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Lutero em Crise

Antes do Lutero reformador que a versão “canônica” dos fatos nos costuma
apresentar, houve um Lutero profundamente angustiado, que foi se
desencantando pouco a pouco, em meio a dolorosas crises de consciência,
com as falsas opiniões que ele julgava serem a doutrina oficial da Igreja de
Roma. Antes da “Reforma”, o que vemos é uma alma em conflito; antes do
“reformador”, um espírito necessitado de orientação e ajuda.

Nesta aula do nosso curso sobre Martinho Lutero e o Mundo Moderno, você vai
descobrir o que se passou internamente com Lutero nos anos que precederam
a “Reforma” Protestante e por que esta, no fim das contas, não é mais do que a
tentativa de resolver, em sede teórica, o que no fundo eram problemas
pessoais.
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Descrevemos na aula passada as crises de consciência que atormentaram Lutero até a sua
ordenação sacerdotal em 1507. Falta-nos ainda, ao longo dos próximos encontros, estudar
a solução pessoal que o pai da “Reforma” encontrou para os seus problemas e determinar,
de uma perspectiva espiritual mais sadia, qual poderia ter sido a resposta adequada a essas
crises morais. Estamos diante, pois, de duas fases distintas, embora vinculadas, da
biografia de Martinho Lutero: de um lado, temos o processo de gestação das
suas Anfechtungen, que chegariam a seu ponto culminante nos anos posteriores à
ordenação sacerdotal; de outro, encontramo-nos com a fase de racionalização que, no fim
das contas, dará origem a uma solução heterodoxa, em forma de ideologia, a essas mesmas
tensões espirituais que o vinham angustiando.

Convém esclarecer desde já que por ideologia entendemos aqui um estado de espírito em


virtude do qual um indivíduo se encontra tão apegado a uma ideia que, para não ter de
renunciar a ela, se dispõe a fechar os olhos a todas as evidências contrárias. Trata-se, em
outras palavras, de uma forma de perverter a própria visão de mundo, a ponto de forçar o
mundo a se adaptar a essa visão preconcebida. Em Lutero, o surgimento da ideologia tem
uma base afetiva e espiritual, porque depende em certa medida desses conflitos interiores
que vimos descrevendo até agora. Não foi, portanto, algo premeditado: Lutero tornou-se
um ideólogo sem o saber, mas acabou dando origem, com isso, a um novo “modo de
pensar”, que caracterizaria o espírito de toda uma época e permitiria, no futuro, fazer da
“teoria” um instrumento a serviço de interesses políticos e econômicos.

Ora, vimos também que as Anfechtungen de Lutero são de dupla


ordem, intelectual e espiritual. Ao seu temperamento peculiar, de consciência delicada e
escrupulosa, vinha somar-se uma deficiente formação intelectual, agravada pelas
influências nominalistas de que foi alvo na Universidade de Erfurt. A conjunção desses
dois fatores irá deflagrar nele suas crises interiores, e, para resolvê-las, ele irá formular
uma resposta “teórica” que lhe permita lidar com elas. Mais do que uma doutrina, portanto,
o que Lutero adotou foi uma postura frente aos seus problemas, ou seja, uma atitude
ideológica que, fazendo finca-pé num certo conjunto de ideias, pretende reivindicar, não a
mudança e a conversão do indivíduo à situação objetiva em que se acha, mas, sim, a
transformação do mundo à imagem e semelhança das ideias desse indivíduo. A história
moderna irá mostrar, por sua vez, que essa maneira de pensar inaugurada por Lutero
conquistará muitos adeptos e mudará os rumos do Ocidente.

Por isso — repitâmo-lo —, o que nos importa aqui não são as ideias concretas de Lutero,
isto é, aquilo que poderíamos identificar como o “núcleo duro” da teologia luterana,
codificada mais tarde como uma nova forma institucional de viver o cristianismo. O que
nos interessa, pelo contrário, é a atitude, a postura ou o modo ideologizante de encarar o
mundo cujas bases lançou Lutero com o seu empreendimento “reformista”. Não se trata,
pois, nem de criticar os luteranos de hoje nem de proferir qualquer sentença contra Lutero,
mas simplesmente de saber distinguir as ideias da pessoa que as defende, a teoria das
disposições que a engendram, e de reconhecer o perigo espiritual que se esconde nessa
mesma postura de Lutero. A meta deste curso — precisemos também — não consiste
apenas em conhecer quem foi o homem por trás da “Reforma”, mas em orientar, com base
no que nos ensina a história desse capítulo tão dramático da vida eclesiástica, a nossa
própria vida, porque a história, diziam os antigos, est magistra vitæ.

