão?”
Âmbar inspirou entrecortadamente. “Ele transformar-se-ia em dois
dragões, libertos da ligação contranatura estabelecida entre um e o outro e
transformados nas formas que lhes são próprias. Sim. Com Prata suficiente,
espero que consiga. Que consigam.” Olhou para uma cara incrédula e
depois para a outra. “Amam-no. Amam-no há anos, desde a época em que
era um casco degradado, puxado para a praia. Alteia, tu brincaste dentro
dele em miúda. Brashen, tu abrigaste-te dentro dele quando mais ninguém
queria oferecer-te um teto. Conhecem-no, sabem como ele foi maltratado. O
que ele disse é verdade. Não é possível que queiram que ele permaneça
como é.”
“É verdade que o amo”, disse Alteia numa voz frágil. “Quando a minha
família arriscou tudo para o comprar, isso protegeu-o contra ser
desmantelado e deu-nos uma forma de salvar Vivácia e o meu sobrinho. Ao
longo de todos os anos desde então, eu e o Brashen protegemo-lo. Achas
que algum outro capitão teria desejado um navio como este?” Inspirou
lentamente. “Mas tu arruinaste-nos. Compreendes isso? Sem dúvida julgas-
me egoísta por pensar no nosso futuro neste momento mas, sem o nosso
navio vivo, eu e o Brashen não temos nada. Não temos casa, não temos
propriedades, não temos negócio. Nada. Dependemos do Modelo Ideal,
cuidámos dele quando ninguém mais queria confiar nele, impedimos que
fosse desfeito e vendido como curiosidade. Tu pareces julgar que tem uma
vida de infelicidade, mas foi a melhor vida que pudemos dar-lhe. Somos
parte dele e ele é parte de nós. O que vai ser de nós se se transformar num
dragão, ou em dois dragões? Que legado nos resta para transmitirmos ao
nosso filho?”
Fez uma pausa e vi-a tentar encontrar algum grau de controlo. “E se a
Prata falhar e ele nunca puder ser mais do que é agora? Isso talvez seja
ainda pior. Não te lembras de como ele estava infeliz quando o
ressuscitámos, cego e maltratado, cheio de ódio? Tens de te lembrar;
estiveste lá durante parte desse período. Julgas que todos os anos desde
então foram sempre fáceis? Mas nós reconstruímo-lo, demos-lhe ânimo, paz
e alegria. Ele transportou-nos através de tempestades, rugindo de riso com o
nosso medo! Por mares plácidos, a segurar o nosso filho nas mãos e a
mergulhá-lo na água para o fazer rir. E agora tudo isso se foi. Ele nunca
mais sentirá alegria em ser um navio. Toda a reputação que reconstruímos
para ele, todos os anos passados juntos… está tudo arruinado. Tudo
perdido.”
Alteia ruiu lentamente sobre a mesa, afundando a cara nos braços
dobrados. Minguou perante os meus olhos e eu via agora os fios grisalhos
no seu cabelo escuro e as veias e tendões nas costas das fortes mãos.
Brashen fez deslizar por sobre a mesa a mão marcada pelo tempo e pousou-
a sobre uma das dela. O silêncio prolongou-se durante algum tempo à volta
daquela mesa. Senti-me envergonhado pelo desastre que tínhamos feito cair
sobre eles. Não consegui ler as emoções por detrás da expressão hirta de
Âmbar. Voltou a ocorrer-me que, apesar da minha longa ligação ao Bobo,
nunca seria capaz de prever o que Âmbar poderia fazer ou deixar de fazer.
Brashen proferiu palavras medidas enquanto afagava o cabelo áspero da
mulher. “Alteia. Nós continuamos, querida. Com ou sem o convés do
Modelo Ideal debaixo dos pés, tu e eu continuamos.” Engoliu em seco. “É
possível que o Moss-O fique no convés de Vivácia. Ela é tanto o seu navio
familiar como o Modelo Ideal, e Sa bem sabe que o filho de Kennit mostrou
pouco interesse por uma vida no mar…”
Ouvi a sua voz desfalecer e vi a lenta compreensão a atravessar-lhe o
rosto. Se o Modelo Ideal podia voltar a transformar-se em dragão, Vivácia
também poderia. Tal como qualquer outro navio vivo. Não fora só a eles
que Âmbar destruíra. Quando dera Prata ao Modelo Ideal, ela derrubara as
dinastias dos Mercadores de Vilamonte que possuíam navios vivos. A
própria Vilamonte, esse grande centro comercial, sempre estivera
dependente dos navios vivos para transportar os tesouros dos Ermos
Chuvosos. Agora os navios vivos iam desvanecer-se na História e com eles
desapareceriam as fortunas das velhas famílias que os possuíam.
Alteia ergueu a cabeça e fitou Âmbar. “Porquê?”, perguntou numa voz
quebrada. “Porque não nos pediste primeiro, porque não nos disseste o que
ias fazer? Porque não nos deste um pouco de tempo para planear como
poderíamos gerir uma mudança tão imensa? Julgaste que negaríamos a
Modelo Ideal aquilo que ele deseja tão intensamente? Não pensaste que a
ideia lhe poderia ter sido apresentada devagar, num lugar e de uma forma
mais seguros?”
Ela falava do navio como se fosse seu filho. Um filho danificado mas
amado na mesma. Um filho que agora perderia para a sua loucura. Era
doloroso ser testemunha de uma perda tão terrível, mas Âmbar manteve-se
impassível.
“Tive de o fazer”, disse por fim. “E não só pelo Modelo Ideal.” Olhou
para mim. “Começou com o Modelo Ideal. Desculpa, Fitz. Eu queria dizer-
te o que tinha planeado. Era para isso que queria a Prata. Não queria
simplesmente dar-lha. Mas esta noite, enquanto estava a conversar com o
Modelo Ideal, ele perguntou-me se me agradava estar de regresso ao navio,
mesmo se já não pudesse ser uma marinheira como estava destinada a ser.
Disse-lhe que não achava que estivesse destinada a ser marinheira. E ele
disse que nunca fora seu destino ser um navio, que devia ter sido dragões…
E de repente, os bocadinhos do que ele estava a dizer intersetaram-se com
uma coisa no diário de sonhos de Abelha. Ela previu a sua sobrevivência.
Tenho a certeza de que Abelha está viva. E provavelmente ainda nas mãos
dos seus raptores. Eles vão levá-la para Clerres. Não podemos saber por que
caminho, mas sabemos para onde o caminho leva. E também sabemos que
ela não pode ficar nas mãos deles nem um momento mais do que não nos
for possível evitar. Não podemos viajar aos arrancos, não podemos parar
para procurar outros navios e negociar passagem, indo de um porto até ao
seguinte na esperança de chegar lá a tempo. Temos de chegar a Clerres o
mais depressa possível. E um navio vivo que conheça o caminho é a melhor
hipótese que temos de a salvarmos.”
A esperança, desfeita com demasiada frequência, transforma-se no
inimigo. Eu ouvi as palavras dela e não fizeram o meu coração saltar de
alegria. Em vez disso, senti uma fúria ardente. Como se atrevia? Como se
atrevia a dizer uma coisa daquelas à frente de desconhecidos, como se
atrevia a atormentar-me com uma fantasia sem fundamento? Depois, como
uma vaga torrencial de que seria impossível fugir, a esperança caiu sobre
mim. Agarrou-me e arrastou-me por sobre as cracas até às suas
profundezas. Esqueci todos os outros acontecimentos do dia enquanto
perguntava: “Abelha, viva? Como? Porque é que acreditas numa coisa
dessas?”
Ela virou-se para mim. A mão procurou sobre a mesa e encontrou a
minha. Agarrou-a, rodeando-a com o frio toque dos seus dedos. Não
consegui ler os seus olhos pálidos e vazios. A sua voz soou cautelosa. “Está
no seu livro de sonhos, Fitz. Oh, não está escrito com exatidão, mas existem
sonhos que ela identificou como os que mais provavelmente se realizariam.
Coisas que ela julgava acontecerem mais provavelmente do que outras
coisas. Ela falava dos acontecimentos vindouros não em palavras mas em
imagens. Eu passei uma vida inteira a aprender a ler sonhos. E os sonhos
dela ajustam-se tão perfeitamente como bocados de louça partida quando
são realinhados.”
“Um livro de sonhos?”, perguntou Alteia. “Pelos tomates e tetas de Sa! O
que é um livro de sonhos e porque foi que isso te levou a destruir-nos?”
Âmbar virou a cara para eles. “Demorará algum tempo a explicar…”
“Tempo que devias ter arranjado há dias, acho eu. Portanto começa
agora.” A ira de Alteia era clara.
“Muito bem.” Âmbar aceitou a censura com seriedade e não tentou
defender-se. Apertou-me a mão. Havia pena na sua voz quando me disse:
“Fitz, eu sei que te vais ressentir de eu te pedir isto, mas vai buscar o livro
de sonhos de Abelha, por favor, enquanto eu explico a Alteia e a Brashen o
que ele é e por que motivo cada um dos sonhos dela é tão significativo.”
Eu conhecera a corrente quente da ira e o vermelho cegante da fúria.
Agora sentia-me como se gelo se me tivesse formado no fundo da barriga e
se espalhasse a partir daí. Um frio que quase me parou o coração cobriu-me.
Fitei-a, congelado no lugar pela sua insensibilidade. Ela mantinha os olhos
fixos na minha direção. O que veria? Uma sombra? Uma forma?
“Fitz. Por favor.” Brashen não me fitou mas olhou para as mãos. “Se
puderdes ajudar-nos a compreender o que causou isto…”
As suas palavras desvaneceram-se. Sem proferir palavra, eu levantei-me,
empurrando a cadeira para trás com as coxas, e saí do camarote. Não fui
para o quarto de Âmbar, onde estava a minha mochila. Em vez disso,
caminhei sozinho pelo convés cheio de cantos de insetos até chegar à
coberta de proa.
O Modelo Ideal matutava no seu lugar. Os seus ombros curvos eram
humanos mas o pescoço era agora mais comprido e a cabeça reptiliana
estava aninhada sobre o peito. Perturbava-me como poucas coisas me
tinham perturbado na vida. Pigarreei. Ele moveu a cabeça com o pescoço
sinuoso para olhar para mim. Os olhos ainda eram azuis. Esse era o único
traço que eu conseguia reconhecer.
“Que é que tu queres?”, perguntou.
“Não sei”, admiti. Não me sentia destemido mas, apesar disso,
aproximei-me e encostei-me à amurada. Âmbar despertara em mim
esperança e com a esperança despertara a dúvida. Enquanto eu tivera a
certeza de que Abelha estava perdida para mim, desejara vingança. Mais
que vingança, desejara a minha morte. Se pudesse ir até Clerres, matar
todos os que pudesse e morrer na tentativa, não haveria problema. Tivera
tempo com fartura para planear meticulosamente essa vingança. Mas agora
queria que Abelha estivesse viva para poder salvá-la. Se não estivesse viva,
eu queria também estar morto, para que todos os meus falhanços finalmente
terminassem. Seria possível que já não desejasse a vingança? Esta noite
não, decidi. Estava demasiado cansado de tudo. Se pudesse penetrar em
Clerres, encontrar Abelha, e fugir para viver calmamente com a minha
filha, algures, isso seria o suficiente. “Achas que a minha filha está viva?”,
perguntei ao navio.
Os seus olhos azuis giraram, como se lanternas brilhassem através de um
vidro azul rodopiante. “Não sei. Mas isso não importa para o acordo a que
chegámos, eu e Âmbar. Eu levo-vos para Clerres o mais depressa que puder.
Conheço o caminho. Estive lá na época em que fui escravizado por Igrot. Se
a tua filha estiver viva, vais salvá-la e, mesmo se não estiver, vais destruir
aquele ninho de fealdade. Depois voltamos para cá e navegamos rio acima,
e Âmbar arranja-me Prata. Prata suficiente para eu me transformar nos
dragões que devia ser.”
Quis perguntar-lhe o que ele faria se morrêssemos na tentativa. Tinha a
certeza de que voltaria na mesma para Kelsingra e exigiria Prata. Portanto
por que motivo não o fazia já?
Porque a tua vingança também é vingança de dragão. Fez uma pausa.
Aguardei, mas ele não me forneceu mais do que isso. Como dragões, não te
posso levar até lá. Só como navio te posso transportar até tão longe.
Portanto vamos todos, juntos, obter a vingança que nos é devida. E depois
ficaremos livres, para nos transformarmos naquilo que sempre estivemos
destinados a ser.
Lentamente, tomei consciência de que os lábios de lagarto do Modelo
Ideal não estavam a dar forma àquelas palavras. Eu ouvia-o e compreendia
o sentido das suas palavras. Ele estava a responder tanto aos meus
pensamentos como às minhas palavras. Era como o Talento e era como a
Manha, mas não era nem uma coisa nem a outra. Ergui lentamente as mãos
da amurada.
Eu agora conheço-te. Não tens forma de me evitares se eu quiser falar
contigo. Mas neste momento só te vou dizer o seguinte: não contraries a
vontade dela nisto. Ou a minha. Vamos a Clerres, para pôr fim àqueles que
a atormentaram e raptaram a filha dela. E depois regressamos a Kelsingra
para eu me poder transformar em dragões. E agora vai-te embora. Vai
buscar o que ela te mandou buscar. Tranquiliza Brashen e Alteia o mais
que puderes.
Esta última frase foi dita como se ele me estivesse a pedir para me
assegurar de que os seus gatos eram alimentados enquanto estivesse longe.
Como podia sentir tão pouco por eles?
Preferias que eu odiasse aqueles que servi como escravo?
Ergui as muralhas e cerrei-as bem. Seria ele realmente capaz de alcançar
a minha mente sempre que quisesse? Que tipo de vingança imaginaria ele
que nós podíamos obter? Se encontrássemos Abelha viva e quiséssemos
levá-la e fugir imediatamente, iria opor-se-nos? Afastei aquelas questões.
Era possível que por agora eu só precisasse de saber que ele nos ia levar a
Clerres.
Dirigi-me à pequena cabina de Âmbar. Estava escura, mas recusei-me a
regressar para ir buscar uma lanterna. A minha mochila mantinha-se enfiada
num canto sob o beliche. Encontrei-a pelo tato e puxei-a de entre as trouxas
de roupa de Âmbar e Centelha, que de alguma forma se tinham expandido
até preencher cada espaço disponível. Escavei em busca do diário de sonhos
e, quando o fiz, os meus dedos roçaram no tecido em que enrolara a Prata
que me fora dada por Rapskal. Ela ter vasculhado a minha mochila para a
encontrar era uma pequena traição, mas estava a ficar habituado às suas
pequenas traições. Contudo, ao afastar o tecido para retirar o livro, zangado,
tateei os pesados tubos de vidro que o general me tinha dado. Puxei
lentamente a trouxa, abri-a e ergui os tubos. A primeira luz das estrelas
começara a penetrar pela minúscula janela, e a substância dentro do vidro
respondia-lhe com uma luminescência fantasmagórica. A Prata que se
encontrava lá dentro continuava ainda a fazer a sua lenta dança. Ambos os
tubos estavam cheios até à borda, rolhados e selados como quando Rapskal
mos pusera nas mãos. Magia líquida. O Talento em forma pura,
independente de sangue humano ou de dragão. Voltei a inclinar os tubos e
observei o lento rodopiar dentro do vidro. Perguntei a mim mesmo quanto
teria Âmbar dado a Modelo Ideal. Seria aquilo o suficiente para cumprir a
sua transformação? Se ele se tornasse recalcitrante ou perigoso, poderia ser
aquele o suborno que eu ofereceria? Material precioso. Material perigoso.
Voltei a enrolar a trouxa e enfiei-a de novo nas profundezas da mochila.
Enganara-me relativamente a Âmbar. Ela arranjara forma de obter Prata e
escondera-a de mim. Tal como eu escondera dela a que tinha. Pensar que eu
talvez fosse tão furtivo com ela como ela era comigo só me irritou. Desejei
que ela desaparecesse e…
E que o Bobo regressasse? A peculiaridade do meu pensamento
mergulhou-me de súbito num turbilhão. Não havia maneira de evitar
reconhecer que as minhas interações com Âmbar eram muito diferentes do
que eu pensava e sentia sobre o Bobo. Apeteceu-me sacudir a cabeça como
um cão a livrar-se de água mas sabia que seria inútil. Meti firmemente o
livro de Abelha debaixo do braço e voltei a enfiar a minha mochila nos
recônditos do seu lugar.
“Levastes bastante tempo”, observou Brashen quando eu voltei a entrar
no camarote. Reparei que Clef se tinha juntado a nós. Não estava sentado à
mesa, mas enrolado sobre si próprio em cima de um banco baixo, ao canto,
com uma caneca de rum nas mãos. O olhar que me deitou não foi amigável.
Eu também não me sentia particularmente amistoso. Não havia dúvida de
que ele me tinha visto a conversar com o Modelo Ideal e viera contar a
Brashen.
“Fiz uma paragem para falar com o Modelo Ideal”, admiti.
Os músculos do maxilar de Brashen projetaram-se e Alteia endireitou-se
como se quisesse saltar sobre mim. Ergui uma mão numa advertência. “Ele
confirmou o acordo feito com Âmbar. E sugeriu que ele e outros dragões
podem ter motivos próprios para nos desejar sucesso na nossa demanda.”
Olhei para Âmbar. “Gostava de saber que motivos são esses. E gostava de
saber como foi que obtiveste Prata quando Reyn e Malta recusaram
especificamente o pedido que fizeste para que te fornecessem alguma.”
Alteia fez um pequeno som de choque. Brashen ficou muito imóvel.
“Não a roubei”, disse ela em voz baixa. Respirou fundo. “Foi-me dada,
de forma muito privada, por alguém que sabia que podia haver grandes
problemas se outras pessoas soubessem disso. Prefiro não dizer
precisamente quem foi.” E cerrou os lábios com afetação.
“Como se nos importasse”, resmungou Alteia com sarcasmo. “Mostra-
nos a tua ‘prova’ de que a tua filha está viva. Que não destruíste as nossas
vidas em troca de nada.” Era óbvio que qualquer simpatia que ela tivesse
sentido por nós fora queimada. Dificilmente poderia censurá-la, e no
entanto senti uma crescente fúria por ouvi-la falar assim de Abelha.
Pousei cuidadosamente o livro na mesa e sentei-me, cercando-o com os
braços. Ninguém além de mim ia tocar-lhe. Forcei a voz a adotar um tom
calmo e dirigi-me a Âmbar. “O que queres tu que eu leia neste livro, ao
certo?”
Julgo que ela sabia quão perto eu estava de uma fúria irracional.
Encontrava-me à sua mercê e à mercê daqueles desconhecidos e do seu
navio pouco fiável, e eles estavam a exigir que eu lhes “provasse” que a
minha filha era suficientemente especial para merecer ser salva de pessoas
que se deliciavam com a tortura. Se houvesse alguma espécie de “margem”
naquele rio, eu teria exigido imediatamente ser lá deixado e ter-me-ia
afastado de todos eles.
“Lê o sonho em que a pessoa com duas cabeças te dá um frasco de tinta a
beber, por favor. E tu sacodes bocados de madeira e transformas-te em dois
dragões. Acho que esse será o mais claro para todos os presentes.”
Fiquei muito imóvel por um momento. Eu acusara várias vezes o Bobo
de “interpretar” retrospetivamente as suas previsões oníricas, adaptando-as
para corresponderem àquilo que de facto acontecera. Mas isto, pelo menos,
parecia-me completamente claro. Folheei o diário de sonhos de Abelha até
o encontrar. Gastei um momento a olhar para a ilustração que ela criara.
Uma mão enluvada erguia um recipiente de vidro. Ao fundo, eu tentava
alcançá-lo com mãos ávidas. Havia reflexos de azul nos olhos que ela me
dera. Tingira de amarelo e cinzento a “tinta” que estava dentro do
recipiente. Não era Prata, mas compreendi que pretendia ser. Li devagar em
voz alta as palavras dela e depois virei o livro e mostrei a ilustração a Alteia
e Brashen. Alteia franziu-lhe o sobrolho e Brashen recostou-se e cruzou os
braços sobre o peito.
“Como sabemos que não escreveram isso ontem à noite?”, perguntou
Brashen.
A pergunta era estúpida, e ele sabia-o. Mas eu respondi. “Um de nós é
cego e portanto incapaz de escrever ou desenhar. E se suspeitais de mim, eu
não tenho pincéis nem tintas de qualidade para fazer isto, nem talento para
ilustração.” Folheei suavemente as páginas do livro de Abelha. “E há
muitas páginas de sonhos e ilustrações que se seguem a esta.”
Ele sabia tudo aquilo. Simplesmente não queria admitir que Abelha
previra que a Dama Âmbar daria um frasco de Prata a um navio vivo com a
minha cara para que ele se pudesse transformar não só em um, mas em dois
dragões.
“Mas…”, começou ele, e Alteia interrompeu em voz baixa. “Deixa,
Brashen. Ambos sabemos que sempre houve um peculiar bafo de magia em
volta de Âmbar. E temo bem que isto seja mais um pouco disso.”
“É”, confirmou Âmbar. A sua cara estava grave, a voz solene.
Não queria fazer a pergunta à frente de desconhecidos, mas o desejo de
saber estava a devorar-me como um ferimento infetado. “Porque é que tu
pensas que Abelha está viva?”
Os ombros dela ergueram-se e caíram com uma profunda inspiração logo
suspirada. “Temo que isto seja menos claro.”
“Estou à espera.”
“Primeiro há o sonho de ser uma noz. E um segundo, no qual chama a si
mesma bolota. Lembras-te desse? É pequena e apertada e é atirada para
uma corrente. Julgo que está a prever a sua passagem por um pilar de
Talento.”
“Passagem por um quê?”, perguntou Brashen.
“Agora estou a falar com o Fitz. Se quiseres saber, eu explico mais
tarde.”
Ele cedeu, mas não com elegância. Recostou-se na cadeira, com os
braços cruzados sobre o peito e a expressão fechada.
“Esse é um significado possível”, concedi, com tão pouca elegância
como Trell.
“Depois há o sonho sobre as velas. Fitz, eu sei que tu trazes contigo
algumas das velas de Moli. Os cheiros são claros para uma cega. Até
percebo quando as tiras da mochila e as manuseias. Quantas tens?”
“Só três. Comecei a viagem com quatro. Uma perdeu-se quando o urso
nos atacou. Depois de tu e Centelha terem fugido pelo pilar, reunimos as
provisões que conseguimos. Mas foi muito o que foi espalhado e perdido ou
estragado. Só consegui encontrar três…”
“Lembras-te do sonho dela sobre as velas? Encontra-o no livro, por
favor.”
Encontrei. Li-o lentamente em voz alta. Um sorriso gradual espalhou-se
pela cara dele. O Lobo e o Palhaço. Era tão claro que até eu percebi que se
referia a mim e ao Bobo.
“Três velas, Fitz. ‘Pois ignoram que seu filho ‘inda está vivo.’ O sonho
dela mostrou-lhe um lugar onde as suas possibilidades se dividiam. Quando
perdeste uma vela, isso criou para ela uma mudança. Uma mudança que
significou que ela sobrevivia em vez de morrer.”
Fiquei muito imóvel. Era demasiado ridículo para crer. Uma vaga de algo
— não esperança, não crença, mas alguma coisa para a qual eu não tinha
nome — percorreu-me. Senti-me como se o meu coração tivesse
recomeçado a bater, como se o ar voltasse a encher-me os pulmões após
uma longa ausência. Desejava tão desesperadamente acreditar que Abelha
podia ainda estar viva.
A crença rebentou qualquer muralha de racionalidade ou cautela que eu
possuísse. “Três velas”, disse numa voz débil. Apeteceu-me chorar e rir e
gritar.
Três velas significavam que a minha filha ainda vivia.
Capítulo 15

Mercadora Akriel

A marioneta dança. Gira, saracoteia-se e saltita. O sorriso vermelho


pintado parece feliz, mas a marioneta está a gritar, pois está a atuar
sobre brasas vermelhas. Os seus pés de madeira começam a deitar
fumo. Um homem aproxima-se com um machado brilhante. Brande-
o. Eu penso que ele vai cortar os pés em chamas da marioneta, mas
em vez disso o machado corta todos os cordéis. Mas o homem com o
machado cai tão rapidamente como a marioneta salta para longe,
livre.
Diário de Sonhos de Abelha Visionário

“P
orque julgas tu que eu iria ajudar uma maltrapilha como tu?”
A mulher bebeu um gole de chá e fitou-me. “És precisamente
a espécie de sarilhos que passei a maior parte da vida a evitar.”
Não estava a sorrir. Não lhe podia dizer que a tinha escolhido por ser
mulher e eu esperar que tivesse um coração mais suave. Achei que isso
mais depressa a ofenderia do que a convenceria. O meu estômago estava tão
vazio que me apetecia vomitar bílis. Tentei não tremer, mas estava no limite
dos meus recursos. Tudo o que eu ainda tinha era a vontade. Ao meu corpo
já não restava qualquer coragem física. Tentei manter a voz regular. “No
início da viagem vi-vos vender o velho que sabia ler e escrever. Ele
escreveu o seu próprio certificado de venda. Vi que obtivestes um bom
preço por ele, apesar de ser velho e provavelmente não lhe restarem muitos
anos.”
Ela acenava com a cabeça enquanto franzia levemente o sobrolho.
Endireitei-me o melhor que pude. “Eu posso ser pequena e sou nova, mas
sou forte e saudável. E sei ler e escrever. Também posso copiar ilustrações
ou desenhar o que quiserdes que seja desenhado. E ainda sei trabalhar com
números.” A minha habilidade com estes últimos não era tão forte como eu
desejaria que fosse, mas achei que aquilo era suficientemente próximo da
verdade. Se eu estava a vender-me a uma comerciante de escravos, era
melhor que me apresentasse como um bom negócio.
Ela apoiou o braço na mesa da cozinha. Fora dificílimo encontrá-la
sozinha. Observara-a durante um dia inteiro, deslocando-me de esconderijo
em esconderijo para a seguir, e vira como ela se demorava à mesa depois de
os outros mercadores terem acabado de se empanturrar. Suspeitei que
achava preferível comer tarde e sozinha a aturar a mastigação e os
empurrões dos demais. Eu entrara na cozinha depois de a multidão do
pequeno-almoço ter saído. Ela tinha a refeição por terminar à sua frente.
Lutei por não fitar a comida, mas já a tinha memorizado. A côdea estaladiça
do pão com vestígios de manteiga e um resto de gordura no prato que eu
ansiava por apanhar com o pão ou até com o dedo. Um pouco de papas na
tigela. Engoli em seco.
“E a quem estaria a comprar-te?”
“A ninguém. Estou a oferecer-me a mim mesma.”
Ela fitou-me em silêncio durante um momento. “Estás a vender-te a ti
própria? A sério? Onde estão os teus pais? Ou o teu amo?”
Eu preparara a mentira com o máximo de cuidado possível. Tivera três
dias de fome, frio e sede para a compor. Três dias a andar furtivamente pelo
navio, tentando manter-me fora de vista de toda a gente e ao mesmo tempo
encontrar comida, água e um lugar para me aliviar. O navio era grande, mas
todos os sítios que eu encontrara para me esconder eram frios e húmidos.
Passando a maior parte das horas do dia bem enrolada sobre mim mesma e
a tremer, tivera tempo com fartura para planear a minha estratégia. Era
fraca, a estratégia. Vender-me como escrava a alguém que desse valor às
pequenas habilidades que eu tinha. Sair do navio e afastar-me de Dwalia. A
seu tempo, encontrar forma de enviar uma mensagem ao meu pai ou à
minha irmã. Tentara convencer-me de que era um bom plano. E depois
perguntara a mim própria por que motivo não planearia também construir
um castelo ou talvez conquistar Calcede. Ambos esses objetivos pareciam
igualmente inatingíveis. Proferi a mentira cuidadosamente ensaiada.
“A minha mãe levou-me para Calcede, para casa do seu novo marido. Ele
e os filhos mais velhos trataram-me horrivelmente. Portanto, enquanto
passeávamos pelo mercado, um dos rapazes começou a provocar-me e
depois a perseguir-me. Eu escondi-me a bordo deste navio. E aqui estou
agora, a ser levada para longe da minha antiga casa e da minha mãe. Tentei
arranjar-me sozinha mas saí-me mal.”
Ela bebeu um gole lento do seu chá. Eu conseguia cheirá-lo tão
claramente. Tinha mel, provavelmente mel de maleza-dos-fogos. Estava
quente, cheio de vapores e delicioso. Por que motivo eu nunca desfrutara
daquela chávena matinal de chá quente como ela merecia? Esse pensamento
trouxe-me uma inundação de memórias. A cozinheira Nozmoscada na
cozinha, o movimento a toda a minha volta enquanto me sentava à mesa ou
em cima da mesa com alimentos simples para comer. Bacon. Ah, o bacon.
Pão torrado com manteiga a derreter. Lágrimas picaram-me os olhos.
Aquilo não serviria. Engoli em seco e endireitei-me mais.
“Come”, disse ela de repente e pôs-me o prato à frente.
Fitei o prato, incapaz de respirar. Seria um truque? Mas eu aprendera em
Calcede a ingerir comida sempre que tivesse oportunidade, mesmo caída de
borco na rua. Tentei recordar as maneiras. Ela tinha de me achar um bem
valioso a adquirir, não uma fedelha sem maneiras. Sentei-me e peguei
cuidadosamente na côdea do pão. Dei uma pequena dentada e mastiguei
cuidadosamente. Ela observou-me. “Tens autocontrolo”, observou. “E a
história que contaste não é má, apesar de eu duvidar de cada uma das tuas
palavras. Não te vi no navio antes do dia de hoje. E cheiras como quem
esteve escondida. Bom. Se eu te aceitar como minha propriedade, haverá
alguém a desencadear uma tempestade e a chamar-me ladra? Ou raptora?”
“Não, senhora.” Aquela era a minha mentira mais difícil. Não fazia ideia
do que Dwalia poderia fazer ou dizer. Eu mordera-a fortemente e esperava
que ficasse enfiada na cabina a tratar desse ferimento. Kerf só exigiria o
meu regresso se Vindeliar o manobrasse para o fazer. Não achava que isso
fosse provável, mas a minha melhor defesa seria conservar-me o mais
possível longe da vista deles. Acabei o pão com mais duas dentadas lentas.
Ansiei por lamber o prato e recolher as papas com o dedo. Em vez disso,
pousei cuidadosamente as mãos no regaço e fiquei em silêncio.
Ela inclinou para si a panela de papas que estava no centro da mesa e,
com uma grande colher de pau, raspou os bocados endurecidos presos aos
lados e ao fundo e despejou-os no seu prato. Estavam salpicados de
castanho onde tinham pegado. Ela empurrou a tigela na minha direção e
entregou-me a colher que usara.
“Oh, obrigada, minha senhora!” Mal conseguia respirar, mas forcei-me a
não atafulhar a boca e a manter-me sentada com as costas direitas.
“Eu não sou a ‘tua senhora’. E também não sou calcedina de nascimento,
embora tenha descoberto que é aí que faço melhores negócios. Cresci perto
de Vilamonte mas não numa família de Mercadores, pelo que foi difícil para
mim estabelecer-me lá. E quando eles eliminaram o comércio de escravos,
os meus negócios tornaram-se mais difíceis por lá. Não sou a comerciante
de escravos que tu me julgas. Encontro bens valiosos e raros. Compro-os e
vendo-os com lucro. Nem sempre aceito o lucro rápido; às vezes prefiro
esperar pelo lucro grande. Às vezes o artigo valioso é um escravo com
talentos subestimados. O escriba que me viste a expor era um desses. Visto
num mercado como idoso e pouco firme, ele é visto noutro como experiente
e erudito. Levanta-te.”
Obedeci imediatamente. Ela passou os olhos por mim como se eu fosse
uma vaca à venda. “Suja. Um bocado maltratada. Mas estás direita, tens
algumas maneiras e modos francos. No mercado calcedino haviam de te
arrancar isso à pancada. Eu levo-te para onde essa é uma característica
apreciada numa criada. Como duvido que tenhas adquirido passagem, vais
acabar esta viagem nos meus aposentos. Se fizeres alguma espécie de
desarrumação por lá, entrego-te ao capitão. Vou assegurar-me de que sejas
alimentada. Quando chegarmos a Baía de Rendeiros, vendo-te como criada
de crianças a uma família que conheço por lá. Isso quer dizer que vais
cuidar do filho pequeno deles. Vais dar-lhe banho, vesti-lo, ajudá-lo com as
refeições, obedecer publicamente às ordens dele e ensinar-lhe em privado as
mesmas maneiras que me estás a mostrar agora. Eles são uma família
próspera e provavelmente vão tratar-te bem.”
“Sim, senhora. Obrigada, senhora. Espero que recebais um bom preço
por mim.”
“Vou receber, se te limpar um bocado. E tu vais provar-me o que disseste
sobre letras e desenhos.”
“Sim, minha senhora. Mal posso esperar por fazer isso.” De súbito a
perspetiva de ser escrava pessoal de um rapazinho parecia tão boa como ser
a princesa perdida de Torre do Cervo. Eles podiam tratar-me bem. Eu seria
alimentada e dormiria numa casa. Seria muito boa para o filho deles. Estaria
em segurança, mesmo se já não fosse livre.
“Eu não sou a tua senhora. Conquistei a posição que agora tenho; não
nasci com ela. Sou a Mercadora Akriel. E o teu nome é…?”
“Abelh… Ahm!” Devia dizer-lhe o meu verdadeiro nome?
“Abélia? Muito bem. Acaba essas papas enquanto eu bebo o chá.”
Obedeci, não rapidamente mas com as minhas melhores maneiras. Senti
que seria capaz de comer mais três tigelas mas decidi não mostrar nenhum
sinal disso quando pousei cuidadosa e delicadamente a colher ao lado da
tigela. Olhei para a mesa suja e peganhenta em volta e tentei pensar no que
os criados de Floresta Mirrada teriam feito. “Quereis que eu levante a mesa
e a limpe, Mercadora Akriel?”
Ela abanou a cabeça e dirigiu-me um sorriso perplexo. “Não. Os
ajudantes de cozinha do navio podem fazer isso. Segue-me.”
Levantou-se e eu segui-a. As suas pernas estavam enfiadas numas
elegantes calças de lã azul e ela usava um casaco curto um tom mais claro
do que as calças. Toda ela estava imaculadamente arranjada, das reluzentes
botas negras ao cabelo castanho entrançado e enrolado. O seu sucesso
estava em evidência nos brincos pendentes, nos anéis e no pente cravejado
de joias que trazia no cabelo. Caminhava com absoluta confiança e quando
desceu ao porão e depois passou pelas baloiçantes camas suspensas e pela
névoa de fumo no dormitório, fez-me lembrar uma insolente gata de celeiro
a passar pelo meio de uma matilha de cães. Não evitava olhar nos olhos os
mercadores menos prósperos que estavam ali alojados; e também não
parecia ouvir ao passar nenhum dos comentários resmungados. A sua
cabina ficava mais à vante e subimos um pequeno conjunto de degraus para
lá chegarmos. Ela tirou uma chave de uma bolsa pesada e abriu a porta
trancada. “Para dentro”, disse-me e eu obedeci alegremente.
Fiquei espantada. Aquela divisão tinha uma minúscula janela redonda, e
era tão grande como a que eu tinha partilhado com os meus captores. O baú
estava aberto sobre o beliche inferior e a sua roupa organizada com tanta
precisão como as ferramentas preparadas para uma tarefa. Tendo visto o
guarda-roupa de Esquiva, aquilo era para mim espantoso. Mas também era
claro que ela fizera planos para aquela viagem. No beliche de cima havia
uma manta azul e branca com borlas, e no chão um tapete a combinar. A
pequena lâmpada a óleo que pendulava da viga tinha uma tonalidade rosada
na cobertura. Várias saquinhas aromáticas de cedro e pinho estavam
penduradas por todo o quarto, embora não conseguissem banir por
completo o cheiro a piche do navio. Havia uma mesinha por baixo da vigia,
com um rebordo no topo. Um jarro de estanho e uma bacia para lavagens
estavam aí encurralados. Um pano húmido encontrava-se bem dobrado ao
seu lado.
“Não toques em nada”, avisou-me enquanto fechava a porta. Ficou um
momento parada, examinando-me. Depois apontou para a bacia. “Despe-te.
Lava-te. Sabes costurar?”
“Um bocadinho”, admiti. Nunca fora a minha tarefa preferida, mas a
minha mãe insistira que eu devia saber pelo menos fazer bainhas e pontos
básicos de bordado.
“Depois de estares limpa, põe a roupa suja no chão junto da porta.”
Dirigiu-se ao baú e os dedos viajaram pelas peças de roupa dobrada e
empilhada abaixo. Tirou de lá uma camisa azul simples. De um
compartimento retirou uma tesoura, fio e uma agulha. “Encurta as mangas
para que isto te sirva. Corta uma faixa da fralda e faz a bainha. Mesmo
assim deve ficar comprida o suficiente para te tapar decentemente. Usa a
faixa de baixo para fazer um cinto. Depois senta-te ali no canto até eu
voltar.”
E com aquilo virou-se e saiu porta fora. Ouvi-a trancá-la atrás de si.
Esperei um bocadinho e depois testei a fechadura. Sim. Estava trancada ali.
A vaga de alívio que senti espantou-me. Era uma escrava, estava trancada
na cabina da minha ama, e sentia-me feliz? Sim, pela primeira vez desde
que fora raptada. Contudo, enquanto me despia, pousando cuidadosamente
a vela quebrada a um lado, dei por mim a chorar. Quando transformei a
água para lavagens usada da minha ama numa sopa acinzentada, estava a
soluçar. Dei um abraço de despedida ao meu justilho sujo, rasgado e
malcheiroso. Era a minha última ligação a Floresta Mirrada. Não. Não era
bem. Ainda tinha a vela da minha mãe.
De súbito nada mais desejei do que enrolar-me e adormecer, mesmo nua.
Mas obriguei-me a fazer o que ela me dissera. A camisa era uma boa e
pesada camisa de lã de malha apertada e depois lavada e encolhida. Era
azul-escura, e perguntei a mim mesma se aquela seria a cor preferida dela.
Cosi bem a bainha, duas vezes para me assegurar de que não descoseria, e
fiz o mesmo com a faixa que cortara, virando as orlas para deixar tudo bem
arranjado. Fiz uma nova costura nas mangas e fiquei vestida com algo
quente, suave e limpo pela primeira vez em vários meses. Com o tecido que
cortara, cosi apressadamente um bolso por dentro da parte da frente da
camisa. Com pena, dobrei a vela quebrada e escondi-a aí. Dobrei o pano
que usara para as lavagens. Depois, como a minha dona me dissera, sentei-
me ao canto e depressa adormeci profundamente.
Acordei quando ela voltou. A vigia estava negra. Levantei-me assim que
ela entrou. Ela observou-me e depois olhou para a sala em volta. “Está
suficientemente bem feita. Devias ter guardado o material de costura.
Devias ter tido a inteligência de fazer isso sem que to ordenasse.”
“Sim, Mercadora Akriel.” Partira do princípio de que ela só quereria que
eu obedecesse às suas ordens exatas, e hesitara em abrir qualquer parte do
seu baú de viagem. Agora sabia. “Quereis também que eu deite fora a água
da lavagem?”
“Põe-na lá fora à porta com o jarro vazio. Esse dever pertence a outro. Eu
digo-te quais são os teus.” Sentou-se na beira do beliche inferior e ergueu
um pé na minha direção. “Primeiro descalça-me as botas e massaja-me os
pés.”
Eu era demasiado bem-nascida para aquela espécie de trabalho. Não era?
Quereria sobreviver e fugir a Dwalia? Queria. Pensei no meu pai. Se não
fosse o destino, ele teria sido herdeiro do trono dos Seis Ducados. Mas fora
moço de estrebaria e depois assassino. Eu podia ter sido uma princesa. Mas
agora era uma escrava. Assim fosse.
Agachei-me e descalcei-lhe as botas, pousei-as lado a lado e depois
esfreguei-lhe os pés. Nunca antes fizera uma tarefa como aquela, mas os
seus pequenos gemidos guiaram-me. Passado algum tempo, ela disse: “Já
chega. Põe a água suja lá fora e guarda-me as botas. Há sapatos fofos no
baú. Encontra-os.”
E assim começou o padrão dos dias que passámos juntas. Eu assegurava-
me de que nunca lhe dava motivo para me dizer duas vezes para fazer a
mesma coisa. Ela era uma ama muito razoável. Gostava de sossego. Eu
evitei tagarelices mas não temia fazer-lhe as perguntas simples que se
relacionavam com os meus deveres.
Fiquei dentro da cabina. Quando chegámos ao porto, ela deixou-me lá,
trancada, mas assegurou-se de que eu tinha comida e água, e sempre pudera
usar o seu penico. A minha vigia estava voltada para o lado oposto à cidade,
portanto nada vi dela e ninguém me via a despejar o penico pela portinhola.
Ficámos no porto durante quase dez dias, pois a tempestade fizera mais
estragos do que eu percebera. Sempre que ficava inquieta e me apetecia sair
do nosso pequeno alojamento, imaginava a consternação de Dwalia com a
forma como eu desaparecera. Desejei várias coisas para ela: que a minha
dentada infetasse e a matasse, que desembarcasse do navio e nunca
regressasse, que julgasse que eu caíra borda fora e me afogara e me achasse
morta. Não tinha maneira de saber se algum dos meus desejos se teria
realizado, portanto permaneci na cabina e fiz planos para o futuro.
Decidi ser gentil com o meu pequeno amo, independentemente de quão
mimado ele pudesse ser. Não daria aos meus novos donos qualquer motivo
para me tratarem mal ou desconfiarem de mim. A seu tempo poderia
partilhar com eles a minha verdadeira história, e informá-los de que o meu
pai e a minha irmã ficariam felizes por me comprarem de volta ou até
pagarem um resgate por mim. E assim, um dia, poderia regressar para casa,
para junto dos meus. Para Floresta Mirrada? Perguntei a mim mesma se
desejaria voltar para lá e encarar todas as pessoas que tinham sido feridas
por minha causa. Tanta gente morta.
Quando esses pensamentos me atormentavam, era frequente tirar para
fora a vela da minha mãe, levá-la à cara e inspirar a sua fragrância, dizendo
a mim mesma que o meu pai tinha de alguma forma estado na clareira na
floresta. Não conseguia compreender como poderia ele lá ter chegado antes
de nós, ou para onde teria ido a partir daí. Mas agarrei-me à ideia de que
aquela vela quebrada significava que ele viera à minha procura. Que sentia
a minha falta e faria o que pudesse para me levar em segurança para casa.
Os dias foram passando, fundindo-se uns nos outros. Por vezes a
Mercadora Akriel dizia-me coisas. Alguns dos tecidos que transportava nos
baús de mercadorias tinham-se estragado durante a tempestade, quando a
água subira no fundo do porão e inundara parcialmente a coberta inferior.
Pensava que o dono do navio devia assumir parte das suas perdas. Ele não
concordava. Ela pensava que essa era uma má decisão da parte dele, pois
aquela era a sexta vez que viajava com ele mas se o homem não a
reembolsasse, seria a última.
Casara uma vez mas o marido fora-lhe infiel, portanto ela pegara
simplesmente na sua parte da riqueza que tinham acumulado com os
negócios e afastara-se. Comprara bens e arranjara passagem no dia em que
descobrira a traição e nunca olhara para trás. Tivera sucesso; ele não, pelo
menos segundo ouvira dizer. Não lhe interessava o que teria sido feito dele.
Sempre fora ela a mais esperta nos negócios que haviam feito juntos. Era
difícil ser mulher e mercadora quando ia aos mercados de Calcede; uma vez
tivera de apunhalar um homem para lhe ensinar a ter maneiras. Não o
matara, mas ele sangrara bastante e, quando pedira desculpa, ela mandara
um estafeta buscar um curandeiro. Nunca soubera o que fora feito dele.
Outro homem em que não tinha nenhum interesse.
Quando regressou ao navio antes de zarparmos para o porto seguinte,
trouxe-me dois pares de calças largas, uns sapatos de sola plana e uma
camisa azul de tecido suave e do meu tamanho. Nessa noite deu-me um
bocado de sabão e disse-me para lavar o cabelo e depois entregou-me o seu
pente para que o desemaranhasse. Fiquei surpreendida com o que o meu
cabelo crescera. “A calcedina em ti vê-se em todos esses caracóis
amarelos”, disse-me, e pretendia elogiar-me. Eu consegui responder com
um aceno de cabeça e um sorriso.
“Estás cansada de estar confinada e sem fazer nada?”, perguntou-me.
Fraseei cuidadosamente a resposta. “O meu cansaço é muito menor do
que a gratidão por ter refeições e abrigo”, disse-lhe.
Ela dirigiu-me um sorriso muito pequeno. “Bom. Vamos testar a tua
história sobre o que sabes fazer. Enquanto estive em terra, obtive um livro
para leres alto. E também papel, penas e tintas. Vais demonstrar-me que és
capaz de manipular números e executar ilustrações.”
E eu fiz essas coisas, para satisfação dela e, com as ilustrações,
superando-a. Ela disse-me primeiro para desenhar o sapato e depois copiar
exatamente uma flor que estava bordada num lenço que comprara. Aprovou
com a cabeça o meu desenho e matutou: “Se calhar obtinha melhor preço
por ti como escriba do que como criada de crianças.”
E eu a isso respondi baixando a cabeça.
E assim continuámos a navegar e, durante algum tempo, o meu mundo
tornou-se realmente muito pequeno. Houve paragens em outros dois portos.
Eu tinha a certeza de que Dwalia e os outros deviam por aquela altura ter
desistido de mim e abandonado o navio. Desejei fervorosamente que, após a
nossa segunda paragem, a Mercadora Akriel começasse a dar-me liberdade
para andar pelo navio. Mas ela não o fez e eu não a pedi. Em vez disso, ela
mostrou-me o livro onde fazia as contas aos seus negócios. Um rolo de
tecido comprado por este preço e vendido por aquele. Havia contas
separadas sobre quanto cada viagem lhe custava. Mostrou-me a folha
relacionada comigo. Pôs-me a somar o custo da minha roupa e do papel, do
livro, das tintas e até da pena usada para provar que o que afirmara era útil.
Esse era o seu investimento, explicou. Eu teria de ser vendida pelo menos
pelo dobro desse montante para ela ficar satisfeita com o negócio. Olhei
para o número. E ali estava. Era aquilo o que eu valia naquela nova parte da
minha vida. Respirei fundo e decidi-me a valer mais.
Chegou um dia em que ela me disse para me atarefar a embalar as suas
coisas pessoais no baú, pois esperava-se que aportássemos antes do
anoitecer e desembarcaríamos ali. O porto chamava-se Siuelbe, pois ficava
junto do Rio Siuel, em Xisto. Não lhe fiz perguntas. Sabia que estávamos
bem longe de qualquer mapa que eu tivesse visto. Ela estava contente e a
trautear baixinho enquanto eu punha coisas no seu baú, cada uma no local a
ela destinado. Deu-me um saco de levar ao ombro para as minhas coisas.
Enquanto arranjava cuidadosamente o cabelo e escolhia os brincos, disse-
me que poupara uma quantidade razoável de dinheiro porque o nosso navio
evitara os navios tarifários das Ilhas dos Piratas. Aquilo levou-me a concluir
que estávamos para lá das Ilhas dos Piratas, mas não soube mais do que
isso.
Chegámos ao porto e arreámos as velas, e uns barquinhos vieram
recolher cabos atirados do nosso navio. Escravos dobraram-se sobre os
remos e puxaram-nos para o porto. Foi lento ao ponto de ser entediante,
mas a Mercadora Akriel deixara-me na cabina trancada, portanto eu não
tinha nada para fazer além de me pôr em bicos de pés e olhar pela vigia.
Quando finalmente chegámos ao cais e ficámos firmemente amarrados, ela
regressou para me pedir que a seguisse. Senti-me estranhamente zonza por
sair da cabina após um confinamento tão longo.
As minhas pernas estavam surpreendidas por andar e depois subir a
escada até ao convés. Soprava um vento fresco e a luz brilhante do sol do
verão batia-me na cabeça descoberta e reluzia nas ondas em movimento.
Oh, os cheiros da água em circulação e do navio e da cidade próxima!
Havia fumo de chaminé e cavalos a suar ao sol e um fedor a velha urina,
como se as pessoas tivessem vivido naquele bocado de terra durante muito
mais tempo do que deviam. “Segue-me”, ordenou-me bruscamente a
Mercadora Akriel. “Eu fico sempre na mesma estalagem. O meu baú será
levado para lá e os artigos comerciais irão para o meu armazém. Há gente
com quem tenho de me encontrar, e há artigos cuja entrega tenho de
organizar, portanto por agora vais ficar junto de mim até eu determinar
como será melhor colocar-te.”
Agradou-me que ela dissesse que me ia “colocar” e não vender-me. Era
uma pequena diferença, mas disse a mim mesma que significava que ela
queria não só fazer bom lucro, mas também beneficiar-me. Como não
pagara nada por mim e pouco investira além de alguma roupa e um pouco
de papel, eu esperava que lucrasse largamente com a sua gentileza comigo.
Caminhou destemidamente pelas ruas movimentadas e empedradas.
“Acompanha-me!”, disse-me e, sem aviso, precipitou-se para uma rua
movimentada, abrindo caminho por entre carroças puxadas por cavalos e
cavaleiros que circulavam em ambas as direções. Eu já estava sem fôlego
antes de ela chegar ao outro lado da rua, mas ela manteve-se impávida. E lá
foi, a uma velocidade que me manteve a trotar. Depressa fiquei com o
cabelo colado ao couro cabeludo devido ao suor e já um ribeirinho de
transpiração me descia pela espinha abaixo quando ela virou de repente,
subiu três degraus de pedra e entrou por uma porta arqueada de madeira. Eu
apanhei a porta e era tão pesada que foi com enorme dificuldade que a
impedi de se fechar com estrondo atrás de nós.
Aquela estalagem era certamente diferente da única outra estalagem que
eu vira na vida, a de Margem de Carvalhos. O chão era de uma pedra
branca com veios de um dourado cintilante. Não era quente nem cheirava a
comida, como eu sempre supusera que todas as estalagens deviam ser. Pelo
contrário, tinha uma sala espaçosa e calma com cadeiras confortáveis e
mesinhas. Ali estava fresco em contraste com as ruas, lá fora, e as grossas
paredes isolavam-nos do ruído e dos cheiros do exterior. Senti uma brisa
suave perfumada com flores. Ergui o rosto, surpreendida, e vi um imenso
leque a oscilar suavemente de um lado para o outro, empurrando o ar para
nos refrescar. O meu olhar seguiu a corda presa ao leque, a qual descia até
uma mulher que estava a um canto e puxava ritmicamente pela corda.
Nunca vira ou imaginara uma coisa daquelas e fiquei a olhar de boca aberta
até a Mercadora Akriel me chamar para a seguir.
Fomos cumprimentadas por um homem todo vestido de branco. Usava o
cabelo entrançado em seis tranças, cada uma atada com um bocado de corda
de cor diferente. A sua pele era da cor do mel antigo e o cabelo de um tom
mais escuro. “Tudo está a postos. Espero-vos desde que o navio aportou.”
Ele sorriu à maneira de um mercador que é quase um amigo.
Ela contou moedas para a mão dele e disse que era bom voltar a vê-lo.
Ele entregou-lhe uma chave. Forcei-me a não o fitar e segui a mercadora
por uma escada da mesma pedra branca acima e ao longo de um corredor.
Ela parou a uma porta, destrancou-a com a grande chave de latão, e
entrámos num quarto realmente muito bonito. Havia uma cama enorme,
carregada de almofadas espalhadas sobre uma farfalhuda colcha branca.
Uma tigela de fruta e flores e uma garrafa de vidro com um líquido
amarelo-claro lá dentro estavam pousadas numa mesa no centro do quarto.
Duas portas abriam-se para uma pequena varanda que dava para a rua e,
mais adiante, para o porto.
“Fecha isso!”, ordenou-me a mercadora e eu obedeci de imediato,
afastando os sons da rua e os cheiros que entravam com eles. Virei-me para
a sala e vi que ela se servira de um copo de vinho dourado. Sentou-se numa
cadeira almofadada e suspirou. Bebeu um gole lento e cuidadoso.
“O meu baú será entregue em breve. Abre-o. Prepara as sandálias
brancas, a saia comprida vermelha e a blusa branca larga com bainha e
punhos vermelhos. Põe os pincéis e as joias naquela prateleira, ao lado do
espelho e dos perfumes. Depois de teres feito isso, podes comer qualquer
um dos frutos que estão nesta mesa. Acho que há um quarto de criado atrás
daquela porta; nunca tinha viajado com uma criada, mas podes instalar-te aí
até eu voltar.” Soltou um suspiro. “Infelizmente vou ter de sair de imediato,
para me assegurar de que os meus bens foram todos entregues no armazém
e informar três dos meus compradores de que regressei com os artigos que
pediram.” Pegou no copo de vinho e bebeu o resto que nele havia. “Não
saias deste quarto”, avisou, e dirigiu-se em passo vivo para a porta. Fechou-
a atrás de si e o silêncio preencheu o quarto. Eu expirei, um suspiro
trémulo. Estava em segurança.
Vagueei pelo quarto a observar as peças de mobília de boa qualidade.
Espreitei o meu quarto de criada. Simples mas limpo, com uma enxerga
baixa e uma manta, um lavatório com um jarro e uma bacia, um penico e
dois cabides para roupa. Depois de passar tantas noites a dormir no chão ou
sobre a terra, aquela cama simples parecia um luxo.
Uma sonora batida na porta anunciou a chegada do baú da mercadora.
Deixei entrar os dois homens grandes que o transportavam. Pousaram-no
perto da parede e saíram com vénias. Fechei a porta atrás deles e executei as
minhas tarefas precisamente como a Mercadora Akriel mas atribuíra.
Alguns objetos tinham saído do lugar durante o transporte do baú.
Endireitei-os. Dispus os pincéis, a maquilhagem e as joias dela como me
pedira.
Só depois de terminar voltei para junto dos frutos que estavam em cima
da mesa. Alguns eram-me desconhecidos. Cheirei um verde-claro e
perguntei a mim mesma se devia mordê-lo, tirar-lhe a pele ou cortá-lo. Ao
lado da fruta tinha sido deixada uma faquinha e um prato. Contentei-me em
comer aquilo que eram claramente bagas; eram ácidas e sumarentas e,
depois de tantos dias a pão e papas e ocasionalmente carne, o sabor foi uma
surpresa tal que me encheu os olhos de água. Havia um fruto maior
parecido com uma ameixa, mas cor de laranja. Levei-o para a varanda.
Sentei-me de pernas cruzadas, a olhar através da balaustrada e a comê-lo
devagar. O sol estava muito quente. O porto fervilhava de atividade e o
vento suave transportava todos os odores desconhecidos de um lugar
estrangeiro. Fiquei com sono e passado algum tempo fui para dentro e
deitei-me na minha pequena enxerga. Adormeci profundamente.
Ao acordar, deparei-me com uma luz mais fraca. Apercebi-me de que
tinha ouvido a porta a abrir-se e rolei rapidamente para fora da cama. Ainda
estava sonolenta mas pus um sorriso no rosto e saí do quarto dizendo:
“Espero que o vosso dia tenha corrido bem, Mercadora Akriel.”
Ela deitou-me um olhar confuso. Os seus olhos estavam vagos.
“Apanhámos-te!”, exclamou Dwalia.
“Não!”, guinchei. Figuras de pesadelo passaram pela mercadora para
entrar na sala. Kerf estava desgrenhado e mal arranjado, tinha a barba
crescida e o cabelo colado ao crânio e emaranhado. Parou, de ombros
curvos e com a boca entreaberta. O seu olhar estava mortiço. Vindeliar não
estava em muito melhor estado. Era evidente para mim que a viagem fora
muito mais dura para eles do que para mim. As bochechas do homem
mágico estavam caídas e os olhos sumidos e cheios de cansaço. Ele nunca
tivera cuidado a arranjar-se e agora o cabelo pendia em madeixas escorridas
e sebentas. Mas Dwalia era a pior, um monstro saído de um pesadelo. A
cara estava purpúrea, vermelha e negra. O ferimento fechara, mas a pele
não crescera para o cobrir. Vi os músculos filamentosos da sua cara a
esticar-se e a contorcer-se enquanto ela se ria. Trazia nas mãos uma corrente
negra e eu soube que se destinava a mim.
Gritei. Gritei e gritei, sem palavras, o guincho de um animal encurralado.
“Fecha a porta, palerma!”, guinchou Dwalia a Vindeliar. Quando ele se
virou para o fazer, uma centelha regressou à cara da mercadora.
“Fugi!”, gritei-lhe. “Assassinos e ladrões! Fugi!”
E ela fugiu. O seu ombro bateu na porta quando Vindeliar estava a fechá-
la. Ele empurrou-a, fazendo força com os pés, mas ela tinha a cabeça e um
ombro fora do quarto e encontrara a voz. A Mercadora Akriel gritou por
ajuda e eu guinchei enquanto Dwalia ordenava em vão a Kerf: “Mata a
mulher! Agarra na miúda! Fecha essa porta! Vindeliar, seu idiota inútil,
controla-os!”
No corredor, ouvi alguém gritar: “Oh, doce Sa!”, e depois pés a correr.
Mas o homem estava a correr para longe, não na nossa direção. Ouvi gritos
à distância, como se ele tivesse alertado as pessoas da estalagem, mas as
ordens gritadas de Dwalia afogavam todo o sentido que houvesse nas
palavras deles.
“Vindeliar! Obriga o Kerf a matá-la!”, guinchou.
“Não!”, gritei. Dwalia parecia ter medo de pôr pessoalmente as mãos em
cima de mim. Saltei para a porta, passando por um Kerf que parecia arrastar
pelo quarto os pés sem rumo, e tentei forçar a porta a abrir-se. Não era
capaz de igualar a força de Vindeliar, portanto recorri a pontapeá-lo nas
canelas com o máximo de força que consegui pôr nos sapatos fofos e a
esmurrá-lo com os punhos cerrados. A porta abriu-se um tudo-nada mais e a
Mercadora Akriel caiu para o outro lado. Depois, Vindeliar cerrou-a com
força contra o seu tornozelo e o estalo da articulação a partir-se e o grito
que ela soltou deixaram-me os ouvidos a ressoar.
“Esquece-a! Controla o Kerf! Kerf! Pega na Abelha e leva-nos para fora
daqui!”
Vindeliar abanou a cabeça embotada, um cão num ninho de vespas, e
então Kerf moveu-se abruptamente com propósito. Vindeliar soltara a porta
e a mercadora estava a arrastar-se pelo corredor, gritando por ajuda. Kerf
agarrou-me com a mão esquerda e puxou pela espada com a direita. “Leva-
nos para fora daqui!”, ordenou-lhe Dwalia.
E foi o que ele fez, arrastando-me pela axila enquanto eu guinchava
inarticuladamente. “Mata-a!”, ladrou Dwalia, e eu gritei com medo pela
minha vida, mas foi a mercadora quem recebeu a lâmina dele. O calcedino
parou por cima dela, de pernas abertas, e espetou-lhe a faca uma e outra
vez, mesmo estando Dwalia a rugir: “Basta! Tira-nos daqui! Para!” A cara
de Vindeliar estava branca como gelo e ele acenava impotentemente com as
mãos. Não consegui perceber se o horror daquele assassínio sangrento tinha
estilhaçado a concentração de Vindeliar ou se fora a fúria soterrada de Kerf
por estar dominado que se manifestara de repente. Apareceram pessoas ao
fundo do corredor, gritaram de horror e fugiram. Alguém gritou pela guarda
da cidade mas ninguém, ninguém veio ajudar-me ou a Akriel. Eu torci-me e
arranhei e pontapeei mas acho que Kerf nem tinha consciência de mim
enquanto me agarrava no braço com punho de ferro. Com a mão livre,
espetava a espada e espetava e espetava e acho que eu não soubera como
acabara por gostar da Mercadora Akriel até a ver reduzida a carne rubra e
farrapos.
“Temos de fugir!”, gritou Dwalia e esbofeteou Vindeliar.
Kerf começou a andar a passos largos pelo corredor fora, com a espada a
pingar numa mão e a arrastar-me com a outra, enquanto Dwalia e Vindeliar
vinham encolhidos atrás dele. Se um gato de montanha a rugir tivesse
descido a escada, a reação teria sido a mesma. Aqueles que se tinham
juntado ao fundo da escada, agarrados uns aos outros e aos gritos sobre o
que tinham visto, abriram subitamente alas para nós passarmos.
Atravessámos a linda sala, em cujo chão de pedra branca Kerf deixou
pegadas sangrentas, e saímos para a tardinha.
Chegaram-me aos ouvidos gritos e o som de pés a correr. “A guarda!”,
exclamou Dwalia, consternada. “Vindeliar, faz qualquer coisa. Esconde-
nos!”
“Não consigo!” Estava a arquejar e a soluçar e a tentar acompanhar o
passo assassino de Kerf. “Não consigo!”
“Tem de ser!”, enfureceu-se Dwalia. Ergueu a mão e deixou-a cair uma e
outra vez, vergastando Vindeliar com a corrente que trazia. Ouvi-o gritar e,
quando olhei para trás, vi sangue a borbulhar na sua boca. “Esconde-nos!”,
ordenou-lhe ela.
Ele soltou um guincho inarticulado de dor, medo e frustração. E, a toda a
nossa volta, a multidão que nos fitava de boca aberta caiu ao chão. Alguns
contorceram-se como se estivessem a ter um ataque, outros ficaram
imóveis. Kerf caiu de joelhos e depois tombou de lado em cima de mim, e
até Dwalia cambaleou para o lado. Eu arrastei-me de baixo de Kerf e ergui-
me sobre pés inseguros. Quando saltei para fugir, Dwalia agarrou-me pelo
tornozelo. Dei um grande trambolhão sobre o empedrado, e a dor dos
joelhos esmagados arrancou-me mais um grito à garganta ardente.
“Acorrenta-a!”, gritou Dwalia a alguém. E Vindeliar avançou para se
ajoelhar em cima de mim, enrolar-me uma corrente em volta do pescoço e
prendê-la bem com um grampo. Agarrei na corrente com ambas as mãos,
mas Dwalia tinha a outra ponta e puxou-a com força. “Para cima!”, gritou.
“Levanta-te e corre! Já.”
Não olhou para trás, apressando-se pela rua fora num trote pesado. Fui
aos tropeções atrás dela, agarrada à corrente que me envolvia a garganta,
tentando arrancar-lha das mãos. Ela passava por cima e por entre silhuetas
estendidas e eu era forçada a saltar sobre as pessoas caídas ou a pisá-las.
Pareciam atordoadas, algumas a torcer-se e outras estendidas sem força
sobre as pedras do pavimento. Dwalia virou abruptamente e descemos uma
viela entre dois edifícios altos. A meio caminho da rua seguinte, ela parou
na escuridão e um soluçante Vindeliar veio chocar connosco. “Silêncio!”,
silvou-lhe ela, e quando abri a boca para gritar, ela puxou a corrente com
violência, atirando-me a cabeça contra a parede que estava ao nosso lado.
Vi um clarão brilhante e os meus joelhos cederam.
Tinha passado algum tempo. Eu sabia-o. Dwalia estava a puxar pela
corrente que eu tinha em volta do pescoço. Vindeliar puxava por mim,
tentando pôr-me em pé. Usando a parede, levantei-me a cambalear e olhei
em volta, entontecida. Na outra extremidade da viela, lanternas oscilavam e
vozes soavam alteradas com horror, confusão e ordens. “Por aqui”, disse
Dwalia em voz baixa, e depois deu à minha trela um puxão feroz que me
fez cair outra vez de joelhos. Vindeliar ainda estava a soluçar baixinho. Ela
virou-se, esbofeteou-o como se estivesse a atingir um mosquito, e afastou-
se. Pus-me em pé a tempo de me salvar de outra queda. Cambaleei atrás
dela, sentindo-me doente e fraca.
Vindeliar moveu uma das mãos que pusera sobre a boca para abafar os
soluços. “O Kerf?”, atreveu-se a perguntar.
“Inútil”, retorquiu Dwalia. Num tom vingativo acrescentou: “Que fiquem
com ele. Vai mantê-los ocupados enquanto nós encontramos um sítio
melhor onde estar.” Olhou para trás, para Vindeliar. “Tu foste quase tão
inútil como ele. Da próxima vez é a ti que deixo para trás, para a turba.”
Aumentou a velocidade, aborrecida por eu estar a andar depressa o
suficiente para manter folga na corrente. Procurei às apalpadelas o grampo
que Vindeliar usara para a prender. Os meus dedos encontraram-no mas não
consegui descobrir maneira de o abrir. Ela deu outro puxão à corrente e eu
voltei a tropeçar atrás dela.
Dwalia levou-nos para uma rua que subia uma colina e se afastava dos
edifícios altos próximos do porto. Decidia sempre ir para onde havia menos
pessoas e lanternas nas ruas, e aquelas por que passámos não pareceram
encontrar nada incomum no facto de ela me levar por uma corrente.
Vindeliar seguia-nos, correndo para nos apanhar e depois deixando-se ficar
para trás, enquanto fungava, soluçava ou arquejava. Não olhei para ele. Não
era meu amigo. Nunca fora meu amigo e far-me-ia qualquer coisa que
Dwalia lhe dissesse para fazer.
Virámos para uma estrada escura iluminada apenas pelas luzes que
vinham das casas. Não eram casas prósperas; a luz brilhava por rachas nas
paredes e a rua estava sulcada e lamacenta. Dwalia pareceu escolher uma ao
acaso. Parou e apontou para ela. “Bate à porta”, ordenou a Vindeliar.
“Obriga-os a querer dar-nos as boas-vindas.”
Ele sufocou um soluço engolindo em seco. “Acho que não consigo. Dói-
me a cabeça. Acho que estou doente. Todo eu tremo. Preciso…”
Ela deu-lhe um carolo com a extremidade livre da corrente, fazendo-me
cair sobre os joelhos ao fazê-lo. “Tu não precisas de nada! Vais fazer o que
te disse! Agora mesmo.”
Eu falei numa voz lenta e clara. “Foge, Vindeliar. Simplesmente, foge.
Ela não te consegue apanhar. Não pode realmente obrigar-te a fazer seja o
que for.”
Ele olhou para mim e, por um instante, os seus olhinhos ficaram grandes
e redondos. Depois Dwalia bateu-me duas vezes com a ponta livre da
corrente, com força, e Vindeliar correu até à porta da casa degradada e
esmurrou-a como se quisesse avisar contra um incêndio ou inundação. Um
homem abriu a porta de rompante e quis saber: “O que é?” E, depois, a cara
suavizou-se-lhe de repente e disse: “Entra, amigo! Entra e sai da noite!”
Ao ouvir aquelas palavras, Dwalia correu para a porta e eu fui forçada a
segui-la. O homem recuou para nos deixar entrar. Quando segui Dwalia
porta adentro, vi qual o erro que ela cometera. O jovem que segurava na
porta e nos acenava não estava só. Dois homens mais velhos encontravam-
se sentados a uma mesa, fuzilando-o, e a nós, com o olhar. Uma velha que
mexia uma panela sobre um fogo pouco intenso na lareira perguntou-lhe:
“Onde é que tu tens a cabeça para trazeres desconhecidos para dentro de
casa noite cerrada?” Um rapaz com mais ou menos a minha idade fitou-nos
alarmado e pegou imediatamente num bocado de lenha, segurando-o como
um bastão. O olhar da mulher tinha ficado preso na cara de Dwalia. “Um
demónio? Aquilo é um demónio?”
Vindeliar virou-se para Dwalia com uma expressão cheia de aflição. “Já
não consigo tratar de tanta gente. Simplesmente, não consigo!” E soltou um
soluço quebrado.
“Todos!”, exigiu Dwalia numa voz esganiçada. “Agora mesmo!”
Eu estivera a ponto de ultrapassar a soleira da porta. Agarrei firmemente
na corrente por baixo da minha garganta e recuei o mais que pude. “Eu não
faço parte disto!”, gritei numa voz impotente. Toda a gente dentro da
casinha estivera a fitar-nos com consternação e medo. O meu grito quebrou-
os.
“Assassínio! Demónios! Ladrões!”, guinchou de súbito a mulher e o
rapaz saltou sobre Vindeliar com o bocado de lenha. Vindeliar pôs
rapidamente os braços sobre a cabeça e o rapaz deu-lhe várias sólidas
cacetadas. Dwalia recuou apressadamente porta fora mas não foi a tempo de
evitar a pesada caneca que um dos homens lhe atirou. Atingiu-a na cara,
enchendo-a de cerveja e fazendo-a gritar, furiosa. Depois saiu, arrastando-
me atrás de si. Vindeliar veio atrás de nós, aos ganidos, enquanto o rapaz
lhe dava pancada atrás de pancada nos ombros e nas costas, ao mesmo
tempo que o pai e os tios o incentivavam.
Continuámos a fugir, mesmo depois de a família desistir da perseguição,
pois os gritos e os estrondos tinham despertado outras pessoas na fila de
casas simples. Fugimos-lhes, embora Dwalia depressa tenha reduzido a
corrida a um trote arrastado e depois a uma caminhada apressada enquanto
olhava repetidamente por sobre o ombro. Vindeliar apanhou-nos, ainda
agarrado à cabeça com ambas as mãos e a soluçar entrecortadamente. “Não
consigo, não consigo, não consigo”, não parava de dizer, numa toada
irritante ao ponto de até eu querer bater-lhe.
Dwalia estava a levar-nos de volta para a cidade. Esperei até estarmos em
ruas onde as casas eram solidamente construídas, com vidros nas janelas e
alpendres de madeira. Então levei ambas as mãos à corrente, firmei os
calcanhares e puxei-a com toda a força que consegui. Dwalia não a largou
mas parou e fitou-me, furiosa. Vindeliar parou atrás de mim, com a boca
entreaberta e a tremer, ainda com as mãos na cabeça maltratada.
“Larga-me”, disse eu com firmeza. “Senão grito e grito e grito até que
esta rua se encha de gente. Digo-lhes que são raptores e assassinos!”
Por um momento os olhos de Dwalia esbugalharam-se e eu julguei que
ganhara. Mas depois ela aproximou-se mais de mim. “Grita!”, desafiou.
“Força. Não duvido que haja testemunhas que nos reconheçam. E há de
haver gente que vai acreditar que eras nossa parceira, a criada que nos
deixou entrar para roubar e matar aquela mulher. Porque é essa a história
que vamos contar, e Vindeliar vai obrigar o Kerf a concordar com ela.
Vamos todos ser enforcados juntos. Grita, miudinha! Grita!”
Fitei-a. Aconteceria assim? Eu não tinha ninguém que corroborasse a
minha história. A Mercadora Akriel estava morta, feita em pedaços. De
repente essa perda atingiu-me como uma pancada na barriga. Ela estava
morta por minha causa, como Vindeliar me avisara que aconteceria. Eu
deixara aquele Caminho de que ele falara, e mais uma vez alguém estava
morto. A minha maravilhosa ideia de escapar a Dwalia ficou em farrapos à
minha volta. Não queria acreditar nas superstições de Vindeliar sobre o
Caminho. Era estúpido e ridículo pensar que só havia uma maneira certa
para eu viver a minha vida. Mas ali estava, mais uma vez, viva enquanto
aqueles que me tinham ajudado se encontravam mortos. Tive vontade de
chorar por Akriel, mas o meu desgosto era demasiado profundo para
lágrimas.
“Bem me pareceu que não”, troçou Dwalia e, voltando-me costas, deu
um puxão maligno na corrente. Esta soltou-se-me das mãos magoadas e dei
por mim de novo a segui-la enquanto ela nos levava para a escuridão.
Capítulo 16

