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A OBRA

Este livro é uma cootrfüuição para


a necessária revisão <las ideias cor-
nnres acerca das causas, função e
conlS'equênclas da Inquisição portu-
gu'esa. C laro que e-nquanto não fo-
rem estudados os quarenta mil pro-
cessos inqui·s itoriais elcistentes oo Ar-
qui vo Nacional da Torre do Tombo.
que enquanto esse vasto e trágico
material 'Dão res.sur'gk IJ>Or virtude
de uma investigação minucicsa e sis-
temática, é difícil afirmar que esta
int~rpretação dos factos relacionados
com a actividade da Inquisição e
que aqui se dão como característicos
do seu carácter e definidores da sua
intencionalidade, é exada. Desde já,
no enta nto, é possiwl dizer-se que
indo •além de A'ntónio Joaquim Mo-
re·ira, Alexandre Herculano. Lúcio
de Azev·~do, António Baião e outros
historiadores e eruditos, António
José Saraiva apresenta uma inter-
pretação mais larga e mais obje<:tiva
d<> uma relevante faceta da nossa
história económica, social e cultural.
Neste livro a Inquisição não ê apre-
Sle'lltada como o imediato produto de
um obscurantismo fanático ou como
a consequência directa de um vio-
lento anti-semitismo. A Inqu'isição
portuguesa, caus'3 e consequên<:fa de
candições sociais determinadas, re-
fle-cte contradições graves de uma
época da vida nacional e é nesse
contexto social e histórico. objecti-
vamente. que António José Saraiva
a estuda.

*
A ~ OUISI O
PQ TUGU A
Pelo Di ANTÓNIO JOSt S

Publicaçoes
E UROPA-AMERICA
A INQUISIÇÃO PORTUGUESA

' .
..

;
OUTRAS OBRAS DO AUTOR
Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval - 1942.
Para a História da Cultura em Portugal - 1946.
As Ideias de Eça de Queirós (Prémio da Academia) 1946.
A Escola - Problema Central da Nação 1947.
A Obra de Júlio Dinis e a sua tpoca - 1949.
A Evolução do Teatro de Garrett - 1949.
Herculano e o Liberalismo em Portugal - voL 1, 1950.
História da Cultura em Portugal - vol. I, 1950; vol. o, 1955.
Fernão Lopes - Colecção «Saber> - 1953.
O Caprichismo Polémico do Sr. António Sérgio - Porto,
1952.
Herculano Desconhecido - Porto, 1953.

EDIÇ{}ES ESCOLARES:

tcloga de Crisfal (Prefácio. texto e notas) - 1939.


A Lírica de Camões (Prefácio, selecção e notas) - 1940.
«Camões e D. Branca», de Garrett (Prefácio, selecção e
notas) - 1943.
«Folhas Caídas» e Outros Poemas de Garrett (Prefácio,
selecção e notas) - 1943.
«Lendas e Narrativas», de Alexandre Herculano - Lisboa,
1919.
t
Oolecçilo SABER
cO SABER NÃO OCUPA LUGAR>

-
A INQUISIÇAO
PORTUGUESA
por
ANTÓ:\IO JOSÉ SARAIVA

PUBLICAÇõES EUROPA...Al\-ltRICA
45, RUA DAS FLORES
LISBOA
NOTA PMVIA

Os quarenta mil processos inquisitoriai.s {número redondo)


existentes na Torre do Tombo constituem um sarcófago mons--
truoso atulhado de tesouros que permitirão um dia fazer uma
história social portuguesa, ricE1111entc documentada. do período
que vai de 1540 a 1760, aproximadamente.
Só quando esse material ressurgit' â luz da imprensa serlt
possível tentar a história da Inquisição portuguesa. Até hoje
- exceptuando o trabalho de Herculano para o período de
1531-1546- apenas se flzerEl111 sondagens, e sem qualquer li-
nha sistemática. Nada nos diz que a sonda lançada por An...
tónio Joaquim Moreira, António Baião, Lúcio de Azevedo e
outros beneméritos eruditos tenha tocado os pontos significa-
tivos que nos permitam traçar um perfil, mesmo grosseiramente
aproximado, do fundo que as águas do tempo e da nossa
própria ignorância encobrem.
Mas sobretudo esses esforços üolodos tém sido conduzidos
sem qualquer fio explkaHvo. Dá-se por suposto que a Inqui-
sição é o produto do obscurantismo fanático; querendo afastar-
-se desta estrada batida, Lúcio de Azevedo veio a cair noutra
mai.s batida ainda, pois adoptou como explicação, à falta de
ideias próprias, todos os precon.ceitos racista,s dos próprios in·
quis/dores, restaurados pelo anti-semitismo do século XX.
Este tz.abalho, que em parte entrou na Histõrla da Cultura
em Portugal, pretende contribuir para a revisão das ideias cor-
rentes acerca das causas, função e consequéncias da Inquisição
portuguesa. As .tUSS conclusões estão sujeitas aos riscos ineren-
tes a tudo o que sobre a 1nquisição se diga enquanto não se
fizer o estudo .sistemático do material da Torre do Tombo. Mas
Julgo que esse risco é de corre" porque de qualquer modo exis-
tem ideias correntes, vulgarizada.s, sobre a Inquisição, e espero
que a Interpretação aqui proposta as substituirá com vantagem
para uma correcta interpretação do material até hoje publicado.
De entre as fontes publicadas, procurei aproveitar aquelas
que oferecem mais segurança, especialmente os regimentos da
Inquisição e as Noticias Recônditas do Modo de Proceder da
•Inquisição com os Seus Presos: ambas têm a vantagem de nos
oferecerem, não casos isolados, amostras não aferida.s. mas
descrições sistemáticas de instituições, cujo valor documental
não oferece dúvidas.
A função a que se destina este volume não permite indicar
a bibliografia compkta em que se fundamenta. O leitor cur1bso
pode procurá-la na História da Cultura em Por~ugal.

O AUTOR
CAPITULO I

INTRODUÇÃO

Os tribunais do Santo Ofício da Inquisição foram estabele-


cidos no século XIII para activar a repressão de heresias que
nessa época deflagravam. Costuma datar-se do concilio pro-
vincial <le Tolosa, em •1229, ll!pós o extermínio à mão arma<la
dos Albigenses, o estabelecimento efectivo da Inquisição no
Sul da França. O papa entregava normalmente as fonções de
inquisidor'es a membros da Ordem de S. Domingos, ou Ordem
dos .Pregadores, <fundada especialmente ipara o combate às ·he-
resias. No concilio provincial de Bézlers, em 1245, es~lece­
0

ram-se as principais regras ~rais do 1Proc~o inquisitorial.


Nascida no Sul da França, foco de heresias, a Inquisição alar-
gou-se depois, com maior ou menor êxito, ao Norte de Itália,
ao Norte da França, onde a .sua acção pouco se fez sentir, e
ao reino de Aragão, na Península Ibérica. Aqui a sua aotividade
foi intensa. Mas não se generalizou ao resto da Península,
Castela e Portugal, onde as heresias foram cscass8$ e, ipode
dizer-se, não hâ vestigio.s de tentativas para estabelecer os tri-
bunais inquisitoriais.
No final do século xv as fogueiras inquisitoriais estavam
extintas ~or quase toda a parte e o nome de inquisidor não
passava de um titulo ou de uma recordação. Para isso haviam
contribuído diversas causas, e ipriocipalmente os conflitos entre
os prlncipes e o papa. Sem a cooperação daqueles os tribunais
da ,fé não podiam funcionar. As últimas fogueiras crepitavam
ainda em Aragão.

. ,.,
10 A INQU!SJÇAO PORTUGUESA

Ocorre então que os reinos de Aragão e de Castela se uni·


ficam ipelo casamento -dos reSa>ectlvos herdeiros, Isabel e Fer-
nando, os Reis Católtcos. E a chama inquisitorial •transpõe as
fronteiras de Aragão, onde jã esmorecia, e vem reacender-se
em Castela primeiro, em Portugal depois, com uma !força que
ultrapassa de longe a dos seus melhores dias do século Xlll.
Encontrava um novo combustlvel nos seus novos territórios -
os «Cristãos-Novos>.
S iporta·nto quando esta.v a íã extinta nos seus ipafses de
origem que a •Inquisição vem recomeçar uma nova história em
países que eté então a desconheciam. A ilnqulsição eSIJ)anhola,
criatda cerca de a-4~1. !llão apenas se estendeu a Portugal como
veio a estimular a criação da Inquisição romana e de outras
foquisições na Itália e espalhar-se pelos •teTrltórios portugueses
e caste1'hanoo na América, Ásia e Alfrica.
Este !facto ipede uma elt'J)licação, que nos Interessa sobretudo
em relação ao nosso ll)ais. O estabelecimento da lnquis-lção aqui
e em Castela é à a>rimeira vista sunpr«ndente se <considerarmos
que em ambos est~ remos a revolta ttligiosa conhecida pelo
nome de ReJonna te<ve pouca reper<u.ssão; e que, ipor outro
fado, o antigo contaicto dos Gdstãos da ·P enínsula com os
Muçulmanos e os Hebreus criara uma situação de coexistência
e tolerância de icultos que tomava a>O.SSivel o culto rpúblico,
pelo men~ da r.eligião hebraica. Como se 't?JCPlica que estes
países, que a Reforma mal abrangia e onde a tolerância reli-
giosa era tradicional, tenham -dado à história da Inquisição as
suas ipãgi'nas mais •brilhantes - brilhante! de uma labateda de
inc~ndio? Pretendemos neste trabalho <contrJbuir para a exi>ll~
cação rde-ste facto, e;parentemente estranho -e que tanta ' imrpor·
tân<:la •teve na história iposrerlor da Peninsu1a Ibérica.
Antes de iprosseguir convém atentar um rpouco na estrutura
1SOCial, aliás ainda ihoJe mal conhecida, dos !Países onde esta
.bistóría se vai desenrolar.
~ sabido que Portugal e Espanha abriram novos horJzontes
ao comércio mundial, ipondo a Europa em comunla.ção marf.-
tlma JOOm a América e a Ásia. Isto 5!ermitlu um desenvolvimento
INTRODUÇAO 11

rfwpl'<io 'ele citpltallsmo comercial oeutopeu-pela abertura de


novos mercados, que deram lugar a um grande desenvolvimento
da manuifaotura. A burguesia, já muito !poderosa no final do
século xv, conhe-ce uma époea de formidá~I exipansão, ao
, (pOnto de se tornar em varlos paises, como a loglat.e rra e os
Palses Saixos, ~specialmente, a classe dominante e de noutros
se achar ·com força ipara disputar o domínio ipolítico à nobreza
'feudal. Há di'llersos escalões ca burguesia, que vão desde os
empresáxios de indústria e de transporte at~ aos qrandes !finan-
ceiros, cujos interesses se ramificam pelos novos rcontinentes
descobertos (caso da rfamosa casa Fugger).
Ora no interior dos estados ibéricos que assim <contribulrélllll
ipara o avanço da bu11Quesla mWldial a descoberta de novos
continentes reve como efeito, apan?ntemente paradoxe], reforçar
o domínio económico e político dos grupos até então domi-
:nantes e o correlativo recuo <transitór.io das burguesias nacio-
nais.
iEfectiivamente o comér!clo com o Ori<ente e com a América
foi monopolizado 1pelo Estado, quer em Portugal, quer em
Espanha, e o seu rendimento foi distri'buido pela Coroa entre
os membros da oligarquia hereditária que dom1nava o mesmo
Estado. A classe guerreira ganhou nova importância, porque
o domínio das estradas comerciais e fontes de matét'ias-1)rimas
exi11iu uma custosa ocupação militar. Os meios de troca com
que se obtinham os produtos ultramarinos eram canalizados
jpe)o Estado, que os fazie vir em grande parte do estrangeiro.
A indústria manufactureira, que ganhou grande avanço noutros
palses, não foi na Península encorajada e os ~trangeiros que
nos visitavam estranhavam que aqui cada se produzisse ena
indústria e nos trabalhos do homem>, &ase do embaixador
veneziano Guiociardini. Isto não signJfi<:a que não ex.istls.$em
actividades burguesas, quer cOIDerdais, quer financefras, quer
manu'factureiras. Elas encontravam-se, porém, limitadas no seu
<lesenv9lvimento te os -grupos nelas interessados 'Viam-se relega.
dos ipara segundo iplano, ipela nobreza que monepolizava o
&tado. As.sim, por exemplo, durante a 'Idade Média, os reis
12 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

·ipeninsulares Te<:orriam frequentem~te aos iinan~iros na'Cio-


nais, os Judeus. No século XVI r.ecorrem às 'ljrandes casas finan-
ceiras internacionais. É sabido que Carlos V contraiu grandes
d ividas icom a casa Fugger e que se desempenhou, em parte,
entregando-lhe importantes IPOSlções económicas no seu ·império.
O rei de PoI'tugal encontrava-se tgua1mente empenhado Tela-
tivamente là finança inte-rnacional. '
O re forço da .posição da 111obreza que <lhe ipet'.mitia mono-
1poli~r os proventos .da eXlploração económica do ultramar
<consolidava tam~ o seu domínio lreTeditário da 1erra. Os la-
vra-dore6 vilãos proprietários que .existiam na ·Idade Média
acabaram de ser submetidos ao idomínio senhorial. Conrolidam-
•Se as grandes casas senhoriais, como as dos duques de Bra-
gança e outros «grandes» de ·Portugal e Espanha.
De duas formas usufruía a .nobreza o trabalho do campo-
nês: era uma a herança se nhoria·! vinculada a determinadas
famílias; outra, os bens da 1Igre)a, que abrangjam a maior parte
da terra do País. Os bens da Igreja, divididos em dioceses,
ahadias, conezi~. etc., eram distribuidos entre GS filhos <Se{lun-
dos da nobreza. que o direito de sucessão afastava da herança
paterna. O rei disputava a Roma o direito de nomear o alto
iclero, isto é, o <lireito tde <listribulr ipela nobreza os boos da
·lrgTeja.
d~lesia, o mar, o Casa Real», dizia um ~rovérbio espanhol,
'Citado ipor Gervanres, eram as carreiras abertas a quem .queria
'fazer fortuna. A terra senhonal, com eifeito, Unha dono •here-
ditár io e não estava aberta às ambições. Ora, quanto à cOasa
•Real» (alto rfunclonalismo, :honras e doações régias), o rei tem
cada vez menos 1proventos ipara distribuir e reada vez mais pre-
telll~ntes à distribuição. •As devastações ef.ectuadas 1na América
do 'Sul, as drf.icu1dades 'Caicla vez maiores da ocupação do
Onente, o ~orme 'Slparelho militar e admioístrativo indispen-
sável rpara manter os dois imensos impérios, que em certa
altura se unHicam, a rapactdade <ie capitães e adm'inistt'adores
jpor cujas mãos e cliente-las ·ficam os proventos da administra-
ção e da guerra, dão lugar a angustiantes crises 1flcanceiras.
INTRODUÇAO 13

que o r.ecurso à finança internacional, às iguer'ras e à bancar,


xota ipermitiam 4r adiando. Quanto à dglesia>, cresciam os
\l)retendentes, multij>licando-se os iconventos, tpartilhando--se o
rendimento de dioceses e aba-dias: em 1620, [,isboa, 'Com •165.000
habitantes, aUrergava 6.500 clérigos, maiS do que os t:raba,
lhadores das naus e homens do cais. O <mar» era também
monopólio T~>I. iprotegrdo ipelas esquadl'as, cujos 'Canhões !pre-
tendiam, cada vez com mais dificuldade, manter as estradas
marítimas rfecbadas aos barcos franceses, holandeses, ingleses
1

e outros que iprocura'\/am comerciar directamente ICOill o Orienre


e com a América.
iEm resumo: a nobreza -senporial segura .fir-moemente as ré<reas
do govttno o·os dois impérios da Península e o'e.fende-se contra
o 'Crescimento, apesar de tudo lfatal, das burguesias nacionais.
O Império Habsburgo, estruturação política da mesma nobreza,
resiste, por outro fado, ao assalt<o da butguesia inteMacionaJ,
encabeçada pela -Inglaterra e 1pela Holanda. Dominante, dentro
da Península, o grupo senhorial monopoliza inteiramente o Es-
tado, de que faz coisa sua. O rei abandona o seu papel tradicio-
nal de árbitro entre as diversas forças nacionais. O Estado tor·
na-se absorvente, destrói as minorias, sejam elas os lavradores
vilãos e livres, os hebreus ou os cmouriscos>, impõe uma ivigo-
rosa disciplina ideológica, esmagando todas as dissidências e
oposições e regressando à ideologia tradicional da grande época
do feudalismo. Quando estala a grande revolução da Reforma
os <lois impérios da Espanha alinham decididamente, passadas
as iprimeiras .hesitações, ao lado dos que 'Preconizam a restau-
ração da Igreja medieval, sem compromisso com os Reformados.
Com o agravamento das suas dificuldades aumenta inevitàvel,
mente a ~ressão dos grupos <dissidentes, cujas raízes, todavia,
mergulhando nas novas condiçõe-.s eronómlcas, não ipodiam ser
de.struídas.
CAPÍTULO II

OS CRISTÃOS-NOVOS

No ~omeço de 1531 o embaixador de Portugal em Roma


apresentava ao 'PBiPa o pedido do seu rei .para que o tribunal
da Inquisição fosse oe.stabelecido em Portugal. O iprindpal pre•
texto desta dUigi!ncia era que muitos cristãos-.oovos continua-
vam a 'Praticar secretamente a sua antiga .religião israelita.
Importa determinar em que <:orulstia este considerável agru-
.pamento nacional designado .por «cristãos-novos:>, ou <gente
de nação>, que ia constituir o princ!pal objecto das atenções
do .novo tribunal. ,
Os Hebreus, quer pelo seu quantitativo pq>ulaciooaJ, quet
s>ela -sua cultura e actividadu, tiveram na Penlnsula Ibérica
um .papel muito mal.s importante do que no resto da Buropa
medieval. Uma das ex.pllcações desse facto está em que eles
ocup~vam Já uma posição destacada na civilização muçulmana
da Península, que assimJlaram completamente, e quando os
Arabes .se l'etlraram permaneceram como sobreviventes e re-
9.resentantes de !formas de economia, técnica e cultura de que
os invasores cristãos estavam ainda muito longe.
Num mundo pr~ominantemente agrát'Io e .kudal, eles con,
servavam a tradição da economia comercial, monetária e em
parte capitalista e de uma sociedade Ul'bana como havia sido
a dos Árabes da Penlnsula. R<elatlvamente aoo Hebreus, como
relativamente aos Arabes. os Cristãos pen.insulares eram bár-
OS CRIST AOS-NOVOS IS

baros. Óbviamente, pela IJ)róprla Decessldade da sua conserva-


ção, a cultura hebraica mantinha-se isolada, alimentando-se dos
seus próprios livr<>$, quer teológicos, quer Illosóffcos e cientí·
ficos. Era uma tradição especificamente hebraica a que man·
tinha a contlnuklade e o nlvel cultural do grupo hebraico na
:Peninsula.
Os reis peninsulares apToveitaram largamente a competên·
eia técnica dos Hebreus. Numa épooa em que o juro era con-
siderado um pecado pelo direito canónico, os Hebreus pratica-
vam o comércio de capitais e uma <e$pécle de banca onde os
rels e o.s principais magnates iam buscar capital móvel. Recor•
riam a. eles também para operações financeiras e1ll -grande es·
cala, como a cobrança de Impostos, que os Hebreus se achavam
habilitados para arrendar. Os ajustes com os Hebreus tinham
para os reis a vantagem de lhes evitar os pedidos em cortes,
que oo obrigavam a compromissos e concessões perante o <ter·
ceiTo ~tado. Nos reinados de O. Dinis e O. Fe1"nando !foram
hebreus os tesourelros~ores do rei, verdadeiros ministros das
Finanças.
Não menos importante !foi ·a utilização da técnica e da
ciência hebl"akas, que substltufam com grande vantagem os re-
cursos oferecidos pela cultura clerical. Os médicos da Corte
eram geralmente hebreus, assim como os astrólogos, e as cró-
nicas conservam o nome de mestre Guedelha. flslco e astrólo-go
'de D. •Duarte, consultado para a mal"Caçl!o '<las ~ónlas
mais impot'tantes da Corte. A tradição astronómica árabe·
-judaica, mantida pelos Hebl"eus da Penlnsula, deu aos Desco·
brlmentos uma contribuição capital. que remonta à elaboração
dos Libro.s dei Saber de Astronomia, de Afonso X, o Sábio,
devida em grande parte aos colaboradores hebreus do rei.
Abraão Zacuto, Judeu espanhol refuqlado em Portugal, elabo-
rou o Almanach Perpetuum, base das tábuas 'l!âuticas que .guia-
ram o.s navegadores, e mestre José Vizinho, discípulo de Za~
cuto e hebreu como ele, detennloou a ~atitude da Guiné. Do
Doutor Pedro Nune.s coostava ter sangue hebraico, e por iaao
os aeus netos foram perseguido• no aéculo XVIL
16 A INQU/SIÇAO PORTUGUESA

Seria erro supor, no entanto, que a ipopuJação hebraica


,portuguesa se Jimitava a uma a1ta burguoesia de intelectuais
e ifjnancetros. Eram hebreus também numerosos artesãoo: sapa--
telros, alfaiates, etc., e sobretudo os oficiais de certas técnicas
mais ~alizadas, como a ourivesaria, a ifun<llção, a armaria,
a iencadernação, a douração e outras. ·Muitos se tomaram pro·
prietários de terras e outros bens de raiz e instituíram até mor-
gados, como D. Moisés Na varro, 'Il'O reinado Ide D. •Pedro I. .
A ipolitica 'cios reis lpeninsulares, iparticularmente dos de IPor-
tugal, 'úeão e Castela (o Ara9ão wava econômica:mente mais
desenvolvido e a importância da ·burguesia cristã era ai muito
.maior), foi mais do que tolerante em ttlação aos Hebreus.
Não apenas Uies er'a garantida a ·p rática 'Cio seu !Clllto oem simi-
g09as, como eram ielfica.znrente 1protegidos contra a ·hostilidade
que surgia ipor 11>arte da burguesia e <lo artesanato não judak:os,
ou ipor .parte das ipOpulações sujeitas à imposição de impostos,
de que os Hebreus eram geralmente os arrematantes. As recla-
mações que frequentemente aparecem em cortes contr'a a usura
!Pfaticada pelos Hebreus, contra 'él arrematação das rendas reais
e senhoriais, e até ipor iwzes eclesiásticas, que .multo ifrequ~nte­
mente lhes eram incumbidas, contra o ..monopólio do comércio
ipor .grosso Idos .cereais e outros '9éneros, dando lugar a açam-
barcamentos, contra a concorrência que o artesanato <hebraico
fazia ao dos Cristãos, e até contra a iprorecção que o rei lhes
dl:spensava, eram geralmente desate.adidas ou . iludi<:las pcla
Coroa, <JUe se limitava 'ª r.eite.rar as ,leis 'Canónicas que os
obrigavam a usat' um distintivo, a viver em bairros iprivativos
(aljamas, ou judiarias) e a não ter cristãos ao seu serviço, nem
de portas adentro mulhttes 'Cristas. A repetição de tais orde-
nações iprova, de resto, que elas eram frequen~nte esque-
icidas. Mas, ipor outro <lado, er.am tigorosas es intervenções do
poder ttal quando os Hebreus eram violentados: Nos tumultoo
de Lisboa de •1383 o mestre de Avis empenha a sua autori-
da'de ie a sua 11>qpularidade para ~tar que a multidão saqueie
a •judiaria, 'él ipretexto lde <!Ue os Judeus eram ipar.tidátios de
D. lúeonor T eles. Em •1'1'49 o ccn'~or de Lisboa manda
OS CRISTAOS-NOVOS 17

açoitar püblicamente certos cristã0$ que tinham dfendido oa


rua alguns Judeus; daqui resultou um motim, que .culminou
no assalto à judiaria. O rei, avisado, avançou ràpidamente
:sobre Lisboa e mandou matar inumerosos responsáwls.
Tem-3e batldo talvez desproporcfooadamente a nota do
ódio generellzado 'Contra os Hebreus, esque<Cendo-se que não
et<am eles o alvo único do J)rotesto popular. As obras de Gil
Vicente mostram-nos que o clero e a nobreza !feudal eram
abrangidos nesse protesto. O lavrador do Auto da Barca do
Inferno queixa-se, não dos Judeus, mas do senhorio nobiliário
e clerical que lhe errancava os frutos do seu trabalho. Se
coleccionássemos as queixas em cortes contra a nobreza e
contra o clero, obterlamos 'C!e certo um conjunto multo mais
imponente do que aquele que resutta das queixas contra a
gen~ Jlebralca. E os assaltos <dos -castelos, quando isso era
posslvel (e era-o unicamente em épocas revolucionárias como a
da crise de 11383--1385), não eram mMlos temlwls <lo que os
êl'S:Saltos às judiarias. O .protesto popu!M erguia.se contra
todas as fomas de opressão, em que os Hebreus, wmo agen-
tes financeiros da Coroa e 'C!a grande nobreza e como iprlncl-
.pal .gru.po -capitalista da época, tinham também a :sua parte.
Mas era mais fácil isolá-los e apontá-los demagàgica-
mente como fautores 'C!as calamJdades públicas. Constitu1am
um grupo relaUva·mente Isolado ipelas suas ipeculiarldades rell-
glosas, tradl~. hábitos e residência em bairros ~rópr'ios.
Se o Cristão fe:steJava o domingo, o Judeu festtJava o sábado,
e assim ipor diante. O.s .sacerdote.s crl.sttlos não cessavam ~
lembrar que os Judeus ha.vtam aido os matadores de Cristo
(omitindo, aliâs, que fora Judia a mãe do !lreSmo Cristo) e que
por isso lhes fora infligido o castigo da dlspe.rsão. Os Hebreus
reuniam, em suma, as condições 6ptimas para serem alvo de
uma politica de disc.rimlnação racial e religiosa, e foraJIV'no de
facto durante a Idade Média oem diversas regiões 'C!a Europa.
Mas a protecção dos reis e da 9rande nobreza impedia a ve-
neralizeção de tal polltlca aos estados da Penlnsula Ibérica.
Estas condiçõe$ começam a alterar-'le • partir da expul-

2
18 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

são de E'Spanha, em 1492, do.5 hebreus que não quiseram con-


verter-se. Já então era considerável a rpopulação hebraica em
•Portugal, e em todas oas terras Importantes do ·País -mais
de quarenta - havia judiarias. Só a de Lisboa devia ter uma
população da ordem dos milhares. Os hebreus espanhóis que
legal ou ilegalme.nte passaram a fronteira portuguesa deviam
ter orçado em muitas dezenas de milhares. Os que puderam
compraram a oito cruzados por caheça a passagem por Portu-
gal a caminho de Afrlca; os que n.ã o puderam arrostaram pelos
caminhos um desterro .miserável e peregrinante, acossados pelas
.populações locais e procurando furtar-se aos agentes do rei.
Seiscentas familias mai:i ricas compraram a alto preço a residên-
cia definitiva em Portugal e os oficiais mecãnicos (1ferrelr~.
latoelros, armeiros) furam convidados a fixar-se, mediante uma
redução do imposto de entrada. Terminado o prazo concedido
!Para a !Passagem, os que ficaram foram reduzidos à escravidão,
doado.5 ou vendidos pelo rei, sendo os filhos menoreis enviados
icomo gado humano para S. Tomé, onde grande quantidade
deles sucwnbiu.
Um dos iprimeiros ·actos 'Cio governo manuelino é dar a
llbeNiade aos hebreus espanhóis poueo telillp'O antes escravi-
zados. .O. Manuel continuava ~lm a pol!Uca tolerante dos
seus antecessores. Mas esta orientação tradicional era contra-
riada pela pressão da família real castelhana, onde D. Manuel
escolheu oolva. Os Reis Católicos .n ão queriam que Portugal
viesse a colher os beneficios materiais da expulsão lpor eles
ordenada, e ~r isto impuseram como uma das condições do
casamento de D. Manuel a e:r;pulsão dos hebreus residenteli
no nosso pais.
O rei de Portugal cedeu, m<13 procurou iludir os resultados
de tal concessão: .promulgou, de facto, a lei que obt'igava os
Hebreus a saírem do IPals ou ia converterem...se ('1496); ma.s
recorreu a todos os meios ipara os forçar a .ficar, mais ou menos
convertidos, nem que fosse apenas pela mera água do baptismo.
Um de6ses meios foi o baipt1smo forçado doo menores de 14
anos, violentamente arrancados às famlli.as; outro, foi acumular
OS CRISTAOS-NOVOS 19

toda a sorte de dlficuldad~ à salda, dentro do 1Pra:to, das fa.


milias que tinham, preferido embarcar. Aipesar de tudo, cbega-
nim a reunir-se para esse fim villte mil pessoas no Palácio do.s
•Estaus, em 'Lisboa. mas aí mesmo foram ba:pti:tados à força
na sua quase totalidade.
..Por tais processos maquiavélicos o tei de 1Portugai con·
seguiu uma conwrsão em massa, meramente formal e apar«rte:
tanto lhe bastava para atingir o seu ob;ectivo, q~ era, ev:I·
dentemente, conservar os Hebreus em Portugal sem dialtar ao
compromisso tomado com oS Reis Católicos. Ninguém tinha
dúvidas sobre o valor de tais conversões pro forma, e por isso
se legislou (provisão de 30 de Maio de li97) que os novos
cristãos não pudessem durante vinte anos ser Incomodados
pelo seu procedimento religioso e que passado este prazo as
acusaçõei por judalsmo só pudessem ter seguimento judicial
dentro <le condições muito apertaiclas, que as tornavam di>fi<:il-
me.nte praticáveis. Durante todo o seu governo D. Manuel
manteve esta pclltlca relativamente aos seus súbditos <li! origem
hebraica: 'POI' um lado 1Proibia•se a salda <leles e dos seus capi-
tais (alvarás de 21 e 22 de Abril de 1499) ; ipor outro lado
renovava-se a proibiç~o <li! se inquirir a·cerca do seu .p rocedi·
mento religioso e prolbia~e qualquer di.$crlminação legal a
re.speito deles, equliparando-o.s plenamente aos outros súbditos
(car·ta de lei de l de Março de 1507). Vários faiotas mostram
que esta legislação era dectivamente aplicada. Mal$ do que
Isso, as autoridades portuguesas opunham firme resistência às
tentatlva.s da ínquisição ~anhola ipara perseguir o.s crbtãos·
..novos espanhóis aqui refug:lados. Chegou, por fim, a abolir-se
a !proibição de salda '<le bens e rpessoas de origem ilraellta,
única lei <liscrlminatória ainda vigente nlativamente <é!OS con·
versos: ipensava-sie deoer.to que uma legislação tolerante e con~
vidativa era a única forma de evitar a emigraç.ã o clandestina.
A ipo!Hica de assimilação forçada ~ta em p rática por
D. Manuel ·alterou completamente os termos tradicionais dos
prohlemas levantados ipela minoria hebraica. De facto, abo·
~ida e ldisalminação, °" antigos hebreus· allatam-11e matrlmo-
20 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

i;ilalmenl'é com cristãos-velhos, ao ponto de pouco tempo depois


numerosas famílias da mais ieleivada lllobreza portuguesa con-
tarem hebreus entre os seus ascendentes. No principio do sé-
culo XVII o padre jesuíta Diogo de Aredo notava que «os
Cristãos-No\TOs estão já lncor.porados com os Cristãos-Velhos,
de maneira que não há família nenhuma de consitleração em
que 1I1ão haja muitos homens e multas mul·hetes IJ)artidpantes
de &anque hebreu>. E os inquisidores, respondendo oficialmente
a uma consulta -do rei, calculavam ,pela mesma época oo Judeus
resideoties no ReLno, segundo «a comum estimação>, em «du-
:rentas mil 1fa:m!lias, de multa gente ioada uma, e na nobreza
são muitos fidalgos nos 1ivros de V. Majestade e eavaleiros
das o~ militares; têm entrada em todos os dfí<:ios da repú-
blica, assim edesiásti<:os como seculares, não ficando os malo-
res lugares de fora; e na-fazenda se melhoraram tanto que são
sós os que tém o dinheit'o, os contratos, as mercadorias e o
maior poder do <Reino>.
Duzentas mil familias «numerosas> não representavam menos
de 11m milhão de pessoas, num pais que não devia ir muito além
dos dois milhões. Era portanto crença corrente, no <eomeço do
11éculo xvu, em Portugal, que multo mais de um terço da po-
pulação total do P<i!s estava ligada por sangue aos antigos
hebreus. ·I sto prova lrrefutàvelmente que eles se tinham na
vet'dade assimilado e que a exipressão «ristão-<novo> era vazia
de sentido etnológico, embora não, oomo veremos, de conteúdo
económico-social. Num a>als onde em cada trê-5 indivlduos um,
pelo menos, se julgava trazer no sémen uma iparte de antepas-
sados israeli'tas lllão era IJ)ossível uma veroadeira dlscrimlnação
racial, mas era po.sslvel, com esse .pretexto e a coberto deissa
mesma confusão, estabeltter ~tras discriminações. No entanto,
oettas rcondições 11>art1culares podiam favorecer em alguns casos
o esplrlto <le casta fechada e os preconceitos genealógicos, quer
de algumas famílias <li! origem israelita, quer da nobreza tra-
dicional, famílias que se pretendiam limpas de contaminação
de sangue espúrio, vindo de um ou de outro lado.
OS CR.ISTÃOS~NOVOS , 21

