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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: Pelos Caminhos Assombrados de Portugal — Rota dos Mitos e Lendas


AUTORIA: Vanessa Fidalgo
EDITOR: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Vanessa Fidalgo e Edições Saída de Emergência
REVISÃO: Florbela Barreto
DESIGN DA CAPA: Ana Nascimento
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK: Outubro, 2020
ISBN: 978-989-9033-12-2

DESASSOSSEGO É UMA CHANCELA DO GRUPO SAÍDA DE EMERGÊNCIA


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DEDICATÓRIA

Para as minhas filhas, Luísa e Leonor, que nunca se cansam de me ouvir contar histórias. Para
o Luís e para o Leonardo, que nos fazem tão bem...
POSFÁCIO

«Sei ter o pasmo essencial


Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...»

ALBERTO CAEIRO
INTRODUÇÃO

N
uma das ruas da minha infância, houve em tempos uma lindíssima e majestosa casa
apalaçada, de paredes rosa-carne, com grandes e românticas arcadas na entrada. Desde
sempre a conheci abandonada e já pouco protegida dos olhares curiosos de quem
passava na avenida por causa dos seus muros periclitantes e carcomidos pelo tempo, onde
cresciam buracos e trepadeiras crespas e selvagens que serviam de casa a lagartixas fugidias no
verão. Apesar do receio que punha o meu coração «a mil», foram muitas as vezes que trepei
aquele muro só para a espreitar. Eu e muitos outros miúdos e graúdos, igualmente atraídos pelo
mistério daquele solar tristemente esquecido e que destoava completamente da restante malha
urbana dos arredores de Lisboa.
Ao longo dos anos em que o fantástico solar foi meu «vizinho», foram várias as histórias que
sobre ele ouvi: que vivia lá «um coxo que era lobisomem», que acolhia «ratazanas gigantes e
ferozes nas caves e, por isso, quem lá entrasse arriscaria a pele» e, claro, a mais comum má fama
de todas as casas velhas e abandonadas: que «estava assombrada!».
Um dia, porém, os portões da velha casa rosa-carne abriram-se pela primeira e última vez de
par em par. Dois ou três carros instalaram-se no jardim e uma série de homens de jeans e com
pouco aspeto de lobisomens tiravam e carregavam o que queriam e podiam.
A seguir vieram as máquinas, e a velha casa foi abaixo, em meia dúzia de estertores de
entulho, para dar azo a um novo condomínio com direito a um pequeno centro comercial que,
curiosamente, também tinha arcadas na entrada, embora de design muito mais moderno.
Conto esta história apenas porque sei que não tem absolutamente nada de especial! Nem tão-
pouco é uma lenda verdadeiramente digna desse nome. Conto-a precisamente porque é comum a
todos nós, que um dia conhecemos um lugar e ouvimos sobre ele uma pitoresca história, que nos
arrepiou e emocionou, mas, acima de tudo, levou a que nunca mais o esquecêssemos.
Na realidade, a grande maioria das histórias que povoam a nossa tradição oral nasceu assim.
Da curiosidade, da singularidade e da profícua imaginação popular que as passou de boca em
boca e depois de geração em geração até aos dias de hoje, fazendo de fantasmas, bruxas e antigos
heróis — que ninguém sabe ao certo se realmente existiram — parte imprescindível da
identidade de uma comunidade.
Afinal, quem nunca ouviu uma dessas histórias de susto à lareira na aldeia dos avós? Quem
nunca fechou os olhos para imaginar como seriam as mouras encantadas que povoam os castelos
do Alentejo ou do Algarve? E quem nunca se sentiu secretamente abençoado por viver num país
que não só é bonito como tem também escondidas estas pérolas, absolutamente apetecíveis de
desvendar e de partilhar?
Pois é dessas histórias, nascidas da boca dos nossos antepassados e que nos unem, que fala
este livro. Histórias de um povo que gosta de conversar com quem chega ou está, que gosta de
receber e partilhar… e que, ao contrário do que se quer fazer acreditar, estima (e muito!) a
herança dos seus antepassados.
ALGUMAS REGRAS DE SOBREVIVÊNCIA PARA VIAJANTES INCAUTOS
NÃO LEVES ESTRANHOS PARA A CAMA...

Em Sabrosa, distrito de Vila Real, conta-se que uma mulher que há muitos, muitos anos vivia
sozinha costumava ouvir, sempre que se recolhia no quarto para o sono dos justos, um pequeno
espírito a choramingar e a raspar o soalho. A mulher chamava-lhe um trasgo, porque é assim
mesmo que os transmontanos chamam a estas pequenas criaturas, que acreditam ser as alminhas
dos inocentes (crianças, entenda-se) que já partiram. Por isso, não lhes levam a mal as
brincadeiras nem as traquinices, e alguns até apreciam a sua companhia nas noites frias e duras
do inverno transmontano.
No entanto, há limites para tudo... e a pobre senhora estava prestes a atingir o seu.
Todas as noites era o mesmo martírio, que a impedia de pregar olho e dormir descansada. No
entanto, mal acendia a luz do candeeiro, o barulho parava imediatamente! E, ao voltar a apagá-lo,
o ruído voltava. Na tentativa de resolver a situação, a mulher por vezes sentava-se na cama e
falava para o corredor:
— O que tens tu, afinal? Tens fome, tens frio?... Não tens sono?
Mas, como é óbvio, não obtinha qualquer resposta. O barulho parava por breves momentos,
mas mal ela tornava a encostar a cabeça à almofada, recomeçava tudo outra vez.
Numa noite especialmente gelada e ventosa, a mulher teve pena do trasgo e resolveu propor-
lhe umas tréguas, conforme relata o professor e investigador Alexandre Parafita na sua extensa
obra de recolha de literatura de tradição oral:
— Tenho a certeza de que estás cheiinho de frio! Ao menos, vem aqui para ao pé de mim e
agasalha-te debaixo dos cobertores!
Ora isso era tudo o que o trasgo sempre quisera ouvir! Num instante, enfiou-se com a mulher
na cama, e logo os seus lamentos acabaram.
E podia de facto ter acabado tudo em bem, mas não foi o caso. Passado um bocado, que nem
foi muito longo, a mulher sentiu umas unhas afiadas a darem-lhe um beliscão nas nádegas, com
tal força que logo ali pôs os pontos nos is:
— Ah, diabo dum raio! Desaparece! Vai para os confins do Inferno!
Aquilo saíra-lhe mesmo das entranhas. E em melhor hora não podia ter proferido tal maldição.
Foi remédio santo! Dali em diante, nunca mais a mulher nem ninguém entre os que depois
viveram naquela casa ouviram quaisquer gemidos ou ruídos estranhos!
NÃO GOZES COM AQUILO QUE NÃO CONHECES

Outra regra de ouro para quem pisa território desconhecido é não se rir de nada que não se
conheça bem. Quem lá vive pode ficar ofendido, resolver dar uma lição aos forasteiros e, ao
invés de lembranças, dar-lhes umas quantas más memórias para levar na bagagem.
Crê-se que deve ter sido isso mais ou menos que aconteceu lá para os lados da ilha de São
Jorge, nos Açores…
O povo desta ilha sempre acreditou que na noite de 2 de fevereiro havia uma espécie de
encontro entre dimensões diferentes e apareciam diabretes à face da terra!
Na etnografia açoriana, os diabretes são uma espécie de duendes que vivem geralmente no
mar mas que em determinadas ocasiões trepam sorrateiramente as fajãs para fazer das suas em
terra.
Claro que assustavam muito as pessoas, que nesse tal dia de 2 de fevereiro se fechavam em
casa com as portas e as janelas todas muito bem trancadinhas.
Só que houve um ano em que apareceram no lugar de Toledo dois homens de fora que não
acreditavam nada nessas histórias de diabretes e duendes e resolveram enfrentar os ditos do
povo, talvez querendo provar que não passavam de crendices sem fundamento...
Combinaram então o que iam fazer e escolheram a Fajã de Vasco Martins para passar aquela
noite aziaga.
Quando o Sol se pôs, encaminharam-se para o local, armados com mantas e canas de pesca,
pois estavam convictos de que a noite ia ser longa e entediante.
A verdade é que o tempo foi passando sem que nada de especial acontecesse. Como estava a
ficar muito frio, resolveram meter-se ao caminho em direção a uma casa na Fajã, onde se
sentaram, a conversar e a rir. De repente, no meio da galhofa, começaram a ouvir uma barulheira
infernal: parecia que as telhas estavam todas a partir-se, a ser arrastadas pelo ar fora; pancadas
fortes nas portas e janelas como se de lá de fora viesse um monstro medonho…
Parecia o fim do mundo! Os homens, antes tão destemidos, tremiam de medo e deixaram
ficar-se encolhidos a um canto. Nem sequer tiveram coragem de ir à porta ver o que se passava.
Na manhã do dia seguinte, não ganharam igualmente para o susto: quando olharam para o
telhado e viram que nem uma telha estava partida nem fora do seu lugar, que nas portas não
havia mazela nem sinal de pancadas, voltaram a tremer de medo.
Claro que a história se espalhou tão rapidamente como os duendes que iam e voltavam ao mar
e, daí em diante, nunca mais ninguém em Toledo se atreveu a gozar com os diabretes...
Esta história foi recolhida no final dos anos 1990, pela professora Ângela Furtado-Brum, na
magnífica calheta de São Jorge.
NÃO DÊS BOLEIA A GENTE ESQUISITA

Na região oeste, agora também muito procurada pelos viajantes de dentro e fora de Portugal,
conta-se que noutros tempos, em Á-dos-Arcos, vivia um homem que costumava ir todos os dias
ao ferro-velho no seu burrito.
No entanto, uma vez, devia andar o relógio pela meia-noite, o homem ia a passar pela
Louriceira de Cima quando ao contemplar o horizonte escuro e supostamente vazio de gente viu
o vulto de uma mulher vestida de preto que lhe pediu boleia.
O senhor, preocupado, saiu imediatamente do burro e deu o seu lugar à cansada senhora.
Quando se atreveu a olhar mais demoradamente para a cara dela, no entanto, reparou que era
defeituosa!
A mulher não esteve com meias-medidas nem muitos rodeios: disse-lhe que era bruxa! E que
se ele contasse a alguém lhe lançava um feitiço daqueles que poriam a vida a andar para trás.
Quando então chegaram ao cruzamento de Adoseiros, a bruxa desmontou do burro e
continuou o seu caminho a pé pelo meio de um mato frondoso, em direção à serra, onde não
morava vivalma.
O homem, cheio de medo, não contou nada a ninguém. Pelo menos, não de imediato… mas a
alguém deve ter dito!... ou não estaríamos nós aqui agora a recordar esta história que faz parte
dos arquivos sobre tradição oral da Câmara Municipal de Arruda.
CUIDADO COM O QUE BEBES!

Há quem, por princípio, não ligue a conversas de quem já tem um copito a mais. Mas também há
quem diga que um copo de vinho ajuda a ver o que nem sempre o pensamento racional deixa
descortinar. Alguém há de ter razão, mas certo é que nem o álcool apagou da memória de quem o
bebeu uma certa história passada há alguns anos na Invicta e relatada no final do século XIX pelo
etnógrafo e historiador Augusto Soares Pinho Leal.
Parece que numa rua que todos conheciam como «a rua de Cima do Muro», algures na
freguesia de São Nicolau, perto do Postigo dos Banhos, havia uma tasca que se tornou célebre
fora do Porto e até mesmo pelo mundo fora. Não é de estranhar assim tanto, tendo em conta que
o botequim era geralmente frequentado pelos marinheiros que ali atracavam, na sua maioria
vindos de Inglaterra, Rússia, Alemanha, França, etc.
Mas a fama do sítio não era propriamente boa. De vez em quando havia rebuliço, bofetada ou
pancadaria da grossa entre os que já estavam entornados e cobiçavam a mesma mulher de má
fama. Outras vezes desentendiam-se por causa do jogo.
Contudo, havia também relatos tenebrosos à mistura! Muitos diziam que ali tinham sido
roubados e mortos muitos marinheiros ingleses e de outros países. Quando o vinho pesava mais
do que os olhos, quedavam-se por ali adormecidos, e o dono — segundo as más-línguas —
aproveitaria para os roubar. Depois, para não ter problemas, lançava os corpos ao rio. Havia até
quem jurasse a pés juntos que há muito que as autoridades andavam de olho naquilo, vigiando
quem entrava e saía. A polícia, todavia, nunca fez qualquer detenção e, por isso, a história nunca
passou do boato.
Um dia, a casa foi demolida e expropriada pela câmara, como muitas outras na mesma rua,
para que fosse aberta a Rua da Nova Alfândega e, assim, os boatos aterradores ficaram para
sempre enterrados debaixo do entulho. Certo é que, a partir daquele dia, nunca mais houve
notícias de marujos que acidentalmente caíam ao rio...
Desta história tiram-se duas importantes conclusões: no que diz respeito ao vinho é melhor ser
moderado na quantidade, e ser cauteloso na companhia!
É MELHOR LEVAR LANTERNA!

Esta é uma história que pode servir de aviso a muito incauto turista que se aventura pelas suaves
planícies alentejanas.
Até há bem pouco tempo, diziam os mais antigos compadres alentejanos que em certas noites
havia uma luz que tinha por hábito acompanhar as pessoas de noite, para onde quer que elas
fossem. A luz tinha especial predileção pelos pastores, vendedores, padeiros e todos aqueles que
tinham de se levantar de noite para as suas lides.
As pessoas estranhavam um bocadito, porque não faziam a mínima ideia do que era aquilo.
Muitos pensavam que seria a alminha de um ente querido que partira e que voltava para lhes
fazer companhia nas noites de solidão. Por isso, já nem ligavam muito e alguns até gostavam da
presença da luz em redor.
No entanto, há um detalhe que todos devemos saber antes de nos aventurarmos por aquelas
bandas: por vezes, quando a luz pousava no chão ou numa árvore, havia pessoas curiosas que às
vezes queriam meter-se com a dita luz. Tentavam agarrá-la, metê-la dentro de um saco ou atirar-
lhe uma pedra ou um pau para a ver a mexer...
Só que nessas alturas a luz pode tornar-se extremamente agressiva e assustar até o mais
intrépido dos corações. Quando se sente ameaçada, a «luzinha da Charneca» — é assim que é
conhecida — lança farpas de fogo e arremessa-se contra os seus agressores. À conta disso, houve
muito boa gente que desatou a fugir a sete pés e só muito a custo voltou a sair à noite! Isto é,
pelo menos, a história que consta nos arquivos de recolha etnográfica do Centro de Estudos
Ataíde Oliveira, através de uma pesquisa de campo efetuada em 2008 e recolhida por estudantes
da Universidade do Algarve.
ESCOLHE BEM AS MIÚDAS...

Outra história que deve pôr muito visitante no nosso tórrido Algarve de sobreaviso diz respeito a
uma alma penada que costumava aparecer junto a uma discoteca que em tempos fez furor.
O dito local de diversão já não existe, mas a história, essa, continua a ser muito popular entre
os algarvios. Existem por isso várias versões, umas com mais requinte de pormenor do que
outras, mas, no geral, rezam assim:
Havia uma rapariga que estava muitas vezes na Kadoc sozinha a olhar para quem passava.
Precisamente por não ter companhia, acabava por atrair quase sempre alguém que metia
conversa e que, ao tocar-lhe, a sentia completamente gelada. Ora, raramente o conviva
estranhava a situação e, para ser simpático, oferecia-se para lhe emprestar um casaco ou um
blusão.
No início da conversa, a rapariga dizia sempre que estava bem e recusava-se a aceitar o
casaco, mas depois acedia e abrigava-se na peça de vestuário emprestada. As horas passavam, os
amigos despediam-se e a moça fornecia uma morada para que no dia seguinte lá fossem a casa
buscar o blusão.
No dia a seguir, lá ia o rapaz, muitas vezes até esperançoso de bisar a saída ou mesmo encetar
um namorico, mas quando lá chegava e batia à porta, atendia somente a mãe, explicando que
deveria ter-se enganado pois a filha tinha morrido num acidente perto da Kadoc há mais de um
ano e obviamente que, desde então, nunca mais tinha precisado de nenhum blusão!
Os rapazes ficavam altamente perturbados. Então, para os convencer, a mãe chegava a
mostrar-lhes o quarto com as coisas conforme ela as tinha deixado, e acabavam mesmo por ir ao
cemitério. Muitas vezes, o blusão estava em cima da campa da jovem, no cemitério de Quarteira.
NÃO NADES FORA DE PÉ!

No estuário do magnífico rio Douro, junto ao Jardim do Calém, no Porto, há uma pequena ilhota
que os portuenses conhecem como a «ilha do Frade». Ora, um nome destes não podia ter outra
origem senão uma fantástica história popular!
Conta a lenda que aquele local foi escolhido por uma jovem menina, uma leiteira muito
conhecida e acarinhada por todos, para se encontrar com um atrevido religioso de um convento
situado no outro lado do rio, em Vila Nova de Gaia.
Parece que o frade há muito que cortejava a rapariga, sempre que ela se abeirava do mosteiro
para deixar à porta as bilhas de leite fresco, mas ela é que não estava pelos ajustes...
Num dia, deixou-o vir ao seu encontro, mas assim que o viu descascado, fugiu de bote,
deixando-o nu, para chacota e longa memória da população.
O mais engraçado é que foram encontrados vários vestígios arqueológicos que indicam que
durante algum tempo terá existido na zona que hoje é ocupada pelo Arrábida Shopping, em Gaia,
um convento franciscano. Já dizia António Aleixo: «P’ra mentira ser segura/ E atingir
profundidade,/ Tem que trazer à mistura/ Qualquer coisa de verdade!»
HÁ POR AÍ MUITOS IMPOSTORES…

Na ilha de Porto Santo, Madeira, subsistem ainda memórias do século XVI sobre um pastor
eremita de feitio bravo que habitava num dos locais mais ermos da parte norte da ilha, e que fazia
por ter poucas ou nenhumas relações com os restantes habitantes. Talvez por ser muito
reservado, também era muito falado pela população, que alimentava sobre ele certos rumores.
O pastor não ligava às intriguices da vizinhança e um dia resolveu brincar com a situação.
Valendo-se do mistério que circundava a sua vida, fez-se passar por profeta, um ser enviado pelo
«Espírito Santo», que supostamente lhe guiava os passos e ditava as palavras.
Certa noite, o pastor desceu ao povoado, levando uma campainha estridente, o que alvoraçou o
coração do povo, que acorreu de todos os lados para ver o que se passava. E então as gentes
deram de caras com o rapaz, armado em Espírito Santo, que ocupava agora a alma do profeta
«Fernão Nunes», enviado para desvendar publicamente os defeitos e as culpas secretas de toda a
gente. O mais curioso é que ninguém desconfiou e as pessoas foram-se deixando levar pela
cantiga do pastor, o que deu origem a uma série de confusões e barbaridades.
Mas nada dura para sempre. Muito menos uma mentira! Certo dia, três habitantes da ilha que
não acreditavam nas palavras do tal profeta foram direitos a Machico apresentar queixa às
autoridades.
O pastor foi preso juntamente com uma sobrinha que também estava envolvida no embuste.
Acabaram ambos no tribunal de el-rei no continente, de onde saíram condenados a fazer plantão
à porta da Sé de Évora durante a missa de terça, com círios acesos na mão e grandes letreiros
onde estava escrito: «Profetas do Porto Santo».
À conta disso, o povo do Porto Santo ainda hoje é alcunhado de «profeta», à conta da caricata
brincadeira de um pastor atrevido!
NÃO SAIAS À RUA NO DIA E NO LUGAR ERRADOS

Na aldeia de Carvas, que fica no concelho de Murça, não se pode trabalhar no dia 3 de maio. Ou
melhor, poder até pode, mas não se deve…
A data é conhecida por «dia de Santa Cruz» ou dia de «Santo Abelhão», embora nada tenha
que ver com festividades religiosas.
Segundo os mais antigos, nesse dia paira por lá a alma do velho Abelhão, que foi em tempos
um aldeão muito rico e avarento e que antes de morrer resolveu enterrar todas as libras em ouro
que juntou em vida para que os herdeiros não ficassem com elas. Claro que não disse a ninguém
sobre a sua localização.
Porém o grande problema é que, ao morrer, precisamente a 3 de maio de um longínquo ano
qualquer, Abelhão jurou a pés juntos que voltaria todos os anos no dia do aniversário da sua
morte para visitar as suas «meninas» e só deixaria de vir quando alguém mais inteligente do que
ele as encontrasse!
Ora isto tornou as gentes da terra muito sensíveis a qualquer tipo de acontecimentos estranhos
que decorressem nesse dia. Durante décadas e décadas, muitos nem sequer saíam de casa para ir
trabalhar, porque acreditavam que a alma do velho avarento iria arranjar-lhes certos azares.
Há inclusivamente histórias que ainda hoje se contam sobre aldeões que, não querendo dar
ouvidos à lenda, teimaram em sair para a labuta nos campos.
Como o episódio do velho Faustino, que já morreu há muitos anos, mas sobre o qual ainda
hoje se conta sobre o dia em que saiu com o carro para a lavoura e depois, já com ele bem
carregado, não conseguiu que os bois andassem durante horas e horas.
Lenda ou não, certo é que ainda hoje em Cravas muita gente assinala o dia de Santa Cruz ou o
dia do Santo Abelhão. Quanto aos potes de barro cheios de libras de ouro… bom, esses nunca
ninguém os viu!
O PERIGO DE SE SER CURIOSO…

Um dos primeiros a recolher o folclore da região de Vinhais foi o padre Firmino Martins, um
antigo pároco da terra. Contou ele, nos seus registos, posteriormente publicados pela câmara
municipal, que numa noite fria de inverno um homem passou junto do adro da igreja, passeando
tranquilamente o seu cão, quando sentiu uns passos no interior.
Como já era tarde e não era costume estar ninguém no templo àquela hora, o homem ficou
curioso e decidiu espreitar. Lá dentro, deu de caras com duas fileiras de mulheres, velhas e
novas, umas todas de preto e outras todas vestidas de branco. No meio delas pareceu-lhe ver um
ente querido, o que o deixou ainda mais intrigado. Seguiu-as até às portas da igreja. Quando a
última entrou e se virou para trás para fechar a porta, porém, disse algo que o deixou sem pinga
de sangue:
— Vai-te embora, deixa os mortos em paz!...
Naquela noite, o homem não ganhou para o susto, mas depois a curiosidade falou mais alto.
Na noite seguinte, voltou ao adro, tendo visto exatamente a mesma cena da noite anterior, mas
desta vez o homem encheu-se de coragem e aproximou-se, acabando por reconhecer o rosto de
uma irmãzinha falecida ainda menina vários anos antes.
Aturdido, o homem dirigiu-se a ela e pediu-lhe que o deixasse seguir a seu lado. A rapariga
nada disse, mas tomou-o pelo braço e levou-o consigo. Naquela noite, quando por fim fecharam
as portas, as outras também nada lhe disseram.
Como por magia, ele viu abrir-se o soalho da capela-mor. As mulheres em fila desceram a
longa escadaria, que os levou a uma galeria muito profunda cheia de denso fumo com um cheiro
acre.
— Que é isto? — perguntou o homem, aflito com o fumo e o cheiro, sentindo-se asfixiar.
— É o purgatório, irmão. Este fumo vem do inferno, porque é aqui que as almas se purificam,
e daqui saem algumas para penar uma boa parte do ano pela terra.
Perturbado, o homem pediu então à irmã falecida que o guiasse de volta até à saída. Esta
explicou-lhe como fazer:
— Espera que venham outras almas para penar e segue-as. Não te reconhecerão.
E de facto assim foi. Decorridos alguns momentos, passou outra multidão de almas e o pobre
homem seguiu-as, assustado. Ao transpor as portas da igreja, ouviu finalmente uma voz:
— Vai e não voltes. Diz ao mundo o que sofremos…
PELOS CAMINHOS ASSOMBRADOS DE PORTUGAL
ESTAÇÃO DE SÃO BENTO

São muitos os milhares de passageiros que passam pela icónica e belíssima Estação de São
Bento, no Porto, mas poucos saberão que ali mesmo, lado a lado com o frenesim das partidas e
das chegadas, vive um dos mais famosos fantasmas da cidade do Porto!
Comecemos pelo princípio da história: a Estação Ferroviária de São Bento deve esta sua
designação ao facto de ter sido construída exatamente no mesmo local onde antes havia o
Convento de S. Bento da Ave Maria.
Este foi mandado erguer no início do século XVI, mais precisamente no ano de 1518, pelo
próprio Rei D. Manuel I, que no ano anterior dera carta de foral ao Porto.
A construção do mosteiro de monjas beneditinas inseria-se numa lógica de transferência das
comunidades religiosas do campo para os meios urbanos, onde poderiam dar largas à sua
atividade de apoio aos mais necessitados e aos enfermos.
Neste espaço foram recolhidas as monjas dos mosteiros de Rio Tinto, Vila Cova, Tarouquela e
Tuías, concretamente no dia 6 de janeiro de 1535. Foi a sua primeira abadessa D. Maria de Melo,
monja de Arouca e que, ao mesmo tempo, ocupava as funções de regedora do Mosteiro de
Tarouquela.
Vários testemunhos escritos da época referiam-se ao «Real Convento» como uma maravilha
em decoração e magnificência, deduzindo-se ter predominado inicialmente o estilo manuelino,
mas ao qual foram posteriormente feitas várias alterações e aditamentos, sobretudo depois da
destruição causada por um grande incêndio em 1783.
Quando o liberalismo se afirmou em Portugal e as ordens religiosas foram extintas, foi
decretado que o convento encerraria a sua atividade e todos os seus bens passariam a ser
propriedade do Estado assim que morresse a última monja, o que aconteceu precisamente em
1892. Logo a seguir, o mosteiro encerrou definitivamente as suas portas.
A demolição dos claustros iniciou-se em 1894 e a da igreja processou-se um pouco mais tarde,
entre outubro de 1900 e outubro de 1901. As ossadas das monjas foram recolhidas numa
catacumba coletiva, mandada construir no Cemitério do Prado do Repouso pela Câmara
Municipal do Porto, em 1894.
Mas parece que não descansaram em paz! Ao longos dos anos, tornaram-se populares várias
histórias de que, em certas noites, ainda é possível ouvir as rezas da solitária monja, a tal que
ficou para o fim, a ecoar pelos corredores das alas da estação.
Outros, porém, donos de ouvidos mais sensíveis ou de uma imaginação mais fértil, garantem
que não são rezas, mas sim resmungos. O que apoquentará o espírito da irmã? Os atrasos nos
comboios? O corrupio de turistas na cidade do Porto? Podem ser várias as explicações para o
fenómeno…
Mas, pelo sim, pelo não, se for ao Porto e não tiver como escapar a São Bento, recomenda-se
coração de aço. Não vá alguma reza perturbar-lhe a viagem...
AS «CASAS ALTAS»

No concelho de Abrantes, à entrada do local de Paul, situam-se, numa pequena elevação da


paisagem, umas casas em ruínas que vulgarmente são nomeadas pelas pessoas da região como
as «Casas Altas».
Pouco ou nada se sabe sobre estas casas, mesmo quando se recorre aos registos oficiais, mas
diz o povo — segundo Isilda Sanches, professora e autora do livro Histórias à Lareira, natural
de Abrantes — que as tais moradias datam do tempo dos mouros e que são assombradas porque
ali sempre apareceram coisas estranhas.
Pode ler-se na sua obra:

«Diz-se que existia um túnel que ligava estas casas ao cemitério dos mouros que se
situava no local onde hoje existe a escola primária, porque ao construí-la aí foram
descobertas muitas ossadas.
Diz-se também que existe dinheiro escondido nas paredes da velha casa e, quando uma
pessoa sonhar três vezes seguidas com isso, terá de ir procurar esse dinheiro, porque se
não o fizer morrerá dentro de pouco tempo.»

Quem se afoitar a tentar tal proeza terá de ir sozinho, entre a meia-noite e a uma da
madrugada, a hora em que os espíritos visitam este mundo. O destemido não poderá sequer olhar
para trás e, se o fizer, terá de recuar, sob pena de sofrer um terrível castigo, reza a lenda.
Quando já estiver dentro da casa, deve começar a escavar e a esgravatar o mais fundo possível
e então aparecerá um monstro...
Conta a professora:

«Alguns dizem ser uma víbora, a qual terá de enfrentar. Mas cuidado, pois se a víbora não
for bem morta, o dinheiro desaparece e a pessoa pode ser envenenada! Depois de morta a
víbora, ou o monstro, a pessoa pode então encontrar o dinheiro. Outros dizem que já
houve quem procurasse e nada encontrou, talvez porque não cumpriu o ritual.»

Diz-se que são apenas histórias. Ou talvez não. Certo, certo é que já muitos rondaram as Casas
Altas, mas não há notícia de que alguém tenha sequer tentando lá entrar...
AS «VOZES» DA VOZ DO OPERÁRIO

A Voz do Operário é uma escola, associação cultural e uma das mais emblemáticas instituições
da Graça, um dos mais típicos bairros de Lisboa. Tem até uma marcha popular que por alturas do
Santo António desfila orgulhosa e castiça pela Avenida da Liberdade.
A sua fundação remete-nos para o último quartel do século XIX, período histórico marcado
pelo auge do chamado «movimento operário» e pela luta contra a monarquia. Em boa verdade, a
Voz do Operário começou por ser a redação de um jornal para os trabalhadores da indústria
tabaqueira, um jornal que ainda hoje é publicado, embora sem o mesmo fulgor dos tempos em
que o setor fabril dominava uma boa parte da economia e empregava uma importante fatia da
população urbana.
Nesse contexto social, marcado pela contestação à monarquia, republicanos e socialistas
obtinham facilmente um apoio significativo das classes trabalhadoras, onde acabavam por ter as
suas bases. Era sobretudo na classe operária, pobre, explorada mas mais bem informada e
mobilizada do que a população das zonas rurais, que os ideais de uma sociedade mais justa e
igualitária encontravam eco e serviam de motor à mudança.
Reza a história dos primórdios da Sociedade de Instrução e Beneficência Voz do Operário que
a fundação do jornal, em 1879, se ficou a dever às palavras então proferidas pelo operário
tabaqueiro Custódio Gomes, em protesto por um jornal da época se ter recusado a publicar um
artigo sobre as parcas condições de vida destes operários: «Soubesse eu escrever que não estava
com demoras», lamentou.
Não se sabe quem lhe deu ouvidos, mas certo é que pouco tempo depois nascia o jornal A Voz
do Operário, que teve um importante papel na implantação da República e em muitas das
transformações sociais do início do século XX. Talvez por isso, Custódio, o tal operário, tenha
tanta dificuldade em deixar para sempre aquela que passou a ser a sua casa...
Dizem na Graça — e também algumas publicações, como a famosa Time Out — que Custódio
ainda vive, afinal, sob a forma de um fantasma que circula pelo salão de festas da instituição,
onde continua a fazer a sua vida e, quiçá, a espreitar as notícias. Não faz aparições, mas consta
que, por vezes, abre as cortinas do palco ou as janelas das salas para arejar o ambiente, e vagueia
pelos corredores durante a noite, quando estão vazios, para não assustar ninguém...
COLÉGIO DE S. FIEL

Sendo a serra da Gardunha bem conhecida dos amantes do sobrenatural pelos inúmeros relatos
sobre avistamentos e fenómenos insólitos que, alegadamente, ali tiveram lugar, não é de
estranhar que um dos lugares com mais fama de assombrado em Portugal se situe precisamente
no sopé desta serra, mais concretamente em Louriçal do Campo, pertencente ao concelho e
distrito de Castelo Branco.
Trata-se do Colégio de S. Fiel. Construído na segunda metade do século XIX, terá sido aqui que
Egas Moniz, Prémio Nobel da Medicina em 1949, concluiu os seus estudos secundários. No
entanto, a instituição funcionou durante várias décadas essencialmente como orfanato.
A sua fundação, porém, deve-se aos Jesuítas e a um particular contexto, conforme escreveu
Carlos Maria Bobone, no jornal online Observador, a propósito de um misterioso incêndio que
recentemente abalou parte do edifício:

«Com o relaxar da perseguição religiosa que caracterizou o princípio do liberalismo,


voltam a aparecer os colégios, reformatórios e orfanatos a cargo de padres e outros
religiosos. Entre esses surge, graças à boa vontade de um frei Agostinho da Anunciação,
um orfanato singelo, insulado na encosta meridional da serra da Gardunha, que o próprio
fundador veio a entregar, contra a vontade dela, à Companhia de Jesus [...].
O colégio conseguiu, graças à reputação pedagógica de que os Jesuítas gozavam,
concentrar grande parte da burguesia do país nas suas salas. Às acusações de
obscurantismo e falso saber, porém, os Jesuítas fizeram questão de lhe negar todo o
fundamento. Para não haver margem para acusações de inimizade às ciências e aos
avanços científicos do tempo, a Companhia apostou com êxito no ensino experimental e
científico.»

Disso mesmo deu testemunho Egas Moniz, mas não só. Por ali terão passado, enquanto
professores, alguns dos mais reputados cientistas portugueses da época, como Cabral de
Moncada, Joaquim da Silva Tavares, que foi reitor do S. Fiel e sócio da Academia das Ciências,
até António da Costa e Oliveira Pinto, pioneiro em Portugal nos estudos de radiologia, que
trabalhou no laboratório de Pierre e Marie Curie e o único português presente no Primeiro
Congresso Internacional de Radiologia.
As condições do colégio seriam privilegiadas para o ensino experimental, que curiosamente
nem sequer era apanágio dos Jesuítas. O edifício continha «importantes laboratórios e
equipamentos de ensino» e «um observatório meteorológico que funcionou até 1910, um museu
zoológico e um valioso herbário», segundo o programa Revive, que pretende recuperar e afetar o
imóvel ao uso turístico.
Um passado ilustre e significativo que certamente deve encher de orgulho as gentes de
Louriçal do Campo. Só que não é apenas de honrarias que se escreve a história do S. Fiel.
Quem vive nas imediações, ou os que já foram visitá-lo ou fotografá-lo, contam histórias
macabras e assustadoras. Desde os tradicionais ruídos, vozes vindas do interior, gargalhadas,
janelas que ora estão fechadas ora abertas (sem ninguém ocupar o edifício já há muitos anos), até
outras mais arrepiantes… É célebre a história de um alegado aluno interno do colégio que fugiu e
matou violentamente três pessoas da sua família, para depois ter supostamente passado o resto da
vida escondido na serra.
Também um grupo de «exploradores» que recentemente invadiu o colégio para captar algumas
imagens relatou no Fórum Portugal Paranormal várias experiências insólitas.
A certa altura, um dos elementos do grupo ter-se-á afastado dos demais e, num dos corredores,
foi ouvindo uma voz a clamar pelo nome de «Joel». Bizarro, sobretudo porque nenhum dos
jovens se chamaria Joel. O mesmo grupo embrenhou-se na igreja existente no interior do edifício
onde foi surpreendido por bruscas mudanças de temperatura: «Era como se de repente alguém
tivesse ligado o ar condicionado no máximo mesmo por cima de nós. Era impossível não sentir
um choque térmico», contam. Talvez a ciência o possa explicar. Ou talvez sejam os espectros
dos génios que por lá andam ainda a fazer experiências...
JOGO DO COPO

Foi na adolescência que Cátia S. viveu algo que a marcou a ela e a alguns dos que partilharam a
experiência para a vida. Tudo começou com uma brincadeira inocente, quando era ainda aluna de
uma escola secundária situada mesmo à beira da misteriosa serra de Sintra. Uma brincadeira com
consequências sérias, como acontece a muitos adolescentes que se aventuram por caminhos
desconhecidos.
Já passaram quase vinte anos sobre «aquele assunto», como por vezes o refere, mas a memória
nunca a perdoou, e Cátia lembra-se de todos os pormenores como se tivesse sido ontem...

«Quando eu tinha uns 17 anos já me interessava bastante pelo oculto e lia bastantes livros
sobre o tema. No secundário, entrei para uma turma diferente onde me identifiquei com
outras raparigas que tinham o mesmo interesse que eu.
Um dia, decidimos fazer o jogo do copo, que na altura sempre fazíamos com uma moeda.
Desenhámos o típico tabuleiro numa folha e decidimos ir para um castelo quando nesse
dia não tivemos aulas. Chegámos lá e pensámos ficar junto a uma entrada de uma igreja,
dentro do castelo. Começámos a jogar. “Está alguém aí?”, perguntou uma. A moeda
começou logo a juntar letras e comunicámos com diversos espíritos. A imaturidade levou-
me a pedir que me desse um sinal de que estava ali alguém, e deu esse sinal... Estávamos
de pé e sem qualquer explicação caí para trás ficando deitada no chão. O mais incrível é
que só dei por isso quando já estava no chão, não me tinha magoado nem tão-pouco me
sentira a cair. Aí, ficámos todos assustados. Afinal, nada daquilo era a brincar!
Despedimo-nos da entidade e fomos embora, cada um para a sua casa ou para a escola.
Mas o pior estava para vir... Nesse dia, durante uma aula perdi os sentidos sem perceber o
que se estava a passar. Quando cheguei a casa e fiquei sozinha, comecei a ouvir uma voz
na minha mente, uma voz a falar comigo.
Falava mesmo comigo, perguntava-me coisas e eu respondia-lhe. Comecei a perceber
tudo... a entidade tinha ficado comigo. Não parava de falar. Não dormi nessa noite, porque
estava em pânico e não sabia como pedir ajuda. Naquela altura não existiam telemóveis
como hoje em dia e lá tive de aguardar até ao dia seguinte para falar com os amigos que lá
tinham estado no castelo e contar-lhes o que se estava a passar. Todos ficámos
assustados... Fomos falar com um irmão de uma amiga que era mais velho e também se
interessava pelo sobrenatural. Ele veio connosco e fizemos o jogo de novo, mas para pedir
ajuda. Não sei bem como explicar agora o que se passou, mas o espírito de uma mulher
veio falar: disse que nos ia ajudar porque era muito perigoso e que um espírito mau me ia
fazer mal. Disse-nos o que precisávamos de fazer.
Do que me recordo eram necessárias 12 velas brancas em círculo, 12 pessoas de mãos
dadas a rezar em redor e água benta. Eu ficaria dentro do círculo.
Nesse mesmo dia, voltámos às imediações da igreja e, o mais próximo possível, tudo se
fez. Não me lembro de muito porque não estava bem em mim... mais tarde disseram-me
que esperneei muito e que, quando estava deitada dentro do círculo, chorava e cheguei a
dizer que queria ir-me embora com o espírito e não queria viver.
Graças a Deus e a esse irmão da minha amiga que provavelmente entendia bastante
daquelas coisas, eu acalmei-me e o espírito foi-se embora. Os meus amigos nunca me
quiseram contar ao certo o que se passou naquele dia. Só me pediram que quando
chegasse a casa fosse tomar um banho e descansasse. Lembro-me de que durante a noite
tive muito medo, ouvi de novo alguém a falar, desta vez era o espírito que tinha ajudado a
dizer que tinha de ter fé e que, de cada vez que me sentisse com medo, para rezar um pai-
nosso e uma ave-maria.
Foi tudo muito traumático para mim. Depois desse dia nunca mais ouvi vozes. Por
incrível que pareça, também deixei de me dar com aquelas amigas e aquele assunto nunca
mais foi referido por ninguém.
Na verdade, ainda hoje não sei o que se passou. Anos mais tarde fui consultar uma
vidente que me disse que não me podia ajudar, mas como “não abria uma porta, abria uma
janela”. Depois disso, a minha vida e a minha saúde começaram a melhorar.
Tenho muitas questões sobre tudo isto, mas só há uns anos consigo pensar com maior
clareza no que me aconteceu, pois o pavor que eu tinha de reviver e tudo aquilo voltar
novamente era enorme.
Os adolescentes, ou seja lá quem for que faça este jogo, deviam ser advertidos. Não é um
jogo nem uma brincadeira. Para mim, foi um tormento, e graças a Deus que tive um
espírito de Luz para me ajudar.»

