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Lutero Atormentado

“Somente tu sabes mais do que tantos homens santos e do que toda a Igreja?
Quem és tu para te atreveres a dissentir de todos eles?” Assim remoía Lutero a
própria consciência, oculto no Castelo de Wartburg depois de ter-se oposto,
diante do Imperador Carlos V, a se retratar dos seus erros. 

A resposta que Lutero dará aos próprios receios será definitiva, e não menos
assustadora: “Os Santos Padres, os Doutores, os Concílios, a própria Virgem
Maria, São José e todos os santos juntos podem se enganar”, mas não ele,
porque só uma coisa é certa: “Eu, Lutero, não ensino coisas humanas; eu
ensino coisas divinas”.

Nesta aula do nosso curso sobre Lutero e o Mundo Moderno, entraremos


juntos na mente do heresiarca alemão e veremos como ele mesmo reagiu às
convulsões religiosas originadas de sua nova doutrina.
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No ano de 1520, durante o pontificado de Leão X, foi redigida a bula de excomunhão de
Lutero, Exsurge Domini, que condenava também 41 teses da nova teologia. Vimos
anteriormente que o que está jogo em todo esse conflito político-religioso não é, como às
vezes se crê, uma questão de moralidade. Com efeito, Lutero não está preocupado em
reformar uma Igreja corrupta, que, aliciada pelas riquezas e sedenta de poder, teria
abandonado o fervor primitivo dos antigos cristãos. Antes, pelo contrário, o problema é de
fundo mais dogmático do que qualquer outra coisa. Espírito religioso e atormentado por
uma série de conflitos interiores cuja natureza é difícil de precisar, Martinho Lutero pensou
ter descoberto nas Escrituras uma solução doutrinal definitiva para os tormentos que
sempre o perseguiram.

Tal solução, como estudamos na aula passada, implicava, entre outras coisas, a destruição
de todo o sistema sacramental da Igreja Católica, e foi assim que Lutero terminou
fabricando para si mesmo, como meio de dar razão de seus conflitos ante a própria
consciência, uma ideologia de cunho marcadamente religioso. No entanto, a convicção
pessoal — que aqui não pomos em dúvida — que Lutero tinha do seu novo “sistema”
teológico não era empecilho para que, no campo político, ele soubesse mover-se com
habilidade ímpar em diversas frentes, ora entre nobres, ora entre professores, ora entre as
massas, servindo-se às vezes de mentiras e meias-verdades, com o fim de sobreviver num
mundo em que a heresia ainda era crime capital. Toda ajuda, viesse donde viesse, seria
bem-vinda.

Ora, depois dos debates que tiveram lugar em Leipzig, durante o ano de 1519, Lutero
passou a buscar o apoio das massas, mediante a publicação de livros de conteúdo
relativamente moderado, mas que já destilavam, quase a conta-gotas, algumas de suas
heresias. Além do povo alemão, Lutero foi atrás do respaldo dos príncipes e dos
nacionalistas germânicos, que lhe poderiam oferecer, se necessário fosse, inclusive defesa
militar. É nas universidades, porém, que a sua atuação se tornará mais aberta e radical.
Para cada um desses destinatários, Lutero escreverá coisas diferentes e em doses precisas,
conforme a maior ou menor disposição de cada um deles para receber a nova “doutrina”.
Eis porque é difícil saber, com base ora em um, ora em outro livro, qual é realmente o
pensamento de Lutero. Seja como for, é ponto seguro que o meio mais fiável de ter acesso
às verdadeiras ideias de Lutero é ir diretamente tanto aos seus escritos acadêmicos, nos
quais ele se podia permitir maior liberdade de expressão, quanto às cartas endereçadas aos
seus amigos íntimos.

Voltemos por ora aos anos que rodeiam 1520. As teses de Lutero já foram proscritas por
Leão X, e Carlos V de Habsburgo, com apenas 21 anos, acabara de ser eleito Imperador do
Sacro Império Romano-Germânico. Rei da Espanha desde 1516, Carlos V convocou a
primeira Dieta do seu governo, realizada em 1521 na cidade alemã de Worms. Urgido a
comparecer à Dieta a fim de renunciar aos seus erros, Lutero manifestou, tanto por escrito
como nos vários sermões que ele pregou em caminho a Worms, que não era sua intenção
retroceder um só milímetro em suas posições. Ciente de que Frederico da Saxônia o
apoiava, e contando com a segurança de algumas tropas alemãs e com um salvo-conduto
do próprio Imperador, Lutero entrou em Worms, não como quem vai a uma negociação
leonina, mas com os ares triunfais de quem sabe ser amado pelo povo e estimado como o
“salvador” da Alemanha contra a “opressão” romana.

Uma vez em Worms, Lutero afirmou sem mais palavras diante do Imperador Carlos V:
“Enquanto não me convencerem com o testemunho das Escrituras ou com razões
evidentes, não creio nem no Papa nem nos Concílios somente, porque consta que muitas
vezes erraram e se contradisseram a si mesmos, convencido que estou pelas Escrituras, e
tenho a minha consciência prisioneira da palavra de Deus. E não posso, por isso, me
retratar em nada, pois não é nem prudente nem conveniente agir contra a consciência. Que
Deus me ajude. Amém”. Terminada a Dieta, Lutero deixou a cidade; mas, no meio do
caminho, foi raptado por alguns amigos a mando de Frederico da Saxônia e conduzido
para o Castelo de Wartburg, em Eisenach, onde viveria escondido por mais ou menos um
ano, disfarçado de cavaleiro e sob o pseudônimo de Jorge. Nesse ínterim, Carlos V, pondo
em ato o que já fora ordenado pela bula de 1520, baniu do Império o frade rebelde, proibiu
que se lhe desse abrigo e mandou que o entregasse às autoridades quem quer que soubesse
do seu paradeiro.