Sob o ipocto de vishi religlOllo, é evidente que a interpe-


xretração .familiar dos conve.rsos e dOll Cristão~Vdhos itiendia
também a desvanecer a separação rprimitiVa. Abolido de facto
o ICUlto •público da sinagoga, iproibidos os livros judarcos, ape-
nas -n~ssahrando sempre uma minoria mais (l)ersiste.nte -
,podiam conservar-se certos ritos familiattS, e esses. mesmos
muito diluídos na convivência íntima com cristãos. Um inqué-
rito mandado !fazer ipor D. João III em 1521 não acusa senão
indkios muito vagos de prática clandestina de 'l'itos judaicos,
icomo a guat'da do.s sábados e da antiga 1Páslcoa. .Bstes ritos
perdiam .progressivamente o S'eU significado religioso.
& consequências mais importantes da lpOlítiea de assimila-
ção iposta em ;prática 1POr D. Manuel são 1POrventura as :de
ordem económica. A antiga discriminaç.ã o diiftcultaiva aos Is-
raelitas certos ~pregoo e !J'OsiÇões que agora estavam ao seu
alcance. .Por. outro lado, sendo os antigos hebreus uma iftacção
importante da burgU'e'S1a portuguesa, é natural que as suas
alianças .matrimoniais se realizassem sobretudo dentro da bur-
oguesia. Já em •1506 um enviado d1p1omático ivenuiano na
1Pení.nsula afirmava julgar-se que eram <m'all'ranos> (descen-
dentes de ~onúbios de Hebreus e Cristãos) a terça iparte dos
«che sono cittadini e cmercanti>, IPOr<JUe o ~ovo miúdo era
·'Cdstão e também o eram na maior parte os grandes. É de crer
que a ipercentag'elll de bucgueses cmarranos> fosse em Por-
tugal muito maior na mcesma época, dado que aqui se acolhera
gr'ande parte doo hebreus espanhóis. :Por outro fado ainda, já
no reinado de D. fyfanuel, em virtude da insegurança em qu~
apesar de tudo se encontraivam, e pr!ndlpálmente 'IlaS éipoca&
sequin~s. quando a perseguição se inren.stflca, as famílias mais
.conhecidas 11>e10 seu parentesco •hebraico ivêem~ reduzidas a
conver.ter os bens de raiz em. capitais. móveis, ipara evitar o
con'fisco e para asse.gUl'lélr a emigração ieventual, transrerlndo
uma iparte desses capitais 1PaTa o estrangeiro e utilfzando para
esse fim a ~e 'Cle emigrados espalhada em dfversas cidades da
Eurapa e da América.
22 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

Desta maneira as exc>ressõre.s <or!stlios.-novos> 10U <gente


de nação>, 5e perdiam um -conteúdo racial e telibioso, ganha,
vam, em itroca, um .conteúdo sociaVe<:ooóllÚJCO multo maiis
denso e palpável. Numerosos indícios nos l~vam a supor que
a história dos Crístão~Novos, até aq governo do marquês de
1Pombal, que novamente aboliu a cliscrimioação, é até certo
ponto a história da bu~ue$fa (lnan~a e m~rcantíl portuguesa.
No século xvn as eX!pressões <gente de nação> e <homens de
negócio> havlam"'.sie tomado sinónimas em ~ocum~tos patti,
culares e oficiais. Este caso de evolução semantlca, IPOT si só
muito signl!ficativo, ipode acompanhar..-se, por exemplo, .na co:r,
respondência para Pc>l'tugal do P. • António Vieira quando se
encontrava em Roma. Alude ele várias vezes às diligências dos
«homens 'de negócio> e do seu procurador junto do papa
a'CeT<:a da ·fuquisição. Referind°"'.se ao mesmo procurador, o
residente iportuguês e!lll Roma cliama-'1he <o iprocurador da
gente de nação>. No ah1arâ relatlivo à instituição da Compa,
nhia ~ral 'do Comércio do Brasil em troca da abolição do
confisco roquisitorial, pedido pelos rohamados «r'istãOS"'llovos>,
o rei designa esta parte dos seus súbditos ipcla exipressão <ho•
mens de n~ócio e ~te de nação:>.
Jâ em 11'539 o rei D. João .UI eifirmava - resume ffe.N:u:Ja,
no - que -<os Cristãos,Novos constituíam uma grande ipartie da
'Nação, e a>arte mais útil que todo o resto do ipovo. Por eles,
ipelos ~us !Oabedais, o icomérci'o, a indústria e as rendas ipàbllcas
cresciam de !dia ipata dia, quan'do a ipe.rseguição -veio mlrrar
a seiva Ide prosperidade geral, sendo notória a saída de somas
enor.mes de 1Po1't'llga!l tP,ara Flandres desde que a .Jnquisição
se estabelecera>.
Os documentos ogera·lmente c~ddos neste 'Campo, que
ainda não lfoi siste.m'àticamente eXiJ>lorado, ireive-lam que os clia,
mados «"<lristãoo...novos> tlvieram uma acção muito importante
no comércio extemo lp01'tu9u~ idos séculos XVI e XVII; 111a indú.$..
tria açucarelra e, de maneira -geral, no comércio de produtos
brasileiros; nas ~inanças do &tado e em certos monopólios e
OS CR!STÃOS-NOVOS 23

contratos pelo mesmo atribuídos; finalmente, em certas activi-


dades industriais nacionais.
Quanto ao comércio externo, condicionado em pa.rte ,pela
ex.tensa e dispeR>a rede de emigraaos lj)Ol'tugueses em Itália,
França, .A!Iemanha e outros países, a \Situação · é resumida pelo
P. • António Vieira nestes termos na sua Proposta feita a el-rei
D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do
R..eino e a necessidade que tinha de admitir os judeus merca-
dores que andavam por diversas partes da Europa: ~Por todos
os remos e províncias da Eurapa estâ espalhado grande nú-
mero de meocadores portugueses, homens de grandíssimos
cabedais que trazem em suas mãos a maior !Parte do comércio
e riquezas do mundo:>. Vieira e$era·v a que 1111etllanlie acordo
com os .Gristão.s.-Novos o Tei de Portugal encontraria créditos
nas diversas ,praças da Europa, capitais para a formação de
companhias de comércio colonial, no género das holandesas, e
<cabedal e indústria> (caa>ital e rtécni.ca do '11-egócio) para
financiar a guerra - isto além de IPOder aproveitar a vasta
rede de esipionagem mundial a tfavor da restautação portu-
guesa. Vieira notava também que, fora doo mel"Cadol'es «ris-
tãos-novos:>, só existiam no País os estrangeiros, holandeses e
ingleses. Diversos factos ilustram esta situação, como a aotlvi-
dade de Duarte da Silva, que, além de ser prestamista da Coroa
e negociante de produtos brasHeitos, mantinha correspondentes
e créditos abertos em Ruão, ·Antuér.pia, Liome, Roma e Veneza
(cidades onde baivia ·colónias numerosas de [portugueses emi·
grados), e ipor cujo intermédio se erectuava a compra de arma-
mento 1Para o Estado Português, em troca do açúcar brasileito
que ele fazia chegar a Hamburgo e outros portos do Norte.
Estava em vias de abrir créditos em Amsterdão para a compra
de navios para o rei de .Pottugal quan'do a Inquisição o pren-
deu, lançando o pãnico na .bolsa daquela cídade e prejudicando
irnemedíàvelmente as relações de 1Portugal com o 'C:apitallsmo
holandês.
Quanto à interivenção dos Cristãos-Novos na indllstria açu-
careira e outras a<:tlvidades sul-americanas, -era também facto
24 A !NQUTS!ÇAO PORTUGUESA

IO.Otórlo 'n o século xvu. A rperseguição tinha-os levado ao Brasil


e ~ maneira geral à América Latina, em cuja economia tiveram
inicialmente um papel relevante, concentrando nas suas mãos,
segundo ia.formação dos inquisidores de Lima em •1636, a maior
Patte do comércio desta e outras cidades. Em requerimeooo
dirigido a Piliipe N oeles mesmos reivindicavam a sua utilidáde
ao ·E stado cs~tentaodo o rBNlSil e :fabricando os eogenho.s de
que se 1tirava o açúcar para toda a Eur~a>. No século xvm
D. Luís da Cunha ex.plica o tecrudes<:imento dos processas
inquisitoriais brasileiros pela cobiça dos éÓ.geJlbos, confiscados,
sendo verdade que a maior parte dos processadoo eram pr~
prietârios de engenhos.
Relativaorente ao Estado e aO., monQJ>6lios de Estado, jâ'
notámos o ipapel ·pr~al dos Hebreus anteriormente à con-
versão. IPosteriormenre continuou-se a atribuir aos maiefícios
da estirpe judaica a opressão dos úqpostos e 10utras forllla3 de
extorsão das populações. Um escrito anónimo de 11602 atribui
ao.s Cristãos~Novos a <:obrança dos ,impostos das sisas, o ence-
leirame.nto e açambarcamento do pão, a imposição e cobrança
·dos direitos de alfândega, a ~peculação com ,papéis do Estado,
a a1Vecadação das qitetças> do Reino (em '1590), o contrato
<los negros da Guiné e o coméNio dos negros com as Anti-
lhas - isto além de serem intermediários <em todo o mantí-
mento que vem de fora, peixe seco e as mais coisas>.
Os inqulsídores resumiam nestes iterunos a situação em 11603:

~Porque oeomo OtS da Naç.ã o têm em seu 1poder todas as


mercancias e contratos ido Rei.no, assim de Sua Magestade
como das mais 1pessoas, 1CUjas fã'Zendas arrecadam ordinà·
riamente, ~ modo que q\l:êWe todos vivem ipor suas
mãos ... '>

Mas grande ~ngano .seria .su<por que ias actilVidades dos


Cristãos.Novos eram merament.e comeIICiais e de especulação.
A grande im!l>ortãn<:ia dos artesãos e industriais cristãos-novos
ntá as.1inalada ~o facto de jâ em 1572, na <:011Poração doo

'
25
OS CRISTAOS-NOVOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

ourives, segundo o Regimento dos Óficiais Mecânicos de Lis-


boa, metade dos doze eleitores dos juízes da corporação deve-
rem ser obrigatóriamente crlstãos.-novos. Dada a situação de
imerioridade em que estes eram sistemàticameote colocados, tal
fa~o ·mostra provãivelmente aue mais de metade dos ourives
de Lisboa pertenciam a esse grupo da sociedade portuguesa. Nos
s&ulos xvu e XVIII intens~ficam-se os !P~OS inquisitoriais
na Betra e em Trã.s--o.s-Montes, daí resultando, segundo D. Luis
da Cunha, a de-cadência e aniquilação das manufa:cturas da
Covilhã, !Fundão, Guarda, Lamego e Bragança, lugares que,
e-ntre outros, se despovoaram.
Estes fuctos são o suficiente ipara esboçar uma caracteriza,.
,'
ção económica e social desse conjunto que se de.signava· lPOl"
~cristãos-novos>, «gente de nação> ou <homens de negócio>,
conjunto que, pelaS razões atrás apontadas, é impossível càrac-
terizar em termos de raça ou de religião. Os CnLstãos-Novos
constituíam de facto o núcleo rptinciiPal da i>Ul'IQuesia financeira
e mercantil porruguesa e uma parte da média burguesia indus-
trial. Isto mesmo era reconhecido .pelos leg,isladores, como o
mostra o preâmbulo do alvará que cria, com capitais de cris-
tãOS-<Oovos, a C~mpanhia do Brasil, donde extraima& este ipa;sso:

'
«... e .porque as [fazendas] com que pela maior parte se
sustentam [os reinos e senhotios de 1Portugal] são as dos
homens de negócio e gente de nação, assim da que reside
e mora no mesmo reino e suas conquistas, como nos outros
reinos e iprovincias que com ele têm trato ie correspondên-
cia; as quais, 'J)Or 'eStarem sujeitas a cooifiscaçãQ. é nec~
sário segurarem-se, .para o iconrerclo se ;pode~ <Sustentar,
progredir e aumentar ... >.

Não deixa de ser um facto interessante esta identi'fOCação


que nos séculos xv1 e XVJl, e ainda: iposteriormente, pr'etenôe
ifazer.-se na •Península Ibérica entre wn tipo de actividade ~co~
nómica - a ac;f;i.vidade capitalista - e um determinado grupo
2J A INQWSIÇAO PORTUGUESA

étnico. Bm esquema, o Cristão-Velho está integrado na estru-


tura ifeudal tradicional; o GristãO"Novo está fora dela e per-
tence ao mundo das relações produtivas icaipit-aHstas, sobre o
qual ipel'sistiam as velhas ideias me<clievais (a onzena, isto é,
juro de empréstimo, foi um dos crimes sob a alçada inquisi-
torial) . Na curiosissima l))roposta apresentada em •1646 a
D. joão IV <a favor da gente de nação» o iP.• António Vieira
propunha como um dos m'l?iOS q>ara abolir a discriminação entre
cr.istão5-<novos e cristãos-<velbos que o rei fizesse nobres «todos
oS ihomeos que !fossem mercadores», a fim de atrair a esta
racti'V'idade as famílias reputadas -cristãs-wlhas. I>sto mostra
como, oa época de Vieira, o ti,po de iv.ida ifoudal e o it:Lpo de
vida capitalista são coricebidos como o apanágio de castas,
uma dentro da ordem divina, outra fora dela e represenmndo
as forças do mal.

Se os Hebreus desapareceram como nacionalidade distinta,


o anti-1lebraísmo, ou, segundo a terminologia de boje, o anti-
-semitismo, permaneceu. C'Omo diversos acontecimentos muito
posteriores ao século XVI demonstraram, 111ão 'é o J~eu que faz
o anti~tismo, mas o anti-semitismo que faz ou inve.n ta o
Jud\!u. A causa do anti-semitismo não é a -existência mals ou
menos imaginária de uma ipseudo--raÇa judaica, mas antes de-
terminadas condições que iJ>eCmitem a um 9rÚJ>o dirigente pra-
ti<:ar uma política discriminatória relativamente a um soctur ou
sectores da !População nacional.
Convém não iperder de vista o facto já apontado de que a
hostilidade popular C<>:1tra os Hebreus, ao-tetior:mente à sua
conversão, é, em parte, um dos aspectos da reacçilo contra a
pressão das classes dirigentes. O clérigo, o Judeu ou o nobre
eram igualmente vitimas da sátira e, quando IPossíivel. da vin-
gança. ,
•Mas o judeu não se encontrava no plano dos dérigos ou
dos nobres. Estes últimos iconstituiam o grllipo dominante, reves..
tidos do ptestigio da tradição, sancionados pela ordem divina,
idienti,ficados :com a única escala de <Valores geralmente admi·
OS CRISTAOS-NOVOS 27

tida. Os Judeus, a>do contrário, 'COillO minoria religlooa e :na-


cionhl, echavam-se ina situação de tolerados, e o saque dos
seus >bens ou a ,violência sobre as suas ipessoas 'llão ofe.recia o
carácter de ,sa-crilé-gio ou de subviersão da ordem social. A
forma de apropriação Idas frutos <lo ttrabafüo ipor meio do juro
do capital, .praticada ipor uma 'J)art>e <la população hebraica,
não -estava ainda sa.ncionalda pela ordem jurídica e !l'elig!osa e
aparecia mesmo, dentro da escala de valores herdada da Jdade
Média, como uma violação da lei divina. Por outro lado, os
Hebreus inão lj)~nciam apenas ao grupo dos qpressores, como
os dériqos, os nobres ou os agentes do ipoder real, mas apa-
recia,m <também como concorrentes da >burguesia e do artesanato
indígenas. Um conselheiro de D. Afonso V, fra<le de S. Mar-
cos, fazia '!lotar o contraste entre o enriquecimento dos merca-
dores hebraicos e a miséria dos mercadores ~acionctis.
:E entre as reclamações apresentadas em nome dos «a>ovos»
aas Cortes de H·&l-<1-4-82 figuram algumas bem slgmficati;vas
·da <COnicorrência a que aludimos. Assim, pedia-se que os alN!ia-
tes, sapareiros e oficiais de outros ofíoios fossem iproibídos de
executar :obras fora das judiarias, a pref:!e:x!to de que, tfazeodo-o
nas casas dos lavradores cristão.s, abusavam das suas mulher'es
e !filhas; e pedia-se tamrem que •lhes fossem tira.dos os ofícios
de >eontratadores de impostos ~ rendeiros de rendas reais -
.certamente para que os mesmos ofícios !fossem entregues a
cristãos, JCOmo se infere da resposta do rei, declarando que os
t'.endeiros e contralladores 'Cristãos eram ainda anais qpressores
do que os hebraicos.
iAlguns escritores se fizeram eco ' do antijudaismo. Gil Vi-
oente, embora d~fendendo os Cristãos...Novos •n a sua extraor-
'<iinária oarta em (prosa a D. João IH, inavega nas águas dos
que censur'am a cobiça judaica. João de Barros, no mesmo
livro em que ataca vigorosamente a nobreza e o clero, resel!Va
um lugar .p ara a usura, que personifica no.s Judeus:

<... 1!)ossueill 'ª grossura da terl'a onde vivem mais folga-


damente que os naturais; ~rqu-e não •lavram, nem plantam,
28 A INQUISIÇAO PORTUGUES~

• nem edificam, nem pelejam, 'llem aoe'ltam oficio sem en~


gano, ~ com ~ta ociosidade 1C0I1p0ral neles se acha ma'odo,
honra, favor e dinheiro, sem .perigo das 'Vidas, S'em quebra
de suas ho~as. sem trabalho de membros, sõmenbe com
um andar miúdo e apressado que ganha os frutos de todos
os trabalhos alheios:>

E lembrando a sua responsabilidade na mo11te de Cristo,


eX1plica •esta prosper.idade no meio das .maldições e ,per.segujç~s
do ipovo, ipela sua afinidade com o i[)iabo:

«Os Hebreus, rpor seu pecado, são semelhantes ao De·


mónio: ipal'a os povos são estímulo e açoute de Deus e
para si :São rpêrla e t=ento.>

Bocontram.-se aqui os elementos ~ra uma iPOlWca dema...


gógJca que serâ icontinuada após a conversão forçada dos
Hebreus: a hostilidade popular. contra os impostos e contra a
usura; a concorrência dentro da burguesia e- do al'tesanato.
Era ~âcil identílfü<:ar um bode es;piatório ie concitar contra ele
iras rtanto mais fortes quanto .maiores fossem as dificuldades de
vrda pare a 9eneralidade da IPOpulação: o ~nguo de uma
raça l!'t'Slponsârvel ~la morte .de Cristo.
Esta politica demagógica tinha 'OS seus a9'entes e !Provo•
cadores, o que é frequentemente esquecido pelos >historiadores,
que ;parece considerarem o anti.-.semitiS'mo como um produto
de getação espontânea. Os tumultos contra os Hebreus ou os
Cristãos~Novos mostram-nos esses agentes em acção.

A conversão fouçada dos Hebreus em tl:497, tenden~ a


abolir a d!Scrimlnação, veio, contràriamente à sua intenção
visive), !facilitar a confu.são e agravar as contradições ipropíctas
ao al<astramento do anti-semitismo. Deixava ;de haver um grupo
compacto e caracter'mdo, de nacionalida'Cle .distinta, tfàcilmente
ídentificável; icaiam as ,barreiras, .ftthadas a uma iparte da bur·
OS CI?.ISTAOS-NOVOS 29

gu-esia e do artesanato, rparte -essa que !Passava a -ester !l)l'ote-


gida ipe-lo <lirelto comum, concorreooo sem restrições com os
sectores até aí rprivil1?9iado.s. Dentro da grande burguesia, as
alianças <te fortunas e familias tornam imposslvel a antiga
discriminação; mas continua a haver grandes contratadores de
monopólios do Estado, negociantes ipor 'Ql'Osso, importadores e
1financeiros, que o Estado não -deixa de utilizar e cujo rpeso as

dasses menos !privilegiadas 1Dão deixam de se.ntir. Os ·limires da


discriminação torna.vam,.,se arbitrãrios, mas ipor .isso mesmo
mais 1flexiveis e mais manejáveis ipelo grlllPO que tivesse inre-
'l'es.>e iem utUizã-la.
Um dos mals violentos anti-hebralstas portugueses, Fr.
Amador Arrais, resume a -situação criada -pela conversão em
massa, segundo o rponto de vista do gru.po diri9ente, notando
que a9ora o Reino é .mais ofen<lido dos .novos <:ristãos .do que
powentura <> fora '110 retnl)O em que eram judeus:

«0 sacramento <lo ba-ptismo '<ia sua rparte é tPl'd!anado.


as ofensas que cada dia 'Centra ele cometem são >escondidas
e o proveito que a sua cri~tandade faz ao Reino é ipoossuí-
rem todo o melhor dele, tant,o que muita parte da pobreza
do rei e do Reino causa sua muita 'l'iqueza. As honras e
oflcio.s da república, que segundo regra de justiça -distri-
butiva se deve aos Cristãos-Velhos, não deixam de se lhes
da(, coisa para se muito chorar. O s1nal da auz elee o
trarem no peito.>

A gente hebraica e a usura, encarada segundo o 1ponto de


vista teológico medieval, andam associadas no pensar do frade
carmelita:

«E porque se não permite aos Judeus entre Cristãos a


usura 1pública, ipor isso -cuido que estão mais endutecidos.
Não 'há nem houve nação <tão indinatla à USU'l"a como a
judaica. Donde S. Jerónimo par~e dizer qu~ •lhe foi i)er•
30 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

mitlda por razão ide sua incredível avareza, 'Como também


o libelo de repúdio porque não matassem suas mulheres
~m causa. O mesmo 1parece sentir Santo Agostinho. E
porque Cristo lhes conhecia esta Inclinação e via quais
então eram e quais ao diante haviam <le ser, lhes pregava
que emprestassem e vendessem fiado sem esperança de ga-
nhos, proibindo-lhes a usura ipor ;ser de ai má e abomi•
nável.>

Isto era escrito no final do século XVI, quando a foquisição


estava em pleno fitncionamento; mas o sentimento que aqui se
ex;prlme em relação aos <convertidos> e seus descendentes
vinha ganhando força já desde o reinado de D. Manuel.
Já então se manifestavam ·poderosamente forças inter-es-
sadas oem levantai' o espectro de uma minoria reli-glosa e racial
causadora· <los males 11acionals, como o provam os tumultos de
Lisboa em 1504, que foram Incitados e dirigidos pelos frades
dominicanos da cidade. Pondo o de-Oo na ferida, o rei mandou
enforcar <lois frades daquela Ordem, consldera<los especlal-
menre responsáveis, e eX'l)ulsou os restantes do seu convento
de Lisboa. Os frades de S. Domingos eram tradicionalmente
os Inquisidores e estavam certamente alvoroçados pelo esta-
belecimento da Inquisição espanhola, que 'Concentrava nas suas
mãos um ipoder lncomparávd.
O paipel das ordens .monásticas, e particularmente das me-
dicantes, no fomento do antL-semltlsmo aparece ainda noutras
manlfestações demagógicas, 'Como a ocorrida em Santarém a
seguir ao terramoto de 1531. Segundo mostra a carta dirigida
ao tei a esse :propósito por Gll Vicente, os frades francLscanos,
em sermões aterrorizadores, explicaram o terra.moto como re-
sultado da ira de Deus pelos pecados 'Consentido.s dos Cristãos-
~Novos, rprwocando a sua foga para os arredores.

A'Pesar da influência destas forças, os -gtupos -dirigentes co


~u conJµnto não deram até certa época a .sua ades!io a uma
OS CRTSTA.OS-NOVOS 31

polltica discriminatória, como o mostra a po.sição de D. Ma·


nuel e até o facto de este rei não ter dado 6eguimento a wn
nquerimento que, a .pedido de um frade dominicano, apm·
sentou em Roma, em 1515, pedindo a instituição de um tribunal
da Inquisição. Mas as circunstãnclas alteram-se no reinado
seguinte, sobretudo com a intensificação <la ct.i.se do Estadl•
senhorial a que aludimos na Introdução.
CAPÍTULO III
COMO FOI INTRODUZIDA A INQUISIÇÃO
EM PORTUGAL

A Inquisição espanhola, 'CUja organização e funcionamento


o rei de >Portugal tinha em vista ao requerer, em •1531. o esta-
belecimento de tribunal idêntico ino seu reino, fora <:t'iada em
IJ+8·1, 00!'-clando, ·eX>Cepto no que re.sipeitava às relaç~s do tri·
bunal 'Com o paipa e com o ;rei, a organização, praxes e formas
1processuais da foquisição medieval. então pràtkamente extinta.
·A forma .de 1prooetler e processar fota -estabelecida jâ em 1245
no regulamento redigido por ordem de Inocêncio IV no concilio
1provin.ci~l de Béziers. Aí 9e estabelecia: o !Pl'O'cesso e julgamento
secretos; que não fossem revelados aos acusados os nomes das
testemunhas de acusação; que fossem aceites 'CX>lllo testemunhas
mesmo os -criminosos, as pessoas infames, os hereges e as <:rian-
ças, eicceptuand0-1Se apenas os inimigos mor(lélis dos acusados
(devendo estes fiel' lembrado.s pelos 1próprlos acusados); Q oon-
fiscação dos bens, as penalidades, as caregorias de réus, etc.
Mas, ao ipasso que a ln(Juisição mediewl estava d.lrectamente
subordinada ao ,papa, o tribunal institui<lo em &panha dependia
do rei, que indicava os inquisidores à sanção do papa. O reque-
rimento de D. João UI pedia também ipara o rei amplíssimos
ipoderes - os de nomear e demitir os inquisidores e todo o pes·
soal da 'lnquisiç.ã o - e 1para o tribunal a supremacia 'Completa
isobt'e os ,prelados das dioceses em matéria de heresia.
OS CRJSTAOS-NOVOS 33

O acolhimento tele Roma !foi inicialmente desfavorável, e o


cardeal ILourenç-o .Pucci, a cuja protecção o assunto foi re«>•
mendado, honrem -conhe~or do mundo e ~ especial de &-
ipaclia, declarou logo tle entrada que a diligência do irei de
•Portugal tinha em vista apoderar-se oos· bens dos CrlsU!os-
.-Novos. Finalmente, o ipapa Inocêndo V•II iconc~de o tribunal
em termos muito diferentes dos requeridos, nomeando comis.sã.-
l'io apostólico e inquisidor Pr. Diogo da Silva, tla Ordem dos
Mínimos de S. Franc.lsco de Paula, <:Oil1 ipoderes ipara nom'eal'
.delegados, não apenas .nos crimes espec-ilflcados ipelo requeri·
mento do 1'ei, mas atnda nos de luteranismo, que este om.ltlra
{bula de 17 de Dezembro de 1531). Relativamente aos prela-
dos das d.ioceses, os l!)oderes dos Inquisidores apareciam na bula
de Inocêncio muito mais n<duzidos do que no requerimento de
D. João III.
Anres que esta bula fosse publicada ~ Portugal promulgou--
-se aqui apressadamente uma lei proibindo a salda de crlstãos-
•novos, mesmo para os territórios portugueses do ultramar,
assim como a transferência ou liquidação dos seus haveres
(lel de H de Julho de ·1532). Procurava--se assim a.s4egurar a
existência dos bens e das pessoas sobre as quais a Inquisição
ia e~rcer a sua activldade. Por outras palavras, iprocurava~e
iconservar o.s Cristãos-Novos -e não eliminá-los, como alguns
esplritos desprevenidos ~m julgado -. a tfim de juattflcar •
e:iclst!ncia do •novo tribunal.
A ipublicação tla bula .de fundação foi apenas o começo de
uma fonga, inve-roslmil e tediosa Intriga, que Herculano des·
mascarou em todos os pormenores na sua História da Origem
e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Anotarem0$ se>
JDente, seguindo este autor, alguns pontos culmlnantes dessa
h!Btória de bastidores, que durou mais de quinze anos.
Poucos meses depois de oflcla'lmente inst!Nida a Inquisição
em !Portugal os e5forços dos agentes dos Crlstãos~Novos em
Roma levarmn Clemente VII a mudar de atitude: enviou um
ndndo a inqu.irlr da situação em 1Partu~al e "tl.$l)eI1deu -a Ioqw-
&ição (bttve de U7 de Outubro de 11532). Na bula de 7 de
A INQU!SIÇAO PORTUGUESA

Abril de 11533 declarava que o rei de Portugal o enganara,


escondendo a conversão violenta dos Hebreus no reinado de
D. Manuel, negava qualquer validade a essa pseudo-conversão
e ordenava, ipor estas e outras razões, um perdão <geral das
culpas -de judaísmo, a '1ibertação dos detidos, a restituição dos
seus bens confiscados, a reintegração nos seus cargos e a sua
plena reabilitação. Bstas decisões radicais não foram, todavia,
,l evadas a efeito, e, a pedido do Tei, que assim gànhava tempo,
uma comissão de Oé!Tdeals foi iencarregada de estudar o caso.
,Bm resposta às objecções da Corte portuguesa esta comls-
são emitiu um documento notável, que traz a marca do Huma-
nismo, ainda 'então dominante em cettas esforas <la Igreja, e
que desmascara lumlnosamenl'e a ipolítica do 9rupo dirigente
português relativamente aos Cristãos-Novos. Transcrevemos o
~umo e extractoo que dele <lá Herculano:

cRe~orando a& palavras e obras dê Cristo, dos após-


tolos e dos ipa:dres primitivos; a doçul'a -com que se devia
inculcar o Cristianismo, o .respeito que devia ter-S'e à liber-
da'de <lo alvedrio humano .na adc.pção de uma crença nova
e a indulgência de que antigamente se u,sava 1para com .as
fragillrcfad'eS e desvios dos ne&fltos, que vinham, alJás, es-
pontaneamente e sem nenhuma coacc;ão, alistar-se então
·. debaixo das bandeiras da cruz, os defensores rela bula de 7
de Abril ipllllbam em contra~ com esse admlrável quadro
rde tolerância e- de moderação nos 11>rimeiros. séculos da
lgreja as cenas de bruta tirania rcom que se iprocedera em
Portugal à conversão dos Judeus. Ao quadro do abandono
em que os iprelados e clero de Portugal tinham deixado
homens Uazldos sem vocação ao grémio da Igreja eles
contrapunham o zelo modesto mas incessante, a rpaclêncla
e brandura oeom que aia origem do Cristianismo os após-
tolos e os seus imediatos sucessores Iam guiall'do os débeis
ipassos doo convel'tidos -e alimentando com a instrução rell-
~iosa os ânimos vacilantes dos que, abrindo os olhos à luz
da eter.áa verdade, ainda não tinham a l'obustez precisa

,,
OS CRISTAOS-NOVOS 35

!Para suportar todo o sep e.!ij)lendor, S'aJC'l'i,ficando até às


vezes e disciplina crlstã a •hãbitos arreigados que não ~a
posslvel extil"!)ar de re.P,ente, quando ~es 1bábitos não
feriam a ipureza do Cristianismo. &te contraste, estribado
de um lado no Novo Testamento e nos monumentos pri-
mordiais 'Cla Igreja e do outro nos fuctoo que se haviam
passado em Portugal nos últimos quarenta anos, era ful-
\ minante. <Se, porém> -diziam-, «as itradi.ções e a !prá-
tica da mansidão e indulgência da Iw-eJa para com aq~eles
que de livre vontade entravam no seu grémio eram taís,
quanto maior devia ser a brandura e a caridade ipara com
os homens viol~ tados ao •baiptismo e abandonados nas
trevas dos seus erros>? Os teólogos de Clemente VU vi-
nham depois à concessão da bula de 17 de Dezembro de
qs31 e à inconsístêocia qU>e se notava entre esse facto e
a bula <de perdão. Nesta parte a respost.a não era menos
fulminante. «Sua Santidade> - diziam eles - «entende que
é melhor referir ingénuamente a verdade do que re<:orrer' a
-subtilezas. 'Levaram-110 a cooceder a 'lnquísição 'J>Or meio
de informações sinistras, .persuadindo-lhe -coisas que iprefere
calar para não fa:rer os que as solicitaram odiosos e seus
ipróprios naturais, Infa.maudo-<>S perante o orl>e cristão com
o •ferrete 1Cle deslealdade. Seria essa a consequência 'de se
patentearem as mentiras que forjaram para perder essa
a:nJseTa gente. Só depois Sua Santidade' soube que os !factos
eram IJ)'ela maior /))arte mui alheios ao que $C pintava, e
isto por informações de <llversos indivldu05 dadas por es.-
crito e vocalmente. As barbaridades que se ipraticam são
•tais que 'CUSta a iper.ceber como haja forças humatla3 que
IJ)'OSSam sofrer tantia crueldade>. Passavam 'Clt>pols a !fazer
o extracto de uma dessas informações dignas do maior
crédito: «Se é delatado, às vezes .por t>esfomunhas falsas,
qualquer desses mal-aventurados por cuja redenção Cristo
morreu, os .Inquisidores arrastam~no a um calabouço, on<le
lhe não é llclto ver céu nem terra, e nem sequ~r fala.r com
o.s seus para gµe o socorram. Acusam-no tt.st~a.s ocul-