As Ilhas dos Piratas

Sonhei com o roubo de uma criança. Não, não sonhei. Ao longo de


seis noites, este pesadelo uivou pelo meu sono, um terrível aviso. A
criança é raptada, por vezes de um berço, por vezes de uma festa,
por vezes de uma manhã de brincadeira em neve fresca. Seja como
for que aconteça, a criança é erguida bem alto e depois cai. Quando
a Criança Roubada chega ao chão, transforma-se num monstro
escamoso com olhos reluzentes e um coração cheio de ódio.
“Cheguei para destruir o futuro.”
Estas palavras são a única parte do meu sonho que é sempre igual.
Sei que não passo de um Cotejador, sem mais que uma gota de
Branco nas veias. Procurei contar este sonho uma e outra vez e fui
sempre posto de parte, foi-me sempre dito que não passa de um
pesadelo comum. Bela Symphe, sois a última esperança que me resta
de ser ouvido. Este sonho é digno de ser registado nos Arquivos.
Conto-o a vós, não para obter glória para mim ou para ser
reconhecido como Branco capaz de sonhar, mas apenas porque…
[texto carbonizado]
Descoberto entre os papéis de Symphe

O
s longos dias lentos a bordo do Modelo Ideal alojaram-se na
minha vida como um osso na garganta. Cada um era tão idêntico
ao anterior que pareciam um dia interminável, e todos me
sufocavam com a sua arrastada passagem.
A maior parte da inimizade da tripulação estava concentrada em mim e
em Âmbar. A sua ira fervilhante transformava as nossas breves e magras
refeições em provações diárias para mim. Âmbar destruíra os meios de
subsistência não só de Alteia e Brashen, mas deles também. Garantir um
lugar num navio vivo era visto como uma posição vitalícia, pois a
tripulação era bem paga, desfrutava de maior segurança do que num navio
normal, e transformava-se quase numa família. Agora isso ia terminar para
todos. Desde o mais novo, que tinha conquistado a sua posição havia
apenas seis meses, ao mais velho — um homem empregado no Modelo
Ideal há décadas —, os seus meios de subsistência tinham desaparecido. Ou
desapareceriam, quando Âmbar fornecesse ao navio Prata suficiente para se
transformar. Por agora, estavam reféns da ambição do Modelo Ideal. E nós
também.
Centelha e Per eram mais alvos de piedade do que de injúrias. Clef ainda
parecia decidido a completar a educação de Per como marinheiro e eu
reconfortava-me por o rapaz ter algum tempo que não girasse em volta das
nossas divergências com a tripulação. Lante continuava a partilhar o quarto
de Clef, e este mudou Per para lá também. Queria agradecer-lhe por manter
o rapaz perto de si e em segurança contra quaisquer ressentimentos, mas
temi que qualquer conversa pudesse salpicar Clef com o desagrado que eu
tinha de enfrentar. A fim de evitar exacerbar a discórdia, mantinha-me
quase sempre na cabina que agora partilhava com Âmbar e Centelha. Esta
tornara-se controlada e pensativa. Passava mais tempo a passear pelo
convés com Lante do que a tentar aprender nós ou a operar o aparelho. A
primavera aquecera transformando-se em verão e era frequente a minúscula
divisão ficar sufocante. Quando Lante e Per se aglomeravam lá dentro
connosco para as aulas de línguas ao início da noite, o suor rolava-me pelas
costas abaixo e colava-me o cabelo à cabeça. Mesmo assim, essa era uma
bem-vinda distração do ócio forçado que eu tinha de aguentar.
Quando estávamos sozinhos durante aqueles longos dias, eu e o Bobo
examinávamos interminavelmente os livros de Abelha. Ele procurava obter
mais pistas nos sonhos dela. Eu queria desesperadamente acreditar que ela
podia ainda estar viva, algures, mesmo que a ideia de a minha filhinha estar
cativa em mãos tão implacáveis me atormentasse até à insónia. Ele pediu-
me para lhe ler também o diário dela, e eu fi-lo. De certa forma. Não
consegui perceber se ele sabia que eu saltava passagens e entradas que eram
demasiado dolorosas para partilhar. Se estava consciente disso, nada disse.
Julgo que compreendia que eu fora levado ao meu limite.
No entanto, o Bobo estava muito menos restringido de movimentos do
que eu. Como Âmbar, movia-se livremente pelo convés, imune ao
descontentamento da tripulação e dos capitães, pois era favorecida pelo
navio. Era frequente o Modelo Ideal solicitar a sua presença para conversar
ou tocar música. Era uma liberdade que eu invejava e de que tentava não
me ressentir. Mas ocasionava noites longas e solitárias.
Uma noite, depois de Âmbar ter saído da cabina para passar tempo com a
figura de proa, eu não consegui aguentar mais o quarto pequeno e
acanhado. Com não mais que um ligeiro ataque de consciência, vasculhei
nos substanciais embrulhos cheios de roupa que Centelha e Âmbar tinham
trazido para bordo. Encontrei o maravilhoso manto dos Antigos dobrado
num volume muito pequeno, com o lado da borboleta para fora, e sacudi-o.
A maioria dos Antigos eram altos e o manto fora cortado generosamente.
Hesitei. Mas não, ele fora o tesouro de Abelha e ela dera-o a Per para o
salvar. Por seu turno, ele entregara-o para ser usado pelo Bobo sem um
murmúrio. E agora era a minha vez.
Vesti-o, com o lado da borboleta para dentro. Servia-me, daquela forma
misteriosa como as peças de roupa dos Antigos se adaptavam a quem as
usava. A parte da frente prendia-se com uma série de botões que iam do
pescoço aos pés. Havia fendas para os braços. Encontrei-as e ergui o capuz
para me tapar a cabeça. O capuz caía para a frente sobre a cara. Eu contara
que me cegasse, mas conseguia ver através dele. Vi o meu braço
desincorporado a esticar-se para a maçaneta da porta. Abri a porta, puxei o
braço para dentro, e saí. Fiquei imóvel, deixando o manto adaptar-se à cor
mortiça das paredes do corredor.
Depressa descobri o fardo que uma peça de roupa que chegava ao chão
constituía. Movi-me lentamente mas mesmo assim pisei a bainha dianteira
mais de uma vez. Enquanto explorava o navio sem ser visto, qualquer
escada que subisse obrigava-me a esperar até que ninguém estivesse por
perto, pois tinha de erguer o manto para subir. Perguntei a mim mesmo se o
navio estava consciente de mim, mas não quis testá-lo aventurando-me até
demasiado perto da figura de proa.
Andei pelo navio como um fantasma, movendo-me apenas quando
nenhum tripulante estivesse próximo e escolhendo cuidadosamente os
lugares onde parava. Quando a noite escureceu, passei a mover-me com
mais ousadia. Encontrei Per sentado no convés ao lado de Clef, num círculo
de luz amarela de lanternas. Permaneci fora do alcance da luz. “Chama-se
trabalhar com agulhão”, estava Clef a explicar ao rapaz. “Usa-se a agulha
de um peixe-agulha, ou agulhão, ou pelo menos há quem use. Eu uso
simplesmente uma espicha de madeira. E pega-se no cabo velho que não
presta para mais nada e trabalha-se assim os nós, e consegue-se fazer
capachos ou o que quiseres. Vês? Este foi um dos primeiros que eu fiz. É
útil e bonito, à sua maneira.”
Fiquei ali perto sem fazer um som e vi Clef ensinar ao rapaz a melhor
maneira de dar início ao centro do nó. O trabalho trouxe-me à memória
Renda, ocupada com as suas agulhas. Ela fizera coisas lindas, punhos,
colarinhos e paninhos. E poucos eram os que sabiam que as pontas
aguçadas das suas agulhas eram as inteligentes armas que empregava
enquanto guarda-costas de Paciência. Afastei-me deles, desejando que Per
abdicasse da sua feroz lealdade a Abelha e se tornasse moço de bordo.
Certamente seria melhor do que envolver-se em trabalho de assassino.
Fui em busca de Lante. Desde que os sentimentos da tripulação para
connosco se tinham tornado mais sombrios, temia por ele mais do que
gostaria de admitir. Se algum dos membros da tripulação procurasse um
alvo para a ira, o mais provável seria Lante. Era novo e fisicamente capaz;
provocá-lo para lutar não seria visto como cobardia. Eu avisara-o
frequentemente para estar atento a hostilidades. Ele prometera ter cuidado,
mas com um suspiro fatigado que dizia que julgava ser capaz de cuidar de
si.
Encontrei-o em pé no convés mal iluminado, encostado à amurada e a
fitar a água. Os ventos estavam favoráveis e o Modelo Ideal cortava
suavemente a água. O convés estava quase deserto. Centelha estava ao lado
dele e os dois conversavam em voz baixa. Aproximei-me mais.
“Por favor, não”, ouvi-o dizer.
Mas ela levantou a mão dele da amurada e avançou para o interior do
círculo do seu braço. Apoiou a cabeça no seu ombro. “É porque eu sou mal-
nascida?”, perguntou-lhe.
“Não.” Vi quão difícil foi para ele remover o braço e afastar-se. “Tu
sabes que não é isso.”
“A minha idade?”
Ele apoiou-se à amurada, curvando os ombros. “Tu não és assim tão mais
nova do que eu. Centelha, por favor. Já te disse. Tenho um dever para com o
meu pai. Não sou livre para…”
Ela inclinou-se para a frente e beijou-o. Ele virou a cara para ela,
deixando que a boca da rapariga encontrasse a sua. Soltou um som baixo e
suplicante. Depois abraçou-a de repente e moldou o seu corpo ao dela,
empurrou-a contra a amurada e beijou-a apaixonadamente. As pálidas mãos
da rapariga desceram até às ancas e aninharam o seu corpo contra o dele.
Ela interrompeu o beijo e disse, sem fôlego: “Não me importo. Quero o que
posso ter agora.”
Fiquei imóvel, entorpecido pelo choque.
Ele voltou a beijá-la. Depois, com uma disciplina que invejei, pegou-lhe
nos ombros e afastou-a suavemente de si. Falou com voz rouca. “Já há
bastardos suficientes na minha linhagem, Centelha. Não quero fazer mais
nenhum. E também não vou quebrar a confiança do meu pai. Fiz-lhe uma
promessa, e temo que essas palavras tenham sido as últimas palavras
minhas que ele ouviu. Tenho de levar isto até ao fim. E não vou correr o
risco de deixar para trás um filho sem pai.”
“Eu conheço formas de evitar…”
Mas ele estava a abanar a cabeça. “Tal como tu foste ‘evitada’? Como eu
fui? Não. Contaste-me o que Âmbar te disse, que com toda a probabilidade
tanto ela como o Fitz vão morrer. E como eu fui enviado para o proteger,
isso significa que morrerei antes dele. Já me envergonhará o suficiente
deixar-te sem protetor, embora tenha a esperança de que Per não te
abandone. Mas não vou correr o risco de te deixar grávida.”
“É mais provável que seja eu a acabar a proteger o Per!” Ela tentou
pegar-lhe na mão, mas ele fechou com força os dedos sobre a amurada. Ela
contentou-se com tapar a mão dele com a sua. “É possível que eu morra a
proteger-te antes de tu morreres a proteger o Fitz”, sugeriu, mas a sua
gargalhada não era alegre.
Afastei-me suavemente deles, quase incapaz de respirar devido às
lágrimas. Só me apercebi de que começara a chorar quando sufoquei nelas.
Tantas vidas retorcidas porque o meu pai cedera ao desejo. Ou ao amor? Se
Breu não tivesse nascido, se eu não tivesse nascido, teriam outros atores
desempenhado os nossos papéis? Quantas vezes me dissera o Bobo que a
vida era uma imensa roda, a girar num trilho definido, e que a sua tarefa era
fazer a roda saltar desse trilho e colocá-la noutro melhor? Seria isso o que
eu testemunhara naquela noite? A recusa de Lante em dar continuidade à
tradição de infelizes bastardos Visionário?
Vagueei de volta à privacidade do quarto, fechei a porta atrás de mim,
despi o manto borboleta e dobrei-o com cuidado, como estivera antes.
Desejei não o ter vestido. Desejei não saber o que sabia agora. Voltei a pôr
o manto onde o encontrara, decidindo não voltar a usá-lo e sabendo que
estava a mentir a mim mesmo.

Era o Modelo Ideal que agora escolhia o nosso rumo, importando-se pouco
com o que Alteia ou Brashen pudessem desejar. Vilamonte fora deixada
muito para trás, sem qualquer pausa. Nem descarregámos aí, nem
embarcámos mantimentos e água. Tínhamos avançado ao longo da costa
mutável do litoral pantanoso e entrado nas águas das Ilhas dos Piratas.
Algumas das ilhas eram habitadas e outras eram lugares selvagens, não
reclamados por ninguém. Para o Modelo Ideal não fazia nenhuma
diferença. Podíamos olhar com desejo para minúsculas vilas portuárias
iluminadas à noite, onde poderíamos ter acostado para embarcar água doce
e comida, mas ele não parou. E prosseguimos viagem, de forma tão
implacável como o próprio mar. E as nossas rações foram-se tornando cada
vez mais reduzidas.

“Somos prisioneiros.”
O Bobo, que estivera estendido no beliche inferior da suada cabina,
endireitou-se e debruçou-se para fora para me dirigir uma olhadela. “Falas
de Alteia e de Brashen? Sabes por que motivo te avisaram para passares a
maior parte do tempo na cabina.”
“Não são eles. Dadas as circunstâncias, acho que eles foram muito
tolerantes connosco. Foi o Modelo Ideal quem nos aprisionou.” Baixei a
voz, dolorosamente ciente de que não conseguia saber até que ponto o navio
vivo estava ou deixava de estar consciente do que se passava dentro do seu
corpo de madeira. “Ele agora não quer saber rigorosamente para nada dos
contratos e entregas de Alteia e Brashen. Não quer saber do nosso conforto
e segurança. Não se importa se estamos mal abastecidos para esta viagem,
uma vez que não embarcámos mantimentos em Vilamonte. Rações curtas
não lhe dizem nada. Continua a avançar, pela noite e por tempestades.
Quando Alteia ordenou que as velas fossem metidas nas rizes, balançou tão
violentamente que ela chamou a tripulação para baixo.”
“Apanhou a corrente”, disse o Bobo. “Mesmo sem velas, seríamos
levados por entre as Ilhas dos Piratas e para lá de Jamaília e continuaríamos
viagem até às Ilhas das Especiarias, mais adiante. Ele sabe disso e a
tripulação sabe disso.”
“E a tripulação culpa-nos pela situação em que estamos.” Endireitei-me
lentamente no acanhado beliche de cima, com cuidado para não bater com a
cabeça no teto da cabina. “Vou descer”, avisei, e abandonei o beliche
superior. Doía-me o corpo da inatividade. “Não gosto de quando Lante e os
jovens ficam tanto tempo ausentes. Vou lá fora ver onde eles estão.”
“Tem cuidado”, disse ele, como se eu precisasse de aviso.
“E quando é que eu não sou um tipo cauteloso?”, perguntei-lhe e ele
ergueu as sobrancelhas na minha direção.
“Espera. Decidi ir contigo”, disse ele e estendeu as mãos para as saias de
Âmbar, que estavam murchas no chão. O tecido restolhou quando as
prendeu em volta das ancas.
“Tens de fazer isso?”
Ele fitou-me de cenho carregado. “Eu conheço Alteia e Brashen muito
melhor do que tu. Se houver alguma espécie de problema, acho que serei
melhor a avaliar o que fazer.”
“Referia-me às saias. Tens de continuar a ser Âmbar?”
A cara dele ficou imóvel. Falou mais baixo, enquanto as saias pendiam
nas suas mãos. “Acho que acrescentar mais verdades difíceis ao que a
tripulação e capitães têm de absorver neste momento só tornaria as nossas
vidas mais complicadas. Eles conhecem-me como Âmbar, portanto é
Âmbar quem tenho de continuar a ser.”
“Não gosto dela”, disse eu abruptamente.
Ele soltou uma gargalhada. “A sério?”
Falei com honestidade. “A sério. Não gosto de quem és quando és
Âmbar. Ela… ela não é uma pessoa que eu escolheria como amiga. É…
intriguista. Trapaceira.”
Um meio sorriso encurvou-lhe a boca. “E eu, enquanto Bobo, nunca fui
trapaceiro?”
“Desta forma não”, disse eu, mas perguntei a mim mesmo se estaria a
mentir. Ele troçara publicamente de mim quando julgara que isso seria
politicamente vantajoso. Manobrara-me por forma a fazer o que precisava
que eu fizesse. Mas mesmo assim não modifiquei o olhar.
Ele inclinou a cabeça para mim. “Julguei que tínhamos ultrapassado tudo
isto”, disse em voz baixa.
Eu não disse nada. Ele baixou a cabeça como se conseguisse ver as mãos
enquanto prendia a faixa das saias. “Penso que é melhor que eles continuem
a ver-me como Âmbar. E se vais sair da cabina para procurar os outros,
penso que é melhor que eu vá contigo.”
“Como queiras”, disse eu de forma hirta. Depois, infantilmente,
acrescentei: “Mas não vou ficar à tua espera.” Saí do pequeno espaço,
fechando a porta atrás de mim, não ruidosamente, mas com firmeza. A ira
estava numa quente fervura dentro da minha garganta e peito. Fiquei algum
tempo parado no corredor, dizendo a mim mesmo que o que estava a sentir
pelo meu amigo vinha simplesmente de ter passado demasiado tempo
fechado dentro de quatro paredes apertadas, e não era verdadeira ira.
Respirei fundo e voltei a sair para o convés.
Um vento fresco estava a soprar e o sol brilhava, espalhando prata pela
água. Fiquei um bocado parado, deixando os olhos adaptar-se e a saborear o
vento na cara. Depois da cabina acanhada, sentia-me como se tivesse o
mundo inteiro à minha volta. À distância, a água dançante que nos rodeava
estava salpicada de ilhas verdes. Erguiam-se abruptamente da água como
cogumelos a brotar do chão da floresta. Inspirei profundamente, ignorei o
olhar carrancudo de Cord, que parara o seu trabalho para me observar, e fui
procurar os jovens extraviados a meu cargo.
Encontrei Centelha e Per encostados à amurada ao lado de Lante. A mão
de Centelha estava praticamente a tocar a de Lante na amurada. Suspirei de
mim para mim. Todos os três fitavam taciturnos o horizonte. Quando ocupei
um lugar atrás deles, Lante olhou para mim. “Está tudo bem?”, perguntei-
lhe.
Ele ergueu uma sobrancelha. “Tenho fome. Ninguém na tripulação quer
falar comigo. Não durmo bem à noite. E como estais vós?”
“Mais ou menos na mesma”, disse. Os capitães tinham reduzido as rações
de toda a gente.
No dia em que o Modelo Ideal ignorara o canal que nos teria levado para
a Baía dos Mercadores e para Vilamonte, os capitães e a tripulação tinham-
no confrontado. “Eu não serei amarrado a um cais”, declarara o Modelo
Ideal. “Não deixarei que me levem a ficar com cabos amarrados, para me
poderem arrastar para uma praia.”
“O que queremos não é frustrar-te os planos”, dissera Brashen. “É apenas
embarcar alguma água e comida. Entregar a carga que íamos lá deixar. E
enviar algumas mensagens para Vilamonte, Trehaug e Kelsingra. Modelo
Ideal, para aquelas pessoas nós simplesmente desaparecemos! Vão pensar
que o pior nos aconteceu.”
“Oh, o pior?” A voz dele ficara matreira. “Então vão pensar que o navio
louco rolou e afogou outra tripulação.” Houvera ácido na sua voz e os olhos
de dragão tinham rodopiado rapidamente. “Não é isso o que queres dizer?”
A ira cobrira a cara de Brashen com um espasmo. “Talvez. Ou talvez os
nossos mercadores de Vilamonte e os clientes dos Ermos Chuvosos pensem
que nos tornámos ladrões, ficando com os seus bens e fugindo para os
vender noutro sítio. Talvez percamos as únicas coisas que restam a Alteia e
a mim, os nossos bons nomes.”
“As únicas coisas?”, perguntou o navio. “Queres então dizer que gastaste
cada centavo do tesouro de Igrot? Foi uma bela sorte inesperada para ti
quando te levei a ele!”
“Resta o suficiente, talvez, para mandar fazer um navio resistente que te
substitua. Um navio de madeira que permita que levemos uma vida simples.
Se alguém consentir em voltar a negociar connosco depois de nos
transformares em mentirosos e aldrabões.”
“Substituir-me? Ah! Impossível! Eu sou a única razão para teres
prosperado, seu mimado e perdulário filho da…”
“Parem com isto”, interviera Alteia, aproximando-se mais da figura de
proa, aparentemente sem medo. “Modelo Ideal, sê razoável. Sabes que
precisamos de água doce para beber. Sabes que precisamos de comida. Não
nos abastecemos para uma viagem longa. Tínhamos o suficiente a bordo
para chegarmos a Vilamonte e um pouco mais. E era tudo. E já passámos
disso há dias. Se nos obrigares simplesmente a continuar em frente, vamos
morrer à sede. Ou à fome. E tu hás de chegar ao sítio para onde vais, seja lá
onde for, com um convés cheio de cadáveres — incluindo o cadáver de
Âmbar. E depois como é que obténs a tua Prata para te transformares em
dragões?”
Não havia racionalidade naqueles rodopiantes olhos azuis. Ele virou o
olhar para a água. “Há montes de peixes que podem comer.”
E assim continuámos a navegar e Alteia e Brashen cortaram as rações. E
sim, havia peixe naquelas águas e humidade na sua carne cozinhada. A
tripulação puxara o suficiente para bordo todos os dias para complementar
os biscoitos e a carne salgada que nos restavam. Passáramos por duas
tempestades primaveris e Alteia ordenara que fosse instalada tela limpa e
canalizara a água da chuva para barris a fim de se reabastecer as nossas
magras reservas. E continuáramos ainda a navegar, atravessando a região
conhecida como Litoral Maldito, com as suas barras arenosas móveis e
águas tóxicas, e seguíramos adiante até começarmos a ver os ilhéus
dispersos e depois as ilhas propriamente ditas das Ilhas dos Piratas.
Matizada desceu e sobressaltou-me ao pousar no meu ombro. “Bem,
onde tens tu estado?”, disse eu ao corvo em jeito de saudação.
“Navio.” Ela proferiu a palavra em tom de urgência. “Navio, navio,
navio.”
“Estamos num navio”, concedi.
“Navio! Navio, navio, navio!”
“Outro navio?”, perguntou-lhe Per, e ela acenou violentamente com a
cabeça para cima e para baixo, concordando: “Navio, navio.”
“Onde?” Empurrei a palavra para ela tanto com a Manha como com a
voz. Como sempre, senti-me como se estivesse a gritar para o fundo de um
poço.
“Navio!”, insistiu o corvo e lançou-se do meu ombro. O vento apanhou-a
e atirou-a para o céu. Ergui os olhos para seguir o seu voo. Ela subiu e
subiu, muito mais alto que o mastro do navio. Depois, pairou, baloiçando ao
vento. “Navio!”, gritou, e a sua palavra alcançou-nos já ténue.
Ant estava a meio caminho do topo do mastro. Ao ouvir o grito do corvo,
olhou em volta, examinando todo o horizonte antes de subir ainda mais alto.
Quando alcançou o cesto da gávea no topo do mastro, percorreu com o
olhar o horizonte e depois, apontando: “Vela!”, gritou.
Num instante, Brashen tinha-se juntado a Alteia no convés. Ambos
olharam para cima e seguiram o dedo de Ant. A cara de Brashen estava
séria.
“O que se passa?”, perguntei baixinho a Âmbar.
“Provavelmente não é nada”, respondeu ela. “Mas em certa época a
passagem pelas Ilhas dos Piratas podia custar-te a vida. Ou a liberdade, ou a
carga. Quando Kennit assolava estas passagens, construiu um império,
passando de capitão pirata a rei. Não pedia resgate pelos navios que
capturava. Em vez disso nomeava um dos homens que lhe eram leais como
capitão e mandava-o piratear, ficando com uma parte do saque que ele
capturasse. Tripulava os navios que assim obtinha com escravos fugidos, ou
por vezes com os mesmos homens que tinha derrotado. De um único navio
passou a dois, depois a meia dúzia e depois a uma frota. Transformou-se
num líder e depois num rei.” Fez uma pausa. “E num rei bastante bom,
como se veio a revelar.”
“Mas um maligno sacana na mesma.” Alteia aproximara-se em silêncio
enquanto Âmbar falava.
Âmbar virou-se, sem mostrar nenhum sinal de surpresa. “Isso também é
verdade. Segundo alguns.”
“Segundo eu”, disse bruscamente Alteia. “Mas agora as próprias Ilhas
dos Piratas são atormentadas por piratas. E se não é um navio pirata que vos
apanha, pode ser um dos navios tarifários, vindo para cobrar um ‘imposto
de passagem’. Como os piratas, mas com muito mais papelada.” Virou-se
para Per. “Aquele teu corvo. Fala. Há alguma hipótese de nos poder dizer
que navio avistou?”
Per abanou a cabeça, surpreendido por ser destacado. “Ela diz palavras,
mas não tenho a certeza de que sabe sempre o que está a dizer. Ou de que
podia distinguir uma espécie de navio de outra.”
“Estou a ver.” Alteia caiu num silêncio pensativo.
“Estás preocupada com o que pode acontecer se aquele navio for Vivácia
ou outro navio vivo?” Âmbar largou a pergunta como se estivesse a deixar
cair pedrinhas numa lagoa de águas paradas.
A resposta de Alteia foi tão calma que perguntei a mim mesmo se teria
perdoado a Âmbar. “A ideia ocorreu-me. Sim, é uma preocupação. Ainda
não podemos saber como a Prata vai afetar o Modelo Ideal, ou se ele poderá
alguma vez transformar-se completamente num dragão. Preferia não criar
nenhuma desgraça para todos os navios vivos e todas as famílias de navios
vivos até sabermos como esta experiência vai acabar.”
Senti Brashen a vir juntar-se-nos antes de ele surgir na minha visão
periférica. Tinha a presença de um predador, e a minha sensação de Manha
dele estava debruada com uma fúria escarlate. Consegui manter as mãos
descontraídas e os ombros baixos, mas não foi fácil.
A boca de Alteia moveu-se, como se ela pensasse em palavras e as
rejeitasse. “Neste momento, Âmbar, tens uma ligação com o Modelo Ideal
melhor do que Brashen ou eu. E tenho de te pedir para usares qualquer
influência que tenhas sobre ele.”
“O que queres de mim?”
“Se aquela vela for um navio vivo, julgamos melhor manter-nos
afastados. No entanto, se for um navio normal de madeira, gostaríamos de
nos aproximar e ver se é possível comprar-lhes provisões. Qualquer coisa
seria bem-vinda, mas precisamos principalmente de água.” Virou o olhar
para mim. “Nos Ermos Chuvosos recolhemos água da chuva de cisternas de
madeira instaladas bem alto nas árvores. É cara e tentamos só levar aquela
de que precisamos. Normalmente não é seguro beber do rio e dos seus
afluentes.” Suspirou. “Racionar comida já é bastante duro. Mas em breve
teremos de voltar a cortar a ração de água, a menos que o Modelo Ideal nos
deixe aportar nalguma das Ilhas dos Piratas para embarcarmos água. Ou que
encontremos um navio que tenha água doce suficiente para querer vender
alguma.”
Vi os seus ombros subir e descer com o profundo suspiro que soltou.
Depois rolou-os para trás, endireitando-os, e eu senti a minha admiração por
ela crescer. Possuía aquela espécie de coragem extrema que eu raramente
vira em homens ou mulheres. A enfrentar o fim de tudo o que conhecera na
vida — o fim de tudo o que esperava que a sua vida seria —, apesar disso,
pensava não só na tripulação mas também naqueles que tripulavam os
outros navios vivos de Vilamonte. E no navio que ainda amava, mesmo
estando ele a preparar-se para a abandonar.
Veracidade. A esculpir o seu dragão. Era isso que ela me fazia lembrar.
Âmbar articulou em voz alta a minha questão. “Então… Perdoaste-me?”
Alteia deu à cabeça um curto abanão. “Não mais do que perdoei a Kennit
por me ter violado. Ou a Kyle por me ter tirado Vivácia das mãos. Para
algumas coisas não há perdão nem condenação. Há simplesmente uma
encruzilhada e uma direção seguida, quer eu queira quer não. Outra pessoa
pôs os meus pés nesse caminho. Tudo o que posso controlar é cada passo
que dou depois disso.”
“Lamento”, disse Âmbar baixinho.
“Lamentas?”, perguntou Brashen, incrédulo. “Agora dizes que
lamentas?”
Âmbar ergueu um ombro. “Eu sei que não mereço perdão por aquilo que
fiz. Não quero que pareça que o espero, com base numa velha amizade.
Mas digo-o agora para que todos saibam que é verdade. Lamento que tenha
sido isto o que eu tive de fazer. Alteia tem razão. Os acontecimentos
colocaram os meus pés num caminho. Tudo o que posso fazer é dar o passo
seguinte.”
“O navio tem as cores das Ilhas dos Piratas!”, gritou-nos Ant lá do alto.
“E está a virar de bordo para nos cortar o caminho. E avança depressa.”
“O mais certo é ser um navio tarifário”, sugeriu Brashen. Franziu o
sobrolho ao horizonte. “Se for, vai intersetar-nos de certeza, para exigir
inspecionar a nossa carga e cobrar-nos passagem por estas águas.”
“E como nós transportamos artefactos dos Antigos vindos de Trehaug e
de Kelsingra — artigos que se destinavam originalmente a Vilamonte —, o
valor que lhes vão atribuir, e por conseguinte as tarifas sobre esse valor,
ultrapassarão em muito a nossa capacidade de pagar. Vamos ser detidos nas
Ilhas dos Piratas e vamos ser obrigados a escolher entre mandar buscar os
fundos ou entregar parte da carga para pagar a tarifa — carga essa que não é
nossa para a usarmos para pagar dívidas. Carga essa que fomos contratados
para transportar para Vilamonte.” Alteia falava como se as palavras fossem
feitas de espinhos.
Brashen riu-se sem humor. “E se nos recusarmos a ser abordados pelos
agentes tarifários das Ilhas dos Piratas, ou se nos recusarmos a segui-los
para o porto até que a tarifa seja paga, vão procurar forçar a entrada no
Modelo Ideal e tomar o controlo do navio. E não fazemos ideia de como ele
reagirá a isso.”
“Na verdade, temo ter uma ideia muito clara de como ele vai reagir”,
disse Alteia. “Acho que fará os possíveis por afundar o outro navio, com
pouca misericórdia pela tripulação.” Abanou amargamente a cabeça antes
de se virar de novo para Âmbar. “Por isso vou pedir-te para usares cada
migalha de influência que tenhas para o convenceres a ser razoável. Para
deixar que eles atraquem e conversem connosco. Vai haver problemas com
as tarifas, mas aportar há de dar-nos pelo menos a oportunidade de
embarcarmos comida e água. Ou de libertar a tripulação.”
“Libertar a tripulação?” Havia alarme na voz de Âmbar.
Alteia mostrou-se resoluta. “Todos os que quiserem partir. Seja o que for
que vai acontecer com o Modelo Ideal, e connosco, não vejo nenhuma
vantagem em levá-los a todos atrás. Quanto mais depressa saírem do convés
do Modelo Ideal, mais depressa poderão encontrar outro emprego. Outras
vidas.”
“Como pode o Modelo Ideal chegar a Clerres sem tripulação?”,
perguntou Âmbar.
“Terá uma tripulação mínima.” Fitou Âmbar de cima a baixo. “Vais ter de
te livrar dessas saias e relembrar-te de como se trabalha num convés.”
Inclinou a cabeça na minha direção. “E ele também. E o Lante e os jovens.”
Abri a boca para responder, mas Âmbar falou rapidamente. “Eu estou
cega. Mas o que puder fazer, farei. Faremos todos. E vou fazer tudo o que
possa para encorajar o Modelo Ideal a ser razoável. Não tenho nenhum
desejo de que isto seja pior do que tem de ser.”
“Pior”, disse Brashen em voz baixa, com uma terrível dúvida na voz.
“Como pode ser pior?”
Como que em resposta à sua pergunta, passou por mim uma vaga de
qualquer coisa que me fez girar como se fosse uma forquilha de vedor.
Parecia palpável como o vento, mas o que passava por mim não era ar mas
sim Talento e Manha, entretecidas uma à outra e deslocando-se pela
madeira-de-feiticeiro do navio de uma forma que eu reconheci mas não
compreendia. Reconheci-a porque fizera o mesmo — fizera-o sem pensar
ou compreender nos tempos em que começara a tentar dominar as minhas
magias. Fizera-o porque não soubera como separá-las. Fora-me dito que o
meu Talento estava maculado com Manha, e eu compreendera que a minha
Manha possuía em si nuances de Talento. Lutara por separar as duas, por
usar o Talento adequadamente. E tivera sucesso. Quase.
Mas agora sentia aquilo a ondular e a percorrer o navio, e não me parecia
errado mas puro. Como se duas metades de alguma coisa tivessem sido
reunidas num todo. Era poderoso e durante algum tempo não me consegui
concentrar em nada além do espanto que aquilo me causou.
“Oh, não!”, disse Alteia em voz baixa, e foi então que compreendi que os
outros também estavam cientes do que se estava a passar. Mantinham-se
todos imóveis, de expressões congeladas, como se estivessem à escuta dos
uivos distantes de lobos esfomeados. Todos à exceção de Perseverança, que
olhou de rosto em rosto e depois perguntou: “O que se passa?”
“Alguma coisa está a mudar”, sussurrou Centelha. Apesar de fascinado
como estava com o fluxo de magia, mesmo assim notei com um pequeno
canto da mente a forma como a mão dela subiu para agarrar o antebraço de
Lante e como ele pousou a mão sobre a dela para a sossegar. Algo estava
realmente a mudar, e não era só o navio. Senti Âmbar a agarrar-se à minha
manga.
Alteia e Brashen moveram-se como se uma só vontade os controlasse,
avançando a passos largos para a coberta de proa. No alto, Matizada
continuava a descrever círculos enquanto crocitava “Navio, navio!”.
Seguimo-los e Clef passou por nós numa correria. Tão abruptamente como
começara, a vaga de magia passou. Alteia e Brashen tinham chegado à
coberta de proa.
O Modelo Ideal virou-se lentamente para os fitar. “Que foi?”, perguntou
com brandura, erguendo uma sobrancelha interrogadora.
Tive um único instante de desconexão antes de o óbvio me atordoar. Ele
observava-nos com a minha cara, à exceção dos olhos azuis-claros. “É
precisamente aquela a expressão que o Príncipe FitzCavalaria põe quando
está perplexo”, observou Per, respondendo a uma pergunta que eu nem
mentalmente formulara. Devagar, o Modelo Ideal virou-nos costas. Ergueu
o braço, oferecendo as costas do pulso ao céu. Matizada desceu para ir lá
pousar, completando a minha absoluta confusão.
“Navio!”, disse-lhe o corvo.
“Estou a vê-lo. É um navio tarifário. É melhor virarmos de bordo e
depois informá-los de que os vamos seguir até Partilhas para pagar os
impostos devidos.” Deitou uma olhadela para trás, para dirigir aos seus
capitães um sorriso arrapazado. “A base de Vivácia é em Partilhas, não é?
Tenho a sensação de que vai estar lá. Vai ser tão bom voltarmos a ver o
Moss-O, não vai? E a Rainha Etta tem lá a sua corte. Talvez Ideal
Fidekennit ache finalmente por bem voltar a percorrer o meu convés.
Vamos içar um pouco mais de velas e aumentar a velocidade.”
“Modelo Ideal, que jogo estás tu a jogar?”, perguntou Brashen em voz
baixa.
A figura de proa não se virou para ele. “A jogar? Que queres tu dizer
com isso?”
“Porque foi que reassumiste a cara antiga?”, perguntou Brashen.
“Porque reassumi. Não é esta a que preferes? Aquela que me faz parecer
mais humano?”
“Tu és humano.” Âmbar proferiu aquelas palavras com suave clareza.
“Humano e dragão. Possuidor das memórias de ambos. Repleto do sangue e
das memórias daqueles que tripularam o teu convés, que sangraram e
morreram sobre ele. Começaste como as cascas de dois dragões, é verdade.
Mas transformaste-te em algo que não é só dragão, mas está também
imbuído de humanidade.”
O Modelo Ideal manteve-se em silêncio.
“E no entanto, mudaste de cara”, prosseguiu Âmbar, “para que o Moss-O
te visse com o aspeto que te conhece e não ficasse alarmado.” Perguntei a
mim mesmo se ela estaria a adivinhar ou se o saberia.
“Mudei de cara porque me convinha mudar.” O Modelo Ideal proferiu as
palavras em tom de desafio.
A resposta de Âmbar foi branda. “E convinha-te mudar porque gostas do
Moss-O. Modelo Ideal, não há vergonha em seres quem e o que és. Em
pertenceres a dois mundos e não a um só.”
Ele virou-se para a fitar e o azul dos seus olhos era azul de dragão. “Eu
vou voltar a ser dragões. Vou mesmo.”
Âmbar acenou lentamente com a cabeça. “Sim, eu acredito que vais. Tal
como Vivácia e os outros navios vivos. Mas serão dragões como nunca
existiram. Dragões tocados de humanidade. Dragões que nos compreendem.
Talvez até dragões que gostam de nós.”
“Tu não sabes o que estás a dizer! Dragões esculpidos pelo toque
humano? Sabes o que isso é? Abominações! É isso o que eles são, aqueles
que eclodem e crescem na Ilha dos Outros. Aqueles que são tanto humanos
como serpentes, e portanto não são nem uma coisa nem a outra! E nunca
serão dragões. Eu serei dragões!”
Eu pouco compreendi daquela explosão, mas Âmbar pareceu entendê-la.
“Sim. Sim, claro, tu serás dragões. E a parte de ti que se vai lembrar da
humanidade não estará na asa, no dente ou no olho. Estará na memória. Tal
como as serpentes do mar recordam as memórias que lhes fizerem falta
daqueles que foram serpentes antes delas, e como um dragão recorda o seu
conhecimento ancestral. Terás um conjunto adicional de memórias. As tuas
memórias humanas. E esse conjunto dar-te-á uma sabedoria superior à que
os outros dragões têm. Tu e os dragões que foram navios vivos irão ser
dragões à parte dos normais. Uma nova espécie de dragão.”
Ele virou-nos costas a todos. “Não fazes a mínima ideia do que estás a
sugerir. Olhem. Eles vão saudar-nos em breve. Não deviam ir fazer o que
têm a fazer?”

