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Tradutor: Victor José


Instagram: @eu_victorjose

Livro original: That’s Just Your Interpretation Responding to Skeptics Who Challenge Your
Faith - Paul Copan
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CONTEÚDO

Introdução, 5

Parte 1 Desafios Relacionados À Verdade E A Realidade, 23

1. Tudo é relativo, 24
2. Essa é apenas a sua interpretação, 30
3. Essa é apenas a sua realidade, 36
4. A realidade é moldada por forças além do nosso controle, 44

Parte 2 Desafios Relacionados Às Visões De Mundo, 52

1. Tudo é Um com o Divino; Tudo o Mais É Uma Ilusão, 53


2. Por que não acreditar na reencarnação?, 66
3. Se Deus Criou o Universo, Quem Criou Deus?, 77
4. Se Deus sabe o que vamos fazer, então não temos livre arbítrio, 83
5. Se Deus predestina alguns para serem salvos, que escolha eu realmente tenho?,
98
6. A coexistência de Deus e do mal é uma contradição lógica, 109
7. Por que um Deus bom enviaria pessoas para o inferno?, 123
8. Religião nada mais é do que o desejo humano por uma figura paterna, 136

Parte 3 Desafios Relacionados Ao Cristianismo, 146

1. Como Deus Pode Ser Três e Um?, 147


2. A ideia de Deus tornar-se homem não é incoerente?, 156
3. Se Jesus é Deus, como ele poderia realmente ser tentado?, 173
4. O relato da criação em Gênesis contradiz a ciência contemporânea (parte 1),
181
5. O relato da criação em Gênesis contradiz a ciência contemporânea (parte 2),
194
6. Como um Deus amoroso pode comandar o genocídio?, 203
7. A Bíblia não aprova a escravidão?, 215
8. Os Evangelhos se Contradizem, 226
9. “Profecias” do Antigo Testamento são tiradas do contexto no Novo Testamen-
to, 239
Conclusão, 251
4
5

INTRODUÇÃO

uando meu livro anterior “Verdadeiro para você, mas não para mim” foi
Q publicado,1 fiquei satisfeito ao saber que ele atendeu a uma necessidade im-
portante de, entre outros, alunos do ensino médio e universitários (e seus
pais) que eram regularmente bombardeado com desafios relativistas e pluralistas:
“Quem é você para impor sua moralidade aos outros?” ou “Não importa no que
você acredita, desde que seja sincero”. Pelo que pude ver, havia muitas análises
sobre o relativismo e seus efeitos nocivos na sociedade, mas não havia um guia
passo a passo que descompactasse e respondesse a críticas específicas que poderi-
am confundir os cristãos. Desde então, outros livros surgiram para oferecer assis-
tência prática semelhante, embora com abordagem variada.2
Seja no trabalho, na universidade, na vizinhança ou em uma festa, os crentes
são confrontados com frases de efeito ou críticas que atacam a verdade, a morali-
dade ou a crença em Deus. Meu livro anterior pretendia ser uma espécie de manual
para esse público cristão em geral, com capítulos curtos e fáceis de ler centrados
em desafios comumente ouvidos. Nesse livro, tentei ir atrás das críticas para dis-
cernir suas suposições subjacentes. Este volume de acompanhamento é semelhante
em formato e oferece respostas a um novo — e amplo — conjunto de desafios co-
mumente ouvidos por céticos e críticos da crença em Deus e no cristianismo em
particular. É minha esperança e oração que este livro seja uma ferramenta acessí-
vel para ajudar os cristãos a lidar com essas críticas no contexto de relacionamen-
tos amorosos - embora eu confie que o não-cristão sério também lerá este livro
com proveito.
Esta introdução serve como (1) uma introdução aos temas deste livro, bem co-
mo (2) uma resposta à questão de saber se podemos encontrar a verdade. Mas aqui
devemos ter cuidado: “Encontrar a verdade” não é apenas obter informações sobre
“fatos existentes”. Chegar à verdade — e especialmente à verdade sobre Deus — é
uma questão interna e profundamente pessoal. Deus – aquele “Cão do Céu” – pro-
1
Paul Copan, “Verdadeiro para você, mas não para mim”: esvaziando os slogans que deixam os cristãos
sem palavras (Minneapolis: Bethany House, 1998). Veja um resumo parcial deste livro em Paul Copan,
Is Everything Really Relative? RZIM Critical Questions Series (Norcross, Ga.: Ravi Zacharias Internati-
onal Ministries, 1999), disponível em www.rzim.org ou 1-800-448-6766.
2
Estou pensando em Francis Beckwith e Greg Koukl, Relativism: Feet Firmly Planted in Midair (Grand
Rapids: Baker, 1999); Jay Budziszewski, Como permanecer cristão na faculdade (Colorado Springs: Na-
vpress, 1999); e até certo ponto (embora mais analítico e técnico) Douglas Groothuis, Truth Decay
(Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2000). (Veja minha próxima revisão de Truth Decay em
Philosophia Christi, série 2.)
6

cura-nos com amor e sofrimento para que nos tornemos seus filhos. Mas tal Deus
não nos deixa escapar facilmente com a crença de que ele existe; ele quer que o
conheçamos e o amemos pessoalmente. Tal amor exige uma reorientação radical
de nossas vidas em torno da realidade de Deus; exige relacionar-se com ele em
seus termos. Portanto, podemos esperar que as defesas e as cortinas de fumaça su-
bam quando falamos sobre Deus - mas também perguntas sinceras e perspicazes de
buscadores intrigados sobre a ideia do amor de Deus em Cristo.
Mas isso não é tudo. Como cristãos, atestamos a verdade não apenas pela coe-
rência ou pelo poder explicativo da fé bíblica. Também mostramos a verdade por
meio de uma comunidade autêntica e amorosa de crentes e da integridade de cris-
tãos individuais. A verdade sobre o Deus que se revelou amorosamente em Cristo
pode de fato ser encontrada.

Primeiro, uma abordagem de três níveis para a apologética pode servir como uma
grade útil ao defender a fé cristã no mercado de ideias.
No capítulo final de “Verdade para você”, sugeri um guia simples para os cren-
tes que procuram persuadir seus amigos não cristãos sobre a credibilidade da fé
cristã. Tal estratégia envolve três áreas de ênfase:

1. verdade
2. cosmovisões
3. Apologética cristã

Por que usar essa estratégia? Ele cria uma progressão simples e lógica. (1) Come-
çamos com o mínimo necessário para uma conversa inteligente e coerente - ou se-
ja, a verdade - guiada por leis lógicas inevitáveis e experiências e observações co-
tidianas. Se uma pessoa não acredita nas verdades que se aplicam a todas as pesso-
as, então não podemos comunicar de forma significativa o significado do amor de
Deus em Cristo por ela. O que eu acredito é visto apenas como “verdade para
mim”, mas não para ele! Mas uma vez que mostramos que a verdade objetiva é
inescapável (negá-la é afirmar a verdade de que ela não existe), podemos passar
para a próxima área: (2) Qual visão de mundo é verdadeira? Embora existam mui-
tas cosmovisões, podemos reduzi-las a três:

1. naturalismo (tudo o que existe é a natureza; não há Deus ou reino sobrenatural)


2 . monismo/panteísmo (toda a realidade é, em última análise, Um - como em mui-
tas filosofias e religiões orientais)
7

3. teísmo (um Criador pessoal existe e é distinto da ordem criada; fomos feitos à
imagem ou semelhança deste Criador, assim nos assemelhando a ele em certos as-
pectos importantes)3

Talvez o cético ou o buscador sério venha a ver - pela graça de Deus e por meio de
nossa preocupação amorosa - inconsistências práticas e falhas intelectuais no natu-
ralismo e no monismo e que o teísmo faz um trabalho melhor respondendo a per-
guntas sobre:

• de onde viemos (origens)


• quem somos (identidade)
• do que se trata a vida (significado) e por que estamos aqui (propósito)
• e qual é o nosso fim (destino)

Se tal buscador vê o teísmo como uma alternativa mais plausível, então ele ou ela
pode explorar (3) que tipo de teísmo é mais provável – judaísmo, cristianismo ou
islamismo. É aqui que a apologética cristã serve a um propósito importante: Ar-
gumentos para a confiabilidade histórica geral da Bíblia; a historicidade, divindade
e ressurreição corporal de Jesus; a lógica da encarnação e da Trindade; e coisas
semelhantes podem ser usadas para mostrar a maior probabilidade da verdade do
cristianismo do que pontos de vista alternativos.
Dada a natureza das discussões sobre essas questões e o papel dos relaciona-
mentos pessoais, a progressão de (1) ver a inescapabilidade da verdade para (2) es-
colher entre várias cosmovisões para (3) reconhecer a verdade da cosmovisão cris-
tã não é estritamente linear ou mecanicamente passo a passo. Uma defesa da fé en-
volve muito dar e receber e revisitar questões previamente discutidas no contexto
de discussões sérias com o incrédulo. Além disso, autenticidade e cordialidade
pessoal por parte do cristão e a oportunidade para o incrédulo testemunhar regu-
larmente uma autêntica comunidade cristã (João 13:35) constituem uma demons-
tração holística da verdade.
Ainda assim, essa abordagem de três níveis oferece um bom modelo a seguir.

Em segundo lugar, quando apresentamos nossa defesa da fé cristã, devemos fazê-


lo por “inferência da melhor explicação”.4
Desde o Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, a questão vem repetidamente à
tona: existe algo como filosofia cristã? Teólogos-filósofos antigos ou medievais,
como Agostinho ou Tomás de Aquino, teriam achado essa pergunta muito estra-

3
C. S. Lewis fala dessas cosmovisões primárias em livros como Cristianismo Puro e Simples e Milagres.
4
Peter Lipton, Inference to the Best Explanation (London: Routledge, 1991).
8

nha. A fé cristã deu uma importante contribuição ao campo da filosofia. O filósofo


Alvin Plantinga nos lembra que o teísmo – ou mais especificamente, a cosmovisão
cristã – “oferece sugestões de respostas para uma ampla gama de questões de outra
forma intratáveis”.5 Em outras palavras, a fé cristã tem uma gama notável de re-
cursos intelectuais que utilizam as evidências disponíveis para responder a muitas
perguntas que, de outra forma, seriam histórias "just-so" - enigmas ou fatos brutos
- e nada mais. Por exemplo, veja o notável antagonista da religião, Bertrand Rus-
sell. Quando perguntado em um debate de rádio da BBC por Christian F. C. Co-
pleston como o universo surgiu, ele afirmou: “Devo dizer que o universo está ape-
nas lá, e isso é tudo”.6
Argumentarei no conteúdo deste livro que a fé cristã responde mais adequada-
mente a uma ampla gama de questões do que seus concorrentes. Não abordarei
muito do que os textos apologéticos padrão já fazem – apresentar argumentos para
a existência de Deus, prova da confiabilidade textual da Bíblia, evidência para a
ressurreição de Jesus e assim por diante – por mais importantes que sejam essas ta-
refas.7 Em vez disso, lidarei com objeções de que tais textos geralmente não co-
brem determinadas limitações de espaço (ou outras).
Deixe-me apresentar alguns indicadores importantes da existência de Deus para
ilustrar o que significa inferir a melhor explicação. Existem certas características
relevantes do mundo que vale a pena considerar:

• a origem do universo do nada


• as condições delicadamente equilibradas do universo que tornam a vida hu-
mana não apenas possível, mas real
• consciência
• valores morais objetivos
• dignidade humana, valor e propósito

Qual visão de mundo melhor explica esses elementos? Parece que a explicação ju-
daico-cristã para essas características é mais simples, mais poderosa e mais famili-
ar do que suas rivais.8 Como assim?

5
Alvin Plantinga, “Natural Theology,” em Companion to Metaphysics, ed. Jaegwon Kim e Ernest Sosa
(Cambridge: Blackwell, 1995), 347.
6
Em John Hick, ed., A Existência de Deus (Nova York: Collier, 1964), 175.
7
Por exemplo, ver William Lane Craig, Reasonable Faith (Wheaton: Crossway, 1994); idem, Deus, você
está aí? Cinco Argumentos para a Existência de Deus e Três Razões pelas quais Ele Faz a Diferença,
RZIM Critical Questions Booklet Series (Norcross, Ga.: Ravi Zacharias International Ministries, 1999);
Norman Geisler, Christian Apologetics (Grand Rapids: Baker, 1998); e J. P. Moreland, Scaling the Secu-
lar City (Grand Rapids: Baker, 1987).
8
Por “mais simples”, quero dizer menos complicado ou ad hoc. Por “mais poderoso” quero dizer ser ca-
paz de explicar um número maior de coisas e diferentes tipos de coisas. Por exemplo, a hipótese teísta
9

A origem do universo: Os recursos dentro da fé cristã nos permitem ir além da


mentalidade de “é assim que as coisas são” de Russell em relação à origem do uni-
verso. O universo surgiu há cerca de quinze bilhões de anos, antes do qual não
existia espaço, matéria, energia ou tempo físico. A crença de que o universo está se
expandindo e esfriando é “a essência da teoria do big bang”9 e hoje a teoria do big
bang “não é mais questionada seriamente; ele se encaixa muito bem.10 O que cau-
sou o big bang? O cristão sustenta que o universo não poderia ter surgido sem cau-
sa do nada. Isso é metafisicamente impossível. Do nada, nada vem. O ser não pode
vir do não-ser. Mas se existe um Criador poderoso e pessoal, esse enigma desapa-
rece: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1).11
As condições delicadamente equilibradas do universo para a vida: Se você ti-
vesse que apostar se um Designer criou o universo em todas as suas complexida-
des ou se o universo de alguma forma surgiu por necessidade ou por acaso, onde
você colocaria sua aposta? O físico Freeman Dyson observa: “Ao olharmos para o
Universo e identificarmos os muitos acidentes da física e da astronomia que traba-
lharam juntos para nosso benefício, quase parece que o Universo deve, de alguma
forma, saber que estávamos chegando”.12 A condição cósmica em que nos encon-
tramos foi chamada de “efeito Cachinhos Dourados” – tudo está “perfeito” para a
existência humana. Não apenas as condições iniciais do big bang foram corretas,
mas quinze bilhões de anos de história cósmica precisaram estar continuamente
“exatamente corretas” para produzir as condições necessárias para a vida huma-
na/biológica na Terra. A menor alteração em qualquer uma das dezenas de condi-
ções exigidas tornaria a vida biológica impossível. Por exemplo, um aumento de
0,01% nos estágios iniciais da expansão do universo teria gerado uma expansão
atual milhares de vezes mais rápida do que a que encontramos. Uma diminuição
equivalente teria levado a um novo colapso quando o cosmos tinha um milionési-
mo de seu tamanho atual. Ou se a atração gravitacional do big bang aumentasse
apenas 2% em força, os átomos de hidrogênio não poderiam existir, tornando a vi-

oferece um contexto explicativo suficiente para todos os recursos abrangentes listados acima. Por “mais
familiar” quero dizer que certos paralelos ou analogias estão disponíveis para ajudar a explicar outros fe-
nômenos. Por exemplo, inferi que uma causa pessoal deve ter causado o universo e o tempo físico de um
estado de nada e imutabilidade, e tenho a experiência familiar de ver agentes humanos pessoais iniciando
ou realizando eventos.
9
P. James E. Peebles, “Making Sense of Modern Cosmology,” Scientific American 284, no. 1 (janeiro de
2001): 54.
10
Ibid. Peebles afirma que “a teoria do big bang descreve como nosso universo está evoluindo, não como
começou” (54).
11
Ver William Lane Craig, “Design and the CosmologicalArgument,” em Mere Creation, ed. William
Dembski (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1998), 332–59.
12
Freeman Dyson, “Energy in the Universe”, Scientific American 225 (setembro de 1971): 25.
10

da impossível. (Todo o hidrogênio se tornaria hélio.)13 Bernard Carr e Martin Rees


sustentam: “A natureza exibe coincidências notáveis e estas justificam alguma ex-
plicação”.14
Essas características de ajuste fino do universo poderiam ter sido diferentes; em
outras palavras, eles não são necessários. Eles poderiam ter sido de outra forma. A
crença de que esse delicado equilíbrio surgiu por acaso ou necessidade é incrivel-
mente improvável. Como resultado, algumas das teorias naturalistas que eliminam
o design de consideração o fazem com base no viés filosófico, e não no escrutínio
científico. Ironicamente, as teorias de não design tendem a ser especulativas e não
são baseadas em evidências científicas concretas (por exemplo, a existência de ou-
tros mundos aos quais não temos acesso). E não importa o quão complexo o uni-
verso pareça ser, não há ponto em que esses pensadores naturalistas admitiriam o
design. Tudo o que eles diriam é: “Parece que foi projetado, e isso é tudo”. Mas
esses teóricos estão abertos às evidências? Se existe uma Mente inteligente, então
podemos fazer a pergunta paulina: “Por que algum de vocês deveria considerar in-
crível que o universo pareça projetado?”15
A existência da consciência: Matéria e consciência são inteiramente distintas, e
isso apresenta um problema profundo na filosofia da mente: como poderia a cons-
ciência emergir de processos puramente materiais?16 O filósofo naturalista Ned
Block enfaticamente observa a falência de seu próprio sistema para explicar isso:

Não temos nenhuma concepção de nossa natureza física ou funcional que nos permita enten-
der como ela poderia explicar nossa experiência subjetiva. . . . [No] caso da consciência, não
temos nada – nada – digno de ser chamado de programa de pesquisa, nem há propostas subs-
tantivas sobre como iniciar um. . . . Os pesquisadores estão perplexos.17

Outro naturalista, John Searle, observa que “o principal problema nas ciências bio-
lógicas é o problema de explicar como os processos neurobiológicos causam expe-
riências conscientes”.18 No entanto, dentro da estrutura judaico-cristã, na qual exis-
te um Ser supremamente consciente, temos um contexto plausível para afirmar a
existência da consciência. A consciência não está “apenas lá, e isso é tudo”. A

13
Para essas e outras características das características ajustadas do universo, veja John Leslie, Universes
(Londres: Routledge, 1989).
14
Bernard Carr e Martin Rees, “The Anthropic Principle,” Nature 278 (1979): 612.
15
Cp. Atos 26:8, onde Paulo faz esta pergunta sobre a ressurreição corporal de Jesus.
16
A consciência se aplica tanto aos animais quanto aos humanos, embora os últimos possuam autocons-
ciência – uma consciência da própria consciência.
17
Ned Block, “Consciousness”, em A Companion to the Philosophy of Mind, ed. Samuel Guttenplan
(Malden, Mass.: Blackwell, 1994), 211.
18
John Searle, “O Mistério da Consciência: Parte II,” New York Review of Books (16 de novembro de
1995), 61.
11

consciência da criatura é natural dado um Criador perfeitamente consciente. Pode-


ríamos facilmente dar sentido à sua existência dado o teísmo.
A existência de valores morais objetivos e o valor intrínseco do ser humano:
Existem valores morais objetivos. Atos como estupro, assassinato ou roubo seriam
errados mesmo se todos na Terra fossem relativistas. Se as pessoas não reconhe-
cem que a diferença entre Adolf Hitler e Madre Teresa não é simplesmente cultu-
ral ou biológica, sua moralidade subjetiva torna-se difícil de sustentar diante das
realidades da vida. Essas pessoas são apenas relativistas morais seletivos. “Tudo é
relativo” quando se trata de moralidade sexual ou sonegação de imposto de renda.
Mas quando seus “direitos” são violados ou quando sua propriedade é roubada, es-
sas pessoas agem como se existissem o certo e o errado objetivos. Qual é então o
contexto mais provável para a afirmação de valores morais objetivos e da dignida-
de humana? A existência e o caráter de Deus dão o melhor sentido aos valores mo-
rais objetivos (sendo o caráter de Deus a fonte da bondade) e à dignidade humana
(uma vez que fomos feitos à imagem de Deus).
Ironicamente, alguns ateus defendem valores morais objetivos, dizendo que o
certo e o errado existiriam mesmo que Deus não existisse.19 Mas considero isso
sem fundamento. Por que considerar os seres humanos de qualquer valor moral e
sob qualquer obrigação moral, dadas suas origens e desenvolvimento não morais,
sem valor e impessoais? Não é de admirar que ateus e céticos como Bertrand Rus-
sell, Aldous Huxley, J. L. Mackie, William Provine, Daniel Dennett e Richard
Dawkins tenham rejeitado a existência de tais valores como sendo completamente
incompatíveis com o ateísmo.
Mais uma vez, fazemos uma inferência para a melhor explicação: em qual con-
texto teríamos mais probabilidade de ter um universo que surgiu sem qualquer ma-
téria previamente existente, que desenvolve um ajuste tão intrincado para a vida,
no qual consciência, valores morais objetivos, e a dignidade humana existem? É
naturalista, em que literalmente nada existe antes do big bang, nada guia as carac-
terísticas relevantes do universo que permitem a vida e não existe consciência, per-
sonalidade, moralidade e assim por diante? É monista que chama o mundo externo,
outras mentes e entidades distintas de ilusão e rejeita qualquer diferença entre o
bem e o mal? Ou é teísta em que existe um Ser poderoso, imaterial, autoconscien-
te, inteligente, pessoal e bom? Não tenho dificuldade em ver que os seres humanos
têm dignidade porque foram feitos à imagem de Deus - a imagem do Ser pessoal
supremamente valioso e moralmente excelente. Aqui o teísmo oferece recursos
onde o ateísmo e o monismo nos deixam sem fundamento.

19
Por exemplo, veja minhas críticas ao ateu Michael Martin (“Is Michael Martin a Moral Realist? Sic et
Non” e “Atheistic Goodness Revisited: A Personal Reply to Michael Martin”) e sua resposta em Philoso-
phia Christi, série 2, 1, não. 2 (1999) e 2, n. 1 (2000). Meus ensaios podem ser encontrados on-line em
www.rzim.org.
12

Algumas pessoas perguntarão: “Mas os cristãos não têm uma história justa, a
saber, Deus? Afinal, os cristãos acreditam que 'Deus está apenas lá, e isso é tudo.'”
Os cristãos reconhecem que um ponto de parada suficiente é necessário, que há um
lugar onde as explicações devem finalmente terminar. Mas isso se aplica a todas as
cosmovisões, não apenas à cristã. A questão então se torna: qual visão de mundo
fornece o melhor contexto para explicar a origem do universo a partir do nada, sua
adequação à vida, o surgimento da consciência, a existência de valores morais ob-
jetivos e a dignidade dos seres humanos? A cosmovisão cristã pode facilmente
acomodar esses recursos e fornecer o contexto necessário, enquanto uma não-teísta
está mal equipada para fazê-lo. As razões para abraçar o teísmo cristão são mais
plausíveis do que as razões para sua negação.20

Terceiro, não há apenas uma maneira de defender a integridade da fé cristã. O


evangelho precisa de uma “estrutura de plausibilidade” para que a verdade possa
ser defendida no contexto de relacionamentos pessoais e de uma comunidade cris-
tã vibrante.
Em João 13:35, Jesus disse a seus seguidores que o mundo os reconheceria co-
mo seus discípulos por seu amor uns pelos outros. No entanto, parece que esque-
cemos que, para a comunidade cristã, palavra e vida estão intimamente ligadas
uma à outra. Para enfatizar isso, Francisco de Assis admoestou astutamente: “Vão
a todos os lugares e preguem o evangelho. Quando necessário, use palavras!”
Os cristãos podem prontamente dar respostas inteligentes a questões filosóficas
e articular os ideais profundos da teologia cristã. Mas quando não há uma comuni-
dade amorosa na qual essas verdades sejam vividas, nossa mensagem soa como
um mundo platônico de ideias que parece separado da vida cotidiana. Precisamos
de uma estrutura plausível de carne e osso na qual a verdade e a coerência do
evangelho sejam encarnadas e vividas.
Na Epístola a Diogneto, do século II, o autor descreve a comunidade cristã co-
mo algo atraente e notável. Na própria mundanidade da vida, a beleza dos cristãos
apontava o mundo observador para algo – Alguém – maior e majestoso. Vale a pe-
na citar detalhadamente a seção a seguir:

Pois os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo país, nem pela língua, nem
pelos costumes que observam. Pois eles não habitam cidades próprias, nem empregam uma
forma peculiar de falar, nem levam uma vida marcada por qualquer singularidade. . . . Mas,
habitando cidades gregas e bárbaras, de acordo com o destino de cada um deles determinado,
e seguindo os costumes dos nativos com relação a roupas, comida e o resto de sua conduta
comum, eles nos exibem suas maravilhosas e método de vida confessadamente marcante.
Eles moram em seus próprios países, mas simplesmente como peregrinos. Como cidadãos,
20
Para uma discussão mais aprofundada, ver Stephen T. Davis, God, Reason, and Theistic Proofs (Grand
Rapids: Eerdmans, 1997), 4–6.
13

eles compartilham de todas as coisas com os outros e, no entanto, suportam todas as coisas
como se fossem estrangeiros. Cada terra estrangeira é para eles como seu país natal, e cada
terra de seu nascimento como uma terra de estranhos. Eles se casam, como todos [os outros];
eles geram filhos; mas eles não destroem sua prole. Eles têm uma mesa comum, mas não
uma cama comum. Eles estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Eles passam seus
dias na terra, mas são cidadãos do céu. Eles obedecem às leis prescritas e, ao mesmo tempo,
superam as leis por suas vidas. Eles amam todos os homens e são perseguidos por todos. Eles
são desconhecidos e condenados; eles são mortos e restaurados à vida. Eles são pobres, mas
enriquecem a muitos; eles carecem de todas as coisas, mas em tudo abundam; eles são deson-
rados e, ainda assim, em sua própria desonra são glorificados. Falam mal deles, mas são jus-
tificados; eles são injuriados e abençoados; eles são insultados e retribuem o insulto com
honra; eles fazem o bem, mas são punidos como malfeitores. Quando punidos, eles se ale-
gram como se tivessem ganhado vida.21

Sem dúvida, mais pessoas se sentariam e ouviriam nossa mensagem se nosso estilo
de vida falasse tão poderosamente!22

Em quarto lugar, o caráter e comportamento de um cristão individual muitas ve-


zes falam mais poderosamente do que as palavras ou argumentos que ele ou ela
usa.
Um casal paquistanês — muçulmanos — mudou-se para Ohio, onde a esposa
entrou em contato com cristãos e acabou se tornando uma seguidora de Cristo. Ela
começou a frequentar um estudo bíblico para mulheres na casa de um pastor e sua
esposa. Seu marido a levava de má vontade ao escritório e esperava do lado de fora
no carro até que terminasse. Enquanto a esposa do pastor conduzia o estudo, o pas-
tor foi até o muçulmano com um almoço. Esse ato de bondade o fez pensar: “E se
a situação fosse inversa? E se eu fosse um homem cristão com uma esposa mu-
çulmana frequentando uma mesquita? Ninguém sonharia em trazer almoço para
mim. Por meio da iniciativa prática e amorosa do pastor, o muçulmano acabou se
tornando cristão.23
Escrever um livro centrado em desafios específicos tem seus perigos. O leitor
pode pensar que defender a fé cristã nada mais é do que vencer debates intelectu-
ais: “Aquele com mais piadas que interrompem a conversa vence!” Mas essa difi-
cilmente é minha intenção.
A mentalidade de respostas rápidas para slogans idiotas não é nova. Santo
Agostinho estava muito familiarizado com as humilhações intelectuais no norte da

21
Epistle to Diognetus, 5.
22
Para um bom exemplo da necessidade de uma comunidade reforçar a mensagem cristã e sua defesa, ve-
ja alguns dos testemunhos em Kelly Monroe, ed., Finding God at Harvard (Grand Rapids: Zondervan,
1996).
23
Essa história me foi contada por Ravi Zacharias (que conhece esse casal) em junho de 1998.
14

África.24 Em seu próprio ambiente católico, ele testemunhou respostas frívolas e


zombeteiras dos cristãos em resposta à pergunta séria e razoável: O que Deus fez
antes de criar o céu e a terra? Ao contrário daqueles ao seu redor, Agostinho recu-
sou-se a fugir “por brincadeira da força da objeção”, dizendo: “Ele estava prepa-
rando o inferno. . . para aqueles que se intrometem em assuntos tão profundos.”
Agostinho continua:

Uma coisa é ver a objeção; outra é fazer piada disso. Eu não respondo desta forma. Prefiro
responder “não sei” a respeito do que não sei, em vez de dizer algo pelo qual um homem que
indaga sobre assuntos tão profundos é motivo de riso, enquanto aquele que dá uma resposta
falsa é elogiado.25

Todos nós conhecemos “cães de caça” cristãos que podem farejar rastros teológi-
cos de sangue e arranjar uma boa briga com qualquer um que discorde. Infelizmen-
te, o mundo que assiste pode desenvolver a impressão de que os cristãos são luta-
dores raivosos, em vez de amigos graciosos e humildes. A discussão tem seu lugar,
mas não iremos muito longe sem humildade, caridade e bondade. Afinal, se nosso
“fim principal” é “glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre”, então devemos
usar nossos argumentos apologéticos como ferramentas humildes que o Espírito de
Deus pode usar para levar as pessoas a um relacionamento correto com um Deus
amoroso. Verdadeiramente, é “a benignidade de Deus [que] te leva ao arrependi-
mento” (Romanos 2:4), e é esse tipo – embora ousado e firme – testemunho do
crente que fala poderosamente e “adorna o ensino de Deus, nosso Salvador”. (Tito
2:10). Como no caso de Agostinho, um humilde “eu não sei” costuma ser um tes-
temunho muito mais poderoso do que um arsenal de piadas de uma linha. Sem
humildade e graça, podemos causar mais danos à verdade “ganhando” argumentos
do que reconhecendo a ignorância. Quando as boas razões para a fé são simples-
mente desprezadas, uma fé autêntica vivida e uma amizade pessoal podem abrir
portas para o evangelho.
Esse tipo de cristianismo autêntico é ainda mais necessário para alcançar a pró-
xima geração. A mentalidade dos Gen-Xers foi caracterizada por características
como:

• anti-institucionalismo (“Jesus está bem; é a igreja e a ‘religiosidade’ que são


o problema.”)

24
Para uma discussão mais aprofundada sobre isso, veja meu ensaio, “St. Augustine and the Scandal of
the North African Catholic Mind,” Journal of the Evangelical Theological Society 41, no. 2 (junho de
1998): 287–95.
25
Agostinho, Confissões, 11.12.14.
15

• experiência (“Não estou realmente interessado em abstrações e teorias; o


que você me diz tem que se conectar com minha própria experiência.”)
• sofrimento (“Nossa geração vive com muita dor interior e disfunção famili-
ar.”)
• ambigüidade (“Você vê tudo em preto e branco, o que me parece dogmático
e condescendente.”)

Tom Beaudoin - ele próprio um Gen-Xer - discutiu incisivamente esses traços


de caráter em seu livro Virtual Faith.26 Seríamos testemunhas mais sábias se estu-
dássemos tais livros e adaptássemos nossa estratégia para torná-la mais pessoal,
realista, autêntica, orientada para a comunidade, relacional, humilde e graciosa.

Quinto, porque a mensagem do evangelho é de esperança diante da morte e vai


além da satisfação de quaisquer prazeres terrestres efêmeros, a fé cristã apresenta
uma resposta poderosamente prática aos desejos e medos humanos mais profun-
dos.
Em The Weight of Glory, C. S. Lewis fala de “um desejo por algo que nunca re-
almente aconteceu”.27 Quando desejamos a satisfação de vencer um torneio de tê-
nis, tirar férias exóticas, ter uma experiência sexual ou desfrutar de uma refeição
gourmet, nos vemos ansiando por algo mais, algo além de nossa experiência terre-
na. Não ficamos totalmente satisfeitos. Lewis continua falando sobre buscar a rea-
lização do desejo em livros e música:

Os livros ou a música em que pensávamos que a beleza estava localizada nos trairão se con-
fiarmos neles; não estava neles, apenas veio através deles, e o que veio através deles foi a
saudade. Essas coisas - a beleza, a lembrança de nosso próprio passado - são boas imagens
do que realmente desejamos; mas se eles são confundidos com a própria coisa, eles se trans-
formam em ídolos mudos, partindo o coração de seus adoradores.28

Os dons naturais que Deus nos dá por meio da criação e da graça comum — comi-
da, bebida, sexo, cultura, música, artes e literatura — não são fins em si mesmos.
Em vez disso, eles apontam para algo transcendente e grandioso além de si mes-
mos. A mensagem de Jesus sobre o reino — com ênfase no já e no ainda não —
nos diz que, embora possamos começar a saborear algumas bênçãos da vida futura
no presente (o já), não podemos fixar nossas esperanças nessas coisas.; mesmo

26
Embora seu relato seja controverso em alguns lugares, Tom Beaudoin oferece uma análise útil da Ge-
ração X em Virtual Faith: The Irreverent Spiritual Quest of Generation X (San Francisco:Jossey Bass,
1998).
27
C. S. Lewis, The Weight of Glory and Other Addresses (Nova York: Macmillan, 1965), 6–7.
28
Ibid., 7.
16

como cristãos, existe um ainda-não em nossa existência. Somos intermediários, vi-


vendo em duas eras sobrepostas - esta era e a era vindoura.
Talvez nossos desejos profundos não realizados possam ajudar a nos mostrar
que fomos feitos para algo que nenhuma coisa terrena pode satisfazer. Assim como
as crianças se cansam de seus brinquedos de Natal logo após recebê-los, assim
como os adultos, nossas últimas compras, reformas em casa ou negócios nos dei-
xam procurando por algo indescritível. Se vivemos em um mundo caído, alienado
de Deus, não é de admirar. Deus “pôs a eternidade no coração” de todos nós (Ecle-
siastes 3:11) para que fiquemos satisfeitos com nada menos do que somente Deus.
Nas palavras do salmista:

Quem tenho eu no céu além de você?


E a terra não tem nada que eu deseje além de você.
Minha carne e meu coração podem falhar,
mas Deus é a força do meu coração
e minha porção para sempre.

SALMOS 73:25-26

Mais uma vez, coloco a questão: qual visão de mundo fornece os recursos mais ri-
cos para dar conta de desejos tão profundos que não podem ser atendidos por ne-
nhuma coisa terrena? Como argumentarei mais tarde, simplesmente porque temos
necessidades e desejos profundos não significa que sejam ilegítimos. (Pense na le-
gitimidade de atender às necessidades de nossa fome e sede físicas.) Talvez nossos
desejos mais profundos tenham sido colocados dentro de nós por Deus porque fo-
mos feitos para um relacionamento amoroso com ele. A busca secular pela “expe-
riência final” nos desapontará porque todos os nossos desejos são devidamente or-
denados quando Deus é o centro de nossas vidas.
No Times Literary Supplement, em agosto de 1997, Eric Korn falou abertamen-
te sobre seu timor mortis — seu medo da morte: “Preciso registrar meu interesse.
Estarei morrendo em breve, nas próximas décadas. E outro interesse. Estou com
medo disso. . . . A morte e o morrer, o processo e o produto, me assustam profun-
damente.”29 Assim como nossos desejos não realizados podem ser indicadores de
Deus, talvez também seja nosso medo da morte. Talvez Deus tenha colocado den-
tro de nós a consciência de nossa mortalidade para nos levar a lançar-nos sobre o
Deus eterno. O Catecismo de Heidelberg de 1563 começa com a pergunta: Qual é
o seu único consolo na vida e na morte? A resposta, tão bem colocada, é:

29
Eric Korn, Times Literary Supplement, 29 de agosto de 1997; citado no Contexto 30, no. 2 (15 de janei-
ro de 1998): 6–7.
17

Que eu de corpo e alma, tanto na vida quanto na morte, não pertenço a mim mesmo, mas per-
tenço ao meu fiel Salvador Jesus Cristo, que, com seu precioso sangue, pagou totalmente por
todos os meus pecados e me livrou do poder do diabo; e me preserva de tal maneira que, sem
a vontade de meu Pai celestial, nem um fio de cabelo pode cair de minha cabeça; de fato, que
tudo deve se encaixar em seu propósito para minha salvação.

A morte faz um chamado que cada um de nós deve atender, e no evangelho temos
não apenas recursos para nossa peregrinação terrena, mas também a confiança de
um futuro incrivelmente brilhante nos novos céus e na nova terra. Talvez o deses-
pero e o pânico que atingem tantos na hora da morte tenham a intenção de ser um
lembrete para invocar a Deus, cujo controle sobre nossas vidas cada um de nós de-
ve reconhecer.

Finalmente, ao defender sua fé, os cristãos não devem ignorar os fatores pessoais
e morais que impedem as pessoas de abraçar a Deus e que levam as pessoas a
obscurecer importantes evidências de sua existência.
Quando minha família morava em Oconomowoc, Wisconsin, meu filho Peter e
eu fomos a uma venda na calçada em uma ensolarada manhã de sábado. Eu con-
versei com um senhor que por acaso era ateu. Ele afirmou que “simplesmente não
há nenhuma evidência da existência de Deus”. Eu respondi: “Pegue o começo do
universo. Se o universo surgiu há um tempo finito, o que causou seu início?” O
ateu respondeu: “Não sei, mas não foi Deus”. Eu respondi: “Parece mais que você
não está aberto para Deus ser a causa”. Sendo novo nessas discussões, meu filho
de seis anos ficou surpreso com o fato de que esse homem nem mesmo permitiu
que Deus pudesse ser uma explicação possível.
Esse tipo de mentalidade espiritualmente resistente também pode se esconder
por trás da exigência de que Deus se mostre mais claramente do que ele. Muitas
pessoas fazem exigências a Deus. Eles dizem: “Por que Deus não se mostra mais
claramente? Por que ele não é mais óbvio?30 O ateu Friedrich Nietzsche escreveu:
“Um deus que é onisciente e onipotente e que nem mesmo garante que suas criatu-
ras entendam sua intenção” não poderia ser um “deus da bondade”. Nietzsche per-
gunta: “Ele não seria um deus cruel se possuísse a verdade e pudesse ver a huma-
nidade se atormentando miseravelmente por causa da verdade?” As religiões do
mundo “levam levianamente o dever de dizer a verdade: elas ainda não sabem na-

30
Para uma discussão em nível popular sobre o ocultamento de Deus, veja Paul K. Moser, Why Isn't God
More Obvious? Série de Livretos de Questões Críticas RZIM (Norcross, Ga.: Ravi Zacharias Internatio-
nal Ministries, 2000); para uma abordagem mais acadêmica, veja Daniel Howard-Snyder e Paul K. Mo-
ser, eds., The Hiddenness of God (Cambridge: Cambridge University Press, 2001).
18

da sobre o Dever de Deus de ser verdadeiro para com a humanidade e claro na ma-
neira de suas comunicações”.31
O que Deus deveria fazer então? O ateu N. R. Hanson propôs o seguinte cenário
para dissipar todas as suas dúvidas. Suponha que uma manhã, logo após o café da
manhã, todos no mundo caiam de joelhos com um estrondo ensurdecedor. A neve
redemoinha, as folhas caem das árvores e a terra se ergue e se curva, derrubando
prédios. Então os céus se abrem e uma enorme e radiante figura semelhante a Zeus
aparece. Essa figura aponta para Hanson e diz: “Já estou farto de sua lógica muito
inteligente e observação de palavras em questões de teologia. Esteja certo, N. R.
Hanson, de que eu certamente existo.”32 Essa demanda parece razoável? Talvez
haja mais por trás dessa demanda do que imaginamos.
Em primeiro lugar, esse cenário não poderia ser explicado por um cético? Tal-
vez seja o resultado de extraterrestres ou uma ilusão de ótica ou uma alucinação.
Qualquer cético digno desse nome poderia, sem dúvida, encontrar uma maneira de
negar a realidade do encontro.
Em segundo lugar, Deus deseja que respondamos livremente à sua bondade; o
amor divino e sedutor nos dá espaço e não cria claustrofobia teológica. E se Deus
fosse além de tais sinais e maravilhas (dos quais alguém poderia escapar) e se tor-
nasse perfeitamente óbvio - talvez como nossos próprios corpos são para nós? Isso
levanta outro problema: e se ainda não quiséssemos reconhecer a existência de
Deus e, portanto, sua reivindicação sobre nossas vidas, mas sentíssemos que pare-
ceríamos ridículos se não o fizéssemos? Isso seria uma espécie de estupro intelec-
tual que não permitia brechas. O incrédulo teria que reconhecer a Deus para evitar
ser racionalmente humilhado.
Mas terceiro (e mais importante), esse tipo de exigência de que Deus se torne
mais óbvio é equivocado, pois não produz o tipo de relacionamento amoroso que
Deus deseja conosco. Em vez de nos humilhar diante de Deus e buscá-lo sincera-
mente, estabelecemos requisitos que Deus deve cumprir. E se Deus fizesse o que
exigimos? Seu ato produziria o tipo de relacionamento reconciliado de amor que
Deus deseja? Não há razão para pensar assim. Vemos muitos exemplos na Bíblia
de pessoas que viram milagres realizados por Deus (por exemplo, os israelitas no
deserto, líderes religiosos nos dias de Jesus), mas persistiram em sua incredulida-
de. Não é de admirar que Jesus advertiu repetidamente contra uma mentalidade de
busca de sinais (Mateus 12:39; 16:4), que busca o entretenimento em vez do com-
promisso, que prefere manter Deus à distância em vez de abraçá-lo. Não é de ad-
mirar que Jesus tenha proclamado que alguns não acreditarão mesmo que vejam

31
Friedrich Nietzsche, Alvorada, trad. R. J. Hollingsdale (Cambridge: Cambridge University Press,
1982), 89–90.
32
Norwood Russell Hanson, What I Do Not Believe and Other Essays (Nova York: Humanities Press,
1971), 313–14.
19

alguém voltar dos mortos e que a revelação bíblica de Deus é suficiente para que
as pessoas se voltem para ele; eles não precisam procurar mais (Lucas 16:31).
Vemos muitos exemplos ao nosso redor de pessoas que sabem, por exemplo,
que devem se exercitar e evitar uma dieta constante de Big Macs e batatas fritas -
para não mencionar o fumo inveterado - pelo bem de sua saúde. No entanto, eles
optam por continuar em seu caminho autodestrutivo. No nível moral e espiritual,
algumas pessoas simplesmente não querem que Deus altere seu estilo de vida. As-
sim, eles encontram brechas e desculpas para racionalizar as evidências da existên-
cia de Deus.
Por sua bondade, Deus realmente se mostra na criação e na consciência. Verda-
deiramente, “Ele não está longe de cada um de nós” (Atos 17:27). Talvez você te-
nha conhecido céticos cujas perguntas críticas você respondeu adequadamente,
mas quando você pergunta se eles querem levar a fé cristã a sério, eles dizem:
“Não, obrigado. Não estou pronto para assumir nenhum compromisso.” Apesar da
ampla evidência da existência de Deus, nem todos estão dispostos a buscar um re-
lacionamento amoroso com o Deus que se manifesta.
Gosto de pensar na relação dos humanos com as evidências abundantes da exis-
tência de Deus em termos de sintonizar um dial de rádio. Uma pessoa pode ligar
um rádio e dizer: “Tudo o que ouço é estática. Não há nada inteligível lá fora. Co-
mo o dial não está sintonizado em uma frequência clara, nenhuma mensagem é
transmitida. Da mesma forma, Deus nos colocou em um ambiente no qual pode-
mos ignorar as evidências. As pessoas podem apontar para a “estática” do mal no
mundo ou para o problema do aparente ocultamento de Deus (“Por que Deus sim-
plesmente não nos deslumbra com uma exibição de fogos de artifício celestial?”).
Com demasiada frequência, essas queixas podem resultar de mágoas profundas no
passado que tornam difícil ver Deus como amoroso, e isso deve ser trabalhado com
uma perspectiva remodelada de Deus. Ou podem surgir de uma simples falta de
vontade de reconhecer a autoridade de Deus sobre as vidas humanas. Afinal, se
Deus existe, falar sobre evidências de sua existência acaba sendo mais do que um
exercício intelectual, pois Deus é uma ameaça à autonomia humana irrestrita.
Aldous Huxley francamente admite isso:

Eu tinha motivos para não querer que o mundo tivesse significado, conseqüentemente assumi
que não tinha nenhum e fui capaz, sem nenhuma dificuldade, de encontrar razões satisfató-
rias para essa suposição. . . . Para mim, como sem dúvida para a maioria dos contemporâ-
neos, a filosofia da falta de sentido foi essencialmente um instrumento de libertação. A liber-
tação que desejávamos era simultaneamente a libertação de um certo sistema político e eco-
nômico e a libertação de um certo sistema de moralidade. Fizemos objeções à moralidade
porque ela interferia em nossa liberdade sexual.33

33
Aldous Huxley, Ends and Means (Londres: Chatto and Windus, 1969), 270, 273 (ênfase minha).
20

Ou ouça as palavras do filósofo da Universidade de Nova York, Thomas Nagel:

Falo por experiência própria, estando fortemente sujeito a esse medo [da religião]: quero que
o ateísmo seja verdadeiro e fico inquieto pelo fato de que algumas das pessoas mais inteli-
gentes e bem informadas que conheço são crentes religiosos. Não é apenas que não acredito
em Deus e, naturalmente, espero estar certo em minha crença. É que eu espero que Deus não
exista! Não quero que haja um Deus; Não quero que o universo seja assim.34

Discutir a existência de Deus não é um esporte para espectadores. A existência de


Deus exige uma reorientação radical de nossas vidas. Ao falarmos com não-
cristãos, portanto, podemos esperar resistência decorrente do que Thomas Nagel
chama de “problema de autoridade cósmica”. Deus ameaça a existência egocêntri-
ca de cada um de nós! Se ele realmente existe e, portanto, tem direito sobre nossas
vidas, ele não pode ser ignorado.
Como então a verdade pode ser encontrada? O evangelho exige mais do que
apenas razões intelectuais para seguir a Cristo. Deve haver razões existenciais - vi-
vidas - para fazer isso também: a credibilidade e o caráter de cristãos individuais e
a genuinidade do amor na comunidade cristã testemunham o fato de que há boas
novas que valem a pena abraçar. Mas não podemos esquecer que fatores pessoais
fazem parte da questão de Deus. Algumas pessoas simplesmente não querem Deus
em suas vidas, e nenhuma argumentação rigorosa alterará seu curso.

RESUMO

• Uma abordagem de três níveis para a apologética é útil ao defender a fé cristã


no mercado de ideias: (1) verdade, (2) cosmovisões (monismo, naturalismo, te-
ísmo), (3) apologética cristã.
• Quando apresentamos nossa defesa da fé cristã, devemos fazê-lo por “inferên-
cia da melhor explicação”. Qual visão de mundo explica melhor as evidências
disponíveis (como o início e o ajuste fino do universo, a dignidade humana e os
valores morais objetivos e a consciência)?
• As razões para abraçar o teísmo cristão são mais plausíveis do que as razões pa-
ra sua negação.
• Não há apenas uma maneira de defender a integridade da fé cristã. O evangelho
precisa de uma “estrutura de plausibilidade” para que a verdade possa ser de-
fendida no contexto de relacionamentos pessoais e de uma comunidade cristã
vibrante.

34
Thomas Nagel, The Last Word (Nova York: Oxford University Press, 1997), 130 (ênfase minha).
21

• O caráter e o comportamento de um cristão individual muitas vezes falarão


mais poderosamente do que as palavras ou argumentos que ele ou ela usa.
• Porque a mensagem do evangelho é de esperança diante da morte e vai além da
satisfação de quaisquer prazeres terrestres efêmeros, a fé cristã apresenta uma
poderosa resposta prática aos desejos e medos humanos mais profundos.
• Ao defender sua fé, os cristãos não devem ignorar os fatores pessoais e morais
que impedem as pessoas de abraçar a Deus e que levam as pessoas a obscurecer
evidências importantes de sua existência. Algumas pessoas simplesmente não
querem Deus em suas vidas.
• Mesmo que Deus deslumbrasse a todos com fogos de artifício divinos e outros
sinais e maravilhas, isso ainda poderia ser explicado pelo cético habilidoso.
• Se Deus fosse além dos fogos de artifício divinos e se tornasse tão óbvio para
nós quanto nossos próprios corpos, seria uma espécie de estupro intelectual que
não permitia brechas. O incrédulo teria que reconhecer a Deus para evitar ser
racionalmente humilhado.
• Tais manifestações do poder divino não garantem uma resposta de amor e fé
por parte do observador.
22
23

PARTE 1

Desafios Relacionados À
Verdade E A Realidade
24

TUDO É RELATIVO

O
que é verdade? O que é real? Podemos realmente saber?
Hoje em dia, afirmar que podemos saber o que é verdadeiro – espe-
cialmente em ambientes acadêmicos – pode às vezes trazer uma chuva
de insultos em nossas cabeças: “Arrogante! Sem imaginação! Intoleran-
te!" É irônico que instituições de “ensino superior” frequentemente formem alunos
que acreditam não ter aprendido nada que possam chamar de verdade. O ensino
superior para esses alunos é um meio de ganhar mais - e nada mais.
Como mencionei em meu livro anterior, “Verdadeiro para você, mas não para
mim”, o relativismo está aumentando nos Estados Unidos – mesmo entre aqueles
que se autodenominam cristãos “nascidos de novo” ou “evangélicos”. Como as
ideias têm consequências, não deveria ser surpreendente que, de acordo com uma
pesquisa do Barna realizada em 1997, 40% daqueles que se autodenominam evan-
gélicos afirmam que não existem absolutos morais.35 Há uma disparidade crescente
entre o que os cristãos dizem acreditar e como eles realmente vivem.
Eu observei isso em primeira mão. Alguns anos atrás, nossa família tornou-se
membro de uma igreja próxima. Como gosto de fazer, comecei a ensinar uma clas-
se de escola dominical para adultos. Às vezes, ouvia comentários como: “Essa é
apenas a sua interpretação” ou (com menos frequência): “Simplesmente não acre-
dito no que a Bíblia diz sobre esse assunto”. À medida que o analfabetismo bíblico
aumenta em nossas igrejas e a autoridade de qualquer tipo – incluindo a autoridade
bíblica – é mais frequentemente questionada, continuaremos a ver relativismo, ce-
ticismo e religião miscelânea aparecendo em vários cenários “cristãos”.
O conhecimento genuíno é possível. Verdade e realidade não são algo que in-
ventamos. Existem verdades que dizem respeito a todos nós e existe uma realidade
que não pode ser descartada. A verdade e a realidade são inescapáveis. Negá-los
resultará, em última análise, na afirmação de que eles existem. Por exemplo, o re-
lativista inadvertidamente afirmará que existe uma verdade objetiva (por exemplo,
ele acredita na verdade do relativismo), e o antirrealista afirmará que existe alguma

35
Consulte Barna Research Online em http://www.barna.org/cgi-bin/PageCategory.asp?Cat-egoryID=
16.
25

realidade objetiva (por exemplo, é uma realidade objetiva que os humanos moldam
toda a realidade).
Antes de discutirmos esses assuntos em detalhes nos capítulos imediatamente
seguintes, deixe-me revisar e elaborar alguns pontos sobre verdade e relativismo.
Primeiro, o relativismo — a crença de que algo pode ser verdadeiro para uma
pessoa, mas não para outra — é um exemplo de ponto de vista autocontraditório;
deve, portanto, ser rejeitado como falso. Se eu lhe disser: “Não consigo falar uma
palavra em inglês” ou “Nenhuma frase tem mais de seis palavras” ou “Não existo”,
então você pode concluir que o que acabei de dizer é falso. É bastante evidente pa-
ra você que eu posso falar inglês, que existem frases com mais de seis palavras e
que devo existir para falar! Porque eu me contradisse nessas frases, minhas decla-
rações devem ser rejeitadas. Eles são falsos.36 O relativista acredita que o relati-
vismo é verdadeiro não apenas para ele, mas para todos. Se perguntarmos ao rela-
tivista: “O relativismo é absolutamente verdadeiro para todos?” ele se encontra em
uma posição difícil. Obviamente, se ele diz que sim, então ele se contradiz ao se
apegar a um relativismo absoluto. Portanto, deve ser rejeitado como falso.
Em segundo lugar, o relativismo não é tão individualista quanto se diz. O rela-
tivista freqüentemente afirma que o relativismo diz respeito a mais do que apenas
a si mesma. E se o relativista disser: “Esta é apenas a minha opinião; é verdade pa-
ra mim, e você não precisa acreditar”? Se esta é realmente a posição do relativista,
então o que ela está dizendo está no mesmo nível de afirmar: “Sorvete de baunilha
tem um gosto melhor para você, mas chocolate tem um gosto melhor para mim”. O
relativista, portanto, não está dizendo nada que seja digno de ser acreditado por ou-
tro; ela está apenas dando sua opinião. Mas geralmente os relativistas acreditam
que estão dando mais do que sua opinião. Na verdade, o clássico slogan relativista
– “Isso é verdade para você, mas não para mim” – pressupõe que o relativismo se
aplica a pelo menos duas pessoas! O relativista acredita que o relativismo é verda-
deiro para ambas as partes, não apenas para ela. E sem dúvida o relativista usou
essa linha com algumas pessoas em vários momentos, presumindo que o relativis-
mo se aplica a todas elas.
Esse relativismo casual, que sustenta que toda crença é tão boa quanto qualquer
outra crença, está em profundo problema intelectual: não há razão para levá-la a
sério (já que essa crença em si não é melhor do que qualquer outra), e se alguém a
leva sério, torna-se auto-refutável (porque afirma ser a única crença que todos de-
veriam ter).

36
Alguns desses comentários foram tirados de meu livreto Tudo é realmente relativo? Examining the As-
sumptions of Relativismo and the Culture of Truth Decay (Norcross, Ga.: Ravi Zacharias International
Ministries, 1999), 7–10. Para obter este e outros livretos desta série, entre em contato com o Ravi Zacha-
rias International Ministries pelo telefone 1-800-448-6766 ou visite o site www.rzim.org.
26

Os relativistas certamente dão a impressão de que acreditam que sua visão é


verdadeira para todos, e muitas vezes tentam persuadir os outros a aceitar sua
perspectiva. Na verdade, muitas vezes eles estão dispostos a dar razões objetivas –
isto é, razões que são verdadeiras, independentemente do ponto de vista de qual-
quer pessoa – sobre por que o relativismo é verdadeiro e a crença em absolutos é
falsa. E por que os relativistas ficam bravos com os não relativistas se tudo é rela-
tivo? Um relativista raivoso parece ser uma contradição em termos!
Em terceiro lugar, paradoxalmente, a própria base para o relativismo – ou se-
ja, pontos de vista extremamente diferentes – é invocada como a base óbvia para o
relativismo. Um dos slogans que mencionei em meu livro anterior é: “Tantas pes-
soas discordam; portanto, o relativismo deve ser verdadeiro.” Essa alegação de
imenso desacordo costuma ser exagerada, mas vamos deixar isso de lado. A pessoa
que acredita na verdade objetiva pode apontar duas verdades que emergem da ob-
servação desse relativista. O relativista acredita que:

1. Sua base para sustentar o relativismo (ou seja, o fato claro e óbvio de que
tantas pessoas discordam) é verdadeira - não falsa.
2. Sua conclusão de que o relativismo é baseado em diferenças também é ver-
dadeira – não falsa.

A própria base assumida pelo relativista e a própria conclusão tirada pelo relativis-
ta são consideradas inegavelmente verdadeiras por esse mesmo relativista! O rela-
tivista acredita que tem boas razões para manter o relativismo, e essas razões são
consideradas verdadeiras e não falsas. Os relativistas acreditam que suas posições
são não arbitrárias e objetivamente justificáveis.
Quarto, qualquer afirmação que o relativista fizer pode ser transformada em
uma afirmação de verdade objetiva que é obviamente verdadeira para todas as
pessoas. Tudo o que precisamos fazer é introduzir uma afirmação relativista com:
“É verdade que . . .” ou, “É absolutamente verdade que . . .” ou, “É verdadeiro e
não falso que . . .” para mostrar que a afirmação não é relativa, afinal. Por exem-
plo, se o relativista disser: “Minha visão é verdadeira para mim”, podemos dizer a
ele: “É absolutamente verdade que sua visão é verdadeira para você”. Se o relati-
vista afirma que “todas as culturas têm seus próprios valores”, podemos dizer: “É
objetivamente verdadeiro e não falso que todas as culturas têm seus próprios valo-
res”. Se o relativista disser: “É exatamente nisso que eu acredito”, podemos res-
ponder: “É incontestavelmente verdade que é nisso que você acredita”.
Deve estar claro agora que não importa qual posição assumimos quando se trata
da verdade, estaremos constantemente fazendo afirmações verdadeiras ou pressu-
pondo certas verdades para defender ou justificar nossas posições. Portanto, vamos
deixar de lado de uma vez por todas a questão de saber se a verdade objetiva exis-
27

te. Como ninguém pode escapar da verdade objetiva, nós (mesmo que discordemos
sobre qual visão particular é a verdadeira) podemos avançar a discussão para o
próximo nível – ou seja, a questão de qual visão de mundo reflete ou corresponde
melhor à realidade objetiva e por quê.
Ao interagirmos com pessoas de mentalidade relativista, no entanto, devemos
lembrar que elas podem dizer: “Quem é você para julgar os outros” ou “Você está
sendo intolerante” porque nossa maneira foi muito dura e carente de graciosidade
ou respeito.37 Um espírito severo e sem amor está fora de lugar nesta discussão. O
cristão deve reconhecer que não é superior ao não cristão porque segue a Cristo e o
não cristão não. Todo cristão que pensa corretamente sabe que o dom da salvação
de Deus por meio de Jesus não é nada pelo qual possamos receber o crédito. Como
disse Martinho Lutero, contar às pessoas sobre as boas novas de Jesus é como um
mendigo dizer a outro mendigo onde encontrar pão. Assim como os mendigos não
podem escolher, também não podem ser fanfarrões! Não há lugar para a presunção
cristã. Tudo o que podemos nos gabar é da bondade de Deus para conosco, e assim
podemos dizer aos outros: “Provem e vejam que o Senhor é bom”.

RESUMO

• A verdade e a realidade são inescapáveis. Negá-los significa afirmar alguma


verdade e realidade objetiva.
• O relativismo é autocontraditório porque afirma ser absolutamente verdadei-
ro para todos.
• A pessoa que diz que algo pode ser “verdadeiro para você, mas não para
mim” acredita que o relativismo pertence a pelo menos duas pessoas. Por-
tanto, o relativismo não é verdadeiro apenas para o relativista; ele acredita
que é objetiva ou absolutamente verdadeiro para os outros.
• Mesmo a base do relativismo é considerada objetivamente verdadeira pelo
relativista, e a conclusão relativista baseada em diferenças também é consi-
derada verdadeira e não falsa.
• Para mostrar a natureza autocontraditória do relativismo, podemos simples-
mente reformular uma afirmação relativista inserindo: “É absolutamente
verdade que . . .” ou, “É objetivamente verdadeiro e não falso que . . .”
• Podemos afirmar que não há problema em manter a verdade objetiva - espe-
cialmente porque é inevitável.
• Devemos falar às pessoas sobre Jesus com graça e bondade, sabendo que
não temos motivos para nos vangloriar ou nos sentir superiores.

37
Obrigado a David Klement por esta visão útil.
28

• Palavras como verdade, objetividade e absolutos são freqüentemente carre-


gadas de associações de poder e opressão. Portanto, devemos esclarecer e
explorar mal-entendidos, em vez de nos envolvermos em batalhas de pala-
vras carregadas de emoção.
29
30

ESSA É APENAS A SUA INTERPRETAÇÃO

E
m setembro de 2000, o técnico de basquete da Universidade de Indiana,
Bobby Knight, foi demitido por causa de seu pavio curto, explosões de rai-
va e recusa em cooperar com a política de tolerância zero da administração
escolar. Em uma entrevista à ESPN com Jeremy Schaap,38 quando questionado so-
bre as acusações contra ele, Knight afirmou que as pessoas interpretam as palavras
de maneira diferente: “O que estamos falando aqui é interpretação”; “essa é a in-
terpretação deles”; “essa é a interpretação dele.” Fora da polêmica em si, o que
chama a atenção é o apelo de Knight à interpretação para sair do gancho.
Enquanto estava na faculdade, frequentava uma mesquita muçulmana próxima
todas as sextas-feiras. Como um cristão curioso, achei benéfico aprender sobre as
crenças e práticas muçulmanas e fazer amizade com membros de outra comunida-
de religiosa. Depois de uma reunião de sexta-feira, conversei com um senhor que
chamarei de Shabaz. Eu havia interagido com ele apenas uma ou duas vezes antes,
mas ele jogou esta frase para mim: “O que vocês, cristãos, acreditam sobre Jesus
ser o ‘único caminho’ – essa é apenas a sua interpretação”. Fui pegar minha Bíblia
no carro e abri em Atos 4, onde um homem havia acabado de ser curado em nome
de Jesus de Nazaré. Pedi a Shabaz que lesse o versículo 12 para mim, o que ele
fez: “Não há outro nome debaixo do céu dado aos homens pelo qual devamos ser
salvos.” Então eu disse: “Eu entendo que esse versículo significa que Jesus é aque-
le por quem devemos ser salvos. Como você entende isso?” Shabaz se contorceu
um pouco. Percebendo que seu caso não era muito bom, ele se levantou e saiu.
Todos nós já ouvimos o ditado: “Essa é apenas a sua interpretação” (ou “Essa é
apenas a sua opinião”). Nós ouvimos isso em programas de entrevistas na TV e en-
trevistas de notícias. Talvez tenhamos ouvido isso no meio de uma conversa sobre
questões morais, como aborto ou homossexualidade, conforme se relacionam com
a Bíblia. Aqueles que adotam a visão bíblica tradicional sobre essas questões po-
dem ser informados pelo pró-aborto ou por aqueles que toleram a homossexuali-
dade: “Essa é apenas a sua interpretação da Bíblia”. Muitas vezes os cristãos ficam
se perguntando: O que eu digo agora? - quando, de fato, há muito a ser dito!

38
12 de setembro de 2000. Agradeço a Danielle DuRant por chamar minha atenção para esta entrevista.
31

Estive envolvido em discussões teológicas nas quais passei pelo problema de


explicar um texto bíblico e oferecer razões para acreditar nele apenas para ser des-
cartado casualmente com: “Essa é apenas a sua interpretação”. Essa crítica, no en-
tanto, é na verdade um convite para uma discussão mais aprofundada. Mas deve-
mos ser capazes de articular nossa posição e dar razões pelas quais acreditamos
nisso - mesmo que possamos concordar prontamente que nós, como humanos, nem
sempre somos tão lúcidos quanto gostaríamos de ser e que podemos e interpreta-
mos mal as passagens. Além disso, devemos ter em mente que podemos ter uma
perspectiva que o outro não compartilha.
Primeiro, pergunte gentilmente: “Você quer dizer que sua interpretação deve
ser preferida à minha? Em caso afirmativo, gostaria de saber por que você esco-
lheu sua interpretação em detrimento da minha. Você deve ter um bom motivo. Na
minha experiência, aqueles que dizem: “Essa é apenas a sua interpretação” não re-
fletiram sobre sua posição e não são capazes de oferecer razões válidas para seu
ponto de vista. Se eles tiverem motivos, no entanto, você pode falar livremente so-
bre a base para aceitar ou rejeitar essas crenças.
Em segundo lugar, ressalte que você está disposto a justificar sua posição e
que não está simplesmente adotando um determinado ponto de vista de forma ar-
bitrária. Em uma aula de domingo para adultos, eu estava dando razões para inter-
pretar uma passagem bíblica de uma maneira particular – discutindo questões gra-
maticais e contextuais para justificar meu ponto. Um homem da classe disse: “Essa
é apenas a sua interpretação”. Respondendo a essa rejeição casual e sentindo que
esse homem simplesmente não gostou do que eu estava dizendo, tornei a esclare-
cer minha base de interpretação. Eu então disse: “Expus as razões para minha po-
sição. Estou disposto a ouvir a sua e corrigir minha própria posição se eu estiver
errado, mas tudo o que você fez foi descartar meu ponto de vista sem nenhuma ba-
se.”
Em terceiro lugar, como as pessoas costumam descartar essa crítica porque
não gostam da sua interpretação, peça esclarecimentos: “Quer dizer que não gos-
ta da minha interpretação?” Se uma pessoa não gosta do que a Bíblia diz sobre o
inferno, o pecado ou a santidade de Deus, mas parece disfarçar sua antipatia por
essas doutrinas chamando-as de “sua interpretação” ou “sua opinião”, então explo-
re mais o assunto. Você também pode acrescentar: “Há muitas verdades que eu
mesmo não gosto ou acho difíceis de aceitar, mas não gostar delas não me dá a li-
berdade de rejeitá-las. Eu tenho que aceitar que eles são verdadeiros.”
O filósofo John Searle, embora ateu, colocou o dedo no cerne da questão do
slogan: “Essa é apenas a sua interpretação”:

Eu tenho que confessar. . . que eu acho que há uma razão muito mais profunda para o apelo
persistente de todas as formas de anti-realismo [no qual criamos nossa própria realidade e tu-
32

do o que alguém acredita é uma questão de preferência pessoal, interpretação e rotação], e is-
so se tornou óbvio no século XX: satisfaz um desejo básico de poder. Parece muito nojento,
de alguma forma, que tenhamos que estar à mercê do “mundo real”. Parece muito terrível
que nossas representações devam responder a qualquer coisa, menos a nós.39

Temos que admitir que existem verdades permanentes e fatos históricos que não
podemos simplesmente desejar descartar ou passar como interpretação e opinião.
Podemos querer manter o controle, mas essa atitude não muda a forma como as
coisas são.
Quarto, se uma pessoa não acredita que existam interpretações legítimas, diga
brincando: “Essa é apenas a sua interpretação da minha interpretação!” Em ou-
tras palavras, se tudo é uma questão de interpretação, opinião e giro, então por que
a pessoa com quem você está falando deveria acreditar que interpretou correta-
mente suas palavras? Essa pessoa não assume que ele fez isso? Ele não acredita
que as diferenças entre as visões não são uma questão de interpretação, que exis-
tem diferenças reais e óbvias entre elas? Talvez você possa levar esse assunto adi-
ante: “Acho que nossas interpretações são idênticas. Você está apenas usando uma
linguagem diferente para expressar a sua.” Claro, seu amigo provavelmente resisti-
rá ao seu argumento, argumentando que você realmente discorda. E este é exata-
mente o ponto: nem tudo é uma questão de interpretação; existem interpretações
conflitantes e nem todas podem ser verdadeiras.
Quinto, algumas interpretações são melhores que outras, e ver isso simples-
mente não é uma questão de interpretação. Alguns afirmam que na crença talmú-
dica judaica, cada passagem da Torá (a lei de Moisés) contém quarenta e nove in-
terpretações diferentes. Em uma história, um aluno procura seu rabino e oferece
uma interpretação de uma passagem. O rabino diz: “Não, você está completamente
errado”. Chocado, o aluno pergunta: “Mas não há quarenta e nove significados pa-
ra cada passagem?” O rabino responde: “Sim, mas o seu não é um deles.”40 Da
mesma forma, algumas pessoas concluem que, como há tantos criadores de conte-
údo e criadores de palavras por aí, distorcendo palavras e ideias para caber em suas
agendas, qualquer interpretação sugerida é, portanto, legítima. Mas reconhecemos
que algumas interpretações são melhores ou mais plausíveis do que outras. E se for
assim, então assumimos que uma interpretação – ou pelo menos uma série de in-
terpretações – se ajusta melhor à verdade do que outras.
Os advogados na América não têm a maior reputação. Aqui está uma piada de
advogado que ouvi: por que os advogados estão enterrados a doze pés abaixo da
terra em vez de seis pés abaixo? Resposta: Porque no fundo, eles são pessoas mui-

39
John R. Searle, Mind, Language, and Society: Philosophy in the Real World (New York: Basic, 1998),
17.
40
Extraído de Nicholas Rescher, Objectivity: The Obligations of Impersonal Reason (Notre Dame: University of No-
tre Dame Press, 1997), 202.
33

to boas! Durante as eleições presidenciais de novembro de 2000, testemunhamos


como os advogados podiam contornar as leis eleitorais estabelecidas na Flórida, ir
a tribunal e fazer com que as leis fossem reescritas ou reformadas pelos juízes para
garantir mais votos. Embora certamente existam muitos bons advogados por aí, a
impressão geral é de que eles são mestres em rodeios e interpretações. Não importa
qual seja a posição ou argumento anterior de um advogado, ele pode habilmente
distorcer as palavras mais tarde para se esquivar do buraco em que se meteu! Mas
temos que perguntar: “Existe algum ponto em que um desses spin meisters admiti-
rá que está errado? É realista para nós pensar que alguém sempre estará certo em
sua interpretação?” Não é difícil concluir que uma agenda pessoal ou moral está
conduzindo a discussão em vez de honestidade e justiça. Portanto, temos motivos
para levantar uma sobrancelha cética em relação a tais manobras. Não importa o
quanto algumas pessoas afirmem que todas as reivindicações de verdade são uma
questão de interpretação, em algum ponto inconsistências flagrantes surgirão.
O filósofo cristão J. P. Moreland conta a história de um encontro esclarecedor
com um estudante da Universidade de Vermont. Moreland estava falando em um
dormitório, e um estudante que morava lá disse a ele: “Tudo o que é verdade para
você é verdade para você, e tudo o que é verdade para mim é verdade para mim.
Se algo funciona para você porque você acredita, ótimo. Mas ninguém deve impor
suas opiniões a outras pessoas, pois tudo é relativo.”41 Quando Moreland saiu da
sala, ele desligou o aparelho de som do aluno e saiu pela porta com ele.

O aluno protestou: “Ei, o que você está fazendo? Você não pode fazer isso!
Moreland respondeu: “Você não vai me forçar a acreditar que é errado roubar
seu aparelho de som, vai?”

Moreland continuou apontando que, quando é conveniente, as pessoas dizem que


não se importam com moralidade sexual ou cola nas provas, mas se tornam absolu-
tistas morais com pressa quando alguém rouba suas coisas ou viola seus direitos.
Eles abandonam a mentalidade de “essa é apenas a sua interpretação” rapidamente.
Eles acreditam que certos direitos ou a reivindicação de propriedade não é uma
questão de “sua interpretação” versus “minha interpretação”. A questão da morali-
dade não é meramente uma questão de interpretação ou opinião.
Sexto, aqueles que recorrem a “essa é apenas a sua interpretação” acreditam
implicitamente que estão certos e que aqueles que discordam deles estão errados.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche declarou: “Não existem fatos – apenas in-
terpretações”. Muitos hoje pegam essa citação e a citam livremente para endossar
uma espécie de relativismo. No entanto, a questão permanece: essa afirmação em
41
Recontado em J. P. Moreland, Love Your God with All Your Mind (Colorado Springs: Navpress, 1997),
153–54
34

si é um fato ou apenas uma interpretação? Se for um fato, então esta declaração


deve ser alterada: “Não há fatos – exceto um: que não há fatos!” Assim, é auto-
refutável. Por outro lado, se esta afirmação é meramente uma interpretação, então
por que levá-la a sério? Com toda a probabilidade, a pessoa que cita esta linha
acredita que sua declaração é factual, não apenas outra interpretação.
Embora existam muitas perspectivas sobre muitas coisas, isso não significa que
não possamos tirar conclusões verdadeiras sobre certos assuntos; não estamos ape-
nas atolados na lama da interpretação. Mesmo que vejamos as coisas de diferentes
perspectivas, isso não significa que não podemos concordar com a verdade de mui-
tas coisas. Quando confrontado com “essa é apenas a sua interpretação”, pergunte
à pessoa:

• Existe alguma perspectiva errada?


• A perspectiva de alguém pode estar correta?
• Por que você discordaria de outra interpretação? O que importa se tudo é in-
terpretação e não há verdade?
• É verdade universal que tudo é uma questão de interpretação?

Fazer essas perguntas pode ajudar a revelar algumas das implausibilidades e in-
consistências dessa posição.