\
36 A INQU!SIÇA.O PORTUGUESA

tas, e não lhe revelam nem o •l ugar a:iem o tempo em que


!praticou isso de que o acusam. O que ipode é adivinhar,
e .se atina com o nome tem ia vantagem de aião servir'
contra ele o depoimento de-ssa testemunha. -Assim mais lítil
seria ao desventurado ser lfeitioeiro do que aristão. Esco-
1.henklhe depois um advogado que rfr~entemente, em vez
de o defender, ajuda a levá·fo iao ipatíbulo. Se con-fessa ser
icrlstão verdade<iro e nega com constância os cargos que
d-e-le dão, condenam-no às chamas e os seus bens são con-
ifis.cados. Se confessa •tais ou tais actos, mas dizendo que
os ipratlcou sem má <tenção, tratam-no do mesmo modo,
sob .pretexto de que ne.ga as intenções. Se acerta a con-
tfessal' lngenuame-nte aquilo de que é culpado, redurem-no
à ~tinia lndigi!ncia e encenram-no em cárcere ipe!1pétuo.
Chamam a ist'O usar com o réu de misericórdia. O que
C'hega a provar irrecusàvelmente a sua faoci!n'Cla é, em
todo o caso, multado -em certa soma, ipara que se não diga
q~ o tiveram retido sem motivo. Já se não fala em que
os presos são constr'angrdos com todo o género de tormen-
tos a con>fessar quaisquer delitos que se lhes atribuam.
Morrem muitos nos cárceres, e ainda os que saem soltos
ficam desonratlos, eles e os seus, com o ferrete de pe!1pétuá
Infâmia. Em suma. os abusos dos inquisidores são 1'als que
ofàcilmente poderá entender quem quer que tenha a menor
Ideia da !ndole do Cristianismo QU'e ele.s são mlnlstr'os de
Satanás e não de Crl-sto>. Tal era o extraoto. Acrescenta-
vam os teólogos que, certificado ipor testemunhos lndubl-
táwls destes fu.ctos, convencido de que o dever de 1pontl-
flce era 'edificar e não destruir, e vendo que os wqulsldores
<tratavam 03 conversos, não -como ipastott<S, mas como
fadrões e meroenár'los, •n ão só susipendera a Inquisição, mas
também, conhecendo que 1Contribulra 1por falta de são con-
selho ipara tais horrores, quisera dar uma reparação às
-vitimas concedendo aquele amplo ipe'l'(f!lo; que lhe não Jm-
iportava se os $eUS •predecessores tinham acMO ·levianamenre
CODCedi<:lo ou toler.a.do tais coisas n'Oli outros -reinos de
&parrha: dmportavam·lhe os ieiremploo dos aa:>óstolos que
o iespirito divino alumiava, 1POrQUe ele não SU'Punha ser o
vigário de foocên·cio VIII, de Alexandre VI ou de qual·
q11tt outro ipapa, mas sim <laqueie de quem, conforme o
sentir 'Cla Igreja, era :próprio c~adecer·se e iperdoar. No·
tava.-se, enfim, que el-tei estranhasse tanto esta indulgência
e to!e:rãncia do iPOntlfice, quando sieu :pai havia oe:onoedido
aos Cristãos-Novos privilégios e isenções que ele fPráprio
confirmara, ao ipasso que o ipontFfice, ahsolivendo-o.s agora,
não fazia iprQ?riamente senão dilatiar por wn 1prazo ldema·
siado 'Cllrto os ieleitos das conoessões havidas ipor ele$ da
benevolêrrcia real.:>

Este •libelo luminoso contém já a substância das aíticas


que IJ'Osteri~mente haviam de ser lançadas contra a .Jnquisição
e mostra como esse i!iribunal ofendia as consciências escla-recidas
do século XVI. Destrói pela base a argumentação daquele.s que
Justificam as atrocidades inqulsitorlais a1f.Jrmaodo que estavam
dentro <los costumes e da moral da época. Sem !dúvida, a In-
quisição cabia dentro de certo <oivel de consciência .moral, mas
o nível mais baixo e tenebroso, porque em cada época (seja a
nossa ou a do século XVI) há !llíveis diversos e contreditót'ioo
de consciência. É evddente que os 'Cardeais ~ subscreveram
oeste· documento 111otável tinham uma oe:onsci!oncia cristã multo
d~ente da iêlaquele& que nove anos mais tarde (tl542) insti-
<tuíam o tribunal Ida Inquisição na própria Roma; sob a direcção
de Caraffa.
!Pouco antes de morrer, Oleioonte VH reaiflrmou estas dis·
a><>-Sições, declarando--se movido pela voz da ipl'ópria con.sciênda.
O advento do novo .ipapa, ilaul'O III, permitiu .-ecome~ar
as discussões, que se enredam e com>plicam pelo duplo jogo
do embaixador de Portugal, o bispo D. Martinho, e 'Cio ~re·
5'ellltante dos Cristãos~Novos, Duarte da <Paz, que se entie.ndiam
em segredo e 5~rviam simultâneamente ambas as partes em
litígio. A Corte de Portugal lançou na cootenda a intercessão·
de Carl~ V, mas só con.se<guiu do novo 4)a:pa coocoe.s:sões ~ria.
38 A JNQU!SJÇA.O PORTUGUESA

mente formais e ilusórias. Imitados pelo mal°Ogro dos se-tis es·


forços, os dois repré.sentantes que o rei tinha então em Roma
chegaram a sugerir-lhe que, à imitação do rei de Inglaterra,
.iregasse e obedl&lcia ao ipapa-eonselho que, embora não
tenha tido seguim'e<nto, não deixa de 6er signl·fi.cativo dos 'Ver·
dadeiros sentimentos da Corte portuguesa, que, para expropriar
os Cristãos-Novos em nome da religião, e ncaraiva a ipossibili·
dade .de recusar a obediência ao 1pastor s-u:premo da mesma
religião. De resto, os embaixador~ 1P<>rtugueses acusavam a
Conte pontifícia de se deixar subornar .pelo dinheiro dos Cris·
tão-Novos e D. Henrique de Meneses dizia dos car'deais que
<não ·s ão 1prlncipes nem são nada; .são meneadores e bufurinhei·
ros que não rvalem tr~ moedas ide cobre, homens .sem educa·
ção, a quem só movem ou o medo ou o interesse temporal,
porque o espiritual ocoisa é de que não 'CUram>. As acusações
ide col'll"Upção e de sórdida cobiça material C!hovlam de •Portugal
'Pat'a Roma e de Roma 1Pata iPor~ugal, \Sem eXJCeptuar a !Pessoa
<lo Jpapa, que na correspondência idiiplornática é trata'Clo com
uma inacredltãve-1 sem-cerimónia. Os 'Clocumentos conhecidos
provam sem dÚ'Vida que o ouro dos Cristãos-Novos, c orrendo,
quer em .Portugal, quer em Roma, foi um combustível que ICO!l.-
-trlbuiu para manter a questão acesia durante tão •l ongo tempo.
Como o rei .p usesse dílações e obstáculos às decisões do pon-
Uflce, mandou este afixat' em IPortugal a bufa de ipen:fão de 7
de Abril de 1':533. No 'final de 1535 os cárceres abriam-se para
alg-uns ipresos e a Cor·te IJ)Ortuguesa recuava, desorientada e
humilhada fl)elo núncio.
A Qrande ~ança de D. João 'III continuava a ser a ln·
fluência de Carloo !V. O 1ogo diplomâtl'CO em que o a>aa>a se
"Via envolvido, -e dentro do qual o iJD1pera<lor era uma peça
essencial, levou-o por fim a c~er às pressõe.s deste: a lnquisl·
ção foi estabelecida, mas em noves bases, que limitavam a
intervenção do rei.
Pela bula de 23 de Maio de •1536 são nomeados pelo papa
1

três inqulSldores (os bl.spos de Coimbra, Lamego ~ Ceuta) ,


sendo o tti autorizado a escolher um "quarto inquisidor; mas
OS CRISTAOS-NOVOS 39

proíhe.-se a coafiscação dos ibens. dos réus, durante dez anos, e


ordena-se que durante três anos ~ sigam as normas <lo ipto..
Ce6So civil comum, ;e ·não os tradicionais .«estilos) da 'f o.quisi.
ção. Haveria apelação em última instância 1J)ara um conselho
geral, nomeado pelo inquisidor principal. Ao mesmo tempo o
papa recomendava moderação e que só e:irercesse efectivam.ente
o cargo de inquisidor 'O 'bisa>o de Ceuta, Fi'. Di'OQ'o da 5ilva,
pessoa conhecida ipela sua moderação.
Não era isto o que pt'etendia a Corte <portuguesa, anas sim
uma iverdadeira Inquisição, 'Com con<fisco, ~stemunhas 'OCUitas,
etc., e que fosse um obediente instrumento da sua politica. No
entanto o rei resig.oou-se a este compasso de espera enquanto
empreendia novas diligências em Roma.
É a .partir desta época que e Inquisição.entra a fon'C.ionar
com regularida:de em Portugal. Em 118 rele Agosto ipubli<:a-se
a iprimeira lista dos actos que <leviam ser denunciados à lnqui·
sição; além da celebração de ritos e 'festas judaicas e da mani·
festação de doutrinas heréticas, certo número de actos da vida
corrente:

<0 modo de matar as reses ou as aives> - resume Her-


culano -, <o provár o fio 'Clas facas 'OU cutelos na unha
do rdedo !polegar, o não comer ~eritas variedades de carne
ou ipeixe, a altura das mesas em que itomaivam as rerei-
ções, a natureza destes, o lugar do aipo.sento onde se ;estava
lj)OT ocasião da morte de qualquer ioolvfduo, o iporem 05
<pais es mãos sobre a cabeça ou no rosto dos ~ilhos, 'O f'e•
novar as torcidas dos candeeiros ou Hmpá~los à isexta.ifeira
e outros actos semelhantes obrigavam em consctênda, e sob
.p ena de eX'comunhão, quem quer que os 'Visse 1Pratica1' ou
deles tivesse noticia a denunciá~los à <Inquisição. Não só
se ficava obrigado a acusar como Jierege todo aquele que
negasse a imortalidade da alma e a divina missão de Jesu.s
Cristo, mas também <:wnpria delatar os qll'e andas.sem de
noite, como as bruxias ou como os feiti~iros, em 100m:pa--
A INQU!SIÇA.O PORTUGUESA

nhia do Demónio, ou que chamassem por este para o ha-


iverem de Interrogar acerca dos iptocesso.s foturos.»

Bm 20 de Outubro publicava-se o edital do <tem,po de


oraça> (hoje dlrlemos: fPrazo do perdão). infringindo a bula
de 23 de Maio, visto não distinguir entre os actos anteriores
à •b ula de 112 ide Outubro e os posterior~ a ela. Bm 22 de
Outubro, em ·:&,ora, onde residia a Corte, a bula da Inquisi-
ção rfol solenemente 'J)roclamada. Em Roma nacende.-se ra in•
triga diplomc\tica, complicada com outros negócios da Corte
portuguesa, e as queixas que ali chegam sobre as atrocidades
inquisit~ais movem o papa a enviar novo núncio a inquirir
do que se ipassava.
Um golpe teatral é d~ferido em 4539: nas ipor.tas de algu-
ma3 igrejas de !Lisboa aparece afixado um ipapel onde se afirma
a ifalsidatle do Cristianismo e a ~óxima vinda do <verdadeiro
1Me53las. Contra o ll'ecrudescimento da repressão que ~te su-
cesso .pre3sagiava o inquisidor-mor, Fr. Diogo da Silva, pon·
derou que o p~l 1Podlia ser obra dos ipróprios inimigos dos
Cristãos-Novos; mas o xei ordenou-lhe que entregasse os Pô'
deres a um his,opo mais exiped.lto. Prendeu-se um cristão-«iavo,
a quem foi arrancada uma con<fissão e uma abjuração no meio
de atroze,, tor.menl:O<S, mas que nã·o soul>e revelar qualsquel'
(lúm'pliees, mesmo de entre as chamas onde acabou.
Para actlvar o trabafüo inquisitorial o rei nomeou para o
caroo de dnquisidor-mor, de que Fll'. Diogo se ldem.itlu, o seu
rpróprio irmão, D. Hentique, de 27 anos, arcebispo de Braga,
ilamentando que ele próprio, rei, não pudesse exercer o cargo.
Contra as con'Stantes inte11Venções, inquéritos e revisões de
sentenças !POt !!)arte do IPB'Pª e do seu delegado, o núncio, o
tribunal ficava agora iprotegido pot um membro da família real.
Além disso, como o <futuro cardeal não tinha ainda a ddade
canónica IJ)8ra o exercício ido icarigo, introduzia-se no litl<glo um
novo elemento de regateio. As intervenções do ipa)>a aião ces-
sam: exi9e que sejam revelados aos acw;ados os nome6 dos
acusadores e que os condenados fP.OssaID recorrei!' a Roma, que
OS CR.ISTAOS-NOVOS

as itortut'as :não eiocedam as que se ipràticam o~ crimes comuns,


ietc. (bula de 112 de Outubro de -1539). Mas nada disto cliega
a iperfurar a montanha de obstruções erguidas na fronteira
portuguesa. Os núncios são reduzidos ~ passividade. B en-
quanto o a-ei disQite com o papa 'Val.-Se atarraxando o paxafus-0
da i!)erseguição. Em 20 de Setembro de 11510 celebra-se o pri-
meiro auto-de...fé !Público em Lisboa, 1COm a im;pressionante so-
·l'ellidade que havia de itornar estas 'Cerimónias memoráveis em
todo o mundo e IPOr fongo tempo. A:s fogueiras ardiam também
em Coimbra, 1P orto, Lamego, Tomar e Évora, alimentadas com
igente aivebanhada nos focais mais remotos e interiores da pro-
ivínda. •Bm 1510 as !Prisões estão cheias, ao 1POnto de um tios
inquisidores de !Lisboa dedarar que é p~ realizar mais
autos-de-Jé ipara as ir despejando. Mult.i1plicam-t1e os sermões
incitando à violência. A noticia das atrocidades move o ipapa
a enviar novo núncio para investigar, e, como o rei lhe proiba
a entrada. o IPªPª'• 1Pela segunda vez, SU51Pencre o itribunal (22
de Novembro de 154'4).
Só .três anos mais tarde iveio '°le a ser restabelecido, aip6s
arrastadas negociações, em que o papa procurou, sem resulta-
'Clo, impor um perdão geral, a autorização !l)ara os Cristãos.-
-Novos de saírem de Portugal. a revelação dos nomes da~ tes-
temunhas aos acusados e a abolição do 1Con:flsco. O rei reousou
llllDa proposta do IP<liPª para ambos 11>artllharem o !Produto doo
oonfiscos; mas ofereceu ao principal ministro de Paulo UI e
seu sobrinho, o cardeal Famese, qrossias rendas de vários be·
neficios eclesiásti'COS do Reino. Decoma então a !Primeira fase
do iconcilio de Trento, aberto em :154'5, e !Paulo III desej~a
31P!anar as dificuldades que Jhe levantaivam os ipríndpes. Pda
bula de '16 tele Julho de •1547 é 11Jomeado inquisidor o mfanre
D. Henrique, que entretanto fora. eleito teardeal, e anandam.-se
~icar ca Jnquisição 1portuguesa as formas gerais itradkionais
do iprocesso inquisitorial, abolindo todas as restrições e anodi·
ifI-cações até então impostas e tetirando a a.ubondade até ai
concedida a delegados apostólicos para intervirem nos assuntos
da •Inquisição. iE.nviava o IPªPª ao mesmo 1teJDIP.O wna bula 'd e

.,
42 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

perdão, com tantas ie :tais restrições que quase a reoduziam a


wnoa IÍOl\IIlali~ade, e ivârios breves, um abolindo o confisco por
dez anos, o outro suspendendo G>o:r um ano a entrega de con-
denados ao braço si!'C\llar e um outro oain'Cla recomendando ao
r'ei que im'pusesse brandura no 1)rocedimento do tribunal. A bula
de 116 de Julho ficou sendo o estaruto orgânico Jle'finltlvo da
Inquisição ipor·tuguesa. Os Cristãos-Novos obtiv.eram ainda,
mais taxde, de .Paulo m. que se tor.nasse obrigatôria no IJ)l'O--
cesso inquisitorial a revelação aos acusados dos nomes das
testemunhas (~ de Janeiro de ·1549), 'Concessão que no entanto
a Corte 'Portuguesa conseguiu que fosse anulada dez anos
1ck'Pois. Quanto à isenção do confisco a que o rei se t'esignou

·pelo prazo de dez anos ( areodendo talvez a diversas insinua-


ções da Corte ipontiiícia de que o zelo religioso oeontra os here-
ges tinha por fim despojar os Cristãos-Novos dos seus bens},
•foi t'enovada ao ifindar esse prazo, mas a troco de uma com-
pensação convencionada entre os dn!leressados ie a rainha D. Ca-
tarina -, COllllPensação certamente remuneradora e vantajosa
,para a Coroa. !Deve notar-se, entretanto, que, além do confisco
legal, bávia outras formas ~ficazes de 'e:q>ropriação, como
1
·vet1emos.
Assim, ao cabo de uma luta .decidida em que arriscara um
rom'pi:mento defuli'tlvo com Roma, o rei de Portugal .tinha final·
mente a sua Inquisição.
Em ifa.C'e de tudo o que ficóu re.ioposto, a motivação deste
longo esforço parece-nos bastante clara, apesar das opiniões
contraditórias dos historiadores, que ora se inclinam· para um
fanatismo vesànico, como Herculano, ora para a simples co-
biça, como Fortunato de Almeida. De facto, o aparente capri-
cho de D. João Ili está na lógica tanto da instituição régia
como do grupo que ela representava. Basta para tanto termos
em mente:
Que, conlotm'e os seus \!Statutos, o tribunal 'l'eforçava os
tp0dieres eclesiásticos <lo rei;
Que o tribunal criava novas fontes de receita para o nume,
rooo pessoal eclesiástico, -constituído 'Por filhos segundos da
OS CRISTAOS-NOVOS 43

oobreza, ~1~ que, como vimos, é capital durante todo o


'l"ei.llado de D. João III;
Que através do confisco o tribunal punha à mercê l:lo gru,po
dominante a enorme rlquezâ da grande burguesia nacional,
'Cujos membroo ieram na maior parte !Passiveis da acusação de
ccristão--novo>, como atrás mostrámos;
Que, estabelecendo uma J-iierarquia baseada numa pretensa
l)ureza racial, ou <limpeza de sangue>, o tribunal permitia a
uma pequena minoria dominar o Estado;
Que, finalmeore, dados os seus poderes !atos e a sua espe-
cial atribuição de vigiar a opinião, o tribunal permitia a re·
pressão sistemática e orgallizada de todas as ideologias incom•
patívei3 com a ildeologla feudal do grupo governativo.
O estudo da organização, iprocc.s.sos e actlvldade do tribu•
na! val-'Ilos •mostrar w.mo tais object!vos foram alcançados.
Mas a ip;rQJ>ria iexistêocla desta instituição criou um facto novo,
cujo desenvolvimento nada tem que ver já com os motivos que
lhe deram orJgem. A ·história da ·!inquisição não ipode 'S'e'1' <:on•
siderada apenas em relação às ra·zões mais ou menos 1eons-
tiC'lltes que tiveram o 6eu inténprete em D. João III, ·mas tam--
bém, como <teremos ocaslão de ver, ~ relação às condições
obJectivas que se alteraram no decorrer dos séeulos XVI e xvn .


CAPITULO IV

A ORGANIZAÇÃO DO TRIBUNAL DO SANTO OFtCIO

«0 que deu à Inquisição espanhola a sua ipeculiar e ter-


rivel eficiência> - escreve H. Ch. Lea na sua obra A ln--
quisição de Espanha - «foi a perfeição da sua organização
e a sua combinação da misteriosa autoridade' da li:jreja com
o poder secular da Coroa. A antiga ,foquisíção medieval era
uma instituição puramente eclesiástica, com poderes, é certo,
'Para reclamar a ajuda do Estado e a execução das suas sen-
tenças; mas através da Cristandade as relações entre a Igreja
e o Estado eram tão frequentemente conflituosas que as suas
ordens nem sempre eram obedecidas. Na Espanha, porém, a
'Inquisição represe.n tava não apenas o 'Papa, mas também o
T'ei; tinha ipràticamente 8$ duas espadas - a espiritual ie a tem-
poral -, e esta combinação produ.ziu uma tirania, semelhante
no carácter à que a Grã-Bretanha suP<>rtou durante os últimos
anos de Henrique Vllll como chefe supremo da lgreja, mas
multo mais minuciosa e omnipresente.»
Estas ipalavras aplicam-se inteiramente à Inquisição por-
tuguesa, tirante que esta foi ainda mais absorvente que a es-
panhola e organizada com mais minúcia e iperfeição. Como
o próprio Lea notou, a codificação dos estatutos da Inqui-
sição portuguesa nos regimentos de 1552. que ficou manus-
aito, 1613 e 1640 dá um carácter multo mais sistematizado
e unificado à sua legislação do que aquela que em Espanlia
TRIBUNAL DO SANTO OFICIO 45

se constitulu com a colecção das «cartas acordadas> de diver-


sas épocas. A identificação do poder real com o poder ede·
siástic:o tornou-se em Portugal tão completa na prática que a
função de inquisidor-geral foi desempenhada pelo cardeal in·
fante, regente e rei e, posteriormente, pelo arquiduque Alberto,
vice-rei. Era o próprio rei quem propunha o inquisidor-geral
-à nG1Deação do papa. Mas esta fusão do ·p oder temporal com
o poder espiritual nunca passou da esfera dos factos à esfera
do direito: existiu sempre virtualmente a oposição entre os dois
poderes, que mais tarde se viria a tomar efectlva, como vere•
mos adiante. Se o rei escolhia pràticamente o inquisidor-geral,
o papa sancionava-o, e considerava-se que era como delegado
do papa que ele procedia. Os restantes inquisidores eram no-
meados pelo inquisidor-geral, mas procediam Igualmente como
delegados pontifícios.
Como órgão do poder espirltual, a Inquisição afir.mava a
sua supremacia sobre os agentes do .poder civil. Todas as
autoridades civis deviaan prestar juramento de ajudar a Inqui·
slção contra os hereges, considerando-se «fautores de here-
ges> quantos não prestassem esse auxilio. Esta disposição
alcançava muito longe, visto que os inquisidores deviam pro·
ceder contra os 'lllÍnlstros públicos e oficiais de justiça que
.p or sua jurisdição impedissem oo oficiais da Inquisição de ;por-
tar armas otl pusessem alguma dificuldade às suas di1i11ências
e ainda contra toda a pes.soa, cde qualquer estado e preemi·
12~ncia que sieJa>, que fize&oe estatuto, deaeto ou comt!tuição
que impedisse a jurisdição do Santo Ofício. O próprio rei
está impllcitamente abrangido em tais disposições, chegando
um Inquisidor do século xvn, Fr. António de Sousa, a afirmar
no seu manual de direito Inquisitorial: «Os inquisidores pro-
cedem contra lmperadore~, reis e quaisquer outras autoridades
seculares.>
No caso de conflito com o poder civil dispunha a Inquisi-
ção de uma arma irrespondível, que era considerar matéria
de fé, aujeita portanto à sua jurisdição, o caao em littglo.
Desta maneira convertia-se, de parte, em juiz sem apelação.
46 A INQU!SIÇAO PORTUGUESA

Assim sucedeu quando a Cãmara de Évora, em 1642, se


queixou das constantes intervenções da Inquisição nos mer-
cados da cidade, intervenções que os vereadores qualificavam
de abusos de autoridade. A llnqulsição não hesitou em respon-
der por um edital no qual se considerava como crime, a denún-
ciar sob .pena de excomunhão, dizer alguém que os inquisi-
dores ultrapassavam a sua jurisdição e que não era devida
obediência aos seús mandados.
Mais tarde (1567), rebelando-se abertamente contra o de-
creto de P. João IV que abolira as confiscações, mandou reco-
meçá-las num edital em que, ao mesmo tempo, se excomun·
gavam os que tinham colaborado na feitura e execução do
mencionado decreto e, para inutilizar qualquer resposta do
poder civil, se excomungavam também todos os que ousasselJl
destruir este mesmo edital.
Superiores ao poder civil, na qualidade de delegados do
papa, os inquisidores afirmavam igualmente, e na mesma qua-
lidade, a sua supremacia sobre as autoridades eclesiásticas, in-
cluindo os bispos. O Inquisidor-geral :podia chamar a si qual-
quer processo de heresia movido .por um bispo na sua dio·
cese, sem que o bispq pudesse fazer outro tanto em relação
a um processo de qualquer Inquisidor. Inclusivamente afirma
Fr. António de Sousa que os bispos não podiam, contraria·
mente aos Inquisidores, ler livros proibidos. e, óbvio que en•
quanto o poder real e o poder eclesiástico estiveram pràtica-
anente fundidos esta supremacia jogava a favor da realeza.
A Identificação dos dois poderes atinge o seu ponto máximo
quando, em 1586, ao nomear inquisidor-geral o cardeal arqui-
duque Alberto, vice-rei de Portugal, o papa Sisto V sujeita
à jurisdição dele, especiflcadamente, os arcebispos, bispos e
patriarcas do Reino.
Vamos ver de que meios dispunha o tribunal para levar à
prática a sua omnipotente jurisdição, servindo-nos para Isso
do regimento do Santo, Oficio de 1640 e de manual citado de
IFr. António de Sousa (Aphorlsmi lnquisitotum, 1630).
TRIBUNAL DO SANTO OFICIO 47

Havia no continente três loqulslçlSes, com .sedes em Lisboa.


~vora e Coimbra, e tendo cada uma a seu cargo, respectiva-
mente, o Centro, Sul e Norte do Pais. Desde 1561 existe
ainda regularmente constitulda a Inquisição de Goa.
Cada uma destas InquisiçlSes tinha a sua mesa, constituída
por tres inquisidores, quatro <deputados> com vencimento e
um número indetermlnado de <deputados> sem vencimento.
Competia à mesa votar as sentenças, prisões, recursos. etc. Os
cdeputados> eram chamados a votar quando os Inquisidores os
convocassem, havendo casos em que o seu voto era obriga-
tório.
A mesa era assistida por vários funcionários: um promotor
de justiça, quatro notários, dois procuradores ou advogados
dos presos, um meirinho, com os seus tres homens, e três soli-
citadores (oficiais de diligências).
Nas localidades mais 'notáveis havia representantes do
Santo Oficio, Intitulados <comissários>, espécie de inquisid~
res locais, com poderes para fazer prisões e a obrigação de
denunciar os casos de que tivessem conhecimento. Nos portos
maritimos havia os <visitadores das naus>, encarregados de
inspeccionar os barcos. tendo cada um seu escrivão, seu guarda
e seu Intérprete.
O pessoal das prisões lnclula, além do alcaide e quatro
guardas, o dispenseiro. o barbeiro, o capelão, o cirurgião e
dois médicos - isto no <cárcere secreto> (para investigação),
porque havia também o <cárcere de penitência> (de cumpri-
mento de pena), com o seu alcaide e pessoal próprio.
Finalmente, havia por toda a paru os <familiares>, em mJ..
mero indetermlnado.
Este pessoal não abrange o que dependia dlrectamente do
inquisidor-geral e respectlvo conselho, que estava acima das
três Inquislções a que nos referimos.
Este pequeno exército, com milhares de membros e depen-
dentes, vivia como hoste em terra ocupada. No cume estava
48 A INQU/SIÇAO PORTUGUESA

o inqulsidor-gera), nomeado vitaliciamente pelo papa, sob


proposta do rei, e que por sua vez nomeava os restantes in-
quisidores. Abaixo do rei, nenhum cargo ibavia no .Pais de
tamanha importância; membros da famllia real ou da mals
alta nobreza foram nele .providos, podendo dizer-se que de
>facto constituía um feudo das três ou quatro famílias que se
éncontravam à cabeça da nobreza nacional. Além do cardeal
infante D. Henrique e do cardeal arquiduque Alberto, neto
de Carlos V, já citados, foram inquisidores-gerais um outro
vice-rei de Portugal, D. Pedro de Castilho, favorito de Fi-
Hpe II (·1605-lf615); um membro da família Bragança, D. Ale-
xandre, neto do infante D. Duarte (1602-1603); durante mais
de trinta anos andou o cargo ligado à Casa de Aveiro, oriunda
do bastardo de D. João II: D. Pedl'O de 'Lencastre, cardeal,
duque de Aveiro e Torres Novas (1671 -1673); D. Verí.ssimo
de Lencastre, at'C'e'bispo...primaz (167~-1692); D. Fr. José de
'Lencastre, irmão do anterior ( 1693.tl 705). Um dos bastardos
de D. João V, D. José, será provido neste cargo (1758-1760).
O inquisidor-geral era assistido por um con~elho geral, cujos
«deputados>, por ele escolhidos, deliberavam sobre os assun-
•tos comuns a todos os tribunais lnqulsltoriais e .sentenciavam em
última Instância sobre os recursos a.presentados no decorrer dos
proc~os.

