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Lutero Antropocêntrico

O conceito de fé que, numa tentativa de elucidar e apaziguar as próprias crises


interiores, o frei Martinho Lutero irá elaborar a partir de suas leituras de São
Paulo representa um verdadeiro giro antropocêntrico: de agora em diante, não
é mais o homem que deve servir a Deus, mas é Deus quem está a serviço do
homem; a fé já não se refere mais a um além real e objetivo, mas se reduz a
uma certeza subjetiva que cria, graças à firmeza de sua própria convicção,
aquilo mesmo em que acredita.

Nesta quinta aula do nosso curso sobre Lutero e o Mundo Moderno, você vai
entender como a “Reforma” Protestante inaugurou um jeito novo e bem pouco
cristão de viver o cristianismo.
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Vimos na aula passada como a angústia espiritual que começou a tomar conta de Lutero,
sobretudo a partir de sua ordenação, não foi bem resolvida por seu diretor espiritual, o
então superior dos agostinianos Johann von Staupitz. Mas, afinal, que remédio encontrou
Lutero para essas crises? Eis o que pretendemos estudar na presente aula. Trata-se,
podemos adiantá-lo já, do ponto central deste curso, porque foi aqui, na solução que Lutero
pensou ter achado para as suas Anfechtungen, que teve origem o que caracterizamos antes
como pensamento ideológico, um “vírus” que atravessa toda a história da modernidade e
persiste até os dias de hoje.

É preciso advertir outra vez que o fenômeno ideológico começou, de certo modo, com
Lutero, mas não de forma premeditada: Lutero elaborou, sim, uma ideologia, mas o
impacto que esta teve na sociedade de então foi um resultado “extrínseco” ao seu conteúdo
específico, na medida em que ela só acabou alastrando como de fato se alastrou e
ganhando os adeptos que integrariam mais tarde a comunidade luterana com o apoio e a
subvenção de grupos interessados. As ideias de Lutero foram, pois, a primeira ideologia
que, como tal, serviu para alcançar os fins que interessavam ocasionalmente a algumas
elites políticas e econômicas.

Recordemos também que o núcleo das crises de Lutero consistia numa certa obsessão com
a possibilidade, para ele quase uma certeza, de ser condenado eternamente. Mas entre o
Lutero a que assistimos até agora em Wittenberg e o Lutero “evangélico” que veremos,
anos depois, praguejar obscenidades contra o papado existe um largo processo. De fato,
nem aos 31 de outubro de 1517, no auge da controvérsia sobre as indulgências, Lutero era
já protestante, apesar de suas teses heréticas. Como se deu esse processo que o levou a
romper com a Igreja Católica?

O ponto de inflexão, segundo alguns historiadores protestantes, teria sido a chamada


“experiência da torre” (Turmerlebnis, em alemão), ocorrida por volta de 1515, quando, em
seu aposento, Lutero teria finalmente compreendido o que até então lhe era a palavra mais
odiosa de todas: a justiça de Deus. Ao reler, com efeito, o versículo da Epístola aos
Romanos em que S. Paulo afirma que “o justo viverá pela fé”, Lutero teve a intuição de
que a justiça a que se refere o Apóstolo não é a justiça ativa pela qual Deus é justo
recompensando os bons e castigando os maus, mas a justiça passiva pela qual Ele nos faz
justos mediante o ato de fé a que nos move pela graça.

Ao dar-se conta disso, que em nada se opõe à doutrina católica e é repetido por uma série
de teólogos desde os tempos do Ambrosiaster, Lutero cria ter redescoberto uma verdade do
Evangelho que permanecera sepultada por séculos de esquecimento. Muitos protestantes
fazem coro a essa convicção e pensam que o divisor de águas entre o catolicismo romano e
o protestantismo é justamente essa suposta redescoberta, que inauguraria o recomeço do
“verdadeiro” cristianismo, da ideia de justiça como dom de Deus pela fé. De fato, a
compreensão que os próprios protestantes têm de si e de sua própria história depende em
parte dessa “narrativa”, segundo a qual Lutero, recolhido na torre de Wittenberg, teria
reencontrado no Evangelho uma verdade que fora ignorada pela Igreja de Roma durante
1500 anos.

Como quer que seja, o problema da “redescoberta” de Lutero não foi a noção de justiça
passiva, que, como dissemos, não é estranha à teologia católica nem se opõe à doutrina da
Igreja, mas a peculiar noção de fé que ele entreviu nas palavras de S. Paulo e que irá
elaborando nos anos seguintes. É neste ponto que vemos pesar mais sobre ele a falta de
uma sólida formação segundo a filosofia da Escola: graças a um horizonte intelectual
limitado fundamentalmente ao nominalismo, Lutero nunca chegou a formular um conceito
preciso e teologicamente sustentável de fé, senão que, ao contrário, passou a lhe atribuir
um sentido bastante peculiar, que nada tinha a ver com o que o cristianismo desde sempre
entendeu por fé sobrenatural.

