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946.9 N.Cham. 946.9 S246c 5 ed.


S246c Autor: Saraiva, António José, 1917- 19
S e~ Título: O crepúsculo da Idade Média em

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ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA

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O CREPUSCULO
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DA IDADE MEDIA
EM PORTUGAL
5.ªEDIÇÃO

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©Herdeiros de António José Saraiva - Gradiva, Publicações, L:'"
Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira
Capa: Armando Lopes
Fotocomposição: Textype -Artes Gráficas, L.'1"
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, L'"'
Direitos reservados a:
Gradiva Publicações, L.d"
Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq.
1350 Lisboa
Telefs. 397 40 67/8
5.ª edição: Outubro de 1998
Depósito legal n.º 127 143/98
Agradecimento
A realização deste livro não teria sido possível sem a colaboração
da minha antiga aluna e dedicada amiga Dr.ª Leonor Curado Neves,
que acompanhou a busca de material, leu o original e o dactilogra-
fou, corrigindo lapsos meus de redacção e de memória, conferindo e
acertando as notas e revendo as provas com empenho e amizade inex-
cedíveis.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 1988


O Autor
Intróito
No final do reinado de D. Afonso III pode dizer-se que o reino de
Portugal é uma entidade política constituída. Existe uma corte em
Lisboa, uma capital do território; o crescimento do Reino estabiliza-
-se do Minho à costa do Algarve. O que não significa que a corte cas-
telhana de Toledo não mantenha a sua força de atracção no Oci-
dente, manifesta na acção de Afonso X-ó-Sábio como mecenas dos
trovadores e jograis de língua galego-portuguesa e como exemplo
para os cronistas de ambas as regiões, com a sua Crónica General de
Espafía. Toledo é a verdadeira capital cultural de toda a Espanha oci-
dental.
Aparentemente, o Portugal «hispânico» sossobrou no cataclismo
social e político de 1383. Seguiu-se-lhe uma fase de castelhanofobia,
bem marcada nas crónicas de Fernão Lopes. Nessa mesma fase ocor-
reu também a decapitação da antiga nobreza, a nobreza registada nos
livros de linhagens e que estava muito· ligada a Castela.
Mas o afastamento de Portugal e de Castela, que é sobretudo de
ordem . fifectiva, dura pouco mais que a vida de um homem.
D. João I casou com uma princesa da Casa inglesa de Lencaster,
cujo chefe era candidato ao trono de Castela. A batalha de Aljubar-
rota tinha sido um episódio dessa guerra de candidatura frustrada.
D, Isabel, a filha do mesmo rei, foi destinada ao duque de Borgonha,
aliado dos Ingleses na guerra contra o rei de França. Seu filho
D. Duarte continuou a anterior tradição das alianças com a Casa de
Aragão (donde viera a rainha Santa Isabel), que era o principal
adversário de Castela na estratégia dos reinos peninsulares. Mas já
D. Afonso V, o neto de D. João 1, reivindicou o trono de Cast.ela
numa campanha que foi decidida nà batalha de Toro (1476). Esta
mesma ambição de dominar ambas as coroas da Espanha ocidental

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leva a promover o casamento do neto de D. Afonso V com uma prin-
cesa castelhana; a morte desastrosa e prematura do príncipe
D. Afonso adiou o projecto, que foi retomado por D. Manuel, o
qual chegou a ser jurado herdeiro dos Reis Católicos em Sevilha. Os
casamentos castelhanos de D. Manuel criaram um xadrez de probabi-
lidades. cujo beneficiário veio a ser Filipe II, neto de D. Manuel e rei
de Castela.
Desta política dos reis de Portugal, a partir do neto de D. João 1,
resultou que, durante mais de um século, a rainha de Portugal era
uma princesa castelhana: e que a corte de Lisboa nos séculos xv e XVI
se castelhanizava mais do que nunca. Era natural que os poetas por-
tugueses fossem bilingues neste período, em que abundavam as
mulheres castelhanas na corte de Lisboa. Na poesia, como ~m tudo
o mais, os modelos villham de Castela.
A tradição poética oral de raiz galega, em que se tinham inspirado
Afonso X e D. Dinis, extinguiu-se porque as condições não eram já
favoráveis ao exercício da actividade dos jograis; as novas formas
poéticas hispânicas enchem os dois grandes cancioneiros impressos,
um em Valência, por Hernando dei Castillo, e outro em Lisboa, por
Garcia de Resende, respectivamente em 1511 e 1516.
A nobreza local, a que ficou registada nos livros de linhagens,
afundou-se, ao que parece, na catástrofe de 1383. Mas outra se criou,
com origem nos filhos e netos de D. João I e de Nun'Álvares, cujo
poder não é já propriamente local, mas nacional, pois se estende
indiscriminadamente de norte a sul do território.
Esta nobreza estava no topo da corte. É com ela que D. João II tem
de se haver, não podendo evitar que um dos seus principais represen-
tantes, D. Manuel, filho do duque de Viseu, venha a herdar o trono.
Crê-se geraímente que a conquista de Ceuta manifesta um espírito
novo de empresa mercantil, uma orientação comercial dã guerra.
Esta hipótese foi uma tentativa infeliz de «racionalização» da histó-
ria. D. João 1 e os seus conselheiros nem sequer tinham decidido ocu-
par a cidade definitivamente, mas apenas fazer um assalto, que, por
fortuna, foi excepcionalmente bem sucedido. O espírito de aventura
cavaleiresca é bem patente se nos lembrarmos de que o rei arriscou
a vida da sua pessoa, a do seu herdeiro e os seus principais e mais
experimentados cavaleiros expondo-se a um desastre que poderia ser
fatal. para o destino do reino recentemente restituído à indepen-
dência. Vinte anos depois deu-se a derrota de Tânger, lembrando o
que podia ter acontecido em Ceuta. D. João 1 foi na aventura de
Ceuta um precursor (mas afortunado) de D. Sebastião.

8
O assalto e tomada de Ceuta são concebidos dentro do espírito tra-
dicional e templário da guerra santa contra os Mouros; é a zona oci-
dental da Cruzada do Oriente, de que resultou a conquista de Jerusa-
lém; é também para os reis da Península uma alternativa à guerra de
Granada, que virá a ser tomada em 1492. O cardeal Cisneros também
prolongou a Reconquista em África, tomando Oran nos primeiros
anos do século XVI.
Os historiadores desta corrente, desastrada e grosseiramente
«racionalistas», são também «europeístas» e viram na conquista de
Ceuta, seguida das explorações marítimas em África, a ob[a de um
grupo social que estava dominando as grandes cidades mercantis no
Norte da Europa, as cidades italianas do Norte e o reino de Aragão-
Catalunha. É também um erro de perspectiva, porque Portugal per-
tencia (então e agora) a uma zona cultural muito diferente, fortemente
marcada pelo islamismo, em que o espírito cavaleiresco dominava de
longe o espírito «burguês». A guerra com os Muçulmanos, longe de
ser um rompimento com a cultura islâmicà, é, pelo contrário, a sua
confirmação e reforço. O mesmo espírito de «guerra santa» inspirava
os guerreiros de um lado e outro da linha de combate.
A permanência da cultura islâmica em Portugal está bem patente
nos pátios e salas mouriscas do palácio da vila em Sintra, mandado
construir pelo próprio D. João l.
O carácter guerreiro da empresa africana do infante D. Henrique é
confirmado pela orientação das navegações que ele dirigiu. São nave-
gações costeiras de reconhecimento da terra africana, cujo propósito
(como, aliás, escreveu Zurara) era encontrar uma entrada ou testa-de-
-ponte por onde pudesse atacar os Mouros pela retaguarda, ou achar
terra cristã donde lhe viesse auxílio militar contra eles. O descobri-
mento das ilhas não estava nos seus planos nem nas suas intenções e
a procura de uma passagem por noroeste é uma grandiosa fantasia de
historiadores excessivamente patrióticos. D. Henrique merece mais o
apodo de «príncipe cavaleiro» que o de «príncipe navegador».
À sua morte, os navegadores portugueses, sempre rumo a sudoeste,
estavam chegando às terras donde vinha o ouro. Mas as novas perspec-
tivas que se abriam só foram compreendidas na corte de D. João II.
A partir deste rei, as navegações têm um carácter decididamente mer-
cantil. O rei compreendeu as possibilidades que do comércio, e espe-
cialmente do ouro, advinham para o fim em que verdadeiramente
estava empenhado: estabelecer o domínio indisputado da Coroa, cen-
tralizar a Administração e domesticar a nobreza. É então que se entra
numa nova fase política e cultural.

9
PARTE I

AS EXPRESSÕES DA AFECTIVIDADE
§ 1. A corte dos trovadores
Sendo infante, D. Afonso, filho de D. Afonso II de Portugal e
irmão de D. Sancho II, emigrou em 1227 para França, como tantos
filhos segundos que buscavam a aventura, a honra, a riqueza e até o
ganha-pão nas guerras e nas cortes de além-Pirenéus. Lá se encon-
trava também seu tio D. Fernando, filho de D. Sancho I, conde da
Flandres e vassalo do rei de França. Era então regente daquele país
sua tia direita D. Branca de Castela, mãe de São Luís, cuja influência
política foi sempre poderosa. Quem sabe se por sua mediação,
D. Afonso veio a casar em 1238 com Matilde, nora de Filipe Augus-
to, rei de França, e viúva de um seu filho, herdeira dos condados de
Bolonha e Dommartin. O futuro D. Afonso III achou-se desta
maneira herdeiro de uma das grandes fortunas feudais da Europa e
membro da casa reaLfrancesa.
A capital do condado, Boulogne-sur-Mer, encontrava-se nos con-
fins da Bretanha e da Flandres, região próspera e culta, a pouca dis-
tância de grandes cidades mercantis como Gand, Lille, Arras,
St. Quentin. Era um porto constantemente ameaçado pelas invasões
inglesas durante a Guerra dos Cem Anos. D. Afonso viveu em
França no intervalo de duas cruzadas e no rescaldo.da repressão san-
grenta dos Albigenses. A Universidade de Paris, onde ensinavam São
Tomás e São Boaventura, estava na época do seu esplendor. Grandes
catedrais góticas surgiam de todos os lados. Estava lançada a moda
nova dos romances em prosa, que sucedia, no gosto do público, às
narrativas em verso cantadas pelos jograis. Corria o vasto ciclo de
romances da Demanda do Santo Graal, cujas várias redacções se
devem a Chrétien de Troies (último quartel do século XII), a Robert
de Boron (começo do século xm) e a outros autores.
Era esta talvez a novidade literária de maior fortuna. Tratava-se
de obras para leitura, e não já de tradições orais, embora alguns
jograís continuassem a cantar velhas e prestigiosas canções de gesta.

13
Novos temas tinham entrado no reportório jogralesco, sobressaindo
no interesse do público os poemas chamados de Bretanha: lais de
Maria de França e outros autores, histórias mais romanescas do que
épicas, cheias de maravilhas e de mistério, em que o amor ocupa o
primeiro plano.
Sobrevivia o lirismo de inspiração provençal, que, após o massacre
dos Albigenses, se refugiara nas cortes de Itália, Espanha, Alemanha
e França do Norte.
Tanto o ciclo arturiano, como o do amor cortês, como os decaden-
tes cantares de gesta, são objecto de paródia, numa vasta literatura
satírica, como os Fabliaux e as séries do Roman de Renart. A França
do Norte é um dos pólos desta literatura anticavaleiresca e anti-
-romântica. O Roman de la Rose (1. ª parte, 1225-37) exprime uma
atitude satírica perante a literatura trovadoresca do amor.
O interesse de alguns dos companheiros portugueses do conde de
Bolonha pela literatura francesa está documentado: D. Afonso Lopes
de Baião, que o apoiará na guerra civil, é autor de uma paródia da
Chanson de Roland 1• D. Fernão Garcia Esga.ravunha, outro amigo
do rei, introduziu num dos seus cantares de amor um refrão em fran-
cês ou provençal:
Ar sachaz veroyamen
que ie[u] soy vo[s]tr'ome lige 2 •
Ao voltar para Portugal, D. Afonso não trouxe a sua esposa fran-
cesa, Matilde, e, sendo ela ainda viva, contraiu casamento com
D. Brites, filha bastarda de Afonso X-o-Sábio, de Castela e Leão.
O genro era dez anos mais velho que o sogro e a desposada, uma
criança, teve de aguardar a idade núbil em poder do marido. Isto
mostra como D. Afonso III optou pela cultura hispânica e entrou na
órbita do seu principal fautor, Afonso X.
Afonso X-o-Sábio presidia à corte literária talvez mais brilhante
da Europa. Poetas, juristas, músicos, astrólogos, cronistas e traduto-
res árabes e judeus contam-se entre os seus colaboradores. Preciosos
códices iluminados, como o das Cantigas de Santa Maria, saíram das
suas oficinas de copistas. A Primera Crónica General, a General e
Grand Estoria, os livros das Sete Partidas, enciclopédia jurídica, os
1
R. Lapa, Cantigas d'Escamho e de Maldizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Por-
tugueses, Vigo, Editorial Galáxia, 1965, n. 0 57.
2
Cancioneiro da Ajuda, ed. C. Michaelis, vol. 1, n. 0 126. Sigo a versão dada por
Jean-Marie d'Heur, Troubadours d'hoc e/ troubadours galiciens-portugais, p. 108. Na
opinião do Sr. d'Heur, o refrão está escrito em provençal.

14
Libros dei Saber de Astronomía, o Libro de Ajedrez, mostram a
incessante actividade intelectual deste rei, que é o mais esplêndido
exemplo conhecido de soberano letrado.
A corte portuguesa acompanha de longe este movimento. Conhe-
cemos um regimento da Casa Real portuguesa decretado por
D. Afonso III em 1250 3 • Se o interpretarmos à letra, a corte do rei
de Portugal era muito pobre. Proíbe-se o luxo no vestuário, os forros
e as guarnições. Há só um alfaiate e três lavadeiras para o pessoal da
corte. Um só monteiro e quatro falcoeiros para a caça. Apenas são
admitidos três jograis permanentes e são proibidas as jogralesas,
salvo as que vierem de passagem, que não podem demorar mais de
três dias. Não se fala de escribas nem de copistas. Esta lei foi eviden-
temente escrita numa intenção demagógica, para agradar aos
«povos», sempre desconfiados contra os gastos da corte, e retrata
provavelmente o modelo das anteriores cortes afonsinas, dos reis
guerreiros e avaros, que acumulavam ouro, como D. Sancho 1. Mas
a prova de que o regimento não passava de um farrapo de papel é
que, quando o rei pôs casa ao seu herdeiro, D. Dinis, lhe atribuiu
40 000 libras por ario, Ímportância que Lúcio de Azevedo avaliava em
4000 e tantos contos de 1929 4 •
Tudo indica que é desta época o luxuoso códice iluminado do Can-
cioneiro da Ajuda, onde se recolheram os cantares dos poetas con-
temporâneos de D. Afonso III e anteriores 5 • Está caligrafado em
minúsculo gótico francês, ilustrado com iluminuras que representam
espectáculos jogralescos dentro de um enquadramento do primeiro
gótico. O modelo desta obra é o volume das Cantigas de Santa
Maria, de Afonso X-o-Sábio, e não seria de admirar que fosse fabri-
cado na oficina caligráfica deste rei.
Da mesma época é o códice das Flores de Direito, compêndio de
direito processual, traduzido do castelhano, importante para a histó-
ria do direito português, porque marca um progresso assinalável na
introdução e aplicação em Portugal do direito romano, pelo qual esta
obra está largamente informada 6 , e também orienta o Fuero Real,

3
Publicado em P. M. H., Leges et Consuetudines.
4
Épocas de Portugal Económico, 4. ª ed., p. 41.
5 Ver Carolina Michaelis, Cancioneiro da Ajuda, vol. 11, pp. 151-153.
6
Herculano mostrou que o códice é anterior a 1282 porque tem, intercalada, uma lei
de D. Dinis desta data. O original castelhano é posterior a 1235. Ver introdução e texto
de Paulo Merea publicados na Revista da Universidade de Coimbra, vols. v e v1. Publi-
cado por Alfredo Pimenta, Fuero Real, Versão Portuguesa do Século XIII, com muitas
notas. As notas filológicas de Pimenta devem ser lidas com cautela.

15
igualmente traduzido em português pela mesma época e que é um tra-
tado de normas gerais de direito político 7 •
Fof nesta corte, e também na de Afonso X, que se criou D. Dinis,
colaborador dos cancioneiros, um dos nossos melhores poetas de
todos os tempos, mecenas e protector da Universidade.
Veremos que no seu tempo se traduziu do árabe a Crónica do
Mouro Rasis, provavelmente uma iniciativa entre outras esquecidas
ou perdidas. Os filhos de D. Dinis imitaram o exemplo paterno: o
bastar.do Afonso Sanches foi trovador; outro bastardo, D. Pedro,
conde de Barcelos, também poeta, possuiu um Livro das Cantigas,
provavelmente um códice precioso, pois que o legou ao rei de Cas-
tela; compilou e redigiu certamente em parte o 3." Livro de Linha-
gens e a ele se deve o maior monumento de prosa portuguesa antes
de Fernão Lopes, a Crónica Geral de Espanha de 1344, obra há pou-
cos anos ressuscitada e de que falaremos a seu tempo.
Da Crónica do Condestabre de Portugal (obra que se pode datar
de 1432 ou 1433) consta que Nun'Álvares era entusiasta dos roman-
ces do Graal e Fernão Lopes atesta-nos a grande popularidade do
ciclo arturiano, conservado na roda dos companheiros de D. João 1.
Na biblioteca de D. Duarte encontram-se várias obras que datam
seguramente desta era literária inaugurada pelo Bolonhês, como o
Livro das Trovas de El-Rei D. Dinis, a Crónica de Espanha (talvez a
do conde de Barcelos), o Livro de Tristão, o Metlin, O Livro de
Ga/aaz (obras do ciclo arturiano).

§ 2. Os cancioneiros
De fins do reinado de D. Afonso III data um códice de luxo onde
foram copiadas as composições em verso dos poetas da corte. Não
sabemos onde nem quem tomou a iniciativa de o encomendar.
O códice devia ser ilustrado com figuras representativas dos trovado-
res, jograis e cantadeiras-bailadeiras que colaboravam na execução
da~ composições. Teria tomado por modelo o luxuoso códice das
Cantigas de Santa Maria, ou outro no género, caligrafado e ilumi-
nado a primor por ordem do sogro de D. AfonsoHI, Afonso X-o-
Sábio, de Castela. Porventura este mesmo o teria mandado fazer aos
seus artistas de Toledo.

7
Paulo Merea data o códice, com probabilidade, de entre 1273 e 1282 e Herculano
supõe-o do século xm. Citado por Alfredo Pimenta, op. cit., pp. 22-23.

16
Este códice, o Cancioneiro da Ajuda, reúne as composições de
poetas portugueses, galegos e outros espanhóis anteriores aos fins do
reinado de D. Afonso III e conservadas até então em rolos ou ca-
dernos.
O códice ficou interrompido, com espaços por preencher e páginas
·por acabar; perdeu-se-lhe depois o rasto e no século XIX foi encon-
trado por Alexandre Herculano na Biblioteca da Ajuda, maltratado
e mutilado, dando testemunho de que o interesse pelas Musas não
desapareceu, porém, com o códice perdido.
O Livro das Cantigas, outro códice mencionado no testamento do
conde de Barcelos, continha talvez as poesias do Cancioneiro da
Ajuda, mais outras que este excluiu e ainda as que foram compostas
posteriormente (até cerca de 1350), por poetas de toda a Península,
em galego-português. É -quem sabe!- a fonte mais ou menos
directa de duas cópias do século XVI feitas na Itália e que chegaram
até nós 8 •
Uma destas cópias foi encontrada em Itália, na biblioteca do
conde Brancuti, e está hoje na Biblioteca Nacional de Lisboa; a
outra, na Biblioteca do Vaticano. Ambas pertenceram ao humanista
italiano Angelo Colloci (1467-1549). Destes três Cancioneiros -o da
Ajuda, o da Vaticana e o da Biblioteca Nacional-, o mais antigo e
o mais incompleto é, como dissemos, o da Ajuda, que contém unica-
mente poemas «de amor» anteriores ao fim do reinado de D. Afonso
Ili, época em que deve ter sido compilado. Os outros dois incluem
não só a grande parte do material reunido no códice da Ajuda, mas
ainda obras produzidas até muito mais tarde (até 1340, pelo menos)
e de outros géneros: cantares de amigo e cantares satíricos, chamados
de escárnho e maldizer. O Cancioneiro da Biblioteca Nacional é o
mais ~ompleto porque reúne todas as poesias contidas no da Vaticana
e muitas outras que ali faltam. O valor especial do Cancioneiro da
Ajuda vem de ser o único contemporâneo da época trovadoresca, ao
passo que os outros dois são cópias muito incorrectas feitas na Itália,
quase dois séculos depois da compilação original 9 •

• Ver C. Michaelis, op. cit., vol. 11, p. 229.


9
Edições: Cancioneiro da Ajuda, ed. paleográfica, por Henry A. Carter, Nova Ior-
que, 1941; ed. crítica, por Carolina Michaelis de Vasconcelos, Halle, Max Niemeyer,
1904. Cancioneiro da Vaticana, ed. paleográfica, por Ernesto Monaci, Max Niemeyer,
187 5; ed. crítica (que deve ser manejada com cautela) por Teófilo Braga, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1878. Cancioneiro da Biblioteca Nacional, ed. diplomática, 1982,
Lisboa; ed. diplomática, conterido apenas a parte que falta no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional, por Enrico Molteni, Max Niemeyer, 1880.

17
§ 3. A tradição dos jograis galegos
nas cortes hispânicas
O projecto de reunir num códice de luxo as composições dos poe-
tas da corte é um grande acontecimento na história cultural portu-
guesa. Mas o hábito de versejar vinha de mais longe. Uma grande
parte das composições reunidas nos cancioneiros são-lhe muito ante-
riores. O mais antigo trovador conhecido, D. João Soares de Paiva,
nasceu poucos anos depois da batalha de Ourique, sendo portanto
ainda contemporâneo do primeiro rei de Portugal. O filho e sucessor
deste rei, Sancho, casado com uma princesa de Aragão, irmã de
Berenguer IV (trovador e grande protector de trovadores provençais),
compôs provavelmente um cantar de amigo 10 e teve jograis na corte.
Um destes usava o nome de Bonamis e outro o de Acompaniado 11 •
E já antes de D. Dinis o culto das Musas parecia hereditário na fa-
mília real portuguesa, porque um bastardo de Sancho, filho tam-
bém da mulher a quem é dedicado o seu cantar de amigo, versejou
a uma dama que se encontrava em Montemor, provavelmente por
ocasião do cerco (1213) 12 •
Os jograis galegos ou galego-portugueses são anteriores à funda-
ção da monarquia portuguesa. Pertencia à corte de Afonso VII e
ocupava nela um lugar honroso o jogral Pallea (Palha), que vimos
corroborar um foral-em 1136. E, no fim deste século ou começo do
seguinte, o galego-português é conhecido dos poetas cultos da cris-
tandade como uma das quatro ou cinco línguas em que se versejava
à maneira provençal.
Entre 1195 e 1202, na corte de Bonifácio de Montferrat, no Pie-
monte, o poeta provençal Raimbaut de Vaqueiras, querendo decerto
ostentar a sua erudição, compôs um poema em cinco línguas - pro-
vençal, francês, italiano, gascão e galego-português. O galego-portu-
guês representa aqui toda a Península Ibérica, excepto Aragão, onde
se trovava em provençal e se falava uma língua muito afim da do
outro lado dos Pirenéus 13 • Esta composição confirma a existência de
jograis galego-portugueses, pelo menos, algumas décadas antes.
Os Provençais foram os mestres dos trovadores da Península Ibé-
rica. A Provença e a Catalunha eram regiões culturalmente afins,

'º Poucas dúvidas pode haver sobre este facto. Ver C. Michaelis, op. cit., vol. 11,
pp. 593-595.
11
Ver C. Michaelis, op. cit., vol. II, p. 758.
12
ld., ibid., vol. 1, n. 0 332. '
13
Id., ibid., vol. II, p. 735.

18
nem sempre divididas por fronteiras políticas. Os trovadores que
transpunham os Pirenéus facilmente se faziam ouvir nas cortes ara-
gonesas, onde eram protegidos e premiados.
De Aragão, os jograis trovadores da Provença ganhavam as cortes
vizinhas de Leão e Castela, onde o seu prestígio internacional forçava
a atenção dos reis e cortesãos que procuravam dourar-se com os
ouropéis do estilo poético. Tanto pela língua como pelos temas, a
joglaria provençal não era de fácil entendimento para os cavaleiros,
mais habituados ao realismo e à rude metrificação dos cantares de
gesta. Mas a élite dava leis e a música asas que permitiam voos por
sobre as fronteiras culturais. Tornou-se moda compor cantigas «à
maneira provençal».
Não há notícias de que trovadores provençais tenham visitado a
corte dos primeiros reis de Portugal, aqui nos confins do mundo.
Mas donde seria o jogral Bonamis de que fala o testamento de
D. Sancho I? Era inevitável que estes reis e os respectivos áulicos
adquirissem os hábitos das outras cortes de Espanha que frequenta-
vam, a quem estavam ligados por parentesco apertado e com quem
trocavam os filhos em casamento. Como podia deixar de haver para
cá do Ebro um estilo comum de cortejar as damas?
Já sugerimos noutro lugar que antes da chegada da moda proven-
çal havia nas cortes de Espanha uma lírica de fundo tradicional,
enraizada no Noroeste, cantada por jograis locais deJíngua galego-
-portuguesa e na qual veio a enxertar-se a influência dos trovadores
provençais. A existência e a difusão de jograis líricos galegos explica-
riam porque é que o galego-português ficou sendo a língua lírica dos
poetas de toda a Península Ibérica. A língua castelharta era própria
dos jograis épicos. Entre os cantares de amor mais antigos, o de
D. Sancho 1 e o de seu bastardo Gil Sanches não têm nada de pro-
vençalesco. Um, o do pai, é uma cantiga de amigo:

Ai eu coitada, como vivo en gran cuidado


Por meu amigo que hei alongado
(Refrão)

Ai eu coitada, como vivo en gran desejo


Por meu amigo que tarda e não vejo
(Refrão)

Outra, a do filho, tem a forma repetitiva, apesar de ser uma cantiga


«de amor»:

19
Tu que ora vens de Montemaior
Tu que ora vens de Montemaior
Digas-me mandado de mia Senhor
Digas-me mandado de mia Senhor
(Refrão)

Tu que ora viste os olhos seus


Tu que ora viste os olhos seus
Digas-me mandado dela por Deus
Digas-me mandado dela por Deus
(Refrão)

Estes exemplos reforçam a hipótese de os mais antigos poetas gale-


go-portugueses terem aprendido a compor na tradição local, e não
nos modelos provençais.
Ora os jograis e trovadores constituíram dentro da Península uma
confraria internacional e migratória, viajando de corte em corte, mas
tendo sempre na corte dos reis de Castela e Leão o seu poiso princi-
pal, no que respeita ao Ocidente da Península. Pertenciam a essa con-
fraria indivíduos de todas as nacionalidades: galegos, portugueses,
leoneses, castelhanos, talvez até aragoneses. Alguns nomes de trova-
dores célebres exemplificam esta diversidade: Afonso X é rei de Cas-
tela; João Airas é natural de Santiago; D. Dinis e D. João Soares
Coelho são portugueses; João Garcia de Guilhade parece ser galego;
Martim Codax é natural de Vigo; Bernal de Bonaval é de uma aldeia
próxima de Santiago; Martim Moxa parece ser aragonês.
A Península inteira era, de facto, a pátria de todos eles. Os poetas
ora cantam a pequena aldeia galega onde nasceram; ora passam, com
mais ou menos demora, pela corte de Portugal; ora se fixam e pros-
peram na corte de Afonso X. Com o exército de São Fernando
tomam parte na conquista de Sevilha. Um jogral vilão que ganhou
celebridade, Lourenço, saiu de Portugal, buscando amparo junto de
Afonso X, e explicou a um confrade que o fazia para «ganhar algo».
De facto sabemos que ele veio a comprar casas em Espanha. D. João
Soares Coelho, importante personagem da corte portuguesa, fez lar-
gas temporadas na corte do Rei Sábio, onde escreveu todas as suas
composições que hoje se podem referenciar.
Há algumas alusões nos cancioneiros a acontecimentos políticos e
militares ocorridos em Portugal, como a guerra civil entre D. Afonso
e D. Sancho; mas são escassas em comparação com as que se referem ·
a acontecimentos em Castela: jornada de Sevilha, tomada de Valên-
cia, morte de Fernando III e de sua viúva e outros.

20
Tudo isto se resume em que a chamada primitiva lírica portuguesa
é, na realidade, uma lírica peninsular que teve em Leão-Castela o seu
principal foco de expansão e na Galiza (e nesta expressão incluímos
o Portugal além-Douro) a sua raiz.

§ 4. A arte de amar dos trovadores


A poesia de corte compilada no Cancioneiro da Ajuda e nos que
se lhe seguem é, naturalmente, muito diversa da dos cantares rústi-
cos, que correspondem aos gostos e interesses da gente rural, con-
quanto fossem também cantados nas vilas e cidades.
Ao passo que a poesia rústica e burguesa tem a sua expiessão mais
fiel e característica nos «cantares de amigo», de estrutura primitiva e
rígida, a poesia palaciana prefere, em geral, um género de importa-
ção provençal, onde as combinações rítmicas e estróficas são muito
mais livres, variáveis e moldáveis à invenção do poeta: o «cantar de
amor», derivado da cansó provençal. Não quer isto dizer que o can-
tar de amor seja exclusivo da poesia de corte: há cantares de amor
escritos por habitantes das cidades, como os de João Airas, «burguês
de Santiago», ou os de Vidal, judeu de Elvas; assim como há cantares
· de amigo palacianos de invenção, se não de inspiração e conteúdo.
D. Dinis é autor de grande número deles; e, se em muitos parece pro-
curar manter-se fiel à tradição folclórica, noutros injectou um con-
teúdo cortesão.
Ao contrário da cantiga de amigo, o cantar de amor não sugere
ambientes, sejam físicos, determinados por referências ao mundo
exterior, ou sociais, resultantes da presença de personagens interessa-
dos no enredo amoroso; não se refere. à mãe, ao santo Cia romaria,
às ondas do mar ou às árvores em flor. Isto resulta de, ao contrário
da poesia popular, esta não ser dramática. Só duas ou três vezes res-
pigamos alusões ao mundo ambiente: um poeta admirou uma dama
por entre as ameias de um castelo; outro perdeu-se por uma mulher
que viu em cabelo entoando um cantar 14 • Estar «em cabelo», nesta
época, era uma antecipação de estar nua.
Não há espaço à volta nos cantares de amor, se exceptuarmos as
pastoreias, que imitam de perto as provençais, mas só a voz que
canta na solidão: uma súplica do apaixonado para que a «senhor» 15

14
C. Michaelis, op. cit., vol. 1, n.º' 283 e 323.
15
Este substantivo era invariável para os dois géneros.

21
reconheça e premeie o seu «serviço»; ou ·um elogio abstracto da
beleza dela; ou uma descrição dos tormentos do poeta dirigida à pie-
dade ou «mesura» da «Senhor».
~ O amor era concebido à maneira: cavaleiresca, como um «serviço».
·.o cavaleiro «servia» a dama pelo tempo que fosse necessário para
merecer o seu galardão. Consistia esse serviço em dedicar-lhe os pen-
samentos, os versos e os actos; em estar presente em certas ocasiões;
em não se ausentar sem licença, etc. O servidor está para com a
«senhor» como o vassalo feudal para com o suserano:

E que queria eu melhor


de seer seu vassalo
e ela mha senhor? 16

Já falámos do poeta, regressado de França, que emprega, para


definir este serviço, a terminologia feudal francesa: «je suis votre
homme-lige.» 17
A regra principal deste «serviço» era, além da fidelidade, o
segredo. O cavaleiro devia fazer os possíveis para que ninguém sequer
suspeitasse do nome da sua senhora, indo até ao sacrifício de se pri-
var do seu convívio, ou de se fingir apaixonado por outra. O dis-
farce, que consistia em dedicar versos a uma dama para ocultar a ver-
dadeira amada, era frequente.
Na grande maioria das cantigas de amor, os requerimentos assí-
duos do «servidor» visam a conseguir da «senhor» uma coisa que se
designa pela expressão «fazer bem». É fácil compreender o que signi-
fica este eufemismo: um poeta, referindo-se a uma soldadeira venal,
conta que ela não lhe quer «fazer bem» sem que primeiro o preten-
dente lhe pague um maravedi 18 • O rei D. Dinis, tendo conseguido da
«senhor» dos seus cantares de amor que ela. fizesse todo o «bem» sem
faltar nada, pede-lhe, no fim, segredo múfüo, porque, diz, se este
«preito» for sabido, nem ele nem ela tirarão daí estima nem louvor 19 •
De resto, o sofisticado nome de «senhor» é aplicado a concubinas, a
mulheres de vida livre e até a meretrizes 20 •
Os livros de linhagens relatam diversas aventuras amorosas de
homens e de mulheres da nobreza; e essas histórias tiveram a sua
16
José Joaquim Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 192.
17
e. Michaelis, op. cit., vol. 1, n. º 126.
18 R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. 0 306.
19 Cancioneiro da Vaticana, n. 0 154.
20
Ibid., n.º 1196 (Pedr'Amigo de Sevilha) e n. 0 ll08 (João G. de Guilhade).

22
expressão poética. É conhecido o caso de D. Maria Pàis ...Ribeira, ins-
piradora de versos e mãe de filhos de D. Sancho 1, que teve na corte
e na sociedade portuguesa uma alta posição. No próprio texto dos
cancioneiros encontramos as pegadas de um: rei apreciador das filhas
o
dos seus súbditos: uma rapariga pergunta à mãe que há-de fazer
porque o rei a requereu de.amores:

- Cabelos, los meus cabelos,


El-rei me enviou por elos.
Madre que lhis farei?
- Filha dade-os a el-rei 21 •

Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo proven-


çal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada,
a que chama senhor, tornando-a um objecto quase inacessível; a ati-
tude é a de uma espécie de ascese abstinente, seja qual for a realidade
a que as palavras servem de cortina. A regra do segredo não é só,
porventura, uma precaução exigida por amores clandestinos, numa
sociedade em que o adultério era punido por lei constantemente
transgredida, mas uma regra ascética que tornava o amor mais
intenso quanto mais solitário e à margem da sociedade. O amor tro-
vadoresco e cavaleiresco é, por ideal, secreto, clandestino e impossí-
vel. Os seus modelos são os amores de Tristão e Isolda, ou de Lança-
rote e a rainha Genebra. Nisto, os cantares de amor distinguem-se
como o preto e o branco dos cantares de amigo.
A clandestinidade nos amores e o adultério são tema obrigatório
da literatura amorosa medieval e supõem-se nos grandes casais de
amantes que nos legou o ciclo arturiano. A condessa Maria de Cham-
pagne sentenciou solenemente que o amor entre casados é impossível.

§ 5. Alguns temas das cantigas de amor


A diferença entre o amor vulgar, elementar, e o amor de grau mais
elevado foi claramente definida por D. Dinis a propósito da questão
de saber se o amador devia ou não querer possuir o «bem» da amada.
O rei-poeta entende que não, dando como razão que o prazer do
amador seria prejuízo para ela; o que verdadeiramente ama não
deseja tal recompensa; e os que a desejam não são verdadeiros ama-
21
Nunes, Cantigas de Amigo, n. 0 385.

23
dores: «[ ... ] e quem tal deseja, o bem de sa dama em mui pouco
tem.» Ele próprio, que escreve, destes amores falsos tem mais de
cento 22 • Airas Nunes, culto e subtil clérigo, sustenta a mesma tese.
Outro autor considera como «bem» recebido da dona a própria aspi-
ração amorosa: tê-lo feito desejá.ola é o bem que ela lhe concedeu 23 •
O amar é a recompensa do amor, parece um paradoxo de Camões.
A beleza de uma dama, presente constantemente na sua recordação,
é já recompensa de um poeta 24 • Estes temas trovadorescos passarão
ao Cancioneiro Geral e a Camões, quase três séculos depois.
O amor, independentemente da recompensa da amada - consis-
tindo numa aspiração, numa tensão para um objecto, e não na posse
do mesmo objecto, tal como há-de inspirar Petrarca e Camões-,
encontra-se já nos cancioneiros. Numerosos poetas dirigem-se não à
amada, mas ao Amor personificado, glorificando-o, agradecendo-
-lhe, queixando-se-lhe ou implorando-o. O clérigo Airas Nunes é
autor de uma espécie de magnificat ao amor, do qual recebe esforço,
esperança, alegria e bons pensamentos 25 :

Amor faz a min amar tal senhor


que é mais fremosa de quantas sei,
e faz-m' alegr' e faz-me trobador,
cuidand' en ben sempr'; e mais vos direi:
faz-me viver em alegrança
e faz-me todavia (sempre) en ben cuidar.
Pois min amor non quer leixar
e dá-m' esforç' e asperança
mal venh' a quen se dei desasperar.

Como se pode desesperar do amor, pois se viver enamorado - seja


qual for o resultado final- é já uma forma superior de vida que nos
eleva à «alegrança» e aos grandes pensamentos? Outros que se gabem
da sua linhagem, da sua riqueza ou do seu poderio; o poeta é superior
a todos pelo seu amor, amando a quem o tem em seu poder 26 - diz
um autor, antecipando um conhecido soneto de Camões.
Compreende-se sem dificnldade o aparente paradoxo de os autores
dos cancioneiros associarem constantemente aos seus amores profa-
nos a ideia de Deus. Esta associação será também característica de
22
Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 100.
23
Id., ibid., n. 0 3.
24
ld., ibid., n. 0 150.
25
Id., ibid., n. 0 138.
26
Id., ibid., n. º 167.

24
Petrarca. Numerosíssimos poetas escrevem que foi Deus quem criou
a beleza da «senhorn e quem a revelou ao apaixonado.
Deus é o gerador da beleza e do amor e a causa dos sofrimentos
do amante insatisfeito. Com que fim? - perguntam alguns. Para o
perseguir, ou para lhe proporcionar a alegria de amar? As respostas
variam e resvalam frequentemente pela heresia ou pela blasfémia,
como veremos mais detidamente.
De toda a maneira, o amor profano é divinizado e as alusões cons-
tantes a Deus servem para encarecer a sua sublimidade.
Para que o amor profano se eleve a esta altura é preciso que· se
criem certas relações adequadas entre o amador e a amada. É preciso
sobretudo que seja estreita e difícil a porta que o conduz a ela, quer
essa estreiteza seja real, quer seja imaginária: tenha-se presente a
Porte étroite, de Gide. A dona tem de ser inacessível, como a Laura
de Petrarca ou a Beatriz de Dante. Os poetas dos cancioneiros fize-
ram desta dificuldade de acesso um dos seus temas favoritos. A dona
não corresponde; mostra-se cruel ou indiferente para o apaixonado,
que tem de suplicar longamente o seu favor. Nem por ser rei o poeta
D. Dinis deixou de se mostrar de joelhos aos pés da sua «senhorn:

Nunca vos disse nulha ren


de quanto mal mi por vós ven,
senhor, deste meu coraçon;
mas á-que-me em vossa prisom
de me fazerdes mal ou ben 27 •

A dificuldade de acesso à dama pode residir no próprio amador,


sem que deixe por isso de ser premente. A timidez é um dos obstácu-
los que encontram numerosos poetas dos cancioneiros, que nisto
parecem antepassados do personagem Avalor, da Menina e Moça.
Um poeta, Pêro d'Armea, ousa apenas pedir à dama que lhe não pese
de ele a amar:
E non vos ous' eu mais dizer
senhor e lume destes meus
olhos! Ai lume destes meus
olhos! E venho-vos dizer
que vos non pes de vos amar
ca non sei ai tan muit' amar! 28
27
H. R. Lang., Das Liederbuch des Konigs Denis von Portugal, Nova Iorque, 1973,
n. 0 59 (nulha ren: «nada»; á-que-me: «eis-me»).
28
Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 221. O último verso significa: «porque não sei tanto
amar outra coisa.»

25
Outro, Rui Pais de Ribela, dá como única razão da sua timidez a
beleza da amada:
Um dia que vi mia senhor
quis-lhe dizer lo mui gran ben
que Ih' eu quer'; e como me ten
forçad' e pres' o seu amor.
- E vi-a tan. ben parecer
que lhe non pude ren (nada) dizer 29 •

Assim distendido, fortalecido pelos obstáculos, o amor apura-se


ao calor de um longo sofrimento, que os poetas comparam com a
agonia da morte. O amor e a morte aparecem constantemente asso-
ciados nos cancioneiros. Essa morte é a própria vida, porque o
sofrimento amoroso dá à vida a intensidade máxima. «Morrer de
amorn é um dos lugares-comuns mais fastidiosamente repetidos
pelos autores dos cantares de amor. Inclusivamente, esta expres-
são aparece, como vimos, nos livros de linhagens, denotando um
facto da vida real. Nalguns poetas parece ter um significado que
lembra o que lhe dará Camões e o que encontramos num soneto
célebre atribuído a Santa Teresa de Ávila: «Que muero porque no
muero»:
Mia senhor fremosa, direi-vos üa ren:
vós sodes mia morte, e meu mal e meu ben.
E mais ... por quê vo-lo-ei eu jamais a dizer?
Mia morte sodes, que me fazedes morrer

Vós sodes mia mort' e meu


(
mal, mia senhor,
e quant' eu no mund' e1 de ben e de sabor;
E mais ... porquê vo-lo-ei eu jamais a dizer?
Mia morte sodes, que me fazedes morrer 30 •

Um poeta do tempo de D. Dinis, Estêvam da Guarda, queixando-


-se dos seus tormentos de amor, deixou escapar este verso que Camões
não desdenharia:

e fazer-me Deus morrendo viver 31 •

29
e. Michaelis, op. cit., vol. 1, n. º 191.
30
ld., ibid., vol. 1, n. 0 386.
31
Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 112.

26
§ 6. Fórmulas e sentimentos
nos cantares de amor

Grande parte dos temas e dos estados de alma cuja expressão aca-
bámos de anotar obedecem a um código literário, que não se encon-
tra apenas nos trovadores, pois que os poetas árabes, como, por
exemplo, lbn Hazim, de Córdova (944-1024), se inspiram em temas
semelhantes: a timidez, o segredo, o cativeiro do amante, o morrer de
amor. Os poetas da corte de D. Afonso III e de D. Dinis encontram
esses temas na lírica provençal, que é a semente de toda a poesia
moderna. O que explica tão flagrantes pontos de contacto com
Petrarca e Camões é o facto de Petrarca ter sido um discípulo directo
dos provençais e, ao mesmo tempo, o mestre mais querido do poeta
português.
Mas, como é natural, estes temas, em alguns poetas, não eram
mais que fórmulas convencionais. Morrer de amor, por exemplo,
tornou-se um cliché tão batido que um poeta pôde com ele fazer esta
renda em verso:
Des que eu vi
a que vi
nunca dormi
e cuidand' i
moir' eu.

E non mi vai
Deus, non mi vai,
e deste meu mal
moir' eu
moir' eu ''
moir' eu 32 •

Vários poetas parodiaram este lugar-comum. Guilhade, muito


dado ao humorismo, faz dizer à sua amiga que, tendo-lhe dito o
amigo que morria de amor, a ela lhe apraz de coração, «para ver se
morre se não» 33 • O poeta Rui Queimado foi troçado pela insistência
com que batia esta tecla: dizia dele um confrade que Rui Queimado
morrera de amor, mas ao terceiro dia ressuscitou 34 •

32
Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 156.
33
Id., Cantigas de Amigo, n. 0 185.
34
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. 0 380.

27
Parodiado é também, péfo «burgalês» João Airas de Santiago, o
tema da timidez no seguinte refrão:
Ai Pêro Garcia
gran med' ei
de Dona Maria
que nos mataria! 35

Estas pequenas sátiras e paródias provam que os poetas da corte


tinham consciência do convencionalismo de grande parte da poesia
que lá se fazia. A questão da sinceridade ou insinceridade dos poetas
chegou a ser debatida por eles. O jogral Lourenço queixa-se de que
os que não amam verdadeiramente podem fingir por palavras o amor
que não têm; e João Airas de Santiago, num cantar que parece
réplica a este, diz que o mentiroso nunca pode jurar tão berh como
o que fala verdade 36 •
Num grupo onde a insinceridade e o lugar-comum se tornaram
notados é evidente que a originalidade e a espontaneidade eram valo-
res apreciados. A poesia era sentida não apenas como um formulário
convencional a recobrir uma arte de galantaria, mas também como
um desabafo e uma confissão à maneira dos românticos. Temos disso
uma prova decisiva em algumas composições em que a revolta do
poeta contra um destino que lhe contraria os amores vai até à blas-
fémia.
Pêro Guterres, cavaleiro, escreve que, apesar de todos dizerem que
Deus nunca pecou, ele O vê pecar mortalmente, porque deixa morrer
de amor os seus «vassalos» 37 • Seria isto mais que um paradoxo sacrí-
lego, como tantos que se encontram na literatura medieval? Nuno
Fernandes Torneol, a quem morreu a mulher amada, manifesta a sua
revolta contra Deus, que a fez morrer, em dois poemas de uma audá-
cia ímpia. Em um deles declara que Deus lhe não pode fazer pior mal
que o que lhe fez já, pois matou a sua «senhorn; por isso, como lhe
não receia o castigo, faz votos por que Deus se veja em poder de
judeus, como outra vez já se viu 38 • No outro afirma que não mais
crerá em Deus e diz porquê:

Nunca Deus quis nulha cousa gran ben


nem do coitado nunca se doeu,

35
R. Lapa, op. cit., n. 0 179.
36
Nunes, Cantigas de Amor, n. 0 ' 180 e 244.
37
R. Lapa, op. cit., n. 0 394.
38
e. Michaelis, op. cit., vol. 1, n. º 407.

28
pero dizen que coitado viveu.
Ca se se dei doesse doer-s' -ia
de mi que faz mui coitado viver
a meu pesar, pois que me foi tolher
quanto ben eu en o mund' atendia.
Mais enquant' eu já vivo for, por en
non creerei que o Judas vendeu,
nen que por nós na cruz morte prendeu
nen que filh' est de Santa Maria.
E outra cousa vos quero dizer:
ca foi coitado non quero creer
ca do coitad' a doer-se haveria.

[.•. J
E se ele aqui houvess' a viver
e Ih' eu por en pudesse mal fazer,
per bõa fé, de grado lh'o faria.
Mais, mal pecado! non ei en poder
e non lhi posso tal guerra fazer;
mas por torpe tenh' eu quen por el fia 39 •

É evidente que o àutor destas acusações não é um descrente: ele


acredita que Deus o persegue e quer vingar-se por estar convencido
da sua existência. Se o tomarmos à letra, este facto dá a medida do
seu desespero e mostra-nos que o seu poema não é uma frívola brin-
cadeira palaciana.
Citamos um último exemplo muito significativo. A amada de um
poeta foi obrigada a entrar para um convento; ele põe em verso um
diálogo em que ela declara que, tendo sido forçada pela mãe, usará
da ordem o hábito, mas não o coração, iludirá a vigilância do con-
vento para se encontrar com o amigo. Conclui pedindo-lhe que não
dê importância ao hábito que ela vai usar:
Ca guerr' ei contra Jesus eno coraçon meu! 4 º
No entanto, repetimos, tais imprecações não eram raras na Idade
Média e assemelham-se à atitude daqueles devotos que apedrejam as
imagens dos santos quando se julgam abandonados por eles. Estas
blasfémias exprimem um sentimento veemente.
39
C. Michaelis, op. cit., vol. 1, n. 0 409 (prendeu: «tomou»; en: «isso»; ca: «que» e
«porque»).
40
Id., ibid., vol. 1, n. 0 429.

29
§ 7. Galegos e Provençais
Para resumir a nossa opinião diremos que ao princípio existiu uma
poesia popular local na Galiza e Norte de Portugal, relacionada com
as romarias, as partidas e chegadas e outros movimentos que se repe-
tiam na vida da população, e que dessa poesia nasceu uma escola
local de jograis e cantadores. Em seguida chegou a moda da poesia
provençal às cortes da Península, onde já havia jograis galego-portu-
gueses. O galego-português, por já ser uma língua lírica, ligada à
música, tornou-se o veículo do novo estilo de poesia, que teve o seu
principal foco nas cortes do rei de Leão e Castela, aonde acorriam
fidalgos de toda a Península. Possivelmente, as canções de imitação
provençal foram as primeiras a ser escritas, por serem as mais aristo-
cráticas, mas o hábito de escrever canções alargou-se à poesia tradi-
cional, de que se apoderaram os poetas de corte. Certos poetas são
tradicionalistas, outros prqvençalizantes, outros, como D. Dinis, cul-
tivaram os dois géneros de poesia. Mas estes dois géneros tinham raí-
zes diferentes e conservaram sempre formas diferentes e espírito dife-
rente. São como duas camadas geológicas numa só colina. Não é
possível, seriamente, negar esta diferença profunda e radical, a não
ser que se sofra de completa falta de sensibilidade literária. Só na
poesia aristocrática, nas cantigas de amor, encontramos o código tro-
vadoresco da galantaria.
D. Dinis, que é o maior poeta dos cancioneiros, autor de alguns
dos seus mais belos poemas, é simultaneamente um trovador à ma-
neira provençal:
Quer' eu en maneira de provençal
fazer agora um cantar d' amor
e querrei muit' i luar mha senhor
a que prez nem fremosura non fal,
nem bondade, e mais vos direi en
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todalas do mundo val 41 •

Este poema, com efeito, imita os provençais na rima, no número


de sílabas (dez), no número de versos (sete) e até no vocabulário, pois
oferece palavras decalcadas da língua provençal, que não são pró-
prias do português, como prez («preço»),fal (do verbo falir, mas sem
o e final). Só difere da forma provençal pelo facto de ter apenas três
41
H. R. Lang, op. cit., n. 0 43.

30
estrofes, quando as cansós provençais têm cinco, sete ou mais. E so-
bretudo imita as provençais no tema, que é o louvor da «senhor»,
tema que não cabe nos cantares de amigo de raiz tradicional.
Mas o mesmo D. Dinis é autor de maravilhosos canta~es de amigo
bem conhecidos, como o «Ai flores, ai flores do verde pino» ou
«Bom dia vi amigo» e tantos outros no mais puro e simples esquema
paralelístico. Essas cantigas são meros decalques ou variantes de can-
tigas populares. E isso também se verifica no seguinte canti;ir, belís-
simo pela sua refinada arte:

Levantou-s' a velida
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
en o alto
Vai-las lavar alva
Levantou-se a louçana ·
Ievantou-s' alva
e vai lavar delgadas
en o alto
Vai-las lavar alva
E vai lavar camisas
levantou-s' alva
o vento lhas desvia
en o alto
Vai-las lavar alva
E vai lavar delgadas
levantou-s' alva
o vento· lhas levava
en o alto
Vai-Ias lavar alva
O vento lh'as desvia
levantou-s' alva
meteu-s' alva em ira
en o alto
Vai-las lavar alva
O vento lh'as levava
Ievantou-s' alva
meteu-se alva em senha
en o alto
vai-las lavar alva 42 •
42
H. R. Lang, op. cit., n. 0 93.

31
Este tema da mulher e da água aonde ela vai lavar foi tratado tam-
bém por outro poeta aficionado da poesia tradicional, Pêro Meogo,
com um esquema semelhante de cinco versos:

Levou-se a louçana
levou' a velida
vai lavar cabelos
na fontana fria
leda dos amores
dos amores leda
etc. 43

onde se conta que o amigo passou e que o cervo (veado) volvia a


água, o que é uma forma desviada e eufemística, mas narrativa, de
falar de relações sexuais. Ambos os poetas foram provavelmente ao
mesmo fundo. Mas D. Dinis atingiu uma forma estética admirável,
que nos faz pensar em Verlaine. Diminuiu o lastro concreto e narra-
tivo da composição. «0 vento lh'as desvia» é o eufemismo de um
eufemismo; a alusão ao amigo torna-se muito remota. A acção reduz-
-se a um sopro de vento que levanta as camisas e que prova a ira da
protagonista. As rimas, que em Pêro Meogo são três (a-i-ê), reduzem-
-se a duas (a-i), sendo que o i (seis vezes apenas) serve para sublinhar
as rimas em a (vinte e três), além de que este som (alva, lavar, alto)
se repete ini.,istentemente em todo o poema. O refrão de Pêro Meogo
é independente do núcleo da composição (provavelmente tirado de
outra cantiga), ao passo que em D. Dinis parece pertencer ao núcleo,
tanto pela rima como pelo significado. Toda a composição parece
uma variação à volta da sílaba ai. É simbolismo avant la lettre e uma
aplicação do preceito «de la musique avant toute chose», quase sem
lastro conceptual. A estória não significa nada, a sugestão é tudo.
É importante notar que o poeta soube tirar efeito da forma paralelís-
tica, que permite repetições e reduz ao mínimo o conteúdo semântico,
subordinando-o à rima.
Ora, se compararmos as cantigas de amor galego-portuguesas
com as cansós prov~nçais, o que primeiro nos salta à vista é que
naquelas a mesma ideia nos aparece nas suas três estâncias por
palavras diferentes e que todas acabam por uma espécie de refrão
semântico, isto é, de significado. Temos um exemplo disso no can-
tar de amor de D. Dinis «Quer' eu en maneira de provençal», de
que já transcrevemos a primeira estância (p. 30) e que continua nas
43
Nunes, Cantigas de Amigo, n.º 415.

32
duas estrofes seguintes, que nada lhe acrescentam quanto ao signifi-
cado geral:
Ca mha senhor quiso Deus fazer tal
quando a fez que à fez sabedor
de todo o ben e de mui grande valor,
e com tod' esto é mui comunal
ali u deve ser, er deu-lhi bon sen
e desi não Ihi fez pouco de ben
quando non quis que Ih' outra fosse igual
Ca em mha senhor nunca Deus pôs mal
mais pôs i prez e beldad' e loor
e falar ben e riir melhor
que outra mulher, desi e leal
muit' é e por esto non sei hoje eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non há trá-lo seu ben ai.

As três estrofes detalham a beleza da «senhor» e o último verso de


cada uma repete a mesma ideia:
1 - que mais que todalas do mundo vai
2 - quando non quis que Ih' outra fosse igual
3 - [ ...] ca non há trá-lo seu ben ai.

A «senhor» vale mais que todas; não tem igual e fora do seu
bem não há nada - três maneiras de dizer a mesma coisa.
Isto não se encontra na cansó provençal, que, por outro lado, é
muito mais longa (cinco a sete estâncias), mais concreta (inclusiva-
mente na ousadia erótica) e mais variada. Na nossa cantiga de amor,
o discurso repete-se, na provençal varia e desenvolve-se. Ora naquela
repetição nas três estrofes da mesma ideia geral e na existência do
refrão semântico há uma espécie de paralelismo atenuado. Aliás, em
várias cantigas de amor, o refrão aparece explicitamente e perfeito.
E algumas são verdadeiras cantigas paralelísticas:
A dona que eu am' o e tenho por senhor
amostrad.e-mha Deus, se vos en prazer for
Se non dade-me a morte
A que tenho eu por lume destes olhos meus
e porque choran sempr' amostrade-mha, Deus,
Se non dade-me a morte 44 •

44
Nunes, Cantigas de Amor, n. º 210.
Os nossos poetas provençalizantes sofreram portanto a influência
da cantiga de amigo indígena. A estrutura paralelística persiste atra-
vés da imitação dos provençais. É o que se pode chamar um cruza-
mento, do qual resulta a originalidade da cantiga de amor galego-
-portuguesa, que se casa bem com o seu ensimesmamento, com a
sua falta de variedade temática, com a sua penúria de imagens e de
referências ao mundo visível. Rodrigues Lapa exprimiu bem a im-
pressão que deixa a leitura das cantigas de amor no seguinte comen-
tário:
O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste.
E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que
a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um
dom que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um
documentário precioso de poesia pura: tudo se exala num suspiro,
numa queixa, numa efusão exclamativa. É uma voz que vem dos
longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações de
forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até
ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação
levíssima de forma. Isto dá à cantiga de amor um cunho de obses-
são, de monotonia pungente que resultaria fastidiosa se fosse
desenrolada em mais de três ou quatro estrofes 45 •
· Exemplo desta «súplica apaixonadamente triste» é uma cantiga
com refrão perfeito e paralelismo imperfeito nas estrofes do mesmo
D. Dinis:
Um tal home sei eu, ai ben talhada,
que por vós tem a sa morte chegada,
Vedes quen é e sede en nembrada:
Eu, mia dona.

Um tal home sei eu que preto sente


de si a morte chegada certamente,
vedes quen é e venha-vos en mente:
Eu, mia dona.

Um tal home sei eu -aquest' oíde-


que por vós morre, vó-lo en partide,
vedes quen é e non se vos obride
Eu, mia dona! 46
45
R. Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, 9. ª ed., 1977, pp. 140-141.
46
H. R. Lang, op. cit., n. 0 18 (sede en nembrada: «lembre-vos isso»; preto:
«perto»; en partide: «livrai-o disso»; obride: «olvide»).

34
§ 8. A boémia jogralesca
Este mundo amaneirado e galante tem um reverso que, comparado
com o rosto respectivo, nos dá uma imagem dos violentos contrastes
que caracterizam a vida medieval. É um mundo de jograis e soldadei-
ras que vive à margem do mundo «decente» e no qual participam
muitos fidalgos, sem excluir os reis.·
Uma orgia que hoje diríamos pornográfica, ao mesmo tempo
viciosa e bárbara, substitui aqui o «serviço» mesurado prestado pelos
cavaleiros às damas divinizadas, que pareciam ter mais olhos que
corpo. No lugar destes anjos encontramos prostitutas, cuja vida pro-
fissional é descrita com todos os pormenores, sem eufemismos e com
grande cópia de particularidades anatómicas. Contrariamente à regra
do segredo, obrigatória nos amores com as damas, conservaram-nos
os poetas os nomes destas profissionais da joglaria e do amor.
Sabemos por isso que Maior Garcia manifestava grande predilec-
ção pelos clérigos, no intento de se cobrir de pano neste mundo e
garantir a segurança no outro - o que a não impedia de entretanto
também receber judeus e mouros 47 • Sabemos particularidades diver-
sas acerca de Teresa Alfaro, de Elvira Lopes, de Maria Grave e de
toda uma população de mulheres, em que sobressai, pela fama, a
Maria Balteira. É esta a heroína máxima da boémia jogralesca, onde
passa seguida por um cortejo de poetas. Jograis, fidalgos e um rei
pelo menos -nada menos que Afonso X- andaram-lhe no encalço,
dirigindo-lhe as homenagens devidas às suas graças de mulher e
artista, mas também as obscenidades mais extraordinárias. Afonso X
pertence a este segundo grupo.
Maria Peres, a Balteira, pertencia a uma família nobre e afazen-
dada da Galiza; e, escapando ao destino das raparigas da sua condi-
ção, enveredou pela aventura errante da vida jogralesca. Viajou com
a corte ou por conta própria; esteve em acampamentos de guerra,
onde se relacionava com mouros e cristãos. Empreendeu a peregrina-
ção a Jerusalém, donde voltou carregada de indulgências, mas insi-
nuava um jogral sarcástico que, no regresso, os rapazes lhas fizeram
perder todas. A devoção religiosa da Balteira manifestou-se ainda
noutros actos: em 1257 cedeu uma herdade a um mosteiro cisterciense
galego, em troca de uma renda vitalícia; comprometia-se a servir o
mosteiro como «sua familiar e amiga» e, em troca, os monges
obrigavam-se a fazer-lhe um funeral e luto com certas honras. Nem
47
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n.º' 187, 188 e 321.

35
por ser devota, a Balteira se tornara mais comedida: tinha o hábito
do jogo e praguejava escandalosamente quando perdia; acreditava
em agouros de aves, que consultava antes de partir para viagens.
O número dos seus amantes de todos os países, raças e religiões das
Espanhas é celebrado. Já no pendor da velhice, apaixonou-se por um
escolar pobre, a quem pagou e presenteou prodigamente da sua algi-
beira, que devia ter bem provida. Um jogral despeitado, a quem ela
não dava atenção, registou estes amores numa cantiga, desejando à
jogralesa em castigo uma velhice pobre e infeliz. É mais provável que
no fim da vida se consagrasse definitivamente às devoções a que era
atreita, no mosteiro de que se fizera «familiam 48 •
Muitos outros personagens do mesmo mundo ficaram vivos nas
páginas dos cancioneiros. Pêro de Ambroa é celebrado por vários
poetas por andar a gabar-se de uma viagem aos Lugares Santos,
quando afinal não passou de Montpellier 49 • Martim Va~ques, da
corte portuguesa, dedicava-se à astrologia e convenceu-se, consul-
tando os astros, de que lhe estava destinada uma igreja de grande
renda se se fizesse clérigo. Mas ficou afinal desiludido, porque a
igreja pobre que alcançou não o compensou da renda que deixara de
receber como jogral 50 . Outro jogral é objecto de troças por se fazer
acompanhar de uma meretriz: arrisca-se a que o rei, segundo o direito
vigente, lha mande açoitar na praça pública 51 • Há muitos casos de
alcoolismo, de doenças venéreas, e não faltam homossexuais.
Um documento de como o padrão normal da moralidade e da dig-
nidade pessoal não se aplicava neste mundo singular temo-lo numa
sátira de Afonso X contra Pêro da Ponte. O rei acusa este jogral de
haver assassinado o seu mestre e companheiro Afonso Eanes do
Coton, quando ambos se encontravam bebendo, para lhe roubar as
cantigas 52 • É de estranhar que o autor das Leis das Sete Partidas não
mandasse enforcar o assassino, que estava ao seu alcance: isso prova
que a grave acusação de Afonso é metafórica ou hiperbólica. Coton
deve ter morrido numa orgia em que o outro tomou parte. O que de
tudo isto resulta é que, no mundo jogralesco, um homem podia ser
acoimado de assassino sem consequências.

48
Sobre a Balteira veja-se Pidal, Poesía jug/aresca y juglares, ed. Austral, pp. 138 e
segs., e Lopez Aydillo, «Los Cancioneros como fuentes históricas», in Revue Historique,
vol. 57.
49
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n.º' 311, 315 e 393.
50
!d., ibid., n. º' 122 e 124.
51
Id., ibid., n. 0 76.
52
Id., ibid., n. 0 15.

36
Característico é ainda o caso das jogralesas e soldadeiras. A sua
vida de mulheres públicas era conhecida, minuciosamente referida em
verso, e nem por isso se lhes aplicava a lei que obrigava as meretrizes
a viverem em casa própria e sujeitas a um regime especial. Pelo con-
trário, uma lei que já conhecemos de D. Afonso III de Portugal per-
mitia que elas comessem, convidadas, na mesa do rei.
O mundo jogralesco não ficaria completo se apenas considerásse-
mos estes marginais. Encontramos lá também fidalgos de pequena e
grande estirpe, incluindo, como vimos, testas coroadas. Eles não só
fazem versos, como ainda travam competições com jograis.
Mem Rodrigues Tenório, que pertencia a uma das mais ilustres
famílias galegas e à melhor nobreza da Península, trava uma discus-
são com o jogral Juião Bolseiro. Começa por declarar que a sua pri-
meira razão é um murro; e, para que nunca mais vilão se atreva a ten-
çoar com ele, ameaça o jogral de «coices» na garganta e de o arrastar
pelos cabelos. Na resposta de Juião nota-se um certo comedimento,
porque não responde à ameaça com a ameaça, mas apenas com o
insulto: chama ao fidalgo «cocham> e «coteife nojoso», injúrias que
se aplicavam aos vilãos 53 • Seja qual for o desdém afectado pelo
fidalgo em relação ao jogral, o que é significativo é o facto de se pres-
tar a figurar com ele num certame poético e de os versos de um e
outro terem ficado arquivados no cancioneiro.
Com o mesmo ar de desdém ou repugnância, não um, mas nume-
rosos fidalgos se dirigem ao jogral Lourenço, que um dia apareceu a
trovar na corte de Afonso X. Lourenço começara por estar ao serviço
do trovador João Garcia de Guilhade, e já então tivera pegas literá-
rias com o patrão, porque este não lhe pagava pontualmente. A ques-
tão é derimida em verso, com vantagem para Lourenço, que obrigou
Guilhade a ceder sob a ameaça de se despedir 54 • Quando, em certo
momento, Lourenço se atreve a compor cantigas, como se fosse um
trovador, Guilhade vai-lhe à mão, desdenhando-o não apenas como
compositor, mas também como cantor e músico. Lourenço respon-
deu tranquilamente que também nos versos de Guilhade havia muito
que emendar 55 • A partir de então, Lourenço tem de se defender de
repetidos ataques de fidalgos-trovadores, como D. João de Aboim e
D. João Soares Coelho (um dos principais personagens da corte de
D. Afonso III), que pretendem convencê-lo a regressar à antiga pro-

53
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. 0 300.
54
Id., ibid., n. 0 217.
55
Id., ibid., n. 0 2l6.

37
fissão de cantor e músico. Um destes antagonistas pergunta a Lou-
renço porque saiu de Portugal: por ter roubado?, por ter morto
homem? Lourenço responde jactanciosamente que se encontra ali, na
corte de Afonso X, para «ganhar algo» 56 • Em certo momento da
polémica, Lourenço escolhe um juiz que decida entre ele e os seus
«desdizedores»; e, tendo-lhe sido desfavorável a sentença, acusa-o,
afinal, de se ter deixado peitar 57 • A questão terminou pela vitória de
Lourenço, que se fez aceitar como trovador e viu reconhecido o seu
talento: numa tenção com D. João Soares Coelho, D. João de
Aboim gaba-se de ,que o jogral Lourenço não se atreve a acome-
tê-lo 58 •
A convivência de fidalgos e jograis numa espécie de república das
letras formada no centro da corte é, pois, um facto superabundante-
mente documentado. Essa república literária e boémia ·era cheia de
atractivos. Com toda a sua vileza, o jogral devia ser bem mais inte-
ressante pela desenvoltura de espírito e desembaraço de linguagem do
que muitos barões; e as soldadeiras, artistas profissionais, podiam
juntar à beleza o saber e a experiência. Acrescente-se a isto a liber-
dade reconhecida neste mundo que se achava à margem dos padrões
e convenções do mundo regularmente constituído.
Compreende-se assim facilmente que mais de um fidalgo ingres-
sasse na vida jogralesca. Já vimos que foi o caso da Balteira. É tam-
bém o de Afonso Eanes do Coton, o mestre de Pêro da Ponte, que
desdenha do discípulo por ser um vilão. Dizia o próprio Coton, num
desafio com Pêro da Ponte, que podia ter vida honrada, mas preferia
vagabundear por ruas e tabernas, jogar aos dados e conviver com
mulheres mundanas: não queria outros trabalhos nem outros com-
bates 59.

§ 9. Alguns temas jogralescos


Todo este mundo, livre pela sua própria condição marginal, brin-
cava, cantava, versejava sem destino sabido e criava de caminho a
sua literatura própria.
Os seus temas são casos da sua vida: inspiram-se principalmente
nas anedotas, escândalos e maledicências da boémia jogralesca. His-
56 R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. 0 273.
57
Id., ibid., n. º 272.
58
Id., ibid., n. 0 221.
59 Id., ibid., n. 0 53.

38
tórias de meretrizes, de ébrios, de maridos-cucos, de impotentes
sexuais, de aleijados, etc., constituem a grande massa da produção
satírica dos cancioneiros. Um tema típico e apreciado é o do vestuá-
rio. Um fidalgo é troçado por usar há mais de quatro anos a mesma
capa; outro, por, a propósito e despropósito, durante todo o ano
usar constantemente os mesmos sapatos dourados. Há uma dama
que não sabe ajeitar a touca. As modas novas provocam comentá-
rios: Afonso X satiriza uma moda de cintas compridas e mangas cur-
tas e enfunadas que apareceu na sua corte.
Deve assinalar-se, no meio deste conjunto lúdico, todo um sector
de comentários e disputas em torno de temas literários ou artísticos.
O jogral e o trovador discutiam a sua arte; mas faziam-no, em geral,
a propósito de questões pessoais: disputava-se se tal jogral sabia ou
não cantar e citolar; se tal trovador sabia ou não medir os versos; se
tal outro fazia versos próprios da corte e dos sabedores, ou trovas
desprezíveis unicamente boas para vilãos. Em torno de um jogral
trava-se uma discussão: alguém sustenta que ele não sabe cantar,
outro replica que são as mulheres e o vinho que lhe prejudicam a voz.
Assunto frequentemente discutido é o plágio, considerado infamante.
Quando o jogral sai do seu mundo profissional, defronta o mundo
dos seus protectores e comparsas da nobreza e· do clero; e ou faz coro
com ele ou se choca com ele.
É assim que a avareza dos infanções e dos ricos-homens foi
objecto de uma vasta literatura satírica. Os jograis castigavam por
meio dela os fidalgos que lhes fechavam a porta ou recusavam o jan-
tar nas suas andanças profissionais. O jantar e a hospitalidade das
casas fidalgas eram um problema vital para os jograis ambulantes,
motivo por que não poupam os sarcasmos à mesa e à cozinha dos
fidalgos pouco generosos.
Nem sempre é ponto de vista jogralesco o que se manifesta nas
cantigas de escárnio e maldizer. Também nelas se manifesta por vezes
o fidalgo-trovador.
Os vilãos afidalgados, por exemplo, são objecto de uma troça
impiedosa. Afonso X gosta de se divertir com os ridículos dos «cotei-
fes» seus súbditos, em especial com a poltronice que lhes atribui.
Estêvam da Guarda satiriza um vilão afidalgado por D. Afonso IV
de Portugal, que é calvo e pretende disfarçar-se, desastradamente,
com um grande chapeirão empenachado 60 • Outro vilão fora feito
cavaleiro, mas não perdera o costume de roubar. O escudeiro João
60
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. º 121.

39
de Gaia tornou célebre um alfaiate que, por influência de Domingos
Anes Jarda; bispo de Lisboa, de quem era servidor, foi nobilitado
por D~ Dinis e mudou o nome plebeu Vicente Domingos para João
Fernandes. Inspirando-se num cantar popular, o trovador imaginou
o pai do novo fidalgo à porta do estabelecimento travesti num trajo
fidalgo de saia apertada por comprido cordão e aplicou à sua grossa
figura de mesteiral assim desfigurada um refrão tradicional que se
usava para gabar a esbelteza de corpc das raparigas:
Vosso pai na rua
ant'a porta sua ...
Vede-lo c6s, ai cavaleiro!
Ant'a sa pousada
en sai'apretada ...
Vede-lo cós, ai cavaleiro!
En meio da praça
en saia de baraça ...
Vedo-lo c6s, ai cavaleiro/ 61
Todas estas cantigas definem o sentimento da nobreza palaciana em
relação aos parvenus. Mas há nos cancioneiros um movimento nou-
tra direcção, tendo por alvo os privados do rei. O conde de Barcelos,
filho de D. Dinis, acusa os privados de serem maus conselheiros 62 ;
Estêvam da Guarda, que fora alto personagem na corte de D. Dinis,
finge dar parabéns a um bispo por ter entrado no conselho do rei e
exorta-o ironicamente a que, para manter a privança, aconselhe sem-
pre o que ao rei agradar 63 • O clérigo Martim Moxa discute acerca dos
privados do rei, que, em vez de distribuírem o dinheiro que adminis-
tram, o guardam para si, deixando empobrecer os que estão.à sua
volta; o rei recusa-se a dar ouvidos aos que censuram estes rapaces
privados 64 •
Há também a sátira aos que desrespeitam os valores da nobreza
feita pelos próprios nobres-trovadores. A infracção das regras que
ligavam o vassalo ao senhor é castigada pelo citado João de Gaia na
pessoa de certo ex-vassalo do conde D. Pedro, que em seis meses
mudou três vezes de senhor, vendendo-se a quem mais dava 65 . O rei

61
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. º 95 (cós= corpo).
62
Id., ibid., n. º 323.
63 Id., ibid., n. 0 110.
64
Id., ibid., n. º 276.
65
Id., ibid., n. 0 196.

40
Afonso X dirige violentas sátiras contra os fidalgos que recebem sol-
dadas do rei e não comparecem quando são convocados para a
guerra 66 • O funcionalismo da corte dá também assunto à maledicên-
cia palaciana: juízes incompetentes ou venais, meirinhos salteadores,
médicos charlatães, etc.
Ao lado dos nobres, os clérigos figuram nos cancioneiros como
autores de composições e objecto de sátiras. Clérigos em geral, fra-
des, freiras e abadessas nomeadamente, parecem tomar parte desen-
voltamente na vida airada dos jograis, como se o hábito lhes fos&e
tão leve como a saia da bailarina. Todo um sector da boémia jogra-
lesca é povoado por clérigos-jograis e monjas-boémias. Poderíamos
citar, entre tantos, Airas Nunes, clérigo de Santiago, que é jogral ou
trovador profissional de excepcional talento; Martim Moxa, que se
espanta de que, pelo facto de ele viver como casado, possam dizer
que não é sacerdote; a abadessa de Arouca; a freira Camela. A enu-
meração podia continuar.

§ 10. Os acontecimentos e os poetas


vistos nos cancioneiros
Só por singular excepção nesta abundante produção satírica algum
autor se eleva na troça pessoal a uma reflexão e comentário sobre os
acontecimentos, a uma afirmação política, religiosa ou moral, a
sublinhar um acontecimento histórico. Estes jograis e trovadores,
capazes de explorar o ridículo de um chapéu fora de moda, mostram-
-se insensíveis à cruzada que culminou na vitória das Navas, ou às
lutas dos reis com a aristocracia, ou às dos burgueses do Porto ou
Santiago com os respectivos bispos.
«Não encontramos», observa Menéndez Pidal, «na poesia galai-
co-portuguesa a inspiração das cruzadas, que teria sido de esperar
aqui, mais do que entre os trovadores provençais. Também lá não se
encontra o partidarismo político que apaixonou os poetas da Pro-
vença, nem os conselhos dirigidos por aqueles aos reis e mag-
nates.» 67
Os poetas dos cancioneiros não parecem mesmo dar pelas horas
que soam no mundo em que vivem: muito raras são as composições
que possamos datar por alusões a acontecimentos históricos.

66
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n.º' 16 e 21.
67
M. Pidal, Poesía juglaresca y juglares, ed. Austral, pp. 129-130.

41
Por isso mesmo dão nas vistas as poucas excepções a esta regra
geral. Uni único jogral manteve uma atenção assídua aos sucessos da
sua época, e esse porque se especializou no género comemorativo.
Foi ele Pêro da Ponte, jogral galego da corte de Afonso X, que
comemorou a morte da rainha mulher de Fernando III, a tomada de
Valência e a tomada de Sevilha. No poema referente a esta última,
o jogral esforça-se por aliar a hipérbole heróica com o rigor crono-
lógico:
E desd' aquel dia que Deus nasceu
nunca tan ·bel presente recebeu
como del [de Fernando III] recebeu aquel dia
de S. Clement', en que conquereu [conquistou]
e en outro tal dia se perdeu
quatrocentos e nov' anos havia 68 •

Um acontecimento deixou um eco apaixonado e sentido, embora


breve, nos cancioneiros: a guerra civil do Bolonhês contra D. San-
cho II, que inspirou duas composições, ambas adversas ao conde.
O tema e o espírito de ambas são idênticos. Trata-se da traição dos
alcaides que entregaram os castelos ao conde de Bolonha, infringindo
assim o juramento senhorial. Já falámos destas composições em obra
anterior. Ambas atacam, do ponto de vista da nobreza, a intervenção
do clero a favor de D. Afonso. Nesta guerra interveio a favor de
D. Sancho o futuro Afonso X, que recordará o episódio, a propósito
de acções cometidas contra ele próprio, como um caso típico de
traição:
Nunca assi foi vendido
rei Don Sanch' en Portugal. 69

É de crer que partiram da corte de Afonso-o-Sábio os poemas de


oposição ao Bolonhês, tanto mais que este rei cultivou pessoalmente
a sátira castigadora da cobardia e da traição aos valores cavalei-
rescos.
Muitas destas cantigas são ataques pessoais ferozes e carnais. Mas
encontramos também composições de humorismo mais espirituoso.
Entre essas merece ser citada uma em que D. Dinis mais uma vez se
revela um poeta subtil:

68
Cancioneiro da Vaticana, n. 0 512.
69
Cantigas de Santa Maria, n. 0 235.

42
U noutro dia seve Don Fuan
a mi começou gran noj' a crescer
de muitas cousas que lhe oí dizer.
Diss' el: - Ir-me quero, ca já se deitar an -
E dix' eu: - Bõa ventura ajades, "
porque vos ides e me leixades.

E muit' enfadado do seu parlar


Sev' i gran peça, se mi valha Deus,
e tosquiavam estes olhos meus.
E quand' el disse: - Ir-me quer' eu deitar
E dix' eu: - Bõa ventura ajades
porque vos ides e me leixades.

El seve muit' e diss' e parfiou,


e a min creceu gran nojo poren.
E non soub' el se x' era mal, se ben.
E quand' el disse já m' eu deitar vou
Dixi-lh' eu: - Bõa ventura ajades
porque vos ides e me leixades. 70

Note-se que também aqui se encontra o paralelismo atenuado das


cantigas de amor, juntamente com o refrão perfeito. De ambas estas
particularidades tira o poema um belo efeito.

Se os acontecimentos sociais e políticos pouco comoviam o mundo


dos jograis e trovadores, é claro que muito menos lhe interessavam
considerações doutrinárias sobre a moral e os costumes contemporâ-
neos. Encontram-se ainda assim algumas canções deste tipo da auto-
ria de Airas Nunes, de D. Pêro Gomes Barroso, importante persona-
gem da corte de Afonso X, de Pêro Mafaldo, de Martim Moxa, que
manifestava certo interesse pelo género, e de outros.
Estes poetas, que são em geral os mais cultos, inspiram-se
no género provençal chamado sirventés. Frequentemente a poesia
moral se reduz a considerações sobre a decadência dos tempos que
correm:

E ouço cousas que nunca oí7 1


ca vej' agora o que nunca vi.

70
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. 0 94 (seve= esteve; Don Fuan =D. Fulano;
tosquiavam= pestanejavam; nojo= aborrecimento).
71
Cancioneiro da Vaticana, n.º 593.

43
Martim Moxa, dentro deste estilo, queixa-se de que Deus abando-
nou o mundo porque ele vai agora pior do que antes o viram.
Pela sua originalidade e precisão destaca-se uma poesia de Airas
Nunes, o clérigo-trovador de Santiago de Compostela, que tantas
vezes encontrámos no nosso caminho. Resolveu ele um dia procurar
a Verdade, mas, perguntando, todos lhe responderam que a buscasse
noutro lado, porque ali não havia notícias dela. Nos conventos e na
Ordem de Cister, a busca não deu melhor resultado:
Nos mosteiros dos frades regrados
a demandei, e disseron-m' assi:
- «Non busquedes vós a verdad' aqui,
ca muitos anos havemos passados
que no morou nosco, per bõa fé.
[... ]
e d'al havemos mores cuidados».

E en Cistel, u verdade soía


sempre morar, disseron-me que non
morava i, havia grand sazon,
nen frade d'i já a non conhecia.
[ ••• ] 72

O clérigo de Compostela dirige-se, por fim, aos romeiros de San-


tiago, que lhe respondem que ele leva o caminho errado procurando
a verdade ali, onde «não sabem dela mandado».

§ 11. O A madis de Gaula como expressão


idealizada da corte trovadoresca
O ideal trovadoresco expresso nos cancioneiros teve· a sua expres-
são em prosa narrativa escrita, género que se impôs ao público à
medida que a arte dos jograis declinava. O tradutor português de um
romance de cavalaria, ou o seu copista, fala-nos de gente que lê e leva
consigo de um lado para o outro pequenos códices.
O livro em prosa onde mais exemplarmente se espelham os mode-
los amorosos das cortes de Afonso X ou de D. Dinis é o Amadis de
Gaula, publicado pela primeira vez em Saragoça, em 1508, por Garci
Rodriguez de Montalvo, ou, como aparece em edições seguintes,
Garci Ordofíez de Montalvo. Este não se apresenta como autor da
72
R. Lapa, Cantigas d'Escarnho, n. º 69 (ai= outra coisa; grand sazon =muito
tempo).

44
obra. Diz que corrigiu estes três livros de Amadis, que, por falta dos
maus escritores ou compositores, se liam mui corruptos e viciosos, e
que trasladou e emendou o livro quarto, etc. Ora, antes de 1379, um
autor castelhano alude ao Amadis «em três livros»; e há outra men-
ção castelhana de cerca: de 1350. Nestas referências não se indica o
autor, mas, em 1454, o cronista português Gomes Eanes de Zurara,
na Crónica de D. Pedro de Meneses, declara que o Amadis fora
escrito no tempo de el-rei D. Fernando «a prazer de um homem cha-
mado Vasco de Lobeira».
No tempo do rei D. Fernando, que começou a reinar cerca de
1345, já os três livros do Amadis eram lidos e citados por autores cas-
telhanos como obra muito conhecida. Portanto, não podemos
atribuí-los a este Vasco de Lobeira. Mas acontece que na edição de
Montalvo, baseada num manuscrito antigo, há um episódio onde
figura uma canção de amor que é a tradução castelhana de uma
cantiga galaico-portuguesa que figura no Cancioneiro Colocci-Bran-
cutti:
Leonoreta
fin roseta
Bela sobre toda fror
fin roseta
non me meta
en tal coita voss' amor.

No Amadis, esta composição é atribuída ao próprio herói do


romance, que a dirige à sua amada Oriana, por interposição de Leo-
noreta. No Cancioneiro de Colocci-Brancutti é subscrita pelo redac-
tor, João Lobeira. João Lobeira é um cavaleiro-fidalgo, vassalo de
D. Afonso III e de D. Dinis e oriundo da Galiza. Há notícias dele a
partir de 1261 e até 1285 73 •
Nada mais tentador do que relacionar o João Lobeira da época de
D. Dinis com o Vasco de Lobeira do tempo de D. Fernando e atri-
buir a este a continuação de uma obra começada por aquele.
O livro poderia ter sido redigido na corte de Afonso X-o-Sábio,
em que o galego-português era a língua usada predominantemente na
canção e o castelhano na prosa. Seja dito, todavia, que já se cultivava
a prosa em português, como o provam as traduções da matéria de
Bretanha, os livros de linhagens e a Crónica Geral de Espanha de
1344.

73
Ver C. Michaelis, op. cit., vol. 11, pp. 523-525.

45
De qualquer forma, a obra é um espelho do código galante usado
nas cortes trovadorescas: a posição suplicante do amador, o serviço a
que este se submete, o segredo guardado pelos amantes e até o consi-
derar-se o amor como puro sentimento independente do estatuto
social. A intriga inicia-se pela narrativa dos· amores clandestinos do
rei Perion e Elisena, donde nasceu Amadis, que, por vergonha, a mãe
lança ao mar dentro de um barco. Os amores de Amadis e Oriana
são, da parte de Amadi~, um longo «serviço» que começa na época
em que, quase criança, ele foi nomeado pagem da infanta. Desde
então guarda no coração a palavra com que à rainha o apresentou à
donzela Oriana: «- Amiga, este é um donzel que vos servirá.»
Durante muito tempo não consegue dominar a timide~ que o obriga
a calar-se diante da donzela e serve-a no segredo do seu coração.
A partir do dia em que, por fim, se lhe declara, todos os seus combates
com cavaleiros, gigantes ou monstros são dedicados à amada. O ca-
valeiro invencível empalidece quando recebe uma carta da «senhor»,
quase deixa cair a espada das mãos no decorrer de um combate por
tê-la visto na assistência e resolve sepultar-se no ermo, em vida de
penitência, por ela o ter acusado injustamente de infidelidade. Estes
amores são guardados em rigoroso segredo; e, quando o cavaleiro,
um dia, escreve versos inspirado pela amada, finge dedicá-los à irmã
dela, Leonoreta. O longo serviço de Amadis teve o merecido prémio,
porque, quando uma aventura deixa a sós os dois amantes na flo-
resta, escreve o autor «que naquela verde erva, e em cima daquele
manto, mais por graça e comedimento de Oriana que por desenvol-
tura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa donzela do
mundo».
Dentro do espírito expresso por Marie de Champagne quando sen-
tenciou que o amor nada tem a ver com o casamento, as ligações dos
casais enamorados do Amadis são alheias ao estatuto matrimonial: o
casamento do rei Perion com Elisena vem a ocorrer na fase avançada
da estória, muito depois do nascimento de Amadis. Quanto a este,
casa com Oriana muito depois de se ter dado o respectivo ajunta-
mento carnal, mas esse casamento é mantido secreto, de modo que os
esposos, durante quase toda a narrativa, são considerados como
amantes 74 •

74 o texto do Amadis estã publicado no vol. x1 da Biblioteca de Autores Espafio/es

(BAE), 1857. Hã uma antologia portuguesa por Rodrigues Lapa, na col. «Textos Literã-
rios». Também em Rodrigues Lapa a discussão do problema da autoria nas Lições de Lite-
ratura Portuguesa, 10. ª ed., 1981.

46
§ 12. Amor e morte
Como acabámos de ver, a literatura medieval está cheia de grandes
casais de amorosos. Os amores de Amadis de Gaula e Oriana são
provavelmente de todos os mais convencionais, inspirados nos de
Lançarote e da rainha Genebra, os quais têm talvez o seu antecedente
nos de Tristão e Isolda, cuja paixão mútua se tornou conhecida como
o arquétipo do amor romântico, próprio do Ocidente.
Fernão Lopes cita os amores da «rainha Dido» (imortalizados por
Virgílio e conhecidos através de adaptações medievais, como o
Roman d'Eneds, uma das fontes da Primera Crónica General~ de
Afonso X) e de «Adriana» (Ariadne), popularizados por Ovídio,
como sendo «amores compostos, os quais alguns autores abastados
de eloquência e florescentes em bem ditar ordenaram segundo lhes
aprouve» 75 •
Mas entre estes amores fingidos não se incluem~ diz Fernão Lopes,
os amores de Pedro e Inês, «que se contam e lêem nas estarias que
seu fundamento teem sobre verdade». As «estarias» aqui aludidas
são as narrativas de casos acontecidos, como eram (ou se supunham
ser) as crónicas.
O cronista narra como D. Pedro, depois de subir ao trono, «sendo
lembrado de honrar seus ossos [de Inês], pois lhe já mais fazer não
podia, mandou fazer um muimento de alva pedra todo mui subtil-
mente obrado, pondo enlevada sobre a campa de cima a imagem dela
com a coroa na cabeça, como se fora rainha; e este muimento man-
dou pôr no mosteiro de Alcobaça, não à entrada onde jazem os reis,
mas dentro da igreja, à mão direita, junto da capela mor. E fez trazer
o seu corpo do mosteiro de Santa Clara, onde jazia, o mais honrosa-
mente que se fazer pode, pois ela vinha em umas 'andas' muito bem
corregidas para tal tempo, as quais traziam grandes cavaleiros, acom-
panhados de grandes fidalgos e muita outra gente, e donas e donzelas
e muita cleresia. Pelo caminho estavam muitos homens com círios
nas mãos, de tal maneira dispostos que sempre o seu corpo foi por
todo o caminho por entre círios acesos; e assim chegaram ao dito
mosteiro [de Alcobaça], que eram dali 17 léguas, onde com muitas
missas e grande solenidade foi posto naquele muimento. E foi esta a
mais honrosa trasladação que até aquele tempo em Portugal fora
vista. Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal muimento e

75
Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro, ed. por Giuliano Macchi, 1966, cap. 44,
p. 279.

47
tão bem obrado para si, e fê-lo pôr junto do seu dela, para quando
sucedesse morrer o deitarem nele» 76 •
Ainda hoje existem os dois túmulos de que fala Fernão Lopes,
embora mutilados pela soldadesca das invasões francesas. Em um deles
ele fez enterrar a amada no deslumbramento dos archotes e na presença
das mais ilustres damas, fidalgos e clérigos. A corte inteira foi obri-
gada a acolitar postumamente a amante do rei. E ao lado, para a vida
e para a morte, para o tempo e para a eternidade, no túmulo desti-
nado a si próprio, D. Pedro mandou esculpir em baixo-relevo toda a
história da sua paixão. São os mais belos túmulos de escola francesa
que se fizeram em Portugal, encomendados talvez a um artista resi-
dente em Espanha, talvez em Castela.
O que há de extraordinário nestes túmulos é como a união carnal,
donde nasceu uma família, ganha uma dimensão sagrada e se pro-
longa para além da morte até ao dia do Juízo Final.
A história em si é que D. Pedro, sendo infante e casado, se enamo-
rou de D. Inês de Castro, dama de companhia da sua esposa. Ela era
bisneta de Sancho IV de Castela, filha bastarda de um poderoso
fidalgo galego, D. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra, muito
conhecido e privado do nosso rei D. Dinis. A esposa de D. Pedro,
D. Constança Manuel, teve sucessivamente três crianças e Inês de
Castro foi madrinha da segunda, ficando portanto a ser comadre do
casal. Nesse tempo, o compadrio era um laço de parentesco religioso
que impedia o casamento entre os compadres. Além disto, o infante
D. Pedro era primo direito do pai de Inês, o que, segundo as leis
canónicas, também impedia a união sexual. O rei D. Afonso, pai
de D. Pedro, que contrariava os amores adúlteros e incestuosos do
filho com a fidalga galega, expulsou-a de Portugal. Ela acolheu-se
no castelo de Albuquerque,, perto da fronteira portuguesa, em
casa de D. Teresa de Albuquerque, sua mãe adoptiva, viúva de um
filho de D. Dinis. Sobre este desterro escreverá mais tarde Fernão
Lopes:

Este verdadeiro amor houve el-rei D. Pedro a D. Inês, como se


dela namorou, sendo casado e ainda infante, de guisa que embora
dela no começo perdesse vista e fala, sendo alongado [afastado]
como ouvistes -que é o principal aso de se perder o amor-,
nunca cessava de lhe enviar recados 77 •

76
Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro, cit., p. 280.
77
Id., ibid., p. 279.

48
D. Constança teve um último filho, que veio a ser o rei D. Fer-
nando, e morreu desse parto. D. Pedro estava livre; mandou vir
D. Inês para junto dele e os dois apaixonados fizeram «maridança»
publicamente. Do casal nasceram quatro crianças.
O regresso de D. Inês a Portugal era uma provocação para o rei
que a pusera fora da terra. E tanto mais grave quanto o casal se insta-
lou em Coimbra, a capital do Reino, no paço que a rainha D. Isabel,
mulher de D. Dinis, construíra junto ao Mosteiro de Santa Clara
para uso dos seus descendentes e respectivas esposas legítimas. Era
natural que o rei se considerasse desfeiteado e procurasse vingar-se.
Como é habitual, os historiadores procuraram «racionalizar» (ou
normalizar, ou banalizar) este caso monstruoso. D. Inês tinha irmãos
poderosos com propriedades e cargos tanto em Portugal como em
Castela. Um deles, D. Álvaro Pires Castro, era condestável de Portu-
gal e conde de Arraiolos. O cronista Rui de Pina faz-se eco de uma
opinião segundo a qual se receou que os parentes poderosos de Inês
de Castro assassinassem oinfante D. Fernando, filho de Constança
e herdeiro legítimo de D. Pedro, para transferir a coroa para um
filho de Inês. Outra opinião registada por Rui de Pina é que
D. Afonso e outros parentes de D. Pedro queriam que este casasse
legítima e legalmente com D. Inês 78 , mas o infante não quis. São opi-
niões contraditórias. Mais provável é o que diz Ayala, cronista caste-
lhano contemporâneo dos factos:

E fizola el Rey Don Alfonso matar, por quanto le decian que el


Infante Don Pedro su fijo querfa casarse con ella, é facer los
dichos fijos legítimos; é pesabale al Rey Don Alfonso, por quanto
la dicha Dona Ines non era fija de Rey 79 •

Era um casal enamorado, natural, alheio às instituições e feliz.


