Você está na página 1de 1

Crie seu site com o WordPress.

com Comece agora

INÍCIO ARTIGOS CONFISSÕES ! EDITORA ! FOCO LUTERANO


CALENDÁRIO LITÚRGICO PLANO DE LEITURA DAS CONFISSÕES

ORTHODOXIA LUTHERANA
| CRUX SOLA EST NOSTRA THEOLOGIA |

“Seja um pecador e peque com ousadia,


mas creia e se alegre em Cristo ainda mais
ousadamente” (Martim Lutero)
Observação inicial: “LW” refere-se às Obras Selecionadas de Lutero, edição em inglês (55
volumes). As notas finais serão deixadas no final do artigo a fim de comprovar e enriquecer ainda
mais o artigo. Alguns links para fontes extras serão inclusas. Se algum dos links não funcionar,
sugiro copiar o endereço “http” para http://www.archive.org/ .

O artigo atual irá analisar a crítica católica romana contra Lutero e a doutrina luterana do “Sola
Fide”. Embora seja um artigo extenso, é de grande valia para rebater as acusações promovidas
por àqueles que não se importam em entender Lutero, mas fazem de tudo para deturpa-lo. De
antemão, agradecemos pelo tempo de leitura e esperamos poder ter sanado as dúvidas.

Este artigo será dividido em cinco tópicos fundamentais que tratarão dos assuntos:

1. A compreensão de Lutero sobre fé, boas obras e salvação;


2. O contexto da declaração “peque com ousadia”;
3. Uma análise detalhada de “peque com ousadia”;
4. Interpretações católicas romanas do “peque com ousadia”;
5. E citações extras de Lutero sobre fé e obras.

INTRODUÇÃO: PEQUE COM OUSADIA

“Seja um pecador e peque com ousadia!” ou “Que seus pecados sejam fortes!” ou ainda “Peque
fortemente!”. Essas palavras marcantes de Martim Lutero são talvez as mais citadas contra ele,
especialmente por católicos romanos. Por exemplo, o padre Patrick O’Hare declarou: “Se o autor
destas infames palavras, ‘peque com ousadia’ não é o próprio filho de Satanás, não há mais ninguém que
trabalhou tão arduamente para promover seus princípios destruidores de almas como ele” [1]

Esta é uma acusação bastante comum contra a pessoa de Martim Lutero. Alguns católicos
romanos ainda argumentam: “Dizer que a justificação é somente pela fé, não significa que os cristãos
estão livres para pecar a vontade? As pessoas não precisam se preocupar com o seu modo de viver; Deus
já perdoou todos os seus pecados, não? É provável que Lutero criou a doutrina da Justificação pela fé
apenas para justificar sua vida imoral”.

Alguns autores usaram essa abordagem para entender Lutero. O influente estudioso católico,
Heinrich Denifle, baseou toda a sua pesquisa sobre Lutero neste preceito: “…Denifle negou
qualquer veracidade em Lutero, ele o retratou como um jovem lascivo acompanhado por uma
concupiscência invencível da carne, e mais tarde exibiu uma besta inflamada e obcecada, cheia de
trapos vis e vituperações obscenas. Ele diz que ‘Lutero foi mal, muito mal mesmo – e suas próprias
palavras sobre culpa mostram isso, ‘mea maxima culpa!’. Sua incapacidade de encontrar paz, mesmo no
mosteiro, o convencem! Incapaz de encontrar qualquer bondade, mesmo com a graça de Deus, Lutero
em desespero final ‘inventou’ o perdão de graça, ou seja, a justificação somente pela fé – e então
aconselhou ‘pecca fortiter’ a pecar fortemente! Assim, ele desencadeou todas as paixões perversas da
Reforma Protestante’.” [2]

O Rev. Peter Guilday, da The Catholic University of America, declarou: “…Todo católico deve se
familiarizar com a história da vida do homem cujos seguidores nunca poderão explicar a anarquia desse
dogma imoral: ‘Seja um pecador e peque com ousadia; mas acredite com mais ousadia ainda!’” [3]

O Padre O’Hare proclama: “Os defensores de Lutero não negam a recomendação que ele dirigiu a
Melanchthon. No entanto, para esconder sua grosseria, eles, na blasfêmia do desespero, editaram e
interpretaram a recomendação de modo a dar-lhe um sentido totalmente injustificável e insustentável.”
[4]

A verdade é que Lutero escreveu com muita seriedade a exortação sobre “pecar com ousadia”.
Ao contrário do que afirmou o rev. Guilday, não é necessária muita leitura dos escritos de Lutero
para se familiarizar com sua compreensão teológica básica a respeito de fé e obras. Nem é
necessário fazer ‘malabarismo’ com as palavras “peque ousadamente” para tentar embelezar
Lutero, como sugeriu o Padre O’Hare.