De fato, o conceito de fé que Lutero assumirá como próprio estará tão distante da mente da
Igreja e do ensinamento dos teólogos que, ao fim e ao cabo, acabará dando origem a uma
forma  antropocêntrica de religião, na qual é Deus que está a serviço do homem, e não o
homem quem está a serviço de Deus. Basta pensar, para se dar conta disso, em algumas
ramificações protestantes que aderem à chamada teologia da prosperidade ou em certas
igrejas neopentecostais: em todas elas, o que vemos em funcionamento é uma ideia de fé
entendida como convicção subjetiva capaz de produzir, se for sincera e profunda o
suficiente, a bênção que se deseja alcançar. Não é apenas que Deus deva recompensar a fé
com graças materiais (riquezas, um emprego, a cura de uma doença etc.); é que a própria
subjetividade toma o primeiro assento: não basta crer; é preciso crer na própria fé, a fim de
tornar real aquilo em que se acredita. Não importa, no fim das contas, se o conteúdo
objetivo da fé corresponde ou não a algo real, a algo verdadeiro; o que interessa é a força e
o poder utilitário da própria convicção.

Trata-se, noutras palavras, de um conceito reflexivo de fé, que Lutero viu nas palavras de
S. Paulo e que repetirá depois nas 95 Teses, nunca pregadas à porta da catedral de
Wittenberg, mas enviadas por correio ao bispo da diocese, a fim de discutir alguns
supostos desvios doutrinais propagados pelo dominicano Johann Tetzel acerca das
indulgências. Consideradas heréticas por uns e revolucionárias por outros, as Teses
gozaram de ampla divulgação, tanto em latim como em alemão, graças à recém inventada
imprensa e, como não poderia deixar de ser, geraram uma repercussão que acabaria
chegando aos ouvidos da Santa Sé. A resposta do Papa foi enviar um legado pontifício, por
ocasião da Dieta de Augsburgo de 1518, na pessoa do cardeal e teólogo tomista Tomás de
Vio, também conhecido como Cardeal Caetano.

Caetano não conseguiu fazer com que Lutero, que já se encontrava apegado à heresia,
fosse obediente às ordens do Papa. Como legado pontifício que era, investido de
autoridade pelo próprio Santo Padre, Caetano não concordou em participar das discussões
teológicas que o frade Martinho estava tentando promover; mas, ainda assim, captou-lhe o
espírito e pôde perceber quais eram, na verdade, os problemas de fundo que o tinham
conduzido àquela situação. Caetano notou, entre outras coisas, que o conceito de fé com
que Lutero trabalhava em suas teses sobre o sacramento da Confissão, por exemplo, levava
cedo ou tarde à constituição de uma “nova Igreja”, por subtrair ao conjunto do sistema
sacramental católico todo fundamento objetivo, para fazê-lo depender, em seu ser e
eficácia, da fé meramente subjetiva do fiel.

Para usar ainda o exemplo da Confissão, o que Lutero sustentava era que a remissão dos
pecados operada pelo sacramento da Penitência só era válida e eficaz se o fiel, no ato de
confessar-se, cresse explicitamente que lhe são perdoados os pecados, e que qualquer
dúvida posterior à confissão auricular tornaria inválida e ineficaz a absolvição, uma vez
que se estaria pondo em cheque a fé no perdão das próprias culpas. Aqui, uma vez mais, é
preciso ter fé na mesma fé: o perdão deixa de ser objetivo, o sacramento não opera mais ex
opere operato nem requer do fiel outra condição preparatória além de uma confiança certa
e que não vacila. Contra isso levantaria a voz o Magistério da Igreja, ao condenar no
Concílio de Trento a heresia contida no seguinte Cânon: “Se alguém disser que a fé que
justifica não é outra coisa que a confiança na divina misericórdia que perdoa os pecados
por causa de Cristo, ou que esta confiança sozinha justifica: seja anátema” (DH 1562).

Em Lutero, como se vê, a fé é o meio por que o sujeito mesmo dá origem àquilo em que
crê (à justificação, ao perdão dos pecados, à salvação etc.): o modo como se crê é
o modo como se possui a realidade. Ora, essa forma de pensar está por trás, como
elemento comum, das ideologias que por aí circulam atualmente: para elas, a verdade não
é dada ao homem nem descoberta por ele, senão que é o próprio homem que, desde si
mesmo, gera a realidade. Que esse fosse o modo de Lutero pensar, comprova-se também
pelo extensivo debate travado entre ele e o teólogo tomista Johann Maier von Eck. Nos
dias em que teve curso a discussão, Lutero proferiu um famoso sermão na festa dos
Apóstolos S. Pedro e S. Paulo no qual deixou claro que, para ele, a Igreja se fundamentava,
não em Pedro, mas na fé de Pedro, fé esta que é a mesma para todos os fiéis, de sorte que
todo e qualquer fiel — concluirá mais tarde — é Papa e fundamento da Igreja de Cristo.

Mas, se na experiência da torre, Lutero ainda se manteve nos limites da ortodoxia, ao


reconhecer que a fé é o meio pelo qual, objetivamente, entramos em contato com a justiça
divina, isto é, com o Deus que nos justifica pela ação real da graça, a partir de outubro de
1517 e de seus enfrentamentos com as autoridades teológicas de Roma o seu conceito de fé
irá se desfigurando cada vez mais, ao ponto de se reduzir a um sentimento de certeza que
tem, por si mesmo, a virtude de gerar o próprio conteúdo: Deus já não é misericordioso em
si mesmo, senão que Ele assim se torna para os que creem firmemente que Ele o é.

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