O espectáculo da felicidade gratuita que nasce e se renova entre os
amantes, que parece indiferente ao mundo, é um escândalo intolerá-
vel para a sociedade. O rei e os seus altos conselheiros agastaram-se.
São obscuras as motivações que os levaram a detestar a bela Inês.
Mas compreende-se o ódio nascido nesta atmosfera e também que
tenha crescido como labaredas à vista do comportamento de D. Pe-
78
Rui de Pina, Crónica de D. Afonso IV, apud Crónica dos Sete Primeiros Reis de
Portugal, ed. por Carlos Tarouca, 1952, cap. 67, p. 365.
79
Pedro Lopez de Ayala, «Crónica dei Rey Don Pedro, hijo dei Rey Don Alfonso,
onceno de este nombre en Castilla», in Crónicas de los Reyes de Castilla, «Biblioteca de
Autores Espafioles», Madrid, 1953, t. 1, cap. x1v, p. 506.

49
dro, que não só ignorava, como ainda provocava insolentemente os
preconceituosos conselheiros.
Sejam quais forem as justificações, parece-nos que os aconteci-
mentos se geraram num complexo passional. O desfecho ocorreu
quando D. Afonso IV, que estanciava perto de Coimbra, em Monte-
mor-o-Velho, ouvidos os seus principais conselheiros, decidiu man-
dar matar Inês. Foi um golpe de surpresa. O infante D. Pedro tinha
saído de Coimbra e, aproveitando a sua ausência, quando Inês estava
só, sem defesa, o rei, acompanhado de gente armada, salteou as casas
do Mosteiro de Santa Clara, onde ela pousava. Não nos custa a crer
que o fizesse ao alvorecer, aproveitando o silêncio e· o desamparo do
crepúsculo matinal. Segundo o cronista Rui de Pina, na Crónica de
D. Afonso IV 80 , que provavelmente parafraseia uma crónica ante-
rior de Fernão Lopes, Inês apareceu à porta suplicante com os três
filhos, netos do rei. Ele esteve a ponto de se arrepender, mas deixou
obrar os assassinos. Esta versão, parafraseada por Camões, não é a
que figura nos baixos-relevos dos túmulos, como veremos.
Fosse como fosse, parece-nos evidente que se trata de um bruto
assassínio, e não da execução de uma sentença judicial, porque as
sentenças eram feitas com pregão público das culpas, o qual não
poder-ia deixar de ser referido nas crónicas; e, sendo Fernão Lopes
tão cuidadoso em alegar documentos oficiais, é omisso a este res-
peito; o seu sucessor Rui de Pina menciona, aliás, a opinião corrente:

[... ] o que foi havido contra el-rei mais por abominável crueza
que por severa nem louvada justiça 81 •

A reacção de D. Pedro foi a que era de esperar. Arremeteu de


armas na mão contra o pai, reunindo gente de guerra de Portugal e
da Galiza. Andou pelo Norte do País com um bando armado a
devastar a terra. Na mocidade, D. Afonso fizera guerra ao pai, na
velhice teve de defender-se contra o filho; mas conseguiu impor-lhe
uma paz que no fundo representava a. submissão do agravado.
D. Pedro prometeu solenemente que não perseguiria, nem em vida
nem em morte do pai, os culpados do assassínio.
Isso passava-se em 1355. Dois anos depois, D. Pedro subia ao
trono. Os assassinos de Inês de Castro tinham fugido para Castela.
Mediante negociações com o seu homónimo rei de Castela, D. Pedro

80
Ed. cit., cap. 67, p. 366.
81
ld.; p. 367.

50
conseguiu que lhe fossem entregues dois dos culpados, que mandou
vir à sua presença para ele próprio os interrogar. O terceiro procu-
rado conseguiu fugir. A Pêro Coelho, refere o cronista, mandou tirar
o coração pelo peito e a Álvaro Gonçalves pelas espáduas. Eram
ambos fidalgos de alta categoria.
Passaram-se três anos. Em 1360, estando em Cantanhede, o rei fez
juramento público e solene de que «haveria sete anos pouco mais ou
.menos», em dia que não se lembrava, tinha casado com Inês de Castro
e que desde então vivera com ela conjugalmente. Em vida de seu pai
escondera este facto pelo «receio que dele havia». Esta declaração foi
registada por notário e reiterada em Coimbra perante a corte reunida.
Muita gente da corte ficou surpreendida e não acreditou. Como
era possível D. Pedro não se lembrar do dia do seu casamento?
A resposta do rei a esta dúvida foi provavelmente a construção dos
túmulos de Alcobaça. Como se quisesse dar existência tangível a um
facto, fez construir para Inês um túmulo onde ela aparece coroada de
rainha. Duplo desmentido à vida e à morte, porque Inês não chegou
a ser mulher legítima do rei, e, mesmo que o fosse, morreu antes de
D. Pedro herdar a coroa. É bem apropriado o verso de Camões:

[... ) a mísera e mesquinha


que depois de ser morta foi rainha.

§ 13. Os túmulos de Alcobaça


O seu túmulo real assenta nos lombos de seis animais que são qua-
drúpedes com rosto humano. As caras desses quadrúpedes agachados
são retratos flagrantes de seis homens, retratos individuais e persona-
. lizados; um dos homens tem barba e os outros cara rapada; alguns
têm cabelo, os outros são calvos. Quem são os retratados? Na época
em que foram esculpidos os túmulos, toda a gente os reconhecia.
Eram certamente os intervenientes no assassínio de Inês, quer como
executores, quer como conselheiros. Uns tinham sido já mortos,
como Álvaro Gonçalves e Pêro Coelho, outros andavam fugidos.
O que nos impõe esta identificação é que o túmulo de D. Pedro
também assenta sobre quadrúpedes, mas, neste caso, meros leões
decorativos. D. Pedro quis que, para toda a eternidade, os assassinos
carregassem o peso da sua culpa e que as gerações presentes e as futu-
ras conhecessem as suas caras.
Os túmulos estão profusamente esculpidos e lavrados. O do rei
narra a história de São Bartolomeu, um rei que foi apóstolo de Cristo

51
e lutou contra os ídolos, tendo por isso sido esfolado, morto e desca- ·
beçado, e que depois de morto, pegando na própria pele e na própria
cabeça como quem pega num saco, se apresentou ao rei que o
matara. Quem sabe se não há nesta escultura uma alusão à sobrevi-
vência espiritual da que «depois de ser morta foi rainha»? Passando
da face lateral para a face frontal, vemos uma rosácea que nos aparece
como o círculo da vida do rei. São três circunferências concêntricas,
que definem três espaços; no primeiro e no segundo a contar de fora
há figuras humanas; no círculo mais interior já não há história, mas
só as pétalas de uma flor dispostas circularmente à volta de um cen-
tro. As figuras humanas constituem cenas sucessivas. A nosso ver, a
rosácea deve ler-se em dois diferentes sentidos: circularmente,
andando à volta, e seguindo as fases históricas evocadas nos baixos-
-relevos; e verticalmente, de cima para baixo, seguindo o diâmetro
que divide ao meio os círculos. Este diâmetro separa as cenas felizes,
à direita (esquerda do observador), das cenas trágicas, historiadas à
esquerda. Cenas históricas e realistas enchem os dois círculos concên-
tricos, à volta de um círculo interior, vazio de história e de tempo.
A leitura vertical seguindo o diâmetro é mais simbólica do que his-
tórica: ao alto, no círculo exterior, um rei em majestade no trono, o
próprio Pedro em vida; no círculo médio, um casal sentado, prova-
velmente Pedro e Inês no apogeu que não tiveram. Em baixo, no
mesmo círculo exterior, o cadáver de Pedro estendido no túmulo,
sobre o qual, no círculo médio, se vê sair uma figura nua que se
liberta da carcaça terrena, que parece a pele de um monstro que
tem por cabeça uma máscara de teatro antigo e que se apoia sobre
dois corpos prostrados. Esta figura extravasa o círculo intermédio e
entra parcialmente no círculo interior, onde (como vimos) não há
história nem viventes, o círculo de vida sobrenatural. Suponho que
é a alma de D. Pedro elevando-se para o Paraíso por sobre o seu
cadáver.
Em resumo: na zona exterior, ao alto do diâmetro, o rei em ma-
jestade e em baixo o rei morto; na zona média, ao alto, o sonho
não realizado da partilha do trono com D. Inês e, em baixo, a alma
do rei ascendendo ao Paraíso, entrando parte dela já no círculo in-
terior.
Se considerarmos agora as figuras das circunferências da direita
para a esquerda (esquerda para a direita do observador), na zona
média temos, no lado direito do diâmetro, D. Pedro acariciando Inês
no ombro; Pedro e Inês juntos e enlaçados numa cena de ternura; e,
como já vimos, Pedro e Inês no trono (como ele sonhou); depois, no

52
lado esquerdo do mesmo diâmetro, o rei D. Afonso dando com o
índex a ordem de expulsão a Inês e uma outra cena que representa
dois corpos em movimento, numa atitude indecifrável. Essa mesma
sucessão de alegria e tristeza repete-se na secção exterior do círculo.
A primeira figura à direita representa Inês com o primeiro filho ao
colo; a segunda, os três filhos do casal, com os pais em segundo
plano; a terceira, Pedro e Inês jogando o xadrez, cujo tabuleiro se
apoia nos joelhos de ambos; na quarta, Inês faz carícias com as mãos
nas coxas de Pedro, que tem a perna traçada, e, finalmente, neste
mesmo lado direito vemos uma figura de homem de gatas e por
detrás dele uma mulher batendo-lhe com a mão na anca. São tudo
cenas da vida familiar e íntima do casal. Saltando por cima do rei no
apogeu (que está, como vimos, no alto), entramos na zona esquerda.
Aí vemos primeiramente um homem de saiote que põe o pé em cima
de uma mulher derrubada; depois a mulher parece ter contra-
-atacado: está de pé, agarra o homem pelo cabelo, arrasta-o e põe-lhe
o pé em cima da perna. Isto parece significar uma luta corpo a corpo
entre Inês e o seu assassino. Em seguida, outro homem, de trajo com-
prido, agarra Inês pelo cabelo e torce-lhe o pescoço. E eis que, no
episódio seguinte, a cabeça de Inês está por terra; o homem de saiote
voltou e degolou-a. Inês desaparece da cena. A seguir vemos um
homem de barba longa agarrado por dois carrascos, um dos quais lhe
enterra o punhal no peito. Podemos imaginar que é o castigo do
assassino de Inês, a não ser que se trate da representação simbólica
da dor que Pedro sofreu com a morte de Inês. Agora, o rei, no
extremo inferior da rosácea, está deitado no caixão, como já vimos,
o caixão onde se lê: «Aqui espero o fim do mundo.» 82
O rei morto aguarda o Juízo Final, em que Jesus Cristo julgará os
vivos e os mortos. Ora o Juízo Final está representado no túmulo de
Inês. Os mortos de várias categorias hierárquicas, desde o papa aos
simples fiéis, abrem a campa dos túmulos perante o Deus-juiz, assis-
tido da Virgem e dos seus anjos e santos. Os justos, com túnicas com-
pridas e mãos postas, encaminham-se pela direita para a porta do
Paraíso; os condenados, nus e com ,gestos descompostos, vão, por
um plano inclinado, cair nas goelas de um monstro, onde são ator-
mentados por Diabos, no canto esquerdo. O Paraíso tem zimbórios
que lembram gomos de laranja, como as guaritas da Torre de Belém,
torres como as da Praça da Senhoria de Florença. A uma janela
geminada que anuncia o manuelino divisam-se dois vultos de bem-
82
Cf. António de Vasconcelos, Inês de Castro, 2. ª ed., Barcelos, 1933, p. 134.

53
-aventurados que mereceram o Paraíso: são Pedro e Inês. Os pecado-
res subiram ao Céu.
Estes túmulos são o documento mais espantoso que a Idade Média
nos deixou sobre o amor de homem e mulher, o amor-paixão, que
não se deixa reduzir à sexualidade. Merecem bem figurar como sím-
bolo a par do romance de Tristão e Isolda. Mas o romance bretão é
indiferente ao sagrado, ou, pelo menos, ao sagrado cristão; apresenta
o amor entre homem e mulher como uma necessidade cósmica fatal,
e por isso à margem ou para além das regras sociais e das normas
mais respeitadoras da honra. Pelo contrário, nos túmulos de Pedro
o
e Inês, sagrado é intrínseco ao amor, que transcende a vida terrena.
Embora tivesse sido uma união clandestina e não sacramentada
durante a vida dos dois protagonistas, e até incestuosa, aparece nos
túmulos com uma dimensão sobre-humana: os dois amantes obtêm,
por direito próprio, um lugar à janela do Paraiso; e aqueles que os
contrariaram despenham-se nas goelas do Inferno.
O rei D. Pedro não teria menos razões que certos poetas medievais
para dizer mal de Deus. Mas a sua vingança foi pôr o Céu e o Inferno
ao serviço da sua paixão. É a mais escandalosa afirmação dó direito
do amor carnal a ter um lugar na escala cristã que abrange este
mundo e o outro. É a sacralização do desejo.
Esta concepção opõe-se à de Dante, na Divina Comédia, que
coloca Francesca e Paolo no Inferno, o casal de amantes adúlteros.
O amor e a morte associam-se tanto na estória de Pedro e Inês
como na de Tristão e Isolda. Em ambos os casos o pecado é abolido,
se é tjue chegou a existir. Mas a morte do casal bretão evoca a flo-
resta e o mar, o ciclo da natureza que morre para renascer. Pelo con-
trário, a de Pedro e Inês é um momento da teologia cristã posta ao
serviço do amor entre homem e mulher. É a sobrenaturalização do
amor natural. Considerada assim, a escultura dos túmulos é uma
blasfémia que certamente não seria tolerada na época da Inquisição.
Mas, vista por outro lado, mostra que nada se concebia fora da
crença cristã, mesmo o que constituía um excesso ou uma anomalia
em relação à norma social.
De qualquer modo, é curioso registar que um dos grandes símbo-
los do amor, do amor romântico e ocidentàl, do amor dominador,
destruidor e individualista, teve lugar e expressão em Portugal. Pedro
e Inês vão ser um dos temas da literatura portuguesa que passarão as
fronteiras.
Os poetas portugueses aproveitaram este tema para a expressão do
seu sentimentalismo: é o caso de Garcia de Resende, no seu rimance

54
à morte de Inês de Castro (no Cancioneiro Geral de 1516); o de Antó-
nio Ferreira, que sobre ele compôs uma peça de teatro (Castro, que
foi imitada no século XVIII por Domingos dos Reis Quita); e o de
Camões, que sobre ele escreveu alguns dos versos mais plangentes de
Os Lusíadas. Entrou também na literatura de cordel. Mas a morte
pela espada, crueldade do destino, ou imposta pela razão de estado,
dá a este caso um desenlace rectilíneo que parece mais próprio do
carácter castelhano. É curioso que Fernando Pessoa, cujo ponto de
vista é muito mais espiritual que sentimental, não inclua Pedro e Inês
entre os símbolos da Mensagem.
O caso de Pedro e Inês não é singular na Espanha medieval.
A Idade Média da Europa ocidental oferece outros casos célebres,
como o de Heloísa e Abelardo, e já vimos, logo no princípio do
Reino, a importância dos amores de D. Teresa e do conde D. Fer-
nando na tradição épica de Afonso Henriques, ao lado de outros
referidos nos livros de linhagens. E D. Fernando, o filho de D. Pe-
dro, incompatibilizou-se com o povo do Reino e com uma parte da
sua nobreza por causa de uma mulher, Leonor Teles, com quem se
casou, apesar de ela já ser casada.
É certo que na sociedade cristã houve sempre uma reserva em rela-
ção à prática do amor sexual. O estado de castidade era considerado
por São Paulo superior à união carnal entre homem e mulher, mesmo
quando consagrada pelo casamento. Noutras religiões, e nomeada-
mente entre os Albigenses, houve a mesma atitude, que se exprime
também em obras literárias de grande popularidade, como a
Demanda do Santo Graal. Todavia, as transgressões deste espírito
são frequentes e têm por vezes um ar de desafio, mesmo por parte
dos que deviam dar o exemplo, como os clérigos.

§ 14. Amor humano e ascese cristã


O contrapolo deste sentimento de amor - a ascese pela casti-
dade - nunca deixou de estar presente no espírito da cristandade. Na
geração dos filhos e netos de D. Pedro, esta presença é muito visível.
A família real, na geração seguinte à de D. Pedro, formada por
seu filho D. João, por D. Filipa de Lencastre e por seus netos, é
apresentada, quer por Zurara, na Crónica da Tomada de Ceuta, quer
por D. Duarte, no Leal Conselheiro, como uma família exemplar e
onde nunca se pressente o cheiro de :Pros. O mesmo Zurara, no pane-
gírico do infante D. Henrique na Crónica dos Feitos da Guiné,

55
escrito antes da morte do biografado, declara, como se ele tivesse já
morrido, que «virgem o comeu a terra». Seja isto verdade ou não, é
significativo que o Infante o tenha feito crer ao seu cronista. Seu
irmão, o infante D. Fernando, o Infante Santo, possuía esta virtude
no mais alto grau, segundo o seu biógrafo Fr. João Álvares: «Não
somente foi virgem, mas ainda o foi na alma mui inteiramente»
(cap. v). Abstinha-se de viandas e cheiros que pudessem provocar
actos luxuriosos.
D. Duarte, no Leal Conselheiro, mostra-se muito escrupuloso em
questões sexuais. Conta (cap. 19) que, estando doente de «humor
merencorico», alguns médicos («físicos») o aconselharam «que bebesse
vinho pouco aguado, dormisse com mulher e deixasse grandes cuida-
dos». Mas, diz D. Duarte, estes conselhos «todos desprezei, havendo
toda minha esperança no Senhor e em sua mui santa madre» 83 •
D. Duarte não apenas se afasta da deleitação sexual (que os médi-
cos lhe aconselharam por razões higiénicas), como expressamente
condena o amor-paixão, a que chama «os amores». O que«[ ... ] por
eles principalmente se deseja [é] sobre todos ser amado, haver e
lograr sempre mui chegada afeição com quem assim ama. E muitas
vezes, como cego ou forçado, não cura de seu bem [da pessoa que
ama] nem teme o mal. [... ] E assim não lhe quer em tal tempo [no
tempo do desejo] bem, nem deseja de lho fazer, pois queria seu con-
trario, se doutra guisa não pudesse seu desejo cumprir» 84 • Ou, por
outras palavras, a pessoa que ama nem sempre quer o bem da pessoa
amada, pois está disposta a causar-lhe prejuízo para satisfazer o pró-
prio desejo. Em conclusão:
Os amores, em todo o caso hajamos por duvidosos se tanto
crescem que ceguem ou forcem, porque se deixarmos de nos reger
por direita razão e bom entender, que valeremos? [... ]Convém
muito dessa prisão se guardarem os que virtuosamente desejam
viver 85 •

Esta é a doutrina compatível com a ordem social e com a estabili-


dade da família que a Igreja sempre ensinou. Mas a doutrina mais
interior e mais ascética da Igreja é a doutrina da virgindade ou da
perfeita castidade, que é dada como regra aos sacerdotes e aos mem-
bros das ordens religiosas, inclusive os das ordens militares.
83 D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. por Joseph M. Pie!, 1942, cap. 19, p. 71.
84 Id., ibid., cap. 44, p. 176.
85
Id., ibid., cap. 44, p. 178.

56
Como vamos ver, a Demanda do Santo Graal, que tem uma men-
sagem de certo modo esotérica, vai ao extremo quanto a este ponto.
Galaaz mereceu alcançar a graça do Santo Graal porque conseguiu
preservar a sua virgindade através das suas variadas aventuras cava-
leirescas. E essa virtude ressalta tanto mais quanto Galaaz é um filho
natural, concebido por Lançarote do Lago graças ao sacrifício da vir-
gindade da filha do rei Pelles. Segundo a Crónica do Condestabre,
Nun' Álvares «usava muito de ouvir e ler livros de estórias; especial-
mente usava mais ler a estória de Galaaz em que se continha a suma
da Távola Redonda; e porque em ela achava que, por virtude de vir-
gindade que em ele houve e em que perseverou, Galaaz acabara
grandes e notáveis feitos que outros não puderam acabar. E ele de-
sejava muito de o parecer [de se parecer com ele] em alguma guisa,
e muitas vezes em si cuidava de ser virgem, se a Deus prouvesse.
E por isto ele era mui afastado do que lhe seu pai falara em jeito
de casamento» 86 •
O jovem Nun' Álvares já se parecia com o herói da estória em ser
filho bastardo, como aliás o eram os seus 19 ou 20 irmãos, que o pai,
prior da Ordem do Hospital, e portanto canonicamente impedido de
manter relações conjugais, tivera de diversas mulheres. Mas não lhe
foi dado satisfazer o seu desejo de emparelhar com Galaaz na virtude
da virgindade, porque o velho prior, de quem ele era um dos últimos
rebentos, fez pressão para o casar com uma rica herdeira de Entre
Douro e Minho, de quem Nun' Álvares teve uma filha, que veio a ser
a primeira duquesa de Bragança. Apesar deste casamento, diz a
citada crónica:
O Condestabre foi mui casto de vontade e ainda de feito, por-
que ele com outra mulher nunca dormiu senão com a sua, embora
casasse muito mancebo e sua mulher bem manceba e assaz de bem
parecente mulher. E ainda com sua mulher, depois que ele veio ao
trintário [exéquias do trigésimo dia após o falecimento] de el-rei
D. Fernando[ ... ] nunca depois com ela dormiu, e isto com grande
pena, por ser homem novo, mas tudo havia por bem e grande pra-
zer por servir a Deus 87 •
Nun' Álvares é o mais célebre exemplo deste ideal ascético entre os
cavaleiros da sua época. Mas não é o único. Zurara, o cronista da·
86
«Crónica do Condestabre de Portugal», in Chronica. do Infante Santo D. Fer-
nando e Outros Subsídios para o Estudo da História da Literatura Portuguesa, por
Mendes dos Remédios, 1911, Coimbra, cap. 4, p. 9.
87
Id., ibid., cap. 80, p. 206.

57
nobreza e seus ideais, aponta na Crónica de D. Duarte de Meneses
um cavaleiro chamado Airas da Silva, que morreu em combate «e foi
achado que morreu virgem e com um sedenho cinto a carom de carne
[... ] eu creio piedosamente que ele seja contado na companhia dos
mártires bem aventurados» 88 • Zurara parece especialmente preocu-
pado com este problema, pois, como vimos, é ele também que fala
da suposta virgindade do infante D. Henrique.
Na corte portuguesa, o valor da castidade, ou a sua afectação, per-
dura durante toda a dinastia de Avis. Rui de Pina diz de D. Afonso V
que foi «de mui louvada continência, porque havendo não mais de
23 anos ao tempo que a Rainha sua mulher faleceu [... ] foi depois
acerca de mulheres muito abstinente, ao menos cauto» 89 , alusão ao
dito latino: Si non castes, tamen caule.
O último representante desta linhagem espiritual será D. Sebas-
tião, «O Nun' Álvares póstumo», como disse Oliveira Martins, e que
Camões censurará por preferir a companhia da «bela forma hu-
mana» à caça do javali. Esse é de crer que enterrasse a virgindade nos
campos de Alcácer Quibir.
Em que medida a influência dos Templários metamorfoseados em
cavaleiros da Ordem de Cristo contribuiu para este ideal no tempo dos
primeiros reis de Avis? Deixamos a pergunta à espera de resposta.

§ 15. As origens modernas do romance


A palavra portuguesa «romance», no sentido que tomou no
século XIX e conservou até hoje, é um galicismo semântico. Anterior-
mente, «romance» significava na Espanha estória em verso, rimada
na língua vulgar. O falar românico do povo usado nessas estórias
contrapunha-se ao falar latino dos clérigos. Mas esta palavra adqui-
riu em Portugal o sentido de narrativa de ficção em prosa, por
influência do francês roman. O antigo significado não desapareceu.
Só que passou a haver duas palavras homónimas. Para evitar equívo-
cos designamos o romance rimado pela palavra «rimance» e reserva-
mos a sua variante para a ficção em prosa, como já explicámos em
obra anterior. Nos séculos XVI e xvu, o nome que se dava em portu-
guês e castelhano às estórias em prosa de amor, aventuras e seme-
88
Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, ed. por Larry King, 1978,
p. 262.
89
Rui de Pina, Chronica d'E/-Rei D. Affonso V, ed. por José Saraiva, 1901,
cap. 213, pp. 151-152.

58
lhantes era o de «novelas», nome de origem italiana. Este significado
da palavra ainda hoje subsiste em castelhano.
A novela é um género em prosa, mas tem origem em narrativas
jogralescas que eram versificadas e cantadas. Vimos em obra anterior
que o repertório jogralesco era muito vasto e procurava corresponder
a curiosidades diversamente orientadas.
Quando, no século XII, aumentou o número de· pessoas alfabetiza-
das, as estórias dos jograis foram postas em verso escrito para lei-
tura, como é o caso de várias narrativas de Chrétien de Troyes, com-
postas no século xn. O verso narrativo é ainda um atestado de
oralidade. O livro não se destinava só aos leitores, mas também aos
ouvintes, que assistiam em grupos à sua leitura em voz alta.
Daí que a prosa tenha herdado desses poemas narrativos as interpe-
lações aos ouvintes, exclamações, perguntas supostas de quem ouve,
tanto mais que a prosa também era declamada em assembleias. Exem-
plos extraídos da versão portuguesa da .Demanda do Santo Graal:
Que vos direi?
E sabei que se vós estivésseis naquele tanto ouvir, que vene1s
chorar muitos homens bons e muitos bons cavaleiros.

E se alguém me perguntar porque em sonho fazia tal dó, eu lho


direi: que isto foi uma grande visão que viu, e direi-vos qual [... ]

Na prosa histórica de Fernão Lopes e, já no século XVI, na Menina


e Moça há ainda profundas marcas de oralidade.
Os poemas narrativos, como os de Chrétien de Troyes, inspiraram
textos em prosa, e assim nasceu a novela. A novela contém a infor-
mação do poema, mas perde muito da sua forma artística.
Os temas de que tratava Chrétien de Troyes no século XII conste-
lavam-se em grande parte à volta do rei Artur e dos seus cavaleiros,
que se reuniam ritualmente em torno de uma mesa redonda. No prin-
cípio do século seguinte, Robert de Boron, na Estoire du Graal, reu-
niu os temas dispersos de Chrétien e acrescentou a esse fundo elemen-
tos da lenda cristã transmitidos por evangelhos apócrifos. Na sua
pena, a estória arturiana começou a ter um novo sentido de conjunto.
Robert de Boron escrevia em verso, mas um seu sucessor escreveu
novamente a estória toda em prosa, que os leitores seus contemporâ-
neos atribuíram erradamente ao primeiro Boron. A estória em prosa
do Pseudoboron ficou sendo a grande com,pilação da «matiere de
Bretagne» em torno de um núcleo central.

59
Escrevia um poeta francês do século xn, referindo-se às estórias
que se ouviam no seu tempo:

Ne sont que trois matieres à nu! homme entendant


De France, de Bretaigne et de Rome la grant.

Estes versos são um resumo feliz, embora incompleto, do fundo


europeu de ficções e mitos: «France», isto é, as canções de gesta em
torno de Carlos Magno e dos doze pares de França, que têm uma ori-
gem germânica (franca); «Rome», isto é, as estórias que, através dos
livros da antiguidade e seus intermediários, chegaram, como vimos,
aos jograis; «Bretaigne», as que se constelavam em torno do rei
Artur, que foi o último chefe dos Celtas, vencido pelos Saxões no
século v. Estas três matieres correspondem aos três fundos étnicos
que nos últimos três mil anos cobriram o chão da Europa: os Germa-
nos, os Latinos e os Celtas, várias vezes vencidos, mas nunca comple-
tamente extirpados.

§ 16. A matéria de Bretanha


A matéria de Bretanha envolve-nos num mundo encantado de
mar, floresta e nevoeiro, de fadas, filtros mágicos e metamorfoses.
É uma atmosfera onírica, que contrasta com o realismo da matéria
germânica (Niebelungos, sagas, Chanson de Roland, Cantar de Mio
Cid) ou dos poemas homéricos. O amor de homem e mulher tem na
matéria céltica uma importância que nunca tivera noutras literaturas,
como o mostra a estória de Tristão e Isolda, que é a mais forte estória
de amor de todos os tempos.
Os temas célticos - como o do feiticeiro Merlim, que acompanha
a infância do rei Artur; a espada cravada na pedra, que será arran-
cada pelo homem providencial; Lançarote, filho da Dama do Lago,
o cavaleiro mais forte do mundo, que amará a mulher mais bela do
mundo, a rainha Genebra, mulher do rei Artur, etc.- cruzam-se,
por um lado, com os dos trovadores e, por outro, com temas cris-
tãos. Lançarote, tendo sido protagonista de um amor fatal e involun-
tário, como Tristão, tornar-se-á um exemplo do amor trovadoresco,
como Amadis. Os temas cristãos contribuem com um personagem
que a matéria de Bretanha, na sua primeira fase, não conhecia, José
de Arimateia, arrancado às páginas do Evangelho apócrifo de Nico-
demus (século v) e talvez a outros.

60
É com José de Arimateia que vem o tema da escudela, ou vaso, ou
graal, onde este santo homem recolheu o sangue de Cristo crucificado
e também o da lança com que Longinos golpeou o corpo do Salva-
dor, a lança donde goteja o sangue.
Com a entrada destes temas, o significado da estória modifica-se
de versão para versão. Tendo começado por ser um ciclo de aven-
turas cavaleirescas de homens de guerra perdidos na floresta, na
ausência do seu rei, que jaz adormecido na ilha dos mortos, tor-
nou-se pouco a pouco uma busca incessante, através de perigos e
de provas, de um graal perdido, que no momento do encontro se
revela ser a passagem à vida mais perfeita a que tende a existência
terrestre.

§ 17. O ciclo do Santo Graal


A estória do rei Artur foi conhecida em Portugal na sua versão em
prosa atribuída a Roberto de Boron, que consta, como já foi dito, de
três partes: 1) Estória de José de Arimateia; 2) Estória de Merlim;
3) Demanda do Santo Graal. Tudo nos leva a crer que o ciclo com-
pleto foi conhecido em França pelos acompanhantes do infante
D. Afonso (filho de D. Afonso II) e que um português o traduziu em
primeira mão para uma língua hispânica. O português antecipa-se ao
castelhano. Assistimos à estória do Graal antes do seu desapareci-
mento, que deu origem às buscas dos cavaleiros do rei Artur. José
recolheu num vaso, ou graal, o sangue das chagas de Cristo crucifi-
cado e foi posto na prisão pelos Judeus. Ali permaneceu· durante
trinta e seis anos, até que Vespasiano, o imperador de Roma, veio
conquistar Jerusalém e se converteu à fé cristã. Liberto, José reúne
uma pequena comunidade de cristãos pobres que se agrupa à volta de
uma arca dentro da qual está guardado e escondido o Santo Graal,
como outrora a Arca da Aliança era guardada e protegida pelos com-
panheiros de Moisés. Com esta comunidade de pobres chega José ao
Paço Espiritual, assim chamado por Daniel quando Nabucodonosor
o prendeu. José trazia consigo um filho ainda menino chamado Jose-
fes, e foi esse menino que Deus pessoalmente consagrou sacerdote e
bispo, dizendo:

- [... ] e tu serás após mim o maior bispo de meus novos cris-


tãos e outrossi como o meu servo Moisés era aguardador e traze-
dor dos filhos de Israel por o poder que lhe eu dera, bem outrossi

61
serás guardador deste novo povo, ca eles aprenderão de ti e da tua
boca como me devem servir e como devem guardar a nova lei e
como devem crer a nova fé [Josep Abarimatia, p. 116].
A comunidade dos pobres guiada por José e por Josefes, com a
Arca, atravessa terras e mares no meio de aventuras e maravilhas, até
chegar à'rnglaterra, que é a «terra prometida». Os Ingleses são con-
vertidos à nova fé pela pregação ou pela guerra. Nos lugares áridos
e desertos, os seguidores de José são alimentados com a presença do
Santo Graal, como outrora os Israelitas o eram pelo maná no
deserto. A Inglaterra é convertida à <<nova fé», mas, após a morte de
José e de Josefes, os homens perdem-se do Graal, que fica encerrado
num castelo da Escócia, em Corbenic, à guarda do Rei-Pescador,
descendente de um dos companheiros de José. O mesmo José tivera,
por ordem de Deus, um filho chamado Galaat, e é um descendente
deste que, entrando na câmara onde vive o Rei-Pescador, inaugurará
os tempos novos:
[... ] ali serão as grandes maravilhas descobertas e as cousas ter-
reais se tornarão celestiais [Josep Abarimatia, p. 160].

Esta é em breve a substância da primeira parte da estória do Santo


Graal, segundo o texto ou cópia assinada por «João Sanches, mestre-
-escola de Astorga», e datado de 1314. O texto apresenta-se como
cópia de um original devido a João Vivas, ou Bibas, que, por sua vez,
teria traduzido do francês um texto de Robert de Boron, ·que teria
traduzido do latim o livro, ditado pelo próprio Deus a um ermitão,
aparecendo-lhe entre trovões e relâmpagos, na noite de quinta para
sexta-feira da Paixão. Quem quer que inventou o livro, apresenta-o
como obra sagrada que reproduz a própria palavra de Deus 90 •
Na última página da obra lemos o seguinte:
E saibam todos aqueles que esta estória ouvirem que esta estória
era juntada com a de Merlim na qual é o començamento da Mesa
Redonda e a nascença de Artur e començamento das aventuras.
Mas por para nosso livro não ser mui grande repartimo-lo cada um
em sua parte, porque cada um por si serão melhores de trazer.
Esta indicação mostra que em começo do século XIV existia em
Portugal a tradução completa do ciclo do Graal, isto é: um José de
90
The Portuguese book of Joseph of Arimathea, edição paleográfica, de Henry Hare
Carter, Valência, 1967.

62
Arimateia, um Merlim (com o nascimento do rei Artur); existia tam-
bém a Demanda do Santo Graal, pois a cópia do século xv foi feita
sobre um texto anterior. E mostra ainda que o livro era muito lido,
transportado de um lado para o outro, razão por que se justificava
a sua repartição em volumes mais leves e portáteis.
Esta difusão dá-se em toda a Espanha, pois também existem ver-
sões trecentistas em castelhano; o Prof. Rodrigues Lapa, examinando
umas e outras na Demanda do Santo Graal, concluiu que a versão
castelhana dessa obra foi feita sobre a portuguesa, que pode ser ainda
dos fins do século XIII 91 •
Na Demanda do Santo Graal 92 assistimos ao cumprimento das
profecias que lemos no Josep Abarimatia. Estamos na corte do rei
Artur, durante a festa do Pentecostes (dia em que o Espírito Santo
desceu como fogo sobre os apóstolos). Todos esperam o cavaleiro,
que virá sentar-se à Mesa Redonda na «cadeira perigosa», onde
nunca ninguém se sentara: uma inscrição que apareceu então na
cadeira marcava para aquele dia a chegada do seu ocupante.
Rei Artur, que prezava o seu nome de Rei Aventuroso, nunca se
sentava à mesa sem que antes tivesse sucedido alguma estranha aven-
tura. Naquele dia foi uma pedra que apareceu flutuando sobre o
mar como madeira, trazendo cravada uma espada, cuja bainha
vinha pelo ar. Só o melhor cavaleiro do mundo seria capaz de a reti-
rar, segundo uma inscrição. Mas nenhum dos presentes o conseguiu,
nem mesmo Lançarote do Lago, que todos julgavam a flor dos cava-
leiros.
Quando afinal se sentam à mesa, olhando todos para a cadeira
perigosa e conversando sobre as letras que nela tinham aparecido,
fecharam-se, sem se saber como, as portas do paço. Um raio de sol
miraculoso ficou a alumiar os cavaleiros, que entretanto tinham per-
dido a fala e se entreolhavam espantados. E eis que Galaaz entrou,
tão miraculosamente como o raio de sol, sem abrir portas nemjane-
las. Atrás dele um ermitão abriu a porta, entrou e disse:

- Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem


da alta estirpe do rei David e de José de Arimateia, por quem as
maravilhas desta terra e das outras serão excedidas.
91
A precedência da redacção portuguesa foi confirmada pelos estudos do Prof. Ivo
de Castro; cf. nomeadamente Sobre a Data da Introdução na Península Ibérica do Ciclo
Arturiano da Post-Vu/gata, sep. do Boletim de Filologia, t. xxv111, 1983.
92
A Demanda do Santo Graal, ed. por Augusto Magne, Rio de Janeiro, 3 vols.,
1944.

63
E Galaaz sentou-se na cadeira perigosa.
Rei Artur levou-o depois à praia, onde ele tomou e cingiu a espada
que aparecera no mar.
Os cavaleiros da Mesa Redonda achavam-se, enfim, pela primeira
vez reunidos em número completo. O último a chegar foi Tristão,
numa corrida, porque o tinham demorado os encantos da rainha
Isolda.
Quando, à noite, tinham acabado de se sentar para a ceia, um tro-
vão espantoso abalou o paço, que parecia ruir. As luzes apagaram-se,
mas uma claridade entrou muito mais clara. Todos se sentiram cheios
da graça do Espírito Santo. Estavam outra vez sem fala e olhavam
uns para os outros maravilhados, porque se viam incomparavelmente
mais formosos do que antes eram.
E, estando nisto, entrou no paço o Santo Graal: vinha coberto de
veludo branco, pelo ar, como transportado por mão invisível. Espa-
lhava um perfume como se tivesse todas as especiarias do mundo reu-
nidas. Percorreu as mesas e cada cavaleiro recebeu o manjar que
desejava em seu coração. Quando todos foram fartos, saiu sem que
ninguém pudesse dizer por onde nem para onde.
Naquela mesma noite, ao levantarem-se da mesa, todos os cavalei-
ros juraram partir e não repousar enquanto não voltassem a gozar da
incomparável presença do Santo Graal. Cheio de desgosto e de funes-
tos pressentimentos, o rei Artur acompanhou os seus cavaleiros até à
floresta, onde eles se internaram, dispersando-se.
A floresta interminável e enfeitiçada é, depois, o teatro das faça-
nhas dos cavaleiros, submetidos a múltiplas provas, de que se saem
melhor ou pior.
O diabo em pessoa, sob a figura de uma donzela formosíssima e
desamparada no ermo, tentou com a chave da piedade entrar no cas-
telo da virgindade de Perceval. Mas uma voz desce do Céu e a visão
dissipa-se ao sinal da Cruz que faz o cavaleiro. Boorz de Gaunes é
também amparado na cruel prova que defronta: seu irmão Leonel,
perseguido, e uma donzela raptada, correndo em direcções opostas,
imploram a sua ajuda. Boorz, perplexo, resolve defender primeira-
mente a donzela, rezando a Deus que não deixe entretanto morrer
Leonel. Salvo milagrosamente e enfurecido, Leonel quis matar o
irmão quando este lhe apareceu. Boorz recusa bater-se com ele e
deixa morrer um ermitão e um cavaleiro da Mesa Redonda que vie-
ram defendê-lo. Quando, por fim, está prestes a ser morto, levanta
a espada, mas uma chama desce entre eles, enquanto uma voz vem
do Céu: «- Não o firas, que o matarás!»
64
·Outros cavaleiros são menos felizes no resultado das provas. Erec,
o cavaleiro que não mente, foi levado por uma donzela a jurar que
satis(aria um pedido que ela havia. de lhe apresentar oportunamente.
É conduzido a um castelo onde tem a alegria de rever uma irmã e
salvá-la da opressão de um cruel senhor. A donzela apresenta então
o seu pedido: que Erec degole essa irmã querida. E Erec, chorando
desesperadamente, fechando o coração às súplicas da irmã, cumpre
a promessa, para não ser perjuro. Pouco tempo depois, a morte veio
libertá-lo da aflição em que caiu.
Desastrado é igualmente o destino de Galvão, o sobrinho do rei
Artur. Antes de partir para a Demanda, como prenunciara uma don-
zela, matou por suas mãos grande número de cavaleiros da Mesa
Redonda, quase sempre sem os reconhecer. Em certos casos é uma
fúria pecaminosa, mas na maior parte das vezes é o simples acaso que
o leva a este resultado.
Entre todos os cavaleiros, pela virtude e pela graça que o acompa-
nha, brilha Galaaz. Como homem de armas não tem par: é capaz de
vencer um exército e nenhum cavaleiro resiste ao seu primeiro toque.
Apesar disso, desdenha os feitos de armas, recusa as justas que lhe
oferecem quando são simples provas de força entre cavaleiros, sem
mesmo se importar de passar por cobarde. Leva uma áspera vida de
penitência, com uma estamenha grosseira sobre a pele, e guarda
como um tesouro precioso a sua virgindade.
Galaaz é inumanamente perfeito. Desempenha sem uma hesitação
o seu papel num plano providenciaL Filho bastardo de Lançarote e
neto do rei Peles, o Rei-Pescador do castelo de Corbenic, onde está
o Santo Graal desde o tempo de José de Arimateia, antepassado de
Peles, é, como Jesus Cristo, da linhagem de David. A espada foi-lhe
trazida, por sobre o mar, numa pedra; o escudo estava guardado
para ele desde Josefes, o santo bispo filho de José de Arimateia; um
cendal branco recoberto de uma cruz do sangue sempre fresco do
mesmo Josefes dá-lhe uma virtude mágica. Desde séculos, encanta-
mentos aguardam que Galaaz os desfaça. O rei Salomão soube, por
revelação de Deus, que um seu descendente descobriria o segredo do
Santo Graal e mandou construir pará ele uma nau onde pôs uma
cama feita da Árvore da Vida do Paraíso. Sobre a cama colocou uma
espada destinada a Galaaz, a espada da estranha cinta. A nau de
Salomão aguardará o predestinado para o conduzir, através dos
mares, a novas aventuras.
O papel providencial de Galaaz é claramente definido por um
ermitão, que compara a sua vinda com a vinda de Cristo:

65
E por isto deve homem ensinar vossa vinda como a de Jesus
Cristo, quanto em semelhança, que não por alteza [esta restrição
não será uma interpolação cautelosa?]. E, assim como os profetas,
muito tempo antes da vinda de Jesus Cristo, profetizaram a sua
vinda e que ele livraria o povo dos sofrimentos do Inferno, bem
assim profetizaram os santos ermitães e também muitos homens
bons a vossa vinda muito tempo antes que vós viésseis.

Intermináveis como a floresta são as aventuras que os cavaleiros lá


encontram: combates inumeráveis, castelos de tiranos opressores,
fontes mágicas onde só os castos conservam as forças, etc. A mais
estranha é a da «besta ladradora», bicho com pés de veado, cauda de
leão, corpo de leopardo, cabeça de serpente, bramindo como toda
uma matilha de cães; fora gerada por uma donzela em coito com o
Diabo. É afinal encurralada e morta por Perceval, Galaaz e Pala-
mades.
Os cavaleiros nem sempre atinam com o sentido das aventuras que
lhes ocorrem; mas de cada recanto da floresta surde um ermitão,
geralmente um antigo cavaleiro retirado à vida solitária, mais fami-
liarizado com as coisas espirituais, que explica o significado de cada
aventura ou maravilha.
O Santo Graal continuava guardado no castelo de Corbenic, que
se tornava invisível àqueles que Deus não queria que lá chegassem.
Ali, o velho rei Peles, há muitos anos tolhido com o golpe sempre a
sangrar que lhe fez nas duas coxas o «cavaleiro das duas espadas»,
vive na própria câmara do Santo Graal, alimentando-se da graça
dele. Dos cento e cinquenta cavaleiros da Mesa Redonda apenas doze
conseguem chegar ao castelo de Corbenic. Galaaz entra na câmara do
Graal: vê sobre uma mesa de prata o santo vaso e por cima deste,
escorrendo sangue, a lança com que Jesus fora ferido na Cruz. Obe-
decendo a uma voz do Céu, toma o vaso nas mãos e derrama três
gotas do sangue divino sobre as coxas do rei, que logo sararam.
À noite, a voz do Céu chama os doze cavaleiros à câmara do Santo
Graal. Sobre a mesa de prata encontram eles um homem vestido de
branco, de rosto tão resplandecente que olhos mortais o não podiam
fitar. Enquanto o próprio Deus lhes distribuía a comunhão, uma ale-
gria celestial apodera-se dos cavaleiros. Uns para os outros louvam o
bom manjar, não terreal, mas celestial, que os enche de «alegria e
prazer e graça espiritual».
A partir deste dia nunca mais o Santo Graal foi visto em Ingla-
terra. Logo começou para este reino uma era de desastres e perdição.

66
Entretanto, Galaaz, com Perceval e Boorz, são conduzidos à barca de
Salomão, dentro da qual o Graal os esperava e com ele são levados
numa longa viagem para Sarraz, onde está o Paço Espiritual. Josefes,
filho de José de Arimateia, que foi o primeiro bispo, sagrado pelo
próprio Deus, celebra missa acolitado pelos anjos, não corporal-
mente, porque há muito subiu à vida perdurável, mas espiritual-
mente, de maneira só visível aos três cavaleiros que foram admitidos
à graça permanente do Graal. Durante esta missa, Galaaz viu de
novo o santo vaso descoberto - «viu abertamente o que língua mor-
tal não poderia dizer, nem coração pensam. E logo rogou a Deus
que, no meio daquela alegria em que estava, o levasse desta vida ter-
rena à vida celestial. Ajoelhado, o corpo caiu-lhe por terra, enquanto
a alma lhe saía levada pelos anjos com grande alegria. Depois, uma
mão baixou do Céu e levou o Santo Graal.
Perceval sobreviveu ainda um ano numa ermida. Boorz, mortos os
companheiros, regressou ao reino de Logres, onde só encontrou a
devastação e a morte.
Lutas exterminadoras aniquilam o reino do rei Artur. Lutas, pri-
meiro, entre o rei e o seu melhor vassalo, Lançarote, por se terem
descoberto os amores deste com a rainha. Aqui morrem alguns dos
melhores cavaleiros da Mesa Redonda, longamente, dolorosamente
chorados pelo rei Artur e por toda a sua corte, num pranto prodi-
gioso. Depois, durante uma expedição que o rei Artur empreende
contra o imperador de Roma, é seu sobrinho Morderet, regente do
reino na sua ausência, quem o atraiçoa para lhe roubar o trono e a
mulher. A batalha converteu-se numa carnificina, de que só quatro
cavaleiros escaparam, entre eles, ferido, o rei Artur.
Rei Artur, ferido de morte, encaminhou-se para o mar e ficou
sozinho na praia. Assim como a sua vida fora toda em aventura, quis
que de sua morte ninguém soubesse ao certo a verdade. Mas um com-
panheiro que o espreitou de longe viu chegar uma barca com fadas,
onde o rei se meteu com armas e cavalo. O que depois foi feito da
barca e do rei Artur ninguém o soube.
A Demanda e o Josep Abarimatia são peças do mesmo ciclo a
que pertencia também o Merlim, como já vimos. As proezas de
Galaaz são anunciadas no Josep Abarimatia. O «povo» de José parte
do Paço Espiritual, em Sarraz, aonde regressa Galaaz; a nau de Salo-
mão, reservada para o Eleito, «que dará cima às aventuras», figura
nas duas partes, etc. E toda esta fábula é, no conjunto e nos por-
menores, uma construção simbólica. A sua estrutura geral representa
uma ideia muito definida; e as diversas partes que a compõem

67
correspondem, por sua vez, a ideias parcelares componentes do todo.
É um simbolismo que se poderia com propriedade chamar geomé-
trico, que nos lembra o simbolismo também preciso das catedrais
góticas, em que a planta da construção, o número de naves, de colu-
nas, de portas, de arquivoltas, etc., têm um significado simbólico
definido pelos teólogos.
Este rigor na construção não é perfeito. Há nela certas incoerên-
cias que devem interpretar-se como vestígios de_ versões anteriores da
mesma «matéria», que teve sucessivas fases.

§ 18. Qual era o simbolismo da Demanda?


Tal como figura na versão em prosa do Pseudoboron, o ciclo do
Graal, segundo observa o P. e Pierre David num estudo penetrante 9 3,
tem três raízes tradicionais. Primeiramente, como já vimos, o tema
bretão de Artur e de Merlim: Artur é o herói celta já referido por
Geoffroi de Monmouth (Historia Regum Britanniae) e por Wace
(poema Brut) na primeira metade do século XII. Os primeiros traços
desta lenda encontram-se num historiador do século IX, Nénio. Em
segundo lugar, o tema de Lançarote do Lago, que também radica na
mitologia céltica. Lançarote, criado por uma fada das águas, é o li-
bertador de uma rainha raptada pelo rei do mundo dos mortos. Em
terceiro lugar, o mito cristão do Graal, que é o desenvolvimento de
livros apócrifos do Novo Testamento. O vaso em que José de Ari-
mateia recolheu o sangue de Cristo e a lança de Longinos com
que Cristo foi ferido na Cruz eram relíquias conservadas em vários
santuários. Os desenvolvimentos mais ou menos romanescos do que
sucedeu logo após a morte de Jesus, a intervenção de José de Ari-
mateia e a vingança que sofreram os Judeus em consequência do
deicídio são desenvolvidos no Evangelho apócrifo de Nicodemus
(século v) e noutro texto mais recente, denominado A Vingança do
Salvador.
O ciclo do Graal resulta pois da tradição céltica e arturiana inte-
grada e organizada dentro de uma especulação cristã.
Mas a estas deve acrescentar-se uma quarta fonte: a do lirismo tro-
vadoresco. Os heróis das estórias, como Lançarote ou Tristão, pare-
cem por vezes a exemplificação do amador ideal tal como o conce-
biam os trovadores.
93
Pierre David, Sentiers dans.la forêt du Saint Graal, Coimbra, 1945.

68
Neste processo de integração é possível distinguir fases ou versões
sucessivas em que o carácter ascético e o significado religioso do
herói se vai tornando cada vez mais acusado, até culminar na figura
de Galaaz, herói virgem que realizará o desígnio messiânico e reden-
tor esperado desde o tempo de José. A versão em prosa erradamente
atribuída a R. Boron, donde foi traduzido o texto português do Josep
Abarimatia e da Demanda do Santo Graal, pertence a esta última fase,
designada por P. David como a do «Paço Espiritual».
O plano e o simbolismo da versão chamada o Paço Espiritual são,
à primeira vista, muito claros: representa ela as provações através das
quais o cristão. tem de merecer a vida celestial. A floresta cheia de
ciladas e tentações é o mundo; os cavaleiros são as almas. Muitos são
os chamados e poucos os escolhidos, de acordo com a frase evangé-
lica.
O autor ensina uma doutrina moral, que se caracteriza por uma
posição em face dos ideais de cavalaria, ou, mais exactamente, os da
classe guerreira e os da vida de corte. Condena a cavalaria pela ca-
valaria, o orgulho militar dos homens de armas, os combates que não
têm outra função senão serem provas de força. Antepõe a humildade
de Galaaz à arrogância dos cavaleiros ferrabrazes. As armas devem
servir unicamente para a defesa pessoal, para a_ protecção dos opri-
midos e para apoiar o rei Artur contra a agressão dos seus inimigos.
Acima dos cavaleiros estão os monges eremitas, que lhes explicam
os símbolos e as visões.
É condenada pela base a galantaria cortesã. O amor é considerado
pecaminoso, principalmente o amor cortês, tal como o concebiam os
trovadores provençais. Galaaz e Perceval são virgens; Boorz só uma
vez possuiu uma mulher, mas sem culpa, porque esta o enfeitiçou
com uma beberagem. Lançarote, com ser o melhor cavaleiro do
mundo, é repelido da câmara do Graal, devido às suas relações adul-
terinas com a rainha Genebra. Neste personagem resume-se a conde-
nação de toda a literatura amorosa de inspiração provençal ou bretã.
As mulheres são agentes ou personificações do Diabo.
Descobre-se, por outro lado, através da trama da obra, um pensa-
mento teológico muito definido e radical acerca do livre arbítrio e da
Graça. Desde o princípio da demanda que estão escolhidos os que
merecerão a graça do Graal. O caso de Galaaz é frisante, como o de
Galvão, cuja sorte conhecemos antecipadamente por profecia de uma
donzela. Os escolhidos são detidos à beira das tentações pela inter-
venção directa de Deus: não fosse essa intervenção, Perceval teria
perdido a virgindade e Boorz teria assassinado o irmão. Mas Deus só

69
ampara os que, no segredo da sua sabedoria, destinou ao gozo celes-
tial; por isso vemos sucumbir, sem culpa, num crime inevitável e irre-
mediável, o bom cavaleiro Erec. Parece que o autor pretende subli-
nhar que o esforço humano é inútil para sozinho alcançar a graça de
Deus.
Mas para lá deste simbolismo declarado, um pensamento mais
escondido, uma alegoria mais sécreta, transparecem na efabulação do
romance.
José é o condutor de um novo povo e vem pregar uma nova fé.
Aparece expressamente como um novo Moisés fundador de nova lei.
Essa lei é a verdadeira lei cristã, com os seus dogmas fundamentais:
a Santa Trindade, a encarnação de Deus, o culto da Virgem, etc.
Mas, segundo a nossa versão, Josefes, filho de José de Aiimateia, foi
o primeiro bispo, sagrado directamente por Deus; e é ele quem reza
a missa no Paço Espiritual, onde continua espiritualmente o seu
sacerdócio. Tal concepção parece relegar para segundo plano São
Pedro, e portanto o bispo de Roma, seu sucessor. Confirma esta
interpretação o facto de São Pedro desempenhar uma função subal-
terna em todo o ciclo a que pertence a Demanda portuguesa. Ele
recebe do Céu (na História de José de Arimateia) uma carta fechada
que há-de guardar até à vinda do eleito, o qual lhe desvendará o sen-
tido.
Esta substituição da autoridade de Roma, notada pelo. investiga-
dor francês Pierre David, é acompanhada na versão portuguesa pela
anteposição do sacerdócio da virtude ao sacerdócio ordenado e ofi-
cial: um velho ermitão pede a bênção a Perceval e, como este se
recuse a esse acto da competência dos clérigos, o ermitão respon-
de-lhe:
- Ai, Perceval, antes eu queria a tua bênção que a de quantos
prelados hoje eu sei, porque tu és bom homem para com Deus, e
mais santa cousa do que tu cuidas.
Uma espécie de sacerdócio laico, mais perfeito que o clerical,
parece estar no pensamento de quem escreveu este texto. O que
implica a rejeição da autoridade de Roma.
O sacerdócio de Josefes é um ponto essencial do José de Arimateia
e da Demanda e envolve uma afirmação de tal modo grave que não
pode supor-se como simples ficção novelesca. Igualmente grave é a
comparação de Galaaz com Jesus Cristo.
Por outro lado, o autor e tradutores da história completa do Santo
Graal mostram-se convencidos de que o texto original desta se encon-

70
tra num livro em latim escrito pelo próprio Cristo. Esse livro é a estó-
ria que a tradução portuguesa cita a cada passo. O tradutor portu-
guês refere-se expressamente a este original em latim que Rob~rt de
Boron (o suposto autor da «tradução» francesa donde deriva a portu-
guesa) não ousou traduzir integralmente por conter «puridades da
Santa Igreja» que não convém que sejam c.;onhecidas de homem leigo.
Receia, além disso, Robert de Boron que os homens ignorantes,
conhecendo a «verdadeira história» em latim, «caiam em erro e
menosprezo da fé», o que poderia levar à proibição do livro (coisa
que ele de modo nenhum quereria) e a que ele próprio fosse culpado
pela Santa Igreja. Por estas razões, passando por alto certa questão
delicada, o narrador remete para o livro em latim, que «vos fará
entender e saber inteiramente as maravilhas do Santo Graal». Deste
arrazoado parece concluir-se que o tradutor português estava conven-
cido de que divulgava uma doutrina secreta que a Igreja podia não
aprovar.
Qual era esta doutrina? Qualquer que seja, o autor rodeou-se de
cautelas para não ser facilmente identificada.
O investigador francês mencionado assinalou como traço domi-
nante desta obra o messianismo. Galaaz, o no'vo Cristo, é o Messias
que virá revelar as maravilhas do Santo Graal, até agora escondidas.
Dir-se-ia que é portador de uma nova revelação. Ora precisamente
uma nova revelação é prometida em fins do século xn pelos discípu-
los do abade Joaquim de Piore. Seguir-se-ia ela à do Novo Testa-
mento, como este se seguiu ao Antigo e como a lei de Cristo sucedeu
à lei de Moisés. A lei de Moisés fora a época do Pai; a de Cristo fora
a do Filho; está para vir a época do Espírito Santo, a época definitiva
do Evangelho Eterno, em que se rasgará por fim o véu carnal e mun-
dano que ainda encobre a Verdade. A Igreja de Cristo será então
substituída por outra Igreja mais perfeita e os sacramentos, que
agora os homens apenas conhecem sob uma rude aparência, serão
revelados na sua verdade espiritual.
Estas teses foram adaptadas pela fracção dos Franciscanos que se
separou do grosso da Ordem por estar em desacordo com o desvio
que esta sofreu em relação ao exemplo e à doutrina dos fundadores.
Para esses, o papa, a quem declaram herético em 1324, e a igreja ofi-
cia.! deixaram de ser os verdadeiros representantes de Cristo e do
povo cristão.
Será esta nova revelação a época de maravilhas que há-de ser inau-
gurada por Galaaz? E será esta Igreja mais perfeita e puramente espi-
ritual representada por Josefes, o bispo sagrado directamente por

71
Deus, perante quem Pedro é um mero subalterno? Será o Graal a
forma visível do Espírito Santo?
Pelo menos é na festa do Espírito Santo que o Graal aparece aos
cavaleiros da Mesa Redonda, fazendo baixar sobre eles a sua graça,
como outrora, no Pentecostes, sobre os apóstolos.
Quanto à Igreja espiritual, parece estar simbolizada no sacerdócio
«espiritual» de Josefes, exercido no Paço Espiritual: Josefes, há sécu-
los falecido, é não já um homem de carne, mas um ser puramente
espiritual, só visível àqueles a quem foram abertos os olhos do espí-
rito pela graça do Graal, ou seja do Espírito Santo.
Esta conjectura parece confirmada pelo nome de Galaaz (Galaad
em francês). Galaad é um nome bíblico de uma região ocupada pelas
tribos de José e considerada «figura» de Jesus Cristo pelos exegetas
medievais. Um comentário sobre Jeremias publicado sob o nome
suposto de Joaquim de Fiore, em 1244 (primeira impressão: Veneza,
1516), que é um dos textos essenciais do movimento joaquimita, diz:

Galaad designa os membros espirituais da Igreja que vivem em


comum, nos quais reside a doutrina do são conselho.

Foi muito grande em Portugal a voga do ciclo do Graal. Não só


se conhecem as traduções ou notícias dos três romances citados
-José de Arimateia, Merlim e a Demanda do Santo Graal-, como
ainda a da Historia de Vespasiano 94 , publicada nos primeiros anos
do século XVI. A Crónica do Condestabre de Portugal, aparecida em
manuscrito em 1433 e impressa em 1526, diz que o jovem Nun' Álva-
res «usava muito de ouvir e ler livros de estarias, especialmente usava
mais ler a estoria de Galaaz em que se continha a soma da Távola
Redonda» (cap. IV). E Fernão Lopes conta, na Crónica de D. João I,
que os guerreiros de D. João I, gracejando, se comparavam a
Galaaz, a Tristão, a Lançarote e a outros companheiros da Távola
Redonda, dizendo que só faltava ali o bom rei Artur (2. ª parte,
cap. 76).
Talvez que esta leitura tivesse impressionado a imaginação dos
jovens da segunda metade do século XIV. O cronista de Nun'Álvares
sugere que ele queria ser virgem por influência de Galaaz. Vimos que
a virgindade é a virtude principal dos heróis da Távola, o que repre-
senta uma reacção vigorosa contra o espírito dos trovadores. E acon-
tece que a obsessão da virgindade animou os filhos de D. João I.

94
Reprodução fac-similada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, 1981.

72
Não será talvez exagerado ver nisto influências da corrente espiri-
tual representada pelos romances do Graal.
E em que medida a tradução e a divulgação dos romances do Santo
Graal correspondem a uma corrente espiritual que corria em Portugal
nos séculos XIV e xv? Noutro lugar daremos sobre o sentimento reli-
gioso alguns elementos para a resposta.

§ 19. Os Franciscanos em Portugal


Vimos já, em obra anterior, a grande expansão que teve em Portu-
gal o movimento franciscano, que se pode considerar uma reacção
contra o espírito monástico precedente (representado em Portugal
sobretudo pelos Cistercienses) e, de maneira geral, contra a burocra-
tização da hierarquia eclesiástica. Vimos também como o clero reagiu
contra a introdução dos Franciscanos, o que se pode explicar episodi-
camente pela disputa das esmolas dos crentes, mas tem certamente
raízes mais fundas. O papa soube reconhecer na Ordem dos Frades
Menores um factor de expansão da fé, capaz de dinamizar o povo e
de responder a necessidades que não cabiam na estrutura sedimen-
tada dos bispos e nas velhas ordens introvertidas e fechadas nos
claustros. Nos séculos XIV e xv, a expansão dos Franciscanos conti-
nua a todos os níveis da sociedade. Alguns exemplos o mostram: já
D. Dinis fizera seu confessor e em seguida bispo do Porto o francis-
cano Frei Estê~ão (1320) 95 e é conhecido o caso da rainha Santa Isa-
bel, que depois de viúva entra na Ordem Terceira de São Francisco.
Era franciscano o confessor de D. João I, Frei Afonso de Alprão.
O rei D. Fernando foi enterrado com um hábito franciscano. Arai-
nha D. Filipa de Lencastre teve também um confessor franciscano,
inglês, de nome D. Aimaro. Os filhos do régio casal seguiram a tradi-
ção: Frei Gil Lobo foi confessor de D. Duarte e de D. Afonso V e
colaborador do Leal Conselheiro. O infante D. Henrique é um dos
dois interlocutores do Relógio da Fé (Horologium Fidei), do francis-
cano Frei André do Prado, diálogo escrito ainda em vida do Infante
sobre pontos da fé cristã 96 • O infante D. Fernando, o mártir de Tân-
ger, deixou os seus livros aos franciscanos de Leiria. Frei Afonso Fal-
cão escrevia cartas de consciência para D. Afonso V. Este rei, no fim
da vida, foi viver com os frades franciscanos do Convento do Vara-

95
Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. 1, p. 289.
96
Mário Martins, Estudos de Cultura Portuguesa, vol. 1.

73
tojo, que teve vários confessores franciscanos. D. João II teve como
confessor Frei João da Póvoa, com quem se encerrou para fazer o
seu testamento. Este frade presidiu várias vezes aos Franciscanos de
Portugal e era conhecido pelo seu rigor na questão da pobreza.
Eram confessores e conselheiros de altas individualidades, mas
misturavam-se também com a multidão na rua.
Na guerra civil de 1383-85 encontramo-los a cada passo. No Porto
são porta-vozes dos burgueses e em Estremoz estão à cabeça da gente
miúda que assalta o .castelo 97 ; servem de intermediários entre os
conspiradores que querem entregar os castelos cercados ao mestre de
Avis e as tropas deste 98 ; vêmo-los misturados com judeus, partici-
pando numa tentativa de atentado contra o rei D. João de Castela,
urdida por Leonor Teles 99 • Num motim contra o interdito do papa
que proibia o enterro dos mortos na igreja discursa um francis-
cano 100 •
Já anteriormente, no reinado de D. Fernando, se tinham manifes-
tado contra o invasor castelhano. Em Santarém, quando do ataque
do rei castelhano ao castelo, os frades de São Francisco exortaram os
moradores a resistir e eles próprios se ofereceram para combater; em
Lisboa, querendo o mesmo rei aposentar-se no Convento de São
Francisco, correram a armar-se, o que obrigou o rei castelhano a
desistir do intento 101 • Frei Rodrigo de Sintra pregou o sermão de gra-
ças pelo levantamento do cerco de Lisboa; outro franciscano, o ser-
mão pela vitória .de Aljubarrota. O sermão de incitamento à con-
quista de Ceuta e o de acção de graças pela tomada desta cidade
foram pregados pelo franciscano Frei João de Xira.
Estes factos são indícios que nos permitem imaginar uma influên-
cia a todos os níveis, vasta, profunda e omnip~esente.

§ 20. Divisões entre os Franciscanos


Os Franciscanos são um movimento espiritual não só muito vasto,
mas também muito vivo e dinâmico e, por isso, constantemente agi-
tado em correntes e contracorrentes. Como também já vimos, São
97
Fernão Lopes, Crónica de D. João !, 1. ª parte.
98
Id., ibid., 1. ª parte, cap. 81.
99
!d., ibid., 1. ª parte.
IOO ld., ibid., 1. a parte.
101
Frei Manuel da Esperança, Crónica Seráfica, e Fernão Lopes, Crónica de D. Fer-
nando, cap. 75.

74
Francisco não tinha querido fundar propriamente uma ordem, mas
uma confraria de homens que só estavam unidos pelo mesmo senti-
mento, cuja principal manifestação exterior era o amor da «santa
pobreza». A pobreza franciscana era individual e colectiva e incom-
patível com a acumulação de dinheiro ou de quaisquer bens a qual-
quer pretexto. O Franciscano tinha de viver do dia-a-dia, ou fosse do
trabalho, ou fosse da esmola. Assim, era impossível a.::umular capital
para construir igrejas e conventos e os Franciscanos da primeira
hora abrigavam-se em cabanas ou em paredes arruinadas, consti-
tuindo pequenos grupos quase eremíticos capazes de sobreviver sem
dinheiro.
Depois da morte de São Francisco (e até já em sua vida), os Fran-
ciscanos acham-se perante a impossibilidade de se organizar como
ordem (como, por exemplo, os Dominicanos), a não ser que infrin-
jam as·regras deixadas pelo fundador. E Frei Elias, de quem já falá-
mos em obra anterior, ficou personificando para a história esse movi-
mento inicialmente dissidente: para a construção de uma igreja em
Assis mandou pôr uma caixa de esmolas no lugar das obras. Mas
companheiros de São Francisco, como Frei Leão e outros, indigna-
dos, partiram a caixa. Este episódio é como um símbolo e resumo do
que se seguiu depois.
O papa - desde Inocêncio III, os papas sempre protegeram os
Franciscanos e procuraram moderar os extremos de São Francisco -
tentou torncp- possível a conciliação entre o espírito dos fundadores
e as necessidades práticas dos que queriam estabelecer uma institui-
ção. Já vimos em que consistia o compromisso: as propriedades da
Ordem pertenciam à Santa Sé e eram administradas por procuradores
do papa, de modo que a Ordem não era formalmente proprietária,
mas podia dispor dos fundos de que necessitasse. O testamento de
São Francisco, que ordenava o cumprimento integral e sem sofismas
da regra da pobreza, foi considerado um documento pessoal, sem
valor de estatuto.
Começaram aqui as guerras entre os zelanti, ou zeladores, e os que
viviam em conventos, e por isso chamados conventuais. São Boaven-
tura, geral da Ordem, tentou estabelecer um compromisso, a que se
ficou chamando a via media. A pobreza consistia mais no espírito com
que se usavam os bens do que na posse desses bens: era o usus pauper.
Mas este compromisso não resistiu à morte de São Boaventura e a luta
entre as duas correntes agravou-se. Os partidários da pobreza primi-
tiva ficaram-se chamando os espirituais. Uma parte deles, osfratice/li,
liderados por Angelo Clareno, separaram-se da Ordem.

75
§ 21. Franciscanos e espirituais
A corrente dos joaquimitas, discípulos de Joaquim de Fiore, o
monge calabrês do século XII que anunciava uma igreja «espiritual»
no fim dos tempos, esperado como próximo, influenciou muitos dos
espirituais, a começar por Frei João de Parma, ministro geral antes
de São Boaventura. É um franciscano, Gerardo de Borgo San
Doninno, quem divulga as (supostas) doutrinas de Joaquim na Intro-
dução ao Evangelho Eterno, em 1254, livro condenado pelo papa,
mas que teve grande popularidade. Muitos viam na doutrina de São
Francisco o Evangelho Eterno. Entre os espirituais contavam-se fran-
ciscanos de grande prestígio, comó Miguel de Cezena, ministro geral
da Ordem, e Ubertino de Casale. Ambos saíram ou foram expulsos
da Ordem, por não se quererem submeter aos que queriam abolir ou
iludir a regra da pobreza, tanto individual como colectiva.
A pobreza franciscana fundamentava-se na imitação de Cristo.
Para tirar a razão aos franciscanos «espirituais» e, de uma maneira
geral, aos que interpretavam de maneira estrita a regra da pobreza,
o papa João XXII decretou que era errada e herética a doutrina
segundo a qual Cristo não possuíra bens (1322). O geral Miguel de
Cezena acusou o papa de heresia e foi excomungado. Refugiou-se
junto de Luís _da Baviera, imperador da Alemanha, então em guerra
com o papa. Ubertino de Casale, Pedro Olivi e Guilherme de Occam
tomaram também o partido do imperador. Assim, os espirituais
foram amputados da Igreja como heréticos.
Mas a raiz da disputa permaneceu, porque estava nos próprios
textos de São Francisco. Os zeladores (ze/anti) tiveram continuado-
res nos observantes, assim chamados porque praticaram uma obser-
vação mais estrita da regra que aqueles que viviam em conventos e
que ficaram sendo conhecidos como os «conventuais». Os observan-
tes lutaram por se tornar independentes dos conventuais, mas,
embora tivessem uma existência separada desde cerca de 1340, só em
1517 se tornaram juridicamente independentes, adquirindo o direito
de eleger o seu geral. E dos zeladores separaram-se ainda os «capu-
chinhos», mais zeladores ainda, que foram reconhecidos pelo papa
em 1528.
É natural que estes movimentos espirituais provocassem ondas em
Portugal, donde saiu o segundo grande santo franciscano, Santo
António, que é, ele próprio, um dos adversários de Frei Elias, esse
precursor dos relaxadores, segundo contam as crónicas antigas dos
Franciscanos. Mas os historiadores eclesiásticos portugueses não têm

76
aprofundado este ponto 102 e os historiadores profanos não se ocu-
pam da espiritualidade, porque, para eles, a história se limita à civili-
zação material. No entanto, alguns indícios nos ficaram de que os
/ratice/li, os espirituais e os zeladores agitaram também em Portugal
a massa dos Franciscanos.

§ 22. A reforma dos observantes


Há notícia dos primeiros observantes em Portugal cerca de 1392.
A província franciscana abrangia então portugueses e galegos numa
só unidade, a província de Santiago; e da Galiza partiram os reforma-
dores observantes: Frei Diogo Arias, asturiano, e Frei Gonçalo
Marim. De Gonçalo Marim informa-nos Frei Marcos de Lisboa 103
que era senhor de vilas e castelos e teve um desaire em Guimarães
durante a guerra de 1385 com Castela, ao mesmo tempo que um des-
gosto familiar. Fez-se franciscano e morreu no Convento de São
Francisco de Viana do Castelo. Era seu devoto D. Afonso, primeiro
duque de Bragança, bastardo do mestre de Avis. Quanto a Frei
Arias, prosseguiu o caminho até Alenquer, onde os Franciscanos
estavam há muito estabelecidos. Diz o mesmo cronista (Frei Marcos
de Lisboa) que o rei de Portugal o chamara para reformar o Con-
vento de São Francisco de Alenquer. A reforma planeada pelos novos
frades consistia em equiparar os clérigos e os leigos para efeitos de
eleição para os cargos de direcção, em vender as pratas da casa e em
armazenar uma luxuosa cruz de prata usada nas procissões 104 • Mas
aos reformadores deparou-se a hostilidade dos frades instalados no
Convento. Frei João Arias teve, por isso, de fundar um novo con-
vento no sítio da Carnota, em terras doadas pelo rei. Passava-se isto
em 1408. O mesmo rei, voltando de Ceuta, contemplou o novo con-
vento da Carnota com doze colunas de pedra que trouxera da cidade
moura.
Outros companheiros de Frei Arias fundaram conventos no Nor-
deste de Portugal, em Viseu, nas proximidades de Lisboa e é de crer
que noutros lugares.
Seguindo o exemplo de São Francisco, Frei Arias não se propunha
fundar conventos populosos, mas pequenos eremitérios em lugares
102
Ressalve-se, todavia, o P.e Mário Martins, S. J., que aludiu a ele em O Ciclo da
Espiritualidade Franciscana na Idade JV/éàia Portuguesa, 1951.
103
Crónica da Ordem dos Frades Menores, 3. ª parte, liv. 1, caps. 23 e 24.
104
Frei Manuel da Esperança, Crónica Seráfica, vol. 1, pp. 98-100.

77
solitários. Uma bula do papa Bonifácio IX diz que ele queria «levar
vida solitária» 105 •
Embora mal recebido em Alenquer, este movimento, protegido
pelo rei, criou raízes, pois, na geração seguinte, Frei Gomes do Porto
introduziu, cerca de 1450, <<novos rigores, apertos e austeridade», o
que suscitou a oposição dos frades ao seu governo, a pretexto de que
ele introduzia «costumes castelhanos», acusação demagógica nesta
época de castelhanofobia.
Não podemos seguir muito mais longe a prática dos Franciscanos
portugueses. Notemos apenas que encontramos várias notícias de que
se praticava o trabalho manual, como recomendavam os estatutos de
Frei Gomes do Porto, confirmados pelo capítulo de Alenquer de
1486: os frades deviam dispensar trabalhadores de fora assalariados,
trabalhando eles mesmo com as próprias mãos, conforme as suas
capacidades: cavando a horta, lavando a roupa, etc. 106 Entre estes
trabalhadores m~nuais regista~se um serralheiro, Frei João da Mon-
tanha (entrou em 1475), e um construtor de relógios, Frei João da
Comenda, de São Pedro do Sul, que entre 1478 e 1485 fabrica vários
relógios de rodas para vários mosteiros 107 •
Quanto à doutrina, não faltam expressões e indícios da importân-
cia entre nós dos zeladores e até dos espirituais.
Em primeiro lugar, a Crónica da Ordem dos Frades Menores, de
que existe uma cópia de 1420 108 , tirada provavelmente de uma tradu-
ção anterior da Chronica XX/V Generalium (crónica da Ordem sob
o governo dos primeiros vinte e quatro ministros gerais), reflecte a
primavera franciscana, narra gostosamente a vida dos companheiros
de São Francisco e toma o partido dos zeladores que se opunham ao
relaxamento. A via media, de São Boaventura, aparece claramente
condenada numa visão que teve Frei Jacobo. Este frade viu, num
arroubo, uma grande árvore de raiz de ouro, cujos frutos eram os
frades menores; ao alto estava Frei João de Parma, ministro geral
antes de São Boaventura. Jesus Cristo, sentado num trono, envia São
Francisco com dois anjos, com um cálice de «espírito de vida» para
dar de beber aos frades. Primeiramente bebeu Frei João de Parma

105
Cit. por Mário Martins, S. J., em O Ciclo Franciscano na Nossa Espiritualidade
Medieval, 1951.
106
!d., ibid.
101
Frei João da Póvoa, Memórias Soltas e Inventários do Oratório de S. Clemente
das Penhas e do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Matosinhos, ed. Maga-
lhães Basto, Porto, 1940, pp. 40-41.
108
Ed. de José Joaquim Nunes, 2 vols., 1918.

78
até ao fundo e fez-se luminoso como o Sol. Depois segue-se cada um
dos frades: os que bebiam o cálice inteiro «vestiam claridade de Sol»;
os que bebiam só parte só vestiam parte da luz; os que vertiam o
cálice ficavam escuros e horrorosos como demónios. Frei João de
Parma, contemplando o abismo das luzes e trevas, compreendeu que
se havia de levantar uma tempestade contra a árvore e desceu donde
estava, para se abrigar no tronco. No seu lugar foi posto Frei Boa-
ventura, que só tinha bebido parte do cálice e a quem foram dadas
por isso duas unhas de ferro cortantes como navalhas. Mas Jesus
Cristo mandou São Francisco cortar com uma pedra as unhas a Frei
Boaventura. Depois disto levantou-se um torvelinho e os frades caí-
ram da árvore: os que tinham bebido o cálice eram levados ao
Paraíso; os que o tinham vertido foram para os lugares de trevas
(Chronica XX/V Generalium, vol. II, pp. 96-99).
Frei João de Parma, acusado de ser joaquimita, foi substituído
por São Boaventura, que procurou a conciliação entre os dois parti-
dos, como já vimos. O autor ou autores da Crónica dos 24 Gerais e
o seu tradutor português mostram uma evidente parcialidade a favor
de João de Parma. Além disso, o tradutor português censura aspera-
mente os «relaxadores» nestas palavras que não se encontram no
texto latino traduzido:
E tanto quererão os fraires acrecentar em seus mosteiros e orná-
-los de coisas preciosas e edifícios sobejos que errarão gravemente
no voto da pobreza. Pelo qual do mundo serão julgados por ben-
feitores e honradores dos mosteiros, empero por qualquer intenção
que o façam í~ão contra a pobreza da sua regra e, por conseguinte,
ofenderão a Deus, porque não há voto que mais acrecente esta reli-
gião que a guarda da verdadeira pobreza e não há cousa que mor
queda faça dar que a curiosidade e superfluidade e preciosidade
das cousas, assim dos que servem ao culto divino, como dos que
servem ao temporal 109 •
É a atitude que a Crónica simboliza em Frei Junípero, que deu de
esmola as campainhas de prata de um altar preparado para o dia de
Natal.
A atitude tomada pelo autor da Crónica prolongou-se e durou em
Portugal, porque na Crónica dos Frades Menores, de Frei Marcos de
Lisboa, que foi bispo do Porto, cujos três volumes foram publicados
de 1557 a 1570 (tendo o 1. 0 quatro edições de 1557 a 1615), mostra

J()<} Ed. por José Joaquim Nunes, Imprensa da Universidade, Coimbra, vol. 11, 1918, p. 236.

79
uma evidente simpatia pelos Franciscanos, que entraram em conflito
com o papa. Além de elogiar Frei João de Parma, «que defendia o
abade Joaquim, excusando-o porque ele não tivera aquele erro de que
foi condenado pela decretai de Inocêncio III» 110 , cita várias vezes,
com elogio, Ubertino de Casale, que «veio a escrever altíssimas cou-
sas sobre a vida de Cristo e vida crucificada de seus seguidores, por
o lume da graça que em grande avondança tinha comunicado» ui.
Ubertino, como já vimos, acabou por sair da Congregação dos Fran-
ciscanos, exasperado por o papa João XXII ter condenado a doutrina
segundo a qual Cristo nada possuíra e se ligara ao imperador que fez
guerra ao papa. Mas a Crónica de Frei Marcos de Lisboa é muito dis-
creta sobre este ponto e diz apenas que Frei Ubertino não quis «tor-
nar à obediência dos prelados da Ordem por o grande ódio que lhe
tinham por ele ser o principal z.eladorn. E, falando do grupo que com
Ubertino foi excomungado e acabou ao lado do imperador em guerra
com o papa, nomeadamente o P. e Olivi e ex-geral Frei Miguel de
Cesena, a Crónica de Frei Marcos de Lisboa diz:
Caíram da verdadeira obediência da sede apostólica, nem é
maravílha, pois os anjos caíram. Os quais frades não se moveram
por cobiça da carne nem dos olhos, porque nesta parte, antes e
depois da excomunhão viveram religiosamente. E morreram em
Bavária, terras do dito emperador, deixando fama e reputação de
bons religiosos entre üS que os conversavam 112 •
Estas amostras fazem-nos crer que Frei Marcos de Lisboa, na
segunda metade do século xv1, é o continuador de uma corrente já
representada no século xv, e talvez antes, pela tradução da Crónica
dos 24 Gerais. Entre as obras que cita como.suas fontes encontram-se
as Breves Crónicas das Sete Tribulações da Ordem até ao Tempo de
João XXII, atribuídas a Frei Ângelo Clareno, que foi um dos líderes
dos fratice/li, excomungados pelo papa 113 •

§ 23. Frei Álvaro Pais


Outro documento escrito da tendência extremista franciscana é a
obra De Statu et planctu ecclesiae, de Frei Álvaro Pais, natural de
11 º Op. cit., parte livro 1, cap. LVI.
li,
111
Op. cit., parte livro vu, cap. xx.
li,
112
Parte li, Jiv. vm, cap. 14.
113 Op. cit., prólogo da li parte.

80
Santarém ou da Galiza e nomeado bispo de Silves em 1333. Frei
Álvaro foi tentado pela corrente apocalíptica franciscana do sé-
culo xrv. Considerava a Igreja corrompida e escrevia:
Os lobos dominam a Igreja; alimentam-se de sangue; a sua alma
está em sangue 114 •

Mas via a salvação nos Franciscanos:


Contemplemos, pois, o estado da Igreja actual e as coisas que
nela há, e o que é preciso fazer depressa pelo seu anjo assinalado
[signatum] Francisco, que tem nas mãos o Evangelho Eterno, na
Santa Igreja de Deus e na ordem em ruínas.

São Francisco de Assis «armar-se-á para combater e expurgar


Satã, o grande dragão (Apocalipse, xx) que vomita sobre a Igreja de
Cristo as chamas ardentes da avareza, da vanglória, da inveja e da
imundície». A cabeça do dragão, prossegue ele, é «o homem de
pecado, mas morrerá pela espada do Espírito de Deus, de que os ver-
dadeiros frades (não os fingidos) de S. Francisco são os portadores
principais». E acrescenta que não vem muito longe a renovação geral
da Igreja e do mundo, visto que neste se consumou já toda a malícia
e toda a iniquidade 115 •
Todavia, Álvaro Pais não chegou à posição extrema de Miguel de
Cesena, João de Parma, Ângelo Clareno, Olivi ou Ubertino de
Casale, isto é, não saiu da obediência do papa e da Igreja. Defendeu
até a monarquia pontifícia contra aqueles que a atacavam, como
Marsílio de Pádua, e propunham que fosse atribuído à assembleia
dos fiéis o poder de definir o dogma. Foi a favor de João XXII, con-
tra quem se rebelaram estes Franciscanos, e quiçá este papa lhe deu
como prémio o bispado de Silves e de Coron e outros cargos honro-
sos. Mas está evidentemente tocado do milenarismo apocalíptico do
abade Joaquim.
E sabemos, por outro lado, que um franciscano português, Frei
Estêvão, bispo de Lisboa e confessor do rei, se opôs à doutrina de
João XXII segundo a qual Cristo possuía bens. Consultado pelo
papa, defendeu a doutrina oposta 116 •

114
De Statu et Planetu, t. JI, p. 48. Cit. por Fortunato de Almeida em História da
Igreja em Portugal, vol. 1, p. 291.
JIS Cit. por Mário Martins, O Ciclo Franciscano na Nossa &piritualidade Medieval, pp. 2-3.
116
ld., ibid., pp. 266-267.

Sl
§ 24. O beato Amadeu da Silva
Finalmente, como sintoma do milenarismo joaquimita em Portu-
gal, é muito significativo o caso de Frei Amadeu da Silva (falecido
em 1482), que escreveu um estranho livro com o título Apocalipsis
nova. Amadeu da Silva chamava-se no século João Meneses da Silva
e era filho de Rui Gomes da Silva, homem de boa nobreza e alta posi-
ção. Esteve na campanha de Alfarrobeira. Depois disso emigrou para
Itália e aí se dedicou à vida religiosa eremítica e fundou vários peque-
nos conventos em Íugares isolados, procurando seguir o exemplo de
São Francisco. Declarava-se ignorante da teologia e bastava-lhe a
simples imitação de Cristo. Quis introduzir uma regra mais estreita
ainda que a dos observantes. Quando morreu, deixo1:1 vinte e um
pequenos conventos que o seguiam. Não tivemos ocasião de ler a
Apocalipse Nova. Segundo o breve resumo do P. e Mário Martins, o
autor é arrebatado por um anjo e trata dos mistérios da fé e do
futuro da Igreja. Faz a apologia da Virgem e da Imaculada Concei-
ção. Fala igualmente do pastor celeste, que estava a chegar, e dos
sinais da sua vinda. «Ü anjo das revelações», diz o P ." M. Martins,
«inclina-se demasiado para as doutrinas escotistas» (Duns Escoto é
um dos que se revoltaram contra a autoridade do papa João XXII e
se puseram ao lado de Luís da Baviera). O anjo conclui dizendo:

Já o papa mandou três vezes por ti. Porém, tu dize que honre
a mãe de Deus, restaure as igrejas e não se meta em guerras mun-
danais. Promulgue antes a lei de Deus por todo o mundo 117 •

Uma cópia da obra encontra-se inédita num códice do Escurial.


A Enciclopedia Cattolica, italiana, considera-a «interpolada» e
redundante de puerilidades e erros doutrinais. Quer dizer que Beato
Amadeu, ou quem quer que fosse que por ele escreveu, se transvia da
doutrina oficial da Igreja, o que não seria de espantar num francis-
cano que ignorava e desdenhava a teologia. Mas o que é significativo
é que a obra tenha sido escrita por um português, decerto emigrado,
mas que em Portugal fez a sua criação. Ele supõe uma longa tradição
e, por outro lado, é o primeiro documento escrito que atesta em Por-
tugal a presença de uma corrente messiânica, e o messianismo joaqui-
mita estará na base das trovas do Bandarra e sobretudo da teologia
do Quinto Império, do P .e António Vieira.

117
Mário Martins, op. cit., p. 268.

82
Outra manifestação do espírito franciscano puro que se revela
ainda na segunda metade do século XVI, através de Frei Marcos de
Lisboa, é a tradução 118 de muitos poemas de Frei Jacopone da Todi
(1230-1306), que é também um «espiritual» e que, por esse motivo,
o papa Bonifácio VIII mandou prender em 1298. Jacopone não só
seguiu a pobreza mais total, como ainda procurou humilhar a respei-
tabilidade e o amor-próprio, exibindo-se em posições que atraíam o
escárnio público. Foi um «jogral de Deus» nas praças das cidades de
Itália. Os seus poemas não têm metro regular e nada se parecem com
os dos poetas encartados da época, são livres da rima e da métrica,
expansões emocionais que não cabem em prosa. Frei Marcos de Lis-
boa traduz muitos cantos sobre a santa pobreza, a Virgem, o nome
de Deus, lamentações sobre os males da Igreja e outros temas. É bem
possível que, ao traduzir Jacopone, Frei Marcos estivesse seguindo
antecedentes medievais dos Franciscanos portugueses.

§ 25. Difusão da nova religiosidade


Este surto dos Franciscanos é um dos aspectos que tomou a altera-
ção da vida religiosa na segunda fase da Idade Média, à qual já temos
aludido. Depois da queda do Império Romano, a Igreja teve de
enfrentar uma multidão de bárbaros, muitos deles ainda não cristia-
nizados, outros cristianizados mal e recentemente. Nesse mundo, a
Igreja conseguiu manter a sua organização, transmitir melhor ou pior
a sua tradição, mas os clérigos tiveram de se isolar e constituíram
uma élite recolhida diante de um povo com quem não sincronizavam.
As igrejas e conventos românicos, com as suas altas muralhas cegas,
simbolizam perfeitamente esta situação dos clérigos encerrados e
separados do mundo. A sua função era transmitir a tradição de uma
geração a outra, orar e praticar o culto. Os fiéis temiam os clérigos
(quando não se revoltavam contra eles, como é o caso de D. San-
cho II), obedeciam ao culto, mas não participavam propriamente
nele. Seguiam-no com respeito atemorizado e incompreensivo. Não
havia trânsito entre o saber dos clérigos e o sentimento do povo, mas
veneração deste por aqueles e o vago temor que se tem pelos poderes
da magia.
Esta situação foi a dos Cluniacenses e a dos Cistercienses, para
não falar dos Beneditinos. Foi também a dos bispos que resistiram a

118
Mário Martins, op. cit., pp. 98-100.

83
D. Sancho II e o destronaram. Mas já não é a dos Franciscanos. Os
primeiros Franciscanos não foram homens de Igreja, mas leigos,
cavaleiros, mercadores ou tecelões que conheciam de ouvido, ou
mesmo de leitura, a mensagem de Jesus Cristo, tal como ela se
exprime nos Evangelhos. O cristianismo difundira-se nas cidades, a
muralha entre clérigos e leigos torna-se transparente. Os lugares
sagrados não se viram já exclusivamente para dentro, separados do
mundo por altas muralhas, mas viram-se para fora, revestem-se de
escultura falante, o ensino e o culto começam nas paredes exteriores,
na parte do edifício que está voltada para a rua. De modo que a cha-
mada laicização da religião significa, como já notámos, uma cristia-
nização das massas, uma impregnação delas pela mensagem evangé-
lica. Não são já os clérigos que, isoladamente, falam entre si ou para
os
o vulgo, ex cathedra, dos mistérios sagrados: são também fidalgos,
os mercadores e os artesãos. Por isso mesmo, os clérigos perdem o
monopólio do sagrado. São Francisco, filho de mercador, é a pri-
meira grande figura religiosa da Idade Média que não pertence
-nem quis pertencer- ao mundo dos clérigos.

§ 26. A decadência dos antigos mosteiros


Em contraste com esta religiosidade popular, as velhas ordens
monásticas estão em completa decadência espiritual, aparentemente
intactas, mas embalsamadas. Basta lembrar o que se passou com o
Mosteiro de Alcobaça na segunda metade do século xv. Em 1369, os
abades deixaram de ser eleitos pelos monges e passaram a ser escolhi-
dos pela Santa Sé, precedendo pedido dos reis. O abade D. João de
Ornelas, nomeado em 1381, participou na guerra contra os Castelha-
nos à frente das suas tropas, como qualquer fidalgo. Em 1459, Alco-
baça foi dispensada da obediência à Abadia de Cister. Em 1475 suce-
deu um episódio revelador da mais completa decadência espiritual.
O ab'lde, Frei Nicolau Vieira, sem consultar nem ouvir os monges,
renunciou ao cargo a favor do arcebispo de Lisboa, D. Jorge da
Costa, célebre pela sua ambição de riqueza e de glória. Só quando
D. Jorge mandou tomar posse do cargo e das rendas por um sobri-
nho souberam os monges que tinham novo superior. Mas Frei Nico-
lau não só cedeu o posto a D. Jorge, como, de combinação com este,
ainda reservou para si próprio, das rendas da abadia, uma pensão de
150000 réis. Os monges revoltaram-se e não permitiram mais que
Frei Nicolau morasse com eles. D. Jorge encarregou o sobrinho,

84
Álvaro Vaz, de administrar a seu bel-prazer as rendas e bens do mos-
teiro.
Este D. Jorge, o famoso «cardeal Alpedrinha», teve artes de se
apoderar dos arcebispados de Lisboa, Braga e Évora, do bispado de
Coimbra, dos priorados do Crato e de Guimarães e da Abadia de São
João de Tarouca, isto é, de um largo quinhão dos rendimentos da
Igreja em Portugal. Foi cardeal da Santa Sé e morreu tranquilamente
em Roma, a coberto das iras de D. João II.
A decadência de Alcobaça é um episódio do abuso das comendas
que permitiam aos protegidos do rei ou do papa apoderarem-se dos
rendimentos das sés ou dos conventos, quer fossem eclesiásticos quer
não. Eram rendosas sinecuras. Havia mesmo casos em que os prote-
gidos premiados com a atribuição de comendas eram crianças, e tam-
bém outros em que as comendas passavam de pais a filhos. Não é
preciso dizer que estes comendatários só se ocupavam das casas reli-
giosas para lhes recolher os rendimentos.
É natural que o relaxamento alastrasse nos velhos conventos. Frei
João Álvares, que foi abade do mosteiro beneditino de Paço de Sousa,
deixou-nos testemunho de que nem sequer ali existia um exemplar da
Regra de São Bento em português e de que com isso os monges se des-
culpavam de não seguir a Regra, que desconheciam. Ele próprio, Frei
João Álvares, teve de compor uma tradução e oferecer um exemplar
aos monges, «bem escrita em letra redonda num livro de pergaminho,
com sua cadeia e cadeado perto da estante do cabido» 119 •
Fora dos conventos manifestava-se o fervor religioso sob diversas
formas. A vida eremítica tinha numerosos praticantes, tantos que o
rei D. Fernando teve de agir contra o seu abuso, a pretexto de que
roubava braços à agricultura. Na Lei das Sesmarias, de 1375, há uma
disposição contra os que «andassem em hábito de ermitães pedindo
pela terra, sem trabalhar por suas mãos». Eram certamente leigos,
caso contrário, não os mandaria o rei açoitar, como a mesma lei
determina.
Entre esses ermitães contam-se os da serra de Ossa, contra os quais
os bispos puseram embargos, por não terem regra conhecida, em
1376. O papa sentenciou que «estes pobres ermitães» que vivem «em
lugares desertos e ermitérios e em muitas outras casas da serra de
Ossa, de quatro eni quatro», não devem ser molestados nem estorva-
dos pelos bispos ou por quaisquer outras pessoas 120 • Eram homens à

11
~Crónica do Infante D. Fernando, m parte, ed. Mendes dos Remédios, 1911, Coimbra.
12
° Cit. por Fortunato de Almeida em História da Igreja em Portugal, vol. 1, p. 342.
85
margem das instituições, mesmo eclesiásticas, como os primitivos
Franciscanos. Entre eles contavam-se cavaleiros desiludidos do
mundo.
Existiam também os «emparedados» e as «emparedadas», pessoas
que se fechavam por toda a vida com uma parede de cantaria e que
gozavam do respeito e veneração públicos, como Frei João de Bar-
roca, morador em Lisboa, a quem o mestre de Avis foi consultar
antes de se apoderar do castelo de Lisboa.