O capitão do navio tarifário era um jovem. A barba ruiva que lhe debruava
o queixo era irregular e, embora ele usasse um chapéu de boa qualidade
com várias imensas plumas, julgo que ficou aliviado quando Brashen lhe
gritou que nos dirigíamos para Partilhas para nos submetermos à taxação.
“Então eu sigo-vos”, declarou, como se estivesse prestes a exigir que nos
rendêssemos.
“Podes tentar à vontade”, convidou o Modelo Ideal com afabilidade. E de
facto, depois de estarmos de novo a caminho, ele demonstrou a diferença
entre um navio vivo e um navio feito de madeira. Com o mesmo vento e
corrente, nós fomo-nos adiantando firmemente à embarcação tarifária. Na
verdade, se o Modelo Ideal tivesse querido fugir dele, a perseguição do
navio tarifário teria sido fútil.
Ninguém nos pediu para sairmos do convés, portanto fiquei junto à
amurada com a minha pequena comitiva, desfrutando do vento na cara.
“Como é que ele faz isto?”, perguntei a Âmbar e senti Per aproximar-se
mais para ouvir a resposta.
“Na verdade não sei. Alisa o casco, acho eu. E ao contrário de muitos
outros navios, um navio vivo nunca desenvolve uma barba de algas e
mexilhões. O casco dele nunca tem de ser raspado e pintado, e nenhum
poliqueta irá abrir buracos nas suas tábuas.”
Passámos o resto da tarde a ver as ilhas aproximar-se. Não demorou até
mesmo o Modelo Ideal ter de abrandar a fim de navegar entre ilhéus para
chegar àquilo que fora em tempos uma cidade escondida, um lugar para
onde os piratas iam a fim de partilharem os despojos e beber e jogar e obter
todos os prazeres que pudessem. Em tempos fora um lugar para onde
escravos fugidos podiam ir a fim de começar uma nova vida como gente
livre. Eu ouvira histórias que falavam de um lugar ruidoso de águas
estagnadas, casebres mal-amanhados e pontões semiarruinados.
Mas o Modelo Ideal seguiu um canal bem assinalado até um porto bem
organizado onde grandes veleiros, claramente mercantes, estavam
ancorados na baía enquanto navios mais pequenos e barcos de pesca se
encontravam amarrados a um ordenado conjunto de cais. Uma cidadezinha
próspera estendia-se a partir do porto, num quadriculado de ruas e vielas.
Árvores que não reconheci ladeavam as ruas, carregadas de flores amarelas.
A rua principal levava a um grande edifício mais ou menos do mesmo
tamanho do solar de Floresta Mirrada, mas era aí que terminavam as
semelhanças. O palácio da Rainha Etta fora construído em madeira, pintado
de branco, com longos alpendres abertos na fachada. Um relvado rodeava-
o, de tal forma que ficava visível, mesmo do porto, por trás das filas de
armazéns e lojas. Enquanto eu olhava, apercebi-me de que a altura dos
edifícios fora reduzida para terem precisamente esse efeito: a residência
régia elevava-se acima da cidade e, das varandas superiores e da torre, tinha
uma vista desimpedida do porto.
“Aquela é a Vivácia?”, perguntou Lante.
Virei o olhar. “Não sei, mas é de certeza um navio vivo.” Era uma criação
régia, uma mulher jovem com a cabeça bem erguida e os bem torneados
braços e pulsos cruzados ao peito. O cabelo era uma cascata negra de
caracóis que lhe caíam sobre os ombros nus e sobre os seios. Vi nos seus
traços orgulhosos um eco de Alteia, como se as duas fossem parentes.
Quando Centelha descreveu em voz baixa a embarcação a Âmbar, esta
acenou com a cabeça. “Vivácia”, confirmou. “O navio vivo da família
Vestrit. O seu comando foi roubado a Alteia através da crueldade e de
estranhas voltas do destino. Agora quem a comanda é o sobrinho dela, o
Wintrow. Brashen serviu a bordo de Vivácia durante anos, como imediato
do pai de Alteia. Isto será agridoce para ambos.”
Vivácia oscilava levemente, ancorada no porto. As velas do Modelo Ideal
foram lentamente recolhidas e, quando uma pequena flotilha de dóris veio
ao nosso encontro, cabos foram atirados e o Modelo Ideal entregou os seus
movimentos ao comando deles. Pouca atenção prestei a tudo isso. Preferi
fitar Vivácia enquanto nos aproximávamos. Ela virou a cara para nós, e a
princípio a expressão foi a de uma mulher interrompida enquanto refletia
em privado. Depois, ao reconhecer o navio, um sorriso nasceu nas suas
feições. Vivácia estendeu os braços em boas-vindas e, apesar de tudo o que
acontecera a Alteia e ainda a aguardava, ouvi a nossa capitã gritar uma
saudação jubilosa.
Os dóris puxaram o Modelo Ideal para uma posição em frente de Vivácia
e a sua âncora foi largada. Um longo barco saiu do cais e veio atracar a nós,
e uma mulher com um chapéu extravagante e um casaco de bom corte por
cima de bragas negras gritou que ficaria feliz por transportar o capitão e um
manifesto da nossa carga à Casa Tarifária. Alteia gritou de volta que os
acompanharia alegremente dentro de pouco tempo; a oficial tarifária
desejava subir a bordo e verificar a carga, dado existirem circunstâncias
incomuns que teriam de ser explicadas?
A oficial estava inclinada a fazê-lo. Mas eu distraí-me desse processo por
aquilo que estava a ocorrer no convés do Modelo Ideal. Com vários tons de
relutância e ira, a tripulação estava a reunir-se. A maioria trouxera das
cobertas as sacas de marinheiro. Os sacos de tela não eram grandes mas
continham a maior parte das posses de cada marinheiro, se não todas. Ant
chorava em silêncio, com lágrimas que lhe corriam pela cara abaixo
enquanto fazia despedidas. Cord atirou o saco para junto da rapariga e
agachou-se ao seu lado. O olhar que nos deitou foi hostil.
Tomei uma decisão que me surpreendeu, pois nem me tinha apercebido
de que estava a pensar nisso. “Lante, uma palavrinha contigo”, disse, e
afastei-o dos outros. Encostei-me à amurada, a erguer o olhar para Partilhas.
Ele ocupou o seu lugar ao meu lado, com o cenho levemente carregado.
Suspeitei que sabia qual era o meu tema, mas duvidei que soubesse qual
seria a direção que a conversa seguiria. Indiquei a cidade com um aceno.
“Não é mau sítio. Parece limpo, com negócios legítimos. E há montes de
comércio e de tráfego a passar por cá.”
Ele acenou com a cabeça, com uma carranca a crescer entre as
sobrancelhas.
“Tu e Centelha podiam sair-se bem aqui. E eu ficaria grato se também
acolhessem Per. Fiquem com os presentes que nos foram dados em
Kelsingra. Tem cuidado com o modo como os venderes; obtém o valor
completo. Deve haver dinheiro suficiente para os manter a todos durante
algum tempo, e o bastante para enviar Per de volta para Torre do Cervo.”
Ele ficou brevemente em silêncio. Quando se virou para me fitar, os
olhos estavam duros. “Assumistes algumas coisas a meu respeito que não
me agradam.”
“Assumi?”, perguntei friamente. “Eu vejo como ela te segue; vejo a mão
dela no teu braço.” Então, o que devia ter sido uma ira justificada dissolveu-
se subitamente em cansaço. “Lante. Espero que gostes realmente dela. Não
é uma criada para ser montada e posta de parte. Breu escolheu-a. Ela veio
connosco, e eu nunca esperei que nada disto acontecesse. Preferia que
tivesse ficado com ele. Mas está aqui, e eu espero que tu…”
“Estais a insultar-me. E a ela.”
Parei de falar. Era tempo de escutar. O silêncio roeu-o até que o encheu.
“Nós realmente partilhamos um… uma atração. Não sei como pudestes
pensar que se poderia ter transformado em mais do que isso num navio tão
cheio como este. E independentemente do que ela sinta por mim, a sua
lealdade para com Âmbar é maior. Não a vai abandonar.”
Baixei a cabeça perante aquilo.
“Duvido que acrediteis com tanta facilidade no que vos vou dizer a
seguir. O meu pai solicitou-me uma tarefa e eu disse que a cumpriria o
melhor que fosse capaz. Se não conseguirdes aceitar que eu posso sentir
alguma lealdade para convosco, ficai sabendo que sou filho do meu pai.
Posso não chegar ao nível que esperais, mas vou ficar ao vosso lado até esta
coisa atingir o fim. De uma forma ou de outra.” A sua voz ficou
subitamente mais densa. “Eu não cumpri bem o meu dever para com
Abelha. Nem quando tentei ensiná-la, nem quando a deixastes à minha
guarda. Ela era uma criança estranha e difícil. Não vos irriteis comigo!
Tendes de saber que é verdade. Mas eu devia ter agido melhor para com ela,
mesmo se protegê-la com uma espada nunca tivesse sido algo que eu
esperava fazer. Ela era minha prima e uma criança à minha guarda, e eu
falhei-lhe. Julgais que não me tenho atormentado com isso? Ir vingá-la é
algo em que tenho um interesse que ultrapassa qualquer dever que possa ter
para convosco ou o meu pai.”
“O Bobo pensa que Abelha pode ainda estar viva.”
Aquilo trouxe de volta os olhos dele ao encontro dos meus. Vi neles
piedade. “Eu sei que sim. Mas porquê?”
Respirei fundo. “A Abelha tinha um diário de coisas que sonhava. Eu li-
lhe as entradas e ele acha que têm significados que ultrapassam aquilo que
eu compreendo. Julga que Abelha tinha antevisão e que alguns dos seus
sonhos prediziam que ela sobreviveria.”
A cara dele ficou parada por um momento. Depois abanou a cabeça. “É
cruel acenar com essa esperança à vossa frente, Fitz. Se bem que encontrá-
la viva e trazê-la para casa me tiraria de cima dos ombros um enorme peso
de culpa.” Fez uma pausa. Não consegui arranjar nenhuma resposta a dar
àquilo. Depois, ele prosseguiu: “Digo isto como amigo, se alguma vez me
tivestes em tal conta. Concentrai o rumo na vingança, não num salvamento.
Não há qualquer garantia de serdes capaz de o levar a cabo. Podemos
também não ter sucesso na vingança, mas eu estou determinado a fazê-los
saber que tentámos.”
Um amigo. A minha mente prendeu-se naquela palavra, e perguntei a
mim próprio se o sentiria como amigo. Sabia que tinha acabado por contar
com ele. E agora tinha de admitir que alguma da ira que sentira com o seu
possível relacionamento com Centelha provinha de saber que teria de os
libertar a ambos. Fiz a pior pergunta possível, irrefletidamente. “Então tu e
a Centelha não estão…?”
Ele fitou-me. “Não me parece que tenhais o direito de fazer essa pergunta
a nenhum de nós. Podeis não ter reparado, mas eu sou um homem feito e de
nascimento nobre. Não vosso igual, talvez, mas não sou vosso criado. E
Centelha tampouco é criada vossa, ou seja de quem for. É tão livre para
decidir o rumo da sua vida como eu sou.”
“Está sob a minha proteção e é muito nova.”
Ele abanou a cabeça. “É mais velha do que parece, e mais experiente nos
assuntos deste mundo do que muitas mulheres com o dobro da sua idade.
Certamente viu mais do lado duro da vida do que Esquiva alguma vez viu.
Ela tomará as suas próprias decisões, Fitz. E se quiser a vossa proteção,
pedi-la-á. Mas duvido que peça para ser protegida de mim.”
Eu não achava que a nossa discussão tivesse terminado, mas ele virou-se
e afastou-se. E quando o segui com relutância, só encontrei Per à espera
com ele. “Onde estão Âmbar e Centelha?”
“A Dama Âmbar foi mudar de roupa. Alteia pediu para os acompanhar
até terra. Centelha foi ajudá-la. É claro que Alteia e Brashen pensam que
Âmbar devia estar com eles quando se sentarem a discutir o nosso futuro
com o Almirante Windrow Vestrit. À tripulação foi oferecida ‘licença de
terra’ — o que é, julgo eu, um convite para que abandonem o navio aqui.
Dois terços deles aceitaram-na.”
Pequenos barcos já tinham partido da cidade. Vendedores estavam a
apregoar de tudo nos barquinhos, desde legumes frescos até transporte
grátis à Casa das Meninas da Tia Rosa. Vi a nossa tripulação partir, pondo
as sacas de marinheiro ao ombro enquanto subiam a amurada e desciam
para os dóris que os aguardavam. Alguns estavam aglomerados perto da
coberta de proa, a despedir-se do Modelo Ideal. O navio estava a ser gentil
com eles mas inabalável na sua determinação. Do outro lado da extensão de
água que nos separava de Vivácia, ela observava-nos com expetativa,
olhando para todos os barquinhos que se separavam do nosso. Ant estava ao
lado de Clef a observar a partida dos companheiros. Kitl ficou; Cord partiu.
Twan foi até à amurada com a saca de marinheiro, após o que se virou,
praguejou fluentemente, e pontapeou o saco ao longo do convés, para
dentro da escotilha que levava aos aposentos da tripulação. Cypros foi
pegar-lhe no braço. Ambos se dirigiram para junto de Ant.
“Vai com Âmbar e Centelha”, ordenei a Lante.
“Não fui convidado.”
“Âmbar é cega e Centelha é, como outros além de ti poderão notar, uma
rapariga muito bonita. Partilhas foi uma cidade pirata e tenho a certeza de
que ainda lá vivem homens com corações de piratas. Eu sei que Alteia e
Brashen não as levariam deliberadamente para uma situação perigosa, mas,
se houver perigo, gostaria que tivessem um homem que só estivesse
determinado a protegê-las.”
“Porque não ides pessoalmente?”
“Porque te estou a enviar a ti”, respondi eu com maus modos. Centelhas
de ira saltaram para os seus olhos e eu modifiquei a resposta torta com:
“Quero ficar no navio e ver o que acontece aqui. E também quero
encarregar-te de mais uma tarefa. Encontra alguém que tenha aves
mensageiras. Um mercador rico, de preferência, alguém que tenha
contactos para que um invólucro com uma mensagem possa ser transferida
de ave em ave até chegar a Torre do Cervo. Gostaria de mandar notícias de
que estamos vivos e bem e a prosseguir viagem.”
Ele ficou um momento em silêncio. Depois perguntou: “Direis a Breu,
Respeitador e Urtiga que a Dama Âmbar julga que Abelha pode ainda estar
viva?”
Abanei a cabeça. “Quando realmente souber que temos boas notícias para
lhes dar, dá-las-ei. Eles não devem ser obrigados a viver em incerteza até
esse momento.”
Ele estava a acenar lentamente com a cabeça. Abruptamente, disse: “Eu
faço isso. Mas… não quereis escrever uma mensagem adicional por mim?
Se houver neste navio algum pergaminho para mensagens?”
“Ainda me resta um pouco do que Reyn me deu. É material precioso.
Não queres escrever tu mesmo?”
“Não. Preferia que escrevêsseis vós. Uma nota para Dom Breu. Só para
dizer que… que estou a fazer o que ele me pediu. E a fazê-lo… bem. Se
puderdes convencer-vos a dizer isso de mim. Mas podeis dizer o que
quiserdes. Não a lerei antes de a enviar. Dizei-lhe simplesmente que
continuo ao vosso lado e a servir-vos.” Afastou o olhar de mim. “Se
quiserdes.”
“Posso facilmente fazer isso”, disse eu devagar.
Regressei à cabina de Âmbar e escrevi cuidadosamente uma nota em
letras minúsculas dirigida a Breu. O fino pergaminho era quase translúcido.
Mesmo assim, havia pouco espaço para dizer muito mais além de eu estar
muito contente com o serviço que FitzVigilante me estava a prestar. Posso
ter mencionado que em várias ocasiões ele tinha sido fundamental para me
conservar vivo. Soprei a nota e sacudi-a para que secasse e depois enrolei-a
bem para fazer com que coubesse no invólucro de osso oco que a protegeria
durante a viagem. No osso propriamente dito inscrevi o nome de Breu e
CASTELO DE TORRE DO CERVO, CERVO, NOS SEIS DUCADOS.
Tinha uma longa e demorada viagem a fazer. Ao confiá-lo a um
embaraçado Lante, perguntei a mim mesmo se alguma das nossas
mensagens para casa teria já sido recebida. Não a selara com cera e ele
compreendeu que isso era o meu convite para que lesse o que eu escrevera.
Mas não havia tempo para nenhuma discussão, pois todos os outros
estavam ansiosos por chegar a Partilhas. Decidi que deixaria a cargo de
Lante compor uma mensagem que explicasse onde estávamos e a peculiar
natureza do navio vivo em que nos encontrávamos.
Apressara-me, mas mesmo assim obrigara o grupo de desembarque a
esperar. Alteia fez um aceno amigável a Vivácia antes de se virar e descer a
escada que levava ao barco de remos que a aguardava. O navio vivo ficou a
observar o nosso grupo enquanto este descia e encontrava lugar no barquito.
O seu sorriso dilatou-se, mas depressa se desvaneceu num olhar perplexo
quando o pequeno barco se dirigiu diretamente para Partilhas.
A longa tarde foi passando, e Per e eu mantivemo-nos sentados a uma
das mesas da cozinha, fazendo ociosamente rolar uns dados que pertenciam
à tripulação e deslocando pinos por um tabuleiro. Não me conseguia
interessar por ganhar ou perder, portanto joguei mal, para descontentamento
de Per. Para a minha Manha, o navio parecia vazio, quase cavernoso, com a
maior parte da tripulação ausente. Clef e vários dos marinheiros mais
velhos reuniram-se na outra extremidade da mesa. Kitl tinha feito comida
na cozinha e era animador voltar a cheirar carne a cozinhar. Quando ela nos
chamou para comer, houve arrulhos de admiração vindos da tripulação.
Uma grande tigela de verduras frescas revelou-se ainda mais sedutora do
que as estralejantes fatias de carne. Chalotas, vagens de ervilhaca, caules
estaladiços de um vegetal que eu não conhecia, tudo misturado com
cenouras que não eram maiores que o meu polegar e rabanetes picantes de
cor púrpura. Cada um se serviu para pratos de estanho. As fatias de carne
estavam duras e tinham um cheiro um pouco desagradável, mas ninguém
protestou. Os tripulantes comeram a carne com uma pasta branca que era
tão picante que me fez lacrimejar e deitar muco pelo nariz quando a
experimentei. Mas ninguém se riu de mim nem transformou aquilo em
piada.
Per e eu comemos na nossa ponta da mesa, separados dos membros da
tripulação. Os olhares de viés que recebemos eram claros lembretes de que
eles não tinham esquecido quem estava na raiz dos seus problemas. Clef
carregou o cenho à óbvia separação e veio juntar-se-nos, enchendo o lugar
vazio à mesa da cozinha entre nós e a tripulação.
Depois de termos comido e de Ant ter recolhido os pratos, Clef juntou-se
ao nosso jogo. Eu rolava os dados e movia os meus pinos mas Clef e Per
sabiam que só estavam a competir um contra o outro. Enquanto eles
jogavam, eu mantinha uma orelha atenta à conversa preocupada da
tripulação. Os marinheiros mais antigos falavam “dos velhos tempos”. Uns
poucos tinham estado presentes quando o Modelo Ideal fora arrastado para
fora da praia onde definhara durante muitos anos e rebocado de volta a
águas profundas. Outros falaram de quando o navio enfrentara uma frota de
embarcações vulgares e ajudara o Sátrapa de Jamaília a apresentar a sua
pretensão ao poder. Lembraram-se de camaradas que tinham morrido no
convés do navio e confiado as memórias às tábuas de madeira-de-feiticeiro.
Lop, que não fora o tipo mais inteligente do mundo mas sempre fizera a sua
parte do esforço. Semoy, imediato durante algum tempo até chegar um ano
em que perdera a força e se reduzira a ossos e tendões, acabando por morrer
enquanto enrolava um cabo. E falaram sobre o pirata Kennit. O Modelo
Ideal fora o navio da sua família, mas esse segredo não era conhecido
enquanto Kennit estivera vivo e andara a piratear. Eram ainda menos os que
sabiam que Igrot, o pirata notoriamente cruel, roubara tanto o navio como o
rapaz Kennit à família deste e maltratara ambos. Mesmo depois de o
Modelo Ideal ser reunido com Kennit, este tentara usar o fogo para o enviar
para o fundo. Mas no fim, quando Kennit estava moribundo, o Modelo
Ideal acolhera-o de volta e recebera-o com gentileza. Era um mistério que
eles ainda discutiam em voz baixa. Como podia um navio tão voluntarioso
mostrar-se tão carinhoso? Estariam agora as memórias de Kennit em
movimento pelo navio, fazendo-o recordar-se de Partilhas?
A minha especulação era silenciosa. De quem seriam as memórias que
guiariam o Modelo Ideal de regresso a Clerres? Decidi que deviam ser de
Igrot. Os pensamentos e feitos desse velho pirata nefando espreitariam das
profundezas dos ossos de madeira-de-feiticeiro do navio? Até que
profundidade estaria a sua madeira de dragão embebida das memórias da
sua família e tripulação humanas?
E perguntei a mim mesmo como se teria sentido Alteia a capitanear um
navio que albergaria para sempre as memórias do seu violador. Quanto do
pirata ainda se esconderia no navio que queria ser dois dragões?
Questões inúteis.
Per venceu o jogo e Clef levantou-se da mesa. Parecia cansado e triste e
muito mais velho do que parecera quando chegáramos a bordo. Olhou para
as caras em redor e ergueu a caneca de água doce. “Camaradas de bordo até
ao fim”, disse, e os outros concordaram com as cabeças e beberam com ele.
Foi um estranho brinde, que me espevitou a culpa até a transformar em
brasas brancas de tão quentes. “Fico com a vigia da amarra”, anunciou, e eu
compreendi que esse não era o seu dever habitual. Suspeitei que o passaria
perto da figura de proa. O espião em mim perguntou a si mesmo se
conseguiria ser testemunha das palavras que fossem trocadas entre os dois.
Quando Per propôs outro jogo, eu abanei a cabeça. “Tenho de passear um
bocado depois da refeição”, disse-lhe, e deixei-o a arrumar o jogo.
Encostei-me à amurada e observei a cidade pirata enquanto a noite estival
ia descendo. O céu escureceu, passando de azul-claro ao azul que antecede
o negro, e Âmbar e os demais continuaram a não regressar. Per veio juntar-
se a mim no convés para ver o surgimento das luzes de Partilhas. Era um
lugar animado; chegou-nos música por sobre a água, e mais tarde soaram os
gritos zangados de uma rixa de rua.
“Provavelmente vão passar a noite na cidade”, disse eu a Per e ele acenou
com a cabeça como se não se importasse ou se preocupasse.
Retirámo-nos para a cabina de Âmbar. “Tendes saudades de Floresta
Mirrada?”, perguntou-me ele de repente.
“Não penso muito em Floresta Mirrada”, disse-lhe. Mas pensava. Não
tanto na casa, mas nas pessoas e na vida que houvera lá. Que vida, e durante
uns anos demasiado escassos.
“Eu penso”, disse Per em voz baixa. “Às vezes tenho saudades de estar
tão seguro do que a minha vida ia ser. Eu ia ficar mais alto do que o meu pai
e ser o Altissimomem, e assumir o trabalho dele nos estábulos quando ele
envelhecesse.”
“Isso ainda pode acontecer”, disse eu, mas ele abanou a cabeça. Passou
algum tempo em silêncio. Depois contou-me uma longa história sinuosa
sobre a primeira vez que tivera de tratar de um cavalo muito mais alto do
que ele conseguia alcançar. Reparei que não conseguia falar do pai sem
chorar. Quando se silenciou, eu olhei pela janela e fitei as estrelas por cima
da cidade. Dormitei durante algum tempo. Quando acordei, a cabina estava
escura, à exceção de uma mancha de luz vinda de uma lua quase cheia. Per
estava profundamente adormecido e eu perfeitamente acordado. Sem
nenhuma verdadeira ideia do que me acordara, encontrei as botas de que me
livrara antes, calcei-as, e saí da cabina.
No convés, a lua e as luzes que ainda ardiam em Partilhas transformavam
a noite num lugar de profundos cinzentos. Ouvi vozes e avancei em silêncio
na direção da proa.
“Estás a arrastar âncora.” Clef fez a acusação num tom factual.
“A maré está a criar correntes e o fundo é suave. Não é propriamente
culpa minha que a âncora não aguente.” O Modelo Ideal soava tão
impertinente como um rapaz.
“Vou ter de despertar todos os membros da tripulação que ainda tenho a
bordo para te manter no lugar, içar âncora e voltar a largá-la.”
“Talvez não. Parece-me que agora está a aguentar. Talvez tenha sido só
um pequeno deslizamento.”
Mantive-me imóvel, a respirar baixinho. Olhei para a cidade e tentei
determinar se o navio se tinha movido. Não consegui decidir. Quando olhei
para Vivácia, tive a certeza que sim. A distância entre os dois navios vivos
tinha-se reduzido.
“Oh, não. Estou outra vez a deslizar.” As palavras do navio como que
pediam perdão, mas o tom era alegre. Aproximámo-nos mais um pouco de
Vivácia. Esta parecia inconsciente de nós, com a cabeça caída para a frente.
Estaria a dormir? Um navio feito de madeira-de-feiticeiro precisaria de
dormir?
“Modelo Ideal!”, avisou Clef.
“Outra vez a deslizar”, anunciou o navio e o nosso progresso na direção
do outro navio vivo era agora inconfundível.
“Todos!”, rugiu Clef de repente. O seu assobio trespassou a paz da noite.
“Todos ao convés!”
Ouvi gritos e o estrondo de pés a bater no chão na coberta e depois o
Modelo Ideal a dizer: “Vivácia! Estou a arrastar âncora. Agarra-me!”
Vivácia despertou num sobressalto, erguendo a cabeça e esbugalhando os
olhos. O Modelo Ideal estendeu-lhe os braços numa súplica e, após um
momento, ela estendeu os seus para ele.
“Cuidado com o gurupés!”, gritou ela, e foi por pouco que evitaram esse
desastre. O Modelo Ideal pegou numa das mãos dela e, com uma
impressionante exibição de força, puxou-se para junto dela. Isso pôs ambos
os navios a balançar furiosamente e eu ouvi gritos de alarme vindos da
tripulação de Vivácia. Num momento, o Modelo Ideal abraçou-a com um
braço apesar dos esforços dela para o afastar.
“Fica quieta!”, avisou ele. “Senão vais emaranhar-nos por completo.
Quero falar contigo. E quero tocar-te enquanto falo.”
“Afastem-no!”, gritou ela à sua tripulação, que apareceu a correr
enquanto ela empurrava futilmente o peito esculpido do outro navio. Clef
estava a gritar ordens à sua tripulação e alguém lhe lançava pragas furiosas
do convés de Vivácia, exigindo saber que espécie de idiota era ele. Clef
tentou gritar uma explicação enquanto bradava ordens à sua tripulação.
O riso do Modelo Ideal trovejou sobre a cacofonia, silenciando-os a
todos. Exceto a Vivácia. “Afastem-no de mim!”, foi a ordem gritada por
Vivácia. Mas o Modelo Ideal limitou-se a mudar o lugar onde a agarrava,
dos caracóis para a nuca, puxando-a para trás de tal forma que os seios nus
do outro navio se empinaram na sua direção. Para meu espanto, ele
inclinou-se para baixo e beijou um. Enquanto ela guinchava de indignação e
lhe agarrava a cara com as mãos de unhas compridas, ele aumentou a força
com que lhe agarrava no cabelo. Depois ergueu a mão livre e pegou numa
mancheia dos cabos que engrinaldavam o gurupés dela. Não prestou
qualquer atenção às pancadas que ela lhe dava.
“Não tentem afastar-me!”, disse, num aviso, à tripulação dela. “Afastem-
se da coberta de proa. Todos! Clef, ordena a todos para recuarem. E vocês,
tripulação da Vivácia, voltem para os beliches. A menos que o Moss-O
esteja convosco. Mandem-no ter comigo se ele estiver aí. Se não, deixem-
nos sós!” Voltou a baixar a cabeça e tentou beijar Vivácia na cara, mas ela
agarrou-lhe o cabelo às mancheias e tentou arrancar-lho do escalpe. Ele
deixou-a afundar as mãos no cabelo e depois, de repente, fê-lo endurecer
em madeira esculpida sob o seu toque. “Achas que esta madeira sente
dor?”, perguntou-lhe. “Não sente, a menos que eu lhe diga para sentir. Mas
o que é que tu sentes quando eu te beijo? Lembras-te da indignação de
Alteia quando Kennit a forçou? Conservaste essa memória, ou a memória é
só minha, uma dor dela que eu absorvi para que ela pudesse sarar? Tal
como recolhi a dor de Kennit por tudo o que Igrot lhe fez. Só te restam
memórias humanas? O que sentes tu, navio de madeira? Ou será que um
dragão ainda espreita em ti? Em tempos chamaste a ti mesma Faísca.
Lembras-te disso? Lembras-te da fúria de uma fêmea de dragão rainha
quando se ergue em voo e desafia todos os dragões a dominá-la? O que és
tu neste momento, Vivácia? Uma mulher a lutar contra um homem, ou uma
fêmea rainha a desafiar o seu parceiro a dominá-la?”
Abruptamente, ela parou de lutar, paralisando as feições numa expressão
aristocrática de gélido desdém. Depois, indiferente à mão dele no seu
cabelo, ela baloiçou a cabeça para a frente e fitou-o com olhos que ardiam
com a verdadeira luz do ódio. “Navio louco!”, chamou-lhe. “Pária! Que
doidice é esta? Queres afundar-te aqui mesmo no porto de Partilhas? Não és
parceiro digno de mim, seja eu mulher ou dragão.”
Pelo canto do olho, vi um barco a ser descido de Vivácia e quatro homens
a remar furiosamente na direção de Partilhas, sem dúvida a fim de alertar
alguém e exigir auxílio. Se o Modelo Ideal o viu partir, não lhe prestou
qualquer atenção.
“Tens a certeza disso?” Enquanto ele pronunciava as palavras, senti a
ondulação da mudança percorrer o navio.
“Tenho a certeza”, disse Vivácia com desdém. Virou-lhe a cara. “O que
queres de mim?”, perguntou em voz baixa.
“Quero que te lembres de que és um dragão. Não um navio, não uma
criada dos humanos que te fazem navegar, não um ser assexuado
encurralado na forma de uma mulher. Um dragão. Tal como eu sou.”
Enquanto falava, ia mudando, recuperando a sua forma semidracónica.
Descobri que tinha cruzado com força os braços ao peito e erguido as
muralhas. Usando o Talento e a Manha, tentei conter-me, como as presas
fazem quando um predador as ameaça. Vi o cabelo escuro e ondulado no
crânio dele transformar-se na crista escamosa de um dragão, vi o seu
pescoço a tornar-se mais comprido e sinuoso.
Mas, de tudo, o que mais me espantou foi o que observei na cara de
Vivácia. A expressão dela transformou-se em pedra. A luz que brilhava nos
seus olhos tornou-se forte e dura ao testemunhar a transformação. Não se
retraiu nem um pouco perante ele.
Quando a transformação ficou completa, quando senti a magia aquietar-
se, ela finalmente falou. “O que te leva a pensar que eu alguma vez esqueci
que sou um dragão? Mas e daí? Queres que ponha de parte a vida que tenho
para ansiar por aquilo que está perdido? Que vida ganharia eu? A de um
navio louco, acorrentado a uma praia, isolado e evitado?” Percorreu com o
olhar a figura de proa transformada do Modelo Ideal. “Ou brincar aos
dragões? Patético.”
Ele não se retraiu perante o escárnio dela. “Tu podes ser um dragão.
Como estavas destinada a ser.”
Silêncio. Depois, numa voz baixa que podia conter ódio ou estar cheia de
piedade, ela disse: “Tu és mesmo louco.”
“Não, não sou. Põe de parte as memórias humanas, põe de parte o tempo
que passaste a ser um navio. Volta atrás, para lá do longo aprisionamento no
teu casulo, para lá do tempo que passaste como serpente. Consegues
lembrar-te de ser dragão? De todo?”
Julguei sentir a magia de novo em movimento. Talvez fluísse de navio
em navio, do Modelo Ideal para Vivácia. Captei as bordas de memórias
flutuantes como se sentisse o cheiro de comida estrangeira. Voei batendo
asas sobre a floresta; o vento encheu-me as velas e eu cortei as vagas. Voei
sobre vales de densa folhagem verde, mas os meus olhos eram penetrantes e
eu conseguia sentir cada bafejo de calor vindo de carne viva, carne da qual
eu me poderia alimentar. Desloquei-me através de água, fria e profunda,
mas, por baixo de mim, conseguia sentir vibrações sombrias de ser, outras
criaturas, escamosas como eu tinha sido em tempos, livres como eu tinha
sido em tempos. Descobri que estava a avançar, atraído para aquele mundo
de asas e maravilha. Fica fora do alcance dele, pensei tenuemente, e quase
perguntei a mim mesmo se Olhos-de-Noite ainda espreitava dentro de mim
para me dirigir aquele aviso lupino. Mas eu avançara até onde conseguia
ver a cara de Vivácia e um perfil parcial do Modelo Ideal. Que humanas e
estranhas eram aquelas caras.
“Não”, disse o Modelo Ideal. “Recua mais. O máximo que conseguires
alcançar. Toma. Isto. Lembra-te disto!”
E de novo senti aquela vaga de magia, a Manha e o Talento entrelaçados
numa ferramenta mais afiada do que qualquer espada.
Um dia, durante a Batalha da Ilha da Armação, um homem atingira-me
com o cabo da espada na parte lateral da cabeça. Isso não me detivera, e o
meu machado já caíra entre a ponta do seu ombro e a sua cabeça quando ele
me atingira. O golpe não trouxera muita força, mas deixara-me os ouvidos a
ressoar e durante algum tempo o mundo oscilara à minha frente,
estranhamente colorido. Eu sabia que isso acontecera, mas nunca o
recordara. Mas quando fui mergulhado numa memória de dragão, foi como
se Urtiga me tivesse puxado para um sonho de Talento. A sensação era tão
semelhante que despertou essa antiga memória. Senti-me a oscilar, como
que devido a um golpe, e vi uma lagoa de prata cintilante rodeada por areia
negra e prateada, e além dos seus limites um prado de erva negra e prateada
e árvores de tronco branco com folhas negras mais para trás. Pisquei os
meus olhos humanos, tentando focar a imagem em cores conhecidas. Mas
em vez disso vi um dragão, verde como só as pedras preciosas são verdes, e
igualmente reluzente.
Ele veio do horizonte, a princípio pequeno e depois a tornar-se maior e
maior até se transformar na maior criatura que eu vira na vida — maior que
Tintaglia, ou mesmo que Fogogelo. Aterrou na lagoa de prata, fazendo voar
repuxos de líquido prateado que rebentaram e se desfizeram na areia e nas
rochas negras, cobrindo-as brevemente com uma camada de prata. O dragão
mergulhou a cabeça e o pescoço serpentino naquela substância, espojando-
se e lavando-se nela como se fosse um cisne. As escamas pareceram
absorvê-la, e o verde ficou deslumbrante. Limpo por ela, baixou o focinho
para a água, bebeu e bebeu.
Quando saiu da lagoa e se compôs para descansar na margem relvada, eu
passei um longo momento a olhar para os seus olhos rodopiantes. Vi aí
idade. E sabedoria. E uma espécie de glória que nunca tinha visto nos olhos
de um homem. Por um instante de humildade, compreendi que estava a
olhar para uma criatura melhor do que eu era ou alguma vez poderia ser.
“Senhor? Príncipe FitzCavalaria?”
Despertei do sonho em sobressalto, sentindo ressentimento. Era Per, a
puxar-me pela manga, com os olhos esbugalhados e escuros na luz escassa.
“O que é, rapaz?” Queria que ele desaparecesse. Queria voltar a mergulhar
naquele mundo, conhecer aquele dragão e ficar melhor por conhecê-lo.
“Achei que quereríeis saber. O nosso barco vem aí, o mais depressa que é
capaz, com os capitães Alteia e Brashen, e Âmbar e Centelha e Lante. E
alguém do outro navio também vem.”
“Obrigado, rapaz.” Virei-lhe costas e tentei encontrar uma entrada para
regressar àquele sonho mágico. Mas, se não acabara, eu perdera o caminho.
Senti a magia ainda a fluir entre os dois navios vivos, mas não consegui
entrar para a partilhar. Vi apenas as duas figuras de proa. Apesar dos
gurupés, estavam o mais abraçadas que podiam estar, como se fossem
amantes aos quais tivesse sido negada a intimidade durante demasiado
tempo. A cabeça de Vivácia estava pousada no peito escamoso do Modelo
Ideal, com os olhos muito abertos mas sem ver. O pescoço dele, mais
comprido, tinha-se enrolado à volta dela como se fosse um cachecol e a sua
cabeça de dragão estava pousada no ombro dela. As mãos graciosas dela
repousavam nos ombros dele. Nenhuma inimizade ou incerteza se mostrava
no rosto dela. Não consegui ler a cara de dragão do Modelo Ideal para ter
um vislumbre do que ele estava a sentir mas enquanto o observava, ele
mudou. Era como ver o derretimento do gelo de um rio quando a água o
erode rapidamente. As suas feições foram regressando lentamente à sua
configuração humana. A sua expressão era terna enquanto abraçava Alteia.
Não, quem ele abraçava tão calorosamente era Vivácia. E de súbito vi-me a
abraçar Moli, conhecendo um raro momento de paz e sentindo-me amado, e
uma terrível perda e saudade cresceu em mim.
Fiquei suspenso daquele estranho quadro até ouvir a voz de Brashen. “O
que aconteceu?”, quis ele saber. “Como foi que o Modelo Ideal chegou até
aqui?”
“Arrastou a âncora, senhor.” A resposta de Clef soou formal, de imediato
para capitão.
“Isto não foi nenhum truque da maré ou uma má colocação da âncora”,
disse Alteia. “Quem fez isto foi o Modelo Ideal. Por um motivo.” O tom de
voz dizia que ela duvidava de que o motivo tivesse algum bom propósito.
Brashen e Alteia pararam bem longe do alcance da figura de proa, a
observar a quietude. Foi Âmbar quem passou por eles, livrando-se de
Centelha e Lante como se também ela fosse um navio a arrastar âncora.
“Âmbar. Não, por favor”, suplicou Alteia, mas Âmbar não parou.
Deteve-se bem ao alcance do Modelo Ideal e aguardou.
Vivácia ergueu a cabeça do ombro do Modelo Ideal e soltou um grande
suspiro. “O que nós fomos. Aquilo em que nos podíamos ter transformado.
Agora está perdido para nós. Os jovens dragões, as serpentes que eclodiram
em Trehaug e vivem agora em Kelsingra, eles podem voltar a transformar-
se nisso, daqui a um século. Mas nós não. Nós nunca.”
“Enganas-te.” A voz do Modelo Ideal era um trovejar inumano. “Âmbar
pode ajudar-nos a obter Prata. E com ela, julgo que podemos reunir o
suficiente do que éramos para nos transformarmos naquilo que devíamos ter
sido.”
Os navios separaram-se ligeiramente, quebrando o abraço para olhar para
Âmbar. “Não é certo”, disse esta. “E eu não farei promessas que posso não
ser capaz de cumprir. A Prata, sim, prometo que farei tudo o que puder para
vo-la obter. Mas será o bastante para vos transformar em dragões? Não sei.”
“E?”, perguntou subitamente Vivácia.
“E o quê?”, perguntou Âmbar, surpreendida.
A cara de Vivácia recuperou uma qualidade mais humana. “E o que é que
me pedes em troca? Foram os Mercadores que fizeram de mim o que sou. O
seu sangue e os seus pensamentos infiltraram-se no meu convés e
permearam cada fibra daquilo que sou. Nada é grátis quando se lida com
humanos. O que queres de mim?”
“Não que…” Mas a resposta de Âmbar desapareceu no grito sentido do
Modelo Ideal.
“Moss-O! Eu quero o Moss-O no meu convés para a minha última
viagem.” Já ostentava de novo a minha cara. Sensibilizado, perguntei a mim
mesmo se teria aquele aspeto quando pensava em recuperar a minha filha.
Nesse instante, quando falou, fê-lo com um coração humano. “Devolve-me
o que é verdadeiramente meu. E Ideal Fidekennit! Quero-o também. Foi-me
prometido com tanta frequência quando Kennit era rapaz no meu convés!
Ele dizia que teria um filho e lhe daria o meu nome! Suportei tantas coisas
pela família dele, tanta dor! Sem mim, ele nunca teria existido! Quero-o.
Quero que ele me veja e me conheça como o navio da sua família. Antes de
eu me transformar em dragões e o deixar para sempre.”
“Para sempre…” Ouvi aquele sussurro desamparado de Alteia e
compreendi que até àquele momento ela se atrevera a ter esperança de que o
Modelo Ideal pudesse mudar de ideias, ou pelo menos conservar alguma
ligação a ela e a Brashen depois de se ter transformado.
“Modelo Ideal!” Um grito vindo do convés de Vivácia, um grito de boas-
vindas na voz grave de um homem.
Vi um jovem com cerca de vinte e cinco anos e uma densa juba de cabelo
escuro encaracolado e um sorriso pronto. Estava bronzeado até ao tom do
mogno e a sua camisa retesava-se nos ombros largos. Qualquer um que
tivesse visto Brashen e Alteia, compreenderia que era filho deles. Erguia
uma lanterna, e era evidente que não fazia a mais pequena ideia do que se
estava a passar. Olhava com alegria para o seu navio natal.
“Trellvestrit!”, gritou alguém atrás dele, mas Moss-O já pousara a
lanterna e trepara o gurupés de Vivácia. Correu agilmente ao longo do
mastro e depois, sem hesitação, atirou-se na direção do Modelo Ideal. Este
largou imediatamente Vivácia. Apanhou e ergueu o jovem como eu em
tempos erguera os filhos pequenos de Respeitador e, como eu fizera então,
fingiu atirá-lo ao ar antes de voltar a segurá-lo bem. Ágil como um
acrobata, o homem aceitou este tratamento e riu alto por ter sido apanhado.
Libertando-se dos dedos do navio, subiu para cima das mãos do Modelo
Ideal e depois atirou-se para trás, fazendo um mortal antes de voltar a
aterrar com ligeireza nas mãos estendidas do navio. Era claro que aquele era
um jogo dos seus tempos de infância, um jogo que ambos recordavam com
prazer. O Modelo Ideal podia ter partido Moss-O ao meio com as suas
grandes mãos de madeira, mas segurou-o à distância de um braço e os dois
estudaram-se um ao outro, e o homem sorria ao erguer o olhar para a cara
do navio.
Sem que eu reparasse, e talvez também sem que o Modelo Ideal notasse,
cabos tinham sido atirados a homens em pequenos barcos a remos, e estes
estavam a rebocar o Modelo Ideal numa direção e Vivácia na outra,
segurando ambos com as respetivas correntes de âncora ao separarem-nos
até distância segura. Perguntei a mim mesmo se Moss-O estivera ciente do
plano e depois perguntei a mim próprio se o Modelo Ideal se importava. Ele
já fizera a sua súplica junto de Vivácia e tinha metade do que pedira, e a
expressão na cara de Moss-O era uma máscara de destemido amor pelo seu
navio. Não surpreendia que o Modelo Ideal tivesse tido saudades dele.
“Príncipe Fitz…”
“Chiu”, disse eu a Per. Estava a observar Alteia e Brashen. O conflito em
que estavam mergulhados mostrava-se claramente nos seus rostos. Amor
pelo filho, preocupação por vê-lo nas mãos do navio, mas também aquele
carinho por verem os dois juntos. Moss-O disse qualquer coisa ao Modelo
Ideal quando o navio o apanhou e a figura de proa atirou a cabeça para trás
e rugiu gargalhadas. Olhando para eles, mal conseguia acreditar que aquele
era o mesmo ser que se mostrara tão supremamente despreocupado com o
bem-estar da sua tripulação. Quase esperava que Brashen ou Alteia
gritassem um aviso ao filho, mas eles ficaram ambos em silêncio e à espera.
Perguntei a mim mesmo se teriam confiança no jovem ou no navio.
Quando o Modelo Ideal se torceu para o pousar no convés, ouvi Moss-O
dizer ao navio: “Tive tantas saudades tuas! A Vivácia é um ótimo navio,
mas está sempre séria. E o Primo Wintrow é um excelente capitão mas tem
uma mesa muito simples. Mãe! Papá! Aí estão! O que vos traz a Partilhas
sem uma ave a avisar-nos da vossa vinda? Eu estava na oficina do
fabricante de velas quando me vieram buscar a correr! Se soubéssemos que
aí vinham, teriam tido muito melhores boas-vindas!”
“Ver-te é sempre boas-vindas suficientes para nós!”, exclamou
animadamente o pai enquanto Moss-O descia das mãos do Modelo Ideal. A
figura de proa estava com um sorriso tão largo enquanto olhava para os três
por sobre o ombro que eu mal consegui reconciliar o que estava a ver com o
que vira antes.
Âmbar, esquecida por todos, retirara-se. Estendi o braço e toquei-lhe a
manga, dizendo baixinho: “É o Fitz”, e ela veio ter comigo com um suspiro
trémulo de alívio, abraçando-me o braço como se eu fosse destroços num
mar revolto. Estava sem fôlego. “Eles estão todos em segurança? Alguém
ficou ferido?”
“Todos em segurança. O Moss-O está com os pais. E com Clef. E parte
da tripulação.”
“Eu estava aterrorizada.”
Vi-a tentar acalmar-se e falei num tom tranquilizador. “Mas o Modelo
Ideal agora parece calmo. Afável.”
“Ele é dois, Fitz. Dois dragões. Acho que foi isso que o enlouqueceu, e às
vezes sinto que tem duas naturezas. Um é arrapazado, um brincalhão que
anseia desesperadamente por afeto e companheirismo. O outro é capaz de
quase tudo.”
“Acho que vi os dois esta noite.”
“Então somos todos afortunados por Moss-O ter trazido à superfície a
natureza mais amável dele. Quando irado, não há forma de saber o que um
navio vivo pode fazer a outro.”
“Eles lutam? Um navio vivo pode ser morto?”
“Um navio vivo pode ser destruído com fogo. Ou desfigurado, como o
Modelo Ideal foi.” Inclinou a cabeça e refletiu. “Nunca ouvi falar de uma
altercação física entre navios vivos. Invejas e rivalidades. Discussões. Mas
não que tenham chegado a confronto físico.”
Tomei consciência de que Per estava ali perto, à escuta. Nas sombras
atrás dele, Centelha aguardava ao lado de Lante.
“Vamos voltar para a cabina?”, sugeri. “Estou ansioso para saber o que
aconteceu em terra.”
“Por favor”, respondeu Âmbar e, quando começámos a caminhar nessa
direção, ela apoiou-se mais pesadamente ao meu braço. Mas antes de
conseguirmos alcançar a cabina, Clef veio à nossa procura.
“Os capitães querem falar com todos no camarote deles. Por favor.” Ele
acrescentou a cortesia, mas aquilo não era um pedido.
“Obrigado. Vamos diretamente para lá.”
Clef acenou com a cabeça e desapareceu em silêncio na escuridão. A
noite caíra sobre o porto. Lanternas ardiam nos mastros de navios próximos
e luzes de lâmpadas brilhavam nas janelas mais distantes de Partilhas, mas
eram apenas centelhas mais brilhantes sob a vasta extensão de estrelas que
se erguiam sobre nós no céu noturno. Olhei para cima e de súbito ansiei
ferozmente por uma boa floresta e solo debaixo dos pés e presas que
pudesse matar e comer. Pelas coisas simples que tornavam boa a vida.
Capítulo 17

