Você está na página 1de 9

1

AULA 01:
MARTINHO LUTERO: TEOLOGIA1
Rev. Hélio de Oliveira Silva, STM.

Os escritos de Lutero não podem ser classificados dentro de uma teologia


sistemática organizada, pois eram escritos invariavelmente contextuais, ou seja,
dirigidos a situações práticas específicas com metas bem definidas. Lutero era um
pastor e era nessa perspectiva que direcionava os seus escritos. Segundo George,2
isso não quer dizer que ele era apenas casual ou não seguisse padrões de
pensamento, mas que sua teologia seguia três padrões básicos. Sua teologia era ao
mesmo tempo bíblica, existencial e dialética.
Como teólogo bíblico, a exegese de Lutero representa uma ruptura com o
currículo do escolasticismo medieval e uma reorientação da teologia para o texto
bíblico. Lutero é fruto da tradição nominalista3 da baixa Idade Média, tornando-se
um expoente da via moderna, revelando “um profundo ceticismo acerca do valor
da filosofia na atividade teológica”.4
Lutero acreditava que o papel da razão na teologia era funcionar como
princípio ordenador pelo qual a revelação bíblica era claramente apresentada. 5 Ela
não podia ser uma fonte de autoridade independente das Escrituras, mas cativa às
mesmas. Para Lutero, a revelação sobrepõe-se à razão, destronando a sua
arrogância.
Como teólogo existencialista, Lutero cria que a teologia devia ser sempre
intensamente pessoal, experiencial e relacional.
A existência humana é vivida coram Deo, “diante de Deus”; “na presença de
Deus”. Deus não é um conceito, uma doutrina para se crer, nós estamos diante dele
em juízo e misericórdia. Ele é o Deus vivo das Escrituras.
O âmago da teologia é Christus pro Me. Cristo se deu por mim, estou em
Jesus Cristo. A fé que salva é aquela que deve penetrar até uma apropriação
pessoal, e não somente numa crença de que Cristo morreu e porque morreu. Ele
morreu por mim! (pro me, pro nobis = por mim, por nós). O evangelho não é
entendido na abstração do intelecto, mas na experiência da fé.
A teologia é um processo vitalício de lutas, conflitos e tentações (anfechtung
= tentação, pavor, desespero, sensação de perdição, agressão e ansiedade). Lutero
acreditava que “ninguém deve seguir seu caminho segura e despreocupadamente,
como se o diabo estivesse longe de nós”.6

1
Nessa aula seguiremos em linhas gerais o pensamento de Timothy George em seu livro: Teologia dos
Reformadores, p. 58-102.
2
Timothy George, Teologia dos Reformadores, Vida Nova, p. 58.
3
O nominalismo insistia que a realidade era achada somente nos próprios objetos, em oposição ao realismo
platônico que declarava que as proposições universais tinham uma existência independendente, à parte do objeto em
si (D. A. Rausch, “Nominalismo”, EHTIC, vol. III, p.25).
4
T. George, Teologia dos Reformadores, p.59.
5
ibid, p. 60.
6
Lutero, WA 30/1, p. 209. Citado por George, Teologia dos Reformadores, p.63.
2

Como teólogo dialético, Lutero procurava fazer uma leitura das Escrituras que
fosse além do superficial. Fazia uso constante de paradoxos: Lei e evangelho, ira e
graça, fé e obras, carne e espírito, Deus e mundo etc. Para ele, a verdade só pode
ser encontrada quando confrontada com outra verdade contrastante. Só podemos
entender o evangelho por causa da lei, que nos revelou nossa incapacidade de viver
corretamente, apontando-nos para Cristo. Lutero procurava manter a tensão em sua
teologia quanto a esses paradoxos.