§ 27. Os Dominicanos
Ao lado dos Franciscanos existiam os Dominicanos, seus supos-
tos irmãos gémeos, embora introduzidos em Portugal posterior-
mente e em circunstâncias diferentes, como mostrámos num volume
anterior.
Os Dominicanos não têm inicialmente a mesma expansão que tive-
ram os Franciscanos. Parece que a sua influência se restringiu ao
topo da sociedade, mas aí foi enorme. Dominicanos foram os confes-
sores de D. João I, do infante D. Henrique e do infante D. Fernando
e a importância que tiveram junto da família real ficou atestada pelo
Mosteiro da Batalha, comemorativo da batalha de Aljubarrota e pan-
teão dos príncipes de Avis, aos quais foi oferecido por D. João I.
Também os Dominicanos foram abalados por disputas entre os rela-
xados ou conventuais e os zeladores ou observantes. Frei Vicente,
confessor e pregador de D. João I, empreendeu a reforma dos obser-
vantes cerca de 1390 e para isso obteve do rei uma quinta para insta-
lar o convento de Benfica. Entre 1325 e 1495 fundaram-se em Portu-
gal nove conventos de dominicanos.

§ 28. Novas devoções


A expansão e a interiorização do sentimento religioso manifesta-se
multiplamente em novas formas literárias e artísticas e em cultos e
motivos religiosos, que, sem serem novos, se tornam muito insis-
tentes.
Entre os cultos que se generalizam contam-se o do nome de Deus
(J. H. S.), popularizado pelos Franciscanos; o do Corpo de Cristo, e
o de Maria. Este último, que vinha de longe, goza de um favor
extraordinário em Portugal no século xv. D. João 1 compôs um

86
Livro das Horas de Santa Maria, tendo dedicado a Santa Maria a
Igreja da Batalha. Nun' Álvares morreu Frei Nuno de Santa Maria,
depois de construir a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Lisboa.
D. Duarte defende a Imaculada Conceição, que então ainda não era
unanimemente aceite; por uma invocação à Virgem inicia o infante
D. Pedro a Virtuosa Benfeitoria e com uma adoração de Maria ter-
mina a Crónica da Tomada de Ceuta, de Zurara. Ao culto mariano
se liga ainda o Vergel de Consolação e o Castelo Perigoso, que é uma
alegoria das virtudes de Maria.
Como expressões do sentimento religioso europeu basta lembrar
uma amostra significativa: as representações da Paixão de Cristo,
que, com o nome de «mistérios», foram promovidas em diversas
cidades da Europa por confrarias de artesãos. O caso humano de
Cristo que nos é dado nestas representações interessa também pro-
fundamente a pintura, onde encontramos expressões como aquele
quadro quatrocentista, existente no Museu das Janelas Verdes, de
Lisboa, de autor desconhecido, representando um Cristo envolvido
num sudário que a coroa de espinhos trespassa, flagelado na sua
tenra carne. Parece este quadro a expressão pictural do texto de São
Bernardo:

Salve, cabeça ensanguentada, de espinhos circundada, macu-


lada, flagelada, escarnecida, e ai! tão pálida e ensanguentada! ...
E vós, sagradas mãos, que banho de beijos e lágrimas!. .. [... ] Tu,
de cuja boca bebi o leite e o mel, deixa que me abisme nos teus
santos sofrimentos, deixa-me morrer contigo na Cruz, a mim que
tanto amor sinto pela árvore santa 121 •

Mas a vivência da humanidade de Cristo não é já um privilégio de


monges, mas antes património comum de uma larga humanidade.
A figura de Jesus populariza-se e torna-se familiar. Os mistérios, que
eram dramatizações do texto bíblico, tornavam-no acessível a muitos
milhares de espectadores reunidos ao ar livre, e para o mesmo efeito
concorriam as traduções em vernáculo, como a realizada por inicia-
tiva de D. João 1, e obras como a Vita Christi, de Ludolfo da Saxó-
nia, traduzida, no todo ou em parte, na primeira metade do sé-
culo xv. Esta obra é citada por D. Duarte e foi uma das primeiras
que se imprimiram em Portugal.

121
Fortunato de Almeida, op. cit., pp. 330-331.

87
§ 29. Laudes e cantigas espirituais
de mestre André Dias
Para celebrar o «Bom Jesus» -nome familiar e terno que encon-
tramos em Portugal nesta época-, para manter e espalhar o culto do
seu Corpo ou do seu Nome, fundam-se confrarias - como a que foi
estabelecida em São Domingos, em 1432, pelo bispo de Mégara,
André Dias - e organizam-se procissões, como a do Corpo de Deus,
que atinge notoriedade no reinado de D. João 1, com os seus andores
e representações semidramáticas (danças simbólicas, fragmentos da
Bíblia representados por personagens de carne e osso, alegorias, etc.),
conduzidas pelas diversas corporações dos homens de ofícios 122 •
Encontravam-se expressões líricas e enternecidas para cantar este
«Bom Jesus». André Dias, o fundador da citada confraria, traz para
Portugal a inspiração primaveril e aberta aos quatro ventos das Lau-
des de Jacopone de Todi, o franciscano rebelde que se fez jogral de
Deus e da Virgem nas praças das cidades de Itália 123 • Num cancio-
neiro que intitulou Laudes e Cantigas Espirituais, de 1435, André
Dias convida os confrades a cantar e a bailar:
Vinde agora e vinde todos vós outros, confrades e servos da
Confraria do Bom Jesus, e comigo estes melodiosos cantares,
hinos, prosas e laudes, que aqui neste livro compilei em honra do
Bom Jesus, em altas vozes cantai, bailai, dançai, orai, tocai, em
órgãos, em atabaques, com trompas, com anafis, com guitarras,
com alaúdes e com arrabis, ante o seu altar 124 •
Sem embargo de este monge beneditino ser um versejador irregu-
lar, ele é, sem dúvida, um inspirado representante da nova sensibili-
dade religiosa. Há talvez pouca arte nos seus versos e prosas, mas há
também uma inspiração abundante e pletórica, que transborda para
lá das paredes do claustro e se espalha no mundo rumorejante do ar

122
Ver W. Vedei em ldea/es de la Edad Média- Vida Monástica, p. 129.
123
As mais antigas notícias sobre a procissão do Corpo de Deus referem-se ao rei-
nado de D. João l. A mais antiga descrição encontra-se no Regimento da Procissão de
Coimbra de 1517, publicada por J. P. Ribeiro, Dissertações, vol. 1v, p. 241.
124
Ver Laudes & Cantigas Espirituais de Mestre André Dias, por Mário Martins,
S. J., Lisboa, 1951. André Dias nasceu em 1348, foi bispo de Ajácio e de Mégara, abade
do mosteiro de Rendufe e mestre de Teologia em Viena, Roma e outras cidades. Passou
grande parte da vida fora de Portugal, sobretudo na Itália. Seguiu nos Concílios de Basi-
leia e de Constança o partido contra Roma. Tornaram-se especialmente conhecidas as
suas obras Modes Confidenti (Maneira de Se Confessar) e Gubernalum concilioram
(Leme dos Concl'lios), em que se defende a supremacia dos concílios sobre o papa.

88
livre, apela para os sentimentos comuns, para a alegria vital que se
expande no canto e na dança. A religião de André Dias resvala por
vezes naquelas práticas que hoje diríamos «mágicas», que D. Duarte
condena por contrárias à verdadeira religião; ele recomenda, por
exemplo, uma oração que tem a virtude de não deixar morrer de má
morte no dia em que é proferida, nem, no mesmo dia, faltar o pão
do corpo, nem ainda envelhecer durante o tempo em que se ouve a
missa em que é rezada 125 . Mas esta mesma credulidade é caracterís-.
tica desta religião popular e não restringe a largueza do horizonte
humano do nosso poeta:

E por mar e por terra, louvai, glorificai, exalçai e chamai o seu


nome santíssimo e muito espantoso de Jesus, e em vossas armas e
escudos e lanças, naus, galés, caravelas e barcos, e em vossos pei-
tos e vestiduras e casas, e em vossos corações e almas o pintai e
trazei e nomeai; e vinde ante o seu altar que está no Mosteiro de
São Domingos da cidade de Lisboa, onde por ele se fazem muitos
milagres cada dia 126 .

O Jesus exalçado e cantado por André Dias é o Jesus franciscano:


o menino pobre das palhinhas do presépio que os Franciscanos popu-
larizaram, rodeado da alegria dos anjos e pastores; o Crucificado
entre lágrimas de dolorida comoção, cujas chagas São Francisco rece-
beu no seu corpo. Mas é sempre o Deus do Àmor, portador de alegria
e de conforto, um Deus de Primavera e de Ressurreição, que afasta
para longe o frio dos pavores infernais.

Dilecto Jesus Cristo, quem de ti se recorda e te chama


sempre em teu coração te ama
e em ti se alegra e baila e canta,
e eu cantar e alegrar-me quero
por teu amor,
ó doce Senhor 127 •

Enfraqueço amando
e me vou a consumar,
quando de vós penso
e me renembro 128 •
125
Laudes & Cantigas Espirituais de Mestre André Dias, ed. cit., p. 17.
126
Ibid., p. 208.
127
Ibid., p. 235.
128
«Relembro».

89
Em üa grande alegria sento 129
o meu coraçom levantar
que me faz todo alegrar
e os meus membros
e meu coraçom
faz atanto exalçar
que sobre todos os céus eu monto
- quando me recordo que o meu Jesu tenho
nos meus braços e a mim apreso,
e contemplando me deleito
que 130 desejo a dançar.
E de dançar muito me acende todo quanto 131
e me veste de um dourado manto,
e eu bailo e rio e canto,
com muito choro e grande planto
e todo me sento de Jesus namorar
e el de mim tanto é namorado
que me visita e me vem falar
e com sua fala tanto sõo alegrado
que o meu coraçom logo aferro,
com o meu Senhor, Jesu, lume eterno,
e nom hei pavor do Inferno
que me já possa condenar 132 •

Frei André dirige-se, como vimos, aos membros da Confraria do


Bom Jesus, gente de ofícios e misteres, que participava certamente nas
procissões de Corpus Christi com as suas insígnias e andores. Para eles
escreveu um Livro dos Milagres do Bom Jesus, a que era consagrada
a Confraria, de que se fez uma cópia em pergaminho pendurada por
uma corrente de ferro nas grades da capela da Igreja de São Domin-
gos - a crermos em Frei Luís de Sousa 133 •

§ 30. Outras obras espirituais


É este livro um espécime de toda uma literatura de inspiração cleri-
cal, mas dirigida a leigos, literatura que se reveste de várias formas,
129
«Sinto».
130
«Tanto», «de tal modo que».
131
Todo quanto é é um italianismo (tu/lo quanto). Significa «todo inteiro».
132
Op. cit., pp. 246-247.
133
História de S. Domingos, parte 1, liv. m, cap. 24, cit. por Mário Martins, op.
cit., pp. 11-12. O texto do livro dos milagres foi editado por M. Martins na citada obra.

90
desde as mais singelas e ingénuas até às mais sabiamente artís-
ticas.
Um dos processos utilizados é o das histórias exemplares, à
maneira do Calila y Dimna, do Conde de Lucanor, dos Canterbury
Tales, etc. A este género pertence a Confissão, ou Livro do Amante,
de John Gower, que D. João 1 mandou traduzir e que se encontrava
nas bibliotecas de D. Duarte e do infante D. Fernando, e ainda um
livro que parece ser um original português, o Horto do Esposo.
Esta obra, que, por uma referência feita à agitação do Interregno
como decorrida «poucos anos há», se pode datar de inícios do
século xv, se não de finais do século XIV, é um dos mais representati-
vos espécimes portugueses de algumas das tendências apontadas.
Redigida a pedido de uma freira, irmã do autor anónimo, que preten-
dia «um livro dos feitos antigos e das façanhas dos nobres barões e
das cousas maravilhosas do mundo e das propriedades das alimárias»
- isto é, um livro de edificação religiosa e moral à base de «enxem-
pros» (histórias exemplares), como o Conde Lucanor, Calila y
Dimna, Libro de los Gatos, etc.-, o autor termina cada capítulo
com uma história extraída de colecções congéneres, das Escrituras,
dos Fios Sanctorum, dos bestiários e anedotários históricos. Mas os
«exemplos» vêm embrechados numa exposição doutrinária sistemá-
tica, cujos principais temas são, sucessivamente, a doçura do nome
de Jesus, a meditação alegórica sobre o Horto, que são as Escrituras,
e sobre a vaidade e a transitoriedade de tudo o que é humano - te-
mas que o leitor já conhece do fundo de literatura mística medieval.
Um breve texto serve para amostra do espírito que anima o livro:
um cavaleiro foi em romaria à Terra Santa e, chegado ao monte Oli-
vete, onde Cristo concluiu a sua peregrinação na Terra e subiu ao
Céu, disse:
- Meu Senhor Jesus Cristo, não sei aonde vá mais empós ti;
neste lugar me faz um caminho pelo qual vá a ti. - E tanto que
isto disse logo lhe saiu a alma. E os seus serventes levaram-no a
um físico [médico] que lhes dissesse o que entendia daquele feito.
E o físico lhes perguntou pelas condições dele e eles lhe disseram
que era mui alegre no amor de Jesus Cristo. E disse-lhes o físico:
- Certamente, com grande prazer partiu-se pelo meio o seu cora-
ção. - E então abriram-lhe o costado e acharam-lhe o coração
aberto e partido, e estava dentro dele escrito: Jesus, meu amor.
Dirigindo-se a um público também leigo, mas mais selecto, a lite-
ratura religiosa utiliza ainda um processo muito característico do fim

91
da Idade Média, de que já encontrámos vários exemplos: o alego-
rismo didáctico, que se inspira em variadas fontes. É uma delas a
vida militar, que já nos primeiros tempos do cristianismo informa o
poema Psicomaquia, de Prudêncio. O tema de Psicomaquia, isto é,
da «luta da alma» entre os vícios e as virtudes, inspira numerosos tra-
tados morais e as «moralidades» do teatro litúrgico. Em Portugal
temos um exemplar do género no Castelo Perigoso, tradução de um
original francês -Le château périlleux- feita em fins do sé-
culo XIV, segundo uma interpretação, aliás errónea, de um passo de
Lucas, 8:38. Maria é simbolizada por um castelo muito bem guarne-
cido da cava da Humildade e do muro da Virginidade, e de privilé-
gios de todas as Virtudes, e da avançada de todas as Graças 134 • Há
o alegorismo campestre, ou fundamentado numa flora e numa fauna
mais fabulosas ou apocalípticas do que reais. Há o das pedras precio-
sas, com as respectivas relações astrológicas, e o dos objectos de luxo
ou de toucador. Entre 1447 e 1455 houve quem, por ordem de D. Isa-
bel, mulher de D. Afonso V, traduzisse um célebre livro de Cristina
de Pisano, Trésor de la cité des dames (ou Livre des trais vertus pour
l'enseignement des princesses), atribuindo-lhe o nome de Espelho de
Cristina, que é muito do gosto da época 135 • Uma obra existente na
biblioteca de Alcobaça intitula-se, dentro do mesmo estilo, Espelho
da Cruz 136 •
Dentro desta série de motivos alegóricos teve especial fortuna o
das visões, que se inspiram na literatura apocalíptica judaico-cristã,
em Dante e seus precursores muçulmanos, em Boécio, Marciano
Capela, Hroswitha, etc. A Visão de Túndalo, que sumariámos em
obra anterior, é uma boa amostra do género.
De toda esta literatura alegórica sobressai, pela vivacidade e brilho
literário, o Boosco Deleitoso 137 • O interesse com que a obra foi aco-
lhida durante o século xv em Portugal está atestado no facto de,
sendo um original de fins do século XIV ou começos do xv, segundo
o revela a análise filológica efectuada por Leite de Vasconcelos, ter
merecido as
honras da impressão nos começos do século XVI.
134
Publicado com notas e glossário por Augusto Magne em Revista Filológica, Rio,
vols. n.º' 15 e 18.
IV-V,
135
Vide Livros Antigos Portugueses, de D. Manuel II, pp. 344-355. Cf. Livro Cha-
mado «Espelho da Cruz», códice alcobacense CCLXXI, 221.
136
Vide Leite de Vasconcelos, Textos Arcaicos, pp. 63-67, e Lições de Filologia Por-
tuguesa, pp. 136-139; Livros Antigos Portugueses, vol. 1, pp. 286-299; Mário Martins,
«Petrarca no Boosco Deleitoso», in Brotéria, vol. 38, 1944, pp. 361 e segs., e ainda «À
volta do Orto do Esposo», in Brotéria, vol. 46, 1948, pp. 164 e segs.
137
Boosco Deleitoso, cap. cxuv.

92
Ao contrário do Horto do Esposo, cuja originalidade de redacção
parece muito provável, o Boosco Deleitoso é, em grande parte (70
capítulos), traduzido do De vila solitaria, de Petrarca - o «Dom
Francisco solitário», que figura entre os numerosos doutores, padres
e filósofos ou heróis que no texto exalçam a fuga para a solidão
meditativa. Leite de Vasconcelos, por análise filológica interna, con-
cluiu que a redacção deve ascender a fins do século XIV, inícios do
século xv, isto é, que deve ser coeva da do Horto, havendo quem
alvitre serem obra de um mesmo tradutor-redactor. A admiração que
estes dois livros, tão difundidos e apreciados, mostram pelo célebre
poeta florentino e o facto de no fundo alcobacense figurarem ainda
outras suas obras místicas (Sete Salmos Penitenciais, de Francisco
Petrarca, CCLXI/387, letra de fins do século xv) mostram que a sua
influência no meio clerical pode ser comparada à que exerceu na
lírica cortesã.
Uma breve análise e alguns extractos deste livro dão-nos a noção
da literatura espiritual no fim da Idade Média.
A introdução da obra lembra a alegoria de Dante na Divina Comé-
dia. Atormentada pela consciência dos próprios pecados, a Alma
vagueia sem destino por um bosque, até encontrar um guia, que não
é uma mulher, como em Dante, mas sim, muito mais ortodoxamente,
o Anjo da Guarda. Através de uma vereda espinhosa, entre árvores
rescendentes, o Anjo conduz a Alma sucessivamente à Justiça, à
Temperança, à Fortaieza, mas todas se negam a atender o pecador;
a Fé, a Esperança e a Caridade nem se dignam dar-lhe atenção. Até
que encontram a Misericórdia, que, compadecida, leva a Alma para
um palácio luminoso de cristal, onde se encontra a Escritura, rodeada
dos doutores da Igreja, santos e sábios gentios. A Escritura intenta
ensinar à Alma a palavra evangélica; a seu lado, a Justiça (uma espé-
cie de delegado do Ministério Público) acusa-a e ameaça-a com os
tormentos eternos; enquanto a Misericórdia (como advogado de
defesa) acode em socorro da Alma e lhe deixa entrever a salvação se
for capaz de arrependimento e penitência. Então a Escritura dá a
palavra aos «filósofos» (Cícero, Séneca, Quintiliano, etc.), aos dou-
tores da Igreja (Santo Agostinho, São Jerónimo, São Gregório, São
Tomás, Santo Ambrósio) e a uma multidão de outros santos (como
São Bernardo, São Francisco, Inocêncio III), que fazem o seu depoi-
mento acerca da vida solitária. Um «nobre solitário», D. Francisco,
é especialmente encarregado de fazer a sua apologia e de responder
às dúvidas e objecções de alguns, como Cícero e o próprio São Ber-
nardo, que se inclinam para uma vida monacal activa, completada

93
com o trabalho. O «nobre solitário» defende a forma mais ascética,
isolada e individual da vida solitária. Cada um deve salvar-se a si
antes de pensar na salvação dos outros. A Alma acaba por aceitar o
conselho que lhe é dado pela luzida assembleia e deixa-se levar para
o deserto. Deserto áspero e doloroso donde se avista um grande
monte. Depois de neste deserto se ter purgado dos pecados e lem-
branças da Carne, a Alma é admitida ao monte, onde o sofrimento
se troca pelo inefável gozo da contemplação de Deus. O autor
socorre-se de todos os recursos da arte literária para exprimir as
horas espantosas em que Deus visita a Alma. Sejam-nos perdoadas
algumas transcrições que definem certos aspectos do ambiente mona-
cal e anunciam um tipo de literatura que terá grande fortuna na
Península Ibérica, principalmente no século xvn.
A Alma prepara-se para a visita de Deus. Mas não pode recebê-lo
imediatamente porque não está bastante limpa. Por isso Deus não
entra logo: passa sucessivamente pelos vários aposentos de que a
Alma se compõe (as «moradas», como lhes chamará a mística espa-
nhola Teresa de Ávila), até chegar ao centro, o quarto onde está o
leito:

Oh, quanta tardança nesta espera me parecia, e por pouco que


fosse era mui aflitiva pelo grande desejo que sofria do meu
Amado. E dizia-lhe: - Espera um pouco, espera no horto,
enquanto lanço fora do coração esta companhia das cuidações e
das afeições que fazem grande ruído. Espera um pouco diante da
porta enquanto se prepara a câmara e o leito. - E, depois que
eram lançadas fora as companhias e a câmara estava arranjada,
dizia eu ao Amado: - Espera um pouco na câmara, enquanto se
prepara o leito, enquanto o seio mais de dentro da alma se compõe
e prepara e enfeita, para a mui grande paz e mui grande sos-
sego. - A minha alma então ouvia a voz do Senhor Deus, seu
esposo e seu amado quando se lembrava dele, e então tinha grande
desejo de o ver, e então o via quando se maravilhava da sua majes-
tade. E beijava-o pelo grande amor que lhe -tinha, e abraçava-o
pela grande deleitação que nele havia. Outrossim, ouvia a sua voz
por revelação, que ia crescendo pouco e pouco até que o ruído das
cuidações e das afeições todo era apagado, e tão-somente a voz do
Amado era ouvida, até que aquela companhia de ruído desapare-
cia. E então a minha alma ficava só a só com o Senhor seu esposo
mui amado. E ela, estando só, via e olhava a Ele só por contem-
plação até que,. pouco a pouco se ia aquecendo por olhar a visão

94
que antes não costumava ver, maravilhando-se da formosura do
Amado. E assim ardia mais e mais com amor, e por fim algumas
vezes se acendia até que chegava à verdadeira simplicidade toda
reformada em verdadeira pureza e em formosura de dentro. [... ]
E depois que o leito mais de dentro da minha alma estava perfeita-
mente preparado e ordenado e o Amado estava metido dentro,
crescia a confiança à minha alma, e tomava grande atrevimento,
e com grande atrevimento e com grande desejo que a constrangia
não se podia mais deter. E lançava-me subitamente aos beijos do
meu Amado e, com os beiços apegados nele, fincava-lhe beijos de
devoção mui de dentro do coração.
Quanta pensais vós que era a minha bem-aventurança· quando
o Senhor Deus estava mui dentro em minha alma e no meu cora-
ção? Oh, de quantas trevas era tirado o meu espírito e a quantas
claridades era convertido! Oh, se soubésseis aqueles compreendi-
mentos de dentro que estão naqueles segredos mui apartados que
a minha mente compreendia! Oh, se soubésseis aquelas luzentes
iluminações e aqueles esplendores ferventes.e aqueles raios simples
e aqueles puros lumes e aqueles ardores de vida e aqueles sabores
pacíficos e aquelas mui deleitosas doçmas, então receberíeis e
entenderíeis cousas não conhecidas e que se não podem nomear,
mas que se podem ter por prova e por experiência. Oh, amigos! Se
vós soubésseis por prova e por experiência e por gosto estás cousas
que tenho ditas, cuido que custosamente sofreríeis as trevas da
nossa vida, assim como eu fazia. Porque eu dizia muitas vezes em
meu coração: - Oh, quando será isto? Oh, se será isto? Oh, se
verei isto? Quando? Quando? Quando? Oh, que grande tardança
e muito para chorar o prolongamento destas cousas! E dizia eu
outrossim ao Senhor Deus em meu coração: -Ah, ah, ah! Oh meu
Deus que cousa sou eu a ti, ou que cousa és tu a mim? Mas qual
é a cousa que tú não és a mim? Porque tu és a mim todas as cou-
sas. - Todas estas palavras dizia eu em silêncio dentro no meu
coração_ E, estando eu neste gozo deste silêncio calado, saía fora
de mim, e a minha mente e a minha alma era posta sobre si
mesma. E depois entrava dentro com o Senhor em mim mesmo.
E, depois que a minha mente e a minha alma entrava, então desfa-
lecia das suas forças naturais. E, depois que era trespassada em
outro estado, então tomava e recebia em si da doçura e do lume
do Senhor. E, depois que recebia, então era transformada. E, de-
pois que era transformada, então entrava mui por dentro no Se-
nhor. E, depois que assim era mui dentro, então se movia naquele

95
amor do Senhor. E, depois que sabia e conhecia aquele amor,
então havia mui grande folgança e sossego naquele silêncio 138 •
Assim, a Alma tinha já em vida o antegozo do Paraíso. Mas
suspirava por sair deste mundo para subir à vida celestial, que já
cheirava e gostava. Um dia, enfim, «ouvi com as orelhas espanto-
sas da minha alma uma voz do meu amado Jesus Cristo, que lhe
dizia assim: - Levanta-te, amiga minha esposa, e vem-te ao paço
celestial. Porque já passou o inverno da vida do mundo que assim
como frio te apertou até agora. Já passaram as chuvas das muitas
mesquindades sem conto que passaste. As flores das tuas obras
apareceram ante mim e deram bom odor de virtudes na terra celes-
tial. Levanta-te depressa, amiga minha, formosa minha, pomba
minna, esposa minha, e vem-te, porque eu cobiço a tua formo-
sura. Vem-te para te alegrares ante a minha face com os meus
anjos, cuja cbmpanhia te tenho prometida. E, pelos perigos e tra-
balhos que tiveste no mundo, entra no prazer do teu Senhor, que
nunca te será tirado. - Quando a minha alma ouviu estas tão gra-
ciosas e tão doces palavras do seu Senhor Deus e do seu amado
Jesus Cristo, foi toda derretida com mui ardente amor e respon-
deu, com grande prazer, desta maneira: - Formoso e gentil és tu,
meu Amado. Leva-me atrás de ti e eu correrei atrás do perfume
dos teus unguentos, porque, assim como deseja o cervo as fontes
das águas, assim eu desejo a ti, meu Senhor Deus. Grande sede e
grande desejo tenho de ti, Senhor Deus, fonte viva. Quando irei e .
aparecerei diante da tua face? Quando me trespassarei ao lugar da
tua celestial glória, e tua morada e maravilhosa casa da tua majes-
tade, em que te veja na face claramente? Quando serei satisfeito e
farto? Certamente, Senhor, eu não posso ser farto nem a minha
alma satisfeita senão quando vir a tua glória, que é a tua face. Por
isso tira-me desta carne e leva-me para a tua glória. - E foi neste
diálogo que a Alma se saiu do corpo, nos braços do Anjo da
Guarda. E ia cantando com ela mui docemente».

§ 31. Uma tradução portuguesa


da Imitação de Cristo
O beneditino Frei João Álvares, que já conhecemos como refor-
mador do mosteiro de Paço de Sousa, visitou em 1467-68 a corte de
138
Boosco Deleitoso, cap. cL.

96
Borgonha, atraído, como outros portugueses, pela duquesa Isabel,
filha de D. João 1. Nessa época já estava difundido na Borgonha e
noutras regiões do Norte da Europa o movimento conhecido por
devotio moderna, uma expressão mais da penetração da religiosidade
nos meios laicos. Os seus praticantes, inspirados por Ruysdael, o mís-
tico flamengo, consagravam-se ao trabalho e à oração, em comuni-
dade, reduzindo ao mínimo a curiosidade teológica e as formalidades
rituais e abolindo entre si a hierarquia. Chamavam-se os «irmãos da
vida comum». Centravam-se, como os Franciscanos, na adoração da
humanidade de Cristo, na Paixão e na Cruz. Podemos relacionar
com esta tendência Ludolfo da Saxónia (m. 1378), autor de uma Vita
Christi que foi muito conhecida em Portugal desde o século xv.
A expressão principal da devotio moderna é a Imitação de Cristo,
atribuída a Tomás de Kempis, o livro mais popular e mais editado da
cristandade depois da Bíblia.
Frei João Álvares conheceu em manuscrito a Imitação de Cristo e
traduziu a primeira parte, que enviou de Brµxelas aos seus monges de
Paço de Sousa 139 •
A tradução da Imitatio Christi acompanhava uma carta datada de
Bruxelas de 20 de Setembro de 1468 (e que se conhece numa cópia de
1477), cuja atribuição a Tomás de Kempis se funda na verificação de
idiotismos sintácticos flamengos. Por isso, como observa Magalhães
Basto, a versão portuguesa, pelo local e pela época em que foi feita,
e porque se confina à primeira parte do famoso livro, constitui um
elemento importante na longa e emaranhada polémica que se trava
em torno da autoria e do cânone da Imitação.
Frei João Álvares encontrou neste livro um ideal monástico a con-
trapor aos abusos de que o seu mosteiro dava um exemplo típico e
escandaloso. Nele se propunha Jesus Cristo como modelo a imitar e
se mostrava a vaidade das coisas perecíveis, atrás das quais os homens
se afadigam, com perigo mortal para a vida verdadeira e perdurável.
A própria cultura intelectual é uma destas coisas vãs e sem sentido
em que a alma se arrisca a naufragar:

Todos naturalmente desejam saber, mas que aproveita a ciência


sem o temor de Deus; a la fé, nemigalha, porque certamente
139
Sobre Frei João Álvares ver o prefácio de Mendes dos Remédios à sua edição da
Crónica do Infante D. Fernando e Artur de Magalhães Basto nos Anais das Bibliotecas
e Arquivos, vol. xv11, n.º' 65-70. As cartas dirigidas de Bruxelas ao convento de Paço de
Sousa estão publicadas por J. P. Ribeiro, Dissertações, vol. I, pp. 352-367. A tradução
foi publicada por M. Basto, op. cit.

97
melhor é um rústico aldeão humildoso que serve Deus, que o
soberbo filósofo que não conhece a si mesmo e esquadrinha e con-
sidera o curso e o movimento do céu. [... ]
E muitas cousas há que pouco ou nemigalha aproveitam para a
alma de o saber. [... ]
Que aproveita a grande cautela e avisamento das causas escusas
e escondidas, pelas quais não havemos de ser demandados no Dia
de Juízo porque as não sabemos? [... ]
Ó verdade que és Deus, faz-me que contigo eu seja um em cari-
dade perpét4a. Pesa-me de amiúde ler e ouvir muitas cousas, por-
que em Ti está tudo aquilo que eu quero e que desejo. Calem-se
todos os doutores e todas as criaturas em tua presença, e Tu só me
fala' [... ]

O preceito socrático «conhece-te a ti próprio» figura entre as bases


da doutrina da Imitação, mas sempre interpretado no sentido de
«conhece a tua insignificância e os teus pecados» que, entre outros,
lhe deram S. 10 Agostinho e Abelardo:

O humildoso conhecimento de ti mesmo é mais certo caminho


para ires a Deus que a profunda inquirição e demanda da ciência.
[ ... ]
Humildade, paciência, prática da solidão, da meditação evangé-
lica, da castidade e autodomínio, da oração, da entrega total a
Cristo. Se nalguns passos se opõe o testemunho interior da fé à ciên-
cia presunçosa dos doutos, sob o aspecto disciplinar o preceito básico
é a sujeição completa:

Oh, como é grande cousa estar-se em obediência e viver sob pre-


lado, e não se ser d.e sua mesma jurisdição.
Aquelas cousas que homem em si ou nos outros não puder
emendar ou corrigir deve-o suportar com paciência até que Deus
doutra maneira o ordene e encaminhe.

A filosofia da Imitação, que por vezes tem sido comparada à do


auto-aniquilamento búdico no nirvana, aparece-nos nestes textos
(que são muito característicos de todo o conjunto da obra) como uma
filosofia da morte: a vida é uma simples oportunidade que se nos ofe-
rece de bem morrer, para conquistar a absolvição no Juízo Final.
«Lembra-te sempre do fim» é o seu constante leit-motif

98
Conhecemos já este tema pela literatura inspirada na vida solitária
dos monges da Síria (Vida de Santo Aleixo, Vida de Maria Egipcíaca,
Vida de Barlaão e Josafate) e pelo Boosco Deleitoso. Se bem que, em
pleno século xv, na aurora do humanismo e da ciência experimental,
numa época de desenvolvimento da técnica e das facilidades de vida,
a Imitação de Cristo ganhe um significado especial que não tivera a
tradição monástica do princípio da Idade Média.

99
PARTE II

A ACTIVIDADE INTELECTUAL
§ 32. Pedro Hispano: um escolar português
na Europa·
A Europa era ainda no século xm um espaço cultural centralizado
pela igreja romana. Não havia as fronteiras nacionais rígidas de hoje.
Em toda a parte se entendia o latim. O clero, em princípio, era inter-
nacional. Muitos estudantes e clérigos vagueavam entre os vários cen-
tros de culto e de saber. Portugueses andaram pela Itália e pela
França (não falando da Espanha, que não era estrangeiro), rrequen-
tando cursos e obtendo diplomas que os prestigiassem no seu país
natal. Vimos em obra anterior que, na época de D. Sancho 1, cóne-
gos regrantes de Santa Cruz foram subsidiados para fazer estudos em
França. Até bem tarde no século xv, os mais prestigiosos legistas de
Portugal eram formados em Bolonha.
Entre estes portugueses cosmopolitas conta-se Pedro Julião, filho
de um médico e nascido em Lisboa, no primeiro quartel do sécu-
lo XIII. O nome de Pedro de Espanha (ou Hispano) vem-lhe da época
em que frequentou a Universidade de Paris, onde muitas vezes os
estudantes eram conhecidos pelo nome da região de origem aposto ao
nome próprio. Ainda então se confundiam na designação de Espanha
os vários reinos da Península Ibérica. Em Paris graduou-se em Artes.
É quase certo que ali exerceu o magistério, porque a obra mais
conhecida de Pedro é um compêndio de dialéctica adaptado ao
ensino da Universidade parisiense.
Pedro Julião não se ficou pela França. A partir de 1247 vemo-lo
a ensinar Medicina na Universidade de Siena, grande foco de estudos
médicos, fecundado pela cultura árabe. O seu renome como clínico
abre-lhe caminho para a Cúria Romana, aonde o chama o cardeal
Ottobono Fieschi, futuro papa Adriano V. É a partir desta data que
começa na jerarquia eclesiástica a rápida ascensão de Pedro, até
então simples clérigo. Em 1261, no mesmo ano em que, como

103
médico, começou a tratar o cardeal, é nomeado deão da Sé de Lis-
boa. É depois arcediago da Sé de Braga, prior da Igreja de Santa
Maria de Guimarães (1268) e, por fim, arcebispo de Braga (1271).
Todos estes cargos foram para Pedro Julião formas de remuneração,
mais do que obrigações, visto que não há vestígios da sua estada em
Portugal, a não ser em 1272-73, anos em que visitou a corte em Lis-
boa e Santarém. Finalmente, é eleito cardeal e bispo de Túsculo por
Gregório X, em 1273. No ano seguinte acompanha este papa ao Con-
cílio de Leão.
Em 1276, o conclave para a eleição está dividido entre um partido
francês e um partido italiano e resolve escolher, como parte neutra,
o português Pedro Julião. Nos poucos meses que governou, o papa
João XXI seguiu fielmente o caminho traçado por Gregório X,
tomando como objectivos a união da igreja grega à igreja romana,
negócio que deixou bem encaminhado, e a preparação da cruzada.
Procurou pacificar o conflito entre Afonso X de Espanha e' Filipe-o-
Ousado de França. O seu nome ficou ligado à polémica teológica
suscitada pelo aristotelismo: em 1277, por sua ordem, o bispo de
Paris, Estêvão Tempier, proíbe que se ensinem nas escolas certas
teses dos aristotélicos, incluindo algumas de São Tomás de Aquino.
Morreu poucos meses depois de eleito, em 1277, num desastre
ocorrido nas obras do palácio papal de Viterbo 140 •
Como professor de Artes, Pedro Hispano compendiou o seu
magistério num tratado didáctico de Lógica, que conheceu uma
extraordinária fortuna, a ponto de poder ser considerado a obra
típica da lógica medieval: as Summulae logicales. Este livro, escrito
num estilo dogmático, com fórmulas mnemónicas e versificadas, con-
vinha ao tipo de ensino de alguns mestres. Por isso foi adoptado em
algumas universidades como texto das aulas de Lógica, em substitui-
ção das obras do próprio Aristóteles. E Dante não se esqueceu de lhe
guardar um lugar na grande síntese da Idade Média que é a Divina
Comédia.
Como médico e professor de Medicina, deixou Pedro Hispano
diversos opúsculos de comentários a Aristóteles, ou de exposição de
observações pessoais, como um tratado acerca dos olhos, De oculis.
Mas tornou-se conhecido principalmente pelo Thesaurus pauperum,

140
Sobre a biografia de Pedro Hispano há excelentes resumos em Queirós Veloso,
Bibliografia Geral Portuguesa, vol. 11, pp. x-x1v, e em Carreras y Artau, Filosofía cris-
tiana de los siglas xm ai xv, vol. 1, pp. 101-102. Qualquer deles é posterior ao estudo de
Joaquim de Carvalho na História de Portugal, ed. de Barcelos, vol. 1v, pp. 493-512.

104
espécie de enciclopédia médica em que as doenças e seus curativos são
expostos sistematicamente, a começar nos cabelos e a acabar nos pés.
Resultado da actividade pedagógica de Pedro Hispano são ainda
um importante comentário ao De animalibus, de Aristóteles, e uma
exposição acerca da alma, há poucos anos descoberta. Esta última,
obra, intitulada De anima, é uma exposição sistemática de psicologia
especulativa, e não um comentário a um texto de uma autoridade
à maneira característica das universidades medievais. A influência
de Aristóteles combina-se neste livro com a dos autores árabes e
judeus.
O número extraordinário de manuscritos, a partir do século xv,
de edições do Thesaurus pauperuln e principalmente das Summulae
logicales, e o terem sido estes livros adaptados em diversas universi-
dades atestam suficientemente a influência de Pedro Hispano no
campo da lógica escolar e da medicina. Ele foi, a partir do sé-
culo XIII, o professor de Lógica e de Medicina mais concorrido da
Idade Média. Mas esta influência escolar não corresponde a qualquer
significado especial na história do pensamento medieval. As Summu-
lae logicales e o Thesaurus pauperum interessam hoje ao historiador
como resumos do ensino da Lógica em Paris e dos conhecimentos
médicos - e não pelo seu papel na história das ideias.
Em Portugal, a influência de Pedro Hispano está documentada,
mas tardiamente. Pelo menos nas livrarias de Alcobaça e Santa Cruz
não aparecem códices portugueses das suas obras e tudo nos leva a
crer que ele só entrou como autoridade na sua pátria de origem no
século XVI, depois de se ter tornado uma autoridade mundial 141 •
A Lógica, ou Dialéctica, era, como vimos, a mais importante das
disciplinas do trívio. Pedro Hispano define-a como «a arte das artes,
a ciência das ciências», caminho «para os princípios de todos os
métodos», de tal maneira que na aquisição das ciências deve ter a
prioridade. Por outro lado, a alma do ensino universitário medieval
é o comentário e a discussão em torno do texto. A definição dos ter-
mos, a análise da proposição, as ligações entre as proposições, a vali-
dade de uma conclusão, tais eram os métodos de que se serviam os
mestres e escolares na aquisição de toda e qualquer ciência, nomeada-
mente em Paris. O estudo do Direito e a discussão dos textos legais
ainda em nossos dias perpetuam este método.

141
Há traduções portuguesas do Thesaurus pauperum, mas muito mais tardias.
A mais antiga é de 1613. Ver Queirós Veloso, Bibliografia Geral Portuguesa, vol. u,
pp. 311 e segs.

105
As Summulae logicales têm por objectivo oferecer regras para este
tipo de comentário e de discussão. Começam naturalmente pela aná-
lise gramatical, porque, diz Pedro, não pode haver discussão sem dis-
curso, nem discurso sem palavra, nem palavra sem som. Eis porque
o autor inicia o seu tratado de Lógica pelo estudo do aparelho
fonador.
No desenvolvimento da obra, Pedro Hispano resume a Lógica tra-
dicionalmente ensinada na Idade Média, baseada nos tratados de
Porfírio e Boécio; mas acrescenta-lhe a Lógica Nova, que, durante o
século XII, se impõe nas universidades em resultado da descoberta de
vários tratados de Aristótéles, anteriormente desconhecidos. O grande
papel das Summulae logicales é precisamente tornar facilmente
acessível a nova matéria de Aristóteles. Depois de analisar a proposi-
ção e o juízo, o autor expõe a teoria dos universais segundo ~orfírio
(género, espécie, próprio, diferença e acidente); a teoria das catego-
rias segundo Aristóteles (salientando a substância, a quantidade, a
relação e a qualidade); a teoria do silogismo segundo o mesmo Aris-
tóteles; os tópicos, ou espécies de raciocínio, segundo Aristóteles
também; ocupa-se especialmente dos sofismas, como convém a um
tratado que pretende ensinar a arte de discutir; finalmente, na parte
mais original da obra, volta à teoria da Gramática, analisando o que
é o termo e a significação, definindo as suas propriedades.
Muito embora baseado em Aristóteles, o tratado de Pedro His-
pano não reflecte o verdadeiro espírito aristotélico. Aristóteles preo-
cupava-se com os fundamentos da demonstração científica e foi um
observador notável, autor de aquisições importantes nas ciências da
natureza, resultantes da observação pessoal. Nas Summulae logicales,
de acordo com o ensino da Faculdade de Artes de Paris, pelo contrá-
rio, a demonstração científica reduz-se a uma mera disputa de pala-
vras. Alguém pôde pronunciar sobre essa obra o seguinte juízo:
As Summulae de Pedro Hispano não se ocupam das teorias
lógicas das ciências: são um manual de esgrima dialéctica 142 •
Este juízo é, no entanto, unilateral se o aplicarmos a toda a obra
de Pedro Hispano, em particular à sua obra científica de médico e
psicólogo.
Nos seus vários opúsculos de medicina, Pedro Hispano mostra-se
fortemente influenciado pelo espírito científico dos Gregos - Hipó-
crates, Galeno e Aristóteles - e dos Árabes - em especial Avicena.
142
M. De Wulf, Histoire de la philosophie médiévale, vol. n, 1936, p. 85.

106
Por aí escapa ao formalismo do pensamento parisiense medieval e
adere à tendência experimental dos mestres gregos e árabes da ciência
médica. A este fundo de cultura livresca acrescenta Pedro Hispano o
caudal das suas experiências pessoais de médico profissional.
Não faltam todavia no seu receituário as orações e outras práticas
de antiquíssima tradição mágica.
Deve assinalar-se o facto de no seu trabalho de psicologia, De
anima, Pedro Hispano estudar os órgãos fisiológicos da vida psí-
quica, esboçando uma definição da relação entre uns e outros.
E, o que é mais significativo desta orientação experimentalista e
positivista do nosso autor, deixou-nos ele um esboço da teoria da
experiência: distingue a experiência empírica (dos irracionais ou dos
ignorantes) da experiência científica, que conduz a um conhecimento
racional. Para este segundo tipo de experiência exigia Pedro Hispano
um certo número de condições. Um historiador da filosofia peninsu-
lar vê nesta «teoria da experiência» um prelúdio das doutrinas de
Francis Bacon 143 •

§ 33. A livraria de Alcobaça


A biblioteca de Alcobaça, que, como vimos, contém cerca de 500
códices manuscritos, sucessivamente acumulados durante os sé-
culos xm, XIV e xv, reúne a maior parte dos livros utilizados pelos
clérigos, quer para o serviço religioso, quer para leitura e meditação,
quer para aprendizagem escolar. Podemos servir-nos do catálogo
dos códices de Alcobaça 144 para procurar indícios da actividade in-
telectual (além da religiosa) correspondente ao período que nos
ocupa.
Esta biblioteca eclesiástica não é a única. Já falámos em obra ante~
rior da importante livraria de Santa Cruz de Coimbra. E há notícia,
por exemplo, de uma biblioteca legada por testamento à Sé de Braga
em 1462. É constituída por livros que pertencem «a direito canónico

143
Carreras y Artau, op. cit., vol. 1, p. 143. O estudo do experimentalismo de Pedro
Hispano (que aqui resumimos) ocupa nesta obra as pp. 141-143. Sobre a medicina de
Pedro Hispano ver ainda Egas Moniz, O Papa João XXI.
144
Sobre a livraria de Alcobaça ver: Index Codicum Bib/iothec<li! Alcobati<li!, sem
nome de aufor, 1775; Frei Fortunato de São Boaventura, Commentariorum de Alcoba-
censi manuscriptorum Biblioteca libri tres e História Chronológica e Crítica da Real
Abadia de Alcobaça; A. de Ataíde e Melo, Índex dos Códices Alcobacenses da Biblio-
teca Nacional de Lisboa.

107
e civil e a direito divino e a contemplação por devotos fiéis e que per-
tencem a devota contemplação» 145 •
A maior parte dos códices de Alcobaça são copiados em latim e
alguns são cópias de traduções. O fundo mais antigo e mais impor-
tante da biblioteca é constituído pela literatura patrística. Santo
Agostinho é o autor que possui maior número de obras e de exempla-
res; segue-se São Gregório Magno. A alguma distância, Orígenes,
São Jerónimo e S. 10 Ambrósio incluem-se neste grupo.
Outro grupo importante é constituído por místicos, entre os quais
sobressai o próprio São Bernardo e, a par dele, os «vitorinos», místi-
cos formados na Abadia de São Vítor, com numerosos códices, e
Ricardo de São Vítor.
Não faltam, como é de esperar, as glosas, catenas, dicionários
bíblicos e outras obras deste tipo, pelas quais os monges aprendiam
a interpretar e a explicar a Escritura.
A teologia está representada principalmente por· dois autores:
Pedro Lombardo, o autor das Sentenças, e São Tomás de Aquino.
Não falta S. 10 Anselmo de CantUária a representar a especulação
religiosa anterior ao tomismo. Todavia, faltam os grandes autores da
escolástica (nem Escoto Erigenes, nem Abelardo, nem Alberto
Magno, nem Duns Escoto, nem Roger Bacon, nem Guilherme
d'Occam, nem São Boaventura, nem sequer Pedro Hispano, o papa
português). Há uma excepção notável, Raimundo Lúlio (cópia do
século XVI). Esta lacuna parece revelar a falta de contacto com os
grandes centros da especulação teológica e filosófica, Paris e Oxford.
Quanto à sabedoria profana, encontramos os restos da ciência
antiga compilados por S. 10 Isidoro nas Etimologias e dois filósofos
cristãos, ou cristianizados, da antiguidade: Cassiodoro e Boécio (com
a célebre De consolidatione philosophiae). De Aristóteles encontramos
na livraria um códice latino do século XIV que contém a Dialéctica e
treze Tópicos e Elencos, de Aristóteles, por onde se fazia o estudo da
Lógica; e um outro códice, da segunda metade do século xv, que
contém obras mais recentemente reveladas do mesmo Aristóteles: a
Física, a Ética, a Política e a Economia, e já traduzidas em português
por Leonardo Bruno (falecido em 1444).
Temos de considerar também um género de literatura em que
devoção se mistura com o romanesco, especialmente num códice em
que se conta a vida de Barlaão e Josafat, a de SY Maria Egipcíaca,

145
P.< Avelino Jesus da Costa, Fragmentos Preciosos de Códices Medievais, cit. por
M. Martins, Escudos de Literatura Medieval, 1956, p. 94.

108
a de Társis e a de S. 1ª Pelágia, que são histórias de cortesãs conver-
tidas, a de S. 10 Aleixo, o Conto de Amaro, a História do Cavaleiro
Túndalo e outras obras de éarácter diferente, todas traduzidas em por-
tuguês. Já resumimos em obra anterior parte do conteúdo destes
códices.
Quase não há vestígios na livraria de Alcobaça dos poetas e prosa-
dores profanos da antiguidade e da Idade Média; e são raras as obras
de história. De uma maneira geral, pode afirmar-se que a patrística,
representada principalmente por S. 10 Agostinho, e os livros de «Con-
templação», como o Pseudobernardo, eram o alimento literário dos
monges.
A maior parte dos códices de Alcobaça são latinos; mas encontram-se
lá também várias traduções portuguesas dos séculos XIV e, sobretudo,
XVI, entre elas da Vita Christi, de Ludolfo da Saxónia, dos Autos dos
Apóstolos e até, ao que parece, originais portugueses, pelo menos o
Horto do Esposo, traduzido na primeira metade do século xv.

§ 34. Precedentes da Universidade em Portugal


Antes da Universidade, nos séculos XII e XIII, existiram em Portu-
gal as escolas conventuais de Santa Cruz, Alcobaça e provavelmente
outras, que eram frequentadas principalmente por futuros eclesiásti-
cos. Também muitos dos letrados portugueses se formavam em uni-
versidades de além-Pirenéus. Mas, por um lado, o ensino, que pri-
meiramente tem em vista o serviço religioso, tornava-se cada vez mais
indispensável à actividade jurídica que um estado cada vez mais cen-
tralizado e uma economia cada vez mais mercantil exigem e, por
outro lado, o recurso à medicinà generalizava-se. Assim, três ramos
de saber estavam crescentemente procurando profissionais: o teoló-
gico, o jurídico e o médico.
Já existiam e tinham um passado mais ou menos longo, em
França, as Universidades de Paris, Bolonha, Montpellier e Toulouse
e, úa Espanha, as de Palencia (fundada entre 1212 e 1214) e de Sala-
manca (cerca de 1215) quando em Portugal se manifestou a mesma
necessidade. O. primeiro sinal é ·a criação no Mosteiro de Alcobaça de
uma Escola de Gramática, Lógica e Teologia, aberta tanto a monges
como a pessoas de fora, por iniciativa do abàde Estêvão Martins, em
1269. Diz-se no documento de fundação desta Escola:

«Em todas as criaturas», segundo o seu prólogo, «está posta


uma luz natural de inteligência pela qual se nos facilita o caminho

109
de podermos vir ao natural conhecimento do Criador, já deposta
a escuridade da primeira ignorância: todos os homens (se pudesse
ser, comodamente) houveram de procurar com diligência o benefí-
cio da sabedoria.» Por esta razão, o abade e o convento resolvem,
«para comum utilidade de nossos monges e de todos os mais que
desejarem adquirir a incomparável riqueza da sabedoria», instituir
no mosteiro «um contínuo e perpétuo estudo de Letras», dotan-
do-o com rendas pára a sua conservação e sustentação dos seus
mestres 146 •

O que há de notável nesta fundação é de~tinar-se não apenas ao


ensino dos monges, mas também ao dos leigos. O historiador Rash-
dall entrevê nesta iniciativa uma tentativa, única na história das uni-
versidades europeias, para fundar uma uníversidade monástica 147 •
Como quer que seja, os termos do documento da fundação, a refe-
rência à «luz natural da inteligência» como algo de intrinsecamente
bom e o encarecimento da «incomparável ri,queza da sabedoria» tra-
zem-nos a aragem de um novo ambiente cultural que,. a partir do
século XII, sucede à chamada «Idade das Trevas». ' ,

§ 35. O IDQ".'iniento europeu das universidades


Diferenças fundamentais quanto ao ensino separam as duas épocas
que é costume confundir sob a mesma designação inadequada de
Idade Média. Na primeira época, a cultura elabora-se principalmente
nos conventos e tem um carácter dogmático e prático. Os clérigos
preparavam-se, pela leitura da Bíblia e dos comentários dos Santos
Padres, para o exercíé:io das funções sacerdotais. Vimos já como,
desde fins do século XI, o ensino transborda dos claustros conven-
tuais para as escolas, mais livres, das sés, algumas das quais ganham
grande prestígio devido ao magistério de professores notáveis. Entre
outras, as de Chartres e Paris vêem multiplicar-se os seus alunos.
Multiplicam-se as licenças para ensinar (licenciae docendi) concedidas
aos que concluíam os cursos das escolas iPiscopais; e numerosos pro-
fessores, sob o controlo mais ou menos frouxo do bispo, exerciam o
seu mister fora e em torno delas. Há professores que fazem concor-
rência às escolas episcopais donde tinham saído, como o célebre Abe-

146
Ver texto e tradução em Frei Manuel dos Santos, Alcobaça Ilustrada, pp. 100-101.
147
The Universities of Europe in the Middle Ages, vol. n, p. 102.

110
lardo, que fundou uma aula de Teologia, em rivalidade com a escola
episcopal de Paris, nas proximidades desta.
Os novos professores, formados nas disciplinas do trívio, com a
preparação da Lógica, ou Dialéctica, esforçam-se naturalmente por
dar ao seu magistério estrutura, unidade e sistematização. Preocu-
pam-se eles com a organização de uma matéria coerente, de uma
exposição clara e inteligível. A Teologia, até aí dogmática e assiste-
mática, é penetrada pela Lógica, quer ordenar-se num sistema alicer-
çado em razões. É também a Abelardo (precursor de São Tomás de
Aquino, embora perseguido por São Bernardo e condenado por heré-
tico no Concílio de Soissons, em 1211) que se deve em g'rande parte
a introdução do espírito lógico no ensino da Teologia.
Assim, à medida que se vai profissionalizando e tornando uma
actividade autónoma, o ensino cria a sua própria base intelectual,
também autónoma, em relação ao antigo ensino monástico. É deste
duplo movimento que nasce a Universidade de Paris, cuja importân-
cia resulta do seu papel não apenas na evolução das instituições de
ensino, mas também na evolução do pensamento europeu.
Pelo seu impulso, pelo entusiasmo que suscitou, pelo interesse uni-
versal que despertou, o movimento das universidades, que atinge o
auge durante o século XIII, é de tal ordem que o historiador que esta-
mos seguindo nesta exposição só soube compará-lo com o das
cruzadas 148 • Os papas, os imperadores da Alemanha e os reis da cris-
tandade porfiaram na fundação de universidades; as grandes cidades
do Norte da Itália; do Sul da França e da costa mediterrânea da
Espanha esforçaram-se também por as estabelecer nos seus territórios
principais; os cleros nacionais fizeram requerimentos colectivos aos
papas para conseguirem a sua fundação; em toda a parte estava
aberta a porta para os professores em conflito com a autoridade
papal ou régia, de modo tal que várias universidades se formaram
pelo acolhimento e protecção a professores emigrados, como a de
Oxford. Até ao fim do século XIII fundaram-se 46 universidades 149 •
De todos os países da Europa acorriam estudantes às universidades
mais célebres, especialmente a Paris e a Bolonha, em tais proporções
que o citado Rashdall calcula em 4000 ou 5000 os que frequentavam

148
Rashdall, op. cit., 1895, vol. 111, p. 694. O leitor pode encontrar um resumo dos
três volumes de Rashdall, feito por ele mesmo, na Cambridge Medieval History, vol. v1,
1936.
149
Segundo Deniffle, cit. por Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra,
vol. 1, p. 116.

111
Paris na primeira metade do século XIII, número notável se atender-
mos às modestas proporções das cidades medievais.
A Universidade de Paris nasce em torno do núcleo de professores
formados nas escolas episcopais, constituídos em corporação, que
procura libertar-se da tutela do bispo - é uma universitas magistro-
rum, uma associação de professores. A de Bolonha constitui-se em
torno da corporação ou associação dos estudantes, que -estipendia-
vam os professores - é uma universitas scholarium, uma associação
de alunos.
A Universidade de Paris tem uma origem eclesiástica e desenvolve
principalmente o ensino da Teologia. Torna-se uma escola de especu-
lação teológica. O seu precursor, Abelardo, salientou-se pela posição
tomada nas polémicas teológicas da sua época. Posteriormente, esta
Universidade tornou-se o grande bastião da ortodoxia católica, a
ponto de um papa (Alexandre IV, em 1255) definir nestes termos o
seu papel na cristandade:

A ciência das escolas de Paris é na santa igreja como a árvore


da vida no paraíso terrestre e como a lâmpada resplandecente na
casa do Senhor. Como uma mãe fecunda de erudição, ela faz jor-
rar abundantemente das fontes da doutrina da salvação os rios que
vão regar a face estéril da Terra, ela alegra em toda a parte a
cidade de Deus e subdivide as águas da ciência, que faz correr pela
praça pública para refrescar as almas sedentas de justiça 150 •

Quanto à Universidade de Bolonha, oriunda talvez das escolas


romanas de Retórica (que constituíam o núcleo do ensino do Império
Romano e que nunca desapareceram completamente de Itália), tem
uma origem laica, o que é confirmado pelo facto de a licentia docendi
ser ali conferida pelo corpo professoral, e não pelo bispo. Ministrava
o Direito Romano e ficou sendo por muito tempo o principal foco
dos estudos jurídicos na Europa. A Medicina era ensinada tanto em
Paris como em Bolonha.
Tais são os dois modelos seguidos pelas universidades que poste-
riormente se fundaram: o tipo de Bolonha, em que a direcção per-
tence à associação dos estudantes, impôs-se, de maneira geral, no Sul
da Europa, particularmente na Península Ibérica; o tipo de Paris, em
que a direcção pertence à associação dos professores, impôs-se princi-
palmente no Norte.

'
5
º Cit. por E. Gilson, La philosophie du Moyen-Âge, 1930, p. 135.

112
Mas tanto Bolonha como Paris oferecem uma característica
comum no seu modo de formação: geram-se espontaneamente, e não
por um acto de autoridade pontifical ou régia. A sua existência, que
é um facto a partir dos fins do século XII, só vem a ser reconhecida
de direito, contra resistências tenazes, durante o século seguinte.
Outras universidades se constituíram independentemente da autori-
dade: é o caso das que se formaram por emigrações de professores
descontentes ou em greve, como aconteceu em Oxford, em Pádua e
noutras cidades. A seguir ao estabelecimento e reconhecimento destas ·
universidades de criação espontânea assiste-se à fundação de uma ter-
ceira série: a das universidades decretadas pelo papa, pelo imperador,
ou por reis.
A palavra «universidade» (universitas) significa na Idade Média
«corporação». Tanto se aplica a professores e estudantes, como a
mercadores ou industriais.
Ao lado da universitas magistrorum e da universitas scholarium,
ouvimos falar da universitas mercatorumltaliae nundinas Campaniae
ac regni Franciae frequentantium («corporação dos mercadores
da Itália que frequentam as feiras da Campânia e do reino de
França» 151 ).
A expressão que exprime a ideia de universidade, no sentido de
instituição escolar, é studium generale, «estudo geral». Entendia-se
por «estudo geral» aquele que podia ser frequentado por alunos de
toda a parte e cujos graus tinham também um valor universal.
O estudo geral conferia a licentia ubique docendi (donde derivou o
título de licenciado). Em teoria, o licenciado por um estudo geral
podia ensinar em todas as outras escolas, e de facto os licenciados
pelas universidades mais famosas, como Bolonha, Paris e Oxford,
eram admitidos ao magistério noutras universidades sem prévio
exame. Mas, para conferir valor universal ao ensino dos «estudos»,
quer quanto à proveniência dos frequentadores, quer quanto à vali-
dade dos graus universitários concedidos, eles tinham de ser legaliza-
dos ou pelo papa, chefe espiritual da cristandade, ou pelo imperador
da Alemanha, que se considerava e era por muitos acatado como o
chefe temporal da mesma cristandade.
Na Península Ibérica, porém, que nunca girou na órbita do impe-
rador, os reis consideraram-se competentes para criar estudos gerais
por autoridade própria.

151 Mencionada por Pirenne, Histoire Économique et Sociafe du Moyen Age, PUF,

1969, p. 82.

113
Afonso X-o-Sábio, nas Partidas, estabelece expressamente que os
estudos gerais são criados por autoridade do papa, do imperador ou
dos reis 152 •
·A maior parte das universidades da Península Ibérica devem aos
reis a iniciativa da sua fundação. Não parece entretanto que o reco-
nhecimento da faculdade de ensinar em toda a parte, característica do
estudo geral; fosse de facto alcançado pelas universidades de exclu-
siva fundação régia. Essas escolas eram gerais apenas em relação ao
reino a que pertenciam (respectu regni, segundo a fórmula dos
juristas).
Nem todas as universidades tinham o mesmo currículo; e muito
raras ofereciam um quadro completo de estudos. Grande parte delas
não ensinavam mais que as Artes (isto é, as sete artes liberais)
faltando-lhes a Medicina, o Direito e a Teologia. Pouco mais de um
terço das 46 universidades fundadas até 1400 tiveram Faculdade de
Teologia; e o ensino desta disciplina foi sistematicamente interditado
pelos papas durante o século XIV 153 •
Os papas esforçaram-se por contrariar em Paris o ensino de Teolo-
gia, sem deixar, mesmo em Paris, de fomentar a nomeação para a
Faculdade de Teologia de professores dominicanos e franciscanos, o
que não impediu as dissidências. Por ocasião do Grande Cisma do
Ocidente, os mestres de Paris apoiavam o papa de Avinhão, o que
lhes valeu a oposição de Roma.
O paradigma de uma universidade completa eram cinco grandes
faculdades: Artes, Leis (ou Direito Civil), Cânones (ou Direito Canó-
nico), Medicina e Teologia ..
As Artes, que constituíam como que um curso preparatório para
as faculdades superiores, conferiam o grau de bacharel aos que cur-
sassem durante certo tempo a Gramática e a Lógica, ou seja, o trívio
(aliás incompleto), e o grau de licenciado aos que o completassem
com as disciplinas do quadrívio. No século XIV acrescentou-se às dis-
ciplinas tradicionais do quadrívio o estudo da Física, de Aristóteles,
cuja leitura ainda em 1236 era proibida pelos Estatutos da Universi-
dade de Paris.
Só depois da licenciatura em Artes, que demorava cinco a seis
anos, tinha o estudante acesso às Faculdades de Medicina ou de Teo-
logia. Em Paris podia frequentar-se o Direito Canónico sem o prévio
bacharelato em Artes.

152
Partida 11, tít. 31, lei 1.
153
Ver Rashdall, op. cit., vol. 1, p. 13.

114
A Faculdade de Teologia era a cúpula do edifício universitário.
O doutoramento nesta Faculdade só se conseguia ao cabo de 12 a 14
anos de frequência e a licenciatura exigia 11 a 12 anos, se bem que
a matéria se reduzisse ao estudo do texto latino da Bíblia e das Sen-
tenças, de Pedro Lombarda 154 •
O alojamento e a disciplina dos estudantes nas estreitas cidades
medievais causavam problemas às autoridades. Como clérigos e súb-
ditos do papa, eram isentos da lei civil e respondiam perante juízes
eclesiásticos. Muitos jovens boémios, arruaceiros e vagabundos
acobertavam-se com esta isenção.
O alojamento desta população flutuante, que não raro vinha de
longe, era também um problema árduo. Normalmente, eles associa-
vam-se em casas comuns, de que as «repúblicas» coimbrãs ainda há
pouco tempo conservavam a tradição, elegendo o seu responsável
perante a autoridade universitária. ~
Para obviar à dificuldade de alojamento, os reis· tabelavam por
vezes os preços das casas de aluguer. Alguns beneméritos, no intuito
de empregarem o seu dinheiro de maneira proveitosa à salvação da
sua alma, fundaram hospícios, «hospitais», ou colégios para albergar
estudantes «pobres», isto é, aqueles que não podiam pagar residência
própria. Os primeiros colégios conhecidos datam dos fins do
século XII, em Paris 155 •
Primitivamente, o colégio não pàssava de um albergue; mas, para
comodidade dos estudantes, um mestre começou ali desde cedo a
repetir ou a explicar as lições do lente, a orientar o trabalho do aluno,
a obrigá-lo a exercícios. Pouco a pouco, os colégios convertem-se em
estabelecimentos de ensino que se substituem às aulas universitárias
e que, além disso, albergam os alunos e dirigem o seu trabalho.
Quando, no termo desta evolução, no século XVI, os colégios se con-
verteram em estabelecimentos de ensino, pôde considerar-se encer-
rada a fase medieval das universidades, que serão não mais já do que
federações de colégios.
Exemplo célebre desta transformação é a do hospício fundado em
1257 por Roberto Sorbon para estudantes de Teologia, que, sob o
nome de Sorbonne, virá mais tarde a substituir-se à Faculdade de
Teologia de Paris como foco principal dos estudos teológicos.

154
Deniffle, cit.. por Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, vol. 1,
p. 116.
155
De 1180 data o hospício que deu origem ao Hôtel-Dieu. Rashdall, The Universi-
ties [. . .], vol. 1, p. 482.

115
§ 36. As universidades na Espanha
Comparadas com as restantes universidades europeias, as da
Península Ibérica oferecem características particulares, algumas das
quais foram apontadas por Rashdall 156 •
A mais saliente delas é serem quase todas devidas à iniciativa régia
e fundadas por um acto de autoridade do rei.
A Universidade de Palencia deve a sua fundação a Afonso VIII de
Castela; a de Salamanca foi pela primeira vez fundada por Afonso IX,
de novo instituída por Fernando Ili, em carta de privilégio de 1242,
e de novo ainda por Afonso X-o-Sábio, em carta de 1254. A Universi-
dade de Lérida é fundada por autoridade conjunta de Jaime II de
Aragão e do papa em 1300.
Na Espanha mediterrânea, mosqueada de aglomerados urbanos,
do mesmo modo que na Itália, a iniciativa partiu em alguns casos dos
municípios, muito embora mediante a autoridade régia ou papal: tal
o caso de Valência, que travou um longo conflito com as autoridades
eclesiásticas para conseguir fundar um estudo geral em 1412, o de
Huesca. O mesmo aconteceu com o de Barcelona.
O interesse dos reis e das cidades peninsulares na criação de estu-
. dos gerais explica-se pela crescente mercantilização da sociedade e
pela centralização do governo, que aumentava a necessidade de res-
tauração do Direito Romano. O estudo do Direito Romano e Canó-
nico constituía (depois das disciplinas introdutórias das sete artes) a
principal matéria escolar nas universidades da Península Ibérica. Tal
é a segunda característica destas universidades (comum, aliás, mas
menos acentuadamente, às universidades italianas).
Segundo a definição de Afonso X, chama-se «estudo geral» àquele
em que «há mestres das Artes, assim como de Gramática, de Lógica,
de Retórica, de Aritmética, de Geometria, de Música e de Astrono-
mia, e também mestres de Decretos e senhores de Leis» 157 • E acres-
centa que para existir um estudo geral completo basta que haja mes-
tres de Gramática, Lógica, Retórica e de Leis e de Decretos 158 • As
universidades peninsulares aparecem-nos portanto fundamentalmente
como escolas jurídicas.
Indício curioso deste interesse pelo ensino do Direito são as honras
que o rei citado confere aos mestres de Leis:

156
Op. cit., vol. 11, pp. 107 e segs.
157
Partida u, tít. 21, lei 1.
158
Id., lei m.

116
A ciência das leis é como fonte de justiça e aproveita-se dela o
mundo mais que das outras ciências, e por isso os imperadores que
fizeram as leis outorgaram privilégio aos mestres delas em quatro
maneiras.

Seguem-se os privilégios dos mestres de Leis, entre eles as honras


de cavaleiro, o direito de entrada em casa do rei sem poderem ser
detidos pelos porteiros e as honras de conde para os mestres mais
sabedores que ensinaram durante vinte anos 159 •

§ 37. O Estudo Geral de Lisboa-Coimbra


Falámos já do projecto de criar, em 1269, uma Escola de Gramá-
tica, Lógica e Teologia no Mosteiro de Alcobaça. Dada a rivalidade
existente entre este Mosteiro e o de Santa Cruz de Coimbra, podería-
mos supor que tentativas semelhantes se intentaram em Santa Cruz.
Mas é à volta de 1290 que os projectos referentes ao Estudo Geral
de Lisboa ou Coimbra se intensificam e concretizam; ao mesmo
tempo, vemos intervir neles uma outra vontade além da das autorida-
des canónicas. Em 1285, o chanceler do rei, Domingos Anes Jardo
(futuro bispo de Lisboa), manda construir casas destinadas a um
«hospital» (hospício) onde fossem sustentados pobres «honrados» e
seis estudantes de Teologia, Direito, Gramática, Lógica ou Médicina.
Os estatutos desta instituição datam de 1291 160 •
Data de l de Março de 1290 a carta régia em que o rei D. Dinis
faz saber que decidiu ordenar um estudo geral na cidade de Lisboa
e garantir os privilégios e facilidades para os que o frequentam e no
futuro, vindos de várias partes, o frequentarem 161 • O rei parece estar
presente nestas duas acções.
Por outro lado, ainda em 1288, os abades de Alcobaça, priores de
Santa Cruz de Coimbra, da colegiada de Guimarães, de Santa Maria
da Alcáçova de Santarém e de várias outras igrejas e conventos de
diversas regiões do Reino (como a Estremadura, o Ribatejo, o Alen-
tejo, o Algarve e Trás-os-Montes) comunicam, em carta, ao papa

159
Partida u, tít. 21, lei vm.
160
Documento resumido por Frei Francisco Brandão em Monarquia Lusitana,
parte v, ed. de 1650, pp. 96-97.
161
'1ocumento pela primeira vez publicado por António de Vasconcelos em Revista
da Universidade de Coimbra, vol. 1.

117
que, «havida plenária deliberação» e considerando a. conveniência de
haver no Reino um estudo geral de Ciências, rogavam ao rei que
ordenasse um estudo geral na cidade de Lisboa e que o rei aprovara,
assentando-se entre os signatários que os salários dos mestres e dou-
tores seriam pagos pelas igrejas e mosteiros que eles signatários repre-
sentavam e que pertenciam ao padroado real. Pedem ao papa que
confirme esta aplicação das referidas rendas eclesiásticas 162 •
Combinando estes documentos, conclui-se que o Estudo Geral de
Lisboa se deve a uma iniciativa conjunta de instituições religiosas e
da Coroa, que culmina em 1 de Março de 1290 pela citada carta
régia.
No mesmo ano, em bula de 9 de Agosto, o papa (a quem competia
autorizar a afectação de rendimentos eclesiásticos) dirigia-se à «Uni-
versidade dos mestres e escolares da cidade de Lisboa» (o que dá a
entender que o «estatuto» já existia de facto e de jure), aprovava o
pedido quanto à afectação das rendas eclesiásticas, declarava sujeitos
ao direito canónico os respectivos mestres e escolares e conferia ao
bispo de Lisboa ou seu vigário a autoridade para atribuir aos gradua-
dos a facultas ubique docendi, que distinguia as verdadeiras universi-
dades, exceptuando a Teologia, que aqui não seria ensinada. Ante-
riormente são mencionadas pelo papa as Faculdades de Artes,
Cânones, Leis e Medicina. Admoestando o rei a que obrigue os cida-
dãos de Lisboa a alugar casas aos escolares, tabeladas por dois cléri-
gos e dois leigos escolhidos pelos estudantes e cidadãos, ~ a que obri-
gue os seus oficiais a garantir as pessoas, bens e mensageiros dos
estudantes, a bula de Nicolau IV deixa transparecer o desejo de afir-
mar a autoridade pontifícia sobre a nova instituição 163 • Sobre os pri-
meiros anos da Universidade de Lisboa reina uma espessa obscuri-
dade. Só volta a haver notícias quando o Estudo é transferido para
Coimbra por bula do papa Clemente V, de 1308.
Na bula do papa mencionam-se os «escândalos e conflitos» entre
a população escolar e os habitantes da cidade. Estes conflitos sabe-
mos que os havia em todas as cidades com universidades e resultavam
de os escolares estarem isentos do direito civil. É P,Ossível que este
facto seja só um pretexto. Em Coimbra existiam os cónegos regrantes
de Santa Cruz, com uma vasta biblioteca e a possibilidade de entre
eles se recrutarem mestres.

162
Segundo a carta que depois dirigiram ao papa; cf. Chartularium Universitatis
Portuga/ensis, 1966, vol. 1, doe. n.º 2, pp. 6-7.
163
Cf. Chartularium Universitatis Portugalensis, 1966, vol. 1, doe. n. 0 4, pp. 10-11.

118
Fosse como fosse, esta transferência é quase uma segunda funda-
ção. Tendo desaparecido, com a transferência de Lisboa, as rendas
que sustentavam o Estudo, o papa aútoriza a atribuição à Universi-
dade dos rendimentos de seis igrejas paroquiais do bispado de Coim-
bra. Criou-se também de novo o Estatuto dos Estudantes, confir-
mando e ampliando o rei, em carta de 15 de Fevereiro de 1309, os
privilégios concedidos em 1290.
O Estudo manteve-se trinta anos em Coimbra. O rei D. Afonso
IV, em 1338, transferiu-o para Lisboa, alegando que nesta última
cidade residia a corte durante a maior parte do ano. Aparentemente,
os mestres queriam estar junto da corte ou por nela terem funções,
ou por quaisquer outros interesses. Mas, logo em 1354, o mesmo rei
a mandou retransferir para Coimbra, onde ficou até 1377.
Não são patentes as causas desta instabilidade, mas não é difícil
imaginar que a Universidade não se conseguia enraizar nem, por-
tanto, florescer. Nada ficou a atestar o valor dos seus mestres ou o
crédito dos seus graus. Ainda em 1440 a Universidade se queixa em
cortes de que alguns escolares, depois de estudarem em Lisboa, vão
tomar grau fora do Reino.

§ 38. A segunda fundação


No reinado de D. Fernando, parece, a Universidade já não funcio-
nava e foi preciso restituí-la à vida. Por diploma de 3 de Junho de
1377, D. Fernando transferiu o Estudo para Lisboa, alegando que só
nesta cidade queriam ensinar os mestres de fora do Reino. O princi-
pal problema do Estudo parece ser o dos docentes, porque, já depois
de transferida, em Janeiro de 1378, a Universidade pede ao rei que
. designe lentes (ledores) que ensinem Gramática, Lógica, Leis e Decre-
tais (Direito Canónico). Nesse mesmo ano, D. Fernando confirmava
os privilégios e isenções concedidos aquando da primeira fundação,
em 1290. Ao mesmo tempo requeria ao papa Clemente VII (de Avi-
nhão) uma bula de fundação. Conhecemos a bula do papa, datada
de 7 de Julho de 1380, onde se determina que «na dita cidade haja
um estudo geral que ali vigore para todo o sempre, tanto em
Direito Civil como em qualquer outra faculdade permitida, excepto
na de Teologia». Clemente VII revalidava também o que a bula de
1290 estabelecia sobre os graus académicos (conferidos pelo bispo
de Lisboa), a facultas ubique docendi e os privilégios judiciais dos
escolares.

119
·O problema das instalações levou tempo a ser resolvido. Em 1431,
o infante D. Henrique, governador da Ordem de 'cristo e que usava
o título de «protector da Universidade», comprou para o Estudo
casas para lhe servirem de sede, considerando que o mesmo Estudo
«não tinha casas próprias em que [os mestres] lessem e fizessem seus
autos, antes andava sempre por casas alheias e de aluguer, como
cousa desabrigada e desalojada». As casas doadas pelo Infante eram
no centro da cidade, na actual freguesia de Santiago, «contra o arra-
balde dos Mouros». A intervenção da Ordem de Cristo nos assuntos
da Universidade é muito anterior ao infante D. Henrique, pois a
encontramos documentada, em 1323, num acordo entre a Ordem e o
rei D. Dinis.
Pelo que acabámos deresumir, a Universidade de Lisboa era uma
universidade vagabunda, que até ao século xv não tinha sede fixa,
nem instalações próprias, nem mestres prestigiados e cujos diplomas
valiam pouco, mesmo dentro das fronteiras do Reino.

§ 39. A organização interna da Universidade


portuguesa
Como já ficou notado, o estudo e a universidade são instituições
diversas. Nas suas cartas e alvarás, o rei refere-se à «Universidade do
Estudo».
A bula do papa Nicolau IV de 1290 é endereçada à Universitati
magistrorum ac schOtarium. E D. Dinis dirige-se normalmente à
«Universidade dos mestres e dos escolares do meu Estudo de Coim-
bra». O Estudo era a escola propriamente dita; a Universidade era a
corporação de pessoas relacionadas com o Estudo: mestres, alunos,
magistrados e oficiais.
As cartas régias e alvarás dizem respeito aos privilégios, isen-
ções e direitos das pessoas que constituíam esta universidade ou
corporação. Deduz-se daqui que mestres e escolares formavam uma
única corporação, ao contrário do que sucedia em Bolonha, onde
só havia a corporação dos escolares. Outros diplomas, porém,
referem-se apenas à «Universidade- dos escolares do meu Estudo de
Coimbra» 164 •

164
Diplomas de D. Fernando e D. Dinis em Chartularium Universitatis Portugalen-
sis, vol. 1, does. n.º' 268 e 275, pp. 288 e 295.

120
Não devemos, quando falamos de «escolares», deixar-nos influen-
ciar pela ideia que modernamente fazemos de estudantes. A popula-
ção escolar de Coimbra era constituída em grande parte por indiví-
duos que a idade e a posição social tornavam respeitáveis. Muitos
deles eram clérigos e até dignitários da Igreja.

§ 40. A Universidade e o direito público


À semelhança dos concelhos (que eram organizações corporativas)
e de outras corporações, a Universidade ou corporação dos escolares
tinha formalmente a regalia de eleger os seus próprios magistrados
(procurador, recebedor das rendas, almotacés, etc.). O respectivo
bairro era «coutado», o que quer dizer que nele não podiam pousar
p.em nobres, nem agentes do rei. Tinha também assento em cortes.
Eram magistrados supremos os dois «reitores», a quem incumbia
representar a Universidade, convocar as suas assembleias gerais ou
«congregações», fazer cumprir as suas resoluções, dar posse aos
outros magistrados e receber o juramento de fidelidade e obediência
dos mestres. Os reitores eram representantes dos estudantes, e não do
conjunto de estudantes e professores. O papa Clemente VII chama-
-lhes rectores studentium («reitores dos estudantes») 165 •
A funçao de julgar os litígios relativos aos estudantes incumbia,
segundo o regimento de 1309, a um «conservador», funcionário de
nomeação régia. Cumpria-lhe também defender os privilégios da Uni-
versidade e manter o rei ao corrente de tudo o que julgasse conve-
niente para a instituição. Por via deste funcionário régio, a autono-
mia da Universidade evoluiu rapidamente, a pretexto da defesa dessa
mes~a autonomia, para uma completa subordinação ao poder do
rei.
Esta subordinação é mais um sintoma da inconsistência da institui-
ção universitária em Portugal.

§ 41. A matéria dos estudos


Só possuímos diplomas legislativos e uma ou outra rara informa-
ção sobre a matéria versada nos estudos. No regimento dado por
D. Dinis em 1309 indicam-se as cadeiras seguintes: Teologia, para ser
165
Documento extractado por Deniffle, op. cit., p. 15.

121
ensinada nos conventos de dominicanos e de franciscanos; Decreto;
Leis, ou Direito; Física (Medicina); Dialéctica, ou Lógica, e Gramá-
tica.
As duas últimas deviam constituir a Faculdade de Artes. À seme-
lhança de Paris, falta nesta época em Coimbra a cadeira de Retórica.
A cadeira de Leis (Direito Romano) tinha um único professor.
Decreto e Decretais, cada uma com seu professor, constituíam o
Direito Canónico.
No Decreto (chamado vulgarmente «Degredo») estudava-se o
Decretum, de Graciano, pri~eira codificação de determinações
papais e conciliares e de opiniões dos Santos Padres, que serviu de
fundamento ao Direito Canónico. Nas Decretais liam-se as cinco
decretais de Gregório IX (compilação de rescritos papais) e o Liber
sextus, acrescido àqueles por Bonifácio VIII. Mais tarde acrescentar-
-se-ia a estes textos oficiais as Clementinas, rescritos compilados por
Clemente V e publicados por João XXII em 1317.
As faculdades essenciais eram o Direito Canónico (Decretais) e o
Direito Civil (Leis). Só estas estavam representadas pelos reitores
(eleitos pelos respectivos estudantes).
Embora mencionada no Regimento, a Teologia não constituía pro-
priamente uma faculdade. A bula papal de 1290 excluíra expressa-
mente o seu ensino e a segunda bula de fundação, de 1380, renova a
exclusão. Mas, contraditoriamente, outra bula, de 13 de Setembro de
1350, dispensa de residência nas suas igrejas «a todos os doutores
mestres e escolares do Estudo de Lisboa que professem ou estudem
em Teologia (Sacra Pagina) e em Direito Canónico e Civil, em Medi-
cina e em qualquer outra faculdade permitida» 166 • Em 1400, em carta
ao seu contador, D. João 1 menciona o estudo da Teologia no
Estudo 167 • E, na sua doação de casas para o Estudo de 1431, o
infante D. Henrique destina uma das casas ao ensino da Teologia.
É de crer que o ensino da Teologia se fazia nas margens do
Estudo, em conventos de mendicantes, para uso dos frades e sem
conferir graus académicos.
A cadeira de Física (Medicina) foi acrescentada no começo do
século x1v 168 • Num acordo de 1323 com D. Dinis, a Ordem de
Cristo compromete-se a pagár ao mestre das Leis seiscentas libras, ao
das Decretais quinhentas libras, ao da Física duzentas libras, ao da
166
Chartulariitm Universitatis Portuga/ensis, vol. 1, doe. n. 0 177, pp. 190-191.
167
Ibid., vol. 11, doe. n. 0 543, pp. 269-270.
168
Mencionada no acordo de D. Dinis com a Ordem de Cristo em 1323; cf. Chartula-
rium Universitatis Portuga/ensis, doe. n. º 59, pp. 84-85.

122
Gramática duzentas libras e ao da Lógica cem libras. Como se vê, o
Direito Canónico e Civil vem de longe em primeiro lugar e a Lógica
em último. No meio estavam a Medicina e a Gramática.
Uma cadeira nova, a Filosofia, é mencionada no alvará de D. Fer-
nando de 1 de Janeiro de 1378 169 • Na Faculdade de Artes de 1215,
em Paris, esta cadeira incluía as quatro disciplinas do quadrívio,
acrescidas da Ética a Nicómaco, de Aristóteles 170 • Em estatutos pos-
teriores da mesma Universidade (1356), quase contemporâneos da
reforma de D. Fernando, a Filosofia aparece dividida em dois ramos:
Filosofia Natural (em que se estudavam as obras de Aristóteles
Física, De Generatione et corruptione, De Coe/o et mundo e alguns
tratados menores conhecidos pelo nome de Parva Natura/ia) e Filoso-
fia Moral (que inclui a citada Ética a Nicómaco). Esta mesma divisão
aparecerá em 1431 em Lisboa.
A Idade Média conheceu apenas uma maneira de ensinar (não
falando das primeiras letras). Consistia ela em ler um determinado
texto, interpretá-lo, resumi-lo, descobrir os seus pressupostos, tirar as
suas consequências, resolver as suas contradições, etc. «Ler» era
sinónimo de «ensinam; e o mestre era um lente ou ledor. Quer se tra-
tasse da Bíblia, quer do Corpus juris civilis, quer dos decretos papais,
quer da Física, de Aristóteles, o texto, interpretação e comentário
eram o ponto de partida e de chegada do mestre. Ao prestar as suas
provas, o aluno devia mostrar que tinha lido as obras constantes do
programa e que sabia entendê-las. Uma iluminura do século XIII
mostra-nos o mestre com a pena e o raspador emendando ou glo-
sando o texto que explicava.
Um professor bolonhês de Direito Civil, a quem passamos a pala-
vra, vai-nos explicar como regerá o seu curso:
«Primeiramente», diz ele dirigindo-se aos discípulos, «dar-vos-
-ei o sumário de cada título antes de entrar no texto; depois dar-
-vos-ei uma exposição tão clara e explícita quanto eu puder do
sentido geral de cada lei incluída no título; em terceiro lugar, lerei
o texto com o propósito de o corrigir; em quarto lugar, repetirei
resumidamente o conteúdo da lei; em quinto lugar, resolverei as
contradições aparentes, acrescentando alguns princípios gerais de
direito (a extrair do passo em questão) chamados usualmente bro-
cardica e algumas distinções ou subtis e úteis questões emergentes
da lei, com as suas soluções, tanto quanto me permitir a Divina
169
Chartularium Universitatis Portuga/ensis, vol. 11, doe. n. º 305, pp. 15-18.
17
° Cf.
Rashdal, op. cit., vol. 1, pp. 433-434.

123
Providência. E, se alguma lei parecer prestar-se a uma repetição, pela
sua celebridade ou dificuldade, reservá-la-ei para uma repetição da
tarde.» 171

§ 42. Os graus universitários


Nas universidades medievais atribuíam-se os seguintes graus:
bacharel, licenciado e doutor. O bacharel podia ler, ou ensinar, sob
direcção do doutor, mas era ainda um escolar preparando a licencia-
tura. Para esta requeria-se um exame, no termo do qual o candidato
alcançava a licença de ensinar. Mas só com o doutoramento era o
licenciado recebido de pleno direito no grémio professoral. O douto-
ramento não exigia porém estudos mais aprofundados e era antes
uma cerimónia de recepção de um novo doutor entre os doutores.
Em Portugal, segundo os estatutos de 1431, o escolar que tivesse,
pelo menos durante três anos, cursado Gramática e Lógica poderia
obter o grau de bacharel desde que se sujeitasse a um exame público.
Os que cursassem durante cinco anos, quer como leitores sob a direc-
ção dos mestres, quer como ouvintes (desde que dessem três leituras
seguidas sob a direcção de um mestre), podiam adquirir o grau de
bacharel sem exame 172 •
Ao fim de mais quatro anos de curso, e desde que satisfizesse cer-
tas condições, o bacharel era admitido ao exame de licenciatura, pres-
tado solenemente na catedral perante os reitores, o chanceler do
cabido e o corpo dos doutores, ou (estando presentes menos de qua-
tro doutores) dos doutores e licenciados. O candidato recebia de
manhã o ponto de exame, sobre o qual devia expor e responder à
tarde. A licenciatura exigia portanto, conforme os casos, sete ou nove
anos de frequência escolar.
O grau de doutor exigia, mais do que um exame, uma cerimónia
solene rodeada de grande aparato (minuciosamente descrito no esta-
tuto), grandemente dispendiosa para o candidato.
O doutorando tinha de envergar um traje de cerimónia de pano
caro e vestir à sua custa, com traje também apropriado, o padrinho
e o bedel. Um cortejo de graduados e oficiais da Universidade vinha
buscá-lo a casa, com trombetas, e, depois de receberem do douto-
rando «cinco coroas de ouro» para a Universidade, levavam-no sole-

171
Rashdal, op. cit., pp. 219-220. ·
172
Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. 1v, doe. n. 0 949, p. 16.

124
nemente à catedral. Após a missa solene do Espírito Santo havia uma
distribuição de capelos aos reitores, ao chanceler e a todos os douto-
res, feita à custa do candidato, e de luvas para todos os graduados,
oficiais da Universidade e «pessoas notáveis» presentes. Seguia-se o
discurso do padrinho, a lição do doutorando, a resposta às arguições
dos presentes, o pedido do candidato para lhe serem concedidas as
insígnias do grau, após o que era ele chamado pelo padrinho, sentado
na cátedra, onde recebia o capelo, o anel, o beijo simbólico e a bên-
.ção 173 • Tudo acabava num banquete ao pessoal participante na ceri-
mónia pago pelo novo doutor, seguido de nova cavalgada a caminho
da Sé para participar numa cerimónia religiosa.
Aliás, o grau de «licenciado» também custava dinheiro: três
coroas de oiro à Universidade, outro tanto ao padrinho, certa impor-
tância em dinheiro aos outros doutores e um fato ao bedel 174 •
Isto não significa, naturalmente, que só os ricos pudessem pagar
os cursos e os graus. Só será assim na sociedade liberal. Mas na Idade
Média havia na sociedade um espírito colectivista, especialmente na
Igreja. Por isso, os escolares eram divididos, quanto ao pagamento,
em cinco categorias, a última das quais era a dos «escolares pobres»,
cujos estudos e graus eram financiados pelos respectivos conventos
ou dioceses.

§ 43. Os mestres
A Universidade de Lisboa, segundo o regimento de 1309, tinha um
professor por cada uma das cinco cadeiras, e precisamos de avançar
até 1400, sob o governo de D. João I, para encontrar um total de
catorze mestres (a de Paris, só de Artes, tinha mais de cem).
Os deveres dos mestres, como em Bolonha, estavam regulamenta-
dos com certa minúcia. No começo do ano deviam jurar aos santos
Evangelhos que leriam bem e a proveito dos escolares aquelas leituras
que lhes fossem indicadas; que levariam o curso até 25 de Agosto e
que fariam dois actos por ano. Este juramento era prestado perante
o reitor - representante dos estudantes - , a quem o professor estava
subordinado. Eram os reitores, como se vê pelo regimento posterior,
de 12 de Julho de 1471 175, quem escolhia as matérias que deviam ser

173 Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. 1v, doe. n. 0 949, pp. 18-19.
174 lbid., p. 17.
175 Jbid., vol. vn, doe. n. 0 2360, p. 29.

125
dadas. O tempo de cada aula, segundo este regimento, era observado
à vista de relógios que ficavam em poder dos escolares «conselhei-
ros». Se o lente não realizava as repetições a que era obrigado (os
dois actos a que se refere o regimento de D. Fernando), sofria um
desconto no ordenado.
Não eram, porém, os reitores nem a associação dos escolares quem
elegia o professor (como aconteceu durante certa época em Bolonha).
Há raros vestígios de eleição de professores por alunos na Universi-
dade de Lisboa e esses vestígios referem-se a suplentes e professores
de menos categoria, provavelmente bacharéis. O alVará de D. Fer-
nando, de 1 cÍe Janeiro de 1378, pelo qual são nomeados certos pro-
fessores a pedido da Universidade, mostra-nos que competia ao rei
tal nomeação, muito embora a Universidade, pelo menos neste caso,
fizesse a proposta 176 •
Não era também a corporação dos escolares que pagava os hono-
rários dos mestres, custeados inicialmente pela renda eclesiástica,
depois por uma renda do rei, isto é, de igrejas do padroado real, que,
como vimos, foram destinadas ao sustento da Universidade. No
entanto, os estudantes pagavam do seu bolso ao bedel, e sob o rei-
nado de D. João 1, por não ser suficiente a dotação do professor de
Lógica 177 , determinou-se uma colecta entre os escolares para lhe ser
pago um subsídio.

§ 44. Os colégios
Os «colégios», cuja importância na evolução das universidades já
frisámos, devem ter existido na Universidade portuguesa desde as
suas origens, mas com mero carácter de hospícios.
É o caso do «hospital» fundado em 1285, antes da fundação da
Universidade, por Domingos Anes Jardo, chanceler de D. Dinis e
futuro bispo de Lisboa, para sustentar, além de pobres «honrados»,
seis estudantes. A expressão «pobres honrados» indica provavel-
mente religiosos mendicantes.
Ainda em princípio do século xv, os colégios não tinham em Por-
tugal a função pedagógica que assumiam nas principais universidades

176
Alvará de D. Fernando de l de Janeiro de 1378, in Chartularium Universitatis
Portugalensis, vol. II, doe. n. 0 305, pp. 15-18.
177
Diploma de 6 de Novembro de 1392, in Chartularium Universitatis Portugalensis,
vol. II, doe. n. º 466, pp. 210-211.