O objetivo deste artigo é responder a essas acusações. Como uma rápida visão geral do artigo:

1. A primeira parte deste artigo examinará o conceito de Lutero de Justificação somente pela fé
e sua relação com as boas obras. Ficará estabelecido que Lutero considerava as boas obras
como o resultado de uma fé ativa. Boas obras deveriam ser realizadas por aqueles que são
gratos a Deus por Sua misericórdia, para o benefício do próximo, ao invés de ganho pessoal
(seja ele temporal ou eterno). Isso servirá como contexto teológico pelo qual o comentário
‘peque com ousadia’ será analisado.
2. A segunda parte deste artigo examinará especificamente o comentário de Lutero sobre
“pecar com ousadia”. Em vez de tentar provar que Lutero viveu uma vida imoral e defendeu
que os protestantes vivessem em pecado perpétuo, ou que ele inventou a justificação
somente pela fé para desfrutar do pecado, as palavras “peque com ousadia” em seu contexto
e em sua teologia básica irão provar exatamente o oposto.
3. A terceira parte deste artigo irá promover uma análise minuciosa da frase “Peque com
ousadia” de Martim Lutero, a fim de compreendê-la em seu contexto.
4. A quarta parte deste artigo dará uma olhada em algumas interpretações católicas romanas
do comentário de Lutero sobre “pecar com ousadia“. Eles entenderam o que Lutero quis
dizer? Eles trataram de forma justa a teologia e a vida de Lutero?
5. A quinta e última parte contém citações de Lutero estabelecendo seu entendimento básico
da relação entre fé e obras. As citações são fornecidas para mostrar que aqueles que citam
a declaração “peque com ousadia” de Lutero o faz às custas de todo o seu corpus escrito. A
atitude piedosa de Lutero em relação à fé, obras, salvação e suas exortações contra o
pecado são flagrantes e explicitas ao longo de seus escritos, em alguns casos é assunto de
obras inteiras. Ignorar o óbvio enquanto examina o obscuro, prova tristemente que a
verdade na pesquisa não é o objetivo de muitos que se aproximam de Lutero por uma
perspectiva não protestante.

I. A COMPREENSÃO DE LUTERO SOBRE FÉ E BOAS OBRAS E SALVAÇÃO

A “Justificação somente pela Fé” realmente fornece uma licença para pecar? Lutero estava
perfeitamente ciente dessa alegação. Em um sermão, ele resumiu a acusação levantada contra
ele: “Onde o Evangelho começa a perder a consciência de suas próprias obras, parece proibi-las junto a
guarda da lei. É consenso de todos os mestres da lei, escribas e doutores dizer: ‘Se todas as nossas obras
não valem nada e se as obras feitas sob a lei são más, então nunca iremos fazer o bem. Você não vê que
está proibindo as boas obras e jogando fora a lei de Deus, seu herege, você …rrg…você deseja libertar a
maldade nas pessoas!’”. [5]

Lutero entendeu que até mesmo os nossos melhores esforços estão contaminados pelo
pecado. Se Deus exige perfeição para que alguém seja justificado diante Dele, ninguém jamais
será justificado. Para Lutero, a justificação é, na verdade, totalmente por obras, mas essas obras
são perfeitas e foram realizadas pelo salvador perfeito, Jesus Cristo. Essas obras são adquiridas
pela fé, e são imputadas por ela ao pecador.

Lutero diz: “Se você deseja crer corretamente e possuir a Cristo verdadeiramente, então você deve
rejeitar todas as obras que você pretende colocar no caminho de Deus para ajudá-lo. Elas são apenas
pedras de tropeço, que te levam para longe de Cristo e de Deus. Diante de Deus, nenhuma obra é
aceitável, exceto as de Cristo. Deixe que ele interceda por você diante de Deus, e não faça nenhuma
outra obra senão crer que Cristo está fazendo Suas obras em e por você e as está colocando diante de
Deus em seu favor.” [6]

Para Lutero, a graça, a fé e a obra de Cristo são ingredientes essenciais que justificam, e essa
justificação é um dom tanto quanto a própria fé envolvida. Como Paulo diz em Efésios 2:8-9:
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem
das obras, para que ninguém se glorie.”

Mas a acusação católica romana contra Lutero não é válida? Se Deus julga um homem pelas
obras perfeitas de Cristo, por que algum cristão deveria se preocupar em levar uma vida
justa? Se graça, a fé e justificação são dons de Deus, o que resta para nós fazermos? Comer, beber
e se alegrar, pois amanhã morreremos.

Paulo responde por Lutero em Efésios 2:10: “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para
as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas”. A fé realiza boas obras, não para
manter alguém justificado, mas por gratidão sincera à misericórdia de Deus. A salvação é para
as boas obras. Observe o que isso significa: boas obras não são para a salvação. Praticamos boas
obras porque somos salvos, não o contrário.

“Fé”, escreve Lutero, “é uma coisa viva e inquieta. Não pode ser inoperante. É impossível que a fé
jamais pare de fazer o bem. A fé não pergunta se as boas obras devem ser feitas, mas, antes que se
pergunte, ela já as fez. Ela é sempre ativa. Quem não realize essas obras está sem fé.” [7]

Paul Althaus, estudioso de Lutero, escreve: “Lutero] concorda com Tiago que, se não há nenhuma
obra, é certo que a verdadeira fé em Cristo não vive no coração, mas sim, uma fé morta,
imaginada e auto-fabricada.” [8] O livro de Tiago descreve uma fé verdadeira e real em Cristo:
‘uma fé salvadora real é uma fé viva. Se nenhuma obra for encontrada em uma pessoa, essa fé é uma fé
morta’ (cf. Tiago 2:17). Tiago então descreve uma fé morta: a fé de um demônio. Um demônio tem
fé que Deus existe, que Cristo ressuscitou dos mortos – eu ousaria dizer que um demônio
conhece teologia melhor do que você ou eu. Mas a fé desse demônio é uma fé
salvadora? Absolutamente que não. [9] Lutero diz: “Consequentemente, se a fé não é acompanhada
de boas obras, é certo que a verdadeira fé em Cristo não habita em nosso coração, mas sim, uma fé
morta…” [10]

Mas o que são essas boas obras? Lutero abominava completamente as falsas obras perpetuada
por católicos romanos ‘devotos’: A saber, as peregrinações, as idolatrias, os monastérios, a
abnegação, etc., que foram consideradas ‘boas obras’ que alguém faz para si mesmo no caminho
para a salvação final. Essas obras levam a pessoa por um caminho completamente oposto.