RESUMO

• Pergunte gentilmente: “Você quer dizer que sua interpretação deve ser pre-
ferida à minha? Em caso afirmativo, gostaria de saber por que você escolheu
sua interpretação em detrimento da minha. Você deve ter um bom motivo.
• Lembre a seu amigo que você está disposto a justificar sua posição e que
não está simplesmente adotando um determinado ponto de vista de forma
arbitrária.
• Tente discernir se as pessoas jogam fora este slogan porque não gostam da
sua interpretação. Lembre-os de que há muitas verdades que devemos acei-
tar, mesmo que não gostemos delas.
• Se alguém não acredita que existam interpretações legítimas, diga: “Essa é
apenas a sua interpretação da minha interpretação!” Ele assume que inter-
pretou corretamente o seu ponto de vista e que é diferente do dele.
• Algumas interpretações são melhores que outras, e ver isso simplesmente
não é uma questão de interpretação.
• “Não há fatos, apenas interpretações” é uma afirmação apresentada como
um fato. Se for apenas uma interpretação, não há razão para levar a sério.
35
36

ESSA É APENAS A SUA REALIDADE

E
m setembro de 1998, escrevi uma carta ao editor do The Wheel, o jornal
estudantil da Emory University em Atlanta. Um aluno havia escrito um
ensaio sobre a natureza da realidade.42 Ele afirmou que a realidade é como
um pedaço de barro molhado - podemos moldá-lo da maneira que quisermos. Por-
tanto, minha realidade pode ser completamente diferente — e tão legítima —
quanto a sua. Mas, nesse mesmo artigo, ele se contradisse ao afirmar exatamente o
oposto — a saber, que a realidade é moldada por forças poderosas além do nosso
controle. Ele afirmou que qualquer pessoa que tenha assistido ao The Truman
Show ou a qualquer estudante de sociologia sabe que as forças sociais determinam
a realidade em que nos encontramos.
Não é de surpreender que os dois pontos opostos apresentados por esse aluno
sejam populares em nossos dias:

1. Todos nós podemos moldar a realidade da maneira que escolhermos.


2. A realidade é moldada para nós por fatores independentes de nós (por
exemplo, genética, história, cultura, linguagem); portanto, tudo o que cada
um de nós pode reivindicar é: “Esta é a minha perspectiva”. Não podemos
dizer: “Isto é verdade”.

Ambos (1) e (2) não podem ser verdadeiros. Este capítulo examina a questão da
criação da realidade. No próximo capítulo, veremos a questão das forças além de
nosso controle que, em última instância, moldam a realidade.43
Primeiro, a realidade é aquilo que é, aquilo que existe. O pai da igreja, Agosti-
nho, escreveu em suas Confissões: “O que, então, é o tempo? Se ninguém me per-

42
Scott Smith, “Each Individual Possess Ability to Shape [His or Her] Own Reality, Control Fate,” The
Wheel, 8 de setembro de 1998. Minha resposta foi publicada em The Wheel em 15 de setembro de 1998
(www.cc.emory.edu/WHEEL /).
43
Grande parte do material deste e do próximo capítulo foi retirado de meu livreto Is Everything Really
Relative? 11–20.
37

guntar, eu sei; se eu quiser explicar para alguém que me pergunta, eu não sei”.44
Talvez alguns de nós pensem da mesma maneira sobre a realidade - sabemos o que
é até que alguém nos pergunte! Enquanto estava em uma loja de brinquedos, mi-
nha esposa apontou para um saco de pedras douradas. O rótulo dizia: “Réplicas au-
tênticas de pepitas de ouro”. É como dizer “uma imitação genuína” ou “uma farsa
verdadeira”! Soa bastante vazio, não é?
O que é então a realidade? O ciberespaço é real? Os jornais relatam o que real-
mente aconteceu? A realidade está confinada a coisas que podem ser percebidas ou
sentidas? Embora abordemos indiretamente esses tipos de questões abaixo, diga-
mos simplesmente que a realidade é aquilo que é, aquilo que existe. Portanto, um
unicórnio não é real, pois não existe. Mas a realidade inclui coisas físicas como
mesas, cadeiras, árvores e pedras, e também inclui entidades espirituais como
Deus, anjos e almas humanas. E se algo é verdadeiro, corresponderá ao que é, ao
que existe. Como resultado, verdades matemáticas como 2+2=4 podem ser consi-
deradas reais. Proposições como “bondade é uma virtude” ou proposições sobre si-
tuações passadas, presentes ou futuras realmente existem.45
Em segundo lugar, embora tenhamos a capacidade de criar certas realidades
por meio de nossas escolhas e ações, devemos reconhecer certas realidades imu-
táveis sobre as quais não temos controle. Deepak Chopra, um médico de Nova
Délhi, Índia, está envolvido na promoção de uma mistura de ideias da Nova Era
(incluindo meditação transcendental) e medicina. Ele enviou uma carta promocio-
nal para seu livro The Higher Self, que dizia:

Querido amigo:

Você é sua própria realidade.


Você o cria; você o carrega consigo; e, o mais importante, você o projeta em todos os ou-
tros e em tudo o mais que encontra.
Mas a noção ocidental tradicional de realidade é muito limitante para uma verdadeira rea-
lização da vida. Se você deseja entender a si mesmo e ao mundo ao seu redor adequadamen-
te, precisa expandir os limites da realidade - de tempo, espaço e matéria.
Depois de fazer isso, você pode alinhar a energia do seu corpo físico com a energia do
universo. Ao fazer isso, você acessa um reservatório infinito de inteligência.
Este é o Eu Superior. O “você” dentro de você. A força viva que sabe por que você está
aqui na terra, o que você precisa e como conseguir.46

44
Augustine, Confessions, 11.14.
45
Proposições de verdade sobre o passado (“A Guerra dos Cem Anos ocorreu durante os anos de 1337 a
1453”) ou o futuro (“Jesus voltará”) podem ser consideradas reais mesmo que não estejam ocorrendo no
presente.
46
Citado em John P. Newport, The New Age Movement and the Biblical Worldview (Grand Rapids: Eer-
dmans, 1998), 348-49.
38

Chopra afirma que podemos criar a realidade, mas isso é óbvio ou claro? Parece
tolice negar nossa capacidade de provocar certos eventos que não teriam existido
se não tivéssemos agido. Se eu não tivesse decidido escrever um livro, um livro
meu não existiria. Um casal pode optar por comer fora em vez de preparar o jantar
em casa; eles têm a capacidade de produzir mudanças reais por meio da execução
de suas decisões.
Ou veja filmes como O Mágico de Oz, The Matrix e What Dreams May Come,
que são “realidades criadas”. Esses filmes reúnem arte de fundo, efeitos especiais,
imagens geradas por computador sobrepostas e afins. Em certo sentido, temos o
poder de “criar” o que de outra forma não teria acontecido.47 Mas isso não está em
questão. Claramente, há imagens que são meramente virtuais. Eles são reais apenas
em efeito e não em fato real. Sabemos que assim que o filme terminar, podemos
voltar à “vida normal” – mesmo que com gratidão por não existir um mundo seme-
lhante ao Matrix. Como exploraremos mais detalhadamente abaixo, no entanto,
existem certas realidades que devemos reconhecer, em vez de desejar.
Terceiro, a pessoa que acredita que a realidade é como um pedaço de barro
molhado diz algo autocontraditório ou apenas trivial. Ele acredita que sua visão é
uma realidade universal ou é apenas algo que ele mesmo criou, o que significa
que não se aplica a outros. Gary Zukav, um autor best-seller, começa seu livro
Soul Stories com a frase: “Este é um livro de histórias verdadeiras”.48 Mas o que
exatamente ele quer dizer? Às vezes, as histórias são sobre eventos que realmente
aconteceram; outras vezes não são (ou são uma combinação dos dois).
Ele conta sobre um repórter que conversou com um ancião dos Lakota, uma tri-
bo nativa americana. A tribo conta uma história sobre a mulher bezerra de búfalo
branco que lhes deu seu cachimbo sagrado. Questionado se essa história é verda-
deira, o ancião respondeu: “Não sei se realmente aconteceu assim ou não, mas vo-
cê pode ver por si mesmo que é verdade”.49 Claro, histórias podem ser contadas
que comunicam verdades. As fábulas de Esopo e as parábolas de Jesus não descre-
vem eventos reais, mas ensinam verdades importantes. Mas não é isso que Zukav
significa. Ele continua: “Você pode descobrir que algo que é verdade para outra
pessoa não é verdade para você. Você também pode descobrir que algo que é ver-
dade para você não é verdade para outra pessoa. . . . Você tem que decidir.50 Zukav
afirma que criamos o que é verdadeiro e real.
Disseram a você: "Essa é apenas a sua realidade". Ou talvez você já tenha ouvi-
do: “É real se for real para você”. Como respondemos? Perguntemos à pessoa que

47
Paul K. Moser, Dwayne H. Mulder e J. D. Trout, The Theory of Knowledge: A Thematic Introduction
(Nova York: Oxford University Press, 1998), 61.
48
Gary Zukav, Soul Stories (Nova York: Simon and Schuster, 2000), 15.
49
Ibid.
50
Ibid., 16.
39

diz que cada um de nós pode customizar nossa própria realidade se ela realmente
acredita nisso. Se ele disser que sim, podemos dizer a ele: “Então você acredita
que há pelo menos uma coisa que não pode ser moldada pelos seres humanos – is-
to é, a realidade incontestável de que todos podem moldar sua própria realidade”.
Em outras palavras, se algo é real para ele, mas não para mim, então ele acredita
que a seguinte afirmação é inegável: É absolutamente verdade que algo pode ser
real para uma pessoa, mas não para outra. Se isso for verdade, então há pelo menos
uma coisa que se aplica universalmente a todas as pessoas, e isso contradiz o que
ele originalmente afirmou.
Ou podemos perguntar a ele: “Sua ideia – de que cada um de nós pode moldar
nossa própria realidade – nada mais é do que uma realidade que você mesmo cri-
ou? Essa ideia de barro úmido é algo que você inventou? Se sim, por que você
acha que isso se aplica a mim?” Claro, nosso amigo certamente parece estar dizen-
do que seu ponto de vista se aplica a todos. Nesse caso, ele se contradisse. Ele fi-
nalmente acredita que nem toda realidade pode ser criada. Algumas coisas são re-
ais ou existem, sobre as quais não podemos fazer absolutamente nada.
Existe pelo menos alguma realidade objetiva que se aplica a todos e que não
pode ser alterada por nós. Não estamos sendo “arrogantes” ou “imperialistas”, por-
tanto, se afirmamos que algum aspecto da realidade não pode ser manipulado pelo
pensamento ou ação humana. Se uma pessoa discorda fortemente de nós, presumi-
velmente o fará com base em uma realidade que pensa se aplicar a ambas as par-
tes! Portanto, mesmo que uma pessoa esteja incorreta sobre o que é realmente real,
todos inevitavelmente acreditam que existe algum tipo de realidade objetiva. Sen-
do assim, a discussão pode ir além da pergunta: “Existe realidade objetiva?” para,
“Dado que a realidade objetiva é inevitável, como posso justificar ou apoiar minha
compreensão da realidade objetiva?”
Quarto, até onde queremos ir em nossa criação de realidade – a ponto de ne-
gar o mal e o sofrimento no mundo? Tal visão é implausível à primeira vista. En-
quanto digito essas palavras, estou no sul da Índia — uma terra de paisagens de ti-
rar o fôlego, arquitetura magnífica, povo hospitaleiro e também dos melhores pra-
tos que já comi. Apesar disso, grande parte da população da Índia vive na miséria e
na pobreza. Quando visitei Calcutá em 1984, fiquei impressionado com o fato de
que tantas pessoas — literalmente centenas e centenas de milhares — eram desa-
brigadas e dormiam nas calçadas e nas estações ferroviárias. O pensamento me
ocorreu: “Vou voltar para os Estados Unidos e essas pessoas empobrecidas conti-
nuarão a viver como estão”. Mas nosso amigo criador da realidade não está afir-
mando que a pobreza, doenças como AIDS, poluição e outros problemas podem
ser erradicados simplesmente fabricando sua própria realidade? Talvez uma visita
a lugares como Calcutá trouxesse algum realismo a essa conversa antirrealista! O
mais pobre dos calcutás não pode se dar ao luxo de fabricar uma realidade livre de
40

problemas. Essa “solução” vazia para curar os males do mundo é literalmente ina-
creditável.
Quinto, acreditar sinceramente em algo não o torna real. Algumas coisas não
podem se tornar reais ou verdadeiras, não importa quão sincera seja nossa cren-
ça. Além disso, acredita-se que essa convicção (“a crença sincera a torna real”)
seja uma realidade universal à parte de qualquer pessoa que acredite nela since-
ramente. De acordo com alguns, a realidade é o que você sinceramente acredita
que ela seja. A sinceridade, eles acreditam, torna algo real. Por exemplo, se eu
acredito sinceramente que o marxismo ou alguma forma de filosofia oriental é ver-
dade, então de alguma forma isso se torna verdade. Mas posso pensar em várias
coisas que são falsas ou erradas, não importa o quão sinceramente alguém possa
acreditar que são verdadeiras ou boas: assassinato em série sincero, estupro since-
ro, tortura sincera de vítimas inocentes, tiroteios aleatórios sinceros, fascismo sin-
cero, satanismo sincero. Sinceridade não faz 2+2=5, nem altera a lei da gravidade.
A crença sincera não trará de volta dos mortos um ente querido perdido. Sinceri-
dade não vai mudar o fato de que meu time de beisebol favorito, o Cleveland Indi-
ans, perdeu a World Series para o Atlanta Braves em 1995 e depois para o Florida
Marlins em 1997.
Você pode ter visto o adesivo que diz: “Deus disse! Eu acredito nisso! Isso re-
solve! Mas vamos nos perguntar: “Se Deus existe e se comunica com os seres hu-
manos, então como minha crença (ou não) resolve alguma coisa?” Uma tradução
mais precisa desse slogan seria: “Deus disse isso! Isso resolve, quer eu acredite ou
não!” Temos que diferenciar entre a verdade de uma crença particular e a crença
(ou o ato de acreditar) em si. Por exemplo, é verdade que 2+2=4. Mas esta ou
aquela pessoa pode não acreditar que 2+2=4. Como minha crença sincera em algo
o torna verdadeiro? Tinha sido falso antes e então se tornou verdadeiro? Por que,
em vez disso, não aceitar a intuição de bom senso que compartilhamos e vivemos
todos os dias - que as coisas são verdadeiras ou falsas, acreditemos nelas ou não?
Afinal, acreditar sinceramente não vai acabar com o tráfego na hora do rush ou
com as crescentes contas de serviços públicos! Se formos honestos, temos que ad-
mitir que muitas coisas não estão sob nosso controle.
Além disso, este critério de “crença sincera” para a verdade é em si uma regra
fixa e absoluta daqueles que a proclamam. Em essência, eles dizem: “Você está er-
rado e equivocado se discordar da minha visão de que a crença sincera torna algo
verdadeiro”. A pessoa que acredita que a realidade não é criada pela sinceridade
pode responder: “E se eu sinceramente acreditar que acreditar em algo sinceramen-
te não torna algo verdadeiro?” Essa questão revela a natureza autocontraditória da
noção de que a verdade é criada pela crença sincera. Se fosse, esses dois crentes
sinceros estariam corretos - embora mantendo pontos de vista contraditórios. A
41

pessoa de crença sincera acredita que seu critério é verdadeiro e que aqueles que
discordam - mesmo sinceramente - estão errados.
Como eu disse antes, nossas escolhas atuais fazem a diferença e dão forma a
certas realidades. Mas o ponto crucial é este: uma vez que tenhamos feito uma es-
colha, é uma realidade inalterável que a escolha não pode ser desfeita. Ou seja, é
metafisicamente (ou na realidade) impossível mudar o passado – seja por humanos
ou por Deus. (Lembre-se de que o poder de Deus não se estende a noções autocon-
traditórias ou sem sentido, como fazer círculos quadrados ou fazer uma pedra tão
grande que ele não possa levantá-la. Nenhum poder pode provocar esses estados
de coisas. Da mesma forma, isso também se aplica a “desfixando” o passado ne-
cessariamente fixo.) O passado tem uma certa “dureza” que o futuro não tem. Ne-
nhuma quantidade de manipulação humana pode alterar o que já aconteceu. Por-
tanto, o passado – a história – é uma realidade que devemos reconhecer; não é um
pedaço de barro úmido para moldar da maneira que quisermos. Vemos, portanto,
que toda a realidade não pode ser moldada por nossa escolha ou por nossa crença
sincera, e devemos enfrentar esse fato.
Também devemos lembrar o que John Searle disse sobre o antirrealismo: ele sa-
tisfaz um desejo básico de ter poder. As pessoas não gostam de estar à mercê do
mundo real, de viver de acordo com ele, de reconhecer certos constrangimentos.51
O anti-realismo é em grande parte motivado por um desejo de controle. Claro, esse
fator de motivação não refuta o antirrealismo. (É por isso que procuramos razões
para rejeitá-lo.) Mas é importante manter esse fator em mente ao conversar com
antirrealistas. Talvez conversas graciosas e amizades exponham algumas dessas
motivações, bem como forneçam amplas razões pelas quais não precisamos desis-
tir de um realismo sério que reconhece as limitações humanas e está disposto a en-
frentar as duras realidades da vida.

RESUMO

• Aquilo que é real existe (seja físico, espiritual, proposicional e assim por di-
ante).
• Temos a capacidade de provocar certos eventos ou estados de coisas por
meio de nossas escolhas e ações.
• Mas há muitas coisas que não são simplesmente “reais para você, mas não
para mim”. Existem muitas coisas que são reais para nós dois e que não te-
mos poder para mudar (por exemplo, o passado, a gravidade, as verdades
matemáticas, as duras realidades da vida).

51
Searle, Mind, Language, and Society, 17.
42

• A pessoa que acredita que a realidade é como um pedaço úmido de argila


que podemos moldar da maneira que quisermos acredita que esta é uma rea-
lidade universal — não apenas para ela.
• Responda ao antirrealista perguntando: “Se algo é real para você, mas não
para mim, você não acredita na seguinte verdade: é absolutamente verdade
que algo pode ser real para uma pessoa, mas não para outra”? Se isso for
verdade, então há pelo menos uma coisa que se aplica universalmente a to-
das as pessoas.
• Se uma pessoa acredita que a ideia do pedaço de barro molhado é apenas al-
go que ela criou e nada mais, então você pode perguntar: “Por que você acha
que isso se aplica a mim?”
• Se a crença sincera torna algo real, então esse ponto de vista é universal e
absoluto? E se eu sinceramente acreditar que a crença sincera não torna algo
real? Ambos os pontos de vista obviamente não podem ser verdadeiros.
• Não devemos esquecer que a motivação para o poder ou controle está por
trás de muito do antirrealismo hoje. Embora este ponto em si não seja um
argumento contra o antirrealismo, é importante levá-lo em consideração.
43
44

A REALIDADE É MOLDADA POR FORÇAS


ALÉM DO NOSSO CONTROLE

A
nteriormente mencionei The Truman Show, um filme sobre um homem
chamado Truman Burbank cuja vida é literalmente um programa de TV
em um ambiente protegido chamado Seahaven. Todos em sua vida são
atores, e esse “mundo dentro de um mundo” é equipado com cinco mil câmeras
que monitoram cada movimento de Truman. Ele pensa que seu mundo é a realida-
de. No filme, Christof é o produtor de The Truman Show e o manipulador da vida
de Truman. Ele diz: “Embora o mundo que [Truman] habita seja um tanto falsifi-
cado, Truman é genuíno”. Marlon, um “amigo” artificial de Truman, diz sobre o
programa: “É tudo verdade. É tudo real. Nada aqui é falso. . . . É meramente con-
trolado. Este filme e outros, como Matrix, levantam questões interessantes sobre a
realidade.
No capítulo anterior, vimos que a realidade não é um pedaço de barro úmido
que pode ser modelado da maneira que quisermos. Neste capítulo, examinaremos a
visão de que a realidade é moldada por certas forças sociológicas ou biológicas
além de nosso controle. Essa segunda visão sobre a realidade é uma espécie de de-
terminismo. Isto é, tudo o que pensamos, fazemos ou dizemos pode, em última
análise, ser atribuído a uma série anterior de causas e efeitos. O presente foi deter-
minado pelo passado. A conclusão que as pessoas tiram dessa suposição é: não
importa o quanto tentemos obter objetividade ou chegar à verdade sobre um assun-
to, nosso contexto histórico e cultural ou nossa composição genética acabam nos
dominando. Assim, tudo o que podemos dizer é: “Esta é apenas a minha perspecti-
va” – e nada mais.
No cenário em questão, as pessoas afirmam que não temos poder para criar nos-
sa própria realidade. Em vez disso, foi determinado para nós por forças além do
nosso controle.
45

Primeiro, embora devamos reconhecer nossas limitações, preconceitos e pers-


pectivas, não estamos condenados por nosso ambiente a uma mera “perspectiva”.
Alguma medida de objetividade é possível. Antes de examinar essa questão, po-
rém, devemos reconhecer a verdade humilhante sobre nós mesmos: somos limita-
dos e nunca somos tão objetivos quanto gostaríamos de ser. Nosso ambiente cultu-
ral, histórico familiar, lugar na história e uma série de outros fatores podem distor-
cer nossas percepções. Não somos indivíduos 100% isentos de preconceitos e pu-
ramente objetivos. Essa é a desvantagem. Em uma nota mais positiva, ainda po-
demos alcançar a objetividade, apesar de uma série de influências que nos mol-
dam. Negar a possibilidade de qualquer declaração de verdade ou qualquer objeti-
vidade é declarar o seguinte como um fato verdadeiro e objetivo: É objetivamente
verdadeiro que não podemos conhecer algo como objetivamente verdadeiro! Mais
uma vez, a verdade é inevitável.
Em segundo lugar, aqueles que afirmam que somos determinados puramente
por certas forças ou por nada mais que a genética não acreditam realmente nisso.
Aqueles que dizem que fomos determinados por forças sociais ou genéticas não
acreditam que eles próprios tenham sido. Quando alguém diz: “Somos apenas pro-
dutos de nosso ambiente ou de nossos genes”, ela não acredita que essa afirmação
nada mais seja do que o produto de seu ambiente ou de seus genes. Ela acredita
que há boas razões para sustentar tal ponto de vista, que tal ponto de vista foi refle-
tido e concluído racionalmente; portanto, ela se torna uma exceção à sua própria
regra. Além disso, se esse determinista realmente acreditasse em sua própria decla-
ração, então ela teria que afirmar outra contradição: ela teria que dizer que ambas
(1) suas opiniões sobre qualquer coisa e (2) todas as opiniões opostas estariam no
mesmo nível, já que ambas as partes são produtos da cultura ou genes ou o que
quer que seja. Se nosso ambiente, cultura ou composição genética é responsável
pelo que pensamos e fazemos, então parece não haver uma maneira racional de di-
zer qual visão (se houver) é verdadeira.
O geneticista e vencedor do Prêmio Nobel, Francis Crick, escreve em seu livro
The Astonishing Hypothesis:

A Surpreendente Hipótese é que “Você”, suas alegrias e tristezas, suas memórias e ambições,
seu senso de identidade pessoal e livre arbítrio, são de fato nada mais do que o comportamen-
to de um vasto conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas. . . . Essa hipótese é
tão estranha às ideias da maioria das pessoas hoje que pode ser verdadeiramente chamada de
“espantosa”.52

52
Francis Crick, The Astonishing Hypothesis: The Scientific Search for the Soul (Nova York: Charles
Scribner's Sons, 1994), 3.
46

Pelo contrário, o que é realmente surpreendente é o que Crick não consegue ver: se
Crick estiver certo, então seu livro é “não mais do que o comportamento de um
vasto conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas”! Crick dá a im-
pressão de que ele, ao contrário do resto de nós, conseguiu de alguma forma esca-
par das forças fisiológicas que determinam o que o resto de nós pensa. (Isso é
chamado de “falácia da autoexceção”.) Ele dá a impressão de que suas células ner-
vosas específicas e suas moléculas associadas não têm absolutamente nada a ver
com suas conclusões “racionais”.
Alguns anos atrás, em um avião para Boston, sentei-me ao lado de um ateu obs-
tinado. Ele falou comigo em um tom um tanto condescendente, como se a crença
em Deus fosse antiquada e estranha — embora intrigante. Quando conversei com
ele sobre valores morais objetivos, ele afirmou que eles não existem. Ele disse: “O
que chamamos de moralidade é “nada mais do que uma tentativa de sobreviver e
reproduzir. Na verdade, tudo o que fazemos nada mais é do que nossa luta para so-
breviver e nos reproduzir.”
Eu respondi: “Isso significa que suas próprias crenças ateístas nada mais são do
que uma tentativa de sobreviver e se reproduzir? Se você seguir esse caminho, terá
que admitir que tanto o seu ateísmo quanto o meu teísmo nascem do mesmo instin-
to subjacente de sobreviver e se reproduzir, e não há como dizer qual de nós está
correto - ou se ambos estamos errados. .”
Na mesma linha, o behaviorista faz esta afirmação: Os seres humanos nada
mais são do que o produto de sua formação pessoal; a liberdade é uma ilusão e
nossas escolhas são simplesmente o resultado previsível de uma série de condições
preexistentes. O famoso behaviorista e autor de Walden Two, B. F. Skinner, decla-
rou: “Se estou certo sobre o comportamento humano, escrevi a autobiografia de
uma não-pessoa. . . . Até onde sei, meu comportamento em determinado momento
não foi nada mais do que o produto de minha dotação genética, minha história pes-
soal e o cenário atual.”53 Mas, novamente, a própria declaração de Skinner não de-
ve ser tomada como uma afirmação de uma verdade objetiva. Em vez disso, o que
ele disse era “nada mais do que o produto de [sua] dotação genética, [sua] história
pessoal e o cenário atual”. Assim, não há nenhuma boa razão para acreditar no que
ele afirmou. Se Skinner estava correto, foi puramente por acaso.
A perspectiva do pensador pragmatista Richard Rorty tem uma semelhança fa-
miliar com a de Skinner. Rorty afirma que nada pode ser dito sobre verdade ou ra-
cionalidade além das descrições de sua própria sociedade.54 O problema aqui é que

53
B. F. Skinner, “Origins of a Behaviorist,” Psychology Today 17, no. 9 (setembro de 1983). “Se estou
certo sobre o comportamento humano, escrevi a autobiografia de uma não-pessoa” (32). Por que ele pen-
sa isso? Ele diz: “Até onde eu sei, meu comportamento em um determinado momento não foi nada mais
do que o produto de minha dotação genética, minha história pessoal e o cenário atual” (25).
54
Richard Rorty, Objetividade, Relativismo e Verdade: Documentos Filosóficos, vol. 1 (Cambridge:
Cambridge University Press, 1991), 23.
47

Rorty está sendo etnocêntrico e, portanto, arbitrário. Por que deveríamos conside-
rar nossa sociedade como o delimitador da verdade ou do conhecimento? Por que
deveríamos pensar que nossa sociedade – ao contrário de qualquer outra – tem o
monopólio dessa questão? E por que pensar que não podemos aprender com outras
sociedades e adotar algumas de suas práticas ou habilidades de conhecimento?55
Além disso, parece que o que Rorty afirma atravessaria culturas e sociedades.
O estudo da história confirma outro exemplo esclarecedor. Keith Windschuttle,
um historiador australiano, documentou em seu livro The Killing of History o de-
clínio do estudo histórico sério. Até recentemente, o conhecimento sobre a história
era considerado acessível:

Durante a maior parte dos últimos 2.400 anos, a essência da história continuou sendo tentar
dizer a verdade, descrever da melhor maneira possível o que realmente aconteceu. Ao longo
desse tempo, é claro, muitos historiadores foram expostos como equivocados, opinativos e
muitas vezes completamente errados, mas seus críticos geralmente se sentiram obrigados a
mostrar que estavam errados sobre coisas reais, que suas afirmações sobre o passado eram di-
ferentes das coisas que realmente ocorrido. Em outras palavras, os críticos ainda operavam
com base na suposição de que a verdade estava ao alcance do historiador.56

Desde o início da década de 1990, no entanto, os historiadores têm cada vez mais
desacreditado que haja qualquer distinção entre mito e fato, entre ficção e não-
ficção: “Os teóricos dominantes nas ciências humanas e sociais afirmam que é im-
possível dizer a verdade sobre o passado ou usar a história para produzir conheci-
mento em qualquer sentido objetivo”.57 A escrita da história não é virtualmente di-
ferente da propaganda. Ou pode ser visto como a tentativa de um grupo racial, so-
cial ou político de afirmar poder sobre outro. Críticos literários e teóricos sociais
estão agora escrevendo suas próprias versões da história.
Isso nos leva a perguntar: “E quanto a esses próprios historiadores que afirmam
que escrever a história nada mais é do que afirmar o poder ou nada mais do que
um reflexo de ideias culturais em constante mudança? O que devemos fazer com a
alegação de que não podemos distinguir entre ficção e não-ficção?” Como você
provavelmente concluiu, tais afirmações acabam se tornando autocontraditórias ou
não dizem nada. Por um lado, o “especialista” que afirma que não podemos distin-
guir entre ficção e não-ficção na história realmente não acredita nisso. Afinal, ele
acredita que pelo menos sua afirmação não é fictícia! Ele espera que seu público
considere o que ele está dizendo como factual e não mítico. Ele certamente não
quer que eles se perguntem: “Este estudioso está me dando fatos ou ficção?” As-

55
Paul K. Moser, Philosophy after Objectivity: Making Sense in Perspective (Nova York: Oxford Uni-
versity Press, 1993), 167.
56
Keith Windschuttle, The Killing of History (Nova York: Free Press, 1996), 1.
57
Ibid., 2.
48

sim, o historiador relativista se contradiz ao fazer de seus próprios pontos de vista


a exceção à regra. Por outro lado, se toda a escrita da história é uma afirmação de
poder ou o produto do ambiente social de alguém, então a pessoa que faz essa
afirmação não está fazendo nada além de exercer poder ou expressar o que seu
ambiente social determinou para ele acreditar. Em outras palavras, ele não diz nada
significativo. Sua visão não é diferente da próxima pessoa. Ambas as visões foram
moldadas por fatores externos.
Como observamos anteriormente, o slogan “Não há fatos, apenas interpreta-
ções” (que brota da crença de que estamos completamente vinculados ao contexto)
é vítima desse problema: a pessoa que afirma essa afirmação se torna uma exceção
a ela. Claramente, aquele que diz isso acredita que sua declaração é factual, não
meramente interpretativa.
Aqui está outro slogan relacionado com a suposta incapacidade de falar sobre a
realidade objetiva devido ao fato de termos sido moldados por forças fora do nosso
controle: “Não há realidade, apenas aparências”. Woody Allen certa vez refletiu:
“E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, definitivamente paguei de-
mais pelo meu carpete.” No entanto, a pessoa que declara essa visão apenas das
aparências acredita que pelo menos esse ponto de vista reflete adequadamente a
realidade. E, além disso, se não há realidade, as próprias aparências ainda não são
reais?
O seguinte slogan é bastante comum em muitos meios acadêmicos: “A verdade
(ou um texto) é apenas uma afirmação de poder”. A atmosfera de muitas universi-
dades americanas é politicamente carregada, e atacar os “homens brancos mortos”
tornou-se uma espécie de indústria caseira ultimamente.58 O cânone ocidental de
“grandes livros” de Platão, Shakespeare e Milton foi seriamente desafiado por pro-
fessores radicais e grupos politizados de campus. Eles afirmam que qualquer afir-
mação de verdade ou autoridade em um texto é meramente ideológica – uma tenta-
tiva de afirmar o poder individual ou grupal sobre os outros. Em vez disso, pode-
mos fazer com que os textos digam o que queremos; não há “intenção autoral” pa-
ra descobrir. E o que há em um texto que lhe dê objetividade afinal? Somos todos
limitados pela cultura e socialmente limitados. Por que um grupo étnico ou grupo
de interesse deve ser preferido em detrimento de outro? Como podemos falar sobre
realidade objetiva ou verdade?
O problema com a mentalidade de verdade como poder ou texto como poder é
que (1) nem sempre é verdade e (2) e daí? Existem muitas verdades que não têm
nenhum poder associado a elas. “Está frio no Pólo Norte” e “Minha camisa é ver-
de” são afirmações verdadeiras, mas pronunciá-las dificilmente é uma questão de
empurrar o peso proposicional de alguém. A verdade não necessariamente conota
58
Sobre essas questões relacionadas à politização da universidade, ver Dinesh D’Souza, Illiberal Educa-
tion: The Politics of Race and Sex on Campus (New York: Free Press, 1991).
49

poder. Mas mesmo que a verdade ou os textos afirmem o poder, e daí? A afirma-
ção (presumivelmente verdadeira) de que a verdade ou os textos afirmam o poder
também afirmam o poder. Isto é, se toda afirmação de verdade é uma afirmação de
poder, então dizê-lo também é uma afirmação de poder. E se os textos são tentati-
vas de exercer poder, também o são os textos que tentam nos dizer isso. Assim,
tais afirmações não nos levam muito longe. Por que não? Como vimos repetida-
mente, a pessoa ou se contradiz (agindo como se sua declaração não fosse uma
afirmação de poder) ou não diz nada (uma vez que sua declaração é uma entre
muitas afirmações de poder e nada mais).
Um slogan final a ser observado é este: “Questione a autoridade!” Embora haja,
sem dúvida, uma tendência de, digamos, autoridades políticas ultrapassarem seus
limites (assim como existem alguns textos que podem oprimir), há algo fundamen-
talmente errado na suposição dessa piada. Este slogan pressupõe uma autoridade
própria. Ele essencialmente diz: “Questione toda autoridade, mas não questione
minha autoridade!” Algum tipo de ponto de vista objetivo (ou, ousamos dizer, au-
toritário) será inevitável; objetividade é inevitável. Aqueles que negam a objetivi-
dade em nome de limitações culturais e perspectivas múltiplas abrirão exceções à
sua própria regra, afirmando que suas palavras não estão vinculadas à cultura, que
sua perspectiva sobre a perspectiva está correta.
Mais uma vez, aqueles que reduzem tudo o que pensamos e fazemos à genética,
ambiente, reprodução e sobrevivência, ou ao funcionamento da linguagem, fazem
uma de duas coisas: (1) eles se contradizem ao agir como se tivessem escapado das
influências às quais todos os outros é sujeito (a falácia da autoexceção), ou (2) eles
não dizem absolutamente nada, pois o que eles expressam nada mais é do que o
produto dessas influências. Mais uma vez, somos confrontados com a realidade
objetiva e inescapável.

RESUMO

• Devemos reconhecer a verdade humilhante sobre nós mesmos: somos limi-


tados e nunca tão objetivos quanto gostaríamos de ser.
• Apesar de nossas limitações, não estamos condenados pelo nosso ambiente a
uma mera perspectiva. Alguma medida de objetividade é possível.
• Aqueles que afirmam que somos determinados por certas forças ou nada
mais do que a genética não acreditam realmente nisso. Ou (1) eles também
são determinados pelas mesmas forças que determinam o que o resto de nós
pensa, ou (2) eles estão apenas dando sua perspectiva, que foi moldada pelas
mesmas forças que moldaram a de todos os outros.
• Slogans como “Não existe realidade, apenas aparências” ou “Questione a
autoridade” pressupõem uma certa realidade e autoridade.
50

• Afirmar que a verdade (ou um texto) é meramente uma afirmação de poder é


(1) nem sempre verdadeiro e (2) não é muito interessante. Em primeiro lu-
gar, certas verdades (“Minha camisa é verde”) não afirmam nenhum poder.
Em segundo lugar, se toda declaração de verdade é uma afirmação de poder,
então dizê-lo é uma afirmação de poder; se os textos são tentativas de exer-
cer poder, então também o são os textos que o dizem.
51
52

PARTE 2

Desafios Relacionados Às Visões


De Mundo
53

TUDO É UM COM O DIVINO;


TUDO O MAIS É UMA ILUSÃO

E
m seu livro Out on a Limb, Shirley MacLaine disse que a “tragédia da raça
humana foi que havíamos esquecido que cada um de nós era divino”. Ela
então acrescentou: “Você é tudo. Tudo o que você quer saber está dentro
de você. Você é o universo.”59
Tal visão é típica em certas filosofias orientais, como a escola Advaita Vedanta
do hinduísmo. Uma coleção de escrituras hindus, os Upanishads, fala da unidade
indiferenciada da realidade (chamada monismo). Alguns tipos de monismo oriental
- embora não todos - são referidos como panteísmo (do grego pan - "tudo" - e
theos - "Deus"): tudo o que existe é finalmente reduzido à Realidade que os hindus
chamam de Brahman. Os Upanishads declaram que o eu (atman) é idêntico a
Brahman.

• “Tudo isso é Atman.”60


• “Atman está sendo conhecido. . . . Tudo é conhecido.”61
• “Este eu é o Brahman.”62
• “Eu sou Brahman.”63

Dentro desta escola de pensamento, não há dualismo (uma distinção real entre du-
as coisas, como sujeito e objeto, ou entre pessoas) ou pluralidade de coisas. Qual-
quer diferença aparente entre você e eu ou entre você e a Realidade Suprema pode
ser comparada a uma ruga em um tapete. Em última análise, a ruga não é distinta
do carpete, pois, digamos, minha mesa é diferente do computador no qual estou
digitando.
Como sustentou o filósofo hindu Sankara, a realidade última de Brahman, com
a qual cada um de nós é idêntico, é pura consciência sem quaisquer distinções.
Embora essa noção seja difícil de entender, podemos compará-la com nossa pró-
pria consciência - mas sem nenhum pensamento, razão ou emoção. Brahman é

59
Shirley MacLaine, Out on a Limb (Nova York: Bantam, 1983), 347.
60
Chandogya Upanishad, 7.52.2.
61
Brihadaranyaka Upanishad, 4.5.6.
62
Ibid., 2.5.19.
63
Ibid., 1.4.10.
54

como seria sua própria consciência se você pudesse esvaziar completamente sua mente de
todas as diferenciações e distinções internas - isto é, se por meio da meditação você eliminas-
se todas as impressões dos sentidos, sentimentos e pensamentos e simplesmente experimen-
tasse um estado de pura consciência.64

Somente esta realidade - Brahman - existe; é a única realidade, e não há distinções.


Todo o resto é ilusório.65 Esta Realidade Suprema não tem personalidade; é impes-
soal e além da descrição. A amnésia cósmica de que fala Shirley MacLaine é re-
solvida por uma espécie de iluminação mística ou percepção intuitiva. Não racio-
cinamos sobre esse insight, uma vez que essa consciência pura está além da razão.
Os pensadores da Nova Era nos dizem que devemos olhar para dentro de nós
mesmos para encontrar nossa verdadeira identidade.
Esse tipo de pensamento é refletido em Conversations with God, de Neale Do-
nald Walsch, no qual ele afirma que Deus “disse” a ele que “as palavras são o for-
necedor menos confiável da verdade”.66 (Isso levanta a questão óbvia, o “Deus” de
Walsch não está usando palavras, que são um meio de comunicação não confiá-
vel?) Veja a alegada conversa de Walsch com Deus:

[Deus:] Eu não posso te contar a Minha Verdade até que você pare de Me contar a
sua.
[Walsch:] Mas minha verdade sobre Deus vem de você.
[Deus:] Quem disse isso?
[Walsch:] Líderes. Ministros. rabinos. Sacerdotes. Livros. A Bíblia, pelo amor de
Deus! [Deus:] Essas não são fontes autorizadas.
[Walsch:] Eles não são?
[Deus não.
[Walsch:] Então o que é?
[Deus:] Ouça seus sentimentos.67

A aceitação de tais ideias orientais pelo Ocidente não é por acaso. O frio raciona-
lismo do Iluminismo, a influência despersonalizadora da tecnologia moderna na

64
Robin Collins, “Eastern Religions”, em Reason for the Hope Within, ed. Michael Murray (Grand Ra-
pids: Eerdmans, 1999), 187. O capítulo de Collins oferece uma perspectiva concisa e uma crítica da reli-
gião oriental.
65
Para uma discussão mais aprofundada, ver John M. Koller, Oriental Philosophies, 2d ed. (Nova York:
Charles Scribner's Sons, 1985), 83-99.
66
Neale Donald Walsch, Conversations with God: An Uncommon Dialogue, vol. 1 (Londres: Hodder &
Stoughton, 1995). Para uma crítica deste livro, veja John Winston Moore, “Conversations with the God
of This Age: Neale Donald Walsch’s Connections with the Dark Side,” Spiritual Counterfeits Project
Journal 22, nos. 2–3 (verão/outono de 1998). Disponível on-line em www.scp-inc.org/.
67
Walsch, Conversations with God, 8
55

sociedade e a ruína ecológica da Terra pelos seres humanos ajudaram a tornar o


monismo oriental mais atraente. O pensamento da Nova Era – uma espécie de hin-
duísmo envenenado – sustenta que os humanos estão evoluindo em direção ao re-
conhecimento de sua divindade ou união com “Deus”. Essa espiritualidade global
unificada levará a uma humanidade unificada (uma espécie de utopia social) e à
harmonia com a natureza.
No entanto, ironicamente, o monismo oriental na verdade solapa os dons divi-
nos de racionalidade, personalidade e criação. E aqueles que se inclinaram para o
Oriente negligenciam os recursos dentro da tradição cristã para afirmar a impor-
tância (embora não a deificação) da razão, personalidade e relacionamentos, e cui-
dado com a criação. Mas estamos ficando à frente de nós mesmos.
Existem problemas filosóficos com o monismo oriental, e quero sugerir alguns
pontos que podem ser úteis para ajudar a desorientar nossos amigos de mentalida-
de oriental e ajudá-los a ver a maior plausibilidade do teísmo.
O teísmo enfatiza a distinção Criador-criatura. Os seres humanos, embora não
divinos, são feitos à imagem de Deus e refletem certas características do Criador
de maneiras importantes: Deus é relacional, autoconsciente, racional, pessoal, voli-
tivo e moral; fomos feitos com essas características, embora em medida limitada.
Abaixo, portanto, estão as razões para preferir o teísmo ao monismo/panteísmo.
Primeiro, a amnésia universal em relação à nossa divindade é difícil de expli-
car. Se o eu humano é realmente divino — se não há diferença entre Deus e os
humanos — então não parece estranho que tantos seres humanos tenham se esque-
cido disso? Como explicamos essa amnésia cósmica?68
Em segundo lugar, talvez seja o monista que está percebendo mal a realidade.
A pessoa de mentalidade oriental afirma que o ocidental tradicional, que toma co-
mo real o mundo externo à sua mente, está preso nas garras da ilusão e não vê as
coisas com clareza. Mas se estivermos enganados sobre nossa consciência de nossa
própria existência individual e sobre sermos distintos de outras pessoas ou entida-
des físicas ao nosso redor, talvez possamos argumentar que o monista ou panteísta
também está sendo enganado ao sustentar que a realidade é, em última instância,
uma.69 Afinal, o monista também tirou suas conclusões com base em sua própria
experiência individual. Além disso, por que deveríamos levar a sério a visão mo-
nista oriental quando ela parece ser tão contrária à nossa experiência?
Terceiro, como o panteísta distingue entre fato e fantasia? O ônus da prova re-
cai sobre o monista para nos dizer por que a capacidade comum de distinguir entre
esses dois é um erro. O monismo tem algumas consequências práticas sérias. Se o
mundo é ilusório, como podemos distinguir entre imaginação ou fantasia e o que é
68
Norman Geisler e William Watkins, Worlds Apart: A Handbook on World Views (Grand Rapids: Ba-
ker, 1989), 103.
69
Ibid.
56

real? Lao-Tzu, o suposto fundador do taoísmo, perguntou: “Se, quando eu estava


dormindo, eu era um homem sonhando que era uma borboleta, como sei que quan-
do estou acordado, não sou uma borboleta sonhando que sou um homem?”
Parece que, na maioria das vezes (a menos que estejamos acostumados com
drogas que alteram a mente ou sob a influência do álcool), nós, humanos, podemos
diferenciar entre um estado de sonho e uma consciência de um mundo real fora de
nossas mentes. Isso nos parece bastante óbvio, e o ônus da prova recai sobre aque-
le que rejeita o que é aparente para tantos. Como o filósofo Peter van Inwagen co-
loca, surge a questão de por que alguém aceitaria essa visão oriental da realidade.
O melhor procedimento é acreditar no que é aparentemente verdadeiro, a menos
que haja alguma razão conhecida para acreditar que não é. Por exemplo, muitos
séculos atrás, a crença de que a Terra era plana parecia verdadeira, mas esse pen-
samento precisou mudar quando se mostrou que a Terra era esférica. O melhor que
podemos fazer como humanos é acreditar no que parece ser verdade, a menos que
tenhamos boas razões para rejeitá-lo. Mas acreditar no que nem parece ser verdade
quando não temos boas razões para aceitá-lo é profundamente contra-intuitivo.70
Por que pensar que nossos sentidos estão nos enganando regularmente? Aristóteles
estava certo quando disse que a rejeição da percepção sensorial é uma rejeição do
senso comum: “Desconsiderar a percepção sensorial . . . seria um exemplo de fra-
queza intelectual”.71
O guru indiano monista Sathya Sai Baba disse:

Repreendido por sua esposa


Por não derramar nem uma lágrima
Sobre a morte de seu único filho,
O homem explicou
“Eu sonhei ontem à noite
Que fui abençoado com sete filhos;
Todos eles desapareceram quando eu acordei.
Por quem devo chorar?
Os sete que são vapor
Ou aquele que é pó?
Os sete são um sonho
E aquele um devaneio.72

No entanto, o monismo não nos permite distinguir entre sonho e não-sonho. Com-
pele-nos a rejeitar a cotidianidade e a realidade da vida. Mesmo gurus como Baba
devem comer, espirrar, se aliviar, olhar para os dois lados antes de atravessar as

70
Peter van Inwagen, Metaphysics (Boulder, Colo.: Westview Press, 1993), 31.
71
Aristotle, Physics, 8.3, 253a33.
72
Citado em Vishal Mangalwadi, The World of Gurus, 2d ed. (Nova Deli: Vikas, 1987), 253.
57

ruas e cumprir a lei da gravidade. Se os monistas realmente praticassem o que pre-


gam, algum deles sobraria?73
Se o monismo for verdadeiro, segue-se outro resultado bizarro. Digamos que
você esteja segurando uma caneta à sua frente. Você pressiona o globo ocular de
uma certa maneira para ver o dobro. Mas você sabe por outros meios de percepção
(como o sentido do tato) e pela memória que a caneta não é dupla. Se o monismo
fosse verdadeiro, entretanto, então o objeto seria ao mesmo tempo duplo e não-
duplo da mesma maneira! Ficaríamos com um estado de coisas totalmente impos-
sível.
Quarto, se o mundo externo não existe e tudo é, em última análise, um, por que
o monista tenta explicar o mundo externo em primeiro lugar? Se o mundo externo
é ilusório, como chegou ao pensamento das pessoas que é real? O que motiva o
monista a tentar convencer as pessoas que fazem distinções de que essas diferenças
realmente não existem? A própria tentativa de fazer isso não deveria nos deixar um
pouco desconfiados - como a criança mais velha que diz "eu não fiz isso" para sua
mãe quando seu irmãozinho está chorando e tem um vergão vermelho na boche-
cha? Se o monista tenta convencer aqueles que discordam de seu ponto de vista,
ele não está assumindo que sabe exatamente o que seu amigo parece estar experi-
mentando? Isso não seria talvez um argumento a favor de um mundo externo, pelo
menos aparentemente? Além disso, o próprio fato de o monista discordar de seu
detrator pressupõe que suas opiniões sejam realmente diferentes. Caso contrário,
por que tentar mudar a opinião de outra pessoa?
De qualquer forma, não há base experiencial satisfatória para acreditar nessa fi-
losofia ilusionista.74 A experiência cotidiana e a observação estão completamente
em desacordo com essa afirmação. Devemos realmente desistir da validação e ve-
rificação de certas descobertas científicas? Essa abordagem monista está fora de
contato com a vida que vivemos todos os dias. O curso mais sábio e de bom senso
a seguir é o seguinte: nossa percepção sensorial do mundo físico deve ser presumi-
da inocente até que se prove o contrário.
Por outro lado, a fé cristã não nos chama a abandonar um realismo crítico sobre
o mundo que nos rodeia. Embora possamos ter uma percepção errônea (por exem-
plo, vemos uma miragem no pavimento quente fazendo com que pareça molhado)
ou cometer erros, ainda podemos acertar bastante. O fato de podermos reconhecer
nossos erros pressupõe, na verdade, a existência da verdade; sabendo o que é ver-
dadeiro, podemos julgar algo como errado. O fato de diferenciarmos entre ilusões
ou miragens e percepção verdadeira (verídica) atesta nossa capacidade de diferen-
ciar entre experiências sensoriais precisas e imprecisas.

73
Geisler e Watkins, Mundos separados, 102.
74
Collins, “Eastern Religions,” 189.
58

Quinto, se o mundo externo é ilusório, pelo menos a ilusão é real, o que cria
um sério problema para o monismo: existem duas entidades reais em vez de ape-
nas uma. Se sou apenas um homem sonhando que sou uma borboleta, ou vice-
versa, então não se pode dizer que pelo menos o sonho tem uma certa realidade,
mesmo que esse estado de sonho não corresponda ao mundo externo ou ao mun-
do? Realidade final? Em outras palavras, pelo menos duas realidades existiriam no
universo: (1) a Realidade Una/Última e (2) a ilusão do mundo externo.75 Portanto,
nem tudo é um.
Sexto, o monista negará as regras da lógica, o que é autodestrutivo. O monista
pode, portanto, não nos dar nenhuma razão para acreditar que sua visão é verdadei-
ra. D. T. Suzuki escreveu em sua Introdução ao Zen Budismo que só compreen-
demos a vida quando abandonamos a lógica.76 No entanto, Suzuki usa a lógica pa-
ra negar o uso da lógica. Ele usa a lei da não contradição (A não pode ser A e não-
A) para defender seu ponto. Rejeitando a distinção comum na lógica ocidental, Su-
zuki favorece a “lógica” do monismo (lógica oriental). Mas fazer isso é, na verda-
de, utilizar a lógica ocidental. O oriental está assumindo que deve decidir entre a
lógica ocidental ou a lógica oriental. Se fazer distinções lógicas não é necessário
para discernir a verdade, então o monista não pode esperar explicar seu ponto de
vista.
Um erro semelhante foi cometido por Alan Watts, um ex-ministro cristão que
se tornou budista. Ele sustentou que aparentes opostos como bem e mal, ativo e
passivo, verdade e falsidade, yin e yang não existem à luz de uma unidade superi-
or. Ele rejeitou as regras da lógica, uma vez que toda a realidade é, em última ins-
tância, uma. Ele rejeitou o cristianismo como verdade porque era “incorrigivel-
mente teísta”. Mas para rejeitar o cristianismo, ele usou a lógica. Ele acreditava
nas próprias distinções que afirmava que sua visão de mundo negava. Ele acredita-
va que o cristianismo era uma visão falsa ou incorreta e que o budismo era verda-
deiro. A aceitação do monismo e a rejeição das distinções nos apresentam uma dis-
tinção clara e óbvia.
Uma vez que a lógica pressupõe distinções, o monista não pode nem mesmo ar-
gumentar pela verdade de sua posição, pois isso implicaria que as visões não mo-
nistas são falsas. Ele usaria a lógica ocidental (ou-ou) para fazer isso. Não se pode
eliminar outra filosofia de vida sem usar o fio da lógica. E a própria posição do
monista é ainda mais prejudicada porque ele mesmo faz distinções dentro de sua
própria visão de mundo. Por exemplo, ele pressupõe uma distinção entre a pessoa
iluminada e aquela que não é iluminada. Novamente, as leis básicas da lógica são
necessárias e inevitáveis. Negá-los é usá-los.
75
Além disso, mesmo que todas as distinções que experimentamos sejam sonhos ou ilusões, há claramen-
te distinções dentro de nossos próprios sonhos — por exemplo, entre uma borboleta e uma flor.
76
D. T. Suzuki, Introdução ao Zen Budismo (Nova York: Grove Press, 1991), 58.
59

Sétimo, é difícil levar a sério uma cosmovisão que nega a existência do bem e
do mal. Em seu livro The Lotus and the Robot, Arthur Koestler conta sobre uma
entrevista que ele e vários outros tiveram com um estudioso zen-budista na Casa
Internacional de Tóquio. Escrevendo em 1961, Koestler relata a conversa:

“O budismo dá grande ênfase à verdade. Por que um homem deveria dizer a verdade
quando pode ser vantajoso para ele mentir?”
“Porque é mais simples.”
Alguém tentou outra tática. “Você é a favor da tolerância para com todas as religiões e
todos os sistemas políticos. E as câmaras de gás de Hitler?
“Isso foi muito bobo da parte dele.”
"Apenas bobo, não mau?"
“O mal é um conceito cristão. O bem e o mal existem apenas em uma escala relativa”.
“Deveria incluir aqueles que negam a tolerância?”
“Isso é pensar em categorias opostas, o que é estranho ao nosso pensamento.”
E assim continuou, rodada após rodada triste.77

Koestler ofereceu esta avaliação da conversa: “Esta tolerância imparcial para com
o assassino e os mortos, uma tolerância desprovida de caridade, torna alguém céti-
co em relação à contribuição que o Zen Budismo tem a oferecer para a recuperação
moral do Japão – ou de qualquer outro país.”78
O monismo oriental acaba gerando um relativismo moral. O Sidarta de Herman
Hesse nos mostra as trágicas consequências morais do monismo. Siddhartha (ou
Buda) afirma no encerramento de sua vida:

Tudo o que existe é bom - a morte e a vida, o pecado e a santidade, a sabedoria e a loucura.
Tudo é necessário, tudo precisa apenas do meu consentimento, do meu assentimento, da mi-
nha compreensão amorosa: então tudo está bem comigo e nada pode me prejudicar. Aprendi
de corpo e alma que era preciso pecar, que era preciso cobiçar, que era preciso lutar por bens
e sentir náuseas e desespero profundo para aprender a não resistir a eles, para amar o mundo,
e não mais compará-lo com algum tipo de mundo imaginário desejado, alguma visão imagi-
nária de perfeição, mas deixá-lo como está, amá-lo e ser feliz por pertencer a ele.79

Além disso, se a Realidade Suprema está além do bem e do mal – isto é, não é nem
bom nem mau – e se o mal é apenas uma ilusão, não há atos ou pensamentos erra-
dos: “Que diferença faria se louvamos ou amaldiçoamos, aconselhar ou estuprar,
amar ou matar alguém? Se não há diferença moral final entre essas ações, então
não existem responsabilidades morais absolutas”.80 Crueldade e compaixão não
77
Arthur Koestler, The Lotus and the Robot (Nova York: Macmillan, 1961), 273–74. Por uma questão de
clareza, apresentei a conversa em um formato mais legível do que o relato de Koestler.
78
Ibid., 274.
79
Herman Hesse, Siddhartha, trad. Hilda Rosner (Nova York: Bantam, 1971), 116.
80
Geisler e Watkins, Mundos separados, 103.
60

são diferentes. O monismo oblitera qualquer ordem moral objetiva, bem como a
responsabilidade moral pessoal de fazer o certo e rejeitar o errado.81
Conversations with God, de Neal Walsch, faz o mesmo tipo de afirmação rela-
tivista. Alegando falar as palavras de Deus, Walsch escreve: “Você não tem obri-
gação. Nem no relacionamento, nem em toda a vida. . . . Você também não está
vinculado a quaisquer circunstâncias ou situações, nem limitado por qualquer có-
digo ou lei. Você também não é punível por qualquer ofensa, nem é capaz de co-
metê-la — pois não existe algo como ser ‘ofensivo’ aos olhos de Deus.”82 Mais
uma vez, "Eu nunca estabeleci um 'certo' ou 'errado', um 'faça' ou 'não faça'. Fazer
isso seria despojá-lo completamente de seu maior presente - a oportunidade de fa-
zer o que Você por favor."83 Essa proibição, afirma-se, negaria a realidade de
quem realmente é uma pessoa humana. Não há padrões morais objetivos ou obri-
gações de acordo com tal visão, pois isso interferiria na liberdade de alguém.
Por outro lado, sermos feitos à imagem de um Deus bom e pessoal nos permite
afirmar a bondade objetiva e rejeitar o mal; podemos afirmá-los como verdadeira-
mente distintos. No fundo do nosso ser, se nossas faculdades morais estão funcio-
nando razoavelmente bem, nenhum de nós realmente quer admitir que não há dife-
rença entre o bem e o mal.
G. K. Chesterton percebeu o tipo de afirmação que os monistas orientais fazem:
“Que Jones deve adorar o deus dentro dele acaba significando que Jones deve ado-
rar Jones”.84 Não há desafio moral na visão monista porque “alteramos o teste em
vez de tentar passar no teste”.85
Oitavo, o monismo oriental acaba por obliterar nossa singularidade como pes-
soas feitas à imagem de um Deus pessoal. O poeta japonês Issa (1762–1826), um
dos poetas haicai mais amados, levou uma vida muito triste. Todos os seus cinco
filhos morreram antes de ele completar trinta anos. Após a morte de um deles, ele
procurou um mestre zen e pediu alguns conselhos para ajudá-lo a entender seu so-
frimento. O mestre disse a ele que o mundo é como o orvalho, que evapora quando
o sol brilha sobre ele. A vida é transitória, e lamentar tal perda e desejar algo mais
é uma falha em transcender os próprios desejos egoístas. Apesar dessa resposta fi-
losófica, Issa reconheceu que há algo mais do que uma explicação tão impessoal.
Ele escreveu este poema:

Este mundo da gota de orvalho—


Um mundo de gota de orvalho [é],
E ainda,

81
Stuart Hackett, Filosofia Oriental (Madison: University of Wisconsin Press, 1979), 177.
82
Walsch, Conversas com Deus, 135.
83
Ibid., 39.
84
G. K. Chesterton, Ortodoxia, 18ª ed. (Garden City, N.Y.: Image, 1959), 76.
85
Ibid., 35.
61

E ainda. . . .86

Parece que uma visão que contradiz completamente a dimensão profundamente


pessoal da vida – que é tão fundamental para nossa identidade humana – é tragi-
camente falha. E o objetivo final de grande parte do pensamento oriental é a ani-
quilação do eu — a absorção do eu na Realidade Suprema. Poderíamos comparar o
eu a uma gota que perde toda a identidade no oceano da Realidade Última (por
exemplo, Brahman); isso ocorre em moksha (ser “extinto” como um eu), quando o
ciclo de reencarnação finalmente termina. Mas a filosofia do mestre zen de Issa re-
quer negar a preciosidade de nossos relacionamentos mais profundos e realmente
abraçar uma mentalidade maligna e insensível. (Também poderíamos acrescentar
que a doutrina budista da transitoriedade ou impermanência é autocontraditória:
ela afirma o princípio permanente da impermanência. Estranhamente, exige que
desejemos a eliminação do desejo, que é a fonte do sofrimento.)
Na cosmovisão cristã, o mal, o sofrimento e a perda devem ser encarados com
realismo. Eles não devem ser repudiados, pois isso acabaria por nos desvalorizar
como seres humanos criados com dignidade e feitos para o relacionamento com o
Deus vivo. A morte e o sofrimento são, na verdade, lembretes de nossas limitações
e de que, afinal, não somos divinos. Eles nos mostram que nem tudo está bem no
mundo e que devemos nos lançar sobre o Deus que nos ama, sofre conosco e lidou
decisivamente com o mal na morte de Jesus na cruz. Sua morte e ressurreição abri-
ram o caminho para uma gloriosa existência renovada nos novos céus e na nova
terra, onde desfrutaremos de acesso imediato a Deus e onde não haverá mais triste-
za e sofrimento — tudo isso sem obliterar nossas identidades distintas.
Muitos diálogos inter-religiosos enfatizam semelhanças rituais ou éticas entre
as religiões. Uma diferença fundamental frequentemente ignorada é o que acontece
com o eu no futuro. O teísmo enfatiza a existência contínua de seres humanos in-
dividuais; de acordo com muitas visões orientais, o eu é aniquilado ou extinto.
Finalmente, ao lidar com a mentalidade oriental em geral, devemos ter o cui-
dado de construir pontes e contextualizar o evangelho para as culturas orientais
sempre que pudermos. Como cristãos, devemos procurar raios de verdade dentro
dessas culturas a fim de criar o evangelho sob medida para elas. Como muitos do
Oriente se mudam e fixam residência no Ocidente (por exemplo, hindus indianos
em Londres ou chineses em Vancouver), os cristãos descobrirão oportunidades
tremendas para construir pontes.
Veja o hinduísmo, por exemplo.87 E. Stanley Jones, o famoso missionário na
Índia, observou que o hinduísmo filosófico afirma princípios que os cristãos po-

86
Extraído de Os Guinness, The Dust of Death (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1973), 223.
87
Algumas das reflexões a seguir foram extraídas da palestra “Entendendo os hindus e o hinduísmo”,
proferida em Chennai, Índia, por Acharya Daya Prakash Titus, em 17 de janeiro de 2001.
62

dem (em graus variados) defender e usar como aberturas em suas discussões com
os adeptos do hinduísmo:

• A Realidade Suprema é espirit(ual).


• Há unidade em todo o universo.
• Há justiça no coração do universo.
• Há uma paixão pela liberdade/libertação da alma da morte.
• Há um tremendo custo (discipulado) para os devotos religiosos viverem.88

Visto que toda verdade é a verdade de Deus, tais tópicos podem servir de base para
um diálogo respeitoso entre hindus e cristãos.
Mas não é só o que afirmamos que é importante; também é importante como o
fazemos. Por exemplo, a história é cíclica para o hindu, não linear como os ociden-
tais geralmente a entendem. Obviamente, isso representa um problema para os
cristãos quando tentam se conectar com os hindus, pois a fé cristã é histórica. Para
o hindu, dizer que nossa fé é histórica implica que ela teve um começo e pode ter
um fim; por outro lado, o hinduísmo é uma religião eterna e duradoura. Muitos
pensadores hindus proeminentes acreditam que o deus hindu Krishna do Bhagavad
Gita é meramente lendário e não histórico. Não é essencial para o devoto de
Krishna que ele tenha encarnado (como um avatar) na história.
Onde então o cristão faz uma conexão com o hindu? Primeiro, o cristão deve ler
o Bhagavad Gita, que resume o cerne do pensamento hindu. Ela pode então dizer:
“Estudiosos hindus afirmam que Krishna é lendário em vez de histórico, mas e se a
verdade divina fosse manifestada em uma pessoa histórica?” Ela deve enfatizar
fortemente que Cristo é uma Pessoa cósmica eterna, o segundo membro da Trin-
dade, e que ele existia antes da criação do mundo e desde a criação continua a sus-
tentar a existência de tudo (Colossenses 1:15–20). Mas ela também deve enfatizar
a manifestação de Deus (saguna) na história. Cristo é o primeiro cósmico e o se-
gundo apareceu na história. O hindu acha esse tipo de mensagem relevante e im-
portante. Isso se conecta com o hindu. A Palavra era eterna antes de se encarnar.
Ele estava com Deus e era Deus (João 1:1) antes de se tornar carne (João 1:14). O
ideal hindu de ouvir (shruti) realiza-se na boa nova de Deus feito carne que nos foi
anunciada: “A fé vem pelo ouvir” (Rom. 10:17).
Mesmo os primeiros apologistas cristãos tentaram mostrar que sua religião não
era uma inovação, mas era duradoura. Eles saquearam os escritos da literatura
clássica antiga, como a de Virgílio e Homero, para encontrar temas que se asseme-
lhassem ou parecessem prenunciar ou mesmo predizer a revelação de Deus em

88
Encontrado em E. Stanley Jones, Christ of the India Road (Lucknow: Lucknow Publishing House,
1925).
63

Cristo (por exemplo, a menção de Virgílio de uma idade de ouro antecipada em


que uma virgem daria à luz um glorioso filho).89 Da mesma forma, talvez possa-
mos encontrar verdades nos livros hindus que possam fornecer uma ponte para o
evangelho. Mesmo que outras religiões não possuam a revelação divina encontrada
nas Escrituras e em Cristo, elas podem afirmar certas verdades, que devem ser en-
tendidas como a verdade de Deus. Essas verdades devem ser aproveitadas para
construir pontes e cultivar relacionamentos. Em Atenas, Paulo citou dois pensado-
res pagãos em Atos 17:28: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Epimêni-
des) e “também somos sua descendência” (Aratus). Ele cita o poeta pagão Menan-
dro em 1 Coríntios 15:33 (“As más companhias corrompem o bom caráter”) e
Epimênides novamente em Tito 1:12 (“Os cretenses são sempre mentirosos, brutos
maus, glutões preguiçosos”). Observe que ele citou esses escritores sem afirmar
sua compreensão particular de Deus ou a inspiração divina de seus textos. No en-
tanto, ele usou verdades da literatura clássica para apontar para Cristo ou reforçar
seu ensino moral.
Portanto, podemos citar outras escrituras religiosas, não porque as aceitamos
como divinamente reveladas nem porque aceitamos plenamente as cosmovisões
dessas religiões, mas porque esses livros religiosos muitas vezes contêm anseios e
importantes temas espirituais cumpridos no evangelho de Jesus Cristo.90 Ao invés
de criticar sua cultura e livros sagrados, podemos construir pontes com os do Ori-
ente. Podemos, como Paulo fez, proclamar àqueles a quem eles adoram na igno-
rância (Atos 17:23).
Mesmo que possamos ter boas razões filosóficas para não aceitar o cerne do
hinduísmo, algumas de suas verdades podem fornecer uma porta aberta para falar
sobre a revelação completa de Deus em Cristo e temas de graça, sacrifício e per-
dão.

RESUMO

• O monismo oriental sustenta que toda realidade é, em última instância, uma.


Quaisquer diferenças aparentes são o resultado da ilusão (maya). Não há di-
ferença entre o eu e esta Realidade Suprema.

89
Ver Jaroslav Pelikan, Jesus through the Centuries (Nova York: Harper & Row, 1986), cap. 2.
90
Por exemplo, veja a autopublicação de Acharya Daya Prakash, The Bhagavadgita: A Forerunner to the
Gospel of Jesus, 3d ed. (Nainital, U.P., Índia, 1999), e seu The Concept of Divine Sacrifice in the Bible
and the Vedic Scriptures (Nainital, U.P., Índia, s.d.). Esses livretos estão disponíveis em Khristadvaita
Ashrama, Dugai Marg, P.O. Bhowali, Nainital, UP, Índia 263 132.
Por exemplo, observe os temas do Bhagavad Gita sobre o auto-sacrifício do divino: “a base de todos
os sacrifícios, aqui no corpo sou Eu mesmo” (8.4) e “Eu sou o sacrifício” (9.16); da salvação pela graça
(11.47); de libertação do pecado/mal: “Eu te livrarei de todos os males” (18.66); e completa preocupação
com o divino (8.5).
64

• A amnésia universal em relação à nossa divindade reivindicada pelo monista


é difícil de explicar.
• Como o panteísta distingue entre fato e fantasia? O ônus da prova recai so-
bre o monista para nos dizer por que a capacidade comum de distinguir entre
esses dois é um erro.
• Se o mundo externo não existe e tudo é, em última análise, um, por que o
monista tenta explicar o mundo externo em primeiro lugar?
• Se o mundo externo é ilusório, pelo menos a ilusão é real, o que cria um sé-
rio problema para o monismo: existem duas entidades reais em vez de ape-
nas uma. A Realidade Última, portanto, não pode ser uma.
• O monista nega as regras da lógica, o que é autodestrutivo. O monista, por-
tanto, não pode nos dar nenhuma razão para acreditar que sua visão é verda-
deira.
• É difícil levar a sério uma visão de mundo que nega a existência do bem e
do mal.
• O monismo oriental acaba por obliterar nossa singularidade como pessoas
feitas à imagem de um Deus pessoal.
• Em relação ao budismo, sua doutrina de transitoriedade ou impermanência é
autocontraditória: afirma o princípio permanente da impermanência.
• O budismo faz a estranha exigência de que desejemos a eliminação do dese-
jo, que é a fonte do sofrimento.
• Ao lidar com a mentalidade oriental em geral, devemos ter o cuidado de
construir pontes e contextualizar o evangelho para as culturas orientais sem-
pre que pudermos, captando seus anseios e anseios que coincidam com o
que o evangelho oferece.
• Com Paulo, podemos usar a literatura de outras cosmovisões para construir
pontes sem afirmar sua compreensão particular de Deus ou a inspiração di-
vina de seus textos.
65
66

POR QUE NÃO ACREDITAR NA


REENCARNAÇÃO?

L
ucy M. Montgomery, autora da famosa série de Anne of Green Gables e
esposa de um ministro presbiteriano, aderiu a algumas visões pouco orto-
doxas sobre a vida após a morte. Ela escreveu em seu diário:

Acredito que, se nos colocarmos do lado do bem, o resultado será benéfico para nós mesmos
nesta vida e, se nosso espírito sobreviver à morte corporal, como em alguns, pois tenho cer-
teza de que acontecerá, em todas as vidas seguintes; inversamente, se cedermos ou praticar-
mos o mal, os resultados serão desastrosos para nós. . . .
Mas acredito que a vida continua indefinidamente em encarnação após encarnação, coe-
xistindo com Deus e o Anti-Deus, regozijando-se, sofrendo, conforme o bem ou o mal ven-
cem. Para mim, tal antecipação é infinitamente mais atraente do que a monótona existência
sem esforço e sem sabor [!] retratada para nós como o céu de descanso e recompensa.91

A ideia de reencarnação (às vezes chamada de transmigração ou metempsicose) é


parte integrante da filosofia oriental. Um vive e morre e renasce muitas vezes. O
status real que uma pessoa/alma tem em qualquer vida é baseado em seu compor-
tamento em uma vida anterior; essa retribuição ou recompensa é chamada karma.
O ponto de vista de Montgomery sobre a reencarnação é muito leve quando
comparado a grande parte da filosofia oriental. No Oriente, a reencarnação revela o
fracasso em alcançar o objetivo final do eu, enquanto no Ocidente a identidade do
eu é segura. No estilo otimista e ocidentalizado da reencarnação, o renascimento
oferece outra chance de autoaperfeiçoamento.92
O Bhagavad Gita é freqüentemente citado em conexão com esta doutrina. Nela,
o deus Krishna (que é uma das encarnações do deus Vishnu) diz a Arjuna, um sol-
dado: “Tanto eu quanto você passamos por muitos nascimentos. Os meus são co-
nhecidos por mim, mas tu não conheces os teus”. Krishna acrescenta: “Assim co-
mo um homem joga fora as roupas velhas e veste novas, assim também o morador

91
Mary Rubio e Elizabeth Waterston, eds., The Selected Journals of L. M. Montgomery, vol. 2 (Toronto:
Oxford University Press, 1987), 372.
92
Wade Clark Roof, Spiritual Marketplace (Princeton: Princeton University Press, 1999), 209–10.
67

do corpo, tendo abandonado sua velha estrutura mortal, entra em outras que são
novas”.93
Como tão poucos no Ocidente têm consciência de supostas experiências de vi-
das anteriores, essa ideia pode parecer absurda para nós. Há alguma evidência su-
perficial, porém, para a reencarnação. O médico Ian Stevenson é provavelmente
considerado o maior especialista mundial em reencarnação.94 Ele escreveu sobre
um menino indiano de quatro anos chamado Prakesh, que acreditava que seu nome
verdadeiro era Nirmal e que sua verdadeira casa era em outra aldeia. Ele queria ir
para sua aldeia, mas seus pais o repreenderam por seu comportamento. Cinco anos
depois, porém, foi estabelecida uma ligação com a família de Nirmal. O pai de
Nirmal veio à aldeia de Prakesh e Prakesh o reconheceu. Acontece que Nirmal era
o nome do filho do homem que morreu antes do nascimento de Prakesh! Prakesh
queria — e foi — à aldeia do homem, onde identificou os antigos parentes de Nir-
mal e forneceu detalhes precisos sobre os móveis da casa de Nirmal. Stevenson lis-
tou trinta e quatro itens que Prakesh “lembrava” e depois verificou esses deta-
lhes.95
Dito isso, a doutrina oriental da reencarnação tem seus problemas. Vejamos al-
guns deles.
Primeiro, a reencarnação poderia ser facilmente explicada pela demonização
ou invasão demoníaca. O Dr. Stevenson reconheceu uma opção rival para explicar
os dados da reencarnação: a intrusão demoníaca.96 Quando lemos os Evangelhos,
vemos Jesus encontrando espíritos demoníacos regularmente.97 O apóstolo Paulo
confronta poderes demoníacos que fornecem a uma jovem poderes de adivinhação
(Atos 16:16–18). Existem amplas razões teológicas para acreditar que um espírito
demoníaco poderia ter fornecido a Prakesh informações sobre seus supostos paren-
tes, vila e lar.
Ou veja Rabi Maharaji, que cresceu em um lar hindu em Trinidad e cuja vida
acabou sendo transformada por um encontro com Jesus Cristo. Ele atesta a ativi-
dade demoníaca em sua juventude: “Meu mundo estava cheio de espíritos, deuses
e poderes ocultos, e minha obrigação desde a infância era dar a cada um o que lhe
era devido.”98 O ponto aqui é simples: antes que a doutrina da reencarnação seja
adotada, deve-se considerar seriamente a possibilidade de intrusão demoníaca co-
mo uma explicação do suposto conhecimento de uma vida anterior.