Na base do ediflclo estavam os damillatts>, que não eram


funcionários, mas pessoas laicas, que, sem abandon~ os
respectivos empregos e ocupações, se encarregavam de aju-
dar os lnqulsidores e comissários, efectuando prisões, parti-
cipando em inquéritos, realizando espionagem, etc. Podiam ser
nomeados ipor um slmpl'es inquisidor (era pelo mencxs o que
sucedia em Espanha) e, além de receberem gratificações por
cada dia em que estivessem de serviço, gozavam de impor-
ta:ntes 'Privtlégios, sendo os iprlnctpais: que só podiam ser jul-
gados pelos tribunais do Santo Oficio (a não ser em certos
icrim'ell graves, mim>ciosamente espedfkados), e m~smo qu&ido
eram autores, e não réus, pelo Santo Oficio corriam as auas
causas criminais; que estavam Isentos de Impostos e do exer~
TRIBUNAL DO SANTO OFICIO 49

clcio de cargos municipais; que ,podiam andar armados com


armas defensivas e certas armas of~nsivas. Esta situação pri-
vilegiada superiorizava-0s relativamente ao resto da popula-
ção e ipermitia-llles pra<l!icar impunemente os mais variados
abusos e violências. O seu número, indeterminado, devia pro-
vàvelmente andar na ordem dos milhares. ~ certamente para
travar os escânda.J~ q\lie <Provocavam e ipara evitar a mui-
Uplicação das pessoas isentas da sua jurisdição, que o rei
decide, em 1699, invocando a excessiva quantidade de pes-
soa.s que desfrutavam de priViléigios e isenções como dami-
liares» 'Cio Santo Ofício, limitaT estritamente o seu número, que
fixava. só para o conjunto das povoações mais importantes,
em 601, devendo, além disso, nas mais vilas do Reino haver
um ou d ois «familiares>. conforme a respectlva ,população.
Os que ficassem fora deste número aguardariam a sua vez de
serem providos nas vagas do quadro assim criatlo.
Para ser admitido a «familiar» cjo Santo Oficio exigia-se
atestado de «limpeza de sangue>. pata o que os candidatos c;e
s-ujeitavam a rigoroso inquérito genealógico. Exigia-se também
aos candidatos que tiw~m meios de .fortuna «ie que possam
vi<Ve r abastadamente». Na .prábica, porém, a carta de «'familiar>
era concedi<la a arbítrio dos inquisi'C!orec; e a «limpeza de san-
gue, de que adiante !falaremos com mais -demora, resultava não
tanto dos antepassados do ipretendente como da garantia inqui-
sitorial. Conhece-se o caso de um homem de cor que no co-
meço do século XVII conseguiu ser damiliar», ajudado por
recomendações da alta nobreza; e numeros8:J foram as '.Pes-
soas de condição «mecânica> que ascenderam à mesma cate-
goria.
Concebe-se fàcilmente como a rede dos «familiares> era um
formidável Instrumento de dominio. Não falando já da espio-
nagem e da 'Pressão directa exercida por indivíduos privile•
giados e isenfos do direito comum, nos vários sectores ,profi,s..
sionais e sociais de que participavam e em todas as locali-
dades do Pais, esta rede desempenhava um papel dentro da
estratégia política da Inquisição. Já o sagacíssimo D. Lui&
50 A INQUISIÇAO 'PORTUGUESA

da Cunha, nas suas Instruções a Marco António de Azevedo


Coutinho (•1737), notava que, mediante a con~ão do titulo
de «fanúliar> e das garantias que este implicava, a Inquisição
atraia a si a ndbreza pelo seu ipoder único de <canonizar> a
limpeza de sangue das familias nobres. Ser dámiliar> era o
mais eficaz atestado e garantia de nobreza legitima. .Assim os
nobres corriam espontâneamente a oferecer os seus serviços
como espiões e esbirros do Santo Tribunal. Por outro lado,
através da rede dos «familiares> o Santo Ofic-io podia fàcil-
mente 'Clominar certas 1posições.-chave, como se verifica, por
exemplo, nas Cortes Gerais. Em 1674 os inquisidores autori-
zaram-se com o voto dos procuradores das Cortes para com-
bater certas pretensões dos Cristãos-Novos junto do papa,
mas estes .puseram a claro o mecanismo secreto que se escon-
dia debaixo da aparente representação dos três estados do
Reino:

«Por vias particulares e secretas trabalharam (os inqui-


sidores) em convocar por procuradores dos poxos os ho-
mens a quem cham~ familiares do seu tribunal ( ... ). Dos
eclesiásticos se conduziram os mais dos bispos que foram
inquisidores (... ). Da nobreza ficaram os trinta cavalei-
ros nomeados para a deliberação de todas as propostas.
aqueles .que são da mesma familia do dito tribunal e pa-
rentes em graus muito ·próximos dos ministros dele.>

A :verdade desta alegação é intuitiva e -generalizável às


Cortes que se reuniram no decorrer dos séculos xvn e xvm,
que se mostraram constantemente favoráveis ao Santo Oficio.
Como um exército em guerra, a Inquisição vivia das
apreensões feitas ao ininúgo. O iprimelro cuidado que se tinha
ao efectuar uma prisão era inventariar minuciosamente os bens
dos réus. Pernútia-se depois que todos os credores e litigantes
viessem ·reclamar as dívidas ou apresentar as suas !Pretensões -
meio eficaz para fumental' as <h:núncias. Se o céu 1Sala absol-
vido ou sem pena de conflacação, a .Inquisição devolvia-lhe
TRIBUNAL DO SANTO OFICIO 51

a fazenda, depois .de/ 11ela descontar as despesas do preso, as


custas do .processo e a retri'buição de todos os funoionárlos
que nele intervinham, ou ainda uma multa a titulo de penitên-
c;la. Mas a restituição do restante era um preceito legal muitas
vezes sofismado ou esquecido, e quando os ex-rl!u.s o conse-
guiam era à custa de demorados e custosos litígios. O produto .
do fisco pertencia legalmente ao rei, mas nunca lhe chegava
às mãos, porque dele se deviam pagar as despesas inquisito-
riais, a começar p~los ordenados e emolumentos dos seus
funcionários - eram elas tais e taptas que a Inquisição se
dizia permanentemente deficitária, pelo que reclamava e . obti-
nha, quer ajudas do Tesouro público, quer o usufruto de de-
terminados benefícios e rendas eclesiásticas.
Não deve inferir-se daqui que o fisco rendia pouco. Pelo
contrário, o seu produto devia montar a somas vertiginosas.
Apesar de todos os expedientes a que recorriam as vitimas,
como sonegação dos bens mobiliários, dividas fictícias, etc.,
elas mostraram-se sempre dispostas a pagar por altas somas
a abolição, mesmo temporária, da pena de confiscação. O pri-
meiro contrato foi feito com a rainha O. Catarina em 1558,
pot' ipreço que ignoramos e pelo período de dez anos; o se-
gundo em 1577, com D. Sebastião, que vendeu a dispensa
do fistco por igual 1p erlodo de tempo ipelo preço de 250.000
cruzados. O cardeal-rei rescindiu este contrato em 1579, sem
se preocupar, aliás, .com deNolver a illllPortãncia já recebida.
Em •1605 os Cristãos-Novos portugueses compraram à Coroa
a sua influência para obter do papa um perdão das culpas
ipassadas de judalsmo, pela enorme soma <de 11.700.000 'CrUZB•
doz. Em 11649 os <hom<em de negócto:1> e <g~tie de nação>
compram IJ)Or 1.250.000 cruzados, a inwstit 118 Companhia
Geral do Comércio do Brasil, a abolição do con>fisco. É óbvio
que estas consideráveis somas não seriam oferecidas se o seu
montante não fosse inferior ao das confiscações a que estavam
suj~tos os Ti!6pectivos contl'ibuintes. De ttsto, os inquisido-
res sabiam isto bem, como o mostra o bispo de Leiria ao
dizer, e.m 4673, 8 D. Pedro n qu~ <.w Oi Cri5tãos-Novos
52 A ÍNQUTSIÇAO PORTUGUESA
'
prometiam 500.000 cruzados pelo .perdão -geral, tinha Sua IAi-
teza leis justas e santas com que por melo do fisco lograria
muito mais>.
As deis justas e santas> eram as que permitiam coDilscar
os bens do.9 Cristãos-Novos. O tribunal do Santo Oficio não
considerava este rendimento bastante pela óbvia razão de que
era .função sua remunerar largamente o seu numeroso funcio-
nalismo. Isso fazia-se ·p or diversas .formas: ordenados, propi-
nas, .gratificações aos comissários e «familiares> pelas dili-
gências 'e'fectuadas, e até sob formas extraliegais, como o prova
o escandaloso processo feito em 1628 spela Fazienda real ao
'fisco da Inquisição de Coimbra, que revelou terem sido apro-
priados ipor diversos .fun<:ionário.s, e até pelo inquisidor-geral,
bens e livroo de cttio.s :processados. No principio do séotlo
vxm ID. tLuí-s da Cunha notava, nas In$truç6es citadas, que as
confiscações lançavam o descrédito sobre a Inquisição, «por-
que, se se per-guntar o que se faz de tantas -grossas <:asas que
no nos.so ,rempo se 'Confiscaram, ninguém o dirá e todoo o sus-
peitam>.
' o rei a
A::s afltçõe.s do Tesouro reai levavam ipor :ve:z.es
disputar aos inquisidores qs despojos dos condenados e a acei-
tar os contratos de isenção do .fisco propostos pelas vítimas
eventuais. A Inquisição era a única lesada em tais contratos,
visto que o respectivo preço entrava dire<:tamente nos cofres
do &tado, ao icontrário <lo montante das COJrliscações, que em
geral não passava dos cofres inquisltoriais.
As disputas em torno do fisco acentuar-se-ao à medida
que crescerem as dificuldades do Império Espanhol e que au-
mentar, a.pós a Restauração, a ímportâooia da 'burgues.ía poi-~
tuguesa. Mas enquanto pennanecerem as condições iniciais
que levaram à criação do tribunal não D<>S devemos deixar
iludir ipor estas pequenas desinreligências illa ipartilha do' saque
-doo Cristãos-Novos. Se a função da realeza era assegurar fon-
tes de rendimento para os membros e clientes do grupo diri-
gente, é evidente que lhe interessava manter o <:OD'fis<:o, m~smo
que do seu c>l'oduto nada d~ entrada no Tezouro públlco,
TRIBUNAL DO SANTO OFICIO 53

assim ~omo lhe interessava manter as iposlçôels do Império In-


diano, mesmo que este resultasse em deficit.
O fisco não era a única fonte de rendimentos do pessoal
inquisitorial. Quando os réus saiam absolvidos era ~105 seus
bens que se pagavam 03 suas despesas durante o proc:e~o e
quando saiam levemente culpados eram-lhes impostas. além
de outras, penlt~cias pecunlârias, que iam, segundo o regi-
mento de 164-0, até um terço dos seus bens. O produto destas
multas era ~ontabilizado à parte e pertencia de dittito ex-
clusivamente â Inquisição. Os processos de genealogia, de que
falaremos adiante, constitulam também uma fonte de receita
importante.

'
CAPITULO V ,

O PROCESSO INQUISITORIAL

A base do procedimento inquisitorial era a denúncia, que


assentava, por :sua vez, ca !Política discriminatória, que per-
mitia a uma parte da população portuguesa esbulbar dos seus
bens e empregos a minoria chamada <crist~nova>. A denún-
cia era expressamente ordenada, sab pena de graves sanções.
Anualmente, no -primeiro domíngo de Q uaresma, durante
as visitas dos «visitadores> às diversas dioceses, e . ainda por
ocasião dos autos-de...fé, 1publl<:ava-se o «dital da ·Fé», dirigido
rpelo:s <inquisidores aJ)'OIStólocos contra a herética pravidade e
apostasia> a todas e quaisquer pessoas, fosse qual fosse a
sua condição, -estado, etc., 'intimando-as, sob ipena de e~o-
111unhão maior, dentro do prazo de trinta dias, a irem denun-
ciar o que soubessem sobre certos casos que o edital espe-
cifü:ava minuciosamente.
Tal como aparece no regimento do Santo Ofldo da Inqui-
sição de ·1640, o iedital <indioava colll'O crimes sob a <rlçada inqui-
sitorial, tem «SUmo, os 6egulnte:s: o judai~o; o protestantismo
-e outras doutrinas < heréticas •(como o materialismo averrolsta
dcxs ~ afirmam não ·h aver mais que nascer e morrer, ou negam
a outr'a •vida); a ikitiçaria te astrologia; a icitura de ilvroo
1proibltlos; -a bigamia; as práticas se:iruals dos saioerdot~ a
coberto da confissão (mas nã,o tem outras cll"iCUllStâncias); a
pederastia; e o desacato ou menos respedto ~elo tribunal do
O PROCESSO INQUISITORIAL 55

Santo Ofício. Mais- tarde ent11ará na lista a profis6ão ou prática


do misticismo «iluminado> e quietista. ·
Gomo arnre ide judaísmo conside:raiva-se a prática de certas
usanças, como vestit'..,g,e de festa e não trabalhar ao sábado;
não comer carne de porco, .lebre, coelho e, peixe sem escama;
banhar os mortos e amortalhá-los com camisa comprida de
pano novo, enterrá-los em terra vir{!em e covas muito fondai,
pôr-lhes na 'boca aljôfar ou dinheiro de ouro ou prata; cor-
tar-lhes as unhas e guardá-las; manifestar o luto comendo em
mesas baixas e deixando-se estar atrás das '.P<>rtas, etc.
Todas as denúncias eram aceites, mesmo que viesaem de
pessoas recusadas ,pelos tribunais seculares, como escravo,,
infamados, etc. Podiam ser feitas anónimamente por interposta
pessoa, e admitia-se inclusivamente a denún~ia por carta anó-
nima, «se o caso for de qualidade que pareça que convém
ao serviço de Deus e hem da Fé>, diz o regimento de 1640,
que estamos seguindo. As denúncias seriam recebidas pelo
comissário do Santo Ofício e onde o 111ão houvesse - orde-
nava o edital - pelo padre confessor do denunciante.
Se o denunciante re',feria algumas testemunhas dos factos
denunciados. eram estas chamadas e interrogadas em termos
vagos, sem especificação de lugares e de nomes, dizendo-se-
-lhes «que na , mesa do Santo Ofício há informação de que
elas sabem ou têm noticia das coisas por que foram pergu~­
tadas e que tratem de desencarregar suas consciências>.
Desta forma procurava-se provocar a novas denúncias a
testemunha aterrorizada, i9norante do motivo por que fora
chamada ao tribunal. Denunciantes e testemunhas juravam es-
trito segredo e os seus nomes em caso algum podiam ser re-
velados. Isto permitia aos illqUisidores manipular livremente os
P,rocessos, pois ninguém além deles conhecia as acusações e
os acusadores em que os processos se baseavam.
Acrescente-se que existiam verdadeiras organizações âe
testemunhas ,.falsas, associações de perjuros que faziam chan-
tagem sobre os eventuais acusados. g verdade que os inqui•
S6 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

sidores moveram alguns processos 1por falso testemunho; mas


eles eram os Wúcos juízes em tal matéria, procedendo por puro
arbítrio. Acrescentei se ainda que as testemunhas podiam dar
nomes e moradas supostos, e até mudar de nome no decorrer
dos iprocessos, 'J)ara povas acusações.
Com esta enorme rede de arrasto O.l'ganizava a 'Inquisição
os seus arquivos, onde ieertameote se ~contrava a mais -com-
pleta documentação sobre todos os aspectos da vida portu-
tQuesa. O arquivo da ilnquisição, só ace:s.sivel aos ioquitSi'do-
res, estava organizado de forma a poderem-se consultar có-
modamente os nomes das 1pessoas delatadas e a irem-se aver-
bando as novas denúncias que sobrevinham.
Se oeontra a mesma pessoa se acUilllulava mais de um teste-
munho, os inquisidores ipodiam ordenar a sua prisão, o que
sem~ devia lfa:zer-se ax>r ordem ~crita a '\llll comissário ou
da'lllÍliar>; mas um testemunho únix:o servia a>ara o mesmo
efeito se vinha de um iparente em 11.• grau do idenundado, ou
se o x:on'S'elho .geral !Pôr qualqll'er razão o ordenasse. iPe facto
/

os inquisidores podiam .manejar a -seu arbítrio a arma da ;prisão,


prendendo ou deixando de ipreader, iconforme as circunstâncias
;pessoais e de mom<ento. A ipri:são implicaiva instantâneamente o
seq~tt'o dos bens dos réus, deixando :Slem telha e sem pão ais
,. respectivas familias, que em muitos casos tinham de recorrer à
1CaTidade particular ou ipública.
Além dos que aipareciam a denunciar, havia os que 'Se alptt·
\5'entavam a iconfessiar espontãneamente, :solicitando o !Perdão
que a ~el dhes concedia neste icaso. Se os inquisidores conside-
ravam a confissão satisfatória. admitiam o «apresentado> à
«·reconciliação> com a IQ?'eja, mfllvlndo-ilhe uma 1penitência e
uma multa substancial. A confissão !ficava arquivada na pre-
visão de !futura rein'Ci.dencia. 'Mas se os -inquisidores entendiam
que esta coD'f.~ão não era colll'J>leta, demoravam a saída do
«apresentado> até a mesa ~r tempo de decidir com todas es
formalidades a sua prisão.
O regimento <lo Santo Ofício não nos descreve, natural·
'mente, 'Como el'am os cárceres ·o nde os 11>resos iam caindo, mas
O PROCESSO INQUISITORIAL 57

a descrição que deles fazem as Notícias Recônditas do Modo


de Proceder da Inquisição (l~vro de que voltaremos a falar)
é impressionante. A escuridão era quase total durante o dia
(em Évora as <:elas eram subterrâneas) -e os presos desejaivam
a 11oite paTa se poderem cooifortar' com uma ·l amparina de
azeite. ·Por lfresta:s insus,peitadas eram vigiados ·noite e diêll. Em
peque11as celas de 3,30 m de oeomprido !por 2,64 m de •l argo
aicumulavam~e quatro, cinco ou mais homens. A distribuição
dos ipresos .pe.loo vários cárceres era <:uidadosamente. estudada
pelas inquisidores de maneira que do s~u ag·rtU1pame<11to 11unca
iresultasse prejuízo, mas antell nov~ elementos para o processo.
As tde11únciasi dos próprios ipresos relativamente uns aos outroo
eram teom efeito uma lj)eça Importante nos IJ)r~ssos onde fal-
tavam outros indícios, assim como o eram as denúncias dos .
.guaridas .posta<los <le ·vigia. A atmoofera das ICár'oeres era psico-
·lõgícamente um inferno tenebroso, mas agitado e tenso, porque
cada pr.eso via no companheiro um eventual denu.ndante e
iporque os que já tinham vergado, confessando .culpas ve.r da-
deiras ou jmaginárias, JPressionavam oo outros a fazer o mesmo.
Por tVezes os aousados ipe.rmaneciam muitos a!lloo nos <:ár.ce!'es,
aguardando que novas denúndas, quer de outros 1Presos, quer
de pessoas de fora, •viessem itcazer novos elementos aos pro-
<:essos. Tomavam.-.se as mais rigorosas ~idas para <Jue. os
tPresos •não !Pudessem <:omunrcar icom o e.x-terior', até ao ponto
de UJ<es ser recusado .con•fessor, missa e sacramentos, a não 1Ser
em artigo de morte. A tn~municabilidade era a regra inalte·
irável nos cárceres do Santo Oficio, neste po.oto muito mai.s
rigoroso do que a autot'idade civil, que só impunha a iincomu-
nicabilida'de em .certos casos especiais.
Decorriam 1por vezes os meses e os anos antes que o réu
fosse chamado ao .primeiro interrogatório, clamado (de genea-
logia», apesar de que o reglmento determinava. iparai iisso o
prazo de idez dias. Depois de pe-rguntado pelos 1Pal'entes, prisões
anteriores, <estudos, viagens, etc.: ie ipelo IPadre-NOSiSO, Ave-
-MaTia, Oretdo, Salve-Rainha e Mandamentos («o <JW? se fará
ainda que o preso notõr'iamente seja. ipessoa de ietras>): e.Ta
58 A INQUJSJÇAO PORTUGUESA

'!Perguntado se <sabe ou suspeita a 1causa ipor que foi ipreso e


<trazido aos cáTceres do Santo Ofido, e dizendo que não, que
antes p:r'.esutllle que o prenderam 'POr algum restemunho falso
kvantado por inimigos, se lhe .farâ a !Primeira admoestação na
forma do estilo do Santo Ofício, na qual lh~ não serâ decla-
rada a qualidade das cu.)ipas ipor que foi 1Preso, e sómente lhe
será dito que estâ ipreso q:ior culpas ~Jo conhecimento 1Perten~
oo Santo Oficio, e no <fiin da ~são tornará o inquisidor a
admoestar o ipreso que cuide em suas 'C'Ulpas e trate de as
·conEes.sar>.
A s:eogunda se~o, realizada teôrlcame~ um mês depois
da primeira', era in genere '(11a ge~raUdade), e ai se multipli-
"CaVam as iperguntas oobre todos os aspectos do iculto ireltgloso
de ~ja iprática o ipreso ~tave tndiciado. Perguntava.-.se, por
iexemplo, se o téu aderira à ld de Moisé6; e no oeaso de ele
dar a tal pergunta resposta negative, o inquisidor, impassivel,
!l)1'0SS1eguia iperguntando 6e deixara de 'Comier oarne de iporco,
ipeixie com ipele, lebre, coe-lho etc.; se ipassara a mudar de oa-
misa 'BOS ~âbadoo, e a$im tpor diante, dndilfierente às respostas
tdo ~é'U.
A <terceira sessão era in especie (na espercialidade) ~ reali-
zava-se dentro de um iprazo ill'determínado a contar da segunda.
O inqÜisidor ia ifa'Utldo perguntas pelas acusaçõe.s que co~
tavam dos depoimentos, mas 1Sem revel:ar os 'llOmes dos acusa-
dores -e omitindo toda a circunstãncla particular <111e IPUdesse
•l war o IJ)l"eso a descobri-.Jo. 1Far.-.se-iam tantas ~erguntas quan~
•tas as testemunhas; mas 1Se houvesse <p<>u<eas rtestemunhas eorrtra
o réu, determina<Va o ·regim~to. os respectlvos depoimentos
seriam subdivididos, ilaivendo variedade de cerimónias ou actos
'l'epetidos - de 'm odo que o réu inão deimsse de ifi<eer impres-
sionado com o ivolume das a'CUSações.
Bm todos os interrogatórios o reu era obri~do a ·jurar
completo segredo sobre tudo quanto via te ouvia e com ~le se
pas:sava, e em todos também o inquistdor admoestava o p!'elSo
a -confessar suas culpas, para descargo de sua consciência e
seu bom despacho (se o ~r.eso -era reincidente na heresia ou
O PROCESSO INQUISITORIAL 59

sodomita, a ·1fónnula era para descargo de sua consciência e


salvação de sua alma).
Se oe.m qualquer <los interrogatórios o :preso mostrasse de-
5ejo de :faze<r uma 'Confissão, devia ser ouvido imediatamente,
<porquanto as confissões dos culpaod03 noo crimes de here.sia
são o único ~io com que·ipodem merecer que icom eles- se use
<ie m.i.sericórdia e o ,principal foodamento que tem o Santo Ofi-
cio ipaira proc.e-deor contra as ipessoas de que nel~ se denuncia>.
Com efeito, esta:s confissões valiam ipara os inquisidotts
1Princi,palmente na medida em q~ nelas se !faziam novas de-
núncias, e já no regi·m ento de 11552 se dizia que o bom penitente
era o que descobria outros culpados do mesmo erro, especial-
mente iparentes !Próximos e amigos a que tivesse 1Par.ticular
afeição. .Por isso <e<m iprimeiro •lugar mandarão ao ipreso que
doolare a pessoa ou pessoas que lhe ensinaram os erros de que
se acusa, o telll:P<> e lugar em que foi, as :pessoas que se adia-
vam presentes>, etc.. e bem 'éll!Sim <as ~oas com quem icomUr
nicou iprokssar os mesmos erros», âsto com toda a miudeza
posslvel.
A.aaba<la a contissão, os inquisidores <dirão ao réu que
, tomou muito bom conselho em começar a confessar suas culpas;
que lhe convém <trazê...Jas itodas à memória e dedarar inteira-
mente a vendade <lelas e todas as .pessoas <eom quem comunicou,
iporque fazendo-o assim salivará 'Slla alma e se IPOl'á em estado
de com cle se us:a<r misericór<lia:>.
No caso de não acliariem a oonfissão suifidente os. inquisi-
dores deviam continuar os inten'ogatório.s re !fanam ao réu
mais três admoestações. Se, pelo contrário, entendiam que a
confissão concordava com a informação existente contra o réu,
<lhe será ldito sómente que :trate de examinar 6ua ic:omdén'Cia re,
achando-a >carregada em alguma coisa mais, a >venha manifestar,
>eStando cttto de que se usará com ele de muita misericórdia>.
Notamos aqui que â maior :parte das denúncias eram ifeitas
nestas circunstãn:cias e que ipor isso os inquisidores só muito
reremenre iconsideraivam cabaJs estas con~ssões, 'Visto 'e$pel"arem
sempre <la icontinuação delas novas denúndél3.
60 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

Depois dos interrogatórios indicados e das confissões, se as


\ houvesse, o réu era normalmente processado. Se acaso oão
cedia à ter.ceira admoestação <pél'l'a qulf? iconlfe:ssasse suas cu1pas,
o procurador apresentava o libelo ode acusação.
Neste os -depoimentos eram redigidos em tfo'rma de acusações
e o réu era arguido, além disso, de não 'Con·fessar suas culpas,
sendo lpOr vezes rpara isso a'Clmoesta<lo. O procurador pedia, em
conclusão, que como ~ <negativo e .pertinan tfos.se entre-
gue à ·jll'Stlça Secular. No caso de as tesremunhas falarem arpenas
de 1ndicios -e rpresunções e de o réu nada itieT dito, também o
iproro'Otor d.lria que icontra o 1'éu resulta «1Jresunção confot.me a
direito» de que ele cometeu tal heresia, e concluiria ipediooo a
mesma pena.
1{$to para os réus que >haviam respondido negativam~te a
todas as a'cusações ( «ne-gatlvos>). Quanto aos- que ha.víam
ecoofe-ssado>,' o promotor aprowU.aria as suas declarações na
<par!'e em que confirmavam a acusação; mas aipontaria as euas
omissões, contradições e inverosimilhanças rpara ianguir o réu de
não ter feito coll'fissão comp~eta, tendo sido admoestado para
isso, lf? concluiria <J)'edindo que <como neto \! simulado confitente
diminuto>, fosse também relaicado à justiça secular.
.. O réu podia então ~reparar a sua defesa. sendo-lhe para
isso nomeado ~lo Santo Oilclo um advogado, o qual devia
jurar, não apena5 que se encarregaria de bem deíiendet o réu,
mas taanbém que <se pelo decurso da musa akançar e 1Se ~­
suadir que o réu 6le defende injustamente .desistirá de.la (causa)
e o virá declarar na tm?sa>. O advoga-do de defesa não podia
\!Xamlnar o processo, que todavia estava à inteira disposição
do promotor'. Às oentrevlStas do réu com o advogado assistla
permanentemente o meirinho. Todas as alegações 'Cio réu de~
viam ser escritas :pelo 1Punho do advogado, que as assinaria
conjuntamente com o !l'éu, de modo que est-e não podla dar um
passo 11>or sua própria e exclusiva inicia.tiva e fl<:aiva amarra.do
às restrições e cautelas impostas ao advogado.
Se o réu, para ~ defendet, quisesse isaber o tempa e o iugar
do delito de que era acusa<do, devia requerê-iJo à mesa e esta

'
O PROCESSO INQUISITORIAL 61

despaoharia que tal comunicação se fizesse <na forma de di-


reito e testHo do Santo Ofício», isto é, em •termos estudada.mente
'Vagos, que se exemplificam no regim'e'tlto. Assim, se o delito
tinha sido "<:ometido ,na Igreja de S. Domingos, ·-em 1Lisboa, dir-
..ise~la unicamente que o 1ugar era Lisboa, oe se o fogar 'Cio delito
e-ra bastante docunscrito ~ara rpermitir <Wlla idenUficação precisa
te circunstanciada de factos e rpessoas, iodlcar-se..Ja uma área
bastante vasNI, dentro da qual o <dito lugar estivesse incluído,
dizendo, 1por exemplo, que tal delito fora cometido a certa dis-
tância> ao redor de outro lugar mais importante ( v. gt., «tantas
léguas ao redor de Lisboa>). Na indicação de tempo nunca se
IJ)reciscrva dia ou mês, mas um período aproxi·mado (4-'bá tantos
me-ses, ipouco ma:iS ou menos»). Se o delito fora cometido no
<eârcere, somavam-se mais cinco ou seis meses antes da ipri.são
oe dizia-se que !foi 4.'Cle tanto te!ll'Po a esta ipar.te», de modo que
o réu não rpudesse .fàcilmente ideotifi.car o local te as testemu-
nhas - isto é, o próprio cárcere e os 1pr6prios companheiros de
1pri.são.
Entr.e-que a defesa, seguia-se a .p ublicação da iprova ~lo
promotor. Conslstia essa prova na SA!<)ttência· dos de<poim~otos
das ~temunhas, de;i:>ois de expurga-das todaog as re'rerências de
nome ie lugar. Esses deipoimentos não eram confrontados entre
si nem de qualquer forma ;c:onfuridos. A«:eitavam.-se um ipor um
e tais quais. Se duas testemunha-s dive<l"giam quanto a datas,
iocais ou outras circunstâncias, considera'\73-se que se tratava
de dois factos diferentes ou de uma mesma acção repetida.
Também não era ave-ri-guaoda a Idoneidade da restem·unha. Se,
no entanto, houviesse razões mUi,!o fortes a dtesacredltar alguma.
testemunha, não era isso razão paT-a se IPÕr de parte, devendo
ser aceite 5e a maioria da mesa vota5se que, c:sem embargo da
dúvida que havia, a testemunha não per-deu o crédito de todo».
ETa ~o réu que competia demonstrar a lnoapacidade das tes-
temunhas, através das <contraditas>; consistiam estas em pro-
var que as testemunhas eram inimigas do réu ipor certas razões
graves que se deviam indicar. Mas como o nome das t>este-
munhas lhe era cuidadosamente ocultado, o réu devoeria dar
62 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

todos os nomts que füe ocorriam 'Cie pc>ssi<Veis inimigos, o que


'CO!lstituia ipara os inquisidores uma nova e preciosa fonte de
informações. O réu podia também reatar .prova: ipelas c:coarc-
ta:das> (hoje diriamos c:alibl») que não se éncootrâva no local
do deltto na data em que este lhe era imputado; mas dificil-
mente o .podia faze-r, dados os termos vagos em que se lhe
indicava tanto o local como a data. Para ju.stlfioar as ccoxv
tradltas> -e as ccoamadas> devia o 'l'éu apresentar seis teste-
munhas que não fossem suas rpareol!as até · ao 4. 0 grau, nem
seus familiares, nem antigos rpresos da Inquisição, nem.ipessoas
i'llfamadas, nem cristão.s-novos. E destas testemunha'S apenas
três, à escolha do.s inquisldore.s, eram sujeitas ao l'emeroso inter-
rogatório lnqui!.sltorlal, sem quaolquer ipartldpação do advogado
do réu.
Para o esclarecimento icompleto da matéria· 'll~ta fase do
julgamento os lnquisidol'e3 .recorriam à tortura, ou <tormento>,
<cuja aplicação está minuciosamente prevista no regimento. O
ctorm-ento» -era aplicado ou quando o crime não estava pro-
vado ou quando as confissões eram adiadas «diminutas» (in-
completas). precedendo re-soluç.ã o .por maioria do conselho
geral. A-'Sistlam um ou mais ipqui3idores e outras personagens
eclesiásticas e do Santo Oflclo, d.e forma a completar o número
de tr~. além de um notário, que 1"e9istava tudo quanto ocorria.
As actas notariais destas sessões são lmrpressionantes e nelas
não faltam os gritos e as exclamações dos pacteore&, que implo~
navam que os aliviassem matando-os.
O réu devia prestar Juramento sobre o Evangelho e erai-lhe
dito - extractamos uma acta - cque ipelo 1U1Qar em que estava
e Instrumentos que nde Via ipoderla entender quai era a dlli-
gEncla que com ele reu estava mandado fazer, ipelo que, para
e !J)Oder escusar, o tornam a admoestar com muita cat'itlade, da
!Pé!!l"l'e de Cristo No.sso Senhor, queira confessar suas culpas,
jpara icom 1sso alcançar a mlserkórdia que nesta m-esa; se dá
aos bons e verdadeiros comi.tentes>. Se o preso declarava que
não i!inha culpas, era atado pelo icarrasco, enquanto o notário,
em nome dos ~nhores 1nquisldo.re6, 1Pl'otestava cque ae ele réu
O PR.OCESSO INQUISITOR.IAL 63

no tormento morrer, quebrar algum miem:bro ou iperder algum


..
sentido, a culJpa serâ sua, pois voluntàriamente se eiopõe àquele
perigo, que pode evitar 'Confessando suas culpas, e não será
dos ministros do Santo Ofício que, .faz.endo íustiça segundo os
mereci<mentos de sua causa, o jul.gam a tormento>.
O tormento devia ser normalmente de polé: 'O <preso era atado
pelos braços e içado no ar <por uma corda que corria numa
roldana. Antes de dar a ordem .para começar, novamente o
iinquisidor, «om ·muita cwidade>, aco0:5Je'lhava o preso a con-
1fessar. E se de ainda· recusava 'COme9avam 06 <tratos>. A uma
ordem do inquisidor, o carrasco largava a corda e o tpaoiente
despenhaiva.-se ;m direcção ao solo, a·té que num go1pe repen-
tino a c orda estacava: todo o cor.p o ~ lhe contol'cia num
choque violento e as cordas enterravam-se na carne. O notário
ia notando ·com minúcia todos os se~ ditos, enquanto a ampu-
lheta marca'Va ~ndiferentem'etlre o !iempo. <Com multa caridade>
o inquisidor insistia. Os vestígios que deixava 110 conpo este
trato eram tais que o regimento determinava que ele não se
efectuasse nos quinze dias anteriores ao auto-de-fé, para que os
ipresos ipudessem ai apareoer sem 3inais de terem sido ator-
mentados.
No caso de o preeo não ter condlç&es flslca.s ipara su'POrtar
os tratos de polé, recomendava-se o ipot:ro: o preso era deitado
ao comiprido numa espécie de banca ou leito de ripas e atado
com cordas que as voltas de uma manivela iam ~tica:ndo e
fazendo enterrar na carne. No entanto pl'e'Celtuava-ee que ais
mulheres nunca iriam ao potro, mas sômente à IPOlé <pelo.
muito que se deve atentar ipor sua haoestldado. Em certas
épocas usaram-se ainda outros .-;tormen~>. como clregar ao
fogo as ,plantas dos ipés do réu, retalhadas e untadas de gordura.
Se o atormentado se -decidia a fazet ~guma con'flssão, era
descido, mas 11ão desatado, e assim mesmo devia fa~r as suas
dec!a...ações. Vinte \! quatro hor33 depois era convidado a
assiná-las, sendo-lhe então iperguntado «se ~ rverdade o que
então :di.s:se, e o afü:.ma, ratifica e diz de 11avo, sem ·medo, rforça
ou 'Violência tdg~. Acontecia lfrequ:entemente quererem os
I
A INQUISIÇAQ PORTUGUESA

ipresos revogar as declarações Feitas no dot'mento>, e essa revo-


gação considerava-se válida em direito se fosse .feita nas vinte
e quatro horas seguintes. Por isso, quando .tal a·contecia, deviam
os inquisidores, segundo o regimento, tentar aquietá-los com
boas :pafavras, levando-os docemente a assinar, apesar de tudo.
Persistindo na recuS'él, o ipreso sujeitava-se a mais duas sessões
de tortura, mas podia escapar, como os que se mantinham
1fi~mes durante a primeira sessão, à !pena 'Caipital, se os inqui-
sidores ~im o entendemm. Pelo contrário, QS que revogasse-m.
de.pois de assinado, o auto seriam considerados «negativos», e
como tal conde!l'ados à pena última.
Os presos .pediam ser postos a «tormento» .para revelar,
não só as 'Próprias faltas, mas as de outr'a·s ipessoa8, fazendo-se-
·lhes <previamente essa declaração. Chamava-se e isto ser ator-
mentado in caput alienum, porque na Inquisição todas as atro-
cida<cres estavam meticulosamentie !Previstas e classificadas e
todas tinham as suas fórmulas.
A sentença vi.nha, finalmente, d-eipois de todas estas provas,
votada 1por maloria da mesa·, exigindo-se ipelo menos cinco
votos para a <condenação. Dela não <havia apelação !parn qual-
quer ór-gão <lo Bsta<lo, oo sequer para o conselho ger'al da
•Própria Inquisição, que apenas recebla Tecursos no decorrer do
processo.
Temos estado a resumir e a eictra<:ta'l' o próprio regulamento
da Inquisição. Esse regulamento era redigi-do para uso dos
inquisidores e resulta da icompilação de uma longa ex:periêncla;
é ipor lsso inexcedivelmente minucioso e con<:reto. Havia a
intenção de deixar o mínimo 1>00Sível de decisões à iníciativa
dos agentes inquisltoriais. Podemos sem 'l'e<:eio icon.sidetá-lo
l:Olllo um para'Cligma relativamente fiel dos milha'l'es de 'PrO·
<:oosos que se realizaram; e o seu icoofronto -com -alguns destes
1p rocessos publicados e com as Notícias Recônditas confirma
.esta 'Presunção. Bem entendido, não ressoam no regulamento
os horrores do icá•rcere secreto, o maquiavelismo de alguns
interrogatórios, o odioso das teste'lllunhas que se vingavam a
cober.to do segredo ou que faziam da- denúncia ·u m ;negócio
O PROCESSO INQWSITOR.IAL