Lutero disse sobre essas supostas obras: “Como eles enganam as pessoas com suas ‘boas’ obras! Eles
chamam de boas obras o que Deus não ordenou, como peregrinações, jejum, consagração, decoração de
suas igrejas em homenagem aos santos, rezar missa, pagar promessas, rezar com rosários, muito
tagarelar e berrar nas igrejas, virar freira, monge, padre, se abster de certos alimentos, vestimenta ou
moradia especial, – quem pode enumerar todas as horríveis abominações e enganos? Este é o governo e
a santidade do papa.” [11]

Lutero define boas obras como aquelas “obras que fluem da fé e da alegria do coração que chegaram
até nós porque temos o perdão dos pecados por meio de Cristo”.[12] Somente o que Deus ordena é
uma boa obra: “Todos devem considerar precioso e glorioso tudo o que Deus ordenou, mesmo que não
seja mais do que pegar um punhado de palha do chão” [13]As obras não são feitas porque queremos
ser salvos, por medo da condenação. Lutero diz: “Não estamos a fazê-las apenas porque tememos a
morte ou o inferno, ou porque amamos o céu, mas porque o nosso espírito voa livremente no amor, e se
agrada na justiça.” [14]

Lutero explica que a fé salvadora é uma fé viva e ativa. Lutero ensinou uma vida sob a cruz, uma
vida de discipulado, de seguir a Cristo. Nossas cruzes, porém, não salvam. Eles servem ao
próximo. Somos chamados a servir àqueles que nos rodeiam.

Lutero diz: “Recebemos Cristo não apenas como um dom pela fé, mas também como um exemplo de
amor para com o nosso próximo, a quem devemos servir como Cristo nos serve. A fé traz e dá Cristo a
você com todos os seus bens. O amor dá você ao seu próximo com todas as suas posses. Essas duas
coisas constituem uma vida cristã verdadeira e completa; após isso, o sofrimento e a perseguição são
resultados dessa fé e amor, e através deles, a esperança e a paciência cresce em nós.” [15]

É com essas informações em mente que podemos avaliar a declaração de Lutero, a saber, “peque
com ousadia”. Com base nessa exposição, podemos perceber que estas palavras de Lutero estão
fora de ordem. Por que Lutero diria a alguém para ‘pecar ousadamente’ se ele cresse em uma fé
viva que mostra sua vitalidade através das obras? Como Lutero poderia dizer algo tão oposto a
seus próprios paradigmas teológicos?

II. O CONTEXTO DA DECLARAÇÃO “PEQUE COM OUSADIA”

Agora, é importante estabelecer o contexto literário que contém a declaração de Lutero para
“pecar com ousadia”. Após a Dieta de Worms, em abril de 1521, Lutero se viu em grande perigo. O
papado e o imperador se uniram contra ele. Ser considerado herege quase certamente
significava a morte. Após a Dieta de Worms, em 1521, Lutero foi colocado na
clandestinidade. Ele ficou sozinho em um castelo (Wartburg) perto de sua cidade escolar de
infância, em Eisenach. Lutero escreveu muitas cartas a partir de Wartburg. Em 1º de agosto de
1521, Lutero escreveu a Phillip Melanchthon. A carta agora é apenas um fragmento. Não tem
endereço, saudação ou assinatura, mas os estudiosos têm certeza de quem veio e para quem foi.

A maior parte da carta não tem nada a ver com ‘pecar ousadamente”. Lutero discute uma
variedade de tópicos! Comentando as teses de Karlstadt de 21 de junho e 19 de julho, Lutero
desenvolve suas ideias sobre:

1. O celibato e a vida monástica;


2. Da Comunhão “em ambas as espécies”;
3. Da missa privada;
4. e da dinâmica da fé. [16]

A “citação” em si começa no meio da carta, como se a primeira página estivesse faltando. Na


verdade, Lutero estava discutindo o casamento e o celibato:

“Paulo fala muito abertamente dos sacerdotes. Ele diz que os demônios os proibiram de se casar. Uma
vez que a voz de Paulo é a voz da Divina Majestade, não tenho dúvidas de que deve ser confiável neste
assunto. Portanto, mesmo que eles tenham consentido com a proibição do diabo no momento de sua
iniciação, agora, sabendo a verdade, e com quem fizeram o pacto, o contrato deve ser ousadamente
quebrado” [17]

Lutero então passa a discutir sobre “A Comunhão em ambas as espécies”. Durante a Idade Média,
era negado às pessoas o elemento do vinho durante a Comunhão. Visto que o vinho era o
verdadeiro sangue de Cristo, a igreja não podia confiá-lo aos leigos. E se fosse derramado? Lutero
discute se aqueles que recebem apenas uma das espécies da Comunhão participam ou não do
pecado. Visto que a Ceia do Senhor é composta por pão e vinho, comungar apenas o pão não
seria pecado? Lutero diz que não! Lutero criticou Karlstadt, que lutou para ganhar a liderança em
Wittenberg durante sua ausência. Karlstadt estava ensinando que receber apenas um elemento
era pecado. [18]