Aprisionado em Wartburg, Lutero, que até então não tinha vivido a sós, passou por crises
espirituais ainda piores, inclusive com relação à sua própria doutrina e ao seu conceito de
fé reflexiva. Nessa época, com efeito, Lutero chegou a escrever a Melanchton palavras que
fizeram história: “Se tu és pregador da graça, prega a graça verdadeira, não a fingida; e se é
verdadeira a graça, tem por certo que o pecado é verdadeiro, não fingido, porque Deus não
salva os pecadores fingidos. Sê pecador e peca fortemente; porém, com mais força ainda,
confia e alegra-te em Cristo, que é o vencedor do pecado, da morte e do mundo. Enquanto
vivemos, nós pecamos: essa vida não é a morada da justiça; mas nós esperamos, como diz
São Pedro, novos céus e nova terra onde habita a justiça”. Aqui emerge, uma vez mais, a
noção herética de fé reflexiva. Mas por que Lutero, isolado em Wartburg, ficou tentando a
abandoná-la?
Ora, como vimos anteriormente, Lutero já começou a desvincular-se da tradição católica
ao considerar que, em virtude do pecado original, a natureza humana foi inteiramente
corrompida, e não apenas ferida e debilitada em suas forças naturais, tal como ensina a
doutrina ortodoxa. Por causa disso — concluirá ele —, todo ato humano já é, em si
mesmo, um ato imoral: de fato, por estar corrompido na raiz, o homem, no estado atual da
economia da salvação, só é capaz de realizar pecados. Ainda que se dirijam do modo
devido a um bem honesto, todos os nossos atos são, segundo o frade agostiniano,
invariavelmente pecaminosos. Lutero teve ainda, na famosa “experiência da torre”, a
intuição — de resto, perfeitamente católica — de que a justiça de que nos falam as
Escrituras refere-se no mais das vezes ao que ele chama “justiça passiva”, ou seja, à
justificação que Deus mesmo opera em nós. Será em 1517 que lhe surgirá enfim a ideia de
fé reflexiva, cujo ato seria capaz de “produzir” aquilo em que crê, na forma de um
“autoconvencimento” que, para manter-se em sua própria firmeza, tem de lutar
constantemente (lembremo-nos aqui das Anfechtungen de Lutero) contra as tentações da
incredulidade, da infidelidade etc.

Essa fé “autopoiética”, se assim se pode dizer, seria portanto a causa da justificação, mas
num sentido meramente imputativo, à semelhança de uma camada de neve que se limita a
recobrir e ocultar com a sua brancura um terreno enegrecido de imundícies. Nesse sentido,
a justificação não implica, para Lutero, uma alteração ontológica do ser humano: não
existe aqui, como na doutrina católica, a infusão da graça santificante, que, como
disposição estável e permanente, altera a essênciamesma da alma, elevada à filiação divina
e vivificada por um organismo sobrenatural que a torna capaz, sob a moção do Espírito
Santo, de realizar obras de verdadeira caridade. A justificação que Lutero idealiza, pelo
contrário, não é mais do que uma imputação extrínseca ao pecador dos méritos de Cristo:
não é que o homem, pela graça do Redentor, se torne justo; é a fé mesma em Cristo que,
por uma “ficção jurídica”, faz com que Deus simplesmente "deixe de levar em conta" o
fundo pecaminoso do homem. Não é difícil perceber que por baixo desse conceito de
justificação opera uma concepção nominalista de Deus, na medida em que é por um
decreto divino puramente arbitrário, independente do ser constitutivo das coisas, que o
homem “se torna” justo aos olhos de Deus.

Com uma visão deturpada da natureza humana, decaída e irreparável, Lutero alimentou
durante toda a vida um profundo terror de ser condenado ao inferno. E, para livrar-se desse
medo persistente, ele elaborou uma justificação fictícia que, por sua vez, é efeito de um
“ato de fé” realizado pelos esforços internos do próprio homem: quem está no centro da
ação salvífica não é Deus, com o auxílio de sua graça curativa e santificante, mas o próprio
homem, voltado sobre si mesmo e sobre os seus próprios atos psicológicos. Mas não teria
Lutero alguma consciência de que essa nova “doutrina” em muito se afastava do
ensinamento das Escrituras e da Tradição divino-apostólica? A resposta é afirmativa, como
consta de vários relatos sobre os tormentos espirituais que ele sofreu durante o seu
cativeiro em Wartburg. Com efeito, em mais de uma ocasião — diz ele —, o diabo o veio
atormentar com a possibilidade de que fossem falsos aqueles novos “dogmas”, forjados ad
hoc ao sabor dos acontecimentos e sob a influência de uma vida interior desagregada.
Também as Escrituras, que Lutero vasculhava com quase obsessão, davam-lhe testemunho
de que as suas ideias contradiziam em muitos pontos a doutrina dos Apóstolos.
Mais do que investidas do demônio, as “tentações” suportadas em Wartburg foram a voz
da própria consciência de Lutero, à qual ele preferiu fazer ouvidos moucos para, “de
soberba em soberba”, chegar ao ponto de se considerar acima da Igreja de todos os tempos
e de identificar com a Palavra de Deus o seu próprio ensinamento. Estamos, pois, diante de
uma revolta religiosa, suscitada por problemas espirituais, “solucionada” com a invenção
de uma teologia incompatível com a ortodoxia da fé e patrocinada por interesses políticos e
econômicos.

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