<COntado em moeckis, os excessos dos guardas· re outros aigentes


inqulsltoria]s forç.indo a +bol5a' das famílias "Cios 'J>Tes<>S, a6 vio-
'1ência-s sobre as <raparigas que icaiam na escuridão do ICál'<:.ere,
os espancamentos a que, ao menor 'Pretexto, 'OS' presos ttam
sujeitos, et-c., todo este ·c ortejo itenebroso Inevitável •1?Uma má•
quina ipolicial que <Se erige simultâneamente em tribunal sacros·
santo, Unicamente 'l'e51J>onsáivel perante DetJS - um ·Deus quie ~
concebia, não como uma fonte de ia.mor e ip:er<lão, mas <ie 'Vio--
·l ência re vingança.
A S'imples leitura do regiro~. :ilQ seu estilo limpa5Sível e
eufemístico, é ~magadora; mas os ipr~ inquisitoriais, qi.re
ainda não dizem tudo, ·deixam-nos uma impressão incom1parà·
velmente mais funda. Não deiX'a de ser '\itil considera!' uma
amostra, que es~ longe de ser das mais atrozes: o iprocesso
de António Se!'fão 'Cle Castro.
•Era ele boticário e na sua boti-ca <t'eunia.JSe uma tertúlia em
que .particl'J>avam um ourives, um corretor <ie câmbios, um
empresário de -comédias e, entre outros, o coronel Pernão Peres,
um 'QJ'UJ>O burguês e <portanto acentua'Clamrente cristão.novo.
Seu avõ fora drurqião; seu cunhado era médico: um de seus
Inhos estudava- Medi<:ina em Coimbra e outro Teologia; tinha
também uma filha pouco mais que adolescente. Toda a família
manifestava interesses culturaia, e António Serrão, que verse.
java, era membro da Academia ·doo Singulares.
Era também 1fiel cumpridor de todas as deveções. Tinha a
icasa ·recheada de imaçens devidamente honradas. Era• irmão
da Irmandade do SantíSl!imo da keguesía -de S. Nicolau, da
qual ichegou a ser iprocurador e tesoureiro. Tinha já 61 anos,
com uma vi-da Hm.pa de G!'dastro inquisitorlai, quando o coronel
Pernão ·Pieres. que se 1fizera seu inimigo, <o denunciou como ju-
daizante. A Inquisição Of'llanizou o cer<:o e ao fün de um ano
( 1672) tinha prendido Serrão de Castro, alguns 'Cios seus vizi·
nhos e vál'ias rpessoas que ,frequentavam a te~túlla da sua
botica. Dentro da rede tinham caí'Clo os Pestanas, vizinhos do
boticário, e inimigos seus IPOr uma, filha e um filho de Senão
'Cle Castro 'terem t"e<cusado namoro a ifilhos da fumilia tPestana.

5
66 A INQUIS/ÇAO PORTUGUESA

Deste:i lPestanas presos ipal'tiram os 11>rimeiros testemunhos con·


trai os &rrões. •M-eses Jdepois entravam nos cãrceres <lo Santo
Ofü:lo as irmãs e mais taroe o.s rfi!ho.s do boticário. !Presos os
vivos, a foqulsição -evocou também os ~ortos e averiguou que
o avô de Serrão de Castro !fora justiçado ipelo Santo Ofício,
arrastando tanrbém a1'rás de si o <cortejo dos iparentes e amigos.
'Setrão de Oastro negou as acusações que ~e eram feitas
de praticar os iritos judaicos: iguarda <!OS' sábados, jejuns e
semelhantes. •A o .fim de quatro anos de cl~re os inquisidores
tentaram quebr<1r•Jhe a il1eS.istenCiia recon"!endo a um ardil em que
eram useiros: icomunicaram·lhe que ~tava condenado como
~rtinaz te negativo». Ser.tão não 'Vergou; e como os inqulsi•
dores (pretendiam arrancar-lhe denúndas sobre outras pessoas
da S\UI intimidade, em -lugar de o queimarem, iconservaram-'!lo
'llO cárcer-e, onde ele ia contando o.s ano.s pelo flor.ir de uma
amel:r:ie.lra que do pátio da iprisão oroçava as -grades da sua -cela:

Onze veze3 de folha.s rey estida,


Onze vezes de flores adornadtJ,
I Onze veU.! de frutos carregada,
Te vi, ~ixieira aqui nascida.

Outros tantos t811lbém te vi despida,


De folha.s, flore.!, fruto.! despojada,
.
Pelo rigor do 1nverno Mczueada
B a .!eCO tronco toda reduzida.

Também a mim me vi já reve3tido,


de folhas, flores, frutos adornado,
de amigos e parentes assistid-0.

De todos eis·me aqui tão desprezado!
Mas tu voltas a te11 o que hás perdido
e eu nlfo terei jamais o antigo estado.

D urante e.stes an03 os inqul:sh:Íores aguardaram que o boti·


câri<>1>00ta iconflrmasse as declarações •j â at"rancadas a outro.t
O P~OCESSO INQUISITORIAL 67

1'éus do ·mesmo iproce&So. Ailém dos seus virinhos .Pestanas, já


duas innãs suas, senhoras wlhinhas, uma <las quais foi iposta
a tormento, tinham sucumbido, fazendo declarações, não e.penais
a respeito do irmão, mas ainda dos sobrinhos. Estes, (J)reso.s ~
116713, na'Cla a'Ciiantavam <ao :Pr<>eesso. O !tllais "Velho, •Luls, mé-
dico, tinha 24 a'!los; Pedro, estudante de Teologia, 23; Teresa
Maria de qesus -era uma moça viçosa de 11'8 anos que já re-
cusara !Propostas de casamento. Todos eram tdevotos, e o estu-
dante de Teologia', com ipropensões ·mi-sticas, !ligado ·eo padre
l3artolomeu do Quental, dedícava-11e intensamente a o·b ras 1pias,
espiecialmente a visitas a hospíta'is e a ipresos (icomuns, bem
entendido, porque os da. Inquisição 'I!ão po:diam receber 'Visitas).
De outro irmão, Duarte, que andaiva fambém !J>Or altura tdos 18,
quase não fula o iprocesso. Ao fim de tdez anos de 1Cárcere o
ivelho Serrão de Casa-o, que já então 1COnbava 7•1 anos de idade,
I'e6olve e Xiperimentar a misericórdia doo inquisidores e áaz uma
confissão em que declara sei' verdade tudo o de que o acusa~
vam, que ~a arrependido dM :sua.s cµlpa:s e ~edla ipeN!ão.
Os inquisidor~. vendo-o fraquejar, Julgaram oportuno !pô-fo a
tormento, ipara o obrigar a acusai' °" outros 1Pres<>s. ~ra um
'V'eclho descamado, e os médicos wam. quaotdo o despiram, que
não ll'esistlria ao ipolé; foi ipor Lsso atado no potro. GTltou.
dmplorou os l!alltos e a Virgem, !II1M não fez 8S dentlndas que
o.s. inqul~dore3 esperavam. ~n~tanto ~ rftlhos, que fongoo
enos de drcet'e cão fulham coQ.Se9uido aba.ter, e-ram também
-subnretldos ao torm'eI!to. O mais velho não resistiu: acusou, eob
os tratos do polé, o ipai, os lrmãos e outros parentes. O se-
gundo, Pedro, aguentou estoicamente o sofrimento. Com a
ll'mã usaram os mquisld~ o ardl:I que lf:lnJia. tfalhado wm o
ipai: disseram-füe que estal\l'a' icootdenirda -à morte. Tere3a a'CUSou
~tã.o todos os seus, sem exceptuar o pai e os 'irmãos. ·Mais
tarde quis cetratar--se, mas os linquisidor~ fi%enun-<na oalat com
ameaças.
Que se <passava ientretanto 1C001 o chefe da lfamUia? Tendo
resistido ao tormento, poucos dia:s d~ <:&lu a<, 11>rumo e
~ou espontâneamente toda a sua fam1lia, inclbsive os pró-
68 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

prios 1filhos. J;: de crer que o rijo velho, ciente das de'Clarações
do.s lfHhos, tivesse iconduído que era !Preferível salvar a vida,
aceitando-as, evitando uma condenação à morte como «nega-
tivo ipertlnaz:>, que a nenhum deles aproveitaria. O processo
aptoxim&va-se 'Cio rfim. Bm 10 d e Maio de •1682 rea:lizava-se o
auto-'de..fé "em .Lisboa. António Serrão de Castro, ipor ter feito
todas as rconfissões pedidas pelos inquisidores, era condenado
a abjuração e cárcere .perpétuo, sendo os seus bens 'Confiscados.
Seu •filho iPedro, que não fizera .co11fí.ssões, foi relaxado ao
·braço secular, oganotado "e queimado; os outros, > Luis e Teresa,
que !haviam ,fieito confissões, foram, .como o •pali, admitidos à
recon·ciliação e co!l'denado.s a cárcere ,perpétuo. No mesmo auto
saíram várias outras pessoas >presas ~lo nresmo 'Processo.
Quando <leixar'am os cárceres do Santo Ofício pa:ra a >luz do
Sol .se viu que o velho Serrão tinha quase completamente <:e-
-gado e os seus dois filhos que haviam denunciado o pai e os
irmãos <estavam dementes. Serrão de Castro ficava ipela sen-
tença obrigado a artas devoções e a usar sempre o hábito
.penitencial ou sambenito. Dava--se-lhe >por cárcere a cidcrde de
-Lisboa, cárcere .bem grande, onde não tinha um t<e<:to. Privado
dos seus bens, que tinham ido engr'cssar a IFaze!l'da inquisitorial,
só restava como modo de vida ao antigo boticário, que tinha
a seu 'CaT90 uma irmã viúva e os filhos de:orentes, a esmola
>pública. Ma-s o sambenito que ·tinha de usar ,provocava as
atenções e os apupos da genre da rua - <o que o impossibilita
>para <buscar o remédio que há mister>, diz o ipoeta num reque-
rimento 001 que ipede ao Santo Ofício, .pelas cinco .chagas de
Cristo, qll'e, t'usando com cle réu daquela misericórdia ~ .pie-
daode que -com todos costuma usar», o dispense de trazer wstido
o hábito ipeniteacial. O requerimento rfoi atendido e o ancião
de 73 anos 'l)ôde, enfim, esmolM à rvontade nas ruas de [,isboa.
Em resumo, tanto o regi mento como os processos mostram
que o acusado se encontrava inteiramenl'e à mercê dos inqui-
sidores, se·m quaisqll'er garantias de derfesa, rp odendo únicamente
tentar a misericó~dia inquisitorial. Mas iesta era um rprémio
corrcedirclo apenas aos que e:olaboravam icom a Inquisição. Regra
O PROCESSO INQUISITOR.IAL 69

.geral só os denunciantes - mentirosos ou verdadeil'os - esca-


lpavam à morte.
Uma questão que nos ;nte~a é se o i?rocesso inquisitorial
oferece mais ou menos garantias que o !processo comum da
época. Não queremos averiguar em q~ medida a Inquisição
está ou não de acordo com o espirlto do Cristianismo, visto
que a considel'amos como uma instituição .puramente histórica
e não pretendemos aferi-la por ide<ais fora do tempo ou do
espaço. Interessa-nos sómente saber se os 'J)rocessados da· In-
quisição dispunham das garantias minimas que as leis e os
costumes atribuíam aos criminosos vulgares.
A oesre respeito faia o Inquisidor cardeal Cunha no pró-
logo do l'eglmento do Santo Ofido que, •P<>r illS'Piração do
marquês de 1Pombal, 1publi'cou em '1774. O cardeal salienta
aqueles pontos em que o regimento de 1640 se afasta, não só
do direito natural, mas tam~m 'Cio direito ipositivo, isto é, da
legislação geral e do cos,tume. A esse respeito, os «erros» do
regimento de •1640 são, segundo de, os iseguintes:
11.º O ocultarem-se eos réus os nomes das testemunhas e
todas as indicações de lugar e tempo que 'Permitissem identifi~
oeá-las. ·Isto está em contradição ic:om o disposto nas Ordenações
Filipinas, então vigentes como código geral do .País.
2.º O condenar-se à '!)ena última por <testemunhas singu-
1Jares sem o necessário concurso <las três identidades jurídicas
do facto, do lugar e do tempo>, o que é também contrário às
leis então vigentes.
3.0 O uso do tormento. Embora autorizado ipel-as Ordena-
ções, o cardeal nota que o tormento, donde resultam confissões
falsas, está abolido pelo uso <no direito não escrito>.
4.º A infâmia imposta a todas as rpessoas que passaram
IJ)elo Santo Oficio, mesmo quando absolvidas, o que é contrário
à lei evangélica e às leis humanas.
5. 0 O não haver recurso ipara a. Coroa.
Trinta anos entes de o cardeal apcnilar estes desvios da
lei inquisitorial em ttlação à M geral estava oem ipleno vigor
o regimento de 16~0. Esb? facto mostra que o,cardeal Cunha
70 A INQUISIÇA.O PORTUGUESA

não esta<va aferindo as leis da Inquisição à foz de conceitos de


uma é,poca muito difurente. E a:contece de Testo que jâ o P.•
•António Vieira e outros tinham protestado JContra o oculta-
mento da:s testemunhas, os testemll!l:hos singulares e outras
bárbaras <!)articularidades do direito illquísitorial.
Qu~ <Velldade 11>ode 1 h a'Ver em 1PrC1CeSSos organizados· desta
maneira, com o fim de reoolher nas Tede.s o máximo de pe.olten-
tes ipara os autos-de..ifé e de contribuintes para o ifisco? Factos
significativos respoll'dem a esta outra !pergunta. Em •1'546 e
em 1167'1: o ipa,pa ou o seu representant.e pretenderam <verificar
ipeSSoal•menl'e -a •j ustiça dos processos inquisitoriais. Em ambas
as ocasiões os inquisidores :se negaram, com a máxima energia,
·a deixar examinar os .processos. Em ·1546 acabaram~IPOr apre-
sentar ao núncio dnco !Processos 'Viciados e itruncados, o que
valeu a excomunhão dos notários lnqulsitoriais; em •167'4 os
inquisidores demoraram a ~tr~a durante sete anos, e o ipapa
acabou por re«iber apenas oe:lois !Processos, ambos com mailS
de cinquenta ano.s. Estes fa~os mostram que os inquisidores
não e:starva•m .conve·ncidos da reotidão com que julgavam os 5eus
réus nem de que os métodos que utilizavam fossem os mais
corttntes, normais e aceiUwels na é!poca.
CAPITULO VI

OS AUTOS-DE-Ft

Se o acusado negava as acusações de t estemunhas envol-


tas <em s~redo, era considerado «negativo>, e portanto como
não arrependido, e «relaxado ao braç0 S'e'Cular>, isto é, entregue
à autorida~e civil para que e.sta o <executasse. Se oeonfes:sava,
os inquisidores podiam decidir que a confissão era !acomplieta e
"Condenar, rportanto, o réu, oeomo «lim:lnuto>, também à ,pena de
morte. No caso de a sua confissão ser aceite .como boa (o que
geralmente se aferia pelas denúncias que essa confissão · con-
1!inba) o « omitente> era condenado apenas a perder os ~us
•bens, a reconcillar--se em aut<>-de.Jfé público com vela na mão
e hábito rpenltendal e -a <:umprír certas q>enitências>, te:omo o
cárcere IJ)ellpétuo ou temporário (fóM1ula a que os inquisido-
res davam uma interpretação muito lata, entendend~ às
vezes ipor ieârcere a simples resid~ncia fixada) e 'llSaI' o hábito
rpróprio dos condenados do Santo Ofício, que os expunha
afrontosamente aos olhares .malévolos. Em todos os casos que
acabamos de indicar, além de confiscados, os condenados, seu.s
filhos e netos ficavam incapacitados ipara exeN:er cletenninados
ofidos públicos - predsa~ente aqueles que eram mais frequen-
temente enrcidos pelos chamados <<:r'istãos-novos>, tais como
Juizes, meirinhos, ekaides, notários, escrivães, :Procuradoru,
reitores, almoxarifes, secretários, contadores, chançaréis, tesou.-
!'eiros, médicos, boticários, sangradores, contratador<es de ren-
das reais, etc.


72 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

Bntre a simpl~ abjuração e reiconciliação ipal"ticular (apli-


cada a alguns «apresentados» espontâneos) e o relaxamento
ao braço secular havia uma gama 'Variada de castigos, que os
inquisidores aplicavam segundo conveniências múltiplas, e aten-
dendo sempre à categoria social doo réus. O ipró.prio estatuto
determina que o bígamo, «se for ipessoa !Plebeia», será açoitado
pela.s ruas .p úblicas e degredado 1Para as ·galês 1por ieinco a sete
anos; •mas se for q:pessoa nobre» será apenas degredirdo para
o Brasil ou para África por cinco ai oito anos.
Estas :penalidades aplic'<l>vam•se aos vi'Vos e aos mortos.
Se aligum preso morria, o <Seu iproc-esso continuavai até concluir- ·
-se e a :sentença exeicutava~e na sua está~ua <pintada e na. caixa
-com os .reus ossos. Se algum defunto, antes de ipassa<clos qua-
r~M anos sobre a sua morte, iera denunciado e se q>rovava»
a a'Cusação, 'Ciesenterravam-\Se os seus .ckspojos e queimavam-se
no aut<Yde..ifé. Estas condenações post mortem tinbam •i mpor-
tância 1POrque permitiam confisca1" os bens aos de!>oendentes e
ipri<var estes das Funções já indkadas.

A publicação odas penas mais importantes !fazia-se em autos-


-de..fé ipúblicos cuja •f ama correu a <EurQpa. Na realidade, cons-
tituem espectác-ulos muito -típicos da tjvilização ipeninsular da
época, que 'Vale a pena rcontelll!Plar wn ipouco. ·P.reparirdos com
grande e premeditado aparato, convidavam-se ipat"a assistir as
principais autoridadeS e toda a ipo.pulação da cidade. Soleni-
zavam-se com eles 'Ce~tas festividades ou ocasiões mais 1Solenes:
assim, quando Filipe UI veio a •P-0rtugal, um 'Cios núm~os do
1programa da sua viagem >era um auto-de..ifé. As Jistas de des-
pesas idos autosJde-'.fé mostram que <eles eram também ocasião
de copiosos banquete~. como os dias f estivos do ano: mais de
metade da despesa .total >de >certos autos-de-'fé iera aplicada em
·comestíveis e iguanas, distribuídos em quinhões diversos, con-
soante a oeategoria dos ifoncionários.
Aiproveitamos a de.scrição de um contemporâneo inglês,
!Michael G-eddes, caipelão da !feitoria britânica 'ele Lisboa, te$·
73

temunha tpre$endail do auto realizado em •Lisboa no di'<t 110 de


Maio de 11682 (o miesmo onde vimos aparecer Serrão de Castro
com a família) :

«Quando .um número bastante rele rPr.esc>.s \? cOII'Víoto de


heresia, quer seja IPOl' coo:fi.ssão ivoluntária ou arrancada,
quer seja .pela prova de certas .testemunhas, o inquisidor
iprin:cipal marca um dia para a saída do cárcere, a que cha--
mam «auto-<de-fé>, e que é sempre num domingo. De ma-
'llhã os ,presos são todos tracidos a um >grande .pá~o, onde
•lhes são postos os hábitos e se ipreiparam 1para seguit na
<procissão, que começa a sair da •lnqui·sição 'Cel"Ca das 9
horas da manhã.
A frente vão os fra'C!es dominicanos, •levando a ba'!ldeira
da Inquisição, que tem de um lado o retrato do seu fun-
dador Domingos e do outro uma icruz =tre uma oliveira
e uma espada com esl'e moto: Justitia et Misedcordia. A se-
guir aoo dominicanos vêm os !Penitentes, alguns com sam-
benitos, outros sem eles, segundo a natureza dos seus cri-
•mes; traz-em todos vestes 'lleigras sem manogas, <C1Stão descal-
ços e empunham uma <VeLa de cera. Vêm a seguir os ipeni-
tientes que por pouco escaparam ida- m'Ollte, trazendo por
dma da veste negra chamas :pintadas com as .pontas viradas
para ibaixo, a significar que se salvariam, mas 'Sôme-nte da
ipena última. Este ·h ábito é ichamatdo pelos .Por.tu~·uese.s de
~fogo revolto», isto é, de chamas ceviradas. Vêm a !Seguir
os «negativos» e .«relapsos», destinadas a serem queimados,
trazendo pintadas no hâbite <0hamas de pontas 1Para cima.
Seguidamente os heresia•ix:as, que, alêm de <:1hamas, trazem
no hábito o seu ipr6.prio retrato do busto 1Pai'a cima, feito
dois ou três dias anl'es, rodeado de cães, serpentes e diabos,
todoo de ·boca aberta.. [ ... ]
Os presos que >vão ser queimados vão acompanhados,
!llão só ipor um <-familiar», como os outros, mas ainda por
um jesuíta, que -cons~autemente fües e:stá rpr~ando que
abjurem das suas ·heresias; mas se e'les ofereoom dizer a'1-
74 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

guma coisa em de1fe.sa das doutrinas pelas quais 'Vão mor-


rer 'São imediatamente amordaçados e não se lhes iconsenre
mais uma palavra.
1Isto vl ieu fazer-se a um preso, logo que saiu das grades
da ipnsão, IPOl'<ltle depois de olhar ipara o Sol, que de não
IVia hfl vários anos, gritou num arroubo: - <Gomo é ipossí-
vel a gente que contemplou este igloriooo <CQ11Po adorar
outro ser que não $e]a aquele que o criou?>.
!Depois dos ipr~os v.em uma ikop~ de ~amiliares> a ca-
valo, a \Se!Quir os inquisidores e outros funcionários :do tri-
bunal ca,valgamio em mulas, e IPOr último o !lnquisidol'-
-ger.al, num cavalo branco condUZido 1POr dois <homens, de
cliaipéu .p reto e fita veroe no cbaipéu e rodeado 1POr todos
os nobres que não <vão como «>familiares» na prodssão.
No Terreiro do ·Paço, que ipode distar da ilnquisição
<eomo White Hall de Temple Bar, Ievanta.-.se um estrado
que ipode conrer duas a tt'ê.s mil ~oas; sentam~ a wn
lado os inquisidores, ao outro os !Presos, na me.simai oroem
ipor que <eamWharam oa procissão, ~icando os condenados
à fogueira nos bancos mais altos atrás dos outros, os quais
podem estar rlO q:>és acima do chão do cadafalso.
!Depoi.9 de algumas rezas e de illIIl sermão com elogios
à !Jnquisição e ataques aos ~ereg·es, = 1padre secular sobe
a um bufore que está aproximadamente no nrelo do estrado
,e, ®pois de te!' lfeíto cumprir as respectivas abjurações a
rtoqos os ipenLtentee, que diante dele ajoelham, um iJ>Or um,
na •mesma ordem <J'Ol" que vieram na iprocl.s5ão, 1~ por úl-
tilno a sentença, final tla Inquisição sobr~ os condenados à
mor.te a>elas 1Palaivras seguintes:
M<eordam os inquisidores, 'Ordinários e deputa-dos tla
Santa ofoqul.sição que, vistos os autOI! (oetc•... ] •.• E ~
tal, como a herege, apóstata, dogmatista, contumaz e ne-
gativo o condenam; ie que incorreu em ipena de ex;comu-
4lbão maior e em confiscação de todos os .seus bens apli-
'Oéldos a quem de direito e nas mais !Penas -em direito con-
tra oo IS'e'mdhanres estabelecidas, ~ o exx:luem da 1urisdição
OS AUTOS-D&PS 75

eclesiástica ( ... ] e o relaxam à ~ustiça secula1-, a quem


1Pedem com muita elficâcia e instância se haja <com ele
benigna e piedosamente ~ não 1Proteda icontra ele em ipena
de morte nem iefusão de isangue.» 1
[Neste rponto, o autor que vimos treduzintlo de.xi:baifa a
:sua Indignação contra a <troça da divindatde» que, ~undo
ele, se contém nas ~1-avras finais da sentença a>edindo à
autondade civil que proceda benigna e ipledosamente, sem
(pena de morte <nem 1p erda de sangue, ;para· com os lC-Ondena-
dos, que lhe não oeram entregues ;para outra <coisa senão
1para serem queimadoo ou garrotados. E muito mais indig-
nado Jicarla o capelão inglês se isoubesse que os juizes se-
ICUlares eram, segundo o <direito inquisitorial, obrigados a
executar a ipena de mor.te nos hereges «relaxados», sujei-
tando-se, se o não !fizessem, a ser judicialmente perseguidos
como fuutore6 de hereges, <como exipressamente o afirma o
inquisidor 1Fr. António de Sousa, no Hv. m, ICa&>. VI, §§ 5,
6 e 9, dos seus Aphorismi /nquisitorum, espécie de pequeno
manual do direito da Inquisição.]
\

4!Logo que os presos estão na mão do magistrado civil


são algemados, e isto perante os olhos dos inquisidor~.
e, depois de -levados pela priltneira rvez aos dt1ceres secula...
'!"es, são daí trazidos, no espaÇo de uma hora ou duas, pe-
rante o supr.emo fundonârlo da Justiça•, que, sem nada
conhecer dos 6eUS oerimes p<Ulticulares ou da prova que
contra des iballfia, pergunta a <cada 11Ill em que religião
quer mor.ter. Se .res,pondem que querem morrer na comu-
nhão da religião romana, são !PQr ele <condenados a ser
levados imediat~te ao lugar da execução, ~í garrotados

1 ISub,9titu!mos " fótmulci dada em inglts pe-lo autor por uma outra u-

tr.a!da da sntença do iDr. 1Ant6uio Homem. publl"81da por IANTÓNtO Josl!