Lutero, no entanto, aponta para uma ação pecaminosa no assunto. Ele ressalta que somente os
responsáveis que privam a Igreja de ambas as espécies são culpados: “Quem negará, entretanto,
que aqueles que consentem [dar apenas uma das espécies] e o aprovam – quero dizer, os papistas – não
são cristãos e são culpados de pecado?” [19]

Lutero critica duramente o papado como agindo pecaminosamente ao negar o vinho aos leigos.
Lutero diz a Melanchthon que está satisfeito porque o povo de Wittenberg está recebendo o pão
e o vinho durante a Comunhão, e que parte da tirania imposta à Ceia do Senhor pelo papado foi
superada por isso. Lutero exorta Melanchthon: “Eu te imploro, rezemos ao Senhor, para que se
apresse em nos dar uma porção maior de Seu Espírito, pois eu suspeito que o Senhor em breve visitará a
Alemanha, pois sua incredulidade, impiedade e ódio ao evangelho merecem Sua ira.” [20] De fato, os
líderes da Reforma precisavam ser fortalecidos pelo Espírito Santo de Deus. Lutero sabia que
restaurar a doutrina e a prática correta na Igreja o traria grande oposição. Qualquer anarquia
que surgisse em Wittenberg seria lançada nas costas dos reformadores. Lutero diz: “Mas é claro
que essa praga será colocada em nossas costas, afinal, [dizem eles] nós, os hereges, provocamos a Deus,
e seremos desprezados pelos homens e pelo povo.” [21]

Enquanto os reformadores eram culpados pela anarquia, os “romanistas” que realmente estavam
em pecado (uma vez que havia corrompido a Ceia do Senhor) usavam da razão, já que não estavam
sendo responsabilizados: “[Os romanistas], no entanto, encontrarão desculpas para seus pecados e se
justificarão; Mas Deus provará que os ímpios não podem ser tornados bons, nem pela bondade nem pela
ira, e que muitos serão tentados a praticar o mal. Que a vontade do Senhor seja feita.” [22]

III. UMA ANÁLISE DETALHADA DE “PEQUE COM OUSADIA”

A Carta a Melanchthon termina com a famosa declaração “peque ousadamente”:

“Se você é um pregador da graça, pregue uma graça verdadeira e não fictícia; se a graça é verdadeira,
você deve suportar um pecado verdadeiro e não fictício. Deus não salva pecadores fictícios. Seja um
pecador e peque com ousadia, mas creia e se alegre em Cristo ainda mais ousadamente, pois ele é
vitorioso sobre o pecado, a morte e o mundo. Enquanto estivermos aqui neste mundo, teremos que
pecar. Esta vida não é a morada da justiça, mas, como Pedro diz, esperamos novos céus e uma nova
terra na qual habita a justiça. Basta que, pelas riquezas da glória de Deus, conheçamos o Cordeiro que
tira o pecado do mundo. Nenhum pecado nos separará do Cordeiro, mesmo que cometamos fornicação
e assassinato mil vezes por dia. Você acha que o preço pago pela redenção de nossos pecados por um
Cordeiro tão grande é muito pequeno? Ore com ousadia – você também é um pecador poderoso.” [23]

É importante trabalhar lentamente através desta exortação impressionante a Melanchthon,


lembrando que Wittenberg não era uma comunidade espiritual tranquila. Era um lugar
turbulento. Melanchthon enfrentaria tantos julgamentos dentro de seu próprio pequeno grupo
de líderes quanto fora, por políticos fanáticos do papado e do império. As situações envolvendo
casamento, celibato e Ceia do Senhor discutidas acima podem parecer assuntos acadêmicos
discutíveis para o leitor moderno, mas durante os primeiros anos da Reforma, eles foram
importantes tópicos sociais que provocaram profunda emoção. Mudanças nessas práticas foram
mudanças na própria estrutura da sociedade. Lutero encoraja seu colega de trabalho a
permanecer firme na fé. A própria comunidade pela qual Lutero era responsável estava nas mãos
de Melanchthon. [24] A exortação final de Lutero nesta carta é para que Melanchthon apegue-se
firmemente ao evangelho de Jesus Cristo. Quaisquer problemas que possam surgir,
Melanchthon deve ser fiel ao Evangelho. O que se segue é uma análise linha por linha do
parágrafo que contém a exortação a “pecar com ousadia”.

“Se você é um pregador da graça, então pregue uma graça verdadeira e não uma graça
fictícia…”

Lutero exorta Melanchthon a permanecer firme e pregar o evangelho puro. O puro evangelho
proclama a verdadeira graça de Deus. É uma graça que realmente perdoa todos os pecados do
homem, sem nenhuma obra de penitência voltada para a eventual justificação. O sistema papal
do qual Lutero fazia parte ensinava que a graça de Deus poderia ser alcançada pela fé combinada
com boas obras, e que o sacramento da penitência deveria ser realizado para perdoar
completamente um homem pelo pecado. Isso seria uma graça fictícia. Como Ewald Plass
aponta, “O conceito de graça, é claro, não era desconhecido por Lutero, o Católico. Mas esse termo,
como tantos outros, havia se tornado uma ‘palavra de doninha’ na Igreja de Roma, uma palavra
esvaziada de seu significado bíblico. Assim, a graça foi se transformado ‘da fonte divina de perdão e
absolvição’ para uma habilidade infusa (gratia infusa) do homem para realizar boas obras para sua
própria salvação.” [25]

“…se a graça é verdadeira, você deve suportar um pecado verdadeiro e não fictício. Deus
não salva pessoas que são pecadores fictícios.”