Cuspo de Serpente

Meus rei e rainha, e estimada Dama Kettricken.


Cheguei ao meu destino e tive várias reuniões com o Rei Reyn e a
Rainha Malta dos Mercadores dos Dragões. A Mercadora Khuprus,
mãe do Rei Reyn, também estava presente, em representação dos
Mercadores dos Ermos Chuvosos. Esta inclusão foi algo inesperado
com que tive de lidar.
Os dois curandeiros de Talento que me acompanharam conseguiram
efetuar algumas pequenas tarefas curativas nas pessoas de cá.
Acautelei-os contra trabalhos de maior vulto, pois ambos me
disseram que a influência do Talento é aqui forte e pode levar as
suas mentes para longe. E também é preciso ter em conta que
trabalhos de vulto podem merecer grandes favores em troca, e
infelizmente não prevejo que isso aconteça.
Tanto o rei como a rainha asseveram que têm pouca influência junto
dos dragões, e não podem ordenar-lhes que parem os ataques às
nossas manadas e rebanhos. Na verdade, os governantes deles
parecem ter pouca autoridade também sobre o seu povo, visto que
todas as grandes decisões são tomadas por consenso. Não sei bem
como lidar com uma situação destas. De igual forma, a Mercadora
Khuprus também não pode falar por ninguém que não pertença à
sua família, dizendo que quaisquer contratos que desejemos fazer,
isto é, curas em troca de bens comerciais, têm de ser aprovados pelo
Conselho dos Mercadores.
Lembro-me de que me aconselhastes a ser tão generosa quanto
possível durante este primeiro encontro. Mas, na minha opinião, se
dermos com demasiada liberalidade aquilo que esta gente tanto
deseja, perderemos muita da nossa capacidade negocial.
Os utilizadores de Talento que enviastes comigo sugerem que talvez
fosse melhor estabelecer um centro de tratamento nos Seis Ducados
e aconselhar as pessoas dos Ermos Chuvosos a procurar os nossos
serviços lá, onde é mais fácil lidar com a corrente de Talento. Aqui,
a influência do Talento é tão forte que tenho de vos enviar esta
mensagem por ave.
Dentro de três dias embarcaremos de regresso a casa.
Ao vosso serviço,
Dama Rosamaria

N
ão nos atrevemos a ficar muito tempo em Siuelbe. Dwalia não
podia saber ao certo quantas pessoas nos teriam visto naquela
noite sangrenta e poderiam reconhecer-nos. Perguntou
repetidamente a Vindeliar até que ponto Kerf poderia lembrar-se dos factos
e quais poderia contar. “Ele não vai esquecer”, gemera Vindeliar. “Eu não
tive tempo para lhe dizer para esquecer. Obrigastes-nos a fugir. Ele vai ficar
confuso mas não vai esquecer o que fez. Vai falar. Se o magoarem o
suficiente.” Abanara a cabeça tosca com tristeza. “Eles falam sempre
quando os magoais assim tanto. Vós mostrastes-me isso.”
“E tu choramingaste e urinaste-te como um rafeiro pontapeado”,
respondera ela num tom vingativo. E assim, em vez de mandar Vindeliar
arranjar-nos magicamente um quarto numa estalagem, nessa noite
dormimos debaixo de uma ponte para ficarmos longe de olhares curiosos.
Assim que o sol iluminou o céu, obrigou-nos a entrar no rio gelado e tentar
lavar algum do sangue que tínhamos na roupa. Não ficámos sozinhos
durante muito tempo. Homens e mulheres vieram da cidade trazendo cestos
de roupa de vestir e de cama. Cada lavadeiro tinha a sua própria área ao
longo da margem rochosa, e instalaram os estendais e afastaram-nos da
margem do rio com olhares furiosos.
Dwalia levou-nos de volta para a cidade. Acho que não conhecia nada
além de cidades e ruas movimentadas. Eu teria procurado a floresta durante
algum tempo, para deixar as pessoas esquecer-nos. Mas ela silvou a
Vindeliar: “Torna-nos banais. Restaura a minha cara. Não deixes nenhum
ferimento em que eles reparem. Faz isso.”
Sei que ele tentou. Senti o bater da sua magia contra os meus sentidos.
Não me parece que o tenha feito muito bem. Mas numa cidade portuária
não é incomum encontrar-se gente pobre e não parecíamos estranhos ao
ponto de atrair muitos olhares. Ficámos bem longe da bonita estalagem e da
rua movimentada onde a Mercadora Akriel morrera. Dwalia levou-nos para
a parte do porto com pior aspeto, onde as tabuletas das estalagens estavam
cinzentas e a lascar, de tão gastas, e as sarjetas corriam esverdeadas e
fedorentas ao lado das ruas.
Eu e Dwalia acocorámo-nos fora de vista numa viela ou sentámo-nos na
margem da rua, de mão estendida a pedir, em vão. Vindeliar andou
lentamente a subir e descer a rua, em busca de uma presa fácil. Algumas
pessoas eram mais fáceis de influenciar do que outras. Ele tirou um pouco a
cada uma, algumas moedas aqui, algumas moedas ali. As pessoas davam-
nas voluntariamente, ou pelo menos assim o recordariam, mesmo se não se
conseguissem lembrar do porquê. Perto da noite, ele juntara o suficiente
para arranjarmos uma refeição quente e dormirmos dentro de uma das
estalagens baratas.
Não se parecia em nada com a estalagem para onde a Mercadora Akriel
me levara. A zona de dormir era simplesmente um sótão por cima da sala,
lá em baixo. Encontrámos espaço desocupado e deitámo-nos com a roupa
vestida. Não consegui evitar contrastar aquela noite com o futuro que quase
conquistara. Quando tive a certeza de que os outros dormiam, permiti-me
chorar. Tentei pensar em Floresta Mirrada, na minha casa e no meu pai, mas
essas coisas pareciam distantes e mais improváveis do que os meus sonhos.
Pois os sonhos vieram nessa noite ter comigo, apedrejando-me como
granizo. Depois de cada um, acordei sobressaltada, arrebatada pela
necessidade de o contar a alguém, de o escrever, de cantar sobre ele. Era
uma compulsão tão forte como quando temos de vomitar, mas eu reprimi-a.
Dwalia rejubilaria com eles, e eu não queria dar-lhe isso. E assim, o meu
sonho sobre a lenta parelha de bois que espezinhava uma criança numa rua
lamacenta, o meu sonho sobre uma rainha sábia que plantava prata e colhia
trigo dourado, o meu sonho sobre um homem que cavalgava um enorme
cavalo vermelho através do gelo até chegar a uma nova terra, todos foram
por mim reprimidos e engolidos. Se falavam de futuros, ela não os
conheceria. Manter aqueles sonhos dentro de mim fez com que me sentisse
doente e desgraçada, mas a satisfação que obtinha com qualquer pequena
forma que arranjasse para contrariar Dwalia ultrapassava o mal-estar.
No dia seguinte estava tão trémula que mal conseguia andar. Vindeliar
parecia preocupado comigo, ao passo que Dwalia ostentou um ar calculista.
“Temos de sair desta cidade e prosseguir viagem”, disse-lhe. “Examina as
mentes deles. Vê se alguém vai para Clerres. Ou se lá esteve.” Ele
convencera um padeiro a separar-se de um pão. Dwalia dividira-o, metade
para si e o resto para Vindeliar. Este fitara o pão com ar faminto e depois
dera-me com relutância metade da sua metade. Não era maior que o meu
punho, mas foi com dificuldade que o mordisquei até ao fim.
Ouvi Vindeliar falar a Dwalia em voz baixa. “Acho que ela está doente.”
Dwalia olhou para mim e sorriu. “Está. E eu estou contente. Isso quer
dizer que tenho razão, pelo menos em parte.”
As palavras não fizeram nenhum sentido para mim. À medida que o dia
foi passando, o meu mal-estar foi aumentando. Enrolei-me o mais longe
dela que a minha corrente o permitia e tentei dormir. Vindeliar cobrou as
suas pequenas taxas às pessoas que passavam. Dwalia ficou sentada como
um sapo a observar a cidade passar. Decidi testar a ideia que ela tinha de
que ninguém me ajudaria. Gritei por ajuda. Algumas pessoas viraram a
cabeça mas ela puxou-me pela corrente. “Escrava há pouco tempo”,
explicou Dwalia com despreocupação, e ninguém deu ouvidos à minha
conversa apressada sobre ela estar a mentir e eu não ser nenhuma escrava
mas ter sido raptada. Eu não passava de mais uma escrava estrangeira.
Um homem parou e falou com ela em comum, perguntando se eu estava
à venda. Os seus olhos não eram gentis. Dwalia respondeu que ele lhe podia
pagar por algumas horas comigo, mas que não podia comprar-me. Ele fitou-
me pensativamente. O terror inspirou-me e pus-me a vomitar, forçando um
fino fio de bílis a derramar-se-me da boca e a cair-me na roupa. O homem
abanou a cabeça, claramente sem vontade de compartilhar a minha doença,
fosse ela qual fosse, e foi-se apressadamente embora.
A doença capturou-me firmemente no dia seguinte. No agradável calor
do dia de verão, eu enrolei-me e tremi de frio. A luz brilhante do sol não
conseguia aquecer-me; só me agredia na escuridão rósea através das
pálpebras fechadas, enquanto a febre me devastava.
No chão cheio de lascas do sótão da estalagem, eu tremia e Vindelar
rolou e pôs um braço sobre mim. O seu cheiro era-me ofensivo. Não era a
sua sujidade ou suor; o que me repelia era o cheiro próprio dele. Tentei
livrar-me do seu braço, mas estava demasiado fraca. “Irmão, deixa-me
manter-te quente”, sussurrou. “A culpa não foi tua.”
“Culpa minha?”, ouvi-me a murmurar. Claro que não era. Nada daquilo
era culpa minha.
“Fui eu que o fiz. Fui eu que criei a brecha que te deixou fugir. A Dwalia
disse-me. Quando eu não fiz o que sabia que ela queria que eu fizesse, isso
abriu outro caminho para ti. E tu seguiste-o, levando-nos cada vez para
mais longe do Caminho. Portanto, agora temos de suportar dificuldades e
dor, no espinhoso trajeto de regresso ao Caminho. Quando estivermos outra
vez a caminho de Clerres, as nossas dificuldades vão-se atenuar.”
Tentei encolher-me para me livrar do braço dele, mas ele puxou-me para
mais perto. O seu fedor estava a toda a minha volta, causando-me vómitos a
cada inspiração. “Devias aprender esta lição, irmão. Depois de aceitares o
Caminho, tudo na vida é mais fácil. Dwalia guia-nos. Eu sei que ela parece
cruel. Mas só está zangada e dura porque tu nos levaste para tão longe do
verdadeiro Caminho. Ajuda-nos a voltar a ele e vai ser muito mais fácil
para todos.”
Aquelas palavras não soavam a ele, nem a Dwalia. Talvez estivesse a
papaguear alguma lição aprendida há muito tempo. Invoquei cada farrapo
de força de vontade de que dispunha. Forcei as palavras a sair. “O meu
caminho verdadeiro vai para casa!”
Ele deu-me palmadinhas no ombro. “Pronto. Tens razão, o teu Caminho
verdadeiro vai levar-te para a tua verdadeira casa. Agora que admites isso,
as coisas vão tornar-se mais fáceis.”
Odiei-o. Enrolei-me no chão, doente, zangada e impotente.

Dwalia mudou-nos para uma parte diferente da zona portuária e pôs-se a


cumprimentar os passantes para perguntar se algum tinha notícias sobre um
navio com rumo a Clerres. A maioria encolhia os ombros e os restantes
ignoravam-na. Eu enrolei-me sobre mim mesma, infeliz, e Vindeliar
manteve-se a alguma distância de nós enquanto andava de um lado para o
outro nas ruas e “pedia”. Escolhia aqueles que abordava e eu sabia que eles
tinham pouca capacidade de escolha quando ele fazia pressão com os seus
pensamentos contra os deles. Vi a relutância dessas pessoas ao enfiarem as
mãos em bolsas ou bolsos e fui testemunha da sua confusão ao afastarem-se
dele. Aquela zona não estava cheia de gente rica. Suspeitei que Vindeliar
mostrava misericórdia nos pequenos montantes que enfeitiçava cada vítima
para lhe dar, mas Dwalia descompunha-o sempre por não arrancar mais
dinheiro às vítimas.
Um dia, ele não arranjou dinheiro suficiente para dormirmos sob um teto.
Eu julgara que não podia sentir-me pior, mas quando o frio da noite chegou,
tremi até bater o dente.
Dwalia normalmente pouco reparava na minha desgraça, mas julgo que
nessa noite se preocupou com a possibilidade de eu morrer. Não fez nada
para me dar conforto, limitando-se a virar a fúria contra Vindeliar. “O que
se passa contigo?”, exigiu saber depois de as ruas se esvaziarem e deixar de
haver alguém ao alcance da sua voz, capaz de a ouvir repreendê-lo. “Tu eras
forte. Agora és inútil. Dantes controlavas uma coluna de mercenários,
escondendo-os da vista. Agora mal consegues arrancar um ou dois tostões
da bolsa de um agricultor.”
Pela primeira vez em muitos dias, ouvi uma nota de ânimo na voz dele.
“Tenho fome e estou cansado e estou longe de casa e estou descontente com
tudo o que vi. Eu esforço-me muito. Preciso…”
“Não.” Ela interrompeu-o furiosa. “Não precisas! Tu queres. E eu sei o
que tu queres. Achas que não sei quanto prazer obténs daquilo? Vi os teus
olhos rolar para trás com aquilo e como te babas. Não. Só resta um e temos
de o poupar para alguma necessidade mais urgente. Depois não haverá mais
para ti, Vindeliar. Nunca mais haverá, porque se tornou escasso desde que o
rapaz escravo de nove dedos libertou a serpente!”
Que estranha foi a ressonância daquelas palavras em mim, como uma
memória de algo que eu nunca vivenciara. Um rapaz escravo de nove
dedos. Quase conseguia vê-lo, de cabelo escuro e magro, forte apenas na
vontade. A vontade de fazer o que estava certo. “A serpente estava numa
lagoa de pedra”, sussurrei as palavras de mim para mim. Não fora um sonho
de uma serpente numa bacia, não.
“O que foi que tu disseste?”, perguntou Dwalia com vivacidade.
“Estou doente”, disse eu, uma repetição de palavras que tão
frequentemente dissera durante os últimos dias. Fechei os olhos e virei a
cara para o outro lado. Mas com os olhos fechados não conseguia controlar
as imagens que me enchiam a mente. O rapaz escravo veio à lagoa de
pedra; lutou com as barras de ferro que a cercavam. Após algum tempo,
abriu um caminho para a serpente deformada que serpenteou para fora da
lagoa e para dentro de água. Sim, para dentro de água, uma maré enchente.
Como podia eu recordar algo que nunca vira? E no entanto as ondas
rebentaram para o alto e para dentro da lagoa, voltando a enchê-la mas sem
a limparem. Tanto o escravo como a serpente se dissolveram em brancura.
Nada mais vi.
Abri os olhos para a aurora. Tínhamos dormido nas ruas, mas eu já não
me sentia arrepiada. Doía-me o corpo, como acontece depois de se dormir
sobre a terra dura ou depois de uma longa doença nos ter mantido imóveis.
Sentei-me devagar, ou pelo menos tentei. Dwalia tinha rolado para cima da
corrente. Agarrei na corrente com ambas as mãos e puxei-a de baixo dela.
Ela abriu os olhos para me deitar um olhar furioso. Rosnei-lhe.
Ela fez um ruído, uma fungadela com o nariz, como que para dizer que
não me temia. Decidi naquele momento que na vez seguinte que
adormecesse lhe daria motivo para voltar a temer-me. O meu olhar passou
com carinho pela pútrida dentada que lhe dera. Depois baixei o olhar para
que ela não adivinhasse os meus planos.
Ela pôs-se de pé de um salto e pontapeou Vindeliar. “A pé!”, disse. “Está
na altura de continuar. Antes que alguém pergunte a si mesmo porque deu
ontem metade das moedas a um pedinte.”
Acocorei-me e urinei numa sarjeta, tentando decidir quando teria perdido
toda a modéstia e, na verdade, todos os modos civilizados. A minha mãe
não me teria reconhecido com o cabelo emaranhado, a pele manchada de
poeira e as unhas nojentas. A roupa bonita que a Mercadora Akriel me tinha
dado não conseguia resistir à espécie de uso que eu lhe estava agora a dar.
Lágrimas subiram-me aos olhos quando pensei nela. Limpei-as com as
mãos, assim espalhando certamente poeira pela cara. Depois olhei para as
mãos. Bocados de pele solta aderiam aos meus dedos. Sacudi-os para os
limpar e, ao erguer o olhar, deparei-me com um esgar de satisfação de
Dwalia.
“O Caminho conhece-a mesmo que ela não conheça o Caminho”, disse
ela a Vindeliar, que parecia intimidado. Depois deu-me um forte puxão à
corrente e eu fui forçada a segui-la aos tropeções. Tinha comichão nos
braços e, quando os cocei, a pele soltou-se em finas camadas que se
enrolavam como teias de aranha sob o meu toque. Não era o pelar de uma
queimadura solar. A camada que saía de mim era fina como gaze e por
baixo a pele não estava rosada mas mais clara. Macilenta.
No porto, esquivámo-nos a carrinhos de mão e a carroças puxadas por
burros e a gente que transportava fardos às costas. Dwalia guiou-nos até
uma extensão de barracas de mercadores. Perante o cheiro a comida, o meu
estômago saltou no interior da garganta e sufocou-me. Havia dias que eu
não sentia fome, mas agora ela assaltava-me sem misericórdia, ao ponto de
me sentir tonta e trémula.
Dwalia abrandou e eu nutri a esperança de ela ter tanta fome como eu e
levar consigo algumas moedas para comida. Mas ela puxou-me até
pararmos numa multidão que ia crescendo em volta de um homem alto de
ombros largos que estava em pé sobre uma carroça. Usava um chapéu alto
listado de muitas cores. A sua capa tinha um colarinho que lhe subia até às
orelhas e também ela era listada. Eu nunca vira roupa como aquela. Atrás
do homem, na carroça, estava um armário de madeira com fila atrás de fila
de portinholas, cada uma de uma cor diferente e todas com um emblema
esculpido. Por cima da cabeça do homem, lenços e minúsculas campainhas
pendiam de uma armação de paus. O vento que vinha da água era quase
constante, e as campainhas tiniam e os lenços esvoaçavam. Até o grande
cavalo cinzento que aguardava pacientemente preso aos tirantes tinha fitas e
campainhas na crina. Eu nunca vira um espetáculo como aquele.
Durante aquele momento, a minha fome foi esquecida. Que coisas
maravilhosas podia um mercador como aquele estar a vender? Essa parecia
ser a questão em que toda a gente matutava. Ele falou numa língua que eu
não conhecia e depois mudou de repente para comum. “Uma sina para vós,
para guiar os vossos passos até um caminho afortunado! Trazida até vós de
um lugar distante! Uma prata por tal conhecimento faz-vos hesitar? Que
tolice! Onde mais, neste mercado, podeis separar-vos de uma prata e
receber sabedoria e sorte? Deveis casar? A vossa esposa vai engravidar?
Deveis plantar tubérculos ou folhosas este ano? Vinde, vinde, não precisais
de ter dúvidas! Encostai uma prata à testa e depois entregai-ma com a vossa
pergunta. A moeda dir-me-á qual das caixas abrir! Vinde, vinde, quem
experimentará? Quem será o primeiro?”
Dwalia soltou um ruído gutural que era como o rosnido de um gato.
Deitei um olhar a Vindeliar. Os olhos dele estavam muito abertos. Ele viu o
meu olhar e falou num sussurro. “Ele imita os pequenos profetas de Clerres,
os que são enviados pelos Quatro ao exterior. É proibido fazer o que ele está
a fazer! É uma fraude!”
Duas pessoas viraram-se para o fitar. Vindeliar baixou os olhos e
silenciou-se. O homem sobre a carroça continuava a tagarelar, em ambas as
línguas, e de súbito uma mulher acenou-lhe com uma moeda. Quando ele
lhe acenou de volta, ela fez uma pressão firme com a moeda na testa e
depois ofereceu-lha. Ele sorriu, pegou na moeda de prata e pressionou-a
contra a sua testa. Fez-lhe uma pergunta e ela respondeu. Depois anunciou
em comum ao resto da multidão: “Ela quer saber se a mãe e a irmã vão dar-
lhe as boas-vindas se fizer a longa viagem para as visitar.”
O homem voltou a pressionar a moeda contra a testa e de seguida esticou
o braço. A sua mão oscilou e descreveu círculos. Realmente pareceu que foi
a moeda a levar-lhe a mão para a portinhola que ele escolheu. Abriu-a, e
tirou dela uma noz. Isso sobressaltou-me. Era de ouro, ou pintada de
dourado. Ele bateu subitamente com a noz na testa, como se estivesse a
partir um ovo. Depois, ofereceu-a à mulher. Esta pegou na noz, com
hesitação, e abriu-a. A noz rachara tão regularmente como se tivesse sido
cortada com uma faca. Deliciada, ela abriu-a na palma da mão e tirou do
interior uma fina tira de papel. Era branco mas debruado a amarelo, azul,
vermelho e verde. Ela fitou o papel e depois voltou a oferecer-lho,
perguntando-lhe qualquer coisa.
“Lê! Lê!” A multidão ecoou o pedido da mulher.
Ele recebeu a noz de volta. Tinha umas mãos elegantes e fez um grande
espetáculo de puxar pela delicada espiral de papel e examinar as linhas que
aí estavam inscritas. A pausa, enquanto os seus olhos se moviam pelo papel,
levou a multidão a aproximar-se mais. “Ah, boas notícias para ti,
verdadeiramente boas notícias! Pediste conselho sobre uma viagem, e aqui
está ele! ‘Caminha com a luz do sol e desfruta da estrada. Uma mesa bem
posta e uma cama limpa esperam-te no teu destino. A tua chegada enche
uma casa de alegria’ Aí tens! Faz as malas e a caminho! E agora, quem é o
próximo? Quem quer ouvir que destino o espera? Saber não vale uma
moeda?”
Um jovem acenou com uma moeda, o mercador recebeu-a, e voltou a dar
um espetáculo digno de qualquer bonecreiro antes de apresentar ao homem
a sina retirada da noz dourada. Este recebeu boas notícias para a proposta
de casamento que desejava fazer e afastou-se da carroça a sorrir. Mais
moedas estavam agora a ser brandidas, algumas num frenesim. Dwalia
observou, de olhos semicerrados, como um gato a fitar o buraco de um rato,
enquanto o mercador aceitava dinheiro e profetizava destinos. Nem todos
eram bons. Um homem que lhe perguntou sobre colheitas foi avisado de
que devia poupar o dinheiro e não fazer uma compra em que andava a
pensar. Pareceu estupefacto e depois disse à multidão: “Eu hoje vim ao
mercado à procura de um cavalo de trabalho! Mas agora vou esperar.”
Um casal com esperança numa gravidez, um homem que pensava vender
a sua terra, uma mulher que queria saber se o pai recuperaria de um
ferimento… tanta gente a procurar saber o que o amanhã traria. Uma ou
duas vezes, o mercador pegou na moeda, encostou-a à testa e depois acenou
com ela de um lado para o outro e franziu o sobrolho. “Não me está a dar
indicações”, dizia. “De si vou precisar de uma peça de prata maior para
responder à sua pergunta.”
E, para meu espanto, as pessoas davam-lhe uma moeda maior. Era como
se, depois de terem iniciado aquele caminho, não se pudessem desviar.
Alguns liam em voz alta a mensagem enrolada; outros enrolavam-se sobre a
fita de papel e liam-na em privado. O mercador de sinas lia-as em voz alta
às pessoas que eram iletradas. E foi abrindo porta atrás de porta no seu
pequeno armário. A audiência não diminuiu. Mesmo aqueles que tinham
comprado uma sina deixavam-se ficar para descobrir o que outros poderiam
ouvir.
Dwalia deslocou-nos para a periferia da multidão, mas aí parou e
sussurrou a Vindeliar: “Controla-o.”
“A ele?” Vindeliar não murmurou.
Vi que ela teve vontade de lhe dar um carolo, mas conteve-se. Era óbvio
que não queria distrair os que observavam o mercador.
“Sim, a ele. Ao que está a vender sinas falsas.” Falava por entre dentes
cerrados.
“Ah.” Vindeliar estudou o homem. Consegui sentir fiozinhos da sua
magia a flutuar e a procurar às apalpadelas um caminho até ele. E percebi
que não conseguia fazê-lo. O homem tinha uma individualidade demasiado
forte para ser capturado por fiozinhos tão débeis. Eu conseguia detetar a
forma que o mercador de sinas fazia no mundo e, para minha surpresa, senti
que ele possuía uma espécie de tremeluzência mágica. Ele não se projetava
para o exterior com a sua magia como Vindeliar fazia. A magia que possuía
cobria-o como as suas cores vivas o cobriam e, como as cores, convidava as
pessoas a estudá-lo e a aproximar-se. Estendi-me para a magia dele e
empurrei-a suavemente. Por um momento, ele pareceu confuso. Afastei-me.
Tudo o que ele conseguia fazer era atrair pessoas; provavelmente nem
sequer sabia que estava a usar magia.
Voltei a olhar para Vindeliar e dei com ele a observar-me estranhamente.
Afastei o olhar e cocei o pescoço sob o colarinho. Não pretendera tocar a
magia dele; fizera-o sem pensar. E, de algum modo, Vindeliar sentira-o e
agora as suas suspeitas estavam despertas.
O mercador de sinas estava a acenar com uma moeda, deixando-a guiar a
sua mão até uma pequena porta decorada com uma ave. Eu fingi um vasto
interesse no seu espetáculo.
“Não consigo controlá-lo”, disse Vindeliar a Dwalia. A sua cara descaiu
antes mesmo de ela o trespassar com o olhar. “Não há maneira de entrar
nele.”
“Cria-a.”
“Não consigo.” E tornou a palavra longa e lenta.
Ela fervilhou em silêncio por um momento, após o que agarrou no ombro
da camisa dele e o puxou para perto, para tão perto que julguei que
pretendia mordê-lo. Num sussurro venenoso, disse: “Eu sei o que tu queres.
Eu sei aquilo por que anseias. Mas escuta-me bem, sua coisa patética e
malformada, nem humano nem Branco! Só me resta um frasco da poção.
Um! Se o usarmos agora, não o teremos mais tarde quando talvez seja
essencial que tenhas força. Portanto arranja maneira de entrar nele. E
arranja já, senão mato-te. É assim tão simples. Se não conseguires fazer o
teu trabalho, és inútil. Vou deixar-te para trás a apodrecer.” E afastou-o de
si.
Observei a cara de Vindeliar enquanto cada palavra o foi atingindo e ele a
absorvia como uma seta individual. Ele acreditou com absoluta certeza
nela. E eu também. Se lhe falhasse hoje, ela matá-lo-ia. Não me interroguei
sobre o como ou o quando porque sabia que ela o faria.
E depois eu ficaria sozinha com ela. Esse pensamento atingiu-me como o
golpe de um machado.
Vi os ombros de Vindeliar subir e descer, subir e descer, quando a sua
respiração atacada de pânico começou a acelerar. Sem pensar, estendi uma
mão e peguei na dele. “Tenta”, supliquei. Os seus olhos esbugalhados
saltaram para os meus. “Tenta, irmão”, disse eu numa voz mais baixa. Não
podia, não conseguia, suportar olhar para Dwalia. Troçaria ela por nos ver
assustados, rejubilaria com o modo como nos forçara a uma aliança? Não
quis saber.
A mão rechonchuda de Vindeliar fechou-se na minha. Estava quente e
húmida, como se eu tivesse posto a mão na boca de qualquer coisa, e
desejei poder retirá-la. Mas aquele não era o momento de instilar nele
qualquer dúvida. Ele fez uma inspiração trémula e depois senti-o a acalmar-
se. Mas mais do que isso. Senti-o a reunir a magia de que dispunha, e de
súbito soube que, acreditasse Dwalia no que acreditasse, aquela era magia
Visionário. Experimentei um momento de indignação por ele ter de algum
modo roubado essa capacidade. Depois senti-o a borbulhá-la na direção do
mercador.
Quão frequentemente tinha eu sentido o meu pai ou a minha irmã usar
aquela magia? Eles empregavam-na como se fosse a mais afiada faca que
seria possível imaginar, apontando-a à pessoa que procuravam alcançar.
Vindeliar projetou os lábios para fora e depois chupou-os para dentro,
esforçando-se por alcançar o mercador, como se estivesse a atirar-lhe água
com um balde. Perguntei a mim mesma como tinha ele conseguido
controlar o Duque Ellik e os seus homens com uma magia tão desleixada.
Talvez nessa altura fosse mais forte, o suficiente para não ter necessidade de
refinar a perícia. Talvez fosse como a diferença entre esmagar uma formiga
com um tijolo ou esborrachá-la com a ponta de um dedo.
A magia moveu-se vagarosamente na direção do mercador. Alcançou-o e
rebentou contra ele. Mas ele era tão cheio de si, tão radiante no entusiasmo
por aquilo que estava a vender, que não a sentiu nem um bocadinho. A
magia rolou para longe dele. Senti isto enquanto a mão de Vindeliar engolia
a minha. E também senti a queda na sua confiança. A magia tornou-se mais
mole e menos concentrada quando o seu desespero cresceu.
“Tu consegues fazer isto”, sussurrei-lhe, e a minha vontade era que ele
sentisse confiança, que voltasse a tentar.
Uma vez, quando caíra de uma árvore e correra para junto da minha mãe
com o cotovelo a sangrar, estava inconsciente de que muito mais sangue se
estava a escapar do meu nariz. A magia que se projetou de mim através de
Vindeliar foi assim. Não senti nenhuma sensação de que algo de vital estava
a abandonar-me até ficar subitamente ciente do efeito. Vindeliar dominara a
magia que conseguia dominar e estava a rolá-la na direção do mercador
como quem faz rolar desajeitadamente uma pedra. Depois, a minha magia,
uma magia tão semelhante à do meu pai e da minha irmã que eu soube que
era minha, guiou a dele. E a pedra deixou de súbito de ser mal rolada para
passar a ser bem atirada.
Vi-a atingir o mercador, vi como no meio da tagarelice sorridente os seus
olhos se esbugalharam e as palavras subitamente lhe faltaram. Senti o que
Vindeliar lhe ordenou. Tu vais fazer o que Dwalia quiser que faças. O que
ele transmitiu como “Dwalia” foi uma imagem dela acompanhada por uma
sensação de quem ela era. Importante, sábia, uma mulher a quem se deve
obedecer. Uma mulher a ser temida. O olhar do mercador percorreu a
multidão e encontrou Dwalia. Fixou-a com respeitoso assombro. Ela
acenou-lhe com a cabeça e disse baixinho a Vindeliar: “Eu sabia que tu
conseguias. Se quisesses o suficiente.”
Vindeliar largou-me a mão e pôs ambas as mãos sobre a boca, espantado
com o que alcançara. Quanto ao mercador, continuou o seu arrazoado,
vendendo nozes douradas e maravilhosas sinas a comprador atrás de
comprador, até que todas as portinhas do armário foram abertas e
saqueadas. Anunciou à multidão que não tinha mais sinas para vender nesse
dia, e as pessoas dispersaram, a deambular e a conversar, algumas ainda a
examinar as longas fitas de papel que tinham os futuros nelas escritos.
Ficámos onde estávamos enquanto a assistência dispersava. Ele olhou
para Dwalia de relance, não uma vez mas repetidamente, enquanto fechava
cada portinha do seu maravilhoso armário e descia vagarosamente da
carroça. O seu cavalo virou a cabeça e dirigiu-lhe um resfôlego interrogador
mas o mercador caminhou na nossa direção com uma expressão confusa.
Dwalia não sorriu. Vindeliar retirou-se para trás dela e eu segui-o na medida
em que a corrente mo permitiu.
“Fizeste uma coisa má”, disse Dwalia, as primeiras palavras que dirigiu
ao homem. O mercador parou e fitou-a. A sua boca torceu-se como se ele
estivesse prestes a vomitar. “Contrabandeaste nozes-de-sina para fora de
Clerres. Sabes que é proibido. Aqueles que compram lá uma sina sabem
que deve ser guardada em sua casa em lugar de honra. Sabem que não pode
ser dada nem vendida. Mas tu adquiriste dúzias delas, não sei como. A tua
farsa a bater com as nozes para as abrires não me enganou. Elas já tinham
sido abertas, e as revelações que continham já tinham sido dadas aos que
pagaram bem por elas. Como foi que as arranjaste? Roubaste-as?”
“Não! Não, eu sou um mercador honesto!” Parecia horrorizado com a
sugestão de roubo. “Eu compro e vendo. Tenho um amigo marinheiro que
me traz mercadorias extraordinárias. Ele não vem a este porto com
frequência, mas, quando vem, traz-me as cascas de noz e os papéis da sorte
para pôr dentro delas. Eu sou conhecido pelas minhas raridades, como as
sinas produzidas pela gente pálida. Há anos que as vendo aqui. Se houve
algum crime, não foi meu! Eu só as compro e vendo-as a pessoas desejosas
delas. Pessoas que sabem que uma prata é um preço justo por coisas assim
raras!”
Dwalia deitou um relance a Vindeliar. Os olhos dele esbugalharam-se e
senti-o a empurrar a magia na direção do homem. A magia salpicou o
homem como um pano húmido, mas Vindeliar dirigiu a Dwalia um
minúsculo aceno. Ela sorriu, o que transformou a marca da minha dentada
numa horrível coisa rastejante na sua cara. “Tu sabes que o que fizeste é
errado”, acusou ela. “Devias dar-me a prata, porque eu venho da parte dos
Pálidos, os Brancos e os Quatro. Dá-me o dinheiro que ganhaste com o teu
engano, e eu suplico-lhes que te perdoem. E diz-me o nome do teu amigo e
do navio que o trouxe até cá, e também pedirei perdão por ele.”
Ele fitou-a. Sopesou a bolsa de moedas de prata que ganhara. Eu contara
as portinhas no seu armário. Eram quarenta e oito. Quarenta e oito peças de
prata, e algumas eram das maiores que ele convencera os compradores a
dar-lhe. A soma era magnífica, se uma moeda de prata valesse ali o que
valia em Cervo. O homem fitou Dwalia e depois inclinou a cabeça antes de
a sacudir. “És uma pedinte peculiar. Acusas-me de roubo e depois tentas
roubar-me. Eu nem sei porque falei contigo. Mas vou casar amanhã e o
velho ditado diz para pagarmos uma dívida que não é devida, antes do dia
do casamento, para nunca termos uma dívida que não possamos pagar.
Portanto aqui está uma moeda de prata para ti, de uma dívida que eu não
devo.” Enquanto falava, pescou na bolsa e apresentou uma única peça de
prata. Segurou-a entre dois dedos, após o que a atirou subitamente ao ar.
Dwalia tentou agarrá-la, mas a moeda escorregou entre os seus dedos,
mergulhando na terra. Vindeliar acocorou-se para a apanhar, mas ela pôs
firmemente o pé sobre a moeda.
O mercador de sinas virara-nos as costas e estava a encaminhar-se para a
dianteira da carroça. Sem olhar para trás, acrescentou: “Devias ter
vergonha. Dá qualquer coisa a essa criança para comer. E se tens coração,
de todo, tira-lhe a corrente do pescoço e arranja-lhe um lar.”
Dwalia pontapeou Vindeliar, com força. Ele caiu de lado, a arquejar. “O
nome do navio!”, exigiu ela a ambos, e eu senti o dorido e desesperado
arremesso de magia de Vindeliar.
O homem estava a subir para o banco da carroça. Não olhou para nós. “O
Rosa do Mar.” Pegou nas rédeas e sacudiu-as. O seu cavalo avançou
placidamente. Perguntei a mim mesma se ele chegara a aperceber-se de que
falara connosco.
Dwalia agachou-se para pegar na sua moeda. Levantou-se e, quando
Vindeliar começou a erguer-se, voltou a deixá-lo estatelado com um
pontapé. “Não julgues que isto paga tudo”, avisou. Puxou-me pela corrente
com maldade e eu soltei um grito involuntário. E depois, para minha
vergonha, lágrimas escorreram-me dos olhos. Fui atrás dela a arrastar os pés
e aos soluços, enquanto Vindeliar se erguia pesadamente e nos seguia como
um cão pontapeado.
Dwalia realmente parou para comprar comida. Pão seco e barato para
mim e Vindeliar, uma saborosa empada folhada recheada de carne e
legumes para si. Observou, com o olhar aguçado de uma águia, o vendedor
a contar o troco para lhe dar e enfiou as moedas numa dobra da roupa.
Comeu enquanto caminhava, e nós fizemos o mesmo. Ansiei por água para
empurrar o pão seco para baixo, mas ela não parou perto do poço público
por que passámos. Levou-nos para a zona portuária. O porto era um grande
círculo de água calma, com os dedos de pontões a estender-se para fora. Os
navios maiores estavam ancorados na baía plácida, e barquinhos deslizavam
pela água de um lado para o outro como insetos aquáticos de muitas pernas,
levando até eles pessoas e mantimentos. Mais perto de nós, navios mais
pequenos estavam amarrados a pontões e a docas, criando entre nós e as
águas abertas uma muralha de cascos e uma floresta de mastros. Nós, os
três pedintes, entrámos no mundo acotovelado de carroças e remadores e
prósperos mercadores a convidar-se uns aos outros para tomar chá ou um
copo de vinho ou a discutir as últimas compras ou vendas.
Coxeámos ou arrastámos os pés entre eles, ora invisíveis e
despercebidos, ora amaldiçoados e insultados por fazermos o tráfego parar
ou por estarmos no local por onde alguém queria passar. Dwalia soou-me a
vendedora de pão quando gritou: “O Rosa do Mar? Onde está ancorado? O
Rosa do Mar? Estou à procura do Rosa do Mar!”
Ninguém lhe respondeu. O melhor que conseguiu foi um abanão de
cabeça para dizer que não conheciam a embarcação. Por fim, Vindeliar
puxou-lhe pela manga e apontou sem uma palavra por entre dois navios.
Tínhamos uma estreita visão da baía e de uma bela embarcação sem
qualquer figura de proa além de um glorioso ramalhete de flores com uma
grande rosa vermelha no centro. Era gordo e comprido, o maior navio que
se via no porto. “Pode ser aquele?”, perguntou-lhe Vindeliar com timidez.
Dwalia parou, apesar dos empurrões das pessoas que nos rodeavam, e fitou
a embarcação. Os mastros nus do navio apontavam para o céu e a
embarcação flutuava alto na água. A tripulação deslocava-se pelo convés
com movimentos vivos, ocupada com tarefas de marinheiro que eu não
compreendia. Enquanto observávamos, um pequeno barco com seis homens
aos remos parou junto dele. Um grande caixote de qualquer coisa foi
baixado para o barco que o aguardava e depois um homem desceu para o
barquinho.
Alguém me deu um grande encontrão e disse qualquer coisa maligna
numa língua que eu não conhecia. Encolhi-me para mais perto de Vindeliar
e este, por sua vez, aninhou-se atrás de Dwalia. Ela não se mexeu, nem
pareceu reparar que estávamos a bloquear o tráfego. “Temos de ver para
onde eles vão”, anunciou em voz baixa. Enquanto o barco se afastava do
navio, ela arrancou de súbito a trote e eu fui forçada a acompanhar-lhe o
passo. Era difícil ver para onde o barco a remos se dirigia, pois a nossa vista
ficava frequentemente bloqueada por navios amarrados ou grandes pilhas
de caixotes ou fardos. Mas lá fomos, e continuámos a ir, enquanto os meus
pés descalços protestavam tanto contra as pedras irregulares do empedrado
quanto contra as lascas das docas. Cortei uma unha que começou a sangrar.
Dwalia precipitou-se para a frente de uma parelha e uma carroça,
arrastando-me atrás dela de tal maneira que senti o hálito quente dos
cavalos quando sacudiram as cabeças e protestaram e ouvi o grito furioso
do carroceiro a chamar-me nomes feios.
Por fim parámos num cais bem construído. O céu era vasto e azul,
salpicado de gaivotas aos gritos. O vento soprava sobre mim, agitando-me a
roupa e o cabelo. Ergui a mão e toquei-lhe, espantada com o que ele
crescera. Teria estado alguma vez tão comprido desde que eu e o meu pai
rapáramos as cabeças em sinal de luto pela morte da minha mãe? Parecia
que não tinham passado mais que dias, e estes pareciam ter sido anos.
Vindeliar e eu ficámos parados lado a lado enquanto Dwalia andava de
um lado para o outro, dando-me a cada passo um pequeno puxão na
corrente. Assim que o bote se aproximou, começou a gritar: “Vós sois do
Rosa do Mar? Sois o capitão do navio?”
Um homem bem vestido que não puxava um remo mas seguia
altivamente sentado ao lado do caixote ergueu para ela um olhar de
desagrado. Os seus lábios retesaram-se para trás, como se já conseguisse
cheirar-nos. O capitão levantou-se no bote, ignorando os balanços, enquanto
os seus homens subiam à doca e prendiam os cabos. Um gaviete foi lançado
por sobre a água. Após supervisionar a transferência do caixote de madeira
para o cais, o homem subiu a escada até à doca, ignorando as frenéticas
questões de Dwalia, como se ela não passasse de mais uma gaivota aos
gritos. Como se nós não tivéssemos qualquer importância, esfregou as mãos
nas calças negras e endireitou o casaco verde-escuro. Ostentava duas filas
de botões prateados à frente e as mangas estavam igualmente presas com
prata. A camisa que usava por baixo do belo casaco era de um verde mais
claro, e o colarinho cintilava de brilhantes. Era um indivíduo bonito; bonito
como um gaio. Tirou qualquer coisa do bolso, abriu um frasquinho.
Esfregou o dedo em qualquer coisa e depois espalhou isso sobre os lábios.
Enquanto o fazia, olhava para a costa movimentada por cima das nossas
cabeças como se nós não existíssemos.
Os membros da sua tripulação não se mostraram tão reservados. Era
impossível compreender mal os seus gritos de divertimento horrorizado ao
ver-nos, fosse qual fosse a língua. Uma mulher pôs-se atrás de Dwalia e
troçou da sua pose e cara, contorcendo as feições e comportando-se como
uma atrasada mental. Um marinheiro mais velho deu-lhe um empurrão de
censura e depois cavou no bolso para oferecer a Vindeliar uma mancheia de
cobres. Vindeliar olhou para Dwalia e quando ela se limitou a continuar a
gritar-lhes perguntas, recebeu os cobres nas mãos em taça. Com aquilo, a
tripulação saciou-se de nós. Afastaram-se com o passo gingão de
marinheiros experientes, rindo entre si, todos menos um, que ficou
desoladamente sentado no barco a remos, tendo-lhe claramente sido
atribuído esse dever.
Dwalia guinchou pragas contra as costas deles e depois rodopiou para
Vindeliar, esbofeteando-o com tanta força que algumas das moedas lhe
voaram das mãos, saltitaram nas tábuas e caíram através das fendas na água
que havia por baixo. Sem querer saber da minha corrente, eu consegui
agarrar duas delas e segurei-as bem. Haveria de arranjar maneira de as
transformar em comida. De alguma forma.
Vindeliar encolheu-se quando Dwalia lhe bateu com os punhos e o
pontapeou. Enrolou-se numa bola, escondendo a cabeça nos braços e
soltando pequenos gritos de dor em resposta a cada um dos golpes dela. Eu
agarrei na corrente com ambas as mãos, puxei-a com força, soltando-a da
mão de Dwalia, e chicoteei-a duas vezes com ela. Ela cambaleou para o
lado mas não caiu à água como eu esperara. Virei-me e fugi, com uma
extensão de corrente a tinir e a ressoar nas tábuas do cais enquanto eu
corria.
Eu já o esperava, mas mesmo assim doeu quando alguém pisou com
força na corrente que ficara para trás, forçando-me a parar de repente. A
soluçar e magoada, de mãos no pescoço, virei-me para trás, pronta para
atacar Dwalia. Mas fora Vindeliar quem aterrara sobre a trela que eu
deixara para trás. As suas bochechas ainda estavam enrubescidas dos golpes
de Dwalia; apesar disso, ele fizera o que ela queria. Dwalia estava um passo
arquejante atrás dele. Vindeliar ergueu o olhar para ela, pateticamente leal, e
estendeu-lhe a corrente. “Não!”, guinchei, mas ela baixou-se, agarrou na
corrente e sacudiu-a violentamente de um lado para o outro, com tal força
que a minha cabeça saltou com a corrente. Vi clarões de luz e caí no cais.
Ela pontapeou-me duas vezes, arquejando de fúria. “Levanta-te!”, ordenou.
Ia matar-me. Não imediatamente, mas através de abuso prolongado. Soube-
o com a certeza de um sonho. Eu ia morrer às mãos dela e comigo morreria
o futuro que devia ter existido. Eu era o futuro que eles procuravam destruir
ao capturar e controlar o Filho Inesperado. Senti-me meio atordoada por
esse conhecimento. Teria ele estado na minha mente o tempo todo, para ser
finalmente libertado pela violência que sofrera às mãos dela? Senti-me
doente com essa compreensão. Não foi nenhum sonho o que relampejou em
frente dos meus olhos como se tivesse fitado o sol. Foi um futuro. Eu tinha
de encontrar um caminho para o futuro. E ia encontrá-lo ou morreria a
tentar.
“Levanta-te!”, repetiu ela. Apoiei-me nas mãos e nos joelhos, depois
cambaleei até me apoiar nos pés e levantei-me, oscilante. A rosnar, ela
enfiou a mão no peito da camisa. O punho reapareceu a agarrar qualquer
coisa. Vindeliar tremia, com a atenção completamente concentrada na mão
dela. Dwalia sorriu-lhe, com um poder cruel. Desdobrou lentamente os
dedos até eu ver que segurava num tubo de vidro que continha um líquido
nubloso. Abanou lentamente a cabeça na sua direção. “Tu és fraco. Tão
fraco. Mas quando uma pá partida é a única ferramenta que se tem para
cavar um buraco, repara-se a pá e usa-se. Portanto, por uma última vez, vou
encher-te de força. Vou dar-te uma última oportunidade para te redimires.
Mas se me voltares a falhar, nem que seja na mínima coisa, será o teu fim.
Não, não o vou pôr nas tuas mãos. Senta-te. Inclina a cabeça para trás e
abre a boca.”
Nunca vira ninguém obedecer tão depressa. Vindeliar sentou-se no cais e
inclinou-se para trás, de olhos fechados e a boca mais aberta do que eu
alguma vez imaginara que seria possível. E ficou assim sentado,
perfeitamente imóvel e à espera, enquanto ela tirava com dificuldade uma
tampa de vidro do tubo e devagar, tão devagar, inclinava este sobre a boca
dele. Um líquido grumoso, amarelado mas com fios de prata, escorreu
viscosa e lentamente do tubo. Senti repugnância ao vê-lo e o cheiro que me
alcançou foi o de vomitado. O meu estômago deu uma cambalhota quando
o líquido escorreu para a boca de Vindeliar e ele o engoliu. Um momento
mais tarde, como ondas da água num charco quando uma pedra é lançada lá
para dentro, a vaga do seu poder refrescado tocou-me. Eu tinha pensado que
o meu pai era como uma panela a ferver com um vapor de magia a sair de
dentro dele? O que senti vindo de Vindeliar não foi vapor mas uma
escaldante explosão de poder. Enrolei-me contra ele tanto corpórea como
mentalmente, pequena, fazendo-me tão apertada e dura como uma noz
contra aquela corrente crescente.
As pálpebras de Vindeliar tremeram com violência e todo o seu corpo
estremeceu de êxtase. O fio de fluido grumoso continuou a escorrer,
espesso, coagulado e repugnante. E à medida que ele engolia e voltava a
engolir, o ataque da sua magia contra mim só se foi tornando mais forte.
Enrolei-me mais apertadamente, mais pequena, de corpo e mente. Dwalia
mediu o que lhe deu, endireitando o tubo quando restava lá dentro talvez
um quarto do fluido, e voltando a rolhá-lo.
Fechei os olhos e procurei não sentir nada, não ouvir nada, não cheirar
nem saborear nada, pois qualquer sentido que eu deixasse desprotegido
poderia trazê-lo numa explosão para dentro da minha mente. Durante algum
tempo, não fui nada. Sem sentidos e sem ser. Mal existi.
Não sei dizer quanto tempo passou. Mas acabei por sentir a atenção dele
diminuir ou concentrar-se noutra coisa, e atrevi-me a abrir os sentidos.
Cheirou-me a convés de madeira tratada com piche e a algas e ouvi os
choros distantes de aves marinhas. E a voz de Dwalia, igualmente chorada e
constante. “Quando o capitão voltar, vai ver-nos como senhoriais e
respeitáveis. Somos pessoas que ele quer impressionar. Vai ansiar por me
agradar, vai aspirar à minha consideração. Toda a sua tripulação nos verá
assim. Ele vai aceitar estas moedas de cobre como se fossem de ouro. Vai
estar ansioso por zarpar para Clerres assim que possa e vai fornecer-nos
cada conforto que possa ser oferecido. Consegues fazer isso?”
A minha visão estava a nadar, mas vi o sorriso beatífico de Vindeliar.
“Consigo fazer isso”, disse ele com ar sonhador. “Neste momento consigo
fazer qualquer coisa.”
E eu temi que fosse verdade.
O meu medo tocou-o. Ele virou-se para mim e o seu sorriso era tão
insuportavelmente brilhante como olhar para o sol. “Ir-mão”, disse numa
voz arrastada, contente consigo mesmo, como se estivesse a falar com um
bebé escondido atrás de uma cadeira. “Agora vejo-te!”
Retirei-me, mais pequena e mais pequena, numa casca mais apertada e
mais dura, mas ele seguiu-me sem esforço. “Acho que agora não te
consegues esconder de mim!”, disse-me com suavidade, numa provocação.
E não conseguia. Ele conheceu camada após camada, após camada de mim,
segredos que se foram destacando de mim como a pele de uma borbulha,
aproximando-se cada vez mais do coração em bruto de quem eu era. Soube
como eu e Esquiva tínhamos fugido, ficou a conhecer o dia que eu passara
com o meu pai na vila, soube do cão ensanguentado e soube da minha
querela com o meu tutor.
Tinha-se passado tempo desde que o Pai-Lobo falara comigo, mas de
súbito eu soube o que ele me diria. Encurralada? Luta.
Pus de parte os meus escudos. “Não!”, rosnei. “Quem não se pode
esconder de mim és tu!”
Fisicamente, pus-me em pé, mas não foi assim que o enfrentei. Como
descrevê-lo? Ele aproximara-se demasiado de mim. Abrira caminho para o
meu interior, e eu envolvi-o de súbito. Não sabia o que fazia nem como o
fazia. Ter-me-ei lembrado de o ter feito um dia? Ter-me-ei lembrado de o
meu pai o fazer, ou a minha irmã? Envolvi-o na minha consciência e
encurralei-o. Ele ficou demasiado surpreendido para se debater. Não me
parece que alguma vez tivesse imaginado que alguém lhe poderia fazer
aquilo. Pressionei-o fortemente, e de súbito foi como esmagar um ovo
cozido na mão. A sua casca quebrou; não era grossa. Duvido que ele tivesse
alguma vez sido obrigado a defender a sua mente contra outra pessoa.
E eu conheci-o. Não ganhei esse conhecimento em nenhuma sequência;
simplesmente, tornou-se meu. Soube que ele nascera com uma cabeça de
forma estranha, e que isso fora o bastante para ter sido afastado dos outros.
Aos seus olhos, mal era um Branco, não passando de um bebé defeituoso e
inútil entregue a Dwalia, um dos vários bebés chorões nascidos nessa
estação que eram menos que perfeitos.
E ao saber o que lhe acontecera, aprendi também sobre Dwalia. Pois ela
criara-o desde a infância.
Em tempos fora respeitada, a aia que servia uma Branca muito
conceituada. Vira a sua ama ser enviada para o mundo a fim de fazer
grandes coisas. Mas quando a mulher falhara e caíra, a fortuna de Dwalia
perecera com ela. Caída em desgraça e relegada a executar tarefas
degradantes, Dwalia tornou-se criada das parteiras e curandeiros de Clerres.
O negócio de Clerres era a criação de Brancos para a colheita dos seus
sonhos proféticos e Dwalia nutrira a esperança de lhe ser confiado um
Branco prometedor pertencente às mais puras linhagens. Mas já não
confiavam nela. Quando lhe fora dado um par de gémeos defeituosos para
se ver livre deles, ela amamentara-os com leite de uma porca e mantivera-os
vivos, na esperança de que os seus corpos imperfeitos pudessem esconder
mentes poderosas.
Fizera-lhes lembrar todos os dias de que lhe deviam as vidas. Com o
acesso negado às crianças perfeitas, dadas a outros para delas cuidarem e as
criarem, ela só tinha os seus gémeos rejeitados para cultivar. E foi o que fez.
Vindeliar lembrava-se de estranhas dietas, ervas soporíficas, alturas em que
não fora autorizado a dormir, alturas em que lhe tinham sido dados durante
semanas preparados indutores do sono, a fim de o forçarem a sonhar. Mas
quando Vindeliar e a irmã, Odessa, cresceram, não haviam mostrado
nenhumas capacidades extraordinárias.
Soube tudo isto num instante, e muito mais que era mais triste. Vindeliar
não fora capaz de sonhar para ela, além do único e patético sonho que
partilhara comigo. Odessa sonhava, mas as imagens que via eram tão
informes que se tornavam inúteis. Contudo, Dwalia mostrara-se implacável
no esforço que fizera para forçar os seus protegidos a produzir sonhos para
si. Vindeliar sabia que ela começara a servir como assistente de Fellowdy
nas dissecções e interrogatórios daquele, pois tinha de limpar depois de
terminarem. Mas não sabia por que motivo Symphe viera ter com ela
trazendo um raro elixir feito com os fluidos do corpo de uma serpente
marinha. O elixir tinha fama de dar sonhos intensos e proféticos a qualquer
um que o ingerisse, seguidos por uma morte agonizante. Isto fora algo que
Vindeliar escutara.
Da primeira vez que o administrara a Vindeliar, Dwalia acorrentara-o a
uma mesa. O elixir queimara-lhe tanto a língua e a boca que ficara até aos
dias de hoje sem ser capaz de saborear a comida. Mas a dor fora seguida
por um intenso êxtase, e uma tamanha expansão dos seus pensamentos que
se tornara capaz de partilhar a mente com outros. Quando alguns
prisioneiros próximos caíram, a contorcer-se, aos gritos, agarrados às bocas,
Dwalia apercebera-se de que sentiam a dor dele. E a partir daí, com
cuidadosos testes, descobrira que ele era capaz de levar os outros a acreditar
nos pensamentos que empurrava na sua direção. Aqueles que tinham
ascendência Branca raramente eram vulneráveis à sua manipulação. Ao
longo de anos, enquanto ele ia desenvolvendo as suas capacidades sob a
tutelagem secreta de Dwalia, julgara que ela era imune à manipulação e
nunca se atrevera a tentar usá-la contra ela. Nunca lhe fora permitido falar
do elixir. Dwalia insistia junto dos outros que ele era extraordinário, com a
capacidade de encontrar minúsculos caminhos nos quais os outros
acreditavam nele e lhe obedeciam.
Foi tanto o que aprendi naquele estilhaçar das nossas muralhas. A minha
invasão da sua mente atordoou-o. Atirei o peso da minha força contra a dele
enquanto ele lutava por descobrir o que tinha acabado de lhe acontecer.
Depois agi, usando quase por instinto a magia hereditária dos Visionário.
“Tu não me podes dominar”, disse-lhe, empurrando o pensamento contra
ele com cada bocadinho de força que possuía. “Não podes quebrar as
minhas muralhas.”
E depois fechei com força as portas que levavam a mim.
Quando voltei a saber que eu era eu, Dwalia estava a espicaçar-me, não
com suavidade mas com o pé. “Levanta-te”, estava a dizer numa voz
falsamente gentil. “Levanta-te. Está na hora de irmos para bordo.”
O mundo oscilou à frente dos meus olhos. Vi o seu vestido sumptuoso, a
cascata de renda que caía do decote baixo, as extravagantes flores no
chapéu. Era nova — não seria mais velha que Esquiva — e os seus longos
caracóis negros reluziam de óleo perfumado. Os seus olhos eram de um tom
raro de azul-escuro, enquadrados por longas pestanas. A sua pele não tinha
uma falha. O seu elegante criado estava em pé a seu lado.
Depois pestanejei e ela era Dwalia, com a cara mastigada e a roupa muito
gasta. Vindeliar era Vindeliar. Perguntei a mim mesma como me veriam os
marinheiros reunidos em redor. Levantei-me com relutância, sentindo ainda
a cabeça a rodopiar. A minha fome transformara-se em náusea. Contive-a
com uma inspiração profunda. Os marinheiros não estavam a olhar para
mim, portanto era uma criada ou escrava, e não era atraente. Dwalia recebia
os seus olhares de viés com um sorriso afetado. O capitão do Rosa do Mar
regressara e estava a falar com ela num tom de voz enlevado. Ordenou que
fosse preparado um baloiço para ela não desarranjar as saias, e guiou
pessoalmente o gaviete enquanto a descia para o barco a remos. Ela ergueu
o olhar para nós. “Vá, depressa! Embarcamos no nosso navio e em breve
partiremos para Clerres.”
Levei a mão ao pescoço. Vindeliar deu-me um puxão na corrente. “Vá,
depressa!”, ordenou numa voz fria. Não sorriu. Começou a descer a escada
até ao pequeno barco. A corrente retesou-se e arrastou-me até à margem do
cais e para um futuro que eu não podia evitar.
Capítulo 18