Resta saber quantos, ao contrário de Cátia, não conseguiram encontrar perdão para o seu
pecado...
O EMIGRADO DE VELAS

Na portuária e mística povoação de Velas, ilha de São Jorge, Açores, contam-se muitas histórias
dos filhos da terra que dali partiram para ganhar a vida em lugares distantes, do outro lado do
Atlântico. Uma delas fala-nos de um rapaz natural do sítio de Rosais que tinha emigrado para
a América e, com o esforço do seu trabalho e alguma sorte à mistura, por lá tinha amealhado uma
pequena fortuna.
Porém, como todo o bom emigrante, também o rapaz de Rosais sonhou a vida inteira voltar à
terra que o viu nascer.
Quando regressou, já não era de todo um rapaz, mas trouxe uma boa quantidade de barras de
ouro, que lhe garantiam uma vida desafogada e a admiração dos vizinhos.
Há algum tempo, antes de a modernidade e de os postos de ATM terem chegado a Velas, era
hábito o chefe de família guardar o dinheiro enterrado em panelas, escondido debaixo da cama,
no chão do quintal, nos buracos das paredes ou noutro lugar que achasse seguro para que
ninguém soubesse. Muitas vezes nem sequer a mulher ou os filhos sabiam onde paravam as
riquezas.
Ora, o dito homem de Rosais também apostou nesse costume para salvaguardar a sua fortuna
e, certa vez, escondeu umas moedas de ouro num saco de trigo que estava guardado para
semente.
Só que o tempo foi passando e o homem esqueceu-se de onde tinha arrumado o dinheiro.
Certo dia lembrou-se das ditas moedas, mas como não as encontrava, achou que o filho o tinha
roubado. Acusando-o de traidor, tratou muito mal o rapaz, que obviamente não lhe podia restituir
o dinheiro, pois nunca sequer lhe tinha posto a vista em cima.
Como já não era novo, passados alguns meses o homem morreu, sem nunca ter encontrado o
ouro. Ficou o filho a tratar-lhe das coisas e, não muito tempo depois, quando se preparava para ir
tratar dos bois ao palheiro, à noitinha, apareceu-lhe a alma do pai, que lhe disse que o ouro
estava caído no serrado de trigo e que tinha ido ali parar quando tinham lançado a semente à
terra.
A alma penada, que nunca teve descanso pois partira zangada com o filho varão, pediu-lhe
então muito perdão. O rapaz, mesmo reconhecendo a voz e o jeito do pai, estava obviamente
aterrado. E ainda pior ficou quando o espectro acinzentado se virou de costas para se ir embora e
viu que dele emanavam chamas incandescentes.
Cheio de medo, o rapaz benzeu-se vezes sem conta e perdoou o pai, que andava penando no
outro mundo por causa de umas moedas de ouro desaparecidas.
A ÁRVORE DO DIABO

Na ilha da Madeira, bem no centro da freguesia de São Jorge, próximo de uma nascente muito
antiga, havia noutros tempos um enorme carvalho, tão velho que não havia ninguém que se
atrevesse a apostar na sua idade.
Não fazia parte de qualquer propriedade, ninguém cuidava dele, mas o certo é que já lá estava
há várias gerações, forte e altivo, resistente a tudo e todos.
Nenhuma tempestade que assolasse a freguesia conseguia mais do que um ligeiro balanço das
suas folhas. As aves evitavam construir nele os seus ninhos e os homens, esses, mostravam-lhe
respeitinho e até algum receio. Um medo irracional, certamente alimentado por histórias do
sobrenatural que de vez em quando se ouviam a propósito do robusto carvalho.
Havia quem dissesse já ter visto pássaros sem sinal de vida caídos junto ao seu tronco, e outros
que juravam inclusivamente ter avistado algumas luzes esquisitas a dançarem nos seus ramos,
sobretudo nas noites mais escuras.
Ora, para os madeirenses de São Jorge, não havia grandes dúvidas de que a árvore tinha
qualquer coisa de sobrenatural, e muitos achavam que o carvalho era coisa do diabo.
Os mais idosos, que conheciam a vila como as palmas enrugadas das suas mãos, juravam a pés
juntos que outrora existira uma fonte nas proximidades da árvore e que pouco a pouco tinha sido
totalmente absorvida pelo carvalho, privando os moradores da sua água, que bem falta lhes fazia.
No entanto, o mais estranho de tudo era a árvore ter uma enorme concavidade no tronco, que,
segundo as gentes, dava passagem para os medonhos abismos subterrâneos que atravessavam a
ilha de lés a lés e, quiçá, até a ligavam a outras dimensões!
Perante tão insondáveis forças, o povo começou igualmente a acreditar que o carvalho tinha
poderes de adivinhar o futuro: quando alguém proferia o seu nome junto do buraco e não obtinha
qualquer resposta, isso significava que o seu nome já estava inscrito na lista dos que iam para o
céu, mas, se fosse novamente expelido, então era sinal de que já fazia irremediavelmente parte da
lista dos condenados! Claro que, quando isto acontecia, o pobre cristão tinha de redobrar a sua
penitência.
E assim vivia a aldeia, resignada com os desígnios da poderosa árvore, até que certo dia correu
a notícia de que um caçador furtivo, que andava a perseguir uma lebre que saltou para dentro da
reentrância para se escapulir da pontaria da caçadeira, se enfiou igualmente pelo buraco. E nunca
mais houve notícias do seu paradeiro!
Logo o povo deu uma explicação para aquele grande azar: a passagem secreta que ligava os
submundos «tinha-se aberto e engolido o caçador e a lebre, que, na verdade, não era uma lebre,
mas sim o diabo bem dissimulado!...».
Os presságios do povo duraram até ao dia em que o velho carvalho carcomido pelo tempo caiu
estrondosamente no chão, perdendo finalmente o seu ascendente, para grande alívio de todos.
A CASA ASSOMBRADA

Lá para os lados da Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, outro lugar muito cobiçado por
turistas nacionais e estrangeiros, conta-se uma estranha história sobre uma casa assombrada...
Felizmente, os fantasmas terão deixado os turistas gozar uns dias de sol e mar em paz, mas
não se inibiram de atormentar uma família igual a tantas outras.
Tudo aconteceu quando se mudaram de armas e bagagens para uma casa nova. Em má hora,
pois nessa casa apareciam «coisas». Em abono da verdade, ninguém sabia bem que «coisas»
eram essas, mas toda a gente jurava a pés juntos serem horripilantes o suficiente para tirarem o
sono a toda a gente lá de casa.
Nessa família havia uma pequenita de uns 12 anos, que naquela casa revelou uma
sensibilidade mais apurada.
Na primeira noite que lá ficaram a dormir, mal o sono venceu os novos inquilinos, no quarto
onde dormia a menina apareceu uma senhora gorda, toda vestida de preto, que lhe passava a mão
pela cara, fazendo-lhe uma festa. Não abriu a boca nem fez mais nada, mas o pouco que fez foi
mais do que suficiente para que a pequena acordasse aflita e a gritar de medo.
A tenebrosa senhora, que na escuridão sepulcral da noite parecia ser já muito velha, disse-lhe:
— Não grites, moça! Não tenhas medo que eu não te faço mal. Mas tem atenção ao que te
digo.
Claro que a pequena nem sequer ouviu as palavras da velha! Tal foi o susto, saltou da cama e
correu para o quarto dos pais muito aflita. Pai e mãe, ensonados e perplexos, lá iam ouvindo os
seus relatos, noite após noite, porque como continuavam a obrigar a pequena a dormir no quarto,
todas as noites a história se repetia.
A uma dada altura, já não conseguiam convencer a menina a dormir sozinha no seu quarto.
Pudera! Contrafeitos mas convencidos de que assim se ia resolver a situação, levaram-na
finalmente para a cama deles. Lá no fundo, todavia, estavam convencidos de que tudo não
passava de pesadelos, ou até mesmo de manha da rapariguinha.
Só que a velha senhora estava-se borrifando para os adultos também. Queriam meter-se em
confusões? Tanto melhor para ela! Há tantos anos que atormentava os vivos naquela casa
assombrada de Portimão que mais dois menos dois não lhe faziam diferença.
Por isso, mesmo no quarto dos pais, a senhora foi ter com ela. Pai e mãe, quando sentiram
aquele peso invisível na cama, o colchão a ceder, a colcha a amarrotar-se e a moldar-se ao
movimento daquele ser misterioso, saltaram igualmente da cama e acenderam a luz. Foi o que
fizeram melhor! Nunca mais viram nada, mas tiveram de dormir toda a noite com a luz
acesa. Nessa noite e nas outras todas que se lhe seguiram!
Mas a tormenta não ficou por aqui. Se não podia aparecer de noite, a velha arranjou maneira
de se manifestar durante o dia.
Certa manhã, a mãe da miúda foi buscar roupa a um armário. Quando tinha os braços cheios
de camisolas e fronhas, viu de lá sair uma cobra. Primeiro, ia tendo uma coisinha má, como se
costuma dizer, mas depois lá fez das tripas coração forte, engoliu o medo em seco, matou-a com
um pão e foi deitá-la fora num barranco distante. Todavia, continuou a sentir-se muito estranha,
com uma sensação de peso e a desconfiança constante de que alguém a observava lá do fundo do
armário.
No dia seguinte, ao voltar ao armário para cumprir os seus afazeres domésticos, apareceu-lhe a
cobra morta em cima de uma prateleira. A mulher nem hesitou: foi deitá-la ao mar num sítio
ainda mais longe. No dia seguinte, porém, tornou-lhe a aparecer a bicha morta no armário.
«Bom, antes morta que viva!», pensou a mulher, antes de pegar numa sachola que tinha trazido
para casa no dia anterior, precisamente para o caso de a cobra teimar em aparecer. Dessa vez,
deu-lhe uma sova valente, pegou no que sobrou, fez uma cova e enterrou-a. Estava tão
convencida de que a sua força bruta (e de espírito) tinha dado conta do mal que nem sequer a foi
deixar longe. Lá tinha a sua razão, pois a bicha (e a velha) deixou de aparecer!
Ou se calhar não... A pequena desatou então a sonhar com a mesma velha, que agora lhe
aparecia em sonhos, dizendo-lhe que, se ela queria ser rica, que fosse à casa subterrânea que
existia num baldio ali perto, que cavasse bem fundo com quantas forças tinha, pela meia-noite ou
pelo meio-dia, e que não tivesse medo do que lhe aparecesse porque, mais uma vez, ninguém lhe
iria fazer mal.
Depois, dizia a velha no sonho, havia de encontrar muito dinheiro, mas devia guardar segredo
e não dizer nada a ninguém. A rapariga sonhou com isto durante três noites. Ao fim das três
noites, recebeu em sua casa a visita de uma tia, que lhe confessou ter sonhado o mesmo sonho
nessas mesmas três noites!
Outra mulher da família, irmã mais velha da pequena, ao ouvir isto tudo, pegou na tal sachola,
chamou a mãe e juntas foram cavar no chão às horas indicadas pelos sonhos. Com golpes fortes,
fizeram uma cova e encontraram muitos pedaços de ferragens, que a mãe vendeu depois.
Dizia-se, no entanto, que quem não contasse o sonho a ninguém iria ter a felicidade de ver o
ferro que estava ali encantado transformar-se em ouro puro!
O HOMEM DAS BARBAS

Se há coisa que o núcleo de dinamização cultural de Estremoz tem vindo valorosamente a fazer é
a recolha do património oral alentejano, muito rico mas infelizmente pouco registado. É de lá que
vem esta deliciosa história.

«Há muitos anos, no tempo da minha bisavó, dizia-se que existia um moinho numa serra
perto da minha terra onde afirmavam que quem lá passasse à noite três vezes seguidas na
última noite havia de ver no cimo do moinho um grande rosto com enormes barbas que
quase tapavam todo o moinho e que chamava com gritos enormes um burro horrendo de
grande cauda que carregava vinte sacos de farinha e que galopava atrás das pessoas
impiedosamente até as afastar daquele sítio.»

Por isso, já sabe: se andar pelas imediações de Estremoz, abra bem os olhos para os moinhos e
tenha cuidado com o homem das barbas!
A TORRE DE BIAS

Ainda hoje, nas proximidades da Fuseta, no Algarve, é possível avistar uma série de ruínas que
aparentemente provêm de uma antiga fortaleza com várias torres dispersas pela região e que
muito têm intrigado tanto os estudiosos quanto as gentes da região.
A poente da Fuseta, sobre o cume do monte que liga Tavira a Faro, encontra-se a primeira
torre redonda, com um diâmetro de cerca de dez metros e outros tantos de altura, não tendo
quaisquer vestígios de escada por onde se possa subir. A cerca de dois quilómetros a noroeste
desta encontra-se uma outra torre, chamada da Alfaia; a igual distância, mas para oeste, encontra-
se a torre de Bias, e quase a cinco quilómetros fica a torre de Aires. Ora, esta formação de torres
sempre intrigou deveras a população, e várias lendas correram céleres sobre a sua existência.
Os habitantes da Fuseta, na sua grande maioria gente do mar, terão levado a história até ao
outro lado e, segundo o arqueólogo Francisco Ataíde Oliveira (um dos maiores investigadores do
património oral do Algarve), esta chegou mesmo a fazer eco em Marrocos, mas numa versão
muito curiosa: diziam os marroquinos que cá tinham deixado não só muitas mouras encantadas
como também muitos tesouros escondidos, sendo essa uma das razões pela qual o seu povo era
agora pobre.
Mas não só. Alguns pescadores marroquinos, na sua própria tradição oral, referiam lugares
portugueses, como a freguesia de Pechão, por exemplo, onde reza a história teriam possuído as
mais belas propriedades, cujos nomes atuais conservam ainda alguns resquícios desses tempos.
Em Marrocos, o investigador encontrou até alguns versos populares que falam dessa história
longínqua e comum aos dois povos, como estes que a seguir se transcrevem:

«Três belas tem o Portugal


Bela Mandil, Bela Salema
E a mais bela das três
É a nossa Bela-Curral.»

Ainda relativamente à torre de Bias, corre uma lenda que, mais uma vez, a associa a uma
formosa moura que aliava à sua beleza a riqueza e um coração abençoadamente generoso. Uma
das suas principais virtudes era nunca negar ajuda a um pobre e envolver-se em diversas obras de
caridade.
O pai da virtuosa moura é que não via lá com muito bons olhos as avultadas esmolas em
moedas de ouro que a mourinha distribuía por quem lhe batia à porta e, a partir de um certo dia,
farto de ver a fortuna desfalcada, ordenou que dali em diante apenas distribuísse oferendas em
frutos, pois aos pobres bastava matar a fome.
A moça, cujo coração puro era igualmente incapaz de desobedecer às ordens paternas, ficou
muito desgostosa, mas cumpriu a ordem à risca. Só que Alá pregava-lhe umas partidas e
constantemente transformava em ouro os frutos que levava na cesta. Mas isso não resolvia
completamente o seu problema: indignava-se o pai contra a desobediência da filha, não
percebendo que ali não estava envolvido o seu pecúlio; teimava a filha que nunca se tinha
afastado das suas ordens. Felizmente, um dia, o pai resolveu espreitar a filha e viu que ela tinha
razão. A partir desse dia, o velho mouro arrependeu-se de ser tão avarento e, para não desiludir
Alá, passou a juntar às frutas também alguma carne e moedas!
Facto é que o sítio onde se encontra ainda hoje a torre de Bias foi em tempos sede de uma
grande povoação, pois ali têm sido encontradas muitas sepulturas. No seu interior, os esqueletos
surgem com uma pedra à cabeceira, outra aos pés e duas de cada lado. Não se sabe bem de
quando datam (mas tudo aponta para o período da formação do reino) e muito menos a quem
pertenciam. E se algum dia se encontrarem moedas de ouro... talvez seja a mourinha continuando
a tentar ajudar os que andam por cá neste mundo!
A COVA DOS MOUROS

Sobre a localidade de Querença, nas imediações de Loulé, o etnógrafo Francisco Xavier


d’Ataíde Oliveira apurou muitas histórias dispersas sobre a ocupação árabe e, como não podia
deixar de ser, sobre as inevitáveis mouras encantadas.
Uma delas diz até respeito a uma propriedade privada que supostamente terá pertencido aos
herdeiros de Mariano da Costa, político e autarca louletano no início do século XX. Ora, na sua
quinta, teria existido uma cova, conhecida por quem lá vivia e trabalhava como a Cova dos
Mouros, pois a tradição passada nos serões à lareira afirmava existir ali encantada uma formosa
moura e um jovem mourinho.
Para adensar esta versão, os trabalhadores juravam a pés juntos que próximo da cova existia
uma pedra de bordos regular que diziam parecer a figura de uma mulher. E quem seria ela? A tal
moura encantada, claro, que teria mais onze irmãs (em forma de calhau!) espalhadas pela região
de Faro e Loulé, e que foram também encantadas por ocasião da expulsão da sua raça.
Contudo, o mais tenebroso é que as pessoas que ainda hoje a habitam em redor da «estátua»
— como lhe chamam — juram a pés juntos que à meia-noite em ponto e ao meio-dia em ponto a
«senhora» abre os olhos e, nesse momento, ouve-se chorar uma criança no fundo da cova. Aos
turistas não se recomendam, por isso, piqueniques nas imediações e muito menos encontros
apaixonados à luz da lua, não vá a diversão terminar em susto!
O CASTELO DE PADERNE

Esta é a história do Castelo de Paderne, onde reza a lenda havia um homem que se fazia de muito
forte e valentão. Passava a vida a dizer a todos que o quisessem ouvir que não tinha medo de
nada nem de ninguém. Armado em forte, um dia espalhou a notícia de que ia ao Castelo de
Paderne à meia-noite caçar fantasmas. Quem quisesse que o acompanhasse. Não houve muitos
voluntários, porque ou tinham medo ou duvidavam do juízo do valentão.
Mesmo sem companhia, mal as doze badaladas soaram, lá foi ele de espingarda na mão. Mas
qual não foi o seu espanto quando lá entrou e deu de caras com uma enorme serpente. O homem
ficou tão assustado ao ver a serpente de cabeça erguida a olhar para ele que pegou na espingarda
para disparar. Só que... o inesperado aconteceu! Puxou o gatilho mas aquilo não disparou nada.
Tornou a meter outra bala lá dentro, e outra, e outra, puxava o gatilho e nada!
Então, o valentão desalvorou a fugir dali a sete pés, porque o bicho também não se ia embora
nem por nada.
Cheio de medo, correu, esfolou-se todo e deixou cair o chapéu, mas nem olhou para trás.
Quando chegou à aldeia, meteu o dedo ao gatilho e a espingarda disparou logo, mas era tarde
demais para lhe afugentar o medo. No dia seguinte, lá teve de voltar ao castelo, mas somente
para ir buscar o chapéu. Quanto à história, ficou conhecida de duas maneiras: o homem e os seus
familiares juram a pés juntos que aquilo era «uma cobra-monstra», provavelmente uma moura
que ali ficou encantada. Já os outros aldeões dizem que era somente uma bichita das hortas que
teve o azar de encontrar um gabarolas pelo caminho.
A PORTELA DOS FIÉIS DE DEUS

Perto da vila de Mação, distrito de Santarém, existe uma portela que dá para o Vale do Maxial e
que é conhecida por Portela da Cruz dos Fiéis de Deus por causa de uma velhinha lenda
religiosa.
Segundo esta narrativa popular, antes de subirem ao céu, as almas das criancinhas inocentes
— os anjinhos — vagueavam durante algum tempo pela terra, em invisíveis procissões de
penitência e de desagravo pelos pecados da humanidade.
Estas procissões eram sempre feitas a horas muito tardias da noite, enquanto toda a gente
dormia, e por isso ninguém deste mundo assistia a tais acontecimentos.
Mas não há regra sem exceção. Numa certa noite, uma mulher que morava mesmo juntinho à
igreja levantou-se mais cedo para amassar o pão e foi, por acaso, à janela de sua casa. Ficou tão
surpreendida e encantada com o que viu e ouviu — uma enorme multidão de anjinhos a sair da
igreja em procissão, entoando cânticos de louvor a Deus — que, pensando que aquilo era uma
espécie de chamamento, se deixou ir atrás da procissão. Passado algum tempo e já depois de ter
caminhado bastante, a mulher percebeu que já estava à beira do ribeiro do Paiafome. Muitos dos
anjinhos que compunham a procissão já tinham passado para o lado de lá, mas algumas crianças
que caminhavam mais vagarosamente estavam atrasadas e permaneciam do lado de cá.
Corajosamente, a mulher aproximou-se delas e atreveu-se a perguntar-lhes porque não
acompanhavam os demais que já seguiam pela encosta.
Os anjinhos não tiveram qualquer problema em responder-lhe:
— Não podemos ir tão depressa porque as nossas mães, antes do nosso funeral, quando se
despediram de nós, esqueceram-se de amarrar as fitas dos nossos mantos e eles agora entravam-
nos a marcha.
A mulher, ao ouvir esta resposta, ficou aterrada, tomando então consciência de que se tratava
de almas do outro mundo. Por isso, em grande aflição, gritou:
— Ai, valha-me Nossa Senhora da Conceição!
Nesse preciso momento, em resposta às suas preces, apareceu ali a Virgem Maria, que lhe
disse:
— Nada temas, boa mulher. Volta para tua casa e louva a Deus. A procissão que vês, ao
chegar à Portela, desaparece. Só vieram para rogar a Deus pelos homens. A ti, Ele concedeu-te a
graça de assistires a esta, para ires dizer ao mundo que faça penitência para redenção das almas.
Dito isto, a Virgem e os anjinhos desapareceram. A mulher, petrificada de medo, voltou para
casa a tremer.
Não dormiu e no dia seguinte relatou a toda a gente tudo quanto tinha visto. O povo foi então
ao sítio que a mulher lhes indicou e ali colocou uma cruz. Chamou ao lugar Portela da Cruz dos
Fiéis de Deus, nome que ainda hoje se conserva.
Outro detalhe curioso, segundo dizem, é que a cruz já por várias vezes se enferrujou, mas foi
sempre prontamente substituída por mãos invisíveis.
ROTA DOS SUSTOS: LUGARES DE ONDE É MELHOR FUGIR A SETE PÉS
OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA

Se há expressão que os portugueses utilizam amiúde para classificar arranjos e trabalhos


emperrados e sem fim à vista é «obras de Santa Engrácia». E fazem-no acertadamente, embora
muitos não saibam que este hábito popular tem origem numa antiga lenda da cidade de Lisboa.
Segundo se contava, viveu noutros tempos, lá para os lados da Baixa, Simão Pires, um cristão-
novo que todos os dias — fizesse sol, chuva ou nevoeiro — cavalgava vigorosamente até ao
Convento de Santa Clara para se encontrar às escondidas com o grande amor da sua vida, a
jovem Violante.
Este era, claro, um amor proibido, coisa que também abundava noutros séculos, pois a maioria
das uniões na aristocracia era combinada pelos pais e tinha quase sempre por motivo interesses
que não se compadeciam com as razões do coração.
Simão não era, de todo, o genro sonhado pelo pai de Violante e, por isso, a jovem tinha sido
feita noviça à força por vontade deste.
Cansado de viver a paixão às escondidas e ciente de que tinham também direito a ser felizes,
um dia, Simão pediu à sua amada para fugir com ele, dando-lhe apenas um dia para decidir.
Enquanto isso, ele iria traçar um plano...
No dia seguinte, porém, e sem que tivesse tido sequer tempo de ouvir a decisão da sua amada,
Simão foi acordado às pressas pelos homens do rei que o vinham prender, acusando-o do roubo
das relíquias da Igreja de Santa Engrácia que ficava perto do convento.
Para não prejudicar Violante, Simão acabou por nunca revelar a razão por que era visto com
tanta frequência a passar junto ao local. Por isso, apesar de invocar a sua inocência durante todo
o processo, foi preso e condenado à morte na fogueira, que se realizaria junto da nova Igreja de
Santa Engrácia, cujas obras já tinham precisamente começado.
Todavia, quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou que era tão certo
morrer inocente como as obras nunca mais acabarem.
De facto, os anos passaram e os trabalhos nunca mais chegavam ao fim.
Um dia, a freira Violante foi chamada para assistir aos últimos momentos de um ladrão que
tinha requisitado a sua presença antes do último suspiro de vida. Nesse momento, o velho que ela
não conhecia de lado nenhum revelou-lhe que tinha sido ele o ladrão das relíquias e, sabendo da
relação secreta dos dois jovens, tinha resolvido incriminar Simão para se livrar da forca.
Vivera muitos anos carregando a culpa, mas agora vinha pedir-lhe perdão, que Violante lhe
concedeu sem hesitações.
Mas nem assim se resolveu o singular facto: as obras da igreja, iniciadas à época da execução
de Simão, nem naquele século tiveram fim...
Esta lenda tem por cenário um dos locais de Lisboa mais calcorreados pelos visitantes, o
Campo de Santa Clara, onde se realiza (desde 1882), todas as terças-feiras e sábados, a Feira da
Ladra. A pitoresca praça, que se tornou uma das principais atrações da capital por acolher artistas
de rua e vendedores ambulantes, deve o seu nome precisamente a um convento de freiras
clarissas que ali se estabeleceu.
De acordo com registos da Câmara Municipal de Lisboa, julga-se que esta denominação
remonta ao ano de 1294. Contudo, ainda no século XVI era vulgarmente conhecido por «campo
da forca», por nele se realizarem quase todas as execuções capitais (como a do pobre Simão).
O arruamento forma um amplo quadrilátero irregular, que na antiguidade se situava já fora dos
limites da cerca moura, tendo sido um dos locais escolhidos por D. Afonso Henriques para
acampar com as suas tropas antes do início do cerco de Lisboa. Aliás, foi também o primeiro Rei
de Portugal que ali mandou edificar o Mosteiro de S. Vicente na parte poente deste campo.
Já a construção do Convento de Santa Clara deve-se a D. Inês Fernandes, uma viúva asturiana
riquíssima que, a 7 de setembro de 1294, mandou lançar a primeira pedra da igreja. Com o
Terramoto de 1755, o edifício original ficou bastante danificado, o que levou ao seu
encerramento. Depois, nos seus terrenos foi edificada a Fundição de Santa Clara, também
conhecida como Fábrica de Armas.
RABO DE PEIXE

Nome mais curioso que o da povoação de Rabo de Peixe não há nos Açores nem no resto do
país.
A sua origem, poucos sabem, remonta à época do povoamento das ilhas, durante a qual foi
fundado um novo povoado na costa norte da ilha de S. Miguel.
Os povoadores, gente humilde e jovem vinda do continente, ocuparam a zona mais plana junto
ao mar, onde se dedicavam à lavoura e sobretudo à pesca. Mas a faina era sempre uma missão
arriscada no mar bravio e pouco explorado.
Ainda nesses primórdios, depois de mais um dia de faina, enquanto dividiam o peixe, os
colonos sentaram-se à beira-mar a discutir que nome haviam de dar àquela terra que cada vez
mais sentiam como sua.
Numa converseta animada, cada um lançava para o ar a sua ideia, mas parecia difícil arranjar
um nome que lhe assentasse a preceito. Estavam nisto já há algum tempo quando de repente
foram interrompidas por uma súbita estranha agitação no mar. Ao olharem para a espuma das
ondas, viram ali mesmo à beira uma luta entre um peixe de grandes proporções e um mais
pequeno.
A luta durou muito tempo, com o pequeno peixe a conseguir miraculosamente esquivar-se às
investidas do maior. Porém, a implacabilidade do destino também se faz sentir nas lendas. Tal
como mandam as leis da natureza, o peixe grande acabou por apanhar o pequeno e comê-lo,
ficando somente como prova do acontecimento o rabo do pequeno peixe a flutuar à tona da água.
Os homens, que tinham ficado em silêncio a observar os acontecimentos entenderam que
aquilo era um sinal e, por isso, a localidade deveria chamar-se Rabo de Peixe! Assim ficou até
hoje, para estranheza de alguns, riso de outros e contentamento dos que lá vivem com muito
orgulho e dedicação ao mar.
OS «POSSUÍDOS» DE SANTA LEOCÁDIA

Em tempos que já lá vão, havia um rapaz em Santa Leocádia de Briteiros (Guimarães) que
ganhava a vida como caixeiro-viajante. Certo dia, tinha acabado de chegar à cidade-berço
quando os seus olhos encontraram no lusco-fusco uma estranha figura, iluminada por uma luz
que não se sabia de onde vinha. Estava quieta e calada, a figura, prostrada em cima de um tanque
de lavagens.
O rapaz, meio a medo, não se aproximou muito e resolveu atirar-lhe com uma pedra, só para
ver o que acontecia. E qual não foi o seu espanto quando a tal figura desapareceu num estoiro de
deixar qualquer um com os cabelos eriçados!
Bom... essa noite passou-se, sem mais desassossegos. Certo é que o rapaz de Santa Leocádia,
depois daquele inusitado encontro, nunca mais foi o mesmo. Nem de dia, nem de noite. O patrão
não conseguia que ele cumprisse as tarefas e dizia-o tão jocoso e desafiador que ninguém o
aturava. O pai, firme na sua tarefa de o colocar na linha do bom comportamento, até se fez ao
caminho lá de Briteiros, para lhe dar um corretivo. Mas de nada valeu o zelo dos ignorantes.
Quanto mais o pai lhe batia, mais o rapaz se dizia com força para o matar. Partia tudo,
amedrontava pessoas e bichos, fugia de casa e corria pelos montes à desgarrada, onde se
defendia com garras afiadas e olhos injetados de fúria de quem o tentasse agarrar. Nada o trazia à
razão, nem tão-pouco aos antigos interesses.
Desesperados e temendo pela vida do filho, os pais mandaram vir às pressas um homem de
Garfe, que todos diziam ser «perito em coser corpos abertos», segundo reza a história, relatada
por Francisco Martins Sarmento, em Antígua, Tradições e Contos Populares.
Lê-se assim na obra sobre a tradição popular da região de Guimarães.

«O rapaz pressentiu a presença do homem, mas por fim foi operado. O homem leu-lhe o
livro de S. Cipriano; acabou por “fechar-lhe o corpo” com uma chave do Sacrário (há
muitas; compram-se chaves que sirvam num Sacrário; pede-se a um padre que abra e
feche com elas três vezes o Sacrário), e disse ao rapaz — isto é, ao espírito — que lhe
havia de dar uma prova de que saíra daquele corpo».

Depois de cumprido o ritual, o tal homem de Garfe — que era um bruxo de grande nomeada
— atirou uma coisa ao lume e logo se ouviu um estampido medonho!
Antes de se ir embora, ainda teve tempo para beber um copo de vinho quente e acrescentar
uma lição que se calhar convém não esquecer... Disse ele ao rapaz que nada daquilo lhe teria
acontecido se, em vez de ter atirado a pedra ao vulto, a tivesse atirado ao ar, dizendo:

«Vai pedra no ar
Leva essa alma perdida!
Que me quer matar.»

Se esta fosse uma história vulgar e como qualquer outra, era agora chegado o momento de
dizer que, «no fim, tudo acabou em bem», mas na realidade não foi bem assim. A moléstia do
rapaz tornou-se contagiosa, para angústia das famílias de Santa Leocádia. O povo jura-o a pés
juntos, porque nessa mesma época apareceu também uma rapariga endemoninhada a querer fazer
o mesmo tipo de estragos. Quando o benzedor «fechou o corpo» do rapaz, até quiseram que ele
fizesse o mesmo à rapariga, mas esta fugiu e o bruxo declarou que não podia fechar dois corpos
no mesmo dia.
Portanto, já sabe, se um dia for para os arrabaldes de Guimarães e um restolhar no campo o
fizer olhar a paisagem de soslaio, o melhor é precaver-se e ir para um local seguro. Podem ainda
andar por lá os descendentes dos endemoninhados...
OS PENEDOS DA MORTE

O povo, na sua ancestral sabedoria, garante que não é um simples capricho da Natureza. Diz a
lenda que no sítio dos Quatro Irmãos (em Sande, perto de Guimarães) viviam os quatro filhos,
rapazes, de Maria do Canto. Todos amavam a mesma formosa rapariga, por sinal sobrinha do
abade da freguesia, o que obviamente não podia dar bom resultado.
Ardendo de amor e, ao mesmo tempo, corroendo-se de ciúme, os quatro irmãos decidiram que
não havia melhor forma de decidir quem havia de se casar com a rapariga do que uma sessão de
paulada.
Três tiveram logo morte imediata e um outro, supostamente o noivo, sobreviveu apenas mais
algumas horas, pois estava gravemente ferido. E não lhe ocorreu coisa melhor do que dirigir-se
ao abade, que nada sabia sobre aqueles amores impossíveis, para lhe contar os seus pecados.
O abade ficou muito perturbado com os estranhos caminhos do amor e, por isso, mandou
encerrar a sobrinha num convento e enterrar os quatro irmãos no próprio local da contenda. O
sítio ficou conhecido como os Quatro Irmãos, para que todos quantos contemplassem a serra se
lembrassem de que, na maior parte das vezes, os fins não justificam os meios.
CORPO DE DEUS

Também lá para os lados de Olhão, as pessoas tinham por hábito abster-se de trabalhar no dia do
Corpo de Deus. Nem tão-pouco se atreviam a fazer tarefas domésticas, mesmo que fosse
simplesmente lavar ou pendurar a roupa. E isto tudo por causa de uma lenda local, claro. Diziam
os antigos que, em tempos, uma certa senhora não obedeceu ao que lhe foi ensinado e insistiu em
arrumar a casa e em regar a horta neste dia santo. Também foi à ribeira lavar roupa por teimosia.
Felizmente, nada de mal lhe aconteceu em vida, mas, dizem os olhanenses, depois de a
senhora ter falecido, todos os anos e àquela mesma hora no dia do Corpo de Deus ouvia-se o som
da roupa a bater e a escorrer na pedra da ribeira. Claro que este facto foi entendido por toda a
população como um sinal de que Deus queria ver respeitada a sua vontade.
RIO SORDO

Esta é uma história bem conhecida lá para os lados de Torgueda, Vila Real. E ainda bem, pois
não queremos que quem visite a terra — e são cada vez mais aqueles que procuram estas
paragens para uns dias de descanso perto da Natureza — tenha surpresas desagradáveis e muito
menos que saia de lá com a cara marcada por uma bofetada! A narrativa integra o projeto
«Estudos de Produção Literária Transmontano-Duriense», desenvolvido pela Universidade de
Trás-os-Montes e Alto Douro:

«Na mina do Sordo, havia lá uma fortuna muito grande e depois diz que uma vez um
senhor foi lá buscar o dinheiro e havia de dizer sempre:
— Diabo, diabo, diabo, diabo, diabo…
E ele foi e assim fez.
— Diabo, diabo, diabo, diabo… — e trazia o tesouro para fora.
Chegou à entrada da mina, disse:
— Ai Jesus! Estou rico para toda a minha vida!
Levou uma bofetada e ficou sem nada!»
MONCARAPACHO, TERRA DE LENDAS E ABISMOS INSONDÁVEIS…

Moncarapacho não será a zona turística mais concorrida do Algarve, mas são tantas e tão
diferentes as lendas que ali moram há séculos que, só por isso, deveria receber uma menção nos
roteiros. Efetivamente, ali abundam histórias que ainda hoje traduzem a riqueza da tradição oral
daquela região. Muitas destas narrativas são felizes e falam de lugares onde aparecem mouras
encantadas ou serpentes que conduzem os felizardos que as encontraram a milionários potes de
ouro. Outras são mais misteriosas, referindo-se a abismos capazes de guardar muitos segredos…
É o caso da lenda do Serro da Cabeça, falésia ao lado do mar, onde existe uma cavidade
cercada de pedregulhos, quase uma espécie de pequena sala que comunica com um círculo
maior, que é popularmente denominado «o Abismo».
Esta grande caverna tem diversas câmaras e diferentes ramificações e por isso atrai muitos
aventureiros e exploradores. O buraco das rochas, possivelmente escavado pela entrada do mar
ao longo de muitos milhares de anos, tem uma enorme profundidade onde não chega a luz do sol,
oferecendo um aspeto um pouco assustador a quem ousa visitá-la. Talvez por isso seja costume
corrente entre os habitantes das povoações vizinhas alvitrar-se que aquela caverna pode
comunicar subterraneamente com o Castelo de Tavira, comunicação de que faziam uso os
guerreiros mouros no tempo em que dominavam a província do Algarve.
Pela reentrância, os forasteiros espreitavam a aproximação do inimigo por mar e também se
escondiam quando, por terra, os cristãos ameaçavam tomar as suas posições. Nos anos mais
recentes, junto à caverna, têm sido encontrados objetos muito antigos, como machados de pedra
polida e outros de origem neolítica, mas que os habitantes daquela freguesia consideram de
origem sarracena. Ora, o povo é pródigo em acrescentar uma pontinha de magia e sedução à sua
realidade e, por isso, dizem que estes objetos ficaram encantados depois da expulsão dos mouros
do território algarvio e, agora, aparecem sempre que algo de estranho está para acontecer.
Estranho aviso, este, que os nossos antepassados nos deixaram em herança!
Nesse mesmo serro e não muito distante do «abismo», há mais duas cavernas cujas
denominações são muito populares na região: chamam-lhes a «ladroeira grande» e a «ladroeira
pequena». A origem do nome destas grutas é muito curiosa: foi ali, segundo registos locais, que
se esconderam em 1833 os criminosos que assaltavam os pobres moradores dos sítios mais
próximos, servindo aqueles dois caprichos da Natureza como esconderijo não só para os ladrões
como para tudo o que surripiavam nas redondezas.
Não muito longe dali existem outras escavações naturais na rocha que dão que pensar.
Em Algoz, por exemplo, uma pequena povoação do concelho de Silves, há num sítio chamado
Guiné, uma gruta muito semelhante, que durante vários anos terá acoitado um criminoso
conhecido e temido. Chamava-se Diogo do Guiné e tinha fama de ser impiedoso para quem
ousasse fazer-lhe frente.
Contudo, como se tudo isto não bastasse, a voz do povo afirma que nestas cavernas estão
ainda encantados alguns mouros, fugidos do castelo de Tavira quando este foi tomado na
Reconquista por D. Paio.
Outras versões rezam que muitas das numerosas cavernas algarvias se encontram ligadas por
passagens subterrâneas e pedras giratórias que funcionam como passagens secretas e que podem
mesmo ligar todos os castelos da região. Tais rumores já levaram inclusivamente muitos jovens a
verdadeiras missões de exploração no terreno, sem que nunca tenham encontrado as tais
misteriosas passagens.
Mas nem só dos mistérios das cavernas nos fala o lendário ligado à geografia da região. Não
muito distante da localidade de Moncarapacho existe uma pequena ribeira por onde a água só
corre em tempos de chuva e nesta um refego da pedra, que as lavadeiras usavam antigamente
para ir lavar a roupa. Há muitos, muitos anos, o lavadouro era usado por uma jovem lavadeira,
Maria da Graça de seu nome. Conta-se que certo dia, depois de ali ter lavado algumas peças de
roupa, lhe apareceu uma criança sozinha, ruiva e sardenta, vestida de encarnado e com um gorro
da mesma cor.
O mais curioso é que a criança não parecia assustada nem perdida. Em vez de se aproximar da
lavadeira foi sentar-se sobre a roupa já lavada. Ora, como é fácil de imaginar, em vez de sentir
pena, a pobre mulher ficou indignada com o procedimento do garoto e ameaçou-o. Ele, porém,
não fez caso, e em vez de atender aos conselhos da mulher começou a cuspir sobre a roupa
lavada. Foi pior a emenda do que o soneto!
Desesperada com os atos da criança, que iria obrigá-la a lavar a roupa toda de novo quando o
Sol já ameaçava pôr-se lá longe no horizonte, a mulher saiu à pressa da água e correu sobre ela
enraivecida e pronta a espetar-lhe dois tabefes na cara.
A criança — como todos os miúdos saudáveis — tinha boas pernas, e safou-se com afrontosa
agilidade. No meio da correria, em que o miúdo ria e a mulher gritava, a um dado momento o
gaiato desapareceu, sem que a lavadeira percebesse como. De repente, ficou ali no meio do nada,
sozinha e pasmada, a olhar para o vazio.
Perturbada, voltou para a borda da ribeira e foi examinar a roupa, pensado encontrá-la toda
enxovalhada por causa do atrevimento do raio do miúdo. Qual não foi o seu espanto, porém,
quando, no lugar onde ele saltara e cuspira, encontrou um punhado de moedas de ouro! Afinal, o
mourinho encantado e brincalhão só tinha aparecido para recompensar a mulher da dureza da
vida! Que bom seria se todos encontrássemos um mouro generoso assim.
De qualquer forma, os mouros pareciam ter uma certa predileção pelas senhoras solitárias. De
uma outra vez, outra mulher, Clara de seu nome, passou perto da ribeira e viu o mesmo
mourinho, que a chamou para junto de si.
O Sol já se tinha posto e Clara ficou assustada. Por isso, decidiu desatar a correr com quantas
pernas tinha para chegar rapidamente à aldeia mais próxima e pôr-se a salvo. Lá chegada, contou
a todos os que a quiseram ouvir que lhe tinha aparecido «o mesmo mouro encantado da
lavadeira». Ora isto foi quanto bastou para que a lenda começasse a espalhar-se. Muitos outros
que se seguiram também avistaram o mourinho e alguns, em vez do menino, viram antes uma
gentil moura, toda vestida de branco e a cantar ao luar com a sua harpa.
A uma outra lenda que fala do serro de São Miguel atribuiu-se ainda a origem do nome da
freguesia. Muito alto, talhado a pique e sem suavidades no declive, este serro era na antiguidade
conhecido por «Monte Escarpado», denominação que de tão repetida se foi transformando na
atual Moncarapacho. Sobre este serro, diz uma lenda cuja origem remonta há muitos séculos que
à pessoa que der treze voltas ao monte, pela meia-noite, aparecerá uma formosa moura pronta a
oferecer-lhe amor e todas as suas riquezas, guardadas no fundo da rocha como recompensa por a
ter desencantado com aquelas voltas. Por isso, muitos lhe chamam também o «Monte do
Tesouro».
Esta história, contudo, coexiste com outras versões mais modernas, que o atribuem ao facto de
haver naquele sítio em tempos muito recuados uma casa onde habitava uma velhinha que
trabalhava em capachos, que mandava vender. Ora isto também poderia ter sido o princípio do
nome Monte dos Capachos. São, enfim, muitas as maneiras que o povo tem de imprimir um
toque de magia à sua terra.
CAPELINHOS