Ênfases distintivas:
A Justificação Pela Fé Somente.
Para Lutero, a doutrina da justificação é o resumo de toda a doutrina cristã, o
artigo pelo qual ela se mantém de pé ou cai. Paulatinamente Lutero percebeu que a
expressão “justiça de Deus” em Romanos 1.17 não tratava da revelação de um
Deus que com a sua justiça punia os pecadores, mas que
significava aquela justiça pela qual o homem justo vive mediante o dom de Deus,
isto é, pela fé. É isso o que significa: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho,
uma justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como
está escrito; “aquele que pela fé é justo, viverá”7

Já em 1517, Lutero rompera com a metodologia escolástica a favor da


teologia bíblica, pois estava certo de que o perdão dos pecados era dom de Deus,
não resultado do mérito humano. No entanto, seu raciocínio foi amadurecendo aos
poucos, até sua elaboração mais completa, por volta de 1519, conforme o seu
próprio testemunho.
“O entendimento da justificação que dominou tanto a teologia patrística
quanto a medieval derivou, em parte, do casamento entre a doutrina cristã e a
filosofia grega”,8 onde o conceito grego da divinização foi cristianizado e a
salvação tornou-se uma participação no esplendor do Ser de Deus. A salvação
como deificação do homem conceituou o pecado como apenas uma brecha na
ordem do ser, uma doença debilitante que carecia de cura. A cura vinha por meio
da participação nos sacramentos. A ceia era “a medicina da imortalidade”,9 e
continuava o processo iniciado no batismo com a infusão da graça, conforme
acreditava Agostinho.
A teologia escolástica aperfeiçoou este conceito ainda mais, por meio da
distinção entre “graça real” e “graça habitual” a graça real concedia o perdão dos
pecados, desde que fossem confessados, todavia, não era suficiente para remover a
culpa do pecado, papel da graça habitual. A infusão da graça habitual conferia à
alma do pecador uma qualidade divina, capacitando-o a realizar atos justos. Essa
graça habitual não era o resultado de méritos. Logo, o veredicto da justificação era
o pronunciamento médico de recuperação da enfermidade do pecado, atestando a
natureza transformada do paciente, que era feito justo, e não, declarado justo.

7
Lutero, LW vol. 34, p.328. Citado por Timothy George, Ibid., p. 64.
8
Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 65.
9
Inácio de Antioquia, Aos Efésios 20.2.
3

Este sistema não alcançava o verdadeiro cerne da questão, pois se poderia


sempre esquecer de confessar algum pecado ou se a confissão não fosse sincera o
perdão não seria dado por Deus. Lutero se desesperava com essas duas
dificuldades. Isso tudo levava Lutero a ter conflitos com Deus. A questão básica
para ele já não era mais “se ele era uma ovelha ou bode, mas se Deus era herbívoro
ou carnívoro, um Libertador ou um Destruidor”.10
No desenvolvimento da doutrina da justificação de Lutero, entre 1513-1518,
o nominalismo, o misticismo alemão e os escritos de Agostinho tiveram uma
influência decisiva.
O nominalismo se opunha ao realismo platônico afirmando que a realidade
era achada somente nos próprios objetos.11 Eles distinguiam entre o poder absoluto
(de potentia absoluta) de Deus e seu poder ordenado (de potentia ordinata). Por
seu poder absoluto, Deus faz o que quiser, mas por seu poder ordenado, ele
escolheu justificar-nos por canais estabelecidos. Para o catolicismo escolástico
esses meios eram a aplicação dos sacramentos. Sem a infusão sacramental da
graça, ninguém poderia receber um mérito real (meritum de condigno) da parte de
Deus, porém, fazendo o melhor possível, era possível merecer de Deus um semi-
mérito (meritum de congruo). Lutero concluiu que o que precedia a graça não era
uma disposição, mas uma indisposição para com Deus, uma rebelião ativa.12 A
ruptura de Lutero com os conceitos nominalistas de mérito e graça foi fundamental
para a formação de sua doutrina da justificação.
Lutero também foi influenciado pela obra mística Theologia Germanica, de
Tauler, seguindo seus conceitos sobre a necessidade de amoldar-se à humilhação e
aos sofrimentos de Cristo, bem como que a atitude apropriada do homem perante
Deus era a de passividade total e submissão completa (Gelassenheit); e por um
tempo o conceito de Synteresis Gewissen, consciência, a essência básica da alma
(Seelenabgund) como base antropológica da união mística. Nesse caso a via da
justificação do pecador era sua união mística com Deus, como se Deus “nascesse”
em sua alma. O desenvolvimento desse processo de união entre Deus e o homem
resulta na sua justificação. “O homo viator é transformado no homo deificatus”.13
Essa deificação era um problema frente à realidade corruptora do pecado para
Lutero, pois o pecado consistia numa rebelião ativa contra Deus e não meramente
em uma fraqueza passiva ou ausência do bem. Perante Deus, o homem Adão se
apresentou nu em seu pecado, sem nenhum mérito ou virtude que o defendesse.
Para Lutero, aceitar a deificação era tornar inócua a apresentação da graça. Essa
rejeição da Synteresis foi um outro passo decisivo na formação da doutrina da
justificação de Lutero.
Uma terceira questão a ser analisada é o confronto de Agostinho com
Lutero, pois a mais importante transformação no pensamento de Lutero foi a
redefinição da justificação numa estrutura não-agostiniana. Lutero comentou:

10
Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 66.
11
D. A. Rausch, “Nominalismo”, EHTIC vol. III, p.25.
12
Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 68.
13
Ibid., p. 69.
4

Agostinho chegou mais perto do sentido paulino do que todos os estudiosos, mas
não alcançou Paulo. No começo eu devorava Agostinho, mas quando a porta para
Paulo abriu-se e entendi o que era realmente a justificação pela fé, descartei-o.14

O seu rompimento com Agostinho veio de sua nova compreensão da “justiça


de Deus” em Romanos 1.17. Seu comentário de Romanos de 1518 afirmou que a
fé operava sem qualquer predisposição ou preparação anterior à justificação,
concluindo de forma surpreendente para a época que “só a fé justifica (Sola fides
justificate)”.
A doutrina de Lutero se baseia em três pontos básicos; (1) Imputação. (2)
Seu caráter de pela fé somente. (3) seu impacto sobre a expressão “a um só tempo
pecador e justo”.
Imputação: Lutero abandonou a figura médica da infusão da graça em favor
da interpretação forense da imputação. A linguagem da imputação deixa a figura
da medicina pela da corte judicial. O progresso do cristão na graça não vem de
uma cura gradual das feridas do pecado, mas da aceitação da justiça de Cristo a seu
favor. Os pecados não são realmente removidos, mas deixam de ser denunciados
contra o pecador. Como descreveu Lutero, Cristo faz uma “doce troca” com o
pecador.
Agostinho e os escolásticos haviam interpretado o termo grego paulino para
“justificação” como “tornar justo”, enquanto que Lutero insistiu em sua conotação
legal: “Declarar justo”. Assim, para Lutero, a imputação da justiça alheia de Cristo
baseava-se não na cura gradual do pecado, mas na vitória completa de Cristo na
cruz. A justificação tem um caráter definitivo e não progressivo. “Quem ouve e crê
tem a vida eterna” (Jo 5.24).
Pela Fé Somente: Lutero abandonou definitivamente a correlação que era feita
entre o estado de justificação e as obras visíveis de alguém insistindo que nos
apropriamos da graça de Deus e daí, somos declarados justos pela fé somente. Para
os escolásticos fé era virtude formada pelo amor, para Lutero, fé era “fiducia,
crença pessoal, dependência, um agarrar-se ou segurar-se a Cristo”.15 Contudo, não
é a fé que justifica, ela é apenas o órgão receptor da justificação, pois não faz a
graça existir, e sim torna-nos cônscios de sua existência. Ter fé é receber a
aceitação nossa perante Deus em Jesus Cristo. Isso não é uma atividade humana,
mas obra do Espírito Santo.
Ao Mesmo Tempo Justo e Pecador: O pecador é simul iustus et peccator.
Agostinho falava de um homem “em parte” justo e “em parte” pecador, ou seja,
pecador na experiência empírica do pecado e justificado na esperança da
consumação futura. Lutero enfatizou a simultaneidade afirmando haver um
paradoxo. Lutero ia além, o pecador não só é justo e pecador ao mesmo tempo,
mas é também sempre ou completamente justo e pecador ao mesmo tempo:
Somos verdadeira e totalmente pecadores, com respeito a nós mesmos e ao nosso
primeiro nascimento. Inversamente, já que Cristo nos foi dado, somos santos e justos,