Navios de Prata e Dragões

Não posso negar o seu aspeto peculiar, mas parece um indivíduo


esperto e tenho a certeza de que não constitui perigo para mim.
Surpreende-me que seja possível imaginares que foi enviado por um
inimigo para me matar. A nota que acompanhava o rapaz dizia que
muitos governantes gostam agora de ter um bobo para divertir a sua
corte e seria possível que eu apreciasse aquele hábil malabarista. As
suas palhaçadas são muito divertidas e confesso que quando, ontem
à noite, a sua linguazinha afiada fez em tiras Dom Áteri, eu gostei
bastante, dado que o homem é um labrego pomposo.
Logo quando ele chegou, com a sua roupa esfarrapada e um
pergaminho ensopado na mão a oferecer-mo com o nome de quem
mo ofereceu apagado pela água, o meu irmão aconselhou-me
cautela e até sugeriu que me livrasse dele. Breu falou com grande
clareza, e ao alcance dos ouvidos do rapaz, pois ele não tinha
proferido palavra até esse ponto e ambos havíamos partido do
princípio de que ou era surdo-mudo ou simplório. Mas o rapaz fez-
se imediatamente ouvir, dizendo: “Querido rei, por favor não façais
algo que não podeis desfazer até terdes pensado bem no que não
podereis fazer depois de o fazerdes!” Foi uma coisa inteligente para
se dizer, e conquistou-me. Por favor, querida, conclui as tarefas que
tens a fazer em Vara e vem para casa, para ficares tão divertida com
ele como eu estou. Depois verás que a Dama Clareira exagerou as
suas peculiaridades na carta que te enviou. É uma criança que mais
parece um aranhiço escanzelado; tenho a certeza de que, quando
estiver mais bem alimentado, não parecerá tão estranho e pode
ganhar um pouco de cor. Creio que a mulher não o aprecia por ele
ter imitado tão bem os seus bamboleios bem alimentados.
Sinto tanto a tua falta, minha Desejo, e mal posso esperar pelo teu
regresso. O motivo por que tens de estar tão frequentemente ausente
de Torre do Cervo é para mim um mistério e uma mágoa. Estamos
casados, somos marido e mulher. Porque tenho eu de me recolher
todas as noites a uma cama solitária enquanto te demoras em Vara?
Agora és minha rainha, já não tens de te preocupar com o governo
de Vara.
Carta do Rei Sagaz à sua segunda
rainha Desejo, de Vara