Inserido no complexo vulcânico do Capelo, que ainda se encontra em atividade, o vulcão dos
Capelinhos constitui um dos mais singulares pontos de interesse turístico da ilha do Faial, quer
pela singular paisagem, quer pelas memórias ainda vivas sobre a sua última erupção, nos finais
da década de 1950. Com o passar dos anos, porém, aquele fantástico acontecimento natural foi-
se somando ao imaginário popular e deu origem a histórias ainda mais maravilhosas do que o
raro fenómeno geológico que os açorianos viram acontecer, revestindo-o de um caráter ainda
mais especial.
Mas comecemos pelo vulcão. Tudo aconteceu após uma crise sísmica que fez tremer a terra
durante doze dias. Os abalos fizeram emergir do mar o vulcão adormecido, que de um dia para o
outro desatou a rugir e a cuspir fogo e rolos de fumo negro que mais faziam lembrar a chegada
do fim do mundo.
Os açorianos saíram em peso para as ruas e para os campos para ver o fenómeno natural, que
assustou uns, foi admirado por outros e durante treze longos meses não deixou ninguém dormir
descansado.
Em 2017, por ocasião dos sessenta anos da erupção do vulcão dos Capelinhos, a National
Geographic viajou para o Faial para se reencontrar com aqueles que ainda se lembram da fúria
do vulcão.
Fica por isso o excerto dessa reportagem, com alguns dos poucos testemunhos ainda vivos
deste fantástico acontecimento:

«Os abalos que sacudiam a ilha do Faial há vários dias não prenunciavam nada de bom. E
não é pela força do hábito que se pode encarar com descanso as instabilidades da terra.
Afinal, não deixa de ser um fenómeno relativamente normal nestas ilhas plantadas a meio
do Atlântico, nos instáveis limites de diversas placas tectónicas e a curta distância da
dorsal médio-atlântica. A população temeu pelos seus bens mas, como é habitual,
entregou-se nas mãos de Deus e resguardou-se em súplicas misericordiosas. Nenhuma
entidade divina, porém, poderia conter a força que vinha das entranhas da Terra — às
6h45 do dia 27 de setembro de 1957, na ponta oeste da ilha, a cerca de cem metros dos
ilhéus dos Capelinhos e a um quilómetro da costa, o mar aparentemente calmo entrou em
ebulição, dele jorrando colunas de nuvens cinzentas e esbranquiçadas.
José Soares da Cunha, conhecido por todos como mestre Rosairinha, foi o primeiro a
detetar algo de anormal, alertado pelos gritos do irmão Daniel, mais abaixo, na estrada do
farol. Era ele quem estava no posto de vigia da comunidade baleeira do Comprido, e
esfregou os olhos ensonados perante tamanha visão. Estava ali para vigiar a presença de
cetáceos, mas o que estava no mar era algo bem diferente de uma baleia. Correu para o
farol e alertou o chefe faroleiro, o senhor Avelar, que quase não pregara olho nessa noite
devido à forma como a torre abanara. Pouco depois, na cidade da Horta, as autoridades
tomaram conhecimento da ocorrência.
Quando chegaram à ponta do Capelo, testemunharam o que lhes tinha sido transmitido
por telefone a partir do farol — quatro pontos efervescentes no mar lançavam cinzas,
escórias e vapores de água. José Silveira Rafael também vivia na comunidade baleeira.
Aos 38 anos, era um homem calejado das intempéries do mar e já assistira a muita coisa.
Mas nada como aquilo: “Vi-o rebentar e atirar pedras. Fazia muito barulho, deitava muito
fumo. E a noite ficou escura como breu”, relembra emocionado. Hoje vive no lar de
terceira idade da cidade da Horta e a memória prega-lhe algumas partidas, mas os 88 anos
são suficientemente lúcidos para não se esquecer dos acontecimentos de 1957. Na altura,
Maria Olívia Faria tinha 23 anos e, tal como hoje, vive no Capelo, povoação com
localização privilegiada para ver o acontecimento.
“Lembro-me de que primeiro começaram os tremores de terra miudinhos, mas depois os
abanões tornaram-se mais fortes, pelo que fui com o meu marido para uma casa mais
baixa. Só no dia seguinte, de manhã, é que o meu sogro me disse que tinha rebentado um
vulcão.” Num relato apaixonado, continua a desfiar a memória de juventude. Sua e do
vulcão. “Como não sabia bem o que era, deu-me grande curiosidade e quis ver: havia
água a ferver, parecia um lago, mas não tinha medo nenhum, só me assustava de vez em
quando com as explosões. Mas mesmo quando ele deitava coisas para o ar, fumo, areia e
pedras, achava que era ao mesmo tempo muito bonito. Mesmo não sendo bom para a
agricultura e para as casas, tive um pouco de pena quando me fui embora, porque não
consigo mentir — as explosões eram mesmo muito bonitas, sobretudo à noite. Ainda
agora, aos domingos, costumo passear com a família até ao vulcão. Está diferente, é
verdade, mas continua a ser um bom vizinho.”
[…]
Os campos de cultivo e as pastagens cobriram-se de cinzento e as casas das imediações,
nomeadamente no Capelo e no Norte Pequeno, ruíram ou abateram com a força dos
tremores e pela acumulação da cinza. Surgiram, assim, os primeiros sinistrados, embora
não houvesse vítimas a lamentar. Cinco dias depois, o vulcão já tinha emergido do mar e
formara uma ilhota — batizada de ilha Nova — de forma anelar, com 600 metros de
diâmetro e 30 de altura. Duas semanas depois, crescera mais 200 metros de diâmetro e 70
metros de altura, respetivamente. Ao longo do mês de outubro, com a acumulação dos
materiais expelidos, formou-se um istmo que abraçou os ilhéus dos Capelinhos e
aproximou a ilhota da costa.
A atividade incrementou e a coluna de vapores e cinzas atingiu grande altura, sobretudo
porque parte da cratera era aberta ao mar, sendo assim inundada pelas vagas. Ninguém
sabia o que iria acontecer, mas os receios eram fundamentados — a terra não parava de
tremer. Nada que impedisse que, no meio deste turbilhão incandescente, alguns loucos
corajosos tenham arriscado a pele para garantir a soberania daquele pedaço de terra
fumegante para o Estado português. Havia receio de que a ilha Nova fosse reclamada por
outra nação, como se não estivesse já em águas territoriais portuguesas. No dia 13 de
outubro, então, o jornalista Urbano Carrasco, do Diário Popular, e o cineasta Carlos
Tudela, da RTP, entre outros, desembarcaram na ilha vulcânica e, ziguezagueando entre
bombas e cinzas lançadas pela cratera principal, fincaram no solo uma bandeira
portuguesa. Regressaram felizes e foram recebidos como heróis — um final feliz para um
dos episódios mais surrealistas da história dos Capelinhos.»

Ora, o nome deste vulcão deve-se mais exatamente à existência dos ilhéus dos Capelinhos,
que, por altura da erupção do vulcão, ficaram pela primeira vez ligados a terra por uma extensa
língua de materiais vulcânicos que a terra cuspiu.
O farol que guia os barcos na entrada para a cidade da Horta, por exemplo, ficou parcialmente
soterrado com as cinzas vulcânicas e toda a paisagem em redor se alterou significativamente.
Muitos moradores da freguesia do Capelo que viviam da lavoura foram obrigados a emigrar para
os Estados Unidos, uma vez que as suas casas e campos ficaram completamente destruídos pela
massa de lava incandescente que resvalou pela encosta.
Atualmente, o vulcão encontra-se adormecido, mas em Capelo nada voltou a ser como dantes.
Sobretudo a paisagem, que não deixa nenhum visitante do Faial indiferente.
A área total da ilha nos anos 1950 era de 171,42 km², mas aumentou em cerca de 2,50 km²
(para 173,92 km²). Atualmente, aquele aumento reduziu-se para cerca de metade
(aproximadamente 172,42 km²) devido à natureza pouco consolidada das rochas e à ação erosiva
do mar, que vai levando consigo ainda sedimentos de rocha cuspidos pelo vulcão.
A escalada aos Capelinhos apresenta alguns riscos, devendo por isso ser efetuada nos trilhos
indicados e sempre com a orientação de um guia que conheça bem o local. Até porque o
respiradouro do vulcão, situado no seu Cabeço Norte, liberta vapor de água e gases tóxicos com
temperaturas na ordem dos 180 a 200°C. Ainda assim, visitar este pedaço de território criado
pelas forças da Natureza é tão imprescindível para quem visita a ilha do Faial como passear junto
à marina da Horta ou fazer um brinde ao mar no famoso Peter’s Cafe.
Claro que tais fenómenos, aliados à beleza árida e estranha da paisagem, alimentaram o
imaginário popular e brindaram os Capelinhos com várias lendas, que a professora e etnógrafa
Ângela Furtado-Brum sabiamente recolheu. As histórias que se seguem podem ser lidas na
íntegra na sua obra Açores: Lendas e Outras Histórias1 e que espelham bem o impacto do vulcão
na cultura popular da ilha do Faial. De qualquer forma, aqui fica um cheirinho para que nos
deleitemos com a mística deste lugar:

«No início do povoamento dos Açores, muitos vulcões rebentaram e a feição das ilhas
alterava-se.
Quando um desses vulcões rebentou, lançando lava efervescente, as casas, as culturas e as
populações foram ameaçadas. As terras produtivas e verdejantes das redondezas da
freguesia do Capelo foram queimadas por grandes labaredas.
As pessoas ficaram amedrontadas perante a força da Natureza tão superior à sua.
Impotentes e não podendo compreender nem explicar o que se passava, choravam os bens
perdidos, as vidas ameaçadas e lamentavam-se, gritando:
— Que Mistério! É um mistério da Santíssima Trindade!
Entretanto, o vulcão continuava a sua devastação, até que por fim se acalmou. Mas as
terras ficaram para sempre marcadas na sua constituição pela força do fogo, e os lamentos
das pessoas parecem perpetuar-se no nome desses terrenos, que continuam a gritar
“Mistério”.
São terrenos áridos, onde a terra produtiva quase não aparece, dando lugar a uma rocha
queimada, avermelhada, leve e que quebra facilmente. Nos Mistérios vê-se a força
demoníaca do fogo, que ainda parece vivo na cor das rochas.
Antes de chegarmos ao Capelo lá estão os Mistérios, terrenos sem casas, mas agora já
cobertos por algumas árvores, principalmente criptomérias, cujas raízes conseguem
penetrar através da pedra queimada.»

Uma outra lenda bastante popular naquele pedaço de terra abençoado pelos deuses e perdido
no meio do Atlântico, relacionada com o vulcão, conta a história de uma mulher muito pobre,
que tinha muitos filhos e vivia na freguesia do Capelo com grandes carências. Por isso, essa
jovem mulher não tinha outro remédio senão acordar bem cedo todos os dias para cozer bolo ou
pão de milho para matar a fome à sua criançada.
Porém, como se sabe, a generosidade do coração nem sempre olha a meios e, apesar de todas
as suas dificuldades, a pobre mulher ainda conseguia repartir algum do seu pão com os pobres.
O seu dia a dia era igual ao da maioria das mulheres daquela época: passado a cuidar das
crianças e dos campos de milho, outras vezes à beira do fogão. Um dia, porém, acordou de
repente com um estrondo enorme que fez estremecer as paredes da casa de alto a baixo.
Alguns dos filhos também acordaram e choravam encolhidos e agarrados uns aos outros num
canto. A família correu para a rua e seguiu na torrente de pessoas que fugiam assustadas sem
saber para onde ir. A lava e os fumos destruíram tudo o que encontraram pela frente.
O vulcão levou árvores, cobriu os campos lavrados, derrubou casas e reclamou os poucos
haveres dos pobres. Quando finalmente a terra deixou de tremer, a lava esfriou e secou, as
pessoas ainda assustadas voltaram para procurar o que era seu. Muitos voltavam para nada. Ou
melhor, voltavam para descobrir que tudo tinha ficado soterrado ou tinha sido enterrado pela
lava. Muitos, depois da desgraça, saíram dali para não mais voltar àquelas terras agora negras e
de má memória.
Só o forno e a pá da mulher pobre, os tais utensílios que muitas vezes a tinham ajudado a
matar a fome aos seus e a muitos outros infelizes que lhe batiam à porta, ficaram intactos como
se tivessem sido protegidos por mão misteriosa.
Mistérios, como lhe chamam — e bem — os açorianos...
1
Editada em 1999 pela Ribeiro & Caravana Editores.
FREIXO DE ESPADA À CINTA

Freixo de Espada à Cinta é, convenhamos, um dos nomes mais sugestivos de localidades


portuguesas. Sobre a sua origem há várias versões e uma delas, talvez a mais popular, remete-nos
para o reinado de D. Dinis e para os ciúmes que o seu filho D. Afonso (mais tarde indigitado
sétimo Rei de Portugal, D. Afonso IV) sentia pelo seu irmão bastardo, D. Afonso Sanches.
Movido pela raiva, o rapaz cavalgava pelas terras de Bragança e arredores, na tentativa de
revoltar as aldeias contra o pai e exercendo cruéis represálias contra os que se mantinham leais
ao rei.
Quando os ecos de tal insensatez chegaram aos ouvidos de D. Dinis, el-rei montou o cavalo e
pôs-se prontamente a caminho da região, acompanhado dos seus principais cavaleiros, para dar
uma lição ao seu filho mais rebelde e pacificar a região.
Naquela época encontrar um foragido não era assim tão fácil. D. Dinis e os seus cavaleiros
andaram dias e noites a cavalgar pelos montes sem conseguirem encontrar vestígios do paradeiro
de Afonso.
Era ainda verão e a canícula não dava tréguas. Por isso, numa tarde de sol escaldante e já
cansado das cavalgadas por montes e vales, o Rei D. Dinis parou para repousar à sombra de um
freixo antigo, com uma enorme e frondosa copa, que lhe oferecia abrigo para o merecido
descanso. Desmontou, tirou a sua imponente espada e pendurou-a num dos grossos ramos do
freixo. Depois deitou-se à sombra e rapidamente foi tomado pelo sono e pelos sonhos.
Num desses sonhos, vislumbrou um velho de longas barbas brancas e compridas, cabelos
grisalhos, com a sua própria espada à cinta.
Irritado com tal atrevimento, o rei (sonhando) perguntou-lhe, irritado:
— Que desaforo é este? Como te atreves a pegar assim na minha espada?
O velho não respondeu e continuou com o olhar preso no horizonte, o que irritou ainda mais
D. Dinis, mas também despertou a sua curiosidade sobre aquele estranho homem que nunca
outrora tinha visto nas terras do seu reino.
— Quem és tu? Como te chamas?
Sem fazer grande caso do mau humor e da petulância do rei, finalmente respondeu-lhe:
— O que te importa o meu nome? Até eu já me esqueci dele, pois há muito tempo que não o
ouço. Mas de uma coisa ainda me lembro e posso dizer-ta: também fui um rei célebre como tu,
tive exércitos muito poderosos, venci grandes batalhas, conquistei outros povos. Fui temido e
venerado, mas hoje todos me esqueceram e desprezam. E sabes porquê?
D. Dinis nada respondeu, mas num curto aceno fez saber que estava a ouvi-lo com atenção.
— Porque um dia me deitei precisamente aqui debaixo deste frondoso freixo, a dormir, tal
como tu. E, enquanto dormia, os meus inimigos apareceram, tiraram-me a espada à traição. Um
rei sem espada é como um corpo sem alma. Quando acordei, sem súbditos, sem coroa e sem
espada, era um simples homem indefeso e transformei-me, por encanto, neste majestoso freixo.
»E aqui tenho vivido encantado, até ao dia de hoje, em que tu chegaste para me desencartar e
me restituir a realeza.
Muito admirado, D. Dinis retorquiu-lhe:
— Mas como? O que fiz eu para te ajudar?
— Penduraste à minha cinta a tua espada, uma arma de guerra que me faltava para me sentir,
de novo, um verdadeiro rei. Devolveste-me o poder. Mas devo dizer-te que foi bom ter
permanecido aqui todos estes séculos, pois foi neste silêncio cheio de paz que tive tempo para
pensar, e aprendi muito mais do que durante toda a minha vida palaciana.
»Entre outras coisas, aprendi que a glória conquistada pela guerra, pelas armas, pelo poder é
efémera e perigosa, pois quem com ferros mata com ferros morre. E bem depressa é esquecido.
Por isso, caro rei, se não queres ter a mesma sina, não procures a fama na guerra. Deixa a espada
à minha cinta e faz as pazes com o teu filho, pois ele só quer sentir o teu amor e cuidado. Não
impeças a tua esposa de fazer bem aos pobres e procura fazer mais feliz o teu povo. Isso, sim,
levará a que sejas admirado e lembrado com fervor para sempre.
Dito isto, o velho do freixo desapareceu e D. Dinis acordou estremunhado com todo o seu
exército à volta, à espera que o rei acordasse e desse ordem para prosseguir a emboscada ao
príncipe.
No entanto, não foi isso que D. Dinis fez. Concluiu que tudo não passou de um sonho
profético e, a partir desse momento, tudo fez para o tornar realidade.
Deixou de perseguir o filho para o castigar e de impedir a esposa de socorrer os necessitados.
Desenvolveu a agricultura, o que lhe mereceu o cognome de Rei Lavrador. Fomentou a cultura,
fundando a Universidade em Lisboa, depois transferida para Coimbra. Depois, ainda contribuiu
para o desenvolvimento da língua, ordenando que todos os documentos oficiais fossem redigidos
em português, em substituição do latim. Em vez de dedicar o seu tempo a guerras e contendas,
começou a escrever cantigas de amigo e cantigas de amor, o que lhe granjeou também o título de
Rei Trovador.
Durante todo o seu reinado, D. Dinis não descurou o sonho que mudou o curso da sua
vida. Inclusivamente, contava-o com frequência aos seus cavaleiros e a muitos dos que consigo
partilhavam a corte. Depois disso, aquela simpática terra passou a ser conhecida, até hoje, como
Freixo de Espada à Cinta.
ROTEIRO DE AMORES TRÁGICOS, AGOIROS, TRAIÇÕES E OUTRAS
DESGRAÇAS MALFADADAS
AMENDOEIRAS EM FLOR

Uma das épocas mais apelativas do ano para quem visita o Algarve é a primavera, por causa das
suas amendoeiras em flor. Mas o que poucos sabem é que este encantador cenário natural
também encontrou eco no lendário nacional.
Conta a riquíssima tradição oral algarvia que há muitos séculos, antes mesmo de Portugal
existir e quando o Al-Gharb pertencia aos árabes, reinava em Chelb (agora conhecida como
Silves) o belo, formoso e famoso Rei Ibn-Almundim.
Famoso por variadíssimas razões: nunca tinha conhecido uma derrota e, por outro lado,
encantava todas as raparigas casadoiras que com ele se cruzavam nos bailes e saraus do palácio.
Um dia, quando percorria um campo ocupado por prisioneiros de uma batalha recente, os seus
olhos pararam na mais bela rapariga que alguma vez vira à face da terra. Chamava-se Gilda e era,
também ela, uma lindíssima princesa loira de olhos azuis e porte nobre.
Impressionado (e apaixonado!), o rei mouro deu-lhe primeiro a liberdade e depois afadigou-se
em tentativas para a cortejar e lhe conquistar a confiança.
Um dia, depois de terem trocado algumas palavras, confessou-lhe todo o seu amor e pediu-a
em casamento.
A festa foi de arromba e veio gente até de outros reinos para a celebração. Abençoados por
tantos, os noivos foram felizes durante algum tempo, até que um dia a bela princesa do Norte
caiu inesperadamente doente e sem razão aparente.
A sua pele estava pálida, os olhos escurecidos, não tinha forças para nada. O rei quis saber o
que se passava com a sua amada:
— Não estás feliz com a nossa união? Alguma coisa mais posso fazer para te agradar?
— Não, meu bom rei. Eu não tenho nada... estou apenas triste e não sei porquê!
Porém, a resposta não satisfazia sua alteza, que mandou vir físicos de todo o país para se
inteirarem do estado de saúde da princesa.
A notícia correu Chelb e deixou toda a gente consternada, pois a princesa era muito bondosa e
todos gostavam dela.
Foi então que um velho cativo, vindo igualmente das terras do Norte, pediu para ser recebido
pelo desesperado rei. Chegado ao palácio, revelou-lhe que a princesa sofria de nostalgia da neve
por estar longe do seu país distante.
Mas a solução estava ao alcance do rei mouro, disse também o velho: bastaria mandar plantar
por todo o seu reino muitas amendoeiras para que, quando florissem, as suas brancas flores
dessem à princesa a ilusão da neve. Assim, ela ficaria curada da sua saudade.
O rei mouro ficou a matutar naquilo. Nunca tinha ouvido falar em saudades da neve, mas
amava tanto a sua princesa dos olhos cor de mar que nem sequer se importava de deixar tudo
para trás e mudar-se mesmo sem cortesias nem privilégios para um país onde ela pudesse ter
neve durante o ano inteiro. Todavia, custava-lhe deixar o seu povo desamparado, pois também
tinha para com ele um dever a cumprir... Se calhar, devia tentar a solução do velho!
Quanto mais pensava, mais se convencia, até que certo dia mandou todos os homens da
localidade plantarem todas as sementes de amendoeira que houvesse naquelas terras.
Ano após ano, sempre que o frio se ia embora e os primeiros raios de sol anunciavam a
primavera, o rei levava Gilda à janela do terraço do castelo e a princesa sentia que as suas forças
regressavam ao ver aquele indiscritível manto de flores brancas que se estendia sob o seu olhar,
como se a neve cobrisse a terra. E assim viveram longos anos de um intenso amor esperando
sempre ansiosos pela chegada da primavera.
A OUSADIA DE DOMUS E SUSANA

Valongo e Susão, nas imediações do Porto, são nomes de localidades que têm origem num
curioso relato que nos faz viajar até ao século X, época em que os cristãos foram perseguidos um
pouco por todo o lado e, supostamente (segundo a lenda!), vieram refugiar-se em Cale, foz do rio
Douro.
Entre estes fugitivos, contava-se Samuel, um rico negociante de origem judaica, bem como a
sua filha, a jovem e bela Susana.
Para escapar às perseguições, Samuel e Susana fugiram da sua terra natal para a cidade Invicta
e converteram-se ao cristianismo. Ali, na cidade sobranceira ao Douro, julgavam-se finalmente
seguros. Mas os desígnios do destino não quiseram que fosse bem assim, pois de repente viram-
se a braços com os árabes, que ainda dominavam aquela região nesses tempos remotos.
Samuel e Susana, descendentes de um povo rijo e astuto, depressa arranjaram maneira de se
defender, preparando uma armadilha junto à entrada das suas terras. Foi com essa artimanha que
capturaram um jovem mouro, Domus de seu nome. Pai e filha achavam que um pedido de
resgate que invocasse paz como moeda de troca lhes traria de volta a tão ansiada tranquilidade.
Contudo, esse tipo de acordo não interessava aos árabes e, por isso, as negociações
prolongaram-se por muitos e longos meses. Enquanto isso, o inevitável aconteceu: Domus e
Susana apaixonaram-se perdidamente um pelo outro, até que o mouro pediu para ser batizado
com o intuito de poder contrair matrimónio com a jovem o quanto antes.
Mas o seu povo não estava disposto a facilitar-lhe a vida e muito menos os amores com
alguém de outro credo. De acordo com os chefes muçulmanos, tal união era mesmo impossível e,
por isso, Samuel, Susana e Domus decidiram fugir, deixando Portucale (Porto) para partir em
direção ao Médio Oriente.
Não chegaram a ir muito longe...
Chegados ao topo da serra de Santa Justa depararam com uma paisagem lindíssima, que
inebriava qualquer um quando o Sol se punha. Susana, apaixonada, suspirou e proferiu um
elogio sentido a todo o vale que se estendia debaixo dos seus olhos. Foi assim que desistiram de
partir novamente rumo ao desconhecido…
Desceram a encosta até ao vale e nele decidiram ficar para sempre, ali edificando as primeiras
casas de uma nova povoação que veio a chamar-se Susão, em memória da bela Susana. Já o vale
que os abrigou ficou conhecido como Valongo, por Susana o ter achado longo e belo como
nenhum outro. Consta ainda que, apesar das diferenças, nunca mais ninguém importunou o amor
de Susana e Domus, que ali viveram felizes para sempre e deixaram boa memória, riqueza e
descendência.
ANA E MACHIM

Na lindíssima ilha da Madeira existem várias versões diferentes de uma lenda sobre a chegada ao
arquipélago de um nobre inglês, cavaleiro da corte do lendário Rei Eduardo III de Inglaterra,
chamado Roberto Machim.
Segundo uma das principais narrativas que subsistem até aos nossos dias, Roberto Machim
viveu entre o final do século XIV e o início do século XV e estava apaixonadíssimo por uma dama
inglesa, Ana de Arfert, que correspondia plenamente ao seu amor, mas, por vontade dos seus
familiares, deveria casar-se com um nobre de uma outra linhagem, ao qual estava prometida
desde o nascimento.
Apesar das circunstâncias desfavoráveis, Machim não estava disposto a desistir de Ana, e
então engendrou com alguns dos seus amigos um plano para raptar a noiva antes do casamento
arranjado e levá-la incógnita num barco para França, que, na altura, estava envolvida na Guerra
dos Cem Anos precisamente contra os ingleses.
O plano era arrojado, mas o coração dos jovens apaixonados, como se sabe, é intrépido. Por
isso, não obstante os perigos, a data da fuga foi acordada para as vésperas do dia do casamento.
Azar dos azares, ao fugirem, os amantes foram surpreendidos por uma tempestade que os fez
perder o rumo traçado. Não tendo a bordo um piloto experiente que voltasse a colocá-los na rota
certa, o casal andou à deriva durante muitos dias e muitas noites até que viram ao longe uma
«grande mancha verde». Estavam em frente da ilha que, mais tarde, se denominaria ilha da
Madeira.
Apesar do medo de serem descobertos e do desconhecimento da terra que tinham pela frente, o
cansaço e o facto de D. Ana se encontrar doente por ter andado tantos dias em alto-mar fizeram-
nos lançar a âncora e desembarcar na enseada que até hoje é conhecida como a baía de Machico.
Terão ficado deslumbrados com a beleza daquele pedaço de paraíso na terra. Pudera! Se ainda
hoje é como é, imaginem quando ainda estava intocada pelo homem.
Todavia, Roberto e Ana é que estavam ainda longe de encontrar a paz. Depois de explorarem
aquele pedaço da ilha e de terem saciado a sede e a fome com os frutos das árvores,
aperceberam-se de que uma nova tempestade se aproximava. Procuraram então refúgio por entre
as raízes de uma frondosa árvore cujo diâmetro da circunferência do tronco era tal que na sua
base havia uma cavidade pronta a abrigar várias pessoas.
Quando a tempestade passou, o mar revolto tinha-lhes levado o barco! E mais desgraças
estavam para vir: a dama, cujo estado de saúde estava já muito debilitado, viria a falecer
passados poucos dias.
Roberto Machim ficou tremendamente desgostoso e mandou os seus homens erguer uma
enorme cruz de madeira na sepultura da sua amada, junto à frondosa e generosa árvore que os
havia protegido da intempérie. Infelizmente, não muito tempo depois, também o cavaleiro inglês
adoeceu, não se sabendo se por causa do desgosto, se por causa de alguma peste que teria
contraído no barco, tal como Ana. Certo é que, em menos de uma semana, Machim juntou-se à
sua amada na morte.
Os membros da tripulação, que entretanto tinham ficado apeados na Madeira, tentaram
sobreviver com os recursos naturais da ilha e gravaram na cruz a breve história dos dois amados.
A maioria deles resistiu até à passagem, algum tempo depois, de um barco de mouros que os
resgatou e levou para o Norte de África, para serem vendidos como escravos. Um deles, porém,
conseguiu fugir e contar a saga de Machim aos portugueses.
A lenda diz ainda que quando os descobridores portugueses finalmente chegaram à ilha da
Madeira, alguns anos depois, encontraram ainda a cruz de madeira e a inscrição. Por isso,
edificaram a primeira capela da ilha na cavidade da árvore e atribuíram o nome de Machico à
localidade, como forma de honrar a memória dos dois apaixonados.
REI RAMIRO E OS SEUS DOIS AMORES

Uma outra história do século X fala-nos de uma das personagens mais carismáticas do Portugal
lendário: o Rei Ramiro II, de Leão (Espanha).
Carismático e polémico! Tudo porque a carne dos homens, como se sabe, é fraca. Nos
pergaminhos que guardaram estas histórias do nosso passado, conta-se que o namoradeiro Rei
Ramiro II, de Leão, se apaixonou perdidamente por uma bela moura de sangue azul que foi a sua
perdição.
Ela era, de facto, uma moça muito bonita, inteligente e de bom coração, que não olhava a
credos nem nacionalidades. Infelizmente, era também irmã de Alboazer Alboçadam, um rei
mouro riquíssimo e com fama de ter um coração impiedoso.
Constava que eram todas suas as terras que iam de Vila Nova de Gaia até Santarém, e foi num
dos seus muitos castelos que escondeu a irmã quando lhe chegaram aos ouvidos os cochichos
sobre um cristão que tinha tido o desaforo de a cortejar.
Só que o poderio de Alboazer não era coisa que intimidasse o Rei Ramiro… Bem pelo
contrário! Cego de paixão, Ramiro pôs-se ao caminho mal soube onde a moça se encontrava. As
suas intenções eram as melhores: apenas queria pedir a linda moura em casamento.
Antes, porém, tomou os devidos cuidados e anunciou que queria estabelecer um pacto de paz
com Alboazer, que assim acedeu em recebê-lo no seu palácio de Vila Nova de Gaia.
Só que havia um berbicacho: o Rei Ramiro já era casado! Mas achava que seria muito fácil
obter a necessária anulação do seu casamento que o unia a D. Aldora.
Todavia, Alboazer não estava pelos ajustes, e mal escutou as intenções de Ramiro recusou-se
terminantemente em dar a mão da sua irmã a um cristão... ainda por cima um que até já estava
comprometido!
Secretamente, Alboazer tinha também outros planos para a rapariga, que desde o nascimento
estava prometida ao Rei de Marrocos.
O Rei Ramiro saiu do palácio envergonhado. Não queria acreditar que alguém lhe fizera tal
desfeita. E não estava pronto para aceitar a derrota sem retaliar.
Uns dias depois, foi ter com o astrólogo Amã, pedindo-lhe que estudasse a posição dos astros,
pois precisava de decidir qual a melhor altura para raptar a princesa.
Parecia insano aquele plano, mas nem por um minuto D. Ramiro vacilou.
No dia indicado pelo medium como o mais favorável, Ramiro regressou pela calada da noite
ao palácio de Alboazer e levou a rapariga consigo sem qualquer intenção de voltar.
Nessa mesma noite, Alboazer ainda deu por falta da irmã, mas só chegou a tempo de encontrar
os cristãos a embarcar no cais de Gaia. Aí mesmo gerou-se uma luta terrível, que terminou
favorável ao Rei Ramiro.
Encantado e triunfante, Ramiro levou a princesa moura para Leão logo no dia seguinte e
batizou-a como mandavam os bons princípios da época e de modo a poder desposá-la.
Alboazer, que não era homem de se ficar, resolveu vingar-se: raptou então a legítima esposa
do Rei Ramiro, D. Aldora, juntamente com todo o seu séquito de moças da corte. Isto bastava
para envergonhar Ramiro, mostrando ao seu povo que por causa da paixão tinha descurado o seu
dever de defender todos eles.
Quando o Rei Ramiro soube do rapto, ficou extremamente furioso. Juntou então os seus
homens, e juntamente com o seu filho, D. Ordonho, zarpou a toda a velocidade para o cais de
Gaia. Na bagagem, levou poucas armas mas muita da sua inteligência.
Quando chegaram às ruas que circundavam o cais, D. Ramiro disfarçou-se de pedinte e
esperou por um sinal, que não tardou a chegar. Quando se dirigiu a uma fonte, encontrou uma
das aias de D. Aldora, a quem pediu um pouco de água, aproveitando para dissimuladamente
deitar nos cântaros de barro meio camafeu, do qual a rainha possuía a outra metade.
D. Aldora reconheceu de imediato a joia e mandou uma das aias ir disfarçadamente buscar o
rei vestido de pedinte, mas, por vingança da sua infidelidade, entregou-o a Alboazer!
D. Ramiro não esperava tamanha desfeita! Sentindo-se encurralado, pediu a Alboazer uma
morte pública. Não por orgulho, mas porque a sua astúcia lhe pedia para ganhar tempo e tentar
avisar o seu filho através do toque do seu corno de caça.
Alboazer consentiu, e mal o Rei de Leão se viu sozinho na sua cela fez soar o sinal
combinado. O jovem e intrépido D. Ordonho correu com os seus homens para o castelo e juntos
mataram Alboazer e muitos dos que estavam com ele.
Mas ainda havia um assunto pendente: D. Aldora, que traiu o rei! Ramiro levou-a para o seu
barco e, à frente das suas aias, atou-lhe uma mó de pedra ao pescoço e atirou-a ao mar num local
que ficou para sempre a ser conhecido por Foz de Âncora.
Livre de todos os empecilhos que o impediam de perseguir o verdadeiro afeto, o Rei Ramiro
voltou então para a sua terra natal, o reino de Leão, onde o seu povo o esperava. Casou-se com a
princesa Artiga numa bonita festa, e dela teve uma vasta e nobre descendência.
QUAL DELAS?

Em Caldelas, certos recortes da paisagem serrana fazem o povo pensar que são as ruínas de um
antigo palácio habitado por um rei mouro, muito temido em toda a região, que tinha duas filhas
gémeas, tão iguais em todos os traços do rosto, no trato, nos gestos e até na voz que ninguém no
palácio — nem o próprio pai — as distinguia. Pareciam clones uma da outra.
A história passou de boca em boca, de geração em geração, e foi narrada pelo jornalista,
historiador e escritor Gentil Marques, que a eternizou na cultura popular da região.
Dizia Gentil Marques que as parecenças das gémeas até podiam ser muito engraçadas para
alguns, mas para o rei mouro as situações e confusões que se sucediam à conta de tais
semelhanças não tinham piada nenhuma!
Por isso, não era raro ouvi-lo queixar-se em tom lamuriante:
— Ai que vida a minha, que castigo o meu... Quero falar com as minhas filhas e nunca sei
qual tenho na frente!
As moças, aparentemente, até queriam ajudá-lo.
— Então, mas pai? Não vês logo que eu sou a Zaída? Não me conheceis tão bem desde que
cheguei ao mundo num primeiro sopro de vida?
— E eu sou a Salúquia, meu pai. Não se vê?
Mas quanto mais o rei olhava para o rosto das filhas, menos via! E a cada dia que passava
parecia mais confuso.
Até que um dia lhes disse:
— Tenho de vos confessar, queridas filhas minhas, que ainda agora ao ouvir-vos a correr e a
conversar pelos corredores do palácio, ouvia as vossas vozes e confundi-me de tal maneira que
julguei tratar-se apenas de uma só!
As princesas encolheram os ombros, aturdidas, e confessaram ao pai o seu desalento: .
— Mas o que podemos fazer? Não temos culpa!
O rei bem o sabia. Na verdade, ele também não tinha propriamente culpa. Por isso, ergueu os
olhos para o teto da majestosa e rica sala onde se encontravam, como que a procurar uma
inspiração divina para aquele bizarro problema. Só que não havia maneira de a inspiração
aparecer... pelo menos não nesse dia.
Todavia, alguns tempos depois, por muito matutar naquilo, ocorreu-lhe algo que talvez
pudesse resultar.
Pediu aos criados que trouxessem as meninas à sua presença e disse-lhes:
— Tenho uma importante notícia a dar-vos: Agora, sim!... Agora, já sei como hei de
distinguir-vos uma da outra! É um truque que não falhará! Tu, Zaída, usarás uma roca de prata. E
tu, Salúquia, uma roca de ouro. Assim, de agora em diante, saberei sempre ao certo com qual de
vocês estarei a falar.
As duas raparigas riram-se alegremente e, como amavam muito o pai, aceitaram as rocas,
trocando olhares entre si. No entanto, quando saíram, o rei mouro voltou a ser assaltado pela
dúvida e voltou a ficar pensativo.
— Não terei eu trocado as rocas ao distribuí-las? Como pude ter tanta certeza sobre qual era a
Zaída e qual era a Salúquia? Isto é mesmo de enlouquecer!
O tempo foi passando, Zaída e Salúquia foram crescendo, tornando-se mulheres muito
formosas… e o rei não enlouqueceu, pois ninguém enlouquece por tão pouca coisa.
Como todas as adolescentes, Zaída e Salúquia viviam felizes à sua maneira, conversando,
rindo e sonhando com o futuro. De facto, passavam o dia inteiro a conversar muito uma com a
outra, mas a dada altura começaram a entediar-se, porque as suas vozes eram iguais e mostraram-
se, pela primeira vez, descontentes com as suas parecenças, num diálogo sentido, como o
historiador Gentil Marques escreveu:

«— Oh, Salúquia!... Qualquer dia vamos sentir-nos como o nosso pai... à beira da
loucura!
— Tens razão, Zaída. Somos tão iguais que às vezes não é fácil!
— Mas foi o destino que quis... ou foi outra razão qualquer... Quem sabe? Talvez tenha
sido a maldição de alguma feitiçaria quando nascemos!
— Oh, Zaída, que desespero! Mesmo agora estou a ouvir a tua voz e parece-me que é a
minha!
— Comigo passa-se o mesmo, Salúquia. Penso que o melhor é não falarmos mais uma
com a outra, a não ser em caso de absoluta necessidade. Estás de acordo? Pode ser que se
estivermos um tempo sem nos ouvirmos voltemos a ter vontade de conversar outra vez...
Salúquia baixou a cabeça para esconder a angústia a romper pelos olhos chorosos.
— Estou de acordo, sim, minha irmã. Que se cumpra a vontade de Alá!
E daí em diante, com raras exceções, o silêncio passou a reinar entre as duas irmãs.
Mas o destino é brincalhão, sobretudo com aqueles que o tentam contrariar...
Um dia, passou pelo reino do rei árabe um garboso cavaleiro e viu as duas princesas
mouras numa das varandas do palácio. Parou e cumprimentou-as numa vénia exuberante
e, com ar galanteador e sorridente, disse:
— Que verdadeiro prodígio da natureza! Palavra de honra que jamais, em toda a minha
vida, encontrei tanta beleza junta! Deve ser o meu dia de sorte!
As moças sorriram também nervosas, confusas e coradas. Mas claro que, fazendo jus ao
entusiasmo próprio da sua idade, quiseram corresponder ao amável cumprimento do
jovem cavaleiro estrangeiro.
Zaída, repentinamente atrevida, perguntou:
— Quem sois vós, nobre cavaleiro?
Logo Salúquia se juntou à conversa:
— Vindes de longe, decerto... Deveis estar exausto da viagem. Quereis descansar?
O cavaleiro não se fez rogado. Aproximou-se mais da varanda do palácio, fazendo girar o
cavalo. E confessou:
— Sim, venho mesmo de muito longe. Sou um cavaleiro cristão.
Mas mal proferiu tais palavras, dois gritos de susto cortaram o ar da tarde violentamente.
— Um cavaleiro cristão? Que horror!
— Foge, irmã, foge! — gritaram as duas princesas.
E assim, de repente, ambas desapareceram, sem dar tempo ao rapaz de dizer mais palavra.
O jovem cavaleiro ficou pensativo. Pensativo e preocupado. Claro que eram duas moças
irmãs, muito parecidas. Mas qual das duas lhe teria provocado maior impressão?
Era preciso vê-las de novo, falar-lhes, gritar-lhes o seu deslumbramento.
E sem mais hesitações gritou, com a força e o ímpeto da juventude:
— Abri as portas do vosso palácio! É um nobre cavaleiro cristão que vos pede!
Houve um silêncio. Curto. Pesado. De verdadeira expectativa. Mas das duas raparigas
nem sinal. Nem tão-pouco sinal dos criados do palácio. Mas, ao invés disso, foi a voz
autoritária do nobre rei mouro que lhe respondeu, vociferando:
— As portas do meu palácio não se abrem para deixar entrar cristãos!
O jovem cavaleiro olhou para o alto das ameias um tanto ou quanto confuso.
— Ah, agora compreendo tudo... És um rei mouro! Por isso tendes duas filhas tão belas...
Depois deu um tom mais suave à voz, como que a preparar o rei para uma grande notícia,
e comunicou-lhe:
— Mas isso importa alguma coisa? De qualquer modo, senhor rei, desejo pedir em
casamento uma das vossas filhas!
Uma gargalhada sarcástica ecoou do topo do castelo. Depois, o rei mouro, mostrando bem
lá no alto a sua imponente silhueta, gritou com a firmeza que lhe impunha a coroa:
— Em casamento? Sois completamente louco, cavaleiro cristão! Nunca tereis qualquer
uma das minhas filhas, enquanto o meu alfange puder cortar as cabeças dos nazarenos, tal
como eu posso cortar agora o tronco desta árvore.
E num golpe surdo de raiva, o temível e temido rei mouro cortou num golpe o tronco de
uma linda olaia.»