126
da Europa. Numa carta expedida de Bruges, em 1427, para seu irnião
D. Duarte, o infante D. Pedro pedia que se instituíssem na Universi-
dade de Lisboa colégios à imitação dos de Oxford e de Paris, dando
como razão que o clero português se revelava muito mal instruído -
culpa certamente da escola onde se formava. É um indício, a acres-
centar a outros, do pouco brilho dos estudos universitários em Portu-
gal na Idade Média e do seu atraso em relação aos países adiantados
da Europa.
Não consta que a sugestão do infante D. Pedro se tivesse efecti-
vado; e sabe-se que outras tentativas no mesmo sentido se malogra-
ram. Em 1443 projectava-se ou construía-se um edifício para um
colégio, ao qual o infante D. Henrique, protector da Universidade,
mandava destinar o rendimento de certas multas 178 • Em 1447, Diogo
Afonso Mangancha, jurista de renome e amigo pessoal de D. Duarte,
destinou em testamento 179 uma parte dos seus bens à fundação de um
colégio para dez estudantes pobres; esta disposição nunca se chegou
a realizar e, poucos anos depois-, as casas que eram destinadas ao
colégio foram aplicadas a outro fim.
Apesar da alta jerarquia das pessoas que exerciam o cargo, este
não era simplesmente honorífico. Com efeito, o infante D. Henri-
que impõe normas para a arrematação das .rendas do Estudo e
manda descontar nos vencimentos as faltas dos professores 180 , deci-
sões ambas que tradicionalmente competiam ao reitor e respectivo
conselho; o infante D. Fernando reitera as disposições relativas ao
professorado e intervém, por incumbência de D. Afonso V, na
nomeação dos lentes 181 ; este último, quando protector, promulga
um minucioso regulamento que trata da eleição dos reitores e con-
selheiros, escolha ou modo de escolha das matérias, tempo lectivo,
horário das aulas, repetições, faltas dos lentes, chegando à minúcia
de ordenar o uso de relógios para evitar que a duração das aulas fosse
sofismada 182 •
A Universidade nem sempre aceitou passivamente as intervenções
do rei. Quando D. João 1 nomeou para a Universidade um «recebe-
dor das rendas» -iniciativa importante que lhe permitia intervir na·

178
Cf. Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. 1v, doe. n? 1320, pp. 394-395.
179
Ibid., vol. v, doe. n. 0 1413, pp. 46-49. ·
18
181
°
Carta de 23 de Agosto de 1437, in Livro Verde, p. 213.
Ver carta de D. Afonso V ao infante D. Fernando de 13 de Janeiro de 1469 e o
diploma do mesmo rei de 9 de Janeiro do mesmo ano.
182
Publ. por João Pedro Ribeiro, Dissertações, ed. de 1867, vol. 1, p. 258.

127
sua administração financeira-, a Universidade reagiu e conseguiu
que o rei recuasse para um compromisso 183 • Reagiu igualmente con-
tra a nomeação de professores pelo rei 184 ; e é provável que tivesse
conseguido, pelas suas reclamações, que o protector, de nomeação
régia em 1476, passasse, pelo menos formalmente, a ser eleito pela
própria Universidade 185 •
O infante D. Henrique, talvez por razões de prestígio, ou, mais
provavelmente, por obrigações inerentes à Ordem de Cristo, doou-lhe
em 1431 casas para as aulas e dotou por testamento, com rendas da
Ordem de Cristo, a cadeira de Teologia.
O cronista Zurara não atraiçoou decerto a intenção do Infante
quando escreveu, referindo-se aos graduados universitários:

[... ] certamente vergonha padecerão quantos mestres, quantos


doutores, quantos .letrados, por suas benfeitorias cobraram
ensino, se entre tantos se não achasse algum que os seus excelentes
feitos em mais alto e claro estilo perpetuar quisesse 186 •

O infante D. Pedro, que, como vimos, se interessava também pela


Universidade, concebeu o projecto de uma nova universidade em
Coimbra, sede do seu ducado, custeada pelas suas rendas, sob a sua
protecção e a de seus sucessores no senhorio. É de 1443 o diploma
pelo qual, em nome de D. Afonso V, se decreta o referido Estudo de
Coimbra e de 1446 a escritura de doação, para o efeito, das rendas
de uma igreja desta cidade 187 • Com a deposição do regente, em 1448,
o projecto foi lançado no esquecimento.
Como herdeiro do infante D. Fernando, o rei D. Manuel recebeu
o governo da Ordem de Cristo e, como consequência, o protectorado
da Universidade. Para respeitar as velhas fórmulas, foi também feita
a «eleição» para este cargo. Aí acabou o processo que desde a origem
conduziu à subordinação formal ao rei desta indigente Universidade,
que nunca teve acção própria.

183
Alvará de 11 de Abril de 1415, ibid.• p. 176.
184
Carta de D. Afonso V ao reitor de 15 de Abril de 1463, ibid., p. xc.
185
Com efeito, D. Rodrigo de Noronha é nomeado pelo rei (diploml.I de 23 de Agosto
de 1476); D. Jorge da Costa é nomeado apôs eleição recomendada pelo rei. Eleito é tam-
bém Q. ManueL Ver obra citada de Brandão e Almeida, pp. 125-126.
186
Crónica dos Feitos da Guiné. ed. de 1949, p. 35.
187
Documentos publicados por Teófilo Braga, História da Universidade [...},
pp. 140 e 146.

128
§ 45. A Universidade e a centralização
do poder político
Pouco depois da insurreição de Lisboa de 1383, o mestre de Aviz
concede, «por honra e exalçamento da mui nobre cidade de Lisboa»,
que a Universidade esteja ali «perpetuamente e não se mude para
Coimbra ou outro lugar» 188 : Mas não se limitou a estas honrarias a
intervenção do poder real na vida universitária.
Como vimos e veremos, a Universidade portuguesa estava· sob a
dependência do rei. Era ele quem lhe dava os regimentos, era dele
que dependia o conservador, era ele quem pagava a Universidade,
pelo menos parcialmente (através da renda de igrejas do padroado
real), era ele também quem, em certos casos, escolhia os mestres.
Esta dependência acentuou-se à medida que se acentuava a centra-
lização política.
Em 1400, com efeito, encontramos um membro do conselho do rei
a superintender nos negócios universitários, nada menos que o
famoso Dr. João das Regras, ao qual vem a suceder nas mesmas fun~
ções outro letrado, o Dr. Gil Martins 189 •
É talvez neste alto funcionário, «encarregado da Universidade»,
que se deve buscar a primeira forma do cargo de protector, pela pri-
meira vez desempenhado pelo infante D. Henrique, provavelmente
na continuidade de uma tradição criada pelo acordo de 1323 entre o
rei D. Dinis e a Ordem de Cristo, segundo o qual a Ordem se encarre-
gava de pagar os salários dos mestres indicados (Leis, Decretais,
Física, Gramática e Lógica). O Infante usava nesta época o título de
governador da Ordem de Cristo 190 •
As funções do protector eram muito latas e bem diversas das do
conservador. Ao passo que este é um simples funcionário, o protector
é um alto personagem da corte.
Por morte do infante D. Henrique, o cargo é herdado pelo infante
D. Fernando, juntamente com o mestrado de Cristo, o ducado de
Viseu e os outros bens e cargos de D. Henrique. Ao infante D. Fer-
188
Diploma de 3 de Outubro de 1348, in Livro Verde, pp. 97-102.
189
Alvará de 25 de Outubro de 1400 e carta de D. João 1 de 23 de Agosto de 1418,
ibid., pp. 179-180.
190
A mais antiga notícia do desempenho do cargo de protector pelo infante D. Henri-
que contém-se na carta que ele escreveu de Estremoz a D. Duarte em 1436, publicada em
Documentos para a História dos Descobrimentos por J. M. da Silva Marques. Em 1431
ainda o Infante não desempenhava tais funções, porque não indica o título respectivo na
carta de doação à Universidade de Lisboa, datada de 12 de Outubro.

129
nando seguiu-se como protector o bispo D. Rodrigo de Noronha 191 ,
sobrinho do rei, e a este D. Jorge da Costa, o famoso cardeal Alpe-
drinha, um dos mais consideráveis personagens da política e da Igreja
portuguesa nesta época 192 • O próprio rei D. Afonso V assumiu estas
funções e, quando, em 1475, entregou o governo a seu filho, estabele-
ceu uma excepção: o «cargo que temos da Universidade e Estudo de
Lisboa» 193 . Finalmente, quando, em 1495, sobe ao trono o rei
D. Manuel, filho e herdeiro de D. Fernando, que fora mestre da
Ordem de Cristo, a própria Universidade toma a iniciativa de o
nomear seu protector. Assim termina o processo de subordinação da
Universidade ao rei.

§ 46. Tendências filosóficas na Europa ocidental


O século XIII é um dos momentos críticos e decisivos da teologia
católica e, ao mesmo tempo, da história das ideias da Europa oci-
dental.
O principal centro desta especulação filosófica e teológica é a Uni-
versidade de Paris, cujo papel como defensora e definidora da orto-
doxia já relevámos. Sendo ao mesmo tempo a principal Escola de
Artes, aonde acorriam escolares idos dos quatro pontos cardiais,
Paris é um centro de convergência de correntes de opinião, não ape-
nas as ortodoxas, vigiadas à entrada das Faculdades de Teologia, mas
também as heréticas, que entravam pela porta mais fácil das Faculda-
des de Artes.
Das zonas periféricas da cristandade chegavam solicitações novas.
A Península Ibérica e o reino das duas Sicílias eram focos de cultura
árabe, ou arabizada. Neste último floresceu a corte de Frederico II,
semiárabe na gente, nos costumes e na cultura. A Escola de Medicina
de Salerno foi durante séculos a mais célebre da Europa, devido à sua
proximidade com este centro de cultura.
Outras pontes se abriam ao trânsito entre o mundo árabe e o cris-
tão, através da Península Ibérica. Desde a primeira metade do
século XII (cerca de 1130) que funciona em Toledo uma escola de tra-
dutores que verte para latim alguns dos principais autores árabes e
judeus. Os Árabes herdaram, juntamente com o comércio marítimo
191
Diploma de D. Afonso V de 23 de Agosto de 1476, in Provas da História Genea-
lógica da Casa Real, t. 11, p. 13.
192
Brandão e Almeida, História da Universidade de Coimbra, p. 125.
193
!d., ibid., p. 124.

130
mediterrânico, a cultura a que justamente poderíamos chamar medi-
terrânica: a cultura grega e alexandrina, com as suas afluências egíp-
cias, assírias e caldaicas. A astronomia, a matemática e a medicina
não só se transmitiram integralmente à civilização árabe, como
ainda, dentro desta, conheceram um enorme progresso. Ao lado dos
filósofos neoplatónicos, como Plotino (205-270 d. C.}, que inspira-
ram as origens da patrística cristã, os Árabes conheceram também
Aristóteles, que só através de fragmentos ·e de resumos tinha passado
à Europa ocidental.
Ora, no mundo islâmico, a Península Ibérica foi o principal centro
da literatura e da filosofia árabes: basta lembrar os nomes de Avicena
e de Averróis. Além disso, dentro do clima favorável da tolerância
muçulmana, a cultura judaica conheceu na Península um brilhante
florescimento, eloquentemente assinalado pelo nome de Maimónides.
Na escola de tradutores de Toledo, sob a direcção de grandes per-
sonagens cristãos -como o próprio arcebispo da cidade, D. Rai-
mundo-, cristãos, judeus, moçárabes e árabes, trabalhando de cola-
boração, deram a conhecer as principais criações das culturas
muçulmana e hispano-judaica e, através delas, aspectos obliterados
da cultura antiga. Entre as traduções de Toledo contam-se «livros de
matemáticas, astronomia, medicina, alquimia, física, história natu-
ral; metafísica, psicologia, lógica, moral e política; o Organon, de
Aristóteles, glosado ou compendiado por filósofos árabes, como
Alquindi, Alfarabi, Avicena, Algazel e Averróis; as obras de Eucli-
des, Ptolomeu, Galeno e Hipócrates, com comentários e notas de EI
1oarismi, Albatenio, Avicena, Averróis, Alpetragio, etc.» 194 •
Este movimento de assimilação da cultura árabe atinge o seu auge
sob Afonso X-o-Sábio, que manda traduzir o Alcorão e o Talmude,
funda em Sevilha um Estudo Geral especializado no ensino do Árabe,
com mestres á,rabes, e coordena, com numerosos colaboradores cris-
tãos, árabes e judeus, os Libras dei saber de Astronomía. Deve notar-
-se, de passagem, que o mesmo movimento teve repercussão em Por-
tugal, como o revela a tradução feita na corte de D. Dinis da
chamada Crónica do Mouro Rasis, com a colaboração de árabes.
Do outro extremo da fronteira da cristandade ocidental - Bizân-
cio - chegava também o interesse pela velha cultura grega. Posterior-
mente à tomada de Constantinopla pelos cruzados (1204), tradutores
bizantinos, trabalhando com ingleses e franceses, verteram igual-
mente para latim obras de Aristóteles - mas directamente do grego.
194
A. Gonzalez Palencia, Literatura arábigo-espaflo/a, ed. Labor, p. 289.

131
§ 47. A polémica em torno de Aristóteles
Este novo e grande caudal de conhecimentos convergindo das
fronteiras bizantina e árabe para o coração da cristandade, Paris,
provocaram ali o entusiasmo e a confusão. Entusiasmo, porque todo
um corpo novo de conhecimentos - a grande enciclopédia aristoté-
lica-, organizado e metodizado, vinha substituir as noções avulsas
e deturpadas que da ciência antiga conservavam os enciclopedistas
medievais. Perturbação, porque a nova matéria aristotélica não cabia
dentro dos ,quadros da teologia tradicional.
Esta teologia, definida pelos primeiros padres, e em especial por
S. to Agostinho, filia-se no neoplatonismo. A separação entre o
mundo sensível e o inteligível (onde vivem os anjos e se goza a visão
de Deus) e a ideia de que a alma é de essência di'vina e portadora das
verdades do mundo inteligível ou celestial, impossíveis de alcançar
pela experiência, marcam inconfundivelmente as origens platónicas
da teologia cristã.
Em contraste com o platonismo, Aristóteles (que foi médico de
profissão) dedicava-se ao estudo da natureza observável e conside-
rava a experiência dos sentidos como único conteúdo do pensamento
e Deus como simples primeiro motor ou primeira causa da nàtureza.
O contraste entre as duas doutrinas é evidente e a vaga de entusiasmo
por Aristóteles que deflagrou durante o século XIII ameaçãva destruir
os próprios fundamentos da teologia cristã.
Perante a crise definiram-se duas posições. A primeira consistiu
pura e simplesmente em voltar atrás, expulsando das escolas o <<novo
Aristóteles»: foi tal a imediata reacção das autoridades, que mais de
uma vez proibiram o ensino de certas obras de Aristóteles (1215,
1231, 1263). Esta posição tinha o defeito de ser insustentável, como
a experiência mostrou, porque todas as proibições .se tornaram a
breve trecho letra-morta. A segunda posição consistia em repudiar os
quadros teológicos tradicionais, reconhecer a superioridade de Aris-
tóteles sobre a patrística e inaugurar um pensamento profano, sacrifi-
cando para tanto, se preciso fosse, a própria teologia. Esta corrente
de opinião tendia a cristalizar em torno do principal comentador
árabe de Aristóteles, Averróis, conhecido no Ocidente a partir de
1230, e os seus adeptos (em grande parte recrutados entre os mestres
de Artes de Paris) ficaram conhecidos por «averroístas».
Na sua forma extrema, próxima do laicismo e do materialismo, é
evidente que o averroísmo parisiense não tinha viabilidade, visto que
a Universidade era a guardiã da ortodoxia. O seu principal represen-

132
tante, Sigério de Brabante, escuda-se com a doutrina hábil da «dupla
verdade»: uma ideia pode ser falsa em religião e verdadeira em filoso-
fia e vice-versa (o que não fazia senão acentuar a contradição entre
os dois planos). O averroísmo foiiI,nplacavelmente perseguido pela
autoridàde e reduzido a uma exi.stência subterrânea, acolhendo-se
mais tarde à Universidade de Pádua.
Sendo impossível concluir por qualquer destas alternativas, impu-
nha-se uma solução que harmonizasse o aristotelismo com a teologia
tradicional. Um talentó poderosamente subtil e ordenador conseguiu
resolver essa quadratura do círculo.
A solução de São ·Tomás de Aquino, preparado pelos esforços
pacientes de assimilação do aristotelismo pelo seu mestre Alberto
Magno, consistiu em partilhar o campo do conhecimento entre a filo-
sofia e a teologi~,. evitando que elas se chocassem: a filosofia tem por
objecto o mundo natural, que éonhecemos pelos sentidos ou pela
experiência; a teologia tem por objecto o mundo sobrenatural, que
conhecemos pela palavra de Deus. Em filosofia, São Tomás aceita o
aristotelismo; mas o campo da teologia, como não podia deixar de
ser, fica reservado à tradição católica. A Aristóteles atribuía-se este
mundo e a S.to Agostinho o outro. São Tomás procura, além disso,
demonstrar a compatibilidade (e em parte a solidariedade) do aris-
totelismo co~ a teologia positiva, isto é, com a tradição católica.
A posição de São Tomás marca uma data importante na história do
pensamento medieval, porque converte a filosofia, que até então se
englobava na teologia, em actividade autónoma.
Esta posição conciliatória, .. mas, ao mesmo tempo, audaciosa e
franca, não conseguiu obter imediatamente a unanimidade. As auto-
ridades.· eclesiásticas reagiram em defesa da posição tradicional, e em
1277, por encargo de João XXI, o papa.português, são condenadas
algumas-proposições de São Toinás,jµn14mente com outras dos aver-
roístas. O tomismo impõe-se entretart1:o dentro da Ordem de São
Domingos, a que Tomás de Aguin,9 pertenceu, e, em seguida, dentro
da Igreja, até ser oficialmente consagrado com a canonização de São
Tomás, em 1323.
A resistência ao tomismo condensou-se especialmente na Ordem
Franciscana, rival da de São Domingos. A escola franciscana, cujo
prirtcipal representante é São Boaventura, professor em Paris e
depois geral da Ordem, não aceita a separação da Filosofia e da Teo-
logia, subordinando todo o conhecimento à contemplação de Deus;
e combate Aristóteles onde ele, seguido por São Tomás de Aquino,
considera as sensações como único conteúdo do conhecimento inté-

133
lectual, regressando assim à tese platónica e agostiniana das verdades
inatas ou à da iluminação interior da alma pelo próprio Deus. O prin-
cipal baluarte do franciscanismo é a Universidade de Oxford e a sua
grande figura, Roger Bacon, influenciado profundamente pela geo-
metria e pela óptica árabes e precursor da ciência experimental.
Dentro da corrente franciscana encontra-se o catalão Raimundo
Lúlio, místico, poeta, filósofo, teólogo, missionário e mártir, que faz
convergir toda a sua actividade intelectual para a demonstração
lógica e quase geométrica da doutrina cristã. A diferença que separa
o lulismo e o franciscanismo em geral do tomismo pode ilustrar-se
neste pormenor: São Tomás entendia que o dogma da Trindade é
uma verdade revelada, pertencente ao domínio da teologia, e que
portanto se não pode demonstrar racionalmente; Raimundo Lúlio,
pelo contrário, pretende demonstrar racionalmente a necessidade da
Trindade (como a de todos os outros dogmas cristãos).

§ 48. Um heterodoxo em Lisboa


Entre os vários mestres estrangeiros que vieram parar a Lisboa fez-
-se notado um antigo frade dominicano e franciscano que antes disso
ensinara em diversos lugares de Espanha e outras regiões. Chamava-
-se Tomás Escoto. O nosso já conhecido Frei Álvaro Pais encontrou-
-o na Escola de Decretais de Lisboa antes de 1309, ou depois de 1388.
Defendia, em conferências e em discussões públicas, nas escolas e na
Igreja de Todos os Santos, algumas teses heterodoxas. Acabou por
ser preso e julgado, morrendo de doença na prisão. Antes de morrer
recebeu os sacramentos.
Não é fácil conhecermos ao certo a doutrina deste heresiarca,
acerca do qual só temos o testemunho apaixonado do antagonista
que o denunciou. Atribui-lhe este afirmações tão extraordinárias
que revelam no acusador um polemista raivoso a que não podemos
dar crédito (como a de que Cristo era um homem mau que se detinha
a falar com mulherzinhas, um nigromante que obrava os milagres por
magia; a de que São Bernardo e S. 10 António tinham concubinas;
etc.).
Ele afirmava a superioridade da filosofia relativamente aos textos
sagrados e à patrística. Aristóteles, segundo ele (diz Álvaro Pais),
vale mais do que Cristo ou Moisés; e a fé demonstra-se muito melhor
pela filosofia do que pelos textos sagrados ou canónicos. Era, por-
tanto, um aristotélico; e, consequentemente, desdenhava e combatia

134
os escritos de S. to Agostinho e São Bernardo, representantes da tra-
dição católica anterior ao aristotelismo.
Afirmava, por outro lado, que o mundo é eterno: não tinha
havido o primeiro homem de que fala o Génesis, nem haveria o
último. Esta tese é expressamente averroísta e, como tal, condenada
em Paris em 1277. Segundo Álvaro Pais, negava, dentro da mesma
linha de pensamento, a vida depois da morte e a existência de anjos
e de demónios. Álvaro Pais atribui-lhe a afirmação de que Moisés,
Maomet e Cristo não foram mais do que três impostores que ludi-
briaram respectivamente os Judeus, os Muçulmanos e os Cristãos,
uma tese lendária, atribuída a autor também lendário (De tribus
impostoribus).
Como teólogo sustentava que Cristo não era filho natural de Deus,
mas seu filho «optativo» (um homem que Deus adaptou como filho).
Esta afirmação, que Álvaro Pais diz ter ouvido pessoalmente, leva-
-nos à antiga heresia de Ario, no século IV, que fora trazida para
Espanha pelos Visigodos.
Tomás Escoto não deixou de tomar posição nas questões de disci-
plina eclesiástica que opuseram os Valdenses e os Espirituais à hierar-
quia do clero romano. Cristo, segundo ele declarou na Universidade e
na Igreja de Todos os Santos, não transmitiu aos sucessores dos após-
tolos, os papas e os bispos, os poderes que estes exerciam na Terra.
Tomás Escoto oferece pontos de contacto com Marsílio de Pádua, seu
contemporâneo. Esta posição de Tomás Escoto parece ter encontrado
algum eco entre certos membros das ordens mendicantes (Álvaro Pais
chama-lhes depreciativamente «pseudo-religiosos») que frequentavam
a Universidade de Lisboa, segundo anota o seu antagonista.
Dois ou três aspectos se nos apresentam, portanto, em Tomás
Escoto: é um filósofo averroísta, que põe Aristóteles acima da tradi-
ção cristã; é um herético em pontos de teologia; e é um rebelde às
autoridades constituídas da Igreja. Mas tudo o que sabemos é o que
deixou escrito o seu apaixonado adversário.

§ 49. Escritos antijudaicos


A persistência de um estado muçulmano na Península até fins do
século xv; a existência de uma próspera e culta minoria judaica
urbana que as monarquias cristãs toleravam porque necessitavam dela;
a existência, também, de uma minoria muçulmana sob domínio cris-
tão, renovada e valorizada intelectualmente pela imigração de intelec-

135
tuais islamitas heterodoxos que fugiam à intolerância dos Almóadas
- todos estes factores contribuem para que a cultura peninsular receba
uma poderosa influência oriental, que a caracteriza em oposição à
restante cultura europeia cristã, e suscitam, ao mesmo tempo, uma polé-
mica religiosa que dá origem a toda uma literatura apologética.
Já desde meados do século xn, pelas traduções latinas empreendi-
das sob o patrocínio do arcebispo de Toledo, D. Raimundo, a Penín-
sula fornecera os elementos arábigo-judaicos que informaram a esco-
lástica parisiense. Um século depois, com Afonso X, nova escola
toledana de tradutores (desta vez para idioma castelhano, o que res-
tringe a sua repercussão europeia) integra na cultura cristã peninsular
uma série de obras então fundamentais de astronomia, astrologia,
geografia e didáctica moral, estas últimas sob a forma .de colecções
de preceitos ou provérbios (Bocados de Oro, Poridat de Poridades,
etc.) ou de contos moralizantes ou enxemplios (enxempros, ou exem-
plos, em português), tais como Calila y Dimna, Sendebar, Historià de
la Dance/la Teodora, etc. Este último género recolhe temas de origem
hindu, persa, árabe, síria e bizantina e culmina no Conde Lucanor,
de D. Juan Manuel, livro que é, com o Decameron, de Boccacio, e
os Canterbury Tales, de Chaucer, uma das mais interessantes colec-
ções de contos do século XIV. Desta influência da cultura arábigo-
-judaica resultaram o brilho dos estudos astronómicos na Península
entre os séculos XIII e XVI e a admirável escola histórica a que perten-
cem as sucessivas séries da Crónica Geral de Espanha, cuja supedori-
dade sobre a historiografia europeia é flagrante.
Esta assimilação da cultura oriental é especialmente característica
do reino de Leão e Castela durante o século XIII (Fernando III,
Afonso X, Sancho IV), donde irradiou para Portugal sob D. Dinis e
para o reino de Aragão e Catalunha sob Jaime I e Jaime II. A sua
vizinhança com os últimos redutos muçulmanos peninsulares e o
prestígio local da arte e da ciência do califado cordovês fizeram de
Castela o mais orientalizado dos reinos peninsulares cristãos.
Da Catalunha vinha, em contrapartida, o grande alento à pol~­
mica contra os infiéis. É certo que já Pedro Afonso, um judeu rene~
gado, escrevera, em fins do século XI, para Afonso VI de Castela
uns Diálogos anti-rabínicos. Mas foi Jaime I de Aragão-Catalunha
(ou, melhor, a sua eminência parda, o célebre dominicano Ramón de
Penhaforte) quem mais estimulou a disputa antijudaica, organizando
em Barcelona (1263), à imitação do que pouco antes fizera São Luís
de França em Paris, um debate público entre rabinos e teólogos cris-
tãos, de que se lavrou acta autenticada com o selo régio e que serviu

136
de pródromo a uma campanha de perseguições religiosas. Um dos
participantes de tal debate, Ramón Marti, compendiou a argumenta-
ção cristã em Pugio Fidei contra Judaeos, que serviu de base a
outras obras congéneres e foi impugnado por diversos livros de apo-
logética judaica. Quase dois séculos depois cabe ao antipapa Bento
XIII (o aragonês Pedro de Luna) a iniciativa de.novos debates públi-
cos em Tortosa, 1413-14, em que foram fqr~ados a comparecer os
principais rabinos hispânicos e que nov~mênte estimularam a polé-
mica religiosa. Nesta se distinguiram, como é natural, os judeus con-
versos, isto é, renegados, muitos do~. quais se tinham já feito frades
professos, como Pedro Afonso, que j,á_ mencionámos, Afonso de
Valhadolide, Jerónimo de Santa Fé, Paui,o de Burgos, Frei Afonso
de Espina, etc.
A polémica antimuçulmana orientou~se de maneira diferente,
pois o adversário era, neste caso, mais do que uma minoria politi-
camente sujeita que se pudesse coagir a debates públicos em
ambiente desvantajoso. O Islão constituía-se em estados poderosos,
que era preciso opugnar pelas armas ou minar pela predicação mis-
sionária. São Francisco pregou em terra de mouros e, depois dele,
vários franciscanos. E, a fim de preparar os missionários para um
difícil embate com uma cultura científica superior e com uma teolo-
gia cujo rigoroso monoteísmo descartava os problemas racional-
mente insolúveis da Trindade, da Encarnação e do livre alvedrio
humano perante a omnipotência divina, surgiu uma vasta literatura
a que serviu de padrão a Summa contra Gentes/ de São Tomás de
Aquino. .
Aqui se destacam também os conversos, mas de ambos os lados,
pois os emires apoiavam os ex-cristãos que se tornavam apologetas
do maometanismo. Se, por .exemplp, o controversista cristão São
Pedro Pascoal, bispo de Jaen, é de raça mourà, Abd-Allah, pole-
mista muçulmano, fora antes disso frade frandscano.
Chegaram a- Portugal algumas obras antijudaicas, como o Adver-
sus Hebraei, de S. 10 Isidoro (códice do sécúlo XIII), e a obra de São
Tomás Liber de Catholicaefidei (códice do século XIV). O citado
Pedro Afonso existe em cópia do século xrrr. E um monge português
de Alcobaça, Frei João, escreveu, n.o começo do século XIV, um
pequeno tratado precedido de uma breve gramática de Hebreu para
facilitar a argumentação contra os Judeus. Esta obra, intitulada Spe-
culum Hebraeorum, foi inspirada pela discussão pública, na presença
de Jaime I de Aragão, em 1263. É um dos raros livros que revelam
o conhecimento do hebreu em Portugal. Estes códices são em latim:

137
não há conhecimento de que a argumentação contra o judaísmo
tenha baixado ao nível da língua falada vulgarmente 195 •
Mas, surpreendentemente, encontramos um livro em língua portu-
guesa consagrado aos argumentos da fé cristã contra Judeus e princi-
palmente Mouros. E a fonte da sua inspiração não é S. 10 Isidoro,
São Tomás ou Pedro Afonso, mas nasce noutras paragens, que nova-
mente nos levam ao franciscanismo.

§ 50. Raimundo Lúlio em Portugal


O ma:is entusiástico e influente dos missionários cristãos em Áfrfca
foi o célebre franciscano terciário catalão Ramón Lull (Raimundo
Lúlio), que parece ter selado a sua obra com o martírio, em 1315 ou
1316.
A partir da idade de 30 anos, a sua vida consagrou-se toda, e apai-
xonadamente, à obra de conversão dos infiéis, sobretudo dos Sarra-
cenos. Missionou ou sustentou debates nas judiarias e alfamas, entre
os herejes (sobretudo os averroístas de Paris), na Berberia, na Tartá-
ria, na Abissínia, em Chipre, em Rodes e na sua pátria, Maiorca.
Junto de Jaime II de Aragão, de Filipe-o-Belo, de sucessivos pontífi-
ces, na Universidade de Paris, em capítulos gerais dos Dominicanos
e dos Franciscanos e, finalmente, no Concílio de Viena sobre o
Ródano, de 1311-12, advogou incansavelmente a fundação de colé-
gios em que se ensinassem aos missionários as línguas dos infiéis,
sobretudo o árabe, e a arte de persuasão (a sua Ars Magna), bem
como planos de conquista da Terra Santa e de eliminação da heresia
averroísta, que não passava aos seus olhos de um enxerto muçulmano
implantado no cristianismo. Estudou a língua e a teologia árabes,
para poder refutar os erros islamitas, e produziu uma enorme quanti-
dade de obras, cerca de 500, em árabe, lati.n e catalão, em prosa e
verso, a maior parte das quais de cunho teológico, apologético ou
polémico, mas algumas também a debater problemas filosóficos,
metodológicos, políticos, pedagógicos ou morais-sociais implicados
pelos seus intuitos de cruzada ou missionação, ou ainda de conteúdo
místico ou autobiográfico.
Toda a obra de Raimundo Lúlio é norteada por uma intenção mis-
sionária, cujo campo de acção não é apenas a cristandade - luta con-

195
Ver Inventário dos Códices Alcobacenses, vol. 1, 1930, vols. 11-v, 1932, Ataíde e
Melo, ed. Biblioteca Nacional de Lisboa.

138
tra as heresias ou as minorias judaica e muçulmana-, mas principal-
mente o ultramar - Oriente e África. Integra-se assim dentro do
espírito de cruzada e do expansionismo ultramarino, tão caracterís-
tico dos Franciscanos e iniciado pelo próprio São Francisco, que rea-
lizara uma viagem ao Egipto para converter o sultão, e por seus ime-
diatos discípulos, entre eles os Cinco Mártires de Marrocos, cuja
lenda perdurou longamente em Portugal, onde lhes foram recolhidos
os despojos.
Ainda sob outro aspecto se relaciona o lulismo com o francisca-·
nismo: na história da escolástica, Raimundo Lúlio continua a tradi-
ção anterior ao triunfo de Aristóteles e a São Tomás de Aquino. Ao
contrário deste último, não admite a separação entre a zona reser-
vada ao conhecimento racional e a zona reservada à Revelação.
Como S.to Anselmo e São Boaventura, subordina a filosofia à teolo-.
gia e não atribui ao conhecimento racional outra função que não seja
a de servir de degrau para a iluminação mística, que é a forma culmi-
nante de todo o conhecimento. Ele esteve à margem da ortodoxia,
animado de um espírito profético de unificação do mundo pela fé, e
tem afinidades com os franciscanos espirituais que esperavam o
advento da terceira e definitiva fase do mundo.
Dentro das correntes de pensamento coevas, o lulismo carac-
teriza-se todavia por um racionalismo intrépido, convicto de que
todas as verdades dogmáticas são rigorosamente demonstráveis.
Enquanto, por exemplo, São Tomás considerava indemonstrável o
dogma da Trindade Divina, R. Lúlio entendia que ele se impunha ao
espírito por razões evidentes e necessárias. Este racionalismo, que
contrasta não só com o tomismo, mas também com a generalidade
das doutrinas escolásticas então dominantes, até entre os Francisca-
nos -averroísmo latino, misticismo voluntarista, escotismo, etc.-,
deve explicar-se talvez sobretudo pela polémica em que estava empe-
nhado Lúlio contra a teologia relativamente simples e coerente dos
Muçulmanos e contra a argumentação judaica. A discussão implica
inevitavelmente a crença no poder da razão.
O núcleo de todo o seu esforço de demonstração dos dogmas é
constituído pela célebre Ars Magna, várias vezes refundida, ampliada,
simplificada desde a sua primeira versão catalã, de cerca de 1271, até
à Ars Generalis Ultima, de 1308, de que ainda publicou depois,
até à morte, extractos retocados. Esta obra tão discutida, que muitos
críticos consideram precursora da lógica simbólica moderna, pre-
tende superar a silogística de Aristóteles, que Pedro Hispano tornara
mais manuseável com as suas mnemónicas. Por um lado, seria uma

139
arte inventiva, e não apenas demonstrativa (que é também o que
F. Bacon intentará no século xvu com o Novum Organon); por
outro lado, a sua capacidade demonstrativa não consistiria num sim-
'ples trânsito lógico de postulados indemonstráveis até conclusões for-
malmente verdadeiras, senão que assentaria em princípios metafísicos
evidentes e demonstraria todas as verdades filosóficas e religiosas;
além disso, o seu uso reduzir-se-ia a um simples manejo de quadros,
círculos, «câmaras», gráficos e à verificação visual dos nexos lógicos
decorrentes da relacionação problemática de quaisquer conceitos
dados. Um ignorante seria como que mecanicamente levado à evidên-
cia dos artigos da fé cristã romana.
Mas a Arte luliana logo se revelou de complicadíssimo ou até
impossível manejo, o que obriga Raimundo Lúlio a sucessivas remo-
delações, sempre baldadas, para acudir à fraqueza do engenho
humano que o não compreende.
O racionalismo radical da teodiceia luliana, as concessões que, tal-
vez sem dar por isso e por comodidade polémica, fazia ao ponto de
vista muçulmano e a popularidade das suas obras entre os Begardos
heréticos e os Franciscanos espirituais das Espanhas moveram Nico-
lau Eymerich, inquisidor-geral no reino catalão-aragonês, a uma per-
tinaz perseguição, que veio a culminar numa bula condenatória de
Gregório XI em 1376. Mas o lulismo tinha por si o favor dos monar-
cas aragoneses, que em 1419 obtiveram do papa Martinho V a sua
reabilitação. A doutrina recebe então novo alento, sobretudo na
Península, que assiste à criação de numerosas escolas especializadas
na leitura da Ars Magna. Entretanto, o lulismo lima as suas arestas;
os lulistas mais eminentes vêm a ser, em geral, franciscanos que ten-
dem a conciliar as suas teses típicas com as do escotismo ou do nomi-
nalismo.
Muitos meios escolásticos, sobretudo para lá dos Pirenéus,
mantêm-se desconfiados. Mestre Eckart parece por vezes retomar,
com mais audácia, alguns dos seus tópicos principais. Mas Gerson, o
famoso iniciador da «devoção nova», combate vivamente o filósofo
maiorquino.
A influência de Raimundo Lúlio entre nós é inegável, embora não
possamos calcular a sua extensão. Mesmo descartando certos indícios
probabilitários, como a presuntiva passagem ou curta estada do Dou-
tor Iluminado entre nós, as relações apertadas entre as famílias reais
de Portugal e de Aragão na época de D. Dinis e dos filhos de
D. João I e ainda o inevitável da transmissão das suas doutrinas por
via franciscana, há a registar obras do beato maiorquino na biblio-

140
teca alcobacense 196 , a notícia de que um tal mestre Adrião teria
aberto escola de doutrina lulista em Lisboa e as referências feitas no
Leal Conselheiro às obras de Lúlio e aos seus sequazes («reimonis-
tas» ). Além disso, como mostraremos, Gil Vicente está profunda-
mente impregnado pela teoria luliana das «dignidades». O seu mais
importante vestígio é, porém, constituído por uma obra de apologé-
tica e polémica antimuçulmana e antijudaica do século xv: a Corte
Imperial 197 •

§ 51. A Corte Imperial


O único manuscrito conhecido desta obra tem a nota de haver per-
tencido a Afonso Vasques de Calvos, morador na cidade do Porto
e que vivia ainda em 1454, e parece ser um apógrafo tirado de um
texto provavelmente de fins do século XIV, inícios do século xv.
Existiu outro exemplar na biblioteca de D. Duarte, mas não há
notícia de que figurasse na biblioteca alcobacense, o que seria estra-
nho se não soubéssemos que ela chegou muito desfalcada aos nos-
sos dias.
Como é vulgar, segundo já vimos, entre os tratados didácticos da
Idade Média, e sobretudo da época chamada «outono da Idade
Média», a obra tem um enquadramento alegórico. O autor faz-nos
assistir a umas cortes, presididas pelo «Celestial Imperador» (Cristo),
ladeado à direita por uma formosa Rainha «vestida e coberta de sol»
(Igreja Triunfante), à esquerda por uma Rainha «das partes do
Oriente» (Igreja Militante), que, beijada na boca e aureolada da luz
da Graça pelo Celestial Imperador, entra em polémica vitoriosa com
Judeus, Mouros, Gentios e Gregos cismáticos, apresentados com os
caracteres e indumentária próprios das respectivas raças. De cada vez
que a Rainha refuta os argumentos dos contendores, ergue-se o coro
das «campanhas» fiéis, anjos e bem-aventurados.
A par do rigor da demonstração e da linguagem escolástica dos
capítulos de argumentação, é flagrante neste livro a preocupação lite-
rária, a intenção de seduzir a imaginação do leitor.

196
cccLxxx/203, em letra gótica miúda do século xv: Compendium artis demonstra-
tivae, De natura ou Ars Philosophiae, Propositiones (sobre a arte demonstrativa) Ars
Inventiva: De Quaestionibus extra volumen artis inventivae. Ver Inventário dos Códices
Alcobacenses, Ataíde e Melo.
197
Collecção de Afanuscriptos Inéditos agora Dados à Estampa, vol. 1, O Livro da
Corte Imperial, Real Bibliotheca Pública Municipal, 1910.

141
Eis uma amostra do estilo imaginoso da Corte Imperial:
Reais cortes fez o Celestial Imperador para grande proveito e
honra de todo o senhorio. Estas cortes foram feitas em um campo
mui grande e muito formoso, todo coberto de verdura e de flores,
de muitas e variadas cores e de precioso odor. E todo o campo era
cercado em redor de muitas árvores mui formosas, que davam fru-
tos mui doces e mui saborosos e de muitas qualidades. E a redor
do campo corriam águas mui limpas, que saíam de mui claras fon-
tes que naquele campo nasciam. Todo o campo era coberto por
cima de mui rico pano de seda, de uma cor de mui fino azul, com
estrelas de ouro, quantas nele cabiam. E ao redor do campo havia
muitos panos ricamente lavrados, com muitas e diversas histórias
e com lavores mui formosos, e em meio do campo estava uma
cadeira real de uma pedra fina que chamam jaspe, mui alta e mui
ricamente lavrada. E um quanto mais abaixo estavam outras duas
cadeiras mui ricas e mui formosas, uma delas de marfim e outra
de pedra que chamam alabastro. E, afora estas cadeiras, estavam
muitos assentos mui enfeitados e muitos estrados e cobertos de
mui ricos e mui formosos panos. E naquela cadeira que estava
mais alta estava sentado um varão mui perfeito e mui formoso.
A estatura do seu corpo era meã e bem composta de seus mem-
bros. O seu vulto era venerável e honesto e de tal aspecto que
aqueles que o olhassem bem o poderiam amar e temer. Os seus
cabelos da cabeça eram de cor de avelã bem madura e eram lisos
até às orelhas, e daí para baixo eram encrespados e já quanto ama-
relos e mais resplandecentes e chegavam até os ombros. Este glo-
rioso varão tinha um risco ao meio da cabeça, assim como usavam
os Nazarenos, que entre os Judeus eram os mais santos. A fronte
daquele varão era plana e mui clara e as faces sem mácula e sem
ruga, com cor vermelha temperada, que lhe dava grande formo-
sura. A sua boca e o seu nariz eram tais que não havia que
repreender e a sua barba era abundante, de cabelos todos iguais e
bem concordados; não era longa, mas era partida em duas partes
no queixo. O seu olhar era simples e maduro, de grande cordura,
olhos garços e mui formosos. As suas mãos e os seus braços eram
mui deleitosos para ver. Tal era sua apostura, que verdadeira-
mente é dito dele que é mais formoso que todos os homens 198 •

198
Ed. na Colecção de Manuscritos Inéditos [...] - I. O Livro da Corte Imperial,
Real Biblioteca Pública, Porto, 1910, pp. 5-6.

142
O retrato de Cristo, rodeado de espíritos celestiais que tangem e
entoam os seus louvores, abrange ainda mais um longo parágrafo,
neste estilo intensamente visual que dir-se-ia reproduzir um fresco da
escola de Siena.
Através desta introdução cheia de majestade somos conduzidos
para uma espécie de concílio a que concorrem todas as raças e cren-
ças conhecidas na Terra e na história - Pagãos, Mouros, Judeus,
cristãos cismáticos e até os que não têm crença alguma. A pompa
desta introdução pretende corresponder à grandeza do próprio
objecto do livro - nada menos que a demonstração, por razões evi-·
dentes e necessárias, dos artigos da igreja católica romana, a começar
pela existência de Deus e a acabar pelos mandamentos do Decálogo.
O autor não se furta a nenhuma discussão, pois começa por argu-
mentar contra aqueles que nem sequer aceitam a existência de Deus;
bate-se em todos os campos, incluindo os da análise histórica e filoló-
gica, ao interpretar certos passos controvertidos do texto bíblico,
revelando a propósito a sua erudição hebraica, provavelmente de
segunda mão.
A Corte Imperial apresenta-se assim como um compendium das
provas da Igreja e da argumentação a empregar contra os diversos
tipos de objecções de que ela poderia então ser alvo, compendium
dirigido a um público amplo, fora do grémio clerical, como o mostra
o facto de estar escrito em língua portuguesa e o de recorrer a todos
os processos literários capazes de aliciar e prender o leitor.
Como já notámos, semelhante livro não pode deixar de nos fazer
pensar na existência em Portugal, na época, de um ambiente de dis-
cussão religiosa, propício às heresias. E liga-se certamente com o pro-
blema da minoria judaica, que atinge então entre nós grande prospe-
ridade social e cultural, ao mesmo tempo que começa a ser vítima das
primeiras grandes perseguições que hão-de culminar com a expulsão
no reinado de D. Manuel. Liga-se principalmente com o começo das
missões, sobretudo franciscanas, ao Norte de África e com a expan-
são em terra de Mouros.
O autor da Corte Imperial revela, através de numerosas citações
do Corão e seus comentadores, de referências à Toura, à Cabala e
aos Targumin hebraicos, um conhecimento indirecto, mas bem infor-
mado, das fontes islâmicas e um saber de outiva a respeito do ono-
mástico judaico. Quem quer que fosse o autor, porém, esteve em
contacto pessoal com espíritos cultos das mourarias e judiarias.
Não há na Corte Imperial originalidade de doutrina. O autor não
pretende ser mais que um didacta e um divulgador, afirmando-se no

143
prólogo «não como autor das cousas nele [livro] contidas, mas como
simples ajuntador delas num volume». Afirma mais que utilizou
«declarações e exposições de doutores [... ] e dizeres de varões sabedo-
res, traduzidos de latim em linguagem portuguesa». As suas fontes
são portanto latinas, e não árabes ou judaicas. Todo o espírito que
informa a obra e todo o teor da argumentação nos mostram que a
Corte Imperial segue o caminho traçado por Raimundo Lúlio,
afastando-se de outros tipos de apologética, como o da. Pu.g(o Fidei,
de Ramon Marti, ou o da Summa contra gentes, de são Tomás.
Numerosos passos são averiguadamente traduzidos de obras suas em
latim 199 , não sendo de excluir a influência de outras em catalão, lín-
gua que parece ter deixado vestígios na grafia ocasional de certas
palavras da Corte lmperial 2ºº.
De acordo com Raimundo Lúlio, afirma o redactor constante-
mente a crença na demonstrabilidade. dos artigos da fé por razões
«evidentes e necessárias». Não devemos confundir isto com o racio-
nalismo filosófico propriamente dito, que parte do pressuposto de
que a Verdade só se pode atingir pelas vias da Razão. Pelo contrário,
tanto Lúlio como os seus predecessores pressupõem a fé como ponto
de partida. «Nisi credideritis non intelligetis» («Se não crerdes, não
entendereis») é um texto de Isaías citado a este propósito, mera
variante do «Credo ut intelligam» («Creio para compreendem), de
Santo Agostinho e Santo Anselmo. Este ponto de partida é a própria
razão de ser da escolástica, que sem ele se transformaria numa filoso-
fia tout court 201 •
Toda a argumentação da Corte Imperial assenta sobre a teoria
luliana das «dignidades» divinas, que o autor define logo no início da
sua exposição ao desenvolver contra um «gentio» (pagão) as provas
da existência de Deus. Esta demonstração, de origem platónica, con-
trasta flagrantemente com a desenvolvida por São Tomás, que se
apoiava na argumentação aristotélica redutível, em última análise, à
necessidade de uma causa primeira, ponto de partida da cadeia de
causas e efeitos que é o universo.

199
Abílio Martins, «A filosofia de Raimundo Lullo na literatura portuguesa», in Bro-
téria, vol. 34, pp. 473-482.
200
Ver por exemplo: p. 149, quy por que (lembrando a forma do relativo sujeito
catalão ou francês), neçessidat (terminação tipicamente catalã); p. 255, magneiras; fre-
quentemente plural gentis por gentios.
º Ver História de la filosofía espafio/a - Filosofía cristiana de los siglas xm ai xv,
2 1

T. e J. Carreras y Artau, Madrid, 1930, t. 1.

144
Sabemos, argumenta a Igreja Triunfante na Corte Imperial, que
há nas coisas do mundo graus diversos de perfeição ou «bondade»;
há, necessariamente, uma bondade ínfima e uma bondade máxima
ou «suma», que é certamente infinita (visto que é a maior que pode-
mos conceber). E, conforme a qualidade que consideramos nas coi-
sas, assim haverá uma suma grandeza, uma suma duração, um sumo
poderio, uma suma sabedoria, uma suma verdade, uma suma glória,
uma suma virtude. Cada uma destas «dignidades» -como lhes
chama Raimundo Lúlio e com ele a Corte Imperial- não é uma sim-
ples qualidade ou acidente de um ser (como o branco é uma quali-
dade da coisa branca); é, mais do que isso, uma essência, existe por
si e em si. Se assim não fosse, não seriam dignidades sumas, infinitas,
porque alguma coisa lhes faltaria, o próprio ser. Para serem sumas
nada lhes pode faltar.
Note-se agora que, sendo cada uma destas dignidades uma essência
infinita, não podem existir várias dignidades; porque, se assim fosse
limitada pelas restantes, nenhuma delas seria infinita. Na realidade,
todas estas dignidades se reduzem a uma só e cada uma delas é todas
as outras: suma bondade é também suma sabedoria, suma grandeza,
sumo poderio, suma verdade, etc.; suma sabedoria é suma bondade,
suma grandeza, etc. As dignidades (que, em última análise, se redu-
zem às «ideias» platónicas) são equiparáveis e permutáveis entre si:
E cada uma delas é a outra, e por elas todas aliadas, sem
nenhum acidente, é um sumo sente, que quer dizer que cada uma
das dignidades de Deus é suma e todas elas juntamente são uma
cousa, a maior e melhor e mais alta e mais perfeita que ser pode,
que chamamos sumo sente 202 • E Ele é por si bom, grande, eterno,
sabedor, virtuoso, poderoso, verdadeiro, glorioso, no qual a Bon-
dade é por si grande, eterna, poderosa, sabedora, gloriosa, vir-
tuosa e verdadeira. E esta suma cousa assim considerada chama-
mos Deus 203 •
Segundo esta demonstração, Deus confunde-se com o Ser, no seu
máximo grau, sendo o Ser as qualidades concebidas pela nossa razão
elévadas ao seu grau infinito, no qual deixam de ser distintas e diver-
sas para se confundirem no Uno; tende pois a tornar-se uma substân-
cia imanente ao espírito humano, foco em que se vão fundir os ideais

202
Sente é o particípio presente do verbo ser. Significa o que é. Sumo sente é o Ser
no seu máximo grau.
203
Ed. cit., p. 16.

145
para que o ser humano propende. Dentro desta linha de pensamento
(que conduz afinal ao espinosismo), Deus identifica-se com a Subs-
tância, objecto das aspirações do Ser racional.
Pode afirmar-se que todas as demonstrações da Corte Imperial
assentam sobre a teoria das dignidades, a partir das quais Raimundo
Lúlio criou uma espécie de álgebra teológica que consiste em deduzir
a Suprema Bondade da Suprema Sabedoria, a Omnipotência da
Omnisciência, etc., interpermutando-se estas diversas dignidades con-
forme o problema teológico a tratar.
Assim, seguindo passo a passo o De articu/is Fidei, do Doutor Ilu-
minado, a Corte Imperial intenta demonstrar a Trindade divina «por
razão». Deus é acto puro, quer dizer, está sempre obrando. Não
podemos supor nele a distinção entre potência e acto, porque isso
seria supô-lo composto e portanto imperfeito. ·Deus é necessaria-
mente uno. Obrando, produzindo, Deus gera uma cousa infinita,
porquanto o Fazer de Deus tem de estar equiparado ao Ser de Deus:
são duas dignidades, portanto equiparáveis. Assim, temos Deus Pai
e Deus Filho, duas dignidades de Deus: Deus producente e Deus pro-
duzido. Mas Deus é também Suma Sabedoria, conhece-se a si pró-
prio. O Deus conhecente é o Pai, o Deus conhecido é o Filho; e entre
o Conhecente e o Conhecido há o Conhecer de Deus, que é também
uma dignidade divina equiparável às outras, portanto também um ser
absoluto, a que chamamos Espírito Santo. Do mesmo modo, temos
Deus sumo Amor, sumo Amado, sumo Amar; sumo Bonificador,
sumo Bonificado, sumo Bonificar - tudo dignidades equiparáveis do
Pai, Filho e Espírito Santo. E assim temos três pessoas divinas e uma
só, reduzindo-se a Trindade divina à tripartição de Sujeito-Objecto-
Acção.
(E assim Deus não é apenas já analisado segundo categorias lógi-
cas, mas segundo meras categorias gramaticais.)
O sistema luliano encerra o universo dentro da noção lógica de
Ser ou Deus, interpretando nesse sentido todos os dogmas cristãos,
mesmo aqueles que têm um carácter puramente histórico. Assim é
que a vinda de Cristo à Terra é concebida na Corte Imperial como
um elo necessário no círculo fechado do Ser, até ao ponto de susten-
tar que, inesmo que Adão não tivesse pecado, a Encarnação seria
necessária - quando, segundo o magistério tradicional da Igreja,
Deus veio ao mundo para o remir, com a sua paixão e morte, do
pecado do primeiro homem.
Com efeito, em Deus está o princípio e o fim de todas as cou-
sas. A Criação, que tem em Deus a sua origem, tem nele também o

146
seu fim; o destino de toda a criatura é entender, amar e identificar-
-se com Deus, e isto só é possível desde que o homem seja divi-
nizado:

O maior fim da criação do mundo é Deus ser Homem e o


Homem ser Deus 204 •

Através do Homem-Deus, é toda a natureza que se diviniza, por-


que no homem participam todas as criaturas, desde a pedra que tem
ser até ao animal que tem sentir, passando pelos céus que têm movi-
mento e pelas plantas que têm crescer. Ora o homem só pode tornar-
-se Deus desde que Deus se junte com ele, tomando a sua carne. Por
meio da Encarnação encerra-se, pois, o circuito do Ser, isto é, de
Deus sumo poderio, suma bondade, sµmo entendimento, sumo
amor, etc., de Deus que se desdobra num objecto, que, sendo ele
mesmo uma dignidade suma, se equipara ou confunde com o Sujeito.
Não podemos seguir a Corte Imperial na demonstração de cada
um dos artigos da fé, dos precéitos eclesiásticos, da obrigatoriedade
dos sacramentos, etc., quer por «razões necessárias», quer pelo teste-
munho dos textos cristãos, judaicos, islâmicos e até pagãos (o poeta
Ovídio aparece a profetizar Cristo). O que nos interessa frisar é que,
sempre que este livro argumenta no campo das «razões necessárias»,
a sua argumentação se reduz ao princípio da equiparação das digni-
dades divinas, seguindo o modelo luliano. Assim é que, nesta base,
a Corte Imperial remove dificuldades, como a contradição entre o
arbítrio omnipotente de Deus e a necessidade lógica ou moral a que
obedecem os seus actos: a Omnipotência, dignidade divina, equipara-
-se à Omnisciência; e, portanto, no infinito do Ser, agir por arbítrio
puro equipara-se a agir segundo boas razões.

204
Ed. cit., p. 157.

147
PARTE III

VALORES E CRITÉRIOS DE ACÇÃO


§ 52. Os anais históricos antigos
A primeira manifestação historiográfica reveladora de um senti-
mento de identidade e solidariedade entre a gente que vivia no territó-
rio correspondente ao futuro reino de Portugal encontra-se nos anais
que o P .e Pierre David identificou como Anna/es Portucalenses
Veteres 205 • Entre vários apontamentos dispersos provenientes de
Santa Cruz de Coimbra, quase todos em latim, dos séculos xn a XIV,
foi possível distinguir dois núcleos de notícias, um referente à região
portugalense («do Minho ao Tejo»), desde a tomada de Coimbra por
Almançor (987) até 1111, e outro relativo ao reinado de D. Afonso
Henriques, de 1116 a 1168.
Estes antigos anais portugueses, que registam sobretudo efeméri-
des da guerra contra os Mouros, devem-se às mãos de vários escri-
bas, o mais antigo dos quais conhecera ainda sobreviventes da época
de Almançor, sendo o mais moderno um entusiasta de D. Afonso
Henriques. O conjunto era precedido de uma breve história dos
Godos, desde que partiram da sua terra até que foram expulsos
pelos Sarracenos da Espanha, e de uma lista dos reis das Astúrias
até Afonso II.
No resumo histórico que precede os Anna/es, como notou Pierre
David, os Godos aparecem como invasores calamitosos, e não como
antecessores da monarquia asturiana, contrariamente ao que vemos
na crónica de Afonso III das Astúrias (segunda metade do século IX),
do qual nasceu a ideia da «Reconquista». A tradição transmitida
pelos Annales Portucalenses Veteres remonta portanto a começos do
século IX, quando os reis asturianos ainda não se consideravam os

205
ln Études sur /e Portugal et la Galice du VI' au XII' siecle, 1946, que seguimos
no nosso estudo.

151
continuadores e restauradores da monarquia visigótica, mito que
apareceu mais tarde 206 •
O que mais nos interessa nestes anais é o ponto de vista em que se
coloca o narrador. O seu horizonte geográfico está definido quando
fala da grande fome de 1122:
Era 1160. Magna fames fuit in civitate Colimbrie et in tota Por-
tugalensi regione a Mineo usque in Tagum 207 •

Coimbra aparece no centro dos acontecimentos. Entre os condes


portugalenses, como os Mendes-Gonçalves, e o rei D. Afonso Henri-
ques, passando pelo conde seu pai, não se nota solução de continui-
dade. Do resto da Espanha só se conhece Toledo. Todavia, Portugal
aparece aí como um prolongamento do reino asturiano e Fernando I
de Leão, o conquistador de Coimbra, Viseu e Lamego, como o pri-
meiro ocupador do território, do qual já fazem parte Santarém, Lis-
boa e terras adjacentes, conquistadas primeiramente por Afonso VI
de Leão e novamente por seu neto D. Afonso Henriques, e também
as terras conquistadas por este último no Alentejo, como Beja,
Évora, Serpa e Moura. É uma primeira manifestação de como a
gente que habitava a região portugalense estava voltada para dentro
do País, alheada da transformação cultural do resto da Espanha,
como o mostra a persistência de uma tradição historiográfica dos pri-
meiros anos da Reconquista.
Em Santa Cruz de Coimbra foram registados estes anais e lá tam-
bém se compuseram as primeiras narrativas historiográficas latinas
em que o primeiro rei de Portugal figura como personagem salien-
te 208. São a Vita Sancti Teotoni, primeiro prior do mosteiro, que
teria sido o principal conselheiro do rei, e o De expugnatione Sca/abis
(Da Tomada de Santarém). Ambos contemporâneos de D. Afonso Hen-
riques e escritos antes do fim do século xn.
Como vimos, a figura heróica do primeiro rei de Portugal foi
objecto das tradições lendárias que cristalizaram na tradição épica de
D. Afonso Henriques, que analisámos noutra obra, e ainda de outras
tradições, como a da tomada de Santarém, cuja última versão encon-
tramos na Crónica Geral de Espanha de 1344, que já estudaremos.
As tradições orais acerca do primeiro rei de Portugal não eram ape-

206
Op. cit., pp. 312-325.
207
Op. cit., p. 302.
208
José Mattoso entende que os primeiros anais foram escritos em Santo Tirso (Por-
tugal Medieval, 1958, p. 107).

152
nas épicas e guerreiras, pois o mais antigo livro de linhagens (de data
pouco posterior a 1282, como veremos) regista também uma das suas
aventuras eróticas.

§ 53. Os livros de linhagens


Os livros de. linhagens (que registaram algumas tradições épicas)
não são obras propriamente historiográficas nem cronísticas. SãoJis-
tas genealógicas da nobreza a que falta toda a datação cronológica.
Mas têm interesse historiográfico porque a primeira obra de historio-
grafia que se escreveu em Portugal, a Crónica Geral de Espanha de
1344, é concebida, quanto ao seu núcleo, como séries genealógicas
das principais famílias portuguesas.
Compreende-se o interesse pela genealogia numa sociedade em que
os bens, os cargos, a honra e a posição social eram hereditários. Há
livros de linhagens noutros pàíses da Europa ocidental, mas cabe per-
guntar se a importância deles em Portugal não revelará uma influên-
cia árabe, conhecido como é o interesse dos povos semitas (árabes
incluídos) pela genealogia.
Restam-nos da época medieval três livros de linhagens. O pri-
meiro209 deve ter sido escrito pouco depois de 1282. Propõe-se tratar
das cinco partes ou gerações donde descendem os fidalgos portugue-
ses (mas só nos restam duas partes). É flagrante o estilo oral muito
marcado de que se serve o autor:

Agora, amigos, se vos plaze, vos contaremos as linhagens dos


bons homens filhos d'algo, do reino de Portugal, dos que devem
armar e criar,-e q~ andaram a la guerra a filh~r o reino de Portu-
gal. E eles, meus amigos, foram partidos em cinco partes.

Trata-se, evidentemente, de um texto destinado a ser lido em voz


alta perante uma assembleia de fidalgos, que o autor interpela como
«meus amigos». São os conquistadores do Reino de Portugal. São os
que têm direito a ser armados cavaleiros e a ser criados (pelo rei?).
Eles são anteriores ao Reino, que conquistaram. E, com efeito, são
originários de fora: um ramo descende de Uffo Belfages (que é um

209
Designado como Livro Velho de Linhagens (Mattoso) e como Primeiro Livro de
Linhagens (Cintra). Publicado ultimamente por J. Mattoso em Portugaliae Monumento
Historica, nova série, vol. 1, Lisboa, 1980. ·

153
nome estrangeiro); outro, de D. Alão (Alaii:l?), que raptou a filha do
rei da Arménia quando ela veio em romaria a Santiago; outro des-
cende de D. Ramiro, rei de Leão; «a quinta geração [... ] veio postri-
meira a Portugal de Gasconha, com Monis Gasco.» A consciência
dos fidalgos está ligada a Portugal, terra a que vieram, por um
direito patrimonial de ocupação e conquista. Em particular, não
revela qualquer dependência em relação à família real, que, como
sabemos, também veio de fora e não consta das cinco gerações pri-
mordiais. Mesmo o «rei D. Afonso-o-Velho», isto é, D. Afonso
Henriques, cujo prestígio já vimos nas crónicas latinas e nos anais
antigos, aparece no texto como protagonista de uma anedota pícara
em que ele é o humilhado por ter tentado cortejar a mulher de um
vassalo. É um fidalgo entre outros.
Um exemplo desta ligação dos fidalgos de Portugal com os tempos
anteriores à existência do Reino é a filiação da família da Maia no rei
Ramiro (Ramiro II de Leão), que deu origem à bela narrativa da
lenda do rei Ramiro, de que já nos ocupámos em outra obra. Por este
lado, o Livro Velho de Linhagens traz-nos um resto da atmosfera
épica peninsular em que Portugal participava com os outros reinos da
Espanha.
O segundo li~ro de linhagens, conhecido por Livro do Deão 210 ,
escrito entre 1337 e 1340, deixa-nos respirar uma atmosfera diferente,
embora, como livro de linhagens da fidalguia, não possa deixar de ter
os mesmos propósitos. Desde logo, o autor emprega uma frase,
«fazemos escrever este livro», que nos afasta da oralidade do Livro
Velho de Linhagens. Enumera em seguida as finalidades práticas que
tem em vista: seguem-se grandes prejuízos de não se conhecerem as
genealogias dos fidalgos, porque muitos deixam de receber privilégios
e direitos que lhes competem e outros contraem casamentos incestuo-
sos por ignorarem os parentescos. É a finalidade prática de qualquer
livro de linhagens da Idade Média, mas aqui particularmente cons-
ciencializada. O Livro do Deão evita as digressões lendárias (embora
contenha numerosas alusões curtas a casos que deviam ser célebres)
e vai direito ao seu fim prático.
A grande colecção conhecida por Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro foi concluída cerca de 1340, embora tivesse sido acrescen-
tada posteriormente, como já veremos, e tem maiores ambições.
O autor não limita o seu propósito às finalidades práticas do Livro
do Deão, embora também as inclua. Ele apresenta como seu alvo a
210
Publicado por J. Mattoso em Portugaliae Monumenta Historica. Ver p. 15.

154
amizade que cumpre ter «entre todos os homens, ricos e pobres»,
porque «diz Aristóteles que, se os homens houvessem entre si ami-
zade verdadeira, não haveriam mester reis nem justiças». Mas o autor
logo acrescenta que a amizade mais pura que pode haver é a daqueles
que descendem de um mesmo sangue. Por isso, as cinco razões que
o autor indica como seus móbiles podem reduzir-se à segunda, que é
«saberem estes fidalgos de quais descenderam de pai a filho e de
linhas travessas». Daqui decorrem as outras, como, por exemplo,
a quarta, que é «os reis haverem de conhecer [reconhecer] aos vi-
vos com mercês pelos merecimentos e trabalhos e grandes lazeiras
que receberam os seus avós em se ganhar esta terra da Espanha por
eles». O c.onhecimento da genealogia serve também para evitar os
casamentos incestuosos e para cada fidalgo saber os mosteiros
de que era «natural» e benfeitor e dos quais recebia rendas ou di-
reitos.
São as mesmas finalidades práticas expressas no prólogo do Livro
do Deão, mas elaboradas num nível teórico menos particularista.
O tema da obrigação de sangue metamorfoseia-se no tema da ami-
zade entre todos os homens. Mas, ao mesmo tempo, encontramos o
tema da conquista da terra pelos fidalgos, que já encontramos no
Livro Velho de Linhagens: este fala dos que andaram na terra a
«filharn o reino de Portugal; o conde D. Pedro fala dos feitos e tra-
balhos dos que ganharam a Espanha. Por isso se refere a várias famí-
lias galegas, castelhanas e navarras que o Livro do Deão omite.
Diego Catalán fala com razão da «concepção pan-hispânica» deste
livro de linhagens do conde D. Pedro, que «trata unitariamente da
nobreza hispânica, peninsularn 2 u.
Assim como dá universalidade aos seus propósitos morais falando
da amizade em geral, o conde D. Pedro alarga o seu espaço geográ-
fico a todo o mundo conhecido e o seu tempo até ao primeiro
homem, Adão, de cujos filhos descendem as diversas gerações.
Conta-nos a história e destruição de Jerusalém; fala dos reis de
Tróia, da fundação da Bretanha, do rei Artur, dos reis de França,
dos reis da Pérsia e de Roma e, finalmente, dos godos, desde a sua
entrada em Espanha até à sua destruição no reinado de Rodrigo.
D. Pedro recolheu, em segunda mão, a matéria tradicional exis-
tente na Europa do seu tempo, a matéria de Bretanha, a matéria de
França, a matéria de Roma, a matéria bíblica, servindo-se para isso

211
Diego Catalán, introdução à ed. da Crónica Geral de Espanha de 1344, Madrid,
1971.

155
de compilações ou resumos que encontrou ao seu alcance, como um
Livro das Gerações, composto em Navarra em 1200 (Liber Regum) e
completado em 1220 por um sumário da história dos reis da Breta-
nha 212 e uma tradução galego-portuguesa de uma variante ampliada
da Crónica General de Espaíia, iniciada por Afonso X-o-Sábio. Ele
está já longe dos cantares épicos jogralescos e utiliza os livros em que
eles foram resumidos. Todavia, o Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro faz-se eco de numerosas lendas, mitos e relatos épicos que
tinham cativado a imaginação popular, como a estória dos Marinhos,
que descendem de uma dama do mar, ou a estória da dama pé de
cabra, que Herculano ampliou nas Lendas e Narrativas, ou narrati-
vas épicas relativas ao Cid, Ruy Díaz de Bivar, aos infantes de Lara
e às lutas entre Sancho, rei de Leão, e García, rei da Galiza. Entre
os seus motivos lendários encontra-se o do cavalo ajudador, que tam-
bém aparece no rimance D. Beltrão e em vários dos contos populares
recolhidos por J. Leite de Vasconcelos.
O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro tornou-se uma compila-
ção das histórias particulares das famílias nobres dominantes no
século XIV, em vésperas da crise social de 1383, que teve como narra-
dor Fernão Lopes, iniciador de uma historiografia nova. De facto,
como já vimos, o primeiro redactor utilizou as notícias contidas nos
livros de linhagens anteriores, nomeadamente no Livro Velho de Li-
nhagens e no Livro do Deão.

§ 54. O refundidor do título XXI


Depois da morte do conde D. Pedro, o livro teve, pelo menos, um
refundidor e continuador, a quem se deve, pelo menos, grande parte
do título xxr. É interessante notar que esse continuador se encarre-
gou da história panegírica da família dos Pereiras, até à morte, em
1379, do prior D. Álvaro Gonçalves, pai de Nun' Álvares Pereira.
Segundo este redactor, a família dos Pereiras tinha como antepas-
sado longínquo o rei Ramirq II de Leão, o herói da lenda do rei
Ramiro do Livro Velho de Linhagens; a segunda versão desta lenda
desenvolve a primeira com novos pormenores e outras tradições Ien-
41.árias, numa magnífica narrativa dramática que é uma das obras-
-primas da prosa do século XIV. A diferença entre esta versão do his-
toriógrafo dos Pereiras e a versão muito mais sóbria e objectiva do

~12 Op. cit., p. 50.

156
Livro Velho de Linhagens (que demos em obra anterior) permite-nos
comparar, na literatura, a estética românica e a estética gótica.
Ao mesmo autor pertencem também, segundo julgamos, a célebre
narrativa da morte do Lidador, Gonçalo Mendes da Maia, e outros
episódios relativos aos antepassados do prior D. Álvaro e as soberbas
páginas em que se narra a batalha do Salado, em que o prior tomou
parte, a obra-prima do género historiográfico antes de Fernão Lopes.
É a melhor narração de uma batalha que nos ficou da Idade Média
e está toda ela animada de um vivo ideal cavaleiresco 213 • Aliás, esta
narrativa,· assim como a da morte de Gonçalo Mendes da Maia, ofe-
recem um flagrante ar de família com as descrições de batalhas da
Crónica Geral de Espanha de 1344, nomeadamente com as. que o
conde (de Castela) Fernão Gonçalves travou com os exércitos de
Almançor. O autor era provavelmente um clérigo relacionado com a
ordem hospitalária (presidida por D. Álvaro) e muito marcado pelo
espírito das ordens militares.
O ideário dos cavaleiros está perfeitamente resumido no discurso
do rei D. Afonso IV aos seus homens:

- Meus naturais e meus vassalos: sabeis bem como esta terra


de Espanha foi perdida por rei Rodrigo e· ganhada pelos Mouros;
e como outra vez entrou nela Almançor, e como os vossos avós,
donde descendeis, por grandes trabalhos seus e por mortes e
sofrimentos, ganharam o reino de Portugal; e como el-rei
D. Afonso Henriques, com quem eles a ganharam, lhes deu hon-
ras e coutos e liberdades e quantias para que vivessem honrados
[... ] e corno os reis que depois dele vieram mantiveram isto. Eu,
depois que vim a este lugar, fiz aquilo que estes reis fizeram, e
se alguma cousa há aí para emendar, eu o corrigirei se Deus me
tira daqui.
Olhai por estes Mouros que vos querem ganhar a Espanha, de
que dizem que estão forçados, 'e hoje-este-dia a entendem cobrar
se nós não formos vencedores. Ponde em vossos corações fazerdes
como fizeram aqueles donde vindes, para que não percais vossas
mulheres nem vossos filhos, e o com que hão-de viver aqueles que
depois de vós vierem. Os que morrerem e os que viverem serão sal-
vos e nomeados para sempre.

213
Ver A. J. Saraiva, O Autor da Narrativa da Batalha do Salada e a Refundição
do Livro do Conde D. Pedro, sep. do Boletim de Filologia, t. xxu, Lisboa, 1971.

157
É de notar neste texto a continuidade da ideia do Livro Velho de
Linhagens quando fala dos que «andaram a la guerra a filhar o reino
de Portugal»; a continuidade da «guerra santa», que, no século XIV,
em Portugal se identificava com a de cruzada, e a menção de
D. Afonso Henriques, fundador do Reino e rei cruzado por exce-
lência.
D. Álvaro, herói do Salado. (1340), última grande batalha dos
Espanhóis (Portugueses incluídos) contra os Mouros da Península
antes da conquista .do reino de Granada, é o pai do condestável, o
qual ainda assistirá à conquista de Ceuta (1415), sob o mesmo signo
de guerra santa.
Pela mão deste narrador, o Livro de Linhagens do Conde D. Pe-
dro é muito mais do que uma genealogia, uma verdadeira história de
uma família, que virá a ser continuada depois da morte do seu mais
notável rebento, Nun' Álvares, na Crónica do Condestabre de Portu-
gal, escrita depois de 1431. E ainda Zurara cultivará o mesmo género
panegírico, biográfico e cavaleiresco nas crónicas de D. Duarte e
D. Pedro de Meneses, consagradas a dois cavaleiros da mesma famí-
lia, e também na Crónica dos Feitos de Guiné, que é um panegírico
do infante D. Henrique. Aliás, já no texto do Livro de Linhagens do
Conde D. Pedro se manifesta o mesmo resvalamento da genealogia
para a história no título VII, em que se fala dos reis de Portugal,
inserindo a esse propósito uma parte da tradição épica de D. Afonso
Henriques e uma prosa que é um testemunho do próprio D. Pedro
sobre o reinado de D. Dinis, seu pai.

§ 55. A Crónica Geral de Espanha de 1344


Esta contiguidade da genealogia e da história volta a manifestar-se
na Crónica Geral de Espanha de 1344, que é um novo empreendi-
mento literário do conde D. Pedro, posterior à realização do Livro de
Linhagens. D. Pedro conhecia, como é óbvio, a Crónica General de
Espaíia, do seu bisavô Afonso X-o-Sábio, obra de que houve várias
redacções e refundições, e é a essa tradição que pertence a sua Cró-
nica Geral. Uma daquelas variantes, a Variante Ampliada de 1289 da
Primeira Crónica Geral (que .começava com Ramiro 1 das Astúrias),
foi traduzida para galego-português e serviu de modelo ao conde
D. Pedro.
José Leite de Vasconcelos mostrou que a linguagem do escriba da
dita tradução da Variante Ampliada é o galego, e não o português,

158
línguas que já no século XIV se diferenciavam; mas na Galiza não
existia nessa época uma corte que pudesse promover ou estar interes-
sada por uma tal obra. Por isso me parece de atender a hipótese de
Cintra, segundo a qual terá sido um português da corte de D. Dinis,
e provavelmente o próprio conde D. Pedro, quem promoveu a tradu-
ção, encarregando dela um escriba galego 214 • Há outras intervenções
de galegos nas traduções para português, como a de João Sanches,
mestre-escola de Astorga que em 1312 «mandou fazem a tradução do
Josep Aharimatia, e a de Frei António de Ribeira, vigário de Santo
António de Vila Franca, que «mandou escrevem a Crónica da Ordem
dos Frades Menores em 1470.
Esta obra seria, portanto, um indício do interesse da corte portu-
guesa pela história de Espanha na primeira metade do século XIV.
Outro indício é um texto detectado por Diego Catalán, o Cronicon
Galego-Português de Espanha e Portugal, de 1341 a 1342, atestado
por Cristóvão Rodrigues Acenheiro em 1531. É uma crónica indepen-
dente da Crónica General de Espafia, de Afonso X, e ia do rei
Rodrigo à batalha do Salado. Dava largo espaço às tradições lendá-
rias, nomeadamente a de D. Afonso Henriques, e incluía também
notícias extraídas dos anais antigos. A chamada 4. ª Crónica Breve de
Santa Cruz 215 seria um extracto deste Cronicon Galego-Português.
E, já na época de D. Dinis, este interesse historiográfico originou
a tradução da Crónica do Mouro Rasis, isto é, de um texto célebre
do historiador árabe Ahmed ben Mohammed Arrazi, do século x,
mandada fazer por el-rei D. Dinis. A tradução foi feita directamente
do árabe por Gil Peres, clérigo, com a ajuda de mestre Maomet.
O texto português (que se perdeu no terramoto de 1755, mas de que
se conservam retraduções castelhanas incompletas) abrange uma des-
crição geográfica da Espanha, as fábulas relativas à sua pré-história,
a história romana, a história dos Godos, incluindo o reinado do
último rei, Rodrigo, sua destruição pelos Muçulmanos e governos
dos primeiros emires árabes. O tradutor português, Gil Peres, permi-
tiu-se algumas infidelidades ao original, exercitando o seu talento de
novelista 216 •
A Crónica Geral de Espanha de 1344 é o resultado dq interesse his-
toriográfico atestado pelas obras indicadas. É um interesse comum

214
Cintra, introdução à Crónica Geral de Espanha de 1344, 1. ª ed., p. 330, e Cata-
lán, introdução à Crónica General de Espafia de 1344, p. 49.
215
Diego Catalán, op. cit., pp. 34-43.
216
Cintra, op. cit., pp. 330 e segs. e 350. Catalán, op. cit., pp. 62 e segs.

159
aos vários reinos da Espanha (manifestado em Portugal pelos Anais
e pelo Cronicon chamado de Acenheiro), mas que teve a sua expressão
culminante na Crónica General de Espafia, empreendida por
Afonso X cerca de 1270, grande vaga que irradiou para toda a Penín-
sula. A Crónica Geral de D. Pedro é um eco da obra do Rei Sábio
e atesta a unidade da cultura hispânica no século XIV.
Até ao cap. xxvm, a Crónica Geral de Espanha de 1344 é uma
genealogia dos reis bíblicos, dos reis da Pérsia, da Macedónia, dos
imperadores romanos (considerando também romano o Império do
Ocidente, até Luís da Baviera), dos imperadores caldeus da Babiló-
nia, dos reis da Macedónia, até ao imperador Alexandre, dos reis da
Grécia, de outro ramo de reis gregos «que se chamaram Argaonus»,
da linhagem dos Argivos, que começaram a reinar na cidade de Ate-
nas, dos reis de Atenas e da Grécia, dos reis da Lacedemónia, dos reis
de Tróia, dos reis latinos antes de Rómulo, das gerações dos reis egíp-
cios. Daqui passa aos reis godos até ao rei Rodrigo, «que morreu
hortelão em Viseu», a que se segue D. Pelaio, de quem descendem os
reis de Castela e de Leão até Afonso XI.
Dep'ois desta lista genealógica universal segue-se a tradução da
Crónica do Mouro Rasis, que tem um carácter completamente dife-
rente. Começa por uma descrição geográfica da Espanha, a que se
segue uma narração cronística, que se inicia na intriga que abriu a
Espanha visigótica aos exércitos mouros e que hoje lemos como uma
animada novela histórica (o romance de Rodrigo e Alacaba), a der-
rota e triste fim do rei Rodrigo e os primeiros emires árabes da
Espanha.
Seguem-se listas de nomes e genealogias até ao rei Ramiro.
A partir deste rei temos uma verdadeira crónica, cuja base é a
tradução galega da Variante Ampliada de 1289 da Primeira Cró-
nica Geral, mas que continua para além dela, até à batalha do
Salado.
Como se vê, a Crónica do conde D. Pedro é uma compilação, por
vezes mal ordenada, de textos dispersos, e é na medida em que
reflecte a luz destas fontes que a obra se torna literariamente interes-
sante, como quando, por exemplo, descreve os acontecimentos do
fim do reinado do rei Rodrigo, ou reproduz a lenda do rei Bamba,
as batalhas do conde de Castela Fernão Gonçalves, ou a tradição
épica de D. Afonso Henriques. A redacção do próprio conde aparece
quando dá testemunho de acontecimentos de que foi contemporâneo,
o que acontece sobretudo na narração do reinado de D. Dinis, seu
pai. Embora tenha um horizonte hispânico, como já mais de uma vez

160
notámos, a Crónica Geral de Espanha de 1344, exactamente como
o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, foca a história dos reis de
Portugal, que a Crónica General de Espana, na sua versão ampliada
de 1280, tratara sumariamente até ao reinado de D. Afonso III.
A Crónica Galego-Portuguesa de Espanha e Portugal (de que a IV
Crónica Breve de Santa Cruz é um fragmento) acrescentava à lenda
outras notícias sobré D. Afonso Henriques, desenvolvia o reinado
de D. Sancho II com o eco cie tradições lendárias, acrescentava no-
tícias sobre D. Afonso III e D. Dinis e aludia à batalha do Salada.
Na Crónica Geral de Espanha de 1344, o conde D. Pedro aproveita
o texto da Crónica Galego-Portuguesa, acrescentando-o nomeada-
mente com uma tradição lendária da conquista de Santarém por
D. Afonso Henriques e com uma tradição, também oral, das lutas
do tempo de D. Sancho II e prolongando-o com uma notícia pessoal
do reinado de D. Dinis e um esboço do reinado de D. Afonso IV.
Tudo isto sem alterar o ponto de vista hispânico em que o autor se
colocava. É verdade que se amplia a secção portuguesa da Crónica,
mas também se alargam as secções consagradas a Navarra e a Aragão.
A Crónica Geral de Espanha de 1344 teve uma segunda versão nos
últimos anos do século XIV ou primeiros do século xv, muito alte-
rada também em português, em que se mantém o mesmo ponto de
vista e não se desenvolve a parte consagrada a Portugal. Podemos
dizer, resumindo, que este era o ponto de vista dos fidalgos ligados
por laços de parentesco a toda a Espanha.

§ 56. A Crónica de Portugal de 1419


A batalha de Aljubarrota ocorreu em 1385, isto é, quarenta e cinco
anos depois da do Salada, em que o rei de Portugal e o rei de Castela
e Leão lutaram irmanados contra o inimigo comum e tradicional dos
cristãos da Espanha, cuja história se fazia na Crónica Geral de Espa-
nha de 1344. Esta obra dominara ainda a perspectiva histórica de
uma das facções que se enfrentaram naquele combate, em grande
parte fratricida. Portugueses morreram de um lado e de outro, uns
em nome da lealdade dinástica, outros em nome de uma realidade
nova, mas ainda sem nomé próprio, a que nesse tempo se aplicava o
nome de «amor da terra», isto é, de fidelidade a uma tradição local,
independente das raízes hispânicas.
É natural que este novo sentimento se quisesse exprimir e justi-
ficar na historiografia, que em todas as épocas e em todos os tempos

161
é inspirada pelos sentimentos de solidariedade e de continuidade no
tempo dos grupos étnicos e outros grupos sociais. Facilmente se
compreende que tenha aparecido entre os membros da geração
seguinte à de Aljubarrota o projecto de uma crónica exclusiva de
Portugal.
Foi D. Duarte, filho de D. João 1, então infante, quem mandou
fazer essa Crónica de Portugal em 1419, quatro anos depois da con-
quista de Ceuta 217 • Ele apresenta-se no próprio texto da Crónica
como «autor», mas é muito provável que tivesse encarregado da sua
execução o seu escrivão, Fernão Lopes, que ao tempo era guarda-mor
da Torre do Tombo·. Pelo que este nos diz na Crónica de D. João I,
escreveu num volume a história dos reis portugueses, até à morte de
D. Fernando, e os acontecimentos posteriores constituíam um segun-
do volume, que em certos passos remete para o primeiro.
Está ainda por publicar um estudo minucioso da Crónica de Por-
tugal de 1419 quanto ao método, à matéria e à forma. Pelo que se
infere da simples leitura do texto, trata-se da compilação, por ordem
cronológica, das «escrituras» subsistentes, isto é, de tudo o que havia
de escritos sobre as épocas anteriores, mas com redacção nova. Entre
eles contava-se a Crónica Geral de Espanha de 1344. O autor justifi-
ca-se sempre com estas «escrituras antigas», embora não hesite,
quando as considera confusas, em as redigir segundo a sua própria
interpretação 218 •
Entre estas «escrituras antigas» não se contam apenas as cróni-
cas e as tradições registadas, mas também os documentos autênti-
cos, como, por exemplo, a carta de Inocêncio III chamando à cru-
zada, o juramento que o conde de Bolonha, futuro D. Afonso Ili,
fez em Paris antes de vir para Portugal, ou as cartas que o papa
enviou aos senhores de Portugal e aos frades menores para que
recebessem como rei o irmão de D. Sancho li. São documentos de
chancelaria.
Não está só nisto a novidade desta crónica.
No episódio da conquista de Santarém vê-se provavelmente o dedo
do gigante. A Crónica Geral de Espanha de 1344 limitava-se a relatar
o que provavelmente era, na origem, uma tradição épica. O redactor
da Crónica de Portugal de 1419 antecedeu este relato de uma descri-

217
Sobre a data e o autor ver Cintra, op. cit., p. 460. Textos publicados por A. de
Magalhães Basto, Crónica de Cinco Reis de Portugal, Porto, 1945, e Carlos da Silva
Tarouca, Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, Lisboa, 1953.
218
Ver, por exemplo, o episódio do Bispo Negro.

162
ção de Santarém, da sua lavra. D. Afonso Henriques, diz ele, resol-
veu conquistar Santarém:

[... ] por duas razões, uma porque era lugar mui forte e guer-
reiro que fazia mui grande dano em sua terra, e outra porque era
a milhor vila de todo o seu reino pela nobreza do seu assenta-
mento. Ca a vista dos homens nom se pode fartar de ver esguar-
dando contra o Oriente os campos chãos e muitos avondosos de
todo o pão por espaço de cento e sessenta estados [estádios] (onde
sabei que cinco pés fazem um passo, e cinco passos um estado, e
outo estados de mil passos fazem uma milha, e três mil passos, que
são três milhas, fazem uma légua de terra); outrossi ao Ocidente
e aurego [sul] desfalece a vista dos·olhos da bondade do seu termo,
e do aguião [norte] contra os montes, mui grande avondança de
vinhas e olivais.

O autor deste texto revela um sentimento da paisagem expresso de


forma comunicativa - «a vista dos homens nom se pode fartar de
vem-, a preocupação da integração da acção no espaço, o estudo
das motivações do protagonista (as razões que o rei tinha para con-
quistar Santarém). Além disso, encontra-se neste texto a preocupação
didáctica (a explicação relativa aos «estádios») e o rigor na determi-
nação da medida. Todos estes predicados são próprios de Fernão
Lopes, como veremos, e estranhos aos historiógrafos medievais.

§ 57. A primeira narrativa


do milagre de Ourique
Uma das novidades desta Crónica em relação às anteriores é a nar-
rativa do milagre do aparecimento de Cristo em Ourique. Com
efeito, este «milagre» não aparece nem nas duas versões da Crónica
Geral de Espanha de 1344, nem no Cronicon chamado de Acenheiro,
nem nos anais antigos, nem na Vida de São Teotónio, em todos. os
quais textos a batalha é referida como facto importante. Eis o que
diz a Crónica de Portugal de 1419: a hoste de D. Afonso Henriques
chega a um lugar «que ora chamam Cabeços d'El-Rei, que é a par de
Castro Verde, no qual estava uma ermida». Vendo a multidão desme-
dida do exército do rei Ismar, os cavaleiros de D. Afonso Henriques
aconselharam-no a desistir da batalha. D. Afonso Henriques res-
ponde com um longo discurso que diz que «maior é o poder de Deus

163
que o de el-rei Ismarn e evoca o exemplo do célebre conde de Castela
Fernão Gonçalves:

[... ] mas não é menos poderosa agora contra el-rei Ismar que
seria em outro tempo para ajudar o conde Fernão Gonçalves con-
tra el-rei Almançor e outros muitos reis e condes e senhores em tais
feitos. E pois vos Deus guisou tanto bem como este, o qual é que
em vencendo serviremos a Deus e ganharemos honras e riquezas e
em este mundo, para o que servimos, esperança de haver o outro,
e os que aqui morrerem serem certos de logo irem ao Paraíso. Pois
pode ser maior bem que, em morrendo, conquistar o Reino de
Deus e havê-lo, e vivendo haver tão grande honra como esta?·Pois
amigos e vassalos eu vos peço que deixeis a multidão [... ]

O longo discurso, de que extractamos uma parte, convenceu os


cavaleiros. Quando foi a tarde, o ermitão que estava na ermida pro-
curou D. Afonso Henriques e disse-lhe:

Príncipe D. Afonso, Deus te envia a dizer por mim que, porque


tu hás grande vontade em O servir, que por isso serás ledo e esfor-
çado, e por Ele te fará amanhã vencer el-rei Ismar e todolos seus
grandes poderes. E Ele te manda por mim dizer que quando ouvi-
res tanger esta campainha que em esta ermida está que tu saias
fora e Ele te aparecerá no Céu assi como Ele padeceu pelos peca-
dores.

Partiu-se o ermitão e D. Afonso Henriques, joelhos fincados em


terra, agradeceu a Deus numa eloquente oração. Depois de dormir,
«quando foi antemanhã uma meia hora, tangeu-se a campãa, e ele
saiu-se fora da sua tenda, e, assi como ele disse e deu testemunho em
sua história, viu Nosso Senhor Jesus Cristo em a Cruz pela guisa que
o ermitão lhe dissera e adorou-o com grande prazer e lágrimas de
ledice de seu coração. E como lhe Nosso Senhor Deus desapareceu ele,
muito esforçado, veio-se para sua tenda, e fez-se armar e mandou logo
dar às trombetas e atabales e anafis e foram logo todos alevantados e
começaram-se de confessar e ouvir missas e comungar todos, [... ]».
Segue-se a descrição do exército português ordenado para a bata-
lha. É antes de esta se travar que os Portugueses pedem a D. Afonso
Henriques que consinta que o façam rei. Ele recusa com um discurso
cortês: «[ ... ]não me quero chamar rei nem o ser, mas eu como vosso
irmão e companheiro vos ajudarei, [... ]». Mas acabou por ceder, «e

164
esses mais cavaleiros que aí eram o alevantaram por seu rei bra-
dan~o todos com muito prazer e alegria dizendo: Real, real, re~l por
el-rei D. Afonso Henriques, rei de Portugal».
Segue-se a narrativa da batalha, com a especificação dos feitos de
armas de vários cavaleiros (o alferes Pêro Pais, Lourenço Viegas,
Gonçalo de Sousa, Martim Moniz) e do próprio rei. O epílogo é a
descrição do escudo de Portugal:

[... ] por se lembrar da mercê que Deus naquele dia fizera [... ]
pôs sobre as armas brancas que ele trazia uma cruz toda azul, e
pelos cinco reis que lhe Deus fizera vencer departiu a cruz em cinco
escudos, e meteu trinta dinheiros em cada um dos escudos em reve-
rência da morte e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo que foi
vendido por trinta dinheiros. E os reis que depois vieram, vendo
como não podiam meter em cousas pequenas em que se as armas
trazem, assi como em maçãs de espadas e em outros tais semelhan-
tes, que pequenos são, em cada um escudo puseram cinco dinhei-
ros em aspa, em contando cada uma carreira de Cruz de cada vez
com um meio escudo fazem trinta dinheiros. E assi os trazem
agora quando esta crónica foi começada.

Onde foi o redactor da Crónica de Portugal de 1419 buscar esta


narrativa, que encontramos aqui pela primeira vez? É uma narrativa
literariamente desenvolvida, com discursos retóricos, só possível a
partir do século XIV. Como fonte cita-se uma história de Afonso
Henriques testemunhada por ele mesmo. Isto sugere um documento
forjado à imitação do relato latino da tomada de Santarém fundado
no testemunho do próprio rei para os monges de Santa Cruz, que,
esse, é autêntico (é o citado De expugnatione Scalabis). De toda a
maneira, tal documento forjado, se existiu, não era ainda conhecido
do conde D. Pedro nem do autor da segunda versão da Crónica
Geral de Espanha de 1344, que data, como dissemos, de cerca de
·1400. É possível que a invenção date da época das lutas contra Cas-
tela no último terço do século x1v e tenha a intenção de fundar em
direito divino a existência da monarquia portuguesa. Fernão Lopes,
apesar do seu escrúpulo documentalista e do seu espírito realista,
teria dado acolhimento a esta fábula milagreira, mas precursora de
um sentimento providencialista da história de Portugal 219 •
219
A hipótese de se tratar de uma interpolação ao manuscrito primitivo da Crónica
de Portugal de 1419 não é provável, visto que ambas as cópias que dele existem (uma de
1499, outra do século xv11) revelam as imperfeições de um rascunho inacabado.

165
É interessante que, no seu discurso aos cavaleiros, D. Afonso
Henriques evoque o exemplo do conde Fernão Gonçalves, o herói
fundador do reino de Castela. Refere-se provavelmente à batalha de
Fazimas contra Almançor, ganha devido também a um milagre: o apa-
recimento de Sant'lago com grapdes exércitos de· anjos, «todos
armados de armas brancas como a neve». Foi este milagre que fez
recuar os Mouros. A narrativa animada· que desta batalha faz a Cró-
nica Geral de Espanha de 1344 pode estar na origem do milagre para-
lelo de Ourique, em que Sant'lago é substituído pelo próprio Cristo,
como sugenu . L"m dley c·mtra 22º.
O «milagre de Ourique», que aqui vem pela primeira vez relatado
(250 anos depois do seu suposto acontecimento), vai ser o mito que
justifica a independência nacional durante cerca de quatro séculos.
Será novamente invocado e engrandecido após a perda da indepen-
dência, em 1580, porque fundava essa independência num direito
superior ao dos reis.