93
Bhagavad Gita, 2.22.
94
J. P. Moreland e Gary Habermas, Immortality: The Other Side of Death (Nashville: Nelson, 1992), 121.
95
Ibid., 121–22.
96
Ibid., 123.
97
Ver Graham H. Twelftree, Jesus the Exorcist: A Contribution to the Study of the Historical Jesus (Pea-
body, Mass.: Hendrickson, 1993). Para um tratamento geral deste assunto, veja Clinton E. Arnold, Three
Crucial Questions about Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1997).
98
Rabi Maharaji, Death of a Guru (Eugene, Ore: Harvest House, 1986), 124.
68

Em segundo lugar, o simples fato de alguém ter acesso a informações sobre al-
guém de outra vida não significa que essa era sua própria vida. Se uma pessoa re-
lata detalhes de uma vida passada, deve ser a vida dessa pessoa? Isso simplesmente
não segue. O que pode ser mostrado a partir desta “lembrança” é que uma pessoa
possui algum conhecimento de outra pessoa que já viveu.99 O reencarnacionista
deve demonstrar que a pessoa que possui conhecimento da vida de outra é de fato
a mesma.
Para ilustrar, tome o notável psíquico Peter Hurkos. Ele fornecia informações
detalhadas e precisas para ajudar a desvendar crimes, fornecendo o horário de al-
guns furtos, o percurso de fuga dos ladrões (incluindo nomes de ruas) e seu destino
final. Ele tinha uma taxa de precisão de 87 a 99 por cento. Mas a consciência deta-
lhada de Hurkos sobre a vida de outra pessoa não é evidência de que Hurkos era o
ladrão!100 Da mesma forma, o conhecimento detalhado de Prakesh sobre os paren-
tes e arredores de Nirmal não significa necessariamente que Prakesh era Nirmal
em uma vida anterior.
Terceiro, por que abraçar a reencarnação quando a doutrina bíblica de uma
ressurreição corporal tem garantia histórica e plausibilidade intelectual? Como a
igreja primitiva começou em Jerusalém tão repentinamente? Por que os primeiros
cristãos tinham uma visão tão elevada de Jesus já no ano 50 d.C.? Por que os bons
judeus mudariam seu dia santo semanal do sábado (o sábado) para o domingo (o
dia do Senhor)? O que explica as aparições pós-ressurreição de Jesus a seus segui-
dores? O que transformou um bando de discípulos assustados e covardes, que se
sentiram profundamente desapontados quando seu esperado Messias foi crucifica-
do, em ousadas testemunhas de Jesus - até o ponto de perseguição e martírio? Vis-
to que existe muita literatura defendendo a plausibilidade histórica da ressurrei-
ção,101 aponto apenas que há boas razões para abraçar a doutrina cristã da ressur-
reição corporal. Esta doutrina tem se oposto historicamente à doutrina (oriental) da
reencarnação. Se a fé pascal é verdadeira, então a doutrina oriental da reencarna-
ção não é.102

99
Moreland e Habermas, Immortality, 127. O ponto aqui não é que o conhecimento psíquico seja moral-
mente neutro. Devemos tomar cuidado com sua associação com influência demoníaca (compare a carto-
mante em Filipos em Atos 16:16–18). Em vez disso, estou enfatizando apenas que não é preciso experi-
mentar certos eventos para ter conhecimento detalhado sobre eles.
100
Ibid., 128.
101
Veja, por exemplo, Stephen T. Davis, Risen Indeed (Grand Rapids: Eerdmans, 1993); Capítulo de
William Lane Craig sobre a ressurreição em Reasonable Faith, 255–98; Paul Copan, ed., Will the Real
Jesus Please Stand Up?: A Debate between William Lane Craig and John Dominic Crossan (Grand Ra-
pids: Baker, 1998); e Paul Copan e Ronald K. Tacelli, eds., Jesus’ Resurrection: Fact or Figment?
(Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 2000).
102
Ver Joseph Gudel, Robert Bowman e Dan Schlesinger, “Reincarnation: Did the Church Suppress It?”
Christian Research Journal 10 (verão de 1987): 8–10, 12. Alguns dos meus comentários abaixo foram re-
tirados deste artigo.
69

Quarto, a doutrina da reencarnação com seu ciclo de nascimentos entra em


conflito com a noção de unicidade da realidade e a natureza ilusória do mundo
externo. No último capítulo, apontamos alguns dos problemas com o monismo ori-
ental (“tudo é um”), que rejeita o mundo material e quaisquer distinções como ilu-
sórios. De acordo com essa visão, as almas humanas e a Realidade Suprema
(“Deus”) são idênticas. Qualquer diferença entre eles, então, é puramente ilusória.
Embora nem todos os que acreditam na reencarnação sejam monistas, a adesão à
reencarnação por monistas religiosos ou filosóficos orientais é padrão.
Mas aqui nos deparamos com um problema que surge ao sustentar tanto a reen-
carnação quanto o monismo: como alguém pode sustentar ambos (1) que todas as
almas são realmente a única Realidade e (2) que almas distintas e individuais po-
dem passar por sucessivas reencarnações? A suposição de um eu distinto, que é di-
ferente dos outros eus, entra em conflito com a doutrina de que as almas são idên-
ticas a Brahman, a única Realidade Última. Então, se cada um de nós é um com es-
ta Realidade, o que significa dizer que, por exemplo, a alma de Sócrates, e não a de
Platão, reencarnou em alguma pessoa atual?103
Se tudo é unidade indiferenciada (monismo), como alguém pode acreditar na
reencarnação de indivíduos distintos? Quem está reencarnando senão indivíduos
diferentes, distintos daqueles que já romperam o ciclo da reencarnação? Além dis-
so, aqueles que defendem a reencarnação falam sobre uma diferença real entre
aqueles que alcançaram a iluminação (eles perceberam que são um com a Realida-

Os proponentes da Nova Era freqüentemente afirmam que os pais da igreja primitiva acreditavam na
reencarnação e que essa doutrina foi ensinada na Bíblia até ser eliminada por poderosas autoridades da
igreja. Com relação à afirmação de que a reencarnação é encontrada na Bíblia, alguns apontam para João
9:2. Jesus é questionado sobre o cego de nascença: “Quem pecou? Este homem ou seus pais? Os discípu-
los acreditavam na reencarnação? Afinal, o cego pode ter feito algo ruim em sua vida passada para que
renascesse cego. Mas isso não segue. Por exemplo, o judaísmo rabínico sustentava que um feto não nas-
cido poderia pecar (Gênesis Rabá, 63:6, que comenta sobre Esaú e Jacó no ventre [Gn 25:22]). Outra pas-
sagem usada para apoiar a reencarnação é Jeremias 1:5, onde Deus diz ao profeta tímido: “Antes de for-
má-lo no ventre, eu o conhecia”. (Os mórmons usam este versículo para apoiar a doutrina da preexistên-
cia da alma.) Entretanto, este é um uso ilegítimo do versículo. Para que o ponto de preexistência fosse fei-
to, Jeremias teria que dizer a Deus: “E antes que você me formasse no ventre, eu te conhecia”. Tudo o
que esta passagem demonstra é a presciência e soberania de Deus sobre a história humana.
Em relação à acusação revisionista, alguns (por exemplo, Leslie Weatherhead) afirmam erroneamente
que os primeiros cristãos acreditavam na reencarnação e que, sob o imperador Justiniano, os anti-
reencarnacionistas mudaram (ou até extirparam) os textos bíblicos. Esses supostos revisionistas, embora
relativamente bem-sucedidos em seu projeto, ignoraram algumas passagens que “mostram sinais” de re-
encarnação (por exemplo, Mateus 17:10–13; João 3:3, 7; 9:1–3; Efésios 1: 4; Apoc. 3:12). Esta acusação
é uma pura invenção, no entanto, e simplesmente não há nenhuma evidência textual para confirmar isso.
Veja F. F. Bruce, New Testament Documents: Are They Reliable? 5ª ed. (Grand Rapids: Eerdmans,
1960). Para ler mais sobre essas alegações reencarnacionistas sobre os pais da igreja, veja Gudel, Bow-
man e Schlesinger, “Reincarnation”.
103
Francis Beckwith e Stephen Parrish, See the Gods Fall: Four Rivals to Christianity (Joplin, Mo.:
College Press, 1997), 221.
70

de Suprema) e aqueles que não o alcançaram e, portanto, reencarnaram. De fato, a


própria ideia de reencarnação, que é distinta da Realidade Última, deveria ser uma
ilusão. O filósofo Stuart Hackett observa que “não é surpreendente que [o filósofo
hindu] Sankara rejeite esses problemas com a suposição de que toda a noção de re-
nascimento é parte da grande ilusão”.104 Se o mundo é uma ilusão, por que apelar
para algo fundamentado no mundo externo (como o ciclo de nascimentos) para ex-
plicar a ilusão?
A reencarnação, portanto, pressupõe as seguintes distinções:

• A distinção entre almas individuais (Sócrates e Platão).


• A distinção entre os karmas das almas individuais que ainda não atingiram a
iluminação.
• A distinção entre os iluminados e os não iluminados.
• A distinção entre almas individuais e a Realidade Suprema.

Parece que as distinções pressupostas pela doutrina da reencarnação minam a no-


ção de unidade indiferenciada da Realidade – e vice-versa.
Quinto, a reencarnação não resolve o problema do mal como alguns afirmam;
apenas o adia infinitamente. Apesar da alegação de que a reencarnação lida com o
problema do mal, está longe de ser óbvio que seja bem-sucedida. A doutrina do
karma - o que você recebe nesta vida é o retorno de sua vida passada - adia conti-
nuamente qualquer explicação. Como isso funciona - ou não funciona? Primeiro,
para explicar o mal em minha vida atual, devo me referir à minha vida anterior.
Mas para explicar o mal em minha vida passada, devo explicá-lo com base na vida
anterior a essa, e assim por diante. “Esse método resulta em uma regressão infinita
que apenas eterniza o problema do mal sem resolvê-lo.”105 Se tentarmos explicar o
sofrimento dos indivíduos, a raiz do problema do mal ainda permanece.
Sexto, se esquecermos nossas vidas passadas, a que propósito a reencarnação
serve para melhorar? A guru da Nova Era Shirley MacLaine escreveu que a “tra-
gédia da raça humana foi que havíamos esquecido que cada um de nós era divi-
no”.106 Mas se a reencarnação é verdadeira, a maioria das pessoas, estranhamente,
não tem consciência disso. Se for esse o caso, segue-se que as pessoas não têm
ideia de por que estão sendo punidas. Portanto, eles parecem obrigados a repetir o
mal das vidas anteriores, pois não conseguem se lembrar o suficiente para aprender
com eles:

104
Hackett, Oriental Philosophy, 202.
105
Robert Morey, Reencarnação e Cristianismo (Minneapolis: Bethany House, n.d.), 18.
106
MacLaine, Out on a Limb, 347.
71

É muito interessante que o reencarnacionista nos diga que passamos por renascimentos cícli-
cos e sofremos em várias vidas para expiar nossos pecados. Mas é muito intrigante que nin-
guém se lembre de sua vida passada com detalhes suficientes para lucrar com isso! Portanto,
não sabemos por que estamos sendo punidos. E se não soubermos pelo que estamos sendo
punidos, é provável que repitamos a ofensa. Se a reencarnação é realmente karma, ou a lei da
justiça (“o que você semeia, assim você colhe”), por que não proteger a pessoa? Por que não
dar a ele uma visão completa do que ele foi antes, com todos os seus defeitos, para que as
correções necessárias fossem feitas?107

As pessoas que “lembram” uma vida passada provavelmente vivem onde a reen-
carnação é acreditada e aceita. Quando são feitas investigações sobre os anteceden-
tes dos sujeitos e seus pais, em todos os casos do estudo de Ian Stevenson, “os su-
jeitos foram cercados por um ambiente cultural e religioso que encorajava a crença
na reencarnação”.108 De acordo com Stevenson, os americanos são muito mais fra-
cos em detalhes de uma suposta vida anterior do que aqueles em países não oci-
dentais, onde a reencarnação é comumente acreditada (por exemplo, Ásia). No mí-
nimo, devemos levar em consideração esse pano de fundo cultural e religioso.
Sétimo, se a reencarnação fosse verdadeira e a série de renascimentos fosse in-
finita, todos nós já deveríamos ter alcançado a perfeição. Muitas pessoas de men-
talidade oriental acreditam que todos os seres humanos eventualmente alcançarão a
perfeição e, por fim, atingirão esse estado iluminado de nirvana (budismo) ou
moksha (hinduísmo) – o “extinguir” a existência pessoal.109 Deparamo-nos com
um grande problema filosófico aqui, que também é provavelmente a objeção mais
séria à reencarnação: “Como a maioria das visões indianas acredita que todos al-
cançarão a liberação do ciclo de nascimentos, é difícil para mim ver por que, em
uma série infinita de chances, esta libertação ainda não foi alcançada por todos.”110
Tal problema é examinado mais de perto no próximo ponto.
Oitavo, uma série infinita real de eventos passados é, na verdade, incoerente.
Ligado à questão da origem do mal está a questão de explicar a maneira pela qual
o ciclo de nascimentos surgiu em primeiro lugar. Se não podemos explicar isso,
então a reencarnação faz pouco sentido.111 Temos duas opções: (1) O ciclo de re-
nascimentos é infinito, ou (2) houve um primeiro nascimento para cada indivíduo.
O problema com a reencarnação é que uma série infinita real de eventos passados é
logicamente impossível. Como veremos, essa ideia é simplesmente incoerente.

107
Walter Martin, The Riddle of Reincarnation (San Juan Capistrano, Calif.: Christian Research Institute,
1980), 26.
108
Mark Albrecht, Reincarnation: A Christian Appraisal (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1982), 64.
109
Claro, é possível que as pessoas continuem a resistir ao movimento em direção à iluminação e perma-
neçam em um estado cada vez mais depravado ao longo da série de reencarnações.
110
Hackett, Oriental Philosophy, 202.
111
Ibid.
72

Comecemos por dizer que o tempo é a sucessão dos acontecimentos. Sem


quaisquer “acontecimentos”, o tempo não existe. O tempo depende de eventos - se-
jam físicos ou mentais - para sua existência. Então perguntamos: “Poderia o tempo
passado ser infinito? Poderia a série de eventos passados não ter começo?”
Se subtrairmos um número de uma série infinita {1, 2, 3, . . . } para que tenha-
mos {2, 3, 4, . . . } , ainda temos a mesma quantidade de eventos (ou seja, um nú-
mero infinito). Isso se torna um problema se o aplicarmos ao mundo em que vive-
mos. Ou se removêssemos todos os números ímpares de uma série infinita para
que tivéssemos {2, 4, 6, . . . } ? Esse novo conjunto seria menor do que o conjunto
de todos os números naturais {1, 2, 3, . . . }? Não. Estranhamente, ambos seriam
iguais, matematicamente falando, mas isso é um absurdo quando falamos do mun-
do cotidiano.
Além disso, se o passado é infinito e atribuímos a cada evento passado um nú-
mero natural negativo { . . . –3, –2, –1, 0}, com 0 representando o presente, então
todos os números negativos teriam sido enumerados, o que é um absurdo. Sempre
podemos adicionar mais um evento e ainda assim obter o mesmo resultado.
Vamos novamente atribuir a cada evento no passado uma série de números cor-
respondentes { . . . –3, –2, – 1}.112 Se assumirmos que a série de eventos passados
não tem começo e, portanto, um tempo infinito se passou no tempo de, digamos,
Sócrates, então não mais do que um número infinito de eventos teria sido adicio-
nado até o momento? Nós naturalmente pensaríamos assim, mas um número infi-
nito não pode ser adicionado. Em qualquer ponto do passado, uma série infinita de
eventos já decorreu. Mas como poderia ser isso desde que chegamos hoje?
Portanto, embora a ideia de um infinito real não seja um problema no mundo da
matemática, torna-se um problema sério quando aplicada aos acontecimentos do
mundo em que vivemos.
Nono, além dos problemas filosóficos com o carma e a reencarnação, essas
ideias orientais, na prática, podem ser bastante opressivas. Veja o sistema de cas-

112
Para uma discussão mais aprofundada, consulte William Lane Craig, “Graham Oppy on the Kalam
Cosmological Argument”, Sophia 32 (1993): 1–11. O próprio matemático notável Georg Cantor afirmou
que o argumento contra o infinito do passado é sólido. Em uma carta de 1887, ele escreveu:

Quando se diz que uma prova matemática para o começo do mundo não pode ser dada, a ênfase está
na palavra “matemática” e, nesse sentido, minha opinião concorda com a de São Tomás. Por outro la-
do, uma prova matemática-filosófica mista da proposição poderia muito bem ser produzida apenas
com base na verdadeira teoria do transfinito, e nessa medida me afasto de São Tomás, que defende a
visão: Mundum non semper fuisse , sola fide tenetur, et demonstrative probari non potest [(Que) o
mundo nem sempre existiu é sustentado somente pela fé, e não pode ser provado demonstrativamen-
te].

Ver Georg Cantor em Probleme des Unendlichen: Werk und Leben Georg Cantors, ed. H. Meschkowski
(Braunschwieg: Freidrich Vieweg, 1967), 125–26.
73

tas na Índia. Aqueles que nascem em uma casta inferior ou como “intocáveis” es-
tão, na mente de muitos hindus, recebendo pagamento por uma vida anterior. Ao
falar com amigos indianos (ou amigos americanos que trabalharam lá) e tendo es-
tado na Índia várias vezes, vim a saber que um fatalismo profundamente arraigado
domina a mente de muitos no sistema de castas e que aqueles de castas superiores
realmente têm escrúpulos em ajudar, como Madre Teresa fazia, “os pobres dos po-
bres”. Porque? Porque aqueles nas castas inferiores estão apenas colhendo o que
plantaram em uma vida anterior. Seria imprudente - ou mesmo imoral - trabalhar
contra o carma deles e ajudá-los. Ao fazer isso, o próprio status cármico na próxi-
ma vida é reduzido em vez de elevado. O mesmo se aplica a uma pessoa de casta
inferior: por que ela deveria tentar melhorar sua sorte na vida se seu status indese-
jado é resultado da lei cármica? É realmente irônico que o Oriente tenha exportado
para o Ocidente esse sistema fatalista, que tem sido um fardo para aqueles que vi-
vem sob ele. Para muitos ocidentais apaixonados pelo Oriente, a reencarnação lhes
dá a chance esportiva de que precisam para alcançar a perfeição! Mas muitos no
Oriente conhecem a tirania escravizadora dessa doutrina.
Em contraste, o evangelho cristão oferece, literalmente, alívio cármico! Em vez
do fardo opressivo de vingança de uma vida anterior, Jesus oferece descanso para a
alma daqueles que viriam depois dele (Mt 11:28-30). Depois de listar as práticas
imorais dos coríntios no passado — imoralidade sexual, furto, embriaguez —, o
apóstolo Paulo escreve as boas novas: “E assim fostes alguns de vós. Mas fostes
lavados, fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e
no Espírito do nosso Deus” (1 Coríntios 6:11). O evangelho oferece esperança do
fardo da lei cósmica de causa e efeito. A bondade e a graça de Deus trazem o per-
dão da culpa e da vergonha do pecado porque Jesus carregou o peso de nossos pe-
cados na cruz. É uma desorientação gloriosa ser liberto desta doutrina oriental e ser
resgatado pela morte de Cristo!
Veja Krister Sairsingh, por exemplo. Krister, que recebeu seu Ph.D. em religião
de Harvard, cresceu em um lar hindu em Trinidad. Embora acreditasse firmemente
que “todas as religiões são caminhos válidos para a vida espiritual”,113 ele fez um
pacto com um amigo para dedicar suas vidas à defesa do modo de vida hindu. Na
verdade, toda a sua família se dedicava a essa tarefa. Apesar de seu zelo religioso,
porém, Krister viveu uma vida de terror e pavor. E embora ele acreditasse em sua
própria divindade, ele não tratava os mendigos com gentileza e não gostava dos
hindus “incultos” de castas inferiores. Quanto mais ele percebia suas falhas e ego-
centrismo, mais desesperado ele começava a se sentir. Como hindu, ele reconheceu
que teria de pagar por tais atitudes perversas na próxima vida. Embora tivesse um
amigo cristão que lhe contou sobre a pessoa de Jesus, Krister achou arrogante pen-
113
Krister Sairsingh, “Christ and Karma: A Hindu’s Quest for the Holy”, em Finding God at Harvard,
ed. Kelly Monroe (Grand Rapids: Zondervan, 1996), 180.
74

sar que havia algo único nele. Mas ele começou a ler sobre Jesus na Bíblia. Ele se
perguntou: “Será que esse Jesus poderia me resgatar do terror e pavor que envol-
veu minha alma?”114
Krister escreve sobre sua peregrinação:

Comecei a ler os relatos dos evangelhos sobre Jesus para aprender mais sobre ele. Ele me pa-
receu totalmente único, diferente de qualquer pessoa que eu conhecia ou sobre quem li. . . . O
que mais me surpreendeu foi a afirmação de Jesus de ter o poder de perdoar pecados. . . .
Quem era esse Jesus que podia quebrar a escravidão do carma, que dizia ter o poder de per-
doar pecados? eu tinha que saber. Mergulhei mais fundo nos Evangelhos. Nas seis semanas
seguintes, fui aos canaviais para orar, esperando que algo da verdade de Deus me fosse reve-
lado. Mais do que qualquer outra coisa, eu queria a verdade.115

Mas como esse Jesus, que viveu há tanto tempo, pode fazer diferença na vida de
um estudante de Harvard do século XX? Sua mãe, uma proeminente hindu, notou.

Minha mãe . . . admitiu que ficou perplexa com a súbita transformação da minha vida. Ela
notou que eu não estava mais com medo. . . . Ela não conseguia entender como tamanha ale-
gria poderia ter preenchido minha vida em apenas algumas semanas. . . . Mais tarde, ela me
disse [que] se prostraria no chão da sala de puja [com as imagens de vários deuses hindus],
clamando pela verdade. Dentro de três semanas, ela também foi convencida pelos ensina-
mentos de Jesus.116

Aceitar Cristo e a esperança de sua ressurreição não só tem fundamento filosófico


e histórico mais sólido do que a reencarnação, mas o resultado dessas crenças radi-
calmente diferentes também influencia a maneira como vivemos nossas vidas a
cada dia.

RESUMO

• A reencarnação poderia ser facilmente explicada pela demonização ou inva-


são demoníaca.
• O simples fato de alguém ter acesso a informações sobre alguém de outra
vida não implica que esta era sua própria vida.
• Por que acreditar na reencarnação quando a doutrina cristã da ressurreição
tem boa garantia intelectual e histórica?
• A doutrina da reencarnação com seu ciclo de nascimentos entra em conflito
com a noção de que o mundo externo é uma ilusão. Como alguém pode sus-

114
Ibid., 183.
115
Ibid., 184–85.
116
Ibid., 187.
75

tentar que todas as almas são realmente a única Realidade e que almas dis-
tintas e individuais (por exemplo, Sócrates e Platão) podem passar por su-
cessivas reencarnações?
• A própria ideia de reencarnação, que é distinta da Realidade Última, teria
que ser uma ilusão de qualquer maneira, que é o que pensava o filósofo hin-
du Sankara.
• A reencarnação torna a doutrina da unidade (monismo) incoerente por causa
das distinções que ela pressupõe: (1) entre as almas individuais, (2) entre os
karmas das almas individuais que ainda não atingiram a iluminação, (3) en-
tre os iluminados e os não iluminados, e (4) entre as almas individuais e a
Realidade Suprema.
• Vice-versa, a doutrina do monismo mina a inteligibilidade da reencarnação.
• A reencarnação não resolve o problema do mal como alguns afirmam; ape-
nas o adia infinitamente.
• Se nos esquecemos de nossas vidas passadas, para que serve a reencarnação
para melhorar? Na maioria dos casos, aqueles que supostamente tiveram ex-
periências de vidas anteriores cresceram em um ambiente que endossa a re-
encarnação.
• Se a reencarnação fosse verdadeira e a série de renascimentos fosse infinita,
então todos nós já deveríamos ter alcançado a perfeição.
• Uma série infinita real de eventos passados é, na realidade, incoerente. Por-
tanto, a reencarnação parece altamente improvável.
• A doutrina da reencarnação tem consequências práticas: por que buscar me-
lhorar minha sorte na vida ou ajudar os outros quando posso estar trabalhan-
do contra o meu carma ou o de outra pessoa?
• A doutrina cristã do perdão em Cristo traz alívio para aqueles oprimidos pe-
la opressão da reencarnação.
76
77

SE DEUS CRIOU O UNIVERSO,


QUEM CRIOU DEUS?

O
famoso ateu Bertrand Russell escreveu sobre Deus e o universo em seu
ensaio “Por que não sou cristão”. Depois de ler a autobiografia do filósofo
John Stuart Mill, Russell ficou impressionado com o que Mill escreveu:
“Meu pai me ensinou que a pergunta 'Quem me fez?'117 Lendo isso, Russell con-
cluiu: “Se tudo deve ter uma causa, então Deus deve ter uma causa”.118
Embora Russell tenha escrito este ensaio em 1927 - antes que a teoria do big
bang se tornasse bem estabelecida - ainda é surpreendente ouvir Russell dar tal sal-
to. Porém, muito mais recentemente, até mesmo o notável físico de Cambridge,
Stephen Hawking, faz isso em seu best-seller Uma Breve História do Tempo. Ele
faz perguntas sobre o que começou o universo e o que faz o universo continuar a
existir. Que teoria existe para unificar tudo? “Ou precisa de um criador e, em caso
afirmativo, ele tem algum outro efeito no universo? E quem o criou?”119
Embora comumente ouçamos as crianças perguntarem: “Quem fez Deus?” ou,
“De onde veio Deus?” é surpreendente ouvir filósofos e cientistas sofisticados fa-
zerem as mesmas perguntas! Quando examinamos o conceito de Deus e a história
do universo, começamos a ver que essas perguntas são menos difíceis de responder
do que talvez imaginássemos - obviamente porque são mal concebidas.
A teoria do big bang afirma que o universo – tempo físico, espaço, matéria e
energia – surgiu de forma cataclísmica há cerca de quinze bilhões de anos. Essa
descoberta é baseada em observações como o universo em expansão e a tendência
da energia de se espalhar ou se dissipar; o fato de que o universo está “desacele-
rando” (com base na segunda lei da termodinâmica) implica que o universo acaba-
rá por sofrer uma “morte por calor” e, assim, encontrar seu fim. Tais descobertas
confirmaram notavelmente a doutrina bíblica da criação do nada: “No princípio
criou Deus os céus e a terra” (Gn 1:1). Mesmo os cientistas naturalistas reconhe-
cem esse cenário. De acordo com os astrofísicos John Barrow e Joseph Silk, “nos-
sa nova imagem é mais parecida com a imagem metafísica tradicional da criação
do nada, pois prevê um começo definido para eventos no tempo, de fato, um co-

117
Citado por Bertrand Russell, “Why I Am Not a Christian,” em seu Why I Am Not a Christian and Other Essays on
Religion and Related Topics (New York: Simon and Schuster, 1957), 6.
118
Ibid.
119
Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo (Nova York: Bantam, 1988), 174.
78

meço definido para o próprio tempo”.120 De fato, o físico vencedor do Prêmio No-
bel Stephen Weinberg certa vez observou que a agora rejeitada “teoria do estado
estacionário [que vê o universo como eternamente existente] é filosoficamente a
teoria mais atraente porque menos se assemelha ao relato dado no Gênesis”.121
Mas, é claro, o universo começou, para grande consternação de Weinberg, e o es-
tado físico anterior122 ao big bang era literalmente nada.123
Algumas pessoas diriam que o universo surgiu sem causa do nada. Um ateu,
Michael Martin, diz que “este começo [do universo] pode não ter causa” e que tais
teorias estão de fato “sendo levadas a sério pelos cientistas”.124 Mas claramente al-
go não pode surgir sem causa do nada, já que o ser não pode vir do não-ser. Esta é
uma verdade básica sobre a própria realidade (ou seja, metafísica); não é, como
Martin acredita,125 alguma convicção ligada à cultura que será derrubada em algu-
ma revolução científica futura (comparável ao que Newton ou Einstein introduzi-
ram). Pense nisso: como algo pode ser produzido quando não existe absolutamente
nenhuma potencialidade para seu surgimento? (Por “nada” não quero dizer partícu-
las subatômicas ou outras entidades inobserváveis.) As chances de algo vir do nada
absoluto são zero, já que não existe nem mesmo a potencialidade de um universo
vir a existir. Parece que tais afirmações sobre algo do nada podem estar enraizadas
em uma tentativa subjacente de evitar as implicações da existência de Deus. Ou se-
ja, o princípio “do nada, nada vem” (ex nihilo, nihil fit) provavelmente seria uni-
versalmente aceito pelos céticos, não fosse pelo fato de que o início do universo se
assemelha muito ao relato de Gênesis 1:1.
Essa ideia de algo do nada foi chamada de “absurda” até mesmo pelo cético es-
cocês David Hume.126 O filósofo ateu Kai Nielsen reconhece o quão equivocada é

120
John D. Barrow e Joseph Silk, A Mão Esquerda da Criação, 2ª ed. (Nova York: Oxford University Press, 1993), 38.
121
Citado em John D. Barrow, The World within the World (Oxford: Clarendon Press, 1988), 226.
122
Por “antes” não quero dizer necessariamente que houve momentos antes do big bang. (Por “tempo” quero di-
zer aquilo que é constituído pela sucessão de eventos ou acontecimentos. Se não houvesse eventos, não haveria
tempo.) Refiro-me antes à prioridade do ser (“prioridade metafísica”): Um estado de ser (existência atemporal de
Deus) serve como fundamento para outro (existência temporal, contingente). Ou poderíamos apenas falar de
Deus com ou sem o universo.
123
Barrow e Silk, Left Hand of Creation, 209: “O que precedeu o evento chamado ‘big bang’? . . . A resposta à nos-
sa pergunta é simples: nada.”
124
Michael Martin, Atheism: A Philosophical Justificação (Philadelphia: Temple University Press, 1990), 106. Martin
cita um filósofo da ciência, Quentin Smith, que sustentou que o universo era verdadeiramente incausado. Veja,
por exemplo, seu livro em coautoria com William Lane Craig, Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology (Oxford:
Clarendon, 1993). Desde então, Smith modificou sua postura, afastando-se da não-causalidade do universo para
sua auto-causalidade - uma perspectiva metafísica igualmente desconcertante. Veja sua defesa (na minha opinião
bastante pouco persuasiva) de tal proposta em “The Reason the Universe Exists Is That It Caused Itself to Exist”,
Philosophy 74 (1999): 579–86.
125
Martin afirma: “As intuições metafísicas têm sido notoriamente pouco confiáveis. Tudo, desde o princípio de
nenhuma ação à distância até o microdeterminismo, foi intuído como verdade apenas para ser descartado mais
tarde” (“Comentários sobre o Debate Craig-Flew”, 4. Este é um ensaio inédito de um livro em revisão na Universi-
dade de Oxford Imprensa. Sou grato a Stan Wallace por me fornecer este ensaio.).
126
Em uma carta a John Stewart em fevereiro de 1754, Hume disse que a ideia de que “qualquer coisa pode surgir
sem uma causa” era “uma proposição tão absurda” (The Letters of David Hume, vol. 1, ed. J. Y. T. Greig [Oxford:
Clarendon Press, 1932], 187).
79

a noção de algo vindo do nada: “Suponha que você ouça um estrondo alto. . . e vo-
cê me pergunta: 'O que fez isso explodir?', e eu respondo: 'Nada, apenas aconte-
ceu.' Você não aceitaria isso. Na verdade, você acharia minha resposta bastante
ininteligível.127 Se isso é verdade para um pequeno estrondo, então por que não pa-
ra o big-bang também?
Tendo dado um pouco de contexto à nossa discussão, vamos voltar à pergunta:
“Quem fez Deus?” Como respondemos? Primeiro, o teísta não afirma que tudo o
que existe deve ter uma causa, mas tudo o que começa a existir deve ter uma cau-
sa. Nenhum teísta de pensamento correto argumenta que tudo deve ter uma causa;
se fosse esse o caso, Deus também precisaria de uma causa! Em vez disso, come-
çamos com o princípio fundamental sobre a realidade de que tudo o que começa a
existir tem uma causa. O universo claramente começou e, portanto, tem uma causa.
Por outro lado, o Deus eterno e autoexistente, por definição, não precisa de uma
causa; ele é incausado.
Ao conversar com um cético, você pode ouvir: "Tudo - até mesmo a causa do
universo - deve ter uma causa". Mas o cético está fazendo uma suposição questio-
nável, que não dá espaço para um ser como Deus. Isso é uma petição de princípio
ou assumir o que se quer provar. É como dizer: “Toda realidade é física; portanto,
Deus não pode existir”. Claramente, toda a realidade não é física. Por exemplo, as
leis da lógica ou verdades morais (por exemplo, “torturar bebês para se divertir é
errado”) não são físicas, mas ainda são obviamente reais. Da mesma forma, não é
evidente que tudo deva ter uma causa (como veremos em breve).
Além disso, dizer que “tudo que começa a existir tem uma causa” não implica
automaticamente que Deus criou o universo. (Por exemplo, a questão a explorar é
se a causa é pessoal ou impessoal.)128 Nossa segunda resposta ao cético é esta:

127
Kai Nielsen, Reason and Practice (Nova York: Harper & Row, 1971), 48.
128
Parece, porém, que uma causa impessoal do universo (como um estado de condições físicas) seria eliminada,
pois a causa teria que existir simultaneamente ao seu efeito:

Se a causa [do início do universo] fosse um conjunto mecanicamente operacional de condições necessárias e
suficientes, então a causa nunca poderia existir sem o efeito. Por exemplo, a causa do congelamento da água
é 0° centígrado. Se a temperatura estivesse abaixo de 0° desde a eternidade passada, então qualquer água
que estivesse ao redor estaria congelada desde a eternidade. Seria impossível para a água começar a congelar
apenas um tempo finito atrás. Portanto, se a causa está presente atemporalmente, o efeito também deve es-
tar presente atemporalmente. A única maneira de a causa ser atemporal e o efeito começar no tempo é que a
causa seja um agente pessoal que escolhe livremente criar um efeito no tempo sem nenhuma condição prévia
determinante. Por exemplo, um homem sentado desde a eternidade poderia livremente querer se levantar.
Assim, somos levados a uma causa transcendente do universo, ao seu criador pessoal.

Veja Craig, Deus, você está aí? 13.


Por outro lado, o cético pode alegar que uma explicação pessoal não é “científica”. Podemos responder (de-
pois de dizer: “E daí!”, já que a ciência não pode provar que as leis da lógica ou valores morais objetivos existem)
que vemos evidências de ação/agência pessoal todos os dias. Os seres humanos têm a capacidade de escolher e
agir sem serem fisicamente induzidos a fazê-lo. A origem de sua ação não precisa ser o resultado de influências an-
teriores e estados internos (o que os filósofos chamam de “causas eficientes/produtoras”) – mesmo que estes
possam influenciar as decisões; em vez disso, a responsabilidade fica com o agente que tem um objetivo em men-
80

“Devemos começar com um ponto de partida sem petição de princípio e 'tudo o


que começa a existir tem uma causa' faz exatamente isso.”
Deixe-me elaborar sobre isso fazendo um terceiro ponto: pensadores do passa-
do, como Platão e Aristóteles, assumiram que o universo era eterno e não precisa-
va de nenhuma explicação causada para sua origem. Duzentos anos atrás, os ateus
assumiram a eternidade do universo e que não precisava de causa ou explicação.
Se o universo pode hipoteticamente ser autoexplicativo, então por que o mesmo
não pode ser verdade para Deus? Mas ninguém poderia aceitar razoavelmente que
algo pudesse surgir sem causa, do nada. Agora que a ciência contemporânea reve-
lou que o universo começou, muitos não-teístas estão se contorcendo com as pos-
síveis implicações teístas desse fato. O que estou dizendo é que nosso princípio
não exclui a possibilidade de algo existir por si mesmo – seja Deus ou o universo.
E devemos perguntar àqueles que insistem em argumentar que o universo veio lite-
ralmente do nada: “Por que isso deveria ser mais provável do que ter vindo de
Deus?” Como o filósofo Dallas Willard afirma com razão: “Um ser eternamente
auto-subsistente não é mais improvável do que um evento auto-subsistente emer-
gindo de nenhuma causa”.129
Quarto, certas realidades – como leis lógicas ou verdades matemáticas – são
claramente incausadas, pois são eternas e necessárias; portanto, não pode ser
verdade que tudo deve ter uma causa. Mesmo que o mundo não existisse, a afir-
mação 2+2=4 ainda seria verdadeira? É claro! A lei da não contradição (A não po-
de ser igual a não-A) ainda seria verdadeira? Sim. Tais verdades são reais (mesmo
que não sejam físicas), mas não há nenhuma boa razão para pensar que foram cau-
sadas. Se isso for verdade, por que não poderíamos dizer o mesmo sobre o próprio
Deus? O ponto, novamente, é que nem tudo deve ter uma causa.
Quinto, a pergunta “Quem fez Deus?” comete a “falácia da categoria”. É ou-
tra forma de petição de princípio. Em outras palavras, elimina desde o início qual-
quer possibilidade de Deus ser a causa explicativa do universo. Como assim? A
questão assume que tudo deve ser uma entidade contingente (dependente) e que
não pode haver uma entidade auto-existente e não causada como Deus. Mas Deus
está em uma categoria diferente das entidades causadas; colocá-los na mesma ca-
tegoria é injusto. É como perguntar: “Qual é o sabor da cor verde?” ou, “Que sabor
é o C central?” Deus, por definição, é um ser não causado, necessário (não contin-
gente). Deus não deve ser culpado por não ser finito e contingente! Se reformular-

te em sua tomada de decisão (o que é chamado de “causa final”). O próprio agente é a causa de suas ações. Para
uma defesa introdutória desse tipo de liberdade libertária, veja James W. Felt, Making Sense of Your Freedom: A
Guide for the Perplexed (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1994); veja também a parte 1 de J. P. Moreland e
Scott B. Rae, Body and Soul: Human Nature and the Crisis of Ethics (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
2000), que defende a liberdade libertária/incompatibilista.
129
Dallas Willard, “Linguagem, Ser e Deus, e os Três Estágios da Evidência Teísta,” em Deus Existe? ed. J. P. More-
land e Kai Nielsen (Nashville: Thomas Nelson, 1990), 206. Este foi reimpresso (Amherst, N.Y.: Prometheus Books,
1993).
81

mos a pergunta “Quem fez Deus?” para esclarecer nossas categorias, descobrire-
mos que a pergunta responde a si mesma. Vamos reformular a pergunta desta for-
ma: “O que causou a existência da Causa incausada e auto-existente, que por defi-
nição não pode ser feita?” Quaisquer outras questões?
Lembro-me de quando eu tinha dez anos, deitado na cama à noite e me pergun-
tando como Deus poderia sempre ter existido. Raciocinei que, se o universo come-
çou, algo deve ter existido antes dele para trazê-lo à existência. Embora fosse in-
compreensível para mim - e ainda é hoje! - pensar em como Deus sempre poderia
ter existido, concluí: “Em algum momento terei que chegar a um ponto de parada
além do qual não posso ir. Algo tinha que existir antes que o universo começasse.
Por que não Deus?” Embora meu pensamento fosse consideravelmente menos re-
finado aos dez anos de idade do que é hoje, a conclusão ainda parece bastante ra-
zoável.

RESUMO

• O estado anterior ao big bang era literalmente nada - o que não implica nem
mesmo o potencial para algo - e nada pode começar a existir sem uma causa.
Afirmar que algo pode vir literalmente do nada é um absurdo metafísico.
• O teísta não afirma que tudo o que existe deve ter uma causa, mas tudo o
que começa a existir deve ter uma causa.
• Afirmar que tudo deve ter uma causa assume desde o início que Deus não
pode existir (o que é uma petição de princípio). O teísta oferece um ponto de
partida sem petição de princípio, uma vez que não é imediatamente aparente
se a causa do universo é pessoal ou impessoal.
• Platão e Aristóteles (e pensadores posteriores) assumiram que o universo era
eterno e não precisava de uma causa original. Agora que sabemos que o
universo começou, por que não podemos permitir que Deus seja uma Causa
não causada?
• Podemos perguntar àqueles que insistem em argumentar que o universo veio
literalmente do nada: “Por que isso seria mais provável do que ter vindo de
Deus?”
• As verdades lógicas e matemáticas (por exemplo, 2+2=4) não têm causa,
embora sejam reais; portanto, nem tudo deve ser causado. Por que isso não
pode ser verdade para Deus?
• Perguntar: “Quem fez Deus?” comete uma falácia de categoria: assume que
Deus é uma entidade contingente (dependente) causada. Deus, por defini-
ção, é incausado e existe eternamente.
82
83

SE DEUS SABE O QUE VAMOS FAZER,


ENTÃO NÃO TEMOS LIVRE ARBÍTRIO

O
poeta Robert Frost escreveu estas linhas memoráveis:

Estarei contando isso com um suspiro


Em algum lugar por séculos e séculos
daqui:
Duas estradas divergiram em uma floresta,
e eu—
eu peguei a menos percorrida,
E isso fez toda a diferença.130

Infelizmente, alguns têm confundido liberdade com licença para fazer o que qui-
ser. O poeta Walt Whitman escreveu sobre a escolha de qualquer caminho que qui-
sesse:

A pé e com o coração leve, sigo para a


estrada aberta,
Saudável, livre, o mundo diante de mim,
O longo caminho marrom diante de mim,
levando aonde quer que eu escolha.131

Embora a liberdade possa ser abusada, há algo muito importante nisso. Sem uma
liberdade genuína ou autodeterminação para escolher entre alternativas, descobri-
mos que somos despojados da verdadeira responsabilidade moral. Se eu disser:
“As empresas de tabaco são responsáveis pelo meu câncer de pulmão” (apesar de
décadas de advertência do Surgeon General), estou ignorando a responsabilidade
pessoal por minhas ações. Se tudo o que fazemos é determinado simplesmente por
nossos genes, cultura ou anunciantes da Madison Avenue, então como podemos
ser pessoalmente responsáveis pelas ações que tomamos? Como um criminoso po-
130
Robert Frost, “The Road Not Taken”, em The Poetry of Robert Frost (Nova York: Holt, Rinehart and
Winston, 1969), 105.
131
Walt Whitman, Complete Poetry and Collected Prose (Nova York: Library of America, 1982), 297.
Robert Bellah et al. documentaram as terríveis consequências desse individualismo extremo na América
em Habits of the Heart (Berkeley: University of California Press, 1985).
84

de ser justificadamente punido se apenas seu ambiente social o tornou o que ele é?
A responsabilidade moral faz sentido se pudermos escolher entre alternativas e não
formos determinados por estados e eventos anteriores.
Mas pense nisso: e se minhas escolhas forem conhecidas antecipadamente, por
exemplo, por Deus? Tenho então liberdade genuína nas escolhas cotidianas? Se
Deus conhece meu futuro, então não há absolutamente nada que eu possa fazer pa-
ra mudá-lo. Estou realmente livre? Alguns céticos acham tal cenário preocupante e
consideram a ideia de Deus tirânica e limitadora. Mas a liberdade humana e a
presciência de Deus são realmente contraditórias?
Deixe-me fazer três pontos iniciais – um sobre o conhecimento de Deus na Bí-
blia, um sobre a graça iniciadora de Deus na salvação e o terceiro sobre a liberdade
humana. Em seguida, passaremos para a questão da presciência-liberdade.
Ponto 1: A Bíblia afirma claramente o conhecimento de Deus sobre futuras es-
colhas e ações humanas. Antes que uma palavra esteja em nossa língua, Deus a
conhece (Sl 139:4). De fato, Deus conhece o fim desde o princípio (Isaías 46:10).
Jesus sabia que seu discípulo Pedro o negaria três vezes (Marcos 14:30) e que ou-
tro discípulo, Judas Iscariotes, o trairia (João 6:64). Jesus previu as circunstâncias
em torno de sua crucificação (Marcos 10:33–34) e sabia até mesmo detalhes minu-
ciosos sobre futuras ações humanas (Marcos 14:13–14). Algumas pessoas – inclu-
indo teólogos e filósofos cristãos132 – concluíram que, se o futuro é conhecido na

132
Tenho em mente pensadores associados ao “teísmo do livre arbítrio” ou ao “teísmo aberto”. Ver Clark
Pinnock, Richard Rice, John Sanders, William Hasker e David Basinger, The Openness of God: A Bibli-
cal Challenge to the Traditional Understanding of God (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1994). Veja também Greg Boyd, God of the Possible (Grand Rapids: Baker, 2000); John Sanders, The
God Who Risks (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1998); e David Basinger, The Case for Fre-
ewill Theism (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1996).
Esses “teólogos da abertura” tomam como valor nominal a linguagem do “arrependimento” ou “arre-
pendimento/mudança de opinião” de Deus ou sua aparente surpresa em certos eventos. Apesar das afir-
mações bíblicas claras de que Deus conhece as escolhas futuras dos seres humanos, parece que esses “te-
ístas abertos” estão utilizando uma suposição filosófica falaciosa (que as escolhas livres futuras não po-
dem, em princípio, ser conhecidas) e as impõem ao texto bíblico. Para serem consistentes, eles deveriam
fazer o que os mórmons fazem: pegar as inúmeras imagens dos “olhos de Deus” ou “braço de Deus” –
apesar da clara afirmação bíblica de que Deus é espírito – e literalizá-las para provar que Deus deve ter
um corpo. Ou, se considerarmos o texto como verdadeiro a respeito de Deus mudar de ideia, então, de
Gênesis 18:21, devemos concluir que Deus não conhece nem o passado nem o presente - muito menos o
futuro: “Eu [Yahweh] descerei e verei se o que [o povo de Sodoma e Gomorra] fizeram é tão ruim quanto
o clamor que chegou até mim. Se não, eu saberei.” (Sou grato a Bruce Ware por apontar esta passagem.)
Para uma crítica ao teísmo aberto, veja D. A. Carson, “God, The Bible, and Spiritual Warfare: A Re-
view Article”, Journal of the Evangelical Theological Society 42 (junho de 1999): 251–69. Carson chama
um livro do pensador da abertura Greg Boyd de “exegeticamente não convincente, teologicamente pro-
blemático, historicamente seletivo, filosoficamente ingênuo e frequentemente metodologicamente injus-
to” (258). Para um ensaio importante que trata da noção de que Deus mudou de ideia ou se arrependeu,
veja H. Van Dyke Parunak, “A Semantic Survey of NHM”, Biblica 56 (1975): 512–32. Segundo Paru-
nak, a palavra arrependimento tem a ver com “sofrer dor emocional” em alguns contextos; em outros,
85

mente de Deus, então somos como o personagem de desenho animado Popeye:


“Eu sou o que sou; isso é tudo o que sou - sou Popeye, o marinheiro! Não pode-
mos fazer nada sobre quem somos nem tomar medidas significativas, pois Deus já
sabe tudo. O futuro é fixo e determinado. Para escapar desse futuro fechado, esses
pensadores negam que Deus saiba o que os seres humanos farão no futuro; eles
derrubam a crença cristã tradicional de que Deus conhece as escolhas futuras dos
seres humanos. Podemos ser verdadeiramente livres mesmo que Deus saiba o que
faremos? Acredito que a resposta seja sim (mais sobre isso abaixo).
Ponto 2: Em relação à nossa capacidade de aceitar a oferta gratuita de salva-
ção de Deus, devemos admitir que sozinhos somos impotentes para fazê-lo. Não
nos levantamos e dizemos: “Decidi seguir a Jesus”. Deixados a nós mesmos, ne-
nhum de nós busca a Deus (Romanos 3:11).133 Tal capacitação vem através da gra-
ça inicial de Deus e da assistência do Espírito Santo, que estão disponíveis para to-
dos. A influência do Espírito de Deus e a disponibilidade da assistência de Deus –
o que John Wesley chamou de “graça preveniente” – permite que uma pessoa res-
ponda a Deus. Mas essa influência e disponibilidade podem ser rejeitadas, como
em Atos 7:51: “Você . . . resistam sempre ao Espírito Santo”. No entanto, em esco-
lhas não relacionadas à salvação, temos o poder de autodeterminação.
Ponto 3: O que é liberdade? Por liberdade, não quero dizer simplesmente fazer
o que se quer. Um viciado em drogas, fumante inveterado ou alcoólatra pode fazer
o que quiser — ou seja, usar drogas, fumar ou beber. Mas devido a uma longa sé-
rie de escolhas, ele pode ser escravo de seu hábito sem muita esperança de mudan-
ça.134 Uma pessoa sob hipnose ou alguém que sofreu lavagem cerebral pode fazer
o que quiser, mas isso não nos parece uma liberdade genuína. Além disso, uma
pessoa pode estar em uma rotina de maus hábitos (comer constantemente chocola-
te, digamos) que a escraviza de modo que no momento ela não consegue quebrar o
padrão. Mas isso de forma alguma significa que o chocólatra não tenha o livre ar-
bítrio para desenvolver a capacidade de se abster de ceder a certos impulsos nega-
tivos e se engajar em outros positivos no futuro. Temos a capacidade tanto de cres-
cer em nossa liberdade quanto de diminuí-la.135

tem a ver com “retrair bênção ou julgamento” com base na conduta humana. Uma mudança nos destina-
tários de uma promessa/advertência torna a bênção ou o julgamento inapropriados.
133
Para uma boa discussão sobre os efeitos do pecado sobre nós, veja Alvin Plantinga, Warranted Chris-
tian Belief (Nova York: Oxford University Press, 2000), cap. 7 (“O Pecado e Suas Consequências Cogni-
tivas”).
134
Vale a pena notar que virtualmente todos os primeiros pais da igreja (com exceção de Agostinho em
seus escritos posteriores) sustentavam que os seres humanos possuíam o poder de livre escolha contrária
– mesmo em um estado decaído. Para um catálogo de citações, ver Norman Geisler, Chosen but Free
(Minneapolis: Bethany House, 1999), 145–54.
135
J. P. Moreland discute isso em Love Your God with All Your Mind (Colorado Springs: Navpress,
1997), 71–73.
86

Simplificando, a liberdade da qual estou falando136 significa que a responsabili-


dade fica com o agente humano, e não há razão para procurar mais pela causa das
decisões humanas. Como agentes ou autônomos, temos a capacidade de realizar
certas potencialidades. Por meio de escolhas criativas - ou mesmo não tão criativas
- podemos fazer a diferença e colocar novos eventos em movimento. Só porque
nosso caráter, motivações ou desejos íntimos,137 hábitos arraigados e educação fa-
miliar moldam e influenciam profundamente nossas escolhas, isso não significa
que tais coisas as determinam. Na verdade, podemos argumentar que nosso caráter
é moldado por nossas escolhas, e não por nossas escolhas por nosso caráter.
Livre arbítrio significa que minhas escolhas não são determinadas por causas
anteriores (“necessidade causal”), e eu sou capaz de me mover ou me determinar.
Eu - e não meu caráter ou estados internos - decido. Certos traços, portanto, como
teimosia (ou ser fácil de lidar) e sentimentos como depressão (ou alegria) não são a
soma total de quem eu sou. É minha alma ou meu próprio eu - o eu - que tem cer-
tos traços de caráter, sentimentos e estados. Como autônomo, tenho a capacidade
de escolher. É o eu que experimenta vários eventos e sofre as mudanças da vida,
mas isso não deve ser igualado ao eu. Todos esses “fatores de influência” (moti-
vos, qualidades de caráter) podem ser suficientes para explicar minhas escolhas,
mas não os necessita.138
No infame campo de concentração de Auschwitz, o prisioneiro Viktor Frankl
descobriu que pessoas com origens e educação semelhantes reagiam de maneiras
opostas às dificuldades e ao sofrimento. Alguns lutaram intensamente para sobre-
viver enquanto outros desistiram e perderam a vontade de viver. Freqüentemente,
os últimos, tendo perdido toda a esperança de sobreviver, correram para o arame e
convidaram o fogo de metralhadora para acabar com sua miséria e desespero.
Frankl concluiu que “o tipo de pessoa que o prisioneiro se tornou foi o resultado de
uma decisão interna, e não apenas o resultado das influências do campo”.139 Mes-

136
Alguns veem a liberdade como compatível com o determinismo (compatibilistas). Do ponto de vista
teológico, isso liga Deus muito intimamente ao mal; filosoficamente falando, o compatibilismo não ofe-
rece uma visão robusta da agência pessoal. Assim, optaria por uma abordagem incompatibilista em que
liberdade e determinismo são incompatíveis. Para algumas variações desses pontos de vista, consulte Da-
vid Basinger e Randall Basinger, eds., Predestination and Free Will (Downers Grove, Illinois: InterVar-
sity Press, 1986). Para uma visão teológica explicitamente compatibilista, veja D. A. Carson, Divine So-
vereignty and Human Responsibility (1981; reimpressão, Grand Rapids: Baker, 1994).
137
O filósofo John Locke observou: “A vontade é perfeitamente distinta do desejo; que, na mesmíssima
ação, pode ter uma tendência bastante contrária àquela sobre a qual nossa vontade nos coloca” (An Essay
Concerning Human Understanding [New York: Dutton; London: Dent, 1977], 2.21.30, 118).
138
Para um livro útil sobre o tema da liberdade (endossando uma visão incompatibilista), veja James W.
Felt, Making Sense of Your Freedom: Philosophy for the Perplexed (Ithaca, N.Y.: Cornell University
Press, 1994).
139
Viktor E. Frankl, Man’s Search for Meaning, trad. Ilse Lasch (Nova York: Simon and Schuster,
1963), 105.
87

mo que tudo pudesse ser retirado em tal campo, “a última das liberdades humanas”
– ou seja, “escolher a atitude de alguém em qualquer conjunto de circunstâncias” –
não poderia ser retirado.140
Se entendermos a natureza das escolhas humanas como o resultado de causas e
efeitos anteriores,141 então tendemos a pensar em nossas próprias escolhas como o
produto dessas causas anteriores.142 Mas se nós, como Frankl, acreditamos que
nossas escolhas são orientadas para objetivos ("estou comendo esta comida para
sobreviver") ou orientadas para a razão ("eu escolho não correr para o fio por cau-
sa de um futuro esperançoso”),143 teremos uma compreensão mais robusta da esco-
lha humana. Sou livre porque ajo por uma razão ou um objetivo, não por causa de
causas ou estados anteriores.144 Embora não ignoremos nosso passado ou nosso
ambiente, esses fatores não precisam substituir escolhas genuinamente livres.
Outro assunto envolve a pergunta: Como Deus sabe o que faremos no futuro? A
resposta simples é esta: Deus conhece as verdades sobre o futuro porque é essenci-
al que Deus conheça todas as verdades. Dois modelos foram usados para entender
esse conceito. O filósofo Tomás de Aquino ilustra o primeiro modelo. Ele assumiu
que Deus está “fora do tempo” e vê toda a sequência de eventos históricos de uma
só vez. Ele usou a analogia de alguém que se senta no topo de uma montanha ou
de uma alta torre de vigia e vê viajantes caminhando por um longo trecho de estra-
da.145 Essa pessoa antecipa melhor o que os viajantes podem esperar porque uma

140
Ibid., 104.
141
Ou, como disse Aristóteles, causalidade eficiente.
142
Para o cristão que atribui a causa das ações a estados ou disposições anteriores, uma questão importan-
te é: onde Satanás (antes de sua “queda” do céu) e Adão (antes de suas ações no paraíso do Éden) obtive-
ram o desejo de sua primeira pecado? A natureza de Satanás e Adão, que Deus originalmente criou para
ser boa, não poderia ser a base para o mal. Em vez disso, as coisas deram errado devido ao exercício do
livre arbítrio. Ver Geisler, Chosen but Free, 19–37.
143
Ou causalidade final.
144
Alguns filósofos tendem a apresentar um falso dilema de escolhas/eventos sendo (1) rigidamente de-
terminados ou (2) totalmente aleatórios. (Por “determinismo” entende-se que, para tudo o que acontece,
existem condições prévias que exigem certos eventos em vez de outros.) Mas (3) a agência pessoal ofere-
ce uma terceira alternativa. Portanto, minhas razões - não necessariamente meus estados internos, moti-
vações, antecedentes, genética - são a base de minhas ações; portanto, minhas ações podem ser livres,
mas ainda têm uma razão. Um exemplo desse falso dilema pode ser encontrado em Ronald Nash, Life's
Ultimate Questions (Grand Rapids: Zondervan, 1999), 326-33. Nash ignora a distinção entre causalidade
eficiente e final. Essa falsa disjunção também pode ser encontrada em R. K. McGregor Wright, No Place
for Sovereignty (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1996), 47–49.
145
Poderíamos chamar esse modelo da presciência de Deus de modelo empírico ou perceptivo (a imagem
de “perceber” pela visão é utilizada). Deus é visto como o “onipercebedor”. (Essa distinção foi extraída
de William Lane Craig, The Only Wise God [Grand Rapids: Baker, 1987], 119–25.) Craig observa: “De-
vo ir mais longe ao dizer que a suposição implícita do modelo perceptivo está praticamente subjacente
todas as negações contemporâneas da possibilidade de presciência divina de atos livres” (121). Por
exemplo, David Basinger parece usar esse modelo perceptual quando frequentemente usa a linguagem de
Deus “vendo” possibilidades futuras (The Case for Freewill Theism [Downers Grove, Illinois: InterVar-
88

visão mais ampla está disponível para ela do que para os viajantes.146 Tomás de
Aquino falou sobre o “olhar” de Deus ou “a visão divina”.147 Podemos chamar es-
se modelo de modelo perceptivo.
Esse tipo de modelo, entretanto, não mostra como Deus pode ter uma “visão”
de todo o alcance dos eventos – passado, presente e futuro – já que o passado e o
futuro não existem agora.148 Deus é reduzido a fazer inferências sobre estados futu-
ros que ainda não existem com base na consciência de estados passados e presen-
tes. Por exemplo, com base em informações sobre padrões passados, fazemos cál-
culos gerais sobre o deslocamento das placas tectônicas da Terra em 25 anos; qual
será a fase da lua ou a localização de determinados planetas em um determinado
momento; qual é a expectativa de vida do sol. Mas esse método parece um tanto
incerto e pode parecer mais uma adivinhação quando se trata da área menos previ-
sível das escolhas humanas. Se Deus inferisse escolhas futuras com base no co-
nhecimento ou nas causas presentes, então ainda haveria uma grande quantidade
de conjecturas — por mais divinamente educadas que fossem.
Acho que existe um modelo melhor para entender a presciência de Deus: o mo-
delo racional ou conceitual. Para compreender esse modelo, perguntemo-nos pri-
meiro: o que faz de Deus o que ele é? Ele tem uma certa natureza que o torna o Ser
maximamente grande que ele é.149 Ele é todo-poderoso, todo-bom, onisciente e as-
sim por diante. Sem nenhum desses atributos, ele não seria Deus. Esses atributos
são essenciais para Deus - eles fazem dele o que ele é. Se algum grande ser fosse
todo-poderoso, mas não totalmente bom, então esse ser não poderia ser considera-
do Deus e, portanto, não seria digno de adoração. Quando se trata do conhecimen-

sity Press, 1996], 45–46). O uso de Basinger do modelo perceptual é parte da razão pela qual ele rejeita a
presciência divina das futuras escolhas humanas livres.
146
Tomás de Aquino, Summa Theologiae, 1.14.13, ad 3: “Futuras coisas contingentes . . . são certas so-
mente para Deus, cujo entendimento está na eternidade acima do tempo. Assim como aquele que vai pelo
caminho não vê os que vêm depois dele; enquanto aquele que vê toda a estrada de uma altura vê de uma
vez todos os que viajam por ela.
147
Ibid., 1.14.13.
148
Ver Edward J. Khamara, “Eternidade e Onisciência”, Philosophical Quarterly 24 (1974): 212–218. Eu
mesmo não considero coerente a visão de Deus vendo todas as coisas — passadas, presentes e futuras —
simultaneamente no “eterno agora” por outra razão. Se esse “presente eterno” fosse o caso, seria impossí-
vel para Deus afirmar declarações de verdade temporais ou indexadas (como: “Agora estou olhando para
um carvalho”), pois elas seriam indiferenciadas no conhecimento de Deus. Como Deus seria capaz de di-
ferenciar entre declarações sobre passado, presente e futuro, ou como poderíamos dizer que Deus sabe al-
go neste momento que não será mais verdadeiro como uma declaração no tempo presente amanhã? Deus
teria que estar no tempo (o que de forma alguma diminuiria seu conhecimento de todas as verdades -
mesmo do futuro) para que ele conhecesse fatos tensos ("Ronald Reagan não é agora presidente" ou "Je-
sus voltará no final da idade”). É um problema dizer que todos os eventos estão no mesmo nível na mente
de Deus (eventos passados, presentes e futuros são igualmente reais); certamente alguns eventos —
mesmo que Deus saiba que acontecerão— ainda não existem.
149
Veja Alvin Plantinga, Deus tem uma natureza? (Milwaukee: Marquette University Press, 1980)
89

to de Deus, é essencial e inato a Deus conhecer todas as verdades - sejam passadas,


presentes ou futuras.150 Se ele não conhecesse os eventos futuros, ele não poderia
ser Deus. Por que não? Deus é o tipo de ser que necessariamente conhece todas as
declarações verdadeiras - incluindo declarações verdadeiras sobre o futuro.151 O
conhecimento de eventos futuros e escolhas humanas é intrínseco a Deus - assim
como ser todo-poderoso e todo-bom são intrínsecos a ele. Deus não pode deixar de
conhecer declarações verdadeiras sobre o futuro. Portanto, mesmo que não possa-
mos explicar como Deus conhece eventos futuros - assim como não podemos ex-
plicar como Deus é todo-poderoso - isso não significa que Deus não possa ter
presciência perfeita.152
Agora que reservamos um tempo para explicar e definir, vamos examinar a
questão da coexistência da liberdade humana e da presciência divina.
Em primeiro lugar, o conhecimento de Deus sobre as ações futuras não impede
por si só a liberdade humana, pois o conhecimento na verdade não causa nada.
Para fins de argumentação, vamos supor que um médium tenha a intuição de que
um assassinato acontecerá amanhã em uma casa na mesma rua. Amanhã se trans-
forma em hoje e. . . o mordomo fez isso! Mas o que o conhecimento do psíquico
realmente fez? Certamente, a consciência do médium desse assassinato iminente
não exigiu que o assassinato ocorresse ou levou o mordomo a fazê-lo. Mesmo que
possamos realmente dizer que esse médium sabia que um assassinato aconteceria,
não concluímos que o mordomo não cometeu assassinato livremente. Pareceria es-
tranho afirmar que simplesmente saber que algo acontecerá é virtualmente fazer
com que isso aconteça. Então, por que as coisas deveriam mudar se Deus é o co-
nhecedor? Saber que um evento futuro (como um assassinato) ocorrerá é diferente
de sua causa real (as ações livres do mordomo).
Ou veja este exemplo: como cristão, acredito que Jesus Cristo um dia voltará.
Com base na revelação de Deus na Bíblia, posso fazer a afirmação mais forte: sei
que Jesus voltará no futuro. O fato de eu saber que Jesus voltará, entretanto, não
tem nada a ver com isso. Conhecer e provocar são distintos. Alguém pode pergun-
tar: “Mas nós não sabemos que Jesus está vindo porque o próprio Deus nos deu a
conhecer isso?” Sim. Mas meu ponto aqui é que o conhecimento (pré) por si só
não faz nada. O fato de que Deus sabe de antemão que a segunda vinda ocorrerá
não vem ao caso. A verdadeira questão é: a própria presciência causa alguma coi-

150
Compare a visão “extradimensional” de Hugh Ross sobre Deus (Beyond the Cosmos [Colorado
Springs: Navpress, 1996]). Para uma crítica do livro de Ross, veja William Lane Craig, “Hugh Ross’s
Extra-Dimensional Deity,” Journal of the Evangelical Theological Society 42 (junho de 1999): 293–304.
151
Para uma discussão mais aprofundada sobre o que significa para Deus ser um Ser maximamente gran-
de, veja Thomas V. Morris, Anselmian Explorations: Essays in Philosophical Theology (Notre Dame:
University of Notre Dame, 1987); idem, Our Idea of God (Downers Grove, Illinois: 1991).
152
Alguns podem perguntar: “Você não está assumindo que declarações verdadeiras podem ser feitas so-
bre o futuro? Não é este o próprio ponto de discórdia?” vou resolver isso lindo
90

sa? A resposta é não. (Poderíamos acrescentar que a presciência divina do momen-


to da segunda vinda não exige que Jesus volte em um momento específico e nem
em um momento mais cedo ou mais tarde. Isso depende da livre escolha de Deus.)
Da mesma forma, Deus pode ter presciência das escolhas humanas livres sem
que essa presciência cause nada. Algo mais — a saber, a escolha humana — deve
ser acrescentado à equação para causar ações humanas que Deus conhece de ante-
mão. Nesse sentido, minha presciência não é diferente da de Deus, pois por si só a
presciência não faz nada. Até mesmo o teólogo predestinador João Calvino admi-
tiu que “a mera presciência [pré-conhecimento] não impõe nenhuma necessidade
às criaturas”, embora alguns tenham pensado que ela mesma é a “causa das coi-
sas”.153
Por enquanto, porém, vamos esquecer completamente os conhecedores huma-
nos. Vamos falar sobre o supremo Conhecedor - o próprio Deus. Deus sabe não
apenas o que faremos no futuro, mas também o que fará no futuro. Os teólogos
cristãos assumiram que Deus não está cercado por entidades ou forças externas a
ele; ele é totalmente gratuito. Deus livremente escolheu criar o mundo. Ele não
precisava. Ele escolheu livremente povoar o mundo com humanos e selecionou es-
te mundo em particular em detrimento de outro. Mais uma vez, ele não precisava.
Ele livremente escolheu vir à Terra na pessoa de Jesus e nos resgatar de nosso
afastamento de Deus, de nossos semelhantes e do restante da criação. Deus não foi
compelido a agir com tanto amor como se merecêssemos ser criados. Mas se Deus
sabe de antemão o que vai fazer (por exemplo, responder à minha oração amanhã),
ele também está determinado a fazê-lo simplesmente porque conhece suas próprias
ações futuras? Claro que não! A presciência de Deus sobre suas próprias ações não
o leva a fazê-las; ao contrário, ele os faz livremente. Da mesma forma, a presciên-
cia de Deus sobre o que farei no futuro também não precisa me levar a fazer algo.
Santo Agostinho acertou quando disse: “Você não vê que terá que ter cuidado para
que alguém não diga a você que, se todas as coisas das quais Deus tem presciência
são feitas por necessidade e não voluntariamente, seus próprios atos futuros será
feito não voluntariamente, mas por necessidade?”154
Para reforçar o ponto, vamos deixar de lado todos os conhecedores – sejam di-
vinos ou humanos. Tomando emprestado um exemplo notável de Aristóteles,155
vamos assumir que é verdade que uma batalha naval acontecerá no próximo sába-
do. Ou seja, a afirmação “Uma batalha naval ocorrerá no próximo sábado” é ver-

153
John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trad. Henry Beveridge (Grand Rapids: Eerdmans,
1979), 3.23.6, 231. Calvin, no entanto, prossegue argumentando que, porque Deus decretou “por nomea-
ção soberana” o que acontecerá, a questão da presciência é irrelevante.
154
Augustine, On Free Will, 3.3.6.
155
Aristotle, De interpretatione, 9, 18a28–19b4.
91

dadeira se e somente se uma batalha naval ocorrer no próximo sábado.156 No pró-


ximo sábado chega, e há uma batalha naval. Mesmo que esse evento futuro não
exista agora, a verdade de que ele acontecerá existe, sem que ninguém exista para
saber. Lembre-se de que não há absolutamente nenhum conhecedor dessa futura
ação humana em nosso experimento mental; nenhum conhecedor divino ou huma-
no é necessário para que este evento aconteça.157 Se esta batalha naval realmente
acontecerá no próximo sábado, então cabe aos humanos provocá-la. Obviamente,
ninguém sabe que o evento acontecerá; portanto, o conhecimento não está fazendo
a causa.
Ou considere esta afirmação: “É verdade que Paul Copan está digitando em seu
computador em 18 de janeiro de 2001”. Devido à minha livre escolha de digitar
hoje (18 de janeiro de 2001), uma declaração expressando a verdade que eu digita-
ria em 18 de janeiro de 2001 era verdadeira há mil (ou milhões) anos.
Algumas pessoas dirão que se Deus conhece as verdades passadas e futuras, en-
tão ambos os conjuntos de verdades são logicamente iguais no sentido de que estão
“presos no lugar”. O futuro é tão inevitável quanto o passado.158 Mas, além de ser
contra-intuitivo, tal posição fatalista simplesmente não é verdadeira. Por definição,
não podemos agir ou causar nada no passado (causação retrógrada). Simplesmente
não temos poder sobre ela, ao passo que podemos agir no presente para provocar
eventos futuros.159
O ponto é este: a presciência de Deus sobre as escolhas humanas livres não é
diferente da (possível) presciência humana no sentido de que esse conhecimento
na verdade não faz com que nada aconteça. Além disso, declarações verdadeiras
sobre o futuro podem ser feitas sem apelar para Deus como o conhecedor. Assim,
o conhecimento de Deus sobre um evento futuro evita a questão. Quando se trata
de causar um evento humano, cabe aos humanos provocar esses eventos. Se era
verdade no ano passado que uma batalha naval aconteceria no próximo sábado, en-
tão (em certo sentido) não importa se Deus (ou qualquer humano) sabia que isso
aconteceria para que acontecesse. Só porque esse evento é conhecido por Deus,

156
Alguns podem presumir que, como estados futuros – como a Terceira Guerra Mundial – não existem
atualmente, não podemos fazer declarações verdadeiras sobre eles. Mas isso parece falso. Podemos fazer
declarações verdadeiras genuínas sobre eventos futuros e sobre futuras escolhas humanas livres - mesmo
que tais declarações não sejam sobre o presente. Se eu disser: “Haverá ou não haverá uma Terceira Guer-
ra Mundial”, esta é uma afirmação de verdade que corresponde ao que acontecerá (ou não) no futuro. As-
sim, podemos afirmar verdades sobre o futuro.
157
Linda Zagzebski, “Foreknowledge and Human Freedom,” em Companion to Philosophy of Religion,
ed. Philip Quinn e Charles Taliaferro (Malden, Mass.: Blackwell, 1997), 295.
158
Veja, por exemplo, Richard Taylor, Metaphysics (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1963), 54-69.
Para obter uma resposta, consulte Craig, The Only Wise God, 67–74.
159
William Lane Craig, “Tachyons, Time Travel, and Divine Omniscience,” Journal of Philosophy 85
(1988): 135–50.
92

não significa que os seres humanos não tenham escolhido livremente se envolver
em uma batalha naval. Saber e causar são assuntos separados.
Em segundo lugar, devemos distinguir entre certeza e necessidade – entre o
que vai acontecer e o que deve acontecer. Ao longo dos anos, minha esposa e eu
gostamos de ler em voz alta um para o outro clássicos como Silas Marner, The
Scarlet Letter e A Tale of Two Cities. Digamos que esta noite minha esposa e eu
queremos ler Razão e sensibilidade de Jane Austen. Se Deus previr que leremos
Razão e Sensibilidade esta noite, então o leremos esta noite. Isso significa que de-
vemos lê-lo? Não. Poderíamos escolher ler Orgulho e Preconceito. Nesse caso, a
presciência de Deus seria diferente. Nossas escolhas livres dão conteúdo a uma
porção da presciência de Deus. A presciência de Deus sobre nossas escolhas signi-
fica apenas que escolheremos o que ele sabe de antemão; isso não significa que
devemos escolher o que fazemos. Em outras palavras, embora seja certo que minha
esposa e eu leremos Razão e sensibilidade esta noite (e Deus sabe disso), isso não
significa que seja necessário. A certeza não implica necessidade.
O argumento cético – de que a presciência de Deus anula a liberdade humana –
resulta da confusão entre certeza e necessidade. Observe as duas afirmações a se-
guir:

A: Se Deus sabe de antemão que farei x, x acontecerá necessariamente.