O que Lutero quer dizer com ‘pecado fictício’? Talvez ele tenha em mente o que acabou de
discutir: as pessoas pensando que estavam pecando por receber apenas o pão e não o vinho na
Ceia do Senhor. Isso seria realmente um pecado fictício. Em outro lugar, Lutero descreve os
‘pecados fictícios’ inventados pelo papado: “Existem mandamentos e ensinamentos do papa que nada
dizem sobre a fé em Cristo, como o Evangelho, mas apenas sobre a obediência a ele em questões
corporais, triviais e insignificantes, como se abster de comer carne, observar festivais, jejuar, vestir
certas roupas, etc. No entanto, o papa enfatizou e exaltou isso muito mais do que a Palavra de Deus, e,
por isso, eles são temidos e seguidos por muitos que têm as consciências mais aterrorizadas e cativadas
por causa deles [os papistas] que tornaram o inferno muito mais quente do que a Lei de Deus e Seu
Evangelho. Pois eles deram pouca consideração à incredulidade, blasfêmia, adultério, assassinato,
roubo e tudo o mais que se opõe a Cristo e a Sua ordem; por esses pecados, a penitência foi rapidamente
cumprida e o perdão concedido. Mas quando alguém tocava em um dos mandamentos do papa, as
bulas tinham que vir com raios e trovões. Isso foi chamado de maldita desobediência e colocou um
homem sob a proibição do papa. Agora, o céu e a terra parecem tremer de terror. Mas quando se tratava
de pecados contra Deus, pecados em que eles próprios se afogaram, nem uma folha sequer foi escrita.
Pelo contrário, eles zombaram e riram do assunto com grande segurança, como fazem até os dias de
hoje. Além disso, perseguem e matam de forma cruel todos os que consideram o mandamento de Deus
acima do mandamento de sua abominação. O papa quer Deus e Sua Palavra debaixo dele; ele quer ser
entronizado acima deles. Este é o seu regime e natureza. Sem eles, ele não poderia ser o Anticristo.” [26]

Lutero diz que Deus não salva pessoas que são “pecadores fictícios”. Não, Deus
salva pecadores reais. “Lutero frequentemente chamava de pecado real, assim como as Escrituras o
adultério espiritual.” [27] Lutero diz que todos os homens têm um ‘desejo de ser Deus’: “Nenhum
pecado nos perturba tão severamente como o desejo de ser Deus. Claro, a concupiscência da carne
também é um desejo ferozmente forte, mas é apenas uma forma (de pecado) e nada em comparação
com a concupiscência espiritual ou fornicação.” [28] Todos os pecados reais são tentativas de
deificar a nós mesmos. Como Ewald Plass aponta, “No âmago de cada pecado que nossa natureza
corrupta nos leva a cometer está o desejo ardente de não reconhecer ninguém como superior a nós …
Lutero aponta isso como o denominador comum de todos os pecados atuais.” [29]

Em nosso zelo em ser nosso próprio deus, psicologicamente dizemos: “Não acredito que os
caminhos de Deus sejam os certos para mim”. Assim, em nossas raízes espirituais, nossas ações são
o resultado da descrença no coração – uma descrença flagrante de que o caminho de Deus é o
melhor. Todos nós somos realmente pecadores.

“Seja um pecador e peque com ousadia, mas creia e se alegre em Cristo com ainda mais
ousadia, pois ele é vitorioso sobre o pecado, a morte e o mundo.”

Lutero tinha tendência a uma hipérbole forte. É o seu estilo e esta afirmação é um exemplo
perfeito. Lutero não escreve teologia analítica. Ele escreve um sentimento profundo e verboso
que leva a pessoa a pensar profundamente. A primeira coisa a reconhecer é que a frase é uma
declaração de comparação. O objetivo de Lutero não é sair cometendo vários pecados alegres
todos os dias, mas sim crer e se alegrar em Cristo ainda mais ousadamente, apesar do pecado em
nossas vidas. Os cristãos têm um verdadeiro salvador. Nenhum pecado é grande demais para ser
expiado por um Salvador perfeito, cuja justiça é imputada ao pecador que o busca com fé. Mas
qual é então a aplicação prática de pecar “com ousadia”? O que está no cerne desta comparação?

Lutero explica em outro lugar como assumir a atitude de pecar “com ousadia”: “Portanto, vamos
armar nossos corações com estas e outras declarações das Escrituras para que, quando o diabo vier nos
acusar dizendo: ‘Você é um pecador; portanto, você está condenado’, possamos responder: ‘O próprio
fato de você dizer que sou um pecador me faz querer ser justo e salvo’. ‘Não, você será condenado’, diz o
diabo. ‘Na verdade, não’, respondo, ‘porque me refugio em Cristo, que se entregou por meus
pecados. Portanto, Satanás, você não irá ganhar nada tentando me assustar, colocando a grandeza dos
meus pecados diante de mim e, assim, me seduzindo à tristeza, dúvida, desespero, ódio, desprezo e
blasfêmia contra Deus. Na verdade, ao me chamar de pecador, você está me fornecendo armas contra
você mesmo para que eu possa matá-lo e destruí-lo com sua própria espada; pois Cristo morreu pelos
pecadores. Além disso, você mesmo proclama a glória de Deus para mim; você me lembra que Deus é
amor paternal por mim, um pecador miserável e perdido; ‘pois Ele amou o mundo de tal maneira que
deu Seu Filho’ (João 3:16). Mais uma vez, sempre que você me diz que sou um pecador, você revive em
minha memória a bênção de Cristo, meu Redentor, em cujos ombros, – e não os meus -, repousam todos
os meus pecados; pois “o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” e “pela transgressão do seu
povo ele foi ferido” (Is. 53: 6-8). Portanto, quando você me diz que sou um pecador, você não está me
assustando; você está me confortando além da medida’.” [30]