§ 58. Fernão Lopes cronista da nova dinastia


Foi sobre este fundo tradicional que Fernão Lopes se revelou
súbito e luminoso como um relâmpago. Nada substitui a leitura dos
grandes escritores, mas podemos tentar descrever o contorno dos
objectos que eles iluminam.
Fernão Lopes é o cronista ao serviço da corte de D. João I e de
seus filhos. A nova dinastia resultara de um golpe de estado apoiado
numa insurreição popular, que culminou nas Cortes de Coimbra de
1385, em que D. João, mestre de Aviz, foi eleito rei. D. João deveu
essa eleição ao facto de ter assumido a chefia do movimento popular
que rejeitava o legítimo herdeiro do trono, D. João de Castela, casado
com a filha do falecido D. Fernando. Pesava portanto um labéu de
ilegitimidade sobre a nova dinastia e a missão principal de Fernão
Lopes, como cronista da corte, era justificá-la.
Fernão Lopes pertencia à primeira geração de depois dos comba-
tentes de Lisboa em 1383 e dos da batalha de Aljubarrota, isto é, a
geração dos filhos de D. João I. Tinha a profissão de tabelião, ou
notário, «geral», isto é, com a regalia de a poder exercer em qualquer
localidade do Reino. O cargo era de nomeação régia, mediante
220
L. F. Lindley Cintra, «Sobre a formação e a evolução da lenda de Ourique», in
Revista da Faculdade de Letras, 1957.

166
exame, e exigia um mínimo de letras, o que o colocava na franja dos
clérigos, cujo hábito chegavam a usar, embora os clérigos de estatuto
superior considerassem isso um abuso. Em 1418 era guarda-mor da
Torre do Tombo ou, como hoje diríamos, chefe do arquivo público
do Reino, a quem competia passar certidões de documentos régios.
Em 1434, D. Duarte concede-lhe uma boa tença vitalícia pelo traba-
lho que teve em pôr em crónica as histórias dos reis «que antigamente
em Portugal foram» e também os «grandes feitos» de «Elrei meu
Senhor e pai». É uma recompensa de .trabalhos passados e futuros,
pois se supõe que Fernão Lopes já redigira a Crónica de Portugal de
1419, de que D. Duarte, então infante, assume a autoria, como já
vimos. Foi também «escrivão da puridade» do infante D. Fernando,
que morreu em Ceuta, e, como tal, assinou o seu testamento. Como
tantos outros vilãos, obteve carta de nobreza, pois se intitula em 1434
«vassalo de el-rei». Foi aposentado de guarda-mor da Torre do
Tombo, por estar «mui velho e flaco», em 1454, isto é, cinco anos
depois de Alfarrobeira. Mas desde 1450 que entrara em funções outro
cronista. São da sua autoria, com toda a probabilidade, a Crónica
de Portugal de 1419, a Crónica de D. Pedro I e a Crónica de D. Fer-
nando, as duas primeiras partes da Crónica de D. João I. Damião
de Góis atribui-lhe ainda a terceira parte da Crónica de D. João I
(ou Crónica da Tomada de Ceuta), que foi réfundida por Zurara,
e a Crónica de D. Duarte, que foi novamente redigida por Rui
de Pina 221 •

§ 59. A legitimidade dinástica e o direito


patriótico de naturalidade
A força a que a dinastia de Avis verdadeiramente devia a Coroa,
a julgarmos pela narrativa de Fernão Lopes, era a massa popular
insurreccionada contra D. João de Castela e contra os que o apoia-
vam em nome da legitimidade dinástica. A nobreza, fiel a este direito
tradicional, dividiu-se entre o candidato castelhano e outro D. João,
221
A bibliografia de Fernão Lopes está estudada por Braamcamp Freire na sua intro-
dução à Primeira Parte da Crónica de D. João/, editada em 1915 (reimpressa em 1972),
e por A. de Magalhães Basto, A Tese de Damião de Góis em Favor de Fernão Lopes, a
Posição da Crónica de Cinco Reis, em face Dessa Tese, Porto, 1951. Contrariamente ao
que pensou Braamcamp Freire, não é de, Fernão Lopes a Crónica do Condestabre, que
data de 1433, como adiante mostraremos.

167
filho suposto legítimo de D. Pedro, que estava homiziado em Castela
e que lá fora preso. Segundo o direito tradicional, o mestre de Avis
estava em último lugar na cauda dos candidatos ao trono. Mas tinha
a seu favor, no sentimento popular, o ter acaudilhado a revolta de
Lisboa contra a rainha viúva D. Leonor, que era odiada não só por
uma parte da nobreza, mas também pelo povo da cidade, com quem
defendeu Lisboa contra o rei de Castela, que lhe pusera cerco em
1384.
As grandes linhas do problema em debate apareceram claras
quando as alternativas se limitaram aos dois poderes efectivos:
D. João de Portugai, mestre de Avis, e D. João de Castela (por-
quanto o irmão do mestre, preso, estava eliminado da corrida). A de-
cisão, de certo ponto de vista, era entre um herdeiro legítimo e um
bastardo em rebelião, ou, de outro ponto de vista, entre Castela e
Portugal. De um lado estava o direito dinástico, o direito de um
senhor suceder a outro, segundo regras tradicionais, na posse do
património; do outro lado estava um direito novo, ainda não legiti-
mado, o direito inerente aos homens do senhorio, seus trabalhadores
e proprietários imediatos, a população da terra, de recusarem um
senhor de outra nacionalidade e etnia e de optarem por um senhor
seu «natural». Um era o direito reconhecido dos senhores do patri-
mónio, o outro, o direito, ainda não reconhecido, e por isso insurrec-
cional, dos homens sujeitos ao domínio.
Perante a alternativa posta em 1383, a nobreza, como é natural,
manteve-se fiel ao direito tradicional, o que, neste caso particular,
equivalia a aderir ao rei de Castela. Não significava isso, do seu
ponto de vista, qualquer traição ou felonia. A Espanha era toda uma,
como o mostrava a Crónica Geral de Espanha de 1344 ou o Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro, e laços de família, reforçados pela
camaradagem de armas na luta contra os Mouros, constituíam as
malhas do tecido de toda a nobreza hispânica.
Mas as populações locais não o sentiam assim. O seu horizonte era
a terra onde nasceram, a comunidade local e outras comunidades
semelhantes pela língua e costumes, os locais de trabalho e negócio,
os lugares da infância, do sofrimento, das alegrias e da morte. É a
este complexo que Fernão Lopes vai chamar «O amor da terra». E é
sobre este sentimento que se funda o direito novo, sem nome, de
recusar um senhor que não seja da terra. Designá-lo-emos por
«direito de naturalidade», ou direito nacional.
Concretamente, enquanto o alcaide de um castelo devia fidelidade
ao senhor que legitimamente lhe entregava as chaves, ou aos seus

168
sucessores, legítimos herdeiros do domínio do castelo, segundo uma
hierarquia vertical, a população da vila, isto é, os homens livres,
lavradores, mercadores ou artesãos, sentiam-se, pelo contrário, irma-
nados na defesa de um espaço, de uma língua e de uma tradição local
comum dentro dos quais se tinham criado e só estavam ligados ao
senhor, mais ou menos submissamente, em todo o caso passiva-
mente, por mera imposição da força.
Os acontecimentos de 1383 puseram a claro esta oposição. O di-
reito de naturalidade com o nome de Portugal e o direito senhorial
com o nome de Castela afrontaram-se claramente; e, como este se
identificava com o grupo governante, toda a autoridad~ apareceu
odiosa aos homens das vilas e, por contágio, a muitos camponeses
pobres. Assistiu-se então a um acontecimento de grande valor simbó-
lico: a demolição dos castelos pelo povo das vilas, uma espécie de
premonição da demolição da Bastilha, em França.
O debate entre os dois direitos correspondia não só à oposição
entre Portugal e Castela, mas também à oposição entre dominados e
dominadores, e unia num mesmo vínculo, por um lado, os fidalgos,
fosse qual fosse o seu lugar na cadeia de vassalagem, e, por outro, os
não fidalgos, fosse qual fosse o seu estatuto económico. A ocasião
fulgurante esbateu os particularismos característicos da sociedade
medieval e tornou clara a linha divisória fundamental: os que pos-
suíam a terra como património e os que eram possuídos como parte
desse património.
Todavia, o direito de naturalidade não é uma mera convenção,
tem raízes na afectividade humana. Por isso alguns fidalgos lhe
foram sensíveis e seguiram o partido de Portugal, como os chamados
fidalgos da Beira, que, por sua própria conta e risco, destroçaram um
exército castelhano em Trancoso, e sobretudo Nun' Álvares Pereira,
que apoiou o mestre de Avis contra os próprios irmãos, que seguiam
o partido da legitimidade dinástica. Conforme o ponto de vista, uns
e outros eram traidores.
Ao ler Fernão Lopes, encontramos que o direito de naturalidade
era usado como argumento mesmo entre fidalgos. A seguir à insurrei-
ção de Lisboa, o castelo desta cidade foi cercado pelos homens do
mestre e pela multidão. O castelo era comandado por Martim Afonso
Valente, em nome do conde D. João Afonso, irmão da rainha e que
era alcaide de Lisboa. Foi requerido a Martim Afonso Valente «que
o [castelo] desse ao mestre e não consentisse que por ele viesse mal
à cidade e a todo o reino, pois que português verdadeiro era, dizen-
do-lhe muitas razões por que o devia de fazer. Martim Afonso se

169
escusava delo, dizendo que o não faria por nenhuma guisa, por dele
ter feita menagem e cair em mau caso, com grande seu doesto e de
todo los que dele descendessem» 222 •
Martim Afonso devia entregar o castelo, segundo os do mestre de
Avis, por ser «verdadeiro português». Mas ele opunha a este argu-
mento que tinha feito menagem do castelo ao conde João Afonso e
que, se o entregasse sem ordem dele, se desonraria a si próprio e a
todos os seus descendentes.
Nun' Álvares, que estava presente, ofereceu-se para convencer
Martim Afonso. Falou com ele, «dizendo que não cumpria que por
seu aso se perdesse a cidade e o Reino fosse posto em aventura, a
qual cousa, pois verdadeiro português era, lho não devia consentir o
coração. E fazendo-o de outro jeito que todo o mundo lhe teria a
mal, e merecia de o apedrarem todalas gentes da cidade por elo».
Como se vê pelo texto, ser «verdadeiro português», ter amor à
terra e não desejar a sua destruição, é uma razão «de coração», um
sentimento natural. O fidalgo, partilhado entre as duas ordens de
razões e apertado pela multidão que cercava o castelo, pediu que,
antes de o entregar, o deixassem comunicar ao seu senhor, o conde
João Afonso Telo, após o que, com autorização dele, se entregou,
aderindo, a partir de então, ao mestre.
Justificar a legitimidade do fundador da dinastia de Avis obrigava,
portanto, o cronista a justificar o direito novo, o direito de naturali-
dade, que era sentido sobretudo pela massa do povo não nobre. As
crónicas de Fernão Lopes são a narração deste grande movimento
que levou os povos do Reino a imporem o seu direito contra a hierar-
quia senhorial, narração que está repassada de afectividade e entu-
siasmo e que em si mesma é uma justificação.

§ 60. Que significa «O evangelho português»?


Mas, além da narração, encontramos na Crónica de D. João I
páginas de reflexão em que o cronista procura identificar e legitimar
esse novo direito com que se sentiu solidário.
Nos caps. 159 e 160 da primeira parte da Crónica de D. João l, o
cronista nomeia alguns que ajudaram o mestre de Avis e alguns que
foram contra ele. Os primeiros são postos numa lista comparada à

222
Crónica de D. João /, !. ª parte, cap. 41. Seguimos a edição de Braamcamp
Freire, 2. ª parte continuada por William J. Entwistle, Lisboa, 1968.

170
ladainha canónica, que começa com os apóstolos, São Pedro à
cabeça; assim, Nun'Álvares é posto em primeiro lugar, com a
seguinte justificação:

Porque, assim como o filho de Deus, depois da morte que


tomou por salvar a humanal linhagem, mandou pelo mundo os
seus apóstolos pregar o Evangelho a toda a criatura [... ] assim o
mestre, despois que se dispôs a morrer, se cumprisse, por salvação
da terra que seus avós ganharam, mandou Nun' Álvares e seus
companheiros pregar pelo Reino o evangelho português.

Esta expressão «o evangelho português» é, à primeira vista, uma


metáfora audaciosa, quase uma blasfémia; vendo o texto mais de
perto, justifica-se porque se refere a uma questão religiosa:

[..• ] o evangelho português, o qual era que todos cressem e


-tivessem firme o papa Urbano ser verdadeiro pastor da Igreja fora
de cuja obediência nenhum salvar-se podia e com isto ter a crença
que seus padres sempre teveram, convém a saber: gastar os bens e
quanto haviam por defender o Reino de seus inimigos, e por man-
ter esta fé espargiram seu sangue atá morte.

O «evangelho português» tem, portanto, dois componentes: um


religioso e outro não religioso. É o componente religioso que habilita
o autor a usar a expressão «evangelho»: a fidelidade ao papa «legí-
timo» (isto é, reconhecido pelo rei de Portugal) implicava a adesão à
verdadeira fé, pois o antipapa era, para todos os efeitos, um herege.
Mas a outra componente da expressão beneficia da vizinhança da
anterior. O efeito visado pelo autor é, evidentemente, associar as
duas causas, a do papa e a da defesa do Reino. Um efeito que a cons-
trução lógica da frase não implica (as duas afirmações estão ligadas
por uma copulativa), mas que se sente à leitura (a copulativa liga
geralmente duas ideias do mesmo nível, embora nem sempre).
Diremos, portanto, que o motivo da defesa do Reino beneficia por
vizinhança, e mercê de um artifício retórico, da auréola própria do
motivo da defesa da fé, que lhe é contíguo no espaço da escrita,
embora, logicamente, nada tenha que ver com ele.
Mas, além deste, há um outro artifício retórico para dar um carác-
ter transcendente, mais que humano, ao motivo da defesa do Reino.
Estoutro motivo pertence a um eixo vertical do discurso, independen-
temente da sua vizinhança com a questão do cisma.

171
A expressão «defender o Reino de seus inimigos» é a repetição de
uma frase que, linhas atrás, neste mesmo capítulo, encontramos a
propósito do conde D. Henrique. Diz o autor:
De guisa que, como no começo desta obra nomeamos fidalgos
alguns que ao conde D. Henrique ajudaram a ganhar a terra aos
Mouros, assim neste segundo volume diremos uns poucos dos que
ao mestre foram companheiros em defender a terra: de seus ini-
migos.

Neste texto há uma equiparação notável: a dos «inimigos» do mes-


tre com os «Mouros»,.inimigos da fé, que o conde D. Henrique com-
bateu. Uns e outros têm de comum o serem «inimigos da terra». Esta
equiparação é nova. Os Castelhanos nunca antes tinham sido consi-
derados pelos Portugueses no mesmo pé que os Mouros; eram com-
panheiros na guerra santa. É isto que se deduz da Crónicà Geral de
Espanha de 1344, é em nome desta concepção que se trava, no tempo
do pai de Nun' Álvares, a batalha do Salado. Este ideal levou alguns
dos protagonistas da guerra com Castela a considerarem-na uma luta
fratricida. D. João I, segundo a Crónica da Tomada de Ceuta, dava
como razão para ir combater contra os Mouros querer resgatar-se de
ter derramado o sangue de cristãos (referia-se à guerra com os Caste-
lhanos).
A equiparação da guerra contra os Castelhanos à guerra contra os
Mouros, equiparação que não é expressa, mas subentendida (por
meio da palavra «inimigos»), ajuda a dar à primeira um estatuto reli-
gioso e prepara o leitor para a expressão «evangelho português».
À luz daquela equiparação compreende-se que seja parte do «evange-
lho português», além de defender o papa Urbano, «ter aquela crença
que seus padres sempre tiveram, convém a saber; gastar os bens e
quanto haviam por defender o Reino de seus inimigos, e como por
manter esta fé espargiram seu sangue atá morte». O artifício retórico
está na ambiguidade da palavra «inimigo». Os antepassados que
tinham defendido o Reino contra os «inimigos» foram os que comba-
teram contra os Mouros. Mas já o citado passo relativo ao conde
D. Henrique nos preparava para atribuir ao significante «inimigos»
o conceito religioso que Fernão Lopes lhe quer dar ao falar dos Cas-
telhanos.
Vê-se que Fernão Lopes pretende justificar como guerrà santa uma
luta que a muitos aparecia como uma guerra civil entre cristãos. Vai
no mesmo movimento a designação de «mártires» aplicada aos
defensores do Reino.

172
Podemos dizer, em resumo, que Fernão Lopes, por meio de artifí-
cios retóricos, pretende dar um estatuto religioso à guerra contra Cas-
tela.

§ 61. Uma teoria biológica do patriotismo


Mas há uma outra teoria implícita do patriotismo em Fernão
Lopes que não tem fundamento propriamente religioso. No capítulo
seguinte (160), em que fala dos que traíram o mestre, faz uma dife-
rença entre eles, pois uns eram «naturais» do reino de Castela, «e
estes não são tanto de culpar, pois eram enxertos tortos, nados de
azambujeiro bravo», e outros eram naturais de Portugal:

[... ] mas aquelas vergônteas direitas, cuja nascença trouve seu


antigo começo da boa e mansa oliveira portuguesa, esforçaram-se
de cortar a árvore que os criou e mudar seu doce fruto em amar-
goso licor, isto é de doer e para chorar!

Esta imagem dos ramos de oliveira, uns naturais e outros enxerta-


dos, é tirada da Epístola 11 de São Paulo aos Romanos, em que ela
se aplica aos Judeus, ramos naturais, embora alguns desnaturados,
da árvore de Deus, e aos cristãos, ramos enxertados na boa árvore.
Mas o que importa aqui não é a origem da imagem, antes o facto de
Fernão Lopes explicar em termos de natureza (isto é, biológicos) a
separação entre Portugueses e Castelhanos. Não é já a fé que está na
origem da oposição entre os dois povos, mas algo de tão involuntá-
rio, tão exterior às instituições, de tão impositivo como é a natureza.
Portugueses e Castelhanos têm naturezas diferentes, porque são
ramos de diferentes árvores.
Esta ideia aproxima Fernão Lopes do conceito moderno de patrio-
tismo, que, como se sabe, procura justificar-se por vezes com razões
naturais e especialmente raciais.
E à luz dele se compreende inteiramente o famoso prólogo da Cró-
nica de D. João /, que expõe uma teoria naturalista e determinista
das motivações do historiador:

[... ] assim que a terra em que os homens per longo costume e


tempo foram criados gera uma tal conformidade entre o seu enten-
dimento e ela que havendo de julgar alguma sua cousa, assim em
louvor como por contrairo, nunca por eles é direitamente recon-

173
tada. [... ] Outra cousa gera ainda esta conformidade e natural
inclinação, segundo sentença de alguns, dizendo que o pregoeiro
da vida, que a fame [fome] recebendo refeiçom pera o corpo, o
sangue e espíritos gerados de tais viandas têm uma tal semelhança
entre si que causa esta conformidade.

A mesma ideia é afirmada no parágrafo anterior e no seguinte e


resumida na sentença atribuída a Túlio:

[... ] nós non somos nados a nós próprios [a indica a origem,


como o latim a ou ab] porque uma parte de nós tem a terra e outra
os parentes.

Quer isto dizer que um historiador nunca pode ser imparcial por-
que é fisicamente determinado pela terra onde nasceu e se criou; o
seu entendimento conforma-se com a terra, por via dos alimentos que
a própria terra gera; é determinado também pelos parentes que o
geraram.
Em termos mais modernos, isto significa que há uma determina-
ção ecobiológica do nosso espírito.
Parece-nos que esta ideia está relacionada com aqueloutra ii:nplí-
cita na imagem dos enxertos da árvore. Ambas justificam o que hoje
chamamos «patriotismo», ou, melhor, a ligação do homem à terra
onde nasce, como um facto natural.
Esta segunda justificação vem dar ao mesmo resultado que a pri-
meira, embora por outra via. A causa nacional por que se batia o
mestre ou os seus era santa porque era a defesa do verdadeiro papa;
era santa porque era equiparável à guerra contra os Mouros; e final-
mente estava na ordem da natureza.
Pode-se dizer, com os lógicos, que o que prova de mais prova de
menos. Mas não nos interessa agora julgar do valor dos argumentos
apresentados por Fernão Lopes, interessa-nos o tê-los apresentado
em favor de uma causa que, à luz do direito medieval, era anormal,
sendo uma realidade que os quadros jurídicos ainda não tinham
admitido. É essa realidade que ele toma por assunto da sua narração
e que o inspira da maneira que sabemos. Mas não é só como narrador
que ele procura dar-lhe expressão, é também nos poucos períodos
doutrinais que escreveu.
A causa do mestre de Avis foi defendida juridicamente por João
das Regras, nas Cortes de Coimbra, com argumentos que Fernão
Lopes reproduziu e que servem de esquema à sua narrativa dos reina-

174
dos de D. Pedro, D. Fernando e de D. João, enquanto mestre de
Avis. Mas os argumentos de João das Regras não são desta ordem;
ele procura provar que, dentro do direito estabelecido, nenhum dos
herdeiros dinásticos o era legitimamente, pelo que o trono estava
vago e as cortes podiam legalmente eleger o rei.
É do maior interesse verificar que Fernão Lopes não se contenta
com esta argumentação, mas se colocou no terreno, completamente
novo para a época, do direito de nacionalidade. É este o pensamento
profundo que inspira as suas crónicas.

§ 62. Fernão Lopes como historiador


No citado prólogo da Crónica de D. João I, Fernão Lopes es-
creve:
Nós, certamente, posta de parte toda a afeição que por azo das
ditas razões podíamos ter, nosso desejo foi nesta obra escrever ver-
dade, sem outra mistura, deixando nos bons sucessos todo o, fin-
gido louvor, e nuamente mostrar ao povo quaisquer coisas em
contrário, da maneira que sucederam.

Admite depois o cronista que pode ser enganado pela ignorância


das velhas escrituras e dos autores utilizados, mas que mentira é neste
volume muito longe da sua vontade. Enuncia a seguir algumas das
suas fontes: grandes volumes de livros de diversas linguagens e terras
e públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares. Revestindo-
-se de uma autoridade de magistrado da verdade, declara que, sendo
achado em outros livros o contrário do que sua crónica fala, cuide o
leitor que esses livros estão errados e que os seus autores falaram de
coisas que não sabiam:
Nem entendais que certificamos coisa salvo de muitos aprovada
e por escrituras vestidas de fé; de outro modo, antes nos calaría-
mos do que escreveríamos coisas falsas.

Conclui chamando a atenção para o facto de que lhe interessou


muito mais a verdade nua e a certidão das histórias do que a formo-
sura e novidade das palavras.
Esta afirmação contradiz frontalmente a doutrina, também ex-
pressa no prólogo, da relatividade do historiador, condicionado pela
terra e pelos antepassados.

175
Mas o que nos interessa agora é a afirmação de que existe uma ver-
dade histórica objectiva. O conhecimento desta verdade exigiu todos
os esforços do autor, até ao ponto, segundo ele, de esgotar todas as
possibilidades e de se julgar habilitado a afirmar: «Mais certidão não
pudemos ter do que a contida nesta obra.» De notar é o tom de auto-
ridade com que o cronista declara a verdade do seu livro, que lembra
muito as fórmulas dos tabeliães. Certificar a verdade do passado,
como um tabelião certificava a verdade de um contrato ou de qual-
quer acontecimento, tal parece ser a missão de que se diz incumbido.
De notar é ainda a referência às suas fontes, que não são apenas os
livros dos outros cronistas, de diversas nações, mas os documentos
públicos, as «escrituras vestidas de fé».
Fernão Lopes levou para a historiografia um espírito jurídico de
notário, para quem o verdadeiro e o falso se corroboram documen-
talmente.
Procurou os documentos autênticos, explorando a Torre do
Tombo. Já nas crónicas anteriores a D. Pedro, que constituem a Cró-
nica de Portugal de 1419, são muitos os documentos reproduzidos:
cartas pontifícias, acordos, como o que se estabeleceu entre o conde
de Bolonha e os seus aliados, correspondência diplomática, inscrições
sepulcrais, etc. Nas Crónicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João l,
este recurso aos documentos originais é constante, podendo dizer-se
que o cronista não atribui ao rei uma negociação diplomática, um
acordo, uma determinação, sem ter à vista os respectivos documentos
e muitas vezes reproduzindo, sem sequer o declarar, o formulário dos
textos. Pode dizer-se que concebeu a história como um processo ins-
truído documentalmente.
Por outro lado, consultou os diversos livros de diversas linguagens,
registando as várias versões, por vezes contraditórias, dos factos.
Alude frequentemente a estas versões, deixando-nos entrever uma
bibliografia histórica portuguesa que existia antes dele. Perante as
contradições das narrativas que o precederam segue um método crí-
tico: quando é possível, escolhe a que aparece confirmada por um
documento autêntico: quando não dispõe dele, inclina-se para a que
lhe parece mais verosímil; quando, enfim, não há razões para preferir
uma às outras, expõe-as todas ao leitor, deixando-lhe a escolha.
Esta atitude crítica é geral em Fernão Lopes, mas tem excepções.
A Crónica de Portugal de 1419 obedece ainda ao critério da Crónica
Geral de Espanha de 1344: é um cerzido de escritos anteriores acres-
centado com documentos de chancelaria; mais do que isso: admitiu
a narrativa do milagre de Ourique, uma invenção ainda recente.

176
Nem sempre, por outro lado, sabemos qual foi o critério que levou
o cronista a preferir em certos casos a versão que nos dá como verda-
deira. Naturalmente, nenhum leitor exigia nesta época que o historia-
dor lhe pusesse nas mãos os meios de controlar os factos que narrava.
Fernão Lopes, utilizando este crédito de confiança, limita-se frequen-
temente a declarar que tal versão é falsa e tal outra verdadeira,
embora, em alguns casos, justifique a sua decisão. Discutindo as
diversas indicações existentes acerca do número de combatentes dos
dois contendores da batalha de Aljubarrota, escreve:

Antigamente ninguém se atrevia a escrever histórias, salvo


aquele que visse as coisas ou que delas houvesse perfeito conheci-
mento, porque a história há-de ser luz da verdade e testemunha
dos antigos tempos; e nós, posto que não víssemos aquelas coisas,
de muito revolver de livros com grande trabalho e diligência, jun-
támos as mais chegadas à razão em que os mais dos autores pela
maior parte consentem, e por isso condenamos e reprovamos e
havemos por nulas quaisquer crónicas, livros e tratados que com
este volume não concordem. De modo que, deixando tais desva-
rios de historiar, para a verdade desta coisa melhor ficar em
memória, e a bondade dos Portugueses não ter de perecer por
escritura de seus invejosos inimigos (como se por ali tomassem vin-
gança), sabei que as gentes de ambas as partes eram estas e mais
não.

Este tom seguro e até quase intimativo não nos deve, todavia;
levar a acreditar nas crónicas como numa escritura. Para dar um
exemplo, ele afirma terminantemente que o campo de batalha de
Aljubarrota era uma campina rasa e acusa de mentirosos os que afir-
mam o contrário. Contudo, a observação do terreno mostra que era
acidentado. O menos que se pode dizer é que Fernão Lopes estava
mal informado a este respeito. Estes pormenores não infirmam, no
entanto, o facto essencial que é o sentimento e a afirmação de uma
verdade objectiva que tem de ser investigada e controlada critica-
mente, com recurso à documentação.

§ 63. O ponto de vista de Fernão Lopes


O problema do rigor documental não deve confundir-se com o
problema da objectividade, do historiador.

177
A. interpretação histórica depende do génio do historiador, da sua
experiência social e da sua posição dentro das forças contraditórias
que movimentam o mundo em que vive; depende também desse
mesmo mundo, do seu dinamismo ou da sua estabilidade, de estarem
ou não em causa os valores estabelecidos e as estruturas tradicionais.
Um historiador identificado com um grupo social imóvel ou em posi-
ção defensiva arrisca-se a não compreender um processo histórico
que põe em causa os valores e as estruturas dominantes. É o que
sucede quando certos cronistas franceses medievais, identificados
com o ponto de vista senhorial, apresentam as jacqueries, a insurrei-
ção popular inglesa de 1382 ou as insurreições das cidades flamengas
contra os duques de Borgonha como obra de «maus homens» ou da
«gentalha».
Quando, pelo contrário, o historiador· se encontra numa atitude
crítica perante a tradição, o seu ponto de vista coincide com o do
grupo revolucionário, tem maior percepção da mobilidade social; ele
compreende que as estruturas e os valores estão em mudança.
Identificando-se com os grupos sociais que nessa época contesta-
vam a hierarquia tradicional, Fernão Lopes pôde ter o sentimento de
uma dinâmica que deslocava as bases da sociedade, isto é, de um pro-
cesso histórico global que escapa a qualquer outro cronista da Idade
Média. Foi por isso que ele pôde ser muito mais objectivo do que
aqueles que partiam do pressuposto de que nada acontecia senão efe-
mérides e que deixavam de fora ou simplesmente emitiam juízos de
valor sobre acontecimentos que o futuro mostrou muito importantes.
A visão histórica de Fernão Lopes é, por exemplo, infinitamente mais
rica que a do seu sucessor Zurara, que apenas tratava de justificar os
privilégios dos fidalgos.
Deve notar-se que quase tudo o que sabemos sobre a chamada
revolução de 1383-85 o sabemos por Fernão Lopes, pois dela nos
ficaram poucos documentos «autênticos». Foi Fernão Lopes quem
lhe deu o carácter de cataclismo social, o carácter «revolucionário»
que seduz os historiadores modernos. Há, todavia, vários níveis na
parcialidade de Fernão Lopes. Em primeiro lugar, as Crónicas de
D. Pedro, D. Fernando e D. João I apresentam-se claramente como
uma justificação e legitimação da nova dinastia e do pessoal dirigente
que saiu da insurreição de 1383. Estas Crónicas desenvolvem a
demonstração do direito que assistia aos Portugueses na sua luta con-
tra o rei de Castela, preparando as conclusões do célebre discurso de
João das Regras nas Cortes de Coimbra, segundo o qual, não
havendo herdeiros legítimos do trono, competia às Cortes eleger um

178
rei. Fernão Lopes reuniu as provas que alicerçam a conclusão do
jurista.
Todos os factos, todas as presunções que conduzem à incerteza da
paternidade de D. Beatriz são demoradamente desenvolvidas. A rai-
nha D. Leonor é constantemente apresentada como mulher pouco
casta, de cujos filhos a paternidade não podia deixar de se presumir
duvidosa. Por esta razão, sua filha não poderia ser rainha de Por-
tugal.
Demoradamente relatada é também a questão do Grande Cisma
do Ocidente, no sentido de provar a legitimidade do papa de Roma,
porque esse era também um argumento contra o direito do rei de
Castela, que, por ser aderente do papa cismático de Avinhão, estava
fora do grémio da Igreja.
Quanto aos filhos de D. Pedro e D. Inês de Castro, tidos por legí-
timos e, portanto, herdeiros eventuais do trono, Fernão Lopes pre-
para de longe a demonstração da sua ilegitimidade, evidenciando as
razões que, apesar do juramento feito por D. Pedro, deixaram em
dúvida o seu casamento com D. Inês. Estas razões, de natureza psico-
lógica e atribuídas na Crónica de D. Pedro aos homens sisudos da
época, são precisamente as mesmas de que se servirá João das Regras
no mencionado discurso. Além disso, não perdeu os ensejos que se
lhe ofereceram para mostrar sob um aspecto odioso a personalidade
do infante D. João, que assassinou a própria mulher para se habilitar
à sucessão do trono.
A par com esta demonstração jurídica, as crónicas de Fernão
Lopes pretendem mostrar que Deus sancionava com milagres a causa
portuguesa. São diversas, embora relativamente sóbrias, as maravi-
lhas referidas neste. sentido na Crónica de D. João I e sublinhadas
ainda por sermões que o cronista reconstitui cuidadosamente. O cha-
mado «juízo de Deus» tinha nesta época grande importância no
direito e na guerra, como o leitor pode verificar lendo a discussão
entre Nun' Álvares e os emissários castelhanos que precede a batalha
de Aljubarrota.
Esta apologià, no plano jurídico e no plano providencial, da causa
do mestre de Avis não era então ociosa, como já vimos. E é muito
plausível que, nesta demonstração, Fernão Lopes tenha puxado a
brasa à sua sardinha, alterando ou omitindo factos com vista a
ganhar a causa de que era advogado.
Ele não faz, porém, unicamente a apologia do rei; faz também, e
principalmente, a apologia da resistência popular ao Castelhano.
Além das razões de direito debatidas em cortes ou nas discussões que

179
precederam a batalha de Aljubarrota, há uma força maior, embora
sem forma jurídica definida, na argumentação pró e contra jogada
nas assembleias e nos conciliábulos. É a força de toda uma colectivi-
dade que não aceita o lugar que lhe é destinado dentro do direito
senhorial. Esta colectividade cria o seu direito novo, fundado no sen-
timento nacional, o «amor da terra», e defende-o de armas na mão.
Fernão Lopes faz a apologia deste novo direito, que não é já o do rei,
mas o do povo. O «amor da terra», a palavra «Portugal», definindo,
não já um território, mas um corpo de gente animado de um pensa-
mento, a expressão «portugueses desnaturados» aplicada em tom de
censura aos que tomaram partido contra «Portugal», a expressão
«casa de Portugal», aplicada, não já à casa real portuguesa, mas a
toda a Nação, parecem constantemente em Fernão Lopes como
expressão ainda esboçada, mas vigorosa, do direito pelo qual um
povo se levantou contra um rei, o direito nacional, como já vimos.
A guerra nacional aparece, portanto, no nosso cronista como uma
guerra civil entre camadas opostas da população, ou, melhor, entre
uma popular e uma outra nobre. O «amor da terra», o grito «Portu-
gal», caracterizam a gente popular, ao passo que o espírito devassa-
lagem feudal (confundido às vezes com o interesse pessoal mesqui-
nho) caracteriza os senhores. De um lado estão os «verdadeiros
portugueses», do outro lado os «portugueses desnaturados». Fernão
Lopes põe em relevo, com acentos de grandeza épica, o papel dos
«pequenos» e não perde ocasião de amesquinhar os fidalgos e des-
mascarar os seus presumidos ideais de «honra» e «vassalagem».
Entre os adversários do rei de Castela há que distinguir duas cama-
das. Por um lado, os «pequenos», os «miúdos», a «arraia-miúda»,
a «gente pequena dos lugares», os «povos miúdos», designações que
ocorrem frequentemente na sua obra. Por outro lado, os «homens
bons», os «homens», ou «cidadãos honrados» das várias vilas e luga-
res do Reino. Estes são os proprietários vilãos, os mercadores e nego-
ciantes, influentes locais, que geralmente dominavam as câmaras.
Nem sempre o papel dest<:s últimos é brilhante na obra de Fernão
Lopes. Em Lisboa, Porto e outras vilas, os «cidadãos honrados»
mostram-se timoratos e ou se retiram da luta ou aderem sob ameaça
da força. Álvaro Pais, rico e ilustre «cidadão» de Lisboa, aparece
como o organizador e artífice do golpe de estado que deu o poder ao
mestre de Avis e outros «homens honrados» tiveram um papel impor-
tante. Mas a verdadeira alma da revolução está nos miúdos, a gente
que largava os ofícios para acudir aos comícios, que dava o corpo ao
manifesto, que saía das vinhas para assaltar os castelos, simbolizada

180
naquele tanoeiro que ameaçava com a espada os «cidadãos honra-
dos» da Câmara de Lisboa, indecisos, dizendo-lhes que não tinha
mais nada a perder senão o próprio pescoço e que eles arriscavam
outro tanto.
Esta gente miúda torna-se por vezes «gente refece» quando pratica
excessos que o cronista censura. Em Évora, um bando, comandado
por um pastor, pôs em fuga os burgueses da cidade. Mas o cronista
não insiste nestas manchas e, pelo contrário, põe em relevo o papel
decisivo da gente miúda na guerra. Ela constituiu a força armada em
que inicialmente se apoiou o mestre de A vis, permitindo-lhe resistir
à gente de armas favorável ao partido castelhano e até apoderar-se de
alguns castelos. A população de Lisboa resistiu ao cerco do rei de
Castela e a do Porto bateu, em guerra de movimento, uma expedição
comandada pelo arcebispo de Santiago de Compostela.
Esta noção opõe-se inteiramente à noção feudal segundo a qual o
Reino e a sua população são uma espécie de herança ganha e susten-
tada à ponta da espada pelos cavaleiros que conquistaram o território
aos Mouros.
Não é apenas contra os Castelhanos que este povo se defende.
É, como vimos, contra os cavaleiros portugueses que mantinham voz
por Castela. É também contra os Ingleses, aliados, contra Castela, ao
rei D. Fernando, que saqueavam os campos e as aldeias na sua passa-
gem por Portugal. Fernão Lopes, que não esconde a sua antipatia
pelos Ingleses, narra como os aldeãos os perseguiam e lhés armavam
ciladas para os matar, de modo que pouco mais de dois terços regres-
saram a Inglaterra. É ainda contra os agentes do rei de Portugal que
arrebanhavam pelas aldeias os soldados para a guerra e os traziam
acorrentados.
Estes mesmos homens que se recusam a participar nas aventuras
cavaleirescas do rei D. Fernando são os que, quando os fidalgos lhes
correm as terras para lhes roubarem os géneros, se levantam com
chuços e com paus, como fizeram sob a direcção de um Cazpirre con-
tra o conde de Viana. Contra todos defendem eles. o direito a viver
em paz na terra em que trabalham e donde comem. Comentando as
empresas guerreiras de D. Fernando, escreve Fernão Lopes:

De modo que as gentes de el-rei de Castela e as gentes de el-rei


D. Fernando eram dobrado fogo que gastava e consumia a terra.

A existência do povo como sujeito da história, do povo que se


sente senhor da terra onde nasce, vive, trabalha e morre e que ganha

181
consciência colectiva contra os que querem senhoreá-lo, do povo que
é a fonte última do direito, é a grande realidade que ressalta das cró-
nicas de Fernão Lopes. Tentámos nas primeiras páginas deste capí-
tulo definir o que é esse povo. «Povo» opõe-se ao conceito de aristo-
cracia fidalga. «Fidalgo» é o que possui as armas e os castelos;
«povo» é o que ganha a sua vida quer com o trabalho manual (mes-
teirais e lavradores), quer com a «indústria», isto é, a actividade,
habilidade e iniciativa em qualquer ramo produtivo e pacífico.

§ 64. A arte narrativa de Fernão Lopes


A história que Fernão Lopes tinha para nos contar obrigava-o a
apresentar diversos planos da realidade humana, que não só são
paralelos, como se entrecruzam e se determinam reciprocamente.
Esta era decerto a maior dificuldade que Fernão Lopes tinha de resol-
ver para ordenar a sua história. Segundo a sua visão do mundo, esses
acontecimentos múltiplos e por vezes sincrónicos convergem todos
numa espécie de corrente da história cujo ponto de chegada é a vitó-
ria da insurreição popular e nacional, com tudo o que ela representa.
Acresce ainda que Fernão Lopes tinha o sentido do enquadra-
mento cósmico da acção, isto é, do espaço material que envolve e por
vezes condiciona os actos dos protagonistas. Exemplo extraordinário
disto é o cap. 164 da 1. ª parte da Crónica de D. João /, em que se
conta como uma tempestade faz malograr uma tentativa do mestre de
Avis para conquistar Sintra. Neste capítulo, a acção é a dos próprios
elementos naturais que se desencadeiam, a da paisagem em movi-
mento. Trata-se de uma página única, talvez, na literatura medieval,
de espírito completamente diferente dos das descrições de paisagens
nos romances de cavalaria, que parecem inspiradas nas pastoreias
convencionais dos trovadores.
Para isto ele não tinha modelos, nem no romance de cavalaria nem
na historiografia medieval, em que os acontecimentos, como um
baixo-relevo historiado, se desenrolam num plano único em que se
sucedem os feitos das grandes personagens. A estrutura narrativa
adequada à sua visão do mundo não era tanto romanesca como
épica. Nas epopeias homéricas, assim como na Chanson de Roland,
há também uma realidade múltipla e uma alternância dos heróis e das
massas de combatentes, assim como a ordenação de várias perspecti-
vas à volta dos acontecimentos centrais. E porventura desta composi-
ção épica alguma coisa ficou na historiografia ibérica, que nas suas

182
compilações aproveitou os cantares de gesta populares. Na já citada
narrativa da batalha do Salado é visível este tipo de composição e
esta alternância das personagens colectivas com as individuais.
A história de Fernão Lopes, pela sua própria realidade, pela quan-
tidade de testemunhos e fontes de informação, pelos factores tão
diferentes que abrangiam toda a vida nacional e porque não estava
ainda simplificada e esquematizada pela lenda, era todavia particu-
larmente difícil de ordenar. O autor teve bem consciência desta difi-
culdade de ordenação e não deixou de a expor ao seu públifo:

Certo é que quaisquer histórias muito melhor se entendem e


lembram se são perfeitamente e bem ordenadas do que de outra
maneira. E posto que nossa tenção seja de estas que queremos
escrever o serem em bom e claro estilo, porém tão grande multidão
de histórias nos são prestes, mormente neste lugar, que desviam
muito de tal ordenança nosso desejo e vontade. Porque el-rei de
Castela vem para entrar em Portugal; Nun' Álvares, outrossim,
vem-se a Lisboa; além disso, o castelo da cidade trabalha-se o mes-
tre com o povo de o tomarem; alçam-se vilas contra os alcaides
dos castelos pelo Reino; levantam-se uniões de uns contra os
outros; fazem-se outras muitas coisas em um tempo, de modo que
umas estorvam as outras a não se pqderem contar nos dias em que
aconteceram. E, segundo nosso juízo, melhor é dizer umas e
depois outras, posto que a alguns isto não apraza, que as embru-
lhar confusamente e serem muito piores de entender. Por isso,
levemos primeiro a rainha a Santarém, e depois falaremos do
muito de louvar Nun' Álvares como se veio a Lisboa para o mestre;
e depois da tomada do castelo, e assim de outras coisas como as
melhor pudermos encaminhar.

«Fazem-se outras muitas coisas em um tempo», tal é a frase que


resume a visão de Fernão Lopes; é a dificuldade que ele tem a resol-
ver. E coisas tão diversas como sejam a marcha de um rei, os passos
de um herói, as vilas que se levantam contra os castelos, os partidos
·que se debatem dentro de um país. Cada coisa tem de ser narrada por
sua vez, segundo o nosso cronista; mas o problema consiste em orde-
nar e distribuir os assuntos narrados de forma a tornar-se patente a
relação entre eles. É possível talvez distinguir em Fernão Lopes dois
processos de ordenação.
O primeiro consistiu em ordenar as diversas «histórias» em torno
de pontos de convergência. Em vez de dar a sequência, num friso,

183
dos vários episódios, ordenou-os em grandes composições concêntri-
cas, que constituem todos autónomos. Na Crónica de D. João I
distinguem-se, além de outros, dois grandes grupos de capítulos que
têm por nó central, respectivamente, o cerco de Lisboa e a batalha de
Aljubarrota. O cerco e a batalha não são simples sucessos iguais a
outros ligando numa cadeia o elo anterior com o posterior. São ver-
dadeiros centros donde irradiam ondas cada vez mais afastadas,
ampliando-se sucessivamente a partir do local e momento em que
ocorrem, até abrangerem toda a extensão de um país e toda uma
situação política e social. Estas ondas convergem, encurvam-se,
estreitam-se até· se confundirem com o ponto fulcral, no momento
preciso da decisão. Destes centros nascem os raios ao longo dos quais
é ordenada a multidão dos acontecimentos.
Assim, um facto como o cerco de Lisboa ou coI)lo a batalha de
Aljubarrota aparece solidário com um país inteiro e com tudo o que
nele está em dado momento acontecendo.
A preparação do cerco desenrola-se com lentidão majestosa,
enquanto por todo o Reino os povos se levantam contra os alcaides.
Desde o começo da Crónica está presente a ameaça do rei de Castela,
que se prepara para atravessar a fronteira. O cronista vai a Castela
buscar o rei e trazê-lo através de vilas e castelos; vai a Santarém pôr
a rainha antes que lá chegue o genro; vai ao Porto preparar o embar-
que das naus que hão-de vir a Lisboa romper o cerco por mar; vai ao
Alentejo acompanhar Nun' Álvares, cuja campanha se desenvolve
quando Lisboa está já encerrada por mar e por terra. E, contando
estes diferentes episódios, sublinha a sua simultaneidade, ligando-os
por meio de frases como:

Dali foram as galés sua viagem, e chegaram à cidade do Porto,


onde jazem um pouco, descansando, enquanto vamos ver el-rei de
Castela.

Os fios convergiram todos. Lisboa tornou-se o centro das atenções


e ansiedades, animosa em face do imenso, rico e alegre acampamento
castelhano. Os momentos de angústia sucedem-se dentro da cidade.
As naus do Porto, portadoras de esperança, não conseguem romper
o cerco. Vem a fome; a cidade chega ao último extremo do desespero
e o mestre de Avis apela para Nun'Álvares, vitorioso no Alentejo e
que, a seu turno, toma o caminho de Lisboa para colaborar numa
sortida que é a última esperança. Mas no acampamento castelhano
espalhou-se uma peste furiosa e, no momento em que Nun' Álvares,

184
em Palmela, acende fogueiras para fazer conhecida a sua chegada, o
rei de Castela manda deitar fogo ao seu acampamento e parte.
O Porto, o Alentejo, a Guarda, Óbidos, onde D. João de Castela
se deteve, e Santarém - todo um país povoado de gente e atraves-
sado por exércitos - constituem uma massa ordenada em torno do
cerco de Lisboa.
O mesmo tipo de ordenação encontramos em torno da «batalha»,
nome com que o cronista designa, sem mais qualificativo, o combate
travado em 14 de Agosto de 1385 junto da aldeia de Aljubarrota.
Para este dia e este local convergem de longe os acontecimentos,
desde, pelo menos, que D. João I saiu apressadàmente de Guimarães
ao saber que o rei de Castela se aprestava para atravessar de novo a
fronteira. Nun' Álvares vai para o Alentejo, onde se espera a invasão
e onde há-de recrutar gente para o exército real. Em Castela discute-
-se no conselho do rei, longamente, se ele devia ou não entrar em
Portugal; entra, por fim, cavando um sulco de atrocidades na passa-
gem. Em Abrantes, o rei de Portugal discute também no seu conse-
lho, agitadamente, se há-de ir ao caminho dos Castelhanos, a que o
arrasta por fim o condestável. Os exércitos aproximam-se. Fernão
Lopes leva-nos ora a um ora a outro acampamento, atrás de mensa-
geiros e espias. Finalmente, o exército de. Castela surge, tão grande
que «vales e montes se escondiam» sob a sua grande multidão «e,
dando o sol em suas resplandecentes armas, faziam-nos parecer mui-
tos mais do que as gentes diziam». Tendo posto os exércitos frente a
frente, o cronista não se apressa. Faz-nos assistir ao longo debate
entre os parlamentários de um lado e outro, e de novo a um demo-·
rado conselho em que se afrontam na hoste castelhana as opiniões
favoráveis e desfavoráveis ao empenhamento da batalha. Segue-se a
descrição minuciosa dos exércitos; os nomes dos fidalgos que esta-
vam com o rei de Portugal. E, deixando-os, o cronista vai à Beira
buscar alguns fidalgos retardatários, que acorrem a mata-cavalos,
relatando as desavenças, hesitações e intrigas que levaram outros a
não se apresentarem no seu posto. E, alargando o horizonte, antes do
momento crucial, mostra-nos, longe, em Castela, a rainha rezando,
com as suas donzelas, pela vitória do marido; e, uma vez mais, com
gesto comovido, a cidade de Lisboa, «mãe e ama destes feitos»,
vibrando de ansiedade pela provação do filho, penitenciando-se dos
seus pecados e fazendo promessas para aplacar a ira de Deus. Por fim,
· o combate, num ritmo cada vez mais rápido, começando por descre-
ver o moral dos exércitos, as exortações, os comentários, os agouros,
e acabando no empenhamento, que se resume a duas páginas.

185
A onda espraia-se de novo na ressaca: é a fuga do rei, sucumbido,
a caminho de Santarém, de Lisboa e, por fim, de Sevilha, onde chega
com a esquadra e onde teve de ouvir os gritos e prantos de homens
e mulheres pelos parentes mortos na batalha; é a chegada das más
novas a Castela, «que ficou muito espantada», a ponto de se levanta-
rem tumultos; são as diligências do rei para obter auxílio de França
e do antipapa, <<Onde fique esperando resposta, e juntando suas gen-
tes até ao acabamento deste ano; e nós tornemos a el-rei de Portugal,
que deixámos pelejando não sendo ainda a batalha de todo vencida».
Voltando de Castela para os campos de Aljubarrota, Fernão Lopes
descreve, como já apontámos, a fuga e o massacre dos Castelhanos,
tresmalhados, o saque, o estendal repugnante dos mortos, e, sem se
deter, leva-nos a Lisboa para assistir ao regozijo da cidade antes que
lá chegue o rei, recebido festivamente. E a narrativa das repercussões
da batalha não acaba aqui, embora não nos seja possível acompanhá-
-la indefinidamente.
É inegável o senso da composição nestes dois conjuntos tão com-
plexos e o êxito do cronista na sua tentativa de integração das «mui-
tas coisas» que «Se fazem a um tempo».
O outro processo de que se serve o cronista consiste numa disposi-
ção de planos de forma a dar uma perspectiva aos acontecimentos.
Esta perspectivação consegue definir um espaço social, tal como na
pintura, a partir de Giotto, o processo correspondente cria a terceira
dimensão.
Com o sentimento das coisas que ocorrem a um tempo, o nosso
cronista, enquanto se desenrola o combate naval no Tejo, aponta-nos
a gente da cidade, ansiosa, que se apinha nos muros e altos:

Neste espaço do dia que até aqui passou não faziam homens e
mulheres, desde que amanheceu, senão correr para os muros e
lugares altos para terem lugar donde vissem a peleja. Vinham-lhes
à memória seus pais e irmãos que ali traziam, e, batendo nos pei-
tos, fincados os joelhos em terra, rogavam a Deus, chorando, que
os ajudasse; as mães induziam os inocentes meninos que tinham ao
colo a que alçassem as mãos ao Céu, ensinando-lhes que dissessem
que aprouvesse a Deus de ajudar os Portugueses; outros faziam
seus votos por diferentes maneiras, chamando a preciosa mãe de
Deus e o mártir São Vicente para que fossem em sua ajuda.

Este processo é aplicado à escala do País inteiro. Os acontecimen-


tos de Lisboa em primeiro plano -morte do Andeiro, proclamação

186
do mestre como regedor, etc. - avultam sobre os acontecimentos
similares de Beja, Évora, Porto, etc .. Em cada um destes, como em
Lisboa, a vila e o castelo afrontam-se. E como fundo comum a todos
estes episódios é evocada, em traços sintéticos, a divisão entre os
grandes e os pequenos, os cercos dos castelos pelos ventres ao sol, os
pendões que se levantavam aos gritos de «Portugal, Portugal, pelo
mestre de Avis», a discórdia entre mulheres e maridos, irmãos e
irmãs, pais e filhos, e a fuga dos melhores dos lugares, a quem os
miúdos perseguiam tão de vontade que parecia que lutavam pela fé.
Assim, as várias insurreições, narradas em pormenor, aparecem inte-
gradas num ambiente geral. Da mesma forma, o ambiente da entrada
do rei de Castela em Portugal é evocado em plano de fundo, a traços
sintéticos.

Onde cuidai que, sendo soada sua partida de Castela, voz de


grande espanto foi ouvida, como dissemos, quando as gentes
foram certificadas de que el-rei de Castela queria entrar nele,
vendo que tal entrada não podia ser sem grande escândalo e dis-
córdia, a qual punha os humanais entendimentos em opiniões de
muitas maneiras.

Entre os dois processos há uma diferença. No primeiro, a que cha-


maremos de ordenação concêntrica, o estilo narrativo das diversas
partes ordenadas é substancialmente idêntico: trata-se de uma combi-
nação de narrativas. No segundo, pelo contrário, a que chamaremos
de plano de fundo, há uma diferença de tratamento estilístico entre
os dois planos. O primeiro é apresentado em estilo narrativo analí-
tico; o segundo é dado de forma sintética, em traços que definem glo-
balmente sentimentos e processos colectivos, com recurso a conden-
sações poéticas. É neste segundo plano que se encontram expressões
como «voz de grande espanto foi ouvida em todo o Reino», frase que
nada significa senão em estilo poético; ou ~inda a já mencionada
imagem segundo a qual a cidade de Lisboa estava posta «sob o
grande manto de tal pensamento». É do contraste entre o estilo analí-
tico e o sintético que resulta em grande parte o efeito dos dois planos.
Porventura são estes os dois esquemas a que se pode reduzir a
composição ein Fernão Lopes. Mas da sua combinação resulta uma
grande riqueza de efeitos, uma grande possibilidade de combinações.
Para indicar um só, são numerosas as anedotas significativas, que,
por um lado, resumem o sentido dos acontecimentos e, por outro,
nos dão o sentimento da variedade das formas concretas da vida.

187
Após a batalha de Aljubarrota, uma camareira de el-rei de Castela
que ia presa topou com o cadáver do marido, desfeito pelas cutiladas.
Ela, na corte do rei, costumava ungir com perfumes os cavaleiros e
as damas. Um vilão português, quando a viu chorar e lamentar-se
sobre o cadáver do marido, disse:

Digo boa dona, que é dos vossos perfumes que púnheis sob as
abas aos cavaleiros? Precisava agora vosso marido de uns poucos
deles, que tão mal cheira ali onde jaz!

Este dito atroz resume bem o sentimento da personagem portu-


guesa, recrutada na gente pequena, perante os fidalgos derrotados.
O rei de Castela considerava-se desonrado por ter sido desbaratado
por estes «chamorros». No mesmo sentido de humilhação àa honra
cavaleiresca vai a história de um escudeiro castelhano, «homem de
prol e de bom corpo», que se deixou prender por um pobre moço
português. Trazido ao rei de Portugal e perguntado porque é que se
deixara vencer assim por aquele moço, respondeu:

Melhor é prender-me este moço que matar-me o melhor homem


de armas que houvesse na vossa hoste.

Dir-se-ia que o Quixote espanhol se resignou à filosofia de Sancho


Pança.
Antes da batalha, o arcebispo de Braga recomendava aos soldados
que não se esquecessem de dizer et verbum caro f actum est (frase do
Evangelho de São João que significa: «e o verbo se fez carne»).
«E alguns simples e ignorantes que isto não entendiam perguntavam
o que queria dizer aquilo e outros, divertindo-se, respondiam que
queria dizer: Mui caro feito é este. Verdade é, respondiam alguns
deles; mas prazerá a Deus que o tornará hoje muito barato.» Sorriso
inesperado no meio da gravidade da expectativa do combate e que
exprime bem a simplicidade dos vilãos que constituíam a massa dos
combatentes portugueses.
Sem deixarem de aparecer com uma espontaneidade toda natural,
estas anedotas, todavia, enriquecem e completam o conjunto maciço
e o ritmo poderoso em que toda a narração é conduzida, apesar dos
seus múltiplos planos. É mais um pormenor a sublinhar a totalidade
feita de diversidade que constitui o conjunto das crónicas.

188
§ 65. Os protagonistas individuais
A história que este homem nos conta, e que era a que ele tinha
para nos contar, era de uma grande dificuldade, como já vimos.
Incluía aventuras de personagens e movimentos de massas, cenas
de interior e de praça, choques de concepções de vida e de direito.
O autor tinha de combinar numa narração coerente séries de acon-
tecimentos que os cronistas e memorialistas da mesma época em
França só foram capazes de contar cada um a sua. É como se
tivesse de ser ao mesmo tempo um Froissart, narrador elegante de
cavalarias segundo o recorte convencional dos romances; um
Commynes, que aprofunda os caracteres e as intrigas dos grandes
chefes, e o autor desconhecido do Journal d'un bourgeois de Paris,
que desenvolve o quadro das tribulações da cidade segundo o
ponto de vista das vítimas da fúria rapinante dos bandos de se-
nhores.
Convém, de entrada, notar que Fernão Lopes é servido por uma
extraordinária arte de narrador, que faz dele um representante
notável do período em que se revelam Chaucer e Boccacio. A arte
de desenvolver o fio de uma narração, conduzindo-o com sim-
plicidade e movimento sugestivo ao seu fim, manifesta-se quer _em
pequenos contos, como o do escudeiro que el-rei D. Pedro mandou
capar por ter dormido com mulher alheia, quer em grandes con-
juntos, como a história dos amores e perdição do infante D. João.
O fio da narrativa alterna com instantâneos intensamente dramá-
ticos.
Há em Fernão Lopes o estofo de um dramaturgo poderoso. Como
poucos escritores portugueses, ele soube criar e aproveitar situações
e desenvolvê-las através do confronto de personagens. As crónicas
estão cheias de situações dramáticas desenvolvidas em diálogos e em
gestos. O rei D. Pedro passeia para trás e para diante, à frente do
escudeiro que ele condenou à morte, remoendo as mesmas palavras,
antes de confirmar a sentença. O rei D. Fernando, fingindo-se desilu-
dido, procura, sem resultado, arrancar aos seus conselheiros uma
opinião sincera sobre o seu casamento com Leonor Teles. Em Beja,
um grupo de notáveis aparta-se debaixo de um portal para ler uma
carta da rainha, enquanto, de longe, o povo miúdo, desconfiado,
procura saber de que se trata. À vista das camareiras e dos cavaleiros,
D. Maria Teles cai sob o punhal do infante D. João, seu corpo
branco descoberto, após uma curta mas golpeante troca de palavras.
A enumeração não tem fim. Salientemos, no entanto, o episódio do

189
assassinato do conde de Andeiro nos Paços da Rainha; tudo aí é tea-
tro, desde a entrada brutal dos homens do mestre, o susto da rainha,
o suspense, as idas e vindas de pessoal, as palavras trocadas à volta
de um convite para jantar, em que se joga, sob a forma de uma corte-
sia mundana, a vida do condenado à morte, o curto diálogo junto de
uma janela entre o assassino e a vítima, enquanto os conspiradores
se agrupam a distância, na expectativa. Nada falta para pôr de pé
uma encenação.
Pelo sentido agudo das situações entre personagens e pela arte de
as confrontar, merece uma análise o capítulo em que se narra a entre-
vista entre a rainha D. Leonor e o mestre de Avis no mesmo dia em
que foi ass.assinado o conde de Andeiro, que fora, segundo o cro-
nista, amante da rainha. Acompanhado dos dois condes e de alguns
fidalgos, todos armados, o mestre irrompe na sala, onde a rainha o
não esperava. Ela protesta contra este «despropósito» e estes modos
de entrar numa sala. Mas eles ficam mudos e quietos, de pé. A rainha
manda-os sentar, ao que eles obedecem; mas o mestre continua silen-
cioso, até que um dos condes que o acompanham lhe diz que fale. Ele
e os dois condes põem-se de joelhos e o mestre dá o seu recado.
É uma parlenda em que ele diz que, ao matar o Andeiro, não tinha
a intenção de magoar a rainha, mas sim de defender a vida; e que,
por isso, não pede perdão de o ter morto, mas de o ter feito na casa
dela. Se ela lhe perdoar, ainda virá tempo em que ele lhe prestará ser-
viço. A rainha ouve de semblante carregado este discurso e não res-
ponde. Há um silêncio. Então, um dos condes fala: porque não per-
doa ela ao mestre, que é filho de rei? Mesmo em relação a Deus, não
somos obrigados a mais que a pedir perdão das faltas. Novo silêncio
da rainha. Então fala o outro conde, seu irmão: porque não perdoa
ela ao mestre, visto que ele reconhece a sua falta e lhe pagará com
bons serviços? Ainda está em tempo de lhe perdoar. Forçada a res-
ponder, a rainha pergunta: para que é este pedir perdão se o mestre
está perdoado de si próprio? Pode ela acusá-lo e persegui-lo? Fale-
mos de coisas mais sérias, concluiu D. Leonor. O mestre, desejoso,
ao que parece, de mudar de conversa, mostrou-se pronto a falar do
que a rainha quisesse. Ela, que neste momento começa a dominar o
mestre e os seus companheiros, fala da invasão iminente do rei de
Castela. Aí o mestre, mordendo a isca, lança-se a discursar: o que há
a fazer é intimar solenemente o rei de Castela a não quebrar o tra-
tado. E se ele diz que o não quer fazer?, pergunta D. Leonor. Nesse
caso, responde o mestre, juntar tropa e impedir-lhe a entrada.
D. Leonor sorri sarcástica:

190
Oh, que bom dito esse! Estava el-rei meu senhor vivo, e vós
todos com ele, e não podíeis fazê-lo, quanto mais agora, que ele
está morto e toda a vossa esperança enterrada com ele.

Os fidalgos ficam corridos e sem resposta. O mestre não reage e o


conde D. Álvaro diz-lhe: .
Levantai-vos, senhor, e vamo-nos. Nada do que dizemos agrada
aqui.
1

E, ao saífem, a rainha, assomando à porta, vê o corpo do


Andeiro, ainda no sítio onde o tinham matado. «Ah, Santa Maria
vale!», grita ela. «E não tendes dó desse homem que aí jaz morto tão
desonrosamente? Mandai-o enterrar ao menos, por ser homem
fidalgo como vós.» Eles não responderam e saíram. E o pano cai
sobre o corpo abandonado do morto, coberto por um tapete velho,
«mui bem feito corpo de homem de cerca de quarenta anos, vestido
com seu gibão de cetim vermelho, com uma tabarda de pano preto
com alhetas e mangas».
Esta breve análise basta para sugerir a riqueza e a dimensão dra-
mática do episódio relatado por Fernão Lopes. Cada frase, cada
silêncio, cada gesto, definem uma jogada na relação movimentada
dos interlocutores. Não há dito que não esconda ameaças subentendi-
das ou ciladas. E neste jogo revela-se a medida dos interlocutores: o
acanhamento brutal do mestre, o cinismo do irmão da rainha, a arte,
a força e o ódio de D. Leonor. O cadáver solitário do Andeiro, que
atrai os gritos de D. Leonor, sublinha a inutilidade da humilhação a
que o mestre se expôs.
Apesar do preconcebimento do cronista, o retrato de Leonor Teles
é uma grande criação dramática. Atingindo-a com a força de um
ódio popular recalcado de muitos anos, com as acusações de todo um
partido que necessitava de invalidar~lhe os direitos da filha, não a
poupando aos comentários mais brutais, sem excluir o de «com-
borça», o autor parece sugestionado pela grandeza e pelo vigor desta
sua heroína, que, de longe, domina os títeres manejados por ela -
o rei D. Fernando, o infante D. João, o próprio mestre de Avis. Até
na derrota final ela se mostra indomável, dizendo ao rei de Castela,
que quer prendê-la num convento:
Isso fazei vós a alguma irmã, se a tiverdes, que a metei por
freira num convento, porque a mim nunca me haveis de fazer
freira, nem vosso olho i;mnca o há-de ver.

191
Outras personagens, porém, de recorte menos nítido, vão emer-
gindo pouco a pouco da narração, segundo um processo mais próprio
do romance moderno. Faltam-lhe as grandes frases e os grandes ges-
tos; as feições definem-se pela acumulação de factos miúdos. É o
caso do mestre de Avis: sem uma paixão característica, sem uma fei-
ção muito saliente, homem vulgar, variando com as circunstâncias,
vulnerável a todas as fraquezas e capaz também daqueles actos de
dedicação espontânea inspirados pelo sentimento, esta personagem é,
apesar disso, talvez até por isso, inesquecível.
Fernão Lopes mostra-no-lo perplexo por ocasião da conjura con-
tra o conde de Andeiro, retraindo-se primeiro, comprometendo-se
depois, escapando-se em seguida a caminho do Alentejo, mas vol-
tando atrás, porque pensou entretanto que, no ponto em que estavam
as coisas, a conjura seria com certeza descoberta. O seu braço hesita
e erra o golpe, sendo preciso que outro fidalgo acabe de matar o
Andeiro. Depois de se expor desastradamente à humilhação que
vimos, resolve embarcar para Inglaterra, receando a vingança de
Leonor Teles, mas é dissuadido pela pressão de alguns fidalgos e da
população de Lisboa. F. Lopes mostra-no-lo diminuído pela figura
do condestável, que lhe desobedece, que lhe exproba a versatilidade,
que discute os seus planos de guerra e que, segundo o cronista, tem
sempre razão. Mostra-no-lo traído por grandes fidalgos em quem
pusera a sua confiança e que lhe preparam a perdição sem ele se dar
conta. Mostra-no-lo derrotado em diversos cercos por culpa sua,
alvejado por ditos e remoques da gente de guerra, que lhe atribui as
responsabilidades dos desaires. Mostra-no-lo ainda em momentos de
fúria cega, cometendo actos de crueldade inútil; correndo em trajes
menores, pelas ruas de Lisboa, atrás de um fidalgo desobediente e
arrancando-o ao altar de uma igreja; ou, sossegadamente, comendo
na sua tenda os seus três pratos de carne, quando todo o acampa-
mento sofria uma fome de carne de muitos dias. Mas também no-lo
mostra de olhos marejados de lágrimas à beira de um ferido por uma
seta envenenada, a quem os médicos mandavam beber da própria
urina para se salvar, tomando ele próprio a bacia e bebendo a urina
do cavaleiro para lhe tirar a repugnância.
Ao lado de personagens dramáticas, como Leonor Teles, e de per-
sonagens de romance realista, como o mestre de Avis, depois
D. João I, encontramos nas crónicas um outro tipo de personagens
que se situam num plano lendário, sem por isso se tornarem fantásti-
cas. É o caso do bom rei D. Pedro, dominado pela paixão da justiça,
que o leva às maiores barbaridades. Quando ele dança de noite, à luz

192
dos archotes, junto do seu povo, ou quando açoita com a sua própria
mão um bispo, julgamos reencontrar a atmosfera dos cantares de
gesta que celebravam D. Afonso Henriques, defensor do seu povo e
perseguidor dos cardeais de Roma. Pela simplicidade tipificadora,
pela paixão exclusiva que os domina, pelo relevo e condensação dos
ditos e gestos, D. Pedro, entre outros, é um herói de epopeia bár"
bara.
Nun 'Álvares pertence ainda a outro plano diferente dos aponta-
dos. Não é tanto um homem de carne e osso mais ou menos simplifi-
cado, como um modelo, uma ideia feita homem. É moldado em
material diferente do das personagens que o rodeavam, um pouco
como o cavaleiro Santiago resplandecente que combatia ao lado dos
cristãos. Da sua boca não saem os ditos saborosos tão frequentes nas
páginas do cronista, mas frases ou discursos terminantes como a boa
razão que vai direita ao alvo. Em relação a ele, F. Lopes utiliza, mais
do que um estilo descritivo ou épico, uma retórica panegírica, onde
não faltam acentos litúrgicos; «como a estrela da manhã, foi claro
em sua geração.» Na realidade, Nun' Álvares é um herói hagiográ-
fico, tratado à maneira dos sermões dos pregadores das vidas de san-
tos. Mas a maravilhosa arte do escritor consegue salvar estas páginas
de um convencionalismo retórico demasiado evidente.
Na literatura portuguesa, F. Lopes é um dos mais fecundos e
poderosos criadores de caracteres. Dele se alimentaram poetas,
romancistas e dramaturgos dos séculos seguintes, como o teatro
grego se alimentou das criações homéricas. Sob este aspecto impõe-se
a sua comparação com Filipe de Commynes, que retratou com pro-
fundidade grandes senhores seus contemporâneos, como Luís XI e
Carlos-o-Temerário.
Da comparação ressalta, por um lado, a diversidade dos planos do
cronista português, que abrange um maior espaço de tempo (plano
dramático, plano de romance realista, plano épico, plano hagiográ-
fico), e, por outro lado, um espectro muito mais variado de motiva-
ções no comportamento das personagens. Não são apenas a ambição
de poder e o espírito de vingança, como em Commynes, paixões
públicas e senhoriais por excelência. Mas também paixões mais priva-
das e domésticas, como particularmente o amor. É notável o espaço
reservado por Fernão Lopes a histórias e intrigas de amor: Pedro :::
Inês; Fernando e Leonor Teles; D. João e D. Maria Teles, etc. Mas
esta importância atribuída à paixão amorosa nada tem que ver com
as convenções romanescas, nem com outra forma de idealização:
«Não falamos em amores inventados, os quais alguns autores abasta-

193
dos de eloquência e floridos em bem ditar compuseram segundo
lhes aprouve», mas sim naqueles «que têm o fundamento na ver-
dade». A sua análise da paixão amorosa é impiedosamente realista
e faz ressaltar que «todo o homem namorado tem uma espécie de
sandice». Apesar disso, ou por isso mesmo, o amor tem uma reali-
dade saliente nas páginas do cronista e está frequentemente na ori-
gem do comportamento dos «grandes», geralmente em prejuízo do
bem comum.

§ 66. Os protagonistas colectivos


Fernão Lopes, como já vimos, atribui um papel decisivo a forças
que não caberiam num palco de teatro, amplas e irresistíveis como
enchentes sobre as quais boiam, à deriva, as grandes personagens e
as suas «cuidações». São as forças gregárias, animadas de uma von-
tade definida, como a cidade de Lisboa ou os povos do Reino, cuja
acção já observámos no desenrolar dos acontecimentos. Capítulos
inteiros são destinados a relatar o estado de espírito de um agregado
humano, como o 132 da 1. ª parte da Crónica de D. João /: «Como
foi sabido pela cidade que a frota vinha e do que as gentes por isso
fizeram.»
Aí se fala do recado que chegou quando a frota do Porto ancorou
em Cascais:

[... ] e quando isto soou e foi sabido por toda a cidade, de


quanto cuidado e esperança foram cheios os corações dos morado-
res dela não é leve de dizer.

Por um lado, a esperança de que a frota castelhana fosse derro-


tada, o que podia ser o fim do cerco; por outro lado, grande medo
da sua vitória, porque seriam tremendas as consequências para a
cidade cercada:

E estes tão forçosos cuidados os fizeram logo levantar to-


dos, tanto homens como mulheres, que não puderam mais dor-
mir, e, falando das janelas uns aos outros, tanto nestas coisas
como na peleja do dia seguinte, começou de se gerar por toda a
cidade um muito grande rumor e alvoroço de fala, o qual,
durando por longo espaço, foi azo de cedo tocarem às matinas,
tanto mais que eram as noites pequenas. Nisto começaram as gen-

194
tes a ir-se às igrejas e mosteiros com cmos acesos nas mãos,
fazendo dizer missas e outras devoções com grandes preces e mui-
tas lágrimas.

Ninguém escapava a este cuidado; antes eram todos postos «sob o


grande manto de. tal pensamento, as igrejas todas cheias de homens
e mulheres com os filhos nos braços, todos bradando a Deus que lhes
acorresse e que ajudasse a casa de Portugal».
São frequentes no nosso autor fórmulas como «todos postos sob
um mesmo· cuidado», <~todos animados de uma só vontade»,
«quando a cidade soube», «voz de grande espanto foi ouvida por
todo o Reino», etc. E outro processo muito seu é resumir um senti-
mento colectivo através de um dito, de uma voz que sai de uma multi-
dão, como a daquele tanoeiro, já mencionado, que resume a posição
da gente miúda de Lisboa em face dos burgueses. da cidade, ou a de
uma velha que, perante a aclamação frustrada de D. Beatriz em San-
tarém, falou em alta voz e disse:

Em má hora seria essa! Mas arraial pelo infante D. João, que


é direito herdeiro deste Reino, mas não já pela rainha de Castela.
E como? Em má hora havemos nós de ser castelhanos? Nunca
Deus queira.

Resumo da vontade decidida de uma cidade inteira são ainda as


cantigas cantadas em Lisboa durante o cerco, de que o cronista nos
dá um espécime.
Fernão Lopes é assim levado a tratar uma colectividade como se
fosse uma pessoa, não encontrando outra maneira de definir a von-
tade e o sentimento com que intervém nos acontecimentos. Como já
vimos, Lisboa é uma mulher que acorre em defesa do mestre e é ale-
gorizada como «mãe e ama destes feitos».

§ 67. Fernão Lopes e o espírito cavaleiresco


Todas as observações acima feitas convergem para nos convencer
de que Fernão Lopes anda muito longe do espírito cavaleiresco que
estamos habituados a apreciar na Idade Média.
As suas crónicas constituem o melhor correctivo à imagem ideali-
zada que da Idade Média nos deixaram os escritores românticos. Cri-
ticando duramente a nobreza da época da resistência, Fernão Lopes

195
virou do avesso os valores e convenções característicos dela. Assim,
a lealdade que liga o cavaleiro ao seu suserano, conceito básico do
mundo feudal associado à «honra» cavaleiresca, aparece em muitos
casos como um negócio de dinheiro e bens materiais.
F. Lopes faz notar que alguns fidalgos se tornaram esquivos ao rei
de Castela porque, quando este entrou em Portugal, não trazia os
«dinheiros» suficientes para lhes pagar. E não perde ocasião de con-
tar histórias em que o interesse material determina a atitude dos fidal-
gos. O conde D. Gonçalo, irmão de Leonor Teles, convidado a
coman_dar a frota incumbida de romper o cerco de Lisboa, exigiu
previamente, para executar este serviço, que lhe fossem doados
os bens confiscados à irmã. Outro grande fidalgo, Gonçalo Vasques
Coutinho, futuro partidário do mestre de Avis, furta~se a apresentar-
-se ao rei de Castela, de passagem pela sua terra, atendendo ao conse-
lho da mãe: com os néscios e com os apressados, dizia ela, ganham
os homens; convinha esperar neste negócio porque «estes feitos
levam começo para se não. livrarem assim de ligeiro», e, apesar de
alguns dizerem que a atitude tomada por Lisboa e outros lugares é
«um pouco de vento», a ela lhe parecia que «é bem que vos deixeis
assim estar, até que vejais que termo põe Deus nestas coisas, e assim
podeis encaminhar vossos feitos como sentirdes por mais vossa honra
e proveito».
A «honra» cavaleiresca - que aqui não se distingue do «pro-
veito» - aparece maltratada a esta luz; nenhuma outra classe se revela
nas páginas do cronista tão gananciosa e tão oportunista, tão despro-
vida de ideais - ressalvando sempre a personalidade de Nun' Álvares,
cujas virtudes, aliás, evidenciam, pelo contraste, os defeitos gerais
dos seus pares.
Os Ingleses eram então a «flor da cavalaria do mundo», infatiga-
velmente elogiados pelos cronistas palacianos, e foram eles que,
quando vieram a Portugal chamados pelo rei D. Fernando, aqui
introduziram as cerimónias e os ritos da cavalaria. Todavia, não
merecem entusiasmo algum a Fernão Lopes, que, colocando-se num
ponto de vista popular, apenas põe em evidência «as más maneiras
que os Ingleses tinham com os moradores do Reino» e conta como
se instalaram em Lisboa:

[... ] não como homem; que Vinham para ajudar a defender a


terra, mas como se fossem chamados para a destruir e fazer todo
o mal e desonra aos moradores dela; começaram a estender-se pela
cidade e termo, matando e roubando e forçando mulheres, mos-

196
trando tal senhorio e desprezo para com todos como se fossem
seus mortais inimigos.

Quanto a este comportamento dos homens de armas, não há dife-


rença entre os Ingleses e os Portugueses:

E das fortalezas que tinham voz por Castela saíam os alcaides


portugueses a fazer grandes roubos e cavalgadas nos termos dos
que seguiam o partido do mestre, prendendo e roubando e ma-
tando neles como se lho devessem por merecimentos contrários.
Assim que os que deviam ser seus defensores e livrá-los das mãos
dos inimigos, esses os matavam e perseguiam, usando contra eles
de toda a crueldade.

A alusão à função de «defensores», neste passo, provém de que,


segundo o esquema medieval, os cavaleiros eram, por ofício, os
defensores do povo e da terra, o que justificava os privilégios que
usufruíam.
Profissionais da guerra, os nobres erigiam a bravura militar em
valor feudal e fonte de «honra». Por isso os cronistas da nobreza têm
sempre o cuidado de evidenciar as proezas, às vezes as mais insignifi-
cantes, de certo número de cavaleiros. As batalhas aparecem assim
como sequências de duelos e proezas extraordinárias de bravura pes-
soal, como se vê na Crónica Geral de Espanha de 1344, ou mesmo na
narrativa de Ourique na Crónica de Portugal de 1419, como se verá
salientemente em Zurara. Na Crónica de D. João !, Fernão Lopes
esquece-se frequentemente de mencionar estes esplêndidos duelos de
homem a homem e dá-nos dos combates a confusa imagem de uma
mistura de gente que escapa ao controlo dos chefes e se empurra e
avança instintivamente em magotes.
É isto particularmente visível na narrativa da batalha de Aljubar-
rota, onde não se salienta um único grande feito de armas, nem
sequer de Nun' Álvares, que se limita a animar a gente em recuo. Por
um momento, o cronista aponta o projector sobre a personalidade do
rei, mas para nos contar um incidente banalíssimo: ergue a facha
contra um cavaleiro, mas este arranca-lha das mãos; depois é o outro
que ergue a facha, que o rei arranca por sua vez, e, quando descar-
rega o golpe, já o castelhano está morto por gente que entretanto
acorrera. É um flagrante realista, de que a figura do rei não sai avan-
tajada. A vitória chegou, inesperadamente, quando a bandeira cas-
telhana, imprudentemente levada ao seio da hoste portuguesa, foi

197
abatida no meio da confusão, o que levou alguns castelhanos desmo-
ralizados a recuar; portugueses gritam: «Já fogem, já fogem!»; os
outros, «para os não fazerem mentirosos», começaram de facto a
fugir. O rei de Castela, doente numa maca, vendo o recuo e a ban-
deira caída, monta a cavalo e parte, receando ser apanhado. O que
se segue em capítulos sucessivos é uma dispersão de homens desnor-
teados, acolhendo-se, perseguidos, aos bosques e valados, atirando as
armas fora para correrem mais ligeiros, despindo ou virando as rou-
pas para não serem conhecidos; o massacre um a um dos fugitivos
pelos camponeses, que os apanhavam, os esperavam nos caminhos
ou os iam desalojar dos esconderijos; o saque do campo castelhano,
interrompido por escaramuças com soldados castelhanos que tentam
levar as preciosidades do acampamento; a visão dos corpos trucida-
dos no campo do combate.
A batalha propriamente dita é um lance rápido; o que o cronista
relata atentamente são os seus precedentes, a longa espera, os conci-
liábulos entre os campos adversos, e depois a dispersão, a fuga e o
saque. Fernão Lopes dá-nos da batalha uma imagem muito mais
comparável com a que nos oferecerá muito mais tarde a célebre des-
crição da batalha de Waterloo por Stendhal do que com aquela que
é comum entre os narradores medievais.
Muito significativa do espírito deste relato é a desculpa dada por
Fernão Lopes para não se demorar nas proezas individuais dos cava-
leiros de um e outro campo:

Para que diremos golpes, nem forças nem outras razões com-
postas em louvor de alguns, nem enfeitaremos história que os sisu-
dos não hão-de crer, de maneira que de histórias verdadeiras faça-
mos fábulas patranhosas? Basta que de um lado e de outro eram
dados tais e tamanhos golpes quais cada um melhor podia apresen-
tar àquele que lhe caía em sorte.

Por outras palavras: cada um fazia o que podia, não vale a pena
dizer mais. Este comentário singular e desdenhoso, que desvenda
todo o sentimento de F. Lopes perante os feitos de armas que esta-
vam na origem da «honra» dos fidalgos, contém uma censura implí-
cita às narrativas «enfeitadas» dos cronistas palacianos.
O mesmo sentimento se revela quando ele censura - o que é fre-
quente- a «ardideza sem proveito» de certos cavaleiros que, que-
rendo fazer-se notados, se expõem em riscos inúteis para eles e para
a sua gente. Tal foi o caso de um cavaleiro de exígua estatura que,

198
enamorado de uma dama da corte, se fez companheiro de um dos
mais agigantados homens da hoste de D. João I, acabando por mor-
rer num assalto aos muros de Alenquer, atingido por uma pedra. Tal
foi, sobretudo, o caso do conde João Afonso Telo, cuja armada foi
derrotada em Saltes por ter oferecido combate a uma armada caste-
lhana muito maior, quando podia evitá-lo e esperar por um reforço
que vinha a caminho:

Mas quem não se espantara de tal novidade de ardideza, a qual-


quer sisudo muito de pasmar, ter o conde sua melhoria e ajuda tão
prestes das outras galés e, por afoiteza desordenada com cobiça de
ganhar honra, dar a vantagem que tinha por si em ajuda de seus
inimigos! Isto certamente não foi afoiteza, mas sandia presunção.

§ 68. A fala
O próprio autor chama ao seu discurso «falamento». Nesse fala-
mento se revela a presença do autor. Ele fala com uma convicção de
raiz, como se se explicasse, e não como se lesse um texto alheio ou .
tratasse por obrigação de ofício de uma matéria exterior a ele. Esta
presença do autor no âmago da sua obra, como uma semente a partir
da qual se desenvolve uma ramaria frondosa, cria no leitor um estado
de simpatia, como perante uma personalidade que é particularmente
cativante.
Embora, no fundo, se trate de um escritor polemista e partisan,
esta presença é amplamente humana e acolhedora: é uma força ali-
ciante e sem arestas; poderosa, mas não destruidora; convicta, mas
não unilateral. Presença viril e até certo ponto patriarcal, que não
descura de ensinar o bom caminho e de castigar os desencaminhados,
mas com uma segurança tão desafectada que provoca a adesão mais
do que o desafio ou a polémica. Há sempre trânsito possível com um
homem tão rica e completamente dotado de sensibilidade. Na sua
voz, onde predomina uma espécie de gravidade inteira, há uma larga
franja de ressonâncias e de harmonias e uma diversidade de tons,
desde a indignação que troveja a um riso grave e forte, passando pela
piedade e pela deleitação num episódio «saboroso».
Se quisermos analisar a qualidade do estilo de F. Lopes, devere-
·mos começar pelo que nos é imediatamente sensível: a sua extraordi-
nária oralidade. Estamos perante um homem que fala a uma assem-
bleia. Sentimo-lo de pé dando relevo e intenção às palavras,

199
acentuando-as aqui e além, declamando por vezes com solenidade e
balanceando-se num ritmo que faz pensar no verso épico longo e que
por vezes se espraia com majestade espontânea. A presença do
público é sensível na voz do autor, que de tempos a tempos nos con-
vida a «olhar como se estivéssemos presentes» o espectáculo que ele
tenta descrever; que, a propósito dos sofrimentos de Lisboa durante
o cerco, nos pergunta: «Como não queríeis que maldissessem sua
vida e desejassem morrer, se tanta diferença há de ouvir estas cousas
para aqueles que as então passaram, como há da vida para a
morte?», porque aqueles a quem ele falava, o seu público, não
conheceram aquelas atribulações:

Oh, geração que depois veio, povo bem aventurado, que não
soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais sofri-
mentos!

E é também a presença do público que o leva a certos processos


didácticos, chamando a atenção do ouvinte para a ordem da narrativa.
Como o mostra a leitura da Crónica Geral de Espanha de 1344, ou
a dos romances de cavalaria, a atitude oral do narrador caracteriza
a prosa narrativa medieval. Mas em Fernão Lopes torna-se· muito
sensível, graças à força da personalidade do autor e ao contraste
com o seu sucessor, Zurara, que escreve com uma consciência de
escriba.
A oralidade de Fernão Lopes não é cortesanesca nem tribunícia,
mas familiar. Esta familiaridade é reforçada por imagens comuns,
especialmente da vida camponesa. Os textos de outros autores incor-
porados na sua Crónica são «garfos enxertados nesta obra». Os por-
tugueses de boas famílias que aderiram ao rei de Castela são «vergôn-
teas direitas ql1e têm o seu antigo começo na boa e mansa oliveira
portuguesa» e que se esforçaram por «cortar a árvore que os criou e
mudar o seu doce fruito em amargoso licor». Esta imagem, como já
vimos, é tirada da Epístola 11 de São Paulo aos Romanos e exempli-
fica o tom evangélico, frequente nas crónicas, que contribui para a
sua oralidade familiar, As razões de D. João de Portugal a favor da
tese do condestável sobre a batalha que se havia de chamar de Alju-
barrota «levedaram os corações de todos, assi111 como o bem doseado
fer111ento h~veda convenientemente a massa. O mesmo rei «regava os
corações dos vassalos com as mui doces águas do agradecimento»,
Seria engano, no entanto, considerar a narrativa de Fernão Lopes
o produto da espontaneidade. É visível, pelo contrário, na sua prosa

200
uma parte de composição, de artifício e até mesmo de retórica, tanto
na organização dos conjuntos como na dos elementos da frase.
Deixando, por agora, a composição dos conjuntos, encontramos
ao nível da frase ressaibas de gosto conceptista, como quando o
autor diz, falando dos amores do infante D. João com D. Maria
Teles, que na noite de núpcias, «satisfazendo um ao desejo do outro,
ele se partiu contente sem ela ficar triste». Outra manifestação da
arte retórica de F. Lopes são as personificações alegóricas, que trans-
parecem em simples frases como «fealdade e mau parecer não se atre-
veram naquele dia a entrar na cidade», ou que estão na base de capí-
tulos inteiros, como os consagrados à prosopopeia de Lisboa.
Porventura cabe também a classificação de retóricas a certas ima-
gens que se salientam pela evocação do brilho. Lembrando-se prova-
velmente da ladainha, F. Lopes diz de Nun' Álvares: «como a estrela
da manhã, foi claro em sua geração»; a propósito da desproporção
entre os exércitos português e castelhano em Aljubarrota diz que os
Portugueses eram çomo «a luz de uma pobre estrela diante da clari-
dade da luz cheia». Há, no entanto, outra versão mais campesina
deste último encarecimento: perante os mesmos Castelhanos, os Por-
tugueses pareciam uma pequena eira no meio de um espaçoso campo.
Na realidade, não se trata de uma retórica no vazio, vivendo sobre
si e procurando compensar pelas palavras a ausência de uma substân-
cia. A retórica de F. Lopes é apenas a superfície trabalhada subli-
nhando o feitio de um sólido. É um processo convencional só na
medida em que faz parte do métier do escritor. Os artifícios são os
que naturalmente convêm ao assunto e há uma adaptação perfeita
entre as construções retóricas e a visão dos acontecimentos que o
autor nos quer comunicar.
O que talvez seja de sublinhar, ao falar-se das imagens de
F. Lopes, é uma vocação poética nem sempre compatível com o pro-
cesso narrativo e analítico que é o de uma crónica. Encontramos
metáforas tão originais e adequadas que dificilmente podemos tomá-
-las à conta de artifício premeditado. Lisboa, cercada pelos Castelha-
nos e apertada pela fome, sofria «ondas de aflições» e nos seus habi-
tantes havia um «arrefecimento da esperança». Quando se sabe na
cidade que a frota do Porto vai entrar no Tejo, os corações ficam
cheios de cuidado e de esperança, e todos, tanto leigos como religio-
sos, «estavam postos sob o grande manto de tal pensamento». Esta
última metáfora é prodigiosa: materializa e condensa toda uma situa-
ção psicológica colectiva, não pelo processo descritivo, mas pelo da
condensação poética.

201
É curioso verificar como o nosso tabelião, que assume às vezes o
tom de quem em acta pública passa a certidão autêntica dos ditos e
feitos, é possuído por uma tão forte tensão poética e como esta
imprime uma autenticidade comunicativa, não já documental, mas
artística, a todo o seu «falamento».
As epopeias são poemas étnicos. A etnia é essencialmente um
grupo unido por laços culturais profundos, de que se toma consciên-
cia quando o grupo é agredido do exterior.

§ 69. Fernão Lopes e a epopeia


Fernão Lopes deixou-nos na Crónica de D. João I a verdadeira
epopeia portuguesa, isto é, o poema étnico dos Portugueses.
O sentimento étnico português é próprio, nessa época, da «gente
pequena dos lugares». A aristocracia tinha já a sua própria epopeia,
que era a da luta dos povos hispânicos irmanados contra o inimigo
mouro. Os seus heróis chamavam-se Cid Campeador, conde Fernão
Gonçalves e outros nomes de cavaleiros desta guerra santa, de que a
Crónica Geral de Espanha de 1344 nos conserva a memória e cujo sím-
bolo, comum a toda a Península, é o apóstolo Santiago.
Mas, na guerra peninsular de 1383-85, a «gente pequena dos luga-
res» tomou consciência da sua identidade étnica particular; o inimigo
com quem se defronta o povo eleito chama-se Castela. Santiago,
símbolo da Espanha (e, como tal, da aristocracia portuguesa), foi
sentido como símbolo dos Castelhanos e, durante algum tempo, São
Jorge, patrono dos Ingleses, foi invocado como grito de guerra.
E por sob a epopeia hispânica tradicional nasce a epopeia propria-
mente portuguesa, que procura revestir-se do mesmo prestígio de san-
tidade que tinha a guerra contra os Mouros: «e parecia que lutavam
pela fé!»
Fernão Lopes deu expressão a esta auto-revelação étnica já tardia.
Fez em prosa cronística o que os jograis dos séculos XI e XII tinham
feito para a consciência hispânica dos cavaleiros da Reconquista.
Com ele, uma realidade humana que jazia ignorada ao rés da terra,
sob a copa da tradição cavaleiresca hispânica, nasce para a luz e. pro-
cura santificar-se.
Naturalmente, a epopeia de Fernão Lopes assume formas que não
cabem dentro do género épico, considerado sob o aspecto estrita-
mente literário, a começar pela atitude crítica de historiador em que
se coloca o nosso tabelião geral. Mas, no fundo, isto importa pouco,

202
até porque os poetas épicos tinham o sentimento de narrar casos
acontecidos. É essencial na epopeia o sentimento de que a narração
corresponde à realidade, sentimento que resulta da própria consciên-
cia de que o percurso da história coincide com o cumprimento dos
valores imanentes no sujeito. Somente, numa época e numa situação
em que a narrativa histórica tinha de utilizar fontes escritas e docu-
mentais, Fernão Lopes deu à convicção de objectividade, própria dos
poetas épicos, uma aparelhagem crítica que falta nas epopeias tradi-
cionais. Investigou com escrúpulo e rigor justamente na medida em
que para ele não podia haver contradição entre a verdade objectiva
e o sentimento subjectivo do sentido da história. E é esta mesma
inteireza que lhe permite criar uma obra a que bem cabe a expressão
de autenticidade poética.
Este momento privilegiado da comunidade portuguesa não voltará
a reproduzir-se com uma expressão tão pura e tão forte. Mais de cem
anos depois de Fernão Lopes, a nostalgia de uma epopeia para os fei-
tos notáveis dos Portugueses inspirou Os Lusíadas, mas este poema
é uma construção engenhosa em que o autor não se identifica com os
acontecimentos e integra novamente a tradição cavaleiresca hispâ-
nica, proscrita por F. Lopes, articulando-a com a da luta contra os
Bárbaros, ideia que se encontra já em Heródoto.

§ 70. A nova Távola Redonda


Já depois de Aljubarrota, D. João, recentemente eleito rei de
Portugal, estava cercando a cidade de Caria, dentro dos domínios
do rei de Castela. O cerco arrastava-se e, finalmente, as tropas por-
tuguesas tiveram de retirar. Naquele dia, o rei estava na tenda,
descontente com o último combate diante da muralha, pois os cava-
leiros tinham combatido molemente, sem entusiasmo. D. João, no
seu jeito brando, não se conteve que não dissesse em ar de brin-
cadeira:

- Grande míngua nos fizeram hoje este dia aqui os bons cava-
leiros da Távola Redonda, que, certamente, se eles aqui estives-
sem, nós tomaríamos este lugar.