B. Necessariamente, se Deus sabe de antemão que farei x, x acontecerá.

Qual é a diferença entre A e B?160 A afirmação A implica que a ação que Deus
previa tinha que acontecer (que deve acontecer); porque Deus o conhece de ante-
mão, é necessariamente assim e não poderia ser de outra forma. A afirmação B

160
Há uma distinção entre a necessidade nessas duas declarações. Uma é a necessidade de dicto (isto é, a
necessidade das palavras), e a outra é de re (a necessidade das coisas). Em um cenário de dicto, estamos
atribuindo uma verdade necessária a uma proposição; em um cenário de re, estamos atribuindo necessi-
dade a algum objeto ou coisa.

A: Se Deus conhece algo de antemão, isso necessariamente acontecerá (de re).


B: Necessariamente, se Deus preconhece algo, acontecerá (de dicto).

Como acabamos de ver, A é falso enquanto B é verdadeiro; isto é, tudo o que podemos concluir da pres-
ciência de Deus sobre as escolhas humanas é que elas ocorrerão (B), não que devem (A). Ver Alvin Plan-
tinga, The Nature of Necessity (Oxford: Clarendon, 1974), 9–13.
Outro exemplo para mostrar a distinção é este:

De re: O número de planetas é necessariamente ímpar.


De dicto: Necessariamente, o número de planetas (ou seja, nove) é ímpar.

Nesse caso, a afirmação de re é falsa (poderia ter havido um número par de planetas) e a afirmação de
dicto é verdadeira (o número de planetas é nove, o que é necessariamente ímpar).
93

implica que minha ação que Deus conhece de antemão pode ter sido diferente (por
exemplo, se eu tivesse escolhido de forma diferente), mas acontecerá.161 Portanto,
se Deus sabe que minha esposa e eu leremos Razão e sensibilidade esta noite, en-
tão o faremos, mas, logicamente falando, isso não significa que temos que fazê-lo.
Embora nossa leitura desse romance em particular seja certa, não é necessária. De-
vemos ter cuidado para não confundir essas duas idéias diferentes, como tantas ve-
zes é feito. Enquanto algo que é necessário também é certo, o que é certo pode não
ser necessário.162
Algumas pessoas perguntarão: “Se nossas escolhas livres se tornam a base ou
base para parte da presciência de Deus, isso não torna Deus sujeito aos caprichos
das escolhas humanas? Isso não minimiza o governo real de Deus sobre o univer-
so?” Vamos abordar brevemente esta questão.163
Terceiro, Deus, sabendo o que faríamos em todos os mundos possíveis, criou
um mundo que utiliza as escolhas humanas livres para realizar seus propósitos na
história. O que faríamos livremente em mundos possíveis e o que faríamos livre-
mente no mundo real são conhecidos por Deus porque ele é Deus. Assim, o fato de
os humanos, digamos, fazerem a livre escolha de lutar no mar no mundo real é a
base para a presciência de Deus sobre esse evento. Mas, para que eu não seja mal
interpretado, isso não significa que Deus não seja mais soberano sobre a história.
Longe disso.
Como vimos, para ser Deus, Deus deve ser não apenas onisciente em relação às
futuras escolhas humanas, mas também deve conhecer todos os mundos possíveis
e quaisquer escolhas humanas livres que ocorreriam neles.164
161
Ver Alvin Plantinga, God, Freedom, and Evil (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), 65–73. Também Phi-
lip L. Quinn, “Plantinga on Foreknowledge and Freedom”, em Alvin Plantinga, ed. James E. Tomberlin e
Peter van Inwagen, Profiles 5 (Boston: Reidel, 1985), 271–87; veja também a resposta de Plantinga (384-
85).
162
Observe o seguinte argumento:

1. Necessariamente, se Deus preconhece algo (x), então x acontecerá.


2. Deus pré-conhece x.
3. Portanto, x acontecerá.

É falacioso concluir que x acontecerá necessariamente. Isso simplesmente não decorre logicamente das
premissas 1 e 2. Tudo o que podemos concluir legitimamente é que x acontecerá. Para concluirmos que x
acontecerá necessariamente, a segunda premissa teria que ser: “Necessariamente, Deus preconhece x”.
Tal afirmação não poderia ser verdadeira, pois implica que este mundo em particular é o único mundo
que Deus poderia ter criado, mas nega a liberdade de Deus de criar livremente um mundo e não outro,
que existem mundos possíveis que Deus poderia ter criado.
163
Para uma elaboração mais completa, veja Craig, The Only Wise God; também idem, “Middle Knowle-
dge,” em Divine Foreknowledge: Four Views, ed. James Beilby e Paul Eddy (Downers Grove, Illinois:
InterVarsity Press, 2001).
164
Claro, existem mundos possíveis nos quais não existem humanos. De fato, existem mundos possíveis
nos quais nada existe exceto Deus, que existe em todos os mundos possíveis.
94

Baseado em saber o que faríamos em certos mundos, Deus arranja os detalhes


do mundo real sem eliminar nossa liberdade. (Novamente, Deus não está apenas
inferindo o que faríamos. Deus, em virtude de quem ele é, sabe o que faremos no
mundo real.) Obviamente, o próprio Deus também age livremente no mundo - sem
mencionar que o preserva de não existencia; ele livre e graciosamente enviou Jesus
ao mundo para nos resgatar de nossa situação. Deus decreta ou ordena que certas
coisas aconteçam, mas tais decretos não violam a genuína liberdade humana.
Portanto, quando dizemos que nossas escolhas feitas livremente são a base de
parte da presciência de Deus (“Se eu tivesse escolhido isso em vez daquilo, a pres-
ciência de Deus teria sido diferente”), não estamos minimizando a soberania de
Deus. Em vez disso, a presciência precisa de Deus de todas as verdades - possíveis
e reais - leva em consideração o que escolheríamos em vários mundos possíveis.
Com base nesse conhecimento, ele traz o mundo real em que nos encontramos e
sabe o que vamos escolher. Nós escolhemos livremente o que Deus – que, por cau-
sa de quem ele é por natureza – sabia que escolheríamos neste mundo real.165 As-
sim, Deus planeja um mundo no qual seus propósitos são, em parte significativa,
realizados por meio de seu conhecimento inato do que criaturas livres fariam li-
vremente em todos os mundos possíveis em que poderiam ter existido, até os mí-
nimos detalhes. Portanto, não há surpresas para Deus nas escolhas livres que faço,
e a própria ação de Deus, cuidado providencial e governo da história não são pre-
judicados.166 Como veremos em um capítulo posterior, Deus cria um mundo no
qual o maior número possível de pessoas é salvo e o menor número possível de
pessoas se perde.167 Assim, qualquer um que esteja perdido estaria perdido em to-
dos os mundos possíveis em que existisse, sofrendo de “depravação transmundial”.
Alguém pode perguntar: “Mas os eventos e as escolhas humanas não são mani-
pulados por Deus desde que ele escolheu este mundo particular em detrimento de
outro mundo possível?” Não, eles não são manipulados porque a base da escolha
de Deus deste mundo em detrimento de outros é seu conhecimento do que faría-
mos livremente neste mundo. Por exemplo, nas Escrituras, Deus é retratado como
conhecedor de circunstâncias contrárias aos fatos (contrafactuais). Deus diz a Davi
que se ele permanecer em Queila, então Saul virá atrás dele. Davi foge, e o que te-
ria sido verdade se Davi tivesse ficado não aconteceu (1 Sam. 23:6–13). Deus, por
meio dos profetas, dá avisos sobre o que acontecerá se as pessoas agirem de uma
maneira e não de outra (Amós 7:1–6; Jonas 3). Jesus sabe que se seus discípulos
obedecerem a seus mandamentos, eles encontrarão as coisas exatamente como ele
previu (Mateus 17:27; João 21:6). A partir desses exemplos de ações humanas li-

165
Falo sobre essa visão de mundos possíveis em relação à questão dos não evangelizados em meu “Ver-
dadeiro para você, mas não para mim”, 127–32. Para maiores detalhes, veja Craig, The Only Wise God.
166
Veja Craig, O Único Deus Sábio, 127–154.
167
Também discuto isso com mais detalhes em “Verdadeiro para você, mas não para mim”, parte 5.
95

vremente escolhidas e cenários contrários aos fatos, torna-se evidente que Deus
não está manipulando as escolhas humanas. Em vez disso, ele leva em considera-
ção as escolhas humanas em sua presciência e age com base nesse conhecimento
ao criar este mundo. Isso está longe de ser determinismo (ou compatibilismo), no
qual a base para minha ação está, em última instância, enraizada no decreto de
Deus, e não em minha escolha.
Portanto, a presciência de Deus é obviamente cronologicamente anterior às mi-
nhas escolhas reais (ou seja, Deus sabia desde a eternidade quais seriam minhas
escolhas no mundo real - sem mencionar quaisquer mundos possíveis nos quais eu
possa ter existido). Mas minhas escolhas reais são logicamente anteriores à presci-
ência de Deus. Em outras palavras, o que eu escolherei livremente (ou o que eu te-
ria escolhido livremente em vários mundos possíveis) torna-se a base ou base so-
bre a qual Deus decide qual mundo criar (e qual deixar incriado). A presciência de
Deus é o consequente lógico ou resultado, e nossas ações futuras neste mundo são
a razão pela qual Deus sabe de antemão o que faremos.168
Como resultado, somos capazes de preservar a liberdade humana e a presciên-
cia e soberania divinas. Ao manter certas distinções em mente – entre saber e cau-
sar, entre certeza e necessidade, entre escolher e deve escolher – podemos nos
afastar da crença errônea de que a presciência divina elimina a liberdade humana.
Os seres humanos são livres e Deus conhece tudo o que eles farão.169

RESUMO

• O livre-arbítrio implica que a responsabilidade fica com o agente (o automo-


tor ou autoiniciador), e não há necessidade de procurar alguma causa além
do agente (como estados internos, caráter ou ambiente). Embora tais fatores
sejam suficientes para fazer escolhas, eles não exigem as escolhas.
• Como eu (meu eu ou alma — não meus estados internos ou traços de cará-
ter) ajo com um objetivo ou razão em mente, minhas escolhas não são de-
terminadas por causas e estados anteriores.
• Deus conhece verdades sobre o futuro porque é essencial que Deus conheça
todas as verdades. Assim como ser todo-poderoso e todo-bom são essenciais
para Deus (isto é, Deus não poderia ser Deus sem essas características), as-
sim também é seu conhecimento do futuro.
• O modelo racional – “Deus conhece intrinsecamente o futuro” – é preferível
ao modelo perceptivo mais nebuloso, no qual Deus de alguma forma “vê” o
futuro.

168
Craig, The Only Wise God, 74.
169
Obrigado a J. Budziszewski por seus comentários sobre este capítulo.
96

• O conhecimento de Deus sobre as ações futuras por si só não impede a li-


berdade humana, pois o conhecimento na verdade não causa nada.
• Simplesmente porque eu sei, digamos, que Jesus voltará não significa que eu
saber disso tenha algo a ver com isso. Conhecer e produzir são claramente
distintos.
• Além disso, se Deus sabe o que fará no futuro, isso não significa que ele seja
compelido ou determinado a fazê-lo - apenas que ele o fará (livremente).
• Com ou sem Deus, declarações verdadeiras podem ser feitas sobre o futuro
(por exemplo, mil anos atrás, era verdade que eu estaria digitando no meu
computador hoje), mas isso não é motivo para acreditar que os humanos es-
tão determinados a agir dessa maneira eles fazem.
• A presciência de Deus sobre as escolhas humanas livres não é diferente da
(possível) presciência humana no sentido de que esse conhecimento em si
não faz com que nada aconteça.
• Devemos distinguir entre certeza e necessidade – entre o que vai acontecer e
o que deve acontecer.
• Deus, sabendo o que faríamos em todos os mundos possíveis, criou um
mundo que utiliza as escolhas humanas livres para realizar os propósitos de
Deus na história.
• Enquanto a presciência de Deus sobre o que farei é obviamente cronologi-
camente anterior às minhas escolhas reais, minhas escolhas reais são logi-
camente anteriores, servindo como base na qual Deus decide qual mundo
criar e qual deixar incriado.
97
98

SE DEUS PREDESTINA ALGUNS PARA


SEREM SALVOS, QUE ESCOLHA EU
REALMENTE TENHO?

C
erta vez, conheci um senhor austríaco idoso que respondia à minha per-
gunta: "Wie geht's?" (“Como vai?”) com um taciturno “Wie Gott will”
(“Como Deus quiser”). Por trás de seu pensamento escondia-se uma atitu-
de fatalista: “Se Deus quer alguma coisa, então não posso fazer nada a respeito”.
Afinal, a Bíblia diz: “Pois quem resiste à sua vontade?” (Romanos 9:19).170
O capítulo anterior abordou a harmonia entre a presciência de Deus e a liberda-
de humana. Este capítulo não trata da presciência de Deus, mas de seu poder de
decretar, ordenar ou determinar certas coisas. A questão principal em questão é a
salvação predeterminada (ou a falta dela) dos indivíduos como indivíduos.
As referências bíblicas à predestinação, eleição, chamado, escolha ou preorde-
nação têm causado tanto confusão a crentes quanto a incrédulos. Muitos se pergun-
tam se a doutrina da predestinação, associada a Agostinho e João Calvino, faz
Deus parecer arbitrário. Deus escolhe alguns para a salvação (e eles não podem re-
sistir a ela) e os demais, em última análise, não têm esperança de pertencer à famí-
lia de Deus?
Muitos versículos da Bíblia são organizados em defesa dessa posição: Deus
“faz todas as coisas conforme o propósito da sua vontade” (Efésios 1:11); “Nin-
guém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer” (João 6:44); “Todo
aquele que o Pai me dá virá a mim” (João 6:37); “Ninguém conhece o Filho senão
o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser
revelar” (Mateus 11:27); “Quando os gentios ouviram isso, eles se alegraram e

170
O contexto desta passagem de Romanos (que fala do oleiro ser capaz de fazer o que quiser com o bar-
ro) refere-se a Jeremias 18:6–10, onde a destruição ou preservação de uma nação ou reino estava condici-
onada ao arrependimento do povo: “Se aquela nação que eu avisei se arrepender de seu mal, então eu me
arrependerei e não infligirei a ela o desastre que planejei” (v. 8, ênfase adicionada).
A linguagem em Romanos 9 não é que o oleiro faz alguns vasos para destruir - os oleiros não fazem
isso! Em vez disso, Deus faz vasos para serem usados, seja para propósitos nobres ou humildes (ver 2
Timóteo 2:19–21). Todos os “vasos” humanos — até mesmo os vasos desonrosos que resistem a ele (Fa-
raó, Nabucodonosor, Pilatos, Judas Iscariotes e assim por diante) — podem ser usados por Deus para rea-
lizar seus propósitos. Esses vasos podem, portanto, honrar a Deus exibindo seu santo julgamento e ira;
Deus os usará para promover seus fins para que, nesse sentido, ninguém resista à sua vontade.
99

honraram a palavra do Senhor; e creram todos os que estavam destinados para a


vida eterna” (Atos 13:48).171 A lista poderia continuar.
Mas vamos voltar à questão da aparente capricho de Deus na eleição. João Cal-
vino escreve que “Deus de seu mero beneplácito” elege alguns e “passa por cima
de outros”.172 Por decreto de Deus, “alguns são predestinados para a vida eterna,
outros para a condenação eterna”.173 No entanto, Deus, como um professor meu

171
Deixe-me comentar brevemente alguns desses versículos. Efésios 1:11 não pode ser entendido em al-
gum sentido determinístico, uma vez que as pessoas desafiam a Deus (Mateus 23:37; Atos 7:51), o que é
contrário ao que ele deseja e deseja idealmente para elas. João 6:37 não se refere a um grupo seleto de
pessoas, mas simplesmente àqueles que crêem em Cristo – o corpo de crentes ou seguidores que Deus
deu a Jesus; eles colocaram sua confiança nele e foram dados coletivamente a Jesus pelo Pai (veja abai-
xo).
Em Mateus 11:25-27, o contexto nos informa que aqueles a quem Jesus escolhe revelar-se são aque-
les que humildemente e simplesmente responderam à graça ou atração inicial de Deus (João 6:44) - em
vez de resistir orgulhosamente (como em Atos 7:51, onde judeus incrédulos estão resistindo ao Espírito
Santo). Em Atos 13:48, o contexto indica que era “necessário” que a Palavra de Deus fosse dada primeiro
aos judeus, mas como eles repudiaram a oferta de “vida eterna”, Paulo voltou-se “para os gentios”
(13:46). Paulo menciona sua comissão para ser “uma luz para os gentios” (v. 47). Com isso, “os gentios”
ouviram e se alegraram com a notícia (v. 48). Portanto, aqueles que foram “ordenados” para a “vida eter-
na” – isto é, os gentios – creram na medida em que (coletivamente) foram incluídos no plano salvador de
Deus. Esta “luz para os gentios” cumpre o que foi predito no início do relato de Lucas-Atos (Lucas 2:32).
Portanto, devemos questionar com razão a noção de

alguma eleição pré-temporal de certos para que eles, e somente eles, venham a crer. Isso se encaixaria
mal no contexto. A rejeição dos judeus à Palavra de Deus foi responsável por seu fracasso em ganhar
a vida eterna. Eles não se consideravam dignos da vida eterna (v. 46). . . . Certamente, neste contexto,
Lucas não pretende restringir a aplicação da salvação apenas aos designados. Em vez disso, ele mos-
tra que a esfera de aplicação da salvação deve se expandir de apenas judeus para gentios crentes.

William W. Klein, The New Chosen People: A Corporate View of Election (Grand Rapids: Zondervan,
1990), 110.
172
Calvin, Institutes, 3.22.1, 213.
173
Ibid., 3.21.5, 206. Calvino (em 3.21.6, 209) apela para Romanos 9 (que cita Malaquias 1:2–3, onde
Deus diz que “amou” Jacó (pai da nação de Israel) e "odiava" Esaú (pai da nação de Edom). Embora Cal-
vino veja isso como a eleição de Deus para a salvação, na verdade trata do plano de salvação de Deus no
curso da história. Deus escolheu quem ele escolheu para uma missão específica - realizar Deus tem a
prerrogativa de escolher um (Jacó) em detrimento do outro (Esaú) para realizar seus planos na história.
significa que Esaú não poderia ter se arrependido e recebido a salvação pessoal. Além disso, o mesmo ti-
po de linguagem poderia ter sido usado sobre José (o filho favorito de Jacó) e Judá (o quarto filho de Ja-
có): Embora José fosse exemplar em integridade e piedade, Deus passou por ele e escolheu o caráter mui-
to menos desejável de Judá para continuar a linha messiânica. e não estava na base de obras.
Quando se trata de indivíduos e salvação em Romanos 9–11, “a questão . . . é a presença ou ausência
de fé, não se eles foram escolhidos individualmente para a salvação” (William Klein, “Is Corporate Elec-
tion Merely an Abstract Entity? A Response to Thomas Schreiner” [não publicado], 2). A razão pela qual
a maioria dos judeus não está entre os eleitos (ou “o remanescente”) é por causa de sua incredulidade
(Romanos 11:20, 23), não porque Deus nunca os elegeu para a salvação.
Até mesmo a linguagem de “amar” e “odiar” envolve termos comparativos (amar mais ou menos;
comparar Mateus 10:37 [“ama... mais do que”] e Lucas 14:26 [“odiar”]). No contexto original de Mala-
100

perguntou uma vez, “escolhe pessoas para serem salvas como alguém escolhe
amendoins de uma sacola?” Deus está sendo arbitrário ao selecionar certas pessoas
para a salvação (que é uma visão comumente associada a Alá no Islã)174 e permitir
que o resto seja rejeitado? A explicação final de por que alguns não aceitam a Cris-
to é o fato de que Deus escolheu deixá-los em pecado?175
As suposições e argumentos que giram em torno desse tópico são complexos, e
muitos teólogos e estudiosos respeitados articularam uma defesa de ambos os la-
dos dessa posição. Eu, no entanto, gostaria de apresentar uma visão que considero
não apenas intelectualmente satisfatória e revigorante, mas (o mais importante) bi-
blicamente precisa também. Embora alguns da persuasão reformada/calvinista
possam considerar minha visão deformada, acho que tem muito a elogiá-la.
Uma das principais razões para abordar esse tópico é que ele surge com fre-
quência em conversas com cristãos e não cristãos. Alguém muito mais experiente
do que eu - Norman Geisler - dedicou seu livro Chosen but Free a "todos os meus
alunos que, nos últimos 35 anos, fizeram mais perguntas sobre isso do que sobre
qualquer outro tópico".176 Quero esboçar, portanto, uma resposta bíblica à acusa-
ção de arbitrariedade divina em relação aos que são salvos e aos que não são. Farei
isso argumentando em favor de uma compreensão corporativa, em vez de indivi-
dual, da eleição de Deus para a salvação – algo mais prontamente apreciado pela
mente mediterrânea ou do Oriente Médio do que pela mente ocidental.177 De acor-
do com o estudioso bíblico William Klein, “Deus escolheu a igreja como um cor-
po, em vez de indivíduos específicos que povoam esse corpo”.178 Em vez de dizer:
“Deus, me escolheu”, eu deveria dizer: “Deus, nos escolheu”.179

quias 1:2–3, a linguagem de amor e ódio tem a ver com aliança política e inimizade, e não com emoção
ou afeição pessoal. Deus está dizendo: “Eu me aliei a Jacó e fiz de Esaú meu inimigo” (Douglas Stuart,
“Malachi”, em The Minor Prophets, vol. 3, ed. Thomas E. McComiskey [Grand Rapids: Baker, 1998 ],
1284).
174
Para obter uma resposta a muitas das reivindicações de verdade do Islã, consulte Norman Geisler e
Abdul Saleeb, Answering Islam (Grand Rapids: Baker, 1993).
175
Jerry L. Walls, “The Free Will Defense: Calvinism, Wesley, and the Goodness of God,” Christian
Scholar’s Review 13 (1983): 25.
176
Geisler, Chosen but Free, 5.
177
Pego muito de Klein, The New Chosen People. Klein argumenta que “a pessoa mediterrânea do pri-
meiro século não compartilhava ou compreendia nossa ideia [ocidental] de um indivíduo” (260). Veja
também o ensaio de Klein, “Paul’s Use of Kalein: A Proposal”, Journal for the Evangelical Theological
Society 27 (março de 1984): 53–64. Cp. H. H. Rowley, The Biblical Doctrine of Election (Londres: Lut-
terworth, 1952). Max Turner observa isso: “Deus escolheu um povo (em Cristo). . . . O pensamento [em
Ef. 1:3] não é principalmente da eleição de pessoas individuais para a igreja (embora isso possa estar im-
plícito). . . [mas] que Deus escolheu eternamente um povo em Cristo (nós, isto é, a igreja)” (“Ephesians,”
in the New Bible Commentary, ed. G. J. Wenham e outros [Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1996] , 1225).
178
Ibid., 259.
179
Ibid., 264–65.
101

Um ponto de esclarecimento, que mencionei anteriormente: a graça preveniente


ou iniciadora de Deus é necessária para que qualquer um de nós esteja na posição
de escolher livremente responder ao amor de Deus. Em outras palavras, a salvação
começa com Deus e não conosco. Nenhum de nós é justo ou busca a Deus (Roma-
nos 3:10–11); O Espírito de Deus deve primeiro nos despertar para nossa necessi-
dade de nos reconciliarmos com Deus. Ele deve nos tornar conscientes de nossas
profundas falhas morais, de nosso orgulho e egocentrismo. Ele deve preparar o so-
lo de nossos corações para que possamos aceitar livremente — ou rejeitar — seu
amor. Não cometamos o erro de que a salvação se origina em nós ou que escolhe-
mos a Deus por mérito. Em vez disso, Deus inicia e influencia, mas temos a opor-
tunidade de abraçar esse Deus de amor - ou resistir ao seu chamado amoroso.
Primeiro, quem responde a Deus com fé torna-se parte do povo escolhido de
Deus. Ao lermos o Antigo Testamento, vemos que a etnia de Israel, que traça sua
linhagem até Abraão, Isaque e Jacó, é “o povo escolhido de Deus” (Salmos 105:6;
Isaías 44:1; 45:4; Amós 3). :2). Israel foi escolhido para ser uma “luz das nações”
para que a salvação de Deus “chegasse até os confins da terra” (Isaías 49:6
NASB). Se um estrangeiro ou “gentio” (como Rute ou Raabe) quisesse se tornar
parte do povo escolhido de Deus, ela teria que abraçar como seu o Deus de Israel e
a lei que ele revelou a Moisés para o Israel nacional no Monte Sinai. Por sua esco-
lha ou decisão, portanto, esses estrangeiros passariam a fazer parte do povo de
Deus. Esses convertidos não foram considerados “escolhidos” ou “eleitos” antes
deste ponto.
Da mesma forma, no Novo Testamento, a pessoa que se torna cristã ao tomar
uma decisão de fé nesse ponto torna-se parte do povo escolhido de Deus, a comu-
nidade dos eleitos. Por meio da influência iniciadora de Deus e da abertura dos co-
rações180 (ou graça preveniente), a escolha é graciosamente disponibilizada a nós
para nos tornarmos eleitos ou não, para nos unirmos ao povo escolhido de Deus
com base na obra de Cristo. Como disse o autor de um hino: “Busquei o Senhor e
depois soube que ele moveu meu coração para procurá-lo, procurando a mim”. No
entanto, a influência capacitadora de Deus para crer pode ser resistida (Atos 7:51),
seu cortejo persistente pode ser ignorado. E é digno de nota que o Novo Testamen-
to nunca afirma que a razão pela qual alguns indivíduos não são salvos é simples-
mente porque eles não foram eleitos ou predestinados.
Em segundo lugar, os indivíduos nunca são chamados de “escolhidos” ou
“eleitos” a menos que seja para uma tarefa ou função.181 Jesus diz a seus discípu-

180
Cp. Atos 16:14, onde o Senhor “abriu” o coração de Lídia.
181
Ver I. Howard Marshall, Jesus the Savior: Studies in New Testament Theology (Downers Grove, Illi-
nois: InterVarsity Press, 1990), 290–92. John Wesley também notou esta eleição “pessoal” como “uma
designação divina de alguns homens particulares, para fazer algum trabalho particular no mundo”. Wes-
102

los: “Vocês não me escolheram, mas eu escolhi vocês e os designei para irem e da-
rem frutos” (João 15:16). Aqui ele está falando da tarefa frutífera ou missão dos
doze discípulos ao invés de sua salvação.182 De fato, João 6:70 deixa isso claro:
“Não fui eu que escolhi vocês, os Doze? No entanto, um de vocês é um demônio!
Judas Iscariotes, o traidor de Jesus, foi “escolhido” – mas claramente não para a
salvação. Jesus escolheu esses doze indivíduos para realizar uma tarefa específica.
E então, em linguagem semelhante, um sucessor de Judas como um dos Doze é
“escolhido” por Deus para realizar uma tarefa específica (Atos 1:24). Mais tarde,
Paulo se torna um “instrumento escolhido” para levar o nome de Jesus por todo o
mundo romano (Atos 9:15).
Não são indivíduos particulares que são “escolhidos” ou os “eleitos” de Deus
para a salvação.183 Em vez disso, como observa Klyne Snodgrass, “a eleição é

ley “não achou que isso tivesse qualquer conexão necessária com a felicidade eterna” (“Predestination
Calmly Considered”, em The Works of John Wesley, vol. 10 [Grand Rapids: Baker, 1998], 210).
182
Observe que o fato de Deus escolher um indivíduo para uma missão ou função não exclui a possibili-
dade de que essa pessoa seja um crente (como no caso dos onze discípulos crentes). Por outro lado, a es-
colha de Deus de endurecer o coração de Faraó (Romanos 9:18: “Ele endurece a quem quer endurecer”)
não afeta diretamente a salvação pessoal de Faraó, exceto que sua resistência ao mandamento de Deus
afetaria indiretamente sua salvação. A questão é que Deus poderia usar até a dureza do coração de Faraó
para manifestar seu poder e proclamar seu nome a outras nações (Rm 9:17). Deus não está endurecendo
aquele cujo coração teria sido brando para com Deus por meio da influência iniciadora do Espírito (que
poderia ser resistida). Em vez disso, Deus “endurece aqueles que o rejeitam, endurecendo seus corações
contra ele” (Klein, The New Chosen People, 167), mas o faraó não conseguiu resistir à vontade de Deus
de mostrar seu poder divino. (Assim, observe a linha repetida de várias formas tanto para os israelitas
quanto para os egípcios na narrativa do Êxodo: “Sabereis que eu sou o Senhor” [Êxodo 6:2, 7, 8, 29; 7:5,
17 ; 8:10, 22; 10:2; 14:4, 18; comparar 14:31 bem como 5:2, onde Faraó diz: “Eu não conheço o Se-
nhor”!].)
Em Romanos 9, a “discussão gira em torno daqueles que Deus escolhe para realizar seus propósitos
no mundo” (Klein, The New Chosen People, 198). Deve-se notar que Deus endureceu o coração de Fa-
raó, mas isso foi somente depois que Faraó repetidamente endureceu seu próprio coração por sua própria
escolha (Êxodo 7:13–14, 22; 8:15, 19, 32). O comentarista C. E. B. Cranfield observa: “A suposição de
que Paulo está aqui pensando no destino final do indivíduo, em sua salvação ou ruína final, não é justifi-
cada pelo texto” (Romans: A Shorter Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1985], 236).
183
P. T. O'Brien afirma que a “dimensão corporativa” da eleição de Deus ainda deve ser entendida como
sendo individual e pessoal também (por exemplo, redenção, perdão, o selo do Espírito Santo vem aos
crentes como indivíduos). Assim, O'Brien diz que os plurais (“nós”, “nós”) em Efésios 1 são comuns, não
corporativos; além disso, a ideia de eleição corporativa que estou sugerindo faz uma dicotomia entre gru-
po e indivíduo (The Letter to the Ephesians [Grand Rapids: Eerdmans, 1999], 99). No entanto, em cor-
respondência pessoal, William Klein respondeu a este argumento:

Um substantivo comum é aquele com o qual você pode usar modificadores como every ou some, e fa-
lar de uma classe de seres ou coisas. A distinção [comum versus corporativo] que O'Brien tenta fazer
simplesmente não se sustenta. Se eu disser: “Esta classe aprenderá grego”, a palavra “classe” é um
substantivo comum. Claro que isso significa que cada indivíduo deve aprender grego, mas estou fa-
lando de todo o grupo como um grupo, ao contrário da minha outra turma que estuda matemática. Se
eu disser: “Vou dar folga à minha aula de grego, mas não à aula de matemática”, estou falando deles
em termos corporativos, embora, é claro, todos os indivíduos tenham o dia de folga. O ponto de Paulo
103

principalmente um termo corporativo”.184 Romanos 8:29 afirma: “Pois aqueles que


Deus dantes conheceu também os predestinou”, mas quem é plural, não singular. É
geral e corporativo. Efésios 1:4 nos diz que Deus “nos escolheu nele [Cristo]”. O
próprio Filho escolhido, Jesus, é o eleito de Deus por excelência (Marcos 1:11;
Lucas 9:35; 23:35; 1 Pedro 1:20).185 Cristo é o cabeça deste novo povo, uma “raça
eleita” (1 Pedro 2:9), e é somente nele (Efésios 1:3) e por meio dele (Efésios 1:5)
que nós são escolhidos. Participamos da eleição de Cristo, como o Filho escolhido
de Deus.186 Nós nos tornamos parte dos eleitos colocando nossa fé nele: “Indiví-
duos não são eleitos e depois colocados em Cristo. Eles estão em Cristo e, portan-
to, eleitos”.187 Somos eleitos porque estamos unidos a Cristo (“em Cristo”). Quan-
do proclamamos as boas novas da vida, morte e ressurreição de Jesus, estamos
chamando outros para se tornarem parte do povo eleito/escolhido de Deus, que es-
tá “no” Filho escolhido de Deus.188
Terceiro, Deus deseja que todas as pessoas, sem exceção, encontrem a salva-
ção. Embora não mereçamos a bondade de Deus, as Escrituras afirmam o amor de
Deus por um mundo rebelde alienado dele (João 3:16–17) e seu desejo de que os
humanos tenham um relacionamento correto com ele. Dois pontos confirmam isso.
1. O texto bíblico expressa o amor de Deus por todos e seu desejo de que todos
se arrependam e se voltem para ele (Ezequiel 18:23, 32; 33:11; Lamentações 3:33;
João 3:17; 1 Tim. 2:4; 2 Pedro 3:9; 1 João 2:2). Jesus - Deus encarnado - anseia
pela cidade de Jerusalém: “Quantas vezes desejei reunir-vos . . . mas vocês não
quiseram” (Mateus 23:37). Para Israel “[Deus] enviou profetas . . . para trazer [o
povo] de volta a ele, e embora eles testemunhassem contra eles, eles não ouviriam”
(2 Crônicas 24:19). Deus enviou mensageiros “porque teve pena de seu povo e de
sua morada”. Mas eles “zombaram” dos profetas de Deus e “desprezaram suas pa-
lavras” (2 Crônicas 36:15–16). Assim, vemos que os desejos de Deus para a hu-
manidade nem sempre são cumpridos. Segunda Pedro 2:1 descreve certos falsos

não é que os indivíduos são especificamente escolhidos, mas que Deus escolheu esse grupo em Cris-
to. Eu não [aceito isso] tento descartar a ênfase em entidades corporativas simplesmente com o recur-
so de substantivos comuns. Nenhum falante típico de inglês (ou grego) entenderia [essa] distinção.

Correspondência com William Klein de 18 de julho de 2000.


184
Klyne Snodgrass, Ephesians, NIV Application Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 1996), 49;
ver também Carey C. Newman, “Election and Predestination in Ephesians 1:4–6a,” Review and Exposi-
tor 93 (1996): 237–47: “Election is corporate. . . . Algumas leituras da eleição divina individualizam in-
justamente a obra de Deus” (239).
185
Newman, “Election and Predestination,” 239.
186
A. A. Solomon, “The New Testament Doctrine of Election,” Scottish Journal of Theology 11 (1958):
408.
187
Snodgrass, Efésios, 49
188
Solomon, “A Doutrina da Eleição do Novo Testamento”, 421; Newman, “Eleição e Predestinação,”
239.
104

mestres que negam o Senhor Jesus e se afastam dele, mas é Jesus “quem os resga-
tou”. Isto é, a morte de Cristo foi por eles, embora esses falsos mestres tenham re-
jeitado a oferta de salvação disponível para eles. Deus não deseja que ninguém pe-
reça, mas que nos voltemos para ele e cheguemos ao conhecimento da verdade (1
Timóteo 2:4; 2 Pedro 3:9).
2. Jesus morreu por todas as pessoas, não apenas por aqueles que respondem
pela fé à oferta de salvação de Deus. Alguns estudiosos afirmam que Jesus morreu
por um número definido de pessoas, não literalmente por todos. Isto é, Jesus mor-
reu por todos os tipos de pessoas — independentemente de sua etnia, cor de pele
ou classe social — mas, de acordo com essa visão, ele não morreu por todas as
pessoas.189 Discordo. Cristo morreu por toda a humanidade, não apenas por aque-
les que encontram a salvação. Jesus não veio para condenar o mundo, mas para
morrer pelo mundo, que Deus ama (João 3:16–17). O mundo pelo qual Jesus mor-
reu é um lugar ruim – não apenas um lugar grande. O “mundo inteiro” — uma fra-
se usada apenas duas vezes em 1 João — pelo qual Jesus morreu (1 João 2:2) é o
“mundo inteiro” que “está sob o controle do maligno [Satanás]” (1 João 5 :19). Je-
sus não é apenas o Salvador dos que crêem; ele é o “Salvador de todos os homens”
(1 Timóteo 4:10) - mesmo que sua ajuda para resgatar do pecado seja percebida
apenas pelos crentes.
Quarto, como a vontade de Deus nem sempre é alcançada, devemos distinguir
entre a vontade determinada de Deus e sua vontade desejada. Alguns estudiosos
consideram Efésios 1:11 (“Deus faz todas as coisas conforme o propósito da sua
vontade”) como uma expressão clara de Deus predestinando indivíduos para a sal-
vação. Mas isso levanta a questão: como devemos entender o que significa “vonta-
de de Deus”? Devemos entender que a vontade de Deus determina cada escolha
que fazemos, ou devemos entender “todas as coisas” de uma maneira menos
abrangente?190

189
A diferenciação é feita entre “todos sem distinção” (por exemplo, Cristo morreu por pessoas de todas
as classes e raças – embora não por todos os indivíduos) e “todos sem exceção” (isto é, Cristo morreu por
cada indivíduo). Até mesmo o reformador João Calvino parece ter acreditado que Cristo morreu por to-
dos, sem exceção. Ao comentar sobre 1 Timóteo 2:4–5, Calvino afirma: “Com isso [Paulo] seguramente
não significa nada mais do que que o caminho da salvação não foi fechado a nenhuma ordem de homens;
que, ao contrário, ele havia manifestado sua misericórdia de tal maneira, que ninguém a impediria” (Insti-
tutas, 3.24.16).
Em seu comentário sobre Gálatas, ele diz algo semelhante: “Porque é a vontade de Deus que bus-
quemos a salvação de todos os homens, sem exceção, assim como Cristo sofreu pelos pecados de todo o
mundo” (Comentário sobre Gálatas, 5:12 ).
Para mais referências à aparente crença de Calvino na expiação universal (ao invés de limitada ou de-
finida), veja Geisler, Chosen but Free, 155-60.
190
Por exemplo, Paulo pergunta em Romanos 8:32: “Não . . . graciosamente nos dá todas as coisas?” (en-
fase adicionada).
105

Exemplos na Bíblia revelam que o que Deus deseja ou deseja nem sempre é
realizado. Por exemplo, os líderes judeus que se opuseram a Jesus “rejeitaram os
propósitos de Deus para eles” (Lucas 7:30). Vimos que a influência do Espírito de
Deus pode ser “resistida” (Atos 7:51) e que o Espírito de Deus pode ser “apagado”
(1 Tessalonicenses 5:19). Jesus chorou sobre Jerusalém, lamentando: “Quantas ve-
zes desejei reunir os teus filhos . . . mas vocês não quiseram” (Mateus 23:37).191
Paulo, citando Isaías 65:2 em Romanos 10:21, escreve sobre a exasperação de
Deus com a falta de fé de Israel: “Todo o dia estendi minhas mãos a um povo de-
sobediente e obstinado.” O problema não é que os israelitas estão condenados à in-
credulidade, mas que são um “povo desobediente e obstinado”.192
O fato de que os desejos de Deus para a humanidade nem sempre são alcança-
dos nos leva a distinguir entre dois aspectos da vontade de Deus: a vontade deseja-
da de Deus (vontade preferida) e sua vontade determinada (vontade perfeita).
Quando falamos da vontade desejada de Deus, queremos dizer aquilo que Deus
quer que seja realizado, mas pode ou não ser. Por exemplo, o desejo de Deus de
que todas as pessoas se voltem para ele (2 Pedro 3:9) é um desejo real, mas não é
alcançado por causa de certos corações humanos resistentes. A implicação aqui é
que Deus não determinou indivíduos específicos para receber a salvação.193 Por
outro lado, a vontade determinada de Deus não pode ser impedida. O que ele de-
creta acontecerá: a segunda vinda de Jesus, a derrota do mal, o estado final dos no-
vos céus e da nova terra, e assim por diante. Os seres humanos não podem impedir
ou frustrar esse aspecto de sua vontade.
Além disso, se Deus predestina literalmente tudo o que acontece - incluindo
atos como a desobediência de nossos primeiros ancestrais 194 - então ele está inti-
mamente ligado ao mal. Tiago 1:13–17 nos diz, entretanto, que somente o que é
bom vem de Deus. Alguma distinção entre os desejos de Deus e os decretos de
Deus é necessária, portanto, para que os propósitos soberanos de Deus não o ali-
nhem intimamente com o pecado da criatura.195
Quinto, o resultado da salvação ou condenação final deve ser entendido em
termos gerais, em vez de resultados específicos designados para indivíduos parti-
culares. Lemos certos versículos da Bíblia que parecem intrigantes à primeira vis-
ta: “Eles [os incrédulos] tropeçam porque desobedecem à mensagem, para a qual
também foram destinados” (1 Pedro 2:8); “A condenação deles há muito paira so-
bre eles” (2 Pedro 2:3). Novamente, devemos ter o cuidado de distinguir entre o

191
Esse tipo de evidência bíblica parece ir contra o que a Confissão de Westminster afirma sobre os hu-
manos “sendo dispostos pela graça” (10.1).
192
Klein, “Corporate Election,” 7.
193
Klein, The New Chosen People, 281.
194
João Calvino admite que “pela predestinação de Deus, Adão caiu” (Institutas, 3.23.4, 228).
195
Marshall, Jesus the Savior, 299.
106

geral e o específico: Deus não escolheu indivíduos para serem condenados ou sal-
vos. Em vez disso, Deus geralmente determina o resultado daqueles que são salvos
e daqueles que são condenados, dependendo de sua resposta à sua gentil iniciativa.
Isto é, o resultado daqueles que rejeitam a Deus é a separação final dele. Observe
que os textos citados não dizem que essas pessoas não podem se desviar de seus
caminhos e se tornarem crentes. Em vez disso, a ênfase é que enquanto eles ainda
estão/atualmente se rebelando, seu resultado determinado é a danação.196 Afinal,
todos nós éramos “objetos da ira” (Efésios 2:3) antes de nos tornarmos cristãos. Is-
to é, estávamos destinados à separação de Deus se tivéssemos continuado a viver
da maneira que vivíamos.
Em vez de abraçar a visão de que Deus escolheu indivíduos para a salvação e
permitiu (ou destinou) que outros fossem condenados, podemos afirmar que Deus
escolheu um corpo de pessoas em Cristo, e eles se tornam parte do povo escolhido
quando abraçam a Cristo. pela fé.197

RESUMO

• Deus não escolhe indivíduos para a salvação; ele escolhe um corpo de cren-
tes. Sua eleição é coletiva e geral, e não individual e específica.
• Se algum indivíduo é chamado de eleito ou escolhido, é para uma função ou
tarefa que Deus tem para ele – não especificamente para a salvação.

196
Wayne Grudem, 1 Peter (Downers Grove, Illinois/Grand Rapids: InterVarsity Press/Eerdmans, 1989),
108.
197
Deus elege um grupo antes de sua eleição de indivíduos para a salvação? Algumas pessoas (como
Thomas Schreiner) sustentam que para Deus eleger um grupo, ele teria que eleger indivíduos para a sal-
vação. Se Deus escolhe um grupo para ser seu povo, então está predeterminado que cada membro do gru-
po chegue à fé. Mas, como Klein responde, essa visão assume uma visão determinista da realidade. Por
que devemos supor isso? É a fé que é decisiva para a salvação, e Deus em sua presciência sabe quem será
salvo, mas isso não exige que eles não sejam livres para confiar em Cristo. Se uma pessoa for consistente
com a visão determinista, ela terá que admitir que Deus, por sua presciência, determina aqueles que rejei-
tam a Cristo e também sua condenação, o que é profundamente preocupante. (Extraído do artigo não pu-
blicado de William Klein, “Corporate Election”).
Mais uma pergunta: Ficamos com alguma afirmação de que Deus está selecionando algum tipo de
grupo abstrato sem indivíduos pertencentes a ele (como Schreiner sustenta, apelando para a analogia de
uma equipe: “Você escolheu que houvesse uma equipe, a composição dos quais está totalmente fora de
seu controle”) (“Does Romans 9 Teach Individual Election to Salvation? Some Exegetical and Theologi-
cal Reflections,” Journal of the Evangelical Theological Society 36 [1993]: 37). Mas essa acusação de
que a eleição corporativa implica que Deus selecionou um grupo abstrato não é bem-sucedida. Israel co-
mo nação foi escolhida e, consequentemente, todos os nascidos em Israel tornaram-se parte do povo esco-
lhido de Deus. Da mesma forma, Deus escolheu Cristo para ser o cabeça de um novo povo (assim como
Abraão era da etnia de Israel), e qualquer um que tenha fé nele se torna parte desse grupo. É por isso que
os cristãos são eleitos – porque eles se tornaram parte do povo escolhido de Deus “em Cristo” por meio
da fé.
107

• Como um grupo de crentes “em Cristo”, somos “escolhidos nele” precisa-


mente porque Jesus é o “Filho escolhido” de Deus. Somos, portanto, tam-
bém escolhidos em virtude de nossa união com Cristo.
• Os cristãos não são chamados de eleitos ou escolhidos até que se tornem
cristãos; este termo nunca é usado para cristãos em perspectiva (que são in-
crédulos e ainda não fazem parte do povo escolhido).
• Deus graciosamente iniciou a salvação, escolhendo um povo para si mesmo,
mas Deus capacita os indivíduos a responder a ele e assim se tornarem parte
de seus escolhidos—ou, tragicamente, rejeitá-lo (Atos 7:51).
• Devemos distinguir entre o que Deus deseja e o que Deus decreta ou ordena.
A vontade de Deus de que ninguém pereça, por exemplo, é algo que Deus
deseja, mas não é alcançado.
• A morte de Jesus é para todos sem exceção e não para todos sem distinção;
Jesus morreu literalmente por “todo o mundo” de pessoas.
• Enquanto os incrédulos estão atualmente se rebelando contra Deus, eles são
predestinados à punição (o que é verdade para todos os crentes que “eram
por natureza objetos da ira” [Efésios 2:3]), mas isso não implica que aqueles
destinados à ira de Deus estão condenados a permanecer sob ela.
108
109

A COEXISTÊNCIA DE DEUS E DO
MAL É UMA CONTRADIÇÃO LÓGICA

Uma jovem mãe muçulmana na Bósnia foi repetidamente estuprada na frente de seu marido e
pai, com seu bebê gritando no chão ao lado dela. Quando seus atormentadores finalmente se
cansaram dela, ela implorou permissão para amamentar a criança. Em resposta, um dos estu-
pradores decapitou rapidamente o bebê e jogou a cabeça no colo da mãe.198

F
icamos horrorizados quando lemos sobre tais atrocidades. O filósofo cristão
Alvin Plantinga diz que o problema do mal é “profundamente desconcer-
tante”.199 Às vezes, argumentos filosóficos parecem “conforto frio e abstra-
to” quando nos deparamos com os efeitos chocantes do mal na vida cotidiana.200
Devemos ter em mente, no entanto, os seguintes pontos ao examinar a acusação
de que Deus e o mal são noções contraditórias:
Primeiro, todas as cosmovisões devem lidar com o problema do mal, não ape-
nas a cristã. A questão realmente é: qual visão de mundo faz o melhor trabalho pa-
ra enfrentar adequadamente esse problema? Qual tem os recursos mais abundantes
para lidar com isso? Alguns ateus simplesmente negam o óbvio, rejeitando a ideia
de que o mal existe. O zoólogo ateu de Oxford, Richard Dawkins, declara:

Se o universo fosse apenas elétrons e genes egoístas, tragédias sem sentido. . . são exatamen-
te o que deveríamos esperar, juntamente com boa sorte igualmente sem sentido. Tal universo
não seria nem mau nem bom em intenção. . . . Em um universo de forças físicas cegas e re-
plicação genética, algumas pessoas vão se machucar, outras vão ter sorte, e você não encon-
trará rima ou razão nisso, nem justiça. O universo que observamos tem exatamente as propri-
edades que esperaríamos se, no fundo, não houvesse nenhum projeto, nenhum propósito, ne-
nhum mal e nenhum bem, nada além de uma indiferença cega e impiedosa.201

198
Eleonore Stump, “The Mirror of Evil”, em God and the Philosophers, ed. Thomas Morris (Nova
York: Oxford University Press, 1994), 239.
199
Alvin Plantinga, “Uma vida cristã parcialmente vivida”, em Philosophers Who Believe, ed. Kelly Ja-
mes Clark (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1993), 71.
200
Ibid.
201
Richard Dawkins, River out of Eden: A Darwinian View of Life (Nova York: Basic Books/Harper Col-
lins, 1995), 132–33.
110

Mas os ateus que fazem esse movimento o fazem com grande custo; eles negam o
que é claramente entendido pela maioria dos seres humanos: uma aversão a males
horríveis, o valor dos seres humanos, intuições morais. A implicação por trás da
negação de Dawkins poderia muito bem ser que, se o mal existe, tal fato nos apon-
taria na direção da existência de Deus, como veremos.
Novamente, cada visão de mundo tem que lidar com o mal. O mal e o sofrimen-
to serão explicados como ilusórios (como em algumas religiões orientais) ou ine-
xistentes (como em Richard Dawkins)? O que devemos fazer com uma cosmovi-
são que contra-intuitivamente nega esta questão universalmente problemática? Ou
o que dizer de uma visão de mundo ateísta que afirma o bem e o mal objetivos,
mas não oferece um pano de fundo plausível para afirmar sua existência?
Em segundo lugar, vários pensadores ateus (ou não-teístas) negam categori-
camente que o mal precise ser definido, o que é revelador. Veja Edward Madden e
Peter Hare: “Definir a noção de mal é irrelevante para o problema do mal que co-
locamos porque o problema permanece inalterado, qualquer que seja a definição
aceita”.202 Tal movimento é característico de ateus e céticos. O filósofo cristão
Douglas Geivett fala do “silêncio quase total dos filósofos ateus da religião sobre
esta questão”.203
Mas essa recusa em definir o mal expõe um buraco na cosmovisão ateísta. Do
jeito que está, os teístas são os que oferecem uma definição do mal. Por exemplo, a
ausência, falta ou corrupção da bondade é uma definição notável.204 Assim como o
sexo no contexto do casamento é um bom presente de Deus, ele se torna mau e dis-
torcido quando é abusado ou experimentado além de seus limites apropriados (por
exemplo, adultério). No entanto, se o mal pressupõe um padrão de bondade, então
o ateu ou cético tem que lidar não apenas com o problema do mal, mas também
com o problema da bondade. De onde vem a bondade objetiva em um cosmos de
matéria, acaso e tempo? O problema do mal realmente nos aponta na direção de
Deus, cujo caráter é bom e o padrão último pelo qual julgamos algo como bom ou
mau. C. S. Lewis descobriu que isso é verdade em sua própria experiência como
ateu:

Meu argumento contra Deus era que o universo parecia tão cruel e injusto. Mas como eu tive
essa ideia de justo e injusto? Um homem não chama uma linha de torta a menos que tenha
alguma ideia de uma linha reta. Com o que eu estava comparando este universo quando o

202
Edward Madden e Peter Hare, Evil and the Concept of God (Springfield, Illinois: Charles C. Thomas,
1968), 4.
203
R. Douglas Geivett, “A Neglected Aspect of the Problem of Evil” (papel apresentado na reunião da
Evangelical Philosophical Society em Orlando, Flórida, novembro de 1998), 4. Minha discussão sobre o
mal como um afastamento da maneira como as coisas deveriam ser é retirado deste ensaio.
204
Bill Anglin e Stewart Goetz, “Evil Is Privation,” International Journal for Philosophy of Religion 13
(1982): 10.
111

chamei de injusto? Se todo o show foi ruim e sem sentido de A a Z, por assim dizer, por que
eu, que deveria fazer parte do show, me vi em uma reação tão violenta contra isso? . . . As-
sim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existe – em outras palavras, que toda a rea-
lidade não tem sentido – descobri que fui forçado a assumir que uma parte da realidade – ou
seja, minha ideia de justiça – estava cheia de sentido. . Conseqüentemente, o ateísmo acaba
sendo muito simples. Se todo o universo não tivesse significado, nunca teríamos descoberto
que não tem significado: assim como, se não houvesse luz no universo e, portanto, nenhuma
criatura com olhos, nunca saberíamos que era escuro. Escuro seria sem significado.205

Ao invés de servir como um argumento contra a existência de Deus, a realidade do


mal na verdade serve como um argumento para a existência de Deus:

1. Se existem valores morais objetivos, então Deus deve existir.


2. O mal existe, e o mal é um valor moral objetivo (negativo).
3. Portanto, Deus existe.

O mal pressupõe um padrão de bondade pelo qual o mal é medido.


Ou talvez possamos entender o mal como um afastamento do modo como as
coisas deveriam ser. Mesmo essa definição mínima do mal, no entanto, aponta na
direção de um plano de design - e, portanto, de um Designer. Se certas característi-
cas do nosso mundo deveriam ser de uma maneira, mas não são (por exemplo, co-
mo resultado de defeitos congênitos ou doenças), isso não pressupõe um padrão ao
qual as coisas foram projetadas para se conformar? Parece que a falha ou recusa
dos ateus em oferecer uma definição do mal aponta para problemas filosóficos
dentro de sua visão de mundo.206
Terceiro, as respostas filosóficas ao mal devem ser colocadas dentro da estru-
tura teológica mais ampla da revelação e obra de Deus em Jesus Cristo. Embora
os argumentos filosóficos sejam importantes para mostrar que a existência de Deus
não exclui a possibilidade do mal, tais raciocínios são parciais e devem ser vistos
no contexto teológico mais completo das seguintes doutrinas:

• a criação e a queda (Deus criou o que é bom, mas sua criação foi prejudicada
pelo pecado.)
• guerra espiritual envolvendo poderes celestiais (Há mais no mal do que ape-
nas a esfera humana.)
• a inauguração do reino de Deus na pessoa e ministério de Jesus Cristo (o
reino de Satanás está retrocedendo e o de Deus está avançando).
• A obra de Jesus na cruz (Jesus deu um golpe mortal nos poderes do mal.)

205
C. S. Lewis, Mere Christianity (New York: Macmillan, 1952), 45–46.
206
Ibid., 9.
112

• o julgamento final (Atos maus nesta vida não ficarão impunes.)


• o estabelecimento dos novos céus e terra (o mal será completamente venci-
do).

Argumentos filosóficos lidam com o mal apenas em parte. A teologia cristã é ne-
cessária, portanto, para dar corpo a um contexto no qual possamos entender melhor
o mal no mundo e preencher importantes lacunas em nosso conhecimento.207
Tomemos, por exemplo, a morte de Jesus. Este evento traz insights onde as ten-
tativas filosóficas falham. Alvin Plantinga observa: “Como o cristão vê as coisas,
Deus não fica de braços cruzados, observando friamente o sofrimento de suas cria-
turas. Ele entra e compartilha nosso sofrimento. Ele suporta a angústia de ver seu
Filho, a segunda Pessoa da Trindade, entregue à morte de cruz amargamente cruel
e vergonhosa”.208 A notícia reconfortante e animadora de que Deus está conosco
em nosso sofrimento nos inspira a seguir em frente e fazer o que é certo diante do
mal, a ter esperança e não a nos desesperar (1 Pedro 2:23–25; Heb. 12: 1–2).
Quarto, existem vários problemas associados ao mal – não apenas um – e tam-
bém existem respostas apropriadas que correspondem a esses problemas específi-
cos. Livros que tratam do “problema do mal” dão a impressão de que existe apenas
um problema. Mas abordar o problema do mal é uma tarefa multifacetada. C. S.
Lewis disse isso muito bem em seu prefácio para The Problem of Pain:

O único propósito do livro é resolver o problema intelectual levantado pelo sofrimento; para
a tarefa muito maior de ensinar coragem e paciência, nunca fui tolo o suficiente para me con-
siderar qualificado, nem tenho nada a oferecer a meus leitores, exceto minha convicção de
que, quando a dor deve ser suportada, um pouco de coragem ajuda mais do que muito conhe-
cimento, um pouco simpatia humana mais do que muita coragem, e a menor tintura do amor
de Deus mais do que tudo.209

Esta citação identifica dois amplos aspectos do problema do mal: o filosófi-


co/teórico e o emocional/prático. Além disso, embora esses problemas muitas ve-
zes se sobreponham, o atendimento a esses problemas geralmente requer aborda-
gens diferentes.210 Ao lidar com o problema emocional/prático do mal, o aconse-
lhamento pastoral e os relacionamentos pessoais são os mais importantes. Uma
pessoa que sofreu abuso sexual quando criança ou que acabou de perder um ente
querido não precisa - pelo menos imediatamente - de respostas filosóficas para
problemas carregados de emoção. Por outro lado, lidar com o problema filosófi-
co/teórico do mal requer o uso de evidências e argumentos.
207
Ver Alister McGrath, Suffering and God (Grand Rapids: Zondervan, 1995), 41–45.
208
Plantinga, “A Christian Life Partly Lived,” 71.
209
C. S. Lewis, The Problem of Pain (New York: Macmillan, 1962), 10
210
Daniel Howard-Snyder, “Deus, o Mal e o Sofrimento”, em Reason for the Hope Within, pp. 78–79.
113

Quinto, o problema lógico do mal não prova que Deus e o mal são contraditó-
rios porque não considera adequadamente a liberdade humana ou os propósitos
abrangentes de Deus. A coexistência de Deus e do mal é uma contradição em ter-
mos, como um círculo quadrado ou um solteiro casado? Os filósofos tentaram fa-
zer esse argumento, mas é bem-sucedido?
O falecido filósofo ateu de Oxford, J. L. Mackie, escreveu um ensaio intitulado
“Mal e Onipotência”,211 no qual declarou que as três afirmações a seguir são logi-
camente contraditórias:

1. Deus é onipotente.
2. Deus é um Deus totalmente bom.
3. O mal existe.

Mackie afirma: “O teólogo, ao que parece, deve aderir imediatamente e não pode
aderir consistentemente a todos os três”.212 Dado que é óbvio que o mal existe,
Deus não pode existir.
Mackie presumiu erroneamente, no entanto, que um ser totalmente bom e todo-
poderoso deve eliminar o mal na medida do possível. Deus poderia eliminar muito
do mal, mas o faria apenas à custa de outros bens (como a liberdade humana). Tal-
vez uma pessoa sofra de fortes dores de cabeça de enxaqueca. Um médico poderia
eliminar esse sofrimento simplesmente “eliminando” a pessoa com uma dose letal
de morfina. Mas erradicar um mal apenas criaria um mal maior. Não é óbvio que
uma pessoa boa deva eliminar o mal na medida do possível - ou seja, quando ou-
tros males surgem como resultado.
A suposição de Mackie não leva em conta um bem importante: a liberdade hu-
mana. Deus criou os seres humanos como agentes autodeterminados.213 Temos a
capacidade de provocar livremente um ou outro estado de coisas. Os seres huma-
nos têm a capacidade de trazer grandes benefícios (como Madre Teresa), mas essa
capacidade também envolve a capacidade de causar grandes danos (como Josef
Stalin).
Alguém pode perguntar: “Mas Deus não pode fazer nada? Um Deus todo-
poderoso não pode criar um mundo em que façamos livremente o que é bom o
tempo todo? Não é disso que se trata a onipotência?” Não. Ele não pode fazer coi-
sas que são lógica ou moralmente impossíveis. Aqui estão algumas coisas que
Deus não pode fazer:

211
J. L. Mackie, “Evil and Omnipotence”, Mind 64 (1955); reimpresso em Baruch Brody, ed., Readings
in the Philosophy of Religion: An Analytic Approach (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1974), 157–
68.
212
Mackie, “Evil and Omnipotence”, em Readings in the Philosophy of Religion, 157.
213
Uma boa defesa introdutória dessa liberdade é Felt, Making Sense of Your Freedom.
114

• faça 2+2=5
• mudar o passado
• faça círculos quadrados
• deixar de existir (como ele é necessariamente auto-existente)
• mentir (Tito 1:2)
• quebrar suas promessas (Heb. 6:17–18)
• violar seu caráter moral e santidade (Hab. 1:13; Mal. 3:6; Heb. 13:8)

O “paradoxo da pedra” (se Deus pode fazer qualquer coisa, então ele deveria ser
capaz de fazer uma pedra tão grande que ele não pode levantá-la) é equivocado.
Nenhum poder pode realizar isso, pois é absurdo. C. S. Lewis disse:

Eu sei muito bem que se é autocontraditório é absolutamente impossível. . . . Sua Onipotên-


cia significa poder para fazer tudo o que é intrinsecamente possível, não para fazer o que é
intrinsecamente impossível. Você pode atribuir milagres a Ele, mas não bobagens. . . . Per-
manece verdade que todas as coisas são possíveis para Deus: as impossibilidades intrínsecas
não são coisas, mas nulidades. . . . Bobagem permanece bobagem mesmo quando falamos
sobre Deus.214

Assim como Deus não pode fazer certas coisas porque são ilógicas ou violam sua
natureza moral, também Deus não pode cometer o erro moral de anular a genuína
liberdade humana e a responsabilidade moral. Talvez, portanto, Deus não possa
criar um mundo em que os seres humanos nunca façam o mal.
Sexto, devemos distinguir entre mundos logicamente possíveis e mundos factí-
veis para Deus criar. Embora um mundo humano sem pecado seja logicamente
possível, pode não ser viável para Deus criá-lo. Muitas vezes ouvi esta objeção:
“Certamente é logicamente possível que exista um mundo em que todas as pessoas
escolham livremente fazer o bem o tempo todo. Por que Deus não o criou?” Reco-
nhecidamente, esse cenário de liberdade sem mal é teórica ou logicamente possí-
vel. Mas pode ser que tal mundo seja simplesmente incriável na realidade. Ou seja,
Deus não pode criar um mundo em que os seres humanos sempre escolham o bem
sem comprometer outros bens mais importantes – a saber, a liberdade humana. Po-
de ser que não importa “quanto Deus tentasse”, ele simplesmente não poderia criar
um mundo com pessoas que sempre escolhem livremente o bem, visto que cabe
aos humanos fazer a escolha.215 Portanto, embora logicamente possível, parece que
214
Lewis, O Problema da Dor, 27-28. Veja também George Mavrodes, “Some Puzzles Concerning Om-
nipotence”, em Readings in the Philosophy of Religion, 340–42.
215
Howard-Snyder, “God, Evil, and Suffering,” 92. O ponto aqui é que os seres humanos não pecam por
necessidade. Em outras palavras, mesmo que eles não precisem pecar, eles acabam pecando em todos os
mundos que Deus poderia criar contendo criaturas humanas livres.
115

tal mundo não é viável. Se Deus cria criaturas livres, ele não pode criar alguns
mundos logicamente possíveis, pelo menos não um com tanto bem quanto o nosso
mundo. Se Deus criasse um mundo sem pecado, isso seria uma violação da nature-
za moral de Deus e dos propósitos mais profundos para os quais fomos criados.
Sétimo, se Deus tem uma razão moralmente justificável para permitir os males
que ele faz, então esse raciocínio também enfraquece o problema lógico do mal.
Vimos que uma pessoa boa não pode eliminar e muitas vezes não necessariamente
elimina todo o mal e sofrimento que pode.216 Afinal, ela pode eliminar um estado
de coisas maligno ao provocar um mal muito maior.
Suponha que seu filho se junte a um culto bizarro. Na maioria dos casos, a al-
ternativa mais sábia é não sequestrar seu filho, confiná-lo e tentar desprogramá-lo.
Isso muitas vezes sai pela culatra, resultando em uma alienação muito maior do
cultista de sua família e amigos. Isso pode endurecê-lo ainda mais contra você e
qualquer coisa fora de seu círculo de culto. Tentar eliminar um mal, portanto, pode
resultar em outro muito maior. Nesse caso, embora o sofrimento ou o mal possam
ser eliminados, fazer isso não é o caminho mais sábio a tomar.
Da mesma forma, Deus não elimina os males do mundo, pois tem um propósito
primordial ao permitir que eles ocorram. Deus tem um objetivo maior em mente.
Mesmo que não conheçamos todas as razões de Deus (e não há razão para pensar
que deveríamos), isso não prova que as razões não existem. O filósofo Stephen
Evans observa: “É perfeitamente possível ter fortes evidências de que alguém tem
um bom motivo para uma ação sem saber qual pode ser esse motivo”.217
Se Deus tem uma razão moralmente justificável para permitir o mal, então o
problema lógico do mal está superado. Tudo o que temos a fazer é adicionar uma
quarta proposição às três primeiras:

1. Deus é onipotente.
2. Deus é um Deus totalmente bom.
3. O mal existe.
4. Deus, portanto, tem boas razões para permitir o mal.

Ao adicionar esta quarta proposição, mostramos que não há contradição entre as


três primeiras. Podemos então dizer o seguinte: um ser bom tentará impedir o mal
tanto quanto puder, a menos que tenha uma boa razão para permitir isso.218

216
Plantinga, God, Freedom, and Evil, 17–18.
217
Stephen Evans, Quest for Faith (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1986), 97. Este livro foi
reimpresso agora sob o título Why Believe? publicado pela Eerdmans.
218
Howard-Snyder, “God, Evil, and Suffering,” 84. William Lane Craig sugere, “Dada a liberdade huma-
na, que em qualquer outro mundo que Deus poderia ter criado, o equilíbrio entre o bem e o mal teria sido
ainda pior do que neste mundo. . Ou seja, qualquer mundo contendo menos mal também poderia conter
116

Oitavo, os filósofos da religião informados hoje reconhecem que o problema


lógico do mal não é um bom argumento contra a existência de Deus. Seja entre te-
ístas ou ateus, há um certo consenso de que o problema lógico do mal não é um
problema. Deixe-me citar três respeitados filósofos da religião. Peter van Inwagen
escreve sobre o atual estado de coisas:

Costumava ser amplamente aceito que o mal - que para os propósitos atuais podemos identi-
ficar com dor e sofrimento imerecidos - era incompatível com a existência de Deus; que ne-
nhum mundo possível continha Deus e o mal. Tanto quanto eu sou capaz de dizer, esta tese
não é mais defendida.219

Daniel Howard-Snyder, um teísta, diz que o problema lógico do mal “encontrou


seu caminho para a lata de lixo das modas filosóficas”.220 Mesmo o ateu William
Rowe escreveu: “Alguns filósofos argumentaram que a existência do mal é logi-
camente inconsistente com a existência do Deus teísta. Acho que ninguém conse-
guiu estabelecer uma afirmação tão extravagante.”221
Embora este capítulo tenha se concentrado no problema lógico do mal, deixe-
me completar a discussão sobre o mal fazendo os seguintes pontos.222
Nono, o mal real existe porque Deus nos criou com a capacidade de fazer não
apenas um grande bem, mas também um grande mal. Sem essas alternativas, a
verdadeira liberdade não existiria. Como cristãos, minha esposa e eu procuramos
incutir em nossos filhos o significado de serem amigos leais e fiéis, não apenas
dentro da família, mas também fora dela. Amigos confiam uns nos outros, dão ao
outro o benefício da dúvida e defendem uns aos outros. Nos solavancos e arra-
nhões da vida, nossos filhos perceberam que colegas de escola que se autodenomi-
nam “amigos” geralmente têm uma ideia superficial de amizade e, portanto, po-
menos bem. Talvez o mundo que temos atualmente tenha o máximo de bem que Deus poderia obter com
o mínimo de mal (No Easy Answers [Chicago: Moody, 1990], 83).
219
Peter van Inwagen, “O Problema do Mal, o Problema do Ar e o Problema do Silêncio”, em O Proble-
ma Evidencial do Mal, ed. Daniel Howard-Snyder (Bloomington, Indiana: Indiana University Press,
1996), 150.
220
Howard-Snyder, The Evidential Problem from Evil, xiii.
221
William L. Rowe, “O Problema do Mal e Algumas Variedades de Ateísmo”, American Philosophical
Quarterly 16 (outubro de 1979): 41n. Este ensaio também é encontrado em R. Douglas Geivett e Brendan
Sweetman, eds., Contemporary Perspectives on Religious Epistemology (Nova York: Oxford University
Press, 1996).
222
Há também o problema evidencial ou probabilístico do mal, que abordo apenas parcialmente abaixo.
Este problema garante que Deus e o mal podem coexistir logicamente, mas, dada a vasta quantidade de
mal no mundo, a existência de Deus parece improvável.
Além das respostas dadas no restante deste capítulo, deve-se também ter em mente que o problema
evidencial do mal depende da informação de fundo sob consideração. Se nos concentrarmos apenas nos
males do mundo, a existência de Deus parecerá menos provável, mas se olharmos para a amplitude das
evidências disponíveis para a existência de Deus e sua revelação amorosa e subjugação dos poderes do
mal na encarnação, morte e ressurreição de Cristo , a existência de Deus reafirma sua alta plausibilidade.
117

dem desapontá-los profundamente. Por outro lado, as amizades sólidas de nossos


filhos são recompensadoras por causa da confiança, amor e lealdade que os carac-
terizam. A alegria e o significado da amizade têm como pano de fundo o poder de
ferir profundamente um ao outro. Afinal, não nos sentimos traídos ou feridos por
estranhos, mas por aqueles que nos são próximos.
Quando se trata da questão do mal, se tivéssemos apenas o poder de ajudar os
outros, mas não de prejudicá-los, não teríamos uma responsabilidade profunda ou
significativa uns pelos outros.223 Um mundo em que não podemos ter uma influên-
cia profunda uns sobre os outros - para o bem ou para o mal - é um mundo de rela-
cionamentos superficiais. Se nunca pudéssemos realmente ferir os outros com nos-
sas palavras ou ações, não teríamos um tipo de liberdade que valesse a pena ter.
Além disso, se as consequências de nossas más escolhas fossem bloqueadas, não
poderíamos desenvolver e aprofundar nosso próprio caráter, o que requer auto-
sacrifício e esforço.224
Décimo, se Deus eliminasse as consequências das más escolhas, ele seria um
enganador ao nos permitir viver em um mundo ilusório. No filme Groundhog Day,
um repórter meteorológico da TV chamado Phil Conners (interpretado por Bill
Murray) vai para Punxsatawney, Pensilvânia, para cobrir a história de Punxsataw-
ney Phil, a marmota, e se ele verá sua sombra. Conners é um homem desagradável,
rude e egocêntrico que odeia estar nesta cidade pitoresca. Depois de relatar a ação
da marmota, uma estranha tempestade de neve atinge e impede que ele e sua equi-
pe voltem para casa. Notavelmente, no dia seguinte, quando Conners acorda, ocor-
rem eventos idênticos aos do dia anterior: o rádio despertador toca às 6h00. tocan-
do a música “I Got You, Babe”; ele encontra um velho amigo que quer lhe vender
um seguro; a marmota faz sua aparição; a equipe de TV vai a um restaurante local.
Ninguém, exceto Conners, sabe que o tempo está parado nessa rotina dia após dia -
como se a vida fosse rebobinada todas as noites. Então, a certa altura, ele imagina
que fará tudo o que quiser, tirando vantagem das pessoas e agindo de forma im-
prudente, mas no dia seguinte a mesma coisa começa de novo. Nesses dias redun-
dantes, Conners se mata, mata a marmota e prejudica os relacionamentos com seus
comentários tolos, mas as consequências de suas ações são eliminadas quando “I
Got You, Babe” o acorda para outro dia da mesma coisa.
E se nossas vidas fossem assim? E se pudéssemos causar todo tipo de dano mo-
ral e não sofrer consequências destrutivas por nossas ações?225 E se Deus sempre
223
Richard Swinburne, “Cacodaemony,” em Filosofia Contemporânea da Religião, ed. S. Cahn e D.
Shatz (Oxford: Oxford University Press, 1982), 8.
224
Ibid., 61.
225
Os comentários a seguir foram retirados do excelente artigo de Peter van Inwagen, “The Magnitude,
Duration, and Distribution of Evil”, Philosophical Topics 16 (outono de 1988): 161–87; reimpresso em
Peter van Inwagen, God, Knowledge, and Mystery: Essays in Philosophical Theology (Ithaca, N.Y.: Cor-
nell University Press, 1995).
118

interviesse para nos impedir de ver a destruição que o pecado e a separação de


Deus podem causar? Os efeitos negativos não são difíceis de imaginar. Viveríamos
uma vida de ilusão, pensando que estamos indo bem em nosso estado miserável e
pecaminoso. Ao contrário do filho pródigo em Lucas 15, que voltou para o pai
quando finalmente ficou suficientemente desesperado, não encontraríamos nada
que nos levasse a nos mover na direção de Deus. Jamais ficaríamos insatisfeitos
em nosso estado de separação de Deus. Se Deus deve nos livrar de nosso pecado e
da separação dele, ele deve nos conscientizar disso. Isso é feito quando Deus per-
mite que as consequências naturais do pecado se tornem evidentes para nós, para
que vejamos nossa condição miserável e fiquemos insatisfeitos com ela. Deus quer
que vejamos uma conexão entre nossa separação dele e as consequências que se
seguem disso: o mal e o sofrimento. Como disse C. S. Lewis, a dor é o megafone
de Deus para despertar um mundo entorpecido.
Décimo primeiro, os males naturais que ocorrem através de tornados, terremo-
tos e furacões pressupõem um mundo natural com leis uniformes que não apenas
contribuem para o bem-estar dos seres humanos, mas também fornecem um con-
texto para a realização de escolhas livres.226 Observamos o significado dos males
morais e a importância da liberdade humana para fazer um grande bem ou um
grande mal. Mas e quanto aos males naturais que devastam vidas humanas?
Por mais surpreendente que pareça, eventos como furacões, tornados ou terre-
motos são realmente necessários para o benefício da humanidade. Cientistas plane-
tários afirmam que esses eventos devem ocorrer para que a Terra mantenha seus
delicados equilíbrios de condições atmosféricas e ambientais necessárias para a
sobrevivência dos humanos. Veja os furacões, por exemplo.