'I's1XBIRA, ln António Homem e a lnqui•içio. !Coimbra. 1895-1902. pp. 250-260.
J\a lórm.ule"S vmlavam eonfarme os ""909.
16 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

e em seguida reduzidos a cinzas. Mas se dizem que querem


morrer '!la 'J)rotestante ou , em qualquer "Outra fé contrât'ia
à romaina são sentenciados a ser •l evados imediatamente ao
•lugar da execução e aí qu-eimados vivos.
No fo~ da execução, que em Lisboa é na Ribeira,
levantam-se tantos 1~elourin'ho.s quantos os ipresos a quei-
mar, <:om 'Uma •boa quantrdade de renha seca à 'VOita. Os
:Pelourinhos dos h~ges «afirmativos», icomo <lhes chamam
os inquisidoI'es, ipodem ter a altura de '4 jaroas. e a m eia
jarda, a contair do topo, têm uma ipequena tábua ipara o
:preso se sentar. São primeiramente 'garrotados os «re-
fapsos» e os «negativos». Então os «afirmativos» sobem
uma escada de mão, ladeados ipor dots jesuítas que durante
todo o dia os acompanharam; quando <:hegam à alh!ra da
.mencionada tábua (ou. assento) viram-se 1para o povo e os
jesuítas ogastam cerca de um quarto de hora exortando-<Ys
a r«onciliarem-se com a igreja romana. Se os «alfirmatí-
vas» recusam fazê-lo, os jesuítas descem e o icarrasco sobe
e, depois de rter levado o condenado da escada 11>ara o
assento, amarra-ilbe o co11po ao ipelourinho e deixa-o. Os
jesuítas s·obem outra 'Vez, Tenovam a exortação e ao GJal'ti-
Tem dí:rem-lhes que os deixia:m ao Demónio, que está junto
deles para .Jhes receber as almas e levá-las cOlll <ele às
!Chamas do fogo infernal assim que estejam !fora de ;seus
co11pos.
!Logo que os jesuítas acabam de oocer as escadas ie-
vanta--se um ogrande clamor com ·o <grito: '«Façam a barba
aos cães, façam a barrba aos des!» - o que 'é 1feito arre-
anetendo..fües contra ~ faces ·tições acesos ma iponta de
grandes varas, e esta desumanidade prossegue geralmente
aité os seus rostos :Íi-carem carboniza'Clos, e é acompanhada
com tão grande.s aclamações de alegria como nunca se
ouvem em qua.l quer outra ocasião. Uma tourada ou uma
lfarsa são reonsi<leradas di'Vertimentos insípidos. rcom'para<los
rcom :esta maneira desumana de tratar os here)Jes.
Assim, deita a barba» aos «afirmativos», como eles di-
77

zem no seu júbilo, lança-se fogo à •l enha que iestá ao fondo


do pelourinho. O .preso está amarrado a uma altura ta'l
que a ponta da chama raramente sobe acima da tábua
onde ele está sentado; e se sucede es~ar <vento - 'Coisa a
que esta cidade 'é multo exiposta - raramente >lhes sobe à
altura dos joelhos. De modo que, mesmo 'COm tiem,ipo se·
reno, os «afirmativas» morre'IO icetca de meia hora depois
de acesa a lenha, e se o tempo está <ventoso não morttm
senão dentro de hora e meia ou duas horas, e são desta
•maneira irealmente assados: e não mortos, tpelas chamas.
'Mas 'Conquanto, fora <lo ·Inferno, inão haja ·talvez oesptttá·
<:ulo mais lamentável do que e6te, acrescen~ado com gritos
dos padecenbes, -durante tanto tempo quanto são capazes
de fala'!' - «Miseticórdia, por amor .de Deus!~ -, ·todavia
é ipresenciado .por gente de ambos os sexos e de todas as
idades com tais transportas de alegria e satisfação como
se não mani•festam em outra ocasião alguma.
E .para que o leitor não <pense que esta alegria bárbara
1pode ser o resultado de uma crueldade natural que thaja
no temperamento deste povo, e não <lo e,siplríto da sua ·l 'e·
ligião, fique certo de que todos o.s malf.eitores ipúblicos,
excepto oo hereges, em <parte alguma são mais ternamente
lamentado.s do que entre este mesmo ipovo, mesmo quando
na maneira como são executados nada apareça de desu·
mano ou cruel.
Dentro de poucos dias a seguir à execução os retratos
de todos os .que .foram queimados, tirados de seu natural
quan'Cio o.s trouxeram ao .pefourinho, são pendurados oa
Igreja de S. -Domingos, <iujo extremo ocidental, apesar de
muito alto, está completamente coberto com estes troféus
oda lnquisição, iaí pendurados em honra de S. •Domingos,
que, .para cumprir o sonho de sua mãe, foi o IJ)Timeiro in·
ventor desl'e tribunal. 1( ••• ) ~

Toda esta solenidade era calculada e !fazia (paTte ida 1P01itica


>demagógica <loo inquisidores, que nunca iJ?erderam de vl6ta a
78 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

força que repre:;enta a adesão popular, fosse qual fo~ o meio


ipor que a conquistavam. O sermão do ~regador, abundante
nas U3U&s invectivas que atribulam cs males do Reino ao de~
5agrado 'Cilvlno. dava ao acto o sentido de um holocausto de
sangue oferecido à divindade para lhe propiciar as graças,
ressuscitando sob nova forma os sacrifícios pagãoo. Era como
que um acto de l.ilnpeza e desagravo, o que todos os anos
levõva cenrenas de ipenitentes ao t.ahlado do aut<>-<le-fé, e muitos
~es à fogueira. Os assistentes sentiam-se, na sua maior parte,
aterrorizados ~ seguros, porque as vitimas .pertenciam a uma
minoria contra a qual se coodtiwa o ódio, minoria que ao grupo
kudal dirigente aparecia como força perigosa e quase rival
e à massa dos oprimidos ipelo impo.sto, pela 'Caresna dos gé-
neros, ipela usura, etc., como e icausa de todoo os males.
CAPfTuLO VII

AS VITIMAS DA INQUISIÇÃO

Não é lfáctl de calcular o oúmero de vitimas destas heca-


tombes. Multos dos processos iperderam;se ao extinguir-se a
foqUisíção, em •1820, mas restam hoje ainda mais de 36 milha..
res de iprocessos. Dlstrlbuldos entte 1540 (ano ~ que come-
çaram a abundar) e 1765 (ano em que se realizou o último
auto-de...fé). apuramos uma média de 1160 ipr~ssados anuais.
8m 1732 calculava;se num documento oficial o nfunero total
dos ipenltendado.s saldo.s allé àquele ooo, C)pe'las listas que se
,puderam descobrir> de autoo-de...fé, em 23.068, o que dá uma
média ide s>enltenclados anual de •120 até e-ntão, e a icontar
de 1540, mas é de crer que o Impenetrável ~redo inquls'ito- I
ria! t!ve&e ifaheado este 'Cômputo.
A média Indicada é pouco &lgn!flcativa do alcance real da
Inqui.s.lção. &ta teve época,., <ele maior«fwor e outras de abran;
damento. Assim, nos sel'e anos que vão de 11633 a 11640 saíram
penitenciad<U pelas três lnquisições do continente !Perto de
2.000 ~. ou seja 285 por ano, e destas uma média de
8 morriam no ipelourinho. Em 15'16 encontravam-se Oo.! cárceres
mais de meio milhar de crisUl~ovos, segundo tesl'emunho por
estes enviadci ao papa. Em numetosoo aut~e-ié o número de
sentenciados subiu a várias deuoas. Bm Colmbrai o auto de
Hi67 durou itrb dJ33, iporque foi preciso ler 2·73 sentenças, ie
no mesmo ano em evora liam-se mais 224 IPent'enças.
80 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

Anos anres (·16W) nos autos-'Cfe..1fé <le •Lisboa, Coimbra e


Évora figuravam, respectivamente, '1'27, 2110 e 202 condenados,
sendo 35 à ipena c~ital.
·Ma-s nem só os condenados eram rcasti9ado.s. Todos os que
rpassevam pefo icá:r.cere inquisitorial sofriam ·meses, rpor 'Vezes
anos, de t'eclusão severíssima e de incomunicabilidade, quase
todos o suplício <lo !palé ou <lo ipotro, e boa rparte lá rp~r<lia a
vida ou a razão. Isto sucedia rprincipalmente aos que acaba.-
vam rpor ser absolvidos, .porque o.s inquisidores aguaroa'Vam
que no icárcere lhes sobreviessem as iprovas, quer ~las con·
•fissões, quer rpelos testemunhos. iNuma listai do -século xvu in·
<Clicam-se os nom>es de <:inquent>a e sete pessoas que tinham es-
tado >eoCM"Ceradas mais de quatl'o anos. Destoes havia nove
que tinham sofrido me anos: seis, dez e onze anos; um, treze
e, outro, catorZ'e anos de iprisão, muitos dos quais saíram sem
oeonclusão do processo. Bm 1672 foram presas nove famílias
de cristãos-novos em Lisboa, num total de viute e dois homens
e mulheres, alguns adol>escentes. •Permaneceram no cárcere du·
rãnte idez anos oo que <le lá saít'am vivos. Os mortos foram
cinco. ·Destes dnco mortos, dois foram declarados inocentes,
1pàstumamente, e três, pai e duas filhas, foram queimados em
estátua no auto-d>e-dé que atrás rficou descrito.
>Depois, é rpreciso medir o alcance <la >repressão inquisitoria1
111ão apenas rpelos mortos, pelos condena-dos e vál'ias penas e
pelos presos, condenados ou não, mas ainda lj)Or toda uma
ipoipulação que emi'grou e se espalhou p-elas ivál'las iparres <lo
mundo, <lentr.o e fora do Império .Português. Uma pr'isão lan~
çava em geral o pânico dentro de drculos 1nte:iros de famílias
.e relacionados, iporque se previa sempre 4ue o.s interrogatô·
rios, a reclusão e a tortura arrancassem ao ipreso denúncias,
verdadeiras ou falsas, que naturalmente recaíam 5obre as t"eJa,
ções mais 11>rôximas <lo 1pe11Se9uldo. Por •isso uma prisão mul-
ti:pUcava muitas 'Vezes os seus etfeitos ;por fogas de diversos
'indivíduos. Já vimos que D. ·Luís da Cunha expliica ipor esta
~migração o despovoamento de >terras <:omo a Covilhã, o Pun~
AS VITIMAS DA lNQUISIÇJiO 81

dão, !Lamego, Gual'<la•, Bragança, ie o mesmo afirma Ribeiro


Sanches.
Nem tados os ipr.e-sos ipe'la foquiSição o eram ipor jlldaiza-
rem. A jurisdição dos oinquisidores estendia-se, como 'Vimos,
a todas as formas de heterodoxia, à ·feitiçaria e outras artes
1Proibi<las, que supunham !Pacto com o .Oiabo, aos abusos dos
ipadres con1fessor~. aos bigamos e aos ~omossexuais. ·
!Lá , ipassar.am em 1550 IDiogo de Teive, João ida Gosta e
Jorge Buchanan, prdfessores tdo Colégio das Artes, trazidos de
Bordéus por ~ndré de Resende, acusados de lute.ranismo; lá
!!)assou 'Damião de Góis, arusado também de foteranismo p~lo
rpadre jesuíta Simão Rodrigues; lá lpassou o !Padre Femão de
Oliveira, autor do Livro da Fábrica das Naus ie da ;primeira
gramática da língua portuguesa, acusado de elogiar o procedi-
·mento rr'eligioso do tiei de 'Inglaterra (que aliás os \'Jlllbaixadores
de D. João !'II que requeriam iem Roma ·a foquisíção acon.selha-
'Vam, como vimos, ao seu ll'ei). IPor meados do •século a1guns
oestrangeiros !foram 'incomodados, \llonteadamenl'e ai.guru ourives
rErance~s. que ou se denunciaram espontâneamente, ou ~
com'J'atriotas afil::iais do m~o affcio. No entanto, O'COlltingente
de •heterodoxos 1Prorestante.s, a julgar rpelos 11>roc-essos que se têm
1Publicado, é escasso. ·Isto parece mostrar que o ~rotestait&mo
não ipreooupava exoes.sivamente o.s inquisitdotes, e outros pe-
quenos indícios o confirmam: \llão ihá 11otída de ter sido ipro-
cessado o .senhor >de Basto, António •Pereira Marramaque, autor
de escrito.s em que se discutiam as mdulgoocias ~ a autoridade
do fPapa, e íntimo de Sâ de 'Miranda. Tudo ieva a• «er que a
l!reterodoxia .protestante nuuca 9anbou raizes em 1Pottuqall. Os
estraogeiro.s que fPrincipalmenre a 'P.rati·c avam est!l!Vam ao !abrigo
da .perseguição, quer .Jeqalmente - iporque ~m teoria e IJnqui~
'Sição oo ipodia perseguir o.s catállc<l<'l baptlzados que se con-
lll'er.teram ia outra ifé e '!lão aqueles que itivessem Já nascido numa
ifé diferente da católica -, quer' de Jacto, pela iprotecção efec~
rtiiva que •lhes davam a:s autoridade~ dos seus ipaises de origem,
como se verificou 1POr acaslão da ipnsão e aibertação, em 11616.
do cônsul inglê3 em Lisboa.

6
82 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

Não faltam os casos de <feitiçaria e de rpados <demoniacoo.


&a crença corrente e doutrina '<ia Inquisição que selll'i!'lhantes
a>a'Ctos ieram '!'.eais e eficazes e i.nhmdiélllil 1las pessoas que os
contraiam 'Virtudes sobrenatutais, !Como a de ia'<:livinhar o futuro
ou curar doenças incuráveis; e, consequentemente, os sacerdotes
de Deus 1fulgavam sua obrigação exterminar os sa<:erdotes do
IDiaho.
Uma pobre freira, Maria do Rooãrio, confessou ttt parido
do mesmo Diabo sete filhos -cachor'ros1 gatos e m"Olllstros; a
confissão foi tida 1por boa e por isso a culpada alcançou uma
ipena relativamente benigna, não se iivrando, no entanto, do
cerimoniai do auto.<de.ifé público, onde os seus !Coitos danados
foram gravemente ~tos à '8SSistênda. &tava.-se já em 117'4·8.
Acontecia que os próprios inquisidores obrigavam os adivinha~
dores e curandeiros a <:onfessar que os seus IJ>Oder~ l\l'inham do
ipai da ma1dade, IPOr'que de outra fol'!Da 'Dão seriam ipossíveis.
Isto aconteceu .com wna odogenária, ooja virtude de curar
mifagrâSalJ'.llente ficou provada nos ia'Utos: os 'inquisidores iprt"S;
sionaram,na icom interrogatórios e tormentos até '!!'la acabar por
•econlrecet' aquilo que aos inquisidores ;pareda inevitável e evi,
dente: que vinham do Diabo os ipoderes de- que ~a não fazia
~redo, e que a iprincípio e:rJJ)licava pela vi'I'tude idas orações.
Os inquisidores teimavam que as orações Tecitadas pela v.elha
não continham as ipalavras <constituídas> ipara os -efe1tos que
ie1a akançéllVa; e 1POnderavam anais que ela «Sarava os doentes
a distância, o que nãq ipodia ser sem auxi<lío do mesmo Demó--
nlo, ipois itodo o remédio .para causar efeito se deve aplicar
pot contacto ao dito enfermo>.
Pertencia 1tamhém à seara inquisitorial o K:ampo ido mistl~
cismo, cujas manifestações foram, em 9eral, seovieramente reiprl~
midas em Espanhp. Mas ooi Pol'tugal só muito adi<Ultado o
3éculo xvu, e sobretudo só depois da condenação de Mi9uel
de Molinos, em ·1687., abundam oo casos de !Condenação ode mís·
ticoo - sob reservà, oentretanto, das revelações que possa trazer
>a 11>ublicação completa idos arquivos inquisitoriái.9. A per'seguição
do misticisJllo em ·& panha foi estimulada pelo antagonismo

..
AS VITIMAS DA INQUISIÇAO 83

ientre a .Jnquisição e a Companhia de Jesus, e qual está na base


ida campanha <le 1Fr. 1A.Jonso de útfuenre. Este ·frade itentou uma
investida ao território 1Portu.guês em 11576, mas em:ontrou pela
f.renre a sólida ip·osição que e Companhla aqui <:onstTuíI'a, e foi
reduzido ao silêncio t»ela activa intervenção 'Cio 1<:.ar<leal 'D. Hen-
1

ll'ique. O certo é que 'em resultado da campanha de fü. Afonso


o coruielbo supremo da Inquisição espanhola mandou aaescen-
tar co «:editai da ·F é> os iettos mais comuns do.s Huminados, tais
como afirmar que a oração mental é de mandamento divino e
a oração ·v o·cal de importância se'Cundária; que os servos de
Deus não do obrtga'dos a trabalhar; que as ordens dos swpe-
t'iores não devem ser acatadas quando incompati'V'eis t:om as
horas dedicadas à ora-ção mental e êi contemplação; desdenhar
o sacramenoo do matrimónio, a :iro.Portância idas boas acções
para o perfeito aistão, as 'imagens, etc. ·Estes er.ros não vêm
enumerados «JO «edital da lPé> porrugu~. icujos termo.s te:n'Con-
tramos 1lO regimiento ~ 11.610, o que é oertamente muito signi-
fü:ativo.e de Grer que a dnfluência da Companh<ia de Jesus
tivesse ioonconido 1)8l'a este ,-esultado.
No entanto, o grosso desta procissã.o terrível e carna-
valesca que desfilava- nos autos-de.-fé é, sem dúvida, cons-
tituído !!)elos chamados <cristãos-novos>. E, destes, o maior nú-
1

mero eram os que ocupavam posições vantajosas na burgue-


sja nacional. Um mapa dos 1329 cristãos-novos (dos quais
659 homens e 670 mulheres) julgados entre 1682 e 1691, le-
vantado por António Joaquim Moreira na sua História dos
Principais Actos e Procedimentos da Inquisição em Portugal
(1845), mostra que os mercadores e ourives entram com o
contingente de 185; os oficiais públicos (que incluíam certas
profissões liberais e outras, como notários, almoxarifes, con-
tratadores das rendas públicas, tesoureiros, feitores, etc.), ad-
vogados, médicos e boticárlos, entram com 69. A estes nú~
meros convém acrescentar diversos que 'Vivem da pr6pria fa-
zenda ou de ofícios não classificados (como fosse a usura) -
129. Somando, obtemos que 383 dos processados pertencem ao
andar superior da burguesia - proprietários, !Profissões libe-
84 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

rais, etc.-, ou seja mais de metade do total dos homens


condenados. Os que exercem ofícios mecânicos elevam-se ao
número de 195. O número de processados exercendo profis-
sões humildes é muito reduzido: 39 «lavradores> 1. 27 «fraba-
lhadores» e H soldados, somando ao todo 80. Mais de metade
do total dos processados é constituído por mulheres, que deve-
mos talvez distribuir, quanto à classe social, segundo a mesma
proporção.
Bm resumo, cerca de 57 % dos condenados nestes dez anos
pertencem ao escalão superior da burguesia, perto de 30 %
eram artesãos («oficiais mecânicos>) e apenas 12 % traba-
lhadores humildes.
Quando se fizer a publicação, pelo menos dos sumários,
dos muitos milhares de processos inquisitoriais que restam po-
der-se-á dizer se esta média é significativa das características
do conjunto. Mas deve notar-se que se refere a uma fase
já tardia - o último quartel do século XVII-, quando muitos
cristãos-novos tinham sido afastados dos ofícios públicos e
das profissões liberais, em resultado da política da chamada
«limpeza de sangue>. Esta política, com efeito, tinha restrin-
gido a actividade dos Cristãos-Novos em todos os campos
além do negócio. <Homens de negócio> e «gente de nação>
tendiam cada ·v ez mais a ser expressões sinónimas.

' ..:Lavrador> é ott'Sta tpoca um hom- que trabalha ou lavu no caoipo;


o feminino é «lavradoM> ou «lavradeira:.. 1P3lavrn que '8lo<ia hoje c:oo~a o
seintido lnlc:lal . IA peuOD.Bgem maio JnfeUx "' mJscr6vel Ido Auto da Barca do
lnJ~rno, ·ele Gil •V içenk, ~ o cLavri>dor?,
CAPITULO VJII
A CENSURA INQUISITORIAL

Perseguindo ;u pessoas e bens dos chamados «cristãos.-no-


vos>, como vimos, o tríbunal do Santo Ofício defendia a eStru-
tura senhorial da sociedade portuguesa (e ;eninsular). Mas
essa estrutura estava ameaçada, não apenas pelo desenvolvi-
'mento económico interno da burguesia, como ainda por no-
vas ideologias, como o Cristianismo protestante, o Humanis-
·mo e o Racionalismo científico. Tais ideologias tinham a sue
raiz no desenvolvimento da burguesia em certos países, mas
constituíam elas próprias forças dinamizadoras em escala eu-
ropeia. dando consciência dentro de cada 'País aos novos gru-
pos socliais que lutavam contra a est!"utura ,feudal herdada do
passado.
A repressão ideológica tornava-se uma necessidade, e tanto
mais premente quanto a invenção da imprensa viera dar novos
meios à difusão das ideias. Até ao século XVI a autoridade da
Igreja <tivera de fazer face aos pregadores de heresias, e mesmo
a :veroadelras insurreiçõ~s religiosas, como a dos Albi-genses.
Mas estas «novidades> disseminavam-se por meio da palavra
oral do pregador e seus discipulos. Os pregadores de heresias
eram perseguidos com condenações e «censuras> eclesiásti-
cas, que iam até à excomunhão e, se preciso. até à moi:te, como
sucedeu a f oão Huss, c-0ndenado e executado no concílio de
Constância. Anulando os apóstolos, anulavam-se as heresias.
A in".'enção da imprensa criou problemas novos; o livro i:m..
86 A INQUTSIÇAO PORTUGUESA

presso vem alargar <à escala europeia o auditório de um


Lutero, de um Ca1vlno, ou mesmo de um Erasmo. Durante a
primeira metade do século XVI trava-se um furioso combate de
livros e folhetos, sátiras e caricaturas, que se introduziam em
toda a ipàrte se.m encontrar malhas bastante estreitas para se
lhes impedir o caminho. Tor1;1ou-se necessário combater estes
pregadores de ipapel, mudos, mas não menos eloquentes, e que
se multiplicavam por milhares.
Os príncipes católicos e alguns órgãos da Jgreja lançam
na P.rímeira metade do século XVI as primeiras pedras para o
contrõle da actividade editorial. Já na Idade Média a Uni-
versidade de Paris, principal centro de teologia católica, pu-
·blicava listas de teses menos ortodoxas por ela condenadas,
assim como dos autores destas teses. Tais listas eram em geral
penfilhadas pel~ Santa Sé e aplicavam-se em todo o terri-
tório onde ela exercia autoridade. 2. ainda dentro do mesmo
espírito que o papa Paulo III. na hula Caena domini (1536),
declarava excomungar todos aquefes que lessem livros lute-
ranos sem J>ara isso terem licença pontifícia. Mas esta ameaça
ficava letra morta enquanto n5o foose possível controlar tais
livros, e inclusivamente identificá-los, porque muitos saiam anó-
nimos ou com autor su·post<\-
A repressão do livro só começa a concretlzar•se quando
os príncipes inímtgos da Reforma emprestam o seu hraço à au-
toridade eclesiásticti. Assim sucede cerca de 1535, quando
Francisco I manda proibir a iposse, comércio e impressão dos
livros indicados numa lista que para esse efeito elaborou a
Sorbona. Ao lado da Universidade de Paris, já então uma ou·
tra Universidade se erigia também em intérprete do tpensa-
mento orotodoxo da Igreja: a Universidade de Lovaina, no im·
1pério de Carlos V, slmbolo do poder material e espiritual
que o ·imperador se arrogava em face do seu rival. o rei de
!França. A pedido de Carlos V os teólogos de Lovaina elabo-
ram uma lista de livros proibidos, que ele fez publicar em
Espanha (11546) e por sua autoridade aplicar nos territórios
di) seu ·v asto império.
. A CENSURA INQUISITORIAL 87

A Igreja, então indecisa em face do Humanismo e da pró-


pria Reforma, dominada por cardeais de espírito aberto aos
ventos da Renascença, limitava-se a apoiar estas iniciativas
e a reclamar dos príncipes - como já o fizera Leão X em
1521 - medidas contra a difusão das heresias. Os índices de
livros proibidos aplicavam-se Unicamente .no território dos e~
tados cujos governos os promulgavam.
Esta situação altera-se no decorrer do concílio de Trento,
que terminou, como se sabe, pela vitória das forças adversas
ao compromisso com os Reform<1dos e à influência do Huma-
nismo. Um dos principais chefes do partido dos intransigen-
tes, o cardeal Caraffa, elevado ao pontificado com o nome
de Paulo llV, fez publicar em 1559 o primeiro indice romano,
válido para todos os ifiéis católicos. iA lísta das obras proibi-
das vinha acompanhada de regras condicionando a actividade
·editorial e determinando o critério a que devia obed~cer a
autorização de novas publicações. Mas tal era o âmbito das
proibições no índice de Paulo IV - basta dizer que todas as
obras de Erasmo eram aí condenadas-, e tais as resisténclas
que levantou, que não pôde ser aplicado. A elaboração de
um novo lodice foi entregue ao concilio então reunido, e das
negoéiações deste com o papa resultou, em 1564, o chamado
«índice ltridentino>, ponto de partida e base de todos os índi-
ces a partii; de então publicados pelo Vaticano. Nas regras
que acompanham este indíce, peça fundamental da legislação
eclesiástica sobre o assunto e que adiante resumiremos, esta-
belece-se, como norma, que compete à autoridade eclesiástica,
não apenas a ,condenação das obras 'heterodoxas, mas o con·
tr61e material e efectivo da iprodução livreira. Este princípio
encontrou a resistência natural da autoridade civll, mesmo em
países de governo católico, como a França, onde nunca che-
gou a ser aplicado. Em 1Espanha vigorou através da Inquisi-
ção nacional, estreitamente associada ao Estado e nem sempre
fiel a Roma, que elaborava o seu índice próprio, discordante
por v-ezes, tanto nas autorizações como nas proibições, do
88 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

índice romano. Noutros paises teve rpleno 'Vigor: é o caso de


Portugal.

Aqui o contrôle dos livros esteve desde o início nas


mãos da autoridade eclesiástica, ou, melhor, do tribunal do
Santo Oficio, que era uma parte dela. Em 1539 encontramos
os primeiros livros com a indicação de terem sido <aprova-
dos pela Santa .Jnquisição>: a Cartinha de Aprender a- Ler,
de roão de Barros, e o Ensino Cristão, de autor anónimo. No
ano seguinte o ínquisidor-iJeral, cardeal infante D. Henrique,
manda noti'ficar os livreiros de que devem submeter os livros
à censura ,p révia dos inquisidores e nomeia uma comissão de
trê3 eclesiásticos 1p ara inspeccionar as livrarias de Lisboa. Or-
ganizava-se também a vigilância das alfândegas e dos portos
e em 1511 era apreendida à chegada a LiSboa uma .obra de
Damião de Góis, Sobre a Pé, Costumes e Religião dos Etío-
pes (2.ª parte), com grande surpresa para o autor, que pro-
testou junto do cardeal infante.
~im a Inquisição portuguesa antecipava-se de muitos
anos ~ decisões do concilio de Trento e antecipava-se mesmo
à Inquisição espanhola. Vimos como em Espanha Carlos V
fez rpubllcar e vigorar em 1516 a lista de livros proibidos,
organizada a seu pedido pela Universidade de Lovaina. Apro-
veitando essa lista, o cardeal D. Henri~ue mandou organizar
logo no ano seguinte um rol de livros proibidos e promul-
gou-o sob sua exclusiva autorídade, avisando os fiéis de que,
sob pena de excomunhão, não deviam ler nem possuir livros
ali indicedos e deviam denunciar quem os Jtivesse ou lesse.
Este pri·meiro rol 1>0rtuguês, <JUe só foi impresso moderna-
mente, é provàvelmente uma reprodução do de Lovaina e não
contém obras portuguesas. São nele visados especialmente os
Luteranos, Calvinistas e Erasmistas. No entanto, a apreensão
do livro de Damião de Góis mostra que havia livros portu-
gueses proibidos, não sabemos quais.
O índice de Lovaina é novamente publicado em Espanha,
muito acrescentado, em 1551. Baseando-se nele, novo índice
A CENSURA INQUISITORIAL

J>Orluguês se ipublica no mesmo ano, mas agora impresso, com


o título Este é o Rol dos livros Defesos por o Cardes/ In-
fante, lnquisidor:-Geral nestes Reinos de Portugal. 1É muito mais
volumoso que o anterior (contém 495 títulos) e vem acres-
centado com uma pequena lista de obras cem linguagem>,
isto é , em espanhol ou português: são ao todo onze livros,
entre eles uma tradução das «iovelas de Boccaccio e sete autos
de Gil Vicente.
Até aqui a cada índice espanhol correspondia, como ve-
mos, um índice português, muito embora em Portugal o cardeal
inquisidor chamasse a si o papel que no reino 'Vizinho assumia
o rei.
A pragmática de Filipe II de 1558 mostra o papel activo
que o rei de Espanha entendia assumir na questão do con,.
tróle livreiro. Bm nome do rei é estabelecida a pena de morte
e confisco para quem possuísse livros proibidos e para quem
imprimisse livros sem exame ·prévio do manuscrito !Pelo conse•
lho real. Era ao rei que competia dar as licenças para 'imprlmir,
reservando-se os inquisidores à função de elaborar a lista das
obras proibidas, com base em denúncias.
Dentro deste esquema competia ao rei, em Espanha, a
censura prévia e aos inquisidores a elaboração das listas das
o'bras e passos ,proibidos. Em conformidade, os novos índices
espanhóis passam a ser promulgados por autoridade exclusiva
dos inquisidores, o que sucede ipela primeira vez em 1559.
Em Portugal, pelo contrário, tanto as autorizações como
as proibições competem à 1nquisição. &te principio é clara•
mente estabelecido no novo rol que se publica em 1561. que
item por base o índice espanhol de 1559, por sua •v ez inspirado
no índice de Paulo [V.
Com o rol de 1561 entramos na segunda fose da história
da censura inquisitorial portuguesa. O número de obras proi•
bidas eleva-se a cerca de mil e cem; o das obras proibidas
em portu{l'ués ou castelhano sobe a mais de cinquenta, quase
todas copiadas do lndice espanhol de '1559. iMas relativamente
90 A INQUJSJÇAO PORTUGUESA

aos li·vros portugueses o índice mostra-se benigno, e no con-


junto das obras em rom<1nce ainda mais que o índice espa.-
nhol que lhe serviu de fonte.
Poucos anos depois, como vimos, publica-se o índice ro-
mano de 1564, ou índice tridentino. Imediatamente a Inquisi-
ção pcrtuguesa o edita e põe em vigor, traduzindo as suas
regras e acrescentando-lhe, quase sem alterações, a lista de
obras «em romance> constante do índice anterior de 1561. Ao
publicar e <pôr em vigor o índice tridentino, a Inquisição por-
tuguesa seguia também um critério diverso do da lnquislção es-
panhola. Esta, com efeito, entendeu conservar a sua indepen-
dêticla, mantendo em' vigor o seu ;próprio índiçe de 1559, en-
quanto não organizava outro índice seu ·próprio, que só veio
a sair em 1570.

Até aqui a censura inquíSitol'ial :portuguesa dava os seus


primeiros passos, amparada pelos índices romanos e espa-
nhóis. O seu procedimento é cauteloso. Permite, pcr exem.-
plo, a saída da Compilação das obras de Gil Vicente em 1562,
com várJas peças anticlericais, que tinha~ sido ·proibidas no
seu primeiro índice ímpre:SSo ( 1551). Os inquisidores pactuam
com o Humanismo, então muito" forte no nosso !País, e ainda
em .1572 permitem a saída dos Lusíadas com passos que mais
tarde !haviam de ser amputados. Mas 'em 1581 a lnqulsição
retoma a dfens1va, ;publicando novo índice, o quinto, em que
a llsta das obras proibidas em lingua ;portuguesa quase ·du-
iplica.
O novo índice é claramente orientado contra o Huma-
nismo. Ali se ~contram obras como a Comédia Euf(osina, de
Jor9e Ferreira de Vasconcelos, a Rópica Pne[ma, de •João de
Barros, obra capital do nosso século XVI, a Menina e Moça,
de Bemardim Ribeiro, e outras. Mesmo em reláção às obras
latinas, o índice português de 1581 vai além das •proibições
contidas no índice romano, Incluindo obras, neste não men-
cionadas, de Guilherme Budé, Erasmo, João Luis Vives, Ni-
A CBNSUR.A INQUISITOR.IAL 91

· colau Clenardo (o mestre do cardeal inquisidor), Dante, San-


nazarro, Ariosto, Leão Hebreu, Tomãs !Morus.
O organizador deste índice, Pr. Bartolomeu Ferreira, faz
ainda algumas recomendações, pondo em .guarda os leitores
contra a literatura de ficção que encerra amores profanos e
contra as comédias, tragédias, autos e farsas onde hã refe-
r-ênoias a sacramentos ou a pessoas eclesiásticas. A nova orien-
tação da censura reflecte-se na mutilação que po$teriormente
se opera nos Lusíad83 (edição de 1584) e nas •obras de Gil
Vicente (edição de 1587).
Com o índice de 1581 inaugura-se um novo método: o ex-
purgo de passos em obras que, assim emendadas, podiam cir·
cular. Este método destinava-se a enfrentar a dificuldade de
proibir completamente obras de grande ivoga e que tinham
gariho fundas raízes no 1publíco, tais como as dos grandes
humanistas, e em Porlugal, entre outros, Gil Vicente. Desta
forma se inaugurou o <índice expurgatório>. isto é, a lista
dos passos proibidos em obras autorizadas. Nas edições .futu-
ras esses passos não podlam ser lmpressoo; nas edições passa-
das os _possuidores de algum exemplar deviam levá-los aos
padres da Inquisição, para que estes, por sua mão, os riscas-
sem a tinta. Existem ainda hoje em algumas bibliotecas <vários
livros com páginas ou frases riscadas pela mão inquisitorial.
O sexto e último índice português, coiwilado pelo je·
sulta P.• Baltasar Alvares, saiu " em 1624, num monumental
e hem cuidado volume. Divide-se em três partes, sendo a pri·
melra o lodice romano, a segunda '8.5 obras especialmente
proibidas oo Reino de Portugal, não só de autores portugue-
ses como também espanhóis, Italianos, franceses, alemães.' fla.-
'Jllengos, ingleses e outros, iincluindo os que escreveram em la·
tim, e a .ttrcelra o lodice expurgatório. Inclui itodas as proibi·
ções dos lodices anteriores e mais algumas.
Com este termina a lista dos índices. mas não a da cen~
sura inquisitorial, que não só continua '8 operar inediante a
revJ.são prévia dos manuscritos, mas ainda através de pro!•
bições particulares. A história da censura iinquisitorial termina

. '
92 A !Nó.UISIÇAO PORTUGUESA

de facto em 1768, com a instituição da Real Mesa Ceosória


pelo marquês de Pombal. Esta, nova instituição, tal como a
própria Inquisição, completamente reformada, obedece a um
critério e a um objectivo inteiramente diversos dos da censura
illquisltorial.

Nas regras que antecedem o índice trideotino, e que foram


estritamente aplicadas em Portugal, esta'belece-se que todos
os livros a imprimir futuramente deviam ser revistos pela au-
toridade eclesiá~ca, o bispo ou o inquisidor, onde o houvesse.
Em Portugal essa re·visão era feita por wn «qualimcadon do
Santo Ofício, que sobre o manuscrito devia apresentar um
relatório ao conselho geral. seu órgão supremo. Esse rela-
tório apont11va toqas as alter!!ções, cortes ou mesmo a<:resceP;-
tos que o qualificador entendia necessários. O conselho geral
despachava mandando o autor introduzir aquelas emendas. O
manuscrito, assim emendado, voltava, p;;ira ser conferido, ao
qualificador. que então elaborava novo parecer, registando que
nada encontrava na obra que fosse contrário aos bons costu-
mes e à Fé. Este parecer devia ser impresso no livro, junta-
mente com a autorização do conselho geral da Inquisição para
se imprimir.
Desta maneira havia na revisão dos livros um processo
secreto, ipassado entre o qualificador, o conselho geral e o
autor; e !havia depois um processo público, cujas peças prin·
clpais eram estampadas com a obra, e onde não se aludia às
emendas safridas pelo original. Rarissimos processos secretos
são hoje conhecidos, e esses mostram que o qualificador era
um verdadeiro colaborador do autOt', quer quanto ao assunto,
quer quanto à forma.
Tgnoramos hoje. por.tanto, a ·versão primitiva das grandes
obras portuguesas publicadas ·a paritir da quanta década do sé·
culo xvt. P~a dar um exemplo, só conhecemos dos Lusiadas a
forma que resultou da intervenção do 'censor. A sua aprovação,
estampada na primeira página, refere-~e ao original depois de
revisto e alterado.
A CENSURA INQUISITORIAL 93

Além da fórmula que indicamos. encontra-se por vezes


uma outra: «Vi este livro, etc. E assim emendado como vaí
não Item coisa contra a nossa Santa IFé e bons costumes>.
Esta fórmula era utilizada para as reedições corrigidas pela
censura, porque neste caso era sempre posslvel fazer o con-
fronto entre a edição emendada e a anterior, e as correcções
não podiam ficar secretas.
Deviam ser submetidos à censura inquisitorial todas as pu•
blicações, sem excepção, incluindo as reedições de obras co-
nhecidas, os folhetos de cordel (sobre os quais se exercia par-
ticular vigilância), os catecismos, bulas, etc:. Em 1631 um padre
jesuita foi chamado à Inquisição por ter reimpresso sem licença
a Bula de Cruzada e a Cartilha de Mest•e Irnicio.
Segundo as regras do índice tridentino, os locais de venda
de livros deviam ser sujeitos a vigilância da autoridade ecle-
siástica. Esta vigilância estava em Portugal minuciosamente
organizada, de maneira que ' as visitas às livrarias !fossem fei·
tas de .surpresa e à mesma hora precisa, evitando que os li-
vreiros se precavessem ou dessem alarme uns aos outros. Nos
lugares de ·venda deviam estar afixadas as listas de livros
proibidos, de forma que eles não pudessem alegar ignorância.
Exercia-se especial vigilância sobre os livros que ·v.inham
de fora cl'o Pais. Os liweiros eram obrigados a indicar os seus
correspondentes estrangeiros e as suas contas co~ eles. Os
barcos que chegavam aos portos deve.riam, antes de ter co-
municação com terra, ser inspeccionados por funcionários da
Inquisição, intitulados <visitadores dos portos e das naus>,
que examinavam minuciosamente todos os •fardos.
A vigilância da Inquisição não abrangia apenas os im-
pressos. Sempre de acordo com as determinações expressas
no indice tridentino, nenhum manuscrito sobre assunto religioso
ipodia correr sem ter sido examinado e rubrJcado por um qua-
lificador. Quando algu~m falecia, o herdeiro não podia dispor
dos seus livros ou manuscritos sem que eles fossem examina-
dos por um delegado da Inquisição.