Mas o cavaleiro cristão era teimoso e valente, ou não fosse um jovem cego de amor.
Naquela tarde fingiu afastar-se, mas não foi para longe e voltou pela calada da noite.
Segundo Gentil Marques, é «ainda corrente na voz do povo que, nessa mesma noite, num
assomo de coragem e desapego, o cavaleiro afoito conseguiu trepar a uma das varandas do
palácio, iludindo a vigilância das sentinelas do castelo».
Era arriscado aquele golpe, mas o cavaleiro cristão não queria saber. Talvez achasse que a fé o
ia ajudar. Rondando as janelas iluminadas pela luz trepidante das velas, descobriu rapidamente a
sala das princesas, onde ambas se entregavam aos queixumes tristes de uma bela música. Sabiam
que o pai ameaçava cortar a cabeça ao rapaz se voltasse a vê-lo no reino, e, por isso, estavam
com o coração partido.
Assim, quando o viram aparecer de repente do lado de fora da janela, as duas ergueram-se
num salto, com o pavor estampado no rosto. Pareciam mais iguais do que nunca, mas isso não
perturbou em nada o jovem cavaleiro, que avançou e lhes disse em tom de segredo:
— Não deveis ter medo de mim. Quero apenas falar com aquela que me encheu o coração...
aquela por quem me apaixonei para sempre!
Ambas se entreolharam. E perguntaram, ainda que muito a medo:
— Qual de nós é que procurais, senhor cavaleiro? A mim... ou à minha irmã? — perguntaram
praticamente em coro.
Finalmente, o cavaleiro pareceu ficar atordoado, e fitou-as com invulgar atenção:
— Como é difícil responder...
Encaminhou-se então para uma delas.
— Sois vós... Sim, deveis ser vós…
Mas de repente olhou para a outra, que o olhava também.
— ... Mas... talvez sejais vós... Enfim, não sei!
Suspirando fundo, acabou por confessar a sua confusão:
— Não há diferença alguma entre as duas. Sois absolutamente iguais! Como escolher?
— Eu sou a Zaída! — disse uma.
— E eu sou a Salúquia! — disse a outra.
O rapaz ficou desnorteado e, ao mesmo tempo, imprudente. Ouviu-se uma voz grave e
enfurecida ao longe e as raparigas irromperam em aflição.
— Silêncio, senhor cavaleiro! Vem aí nosso pai! Fuja, senhor cavaleiro! Voltai por onde
viestes!
Mas era tarde demais. As portas da sala escancararam-se de par em par e apareceu o rei
mouro, já de alfange desembainhado.
— Parai, cobarde! O meu alfange vai cortar-vos a cabeça com a mesma leveza com que cortou
a árvore!
Num salto ágil, o jovem cavaleiro esquivou-se ao golpe brutal do rei mouro e gritou apelando
para a luta:
— Enganais-vos bem… porque eu também tenho uma espada!
Por momentos, perante os rostos angustiadamente iguais das duas princesas irmãs, travou-se
um duelo de vida ou de morte. Mas a força da juventude acabou por vencer. O alfange voou das
mãos do rei mouro e o jovem cavaleiro cristão, não deixando fugir a oportunidade, desapareceu,
gritando:
— Esperai, que eu hei de voltar!
Conta o povo que voltou, de facto. À frente de um grande exército, ao qual ordenou que
pusesse cerco ao palácio.
Rodeado pela sua guarda de honra, aproximou-se e anunciou:
— Se não queres que arrase o teu palácio, miserável, tens de me dar uma das tuas filhas!
Impressionado com a esmagadora superioridade numérica do inimigo e percebendo que não
tinha hipóteses de fuga, o rei deu sinais de que iria ceder:
— Queres então uma das minhas filhas? Qual desejas mais? Qual delas?
Houve uma pausa. Longa. Dramática. Sussurrando para si próprio, confuso, indeciso, o rapaz
repetia para si próprio:
— Qual delas? Sim… qual delas? Depressa, tenho de pensar depressa e dar uma resposta!
Mas não sabendo que resposta dar ao rei — nem a si mesmo, sequer — apenas deu ordem para
atacar o palácio...
Tal como se previa, perante o tamanho e as armas daquelas, os mouros depressa foram
dizimados.
Os guerreiros cristãos entraram furiosamente no palácio e, numa fúria cega, não pouparam
ninguém, nem mesmo as duas princesas!
O rei, vendo mortas as duas filhas, caiu de joelhos no chão. Não teve mais coragem para
resistir, e suicidou-se, tombando junto das duas filhas que tanto amava, tão iguais na morte como
o tinham sido sempre em vida.
Depois da chacina, o cavaleiro entrou. Com um olhar alucinado, em choque, pôs-se em busca
da sua amada, mas somente encontrou cadáveres.
E caiu de joelhos, chorando a má sina:
— Fui eu o culpado de tudo isto! Castigai-me, Senhor meu Deus! Castigai-me, porque eu não
soube escolher, meu Deus! Qual delas?
Foi este seu arrependimento desesperado e sentido que deu nome à terra. Para sempre ficou a
chamar-se a «Terra de Qual Delas», designação que se transformou naturalmente em «Terra de
Caldelas» e, por fim, apenas em Caldelas.
BASÍLIA

Terra muito antiga, cercada por serras e vales onde o Douro corre majestoso, o concelho de
Chaves é profícuo em histórias populares. Quem hoje visita a região perde o olhar pelas vinhas
do tão afamado néctar dos deuses, mas talvez devesse guardar tempo também para descobrir as
relíquias de uma cultura secular e única.
Um belo exemplo dessa herança é o Castelo de Monforte, também conhecido como Castelo de
Monforte de Rio Livre, que se ergue sobre uma das escarpas da serra do Brunheiro, dominando a
paisagem da povoação de Monforte.
Os primeiros ecos sobre este monumento nacional remontam ao século XII, mas terá integrado
o território português no momento de constituição da nacionalidade. Antes, porém, foi ocupado
pelos romanos, aquando da invasão da Península Ibérica. Essa é a história, oficial. Porque, na
verdade, a lenda conta outra coisa!
Relatam os flavienses que lá dentro vivia uma jovem moura muito bela chamada Basília, na
companhia de seu pai e de um enorme séquito de criadagem. Basília herdara a beleza e a
gentileza da mãe, que morrera jovem e a todos deixara muitas saudades. Por isso, todos a
acarinhavam, e apenas desejavam que, entre os da sua raça, encontrasse quem muito a amasse e
respeitasse.
A dada altura, um jovem cavaleiro cristão, chamado D. Telmo, começou a rondar o castelo.
Diziam as más-línguas das velhas, a quem a presença de D. Telmo não passou nada
despercebida, que vinha todos os dias especar-se frente à fortaleza, na esperança de ver entrar ou
sair a rapariga.
Ao mesmo tempo, ecos dos seus feitos heroicos na guerra chegavam também ao castelo.
Diziam-no bravo e intrépido e, rapidamente, Basília interessou-se pelo rapaz, guardando
dentro de si uma secreta paixão. Não tardou que começasse a aguardar a chegada das criadas ao
castelo, vindas do mercado, para lhes ouvir as notícias sobre as últimas batalhas e os préstimos
de D. Telmo. E isto apesar de saber que o cristão era, obviamente, grande inimigo do seu pai!
O rei, que de parvo não tinha nada, foi pressentindo a paixoneta no semblante ora distraído,
ora nervoso da filha.
Ao desconfiar que o alvo dos sentimentos da filha podia ser um cristão, o mouro não esteve
com meias-medidas nem demoras: resolveu casá-la com um dos mouros mais ricos da região. Só
que Basília não consentiu o enlace e fechou-se no seu quarto, disposta a não ver mais ninguém
até ao fim dos seus dias. Todos no castelo desesperavam e tentavam demovê-la da sua teimosia.
Perante aquela insolência da filha, o pai ainda mais zangado ficou e, para evitar que alguma
vez viesse a unir-se a esse tal D. Telmo, resolveu lançar-lhe um encanto: transformou-a num
bicho horrível, cheio de pelo e garras. Daqueles seres hediondos de que qualquer um fugiria a
sete pés. Basília, perturbada, nunca mais quis ver ninguém e fugiu para a floresta que envolvia a
serra.
O povo passou então a falar de um monstro, que percorria as redondezas em certas noites mais
escuras, e se arrastava até à beira do castelo. Outros iam mais longe e contavam que na lua cheia
se ouviam os suspiros lancinantes e apaixonados da jovem Basília.
D. Telmo, esse, não se deixou impressionar pelas histórias, e assim que a guerra acabou pôs-se
a andar dali para fora, já com outro amor no coração.
NO AR GEME ELA

Aldeia bucólica com uma esplêndida paisagem natural, Barco é uma terra bafejada pela sorte, no
concelho da Covilhã. Estende-se placidamente pela margem norte do rio Zêzere e dela destaca-se
a serra da Argemela, a principal atração turística do sítio pelo seu miradouro.
As suas encostas são riquíssimas em minerais, cuja exploração desde tempos remotos deixou
grutas e valas a céu aberto. Tem também fontes romanas e outros vestígios, igualmente ligados à
passagem dos mouros pela região.
Como seria de prever, uma terra com tamanho legado é fértil em lendas. Uma delas está
precisamente ligada à Argemela e aos antigos povos que habitaram a península e diz que outrora
ali foi construído um castelo.
Não há consenso quanto à sua origem: segundo uns, terá sido uma edificação dos mouros
(pelo menos na versão recolhida pelo professor João Antunes Grancho e divulgada por Jaime
Lopes Dias em Contos e Lendas da Beira), enquanto para outros, tal como consta em antigos
documentos da junta de freguesia, terá sido uma construção dos romanos.
Ambas as versões coincidem numa coisa: na margem oposta ao rio, vivia um rei godo. Por
isso, durante muito tempo houve lutas sem tréguas entre os habitantes das duas margens.
Certo dia, porém, o tal rei godo teve de se ausentar para uma longa viagem às terras do Norte,
onde o aguardava outro combate.
Levou consigo uma boa parte dos seus homens e dos seus cavalos, deixando sem guarda a sua
única filha, que, com os seus cristalinos olhos azuis e os seus cabelos louros, era dotada de uma
beleza pouco vista pelos povos do Sul.
Por isso, o líder dos mouros, aproveitando a ocasião, assaltou o solar do rei godo e raptou-lhe
a filha.
Claro que este, quando regressou do Norte da Europa e deu pela falta da filha, ficou azul, mas
de raiva. Jurou vingar-se, nem que para isso tivesse de abdicar da própria vida.
Contudo, em boa verdade, isso nunca chegou a acontecer. Durante dias e dias a fio, o godo
ouviu os seus gemidos ecoarem pela serra, onde certamente os mouros a tinham sequestrado,
amarrada a uma árvore, à mercê do frio e dos animais selvagens. O pai bateu os declives e as
colinas de lés a lés, sem nunca a encontrar. Perturbado e desgostoso, lamentava-se:
— No ar geme ela.
Ora este desabafo condoído do pai em sofrimento deu, por assimilação, nome à serra:
Argemela.
Segundo uma outra versão, que pode ser lida na íntegra na obra Portugal Antigo e Moderno,
de Pinho Leal, vivia muito próximo daquele monte ocupado pelos Romanos uma linda moça
lusitana que tinha já casamento marcado com um dos mais destacados soldados de Viriato, líder
da tribo lusitana que viveu entre 181 a.C. e 139 a.C.
Nas vésperas do casamento, porém, os romanos conseguiram raptá-la, procurando através dela
saber informações sobre as manobras de Viriato e dos seus homens.
De forma heroica, a jovem noiva resistiu a todas as sevícias e maus-tratos a que foi sujeita dias
a fio. Acabou por morrer queimada sem que revelasse nada de nada sobre o noivo e sobre os
seus.
A memória do seu sacrifício perdurou pelos tempos fora, levando o povo a dizer que os seus
gemidos pairavam sobre o monte: No ar geme ela!
Lendas à parte, existiu mesmo no topo da serra da Argemela um castro luso-romano,
monumento arqueológico de grande valor, que acabou por ser destruído há algumas décadas por
ignorância popular e incúria de quem tinha a obrigação de zelar por este precioso património.
A PONTE DO BEIJO

No primeiro quartel do século XVI, quando toda a costa da ilha da Madeira era ainda explorada
por Gonçalves Zarco, descobriu-se a magnífica Ponta do Sol. E se hoje ainda atrai muitos
visitantes, naquela época não deslumbrou menos, além de ter dado origem a curiosas histórias
que na antiguidade muitos achavam ter acontecido de verdade.
Verdade ou não, as lendas servem para enriquecer ainda mais os verdadeiros tesouros da
humanidade, como é este o caso. Talvez também por isso o escritor Gentil Marques se tenha
deixado fascinar pelo lugar e sobre ele deu a conhecer a narrativa que em seguida partilho
convosco:

«Quando foi povoado este lugar da ilha, nele se fixou um homem decidido, habituado às
lides do mar, amigo e ex-companheiro de Zargo. Ali ficou. Ali viu crescer os filhos. Um
dia, porém, como era vulgar na época, os piratas começaram a atravessar o mar, e um
deles, conhecido por Cambaral, homem forte, ladino e jovem ainda, trazia inquietos os
pobres pescadores. Cambaral espalhava o terror em suas correrias quando se desviava do
seu campo de ação predileto: o mar Cantábrico.
Com os barcos fundeados no porto, braços caídos, o medo estampado nos rostos, a fome a
bater-lhes à porta, os pescadores da Ponta do Sol resolveram pedir providências ao senhor
da Casa da Ribeira. Este, auxiliado pelo Reino, organizou uma pequena esquadra para dar
caça ao pirata. A ordem que viera era de apanhar o bandido e enforcá-lo no mastro grande
do seu próprio navio.
Saiu o senhor da Casa da Ribeira, comandando a sua frota. Várias milhas haviam
percorrido quando o nobre senhor divisou à distância o barco dos piratas. Imediatamente
foi dada ordem para irem ao seu encontro. Mas do barco-pirata também tinha sido
descoberta a frota do senhor da Casa da Ribeira. No desejo de novas presas, Cambaral deu
ordem ao timoneiro para que se aproximasse dos navios, enquanto ele reuniria os homens
na proa. Deu-lhes instruções para o ataque e prepararam-se para a abordagem.
Logo que lhes foi possível, os piratas tentaram saltar para o navio que lhes barrou a
passagem. Travaram-se encarniçados combates corpo a corpo. A confusão era imensa.
Corpos ensanguentados dos combatentes saltavam de vez em quando pela borda fora.
Durante algum tempo a sorte não se manifestou a favor de nenhum dos lados. Parecia
indecisa. Subitamente, o ardor da luta começou a afrouxar por parte dos piratas. Não
havia comando. Procuraram eles por toda a parte o seu chefe. Sem governo, em breve os
piratas foram vencidos. E, por fim, Cambaral foi encontrado sem sentidos, ferido na
cabeça e em todo o corpo. Então, da ponte de comando surgiu a voz do capitão:
— Trazei Cambaral ferido para o nosso navio! Arrojai ao mar todos os cadáveres e fazei
prisioneiros os homens que ainda tiverem vida!
A ordem foi logo cumprida. Encerrados os piratas no porão, em breve os navios
portugueses voltaram para a ilha.
Aí, o senhor da Casa da Ribeira deu um claro sinal da sua fidalguia: ordenou que
levassem para sua casa o ferido, pois desejava sará-lo antes de o entregar à justiça.
Assim, entrou na Casa da Ribeira o corsário que tanto intimidara os pescadores. Tratado
pela própria filha do dono da casa, Cambaral ia sarando dia após dia. E certa tarde, o
capitão dos piratas recuperou os seus plenos sentidos. Abriu os olhos e ficou fascinado!
Julgava-se sonhando. O luxo que o rodeava não o impressionava tanto como a beleza
de Leonor, que espiava os seus movimentos de espanto. Aturdido, ele perguntou-lhe:
— Quem sois, formosa aparição?
A jovem sorriu.
— Sou Leonor, a filha mais velha do senhor desta casa, que vos fez prisioneiro.
Cambaral abriu mais os olhos.
— Sou prisioneiro e tratam-me assim?
— Estais gravemente ferido. Só quando estiverdes sarado meu pai vos entregará à justiça.
Cambaral não ocultou o espanto.
— Que estranho proceder! Para quê tantos cuidados se me destinam à forca?
Leonor baixou os olhos e esclareceu:
— Tendes feito mal a muita gente!
Cambaral não respondeu. Olhava extasiado a figura delicada de Leonor. Tão profundo era
esse olhar que a jovem se sentiu pouco à vontade. Para disfarçar, lembrou:
— Não deveis esforçar-vos a falar. Sossegai. Voltarei ainda esta tarde.
O corsário tentou soerguer-se no leito, mas uma dor aguda lembrou-lhe que tinha ainda
feridas graves. Ela admoestou-o:
— Cuidado! Assim estragais quanto temos feito por vós!
— E porque o fizestes?
— Meu pai assim o quis.
Ele abanou a cabeça e murmurou:
— Tudo isto me parece fantástico! Mas creio que nada acontece por acaso. Acredito no
livro do Destino. Estava escrito que havia de encontrar-vos... e nestas condições! Para
quê? Isso pertence à outra página... que ainda está por ler!
— Estais a falar demais!
— Vou calar-me. Mas não me abandoneis! Creio que tendes sido vós a minha força!
Silenciosamente, Leonor saiu do quarto do doente, que não fez nenhum gesto para a reter.
Vários dias passaram. O ferido, apesar de aparentemente calmo, continuava em perigo de
vida. A seu lado, Leonor dispensava-lhe os mais ternos cuidados. Cambaral já não sabia
esconder da jovem a paixão louca que ela lhe inspirara. E Leonor, apesar de todos os
esforços para não se dedicar ao pirata que estava agora sob a alçada da lei, sofria
horrivelmente, pois rendera-se à juventude e beleza física do inimigo dos seus.
Um mês após a sua entrada na Casa da Ribeira, Cambaral foi dado como livre de perigo.
Aos dois enamorados restavam apenas três ou quatro dias para continuarem juntos. A
justiça esperava o pirata. Assim, Leonor olhava ansiosa o mar, na esperança de que algo
acontecesse que salvasse o seu amor. Preferia não mais o ver, sabê-lo longe, junto de
outras mulheres, a permitir que ele morresse numa forca. O diálogo entre eles dera lugar a
um pesado silêncio em que apenas os seus pensamentos gritavam. De súbito, Cambaral
decidiu-se. A sua voz tinha perdido aquele tom altivo e sarcástico. Tornara-se profunda e
cariciosa. Chamou:
— Leonor!
Ela pareceu despertar de um sonho. O coração batia-lhe apressado.
— Que quereis?
— Falar-vos. Aproximai-vos, pois não quero que nos oiçam.
Ela obedeceu. Ele sorriu-lhe.
— Sois tão bela! Tão boa que nem mereço a vossa atenção!
Leonor suspirou:
— Para mim, valeis muito!
Cambaral entusiasmou-se.
— De verdade… acreditais que possa regenerar-me?
— Acredito!
— Sabei que não fui um homem qualquer!
— Calculo!
— E amo-vos! Tenho a ousadia de o confessar!
— Também eu!
Cambaral sentou-se no leito. Agarrou com emoção a mãozita trémula de Leonor.
Perguntou:
— Quando pensam entregar-me à justiça?
— Depois de amanhã.
Pesado silêncio envolveu os enamorados. Leonor não pôde resistir e, abraçando-o, cobriu
de lágrimas o peito do pirata. Este, enternecido, beijava-lhe os cabelos. Perguntou:
— Leonor... Se eu conseguisse fugir... viríeis comigo?
Ela não hesitou.
— O meu coração pertence-vos!
— Pois partamos!
— Como?
— No meu barco! Ele ainda está fundeado.
— E sereis capaz de o conduzir sozinho?
— Acreditai que sim!
— Nesse caso... fujamos quanto antes!
— Amanhã à noite. Eu sairei primeiro, logo ao pôr do Sol. Vós vireis aqui, como de
costume, e ficareis o tempo que é hábito ficar. Depois simulareis recolher aos vossos
aposentos. E logo que a noite se adense ireis ter comigo à ponte.
Leonor, com um suor frio a cobrir-lhe as palmas das mãos, declarou numa voz em que o
medo dava mostras de ter chegado:
— Assim farei!
Entusiasmado, Cambaral beijou-a na testa.
— Querida, o mundo volta a sorrir-me! E desta vez envolto no manto maravilhoso do
amor!
Ela ergueu-se.
— Vou retirar-me. Não quero que ninguém desconfie do nosso segredo! Até amanhã!
— Até amanhã, minha Leonor!
O dia seguinte chegou.
Nunca as horas pareceram tão longas aos jovens enamorados. Evitavam falar ou olhar-se
na frente dos outros, não fosse a inflexão da voz ou um olhar denunciá-los. E à medida
que a noite se aproximava, Leonor sentia um tremor estranho por todo o corpo tirar-lhe o
sossego.
A noite também chegou, finalmente. Leonor já não encontrara o seu bem-amado no leito.
Mas deixou-se ficar no quarto como dantes fazia, nos preparativos noturnos. Depois, foi
para os seus aposentos. Fingiu deitar-se. E quando o silêncio reinou na Casa da Ribeira,
Leonor levantou-se devagar, tremendo, e foi em direção ao local combinado. Divisou logo
a figura máscula do altivo pirata.
Do lado de lá da ponte, o cais improvisado, o mar e o navio de Cambaral, pacientemente
esperando. As ondas lambiam as rochas da margem. Nesse momento, um raio de luar
rompeu as nuvens e refletiu-se nas águas, como fita de prata polida.
Cambaral, eufórico de alegria, recebeu nos seus braços a jovem e linda Leonor. Apertou-a
de encontro ao peito, que batia em uníssono com o dela. Sentiu fogo nas veias e,
arrebatado, uniu a sua boca à da jovem, num apaixonado beijo. Mas, nesse momento
preciso, o senhor da Casa da Ribeira, que havia sido avisado da fuga de sua filha,
surpreendeu os enamorados nessa suprema demonstração de amor. Cego de ira, ergueu a
espada e, de um só golpe, cortou cerce as cabeças dos dois amantes.
Quedaram-se abraçados, os corpos sem cabeça. E o povo, romântico como sempre,
passou a chamar à ponte da Ribeira a Ponte do Beijo.»
AS ÁGUAS DE ALMOFALA

Quase sempre associamos o Sul do país às lendas sobre mouros e belas princesas encantadas,
mas a verdade é que estas histórias das mil e uma noites também abundam nas regiões centro e
norte do país.
A localidade de Almofala, no concelho de Castro Daire, é um bom exemplo da forma como
esse legado se espalhou pela península inteira.
Almofala terá sido precisamente o cenário de mais uma história de amor impetuosa e
dramática, daquelas a que o lendário português nos habituou e que continua hoje a fazer parte da
memória e dos costumes da região.
Por causa desta lenda, ainda hoje o povo assegura que as águas que brotam das fontes de
Almofala têm incríveis poderes curativos! O próprio nome da terra está ligado a este manancial
lendário, pois Almofala em árabe antigo quereria precisamente dizer «arraial de Mouros».
Mas e a lenda, o que nos conta ela para nos motivar a fazer as malas e rumar até esta bonita
região? Diz-nos que nesses tempos longínquos vivia em Almofala uma jovem muito bela
chamada Salúquia. Até que um dia lá chegou um novo governador.
Jovem, bonito e altivo, trazia a missão de (re)organizar os exércitos para a luta contra os
cristãos. Só que Salúquia não estava habituada a obedecer, mas sim a ser obedecida! Talvez por
isso, não encarou com bons olhos a chegada do forasteiro.
Já na aldeia, a notícia correu célere e foi muito bem acolhida. Os aldeões sabiam que a guerra
se aproximava impiedosamente e que era preciso reunir todas as forças para salvar os seus
campos e, sobretudo, as suas vidas.
No dia em que o governador chegou, o povo saiu todo à rua, tal era a curiosidade de conhecer
o herói, que tinha fama de nunca ter perdido uma batalha.
Na cabeça de novos e velhos, as perguntas eram mais que muitas: Que aspeto teria ele? Seria
um líder justo e bondoso ou um tirano com o coração endurecido pela guerra?
Porém, sabiam todos que não havia tempo a perder com pensamentos fúteis. Era preciso
passar rapidamente à ação. Os cristãos haviam começado ferozmente as suas investidas na
região. Fosse ele como fosse, tinha de ser bem acolhido.
O novo governador chegou, por fim. Era forte e imponente, trazia no rosto um ar determinado
e irredutível, sem sorrisos. Com ele vinha um numeroso grupo de cavaleiros árabes, muito bem
armados, num aparato que impressionou a população.
Ali mesmo na praça mandou reunir toda a gente da terra e falou-lhes sem panos quentes:
— Quer Alá que eu governe a partir de agora os vossos destinos. Não recuso uma missão do
nosso deus. Por isso, aqui estou. Exijo, porém, uma lógica condição: inteira obediência! Para que
tenhamos força, para que lutemos uns pelos outros até à morte, precisaremos de união. E para
haver união e consenso é necessário que todos, homens, mulheres, crianças, velhos ou guerreiros,
sigam os meus conselhos com confiança. Qualquer falha, qualquer omissão que ponha em risco a
minha missão, não será perdoada. Penso que fui bem claro! — rematou.
Fez-se um silêncio surpreendido, mas todos, sem exceção, ao calarem-se, mostravam estar de
acordo.
Todos menos Salúquia, que saiu da multidão e avançou até ficar frente a frente com o jovem e
altivo governador. Fitaram-se ambos com olhar desafiador por breves momentos, até que ela, por
fim, tomou a palavra:
— Diz-me, senhor da guerra, achas, por acaso, que eu também tenho de obedecer às tuas
ordens?
O cavaleiro ficou claramente surpreso e falou-lhe com espanto mas também alguma ironia na
voz.
— E porque não? Quem és tu, afinal, para seres mais do que todos os outros?
Ela abriu muito os olhos e, com um sorriso impertinente, apresentou-se:
— Sou Salúquia!
— E quem pensas tu que és, Salúquia?
— Aquela a quem todos aqui obedecem! Não sabes?
— E porque te obedecem? Por acaso fazes alguma coisa por eles?
— Porquê? Ora... pergunta-lhes. A qualquer um... ao acaso.
O governador franziu as sobrancelhas um pouco irritado. Não tinha tempo a perder com
meninas insolentes. Mesmo assim, resolveu aproveitar a situação em seu proveito.
Virou-se para o povo e perguntou a um jovem mouro que estava na frente:
— Diz tu. Porque obedecem todos a esta mulher?
O jovem ficou um tanto atrapalhado, gaguejou muito, mas lá conseguiu dizer o que lhe ia na
alma:
— Porque é mesmo assim. Sempre foi assim. Salúquia é bela, muito bela! E todos desejamos
cair nas suas boas graças e ser alvo da sua simpatia. Além disso... bom... é difícil explicar. Mas o
seu olhar parece ter um poder estranho...
O governador cortou a palavra ao rapaz, adivinhando o que iria dizer a seguir:
— Pois esse poder não servirá para mim! E explico-vos porquê: porque esse poder não serve
para nada na guerra! E eu só aqui vim para lutar. Não me interessam as boas graças de ninguém,
muito menos de uma jovem de atos irrefletidos!
E voltando-se de novo para Salúquia, tomado repentinamente por uma inesperada fúria, disse-
lhe:
— Salúquia, desde já te informo: o teu reinado acabou! Agora o senhor destas terras sou eu!
Aqui, apenas vai dominar o poder da guerra, dos vencedores. Por isso, devo prevenir-te: se não
cumprires as minhas ordens, serás terrivelmente castigada! Tal como todos os outros!
Salúquia cerrou os lábios, cheia de raiva. Nos seus olhos lampejava uma estranha luz. Por
dentro, consumia-se e o peito arfava-lhe. Aquele era o primeiro homem que não conseguia
subjugar, o primeiro que parecia nem sequer reparar na sua beleza. Sentindo tudo aquilo como
uma grande afronta, corou de fúria e, cheia de ganas, bramiu:
— Pois ousa! Se me castigares, amaldiçoar-te-ei para sempre! Não morrerás na espada do
inimigo, mas terás um fim tenebroso!
A população começou a recuar assustada e os olhos negros do governador pareceram
relampejar de indignação.
Tal provocação, ainda por cima assim à vista de todos, não poderia ficar impune. O
governador tinha plena consciência de que, se o fizesse, nunca mais recuperaria a sua autoridade
e ficaria ele próprio à mercê daquela mulher. Bela, sem dúvida, mas incrivelmente mimada e
manipuladora!
A sua expressão endureceu-se e, quando falou, toda a gente tremeu:
— Salúquia! Tenho pena, muita pena, mas terei de te ensinar a obedecer-me!
Os ímpetos da moura não esmoreceram, bem pelo contrário. Salúquia era, de facto,
invulgarmente diferente das mulheres da sua raça.
— Não creio que sejas um bom mestre!
Rapidamente, como se já estivesse preparado para o confronto, replicou:
— Isso é o que vamos já ver...
E voltando-se prontamente para os cavaleiros que haviam desmontado e seguiam a cena com
alguma curiosidade, ordenou:
— Agarrem-na!
Salúquia parecia louca. Virou-se para eles e avisou:
— É que nem um só me toque! Se alguém tentar chegar perto de mim, será amaldiçoado!
— Pois então será um dos teus que irá cumprir o castigo que te vou aplicar. Avança tu, rapaz,
que já estás aqui mais perto — disse o governador para o rapaz que já tinha interpelado.
Ela voltou a gritar:
— Que nem um só se atreva a fazer o que este louco manda!
Um burburinho nervoso percorreu a multidão, mas ninguém se destacou do grupo. Ninguém
queria correr riscos.
Então, o governador, ele próprio, avançou e, virando-se novamente para o povo, disse:
— Não me digam que têm medo dessas velhas histórias de maldições! Pois eu não tenho! Eu
próprio a segurarei.
Dito isto, agarrou-a pelos pulsos. Salúquia contorceu-se.
— Larga-me! Larga-me!
Violentamente, o governador impôs a sua força, imobilizou-a e, colando o seu rosto ao da
rapariga, proferiu-lhe olhando-a no fundo dos olhos:
— Pois comigo ninguém brinca… muito menos uma mulher!
Voltando-se para um dos guerreiros que haviam chegado consigo, ordenou resoluto:
— Dá-lhe seis vergastadas... já! Ela está bem segura!
O povo engoliu o ar num suspiro de medo e espanto. O guerreiro árabe não hesitou por um
segundo e começou a cumprir as ordens recebidas.
As pessoas chegaram-se ainda mais para trás e olhavam incrédulas e com alguma revolta
calada para a cena que se desenrolava bem diante dos seus olhos. Não era bem assim que tinham
imaginado a chegada do novo senhor, e muito menos a preparação para a guerra…
Só que o medo fê-los a todos calarem a sua indignação. Salúquia queria fazer-se forte, como
sempre fora, mas gemia de dor, com os dentes cerrados. A sexta vergastada soou nos ares. O
castigo findara, por fim.
Salúquia estava pálida e, com os olhos maravilhosamente belos, olhou para o governador,
mas, finalmente, sem nada dizer.
Um silêncio impressionante tinha tomado conta da aldeia. Até que o governador falou, quase
irónico.
— Que pena, bela Salúquia! Mas que tu e todos quantos estão aqui hoje tenham aprendido a
lição e não voltem a duvidar do que sou capaz para impor as minhas intenções! Agora que já me
conhecem, podem retirar-se. Regressem às vossas casas, pois muito em breve vamos ter de nos
concentrar apenas e só no combate. De futuro, se houver mais desobediências, serei ainda mais
severo!
Olhando-o de soslaio, com raiva calada e contida, a multidão começou a debandar, de cabeça
baixa, e obviamente sem se atrever a tecer uma única palavra.
Só Salúquia se deixou ficar no meio da praça, sem nunca desviar os olhos do seu carrasco. O
governador fingiu não dar por ela e afastou-se também a passos largos. Todavia, no seu rosto, ao
invés da expressão de dureza, adivinhava-se uma certa ansiedade.
Os dias que se seguiram, porém, fizeram quase toda a gente esquecer o violento episódio.
As constantes investidas do invasor tornaram-se uma realidade, dia após dia. Havia mortos,
havia feridos, havia fome até, pois as lutas não deixavam ninguém cultivar como habitualmente.
Parecia que os dias negros e sangrentos não mais teriam fim.
A cada dia, a cada batalha, vencedora ou vencida, o governador tornava-se mais exigente.
Salúquia, essa, andava fugida. Não voltara a ser a rapariga sedutora, atrevida e alegre,
características que a distinguiam de todas as outras moças árabes daquela e de outras aldeias em
redor. Mas não era por causa da vergonha, nem da humilhação. Algo dentro de Salúquia,
qualquer coisa que nem a própria sabia bem explicar, a consumia.
O seu peito ardia. Andava meio febril. Debatia-se dentro dela, por um lado, o desejo de
aniquilar ferozmente o governador. Intimamente, chegou a tecer planos para se vingar com a
ajuda de um veneno muito antigo, pela calada da noite. Mas, por outro lado, o seu rosto altivo e
belo aparecia-lhe até em sonhos. Salúquia nunca antes se tinha sentido tão perdida. Além disso,
sempre fora uma moça solitária, sem família e com poucas amigas, que não se sentiam à vontade
perto da sua beleza nem com a sua maneira de ser.
Foi nesta confusão de pensamentos que acordou a meio de uma certa madrugada, com o vento
a zunir lá fora.
Suada, cansada e olheirenta por causa das insónias, Salúquia abriu uma janela e deixou que
aquela tempestade louca lhe despenteasse os cabelos longos. Parecia que o diabo andava à solta
lá fora... ou talvez fosse apenas o seu coração. Sofria, mas nem sabia bem de quê. Apesar de
rebelde, o coração de Salúquia era inexperiente e pouco percebia de sentimentos como o
despeito, a rejeição ou até mesmo o amor...
Talvez por isso, ingenuamente, confessou aos quatro ventos:
— Oh, desgraçado que me não desejas, eu te amaldiçoo com todas as minhas forças! Por mais
tempo que vivas, não terás mais um único dia de descanso, nem mais um dia de saúde, nem mais
um dia de felicidade e luz! E tu, vento, hás de levar até ele a minha maldição!
E a ventania, que parecia tê-la escutado, varreu a terra num silvo ainda mais veloz e agoirento,
levando consigo as palavras da moura.
Horas depois, o dia amanheceu com a atmosfera muito mais mansa, mas nos aposentos do
governador não havia tranquilidade alguma. Não bastavam as preocupações da guerra como o
governador de Almofala se torcia todo com dores violentas, sem sequer dar certezas de conseguir
subir à garupa do seu cavalo, quanto mais combater os bravos cristãos.
Um dos seus cavaleiros de confiança, porém, estranhando a súbita e inconveniente maleita,
tentou saber junto do amigo.
— Que tens, homem? O que aconteceu assim tão de repente? Terás bebido algum veneno sem
dar por isso?
O governador mordeu os lábios, respirou fundo e com visível esforço lá respondeu.
— Não sei o que aconteceu, mas estou realmente doente! Chamem um físico do reino. Preciso
de me curar depressa! Assim, neste estado, não poderei servir Alá, nem o emir, nem o meu povo
e muito menos a mim próprio!
O mal-estar do governador prolongou-se durante o dia inteiro, e na manhã seguinte, pela
alvorada, chegavam ao palácio os melhores físicos da região. Todos traziam, claro, as suas
explicações e faziam as suas prescrições. Mas não havia meio de o governador apresentar
melhoras.
A uma dada altura, chegou mesmo a confessar ao seu melhor amigo:
— Não sei o que tenho, Alal, mas de uma coisa tenho a certeza: prefiro a morte a este
sofrimento... Dir-se-ia que sinto o fogo a consumir-me lentamente as entranhas! Só pode ser
grave e fatal!
E ofegante pediu-lhe:
— Dá-me água. Dá-me sempre água. Só quando bebo tenho algum alívio.
O outro cavaleiro olhava-o consternado, condoído e também preocupado.
Os homens, sem o estímulo forte de um líder de vontade férrea, estavam a fraquejar na defesa
de Almofala e rapidamente os cristãos ocuparam as imediações da aldeia.
Nas horas que se seguiram, a luta foi sangrenta para ambos os lados, mas a verdade é que os
mouros não tardaram muito a ceder.
O pânico tomou então conta do lugar. Mulheres e crianças tentaram fugir como podiam,
correndo para os montes. Outros refugiaram-se em casa, à espera do pior. Salúquia também saiu
para o campo, fugindo aos combatentes.
Vagueava sem saber para onde, como louca, errante, falando e chorando sozinha, até que
repentinamente ouviu uns gemidos. Sobressaltada, perguntou:
— Quem está aí?
Um homem um pouco pálido, já de meia-idade, respondeu-lhe calmamente:
— Sou eu! Sou só eu, não te assustes. Podes aproximar-te... porque estou ferido!
Salúquia, destemida como habitualmente, abeirou-se do homem.
— Quem és e o que fazes aqui? Não foi um bom dia para passeios! Estamos em guerra.
Ele passou a mão pela testa limpando o suor e tentou sorrir.
— Sou um homem que está ferido... Caí numa armadilha!
Só então Salúquia reparou que o homem estava meio enterrado no chão porque tinha uma
perna presa numa das armadilhas que os seus colocavam nos limites da povoação, não fossem os
cristãos tentar entrar pela calada da noite...
— Ora, se bem estou a ver... És cristão e caíste numa das nossas armadilhas! E agora, que
queres tu que eu faça?
Tentando domar a dor, o cristão não se fez rogado:
— Quero que me salves, por favor! Como vês, tenho esta perna quase despedaçada. Morro de
dores! Ajuda-me pelo menos a sair daqui!
Salúquia não estava minimamente preparada para aquilo e nem sabia muito bem o que
responder. Não era da sua natureza negar ajuda, mas, por outro lado, custava-lhe ajudar quem
lutava contra os seus e já lhes causara tanto sofrimento.
— Ajudar-te, eu? Como? Não vês que não posso? Não vês que sou moura?
— És moura e linda! Mas acima de tudo és mulher. E, mesmo em tempo de guerra, as
mulheres não são cruéis.
Salúquia contorceu-se com uma certa amargura.
— Pensas assim? Pois, enganas-te! Devias ver o nosso governador!
— Mas o que tem ele?
— Sofre também!
— De amor?
O cristão era astuto, mas Salúquia estava novamente tomada pela fúria.
— Oh, não! Antes fosse! Sofre de moléstia estranha e terrível. Dizem que foi uma mulher que
o pôs assim!
— Talvez porque o merecesse — testou o cristão.
— Talvez...
— Ele é assim tão mau?
— É justo!
Mal as palavras lhe saíram da boca, Salúquia surpreendeu-se com a sua própria lucidez. Ao
mesmo tempo, tentou disfarçar a súbita emoção que lhe invadiu o peito:
— Sabes que mais? Chega de conversas tontas! Vou-me embora. Não devo ajudar-te. Se o
governador soubesse, matar-me-ia de imediato!
Mas o cristão não ia deixá-la partir assim tão facilmente, suplicando-lhe:
— Ajuda-me! Por favor! Ele não saberá! Só nós dois saberemos...
— Mas e se descobrir? O que irá pensar de mim outra vez?
— Irá ver a verdade. Que salvaste um ser humano. Que és boa e caridosa...
Ela riu-se com um certo nervoso miudinho.
— Eu, boa? Como boa? Se tu soubesses... Se ele soubesse...
— Que te fazia?
— Matava-me!
— Que lhe fizeste para que te julgasse assim tão mal?
Ela abanou a cabeça e ficou em silêncio, com as lágrimas prontas a caírem-lhe do rosto.
— Não deves importar-te com o que se passou entre mim e ele. Não são contas do teu rosário.
És cristão, vieste de outro lugar e não pertences aos mouros. Não entendes as nossas leis.
O cristão, tranquilamente, continuou:
— De facto, tens razão. Não sei nada do que se passou entre ti e o governador. Mas sei o mais
importante de tudo: sei que o amas.
— Eu?!
Foi quase um grito que saiu da boca de Salúquia. Um misto de espanto, vergonha e medo.
Afastou-se logo do cristão. Ia fugir o mais rápido que conseguisse, mas com o pensamento já a
correr a mil à hora, bem mais depressa do que as suas próprias pernas.
O ferido, porém, ainda lhe gritou:
— Não te vás, moça! Se soubesses como eu sofro! Ajuda-me! Por favor! Ajuda-me e eu
ajudar-te-ei, Salúquia!
De repente, ela parou e abriu os olhos num pasmo enorme.
— Sabes o meu nome?
Ele sorriu com visível esforço. Estava cada vez mais fraco
— Como vês...
— Quem to disse?
Ele apressou-se a impressioná-la ainda mais. Talvez assim se salvasse...
— Foi o meu Deus. Foi ele ainda que me divulgou o teu amor pelo governador. Disse-mo
porque tu própria precisavas de o saber. E julgavas tu que o odiavas! Amaldiçoaste-o. Mas ele
ama-te também. Na verdade, apesar do que aconteceu, nunca mais te esqueceu.
Salúquia levou as mãos ao rosto, perturbada e chorosa.
— Ouve, cristão. Não penses que sou tola só por ser mulher. Se o teu Deus te disse tudo isso,
se sabe assim tanta coisa sobre a vida dos outros e é tão poderoso, porque não te ajuda ele a sair
daí?
— Porque quer ajudar-te a ti também.
— A mim? Como?
— Se concordares e me ajudares a sair daqui para que me possa tratar, cometerás uma boa
ação para com um cristão. E Ele compensa sempre quem age pelo bem. Em troca, Ele, por meu
intermédio, dar-te-á aquilo que mais desejas: a possibilidade de anulares o mal que fizeste ao teu
governador.
— Como?
— Ajuda-me e só assim verás.
Salúquia achou que não tinha nada a perder. Tomada por uma súbita força, a jovem ajudou o
cristão a libertar-se das grilhetas de ferro e a sair da armadilha. A sua perna apresentava grandes
ferimentos, dos quais escorria sangue abundantemente.
Falando com esforço, o homem pediu:
— Salúquia, que Deus te recompense! E agora leva-me até além, até àquela nascente de água.
— Mas vais lavar as feridas e tentar estancar o sangue com água? Se alguém nos vê, estaremos
perdidos!
— Talvez nos vejam… mas só terás a ganhar com isso.
— Que dizes?
— Tu verás. Vamos!
Auxiliando-o conforme pôde, Salúquia levou o ferido até à nascente, de onde brotava uma
água cristalina e fresca da montanha.
O mais incrível é que Salúquia reparou que, mal o homem deitava a água sobre as feridas,
logo o sangue estancava e a pele sarava. Parecia magia!
Muito concentrado, o cristão murmurou repetidamente:
— Louvado seja Deus!
Salúquia estava estupefacta, mas o seu enlevo foi quebrado pelo som dos passos de um cavalo
que se aproximava dos dois vultos. A moura olhou prontamente nessa direção e logo sentiu
apoderar-se do seu coração um medo estranho. A voz tremia-lhe quando disse:
— Cristão, fomos descobertos! É ele! E vem direto para aqui!
— Deixa-o vir, Salúquia! Não ouviste o que te disse? Isto pode ser decisivo para ti!
A moura suspirou. Entretanto, o governador chegou finalmente junto a ela e desmontou do
cavalo. Piscando os olhos ofuscados pela luz do sol, perguntou-lhe:
— És tu, Salúquia? Os mesmos olhos, a mesma voz...
— Sou eu. E tu, não és o mesmo?
— Não, não sou o mesmo. Estou a sofrer e tu sabes muito bem porquê. Por acaso estás
contente com os danos que causaste? Os teus também estão a sofrer.
A rapariga baixou o olhar e só então nessa altura o governador reparou no ferido que jazia no
chão.
— Quem é este homem? Está muito ferido, mas não me parece nada que seja um dos nossos.
Salúquia olhou de novo para o governador com o ar firme.
— Encontrei-o por acaso, sim, quando fugi. Mas está ferido.
— Vejo que caiu numa das nossas eficientes armadilhas, não é assim? É um cristão! Mas para
esses já tu, Salúquia, sabes ser condescendente. O que achas que vos vou fazer?
Salúquia encolheu os ombros resignada.
— Faz o que tiveres de fazer e que achares que é justo!
Mas realmente o governador também já não era o mesmo. Respirou fundo e parecia
subitamente muito pálido. As dores voltavam a apoquentá-lo atrozmente. Não queria dar parte
fraca, muito menos naquele momento, mas a verdade é que lhe era praticamente impossível
continuar de pé.
O cristão, vendo-o encostar-se ao cavalo, perguntou muito sério e piedoso:
— Sofreis, senhor? Ora bebei um pouco desta água.
E fazendo das mãos uma concha, ofereceu-a ao governador.
O governador aceitou a água e bebeu-a num só trago. Depois correu a beber mais. Bebia sem
parar, porque só mesmo a água lhe aliviava as dores. Bebeu quase até perder o fôlego e se
engasgar. E depois, finda a sede, ficou uns momentos a olhar para a limpidez da nascente, sem
falar, sem se mover, como que hipnotizado pelo barulho suave da água a bater na pedra.
Estranhamente não se ouvia mais nada em redor, nem mesmo o barulho da guerra que ainda
devia travar-se na aldeia.
Quando voltou a olhar para Salúquia, repentinamente mais lúcido, exclamou:
— Que estranho! Sinto-me muito melhor agora. Mas muito melhor. Não sou físico, mas diria
que estou quase curado! Já nada me dói!
Salúquia tinha as lágrimas a correr pelo rosto. O governador tinha, pela primeira vez desde
que chegara a Almofala, um sorriso na cara. Foi até junto da jovem moura e pegou-lhe numa das
mãos e quis saber porque chorava a moura.
— Daria a vida por ti!
Puxando a rapariga para si num abraço, encostou o rosto dela no seu peito.
— Minha bela Salúquia! Como é que pudemos andar a viver separados por um ódio fictício?
Desde o primeiro momento que nos amamos! Fomos ambos orgulhosos e sofremos a cruel
vingança do destino. Mas agora estou curado e encontrei-te!
Entretanto, deu pela falta do cristão, mas não se importou.
— Parece que resolveu ir-se embora. Melhor assim. Tirou-me de possíveis embaraços. Quanto
a esta água... creio que tem poderes estranhos. Realmente muito estranhos.
Voltaram ao palácio e terão vivido felizes para sempre, como é sempre de bom-tom para
rematar estas histórias das mil e uma noites. Mais tarde, a localidade foi reconquistada pelos
cristãos, mas a lenda diz que Salúquia e o mouro se converteram e ali viveram até ao fim dos
seus dias. Quanto à água milagrosa que brota das nascentes de Almofala, parece que continua a
manter as suas extraordinárias virtudes, curando os enfermos e prolongando a saúde aos rijos.
AZUL E VERDE COMO A PAIXÃO