A forte comparação hiperbólica que Lutero faz entre “pecar com ousadia” e crer e regozijar-se em
Cristo “ainda mais ousadamente” fica clara. Quando somos tomados pelo medo e duvidamos do
amor de Cristo por causa de pecados anteriores ou dos resquícios de pecado em nossas vidas,
devemos lançar nossas preocupações nos braços de Cristo “cujos ombros, – e não os meus -,
repousam todos os meus pecados…” Em vez de promover uma licença para pecar dizendo “peque
com ousadia”, o ponto de Lutero é simplesmente comparar o pecador ao Salvador perfeito. Se
confiarmos os nossos pecados à Cristo, venceremos a morte e a condenação. Pela vitória de
Cristo sobre o pecado, a morte e o mundo, permanecemos revestidos de Sua justiça, os vasos de
Sua Graça, não importa o que tenhamos feito. Também deve ser apontado que Lutero não estava
simplesmente dizendo a Melanchthon para se esforçar bastante para ser “ousado”. Em outro
lugar, Lutero mostra que o Espírito Santo é o que nos torna ousados.

Pregando sobre João 15: ‘E vós também testificais, porque estais comigo desde o princípio’, Lutero diz
aos seus ouvintes o que Cristo está dizendo: “Em primeiro lugar, quando tiveres a certeza da tua fé
por meio do Espírito Santo, que é a tua testemunha, também deves dar testemunho de mim, porque
para isso o escolhi para seres apóstolo. Você ouviu minhas palavras e ensinamentos e viu minhas obras e
vida e todas as coisas que você deve pregar. Mas o Espírito Santo deve primeiro estar presente; caso
contrário, você não pode fazer nada, pois a consciência está muito fraca. Sim, não há pecado tão
pequeno que a consciência possa vencer, mesmo que seja algo tão insignificante como rir na igreja.
Novamente, na presença da morte, a consciência é fraca demais para oferecer resistência. Portanto,
outro deve vir e dar à consciência tímida e desesperada, coragem para passar por tudo, embora todos os
pecados estejam sobre ela. E deve, ao mesmo tempo, ser uma coragem onipotente.” [31]

“Enquanto estivermos aqui [neste mundo], temos que pecar. Esta vida não é a morada da
justiça, mas, como Pedro diz, esperamos novos céus e uma nova terra na qual habite a
justiça. É o suficiente para as riquezas da glória de Deus que temos vindo a conhecer o
Cordeiro que tira o pecado do mundo.”

Esta é simplesmente a mesma mensagem que Paulo proclama em Romanos 7. Mesmo que um
homem tenha sido justificado por Cristo e tenha Sua justiça imputada à ele, o resto do pecado
ainda permanece. Paulo diz: “Não sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que sabem a lei), que a lei tem
domínio sobre o homem por todo o tempo que vive? Porque a mulher que está sujeita ao marido,
enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido. De sorte
que, vivendo o marido, será chamada adúltera se for de outro marido; mas, morto o marido, livre está da
lei, e assim não será adúltera, se for de outro marido. Assim, meus irmãos, também vós estais mortos
para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais de outro, daquele que ressuscitou dentre os mortos, a fim
de que demos fruto para Deus. Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, que são
pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a morte. Mas agora temos sido libertados
da lei, tendo morrido para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito,
e não na velhice da letra. Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o
pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.
Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a concupiscência; porquanto
sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o
pecado, e eu morri. E o mandamento que era para vida, achei eu que me era para morte. Porque o
pecado, tomando ocasião pelo mandamento, me enganou, e por ele me matou. E assim a lei é santa, e o
mandamento santo, justo e bom. Logo tornou-se-me o bom em morte? De modo nenhum; mas o pecado,
para que se mostrasse pecado, operou em mim a morte pelo bem; a fim de que pelo mandamento o
pecado se fizesse excessivamente maligno. Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou
carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que
aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já
não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha
carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.
Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já
o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o
bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; Mas vejo nos
meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do
pecado que está nos meus membros. Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta
morte? Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor. Assim que eu mesmo com o entendimento
sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.”

Para Lutero, ser remanescente do pecado não era uma licença para “pecar com
ousadia”. Comentando Romanos 7:17, os pecados que permanecem na vida de um crente estão lá
para serem combatidos: “O pecado permanece no homem espiritual para o exercício da Graça, a
humilhação do orgulho e a repressão da presunção. Pois aquele que não está empenhado em expulsar o
pecado, sem dúvida, comete pecado pelo próprio fato de sua negligência, embora não tenha cometido
nenhum pecado pelo qual possa ser condenado. Pois não somos chamados à ociosidade; mas somos
chamados a trabalhar contra nossas paixões. Esses não seriam sem culpa – pois são pecados
verdadeiros, na verdade, pecados condenáveis - se a misericórdia de Deus não se abstivesse de imputá-
los a nós. Mas Ele não os imputa apenas àqueles que corajosamente empreendem a luta contra suas
falhas e, invocando a graça de Deus, lutam por ela. Portanto, aquele que se confessa não deve imaginar
que está abandonando fardos a fim de levar uma vida tranquila. Pelo contrário, ele deve saber que, ao
abandonar o fardo, ele se compromete a servir como um soldado de Deus e está assumindo um fardo
diferente sobre si mesmo, o fardo de lutar por Deus contra o diabo e suas próprias falhas. O homem que
não sabe disso sofrerá uma recaída rápida. Portanto, aquele que de agora em diante não pretende lutar,
– por que pede para ser absolvido e alistado no exército de Cristo?” [32]

“Nenhum pecado nos separará do Cordeiro, embora cometamos fornicação e assassinato


mil vezes por dia. Você acha que o preço de compra pago pela redenção de nossos
pecados por um Cordeiro tão grande é muito pequeno? Ore com coragem – você também
é um pecador poderoso.”