)
94 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

As regras do concilio de Trento, que precedem o indlce de


1564, indicam o critério para a proibição dos livros. Grosso
modo, os livros sujeitos a proibição eram em primeiro lugar
os livros de hereges declarados, tais como João Huss, Lutero,
'Calvino, etc.; em segundo lugar, as obras sobre artes .proibi-
das (astrologia, quiromancia, nigromancla, etc.), exceptuan-
do-se a astrologia na medida em que não contrariava a tese
católica do livre arbítrio; em terceiro lugar, os livros sobre
coisas dasclvas e desonestas:. (como, por exemplo, os Or-
landos, de Ariosto, os Declltneron, de 8?ccacdo); em quaN:o
lugar, a Blblia em tradução, mesmo de autor católico e reco-
nhecido pela il.greja. Sobre a .Biblia a regra f.ª do índice tri·
dentino delegava nos bispos e inquisidores o poder de auto-
rizar ou não em cada caso individual a sua leitura depois de
ouvi$lo o parecer do cura ou confessor respectivo. Para com•
iprar uma Bíblia era necessário mostrar ao livreiro uma auto-
rização escrita.
·E stas regras não nos elucidam ainda sobre o verdadeiro
alcance das proibições. Instruções posteriormente publicadas
mandam exipurgar tudo aquilo que possa querer alterar os cos-
tumes, cerimónias, práticas e ritos estabelecidos na igreja e
tudo o que possa atingir as imunidades e a reputação das
pessoas eclesiásticas. 'E sta determinação visava não já os he-
reges declarados, mas os .humanistas, que antepunham às ceri-
mónias rituais o esplrito do Evangelho e que não se can-
savam de criticar os vícios clericais. Com e-feito, Erasmo, que
quisera reduzir o Cristianlsmo à doutrina evangélica, Rabe-
lais, cuja obra satiriza os frades, Afonso de Valdés, autor de
violentos ataques a .Roma, inspirados por Carlos V, Lourenço
Valia, que desfizera a lenda' da doação de Roma por Cons-
tantino ao papa, Juan Luis Vives, etc.. Hguravam entre os
autores cóndenades. Por outro lado, as instruções que cita-
mos mandavam expurgar todas as afirmações favoráveis ao
predomínio do Estado sobre a Igreja, o que le-va, ·por exemplo,
a condenar Dante (De Monarchia}, Jean Bodin (várias obras),
Maquiavel e outros. Enfim, bastava que uma proposição fosse
A CENSURA INQUISITORIAL 95

<errónea>. <temerária>, csedlciosa>, <ofensiva dos ouvidos


pios> e tivesse apenas <ressalbos de heresia> para ser supri-
mida. Isto abria e porta às mais variadas condenações. Assim
se explica quê o indice alargasse o seu campo de acção muito
para além das questões teológicas e religiosas, abrangendo
pensadores como Pomporrazzi, aristotélico materialista, Gior-
dano Bruno, Campanella, Mootalgne, Espinosa, Descartes, e
até os pioneiros da ciência moderna. como Jerónimo Cardan,
Copérnico e Galileu.
A censura inquisitorial portuguesa não só aplicou como em
geral agravou a severidade do lodice romano. Assim, incluiu
entre as obras proibidas a Utopia, de Tomás Morus, apesar
de este autor ter sido canonizado por Roma; e, não contente
com a proibição de Copérnlco, acrescentou-lhe a de Kepler (ín-
dice de 1624), que o índice romano omitira. Deve todavia
observar-se que Kepler 1figura no lodice •português, nao CO'IJl as
suas obras capitais e Sigoiflcativas, mas com um simples livro
de astrologia. A especial severidade da censura inquisitorial
portuguesa ressalta itambérn se compararoios os índices porbu-
gueses com os espanhóis. O Quijote, de Cervantes, foi em
Portugal expurgado de passos que em &panha corr'iam·•livre-
rnente; e a Ce/e.mrm, uma das orandes obras da literatura pe-
ninsular, era aqui proibida, quando em Espanha circulava sem
obstáculos.

Pelo que hoje podemos avaliar, a literatura portuguesa


quinhentista não foi abalada pele wurretçao religiosa que dei-
xou fundo rastro, por exemplo, na literatura francesa coeva.
Mas o Humanismo, no seu alcance mais longlnquo, através de
Erasmo, Tomás Morus e outros, teve aqui reflexos cuja impor-
tância foi depois obscurecida, esquecida ou mistificada. Este
esquecimento e obscurecimento, e, além disso, amputações que
hoje dificilmente podemos avaliar, devem-se precisamente à
acção da censura inquisitorial. Convém lembrar que ela entrou
em funcionamento a partir de 1539, Isto é, muito antes do
meado do século, pouco tempo depois de Sá de Miranda ter ini-
96 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

ciado a sua campanha pela renovação da nossa literatura e


alguns anos antes, também, de André de Gouveia e a sua equipa
de humanistas terem fundado em Coimbra o Colégio das Artes.
Do Humanismo português - expressão do surto da burgu.e ,
sia nacional.- só ficaram assim as promessas lançadas por
homens como Gil Vicente, João de Barros, Bernardim Ribeiro,
Sá de Miranda, Jorge Perrelra de Vasconcelos, António Per-
reira e o .próprio Camões. Por si sós, essas pr6messas conti-
nham elementos de grande desenvolvimento no .futuro. A cen-
sura inquisitorial empenhou-se em atalhar esse desenvolvimento.
Neste objectivo a sua acção foi certamente eficaz. Basta
lembrar que · só conhecemos hoje a existência de certas obras
por os seus títulos estarem incluídos nos índices inqui.sitoriais.
Sabemos, ipor exemplo, que um ami{Jo de Sã de Miranda, An-
tónio Pereira Marramaque, é autor de obras em que se discutem
as indulgências e em que se advoga a tradução da Bíblia em
vulgar. Os títulos !ficaram no lodice de 1624, mas os livros
desapareceram. Outras obras escaparam rpor pouco à mesma
sorte. ·Assim, a R.ópica Pn.efma, de João de Ban-os, rprinclpal
monumento do erasmismo portugues, obra em que se punha
peia raiz o rproblema da origem e legitimidade do Estado e da
propriedade iprivada, em que se satirizavam rudemente as clas-
ses privilegiadas e em que se ipreconizava um Cristianismo feito
de perdão e tolerância, foi simplesmente suprimida, !figurando
pela primeira vez no lodice de 1581. iE desapareceu a tal tPOnto
que se tornou inteiramente desconhecida e só muito recente•
mente foi restituida ao seu verd.adelro e audacioso signíflcado.
Noutros casos a destruição foi mais difícil. ~ exemplo disso
a luta pertinaz que a censura inquisitorial empreendeu contra
o teatro de Gil Vicente, autor que penetrou fundamente na
consciê.ncla do povo rportuguês. Era querido na Corte, onde
continuava a ser representado depois da morte de D. João 111,
e constltuia, por outro lado, um dos mais apreciados elementos
da iiteratura de cordel que os cegos punham, nas ruas de Lis--
boa, ao alcance de todas as bolsas. Já em 1551, a 1nquisição,
na sua primeira lista de obras portu9uesas, proíbe sete autos
A CENSURA INQUISITORIAL 97

seus (dois deles condicionalmente). Mas em 1561 os herdeiros


do poeta empreendem. com o apoio da Corte, uma edição com-
pleta dos autos, e il censura inquisitorial recua, deixando im-
primir alguns - mas nilo todos - dos que anteriormente
proibira. Realizada sob as vistas dos inquisidores, esta edição,
saída em 1562 sob o título Compi/açüo de Todas as Obras de
Gil Vicente, contém passos de grande audácia. Sabemos, no
entanto, que lhe faltam, pelo menos, três autos e que alguns
dos seus ve:sos foram modificados. Mas o índice de 1581 mos-
tra que a censura não perdera de viSta o assunto e que, en-
quanto não efectuava novos expurgos, dificultava a circulação
da Compilação, declnr;mdo que <tem necessidade de muita
censura e reformação>. A persistente voga do poeta levou a
uma reedição em 1586, e nela cfectuaram os censores a cen-
sura e reformaç:lo de que entendiam estar o autor necessitado.
Em resumo, sete autos inteiros foram nesta edição suprimidos,
além de dois prólogos. um de Gil Vicente e outro de seu filbo.
que atestavam o prestigio do ,poeta, e de um sermão pregado
por Gil Vicente aos frades de Santarém. Além disso, outros
autos sofreram cortes de cenas Inteiras e diversas outras altera-
ções. Com isto não ficou concluldo o processo de Gil Vicente:
no índice de 1624 foram suprimidos mais três autos e ordena-
ram-se novos cortes. No total, contando as obras proibidas em
J 551 e desaparecidas. a censura inquisitorial eliminou treu
autos de Gil Vicente e mais duas obras suas, amputou grave-
mente mais quinze autos e apenas cinco ficaram intacros nas
suas m~os. O total dol> versos amputados, nas obras que nao
foram proibidas, eleva-se a t .163.
O exame das alterações (que fize:nos na História da Cul-
tura em Portugal) reve!;:..nos que os ccMores em certos casos
alteravam o texto de mnneira a fazer-lhe dizer precisamente
o contrário do que Gil Vicente escrevera. Os inquisidores preo-
cuparam-se especialmente com o anticlericalismo do poeta.
retirando da cena todos os frades foliões, palacianos ou tar-
tufos que ele lâ pusera. Preocuparam-se também com as nume-
rosas cenas em que Gil Vicente ridiculariza as artes mágicas,

7
98 A lNQU/SlÇAO PORTUGUESA

feitiçarias e os astrólogos, o que só se explica se pensarmos


que Gil Vicente, segundo um ponto de vista humanista, os
satirizava como expressão da sandice, ao passo que os inqui-
sidores gravemente os consideravam como perigosas artes do
Diabo. Outros aspectos ainda. tais como certas opiniões teo-
lógicas, o panegírico do amor, etc., atraíram a pena dos cen-
oores.
Foi certamente em resultado da acção inquisitorial que Gil
Vicente desapareceu pràticamente da herança literária portu-
guesa durante os séculos XVII e xvn1, só vindo a ser ressusci-
tado em 1834, com a descoberta de um exemplar da Compilação
em Hamburgo. Com efeito, os grandes cortes efectuados nas
suas obras desencorajaram os seus possuidores, que eram ohri·
gados a levar o volume à Inquisição para ali se riscarem os
versos condenados, 'e a fama lançada sobre o seu nome afas-
tava muitos leitores possíveis. O facto é que Gil Vicente é um
dos raros grandes autores quinhentistas que não são reeditados
no século XVII, e isto numa época em que se representavam nos
palcos portugueses numerosas comédias espanholas, 1)0r falta
de ori(Jioais nacionais.
Tal como as obras de Gil Vicente, os Luslad&, de Camões,
deram muito que fazer à censura. O poema parece ter-se im·
posto ao respeito do seu primeiro censor, que o deixou sair em
1572 com passos que mais tarde haviam de ser truncados.
Fr. Bartolomeu Ferreira, no entanto, julgou-se obrigado a expli•
1
car que aceitou a mitologia do poema por se tratar de «fingi•
mento> poético. Por outro lado, não sabemos a que alterações o
'J)Oeta foi obrigado para conseguir a aprovação. Pelo menos uma
estrofe incoerente, em que Tétis declara que ela própria e os
deuses seus colegas só existem para inspirar versos, parece ser
um eco da explicação do censor. Rosteriormente, porém, tor·
nou-se mais rigorosa a censura, e em 1584 a segunda edição dOIS
Lusíadas oferece mutilações catastróficas, rfeitas pela mão do
mesmo Fr. Bartolomeu, que autorizara a primeira edição. Os in·
quisidores tentaram eliminar do poema a mitologia e o erotismo
carnal de numerosas estrofes, sobretudo no episódio da ilha dos
A CENSURA INQUISITORIAL 99

Amores e no encontro de Vénus com Júpiter, seu pai e amante.


Esta edição mutilada, conhecida pelo nome de <edição dos Pis-
cos>, não resistiu, porém, ao prestigio e à voga do poema, já
então traduzido em castelhano. Ê provável que clandestinamente
se tenha nesta época impresso uma contrafacção da primeira
edição, para os que proouravam os Lusíadas na sua forma origi--
nal. Fosse como fosse, a censura viu-se obrigada a recuar, e em
1579 autorizava nova edição, com este título-chamariz: O.s Lli,.
síadas de Luís de Camões, pelo Original Antigo, agora Nova-
mente Impresso. Mas o anúncio não corresponde rigorosamente
à verdade, porque no texto hã ainda cortes e alterações, embora
voltasse a apresentar os deuses e a descobrir um pouco mais a
nudez das ninfas. Só a partir de 1612 os Lusíadas puderam rea-
parecer na sua forma inicial. Camões foi ' assim mais afortunado
que Gil Vicente, o que se compreende fàcílmente se pensarmos
que este último escreveu antes da introdução da censura em Por-
tugal e aquele no seu pleno vigor. A mensagem de Gil Vicente
tem por isso um carácter inconformista, multo afim do da Rópica
Pnefma, de João de Barros, e que seria impensável num autor
como Camões. que se fez homem à volta de 1550. O caso de
Camões ilustra sobretudo o avanço .progressivo da Inquisição,
a sua luta contra o embelezamento da natureza, contra a legi-
timação da espontaneidade carnal, de que Camõe.s foi em Por-
tugal o mais completo representante. A mesma orientação que
leva a Inquisição portuguesa a suprimir os nus dos-Lusíadas é
a que leva em Roma Paulo IV a mandar vestir os nus da
Capela Sistina.
Por um ou por outro motivo, outras obras portuguesas ca-
racterísticas do Humanismo foram pela censura expurgadas ou
proibidas. Jorge Ferreira de Vasconcelos, erasmista como João
de Barros, viu posto no índice a Ulissipo. que ~IOltou a sair no
século XVJl, mas já emendada: a primeira edição desapareceu,
de forma que não sabemos -hoje em que consistiram as cortes.
Por isso ele próprio, para salvar a sua Comédia Eufrosina,
alterou-a na segunda edição e introduziu-lhe uma profissão de
fé e de respeito pelo sacerdócio monástico. Nem assim con.se-
100 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

gui.u evitar que esta sua obra fosu também posta no índice em
1581. Mais tarde foi reeditada, co:n as amputações inquisito-
riais. No indic'e de 1624 figuram também as comédias de Sá de
Miranda e António Ferreira, onde se manda{ll cortar alguns
passos anticlericais e outros considerados licenciosos. Por este
último motivo foi expurgado também o Cancioneiro Geral, de
Garqa de Resende, já no índice de 1581. Um exemplo muito
característico é a (proibição, n este mesmo índice, da Menina e
Moça. de Bernardim Ribeiro.
Neste livro não se encontram nem os ataques ao clero, nem
os erros de fé. nem a nudez feminina, que em geral provoca-
vam a intervenção da censura. Nem por i.sso a Inquisição se
deixou iludir pelo sentido profundo da obra, onde a força ima-
nente da natureza é incompatível com qualquer concepção
transcendentalista. A Menina e Moça criou também fundas
raízes no público portugués. e po~ isso, decerto, a proibição
era levantada em 1645, daia em que se publicou nova edição.
Cópias manuscritas ca Menina e Moça do final do século XV1
sugerem que estl' livro tev;: uma vida clandestina sob a vigên-
cia da proibição inquisitorial.
Um dos aspectos capitais do Humanismo é, como se sabe,
a revalorização da Bíbiia, sobretudo dos quatro Evangelhos e
dos Actos dos Apóstolos. Os Humanistas viram nesses textos
o essencial do Catolicismo e empenharam-se no trabalho de o
editar, publicando novos manuscritos •gregos, de o comentar e
de o traduzir. Mas o texto evangélico em tradução acessível aos
leigos .fora já proibido •pela Igreja durante a Idade Média. O
concilio de Trento, como vimos. deixa aos bispos e inquisidores
a faculdade de o autorizarem ou não. No entanto, a atitude
da hierarquia eclesiástica vai endurecendo, até que, em 1713.
Clemente XI condenou como um erro 'C!e fé o uso da Bíblia
pelos leigos. Na Península Ibérica a recomendação do concilio
de Trento foi aplicada com grande severidade. que culmina
com a proibição no índice espanhol de 1640 das traduções da
Bíblia em conjunto ou de qualquer fragmento dela, assim como
qualquer sumário ou compêndio. Em Portugal, onde se pubH-
A CENSURA INQUISITORIAL IOI

caram traduções da Bíblia, e onde um amigo de Sá de Miranda,


António Pereira Marramaque, reclamava a sua tradução, a
Inquisição proibiu inclusivamente as versões poéticas de passos
bíblicos (como os que nos oferece Lope de Vega) e os extrav-
tos da Bíblia incluidos em obras de edificaçl!o religiosa e em
compilações de .sermões, de autores considerados. aliás, perfei-
tamente ortodoxos.
Em resumo, tudo quanto constituía apanágio do Humanis-
mo, a humanização da religião, a divulgação directa da palavra
evangélica. a reabilitação da natureza, a critica anticlerical, foi
reprimido pela censura inquisitorial portuguesa.

Com que êxito? Existiu alguma fuga ou resisténcia à vigi-


láncia intelectual da censura?
Os meios de escapar a esta vigilância eram escassos.
Em primeiro lugar. existia o processo das cópias manuscri-
tas. Há sintomas de que elas foram numerosas. Conservam-se,
manuscritos, diversos panfletos do século xvn, cópias várias de
escritos antl-inquisitorlais do P. • António Vieira, cópias da
Menina e Moça, etc. A maior parte, naturalmente, desapareceu,
mas o assunto não foi ainda investigado. ti: significativa, no
éntanto, a maneira como, muito posteriormente, o Híssope. de
Cruz e Silva, alcançou grande voga muito antes de ser impresso.
Em segundo lugar, existiam edições com falsas indicações
da data e local de impressão, de forma a esquivar a responsa-
bilidade dos impressores. Gualmente apresentavam-se como
obras impressas no estrangeiro, o que sucede, por exemplo, com
a primeira edição da Arte de Furtar, falsamente datada de
Amsterdão.
Em terceiro lugar, existiam as edições cfectivamente im-
pressas além-Pirenéus, e que entravam clandestinamente no
Reino. Em Londres e em Genebra imprimiram-se Bíblias e ou-
tras obras destinadas à Península, Há casos em que estas
obras traziam a falsa indicação de serei)'.! impressas na Penin-
sula e terem a aprovação inquisitorial.
102 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

A literatura clandestina portuguesa dos séculos XVI, xvu


e xvm é talvez indispensável para compreender o surto de um
lluminismo já muito amadurecido em meados do século xvm.
Trata-se, no entanto, de um problema que se encontra vi~em
de investigação.
Deve reconhecer-se, todavia, que a tal Ut~ratura depara-
vam-se grandes dificuldades. Nenhuma cultura pode criar-se e
manter-se sem tipógrafos, cátedras e tribunas. Ora estas encon-
travam-se inteiramente dominadas pelas ordens rellgiosas e
e,s.pedalmente pela Companhia de Jesus. A cultura portugues.a
não oficial, ligada iprovàvelmente aos circulos de cristãos-no-
vos e aos que se relacionavam com os estrangeiros numero-
sos que residiam nas principais cidades marítimas portuguesas,
foi decerto uma cultura decapitada e sem ligação com as mas-
sas, as quais, por outro lado, viam fechado o acesso à cult\Íra.
pelas Instituições dominantes.

:€ habitual pôr duas dúvidas sobre esta questão da censura '


inquiSitorial: a primeira é sobre se a censura inquisitorial teria
sido uma causa ou uma consequência, Por outras palavras: á
censura pode não ter sido a responsável pela evidente deca-
dência lqtelectual portuguesa durante o século xvn, mas a sua
própria exlstência foi possivel graças à decadência de que fala-
mos.
A resposta a esta dúvida é, a nosso ver, que a decadên-
cia intelectual portuguesa é o resultado de uma estrutura so-
cial e política que criou os seus meios de defesa. A censura
inquisitorial foi um desses meios, indubitàvelmente responsável
pelo desaparecimento de certas obras capitais, pela destruição
de outras in ovo, pela estrangulação dos contactos com o es-
trangeiro, etc. Como tudo o que se· encadeia na ordem dos
factos, a censura inquisitorial foi consequência e causa.
A segunda dúvida levantada é sobre o alcance real da
censura inquisitorial. Há quem sustente que, viessem as obras-
-primas, a censura não teria podido detê-las.
A CENSURA INQUTSITOR.1A_L _ _ _ _ _ _ _ _10_3

Isso equivale a afirmar que a censura operou sobre o vá-


cuo. o que é absurdo. Ela existiu porque tinha alguma coisa
que fazer. Além disso, os factos que ficaram resumidos não dei-
xam lugar a dúvidas. Uma das obras capitais do nosso sé-
culo XVI, a Rópica Pnefma, desapareceu da circulação e não
pôde estimular as gerações que depois vieram. Gil Vicente per-
deu-se para o teatro português. E há notícias de obras que
nem sequer chegara~ até nós. Mas a acção da censura não
deve. avaliar-se apenas pelas obras que sabemos te~m sido
proibidas ou mutiladas. Nós não temos notícias - et pout'
cause - dos livros cuja Impressão não foi sequer autorizada.
' Se por acaso outro livro da altura da R.ópica Pnefma se ti-
vesse apresentado ao Santo Tribunal, não sairia decerto do.s
~us arquivos. Ninguém se lembraria de propor a uma compa-
nhia. te~tral uma obra com a audácia da Romagem de Agra.-
vados, de Gil Vicente. Quantas obras ficaram arquivadas ou
foram destruídas nos arquivos inquisitoriais? Mais: quantas
obras ficaram destruídas no espírito· dos seus próprios auto-
ces7 E maí~ ainda: a própria capacidade de conceber estava
limitada pelas condições ambientes, pela atmosfera a que se
refere António Ferreira:

. Á. rpedo vivo, a medo escrevo e falo,


hei medo do que falo só comigo;
mas inda a medo cuido, a medo calo.

Toda a actividade Intelectual tem necessidade de estímulo:


esse estímulo nãó vinha de fora, com as fronteiras fechadas
aos livros, nem de déntro, com os nossos grandes humanistas
postos no índice.
.Em resumo, não podemos avaliar as devastações d~ cen-
aura inquisitorial ptlas obras que sabemos terem passado ou
não pelas suas malhas, pela maneira como falam os índices e
os livros publicados; temos de avaliá-las também pelo que nem
uns nem outros dizem: pelo Imenso silêncio que sucede à ani-
mada tertúlia_ dos nossos humanistas, silêncio só quebrado por

,.
104 A !NQUIS!ÇAO PORTUGUESA

discretas e cautelosas cortes na aldeia que Rodrigues Lobo


perpetuou.
E isto sabia-o um defensor çla censura ioquisitorial, Fr.
Francisco de S. Agostinho. ao escrever, no século xvu, na
Fi/ípica portuguesa contra la inuectiua castellana (t.raduzimos
do castelhano): cA vigilância em rebuscar doutrinas suspeitas
é incrível e sempre o foi neste Reino, onde se usam tantas
revisões de escritos e tantas aprovações de qualificadores, com
tanto rigor que é uma das causas por que nele saem à luz tão
poucos livros e os seus expurgatór1os são os mais exactos e
minucioso.;.>
Sairem à luz tão poucos livros tal era o efeito que atri-
buía, com elogio, à censura inquisitorial portuguesa esta tes-
temuoha, decerto bem informada, tanto dos factos como das
intenções da instituição que encarcc\a.
CAPITULO IX

A « LIMPEZA DE SANGUE»

Uma das armas por que a Inquisição se fazia temer t:ra


a mancha que todo o processo inquisitorial lançava sobre a
família e a descendência do processado. Bastava que um in-
divíduo passasse pelos cárceres inquisitoriais para que todos
os seu.s ·parentes perdessem a <limpeza de sangue>.
A lnquisiçllo era desta maneira o instrumento de uma se-
lecção e discriminação do pessoal dirígente, realizada através
de um critério genealógico, como convinha a uma aristocracia
que defendia posições jéi ocupadas.
A clímpcza de sangue> só era reconhecida a quem não
descendesse de mouro. judeu ou condenado pela Inquisição e
era indispensável para desempenhar certo oíimero de empre-
gos. Em Espanha já em meados do século XVl está generalizada
a incapacidade dos <não limpos> para os cargos eclesiásticos.
os .graus académicos, as 1profissões liberais e as ordens mili-
tares e, de uma maneira geral, para todas as honras e cargos
na vida pública. À investigação genealógica era obrigatória
para muitas nomeações, devendo o candidato apresentar um
certificado de <limpeza> passado pelos inquisidores. O pro-
cesso desta investigação era lento e muito dispendioso, não só
pelas propinas e emolumentos pagos à Inquisição, mas tam-
bém porque as testemunhas, em que se fundava todo o pro-
cesso, se faziam pagar pelos interessados. Por isso o certifi-
cado de diinpeza> era inacessível a indivíduos de posses me-
dianas, incluindo os pequenos nobres.
106 A INQU/SJÇAO PORTUGUESA

Em Portugal a política da «limpeza de sangue> é murto


mais tardia, como aliás o estabelecimento da Inquisição. Come-
çou a vingar na prática muito antes de ser sancionada pela
legislação: jâ nas Cortes de 1525 e 1535, cujos capítulos foram
publicados conjuntamente, se reclamava a proscrição dos mé-
dicos e boticârlos de origem hebraica, que de facto quase mo-
nopolizavam o exercício da arte de curar; e cerca de 1516-1547
os Cristãos-Novos, pela voz de quatro conselheiros de
D. João Irl. queixavam-se de sere~ excluídos das Misericór-
dias, confrarias, da vida militar e até dos mesteres das cidades.
\: ~ após o advento de Filipe II que a discriminação ganha um
carácter legislativo em grande escala, que culmina com os bre-
ves pontifícios de 25 de Janeiro de 1588 e 18 de Outubro de
1600 proibindo o provimento em benefícios e cargos eclesiás-
\
ticos de descendentes de hebreu~ até ao 7. 0 grau, inclusive. con-
tagem feita na época da conversão. O acesso de cristãos-.no-
'VOS ao magistério universitário é também proibido pelas leis

"- de 10 de Novembro de ló21 e de 23 de Fevereiro de 1623,


após o processo retumbante do Dr. Antóoio Homem e de outros
processos contra os professores de Coimbra, resultantes dos
conflitos que ali opuseram os mestres cristãos-velhos aos crJ.s..
tãos-novos. Desde o reinado de D. Sebastião tomavam-se dis-
posições ·p ara arrancar o exercício da medicina aos cristãos-
-novos que a demagogia inquisitorial apresentava como assas-
sinos de cristãos-velhos. No começo do século · xvu várias
corporações, como as ordens militares, certas ordens religio-
sas, os colégios universitários, etc., estavam legalmente fecha-
das à «gente de nação~. No século XVlll exigia-se a «limpeza
de sangue> para todos os cargos públicos.
A preocupação de isolar dentro da população a minoria
que se chamava «cristã-nova> ressalta de alguns ~rágrafos
da obra que temos citado do conceituado Inquisidor Fr. An-
tónio de Sousa. Ali se diz que é vedada aos fiéis a comuni-
cação assídua com os infiéis e a familiaridade com os Judeus:
e especialmente morar com eles, utilizar serviços de médi-
cos judaicos, a não ser à falta de outros, aceitar remédloo
A <LIMPEZA DE SANGUE> 107

de boticários judaicos, entrar com judeus. nos balneários, con-


vidá-los ou aceitar convites deles para jantar, criar e'm casa
deles filhos de crl.stãos, servi-los como criado ou depender
deles como servo, acatá-los como oficiais públicos. Esta enu-
meração, que lembra estraohmnente certos tabos racistas ainda
vigentes em nossos dias. contém matéria estatuida na Idade
M édia para os autênticos Judeus. isto é, para os que seguiam
o culto mosaico e estavam organizados em comunidades; e
trazendo-a para a actualidade os inquisidores estavam-na cer-
tamente adaptando àqueles que insistiam em considerar como
os representantes dos Judeus - os Cristãos-Novos.
Na prática, semelhante discriminação era inexequivel, pe-
las r azões que na devida altura apresentámos. Na pequena
nobreza, nas profissões liberais e até na Igreja a Inquisição
continua indefinidamente a descobrir réus para os seus autos-
-de-fé: onde acabava o «cristão-velho> e onde começ'ava o
<cristão-novo>? Mas a lógica pouco importava neste caso;- o
Importante para a Inquisição e para o grupo de que ela era o
instrumento era a existência de uma discriminação, fosse qual
fosse, l.sto é, de um processo de exclusão de determinados
sectores da população portuguesa relativamente aos cargos di-
rectivos e às rendas feudais. Quanto às ac:tividades de tipo
capitalista, a Inquisição achava maneira de intervir, como vi-
mos, através do confisco dos bens dos réus condenados.
.Em Espanha notava no século xvu o autor do Tratado de
los Eststutos de Limpieza que só ficavam imunes contra os
proce~s de limpeza os camponeses pobres cujos antepassa-
dos eram desconhecidos, ou os nobres mais ricos e poderosos.
contra cujos ascendentes ninguém se atrevia a testemunhar
e que podiam pagar as custas do processo e as testemunhas
favoráveis, ainda que falsas. ao abrigo do segredo inquisito-
rial. Quem ficava prejudicado eram os nobres menos podero-
aos e os caballeros que não deixavam cair no esquecimento
a respectiva ascendência e que, por outro lado, o~o tinham
meios para impedir os testemunhos desfavoráveis. Desta sorte,
108 A !NQU/S!ÇAO PORTUGUESA

nota o mesmo autor, .criou-se uma espécie de nobreza fictícia.


que olha desdenhosamente a velha nobreza do pais.
Semelhante situação deve ter-se criado também em Por-
tugal, onde não é por acaso que se multiplicam por esta época
as genealogias, mais ou menos falsificadas, pelas quais as fa-
mílias procuravãm mostrar-se imunes de hebraísmo. D. Luís
da Cunha alude no começo do século xvu1 à malevolência que
levava as famílias nobres a descobrir manchas de ascendên-
cia hebraica umas nas outras. Algumas quiseram alçapremar-se
a uma posição superior, constituindo como que uma superno-
breza, a pretexto da «limpeza de sangue>. Estas famílias, ditas
«puritanas>, que recusavam casamento com as famílias nobres
«não puritanas>, constituíram em 1663 uma Confraria da No-
breza, cujos estatutos exigiam à entrada a prova de cfis..
tãos-velhos fora de toda a dúvida. O critério último de se-
lecção tinha de ser, evidentemente, na 'p rática, ou a influência
.política ou a riqueza das familias beneficiadas, visto que só
uma ou outra podiam lavar as manchas e as suspeitas de que
estavam crivadas as árvores •genealógicas da no'breza entre-
laçadas entre si. Este facto mostra que a discriminação pros-
seguia o seu caminho e servia para amputar camadas cada
vez mais amplas em proveito de uma aristocracia cada vez
mais reduzida. De facto, era todo o sistema que caminhava
para a destruição e a Inquisição que ia perdendo a sua base .