Terra de maravilhosos caprichos da paisagem e de uma tradição literária muito própria, não é de
admirar que existam nos Açores várias lendas (e com várias versões) que «explicam» a formação
desse lugar mágico e único no mundo que é a Lagoa das Sete Cidades, uma das maiores atrações
turísticas da ilha de São Miguel.
A versão que aqui se relata é de Ângela Furtado-Brum, professora e escritora que ao longo de
décadas se dedicou a recolher e a registar o rico património oral das ilhas.
Numa época muito, muito recuada, existia, precisamente no lugar onde hoje fica a freguesia
das Sete Cidades, um reino muito rico e próspero, com a sua própria corte, da qual fazia parte
uma princesa de olhos azuis, muito jovem, muito bela mas também dona de um enorme coração.
Sempre pronta a ajudar o próximo, nem que fosse simplesmente com palavras gentis e
conforto para alma, a princesa gostava também de contemplar a beleza natural das ilhas. Ia
muitas vezes sozinha passear pelas encostas verdejantes da ilha e, às vezes, sentava-se
simplesmente a ouvir o restolhar do mar contra as rochas ou os murmúrios da água de uma
ribeira.
Um dia, a princesa resolveu descansar um pouco num prado viçoso onde pastava um rebanho
comandando por um jovem pastor, também ele muito belo e de olhos verdes como o monte. Foi
um caso de amor à primeira vista! Logo os dois jovens encontraram nas coisas belas que ali a
Natureza lhes oferecia grande afinidade e motivo para conversarem durante horas. Ficaram
imediatamente apaixonados um pelo outro.
Nos dias e semanas que se seguiram, encontravam-se sempre no mesmo local, à mesma hora,
à sombra de uma velha árvore que serviu de cúmplice àquele amor que de dia para dia crescia e
se fortalecia. A princesa dos olhos azuis e o pastor dos olhos verdes chegaram mesmo a trocar
juras de amor eterno, sabendo que isso implicaria nunca mais terem olhos para outro alguém...
Infelizmente, a notícia dos encontros fortuitos entre a princesa e o pobre pastor chegou
depressa demais aos ouvidos do rei, que obviamente desejava ver a filha casada com um dos
príncipes dos reinos vizinhos por outros interesses. Zangado, proibiu a rapariga de voltar a ver o
pastor.
A princesa, conhecendo as intenções e o feitio do pai e sabendo que palavra de rei não pode
voltar atrás, não teve outro remédio senão o de acatar a decisão, mas pediu ao pai que lhe
permitisse um último encontro com o pastor do vale. O rei acedeu ao pedido.
Os dois encontraram-se pela última vez sob a sombra da velha árvore e falaram longamente da
sua vida. Falavam e choravam, e tanto choraram que as lágrimas dos olhos azuis da princesa
foram caindo no chão e formaram uma lagoa azul. Já as lágrimas do pastor eram tantas e tão
sentidas que pouco a pouco formaram uma mansa lagoa de águas verdes como os seus olhos, que
foi jorrando pela encosta até ao vale.
Os dois jovens nunca mais voltaram a ver-se, mas as duas lagoas formadas pelas suas lágrimas
perduram até hoje e ficaram para sempre unidas. São as lagoas das Sete Cidades. Uma é azul,
outra verde, e em dias de sol as suas cores são mais intensas como o olhar brilhante da princesa e
do pastor para sempre enamorados.
O PRÍNCIPE ROMUALDO

Conta mais uma lenda açoriana sobre a origem do nome da povoação de Urzelina, localizada na
ilha de São Jorge, que na cumeada da grande cordilheira montanhosa que a atravessa houve em
tempos um grande e altivo castelo, casa do belíssimo príncipe Romualdo. Mas o que lhe sobrava
em formosura faltava-lhe em juízo e sensatez!
Romualdo vivia despreocupado e desocupado, preenchendo grande parte dos seus dias com
orgias, banquetes, bailes e outras diversões sem regras ou pudor, que muito agradavam aos seus
amigos da corte mas punham a população muito descontente, pois naquela altura o povo
trabalhava de sol a sol, com muitos sacrifícios para se sustentar a si e também à própria corte.
Claro que Romualdo pouco ou nada se importava com os queixumes dos pobres. E muito
menos com o seu sono! Não era raro o príncipe e a corte levantarem-se de madrugada e saírem
do castelo aos primeiros raios de sol com o soar da trombeta real a anunciar mais uma caçada.
Em frente da porta principal do castelo foram estacionadas as seges, os cavalos, e apareceram
muitos criados de libré, carregados com os apetrechos destinados à caçada.
Os camponeses pobres e maltratados já tinham iniciado mais um dia de trabalho duro nos
campos, quando se deu o segundo toque da trombeta. Esta ecoou na madrugada a anunciar a
comitiva do príncipe, que partiu a grande velocidade, rindo de alegria e escárnio ao galgar os
montes atrás dos pombos-torcazes que levantavam voo num ápice, varrendo os campos.
No meio do êxtase da perseguição e da carnificina, Lina, princesa prometida ao príncipe e por
ele muito amada, cavalgava também entusiasmada entre campos, urzes e rochedos, em
perseguição dos animais que lhe fugiam, até que, sem se aperceber, acabou por se afastar da
comitiva. Quando os caçadores deram pela falta da princesa, já era tarde demais! Chamaram,
vasculharam todos os montes em redor, mas não havia meio de a recuperarem.
A caçada foi cancelada e agora, em vez de pombos, todos procuraram encontrar o rasto da
princesa, mas sem sucesso. A noite caiu sem notícias e a corte voltou desanimada e triste para o
castelo, adivinhando uma desgraça.
O mais desolado e combalido de todos eles era Romualdo, que apesar de bon vivant amava
intensamente Lina. Nessa mesma noite mandou encerrar todas as portas do castelo e cancelar
todas as festas e diversões até que houvesse notícias da princesa.
Pela primeira vez na sua vida, reuniu todos os seus cavaleiros sem ser para bailes e caçadas e
atribuiu-lhes uma tarefa a sério: a de procurar a sua amada. Conforme iam e voltavam sem
notícias, Romualdo desesperava. Durante noites e dias só se ouvia a sua a voz a gritar «Lina!
Lina!», enquanto corria como louco esfarrapado e desgrenhado por precipícios e ravinas à
procura da amada.
Depois de muitos e penosos dias de busca, quando voltava já para o seu castelo ao entardecer,
o príncipe Romualdo viu finalmente um cavalo morto ao fundo de uma profunda ravina
encostada ao mar. O animal tinha caído pela ravina e esmagara Lina com o peso do seu corpo. O
príncipe desceu o precipício e lá no fundo encontrou o cadáver da sua princesa, que acariciou
longamente e beijou entre lágrimas.
Nada mais lhe restava do que as memórias felizes dos tempos que tinham passado juntos. Ou
talvez quase nada... Num impulso, o príncipe cortou uma trança dos seus cabelos louros,
apanhou um ramo de urze e aí enrolou a trança, tendo depois voltado ao seu castelo com esta
singela recordação.
Desde esse dia, Romualdo nunca mais quis saber de festas e muito menos de caçadas. Passava
horas a contemplar o vazio e a acariciar a trança do seu amor. Com o tempo, os cortesãos
começaram a chamar à planta «urze de Lina». O príncipe não viveu muitos mais anos. Há quem
diga que morreu de uma pneumonia, há quem garanta que foi de desgosto. E com a sua morte
foram-se apagando também as lembranças do povo. Restou apenas a sepultura da Lina
completamente coberta de «urze de Lina».
Para completar este quadro e para que não restasse memória física do acontecimento, nem
sequer do castelo, Deus fez rebentar um vulcão junto aos alicerces do palácio. As correntes de
lava soterraram toda a corte maldosa, destruindo tudo à volta, correndo até ao mar. Não se sabe,
diz a lenda, se por homenagem à dor do príncipe, que Deus castigara, se pela tradição popular, o
nome «urze de Lina», e mais tarde por aglutinação «Urzelina», foi dado a esta povoação à beira-
mar.
AS SETE LAGOAS DA ILHA DAS FLORES

Se há coisa que tambem atrai com legitimidade os olhares dos turistas são as inúmeras caldeiras
de origem vulcânica dos Açores. Muitas delas deram asas à imaginação do povo, que gosta de
partilhar com os forasteiros as histórias «escondidas» por detrás da sua magnífica e única
paisagem.
Uma destas lendas fala das sete caldeiras da ilha das Flores e foi assim contada nas intrigantes
palavras de Ângela Furtado-Brum em Açores, Lendas e Outras Histórias (1999).

«Há muitos e muitos anos, um agricultor vivia nas Flores com um filho chamado João.
Todos os dias, este tinha de ir buscar água para a casa de seu pai, uma vez que próximo da
mesma não existia qualquer nascente. João passava a vida a brincar e a sonhar. Todas as
pessoas que o conheciam diziam que ele era de coração simples, puro e bom, e que um dia
iria realizar grandes feitos.
Um dia, João ia carregado com duas bilhas de água que tinha ido buscar a uma nascente
longe de sua casa quando, pelo caminho, encontrou uma poça de água das chuvas, onde
parou para descansar e brincar um pouco.
Falando consigo mesmo, coisa que as crianças fazem tão bem como qualquer adulto
preocupado, disse em voz alta: “Dizem as pessoas que noutros locais há lindas lagoas e
caldeiras, mas na minha ilha não há! Não faz mal! Eu vou fazê-las.”
Esquecendo-se do trabalho que já tinha tido ao ir buscar água tão longe de casa, pegou
numa das bilhas de barro e despejou-a no chão. Para seu espanto, com a mesma facilidade
com que derramara a água e sonhara em construir lagoas, viu crescer aos seus pés um
grande lago que se alojou no fundo de uma caldeira.
Felicíssimo com o acontecimento, João pulou de alegria e pensou: “Daqui para a frente,
sempre que encontrar poças de água vou fazer o mesmo!” Dito e feito, encontrou logo
outra poça de água à sua esquerda, poucos metros à frente. Não perdendo tempo, e com
confiança no que fazia, vazou a outra bilha de água e ficou a ver a água a espraiar-se e dar
origem a outra lagoa, desta vez muito funda.
Cheio de contentamento e esquecendo-se do trabalho que lhe dava ir buscar água, voltou à
nascente para ir buscar mais. Mal regressava com as bilhas cheias começou novamente a
sonhar, e encaminhado pelos seus sonhos de criança foi deambulando pela ilha,
encontrando pelo caminho sete poças onde despejou as suas bilhas, e dando assim origem
às sete lagoas da ilha das Flores.
Reza a lenda que foi assim que se formaram a Lagoa Funda das Lajes e várias outras
menos fundas, como a Caldeira Rasa, cujas margens são muito lodosas e tidas como
perigosas. Das brincadeiras do João nasceram ainda a Lagoa Branca, a Lagoa Seca (Santa
Cruz das Flores), a Lagoa Comprida, a Lagoa Funda e a Lagoa da Lomba. Todas lagoas
diferentes, cheias de águas límpidas e puras como os pensamentos do menino que as
criou.»
TERRA DE MILAGRES, SANTOS E HERÓIS
O MILAGRE DE CASCAIS

Em Cascais ainda hoje se encontram ecos de um milagre, que se encontra até pintado num
retábulo no interior da Igreja do Farol da Guia, mesmo ali ao lado da famosa Casa da Guia.
Segundo Fernanda Frazão, autora de Passinhos de Nossa Senhora — Lendário Mariano,
editado pela Apenas Livros em 2006, a história terá sido eternizada no referido retábulo pelo ano
de 1858.
As imagens contam que ali mesmo ao lado, junto ao cabo da Roca, uns anos antes tinha
desaparecido de casa um menino de tenra idade, cinco anos, mais coisa menos coisa. Durante
dias e dias, a mãe verteu lágrimas de dor e toda a gente se uniu para procurar o menino
desaparecido. Pensava-se que teria caído de um penhasco abaixo e fora levado pelas ondas do
mar.
A verdade, todavia, era bem diferente e muito mais sombria! As bruxas tinham-no tirado do
berço e lançado o seu corpo indefeso de um desfiladeiro virado para o mar.
Ao choro inconsolável do menino, sozinho entre as rochas e a fúria do mar, acudiram uns
pastores que passaram por ali uns dias depois. Surpreendidos, apressaram-se a levar a notícia
para a vila, onde adivinhavam uma mãe desgostosa. E realmente foi assim que a encontraram,
bem como a muitos que depois os acompanharam para ajudar a salvar o menino. Tirarem-no do
buraco que parecia nem ter fundo não foi fácil, mas ao fim de muitos trabalhos e entreajuda lá
conseguiram.
Assim que o viu são e salvo, a mãe correu para o abraçar e beijar. Já mais refeita do susto,
perguntou-lhe então como tinha ido ali parar, ao que o menino respondeu que tinham sido as tais
bruxas más que o tinham atirado para a cova mas que, por sorte, todos os dias passava por lá uma
senhora muito bonita e luminosa que lhe levava uma sopinha de cravos para ele comer.
Comovida, a aldeia em peso acompanhou então a mãe e o menino até à capela, para agradecer
a Nossa Senhora a bênção que acabara de receber.
Foi precisamente aí, mal pôs um pé dentro da igreja, que o menino disse alto e bom som:
— Ó mãe, ali no alto está aquela senhora que todos os dias de noite me dava as sopinhas de
cravo para eu comer!
Escusado será dizer que a partir daí passou a falar-se num milagre.
Ora reza também a lenda que este menino se chamava José Gomes, mas ficou conhecido em
Cascais pela alcunha de «Chapinheiro», e que durante o resto da vida foi sempre um homem
forte, feliz e generoso para com todos aqueles que com ele se cruzavam na faina do mar ou em
terra.
A SENHORA DO BALEAL

Atual santuário do surf, a praia do Baleal, junto a Peniche, tem uma história que não tem nada
que ver com ondas mas que é capaz de nos deixar a pensar. Ali perto, ainda hoje se encontram
vestígios da antiga Capelinha de Santo Estêvão e, no seu interior, da milagrosa imagem de Nossa
Senhora das Mercês. Tão antiga, esta imagem, que mesmo sendo de mármore e medindo mais de
treze palmos de altura queriam os mouros em fuga levá-la para Argel.
Contudo, no meio da confusão da Reconquista, um cristão que havia sido feito prisioneiro não
quis debandar sem a salvar. Já que se livrava ele dos infiéis, havia de livrar também a Senhora de
Argel. Só que o mouro que a carregava queria o seu peso em prata! O cristão, sozinho, sem
forças e carregando apenas algumas moedas de pouco valor, aceitou, destemido. Foi aí que se
deu o milagre da Nossa Senhora das Mercês: pondo na balança o pouco dinheiro em prata que
tinha no bolso, esta pesou mais do que a santa, que assim se resgatou e regressou à sua capela.
PENELA

A história que se segue remonta aos tempos de el-rei D. Afonso Henriques, primeiro Rei de
Portugal, e fala-nos de um dos mais belos monumentos da região centro, o Castelo de Penela,
situado na freguesia de Santa Eufémia, no distrito de Coimbra.
Edificado em posição dominante na serra, integrava a chamada «linha do Mondego» na época
da Reconquista e tinha como função a proteção da cidade de Coimbra, juntamente com o Castelo
de Montemor-o-Velho.
Mas esta foi também uma das posições mais difíceis de conquistar por D. Afonso Henriques,
que terá demorado várias décadas e feito várias tentativas infrutíferas para chegar àquele cume
estratégico, pois os mouros não baixavam a guarda e tinham Penela armada e protegida até aos
dentes!
Conta a história que foi usando um estratagema ardiloso que conseguiu penetrar na povoação.
Para sempre célebre nos livros de lendas e História terá ficado a frase que dirigiu aos seus
exércitos quando investiram sobre a fortaleza: «Coragem, homens! Já estamos com o pé nela!»
Este episódio da formação do reino de Portugal deu origem, claro, a alguns mitos e lendas, que
Gentil Marques magistralmente explorou e romanceou. Conta o etnógrafo na sua obra Lendas e
Narrativas que a luta por Penela terá recomeçado com o seguinte diálogo entre o Rei de Portugal
e o nobre D. Antão Gonçalves, o mentor do tal esquema pouco ortodoxo. Pelo meio, havia uma
linda moura e muita coragem, como a seguir se transcreve para não estragar as magníficas
palavras de Gentil Marques:

«— Falta agora apenas o outro castelo, Senhor!


El-Rei D. Afonso Henriques ergueu a cabeça e atirou o olhar para longe.
— É verdade, mas esse é mais difícil de tomar. Contudo, para nós, a sua posse tem grande
valor.
D. Antão Gonçalves avançou alguns passos.
— Se permitis, Senhor meu rei...
— Dizei.
O moço cavaleiro olhou em redor e prosseguiu, baixando a voz:
— A filha do governador desse castelo é a moura mais linda que eu conheço...
— Sim? Já a vistes?
— Bastantes vezes, Senhor... E ela também já me viu...
D. Afonso Henriques olhou-o com mais insistência.
— Estou a compreender-vos, Antão Gonçalves... Estais apaixonado por ela, não é
verdade?
— Sim, meu Senhor...
— Então, qual é o vosso plano?
— Senhor, farei de conta que sou um cristão renegado, e que por amor da bela moura me
quero converter à religião de Mafoma. Ela acreditará. Estou certo de que acreditará. E eu
poderei entrar livremente no castelo e preparar o assalto como melhor me parecer.
— Orgulho-me de vós, Antão Gonçalves — disse o rei, sorrindo. — Mas parece-me
demasiado o risco que ides correr.
— Oh, meu Senhor! — retorquiu o cavaleiro, sorrindo também. — Que risco poderá ser
demasiado para empresa tão grande e necessária?
E logo ali ficou assente entre ambos, no maior segredo, que o jovem Antão Gonçalves
tentasse a ousada aventura.
Chamava-se Alina, a filha do governador. E era realmente muito bela. Deliciosamente
bela.
A linda moura já dera pela presença do jovem cristão rondando o castelo e olhando-a de
longe. Porque não confessá-lo? O seu coração ainda virgem de amor pulsara mais forte e
mais apressado, quando o viu. Mas ele era cristão e ela era moura...
Nessa noite, Alina, recostada no seu varandim, olhava o céu escuro. Como faziam falta as
estrelas!... Como preferia as bonitas noites de primavera a essas pesadas noites de
inverno!... Em todo o caso, a brisa que corria, acariciando-lhe os cabelos, sabia-lhe bem.
Dava-lhe uma suave sensação de prazer. Quase uma sensação de sonhar acordada...
Foi talvez por isso que não se assustou muito quando viu surgir aquele vulto diante de si.
Parecia-lhe que continuava a sonhar...
Porém, o vulto falou, e o sonho desfez-se.
— Não vos assusteis...
E agora, sim, ao olhá-lo de frente e ao reconhecer nele o ousado cavaleiro cristão, ela
assustou-se de verdade. Tremia. A sua voz mal se ouviu.
— Que quereis daqui, senhor?... Fugi depressa, que vos podem matar!
Ele sorriu meigamente.
— E causar-vos-ia pesar a minha morte, senhora? Oh, como vos agradeço do coração!
Inquieta, sem saber que fazer ou dizer, Alina, a bela princesa moura, inquiriu de novo,
ainda mais trémula:
— Mas que desejais daqui, senhor?
— Apenas falar convosco.
E sem que ela pudesse opor-se, o jovem cavaleiro cristão confessou-lhe todo o seu
enorme tormento. Como a conhecera e desde logo se apaixonara por ela... Como vivera
ardendo no desejo de lhe falar... Como resolvera abandonar os seus companheiros para
sempre, e ir oferecer-lhe o seu amor devotado e fiel.
— Acreditais em mim, Alina?
— Acredito… e agradeço a Alá ter-vos enviado ao meu encontro!
Ele baixou os olhos. Timidez? Embaraço? Remorso? Só ele o sabia. Depois, Alina
confidenciou:
— Ide falar com meu primo Ibdne-Salat e dizei-lhe que eu lhe peço para vos arranjar
abrigo esta noite. Amanhã falarei com o senhor meu pai.
Cavalheirescamente, D. Antão Gonçalves ajoelhou-se e beijou-lhe a mãozinha delicada e
trémula. E esse beijo soube a perfume. Soube a lábios. Soube a amor!
Gostando como gostava de sua filha, o velho governador também acreditou em tudo o que
ela lhe disse. De modo que o jovem D. Antão Gonçalves, transformado em mouro, passou
a ser o noivo da bela princesa. Mas embora sinceramente enamorado, ele não se deixava
prender apenas pelos devaneios. Logo na noite seguinte, depois de Alina adormecer, D.
Antão saiu tão habilmente como entrara. E dirigiu-se ao acampamento dos portugueses,
que se encontravam bem perto, aguardando o sinal para o assalto...
Mal entrou no acampamento, usando as senhas previamente combinadas, Antão
Gonçalves correu a dar notícias a D. Afonso Henriques.
— Então?... Tudo bem?
— Graças a Deus!
E o jovem capitão português descreveu ao rei como estava organizada a defesa do castelo.
E informou-o de que na manhã seguinte os mouros iriam sair até à ribeira próxima, para
dar de beber ao gado.
Os olhos de D. Afonso Henriques brilharam com mais fulgor.
— Que dizeis? Repeti!
Antão Gonçalves repetiu o que acabara de anunciar. E o primeiro Rei de Portugal ergueu-
se, tomado de alegre alvoroço.
— Eis a ocasião que eu procurava, Antão Gonçalves!... Chegou a hora de conquistarmos
o castelo. Escutai...
E em segredo — de forma que nem a brisa da noite pudesse ouvir as suas palavras —, o
rei expôs ao cavaleiro o seu plano de ataque. E à medida que escutava, Antão Gonçalves
sorria.
— Amanhã, o castelo será nosso, Senhor meu rei!
— Se Deus quiser, será, Antão Gonçalves!
Na manhã seguinte, tal como estava previsto, um grupo de mouros saiu do castelo para ir
dar de beber ao gado na ribeira vizinha.
Antão Gonçalves (que não conseguira sequer ter tempo para dormir) andava por ali,
espreitando tudo e todos como se nada fosse com ele. O primo de Alina, Ibdne-Salat, fora
o escolhido para chefiar o grupo que saíra, e isso deixou o jovem Antão Gonçalves mais à
vontade.
Ele viu a abalada dos homens e do gado, no meio de grande alegria. Depois, aguardou
calmamente que Alina se levantasse e, como de costume, fosse catar seu pai no bonito
varandim situado junto às ameias.
Sorriu-lhe de longe, acenando-lhe meigamente; e, correspondendo à chamada que ela
fazia, apressou-se a subir.
— Que Alá esteja convosco...
O governador olhou-o.
— Sentai-vos aqui, mancebo... Temos de combinar com minha filha Alina a festa nupcial.
Os dois jovens olharam-se e sorriram. Olhar de amor. Sorriso de amor. Entretanto, o velho
governador desenvolvia o seu projeto para uma festa sem par nas redondezas...
Assim o tempo foi passando, até que Alina deu pelo regresso do grupo que saíra.
— Vede, meu pai... Enfeitaram o gado com grandes ramos... Vede que bonito efeito isso
faz!
O velho governador espreitou sem grande interesse e voltou a recolher-se à sombra,
entregando a cabeça aos cuidados de Alina.
— Cata, minha filha, cata...
Para Antão Gonçalves, aqueles instantes eram de sofrimento. Ele sabia que tudo aquilo
fazia parte do plano de D. Afonso Henriques. E só esperava o momento de atuar.
A certa altura, fixando melhor o grande grupo que se aproximava, Alina perguntou
ingenuamente:
— Meu pai, as moitas podem andar?
O velho governador riu e não respondeu. Mas Alina estava confusa. De facto, além de o
gado vir enfeitado com ramadas, ela tinha a impressão de que no meio dos animais se
deslocavam autênticas moitas de arvoredo.
— Oh, meu pai, vede bem... As moitas estão a andar!
Antão Gonçalves pôs-se alerta, mas o velho governador voltou a soltar uma alegre risada
e a dizer:
— Ora, minha filha, estás doidinha, com certeza!
Porém, Alina tornou a insistir.
— Pois eu vejo as moitas a andar, no meio dos animais, meu pai!
Estranhando a insistência, o velho governador abriu os olhos e fixou-os no grupo, que
atravessava nesse momento a porta do castelo.
— Moitas a andar? Que loucura!
Mas de repente deu um salto, tão ágil como se tivesse menos idade, e exclamou:
— Tens razão! As moitas andam! Fomos traídos!
Logo o grito de alarme soou pelas ameias, chamando todos às armas. Mas era tarde.
Muito tarde! Encobertos pelas ramadas das árvores e de mistura com os animais (cujos
guardas tinham sido mortos junto à ribeira, segundo o plano de D. Afonso Henriques), os
guerreiros cristãos saltavam sobre os inimigos desprevenidos, matando-os sem dó nem
piedade.
E o jovem D. Antão Gonçalves, perante o olhar espantado da bela Alina, correra a abrir
outra das portas do castelo, gritando a plenos pulmões:
— Avancem! A praça é nossa! Estamos com o pé nela!
E logo o próprio Rei D. Afonso Henriques e os seus homens mais desenvoltos,
aproveitando a porta aberta por Antão Gonçalves — que para sempre ficaria depois a ser
chamada a Porta da Traição —, entraram no castelo, que nunca mais deixou de ser
português. E dizem que foi da exclamação do moço prometido de Alina — que ele traiu
pelo seu rei — “Estamos com o pé nela!” — que derivou o nome de Penela, dado ao
castelo e à povoação.»
PIRATAS E FAQUIRES

Quem melhor do que aqueles que vivem à beira do mar para contar fantásticas histórias de
piratas sanguinários e forasteiros misteriosos? A lenda que se segue é uma dessas deliciosas
narrativas de tradição oral que ainda hoje se contam à lareira e com um brilho inflamado nos
olhos, concretamente na pequena ilha do Corvo, arquipélago dos Açores.
A sua origem enquanto património de tradição remonta ao século XV, mas só foi recolhida e
registada nos anos 1990 por Ângela Furtado-Brum, professora açoriana que durante décadas se
dedicou à investigação e ao registo deste riquíssimo património imaterial. Rezam assim as suas
palavras:

«Por meados do século XV, no pequeno aglomerado populacional da ilha do Corvo, havia
uma mulher que tinha um filho bastardo. Já nessa altura, os corvinos, apesar da sua
bondade natural, rejeitavam as mulheres que tinham filhos sendo solteiras, pondo-as de
lado ou obrigando-as a sair da ilha. Essa mulher era tida como bruxa e acreditava-se nos
seus poderes maléficos.
O filho, Alípio, sofreu muito na infância e já quando rapazote com os vexames por que
sua mãe passava.
Ora, um certo dia, os piratas argelinos, em busca de gado e de outros produtos, atacaram a
ilha do Corvo e levaram o rapaz, que, querendo fugir à terra, não impôs resistência, antes
se ofereceu aos invasores.
Depois de viajarem muito tempo, chegaram a Túnis, onde o jovem corvino foi oferecido a
um faquir. De Alípio passou a Ali. Aprendeu todos os poderes dos faquires mais
eminentes. Via fenómenos através de corpos opacos a léguas de distância; deixava-se
cortar por alfanges e punhais, aparecendo rapidamente curado. Apesar de toda esta
maravilhosa penetração de espírito, própria de um faquir, e de trazer bordado no peito um
pentagrama, emblema da sua autoridade intelectual em magia, aborrecia a dura penitência
e a pobreza que todo o faquir pratica para adquirir a santidade.
O jovem Ali cobiçava a riqueza e guardava na alma uma frase que a sua mãe lhe dizia, há
muitos anos, na pobre casa, à beira-mar, naquela pequena ilha tão distante: “Pobreza não é
vileza, mas é um ramo de picardia.”
Quando atingiu a idade de homem feito, marcado pela ideia de riqueza e talvez pela ânsia
íntima e quase inconsciente de voltar ao Corvo e se vingar, abandonou o sábio faquir com
quem vivia e incorporou-se num bando de piratas, como comandante. Cantava, com um
tom de fatalismo muçulmano:

Mandei ler a minha sina


E a sina me respondeu
Que um triste fugir não pode
A sorte que Deus lhe deu.
Saíram do porto marroquino de Larache em duas galeras, rumo às ilhas dos Açores e,
porque o vento assim o permitiu e a manha e o poder do faquir assim quiseram, foram ter
à ilha do Corvo.
Perante as negras penedias onde passara a sua infância, Ali experimentou uma grande
confusão de sentimentos: a alegria de voltar a ver a terra perdida e o desejo de vingar a
sua mãe.
Mandou lançar ferro para os lados da baía da praia, onde não os podiam ver do povoado.
Conhecia o lugar como a palma das suas mãos. Ali tinha brincado horas a fio, apanhando
peixes, estrelas do mar ou nadando nos dias quentes de verão. Lançaram ao mar uma
lanchinha e vieram para terra.
Entretanto, uma mulher que estava a apanhar lapas na Ponta da Areia, quando viu aquela
galera por ali dentro, desconfiou que eram piratas. Na altura só se falava neles e nos
estragos que faziam. Largou as lapas e, a correr, veio para as casas anunciar em altos
gritos o que tinha visto. Os homens da terra alvoroçaram-se e foram para cima dos
cabeços, situar-se em bom lugar, porque como o terreno era escarpado, os piratas só
poderiam sair por um determinado sítio.
Quando os invasores vinham pelas rochas fora, decididos a roubar gado e quem sabe que
outros prejuízos fazer, os homens da terra foram às ombreiras das paredes e começaram a
rolar pedras com rapidez e força para cima dos piratas, que recuaram, dizendo:
— Se vamos para diante, a gente morre.
Desistiram do seu intento, meteram-se no botezinho para ir para a galera, que estava
ancorada mais fora. Mas, ou porque o mar mexia muito ou porque com a pressa a
manobra foi mal feita, o barco quebrou.
A raiva cresceu entre os piratas, pois a nado nunca conseguiriam chegar ao navio e,
ficando ali, seriam caçados pelos da terra. Desconfiados de que o comandante os tinha
trazido para serem capturados pelos corvinos, disseram:
— Tu és filho do Corvo, armaste-nos uma emboscada!
Sacaram as facas e cortaram-lhe o pescoço, ficando a cabeça caída na areia.
Os piratas conseguiram fugir, o corpo do comandante foi levado pelo mar. Mas a cabeça
degolada ficou e os da terra, quando se aproximaram, reconheceram, por um sinal na cara,
que se tratava de Alípio, há tanto tempo levado pelos piratas.
Enterraram a cabeça na areia, mas ela no dia seguinte apareceu desenterrada, ululando
pelos rochedos. E assim foi durante muitos e muitos anos, até que por fim se aquietou
para sempre a alma do infeliz corvino, feito faquir e depois pirata.»