Os críticos de Lutero frequentemente citam essa declaração. O estudioso católico Jared Wicks
apontou corretamente: “É preciso estar atento aos voos retóricos de Lutero e ser criterioso ao
discriminar entre a substância de sua mensagem e os extremos linguísticos com os quais ele às vezes
fazia suas afirmações.” [33]

A declaração acima é um exemplo perfeito de correta interpretação. O que Lutero está


defendendo não é sair e assassinar ou fornicar tanto quanto possível, mas antes apontar o
infinito sacrifício da expiação de Cristo. Não há pecado que Cristo não possa cobrir. Sua expiação
foi de valor infinito. Que esta afirmação não deve ser considerada literalmente fica aparente pelo
uso de argumentum ad absurdum de Lutero: “as pessoas realmente cometem fornicação e assassinato
mil vezes por dia? Não. Nem mesmo o pecador mais hediondo que odeia a Deus é capaz de levar esse
estilo de vida diário.”

Em segundo lugar, é preciso lembrar o destinatário desta carta: Phillip Melanchthon. Não existe
nenhuma informação histórica que acuse Melanchthon de alguma vez assassinar ou fornicar,
mesmo uma vez. O escritor luterano WHT Dau apresenta o absurdo dos argumentos
apresentados por autores católicos romanos ao longo destas linhas:

“‘Seja um pecador e peque ousadamente, mas acredite com mais ousadia ainda’ – este é o chef
d’oeuvre (a obra prima) dos destruidores da vida de Lutero. O que levou Lutero a escrever essas
palavras? Melanchthon contemplou algum crime que era covarde demais para praticar? De
acordo com as expressões de horror dos católicos, deve ter sido algo assim. Lutero, na opinião
deles, quer dizer isso a Melanchthon: ‘Philip, você é um simplório. Por que ter escrúpulos sobre um
pecado? Você está confinado nas barreiras de pontos de vista morais muito estreitos. Você deve se livrar
deles. Tenha a coragem de ser perverso. Torne-se um herói executando alguma ousada iniquidade. Seja
um ‘Uebermensch’, peque com despreocupação descarada; seja um fornicador, um assassino, um
mentiroso, um ladrão, desafie todos os estatutos morais – mas não se esqueça de crer no Senhor Jesus
Cristo. Sua graça se destina, não a pecadores hesitantes e covardes, mas a criminosos audaciosos,
espirituosos e altivos ..’”

O leitor pode se induzir a acreditar que Lutero aconselhou Melanchthon a fazer o que ele mesmo
sabia ser uma impossibilidade moral para si mesmo por causa de sua relação com Deus? Que
pecado audacioso Melanchthon realmente cometeu para ser assim aconselhado por Lutero? [34]
Por outro lado, Lutero termina dizendo: “você também é um pecador poderoso”, então “ore com
ousadia”. Aqui, Lutero aponta a seriedade do pecado. Embora o sacrifício e a obra de Cristo sejam
infinitos o suficiente para cobrir o mais hediondo dos pecados, qualquer pecado na vida de uma
pessoa a torna um “pecador poderoso” que precisa de um salvador. Um pequeno pecador acaba no
Inferno assim como os grandes pecadores, portanto, todos nós somos
realmente pecadores poderosos o suficiente para merecer a condenação. Que as palavras de
Lutero não devem ser interpretadas literalmente fica claro a partir de declarações que ele fez em
outro lugar sobre o pecado hediondo: “As obras mostram a fé, assim como os frutos mostram a
árvore, se for uma árvore boa. Digo, portanto, que as obras justificam, ou seja, mostram que fomos
justificados, assim como seus frutos mostram que o homem é cristão e crê em Cristo, visto que tem fé e
não tem uma vida fingidas diante dos homens. Pois as obras indicam se tenho fé. Concluo, portanto, que
alguém é justo, quando vejo que faz boas obras. Aos olhos de Deus, essa distinção não é necessária, pois
ele não é enganado pela aparência. Mas é necessário entre os homens, para que compreendam
corretamente onde está e onde não está a fé. Como diz Paulo, não devemos confiar em uma fé que é
falsa, como quando alguém acredita que faz parte da igreja embora ainda se prostitua [I Cor. 5:11].
Nisto vejo que ele não é uma árvore boa e quando ele se gloria dizendo: “Eu sou uma parte”, posso
argumentar contra ele: “Você não faz parte da igreja, porque suas obras são más”. Portanto, essas obras
também são uma evidência para ele e para os outros sobre ele se ele tem a verdadeira fé. Pois aqueles
que se gloriam de serem cristãos e não mostram essa fé por meio de tais obras, como esta mulher
pecadora faz, mas persistem até agora e vivem em pecados declarados, em prostituição e adultério, não
são cristãos de forma alguma. Pois o cristão mostra sua vida e que foi feito cristão pelo amor e pelas
boas obras e foge de todos os vícios. Não devemos fazer parte da igreja apenas por números, como os
hipócritas, mas também por nossas obras, para que nosso Pai celestial seja glorificado. O amor merece o
perdão dos pecados, isto é, o amor revela que seus pecados foram perdoados.” [35]