Pois bem, uma vez ordenado padre, Lutero foi convidado por seu superior, Johann von
Staupitz, a sair de Erfurt para complementar os estudos na Universidade de Wittenberg,
fundada havia poucos anos por Frederico, o Sábio, príncipe-eleitor da Saxônia que tempos
depois prestaria vários auxílios ao “reformador”. Staupitz tinha a intenção de que o seu
dirigido, já formado em direito em Erfurt, integrasse o corpo de catedráticos de teologia
em Wittenberg. Apesar do prestígio intelectual de que gozava, estima-se que Lutero, para
poder tornar-se rapidamente bacharel em S. Escritura, seguindo a orientação do superior
dos agostinianos, tenha sido dispensado de cerca de três ou quatro anos dos estudos
necessários à formação sacerdotal.

É em 1508 que irão irromper, com uma gravidade inesperada, sua crise interior e, com ela,
a série de conflitos que, avolumando-se ano após ano, o levarão a romper com a Igreja.
Teve o nominalismo aprendido em Erfurt algum papel na deflagração dessa primeira
grande crise moral? A resposta é positiva, e por dois motivos: em primeiro lugar, graça à
concepção de um Deus voluntarista, despótico e arbitrário (o Deus pregado pela Igreja
Católica, pensaria ele, não passa de um justiceiro sedento de vingança); em segundo,
graças à propensão semipelagiana dos nominalistas (seríamos capazes, e até obrigados, de
amar e agradar a Deus sem o auxílio da graça). Somadas, essas duas ideias davam como
resultado uma relação desequilibrada e de profunda tensão entre Deus e o fiel: por um
lado, Deus se apresenta como uma vontade discricionária e imprevisível, que não se guia
por nenhuma razão sábia e ordenada; por outro, está inteiramente em nossas mãos fazer o
possível e o impossível para chegar ao coração desse mesmo Deus, sempre insatisfeito.

Essa concepção deformada, Lutero a atribuirá à Igreja, como se se tratasse da doutrina


“oficial” de Roma, e a rejeitará como forma de solucionar os seus próprios conflitos
espirituais. Desse modo, Lutero criou para si mesmo uma caricatura tanto de Deus como
da Igreja Católica, e é contra esses dois espantalhos que se dirigirão os seus ataques.
Tampouco lhe foi de grande ajuda, é importante notá-lo, o acompanhamento espiritual de
Staupitz, de caráter um pouco “ambíguo” (pelo que consta, tendia a ser pouco firme e
demasiado diplomático com os seus dirigidos), além de muito influenciado pela devotio
moderna, com o seu apreço renovado pela S. Escritura e a sua postura anti-intelectualista e
crítica àquela escolástica decadente na qual se formou Lutero.

Lutero, consequentemente, não recebeu de Staupitz a direção que seria de esperar. Ao


contrário, foram-lhe confiadas cada vez mais funções, como uma tentativa de “remediar”
as angústias internas que o levavam a temer, com uma obsessão que parecia às vezes raiar
o patológico, a condenação eterna. A isso tudo vinham somar-se os seus problemas de
ignorância religiosa, os seus escrúpulos incuráveis e as desordens passionais que, como
também já advertimos, não se sabe se entravam ou não no domínio das doenças mentais.  

Por faltar-lhe uma formação intelectual mais sólida, Lutero passou a buscar com
insistência sempre crescente uma “certeza afetiva” de que as faltas de que se sentia
constantemente acusado não eram pecados graves, merecedores do inferno. Quanto a isso,
vale a pena relembrar o que nos ensina a doutrina católica, definida pelo Concílio de
Trento em seu decreto sobre a justificação: “[...] nenhum piedoso deve duvidar da
misericórdia de Deus, dos méritos de Cristo, do valor e da eficácia dos sacramentos, assim
cada um refletindo sobre si mesmo e sua própria fraqueza e desordem pode recear e temer
quanto a seu estado de graça, já que ninguém pode, com uma certeza de fé à qual nenhum
erro subjaz, saber se obteve a graça de Deus” (DH 1534).