Na ilha do Corvo, este não é o único relato de tradição oral em que o sobrenatural se cruza.
Uma outra narrativa muito conhecida na ilha conta-nos que, em pleno século XVI, esta estava
praticamente rodeada por um castelo natural formado por rochas muito mais altas do que o mar,
na sua fúria incontida, ali depositava sedimentos que serviam de barreira de proteção natural.
O amontoado de pedregulhos protegia a população das ondas e das intempéries, mas não
servia de muito quando os piratas resolviam atacar aquela terra perdida no meio do oceano
Atlântico.
De cada vez que atracavam nos rochedos, deixavam um rasto de destruição e saque, mas, com
o tempo, os intrépidos corvinos arranjaram maneiras de se defender. Na época, a principal
povoação era o Porto da Casa. Ficava sobre uma rocha junto ao mar, muito perto de uma praia de
calhaus escuros e soltos. Era muito bonita e descortinava-se ao longe no horizonte pela sua linda
ermida pintada de branco. Mas, também por isso, o Porto da Casa era um dos lugares mais
acessíveis aos piratas.
Num temeroso dia cinzento, daqueles em que o céu ameaça explodir de repente para fustigar a
terra com raios e coriscos, enquanto os homens se apressavam a recolher as ovelhas e as
mulheres fiavam a lã e faziam os arranjos da casa, um grande grupo de piratas desembarcou no
porto, para se proteger da tempestade.
A gente do Corvo, assim apanhada desprevenida, julgou que o seu fim estava próximo! Quase
não tinham armas para se defender! Muitos dos homens mais fortes tinham saído para a pesca e
ficado retidos noutras ilhas por causa do estado do mar.
Os corvinos bem sabiam o que aconteceria a seguir: os piratas roubariam e destruiriam tudo à
sua passagem.
Porém, os corvinos não são gente de desistir. Subiram para o topo da rocha e de lá desataram a
atirar-lhes todas as pedras que estavam ao seu alcance. Enquanto lutavam com quantas forças
tinham, clamavam pelo auxílio de Nossa Senhora do Rosário.
Para o lugar onde se travava a luta, o padre tinha levado nos braços uma pequena imagem da
Senhora que há muitos anos tinha dado à costa, precisamente nos calhaus do Porto da Casa, e
que desde então estava no altar na ermida.
A luta foi impiedosa, mas os do Corvo eram rijos e esmagaram os piratas. Tomaram-lhes
muitas armas e fizeram-nos fugir de volta para o mar, onde foram ao encontro de um navio de
mouros que lhes tratou da saúde! E isto sem que nenhuma perda fosse infligida ao povo da ilha!
Desde então, os corvinos juram a pés juntos que a vitória sobre os selvagens se deveu a Nossa
Senhora do Rosário, padroeira da gente do Corvo, que, lutando a seu lado, desviou o mal do seu
caminho.
Os piratas, amedrontados, durante muito tempo não voltaram a atacar a mais pequena ilha dos
Açores. Constava naquelas bandas que diziam entre si:
— Não vamos ao Corvo que está lá uma «Margarita» que apara as balas. A gente envia um
tiro, ela manda sete para bordo e mata sete de uma vez!
Essa «Margarita» era, claro, Nossa Senhora do Rosário, que, por este e outros milagres,
passou a ser chamada Nossa Senhora dos Milagres. Já não está na ermida no topo da rocha, mas
vive atualmente numa linda igreja, mais abaixo, numa rua estreita da pequena vila do Corvo.
S. MIGUEL ARCANJO

Eis-nos agora no Largo de São Miguel, coração da mais típica encosta de Lisboa, em Alfama. A
ele vão dar becos, vielas e escadinhas apertadas, por onde se cruzam turistas e fadistas, que
desfrutam daquele encanto típico dos bairros mais antigos da capital.
O largo mais popular do bairro é topónimo da Igreja de S. Miguel, que ali começou a ser
construída no longínquo ano de 1150.
Nessa altura, também a freguesia envolvente se chamava São Miguel. A designação refere-se a
S. Miguel Arcanjo, celebrado pela Igreja a 29 de setembro, e ao qual as liturgias atribuem o
papel de defensor do Povo de Deus por liderar os exércitos celestiais e acompanhar as almas dos
mortos até às portas do céu.
Em Portugal, o culto a S. Miguel Arcanjo remonta a D. Afonso Henriques, que fez dele o
primeiro padroeiro de Portugal, mas apenas até ao reinado de D. João I, que o trocou por S. Jorge
por via do seu casamento com D. Filipa de Lencastre, posteriormente também substituído após a
Restauração de 1640 por Nossa Senhora da Conceição.
Claro que também aqui há um resquício de lenda: ecos antigos da voz do povo garantem que
em 1147, antes de defrontar os mouros em terras escalabitanas, o primeiro Rei de Portugal teria
invocado o seu auxílio, sendo prontamente atendido.
Segundo a lenda, S. Miguel Arcanjo fez descer dos céus o seu poderoso punho alado,
derrotando impiedosamente as forças sarracenas. Certo é que, desde então, não mais houve
sombras de domínio mouro na capital.
UM DRAGÃO EM ALJUBARROTA

Falemos agora em S. Jorge para relembrar que o seu culto foi introduzido em Portugal nos
primórdios da nacionalidade, através dos cruzados ingleses que participaram na Reconquista,
estando entre alguns dos seus devotos ilustres não só D. João I como também o Condestável
Nuno Álvares Pereira.
Um dos feitos mais conhecidos de S. Jorge tem que ver com a morte de um dragão terrível que
atormentava a vida dos habitantes de Silene, na Líbia.
Para acalmar as suas fúrias dantescas, os habitantes da cidade ofereciam-lhe duas ovelhas por
dia. Um dia, porém, o dragão tornou-se mais exigente e reclamou o sacrifício da única filha do
Rei da Líbia. Foi S. Jorge quem a defendeu! Montado a cavalo, feriu o dragão com a sua lança e
depois matou-o em frente dos habitantes da cidade, exigindo em troca a sua conversão ao
cristianismo.
Todavia, os habitantes de São Jorge, perto de Aljubarrota, reclamam uma outra versão passada
na sua terra. Nesta história bem portuguesa, S. Jorge era um dedicado oficial romano
posicionado na região e que tinha por hábito mandar os seus homens dar de beber aos cavalos na
chamada «Fonte dos Vales», num ribeiro da mata.
Um dia, os soldados confrontaram-se com uma incrível surpresa! Quando os cavalos bebiam,
surgiu da fonte um dragão que logo os devorou. Claro que os soldados, com medo de terem o
mesmo triste destino, debandaram dali para fora e recusaram-se a voltar àquela fonte
amaldiçoada. Por isso, S. Jorge não teve outro remédio senão ir lá sozinho.
Assim que se dirigiu à fonte, deu de beber ao seu cavalo e viu o dragão erguer-se
ameaçadoramente do fundo da água, mas não fugiu! Matou-o com a sua lança. Foi então
construída naquele local uma capela, que perdura até hoje, onde foi colocada a imagem de S.
Jorge a cavalo, dominando o temível dragão.
O CASTELO DO SABUGAL E O MILAGRE DAS ROSAS

O milagre das rosas, que tem como protagonista a Rainha Santa Isabel, é provavelmente a nossa
mais bela e conhecida lenda histórica. A época exata do aparecimento desta lenda na tradição
oral portuguesa é difícil de determinar. Crê-se que circularia oralmente pelo país nas últimas
décadas do século XV. O mais antigo registo conhecido é um retábulo quatrocentista conservado
no Museu Nacional de Arte da Catalunha e o primeiro registo escrito do «milagre das rosas»
encontra-se na Crónica dos Frades Menores. Curiosamente, sobre a própria tia materna da
rainha, Santa Isabel da Hungria, assim como de Santa Cacilda e de Santa Zita, contam-se lendas
muito idênticas à do «milagre das rosas». Ainda assim, dá gosto relembrá-la «à letra», nas
emocionantes palavras de Gentil Marques.

«Chegara o mês de janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase
destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruíram-se rapidamente. Isso fora possível
porque a rainha D. Isabel velava por elas.
Quando algum desgraçado se via sem pão dentro de um lar minado pela doença, logo
procurava a sua rainha. E se nem sempre regressava com saúde para o corpo, pelo menos
trazia pão para a boca, e palavras tão lindas ressoando aos seus ouvidos, que por si só já
constituíam consolação para o seu espírito.
De todos, essa esposa e filha de reis cuidava como se fossem pessoas suas. Levava o seu
zelo ao ponto de ir ela própria vigiar os trabalhos em curso nas casas das monjas. E os
operários, desvanecidos com a real presença, e ainda com os auxílios monetários que D.
Isabel trazia aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor.
Porém, como acontece neste mundo, a rainha não tinha somente amigos. E certa vez um
despeitado da corte procurou azedar o ânimo de el-rei D. Dinis. Aproveitando um dos
momentos em que estava a sós com o rei, encetou o diálogo que há muito andava bailando
no seu cérebro:
— Perdoai-me, Senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado.
O rei olhou-o com certa altivez.
— Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis.
O cortesão mordeu os lábios e disse:
— Senhor meu Rei... A Rainha, vossa digna esposa, dispõe com bastante liberdade do
vosso tesoiro.
D. Dinis franziu as sobrancelhas:
— Que dizeis? Explicai-vos e já!
O fidalgo tornou com humildade fingida:
— Meu Senhor, acreditai no que vos digo... A Rainha gasta de mais...
— Mas como sabeis isso?
— Oh? É fácil de saber, meu Senhor... Só os vossos bons olhos não querem ver a verdade.
Se me permitis...
O rei encolerizou-se.
— Falai! Mas falai de uma vez!
O fidalgo baixou a cabeça e declarou numa voz um tanto incerta:
— Oh, meu Rei e Senhor! Só vos quero ajudar… O dinheiro desaparece, esgota-se, some-
se... São as esmolas, as obras das igrejas, os empréstimos, as dádivas, as doações a
conventos… enfim... uma loucura, Senhor! É necessária a vossa intervenção...
Um grito do Rei de Portugal cortou-lhe a frase:
— Basta! Eu sei bem o que hei de fazer!
D. Dinis levantou-se, fazendo recuar o fidalgo. Em largas passadas pelo aposento,
procurava acalmar a impetuosidade do seu temperamento belicoso. Seria verdade o que
acabavam de lhe dizer? Sim, devia ser verdade. A mentira representaria nesse momento
um desmedido arrojo. E ao homem que ele tinha na sua frente sobrava-lhe em mesquinhez
o que lhe faltava em audácia. E todavia… vir à sua presença pôr em xeque a própria
rainha não seria já um ato destemido?
O rei parou de andar de um extremo ao outro da saleta. Olhou fixamente o fidalgo, que
baixou os olhos, e ordenou:
— Deixai-me só! Preciso de pensar no caso sem a sensação de estar a ser espiado.
Inclinando a cabeça, o fidalgo retirou-se em silêncio. Conhecia bem o rei e sabia de
antemão que as suas declarações o tinham impressionado. Quanto ao monarca, logo que
ficou longe das vistas do seu súbdito, deixou-se cair numa cadeira, murmurando consigo
mesmo: “É isso! Tenho de pôr cobro de uma vez para sempre aos hábitos excessivamente
misericordiosos da Rainha! E será o mais breve possível!”
Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando D. Isabel saía dos Paços de
Coimbra acompanhada pelas damas e pelos cavaleiros do seu séquito para se dirigir às
obras de Santa Clara e espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de súbito, pela frente, a figura
desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente:
— Bom dia, Senhora! Ia partir para uma caçada, mas lembrei-me de vos saudar.
— Agradeço-vos a boa ideia, Senhor.
A rainha disse estas palavras sorrindo, mas instintivamente recuou um pouco, como a
disfarçar o que levava no regaço. Porém, esse gesto, embora mal esboçado, não escapou à
perspicácia de D. Dinis. Tentando esconder a suspeita que o assaltara, ele perguntou de
novo, com a cortesia própria de um rei:
— Podeis dizer-me, Senhora, onde ides tão cedo?
D. Isabel empalideceu. O coração bateu-lhe mais apressado e, após certa hesitação,
respondeu com voz branda:
— Vou... armar os altares do Mosteiro de Santa Clara.
Então el-rei olhou-a de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-se menos agradável. O
sorriso cortês desapareceu-lhe dos lábios enquanto perguntava:
— E que levais no vosso regaço, Senhora? À-la-fé que pareceis receosa. Nem quero
acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos vossos protegidos... Isso seria
contra todas as minhas ordens e contra todos os meus conselhos. Dizei-me, pois, o que
levais no regaço.
A rainha tornou-se ainda mais pálida e por momentos permaneceu silenciosa. Elevava a
Deus o pensamento, pedindo-Lhe aflitivamente o Seu divino auxílio. Alarmada, toda a
comitiva olhava o rei, receosa da sua cólera. D. Dinis fixou de frente a rainha, que dava a
ideia de estar presente apenas em corpo. Sentiu fugir-lhe toda a calma de que se tinha
revestido e gritou-lhe:
— Então, Senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam à minha volta? Sempre
é verdade que levais no vosso regaço dinheiro para oferecer aos maltrapilhos que
protegeis?
D. Isabel olhou o rei como quem torna de um sonho. O rubor voltava-lhe às faces, o
sorriso brincava-lhe de novo nos lábios. E na sua voz melodiosa e pausada, respondeu:
— Enganai-vos, Real Senhor. O que levo no meu regaço... são rosas para enfeitar os
altares do mosteiro!
D. Dinis sorriu com ironia.
— Rosas? Como vos atreveis a mentir, Senhora? Rosas em janeiro?... Pois ficai sabendo:
se aqui estou neste momento… se aqui vim, é porque alguém me garantiu que leváveis
dinheiro... Compreendeis agora?
O rosto da rainha não se contraiu sequer, humildemente. E, ante o pasmo e a aflição de
quantos a rodeavam, insistiu com firmeza:
— Enganai-vos, Senhor! E enganou-se também quem vos informou. São rosas o que levo
no regaço!
D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de cólera e a sua voz tornou-se ainda
mais dura:
— Insistis na vossa mentira, Senhora? Então... mostrai-me essas rosas!
Serenamente, ante o olhar atónito do rei e de todos os que ali se encontravam, a rainha D.
Isabel abriu o regaço e deixou ver um ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava:
— Vede, Senhor… Vede com os vossos olhos!
Houve um ligeiro murmúrio de pasmo entre a comitiva. El-rei D. Dinis, diante de tão
grande prodígio, olhava atónito para as flores e para as mãos da rainha, sem conseguir
pronunciar uma palavra. Estava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de
estranho que o impressionava e confundia. E só momentos depois conseguiu sorrir e
murmurar:
— Perdoai-me, Senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver rosas tão lindas neste
tempo!
Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus olhos, na suave expressão
do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus lábios. Cumprimentando-a com galhardia, o rei
afastou-se, deixando que a rainha seguisse o seu caminho.
Então, de novo, D. Isabel elevou os olhos ao Céu. O seu ar harmonioso e a paz que
resplandecia do seu rosto entraram na própria alma de quantos compunham a sua
comitiva. Ninguém se atrevia a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade do
momento com uma alegria interior de difícil exteriorização.
Foi a própria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha a caminho do Mosteiro de
Santa Clara. Lá a esperavam os desgraçados que viviam das esmolas da sua mão
benfeitora, do seu olhar carinhoso, da sua palavra tão cheia de consolação. E lá estavam
também os altares, esperando a sua graciosa ajuda.
Daí a pouco já toda a cidade de Coimbra se encontrava ao corrente do estranho prodígio
que representava o pão e o dinheiro transformados em rosas. O povo proclamava, de
lágrimas nos olhos:
— Foi um milagre! Foi um milagre! É santa a nossa rainha! Bendito seja Deus que a deu
ao nosso reino!
E o povo, gente grande com alma de menino, dentro das suas inesperadas reações, é
aquele cuja voz deve ecoar no Céu.
Assim, saltitando de boca em boca, o milagre das rosas chegou até nós e continuará para
além dos séculos.»
A LUZ DE CARNIDE

Na zona do Colégio Militar existem vários topónimos com a designação de Luz. É o caso do
Largo da Luz, Azinhaga da Luz, Estrada da Luz ou Travessa da Luz. Todos eles têm por
referência comum Santa Maria da Luz e uma curiosa lenda: Nossa Senhora, aureolada de luz,
terá aparecido a um jovem natural de Carnide, chamado Pero Martins, que se encontrava no
degredo.
Das sucessivas vezes que lhe apareceu na cela, prometeu livrá-lo do cativeiro, mas só se
acatasse a missão de, ao regressar a Carnide, erguer na zona então conhecida como Fonte da
Machada uma ermida dedicada a Santa Maria da Luz, cuja imagem até encontraria perto daquele
local.
Pero Martins foi libertado e regressou a Portugal em 1463, tendo pouco tempo depois
encontrado a imagem de Nossa Senhora da Luz mesmo nas cercanias da Fonte da Machada, tal e
qual como lhe dissera a boa senhora.
Com uma fé inabalável, empenhou-se em recolher contribuições dos seus vizinhos, assim
como a licença do bispo de Lisboa para poder construir a ermida, na qual a imagem foi
solenemente entronizada no dia 8 de setembro de 1464.
Pero Martins, que granjeava grande admiração entre os seus, foi sepultado na ermida em 1466
e esta foi posteriormente anexada à Igreja de S. Lourenço de Carnide, cujo pároco ficou com o
encargo de manter o culto e dar continuidade às festividades religiosas em honra de Nossa
Senhora da Luz, as quais persistem até aos nossos dias com a realização de uma grande feira e
espetáculos a 8 de setembro.
A LENDA DA PORTA DA TRAIÇÃO

Em Óbidos contam-se outras histórias curiosas sobre a intervenção divina na formação do reino
de Portugal. Mas como diz — e bem — o ditado, Deus às vezes escreve certo por linhas tortas, e
parece ter sido esse o caso da famosa Porta da Traição.
O que conta a lenda é que tudo aconteceu numa noite escura e fria, sem luar.
Os exércitos de D. Afonso Henriques cercavam a fortaleza de Óbidos, onde os mouros
resistiam estoicamente já há cerca de dois meses.
Os cristãos prepararam um novo ataque em surdina. Antes de se retirarem cada um para a sua
tenda, D. Afonso Henriques e Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, decidiram que a tentativa de
assalto ao castelo seria realizada na madrugada do dia seguinte, antes de se retirarem para as suas
tendas.
Dormia ferrado o Lidador quando repentinamente foi acordado pela voz de uma misteriosa
mulher que lhe pedia para ser conduzida à tenda do Rei de Portugal, pois tinha algo importante a
comunicar-lhe.
A jovem dizia que vivia no castelo dos mouros desde criança, mas não sabia se era realmente
moura porque nunca tinha conhecido os seus pais. Gonçalo Mendes da Maia acordou
estremunhado e ficou extremamente desconfiado, pois temia que fosse uma cilada dos mouros.
Por isso, foi com alguma relutância que o Lidador conduziu a jovem à presença do rei.
Quando chegou junto de D. Afonso Henriques, a rapariga revelou-lhe que há três noites
consecutivas que sonhava o mesmo sonho, em que lhe aparecia um homem ainda novo, de
barbas castanhas e olhar doce, que a incumbia de transmitir uma mensagem importantíssima ao
Rei de Portugal. Segundo a tal aparição, D. Afonso Henriques deveria reunir os soldados só à
última hora e liderá-los num ataque-surpresa feito na parte fronteiriça do castelo, enquanto
Gonçalo Mendes da Maia se deveria dirigir muito discretamente e acompanhado por apenas dez
homens às traseiras da fortaleza. Aí estaria à sua espera a jovem donzela, que lhes abriria uma
porta para os deixar passar enquanto os mouros estariam entretidos a combater no outro lado.
No final do sonho, o homem de olhar doce prometia Óbidos aos cristãos mas também a
salvação à jovem donzela, a quem incumbira da arriscada missão. O Lidador não achou piada
nenhuma àquela conversa e depois de a ouvir ficou ainda mais desconfiado. Todavia, D. Afonso
Henriques já não se atrevia a duvidar dos desígnios divinos após a graça recebida no milagre de
Ourique. Por isso, na manhã seguinte, mesmo com o descontentamento e a cautela do Lidador,
Óbidos foi conquistada conforme o sonho da misteriosa jovem, que, pasmem-se, nunca mais foi
vista. Já a porta que franqueou a entrada dos cristãos ficou para sempre conhecida como a Porta
da Traição.
Esta lenda histórica de Óbidos dá-nos ainda a oportunidade de recordar Gonçalo Mendes da
Maia, uma das figuras mais importantes do reinado de D. Afonso Henriques e sempre
relembrado pela sua coragem e determinação. Até mesmo na hora da morte.
Rezam os registos históricos que Gonçalo Mendes da Maia, no longínquo ano de 1170,
decidiu celebrar os seus 95 anos com um ataque ao famoso mouro Almoleimar. Uma festa
simples e tranquila para um nonagenário!
Entusiasmado, saiu bem cedinho da cidade de Beja, acompanhado por trinta dos seus melhores
oficiais e trezentos cavaleiros. Não se pode dizer que não preparou uma festa em grande!
Mas note-se que Gonçalo Mendes da Maia tinha quase tantos anos de vida como de guerra e a
sua estratégia não era à toa. Sabia que naquela região o exército de Almoleimar era muitas vezes
superior em número. Só que o Lidador tinha uma tática e estava seguro da sua eficácia.
Perto do meio-dia, pararam os homens e os cavalos para descansar, beber água e forrar o
estômago perto de um bosque onde, emboscados, os portugueses iriam aguardar os mouros.
Contudo, a primeira seta que cortou o ar num silvo quase impercetível feriu de morte um
guerreiro português, o que levou logo o Lidador a pôr o exército cristão em guarda. No frente a
frente, quase corpo a corpo, uns invocavam Alá, outros clamavam por Jesus Cristo enquanto
mediam a rudeza, a força e a perícia no combate.
Ambos os exércitos se debatiam cheios de ganas e coragem, até que a dado momento Gonçalo
Mendes da Maia e Almoleimar cruzaram espadas por cima dos seus cavalos.
O golpe do mouro atingiu Gonçalo Mendes da Maia que, mesmo ferido, atacou Almoleimar,
cheio de raiva. O nobre árabe ripostou pela vida, obviamente. O resultado da contenda foram
dois golpes fatais. Um aniquilou o mouro, que ficou logo ali caído no monte, e o outro deixou
Gonçalo Mendes Maia ferido de morte.
Mesmo assim, o bravo Lidador, moribundo mas torto e intrépido até na hora da morte,
perseguiu velozmente os mouros que fugiam em direção a casa, até que o esforço de um último
golpe sobre um cavaleiro árabe foi fatal.
O corajoso Lidador, melhor amigo e homem de total confiança de D. Afonso Henriques e a
quem devemos também a nacionalidade, caiu por terra, sobre os cadáveres de mais de mil corpos
inimigos.
Os sessenta cristãos que sobreviveram à dura batalha celebraram com lágrimas esta última
vitória do Lidador. Segundo a lenda, na missa fúnebre, o sacerdote templário, também ele um
guerreiro exímio, acalmou os corações dos que ficaram com as seguintes palavras: «As almas
dos justos estão na mão de Deus e em nada os afligirá o tormento da morte.»
O CAPITÃO DE VIDOEDO

Nas aldeias do concelho de Vila Pouca de Aguiar, reza a lenda que os sarracenos se apoderaram
do Castelo da Serra do Alvão. Valendo-se da força bruta e da superioridade das suas armas,
impunham a sua vontade ao povo pelo medo e viviam essencialmente da pilhagem aos campos
das redondezas, roubando os produtos da lavoura e as crias dos rebanhos dos pastores.
Os aldeões lamentavam-se e viviam amedrontados. Cada dia que amanhecia sem sinais de
pilhagem era uma bênção, mas não ousavam fazer-lhes frente. Ou melhor, alguns não ousavam.
Entre as vítimas frequentes dos ataques dos mouros, contava-se um jovem pastor de Vidoedo,
povoação próxima do castelo que via o seu rebanho de cabras constantemente subtraído. Homem
honesto mas de ferver em pouca água, corajoso e, sobretudo, espertalhão, o pastor engendrou
então um plano secreto e astucioso que decidiu pôr em prática, sem dizer nada a ninguém!
Felizmente, o professor de Vila Real Joaquim Alves Ferreira, autor do livro Lendas e Contos
Infantis, revelou o segredo bem guardado pelos deuses, e hoje podemos conhecê-lo.
Contam as suas páginas que o pastor arranjou uma grande quantidade de chocalhos e de
lampiões, tantos quantas as cabras que possuía, e um tambor, com as respetivas maçanetas.
Depois, prendeu em cada cabra um chocalho no pescoço e um lampião na cabeça.
Era um bocadinho tresloucado este plano! Quando anoiteceu, o pastor acendeu todos os
lampiões, abriu as portas do curral e marchou com o seu improvisado exército contra o inimigo
sarraceno, ao mesmo tempo que ia batendo estrondosamente com as maçanetas no tambor que
carregava.
Como seria de esperar, aquele rufo incessante do tambor e o badalar dos chocalhos carregados
pelas cabras ao ecoarem pelos caminhos da serra a meio da noite acordaram de imediato as
sentinelas do castelo, que, estupefactas com a aproximação tão súbita e rápida daquele «enorme»
e desconhecido exército, deram logo sinal de alerta máximo para dentro da fortaleza.
Ao soarem as sinetas anunciando combate iminente, os soldados despertaram aturdidos.
Armaram-se até aos dentes e saíram a correr e aos tropeções, sem rumo nem estratégia, para
enfrentar as tropas invasoras.
Quando chegaram lá fora, ao verem tantas luzes espalhadas pelo monte e ao ouvirem aquele
barulho verdadeiramente infernal a avançar intrépido contra ele, os soldados mouros entraram
em pânico, julgando-se incapazes de resistir a tão numeroso exército. Em vez de lutarem, como
era suposto, começaram a fugir desordenadamente pela encosta abaixo, levando com eles apenas
o que tinham à mão, enquanto o jovem e espertalhão pastor ria a bom rir!
Ainda assim, o pastor de Vidoedo fez questão de chegar ao castelo aos comandos do seu
singular mas inofensivo exército caprino. Foi tal o susto que pregou aos sarracenos que não
encontrou vivalma e pôde fazer a sua entrada triunfal no castelo. Sentindo-se um verdadeiro
reizinho, aproveitou para passar ali a noite, com a certeza de que nos tempos mais próximos não
iria ser roubado.
De madrugada, depois de uma noite bem dormida, regressou excitado a Vidoedo e deu a
grande novidade aos vizinhos, que obviamente o aclamaram como um grande herói.
Os feitos do bom pastor espalharam-se rapidamente por todas as terras de Aguiar, e alguns
rumores chegaram mesmo até à corte.
Quando el-rei soube daquela proeza, mandou trazer à sua presença aquele Viriato pastor e,
como recompensa, além de um sentido agradecimento, ainda lhe ofereceu um saco cheio de
moedas de ouro.
Como se isso não bastasse, agraciou-o com o título de visconde, com direito a pôr brasão à
porta da sua casa. Só depois o humilde pastor, agora rico e nobre, regressou à sua terra, onde foi
novamente recebido em festa pelos vizinhos e amigos.
O mais curioso é que daí em diante, conta Joaquim Alves Ferreira, «à medida que o seu feito e
a sua distinção se tornavam conhecidos, iam chegando diariamente pessoas de toda a parte, para
o felicitarem pela sua coragem e valentia. E o novo-rico, nunca perdendo a modéstia que o
caracterizava, a todos franqueava a sua casa e a mesa, onde nunca faltavam as deliciosas
castanhas assadas».
E foi assim que um simples pastor nascido numa aldeia perdida no meio do monte se
transformou num herói nacional e passou à história com o título honorífico de visconde, mas
mais conhecido como capitão de Vidoedo.
Segundo o autor da recolha desta história, ainda está de pé a casa onde ele nasceu e morreu, na
qual se pode ver uma pedra de armas, com dois leões, a simbolizar a sua coragem indómita e a
sua gesta gloriosa.
O SENHOR DE MATOSINHOS

Segundo reza uma das mais arreigadas tradições religiosas no Norte de Portugal, a imagem do
Senhor de Matosinhos é uma das mais antigas de toda a cristandade. Aliás, a lenda diz que esta
imagem foi esculpida por Nicodemos, um fariseu que defendeu Jesus Cristo e assistiu aos seus
últimos momentos de vida. Por isso, a obra de Nicodemos, esculpida em madeira e com quase
dois metros de altura, é considerada uma das cópias mais fiéis do rosto de Cristo em todo o
mundo.
Consta que Nicodemos terá esculpido mais quatro imagens atualmente dispersas pelos quatro
cantos da Terra, mas esta, a que se encontra em Matosinhos, é considerada a primeira e a mais
perfeita.
Mas há mais: o interior da imagem é oco, porque, reza a lenda, dentro dela o fariseu teria
escondido os instrumentos da Paixão. Recorde-se que, no tempo das grandes perseguições aos
cristãos, muitos dos objetos sagrados eram escondidos em locais recônditos ou atirados ao mar
para escaparem à fúria da fogueira.
Mas para poder fugir e proteger a relíquia, Nicodemos terá lançado a imagem de Jesus Cristo
ao mar Mediterrâneo, na Judeia, e esta veio embalada pelas águas, passou o estreito de Gibraltar
e veio dar à praia de Matosinhos, perdendo na viagem um braço. A população de Bouças
recolheu-a e ergueu-lhe um templo. Chamou à imagem Nosso Senhor de Bouças, acreditando
que fora o Espírito Santo que a tinha enviado até à praia, e venerou-a por muitos e bons anos.
A história não fica por aqui, contudo. Contou Joel Cleto, arqueólogo e autor do livro Senhor
de Matosinhos, numa entrevista ao Jornal de Notícias, que a lenda tem continuidade quase meio
século depois: uma mulher que recolhia lenha na praia para se aquecer pegou num tronco
esquisito e polido e carregou-o para casa, sem saber o que transportava. Quando o deitou para o
lume, o tronco teimava em não arder e saltava do meio do fogo sempre que ela insistia em
queimá-lo.
Foi então que uma filha da mulher, surda-muda de nascença, garantiu à mãe que aquele era o
braço esquerdo do Senhor de Matosinhos! E, de facto, assim que o pedaço de madeira
desaparecido foi encaixado no tronco, verificou-se uma união perfeita que comoveu o povo e o
fez acreditar em mais um milagre.
Já no século XVI, a imagem foi mudada para uma igreja em Matosinhos, construída em sua
honra, ficando a ser conhecida por Nosso Senhor de Matosinhos. Todos os anos, o templo recebe
fiéis de todos os pontos do globo, que vêm para ver com os seus próprios olhos a grandiosidade e
a força da fé dos homens.
A devoção ao Bom Jesus de Matosinhos (como também é conhecido) já deu origem a mais de
trinta igrejas, que se situam sobretudo no Brasil, embora também haja imagens espalhadas por
países como Espanha, França e Itália.
O «ESCOLHIDO»

Mas esta não é a única lenda de que se fala em Matosinhos. Consta por aquelas paragens, nas
imediações do Porto, que ainda antes da era de Cristo aconteceram outros incríveis factos que se
perpetuaram na memória das gentes.
Certo dia, por exemplo, passeava pela praia de Matosinhos um nobre e muito ilustre cavaleiro
da Maia, Caio Carpo Palenciano de seu nome. Ia acompanhado pela mulher, Claudina, e por
vários parentes e amigos. O grupo, muito animado, cavalgava descontraidamente pelo areal
quando de repente um deles avistou uma estranha e singular barcaça que se dirigia para norte.
Os cavaleiros e as damas pararam todos. Surpreendidos, é claro, mas ao mesmo tempo quase
que tocados por uma estranha atenção que os compelia a olhar para o mar e para aquelas
estranhas velas envoltas em luz, que se afastavam de terra. Estavam todos eles neste estado quase
hipnótico quando de repente o cavalo de Caio galopou violentamente para dentro do mar, como
se estivesse a ser obrigado por uma força desconhecida. D. Caio amava muito aquele cavalo e
quis evitar que ele se afogasse a todo o custo, mas acabou por ele próprio ser também arrastado
para o meio das ondas. Todavia, ao invés de serem engolidos pela força das águas, D. Caio e o
seu cavalo desapareceram apenas por breves momentos para logo depois ressurgirem à beira da
barca, para onde subiram cobertos de vieiras e no meio de grande ovação.
D. Caio, meio perturbado, perguntou então à tripulação, constituída por homens e mulheres,
que fenómeno era aquele e qual tinha sido, afinal, a razão de tão estranha viagem. A resposta que
se seguiria foi ainda mais surpreendente. Um dos mais altos da barcaça explicou-lhe então que
todos quantos ali estavam eram discípulos cristãos de um profeta chamado Tiago.
Há algum tempo que tinham fugido de grandes perseguições, levando o corpo do seu mestre
para Espanha, onde o profeta Tiago tinha pregado o Evangelho. Quanto ao fenómeno, os da
barcaça não tinham outra explicação a não ser o facto de que provavelmente D. Caio era também
um dos escolhidos pelo Senhor para pregar a sua doutrina aos homens. As vieiras, que ainda hoje
são o símbolo das peregrinações a Santiago de Compostela, eram o sinal de Santiago, que queria
mesmo ver D. Caio abraçar a lei de Deus.
Comovido, D. Caio quis ali mesmo ser batizado com água do mar e, quando voltou para junto
dos seus familiares e amigos, a todos converteu à fé de Deus.
Por isso, as vieiras ficaram a fazer parte do brasão da nobre família Pimentel de Trás-os-
Montes, descendentes, segundo se crê, de Caio Carpo Palenciano, o «escolhido».
YEBORATH E A LENDA DE GERALDO «SEM PAVOR»

Todos os tempos tiveram os seus heróis rebeldes, e a formação do reino de Portugal foi rica em
narrativas que engrandeceram os seus feitos.
Foi nesse tempo que viveu Geraldo Geraldes, também conhecido como o «Sem Pavor». Mas
quem era afinal este homem que há mais de mil anos inspirou trovas e histórias e até deu o nome
a uma das mais conhecidas praças de Portugal?
Para o conhecer melhor é preciso recuar até aos primórdios da formação do reino de Portugal,
mais concretamente até ao ano de 1166, no tempo em que Évora era ainda a Yeborath árabe,
ponto estratégico altamente cobiçado por D. Afonso Henriques nas lutas da Reconquista. O
domínio da cidade representava um importante avanço em relação ao Sul do território, que
durante muitas décadas foi o refúgio da resistência árabe.
Segundo rezam várias versões desta conhecida lenda, Geraldo Geraldes era um homem de
origem nobre que vivia à margem da corte e chefiava um pequeno bando de proscritos.
Consta que habitavam num pequeno castelo nos arredores de Yeborath e, um dia, vá-se lá
perceber porquê, decidiu agitar as coisas em Évora. Algumas versões da história, porém,
asseguram que Geraldo estava farto da dominação árabe e queria resgatar a sua honra e o perdão
para os seus homens.
Não tendo um grande exército, recorreu à arma preferida das minorias: a astúcia. Disfarçado
de trovador, rondou a cidade durante dias e dias para engendrar um plano que lhe permitisse
tomar de assalto a torre principal do castelo, que era vigiada por um velho mouro e pela sua filha.
Foi assim que, na calada de uma noite sem lua, Geraldo «Sem Pavor» subiu sozinho à torre e
matou os dois mouros num só golpe, apoderando-se em silêncio da chave das portas da cidade.
Com as portas franqueadas, chamou os seus homens, que já o esperavam do lado de fora da
muralha, e atacou a povoação ainda meio adormecida, que sucumbiu ao poder cristão.
Ora, notícias destas correm depressa! No dia seguinte, D. Afonso Henriques já sabia da
façanha!
Tão feliz ficou que devolveu a Geraldo Geraldes as chaves da cidade, nomeando-o alcaide
perpétuo de Évora. Ainda hoje a cidade ostenta no brasão do claustro da Sé a figura heroica de
Geraldo Geraldes e as duas cabeças dos mouros decepadas, além de lhe dedicar o mais
emblemático espaço da cidade: a Praça do Giraldo.
O SOBRENATURAL NA BATALHA DE OURIQUE

Um dos mais importantes episódios da História de Portugal teve a cidade de Ourique como
palco.
A pacata localidade alentejana era na época da Reconquista Cristã cenário de duros confrontos
numa guerra sanguinária. E terá sido naquela que ficou conhecida como a Batalha de Ourique
que D. Afonso Henriques foi pela primeira vez aclamado Rei de Portugal, a 25 de julho de 1139,
depois de defrontar os cinco reis mouros de Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora e Beja e os seus
exércitos, que até então ocupavam todo o Sul da península.
A par dos factos históricos, porém, há uma lenda que conta um curioso episódio: um pouco
antes de partir para o campo de batalha, D. Afonso Henriques, sensível a questões do foro
espiritual, foi visitado por um velho homem que o rei já tinha visto em sonhos. O velho tinha
aparecido de repente junto ao acampamento e teimou em vê-lo antes do combate, para lhe fazer
uma revelação profética da vitória.
Nesse anúncio do futuro, ter-lhe-á ainda dito o homem qualquer coisa como: «Sem dúvida que
Ele pôs sobre vós e sobre a vossa geração os olhos da Sua Misericórdia, até à décima sexta
descendência, na qual se diminuirá a sucessão. Mas nela, assim diminuída, Ele tornará a pôr os
olhos e verá.»
Uma profecia que decerto terá soado estranha ao nosso primeiro rei, mas que não o demoveu
da batalha.
Além da adivinhação, o velho deu ainda algumas instruções a D. Afonso Henriques. O rei
deveria, na noite seguinte, sair do acampamento sozinho e sem avisar ninguém, mal ouvisse
tocar a sineta da ermida onde o ancião vivia.
O rei deu a sua palavra e cumpriu-a.
Nessa noite, foi surpreendido por um misterioso raio de luz que progressivamente iluminou
tudo em seu redor, deixando-o distinguir aos poucos o Sinal da Cruz e a imagem de Jesus Cristo
crucificado.
O rei, emocionado, ajoelhou-se no chão e terá ouvido, diz a lenda, a voz do Senhor, que lhe
prometeu a vitória naquela e noutras batalhas. Por intermédio do rei e dos seus descendentes ao
longo de várias gerações, Deus fundaria o Seu império na terra, através do qual o Seu nome seria
novamente levado às nações mais longínquas e que teria para o nobre povo português grandes
desígnios e missões.
Depois do sucedido, D. Afonso Henriques terá voltado para o acampamento muito mais
confiante na vitória. No dia seguinte, perante a coragem dos portugueses, que eram em franca
minoria, os mouros fugiram a sete pés do território, sendo depois perseguidos e completamente
dizimados. Por causa da Batalha de Ourique, tal e qual reza a lenda, D. Afonso Henriques
decidiu que a bandeira portuguesa passaria dali em diante a ostentar cinco escudos ou quinas em
cruz representando os cinco reis vencidos e as cinco chagas de Cristo, carregadas com os trinta
dinheiros de Judas.
O GALO DE BARCELOS

Na bonita cidade minhota de Barcelos existe um cruzeiro seiscentista que faz parte do espólio do
Paço dos Condes. Se observarmos bem, o cruzeiro conta uma história curiosa em imagens
gravadas na pedra. É a lenda do Galo de Barcelos e relata uma história de justiça que acabou bem
graças à intervenção de um galo.
Reza a lenda que, em tempos medievais, andavam os habitantes do burgo em temor constante
por causa de um crime e, sobretudo, com o facto de as autoridades não terem deitado a mão ao
criminoso.
Certo dia, porém, surgiu no burgo um jovem galego que logo se tornou suspeito aos olhos
locais. As autoridades resolveram prendê-lo, apesar dos juramentos do jovem, que clamava
inocência, alegando que apenas se dirigia, em peregrinação, a Santiago de Compostela para
cumprir uma promessa. E nem a jura de que era um fervoroso devoto de Santiago, S. Paulo e
Nossa Senhora demoveu as autoridades, que depressa o atiraram para os calabouços.
Feito um julgamento sumário, o jovem galego foi condenado à morte na forca. Antes de ser
enforcado, todavia, pediu que fosse levado ao juiz que o condenara. Levaram-no então à
residência do magistrado, que se banqueteava então com alguns amigos. O jovem reafirmou a
sua inocência e, perante o desdém dos presentes, apontou para um galo assado que estava sobre a
mesa e exclamou:
— É tão certo eu estar inocente como certo é esse galo cantar quando me enforcarem. Logo o
juiz e os seus convivas desataram a rir, tecendo comentários jocosos. Contudo, pelo sim, pelo
não, ninguém tocou no galo.
A profecia, contudo, por mais ridícula que fosse, acabou por se realizar. No dia seguinte,
quando o peregrino sentia já a corda à volta do pescoço, o galo assado ergueu-se na mesa e
cantou. Fez-se então luz nas mentes de todos e o juiz correu para a forca para tentar evitar a
morte do jovem inocente. Já com a corda ao pescoço, o galego só não morreu porque o nó lasso
impedia o estrangulamento. Por ordem do juiz, foi logo solto e mandado em paz.
Passados alguns anos, já homem, o galego voltou a Barcelos e mandou erguer o cruzeiro em
louvor a Santiago e à Virgem. Na verdade, no monumento é possível ver-se as representações do
galo e do próprio galego sendo enforcado.
ATRAÇÕES LOCAIS: SERES MÁGICOS
A BRUXA QUE QUEBROU A SINA