Estas palavras não as pôde ouvir com paciência Mem Rodrigues de


Vasconcelos, que aí estava com outros fidalgos e que logo respondeu
e disse:

203
- Senhor, não fizeram aqui míngua os cavaleiros da Távola
Redonda, que aqui está Martim Vasques da Cunha, que é tão bom
como D. Galvão, e Gonçalo Vasques Coutinho, que é tão bom
como D. Tristão, e eis aqui lo.ão Fernandes Pacheco, que é tão
bom como D. Lançarote (e assim de outros que viu estar perto),
e eis-me eu aqui. que valho tanto como D. Quea. Assi que não
fizeram aqui míngua esses cavaleiros que dizeis, mas fez-nos aqui
grande míngua o bom rei Artur, senhor deles, que conhecia os
bons servidores, fazendo-lhes muitas mercês, pelo que haviam
desejo de o bem servir.

El-rei, vendo que o haviam por injúria, respondeu então e disse:

- Nem eu esse tirava fora, porque era tão companheiro da


Távola Redonda como cada um dos outros 223 •

Esta anedota saborosa é uma das muitas com que Fernão Lopes
reconstitui a vida quotidiana. Ela mostra que os modelo~" romanescos
estavam sempre presentes na imaginação dos cavaleiros. Em particu-
lar, a influência do romance arturiano durante mais de dois séculos
é um dos casos exemplares de penetração da vida pela literatura.
Outro exemplo disso é a Ala dos Namorados em Aljubarrota: este
mesmo Mero Rodrigues de Vasconcelos, que se considerava o corres-
pondente a D. Quea, ocupou em Aljubarrota um lugar na ala direita
do quadrado português, «uma leda companhia que, por suas honras
e defensão do Reino, entendiam defender o lugar onde eram postos,
e chamavam-lhe a Ala dos Namorados e seriam por todos que eram
duzentas lanças, e haviam uma grande e verde bandeira ordenada à
vontade de todos» 224 • O rei, antes da batalha, deu o grau de cava-
leiro a muitos dos homens que o acompanhavam, entre eles Vasco de
Lobeira, que mais tarde foi tido por autor do Amadis (autoria que
já discutimos noutro lugar da presente obra).
Trinta anos mais tarde, D. Filipa de Lencastre, a mãe dos infantes
filhos de D. João I, no seu leito de morte e nas vésperas da partida
da armada para a conquista de Ceuta, parece a protagonista de um
episódio de cavalaria na Crónica da Tomada de Ceuta, de Zurara,
que narra como ela distribuiu pelos três filhos maiores as espadas

223
Cr6nica dei Rei Dom Joham I de Boa Mem6ria e dos Reis de Portugal o Décimo,
ed. por William Entwistle, Lisboa, 1968, parte u, cap. LXXVI, p. 176.
224
Ibid., cap. XXXVIII, p. 84

204
com que haviam de ser armados cavaleiros depois da batalha. A rai-
nha estava com peste, de que iria morrer. Chamou os filhos para
junto de si e deu ao mais velho a espada da justiça, «para regerdes
os grandes e os pequenos destes reinos [... ], e vos encomendo seus
povos e vos rogo que com toda a fortaleza sejais sempre a eles de-
fensão, não consentindo que lhe seja feito nenhum desaguisado, mas a
todos cumprimento de direito e justiça[ ... ] A justiça que em alguma
parte não é piedosa não é chamada justiça, mas crueldade. E assim
vos rogo e encomendo- que queirais ser com ela cavaleiro». Depois
chamou o infante D. Pedro:

- Meu filho, porque sempre, desde o tempo de vossa meninice,


vos vi muito chegado à honra e serviço das donas e donzelas, que
é uma cousa que especialmente deve ser encomendada aos cavalei-
ros, e porque a vossos irmãos encomendei os povos, encomendo
elas a vós.

E para o infante D. Henrique:


[... ] a um dos vossos irmãos encomendei os povos e a outro as
donas e donzelas, a vós quero encomendar todos os senhores,
cavaleiros, fidalgos e escudeiros destes reinos, os quais vos enco-
mendo que hajais em vosso especial encargo 255.

Os homens têm por modelo os heróis imaginários e as guerras com


os Castelhanos pareciam-se com as «demandas» ou buscas em que se
envolveram os cavaleiros da Távola Redonda, presidida pelo rei
Artur.

§ 71. Infância e mocidade de Nun' Álvares


O primeiro herói desta nova Távola Redonda, o que nela quis ocu-
par o lugar de Galaaz, é Nun'Álvares Pereira.
A sua vida foi escrita numa crónica própria por um homem que
o conheceu em vida. A Crónica do Condestabre, publicada em 1526,
foi redigida depois da morte de Nun'Álvares (1431) e antes da morte
de D. João I (1433), visto que, nas últimas páginas, D. Duarte é
mencionado ainda como «senhor príncipe». Esta Crónica mostra
225
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. Esteves Pereira, 1916, cap. 121, pp. 127-129.

205
com o condestável entrara na lenda ainda vivo. Nessa lenda se baseou
Fernão Lopes para as acções do condestável na Crónica de
.D. João!, e aqui já a figura do herói está inteiramente transfigurada.
Nascera em 1360, ao tempo em que o rei D. Pedro proclamara rai-
nha, com grande pompa, a falecida Inês de Castro. Era filho de um
dos homens poderosos da Espanha, o prior do Hospital D. Álvaro
Gonçalves, e neto do arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira. O Li-
vro de Linhagens do Conde D. Pedro faz descender esta família do
célebre rei D. Ramiro, o da lenda. O prior estivera em Rodes, levara
a relíquia do Santo Lenho à batalha do Salado; vivera muito tempo
em Castela, onde fora conselheiro do facinoroso rei D. Pedro. Assis-
tiu às suas aventuras, ao seu apogeu e desgraça. Recolhendo-se em
Portugal, fora um dos mais importantes conselheiros de D. Afonso IV,
de D. Pedro e de D. Fernando. Tivera 32 filhos de diversas mW.heres,
apesar dos votos monásticos a que era obrigado. Ele próprio era um
bastardo, filho do arcebispo de Braga, cuja bela face conhecemos da
sua estátua tumular, na catedral.
O jovem Nun' Álvares, bastado, filho de bastardo, como Galaaz,
deixou-se enlevar por este herói de romance, que, pelas suas virtudes,
e especialmente pela virgindade, alcançou o mais alto prémio que é
dado a um homem mortal ver e entender: o Santo Graal, momento
supremo que não se repete, porque antecede a passagem à outra vidá.
Encaminhado para a corte de D. Fernando, adolescente ainda,
fora escolhido como escudeiro por D. Leonor Teles, essa mulher for-
mosa como a rainha Genebra e também pecadora como ela (segundo
as línguas maldizentes). O pai casou-se com uma rica viúva do Norte
e foi provavelmente do dote da mulher que Nuno se sustentou nos
primeiros tempos. Já vimos como esse casamento foi forçado para o
noivo.
Eram tempos perturbados. Os homens de armas portugueses, cas-
telhanos e ingleses talavam de tempo a tempo os campos, roubavam
o trigo e matavam camponeses. Nem paz nem guerra. Nun' Álvares,
amordaçado no casamento, sentia-se abafado pela vida de senhor
rico do Norte, só se distraindo na caça. Sendo o 13. º filho vivo do
prior, havia pelo menos 12 Álvares Pereira a serem promovidos para
qualquer lugar saliente antes dele. Tinha poucas hipóteses de promo-
ção, salvo se se desse um imprevisto.
A política ziguezagueante de D. Fernando trazia ora a guerra com
Castela, ora a aliança garantida pelo casamento da filha D. Beatriz,
inocente objecto de trocas e destrocas. Os últimos anos de D. Fer-
nando criaram problemas de consciência aos seus cavaleiros. Ora se

206
combate em Lisboa cercada pelas tropas do rei de Castela, ora se
celebram bodas em que Portugueses e Castelhanos fraternizam. O rei
morria e dizia-se que a rainha paria filhos de João Fernandes
Andeiro, o fidalguinho galego promovido a conde de Ourém. O An-
deiro era o alvo dos conspiradores, invejosos, ofendidos ou ambicio-
sos. Isto gerava à volta da corte uma tensão solapada e uma expecta-
tiva de imprevisto.
Por morte do prior D. Álvaro ficara no lugar do pai, como chefe
da família, o irmão primogénito Pedro Álvares, que teve de vigiar e
acalmar o potro rebelde e impaciente, Nuno. Na guerra expunha-se
com temeridade e parecia que queria matar~se. Em 1382, em Santos,
fez frente, sozinho, a dezenas de castelhanos e não morreu por um
triz. E nas bodas de Badajoz do casamento do rei de Castela com
D. Beatriz fez cair com um empurrão, na presença dos reis e convida-
dos, uma mesa preparada para o banquete. Parecia um homem opri-
mido, sem saber porquê, desabafando em violências súbitas e inexpli-
cáveis.
Um dia, como um trovão, uma grande nova abalou o Reino:
D. João, o mestre de Avis, matara o Andeiro e tomara o poder em
Lisboa; a rainha, com um séquito de fidalgos, fugira para Alenquer.
Finalmente, a atmosfera desabafou e começou a aventura.
O mestre de Avis, aclamado pela «arraia-miúda», tinha toda a
probabilidade de ser vencido. Quase toda a fidalguia e a maior parte
das cidades e concelhos aceitavam a legitimidade de D. João de Cas-
tela ou a de D. João, filho de Inês de Castro, mas não a do bastardo.
Que motivo levou Nun' Álvares a tomar partido pelo jovem mestre
quando Pedro Álvares e os irmãos juravam fidelidade a D. Beatriz?
Nun'Álvares combatera, no tempo de D. Fernando, contra os Caste-
lhanos, que cercavam Lisboa e invadiam o Alentejo. Quis ele ficar
fiel a essa causa do seu passado, o anticastelhanismo? Percebeu a
inviabilidade da sucessão de D. João de Castro? Foi levado pelo
«amor da terra»? Tinha uma amizade juvenil com o mestre de Avis?
Rebelou-se contra a solidariedade familiar, ou contra o clã dos Perei-
ras? No fundo continuou onde estava; a combater os exércitos que
invadiam Portugal. Não era «homem de muitos conselhos», como
diria mais tarde, e por isso não mudava de campo. Além do mais,
gostava dos caminhos ínvios.
Fazendo assim, jogava tudo por tudo. Enjeitava os próprios
irmãos, porque todo ou quase todo o clã dos Pereiras passara para
o lado castelhano. E apostava num milagre.
O milagre era ele próprio, sem o saber.

207
O mestre de A vis ficava cercado em Lisboa, a única cidade que
dominava. Nun' Álvares partia na Primavera para o Alentejo, onde
algumas vilas se tinham insurreccionado. Era uma pequena hoste que
tinha de recrutar gente para crescer. Nun'Álvares queria ter a con-
fiança dos seus homens, temperá-los como aço. Já antes de chegar a
Lisboa, conta Fernão Lopes, falara com os seus escudeiros, contan-
do-lhes <mm segredo que trazia em seu coração»: via, com os olhos
do entendimento, um grande poço coberto de escuridão; quem sal-
tasse para ele não poderia escapar vivo, a não ser por grande milagre
de Deus. Mas ele, Nun' Álvares, não podia conter o coração que não
saltasse lá para dentro. O poço cheio de escuridão era a demanda que
o mestre queria começar contra o rei de Castela. Nun' Álvares queria
acompanhá-lo nesse salto, donde o mestre só escaparia com a graça
. de Deus. Perguntava aos seus homens: quem quer acompanhar-
-me? 226 Partiu de Lisboa com 200 lanças (que representavam cerca de
1000 homens) a defender a fronteira do Alentejo, recrutando de
caminho mais gente. Só no Alentejo isso era possível, porque o
Norte, Porto à parte, permanecia imóvel e mudo.
Os exércitos adversos encontraram-se perto de Estremoz. Era o
próprio irmão de Nun' Álvares, o prior do Crato, que comandava as
tropas inimigas com 4000 ou 5000 homens. A tropa que Nun' Álvares
trouxera de Lisboa não aumentara porque os concelhos não se move-
ram à sua passagem. Nun'Álvares reuniu a sua gente em Évora e
novamente perguntou: quem quer seguir-me? Quem quiser, passe
para este lado do regato; os outros fiquem do lado de lá.
Nun' Álvares era do género de homens a que se obedece natural-
mente. Não era espalhafatoso nem demagogo, mas confiava absolu-
tamente em si e essa confiança comunicava-se aos que estavam
perante ele. Ele e a hoste formavam uma peça, como o cimento que
adere à barra de aço. É este o grande segredo das suas vitórias milita-
res. Antes da batalha disse:

- Amigos, nenhum duvide de mim. Deus ajudará a todos os


que me ajudarem. Deus vos tomará conta da minha morte se eu
aqui morrer por vossa culpa 227 •
A cavalaria do prior avançou em tropel, espraiando-se, desde-
nhando a pequena hoste portuguesa, como uma onda que contorna

226
Crónica de D. João J, ed. cit., cap. xxxvu, pp. 64-65.
227
ibid., parte
1, cap. xcv, p. 159.

208
um escolho. Mas esta estava a pé, em q~adrado, com as lanças obli-
quamente cravadas em terra e aguentadas pelos braços dos homens
desmontados. Atrás dos muros do quadrado disparavam os besteiros
e os que manejavam as fundas de pedra. A onda da cavalaria caste-
lhana foi contra esta rocha de espetos. Num momento havia à volta
do quadrado português centenas de mortos e feridos, entre eles vários
fidalgos ilustres. Foi a batalha dos Atoleiros, batalha decisiva porque
deu aos portugueses do mestre de Avis uma confiança em si próprios
que antes não tinham. Deus estava com os amotinados de Lisboa.
O mestre de Avis continuava fechado dentro da cidade e a popula-
ção resistia à fome. Mas o anjo da morte tocou o exército sitiante.
A peste, depois de fazer muitas mortes, chegou à rainha e o rei reti-
rou-se assustado.
Quando voltou, no ano seguinte, já o mestre se tinha feito procla-
mar rei nas Cortes de Coimbra. O castelhano, depois de ocupar
Coimbra, veio direito a Lisboa. Do lado português discutia-se em
Abrantes o que fazer. A maior parte dos conselheiros de D. João de
Avis aconselhavam uma manobra de diversão na fronteira de Cas-
tela. Receavam o encontro com as tropas de Castela.
Nun' Álvares achou-se sozinho contra todos e reagiu dentro da
lógica do seu carácter. Como sempre, atirou-se ao poço escuro. Não
acatou a maioria dos, votos e declarou que ele, só com os seus
homens, iria dar batalha ao rei de Castela. E partiu. O rei de Portu-
gal mandou um emissário atrás dele para lhe ordenar que voltasse.
Nun' Álvares respondeu que não era homem de muitos conselhos, que
não daria um passo atrás e que, se o rei quisesse vir, que viesse.
Aljubarrota foi uma espécie de repetição dos Atoleiros. Em meia
hora, a cavalaria castelhana desfez-se contra o quadrado dos homens
de pé portugueses. A confiança mais uma vez se comunicou de
Nun' Álvares aos seus homens e a hoste agiu como um punho de aço
em que se esmaga um boneco de barro. Uma grande parte da nobreza
ao serviço do rei de Castela morreu no combate.
Além disso, deve levar-se à conta do seu sucesso a influência dos
ingleses que combatiam connosco, ensinando-nos a táctica do com-
bate de peonagem, que lhes dera a vitória de Crécy. A terceira
grande batalha ocorreu na Andaluzia castelhana e está envolta numa
névoa de tradição. A hoste tinha de atravessar o Guadiana numa gar-
ganta ,e atacar o exército inimigo, que ocupava as alturas. Atra-
vessou-o combatendo e avançou para o primeiro cabeço qµe tinha
diante, defendido por tropa castelhana; ciepois investiu contra o
segundo cabeço, mais defendido ainda. Seguiu-se o terceiro cabeço,

209
mais aléin. Os Portugueses avançavam, seguidos dos inimigos,
lutando em duas frentes, de monte a monte; e o condestável ora ia
para a vanguarda, ora acudia à retaguarda. E eis que se levantava
agora o quarto cabeço, mais guarnecido ainda que os que tinham
sido ocupados. Para lá avançou a hoste, lutando sempre. A reta-
guarda pedia a presença do condestável, «ali veríeis pedradas e lança-
das e setadas, que davam sem dó, uns para se defender, outros para
tomam. Uma seta acertou num pé do condestável. E, em certo
momento, os· homens da vanguarda sentaram-se no chão por não
aguentarem mais. Nun' Álvares, que vinha de acudir à retaguarda,
quase desfeita, fê-los levantar e marchar novamente. Em seguida
desapareceu. Onde estava ele agora? Foram encontrá-lo entre duas
rochas, «a rezar e a louvar a Deus». Quando ele acordou, aos gritos
dos homens, e retomou o comando, a batalha acendeu-se de novo.
O mestre de Santiago, um dos principais chefes castelhanos, caiu
morto. O último cabeço foi entrado, os inimigos derramaram-se
encosta abaixo. Diz a Crónica do Condestabre que esta batalha
durou dois dias de sol a sol 2 28 •
Ao ler a narrativa da velha Crónica quase temos o sentimento de
uma batalha nas nuvens em sentido ascensional. Fernão Lopes, que
a segue, maravilha-se da atitude do capitão recolhido a orar:

Onde estava então o seu espírito? Estava com Deus, armado de


virtudes, a que orava que lhe desse vitória, como e por que
maneira nos é incerto, o Senhor o sabe 229 •

Esta ascensão na atmosfera prolonga ao alto o mesmo eixo que em


baixo desapareceu no profundo poço coberto de escuridão de que
Nun' Álvares falava aos seus homens.
A hoste portuguesa regressou a Portugal depois desta batalha, ao
que parece de mãos vazias. Nun' Álvares tinha escapado provavel-
mente de um risco extremo.
Não era que ele fosse um valentão temerário e exibicionista. Pelo
contrário, os cronistas gabam a sua prudência, o seu cuidado, que
não desdenhava os mínimos pormenores, as suas astúcias de guerra,
a sua constância de ânimo nos momentos difíceis.
Antes de acabar a guerra, Nun' Álvares era, além de condestável de
Portugal, conde de Barcelos, conde de Ourém e conde de Arraiolos .

228
. Crónica do Condestabre de Portugal, ed. Mendes dos Remédios, cap. uv, p. 139.
229
Crónica de D. João/, cap. 57, p. 141.

210
Além disso, estava encarregado da justiça para além do Tejo e no
Algarve. O rei rogava-lhe «que, assim como ele fora seu- ajudador e
parceiro em trabalhar por ganhar o Reino, assim lhe ajudasse a
governar em boa e direita justiça» 230 •
De facto; D. João devia o trono a Nun' Álvares. Tinham sido com-
panheiros de infância. Havia entre eles uma ligação de homem a
homem mais que de vassalo a suserano. Nun' Álvares assim o enten-
dia e procedia como se não devesse senão a si mesmo a sua situação.
Demitiu-se do cargo_ da justiça no Alentejo porque o rei lhe escreveu
em favor de um cavaleiro que Nun' Álvares condenara. Procedia
como se estivesse radicado só em si mesmo e como se devesse obe-
diência unicamente à lei divina.
Quando a guerra lhe pareceu ganha, distribuiu grande parte das
terras que possuía pelos cavaleiros que o tinham ajudado, com obri-
gação de ficarem seus vassalos. Assim se desfez de rendas e castelos
em Alter do Chão, Évora Monte, Estremoz, Borba, Monsaraz, Vidi-
gueira, Portel, Vila de Frades, Vila Alva, Vila Ruiva, Montemor-o-
Novo, Almada, Barca de Sacavém, Reguengos de Alviela, Porto de
Mós, Rio Maior, Alvaiázere, Rabaçal, Terra de Baltar, Arcos de
Boulhe, Terra de Basto e de Pena, Barcelos, Montalegre e Chaves. Os
beneficiários destas doações (préstamos) ficavam só com a obrigação
de servir na guerra o condestável com certo número de lanças.
Diz Fernão Lopes 231 que certos invejosos, entre eles o Doutor
João das Regras, decidiram o rei a recuperar as terras dadas,
comprando-as compulsivamente. O condestável ficou muito sentido e
ameaçou sair de Portugal com os seus homens. Mas, finalmente,
aceitou um acordo segundo o qual o rei tomava para si os vassalos
do condestável, pagando-lhes «contias», e ninguém teria vassalos
senão o rei.
Esta batalha, ele perdeu-a. Ameaçou sair de Portugal. Mas sair de
Portugal para onde e para fazer o quê? Para ser um general mercená-
rio? Além de que, precisamente neste período, o Castelhano estava a
preparar uma ofensiva. O que ele queria era não depender de nin-
guém. A sua atitude não revela uma ambição política. Ele não estava
para aí virado. A política era para os que ele considerava invejosos,
como esse João das Regras, que de facto dominava o conselho do rei.
Nunca lhe passou pela cabeça ser rei, mas não queria ser dependente
nem do rei. E, apesar de ter o título de mordomo-mor, que era o pri-

23
231
° Crónica de D. João /, 2. ª parte, cap. cc1, p. 451.
Ibid., cap. cLm, p. 321.

211
meiro cargo da corte e do conselho do rei, nunca pensou em entrar
em rivalidade càm João das Regras, que certamente desdenhava e
cuja verdadeira importância não chegou a compreender.
A regra a que ele obedecia não era uma regra humana, política ou
social. Era uma regra divina, proclamada na sua bandeira, dividida
em quartos por uma cruz: no primeiro quarto, Cristo crucificado,
tendo a seu lado a Virgem e S. João; no segundo quarto, a Virgem
com o Menino; no terceiro quarto, São Jorge, ajoelhado e de mãos
postas; no último quarto, Santiago, em igual posição.
Tinha o culto especial da Virgem Maria, a que consagrou todas as
igrejas que mandou construir para cumprir os votos feitos em com-
bate. Impunha aos seus soldados um comportamento rigoroso de
ordem moral e religiosa. Não consentia mulheres nos acampamentos;
protegia as moças contra a violência da soldadesca; proibia' o incên-
dio de povoações e searas mesmo quando andava em Castela; era
severo com os roubos nas igrejas. Ele próprio ouvia diariamente duas
missas e aos domingos e festas três. «E por estas e por outras boas
maneiras que o conde na guerra usava com seus inimigos», diz Fer-
não Lopes, «os lavradores e gentes miúdas lhe queriam todos mui
grande bem e rogavam a Deus por ele.» 232
Estes traços não são contraditórios com o ideal guerreiro; faziam
parte do modelo cavaleiresco, segundo o qual o cavaleiro protegia as
mulheres e socorria os infelizes.
Nem, no fundo, o usufruir de grandes riquezas tinha neste tempo,
pelo menos para este fidalgo, o mesmo significado que tem hoje
numa sociedade mercantilizada. A principal glória de ter era poder
dar, a virtude do fidalgo era a «gradeza», de que o Livro de Linha-
gens do Conde D. Pedro dá como exemplo um antepassado de
Nun 'Álvares. E foi essa virtude que ele exercitou ao distribuir parte
das suas terras e ainda de outras formas. O trigo das suas searas, diz
a crónica, não era vendido, mas armazenado de maneira que as
sobras dos bons anos dessem para os pobres viverem nos anos maus;
houve um ano de fome em que o condestável sustentou com o seu
trigo não só pobres, não só portugueses, mas também numerosos cas-
telhanos que acudiram às suas terras 233 •
A última batalha mundana de Nun 'Álvares foi a construção do
Convento do Carmo, em cumprimento, talvez, da promessa feita em
Valverde: comprou aos frades da Trindade um cabeço a prumo sobre

232
Cr6nica de D. João !, 2. ª parte, cap. cxc1x, p. 448.
233
Ibid., cap. CC, p. 451.

212
o Rossio e intentou construir aí uma das maiores igrejas de Portugal,
capaz de rivalizar com as de Alcobaça e da Batalha (então em cons-
trução) e mais alta que a Sé de Lisboa. Era uma empresa arrojada.
Duas vezes os alicerces abateram e foram arrastados pela areia escor-
regadia da encosta quase a pique. O condestável d~spediu os emprei-
teiros e contratou outros. Conhece-se o nome de dois judeus encarre-
gados de fazer a cal. Desta vez rodeou-se o monte, a partir do vale,
de muros enviesados. O problema da construção na encosta parecia
resolvido, mas ao fim de oito dias ruiu a nave entretanto construída
e a fachada abria racha no cimo do monte. Eram os lados do terreno
que cediam também. Mas avante! Talvez o condestável se lembrasse
da batalha de Valverde, em que ele investiu contra cabeços sucessivos
enquanto a sua retaguarda abria fendas. Aliás, o campo do Rossio,
sobre o qual se levantava a construção, também se chamava Val-
verde. Estas coincidências pareciam então significativas. A vontade
do cavaleiro, como no romance do Graal, desafiava os impossíveis.
Foi preciso construir arcobotantes de um lado e outro. Finalmente,
o Convento do Carmo ficou de pé até ao terramoto de 1755. Estava
situado dentro das muralhas da cidade; no vale onde estavam o Ros-
sio e a Rua Nova, e enfrentava o monte do Castelo, em cuja encosta
se achavam o Paço Real e a Sé. Era outro falcão que se alcandorava
no outro lado do vale, onde morava o povo da cidade 234 • Pela sua
situação, podia ser o símbolo de uma grandiosa soberba; e era, tal-
vez, a afirmação de uma ambição desmedida, um símbolo do espírito
cavaleiresco.
A igreja teve o nome de Nossa Senhora do Vencimento do Monte
do Carmo. Sendo vencimento sinónimo de vitória, salta à vista o
desejo de competir com a Igreja da Batalha (Santa Maria da Vitória).

§ 72. Frei Nuno de Santa Maria


Em 1422, Nun' Álvares já se pôde transferir para um quarto do
edifício, que oferecera aos frades de um convento de carmelitas de
Moura. Já então tinha distribuído os seus bens pelos familiares. Já
não se assinava «Condestável», mas «Nun' Álvares Pereira, provedor
234
A narrativa da construção do edifício do Carmo encontra-se em Frei José Pereira
de Santana, Crónica dos Carmelitas, Lisboa, 1745, e uma vista que dá ideia da altura e
situação da Igreja do Carmo encontra-se numa iluminura bem conhecida da Crónica de
D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão, representando uma panorâmica de Lisboa no
começo do século xv1.

213
e perpétuo administrador do Mosteiro de Santa Maria do Monte do
Carmo» 235 • Repartiu pelos netos as suas terras e bens; pelos seus
cavaleiros e escudeiros, as alfaias e o dinheiro; perdoou todas as dívi-
das e cedeu aos rendeiros e prestameiros o usufruto das terras.
Porque escolheu Nun' Álvares a Ordem dos Carmelitas? Porque
não preferiu os Beneditinos, os Cistercienses, os Franciscanos ou os
Dominicanos? Os Carmelitas eram um grupo minúsculo, sem grande
tradição e influência. Possuíam um único mosteiro, e esse em deca-
dência obscura.
O facto de os Carmelitas terem por padroeira Nossa Senhora, a
quem Nun' Álvares dedicava fervoroso culto, pode ter contribuído
para a escolha de Nun' Álvares. Mas há talvez outra motivação.
Praticamente, os Carmelitas não existiam em Portugal antes de
Nun'Álvares. Eram um rebento sem viço de uma ordem de.cavalaria
que aqui não chegou a medrar, os Cavaleiros de São João de Jerusa-
lém, e sobreviviam num pequeno convento em Moura. Assim ficaram
a dever ao condestável a sua instalação em Lisboa e a sua promoção.
Ele doou-lhes propriedades importantes, mas com a condição de ser
ele próprio o administrador perpétuo não só do Carmo, como do
convento de Moura, com poder plenário sobre os religiosos daquelas
comunidades, incluindo expressamente o poder de expulsar os frades
que não vivessem exemplarmente e de admitir e manter no con-
vento os que ele quisesse, e isto sem quaisquer condições 236 • Isto
significa que ele ficou não só administrador, mas de facto chefe da
Ordem. O prior do Carmo foi por ele escolhido entre os frades de
Moura.
Tudo se passa como se o herói quisesse exercer uma primazia reli-
giosa depois de ter sido um grande chefe militar. E isso só poderia ser
conseguido apoderando-se de uma ordem que pouco mais era do que
um nome, dando-lhe realidade e consistência com parte da sua for-
tuna. No fundo comprou um posto eclesiástico, mas não, como então
era corrente, como sinecura, para lhe gozar das rendas. Comprou um
posto efectivo de chefia espiritual, o poder de escolher os frades. Fez
precisamente o contrário do que fez anos depois o cardeal Alpedri-
nha. Queria de certa maneira escalar o Céu à força de vontade, como
escalara os montes em combate.
Isto não lhe seria possível com uma ordem importante, de tradi-
ções estabelecidas, como a de Cister ou a dos Beneditinos, que o inte-

235
Santana, op. cit., vol. 1, p. 404.
236
!d., ibid., pp. 413-414.

214
grasse. Ele só reconhecia Deus acima de si. Era-lhe necessário um
grupo que a sua vontade pudesse manipular.
Provavelmente, só conseguiu com isso mais uma glória mundana.
Muitos admiraram a abnegação de Frei Nuno de Santa Maria, que
ameaçou ir pedir pelas ruas. O rei (ou antes, por ele, o príncipe
D. Duarte), assustado pelo escândalo, conseguiu que ele aceitasse, a
título de esmola, uma renda com que se sustentasse a si e aos prote-
gidos.
Um frade do século xvm que dispôs dos arquivos do convento
escreveu que a profissão de Nun' Álvares causou admiração, «tendo
para si que o venerável D. Nuno excedera os limites e todo o possível
abatimento [despojamento e humilhação] e julgando outros que desta
maneira mais dilatara os espaços da sua admirável grandeza, porque
administrava à Fama novo assunto para ela repetir dentro e fora do
Reino maiores excelências» 237 • O frade, como se vê, insinuava uma
interpretação psicológica que não era a mais favorável para a santi-
dade do herói. A «grandeza» de que fala· é uma grandeza humana.
A nós fica-nos a impressão de que o herói falhou o encontro com
o Santo Graal. Para tanto era necessária a Graça, que é gratuita, e
o herói de Aljubarrota era um cristão voluntarista, crente no poder
das devoções e das obras, julgando que podia conquistar o Céu a
pulso, como tinha conquistado os cabeços de Valverde.
Há por isso uma certa justiça em a Igreja não ter posto Nun' Álva-
res no catálogo dos santos. Mas nós temos razão para o inscrever no
catálogo dos grandes cavaleiros.
Ele é o exemplar extremo daquilo que se poderia chamar o espírito
senhorial, que, ao contrário do que se tem dito, não é simplesmente
uma forma histórica própria de certo género de sociedade, mas, pelo
contrário, uma· realização de um tropismo próprio da natureza
humana, uma forma extrema de individualismp, que nem se con-
funde com a acumulação de bens económicos, nem com a conquista
do poder propriamente político.
O espírito senhorial consiste fundamentalmente em não depender
de outro homem ou instituição, como quem está no alto de um monte
e só vê abaixo de si vales e declives descendentes. Para alcançar essa
posição pode servir uma grande fortuna ou um posto político emi-
nente; mas isto são só meios, nem sempre infalíveis. Na Idade Média
(como, aliás, hoje), a obtenção da fortuna obrigava a compromissos
com o poder político-militar. E o poder político só era supremo
237
Santana, op. cit., p. 418.

215
quando se tinha a coroa. Podia ser exercido por burgueses e juristas,
mas a coberto da coroa e à custa de uma grande subserviência
perante o detentor político da legitimidade. Isto não se acordava com
o autêntico individualismo senhorial.
Graças a circunstâncias excepcionais, Nun' Álvares conquistou
uma posição que qualquer homem dotado de espírito senhorial inve-
jaria: não era rei, mas o rei devia-lhe a coroa; não herdara grandes
bens, mas os que tinha por doação eram-lhe devidos, porque ele era
o principal conquistador de terra do Reino. Só Deus mandava nele,
só perante Deus respondia. E no alto do Carmo, dominando a
cidade, no meio dos seus monges, não dependente dos bens, que
doara, nem do posto militar, a que renunciara, ele sentia-se um res-
ponsável directo pelo culto da lei divina.

§ 73. A tradição literária na corte de D. João I


As cortes de Castela e de Portugal (não falamos de Aragão, que
pertencia já a outro mundo muito mais europeu) já desde o
século XIII se revelam activos focos de cultura. Várias vezes temos
referido o exemplo de Afonso X-o-Sábio, avô e certamente modelo
de D. Dinis. A sua fama foi perdurável; «[ ... ] aquele honrado rei
D. Afonso, astrólogo, quantas multidões fez de leituras!», espanta-se
D. Duarte no Leal Conselheiro (cap. 27). O rei de Portugal, seu neto,
foi poeta, protector de poetas e promotor da historiografia. O filho
deste, o conde de Barcelos, D. Pedro, é autor da Crónica Geral de
Espanha de 1344 e do Livro de Linhagens conhecido pelo seu nome.
Do rei D. Pedro, a este respeito, nada se conhece, mas seu filho
D. João é o fundador da Casa de Avis, que reatou brilhantemente a
tradição dos príncipes letrados.
Os príncipes de Avis não são poetas, como o fora D. Dinis. A tra-
dição lírica esgotara-se com os últimos jograis da escola galega.
Agora, os escritores têm um propósito didáctico e moralista e preten-
dem ser úteis aos leitores. A moral senhorial é neles temperada pela
moral cristã, que recomenda as «boas obras».
D. João escreve um tratado de caça de montaria. O título parece
tradução do Libra de la Montería, que o rei Afonso XI de Castela e
Leão mandou fazer na primeira metade do século XIV. D. João,
segundo diz seu filho D. Duarte, «fez um livro das horas de Santa
Maria e salmos certos por os finados, e óutro da montaria» (Leal
Conselheiro, cap. 27). Apenas nos ficou o Livro da Montaria, o qual

216
-podemos supor- nasceu de saborosas conversas, ao canto da
lareira, entre caçadores expansivos. A primeira frase diz:
Aqui se começa o livro da montaria, o qual é tomado e ajun-
tado com acordo de muitos bons monteiros.

É de crer que o autor se divertisse prazenteiramente ao evocar e


reviver cenas de que ele tinha grande experiência: era preciso procu-
rar o porco seguindo-lhe as pegadas; era preciso descobrir-lhe o
esconderijo, cercá-lo, persegui-lo a cavalo por montes e vales e, final-
mente, atingi-lo com a arma. Algumas caçadas célebres, especial-
mente a do irmão de D. João I, também D. João, eram lembradas
por um historiador como Fernão Lopes. A caçada ao javali inspira
baixos-relevos dos túmulos de João Sanches e do conde de Barcelos,
no século XIV. O autor do Livro da Montaria sente fortemente este
prazer ao aludir a determinados momentos da caça: «[ ... ] esta vista
é tão saborosa de ver que comparada é com a vista da glória de
Deus» 238 ; a música feita pelo ladrar dos cães e o tanger das buzinas
faz <<Uma fermosa concordança de melodia»; e não há nenhum enfa-
damento que o monteiro não esqueça «quando está sobre um bom
cavalo e tem uma boa ascuma na mão e que seja a vara bem longa
e direita, e o ferro bem talhado, e ser bem agudo, tanto da ponta
como das navalhas, e com tudo isto não seja mui pesado nem mui
leve» 239 • Não admira que o autor alardeie as suas proezas de caça,
como quando enterrou uma ascuma pelo espinhaço de um porco,
atravessando-o de alto a baixo, «e entrou grande parte do ferro pelo
chão [... ]e o porco ficou todo partido, como se o quisessem fazer em
toucinhos» 24 º. A matéria obriga o autor a falar de cheiros, de trilhos,
de terra húmida ou seca e da poeira de diversas qualidades em que o
porco deixa as pegadas, das ervas e do orvalho da noite, das covas
dos coelhos, dos pântanos, das charnecas. Grande parte do vocabulá-
rio em que se dizem estas coisas já hoje não existe, ou perdeu-se ou
é raro. Por isso, e também porque o autor teve de desdenhar a retó-
rica e a organização do discurso para amontoar os dados da experiên-
cia e da observação, é uma obra do maior interesse e está a pedir uma
monografia linguística e literária.
D. João 1, para justificar a utilidade do seu livro, faz o elogio
deste desporto, colocando-o acima dos outros, como o xadrez, as
238
Ed. Esteves Pereira, Coimbra, 1918, liv. 1, cap. 1, p. 18.
239
Id., p. 19.
240
!d., liv. m, cap. XIII, p. 411.

217
«távolas», a péla, o canto e a dança, porque a montaria é um jogo
que distrai mais que outro algum e que ao mesmo tempo prepara
para a guerra. É por isso um desporto próprio de reis e seus filhos,
pois são eles os que mais precisam de distrair a mente sobrecarregada
com os negócios da governação e têm de se treinar para comandar as
guerras. O Livro da Montaria é escrito para reis e senhores, de quem
é próprio o caçar (o autor chega a querer proibir a caça a gente
«refece»).
O exemplo de D. João serviu de modelo aos filhos. Estes tiveram
uma esmerada educação, como se vê pela mostra que de si deixaram:
D. Duarte, o livro Leal Conselheiro, e D. Pedro, a Virtuosa Benfei-
toria; eram, além do mais, amigos de livros e estimavam a glória de
ser autores literários. D. Duarte é um coleccionador de livros.
Conhecemos o catálogo da sua livraria, que contém cerca de 80 volu-
mes de vários géneros. É provável que o fossem também os irmãos,
se bem que se tenham perdido os catálogos. D. Duarte, no tempo em
que era ainda infante, começou um empreendimento literário impor-
tante, a Crónica dos Reis de Portugal, encomendada a Fernão Lopes,
como já vimos. D. Afonso V, seu filho, é o primeiro a ter uma livra-
ria real e uma oficina de manuscritos. O infante D. Henrique parece
menos tocado desse vírus, mas pelo livro Relógio da Fé, de Frei
André de Prado, em forma de diálogo, em que ele é um dos dois
interlocutores, vê-se que se interessava pela teologia. O infante
D. João é um espírito muito afinado e cheio de humor, como se vê
pelo seu parecer sobre a guerra santa. D. Fernando, o «Infante
Santo», possuía uma pequena biblioteca. Segundo um documento de
1405 241 , D. João 1 enviou os três filhos mais velhos, adolescentes, a
Inglaterra, onde tiveram oportunidade de se familiarizar com a lín-
gua da corte (isto é, o francês, em que estão escritos os seus motes).
O Leal Conselheiro e a Virtuosa Benfeitoria têm de comum com
o livro paterno, o Livro da Montaria, serem obras didácticas para
uso dos reis e senhores. São aparentadas com outras obras didácticas
dos séculos XIV e xv, como o Segredo dos Segredos, obra em que o
próprio Aristóteles (a quem ela é atribuída) ensina e aconselha Ale-
xandre Magno sobre o exercício do governo, e o Regimento de Prín-
cipes, de Egídio Romano, obra dirigida, com o mesmo intuito, ao
futuro Filipe-o-Belo, de França. Este livro teve grande influência na
Península desde meados do século XIV, era lido assiduamente na

241
Documenta Henricina, carta de D. João 1 aos juízos e justiças do Reino de 12 de
Agosto de 1405.

218
câmara de D. João 1, foi plagiado por Fernão Lopes no prólogo da
Crónica de D. Pedro I e é citado a cada passo por Zurara, pelos
infantes e por outros autores; diz-se que foi traduzido para português
pelo infante D. Pedro 242 • À mesma série didáctica de obras moralis-
tas pertence o Livro das Três Vertudes, e Ensinança das Damas, por
Cristina de Pisano, traduzida do francês, no tempo de D. Afonso V,
por ordem da rainha D. Isabel, filha de D. Pedro 243 ,
A Virtuosa Benfeitoria é dedicada ao infante D. Duarte e estava
sendo escrita quando se reuniram as Cortes de Santarém em 1418, na
previsão de um eventual ataque dos Castelhanos. D. Duarte aconse-
lhou o infante a continuar e a acabar o livro, mas o rei D. João 1
entendeu que o cuidado da guerra era incompatível com outros.
D. Pedro, para obedecer a um e a outro, encarregou o seu confessor,
Frei João de Verba, de redigir o que faltava.
D. Pedro, que não tinha modelos em língua portuguesa, seguiu o
método expositivo adoptado nas escolas. Define cada conceito e em
seguida as partes de que ele se compõe e dessa análise tira as conclu-
sões. Segundo o método escolástico, apresenta a tese que adopta, em
seguida a tese oposta com as razões em que se funda, seguidas das
razões que as anulam.
A maneira de redigir a matéria do seu livro preocupou o autor:

O qual [livro] é ditado em alguns lugares quanto quer escuro, e


em outros bem claro. E parte truncado e em pausas curtas, que ao
ditar são de grande trabalho, e outra parte em pausas compridas,
que é mais chã maneira de razoar 244 •

Este texto não teve ainda o comentário que merecia. O texto é


ditado a um escriba ou secretário: era a maneira normal de produzir
um texto nesta época. Muitas vezes lemos em autores desta época
ditar por escrever: «Nós bem podíamos ditando erram, escreve Fer-
não Lopes no prólogo da Crónica de D. João I. Um era o que com-
punha, ditando em discurso oral, outro, o que passava ao papel.
A situação do que compunha oralmente, gesticulando, era diferente
da do que passava as letras ao papel sedentariamente. O discurso oral
é muito diferente do discurso escrito, obedece a outras leis rítmicas;
242
Segundo Pedro de Mariz, cit. por Barbosa Machado em Diálogos de Vária Histó-
ria (cap. 4), o infante D. Pedro traduziu o De Regimine Principum, de Frei Gil Correia,
autor não identificado. Gil é a forma portuguesa de Egídio.
243
Ver Livros Antigos Portugueses, de D. Manuel li, pp. 344-355.
244
O Livro da Virtuosa Benfeitoria, ed. por Joaquim Costa, 2. ª ed., 1940, p. 22.

219
a pontuação, que no escrito tem de ser marcada com sinais próprios,
no oral é estabelecida pelo fôlego, pelo ritmo da entoação, pelos
paralelismos e pelas pausas naturais. É preciso ter isto bem presente
para perceber o que D. Pedro quer dizer em seguida:

[... o livro é) em parte truncado e em pausas curtas, que ao


ditar são de grande trabalho, e a outra parte em pausas compridas,
que é mais chã maneira de razoar.

Ficamos assim sabendo que se pode ditar em «pausas compridas»,


que é a mais simples («chã») maneira de falar («razoam), e, por
outro lado, em «pausas curtas», «que ao ditar são de grande traba-
lho». Ditar em pausas compridas é ditar em ritmo oral e livre, que
tem poucas pausas, e essas, como dissemos, naturais. É ditar sem for-
çar a locução, segundo a maneira «chã» de falar. Ditar em «pausas
curtas» não é para se _ouvir, mas para se ler, com a pontuação artifi-
cial da escrita truncando o discurso natural. As pausas curtas exigem
grande atenção, porque «ao ditar são de grande trabalho», ao contrá-
rio das compridas, que são naturais.
D. Pedro justifica o uso dos dois estilos -o «escuro» e o «chão»
ou simples-, «porque [esta obra), ainda que principalmente aos
príncipes seja endereçada, a outros muitos dá geral doutrina [ ... ]
diversamente foi a obra composta para o engenhoso e subtil achar
deleitação a seu entendimento, e ao simples porém não minguasse tal
clareza para que aprender pudesse as cousas que a ele convém» 245 •
Este desajustamento entre a linguagem oral e a linguagem escrita
foi durante muito tempo a causa de que a pontuação na prosa fosse
caótica e arbitrária. Ainda hoje ela é um problema na poesia, para a
qual são importantíssimas as pausas naturais.
D. Duarte, no Leal Conselheiro, refere-se também a este problema
da pontuação, não do ponto de vista do autor, mas no do leitor.
Referindo-se ao seu livro, diz que «cumpre, para se melhor entender,
de se ler todo de começo, passo [devagar) e pouco de cada uma vez,
bem apontado [pontuado) estando em razoado tempo bem dispostos
os que lerem e ouvirem» 246 •
Entre os dois livros -apesar da irmandade que há entre eles- há
todavia uma diferença importante. D. Duarte pôs muita matéria pes-
soal e experiência subjectiva na sua obra:

245 O Livro da Virtuosa Benfeitoria, ed. cit., p. 22.


246
Leal Conselheiro, ed. Piei, 1942, p. 4.

220
[... ] mais escrevo por [o] que sinto e vejo na maneira do nosso
viver, que por estudo de livros nem ensino de letrados 247 •

Pelo contrário, D. Pedro é mais um expositor de ideias aprendidas


nos livros lidos e pouca experiência vivida põe na sua obra - o que,
evidentemente, lhe facilita a redacção.

§ 74. A teoria da sociedade segundo


o infante D. Pedro
A Virtuosa Benfeitoria deve ser lida num contexto ideológico
muito diferente daquele em que hoje nos integramos. Hoje considera-
mos a política uma esfera independente da teologia. Nesta época não
se concebia qualquer actividade independente do desígnio de Deus ao
criar o homem. A sociedade, como a natureza, tinha na teologia o
seu fundamento e a sua justificação. Por outro lado, não se concebia
a sociedade igualitária e horizontalmente (ideia que só se generalizou
na Europa depois da Revolução Francesa); a sociedade era, pelo con-
trário, uma pirâmide hierárquica, em que as diferenças ou desigual-
dades estavam ordenadas a um fim. Finalmente, dentro deste todo
social havia um princípio de harmonia que sustinha as suas diferentes
partes, e não uma competição permanente entre elas, como a conce-
beu o darwinismo.
A benfeitoria ou benefício é o elo que sustenta a sociedade:

Deus [... ] ordenou por tal modo o estado dos homens que em
cada um se acha míngua e nenhuma condição é tão isenta que não
tenha a sua parte de falta. E, para se manter tal ordenação,
aprouve-lhe pôr afeição pela qual as suas criaturas se ajudassem;
e ligou espiritualmente a natureza dos príncipes e a obediência
daqueles que os hão-de servir como doce e forçosa cadeia de ben-
feitoria, pela qual os senhores dão e outorgam gradas e graciosas
mercês e os sobreditos oferecem ledos e voluntariosos serviços
àqueles a que por natureza vivem sujeitos e estão obrigados pelo
bem que recebem.
Depois que eu tive conhecimento da virtuosa prisão desta
cadeia, entendendo que é muito necessária no geral governo do
mundo, e que por ela podemos chegar à fonte que sobre todos der-
247
Leal Conselheiro, cit., p. 3.

221
rama as suas águas e de outrem as não recebe, propus-me escrever
algumas cousas que são convenientes ao bem fazer, com que eu
tomasse lembrança de fazer serviço àquele Senhor em cuja obriga-
ção todos jazemos 248 •

A sociedade é, neste texto, concebida como uma cadeia que, de


degrau em degrau, conduz até Deus, último elo. Nesta cadeia, os
inferiores estão ligados aos superiores pelo agradecimento dos benefí-
cios que deles recebem. A concessão do benefício é inteiramente gra-
tuita, desinteressada, e os serviços dados em troca a título de agrade-
cimento são igualmente desinteressados e voluntários. Assim, uma
«doce» cadeia liga os homens que, pela sua insuficiência, não pode-
riam viver uns sem os outros.
Esta relação de ajuda mútua entre os que dão e os que recebem é
uma relação de amor, da qual se prestam contas a Deus. De uma
maneira geral, a literatura cristã que se ocupa de assuntos económico-
-sociais não põe em causa a distribuição desigual da riqueza e limita-
-se a considerar os ricos como os dispensadores constituídos por Deus
com a obrigação de distribuir os respectivos bens pelos necessitados.
Nesta posição, que mais adiante teremos ocasião de reencontrar, se
coloca o autor da Virtuosa Benfeitoria, segundo o qual os príncipes
«são os possuidores das riquezas temporais, de que a muitos podem
fazer bem e mercê», devendo delas contas a Deus, como o servidor
de uma conhecida parábola bíblica:

[... ] como nós todos [príncipes] recebamos de Deus, como dis-


penseiros, os bens da Graça e da natureza e da fortuna, devemos
ser muito avisados, para deles usar em tal maneira que a Ele, ao
qual nenhuma cousa se pode encobrir, demonstremos claramente,
sem receio, a despesa que fizermos em bens que por Ele nos foram
outorgados e sejamos merecedores de ouvir o que Ele prometeu
dizer ao bom e leal servidor no seu Evangelho 249 •

A actual teoria da divisão do trabalho assenta num postulado


lógico, que é o da igualdade (no sentido de equivalência); a teoria do
benefício assenta num dado empírico, o da desigualdade, justificada,
em última análise, numa concepção teológica, segundo a qual o
mundo constitui uma pirâmide cujo vértice é Deus, o senhor absoluto

248
Ed. cit., p. 33.
249
ld., p. 30.

222
que só dá e não recebe. A partir de Deus, o mundo é uma descida em
graus sucessivos, uma sucessão de superiores a inferiores, que acaba
na natureza inanimada.
Quanto à natureza do laço que une os homens entre si, enquanto
a teoria da divisão do trabalho procura dar-lhe uma definição mate-
mática e objectiva (cuja expressão mais coerente é a redução a horas
de trabalho dos valores e serviços trocados), a teoria feudal só pode
situá-la num plano religioso e subjectivo: os homens estão ligados
pelo amor, que uns manifestam em dádivas graciosas, outros em ser-
viços agradecidos. Uma harmonia subjectiva encadeia a sociedade,
bem diversa da harmonia objectiva, que a teoria capitalista imaginou
resultar do livre jogo das forças da natureza.
O benefício não é mais que a materialização do amor, da «benque-
rença», que torna possível a sobrevivência dos homens; e, em torno
dele, como estamos vendo, o infante D. Pedro, o futuro regente,
constrói toda a teoria da sociedade. Dentro da teoria geral que acabá-
mos de relatar se deve integrar a teoria do governo exposta pelo
infante D. Pedro, aliás muito rápida e imprecisamente. Tratava-se de
uma questão um tanto embrulhada, devido à convergência de corren-
tes doutrinárias contraditórias: havia a doutrina dos Santos Padres,
segundo a qual todo o poder vem de Deus; esta doutrina era, porém,
frequentemente desmentida pelos conflitos entre o poder real e o
poder eclesiástico, que levavam a Igreja a não reconhecer a origem
divina dos reis que ela própria destituía, sempre que o julgava conve-
niente e exequível; havia, por outro lado, o direito feudal, que punha
limites ao poder real, sem que esses limites ficassem bem determina-
dos; havia ainda as comunas italianas, em que a soberania residia
teoricamente nas assembleias populares; havia, finalmente, a tradição
da antiguidade, teorizada sobretudo· por Aristóteles, que colocava
também nas assembleias populares a fonte da soberania. São Tomás
de Aquino tentou conciliar estas correntes contraditórias, aceitando,
por um lado (como Aristóteles), a soberania popular, que pode ser
delegada num príncipe ou numa família, e, por outro, a existência do
poder como instituição de origem divina, mas não a intervenção
divina na designação de cada governante em particular. Quanto às
relações entre governantes e governados, a doutrina de São Tomás é
um modelo de subtileza, porque admite, por um lado, que o poder
injusto pode ser um castigo enviado por Deus, contra o qual os s_úb-
ditos não têm o direito de se revoltar, e, por outro (dentro da tradi-
ção teocrática, em nome da qual foram depostos alguns monarcas),
que os súbditos têm o direito de recusar a obediência sempre que o

223
governante queira obrigá-los a executar leis injustas. Em resumo: os
príncipes não detinham o poder em virtude do direito divino e
podiam ser destituídos se violassem os mandamentos da Igreja, à
qual competia, em última instância, ajuizar do procedimento
daqueles.
Em Portugal, a teoria da soberania popular teve uma actualidade
flagrante entre 1383 e 1449, como vimos já. Segundo João das Regras
nas Cortes de 1385, a soberania, à falta de rei, reverte para o povo,
a quem compete eleger em cortes o seu sucessor. E, em 1439, os pro-
curadores de L,isboa às cortes negam competência ao rei falecido para
escolher a regência que governará o Reino durante a menoridade do
sucessor. Essa faculdade, afirmam eles, compete às cortes.
Isto nos deixam ver os cronistas palacianos Fernão Lopes e Rui de
Pina. Mas temos razões para pensar que a teoria da soberania popu-
lar foi em Portugal um pouco mais audaciosa ainda do que ali se vis-
lumbra. Na realidade, nas Cortes de 1385 não se trata apenas de esco-
lher um rei novo para um trono sem sucessão. Elas assumem de facto
o poder de contestar o acesso ao trono de um sucessor legítimo, fos-
sem quais fossem as razões jurídicas alegadas. Elas alcançam ainda
o direito de escolher os conselheiros do rei, tentanto introduzir um
sistema de governo em que o rei apenas dispõe de uma parcela limi-
tada de soberania e de poder efectivo.
Ao ler a Virtuosa Benfeitoria dir-se-ia que este problema da sobe-
rania popular (em nome da qual o infante D. Pedro foi eleito
regente) era ignorado em Portugal e no mundo.
Cita-se na Virtuosa Benfeitoria a Suma, de São Tomás, mas não
se tratam os problemas essenciais de que este se ocupa. Não se põe
o problema da legitimidade do poder, nem o da entidade em quem
reside a soberania. A sujeição dos súbditos aos senhores é aí conside-
rada, de acordo com a tradição da patrística, como uma necessidade
imposta pelo pecado original, que se tornou uma segunda natureza à
qual não é possível escapar:

Assim que o pecado desterrou do mundo a direitura original,


logo uma criatura racional foi sujeita a outra [... ] Depois disto,
crescendo a multidão das gentes, os que pelo entendimento sen-
tiam superioridade sobre os outros trabalharam pelos reger,
dando-lhes ensinamentos para que melhor mantivessem seu modo
de vida. E alguns, defendendo de seus adversários, pela força, o
povo com que se juntaram, mereceram ser recebidos por principais
daqueles a quem faziam proveito. E, usando disto prolongada-

224
mente, por tal modo se assenhorearam dos sujeitos que tomaram
deles especial encargo, pelo qual veio a ser direito necessário
governarem-nos os senhores em justiça e defenderem-nos de seus
inimigos até morrer por eles. E por este cuidado que eles têm
outorgou-lhes o povo obediente sujeição, fazendo vassalagem pela
qual é obrigado a manter~lhes lealdade. E assim o senhorio que,
por aso do pecado, começou no mundo é já tornado em natureza,
segundo diz Santo Agostinho no XIX livro d'A Cidade de Deus.
E, como é cousa natural nascermos em pecado, assim é nossa
natureza vivermos em sujeição de senhorio temporal, do qual nem
por lei nem por sacramentos somos desobrigados, porque a graça
espiritual não tira a sujeição corporal, mas o cativeiro da alma 250 •

Erradamente se concluiria deste texto que - de acordo com Aris-


tóteles ou .com São Tomás- o infante D. Pedro aceita a teoria do
consenso popular como fundamento do poder 251 • A submissão
voluntária do povo aos senhores que o regiam ou defendiam é um
facto pretérito e irreversível dentro do processo pelo qual a sujeição
se converteu numa segunda natureza; mas não é um direito actual.
O poder é um facto, e não um direito. A doutrina de D. Pedro filia-
-se mais em Santo Agostinho e na patríStica do que em São Tomás
ou Aristóteles, e, tal como o seu conceito feudal da sociedade, é
arcaica em relação às correntes que estes divulgavam. Pensamos
mesmo que ele se encontra em oposição expressa com São Tomás ao
afirmar que em caso algum, nem por lei nem por sacramentos, somos
desobrigados da obediência aos príncipes. No pensamento do infante
parece existir a ideia de que nem a própria Igreja tem poder para des-
ligar os súbditos desta obediência. São Paulo é a autoridade em que
se apoia para afirmar esta tese:

Toda a alma seja sujeita aos príncipes mais excelentes, porque


não há poderio que não proceda de Deus, e as cousas que são, por
Deus tem ordenança. E quem resiste ao príncipe faz resistência à
ordenança de Deus e os que disto usam ganham condenação para
si mesmos, porque os príncipes não são receados pelos que bem
obram, mas pelos que fazem mal. Queres não temer o príncipe?
250
Ed. cit., pp. 106-107.
251
Encontramo-nos neste ponto em desacordo com a doutrina exposta por Paulo Merea
no estudo sobre a Virtuosa Benfeitoria publicado em Estudos de História do Direito e
julgamos mais justa a interpretação de A. Tejada Spinola em Las doctrinas políticas en
Portugal en la Edad Media.

225
Faze bem e haverás dele louvor: ele é ministro de Deus para se
fazer o bem. Se mal fizeres, teme, porque não sem razão traz ele
a espada: ele é ministro de Deus vingador em sanha naquele que
mal faz. E por isso, por necessidade, sede sujeitos, não somente
pela sua sanha, mas ainda pela consciência, porque são ministros
de Deus e em seu ofício servem a Ele.

Comentário do autor da Virtuosa Benfeitoria:

Nisto se mostra aos cristãos que sempre devem obedecer aos


príncipes, nem está escrito na lei divinal cousa que a isto seja con-
trária 252 •

Como é óbvio, o autor supõe que há da parte do príncipe certas


obrigações, «segundo direita consciência», relativamente aos súbdi-
tos. Mas estas obrigações são do foro moral-religioso e não impli-
cam, por. si mesmas, consequências de ordem política.
Poderíamos dizer, em resumo, que a doutrina da Virtuosa Benfei-
toria é conducente à solidariedade social, cuja causa, no fundo, é o
amor que se deve a Deus e ao próximo. Essa solidariedade supõe que
cada qual aceita e assume o seu lugar na hierarquia dos seres huma-
nos, ao contrário das doutrinas modernas, que insistem nas causas da
desarmonia, do conflito, das rivalidades.

§ 7 5. O Leal Conselheiro
Classificaríamos a Virtuosa Benfeitoria como um tratado; mas não
podemos atribuir a mesma classificação ao Leal Conselheiro, de
D. Duarte. Este é um livro muito mais pessoal. São apontamentos
escritos nos intervalos das obrigações e compilados a pedido da
rainha:

E diz Nosso Senhor daqude que guardar seus mandamentos e


os ensinar que será chamado grande no seu reino. Por isso, ainda
que meu cargo mais seja mostrar por obra e palavra alguma parte,
desejo cobrar de merecimento dos que fazem leituras de virtuosas
boas ensinanças 253 •

252
Ed. cit., p. 109.
253
Leal Conselheiro, ed. cit., p. 2.

226
O rei não se contenta com os actos (obra) e palavras que tem de
produzir na sua qualidade régia. Quer ensinar também em livro que
sirva de leitura tratando de como deve proceder um bom cristão:

Podê-lo-eis, se vos praz, chamar «Leal Conselheiro», porque,


ainda que me nom atreva certificar que dá em tudo bons conse-
lhos, sei que lealmente é todo escrito 254 •

O rei (ou o infante) dá conselhos sobre os poderes e as paixões,


sobre virtudes e bondades e sobre os males e os pecados fundando-se
nos livros, mas sobre a experiência de todos os dias:

Sobre isto mais escrevo pelo que sinto e vejo na maneira de


vosso viver que por estudo de livros nem ensino de letrados 255 •

Desta maneira, o autor coloca-se fora da crítica dos «letrados»


(teólogos, doutores) e situa-se no plano do senso comum, como se
estivesse em conversa com os seus familiares e confidentes.
O seu círculo mais íntimo é a própria família - a mãe, o pai, os
irmãos, a mulher, a quem dedica o livro. Sobre o comportamento
dele próprio e dos irmãos em relação ao pai escreveu o cap. 98, que
primeiramente foi uma carta para os cunhados, os infantes de Ara-
gão. Aí conta como os filhos faziam tudo para não contrariar o pai,
mesmo quando discordassem dele:

Da primeira parte nos decrecia grande amor, pensando que


tanto e assim firmemente nos amava, nunca para o contrário nos
preparando nem avisando. Da segunda havíamos aquele grande
temor que procede do perfeito amor, que faz mui firme e manter
as boas amizades.
Estabelecíamos em nossos corações um procurador por ele que
nos fizesse todos os seus feitos interpretar à melhor parte, e onde
o não achássemos vinha-nos em lembrança quanto nos amava e
suas grandes bondades e virtudes, pelas quais, por fé e boa opinião
dele, críamos que com bom fundamento, fazia todas as coisas que
a nós tocavam. E, se a obra manifestamente era errada, lembráva-
mo-nos que só Deus é perfeito e que, por isso, suas faltas [faleci-
mentos] devíamos suportar como queríamos que ele as nossas

254
Leal Conselheiro, ed. cit., p. 3.
255
Jbid., mesma página.

227
suportasse. E esta tençao nos fazia pôr em tudo sossego de von-
tade, e por nossa boa prática o ligávamos mais em nosso bom
amor 256 •

Pode objectar-se a esta apresentação da relação entre D. João I e


os filhos que há uma carta de D. Duarte, de 1 de Maio de 1429, a
propósito de um conflito de D. Pedro com o pai, o que parece con-
tradizer esta descrição idílica do perfeito entendimento. D. Duarte
era escrupuloso e sentiu necessidade de acrescentar:

Por escrever verdades, como tenho tenção a meu bom poder


sempre falar, tudo isto não era por todos igualmente guardado 257 •

Outro capítulo familiar do Leal Conselheiro (o 23) ·é a carta que


dirigiu ao infante D. Pedro, o seu irmão mais próximo. D. Duarte
aplica aí a sua doutrina das três vontades -a vegetativa, a sensitiva
e a racional- para alertar o infante contra todos os excessos de pai-
xão e de desejo e para lhe indicar os remédios para evitar cair em tris-
teza. Esta carta, ao mesmo tempo delicada e franca, é um bom docu-
mento acerca de D. Pedro, pois é o testemunho de alguém que o
conhecia muito de perto.
Os amigos e conselheiros do rei entrevêem-se no seu livro: além do
rei e dos irmãos, o Santo Condestável, que ele muito admirava, Frei
Gil Lobo, seu confessor, o Dr. Diogo Afonso Mangancha, célebre
jurista e membro do seu conselho.
Para este círculo de íntimos quis o rei D. Duarte escrever um livro
prático e útil de conselhos versando os problemas diversos que na
época eram os de maior oportunidade: sobretudo os pecados e virtu-
des, a predestinação e o livre arbítrio, o crédito que se deve ter ou
não ter em certos milagres, visões, sinais do Céu, astrologia, nigro-
mancia, adivinhações, vedores de água, etc.; se é proveitoso ou não
fugir da peste; do arranjo e ofícios da capela; da maneira de tratar
o estômago; da maneira de saber as horas. Sobre estas questões, cada
um opinava livremente, segundo o seu sentir e a sua experiência, a
não ser que a Igreja decretasse uma doutrina. Por exemplo, o cap. 35
intitula-se «Do que me parece sobre a concepção de Nossa Senhora
Santa Maria». A concepção imaculada da Mãe de Cristo não era
ainda então um dogma da Igreja, mas uma opinião livre seguida prin-

256
Leal Conselheiro, ed. cit., pp. 360-361.
257
Ibid., p. 370.

228
cipalmente na Inglaterra. «E pois eu tenho liberdade para poder ter
qual tenção destas duas me prouvern, escolhe a opinião que em seu
entender é mais favorável a Nossa Senhora 258 • D. Duarte não acre-
dita nos vedores de água; nos benzedores contra mordeduras de cães;
no ferro em brasa que servia como prova de Deus; em toda a espécie
de feitiçarias; na alquimia. O seu critério é «sobre todas estas partes
aquelas creio que a Santa Igreja manda crer, não dando fé nas que
defende» 259 •
E o mesmo critério segue acerca da astrologia. O problema era
que, segundo alguns, os astros determinam o destino dos homens;
ora isso eliminava o livre arbítrio, que a Igreja sempre considerou
artigo de fé. No fundo, é o problema filosófico da liberdade e da
necessidade, como o próprio D. Duarte bem viu:

Que os planetas [os astros] nos outorguem grande parte das


condições pergunta-se aos astrólogos, os quais não somente parte
destes, mas todos querem afirmar que nos são dadas, o que a expe-
riência das coisas acima ditas não outorga, e menos a católica
determinação que declara o homem sabedor se assenhorear das
estrelas. E, se fosse o contrário, não haveríamos livre arbítrio nem
o juízo pareceria direito que viesse mal a quem fizesse as cousas
por necessidade, e não seria verdade o que se diz na Santa Escri-
tura: Porque fizeste mal, houveste tal pena, e porque bem, galar-
dão.

E cita uma frase de São Paulo, por onde «se mostra claramente
como dos planetas e todas as outras partes podemos ser induzidos e
tentados, mas não çonstrangidos» 260 • Este é ainda hoje um problema
de opinião e sempre o será. Sabemos que ele era discutido no círculo
íntimo de D. Duarte, porque Zurara, o cronista do infante D. Henri-
que, atribuía os feitos deste infante à influência dos astros.
Outro tema de grande interesse para os contemporâneos de
D. Duarte e para ele próprio é o da tristeza, e particularmente o do
«humor mcrcncórko». Já vimos como a principal recomendação'que
faz a D. Pedro é que não deixe entrar nele a tristeza. Outro caso de
tristeza (sob a forma de «humor merencórico») que ele cita é o do
condestável, outro o do rei D. João 1. Vários capítulos no Leal Con-

258
Leal Conselheiro, ed. cit., p. 138.
259
lbid., p. 146.
260
lbid., p. 154.

229
se/heiro são dedicados à tristeza, que é considerada por D. Duarte
como um pecado mortal, de harmonia com a doutrina católica.
O cap. 25 faz a distinção entre diferentes formas de tristeza: o nojo
(palavra que mudou de sentido), o pesar, o desprazer, o aborreci-
mento e a suidade (saudade). O nojo é o desgosto, como o que se tem
por morte de parentes e amigos, passageiro, mas «rijo». O pesar não
«derriba» tanto como o nojo. O desprazer pode ser leve. O aborreci-
mento é desamor de alguém, por ser «desgraciado», desenxabido,
etc. A suidade é um sentimento do coração, que vem da sensibilidade,
e não da razão, e faz sentir às vezes tristeza e às vezes desgosto
(«nojo»). Por vezes, a suidade vem daquelas coisas que ao homem
agradam e gostaria que fossem (praz que sejam); outras vezes vem de
uma lembrança «que traz prazer e não pena». Pode misturar-se com
tão grande desgosto que faz ficar em tristeza «que mais sentimos
a folgança por nos lembrar o que passámos que a pena da falta
do tempo ou pessoa [... ] esta suidade é sentida com prazer mais que
com desgosto nem tristeza.[ ... ] E porque sobre esta lembrança que
traz suidade muitos incorrem em pecado, tristeza e desordenança
de vontade, lembrando-lhe por vista dos homens e mulheres casa-
das, cantigas, cheiros [... ]»; o autor entende declarar «a boa
maneira que devemos ter em tal caso». É uma conclusão moral
apoiada num texto de São Paulo que serve de fecho à análise prece-
dente, a qual, como vimos, se baseia, não em leituras, mas em
experiência própria:

E para entender isto não cumpre ler por outros livros, que pou-
cos acharão que disso falem, mas cada um vendo o que escreve
considere seu coração no que já por feitos [actos, casos] «desvaira-
dos» [diferentes] tem sentido, e poderá ver e julgar se fala certo 261 •

É também a tristeza que inspira a D. Duarte o capítulo «Da


maneira que fui doente de humor merencórico e dele guareci».
É, como o título indica, um capítulo em que o autor conta uma sua
doença, não por exibicionismo, mas para dar uma receita útil aos
seus interlocutores ou ouvintes. A doença não era rara, antes parecia
grassar como um andaço:

[... ] muitos adoecem de tristeza, .que sempre reina em seus cora-


ções, e, por a não poderem suportar e desesperarem de saúde, se
261
Leal Conselheiro, ed. cit., pp. 95 e 96.

230
matam ou se vão a perder onde nunca aparecem, uns por perdas
que houveram, causas da vergonha que lhes aconteceu, desgosto
ou medo que muito e continuadamente sentem 262 •

Eis como começa este capítulo:

Por quanto sei que muitos foram e são e ao diante serão toca-
dos deste pecado de tristeza, que procede de vontade desconcer-
tada, que ao presente chamam em os mais dos casos doença de
humor merencórico [... ]

D. Duarte propõe-se contar a sua própria experiência, pois «não é


pequeno conforto e remédio, .aos que são disto tocados, saberem
como os outros sentiram e que eles padecem e houveram completa
saúde, porque um dos seus principais sentimentos é ·pensarem que
outros jamais tal sentiram [... ]» 263 • Quando ele tinha 22 anos, o pai,
ocupado com a empresa de Ceuta, encarregou-o de assuntos da Jus-
tiça e da Fazenda:

Eu, não considerando minha nova idade e pouco saber [... ],


recebi sem outro resguardo todos os ditos cargos, aos quais me pus
assim fora de boa descrição.

Levantava-se bem cedo e ouvia as missas. Estava na Relação até


ao meio-dia e vinha comer. À mesa dava audiência por bom espaço e
recolhia-se à câmara. Logo às duas horas depois do meio-dia tinha
com ele os do conselho e vedores da Fazenda, com quem estava até
às nove da noite. Partiam e o rei recebia os oficiais da sua casa até
às onze da noite. «Monte, caça, muito pouco usava.» Esta vida levou
até à Páscoa, «quebrando tanto minha vontade que já não sentia pra-
zer me chegar ao coração». D. Duarte pensava que «aquilo da
mudança de idade me vinha», e por isso não se preocupava, antes se
dava mais ao trabalho:

Eu trabalhava com aqueles cárregos, pelas razões acima ditas,


tão de boa mente que não podia pensar que mal me viesse por
obrar no que me prazia e tão contente era de o fazer.

262
Leal Conselheiro, ed. cit., p. 73.
263
lbid., pp. 67-68.

231
Este estado durou cerca de dez meses. Entretanto houve uma epi-
demia de peste em Lisboa e quase todos os dias D. Duarte ouvia falar
de pessoas conhecidas que adoeciam e morriam. Um dia veio-lhe uma
dor numa perna, com febre, de que se curou rapidamente, «mas
filhei um tão rijo pensamento com receio da morte que não somente
temi aquela, mas a que todos escusar não podemos, pensando na bre-
veza da vida presente: e aquele pensamento entrou em meu coração,
que por seis meses um pequeno espaço nunca o dele pude afastar».
Nem conselhos de médicos, confessores e amigos, nem remédios nem
curas o melhoram. O seu sentimento era o de um condenado à morte:

Mas a graça do Senhor Deus e de Nossa Senhora Santa Maria


me outorgou conhecimento [de] que era enfermidade e tentação do
Inimigo todo o cuidado errado que me vinha, e determinei não sair
em cousa fora de prática do meu viver, que eu havia por bom, e
assim sabia, graças ao Senhor, que por dignos de autoridade era
aprovada. E se morte, vida, saúde ou enfermidade me viesse
naquela, pois que me achasse. Nesta tenção fui assim forte que os
conselhos dt< alguns médicos que me diziam que bebesse vinho
pouco aguado, dormisse com mulher e deixasse grandes cuidados,
todos desprezei, havendo toda a minha esperança no Senhor e na
sua Santa Mãe.

Estando nesta determinação, adoeceu e morreu a rainha, mãe do


príncipe:

E isto foi começo da minha cura, porque, sentindo a ela, deixei


de sentir a minha.

Sentir que a ideia fixa da sua morte o deixara por momentos deu-
-lhe a esperança de que podia vir a uma cura completa:

E tomei mais uma imaginação muito proveitosa, porque pensei


que Nosso Senhor me dava tanta pena em meu coração por fazer
emenda em meus pecados e faltas. [ ... ]E este pensamento me deu
coragem para pelejar contra tal cuidado como o faria contra qual-
quer cousa contrária ou tentação que me viesse.

A doença ainda durou depois disto três anos, sempre melhorando,


«nunca, porém, sentindo um só prazer chegar ao coração livremente,
como antes acontecia. E, acabado o dito tempo [ ... ], subitamente
232
senti chegar ao coração como devia, e parecia-me que daquela
maneira que por catarro o homem perde o direito gosto das comidas
e depois cobra, que assi perdera e recobr::ira do dito sentido das fol-
ganças e prazer. E dali avante eu fui assim perfeitamente são como
se de tal sentimento nunca fora tocado» 264 •
A confiança em Deus é, como se vê neste capítulo, bem como no
seguinte, o principal escudo contra o «humor merencórico». Outro é
não se deixar arrastar pela afectividade a que o autor chama «cora-
ção», mas guiar-se pela razão. A este propósito, D. Duarte lembra
uma doutrina que lhe é familiar: «[ ... ] duas são as lembranças: uma
do coração, outra da cabeça.» Já vimos que a saudade vem da lem-
brança do coração, que é passageira. ·
A moral de D. Duarte converge para este ponto, o domínio da
cabeça, isto é, da razão, alumiada pelo ensinamento da Igreja. Deste
pensamento dá-nos D. Duarte um sugestivo símbolo tirado da Arte
de Bem Cavalgar Toda a Sela (cap. 83):

Tal jeito como aquele que escrevi de andar direito na besta me


parece que devemos ter em os mais de nossos feitos para sermos
no mundo bons cavalgadores e nos termos forte de não cair pelas
malícias com que muitos derribam. Que se nos vierem algumas
cousas contrárias de feito e de dito, cuidado ou lembrança em
guisa que sintamos que nos queiram derribar em sanha, malque-
rença, tristeza, fraqueza de coração, menosprezo de nós ou desa-
gradecimento a Deus ou aos homens, ou nos trouxesse a míngua
de Fé ou a desesperação para bem começar, continuar e acabar as
cousas que podemos e devemos fazer, ou em alguma preguiça que
vem de fraqueza ou desleixo da vontade, logo esperando toda a
principal ajuda de Nosso Senhor Deus, devemos endireitar com
coragem e bom conselho nosso e doutros que por grande saber,
longas e boas experiências bem saibam, queiram e possam em tais
feitos obrar e aconselhar 265 •

Esta doutrina supõe uma teoria psicológica. A psicologia de


D. Duarte é muito profunda, especialmente quanto à teoria das pai-
xões, embora alguns escritores modernos, certamente por ignorân-
cia, a considerem primária. Apesar de haver nos vários capítulos de
D. Duarte vestígios de leituras que nem sempre se coadunam umas

264
Leal Conselheiro, ed. cit., pp. 68-72.
265
lbid., pp. 310-311.

233
com as outras, parece-nos que o essencial no Leal Conselheiro é a
divisão das vontades (cap. 6): há uma «alma vegetativa», que é
comum às plantas, uma «alma sensitiva», que é também a dos ani-
mais; há uma «alma racional», que é própria do homem e dos anjos,
e há por sobre isso o livre arbítrio. O bom uso do livre arbítrio é
optar pela deliberação do entender (isto é, da alma racional), e não
por cumprir seus desejos (apetites).
A razão estabelece uma hierarquia entre as diversas paixões que
movem os homem, hierarquia que o autor, nos caps. 81 e 82, alego-
riza imaginando cinco câmaras no coração de cada um. A primeira
é o salão de entrada, aberto a todos, incluindo os estrangeiros. Na
segunda, a «câmara do paramento», entram só as pessoas da corte e
os notáveis do Reino. Na terceira, a «câmara de dprmir», só entram
«OS maiores e mais chegados da casa». Na quarta, a «trascâmara»,
onde os senhores se vestem, só entram pessoas especiais. A quinta é
o oratório, onde os senhores, sós, entram algumas vezes cada dia,
apartados para rezar, ler por bons livros e pensar. Na primeira
câmara podemos deixar entrar o prazer; na segunda, o proveito mate-
rial; na terceira, a saúde; na quarta, a honra; no oratório, o serviço
de Nosso Senhor e a guarda das virtudes.
Tratando-se de uma obra escrita por um rei e para «príncipes e
senhores», somos tentados a procurar no Leal Conselheiro um pensa-
mento político. Mas essa procura não traz grandes achados. Para
D. Duarte não há uma esfera especificamente política, distinta da
moral e religiosa. O que é preciso é que todos cumpram os manda-
mentos de Deus, ensinados pela Igreja.
Esta, aliás, é a doutrina das três grandes religiões monoteístas.
A lei civil é uma aplicação da lei de Deus, isto é, da lei mosaica, no
judaísmo, do Alcorão no islamismo. Era assim também no cristia-
nismo medieval, embora, desde as suas origens, o cristianismo ten-
desse a considerar a lei civil, isto é, o direito romano em vigor, uma
esfera distinta da lei religiosa: «[ ... ] dá a Deus o que é de Deus e a
César o que é de César.» Foi a progressiva reintrodução do direito
romano (de que as Ordenações Afonsinas, concebidas no reinado de
D. Duarte e realizadas na regência de D. Pedro, são uma fase) que
criou a esfera do direito civil, não deduzida da lei sagrada.
É interessante notar que no Leal Conselheiro (assim como na Vir-
tuosa Benfeitoria) não há lugar para a sociedade mercantil nem para
os seus agentes. No cap. 4 encontra-se uma divisão da sociedade em
cinco «estados»: os oradores (os eclesiásticos que rezam pela socie-
dade); os defensores (os cavaleiros); os lavradores; os pescadores

234
(que são «como os pés em toda a cousa pública se mantém»); os ofi-
ciais (conselheiros, juízes, ministros, escrivães, etc.), e os que usam
de artes e ofícios (médicos, mareantes, músicos, ourives, etc.). No
fundo, é o antiquíssimo esquema tripartido da função sagrada, da
função guerreira e da função produtiva, acrescidas de mais duas: a
função burocrática («oficiais») e a função técnica (artes e ofícios).
O comércio, cujo papel era tão evidente nesta época, é ideologica-
mente desconhecido e sê-lo-á ainda por muito tempo, como se vê, por
exemplo, em Gil Vicente. Os esquemas mentais - como o mostra este
caso, entre tantíssimos outros- não são o reflexo das «coisas»
sociais, mas a tradução de valores.

§ 76. O regresso de Santiago


É problema melindroso distinguir, por um lado, as motivações
individuais e conscientes dos agentes históricos e, por outro lado, as
condições, pressões exteriores e impulsos cegos que os fizeram agir.
O ódio, o amor, a cobiça, a inveja, o medo, a rotina inventam razões
conscientes para o seu comportamento de base instintiva. O pro-
blema põe-se sempre quando se fala de movimentos, como as cruza-
das e outros, em que entra a motivação religiosa. A religião ergueu
os megalitos ou as Pirâmides do Egipto como se fosse um instinto
profiindo, cuja verdadeira naturew. ignoramos. Isso é incontestável;
mas a religião também serviu de capa a ambições de poder político
ou económico, de que se poderiam facilmente dar exemplos. A
moderna tendência dos historiadores é considerar ou sobrestimar a
ambição de lucro como se este fosse o único instinto humano. É pro-
vavelmente uma tendência própria da nossa sociedade mercantil e
racionalista. Assim aconteceu, por exemplo, com a interpretação das
«causas» da tomada de Ceuta por um notável ensaísta, que racioci-
nou em termos que julgou serem os de um empresário capitalista que
procura um bom investimento.
A nosso ver, este acontecimento deve inserir-se no seu lugar e qua-
dro próprio, que é a continuidade do que chamamos a Guerra Santa,
que durante vários séculos existiu sempre que cristãos e Muçulmanos
tiveram fronteiras comuns (ou Judeus e Muçulmanos, como acontece
hoje na Palestina). Uma situação comparável existiu também, mas
sob forma laica, na segunda guerra mundial, que opôs os aliados,
defensores da «liberdade», ao nazismo, que a negava.
A Guerra Santa não é propriamente uma guerra cristã no seu espí-
rito, pois o cristianismo evangélico e patrístico nunca aprovou a

235
guerra. Foi São Tomás de Aquino que encontrou uma distinção entre
guerra justa e injusta que podia sempre ser interpretada com oportu-
nismo casuístico. De toda a maneira, a guerra da Palestina e a da
Espanha apareceram desde a origem como güerras justificadas, visto
que se destinavam a restabelecer situações anteriores. No caso da
Palestina, os muçulmanos Seldjucitas, conquistando Jerusalém,
tinham impedido ou dificultado as peregrinações aos lugares santos
do cristianismo, que havia séculos se realizavam; no caso da Espa-
nha, tinham sujeitado uma popúlação cristã que, submetida, conti-
nuava a praticar o culto evangélico (Moçárabes). Ambas podiam ser
tidas como guerras de restituição.
O longo hábito é uma segunda natureza, como já foi dito. Do século
XI em diante, a um cristão nascido em Espanha não lhe ocorria per-
guntar se a guerra com os Mouros era justa ou injusta, visto que nela
tinha nascido e nela havia de morrer, quer fosse fidalgo quer fosse vilão.
A ocidente, esta guerra era «espanhola», porque unia num com-
bate comum as várias nações da Espanha e nela se forjou, em grande
parte, a sua unidade cultural, que ainda hoje é patente. Dois símbo-
los, a cruz e o crescente, duas religiões irmãs e inimigas e duas civili-
zações, uma das quais podemos exprimir na unidade complexa das
catedrais românicas e góticas e outra na multiplicidade das mesquitas
de mil arcos repetitivos, como a de Córdova, se afrontaram ano após
ano· durante séculos.
Em 1245, essa guerra acabou do lado português no território ibé-
rico. Mas não acabou no resto da Espanha, e os Portugueses conti-
nuaram combatendo na guerra comum. Os Portugueses, que já
tinham tomado parte na batalha de Navas de Tolosa (1212), partici-
pam também na conquista de Sevilha (1248). Em 1340, uma invasão
que ameaçava a Península inteira foi repelida na batalha do Salada,
dirigida do lado cristão pelos dois reis do Ocidente da Península; nela
tomou parte o prior do Hospital, D. Álvaro Gonçalves Pereira, pai
de Nun' Álvares. O passo seguinte da Guerra Santa foi a conquista de
Granada, que só ocorrerá em 1492, mas que, a partir do Salada,
esteve sempre na mira dos reis de Espanha.
Segundo Zurara, «assi trazia o mui nobre rei D. João plantado o
amor da Santa fé nas entranhas do seu coração, que [assim que se fir-
mou a paz com Castela] logo se trabalhou de imaginar lugar e
maneira como pudesse fazer· serviço a Deus segundo tinha desejo.
E, porquanto o reino de Granada lhe pareceu o mais azado para a
guerra que outro algum, fez saber sua intenção ao infante D. Fer-
nando, porquanto os reis de Casteia têm assim aquele reino quase em

236
sujeição, dizendo que é sua conquista» 266 • Ao pedido de D. João 1,
o regente de Castela respondeu que não lhe convinha fazer então a
guerra de Granada, com quem tinha tréguas.
Esta é a versão apresentada por Zurara no cap. VII da Crónica da
Tomada de Ceuta. Mas semelhante atitude espontânea por parte de
D. foão I, logo a seguir à paz com Castela, é difícil de crer. Porquê
o rei de Portugal, logo a seguir à paz, mandar oferecer-se para com-
bater sob a autoridade e em proveito do seu ex-inimigo?
A leitura do relato das negociações da paz em Fernão Lopes
levanta uma ponta do véu. Os negociadores castelhanos insistiram
numa cláusula segundo a qual o rei de Portugal se obrigava a dar
uma ajuda ao rei de Castela na guerra contra os mouros de Granada.
Mas os negociadores portugueses entenderam que uma tal cláusula
era o reconhecimento de uma subordinação de Portugal a Castela e
exigiram uma paz sem condições. Os embaixadores portugueses que
foram a Castela, falando com a rainha regente, argumentaram: que
vos interessa essa ajuda limitada que nos exigis, quando podeis estar
certos de que vo-la daremos de muito melhor vontade se a isso não
formos obrigados e de cada vez que no-la pedirdes?
A paz sem condições foi afinal conseguida por mediação da rainha
(que era irmã da rainha de Portugal), mas ficando subentendida (tal-
vez por fiança pessoal desta) a ajuda «voluntária» do rei de Portugal
contra os mouros de Granada. Logo depois da paz, a rainha de Cas-
tela escreveu ao rei de Portugal uma carta com dois tópicos; no pri-
meiro refere-se ao acordo de paz feito por sua mediação; no segundo
pede uma ajuda de dez ou doze galés para o próximo Verão de guerra
contra os mouros de Granada. O rei de Portugal responde felicitan-
do-se pela paz e prometendo as galés pedidas 267 •
Fernão Lopes acrescenta que D. João 1 não se limitou a «este
pedido» (ajuda), mas, quando Fernando de Aragão foi regente de
Castela, o rei de Portugal, «vendo tão devota conquista que se
daqueles reinos contra Mouros fazer queria, havendo grande desejo
no serviço de Deus, e que o que a Espanha recebia de serem infiéis
o reino de Granada fosse de todo tirado, lhe enviou oferecer que,
prazendo-lhe de os guerrear e continuar sua conquista, que ele, por
seu corpo e com seu poderio, o ajudaria mui de grado» 268 • Morto o
infante D. Fernando, regente de Castela, novo oferecimento foi feito

266
Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, ed. Esteves Pereira, 1906, cap. vn.
267
F. Lopes, Crónica de D. João!, 2. ª parte, caps. 197 e 198.
268
ld., ibid., cap. 197.

237
por D. João 1, desta vez à rainha tutora, a qual respondeu que, como
era ·mulher, não lhe competiam feitos de guerra. E, quando o rei de
Castela atingiu a maioridade e recomeçou a guerra dos Mouros, o rei
de Portugal mandou-lhe dizer «que ele, por pessoa e com muito boa
e sã vontade, acompanhado de seu primogénito filho e dos outros
infantes e condes de sua terra, o ajudaria» 269 •
Havia, portanto, da parte de Portugal o reconhecimento tácito da
obrigação moral de ajudar Castela contra os Mouros. Vinha já de
tempos antigos e tivera ocasião de se manifestar na batalha do
Salada, na de Navas de Tolosa e na conquista de Sevilha. Era um
dever de solidariedade das nações cristãs da Península. Mas, como
o rei de Castela estava à frente dessa guerra e era no seu território que
ela se desenrolava, tal obrigação podia aparecer como um dever de
vassalagem por parte das nações não castelhanas. ·
Entretanto, os filhos de D. João 1 atingiram a idade de serem
armados cavaleiros. Talvez influenciado pelos usos cavaleirescos
ingleses, D. João 1 quis dar um brilho desusado a tal cerimónia,
fazendo festas com justas e torneios, espectáculos e danças durante
um ano, para que se convidasse gente de fora. Não seria caso inédito.
Em Inglaterra e na Alemanha tinha havido festas equivalentes. Os
infantes, homens de longas ambições, como depois mostraram,
tinham presentes os gloriosos feitos do pai e de Nun' Álvares na
guerra com Castela e de João de Gante e do Príncipe Negro na guerra
inglesa. Não se contentaram com as propostas festas e justas. Que-
riam dar provas numa verdadeira guerra. Mas a guerra com Castela
tinha acabado e a guerra com os mouros de Granada não era nesse
momento viável.
É neste contexto que surge o projecto de uma expedição a Ceuta.
As circunstâncias eram as seguintes: a guerra com os Mouros conti-
nuava: o rei de Portugal tinha obrigação de contribuir para ela, mas
não queria parecer que obedecia a ordens do seu vizinho de Castela.
Os filhos de D. João 1 queriam ser armados cavaleiros numa verda-
deira guerra.
A sugestão veio a ser delineada por um personagem da corte, o
vedor da Fazenda João Afonso, em conversa com os infantes: contou
que em tempos enviara a Ceuta criados seus para tratar do resgate de
cativos cristãos e sabia que a cidade «era rica e mui formosa», cer-
cada toda de mar, excepto por uma estreita faixa de terra 270 • Porque

269
Fernão Lopes, Crónica de D. João/, 2. ª parte, p. 440.
270
Zurara, op. cit., cap. 1x.

238
não fazer uma expedição a Ceuta em vez das justas e torneios, espec-
táculos e banquetes para celebrar a cavalaria dos infantes? Era um
feito honroso, preferível «a festas e convites de comer e beber, em
que não há senão despesa de vianda e ocupação de tempo cuja
memória prescreve com pequeno louvor» 271 •
A expedição a Ceuta resolvia a quadratura do círculo: era guerra
contra os Mouros, mas seria uma guerra unicamente portuguesa,
promovida e comandada só por Portugueses. Aquele território não
pertencia ao reino de Granada e não estava incluído na conquista cas-
telhana.
Para o rei D. João, esta guerra resolvia ainda outro problema: o
de se resgatar da guerra fratricida que tivera contra cristãos portugue-
ses ou castelhanos, e isto sem pactuar com o rei de Castela, antes
mostrando-se seu émulo na guerra tradicional contra os infiéis.
O cronista Zurara fala expressamente, na Crónica da Tomada de
Ceuta (1451), de «alguns néscios e cobardes» que dizem «que a
guerra dos Mouros não é o maior serviço que a Deus pode ser feito
por os seus fiéis cristãos». Esses «erram gravemente» e «são pouco
menos que hereges», pois, «se assim fora, os mui nobres reis de Espa-
nha, que lançaram os Mouros dela depois da morte de el-rei
D. Rodrigo, não fizeram hoje tão grandes milagres como Deus por
eles cada um dia faz nas sepulturas onde jazem, nem se fizera tanto
servir,;o como se faz nas sés e mosteiros e igrejas que eles tão gran-
demente edificaram e dotaram, deixando-lhes mui grandes rendas
de que se mantiveram e mantêm pessoas religiosas que cada um dia
louvam e adoram o nome do Senhor, e os bem-aventurados, már-
tires que, por exalçamento da sua santa fé, se foram entre os Mou-
ros a receber a coroa de martírio, não teriam tais sedas [assentos]
como têm e possuem eternalmente ante o trono do imperador celes-
tial» 272 •
Por outras palavras, a guerra contra os Mouros é a base em que
assentam numerosas instituições religiosas, relíquias, cultos, missas e
rendas. Vinha do passado e fazia parte integrante do modo de exis-
tência presente. Como podem pô-la em causa alguns «néscios e
cobardes»?
Por isso o rei D. Duarte, que hesitou perante a campanha militar
de Tânger e que dera lugar a que algumas pessoas exprimissem dúvi-
das acerca da santidade da guerra contra os Mouros, escreveu:

271
Zurara, op. cit., cap. IX.
272
Id., ibid., cap. IV, pp. 15-16.

239
A guerra dos Mouros tenhamos que é bem de a fazer, pois que
a Santa Igreja assim o determina, e não dá lugar à fraqueza do
273
coração que faça consciência onde haver se não deve •

Esta afirmação de D. Duarte coincide com a conclusão do relató-


rio de uma comissão de letrados, da qual faziam parte Frei João de
Xira, o Doutor Frei Vasco Pereira, o infante D. Duarte e outros
letrados. Esse relatório da comissão menciona vários episódios da
conquista da Espanha pelos cristãos e pelos heróis que «com grande
espalhamento do seu sangue passaram sua vida». Onde alojaremos a
sua alma senão no Céu? E ainda temos a memória de el-rei D. Afonso
Henriques, «cujas relíquias tratamos entre as nossas mãos». Recor-
dar a batalha de Ourique, é mencionar o lugar onde Cristo indicou
o desenho ou bandeira de Afonso Henriques:

Vede, Senhor, os sinais que trazeis em vossas bandeiras e per-


guntai e sabei como e por que guisa foram ganhados, os quais cer-
tamente de todas as partes mostraram a paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo, por cuja reverência e amor o bem-aventurado rei ofe-
receu seu corpo em o Campo de Ourique, vendo aqueles cinco réis.

A Afonso Henriques se deve também a posse de Santarém e de


Lisboa. Em conclusão, diziam eles, «determinamos que Vossa Mercê
pode mover guerra contra quaisquer infiéis, assim mouros como gen-
tios ou quaisquer outros que por algum modo negarem algum dos
artigos da santa fé católica» (cap. XI).
A proposta de Ceuta, como se vê por este texto (entre muitos
outros), evoca logo no espírito dos contemporâneos de D. João 1 a
história secular da Espanha cristã: a vitória miraculosa do rei Ramiro
das Astúrias em Clavijo, com a ajuda visível de Santiago, a conquista
de Coimbra e de Toledo, o conde Fernão Gonçalves, o Cid Rui Dias,
a batalha de Navas de Tolosa e, finalmente, D. Afonso Henriques e
a batalha de Ourique, referida confusamente (de modo que não se
percebe ainda se abrange o «milagre»). Ceuta vem na continuidade
da Reconquista: era, segundo os letrados, «serviço de Deus».
Ora o que mais queria o velho guerreiro era uma guerra que, sendo
«serviço de Deus», o aliviasse de uma culpa que ele carregava pes-
soalmente na consciência: a guerra com os Castelhanos, isto é, com
cristãos, a guerra civil em que ensanguentara os braços. Era por isso

273
D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. por Joseph Piei, Lisboa, Bertrand, 1942, cap. xvn, p. 62.

240
mesmo que se oferecera, logo a seguir às pazes, para a guerra de Gra-
nada. No discurso em que pede o parecer sobre a empresa de Ceuta,
que acabámos de resumir, ele declara:

Ora assim é que, posto que eu tanto trabalhasse por firmar as


pazes com o reino de Castela, como vós outros todos sabeis, isto
Deus sabe que principalmente era por serviço de Deus; e, por mui
grande vitória que contra eles [Castelhanos] houvesse, nunca em
minha vontade pude receber nenhuma intrínseca alegria.