[Eles] contrabalançam a tendência do oceano de liberar dióxido de carbono da atmosfera. Es-


sa lixiviação, se não for controlada, resultaria em um resfriamento catastrófico do planeta.
Por outro lado, os furacões impedem que os oceanos retenham muito do calor do sol, ajudan-
do a circular os gases de efeito estufa globalmente, pois eles sombreiam o oceano localmen-
te, evitando que o calor aumente drasticamente para a segurança de certas criaturas mari-
nhas.227

E os terremotos? O deslocamento das placas tectônicas (que resulta em terremotos)


permite que os nutrientes essenciais para a vida sejam reciclados de volta aos con-
226
Alguém poderia argumentar que, embora fenômenos como furacões e terremotos tenham ocorrido an-
tes da queda, os seres humanos não eram vulneráveis a eles (assim como não eram a espinhos ou micró-
bios nocivos). Daniel Howard-Snyder sugere: “As forças potencialmente destrutivas da natureza torna-
ram-se inimigas [de Adão, Eva e seus descendentes] porque a consequência de se separarem de Deus foi
a perda de poderes intelectuais especiais para prever onde e quando ocorreriam desastres naturais e para
protegê-los. a si mesmos de doenças e animais selvagens, poderes dependentes de sua união com Deus. O
resultado é o mal natural (“God, Evil, and Suffering”, p. 93).
227
Hugh Ross, “Furacões Trazem Mais do que Destruição,” Fatos e Fé 12, no. 4 (1998): 4–5.
119

tinentes. Sem terremotos, “os nutrientes essenciais para a vida terrestre seriam ero-
didos nos continentes e se acumulariam nos oceanos. Em um tempo relativamente
curto, as criaturas terrestres, pelo menos as espécies avançadas, morreriam de fo-
me.”228
Em geral, as leis naturais de causa e efeito realmente ajudam a tornar possível a
liberdade humana. E se não pudéssemos prever o resultado de nossas ações no
mundo? Ou e se nossas ações não tivessem efeito no mundo? Para que as escolhas
humanas tenham efeitos previsíveis, é necessária uma certa uniformidade na natu-
reza. Se, digamos, balas se transformassem em algodão-doce toda vez que um cri-
minoso disparasse uma arma e o acaso geral substituísse causa e efeito no mundo
natural, então não haveria resultado previsível para nossas ações. Somente em um
mundo de regularidades gerais podemos realizar ações significativas.
Mas há uma desvantagem nessas leis naturais: elas não apenas nos beneficiam,
mas também fornecem um contexto no qual podem ocorrer danos. A lei da gravi-
dade é ótima se você quiser se exercitar correndo, mas não se algo der muito erra-
do com os motores de um avião durante o voo. O fogo pode nos aquecer, mas tam-
bém pode nos queimar. As leis da termodinâmica nos permitem falar usando nos-
sas cordas vocais, mas também são a causa de furacões e tornados. Os efeitos das
forças naturais são subprodutos que tornam possível o bem maior da liberdade
humana significativa.229
Alguém pode sugerir: “Por que Deus não poderia ter criado diferentes leis natu-
rais para que os males naturais pudessem ser diminuídos?” Daniel Howard-Snyder
observa que isso pressupõe que pode existir um ambiente estável para a liberdade
que não leve a nenhum mal natural como efeito colateral. Mas é de se perguntar
como tais leis poderiam ser especificadas. Do jeito que está, as próprias condições
do universo que tornam a vida humana possível, mesmo que ligeiramente diferen-
tes, não sustentariam a vida de forma alguma e, portanto, nenhum ser humano li-
vre. Pelo que sabemos, pode não haver um mundo mais adequado que seja gover-
nado por leis que não tenham o mal natural como subproduto.230

RESUMO

• Todas as cosmovisões devem lidar com o problema do mal, não apenas a


cristã.

228
Hugh Ross, “Tremors Touch Off Questions,” Facts and Faith 6, no. 3 (1992): 2–3.
229
Esses e outros comentários nesta seção foram retirados de Howard-Snyder, “God, Evil, and Suffering”,
95.
230
Ibid., 96.
120

• Vários pensadores ateus (ou não-teístas) negam categoricamente que o mal


precise ser definido, o que é muito revelador sobre a falta de recursos expli-
cativos em sua visão de mundo.
• O mal pode ser entendido como (1) a ausência, falta ou corrupção da bonda-
de (por exemplo, a corrupção do sexo em um relacionamento adúltero) ou
(2) um afastamento da maneira como as coisas deveriam ser. Mas (1) pres-
supõe um padrão de bondade e (2) pressupõe um plano de design. Ambos
apontam para Deus, cujo caráter é o próprio padrão de bondade e que é o
Projetista do universo.
• Existem vários problemas associados ao mal – não apenas um – e também
existem respostas apropriadas que correspondem a esses problemas específi-
cos.
• O problema lógico do mal não prova que Deus e o mal são contraditórios
porque não considera adequadamente a liberdade humana ou os propósitos
abrangentes de Deus.
• Devemos distinguir entre mundos logicamente possíveis e mundos factíveis
para Deus criar. Embora um mundo humano sem pecado seja logicamente
possível, não é viável para Deus criá-lo.
• Se Deus tem uma razão moralmente justificável para permitir os males que
ele faz, então esse raciocínio também refuta o problema lógico do mal.
• Mesmo que não conheçamos as razões de Deus para permitir o mal (e não há
base para pensar que deveríamos), isso não prova que tais razões não exis-
tam.
• Filósofos da religião informados hoje reconhecem que o problema lógico do
mal não é um bom argumento contra a existência de Deus.
• Se tivéssemos o poder apenas para ajudar os outros, mas não para prejudicá-
los, não teríamos nenhuma responsabilidade profunda ou significativa uns
pelos outros.
• Se Deus removesse a dor e o sofrimento para que as consequências do peca-
do fossem escondidas de nós, viveríamos em um mundo ilusório, tendo a
impressão de que estamos indo bem sem nos reconciliarmos com Deus.
• Se não experimentássemos as consequências do pecado, nunca estaríamos
insatisfeitos em nosso estado de separação de Deus. Se Deus deve nos livrar
de nosso pecado e separação dele, ele deve nos tornar conscientes de nosso
pecado.
• Em relação aos males naturais, fenômenos como tornados, furacões e terre-
motos realmente desempenham uma função importante na manutenção de
condições habitáveis na Terra.
121

• As regularidades naturais fornecem um contexto no qual a liberdade humana


é exercida. Pelo que sabemos, pode não haver um mundo mais adequado que
seja governado por leis que não tenham o mal natural como subproduto.
122
123

POR QUE UM DEUS BOM ENVIARIA


PESSOAS PARA O INFERNO?

H
oje, a ideia do inferno é escarnecida e ridicularizada como antiquada.
Muitas vezes é uma questão de brincadeira. Por exemplo, em um desenho
animado do Far Side, Satanás - com chifres estereotipados e forcado na
mão - está no "inferno", cercado por chamas e condenados fazendo trabalho duro,
empurrando carrinhos de mão e empunhando picaretas. Apontando para uma sali-
ência redonda na parede, o diabo exige saber: “Ei! Ei! Ei! . . . Quem é o wiseguy
que acabou de diminuir o termostato?231
Mas o inferno está longe de ser parecido com o Far Side, e sua existência in-
comoda profundamente cristãos e não cristãos. Antes de discutir se a ideia de in-
ferno conta contra a bondade de Deus, devemos primeiro definir o que entendemos
por inferno e depois proceder a partir daí.
Primeiro, ao contrário da crença popular, o inferno não é um lugar com alta
produção térmica; o inferno é descrito figurativamente para retratar a terrível
tragédia da vida longe de Deus. O inferno é figurativamente caracterizado na Bí-
blia como um reino de (1) escuridão e (2) chamas. Por que enfatizo a palavra figu-
rativamente? Porque se essas imagens fossem literais, elas se anulariam. Como o
inferno poderia ser um fogo físico quando também é descrito como escuridão?232
Tomado literalmente, fogo e escuridão seriam mutuamente exclusivos. De fato,
mesmo na literatura judaica extrabíblica (por exemplo, 2 Enoque 10:2), assume-se
uma compreensão figurativa do lugar da angústia final, pois o autor relaciona “fo-
go negro” com “gelo frio”.
A natureza figurativa das imagens do inferno é ainda reforçada pelo fato de que
o inferno foi preparado para seres espirituais – o diabo e seus anjos. Como os in-
crédulos, que provavelmente existirão como seres espirituais na vida após a morte,
seriam fisicamente feridos pelo fogo eterno?233 O teólogo William Crockett coloca

231
Gary Larson, A Far Side Collection: Last Chapter and Worse (Kansas City, Mo.: FarWorks, 1996),
78.
232
Veja Mateus 8:12; 22:13; 25h30; 2 Pedro 2:17; Judas 13.
233
William Crockett diz que “a natureza precisa dos corpos ressuscitados [dos justos e dos iníquos] nem
sempre é clara” (William V. Crockett, “The Metaphorical View”, em Four Views on Hell, ed. William V.
Crockett [Grand Rapids: Zondervan, 1996], 69). Murray Harris fala sobre o “silêncio de Paulo e dos ou-
tros escritores do Novo Testamento sobre a natureza dessa personificação para os iníquos para julgamen-
124

desta forma: “O fogo físico funciona em corpos físicos com terminações nervosas
físicas, não em seres espirituais”.234
Portanto, o “fogo” nas Escrituras não deve ser tomado literalmente – assim co-
mo o “verme” que “não morrerá” (Isaías 66:24) deve ser literalmente esperado no
inferno.235 O fogo nos escritos judaicos na época de Jesus simplesmente denotava
um fim ordenado para a maldade. Além disso, o fogo era muitas vezes não literal
nos escritos judaicos, bem como no Antigo Testamento. Por exemplo, Deus é um
“fogo consumidor” (Deuteronômio 4:24), cujo trono é “ardente de fogo” e um “rio
de fogo” flui de baixo do trono (Daniel 7:9–10). Os olhos de Jesus são “como fogo
ardente” (Ap 1:14). A imagem do fogo nos escritos judaicos e cristãos primitivos
era usada para criar um clima de seriedade ou reverência. O inferno em sua raiz é a
agonia e total desesperança da separação de Deus. Estar “no inferno” é ser “exclu-
ído da presença do Senhor” (2 Tessalonicenses 1:9), ser privado de uma união ín-
tima com Deus (ou seja, o céu). “Estar no inferno é não ter contato positivo com
Deus, não ser objeto da eficaz compaixão divina ou beneficiário da efetiva miseri-
córdia divina.”236
Na Divina Comédia de Dante Alighieri, a inscrição acima da entrada do inferno
diz: “Abandonem toda a esperança, todos vocês que entram aqui”. Isso, como 2
Tessalonicenses 1:9 insiste, é o que é o inferno - a separação definitiva e eterna da
fonte da vida e da esperança: Deus. Esta é realmente a maior perda possível. A dor
do inferno não deve ser vista em termos de algo físico (uma vez que alguém pode-
ria construir uma resistência ascética a ela), mas sim como uma dor dentro do espí-
rito de uma pessoa. Como afirma Mortimer Adler: “Os condenados no inferno não
sofrem incêndios corporais ou torturas. A punição deles é a dor da perda, não do
sentido.”237
Mesmo reformadores como João Calvino e Martinho Lutero sustentaram que as
“passagens de fogo” sobre o inferno deveriam ser tomadas como expressões meta-
fóricas. Calvino disse: “Podemos concluir de muitas passagens das Escrituras que
[fogo eterno] é uma expressão metafórica”.238 Lutero disse que “não é muito im-
portante se alguém retrata ou não o inferno como é comumente retratado e des-

to” (“Resurrection and Immorality in the Pauline Corpus”, em Life in the Face of Death, ed. Richard N
.Longenecker [Grand Rapids: Eerdmans, 1998], 151).
234
Crockett, “Metaphorical View,” 61.
235
Essa ênfase em “vermes” e “larvas” no inferno é encontrada nos escritos extrabíblicos de Judith 16:17
e Sirach 7:17.
236
Keith Yandell, “A Doutrina do Inferno e Filosofia Moral,” Estudos Religiosos 28 (1992): 80.
237
Mortimer Adler, “A Philosopher’s Religious Faith,” em Philosophers Who Believe, 222 (grifo meu).
238
João Calvino, Comentário sobre a Harmonia dos Evangelistas, Mateus, Marcos e Lucas, trad. Willi-
am Pringle (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), 200–201.
125

crito”.239 Mesmo hoje, muitos teólogos conservadores rejeitam esse ponto de vista
literal do inferno. Por exemplo, J. I. Packer afirma: “Não tente imaginar como é es-
tar no inferno. . . . O erro é tomar essas fotos como descrições físicas, quando na
verdade são imagens, simbolizando realidades. . . muito pior do que os próprios
símbolos.”240
Não estamos tentando suavizar a posição da Bíblia em relação ao inferno ado-
tando uma visão metafórica.241 Há realmente uma justificativa bíblica para tirar
imagens do inferno metaforicamente. Por outro lado, devemos ter cuidado para
não fazer a Bíblia dizer mais do que pretende dizer. Uma visão elevada das Escri-
turas não exige que cada palavra da Bíblia seja interpretada literalmente. Por
exemplo, Jesus chama a si mesmo de “a porta” em João 10:7, o que não é literal-
mente verdade. Jesus falou de seus seguidores “odiando” seus parentes (Lucas
14:26), mas, novamente, ele não quis dizer isso literalmente.
Por outro lado, nosso estado final como crentes - primeiro no "céu" ou "paraí-
so" durante o estado intermediário242 e, finalmente, nos "novos céus e na nova ter-
ra"243 - deve ser entendido fundamentalmente como estar presente com Deus , des-
frutando de acesso imediato a ele e vivendo em profunda união com ele. Nesse es-
tado final, quando todas as coisas forem renovadas, as antigas promessas proféti-
cas serão finalmente cumpridas: “[Deus] viverá com [seu povo]. Eles serão o seu
povo, e o próprio Deus estará com eles” (Ap 21:3). O povo de Deus “verá a sua fa-
ce” (22:4).
Em segundo lugar, o inferno é o resultado lógico de viver a vida longe de Deus.
Algumas pessoas perguntam: “Não é injusto Deus punir infinitamente as pessoas

239
Martin Luther, Luther’s Works: Lectures on the Minor Prophets, II (Jonah, Habakkuk), trans. Jaroslav
Pelikan (St. Louis: Concordia, 1974), 19:75.
240
J. I. Packer, “The Problem of Eternal Punishment”, Crux 26 (setembro de 1990): 25.
241
Alguns de meus comentários foram tirados de Crockett, “Metaphorical View”.
242
Jesus diz ao ladrão na cruz: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43); Pau-
lo fala de estar “em casa no corpo [e] ausente do Senhor” ou “ausente do corpo e . . . em casa com o Se-
nhor” (2 Coríntios 5:6, 8 NASB). Quando Paulo diz: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lu-
cro” (Filipenses 1:21), ele quer dizer que as alternativas devem ser (1) “na carne” de uma existência ter-
rena ou (2) “com Cristo”, que é “muito melhor” (1:22-23).
243
No estado final para os crentes, a nova Jerusalém do céu – isto é, a comunidade do povo de Deus –
desce do céu “ataviada como uma noiva ataviada para o seu marido” (Ap 21:2). Quando um dos sete an-
jos mostra a João “a noiva, a esposa do Cordeiro” (21:9), João vê “a cidade santa, Jerusalém, descendo do
céu, da parte de Deus” (21:10). Essa comunidade de crentes é a nova Jerusalém - não uma cidade celesti-
al literal com portões perolados literais e ruas literais de ouro. (Cp. Heb. 12:22–23, onde a “Jerusalém ce-
lestial” é descrita como sendo “a igreja do primogênito [Cristo], cujos nomes estão escritos nos céus”.)
A imagem de pedras preciosas da nova Jerusalém em Apocalipse 21:10-21 é descritiva da beleza do
povo de Deus, que reflete a glória espetacular do próprio Deus, cuja presença é descrita com a mesma
imagem de pedras preciosas em Apocalipse 4:3 (cf. Ezequiel 1:28). E essa linguagem reflete as metáforas
de construção e templo usadas para descrever o povo de Deus em 1 Pedro 2 – “pedras vivas” de “precioso
valor” – e em outras partes do Novo Testamento.
126

pelos pecados que cometeram durante um período finito de tempo na terra?” A pu-
nição parece totalmente desproporcional ao crime. Mas este é apenas o problema:
focar em atos pecaminosos discretos, individuais, em vez de uma mentalidade
oposta a Deus ou uma vida longe de Deus é entender mal o ponto crucial. Céu e in-
ferno244 não são resultados surpreendentes.245 Em vez disso, eles fluem lógica e na-
turalmente de como alguém viveu e operou na terra. Assim como um crente espera
ansiosamente estar em perfeita harmonia e união com seu Criador e Salvador no
céu, um incrédulo deve ver o inferno como um divórcio final de Deus. “A punição
se ajusta ao crime porque a punição é o crime. Dizer não a Deus significa não ter
Deus”.246 Em outras palavras:

O cristão ortodoxo não precisa sustentar que todo pecado merece o inferno ou tem o inferno
como consequência; ao contrário, o inferno é a consequência final (e até mesmo a punição
justa) para aqueles que se recusam irrevogavelmente a buscar e aceitar o perdão de Deus para
seus pecados. Ao recusar o perdão de Deus, eles livremente se separam de Deus para sempre.
A questão, então, é se a necessidade de tomar essa decisão fundamental é pedir demais a um
ser humano.247

Ou, como Joel Green e Mark Baker colocam, a ira de Deus é dirigida contra a im-
piedade e a injustiça (Romanos 1:18); estes são identificados não com “atos indi-
viduais de maldade”, mas com uma disposição geral de “recusar-se a honrar a
Deus como Deus e a lhe render graças”.248
O inferno é a consequência natural da rejeição de Deus. Para aqueles que amam
a Deus, a consequência natural é entrar na presença divina e desfrutar Deus para
sempre. Forçar alguém a entrar no céu que odiaria a presença de Deus seria como
obrigar alguém que não consegue superar o rap a ouvir incessantemente as obras
de Johann Sebastian Bach e Georg Friederich Handel. Seria horrível!249 O inferno

244
Ou, mais precisamente, os novos céus e a nova terra e o lago de fogo.
245
Como exceção, pode-se citar Mateus 7:21–23, onde os autoproclamados crentes parecem surpresos
com o fato de que suas profecias, milagres e exorcizações em nome de Jesus não os resgatam da conde-
nação. Mas suas vidas são descritas por Jesus como sendo sem lei, e tais pessoas não encontrariam alegria
em estarem unidas com o Santo, pois suas vidas interiores na terra foram tão contrárias aos propósitos de
Cristo. Lembre-se de que muitos líderes religiosos da época de Jesus pareciam bem por fora (“caiados”),
mas por dentro estavam cheios de ossos podres e impureza (“tumbas”). E algumas dessas “pessoas since-
ras e religiosas” realmente instigariam a morte de Jesus!
246
Peter Kreeft e Ron Tacelli, Handbook of Christian Apologetics (Downers Grove, Illinois: InterVarsity
Press, 1994), 300.
247
William Lane Craig, “Salvação Politicamente Incorreta,” em Christian Apologetics in the Postmodern
World, ed. Timothy R. Phillips e Dennis L. Okholm (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1995),
88.
248
Joel B. Green e Mark D. Baker, Recovering the Scandal of the Cross (Downers Grove, Illinois: Inter-
Varsity Press, 2000), 54–55; cp. 95.
249
Adaptado de Michael J. Murray, “Heaven and Hell”, em Reason for the Hope Within, 296.
127

é tanto uma punição quanto o resultado de uma mentalidade contra Deus. D. A.


Carson observa que o céu certamente seria um inferno para aqueles que não des-
frutam e não desejam a bênção da presença de Deus.250
Em terceiro lugar, mesmo que alguém não esteja totalmente ciente dos imensos
horrores do inferno, isso não significa que essa escolha seja um peso muito gran-
de para uma pessoa suportar - ou que a graça de Deus para escolher com respon-
sabilidade não esteja disponível para todos. Algumas pessoas podem argumentar
que é injusto que Deus condene alguém ao inferno, já que uma pessoa não conhece
todas as ramificações de rejeitar a Deus. Mas aceite o casamento. Minha esposa e
eu, convencidos de que fomos feitos um para o outro, recitamos nossos votos de
casamento com sinceridade e alegria. Comprometidos como estávamos em nosso
casamento, mais tarde ficamos impressionados com a amplitude e a imensidão das
palavras que havíamos falado: “na riqueza, na pobreza” e “na doença e na saúde”.
Expressamos nossos votos com seriedade e responsabilidade, embora não pudés-
semos ter percebido sua extensão total naquele momento.
Da mesma forma, o fato de não podermos compreender totalmente os horrores
do inferno (ou, devemos acrescentar, a bem-aventurança do céu) não significa que
não possamos escolher com responsabilidade entre o céu e o inferno ou que essa
decisão seja uma responsabilidade muito pesada para os humanos suportarem. .
Além disso, Deus não permite que os seres humanos façam essa escolha por
conta própria. Ele oferece sua graça preveniente por meio do Espírito Santo, que
convence todas as pessoas (João 16:8) e é capaz de atraí-las para si (João 6:44). Is-
to é, Deus está pronto para equipar qualquer pessoa para a salvação.251 O proble-
ma, portanto, não é que as pessoas - como Mahatma Gandhi ou Aristóteles - não
estejam informadas sobre Jesus ou não estejam completamente cientes da gravida-
de de seu destino eterno. A questão é muito mais ampla, ou seja, envolve resistir à
influência do Espírito de Deus e não responder com amor à bondosa iniciativa de
Deus.
Quarto, o que impede a salvação de todos é o livre arbítrio dos indivíduos que
rejeitam a graça inicial de Deus. Como vimos no capítulo anterior, embora seja
teórica ou logicamente possível existir um mundo no qual cada pessoa escolheria
livremente fazer o bem o tempo todo, isso não é viável. Não importa o quão ideal o
mundo poderia ter sido criado por Deus, os seres humanos sempre escolheram li-
vremente fazer o mal. Deus simplesmente não pode, de fato, criar um mundo no
qual todas as pessoas escolham livremente responder à sua bondade e serem sal-
vas.
A resposta para a pergunta: “Por que um bom Deus enviaria pessoas para o in-
ferno?” é, portanto, respondido: Ele não envia pessoas para o inferno; ao contrário,
250
D. A. Carson, How Long, O Lord? (Grand Rapids: Baker, 1990), 103.
251
Craig, “Politically Incorrect Salvation,” 88.
128

as pessoas escolhem livremente ignorar e resistir à graça inicial de Deus em suas


vidas e, como resultado, condenam a si mesmas. Na música "Who Can Abide?" o
cantor cristão Michael Card articula esta verdade: “Esta triste separação foi a esco-
lha deles. . .”; Deus “simplesmente fala a sentença que eles proferiram sobre si
mesmos”.252
C. S. Lewis, em The Problem of Pain, disse que o inferno existe para aqueles
que se recusam a reconhecer sua culpa; portanto, eles não podem aceitar perdão.253
Ele prossegue dizendo: “Acredito de bom grado que os condenados são, em certo
sentido, bem-sucedidos, rebeldes até o fim; que as portas do inferno estão tranca-
das por dentro.”254
Deus nos deu o livre arbítrio, o que significa que existe a possibilidade de
“sempre resistir ao Espírito Santo” (Atos 7:51). Deus deseja que todas as pessoas
cheguem ao conhecimento da verdade (2 Pedro 3:9). O único obstáculo à salvação
universal é o livre arbítrio humano.255 Algumas pessoas simplesmente não querem
que Deus as governe. O filósofo Paul Moser conta sobre um amigo ateu que prefe-
ria morrer a reconhecer a existência de Deus.256 Observamos anteriormente que
Thomas Nagel não quer um universo no qual Deus exista. O próprio Nagel quer
ser o Grande Queijo! Então, por que as pessoas deveriam culpar Deus pela exis-
tência do inferno – a ausência da presença de Deus – quando todos os que vão para
lá têm resistido livremente à sua graça inicial e não querem se aproximar de Deus
em amor e adoração? Teria sido melhor para Deus não ter criado os humanos para
o bem daqueles que resistiriam a ele? Ele deveria ter privado aqueles que viriam a
experimentar a intimidade com Deus de um bem tão glorioso?
Em última análise, o inferno é “a retirada de Deus de sua presença e de suas
bênçãos dos homens que se recusaram a recebê-las”.257 No final, observa Lewis,
existem apenas dois tipos de pessoas: aquelas que dizem a Deus: “Seja feita a tua
vontade” e aquelas a quem Deus diz: “Seja feita a tua vontade”.258 O pastor e autor
escocês George MacDonald colocou desta forma: “O único princípio do inferno é:
eu sou meu.”259 MacDonald disse que o inferno é "o melhor que Deus pode fazer
por aqueles que não o amam".260 Se um milhão de chances fossem necessárias para

252
Do álbum The Ancient Faith, Sparrow Corporation, 1993.
253
Lewis, The Problem of Pain, 122.
254
Ibid., 127.
255
Extraído de William Lane Craig (debate com Ray Bradley), “Can a Loving God Send People to Hell?”
Debate encontrado em http://www.leaderu.com/offices/billcraig/docs/craigbradley0.html.
256
Ver Paul K. Moser, Por que Deus não é mais óbvio? RZIM Critical Questions Booklet Series (Nor-
cross, Ga.: Ravi Zacharias International Ministries, 2000), 29.
257
Stephen Travis, “The Problem of Judgment,” Themelios 11 (January 1986): 53
258
C. S. Lewis, The Screwtape Letters (New York: Macmillan, 1982), 38.
259
C. S. Lewis, George MacDonald: An Anthology (New York: Macmillan, 1948), 85.
260
Cited in Yandell, “Hell,” 90.
129

uma pessoa ser salva do inferno, diz Lewis, então Deus lhes daria se fizessem o
bem.261 Ninguém é arrastado para o inferno; isso seria injusto.262 (Alguns cristãos
como John Stott, Philip E. Hughes e John Wenham sugeriram que a eventual ani-
quilação daqueles que resistem a Deus é uma alternativa bíblica possível para uma
compreensão mais tradicional do inferno. Embora o debate continue e alguns dos
argumentos valem a pena ponderar, eu continuo não convencido.)263
Quinto, mesmo que as pessoas no inferno estejam angustiadas, isso não signifi-
ca que elas prefeririam estar na presença de Deus. A resistência a Deus continua
no inferno. No livro de C. S. Lewis sobre o céu e o inferno, O Grande Divórcio, 264
o céu é um reino onde algumas pessoas preferem não estar. Eles preferem estar em
um lugar sombrio e miserável do que serem expostos à presença de Deus. O infer-
no é seguir o seu caminho, longe da presença de Deus. Isto é o que a Escritura
afirma. De acordo com o estudioso bíblico D. A. Carson, “não há nenhum indício
na Bíblia de que haja arrependimento no inferno”.265 Mas alguém pode apontar pa-
ra a parábola do homem rico e Lázaro em Lucas 16. O homem rico (que viveu
egoisticamente durante sua vida terrena) clamou por alívio em sua angústia após a
morte. Tal ato, no entanto, não indica que o homem rico teria preferido uma exis-
tência centrada em Deus no céu. Ele, como Judas depois de trair Jesus, sentiu re-
morso, não arrependimento.266 Ele simplesmente queria o alívio de sua angústia.
As pessoas no inferno estarão bastante conscientes de sua perda, mesmo que não
desejem mudar. São eles, não Deus, os responsáveis por sua perda. Mesmo que
eles reconheçam intelectualmente o quão mal estão em sua condição, eles ainda
escolhem permanecer nela. Eles poderiam ser comparados a um viciado em drogas
que sabe que tem um problema sério, mas se recusa a largar o vício.
Carson continua:

Talvez devêssemos pensar no inferno como um lugar onde as pessoas continuam a se rebelar,
continuar a insistir em seu próprio caminho, manter as estruturas sociais de preconceito e
ódio, continuar a desafiar o Deus vivo. E enquanto eles continuam a desafiar a Deus, ele con-
tinua a puni-los. E o ciclo continua e continua e continua.267

C. S. Lewis afirma:

261
Lewis, The Problem of Pain, 124.
262
Yandell, “Hell,” 90.
263
Para um breve resumo e avaliação deste e de assuntos relacionados, veja Robert A. Peterson,
“Undying Worm, Unquenchable Fire,” Christianity Today, 23 de outubro de 2000, pp. 30–37.
264
C.S. Lewis, The Great Divorce (New York: Macmillan, 1946).
265
Carson, How Long, O Lord? 102.
266
Stephen Davis, “Universalism, Hell, and the Fate of the Ignorant”, Modern Theology 6 (janeiro de
1990): 179.
267
Carson, How Long, O Lord? 102
130

Eu pagaria qualquer preço para poder dizer com sinceridade “Todos serão salvos”. Mas mi-
nha razão retruca: “Sem a vontade deles ou com ela?” Se digo “Sem a vontade deles”, perce-
bo imediatamente uma contradição; como pode o supremo ato voluntário de auto-entrega ser
involuntário? Se eu disser “Com a vontade deles”, minha razão responde “E se eles não cede-
rem?”268

Sexto, aqueles que estão no inferno cometeram o pecado infinito, não apenas uma
série de pecados finitos. Aqui devemos fazer o contraste finito-infinito, não focali-
zando principalmente os pecados individuais ou mesmo uma vida inteira de peca-
dos. Observamos que o “número finito” de pecados que as pessoas cometem – em
contraste com a “punição infinita” que recebem – não é o problema. Em questão
está uma mentalidade ou disposição que continua na vida após a morte. Aqueles
que se aproximaram de Deus em suas vidas terrenas continuam a desfrutar de sua
presença na vida após a morte; aqueles que resistiram a ele na terra continuam em
sua dureza de coração no inferno. Os que estão no inferno rejeitaram um relacio-
namento com o Deus gracioso e abnegado, que é o pecado final.
Sétimo, a liberdade que experimentamos na terra é um requisito para a escolha
do destino final; respondemos livremente de forma afirmativa à influência amoro-
sa de Deus ou resistimos a ela. Não é incomum que eu tenha ouvido cristãos e cé-
ticos perguntarem: “Por que Deus não fez todos os seres humanos como seremos
no céu – sem pecado e com a capacidade de sempre escolher fazer o bem? Se Deus
pode garantir uma existência sem pecado para os crentes na vida após a morte, por
que não fazê-lo desde o início?” A questão é mal concebida e ofereço as seguintes
alternativas em resposta a ela.
Alternativa 1: Se o céu é um lugar onde os seres humanos não têm mais a capa-
cidade de escolher pecar, mas apenas fazer o bem e onde o pecado não pode ocor-
rer (liberdade compatibilista), então uma liberdade mais robusta (incompatibilista)
é um pré-requisito terreno antes de nossa as escolhas são “seladas”. Nosso estado
final é fruto de nossa escolha de nos aproximarmos ou nos afastarmos de Deus na
terra. Pensar no pecado como uma possibilidade no céu parece problemático. Pare-
ce que o céu (ou, mais precisamente, os novos céus e a nova terra) deve ser livre
de pecado. Mas se for esse o caso, então não pode haver liberdade robusta (libertá-
ria) no céu. Mas essa liberdade não é essencial para quem somos como humanos?
Se for assim, temos um dilema, e nenhuma das alternativas parece atraente: (1)
preservar a liberdade humana e abrir a possibilidade real de pecado no céu ou (2)
preservar o ambiente primitivo do céu, mas remover a significativa liberdade hu-
mana.269 Como vamos resolver este assunto?

268
Lewis, The Problem of Pain, 118–19.
269
Alguns dos meus comentários na alternativa 1 foram tirados de James F. Sennett, “Is There Freedom
in Heaven?” Faith and Philosophy 16 (janeiro de 1999): 69–82; e Murray, “Céu e Inferno”, 287–317.
131

Se pecar é essencialmente impossível no céu (e nossa liberdade no céu seria


apenas uma liberdade compatibilista),270 então o tipo de liberdade que temos na
terra (incompatibilista) não é essencial para nossa humanidade. No céu não somos
livres para pecar, embora façamos o que desejamos, ou seja, o bem.
Se a liberdade libertária não é essencial para nós como humanos, isto é, é um
tipo de liberdade sem a qual podemos viver em um estado celestial, como podemos
reunir a impecabilidade celestial e uma compreensão razoável da liberdade huma-
na de maneira coerente? Um cenário possível é este: é com base na liberdade ro-
busta (libertária) de pecar enquanto na terra que os redimidos finalmente se tornam
“selados” como resultado de sua orientação para Deus. Ou seja, vivemos à luz das
escolhas que fizemos e nas quais nos entrincheiramos. Nosso estado final é, em úl-
tima análise, o resultado das escolhas de (robustamente) agentes livres que esco-
lheram (enquanto estavam na Terra) abraçar a influência amorosa de Deus ou re-
sistir a ela livremente.
Enquanto estamos na Terra, fazemos escolhas livremente que afetam e moldam
nosso caráter e condição espiritual. Fazemos escolhas livres que nos aproximam ou
nos afastam de Deus, que determinam nosso status celestial (ou condenado). Nossa
felicidade final (ou status condenado) é o resultado de escolhas feitas livremente
que moldaram a direção de nossas vidas e nosso destino. “As escolhas feitas para o
bem ou para o mal são diretamente relevantes para os destinos eternos que deter-
minam para nós. À medida que formamos nosso caráter, definimos nossa bússola
espiritual para aquele local em que as vidas que desejamos para nós mesmos são
realizadas de forma mais plena e natural.”271 Ao transformar o caráter dos redimi-
dos à semelhança de Cristo na vida após a morte, Deus simplesmente nos dá o de-
sejo de nossos corações.272

270
“Não poder pecar”, ou non posse peccare.
271
Sennett, “Existe Liberdade no Céu?” 78. Sennett aponta que “o melhor [tipo de] mundo que Deus po-
deria criar não conteria um céu e uma terra com liberdade libertária, mas uma terra com liberdade libertá-
ria e um céu com liberdade compatibilista próxima [isto é, a natureza fixa do final estado é o resultado de
escolhas livres feitas em um estado de coisas em que o mal é uma possibilidade genuína]. Assim, Deus
permite a liberdade libertária na terra não apenas para prover um bem significativo na terra, mas também
para tornar possível um bem maior no céu” (82 n).
272
Murray, “Heaven and Hell”, 301. Além disso, Deus, em sua onisciência, sabe quais dentre eles esco-
lheriam se voltar para ele se tivessem vivido e quais não. Talvez Deus permita que certos que teriam es-
colhido recorrer a ele se tivessem vivido morressem na infância e recebessem a satisfação de suas incli-
nações se tivessem vivido. Mas aqueles que finalmente rejeitariam o amor de Deus cresceriam para repu-
diá-lo ou rejeitá-lo e, assim, seriam condenados por seus atos. Esta é simplesmente uma sugestão logica-
mente possível.
132

De acordo com essa visão, deve haver a possibilidade do mal para que o estado
celestial e sem pecado seja realizado. A liberdade libertária na terra não pode ser
evitada, embora possa ser contornada no céu.273
Alternativa 2: Pode ser que Deus simplesmente saiba de antemão que ninguém
no céu escolherá livremente pecar; Deus, portanto, pode garantir a impecabilidade
imaculada do céu. Alguns podem achar que a liberdade que experimentamos na
terra deve continuar no céu, pois essa liberdade é essencial para quem somos como
agentes humanos. Devemos sempre ter a capacidade de escolher agir de forma
egoísta ou voltada para Deus. Tal liberdade faz parte de nossa essência ou natureza
humana; sem ela, não existiríamos, alguns libertários podem argumentar.
Uma solução satisfatória para aqueles que adotam essa visão pode ser que Deus
sabe de antemão que ninguém no céu realmente escolherá pecar ou agir de forma
egoísta, assim como ele sabe de antemão que a rebelião contra ele no inferno con-
tinuará livremente para sempre. O que preservará o céu como um reino imaculado
e imaculado não é alguma força divina ou selo permanente de Deus que impede os
remidos de pecar. Os redimidos simplesmente não pecarão, e Deus, sendo quem
ele é (um Ser que inatamente conhece todas as verdades, incluindo aquelas relati-
vas ao nosso futuro celestial), sabe disso. Ele sabe que o pecado nem mesmo virá à
mente como algo sobre o qual os remidos agiriam.274
Alternativa 3: Para fortalecer a alternativa 2, poderíamos acrescentar que qual-
quer consideração sobre a possibilidade do pecado será gloriosamente ofuscada pe-
las alegrias de nossa união com Deus e o Cordeiro. Nossa magnífica experiência
da presença imediata de Deus e de Cristo inundará tanto nossos corações que não
pecar será algo óbvio275 - embora permaneça uma possibilidade. Meu filho de dez
anos, Peter, sabe mais sobre répteis e anfíbios do que a maioria dos adultos que
conheço. Quando ele está perto de um corpo d'água ou de uma área arborizada, sei
que ele ficará tão preocupado em observar o mundo natural e em capturar cobras,
sapos e salamandras que simplesmente não ficará entediado. Embora o tédio seja
teoricamente possível, sua mente está tão cheia de ambientes emocionantes que o
tédio simplesmente não é realista!

273
Sennett, “Existe Liberdade no Céu?” 76–77. Há uma objeção potencial a essa visão, no entanto. Essa
visão parece supor que apenas aqueles que viveram o suficiente para desenvolver um certo caráter que
determina totalmente as ações para o bem terão permissão para entrar no céu. (Não estou tratando aqui da
questão de bebês e crianças pequenas.) Mas e quanto ao ladrão na cruz que se juntaria a Jesus no paraíso?
A resposta é que é o padrão que estabelecemos ao longo de uma vida de construção de caráter persistente
e intencional que é crítico - não o fato de alcançarmos o caráter desejado em nossas vidas: “Ao estabele-
cer esse padrão, estamos, de fato, dando permissão a Deus para preencher a lacuna” (77-78).
274
Para um caso similarmente argumentado sobre apostasia, veja William Lane Craig, “‘Lest Someone
Should Fall’: A Middle Knowledge Perspective on Perseverance and Apostolic Warnings,” International
Journal for Philosophy of Religion 29 (1991): 65–74.
275
Ou, mais precisamente, um “não se importa”.
133

Quão mais gratificante e glorioso é estar com o Ser que é mais interessante do
que qualquer outra coisa que existe! Deus é oni-interessante. Estar em uma condi-
ção livre de pecado, finalmente transformado à imagem de Cristo, e experimentar a
presença direta de Deus através da união com ele vai superar em muito o que nos-
sos ancestrais edênicos experimentaram antes da queda. Em uma condição tão glo-
riosa, o pecado - mesmo que seja uma possibilidade - não entrará em nossos pen-
samentos como algo viável. Devemos notar que este maravilhoso ambiente e rela-
cionamento com Deus não nos fará parar de pecar. Estaremos tão preocupados
com a pura felicidade e gozo do olhar de Deus que não pensaremos em pecar.
Alguns dos pensamentos neste ponto final são exploratórios e sugestivos. Re-
conhecidamente, esses tipos de tópicos nos lembram de sermos mais experimentais
e sugestivos do que dogmaticamente definitivos. Isso é apropriado porque “ainda
não se manifestou o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se mani-
festar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos como ele é” (1 João 3:2).
Novamente, por que um bom Deus enviaria pessoas para o inferno? É o melhor
que Deus pode fazer por aqueles que se recusam a amá-lo. O inferno é conseguir o
que se quer (e merece) - sem Deus. O inferno — a ausência de Deus — é fruto de
uma vida afastada de Deus. E o céu é para aqueles que querem estar com o Deus
amoroso e santo para sempre.

RESUMO

• O inferno não é um lugar com alta produção térmica. Chama e escuridão, se


tomadas literalmente, se anulam. O inferno é descrito figurativamente como
o reino final da vida separado de Deus (2 Tessalonicenses 1:9 - longe da pre-
sença de Deus). O inferno é a dor da perda, não da sensação física.
• A natureza figurativa das imagens do inferno é ainda reforçada pelo fato de
que o inferno foi preparado para seres espirituais – o diabo e seus anjos.
• O inferno é tanto uma punição quanto o resultado de uma mentalidade con-
tra Deus.
• Mesmo que a pessoa não esteja totalmente ciente da imensa angústia do in-
ferno, isso não significa que essa escolha seja um peso muito grande para
uma pessoa suportar - ou que a graça de Deus para escolher com responsabi-
lidade não esteja disponível para todos.
• Deus não manda as pessoas para o inferno; ao contrário, as pessoas esco-
lhem livremente ignorar e resistir à graça inicial de Deus em suas vidas e,
como resultado, acabam se condenando.
• Mesmo que as pessoas no inferno estejam angustiadas, isso não significa que
prefeririam estar na presença de Deus. A resistência a Deus continua no in-
ferno. Aqueles no inferno cometeram o pecado infinito, não apenas uma sé-
134

rie de pecados finitos. Eles rejeitaram um relacionamento com um Deus gra-


cioso.
• Deus não criou imediatamente um estado semelhante ao céu no qual os re-
dimidos optam por não pecar por este motivo: o tipo de liberdade que expe-
rimentamos na terra é um requisito para escolher o destino final de alguém;
respondemos livremente de forma afirmativa à influência amorosa de Deus
ou resistimos a ela.
• Deus não poderia ter criado primeiro um estado semelhante ao céu no qual
os redimidos não podem pecar. Nosso estado final é fruto de nossa escolha
de nos aproximarmos ou nos afastarmos de Deus na terra (alternativa 1).
• Outro cenário (alternativa 2) é que Deus simplesmente sabe de antemão que
ninguém no céu escolherá livremente pecar; Deus, portanto, pode garantir a
impecabilidade imaculada do céu.
• Poderíamos acrescentar que qualquer consideração sobre a possibilidade do
pecado será gloriosamente ofuscada pelas alegrias de nossa união com Deus
e o Cordeiro. Nossa gloriosa experiência da presença imediata de Deus e de
Cristo inundará tanto nossos corações que o pecado nem mesmo entrará em
nossas mentes, embora permaneça uma possibilidade (alternativa 3).
135
136

RELIGIÃO NADA MAIS É DO QUE O DESEJO


HUMANO POR UMA FIGURA PATERNA

O
magnata da televisão Ted Turner é conhecido por chamar os cristãos de
nomes bastante ofensivos, como “bozos”. O governador de Minnesota,
Jesse Ventura, denunciou os cristãos como pessoas de mente fraca. É bas-
tante comum ouvir cristãos e outros adeptos religiosos rebaixados como impruden-
tes e intelectualmente desafiados. A razão pela qual a religião existe, diz o cético
com frequência, é porque as pessoas desejam alguma segurança ou esperança em
um mundo instável e assustador. Em outras palavras, Deus realmente não existe;
nós o inventamos por causa de nossos próprios desejos e necessidades. Ansiamos
por uma espécie de cobertor Linus cósmico e, eventualmente, passamos a acreditar
que existe um para nos ajudar ao longo da vida. Como diz o Manifesto Humanista
II, “as religiões tradicionais muitas vezes oferecem consolo aos humanos”.276
Esses tipos de reivindicações estão conosco há algum tempo. O filósofo Ludwig
Feuerbach escreveu sobre essas afirmações em sua Essência do Cristianismo, que
impressionou profundamente o pensamento de Karl Marx sobre religião. O próprio
Marx chamou a religião de “o suspiro da criatura oprimida” e “o ópio do povo”.277
Em vez de os humanos serem feitos à imagem de Deus, como afirma Gênesis
1:26–27, os humanos fizeram Deus à sua imagem, de acordo com esses ateus.
Mais recentemente, o mais proeminente defensor da suposta conexão entre reli-
gião e desejos humanos subconscientes foi o psicanalista Sigmund Freud. Ele es-
creveu em seu Future of an Illusion: “As ideias religiosas surgiram da mesma ne-
cessidade que todas as outras conquistas da civilização: da necessidade de se de-
fender contra a força esmagadora superior da natureza”. As crenças religiosas são,
portanto, “ilusões, realizações dos desejos mais antigos, fortes e urgentes da hu-
manidade. . . . A regra benevolente de uma Providência divina acalma nossos me-
dos dos perigos da vida.”278
De acordo com Marx e Freud, a crença religiosa é uma ilusão. É uma aborda-
gem patética, de mente fraca e irresponsável da realidade. A crença em Deus refle-
te o pensamento “infantil” em vez do pensamento maduro. Segundo Freud, a reli-

276
Humanist Manifesto II (Buffalo: Prometheus Press), 16.
277
Karl Marx e F. Engels, Collected Works, vol. 3, Introdução a uma crítica da filosofia hegeliana do di-
reito (Londres: Lawrence & Wishart, 1975).
278
Sigmund Freud, Futuro de uma Ilusão, ed. e trans. J. Strachey (Nova York: Norton, 1961), 30.
137

gião pertence ao reino dos “contos de fadas”.279 Ainda mais recentemente, o zoó-
logo ateu Richard Dawkins chamou a crença religiosa de um vírus da “mente”,
uma espécie de defeito que surge no processo evolutivo.280
Há uma série de problemas — e ironias — envolvidos nesse tipo de análise da
religião. Primeiro, essa “análise freudiana” da religião não tem nenhuma evidên-
cia clínica para apoiá-la. Em uma carta de 1927 a Oskar Pfister (um dos primeiros
psicanalistas e pastor protestante), Freud escreveu: “Sejamos bastante claros quan-
to ao ponto de vista de que as opiniões expressas em meu livro [O Futuro de uma
Ilusão] não fazem parte da teoria analítica. São minhas opiniões pessoais.”281 Além
disso, o psiquiatra da Universidade de Nova York, Paul Vitz, observa que Freud
tinha muito pouca experiência psicanalítica com pacientes que acreditavam em
Deus ou eram genuinamente religiosos. Freud em nenhum lugar publicou uma aná-
lise da crença religiosa baseada em evidências clínicas fornecidas por um paciente
crente.282
Em segundo lugar, esse ponto de vista comete um erro lógico conhecido como
falácia genética. Tome a seguinte afirmação como exemplo: “Como um professor
mesquinho e rabugento na escola primária me ensinou matemática básica, minha
compreensão da matemática está completamente equivocada”. Por que essa afir-
mação é falha? Simplesmente por causa da maneira como cheguei a acreditar em
algo (a gênese de minha crença) não mostra que a crença é falsa.
Ou dê um exemplo ligeiramente diferente. Um novato em matemática pode fe-
lizmente chegar à resposta correta para um problema intrincado, mesmo que o ca-
minho para chegar lá seja cheio de erros e erros. Mas não dizemos: “A resposta
não pode estar correta”. Em vez disso, dizemos: “Embora a resposta esteja correta,
a forma como ela foi alcançada foi metodologicamente incorreta”. O mesmo pode
ser dito em relação a Deus: mesmo que as pessoas religiosas acreditem em Deus
por razões “erradas” ou inferiores, isso não faz nada para mostrar que Deus não
existe. Tal situação pode revelar uma base inadequada para a crença, mas a evi-
dência da existência de Deus é uma questão separada.
Vamos rever a afirmação de Richard Dawkins: A crença religiosa é o resultado
de uma espécie de vírus que assola certos seres humanos. A alegação de Dawkins
na verdade levanta sérios problemas para sua própria visão de mundo ateísta “cien-
tífica”: (1) Ele parece acreditar que a genética humana é uma questão de design

279
Ibid., 29.
280
Richard Dawkins, “Viruses of the Mind”, Free Inquiry (verão de 1993): 34–41. Dawkins está falando
contra “uma convicção que não parece dever nada à evidência ou à razão” e uma mentalidade que pode
tentar matar ou ferir outras pessoas por convicção religiosa. No entanto, tal mentalidade deve ser repudi-
ada pelo cristão pensante.
281
Sigmund Freud e Oskar Pfister, Psicanálise e Fé: As Cartas de Sigmund Freud e Oskar Pfister, ed. H.
Meng e E. French, trad. E. Mosbacher (Nova York: Basic Books, 1962), 117.
282
Paul C. Vitz, Faith of the Fatherless (Dallas: Spence, 1999), 8–9.
138

(não apenas a maneira como as coisas evoluíram) e que a crença religiosa é um


afastamento da como as coisas deveriam ser. Isso pressupõe, no entanto, uma es-
pécie de projeto de como devemos funcionar. Mas não é papel da ciência nos dizer
como algo deve funcionar, apenas a maneira como funciona. (2) Se crentes religio-
sos e ateus nada mais são do que produtos da genética, como chegamos a saber
disso racionalmente e por que deveríamos pensar que os crentes religiosos (e, nes-
se caso, pessoas não religiosas) podem ser responsabilizados por suas crenças?
crenças? Como argumento abaixo, Deus pode ter nos projetado de tal maneira que
os processos naturais nos permitem conhecê-lo pessoalmente, e estamos em nosso
melhor estado cognitivo quando nossas faculdades nos direcionam para a verdadei-
ra crença em Deus. 283 Portanto, pode ser possível que (1) os processos naturais
contribuam parcialmente para a formação da crença religiosa e que (2) a crença re-
ligiosa seja perfeitamente respeitável e indique que nossas mentes estão funcio-
nando adequadamente - de acordo com a maneira como fomos projetados.284
Em terceiro lugar, devemos distinguir entre a racionalidade da crença e a psi-
cologia da crença. Talvez você tenha ouvido: “Eu sei por que você acredita em
Deus. Você precisa de algum tipo de muleta para passar pela vida. Mas tal afirma-
ção aborda apenas a psicologia da crença (por que ou como as pessoas passam a
acreditar em Deus) e não a racionalidade da crença (se há boas razões para acredi-
tar em Deus). Mesmo que precisemos de uma “muleta” para atravessar a vida (e
uma auto-reflexão razoável nos diz que precisamos de muito para nos ajudar a vi-
ver a vida como deveríamos), ainda podemos oferecer razões para acreditar em
Deus que são independente de nossos desejos psicológicos. Mesmo que todos
acreditassem em Deus por razões falaciosas - por mais problemático que seja esse
cenário - tal situação ainda não refutaria a existência de Deus. A questão principal
a ser abordada ao discutir a existência de Deus com ateus ou céticos não é: “Como
as pessoas passam a acreditar em Deus?” ou “O que os motiva a acreditar no que
fazem?” Em vez disso, é esta: “Que boas razões existem para acreditar em vez de
não acreditar?”
O teólogo R. C. Sproul defende esse ponto com relação à base histórica da fé
cristã. Esta é uma questão independente de fatores psicológicos: “A questão da
origem da religião não pode ser resolvida em última instância nem pelo psicólogo
nem pelo filósofo. A questão da origem da religião é uma questão de história”.285
Primeira Coríntios 15 nos lembra que se Jesus não ressuscitou dos mortos, então o
Cristianismo é simplesmente falso, não importa quanto conforto nos dê.

283
Alvin Plantinga defende esse ponto em Warranted Christian Belief.
284
Veja a discussão de Plantinga sobre esta e outras questões relacionadas a esta afirmação freudiana em
Warranted Christian Belief, 135-63.
285
R. C. Sproul, Se Deus Existe, Por Que Existem Ateus? (Minneapolis: Bethany Fellowship, 1978), 49.
139

Quarto, algo que traz conforto e consolo não deve ser rejeitado como inevita-
velmente falso. Por que algo que nos faz sentir seguros deve ser inerentemente
suspeito? A comida não nutre e conforta? Pertencer a uma família saudável não
traz segurança e consolo? Certamente tais anseios não tornam a comida ou a famí-
lia ruins ou ilegítimas. Esse tipo de argumento não faz o menor sentido.
Quinto, o fato de que os seres humanos são frequentemente “incuravelmente
religiosos” pode indicar um vazio divinamente colocado dentro de nós que pode
ser preenchido somente por Deus. Não poderíamos dizer legitimamente: “Tenho
um desejo por algum ser semelhante a Deus; portanto, este ser existe”. Por outro
lado, esse anseio pode ser uma indicação de que Deus existe, o que faz com que
valha a pena considerá-lo seriamente. Se fomos feitos para desfrutar de Deus e en-
contrar refúgio e segurança no relacionamento com ele, então a teoria de Freud de
que fabricamos uma figura paterna a partir da necessidade é inútil. Nosso senti-
mento de que precisamos de Deus foi colocado dentro de nós pelo próprio Deus.
Essa necessidade arraigada pode sugerir que Deus existe. Portanto, não devemos
nos surpreender que as pessoas sejam tão religiosas: elas realmente precisam de
Deus! O sociólogo Peter Berger diz que esses são os “sinais de transcendência”
que apontam para além de si mesmos, para uma realidade maior e mais elevada:
“O que aparece como uma projeção humana em um [quadro de referência] pode
aparecer como um reflexo de realidades divinas em outro”.286 Esse anseio - em
conjunto com as evidências da existência de Deus mencionadas na introdução -
sugere um poderoso contra-argumento à psicanálise do teísta pelo ateu.
Portanto, embora alguns possam se gabar de serem autossuficientes e afirmar
que não precisam de Deus, essa atitude é tola e inapropriada se Deus existe, nos
sustenta em ser e deseja que nos relacionemos amorosamente com ele. O filósofo
Blaise Pascal falou sobre sermos criados com um vácuo em forma de Deus. Ele
ecoou a “confissão” de crença inicial de Agostinho: “Tu nos fizeste para ti, ó Deus,
e nossos corações estão inquietos até que encontrem descanso em ti”. Embora a
diversidade religiosa obviamente exista (e já tratei dessa questão em outro lu-
gar),287 todos esses anseios religiosos nos lembram que temos um vazio profundo
que clama para ser preenchido.
Sexto, inventar uma figura paterna reconfortante é exclusivo do cristianismo.
Os estudiosos do Novo Testamento observaram que Jesus se destacou em seus dias
ao apresentar Deus como Abba - o Pai pessoal de alguém.288 No tempo de Jesus,
286
Peter Berger, Um Rumor de Anjos, 2ª ed. (New York: Doubleday, 1990), 51. “Se as projeções religio-
sas do homem correspondem a uma realidade que é sobre-humana e sobrenatural, então parece lógico
procurar traços dessa realidade no próprio projetor” (52).
287
Veja meu “Verdadeiro para você, mas não para mim”, partes 3–5.
288
James D. G. Dunn escreve: “Se [abba] fosse um idioma de oração comum de (alguns) judeus na época
de Jesus, não teria esse significado de vincular aquele que disse abba tão distinta e diretamente com a fi-
liação de Jesus. . . . Permanece a probabilidade de que Jesus tenha sido destacado entre seus companhei-
140

Abba era um título para o pai, usado tanto por crianças quanto por adultos. 289 Uma
vez que a tendência dentro do judaísmo do primeiro século era ver Deus como o
Soberano Senhor (e talvez o Pai de Israel),290 o título Abba poderia ter sido visto
como algo familiar e desrespeitoso.291
Se esta dimensão única, pessoal e paternal de Deus é evidente quando se con-
trasta o movimento cristão com o judaísmo do tempo de Jesus, é ainda mais evi-
dente quando se olha para as crenças de outras religiões. Por exemplo, embora Alá
(o Deus do Islã) seja chamado de “mais gracioso [rahman]” e “mais misericordio-
so [rahim]”,292 ele não pode ser chamado de “Pai”. Ele deve ser adorado e temido,
em vez de conhecido e amado pessoalmente. Quando a ex-muçulmana Bilquis
Sheikh soube sobre Jesus, ela clamou a Deus: “Meu Pai!” Nesse ponto, ela disse:
“De repente, a sala não estava mais vazia. Ele estava lá. Eu podia sentir sua Pre-
sença.”293 Esta mulher encontrou algo que o Islã não poderia oferecer - um senso
de intimidade com Deus e a certeza do perdão.
Em religiões como o hinduísmo ou o budismo, a Realidade Suprema costuma
ser abstrata e impessoal, uma espécie de consciência pura ou mesmo um vazio ou
nada. Em tal cenário, a Realidade Suprema não pode mostrar nenhuma preocupa-
ção conosco e não pode oferecer nenhuma segurança genuína. Na verdade, de
acordo com essas religiões, nosso resultado final é a extinção pessoal e a perda da
identidade. Mas se Freud está certo, por que outras religiões não enfatizam a pa-

ros judeus pelo menos no fato de que abba era sua forma característica e regular de dirigir-se a Deus em
oração” (“Prayer”, em Dictionary of Jesus and the Gospels, ed. I. Howard Marshall e outros [Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1992], 619). Em conjunto com isso, veja James Barr, “Abba Isn’t
Daddy,” Journal of Theological Studies 39 (1988): 28–47. Barr observa que, embora abba fosse um ter-
mo usado nos dias de Jesus pelos filhos de seus pais para denotar calor filial, “papai” é uma tradução ina-
dequada, uma vez que abba era usado pelos judeus por seus pais ao longo de suas vidas, não apenas co-
mo filhos.
289
Embora James Barr aponte que abba não era usado apenas por crianças (ver “Abba Isn’t Daddy”, pp.
28–47). O fato de haver uma conexão tão estreita entre Jesus e o uso de abba indica algo bastante signifi-
cativo e distinto.
290
No Antigo Testamento, Deus às vezes é visto como Pai, mas apenas em um sentido coletivo (ou seja,
como o Pai de Israel), não pessoal (por exemplo, Êxodo 4:22; Deuteronômio 32:5; Isaías 63: 15–16; 64:8;
Jer. 31:9, 20; Mal. 1:6; 2:10). A única exceção a isso é quando se diz que o rei tem um relacionamento
pessoal com Deus como seu pai (2 Sam. 7:14; Salmos 89:28). O estudioso do Novo Testamento, Joachim
Jeremias, observa, talvez ao ponto de exagerar: “Ainda não há evidência na literatura do antigo judaísmo
palestino de que ‘meu pai’ seja usado como um endereço pessoal a Deus”. Veja The Prayers of Jesus
(Philadelphia: Fortress Press, 1978), 21. No entanto, há indícios de que alguma intimidade com Deus co-
mo Pai foi expressa na literatura judaica relevante. Sabedoria 14:3 afirma: “Mas é a tua providência, ó
Pai, que é o piloto [de um navio], pois tu lhe deste um caminho através do mar; (ver também Sirach 23:1,
4; 51:10; 3 Macabeus 6:3, 8).
291
Jeremias, Prayers of Jesus, 62.
292
Essas descrições são encontradas no Fatiha (capítulo de abertura/Sura) do Alcorão (1:3).
293
Bilquis Sheikh, I Dared to Call Him Father (Waco: Word, 1978), 52.
141

ternidade ou o calor pessoal da Realidade Suprema?294 Ao contrário do que Freud


declarou, toda crença religiosa não termina inevitavelmente com um pai reconfor-
tante, como no cristianismo. Assim, a afirmação de Freud é imprecisa e simples-
mente não se aplica a todas as religiões.
Por outro lado, o Deus cristão não é apenas um Pai amoroso; ele também é um
juiz santo que pune com justiça o pecado. Ódio racial, assassinato ou tortura não
são ignorados levianamente por um Deus que diz ao perpetrador: “Tudo bem. Cor-
ra agora. E quando os santos dos tempos bíblicos encontraram Deus, eles - em ter-
ror e temor - caíram como mortos, tendo sido atingidos pela majestade e pureza de
Deus. Tal retrato da santidade divina não combina bem com um Deus “manso” e
domesticado que nada mais é do que um Pai amoroso.
Sétimo, o argumento da figura paterna pode ser invertido e usado contra o cé-
tico: “Você rejeita Deus porque não quer um Pai celestial em sua vida”. É inte-
ressante que, embora os ateus e céticos muitas vezes psicanalisem o crente religio-
so, eles regularmente falham em psicanalisar sua própria rejeição a Deus. Por que
os crentes estão sujeitos a tal escrutínio e não os ateus?
Como vimos, a psicologização da crença religiosa comete a falácia genética
(considerar uma visão verdadeira ou falsa com base em sua origem). É falacioso
porque não chega realmente ao ponto em questão. Este argumento não lida com a
verdade ou falsidade da afirmação (“Deus existe”); em vez disso, traz à tona algo
negativo sobre o “afirmador”.
O psicólogo da Universidade de Nova York, Paul Vitz, diz essencialmente:
“Vamos aplicar esse pensamento (reconhecidamente) falacioso a muitos ateus e
céticos obstinados do passado. O que eles têm em comum?" O resultado é bastante
interessante: muitas dessas figuras não tiveram uma figura paterna significativa em
suas vidas.295 Vejamos alguns deles.

• Voltaire (1694–1778): Este crítico mordaz da religião, embora não fosse


ateu, rejeitou veementemente seu pai e rejeitou seu nome de nascimento,
François-Marie Arouet.
• David Hume (1711–1776): O pai desse cético escocês morreu quando David
tinha apenas dois anos de idade. Os biógrafos de Hume não mencionam pa-
rentes ou amigos da família que possam ter servido como figuras paternas.
• Sigmund Freud (1856–1939): Seu pai, Jacob, era passivo e fraco e uma
grande decepção. Freud também mencionou que seu pai era um pervertido
sexual e que seus filhos sofriam por isso.

294
Vitz, Faith of the Fatherless, 7.
295
Paul C. Vitz, “The Psychology of Atheism”, Truth 1 (1985): 29–36. Ver também Faith of the Father-
less, de Vitz, 17–57.
142

• Karl Marx (1818–1883): o pai de Marx, um judeu, tornou-se luterano sob


pressão, não por convicção religiosa. Karl, portanto, não respeitava seu pai.
• Ludwig Feuerbach (1804–1872): Quando Ludwig tinha treze anos, seu pai
deixou a família e foi morar com outra mulher em uma cidade diferente.
• Barão d'Holbach (1723–1789): Este ateu francês ficou órfão aos treze anos e
viveu com seu tio.
• Bertrand Russell (1872–1970): Seu pai morreu quando Bertrand tinha quatro
anos.
• Albert Camus (1913–1960): Albert tinha um ano de idade quando seu pai
morreu.
• Friedrich Nietzsche (1844–1900): Ele tinha quatro anos quando perdeu o
pai.
• Jean-Paul Sartre (1905–1980): O pai do famoso existencialista morreu antes
de Jean-Paul nascer.296

Além disso, o estudo de Vitz observa que muitos teístas proeminentes – como
Blaise Pascal, G. K. Chesterton, Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer – tinham em
comum um pai amoroso e atencioso.297
Portanto, se esse argumento da figura paterna cética fosse bom (e não é), o cris-
tão poderia responder virando o argumento de cabeça para baixo: A rejeição de
Deus nesse ateísmo obstinado surgiu porque esses notáveis ateus não tinham pai
terreno quem eles viam ou podiam confiar e respeitar; portanto, eles rejeitaram a
Deus porque não tinham uma figura paterna positiva da qual depender. Não estou
dizendo que os teístas devem oferecer argumentos ruins em resposta a argumentos
ruins. Mas obviamente a espada corta nos dois sentidos.
Dito isto, fatores psicológicos (como lembranças saudáveis ou dolorosas da in-
fância) podem de fato influenciar como uma pessoa passa a acreditar ou desacredi-
tar, lembra Vitz. Tais fatores não são irrelevantes e precisam ser totalmente apreci-
ados. Todos nós trazemos problemas de fundo conosco quando nos deparamos
com a religião. Às vezes, esses fatores podem realmente diminuir ou minar seria-
mente a capacidade de confiar no Ser que é a figura paterna definitiva. Talvez de
alguma forma, Deus esteja sendo culpado por circunstâncias pessoais negativas.
Não estou dizendo que as circunstâncias negativas da infância levam inevita-
velmente à rejeição de Deus — assim como as circunstâncias positivas não garan-
tem que alguém acreditará em Deus. No entanto, as circunstâncias familiares nega-

296
Sartre aparentemente se tornou um crente em Deus antes de morrer, no entanto. Ver National Review
(11 de junho de 1982): 677.
297
Veja Vitz, Faith of the Fatherless.
143

tivas (que podem nos tornar melhores ou amargos) pod em ser distorcidas em um
motivo para culpar a Deus e se afastar dele.
Talvez esse cenário trágico seja melhor ilustrado por Madalyn Murray O'Hair
(1919-1999), fundadora dos American Atheists. Ela odiava tanto o pai que até ten-
tou matá-lo com uma faca de açougueiro de dez polegadas. Quando ela falhou em
fazê-lo, ela gritou: “Vou ver você morto. ainda vou te pegar. Eu andarei sobre o
seu túmulo.298 Embora ela tenha sido assassinada, seu diário foi recuperado. Ela
fez uma confissão sobre seus próprios fracassos na vida: “Eu falhei no casamento,
na maternidade, como política.” O mais relevante é que ela anotou em seu diário
pelo menos meia dúzia de vezes: “Alguém, em algum lugar, me ame”.299 A ironia
comovente é que ela dedicou sua vida a lutar contra o Deus que realmente a ama-
va.
Portanto, para aqueles que veem a crença em Deus como uma muleta, podemos
dizer: “Pegue sua muleta e ande!” Não fomos projetados para a autossuficiência,
mas para a suficiência de Deus. Como C. S. Lewis descobriu, nossos desejos terre-
nos ficam insatisfeitos ou simplesmente atormentam – “promessas nunca totalmen-
te cumpridas” – porque fomos feitos para Deus: “Sua alma tem uma forma curiosa
porque é um oco feito para caber em um inchaço particular nos contornos infinitos.
da substância divina”.300 Aquele “algo” que cada um de nós procura é o Deus que
nos procura.

RESUMO

• A “análise” da crença religiosa de Sigmund Freud foi baseada em sua opini-


ão e não tinha nenhuma evidência clínica para apoiá-la.
• Esse argumento da figura paterna comete a falácia genética — basear a ver-
dade ou falsidade de uma crença em sua origem. Embora alguém possa
acreditar em Deus pelas razões erradas, isso não prova a inexistência de
Deus. Essa é uma questão separada.
• A alegação de Richard Dawkins de que a crença religiosa deriva de um vírus
genético é inconsistente com sua visão de mundo ateísta “científica”: ele
pressupõe uma espécie de projeto de como devemos funcionar, em vez de
simplesmente fornecer uma descrição de como funcionamos. Este não é o
domínio da ciência.
• O segundo problema com a afirmação de Dawkins é o seguinte: se crentes
religiosos e não religiosos nada mais são do que produtos da genética, como
298
Veja o livro de seu filho William J. Murray, My Life without God (Nashville: Nelson, 1982), 8.
299
Parte disso está resumido em Art Moore, “Madalyn Murray O’Hair’s Stepchildren Seek Atheist Revi-
val,” Christianity Today, 1 de março de 1999.
300
Lewis, The Problem of Pain, 147.
144

chegamos a saber disso racionalmente e por que deveríamos pensar que


crentes religiosos (e, nesse caso, pessoas não religiosas) podem ser respon-
sabilizados por suas crenças?
• Devemos distinguir a psicologia da crença (como chegamos a acreditar) da
racionalidade da crença (que lida com a base adequada para a crença).
• Por que uma crença que traz conforto e alívio deve ser considerada inevita-
velmente falsa? Encontramos conforto nos relacionamentos, mas nem por is-
so são ilegítimos.
• O fato de que os humanos tendem a ser profundamente religiosos pode refle-
tir que fomos feitos para um relacionamento com Deus.
• Muitas religiões do mundo (como as religiões orientais ou o islamismo) não
têm uma figura paterna reconfortante. O argumento de Freud, portanto, não
é universalmente aplicável.
• Este argumento cético pode ser invertido: talvez os ateus não queiram uma
figura paterna em suas vidas.
• O histórico de alguém pode dificultar a confiança em Deus, especialmente
quando as pessoas mais próximas dessa pessoa não são dignas de confiança
ou não estão mais presentes. A segurança da comunidade cristã pode ajudar
a restaurar a capacidade de confiar em Deus.
145
146

PARTE 3

Desafios Relacionados
Ao Cristianismo
147

COMO DEUS PODE SER TRÊS E UM?

U
m folheto unitário301 anônimo de 1687 afirmava que a doutrina da Trin-
dade era absurda e ilógica:

Você acrescenta ainda mais absurdamente, que existem três pessoas que são separadamente e
cada uma delas é Deus verdadeiro, e ainda assim há apenas um Deus: este é um erro na con-
tagem ou numeração [sic]; que, quando colocado, é de todos os outros o mais brutal e indes-
culpável; e não discernir isso não é ser homem.302

Trezentos anos depois, um panfleto mal pesquisado foi publicado pela Sociedade
Torre de Vigia de Bíblias e Tratados (das Testemunhas de Jeová) intitulado Você
Deveria Acreditar na Trindade? A publicação declara: “Adorar a Deus em seus
termos significa rejeitar a doutrina da Trindade”.303
Quando solicitados a explicar a doutrina da Trindade, alguns cristãos levantam
as mãos e exclamam: “É um mistério”, sem nunca tentar entender essa doutrina
crítica e gloriosa. Já ouvi cristãos obscurecerem a distinção entre o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Alguns dizem em suas orações: “Pai, obrigado por morrer na cruz”.
(O Pai não morreu na cruz; o Filho, Jesus Cristo, morreu.) Alguns cristãos conside-
ram o Espírito Santo como um “Isso”, uma força poderosa de Deus, em vez de
uma pessoa que tem a própria natureza de Deus.
Nossa adoração a Deus é interrompida se nossa compreensão de Deus for pro-
fundamente falha. Em João 4:23, Jesus disse que devemos adorar a Deus “em espí-
rito” e “em verdade”. Permanecer no erro fundamental a respeito de um dos prin-
cipais distintivos da fé cristã é desonrar a Deus. (Por outro lado, intelectualizar
nossa fé também não é virtude.)
Como podemos entender a ideia básica da Trindade sem cair no erro e na con-
tradição? Como o cristão deve responder ao unitarista que o acusa de acreditar em
bobagens incoerentes? Deixe-me apresentar alguns conceitos importantes para
ajudar a esclarecer pontos que muitas vezes são confusos e mal compreendidos.