Esta é uma daquelas histórias intemporais que começam como muitas outras: era uma vez uma
rapariga que, contra a vontade dos pais, namorava um rapaz há já muito tempo. Até aqui nada de
novo...
O rapaz já a tinha pedido em casamento vezes sem conta, prometendo que iria falar com os
pais dela num tom muito sério e firme e que, dessa forma, eles haveriam de acabar por aceitar a
ideia. Afinal, que pais querem ver a filha infeliz?
Contudo, a rapariga não desarmava, e sempre que a conversa terminava no tema do
casamento, ela acabava por negar todas as investidas do rapaz: que não falasse, que era melhor
assim, entre outras coisas que só serviam para desmotivar as intenções do rapaz.
O problema é que ele gostava dela mesmo a sério. Por isso, nunca desistiu. Percebia que havia
qualquer coisa que ela não lhe queria contar, mas como era um rapaz alegre e otimista, ia
esperando estoicamente o seu momento de sorte, com a certeza de que um dia este haveria de
chegar...
Tantas vezes o assunto vinha a baila que a própria rapariga começou a sentir-se entre a espada
e a parede e, devagarinho, lá foi contando a verdade. E aquilo, sim, era uma verdade imprópria
para cardíacos...
Confessou-lhe a moça que gostava muito dele mas que não poderia de todo casar-se, por causa
da sua triste sina: era bruxa! E, por ser bruxa, a sua vontade já pertencia ao diabo. Por ele, tinha
de sair um certo número de dias, a uma certa hora da madrugada, para se apresentar ao seu amo,
juntamente com todas as outras servas dele. Isto acontecia sempre debaixo da Ponte de Santarém,
longe de todos os olhares curiosos: o diabo aparecia e tinha de ter todas as bruxas alinhadas à sua
frente. Ai daquela que faltasse ao chamamento!
O rapaz não se conformava com o destino da mulher que lhe preenchia o coração. Por isso, ela
lá lhe disse que havia uma solução para o seu problema, embora fosse extremamente perigosa e
que ele só deveria fazê-lo se estivesse disposto a arriscar a vida para a salvar.
E ele estava!
Por isso, combinaram um dia para que ele sorrateiramente pudesse ir ter com o cortejo das
bruxas. Havia muita coisa para saber e fazer:
— Verás as bruxas todas a chegar em fila. Não poderás fazer qualquer espécie de barulho,
porque se fores descoberto antes do tempo, é o nosso fim! Terás de levar contigo um aguilhão e
um capote ou uma manta. Eu serei a última, espetas-me sem dó nem piedade o aguilhão nas
costas. Tem de ser com força e de modo que faça sangue, porque, se não fizer, temos de te
matar! Eu fico logo toda nua e sem aqueles poderes. Então, embrulhas-me no capote ou na manta
que levares e foges o mais depressa que puderes dali para fora — explicou ela!
Na noite combinada, à hora marcada, lá estava o rapaz, cheio de medo mas também de
vontade de poder resgatar o coração da única que alguma vez tinha amado. Deixou-se ficar mudo
e quedo, escondido no meio das sebes, junto ao carreiro por onde as bruxas deviam passar. Nessa
noite, já sabia que a sua predileta deveria ser a última, teria de a ferroar e esperar que tudo aquilo
fosse real.
Depois de algum tempo de espera, elas lá apareceram, envergando capuzes, num passo
sincopado.
A imagem era assustadora, mas pior ainda era ouvi-las falar:
— Cheira-me aqui a carne humana, cheira-me aqui a carne humana! — diziam.
E realmente lá vinha uma rapariga no fundo da fila que ia dizendo:
— Siga à frente, siga à frente. Não parai. Siga à frente.
Era justamente a namorada do rapaz, que sabia de tudo o que se passava. Quando ela ia a
passar, o rapaz espetou-lhe com força o aguilhão e, logo ali, ela ficou nuazinha à sua frente, tal e
qual reza a lenda.
Ele, que não era um rapaz nada cobardolas, cobriu-a com o cobertor imediatamente e foi levá-
la a casa. Chegado lá, disse para o pai da rapariga:
— Pegue, aqui tem a sua filha, não lhe bata, não lhe faça nada de mal que amanhã venho
contar-lhe o que se passou.
No outro dia, e depois de todos já terem descansado um bom bocado, o moço foi a casa do pai
da rapariga e contou-lhe tudo o que acontecera. O pai, que até aí era terminantemente contra o
casamento, mudou de opinião e entregou-lhe a mão da filha em sinal de reconhecimento.
Esse problema ficou resolvido, mas não o resto... Andará o diabo ainda à solta pelas margens
do Tejo? Reunir-se-á ele com as suas seguidoras debaixo da Ponte de Santarém? Quem tiver
coragem que lá vá então e tente confirmar...
O VAMPIRO DE ARRUDA DOS VINHOS

Terra de bons ventos e belas vistas, Arruda dos Vinhos atrai o apreço das gentes, e não só. Por lá
é famosa a história do vampiro que durante muito tempo andou a vaguear errante pelo mundo.
Não tinha outra escolha, a pobre alma... Para se livrar da maldição com que viera ao mundo,
tinha de correr o fado por sete vilas e colocar a sua capa numa igreja ou capela até à próxima lua
cheia. Só assim o vampiro podia encontrar paz por um tempo. Ora, segundo reza o lendário
tradicional da região oeste, o tal vampiro, depois de ter percorrido seis vilas, chegou a Arruda e
gostou tanto do vinho, do pão e dos montes verdejantes da região que por lá ficou, escondendo a
sua capa num templo do concelho. Por isso, ainda hoje os antigos fazem apostas sobre qual a
igreja da região que acoita o terrível segredo do vampiro. E assim vão provocando pele de
galinha a quem visita a região...
MAÇAROCAS ENDIABRADAS

Esta é uma história que resulta da investigação do professor Alexandre Parafita, mas que ainda
hoje surpreende quem a lê, sobretudo os mais novos e ávidos por seres mágicos e histórias
encantadas.
Segundo reza a lenda que o investigador usou para dar vida ao livro O Tesouro dos
Maruxinhos: Mitos e Lendas para os mais Novos, tudo isto se terá passado há muitos anos
(claro!) numa aldeia lá para os lados de Vila Real.
Em noites frias, quando o único som era o do crepitar da lenha na lareira, as famílias reuniam-
se e os mais velhos faziam das suas. Contavam que os maruxinhos — uma espécie de duendes
muito pequeninos de nariz abatatado e gorro vermelho — costumavam andar muito pela casa da
Tia Ermelinda. Ela e o marido, um casal já de certa idade e pavio curto, viviam muito
apoquentados com aquela presença sempre constante e impertinente.
Mesmo assim teimavam em ter sempre guardadas em casa umas sacas de trigo para as
exigências dos longos e frios invernos, mas os maruxinhos iam de noite e espalhavam tudo pelo
chão!
Depois vinha o tempo das castanhas… e eles espalhavam as castanhas. E a seguir as nozes. E
ainda os feijões. Nada escapava àqueles espíritos brincalhões. Nem as cinzas do borralho.
Quando não havia coisas para entornar também não se atrapalhavam. Arrastavam os móveis,
viravam as loiças, despejavam a água dos potes. Só faziam tropelias! Pelo menos era do que o
casal se queixava e aquilo em que o povo acreditava.
Um dia arreliaram-se de tal maneira que resolveram pôr um ponto final na baderna que ali
reinava. Ou melhor, resolveram deixar tudo para trás e ir morar para casa da irmã da Tia
Ermelinda. Juntaram todos os seus pertences em grandes sacas de ráfia e lá foram com as costas
vergadas pelo peso. Foi preciso ir e voltar muitas vezes, mas ainda hoje o povo conta que de
nada valeu o esforço. É que um dia, no meio do caminho, iam os dois suados e cansados, quando
ouviram uma vozinha alegremente a cantar:
— Todos nos vamos de casa mudada, e eu cá vou também com a maçarocada!
Era um maruxinho que carregava a cesta das maçarocas da Tia Ermelinda. Ela bem achava
que tinha levado tudo, mas afinal tinha-se esquecido das maçarocas... e do seu irreverente
inquilino!
E o diabo é que este não é o único duende malandreco a habitar para os lados de Trás-os-
Montes...
O LOBISOMEM ENCIUMADO

Esta é uma lenda muito popular nas pequena aldeias e vilas do distrito de Castelo Branco. Conta-
se que em tempos uma rapariga solteira e muito bonita andava a namoriscar o homem que depois
haveria de ser seu marido. Certo dia, depois de um dia inteiro passado no campo, foi para casa,
acendeu o lume, pôs o caldo a fazer e as taças na mesa. Nisto, chegou o noivo para com ela
passar o serão. Mas pouco depois chegou também alguém sem ser convidado...
Houve um estrondo tremendo do lado de fora da porta e urros, muitos urros de raiva e ciúme.
As unhas daquela coisa arranhavam a porta, que parecia prestes a ceder. Até que a rapariga
apagou o lume e empunhou uma cruz na direção da porta, dizendo «volta por onde vieste,
estropiado!».
O barulho parou de imediato. A jovem casou-se, tal como previsto, com o noivo, mas a
verdade é que ambos não ganharam para o susto. Na terra começou a correr o rumor de que
aquilo tinha sido um rapaz muito esquisito de uma aldeia vizinha, que tinha fama de ser
lobisomem e que há muito andava também embeiçado pela mesma rapariga.
Pelo sim, pelo não, nas aldeias de Castelo Branco, quando alguém cobiça a mulher alheia, há
sempre alguém que lembra esta história, aconselhando a não remexer no que não é nosso, não
vão as forças do sobrenatural virar-se contra nós.
A SEREIA DE VILARIÇA

Nos tempos em que a maioria da população ainda se ocupava no trabalho rural, a rotina diária
das pessoas passava-se no campo, onde lavravam a terra e cuidavam dos seus animais para
garantir o sustento de famílias inteiras. Como tal, não é de estranhar que também haja histórias
fantásticas que bebem a inspiração diretamente dos rituais da terra, e que a maioria dos costumes
e tradições estivessem, naqueles tempos, ligados aos ciclos da terra e do trabalho rural.
Era o que acontecia lá para os lados de Vilariça, no concelho de Bragança, onde havia um
costume engraçado, segundo contou Alexandre Parafita, professor catedrático e autor de vários
trabalhos sobre o repertório oral transmontano, onde consta esta história.
Para tornar o arado mais pesado, punha-se lá uma pedra lisa e redonda, para que ajudasse os
sulcos a fincarem-se na terra.
Tudo isto se repetiu por muitos e bons anos, até que um dia um moço de Vilariça sonhou que a
pedra falava com ele e lhe pedia que a ajudasse a voltar para casa.
Sonho estranho este. Mas mais estranho ainda é que o rapaz sonhou com isto várias vezes. Era
sempre o mesmo sonho, sem tirar nem pôr. De cada vez que fechava os olhos, lá vinha a pedra
meter-lhe coisas na cabeça. Mesmo sendo só um sonho, o rapaz ficou a matutar e um dia,
decidido, dirigiu-se ao campo, agarrou a pedra e foi andando com ela até chegar à margem do rio
Sabor. Junto às águas cristalinas e ruidosas, partiu-lhe os quatro cantos, tal e qual como lhe tinha
sido pedido no sonho, e, depois, sem mais delongas, atirou-a ao rio.
Mas qual não foi o seu espanto quando a pedra, mal tocou na água, se encarrapitou, rodopiou e
se transformou numa linda sereia que seguiu a sua vida rio abaixo, nadando e cantando, numa
voz encantadora:

— Adeus Vale da Vilariça,


Adeus à Fraga Amarela,
Tanto ouro, tanta prata,
Ali fica dentro dela.

Nestes montes eu vivi


— Como pedra encantada,
Tantos anos adormecida
E pela grade embalada!
BELA FLORIPES

No recanto de Portugal onde os turistas mais procuram o afago do sol e o azul plácido do mar, o
Algarve, abundam lendas nascidas de uma tradição oral muito rica e em que se cruzam
referências várias. Um desses sítios, onde a modernidade ainda não apagou da memória as
histórias que se contavam ao serão noutros tempos, é a cidade de Olhão. É no arquivo da câmara
municipal que se encontram, por exemplo, ecos de uma antiga casa, o Moinho do Sobrado
(atualmente é aí que está instalado o Grupo Naval de Olhão), onde costumava aparecer à janela,
noite fora, uma formosa mas misteriosa mulher vestida de branco. Ninguém sabia quem ela era,
mas todos juravam a pés juntos que alma deste mundo não era com certeza!
Por isso, não é de estranhar que ninguém se metesse com ela. No Moinho do Sobrado, o único
que se afoitava a andar por aquelas bandas à noite era um sujeito de meia-idade de
comportamento duvidoso, conhecido como «o compadre Zé».
O compadre Zé era um solitário e frequentemente metia no bucho um copito a mais e acabava
a adormecer nas ruas, sem quaisquer receios, claro, pois o vinho é um excelente elixir para a
coragem. Nessas alturas, conta-se, a mulher de branco aproximava-se do bêbedo, fazia-lhe umas
festas na cabeça e depois sentava-se ao seu lado.
O compadre Zé podia estar bêbedo, mas ainda assim lembrava-se sempre bem do que
acontecia nessas noites, e no dia seguinte, coitado, contava a sua história a quem o quisesse
ouvir, mas sem convencer ninguém a deslocar-se ao local para a comprovar. Aquilo deixava o
compadre Zé um bocado chateado, pois podia ser bêbedo, mas mentiroso é que não era! Como
tinha um amigo muito jovem e ingénuo que iria casar-se brevemente, o compadre Zé resolveu
aproveitar-se da proximidade do acontecimento e prometeu ao noivo oferecer-lhe um dos seus
terrenos como prenda de casamento, caso ele, numa noite quente de lua cheia, tivesse a coragem
de o acompanhar a ver o fantasma com os seus próprios olhos.
O moço ficou transido de medo com a proposta, mas o terreno fazia-lhe cá um jeitaço... e lá
foi à aventura, atendendo à grande alegria que iria dar à noiva quando lhe anunciasse a prenda.
No dia e na hora combinados com o compadre Zé, o rapaz lá foi sentar-se numa pedra juntinho
ao Moinho do Sobrado, e esperou nervoso pelas doze badaladas. Mal o sino da igreja se ouviu a
dar as horas, surgiu da porta do moinho uma mulher vestida de branco esvoaçante até aos pés. O
vestido, de um branco luminoso, terminava numa bainha esfiapada e cobria-lhe os pés descalços.
Não fazia qualquer ruído, e foi assim, silenciosamente, que se aproximou com a face envolta
num véu e uma flor nos longos cabelos loiros.
Julião — assim se chamava o amigo do compadre Zé — perguntou-lhe a gaguejar quem era e
de onde vinha.
— Sou a desditosa Floripes — respondeu a mulher, numa expressão triste. Era jovem ainda, e
a sua voz melodiosa despertou em Julião um agradável torpor, como se também ele tivesse um
copito de vinho a mais.
— E o que faz por aqui? — perguntou-lhe o jovem.
— Sou uma moura encantada. Quando os da minha raça foram expulsos da província, também
o meu pai foi obrigado a partir... foi de repente, não pôde prevenir-me. Eu tinha um namorado
que também fugiu e aqui fiquei sozinha, à espera a cada momento que o meu pai viesse buscar-
me. Eu tinha a certeza de que ele vinha buscar-me. Mas numa dessas noites escuras frias e longas
demais para quem espera aqueles que ama, vi ao longe, lá onde o mar toca o céu, a luz
periclitante de uma embarcação. Havia uma tempestade terrível no mar e daqui de onde estou,
neste meu refúgio e prisão, vi o barco escangalhar-se de encontro aos rochedos. Mas afinal não
era o meu pai que lá vinha: era o meu namorado, o meu amor, que foi engolido pelas ondas deste
mar. O meu pai também soube deste funesto acontecimento e, vendo que não era possível fazer
mais nada, encantou-me de lá da sua longínqua terra.
Como seria de esperar, Julião ficou condoído com a triste história da moura. Pôs-se a magicar,
mas por mais que refletisse sobre o assunto, não lhe ocorria maneira de salvar a moura. Então,
para não desistir, perguntou-lhe:
— Existe alguma maneira de te salvar?
— Há sim — respondeu a moura, de repente mais animada.
— De que modo?
— É necessário que um homem me dê um abraço à beira de um rio, e ali mesmo me fira no
braço contíguo ao coração. Logo que tal aconteça, irei de imediato para junto dos meus
familiares, pois o encantamento lançado pelo meu pai será quebrado. Mas existe uma grave
dificuldade no meio disto tudo.
— Que dificuldade? — perguntou Julião, já quase decidido a ser o seu salvador.
— O homem que me abraçar e me ferir terá de me acompanhar até África, atravessar o oceano
com duas velas acesas e casar-se comigo à chegada... — avisou a moura, um pouco
desconsolada. E não era porque a ideia de se casar com Julião e viver com ele uma vida
eternamente feliz lhe desagradasse, mas porque sabia que o coração bondoso do rapaz já tinha
dona...
— Isso é que eu não poderei fazer. Já tenho casamento marcado com a minha Aninhas, é para
daqui a alguns dias e eu amo-a muito! — justificou Julião.
— Então continuarei encantada para todo o sempre. Nunca ninguém irá aceder perante
tamanho sacrifício. Nunca poderei voltar a ver a minha família e o meu povo — lamentou a
moura, desalentada.
E de facto assim foi. Dali a alguns dias, Julião e Aninhas trocaram alianças e viveram felizes,
o que levou a que Julião rapidamente se esquecesse da moura.
Floripes viveu no seu encantamento por muito mais tempo e diz o povo de Olhão que, de vez
em quando, era avistada junto ao cais, com os pés à beira da água e o olhar preso no horizonte,
talvez recordando o seu amado ou esperando em vão o regresso do seu pai. Outras vezes, dizem,
era vista a conversar com um menino de gorro encarnado e olhos grandes, personagem também
famosa da mitologia olhanense. Certo é que muitas gerações de olhanenses juram a pés juntos já
ter visto Floripes!
Por causa desta história nasceu uma outra e um costume que ainda hoje perdura entre os
naturais da terra. Contavam que, de vez em quando, Floripes também era vista às compras no
mercado, mas que era aquela que pagava com moedas de ouro e se esquecia sempre de receber o
troco, desaparecendo misteriosamente... Por isso, ainda hoje, se algum local ou forasteiro se
esquecer de receber o seu troco, é bem natural que alguém lhe diga «És como a Floripes, não
queres receber a torna?».
Outra situação em que a lenda ainda é referenciada no quotidiano das pessoas tem que ver com
uma expressão típica daquela zona do Algarve, que se materializa na boca do povo quando
alguém sente um qualquer medo injustificado. Se for um olhanense de gema, irá certamente
dizer-lhe «Vê lá mas é se te aparece a Floripes!».
A personagem de Floripes é de tal forma marcante na cultura olhanense que existe no Museu
Municipal de Faro um quadro que a retrata (A Moura de Olhão, 1962), da autoria de Carlos
Porfírio, e também uma curiosa referência no livro de memórias de José Barbosa (Barbosa,
1993) integrada num episódio ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial. Alegadamente, numa
trincheira da Flandres defendida pelos valorosos soldados portugueses que combateram no
conflito, numa noite invernosa, dois olhanenses que estavam de sentinela viram surgir no meio
da escuridão e da neve um vulto branco de mulher.
O pavor desencadeado pela ideia de estarem a ver Floripes paralisou-lhes por momentos a
capacidade de premirem o gatilho. Mas ainda bem, porque estes foram os escassos momentos
necessários para compreenderem que o vulto também não era o de um soldado inimigo! E foi
assim que Floripes, uma lenda da arreigada comunidade piscatória de Olhão, salvou a vida a uma
mulher belga que fugia do lado alemão.
Ultimamente, já pouco se fala de Floripes, mesmo na parte antiga de Olhão. Resta saber se é
porque a maioria dos que conheceram a sua história já partiu ou se o tal salvamento, em plena
guerra, lhe quebrou finalmente o encantamento...
Tanta coisa deu, até o mote ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, que transformou a lenda
de Floripes num documentário ficcionado, Floripes ou a Morte de Um Mito, apresentado no
âmbito do encerramento de Faro Capital Nacional da Cultura 2005 em coprodução com a RTP2,
onde foi igualmente exibido.
O REPASTO DO DIABO

No concelho da Sertã, existe um lugar que dá pelo nome de Carvalhal dos Ramalhos, onde se
conta uma história muito curiosa sobre o diabo e almas penadas, e que pode ser lida na íntegra e
na versão originalmente contada nos arquivos do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da
Universidade do Algarve.
Dizem esses preciosos registos que, em tempos que já lá vão, andava um homem a debulhar o
trigo numa eira até tarde. Quando o trigo estava todo bem debulhadinho, quase ao anoitecer, o
homem queria limpar o trigo do campo, mas não havia vento suficiente para o levar.
O homem, despachado como costumava ser, anunciou o seguinte:
— Diabo, manda vento para limpar o trigo que eu dou-te jantar.
Então, de repente, começou a fazer-se uma ventania desgraçada e o homem limpou o trigo
todo. Aliás, consta que nunca mais teve quaisquer problemas com os achaques da meteorologia.
Passados alguns anos, o homem, que já não era novo, morreu… sem ter dado o prometido
jantar ao diabo.
Mas a história não se ficou pela tumba do lavrador. A sua alma veio ter com a mulher para que
ela continuasse a fazer o jantar e o fosse levar à meia-noite a um certo cruzamento. Jantar e não
só! Maria tinha de levar também uma colher, um garfo, um pãozinho fresco, uma garrafa de
vinho e ainda uma moeda. Chegada ao cruzamento, a mulher devia pôr a mesa no chão, toda
completa. Ela, obedientemente, assim o fez, noite após noite.
Pelo menos era isso que os antigos contavam. E mais: afiançavam que o jantar era sempre
batatinhas guisadas com carne. Tudo tão bem temperadinho que o cheiro se espalhava pelo ar
abrindo o apetite da vizinhança. À meia-noite, consta, o diabo passava pela encruzilhada para
comer o que o homem lhe havia prometido.
No dia seguinte, mal o Sol nascia, a mulherzinha ia buscar o tacho, que parecia estar lavado,
assim como o resto das coisas. A moeda, essa, não estava lá, tinha-a levado o diabo, sem que
ninguém saiba explicar para que lhe serve o dinheirito...
O LADRÃO DAS BOTAS MÁGICAS

Em tempos muito recuados, quando nas ilhas do arquipélago dos Açores se vivia quase isolado
do resto do mundo, as pessoas eram muito mais suscetíveis a histórias de bruxas, magia e
feiticeiros.
Na Horta, ilha do Faial, por exemplo, dizia-se que havia um homem que era feiticeiro. E
porquê? Porque durante anos e anos a fio havia casas roubadas, mesmo com as trancas à porta,
sem que ninguém percebesse como é que as coisas desapareciam. Ora, se o ladrão não tinha
desarmado os ferrolhos, se não tinha partido janelas e, mesmo assim, as moedas e o ouro bem
escondidos desapareciam, só podia ser magia.
Só que as pessoas começaram a desconfiar de um certo indivíduo que dizia que tinha umas
botas mágicas, porque quando as calçava elas lhe permitiam andar «por baixo dos telhados e por
cima dos silvados», dizia ele. Certa vez foi apanhado, pois, como também reza a cultura popular,
não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe. Diz-se que estava a pilhar mais uma casa
quando o dono entrou e o apanhou em flagrante delito. Nesse momento, ele muito atrapalhado a
tentar calçar as botas para se raspar rapidamente dali para fora, ter-se-á enganado e disse: «Por
cima de todos os telhados e por baixo de todos os silvados.» Ora isso bastou para quebrar o
encanto! E como as pessoas já estavam fartas de roubos e muito desconfiadas, bastou vê-lo todo
arranhado e pisado para o condenarem por dois motivos: roubo... e bruxaria!
ARRAUL

Um dos locais mais afamados do Algarve — e com todo o mérito — é a belíssima ria Formosa,
que além da invulgar paisagem também fornece proteção ao continente contra as fúrias
invernosas do mar. No entanto, como seria de esperar, também há uma curiosa lenda ligada à
formação da ria Formosa.
A história é protagonizada por Arraul, rapaz dotado de uma invulgar valentia, segundo reza a
tradição oral, e cujo nome quer dizer em sânscrito «amigo de bem fazer».
Em abono da verdade, Arraul não podia ter sido batizado com melhor nome, pois este
significado em muito se adequava ao estilo de vida que escolheu viver. A ele se atribui a criação
do cordão dunar da atual ria Formosa, que protege a zona costeira desta região algarvia!
Mas afinal quem era Arraul para ter tamanha força bruta? Diz a lenda que terá sido o vigésimo
filho do guarda-mor das colunas de Hércules e o único sobrevivente da Atlântida, já que toda a
população e a própria ilha desapareceram submersas. Nestas histórias há sempre uma moral no
fim, e esta não é exceção. Atlântida terá desaparecido porque os deuses decidiram castigar os
mortais, uma vez que estes se haviam tornado demasiado altivos e sobranceiros, o que não é
assim um final tão estranho para as grandes civilizações!
Arraul, porém, salvou-se. No meio da ondulação gigantesca e destruidora que submergiu a
Atlântida, Arraul foi empurrado para o mar alto e engolido por uma enorme baleia. Assim andou
dias e dias a fio, encolhido e enjoado no interior das mandíbulas do gigante dos mares. Até que a
baleia rondou a costa algarvia e o devolveu ao mar ainda com vida. A força da corrente veio
depositá-lo em terra firme, no sítio das Prainhas, local onde foi fundada a cidade de Olhão.
Assim que abriu os olhos, todo moído pela pancada violenta do mar, com a boca seca e a saber
a algas, Arraul ficou imediatamente encantado com o lugar que o acoitou. Ali resolveu ficar até
ao fim dos seus dias, mas, receoso de outro cataclismo provocado pela ira do deus do mar,
decidiu proteger a costa, carregando toda a terra que conseguiu do Cerro da Cabeça para o mar.
Para isso, diz a lenda disponível nos arquivos da Câmara Municipal de Olhão, construiu um
carro enorme com duas rodas de ferro quadradas para escavar e transportar a terra. Assim nasceu
a famosa e apreciada língua de areia, bem como as ilhas da Fuseta, da Armona e da Culatra. Aos
poucos, as correntes também movimentaram a areia e fizeram com que chegasse até Cacela e
assim se formasse a atual ria Formosa com todo o seu cordão dunar.
De cada vez que levava a areia do cerro para o mar, alguns detritos caíam pelo caminho,
ficando depositados nos sítios que hoje conhecemos como Murtais e Alfandanga, formando
também aí uma fértil planície para agricultura.
Foi assim, num paraíso construído com a força dos próprios braços, que o atlante Arraul viveu
por muitos e bons anos, destroçando os corações das raparigas do Sul com os seus olhos verdes e
cristalinos. Eram de tal maneira invulgares que havia mesmo quem dissesse que o olhar de
Arraul era feito de água. Diz-nos a lenda que gostava muito de sardinhas e tinha o condão de as
assar num fogareiro debaixo de água! Tal força possuía que levantava com uma só mão, e com a
maior das facilidades, barcos que andavam à deriva e a respetiva tripulação.
E assim passava os seus dias, embora secretamente acalentasse um plano. Em Olhão, aprendeu
as artes de calceteiro porque tencionava calcetar uma estrada através do oceano, tanto para o
local onde outrora teria existido a sua antiga terra, a Atlântida, como para a América, continente
que sempre tinha sonhado conhecer. Mas, acima tudo, Arraul amava Olhão e por isso optou por
fazer uma grande cidade subterrânea no Cerro da Cabeça, aproveitando as grutas, para que o
povo se pudesse abrigar sempre que havia tempestade no mar.
Ironicamente, foi aí, debaixo da terra, que Arraul, o homem do mar, perdeu a vida. Mas há
duas versões do fim: uns dizem que ele se perdeu para sempre nos diversos labirintos que criou
no Cerro da Cabeça, enquanto outros afiançam que terá morrido quando a montanha se abateu
devido a um terramoto.
Seja como for, de um dia para o outro, Arraul nunca mais foi visto, dele tendo ficado apenas
esta lenda da ria Formosa.
AS ÁGUAS DE MARIM

Ainda na zona de Olhão, existe uma maravilhosa propriedade, a Quinta de Marim, que hoje é
regada por um abundante veio de água que a fertiliza em toda a sua extensão. Mas o mais curioso
é que, segundo as vozes do povo, nem sempre foi assim. Em tempos que já lá vão, os terrenos
desta quinta eram totalmente estéreis, pois ali não se encontrava a mais pequena nesga de água.
Claro que o povo não tardou em descobrir nisto uma explicação sobrenatural, que ainda hoje
deixa muitos turistas que ouvem dos guias locais a história da quinta de sorriso nos lábios.
E o que contam eles? Que no tempo da ocupação árabe a quinta pertencia a um mouro muito
rico, que apenas se servia da propriedade para cultivo e morava numa casa acastelada lá mais
para o centro.
Contudo, o que mais saltava à vista nada tinha que ver com as suas propriedades. O mouro
tinha uma filha formosíssima, uma moça que todos consideravam ser a mais bela jovem da
região. Uma moça que era um grande enlevo para o pai mas também uma séria atração para
todos os jovens ricos da região.
Muitos desses jovens mais afoitos tomavam um copito, enchiam-se de coragem e tentavam a
sua sorte junto do velho mouro, arriscando pedir-lhe a mão da sua única filha.
Mas o mouro, que não só era teimoso como também muito cioso do futuro da sua bela jovem,
inventava todos os pretextos e mais alguns para se negar a quaisquer propostas de casamento.
Esperava não só encontrar alguém que amasse a filha e a tratasse bem como também augurava
usar o casamento para fazer uma boa aliança com outro nobre do reino.
Claro que entre os muitos e estouvados pretendentes havia alguns que eram quase tão
determinados e teimosos quanto o mouro. Um deles, em particular, acabou por dar muito que
fazer e falar...
Era jovem e rico em terras e ouro, e portanto cismou que não havia qualquer razão para
desistir facilmente das intenções do seu coração.
Em abono da verdade, aquele rapaz era um verdadeiro bom partido e ninguém percebia muito
bem porque é que o mouro não lhe dava a mão da rapariga. As más-línguas chegaram mesmo a
alvitrar que o mouro queria casá-la com um tio velho ou até mesmo mandá-la de volta ainda
solteira para a sua terra, para que arranjasse marido por lá.
Além de ser bastante abonado, o jovem casadoiro era igualmente dotado de excelentes
qualidades morais e artísticas: andava habilmente a cavalo, declamava poesia e era músico muito
hábil, que tocava alaúde pela noite dentro como ninguém! E isso era, naquele tempo, uma
qualidade muito apreciada nas casas mouriscas, onde nunca faltavam poetas e músicos, que pela
noite adentro agarravam o seu alaúde, afinavam a voz e lá iam fazer serenatas às raparigas que
lhes haviam roubado o coração.
Só o velho mouro não via nada com bons olhos os excessos emocionais e líricos do
pretendente à mão da sua filha. Aliás, sempre que ele por lá aparecia em noites de luar para
afinar a garganta frente à janela da moça, todo o velho mouro se arrepiava num desespero que até
metia dó.
Como é fácil de imaginar, o mesmo não sucedia à bela moura, que não temia nada em erguer-
se da cama, mesmo a altas horas da madrugada, para abrir devagarinho a janela do seu quarto e
ali deixar-se estar toda dengosa e deleitada até o Sol nascer.
O pai é que ficava furibundo quando dava por aquela pouca vergonha e, por isso, começou e
engendrar um plano para acabar com o namoro de uma vez por todas. Mas velho e sabido como
era, o mouro tinha os seus truques.
Vendo ele que pela força nada conseguia, pois a única coisa que a filha fazia era desatar a
chorar desalmadamente, o velho resolveu encetar outro caminho, fingindo-se condoído e
arrependido.
Por isso, não teve grande dificuldade em ser obedecido quando ordenou que o rapaz fosse
finalmente chamado à sua presença.
— O que me queres, afinal? — perguntou o mancebo assim que se viu diante do velho pai da
sua amada.
— Chamei-te porque sei bem que amas a minha filha...
— Por ela até dou a minha vida, se for preciso...
— Livre-me Alá de querer contrariar as inclinações de duas almas tão puras e tão jovens. Mas
o problema, meu filho, é que eu fiz um voto! — anunciou o pai da mourinha.
— Que voto?...
— Os meus campos têm tanto de água que aqui nada cresce... Por isso, só concederei a mão da
minha filha a quem, numa só noite, transportar para junto do meu castelo a famosa nascente da
Fonte do Canal, a levante...
O rapaz nunca tinha ouvido falar em tal coisa, por isso perguntou:
— E isso, afinal de contas, fica muito longe?
— A treze léguas daqui, se fores sempre a direito.
Ouvindo aquilo, o mancebo curvou-se em frente do velho e saiu rapidamente da sua presença,
sem lhe dar qualquer resposta.
O velho mouro, espertalhão, logo que o rapaz saiu da sua presença, esfregou as mãos de
contente e disse para si:
— Deste estou eu já livre!
Na noite desse dia deitou-se descansado na certeza de que tão cedo não seria certamente
despertado do seu tranquilo sono.
Mas enganou-se. Seria mais ou menos meia-noite quando o velho acordou com um
movimento brusco e repentino que até parecia que fazia estremecer todo o seu castelo. O homem,
surpreendido, sentou-se na cama e pôs-se a escutar. Poucos momentos depois ouviu um alaúde e
logo a seguir os seguintes versos entoados numa curiosa cantilena:

Viva Alá; foi meu padre um bom mouro


Moura madre me deu de mamar
Moura fada fadou-me um tesouro
Moura virgem me tem de o entregar.

Quando o velho mouro ouviu estes versos, reconheceu o timbre da voz do descarado mancebo
e, além disso, percebeu que ele não iria desistir facilmente dos seus intentos. De rompante,
ergueu-se da cama num salto ágil e correu para a janela do seu quarto. O que viu de lá do alto
não o deixou mais descansado, bem pelo contrário...
Em frente janela do quarto de sua filha, o pai aterrado avistou um verdadeiro abismo, de onde
jorrava água numa imponente cascata, bastante para regar toda a propriedade. Ao lado do abismo
viu um mancebo com o alaúde, de olhos apaixonados postos na janela do quarto da filha.
O velhote ficou obviamente fulo de raiva. Não compreendia como é que a juventude era assim
capaz de desafiar a vontade dos mais velhos. Por outro lado, não queria quebrar a palavra dada e
então decidiu correr para o quarto da filha e dirigiu-se para a ventana, onde a encontrou. Num
gesto desvairado, pegou nela ao colo e atirou-a pela janela sobre o rapaz, que não conseguindo
manter o equilíbrio caiu com o seu amado e precioso fardo no fundo do abismo.
Não morreram, garante ainda hoje o povo de Olhão, muito adepto da magia das suas lendas e
que ainda hoje conserva com profundo carinho e respeito os versos da sua antiguidade. E não só:
garantem muitas pessoas que os têm visto sair do abismo à meia-noite. Saem de braços cruzados
e passeiam apaixonadamente pela quinta, cantando ao som do seu instrumento favorito. Mas não
pensem que o povo se assusta. Dizem os olhanenses que os dois amantes estão encantados, por
especial ordem do próprio Alá, que não consentiu que duas almas repletas de amor
desaparecessem da face da terra, onde o egoísmo, infelizmente, criou um trono. E se
aproveitarem para lhes perguntar sobre o velho mouro, também terão resposta:
— Esse está também encantado, mas no próprio castelo. Só sai dali em noites de tempestade e
trovões, cantando orgulhoso e sobranceiro:

Eu sou o Rei D. Diniz


Serpa, Moura, Mervim fiz
Não fiz mais porque não quis.
Quem dinheiro tiver
Fará o que quiser.
MONTALEGRE, A TERRA DOS BRUXOS

Sendo Montalegre terra de gente castiça e com tradições muito antigas, onde todos os anos se
celebram os resquícios do paganismo, é natural que esta terra tenha um manancial muito
generoso de crendices e lendas.
Um dos cenários mais habituais destas histórias que o povo conta com vivacidade, sobretudo
na noite das bruxas, é o castelo medieval de Montalegre.
Diz-se, por exemplo, que às doze badaladas da noite de S. João aparecem ali três meninas
«muito lindas sentadas em cadeirinhas de ouro puro!».
Se nos atrevermos a duvidar da descrição, o povo jura a pés junto que já houve quem as visse,
porém nunca ninguém descobriu meio de as desencantar. Mas há mais. Há muitos, muitos anos,
as três encantadas até deram um avental cheio de joias a uma mulher, mas impuseram-lhe uma
condição: devia levá-las para casa sem falar durante o percurso, mas, azar dos azares, a mulher
encontrou pelo caminho uma amiga que lhe perguntou porque ia tão apressada e o que levava no
avental. A mulher, atrapalhada e nervosa, acabou por confessar que ali levava muita riqueza. A
outra quis ver com os seus próprios olhos, mas quando a mulher esvaziou os bolsos do avental só
achou carvão!
Este não é o único mistério do castelo, de acordo com recolhas feitas pelo professor Alexandre
Parafita, que compilou esta e muitas outras histórias na obra A Mitologia dos Mouros: Lendas,
Mitos, Serpentes, Tesouros.
Uma vez, um homem que poucas vezes era visto na povoação foi a meio da noite chamar uma
parteira da vila de Montalegre, levando-a às pressas para o castelo. Quando lá chegou, levantou
uma laje debaixo da qual estava um lindo edifício, e dentro dele duas meninas muito lindas, a
mais velha das quais estava deitada com as dores de parto numa cama de ouro, imagine-se!
Com a ajuda da mulher, nasceu então uma menina que a parteira entregou a uma das lindas
encantadas. Feito o parto, o homem abriu depois uma gaveta cheia de ouro, pérolas e pedras
preciosas e ordenou à parteira que levasse o que quisesse. Esta, porém, nada levou, pois não
fizera mais do que a sua missão.
Outra história popular diz que, certo dia, entre duas pedrinhas colocadas no meio do caminho
da portela para o Castelo de Montalegre, uma mulher que ia para a missa na capela do castelo
achou um lindíssimo cordão de ouro.
Claro que pegou logo nele, mas era muito comprido, tanto que nem sequer se lhe via o fim.
Foi puxando, puxando por ele, até que a dada altura, cansada e apressada (porque não queria
perder a missa), viu que o cordão não tinha fim. Resolveu então cortá-lo, dizendo qualquer coisa
como «p’ra ser rica já me chega!».
Em má hora o fez. O cordão, mal tinha sido acabado de cortar, começou a desfiar-se em
sangue, ao mesmo tempo que a mulher ouvia vários gritos e maldições contra ela. Diz o povo
que foi um erro porque, caso tivesse demorado mais a puxar pelo cordão, o encanto e ela ficaria
rica para sempre.
Fora do castelo também se fala em coisas do outro mundo, como, por exemplo, o caso da
misteriosa casa enguiçada.
Fica pertinho da aldeia de Seara, também no concelho de Montalegre. Tudo começou com
dois rapazes que eram os melhores amigos do mundo, até a ganância tentar a alma de um deles
num sítio que por causa do episódio ficou conhecido como a «Cova dos Maus».
O nome do sítio é da autoria do povo, que sempre disse que os mouros estiveram ali
degredados e que lá deixaram enterrado um pote bem recheado de moedas de ouro.
Mas, com o tempo, a lenda foi ganhando outros requintes e protagonistas. Um dia, há muitos
anos, um rapaz da Casa do Pires e outro da Casa d’Além resolveram sair em busca desse tão
falado tesouro. Andaram dias e dias a fio a escavar, até que em certo momento Pires sentiu a
picareta embater num objeto duro e estranho. Mas nada disse ao amigo. Ou melhor, resolveu
afastá-lo dali para fora:
— Já estou cansado de tanto escavar para coisa nenhuma. Estou esfaimado. Vamos mas é
comer e voltamos mais tarde.
O outro, ingénuo, concordou. Só que não tomaram o mesmo caminho. O da Casa d’Além foi a
casa comer, mas Pires voltou para trás e pôs-se a escavar como um desalmado. Mas teve sorte, o
desgraçado! Achou um pote de ferro, carregadinho de moedas de ouro, tal e qual dizia a lenda.
Claro que levou tudo dali para fora a boa velocidade e calou-se bem caladinho como um rato!
Consta que depois tentou construir uma casa, mas que nunca foi terminada. A sua vida deu em
andar para trás de todas as maneiras possíveis. E quando o dinheiro acabou, disse resignado:
— Esta casa fica como espelho para a Seara.
Garante o professor Alexandre Parafita, na sua obra A Mitologia dos Mouros: Lendas, Mitos,
Serpentes, Tesouros, que ainda hoje existem vestígios da tal casa inacabada, que por todos é
olhada com «desconfiança e medo».
Os aldeões não gostam de passar lá perto, e o motivo é bastante razoável: têm medo que a vida
lhes ande para trás!
HÁ BRUXAS À SOLTA NO ALENTEJO!