P
areceu mais uma reunião familiar do que uma assembleia de pessoas
a tentar evitar um desastre. Pensei na minha família e apercebi-me
de que reuniões daquelas eram frequentemente ambas as coisas. O
almirante da Rainha Etta subira a bordo enquanto estávamos ocupados com
a figura de proa. Wintrow Vestrit já estava sentado à mesa e Alteia fazia chá
quando nos juntámos a eles no camarote.
Wintrow Vestrit, ministro principal da Rainha Etta das Ilhas dos Piratas e
primeiro almirante da sua frota, parecia-se tanto com Alteia que podiam ter
sido irmão e irmã em vez de sobrinho e tia. Eram da mesma altura e
calculei que haveria menos de uma vintena de anos entre os dois. Era o
irmão mais velho de Malta, e Âmbar contara-me parte da história brutal de
como ele fora capturado com Vivácia e forçado a servir a bordo dela às
ordens do pirata Kennit. Estranhamente, ela dissera-me que a tatuagem de
escravo ao lado do nariz do almirante e o dedo em falta eram na realidade
obra do pai. Sabendo tudo aquilo, eu não esperara a aura de calma que o
envolvia nem o seu vestuário contido.
Moss-O moveu-se rápida e facilmente pelo camarote dos pais, renovando
o conhecimento do familiar território do seu navio de infância. Vi-o a tirar
uma caneca de uma prateleira, sorrir-lhe e devolvê-la ao lugar. Tinha a
altura do pai, mas a testa e os olhos vinham do lado Vestrit, espelhando os
de Alteia e de Wintrow. Era elegante como um gato.
Wintrow tinha uma expressão grave e quando Alteia lhe serviu um
fumegante copo de rum e limão misturados com água quente, ele aceitou-o
com um agradecimento resmungado. Guiei Âmbar até um lugar à mesa do
capitão e juntei-me a ela aí. Lante ocupou o seu lugar atrás de nós. Os meus
jovens distribuíram-se ao longo da parede e guardaram um silêncio contido.
Quando todos fomos servidos, Alteia sentou-se pesadamente ao lado de
Brashen e soltou um suspiro. Olhou Wintrow nos olhos e disse: “Agora
compreendes. Quando eu disse que pararmos aqui ia mudar não só a tua
vida mas centenas de vidas, não me parece que tenhas entendido o que te
estava a dizer. Confio que agora entendas. Viste as mudanças no Modelo
Ideal. Prepara-te para Vivácia fazer o mesmo.”
Ele ergueu a caneca e bebeu lentamente dela, organizando os
pensamentos enquanto o fazia. Quando a pousou, disse: “É uma coisa que
não podemos alterar. Em situações como esta, é melhor aceitar a vontade de
Sa e tentar perceber o que provém dela em vez de lutar contra o inevitável.
Portanto, se o Modelo Ideal tiver razão, depois desta última viagem
regressará aos Ermos Chuvosos e ser-lhe-á dada Prata suficiente para se
transformar em dois dragões.” Abanou a cabeça e um sorriso esvoaçou
brevemente pelos seus lábios. “Gostava de assistir a isso.”
“Acho que é inevitável que assistas à transformação de Vivácia. Se
Âmbar e o Modelo Ideal tiverem razão e essa metamorfose for realmente
possível.”
“Estou praticamente segura disso”, disse Âmbar em voz baixa. “Já vistes
como, depois de receber uma pequena quantidade de Prata, ele consegue
mudar a aparência à vontade. Se lhe for dada uma grande quantidade,
poderá transformar a madeira-de-feiticeiro do seu corpo em qualquer forma
que desejar. E vai desejar ser um dragão. Ou dois.”
Clef interveio e ninguém pareceu julgar tal coisa inapropriada quando ele
perguntou: “Mas será um dragão verdadeiro, de carne e osso? Ou um
dragão de madeira?”
Um silêncio caiu sobre a mesa enquanto matutávamos naquilo. “O tempo
o dirá”, observou Âmbar. “Ele vai transformar-se de madeira-de-feiticeiro
em dragão; não é inteiramente diferente de quando um corpo de dragão
absorve a madeira-de-feiticeiro do seu casulo quando eclode.”
Moss-O aproximara-se mais dos pais. Olhou para um e para o outro e
perguntou: “Isto é real? Pode realmente acontecer? Não é uma das fantasias
malucas do Modelo Ideal?”
“É real”, confirmou Brashen.
O filho fitou um futuro que só ele podia ver, um futuro que nunca
imaginara. Depois falou num sussurro. “Ele sempre teve o coração de um
dragão. Eu sentia-o quando ele me segurava nas mãos e me fazia voar sobre
a água quando era pequeno…” As palavras sumiram-se-lhe. Depois
perguntou: “Ele tem madeira-de-feiticeiro suficiente no seu corpo para fazer
dois dragões? Não vão ser bastante pequenos?”
Âmbar sorriu. “Ainda não podemos saber. Mas os dragões pequenos
crescem. Segundo aquilo que compreendi, os dragões continuam a crescer
enquanto estiverem vivos. E poucas coisas conseguem matar um dragão.”
Wintrow inspirou profunda e reflexivamente. Afastou o olhar de Âmbar,
dirigindo-o para Brashen e Alteia. “Estão financeiramente sólidos?”,
perguntou com ar grave.
Brashen abanou a cabeça de uma forma que não era sim nem não.
“Temos recursos. O saque do tesouro de Igrot foi substancial e não fomos
perdulários com a nossa parte. Mas o dinheiro, isoladamente, não é nem
riqueza nem um futuro para o nosso filho. Não temos casa, exceto aqui o
Modelo Ideal, não temos vida nem emprego além de exercer o nosso ofício
no Rio dos Ermos Chuvosos e em Vilamonte. Portanto, sim, temos fundos
suficientes para podermos comer e dormir dentro de uma casa até ao fim
dos nossos dias. Dentro de uma casa. Aí está um futuro que nunca procurei!
Mas algo para deixar ao Moss-O? Uma vida para vivermos… isso é mais
difícil de planear.”
Wintrow estava a acenar lentamente com a cabeça. Um homem, pensei,
que parecia pensar antes de falar. No momento em que inspirou e abriu a
boca para dizer qualquer coisa, ouvimos um grito vindo do exterior.
“Permissão para subir a bordo?”
“Recusem-na!”, sugeriu Wintrow.
Brashen chegou à porta do camarote em dois passos. “Recusada!”, gritou
à noite e depois girou para Wintrow, perguntando: “Quem é?”
Mas a voz lá fora gritou: “Dificilmente poderão negar-me permissão para
subir a bordo do navio cujo nome eu tenho!”
“Ideal Fidekennit.” Wintrow falou na breve ravina de silêncio antes de o
navio berrar: “Permissão concedida! Ideal! Ideal, meu filho!”
Alteia ficou tão pálida que pareceu mais esverdeada do que branca. Eu
ouvira uma estranha nota na voz do navio, uma diferença no timbre.
“Doce Sa”, sussurrou Wintrow no silêncio. “Ele soou quase como
Kennit.”
Brashen olhou para a mulher por sobre o ombro. A cara estava pétrea.
Depois o seu olhar encontrou Wintrow. “Não o quero a falar com o navio”,
disse em voz baixa.
“Eu não o quero no navio”, concordou Wintrow. Dirigiu-se a passos
largos para a porta e Brashen afastou-se para o deixar passar. “Ideal!”,
gritou Wintrow, e havia comando na sua voz. “Aqui. E já.”
A figura que respondeu à convocatória de Wintrow não era nenhum rapaz
ou jovem, mas um homem, de cabelo escuro, com um nariz aquilino e uma
boca finamente esculpida. Os seus olhos eram de um azul chocantemente
intenso. A roupa era tão bonita como ele, e os brincos de esmeralda que
usava eram grandes, com diamantes a cintilar em torno das joias verdes.
Avaliei que seria mais velho que Moss-O, mas não por muito. E era mais
mole. O trabalho físico transforma um rapaz numa espécie diferente de
homem. Moss-O tinha esse físico. Mas o príncipe era, em comparação, um
gato doméstico. O filho de Kennit sorriu com dentes brancos e regulares.
“Eu apresento-me a mim próprio”, disse a Wintrow com uma vénia trocista,
após o que se inclinou por trás dele para espreitar a cabina. “Trellvestrit?
Também estás aqui? Parece que organizaste uma festa e não me convidaste.
Bem, isso é frio da tua parte, meu jovem amigo!”
Moss-O falou em voz baixa. “Não é isso, Fidekennit. Não é nada disso.”
“Acabaram por se conhecer?”, perguntou Alteia baixinho mas não obteve
resposta.
Wintrow falou em voz baixa e controlada. “Quero-vos fora deste navio.
Ambos sabemos que a vossa mãe não aprova que tenhais vindo até aqui.”
Fidekennit inclinou a cabeça e sorriu. “E também sei que a minha mãe
não está aqui.”
Wintrow não lhe respondeu ao sorriso. “Uma rainha não tem de estar
presente para esperar que as suas ordens sejam cumpridas. Especialmente
pelo filho.”
“Ah, mas essa não é a vontade de uma rainha mas a vontade da minha
mãe, que teme por mim. E está na altura de eu viver para lá dos seus
medos.”
“Neste caso, os seus medos têm pleno fundamento”, contrapôs Wintrow.
“Não sois bem-vindo a bordo desta embarcação”, acrescentou Brashen
em voz baixa. Não havia ira no tom da sua voz, mas havia perigo. Por um
instante, a cara de Fidekennit ficou vazia de espanto. Depois todos ouvimos
um rugido de desacordo vindo de Modelo Ideal, o navio.
“Mandem-no até à frente! Mandem-no até à frente ter comigo!”
Fidekennit recuperou e a sua expressão mudou do choque para um ar de
régia arrogância. Havia muitos anos que nada me fazia lembrar tão
vivamente Majestoso. As palavras dele soaram bruscas, a ira palpável.
“Creio que este navio foi do meu pai antes de ser vosso. E creio que mesmo
se eu não tivesse um direito inerente a estar aqui, a minha autoridade
enquanto príncipe das Ilhas dos Piratas se sobrepõe aos vossos poderes de
capitão. Eu vou onde quiser ir.”
“Neste convés, nada ofusca as ordens do capitão”, informou Brashen.
O rugido do Modelo Ideal assolou-nos. “Exceto a vontade do navio!”
Fidekennit inclinou a cabeça para Brashen e sorriu. “Creio que fui
chamado”, disse e fez uma vénia elegante, complementada com um gesto
largo com o chapéu emplumado, antes de se virar e sair com descontração.
Brashen soltou um som, mas Wintrow interpôs-se entre ele e a porta,
impedindo o capitão de sair.
“Por favor”, disse. “Deixa-me falar com ele. Está consumido de
curiosidade sobre o Modelo Ideal desde os oito anos.” Virou o olhar para
Alteia. “Qualquer rapaz criado sem um vislumbre de Kennit, rodeado por
dúzias de homens a contar-lhe histórias heroicas sobre o pai, ficaria
enamorado do seu navio. Ele não consegue resistir.”
“Vou subir a bordo!”, rugiu alguém e, na expiração seguinte:
“Fidekennit! Podes ser príncipe, mas não me desafias nem à tua mãe sem
sofrer as consequências!”
“Sorcor”, disse Wintrow com um suspiro. “Oh, maravilha. Simplesmente
perfeito.”
“Às vezes Fidekennit dá-lhe ouvidos.” Moss-O soava prestativo.
A meu lado, Âmbar sussurrou: “O imediato de Kennit, nos velhos
tempos.”
“Às vezes”, concordou Wintrow e depois virou-se e foi ao encontro de
Sorcor. Ouvi o apressado murmúrio da conversa entre os dois, com a voz de
Sorcor acusadora e a de Wintrow defensiva e razoável. Mas os meus
ouvidos esforçaram-se para ouvir um conjunto diferente de vozes. Ouvi o
navio saudar com alegria o “jovem Ideal” e a resposta mais comedida do
jovem.
“Como é possível?” Moss-O quebrou o silêncio. “Depois do que Kennit
te fez, depois de tudo o que tu e Brashen fizeram por ele, como pode ele
estar tão alegre por receber o filho de Kennit?” Perguntei a mim mesmo se
estava a ouvir uma pontada de ciúme por baixo da indignação do jovem.
Tinha o maxilar tenso e de súbito pareceu-se muito mais com o pai.
“É o Modelo Ideal. Sempre foi capaz de coisas que nem podemos
imaginar.” Alteia pôs-se lentamente em pé. Movia-se como se tivesse
envelhecido subitamente, como se cada articulação no seu corpo estivesse
rígida.
“Eu não sou o meu pai”, disse de súbito Brashen. “E ele também não.”
“Parece-se com ele”, disse Alteia com uma voz hesitante.
“Tal como o Moss-O se parece contigo. E comigo. Mas não é nenhum de
nós. E não é responsável por nada que tenhamos feito nas nossas vidas.” A
voz de Brashen soava baixa e calma. Racional.
“Moss-O”, disse o jovem baixinho. “Já não ouvia esse nome há algum
tempo. Já quase me habituei a que me chamem Trellvestrit.”
“Eu não… não me parece que o odeie. Refiro-me a Fidekennit. E não o
julgo pelo pai.” Alteia tentou encontrar palavras para os seus pensamentos e
prosseguiu, como se o filho não tivesse falado. “Acho que sou melhor do
que isso como pessoa. O pai que teve não é culpa dele. Embora não o ache
minimamente encantador.” Olhou de viés para Brashen e endireitou-se
melhor. A determinação regressou-lhe à cara e à voz. “Mas estou
preocupada com o que ele pode despertar no Modelo Ideal. Há tanto do
meu pai em Vivácia. Há tanto da minha avó no navio vivo da família
Vestrit.” Abanou lentamente a cabeça. “Eu sempre soube que Kennit tinha
de formar parte do Modelo Ideal. Ele era um Ludluck, e foi a família
Ludluck que possuiu o Modelo Ideal ao longo de gerações. E ambos
sabemos que o Modelo Ideal absorveu todos os abusos que Igrot empilhou
em Kennit, todas as profundas mágoas e desfeitas. Foi derramado tanto
sangue no seu convés nos tempos de Igrot, houve tanta crueldade, que a dor
e o medo se infiltraram nele com o sangue derramado nas suas tábuas. E
depois, quando Kennit morreu, o nosso navio recebeu em si tudo o que
Kennit tinha sido desde que abandonou o Modelo Ideal. Eu julguei que o
Modelo Ideal o tivesse… anulado. Que o tivesse deixado para trás ao
amadurecer, como as crianças deixam para trás o egoísmo e aprendem a ter
empatia pelos outros. Julguei…” A voz falhou-lhe e silenciou-se.
“Todos enterramos coisas em nós”, disse Âmbar, fazendo-me estremecer.
Estava a olhar diretamente em frente, não para Alteia, mas eu senti que ela
se tinha intrometido numa conversa privada. “Julgamos que as dominámos.
Até saltarem para fora.” Tinha a mão no punho da minha camisa e eu senti-
a tremer.
“Bem, o que está feito, feito está”, disse Alteia de repente. “É tempo de o
encarar.” Pegou no braço de Brashen e houve um olhar entre ambos que me
fez lembrar dois guerreiros a resistir numa batalha, encostados um ao outro.
Quando se afastaram, Moss-O e Clef puseram-se atrás deles como se
formassem alguma espécie de parada formal.
“Indica-me o caminho”, pediu Âmbar. Seguimo-los com Lante, Centelha
e Per atrás de nós. Os poucos membros da tripulação do Modelo Ideal que
tinha decidido ficar a bordo independentemente do lugar para onde o navio
os pudesse levar seguiram silenciosamente na nossa peugada.
Lanternas iluminavam os mastros e as proas dos navios ancorados no
porto, e a lua nascera. A luz era irregular, envolvendo em véus de sombra as
caras sobre as quais caía obliquamente. Mas o luar tombava sobre as feições
do Modelo Ideal e a sua cara estava cheia de carinho. Era como
aproximarmo-nos de um espetáculo de fantoches a meio de uma atuação. A
figura de proa do Modelo Ideal estava torcida para fitar o filho de Kennit
que se encontrava no seu convés, e o perfil mostrava-me o seu sorriso. O
seu homónimo estava de costas viradas para nós, de pernas bem abertas e
mãos juntas e descontraídas atrás das costas. A pose falou-me mais de
paciência do que de assombro.
Atrás dele, Wintrow estava ao lado de um homem entroncado em cuja
cabeça restava pouco cabelo mas que tinha uma generosa barba grisalha.
Usava calças soltas enfiadas em botas de cano alto e um cinto largo que
segurava uma espada curva sobre a sua barriga igualmente generosa. A
camisa era tão branca que parecia reluzir ao luar. O homem franzia o
sobrolho, com os braços cruzados ao peito. Fez-me subitamente lembrar
Espada. Alguns velhos guerreiros são como boas armas. As suas cicatrizes
transformam-se na pátina da experiência e da sabedoria.
O Modelo Ideal estava a falar. “Então vais comigo? Navegas comigo
desta última vez que eu navegarei, antes de me manifestar como os dragões
que sempre fui?”
Fidekennit pareceu divertido pela pergunta. “Vou, sim! Não consigo
lembrar-me de maneira melhor para passar o meu tempo. Estou farto de
lições de geometria, navegação e línguas. Porque é que me ensinam as
estrelas se nunca sou autorizado a navegar sob elas? Sim, eu vou contigo. E
tu vais contar-me histórias sobre o meu pai, sobre como ele era da minha
idade.”
Um revelador brilho de dragão passou pelos olhos do navio. Pensei que
ele diria que não ao rapaz, mas pareceu sensato ao responder: “Talvez. À
medida que ache que estás pronto para as ouvires.”
Fidekennit riu-se. “Navio, eu sou o Príncipe Ideal das Ilhas dos Piratas!
Não percebes quem é agora o filho de Kennit? Sou o próximo na linha de
sucessão ao trono.” A luz que lhe tocava a cara seguiu as linhas duras do
seu sorriso. “Eu ordeno. Não peço.”
O Modelo Ideal virou-lhe costas e falou por sobre a água. “No meu
convés não, Fidekennit. No meu convés, nunca.”
“E vós não ireis viajar para sítio nenhum, Ideal Fidekennit”, acrescentou
Wintrow com firmeza. “Sorcor está aqui para vos levar de volta aos vossos
aposentos. Neste momento devíeis estar a vestir-vos para uma noite a jogar
às cartas com os dignitários das Ilhas das Especiarias. A vossa mãe, a
Rainha Etta, espera que ambos estejamos lá e, se não partirmos agora,
vamos chegar os dois atrasados.”
Fidekennit virou-se lentamente para encarar Wintrow. “E eu tenho
realmente pena de vós, Ministro Principal, por irdes enfrentar sozinho a ira
dela. Mas é assim. Quando eu regressar ao palácio esta noite, tenciono fazer
as malas para uma viagem marítima, não vestir-me para um jogo de cartas
com uma dama que ri como um cavalo a relinchar.”
Caiu um silêncio. Então Sorcor disse a Wintrow: “Estou a tentar lembrar-
me da última vez que lhe dei uma surra que o deixou a uivar. Acho que
talvez esteja na altura de lhe dar outra.”
O príncipe cruzou os braços ao peito e endireitou-se melhor. “Se me
tocardes, ponho-vos a ferros antes da aurora.” Soltou uma fungadela de
desprezo. “Julgava que vos tínheis fartado há anos de fazer de ama-seca.
Não preciso propriamente de uma ama a seguir-me por aí. Não sou uma
criança teimosa para ser intimidada por vós. Já não.”
“Ná.” O homem mais velho abanou tristemente a cabeça. “És pior. És um
rapaz mimado vestido com a roupa fina de um homem. Se eu julgasse que a
tua mãe alguma vez concordaria, dir-lhe-ia que a melhor coisa para ti seria
enviar-te com o Trell. Como marujo. Para aprenderes um bocadinho do
ofício que o teu pai já conhecia até ao osso quando ainda tinha metade da
tua idade.”
Brashen Trell interveio. “Temo que ele seja um pouco velho de mais para
o aprender. Perdestes a vossa oportunidade, os dois.” Uma estranha
expressão cruzou-lhe a cara. “Ele faz-me lembrar um filho mimado de
comerciante que julgava que era Mercador.”
Os rapazes têm uma maneira de colocar o corpo quando não querem
admitir que as palavras os atingiram. Fidekennit pôs-se assim — um pouco
imóvel em demasia, ombros um pouco rígidos em demasia. A sua
articulação foi precisa quando disse: “Agora vou voltar ao palácio. Mas não
para me vestir e jogar aos dados com os macacos das Ilhas das Especiarias.
Navio! Amanhã voltamos a ver-nos.” Virou o olhar para Brashen e Alteia.
“Confio que tenhais os meus aposentos à minha espera quando eu regressar.
O camarote que vi quando subi a bordo será adequado. E fazei o favor de
embarcar comida e bebida apropriadas para mim.”
E avançou por entre nós, mas eu vi que escolheu um caminho que não
exigiria que ninguém se afastasse para o deixar passar e compreendi que
duvidava da sua capacidade para intimidar algum de nós. Ouvimos os
sonoros baques das suas botas no convés, e de seguida ele passou sobre a
amurada e desceu uma escada de corda, gritando a um pobre diabo qualquer
que estivera à sua espera num bote. O som dos remos em movimento foi um
suave murmúrio na noite.
“Achas mesmo?” Sorcor tinha uma voz grave, e a voz estava cheia de
uma lenta consternação. Por um momento não consegui compreender o que
ele estava a perguntar a Wintrow, mas era para Brashen que o homem
estava a olhar na escuridão.
O capitão do Modelo Ideal fitou o convés. “Não. Não propriamente”,
admitiu. “Embora eu fosse mais novo quando o meu pai me expulsou de
casa e tornou o meu irmão seu herdeiro. Foi difícil encontrar o meu
caminho. Mas encontrei. Não é demasiado tarde para o filho de Kennit.”
Soltou um grande suspiro. “Mas não é uma tarefa que eu deseje.”
Sorcor ergueu o olhar para a lua e a luz caiu-lhe no rosto. Tinha a testa
enrugada, os lábios pensativamente franzidos. Depois disse numa voz
áspera: “Mas o navio tem razão. Ele devia navegar convosco. É a sua última
possibilidade, a sua única possibilidade de conhecer este convés sob os seus
pés. De navegar no navio que deu forma ao pai.” Virou o olhar para o
cruzar com os olhos surpreendidos de Brashen. “Devíeis levá-lo.”
Wintrow sobressaltou-se. “O quê?”
Mas Sorcor acenou-lhe com uma mão nodosa, silenciando a objeção do
outro. O homem mais velho pigarreou. “Eu falhei ao rapaz. Quando ele era
pequeno, ficava demasiado feliz por ter qualquer bocado do seu pai que nos
restasse. Acarinhei-o e mantive-o afastado de todo o mal. Nunca o deixei
sentir a dor dos seus próprios erros.” Abanou a cabeça. “E a mãe ainda o
enche de mimos e lhe dá tudo o que ele quer. Mas não é só ela. Eu queria
que ele fosse um príncipe. Queria-o metido em roupa elegante e com as
mãos limpas. Queria que ele tivesse o que o pai conquistou para ele. Que
fosse o que o pai esperaria que ele fosse.” Voltou a abanar a cabeça. “Mas
por algum motivo não obtivemos essa outra parte dele.”
“Ele não teve de se tornar homem”, observou Brashen numa voz
monocórdica. As palavras eram duras mas o tom de voz não era.
“Uma viagem longe da mãe conseguiria dar-lhe isso?”, sugeriu Sorcor.
Alteia pôs-se subitamente à frente de Sorcor. O seu olhar saltou dele para
Wintrow. “Eu não o quero. Já tenho de lidar com coisas suficientes nesta
viagem. Tenho uma vaga ideia de para onde vamos e nenhuma ideia de
como seremos lá recebidos. Ou de quanto tempo demorará a tarefazinha de
Âmbar, ou de quando regressaremos. Talvez não te tenha sido revelado,
Sorcor, mas nós vamos entregar morte e vingança. Podemos perfeitamente
ter de fugir para salvar a vida. Ou morrer. Não serei responsável pelo bem-
estar do príncipe das Ilhas dos Piratas, e muito menos pela sua
sobrevivência.”
“Mas eu serei.” Foi o Modelo Ideal quem falou.
Todos sentimos e ouvimos essa resposta. Ela ressoou nos ossos do navio
e chegou-nos aos ouvidos não como um grito mas como uma asserção. Eu
não queria mais acrescentos à nossa companhia naquela viagem, muito
menos um príncipe mimado, portanto inspirei para fazer a minha própria
objeção e senti o súbito apertão de Âmbar no meu pulso. Em voz baixa, ela
disse: “Chiu. Como dizem em Calcede, tu não tens nenhum cão neste
combate.”
Desde que tínhamos embarcado no Modelo Ideal, eu sentira o controlo
sobre os meus planos escapar cada vez mais do meu alcance. Não pela
primeira vez, desejei ter vindo sozinho e sem estorvos.
“No camarote”, anunciou Brashen em voz tensa. Os seus olhos
percorreram-nos. “Sigam-me.” Deitou um olhar à tripulação e acrescentou:
“Aos vossos deveres. Por favor.” Senti que a última frase foi uma concessão
aos marinheiros que tinham ficado a bordo do Modelo Ideal. Não tinham
sido muitos. Se zarpássemos, coisa de que eu começava a duvidar, íamos
realmente ter uma tripulação mínima.
A voz do Modelo Ideal trovejou no porto silencioso. “Eu vou ter o que
quero, Brashen. Ah, vou!”
“Oh, não duvido disso”, respondeu ele com amargura. Alteia já se virara.
Brashen girou e seguiu-a, levando-nos para a ré.
A sala era grande para um navio, mas nunca tinha sido concebida para
ser enchida com tanta gente. Deixei Âmbar sentar-se e fiquei em pé atrás
dela, com as mãos nas costas da sua cadeira. Posicionara-a de forma a
conseguir estudar todas as pessoas na sala.
Sorcor era um contraste. Calculei que ele fosse um homem que já
ultrapassara a meia-idade, usado com dureza pela parte inicial da vida mas
agora em porto seguro. Vestia-se como era adequado a um nobre de baixo
estatuto, mas as cicatrizes na sua cara e o desgaste nas mãos pertenciam a
um guerreiro e marinheiro. A espada que trazia ao flanco era de excelente e
mortífera qualidade. Havia algo no corte da sua roupa e na escolha de joias
que falava de um homem que conhecera a pobreza e subitamente recebera a
oportunidade de se vestir com tecidos de boa qualidade e com ouro. Noutro
homem, podia ter parecido risível. Nele, parecia coisa ganha.
Brashen bateu com duas garrafas na mesa. Brande e rum. Alteia fê-las
seguir por um retinir de copos. “A escolha é vossa, e servi-vos”, anunciou
fatigadamente antes de se deixar cair numa cadeira. Por um momento,
baixou a cabeça sobre as mãos. Depois, quando Brashen veio pousar-lhe as
mãos nos ombros, ergueu a cabeça e endireitou as costas. Tinha os olhos
resignados.
Wintrow interveio. “A Rainha Etta não vai gostar nada disto. Já ficou
alarmada quando recebeu a notícia de que um navio vivo estava a ser
trazido para o porto por violação tarifária. Isso simplesmente não acontece.
Os Mercadores compreendem bem as taxas e tarifas, e nenhum deles deseja
os atrasos e multas que as violações acarretam. Assim que soubemos que
era o Modelo Ideal, fui imediatamente ter com ela. Ela temeu…” Parou e
escolheu abruptamente outra palavra. “Ela achou melhor que o príncipe
fosse localizado e a sua apresentação ao navio do pai fosse supervisionada.
Por assim dizer.” E deitou a Sorcor um relance de viés.
“Ele é um jovem!”, objetou Sorcor. “Soube qual era a minha missão, não
sei como, e manteve-se longe de mim. Suspeito que terá remunerado os
guardas para olharem para o ar. Amanhã ponho-os na rua. E aqui estamos.
E agora?”
“Vou subir a bordo!” Uma voz de mulher, imperiosa e zangada.
Wintrow e Sorcor trocaram um olhar. “A Rainha Etta não é…
recalcitrante em agir sobre uma situação.”
Sorcor soprou pelo nariz e olhou para Brashen. “Esta palavra comprida
quer dizer que ela pode trazer uma espada desembainhada. Tenham cuidado
e não façam movimentos rápidos.” Tirou o chapéu da cabeça. Vi como se
pôs naturalmente na pose de um combatente.
Brashen afastou-se de Alteia, aproximando-se da porta como se a
quisesse proteger, mas os olhos escuros da mulher relampejaram e ela pôs-
se em pé para se ir colocar a seu lado. A voz da Rainha Etta voltou a chegar
até nós.
“Sai-me da frente! Já te tinha dito que não preciso de ti para isto. Estás a
embaraçar-me e o meu ministro principal vai ouvir falar disto. Os
regulamentos devem cair perante as minhas ordens! Espera no barco se
tiver de ser, mas sai-me da frente.”
“Ela acabou de mandar embora o guarda que lhe atribuí”, observou
brandamente Wintrow.
E no instante seguinte, a porta enquadrou uma mulher extraordinária. Era
alta, e os planos do seu rosto eram angulosos. Não era bela, mas era
chamativa. O seu lustroso cabelo negro caía-lhe solto até aos ombros, os
quais eram largos sob um casaco escarlate. Renda negra derramava-se pela
frente da sua camisa e cobria-lhe os punhos. Argolas de ouro pendiam
ousadamente das suas orelhas. E perto da garganta, quase aninhado na
renda, usava um colar esculpido à imagem de um homem. Kennit? Se assim
fosse, o filho assemelhava-se fortemente ao pai. Ela também usava uma
espada num largo cinturão negro tachonado de prata, mas esta ainda residia
na bainha. A mulher trazia as costas dos dedos pousadas no cabo elaborado
da espada. O olhar que cortou a sala era mais afiado do que qualquer espada
quando perguntou: “Estão a conspirar?”
Wintrow inclinou-lhe a cabeça. “Claro que estamos. E damos as boas-
vindas à vossa companhia. O assunto é o vosso obstinado e bastante
mimado herdeiro, que travou recentemente conhecimento com o obstinado
e bastante mimado navio do pai. Parecem decididos em juntar-se numa
viagem a Clerres. Foi-me dado a entender que o propósito dessa viagem é
exercer vingança contra um mosteiro que lá existe, pelo rapto e assassínio
de uma criança. E que, depois, esta embarcação vai transformar-se
magicamente em dois dragões.”
A boca de Etta ficou ligeiramente entreaberta enquanto Wintrow olhava
para Alteia e perguntava: “Tenho os factos razoavelmente certos?”
Alteia encolheu os ombros. “O suficiente.” E as duas mulheres trocaram
olhares frios.
A Rainha Etta não disse nada. Wintrow falou com cautela. “A delegação
das Ilhas das Especiarias?”
“Têm gente com fartura com quem percam o seu dinheiro. Junto-me a
eles à mesa de jogo, ou não me junto de todo. Agora pouco me importa.”
Virou um olhar furioso para Alteia e Brashen. “Porque trouxestes este navio
para aqui? O que quereis de nós? De Fidekennit? O meu filho não vai a sítio
nenhum! Ele é o herdeiro deste reino e é necessário aqui. Devia estar a
desfrutar de uma noite na companhia dos mercadores vindos das Ilhas das
Especiarias e da sua eventual noiva, não a planear uma viagem marítima.”
O seu olhar percorreu-nos a todos, com os olhos frios. “E seja qual for a
vingança que procurais, não tem nada a ver connosco. Portanto, porque
viestes até aqui? Que espécie de discórdia tentais semear? Para quê trazer
para o nosso porto esta embarcação e a sua má reputação e pior sorte? Era
meu desejo que ele nunca visse ou pusesse os pés neste navio!”
“Aí, estamos de acordo”, respondeu Alteia em voz baixa.
Senti a rainha pirata forçar-se para olhar para Alteia. “Mas não pelos
mesmos motivos”, disse num tom rígido. “O meu filho sente fascínio por
este navio desde que teve idade suficiente para saber como o pai morreu. O
último sangue de Kennit ensopou as tábuas deste convés. As suas
memórias, a sua… vida… foi levada para o seu interior. Absorvida. E desde
a altura em que o meu filho chegou à idade de lhe falarem dessas coisas,
ficou possuído de uma enorme curiosidade para ver este navio, para estar a
bordo dele, na esperança de falar com o pai. Dissemos-lhe, uma e outra vez,
que o Modelo Ideal não é o seu pai. O pai só compõe uma parte da vida que
o navio corporiza. Mas é difícil fazer alguém compreender isso.”
Alteia falou numa voz inexpressiva. “Duvido que alguém que não
descenda dos Mercadores de Vilamonte chegue a compreender por inteiro o
que isso significa.”
A Rainha Etta fitou-a com frieza. “Kennit descendia dos de Vilamonte.
Era um Ludluck. E o seu filho tem esse sangue, mesmo que prefira o nome
de Fidekennit.” A mão ergueu-se para agarrar o colar. “E eu talvez
compreenda mais sobre este navio do que julgais. Foi o próprio Modelo
Ideal a falar-me dessas coisas. E além disso” — e indicou Wintrow com
uma inclinação de cabeça — “tive o vosso sobrinho como conselheiro sobre
esses assuntos.”
“Então talvez compreendais o que o Modelo Ideal sofreu. Nos dias em
que foi o navio de Igrot, absorveu muitas mortes, provavelmente mais do
que qualquer outro navio vivo. E mesmo antes disso, quando pertencia à
família Ludluck, a sua fortuna parecia amaldiçoada. Ele nunca foi…
estável. Durante algum tempo foi conhecido em Vilamonte como o Pária. E
como o navio louco, o navio vivo que mataria qualquer tripulação que
tentasse pô-lo a navegar.”
“Sei disso.” Desdém régio no tom de voz. Depois Etta inclinou a cabeça
e mostrou-se de súbito humana de uma forma desarmante quando disse:
“Alteia, achais que eu não fui visitada por Malta e Reyn? Julgais que não
ouvi cada detalhe sobre a existência deste navio e a sua história?” Baixou o
olhar para o pingente que tinha na mão e acrescentou em voz mais baixa:
“Talvez seja possível que eu compreenda este navio ainda melhor que vós.”
Ambas as mulheres se silenciaram. Senti-me como se o destino estivesse
equilibrado numa minúscula ponta, à espera de se mover e escolher uma
direção. Seria aquilo o que o Bobo quisera dizer quando me falara de
infinitos futuros, preparados e à espera, mas em que só um se tornaria real?
Seríamos todos testemunhas disso?
Contudo, foi Brashen quem falou. “O passado assombra todos os que
aqui estão. Afastemo-nos dele, por favor. Não vale a pena discutir quem
melhor compreende os navios vivos ou o Modelo Ideal. Não é esse o
problema que temos neste momento. E antes de falarmos sobre o futuro, eu
gostaria de esclarecer o presente, uma vez que ele afeta Alteia, a mim e à
minha tripulação.” Passou o olhar por todos nós. Ninguém falou. “Quando
eu e Alteia falámos com Wintrow logo quando chegámos a terra, ele
concordou em ajudar-nos a satisfazer as nossas necessidades mais básicas
— a enviar aves mensageiras aos nossos parceiros comerciais em
Vilamonte e nos Ermos Chuvosos, assegurando-lhes que não pretendíamos
executar nenhum roubo quando não parámos nem em Vilamonte nem em
Jamaília. Rainha Etta, queríamos pedir a vossa ajuda para escolher navios e
capitães de confiança que sigam rumo a esses portos e possam estar
dispostos a entregar os nossos bens aos destinatários devidos, para que a
nossa palavra como Mercadores honrados continue sem mácula. Se
puderdes ajudar-nos nisso, considerá-lo-íamos um grande favor a ambas as
nossas famílias.”
Etta olhou para Wintrow e concordou com a cabeça.
“Isso pode ser feito.” Wintrow falava em voz baixa. “Eu conheço vários
capitães em quem confio.”
O alívio de Brashen foi evidente. “E julgo que todos concordamos que
seria um grande erro ter Fidekennit a acompanhar-nos na louca tarefa do
Modelo Ideal. Temos todos de assegurar que ele não consiga embarcar antes
de partirmos. Ele tem de ser mantido longe do porto e do navio, pois o
Modelo Ideal não pode procurá-lo em terra.” Ergueu uma mão. “Se os
conservarmos separados, o Modelo Ideal pode permanecer no porto,
obcecado com Fidekennit, e desistir da sua demanda. Mas julgo isso
improvável. Creio que o seu desejo de se recriar como dragões será mais
forte do que a vontade de ter Fidekennit a fazer uma última viagem
consigo.”
“Concordo…”, começou Wintrow e depois parou. O seu olhar
surpreendido cruzou-se com o de Brashen. Alteia pôs-se em pé de um salto
enquanto Sorcor perguntava num suspiro ríspido: “O que foi aquilo?”
Todos marinheiros, eles ficaram cientes antes de mim de uma subtil
mudança no navio. Em poucos momentos de ansiedade, eu senti a
inclinação e Alteia gritou: “Ele está a meter água!”
Brashen deu dois grandes passos e pegou na maçaneta da porta, mas esta
estava bem apertada contra uma ombreira que saíra do alinhamento. As
tábuas do navio gemeram e as vidraças das janelas fizeram um som
indescritível quando o navio se fletiu. A voz do Modelo Ideal trovejou
sobre o navio e as águas do porto. “Eu podia matar-vos a todos! Podia
afogar-vos aqui mesmo no porto! Como se atrevem a conspirar contra mim
no interior das minhas cobertas?”
Os dedos de Âmbar enterraram-se subitamente no meu antebraço. “Eu
parto uma janela”, assegurei-lhe.
Centelha agarrou-se a Per, daquela forma fraternal como alguém segura
no mais novo, preparando-se para o arrancar do caminho do perigo. Lante
pegou em cada um deles por um ombro e empurrou-os na minha direção.
Aglomerámo-nos muito juntos na sala que se ia inclinando lentamente.
Sorcor fora pôr-se ao lado de Etta. Fez-me lembrar um maltratado cão de
guarda a ir cumprir o seu dever. Etta pareceu não estar consciente da sua
presença. Tinha o queixo tenso e elaborava algum plano seu. Observei
Brashen. Se ele agisse, eu agiria. Até lá…
“Mas não o vou fazer.” A voz do navio trovejou através do meu peito.
“Agora não! E não só porque o Moss-O ficaria aqui encurralado convosco.”
Moss-O estava em pé, pálido, agarrado à borda da mesa, com os olhos a
mostrar o branco a toda a volta. Apercebi-me de que ele acreditava na
ameaça. Gelo encheu-me a espinha e a barriga.
“Modelo Ideal, deixa-me sair. Deixa-nos ir à proa discutir isto de uma
forma que não envolva todas as Ilhas dos Piratas.” Brashen falou como um
pai ao seu filho, com palavras calmas e firmes. Ainda tinha a mão pousada
na maçaneta da porta.
“Mas envolve!” A voz trovejante do Modelo Ideal veio do exterior. Não
duvidava que todos os que estavam no porto e nos edifícios da zona
portuária conseguiam ouvi-lo. “Envolve-os a todos, se afastarem de mim o
seu príncipe. Porque ele era do meu sangue antes de se tornar seu príncipe!
O príncipe que Kennit não poderia ter feito sem mim!”
“Ele está louco”, disse Etta num sussurro quase inaudível. “Morrerei aqui
alegremente, afogada dentro dele, antes que fique com o meu filho!”
“Não vos afogareis aqui, Rainha Etta.” Sorcor pegou numa garrafa de
rum e sopesou-a pensativamente, a olhar para as janelas.
“Não sei nadar”, disse ela numa voz débil.
“O Modelo Ideal não se vai afundar”, declarou Alteia com firmeza, e
perguntei a mim mesmo se bastaria a sua determinação para nos proteger.
Vinda do exterior da porta do camarote, a voz de Ant chegou até nós.
“Senhor, tenho um machado! Quereis que abra caminho à machadada?”
“Ainda não!”, ordenou Brashen, para minha surpresa.
Depois, chocando-me ainda mais, soou outra voz de mulher. Ressoava de
autoridade e era tão sonora como a do Modelo Ideal. “Se fizeres mal à
minha família, vou deixar-te a arder, seu Pária desleal!”
“Vivácia!”, arquejou Alteia.
“Vais queimar-me?”, uivou o Modelo Ideal. “Para salvares a tua família?
Julgas que te importas mais com a tua família do que eu me importo com a
minha? Incendeia-me e eles cozinham dentro de mim como carne num
forno!”
“Modelo Ideal!” Moss-O berrou o nome. “Tu fazias-me mesmo isso a
mim, que nasci no teu convés e aprendi a andar aqui?” A sua inspiração
chegou-lhe trémula aos pulmões. “Foste tu que me batizaste! Foste tu que
me chamaste Moss-O, o teu Moss-O, porque não me querias chamar
Trellvestrit! Foste tu que disseste que eu era teu e esse nome não combinava
comigo!”
Um súbito e profundo silêncio seguiu-se àquelas palavras. O silêncio
aumentou e ensurdeceu-nos. Depois, um profundo gemido angustiado fez
vibrar a coberta sob os nossos pés. Perguntei a mim mesmo se os outros
sentiriam, como eu senti, uma insuportável vaga de culpa que me cobriu em
conjunto com o som. Lembrei-me de cada coisa tola, de cada coisa má e
egoísta que fizera na vida. A vergonha trespassou-me de tal forma que
ansiei por morrer, invisível e só.
Sob os nossos pés, a coberta ia lentamente voltando a endireitar-se. Ouvi,
a toda a nossa volta, os resmungos das tábuas e vigas em movimento.
Depois a porta abriu-se de repente, revelando uma Ant em pânico com um
machado na mão. Vários membros da tripulação rodeavam-na. “O perigo
passou”, disse-lhe Brashen, mas eu não sabia bem se concordava. “Vós, os
tripulantes que permaneceis, tratai da carga. Trazei para o convés quaisquer
caixotes molhados que haja. Eu sei, eu sei — trabalhar no escuro. Não se
pode evitar. Quero estar em condições de descarregar amanhã o mais
depressa possível.” Uma breve pausa e depois acrescentou: “Todas as
escotilhas devem ser abertas e ficar assim.”
“Capitão”, concordou Ant numa voz trémula e foi-se embora a correr.
Brashen atravessou a porta e dirigiu-se para vante, com Alteia logo atrás
e Moss-O ao lado dela, e todos os seguimos. “Detesto isto”, disse eu a
Âmbar em voz baixa.
“E não detestamos todos?”, resmungou ela.
“Parece que todo o meu futuro está fora do meu controlo. Quero sair
deste navio enlouquecido e afastar-me destas pessoas. Quero ir-me embora
já!”
No convés levei-a até à amurada e fitei as luzes dispersas da cidade
pirata. “Podemos exigir ir a terra. Usar os presentes dos Ermos Chuvosos
para comprar passagem noutra embarcação. Recuperar algum controlo
sobre a nossa viagem. E enviar Lante e os jovens para casa e para fora de
perigo.”
“Voltámos a isso?” Lante abanou a cabeça. “Não acontecerá, Fitz. Eu não
vou para casa até irdes comigo. E seria tolo e perigoso enviar estes dois
sozinhos numa longa viagem com pessoas que não conhecemos.
Enfrentemos o que enfrentarmos, sinto que eles estão mais seguros
connosco.”
“Para mim não é questão de ‘mais seguro’”, resmungou sombriamente
Per.
Ignorei-os a todos e fitei as luzes. Apetecia-me sacudir-me todo, como
um lobo sacudiria a chuva, e correr sozinho para as trevas a fim de fazer o
que tinha de ser feito. Sentia-me enjaulado pelas responsabilidades. O que
era melhor para nós? “Então devíamos sair esta noite deste navio, todos
nós. Arranjar outra passagem para Clerres.”
“Não podemos”, disse o Bobo. E não Âmbar. Virei a cabeça para olhar
para ele. Como fazia aquilo? Como era que se livrava de uma máscara e
envergava outra tão facilmente? Apesar do rouge e do pó de arroz, virou
para mim a cara do meu amigo. “Temos de ir até lá neste navio, Fitz.”
“Porquê?”
“Já te disse.” Soava ao mesmo tempo paciente e exasperado de uma
forma que só o Bobo conseguia fazer. “Eu recomecei a sonhar. Não muitos
sonhos, mas os que me alcançaram ressoavam com clareza e com…
inevitabilidade. Se vamos para Clerres, viajamos neste navio. É estreito, o
canal pelo qual navego para alcançar o meu objetivo. E só o Modelo Ideal
nos fornece passagem para o futuro que tenho de criar.”
“Mas nunca pensaste em partilhar essa informação comigo até este
momento?” Não tentei manter a acusação afastada da voz. Seria aquilo
coisa verdadeira ou uma jogada do Bobo para obter o que queria? A minha
desconfiança de Âmbar estava a começar a contaminar a amizade com o
Bobo.
“Os passos que percorri para nos levar a Kelsingra e depois a Trehaug,
para nos fazer embarcar neste navio e seguir de lá até Partilhas… se te
tivesse falado deles, das coisas que fiz e das coisas que tive o cuidado de
não fazer, isso ter-te-ia influenciado. Só se tu te comportasses como te
comportarias se nada soubesses sobre o que eu fazia, chegaríamos aqui.”
“O quê?”, perguntou Lante, confuso.
Não podia censurá-lo. Organizei as palavras do Bobo. “E, portanto, claro
que isso quer dizer que não me podes dizer nada sobre os teus outros
sonhos e avisar-me do que temos de fazer. Tudo tem de ser deixado nas tuas
mãos.”
Ele pousou as mãos enluvadas na amurada do navio. “Sim”, disse em voz
baixa.
“O caraças”, disse Perseverança, muito claramente. Centelha deitou-lhe
um olhar chocado e depois repreendeu-o com um empurrão. Ele trespassou-
a com o olhar. “Ora, não está certo. Não é assim que os amigos deviam
fazer as coisas.”
“Perseverança, já chega”, disse eu em voz baixa.
Lante suspirou. “Não devíamos ir até à proa e ver o que se está a passar?”
E quando se virou e se encaminhou para lá, nós seguimo-lo. Eu não tinha
grande vontade de ir. Os profundos soluços da figura de proa e a sua tristeza
permeavam o navio. Parei para reforçar as muralhas e depois recomecei a
avançar com Âmbar.
O Bobo falou em voz baixa. Os outros tinham-se adiantado o suficiente
para eu duvidar que o ouviam. “Não vou dizer que lamento. Não posso
lamentar uma coisa que tenho de fazer.”
“Não tenho a certeza de isso ser inteiramente verdade”, respondi.
Conseguia lembrar-me de muitas coisas que tivera de fazer, e lamentava
muitas delas.
“Lamentaria mais, e tu também, se eu começasse a preocupar-me mais
com os teus sentimentos e menos com chegar a Clerres e salvar Abelha.”
“Salvar Abelha.” Senti que as palavras dele eram como carne pendurada
à frente de um cão esfomeado. Estava cansado e assolado pela culpa e
desgosto do Modelo Ideal. “Julguei que a tua grande ambição era destruir
Clerres e matar o máximo de pessoas que pudesses. Ou que eu pudesse
matar por ti.”
“Estás zangado.”
Quando ele proferiu as palavras em voz alta, senti-me envergonhado. E
ainda mais zangado. Parei e fiquei imóvel. “Estou”, admiti. “Isto… não é
assim que eu faço as coisas, Bobo. Quando mato, mato com eficiência. Sei
quem estou a perseguir, sei como os encontrar e como lhes dar fim. Isto…
isto é uma loucura. Vou para território desconhecido, pouco sei sobre os
meus alvos e sou estorvado por pessoas que sou responsável por proteger.
Depois descubro que estou a dançar ao ritmo da música que tu tocas, uma
música que nem consigo ouvir… Responde-me ao seguinte, Bobo: eu
sobrevivo a isto? O rapaz sobrevive? Lante volta para junto de Breu, e o pai
dele ainda está vivo quando lá chegar? Centelha sobrevive? Tu
sobrevives?”
“Há coisas que são mais prováveis que outras”, respondeu ele em voz
baixa. “E todas ainda dançam e oscilam como uma moeda a girar. Poeira
soprada pelo vento, um dia de chuva, uma maré mais baixa do que se
esperava — todas e qualquer uma dessas coisas podem mudar tudo. Tens de
saber que é verdade! Tudo o que eu posso fazer é espreitar a bruma e dizer:
Parece mais limpo naquela direção. E digo-te que a nossa melhor hipótese
de encontrarmos Abelha viva é permanecer no Modelo Ideal até que o
navio chegue a Clerres.”
O meu orgulho queria-me desafiador, mas a minha condição de pai era
mais forte que o orgulho. O que não teria eu feito para aumentar as
hipóteses de conseguir salvar Abelha, de conseguir abraçá-la e protegê-la e
dizer-lhe quão devastado me sentia por lhe ter falhado? De lhe prometer que
nunca mais abandonaria a minha proteção?
Os outros tinham esperado por nós. A mão de Âmbar apertou-me o braço
quando segui à frente até à proa com eles enfileirados atrás de mim. A
minha guarda. A minha guarda, que eu tinha de proteger enquanto os levava
para não sabia o quê.
Âmbar perguntou em voz baixa: “Há uma luz brilhante à nossa
esquerda?”
“Há uma lanterna no Vivácia. Está muito brilhante.” Alguma espécie de
discussão decorria no convés do outro navio, embora eu não conseguisse
ouvir os detalhes. Ouvi “âncora” e depois um bradar de ordens para
arrancar alguém da cama.
Âmbar virara a cara para a luz da lanterna e abrira muito os olhos
dourados-claros. Um ligeiro sorriso curvou-lhe a boca. A sua cara pálida
fez-me lembrar a lua quando disse: “Consigo aperceber-me dela. A minha
visão vai melhorando devagar, Fitz. Tão devagar. Mas acho que está a
regressar.”
“Isso seria bom”, disse eu mas, em privado, perguntei a mim próprio se
ela estaria a iludir-se.
À proa do navio, vozes tinham estado a subir e descer. Reconheci a voz
de Alteia elevada numa pergunta mas não captei as palavras. Estávamos na
periferia dos que se tinham reunido aí, pois muitos dos tripulantes
encontravam-se entre nós e a figura de proa. Foi Modelo Ideal que
respondeu. “Não, se alguém devia saber que eu não sou Kennit e que
Kennit não te pediu isto, esse alguém és tu. Vivácia é o teu pai ou a tua avó?
Claro que não. Não é Kennit quem exige isto. Sou eu, Modelo Ideal. Um
navio feito de dragões massacrados, acolhidos e escravizados por uma
família de Mercadores de Vilamonte. Eu, nós, não tivemos voto nesse
assunto! Não tivemos alternativa a gostar, não tivemos escolha sobre quem
amar à medida que os Ludluck iam despejando o seu sangue, as suas almas
e as suas memórias nos ossos do nosso convés. Eu não peço: exijo! Não
tenho direito a ele, tanto como os seus antepassados tiveram a mim? Não
será justo?”
“É justo!” Uma voz feminina, clara e projetada. Vivácia. E de súbito a
minha mente juntou os bocados daquilo que ouvira. O navio vivo tinha
arrastado a âncora para se aproximar mais do Modelo Ideal, não só para
ouvir as suas palavras mas para acrescentar a sua voz à dele. “Alteia, tu
sabes que é! Se eu partisse para a minha última viagem, tu negavas-me o
Moss-O? Escuta-os! Eles têm o direito de exigir o Fidekennit, depois de
tudo aquilo por que passaram como navio familiar dos Ludluck.”
“Que está a acontecer aí?”, perguntou Wintrow no momento de silêncio
que se seguiu às palavras de Vivácia.
“O que tem de acontecer!” Vivácia falou antes de qualquer dos seus
tripulantes conseguir responder ao seu capitão. “Julgavas que eu não ouviria
a verdade no que o Modelo Ideal disse? Sou um navio vivo, e fui uma
maravilhosa embarcação para a tua família durante gerações. Mas o Modelo
Ideal tem razão e lá no fundo todos sabíamos que tínhamos outras
naturezas, mesmo antes de a verdade sobre a dita madeira-de-feiticeiro ter
sido revelada. Vou voltar a ser um dragão, Wintrow. Não conheço nenhum
navio vivo que não deseje erguer-se e voltar a voar. Portanto, nisto seguirei
o Modelo Ideal. Não só até Clerres, mas depois pelo Rio dos Ermos
Chuvosos acima, para exigir a Prata que é o direito de qualquer dragão!”
“Vais seguir o Modelo Ideal para Clerres?”
“Queres ser um dragão?” Alteia e Wintrow falaram em simultâneo.
“Estou a pensar nisso”, respondeu o navio em tom judicioso.
“Porquê Clerres?” A voz de Brashen elevou-se em completa confusão.
“Porque não vais diretamente para Kelsingra?”
“Porque uma memória desperta em mim. Uma memória de dragão, uma
memória eclipsada por pensamentos e emoções humanas, uma memória tão
marcada por experiências humanas que não consigo ter a certeza de nada
exceto de um sentimento de fúria e traição que cresce em mim ao ouvir o
nome de Clerres. Os dragões têm poucas recordações dos seus anos de
serpentes, mas… eu recordo alguma coisa. Alguma coisa intolerável.”
“Sim!” O Modelo Ideal atirou a cabeça para trás e gritou a palavra ao céu
noturno.
A exultação que percorreu o navio infetou-me. Lutei contra o sorriso que
desabrochou na minha cara. O Talento dele era tão forte, pensei de mim
para mim, e depois, com um choque, reconheci as implicações desse facto e
senti-me frio e trémulo. Tirei a mão de Âmbar do meu antebraço e disse a
Centelha: “Reveza-me a guiar a Dama Âmbar, por favor. Preciso de algum
tempo sozinho para pensar.”
Âmbar agarrou-se ao peito da minha camisa. “Vais-te embora? Não
queres ficar aqui e ouvir o que é dito?”
Peguei-lhe no pulso e soltei-lhe a mão, com mais dureza do que
pretendera. Não consegui manter longe da voz o desconforto e irritação
comigo que sentia por não ter reconhecido o óbvio. “Ouvir não vai mudar
nada. Eles decidirão o que nos vai acontecer, quando viajamos e quem vai
connosco. Há outra coisa em que tenho de refletir. Centelha ficará contigo e
Lante e Per também. Mas por agora preciso de pensar.”
“Compreendo”, disse ela, numa voz que dizia que não compreendia.
Mas a revelação que eu tivera sobre a capacidade do navio para
manipular a emoção humana era demasiado vasta para partilhar com ela.
Afastei-me a passos largos na direção dos aposentos da tripulação. Camas
suspensas vazias. Só restavam alguns baús e sacos de marinheiro. Sentei-
me aí, na arca de marinheiro de alguém, no porão escuro e sufocante, e
refleti. Sentia-me a reunir as peças de uma chávena partida. A Prata por que
os navios vivos ansiavam e que os dragões guardavam tão ciosamente era o
mesmo Talento que eu vira nas mãos de Veracidade quando ele esculpira o
seu dragão. Era o material em bruto da magia, a sua própria essência. Eu
vira-o como uma pasta grossa nas mãos do meu rei, vira-o dar à pedra a
forma de um dragão com o poder que ela lhe conferia. Num sonho de
Talento partilhado com Veracidade, vira um rio com uma larga faixa de
Prata que corria com a água. Vira Prata como fios num frasco de sangue de
dragão e testemunhara o modo como ela apressara a cura do Bobo, tal como
o Talento curara e alterara as crianças de Kelsingra.
Portanto, a Prata era o Talento, e o Talento era a magia que eu usava com
a mente para estender o pensamento e tocar com ele no de Breu. O Bobo
insinuara uma vez que eu tinha sangue de dragão nas veias. O Lobo-do-Mar
dissera que eu fora reclamado por um dragão. Seria o dragão de pedra que
eu tocara, ou um eco de Veracidade tal como o conhecera? Reordenava
agora essa ideia. Teria eu herdado qualquer coisa no sangue, algum vestígio
de Prata propriamente dita que me dava o poder de empurrar os
pensamentos na direção dos outros? Vestígios de Prata nas pedras-portais,
nos pilares de Talento que eu podia usar para viajar. Linhas de Prata nas
pedras a partir das quais Veracidade esculpira o seu dragão e nos dragões de
pedra que dormiram até que, com sangue e um toque do meu Talento, eu os
despertara. Vestígios de Prata nas pedras da memória que continham os
registos que os Antigos nos deixaram.
Então o que era a corrente de Talento que eu usara para contactar Urtiga
ou Respeitador? Era uma força exterior a mim, disso tinha a certeza. E
havia outros nela, consciências poderosas que me atraíam e podiam
absorver. Quem eram? Teria eu realmente sentido Veracidade aí? O Rei
Sagaz? Como se ajustava isso à Prata?
Tinha demasiados pensamentos. A minha mente saltou de uma ideia para
outra, de me interrogar sobre a corrente de Talento para matutar na magia
que eu talvez fosse capaz de brandir se bebesse os frascos de Prata que
Rapskal me dera. A tentação competiu com o medo. Conceder-me-ia isso
um grande poder ou uma morte dolorosa? Quanta Prata seria demasiada
para ser absorvida pelo corpo de um homem? O Modelo Ideal ficara muito
mais poderoso com a Prata que Âmbar lhe dera. Cada um dos frascos que
eu tinha na mochila continha mais do dobro da Prata que ele tomara. Agora,
as suas emoções explodiam para fora dele com uma força a que eu mal
conseguia resistir. Saberia ele o que fazia aos seres humanos? Afetar-me ia
ele mais a mim porque eu tinha sido treinado no Talento? Se ele
compreendesse o seu poder e o dirigisse, seria eu capaz de lhe resistir?
Seria alguém?
Quando os dragões de pedra se tinham erguido em voo e Veracidade os
liderara para a batalha contra os Salteadores dos Navios Vermelhos, eles
afetavam as mentes dos guerreiros que estavam por baixo. Eles tinham
destruído os nossos inimigos com hálito ácido, com os ventos poderosos
das asas e com as chicotadas das caudas. Mas pior fora o que tinham feito
às suas mentes. Ser sobrevoado pelos dragões de pedra significava perder
memórias. Não era assim tão diferente da forma como os das Ilhas Externas
haviam Forjado os seus cativos. Mesmo os nossos homens no terreno
tinham sentido o efeito; até a presença de Veracidade sob a forma de dragão
de pedra o exercera sobre os guardiães de Torre do Cervo. A recordação de
como a rainha e Esporana tinham regressado ao Castelo de Torre do Cervo
era nebulosa para aqueles que o haviam testemunhado. A história mais
comum era que Veracidade estivera montado num dragão quando a
depositara em lugar seguro. Não que o rei se tivesse transformado em
dragão.
Era esse o poder do Talento, ou da Prata, para confundir e desconcertar.
Para roubar memória e talvez a humanidade de uma pessoa.
Tal como os meus criados tinham ficado confundidos na noite em que
Abelha fora raptada. Teriam eles usado Prata ou sangue de dragão para
operar essa magia, para fazer todo o meu pessoal esquecer como tinham
vindo e raptado a minha filha, esquecer até que ela tinha existido?
Poderia essa mesma magia ser usada contra eles?
Atrevi-me a imaginar beber a Prata. Não toda, a princípio não. Só um
pouco, para ver o que conseguiria fazer. Só o suficiente para me tornar forte
que bastasse para resistir às emoções do navio. O suficiente para sarar o
Bobo sem perder a visão por isso. Seria possível? O suficiente para
contactar Breu e pedir-lhe conselhos, talvez para curar o seu corpo da
devastação da idade e recuperar a sua mente. Poderia eu fazer isso? Saberia
Urtiga mais sobre o que a Prata podia e não podia fazer?
Se a bebesse toda, poderia entrar em Clerres e exigir que todos os que lá
se encontrassem se matassem?
Poderia ser assim tão fácil destruí-los e recuperar a minha filha?
“Que estais a fazer aqui em baixo?”, perguntou-me Lante. Virei-me para
o ver a encaminhar-se na minha direção, seguido por Per e Centelha.
“Onde está Âmbar?”
“Está com a figura de proa. Mandou-nos embora. O que estais a fazer?”
“A pensar. Onde estão os outros?”
“Wintrow voltou para bordo da Vivácia. Precisa de ser acalmada, parece-
me. A rainha e Sorcor voltaram para Partilhas. Acho que vão tentar
encontrar Fidekennit e tentar chamá-lo à razão. Brashen e Alteia foram para
a cabina e fecharam a porta. E Âmbar mandou Centelha ir buscar a flauta; e
está a tocar para o Modelo Ideal.” Respirou fundo e olhou para o
alojamento da tripulação em volta. “Viestes para aqui para pensar?”
“Sim.”
“Conseguis pensar enquanto trabalhais?” Virei-me ao ouvir a voz de
Clef. Havia humidade na coberta e a sua cara estava repleta de suor quando
ele saiu da escuridão sombria do porão. “Vinha mesmo à vossa procura. A
tripulação está curta e precisamos de deslocar a carga. Alguns dos caixotes
mexeram-se e uns quantos parecem húmidos. Os capitães queriam que esses
fossem levados para o convés. Dissestes que ajudaríeis. Agora seria uma
boa altura.”
“Vou já”, disse eu.
“Eu também”, acrescentou Lante, e Per acenou em concordância.
“E eu também”, asseverou Centelha. “Faço parte desta tripulação. Agora
e até ao fim.”
Até ao fim, pensei eu com tristeza, e levantei-me para os seguir. Varreu-
me uma tal vaga de vertigem que me voltei abruptamente a sentar na arca
de marinheiro.
Aí estás tu. Satisfação ressoava na voz na minha cabeça. Estou a caminho
para ir ter contigo. Prepara-te para mim.
“Fitz?”, perguntou Lante, com preocupação na voz.
Levantei-me devagar. Contive com um sorriso o medo e a confusão.
“Tintaglia vem ter comigo”, disse.
Capítulo 19

Outro Navio, Outra Viagem

RELATÓRIO AOS QUATRO


O lurik conhecido como Amado continua a criar desassossego entre
os outros luriks. Foi apanhado a tentar permanecer na aldeia
quando a maré estava a subir e os outros luriks já tinham formado
para regressar às suas cabanas. Perturbou aqueles que vieram para
ter as sinas lidas, lançando a hipótese de horríveis calamidades.
Disse a um cliente que o filho ia casar com uma burra, mas que os
filhos dessa união trariam grande alegria à família. A outro disse
simplesmente: “Quanto dinheiro queres dar-me para que te minta?
As minhas melhores mentiras são muito caras, mas esta é grátis. És
uma mulher muito sensata por teres vindo até cá para me dares
montes de dinheiro para te mentir.”
Bati-lhe duas vezes, uma com as mãos e outra com uma correia. Ele
suplicou que o chicoteasse com força suficiente para lhe arrancar as
tatuagens das costas. Creio que foi sincero nesse desejo.
Assim que sarou e chegou o momento de regressar aos seus deveres
no mercado, trepou para cima de uma pilha de caixas, proclamou
perante todos que era o verdadeiro Profeta Branco desta geração e
anunciou que era mantido prisioneiro em Clerres. Apelou à
multidão, que imediatamente se reuniu para o ajudar a escapar.
Quando o agarrei e o sacudi para o silenciar, fui apedrejado por
alguns dos espetadores e só quando dois outros guardas intervieram,
consegui arrastá-lo de volta para o interior das muralhas.
Creio que cumpri o meu dever o melhor que qualquer pessoa
conseguiria, e peço para ser libertado da responsabilidade pelo
lurik conhecido como Amado. Com o maior respeito, digo que o
considero problemático e perigoso para todos.
Lúcio
minha vida melhorara, ou pelo menos era isso que eu dizia a mim própria.