14
Citação de Gordon Rupp, “Patterns of Salvation in the First Age to the Reformation”, Archiv fur
Reformationsgeschichte 57 (1966), p. 52-66; in: Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 70.
15
Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 72.
5

totalmente. Então de diferentes aspectos, somos considerados justos e pecadores ao


mesmo tempo.16

Essa simultaneidade em Lutero amadureceu após 1518, para um caráter de


permanência definitiva, ou seja, simul tornou-se semper iustus et peccator. Essa
diferença enfatiza a aceitação plena e imediata do pecador por Deus na
justificação, do contrário poderíamos entender parcialidade no seu julgamento.
A doutrina da justificação de Lutero caiu como uma bomba no catolicismo
medieval, arrasando toda a teologia dos méritos e a base penitencial-sacramental
da Igreja Católica Romana. O que Lutero fez na verdade foi recuperar o sentido
bíblico pleno da expressão “Deus justifica os ímpios”, recolocando, como deve ser,
a justificação antes da santificação.
Outra implicação da doutrina de Lutero é a concepção do papel das obras na
santificação e não na salvação. O lugar das obras é servirem como o fruto
característico da fé. O fruto da justificação é a fé ativa no amor, que não é dirigido
primeiramente a Deus tentando alcançar algum mérito para a salvação, mas ao
próximo, por obediência a Deus. Segundo Lutero, a justificação pela fé somente
nos liberta para amarmos ao próximo desinteressadamente, por causa dele mesmo,
como irmão e irmã, mas não como um meio calculado para nossas intenções de
alcançar o favor de Deus. Em Cristo e por meio de Cristo podemos nos consumir
em favor uns dos outros, da mesma forma que Cristo fez por nós.

A predestinação: Deixem Deus ser Deus.


Lutero, Zuínglio e Calvino permanecem firmes com Agostinho ao
afirmarem a doutrina da Sola gratia contra os conceitos pelagianos e semi-
pelagianos, que exaltavam o livre arbítrio humano em detrimento da livre graça
divina. A doutrina de Lutero a respeito da predestinação foi construída em sua
polêmica contra Erasmo de Roterdã. Erasmo dizia: “_Deixe Deus ser bom” e
salvar a todos. Lutero retrucava: “_Deixe Deus ser Deus” e salvar a quem elegeu
soberanamente.
Seguindo Agostinho, Lutero defendia um agudo contraste entre a natureza
humana caída e a graça de Deus. Para ele, depois da queda o livre arbítrio existe
apenas nominalmente, mas na prática, quem obedece às inclinações de seu querer,
peca mortalmente contra Deus. A vontade humana é escravizada pelo pecado.
Lutero não era um determinista absoluto, pois defendia que nas coisas
ordinárias havia livre arbítrio no homem, contudo, nas coisas concernentes à
salvação, ele é plenamente ineficaz e totalmente corrompido pelo pecado, pois não
pode realizar a própria salvação.
Ao eleger seus escolhidos, Deus não é injusto, nossa mente é que não
consegue apreender a totalidade da justiça divina; um mistério que só podemos
crer pela fé, assim como a justificação. O papel do cristão, mesmo aquele
atormentado por dúvidas quanto à sua própria eleição, é entregar-se ao cuidado de
Deus, deixar que Deus tome conta de dele. Nesse caso, a predestinação era uma

16
WA 39, p. 523. Citado por: Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 73.
6

janela para a vontade graciosa de Deus, que se ligou livremente à humanidade na


encarnação de Cristo e na sua salvação realizada na cruz.

Sola Scriptura.
No seu tratado O Cativeiro Babilônico da Igreja (1520) Lutero afirmou: “O
que for afirmado sem as Escrituras ou sem uma revelação comprovada pode ser
considerado opinião, mas não precisamos crer nisso”.17 O princípio do Sola
Scriptura visava salvaguardar a autoridade das Escrituras de uma dependência
servil à Igreja, tornando-a inferior à mesma. Para Lutero, as escrituras eram a
norma determinadora (norma normans) e não a norma determinada (norma
normata) para todas as decisões da fé e da vida.
Ao afirmar a autoridade suprema das Escrituras, Lutero não negava o valor
da história e da tradição da igreja, mas os submetia às escrituras. Além disso, ele
entendia que a suficiência das Escrituras funcionava no contexto da em que a
Bíblia era um livro dado à Igreja, a comunidade da fé, reunida e guiada pelo
Espírito Santo. Isso quer dizer que a autoridade de todos os credos, os ditos dos
pais da igreja, as decisões connciliares deviam ser julgados pela “norma infalível”
das Escrituras, nunca o oposto.
A crítica de Lutero ao método alegórico nascia do fato de que obscurecia a
cristocentricidade das Escrituras, desviando o pecador do caminho da cruz, e, por
conseqüência, da salvação. Essa atitude de Lutero o levou, por um tempo, a fazer
um cânon dentro do cânon, rejeitando, por exemplo, a epístola de Tiago, por achar
que a sua doutrina da graça era equivocada e contraditória ao ensino da justificação
da fé somente encontrado nos escritos de Paulo. Embora Lutero não rejeitasse a
inspiração de Tiago, colocava-o sob suspeição ao lado de Hebreus, Judas e
Apocalipse. Isso demonstra que seu conceito da inspiração das Escrituras era
controlado pelo seu conceito da encarnação de Cristo como Salvador e Senhor.
Para Lutero toda a escritura deve ser avaliada na sua condição de condutora
a Cristo. As Escrituras são um meio para a fé, não o fim da fé, que é Cristo.18
Nesse caráter, elas são a palavra viva de Deus, que trazem para hoje o que Deus
disse e fez no passado. Cada leitor deve ser confrontado com a demanda
existencial e as promessas das Escrituras, que exigem uma resposta de fé e
confiança em Deus no presente. Tudo nas escrituras nos lembra que a vida toda é
vivida na presença de Deus!