Deve-se a Maria Adelaide Salvado e à sua obra de recolha etnográfica (Remoinhos, Ventos e
Tempos da Beira) a recuperação desta deliciosa história de borregos que afinal são o demónio e
outras coisas malfadadas.
Na verdade, a narração que se segue foi-lhe transmitida por um rapaz ainda jovem e crédulo
que, quando era mais novo, costumava ir no verão com os pais para o Alentejo, para a ceifa. O
diabo é que por lá aconteciam coisas bem esquisitas!
Uma vez estava tanto calor que esse e outro rapaz decidiram ficar a dormir na eira. A meio da
noite, porém, acordaram ambos de supetão, por causa de um barulho muito estranho.
Logo a seguir passou por eles uma bola de palha a «correr». Abraçaram-se assustados, até que
houve nova barulheira e a bola de palha tornou a passar apressada para o outro lado! Como não
havia gente, nem bicho, nem vento que justificasse tal coisa, os rapazes apressaram-se a concluir
que era uma bruxa e desataram também eles a correr para casa!
Contou também o tal rapaz que nessa mesma terra perdida na planície alentejana, lá para os
lados de Almodôvar, se dizia que havia dantes um pastor que era muito cético e que gozava
muito com essas coisas.
O homem todos os dias saía com o seu rebanho para os montes e, certa vez, já à noitinha,
estava ele a meter as ovelhas de volta no palheiro, apareceu-lhe um borreguinho muito
pequenino a berrar.
O pastor quis logo apanhá-lo, obviamente, mas sempre que se virava para o bicho, este
evaporava-se no ar! Isto começou a repetir-se noite após noite, e durante muito tempo. Até que
um dia, já farto daquela história, o pastor meteu as ovelhas no palheiro e decidiu ir resoluto para
os montes à procura do borrego. Deu voltas e mais voltas, até que deu também com o borrego
sentado mesmo à sua frente. Apanhou-o e meteu-o às costas todo contente numa saca de ráfia.
Porém, quando o pastor chegou ao cruzamento antes da aldeia, o borrego (que estava cada vez
mais pesado) saltou-lhe das costas, começou a bater as palmas e abalou a correr e a rir. Só
quando o pobre homem conseguiu olhar para o fundo do caminho percebeu: era uma bruxa! E só
se transfigurou naquele sítio porque, dizia o pastor, é nos cruzamentos que as bruxas aparecem,
sempre entre a meia-noite e a uma da manhã. Por isso lhe chamam a noite da má hora e dizem
que nunca se deve passar nos cruzamentos a essa hora de má sina.
CALENDÁRIO DE FESTAS, PROCISSÕES E ROMARIAS
CELEBRAR O «VELHO»

Em Mogadouro, Trás-os-Montes, o Natal cruza-se nas tradições do povo com uma outra festa, de
origem pagã, conhecida como a Festa do Velho, Caramono ou Chocalheiro. Também esta
festividade muito antiga tem início a 24 de dezembro e prolonga-se até ao romper do Ano Novo.
Começa precisamente quando nas diversas aldeias de Mogadouro as pessoas saem de casa e
trocam o calor das suas lareiras para se reunirem à meia-noite junto da grande fogueira de Natal,
que todos os anos aquece os corações no largo da aldeia.
Fazer o fogo coletivo só é possível porque antes disso o «velho» e o «mordomo» da festa já
percorreram toda a aldeia para «pedir o cepo» para «a fogueira do menino».
O «velho» é uma figura medonha e arrepiante, que lembra o diabo. Por isso, vem com um fato
feito de serapilheira, com capuz, cinto de couro munido de grandes chocalhos de latão, que
servem para anunciar a sua chegada aos habitantes da aldeia. O traje completa-se com uma
«caramona», ou seja, uma espécie de máscara talhada em madeira, que ostenta dois chifres na
testa e uma serpente esculpida que lhe sai da boca a espiar os pecados dos comuns mortais.
Contudo, de acordo com a simbologia pagã, este «velho» tem muito que se lhe diga. Os
«caretos», «máscaras», «carochos» ou «chocalheiros» (designações que variam de localidade
para localidade e aparecem em muitos outros costumes e festas do Norte de Portugal)
simbolizam seres superiores, mágicos ou sobrenaturais, totalmente livres, mas que vêm em datas
específicas ao nosso mundo, para castigar ou criticar. Por isso, acredita-se que as festas
expurgam os males da alma e da comunidade, purificam-na e preparam-na para o novo ano que
se avizinha. Assim, em Mogadouro, a noite de Natal tem mais do que presentes e iguarias. Tem
danças, gritos, urros, chocalhadas e algumas críticas sociais que o mascarado executa no
desempenho da sua função.
Curiosamente, também às tradições mais ancestrais já chegou alguma modernidade! Dantes, o
peditório (que se repete depois no dia 25 e no dia 1 de janeiro) fazia-se a pé e demorava quase
um dia inteiro, agora o velho e o mordomo já andam de trator, o que torna as coisas um
bocadinho mais fáceis e céleres para quem tem a missão de preservar as raízes culturais bem
vivas.
ROMARIA DE S. BARTOLOMEU DO MAR

A romaria a S. Bartolomeu do Mar, ou ritual da galinha preta, é provavelmente uma das mais
concorridas e famosas tradições do Portugal profundo, atraindo cada vez mais curiosos de cá e de
além-fronteiras, que no dia 24 de agosto se abeiram das ondas do mar, em Esposende, para
verem com os próprios olhos a força da crença.
Manda ali a tradição que no dia 24 do oitavo mês do ano as crianças com medos e os
respetivos pais invoquem a ajuda de S. Bartolomeu do Mar (padroeiro da freguesia de Esposende
com o mesmo nome) e, carregando consigo uma galinha ou frango de cor preta, com ela ao colo,
deem três voltas à igreja e passem outras tantas vezes por debaixo do andor.
Cumprido o ritual, devem seguir para a praia, onde, apesar da água gelada, os pais devem
ajudar os filhos a «furar» ondas em número ímpar: três, cinco, sete ou nove, ou seja, dar-lhes o
chamado «banho santo».
Este banho santo é um dos pontos altos da romaria e todos os anos reúne centenas de pessoas
na praia, cujo areal fica repleto de gente. E tudo isto para quê, afinal? Rezam as vozes deste
Portugal antigo e fantástico, que felizmente sobreviveu até aos dias de hoje, que é assim que se
esconjuram os medos das crianças e se curam maleitas como a gaguez, a epilepsia ou a gota,
desde que a tradição do banho se cumpra antes de completarem sete anos.
O ritual tem origem numa lenda enraizada no tempo, segundo a qual todos os anos,
precisamente no dia 24 de agosto, o diabo anda à solta pela terra, só voltando ao mar quando a
noite já vai alta. Por essa razão, este é o único dia do ano seguro para levar as crianças ao mar,
para que aproveitem as águas puras e livres de demónios, e assim se curem de muitos males.
Também aqui o pagão e o popular se cruzam com o religioso. Cumprido o banho e dispensada
a galinha (que não é sacrificada e volta sã e salva para o seu galinheiro!), a missa em honra de
S. Bartolomeu realiza-se pelas 11h00, seguindo-se, à tarde, o agradecimento ao santo, através
daquela que é uma das mais imponentes procissões do Norte de Portugal. O percurso é curto
(menos de dois quilómetros, desde a igreja até à praia), mas demora entre duas e três horas,
incorporando centenas de figurantes que reconstituem a tradição e também muitas passagens
bíblicas, além de integrar andores de grande porte e de rara beleza.
AS MARAFONAS DE MONSANTO E A FESTA DAS CRUZES

Erguendo-se altivamente no cume de um majestoso monte escarpado, o castelo de Monsanto foi,


durante séculos, o guardião da histórica e pitoresca aldeia homónima, no concelho de Idanha-a-
Nova, outrora apelidada de «a aldeia mais portuguesa de Portugal».
A sua posição privilegiada em termos defensivos advém tanto das características típicas da
fortificação militar medieval como das características da natureza envolvente.
Qualquer comum mortal que se faça ao caminho pelo trilho pedestre da montanha percebe de
imediato a dificuldade que os exércitos inimigos teriam para ali chegar! E, lá chegados, ainda era
necessário ter forças para o invadir, enfrentando o poder bélico de quem o governava! Não se
conhece com toda a certeza a história dos seus primeiros anos, mas pensa-se que acolheu
romanos, visigodos, árabes e por fim lusitanos. Foi conquistado aos mouros por D. Afonso
Henriques logo nos primórdios da nacionalidade, em 1165, e depois doado por este à Ordem dos
Templários.
Mas todos os povos que por lá passaram contribuíram para a alteração do seu estilo
arquitetónico original. A sua forma atual, porém, está mais próxima da índole templária,
assemelhando-se a muitas outras fortificações da Ordem espalhadas pelo país.
No que diz respeito à estrutura, a fortaleza apresenta diversos elementos culturais e históricos,
como a típica torre de menagem (o seu ponto mais alto), mas sobretudo a Capela de S. Miguel, à
volta da qual se encontram misteriosas sepulturas esculpidas na pedra.
Sendo obviamente um dos símbolos mais reconhecidos de Monsanto, o castelo está interligado
com outros importantes símbolos locais, concretamente as marafonas de Monsanto, pequenas
bonecas de pano que durante as primícias (primeiras colheitas do ano) e a Festa das Cruzes são
atiradas das suas muralhas, numa espécie de oferenda aos deuses, com base na superstição local
de que afastam as tempestades e outros males!
A Festa das Cruzes tem, aliás, origem, num curioso episódio lendário que ainda hoje se conta
sobre o cerco ao castelo. Como é habitual, existem várias versões da lenda: umas falam num
cerco romano aos exércitos do bravo e célebre Viriato; outras apontam para um cerco mouro a
cristãos e outras ainda para uma tentativa de invasão levada a cabo pelas forças de Castela.
Uma das versões mais interessantes, compilada e divulgada pelo historiador Jaime Lopes, na
sua obra Contos e Lendas da Beira, reza assim:

«Em volta do castelo estendia-se, havia anos, apertado cerco.


Da fortaleza destacavam-se guardas avançadas e vigias para as primeiras defesas.
Uma vez ou outra, em noites escuras, alguns mais destemidos e conhecedores de todas as
veredas e precipícios, iludindo a atenção do inimigo, escoavam-se através de refegos e
ressaltos das rochas a haver fora mantimentos, que se não davam a abastança, chegavam
em todo o caso para manter os heroicos defensores do castelo.
Mas a situação prolongava-se em demasia, a vigilância exterior aumentava e os sitiados já
receavam pelo futuro.
Ao mesmo tempo, também os sitiantes, em face de tão prolongada e incrível resistência,
começavam a ter como certo que na fortaleza havia subterrâneo ou comunicação invisível
com o exterior.
Um dia, os monsantinos reconheceram que não podiam manter-se por mais tempo: tinham
apenas uma vitela e meio alqueire de trigo...
A rendição? Nunca, porque jamais os moradores de Monsanto se entregaram sem luta!
Que fazer então?
Alguém opinou que se desse o trigo à vitela e depois esta se atirasse sobre os sitiantes que
talvez assim se convencessem da abundância de víveres!
E, de facto, a vitela, depois de ter comido o meio alqueire de trigo e de beber água a
fartar, foi levada ao sítio mais alto da muralha e lançada sobre o campo dos inimigos.
Semimorta, agonizante, logo eles a abriram e esquartejaram.
E vendo que tinha no estômago, não digerida, boa porção de trigo, exclamaram:
— Com carne fresca e cereal em tal abundância que até lhes chega para a alimentação do
gado, não os venceremos.
E levantaram o cerco.
E puderam então os heroicos defensores do castelo retomar a liberdade, voltar à
alimentação regular e fugir à morte próxima!»

O atirar da vaca tem sido muitas vezes invocado como exemplo da bravura do povo lusitano,
massacrado ao longo dos tempos por vários povos mas sempre vencedor, graças à sua
determinação e astúcia.
Por isso, todos os anos, a 3 de maio, o momento é motivo para uma reconstituição histórica
(com vitelas falsas, é claro!).
Nesse dia, mulheres carregadas de flores e um grande cortejo de ranchos folclóricos (às vezes
com várias centenas de metros) sobem até às muralhas do castelo para lançar, simbolicamente, a
vitela e as marafonas, que segundo o povo têm o poder de proteger as casas contra o mal causado
pelas trovoadas, devendo, para tal, ficar deitadas nas camas, seja noite ou dia.
E com muita razão de ser: no século XIX a queda de um raio no interior da muralha provocou
uma explosão do paiol, fazendo de uma só vez mais estragos do que os muitos invasores, ao
longo de séculos, alguma vez provocaram...
COISAS DE RAPAZES

Por altura dos festejos natalícios e de Ano Novo, em muitas aldeias da região de Bragança
realiza-se igualmente a Festa dos Rapazes, uma tradição pagã herdada de tempos seculares.
O nome e a data das festividades podem variar conforme a aldeia, mas os seus fundamentos e
manifestações são os mesmos: Festa dos Caretos (assim é conhecida na aldeia de Aveleda), Festa
da Mocidade (Montesinho e Gimonde), Festa dos Reis (Baçal e Rio de Onor) ou simplesmente
Festa de Natal (Varge e França).
Assumindo contornos de ritual de passagem, os rapazes solteiros são os principais
protagonistas destes festejos do solstício de inverno, pois é a eles que cabe preparar a celebração,
composta por rondas, missas, peditórios, bailes, desfiles e loas.
Deste modo, todos os anos, os moçoilos começam por se reunir na chamada Casa da Festa,
geralmente cedida por um rico benemérito da aldeia especialmente para a ocasião, e onde só se
pode entrar com autorização expressa do mordomo. É esta figura, uma espécie de líder do comité
de festas, que determina igualmente o início e o fim das atividades. Ao longo de vários dias, o
grupo aí reunido partilha o espaço, faz as refeições e vai-se preparando para as várias etapas
daquela que é uma das mais ancestrais e simbólicas manifestações culturais transmontanas.
De todas as manifestações deste antigo ritual destacam-se as rondas e as loas, que têm o
condão de atrair muitos curiosos a estas aldeias, praticamente desertas no resto do ano. As rondas
à aldeia podem ser noturnas, de alvorada ou apenas de boas-festas, de acordo com a altura do dia
ou com o objetivo a que se propõem. Quando a ronda começa, os rapazes, mascarados ou
vestidos de caretos, percorrem as ruas e os becos acompanhados pelos músicos e pelos
mordomos, para pedir à população um contributo para a festa. A dado momento, a tradição
natalícia cruza-se com a Festa dos Rapazes. Por exemplo, na Missa do Galo, os rapazes ficam
num lugar de destaque perto do altar e são os primeiros a «beijar o Menino» para mais
rapidamente poderem sair, para se irem vestir de caretos e dar continuidade à festa.
Após a cerimónia religiosa, na noite de Natal a população encaminha-se para o sítio onde
decorrerão as loas. E o que são as loas, afinal? São os momentos em que os rapazes recitam, em
quadra, os episódios mais caricatos que aconteceram ao longo do ano na aldeia. Os versos podem
ter que ver com acontecimentos relacionados com os habitantes, ou decisões políticas, e a maior
parte das vezes encerram um forte cunho de crítica social.
O final assinala-se com uma série de provas físicas em que os rapazes medem as suas forças e
destreza, mas apenas para determinar quem serão, no ano seguinte, os mordomos da festa.
Porém, em Mirandela, na aldeia de Vale de Salueiro, esta tradição tem algumas características
bem peculiares. A festa realiza-se anualmente, há já vários séculos, no Dia de Reis, ou seja, já no
Ano Novo, em honra de Santo Estêvão. Mas aqui existe a figura do Rei, que percorre as ruas
carregando uma coroa de ouro emprestada pela população da aldeia. Durante a festa é permitido
que as crianças andem pelas ruas a fumar. Ao percorrer a aldeia, sempre bem acompanhado por
um grupo de gaiteiros e muitos turistas, o Rei distribui tremoços e vinho em cabaças.
Mais tarde, já no largo da aldeia, quando o Rei chega inicia-se o baile com a dança da
Murinheira ao som de gaitas de foles e dos bombos. O dia termina com a celebração da missa,
onde é escolhido e coroado o próximo Rei, responsável máximo pela realização da festa do ano
seguinte.
«SERRA A VELHA!»

A Semana Santa em Portugal é recheada de festas e romarias que misturam o catolicismo


com reminiscências de antigas festas pagãs, cruzando a fé com rituais ancestrais muito
próprios. Uma das mais antigas tradições pascais existentes em Portugal é a Serração da
Velha, que acontece todos os anos no Tourém, freguesia portuguesa do concelho de
Montalegre.
Além de assinalar o advento cristão, esta festa simboliza sobretudo o fim do inverno
(representado pela velha) e o início da primavera (representada pelos jovens mancebos da
terra). O ritual começa pela meia-noite de Quarta-Feira de Cinzas, quando os grupos de
rapazes se reúnem em grande agitação e rebuliço, muito graças aos chocalhos que vão
agitando freneticamente no ar para despertar toda a aldeia.
Depois saem em grupo pelas ruas, e vão parando nas portas onde estão as velhas (feitas de
palha), pedindo que estas lhes sejam entregues. Quando a vontade deles é cumprida, as
figuras são enfiadas em paus e queimadas em ambiente de grande folia!
Noutras aldeias em redor, a festa da velha tem lugar com uma ligeira variação: além dos
chocalhos, os rapazes andam com uma tábua e uma serra. Um deles faz a voz de “velha”,
berrando para não ser serrada, sendo a resposta dada por todos os restantes em coro: “‐
Serra a velha, serra a velha!”»
A QUEIMA DO JUDAS

Uma outra tradição pascal muito conhecida decorre mesmo no centro da povoação transmontana
de Montalegre, demonstrando que esta é mesmo a vila mais apegada de todo o País aos velhos
costumes pagãos. Trata-se da Queima do Judas, cerimónia que representa a vontade de a
humanidade lutar contra o mal, aqui personificado por bonecos de palha.
A celebração arranca mal o Sol se põe atrás das serras altas, mais ou menos pelas 17h00.
Nessa altura, os Judas de palha (normalmente duas dezenas) são agrupados na Rua Direita de
Montalegre, seguindo depois em cortejo até ao Terreiro do Açougue, onde decorre a queima. A
rudimentar festa de luz e fogo também tem, por vezes, um caráter satírico, dependente das
circunstâncias da atualidade: em 2011, por exemplo, dois dos Judas queimados foram «a Crise» e
o «FMI».
NOSSA SENHORA DA ENXARA

Em Campo Maior, no distrito de Portalegre, a Páscoa está associada a outra arreigada festividade
local, celebrada no mesmo fim de semana, em que se recorda o milagre de Nossa Senhora da
Enxara.
A história, contada segundo os pergaminhos oficiais, reza que uma criança brincava pelos
imensos campos de trigo enquanto a sua mãe lavava roupa no rio, quando, de repente, foi ter com
ela uma bela senhora que lhe ofereceu um brinco de ouro.
A mãe e os aldeões ficaram deveras intrigados com aquela história que aos ouvidos dos
adultos parecia rocambolesca demais para ser verdade. Então deslocaram-se todos ao local
indicado pela menina e encontraram, no lugar onde a senhora lhe oferecera o brinco, uma pedra
com a imagem de Nossa Senhora gravada.
Comovidos, os populares quiseram erguer uma capela a meio caminho entre a povoação de
Ouguela e o local do aparecimento da Senhora, mas novos imprevistos estavam prestes a pôr à
prova a fé das gentes…
Todas as manhãs, a pedra que fora para ali transportada regressava miraculosamente ao seu
local de origem! Ao fim de uns dias, com muito falatório e rezas à mistura, as gentes de Campo
Maior renderam-se às evidências e recomeçaram então a construção no local onde a criança
avistou Nossa Senhora. Ainda hoje é esta a capela que recebe entre a Sexta-Feira Santa e a
segunda-feira após a Páscoa uma romaria em que participam os fiéis de Campo Maior e muitos
peregrinos de fora do concelho.
A festa esteve interrompida durante muito tempo por razões políticas durante os anos 1960,
mas desde o 25 de Abril voltou a animar as celebrações pascais de Campo Maior, que integram
também uma missa e uma procissão campal, espetáculos de música e touradas.
NOSSA SENHORA DA BURRINHA

Esta é precisamente a procissão que assinala o início das celebrações da Semana Santa no local
onde elas têm maior tradição em Portugal, a religiosa e conservadora cidade de Braga.
O simbolismo desta festa religiosa é recriar a fuga de Maria de Jerusalém para o Egito, tal e
qual como ocorreu segundo a Bíblia: em cima de uma burra.
O andor com a imagem de Nossa Senhora é transportado pela rua em cima da burrinha, numa
procissão que inclui a reconstituição de quadros bíblicos levados à cena pelos fiéis que cumprem
o desejo de participar na celebração. Assim, pelas ruas, vai desfilando uma lição viva sobre o
Cristianismo, através dos seus episódios mais célebres: desde o chamamento de Abraão,
passando pela era dos Patriarcas, a escravidão no Egito, a missão libertadora de Moisés, a fuga
de José e Maria até à infância de Jesus. Em média, participam cerca de mil figurantes na
reconstituição e o acontecimento costuma atrair, por ano, cerca de 60 mil peregrinos a Braga.
No essencial, é figurada a Aliança de Deus com o seu povo — «Vós sereis o meu povo» — e
prefigurada a Nova Aliança que será selada com o sangue de Cristo.
Pelo meio há uma pitoresca curiosidade: até 2011, era sempre a burra Letícia que tinha a
missão de levar a imagem, até que nesse ano resolveu parar a meio da procissão por um bom
período, talvez por cansaço e demasiada idade. Por isso, em 2012, Letícia foi substituída por
Madonna, uma verdadeira burra mirandesa, mais jovem e cheia de força nas pernas.
PROCISSÃO DE ENDOENÇAS

Realiza-se já há três décadas: na última quarta-feira antes da Páscoa, pela calada da noite, a
imagem do Senhor dos Passos é «roubada» da paróquia de Entre-os Rios pelas gentes da
freguesia do Torrão, de onde, aliás, parte no dia seguinte para regressar acompanhada pelos fiéis
ao seu local de origem.
Até 1941, a viagem era feita de barco, com mais de 50 mil velas nas margens em redor a
iluminarem a travessia dos rios Douro e Tâmega. Agora, o santo e as gentes também fazem uma
parte do percurso a pé, mas a belíssima imagem proporcionada pelas luzes não se perdeu:
continuam as ser colocados milhares de velas ao longo do percurso, nas pontes, nas margens dos
rios, nas janelas, nas fachadas e nas encostas do Torrão e de Entre-os-Rios. A procissão noturna
conta até com o apoio da EDP local, que se compromete a cortar o fornecimento de luz durante a
festividade, para que não haja falhas no efeito pretendido e só mesmo as velas iluminem o
belíssimo cenário natural da procissão.
SÁBADO DE ALELUIA EM IDANHA-A-NOVA

No Sábado de Aleluia, em Idanha-a-Nova, não haverá certamente quem consiga ficar indiferente
à celebração da ressurreição de Cristo. É que a festa é feita de forma tão ruidosa e exacerbada
que ninguém prega o olho! Pela noite, toda a povoação sai para a rua com apitos, chocalhos,
instrumentos musicais e um pouco de tudo o que encontrar pela frente desde que faça muito
ruído!
Não vale a pena grandes explicações: é o anunciar da boa nova do milagre e do regresso à vida
de Jesus Cristo que começa às 21h00 locais, quase ao mesmo tempo em que, na Igreja Matriz, o
padre diz a palavra «Aleluia». Nesse preciso momento, os sinos tocam a rebate, as gentes saem
para a ria e dão a volta à vila fazendo uma bonita e ruidosa festa, que dura aproximadamente uma
hora.
Os anunciantes da ressurreição não vão sós: são acompanhados o tempo todo pela Banda
Filarmónica de Idanha. Quem prefere um certo recolhimento em vez do cortejo que vá para a
igreja, para junto do padre, aguardando lá que o cortejo regresse ao adro.
Quando por fim termina a liturgia e o barulho, o padre regressa à sua casa paroquial e, da sua
janela, vai oferecendo aos populares pacotes de amêndoas. Terra onde a tradição pascal é muito
forte, o concelho de Idanha-a-Nova celebra ainda (quinze dias depois da Páscoa) a sua romaria
anual, uma das maiores da região, e a festa no Santuário da Senhora do Almortão. O Sábado de
Aleluia, por seu turno, é uma das celebrações religiosas mais populares da região e todos os anos
atrai até ela muitos visitantes.
A FESTA DAS TOCHAS FLORIDAS

No Domingo de Páscoa, São Brás de Alportel enche-se de flores para celebrar o regresso à vida
do filho de Deus.
O trajeto da romaria, que chega a atingir um quilómetro de extensão, é enfeitado com um
longo, bem cheiroso e colorido tapete feito à mão com milhares de flores, através do qual a
procissão vai avançando pelas ruas mais antigas da cidade algarvia.
Além do chão, pelas ruas desfilam ainda tochas de fogo incandescentes, também enfeitadas de
flores. Segundo contam os mais velhos, a tradição começou numa época em que muitas
confrarias, por falta de fundos para adquirirem as grandes velas que geralmente acompanham os
fiéis nas romarias, começaram a usar paus pintados e ornamentados com flores do campo, tendo
apenas uma pequena vela acesa no topo.
Com o tempo, muitas destas confrarias foram desaparecendo e as que persistem até podem ter
hoje em dia dinheiro suficiente para as velas, mas a verdade é que esta tradição veio para ficar e
já ninguém se imagina a fazê-la de outro modo.
As cores impregnadas nas tochas são as mais variadas e remetem ainda para as antigas cores
dos estandartes dos confrades, num autêntico festival de tons que já tornaram São Brás de
Alportel na mais visitada localidade do Algarve nesta quadra.
A TRAVESSIA DA CRUZ

Junto a Caminha, no distrito de Viana do Castelo, a Páscoa une os povos que vivem em ambos os
lados da fronteira, através do rio Minho.
Cerca das 18h00, após a tradicional visita pascal de casa em casa na aldeia de Cristelo-Covo, o
padre da freguesia segue para o porto de embarque de Segadães, onde embarca para levar o
compasso e a cruz enfeitada, dando-a depois a beijar aos habitantes galegos da outra margem do
rio Minho, os da localidade de Sobredo-Torron. Durante o tempo que dura a travessia, os
pescadores lançam ao rio as suas redes, agora abençoadas pelo padre, a quem é entregue o fruto
da pescaria noturna. No regresso, o padre português volta acompanhado pelo seu homólogo
espanhol, que traz também o seu compasso aos crentes portugueses para beijar. Esta
demonstração da amizade entre minhotos e galegos é intensamente celebrada há muitos séculos,
fazendo ecoar por ambas as margens foguetes, fanfarras, bombos, tambores, gaitas de foles em
clima de festa durante toda a travessia.
O MAIOR ESPETÁCULO DO MUNDO

E o que talvez muitos não saibam é que «o maior espetáculo de fogo de artifício do mundo», tal
como foi classificado em 2006 pelo Livro de Recordes do Guinness, é uma tradição que remonta
ao século XVII.
Já nessa recuada época, a passagem de ano era assinalada com fogueiras que ardiam durante
toda a noite, iluminando e preenchendo de cor e de brilho as encostas verdejantes da ilha.
Mais tarde, durante o século XVIII, a extensa comunidade inglesa ali residente veio a introduzir
o lançamento dos foguetes para marcar o início do novo calendário.
Entretanto, mais ou menos um século depois, o banqueiro madeirense João José Rodrigues
Leitão optou por recriar esta tradição de forma mais regular. Por isso, a partir do século XIX, as
famílias madeirenses mais abastadas começaram a competir umas com as outras no lançamento
dos foguetes, oferecendo assim a todos um espetáculo de fogo de artifício que se alastrava
majestosa e ruidosamente até às zonas mais altas da cidade.
À explicação oficial dos costumes, porém, soma-se uma lenda já com barbas brancas!
Diziam os mais antigos que noutros tempos, precisamente nessa noite em que o mundo inteiro
se ilumina de festa — a noite de S. Silvestre —, quando as doze badaladas da meia-noite batiam
certeiras, erguia-se nos ares a espectral e surpreendente visão de um cortejo maravilhoso onde as
sombras desfilavam revestidas de luz e de cores fantásticas. Um cortejo que não era deste mundo
e que deixava atrás de si um perfume estonteante...
Havia quem o atribuísse a Nossa Senhora, havia quem visse nele os seus entes queridos
desaparecidos, mas ninguém sabia ao certo… em abono da verdade, o povo sentia que um
cortejo assim era um privilégio.
Os anos foram passando e o cortejo da meia-noite, sabe-se lá porquê, desapareceu.
Os homens temeram estar a perder a sua ligação ao mundo do divino e por isso, em seu lugar,
criaram as esplendorosas festas do fim do ano na Madeira evocando S. Silvestre. Mas porque é
afinal S. Silvestre tão importante para as gentes da ilha?
Porque, conta uma outra lenda descortinada pelo investigador Gentil Marques, há muitos e
muitos séculos existia num certo local do oceano Atlântico, precisamente para os lados onde se
encontra Portugal insular, o mais maravilhoso de todos os países do mundo: o reino de Atlântida.
Segundo Platão, a Atlântida, que coubera inicialmente em partilha ao deus Poseidon, foi
depois dividida em dez pedaços, o número de filhos que Poseidon teria tido com uma belíssima
mortal — Clito, de seu nome. E destes passaram para os seus descendentes e assim
sucessivamente, até ao dia em que os deuses do mar tiveram a louca pretensão de conquistar o
mundo inteiro. Todavia, um deles, um que era especialmente arrogante, ouviu uma estranha voz
em seu redor ralhar-lhe:
— Enganas-te, tolo mortal! Não há homem algum que tenha o poder de Deus!
Surpreendido e muito desconfiado, o rei da Atlântida rodopiou, mas nada viu, o que o deixou
ainda mais intrigado e zangado.
— Quem tem o pudor de me falar assim? Quem se atreve a contestar-me em alta voz?
De imediato, a mesma voz sobrenatural respondeu:
— É Deus que te fala, arrogante e mesquinho rei da Atlântida. És um simples homem, um ser
frágil e meu servo. Tu é que estás a ter a ousadia de me desafiar!
Num grito, o rei humilhado perguntou à voz:
— Deus? Mas qual dos deuses? Os únicos reis que existem são os soberanos como eu e os
meus irmãos, a quem todos neste reino obedecem.
Mas a voz sobrenatural apressou-se a esclarecê-lo:
— Sou obviamente o único Deus que existe! Aquele que criou a vida e a morte!
— Sejas quem fores, Deus ou não, desafio-te! Nunca ninguém irá opor-se aos meus planos!
Eu não tenho medo de nada nem de ninguém. Muito menos de uma voz e de alguém que nem
sequer tem a coragem de aparecer! Escuta, ó voz vinda sabe-se lá de onde: eu sou o rei da
Atlântida, o mais poderoso império de todos os impérios deste universo e de todos os que
existem! Tenho força e poder suficientes para dominar o mundo! E vou provar-to! Vou começar
por Atenas…
Depois destas palavras, a voz sobrenatural suspirou e limitou-se a prevenir:
— Rei tolo e ambicioso... atreve-te e verás o resultado!... Irás arrepender-te para toda a
eternidade!
Como é fácil de prever, o despótico rei da Atlântida não se deixou amedrontar. Entrou
imediatamente para o seu castelo, sentou-se no seu grande cadeirão e mandou que os seus
exércitos se apresentassem prontos para vencer a grande batalha.
— Se vencermos o poder de Atenas, o mundo será nosso! Depois de vencermos esta batalha,
ninguém mais se atreverá a erguer-se na nossa frente!... Nem os próprios deuses! A vitória tem
de ser nossa! — instigou ao dirigir-se aos seus homens.
Prontamente, a multidão de guerreiros repetiu num eco único:
— A vitória será nossa!
Conforme nos conta Platão, assim se travou a terrível batalha entre os povos do Ocidente das
Colunas de Hércules, comandados pelo rei da Atlântida, e os povos de Leste, chefiados
por Atenas.
Porém, no meio da sanguinária batalha, entre os corpos que caíam pelo chão trespassados
pelas espadas e pelas marretas, surgiu de repente a mesma voz estranha e não humana, que
obviamente se sobrepôs ao frenesim da luta:
— A vitória será de Atenas, para que Atlântida, na sua petulância, sofra uma terrível lição.
Atlântida desaparecerá para sempre! O seu nome há de ficar para sempre como o símbolo da
grandeza destruída por sua própria vontade. Esta é a minha vontade. A vontade de Deus!
A verdade é que depois disto os guerreiros da Atlântida, apesar de mais fortes, mais bem
armados e treinados, foram derrotados sem dó nem piedade pelos guerreiros de Atenas.
E a terrível vingança de Deus não se ficou por aqui. A seguir à derrota vieram as cheias, as
inundações, as tempestades e os tremores de terra. Do dia para a noite, de uma vez o
esplendoroso e incomparável reino da Atlântida ruiu por completo e desapareceu engolido pelas
águas do oceano Atlântico…
Muitos séculos passaram sobre esse dia, até que apareceu o Messias, para ensinar uma nova
vida aos homens. A Sua Mãe, a Virgem Maria, debruçava-se lá dos Céus sobre o oceano que se
estendia placidamente a seus pés. Um dia, junto dela passou um santo ainda jovem. Parecia vir
preocupado. Nossa Senhora ergueu para ele o seu olhar mais bondoso:
— O que te preocupa, Silvestre? Porque trazes esse semblante tão carregado?
Recatadamente, Silvestre confessou-lhe:
— Senhora, esta é a minha noite. A última do ano. E por isso mesmo eu acho que a minha
noite devia ter significado para os homens lá em baixo. Veja-se a Atlântida, que todos
esqueceram. Já nem se lembram de tudo o que fizeram de mal, de tudo o que perderam por causa
da sua vaidade e da sua busca de poder…
A Senhora ouvia-o interessada e perguntou-lhe:
— Qual era a tua ideia, meu jovem Silvestre?
— Pois bem, Senhora… se me permitis... julgo que esta noite devia ser muito mais do que
uma grande festa. Vem logo depois do nascimento do teu filho, Senhora. Devia marcar uma
fronteira entre o passado e o futuro, servindo para que os homens se arrependessem dos erros
cometidos e prometessem a si próprios esperança de melhores dias.
A Virgem Santíssima comoveu-se e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
S. Silvestre quis consolá-la.
— As vossas lágrimas são pérolas! Autênticas pérolas que caem dos vossos olhos no meio do
oceano!... Lá em baixo, efetivamente, uma pérola verdadeira começou a crescer, a ganhar ramos,
árvores, flores e a tornar-se a mais bela pérola de sempre… a Pérola do Atlântico!
Deste modo, o povo madeirense atribui a sua fundação a Nossa Senhora e ao bom coração de
S. Silvestre. Por isso, celebram-no espetacularmente nas ruas e no coração, tentando fazer-lhe a
vontade e não repetir os erros do passado…
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ARQUIVO

Arquivo Nacional de Lendas — Centro de Estudos Ataíde Oliveira — Universidade do Algarve:


APL 654, APL 1499, APL 2029, APL 20 59, APL 2067, APL 2499, APL 2605, APL 2890
(recolhas inéditas)
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro — Projeto Vercial — Literatura Portuguesa de
Tradição Oral, A Bouça da Fada, 2003 , p. L12 e Centro de Estudos de Letras (Projeto «Estudos
de Produção Literária Transmontano-duriense»)

IMPRENSA

Expresso, guia O Melhor de Portugal — Festas, Feiras, Romarias, Rituais, artigo «Feira de São
Bartolomeu».
Jornal de Notícias, «Imagem do Senhor de Matosinhos regressa à igreja após restauro», edição
de 10 de maio de 2012.
Jornal de Notícias, «Matosinhos, terra de milagres e História», Luísa Correia, edição de 6 de
junho de 2017.
National Geographic, «Leve lava — Vulcão dos Capelinhos sessenta anos depois», setembro de
2017, Grandes Reportagens, Texto: Paulo Rolão Fotografia: Pedro Guimarães.
Notícias de Loulé
INTERNET

www.toponimialisboa.wordpress.com
www.faroldanossaterra.net
www.guiadacidade.pt
www.olhaocubista.pt por António Paula Brito
www.jn.pt
Fórum Portugal Paranormal
www.minho.pt
www.folclore.pt
www.folclore-online.com
www.vortexmag.pt
www.lendarium.org

OUTROS

Escola Profissional da Região Alentejo/Núcleo de Dinamização Cultural de Estremoz, Lendas e


Outras Histórias, 1995, p. 83.
Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, Vulcão dos Capelinhos, 1997, Vol. I:
Retrospectivas, consultor: Victor Hujo Forjaz.
AGRADECIMENTOS

À minha família, em especial às minhas filhas, por serem a minha maior força e inspiração. Ao
pai delas, pelo apoio sempre presente e incondicional. Aos meus pais, que me deram esta
maneira de estar, acreditando que nada surge no nosso caminho por acaso, mas porque vale a
pena.
Ao Correio da Manhã: aos meus colegas que tão espontânea e generosamente fazem questão
de partilhar comigo as suas histórias assombradas; à sua direção, e em especial ao Octávio
Ribeiro, que sempre apoiou estas minhas viagens exploratórias ao mundo dos livros e dos temas
que nos transcendem.
À Célia Nogueira e à Margarida Damião, por me desafiarem para embarcar com elas nesta
nova aventura.
À Isabel Luís, que o acaso transformou em cúmplice.
Obrigada por caminharem ao meu lado.
BIOGRAFIA

VANESSA FIDALGO nasceu em maio de 1978 em São Domingos de Benfica. Cresceu em


Lisboa, ora no coração da cidade, ora nos seus arredores, e desde cedo percebeu que as histórias
“não oficiais” dos lugares, dos seus edifícios e das suas pessoas estão entre aquilo que melhor
traduz o sentimento de pertença de uma comunidade.
Talvez por isso, na adolescência, tenha decidido ser jornalista. Aos 18 anos fazia a vontade ao
sonho de menina e entrava como estagiária para o mundo dos jornais, mais concretamente para o
diário Correio da Manhã.
Jornalista há mais de vinte anos, também já fez muitas outras coisas, desde guiões para
televisão a conteúdos multimédia e até outros livros. Começou a publicar em 2012 e o seu
primeiro livro, Histórias de um Portugal Assombrado, tornou-se num caso de sucesso,
permanecendo várias semanas nos primeiros lugares das tabelas de vendas. Pelos Caminhos
Assombrados de Portugal (2020) é o seu primeiro título pela Saída de Emergência.

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A HISTÓRIA DE PORTUGAL CONTADA PELOS VILÕES

FILIPE LUÍS

E se a História de Portugal fosse contada pelos maus da fita? Que motivos tinha D. Afonso IV
para mandar assassinar Inês de Castro? E por que razão se opôs D. Teresa de Leão à
independência de Portugal? Miguel de Vasconcelos foi mesmo um traidor ou comportou-se,
apenas, como um patriota, filho do império que o viu nascer e o formou? Que contexto social
motivou a amoralidade assassina de Diogo Alves? Terá sido mesmo D. Carlota Joaquina a
meretriz conspiradora que o povo tanto odiou? E D. Leonor Teles, a Aleivosa, foi realmente uma
sedutora traiçoeira? E porque terá sido escolhido Casimiro Monteiro para integrar o comando da
PIDE que matou Humberto Delgado?
Neste livro, o autor entra na pele de 12 personagens reais, que o imaginário popular identifica
como vilões, e procura reconstituir o que seria a sua versão dos acontecimentos de que foram
protagonistas. O resultado é um híbrido entre o romance histórico e o rigoroso relato
historiográfico de mais de 900 anos, entre 1080, data de nascimento da primeira personagem do
livro, e 1993, data da morte da última. Este não é um livro de História, mas um livro sobre a
História, através de um olhar absolutamente original.

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