301
Unitaristas afirmam que existe um Deus e negam a divindade de Jesus Cristo e do Espírito Santo.
302
Citado em Keith Yandell, “The Most Brutal and Indescusable Error in Counting? Trinity and Consis-
tency,” Religious Studies 30 (1994): 201 (ênfase no original).
303
Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, Você Deve Acreditar na Trindade? (Brooklyn, N.Y.:
Watchtower Bible and Tract Society, 1989), 31. Para uma resposta a este livreto, veja Robert Bowman,
Why You Should Believe in the Trinity: An Answer to Jehovah’s Witnesses (Grand Rapids: Baker, 1989).
148

Primeiro, a Bíblia afirma que há uma trindade em Deus, bem como uma unida-
de.304 A trindade de Deus é vista em textos como Mateus 28:19, onde Jesus ordena
a seus seguidores que vão e façam discípulos das nações, “batizando-os em nome
[não nomes] do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. No batismo de Jesus, o Pai e o
Espírito também estão presentes (Mt 3:16–17). A bênção de Paulo em 2 Coríntios
13:14 revela uma trindade sobre Deus: “Que a graça do Senhor Jesus Cristo, e o
amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vocês.”305 Exis-
tem três auto-distinções dentro da Divindade.
Por outro lado, a unicidade de Deus é vista em passagens como Deuteronômio
6:4: “O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor” e 1 Coríntios 8:4, 6: “Não há Deus
senão um. . . . Para nós há um só Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas e para
quem nós vivemos; e há um só Senhor, Jesus Cristo, por quem todas as coisas vie-
ram e por quem nós vivemos”.
Em segundo lugar, a trindade pertence às pessoas, enquanto a unidade pertence
à essência ou natureza. O que faz de você um ser humano e não um canguru ou um
javali? Embora bilhões de humanos vivam na Terra, todos nós temos uma e a
mesma natureza em comum. Não é nenhuma contradição dizer que sou uma das
muitas pessoas que possuem a mesma natureza que torna cada um de nós huma-
nos. Embora haja uma unidade mais profunda com Deus do que meramente possu-
ir a mesma natureza divina (que exploraremos abaixo), por ora essa importante
distinção entre pessoa e natureza ajuda a construir um argumento para a coerência
da doutrina da Trindade. Basicamente, os cristãos não sustentam que existem três
naturezas ou apenas uma pessoa na Divindade.306
A acusação de que os cristãos não sabem contar se deve à suposição (às vezes
infelizmente justificada) de que três e um se referem à mesma coisa. Por exemplo,
uma Testemunha de Jeová ou um muçulmano pode perguntar a um cristão: “Se Je-
sus era divino, a quem ele clamava quando disse na cruz: 'Meu Deus, meu Deus,
304
A propósito, a Igreja Ocidental (Católica/Protestante) enfatizou historicamente a unidade inquebrantá-
vel da natureza divina (enfatizando o Ser de Deus), enquanto a Igreja Oriental (Ortodoxa) enfatizou a dis-
tinção das três pessoas (enfatizando a personalidade). Embora Deus seja Triúno, parece que a própria Es-
critura começa com a ênfase primária na unicidade de Deus (o que favorece a ênfase da Igreja Ocidental).
No Antigo Testamento, Deuteronômio 6:4 enfatiza a unicidade de Deus nesta fórmula de credo: “Ouve, ó
Israel: O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR”. Esse tema da unidade é enfatizado novamente no
Novo Testamento em Marcos 12:29, 1 Coríntios 8:6 e Tiago 2:19 como a marca registrada da religião bí-
blica. Observe, no entanto, que em 1 Coríntios 8:6, que ecoa Deuteronômio 6:4, o Pai e o Filho (“um só
Senhor”) são reunidos como sendo ambos dignos de adoração. Obrigado a Paul Owen por seus comentá-
rios de um artigo não publicado sobre a unicidade e a trindade de Deus.
305
Veja também 1 Coríntios 12:4–6: “Ora, há variedades de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há varie-
dades de serviço, mas o mesmo Senhor [Jesus]. E há variedades de efeitos, mas o mesmo Deus [o Pai]
que opera todas as coisas em todas as pessoas” (NASB, ênfase adicionada).
306
O Credo Atanásio declara: “O Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus; e ainda não três
deuses, mas um Deus. Por outro lado, “Há um Pai, não três Pais, um Filho, não três Filhos, e um Espírito
Santo, não três Espíritos Santos”.
149

por que me abandonaste?'” O questionador. assume que se Jesus é Deus, nenhuma


outra pessoa pode possuir a natureza divina. Mas os cristãos simplesmente rejeitam
isso. De fato, um cristão poderia responder com esta pergunta: “Se o Pai é Deus, a
quem ele está falando quando diz ao Filho (em Heb. 1:8): 'Teu trono, ó Deus, dura-
rá para sempre' ?”
Terceiro, para ajudar a distinguir entre pessoa e natureza, devemos distinguir
entre o “é” da identidade e o “é” da descrição/predicação. Quando digo “Samuel
Langhorne Clemens é Mark Twain”, posso facilmente inverter esses nomes:
“Mark Twain é Samuel Langhorne Clemens”. Usar qualquer um dos nomes é refe-
rir-se à mesma pessoa; os nomes são intercambiáveis e, portanto, as pessoas são
idênticas. O é em cada uma dessas declarações indica a identidade: Mark
Twain=Samuel Langhorne Clemens (e vice-versa).
Vamos aplicar isso a Jesus. Dizer “Jesus é Deus” não é idêntico à afirmação
“Deus é Jesus”. Por que não? Porque Jesus não esgota o que significa falar de
Deus (ao contrário do exemplo de Mark Twain que acabamos de dar). Jesus e
Deus não são idênticos. Segundo a Bíblia, o Pai e o Espírito Santo são chamados
divinos, assim como Jesus. Quando dizemos “Jesus é Deus”, portanto, estamos
usando o é para descrever ou predicar, não identificar ou igualar. Jesus é Deus
porque possui uma natureza que apenas duas outras pessoas compartilham; portan-
to, não há apenas uma pessoa que pode ser chamada de Deus. Este é o erro que os
muçulmanos e as Testemunhas de Jeová costumam cometer sobre a teologia cristã.
Vimos que devemos fazer distinções entre as pessoas da Trindade e a única na-
tureza ou essência que compartilham. Novamente, a trindade pertence às pessoas e
a unidade pertence à natureza ou essência. Há apenas uma natureza divina, mas há
três pessoas que compartilham essa mesma natureza. Para Deus ser Deus, ele deve
possuir certas qualidades ou propriedades - ser onisciente, onipotente, onipotente e
assim por diante. Diz-se que três pessoas - e apenas três - possuem essa natureza
divina única e podem, portanto, ser chamadas de Deus. Além disso, essas três pes-
soas – cada centro de consciência, responsabilidade e atividade – são distintas
umas das outras (ou seja, Jesus não é o Pai, o Pai não é o Espírito Santo e o Espíri-
to não é Jesus). Simplesmente não há contradição lógica quando os cristãos dizem:
“Três pessoas e uma natureza divina”.
Quarto, os membros da Trindade estão profundamente inter-relacionados, ou
residem mutuamente uns nos outros (perichôrêsis), e assim têm uma unidade ne-
cessária e inquebrantável. Anteriormente, usamos o exemplo de várias pessoas
humanas possuindo a mesma natureza para explicar o conceito de unidade. Mas a
unicidade de Deus precisa de mais esclarecimentos. Embora os seres humanos
compartilhem a mesma natureza humana, eles existem separada e distintamente
uns dos outros. Os membros da Trindade, entretanto, estão inseparavelmente rela-
cionados.
150

Os teólogos gregos usaram o termo perichôrêsis (o equivalente latino é circu-


mincessão) para descrever as inter-relações necessárias da Trindade. Jesus falou
sobre estar “no” Pai e o Pai estar “dentro” dele para descrever seu relacionamento
único (João 10:38; 17:21; comparar 10:30). Há uma “permanência mútua” na Di-
vindade que é diferente das relações humanas, por mais próximas que sejam. A re-
lação de Pai, Filho e Espírito não é uma de pessoas distintas e diversas que por
acaso compartilham uma essência divina genérica (“Deusidade”) e, portanto, aca-
bam sendo agrupadas.307 Em vez disso, eles compartilham mutuamente, insepara-
velmente, a vida um do outro de maneira notável: “Pois na vida divina não há iso-
lamento, isolamento, sigilo, medo de ser transparente para o outro. Portanto, pode
haver um conhecimento profundo e penetrante do outro como outro, mas [também]
como co-outro, outro amado, companheiro”.308 Assim, enquanto as pessoas divi-
nas, Pai, Filho e Espírito Santo, cada um possui plenamente a mesma essência (ca-
da um pode ser chamado de Deus), eles compartilham uma vida comum, mutua-
mente habitada.
Pense em um triângulo (que necessariamente tem três ângulos). Não podemos
remover um dos ângulos e ainda ter um triângulo. Todos os três ângulos devem
coexistir. Da mesma forma, a relação pericorética entre Pai, Filho e Espírito existe
necessariamente. Não podemos remover uma pessoa desse relacionamento íntimo
e manter as outras duas intactas.309 Todos os três são necessários para que esse
amor interpenetrante e mutuamente residente exista.
Para entender melhor a profunda inter-relação entre as pessoas divinas, conside-
re a interação mútua da alma e do corpo. De acordo com o entendimento bíblico,
existe uma profunda unidade entre corpo e alma.310 O corpo continuamente “in-
forma” a alma assim como a alma faz com o corpo: Se estou preocupado em mi-
nha alma, então isso afeta meu estômago, fazendo-o revirar; se eu cortar meu bra-
ço, então minha alma deve fazer certos ajustes à luz dessa perda. 311 Assim, existe

307
Cornelius Plantinga, “The Threeness/Oneness Problem of the Trinity,” Calvin Theological Journal 23
(1988): 51; Cornelius Plantinga, “The Perfect Family,” Christianity Today 28, 4 de março de 1988, 27.
308
Plantinga, “A Família Perfeita”, 27.
309
Essa relação dentro da Trindade é o que os filósofos chamam de relação interna: se x perde sua relação
com y, então x deixa de existir. Essa relação é inseparável. Por outro lado, em uma relação externa (como
com, digamos, Sócrates e Platão), Sócrates poderia deixar de existir, mas isso não implicaria que Platão
também deveria deixar de existir. Além disso, as relações internas estão enraizadas na própria natureza do
que está sendo conectado e nada mais. Veja Gustav Bergmann, Realism (Madison: University of Wiscon-
sin Press, 1967), 54.
310
Para uma defesa do “dualismo de substância”, ver Moreland e Rae, Body and Soul; Charles Taliaferro,
Consciousness and the Mind of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1994); e John Cooper,
Corpo, Alma e Vida Eterna (Grand Rapids: Eerdmans, 1989).
311
Extraído de Charles Sherlock, The Doctrine of Humanity (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1996), 221.
151

uma habitação mútua e interdependência no relacionamento corpo-alma. Mesmo


que corpo e alma sejam substâncias separáveis,312 eles agem como um.
Quinto, porque os membros da Trindade compartilham a mesma essência e re-
sidem mutuamente uns nos outros, eles também agem como um em vez de isolados
um do outro. Tudo o que as três pessoas divinas fazem, elas fazem como uma só.
Deus age de acordo consigo mesmo.

• O Pai cria (Gênesis 1:1; 1 Coríntios 8:6) por seu Filho, a Palavra (João 1:3;
Colossenses 1:15–20) e por seu Espírito (Gênesis 1:2) .
• Deus se revela e redime a humanidade de modo trinitário: o Pai envia seu Fi-
lho pelo Espírito para ser concebido na Virgem Maria; Jesus faz a obra de
seu Pai (João 5:17) pelo poder do Espírito (Lucas 3:22; 4:18) em seu minis-
tério terreno; e o Pai ressuscita Jesus dentre os mortos (Atos 2:24) pelo po-
der do Espírito (Romanos 1:4).
• Deus cria um povo de forma trinitária: Pai, Filho e Espírito habitam no cren-
te (João 14:16, 18, 23; Romanos 8:9) — e consequentemente na comunidade
cristã. O Espírito é chamado de “o Espírito de Deus” [isto é, o Pai]) e “o Es-
pírito de Cristo” (Romanos 8:9). O Espírito nos revela a realidade e a pre-
sença de Deus/Cristo (João 14:18; 1 Coríntios 2:14–15) e nos capacita a
clamar: “Aba, Pai” (Rom. 8:15; Gal. 4). :6).

O fato de que o Pai, o Filho e o Espírito agem em acordo necessário (ao invés de
três pessoas independentes) reforça ainda mais sua unidade: “Os atos de Deus são
sempre os atos de cada membro da Trindade, um ou mais iniciando o processo e os
outros apoiando isso.313
Sexto, embora existam três vontades distintas dentro da Trindade, apenas uma
vontade é finalmente expressa, o que indica a profunda unidade da Divindade.
Dentro da Trindade, existem três pessoas distintas que são centros individuais de
consciência e vontade.314 Ao contrário das relações humanas ou politeísmo, em
que as vontades humanas ou de deuses e deusas315 podem potencialmente entrar
em conflito, há apenas harmonia necessária e unidade de vontade na Trindade.316

312
Por exemplo, a alma é separada do corpo no “estado intermediário” (2 Coríntios 5:1–9), mesmo que
este seja um estado anormal de coisas.
313
Richard Swinburne, “Poderia haver mais de um Deus?” Fé e Filosofia 5 (1988): 236.
314
Ibid., 235.
315
William Wainwright argumenta que não há três vontades criativas distintas em Deus, o que seria poli-
teísmo (“Monoteísmo,” em Racionalidade, Crença Religiosa e Compromisso, ed., R. Audi e W.
Wainwright [Ithaca, N.Y.: Cornell University Press , 1986], 310).
316
Embora pareça haver uma classificação ou graus de autoridade dentro da Divindade (por exemplo, o
Filho se submete ou faz a vontade do Pai), esta não é uma distinção de essência. Cada pessoa na Trindade
é igualmente divina: “No entanto, esta mesma superordenação e subordinação de vontades que distin-
152

Absolutamente nenhum conflito existe entre as pessoas da Trindade nesta, a mais


próxima das famílias. A unidade da divindade entre as três pessoas da Trindade
consiste, pelo menos em parte, nessa profunda harmonia da vontade.317
Existem, portanto, pelo menos quatro maneiras importantes pelas quais essas
três pessoas divinas compartilham a unidade:

• Eles compartilham a mesma essência ou natureza.


• Eles habitam mutuamente um no outro (perichôrêsis ou circunincessão). As
pessoas da Trindade estão necessariamente unidas em relação, ao contrário
de um grupo de humanos.
• Eles agem necessariamente em perfeita harmonia na criação, salvação e as-
sim por diante. É impossível para eles divergir um do outro em sua ação.
• Só se exprime uma vontade, ainda que cada pessoa da Trindade tenha a sua
própria vontade; é necessariamente o caso que não há divergência de vonta-
de na Trindade.

A doutrina cristã, portanto, não deve ser acusada de deficiência ou contradição ma-
temática. Os teólogos cristãos simplesmente tentaram passar dos dados das Escri-
turas, que afirmam que (1) existe um só Deus e que (2) três pessoas podem ser le-
gitimamente chamadas de Deus, para uma doutrina coerente e não contraditória
que afirma a unidade e a trindade.318
Em uma nota prática, ao falar com os muçulmanos sobre a doutrina da Trindade
ou da encarnação, devemos ter cuidado para evitar disputas e disputas doutrinárias.
Acho que esses tópicos acalorados são melhor abordados quando um muçulmano
está realmente buscando e não está adotando uma postura defensiva. Na verdade,

guem as três pessoas também as une. Pois, de fato, apenas uma vontade divina é expressa — a do Pai que
envia o Filho e que, com o Filho, envia o Paráclito” (Plantinga, “The Perfect Family”, p. 26, grifo do au-
tor).
317
Thomas Morris, The Logic of God Incarnate (Ithaca, N.Y.: Cornell, 1986), 215
318
Roger Nicole enfatiza corretamente o equilíbrio adequado dos três aspectos da Trindade: trindade,
unicidade e igualdade (“The Meaning of the Trinity”, em One God in Trinity, ed. Peter Toon e James D.
Spiceland [Westchester, Illinois: Cornerstone, 1980], 1–4).

• Se enfatizarmos demais a trindade, isso leva ao politeísmo ou triteísmo.


• Se enfatizarmos demais a unidade, isso nos levará a um modalismo no qual há apenas uma pes-
soa que se manifesta como Pai, Filho ou Espírito.
• Se rejeitarmos a igualdade, isso leva ao subordinacionismo (por exemplo, como a distinção das
Testemunhas de Jeová entre Jeová Deus e Jesus como “um deus”).

No cristianismo ortodoxo, (1) existe apenas um Deus; (2) este Deus existe eternamente em três pessoas
distintas (Pai, Filho, Espírito); (3) essas pessoas são totalmente iguais em toda perfeição divina; eles pos-
suem igualmente a plenitude da essência divina.
153

atrevo-me a dizer que muitos muçulmanos são cativados por Jesus pela primeira
vez quando o encontram pessoalmente ao ler os Evangelhos e ver a autêntica co-
munidade cristã antes de resolverem questões sobre a Trindade e a encarnação. Os
cristãos devem se concentrar em demonstrar o amor de Cristo aos muçulmanos no
contexto de um relacionamento pessoal e discernir um coração que busca antes de
abordar esses tópicos. Além disso, uma vez que um cristão começa a explorar as
profundezas da doutrina da Trindade, ele começa a ver quão ricos são os recursos
não apenas para dar respostas filosóficas a questões importantes. A doutrina da
Trindade pode nos informar e nos guiar em questões práticas como questões fami-
liares, eclesiais, sociais, políticas e ambientais.319 Ao invés de recuar na defesa da
Trindade, podemos apresentar esta doutrina como intelectualmente coerente, filo-
soficamente e apologeticamente frutífera, praticamente relevante e pessoalmente
transformadora.

RESUMO

• A Bíblia afirma tanto a trindade quanto a unidade de Deus. A trindade se re-


laciona com a personalidade, e a unidade se relaciona com a essência ou na-
tureza e com o inter-relacionamento mútuo dos membros da Trindade.
• Quando os cristãos afirmam: “Jesus é Deus”, o “é” é uma descrição ou pre-
dicação (isto é, Jesus tem a natureza divina/Deus, assim como o Pai e o Es-
pírito); o “é” não é de identidade (como “Mark Twain é Samuel Langhorne
Clemens”).
• Os membros da Trindade estão profundamente inter-relacionados e habitam
mutuamente uns nos outros (perichôrêsis) e, portanto, têm uma unidade ne-
cessária e inquebrantável. (Lembre-se da relação necessária dos três ângulos
de um triângulo. Se um ângulo for removido, o triângulo não existirá mais.
Observe também o relacionamento interno mútuo do corpo e da alma como
uma analogia dos relacionamentos intertrinitários.)
• Pelo fato de os membros da Trindade compartilharem a mesma essência e
residirem mutuamente uns nos outros, eles também agem como um, e não
isolados um do outro.
• Embora existam três vontades distintas dentro da Trindade, apenas uma von-
tade é expressa, o que indica a profunda unidade da Divindade.

319
Por exemplo, ver Colin E. Gunton, The One, the Three, and the Many: God, Creation, and the Culture
of Modernity (Cambridge: Cambridge University Press, 1993); David S. Cunningham, These Three Are
One: The Practice of Trinitarian Theology (Malden, Mass.: Blackwell, 1998); e Kevin D. Vanhoozer,
ed., The Trinity in a Pluralistic Age: Theological Essays on Culture and Religion (Grand Rapids: Eerd-
mans, 1997).
154

• A unidade da Trindade é evidente das seguintes maneiras: (1) As pessoas di-


vinas compartilham uma natureza; (2) eles habitam mutuamente um no ou-
tro; (3) eles agem em acordo necessariamente perfeito; (4) eles necessaria-
mente expressam uma vontade, embora cada membro da Trindade possua
sua própria vontade.
155
156

A IDEIA DE DEUS TORNAR-SE


HOMEM NÃO É INCOERENTE?

U
ma das minhas canções de Natal favoritas é “Hark, the Herald Angels
Sing!”, de Charles Wesley. Uma linha que considero profundamente
emocionante é: “Velada em carne, a Divindade vê! Salve a Deidade en-
carnada!” Os cristãos tradicionais acreditam que na pessoa de Jesus de Nazaré ha-
via e há duas naturezas: divina e humana. Como o Credo Atanasiano (cerca de 500
d.C.) coloca, Jesus é “Deus perfeito, homem perfeito subsistente de uma alma ra-
cional e carne humana”.320
Alguns críticos — como os muçulmanos — veem essa doutrina como uma con-
tradição absurda: Deus tem atributos ou propriedades muito diferentes dos seres
humanos. Por exemplo, Deus é onisciente, enquanto os humanos são bastante limi-
tados em seu conhecimento. Deus é todo-poderoso, mas os humanos — por mais
impressionantes que sejam em certos aspectos — são frágeis e fracos.
O filósofo da religião John Hick, que editou um livro intitulado O Mito do Deus
Encarnado,321 vê Jesus como nada mais do que um pregador itinerante que estava
“intensamente consciente da santa e amorosa presença de Deus”.322 Ele era “total-
mente humano”.323 Eventualmente, no entanto, o “culto de Jesus” se desenvolveu
no “culto do Cristo ressurreto, transfigurado e deificado”.324 O membro do Jesus
Seminar, Marcus Borg, afirma que, embora Jesus tenha sido o iniciador de um no-
vo movimento na Palestina do primeiro século, ele simplesmente não poderia ter
dito: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). ou, “Eu sou a luz do
mundo” (João 8:12). Tais declarações são o produto da comunidade cristã primiti-
va. Seres humanos psicologicamente sãos, afirma Borg, simplesmente não fazem

320
O Concílio de Calcedônia (451 d.C.) declarou que Jesus Cristo é “verdadeiramente Deus e verdadei-
ramente homem, o mesmo de alma e corpo racionais; consubstancial com o Pai na Divindade, e o mesmo
consubstancial conosco na masculinidade, como nós em todas as coisas, exceto no pecado. . . reconheci-
dos em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”. O Catecismo de Wes-
tminster afirma que “o Senhor Jesus Cristo, que, sendo o eterno Filho de Deus, tornou-se homem, e assim
foi, e continua a ser, Deus e homem, em duas naturezas distintas, e uma Pessoa, para sempre” (Q21). .
321
John Hick, ed., O Mito de Deus Encarnado (Filadélfia: Westminster, 1977).
322
John Hick, A Quinta Dimensão: Uma Exploração do Reino Espiritual (Oxford: One World, 1999),
234.
323
Ibid., 235.
324
Ibid., 236.
157

tais afirmações: “Temos categorias de diagnóstico psicológico para pessoas que fa-
lam assim sobre si mesmas”.325 (Claro, a questão permanece: por que os primeiros
cristãos proclamariam um Jesus psicologicamente desafiado, uma tática que funci-
onaria apenas em detrimento de sua mensagem?)
A doutrina da encarnação – Deus tornando-se homem – é uma doutrina lógica?
Ou os cristãos devem recorrer a erguer as mãos e dizer: “Parece contraditório, mas
é verdade”? Como Deus pôde se tornar um homem certamente é um mistério, e
não devemos diminuir a maravilha dessa verdade (1 Timóteo 3:16). Acredito, po-
rém, que essa doutrina é lógica e não autocontraditória (o que a tornaria falsa). Es-
te capítulo analisa algumas das evidências bíblicas para a encarnação e, em segui-
da, procura mostrar que Jesus, o Deus-homem, não é um conceito contraditório.
Primeiro, a evidência bíblica para a encarnação é forte.326 Por exemplo, os
“anjos de Deus” (Lucas 12:8–9) também são chamados de anjos de Jesus (Mateus
13:41: “seus anjos”). Jesus afirmou perdoar pecados, o que os judeus da época de
Jesus consideravam ser uma prerrogativa exclusiva de Deus (Marcos 2:5, 7). Jesus
deslocou o templo como necessário para o perdão dos pecados. Jesus afirmou que
ele era o juiz do mundo (Mateus 25:31–46; compare 2 Coríntios 5:10), embora o
Antigo Testamento declare que Deus (Yahweh) é o juiz do mundo (Gênesis 18).
:25; Joel 3:12). Em João 10:33, os judeus querem apedrejar Jesus e declaram o mo-
tivo: “Não estamos apedrejando você por nenhum desses [milagres] . . . mas por
blasfêmia, porque tu, mero homem, afirmas ser Deus” (João 10:33).327 João co-
menta que ao chamar Deus de Pai, Jesus estava “se fazendo igual a Deus” (João
5:18).

325
Em Marcus J. Borg e N. T. Wright, The Meaning of Jesus: Two Visions (San Francisco: HarperSan-
Francisco, 1999), 149.
326
Para uma defesa adicional da divindade e singularidade de Jesus, veja meu livro anterior, “True for
You, but Not for Me”, 91–121.
327
Observe que aqui Jesus não nega isso - uma diferença marcante dos anjos, que rejeitam vigorosamente
qualquer indício de adoração (Ap 19:10; 22:8–9; por outro lado, Deus e o Cordeiro [Jesus] aceitam tal
adoração. em Apocalipse 5:11–14). Em vez disso, Jesus cita o Salmo 82:6, onde os governantes perversos
são chamados de “Deus”, pois eles, como líderes, devem representar Deus para o povo, uma tradução tí-
pica do Antigo Testamento (por exemplo, Êxodo 21:5–6: “. . . seu mestre o levará a Deus [um juiz] . . .
”[NASB]). Jesus está dizendo, na verdade: “Se esses seres humanos/governantes pecadores são chamados
de ‘deus’, quanto mais devo ser considerado o Filho de Deus?” Em Mateus 26:64, Jesus confessa que é o
Filho de Deus (“Sim, é como você diz”). Se Jesus não fosse Deus, ele teria a oportunidade perfeita para
corrigir o mal-entendido.
Além disso, depois que Jesus afirmou existir antes de Abraão (“Antes que Abraão existisse, eu sou”),
os judeus pegaram pedras para atirar nele por blasfêmia — caluniar ou humilhar a Deus (João 8:59). Je-
sus havia acabado de afirmar ser “um” com o Pai. As Testemunhas de Jeová afirmam que Jesus estava
apenas afirmando sua unidade em propósito e vontade com o Pai, não em igualdade de natureza. Mas por
que os judeus pegariam pedras para atirar em Jesus se ele estivesse apenas afirmando ser um em propósi-
to e perspectiva como Deus, o que deveria ser verdade para cada um de nós?
158

No Novo Testamento, Jesus é explicitamente chamado de Deus - um fato notá-


vel, visto que judeus ferozmente monoteístas o escreveram.328 Jesus recebeu ora-
ções (Atos 7:59–60; 2 Coríntios 12:8–9), que também era um papel reservado para
Deus. A oração aramaica329, Maranatha (que significa: “Nosso Senhor, vem!”), em
1 Coríntios 16:22 revela que muito cedo na comunidade cristã (por volta do início
dos anos 50 d.C., quando 1 Coríntios foi escrita), Jesus seguidores o viam como o
ouvinte e respondedor de orações.
Muitas disputas ocorreram nas primeiras comunidades cristãs sobre quais ali-
mentos comer, o lugar da circuncisão, os dons espirituais e o lugar da lei de Moi-
sés. O que é notável é que em todo o Novo Testamento (escrito principalmente por
judeus monoteístas) - sejam os Evangelhos ou as cartas (epístolas) - não há absolu-
tamente nenhuma disputa a respeito do status divino elevado de Jesus. Não há con-
trovérsia sobre se Jesus é “Senhor de todos”. Paulo, de fato, declara claramente em
1 Coríntios 8:6 que Jesus é o “único Senhor” (e, portanto, o Criador) – um título
reservado para Javé no Antigo Testamento (Deuteronômio 6:4–6).
Isso nos leva a um ponto importante: os estudiosos liberais geralmente colocam
uma data muito posterior nos Evangelhos (depois de 70-80 d.C.), alegando que
eles são puramente “folhetos evangelísticos” que são “tendenciosos” e “teologica-
mente motivados”. Mesmo que isso fosse verdade,330 no entanto, o que esses estu-
diosos ignoram regularmente é que as epístolas foram escritas muito antes (algu-
mas menos de vinte anos após a crucificação de Jesus), e essas epístolas contêm
referências claras ao status divinamente exaltado de Jesus. Além disso, essas epís-
tolas (como Tessalonicenses e Coríntios) são (1) as primeiras fontes de informação
sobre Jesus e (2) referem-se à supremacia de Jesus apenas incidentalmente. Esses
escritos tratam de questões e circunstâncias específicas dentro de igrejas particula-
res e assumem uma alta cristologia em vez de tentar prová-la. O historiador Paul
Barnett enfatiza este ponto: “As cartas são, historicamente falando, um ponto de
entrada preferido nos estudos de Jesus”.331
Um ponto final é que os escritores do Novo Testamento veem Jesus como es-
tando no lugar de Javé/Jeová. As citações do Antigo Testamento que usam a pala-

328
Ver João 1:1, 18; 20:28; Atos 20:28; Romanos 9:5; Tito 2:13; Hebreus 1:8; 2 Pedro 1:1; 1 João 5:20.
Para comentários sobre essas passagens, ver Murray J. Harris, Jesus as God: The New Testament Use of
Theos in Reference to Jesus (Grand Rapids: Baker, 1992).
329
O aramaico era um dialeto hebraico falado na época de Jesus. Esse aramaísmo revela que os gentios
coríntios não corromperam a crença da igreja de Jerusalém sobre Jesus, mas seguiram sua liderança ao
defender a divindade de Jesus.
330
Discuto e documento as razões para uma datação anterior dos Evangelhos e também para considerar a
importância das epístolas em “True for You, but Not for Me”, 102–3.
331
Paul Barnett, Jesus and the Logic of History (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 40. Veja também seu
impressionante Jesus and the Rise of Early Christianity: A History of New Testament Times (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1999) .
159

vra Yahweh—traduzida como “Senhor” (kyrios) pelo Antigo Testamento grego, a


Septuaginta—são usadas no Novo Testamento em referência a Jesus.

Referências a Javé no Antigo Testa- Jesus como o Senhor no Novo Testa-


mento: mento:
Salm. 23:1: Jeová é o meu pastor. João 10:11: Jesus é o bom pastor
Isa. 6:1-5: Isaías vê a glória de Jeová no João 12:41: Isaías vê a glória de Jesus
templo. (referindo-se a Isaías 6:1).Jesus é o bom
pastor
Isa. 40:3: Um precursor prepara o ca- Mat. 3:3: Um precursor prepara o ca-
minho de Jeová. minho de Jesus.
Isa. 45:23: Todo joelho se dobrará a Fil. 2:10: Todo joelho se dobrará diante
Jeová. de Jesus.332
Joel 2:31-32: Invocar o nome de Jeová Atos 2:20-21/Rom. 10:13: Invocar o
traz salvação. nome de Jesus traz a salvação.

Em Isaías, o Senhor diz: “Eu sou o primeiro e eu sou o último; fora de mim não há
Deus” (44:6); "Eu sou ele; Eu sou o primeiro e eu sou o último” (48:12). Mas en-
tão, no Livro do Apocalipse do Novo Testamento, Deus Pai diz isso sobre si mes-
mo: “Eu sou o Alfa e o Ômega” (1:8); “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o
Fim” (21:6). No entanto, Jesus Cristo também aplica a si mesmo este título isaâni-
co para Javé: “Eu sou o Primeiro e o Último” (Ap 1:17; cp. 2:8); “Eu sou o Alfa e
o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (22:13). Usadas por Javé na
última parte de Isaías, essas frases essencialmente equivalentes — “Alfa e Ôme-
ga”, “primeiro e último” e “princípio e fim” — são reivindicadas tanto por Deus (o
Pai) quanto por Jesus. Assim, Jesus compartilha da própria identidade de Javé.
Em segundo lugar, a evidência das limitações e humanidade de Jesus também é
inconfundível. Jesus nasceu em Belém (Lucas 2:1–11). Ele cresceu e seu caráter se
desenvolveu (Lucas 2:52). Ele teve fome, sede e se cansou (Mateus 4:2; João 4:6;
19:28). Ele tinha um corpo humano (João 1:14; 1 João 1:1) e é chamado de “ho-

332
Quando lemos Filipenses 2:6–11, vemos que Paulo está olhando para Isaías 45:22–23; 52:13; 53;
57:15 (onde Deus é alto e sublime, mas habita com os contritos e humildes de espírito). Os temas de hu-
milhação e exaltação do Antigo Testamento são reunidos e coerentes no Novo Testamento. Paulo diz que
a carreira do Servo do Senhor - incluindo seu sofrimento, humilhação, morte e exaltação - é o caminho
pelo qual a soberania do único Deus verdadeiro passa a ser reconhecida por todas as nações. É na humi-
lhação do Servo que a grandeza de Deus se revela mais claramente ao mundo.
No Evangelho de João, estas palavras e temas são reunidos de tal maneira que o Servo é exaltado e
glorificado na e pela sua humilhação e sofrimento. As palavras para “levantar” (hypsoô) e “glorificar”
(doxazô), que se encontram em João 3:14–15; 8:28; 12:32–34, são retirados de Isaías 52:13 do Antigo
Testamento grego (Septuaginta) e aplicados a Jesus com relação às suas previsões de paixão/morte. João
oferece um duplo significado para a palavra “levantar”: é usada tanto literalmente (a crucificação eleva
alguém acima da terra [comp. 12:33]) quanto figurativamente (na humilhação da crucificação, notamos a
elevação simultânea de Jesus ao status de soberania divina sobre o cosmos. A cruz já é sua exaltação.).
Para mais detalhes sobre esses temas, veja Richard Bauckham, God Crucified: Monotheism and Christo-
logy in the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1998).
160

mem” em muitos lugares.333 Embora Jesus freqüentemente exibisse conhecimento


sobrenatural334 e fosse sem pecado,335 ele também não estava ciente de certas coi-
sas, como o dia de seu retorno (Marcos 13:32). Devido a essas limitações, alguns
teólogos sugeriram que Jesus deve ter desistido ou se “esvaziado” de certos atribu-
tos divinos (a visão kenótica).336 Essa crença é problemática e deve ser rejeitada
porque Deus possui atributos divinos, por exemplo, ser onisciente ou onipotente,
essencialmente; isto é, ele não pode perdê-los sem deixar de ser Deus.337
Terceiro, a doutrina da encarnação é importante para nossa salvação. Alguns
podem estar se perguntando: “Qual é o problema da doutrina da encarnação? Por
que é importante que Deus se tornou humano?” Essa foi a pergunta feita pelo teó-
logo medieval Anselmo de Canterbury (1033-1109). Em seu livro Por que Deus se
tornou homem (Cur Deus homo),338 ele argumentou que os humanos deviam a
Deus o que não podiam pagar. Como humanos, tínhamos que pagar para satisfazer
as justas exigências de Deus e sermos resgatados de nosso pecado e suas conse-
quências, mas não podíamos.339 Assim, Deus, o Filho, voluntária e livremente, as-
sumiu a forma humana para que ele, como humano, pudesse pagar o que devíamos
com um sacrifício (na cruz) - um sacrifício que somente Deus poderia fazer. Com
grande custo, Deus tornou-se como nós e absorveu o castigo de nossos erros para
que as justas exigências de Deus pudessem ser satisfeitas.340 Nós, humanos, pode-
mos agora ter um relacionamento com Deus nessa base. Assim, enquanto a essên-
cia do pecado é nosso desejo de nos tornarmos Deus, a essência da salvação é
Deus se tornando homem.341 É por isso que o Deus-homem era necessário para que

333
Atos 2:22; Romanos 5:15, 17, 19; 1 Coríntios 15:21, 47–49; 1 Timóteo 2:5; 3:16; 1 João 4:2–3.
334
Conhecer os pensamentos das pessoas (Lucas 6:8; 9:47); a vida privada da mulher samaritana (João
4:18); o personagem de Natanael (João 1:47–48); os detalhes de várias circunstâncias (Mt 26:25, 34).
335
João 6:69: “o Santo de Deus”; 2 Coríntios 5:21: ele “não tinha pecado”; Hebreus 4:15: “estava sem
pecado”; 7:26: “irrepreensível, puro”; 9:14: “sem mácula”; 1 João 3:5: “nele não há pecado”; cp. 1 Pedro
2:22). O próprio Cristo reconheceu sua perfeita obediência ao Pai (João 8:29; 15:10).
336
Isso vem da palavra grega kenos (“vazio”) e seu verbo cognato kenoô (“esvaziar”). Cp. Filipenses 2:7,
onde Jesus “se esvazia”. Para uma discussão excelente, veja Paul D. Feinberg, “The Kenosis and Christo-
logy: An Exegetical-Theological Analysis of Philippians 2:6–11,” Trinity Journal NS 1 (primavera de
1980): 21–46. Ver também P. T. O’Brien, Commentary on Philippians, New International Greek Testa-
ment Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), 202–62.
337
No próximo capítulo, voltarei a esse ponto com mais detalhes.
338
Anselmo, Por que Deus se tornou homem: “O homem, o pecador, deve a Deus, por causa do pecado, o
que não pode pagar e, a menos que o pague, não pode ser salvo” (1.25).
339
Veja J. I. Packer, “What Did the Cross Achieve? The Logic of Penal Substitution,” Tyndale Bulletin
25 (1974): 3–45.
340
"[N]ão há ninguém . . . quem pode fazer essa satisfação, exceto o próprio Deus. . . . Mas ninguém deve
fazê-lo, exceto o homem; caso contrário, o homem não faz satisfação. [Portanto,] é necessário que aquele
que é Deus-homem o faça” (ibid., 2.6).
341
Veja a exposição de John Stott sobre este tema: The Cross of Christ (Downers Grove, Illinois: Inter-
Varsity Press, 1986), 87–163.
161

o perdão ocorresse; sem a encarnação, a salvação e o perdão tornam-se impossí-


veis. A Paixão de São Mateus de Johann Sebastian Bach ecoa este tema:

Quão incrível é este castigo:


O bom Pastor sofre pelas ovelhas!
A culpa do justo Mestre
paga por seus próprios servos!342

Quarto, devemos distinguir entre natureza e pessoa. O que nos torna humanos? O
que nos diferencia dos chimpanzés ou dos chapins? Nós, como humanos, todos
compartilhamos a mesma natureza ou essência. Observamos no último capítulo
que a natureza de uma coisa é o que a torna o que é — seja essa coisa um átomo ou
uma molécula,343 humano, animal, anjo ou Deus. Certas capacidades e característi-
cas, ou propriedades, tornam você e eu humanos e nos separam de entidades não
humanas (que têm suas próprias capacidades e características únicas). Se não ti-
véssemos essas propriedades, não existiríamos. Por possuirmos certas característi-
cas essenciais que nos tornam o que somos, pertencemos a uma determinada clas-
se. Da mesma forma, Deus é onisciente, onipotente e totalmente bom. Essas carac-
terísticas fazem dele o que ele é.
Quais são algumas das características e capacidades que nos tornam humanos?
Para começar, possuímos uma alma, espírito ou mente.344 Temos a capacidade de
comunicar em múltiplas línguas, de agir, de ser conscientes, de saber que 8+8=16.
[26] Estas (e muitas outras) são propriedades essenciais para o ser humano. Em to-
dos os mundos possíveis em que existam humanos (e os humanos não existem em
todos eles), os humanos teriam essas propriedades e capacidades.345
O que queremos dizer com pessoa? Para simplificar, uma pessoa pode ser en-
tendida como um centro de (auto)consciência, atividade e responsabilidade. Embo-
ra animais como garças-brancas ou pítons-reais sejam conscientes ou conscientes,
eles não são autoconscientes - isto é, conscientes de que estão conscientes. Embora
os animais – junto com os humanos – sejam ativos, os animais não têm a capaci-
dade de agência moral responsável. Se uma cobra-real ou mamba-negra morder e

342
Para uma discussão fascinante sobre a influência de Anselmo na Paixão de São Mateus de Bach, veja
Jaroslav Pelikan, Bach Among the Theologians (Philadelphia: Fortress Press, 1986), 89–101.
343
A água é H2O — dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Sem esses dois componentes você não
pode ter água. Mas o que acontece se a água do copo em que você está bebendo estiver suja? A sujeira
faz parte da essência da água? Não. A água pode existir sem sujeira, mas não pode existir sem hidrogênio
ou oxigênio.
344
Tecnicamente falando, a mente é a faculdade/aspecto de raciocínio da alma. Para uma discussão mais
completa, veja Moreland e Rae, Body and Soul.
345
Alvin Plantinga, “Essence and Essentialism”, em A Companion to Metaphysics, ed. Jaegwon Kim e
Ernest Sosa (Malden, Mass.: Blackwell, 1995), 138. Sobre essências e essencialismo, ver Plantinga, The
Nature of Necessity.
162

matar um ser humano, não consideramos a cobra moralmente responsável por suas
ações. Portanto, não pode ser chamado de assassino. As pessoas também têm uma
dignidade intrínseca; sua personalidade lhes confere dignidade. Eles não devem ser
tratados, portanto, como meros objetos ou meios para nossos próprios fins. Os se-
res humanos são pessoas, mas não são as únicas pessoas que existem. Também
podemos falar apropriadamente de pessoas divinas, como Pai, Filho e Espírito, ou
pessoas angélicas.
Qual é a relação entre pessoa e natureza? Uma pessoa tem uma natureza.346 Eu,
como pessoa, possuo algo que me torna o que sou. Você, como pessoa humana,
tem uma natureza humana, a mesma natureza que eu tenho. Somos duas pessoas
humanas compartilhando a mesma natureza humana. Jesus de Nazaré, no entanto,
é uma pessoa que tem duas naturezas. Uma dessas naturezas é idêntica à nossa na-
tureza humana; Jesus compartilhou nossa própria humanidade e se identificou co-
nosco. A outra natureza é divina. Jesus foi e é totalmente Deus e totalmente huma-
no.
Quinto, devemos discernir ainda mais entre o que realmente (ou necessaria-
mente) nos torna humanos (“totalmente” humanos) e o que é apenas comum (mas
não essencial) aos humanos (“meramente” humanos); isso nos permitirá entender
como Deus poderia se tornar humano sem contradição. O que você pensa quando
tenta descrever os seres humanos? Você pode estar pensando: “Os humanos têm
cabelos, olhos, braços e pernas. Eles vivem na terra; eles inevitavelmente erram
moralmente. Então eles eventualmente morrem.” Mas essas características são es-
senciais para ser humano? Essas características nos tornam o que somos de tal
forma que não podemos existir sem elas? Certamente não. Conhecemos pessoas
que tiveram seus braços e/ou pernas amputados. Recentemente ouvi a triste histó-
ria de uma criança que nasceu sem olhos. Esse defeito de nascença tornou a crian-
ça menos humana? Claro que não. Corpos em pleno funcionamento são comuns —
podem até ser universais — aos seres humanos, mas não são essenciais.347
E quanto a errar (“errar é humano”) ou morrer (“todos os homens são mor-
tais”)? De acordo com a Bíblia, Deus criou os seres humanos sem pecado, e um
dia o povo de Deus será novamente sem pecado. Ou seja, ainda possuiremos nossa

346
Observe que estamos falando especificamente de capacidades, não de funções, como resolver proble-
mas matemáticos intrincados ou ter um certo nível de racionalidade ou grau de habilidades sociais. Quer
a pessoa esteja dormindo ou, aliás, seja uma criança ainda no ventre da mãe, ela tem certas capacidades
que não estão sendo exercidas no momento. E mesmo as pessoas com deficiência mental ainda têm a ca-
pacidade de conhecer vários idiomas ou resolver problemas matemáticos, e essas capacidades poderiam
ser realizadas se certos problemas físicos não os bloqueassem.
347
Para mais informações sobre este tópico, veja Plantinga, Does God Have a Nature?
163

humanidade (o que é essencial para nós), mesmo que não pequemos.348 E a morte?
Lembra daquele pouco de lógica de Filosofia 101 dias?

Todos os homens são mortais.


Sócrates é um homem.
Portanto, Sócrates é mortal.

Embora a morte seja abrangente e pareça universal e sem exceções, a mortalidade


não é essencial para os humanos, embora seja generalizada. Afinal, o registro bí-
blico nos lembra que os profetas Enoque (Gn 5:24) e Elias (2 Reis 2:11) não expe-
rimentaram a morte. Além disso, os crentes que estiverem vivos na volta de Cristo
não verão a morte (1 Tessalonicenses 4:17). A morte não é essencial para os seres
humanos.349
Você pode estar se perguntando: “Qual é o objetivo dessas distinções?” Sim-
plesmente isto: o que normalmente supomos sobre a natureza humana não é ou
pode não ser, de fato, essencial para a natureza humana. Perceber esse fato pode
nos ajudar a ver a consistência lógica entre o divino e o humano em Cristo.
Isso nos leva ao ponto mais crucial sobre as duas naturezas de Jesus. Alguém
que é totalmente divino também pode ser totalmente humano sem contradição – se
distinguirmos entre características humanas “comuns” e características “essenci-
ais”. Ou seja, ainda que o ser humano nasça, se canse, tenha fome, sede e morra,
essas características não são essenciais à nossa existência. (Por exemplo, esses ti-
pos de limitações não serão o destino do povo de Deus nos novos céus e nova ter-
ra.).350 É possível que alguém possa ser um ser humano sem essas limitações. Por-
tanto, quando o Filho de Deus veio à terra na pessoa de Jesus de Nazaré, ele não se
tornou meramente humano - isto é, contingente, criado, sujeito ao pecado, não oni-
potente, não onipresente e assim por diante. Em vez disso, ele se tornou totalmente
ou essencialmente humano: ele possuía uma natureza humana com todas as suas
características e capacidades que realmente nos tornam o que somos. Em outras
palavras, o que é essencial à natureza humana não exclui a possibilidade de ser
plenamente divino.
Sexto, a imagem de Deus nos seres humanos é o que torna possível a encarna-
ção. Em um belo salmo da criação, o escritor diz que Deus fez o ser humano “um

348
Thomas V. Morris coloca desta forma: “Existem propriedades que são comuns aos membros de uma
espécie natural, e que podem até ser universais a todos os membros daquela espécie, sem serem essenci-
ais para pertencer à espécie” (Nossa Ideia de Deus, 164).
349
De acordo com as Escrituras, os seres humanos ainda têm a capacidade de existir em um “estado in-
termediário” (entre a vida terrena e o estado final) sem um corpo, mesmo que esse estado não seja ideal
para os crentes (2 Coríntios 5:1– 9). Portanto, possuir sempre um corpo não é necessário para sermos
humanos.
350
Apocalipse 21:4 afirma que não haverá mais lágrimas, morte ou dor.
164

pouco menor do que Deus” (Sl 8:5 NASB). Feitos à imagem de Deus (Gn 1:26-
27),351 compartilhamos certos atributos ou propriedades com Deus - relacionalida-
de, personalidade, racionalidade, moralidade, criatividade - mesmo que de forma
diminuída. Lemos no Novo Testamento que o próprio Jesus Cristo é a própria
imagem de Deus (2 Coríntios 4:4; Colossenses 1:15). Quando reunimos esses fios
da verdade bíblica, vemos que a imagem de Deus em nós torna possível a encarna-
ção. Porque? Porque certas características essenciais dos seres humanos — isto é,
aquelas propriedades que nos tornam essencialmente humanos — pertencem à ca-
tegoria mais ampla do que significa ser divino. A natureza humana é, portanto,
uma subcategoria do divino.

Atributos Divinos

Atributos humanos
essenciais

Todos nós já ouvimos o conto de fadas sobre o príncipe que é amaldiçoado e se


torna um sapo; parece que ele tem duas naturezas - naturezas que são verdadeira-
mente incompatíveis uma com a outra. Mas um homem-rã é muito diferente de um
homem-Deus.352 As capacidades e qualidades mentais do sapo e do príncipe são
tão radicalmente diferentes que tal união não poderia ocorrer.
No entanto, os atributos dos seres humanos até certo ponto se assemelham aos
de Deus (por exemplo, sua relacionalidade, sua capacidade de raciocinar, escolher
e agir como pessoas moralmente responsáveis); portanto, uma união divino-
humana é possível. O estudioso do Novo Testamento F. F. Bruce escreve apropri-
adamente: “É porque o homem na ordem criativa carrega a imagem de seu Criador
que foi possível para o Filho de Deus encarnar como homem e em Sua humanida-
de exibir a glória do Deus invisível.”353 Um teólogo colocou desta forma: “Se os

351
Parece que a característica predominante da imagem divina em Gênesis 1:26-27 é a relacionalidade,
mas isso não exclui os aspectos secundários de personalidade, racionalidade, moralidade, volição e afins.
Além disso, a imagem de Deus - embora diferencie os humanos dos animais como criações únicas (cf.
Salmo 8) - está sendo transformada na imagem de Cristo, que é a imagem de Deus (2 Coríntios 4:4). Ha-
verá uma realização escatológica da plenitude desta imagem.
352
John S. Feinberg, “A Encarnação de Jesus Cristo”, em In Defense of Miracles, ed. R. Douglas Geivett
e Gary R. Habermas (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1997), 238.
353
Em E. K. Simpson e F. F. Bruce, As Epístolas de Paulo aos Efésios e aos Colossenses, Novo Comen-
tário Internacional sobre o Novo Testamento (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), 194.
165

seres humanos são feitos à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26-27), deve ha-
ver algo divino sobre cada ser humano. Se, e este é o nosso caso, o Logos divino
pode assumir uma humanidade, deve haver algo de humano em Deus”.354 Em ou-
tras palavras, embora o humano e o divino sejam pólos opostos em termos de
grandeza, eles não são necessariamente mutuamente exclusivos. Embora os seres
humanos sejam em si mesmos limitados ou finitos, esta não é uma propriedade ne-
cessária ou essencial que nos torna humanos. Não precisamos ter essa característi-
ca para sermos humanos.355 Além da pessoa de Jesus, esta característica é comum
ou universal, mas isso não a torna necessária.
Sétimo, Jesus tinha duas consciências: uma era uma consciência humana ju-
daica do primeiro século em desenvolvimento, e a outra era eterna e divina. Ima-
gine um espião que está partindo para uma missão perigosa; em sua mente, ele car-
rega informações ultrassecretas que seriam valiosas para o inimigo. Para que ele
não divulgue segredos sucumbindo à tortura se for pego, esse espião recebe uma
pílula produtora de amnésia limitada, bem como um antídoto para uso posterior.356
O espião ainda possuiria as informações vitais em sua mente enquanto estivesse
sob a influência da pílula de amnésia, mas ele temporariamente e voluntariamente
não usaria o conhecimento ao qual ele normalmente tem acesso.
Da mesma forma, durante a missão de Jesus na Terra, ele tinha as capacidades
plenas e inalteradas de conhecimento e poder divinos e tinha acesso a essas capa-
cidades conforme necessário. Mas Jesus, em seu estado pré-encarnado, escolheu
voluntariamente limitar o uso desses poderes para cumprir sua missão geral. Ele
não perdeu certos atributos divinos; em vez disso, ele voluntariamente suprimiu ou
desistiu do acesso a eles por um tempo. Eles estavam latentes dentro dele. Como o

354
Gerald O'Collins, Christology (Oxford: Oxford University Press, 1995), 233. O'Collins cita o livro
Logic of God Incarnate, de Thomas V. Morris (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1986) como sendo
esse modelo. Outros endossantes do modelo de Thomas Morris (“duas mentes”) da encarnação são evan-
gélicos como Ronald Nash (Faith and Reason [Grand Rapids: Zondervan, 1988], 262); e John S. Fein-
berg (“A Encarnação de Jesus Cristo”, p. 239). Feinberg escreve: “Não vejo como Cristo poderia ser to-
talmente humano e totalmente divino e não ter duas mentes. Se ele não tem uma das duas mentes, ele não
é totalmente humano ou não é totalmente divino” (239). No entanto, por causa da confusão potencial que
pode advir do uso de “duas mentes” (que pode sugerir Nestorianismo – a ideia de que havia dois eus ou
egos em Jesus), falo de duas consciências ou percepções.
355
Aqui está uma pergunta relacionada: Jesus Cristo não foi criado ou não se tornou finito? Como pode
uma criatura ser Deus? Isso é incompatível. No entanto, o cristão nega que Deus, o Criador, tenha se tor-
nado uma criatura. Jesus não foi criado nem é finito. Em vez disso, Deus Filho assumiu uma natureza
humana e um corpo humano. (Embora a natureza humana e o corpo humano sejam criações de Deus e es-
tejam ligados a seres humanos finitos, o fato de que o Filho de Deus os assumiu não implica que ele tenha
se tornado uma criatura.) “Mas os seres humanos não são necessariamente criados ou necessariamente
criados? finito?" O cristão pode responder: “Nego que ser criado ou finito seja parte da essência do ser
humano. Caso contrário, como Deus poderia se tornar algo essencialmente contrário à sua natureza?”
(Thomas Senor, “A Encarnação e a Trindade”, em Reason for the Hope Within, 247).
356
Esta analogia é tirada de Morris, The Logic of God Incarnate, 91.
166

teólogo J. I. Packer expressa: “A impressão [nos Evangelhos] . . . não é tanto uma


de divindade reduzida, mas de capacidades divinas restringidas.357 Antes de vir à
Terra, a Segunda Pessoa da Trindade havia escolhido que “todos os seus poderes
intrínsecos, todos os seus atributos permaneceriam latentes dentro dele durante os
dias de sua carne”.358 É como um pai que não se esforça ao máximo em um jogo
contra seu filho. Ele deliberadamente se restringe de utilizar todos os seus poderes.
Você já teve a experiência de sair de um sonho e, ao mesmo tempo, continuar
sonhando, mas também estar consciente do fato de que é apenas um sonho e não é
realidade? Ou aceite o auto-engano. Por um lado, uma pessoa sabe o que é certo;
por outro, ele se convence conscientemente a ir contra a consciência que ecoa no
fundo de sua mente.359 Essas analogias dão alguma indicação de como dois níveis
de consciência podem trabalhar juntos e se sobrepor em uma pessoa. Obviamente,
essas analogias nos levam apenas até certo ponto, mas, dada a singularidade da en-
carnação, isso é de se esperar. Podemos, no entanto, basear-nos em tais analogias
para expressar o ponto.
Considere a dupla consciência que temos quando saímos de um sonho: em um
nível, estamos “dentro” do sonho e, em outro, estamos simultaneamente “fora” do
sonho. Isso não poderia ser uma analogia de como as consciências divina e huma-
na de Cristo trabalharam juntas? Podemos comparar os dois níveis de consciência
em um sonho (um subconsciente e outro consciente) com as duas consciências de
Jesus. Nossa percepção consciente se compara à percepção humana de Jesus, e
nosso subconsciente se compara à percepção divina de Jesus. Quando o Filho de
Deus assumiu a forma humana, a consciência divina não cessou, mas continuou
em sua dimensão distintamente eterna e divinamente consciente.360 Esta consciên-
cia divina de forma alguma foi - na verdade não poderia ter sido - interrompida na

357
J. I. Packer, Conhecendo Deus (Londres: Hodder & Stoughton, 1973), 63.
358
Gerald Hawthorne, A Presença e o Poder (Dallas: Word, 1991), 218.
359
Fraqueza de vontade (akrasia) ou múltiplas personalidades também podem servir como analogias para
este ponto.
360
Gerald O'Collins fala de "uma clara distinção entre suas duas consciências" - a saber, sua "consciência
humana real (que ele tinha individualmente como homem) não foi substituída nem interferiu com sua
consciência divina (que como Logos ele compartilhou /compartilha com o Pai e o Espírito)” (Interpreting
Jesus [Ramsey, N.J.: Paulist Press, 1983], 190).
Thomas Morris acrescenta:

As duas mentes de Cristo devem ser consideradas como estando em algo como uma relação de acesso
assimétrico: a mente humana estava contida, mas não continha ela mesma, a mente divina; ou, para
retratá-lo do outro lado, a mente divina continha, mas não era contida pela mente humana. Tudo o
que está presente na mente humana de Cristo também estava presente na mente divina, mas não vice-
versa. Houve acesso direto e imediato da mente humana à mente divina, mas não houve tal imedia-
tismo inverso de acesso.

Ver Morris, Our Idea of God, 171.


167

encarnação. A união e comunhão do Filho com o Pai e o Espírito Santo continua-


ram necessariamente. Nesse nível de consciência divina, o Filho também estava —
como está incessantemente — sustentando o universo e plenamente consciente de
todas as coisas.361
No entanto, em sua consciência humana, Jesus cresceu e desenvolveu uma
consciência judaica terrena do primeiro século (Lucas 2:52).362 O estudioso do
Novo Testamento R. T. France afirma que o retrato bíblico de Jesus é de “um ho-
mem real, com emoções reais e reações humanas, que teve que aprender a obedi-
ência à vontade de Deus e não achou fácil, cujo conhecimento era limitado, e que
viveu e falou como um judeu palestino do primeiro século.”363
Certamente, ocorreu uma interação significativa entre a consciência terre-
na/humana de Jesus e sua consciência divina. Talvez possamos compará-lo ao bri-
lho da luz divina que flui através de uma cortina de tecido. Em sua consciência
humana, Jesus não foi excluído de certas iluminações celestiais.364 Devemos ter
cuidado, portanto, para não compartimentalizar ou dicotomizar o humano e o divi-
no. Por exemplo, não devemos dizer: “Jesus sofreu como ser humano, mas não
como Deus”. Deus realmente sofre. Ele pode ser profundamente tocado, sendo o
Deus relacional que ele é.
Por outro lado, Jesus não confiava regularmente em sua consciência divina en-
quanto vivia sua vida na terra. O reino primário em que Jesus operou foi a consci-

361
Assim, mesmo enquanto Jesus dormia durante sua vida terrena, sua consciência/onisciência divina te-
ria estado totalmente operante (pois ele necessariamente continuou nessa consciência e sustentou o uni-
verso em existência, o que é exigido na doutrina trinitária). A comunhão intertrinitária de Jesus com o Pai
e o Espírito necessariamente continuou; esta perichôrêsis não cessou enquanto Jesus esteve na terra.
A encarnação parece implicar que havia duas vontades em Cristo (diotelismo), não uma vontade (mo-
notelismo). No entanto, veja a discussão de Hawthorne em The Presence and the Power, 212–14.
John Feinberg aponta que as analogias, embora úteis, são limitadas. Por exemplo, não temos analogi-
as de duas consciências em sonhos ou autoengano, apenas dois níveis ou faixas de uma consciência ou
mentalidade. Isso, porém, não mostra que a ideia de duas consciências seja incoerente. Afinal, a encarna-
ção nos confronta com uma situação única — duas naturezas em uma pessoa (“A Encarnação de Jesus”,
p. 241). Thomas Morris escreve: “No caso de Jesus, haveria então uma profundidade extra muito impor-
tante que ele tinha em virtude de ser divino” (The Logic of God Incarnate, 105).
Tal distinção é apoiada pela declaração do Concílio de Calcedônia (não há confusão entre as duas na-
turezas). Por outro lado, devemos resistir à doutrina do Nestorianismo em que há dois egos ou dois eus
em Cristo. O'Collins observa: “O que encontramos em Jesus Cristo é uma pessoa (divina) agindo sob as
condições da consciência humana, sentimentos humanos e o resto. Pela encarnação, o Filho eterno tor-
nou-se humanamente consciente de si mesmo em seu relacionamento com o Pai. Ele agora percebia seu
divino ‘eu’ ou Self de uma forma humana. Assim, neste caso único, uma consciência humana foi capaz
de ‘apoderar-se’ de um Eu divino, ainda que de forma humana” (Cristologia, 233).
362
Morris, The Logic of God Incarnate, 103
363
R. T. France, “The Uniqueness of Jesus,” Evangelical Review of Theology 17 (janeiro de 1993): 13.
364
Hawthorne, The Presence and the Power, 212, 216.
168

ência humana, com a profundidade extra de sua consciência divina.365 E Jesus,


sendo totalmente humano, dependia livre e totalmente do poder do Espírito en-
quanto procurava realizar o propósito de seu Pai.366
Oitavo, antes da encarnação, as três pessoas da Trindade concordaram sobre
qual seria a natureza das autolimitações de Jesus. Gerald Hawthorne aponta cor-
retamente que antes da encarnação, a Segunda Pessoa da Trindade com as outras
pessoas da Divindade tomou uma decisão consciente de deixar de lado o que pode-
ria diminuir seu ministério de humilhação e redenção. Antes que a Segunda Pessoa
da Trindade viesse à terra, ela já havia escolhido a que renunciaria ou entregaria, e
todos os membros da Trindade estavam em completa harmonia quanto a esta deci-
são.367
Nono, entender a Trindade ajuda a resolver certos problemas levantados pelos
críticos sobre a encarnação. Quando visitei regularmente uma mesquita muçul-
mana por alguns anos, muitas vezes ouvi perguntas como estas:

• “Se Jesus era Deus, quem governava o universo quando ele era um bebê?”
• “Se Jesus era Deus, quem estava no controle do universo quando ele estava
na cruz?”
• “Como Deus pode morrer?”
• “Se Deus ‘assim amou o mundo’, por que ele enviou seu Filho em vez de vir
ele mesmo?”

Como já mencionado, Jesus operou em duas esferas de consciência - uma humana


(que cresceu e se desenvolveu enquanto estava na terra) e uma divina (que perma-
neceu constante e operante). Certamente houve interação entre essas duas esferas
de consciência. No entanto, por causa da missão de Jesus na terra, ele (em sua
365
Thomas Morris escreve: “Deus, o Filho Encarnado, tinha duas mentes e escolheu viver a vida do corpo
nesta terra normalmente apenas com os recursos da mente humana. Essa foi a fonte primária da maior
parte de seu comportamento e fala terrena” (“The Metaphysics of God Incarnate,” em Trinity, Incarna-
tion, and Atonement, ed. Ronald J. Feenstra e Cornelius Plantinga Jr. [Notre Dame: University of Notre
Dame Press, 1989], 125; cp. 123).
366
Gerald Hawthorne argumenta que foi a presença do Espírito na vida de Jesus que o capacitou a ver
quem ele era por natureza e qual era seu verdadeiro relacionamento com o Pai. Isso coloca a devida ênfa-
se na realidade da humanidade de Jesus. Além disso, não devemos esquecer a genuína liberdade que Je-
sus possuía para fazer escolhas, mas o fez dependendo do Espírito. Vemos isso ao comparar a ênfase de
Marcos (Marcos 1:12) sobre o papel do Espírito, que o levou (usando o verbo ekballein) ao deserto (tal-
vez por meio de uma poderosa visão extática ou possivelmente algo mais sutil), com Mateus (Mateus 4:1)
e Lucas (Lucas 4:1–2), que equilibram essa influência divina enfatizando a livre escolha de Jesus como
ser humano, enfatizando que Jesus estava sendo conduzido (usando o verbo [an-]agein) ao invés de ser
dominado em sua vontade e consciência. A vitória de Jesus sobre o pecado, portanto, não foi resultado de
alguma necessidade de sua natureza, mas de sua livre escolha de obedecer na dependência do Espírito
(The Presence and the Power, 137–38, 217).
367
Hawthorne, The Presence and the Power, 210–11.
169

consciência humana) livremente - embora temporariamente - desistiu do acesso a


certos aspectos de seu conhecimento divino.
Jesus, sendo divino e habitando mutuamente os outros membros da Trindade,
ainda governava o universo como um bebê e enquanto morria na cruz. E na morte
que ele morreu, ele morreu como um mero (e não “completo”) ser humano e não
literalmente como Deus, o único que é necessariamente imortal – isto é, imune à
morte e à decadência (1 Timóteo 6:16).368 Além disso, por causa do relacionamen-
to interior mútuo de Pai, Filho e Espírito, cada pessoa da Trindade experimentou
dor; cada um sofreu uma dor profunda na crucificação. Alguns podem argumentar
que Deus não sofre, pois é impassível. Mas esta não é uma noção bíblica. 369 O es-
tudioso do Novo Testamento D. A. Carson pergunta, se Deus não sofre, “por que a
Bíblia gasta tanto tempo descrevendo-o como se ele sofresse?”370 Em vez disso, a
varredura completa da evidência bíblica “retrata Deus como um ser que pode so-
frer”.371 Ou seja, Deus pode ser tocado emocionalmente por nossas experiências e
ações, mas não esmagado por elas.372 Alvin Plantinga está certo quando diz:

Como o cristão vê as coisas, Deus não fica de braços cruzados, observando friamente o so-
frimento de suas criaturas. Ele entra e compartilha nosso sofrimento. Ele suporta a angústia
de ver seu Filho, a segunda Pessoa da Trindade, entregue à morte de cruz amargamente cruel

368
A alma é capaz de sobreviver à morte do corpo, mas não porque seja natural ou intrinsecamente imor-
tal (como só Deus o é); é graciosamente sustentado por Deus. Murray Harris observa que a imortalidade
para os humanos é um dom divino obtido por meio da ressurreição corporal (1 Coríntios 15:52): “De
acordo com Paulo e o Novo Testamento, o que é imortal quando alguém usa esse termo em relação à hu-
manidade é o crente ressuscitado” (“Resurrection and Immortality in the Pauline Corpus”, em Life in Fa-
ce of Death: The Resurrection Message of the New Testament, ed. Richard N. Longenecker [Grand Ra-
pids: Eerdmans, 1998], p. 160).
369
Cp. Gênesis 6:6; Salmo 78:40–41; Jeremias 31:20; Oséias 11:8–9. O fato de Deus ser imutável tem a
ver com sua fidelidade ao seu caráter e às promessas de sua aliança; essa visão mais pessoal de Deus se
opõe corretamente a Deus como um princípio estático. Ao contrário do que alguns supõem, o sofrimento
não exige a alteração de um estado bom para um ruim (ou vice-versa). Pode-se mudar dentro de uma ga-
ma de bons estados sem que um seja inferior ou superior ao outro. O historiador da igreja de Yale, Jaros-
lav Pelikan, observa: “É significativo que os teólogos cristãos costumem estabelecer a doutrina da impas-
sibilidade de Deus, sem se preocupar em fornecer muito apoio bíblico ou prova teológica. . . . O conceito
de um Deus inteiramente estático, com realidade eminente, em relação a um mundo inteiramente fluente,
com realidade deficiente” é um conceito que veio da filosofia grega para a doutrina cristã (The Emergen-
ce of the Catholic Tradition, 100–600, vol. 1 of The Christian Tradition [Chicago: University of Chicago
Press, 1971], 52–53).
370
Carson, How Long, O Lord? 186.
371
Ibid., 187–88.
372
Richard Creel, “Imutabilidade e Impassibilidade”, em A Companion to Philosophy of Religion, ed.
Philip L. Quinn e Charles Taliaferro (Malden, Mass.: Blackwell, 1997), 313–19. Creel enfatiza, no entan-
to, que “Deus em si mesmo é perfeita e imperturbavelmente feliz por meio do gozo de sua própria perfei-
ção, por meio do conhecimento da bondade de sua criação, por meio do gozo de sua criação e por meio
do conhecimento de seu controle final sobre a história” (318). ).
170

e vergonhosa. Alguns teólogos afirmam que Deus não pode sofrer. Eu acredito que eles estão
errados. A capacidade de sofrimento de Deus, creio eu, é proporcional à sua grandeza.373

Na verdade, é no próprio ato de sofrimento, humilhação e morte de Jesus na cruz


que vemos mais claramente o Deus que tudo dá. Se você quer saber como Deus re-
almente é - e quão grande é o seu amor por nós - olhe para a cruz e testemunhe a
vergonha e a angústia que Jesus suportou. Nas profundezas de tal sofrimento, Deus
é mais óbvio.374 Portanto, podemos dizer que o Pai e o Espírito sentiram profunda
dor com o Filho em sua crucificação e angústia. Jesus não suportou esse sofrimen-
to sozinho. Deus, o Pai, e o Espírito — não apenas o Filho — estiveram profun-
damente envolvidos na obra da cruz. Segunda Coríntios 5:19 deixa isso claro:
“Deus estava reconciliando consigo o mundo em Cristo”.
Certamente existem variações do modelo de encarnação apresentado neste capí-
tulo, e algumas pessoas podem fazer objeções ao modelo de duas consciências de
Cristo: “Onde a Bíblia fala de duas consciências em Jesus de Nazaré? Onde a Bí-
blia diferencia entre totalmente humano e meramente humano?” As Escrituras nem
sempre respondem a todas as nossas perguntas quando tentamos harmonizar a ga-
ma de afirmações bíblicas sobre este e muitos outros tópicos. Podemos ter que uti-
lizar, por exemplo, recursos filosóficos para nos auxiliar nessa empreitada. Afirmo,
entretanto, que este capítulo apresenta um modelo que é consistente com a Escritu-
ra e logicamente coerente.

RESUMO

• A doutrina da encarnação afirma que a pessoa de Jesus de Nazaré continha


duas naturezas — uma divina e outra humana.
• Porque a imagem de Deus em nós é uma subcategoria do divino, não é uma
contradição que Deus possa assumir a humanidade.
• Devemos distinguir o meramente humano do totalmente humano: embora a
maioria dos seres humanos comumente tenha certas características (braços,
cabelos, dedos), o que é essencial para eles serem humanos é que eles te-
nham uma alma/mente humana e possivelmente um corpo em algum ponto.
• Jesus tinha duas consciências distintas, uma humana e outra divina (lembre-
se da analogia de como uma pessoa pode estar ciente tanto do consciente
quanto do subconsciente ao sair de um sonho).
• Devemos ter cuidado para não forçar demais as analogias, pois uma pessoa
com duas naturezas e, portanto, duas consciências ou percepções é única.

373
Plantinga, “A Christian Life Partly Lived,” 71.
374
Veja Bauckham, Deus Crucificado.
171

• A consciência terrena de Jesus pode ser comparada com a consciente, e a di-


vina com o subconsciente.
• Na consciência humana de Jesus, ele tinha uma consciência judaica do pri-
meiro século na qual ele cresceu e se desenvolveu. Essa mente foi a fonte
primária do comportamento e da fala terrena de Cristo, o que explica certas
limitações (como a ignorância de Jesus sobre seu retorno).
• Em sua consciência divina, ele experimentou uma consciência ininterrupta,
onisciente e contínua, na qual permaneceu em constante comunhão com seu
Pai. Em sua consciência humana, Jesus geralmente não usava esse nível de
consciência (embora certamente houvesse avanços de iluminações celestiais
para sua mente humana a partir do divino). Em sua consciência divina, ele
continuou a residir mutuamente nos outros membros da Trindade e a gover-
nar e sustentar o universo.
• O ato de assumir a forma humana não diminuiu as capacidades divinas do
Filho. (Lembre-se do espião que toma um tablet que produz amnésia se for
pego: se ele pega o tablet, ele não perde a informação; ele desiste do acesso
temporário a ele.) Na maior parte, todas as capacidades divinas permanece-
ram latentes dentro de Jesus durante sua missão terrena (como quando um
pai não utiliza todos os seus poderes ao brincar com uma criança).
• Antes da encarnação de Jesus, as três pessoas da Trindade concordaram so-
bre qual seria a natureza das autolimitações de Jesus, e as pessoas da Trin-
dade estavam envolvidas na obra de Jesus na cruz (“Deus estava reconcili-
ando o mundo a si mesmo em Cristo”).
172
173

SE JESUS É DEUS, COMO ELE PODERIA


REALMENTE SER TENTADO?