..
CAPITU LO X

COMO ACABOU A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL

A história que resumimos da introdução da Inquisição em


Portugal e a análise que tentámos da sua estrutura, funcio-
namento e campo de acção mostram que ela não passa de um
instrumento da política geral do grupo que se consolidou em
Portugal desde meados do século xv1 e que permaneceu sob
o regime filipino. Temos a contraprova disto ao verificarmos
que, quando o contrõle político exercido por e~se grupo esmo-
rece e entra em cri.se. devido ao desenvolvimento de forc;as ~
antagonistas e consequente intensificação das suas contradi-
ções internas, a própria Inquisição entra e; declínio - declí-
nio arrastado, com sobressaltos de violência que a sua forte
estrut'l.lra impunha. Este declínio toma-se patente após a Res-
tauração.
Já sob o governo dos Filipes tinha a «gente de nação> al-
cançado alguns bitos, aliâs sem .$equência, contra a Inqui-
sição; e especialmente o perdão geral das culpas de judaísmo,
comprado em 1605 por 1.700.000 cruzados; mas é a revolução
de 1 de Dezembro de 1640 que põe termo à identificação do
poder real e do poder inquisitor:ial Os Cristãos-Novos por-
tugueses, dentro e fora do Pais, tiveram um papel de relevo
na preparação da revolução e no sustentamento posterior da
guerra contra Castela. A burguesia nacional. que ganhara uma
força nova com o florescimento do Império Brasileiro, ampa-
rada por um lado por alguns elementos da ndbreza e apoiada
110 A INQU!SIÇAO PORTUGUESA

pelo outro por camadas populares, é a força social que torna


possível a Restauração; e o facto de esta ter sido levada a
cabo mostra já por si como a relaçao política das forças so-
ciais se alterara desde meados do século XVI. Por outro lado,
a burguesia Internacional, em guerra com o Império Espanhol.
prosseguia o desmantelamento do seu monopólio marítimo e
comercial. Nesta luta a rede internacional da «gente de na-
ção> portuguesa teve um papel de relevo, inclusivamente na
ocupação do Brasil pelos Holandeses. Um informador do Coo--
selho Supremo da ·Inquisição espanhola apresentava os refu.-
giados na Holanda como colaboradores activos dos inimigos
do Império Espanhol. entendidos com mercadores que dentro
da Espanha faziam espionagem; e a Companhia das ln-
dias Ocidentais, segundo o mesmo informado~. era controlada
por judeus e a sua pirataria no Brasil e outras colónias por-
tuguesas era ajudada por cristaoo-novos residentes nestds re-
giões. Indicava nomes de cristãos-novos residentes em Lis--
boa e na Baía que para este fim mantinham ligações com
cristãoo-novos também portugueses residentes na Holanda.
~ sabido, por outro lado, que o cardeal Rlchelieu utíli:zou
os serviços de emigrados portugueses cristãos-'llovos domid·
liados em Prança na preparação da rebelião portuguesa contra
Filipe IV, beneficiando assim da rede internacional a que
mais 't arde se referirá o P.• António Vieira na sua Proposta
já citada, ao lembrar a D. João IV que por «suas diligências
secretas [dos Cristãos-Novos) se poderão saber desígnios e
granjear as notícias dos reinos estranhos>. Um judeu de lln·
gua portuguesa recebe do cardeal fundos para a revolução.
Após o golpe de Estado, o .capital e as relações interna•
cionais da «gente de nação> têm um papel considerável no
financiamento da guerra.
Todas estas circunstãncias explicam os conselhos do P.•
António Vieira a D. João IV no sentido de dar garantias ao.s
Judeus e aos Cristãos-Novos, a fim de obter créditos nos paí-
ses capitalistas estrangeiros, conseguir o investimento de capitais
em companhias do tipo das companhias holandesas, de que
COMO ACABOU A INQUISIÇAO 111

constava serem os Judeus os principais financiadores. Em


resumo, o P.• Vieira via que o rei d'e Portugal só poderia
sustentar-se na guerra contra o Império Espanhol com o
apoio financeiro da burguesia nacional e internacional e con-
sklerava como nervo principal de.sta o grupo dos chamados
cristãos-novos: «Finalmente, Senhor> - escrevia ao rei nou-
tro escrito séu, A favor da «gente de nação> sobre a mudança
dos estilos do Santo Oficio e do fisco ( 16%) - , e Portugal não
se pode conservar na guerra presente, e muito menos na que
infalivelmente havemos de ter, sem muito dinheiro. Para este
dinheiro não há meio mais eficaz. nem Portugal tem outro, se•
não o comércio; para o comércio não há outros homens, ao
presente, de cabedal e indústria mais que os de nação.>
Esta posição do jesuita conselheiro de D. João IV revela
uma visão inteiramente nova da estrutura da sociedade por•
tuguesa e do papel que nela tinham a desempenhar as forças
capitalistas. B um índice de como a relação de forças sociais·
-económicas se alterara dentro do Pais e de como estava em
curso a transformação da própria base em que assentava o
Estado. Por este simples facto alterava-se a relação até ai es-
tabelecida entre a Inquisição e o poder real. Consta das cró-
nicas e memórias que o rei D. João IV não era menos devoto
que o seu antecessor D. João 111, e, todavia, foi, como vamos
ver, quem deu, antes de Pombal. o mais forte golpe na obra
supostamente pia por aquele começada; tanto é verdade que
um e outro. independentemente das suas convicções pessoais.
agiam sob o impulso de condições que os superavam.
O primeiro sintoma importante da oposição entre os dois
poderes até ai unidos revela-se no facto de o inquisidor-geral
de Portugal, O. Francisco de Castro, estar envolvido na
conspiração contra D. João IV descoberta em 1641. Factos
posteriores mostram como a Inquisição era efectivamente ad·
versária da independência polltica do novo Estado portu-
gués e jogou durante longo tempo na vitória das armas cas-
telhanas.
J 12 A INQUISJÇAO PORTUGUESA

Em 1617 estão em curso negociações para a compra de


navios armados holandeses para o rei de Portugal, negociações
importantíssimas para o prosseguimento da guerra contra Cas-
tela e conduzidas pessoalmente por um dos mais próximos con-
selheiros do rei de Portugal. o P. • António Vieira. Os con-
tratos em vista dependiam dos créditos abertos pelo merca-
dor cristão-novo Duarte da Silva, relacionado com mercado-
res de Amsterdão. A Inquisição julga chegado o momento para
desferir ' um golpe decisivo: Duarte da Sílva é preso em Lis-
boa. Cons1:quentemente, as negociações em curso malogra-
ram-se, e o P." Vieira mal conseguiu encontrar uma solução
de emergência que lhe permitiu adquirir um únlco barco. Fu-
turas negociações comerciais na Holanda tornaram-se imprati-
cáveis, dada a incerteza dos negociantes holandeses sobre a
solvabilidade dos seus correspondentes de Lisboa, sob ameaça
do çonfisco. O obji;ctivo desta acção inquisitorial foi já apon-
tado por um contemporâneo, Francisco de Sousa Coutinho.
que em carta escrita dez anos depois à viúva de D. João I•V
explicava a prisão de Duarte da Silva pela política pró-cas-
telhana do Santo Oficio.
Caso semelhante ocorreu com Manuel Fernandes Vila Real.
cristão-novo português emi·grado' em França, que já antes da
Restauração mantinha contactos com Richelieu e que após o
1.0 de Dezembro foi um dos publícistas que ajudaram a sus-
tentar a causa de D. João IV perante a opinião pública euro-
peia. A Inquisição escolheu para o prender o momento em que
ele ia partir de Portugal para uma missão relacionada com
a guerra. O rei foi impotente para o salvar e assistiu ao auto-
-de-fé de 1652 em que ele foi queimado. Duarte da Silva con-
seguiu escapar vivo, após cinco anos de cárcere, ouvindo no
mesmo auto-de-fé a sentença de degredo para o Brasil, a cujo
cumprimento conseguiu furtar;se.
A guerra da Inquisição portuguesa contra o pequeno reino
de Portugal que surgia da luta centra o Império Habsburgo,
castelo do feudalismo na Europa, está na lógica dos factos.
Co.m efeito, a situação tão líicidamente resumida pelo P.º An-
COMO ACABOU A INQUISIÇAO 113

tónio Vieira (em termos que o acreditam como um estadista


de largas vistas) leva o devoto rei de Portugal a um acto
capital que representa o mais duro golpe sofrido pela Inqui-
sição antes da reforma pombalina: o alvará de 6 de Feve,
reiro de 1649, pelo qual, ponderando a necessidade do <CO'
mércio livre> como meio para sustentar a guerra, e aceitando
a proposta dos <homens de negócio e gente de nação> para
organizarem uma companhia por conta da qual andassem no
mar trinta e seis iJaleões de guerra em guarda das embarca,
ções e fazendas que fossem ao Brasil, D. João IV decretava
que <os bens e fazendas de qualquer qualidade que sejam da
gente da dita nação de todos meus reinos e senhorios, assim
naturais como estrangeiros, que foram presos e condenados pelo
Santo Oficio, pelos ditos crimes de heresia, apostasla ou ju.-
daismo, não sejam sequestrados e inventariados ao tempo das
priSões, nem sejam Incorporados em meu rea1 fiSco ao tempo
das sentenças condenatórias>. Far-se-ia isto por <contrato
honroso>, ficando a pena da confiscação exarada na sentença,
de acordo com o direito canónico. mas restituindo o rei aos
condenados os bens, confiscados nominalmente, que em direito
(embora não de facto, como vimos) lhe pertenciam. A com-
panhia a que se refere o alvará é a Companhia Geral do Co,
mércio do Brasil, à qual o rei concedeu determinados mono-
pólios.
O fisco era, como vimos, a arca sacrossanta que os inqui-
sidores resguardavam ciosamente do contrõle do poder real.
Privados dela po; uma lei que abolia o próprio inventário do.5
bens dos presos, os inquiSidores resistiram e recorreram a
Roma. Tratando-se de matéria de fé, segundo alegavam, era
indispensável a conilrmação do pontífice. Ora Roma, aliada ao
Império Habsburgo, recusava-se a reconhecer o novo rel de
Portugal. Naturalmente, condenou o alvará citado (breves de
16 de Maio e de 15 de Outubro de 1650). Dava-se a circuns,
tãnda curiosa de os inquisidores terem agentes em Roma, en•
quanto a própria Corte de Lisboa não conseguia fazer aceitar
ali os seus representantes. O rei de Portugal Íoi obrigado a

8
114 A INQU/SIÇAO PORTUGUESA

um recuo táctico, para não complicar a sua diflcil situação


diplomática, mas entendeu manter-se senhor dos bens confis--
cados, cuja administração mandou transferir dos .funcionários
inquisitoriais para o pessoal régio do Conselho da Fazenda,
\
akgando a conveniência de não se distrairem os inquisidores
com negócios profanos e de se restabelecer a confiança pú-
blica na administração do .fisco, visto haver quem, atrevida-
mente, pusesse em dúvida o escrúpulo dos inquisidores no seu
manejo. Este remoque irónico revela como o prestígio do
Santo Tribunal abria falência pública. ·
O rei não se privava, de resto, de outros procedimentos
em desprestígio do tribunal, como o de nomear desembarga-
dor da Casa dos Agravos o Doutor Francisco Velasco de
Gouveia, que anos antes a Inquisição condenara e que por
tal estava, pelo direito inquisitorial, inabilitado para os cargos
públicos.
Ê em resultado deste conflito entre o poder real e o po-
der inquisitorial que se dá o caso notável de os inquisido-
res terem obtido do papa a excomunhão de D. João IV. ex-
comunhão que chegou após a morte do rei. Este facto está
testemunhado por D. Luís da Cunha, ao par dos mais
íntimos segredos da Corte portuguesa e que conheceu ainda
mui tos contemporâneos do acontecimento.
Desta forma a Inquisição a·firmava mais uma vez a sua
superioridade sobre o poder civil e proclamava o seu triunfo
transitório na luta para sobreviver na nova situação criada
pela Restauração. Este triunfo consumou-se com a abolição
do àlvará de 1649. pouco depois da morte de D. João IV. em
1657. Afirmando a sua omnipotência, os inquisidores haviam
mandado afixar um edital em que se mandava proceder às
confiscações e entregar o seu produto aos agentes inquisito-
rlals e ao mesmo tempo se excomungavam todos os que ha-
viam participado no alvará de 1649 e os que obstassem à pu-
blicação do mesmo edital. Assim, quando a rainha restabe-
leceu o statu quo ante 1649 não fez mais que inclinar-se pe-
rante a lei dos inquisidores. Estes intensificavam, por outro
COMO ACABOU A INQUISIÇAO 115

lado, as condenações em autos-de...fé a partir de 1650 como


para desafiar o interesse do Estado pelos perseguidos.
Esta vitória táctica da Inquisição e o facto de as fogueiras
deflagrarem fartamente, alimentadas por combustível que os
inquisidor~ queriam fazer crer inesgotável, não alteravam o
fundo da questão. O grupo dirigente estava irremediàvelmente
desunido em face do papel crescente da burguesia na vida
nacional. Se a brecha se tapava por um lado, reabria-se por
outro. Se o rei excomungado não podia já responder da cova,
um outro poder não menor que o seu continuava a ofensiva
contra os inquisidores.

Desde a primeira metade do século XVll, pelo menos, os


Jesuítas entram em conflito com o Santo Ofício, de que ha-
viam sido constantes aliados. O cardeal D. Henrique conse-
guira evitar que se comunicasse ao nosso pais a incompatibi-
lidade que em Espanha se declara já no final do século XV1
entre as duas instituições. Segundo o preâmbulo à reforma
pombalina do Santo Oficio, os Inquisidores-gerais D. Pedro
de Castilho e D. Fernando Martins de Mascarenhas (160t-
·1616) haviam sido instrumentos da Companhia, cujo emblema
figura na portada do regimento de 1613, tendo sido o índice
de livros proibidos de 1624 organizado pelo jesuíta P. 0 Bal-
tasar Alvares. Os Jesuítas Unham o seu papel na actividade
inquisitorial como confessores dos condenados.
Mas o antagonismo vem à superfície já no principio do
reinado de D. Joao 1V a propósito de uma dessas questões de
precedência tão vulgares no século XVII e que seriam ridicula-
rizadas por António Dinis da Cruz e Silva; tratava-se, não
de um híssope, mas de um lote de maçãs disputado no mercado
local entre a Universidade jesultlca e o tribunal inqulsitorial
de :e.vora. Os Jesuitas recorreram ao papa, que sentenciou per-
tencer-lhes o lote de maçãs e a precedência, no futuro. sobre
os inquisidores; mas e3tes conseguiram por fim ganhar a
questão com o apoio do rei. A esse propóSito, reflectindo
certamente os sentimentos da Companhia e o desprestígio
116 A INQUISTÇAO PORTUGUESA

crescente da 1nquislção, um jesulta que então lniclava a sua


carreira de conselheiro do rei afirmou, num conselho a que
este presidia, que a diferença entre os padres da Companhia
e os inquisidores era que «estes viviam à custa da Fé, ~o
passo que aqueles morriam por ela>. Assim falava o P.• An-
tónio Vieira, que ia tornar-se o principal paladino da reabl·
litação dos Cristãos-Novos, como atrás vimos.
Morto D. João IV, António Vieira velo a ser processado
e condenado pela Inquisição ( 1663...1667), e logo que recupe-
rou a· liberdade tomou o caminho de Roma, onde recomeçou
a campanha a favor dos Cristãos-Novos, com o apoio dos
confrades que ficavam em Portugal. Renovando o projecto
da Companhia do Brasil, os padres jesultas Baltasar da Costa,
provincial do Malabar, e Manuel Fernandes, confessor do re-
gente D. Pedro II, propõem um perdão geral para as culpas
do judaísmo e a modifiqação dos chamados «es~os> do 'santo
Ofício, de forma a dar mais garantias aos processados, em
troca do investimento· de capitais de cristãos-novos numa
Companhia das Indias Orientais a constituir. António Vieirj3,
de acordo com os confrades, manobrava na Corte pontifícia.
Ao mesmo tempo, os Cristãos-Novos dirigiam-se ao papa no
sentido de se reformarem os mesmos «estilos>. A Universi-
dade jesuítica de Évora dava parecer favorável às suas pre-
tensões ( 1673).
O regente D. Pedro II apoiou inicialmente a diligência da
<gente de nação> e dispôs-se a patrociná-la no Vaticano. O
seu agente em Roma era um diplomata de ideias largas, que
já antes se mostrava favorável aos Cristãos-Novos. Nesta
emergência os inquisidores mobilizaram os seus recursos para
pressionar o regente, quer os da intriga palaciana, quer os da
agitação demagógica, provocando motins em Lisboa que fize-
ram recuar o aspirante ao trono, ainda Incerto de conservar
a coroa e a mulher, que subtraira ao irmão. Uma oportuna
mudança de conselheiro .fez rodar a posição do regente, que
acaba ·por recomendar no Vaticano o indeferimento das pre-
tensões dos Cristãos-Novos que inicialmente encorajara.
COMO ACABOU A INQUTSIÇAO 117

A estratégia inqulsltorial é agora Inversa da que fora em


1660: se então se tinha apoiado em Roma contra a Coroa,
agora vai apoiar-se na Coroa contra Roma, que se mostrava
favorável aos Cristãos-Novos e aos Jesuítas. Para reforçarem
as suas lnstanclas, os inquisidores fazem reunir as Cortes
(1674), que fàcilmente dominam pela poderosa mâquina dos
<familiares>, em cujo grémio se recruta a maior parte dos
procuradores.
Entre os documentos apresentados em Roma pelos agentes
dos Cristãos-Novos figuram as Notícias Recônditas do Modo
de Proceder da lnquisiç4o com os Seus Presos, atribuídas (pa-
rece que erradamente) ao P.• António Vieira, e que consti-
tuem o mais completo e objectJvo documento até hoje conhe-
cido sobre a loquisiçao. Este documento, que fez sensação e
comoveu a opinião pública mundial, bastava para justificar a
decisão de Roma, que em Lisboa, como no tempo de
D. João III, atribuiram ao suborno do dinheiro judaico: por
breve de 3 de Outubro de 1674 o papa mandou cessar os
autos-de-fé, processos e sentenças, suspendeu de funções os
inquisidores e mandou avocar a si as causas de heresia.
O inquisidores souberam tirar partido da decisão pontifí-
cia, tomada sem consulta prévia do regente, na medida em que
este sentia posta em cheque a sua autoridade. D. Pedro II, com
efeito, mandou resistir ao breve, tomou à sua conta as chaves
dos arquivos inquisitoriais e enviou a Roma um embaixador,
que era um convicto partidârio da Inquisição. A ordem do
papa para que lhe fossem apresentados alguns processos não
foi acatada. Os Inquisidores conservavam os presos nos cár-
ceres a pretexto de estarem interrompidos os processos e tira-
vam daí argumento para ser, a favor deles, restabelecido o
funcionamento dos tribunais. Ao cabo de longa luta, o Papado
teve de ceder, como sempre sucedia quando a Coroa jogava o
seu prestígio. O papa contentou-se afinal com a entre9a de
dois processos jâ antigos, cuidadosamente escolhidos pelos in-
quisidores e pelo embaixador, e com certas alterações insigni-
ficantes aos chamados <estilos>. sendo a Inquisição restabe-

..
118 A INQUISJÇAO PORTUGUESA

lecida pelo breve de 22 de Agosto de 1681. Os inquisidores


celebraram o seu triunfo com gigantescos autos-de~fé em Lis-
boa, Coimbra e Évora. Em Lisboa, no auto de 10 de Maio
de 1682. que atrás ficou descrito. e em que o nosso conhecido
António Serrão de Castro viu queimar o filho, o inquisidor-
-geral exibiu-se pela primeira vez no seu cavalo branco, à
frente dos 4.'familiares:>, que reuniam a mais selecta nobreza
nacional.
Nos anos seguintes, e durante quase todo o reinado de
D. João V, a Inquisição teve o cuidado de justificar a sua
existência com autos-de-fé copiosas. A atenção dos inquisido-
res dirigiu-se sobre o Brasil e ~obre as províncias do interior
do Reino, em busca de novos campos de recrutamento. É nesta
época que, segundo D. Luís da Cunha, se despovoam as vilas
comerciais-e manufactureiras da Beira e de Trás-os-Montes. Os
estrangeiros assistiam pasmados a estes espectáculos incom-
preensíveis, mas estupendos e alucinantes, que na própria Es-
panha se iam tornando cada vez mais raros.
,g um facto à primeira vista surpreendente, mas altamente
significativo, que o furor inquisitorial tenha atingido o seu
paroxismo precisamente numa época em que os espíritos mais
esclarecidos e mais autorizados no País se mostravam com-
pletamente desenganados sobre o tribunal do Santo Oficio.
O P.• António Vieira, como vimos, considerava-o como um
modo de vida dos inquisidores; o embaixador Francisco de
Sousa Coutinho, em carta dirigida à rainha em 1657, ~tribula
aos inquisidores o propósito de se apoderarem das fazendas
dos condenados para as desfrutar e não para os converter e
acusava-os de maquinarem contra a independência do País; no
começo do século xvm o embaixador D. Luís da Cunha con-
siderava-o responsável pelo e-mpobrecimento do Reino, tomava
à conta de hipocrisia ou ignorância a posição dos defenso-
res do Santo Ofício, apontava o desprestígio internacional que
resultava para Portugal do espectáculo dos autos-de-fé e atri-
buía aos inquisidores a intenção de se fabricarem judeus como
se fabricava moeda, para justificarem a própria fonção. No mais
COMO ACABOU A INQUISIÇAO 119
--''--------.,,..------

íntimo da Corte, no próprio confessionário do rei, nas altas


esferas da Companhia de ·Jesus e do Vaticano, ninguém acre-
ditava na pureza da InquiSição. A santidade do tribunal era
escarnecida pelos seus próprios funcionários, que faziam espio-
nagem a favor das vítimas, como o mostra o processo de
Duarte da Silva. E, todavia, todos os anos se repetiam na
Praça da Ribeira os espectáculos dos autos-de-fé; gente mor-
ria, garrotada ou tostada em vida, em nome de uma santa
função que ninguém tomava a sério, a não ser talvez alguns
dos espectadores simples, sugestionados pela demagogia in-
quisitorial, e a quem o terror incutia o respeito sagrado pela
omnipotência visível dos juízes.
Esta duplicidade revela bem as contradições da sociedade
portuguesa entre meados do século XVII e o governo de Pom-
bal. Forças desencontradas se chocavam, o grupo dirigente
estava dividido entre a ideologia feudal traaicional e uma
concepção burguesa, que por vezes se mascarava com a retó-
rica 'barroca e o formulário escolástico, como se vê no P. 0 An-
tónio Vieira. Tal situação explica simultâneamente o des-
prestígio da Inquisição após a Restauração e a intensifica-
ção da sua acção repressiva e da sua política demagógica.
Pode dizer-se que a perseguição aos Cristãos-Novos aca-
bou às mãos de Pombal, que era, aliás (exemplo curioso das
contradições a que nos acabamos de referir), «familiar> do
Santo Ofício e membro de uma das famílias chamadas «puri-
tanas>. ·F ez nomear inquisidor-geral o .próprio irmão, Paulo de
Carvalho, sob cujo governo quase cessam os autos-de-fé. O
último a que Lisboa assistiu realizou-se em 1761. morrendo
nele o jesuíta Gabriel Malagrida e a seu lado - mas apenas
em estátua, -porque o condenado residia em Londres - Fran-
cisco Xavier de Oliveira, o «Cavaleiro de Oliveira>, protes-
tante. Tanto o jesuíta como o fidalgo protestante eram acusa-
dos de terem afirmado opiniões heréticas em escritos que pu-
blicaram a propósito do terramoto de 1755. Ambos susten-
tavam que o terramoto era um cashlgo de Deus, segundo o
120 A INQUISIÇAO PORTUGUESA

primeiro por os Portugueses não serem suficientemente cató-


licos, segundo o outro' por o serem de mais, em lugar de se
converterem ao Protestantismo. Pombal, que afirmava ser o
terramoto explicável exclüsívamente por causas naturais e fí-
sicas, serviu-se da Inquisição para condenar como herética a
crença que via no desastre uma intervenção divina. Este sim-
ples facto mostra como o ministro de D. José entendia arrancar
pela raiz o próprio espirlto que inspirara e mantinha o tribunal
do Santo Ofício. Bm 177.1 a celebração pública d~ autos-de- fé
foi formalmente proibida. Em 1768 iniciou Pombal a abolição
definitiva da discriminação; as listas de contribuintes cristãos-
-novos dos contratos de perdão foram destruidas, de modo a não
subslStir qualquer documento a atestar a pretensa ascendência
judaica de quem quer que fosse; os moços e moças casadoiros
de 1773). Por lei de Maio deste ano foram abolidas todas as
.famílias «não puritanas>; a dimpeza de sangue> foi fol'!Ilal-
mente abolida como condição para o preenchimento de cargos
públicos (assento do Conselho de Estado de il6 de Fevereiro
de 1773). Por lei de Maio de 1773 foram abolidas todas as
leis discriminatórias e estabelecidas 1'enas graves para quem
aplicasse apelativos específicos à antiga «gente de nação>. A
infâmia lançada sobre os condenados pelo Santo Oficio e seus
descendentes foi ~bolida também, excepto para os condenados
à morte, e viu-se um negociante, antigo penitenciado por ju-
daísmo, agraciado com o hábito de Cr.isto. Em 1771 é proibida
a celebração de autos públicos de fé. Finalmente publicou-se
o novo regimento. (1774), que quase abolia a tortura (ressal-
vava-se o caso muito especial dos missionários activos de here-
sias) e alterava todo o processo inquisitorial, assimilando-o
ao processo comum (revelação obrJ.gatória dos nomes das tes-
temunhas, etc.). No decreto régio que aprovava o novo regi-
mento declarava-se o tribunal do Santo Ofício única e exclu-
sivamente subordinado ao poder real, sem qualquer dependên-
cia de Roma. Embora permanecesse como tribunal do Estado,
a Inquisição não conservava do passado mais que o nome,
visto que o objecto para que fora criado, a pretensa casta dos
COMO ACABOU A INQUISIÇÃO 121

Cristãos.-Novos, desaparecera, sem. vestlgio, ao toque aparen-


temente mágico dos decretos de Pombal.
Um historiador dos Cristãos-Novos portugueses, surpreen-
dido com este imperceptlvel passamento, por uai simples de-
creto, de uma raça Indomável que tantos problemas levantara
em Portugal durante dois séculos, tenta descortinar razões para
tão maravilhoso sucesso. E é de facto caso para maravilha
se considerarmos ingenuamente a quantidade prodigiosa de
condenados exibidos nos autos-de-fé ainda no reinado ante-
rior e se acreditarmos, como Lúcio de Azevedo, nos sermões
dos frades dominicanos, -que diziam o Reino corroído de ju-
deus incorrigíveis. Mas tudo se explica sem dificuldade se nos
lembrarmos de que a raça dos Cristãos-Novos era um míto
criaào pelos próprios inquisidores e pelas forças de que eles
eram os agentes. A função do tribunal do Santo Ofício não
era destruir os judaizantes, mas Iabricá-los, nem era assimilar
os Cristãos-Novos mas sim sequestrá-los e multiplicá-los. O
nome de 4;Cristãos-novos> era o apelativo demagógico com
que o grupo dominante em Portugal desde meados do século
XVI procurou afastar a burguesia da direcção poHtica do Es-
tado e da hegemonia económica. O desaparecimento da casta
assim designada ao toque das leis de Pombal revela sim-
plesmente que a burguesia se tornara, sob o seu governo, um
grupo dominante e que a aristocracia senhorial perdera a
partida.
ÍNDICE

Nota prévia 7

CAP1TULO l - Introdução ....................... . 9

CAPITULO II - Os Cristãos-Novos ............. ..

CAPlTULO III - Como foi introduzida a Inqui-


sição em Portugal . . .. . . . . . . .. . . . 32

CAPITULO IV - A Organização do Tribunal do


Santo Ofício . . .. . . .. .. . . . . . .. . . . 44

CAPITULO V - O processo Inquisitorial . . . . . . . . 54

CAPITULO VI - Os Autos-de-Fé .. .. . .. . . .. . . . .. .. 71

CAPITULO VII - As Vítimas da Inquisição . . . . . . 79

CAPITULO VIII - A Censura Inquisitorial . . . . . . . . . 85

CAPITULO IX -A «Limpeza de Sangue» . .. . . . 105

CAPITULO X-Como acabou a Inquisição em


Portugal .. .. . .. .. .. . . . . .. ... . . . . . 109
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PUBLICAÇOES EUROPA-AM~RICA
Este livro foi composto e impresso
nas Ofidnas da Bditora Gráfica
Portuguesa, Lda., Rua Nova do
Loureiro, 18 a 34, em Lisboa, para
Pubhcações Europa ~ América, e
conduiu~e 'e'm Fevereiro de 1956.
.,.

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J

O AUTOR
António José Saraiva, Doutor em
Letras, antigo assis~nte da Fa<·ul-
dade de Letras de Lisboa, não ca-
rece de ser a;:iresentado ao 1público
iportu<;1uês e brasileiro, É o autor' da
História da Literatura Portuguesa
(3.ª !edição), N.• 7 da Colecção
SABER, e de Fernão Lopes (estudo
e an~logia), N.º 22 da Colecção
SABER; publica actualmeote. em
fascículos, uma História da Cultura
em Portugal (2 volumes já comple-
tos) e a sua bibliografia, pela quan-
·ti'Clade e ipe)a Qualidade, é a .sua me-
lhor apresentação. Autor de ensaios
como Gil Vicente e o Fim do Teatro0
Medieval (•1942) e A Escola-Pro-
blema Centeal da Nação (!1946). de
estudos 'Como Para a História da
Cultura em Portugal (1946) e As
Ideias de Eça de Queiroz (1946),
A Obra de Júlio Dinis e a sua Epo-
ca (•1949). A Evolução do Teatro
de Garrett, António José Saraiva é
um investigador, um crítico e um
historiador da cultura que ocupa •lu-
gar de mere<:ido relevo nos meios
intelectuais portugireses.

*
VOLUMES PUBLICADOS
1- HlSTóRIA DAS nCNICAS, por Pierre Ducassé
2- HISTORIA DO ONEl\lA, por Lo Duca
3- A GRAFOLOGIA, por Herbert Hertz
4- OS SONHOS, por Jean Lhcrmittc
5- AS ORIGENS DA BURGUESIA, por Régine .~~cnoud
6- A BATALHA DOS TitUSTS, por Henry Peyret
7- llISTóRlA DA LITERATUHA PORTUGUESA, pelo
Dr. António José Saraiu.2 (3.• edição).
8 - 00 ÁTOl\10 A ESTRELA, por Pierre Rousseau
9 - HISTóRIA DO TEATRO, por Robert Pignarre
10 - AS GRANDES CORRENTES O.\ FILOSOFIA, por
Pierre Ducassé
11 - OS REGIMES ALl'.\IENTARES, por P. Chéne
12 - A GtNESE DA BIDIA~ IDADE, por C. Arambourg
13 - AS IITAPAS DA GEOGRAFIA, por René Clozier ,
14 - HISTóRIA DA VELOCIDADE, por Pierre Rousseau
15 - A POLICIA CIENTIFICA, por léon Lerich
16 - AS GRANDES DOUTRINAS ECONÓMICAS, por
Arthur Taylor
17 - PASTEUR E OS MICRóBIOS, por Albert Delaunay
18 - 0 OCULTISMO PERANTE A CrnNCIA, por Marcel
Boll.
19 - CONTABILIDADE, por Jean Pourastié
20- A ADOLESCE:NCJA, por Maurice Debesse
21 FERNÃO LOPES, por António José Saraiva
22-A VONTADE, por Paul Foulquié
2l - A CA 'IÇÃO POPULAR PORTUGUESA, por Fer-
nando Lopes Graça
24 - A I NTEUr.E:NCIA, por Gaston Viaud
25 - A REVOJ fJÇÃO FRANCESA, por Paul Nicolle
"26 - A HEREDIT-ARJEDADE HUMA A, por Jean R1»tand
27 - A ARTE DE PINTAR, por Tristan Kling:ror
28 - DISCURSOS PARJ.AMENTARES, por Almeida Gar-
rett.
29 - A ORIGEM DAS ESPtCIES, por 8mile Guyénot
30- O VOO NO ESPA(:O C'.óSMICO, por A. Stern/eld.
31 - ~ INQUISIÇÃO PORTUGUESA, pelo Dr. António
fosé Saraiva.
sr.rle Especlal 1
1 SE - AS t'l'APAS DA MATEMÃTICA, por Marcel &li
2 SE - A REVOLUÇÃO INDUSTRIAI., por T. S. Ashfon
Preço de cada volume de Série Vul1ar1 Ese. lSSOO

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