A Digna Donzela: A Igreja.


Lutero não queria dividir a igreja, mas apenas reformá-la. Lutero definia a
igreja como “cristãos santos e ovelhas que ouvem a voz de seu pastor”.19 A Igreja
não é a Kirche (church, curia ou Kuriakon = Casa do Senhor), mas é a Gemeine
(comunidade) ou a Versammlung (assembléia) a comunidade dos cristãos, a
comunhão dos santos. Seu pensamento engloba três componentes:

17
Citado por: Timothy George, Teologia dos Reformadores, p.82.
18
Ibid, p.84.
19
Ibid., p.88
7

A prioridade do evangelho.
O evangelho constitui a igreja e não o contrário, porque a graça é de Deus, e
somente ele a concede. Logo, o fundamento da igreja está na eleição graciosa de
Deus anunciada aos homens no evangelho de Cristo, não no governo humano da
igreja papal.
A igreja é definida, não por sua aparência externa, mas por sua fé. A igreja é
invisível e oculta. Isso quer dizer que somente Deus conhece a verdadeira igreja
dos eleitos. Mas também significa que o mundo não consegue enxergar a igreja
como Deus a enxerga. Por isso a existência da igreja é sempre em tensão com os
poderes da era presente e o mundo que a cercam hostilmente. Como Cristo, a igreja
deve estar sempre disposta a enfrentar todo o infortúnio e perseguição.
Por outro lado, na era presente a igreja é um corpo mixto, onde joio e trigo
crescem juntos. Sua santidade está oculta em Deus, sendo demonstrada na terra por
uma sucessão de cristãos fiéis e não por uma sucessão de bispos. Além disso, a
igreja é serva do evangelho que a vivifica.

A Palavra e o Sacramento.
O evangelho é a única marca da igreja verdadeira no sentido de que ele é
manifesto na pregação correta e nos sacramentos adequadamente ministrados.
Essa definição recuperou a doutrina paulina da pregação (Rm 10.17),
elevando a pregação a um status elevando dentro do culto público novamente. O
sermão é a melhor e mais necessária parte do culto cristão. Como diz Timothy
George:
O culto protestante centrava-se ao redor do púlpito e da Bíblia aberta, com o
pregador encarando a congregação, não em volta de um altar com o sacerdote
realizando um ritual semi-secreto. O ofício da pregação era tão importante que
até os membros banidos da igreja não deviam ser excluídos de seus bnefícios:
‘A Palavra de Deus deve permanecer livre, para ser ouvida por todos’.20
Quanto aos sacramentos, Lutero sustentava apenas a permanência de dois: A
ceia e o batismo. Suas características principais são:
Ambos proclamam o perdão dos pecados.
Sua eficácia está na fé depositada neles, não na sua celebração.
Como extensões ou instâncias separadas da Palavra de Deus, comunicam à
igreja as promessas infalíveis de Deus.
Para Lutero, os sacramentos têm de ser recebidos, cridos e apropriados
pessoalmente como conseqüência da fé (sinais visíveis da fé) e não como
promotores dela. Lutero atacou a doutrina católica de que os sacramentos
concediam graça àqueles que meramente participassem deles (ex opere operato),
porque sua eficácia não estava na participação, mas na fé.
Precisamos dos sacramentos porque eles apontam para Cristo e suas
promessas, atuando como o cajado de Jacó (Gn 32.10) ou como uma lâmpada na
escuridão.