D
eus pode pecar? Se Deus tem potencial para pecar, então parece que ele
não é perfeitamente bom. Mas se Deus não pode pecar, então parece que
ele não é realmente livre ou todo-poderoso, pois há pelo menos uma coisa
que Deus não pode fazer.375
Mas tal reclamação é facilmente descartada. Em primeiro lugar, devemos ter
cuidado para não separar a bondade de Deus do poder de Deus. Um ser todo-
poderoso que é mau em vez de bom não seria digno de adoração. A grandeza má-
xima envolve mais do que poder absoluto ou armazenamento de informações (no
caso da onisciência de Deus). A bondade é uma espécie de centro que conecta e
mantém unidos os vários atributos divinos. Em segundo lugar, o que o cético con-
sidera “o poder de pecar” na verdade acaba sendo impotência. Santo Anselmo ar-
gumentou desta forma: Se Deus fosse capaz de pecar, isso seria uma deficiência,
pois “a impotência [de Deus] o coloca no poder de outro”.376 A capacidade de pe-
car, portanto, revelaria uma deficiência no caráter de Deus, tornando-o menos do
que necessariamente bom.
Supor que a incapacidade de pecar é um defeito em Deus é um mal-entendido
sobre o poder de Deus. Considere Alexandre, o Grande, que conquistou o mundo.
Dizer de Alexandre: “Ele não pode perder na batalha” não revela uma deficiência
nele, mas sim uma deficiência em seus inimigos. Nas palavras de Anselmo: “As-
sim, quando digo que posso ser levado ou conquistado contra minha vontade, isso
não é meu poder, mas minha necessidade e o poder de outro. Pois dizer: 'Eu posso
ser levado ou conquistado' é a mesma coisa que dizer: 'Alguém pode me levar ou
me conquistar.'”377 A incapacidade de Deus de pecar não deve ser vista como uma

375
Nelson Pike afirma que parece haver “um conflito lógico na afirmação de que Deus é onipotente e per-
feitamente bom” (“Onipotência e a capacidade de Deus para pecar”, em Readings in the Philosophy of
Religion, ed. Baruch Brody [Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1974], 352).
376
Proslógio, 7; Extraído de Eugene R. Fairweather, ed., A Scholastic Miscellany: Anselm to Ockham
(Philadelphia: Westminster Press, s.d.).
377
Anselmo, Por que Deus se tornou homem, 2.10; citado em Fairweather, A Scholastic Miscellany. To-
más de Aquino disse: “Pecar é ficar aquém de uma ação perfeita; portanto, ser capaz de pecar é ser capaz
de falhar na ação, o que é repugnante à onipotência” (Summa Theologiae, 1.25.3 ad 2, in The Basic Wri-
tings of St. Thomas Aquinas, ed. Anton Pegis [New York: Random House, 1945]). Thomas V. Morris es-
creve: “Dizer de Deus que ele não pode pecar, não deve ser entendido como implicando em qualquer fal-
174

deficiência em sua onipotência, assim como a incapacidade de um general de per-


der uma batalha, deve ser vista como falta de poder ou habilidade.
Deus é necessária ou essencialmente bom. Ele não pode ser diferente. Isso sig-
nifica que fazer o mal é impossível para Deus (isso é conhecido como impecabili-
dade divina); portanto, Deus não pode nem mesmo ser tentado a fazer o mal. Se
fosse esse o caso, então haveria um poder maior do que Deus. É impossível para
Deus ser moralmente dominado pelo mal. Tiago 1:13 deixa isso bem claro: “Nin-
guém, sendo tentado, diga: ‘Estou sendo tentado por Deus’; porque Deus não pode
ser tentado pelo mal, e Ele mesmo não tenta a ninguém” (NASB).
O cético (assim como o cristão) pode perguntar: “O próprio Jesus não foi tenta-
do no deserto?” (Mateus 4:1–11). Hebreus 2:18 diz que, uma vez que o próprio Je-
sus “foi tentado naquilo que padeceu, pode vir em auxílio dos que são tentados”
(NASB). Isso não implica que Jesus poderia de fato ter pecado? Se Jesus não po-
deria ter pecado, então sua resistência à tentação não foi meramente uma questão
de encenação?
A Bíblia, é claro, retrata as tentações de Jesus para pecar como reais. Jesus cer-
tamente sentiu uma vulnerabilidade e experimentou a luta diante do conflito - seja
para escolher o caminho mais fácil ou para escolher o caminho mais difícil de ab-
negação e morte. E embora a Bíblia realmente não responda a essa pergunta para
nós, não precisamos nos desesperar por alguma solução razoável. Alguns podem
dizer: “É apenas um quebra-cabeça”, o que pode significar nada mais do que: “É
autocontraditório e não sei como lidar com esse problema”! À luz da discussão no
capítulo anterior, no entanto, podemos reunir uma resposta.
Primeiro, a capacidade de pecar não torna uma pessoa essencialmente huma-
na. Afinal, certamente parece que os cristãos em seu estado pós-morte não serão
capazes de pecar, embora ainda sejam totalmente humanos.378 Ter a capacidade de
pecar, portanto, embora seja comum entre os seres humanos, pode não ser essenci-
al para ser totalmente humano. Não nos torna o que somos. Não é uma das caracte-
rísticas ou propriedades que devemos ter para sermos humanos. Jesus, portanto,
não precisava ter a capacidade de pecar para ser plenamente humano.
Isso significa que Jesus estava fingindo quando foi tentado? Vejamos este as-
sunto mais de perto.
Em segundo lugar, quando Jesus veio à Terra, ele voluntariamente rejeitou o
acesso a certas coisas; um item de conhecimento do qual ele desistiu foi sua inca-
pacidade de pecar. A pergunta do cético é legítima: “Se Jesus é Deus, por que ele

ta de poder da parte de Deus. Apenas indica uma direção necessariamente firme na maneira pela qual
Deus usará seu poder ilimitado” (Our Idea of God, 80).
378
Por outro lado, pode-se argumentar, em nome da liberdade incompatibilista, que é possível que seres
humanos redimidos pequem, mas Deus, em sua presciência, sabe que eles não pecarão. Eu discuti isso no
capítulo 11.
175

ignorava certas coisas?” Por exemplo, lemos as palavras de Jesus em Mateus


24:36: “Aquele dia e hora [da volta/parousia] ninguém sabe, nem os anjos do céu,
nem o Filho, senão o Pai” (ênfase adicionado). Quando Jesus perguntou o nome do
demônio que estava enfrentando em Marcos 5:1–20, parece que o conhecimento de
Jesus era limitado.379
Jesus não apenas ignorava o momento de seu retorno; ele também ignorava que
não poderia se desviar da vontade do Pai. No Jardim do Getsêmani, Jesus enfren-
tou a angústia de assumir o “cálice” da ira de Deus, levando a maldição não apenas
pelos pecados de Israel e seu “exílio”, mas pelos pecados (e “exílio”) do mundo.380
Jesus orou por uma alternativa menos devastadora: “Meu Pai, se possível, passe de
mim este cálice. Contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mateus
26:39). Argumentamos que a evidência bíblica da divindade de Jesus é abundante.
Seria impossível, portanto, que ele se desviasse de fazer a vontade de seu Pai. Por
outro lado, a evidência bíblica também revela que Jesus não sabia que não poderia
se desviar de fazer a vontade de seu Pai. O teólogo Gerald O'Collins aponta que o
fato do crescimento de Jesus em autoconhecimento e autoidentidade e suas lutas na
oração (como sua agonia no Getsêmani e seu grito de abandono na cruz) “apóia a
conclusão de que o divino a realidade não estava plena e compreensivamente pre-
sente na mente [humana] de Jesus”.381
Jesus era capaz de pecar? Não porque não? Porque Jesus não era meramente
humano. Ele também era Deus e, portanto, não podia fazer nada de errado. Ao

379
Graham H. Twelftree, Jesus the Miracle Worker (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1999),
288. Aliás, a menção de tais detalhes potencialmente “embaraçosos” indica que os escritores do Evange-
lho não estavam inventando tais coisas, mas relatando-as. Esse potencial de constrangimento indica au-
tenticidade.
380
Deixe-me explicar brevemente o que quero dizer com “pecados de Israel” e “exílio”. Estou seguindo
N. T. Wright, que trabalhou para colocar Jesus diretamente em seu contexto e sistema de crenças monote-
ístas do primeiro século, segundo templo, judaico. Wright argumenta que a crença predominante entre os
judeus era que quando Javé se tornar rei, (1) Israel retornará do exílio, (2) o mal será derrotado e (3) o
próprio Javé retornará a Sião. Essa visão era firmemente aceita pelos judeus dos dias de Jesus. Em sua
auto-substituição do templo, Jesus, o reformador, convocou as pessoas a abandonarem sua esperança na
revolução política e se juntarem a ele em sua visão.
Nesse contexto totalmente judaico, Jesus procurou criar um verdadeiro Israel que seria uma luz para
as nações e, portanto, a redenção de Israel viria por meio do sofrimento. Uma vez que o exílio de Israel
tivesse sido resolvido na cruz, o perdão poderia ser concedido. A morte de Jesus como um servo sofredor
autoconsciente - assumindo a morte de Israel, em nome de Israel - foi o exílio supremo. Assim, a salva-
ção para indivíduos por meio da obra de Cristo na cruz, embora verdadeiramente obtida, não é toda a his-
tória. Mas dado o fato de que Jesus lidou com o exílio de Israel, não é um passo gigantesco pensar que ele
lidou com o exílio de todo o mundo e sua escravização aos principados e potestades. Veja os ensaios de
Wright em seu livro com Borg, The Meaning of Jesus; e N. T. Wright, The Challenge of Jesus (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1999). Para uma elaboração mais detalhada, veja seu Jesus and the
Victory of God (Minneapolis: Fortress Press, 1996).
381
O'Collins, Interpretando Jesus, 186.
176

mesmo tempo, as lutas e tentações de Jesus eram reais. Vamos agora passar para
resolver essa tensão.
Embora Jesus não fosse capaz de realizar um ato pecaminoso como resultado da
tentação, para que a tentação fosse significativa, ele tinha que ignorar o fato de que
era impossível para ele pecar. Essa ignorância temporária fazia parte da missão ter-
rena de Jesus. Lembre-se do exemplo do capítulo anterior do espião que toma a pí-
lula que causa amnésia: embora ele opte por abrir mão do acesso temporário a in-
formações vitais, as informações são potencialmente acessíveis a ele, em vez de
perdidas.
Da mesma forma, Jesus cedeu voluntariamente o acesso à expressão de certos
atributos divinos. Quando ele se tornou um homem (sendo fraco, faminto e cansa-
do), ele escolheu limitar o acesso ao seu conhecimento divino (por exemplo, igno-
rância de sua segunda vinda, ignorância de que ele era essencialmente bom) para
que pudesse sofrer a tentação real e experimentar a humanidade. limitação - mes-
mo que ele a qualquer momento pudesse ter escolhido estar ciente dessas coisas.
É certo que estamos pisando na área sensível da encarnação de Jesus, mas pare-
ce claro que “se ele simplesmente visse a realidade divina em todo o seu alcance e
beleza, as verdadeiras lutas na oração seriam descartadas. O mesmo aconteceria
com a obediência genuína. . . . O que quer que tenha acontecido no Getsêmani e na
cruz, podemos ter certeza de que Jesus não estava apenas fingindo lutar por meio
da oração para manter sua obediência.382
O ponto é este: Cristo não sabia que não podia pecar. Parte de sua ignorância
voluntária em sua consciência humana deve ter incluído não saber que ele era ne-
cessariamente bom.383 Deus, o Pai, não revelou a ele que ele não podia pecar, e Je-
sus escolheu deixar de lado esse conhecimento em seu estado pré-encarnado. Em-
bora pecar não fosse uma possibilidade real para Cristo, Jesus pôde realmente ex-
perimentar a tentação porque não sabia que era impossível para ele pecar. Alguns
cristãos podem perguntar se isso é realmente coerente: como Jesus poderia saber
que era divino e não saber que não podia pecar?384 No entanto, poderíamos per-

382
Ibid., 185.
383
Morris, The Logic of God Incarnate, 148–49.
384
Por exemplo, John S. Feinberg se pergunta como Jesus poderia pensar em si mesmo como divino, mas
ignorar sua incapacidade de pecar. Embora isso possa ter acontecido com Jesus no início da vida, isso não
poderia ter acontecido quando ele era homem (“A Encarnação de Jesus Cristo”, p. 241). eu discordaria.
Poderíamos usar a mesma linha de raciocínio sobre a ignorância de Jesus sobre o momento de seu retorno
(Mt 24:36). De acordo com a suposição de Feinberg, Jesus, que estava ciente de sua identidade divina,
não saberia que é impensável que Deus seja ignorante? Em vez disso, assim como Jesus cedeu temporari-
amente o acesso ao conhecimento de certas coisas (por exemplo, o tempo de seu retorno), ele também ce-
deu o acesso à consciência de que não podia pecar. Aparentemente, Jesus poderia ignorar ambos, mas
exibir uma profunda consciência de sua posição no lugar de Deus.
Além disso, a questão da autoconsciência divina de Jesus deve ser discutida no contexto de Jesus no
primeiro século, em vez de fazer a pergunta: Jesus sabia que era Deus? Jesus obviamente não saiu por aí
177

guntar a mesma coisa sobre Jesus não saber a hora de sua segunda vinda: como Je-
sus poderia saber que ele era divino (o que presumivelmente implicaria uma cons-
ciência de sua onisciência) e ainda não saber desse fato? Se virmos que Cristo li-
mitou voluntariamente o acesso a esse conhecimento como parte de sua missão na
terra, podemos afirmar que Jesus entendeu que estava no lugar de Deus e que tem-
porariamente abriu mão do acesso a certas verdades sobre suas capacidades.
Terceiro, como Jesus não sabia que não podia pecar (sendo Deus), isso tornou
a tentação muito real para Jesus; embora o fato de ser Deus o impedisse de reali-
zá-la, agir sobre a tentação parecia uma possibilidade para Jesus. Imagine que
você entra em uma sala e fecha a porta atrás de você. Você não percebe, mas a
porta se fecha imediatamente com um bloqueio de duas horas. Você pensa em sair
uma ou duas vezes, mas no final escolhe livremente ficar no quarto por duas horas
inteiras. Depois de ler um jornal e alguns artigos de revistas, você decide ir embo-
ra. A essa altura, a trava foi liberada automaticamente pelo cronômetro e você sai
livremente pela porta. Por que você ficou em casa e não tentou sair? Porque você
decidiu livremente ficar. Você teria conseguido sair? Não. Talvez a analogia esteja
se tornando aparente: Cristo escolheu livremente por sua vontade humana resistir à
tentação; isto é, sua vontade divina não subjugou ou se impôs sobre sua vontade
humana.385 Aqui vemos a diferença entre ser e conhecer: na natureza ou ser de Je-
sus, era impossível para ele pecar; ainda assim a tentação era muito real para ele
porque ele não sabia que pecar era impossível para ele:

Jesus poderia ser verdadeiramente tentado e testado, desde que não soubesse que não podia
pecar. Se ele soubesse que não podia pecar, seria difícil, se não impossível, entender as tenta-
ções genuínas; seriam reduzidos a um faz-de-conta, uma performance montada para a edifi-
cação de outros. Era uma situação bem diferente ser incapaz de pecar e não saber disso.386

Vimos que há uma maneira de lidar com a realidade da tentação de Jesus, embora
ele fosse Deus e fosse impossível para ele pecar. Mesmo que Cristo não tenha sido
capaz de realizar um ato pecaminoso como resultado da tentação, para que a tenta-
ção fosse real, ele deveria ter pelo menos pensado que era possível para ele pecar.
Cristo em sua consciência humana limitou voluntariamente o acesso ao seu conhe-
cimento divino para que pudesse sofrer tentações reais; Cristo não sabia que não
podia pecar. Cristo escolheu livremente por sua vontade humana resistir à tenta-

dizendo: “Eu sou Deus”, mas assumiu prerrogativas que eram restritas apenas a Javé. Jesus perdoou pe-
cados (deslocando assim o templo); ele disse: “Mas eu vos digo” (Mateus 5:22, etc.); ele tinha autoridade
sobre o sábado; e ele declarou todos os alimentos puros (falando assim com maior autoridade do que
Moisés e como o revelador da verdade divina). Sobre isso, veja Wright, The Challenge of Jesus.
385
Morris, The Logic of God Incarnate, 149–50.
386
O’Collins, Christology, 271.
178

ção; isto é, sua vontade divina não subjugou ou se impôs sobre sua vontade huma-
na.
Já ouvi cristãos dizerem: “Claro que Jesus foi capaz de vencer o pecado; ele era
Deus, não era? Aqui não devemos transformar Jesus em um Jesus Docético, aquele
que parecia ser humano, mas não era. Muitas comunidades cristãs tendem a desu-
manizar Jesus. Por exemplo, a canção de Natal “Away in a Manger” declara sobre
o menino Jesus: “Ele não chora”. A suposição é que outros bebês choram, sujam as
fraldas e precisam limpar o nariz escorrendo, mas não Jesus! (Minha esposa e eu
ensinamos nossos filhos a alterar as palavras para “alguns choros que ele faz”.)
Jesus viveu sua vida na dependência da capacitação do Espírito e, portanto, é
um exemplo de como nós também podemos viver vitoriosamente sobre o pecado.
Assim como Jesus foi “guiado pelo Espírito” (Lucas 4:1), nós também, como cren-
tes, devemos ser “guiados pelo Espírito” (Romanos 8:14). Assim como Jesus (em-
bora não tenha sido danificado internamente pelo pecado) precisou da capacitação
do Espírito para superar as limitações da fraqueza e fragilidade humana, nós, como
crentes, também precisamos. A tentação de Jesus não foi artificial; sua vitória so-
bre isso foi real. Sua vitória não veio automaticamente, não surgindo nem da au-
sência de uma atração interna para baixo em direção ao pecado, nem de alguma
necessidade de ser divino. Em vez disso, sua vitória foi o resultado de um com-
promisso momento a momento com a vontade de seu Pai: “Jesus enfrentou e ven-
ceu [as tentações de Satanás] não apenas por seu próprio poder, mas ajudou em sua
vitória pelo poder do Espírito Santo.”387
Não há uma contradição embutida na encarnação, nem a tentação de Jesus foi
meramente encenada. Podemos afirmar a plena divindade e plena humanidade de
Jesus, bem como um tipo de consciência dupla, uma em que Jesus era totalmente
conhecedor e outra em que ele voluntariamente se limitou em seu conhecimento
para que pudesse resistir realisticamente à tentação. Em sua encarnação e tentação,
ele se tornou como nós em todos os aspectos, exceto sem pecado.

RESUMO

• O fato de Deus não poder pecar não é um defeito. Em vez disso, a capacida-
de de pecar revelaria que outra entidade poderia dominar Deus.
• A capacidade de pecar não é essencial para os humanos—somente comum
aos humanos. Jesus, portanto, não precisava ter a capacidade de pecar para
ser plenamente humano.

387
Hawthorne, The Presence and the Power, 139.
179

• Quando Jesus veio à Terra, ele voluntariamente rejeitou o acesso a certas


coisas; um item de conhecimento ao qual ele desistiu foi sua incapacidade de
pecar (compare sua tentação no deserto, o Jardim do Getsêmani).
• Visto que Jesus não sabia que não podia pecar (sendo Deus), a tentação era
muito real para Jesus. Embora o fato de ser Deus o impedisse de realizá-la,
agir sobre a tentação parecia uma possibilidade genuína para Jesus.
• Imagine não saber que você está em uma sala trancada no tempo. Mesmo
que você não possa abrir a porta, você escolhe livremente ficar dentro dela.
Da mesma forma, a vontade divina de Jesus não superou sua vontade huma-
na.
180
181

O RELATO DA CRIAÇÃO EM GÊNESIS


CONTRADIZ A CIÊNCIA CONTEMPORÂ-
NEA (PARTE 1)

O
físico húngaro e padre beneditino Stanley Jaki sugere que a visão de
mundo judaico-cristã forneceu um terreno fértil para o nascimento da ci-
ência moderna.388 Newton, Copérnico, Galileu e seus semelhantes eram
teístas que acreditavam firmemente na racionalidade e na ordem da criação de
Deus, na distinção entre criatura e Criador e na diferença entre humanos racionais
e animais. Sua convicção de que milagres são possíveis se Deus existe não os im-
pediu de estudar o universo que ele criou. As civilizações chinesa, grega, babilôni-
ca e egípcia não tinham tais recursos em sua visão de mundo para dar origem à ci-
ência moderna.
Perto do final de seu livro, Jaki se refere à Terra jovem, ou recente, criacionis-
mo, que sustenta que o universo tem aproximadamente dez a quinze mil anos de
idade e que Deus criou tudo em seis dias de vinte e quatro horas (144 horas): “Es-
tar ocupado com a ciência da criação, ou a ciência sobre a maneira ou cronograma
da criação, é possivelmente a estratégia mais autodestrutiva que um cristão pode
adotar em uma era de ciência.”389 Ele exorta os criacionistas recentes a não “come-
ter um erro estratégico” ao se preocuparem demais com o como da criação ou ao
limitar a idade da Terra a alguns milhares de anos, especialmente quando o univer-
so mostra muitos sinais de ser bastante antigo. Assim, esses criacionistas da Terra
jovem deveriam defender a doutrina simples de que “no princípio Deus criou os
céus e a terra”.
Isso parece claro: a grandeza do gênio criativo de Deus não é diminuída se ele
criou gradualmente em vez de instantaneamente. O poder majestoso de Deus não é
diminuído se ele agir indiretamente em vez de diretamente. (Se as estrelas, galá-
xias e planetas, bem como as montanhas e paisagens da Terra, fossem criados ao
longo de bilhões e milhões de anos, em vez de instantaneamente, eles falhariam
em sua capacidade de inspirar admiração? Fazer a pergunta é respondê-la.) Além

388
Stanley Jaki, O Salvador da Ciência (Washington: Regnery Gateway, 1988), 11–45.
389
Ibid., 202.
182

disso, não há nada na palavra criar (bara') que exija instantaneidade.390 A veraci-
dade e a historicidade do relato da criação também não são diminuídas se a primei-
ra parte do Gênesis não for exatamente uma narrativa histórica direta.
Quais são as indicações da antiguidade do universo? Poderíamos listar o se-
guinte: a taxa de expansão, a taxa de resfriamento de temperaturas inicialmente al-
tas, a chegada da luz de galáxias distantes,391 o registro fóssil (os geólogos teste-
munham o processo de fossilização ocorrendo em nossos dias com regularidade),
deslocamento continental (placas tectônicas), construção de montanhas e assim por
diante. Os argumentos a favor de um universo jovem baseado no encolhimento do
sol, na quantidade de poeira cósmica, na diminuição do campo magnético da Terra
e afins parecem carecer de suporte científico sólido.392
Reconhecendo que a maioria dos cientistas – cristãos ou não – acha o criacio-
nismo da Terra jovem incrível e o peso da evidência científica contra ele, o astrofí-
sico cristão Hugh Ross pergunta: "É de admirar que indivíduos treinados nas ciên-
cias, especialmente aqueles com pouca ou nenhuma formação cristã, achem difícil
fazer o seu caminho de volta para as igrejas?"393
Em abril de 1999, conversei com um homem que alegou ter rejeitado o cristia-
nismo porque não podia se apegar intelectualmente a um criacionismo da Terra jo-

390
Por exemplo, Deus cria Israel (Is 43:1) e futuras gerações de pessoas (Sl 102:18), ações que não são
instantâneas. Nada exclui a possibilidade de Deus utilizar processos e meios comuns para realizar seus
fins. O teólogo evangélico Carl Henry indica: “O método de Deus é certamente o do fiat divino — isto é,
Elohim cria pela instrumentalidade de sua palavra poderosa. . . . Um fiat não precisa implicar um como.
O como da criação de Deus é sua palavra ou comando autoritário. Qualquer que seja a duração que o
termo dia possa significar, os dias de Gênesis são períodos de tempo identificáveis sequencialmente como
primeiro, segundo, terceiro e assim por diante. O universo criado, em suma, não aparece como um único
ato completo” (God, Revelation, and Authority, vol. 6 [Waco: Word, 1983], 114).
391
Ver John Gribbin, In the Beginning (Boston: Little, Brown, 1993). Observe que a crença na evolução
estelar e planetária dificilmente exige a crença na evolução biológica.
392
Em 23 de fevereiro de 1987, o astrônomo Ian Shelton fotografou uma supernova (uma estrela em ex-
plosão); sua luz estava a 160.000–170.000 anos-luz de distância. Ou seja, a explosão realmente ocorreu
160.000–170.000 anos atrás, mas sua luz só atingiu a Terra em 1987. Para mais detalhes sobre esse fe-
nômeno, veja a reportagem de capa da Time de 23 de março de 1987, “Supernova!” bem como James E.
Peebles et al., “The Evolution of the Universe,” Scientific American 271, no. 4 (outubro de 1994): 53–64,
em que estudos da taxa de velocidade e emissão de energia das explosões de várias supernovas mostra-
ram que o universo tem de 12 a 16 bilhões de anos. Além disso, o aparecimento de corpos celestes a mi-
lhões ou bilhões de anos-luz de distância foi observado durante a história humana registrada (por exem-
plo, começando em 1572, quando Tycho Brahe observou uma explosão estelar distante). Tais observa-
ções tornam difícil acreditar que Deus criou o universo com a aparência de idade. Para mais exemplos,
veja Hugh Ross, Creation and Time: A Biblical and Scientific Perspective on the Creation-Date Contro-
versy (Colorado Springs: Navpress, 1994).
393
Ross, Creation and Time, 43. Ross diz isso em resposta a uma declaração de John Morris, do Creation
Research Institute. Morris disse: “Ainda não tenho certeza se o criacionismo da Terra jovem é um requi-
sito para ser membro da igreja; talvez seja apropriado dar aos novos membros tempo para crescer e ama-
durecer sob um bom ensino. Mas eu sei de uma coisa: o criacionismo [da Terra jovem] deveria ser um
requisito para a liderança cristã!” (43).
183

vem. Na mesma época, recebi um telefonema de uma jovem cristã cujo noivo
(também cristão) acreditava que o universo tinha bilhões de anos. No entanto, ela
cresceu em uma igreja na Romênia que considerava essa visão herética. Ela queria
saber se deveria seguir em frente e se casar com esse homem. Essas histórias po-
dem ser multiplicadas.
Embora eu possa entender como os criacionistas da Terra jovem chegam a man-
ter seus pontos de vista baseados em Gênesis 1, pode valer a pena perguntar: a in-
terpretação da Terra jovem de Gênesis 1 é a única interpretação legítima para os
cristãos ortodoxos adotarem? O estudioso do Antigo Testamento, Victor Hamilton,
observa: “A compreensão literal de ‘dia’ não é necessariamente uma interpretação
mais espiritual e bíblica e, portanto, não é inerentemente preferível”.394 O que fa-
zer?
Acredito, primeiro, que o texto do Gênesis permite uma interpretação menos rí-
gida da palavra dia (yôm em hebraico) do que a de vinte e quatro horas. Discordo
respeitosamente, portanto, de meus amigos “yomistas” neste assunto.395 Em se-
gundo lugar, a questão fundamental aqui não é o criacionismo da Terra jovem ver-
sus a antiga ou mesmo a criação versus evolução (embora eu mesmo não ache a
evolução biológica convincente). [9] Em vez disso, o ponto crucial é o naturalismo
(toda a realidade pode ser explicada e opera de acordo com as leis e processos na-
turais) versus o sobrenaturalismo (uma realidade existe além e não é redutível à
natureza – Deus, milagres e assim por diante). O que é mais crítico é que Deus cri-
ou; como ele criou é uma questão secundária. Se é verdade que Deus criou, então a
revelação sobrenatural e os milagres são possíveis e o naturalismo é falso.
A maneira como interpretamos Gênesis 1 pode criar outra barreira – ou abrir
uma porta – para o incrédulo em sua jornada espiritual. Acredito, portanto, que de-
vemos empreender esta discussão tendo em mente o quadro mais amplo. Neste ca-
pítulo, faço alguns pontos preliminares antes de lidar com as especificidades do
texto de Gênesis no próximo capítulo. Nestes capítulos, espero mostrar que as Es-
crituras e a ciência não estão em desacordo.
Primeiro, o Gênesis relata a história (como Adão e Eva como os primeiros hu-
manos) e, portanto, não é mitológico; sua historicidade é reforçada pela compre-
ensão que o Novo Testamento tem do Antigo. Além de escrever material novo,
Moisés provavelmente usou e adaptou registros de arquivo (em tabuinhas de argi-
la, etc.) e tradições orais transmitidas pelos patriarcas.396 As genealogias dos capí-

394
Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1–17, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), 53.
395
Sou grato a Berry Driver por me apresentar esse termo.
396
John Sailhamer, The Pentateuch as Narrative (Grand Rapids: Zondervan, 1993), 4. Por exemplo, ob-
serve: “estes são [os livros das] gerações” (listados em Gênesis 2:4, tradução do autor; etc.); Números
21:14 refere-se ao “Livro das Guerras do SENHOR”.
184

tulos 5, 10 e 11 são indicativas da historicidade de pessoas como Adão, Caim,


Enoque, Noé e Abrão. Além disso, a cláusula “esta é a conta” (NASB) ou literal-
mente, “estas são as gerações” ou “esta é a história de” (Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11
:27; 25:12; 37:2) é significativo. É um dispositivo usado em todo o Gênesis para
recontar ciclos de eventos históricos e as genealogias de pessoas específicas. Além
disso, o Novo Testamento assume a historicidade de Adão e Eva (Lucas 3:38; Atos
17:26; Romanos 5:12–19; 1 Coríntios 11:8–9; 15:21–22; 2 Coríntios 11 :3; 1 Tim.
2:13–14). Assim, não podemos descartar essas pessoas como personagens míticos.
Em segundo lugar, embora Gênesis 1:1–2:4a seja provavelmente um gênero
histórico-poético em vez de uma prosa direta, não deve ser considerado inferior a
uma narrativa histórica direta. A primeira parte do Gênesis parece ser uma com-
binação de poesia e narrativa histórica. Charles Hummel chama isso de narrativa
semi-poética lançada em uma estrutura histórico-poética.397 Estudiosos evangéli-
cos do Antigo Testamento, como Bruce Waltke, Derek Kidner, Gordon Wenham e
Meredith Kline, afirmam que esta parte do Gênesis é de natureza poética,398 embo-
ra não seja “poesia semítica completa”.399 Gordon Wenham afirma que Gênesis 1–
3 relata “uma história absorvente, mas altamente simbólica”.400 Bruce Waltke
afirma que o prólogo do Gênesis é história, mas não narrativa histórica pura.401
Moisés, cujo público é um grupo de hebreus agrários, não fala com precisão cientí-
fica ou fotográfica. Ele fala em linguagem simples e observacional. Ainda assim,
sua história histórico-poética da criação não deve ser considerada uma comunica-
ção inferior ou de alguma forma indigna de Deus; afinal, os salmos e os livros pro-
féticos são altamente simbólicos e poéticos, mas comunicam eventos históricos
como o êxodo e o exílio babilônico.
Se a parte inicial do Gênesis é semi-poética, temos que fazer ajustes em nossa
abordagem deste texto. Como argumenta Meredith Kline, “o estilo semi-poético,
no entanto, deve levar o exegeta a antecipar a vertente figurativa neste registro ge-
nuinamente histórico das origens do universo”.402 O estudioso bíblico Vern
Poythress observa que a “leitura natural” do texto de Gênesis “atende de perto ao
significado real da Bíblia no Antigo Oriente Próximo”. Uma pessoa que usa esse

397
Charles Hummel, The Galileo Connection (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1986), 214.
398
Derek Kidner, Genesis, Tyndale Old Testament Commentary (Downers Grove, Illinois: InterVarsity
Press; Grand Rapids: Eerdmans, 1967), 54. Por exemplo, esta passagem tem características poéticas co-
mo o paralelismo (1:27; 2:2).
399
Meredith Kline, “Porque não choveu”, Westminster Theological Journal 20 (maio de 1958): 155. Por
exemplo, esta passagem tem características poéticas como o paralelismo (1:27; 2:2). Além disso, sua es-
trutura é organizada na forma de estrofes, que contêm “eco” e “reeco” (155).
400
Gordon J. Wenham, Genesis 1–15, Word Biblical Commentary, vol. 1 (Dallas: Word, 1987), 55.
401
Bruce Waltke, “The Literary Genre of Genesis, Chapter One,” Crux 27 (dezembro de 1991): 2–10.
402
Kline, “Porque não choveu”, 156. Ver também Meredith G. Kline, “Espaço e tempo na cosmogonia do
Gênesis”, Perspectives on Science and the Christian Faith 48 (1996): 2–15.
185

método não lê “o texto apenas no contexto de seu próprio mundo e vida moder-
nos”.403 Em vez disso, a “leitura natural” leva em conta o contexto cultural e literá-
rio em que foi escrita.
O prólogo de Gênesis (1:1–2:4a) é compacto e altamente estruturado, usando os
números simbólicos três, sete e dez. Gênesis 1:1 contém sete palavras hebraicas, e
a primeira seção de Gênesis é dividida em sete seções.404 Gênesis 1:2 contém qua-
torze (duas vezes sete) palavras. As duas palavras-chave em Gênesis 1:1 ocorrem
em Gênesis 1:1–2:4a em múltiplos de sete: Deus (elohim) ocorre trinta e cinco ve-
zes, e terra/terra (eretz) é encontrada vinte e uma vezes. O parágrafo sobre o sába-
do tem trinta e cinco palavras. O prólogo do Gênesis, antecipando as dez “pala-
vras” ou mandamentos em Êxodo 20, é cuidadosamente organizado em torno de
dez mandamentos divinos. Além disso, outras ocorrências se encaixam nesse sim-
bolismo numérico:

• “E Deus disse”: 10 vezes


• “Haja”: 7 vezes
• “fazer”: 7 vezes
• “firmamento”: 21 vezes (7 vezes 3)
• “conforme a sua espécie”: 10 vezes
• “e assim foi”: 7 vezes
• “e Deus viu que era bom [tob]”: 7 vezes; a palavra tob [bom] é um jogo de
palavras contrastante ou trocadilho com tohu [desolado] em 1:2)
• Deus “abençoou”: 3 vezes
• Deus “cria”: 3 vezes

Dada essa estrutura bem unida da parte inicial do Gênesis, parece sensato conside-
rar essa passagem algo diferente de uma narrativa histórica direta, embora seja his-
tórica. Moisés usou uma economia de palavras e não descreveu necessariamente
tudo o que aconteceu em um determinado “dia”. Talvez mais tenha sido feito em
cada dia do que o que as Escrituras registram, e talvez o que Deus fez tenha sobre-
posto dias.
É um grande erro insistir que nem um único animal poderia ter sido criado antes
que todas as plantas fossem criadas simplesmente porque o terceiro dia relata as
plantas e o quinto e o sexto dias relatam os animais. Insistir nesse tipo de conclu-
são é ignorar o fato de que Moisés está falando de maneira muito geral.405
403
Vern S. Poythress, “Resposta a Paul Nelson e John Mark Reynolds,” em Three Views on Creation and
Evolution, ed. J. P. Moreland e John Mark Reynolds (Grand Rapids: Zondervan, 1999), 91.
404
C. Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis, vol. 1 (Jerusalem: Magnes Press, 1992), 13.
405
Davis Young, Creation and the Flood: An Alternative to Flood Geology and Theistic Evolution
(Grand Rapids: Baker, 1977), 116
186

Terceiro, uma vez que os escritores bíblicos utilizavam regularmente lingua-


gem observacional (“fenomenalista”), não devemos acreditar erroneamente que
os primeiros capítulos de Gênesis são um livro científico. A tradição judaico-cristã
tem afirmado que Deus se revelou a nós por meio de sua obra na natureza e por
meio de sua Palavra (a Escritura e Jesus Cristo). Uma vez que esses aspectos da
revelação derivam de um Deus verdadeiro, estamos corretos em vê-los como har-
moniosos e não contraditórios. Pode ser o caso, portanto, que a descoberta científi-
ca possa informar nosso entendimento e, portanto, exigir que repensemos nossa in-
terpretação das Escrituras.
Por exemplo, os Salmos 93:1 e 96:10 declaram que o mundo não pode ser mo-
vido. O Salmo 19:5–6 diz que o sol segue seu curso diariamente. Obviamente, os
escritores bíblicos falam de fenômenos naturais de um ponto de vista observacio-
nal. Da mesma forma, hoje dizemos: “Que lindo nascer do sol”, em vez do mais
preciso “giro da Terra”. A crença na autoridade da Bíblia não significa que a Bí-
blia deva falar com precisão técnica sobre a natureza, não mais do que fazemos
quando falamos sobre “nascer do sol” e “pôr do sol”.406 Em outras palavras, resta-
nos descobrir cientificamente o sentido do que está sendo dito nas Escrituras. As-
sim como os teólogos do passado tiveram que ajustar suas interpretações das Escri-
turas, tendo aprendido por meio de descobertas científicas que a Terra não é esta-
cionária nem o centro do universo, talvez devêssemos fazer alguns ajustes em nos-
sa interpretação de Gênesis à luz dos muitos indicadores de a antiguidade do uni-
verso.407 (Isso é ainda mais verdadeiro à luz de uma análise do próprio texto de
Gênesis.)
Mesmo no século dezesseis, João Calvino estava ciente de que os estudantes da
Bíblia podem fazer este livro parecer tolo ao insistir na verdade literal da lingua-
gem observacional simples registrada no texto. Por exemplo, apesar da evidência
da astronomia, alguns cristãos bem-intencionados podem afirmar, com base em
Gênesis 1:16 (que fala do sol e da lua como “os dois grandes luminares”) que a lua
deve ser maior que Saturno (que não é). Comentando esta passagem, Calvino astu-
tamente escreve:

Moisés aqui não descreve [isto é, discorre longamente], como um filósofo, sobre os segredos
da natureza, como pode ser visto nessas palavras. Primeiro, ele atribui um lugar na expansão
do céu aos planetas e estrelas; mas os astrônomos fazem uma distinção de esferas e, ao mes-
mo tempo, ensinam que as estrelas fixas têm seu lugar apropriado no firmamento. Moisés faz
dois grandes luminares; mas os astrônomos provam, por razões conclusivas, que a estrela de
Saturno, que, devido à sua grande distância, parece a menor de todas, é maior que a lua. Aqui

406
O Artigo XIII da Declaração de Chicago sobre Inerrância Bíblica (formulada por evangélicos em
1978) afirma: “Negamos ainda que a inerrância seja negada por fenômenos bíblicos como falta de preci-
são técnica moderna, irregularidades de gramática ou ortografia, descrições observacionais da natureza”.
407
Para documentação sobre isso, veja Ross, Creation and Time.
187

está a diferença; Moisés escreveu em estilo popular coisas que, sem instrução, todas as pes-
soas comuns, dotadas de bom senso, são capazes de entender; mas os astrônomos investigam
com grande esforço tudo o que a sagacidade da mente humana pode compreender. No entan-
to, este estudo não deve ser reprovado, nem esta ciência deve ser condenada, porque algumas
pessoas frenéticas costumam rejeitar corajosamente tudo o que lhes é desconhecido. . . . Se
ele tivesse falado de coisas geralmente desconhecidas, os incultos poderiam alegar que tais
assuntos estavam além de sua capacidade. . . . Moisés, portanto, adapta seu discurso ao uso
comum. . . . Portanto, não há razão para que os janglers ridicularizem a inabilidade de Moisés
em fazer da lua o segundo luminar; pois ele não nos chama ao céu, ele apenas propõe coisas
que estão abertas diante de nossos olhos. Que os astrônomos possuam seu conhecimento
mais elevado; mas, enquanto isso, aqueles que percebem pela lua o esplendor da noite são
condenados por seu uso de ingratidão perversa, a menos que reconheçam a beneficência de
Deus.408

Francis Schaeffer aconselhou ao longo destas linhas:

Não devemos alegar, por um lado, que a ciência é desnecessária ou sem sentido, nem, por
outro lado, que as extensões [ou seja, interpretações] que fazemos da Escritura são absoluta-
mente precisas ou que essas extensões têm a mesma validade que as declarações de própria
Escritura.409

Quarto, o impulso principal do Gênesis não é científico, mas teológico; serve co-
mo uma crítica e um corretivo para as mitologias do antigo Oriente Próximo. O
épico babilônico da criação começa:

Quando o céu (deuses) acima [Enuma elish] ainda não havia sido criado,
A terra (-deuses) abaixo ainda não trouxe à existência,
Somente lá existia o Apsu primordial [o grande oceano masculino] que os engendrou.

De acordo com especiais do Public Broadcasting System ou interpretações popula-


res de como as religiões antigas representavam a criação/origem do mundo (“cos-
mogonia”), a suposição comum é que Gênesis é exatamente como outros relatos
antigos. A implicação é que o relato de Gênesis é apenas outro mito. Embora exis-
tam algumas semelhanças entre o Gênesis e os épicos da criação antiga (por exem-
plo, a criação da terra seca, das luzes celestiais e da humanidade; os deuses des-
cansando), as diferenças são muito mais marcantes e dignas de nota:

• Enquanto o espírito divino e a matéria cósmica coexistem e são coeternos


nos épicos da criação, em Gênesis Deus cria a matéria e existe independen-

408
John Calvin, Genesis, trans. John King (Grand Rapids: Baker, 1984), 86–87.
409
Francis Schaeffer, Genesis in Space and Time (Downers Grove, Ill: InterVarsity Press, 1972), 36.
188

temente dela; enquanto a luz emana dos deuses no épico babilônico, Deus
cria a luz no Gênesis.410
• A história da criação babilônica é uma história elaborada que “apresenta
uma sucessão de divindades rivais” em vez de um simples relato monoteís-
ta.411 Gênesis define o Deus de Israel como o único Criador, em oposição
aos muitos deuses do antigo oriente que eram limitados em poder, conheci-
mento e moralidade.412 Deus criou o sol, a lua e as estrelas, que muitas vezes
eram considerados deuses por si mesmos.
• O relato do Gênesis retrata Deus como o único soberano, enquanto o épico
babilônico exalta Marduk como o principal deus do panteão babilônico, des-
crevendo como ele se tornou supremo.
• Os épicos do Oriente Próximo descrevem a criação do universo como resul-
tado de um conflito de vontades, no qual uma das partes sai vitoriosa. Essas
antigas cosmogonias não distinguem entre “natureza” e seres humanos.413

Como aponta U. Cassuto, os épicos da criação do Oriente Próximo falam sobre a


origem dos deuses que vieram antes do nascimento do mundo e dos seres huma-
nos. Eles falam do “antagonismo entre este deus e aquele deus, de atritos que sur-
giram desses choques de vontade e de guerras poderosas que foram travadas pelos
deuses”.414 Além disso, esses épicos “conectavam a gênese do mundo com a gêne-
se dos deuses e com as hostilidades e guerras entre eles; e eles identificaram dife-
rentes partes do universo com determinadas divindades ou com certas partes de
seus corpos.415
O antigo estudioso do Oriente Próximo Kenneth Kitchen notou o contraste en-
tre o simples relato da criação em Gênesis e os épicos da criação antiga mais ela-
borados. Como regra geral com tais coisas, quanto mais simples, mais cedo: “Con-
tos ou tradições simples podem dar origem (por acréscimo ou embelezamento) a
lendas elaboradas, mas não vice-versa”.416
Outra diferença entre Gênesis e os épicos do antigo Oriente Próximo é que o re-
lato da criação em Gênesis 1–2 apresenta uma ênfase teológica tripla:

410
E. A. Speiser, Genesis, Anchor Bible Commentary, vol. 1 (Garden City, N.J.: Doubleday, 1964), 10.
411
Ibid., 11; ver também Kenneth Kitchen, Ancient Orient and the Old Testament (Downers Grove, Illi-
nois: InterVarsity Press, 1966), 89.
412
Gordon J. Wenham, “Gênesis”, no Novo Comentário Bíblico, ed. Gordon Wenham et ai. (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1994), 57.
413
Richard Clifford, “Criação na Bíblia”, em Física, Filosofia e Teologia, ed. Robert Russel e outros. (O
Vaticano: Observatório do Vaticano, 1988), 155.
414
Cassuto, Genesis, 1:7.
415
Ibid.
416
Cozinha, Antigo Oriente e Antigo Testamento, 89 (e nota).
189

1. a identidade do Criador, que também é o Deus de Israel, não faz parte de um


panteão de deuses
2. a origem do mundo (Gn 1:1)
3. a vinculação da obra de Deus no passado à obra de Deus no futuro (por
exemplo, o relato da criação é paralelo à construção do tabernáculo no Pen-
tateuco)417

Ao olharmos para Gênesis 1–2, portanto, nosso ponto focal deve ser principalmen-
te teológico e não científico, observando os princípios bíblicos mais amplos da
providência de Deus, a ordem da criação e o papel dos humanos como mordomos
da criação de Deus.418
Quinto, a morte animal ocorreu antes que os seres humanos existissem; com a
queda, a morte humana entrou no mundo. A partir de um exame do registro fóssil,
parece claro que a morte animal ocorreu antes da existência dos seres humanos.419
Isso é reforçado por certas passagens bíblicas. Observe o “salmo da criação”—
Salmo 104. Parece que antes da queda, os leões eram predadores: “Os leões rugem
por sua presa e buscam de Deus o seu alimento” (v. 21). O versículo 29 até sugere
a morte antes da queda: “Quando você esconde o rosto, eles ficam apavorados;
quando você lhes tira o fôlego, eles morrem e voltam ao pó”. Não há indicação bí-
blica clara de que a atividade carnívora seja resultado do pecado e não possa ter
existido antes da queda;420 em vez disso, como sugere o Salmo 104, todos os orga-

417
John Sailhamer, “Gênesis”, no Comentário Bíblico do Expositor, vol. 2, ed. Frank Gaebelein (Grand
Rapids: Zondervan, 1990), 19–20.
418
Davis Young, “Escritura nas mãos de geólogos”, Westminster Theological Journal 49 (1987): 291 n.
419
Young, Creation and the Flood, 175. O biólogo Pattle Pun argumenta que “o registro fóssil da vida
parece sugerir a presença de carnivorismo muito antes do aparecimento do homem. Portanto, parece ne-
cessário postular a existência da morte física no mundo não-humano para explicar a cadeia alimentar an-
tes da queda humana” (“First Response”, em Evangelical Affirmations, ed. Kenneth Kantzer e Carl Henry
[Grand Rapids: Zondervan, 1990], 429).
420
Alguns podem discordar dessa análise, apelando para Isaías 11:7 e 65:25 (onde o lobo e o cordeiro se
alimentam juntos e o leão comerá palha como um boi) para justificar a crença de que os carnívoros foram
originalmente criados para serem herbívoros. Mas devemos ser cautelosos ao literalizar um texto poético
e altamente simbólico (que os animais inevitavelmente farão parte dos novos céus e da nova terra, embo-
ra possam ser). Por exemplo, outra passagem que fala sobre o estado final do reinado do Messias é Isaías
65:20 (no mesmo contexto de um dos versículos mencionados acima): “Aquele que morrer aos cem anos
será considerado um mero jovem; aquele que não chegar a cem será considerado amaldiçoado. Certamen-
te o texto não incita o literalismo aqui! Ele usa eufemismo para enfatizar a longevidade da vida durante o
reinado do Messias. Como argumenta o comentarista John Oswalt, o texto de Isaías 11:7 destaca que, du-
rante o reinado do Messias, “os medos associados à insegurança, perigo e mal serão removidos” (Isaías
1–39, New International Commentary on the Velho Testamento [Grand Rapids: Eerdmans, 1986], 283).
Além disso, eu acrescentaria que a ênfase nesses textos supostamente vegetarianos não é a natureza
da dieta do leão, mas sua domesticação, sendo domesticado para que não seja mais uma ameaça. Comer
palha como boi é ser domado e não ser um perigo. (Também pode ser o caso de que durante o reinado do
Messias isso será um avanço no Éden em vez de um retorno a ele. A situação idealizada nessas passagens
190

nismos têm seu lugar na cadeia alimentar: “[A] Escritura não faz menção à intro-
dução repentina de morte ou violência no mundo animal”.421 Isso é reforçado ainda
mais pelo discurso de Deus com Jó sobre a beleza, ordem e glória de sua criação.
Lemos sobre o falcão espionando a presa de penhascos rochosos (39:28-29); os fi-
lhotes sugam o sangue dele, “e onde estão os mortos, aí está ele”. Deus também
criou o leviatã “feroz”, com “dentes terríveis” (41:1, 10, 14). Nenhum herbívoro
aqui! Jó 38:39 fala da presa do leão e dos leões que espreitam em um matagal
(38:40). A morte animal e a cadeia alimentar são pressupostas como parte da cria-
ção de Deus – sem desculpas ou qualificações. No entanto, a queda de Adão intro-
duziu a morte humana, que Romanos 5:12 afirma. E embora a evidência paleográ-
fica/geológica confirme que os animais carnívoros - para não mencionar espinhos
e cardos ou terremotos e furacões - existiam antes da queda, foi somente após a
queda que os seres humanos se tornaram vulneráveis e ameaçados por eles.
Sexto, os seres humanos e vários animais comiam carne antes do dilúvio de
Noé. É comumente argumentado que os humanos e todos os animais antes do dilú-
vio de Noé eram vegetarianos. Em Gênesis 1:29, Deus dá aos seres humanos todo
tipo de árvore e planta para consumo. Após o dilúvio, Gênesis 9:3 afirma que “to-
da coisa viva, que se move, vos servirá de alimento” (NASB). Isso significa que
Deus inaugurou o consumo de carne, que todos os animais eram herbívoros antes
do dilúvio de Noé, como alguns alegam? Não é assim, de acordo com o estudioso
do Antigo Testamento, Gordon Wenham. Apenas ratifica ou confirma a legitimi-
dade do consumo de carne.422 “Gênesis . . . não está interessado principalmente em
saber se as pessoas eram originalmente vegetarianas, mas no fato de que Deus lhes
forneceu comida”.423 Henri Blocher sugere que o Gênesis não passa da proibição
de comer carne (em Gênesis 1) para a permissão (Gênesis 9). Essa mudança de ên-
fase é provavelmente estilística: Gênesis 1 omite esse aspecto — embora a cadeia
alimentar não seja um mal — para sugerir a perfeição da harmonia na criação. Gê-
nesis 9 acrescenta esse aspecto de permissibilidade para transmitir a sensação de
que a paz foi quebrada.424

proféticas não deve necessariamente ser tomada como um retorno completo ao modo como as coisas
eram no Éden. Por exemplo, não haverá mais necessidade do sol e da lua, pois não haverá mais noite (Ap
21:23; 22:5), os humanos não se casarão mais (Mc 12:24–25). , A Criação e o Dilúvio, pp. 167–168.
421
Ibid., 161. Romanos 8:20–22 não implica necessariamente que o pecado de Adão introduziu na cria-
ção a morte celular, a morte animal, todo tipo de decadência natural ou dor (por exemplo, Gn 3:16: “Au-
mentarei grandemente o seu dores [não introduzir dores] na gravidez”). Em relação à morte celular, orga-
nismos grandes crescem devido à sequência contínua de multiplicação e morte celular (Randy Isaac,
“Chronology of the Fall”, Perspectives on Science and the Christian Faith 48 [março de 1996]: 37).
422
Gordon J. Wenham, Genesis 1–15, Word Biblical Commentary, vol. 1 (Dallas: Word, 1987), 34.
423
Gordon J. Wenham, “Gênesis”, no Novo Comentário Bíblico, ed. Gordon Wenham et ai. (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1994), 61.
424
Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (Downers Grove, Illinois: Inter-
Varsity Press, 1984), 209 n.
191

Há mais evidências bíblicas que sugerem que o consumo de carne ocorreu antes
do dilúvio. Deus diz aos seres humanos para “dominarem sobre os peixes do mar”
(Gn 1:28). O que isso poderia significar além da permissão para comê-los? Abel
criava ovelhas, presumivelmente para comer (4:2-4). O próprio Noé distinguiu en-
tre animais puros e impuros (7:2), o que claramente assume a comestibilidade da
carne antes do dilúvio.
Comecei este capítulo falando sobre ser sábio em como abordamos a relação da
ciência com o texto bíblico. Embora, como cristãos, afirmemos que a Bíblia tem
autoridade, não se segue que todas as nossas interpretações dela o sejam. Até
mesmo Agostinho advertiu os cristãos sobre o dano que poderiam causar ao seu
testemunho por serem ignorantes das ciências e fazer pronunciamentos injustifica-
dos com base em uma interpretação da Bíblia que precisava ser seriamente ajusta-
da:

É uma coisa vergonhosa e perigosa para um infiel ouvir um cristão, presumivelmente dando
o significado da Sagrada Escritura, falando bobagens sobre esses tópicos; e devemos tomar
todos os meios para evitar uma situação tão embaraçosa, na qual as pessoas mostram vasta
ignorância em um cristão e riem disso com desprezo. . . . Se eles encontrarem um cristão en-
ganado em um campo que eles próprios conhecem bem e o ouvirem manter suas opiniões to-
las sobre nossos livros, como eles acreditarão nesses livros em questões relativas à ressurrei-
ção dos mortos, à esperança da vida eterna e à reino dos céus, quando pensam que suas pági-
nas estão cheias de falsidades sobre fatos que eles mesmos aprenderam com a experiência e a
luz da razão?425

RESUMO

• Que Deus criou é mais importante do que como ele criou. A questão crucial
que devemos abordar é naturalismo versus sobrenaturalismo, não criação
versus evolução ou criacionismo da Terra antiga versus jovem.
• A majestade de Deus não diminui se ele criar durante um longo período de
tempo ou se ele criar indiretamente em vez de diretamente.
• A verdade, o poder e a historicidade da criação de Deus não são prejudica-
dos se um gênero diferente da narrativa histórica for usado em Gênesis.
• O Gênesis narra a história e, portanto, não é mitológico; sua historicidade é
reforçada pela compreensão que o Novo Testamento tem do Antigo.
• Embora Gênesis 1:1–2:4a seja provavelmente um gênero histórico-poético
em vez de prosa direta, não deve ser considerado inferior a uma narrativa
histórica direta.

425
Agostinho, O Significado Literal do Gênesis, 1.42-43.
192

• Uma vez que os escritores bíblicos utilizaram regularmente linguagem ob-


servacional (“fenomenalista”), não devemos acreditar erroneamente que os
primeiros capítulos de Gênesis são um livro científico.
• O impulso principal do Gênesis não é científico, mas teológico; serve como
uma crítica e um corretivo para as mitologias do antigo Oriente Próximo.
• A morte de animais ocorreu antes da existência dos seres humanos; com a
queda, a morte humana entrou no mundo.
• Os seres humanos e vários animais comiam carne antes do dilúvio de Noé.
193
194

O RELATO DA CRIAÇÃO EM GÊNESIS


CONTRADIZ A CIÊNCIA CONTEMPORÂ-
NEA (PARTE 2)

O
historiador Mark Noll apontou um fenômeno interessante dentro do
evangelicalismo americano: muitos – embora não todos – que insistem
em um “literalismo bíblico” ao ler os textos da criação de Gênesis tendem
a abordar o livro do Apocalipse da mesma maneira direta. Para deixar claro, Noll
caracteriza o criacionismo da Terra jovem como tendo uma atitude de tudo ou na-
da sobre a interpretação de certos textos.426 Se houver qualquer ambiguidade na in-
terpretação de certas palavras ou frases (“dia”, “tarde”, “manhã” em Gênesis; “du-
as testemunhas”, “1.000 anos”, “144.000” ou “1.260 dias” em Apocalipse), então
não podemos interpretar adequadamente nenhum texto ou entender a intenção do
autor, então a alegação continua. Ao interpretar as Escrituras, no entanto, não po-
demos tratar todos os tipos de literatura dentro das Escrituras de forma idêntica.
Não podemos interpretar a poesia ou a profecia da mesma maneira que a narrativa
histórica.427
Por exemplo, Craig Blomberg, do Seminário de Denver, comenta sobre o Apo-
calipse, que é parcialmente profético (e parcialmente apocalíptico) por natureza:
“Existe uma abordagem para interpretar as Escrituras que exige que todos os textos
sejam tomados literalmente, a menos que haja evidência clara do uso de figuras. do
discurso, mas por mais útil que essa abordagem possa ser para outros gêneros lite-
rários, quase certamente é mais enganosa do que útil quando se aborda a profe-
cia.428
Quando se trata de Gênesis, podemos estar interpretando mal os textos da cria-
ção de Gênesis se os tratarmos como uma narrativa histórica direta. Se, como mui-
tos estudiosos bíblicos acreditam, esta porção da Escritura é um tipo único de lite-

426
Mark Noll, Scandal of the Evangelical Mind (Grand Rapids: Eerdmans, 1994), 193–95. Veja alguns
dos comentários de Noll no capítulo 7, “Pensando sobre a ciência”.
427
Um bom exemplo dessa abordagem sensível ao gênero é Gordon Fee e Douglas Stuart, How to Read
the Bible for All Its Worth (Grand Rapids: Zondervan, 1993).
428
Craig L. Blomberg, “A Diversidade de Gêneros Literários no Novo Testamento”, em Crítica e Inter-
pretação do Novo Testamento, ed. David Alan Black e David S. Dockery (Grand Rapids: Zondervan,
1991), 524. Para uma discussão sobre esse fenômeno na América, veja Timothy Weber, “'Happily at the
Edge of the Abyss': Popular Premillennialism in America,” Ex Auditu 6 (1990): 87–100.
195

ratura, então não devemos usar princípios interpretativos para a narrativa histórica
para interpretá-la.
Embora possamos certamente encontrar razões para pensar que a palavra dia
(yôm) em Gênesis 1:1–2:4a poderia ser interpretada como um período de vinte e
quatro horas,429 esta não é a única interpretação legítima da texto.430 No capítulo
anterior, estabelecemos o contexto teológico e literário para discutir as especifici-
dades de Gênesis 1:1–2:4a. A história bíblica (como a historicidade de Adão) e a
sólida teologia não são prejudicadas pelo tratamento do dia em um sentido indefi-
nido ou mais flexível. O próprio Agostinho considerava os dias da criação como
épocas e advertiu contra o dogmatismo sobre a natureza desses dias: “Que tipo de
dias eram esses é extremamente difícil ou talvez impossível para nós conceber, e
quanto mais dizer!”431 Como estudiosos bíblicos como Gleason Archer, Derek
Kidner e Bruce Waltke argumentaram, existem sólidas razões bíblicas, além da
evidência científica, para considerar a palavra dia como um período de tempo pro-
longado ou indefinido, em vez de um termo literal. dia de vinte e quatro horas. O
pensador cristão Francis Schaeffer aconselhou que aquele dia em Gênesis 1 deve-
ria ser realizado com alguma abertura.432
Antes de implorar por mais espaço interpretativo em relação aos dias de Gêne-
sis, deixe-me apresentar brevemente outra alternativa intrigante que assume (1) o
universo tem bilhões de anos (em afirmação do que o estudo científico parece ter
estabelecido) e (2) dias em Gênesis 1:1–2:4a é um período de vinte e quatro horas
(ainda tomando a posição do criacionista da Terra jovem no dia). 433 Meu ponto ao
fazer isso é o seguinte: mesmo sustentando que os “dias” de Gênesis são vinte e
quatro horas, não requer uma interpretação da Terra recente.
John Sailhamer apresenta seu modelo “Criacionista Textual” em seu livro Ge-
nesis Unbound. Ele acredita que essa abordagem de Gênesis 1–2 se encaixa nota-
velmente bem com os “modelos científicos atuais do universo” – ou seja, o big
bang, a antiguidade do universo, eras geológicas/gelo, a extinção dos dinossauros
antes da criação dos humanos e em breve.434 O propósito primário dos primeiros
capítulos de Gênesis não é descrever como Deus fez o mundo/universo. Em vez
429
Como observei no capítulo 16, nossa abordagem moderna do texto deve ser diferenciada da aborda-
gem mais fenomenalista ou observacional adequada aos hebreus agrários do Antigo Oriente Próximo —
não uma abordagem técnica e cientificamente precisa.
430
Isso, apesar da afirmação de Gordon Wenham: “Pode haver pouca dúvida de que aqui [em Gênesis 1]
‘dia’ tem seu sentido básico de um período de 24 horas” (Gênesis 1–15, 19).
431
Agostinho, A Cidade de Deus, XI, vi; O Significado Literal do Gênesis, 4.43.
432
Schaeffer, Genesis in Space and Time, 57; Francis Schaeffer, No Final Conflict (Downers Grove, Illi-
nois: InterVarsity Press, 1976), 30.
433
John Sailhamer, Genesis Unbound: A Provocative New Look at the Creation Account (Sisters, Ore.:
Multnomah, 1996). Veja minha resenha deste livro no jornal American Scientific Affiliation (ASA),
Perspectives on Science and the Christian Faith 49, no. 1 (março de 1997): 64–65.
434
Sailhamer, Genesis Unbound, 15.
196

disso, é para descrever dois atos: (1) a criação do universo em Gênesis 1:1 (que
poderia ter durado bilhões de anos e, portanto, não foi instantânea) e (2) a prepara-
ção da terra para o povo de Deus em Gênesis 1:2–2:4a (o que levou um período de
tempo muito mais curto). Enquanto “céus e terra [ou céu e terra]” em 1:1 é uma fi-
gura particular de linguagem (chamada de merisma) expressando totalidade
(“Deus criou as obras!”), por si só a palavra terra (eretz) em 1: 2, que é melhor
traduzido como “terra”, refere-se à terra que Deus mais tarde prometerá a Abraão
em Gênesis 15:7 – a terra que se estende desde a região do Egito/Cush (Etiópia)435
até as fronteiras do Tigre e do Eufrates Rios (comp. Gn 2:11-14). Este é o Jardim
do Éden.
Sailhamer desafia outra suposição comum, mas não examinada, que a maioria
das pessoas traz para Gênesis 1:1–2:4a (implícita em nossas traduções para o in-
glês). Gênesis 1:2 não se refere a alguma massa informe que Deus moldou no
mundo como o conhecemos hoje (uma percepção errônea que pode ser atribuída à
influência do pensamento grego na tradução da Septuaginta, que afetou a Vulgata
latina - até o King James e versões modernas).436 Sailhamer segue os exegetas ju-
deus medievais, como Ibn Ezra e Rashi, que discordavam da “leitura global” hele-
nística de Gênesis 1:2ss. Sailhamer faz um argumento forte - mas de bom senso -
de que Gênesis 1–2 seja lido no contexto mais amplo do próprio Gênesis e também
de todo o Pentateuco, com sua ênfase em Deus preparando uma terra e um povo
para habitá-la; o Deus de Israel não é outro senão o Ser que tudo criou.
Eu mesmo tendo a pensar que os dias de Gênesis são períodos de tempo indefi-
nidos (pelas razões dadas abaixo), mas acho a abordagem de Sailhamer revigoran-
te, sensível ao texto e digna de consideração séria. Qualquer uma dessas aborda-
gens, porém, evita o que parece estar em forte conflito com as descobertas da ciên-
cia contemporânea. Mais uma vez, a Escritura tem autoridade e pode ajudar a guiar
e informar a pesquisa científica, em vez de sempre ser guiada por ela. Mas também
é verdade que as descobertas da ciência podem ajudar a corrigir nossas interpreta-
ções das Escrituras. Ao longo da história da igreja, certas interpretações das Escri-
turas precisaram ser modificadas à luz das descobertas da ciência (por exemplo, a
terra se move e gira em torno do sol). Estamos lidando com os dois livros de Deus
- a Palavra de Deus e as obras de Deus, nenhum dos quais está em conflito. Isso
significa que a teologia e a ciência podem aprender e se informar mutuamente.
Primeiro, se o gênero da parte inicial do Gênesis é de fato histórico-poético ou
não puramente histórico, então é injusto fazer exigências literárias injustificadas
sobre ele. Arthur Custance faz a afirmação comumente ouvida de que um ordinal
(“primeiro, segundo, terceiro” etc.) antes da palavra dia sempre se refere a um dia
435
Um dos rios do Éden, o Giom (Gn 2:13), corria pela terra de Cush (Etiópia).
436
Para comentários detalhados, veja Sailhamer, The Pentateuch as Narrative; John Sailhamer, “Gêne-
sis”, no Comentário Bíblico do Expositor, vol. 2, ed. Frank Gaebelein (Grand Rapids: Zondervan, 1990).
197

literal de vinte e quatro horas em hebraico.437 Portanto, qualquer leitura, exceto a


semana da criação de 144 horas, é ilegítima. Mas duas respostas estão em ordem.
Por um lado, isso não é verdade. Por exemplo, Oséias 6:2 usa a palavra dia prece-
dido por um ordinal em referência a um longo período de tempo: “Depois de dois
dias [Deus] nos reviverá; no terceiro dia ele nos restaurará”. Aqui o “terceiro dia”
não é um dia literal de vinte e quatro horas. Em vez disso, o dia é obviamente usa-
do figurativamente, e aqui faz um ponto teológico:438 O uso do Antigo Testamento
de “o terceiro dia”—embora frequentemente literal—conota salvação, resgate ou
ajuda divina.439 É por isso que 1 Coríntios 15:4 fala de Jesus sendo “ressuscitado
ao terceiro dia, segundo as Escrituras”, dando um sentido teológico mais completo
ao “terceiro dia” do que apenas uma leitura literal.
Por outro lado, se é verdade que a primeira parte do Gênesis é um gênero literá-
rio único, então apelar para outros usos da configuração ordinal mais dias para
provar que o dia nesta parte do Gênesis deve ser um período de vinte e quatro dias.
período de horas é uma imposição sobre o texto de Gênesis. Para fins de argumen-
tação, suponha que o texto grego (e não o hebraico) use o arranjo ordinal mais dias
para se referir a um dia de vinte e quatro horas em muitos casos. Mas então supo-
nha que esse mesmo arranjo seja usado em todo o livro do Apocalipse - uma obra
altamente simbólica da literatura profético-apocalíptica (particularmente 4:1–
22:8).440 Normalmente, números (como 3, 7, 10, 12 e seus múltiplos) e imagens
vívidas e bizarras na literatura apocalíptica da época de João eram usados simboli-
camente. Assim, começaríamos com a suposição de que algo é figurativo, a menos
que houvesse boas razões para tomá-lo literalmente. Meu ponto é o seguinte: seria
totalmente injustificado dizer que o dia deve significar vinte e quatro horas quando
essa literatura específica exige o tratamento simbólico de tais números.
Em segundo lugar, a palavra dia é flexível dentro do próprio texto de Gênesis.
A palavra yôm pode ser usada para um período literal de vinte e quatro horas (Gn
7:4), mas também para as horas do dia (Gn 29:7) ou para um período de tempo in-
definido (Gn 35:3). . Mas mesmo no início de Gênesis, dentro do próprio relato da
criação, o dia é usado por um longo período de tempo - ou seja, todo o processo

437
Arthur Custance, Time and Eternity (Grand Rapids: Zondervan, 1977), 115.
438
Cp. Amós 1–3, onde um uso figurado semelhante de números sequenciais (“três... quatro”) é usado:
“por três transgressões . . . e para quatro ”, o que denota uma abundância de transgressões.
439
Por exemplo, Isaque foi libertado da morte no terceiro dia (Gn 22:4; cf. 34:25; 40:20); José soltou seus
irmãos no terceiro dia (Gn 42:18); Os israelitas recebem água depois de viajar por três dias (Êxodo 15:22
e segs.); Ezequias é libertado da morte no terceiro dia (2 Reis 20:5); veja também Êxodo. 19:11; Ester
5:1; Jonas 1:17–2:2.
440
David Aune defende esse colapso em Apocalipse 1–5, Word Biblical Commentary, vol. 52A (Dallas:
Word, 1997). Para alguns exemplos de análise efetiva do Apocalipse, veja G. K. Beale, The Book of Re-
velation, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1999); e Richard
Bauckham, The Theology of the Book of Revelation (Cambridge: Cambridge University Press, 1993).
198

criativo desde o primeiro dia até o sexto dia:441 “Estas são as gerações dos céus e
da terra no dia fez o SENHOR Deus a terra e o céu” (Gn 2:4, tradução do autor).
Embora a NVI não capte adequadamente esse significado, dia é usado por um pe-
ríodo de tempo maior do que vinte e quatro horas.
Terceiro, o sétimo dia ainda não terminou. Somos informados de que Deus
descansou no sétimo dia, mas não há “tarde” e “manhã” como nos outros dias. A
implicação é que o sábado continua até hoje, o que é um período de tempo notável.
Se o sétimo dia não é de 24 horas, mas bastante longo, não poderia ser feito o
mesmo para os outros?442 Gordon Wenham adverte corretamente que

ao falar de sua criação do mundo em seis dias, não identificamos o modo de criação [de
Deus] com a criatividade humana nem precisamos assumir que o trabalho de sua semana foi
necessariamente realizado em 144 horas. Ao falar de seis dias de trabalho seguidos de um dia
de descanso, Gen 1 chama a atenção para a correspondência entre a obra de Deus e a do ho-
mem e o descanso de Deus como modelo para o sábado, mas isso não implica necessaria-
mente que os seis dias da criação sejam os mesmos como dias humanos [isto é, vinte e quatro
horas].443

Quarto, o fato de que “tarde” é mencionado antes de “manhã” é incomum e pode


ter significado simbólico—sacramental. “Houve tarde e houve manhã” é repetido
ao longo do texto da criação. Esse arranjo é um uso incomum da gramática, visto
que o dia hebraico começava pela manhã e terminava à noite.444 Parece que a noite
é mencionada primeiro - depois a manhã - para fazer uma conexão com a adoração
a Deus por seu povo. Por exemplo, Gênesis 1:14 indica que as luzes duravam dias,
estações e anos. Esta é a mesma linguagem usada posteriormente no Pentateuco
para as celebrações e dias sagrados de Israel (como a Páscoa ou o Dia da Expia-
ção), quando a noite é mencionada primeiro (como o ponto inicial do próprio dia)
e depois a manhã ou o dia seguinte.445 Meredith Kline sugere que a ordem da tarde
seguida pela manhã implica que esses dias têm um sentido de santidade ou sacra-
mentalismo. Este seria outro indicador provável de que yôm não deve ser interpre-

441
Gleason Archer, A Survey of Old Testament Introduction (Chicago: Moody Press, 1974), 186.
442
Alguns podem apontar para a referência ao dia do Senhor em Êxodo 20, mas a ênfase está no número
sete, não na duração dos dias (Thomas Key, “How Long Were the Days of Genesis?” Journal of the
American Scientific Affiliation 35 [setembro de 1984]: 160).
443
Wenham, Gênesis 1–15, 40. Se a interpretação da criação recente de Gênesis 1 estiver correta, a luz no
primeiro dia é anterior à criação do sol no quarto dia. Pattle Pun afirma que “a função visível do sol de
definir dias e anos não começou até o quarto dia, quando o sol foi revelado. Portanto, os primeiros quatro
dias definitivamente não eram dias solares de 24 horas como nós temos” (Evolution, 255). A luz da Terra
vem do Sol, e temos um grande problema logístico se o literalismo for levado longe demais.
444
Ver Gênesis 19:33–34; Juízes 6:38; 21:4; 1 Samuel 19:11; 28:19.
445
Cp. Êxodo 12:18 (Páscoa); Levítico 23:32 (Dia da Expiação). Veja Cassuto, Comentário sobre o Livro
de Gênesis, 1:28–29.
199

tado literalmente. A conotação de santidade cerimonial sugere fortemente um sig-


nificado figurativo.446
Quinto, o sexto dia em si está cheio de atividade, muito mais do que poderia ser
alcançado em um período de vinte e quatro horas. Se considerarmos os dias da
criação como períodos de vinte e quatro horas, teremos problemas com o texto.
Por exemplo, Gênesis 2:9 fala de Deus fazendo com que as árvores crescessem,447
mas esse crescimento não ocorreu em um curto momento. Tal crescimento não foi
como aquele retratado em fotografias de lapso de tempo em que uma flor ou arbus-
to parece crescer de um broto para uma planta madura em segundos! Vários fato-
res relativos ao sexto dia indicam um longo período de tempo, pelo menos mais de
vinte e quatro horas.
Fator 1: Gênesis 1:26–28 indica que tanto o homem quanto a mulher foram cri-
ados no sexto dia, que eles tiveram algum tempo para se conhecer, que Deus os
abençoou e ordenou que eles tivessem domínio sobre outras criaturas vivas. Ele
também lhes disse que podiam comer das ervas e das árvores como alimento
(1:29). Aqui temos o esboço de um dia lotado. Mas há mais.
Fator 2: Gênesis 2 entra em mais detalhes sobre o sexto dia, o que torna as coi-
sas ainda mais lotadas. Deus disse a Adão que ele poderia comer livremente de
qualquer uma das árvores (2:16), mas não da árvore do conhecimento do bem e do
mal (2:17). Então Adão deu nomes a todos os animais e pássaros (2:20), o que pre-
sumivelmente exigiu tempo para examinar cada um dos animais (o que natural-
mente incluiria observar suas características físicas, seu comportamento e seus há-
bitos) e pensar em um nome para isto. Dadas as milhares de espécies de animais
que existem hoje (para não mencionar as inúmeras que estão extintas), nos leva a
questionar seriamente como Adão poderia nomear todos eles em um período tão
breve. Hoje existem, modestamente falando, aproximadamente 8.600 espécies de
aves, 5.300 espécies de répteis e 2.500 espécies de anfíbios — sem contar o grande
número de espécies de insetos.448
Fator 3: Adão presumivelmente teve que observar os hábitos sociais e de acasa-
lamento dos animais para reconhecer que ele mesmo não tinha igual (2:20). Então
Deus colocou Adão em um sono profundo e criou Eva de seu lado. O novo casal

446
Kline, “Because It Had Not Rained,” 156.
447
Poythress, “Resposta a Paul Nelson e John Mark Reynolds,” em Three Views on Creation and Evolu-
tion, 93.
448
Key, “Quanto tempo duraram os dias de Gênesis?” 106. Enquanto alguns argumentam que Adão no-
meou apenas os animais no Jardim do Éden, se eles forem consistentes com a maneira como interpretam
o restante dos primeiros capítulos do Gênesis, eles teriam que dizer que ele nomeou todas as espécies.
Além disso, não é convincente argumentar que Adão (que ainda não sofria com os efeitos do pecado) po-
deria ter realizado muito mais trabalho do que podemos hoje porque ele trabalhou na velocidade do Su-
perman. Afinal, o próprio Jesus, o segundo Adão, não produziu mais juntas de bois de madeira ou im-
plementos agrícolas do que José na marcenaria só porque Jesus não nasceu com pecado original!
200

provavelmente gostaria de se conhecer antes de dormir depois de um dia cansativo.