Acrescenta que, embora, nessa guerra, muitas vezes pedisse ajuda


a Deus e a Santa Maria, «sempre lhe roguei e pedi que por mim e por
meu azo nunca nenhuma geração de cristãos recebesse nenhum mal
nem dano [ ... ] desejando sempre ver algum azo por que pudesse
empecer, ainda que fosse com grande meu trabalho e perigo, aos ini-
migos da sua Santa fé. E de tal ser meu desejo e vontade é bem certa
testemunha o requerimento que eu acerca disso comecei a fazer ao
infante D. Fernando [regente de Castela], por cuja resposta senti que
meu desejo não se podia cumprir segundo meu requerimento» 274 • No
último período do texto, o rei refere-se ao já relatado oferecimento
para a guerra de Granada.
Não contente com aprovar o plano da conquista de Ceuta,
D. João I quis lá ir em pessoa. Isso era uma temeridade e uma impru-
dência, sobretudo para um homem .que tão cauteloso até então se
tinha mostrado em seus feitos, segundo Fernão Lopes. A rainha
D. Filipa não teve dificuldades em alegar argumentos contra tal pro-
jecto,. mas de nada valeu contra a obsessão do rei:

{... ] somente me lembra como sujei meus braços em sangue dos


cristãos, o qual, posto que justamente o fizesse, ainda me parece
dentro em minha consciência que não posso disso fazer perfeita
penitência, salvo se os mui bem lavasse no sangue dos infiéis, pois
determinado é na Santa Escritura que a perfeita satisfação do
pecado é cada um por onde pec& por alí haver penitência. Pois que
penitência posso eu fazer de quantos homens por mim e por meu
azo foram mortos senão matar outros tantos ínfiéis ou muitos
mais se puder por servíço de Deus e exalçamento da santa fé cató-
lka? 21s.

274
Zurara, op. cit., cap. x, p. 32.
275
Id., ibid., cap. XX, p. 65.

241
Não somente o rei D. João 1 dava esta razão como argumento pes-
soal seu, mas ainda o mandava invocar em público por oradores ofi-
ciais. Quando a expedição, já a caminho de Ceuta, se deteve em
Lagos, o rei, de acordo com o seu conselho, mandou pregar um ser-
mão pelo mestre Frei João de Xira, em que este, falando da guerra
com Castela, diz:

[... ] ainda que contra sua vontade fosse, se fizeram muitos


danos contra os cristãos [entenda-se: Castelhanos], dos quais ele
sempre desejou fazer perfeita penitência 276 •

Estamos habituados a considerar Ceuta como uma batalha bem


preparada com prudência e bem planeada. Mas, encarando as coisas
com os olhos limpos, como se fôssemos contemporâneos dos aconte-
cimentos, a aventura de Ceuta não foi menos temerária nem menos
louca que a expedição de D. Sebastião a Alcácer Quibir. O rei de
Portugal, bem como o herdeiro do trono e os seus irmãos, mais a flor
da sua nobreza e os seus melhores chefes militares, aventuraram-se
pelo mar numa viagem de três dias, para desembarcarem numa terra
mal conhecida, onde não tinham aliados nem apoios, e confiaram
num golpe de sorte para se apoderarem de uma grande cidade mura-
lhada e protegida por um grande castelo. Escaparam de uma tempes-
tade marítima e acharam os defensores desprevenidos. Mas tudo
podia ter acabado num desastre total, como, vinte anos depois, o
mostraria a derrota de Tânger, que é um aviso de Alcácer Quibir.
O rei arriscou nela a vida, o Exército e a independência do Reino. Os
que vêem nesta aventura o plano sensato de um mercador de «claro
entendimento», como seria o vedor da Fazenda João Afonso, mos-
tram como são escravos dos esquemas preconcebidos, cegos e insensí-
veis aos factos. A verdade é que Ceuta foi uma das mais perigosas e
bem sucedidas aventuras da história portuguesa, própria de cavalei-
ros temerários que punham as suas vidas na balança do «juízo de
Deus». Este episódio de maneira nenhuma abona o famoso despertar
do espírito científico e mercantil que alguns historiadores e ensaístas
viram na origem da expansão ultramarina portuguesa. Parece mais
um feito de víquingues.
Uma \iez de posse de Ceuta, os Portugueses tinham de decidir-se
conservavam a cidade ou se a abandonariam. Lendo a Crónica de
D. Pedro de Meneses, de Zurara, verificamos que não estava previsto
276 Zurara, op. cit., cap. Ln, p. 157.

242
um comandante para o caso de ocupação. O problema de se ocupar
ou não a cidade foi discutido e é curioso que entre os vários argumen-
tos nunca se invoquem razões económicas. O rei decidiu-se pela ocupa-
ção. Mas os dois comandantes propostos pelo rei na ocasião escusa-
ram-se e a situação foi salva porque se ofereceu um fidalgo, o conde
D. Pedro de Meneses, que se achava marginalizado por a maior parte
da sua família se ter bandeado com os Castelhanos durante a guerra
civil. Percebe-se também da leitura da Crónica que os homens que
ficaram a guardar Ceuta o fizeram contrariados.
O capitão D. Pedro de Meneses teve de lutar contra o desânimo da
tropa, lembrando «que descendeis daquela mui nobre linhagem dos
Godos, os quais não tão-somente se contentaram dos limites de Espa- ·
nha, mas ainda França e Itália por muitos tempos senhorearam. [... ]
Vós sois ainda filhos daqueles que, sendo toda a Espanha perdida e
os Mouros apoderados dela, se ajuntaram com aquele católico prín-
cipe D. Pelágio e, por força do seu sangue, empuxaram os inimigos
até que os fizeram retirar naquele pequeno recanto que é o reino de
·Granada. E, posto que se diga que não somente os de Portugal, mas
todos os de Espanha, se ajuntaram neste feito, eu digo que do nosso
reino foi a maior parte, como se pode conhecer por aqueles que ao
presente pagam votos que ficaram em relembrança daquela vitória.
E tanta foi sua nobreza e sua virtude que se não contentaram de pos-
suir senhorio sobre si que levasse o nome de outra nação se não o da
sua, e por isso se ajuntaram com aquele nobre e esforçado varão
D. Afonso Henriques, primeiro rei deste reino, e assim, poucos como
eram, não somente tiveram coragem para enleger e manter novo rei,
mas ainda tomaram aos Mouros Antre Tejo e Odiana e todo o reino
do Algarve com a maior parte da Extremadura. Pois qual foi sua vir-
tude naquela grande batalha do Salado, todos ouvistes e sabeis, e
assim das guerras que houveram com as outras nações» 277 •
Como se vê, o conde D. Pedro de Meneses faz aos seus homens
um breve curso de história, em que o tema principal é a guerra santa
dos descendentes dos Godos contra os Mouros, sob o signo de
Santiago, cujos são os votos que se pagam «em relembrança daquela
vitória» (a vitória de Clavijo, atrás lembrada). Também são lembra-
das as guerras de independência do reino de Portugal em v:olta de
Afonso Henriques, mas não se referem as guerras contra Castela, que
estão englobadas na expressão geral «guerra que houveram contra as

277 Zurara, Crónica de D. Pedro de Meneses, ed. dos Inéditos de História Portu-

guesa·, vol. II, cap. XII.

243
outras nações», isto é, contra nações não mouras. D. Afonso Henri-
ques é um dos heróis da Guerra Santa, cujo último episódio é a bata-
lha do Salada, «que todos ouvistes e sabeis». Ceuta, que o conde
D. Pedro de Meneses terá de defender, está inserida nessa guerra, que
vinha desde o «católico príncipe» D. Pelágio.
Fosse qual fosse o encadeamento da misteriosa «lógica da história»
(a que outros, com igual sem-razão, chamam «providência»), que leva
à expansão marítima de Portugal e finalmente à criação de um mer-
cado mundial no século XVI, e fosse qual fosse o papel desempenhado
pelos apetites do corpo, pelo instinto da cobiça e da rapina, parece-
-nos que, ao nível individual, que é o único acessível ao historiador
documentado, a motivação religiosa é determinante na conquista de
Ceuta. Mas há uma ligeira impropriedade quando se designa essa moti-
vação por «espírito de cruzada», expressão que se aplica sobretudo às
cruzadas do Oriente. O que é próprio da Espanha (incluindo Portu-
gal) é o espírito da Guerra Santa, cujo patrono era o apóstolo
Santiago, que continuou a aparecer aos guerreiros como tinha apare-
cido na batalha de Clavijo, sob a forma de cavaleiro branco. Depois
de um breve ostracismo em Portugal, suplantado por São Jorge, tra-
zido pelos Ingleses e invocado pelos combatentes de Aljubarrota con-
tra o Santiago dos Castelhanos, o Apóstolo das Espanhas volta a ser
invocado nas páginas de Zurara e, inclusivamente, a intervir milagro-
samente nas batalhas, como sucedeu num recontro perto de Ceuta em
que os Mouros viram aparecer entre os cavaleiros portugueses, ao grito
de Santiago, «infinda gente branca com cuja vista os corações foram
tão quebrantados que já mais não ousamos volver o rosto contra
vós» 278 , segundo palavras que Zurara atribui a um deles.
Em resumo, a guerra de Marrocos aparece aos Portugueses do
século xv como a continuação da guerra contra os Mouros em Espa-
nha, que eles consideravam sua obrigação e destino. Quando, vinte
anos depois, o infante D. Henrique tomou a peito enviar uma expedi-
ção contra Tãnger, tentou convencer e aliciar a cunhada, mulher de
D. Duarte, para o seu partido. Eis como lhe apresentou a questão: se
tomassem algum lugar junto a Ceuta, poderiam empreender uma
guerra que obrigasse os Mouros a deixar Marrocos aos cristãos, como
outrora tinham deixado a Espanha, «como os mouros da Espanha
fizeramanossos antepassados» 279 • Parece claro que a guerra de Mar-
rocos era por ele sentida como a continuação da guerra de Espanha.

278
Zurara, Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. Larry King, 1978, cap. v.
279 Pina, Crónica de D. Duarte, ed. Melo de Azevedo, vol. 1, 1901, cap. XII.

244
Nem pode deixar de se pôr a hipótese de o móbil principal de
D. Henrique na exploração da costa de África ser encontrar aliados
contra os Mouros, ou mesmo um lugar de desembarque donde
pudesse surpreendê-los pelas costas. No cap. 94 da Crónica dos Fei-
tos da Guiné diz-se que o Infante enviou um escandinavo ao cabo
Verde com a missão de contactar certo grande senhor da terra de
quem afirmavam que era cristão, «que se assim fosse que a lei de
Cristo tinha, que lhe prouvesse ser em ajuda da guerra dos Mouros
d' África, na qual el-rei D. Afonso, que então reinava em Portugal,
e ele em seu nome, com os outros seus vassalos e naturais continua-
damente trabalhavam» 280 • E neste contexto ganha todo o sentido a
busca do preste João, o rei cristão de algures em África que poderia
ajudar na guerra contra os Mouros.
Aliás, a ideia tradicional da conquista de Marrocos vai persistir
para além de Ceuta, de Tânger, das campanhas de Afonso V, do
abandono das praças africanas por D. João III, como o mostra o
episódio do Velho do Restelo n'Os Lusíadas, e, finalmente, a de-
sastrosa expedição de D. Sebastião, que teve um vasto apoio popu-
lar. Só então declinou o signo de Santiago e acabou a Guerra
Santa.
No entanto, o historiador não deve contentar-se com as tendências
dominantes numa dada colectividade. Há sempre vozes minoritárias
e atitudes individuais, pois nem de outra maneira se explicaria a
mudança na história. Neste caso da concepção da guerra aos infiéis
como «serviço de Deus» há um depoimento notável de um filho de
D. João I, consignado pelo cronista Rui de Pina. Sendo-lhe pedido
por D. Duarte um parecer sobre o projecto da expedição a Tânger,
o Infante não quis inclinar-se nem a um lado nem a outro e deu as
várias razões que pesavam pró e contra, sem tirar a conclusão. Sobre
o «serviço de Deus» deu o seguinte argumento: uns irão a esta guerra
por desejo de honra, outros por esperança de ganho e a maior parte,
que é a gente miúda, irão forçados e com prejuízo para suas vidas,
«e estes irão arrenegando forçados de vosso medo, sem a limpeza e
liberdade das vontades que em tal guerra de necessidade se requer;
pois, Senhor, quem matasse mouro com tal tenção não pecaria menos
que se fosse [matasse] cristão. Pelo que dar ao Demo tantas almas
certamente mais dl!ve ser desserviço que serviço nem louvor de
Deus» 281 •

280
Zurara, Crónica da Guiné, ed. José de Bragança, 1973, cap. cx1v, pp. 395-396.
281 Pina, op. cit., cap. xv11, p. 75.

245
Este texto tem a vantagem de nos informar que muitos dos «miú-
dos» que iam à guerra de Marrocos eram arrebatados pelas aldeias às
suas famílias e seguiam sob escolta, provavelmente algemados.
Acrescenta o infante D. João:

E ainda, Senhor, se por doutrina e ensinanças de Jesus Cristo


e de seus apóstolos nos havemos de reger, esta guerra dos Mouros
não está muito certo se dela é servido. Sei, porém, que a Santa
Escritura por pregações e virtuosos exemplos de vida os manda
converter; e, se por outra maneira Deus fora servido, permitiria e
mandara que em seus erros e danada contumácia usássemos de
nossas forças e ferro até serem convertidos à fé - e isto ainda não
vi nem ouvi que se achasse em autêntica escritura 282 •

O infante está, de facto, resumindo a doutrina dos primeiros sé-


culos da Igreja, que impedia os cristãos de participarem na guerra,
doutrina expressa na Sagrada Escritura, que o infante invoca e que
é reiterada pelos primeiros Padres da Igreja, nomeadamente por Ter-
tuliano.
É curioso ainda notar que o infante D. João rejeita também argu-
mentos tradicionais e costumeiros, como os milagres que testemu-
nham a vontade de Deus. Diz ele:

[... ] nem os milagres que nesta guerra às vezes aparecem (e por-


ventura se fazem) não os hei por certo testemunho da vontade de
Deus de que o façamos, porque tais e maiores se fizeram e fazem
em guerra e sangue de cristãos 283 •

Ficavam assim desvalorizados os argumentos que se tiravam do


milagre, como o aparecimento de Cristo em Ourique, ou o do Santo
Lenho no Salada, ou, sobretudo, o de Santiago na batalha de Clavijo
e noutras.
O parecer do infante D. João é notável de vários pontos de vista,
entre outros, um humorismo crítico lúcido que lhe dá um tom
incompatível com o de um documento oficial. É porventura a expres-
são de uma opinião livre e individual, num estilo afectadamente
imparcial e impassível. Alguma coisa que lembra o célebre «humo-
rismo britânico». E mostra o que é que um cristão inteligente,

282
Pina, op. cit., p. 75.
283
ld., ibid., pp. 75-76.

246
falando em privado com os seus íntimos, podia pensar da suposta
Guerra Santa já no século xv. Isto apesar de o infante estar à frente
de uma ordem militar, a Ordem de Santiago da Espada, cuja missão
era guerrear os Mouros.
Esta opinião era contrária não só ao espírito da Ordem de
Santiago e das outras do mesmo teor, como também ao da socie-
dade medieval, onde os guerreiros tinham um lugar de primeiro plano
que exigia justificação. Os guerreiros ou «defensores» na teoria
medieval, também designados nesta época por «cavalaria», justifica-
vam-se com a guerra. O infante D. João concede que o rei, pelo seu
«estado» e «preminência», é obrigado a buscar a honra de cavalaria
e que isso só se consegue na guerra. «E, porque agora contra cristãos
não tendes, louvado seja Deus, justa querela de guerrear e contra
Granada não tendes justiça por sua conquista pertencer a el-rei de
Castela», só ficam para guerrear os Mouros de África:

Certo não há [outra] guerra no mundo mais razoada, conve-


niente e legítima que a de Belamarim, que é de África, a qual, por
ganhardes nome bom e honrado, a honra vos aconselha que a
deveis prosseguir 284 •

Em resumo: o rei, como cavaleiro, devia ganhar nome na guerra


e, como não havia motivo para a fazer com cristãos, devia fazê-la
com Mouros. Isto era o que dizia a «honra», mas não o «siso»,
segundo o qual, como vimos, a guerra, mesmo «santa», era contra a
doutrina da Igreja. Este singular infante parecia um sofista: todas as
coisas eram boas ou más conforme o lado de que se olhavam.
Mas a sua opinião interessa-nos porque é um exemplo de como a
«mentalidade» de uma época não é algo de homogéneo, coerente e
historicamente determinado. O parecer de D. João é racional e sen-
sato segundo o nosso critério de hoje, embora se opusesse à ideia
dominante na cristandade medieval, que inspirou as cruzadas do
Oriente e do Ocidente. Aliás, as guerras de cruzada eram justificadas
tão insistentemente e com tantos argumentos que nos fica o senti-
mento de que se lutava contra uma resistência interior do próprio
espírito.

284
Pina, op. cit., p. 80.

247
§ 77. Historiografia e honra
É impossível não ocorrer ao espírito do leitor da Crónica da
Tomada de Ceuta (1451) que há nela páginas de Fernão Lopes 285 •
O cap. 6 conta como as pazes de 1411 foram recebidas em Portugal
e os comentários a que deram lugar. São páginas belíssimas e muito
na maneira !opina, que costuma fazer alternar a narrativa dos actos
mais importantes com os comentários públicos que eles provocavam
e que fala com simpatia na gente comum. Aí somos informados de
que a paz causou grande contentamento nos velhos e naqueles que
«haviam direito juízo», mas foi mal recebida pelos fidalgos mance-
bos e outros «que não tinham outro bem senão esperança de ganho
que lhe havia de ser dado por avantagem que fizessem no feito das
armas» 286 •
O discurso dos velhos é eloquente e digno de um grande escritor:

Ora daqui avante podemos aproveitar nossos bens e vender nos-


sos fruitos sem alguma torva nem empacho. Já agora os nossos
mercadores poderão ir seguramente por toda a Espanha a vender
suas mercadorias, de que nos poderão trazer muitas nobres cousas
para guarnição de nossas casas, e os nossos lavradores que mora-

285
A Zurara devemos o testemunho de que Fernão Lopes, «que foi escrivão da puri-
dade do infante D. Fernando», fizera a história dos feitos de D. João !, mas «não pode
mais chegar com a dita estória que até à tomada de Ceuta». Esta frase, «até à tomada
de Ceuta», pode à primeira vista significar que a tomada de Ceuta também fora abran-
gida por Fernão Lopes; mas é desmentida algumas linhas adiante pela passagem seguinte:
[... ] o dito Fernão Lopes não pode com ela [estória] chegar senão até ao tempo
que os embaixadores deste reino foram a Castela primeiramente firmar as pazes com
el-rei D. Fernando de Aragão e com a rainha D. Catarina, que àquele tempo eram
tutores de el-rei [de Castela].
Além de contraditórias entre si, nenhuma destas duas afirmações é verdadeira, por-
que a Crónica de Fernão Lopes, segundo o texto que possuímos, não abrange a tomada
de Ceuta, nem tão-pouco acaba quando «OS embaixadores deste reino foram a Castela
primeiramente firmar as pazes», mas depois das pazes firmadas, a que se seguem oito
capítulos de diferentes matérias.
Por isso se pode suspeitar que a terceira parte da Crónica de D. João I estava feita
quando Zurara resolveu escrever a Crónica da Tomada de Ceuta, aproveitando parte do
material deixado pelo seu antecessor, mas redigindo de novo o essencial da acção. Pelo.
menos as pazes com Castela estavam narradas por Fernão Lopes, embora Zurara retome
este ponto na sua crónica. A comparação dos dois textos sobre o mesmo assunto (cap. 5
de Zurara, caps. 192 a 197 de Fernão Lopes) revela que a refundição de Zurara é mais
prestigiosa para o rei de Portugal.
286
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. Esteves Pereira, 1915, p. 21.

248
vam naquele extremo tornarão a povoar os casais e herdades que
desampararam com temor dos inimigos. E nós outros jazeremos
em nossas camas repousando sem a expectativa de sermos cha-
mados para os trabalhos da guerra, nem ouviremos os gemidos
das mulheres a que chegaram novas da morte de seus maridos.
E, quando andarmos pelas nossas praças, não teremos nenhum
temor de nos chegarmos ao ajuntamento de nossos amigos por
recearmos ouvir as desventuras de nossa terra [•.. ] Nós andaremos
por nossas romarias visitando as relíquias dos santos, para que
possamos cobrar salvação para nossas almas. E, quando jazermos
em nossas camas, chegados à morte, teremos vagar para fazermos
nossas mandas e testamentos com grande segurança de que se nos
hajam de cumprir nossas últimas vontades depois do acabamento
de nossas vidas. E alegres nos partiremos deste mundo quando cer-
tamente soubermos que as nossas carnes se hão-de gastar nos
cemitérios daquelas igrejas onde os dízimos dos nossos frutos e as
primícias dos nossos gados demos aos nossos reitores, padres de
nossas almas. E que será outra cousa a terra que nos gastou senão
carne dos nossos pais e avós, filhos e parentes, em cuja companhia
nos alevantaremos quando derradeiramente formos chamados
para irmos juntamente àquele Juízo no qual o filho da Virgem
determinará nossas maldades como for sua mercê. Estes proveitos
nos trouxe a bem-aventurança da paz 287 •

Não será arriscado atribuir a Fernão Lopes este elogio da paz, que
é um dos mais belos textos escritos em língua portuguesa.
O discurso dos favoráveis à guerra é menos lírico e menos como-
vente. Esses queixam-se de que a guerra, fonte de recompensas e pro-
moções, lhes vai fazer falta. A culpa não era senão da velhice do rei
e dos seus companheiros, que estavam cansados e enfadados com os
trabalhos que tinham sofrido e por isso desejavam repouso. Agora os
mancebos perderão a melhor parte da sua idade ou se irão fora do
Reino, para receberem prémio pelos seus trabalhos.
Estas queixas dos moços guerreiros irão prevalecer sobre a sisudez
dos velhos. Eles leriam com agrado as crónicas de Zurara que vão
seguir-se, que são crónicas de feitos de armas, de cavalarias e de hon-
ras. Zurara, nascido cerca de 1420, foi protegido do infante D. Hen-
rique, de quem recebeu duas comendas da Ordem de Cristo, e de
D. Afonso V, a quem deveu vários prémios. Substituiu Fernão
287
Crónica da Tomada de Ceuta, cit., cap. v1.

249
Lopes, em 1454, como guarda das.escrituras do Tombo. Ao contrário
de Fernão Lopes, Zurara não é um escritor genial e, por isso, obedece
mais passivamente às ideias feitas no encómio das glórias oficiais, aos
valores correntes da corte para que escrevia. Todas as suas obras são
panegíricos de grandes personalidades: a Crónica da Tomada de
Ceuta (1450) é essencialmente a glorificação dos feitos de armas do
infante D. Henrique; a Crónica dos Feitos da Guiné (1453) é o elogio
do mesmo como promotor do descobrimento da costa africana; a
Crónica de D. Pedro de Meneses (1463) é a crónica do primeiro capi-
tão de Ceuta. Em 1467 foi a Alcácer Ceguer, em Marrocos, a fim de
investigar in loco as campanhas de D. Duarte de Meneses (crónica
concluída em 1468). Aí recebeu uma carta de D. Afonso V que revela
da parte do rei um apreço quase ingénuo pelas letras e uma estima
pessoal repassada de familiaridade:

Bem aventurado - dizia Alexandre - que era Aquiles, porque


tivera a Homero por seu escritor. Que fora dos feitos de Roma se
Tito Lívio os não escrevera? [... ]Muitos são os que se dão ao exer-
cício das armas e mui poucos ao estudo da arte oratória; assim que
pois vós sois nesta arte assaz ensinado e a natureza voz deu grande
parte dela, com muita razão eu e os príncipes de meus reinos e
capitães devem de haver a mercê que vos seja feita por mui bem
empregada 288 •

As relações de familiaridade permitiam ao cronista uma atitude de


bajulação mascarada de interesse carinhoso; ele pedira ao rei um seu
retrato, pedido a que o rei responde:

O meu vulto pintado eu o não tenho para vo-lo agora poder lá


enviar, mas o próprio prazerá a Deus que vereis lá em algum
tempo com que vos lá mais deve prazer 289 .

O rei D. Afonso V era um dt:stes jovens cavaleiros impacientes e


cabeça-no-ar que adoravam os feitos de armas. Para ele escreveu
Zurara a Crónica da Tomada de Ceuta:
Ainda que os feitos de Ceuta -diz o rei na mesma carta-
sejam assaz recentes, depois que eu vi a Crónica que vós deles

288 Crónica da Tomada de Ceuta, doe. xv11, pp. 305 e segs.


289 Ibid., pp. 305-307.

250
escrevestes, a muitos fiz honra e mercê com melhor vontade por
ser certo de alguns bons feitos que lá fizeram 290 •
E, com efeito, a Crónica descreve com miudeza e individuação as
cavalarias dos diferentes fidalgos naquele feito. Basta citar os títulos
de certos capítulos: «Como o batel de João Fogaça foi o primeiro
que saiu fora, e como Rui Gonçalves filhou primeiramente terra e em
seguida todos os outros» (cap. 72). Nesse capítulo particulariza-se
também quem foi o primeiro que entrou a porta da cidade:
E sobre a entrada desta porta há aí muitas divisões, especial-
mente entre aqueles que se acertaram ser ali perto, os quais, com
desejo de cobrarem nome de honra, apropriaram a si o grado
daquela entrada, e ainda o pior foi que muitos que estavam ainda
nos navios disseram em algumas partes que aquela honra fora sua;
porém, a verdade é que Vasco Martins de Albergaria foi aquele
que entrou primeiro pelas portas da cidade, e dizem ainda que, em
chegando à porta, deu um grande apupo e brandindo a lança
dizendo: - Já vai o Albergaria! 291

Este propósito de especificar os feitos honrosos dos cavaleiros apa-


rece em todas as crónicas de Zurara, que são narrativas miúdas e
monótonas de tais feitos~ É assim, por exemplo, que na Crónica de
D. Duarte de Meneses se demora num cavaleiro chamado Álvaro
Mendes Cerveira, que caiu com o cavalo, mas conseguiu sair incó-
lume, apesar de uma chusma de mouros ter caído sobre ele enquanto
os companheiros o não socorreram 292 • A intenção desse aponta-
mento é conservar para os vindouros o nome desse cavaleiro, ou,
como diz o próprio Zurara, «fazer presente a memória dos bons
àqueles que hão-de vim 293 •
A perspectiva histórica de Zurara é ostensivamente individualista,
aristocrática e panegírica dos feitos especialmente militares. O princi-
pal herói da tomada de Ceuta é o infante D. Henrique, a quem se
deve o principal testemunho sobre o assalto da cidade, o infante
D. Henrique em cujas acções esteve «a força de todas as coisas que
naquele dia se fizeram» 294 • Mas, se lermos atentamente a Crónica,

290
Cr6nica da Tomada de Ceuta, doe. xv11, p. 306.
291
Ibid., cap. LXXII, p. 205.
292
Cr6nica de D. Duarte de Meneses, ed. Larry King, 1978, p. 249.
293
Ibid., mesma página. '
294
Ibid., mesma página.

251
verificamos que o papel de D. Henrique esteve longe de ser decisivo,
embora a Crónica o apresente como figura principal do combate.
Lendo o texto de Zurara, que é bem confuso, concluímos que
D. Henrique, correndo atrás dos Mouros, acabou por se deixar en-
curralar dentro de um vão entre dois muros fechado por duas portas
e ali se deixou ficar, com quatro cavaleiros, durante duas horas, en-
quanto lá fora corria o combate, até que outros cavaleiros cristãos o
vieram buscar. É o feito de armas de um cavaleiro temerário, que
quer salientar-se individual e independentemente de uma disciplina
estratégica 295 • Entretanto, os irmãos do Infante, especialmente
D. Duarte, já tinham ocupado os pontos estratégicos da cidade.
O que Zurara descreve e gaba não são os planos e orientações e o
engenho dos chefes, mas as meras cutiladas dos cavaleiros, a começar
pelos de mais elevada hierarquia genealógica. A sua atenção foca
miudamente as acções singulares e deixa na sombra os movimentos
da infantaria ou do grosso das tropas. Zurara tem, aliás, uma con-
cepção estritamente hierárquica do movimento histórico; os feitos, o
valor e a honra dos cavaleiros correspondem ao posto que ocupam na
escala. Quanto ao povo miúdo, falta-lhe qualquer espírito cavalei-
resco e qualquer valor guerreiro. Quando o projector foca a multidão
da peonagem, é para a mostrar, depois da batalha, ocupada no
saque.
O combate trouxera grande perda da mercadoria, deixando esven-
tradas lojas de mercadores, esfarrapados sacos de especiarias, que se
entornavam pelas ruas, aqueciam ao sol, dando grandes cheiros, cal-
cados sob os pés de multidões que passavam. Mas «a cobiça daquela
perda» obrigava-os depois a andarem pelas ruas apanhando os peda-
ços de canela e os grãos de pimenta:

Em treze dias que el-rei ali depois esteve nunca as ruas eram
desacompanhadas daquelas gentes de pouco valor, de tal modo
que não podiam os homens passar livremente que não fossem
empachados por aquela multidão. Bocetas de conservas e jarras de
mel e manteiga e arrobe e azeite eram ali tantas destruídas que não
faziam menos enxurro pela rua que se fossem alguns canos de água
quando chove. A qual perda era muito chorada de alguns daqueles
da vil geração, que os bons e nobres não punham seu cuidado em
semelhantes cousas 296 .

295
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. cit., caps. 79-82.
296
lbid., cap. 87.

252
Nas restantes crónicas de Zurara faltam os capítulos à maneira de
F. Lopes, como aqueles em que vemos carpinteiros, calafates e
outros mesteirais participar no grande empreendimento real com
grande azáfama e ruído, ou as que referem o estado de espírito
diverso dos homens a seguir às pazes com Castela em 1411 (que trans-
crevemos); e ainda todos os que relatam como foi tomada a decisão
por D. João I, após consulta e intervenção dos filhos, capítulos que
nos deixam entrever a atmosfera da corte e da família real, bem como
a da gente das praças e oficinas. Este espaço humano, social e psico-
lógico falta completamente nas restantes crónicas de Zurara, o que
não contribui pouco para nos fazer suspeitar que ele aproveitou o tra-
balho de Fernão Lopes. Mas não falta a orientação aristocrática e
cavaleiresca do relato, nem tão-pouco a retórica já renascentista com
que ele encarece os seus heróis.
Podemos caracterizar Zurara em poucas palavras dizendo que ele
é o panegirista da honra cavaleiresca. A honra, no sentido mais uni-
versal, é a recompensa dos actos gratuitos, isto é, daqueles que não
esperam uma remuneração material. Tal como o salário é a recom-
pensa do mesteiral, o lucro a recompensa do mercador, assim a honra
é a recompensa daquele que não vive nem do seu trabalho, nem da
sua «indústria» (isto é, da habilidade para o negócio em todas as suas
formas). D. Duarte, no Leal Conselheiro (cap. 9) define a honra nes-
tes termos:

[ ... ] a qual se alcança por fazer grandes feitos de guerra, e na


paz vivendo virtuosamente com boas manhas [costumes] e saber,
e por termos grande estado, governando nossa casa e fazendo bem
e grandemente.

Embora geralmente suponha «grande estado e casa», a honra é um


válor à margem da sociedade de mercado, pois não se obtém por tra-
balho nem por troca de bens. No entanto, ela não está ao alcance dos
clérigos, porque não é um valor sagrado. A «honra» é própria dos
cavaleiros, recompensa daqueles que praticam «grandes feitos de for-
taleza, com grandes trabalhos e perigos vendo o sangue dos seus ini-
migos esparzido ante seus pés» 297 • Só esses, diz Zurara, merecem o
grau de cavalaria. Os cavaleiros, segundo uma ideia corrente na
Idade Média, têm a função de «defensores», aqueles a quem compete
defender a comunidade. Esses não precisam do «ganho» nem do

297
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. cit., cap. 8.

253
negócio para se sustentarem, porque se supõe que vivem de direito
próprio sobre bens conquistados por eles mesmo ou pelos antepassa-
dos. Em Espanha são os descendentes dos conquistadores, aos quais,
por direito de conquista, pertencia toda a terra, excepto a parte reser-
vada à Igreja. Este é o fundamento moral do estatuto da nobreza,
descendente dos Godos, que torna possível considerar gratuitas as
suas proezas guerreiras, tanto mais honrosas quanto mais destituídas
de qualquer utilidade.
É de acordo com esta ordem de ideias que Zurara diz:

[... ] segundo o Filósofo, o recompensamento do ganho deve ser


dado àquele que é mesteiroso e o recompensamento da honra
àquele que é muito nobre e excelente 298 •

Ou:

[... ] e por isto os excelentes e nobres requerem por fim e galar-


dão de seus grandes trabalhos, honra e boa fama, e os mais baixos
requerem o recompensamento do ganho 299

A ideia de «ganho» inclui quer o lucro do negócio, quer o salário


de qualquer tipo de trabalho. O trabalho, que abrange tanto a activi-
dade do mercador como o salário do homem que vende a sua força
física ou mental, é próprio do «mesteiroso» e incompatível com a
honra. Ainda estava longe a época em que o burguês haveria de rea-
bilitar o trabalho. A palavra ainda não tinha o actual significado de
actividade contínua que tem hoje. Falava-se dos «trabalhos» do mar
ou da guerra no sentido de perigos, aflições e dificuldades, e é ainda
neste sentido que Camões se refere aos «trabalhos» de Hércules.
O senhor suporta «trabalhos», mas não vive do trabalho; o fim da
sua actividade pode ser o serviço de Deus, a fidelidade ao Senhor, a
.obrigação para com os antepassados, o bom nome entre os contem-
porâneos e os futuros, tudo menos o ganhar a vida.
Na sua teoria das benfeitorias, o infante D. Pedro ocupa-se de um
género de benfeitoria que consiste em dar a alguém «honra»:

[... ] o benefício honroso deve ser outorgado pelos bons e nobres


homens e de o receber a eles tão-somente pertence. Que, segundo

298
Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. cit., p. 215.
299
lbid., p. 136.

254
diz o Livro do Regimento dos Príncipes, é opinião de todos os filó-
sofos que a honra neste mundo é galardão dos senhores 300 •

Segundo o mesmo autor, a propriedade do benefício honroso «é


enobrecer e fazer nomeado o que sem ele(s) vivendo escondido asinha
perdera o seu louvor natural [... ] 301 • E, citando Aristóteles, diz, no
mesmo capítulo, que «honra é reverência feita a algum por cuidarem
que é virtuoso» 302 •
Mas, apesar de D. Pedro dizer que o benefício honroso deve ser
concedido pelos bons e nobres homens, Zurara dá a entender. que
também ele, cronista, está habilitado para o fazer e a este propósito.
copia a carta que lhe escrevera D. Afonso V e que já citámos na p. 250.
Apesar de ele não passar de um simples escriba ao serviço dos gran-
des, cabe-lhe eternizar e dar honra aos feitos notáveis:

Não é sem razão que os homens que têm vosso cargo sejam de
prezar e honrar e que, depois daqueles príncipes ou capitães que
fazem os feitos dignos de memória, aqueles que depois de seus dias
os escreveram, muito louvor merecem. Bem-aventurado (dizia Ale-
xandre) que era Aquiles porque tivera Homero por seu escritor.
Que fora dos feitos de Roma se Tito Lívio os não escrevera! 303

Zurara está pensando na pintura literária, considerando as suas


próprias crónicas um prémio honroso mais valioso que herdades ou
jóias que o rei possa dar.
E «qual é mais segura sepultura para qualquer príncipe ou varão
virtuoso que a escritura que representa o claro conhecimento de suas
obras passadas?» 304 •
De que serviria ao herói praticar grandes feitos se o escritor não
conservasse a memória deles? Assim se põe o problema de saber
quem vale mais, se o herói da história se o historiador dos heróis, se
a espada se a pena, se as letras se as armas. Zurara pensava nesta
questão quando escrevia:

[... ] entendamos que os grandes príncipes e outros bons homens


devem assim virtuosamente obrar em seus feitos per que [para que]
300
O Livro da Virtuosa Benfeitoria, Porto, 1940, livro 1, cap. 17.
301
lbid.
302
lbid.
303
Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. cit., p. 42.
304
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. cit., cap. 104, p. 273.

255
os autores das estórias hajam razão de escrever suas obras pela sua
notável memória e ensinança das outras 305 .

Isto equivale a dizer que o herói pratica grandes feitos para que o
escritor fale dele.
Assim vemos irromper na historiografia portuguesa um tópico que
vem da antiguidade e alcançará a sua máxima expressão n'Os Lusía-
das, cujo autor parece situar-se em posição de superioridade relativa-
mente aos grandes feitos que deram assunto ao seu poema. A ane-
dota que ilustrava este· tópico era a de Alexandre, que invejava
Aquiles por ter tido Homero por narrador dos seus feitos.
O cronista, consciente do seu poder, tende a colocar-se ao nível
dos heróis, embora adulando-os com subserviência. D. Afonso V, na
sua já citada carta a Zurara de 1467 e plagiada pelo cronista, como
já vimos, aceita esta situação entre o príncipe e o cronista:

[... ] não é sem razão que os homens que têm vosso cargo sejam
de prezar e honrar, que, depois daqueles príncipes ou capitães que
fazem os feitos dignos de memória, aqueles que, depois de seus
dias, os escreveram muito louvor merecem. Bem-aventurado, dizia
Alexandre, que era Aquiles porque tivera Homero por seu escri-
tor3º6.

Esta valorização do escritor é patente na prosa de Zurara, que


interrompe frequentemente a narrativa para comentar e valorizar os
feitos que narra. O autor, falando na primeira pessoa, é um persona-
gem indiscretamente interveniente nos seus livros, Pode mesmo dizer-
-se que há nas suas crónicas um pessoalismo exibicionista, corno
nunca houvera antes na literatura portuguesa. Na Crónica dos Feítos
da Guiné lemos: -

E, pois por representação do presente aos que hão-de vir, me


assento a escrever [... ] 307

Esta exibição do autor será própria das obras literárias da Renas-


cença, da época em que o escriba faz valer os seus serviços de merce-
nário. E é também renascentista a ideia da sobrevivência depois da

305
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. cit., cap. 104, p. 273.
306
lbid., p. 305.
307
Crónica dos Feitos da Guiné, ed. José de Bragança, 1973, cap. m.

256
morte, implicada naquela ideia da historiografia: a honra é a fama
que o historiador dá aos varões virtuosos, uma espécie de eternidade:

Ó santo e grande trabalho, diz Lucano, dos autores estoriais;


como tolhes à morte todalas cousas que achas e as guardas em
memória que não esqueçam nem morram, e dás aos homens mor-
tais idade que lhes dure sempre 308 •

E, a crermos em certas sentenças de Zurara, a única perdurabili-


dade humana é a que conserva a memória dos homens:

Depois que os homens determinadamente conheceram que per


si mesmos não poderiam durar, buscaram certas maneiras de
semelhança por que eles fossem aos presentes em certo conheci-
mento. Uns fizeram tão grandes sepulturas e assi maravilhosa-
mente obradas cuja vista fosse azo de os presentes perguntarem
por seu possuidor. Outros fizeram ajuntamento de seus bens,
havendo autoridade de el-rei por que o fizessem morgado para
ficar ao filho maior, de guisa que todos os que daquela linhagem
descendessem houvessem razão de se lembrarem sempre daquele
que o primeiramente fizera. Outros se trabalharam de fazer tão
excelentes feitos de armas cuja grandeza fosse azo de sua memória
ser exemplo aos que depois viessem 309 •

Nesta ideia de imortalidade pela fama transparece a impiedade dos


autores pagãos contra a fé cristã dos medievais. É a ideia que Camões
resumirá nos versos lapidares:

[... ] aqueles que por obras valorosas


se vão da lei da morte libertando.

É uma filosofia profana que não aceita o duelo com o cnstia-


nismo, instalando-se simplesmente ao lado e esperando que o espírito
cristão se apague. Doutrinariamente, o mundo tradicional perma-
nece, mas, existencialmente, alguma coisa muda.
É interessante ver prevalecer no cronista das cavalarias de África
estas feições definidoras dos escritores da Renascença: a afirmação
pessoal do autor; a consideração da fama como prémio das acções

308
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. cit., cap. 104, pp. 273-274.
309
lbid., cap. 38.

257
heróicas; a imortalidade pela mesma fama; a pretensão de as letras
rivalizarem com as armas. Poderíamos acrescentar outras: a retórica
erudita, embutida de citações e nomes de autores; certos processos de
historiar, como o de imaginar os heróis no passado como se estives-
sem mortos, para dar uma certa perspectivação à narração (é o caso
da Crónica dos Feitos da Guiné, concluída em 1453, o que levou
alguns eruditos a imaginarem erradamente outra data) 310 ; a frase
solene que se afasta do discurso oral; etc. Estas qualidades ou defei-
tos correspondem a uma distanciação em relação à realidade narrada,
ou, melhor, à interposição entre esta e o autor de um biombo que é
o próprio discurso ordenado em torno de valores. O efeito de distan-
ciação aparece mais evidente se compararmos a crónica de Zurara
com as de Fernão Lopes ou com as chamadas crónicas breves de
Santa Cruz, onde se prosifica a tradição oral de Afonso Henriques.
Estas dão-nos o caso concreto e flagrante, o detalhe individualizante,
a fala das personagens (que não são apenas ventríloquos do autor) .
.Verifica-se que o que se perde nesta mudança é a possibilidade de cin-
gir o real; é a leveza, transparência e ductilidade do manto das pala-
vras. O discurso faz esquecer o caso. E trata-se de um discurso que,
do ponto de vista estilístico, traz a marca da Renascença, como mos-
tra a frase em que se descreve o amanhecer:

[... ] não tardou muito que as fraldas do Oriente não começa-


ram de se afastar para mostrarem às gentes deste nosso hemisfério
sinais da claridade do dia 311 •

O encarecimento, a superlativação, a hipérbole são característicos


deste género de discurso, que substitui o concreto pelo abstracto, o
real pela retórica. Sirva de exemplo este retrato do infante D. Hen-
rique:

As terras e os mares estão cheios de teus louvores, porque tu,


por continuadas passagens, fizeste ajuntar o Levante com o
Poente, para que as gentes aprendessem a trocar suas riquezas.

O príncipe é comparado com Atlas, o gigante, porque, assim como


este sustentava os céus com os ombros, pela sua grande sabedoria das
estrelas, assim o Infante quebrantava com os seus trabalhos a alteza

310
José Saraiva, Os Painéis do Infante Santo, 1925.
311
Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. cit., cap. 87, p. 238.

258
dos montes. O cronista apura a pena, guinda o estilo para se erguer
à altura das «sagradas virtudes» do seu herói e, do mesmo modo que
Fernão Lopes imaginara uma alegoria para exalçar a cidade de Lis-
boa, Zurara pinta em estilo épico, no cap. II da Crónica dos Feitos
da Guiné, uma visão da personalidade do Infante:

Tua glória, teus louvores, tua fama enchem assim as minhas


orelhas e ocupam a minha vista, que não sei a qual parte acuda
primeiro.

Acodem-lhe as preces daquelas almas trazidas ao caminho da sal-


vação, que agradecem ao Infante tê-las libertado das trevas da gentili-
dade; vêem-se os Garamantes, os Tiópios, os Índios, «que me reque-
rem que escreva tantas dádivas de dinheiros e de roupas, passagens
de navios, gasalhado de pessoa»; espantam-no os vizinhos do Nilo,
«porque os vejo vestidos da tua divisa, e as suas carnes, que nunca
conheceram vestidura, trazem agora roupas de variadas cores, e os
pescoços de suas mulheres guarnecidos com jóias de ricos lavores de
ouro e prata». Mas as vozes destes são abafadas pelos clamores da
grandeza dos Alemães, da gentileza de França, da fortaleza de Ingla-
terra, da sabedoria de Itália e de outras nações: «Ó tu, que te metes
no labirinto de tanta glória - dizem eles ao cronista -, porque te
estás ocupando com as nações orientais? Fala connosco, que corre-
mos as terras e cercamos a redondeza do mundo», e eles lhe saberão
dizer que não há aí outro príncipe semelhante a este, que bem se pode
chamar «templo de todas as virtudes». Mas agora queixam-se os do
Reino, porque o cronista lhes antepõe a gente estranha; e prelados,
fidalgos, viúvas, mestres, escolares, escudeiros, oficiais mecânicos e
infinda multidão de povo mostram as dádivas do Infante: vilas e cas-
telos, comendas de grossas rendas, ouro, prata, dinheiro, panos,
reparações e ornamentação de igrejas, e prisioneiros resgatados, e
hábitos de frades, e esmolas a mendigos. Já o cronista, como can-
sado, quer rematar o capítulo, mas eis que chega, vinda das ilhas, a
«multidão dos navios de velas altas», carregados, «bradando que os
esperasse, que me queriam mostrar que não deviam ficar fora do
registo destes». E mostravam os vales cheios de açúcar que se espa-
lhava pelo mundo, e a abastança dos moradores do Algarve, e as col-
meias cheias de mel, e as grandes alturas de casas que se fazem coni
a madeira vinda daquelas partes. E outras vozes muito contrárias
ouve ainda o cronista: as almas dos Mouros mortos pe'las guerras
movidas pelo Infante e as dos prisioneiros carregados de ferros.

259
Zurara teria deles grande piedade se os não achara «fora de nossa
lei». Perante tanta grandeza, desculpa-se para com o Infante da sua
insuficiência para a traduzir:

[... ]eu peço a tua magnânima grandeza que com cara piedosa
passes por minha culpa.

A Crónica dos Feitos da Guiné, a que pertence este texto 312 , con-
firma o que dissemos a respeito de outras crónicas de Zurara: é uma
crónica miúda das cavalarias feitas pelos Portugueses na costa de
África. O que interessa a Zurara são os feitos de guerra. Já o notou
um estudioso dessa Crónica 313 :

Ela destinava-se a narrar a conquista da Guiné, isto é, dos lito-


rais ao sul do cabo Bojador. Cinco, contudo, dos seus 97 capítulos
são dedicados aos predicados e actos notáveis do infante D. Henri-
que, que promoveu essa conquista[ ... ]; cinco outros ocupam-se de
sete das ilhas Canárias, um de cinco adjacentes ao Reino, e dois do
rio Nilo. Os restantes 84 preenchem-se com o relato de incursões
armadas nas costas da Guiné, de escaramuças com indígenas, seu
cativeiro ou morticínio, e só incidentalmente dizem de descobri-
mentos. Por não ser objectivo principal, absteve-se o cronista de
dados corográficos dos lugares novamente avistados, dos quais
indica raras distâncias a pontos de referência, e sempre muito exa-
geradas: assim como exagera notavelmente a extensão da costa
descoberta até 1446, único ano em que a anuncia. Aponta como
uma das causas da empresa africana de D. Henrique o seu desejo
de comerciar com os indígenas da Guiné, mas nada informa do
movimento mercantil dos sertões para os litorais e limita-se a enu-
merar poucos produtos adquiridos em resgates; e é minucioso
somente quanto ao número dos cativos, contradizendo-se todavia
e discordando de diplomas régios. Nada diz da orgânica das expe-
dições, nem da sua arte de navegar, assuntos que não tinha em
mira, mas contradiz-se no número de caravelas enviadas à Guiné
até 1446: e é muito omisso nos anos de partida das expedições,
sendo mudo nos de regresso. Contradiz-se no facto importante da
data inicial dos Descobrimentos, que fixa em quatro anos diferen-
tes. Poupa-se em nomear os lugares descobertos, pois em cerca de

312
Crónica dos Feitos da Guiné, ed. cit., cap. 11.
313
Duarte Leite, Acerca da Crónica dos Feitos da Guiné, 1941.

260
300 léguas de costa apenas menciona 11 nomes portugueses,
quando o mapa de André Branco, de 1448, traz mais de 34 no
mesmo espaço 314 •

Esta pobreza de informações acerca das terras, das populações, do


comércio, da navegação, contrasta com a minúcia exaustiva da narra-
tiva dos feitos de armas.
Aliás, o próprio autor declara o seu critério: a partir de 1448 cessa
a narração, porque «depois deste ano em diante sempre os feitos
daquelas partes se trataram mais por tratos e avenças de mercadoria
que por fortaleza nem trabalho de armas» 315 •
É esta orientação cavaleiresca que vai prevalecer nos historiadores
da expansão até ao século XVI e que chega a Camões, que n'Os
Lus{adas fala, acima de tudo, de cavalarias, de feitos de honra prati-
cados no ultramar. É curioso que, numa _espécie de tradição épica,
mas literária e erudita, criada a partir de Zurara, se evidencie um des-
colamento em relação à realidade, uma retórica desproporcionada ao
acontecimento, em contraste com o espírito de observação e com o
experiencialismo que geralmente se supõe desenvolverem-se com a
náutica e o alargamento do conhecimento geográfico em Portugal.
O século xv é aquele que nos oferece mais e mais evidentes exem-
plos de honra cavaleiresca, talvez porque os cavaleiros sentem as limi-
tações e fronteiras do espírito de cavalaria. Isso é visível no famoso
conselho do infante D. João .acerca do projecto de .expedição a Tân-
ger. Neste documento, a que já nos referimos, o infante contrapõe as
razões de siso às da cavalaria, partindo da ideia de que o siso e a
cavalaria são completamente discordantes e as suas regras são muito
diferentes. A regra do siso não nos permite deixar o certo pelo incerto
e a paz pela guerra; a regra da cavalaria, pelo contrário, muitas vezes
arrisca o certo e aconselha a guerra. Esta ideia de que a cavalaria é
contrária ao siso poderia ser ilustrada pela vida de D. Quixote e pela
oposição entre ele e Sancho Pança.
Assim, o siso diz que a guerra de África não é serviço de Deus,
pois é contrária à doutrina dos Santos Padres e à obrigação das obras
de misericórdia; mas a cavalaria contrapõe que a guerra pela Santa
Fé é verdadeira cruz e privação dos deleites da carne com que o cris-
tão merece ir à bem-aventurada Glória. O siso diz que o rei não deve
arriscar numa empresa perigosa a honra que seu pai ganhou com as

314
Duarte Leite, op. cit., p. 175.
315
Crónicq dos Feitos da Guiné, ed. cit., cap. 96.

261
suas vitórias; a cavalaria diz, pelo contrário, que não há honra sem
guerra e tanto maior quanto esta for mais perigosa. O siso diz que o
proveito no ganho da guerra em África é duvidoso e incerto, ao passo
que a perda ou despesa, além da já feita com os preparativos, poderia
ser «perder Portugal por cobrar Tânger e Arzila»; a cavalaria contra-
põe que o proveito não consiste em guardar tesouros; «mas o grande
tesouro lícito e proveitoso que uin leal coração deve procurar é haver
grande terra com muita gente e nobres cidades, vilas e castelos», o
que não se consegue sem guerra, como o mostram os exemplos de
Alexandre, de Roma, e·do próprio-D. João 1, que, tendo só Lisboa,
conquistara, em guerra com os Castelhanos, todo o Portugal. E, fi-
nalmente, o siso diz que a guerra é ocasião de mortandade, aleijões,
doenças, fomes, sedes, frios e outros sofrimentos com que a alma se
entristece. A cavalaria responde que o prazer da vitória é maior e que
os que perderam as vidas «ganharão logo outras, que serão para sem-
pre mais vivas, havendo aquele supremo prazer e deleitação da visão
de Deus» 316 •
No mesmo concelho de Leiria, 1436, o conde de Barcelos, sogro
do infante D. João, corroborou o conselho do genro, mas inclinan-
do-se sem hesitação para as considerações do siso:

Como quer que as quatro razões que pela honra em último


lugar propôs sejam assaz floridas e aparentes e tenham cor de ver-
dadeiras, eu me afirmo nas outras primeiras quatro do siso porque
nelas há flor verdadeira sem fingimento, e fruto de gosto sem
amargura nem contradição 317 •

O desastre de Tânger deu razão aos conselhos prudentes que nesta


reunião foram apresentados pelo conde de Barcelos, pelo infante
D. Pedro e, implicitamente, pelo infante D. João. Mas nem sempre
o desmentido dos factos anula as ideias em contrário, às vezes inten-
sifica-as pela oposição, como sucede à chama soprada pelo vento.
Zurara vem na onda da reacção do espírito de cavalaria contra o bom
senso que tinha desaconselhado a empresa falhada de Tânger, e o
panegírico desenfreado do infante D. Henrique na Crónica da
Tomada de Ceuta e na Crónica dos Feitos da Guiné constitui porven-
tura um desagravo pelo desaire de Tânger, que muito provavelmente
os contemporâneos atribuíram ao Infante.

316
Rui de Pina, Crónica de D. Duarte, ed. 1901, cap. 17.
317
Id., ibid., cap. 18.

Z6Z
Na mesma onda vem a reacção de D. Afonso V, que, seguindo o
contrapolo do infante D. Pedro, seu antecessor, intensificou a guerra
de África, cujos heróis premiou largamente, assim como o respectivo
cronista, Zurara. D. Afonso, que desembarcou pessoalmente em
África, comporta-se nesta guerra como um simples cavaleiro.
Falhada uma tentativa para conquistar Tânger, teve a ideia de medir
forças com os guerreiros das terras vizinhas de Tetuão. Avançando
por duros caminhos das serras e contornando bosques onde se escon-
diam guerreiros, batendo-se em escaramuças, o rei chegou a um pla-
nalto. Os Mouros espreitavam-no do meio das árvores. la na expedi-
ção o conde D. Duarte de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer, que
viu o perigo e aconselhou o rei a bater a floresta para espantar os
Mouros, escondidos. Mas o rei desprezava os conselhos de prudência
e seguiu avante. A pouco e pouco, os Mouros saíam de entre as árvo-
res e seguiam atrás do rei, calados. Queriam guerra ou paz? Os Mou-
ros seguiam, eram já uma multidão ameaçadora. Alguns portugueses
amedrontados começaram: a fugir. Estavam descendo uma colina e os
Mouros cercavam-nos de todos os lados. Então, o rei, abandonando
o seu grupo, disse para D. Duarte de Meneses: «-Ficai com esta
gente e comandai-a!» Ele próprio, correndo, se juntou aos que
fugiam pela encosta abaixo. D. Duarte sabia que ia morrer. Ferido e
sem cavalo, aguardou a morte e aconselhou os companheiros a
salvarem-se. O cronista (compondo provavelmente a vergonha) narra
que o rei, chegando ao fundo da descida, fincou a lança no chão e,
encostando-se a ela, gritou:

- Quem quiser pode-se ir, que eu quero morrer aqui em serviço


de Deus e exalçamento da Santa Fé!

Mas os cavaleiros, diz ainda Zurara, arrastaram-no à força para


uma ribeira do lado de lá, na qual havia «mouros de pazes» e amigos.
Assim escapou da morte o desastrado rei.
Seu irmão D. Fernando, adaptado como filho pelo infante
D. Henrique, causou problemas em África pela sua mania das cava-
larias. Esse quis tomar Tânger sem ajuda e sem conhecimento do
irmão, para ficar com toda a honra do feito. E, tal como ele, os seus
homens também desobedeceram às ordens superiores para ganhar
nome individualmente, «com cobiça de lhe ficar o nome de primei-
ros» 31s.

318
Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. cit., cap. 146, p. 345.

263
Zurara conta de vários outros que por cobiça de honra se desman-
daram e puseram em perigo a segurança de exércitos e fortalezas, de
tal forma que D. Duarte, o capitão de Alcácer Ceguer, foi obrigado
a repreendê-los, dizendo-lhes que punham em risco a cidade «por
acrescentardes a vós mesmos novos títulos de ardimento e de forta-
leza» 319 •
Este espírito inspirou as aventuras mais extravagantes e mais gra-
tuitas. Cavaleiros portugueses correram mundo, como o célebre
Magriço de Os Lusíadas, que se chamava Álvaro Gonçalves Couti
nho e era filho do célebre Gonçalo Vasques Coutinho, marechal do
Reino; o episódio dos Doze de Inglaterra, contado por Camões,
parece ter certo fundamento histórico. O Magriço bateu-se em vários
combates singulares e mereceu ser camareiro do duque de Borgonha.
E outros aventureiros saíram, como João de Melo, para Castela no
Verão de 1434. Entre Leão e Astorga há um caminho que tem uma
ponte, a ponte de Orbigo, a qual estava guardada por um Suero de
Quifiones com outros nove cavaleiros que desafiavam os passantes:
era o «Passo Honroso». João de Melo, com os seus doze companhei-
ros, aceitou o desafio e pôs fora de combate Suero de Quifi.ones.
Prosseguiu em direcção ao ducado de Borgonha e encontrou-se em
Arras, onde desafiou um cavaleiro borguinhão. O combate travou-se
com vantagem para o português, mas foi interrompido por ordem do
duque, que assistia, e não chegou a concluir-se. João de Melo protes-
tou, dizendo «que não satisfeito por tão pouco, visto que, com
grande despesa e trabalho do seu corpo, tinha vindo de um país
muito distante, por mar e por terra, para ganhar honra e reverên-
cia» 320. O duque recompensou-o largamente e João de Melo voltou
para Portugal.
Gonçalo Ribeiro, com Vasco Anes e Fernão Martins de Santarém,
andaram três anos em França como «aventureiros» para ganhar
honra e fama por sua cav:.laria; passaram depois por Castela, e aí
Gonçalo Ribeiro matou um castelhano em desafio, além de combater
noutras justas 321 •
Nomes como o de Magriço, Gonçalo Ribeiro e outros (que não
figuram nas crónicas) estariam hoje inteiramente esquecidos se
Camões os não tivesse conservado; mas o terem lugar num poema
319
Crónica de D. Duarte de Meneses, ed. cit., p. 81.
320 Sobre o Magriço, João de Melo e Gonçalo Ribeiro ver Magalhães Basto, Crónica
Breve das Cavalarias dos Doze de Inglaterra, em introdução de Joaquim Costa e Maga-
lhães Basto, Porto, 1935.
321
Crónica Breve das Cavalarias dos Doze de Inglaterra, ed. cit.

264
que é o panteão das glórias nacionais mostra bem a importância e a
duração do espírito de cavalaria entre nós.
Há alguma coisa de quixotesco nestes feitos, embora tenham a
particularidade de serem sangrentos. E há neles também algo que nos
lembra histórias da decadência dos samurais, que ofereciam o seu
braço por falta de ocupação.
A honra era já em muitos casos uma palavra mentirosa, porque,
pelos serviços de guerra singulares e aparentemente gratuitos, os
cavaleiros procuravam um prémio ou promoção do rei. Na várias
vezes citada carta de D. Afonso V a Zur~ra o vemos expressamente:

[... ] depois vi a crónica [da Tomada de Ceuta] e a muitos fiz


honra e mercê com melhor vontade, por ser certo de alguns bons
feitos que lá fizeram por serviço de Deus e dos reis [... ] e a outros
por serem filhos daqueles que assim lá bem serviram.

E, quanto a esses «aventureiros» que percorriam o mundo, eram


fidalgos que não se contentavam com as rendas que tinham em Por-
tugal. É quando se aproxima do seu fim que o espírito de cavalaria
atinge a sua máxima expressão.
Mas em Portugal não se vislumbra, pelo menos por enquanto, a
sua alternativa.

§ 78. A Ordem de Cristo em Portugal


Tem sido descurado em Portugal o papel desempenhado pelos
Templários e pelos seus sucessores, os freires de Cristo.
Vimos noutra obra que a Ordem dos Templários, entrada em Por-
tugal dez anos depois da sua fundação, em Jerusalém (1128), tomou
parte na tomada de Santarém, em 1147, sendo por isso bem recom-
pensada por D. Afonso Henriques. O primeiro rei de Portugal intitu-
lava-se «irmão» da Ordem. Segundo Frei António Brandão (Monar-
quia Lusitana, «Afonso Henriques», cap. XXII), é de admitir que o
«milagre» que precedeu a tomada de Santarém (a comunicação tele-
pática entre Afonso Henriques e São Bernardo) tenha que ver com a
participação dos Templários, cujo fundador espiritual foi o próprio São
Bernardo, como a seu tempo registámos.
Os Templários são ainda hoje (e sobretudo hoje) uma instituição
difícil de entender. Representavam uma aplicação no campo militar
do princípio ascético e da disciplina monástica cisterciense (cuja efi-

265
cácia conhecemos em Portugal na valorização produtiva da terra) e
ocupavam ·na Guerra Santa os pontos extreinos e arriscados. Salien-
taram-se sobretudo nas acções perigosas, como a da defesa de São
João de Acre, na qual todos os combatentes templários, incluindo o
mestre, se deixaram massacrar. Algo de parecido se deu com os
defensores de Soure, castelo fronteiriço nas mãos dos Templários por
ocasião de um assalto mouro. Os primeiros templários caracteriza-
vam-se pelo rigor da disciplina, em paz como em guerra, pelo espírito
de sacrifício em combate, pela sua absoluta independência do poder
civil e eclesiástico, quando à escolha do mestre-geral, de quem a
Ordem dependia, e pelo sigilo rigoroso das decisões do topo.
Quando a Ordem foi extinta, em 1314, por ordem do rei de
França, que o papa sancionou e validou por todos os reinos da
Europa, os reis da Península Ibérica não se conformaram faéilmente,
porque os Templários constituíam uma força importante na luta con-
tra os Mouros, não pelo número, mas pela qualidade. Em Portugal,
as negociações entre o papa e o rei levaram à instituição, por bula
pontifícia de 14 de Março de 1319, da Ordem de Cavalaria de Jesus
Cristo, sujeita à inspecção dos abades cistercienses de Alcobaça,
tendo a sede em Castro Marim e sendo herdeira de todos os castelos
e bens móveis e imóveis dos extintos Templários, assim como dos
direitos de que estes gozavam, e também dos seus homens e vassalos.
A bula do papa aceitava a nomeação pelo rei de Portugal do primeiro
mestre da nova ordem, D. Gil Martins, que anteriormente fora mes-
tre de Avis; os mestres seguintes seriam eleitos pelos freires da
Ordem 322 • Por um documento de 11 de Junho de 1321 sabemos que,
segundo ordenação de Gil Martins, a Ordem mantinha 84 freires pelo
menos, dos quais 69 cavaleiros, número que posteriormente foi acres-
centado. É um número reduzido porque os Templários formavam um
corpo de é/ite.
Mestre Gil Martins já tinha morrido quando, em Setembro de
1332, outro mestre (D. Martim Gonçalves) obteve do bispo da
Guarda uma doação de rendimentos eclesiásticos com a justificação
de ·que a Ordem combatia os inimigos da fé na fronteira de Gra-
nada 323 • .
No século XIV, as qualidades que tinham feito poderosas, temíveis
e eficazes as ordens religiosas, incluindo a dos Templários, estavam
em rápida desintegração. O rei permitia-se, sem rebuço, intervir na

322
Monumenta Henricina, data supra.
323
lbid.

266
designação dos mestres. Sabemos por .Fernão Lopes que, por morte
do mestre de Avis, o rei D. Pedro dera esse cargo a seu filho João,
o bastardo, que era ainda criança, a pedido de Nuno Freire de
Andrade, que era então mestre de cavalaria da Ordem de Cristo 324 •
E o rei D. Fernando deu o mestrado de Cristo a sua cunhada,
D. Maria Teles, para ela o transmitir a seu filho, dispondo entretanto
das rendas da Ordem até ele chegar à maioridade.
Este filho chamava-se Lopo Dias de Sousa e nascera no primeiro
leito de D. Maria. Nas guerras que se sucederam seguiu o partido de
D. João, mestre de Avis. Participou na tomada de Ceuta 325 •
Em 1420 morreu, ainda jovem 326 , e o rei requereu ao papa, em 25
de Maio deste ano, a nomeação de seu filho D. Henrique para ache-
fia da Ordem. O pedido diz que o rei de Portugal tinha fundado e
dotado com várias possessões a Ordem da Cavalaria de Cristo, «que
costumava ser governada por um mestre», e que, infelizmente, nos
nossos tempos, os que estiveram à frente dos mestrados despenderam
a renda e os proventos da Ordem em usos ilícitos, enquanto ele pró-
prio; rei de Portugal e do Algarve, combatia assiduamente contra os
«pérfidos Sarracenos», a quem tomara a cidade de Ceuta, em cuja
defesa fazia continuamente muitas despesas. Por isso suplicava a Sua
Santidade que, por o dito mestrado estar vago por morte de, Lopo
Dias, concedesse ao seu querido filho Henrique o encargo de o reger
e governar para aumento da religião cristã, e isto por graça especial.
Em resposta, o papa constituiu o Infante administrador-geral e
encarregado da Ordem por falecimento de D. Lopo Dias. Não o
nomeou, porém, «mestre», como parece insinuar, embora ambigua-
mente, o pedido do rei de Portugal. Com efeito, para ser mestre era
preciso ser freire da Ordem, o que supunha, além do voto de
pobreza, uma carreira e, pelo menos formalmente, a eleição pelos
confrades. A diferença entre um «regedor», ou «governador», e um
«mestre» é que este emanava dos freires que o reconheciam como seu
chefe, ao passo que aquele era um representante do rei imposto à
Ordem. Por isso o Infante, ao contrário do que se tem dito, nunca
assumiu o nome de mestre, como certamente desejaria, embora
tivesse chegado a pedir ao papa, no fim do ano de 1442, que o autori-
zasse a ser freire da Ordem, na qual professaria com dispensa do voto
324
F. Lopes, Crónica de D. Pedro.
325
Segundo lápide funerária em D. António Caetano de Sousa, História Genealógica,
edição de 1953, vol. xn, p. 151.
326
Esta data é controversa, porque a lápide funerária que está em Tomar traz a data de
1435. Cf. A. Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Coimbra, 1921, pp. 280-281.

267
de pobreza, que lhe permitisse conservar o ducado de Viseu e outros
cargos. O papa défériu o pedido 327 , mas o Infante nunca chegou a
professar por alguma razão que desconhecemos. Imaginamos que
essa foi a grande frustração da sua vida: o ser imposto pelo rei à
Ordem a que canonicamente não pertencia; rião poder legitimamente
chamar-se «mestre» da Ordem de Cristo.
Deve acrescentar-se que a nomeação do Infante para substituir o
mestre não foi pacífica, porque possuímos uma carta de D. João I,
de 1421, aos seus corregedores, meirinhos e juízes, dizendo que o
infante D. Henrique, seu filho, «regedor da Ordem de N. Senhor
Jesu Christm>, lhe disse que não eram acatados os privilégios e rega-
lias devidos a ele «e aos mestres que antes dele foram» (sic), pelo que
o rei ordena que se cumpram esses privilégios e regalias «que vós, jus-
tiças, não lhe quereis guardar nem cumprirn 328 • ·
O infante D. Henrique queria ser acatado como um verdadeiro
«mestre», como um sucessor de Gualdim Pais, que nunca chegou a
ser.
Como vimos a seu tempo, competia aos Templários a defesa da
fronteira sul. Desde 1415 que o extremo limite dessa fronteira se
encontrava em Ceuta e a Ordem de Cristo estava desempenhando rio
Ocidente um papel semelhante ao que tinham tido os Templários no
Oriente.

§ 79. O último templário


O Infante empenhou-se particularmente na defesa de Ceuta, de
que fora nomeado «governador» em 1416. Logo em 1418, a cidade
foi cercada e o infante-governador, a cujas ordens obedecia o coman-
dante da praça, D. Pedro de Meneses, preparou uma expedição de
socorro, que não chegou a partir. Ceuta era o primeiro passo para
uma conquista que deveria continuar e que, se chegasse ao seu termo,
levaria ao domínio de Marrocos. O passo seguinte seria a conquista
de Tânger, cujo assalto, comandado pelo infante D. Henrique em
pessoa, redundou numa catástrofe. O saldo dessa operação foi que
D. Henrique se comprometeu a devolver Ceuta aos Mouros, para
isso deixando como refém o irmão, aquele que mais tarde, pelo seu
martírio no cativeiro, veio a merecer o nome de Infante Santo. Apesar

327 Cf. Monumento Henricina, vol. v111.


328
Carta de 18 de Abri! de 1421 em Monumento Henricina.

268
da sua promessa solene, apesar das súplicas do infante preso, apesar
das pressões dos outros irmãos, apesar dos votos em cortes, D. Henri-
que fez toda a sorte de diligências e de manobras para que Ceuta não
fosse entregue. Ceuta era a pedra angular em que assentava todo o
projecto do Infante de conquista de Marrocos, projecto que só veio
a ser detido pela morte de D. Sebastião, em Alcácer Quibir. O In-
fante Santo, filho e irmão de rei, morreu em 1443, quando as naus
expedidas por D. Henrique, seu irmão, exploravam a costa de África
mais no Sul de Marrocos.
A meu ver, é no contexto da guerra de Marrocos que se deve
entender toda a actividade do infante D. Henrique, incluindo o reco-
nhecimento da costa ao sul do território dominado pelos Mouros.
Já vimos que o cronista do infante D. Henrique é Zurara. A Cró-
nica da Tomada de Ceuta, de 1450, é, no fundo, a narrativa enco-
miástica da acção de D. Henrique nessa batalha, narrativa baseada
fundamentalmente no testemunho do herói. Quanto à Crónica dos
Feitos da Guiné, concluída antes de 1453 (porque é dessa data o
códice iluminado de Paris), é outro panegírico do Infante, inspirado
pelo biografado. Deve lembrar-se que Zurara, espírito mediano e
pouco escrupuloso, era comendador da Ordem de Cristo no tempo
do Infante. Como guarda-mor da Torre do Tombo falsificou um
documento, que consta do Livro de Registos da Chancelaria de
D. Fernando, referente a um mestre da Ordem, cuja herança era dis-
putada judicialmente. A falsificação foi descoberta em 1479, já
depois da sua morte. Por crime semelhante, um outro escrivão, em
1384, fora decepado de pés e mãos e enforcado 329 • A única coisa que
pode esperar-se de Zurara é que, tendo escrito a Crónica dos Feitos
da Guiné quando D. Henrique estava vivo, só lá registou o que o
Infante queria que dele se cresse. Zurara escreveu de acordo com o
ponto de vista do Infante e com os valores que ele julgava mais glori-
ficantes.
A Crónica da Tomada de Ceuta revela-nos que ç> Infante atribuía
extrema importância ao seu comportamento guerreiro nessa empresa.
A Crónica da Guiné continua a anterior. Zurara começa por indicar
as razões que levaram D. Henrique a enviar barcos para reconhecer
a costa africana. São elas: 1. ª, saber da terra africana que ia além das
Canárias e do cabo Bojador, por onde, segundo a lenda, passara São
Brandão; 2. ª, saber se havia naquela costa povoações de cristãos com
que se pudesse comerciar; 3. ª, conhecer melhor o poderio dos Mou-
329
Crónica da Tomada de Ceuta, ed. Esteves Pereira, 1915, «Introdução», pp. xxx1v.xu.

269
ros em África; 4. ª, procurar «em aquelas partes alguns príncipes cris-
tãos que, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, o quisessem à dita
guerra ajudar; 5. ª, trazer ao caminho da santa fé algumas almas per-
didas».
Estas motivações inserem-se todas no contexto da «dita guerra»,
isto é, da guerra iniciada em 1415, com a tomada de Ceuta. O conhe-
cimento da costa para o sul era necessário para sondar o poder dos
Mouros em África e também para saber se ao sul da terra dos Mou-
ros havia príncipes cristãos.
Sobre este último ponto, o dos príncipes cristãos, reinava a maior
perplexidade. Sabia-se que o Norte de África tinha sido cristão e que
os Mouros o tinham invadido: isto consta do sermão que Frei João
de Xira pregou em Tavira antes do assalto de Ceuta, segundo o
cap. 52 da Crónica da Tomada de Ceuta; «África foi de cristãos,
Mouros no-la têm tomada», dirá Gil Vicente na Exortação da
Guerra. Julgava-se que o Evangelho de Cristo tinha sido pregado em
todo o mundo. Era portanto de crer que houvesse cristãos ao sul do
país dos Mouros, como os havia ao norte, na Espanha. Para quem
fazia a guerra em Marrocos, este ponto era de grande importância,
pois os ditos príncipes cristãos podiam ajudar à guerra com bases ter-
ritoriais e com forças. Era falado na Europa um grande rei cristão
cuja terra era banhada pelas águas do Nilo: o preste João das Índias.
É claro que as razões apresentadas por Zurara se inserem num
contexto cultural que era o seu contemporâneo e portanto era tam-
bém o do infante D. Henrique. O mesmo não pode dizer-se das
razões modt!rnamente fantasiadas, que pertencem ao contexto cultu-
ral europeu e burguês dos séculos XIX e xx, segundo as quais o
Infante era um precursor do Homo oeconomicus (isto é, do burguês)
e perseguia efeitos comerciais de longo alcance. António Sérgio,
Jaime Cortesão e outros adoptaram esta teoria manifestamente ana-
crónica.
O famoso plano das Índias nunca existiu em vida do Infante, nem
era concebível em Portugal, que trocava sal e couros em bruto contra
panos e outros produtos manufacturados. O que existiu foi a guerra
de Marrocos, na continuação da Reconquista, e sabemos que essa
guerra foi, desde 1415, o cuidado constante do infante D. Henrique
até à sua morte.
Um ano depois da ocupação da cidade, D. Henrique foi nomeado
pelo rei governador de Ceuta, ficando sob seu controlo o respectivo
capitão, D. Pedro de Meneses. Logo em 1418 Ceuta foi cercada e o
Infante preparou uma expedição de socorro comandada por ele pró-

270
prio; o cerco foi repelido pelas tropas locais, sob o comando de
D. Pedro de Meneses, e o Infante não chegou a partir.
Ainda em vida· de seu pai, eni 1432, vemos D. Henrique empe-
nhado nas negociações para uma liga -Oos príncipes de Espanha con..;
tra os Mouros de Granada, e de 1434 temos uma carta sua ao papa
Eugénio IV em que se propõe chefiar pessoalmente uma guerra de
extermínio contra os Mouros de África 330 •
A guerra de África revelou-se mais dificultosa do que o que o fácil
golpe de Ceuta prometia. Os Portugueses estavam encurralados den-
tro dos muros da cidade, donde só saíam para algaras e roubos de
gado, com que se sustentavam; a alternativa era alargar a conquista
ou retirar, e já D. João I tinha encarado uma nova expedição a
África para tentar uma nova conquista, que se tornava irrealizável a
partir das tropas cercadas. D. João I faleceu em 1433, quando se dis-
cutiam as vantagens e inconvenientes de uma intervenção portuguesa
em Granada com o rei de Castela ou, talvez como sua alternativa,
uma expedição a África. Entretanto prosseguia o reconhecimento da
costa africana e do Bojador.
O Infante teve de vencer UIIJa grande resistência dos governantes
(que eram principalmente os filhos e netos de D. João) para levar a
cabo a sua nova expedição a África. D. Pedro, futuro regente, e
D. Afonso, duque de Bragança, manifestaram-se resolutamente con-
tra; D. João, sem querer desagradar a qualquer dos partidos, deu
argumentos contra e a favor. O parecer do infante D. Henrique não
admite dúvidas nem problemas; é como uma pedra sem falhas e sem
entradas, indivisível. Responde à pergunta: «Se é cousa justa, direita
e razoada fazer guerra aos Mouros de África», e deduz a resposta
afirmativa da exposição dos fins desta vida, que são principalmente
salvar a alma, que é um fim absoluto («fim infindo»). Além disso, há
o prazer do corpo, que é um fim fútil, e o ganho, que não deve ser
considerado como fim em si, mas um meio para outro fim, depen-
dendo deste último a sua apreciação. Ora a guerra dos Mouros é ser-
viço de Deus, como a Santa Igreja o determina, e é a maior honra
que há neste mundo: o Infante considera isso tão óbvio que nem dá
justificações. Como se vê, ele coloca-se exclusivamente no plano dos
valores. Só se refere aos factos para notar que a terra dos Mouros «é
toda partida em senhorios», pelo que se lhe aplica o dito do Senhor
de «que todo o reino partido será destruído» 331 •

33
331
° Crónica da Tomada de Ceuta, carta do infante D. Henrique de 1 de Abril de 1436.
lbid., doe. 101, carta de 1436 (sem indicação de dia e de mês).

271
Segundo o cronista Rui de Pina, o rei D. Duarte opunha-se à expe-
dição a Tânger e o Infante teve de se valer da intercessão da rainha,
sua cunhada, que então estava grávida. O mesmo autor atribui ao
Infante o projecto de expulsar aos poucos os Mouros de Marrocos,
tal como os cristãos já os tinham expulso da Espanha.
Finalmente, o Infante partiu em direcção a Tânger, levando o seu
jovem irmão D. Fernando, mestre de Avis. Mas, desta vez, os Mou-
ros não estavam desprevenidos como em Ceuta. Já falámos do resul-
tado. Os cristãos que cercavam viam-se cercados e só se salvavam
prometendo entregar .Ceuta.
Entretanto, as naus iam avançando pela estéril costa africana em
busca de informações. De caminho pescavam, desembarcavam e to-
mavam o que achavam, animais e homens. A perspectiva de algum
lucro e a ajuda do Infante animavam armadores e negociantes do
Algarve a investir nas expedições. Em 1444 houve em Lagos a pri-
meira repartição da gente capturada e reduzida à escravidão: eram
aproximadamente duas centenas e meia de criaturas, das quais coube
ao Infante o quinto.
A leitura da Crónica de Zurara deixa-nos a impressão de que a
principal missão dos navegadores era procurar notícias sobre prínci-
pes cristãos conhecidos na costa, e nomeadamente do príncipe conhe-
cido por preste João das Índias, morador junto ao Nilo, que em 1427
.enviara uma embaixada a Afonso V, rei de Aragão, com quem a
corte portuguesa, nesta época, tinha relações quase íntimas. Diz
Zurara que os marinheiros do Infante faziam «presas nos vizinhos da
terra do Egipto» 332 , a qual se supunha confinante com o reino do
Preste João.
Houve um escudeiro português que se ofereceu para ser desembar-
cado na terra dos Azenegues. Ali ficou durante sete meses; partilhou
a vida com eles, dormiu com eles em. tendas; alimentou-se de leite;
andou de camelo no deserto. Mas, quando, ao fim de sete meses, os
companheiros voltaram de Portugal a buscá-lo, ele nada tinha apren-
dido dos segredos de África 333 •
Em 1445, armadores de Lagos chegam ao cabo Verde, avistam um
grande rio e regressam com uma notícia sensacional: tinham des-
coberto o Nilo! Oito anos depois (data da cópia iluminada da sua
Crónica) ainda Zurara acreditava nesta «descoberta» e celebra-a com
uma solene retórica (caps. 60 e segs.). O capítulo é um plágio da

332 Crónica da Guiné, cap. xx1.


333 Ibid., cap. xxxv.

272
General e grant estaria, de Afonso X-o-Sábio, onde se lê que o Nilo
começa no mar Vermelho, percorre a Etiópia e desagua nas faldas do
Atlas (<<monte Atlante»). Ao fim de vinte e cinco anos, o Infante
tinha o que procurava: o acesso ao Preste João das Índias! De facto
era uma miragem. Por isso, quando, em 1448, um fidalgo escandi-
navo, de nome Valarte, pediu ao Infante que lhe armasse uma cara-
vela e o encaminhasse à terra dos Negros, o infante D. Henrique, ao
dar-lhe a caravela, lhe disse «que se fosse ao cabo Verde e que vissem
se poderiam haver segurança [garantia] do rei daquela terra, por-
quanto lhe haviam dito que é mui grande senhor, mandando-lhe suas
cartas e que também lhe dissesse algumas cousas de sua parte por ser-
viço de Deus e de sua santa fé. E isto porque lhe afirmavam que era
cristão. E a conclusão de tudo era que, se assim fosse, que a lei de
Cristo tinha, que lhe prouvesse ser em ajuda na guerra dos Mouros
de África, na qual el-rei D. Afonso (que então reinava em Portugal)
e ele, em seu nome com os outros seus vassalos e naturais, continua-
damente trabalhavam» 334 •
Chegado ao seu destino, o Valarte encontrou na praia, no meio
dos Negros, um que parecia ter mais autoridade que os outros e que,
perguntado, lhe disse que o seu rei, chamado Boor, morava a seis ou
sete dias de distância no interior; os Portugueses insistiram, no
entanto, em que lhe fosse entregue a carta. Os Negros amontoavam-
-se e acotovelavam-se à volta do batel dos Portugueses, olhando para
a misteriosa carta, que provavelmente consideravam um feitiço.
É evidente que não chegaram a entender o que os Portugueses que-
riam, mas ofereceram cabras, cabritos, leite, manteiga, mel, farinha,
etc., e dentes de elefante, dando os Portugueses em troca pano e
«outras jóias».
Quanto ao suposto rei cristão, Boor, nunca foi alcançado. Sumiu-
-se na distância como bruma levada pelo vento. Valarte resolveu ir a
terra, mas foi rodeado de negros e no meio deles desapareceu. O ilu-
sório espectro do Preste João das Índias fazia negaças.
Entretanto, a Europa assistia à invasão turca. Em 1456 caía Cons-
tantinopla. O papa convocou a cruzada geral. O duque de Borgonha,
Filipe-o-Bom, cunhado do infante D. Henrique, propôs-se celebrar o
início da cruzada instituindo a Ordem do Tosão de Ouro, que inspirou
a Van Eyk o seu célebre Agnus Dei, de duplo sentido. Durante sema-
nas, ininterruptamente, as grandes cidades mercantis da Flandres e os
príneipes convidados assistiram aos maiores festejos da Europa.
334 Crónica da Guiné, cap. cx1v.

273
E ficou por aqui a cruzada. Só o jovem rei de Portugal se prepa-
rava entusiasticamente com um exército de 12000 homens e os res-
pectivos barcos. Ninguém mais se mexeu. O Governo português
resolveu dar um destino à esquadra e tomar o rumo do Norte de
África.
D. Henrique preparou a sua parte no Algarve. Tinha então 64
anos. Recebeu o rei e os seus homens em Sagres e a todos fez um dis-
curso. No ataque a Alcácer Ceguer teve a parte decisiva. A cidade
rendeu-se e entregou-se ao Infante, que ditou as condições da
rendição 335 •
Era em 1458. No regresso, o velho templário contemplou pela
última vez a costa marroquina, onde fizera a sua estreia de armas
quarenta e três anos antes. Dois anos depois morria.
A guerra em Marrocos inspira o primeiro e o último acto do
infante D. Henrique. A nosso ver, as navegações são episódios de
uma curva que se justifica pela guerra em África.
Ele não estava empenhado na descoberta do mar para ocidente.
O achamento das ilhas não foi obra sua, mas do acaso. Zurara diz
que, querendo o Infante satisfazer o requerimento de dois escudeiros
seus, João Gonçalves e Nuno Tristão, os mandou aparelhar uma
barca «em que fossem de armada contra os Mouros, encaminhando-
-os como se fossem em busca da terra de Guiné, a qual ele já tinha
vontade de buscam (cap. 73). Mas Deus, isto é, o tempo contrário,
levou-os à ilha da Madeira. Passava-se isto em 1420. Segundo este
relato de Zurara, a ilha foi encontrada, embora casualmente, por
dois vassalos do Infante, o que justificava a sua doação, em 1433, ao
próprio Infante. Mas um testemunho de Francisco Alcoforado,
«escudeiro do senhor Infante», de que existem duas cópias, uma do
século xvr, no Palácio Ducal de Vila Viçosa; outra do século xvn, na
Biblioteca Nacional de Madrid, conta outra estória.
É a estória de um casal de namorados ingleses que em Plymouth
se apoderam, com alguns familiares, de um barco sem piloto para
fugir para França. O vento empurra o barco sem governo, até que
chegam a uma ilha desconhecida. Ambos os namorados morrem; os
sobreviventes lançam-se no batel à aventura dos ventos até chegarem
à costa africana, onde são presos pelos Mouros. No cárcere conhe-
cem um piloto castelhano, João de Amores, também preso. Libertos
graças a uma obra pia de um defunto fidalgo, embarcam para Espa-
nha e no caminho são assaltados por um corsário português de nome
335
Rui de Pina, Crónica de D. Afonso V, cap. 138.

274
João Gonçalves Zarco, que.levou o piloto castelhano à presença do
Infante 336 •
É isto o que consta quanto às viagens para oeste. O facto de esta
estória ser romântica não quer dizer que seja falsa. Tudo quanto
modernamente se escreveu sobre as tentativas do Infante para encon-
trar uma passagem a noroeste para a Índia não passa da mais gratuita
fantasia.
É abusar dos documentos e dos factos conhecidos supor que o
infante D. Henrique é um homem da Renascença, ou mesmo um bur-
guês norteado por ·um ideal científico moderno e pela utilidade e pelo
lucro, isto é, por razões «racionais». Pelo contrário, ele é o mais
medieval dos irmãos e o seu «racionalismo» é escolástico. Duarte
Leite demonstrou que o saber náutico em Portugal pouco ou nada
avançou no tempo do Infante, tão-pouco a arte da navegação, pois
a tão falada caravela era um tipo de-barco muito comum usado na
pesca 337.
Conhece-se um livro de um franciscano, Frei André do Prado,
escrito a pedido do Infante, com o título Relógio da Fé (Horologium
Fidei), em que este figura como interlocutor do autor do livro. Aí
vemos o Infante a par com a problemática da escolástica. Interes-
sam-lhe problemas como o conhecimento pela fé e o conhecimento
racional, o da causa primeira, o da essência de Deus, o do mistério
da Santíssima Trindade, etc. Tudo problemas especulativos e trans-
cendentais, desligados de qualquer experiência empírica. Não se põe
para o Infante o problema teológico levantado pela descoberta de
novas gentes a quem não fora anunciada a fé cristã. Perdiam-se,
salvavam-se? O Infante, isolado no mundo da doutrina que lhe fora
inculcada, parecia não ver o que se passava diante dos seus olhos.
Continuava repetindo que fora da Igreja não havia salvação 338 •
Não queremos com isto denegrir o Infante, como alguns adeptos
portugueses da chamada escola dos Annales, por volta de 1950, apos-
tados em eliminar os heróis da história. Foi graças a ele que os
mareantes não se dispersaram como piratas por todas as pontas da
rosa-dos-ventos, mas se organizaram num objectivo comum, perse-
guido com continuidade. D. Henrique teve uma autoridade pessoal
capaz de conseguir dos seus subordinados que se aventurassem por
mares desconhecidos, uns após outros, sem grandes compensações de
336
Publicada por José Manuel de Castro, Descobrimentos da Ilha da Madeira Ano
de 142(). Epanáfora Amorosa, sem data (a nota introdutória tem a data de 1975).
337
Duarte Leite, História do!! Descobrimentos, vol. 1, pp. 160 e segs.
338
Mário Martins, Estudos de Cultura Medieval, Braga, 1969, cap. x1.

275
natureza material, não se deixou abater pelos desapontamentos e
pelos desastres, não se deixou vencer pelos desgostos e pelos afectos.
A sua vontade heróica soube impor-se ao seu grupo, embora não esti-
vesse à vista a meta prometida.
Ele é um belo exemplo do papel determinante da Vontade heróica
nos grandes acontecimentos, em conjunção com o Acaso: sem a sua
autoridade organizadora não se teriam iniciado as viagens na costa
africana, cujo resultado final não foi o que ele esperou em vida.
Na história de Portugal, ele abriu dois. caminhos contraditórios,
que na origem coincidiram. Um, na sequência da tomada de Ceuta,
é o caminho cavaleiresco que levará à empresa de D. Sebastião.
A guerra de África foi sempre a preferida como teatro de heroicida-
des; é a guerra da «honra» sem proveito económico para o Reino, a
guerra cavaleiresca por excelência, a guerra como escola de guerrei-
ros, a guerra contra o infiel que outrora invadira a Espanha, a guerra
que Camões recomenda pela boca do Velho do Restelo e nas estrofes
finais de Os Lusíadas. Este é o caminho nascido na batalha de Ceuta,
em 1415, o caminho em que se empenhou o infante D. Henrique e
que foi abandonado, por se revelar economicamente insustentável
para a Coroa, quando D. João III começou a retirada das praças de
África. Esta retirada causou a indignação de uma parte importante
da nobreza, que a considerava a sua guerra. O outro caminho é o que
decorre da navegação empreendida inicialmente como auxiliar da
guerra africana. Houve um momento, provavelmente a partir de
D. João II, em que se concebeu a navegação como um caminho de
atingir a Índia e as fabulosas especiarias. Vasco da Gama levava ins-
truções expressas para negociar um tratado comercial. Este é um
caminho que foi sempre planeado como um tráfico; em que a ganân-
cia tinha a primazia sobre a honra. O caminho que corrompia os
homens e as mulheres, como o denuncia Gil Vicente.no Auto da Ín-
dia, caminho em que um povo de guerreiros se convertia numa cáfila
de chatins. Era este o que Camões condenava pela boca do Velho do
Restelo, recomendando o retorno ao outro, que D. João III abando-
nara. E a aventura de D. Sebastião em África (a aventura que
Camões se propunha cantar) é uma desforra do espírito tradicional,
representa o fim de uma sequência de acontecimentos.
É escusado referir que o infante D. Henrique, cuja ambição insa-
tisfeita foi ser mestre da Ordem de Cristo, à imagem dos mestres tem-
plários que morriam nas batalhas pela fé, tinha em vista o primeiro
destes dois caminhos, embora, sem o saber, tenha iniciado o se-
gundo.