20
Timothy George, Teologia dos Reformadores, p.92.
8

O batismo é a representação litúrgica da doutrina da justificação pela fé


somente, que embora seja um evento único, sustenta o cristão a vida inteira. O
batismo representa as duas pontas da vida pela fé, pois significa morte para o
mundo e vida para Deus. Ele é divino e só pode ser recebido pela obra da graça de
Deus em fé. Ele é a garantia do grande amor e da graça de Deus.
A questão do batismo infantil era resolvida por Lutero numa referência à sua
ligação explícita com o significado da circuncisão no Antigo testamento, e por
aquilo que ele chamava de “fé infantil”, que Deus imputava à criança na hora do
batismo, como demonstração da graça misericordiosa de Deus.
A ceia é a celebração da presença de Cristo na igreja. Embora Lutero
negasse a transubstanciação, desenvolveu uma doutrina muito semelhante a ela em
que Cristo estava de fato presente fisicamente nos elementos da ceia
(consubstanciação). Para ele, a presença era literal, porque as palavras de
instituição deveriam ser interpretadas literalmente.

O Sacerdócio de Todos os Crentes.


Essa doutrina é a principal contribuição de Lutero à eclesiologia protestante.
Com ela, Lutero não defendia a total abolição do ministério ordenado, nem
implicava que cada cristão era sacerdote unicamente de si mesmo, mas significa
que todo cristão é sacerdote de alguém e somos todos sacerdotes uns dos outros.
Esse conceito implica tanto numa responsabilidade quanto num privilégio,
um serviço tanto quanto uma posição, porque a unidade e igualdade do povo de
Deus em Cristo é demonstrada pelo amor mútuo e o cuidado de uns para com os
outros. Ninguém pode ser cristão sozinho, porque Cristo dispôs cada membro
dentro de um corpo que sobrevive na manutenção e cooperação de suas partes.
A communio sanctorum é uma comunidade de intercessores, um sacerdócio
de amigos que se ajudam, uma família em que as cargas são compartilhadas e
suportadas mutuamente. Essa doutrina não nega o fato de que embora haja no
corpo de Cristo um só estado de igualdade entre os membros, há também variedade
de funções e ofícios. O ministério ordenado não é superior à congregação, mas é
comissionado mediante as Escrituras, a oração e a imposição de mãos para o
serviço da igreja.

O Estado: A Mão Esquerda de Deus.


Lutero, ao lado de Zuínglio, Calvino e Cranmer, é conhecido como
reformador magisterial, ou seja, fazia o seu trabalho reformador em aliança com o
poder coercitivo do magistrado e sustentado por este (príncipe, conselho da cidade
ou um monarca).
Lutero, seguindo Agostinho de perto, elaborou sua doutrina do estado em
oposição ao catolicismo que afirmava a supremacia da igreja sobre o poder
temporal, podendo inclusive depor os governantes que lhe contrariassem a
vontade; e contra os anabatistas que negavam qualquer ligação entre a igreja e o
estado.
9

Para Lutero, a igreja era a mão direita de Deus e o estado a sua mão
esquerda. Os dois não deveriam ser vistos em oposição, mas como dois poderes
correlatos, mediante os quais Deus governa o mundo. O poder secular é
independente do controle clerical e vice-versa. A igreja não deve buscar o poder
temporal e este não deve se intrometer na vida da igreja. O estado tutela e sustenta
a ação da igreja, porém não pode domina-la.
O Estado é ordenado por Deus para reprimir os malfeitores e preservar a paz,
enquanto a igreja deve ter liberdade para pregar o evangelho. Para Lutero o estado
tem origem divina, logo seu poder não é autônomo. Igreja e estado existem numa
tensão necessária, sua distinção não pode ser obscurecida, mas também não pode
ser enfatizada a ponto de um não reforçar o outro. Os cristãos são cidadãos dos
dois reinos (espiritual e secular), mas sempre que as ordens dos dois entram em
choque, eles devem seguir a advertência de Pedro aos sacerdotes: “Antes importa
obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29).
Na prática, ao afirmar a tutela do estado sobre a igreja, Lutero abriu um
precedente para a intromição do mesmo nos negócios da igreja, o que veio a
acontecer após a sua morte.

Você também pode gostar