Na declaração acima, pode-se ver o brilho de Lutero com a linguagem e o discernimento


teológico. Quantos de nós pensam na incredulidade como um pecado extremo e
hediondo? Comparada à fornicação ou assassinato flagrantes, a descrença não nos
parece tão ruim. Lutero, entretanto, percebe que a incredulidade é um pecado contra um Deus
Santo e, portanto, mais hediondo do que qualquer homicídio ou adultério. Um pecado contra um
Ser infinito e perfeito merece uma punição infinita e perfeita. Todos nós somos de fato pecadores
poderosos.

IV. INTERPRETAÇÕES CATÓLICAS ROMANAS DO “PEQUE COM OUSADIA”

Um dos aspectos agradáveis de estudar a teologia de Lutero é a facilidade de leitura de seus


escritos. Seus sermões são lúcidos e simples. Muitos de seus tratados são desprovidos de jargões
teológicos e filosóficos difíceis. Humor e sagacidade, bem como uma visão teológica profunda,
podem ser encontrados com frequência. Não é de admirar que o grande historiador católico
Joseph Lortz comentou: “Lutero era um gênio com a linguagem. Espontaneamente, seus pensamentos
encontraram expressão concreta no fraseado linguístico mais sensível. Talvez fosse mais exato dizer que
seus pensamentos se transformam em palavras!” [36] “Ficamos tentados a simplesmente citá-lo, sua
maravilhosa manifestação de si mesmo, seu impulso incansável para descobrir e expressar, seu enorme
poder, a imensurável altura, amplitude e profundidade da mensagem, a espantosa vitalidade e
plenitude presentes nesse homem tão cativado pelo espírito da Escritura.” [37]

Mas, por outro lado, Lutero pode ser facilmente mal interpretado. Paradigmas literários e
contexto devem ser avaliados cuidadosamente. Existem também certos paradigmas teológicos
que devem ser entendidos a fim de se chegar a uma compreensão completa de seus
escritos. Parte da razão pela qual “peque com ousadia” é tão frequentemente mal interpretada é
exatamente por esta razão.

Robert Preus especula: “Nem Melanchthon, a quem essas palavras ‘peque ousadamente’ foram
dirigidas, nem as outras pessoas provavelmente a entenderam completamente.” [38]

Eu não seria tão ‘ousado’ em fazer tal declaração sobre Melanchthon, mas Preus está
simplesmente afirmando o óbvio: a declaração de Lutero de “pecar com ousadia” é facilmente mal
interpretada. Abaixo, embora eu documente alguns exemplos de má interpretação da frase
“peque com ousadia” simplesmente porque alguém é católico romano em sua teologia não
significa necessariamente que Lutero não possa ser compreendido. Nem todos os católicos
interpretam mal a teologia de Lutero ou interpretam mal a declaração de “pecar
corajosamente”. Por exemplo, um artigo da Catholic Answers from This Rock Magazine articulou
uma interpretação precisa:

“Lutero falhou em encontrar paz de espírito na autodisciplina ascética e nos esforços de ‘boas
obras’. Ele nunca declarou uma vida boa desnecessária. Sua ‘pecca fortiter sed crede fortius’ (peque
fortemente, mas acredite ainda mais fortemente) não pretendia ser um encorajamento para
ceder ao pecado sem escrúpulos. Ele pretendia simplesmente que, por maior que seja um
pecador, com arrependimento concedido, ele pode ser justificado somente pela fé. Mas ser
zeloso das boas obras, pensando que são um meio de salvação, era manifestar falta de fé no
poder de Deus para salvar.” [39]

Embora eu discorde da maior parte, o artigo pelo menos observou corretamente que Lutero não
era contra viver uma vida reta, nem era contra boas obras. Lutero não encorajou o pecado. O
artigo aponta corretamente que Lutero considerava que os pecadores só podem ser justificados
pela fé. As obras não contribuirão em nada para a salvação. Infelizmente, muitos católicos
romanos interpretam mal as palavras de Lutero. A falha na maioria dos casos deveria estar na
natureza difícil das palavras de Lutero, ao invés de uma difamação intencional. Sem o
conhecimento dos paradigmas teológicos subjacentes de Lutero, do contexto histórico da vida
de Lutero e do contexto imediato em que as palavras ocorrem, o mal-entendido é quase
garantido. Existem, porém, alguns escritores católicos romanos profissionais que deveriam saber
melhor devido ao seu conhecimento de Lutero e familiaridade com seus escritos. Para estes, nos
voltamos agora.

Estudiosos católicos que interpretam mal o “peque com ousadia” de Lutero

Padre Patrick O’Hare: Os fatos sobre Lutero:

O padre Patrick O’Hare publicou seu livro, The Facts About Luther, no 400º aniversário da
publicação das 95 teses em 1917. O livro faliu e saiu de catálogo. Teria permanecido na
obscuridade, mas a editora católica Tan books o ressuscitou em 1987, e provavelmente é mais
popular agora do que quando foi publicado pela primeira vez.

The Facts About Luther afirma que, “o Lutero da ficção está sendo cada vez mais obscurecido pelo

Você também pode gostar