276
Índice rem1ss1vo

Abd-Allah (polemista muçulmano), Afonso l, D., pp. 17, 151, 152, 154,
p. 137 157, 158, 159, 160, 161, 163, 164,
Abelardo, pp. 98, 108, 110-111; e 165, 166, 193, 240, 243, 244 e 245;
Heloísa (par amoroso célebre), tradição épica (de Afonso Henri-
p. 55 ques), pp. 55, 151, 152, 157, 158,
Abissínia, p. 138 159, 160, 161, 258 e 265.
Aboim, D. João de (trovador), pp. 37 Afonso II, D. (rei de Portugal), pp. 13
e 38 e 61
Abrantes, p. 185 Afonso II, rei das Astúrias, p. 151
Acenheiro, pp. 160, 161 e 163. Afonso III, rei das Astúrias, p. 151
Acerca da Crónica dos Feitos da Afonso III, D. (rei de Portugal),
Guiné, de Duarte Leite, pp. 260 e pp. 7, 13 a 16, 17, 20, 27, 37, 42,
261. 45, 61, 161e162; casamento de, pp.
Acompanhado Uogral), p. 18 13 e 14
Adriana (Ariadne), p. 47 Afonso IV, D. (rei de Portugal),
Adriano V, papa (Ottobono Fieschi), pp. 39; 48, 50, 53, 119, 157, 161 e
p. 103 206
Adrião, mestre, p. 141 Afonso V, D. (rei de Portugal), pp. 7,
Adversus Hebraei, de Santo Isidoro, 8, 58, 73, 92, 127, 128n., 130n., 218,
p. 137 219, 245, 249, 250, 255, 256, 263,
Afonso, D. (filho de D. João II), p. 8 265 e 273.
Afonso, D. (conde de Barcelos e 1. º Afonso VI, rei de Leão, p. 152; e de
duque de Bragança), pp. 77, 262 e Castela, p. 136
271 Afonso VII, rei de Leão e Castela,
Afonso, conde João: ver Telo, conde p. 18
João Afonso Afonso VIII, rei de Castela, p. 116
Afonso, João (vedor da Fazenda no Afonso IX, rei de Leão, p. 116
reinado de D. João I), pp. 238 Afonso X-o-Sábio (rei de Castela),
e 242 pp. 7, 8, 14, 15, 16, 20, 35, 36, 37,
Afonso, Martim, p. 170 38, 39, 41, 42, 45, 47, 104, 114, 116,
Afonso, Pedro, pp. 136, 137 e 138 131, 136, 156, 158, 159, 160, 161,

277
216 e 272; mecenas de trovadores e Alexandre, imperador, pp. 160, 218,
jograis, p. 7; corte literária de, 255, 256 e 262
pp. 7, 14, 15, 16, 42, 43, 44 e 136. Alexandre IV, papa, p. 112
África, pp. 9, 138, 245, 247, 257, 260, Alfarabi (filósofo árabe), p. 131
261, 262, 263, 269, 270, 271, 272, Alfaro, Teresa, p. 35
273, 274 e 276; Reconquista em: ver Alfarrobeira, batalha de, p. 167; cam-
Reconquista em África panha de, p. 82
Agnus Dei, de Van Eyk, p. 273 Algarve, pp. 9, 117, 211, 243, 259, 272
Airas, João (trovador): ver Santiago, e 274
João Airas de Algazel (filósofo árabe), p. 131
Ajácio, bispado de, p. 88n. Aljubarrota, pp. 7, 74, 86, 161, 162,
«Ala dos Namorados», p. 204 166, 177' 179, 180, 184, 185, 186,
Alão, D. (personagem do Livro Velho 188, 197, 203, 204, 209 e 215
de Linhagens), p. 154 Almada, p. 211
Albatenio, p. 131 Almançor, pp. 151, 157, 164 e 166
Albergaria, Vasco Martins de, p. 251 Almeida, Brandão e, p. 130n.
Alberto Magno, pp. 108 e 133 Almeida, Fortunato de, pp. 73n.,
Albigenses, p. 55; cruzada contra os: 8ln., 85n. e 87n.
pp. 13 e 14 Almóadas, p. 136
Albuquerque, castelo de, p. 48 «Alpedrinha», cardeal: ver Costa,
Albuquerque, D. Teresa de, p. 48 D. Jorge da
Alcácer Ceguer, pp. 250, 263, 264 e Alpetragio, p. 131
274 Alprão, Frei Afonso de (franciscano,
Alcácer Quibir, pp. 58, 242 e 269 confessor de D. João 1), p. 73
Alcobaça, Mosteiro de, pp. 47, 84, Alquindi (filósofo árabe), p. 131
109, 117, 213 e 266; escola conven- Alter do Chão, p. 211
tual de, p. 109; biblioteca de, Álvares, Frei João, pp. 56, 85, 96 e 97
pp. 92, 105, 107 a 109; predomínio Álvares, Pedro (irmão de Nun' Álva-
da patrística e da literatura «de con- res), p. 207
templação», p. 109; decadência Álvaro, D. (herói do Salado), p. 158
espiritual de, pp. 84 e 85; túmulos Amadis, personagem do Amadis de
de, pp. 47, 48, 51 a 54 Gaula, pp. 45, 46, 47 e 60; símbolo
Alcobaça Ilustrada, de Frei Manuel do amor trovadoresco, p. 60
dos Santos, p. 108n. Amadis de Gaula, pp. 44 a 46 e 204;
Alcoforado, Francisco (escudeiro do problema da autoria do, pJl. 44 e
infante D. Henrique), p. 274 45; espelho do código trovadoresco,
Alcorão, p. 131 p. 46; apologia do amor alheio ao
Alegoria (no final da Idade Média), casamento, p. 46
p. 141 Amaro, Frei (franciscano inglês, con-
Alemanha, pp. 14, 76 e 238; impera- fessor de D. Filipa de Lencastre),
dor da, p. 113 p. 73
Alenquer, pp. 78 e 207; Convento de Ambroa, Pêro de (trovador), p. 36
São Francisco de, pp. 77 e 78 amor, na história real portuguesa,
Alentejo, pp. 117, 152, 184, 185, 192, p. 55
208 e 211 amor/paixão ocidental, arquétipo do,

278
p. 47; ver também Pedro e Inês Arcos de Boulhe, p. 211
«amor da terra» (primeira forma de Argivos, p. 160
patriotismo), pp. 161, 168, 169, 180 Arias, Frei Diogo (franciscano), p. 77
e 181 Ario, p. 135
Amores, João de, p. 274 Arimateia, José de, pp. 60, 61, 62, 63,
amor trovadoresco, caracterização do: 65, 67, 68, 69, 70 e 72
fiel e sigiloso, pp. 22, 23 e 27; «ascé- Aristóteles, pp. 104, 105, 106, 108,
tico abstinente», pp. 23 e 24; 114, 123, 131, 132, 133, 135, 139,
secreto, clandestino e impossível, 218, 223 e 225
p. 23; sublime, pp. 23, 24 e 25; e aristotelismo, polémica teológica
divino, pp. 24 e 25; aspiração e não acerca do, pp. 104, 105, 106, 132,
posse, inacessibilidade do ser 133, 134, 135 e 139
amado, pp. 24, 25 e 26; sinónimo Aritmética, ensino da, p. 116
de prisão, p. 27; e de sofrimento, Arménia, p. 154
p. 26; associado à morte, pp. 26 e Arouca, abadessa de (religiosa boé-
27; timidez do amante, pp. 25 e 27; mia), p. 41
personificação do, p. 24; temática Arraiolos, condado de, ·p. 210
continuada por Camões, pp. 24 e Arras, pp. 13 e 264
26; pelo Cancioneiro Geral, p. 24; Arrazi, Ahmed ben Mohammed, p.
e por Bernardím, p. 25; parodiado, 159
pp. 27 e 28; convencionalismo do, Ars Generalis Ultima, de Raimundo
p. 28; símbolos do, Amadis, p. 60; Lúlio, p. 139
Lançarote, pp. 60 e 68, e Tristão, Ars Inventiva: De Quaestionibus extra
p. 68; condenado na Demanda do volumen artis inventivae, de Rai-
Santo Graal, p. 69 mundo Lúlio, p. 14ln .... ·
Anais das Bibliotecas e Arquivos, ed. Ars Magna, de Raimundo Lúlio, pp.
por Artur de Magalhães Basto, p. 138, 139 e 140
97n. Ars Philosophiae, de Raimundo Lú-
Andaluzia, p. 209 lio, p. 141
Andeiro, João Fernandes, pp. 186, Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, p.
190, 191, 192 e 207 233
Andrade, Nuno Freire de (mestre da Artes, ensino das, pp. 114, 118 e 125;
Ordem de Cristo), p. 267 Faculdade de, pp. 122 e 123
Anes, Vasco, p. 264 Artur, rei, pp. 57, 60, 61, 62, 63, 64,
Annales, escola dos, p. 275 65, 67, 68, 69, 155, 204 e 205
Annales Portucalenses Veteres, p. 151 arturiano, ciclo: ver Bretanha, maté-
Apocalipse, p. 81 ria de
Apocalipsis nova (de Frei Amadeu da Arzila, p. 262
Silva), p. 82 ascético, ideal, na família de
Aquiles, pp. 250, 255 e 256 D. João I, pp. 55, 56 e ·72; e em
árabe, cultura: irradiação e influência toda a dinastia de Avis, p. 58; em
da, pp. 130, 131 e 136 Nun'Álvares, p. 57; em D. Sebas-
Árabe, ensino do, p. 131 tião, p. 58
Aragão, pp. 18, 19 e 161; Casa de, Astorga, pp. 62, 159 e 264
pp. 7 e 140; corte de, p. 216 Astronomia, ensino da, p. 116

279
Astúrias, reino das, pp. 151 e 152 conde de Barcelos
Atenas, p. 160 Barlaão, p. 108
Atlas, gigante, pp. 258 e 273 Barroca, Frei João da, p. 86
Atoleiros, batalha de, p. 209 Barroso, D. Pêro Gomes (trovador),
Auto da Índia, de Gil Vicente, p. 276 p. 43
Autor (O) da Narrativa da Batalha do Basileia, Concílio de, p. 88n.
Safado e a Refundição do Livro do Bastilha, destruição da, p. 169
Conde D. Pedro, de António José Basto, Artur de Magalhães, pp. 97n.,
Saraiva, p. 157n. 162n. e 167n.
A valor (personagem da Menina e Bavária, p. 80
Moça), p. 25 Baviera, Luís da, pp. 76, 80, 82 e 160
Averróis, pp. 131 e 132 Beatriz (de Dante), p. 25
averroísmo, pp. 132, 133, 138 e 139 Beatriz, D. (filha de D. Fernando),
Avicena, pp. 106 e 131 pp. 179, 195, 206 e 207
Avinhão, papa de, pp. 114 e 179; Casa Begardos, p. 140 ·
de, p. 216; dinastia de, pp. 166, 167, Beira, p. 185; fidalgos da, p. 169
170 e 216 Beja, pp. 152, 187 e 189
Avis, mestre de (futuro D. João 1), Belém, Torre de, p. 53
pp. 74, 86, 129, 166, 168, 169, 170, Belfages, Uffo, p. 153
174, 175, 179, 180, 181, 182, 184, Beneditinos (Ordem de S. Bento),
187, 190, 191, 192, 196, 207, 208, pp. 83 e 214
209 e 267; família do, pp. 55, 86 e Benfica, Convento de, p. 86
166; Ordem de, p. 266 Bento XIII, antipapa (Pedro de Luna),
Ayala, Pedro Lopez de, p. 49 p. 137
Aydillo, Lopes, p. 36n. Berbéria, p. 138
Azenegues, p. 272 Berenguer IV (trovador), p. 18
Azevedo, Lúcio de, p. 15 «Besta ladradora», figura da Demanda
Azevedo, Melo de, p. 244n. do Santo Graal, p. 66
Bíblia, ensino da, p. 123
Bàbilónia, reino da, p. 160 Bibliografia Geral Portuguesa, de
bacharel, grau de, pp. 114 e 124 Queirós Veloso, pp. 104n. e 105n.
Bacon, Francis, pp. 107 e 140 Biblioteca de Autores Espanoles,
Bacon, Roger, pp. 108 e 134 p. 46n.
Badajoz, p. 207 Bibliotecas: da Ajuda, p. 17; Nacio-
Baião, D. Afonso Lopes de, p. 14 nal de Lisboa, p. 17; do Vaticano,
Balteira, Maria Peres (jogralesa), p. 17
pp. 35, 36 e 38 Bilinguismo, dos poetas portugueses
Bamba, rei, p. 160 quinhentistas e seiscentistas, p. 8
Bandarra, p. 82 Bivar, Rui Diaz de (o Cid), p. 156
Barca de Sacavém, p. 211 Bizâncio, p. 131
Barcelona, p. 136; Estudo Geral de, Bocados de Oro, p. 136
p. 116 Boccacio, pp. 136 e 189
Barcelos, p. 211; condado de, p. 210; Boécio, pp. 92, 106 e 108
conde de Barcelos: ver D. Pedro, Bojador, cabo, pp. 260, 269 e 271
conde de Barcelos, e D. Afonso, Boletim de Filologia, pp. 63n. e 157n.

280
Bolonha; condado de, p. 13; conde de: Brotéria, pp. 92n. e 144n.
ver Afonso III, D.; Universidade Bruges, p. 127
de, pp. 103, 109, lll, 112, ll3, 125 Bruno, Leonardo, p. 108
e 126 Brut, de Wace, p. 68
Bolonhês (o): ver Afonso III, D. Bruxelas, p. 97
Bolseiro, Juião (jogral), p. 37 Burgos, Paulo de, p. 137
Bom Jesus, Confraria do, pp. 88 e 89 burguês, espírito, p. 9
Bonamis (jogral), pp. 18 e 19
Bonaval, Berna! de (trovador), p. 20 Cabala, p. 143
Bonifácio VIII, papa, pp. 83 e 122 Cabeços d'El-Rei, p. 163
Bonifácio IX, papa, p. 78 Cabo Verde, pp. 245, 272 e 273
Boor (rei de Cabo Verde, suposta- Calila y Dimna, pp. 91 e 136
mente cristão), p. 273 Calvos, Afonso Vasques de, p. 141
Boorz (de Gaunes), personagem da Cambridge Medieval History, p. 11 ln.
Demanda do Santo Graal, pp. 64, Camela, freira (boémia), p. 41
67 e 69 Camões, Luís de, pp. 24, 26, 27, 50,
Boosco Deleitoso, pp. 92 a 96 e 99 55, 58, 254, 257, 261 e 276
Borba, p. 211 Canárias, ilhas, pp. 260 e 269
Borgonha, corte de, p. 97; duque de, cancioneiros: Cancioneiro da Ajuda,
pp.7el78 pp. 15, 16, 17 e 21; editado por
Boron, Robert de, pp. 13, 59, 62, 69 Carolina Michaelis, pp. 14n., 15n.,
e 71 17n., 18n., 2ln., 22n., 26n., 28n.,
Boulogne-sur-Mer, p. 13 29n. e 45 n.; edição paleográfica de
Brabante, Sigério de, p. 133 Henry Carter, p. 17n; Cancioneiro
Braga, arcebispado de, pp. 84 e 104; da Biblioteca Nacional (ou Colooci-
arcebispo de, p. 188; Sé de, pp. 104 Brancuti), pp. 17 e 45; edição
e 107 diplomática de Enrico Molteni,
Braga, Teófilo, pp. 17n., llln., 115n. p. 17n.; Cancioneiro Geral, de Gar-
e l38n. cia de Resende, pp. 8, 24, 54 e 55
Branco, André, p. 261 Cancioneiro de Valência (de Her-
Brancuti, conde, p. 17 nando de! Castillo), p. 8. Cancio-
Brandão, Frei António, p. 265 neiro da Vaticana, p. 17; edição crí-
Brandão, Frei Francisco, p. 117n. tica de Teófilo Braga, p. 17n.;
Brasões da Sala de Sintra, de A. edição paleográfica de Ernesto
Braamcamp Freire, p. 267n. Monaci, pp. 17n., 22n., 42n. e 43n.
Bretanha, pp. 13, 155 e 156; matéria Canções de Gesta, pp. 13, 14 e 60
de, pp. 14, 16, 45, 47, 59, 60. 68 e Cânones (direito canónico), ensino de
155; voga em Portugal, pp. 72 e pp. 114, 116 e 118
204. Cantanhede, p. 51
Breves Crónicas das Sete Atribulações Cantar de Mio Cid, p. 60
da Ordem até ao Tempo de João Canterbury Tales, pp. 91 e 136
XXII, atribuídas a Frei Ângelo Cla- cantigas de amigo, pp. 17, 21, 30 e 31;
reno, p. 80 variantes de cantigas populares, p.
Brites, D. (mulher de D. Afonso III 31; temática, p. 32
e filha de Afonso X-o-Sábio), p. 14 Cantigas de Amigo, editadas por José

281
Joaquim Nunes, pp. 23n., 27n. e 237, 238, 241, 242, 243, 247, 248n.,
32n. 253, 264 e 271; e Leão, reis de,
cantigas de amor, derivadas da cansá pp. 160 e 161
provençal, pp. 21 e 23; de cariz Castela, D. Branca de, p. 13
palaciano e aristocrático, pp. 21 e castelhano, língua dos jograis épicos,
30; diferentes das cantigas de amigo p. 19
na forma, p. 30; e na temática, pp. castelhanofobia, p. 7
30 e 31; mas Ínfluenciadas por elas, Castelo Perigoso, pp. 87 e 92
pp. 32, 33 e 34; paralelismo ate- Castro, de António Ferreira, p. 55
nuado, pp. 32, 33, 34 e 43; especi- Castro, D. Álvaro Pires (irmão de Inês
ficidade em relação ao modelo pro- de Castro), p. 49
vençal, pp. 32, 33 e 34; concepção Castro, Inês de, pp. 47, 48, 49, 50, 51,
do amor, pp. 22 a 31 52, 53, 54, 55, 179, 193, 206 e 207
Cantigas de Amor, editadas por José Castro, Ivo de, p. 63n.
Joaquim Nunes, pp. 22n., 24n., Castro, José Manuel de, p. 275n.
25n., 26n., 27n., 28n. e 33n. Castro Verde, p. 163
cantigas de escarnho e maldizer, p. 17; Catalán, Diego, pp. 155 e 159
temática, pp. 39 e 42 Catalunha, pp. 18, 19 e 136; e Aragão,
Cantigas d'Escarnho e de Maldizer reino de, p. 140
dos Cancioneiros Medievais Gale- Catarina, D. (mulher de Fernando de
go-Portugueses, editadas por Aragão), p. 248n.
Rodrigues Lapa,, pp. 14n., 22n., Católicos, Reis: ver Reis Católicos
27n., 28n., 35n., 36n., 37n., 38n., cavaleiresco, espírito, pp. 8 e 9
39n., 40n., 4ln., 43n. e 44n. Cazpirre, p. 181
Cantigas de Santa Maria, pp. 14 e 15 Celtas, p. 60
Capela, Marciano, p. 92 Cerveira, Álvaro Mendes, p. 251
«Capuchinhos» (cisão radical dos César, p. 234
«zeladores»), p. 76 Ceuta,pp.238,244,250,267,268,269
Carlos Magno, p. 60 e 272; conquista de, pp. 8, 9, 77,
Carlos-o-Temerário, p. 193 158, 162, 231, 235, 238, 239, 240,
Carmelitas, Ordem dos, pp. 213 e 214 241, 242, 243, 244, 245, 248n., 251,
Carmo, Convento do, pp. 212, 213, 270, 272 e 276; sermão de incita-
214 e 216; Igreja de Nossa Senhora mento a, p. 74; e de acção de gra-
do, pp. 87 e 213 ças pela tomada de, p. 74
Carnote, convento franciscano de, p. 77 Cezena, Miguel de (franciscano espi-
Carreras y Artaud, pp. 104n., 107n. ritual), pp. 76 e 80; excomunhão de,
e 144n. p. 76
Carter, Henry A., p. 17n. e 62n. Champagne, Marie de, p. 46
Carvalho, Joaquim de, p. 104n. Chanson de Roland, pp. 14, 60 e 182
Casale, Ubertino de, pp. 76, 80 e 81 Chartres, escola da Sé de, p. 110
Cascais, p. 194 Chartularium Universitatis Portuga-
Cassiodoro, p. 108 lensis, pp. 118n., 120n., 122n.,
Castela, corte de, pp. 19 e 216; lutas 123n., 124n., 125n., 126n. e 127n.
contra, p. 165; reino de, pp. 166, Chaucer, pp. 136 e 189
167' 196, 197' 202, 206, 212, 236, Chaves, p. 211

282
Chipre, p. 138 Commentariorum de Alcobacensi
Chronica do Infante Santo D. Fer- manuscriptorum Biblioteca libri
nando, ed. por Mendes dos Remé- tres, de Frei Fortunato de São Boa-
dios, pp. 57n., 85n. e 97n. ventura, p. 107n.
Chronica XX/V Generalium (crónica Commynes, Filipe de, pp. 189 e 193
franciscana), pp. 78 e 79 Compendium artis demonstrativae, de
Cícero, p. 93 Raimundo Lúlio, p. 14ln.
Ciclo (0) da Espiritualidade Francis- Conde de Lucanor, de D. Juan Manuel,
cana na Idade Média, do P. e pp. 91 e 135
Mário Martins, pp. 77n., 78n., Confissão (ou Livro do Amante),
81n., 82n. e 83n p. 91
Cidade de Deus (A), de Santo Agos- Constança, D., mulher de D. Pedro,
tinho, p. 225 pp. 48 e 49
Cintra, Luís Filipe Lindley, pp. 153n., Constança, Concílio de, p. 88n.
159 e 166 Constantinopla, p. 131; queda de, p.
Cisma do Ocidente, Grande, pp. 114 273
e 179 Conto de Amaro, p. 109
Cisneros, cardeal, p. 9 conventuais (franciscanos residentes
Cister, Abadia de, p. 84; Ordem de, em conventos depois da morte de
pp. 44, 73, 83 e 214; decadência São Francisco), p. 75
espiritual de, p. 84 conventuais ou relaxados, entre os
Clareno, Ângelo, pp. 75, 80 e 81 Dominicanos, p. 86
Clavijo, pp. 240, 243, 244 e 246 Corbenic, pp. 62, 65 e 66
Clemente V, papa, p. 122 Córdova, p. 27; Mesquita de, p. 236 .
Clementinas, de Clemente V, p. 122 Coria, cerco de, p. 203 ·
clérigos-jograís, p. 41 Coroa peninsular, pretensões à, pp. 7
Cluniacenses, Ordem dos, p. 83 e8
Codax, Martim (jogral), p. 20 Coron, bispado de, p. 81
Coelho, D. João Soares (trovador), Corpo de Cristo, culto do, pp. 86 e 88
pp. 20, 37 e 38 Corpo de Deus, procissões do, pp. 88
Coelho, Pêro (assassino de Inês de e 90
Castro), p. 51 Corpus juris civilis, p. 123
Coimbra, pp. 49, 50, 51, 152 e 209; Correia, Frei Gil, p. 219n.
bispado de, pp. 85 e 119; tomada corte, castelhanização da, p. 8
de, por Almançor, pp. 151 e 240; Corte Imperial, pp. 141 a 147
Universidade de, pp. 117, 118, 119, Cortesão, Jaíme, p. 270
120, 122 e 123; funcionamento da, Cortes de Coimbra de 1385, pp. 166,
pp. 126 e 127 174, 178, 209 e 224
Collecção de Manuscriptos Inéditos Costa, P.• Avelino Jesus da, p. 108n.
agora Dados à Estampa, pp. 14ln., Costa, Joaquim, p. 219
142n., 145n. e 146n. Costa, D. Jorge da (arcebispo de Lis-
Colloci, Angelo, p. 17 boa, «cardeal Alpedrinha>>), pp. 84,
Comenda, Frei João da (franciscano 85, 128n., 130 e 214
observante), p. 78 Coton, Afonso Eanes do (trovador),
comendas, abuso das, p. 85 pp. 36 e 38

283
Coutinho, Álvaro Gonçalves, p. 264 Crónica dos 24 Gerais (franciscana),
Coutinho, Gonçalo Vasques, pp. 196, pp. 79 e 80
204 e 264 Crónica Geral de Espanha de 1344,
Crato, priorado do, p. 85 pp. 16, 45, 152, 153, 157, 158 a 161,
Crécy (batalha de), p. 209 162, 163, 165, 166, 168, 172, 176,
Cristo, Jesus, pp. 65, 66, 68, 70, 71, 197, 200, 202 e 216; 2. ª versão da,
134, 135, 212 e 246 pp. 161, 163 e 165; edição de Diego
Cristo, Ordem de, pp. 120, 122, 128, Catalán, pp. 155n., 156n., 159n.;
129, 130, 249, 265 a 268, 269 e 276; edição de L. F. Lindley Cintra, pp.
continuadora dos Templários, 159n. e 162n.
p. 266; influência na formação das Crónica de D. João I, de Fernão
mentalidades, p. 58 Lopes,pp. 72, 74n., 162, 167, 170,
Crónica de D. Afonso IV, de Rui de 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177,
Pina, pp. 49 e 50 178, 179, 182, 184, 185, 186, 187,
Crónica de D. Afonso V, de Rui de 188, 194, 197, 202, 203, 204, 206,
Pina, pp. 58 e 274 208, 210, 211, 219, 212, 237, 238 e
Crónica de D. Afonso Henriques, de 248n.; 1. ª Parte, ed. por Braam-
Duarte Galvão, p. 213n. camp Freire, pp. 167n. e 170n.; ed.
Crónica Breve das Cavalarias dos de W. Entwistle, p. 204n.; «epopeia
Doze de Inglaterra, p. 264 portuguesa», pp. 202 e 203
Crónica (4. ª) Breve de Santa Cruz, Crónica do Mouro Rasis, pp. 16, 131,
pp. 159 e 161 159 e 160
Crónica dos Carmelitas, de Frei José Crónica da Ordem dos Frades Meno-
Pereira de Santana, pp. 213n., res, de Frei Marcos de Lisboa, pp.
214n. e 215n. 77n., 78, 79, 80 e 159
Crónica de Cinco Reis de Portugal p. Crónica de D. Pedro I, de Fernão
162n.; ver Crónica de Portugal de 1419 Lopes, pp. 47, 48, 167, 176, 178,
Crónica do Conde D. Duarte de 179, 219 e 267
Meneses, de Zurara, pp. 58, 158, Crónica de D. Pedro de Meneses (de
•244, 251, 254, 255, 258, 263 e 264 Zurara), pp. 45, 158, 242, 243 e 250
Crónica do Condestabre de Portugal, Crónica de Portugal de 1419, pp. 161
pp. 16, 57, 72, 158, 167n., 205 e 210 a 166, 167, 176, 197 e 218; atribui-
Crónica de D. Duarte, refundida por ção da autoria a Fernão Lopes, pp.
Rui de Pina, pp. 167, 244, 245, 246, 163, 167 e 176
247 e 262 Crónica dos Reis de Portugal: ver'
Crónica de Espanha, p. 16 Crónica de Portugal de 1419
Crónica dos Feitos da Guiné, de Crónica Seráfica, de Frei Manuel da
Zurara, pp. 50, 128n., 158, 245, Esperança, pp. 74n. e 77n.
250, 256, 258, 259, 260, 261, 262, Crónica dos Sete Primeiros Reis de
269, 272, 273 e 274 Portugal, pp. 49n. e 59n.; ver Cró-
Crónica de D. Fernando, de Fernão nica de Portugal de 1419
Lopes, pp. 167, 176 e 178 Crónica da Tomada de Ceuta, refun-
Crónica General de Espafia, de dida por Zurara, pp. 55, 87, 167,
Afonso X-o-Sábio, pp. 7, 156, 158, 172, 204, 205, 237, 238, 239, 241,
159 e 161 242, 248, 249, 250, 251, 252, 253,

284
255, 256, 257, 262, 269, 270 e 271 de, pp. 119, 122 e 129; Escola de
crónicas breves de Santa Cruz, p. 258 Lisboa de, p. 134
Crónicas de los Reyes de Castilla, de Decreto (:Ulgarmente Degredo),
Pedro Lopes de Ayala, p. 49 ensino de, p. 122
Cronicon Galego-Português, de Ace- Decretum, de Graciano, p. 122
nheiro, pp. 159, 160, 161 e 163 Demanda do Santo Graal (versão por-
cruzada, espírito de: ver Guerra Santa tuguesa), pp. 55, 57, 63 a 73, 213;
cruzadas: do Ocidente, p. 247; do herdeira da tradição céltica e artu-
Oriente, p. 247 riana e do lirismo trovadoresco, p.
cultos religiosos, intensificação dos, 68; cristianização progressiva dessas
pp. 86, 87, 88, 89 e 90 tradições herdadas, pp. 68 e 69; sig-
Cunha, Martim Vasques da, p. 204 nificação alegórica, p. 69; cavalaria
espiritual versus cavalaria temporal,
Da Tomada de Santarém: ver De p. 69; valores cristãos: humildade e
expugnatione Scalabis castidade, pp. 69 e 72; condenação
D' Armea, Pêro (trovador), p. 25 da galeria cortesã e do amor, p. 69;
Daniel (bíblico), p. 61 a mulher, ser demoníaco, p. 69;
Dante, pp. 25, 54, 92, 93 e 104 Graça e livre arbítrio, pp. 69 e 70;
Das Liederbuch des K6nigs Denis von rejeição da autoridade de Roma,
Portugal, de H. R. Lang, pp. 25n., p. 70; messianismo, p. 71; reacção
30n., 3ln. e 34n. ao espírito trovadoresco, p. 72;
David, P.e Pierre, pp. 68, 70 e 151 voga em Portugal, p. 72
David, rei, pp. 63 e 65 Demanda do Santo Graal, ciclo de
De anima, de Pedro Hispano, pp. l 05 romances da, pp. 13 e 62
e 107 Deniffle, pp. 11 ln., l 15n. e 12ln.
De animalibus, de Aristóteles, p. l 05 Descobrimento da Ilha da Madeira
De articu/is Fidei, do Doutor Ilumi- Ano de 1420. Epanáfora Amorosa,
nado, p. 146 p. 275n.
De Generatione et corruptione, p. 123 Descobrimentos: ver expansão, fases
De Coe/o et mundo, de Aristóteles, da
p. 123 Devotio moderna, movimento da,
De consolidatione philosophiae, de p. 97
Boécio, p. 108 Dialéctica, de Aristóteies, p. 108
De expugnatione Scalabis, pp. 152 e Dialéctica (ou Lógica), ensino da, para
165 Pedro Hispano, pp. 105 e 106
De natura (de Raimundo Lúlio), p. Diálogos, de Pedro Afonso, p. 136
14ln. Diálogos de Vária História, de Bar-
De oculis, de Pedro Hispano, p. 104 bosa Machado, p. 219n.
De Regimine Principum, de Frei Gil Dias, André (bispo de Mégara), pp. 88
Correia, p. 219n. a 90
De Statu et planctu ecclesiae, de Frei Dias, Lopo (mestre da Ordem de
Álvaro Pais, pp. 80 e 8ln. Cristo), p. 267
De vita so/itaria, de Petrarca, p. 93 Diaz, Rui («o Cid»): ver Bivar, Ruí
Decameron, de Boccacio, p. 136 Diaz de
Decretais (Direito Canónico), ensino Dido (personagem da Eneida), p. 47

285
Dinis, D., pp. 7, 15, 16, 18, 20, 22, 23, Economia, de Aristóteles, p. 108
26,27, 30, 31,32,34,40,42,44,45, Egipcíaca, Santa Maria: ver Santa
48, 73, 117, 120, 121, 122, 126, 129, Maria Egipcíaca
131, 136, 140, 158, 159, 160, 161 e Egipto, pp. 139, 235 e 272
216; mecenas e protector da Univer- El Joarismi, p. 131
sidade, p. 16 Elias, Frei (franciscano), pp. 75 e 76
Direito Canónico: ver Decreto e Elisena (personagem do Amadis de
Decretais Gaula), p. 46
Direito Canónico e Civil, ensino de, «emparedados», p. 86
p. 123; Faculdade de, p. 122 Enciclopedia Cattolica, p. 82
Direito Civil: ver Leis, ensino de ensino, método do, na Idade Média,
direito de naturalidade ou direito p. 123
nacional, emergência do, pp. 168, Entre Douro e Minho, região de, p. 57
169, 170, 173, 174, 175 e 180 Entre Tejo e Guadiana, região de,
Direito Romano, aplicação em Portu- p. 243
gal, p. 15; ensino do, pp. 112, 116 Entwistle, William, p. 204n.
e 117 · episcopais, escolas, pp. 110, 111 e 112
direito senhorial, pp. 168 e 169 Epocas de Portugal Económico, de
Dissertações, de João Pedro Ribeiro, Lúcio de Azevedo, p. 15
pp. 88n., 97n. e 127n. «epopeia portuguesa»: ver Crónica de
Divina Comédia, de Dante, pp. 54, 93 D. João I
e 104 Erec, personagem da Demanda do
Documenta Henricina, p. 218n. Santo Graal, pp. 65 e 70
Documentos para a História dos Des- eremítica, vida (surto da), pp. 85 e 86
cobrimentos, de J. M. da Silva Erigenes, Escoto, p. 108
Marques, p. 129n. Escócia, p. 62
Dom Beltrão (rimance), p. 156 Escolástica, pp. 139 e 141
Domingos, Vicente, p. 40 escotismo, pp. 139 e 140
Dominicanos, Ordem dos, pp. 75, 86, Escoto, Duns, pp. 82 e 108
133, 138 e 214; influência social dos, Escoto, Tomás, pp. 134 e 135
p. 86; cisões entre os, p. 86 Escurial, códice do, p. 82
Dommartin, condado de, p. 13 Esgaravunha, D. Fernão Garcia, p. 14
Doutoramento, requisitos e cerimónia Espanha passim, união da: ver união
do, pp. 124 e 125 ibérica, ideal de
«Doze de Inglaterra», episódio dos, Espelho de Cristina, p. 92
n'Os Lusíadas, p. 264 Espelho da Cruz, p. 92
Duarte, D., pp. 7, 16, 55, 56, 73, 86, Esperança, Frei Manuel da, pp. 74n.
87, 89, 91, 127, 129n., 141, 158, e 77n.
162, 167, 205, 215, 216, 218, 219, Espina, Frei Afonso de, p. 137
220, 226, 227, 228, 229, 230, 231, espinosismo, p. 146
232, 233, 234, 239, 240, 244, 245, Espírito Santo, descida do (Pentecos-
252, 25 3 e 272 tes), pp. 63 e 72; idade do (segundo
Joaquim de Fiore), p. 71; festa do,
Ebro, p. 19 p. 72
Eckart, mestre, p; 140 espirituais (nome dos zeladores depois

286
da morte de S. Boaventura), pp. 76, Fazimas, batalha de, p. 166
77, 78, 83, 135, 139 e 140 Fernandes, João, p. 40
Estêvão, Frei (franciscano), pp. 73 e 81 Fernando, D., pp. 45, 49, 74, 85, 119,
Estoire du Graal (de Robert de Bo- 120n., 123, 162, 166, 175, 181, 189,
ron), p. 59 191, 196, 206, 248n. e 267.
Estremadura, pp. 117 e 243 Fernando, D., conde da Flandres, p.
Estremoz, pp. 74, 129n. e 211 13
Estudos de Cultura Medieval, do P ." Fernando, infante D. (Infante Santo),
Mário Martins, p. 275n. pp. 56, 86, 91, 167, 218, 236, 263,
Estudos de Cultura Portuguesa, do 248n., 268, 269 e 272; virgindade
P ." Mário Martins, p. 73n. de, p. 56; mártir de Tânger, p. 73;
Estudos Gerais: ver Lisboa, Universi- sacrificado conscientemente pelo
dade de, e Coimbra, Universidade de infante D. Henrique, pp. 268 e 269
Estudos de História do Direito, de Fernando, infante D. (filho de
Paulo Merea, p. 225n. D. Duarte e pai de D. Manuel),
Estudos de Literatura Medieval, do pp. 8, 127, 128, 129-e 130
P ." Mário Martins, p. 108n. Fernando, infante D., de Aragão,
Ética, de Aristóteles, p. 108 regente de Castela, pp. 237 e 248n.
Ética a Nicómaco, de Aristóteles, Fernando 1, rei de Leão, p. 152
p. 123 Fernando III, rei de Castela, pp. 42,
Etimologias, de Santo Isidro, p. 108 116 e 136; morte de (tema trovado-
Etiópia, p. 273 resco), p. 20
Études sur /e Portugal et la Galice du Ferreira, António, p. 55
Vle au XIIe siéc/e, do P ." David, Fieschi, Ottobono (cardeal, futuro
pp. 151n. e 152n. papa Adriano V), p. 103
Euclides, p. 131 Filipe Augusto, rei de França, p. 13
«europeísmo», na história, p. 9 Filipe-o-Belo, rei de França, pp. 138
«Evangelho de S. João», p. 188 e 218
Évora, pp. 181 e 187; conquista de, p. Filipe-o-Bom, duque de Borgonha,
152; arcebispado de, p. 85 p. 273
Évora Monte, p. 211 Filipe-o-Ousado, rei de França, p. 104
Excalibur (espada do rei Artur na Filosofia, ensino da, p. 123; versus
Demanda do Santo Graal), pp. 60, Teologia, pp. 132 e 133
63, 64 e 65 Filosofia cristiana de los siglos XIII
Exortação da Guerra, de Gil Vicente, ai XV, de Carreras y Artaud,
p. 270 pp. 104n. e 107n.
expansão, fases da, p. 9; motivações Filosofia Moral, ensino da, p. 123
da, pp. 8 e 9, 235 a 247, 274, 275 Filosofia Natural, ensino da, p. 123
e 276; ver também também Guerra Fiore, abade Joaquim de, pp. 71, 72,
Santa e Reconquista em África 76, 79 e 80; milenarismo apocalíp-
Eymerich, Nicolau, p. 140 tico de, p. 81
Física, de Aristóteles, pp. 108, 114 e
Fabliaux, p. 14 123
Falcão, Frei Afonso (franciscano), p. Física, ensino da: ver Medicina
73 Flandres, pp .. 13 e 273

287
Florença, Praça da Senhoria de, p. 53 Gaia, João de (trovador), pp. 39-40
Flores de Direito, p. 15 Galaad (topónimo bíblico), p. 72
floresta (a) na Demanda do Santo Galaat, p. 62
Graal, pp. 64 e 66 Galaaz, pp. 57, 63, 64, 65, 66, 67, 69,
Fios Sanctorum, p. 91 70, 71, 72, 205 e 206; descendente
Fogaça, João, p. 251 de Salomão e novo Cristo, pp. 65,
Fragmentos Preciosos de Códices 66, 67, 70 e 71; carácter ascético e
Medievais, do P.° Avelino Jesus da messiânico de, p. 69; virgindade de,
Costa, p. 108n. p. 69
França,pp. 13, 14, 189,218,243,259, galego-português, língua lírica da
264 e 274; matéria de, p. 155 Península, pp. 19, 30 e 45; língua
Francesca (personagem da Divina poética da cristandade, p. 18
Comédia), p. 54 galeno, pp. 106 e 131
franciscanismo, pp. 134 e 139 Galiza, pp. 21, 35, 50, 77 e 81
Franciscanos, Ordem dos, pp. 71, 73 a Galvão (cavaleiro da tradição artu-
86, 88, 89, 97, 133, 134, 138, 139, 140 riana), p. 204; na Demanda do
e 214; movimento espiritual vasto, Santo Graal, pp. 65 e 69
vivo e dinâmico, p. 83; reacção con- Galvão, Duarte, p. 213n.
tra o espírito monástico, pp. 73, 83 e Gand, p. 13
84; regra da pobreza, pp. 74, 75, 76, Gante, João de, p. 238
81 e 83; prática do trabalho manual, Garamantes, p. 259
p. 78; auto-humilhação, p. 83; mile- Garcia; rei da Galiza, p. 156
naristas Uoaquimitas), pp. 76, 79, 80, Garcia, Maior (soldadeira), p. 35
81 e 82; corrente apocalíptica dos, Garcia, Pêro (trovador), p. 28
pp. 81 e 139; expansão em Portugal, Gasco, Monis, p. 154
p. 73; expansão social, pp. 73 e 83; Gasconha, p. 154
influência na corte, pp. 74 e 83; e nas Genebra (Guenievre, mulher do rei
classes populares, pp. 74 e 83; protec- Artur), pp. 23, 47, 57, 60, 69 e 206
ção papal aos, p. 75; excomunhão de, General e Grand Estoria (de Afonso
p. 80; acusações de relaxamento entre X-o-Sábio), pp. 14 e 273
os, pp. 76, 78 e 79; cisões (mendican- Génesis, p. 135
tes versus conventuais): ver conven- Geometria, ensino da, p. 116
tuais; via media, espirituais; f raticell~ germânica, matéria, p. 60
observantes Germanos, p. 60
Francisco, São: ver São Francisco Gerson, p. 140
/ratice/li (grupo mais ortodoxo dos Gide, p. 25
Franciscanos, pp. 75, 77, 80 e 81; Gilson, Étienne, p. 112n.
excomunhão dos, p. 80 Giotto, p. 186
Frederico II, p. 130 Godos, pp. 151 e 159
Freire, Anselmo Braamcamp, pp 167n., Góis, Damião de, p. 167
170n. e 267n. Gonçalves, Álvaro (assassino de Inês
Froissart, p. 189 de Castro), p. 51
Fuero Real, p. 15 Gonçalves, conde Fernão, pp. 157,
Fuero Real, Versão Portuguesa do 160, 164, 166, 207 e 240
Século XIII, pp. 15n. e 16n. Gonçalves, João, p. 274

288
Gonçalves, D. Martim (mestre da 245, 247, 266, 270, 271, 272, 273,
Ordem de Cristo), p. 266 274 e 276
Gcmçalves, Rui, p. 251 Guilhade, João Garcia de (trovador),
Graal, significação geral do símbolo, pp. 20, 27 e 37
pp. 61 e 69; recompensa da virgin- Guilherme d'Occam, p. 108
dade de Galaaz, p. 57; no Josep Guimarães, p. 185; bispado de, p. 85;
Abarimatia (vaso onde foi recolhido colegiada de, p. 117
o sangue de Cristo), pp. 61 e 62; ali- Guiné, pp. 260 e 274
mento miraculoso (divino), pp. 62, Guterres, Pêro (trovador), p. 28
64, 66 e 67; na Demanda do Santo
Graal, pp. 64, 65, 66 e 67; graça Heloísa e Abelardo, par amoroso céle-
espiritual permanente, pp. 66 e 67; bre, p. 55
sangue de Cristo, também na Henrique, conde Dom, p. 172
Demanda do Santo Graal, p. 66; Henrique, infante D., pp. 9, 55, 73, 86,
reservado a eleitos, p. 69; nova 120, 122, 127, 128, 129, 158, 205,
revelação, p. 71; mito cristão do, 218, 219, 244, 245, 249, 250, 251,
pp. 68, 206 e 215; herdeiro da tra- 252, 258, 259, 260, 262, 263, 267,
dição céltica e arturiana e do lirismo 268 a 276; espírito cavaleiresco e de
trovadoresco, p. 68; cristianização cruzada, pp. 9, 269 a 276; virgindade
progressiva das tradições herdadas, de, pp. 56 e 58; governador (e não
pp. 68 e 69 mestre, como desejaria) da Ordem
Graciano, p. 122 de Cristo, pp. 129, 267, 268 e 276;
«Gradeza» (generosidade, atributo dos governador de Ceuta, pp. 268 e 270;
fidalgos), p. 212 vontade heróica, pp. 275 e 276
Gramática, ensino da, pp. 114, 116, Henrique, rei de Castela (filho de
117, 119, 122, 123, 124 e 129 D. João de Castela), pp. 238 e 239
Granada, reino de, pp. 158, 237, 239, Herculano, Alexandre, pp. 15n., 16n.,
241, 243, 247, 266 e 271; conquista 17 e 156
de, p. 236; mouros de, p. 237 Hércules, trabalhos de, p. 254
Grave, Maria (soldadeira), p. 35 Heródoto, p. 203
Grécia, p. 160 Heur, Jean Marie d', p. 14n.
Gregório IX, papa, p. 122 Hipócrates, pp. 106 e 131
Gregório X, papa, p. 104 hispânica, cultura, p. 14
Gregório XI, papa, p. 140 Hispano, Pedro (papa João XXI),
Guadiana, p. 209 pp. 103 a 107, 108, 133 e 139;
Guarda, pp. 185 e 266 influência no ensino da Lógica e da
Guarda. Estêvam da (trovador). Medicina, pp. 104 a 107; experi-
pp. 26, 39 e 40 mentalismo e positivismo, p. 107
Gubernatum concilioram (Leme dos Histoire de la Philosophie Médiévale,
Concflios), de André Dias, p. 88n. de M. De Wulf, p. 106n.
Guerra dos Cem Anos, p. 13 História do Cavaleiro Túndalo, p. 109
Guerra Civil de 1383-85, pp. 7, 8, 74, História Chronológica e Crítica da
166, 169, 178 e 202 Real Abadia de Alcobaça, de Frei
Guerra Santa, pp. 9, 235, 236, 237, Fortunado de São Boaventura,
238, 239, 240, 241, 242, 243, 244, p. 107n.

289
História dos Descobrimentos, de A. de Ataíde e Melo, p. 107
Duarte Leite, p. 275n. Index Codicum Bibliothecae Alcoba-
Historia de la Doncella Teodora, tiae, p. 107n.
p. 136 Índia, projecto de viagem à, pp. 275
Historia de la filosofía espaflola - e 276
Fi/osofía cristiana de los siglas XIII Índias, plano das, p. 270
ai XV, de T. e J. Carreras y Artau, Índias, Preste João das, pp. 245, 270,
p. 144n. 272 e 273
História Genealógica, de D. António Inês de Castro: ver Castro, Inês de
Caetano de Sousa, p. i67n. Inês de Castro, de António de Vascon-
História da Igreja em Portugal, de celos, p. 53
Fortunado de Almeida, pp. 73n., Inglaterra, pp. 62, 181, 192, 218, 236
81n., 85n. e 87n. e 259
História de Portugal, de Joaquim de Inocêncio III, papa, pp. 75, 80, 93 e
Carvalho, p. 104n. 162
Historia Regum Britanniae, p. 68 Introdução ao Evangelho Eterno
História de São Domingos, de Frei (livro do joaquimita Frei Gerardo ·
Luís de Sousa, p. 90n. de Borgo San Domino), p. 76
História da Universidade de Coimbra, Inventário dos Códices Alcobacenses,
de Brandão e Almeida, p. 130n. pp. 138n. e 14ln.
História da Universidade de Coimbra, Isabel, D., duquesa da Borgonha
de Teófilo Braga, pp. 1lln., 115n. (filha de D. João I), pp. 7 e 97
e 128n. · Isabel, rainha D. (filha do infante
História de Vespasiano, p. 72 D. Pedro e mulher de D. Afonso
Homero, pp. 250, 255 e 256 V), pp. 92 e 219
Horto do Esposo, pp. 91 e 93 Isabel, rainha D. (Rainha Santa),
Hospital, Ordem do, p. 57 pp. 7, 49 e 73
Hroswitb.a, p. 92 Isaías, p. 144
Huesca, Estudo Geral de, p. 116 islâmica, cultura, p. 9
islamismo (em Portugal), p. 9
Ibéria, união da (sob o mesmo ceptro), Ismar, rei, pp. 163 e 164
pp. 7 e 8 Isolda, pp. 23, 47, 54, 60 e 64
Ibn Hazim (poeta árabe), p. 27 Israel, filhos de, pp. 61 e 62
Ideales de la Edad Média - Vida Itália, pp. 14, 16, 17, 82, 88n., 116,
Monástica, de W. Vedei, p. 88n. 243 e 259; cidades do Norte de, p. 9
Igreja, ostracismo voluntário (e sub-
sequente isolamento social) da, na Jacobo, Freu (franciscano), p. 78
Idade Média, p. 83; laicização da, Jacopone da Todi, Frei, p. 83
p. 84 Jaen, p. 137
Imitação de Cristo (atribuída a Tomás Jaime I, de Aragão e Castela, pp. 136
de Kempis), p. 96 e 137
Imitatio Christi (traduzida por Frei Jaime II, de Aragão, pp. 116, 136 e
João Álvares), pp. 97 a 99 138
Index dos Códices Alcobacenses da Jardo, Domingos Anes (bispo de Lis-
Biblioteca Nacional de Lisboa, de boa), pp. 40, 117 e 126

290
Jeremias, p. 72 39, 40, 41, 43 e 44; avareza dos
Jerusalém, p. 265; conquista de, nobres, p. 39; nobilitação de vilãos,
pp. 9, 61 e 236; destruição de, pp. 39 e 40; infracção dos valores
p. 155; peregrinação a, p. 35 sociais; crítica aos privados do rei,
João, Frei (monge de Alcobaça, autor p. 40
do Speculum Hebraeorum), p. 137 jogralesas e soldadeiras, pp. 35, 36 e
João, infante D. (filho de D. Pedro e 38
de D. Inês de Castro), pp. 167, 168, Josefes (filho de José de Arimateia),
179, 189, 191, 195, 201, 207 e 217 pp. 61, 62, 65, 67, 70, 71; sacerdó-
João, infante D. (filho de D. João I), cio espiritual de, pp. 61, 62, 65, 67,
pp. 218, 245, 246, 247, 261 e 262; 70, 71 e 72
e Maria Teles, amores narrados por Josep Abarimatia, pp. 63, 67, 69 e
Fernão Lopes, pp. 193 e 201 159; ver também Demanda do
João I, D., pp. 7, 8, 9, 16, 55, 72, 74, Santo Graal, versão portuguesa
86, 87, 88, 91, 122, 125, 126, 127, Journal d'un bourgeois de Paris,
129n., 140, 162, 166, 172, 175, 185, p. 189 .
192, 199, 200, 203, 204, 205, 211, Judeus, pp. 61, 135, 143, 235 e 236;
215, 216, 217, 218, 219, 228, 229, florescimento e influência da sua
236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, cultura, pp. 131, 136 e 143; perse-
245, 248n., 253, 262, 267, 268 e 271; guições dos, p. 143; polémica con-
casamento dé, p. 7; família de, tra os, pp. 135, 136, 137, 138, 139
pp. 55 e 140; filhos de, p. 238; pre- e 141
cursor de D. Sebastião, p. 8. Ver Junípero, Frei (franciscano), p. 79
também Avis, mestre de
João I de Castela, D., pp. 74, 166, Kempis, Tomás de, p. 97
167, 168, 185, 196, 198, 200 e 203 King, Larry, p. 58n.
João II, D., pp ..8, 9, 74, 85 e 276;
conflitos com a nobreza, p. 8 Lacedemónia, p. 160
João III, D., pp. 245 e 276 Lagos, pp. 242 e 272
João XXI, papa: ver Hispano, Pedro !ais de Maria de França, p. 14
João XXII, papa (Jacques d'Euse), Lamego, p. 152
pp. 76, 80, 81, 82 e 122 Lançarote do Lago (Lancelot, cava-
Joaquimitas (discípulos de Joaquim de leiro da tradição arturiana), pp. 23,
Fiore), pp. 72, 76, 79, 80, 81 e 82; 24, 57, 60, 63, 65, 68, 69, 72 e 204
milenaristas e messiânicos, pp. 76, Lang, Henry R., pp. 25n., 30n., 3ln.
79, 80, 81 e 82 e 34n.
jograis galego-portugueses, antigui- Lapa, Rodrigues, pp. 14n., 22n., 27n.,
dade dos, p. 18; conflitos com os 28n., 34, 35n., 36n., 37n., 38n.,
trovadores, pp. 36, 37 e 38 39n., 40n., 4ln., 43n., 44ri., 46n. e
jograis e trovadores: confraria inter- 63
nacional e migratória, p. 20; tendo La philosophie du Moyen-Age, de E.
como pátria toda a Espanha; mar- Gilson, p. l 12n.
ginalidade e boémia entre os, Lara, infantes de, p. 156
pp. 36, 37 e 38; temas que trata- Latinos, p. 60
vam: crítica de costumes, pp. 38, Laudes, de Jacopone de Todi, p. 88

291
Laudes e Cantigas Espirituais de lirismo galego-português, de fundo
André Dias (ed. por Mário Mar- tradicional, pp. 19, 20, 21 e 30; de
tins), pp. 88, 89 e 90 cariz peninsular, p. 21
Laura (de Petrarca), p. 25 lirismo provençal, aristocrático,
Leal Conselheiro, de D. Duarte, pp. 14, 19, 20 e 30; para a temática
pp. 55, 56, 73, 141, 216, 218, 220, ver amor trovadoresco
221, 226 a 235, 253; sentimentos da Lisboa, pp. 74, 104, 186, 194, 195,
suidade, pp. 230 e 233; e da tris- 196, 200, 201, 207, 208, 209, 214,
teza, pp. 230, 231, 232 e 233; con- 224, 232 e 262; arcebispado de,
cepção da sociedade, pp. 234 e 235 p. 85; centro da corte e capital do
Leão, Concílio de, p. 104 reino, p. 7; cerco de, pp. 74, 86,
Leão, corte de, p. 19; reino de, p. 264; 168, 169, 181, 184, 185, 207 e 208;
e Castela, reino de, p. 136; vertam- conquista de, pp. 152 e 240; insur-
bém Castela reição de (1383), p. 169; Sé de,
Leão, Frei (franciscano), p. 75 p. 213; Universidade de, pp. 117 a
Le château périlleux, p. 92 119, 125, 126, 127 e 135; criação da,
Leiria, pp. 73 e 262 pp. 117 e 118
Leis, ensino de, pp. 114, 118, 119, Lisboa, Frei Marcos de (franciscano),
122, 123 e 129 pp. 77, 79, 80 e 83
Leis das Sete Partidas, p. 36 Literatura arábigo-espanola, de A.
Leite, Duarte, pp. 260, 261 e 275n. Gonzalez Palencia, p. 13 ln.
Lencaster, casa de, p. 7 Livre des trais vertus pour l'enseigne-
Lencastre, rainha D. Filipa de, pp. 55, ment des princesses: ver Trésor de
73, 204, 205 e 241 la cité des dames
Leonel (personagem da Demanda do Livro do Amante, de John Gower,
Santo Graal), p. 64 p. 91
Leonoreta, personagem do Amadis de Livro das Cantigas, pp. 16 e 17
Gaula, pp. 45 e 46 Livro Chamado «Espelho da Cruz»,
Lérida, Universidade de, p. 116 p. 92n.
Liber de Catholicae fidei, de São Livro (O) da Corte Imperial, pp.
Tomás, p. 137 14ln., 142n., 145n. e 147n.
Liber Regum, p. 156 Livro do Deão, pp. 154, 155 e 156
Liber sextus, de Bonifácio VIII, p. 122 Livro de Galaaz, p. 16
Libra de Ajedrez, p. 14 Livro das Gerações, p. 156
Libra de los Gatos, p. 91 Livro (3. º) de Linhagens, p. 16
Libra de la Montería, p. 216 Livro de Linhagens do Conde D.
Libras dei Saber de Astronomia, pp. Pedro, pp. 154, 156, 158, 161, 168,
14 e 131 206, 212 e 216
licenciado, grau de, pp. 112, 113, 114, Livro dos Milagres do Nome de Deus,
118, 119, 124 e 125 de André Dias, p. 90
Lições de Filologia Portuguesa, de Livro da Montaria, pp. 216 a 218
Leite de Vasconcelos, p. 92n. Livro do Regimento dos Príncipes,
Lições de Literatura Portuguesa, de p. 255
Rodrigues Lapa, pp. 34n. e 46n. Livro das Três Vertudes e Ensinança
Lille, p. 13 das Damas (tradução da obra de

292
Cristina de Pisano), p. 219 181 e 182; ver também «amor da
Livro de Tristão, p. 16 terra», «direito de naturalidade» e
Livro das Trovas de El-Rei D. Dinis, providencialismo, na concepção da
p. 16 história de Portugal
Livro Velho de Linhagens, pp. 153n., Lourenço (jogral), pp. 20, 28, 37 e 38
154, 156, 157 e 158 Lucano, p. 257
Livro Verde, pp. 127n. e 129n. Luís XI, pp. 193
Livros Antigos Portugueses, de D. lulismo (ou reimonismo), pp. 134,
Manuel II, p. 92n. e 219n. 139, 140 e 141
Livros de Linhagens, pp. 153 a 165 Lúlio, Raimundo, pp. 108, 134, 138 a
Lobeira, João, p. 45 141, 144, 145 e 146; racionalismo
Lobeira, Vasco de, pp. 45 e 204 de, p. 139; influência de, p. 140
Lobo, Frei Gil (franciscano, confessor Luna, Pedro de: ver Bento XIII
de D. Duarte e de D. Afonso V), Lusíadas (Os), pp. 55, 203, 245, 256,
p. 73 257, 261, 264 e 276
Lógica, ensino da, pp. 111, 114, 116,
117, 119, 122, 123, 124, 126, 129 e Macedónia, p. 160
228; para Pedro Hispano, pp. 105 Machado, Barbosa, p. 219n.
e 106 Madeira, descoberta da, pp. 274 e 275
Logres, reino de, p. 67 Madrid, Biblioteca Nacional de,
Lombardo, Pedro, pp. 108 e 115 p. 274
Longinos, pp. 61 e 68 Mafaldo, Pêro, p. 43
Lopes, Elvira {soldadeira), p. 35 Magno, Alberto: ver Alberto Magno
Lopes, Fernão, pp. 7, 16, 47, 48, 50, Magno, Augusto, pp. 63n. e 92n.
59, 72, 74n., 156, 157, 162, 163, Magno, Carlos: ver Carlos Magno
165, 166 a 205, 208, 211, 217, 218, Magriço (personagem de Os Doze de
219, 224, 237, 241, 248, 249, 250, Inglaterra), p. 264
253, 258, 259 e 267; cronista da Maia, família da, p. 154
dinastia de Avis, pp. 166 e 167; legi- Maia, Gonçalo Mendes da, p. 157
timador da dinastia de Avis, Maimónides, p. 131
pp. 167, 168, 169, 170, 171, 172, Maiorca, p. 138
173 e 179; «épico», pp. 202 e 203; Mangancha, Dr. Diogo Afonso,
conceito de patriotismo, pp. 173, pp. 127 e 228
174, 175, 179, 180, 181, 202 e 203; Manuel, D. Constança (mulher de
concepção da história, pp. 175, 176, D. Pedro I): ver Constança, D.
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183 e Manuel, D. Juan (autor do Conde de
203; percepção da sociedade, Lucanor), p. 136
pp. 180, 181 e 182; estilo de, Manuel I, D., pp. 8, 9, 128n., 130 e
pp. 182 a 195, 199 a 202 (oralidade 143
- p. 200 e uso da retórica - Manuel II, D., pp. 92n. e 219n.
p. 201); realismo de, pp. 192, 193, Maomet, p. 135
194, 197 e 198; dramaticidade das mar Vermelho, p. 273
suas crónicas, pp. 189, 190 e 191; Maria (Virgem), culto de, pp. 86, 87,
modernidade de, pp. 195, 196, 197 212 e 214
e 198; originalidade, pp. 163, 180, Maria de França, p. 14

293
Marim, Frei Gonçalo (franciscano), Menina e Moça, de Bernardim Ri-
p. 77 beiro, pp. 25 e 59
Marinhos, estória dos, p. 156 Mensagem, de Fernando Pessoa, p. 55
Mariz, Pedro de, p. 219n. Meogo, Pêro, p. 32
Marques, J. M. da Silva, p. 129n. Merea, Paulo, pp. 15n., 16n. e 225n.
Marrocos, pp. 250 e 268; guerra de, Merlim, pp. 60, 61, 62, 63, 67, 68 e 72
pp. 244, 245, 246, 270, 272 e 274 Mesa Redonda (do Rei Artur), pp. 62,
Marrocos, Cinco Mártires de, p. 139 63, 64, 65, 66, 67 e 72
Marti, Ramón (autor de Pugio Fidei messiânica, corrente em Portugal,
contra Judaeos), pp. 137 e 140 p. 82
Martinho V, papa (Otão ou Eudes messianismo, na versão portuguesa da
Colonna), p. 140 Demanda do Santo Graal, p. 71;
Martins, Abílio, p. 144n. joaquimita, p. 82
Martins, D. Gil (mestre da Ordem de milenarismo joaquimita: ver Joaqui-
Cristo), p. 266 mitas e Fransciscanos, Ordem dos
Martins, Dr. Gil, p. 129 Minho, p. 7
Martins, Estêvão, p. 109 «mistérios» (representações da Paixão
Martins, P.e Mário, pp. 73n., 77n., de Cristo), p. 87
78n., 81n., 82, 83n., 88n., 89n., Moçárabes, p. 236
90n., 92n., 108n. e 275n. Modes Confidenti (Maneira de Se
Martins, Oliveira, p. 58 Confessar), de André Dias, p. 88n.
Matilde, D., mulher de D. Afonso III, Moisés, pp. 61, 70, 71e135
pp.13e14 Molteni, Enrico, p. 17n.
Mattoso, José, pp. 152n., 153n. e Monaci, Ernesto, pp. 17n., 22n., 42n.
154n. e 43n.
mecenato, pp. 7 e 6 monaquismo, decadência espiritual
Medicina, ensino da, pp. 112, 114, do, pp. 84 e 85; relaxamento, p. 85
117, 118, 122, 123 e 129; Faculdade Monarquia Lusitana, de Frei António
de, pp. 114 e 122 Brandão, p. 265
Mégara, bispo de: ver Dias, André Monarquia Lusitana, de Frei Fran-
Melo, A. de Ataíde e, pp. 107n. e cisco Brandão, p. 1l7n.
14ln. Moniz, Egas, p. 107n.
Melo, João de, p. 264 Moniz, Martim, p. 165
Memórias Soltas e Inventários do Monjas-boémias (no círculo de jograis
Oratório de S. Clemente das e trovadores), p. 41
Penhas e do Mosteiro de Nossa Monmouth, Geoffroi de, p. 68
Senhora da Conceição de Matosi- Monsaraz, p. 211
nhos, de Frei João da Póvoa, Montalegre, p. 211
p. 78n. Montalvo, Garci Rodriguez (ou Ordo-
Mendes-Gonçalves (condes portuga- fiez) de, pp. 44 e 45
lenses), p. 152 Montanha, Frei João da (franciscano
Meneses, conde D. Pedro de, pp. 243, observante), p. 78
244, 268, 270 e 271 Montemor-o-Novo, p. 211
Meneses, D. Duarte de, pp. 250, 263 Montemor-o-Velho, pp. 18 e 50
e 264 Montferrat, Bonifácio de, p. 18

294
Montpellier, p. 36; Universidade de, Nunes, Airas (trovador e clérigo),
p. 109 pp. 24, 41, 43 e 44
Monumenta Henricina, pp. 266n. e Nunes, José Joaquim, p. 22n., 23n.,
268n. 24n., 25n., 26n., 27n., 28n., 32n.,
Morderet (sobrinho do Rei Artur), 33n. e 78n.
p. 67
Moura, pp. 213 e 214; conquista de, observantes (cisão dos franciscanos,
p. 152 continuadora dos zeladores),
Mouros, passim pp. 76, 77 a 80 e 82
Moxa, Martim (clérigo e trovador), Occam, Guilherme de, p. 76
pp. 20, 40, 41, 43 e 44 Olivi, Pedro (franciscano), pp. 76, 80
Muçulmanos, polémica contra os, e 81
pp. 137, 138, 139 e 141 oralidade, na literatura medieval,
Música, ensino da, p. 116 pp. 219, 220; ver também Lopes,
Fernão, estilo
Nabucodonosor, p. 61 Oran, p. 9
Navarra, pp. 156 e 161 Ordem de Cristo: ver Cristo, Ordem
Navas de Tolosa, batalha de, pp. 236, de
238 e 240 Ordenações Afonsinas, p. 234
Nicodemus, Evangelho apócrifo de, Organon, de Aristóteles, p. 131
pp. 60 e 68 Oriana, personagem do Amadis de
Nicolau IV, papa, pp. 118 e 120 Gaula, pp. 45, 46 e 47
Niebelungos, p. 60 Oriente, cruzada do, p. 9
Nilo, pp. 259, 260, 270, 272 e 273 Orígenes, p. 108
nobreza: antiga, extinção da, pp. 7 e Ornelas, abade D. João de, p. 84
8; ligação a Castela, p. 7; nova Ossa, serra de, p. 85
(posterior a 1383), p. 8; influência Ourém, condado de, p. 210; conde de:
nacional crescente, p. 8 ver Andeiro, conde João Fernandes
Nome de Deus, culto do, pp. 86 e 88 Ourique, batalha de, pp. 18, 240 e
nominalismo, p. 140 246; milagre de, pp. 163, 164, 165,
Noronha, D. Rodrigo de (bispo), 166, 176, 197 e 246
pp. 128n. e 130 Ovídio, p. 47
novela (nos séculos xv1 e xvu), pp. 58 Oxford, centro cultural medieval,
e 59 p. 108; Universidade de, pp. 111,
Novo Jestamento, livros apócrifos, p. 68 113, 127 e 134
Novum Organon (de F. Bacon),
p. 140 Pacheco, João Fernandes, p. 204
Nun'Álvares Pereira, pp. 8, 16, 57, Paço Espiritual, na Demanda do
58, 156, 158, 169, 170, 171, 179, Santo Graal, pp. 67, 70 e 72; última
183, 184, 185, 192, 193, 196, 197, fase dos romances do ciclo do
201, 205 a 216, 228 e 238; ideal ascé- Graal, segundo Pierre David, p. 69
tico de, p. 57; admirador de Galaaz, Paço de Sousa, mosteiro beneditino
p. 72; voto de castidade por influên- de, pp. 85, 96 e 97
cia de Galaaz, p. 72; Frei Nuno de Pádua, Marsílio de, pp. 81 e 135
Santa Maria, p. 86 Pádua, Universidade de, pp. 113 e 133

295
Painéis (Os) do Infante Santo, de José e 54; símbolos do amor-paixão oci-
Saraiva, p. 258 dental, p. 54
Pais, alferes Pêro, p. 165 Pedro I, rei de Castela («o Cruel»),
Pais, Álvaro, p. 180 p. 206
Pais, Frei Álvaro (franciscano f rati- Pelágio, D., pp. 243 e 244
celli), pp. 80, 81, 134 e 135 Pelaio, p. 160
Pais, Gualdim, p. 268 Peles, rei: ver Rei-Pescador
Paiva, D. João Soares de, p. 18 Penhaforte, Ramón de, p. 136
Palamedes (personagem da Demanda Península Ibérica, foco de cultura
do Santo Graal), p. 66 árabe, p. 130; e judaica, p. 131;
Palencia, A. Gonzalez, p. 13ln. pátria de trovadores e jograis, p. 20;
Palestina, pp. 235 e 236 pretensões à unificação da: ver
Pallea (Palha), jogral, p. 18 Coroa peninsular, pretensões à
Palmela, p. 185 Pentescostes, festa do, p. 63
Papa (O) João XXI, de Egas Moniz, Perceval, personagem da Demanda do
p. l07n. Santo Graal, pp. 66, 67, 69 e 70;
Paris, centro cultural medieval, virgindade de, p. 69
p. 108; Universidade de, pp. 103, Pereira, Doutor Frei Vasco, p. 240
109, 111, 112, 113, 114, 115, 122, Pereira, Esteves, pp. 205n. e 217n.
123, 125, 127, 130 e 138; escola de Pereira, D. Gonçalo (arcebispo de
artes de, p. 130; Faculdade de Teo- Braga, avô de Nun' Álvares), p. 206
logia de, p. 130; escola episcopal de, Pereira, Nuno Álvares: ver Nun' Álva-
p. 111; escola da Sé de, p. 110; mes- res Pereira
tres de Artes de, p. 132; averroístas Pereira, prior D. Álvaro Gonçalves
de, p. 138 (pai de Nun'Álvares), pp. 156, 157,
Parma, Frei João de (franciscano espi- 172, 206 e 236
ritual), pp. 76, 78, 79, 80 e 81 Pereiras, família dos, p. 156
Partidas, de Afonso X-o-Sábio, p. 114 Peres, Gil, p. 159
Parva Natura/ia (conjunto de tratados Perion, rei (personagem do Amadis de
de Aristóteles), p. 123 Gaula), p. 46
Pastoreias, p. 21 Pérsia, p. 160
Pedro, D., conde de Barcelos (filho Pessoa, Fernando, p. 55
bastardo de D. Dinis), pp. 16, 17, Petrarca, pp. 24, 25, 27 e 93
40, 87, 154, 155, 156, 158, 159, 160, Pidal, Menéndez, pp. 36n. e 41
161, 165, 216 e 217 Piemonte, p. 18
Pedro, infante D. (filho de D. João I Pimenta, Alfredo, pp. 15n. e 16n.
e autor da Virtuosa Benfeitoria), Pina, Rui de, pp. 49, 50, 58, 167, 224,
pp. 87, 127, 128, 205, 218, 219, 220, 244, 245, 246, 247, 262, 272 e 274
221, 222, 223, 224, 225, 228, 229, Pirenne, Henri, p. 113n.
234, 254, 255, 262, 263 e 271 Pisano, Cristina de, pp. 92 e 219
Pedro I, D., pp. 47, 48, 49, 50, 51, 52, Plotino, p. 131
53, 54, 55, 175, 176, 179, 189, 192, Plymouth, p. 274
193, 206, 216 e 267; e Inês de Cas- pobreza, regra da, na Ordem de São
tro, sacralização e eternização do Francisco: ver Franciscanos, Ordem
amor,pp. 47,48,49,50,51, 52, 53 dos

296
poesia oral, extinção da, p. 8 história de Portugal), pp. 165, 166,
Poesia juglaresca, de R. Menendez 171, 172, 173 e 179
Pidal, pp. 36n. e 4ln. Prudêncio, p. 92
Política, de Aristóteles, p. 108 Pseudobernardo, p. 108
· Ponte, Pêro da Uogral), pp. 36, 38 e Pseudoboron (autor da versão em
42 prosa da Estoire du Graal), pp. 59
Porfírio, p. 106 e 68
Poridat de Paridades, p. 136 Psicomaquia (de Prudêncio), p. 92
Porte étroite, de Gide, p. 25 Ptolomeu, p. 131
Portel, p. 211 Pugio Fidei contra Judaeos, de
Porto, pp. 74, 79, 141, 180, 181, 184, Ramon Marti, pp. 137 e 144
185, 187, 194 e 208
Porto, Frei Gomes do (franciscano Quea, D., p. 204
observante), p. 78 Queimado, Rui (trovador), p. 27
Porto de Mós, p. 211 Quintiliano, p. 93
Portugal, afastamento de Castela Quinto Império, teologia do, em
(morte do «Portugal hispânico»), Vieira, p. 82
p. 7; consolidação política do Quita, Domingos dos Reis, p. 55
Reino, p. 7 Quixote (D.), personagem de Cervan-
Portugal Medieval, de José Mattoso, tes, pp. 188 e 261
p. 152n.
portugalense, região, pp. 151 e 152 Rabaçal, p. 211
Portugaliae Monumenta Historica, «racionalismo», na história, pp. 8 e 9
p. 15n.; ed. por José Mattoso, Raimundo, D., arcebispo de Toledo,
pp. 153n. e 154n. pp. 131 e 136
Portuguese (The) book of Joseph of Ramiro I, rei das Astúrias, pp. 158,
Arimathea, ed. por Henry Carter, 160 e 240
p. 62n. Ramiro II, rei de Leão, pp. 154, 156,
Póvoa, Frei João da (franciscano, 160 e 206
confessor de D. João II), pp. 74 e Rasis, mouro: ver Arrazi, Ahmed ben
78n. Mohammed
Prado, Frei Afonso (ou André?) do Rashdali, pp. 110, 111, 114n., 115n.,
(franciscano, autor do Relógio da 116, 123 e 124
Fe), pp. 73, 218 e 275 Reconquista, pp. 202 e 240; em
Primera Crónica General, de Afonso África, pp. 8, 9, 261, 262, 263, 270,
X-o-Sábio, pp. 14 e 47 271, 272, 273, 274 e 276; vertam-
Primeiro Livro de Linhagens (ou bém Guerra Santa
Livro Velho de Linhagens), rectores studentium (representantes
p. 152n. dos estudantes universitários), esta-
Príncipe Negro, p. 238 tuto dos, pp. 121 e 125
Provas da História Genealógica da Regimento de Príncipes, de Egídio
Casa Real, p. 130n. Romano, p. 218
Provença, pp. 18 e 19 Regras-, Dr. João das, pp. 129, 174,
provençal, joglaria (moda da), p. 19 175, 178, 179, 211, 212 e 224
providencialismo (na concepção da Reguengas de Alviela, p. 211 . :~

297
Rei-Pescador, pp. 62, 65 e 66 Roman d'Eneas, p. 47
Reis Católicos (Fernando e Isabel), Roman de Renart, p. 14
p. 8 Roman de la Rose, p. 14
reis trovadores, pp. 18 e 19 romance, origens do, pp. 57 a 60; ver
relaxados ou conventuais, entre os novela
Dominicanos, p. 86 romances arturianos, pp. 13, 14 e 16
religião, laicização e popularização da, romances em prosa, emergência dos,
pp. 84, 87, 88, 89, 90, 91 e 97; surto p. 13; ciclo da Demanda do Santo
da vida eremítica, pp. 85 e 86; deca- Graal, pp. 13 e 16
dência dos velhos mosteiros, pp. 84 Romano, Egídio, p. 218
e 85; reacções ao relaxamento Rómulo, p. 160
monástico, p. 97; interiorização e Ruysdael (místico flamengo), p. 97
fortalecimento do sentimento reli-
gioso, pp. 84, 85, 86 e 87 Saint Quentin, p. 13
religiosa, literatura de edificação, Salado, batalha do, pp. 157, 158, 160,
pp. 90 a 99 161, 172, 183, 206, 236, 238, 243,
Relógio da Fé (Horologium Fidei), de 244 e 246
Frei Afonso(?) do Prado, pp. 73, Salamanca, Universidade de, p. 109
218 e 275 Salerno, Escola de Medicina de, p. 130
Remédios, Mendes dos, pp. 57n., 85n. Salomão, p. 65; barca de, p. 67
e 97n. San Dominno, Gerardo de Borgo
Rendufe, mosteiro de, p. 88n. (franciscano joaquimita), p. 76
Resende, Garcia de, pp. 54 e 55 Sanches, Afonso (filho bastardo de
Retórica, ensino da, pp. 116 e 122 D. Dinis), p. 16
Revista da Faculdade de Letras, Sanches, Gil (filh.o bastardo de
p. 166n. D. Sancho I), pp. 18 e 19
Revista Filológica, p. 92n. Sanches, João (copista do Josep Aba-
Revista da Universidade de Coimbra, rimatia), pp. 62 e 159
pp. 15n. e 117n. Sanches, João, túmulo de, p. 217
Revue HiStorique, p. 36n. Sancho, rei de Leão, p. 156
Ribatejo, p. 117 Sancho I, D., pp. 15, 18, 19, 23 e 93
Ribeira, Frei António da, p. 159 Sancho II, D., pp. 13, 20, 43, 83, 161
Ribeira, D. Maria Pais, p. 23 e 162
Ribeiro, Bernardim, p. 25 Sancho IV, rei de Castela, pp. 48 e 136
Ribeiro, Gonçalo, p. 264 Sancho Pança {personagem de Cer-
Ribeiro, João Pedro, pp. 88n., 97n. e vantes), pp. 188 e 261
127n. Santa Clara, Mosteiro de, pp. 47, 49
Ribela, Rui Pais de (trovador), p. 26 e 50
Rio Maior, p. 211 Santa Cruz, cónegos regrantes de,
Ródano, p. 138 pp. 103, 117, 118 e 165; escola con-
Rodes, pp. 138 e 206 ventual de, p. 109; livraria de,
Rodrigo, rei (último rei dos godos), pp. 105, 107, 151 e 154; Mosteiro
pp. 157, 159, 160 e 239 de, p. 117
Roma, pp. 67, 70, 85, 88n., 114e262; Santa Fé, Jerónimo de, p. 137
matéria de, pp. 60 e 155 Santa Maria Egipcíaca, p. 108

298
Santa Maria de Guimarães, Igreja de, São Francisco, pp. 74, 75, 76, 77, 78,
p. 104 79, 81, 82, 84, 93, 137 e 139
Santa Pelágia, p. 109 São Gregório, pp. 93 e 108
Santa Teresa de Ávila, pp. 26 e 94 São Jerónimo, pp. 93 e 108
Santana, Frei José Pereira de, São João de Acre, p. 266
pp. 213n., 214n. e 215n. São João de Jerusalém, cavaleiros de:
Santarém, pp. 74, 81, 104, 152, 163, ver Carmelitas
183, 184, 185, 186 e 195; tornada de, São Jorge, pp. 202, 212 e 244
pp. 152, 161, 162, 163, 165, 240 e São Luís (de França), pp. 13 e 136
265; Santa Maria da Alcáçova de, São Paulo, pp. 173, 225, 229 e 230
p. 117 São Pedro, pp. 70 e 171
Santarém, Fernão Martins de, p. 264 São Pedro Pascoal (bispo de Jaen),
Santiago, João Airas de (trovador), p. 137
pp. 20 e 28 São Pedro do Sul, p. 78
Santiago, apóstolo e cavaleiro de, São Tomás de Aquino, pp. 13, 104,
pp .. 193, 202, 212, 240, 243, 244, 108, 111, 133, 134, 137, 138, 139,
245 e 246 144, 223, 225 e 236
Santiago, mestre de, p. 210 São Vicente, p. 186
Santiago, província franciscana de, São Vítor, abadia de, p. 108
p. 77 São Vítor, Ricardo de, p. 108
Santiago de Compostela, pp. 20, 41, Saragoça, p. 44
44 e 154; arcebispo de, p. 181 Saraiva, José, pp. 58n. e 258n.
Santo Agostinho, pp. 93, 98, 108, 109, Sarracenos, conversão dos, p. 138; ver
132, 133, 135, 144 e 225 também Muçulmanos
Santo Aleixo, p. 109 Sarraz, p. 67
Santo Ambrósio, pp. 93 e 108 Saxões, p. 60
Santo Anselmo de Cantuária, pp. 108, Saxónia, Ludolfo de, pp. 87, 97 e 109
139 e 144 Sebastião, D., pp. 8, 58, 242, 245, 249
Santo António, pp. 76 e 134 e 276; Nun'Álvares póstumo, p. 58
Santo Isidoro, pp. 108, 137 e 138 Segredo dos Segredos (atribuído a
Santo Tirso, p. 152n. Aristóteles), p. 218
Santos, p. 206 Seldjucitas, muçulmanos, p. 236
Santos, Frei Manuel dos, p. 108n. Sendebar, p. 136
São Bartolomeu, pp. 51 e 52 Séneca, p. 93
São Bento, Regra de, p. 85 Sentenças, de Pedro Lombarda,
São Bernardo, pp. 87, 93, 108, 111 e pp. 108 e 115
134, 135 e 265 Sentiers dans laforêt du Saint Graal,
São Boaventura, Frei Fortunato de, de Pierre Davis, p. 68n.
pp. 13, 75, 78, 79, 107n., 108, 133 Sérgio, António, p. 270
e 139 Serpa, conquista de, p. 152
São Brandão, p. 269 Sesrnariàs, Lei das, p. 85
São Domingos, pp. 88 e 133; Igreja Sete Partidas, livros das, p. 14
de, p. 90; Mosteiro de, p. 89; Sete Salmos Penitenciais, de Francisco
Ordem de: ver Dominicanos Petrarca, p. 93
São Fernando, p. 20 Sevilha, pp. 8, 131 e 186; conquista

299
de, pp. 236 e 238; tema trovado- 245, 261, 262, 263, 268 e 272; der-
resco, pp. 20 e 42 rota de, pp. 8, 73, 242 e 262
Sicília, Reino das duas, p. 130; foco Targumin, p. 143
de cultura árabe, p. 130 Tarouca, abadia de São João de, p. 85
Siena, Escola de, p. 143; Universidade Tarouca, Carlos da Silva, p. 162
de, p. 103 Társis, p. 109
Silva, Frei Amadeu da (franciscano Tartária, p. 138
joaquimita, no século João Mene- Tavira, p. 270
ses da Silva), pp. 82 e 83 Távola Redonda, cavaleiros da,
Silva, João Meneses da: ver Silva, Frei pp. 2Q3 a 205; ver também Breta-
Amadeu da nha, matéria de
Silva, Rui Gomes da (pai de Frei Ama- Tejo, pp. 186, 201 e 211
deu da Silva), p. 82 Teles, Leonor, pp. 55, 74, 168, 179,
Silves, bispado de, p. 81 183, 189, 190, 191, 192, 193, 196 e
Sintra, p. 182; Palácio de, p. 9 206
Sintra, Frei Rodrigo de (franciscano), Teles,-D. Maria, pp. 189, 193, 201 e
p. 74 267
Síria, monges da, p. 99 Telo, conde João Afonso, pp. 170,
Sirventés, p. 43 196 e 199
Sobre a Data da Introdução na Penín- Tempier, Estêvão (bispo de Paris),
sula Ibérica do Ciclo Arturiano da p. 104
Post- Vulgata, de Ivo de Castro, templário, espírito, p. 9
p. 63n. Templários, Ordem dos, pp. 9, 58, 265 e
Soissons, Concfüo de, p~ 111 266; influência dos, pp. 58, 265 e 266
Sorbon, Roberto, p. 115 Tenório, Mem Rodrigues (trovador),
Sorbonne, p. 115 p. 37
Soure, castelo de, p. 266 Teologia, ensino da, pp. 111, 112,
Sousa, D. António Caetano de, 114, 121, 122 e 128; Faculdade de,
p. 267n. pp. 114, 115, 117, 118 e 119
Sousa, Frei Luís de, p. 90 Teresa, D., amores de, p. 55
Sousa, Gonçalo de, p. 165 Terra de Baltar, p. 211
Sousa, Lopo Dias de (filho de Maria Terra de· Basto e de Pena, p. 211
Teles), p. 267 Tertuliano, p. 246
Speculum Hebraeorum (de Frei João), Tetuão, p. 263
p. 137 Textos Arcaicos, de Leite de Vascon-
Stendhal, p. 198 celos, p. 92n.
Suero de Quifiones, p. 264 Thesaurus pauperum, de Pedro His-
Suma, de São Tomás, p. 224 pano, pp. 104 e 105
Summa contra Gentes, de São Tomás Tiópios, p. 259
de Aquino, pp. 137 e 144 Tito Lívio, pp. 250 e 255
Summulae logicales, de Pedro His- Todi, Frei Jacopone de, pp. 83 e 88
pano, pp. 104, 105 e 106 Toledo, pp. 7, 16, 130, 131, 136e 152;
conquista de, p. 240; capital cultu-
Ta/mude, p. 131 ral da Espanha, p. 7; corte caste-
Tânger, expedição de, pp. 239, 244, lhana de, p. 7

300
Tomar, pp. 209 e 267n. dependência em relação ao poder
Tópicos e Elencos, de Aristóteles, real, pp. 127, 128, 129 e 130; auto-
p. 108 nomização em relação ao mesmo,
Torneol, Nuno Fernandes (trovador), p. 130; e em relação ao ensino
p. 28 monástico, p. 111; importância
Toro, batalha de, p. 7 social da, p. 111; graus universitá-
Tortosa, p. 137 rios, pp. 124 a 126; ver também
Torre do Tombo, pp. 162, 166, 167 e licenciado, grau de doutoramento;
176 organizada como Universitas
Tosão de Ouro, Ordem do, p. 273 magistrorum, pp. 112, 113 e 120;
Toulouse, Universidade de, p. 109 Universitas scholarium, pp. 112,
Toura, p. 143 113 e 120; e Universitas mercato-
Trancoso, p. 169 rium, p. 113
Trava, conde D. Fernando Peres de, Universidade de Paris: ver Paris, Uni-
p. 55 versidade de
Trésor de la cité des dames (de Cris- Universities (The) of Europe in the
tina de Pisano), p. 92 Middle Ages, de Rashdall, pp. llOn.,
Trindade, frades da, p. 212 llln., 114n., 115n., 116n., 123n. e
Tristão, pp. 23, 47, 54, 64, 68, 72 e 124n.
204 Urbano, papa, p. 171
Tristão, Nuno, p. 274
Tristão e Isolda, p. 60 Valarte (fidalgo escandinavo), p. 273
Tróia, pp. 155 e 160 Valdenses, p. 135
Troies, Chrétien de, pp. 13 e 59 Valência, p. 116; tomada de (tema tro-
Troubadours d'hoc et troubadours vadoresco), pp. 20 e 42
galiciens-portugais, de Jean-Marie Valente, Martim Afonso, p. 169
d'Heur, p. 14n. Valhadolid, Afonso de, p. 137
Trovas, de Bandarra, p. 82 Valverde, pp. 212, 213 e 215
Túlio, p. 174 Van Eyk, p. 273
Túsculo, p. 104 Vaqueiras, Raimbaut de (trovador
provençal), p. 18
união ibérica, ideal de, pp. 7 e 8 Varatojo, Convento do, pp. 73-74
Universidade hispânica, especificidade Variante Ampliada da Primeira Cró-
da, p. 116 nica Geral, p. 158
Universidade portuguesa, pp. 109 a Vasconcelos, António de, pp. 53n. e
110, 114, 117, 118, 119e 120; fun- 117n.
dação em Lisboa, pp. 117, 118 e Vasconcelos, Carolina Michaelis de,
126; transferência para Coimbra, pp. 14n., 15n., 17n., 18n., 21n.,
pp. 118 e 119; nova transferência 26n., 28n., 29n. e 45n.
para Lisboa, p. 119; transferência Vasconcelos, Leite de, pp. 92, 93, 156
definitiva para Lisboa pelo mestre e 158
de Avis, p. 129; estatutos e organi- Vasconcelos, Mem Rodrigues de,
zação interna da, pp. 120 e 121, p. 204
precaridade da, p. 120; matérias Vasques, Martim (jogral), p. 36
curriculares, pp. 115, 121 a 124, Vaz, Álvaro, p. 85

301
Vedei, W., p. 88n. Visigodos, p. 135
Velho do Restelo, episódio do, n'Os Vila Christi, de Ludolfo de Saxónia,
Lusíadas, pp. 245 e 276 pp. 87 e 109
Veloso, Queirós, pp. 104n. e 105n. Vita Sancti Teotoni, p. 152
Verba, Frei João de, p. 219 Viterbo, palácio papal de, p. 104
Vergel de Consolação, p. 87 Vitória, Igreja de Santa Maria da (na
Verlaine, p. 32 Batalha), p. 213
Vespasiano, p. 61 Vivas (ou Bibas), Joi.i.o, p. 62
Via Media (tentativa, feita por São
Boaventura, de compromisso entre Wace {autor do Brut), p. 68
zeladores e conventuais) ·Waterloo, batalha de (descrita por
Viana, conde de, p. 181 Stendhal), p. 198
Viana do Castelo, Convento de São
Francisco de, p. 77
Vicente, Gil, pp. 141, 235, 270 e 276 Xira, Frei João de (franciscano),
Vida de Barlaão e Josafate, p. 99 pp. 74, 240, 242 e 270
Vida de Maria Egipcíaca, p. 99
Vida de Santo Aleixo, p. 99 Zarco, João Gonçalves, p. 275
Vida de São Teotónio, p. 163 zeladores (zelanti, grupo de francisca-
Vidigueira, p. 211 nos que se manteve fiel à regra de
Viegas, Lourenço, p. 165 pobreza depois da morte do funda-
Viena, p. 88n.; Concílio de, p. 138 dor), pp. 72, 75, 76, 77 e 78
Vieira, P.e António, p. 82 zeladores ou observantes entre os
Vieira, Frei Nicolau, p. 84 Dominicanos, p. 86
Vigo, p. 20 Zurara, Gomes Eanes de, pp. 45, 55,
Vila Alva, p. 211 57, 58, 87, 128, 158, 167, 178, 197,
Vila de frades, p. 211 200, 204, 219, 229, 236, 237, 238,
Vila Franca, Santo António de, p. 159 239, 241, 242, 243, 244, 245, 248 a
Vila Ruiva, p. 211 265, 269, 270, 272 e 274; panegi-
Vila Viçosa, Palácio Ducal de, p. 274 rista, pp. 250, 251, 253 e 262; con-
Vingança (A) do Salvador, p. 68 cepção da história, p. 251; espírito
Virgílio, p. 47 aristocrático e cavaleiresco, pp. 251,
Virtuosa Benfeitoria (do infante D. 252, 253, 260, 261, 264 e 265;
Pedro), pp. 87, 218, 219, 220, 221 importância. conferida ao escritor,
a 226, 234, 254 e 255 pp. 255, 256, 257 e 258; escritor
Visão de Túndalo, p. 92 renascentista, pp. 253, 255, 256,
Viseu, pp. 152 e 160; convento fran- 257, 258, 259 e 260; cronista do
ciscano de, p. 77; ducado de, infante D. Henrique, pp. 258, 259,
p. 268; duque de (pai de D. 262 e 269; falsificador de documen-
Manuel): ver Fernando, infante D. tos, p. 269

302
ÍNDICE
Intróito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

PARTE I

AS EXPRESSÕES DA AFECTIVIDADE

§ 1. A corte dos trovadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


§ 2. Os cancioneiros.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
§ 3. A tradição dos jograis galegos nas cortes hispânicas ................... : 18
§ 4. ·A arte de amar dos trovadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
§ 5. Alguns temas das cantigas de amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
§ 6. Fórmulas e senrimentos nos cantares de amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
§ 7. Galegos e Provençais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
§ 8. A boémia jogralesca .......... ·. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
§ 9. Alguns temas jogralescos ........................... : . . . . . . . . . . . . . . . . 38
§ 10. Os acontecimentos e os poetas vistos nos cancioneiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
§ 11. O Amadis de Gaula como expressão idealizada da corte trovadoresca..... 44
§ 12. Amor e morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
§ 13. Os túmulos de Alcobaça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
§ 14. Amor humano e ascese cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 55
§. 15. As origens modernas do romance. ·.: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
§ 16. A matéria de Bretanha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
§ 17. O ciclo do Santo Graal.............................................. 61
§ 18. Qual era o simbolismo da Demanda? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
§ 19. Os Franciscanos em Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
§ 20. Divisões entre os Franciscanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
§ 21. Franciscanos e espirituais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
§ 22. A reforma dos observantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
§ 23. Frei Álvaro Pais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
§ 24. O beato Amadeu da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
§ 25. Difusão da nova religiosidade......................................... 83
§ 26. A decadência dos antigos mosteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
§ 27. Os Dominicanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
§ 28. Novas devoções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
§ 29. Laudes e cantigas espirituais de mestre André Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
§ 30. Outras obras espirituais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
§ 31. Uma tradução portuguesa da Imitação de Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

PARTE li

A ACTIVIDADE INTELECTUAL

§ 32. Pedro Hispano: um escolar português na Europa....................... 103


§ 33. A livraria de Alcobaça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
§ 34. Precedentes da Universidade em Portugal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
§ 35. O movimento europeu das universidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
§ 36. As universidades na Espanha......................................... 116
§ 37. O Estudo Geral de Lisboa-Coimbra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
§ 38. A segunda fundação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
§ 39. A organização interna da Universidade portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
.,.. § 40 . A Universidade e o direito público. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
§ 41. A matéria dos estudos............................................... 121
§ 42. Os graus universitários ............ '. ..... '... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
§ 43. Os mestres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
§ 44. Os colégios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
§ 45. A Universidade e a centralização do poder político . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
§ 46. Tendências filosóficas na Europa ocidental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
§ 47. A polémica em torno de Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
§ 48. Um heterodoxo em Lisboa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
§ 49. Escritos antijudaicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
§ 50. Raimundo Lúlio em Portugal ..... : . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
§ 51. A Corte Imperial.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

PARTE III

VALORES E CRITÉRIOS DE ACÇÃO

§ 52. Os anais históricos antigos... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151


§ 53. Os livros de linhagens....... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
§ 54. O refundidor do título xx1 ................... , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
§ 55. A Crónica Geral de Espanha de 1344...... . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . 158
§ 56. A Crónica de Portugal de 1419 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
§ 57. A primeira narrativa do milagre de Ourique . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
§ 58. Fernão Lopes cronista da nova dinastia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
§ 59. A legitimidade dinástica e o direito patriótico de naturàlidade . . . . . . . . . . . 167
§ 60. Que significa «O evangelho português»? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
§ 61. Uma teoria biológica do patriotismo.................................. 173
§ 62. Fernão Lopes como historiador ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
§ 63. O ponto de vista de Fernão Lopes.................................... 177
§ 64. A arte narrativa de Fernão Lopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
§ 65. Os protagonistas individuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
§ 66. Os protagonistas colectivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194
§ 67. Fernão Lopes e o espírito cavaleiresco .,,. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
§ 68. A fala.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
§ 69. Fernão Lopes e a epopeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
§ 70. A nova Távola Redonda............................................. 203
§ 71. Infância e mocidade de Nun 'Álvares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
§ 72. Frei Nuno de Santa Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
§ 73. A tradição literária na corte de D. João 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
§ 74. A teoria da sociedade segundo o infante D. Pedro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
§ 75. O Leal Conselheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
§ 76. O regresso de Sant'lago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
§ 77. Historiografia e honra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
§ 78. A Ordem de Cristo em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
§ 79. O ,último templário ................................ , . . . . . . . . . . . . . . . . 268
Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
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OBRAS DE ANTÔNIO JOSÉ SARAIVA

1. O CREPÚSCULO DA IDADE MÉDIA EM PORfUGAL


2. POESIA E DRAMA
3. A TERI'ÚLIA OCIDENTAL
4. A CULTURA EM PORI'UGAL 1
5. A CULTURA EM PORI'UGAL II
6. ESTUDOS SOBRE A ARI'E D'OS LUSÍADAS
7. GIL VICENTE E O FIM DO TEATRO MEDIEVAL
8. AS CRÓNICAS DE FERNÃO LOPES
9. SER OU NÃO SER ARI'E
10. INICIAÇÃO NA LITERATURA PORTUGUESA
11. PARA A HISTÓRIA DA CULTURA EM PORTUGAL I
12. PARA A HISTÓRIA DACULTURA EM PORTUGAL II
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