A
Estávamos alojados numa cabina agradável, as refeições eram
regulares e Dwalia tinha poucas oportunidades para me bater. Na
verdade, ela parecia quase amaciada pela melhoria nas nossas
sortes. O verão encontrara os mares; os ventos eram frescos e as
tempestades escassas. Em resultado do encanto que Vindeliar pusera sobre
mim, a tripulação aceitava a minha presença sem comentários ou interesse.
Se eu vivesse a minha vida de momento a momento, não era lá muito mau.
Esperava-se muito pouco de mim. Ia levar as refeições de Dwalia à cabina e
devolvia os pratos vazios. Quando ela passeava no convés com o capitão, à
tarde, eu seguia-os a uma distância decorosa, simulando manter a virtude da
senhora.
Mas por agora o fingimento era pequeno. Eu estava sentada no convés à
porta do camarote do capitão. Quando ele oferecera o seu camarote à
“Dama Aubretia”, não me parece que Dwalia tivesse compreendido que
esperava continuar a ocupá-lo. Eu ouvia batidas rítmicas vindas de dentro
da cabina e esperava com carinho que fosse o topo da cabeça dela a bater na
antepara. O ritmo estava a acelerar, o que me entristeceu. As alturas em que
o Capitão Dorfel ocupava Dwalia eram as mais pacíficas da minha
existência limitada. Ela agora soltava uns gritinhos arquejados, mal audíveis
através das robustas paredes de madeira.
Ouvi passos arrastados a descer a escada. Pensei no mar e nas ondas em
movimento e em como a luz do sol reluzia no topo dessas ondas. Pensei nas
aves marinhas a voar bem alto acima de nós, parecendo, mesmo assim, tão
grandes. Quão grande seria uma ave daquelas se pousasse no convés? Tão
alta como eu? O que comiam? Onde nidificariam ou pousariam para
descansar quando estávamos a tantos dias de terra? Preenchi os
pensamentos com aquelas aves brancas de grande envergadura e não pensei
em mais nada. Quando Vindeliar se agachou a meu lado, perguntei a mim
mesma que aspeto teria ele se fosse uma ave. Imaginei um bico a sair dele e
reluzentes penas, e pés de garras cor de laranja com esporões como um
galo.
“Eles continuam aí dentro?”, perguntou ele num sussurro rouco.
Não olhei para ele nem respondi. Penas cinzentas, compridas e
brilhantes.
“Eu não vou tentar invadir-te os pensamentos.”
Não acredito em ti, não confio em ti, não acredito em ti, não confio em ti.
Limitei-me a pensá-lo, mas não baixei as muralhas. Ele não era tão
poderoso como fora logo depois de ingerir o cuspo da serpente, mas ainda
estava forte. Eu começava a compreender que, ao contrário da magia do
meu pai, que estava sempre com ele, a de Vindeliar dependia da poção.
Perguntei a mim mesma quanto tempo ainda passaria até se reduzir por
completo. Até eu poder ter confiança de que os meus planos privados
permaneceriam privados. Não penses nisso. Não confio em ti, não acredito
em ti, não confio em ti.
“Pobre Dwalia.” Ele estava a fitar a porta fechada, com uma expressão de
consternação no rosto. “Ele não para! Ela deve culpar-me. Obriguei o
Capitão Dorfel a vê-la como a mais bela mulher que conseguisse imaginar.”
Coçou a cabeça. “Não tem sido fácil mantê-lo convencido do seu desejo por
ela. Tenho de estar permanentemente consciente de todos os que estejam a
vê-la. É muito cansativo.”
“O que é que ele vê quando olha para ela?” Maldita curiosidade! A
questão apareceu-me nos lábios antes de me lembrar de que não devia falar
com ele. Tentei voltar a pensar só nas aves.
Ele sorriu, contente por eu ter falado com ele. “Não lhes digo o que ver,
ao certo. Digo-lhes que veem qualquer coisa de que gostem. Quanto a
Dwalia, disse ao capitão que ele veria uma mulher linda que quereria
ajudar. Não sei ao certo que aspeto tem ela para ele.”
Olhou para mim, à espera das minhas perguntas. Contive-as a todas e
pensei em como o cimo de cada onda às vezes cintilava de forma tão
brilhante que eu não conseguia olhar para elas durante muito tempo.
“Para mim, disse-lhes a todos que iam ver ‘só um criado’. Inofensivo.
Ninguém que causasse preocupação.”
E voltou a esperar. Eu mantive o silêncio.
“Disse-lhes que tu eras feia e parva e cheiravas mal.”
“Que cheirava mal?” Mais uma vez não pretendera falar.
“Para te deixarem em paz. No barco antes deste havia alguns que
olhavam para ti e queriam… queriam o que ele está agora a fazer à pobre
Dwalia.” Cruzou os braços rechonchudos ao peito. “Eu protejo-te, Abelha.
Mesmo quando me odeias e desconfias de mim, protejo-te. Gostava que
conseguisses abrir os olhos e ver que te estamos a levar para um lugar
seguro, para onde sempre devias ter estado. Dwalia sofreu tanto por ti, e só
a recompensaste com dificuldades e ataques físicos.”
Como se ela o tivesse escutado e desejasse mais da sua simpatia,
ouvimos uma série de gemidos crescentes vindos de dentro da cabina.
Vindeliar afastou de mim o olhar e dirigiu-o para a porta, voltando de
seguida a virá-lo para mim. “Devíamos entrar? Ela precisa de nós?”
“Eles já quase acabaram.” Eu sabia que os dois estavam a acasalar, mas
não tinha nenhuma ideia clara da mecânica do ato. Os meus dias de
sentinela tinham-me ensinado que este envolvia montes de baques e
gemidos e deixava a cabina a cheirar a suor. Dwalia dormitava e ficava sem
interesse em atormentar-me durante algumas horas. Não me importava com
o que o capitão lhe fazia nas suas visitas da tarde.
Vindeliar pareceu tolo e paternalista quando me disse: “Ela tem de
permitir isto. Se recusasse, seria mais difícil para mim manter nele a crença
de que ela o ama. Ela suporta isto para nos arranjar passagem segura para
Clerres.”
Comecei a dizer-lhe que duvidava, mas engoli as palavras. Quanto menos
conversa trocássemos, melhor seria para mim. Luz do sol nas ondas. Aves
cinzentas a voar.
Os gemidos chegaram a um máximo de velocidade e agudeza e depois
desapareceram de súbito num suspiro descendente. Uma série galopante de
baques e depois todos os sons vindos da cabina cessaram de repente.
“Vou ficar sempre sem saber como é. Nunca vou fazer aquilo.” Ele falou
tão melancolicamente como uma criança. Aves cinzentas a deslizar pelo céu
azul. Vento nas nossas velas, ondas a cintilar. “Mal me lembro do que me
fizeram. Só da dor. Mas tinham de o fazer. Viram muito rapidamente que eu
não devia fazer crianças para Clerres. As raparigas como eu são mortas. E a
maior parte dos rapazes também. Mas Dwalia falou por mim e pela minha
irmã, Odessa. Éramos gémeos, nascidos de uma das linhagens Brancas mais
puras, mas… defeituosos. Ela manteve-me vivo quando todos os outros
julgavam que eu devia morrer.” Ele falava como se eu me devesse
maravilhar com a bondade de Dwalia.
“És tão cego para ela. Tão estúpido!” A ira demoliu o meu autocontrolo.
“Ela cortou-te como a um bezerro, e tu rojas-te em gratidão. Quem é ela
para dizer que nunca deves fazer uma criança? Ela bate-te e chama-te
nomes e tu andas a farejar atrás dela como um cão a meter o nariz no mijo
de outro cão! Ela dá-te a comer porcaria para te dar poder, uma magia que
não compreende, e tu deixa-la decidir como a magia será usada! Ela pensa
que tu não és nada, Vindeliar! Nada de nada! Mas tu és demasiado estúpido
para veres como ela te usa e como se vai livrar de ti no momento em que te
tornes inútil. Ela bate-te e chama-te nomes, mas no momento em que te
sorri, tu perdoas tudo e esqueces! Chamas-me irmão mas não te incomoda
que ela pretenda magoar-me e depois matar-me. Sabes disso tão bem como
eu. Podias ter-me ajudado. Se gostasses de mim, ter-me-ias ajudado!
Devíamos ter fugido quando aquele último navio aportou, e eu podia ter ido
para casa, para junto da minha família, e tu podias ter escolhido uma vida
para ti! Mas em vez disso ajudaste a matar uma mulher que não te tinha
feito nada de mal e tinha sido boa para mim. E abandonaste o calcedino,
deixando-o morrer por ti depois de o teres obrigado a matar por ela! És um
cobarde e um palerma!”
Mas a palerma era eu. Vindo de algures, numa escuridão distante, ouvi o
longo uivo de um lobo a desvanecer-se. Depois Vindeliar estava dentro da
minha mente. Tem calma, não te vou fazer mal, deixa-me só ver os teus
segredos, o que tu temes, tem calma, irmão, não te vou magoar, deixa-me só
ver. Tagarelava excitadamente enquanto rodopiava pela minha mente,
despertando e atirando memórias de um lado para o outro como se fossem
folhas mortas e ele uma tempestade de outono. Ergui contra ele muralha
atrás de muralha, e ele rasgou e pôs de parte uma após outra como se
fossem feitas de papel. Eu estava tonta e nauseada pelo assalto às minhas
memórias, cada uma das quais tinha anexada uma emoção. A minha mãe
caiu e morreu, a minha boca foi rasgada quando fui esbofeteada, um gato
ronronou, imóvel e quente enquanto eu o afagava, cheirou-me a bacon e a
pão acabado de fazer numa cozinha invernal iluminada com velas e o fogo
da lareira, FitzVigilante envergonhou-me e Perseverança caiu quando uma
seta o perfurou. Vindeliar era uma criança ávida a remexer num prato de
doces, dando uma dentada neste e lambendo aquele. Sujando as minhas
memórias com a sua ansiosa amostragem, como se pudesse possuir-me
conhecendo-me. Tu sonhas mesmo! Estava exultante.
Senti-me empurrada para fora da minha própria mente. Não consegui
encontrar uma voz com que lhe gritar nem punhos com os quais lhe bater.
Estava a escrever no meu diário de sonhos — não, ele não podia ver isso,
não podia ler esses sonhos! E de súbito nada soube além de longos dentes
afiados e dilacerantes e uma boca que soltava um hálito quente. Um pai
gritou: “Cuidado! Ele é mais perigoso do que tu imaginas!”, e eu vi-me
subitamente numa jaula de onde não podia recuar e um humano fedorento
assaltava-me as costelas com violentos golpes com um pau que eu não era
capaz de evitar. Nunca experimentara uma dor como aquela! E não parava.
Uma e outra vez, o homem gritou-me pragas e deu-me violentamente com o
pau, como se tentasse trespassar-me com ele. Uivei e gritei e rosnei, saltei e
atirei-me às barras da jaula, mas o pau continuava a atingir-me, sempre em
busca das partes mais fofas de mim, a barriga, a garganta, o ânus e o sexo.
Finalmente caí, a ganir e a gemer, e o espancamento prosseguiu.
De repente, Vindeliar desapareceu. A minha mente era de novo minha.
Ergui muralha atrás de muralha até todo o meu corpo estar a ser sacudido
com os soluços. A dor recordada dilacerava-me e as minhas lágrimas
fluíam. Mas através delas conseguia ver Vindeliar caído de lado, de boca
aberta, com os olhos vidrados como se tivesse perdido a consciência. Como
o lobo na gaiola, compreendi de súbito. Como o Pai-Lobo.
Dou-te essa dor para a usares contra ele. Mas não voltes a pensar em
mim. Ele não pode encontrar-me. Não pode saber que sabes escrever ou
seja o que for que tenhas sonhado. E tu tens de parar de esperar que
alguém te salve. Tens de te salvar a ti mesma. Foge. Volta para casa. Mas
neste momento não penses em casa. Pensa só em fugir.
E o Pai-Lobo desapareceu como se nunca tivesse existido. Como se fosse
algo que eu inventei para me dar coragem. Tão desaparecido como o meu
pai verdadeiro. E de súbito compreendi que também não devia pensar nele.
Vindeliar sentou-se mas até sentado estava instável. Apoiou as mãos na
coberta, de ambos os lados do corpo, e fitou-me com tristeza. “O que foi
isso? Tu não és um lobo. Não te podes lembrar disso.” O lábio inferior
estava a tremer, como se o tivesse enganado num jogo.
Senti uma vaga de ódio. “Mas consigo lembrar-me disto!”, disse-lhe, e
atirei contra ele cada momento da surra que Dwalia me dera na noite em
que o meu ombro fora deslocado. Ele encolheu-se para longe de mim e eu
acrescentei: “E disto!” E dei por mim a cerrar os dentes ao recordar com
precisão, para ele, o que sentira ao morder a bochecha de Dwalia, o sabor
que o sangue dela tivera e como o sentira a escorrer-me pelo queixo, e
como ignorara os golpes que ela me dava a tentar soltar-se de mim.
Ele ergueu as mãos para a cara e abanou a cabeça. “Nã-ã-ã-ão…” A voz
sumiu-se-lhe. Ele esbugalhou muito os olhos e fitou-me. “Não me mostres
isso! Não me obrigues a sentir que lhe mastigo a cara!”
Olhei-o firmemente nos olhos. “Então fica longe dos meus pensamentos!
Senão mostro-te pior do que isso.” Não fazia ideia do que conseguiria
desenterrar que fosse pior do que aquilo, mas para já ele estava fora da
minha mente e eu fizera todas as ameaças que pudera fazer para o manter
no exterior. Pensei em como ele me traíra, em como ele os ajudara a
encontrar e matar a Mercadora Akriel. Pensei em como ele saltara para
cima da minha corrente quando eu tentara fugir no cais. Invoquei todo o
ódio que consegui reunir e apontei para ele o pensamento de uma forma que
nunca antes fizera. Desprezo-te! Os seus olhos esbugalharam-se de repente
e ele afastou-se de mim. Apercebi-me de que, naquele momento, eu era
mais forte do que ele. Ele irrompera-me pela mente dentro quando eu tinha
a guarda em baixo, mas fora a minha força que o forçara a sair. Ele usara o
seu poder completo contra mim, mas eu vencera.
Foi precisamente nesse momento que a porta da cabina se abriu e o nosso
bem-parecido capitão saiu. A sua roupa estava tão imaculada como sempre,
as suas bochechas ligeiramente coradas. Baixou o olhar para mim e depois
para Vindeliar. Vi a confusão nublar-lhe o olhar, como se nós não fôssemos
o que ele esperara ver. Depois senti a vaga dos pensamentos de Vindeliar
rebentar sobre a sua mente. A testa alisou-se-lhe e o pequeno aperto nos
seus lábios transformou-se num franzir de desagrado. “Dama Aubretia, esta
vossa aia… bem, prometo que quando chegarmos a Clerres a vamos
substituir por alguém limpo e agradável à vista. Fora, rapariga!” Empurrou-
me com o lado do pé e eu afastei-me dele e de seguida levantei-me.
“Às vossas ordens, senhor,” disse eu com cortesia. Estava a meia dúzia
de passos dele quando ouvi a voz de Dwalia.
“Não, querido, mas obrigada na mesma. Vem cá, Abelha! Arruma
imediatamente este quarto.”
Parei, prestes a correr dali para fora.
“Ouviste a tua ama! Despacha-te.”
“Sim, senhor.” Baixei obedientemente os olhos. Apesar disso, ao voltar a
passar por ele, o homem deu-me um forte carolo na nuca, quase me fazendo
estatelar. Caí contra a porta e depois corri atabalhoadamente para dentro,
com Vindeliar logo atrás.
“E aquele mal parece estar em forma suficiente para ser vosso guarda-
costas. Devia ser substituído por um homem forte que conhecesse o seu
ofício.” O capitão abanou a cabeça e depois, com um suspiro, acrescentou:
“Volto a ver-vos esta noite, querida.”
“O tempo vai mover-se mais devagar do que mel até lá”, disse Dwalia,
com uma voz carregada e preguiçosa. Depois, numa voz inteiramente
diferente, gritou: “Arruma este quarto!”, enquanto fechava a porta.
O aposento do capitão era muito grandioso, tão largo como a popa do
navio, com janelas que davam para três lados. As paredes tinham painéis de
uma madeira vermelha de grão fino, e o resto da sala era creme ou dourada.
Havia uma grande cama carregada com almofadas de penas de cor creme e
uma mesa feita de madeira das cores da ferrugem e do musgo, grande o
suficiente para ser rodeada por seis cadeiras de costas altas. Havia um
banco muito almofadado perto de uma das janelas, uma outra mesa para
cartas que se recolhia na parede, e uma minúscula salinha onde os dejetos
desciam por um alçapão para o mar. Dwalia trancava-me todas as noites
nesse espaço minúsculo e ruidoso para que não a atacasse enquanto ela
dormia.
Roupa enchia as tábuas polidas do chão, toda ela composta pelas peças
excessivamente guarnecidas de folhos e rendas que o capitão comprara à
Dama Aubretia durante os dois dias que antecederam a nossa partida do
último porto. Reuni a roupa numa lenta braçada, incluindo uma combinação
de renda rígida que engelhou nos meus braços. Cheirava a um delicioso
perfume, outro presente do capitão. Levei a roupa para uma arca com rosas
esculpidas na tampa e comecei a empilhá-la cuidadosamente lá dentro. A
arca era odorífera, como uma floresta onde cresciam especiarias.
“Despacha-te!”, ordenou-me Dwalia. A Vindeliar, disse: “Junta esses
copos e pratos e leva-os de volta para a cozinha. O capitão não gosta de ver
os seus aposentos desarrumados.” Foi até ao banco almofadado e sentou-se,
a olhar para a água. Os seus longos pés ossudos e as musculosas barrigas
das pernas estavam nus sob o roupão curto de seda vermelha. O cabelo
atirado para trás estava suado nas raízes e a marca da minha dentada na sua
cara começava a transformar-se numa reluzente cratera cor-de-rosa. Ela
carregava o cenho aos seus pensamentos. “Vamos tão devagar! O capitão
diz-me que esta não é a altura do ano certa para fazer uma viagem até
Clerres, que as correntes são boas para viajar para norte e oeste, não para
sul e leste. Eu acho que ele se demora de propósito, para passar mais tempo
com a Dama Aubretia.”
Perguntei a mim mesma se ela estaria a queixar-se ou a gabar-se, mas
nada disse. Roupa linda, doces perfumes, rosas esculpidas. Mantive os
pensamentos concentrados no que estava a ver e as muralhas o mais
apertadas que me foi possível.
“Ela roubou-vos magia!” Vindeliar nem tinha começado a juntar os
pratos e copos da refeição que Dwalia partilhara com o capitão. Em vez
disso, apontou para mim com uma mão trémula enquanto fazia a acusação.
Dwalia afastou o olhar da janela e deitou-lhe um olhar furioso. “O quê?”
“Ela usou a nossa magia contra mim, agora mesmo, ali à porta. Fez-me
pensar em morder-vos e em como me odeia!”
Dwalia transferiu o olhar zangado para mim. “Isso não é possível.”
“É verdade! Ela roubou magia e é por isso que não a consigo obrigar a
fazer o que quereis.” Inspirou profundamente, uma criança bisbilhoteira à
beira das lágrimas. Fitei-o com ódio e ele encolheu-se. “E está a fazer o
mesmo agora!”, gemeu ele e ergueu as mãos à frente da cara como se
fossem capazes de conter o fluxo do que eu sentia por ele.
“Não!”, gritou Dwalia e praticamente saltou do banco. Eu encolhi-me e
ergui os punhos para me defender, mas ela ignorou-me e arremeteu sala fora
até à arca de talha. Com uma bela indiferença pelo trabalho que eu acabara
de completar, abriu a tampa num rompante e começou a tirar a roupa da
arca e a atirá-la para o chão atrás de si até chegar à roupa de viagem, lavada
mas muito gasta. Daí desenterrou uma bolsa de couro e espreitou lá para
dentro. Tirou o tubo de vidro para fora. O que restava do cuspo da serpente
estava coalhado no fundo. “Não. Está aqui! Ela não o roubou. Para de
arranjar desculpas.”
Ambos a fitámos durante um longo momento. Vindeliar falou
lentamente, com a voz cheia de um anseio impotente. “Preciso do resto já.
Não quereis que eu seja capaz de fazer tudo o que me pedis?” Havia um
desejo suplicante nessa última pergunta.
“Não é para ti neste momento. Já bebeste tudo o que te posso dar.” Olhou
para ele e depois enrolou o fio da bolsa em volta do pescoço para a
suspender entre os seios. “Só resta um bocadinho. Temos de poupar para
uma emergência.”
“Ela não confia em ti, Vindeliar. Ensinou-te a quereres aquele cuspo de
serpente e agora não confia que não lho roubes.” Atirei aquelas palavras
tolas a ambos.
“Serpente… quem te disse isso? Vindeliar! Andas a contar-lhe os meus
segredos? Traíste-me?”
“Não! Não, eu não lhe disse nada! Nada!”
E não dissera. Eu encontrara essa informação nele quando a sua mente
estava desprotegida perante mim. Desejei ter guardado esse conhecimento.
Se bem que agora parecia ser uma brecha na aliança entre os dois.
“Mentiroso!”, rosnou ela. Avançou contra ele, com a mão carnuda bem
alta, e ele retraiu-se, agachando-se à frente dela, com a cabeça baixa e
escondida atrás das mãos. Ela esbofeteou-o e, quando o golpe caiu nos nós
dos dedos dele, soltou um aborrecido grunhido de dor e agarrou numa
mancheia de cabelo no topo da cabeça dele. Sacudiu-o violentamente pelo
cabelo enquanto Vindeliar guinchava e reafirmava a sua inocência.
Aproximei-me mais da porta enquanto procurava por qualquer coisa que
pudesse usar como arma. Temia que a qualquer momento os dois pudessem
virar-se contra mim e vir apanhar-me. Mas ela atirou a cabeça dele para o
lado, com uma força que o fez desequilibrar-se. Caiu ao chão e enrolou-se
aí, aos soluços. Ela franziu-lhe o sobrolho e depois olhou para mim.
“O que foi que ele te disse sobre a poção da serpente?”
“Nada”, respondi eu com verdade e depois, para lhe desviar a atenção,
abanei a cabeça com ar de pena e menti: “É bem conhecida, no lugar de
onde venho. Mas poucos são estúpidos ao ponto de a usarem.”
Isso fê-la fitar-me. E depois: “Não. Não, a descoberta foi minha! É a
minha nova magia, uma nova capacidade que alguns dos que têm sangue
Branco conseguem dominar. Mas só alguns.” Fitou-me, com o ódio a arder
em si. “Tu julgas que és muito esperta, não julgas? Tentas virá-lo contra
mim. Ele contou-me tudo, sua fedelha idiota! Contou-me como o
manipulaste para te ajudar. Como o levaste a trair-me. Não vai voltar a
acontecer. Isso prometo-te. E mais: prometo-te uma vida longa e dolorosa
em Clerres. Achas que sofreste a viajar comigo? Oh, não. Vais experimentar
tudo o que o teu pai experimentou, e mais.”
Fitei-a. Estava a aproximar-se de mim. Nenhuma arma. Naquele navio,
tudo estava firmemente preso ao chão para que o mau tempo não atirasse as
coisas de um lado para o outro. Ela tencionava agarrar-me e arrancar-me
com pancada tudo o que eu sabia. Eu nem sabia bem o que sabia. Ou o que
poderia fazer com a habilidade que acabara de descobrir. Seria o Talento,
como o meu pai tinha? Tinha de ser! Não uma magia nojenta qualquer que
ela enfiara em Vindeliar obrigando-o a beber cuspo de serpente. A minha
magia, a magia da minha família. Mas eu não tinha sido treinada. Tudo o
que eu lera nos papéis do meu pai dizia que era preciso muito treino para
usar a magia.
Mas eu usara-a. Não fora?
Sabia que fizera Vindeliar sentir velhas dores minhas. E tomar
consciência do meu ódio. Era possível que isso só tivesse resultado porque
ele já estivera a tentar introduzir-se nos meus pensamentos. Ou talvez lhe
tivesse roubado magia. Haveria alguma coisa que eu pudesse fazer a
Dwalia? Fitei-a e reuni o ódio que sentia por ela ao mesmo tempo que
suprimia o meu medo. Olhei para a sua cara e juntei a cicatriz causada pela
minha dentada e como ela cheirara mal e como eu a achava repugnante.
Pareciam pequenas armas. O que poderia eu fazer-lhe, o que poderia fazê-la
sentir? Seria eu capaz de a fazer sentir qualquer coisa ou teria aquilo
resultado com Vindeliar só porque ele me alcançara primeiro a mente?
Eu estava a arquejar de medo. Controlo. O pergaminho do meu pai dizia
que eu devia ter controlo. Inspirei longa e lentamente uma vez e depois
outra. Ela estava a observar-me. Como conseguiria eu concentrar os
pensamentos quando ela podia saltar a qualquer momento?
Transforma-te na caçadora, não na presa.
O Pai-Lobo! Ténue como um chamamento de ave distante.
Descobri um rosnido enrolado no fundo da garganta. Os olhos dela
esbugalharam-se mas reparei que Vindeliar se tinha desenrolado e estava a
sentar-se. Observa-os a ambos. Onde era ela mais vulnerável? Ficara mais
magra e mais rija durante as nossas viagens mais recentes. Tentei imaginar
bater-lhe. Podia fazê-lo, mas não conseguia imaginar magoá-la o suficiente
para a fazer parar. Depois de me agarrar, ia magoar-me. Muito. Tinha de me
concentrar em atacá-la, mas onde?
Na mente.
Tem cuidado. Uma saída é sempre uma entrada.
Não tinha tempo para me preocupar com o que ele queria dizer com
aquilo. Empurrei-a com todo o ódio e repugnância que sentia por ela,
esperando que ela fosse ferida com eles. Mas foi como despejar óleo num
fogão; senti o ódio dela por mim aumentar e saltar como chamas
devoradoras. Saltou sobre mim como um gato sobre um rato. E, como um
rato, eu esquivei-me, evitando por pouco as suas garras estendidas. Ela não
se conseguia mexer tão depressa como eu e, apesar de não ter batido na
parede, desequilibrou-se para o lado. Quando me encolhi debaixo da mesa e
saí do outro lado, ela bateu com tal força na mesa que os pratos saltaram e
gritou a Vindeliar: “Agarra-a, segura-a!” Ele pôs-se em pé mas estava
hesitante e embaraçado. Disparei sobre ele um violento lembrete de como
mordera a cara de Dwalia e senti-me gratificada quando ele ergueu ambas
as mãos para tapar as bochechas.
Mas Dwalia continuava ardente na perseguição. Mantive a mesa entre
nós mas ela não mostrou qualquer sinal de cansaço enquanto me perseguia
à volta dela. Enfiei-me por baixo da mesa para recuperar o fôlego, mas ela
tentou pontapear-me, afastou as cadeiras da mesa e atirou-as ao chão.
Quando saí lá de baixo, as cadeiras caídas tornaram-se obstáculos para
ambas enquanto eu procurava manter entre nós a mesa desarrumada. Ela
estava a respirar com mais força do que eu mas continuava a arquejar e a
gritar: “Desta vez vou matar-te, desgraçada! Vou matar-te!”
Parou de repente, com as mãos apoiadas na mesa, a respirar
pesadamente. Entre arquejos conseguiu dizer: “Vindeliar, seu fracasso
inútil! Apanha-a, segura-a por mim!”
“Ela morde-me na cara! A sua magia prometeu isso! Ela vai morder-me!”
E ficou parado, a balançar de um lado para o outro, ainda com as mãos
apertadas contra a cara.
“Seu idiota!”, gritou ela e, com uma força que eu não imaginara que
possuía, ergueu uma das pesadas cadeiras de madeira e atirou-lha. Ele
guinchou e dançou para trás enquanto a cadeira caía antes de o alcançar.
“Apanha-a e segura-a por mim! Faz-te útil, senão mando o capitão atirar-te
borda fora!”
Deitei um relance à porta mas sabia que, quando a alcançasse e me
debatesse com a pesada tranca, ela cairia em cima de mim. Mesmo se
escapasse para o corredor, acabaria por ser encontrada e devolvida a ela.
Não lhe devia ter alimentado a ira. Devia tê-la deixado espancar-me antes
de se tornar homicida. O que fazer, o que fazer? Ela estava a respirar mais
devagar. Dentro de um momento recomeçaria a perseguir-me. E não
pararia, não pararia até vencer.
Dá-lhe o que ela quer.
Deixo-a matar-me?
Deixa-a ganhar. Fá-la pensar que ganhou.
Como?
Não houve resposta. E um estranho tremor percorreu-me quando senti
Vindeliar a sondar-me os pensamentos, o meu ser, como se tivesse acabado
de notar uma estranha excrescência na minha cara. Era hesitante, quase
temeroso, e eu afastei-o com outro jato da recordação de ter roído a
bochecha de Dwalia. Ele caiu para trás, mas paguei por aquilo um preço.
Sem se preocupar com os pratos, Dwalia atirou-se para cima da mesa e
estendeu as mãos para o outro lado a fim de me agarrar pelo peito da
camisa. Uma vívida memória da última surra que ela me dera relampejou-
me pela mente e transferiu-se para a dela. A reluzente luz da satisfação nos
seus olhos foi quase mais do que eu conseguia suportar.
Compreendi.
Dei-lhe o sabor a sangue na minha boca, a pele rasgada dentro da boca, a
dor oscilante de um dente solto. De repente estava a ver-me como ela me
vira, pálida, com o cabelo curto ensopado de suor, uma mancha de sangue
pelo queixo abaixo. Precisei de cada bocadinho de controlo de que dispunha
mas deixei o peso cair quando me abandonei sem força nas suas mãos. Ela
não me largou a camisa mas, quando me deixei cair ao chão, teve de fazer
deslizar o corpo sobre a mesa para continuar a agarrar-me. Vários pratos
atingiram o chão. Deixei pender a cabeça como se estivesse atordoada e
deixei a boca abrir-se. Ela conseguiu dar-me um estalo com a mão aberta
mas estava numa posição incómoda e pouco impulso conseguiu dar à mão.
Mesmo assim, gritei como se estivesse numa agonia. Dei-lhe não o meu
ódio, mas o meu medo, dor e desespero. E ela sugou-os como um cavalo
sedento num bebedouro.
Manobrou de forma a sair de cima da mesa. Pontapeou-me e eu voltei a
gritar, deixando a força do pontapé empurrar-me para baixo da mesa. Voltou
a pontapear-me, na barriga, mas estava encostada à beira da mesa e o
pontapé não foi tão mau como teria sido num espaço aberto. Voltei a
guinchar e ofereci-lhe uma consciência da dor que eu sentia. A arquejar, ela
lambeu os lábios. Fiquei onde estava, a gemer. Oh, ela magoara-me,
espancara-me até ao ponto de me deixar quase inconsciente, aquela surra ia
doer-me durante semanas. Dei-lhe tudo isso, tudo o que conseguia imaginar
que ela pudesse querer.
E ela virou-me costas, a respirar fortemente pelo nariz. Tinha de mim o
que queria e essa ira estava saciada. Acabara comigo, mas Vindeliar tivera a
imprudência de se aproximar demasiado dela. Dwalia virou-se para ele e
cerrou o punho antes de lho atirar contra a cara. Ele caiu para trás, a
arquejar e a soluçar, agarrado ao nariz. “És inútil! Nem conseguiste apanhar
uma miudinha! Tive de ser eu a apanhá-la! Olha para o que me obrigaste a
fazer! Se ela morrer por causa desta surra, a culpa será tua. Está cheia de
mentiras e tu também estás! Roubou-me a magia! Que história é essa, uma
coisa que me dizes para explicar porque é que não a queres controlar?”
“Ela sonha!” Vindeliar erguera a cara de entre as mãos. As bochechas
bambas estavam escarlates, dos seus olhinhos corriam lágrimas. Sangue
pingava-lhe do nariz. “A mentirosa é ela! Ela sonha mas não escreve os
sonhos nem vos conta!”
“Seu palerma estúpido. Toda a gente sonha, não só os Brancos. Os
sonhos dela não querem dizer nada.”
“Ela sonhou o sonho da vela! Escreveu-o, o poema inteiro! Vi isso na
mente dela! Sabe ler e escrever e sonhou o sonho da vela.”
Senti um súbito terror. O sonho da vela! Quase cedi a recordá-lo. Não!
Sem me preocupar com os riscos que pudesse haver, empurrei para ela um
pensamento desesperado. Ele mente. Eu sou uma rapariga estúpida, sem
letras. Ele só está a arranjar desculpas e a tentar evitar o castigo. Sabeis
que ele mente, tendes razão em pensar que mente, sois demasiado esperta
para ser enganada pelas mentiras dele.
Foi uma estocada desesperada de pensamentos. Acho que só a
alcançaram porque ela já estava zangada com ele e ter a confirmação para
as razões da sua ira só a alegrou.
E bateu-lhe. Pegou num pesado jarro de água em metal que estava junto
ao lavatório e transformou-o em arma. Ele não se defendeu e eu não
intervim. Fiquei aninhada debaixo da mesa. No meu queixo havia sangue
proveniente do lábio rachado. Espalhei-o pela cara. Senti o impacto de cada
um dos golpes que ela deu em Vindeliar e armazenei essas sensações
enquanto me encolhia com cada uma. Introduzi na mente dele que ela me
espancara mais severamente e, no estado distraído e ameaçado em que ele
estava, senti-o a aceitar essa informação como verdade. Ele conhecia a
espécie de dor que ela podia causar. Conhecia-a melhor que todos e, num
jato de informação tão súbito como um jorro de sangue, também eu a
conheci. A memória que saltou dele nauseou-me e as minhas muralhas
caíram perante ela.
Uma saída é uma entrada.
Então, quando a sabedoria das palavras do Pai-Lobo se instalou na minha
mente, fechei-lhe os pensamentos e tratei de fortificar as muralhas.
Construí-as mais grossas e mais apertadas, até ficar consciente da surra que
ele estava a levar mas já não me encolher a cada golpe. Quando ele bebera
o elixir, era forte, muito mais forte do que eu era naquela magia. Mas agora
compreendia: uma entrada é também uma saída. Quando eu me projetava
para tocar a sua mente ou a de Dwalia, isso era como abrir-lhes os portões.
Sabê-lo-ia também ele? Saberia ele que quando tentava invadir os meus
pensamentos me oferecia uma estrada para o seu íntimo? Duvidava. E
depois do que vislumbrara, nunca mais queria ver o interior da sua mente.
Deixei-me estar enrolada no chão debaixo da mesa e lágrimas fluíram
dos meus olhos e soluços quebrados saíram-me dos pulmões. Lutei por
controlo. Disse a mim mesma que tinha de refletir no que aprendera.
Possuía uma arma, mas ela não estava endurecida e eu não sabia como a
brandir. Ele tinha uma vulnerabilidade e não o sabia. A informação sobre
ele e a sua horrível infância jorrara para dentro de mim quando ele
manifestara o poder da poção da serpente. Cortei qualquer comiseração que
pudesse ter sentido por ele e concentrei-me nos limites dessas memórias.
Vira uma cidadela fortificada a erguer-se bem alto numa ilha. Torres
encimadas por cabeças que pareciam os crânios de monstros davam para
um porto e para uma terra de maiores dimensões. Vislumbrara um lindo
jardim onde crianças pálidas brincavam, mas Vindeliar nunca brincara.
Pacientes Servos cuidavam dessas crianças e ensinavam-lhes a ler e
escrever assim que aprendiam a andar. Os sonhos delas eram colhidos e
preservados tão cuidadosamente como frutos moles.
Vi um mercado com muitas barracas ensombradas por toldos de cores
brilhantes. Os cheiros a peixe fumado, bolinhos de mel e qualquer coisa
picante misturavam-se no ar. Pessoas sorridentes deslocavam-se entre as
barracas, fazendo compras e enfiando-as em sacos de rede. Minúsculos cães
quase sem pelo precipitavam-se de um lado para o outro e ladravam de
forma estridente. Uma rapariga com flores entrelaçadas no cabelo vendia
doces amarelos vivos de uma bandeja. Todas as pessoas que vira pareciam
limpas, bem vestidas e felizes.
Isso era Clerres. Era para aí que me estavam a levar. Mas eu duvidava
que o que me aguardava fosse o lindo jardim murado e os Servos
prestativos ou o mercado vivamente colorido à luz quente do sol.
Em vez disso, recordei com horror o cáustico vislumbre de paredes de
pedra iluminadas por archotes junto das quais se espalhavam bancos
elevados, e uma criatura ensanguentada acorrentada a uma mesa que soltava
gritos de fazer dó enquanto Dwalia oferecia uma faca delicada a um homem
impassível. Pena, tinta e papel aguardavam num pódio elevado perto dela.
Quando a pessoa gritou uma palavra reconhecível, ela afastou-se para a
apontar, e para acrescentar notas, talvez sobre qual das dores lhe arrancara
as palavras. Parecia alegre e eficiente, com o cabelo bem entrançado em
coroa em volta da cabeça. Uma bata de tela protegia-lhe o vestuário azul
pastel.
Vindeliar estava na periferia do anfiteatro, um proscrito desprezado que
afastava os olhos e tremia a cada guincho arrancado à vítima. Ele pouco
compreendera das razões para atormentar a criatura que se contorcia.
Alguns dos espetadores sentados estavam a observar com as bocas
entreabertas e os olhos muito abertos, e outros riam para as mãos, com uma
estranha vergonha a corar-lhes as bochechas. Alguns tinham pele, cabelo e
olhos claros, e outros eram de cabelo tão escuro e de pele tão morena como
os meus pais. Havia pessoas velhas e pessoas em idade de trabalhar e quatro
crianças que pareciam mais novas do que eu. E todos observavam a tortura
como se fosse entretenimento.
E então, para meu horror, a pobre criatura na mesa endireitou-se. Os seus
dedos de pontas sangrentas abriram-se muito e fizeram força nas correntes
que a prendiam, e a cabeça sacudiu-se com violência por um momento.
Depois ficou imóvel. Os sons arquejantes que fizera cessaram, e eu julguei
que ele tinha morrido. Mas depois, numa terrível exalação de ar, ele gritou
um nome. “FitzCavalaria! Fitz! Ajuda-me, oh, ajuda-me! Fitz! Por favor,
Fitz!”
Dwalia ficou transfigurada. Ergueu a cabeça como se tivesse ouvido a
voz de um deus a chamá-la e um terrível sorriso cobriu-lhe o rosto! O que
anotou no livro foi escrito com um floreado. E depois fez uma pausa, com a
pena erguida, e pediu: “Outra vez”, disse ao torturador, “outra vez, por
favor. Quero ter a certeza!”
“Certamente”, respondeu o homem. Era pálido, sem cor no cabelo, mas
os tons berrantes da sua roupa fina compensavam essa falta de cor. Mesmo
o avental cor de azeitona que usava para proteger a toga verde-jade era uma
coisa bela, bordada com palavras numa língua que eu não conhecia. As suas
orelhas estavam perfuradas com esmeraldas. Dirigiu aos quatro jovens
Brancos um floreado com a pequena e perigosa ferramenta que segurava.
Os olhos dos outros estavam muito abertos quando ele disse: “Sois
demasiado novos para vos lembrardes de quando Amado era um lurik,
precisamente da vossa idade. Mas eu lembro-me. Já nessa altura ele era um
jovem desafiador e obtuso, que quebrava todas as regras, tal como vós
quebrais as regras e vos julgais demasiado espertos para nós o sabermos.
Vede para onde isso o levou. Sabei que pode trazer-vos para aqui com igual
facilidade se não aprenderdes a dominar as vossas vontades para o bem dos
Servos.”
Os lábios da criança mais pequena tremeram até que ela apertou a boca
com a mão. Um dos outros abraçou-se, mas os dois mais altos endireitaram-
se melhor e apertaram as bocas.
Uma jovem bela com cabelo dourado-claro e uma tez semelhante ao leite
levantou-se. “Fellowdy.” A impaciência governava a sua voz. “Deixa para
mais tarde as lições aos teus queridinhos. Força Amado a proferir de novo o
nome.” Virou-se para os espetadores e olhou diretamente para uma velha
que estava sentada ao lado de um homem cuja toga amarela contrastava
com a pasta pálida que tinha na cara. “Ouvi-o! O nome que ele escondeu
durante tanto tempo, o nome que prova o que eu e o Fellowdy temos dito. O
seu Catalisador continua vivo e os dois ainda conspiram para agir contra
nós. O Filho Inesperado foi escondido de nós. Será que o Amado ainda não
nos causou danos suficientes? Tendes de nos deixar enviar Dwalia para
vingar a sua ama e nos dar a posse do Filho que de outra forma será a nossa
ruína! Os sonhos avisaram-nos repetidamente quanto a ele!”
Em resposta, a mulher mais velha levantou-se e trespassou a jovem com
o olhar. “Symphe, falas perante todas estas pessoas de coisas que só dizem
respeito aos Quatro. Cuidado com a língua.” Ergueu-se, ergueu as saias
azuis-claras para evitar o sangue e saiu majestosamente da sala de tortura.
O homem de casaco amarelo que estivera sentado a seu lado viu-a partir,
levantou-se com ar indeciso e depois voltou a sentar-se. Com um aceno,
disse a Symphe e ao carniceiro que podiam prosseguir. E eles prosseguiram.
O nome do meu pai. Foi isso que obrigaram a criatura esfarrapada a
gritar, não só uma vez, mas uma após outra e após outra. E quando os gritos
repetidos com o nome do meu pai terminaram e eles fizeram cair o corpo
inconsciente de cima da mesa e os guardas arrastaram o pobre desgraçado
para longe, Vindeliar lembrava-se de ter atirado baldes de água para o chão
e para a mesa salpicados de sangue e depois de os esfregar até ficarem
limpos.
Ele pouco se importava com o homem torturado. Concentrara-se no seu
trabalho e no seu medo. Um pequeno bocado de pele colara-se ao chão. Ele
raspara-o com a unha e atirara-o para dentro do balde. Sabia que se
contrariasse a vontade de Dwalia, podia ser o próximo a ser agrilhoado para
receber uma dura lição naquela mesa. Mesmo agora, sabia que isso ainda
podia estar à sua espera. Ela não hesitaria. E mesmo assim faltava-lhe a
vontade de fugir ou de a desafiar. E eu soube, até ao mais profundo âmago
de mim, que o meu “irmão” não se colocaria em risco para me salvar de um
tal destino.
Aquela memória fez-me tremer. A pobre criatura na mesa gritara pelo
meu pai e suplicara-lhe que viesse salvá-la. Faltavam-me tantos elos para
fazer uma corrente de razões, mas os meus instintos deram um salto às
cegas. Aquele fora o dia em que Dwalia obtivera autorização para vir a
Floresta Mirrada. Fora esse o dia em que o meu destino ficara selado. Agora
observava-a como que de uma grande distância.
E o desgraçado na mesa? Não parecia possível que tivesse sobrevivido.
Com certeza que não se podia ter transformado no pedinte de Margem de
Carvalhos. Não podia ter sido o Bobo do meu pai. Bocados irregulares de
informação apunhalaram-me os pensamentos. Dwalia falara de um pai que
eu não conhecia. Não era possível que os bocados se encaixassem. Mas a
ameaça que ela me fizera insistia que encaixavam. O que ela me prometera
fora aquela mesa.
Dwalia continuava a pontapear Vindeliar mas arquejava do esforço. A
cada pontapé grunhia e as suas nádegas ondulavam. Depois de reduzir
Vindeliar a uma massa enrolada sobre si própria e soluçante, voltou para
junto de mim. Apontou-me um pontapé, mas eu escolhera cuidadosamente
o meu abrigo e ela não conseguiu golpear-me com força. Atirou-me o jarro
agora ensanguentado. Este só me acertou de raspão. Eu mesmo assim gritei
convincentemente e afastei-me mais, erguendo para ela olhos dolorosos,
com o sangue espalhado pela cara. Fiz o queixo tremer e balbuciei: “Por
favor, Dwalia, mais não. Mais não. Eu obedeço-vos. Vedes? Vou trabalhar
duramente. Não me magoeis, por favor.”
Saí precipitadamente de baixo da mesa, a arrastar uma perna. Toda
curvada, saltitei pela sala fora, a juntar a roupa que ela espalhara. A cada
salto, supliquei-lhe que me perdoasse e prometi obediência e expiação. Ela
observou-me, com a desconfiança e a satisfação a guerrear na sua
expressão. Parei a chorar junto da arca, exsudando dor e medo para ela e
Vindeliar. Inspirada, acrescentei um toque de desespero e
desencorajamento. Ergui cada peça de roupa: “Vedes como estou a dobrá-la
bem?” Engoli um soluço. “Posso ser útil. Posso ajudar. Aprendi a minha
lição. Por favor, não me magoeis mais. Por favor, por favor.”
Não foi fácil e não consegui saber ao certo quão bem estava a resultar.
Mas ela dirigiu-me um sorrisinho triunfante e voltou para a cama desfeita,
deixando-se cair nela com um suspiro satisfeito. Depois Vindeliar captou-
lhe o olhar. Estava enrolado no chão como uma larva gorda debaixo de um
tronco, a soluçar para dentro das mãos. “Arruma esses pratos, disse eu!”,
bradou-lhe ela.
Ele rolou e depois sentou-se, a fungar. Quando ergueu das mãos a cara
maltratada, eu estremeci. Os olhos estavam a começar a inchar e uma
película de sangue cobrira-lhe o queixo. Sangue e saliva pingavam da sua
boca entreaberta. Ele dirigiu-me um olhar infeliz e perguntei a mim mesma
se teria sentido a minha inadvertida simpatia. Espessei as muralhas. Julgo
que ele o sentiu, pois uniu as sobrancelhas e fitou-me com ar sombrio. “Ela
está a fazer aquilo agora”, disse em voz baixa e carrancuda, com palavras
abafadas por lábios inchados.
Dwalia inclinou a cabeça para ele. “Pensa nisto, não-homem. Ela
aprendeu a lição. Vês como se encolhe e me obedece? Isto é tudo o que
exijo dela, por agora. E se é capaz de fazer a magia, se eu conseguir
ensinar-lhe o que preciso dela, que necessidade tenho de ti? É melhor que
sejas pelo menos tão útil como ela é.” Depois olhou para mim e gelou-me a
alma com o sorriso afetado.
Ouvi Vindeliar inspirar por um nariz ranhoso. Dirigi-lhe um olhar e vi
algo mais assustador do que o sorriso de Dwalia. Fitava-me furibundo, com
a cara cheia de ciúme.
Capítulo 20

Crença

Desejaria realmente saber mais para te dizer. Sinto que devia saber
mais, mas ele sempre se mostrou reservado ao falar dos seus dias de
juventude. O que sei com certeza pode ser escrito rapidamente. Um
acidente de nascimento roubou a Dom Breu o poder e o respeito que
foram depositados nas mãos do irmão mais velho e da irmã mais
nova. Sagaz tornou-se rei. A irmã mais nova foi, segundo alguns
dizem, a causa da morte da mãe, pois o parto foi difícil e a Rainha
Constância nunca voltou a ser saudável depois dele. Apesar de ter
sido criada como princesa, estava condenada a morrer, por sua vez,
ao dar à luz um filho, Augusto. Já conheces o triste fim de Augusto.
Ao tentar contactar a sua futura rainha através dele, pelo Talento,
Veracidade queimou acidentalmente a mente do primo. Depois disso,
Augusto não voltou a ser são, física ou mentalmente, e morreu a
uma idade relativamente prematura na misericordiosa obscuridade
de um “retiro” em Floresta Mirrada. Paciência, esposa do meu pai
e antiga rainha expectante, cuidou dele até ele morrer durante o
sono num dia de inverno. A morte do meu pai num “acidente” e
depois o deslizar de Augusto para longe foi o que a levou, julgo eu,
a regressar ao Castelo de Torre do Cervo para tentar encarregar-se
da minha educação.
Mas era sobre Breu que tu querias informações. Ele nunca se
mostrou aberto em relação aos seus dias de juventude. A mãe era
soldada. Nunca saberemos como acabou grávida do bastardo do rei.
E eu pouco sei sobre o falecimento dela ou como ele foi enviado
para o Castelo de Torre do Cervo. Uma vez comentou comigo que a
mãe tinha deixado uma carta e que, pouco depois de ela morrer, o
marido deu ao jovem Breu esse rolo e um pacote de rações de
viagem, pô-lo em cima de uma mula e enviou-o para Torre do Cervo.
A carta estava endereçada ao rei e, através de algumas
extraordinárias circunstâncias, acabou realmente por lhe chegar às
mãos. E assim a sua família real descobriu-o, talvez pela primeira
vez, mas quem poderá realmente saber disso? Seja como for, ele foi
acolhido.
Apesar de todos os anos que passei a ser instruído por ele, pouco sei
sobre como foi educado, além de o seu instrutor ser duro. Embora
nunca tenha sido reconhecido, nem sequer como bastardo, creio que
o irmão mais velho o tratava bem. Por aquilo que observei
pessoalmente, ele e Sagaz gostavam um do outro, e Sagaz contava
com Breu, não só como assassino e mestre dos espiões, mas também
como conselheiro.
Cheguei à conclusão de que Breu teve alguns anos animados e
agradáveis como jovem bem-parecido antes do acidente que o
marcou e o levou a esconder-se nas paredes do castelo. Julgo ser
provável que haja nessa história muito mais detalhes relativos aos
motivos por que ele se fez desaparecer, mas é improvável que
venhamos a descobri-los.
Sei, no entanto, que ele desejava desesperadamente ser testado no
Talento e educado na magia familiar. Isso foi-lhe negado. Suspeito
que tinha outros talentos mágicos, nomeadamente a adivinhação em
água, pois por mais de uma vez me pareceu muito improvável que os
seus “espiões” o pudessem ter informado a tempo sobre
acontecimentos que ocorreram longe de Torre do Cervo. Mas ter-lhe
sido negado o Talento amargurou-o e ofendeu-o. Julgo que essa
talvez tenha sido uma das decisões mais tolas que os nossos régios
antepassados tomaram.
Portanto é assim, querida, que agora que ele demonstrou ter pelo
menos uma capacidade errática para usar o Talento e tem acesso ao
que resta da biblioteca de Talento, se entrega imprudentemente à
tentativa de o dominar. Ele sempre foi um homem virado para a
experimentação, e o perigo não o dissuade de se pôr em risco a si e
até mesmo aos aprendizes.
Não sei se esta informação te pode ajudar a convencê-lo a ser mais
comedido e a conceder-te o respeito que mereces como Mestra do
Talento da rainha. Se puderes evitar que ele saiba que a fonte desta
informação sou eu, agradecer-te-ia imenso. Ele pode ter-me
treinado a ser espião mas seria o primeiro a levantar objeções a ser
espiado pelo seu antigo aprendiz.
Missiva não assinada dirigida
à Mestra do Talento Urtiga

“O
que quer Tintaglia de vós?”, perguntou-me Brashen.
Limpei suor da cara. “Eu tive algumas perguntas a fazer-lhe
quando estivemos em Kelsingra. Tinha a esperança de
descobrir se os dragões têm algum rancor para com os Servos.”
“Para os recrutar para a vossa causa?”
“Talvez. Ou para obter qualquer bocadinho de informação que pudesse
usar contra eles.”
Ele limpou as mãos nas calças e voltou a pegar no barril. “Mandar um
dragão atacar para salvar uma criança pode não ser a coisa mais sensata que
podíeis fazer.”
“Eu na altura não estava a pensar nisso. Só queria ver Clerres destruída.”
“Mas se a vossa filha está lá…”
E ali estava. Precisamente o pensamento que eu mais queria evitar.
Abelha no meio de um ataque de dragão? Recusei a ideia.
Brashen inclinou a cabeça para mim e fitou-me a cara. “Não achais que
ela está viva, pois não?” A voz tornou-se baixa.
Encolhi os ombros. Era a última questão em que eu queria pensar.
“Vamos lá fazer isto”, sugeri. Ele acenou sombriamente com a cabeça.
Tínhamos parado os dois para respirar. Estávamos a embarcar um barril
de água. Devia ter sido uma tarefa simples, mas o Modelo Ideal estava
determinado a torná-la quase impossível. Adernara para o lado oposto ao do
bote que acostara com o barril e depois, enquanto içávamos o barril para o
convés, adernara na outra direção.
Era o nosso segundo dia de luta com o navio. O Modelo Ideal bloqueara
os nossos esforços para desembarcar a carga. O esforço de hoje para trazer
para bordo água e comida fresca para a tripulação estava a exigir o dobro do
trabalho que devia ter exigido. No meio daquelas dificuldades, Alteia e
Brashen tinham recebido a minha novidade sobre Tintaglia com uma
notória falta de interesse. Como Brashen dissera na altura: “A chegada de
um dragão pode piorar a nossa situação?”
Alteia respondera: “Vou transmitir a notícia a Wintrow e ele informará
Etta. Poderão preparar-se para ela o melhor que conseguirem.” E
acrescentara amargamente: “É provável que uma visita de dragão apresente
toda a espécie de problemas. Neste momento tudo o que posso dizer é ainda
bem que não são meus.”
Brashen concordara sombriamente com a cabeça. “Já temos os
suficientes”, confirmara. E isso encerrara aquela conversa.
O Modelo Ideal estava a atrasar a nossa partida de maneiras que eu nunca
imaginara. Balançava, adernava, encravava as escotilhas fechadas. Alteia e
Brashen cerraram os dentes e juntaram-se ao trabalho da tripulação
reduzida no convés. No primeiro dia, Clef recrutara Per e Centelha e depois
olhara para Lante e para mim com as mãos nas ancas. “Pode não ser o
trabalho para o qual nascestes, mas preciso de vós. A começar hoje,
enquanto ainda estamos no porto, ireis cumprir um turno cada um.” E
cumpríramos.
Os esforços de Brashen e Alteia para contratar mais tripulantes ou
convencer antigos membros da tripulação a regressar foram um tremendo
fracasso. Eu agradeci o pesado trabalho físico, pois por vezes distraía-me de
matutar na possibilidade de a minha filha estar cativa de desconhecidos
fanáticos. A ideia deixava-me numa fúria, com o coração aos saltos; dava-
lhe vazão desafiando o navio, arrastando caixotes para o seu convés
inclinado, e empurrando-os para dentro do porão. Cada momento de atraso
era mais um momento de agonizante expetativa. Já não queria saber das
novidades que Tintaglia pudesse trazer. Só queria voltar a estar a caminho.
Tanto Âmbar como o Bobo passavam o tempo todo a preocupar-se com o
que Abelha podia estar a suportar. Cada palavra que Âmbar proferia sobre
isso era uma faca a torcer-se-me nas tripas. A minha ansiedade era superior
ao que era capaz de aguentar; a do Bobo só tornava a minha mais
penetrante. Nesse dia entrei na cabina e fui dar com ele pendurado de
cabeça para baixo do beliche superior. Estaquei ao ver a cena.
“Eu sabia que eras tu”, observou. “Todos os outros batem primeiro.”
“O que estás tu a fazer? Precisas de ajuda para descer?”
“Nem por isso. Estou a ficar mais ágil. Eles fizeram-me a mente em
papa, à martelada e com ferros em brasa; o que fizeram ao meu corpo foi
igualmente demolidor. Procuro recuperar o que eles tentaram destruir.”
Enrolou-se em volta da barriga, agarrou com ambas as mãos a beira do
beliche e, com um grunhido, desprendeu os joelhos e atirou os pés para o
chão. Aterrou, não com leveza nem com elegância, mas mesmo assim
espantosamente bem para um homem que estivera meio aleijado meros
meses antes.
“Não treinarias melhor as tuas habilidades de acrobata lá em cima no
convés?”
“Se Âmbar não fosse cega, deliciar-se-ia em percorrer o aparelho,
pendurar-se lá no alto e recuperar, ao ar livre, todos os meus truques
perdidos. Mas é, portanto não pode. Neste espaço acanhado, faço o que me
é possível.” Dobrou-se, agarrou nos tornozelos e soltou uma longa e lenta
expiração. “Há alguma novidade sobre quando poderemos partir?”
“Nenhuma que ainda não conheças.” Preparei-me para o seu protesto, já
meu conhecido.
“Cada dia que passa é outro dia em que Abelha é cativa deles.”
Como se isso fosse uma ideia nova para mim! “O Modelo Ideal não é o
único navio que está no porto. Podíamos obter aqui um belo preço pelas
coisas dos Antigos e comprar passagem diretamente para Clerres.”
Ele já abanava a cabeça antes de eu acabar de falar. “Nas minhas visões
do futuro, o Modelo Ideal é o único navio que nos transporta para Clerres.”
“As tuas visões”, disse eu, e fechei a boca. Por entre dentes cerrados,
disse: “Então temos de esperar.”
“Duvidas de mim”, disse ele com amargura. “Recusas-te a aceitar que
Abelha está viva.”
“Às vezes acredito em ti.” Baixei o olhar para o chão. “Normalmente não
acredito.” A esperança era demasiado dolorosa.
“Estou a ver”, disse ele com dureza. “Portanto, contentas-te com esperar.
Porque se Abelha estiver morta, não pode ficar mais morta com o nosso
atraso. Não pode estar a sofrer tortura como aquela com que me
atormentaram.”
Respondi com palavras igualmente duras. “Não sou eu quem escolhe
esperar. Quem escolhe esperar és tu — até que o Modelo Ideal decida
zarpar.”
Ele agarrou duas mancheias do cabelo, com o rosco contorcido. “Não
consegues entender o meu tormento? Temos de viajar no Modelo Ideal.
Absolutamente! Mesmo sabendo eu que ela está viva e em poder deles.”
“Como?”, rugi. “Como seria possível? Quando Urtiga mandou o círculo
pelo pilar atrás de Abelha, não encontraram nenhum sinal dela. Nem uma
pegada na neve, nada! Bobo, eles nunca emergiram daquele pilar.
Pereceram lá dentro.”
Os seus olhos cegos estavam dilatados de desespero, a cara ainda mais
pálida do que era costume. “Não! Não pode ser. Fitz, tu foste retido num
pilar, estiveste perdido durante dias, e mesmo assim…”
“Sim. Acabei por emergir atordoado e semimorto. Se não tivesse
conseguido pedir ajuda, teria morrido lá. Bobo, se eles tivessem saído
daquele pilar, haveria sinais disso. As brasas apagadas de uma fogueira, os
seus ossos espalhados por lá, qualquer coisa. Não havia nada. Ela
desapareceu. Mesmo se tivessem ficado retidos durante dias, nós teríamos
visto algum sinal da sua passagem quando lá chegámos. Viste alguma coisa
que se parecesse?”
Ele soltou uma gargalhada descontrolada. “Eu não vi nada!”
Contive o mau génio. “Bem, não havia nada, exceto sinais de ursos.
Portanto, talvez tenham atravessado e morrido lá. Com toda a certeza não
viajaram até Kelsingra, nem a pé nem por pilar. Bobo, por favor. Deixa-me
aceitar que Abelha se foi.” As minhas palavras eram uma súplica. Eu
ansiava por regressar ao torpor da perda absoluta e à procura da vingança
pura.
“Não se foi!”
A obstinada negativa enfureceu-me, portanto ataquei. “Pouco importa.
Esteja ela morta ou viva, não há dúvida de que eu vou ser morto antes de a
descobrir, com o pouco que me contaste sobre Clerres e a gente de lá!”
A boca dele abriu-se com o choque. Depois, a culpa e a indignação
esganiçaram-lhe a voz. “Eu fiz os possíveis, Fitz! Nunca antes planeei um
assassínio. As minhas recordações retraem-se e saltam para longe de mim
quando me interrogas. E a estupidez das perguntas que me fazes! Que
importa se Coultrie joga ou se Symphe se levanta cedo ou tarde?”
“Sem informação exata, a minha capacidade de os matar fica reduzida ao
ponto da loucura!”
“Loucura?” Ele atirou-me a palavra. “Bem, o que esperavas tu de um
bobo?” Procurou às apalpadelas irritadas a roupa de Âmbar e a voz reduziu-
se-lhe a um resmungo furioso. “Nunca devia ter-te vindo pedir ajuda. Devia
fazer sozinho o que tem de ser feito!” Pôs o vestido com uma pressa
descuidada, dando nós e abotoando de forma cega e torta.
“E faria toda a diferença do mundo, se não tivesses voltado para junto de
mim!” As palavras eram punhais impetuosos. “E não tens de te disfarçar de
Âmbar. Eu vou sair.” Levantei-me enquanto ele se debatia com um punho.
“Como acontece com a maior parte das coisas feitas cegamente e à pressa,
não te saíste lá muito bem. Eu não sairia para o convés assim vestido, se
fosse a ti. Mas tu pareces disposto a fazer muitas coisas que eu não faria,
tais como tentar executar um assassínio sem nenhuma informação.”
E saí da sala batendo com a porta, com o coração aos saltos enquanto a
ira guerreava com o arrependimento. As coisas que eu dissera! Mas alguma
delas não era verdadeira?
Encostei-me à amurada para fitar Partilhas e deixar fervilhar a fúria. O
vento que vinha da água não conseguiu arrefecê-la.
Brashen foi encontrar-me aí. “Wintrow passou por cá. Perguntou se
sabíeis quando Tintaglia vai chegar.”
“Não sei. Sabeis quando vamos zarpar daqui?”
A resposta tensa dele fez eco da minha. “Não sei. Wintrow fez
preparativos para o dragão. Se puderdes, ele gostaria que informásseis o
dragão de que os currais ficam junto do cais.”
Não dominei a ira mas contive-a. Endireitei-me melhor e afastei da
mente as palavras do Bobo e a minha provocação zangada. “Vou tentar, mas
não me é possível prometer que ela me dê ouvidos.”
“Não vos posso pedir mais do que isso”, respondeu ele.
Fechei a boca e observei-o enquanto se afastava. Perdi o olhar sobre a
água e tentei contactar o dragão. Estou em Partilhas, Tintaglia, nas Ilhas
dos Piratas. Eles querem receber-te com gado encurralado junto do cais.
Ficariam honrados se o devorasses.
Não senti qualquer resposta vinda dela. Esperei intimamente que não
conseguisse encontrar-me. Quisesse ela de mim o que quisesse, não seria
bom.