No entanto, o que vemos é que Lutero, devido em parte à sua formação nominalista, que
lhe desfigurava o rosto de Deus, parecia ter sérias dúvidas quanto à misericórdia divina.
Além do que, dava mostras de ser excessivamente autocentrado: sua vida como monge e
fiel católico não tinha por finalidade servir e amar a Deus, mas apenas salvar a própria
alma. Ele mesmo o acabaria insinuando em algumas cartas, nas quais deixa entrever que a
sua visão de frade bom e irrepreensível consistia tão-só na obediência a uma série de
normas de conduta, e não no exercício das virtudes teologais.

Staupitz, se tivesse notado a tempo esse egoísmo de fundo, poderia talvez tê-lo conduzido
à realização de um ato heróico de abandono à misericórdia divina, pela qual nos
consagramos a amar a Deus com todas as nossas forças, sem nos preocupar com o prêmio
ou a pena depois desta vida, pois é Deus, digno de ser amado, servido e adorado, ainda que
no fim não sejamos salvos, quem deve estar no centro de tudo. Faltou a Lutero, ao que
parece, essa centralidade do Esposo que, como nos ensina a espiritualidade carmelita,
espera e quer o nosso amor. De maneira que não é arriscado dizer, como veremos mais
adiante, que muitos dos problemas espirituais de Lutero foram devidos ao seu constante
voltar-se sobre si mesmo, à sua obsessão com o bem e a salvação da própria alma.

Um outro aspecto que também se manifesta nas crises de Lutero foi a sua busca incansável
por aquela certeza de fé sobre a própria salvação que, segundo o Concílio de Trento, não
está ao nosso alcance, por mais piedosos que nos julguemos. Com efeito, não podemos
nesta vida ter uma certeza absoluta, mas apenas moral e suficiente, de que estamos na
graça de Deus; tampouco podemos estar certos, a não ser por uma revelação especial, de
que pertencemos ao número dos que serão salvos. Sempre inquieto, Lutero não podia
contentar-se com esta certeza moral, que deveria ser suficiente para tranquilizar a
consciência de qualquer fiel minimamente instruído acerca das coisas espirituais; ele
queria, antes, uma garantia inquebrantável, que lhe apaziguasse de uma vez para sempre os
escrúpulos. Em Lutero já parece ter lugar um fenômeno que será constante na
modernidade e que irá distinguir o pensamento moderno da tradição filosófica anterior, a
saber: o primado da certeza sobre a verdade e o desejo de alcançar, não um conhecimento
verdadeiro, mas certo e seguro.

Um último problema que convém destacar nesta aula diz respeito à vida de oração. A
julgar pelo teor de suas cartas, Lutero nunca teve vida de oração íntima. E não só isso: era
levado a supor que todos os outros padres eram iguais. Para ele, os sacerdotes católicos não
rezavam jamais, pois o único que se lhes exigia era o desgosto de ter de recitar diariamente
as fórmulas mortas e frias das Horas Canônicas. Orar, aos olhos de Lutero, não significava
abrir-se à ação da graça, mas um simples ato de “moralismo”, um dever que se devia
cumprir como meio de lucrar, com suas próprias forças, o estado de justiça. Também a sua
visão da espiritualidade cristã era distorcida.

Acresce ainda a sua concepção “mágica” e mecânica da salvação e dos sacramentos, como
se demonstra por alguns episódios de sua vida pré-protestante. Assim, por exemplo, em
visita a Roma no ano de 1511, por ocasião de uma disputa entre a ala rigorista e outra mais
relaxada dos agostinianos, Lutero imaginava que conseguiria alcançar um perdão maior
dos seus pecados (e, por conseguinte, a tranquilidade interior que tanto desejava) pelas
indulgências que lá receberia. Mas, como não encontrasse ali o sossego que pensava
magicamente conseguir, deixou de apoiar os rigoristas e uniu-se à defesa dos mosteiros
mais relaxados — provável sinal de que, já a essa altura da vida, Lutero começara a
abandonar o seu mau vezo pelagiano segundo o qual são os nossos esforços que nos
justificam diante de Deus. De volta a Wittenberg, e uma vez feito doutor em Bíblia, Lutero
começará a pregar virulentamente contra os monges mais rigoristas com os quais antes se
identificava, e o tom obsceno de suas homilias, sintoma de um temperamento passional e
talvez desequilibrado, será uma constante daqui para frente.

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