Muito cedo na terceira manhã, Sorcor e a Rainha Etta chamaram de um


pequeno dóri, pedindo autorização para subir a bordo do Modelo Ideal. Um
Wintrow de olhos vermelhos acompanhava-os. Todos os três tinham o
aspeto de pessoas que haviam passado uma noite longa e insone. Foram
recebidos a bordo com fumegantes canecas de café. Sorcor tivera a
previdência de trazer um cesto de bolos frescos. Para minha surpresa,
Wintrow pediu que eu e Âmbar nos juntássemos ao grupo.
Naquele dia, Etta parecia mais dura do que régia. O seu casaco de boa
qualidade estava amarrotado de ter sido usado a noite inteira. A luz do dia
não se revelou gentil com as rugas que lhe rodeavam a boca e o cabelo
mostrou-se teimoso sob a brisa. Sorcor parecia tão entristecido como um
cão acorrentado enquanto os outros cães se reuniam para uma caçada.
Instalámo-nos à mesa e Alteia serviu café. O silêncio prolongou-se
enquanto a Rainha Etta brincava com o amuleto que trazia ao pescoço.
Depois endireitou-se e prendeu o olhar no de Alteia. Quando falou, estava a
dar ordens. “Ideal Ludluck, príncipe das Ilhas dos Piratas, vai viajar
convosco até Clerres. Eu sei que não quereis que ele vá. Também não estou
apaixonada pela ideia de ele fazer esta viagem. Apesar disso, tem de ir.
Ofereço dinheiro pela sua passagem e oito marinheiros dignos de confiança,
experientes tanto com as velas como com a espada. Embora eu reze para
não terdes necessidade desta última habilidade.”
As palavras e a indignação jorraram de Alteia. “Não! Quando ele tentou
embarcar, eu mandei-o embora, como dissestes que queríeis que
fizéssemos! Como resultado, o nosso navio passou de recalcitrante a
perigoso, pois o Modelo Ideal tentou frustrar cada tarefa que temos de
executar! E agora, depois de tudo isso, ordenais que o deixemos embarcar?”
Brashen pôs a mão sobre a de Alteia enquanto esta recuperava o fôlego.
“Porquê?”, perguntou calmamente a Etta.
A rainha pirata trespassou-o com o olhar e apertou os lábios.
Wintrow pigarreou. “Porque o pai dele o teria desejado. Pelo menos foi o
que nos foi dito.” Etta deixou cair a mão do pescoço para a mesa e fitou
Wintrow furiosa enquanto este explicava. “A Rainha Etta usa um talismã de
madeira-de-feiticeiro esculpido à semelhança de Kennit. Ele usava-o ao
pulso, junto à pele. Recebeu o suficiente do seu espírito para despertar. Este
é o seu conselho.”
Fitei desavergonhadamente o talismã esculpido que Etta trazia ao
pescoço. Quase esperei que ele se mexesse ou falasse, mas manteve-se
imóvel.
Alteia inclinou-se para a rainha pirata quando disse: “O Kennit deseja-o?
Mais um motivo para eu o proibir!”
“E no entanto ireis levá-lo”, predisse a Rainha Etta. “A vossa única
esperança de conseguir lidar com o vosso caprichoso navio é dar-lhe o que
ele quer. Se me negardes, tereis uma embarcação difícil e subtripulada.
Toda a Partilhas viu o seu poder e o seu mau génio. Precisais do que vos
ofereço. Também podeis ficar aqui ancorada, com um navio que se torna dia
após dia mais perigoso.”
Alteia estava a agarrar com tanta força na caneca que contei que ela se
estilhaçasse nas suas mãos. A voz de Brashen soou monocórdica quando
disse: “Eu e Alteia precisamos de um momento para conferenciar. Vamos
ter convosco ao convés daqui a pouco.” Indicou a porta com um gesto e
esperou que nos levantássemos e saíssemos em grupo. Fechou a porta atrás
de nós.
Sorcor e Etta ficaram lado a lado a fitar Partilhas. Wintrow manteve-se
separado deles, de braços cruzados. Ninguém falou até o Modelo Ideal nos
gritar: “Está assente? Eu vou ter o filho de Kennit?”
Nenhum de nós respondeu.
Os capitães saíram. “Está combinado”, disse Brashen em voz baixa.
“Dinheiro pela passagem dele e oito marinheiros.” A cara de Alteia estava
tão impassível como pedra. Brashen prosseguiu: “Mas ele viaja como
marinheiro comum e aceita a disciplina do navio.” Alteia permaneceu em
silêncio enquanto Brashen oferecia a mão. Etta soltou um pequeno ruído de
exasperação, mas Sorcor concordou com a cabeça. Foi Wintrow quem
avançou e apertou a mão de Brashen à moda dos Mercadores. “Eu escrevo
o acordo”, prometeu Wintrow e Brashen concordou com a cabeça.
Âmbar sussurrou: “É como os Mercadores agem: um acordo que
beneficia todos.” Muito baixinho, acrescentou: “Alteia não está contente,
mas reconhece que é o acordo de que precisa se queremos algum dia partir
de Partilhas.”
Wintrow afastou-se do aperto de mão. “Vamos começar imediatamente a
embarcar provisões.” Ergueu a voz. “Isto assim convém-te, Modelo Ideal?
Ganhaste. Conseguiste que fosse feita a tua vontade. Fidekennit viaja
contigo. Podemos agora acabar de desembarcar a carga e atracar com
provisões?”
“Podem!” A voz do Modelo Ideal trovejou pelo porto fora. A satisfação
ergueu-se do convés e cobriu-nos a todos. Mesmo Alteia pareceu aliviada.
Brashen apertou-me o ombro ao passar. “Preparai-vos para trabalhar”,
avisou.
E foi o que fizemos. Barris de água limpa, cerveja, peixe salgado e uma
grande roda de queijo depressa foram trazidos para o navio, conjuntamente
com sacas de tubérculos, maçãs e ameixas secas, e caixa atrás de caixa de
biscoitos. Os novos tripulantes chegaram — sete ajudantes de bordo e uma
navegadora. Clef atreveu-se a obrigá-los a mostrar o que valiam, fazendo-os
subir e descer o mastro, pondo-os a enrolar cabos e a demonstrar os nós.
Nem a navegadora foi poupada a essas tarefas humildes, mas ela exibiu
uma habilidade desdenhosa que troçava dos testes dele.
O tempo aquecera o suficiente para Lante ter atirado a camisa para cima
da amurada. Mal consegui agarrar a manga para impedir que a camisa e
Matizada, que pousara nela e emaranhara as patas, caíssem à água. “Tem
mais cuidado!”, disse num aviso ao corvo enquanto agarrava a camisa. De
asas abertas, ela dançou e debateu-se até que as patas se libertaram, após o
que anunciou: “Tintaglia! Tintaglia! Olha para cima, olha para cima, olha
para cima!”
E ela aí vinha, topázio e safira, a reluzir brilhantemente. Era pequena à
distância, um corvo e, um segundo mais tarde, do tamanho de uma águia. E
continuou a aproximar-se, mais rápida do que eu julgara que alguma
criatura poderia voar. Em breve metade da tripulação estava a apontar e a
gritar. Em terra, as pessoas paravam na rua para olhar para o céu. “Ela sabe
do gado junto ao cais? Onde vai aterrar?”, perguntei ao corvo.
“Onde muito bem entender”, disse Per em voz baixa.
“Olha para cima, olha para cima, olha para cima!”, voltou o corvo a
grasnar. Eu estava concentrado em Tintaglia, mas Centelha gritou: “Olhem,
um vermelho! Está longe, mas acho que é outro dragão!”
O dragão voava mais devagar e parecia estar a esforçar-se muito.
Pousaria em segurança ou pereceria nas vagas?
“Heeby! Cintilante Heeby!”, gritou Matizada e levantou voo num
turbilhão de penas pretas para ir ao seu encontro. Observei ansiosamente
enquanto Tintaglia circulava sobre a mansão da Rainha Etta. Gado para ti!
Num curral junto ao cais! Há comida à espera para te dar as boas-vindas!
Atirei os pensamentos a Tintaglia, mas não vi nenhuma mudança na sua
espiral descendente.
As pessoas que estavam no grandioso relvado em frente do solar real
desataram a fugir em busca de abrigo. O dragão descreveu um último
círculo de aviso e depois lá veio rumo ao chão, estendendo as patas
providas de garras. Para uma criatura tão imensa, aterrou com elegância. A
chicotada das suas asas quando as sacudiu projetou-se sobre a água até
mim, um som semelhante ao de tela húmida atingida por um súbito sopro
de tempestade.
Tintaglia chicoteou com a cauda, abrindo valas no relvado. Alguns dos
espetadores avançaram para o dragão e outros fugiram. A confusa tagarelice
das pessoas soava como aves costeiras incomodadas. Tintaglia ergueu-se
sobre as patas dianteiras, sentando-se como um cão a pedinchar. A cabeça
virou-se devagar, perscrutadora. Apesar da distância, o seu olhar firmou-se
em mim. “FitzCavalaria. Aproxima-te. Quero falar contigo.”
As palavras dela eram tanto um rugido de dragão como uma voz de
comando dentro da minha cabeça. A dar-me ordens. Quase tão irresistível
como tinham sido em tempos as ordens de Talento de Veracidade. “Ides?”,
perguntou-me Lante, aterrado.
“Não tenho alternativa”, disse-lhe.
“Ir onde?”, perguntou Per.
“O dragão chama-o, Per. E eu vou com ele.”
“E eu também!”, acrescentou Per.
Eu não queria que nenhum dos dois fosse. Falei severamente a Per.
“Lembra-te de que agora fazes parte de uma tripulação. É o capitão que
decide…”
“Ambos os capitães dizem para irem.” Alteia estava a arremeter na nossa
direção. Tinha uma mancha de piche na cara e o cabelo estava empastado
de suor. “Levai Âmbar convosco. Brashen tem os botes do navio à espera.
Não vos demoreis. Não quero que um dragão fique descontente com
alguém no meu convés. Em especial aquele dragão.”
Centelha precipitou-se a ir buscar Âmbar à cabina. Descidos à pressa
para o bote do navio, fomos levados para terra o mais rapidamente possível.
As docas estavam desertas mas, ao aproximarmo-nos do solar, tivemos de
abrir caminho por entre uma multidão cada vez mais densa de pessoas que
olhavam de boca aberta para a grande rainha azul. A Rainha Etta estava
parada no pórtico da sua mansão com o filho atrás. Guardas armados
rodeavam-nos. Saberiam os guardas quão inúteis seriam alfanges e
armaduras se o dragão decidisse cuspir ácido em cima deles? Um batalhão
da guarda da cidade chegou, abrindo caminho ao empurrão por entre a turba
de espetadores a fim de rodearem o dragão e empurrarem a multidão para
trás, forçando-a a sair do relvado. Desejei conseguir chegar junto de
Tintaglia antes de a irritarem demasiado.
O olhar de Tintaglia encontrou-me enquanto abríamos caminho à força
por entre a densa multidão. “Afastem-se!”, ordenou. “Deixem esse passar!”
Enquanto pessoas confusas empurravam em direções opostas, anunciou:
“Voei sem parar durante um dia e uma noite e um dia para chegar a este
lugar. Visionário! Tenho coisas a dizer-te. Não te demores a vir ter comigo.
A minha fome não tem paciência!”
“Saiam-me da frente!”, rugi, e abri caminho pelo meio da multidão com
os outros na minha esteira. “Fiquem aqui”, avisei-os, e senti-me nu ao sair
para aquele espaço aberto em frente de Tintaglia.
“Estou aqui”, disse ao dragão. Forcei-me a dar outro passo para ela.
Ela fez serpentear a cabeça na minha direção, com a boca entreaberta e as
narinas dilatadas. Vi, brevemente, a chicotada de uma longa língua
escarlate. O calor do seu esforço recente saltava dela como se eu estivesse
demasiado perto de uma lareira, trazendo até mim o fedor a réptil e o sopro
a carniça do seu hálito. “Não sou cega e, mesmo se fosse, reconheceria o
teu cheiro.”
“Ela está a falar?”, perguntou Per atrás de mim.
“Chiu”, avisou Lante.
“Tenho fome e estou cansada e disponho de pouquíssimo tempo.” O tom
de voz fez disso culpa minha.
Fiz uma grande vénia. “Gado espera-te num curral perto do cais.”
Outra chicotada com a cauda. “Eu sei. Já mo disseste duas vezes.” Falou
como se isso fosse uma ofensa mortal. Com severidade, acrescentou: “O
cais não tem espaço para um dragão do meu tamanho pousar.”
Pensei em tocar a mente dela com a minha e imediatamente abandonei a
ideia. Não tinha nenhum desejo de deixar que um dragão me queimasse o
Talento. Ela continuava a falar. “Primeiro, fica sabendo do seguinte.
Fogogelo é um cobarde. Um dragão que prefere enterrar-se em gelo a
vingar-se por temer pela sua própria segurança mal merece o nome de
dragão!”
Não me pareceu que fosse sensato dar alguma resposta àquilo. Fiquei em
silêncio e aguardei.
Uma longa expiração foi soprada pelas suas narinas, acompanhada por
uma profunda vibração gutural. Ela fez tremer a pele escamosa, ajeitou as
asas e ordenou-me: “Indica-me o caminho até ao cais. Falarei em
andamento. Depois vou alimentar-me. É difícil falar simplesmente a um
humano, e quase impossível quando estou com fome.”
Que tranquilizador era ouvir aquilo. Coloquei a voz por forma a projetá-
la. “Creio que se passou muito tempo desde que um dragão do teu
magnífico tamanho pousou aqui. A Rainha Etta das Ilhas dos Piratas
preparou-se bem para te alimentar.”
“E sentimo-nos honrados, ó mais bela das rainhas! Azul e espantosa
como sois!” Wintrow arremeteu por entre os guardas da rainha e desceu os
degraus que levavam ao relvado rasgado. Fez uma extravagante vénia
floreada a Tintaglia. “Talvez vos lembreis de mim, ó gloriosa? A minha
irmã é a Rainha Malta dos Mercadores dos Dragões de Kelsingra. O meu
irmão mais novo, Selden, cantou-me frequentemente loas a vós.”
“Selden”, disse Tintaglia e os seus olhos rodopiaram num súbito prazer.
“Sim, esse é um nome de que me lembro bem. Que belo cantor de dragões!
Ele está aqui?”
“Entristece-me dizer-vos que não está. E sinto-me ainda mais mortificado
por ouvir dizer que a nossa área de pouso era inadequada!”
A Rainha Etta captara as indicações desesperadas de Wintrow. Avançou.
“Guardas! Abri um caminho para a nossa extraordinária hóspede e oferecei-
lhe uma escolta de honra até ao curral do gado. Mandai encher para ela os
bebedouros de água doce!” Um estalar de dedos e a sua guarda pessoal
afastou-se dela e precipitou-se relvado fora. Com as espadas embainhadas,
começaram a desimpedir um largo corredor através da multidão
embasbacada.
Um tremeluzir de cores ao longo do pescoço de Tintaglia e uma
ondulação das pregas sob a sua maxila indicaram, esperei eu, o seu prazer.
“Um belo acolhimento”, decidiu. “Estou contente.”
Wintrow voltou a fazer a sua elegante vénia e, com um olhar de viés que
me foi dirigido, retirou às arrecuas.
A atenção de Tintaglia voltou a mim e caiu-me em cima uma sensação
que era como uma pesada manta. Mantive as muralhas bem apertadas
contra o seu encanto, enquanto ela avançava pela avenida que a guarda
abrira na multidão.
Caminhar a seu lado foi um desafio. O seu ritmo não era nem um passeio
humano nem uma correria. Passara-se muito tempo desde que eu fora
forçado a trotar tão apressadamente. Deitei uma olhadela para trás e vi
Lante e Per a seguir-nos a uma distância segura. Centelha guiava Âmbar na
direção do pórtico.
“Tu”, trovejou Tintaglia, quase em voz baixa. A sua cauda chicoteava o
chão enquanto caminhava, como a cauda de um gato preguiçoso. “Tiveste a
presunção de me pedires informação em Kelsingra. No entanto, eu
encurralei Fogogelo e arranquei-lhe, com vergonha e ameaças, muito do
que ele devia ter partilhado comigo há anos. Até Heeby tem mais coragem
do que ele!
“O que supuseste estava correto. Os Brancos e os seus Servos causaram
um grande mal aos dragões. Ardo de fúria ao pensar que gerações deles
julgaram que nos podiam desfeitear sem consequências! Essa vergonha
deve-se inteiramente à cobardia de Fogogelo, mas não creio de todo que
ele aja. Portanto, agirei eu.”
Tínhamos alcançado o bairro dos armazéns, um bairro mais antigo de
Partilhas onde as ruas eram mais estreitas. Caminhei desconfortavelmente
perto de Tintaglia e foram várias as vezes em que ouvi estrondos quando as
chicotadas da sua cauda se depararam com as fachadas dos edifícios. Se
houvera aí pessoas, os apressados guardas tinham-nas afastado.
“Compreende, Visionário, que esta vingança me pertence. Nenhum mero
humano pode dar a Clerres o castigo que merece. Quando lá chegarmos,
iremos fazer desabar uma pedra após a outra e devorar aqueles que se
atreveram a matar dragões, tal como fizemos em Calcede. A satisfação
dessas mortes pertence-me a mim!”
“Se eu lá chegar primeiro, não”, resmunguei.
De repente Tintaglia parou. Por um instante, arrependi-me das minhas
palavras impensadas. Mas ela ergueu a cabeça, farejando o ar. Também
senti o cheiro. O curral do gado, onde animais eram guardados durante o
embarque ou desembarque de um navio. Estávamos perto.
Emoções batalharam em mim. Eu desejava a minha vingança. E se o
Bobo tinha razão e a minha filha estava viva, não a queria envolvida nos
ataques furiosos de um dragão contra Clerres. Seria eu capaz de dissuadir
Tintaglia? Haveria alguma possibilidade de o Modelo Ideal ser mais rápido
que um dragão vingativo? As minhas dúvidas quanto a Abelha estar viva
foram varridas pelo medo de poder nunca vir a saber. “Queres vingar-te dos
Servos?”
“Não acabei agora mesmo de dizer isso? Humanos. Tudo tem de ser
repetido!” Falava com total desdém. “Agora escuta, antes de eu me ir
alimentar. Digo-te isto em bocados pequenos para a tua pequena mente.
Sim, permito que vás a Clerres. Como tão rudemente afirmaste, se chegares
antes de mim, tens autorização para massacrar quem quiseres. Não
encararei isso como um roubo de matança. Compreendes este favor que te
concedo?”
“Sim. Sim, compreendo. Mas agora julgamos que é possível que a minha
filha ainda esteja viva. Que pode ser prisioneira em Clerres.”
Eu podia perfeitamente ter sido uma das moscas a zumbir em volta da
pilha de estrume, tal foi a atenção que ela me prestou. O curral estava à
nossa frente. As vacas que mugiam de um lado para o outro tinham captado
o seu cheiro. Aglomeraram-se densamente contra as paredes do curral. Ela
trombeteou, um som feroz e faminto que não transmitiu quaisquer palavras
à minha mente, e arremeteu em frente. A sorte, não a destreza, salvou-me
de uma vergastada da sua cauda.
E de repente o dragão estava em cima dos pobres animais encurralados, a
espezinhá-los sob as grandes garras e a dilacerá-los com os dentes. Prendeu
um nas maxilas e atirou ao ar o animal que berrava. Lante agarrou-se-me à
manga e arrastou-me para trás quando o corpo quebrado da vaca aterrou na
rua perto de onde eu estivera. A cara de Per era uma máscara de horror e
fascínio. Os guardas, que tinham corrido em frente para abrir caminho ao
dragão, riram-se e rugiram como alguns homens fazem quando se deparam
com carnificina. Estavam mais perto do que eu teria decidido estar,
arrebatados pela barbárie do momento.
“Devíamos deixá-la alimentar-se”, disse eu a Lante e a Per.
Virámo-nos e avançámos pelo caminho por onde tínhamos vindo. Mais
do que um edifício sofrera danos com as chicotadas da cauda de Tintaglia.
Contornámos uma doca de carga estilhaçada. Avancei mais devagar do que
me deslocara antes, ainda a tentar recuperar o fôlego.
“Senhor, quereis dizer-me o que o dragão tem estado a dizer?”, perguntou
Per.
Eu tinha a garganta seca como pergaminho à conta da corrida apressada
até ao curral. Mantive a história curta. “Diz que temos autorização para ir a
Clerres e matar lá gente. Também planeia a sua própria vingança contra
Clerres, quando lá chegar.”
Per estava a acenar com a cabeça de uma forma que dizia que não
compreendia de todo. “Vingança pelo quê? Porquê?”, perguntou.
“Ela não divulgou detalhes. É evidente que a gente de Clerres fez em
tempos mal a alguns dragões. Ela sente-se insultada por Fogogelo nunca os
ter punido por isso. Avisou-me de que todos são por direito matança sua,
mas disse-me que vai permitir a nossa vingança. Se lá chegarmos primeiro.”
“O dragão negro talvez tenha pensado que fazer ruir metade de Aslevjal
foi vingança suficiente”, sugeriu Lante.
Abanei a cabeça. “Tintaglia não concorda.”
“Mas, senhor!” Perseverança pegou-me no braço. “E se o dragão chegar
antes de nós? Âmbar diz que Abelha está lá! Ela pode ficar ferida ou ser
morta! Os dragões não parecem ver grande diferença entre nós. Avisaste-la
de que Abelha está lá? Dissestes-lhe que tem de ter cuidado?”
“Fiz menção a isso, sim.”
Lante encolheu-se para um lado quando Matizada desceu para ir pousar
no ombro de Per.
“Heeby!”, anunciou a ave. “Cintilante Heeby! Anda, anda, anda!
Depressa!” E tão depressa como se empoleirara, levantou voo do ombro de
Per e voou de volta na direção do solar.
“Tinha-me esquecido de que Heeby vinha aí”, admiti.
Per resmungou: “Só vós conseguiríeis esquecer-vos de um dragão.” Em
voz mais alta, acrescentou: “Podemos apressar-nos?”
O meu orgulho forçou-me a fazer isso mesmo. Voltara a formar-se uma
multidão em volta do relvado que se estendia em frente da mansão real. Per
abriu caminho ao empurrão, gritando ousadamente: “Abram alas para o
Príncipe FitzCavalaria! Abram alas!” Eu estava demasiado esfogueado para
levantar objeções. O imaculado relvado estava agora tão revirado como um
campo lavrado. E Heeby lá estava, no meio da terra rasgada. Trazia um
glorioso arnês de reluzente couro vermelho e latão brilhante, encimado por
uma espécie de caixa: um poleiro para um cavaleiro. Fome e cansaço
irradiavam dela como calor de um forno. Estava a soltar um som gutural
enquanto respirava, como se uma imensa panela estivesse prestes a rebentar
fervura.
No pórtico do solar estavam a Rainha Etta, Fidekennit e Wintrow, com
Âmbar e Centelha a um lado, a uma distância respeitosa. Uma fileira de
guardas repousados, com os bastões a postos, estavam entre a rainha e o seu
hóspede indesejado. Num degrau mais baixo, mas tão alto que não erguia o
olhar para eles, todo vestido de couro escarlate e armadura, via-se um
Antigo. “Rapskal está aqui!”, exclamou Per numa mistura de surpresa e
terror. O Antigo estava a gesticular grandiosamente e, quando contornámos
Heeby, a boa distância do dragão, e nos aproximámos do solar, captei as
suas palavras.
“…e uma noite e um dia, até cá chegarmos. Percorremos um longo
trajeto, desde Kelsingra nos Ermos Chuvosos. Eu e o meu dragão trazemos
notícias importantes para FitzCavalaria Visionário. Se fosse possível
encontrar carne viva para ela, eu ficaria grato. Por favor.”
Nunca ouvira o General Rapskal tão cortês, mas parecia que, por Heeby,
ele era capaz de se humilhar e suplicar. Wintrow aproximou-se mais da
Rainha Etta e disse-lhe qualquer coisa em voz baixa. Ela não pareceu
contente, mas deu a ordem. “Tragam três cabras. Que as coma aqui; seja
como for, o relvado está arruinado.”
“E sois sábia, Rainha Etta, por a deixardes alimentar-se a distância segura
de Tintaglia. Estou grato.” Rapskal olhou por sobre o ombro para o seu
dragão impaciente e a cara suavizou-se-lhe com carinho. “Ela tem tanta
fome, e exigi tanto dela para me transportar até tão longe. E temos ainda
mais caminho a percorrer, até à Ilha dos Outros. E depois para Clerres.“ Foi
então que me viu e virou costas a Etta, exclamando: “FitzCavalaria, aí
estais vós! Trago-vos notícias importantes!”
Avancei apressadamente. “Tintaglia já as partilhou comigo, General
Rapskal. Estou surpreendido por vos ver aqui.”
“Tal como todos estamos”, anunciou gelidamente a Rainha Etta.
“Especialmente por ainda não me terdes informado sobre o motivo desta…
visita.” Não havia maneira de alimentar dúvidas sobre o seu
descontentamento. Mas o que me enervou tanto como isso foi a forma como
Fidekennit estava a fitar Heeby. De súbito desceu, passando pela
surpreendida guarda, passando até por Rapskal, e caminhou diretamente
para ela.
Fiquei com a respiração presa na garganta. O dragão estava com fome e
ele era um desconhecido. Mas Heeby limitou-se a virar a cabeça para ele e a
fitá-lo com olhos que rodopiavam suavemente.
“Trazei a este maravilhoso dragão uma banheira de água!”, ordenou ele
de repente. “Ela está sequiosa! Nenhuma criatura tão gloriosa devia sofrer
uma tal privação! E onde estão as cabras? Não deviam já cá estar? Trazei-
lhe também um dos touros castrados castanhos! Ela está faminta!” E o
idiota aproximou-se do dragão esfomeado, de mão estendida.
Um murmúrio de preocupação e consternação levantou-se da multidão ali
reunida. A boca de Etta entreabriu-se ligeiramente, num medo esfogueado.
“Não!”, gritou Wintrow, avançando. Esperei que Rapskal saltasse em
frente para salvar o príncipe. Mas embora o Antigo estivesse em
movimento, estava a atravessar o relvado na minha direção. Reparei em
Sorcor, a mover-se rapidamente e demasiado tarde para seguir os
movimentos de Fidekennit. Heeby ia comer o príncipe.
Mas Heeby limitou-se a esticar a cabeça até o focinho escamoso tocar a
mão de Fidekennit. O ar saiu-me dos pulmões. Perguntei a mim mesmo se
aquele espetáculo de Fidekennit teria sido verdadeira coragem ou ele caíra
sob o efeito do encantamento dos dragões.
Ele ergueu a outra mão e pousou-a na cara do dragão. “Linda!”, disse o
príncipe, e o dragão baixou a cabeça para o deixar coçar-lhe a testa.
Um suspiro, um murmúrio de aprovação vindo da turba ali reunida,
disse-me o que eu não adivinhara antes: o povo das Ilhas dos Piratas
adorava o seu príncipe. Eu podia tê-lo visto como um homem infantil e
mimado, mas o seu instinto para a elegância e a sua exibição de
fanfarronice deslumbravam a multidão. Quando as cabras apareceram a
balir, contornando a esquina da casa, Heeby ergueu a cabeça e mirou-as por
sobre a espádua.
“Vai!”, disse-lhe o príncipe. “Satisfaz a fome, coisa bela!” E ficou
destemidamente no lugar enquanto o dragão girava e saltava. Pela segunda
vez nesse dia vi um dragão matar e ouvi um rugido de aprovação vindo da
multidão.
“Cuidado!”, resmungou Lante, pondo-se a meu lado, e Per rapidamente
se deslocou para o meu outro flanco quando Rapskal se aproximou, com a
mão estendida para apertar os pulsos comigo. Um largo sorriso de dentes
brancos parecia estranho na sua cara de escamas escarlates. Dei-lhe a mão,
mas ele não a soltou depois do cumprimento. Em vez disso, puxou por mim
como se eu me tivesse esquecido das maneiras. “Não fiqueis aí,
FitzCavalaria! Tenho de me apresentar à rainha deles.” E levantou a voz
para gritar: “Aproveita a refeição, Heeby, minha gloriosa! Príncipe,
obrigado por um cumprimento tão gentil! Agora que o meu dragão está a
ser bem tratado, vou transmitir a FitzCavalaria tudo o que ele tem de saber.”
Pegou no meu braço e eu deixei. Avançámos juntos pelo relvado desfeito
pelos dragões, com Lante e Per logo atrás de nós. Um touro berrou,
alarmado, e, quando me virei, vi a pobre criatura em pânico a ser arrastada e
empurrada na direção do dragão.
“Libertem-no!”, berrou Fidekennit, e eles fizeram-no. Os vaqueiros mal
conseguiram fugir à carga do dragão quando touro e predador dilaceraram
mais meio acre de jardim. Aquele touro era um combatente, e os cornos não
tinham sido serrados. Fez várias tentativas para cornear Heeby. O dragão
saltou para o ar e caiu sobre ele com todas as quatro patas, como um gato a
saltar sobre um rato. O berro do touro terminou numa terrível dentada
húmida. Per soltou um som de consternação, mas a turba gritou com um
divertimento digno de piratas. Para eles, Rapskal não podia ter planeado
melhor entretenimento do que uma tourada no jardim da rainha. O príncipe
abriu bem os braços acima da cabeça, em triunfo, e gritou: “Não a temam,
minha gente! Esta lindura escarlate veio em amizade!”
A ressonante aprovação da multidão foi ensurdecedora.
A Rainha Etta e a sua comitiva tinham-se afastado ligeiramente das
escadas, mas Wintrow permanecera no pórtico e estava a gesticular-nos
para nos irmos juntar a eles. Eu e Rapskal chegámos aos largos degraus
brancos e subimo-los até onde a Rainha Etta se encontrava, paralisada pelo
espetáculo dado pelo filho. Ouvi-a sussurrar baixinho: “Ele tem o dom do
pai para conquistar corações. Isto é bom.”
Subimos mais degraus até onde se imobilizara um Wintrow de sorriso
hirto. Amber e Centelha aguardavam-nos aí, com os rostos congelados em
incerteza.
“O que se passa aqui?”, perguntou Wintrow em voz baixa enquanto me
saudava de uma forma aparentemente afável. “Que caos trouxestes até à
soleira da nossa porta, FitzCavalaria? Um navio louco, a roubar o nosso
príncipe para a vossa missão de vingança, e agora dragões no nosso
relvado?”
Etta manteve os olhos postos no filho. “Calma, Wintrow. Parecemos estar
a estabelecer relações diplomáticas com os Ermos Chuvosos.” Deitou a
Wintrow um olhar de viés. “Acho que o príncipe que trava amizade com
dragões talvez mereça uma noiva que traga um dote maior.” Ergueu a mão
do cabo da espada e virou o sorriso para Rapskal. Havia uma toada de
divertimento na sua voz. “Saudações. Sou a Rainha Etta, das Ilhas dos
Piratas. Este é o meu ministro principal e almirante, Wintrow Vestrit.”
“Nomes que me são bem conhecidos.” Rapskal ofereceu-lhes uma vénia.
“Sou o General Rapskal dos Mercadores dos Dragões de Kelsingra. Temo
que não seja nenhum diplomata, ó mais graciosa das rainhas, mas um leal
mensageiro ao serviço dos dragões.” Ainda tinha o meu braço bem agarrado
e deu-lhe palmadinhas amistosas. “Quando o Príncipe FitzCavalaria nos
visitou, desejou saber se a história dos dragões se intercetava com a dos
Servos da gente pálida. Obtivemos de Fogogelo essa informação, e é de
grande importância que ele saiba que a sua vingança pode alinhar-se com a
nossa mas não a suplanta.” Virou-se para mim e acrescentou: “Asseguro-
vos que posso transmitir a informação de forma muito mais concisa do que
Tintaglia e sem a impaciência dela.”
“Que reconfortante”, respondi e, para minha surpresa, isso arrancou um
suave risinho à Rainha Etta.
“Então não há dúvida de que me podereis dizer, rápida e claramente, o
que uma invasão de dragões tem a ver com a missão deste homem para
salvar a filha.”
“Uma coincidência do destino!”, assegurou-lhe Rapskal. “Mas, suplico-
vos, podeis dar-me comida e bebida antes de eu começar o meu relato?”
Wintrow escolheu um sorriso. “Entrai, por favor. Juntar-me-ei a vós em
breve. Tenho de transmitir algumas ordens aos guardas. Poucos estão
familiarizados com dragões. Mas eu já tive interações suficientes com eles
para saber que palavras ou atos descuidados podem acarretar a morte.”
“Pedi ao meu filho para vir ter comigo,” instruiu-o Etta.
“Oh, ele não vai desejar abandonar Heeby”, informou Rapskal com
familiaridade e amizade. “Eu vi a expressão na cara dele e senti como ela o
aprovava. Vai ficar junto dela enquanto ela se alimenta, e possivelmente
também enquanto dorme.”
Wintrow estava a concordar com a cabeça. “É provável que seja como ele
diz. Estão enamorados um do outro. Tintaglia teve um efeito muito
semelhante no meu irmão, Selden. É improvável que ela lhe faça mal. E os
cidadãos estão a ter grande prazer em ver o seu príncipe travar amizade com
um dragão.” A expressão da rainha não mudou. “Seja como for, eu convido-
o”, assegurou-lhe Wintrow, e deixou-nos. Rapskal enganchou firmemente o
braço no meu, um gesto que me desagradou em absoluto. Seguimos a
Rainha Etta. Não gostei de como a guarda dela cerrou fileiras à minha volta,
mas controlei a língua. O que é verdade a respeito de dragões também o é a
respeito de rainhas. Uma palavra ou ato descuidado pode ter severas
consequências.
Dentro da mansão real estava mais frio e menos luminoso. Olhasse eu
para onde olhasse, prevalecia uma história de saques de pirataria em
tapeçarias e estatuária, exóticos cortinados e tesouros estrangeiros. Houve
uma notável falta de formalidade quando a própria rainha nos guiou até
uma sala de estar. “Vai buscar comida e bebida”, ordenou ela a um dos
criados.
“Oh, eu ficaria tão grato por isso”, respondeu Rapskal. Voltou a virar a
atenção para mim. “Heeby não conseguia acompanhar a velocidade de
Tintaglia, por mais que tentasse. Nós sabíamos que Tintaglia não esperaria
por nós. A nossa tarefa é urgente, com pouco tempo disponível, mesmo
para transmitir esta mensagem.”
A rainha sentara-se à cabeça de uma mesa muito comprida. Havia
cadeiras mais que suficientes para todos. Manobrei Rapskal de forma a que
ele se sentasse à esquerda de Etta e ocupei uma cadeira a seu lado, deixando
um lugar para Âmbar do meu outro lado. Lante ocupou o lugar seguinte e,
após alguma hesitação, Centelha e Per ocuparam cadeiras. Trocaram um
olhar: sentados à mesa de uma rainha pirata!
A Rainha Etta deixou o olhar passar por todos nós. “Bem-vindos a minha
casa”, disse.
O sarcasmo que o cumprimento continha perdeu-se no Antigo.
“Sois tão graciosa”, respondeu Rapskal sem habilidade. “E muito mais
bela do que eu esperava! Ah, aqui está a refeição que pedistes. Estou tão
sequioso e tão faminto.” Assim que a criada lhe encheu o copo, ele
levantou-o e bebeu abundantemente.
Por um momento, ela fitou-o. Esperei que o censurasse pela falta de
maneiras. Mas ela recostou-se subitamente sobre um dos braços da cadeira.
Vi a pirata que se transformara em rainha quando disse: “E vós sois muito
mais direto e simples do que eu esperava de um emissário.”
“Sim, lá isso sou”, concordou ele com ar feliz enquanto estendia o copo
para que o voltassem a encher. “Mas não sou propriamente um emissário.
Posso ser general e um dirigente das forças de Kelsingra quando estou lá,
mas nesta tarefa sirvo o meu dragão e na verdade todos os dragões!
Assegurar-me-ei de que todos os dragões de Kelsingra saibam da vossa
hospitalidade!”
“Que bondade a vossa! Deverei ficar contente com isso? Ou
aterrorizada?” Passou o olhar pela mesa e depois soltou uma gargalhada,
aparentemente achando Rapskal mais divertido do que ofensivo. Wintrow
entrou e ocupou um lugar à direita da rainha. “E o meu filho?”, perguntou-
lhe esta.
“Está a passar tempo com o dragão vermelho e mandou vir mais três
vacas.” Wintrow olhou para mim e acrescentou: “O vosso corvo juntou-se a
eles.”
“Ela gosta da companhia do dragão vermelho”, disse. Perguntas e
preocupações fervilhavam dentro de mim, mas aquilo era a mesa da rainha.
“Bom. O meu filho viaja convosco, para salvar a vossa filha. E de
alguma forma, isso expõe-no à companhia de dragões?” A Rainha Etta
fitou-me, mas foi Rapskal quem respondeu. Ele esvaziara o prato de comida
e estava a observar atentamente a aproximação da criada com uma bandeja
de carne cortada.
“Deixemos tudo claro para todos. Nós viemos dizer a FitzCavalaria e à
Dama Âmbar que os dragões aprovam e autorizam a sua missão de
vingança. Na verdade, depois de a nossa tarefa estar concluída, segui-los-
emos para Clerres, para concluir qualquer destruição que eles tenham
iniciado. Tencionamos arrasar a cidade e devastar os território em volta.”
Bebeu um longo trago de vinho, aparentemente inconsciente da expressão
esbugalhada da Rainha Etta.
Pousou o copo com um grande suspiro. “FitzCavalaria não é o único a ter
sido desfeiteado por aqueles Servos. Muito mais grave foi o mal que eles
nos causaram! Aliados às Abominações, saquearam a praia de nidificação,
roubando ovos de dragão e matando ou aprisionando as serpentes recém-
nascidas! Amanhã voaremos rapidamente para a Ilha dos Outros a fim de
proteger os ovos lá enterrados até chegar a estação de eclosão do verão.
Tintaglia ficará de guarda aos ninhos e acompanhará as serpentes recém-
nascidas enquanto estas se dirigem para o mar, enquanto eu e Heeby
caçamos e matamos as Abominações que infestam esse lugar.”
“Abominações?”, perguntou Âmbar baixinho. Mantivera-se até àquele
momento em silêncio e vigilante.
“É assim que lhes chamamos. Ocorrem quando um dragão que passou
demasiado tempo entre seres humanos põe os ovos e eles não eclodem em
serpentes, mas em algo que não é nem serpente, nem humano, nem Antigo.
Criaturas grotescas e malignas. Vamos massacrá-las. Só Fogogelo sabia
como elas nos tinham desfeiteado! Como desenterraram os ovos dos
montículos de nidificação ou depredaram as jovens serpentes quando elas
tentaram abrir caminho até ao mar! Mataram algumas, para as devorar ou
vender os seus corpos aos Servos dos Brancos! Ou pior, aprisionaram-nas
durante décadas, colhendo as secreções dos seus corpos para fazer poções
ou remédios!” Os seus lábios escamosos franziram-se com repugnância.
“As Abominações consomem essas secreções; dizem que as ajuda a prever
o futuro e a lembrar-se de passados distantes!”
Wintrow pousou o copo na mesa com um som cortante. “Etta”, disse em
voz baixa. “Nós estivemos lá. Na Praia dos Tesouros. Aquelas criaturas. A
serpente que eu libertei…”
“Lembro-me disso”, disse ela numa voz ténue.
Wintrow dirigiu-se a Rapskal. “Kennit levou-me até lá para ver o que os
outros podiam profetizar para mim. Ele já lá tinha estado, julgo eu. Com
Igrot. Havia uma tradição que dizia que se encontrássemos alguma coisa
dada à costa na Praia dos Tesouros e a entregássemos às criaturas que
viviam aí, elas preveriam o nosso futuro. Mas eu não encontrei nenhum
tesouro. Só uma imensa serpente, cativa numa lagoa engaiolada. As marés
mais altas reabasteciam a água que a rodeava, mas a criatura estava
atrofiada e deformada de viver num espaço tão pequeno. Falou-me… e eu
consegui libertá-la. Embora o seu toque ao passar me tenha arrancado pele e
eu quase me tenha afogado no esforço para a libertar.”
“Lembro-me disso”, disse Etta. “Também o Sorcor falou de uma visita
anterior que Kennit lá fez.” Um sorriso ténue tocou-lhe os lábios. “Destruiu
o que encontrou em vez de o entregar à criatura que lá estava.”
“O Kennit era assim”, concordou Wintrow, e não consegui perceber se
era amizade ou desagrado o que soou na sua voz.
Por um momento houve um estranho silêncio.
“Heroico!”, exclamou Rapskal. O seu punho bateu na mesa, fazendo-nos
todos saltar, e os seus olhos brilharam com lágrimas. “Vou partilhar esta
história com Heeby, e com todos os dragões!” Por um momento houve
silêncio e todos o fitámos.
Wintrow e Etta trocaram um olhar. Seria eu o único a sentir uma corrente
de comunicação entre ele e o seu dragão? Depois ouvi o trombeteio de
Tintaglia vindo da direção do cais.
Rapskal levantou-se de repente e, de súbito, tirou os anéis dos dedos.
Bateu com o grupo de joias na mesa e empurrou-as para Wintrow. Havia
lágrimas nos seus olhos. “Um pequeno presente de joias dos Antigos,
insuficiente para o homem que libertou uma serpente da escravatura das
Abominações! A gratidão dos dragões é um bem raro! Tendes também a
gratidão de todos os Antigos.” Virou o olhar para Etta. “E Heeby diz-me
que enviais o vosso filho para acompanhar FitzCavalaria e ajudá-lo a levar
a cabo a sua vingança? Heeby está contente. Envolve-o na sua mais elevada
estima. Promete que, quando chegar a Clerres, o iremos encontrar!” E
levantou a voz num grito. “Ele cavalgará sobre o dorso dela para os
castigar!”
O silêncio encheu a sala.
Âmbar quebrou-o. “Então os dragões vão para Clerres connosco, para se
vingarem?” Haveria esperança ou temor na voz dela?
Rapskal pousou o copo e abanou a cabeça. “Imediatamente, não. A nossa
missão de proteger a eclosão dos ovos é mais urgente. Quando a estação de
eclosão ficar completa e nos convencermos de que todas as Abominações
foram mortas, iremos até lá.”
“Da última vez que falámos, julgávamos que a minha filha estava morta.
Agora julgamos que pode ter sobrevivido. Que Abelha pode ser prisioneira
em Clerres.”
Âmbar interrompeu. “Se estiver na cidade e os dragões atacarem, ela
pode ficar ferida. Ou ser morta.”
Rapskal confirmou com a cabeça. “Ser morta é mais provável”,
concedeu. “A destruição que gerámos em Calcede foi muito completa.
Edifícios ruíram. O sopro ácido dos dragões choveu sobre pessoas e
animais.” Acenou com satisfação. “Duvido que alguém tenha sobrevivido
dentro do palácio do duque.” Depois, quando olhou em volta e viu o horror
nas nossas caras, disse de repente: “Percebo a vossa preocupação.
Realmente.”
“E podeis falar com Tintaglia e Heeby? Podeis pedir-lhes para nos
ajudarem? Ou pelo menos para nos deixarem fazer a nossa tentativa de
salvação antes de causarem a ruína da cidade?” Âmbar estava esfogueada
de esperança.
Ele juntou as mãos de dedos compridos e baixou o olhar para as unhas
escarlates. Aguardámos em silêncio. Por fim, ele disse em voz baixa: “Eu
digo-lhes. Mas…” Ergueu o olhar e cruzou-o firmemente com o meu. “…
não posso prometer nada. Acho que já o sabeis. Os dragões não são… não
veem os humanos…” A voz sumiu-se-lhe.
“Eles não a vão considerar importante.” As minhas palavras caíram como
aves mortas.
“Exatamente. Lamento.” Ele brincou com o garfo e acrescentou: “A
vossa melhor esperança é chegardes lá antes deles. Para tentar salvá-la antes
de porem a cidade sob cerco. Lamento verdadeiramente.”
Perguntei a mim mesmo se lamentaria. Perguntei a mim mesmo se ele
próprio não seria muito semelhante a um dragão. Incapaz de compreender a
importância de uma criança.
Rapskal ergueu a cabeça como se estivesse a escutar qualquer coisa.
“Heeby está saciada. Trataste-la bem. Obrigado.” A cara voltou a adotar a
expressão pensativa. Depois sorriu. “Creio que Tintaglia também está
saciada. Agora vão dormir. Um voo tão longo fatigou-as a ambas, e Heeby
está perto da exaustão.” Olhou para mim e ergueu uma sobrancelha
escamuda, como que para me fazer lembrar que partilhávamos um segredo.
“Felizmente, eu trago na sela um fornecimento de… de um tónico.
Amanhã, dar-lho-ei. Mas vai ter de dormir o resto do dia e toda a noite. E
eu também.” Virou o sorriso para Wintrow e Etta. “Poderíeis preparar um
quarto para mim, e também um banho? Confesso que estou fatigado e me
dói cada membro. Viajar tão alto acima da terra é sempre frio! Consegui
dormir um pouco na sela, mas isso não é verdadeiro descanso.”
Os olhos da Rainha Etta semicerraram-se por se lhe dirigirem como se
ela fosse uma criada de quarto. Antecipei que se pusesse em pé com a mão
no cabo da espada, mas Wintrow afastou-se rapidamente da mesa. Ele sabia
quando a sua rainha chegava ao limite da tolerância. “Se me seguirdes,
General Rapskal, ficarei feliz por ceder o meu quarto para vosso uso. Tenho
a certeza de que essa é a maneira mais rápida de vos arranjar um lugar para
descansar. Cavalheiros, senhoras, se nos derdes licença.”
E lá foram, deixando à mesa a Rainha Etta e a minha comitiva. De
repente, a rainha levantou-se. “Tereis de partir o mais depressa possível.
Para terdes alguma hipótese de chegardes a Clerres antes dos dragões e de
salvardes a vossa filha.”
“Assim é.” Lutei por controlar a voz. Ainda estava a tentar aceitar o
fatalismo que ouvira nas palavras de Rapskal. Os aliados que eu esperara
obter tinham-se agora transformado numa espécie diferente de ameaça.
“E levais o meu filho para um perigo maior do que eu tinha
compreendido.”
“Considero isso provável.”
Ela acenou lentamente com a cabeça. “Ele é filho do seu pai. Esta
questão com os dragões e a sua vingança… só irá inflamar a sua
determinação até a deixar dura como aço.” Fitou-me com um olhar
avaliador. “Bem, Príncipe FitzCavalaria, trouxestes mais excitação, desastre
e confusão a Partilhas do que nós tivemos em muitos anos.”
Ouvi o ruído de botas e Fidekennit entrou a passos largos na sala. Havia
nos seus olhos um fogo que eu não vira antes. “Mãe. Vim dizer-vos que
estou determinado a zarpar amanhã, na primeira maré. Quanto mais
depressa chegarmos a Clerres, mais depressa podemos levar a cabo uma
vingança há muito atrasada.” O seu olhar varreu-nos e depois virou-se e
saiu.
Etta ficou um longo momento a fitar o sítio por onde o filho
desaparecera. “Tão parecido com o pai.” Virou-se para mim. “Eu esperava
atrasar a vossa partida. Agora vou dar ordens para que o navio fique bem
abastecido antes de cair a noite.” Quando se levantou da mesa, acrescentou
numa voz arrepiante: “Visionário. Perdestes a vossa filha. Não percais
também o meu.”
Biografia

ROBIN HOBB pseudónimo de Margaret Ogden, nasceu na Califórnia em


1952 e licenciou-se em Comunicação na Universidade de Denver,
Colorado. É uma das autoras de fantasia mais aclamadas a nível
internacional, tendo alcançado a notoriedade com as sagas Assassino e O
Regresso do Assassino. É também autora de livros de fantasia
contemporânea sob o pseudónimo Megan Lindholm. Após alguns anos a
viver no Alasca, reside atualmente em Tacoma, Washington.
Mais informações em
www.sde.pt
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Coração Negro

NAOMI NOVIK

Agnieszka adora a sua pacata aldeia no vale, as florestas e o rio cintilante.


Mas o maléfico Bosque permanece na fronteira e a sua sombra ameaçadora
paira sobre a vida da jovem.

O povo depende do feiticeiro conhecido apenas por Dragão para manter os


poderes de Bosque afastados. Mas o Dragão exige um terrível preço pela
sua ajuda: uma jovem deve servi-lo durante dez anos, um destino quase tão
terrível como perecer a Bosque.

A próxima escolha aproxima-se e Agnieszka tem medo. Todos sabem que o


Dragão irá levar a bela, graciosa e corajosa Kasia, tudo aquilo que
Agnieszka não é, e a sua melhor amiga no mundo. E não há forma de a
salvar. Mas Agnieszka teme as coisas erradas. Porque quando o Dragão
chega, a sua escolha surpreende todos...

Mais informações em
www.sde.pt

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