O estudioso do Antigo Testamento, Gleason Archer, pergunta: “Quem pode ima-
ginar que todas essas transações poderiam ter ocorrido em um espaço de tempo tão
curto?”449 Parece melhor sustentar que os dias de Gênesis são indefinidos em vez
de especificáveis. Isso é reforçado por outro fator.
Fator 4: Quando Eva finalmente entrou em cena, Adão gritou: “Finalmente!”
ou agora!" (happa'am [2:23]), uma palavra que indica uma passagem significativa
de tempo. Além disso, “finalmente” é encontrado em outras passagens do Antigo
Testamento nas quais decorreu um período de tempo considerável. Veja, por
exemplo, a chegada da “justificação” de Lia, quando ela finalmente dá à luz filhos
para compensar o favoritismo de Jacó por sua irmã mais nova, Raquel (Gn 29:34-
35). Quando Jacó chega ao Egito para ver seu filho há muito perdido, José, ainda
vivo, ele diz que finalmente pode partir desta vida (Gn 46:30).450
Parece que a evidência da antiguidade do universo não contradiz o Gênesis,
pois o termo dia pode ser entendido como um período de tempo indefinido. A ci-
ência não enfraquece a Escritura, mas está em harmonia com ela.

RESUMO

• O criacionismo da Terra recente pode ser uma leitura permissível do texto de


Gênesis, mas é injusto dizer que é a única. O próprio texto do Gênesis per-
mite que a palavra dia signifique períodos indefinidos de tempo.
• Uma visão que vale a pena considerar é o “criacionismo textual” de John
Sailhamer, que assume (1) o universo tem bilhões de anos e (2) o dia em
Gênesis 1:1–2:4a é um período de vinte e quatro horas. A leitura criacionista
da Terra recente dos textos da criação (em que o dia é de 24 horas) não é a
única.
• Em hebraico, um ordinal (“primeiro, segundo, terceiro”) antes de yôm (dia)
nem sempre se refere a um período de vinte e quatro horas (por exemplo,
Oséias 6:2).
• Se o gênero da parte inicial do Gênesis é de fato histórico-poético ou não pu-
ramente histórico, então é injusto fazer exigências literárias injustificadas
sobre ele (como a configuração ordinal-yôm).
• O sétimo dia ainda não terminou (não há “tarde” e “manhã” como nos outros
dias). Se o sétimo dia não é de vinte e quatro horas, mas bastante longo, não
poderia ser feito o mesmo para os outros seis dias?

449
Archer, Old Testament Introduction, 186.
450
Esta palavra é traduzida como “agora” ou “desta vez” no Antigo Testamento (NVI, NASB), e a impli-
cação de esperar ou o decorrer do tempo é aparente (comp. Gn 46:30; Jz 15:3).
201

• O fato de a noite ser mencionada antes da manhã é incomum e pode ter um


significado simbólico — sacramental. Portanto, o texto pode não ser uma
narrativa histórica direta.
• O sexto dia parece bastante longo (Adão nomeia milhares e milhares de
animais, conhece seus hábitos de acasalamento, percebe que está sozinho e
assim por diante; quando Eva é finalmente criada, ele grita: “Finalmente!”
ou “Finalmente!” Agora!”— que indica a passagem de um longo período de
tempo).
202
203

COMO UM DEUS AMOROSO PODE


COMANDAR O GENOCÍDIO?

G
erd Lüdemann, um teólogo alemão que recentemente se tornou ateu, es-
creveu que “a ordem de extermínio é extremamente ofensiva, mesmo que
naquela época tenha sido dada por Deus de maneira altamente pessoal”.
Lüdemann se pergunta como tais atos poderiam ter algo a ver com um Deus mise-
ricordioso.451 Tal comando também teve repercussões ao longo da história ociden-
tal. Durante a época das Cruzadas, essa mentalidade de “guerra santa” foi imple-
mentada para matar judeus e muçulmanos.452
Vejamos o próprio texto bíblico. Observe o que Deuteronômio 20:16–18 diz
sobre a destruição de vários clãs e nações453 dentro da terra de Canaã:

Somente nas cidades destes povos que o Senhor teu Deus te dá por herança, não deixarás
com vida coisa alguma que respire. Mas tu os destruirás totalmente, aos heteus e aos amor-
reus, aos cananeus e aos perizeus, aos heveus e aos jebuseus, como o Senhor teu Deus te or-
denou, para que não te ensinem a fazer conforme todas as suas coisas detestáveis o que fize-
ram a seus deuses, para que pequeis contra o Senhor vosso Deus.454

451
Gerd Lüdemann, The Unholy in the Holy Scripture, trans. John Bowden (Louisville:John Knox Wes-
tminster, 1997), 54.
452
Ibid., 74.
453
Atos 13:19 fala de “sete nações” que foram escolhidas para serem destruídas. Números 13:29 inclui os
amalequitas como uma das nações desta região (comp. Gn 10:15-17). Os termos cananeu (em sua língua,
Kinahu ou Kinanu) e amorreu ou hitita muitas vezes se sobrepõem nas Escrituras (comp. Gn 36:2–3; Ez
16:3). Para leitura adicional sobre esses e outros povos do antigo Oriente Próximo, consulte Alfred J.
Hoerth, Gerald L. Mattingly e Edwin M. Yamauchi, eds., Peoples of the Old Testament World (Grand
Rapids: Baker, 1994).
454
No Antigo Testamento, vemos que, do ponto de vista de Deus, a guerra é pelo menos em princípio jus-
tificável. Deus ordenou aos israelitas que destruíssem os cananeus. Não que fosse uma tarefa simples e
limpa: “Foi um negócio medonho; a gente se encolhe horrorizado. No entanto, o texto bíblico claramente
atribui isso ao comando específico de Deus” (David Edwards e John Stott, Evangelical Essentials [Dow-
ners Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1988], 263).
Além disso, a luta de Israel não deve ser considerada uma “guerra santa” (como comparável ao con-
ceito muçulmano de jihad, em que a guerra serve como um instrumento para espalhar a fé). Foi uma
guerra comandada por Deus e, portanto, motivada religiosamente, mas seu propósito era servir ao julga-
mento divino sobre Canaã, o que também contribuiu para a preparação da terra para o uso dos israelitas.
O Antigo Testamento deixa claro que Deus é o iniciador da ideia de guerra, não os seres humanos. O
próprio Yahweh é declarado “um guerreiro” (Êx 15:3), “um guerreiro vitorioso” (Sf 3:17 NASB), saindo
“como um homem valente, como um guerreiro” (Is 42:13 ), que é “poderoso na batalha” (Salmos 24:8).
204

Como respondemos aos críticos que se perguntam como Deus pôde permitir que os
cananeus (um povo formado por sete nações menores)455 fossem exterminados? E
mesmo que a população adulta fosse perversa, por que desencadear tal fúria des-
trutiva em crianças inocentes? Tal ato foi justo ou imoral?
Primeiro, a guerra fazia parte da vida no antigo Oriente Próximo. Quando me
mudei para a cidade de Chicago para começar a pós-graduação, meu colega de
quarto Kent (que já havia se tornado um motorista experiente na cidade) me disse:
“Existem apenas dois tipos de motoristas em Chicago - os rápidos e os mortos!”
Descobri que para dirigir na Windy City eu precisava ser cauteloso e rápido – e, às
vezes, agressivo – para sobreviver.
No antigo Oriente Próximo, muitas vezes acontecia que, todas as coisas sendo
iguais, uma nação tinha que ser rápida — alerta para as manobras e tramas das na-
ções e tribos vizinhas — ou estaria morta! “A guerra era um estado normal no
mundo antigo do Oriente Próximo.”456 Para Israel, era "uma parte natural - embora
desagradável - do mundo em que viviam".457 Por exemplo, a cidade bíblica de Be-
tel, observou um famoso arqueólogo, foi destruída quatro vezes em um período de
duzentos anos (1200-1000 a.C.).458 Um estudioso resumiu a situação geral de Isra-
el desta forma: “Israel não lutou por sua fé, mas por sua existência”.459
Em segundo lugar, não podemos aceitar tais mandamentos divinos a menos que
entendamos o contexto histórico do plano salvador de Deus para o mundo inteiro
por meio do estabelecimento do povo de Israel. A razão pela qual a maioria das
pessoas caricatura os israelitas como nacionalistas sedentos de sangue, ganancio-
sos e famintos por terras é que eles isolaram a conquista de Israel dos ensinamen-
tos do Pentateuco sobre a política externa de Israel.460 A ordem de Deus para des-
truir os cananeus estava ligada à sua promessa a Abraão e sua descendência de que
eles possuiriam esta terra (Gn 15:7). O plano final de Deus não era uma agenda
nacionalista isolada. Em vez disso, desde o início Deus pretendia que, por meio de
Abraão e seus descendentes, todas as nações da terra recebessem a bênção de
Deus: “E todos os povos da terra serão abençoados por meio de você” (Gn 12:3).
No Novo Testamento, o cumprimento dessa promessa veio por meio de Jesus Cris-

Se o registro bíblico é confiável, então essas batalhas não fazem parte de uma “guerra santa”, mas de uma
“guerra de Jeová”.
455
Deuteronômio 7:1 inclui os girgasitas, listando todas as “sete nações”; cp. Atos 13:19 (“sete nações”).
456
John L. McKenzie, Dictionary of the Bible (Milwaukee: Bruce Publishing, 1965), 919.
457
Peter Craigie, “Yahweh é um homem de guerras,” Scottish Journal of Theology 22 (1969): 185.
458
William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Baltimore: Johns Hopkins, 1940), 219.
459
Roland de Vaux, Ancient Israel: Its Life and Institutions, 2d ed., trans. J. McHugh (London: DLT,
1968), 258.
460
J. Gary Millar, Now Choose Life (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 147. Este livro está sendo publica-
do pela InterVarsity Press.
205

to, cuja morte substitutiva sacrificial trouxe judeus e gentios igualmente para uma
nova comunidade do povo de Deus (Efésios 2:11–22). Esse cumprimento ocorreu
quando o cenário histórico estava perfeitamente definido - na "plenitude dos tem-
pos" (Gálatas 4:4-5).
Mas, para que o contexto cultural e religioso seja devidamente definido - a fim
de dar sentido teológico à morte de Jesus, o próprio clímax da história humana -
Deus ordenou que um determinado grupo étnico habitasse a terra, ou seja, a nação
de Israel. Deus também teve que criar uma história e uma identidade para este po-
vo, por meio da qual viria o Salvador do mundo. E as promessas de Deus a Abra-
ão, Isaque e Jacó — que envolviam a bênção e a salvação de todos os povos da ter-
ra — seriam grandemente prejudicadas se não fosse a remoção da cultura perversa
que cercava esse povo.461
Portanto, à luz da situação de Israel no antigo Oriente Próximo, a demanda (em
muitos casos) de pegar em armas em legítima defesa ou proteção da identidade ét-
nica e a importância de estabelecer um veículo para a salvação universal (ou seja,
Israel), O propósito de Israel na guerra torna-se mais claro. O que vemos aqui é o
resultado da revelação progressiva: no desenrolar da história da salvação, Deus
começa com a condição histórica de Israel e move a nação através da crueldade da
guerra para abrir caminho para a salvação em Cristo.
Em terceiro lugar, foi somente depois de muita espera paciente que Deus usou
os israelitas para punir uma civilização cananéia maligna e concedeu fuga àque-
les que a procuravam (como Raabe e sua família). Alguns críticos supõem que os
israelitas destruíram uma civilização inocente e decente. Nada poderia estar mais
longe da verdade!
Mesmo quando Deus fez sua promessa a Abraão de lhe dar a terra, Deus lhe
disse que seu cumprimento teria que esperar até que o pecado dos amorreus (que
viviam em Canaã) tivesse “chegado à sua medida” (Gênesis 15:16). Esse tempo de
espera duraria cerca de 430 anos, o que significava que Israel teria que suportar a
escravidão no Egito. Por que esse foi o caso? Deus estava dando tempo para que os
cananeus se voltassem para ele em arrependimento e fé. Essa compaixão divina foi
demonstrada à antiga cidade de Nínive quando os habitantes da cidade levaram a
sério as advertências de Jonas sobre o julgamento divino por sua iniqüidade. Deus
deu a mesma oportunidade aos de Jericó, embora apenas Raabe e sua família fi-
nalmente tenham respondido. Os habitantes dessa cidade reconheceram que foi o
verdadeiro Deus quem milagrosamente libertou Israel da escravidão no Egito,
permitindo que eles passassem pelo Mar Vermelho (Josué 2:9–13).462 Além disso,
a promessa de compaixão em vez de julgamento pertence a qualquer nação dispos-
461
Edwards and Stott, Evangelical Essentials, 263.
Para ver a plausibilidade histórica do evento do êxodo, veja Kevin Miller, “Did the Exodus Never Ha-
462

ppen?” Christianity Today, 7 de setembro de 1998, 44–51.


206

ta a se voltar para Deus e abandonar seu estilo de vida perverso (Jeremias 18:7–
10).
De qualquer forma, 430 anos foi tempo suficiente para que a culpa dos cana-
neus se acumulasse e para que essa cultura abandonasse suas práticas vis para ser-
vir ao Deus vivo e verdadeiro. A esperança estava sendo oferecida a eles, mas não
poderia continuar indefinidamente. Além desse ponto, a justiça não poderia mais
ser adiada.
Quarto, por causa do estilo de vida perverso e da falsa adoração de ídolos dos
cananeus, pode muito bem ter acontecido que a verdade do monoteísmo e a pureza
ética em Israel só poderiam ter sido preservadas através da destruição dessas cul-
turas rivais corruptas. Deus disse aos israelitas para não fazer aliança com os ca-
naneus ou seguir seus deuses ou suas práticas malignas (Êx 23:24, 32). De acordo
com Levítico 18:30, a terra de Canaã estava cheia de “costumes detestáveis”. Que
tipos de práticas malignas caracterizavam os cananeus? O arqueólogo William
Foxwell Albright listou alguns deles. Além do sacrifício infantil/humano, vemos
“sua adoração orgiástica da natureza, seu culto à fertilidade na forma de símbolos
de serpentes e nudez sensual, e sua mitologia grosseira”.463 Essas práticas tiveram
um efeito poluente ou profanador sobre essa cultura de tal forma que “a terra vo-
mitou seus habitantes” (Levítico 18:25). A destruição dos cananeus foi uma execu-
ção de justiça, uma vez que a paciência de Deus não podia mais esperar; a maldade
dos cananeus era muito maior do que a das nações pagãs vizinhas.
Além disso, a divina “dedicação à destruição” (hêrem) não se devia ao edito ir-
revogável e fixo de Deus, mas à má resolução dos próprios cananeus de rejeitar o
governo de Deus. Nas palavras de J. P. U. Lilley:

Os cananeus em geral nunca aceitariam a doutrina israelita de Deus e se submeteriam à sua


disciplina; o caso excepcional de Raabe apenas aponta o contraste. Todo um modo de vida
está em jogo. A religião degradada corrompeu o pensamento e a prática dos cananeus. . . e de
maneira nenhuma eles serão persuadidos a abandoná-lo. Sua sociedade está madura para jul-
gamento.464

Tal punição de Deus era justa e coincidia com o plano de Deus de estabelecer uma
terra, uma história e uma religião para Israel, por meio da qual viria um salvador
das nações. Por exemplo, se Israel fizesse uma aliança com Moabe ou Amon, os
israelitas realmente tomariam partido contra Deus (Deuteronômio 23:6). Fazer as
pazes com um significaria fazer um inimigo com o outro.465 Havia uma obrigação,
portanto, de expulsar os cananeus para que a adoração de Israel não fosse corrom-
463
Albright, From the Stone Age to Christianity, 214.
464
J. P. U. Lilley, “O Julgamento de Deus: O Problema dos Cananeus”, Themelios 22 (janeiro de 1997):
7.
465
Kaiser, Toward Old Testament Ethics, 178.
207

pida. Além da maldade dos cananeus, uma consideração ainda maior era que os is-
raelitas evitassem a poluição moral das práticas dos cananeus.466
Imitar a falsa adoração e as práticas imorais das culturas do antigo Oriente Pró-
ximo foi uma verdadeira tentação para os israelitas antes de seu exílio na Babilônia
em 587/586 a.C.467 Os cananeus, cuja cultura era particularmente vil em compara-
ção com seus vizinhos, precisavam ser destruídos (hêrem, como os hebreus o cha-
mavam) como toda uma cultura e povo. Os cananeus eram a ameaça mais séria à
verdadeira religião de Israel, que interferiria na preparação bem-sucedida para a
vinda do Messias.
Na presciência de Deus, foi precisamente por causa da maldade dos cananeus
que Israel pôde habitar esta terra. O estudioso do Antigo Testamento, Peter Crai-
gie, escreveu que havia duas razões principais para a destruição total dessas cultu-
ras, ordenada por Deus: (1) os israelitas eram instrumentos do julgamento de Deus;
a conquista não foi apenas o meio pelo qual Deus concedeu a seu povo a Terra
Prometida, mas também o meio pelo qual ele executou seu julgamento sobre os
cananeus por sua pecaminosidade (comp. Deut. 9:4). (2) Se os cananeus sobrevi-
vessem, sua religião profana poderia desviar Israel de servir ao Senhor.468 É por is-
so que o Senhor diz: “Vocês devem ser santos para mim. . . . Separei você das na-
ções para ser meu” (Levítico 20:26); e “Não sigam nenhum dos costumes detestá-
veis que eram praticados antes de vocês virem e não se contaminem com eles” (Lv
18:30; comp. 18:3).
Para os israelitas, coexistir com os cananeus representaria um dilema ético.
Embora os próprios mandamentos bíblicos sejam considerados duros,469 não cum-
pri-los teria prejudicado a própria teocracia e o plano de salvação que Deus havia
estabelecido.
Quinto, a ordem de Deus para destruir os cananeus refletia o direito de Deus
de dar e tirar a vida, por um lado, e a compaixão de Deus, por outro. A pergunta
óbvia é: por que Deus não ordenou aos israelitas que eliminassem apenas os adul-
tos e poupassem os bebês e crianças? A perspectiva é importante aqui. Entre outras
bênçãos divinas, a própria vida é uma dádiva de Deus, o Criador, e ele está perfei-
tamente justificado em dar e receber a vida como bem entender. Deus não deve a
ninguém um mínimo de setenta anos de vida. O filósofo Charles Taliaferro escreve
sabiamente:

466
Millar, Now Choose Life, 148.
467
Mais tecnicamente, Judá entrou no cativeiro babilônico. Depois de Salomão, o reino de Israel foi divi-
dido em dois: Judá (no sul) e Israel (no norte). Israel foi subjugado e totalmente disperso pelos assírios
em 722 a.C.
468
Peter C. Craigie, O Livro de Deuteronômio, Novo Comentário Internacional sobre o Antigo Testamen-
to (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), 276.
469
Deuteronômio 7:2: “Não faças pacto algum com eles, nem lhes mostres misericórdia.”
208

Se existe um sentido robusto em que o cosmos pertence a Deus, então a posição moral de
Deus desde o início é radicalmente desigual à nossa. . . . Indiscutivelmente, nossos direitos
são pelo menos protegidos se a propriedade de Deus for levada a sério. Estar assim em dívida
com Deus não parece dar a Deus o direito de criar seres apenas para atormentá-los, mas se a
vida é de fato um presente de Deus que nenhuma criatura merece. . . , então certas reclama-
ções sobre o pedido criado podem ser verificadas.470

Deus não tinha nenhuma obrigação de criar. E, tendo criado, Deus não tem obriga-
ção de sustentar o universo. Vivemos, nos movemos e existimos nele como um
dom. Como autor e doador da vida, Deus tem certas prerrogativas. Além disso, a
erradicação de certas culturas imorais e incorrigíveis pode, na verdade, ser vista
como uma misericórdia para a história da humanidade (pense na derrota do nazis-
mo ou na queda do comunismo soviético). Pode ser do interesse da raça humana
que uma cultura dê lugar a outra. E quanto aos bebês e crianças mortos no proces-
so? Teologicamente falando, esses bebês e crianças, após a morte, entraram em
uma existência celestial com Deus e foram poupados das influências corruptoras
de uma cultura cananéia. Do ponto de vista divino, talvez isso fosse tudo o que po-
deria ser feito com uma cultura tão perversa.471
Sexto, ao contrário de seus vizinhos, Israel não travava guerras pela guerra, e
os soldados de Israel deveriam lutar apenas quando certos deveres morais pesso-
ais fossem cumpridos. Deus fez certas exigências morais aos soldados de Israel. As
Cruzadas começaram no final do século XI e continuaram no século XIII. Jerusa-
lém havia sido capturada pelos turcos muçulmanos (seljúcidas) em 1071. Anunci-
ando Deus vult (“Deus quer”) e garantindo a salvação de todos os que morreram
nos combates, o Papa Urbano II472 em 1095 promoveu uma campanha em nome da
Deus para lutar contra os turcos. Por meio desse esforço, a Terra Santa foi recaptu-
rada em 1099. Um cruzado, após entrar em Jerusalém, escreveu em seu diário so-
bre a terrível matança de muçulmanos e judeus:

A quantidade de sangue que eles derramaram naquele dia é incrível. . . . Pilhas de cabeças,
mãos e pés podiam ser vistas nas ruas da cidade. . . . Foi um julgamento justo e esplêndido de
Deus que este lugar fosse preenchido com o sangue dos incrédulos, uma vez que havia sofri-
do por tanto tempo com suas blasfêmias.473

470
Charles Taliaferro, Filosofia Contemporânea da Religião (Malden, Mass.: Black-well, 1998), 317.
471
Para uma discussão mais completa sobre as guerras de Yahweh, veja Charles Sherlock, The God Who
Fights, Rutherford Studies in Contemporary Theology, vol. 6 (Lewiston, N.Y.: Edwin Mellen Press,
1993).
472
Ele foi papa de 1088 a 1099.
473
Citado em Thomas H. Greer, Uma Breve História do Homem Ocidental, 3ª ed. (Nova York: Harcourt
Brace Jovanovich, 1977), 223.
209

Não raramente, as pessoas supõem que os antigos exércitos israelitas eram selva-
gens sedentos de sangue, como os cruzados, que saqueavam, saqueavam e estupra-
vam indiscriminadamente. Embora estuprar mulheres e devastar a terra fossem
práticas comuns nas guerras do antigo Oriente Próximo, isso não acontecia com Is-
rael. Israel não lutou para derramar sangue ou destruiu para destruir.474 Qualquer
estupro teria sido intolerável e punido com a morte.475 Havia até leis sobre deixar
as árvores frutíferas em pé em vez de cortá-las (Deuteronômio 20:19–20). Os guer-
reiros de Israel também deveriam manter certos requisitos sagrados, para se mante-
rem longe de “tudo o que é impuro” (Deuteronômio 23:9).
Israel como nação deveria ser santo, não moralmente imprudente - mesmo em
sua guerra. Por exemplo, em vez de consultar o Senhor, Josué presunçosamente
atacou Ai (Josué 7:1ss.). Como Acã havia tomado parte do saque de Jericó (todos
os quais seriam destruídos sob a proibição de Deus), o exército israelita não estava
moralmente preparado para lutar. Por outro lado, Israel permaneceu comprometido
com sua obrigação de não destruir os gibeonitas prestes a serem atacados, que já
haviam feito um pacto enganoso com o povo de Deus. Josué havia concordado
com isso sem consultar a Deus (Josué 9:14) e, embora quebrar o tratado causasse
menos dores de cabeça logísticas, Israel fez a coisa certa. Ainda antes, os israelitas
foram lutar contra seus inimigos depois que Deus lhes disse expressamente que
eles teriam que vagar no deserto por quarenta anos. Como resultado, eles foram
repelidos (Nm 14:39–45; Dt 1:41–45). Mais tarde, quando Israel lutou contra os fi-
listeus, em vez de confiar em Deus, eles trataram a arca da aliança como um talis-
mã e esperaram uma derrota militar mágica de seus inimigos; os próprios israelitas
foram derrotados (1 Sam. 4:1–10).
Em todas essas guerras, os israelitas deveriam depender de Deus (por exemplo,
lembre-se da batalha contra Ai) em vez do poder humano para obter a vitória (por
exemplo, 2 Crônicas 35:22, quando Josias tolamente começou a lutar contra o Egi-
to sem nenhum benefício). razão). O ponto? Os israelitas deveriam lutar apenas da
maneira que Deus queria: na dependência dele e na pureza moral.
Também podemos notar que a própria terra de Canaã não era de Israel por direi-
to, como se eles merecessem possuí-la. A Terra Prometida foi uma dádiva, e os
meios de possuí-la vieram pela direção e capacitação de Deus. E para que não pen-
semos que Israel foi escolhido por causa de sua justiça para ser o meio de punição
divina contra os cananeus, Deuteronômio 9:4–5 deixa claro que foi a maldade des-

474
William Henry Greene, “A Ética do Antigo Testamento”, em Classical Evangelical Essays, ed. Walter
Kaiser (Grand Rapids: Baker, 1972), 222.
475
Sobre a suposta permissibilidade do estupro que alguns impingiram ao Antigo Testamento, veja Paul
Copan, “Is Michael Martin a Moral Realist? Sic et Non,” Philosophia Christi, série 2, 1, no. 2 (1999): 67–
72.
210

sas nações—não a própria posição moral de Israel—que permitiu a Israel possuir a


terra.
Sétimo, se Israel se desviasse do Deus com quem havia feito uma aliança, Isra-
el ficaria sujeito às mesmas ameaças de punição e julgamento que seus predeces-
sores cananeus haviam sofrido. Viver sob o governo de Deus (uma “teocracia”)
envolvia duas coisas para Israel: (1) outras nações eram proibidas de minar o rela-
cionamento da aliança de Deus com Israel. Porque Israel fez uma aliança exclusiva
com o Senhor no Monte Sinai,476 eles foram proibidos de fazer alianças políticas
unilaterais com outras nações (o que, por implicação, significaria que eles reco-
nheceram e aprovaram seus deuses). Fazer isso seria um ato de deslealdade para
com o Senhor.477 Qualquer provocação ou ameaça ao bem-estar de Israel - como
os reis Siom e Og em Números 21 - trouxe o julgamento de Deus.
Além disso, (2) Israel cairia sob o julgamento de Deus se transigisse em sua ali-
ança com o Senhor. Depois que o reino do sul de Judá se voltou de Javé para a
adoração de ídolos e suas imoralidades rituais associadas, Deus disse que enviaria
os babilônios (caldeus) para realizar a punição divina contra os israelitas. O profeta
Habacuque retrucou que os babilônios eram ainda mais perversos do que os habi-
tantes de Judá! Novamente, a punição não foi baseada na justiça da Babilônia, mas
na maldade de Judá.
Deus advertiu repetidamente que se Israel abandonasse a aliança que haviam
feito no Sinai, ele os trataria como as outras nações (Deuteronômio 28:15ss.; Josué
23:14–16). Deus não mostrou favoritismo para com Israel (“Israel não pode fazer
nada errado”), pois mesmo durante as peregrinações no deserto sob a liderança de
Moisés, Deus em várias ocasiões matou muitos - às vezes milhares e milhares -
dos israelitas desobedientes e queixosos por doença, dor e morte. Quando Israel
abandonou sua aliança com o Senhor e adorou os deuses das nações vizinhas, Deus
executou o julgamento e a ira (Jeremias 21:3–7). Os inimigos invasores não mos-
trariam “nenhuma misericórdia, nem piedade, nem compaixão” (21:7) para com Is-
rael e Judá e os levariam para o exílio.
Oitavo, Israel deveria oferecer termos de paz antes de lutar (Deuteronômio
20:10). Na maioria das guerras, os israelitas estavam se defendendo e não eram os
agressores; freqüentemente, eles eram maltratados por seus inimigos que muitas
vezes procuravam erradicá-los. Ao conduzir seus negócios com as nações da Terra
Prometida, a primeira obrigação de Israel para com as nações vizinhas era ofere-
cer-lhes termos de paz (Deuteronômio 20:10: “Quando você marchar para atacar

476
O Livro de Deuteronômio foi escrito na forma de um antigo tratado de suserania do Oriente Próximo:
um “grande rei” e um “vassalo” fariam uma aliança com certas estipulações e condições. Para uma dis-
cussão, veja Craigie, The Book of Deuteronomy, 36–45.
477
Christopher Wright, Deuteronômio, Novo Comentário Bíblico Internacional, vol. 4 (Peabody, Mass.:
Hendrickson, 1996), 110.
211

uma cidade, faça ao seu povo uma oferta de paz” ). Se a cidade obedecesse, o povo
entraria em trabalhos forçados; se a cidade recusasse, então Israel faria guerra con-
tra ela.
Cada genuína “guerra de Yahweh” sempre foi iniciada pelo próprio Javé e nun-
ca por Israel.478 Quando Israel iniciou a guerra sem a aprovação divina, as conse-
quências provocaram o desânimo de Deus. Ao contrário do que muitos supõem, Is-
rael não iniciou - por meio da direção de Deus - a maioria de suas batalhas; em vez
disso, eles lutaram defensivamente.479 Por exemplo:

• Os amalequitas atacaram Israel no deserto (Êxodo 17:8), e Israel teve que se


defender.
• O rei cananeu de Arad iniciou um ataque a Israel e levou alguns israelitas
cativos (Números 21:1).
• Moisés enviou mensageiros a Siom, o rei dos amorreus, e pediu permissão
para passar pacificamente por sua terra, prometendo não tocar em nada de-
les. Siom rejeitou essas “palavras de paz” (Deuteronômio 2:26) e reuniu suas
tropas para lutar contra Israel; então Israel assumiu o controle do território
de Siom (Números 21:21–32).
• Quando Moisés e os israelitas entraram em Basã, Og, o rei, saiu para enfren-
tá-los na batalha (Dt 3:1); assim os israelitas se defenderam e tomaram posse
deste território também.
• Cinco reis atacaram Gibeom precisamente por causa de seu pacto de paz
com Israel (Josué 10:4: “Venha... ajude-me a atacar Gibeão,... porque fez
paz com Josué e os israelitas”). Então Josué defendeu Gibeão e subjugou es-
ses reis.
• A vingança é tomada contra Midiã por suas tentativas deliberadas de desviar
Israel através da idolatria e imoralidade (Números 31:2–3; compare. 25;
31:16).

Conforme mencionado anteriormente, até mesmo a cidade de Jericó teve a oportu-


nidade de se arrepender — quarenta anos, na verdade. Os habitantes sabiam sobre
a maravilhosa libertação de Israel do Egito por Deus (Josué 2:8-14), mas apenas
Raabe e sua família se voltaram para o verdadeiro Deus (6:25). Ao lermos Deute-
ronômio, descobrimos que, até certo ponto, “a bênção pode recair sobre as nações
que cruzarem o caminho de Israel, se responderem sabiamente ao povo de Jeo-
vá”.480
478
Tremper Longman III e Daniel G. Reid, God Is a Warrior (Grand Rapids: Zondervan, 1995), 33.
479
Jericó teve a oportunidade de se arrepender porque sabia da grandeza de Deus (Josué 2:8–14), mas
apenas Raabe e sua família o fizeram (6:25).
480
Millar, Now Choose Life, 153.
212

Além disso, Deus proibiu Israel de conquistar outras nações vizinhas que os is-
raelitas poderiam ter conquistado se estivessem lutando por lutar: Moabe e Amon,
porque o sobrinho de Abraão, Ló, era seu antepassado (Dt 2:9, 19); e Edom, por-
que seu pai Esaú era irmão de Jacó (Deut. 2:4; 23:7), apesar do fato de que Edom
havia se recusado anteriormente a ajudar os israelitas (Nm. 20:14–21; cf. Deut. 2:6
–8).
Nono, as nações inimigas de Israel são vistas por Deus como objetos potenciais
de sua misericórdia, se humildemente responderem. Eles poderiam receber a mise-
ricórdia de Deus durante os tempos do Antigo Testamento ou mais tarde através da
obra de Jesus Cristo, através de quem esses gentios crentes seriam incorporados ao
povo de Deus.481 Vimos anteriormente que o plano de Deus era manter Israel mo-
ralmente puro e religiosamente não contaminado para que ele pudesse ser o meio
de bênção e salvação para as nações vizinhas. Isaías 19 fala do plano final de Deus
de abraçar os inimigos de Israel – Egito e Assíria – como "meu povo" e "minha
obra" (v. 25). Isso é algo que ocorre na era da nova aliança através da obra de Je-
sus e do dom de seu Espírito a todas as nações (cp. Ef. 3:6, que afirma que os gen-
tios são "coerdeiros" com Israel no recebimento da salvação de Deus; Cp. Atos
15:13–18).
Mesmo no Antigo Testamento, Deus clama de compaixão pelas nações gentias
como Moabe (Is 15:5; 16:9), algo que teria chocado o público hebreu inicial. A
preocupação final de Deus é ver “todas as nações” – os “confins da terra” – expe-
rimentar “a salvação do nosso Deus” (Isaías 52:10). Isso reflete o tipo de mensa-
gem evidente no livro de Jonas: a preocupação de Deus com o bem-estar espiritual
e a salvação do odiado inimigo de Israel, a Assíria (Nínive). Portanto, mesmo que
o julgamento divino sobre os inimigos pagãos que ameaçavam o bem-estar de Is-
rael - e o próprio Israel - fosse necessário para preservar Israel da corrupção moral
e religiosa, esse julgamento era para o bem final e a bênção da humanidade (Gn
12:3).
Décimo, o comando dado por Deus para guerrear era único e irrepetível. Em-
bora os chamados cristãos tenham usado mal os mandamentos do Antigo Testa-
mento para justificar cruzadas ou pogroms contra os judeus, esses mandamentos de
Deus foram obviamente limitados ao estabelecimento e preservação de Israel como
a única teocracia verdadeira. Não podemos justificar o genocídio hoje com base
nos mandamentos do Antigo Testamento, nem Israel pode usar esses mandamentos
para justificar suas guerras modernas: “A ideia do povo de Deus engajado em
guerra contra outras nações supostamente 'pagãs' não é mais uma opção. porque a

481
As ideias nesta seção foram extraídas de John A. Wood, Perspectives on War in the Bible (Macon,
Ga.: Mercer University Press, 1998), 97–103.
213

base original da distinção nacional (conforme expressa em Deuteronômio 7:6) não


se aplica à comunidade multinacional dos seguidores de Jesus”.482

RESUMO

• A guerra fazia parte da vida no antigo Oriente Próximo. Israel teve que lutar
para sobreviver.
• Os mandamentos de Deus para destruir não podem ser entendidos correta-
mente a menos que entendamos o contexto histórico do plano salvador de
Deus para o mundo inteiro por meio do estabelecimento do povo de Israel
como uma teocracia.
• Somente depois de muita espera paciente, Deus usou os israelitas para punir
uma civilização cananéia maligna e garantir a fuga para aqueles que a procu-
ravam (como Raabe e sua família).
• A ordem de Deus para destruir os cananeus reflete o direito de Deus de dar e
tirar a vida, por um lado, e sua compaixão, por outro. Bebês e crianças que
foram mortos foram para o céu e foram finalmente poupados da influência
corruptora da religião e cultura cananéia.
• Ao contrário de seus vizinhos, Israel não travava guerras pela guerra, e os
soldados de Israel deveriam lutar apenas quando certos deveres morais pes-
soais fossem cumpridos. Deus fez certas exigências morais aos soldados de
Israel.
• Se Israel se desviasse do Deus com quem havia feito uma aliança, então Is-
rael ficaria sujeito às mesmas ameaças de punição e julgamento que seus
predecessores cananeus haviam sofrido.
• Israel deveria oferecer termos de paz antes de lutar (Deuteronômio 20:10).
Na maioria das guerras, os israelitas estavam se defendendo e não eram os
agressores; freqüentemente, eles eram maltratados por seus inimigos que
muitas vezes procuravam erradicá-los.
• As nações inimigas de Israel são vistas por Deus como objetos potenciais de
sua misericórdia, se elas responderem humildemente. Eles poderiam receber
a misericórdia de Deus durante os tempos do Antigo Testamento ou mais
tarde por meio da obra de Jesus Cristo e sua incorporação ao povo de Deus.
• O mandamento divino de guerrear era único e irrepetível e injustificado em
nossos dias.

482
Wright, Deuteronomy, 114.
214
215

A BÍBLIA NÃO APROVA A ESCRAVIDÃO?

E
m 1846, o educador americano Samuel Gridley Howe testemunhou um
evento que, segundo ele, “me gelou até a medula dos ossos”. Uma garota
negra foi levada a uma prisão de Nova Orleans por seu mestre para ser chi-
coteada pelo carrasco comum. Não houve julgamento, juiz ou júri - apenas a exi-
gência do mestre de que ela fosse espancada. Nua e deitada de bruços, ela estava
em exibição para todos os prisioneiros verem. Ela foi amarrada pelos polegares e
pelos pés enquanto era severamente chicoteada: “Cada golpe trazia uma tira de pe-
le. . . enquanto o sangue o seguia.”483 Ela se contorceu e gritou, gritando para seu
mestre parar de chicotear. O que chocou ainda mais Howe foi a indiferença e até o
riso dos que estavam na prisão.
Quando ouvimos falar de tal tratamento horrível de seres humanos, que era bas-
tante comum no Sul antebellum,484 ficamos chocados com tal desumanidade e cru-
eldade. Assim, admiramos a liderança corajosa de Abraham Lincoln, que declarou
em sua Proclamação de Emancipação que, em 1º de janeiro de 1863, “todas as pes-
soas mantidas como escravas” nos estados rebeldes “serão então, doravante e para
sempre livres”.
Infelizmente, não é incomum ouvir as pessoas associarem esse tratamento mise-
rável aos escravos com a escravidão comum durante os tempos bíblicos. Não raro
me fazem as perguntas: “Por que não lemos sobre a condenação da escravidão na
Bíblia? Por que a abolição da escravatura não é apresentada como uma espécie de
programa social na Bíblia? Por que os escritores bíblicos se calam sobre o assunto,
até mesmo parecendo endossá-lo?”
Primeiro, a escravidão durante os tempos bíblicos era diferente da escravidão
no antigo Sul. Supor que a escravidão durante os tempos bíblicos era a mesma que
era na América antes da guerra é um grande mal-entendido. A escravidão no Anti-
go Testamento não era, como disse um estudioso do Antigo Testamento, “a horrí-
vel instituição conhecida pelo mesmo nome nos países ocidentais modernos”.485
Em vez disso, muitas vezes (embora nem sempre) aproximava as relações de em-
483
Este relato foi retirado de John Carey, ed., Eyewitness to History (Cambridge: Harvard University
Press, 1988), 318–19.
484
Veja, por exemplo, Frederick Douglass, Narrative of the Life of Frederick Douglass: An American
Slave, ed. Deborah E. McDowell (Oxford: Oxford University Press, 1999); ou Harriet Beecher Stowe,
Uncle Tom's Cabin, ed. Jean Fagan Yellin (Nova York: Oxford University Press, 1998).
485
Walter Kaiser, Toward Old Testament Ethics (Grand Rapids: Zondervan, 1983), 98.
216

pregador e empregado, embora o escravo fosse geralmente considerado proprieda-


de de seu mestre.486
Durante o primeiro século d.C., aproximadamente 85 a 90 por cento da popula-
ção de Roma consistia em escravos.487 Embora os escravos fossem considerados
propriedade de seus senhores e não tivessem direitos legais, eles tinham uma série
de outros direitos e privilégios, incluindo (1) o potencial de iniciar um negócio, (2)
a possibilidade de ganhar dinheiro significa comprar liberdade (manumissão) de
seus senhores, ou (3) o direito de possuir propriedade (conhecido como pecu-
lium).488
Os escravos executavam uma variedade de tarefas. Alguns eram funcionários
públicos ou imperiais que tinham cargos de prestígio e impunham poder e respeito.
De fato, havia escravos do outro lado do espectro que, por exemplo, trabalhavam
em minas em condições horríveis. Entre esses extremos estavam os escravos do
templo, pedagogos/“tutores”, artesãos e agentes comerciais.489
Embora muitos escravos pudessem comprar sua liberdade, boa parte deles op-
tou por não fazê-lo por causa da segurança que seus senhores lhes ofereciam (ves-
tuário, comida, abrigo, bom emprego). Deixar o mestre era um movimento em di-
reção a uma vulnerabilidade significativa. Durante o tempo de Paulo, a relação
mestre-escravo fornecia benefícios e oportunidades suficientes para abafar qual-
quer pensamento de comportamento revolucionário. Um escravo liberto inscreveu
em sua lápide: “A escravidão nunca foi cruel comigo.”
O estudioso do Novo Testamento, Ben Witherington, documentou atitudes an-
tigas em relação à escravidão.

• Nenhum ex-escravo que se tornou escritor jamais atacou a escravidão como


tal.
• As revoltas de escravos nunca buscaram abolir a instituição, mas apenas pro-
testar contra os abusos.
• Na maioria das vezes, eram trabalhadores livres e não escravos que eram
abusados por capatazes e patrões. (Afinal, um proprietário teria uma perda
contínua se abusasse de seu escravo.)490

486
Ibid.
487
A. A. Ruprecht, “Slave, Slavery”, no Dictionary of Paul and His Letters, ed. Gerald Hawthorne e ou-
tros. (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1993), 881–83.
488
D. B. Martin, Slavery as Salvation: The Metaphor of Slavery in Pauline Christianity (New Haven:
Yale University, 1990), 1–49.
489
Ben Witherington III, Conflict and Community in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and
2 Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 182. Alguns de meus comentários nesta seção foram reti-
rados de Witherington, 181–185.
490
Ibid., 183–84.
217

Embora a posse de escravos certamente não fosse ideal e a reforma social precisas-
se ser implementada, não devemos associar erroneamente essa prática no mundo
bíblico com a escravidão anterior à guerra no sul ou no oeste em geral.491
Em segundo lugar, como a escravidão estava tão arraigada no antigo Oriente
Próximo, essa prática foi mitigada, limitada e controlada na lei de Moisés, em vez
de abolida.492 Certos regulamentos e restrições em relação à escravidão foram im-
plementados na lei de Moisés no Monte Sinai. Embora a liberdade da escravidão
fosse um status ideal na sociedade israelita (por exemplo, como visto na libertação
regular de escravos a cada sete anos e no ano do Jubileu a cada cinquenta anos), a
escravidão não foi facilmente eliminada. Por um lado, os escravos estrangeiros
eram normalmente obtidos por meio da vitória de uma nação na guerra sobre outra.
E esses estrangeiros, de alguma forma, deveriam ser assimilados a uma sociedade
sem permitir que se rebelassem contra seus novos senhores ou simplesmente dei-
xá-los sozinhos em sua própria terra, onde poderiam reunir forças e lançar um con-
tra-ataque. Dadas as realidades econômicas que produziram a escravidão,493 Deus
instituiu leis para Israel que se aplicavam à sua situação atual. Embora muitas leis
em Israel fossem um notável afastamento e aperfeiçoamento das práticas e leis de
seus vizinhos, a lei de Moisés refletia alguns dos princípios e práticas culturais
comuns no antigo Oriente Próximo.494 O próprio Jesus referiu-se à lei de Moisés
quando falou do divórcio como sendo menos do que ideal: Foi permitido - não or-
denado - por causa do pecado humano e da dureza de coração (Mateus 19:8). Por-
tanto, dado que tais práticas não seriam erradicadas por causa do pecado humano e
de certas dimensões indesejáveis, mas arraigadas das culturas do antigo Oriente
Próximo, elas precisavam pelo menos ser regulamentadas e limitadas.495 De fato,
ao fazer tais concessões, o próprio Antigo Testamento reconheceu a inconsistência
e anormalidade da propriedade de escravos496 (como fazia com o divórcio).497
Deus disse aos israelitas que eles não deveriam manter seus compatriotas em es-
cravidão por mais de seis anos porque “vocês foram escravos no Egito” (Deutero-
nômio 15:15)
Em terceiro lugar, a lei de Moisés abordava os abusos, pois, segundo a Bíblia,
os senhores não tinham direitos absolutos sobre seus escravos. Harriet Beecher

491
Simplesmente porque houve muitas brutalidades contra os escravos no Sul não significa que todos os
escravos foram tratados com extrema crueldade.
492
Richard Bauckham, The Bible in Politics: How to Read the Bible Politically (Louisville: Westminster
John Knox, 1989), 36.
493
Ibid., 108.
494
Ibid., 36.
495
Ver John Goldingay, Theological Diversity and the Authority of the Old Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1987), cap. 5.
496
Bauckham, The Bible in Politics, 36.
497497
Cp. Malachi 2:14–16.
218

Stowe escreveu que no sul antes da guerra, os senhores tinham controle absoluto
sobre todas as facetas da vida de seus escravos: “O poder legal do senhor equivale
a um despotismo absoluto sobre o corpo e a alma”.498 Além disso, “não há prote-
ção para a vida do escravo”, observou ela.499
Por outro lado, as exigências bíblicas sobre aqueles que tinham escravos e ser-
vos presumiam que o poder do mestre não era absoluto, embora essa fosse a supo-
sição geral no antigo Oriente Próximo. Na verdade, um mestre poderia perder a vi-
da se matasse seu escravo (Êxodo 21:20, 23). Se um mestre infligia ferimentos
corporais em seu escravo (como arrancar um dente ou um olho), o escravo era au-
tomaticamente libertado (Êxodo 21:23–26). O escravo — estrangeiro ou hebreu —
tinha um dia de descanso a cada semana (Êxodo 20:10; Deuteronômio 5:14).500
Todos os escravos em Israel deveriam estar envolvidos na vida religiosa e nas ce-
lebrações da nação (Deuteronômio 12:12, 18). Qualquer tratamento degradante ou
opressivo dos escravos foi condenado como errado pelos escritores bíblicos; os es-
cravos que fugiram de mestres severos não deveriam ser devolvidos, mas abriga-
dos e protegidos (Deuteronômio 23:15-16).
Além disso, durante os tempos do Antigo Testamento, alguns israelitas destituí-
dos — desesperados — venderam-se como escravos para pagar suas dívidas. Mas
eles poderiam ser mantidos em escravidão por apenas seis anos, após os quais fo-
ram libertados (Êxodo 21:2; Deuteronômio 15:12; Jeremias 34:14).501 Além disso,
os escravos israelitas não podiam ser vendidos por seus senhores (Lv 25:42).

498
Harriet Beecher Stowe, A Key to Uncle Tom's Cabin; Apresentando os fatos e documentos sobre os
quais a história se baseia, juntamente com declarações corroborativas que verificam a veracidade da
obra (Boston: John P. Jewett, 1853), I.10, 139.
499
Ibid.
500
Kaiser, Toward Old Testament Ethics, 289.
501
Êxodo 21: 20–21 diz: “Se um homem espancar seu escravo ou escrava com uma vara e o escravo mor-
rer como resultado direto, ele deve ser punido, mas não deve ser punido se o escravo se levantar depois
de um dia ou dois, já que o escravo é sua propriedade.” Embora alguns sustentem que o escravo aqui é
mera propriedade e pode ser maltratado, esta passagem na verdade endossa a personalidade e a dignidade
dos escravos humanos. Se o mestre espancasse um escravo tão severamente que ele morresse imediata-
mente, o mestre era julgado pela pena capital (Walter Kaiser, “Exodus”, in Expositor's Bible Commen-
tary, ed. Frank C. Gaebelein [Grand Rapids: Zondervan, 1990], 433) . Esta pena capital (“vida por vida”
[20:23]) confirma que o escravo era considerado um ser humano com dignidade. Por outro lado, se o es-
cravo não morresse imediatamente como resultado desse ato de usar a vara – não uma arma letal, mas um
instrumento de disciplina – então “ao senhor foi dado o benefício da dúvida; ele foi julgado por ter golpe-
ado o escravo com intenções disciplinares e não homicidas” (ibid.). Isso provaria que a intenção do mes-
tre não era assassina; se o escravo morresse imediatamente, nenhuma outra prova era necessária. Mais
adiante, lemos que mesmo o menor dano a um escravo daria direito ao escravo à liberdade e à isenção de
qualquer dívida adicional (26-27).
Quando a passagem diz que o escravo é a “propriedade” do mestre, o ponto não é que os escravos são
meros bens móveis, mas que “o proprietário tem um investimento neste escravo que ele pode perder pela
morte (sem mencionar a pena de morte também). ou por emancipação (vv. 27-28)” (ibid., 435). Matar um
escravo prejudicaria o bolso do mestre (seu “dinheiro”). Kaiser comenta: “Esta lei não tem precedentes
219

Quarto, a Bíblia afirma que os escravos tinham total personalidade, dignidade


e direitos ao lado de seus senhores, um avanço significativo em comparação com
as culturas antigas circundantes. Ao contrário do Sul anterior à guerra, no qual os
escravos que escapavam de seus senhores que os maltratavam severamente deveri-
am ser devolvidos a seus senhores, Deuteronômio 23:15–16 exorta: “Se um escra-
vo se refugiou com você, não o entregue a seu mestre. Deixe-o viver entre vocês
onde ele quiser e em qualquer cidade que ele escolher. Não o oprima.” A opressão
contínua de um escravo fugitivo era proibida.
No Livro de Jó, o mestre Jó fala da plena humanidade daqueles que trabalharam
para ele como escravos:

Se neguei justiça aos meus servos e servas


quando eles tinham uma queixa contra mim,
o que farei quando Deus me confrontar?
O que responderei quando chamado a prestar contas?
Aquele que me criou no ventre não os fez?
O mesmo não nos formou dentro de nossas mães?

31:13–15

Os estudiosos da Bíblia observaram que o reconhecimento no Antigo Testamento


de escravos com direitos legais e valor intrínseco como seres humanos foi nada
menos que revolucionário em sua época. Christopher Wright declara sobre o es-
cravo no Antigo Testamento: “O escravo recebeu direitos humanos e legais inédi-
tos nas sociedades contemporâneas”.502 Este foi um avanço radical no antigo Ori-
ente Próximo. “Temos na Bíblia”, observa outro erudito, “os primeiros apelos na
literatura mundial para tratar os escravos como seres humanos para seu próprio
bem e não apenas no interesse de seus senhores”.503
Da mesma forma, no Novo Testamento, o apóstolo Paulo (assim como os ou-
tros escritores do Novo Testamento) tinha uma perspectiva revolucionária sobre a
escravidão no cenário do primeiro século, especialmente visto em sua rejeição da
suposição de que os escravos são propriedade. Em Efésios 6 e Colossenses 4, ele
dá “regras domésticas” não apenas para escravos, mas também para mestres. Por
um lado, Paulo lembra aos escravos em Efésios 6 que se lembrem de que, em últi-
ma análise, estão servindo a Deus, seu Mestre celestial. Por outro lado, ele diz aos

no mundo antigo, onde um mestre poderia tratar seu escravo como quisesse” (ibid., 433). Portanto, vemos
aqui que a intenção da passagem sustenta, em vez de destruir, a dignidade do escravo.
502
Christopher J. H. Wright, Walking in the Ways of the Lord (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press,
1995), 124.
503
Muhammad A. Dandamayev, “Slavery (OT)”, no Anchor Bible Dictionary, vol. 6, ed. David Noel
Freedman (Nova York: Doubleday, 1992), 65.
220

senhores para “tratar seus escravos da mesma maneira”, ou seja, como pessoas go-
vernadas por um Mestre celestial (Efésios 6:9). O comentarista do Novo Testa-
mento P. T. O'Brien aponta que “a exortação enigmática de Paulo é ultrajante” pa-
ra sua época.504 Para Paulo, ameaçar, aterrorizar, manipular ou humilhar escravos
era inaceitável. Além disso, em uma das listas de vícios de Paulo (1 Tim. 1:9–10,
que expõe do quinto ao nono mandamentos em Êxodo 20 e Deuteronômio 5), ele
condena os “comerciantes de escravos” (NVI), ou traficantes de escravos, como
violadores do oitavo mandamento (“Não furtarás”).505 Paulo deixa clara sua pró-
pria posição sobre o comércio de escravos, que tende a passar despercebida pelos
críticos.
Paulo também lembra aos amos cristãos que eles próprios são co-escravos do
mesmo Senhor, que é imparcial. Os senhores não devem maltratar seus escravos só
porque os escravos estão em uma posição inferior na escala social: “De uma ma-
neira sem precedentes, os escravos são tratados como pessoas eticamente respon-
sáveis (comp. Colossenses 3:22–25) que, como seus senhores, são membros do
corpo de Cristo."506 Como cristãos, tanto o escravo quanto o senhor pertenciam a
Cristo, em quem não há “nem escravo nem livre” (Gálatas 3:28; Colossenses
3:11). O status espiritual era e é mais fundamental do que o status social. A posi-
ção social inferior não diminui nosso valor aos olhos de Deus, nem como seres
humanos nem como crentes cristãos.
Quinto, os escritores bíblicos não falaram diretamente contra a escravidão pe-
la mesma razão que Jesus não falou diretamente contra o governo de Roma: a re-
forma social era secundária em relação a certas transformações internas de atitu-
de. Começando no Antigo Testamento e continuando no Novo, vemos um enfra-
quecimento da base da escravidão na cultura circundante. Com relação ao Antigo
Testamento, “embora não tenha realmente abolido uma instituição que era univer-
sal no mundo antigo, a lei do Antigo Testamento humanizou consideravelmente e
até mesmo . . . miná-lo, como resultado da experiência de libertação de Israel do
Egito”.507
O Novo Testamento leva essa ênfase ainda mais longe. Embora Jesus certamen-
te tenha sido o fundador de um movimento revolucionário, ele fez isso de uma
maneira que virou as expectativas das pessoas de cabeça para baixo. Jesus não in-
troduziu um projeto social ou econômico para a reforma para substituir a ordem
existente. Considere o que Jesus disse sobre o uso do dinheiro: em vez de impor
porcentagens financeiras fixas ou uma quantia para dar, economizar e gastar, Jesus

504
P. T. O’Brien, The Letter to the Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 454.
505
Ver Gordon D. Fee, 1 e 2 Timothy, Titus NIBC, vol. 13 (Peabody, Mass.: Hendrickson, 1988), 45–46,
49n.
506
Ibid., 455.
507
Bauckham, The Bible in Politics, 109.
221

defendeu atitudes específicas, como contentamento e generosidade, em vez de in-


veja, ganância e consumo. Como escreve o estudioso do Novo Testamento R. T.
France: “O ensinamento registrado de Jesus não contém nenhum ataque explícito
ou mesmo referência ao atual sistema sócio-político como tal, muito menos uma
proposta concreta para sua reforma. . . . Sua preocupação é com a orientação bási-
ca da vida de um homem.”508 Quando implementadas, essas atitudes oferecem -
em forma de semente - esperança econômica para indivíduos e comunidades e li-
mitam a corrupção e a opressão dentro de várias estruturas sociais.
Da mesma forma, Paulo não aborda diretamente a abolição da escravatura, que
teria criado uma enorme convulsão social ao deixar um grande número de pessoas
desempregadas no Império Romano. O historiador e estudioso bíblico N. T.
Wright sugere que é melhor protestar contra o sistema de hipotecas no Ocidente.509
A abordagem de Paulo, ao contrário, é sutil: ele elogia certas perspectivas e atitu-
des (por exemplo, que escravos e senhores são igualmente humanos e, dentro da
comunidade cristã, são irmãos e irmãs em Cristo) que também oferecem um vis-
lumbre de esperança para o futuro mudanças sociais onde existem desigualdades e
injustiças. Por exemplo, Paulo lembra a Filemom que seu escravo recém-
convertido, Onésimo, é um irmão em Cristo - na mesma base espiritual - e Paulo
implora para que ele seja tratado como tal. Outra passagem oferece sementes para
a reforma do sistema de escravidão: 1 Coríntios 7:20-22. Embora uma questão in-
terpretativa certamente entre em jogo aqui,510 pode-se argumentar plausivelmente
que Paulo está encorajando os escravos a adquirir sua liberdade sempre que possí-
vel. .
Além disso, vários escravos em congregações cristãs conhecidas de Paulo são
especificamente mencionados em suas cartas. Por exemplo, em Romanos 16, An-
dronicus e Urbanus são mencionados, e esses nomes eram usados quase exclusi-
vamente para escravos.511 Mas porque os mestres e escravos cristãos eram irmãos e
irmãs em Cristo, poderia haver uma vida harmoniosa. E não havia base espiritual
para proibir os escravos de assumir posições de liderança na igreja, mesmo acima
de seus senhores. Mas o problema real veio com escravos cristãos de mestres pa-
gãos. Se alguém pudesse ganhar liberdade em tal situação, Paulo recomendou isso
(como em 1 Coríntios 7).
O Novo Testamento nos lembra que todos os seres humanos são feitos à ima-
gem de Deus (Tiago 3:9), e todos os crentes são irmãos e irmãs em Cristo – uma
508
R. T. France, “God and Mammon,” Evangelical Quarterly 51 (1979): 16. Para uma discussão soberba
de uma teologia bíblica de bens materiais, veja Craig L. Blomberg, Neither Poverty nor Riches (Grand
Rapids: Eerdmans, 1999).
509
N. T. Wright, Colossians and Philemon, Tyndale New Testament Commentary, vol. 12 (Downers
Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1986), 150, 169.
510
Veja Ruprecht, “Slave, Slavery,” 882.
511
Ibid.
222

razão ainda mais forte para não tratar outras pessoas como propriedade. Quando
Paulo envia o escravo fugitivo Onésimo para casa, para seu mestre Filemom, ele
não diz: “Tome-o de volta como um ser humano que tem direitos” — por mais
verdadeiro que isso fosse. Em vez disso, Paulo pede a Filemom que receba de vol-
ta Onésimo como irmão em Cristo: “Em vez de proibir a escravidão, [Paulo] impôs
a comunhão”.512 Assim, qualquer instituição ou estrutura social que prejudique a
dignidade humana, a liberdade e o direito de adorar o Mestre supremo é incompa-
tível com o cristianismo e deve ser combatida.
O estadista cristão John Stott oferece uma resposta à aparente tolerância da es-
cravidão por Deus:

Permitir a continuação [da escravidão] como o divórcio “por causa da dureza de seus cora-
ções” não é o mesmo que tolerá-la. Não. Os ativistas do século XIX se opunham à escravidão
não com base no fato de que a atitude tolerante da Bíblia era um lapso cultural temporário,
mas com base no fato de que a escravidão entrava em conflito com o ensino bíblico sobre a
dignidade dos seres humanos feitos à imagem de Deus. Pela mesma razão [do divórcio] a lei
do Antigo Testamento o regulava cuidadosamente, tornando-o mais humano e provendo al-
forria [isto é, obter a liberdade legal de um senhor], enquanto o Novo Testamento foi além,
exigindo “justiça” para os escravos (Colossenses 4:1) e declarando que o escravo cristão e o
dono de escravos são “irmãos” (Filemom 16; 1 Timóteo 6:2). Assim, princípios foram esta-
belecidos nas Escrituras com os quais a escravidão foi percebida com crescente clareza como
incompatível.513

Em outras palavras, o Novo Testamento mina a escravidão indiretamente, agindo


como fermento em uma massa. Os escravos recebiam um lugar de honra na comu-
nidade cristã e, com o tempo, esse novo ponto de vista poderia ter um impacto na
sociedade em geral.514 A Bíblia realmente abre a porta para uma reversão das es-
truturas sociais nas quais as estruturas sociais opressivas são toleradas. Quando
Paulo ordena aos senhores cristãos que chamem seus escravos de “irmão” ou “ir-
mã” e mostrem compaixão, justiça e paciência, o verme já está na floresta por alte-
rar a estrutura social.515 “Propriedade” não significava mais privilégio e status para
o mestre, mas responsabilidade e serviço.
Em sexto lugar, pode-se facilmente imaginar que fazer da abolição da escrava-
tura um pilar do dogma cristão primitivo – dentro do contexto do domínio romano
– poderia ter oferecido uma razão equivocada ou falsa para se filiar à igreja. Tal-
vez os primeiros líderes cristãos tenham exercido sabedoria ao não transformar o

512
James Tunstead Burtchaell, Philemon's Problem: A Theology of Grace (Grand Rapids: Eerdmans,
1998), 21.
513
John Stott, “A Bíblia e o Comportamento/Resposta”, Evangelical Essentials, 269.
514
Witherington, Conflict and Community in Corinth, 185.
515
Burtchaell, Philemon’s Problem, 16.
223

cristianismo em um movimento sociopolítico.516 Talvez você já tenha ouvido falar


de “cristãos de arroz”, aqueles em países em desenvolvimento que, a fim de obter
assistência material/monetária, “convertem-se” ao cristianismo. Claro, isso não é
nenhuma conversão. É simplesmente um meio grosseiro de obter assistência. Da
mesma forma, se um escravo se filiasse à igreja meramente por causa de algum
plano prometido para abolir a escravidão, ele se filiaria pelo motivo errado e pode-
ria obscurecer a mensagem do evangelho. E, é claro, tal movimento seria facilmen-
te anulado por um poderoso Império Romano, que normalmente era rápido em su-
primir tais rebeliões.
A revelação de Deus sobre a questão da escravidão é progressiva. Leva em con-
sideração a doação desta instituição no antigo Oriente Próximo. Deus faz exigên-
cias importantes aos israelitas, enfatizando que os escravos não são propriedade,
mas seres humanos que têm os mesmos direitos perante seu Criador (Jó 31:13–15).
No Novo Testamento, os senhores são responsáveis perante Deus pela forma como
tratam seus escravos, e a libertação da escravidão é incentivada se surgir a oportu-
nidade (1 Coríntios 7:21). Além disso, senhores e escravos dentro da igreja são ir-
mãos e irmãs em Cristo, um conceito que tem implicações sociais revolucionárias.

RESUMO

• Embora os escravos fossem considerados propriedade durante os tempos bí-


blicos, a escravidão era diferente do que era no Sul antes da guerra.
• Devido à universalidade da escravidão no antigo Oriente Próximo e à grande
dificuldade em reformar o sistema, a Bíblia ofereceu medidas humanizado-
ras e legais para controlar e limitar a prática da escravidão.
• A lei de Moisés abordava os abusos da escravidão, uma vez que os senhores
não tinham direitos absolutos sobre seus escravos.
• A Bíblia afirma que os escravos tinham total personalidade, dignidade e di-
reitos ao lado de seus senhores, um afastamento revolucionário e um avanço
moral além das culturas antigas circundantes (comp. Jó 31:13–15).
• Os escritores do Novo Testamento não falaram diretamente contra a escravi-
dão pela mesma razão que Jesus não falou diretamente contra o governo de
Roma: a reforma social era secundária em relação a certas transformações
internas de atitude.
• Os escritores bíblicos oferecem, em forma de semente, a base para a trans-
formação social — especialmente ao afirmar que os escravos são iguais aos
seus senhores diante de Deus e, se crentes, estão na mesma família espiritu-
al.

516
Obrigado a Travis Poortinga por este ponto.
224

• Fazer da abolição da escravatura um pilar do dogma cristão primitivo —


dentro do contexto do governo romano — pode ter oferecido uma razão
equivocada ou falsa para se filiar à igreja.
225
226

OS EVANGELHOS SE CONTRADIZEM

J
ohn E. Remsburg foi um conhecido palestrante itinerante sobre “livre pensa-
mento” no final do século XIX. Ele escreveu livros sobre Thomas Paine e crí-
ticas à Bíblia e era o que poderíamos chamar de “fundamentalista de esquer-
da”.517 Certamente estamos familiarizados com o termo depreciativo “fundamenta-
listas de direita”. Eles são chamados de “batedores da Bíblia” — conservadores rí-
gidos ou tradicionalistas que tendem a ver tudo simplesmente como preto no bran-
co, desde a interpretação da Bíblia até a determinação de como cada detalhe da vi-
da deve ser vivido. Eles parecem ter o temido medo de que alguém, em algum lu-
gar, de alguma forma esteja se divertindo!518
Infelizmente, muitos céticos rejeitam a integridade intelectual da crença cristã
por causa das exigências claras feitas pelos fundamentalistas de direita. Por outro
lado, os fundamentalistas de esquerda estão vivos e bem hoje. Eles cometem o
mesmo tipo de erro que seus equivalentes conservadores – exceto que são céticos
dogmáticos. Muitas das alegadas “contradições” e “distorções” dentro dos Evange-
lhos, de acordo com os fundamentalistas de esquerda, acabam sendo o resultado de
sérios mal-entendidos sobre o que conta como uma discrepância real ou um enfra-
quecimento da historicidade dos Evangelhos. Nenhum historiador confiável rejei-
taria a confiabilidade geral de um documento simplesmente porque tais discrepân-
cias secundárias existem.
Um fundamentalista de esquerda como Remsburg observa, por exemplo, as va-
riações dos Evangelhos sobre a inscrição na cruz de Jesus: A de Marcos 15:26 (“O
rei dos judeus”) difere daquela de João 19:19 (“Jesus de Nazaré, o Rei dos Ju-
deus”);519 portanto, parece que há um problema sério com a confiabilidade dos
Evangelhos.520 Remsburg também descarta a partida da sagrada família do Egito
(Mateus 2:15) como um “cumprimento” de Oséias 11:1 (“Do Egito chamei meu fi-

517
Agradeço a Craig A. Evans por sugerir esse termo para mim.
518
Estou adaptando o que o satírico H. L. Mencken erroneamente atribuiu aos puritanos, muitos dos
quais estavam realmente tão preocupados em encontrar sua maior alegria em Deus que evitavam qual-
quer coisa que pudesse diminuir essa alegria.
519
O trabalho de Remsburg ressuscitou há relativamente pouco tempo: The Christ: A Critical Review and
Analysis of the Evidence of His Existence (Amherst, N.Y.: Prometheus, 1994), 190.
520
Para obter uma introdução útil à compreensão dessas diferenças, consulte Robert Stein, The Synoptic
Problem (Grand Rapids: Baker, 1987).
227

lho”): Este texto do Antigo Testamento “refere-se claramente ao êxodo dos israeli-
tas do Egito”.521
Ao abordar uma amostra das acusações fundamentalistas de esquerda neste e no
próximo capítulo, darei algumas sugestões para lidar com essas questões. Mas,
primeiro, devemos observar que o estudo da história bíblica deve ser abordado
com um realismo crítico, não com um literalismo ingênuo. Se alguém já assistiu a
um jogo de beisebol, deve saber que o que é um strike para o árbitro home plate
nem sempre é óbvio para o rebatedor, e o que o árbitro chama de bola às vezes é
contestado pelo arremessador e pelo receptor. Claro, o julgamento do árbitro acaba
prevalecendo - apesar dos protestos dos jogadores ou de seus gerentes de chute na
poeira. Às vezes, os golpes são claros; outras vezes não são. Fazer um julgamento
é necessário.
O estudo dos Evangelhos também requer um julgamento. Quando os estudamos
– como fazemos com outros supostos textos históricos – precisamos fazer certos
julgamentos interpretativos. Às vezes, esses julgamentos são diretos e claros; ou-
tras vezes, requerem algum discernimento crítico. Algumas pessoas – sejam cren-
tes ou céticas – podem abordar seus estudos de maneira ingênua; eles assumem
que as “bolas e rebatidas” interpretativas são óbvias. Por um lado, um crente pode
argumentar que a maneira como um evento é descrito é exatamente como aconte-
ceu. Por exemplo, quando o crente lê sobre a voz no batismo de Jesus em Mateus
3:17 (“Este é o meu Filho amado, com quem me comprazo”), ele assume que isso
é precisamente o que foi dito (embora ele admitirá que foi dito em aramaico e não
em inglês!). Por outro lado, um cético apontará para a passagem paralela em Mar-
cos 1:11 (onde diz: “Tu és meu Filho amado; em ti me comprazo”) e acusará que
esses relatos são claramente contraditórios. O mesmo tipo de acusação poderia ser
feito sobre os vários relatos da confissão de Pedro522 ou a inscrição na cruz de Je-
sus.523
Nesse caso, o crente (o “fundamentalista de direita”) e o cético (o “fundamenta-
lista de esquerda”) estão começando com uma suposição defeituosa de realismo ou
literalismo ingênuo (“o que você vê é exatamente o que obtém”). Mas há outra
maneira de abordar a história: o realismo crítico.524 O realismo crítico sustenta que

521
Remsberg, The Christ, 81.
522
“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mateus 16:16); “Tu és o Cristo” (Marcos 8:29); “O Cristo de
Deus” (Lucas 9:20).
523
“Este é Jesus, o Rei dos Judeus” (Mateus 27:37); “O Rei dos Judeus” (Marcos 15:26); “Este é o Rei
dos Judeus” (Lucas 23:38); “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus” (João 19:19).
524
Esse ponto é abordado em Twelftree, Jesus the Miracle Worker, pp. 243–244. Twelftree aponta outra
categoria de “fazer história” – o fenomenalismo: Tudo o que podemos saber é o que nos aparece (fenô-
menos), o que sentimos e percebemos. Essa abordagem nega que possamos ter qualquer conhecimento
objetivo sobre a história. Claro, este método cético não pode ser sustentado, uma vez que afirma que o
228

existe uma realidade passada fora do historiador e dos documentos que ele estuda
(realismo), mas muitas vezes há um processo interativo entre os dados disponíveis
e o historiador (crítico). O fato de existirem variações nos relatos paralelos do
Evangelho significa que devemos abandonar a abordagem ingênua de fazer histó-
ria. Mas mesmo que o crente seja impreciso ao dizer que “Este é meu Filho” é exa-
tamente o que foi dito (afinal, temos pequenas variações em outros Evangelhos), o
realista crítico pode afirmar que esta é a essência do que a voz celestial suposta-
mente disse - sem concluir que os relatos do Evangelho estão errados. Por outro
lado, o cético espera demais ao exigir que todos os relatos paralelos sejam idênti-
cos. (Na verdade, se fossem idênticos, isso nos pareceria suspeito. Talvez os escri-
tores dos Evangelhos tenham se engajado em uma trama colaborativa para supri-
mir qualquer variação.)
Antes de examinar possíveis discordâncias no texto bíblico, deixe-me ressaltar
o que eu disse anteriormente: mesmo que os escritores do Novo Testamento real-
mente se contradigam em relação a detalhes históricos secundários, isso não preju-
dica sua confiabilidade histórica geral como fonte sobre a pessoa e a obra de Jesus.
Ao contrário do muçulmano, que não pode estar errado sobre a confiabilidade do
Alcorão (que foi criticado recentemente),525 a confiabilidade histórica geral da Bí-
blia - que incluiria dados sobre a pessoa e a obra de Jesus de Nazaré e seu signifi-
cado salvador - não diminui, mesmo que existam erros em detalhes secundários.
Para o muçulmano, o Alcorão é eterno e puramente divino. O cristão acredita que a
Bíblia, embora divinamente inspirada, também foi escrita por humanos, e assim
permite o uso de documentos, variação no estilo de escrita e assim por diante. O
muçulmano tem muito menos espaço de manobra. Portanto, podemos obter infor-
mações históricas sólidas dos Evangelhos e outros escritos do Novo Testamento
(especialmente Atos).526
Surpreendentemente, algumas pessoas rejeitam a confiabilidade de todo o
Evangelho de Lucas,527 por exemplo, apelando para dificuldades históricas como o

próprio fenomenalismo é real ou factualmente verdadeiro, que descreve como o estudo da história real-
mente funciona, que não é simplesmente uma questão de percepção.
525
Além do trabalho de Arthur Jeffery, The Qur'an as Scripture (Nova York: Russell Moore, 1952); e Ar-
thur Jeffery, ed., Materials for the History of the Text of the Qur'an: The Old Codices (Leiden: Brill,
1937), veja o ensaio de nível mais popular de Toby Lester, "What Is the Koran?" Atlantic Monthly (janei-
ro de 1999): 43–56.
526
Veja especialmente o trabalho meticulosamente documentado de Colin J. Hemer, The Book of Acts in
the Setting of Helenistic History (Tübingen: Mohr, 1989), que confirma a credibilidade de Lucas como
um historiador antigo de primeira linha.
527
Para uma apresentação da confiabilidade do Evangelho de Lucas, veja I. Howard Marshall, Luke: His-
torian and Theologian, 3d ed. (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1998). Deve-se notar que o
Livro de Lucas é tecnicamente a primeira parte da única história de Lucas-Atos, pois muitos de seus te-
mas são antecipados em Atos (como a vinda do evangelho aos gentios, conforme prometido em Lucas
229

censo de Augusto em Lucas 2:1 (apesar da atenção notavelmente precisa do Evan-


gelho aos detalhes); ou podem apelar para a aparente discrepância entre João e os
Evangelhos Sinópticos em relação ao momento da Última Ceia.528 Mesmo que es-
ses fossem problemas intransponíveis, dificilmente seria uma justificativa para der-
rubar a confiabilidade geral dos Evangelhos. Por exemplo, a documentação meti-
culosa e a verificação histórica/arqueológica do Evangelho de Lucas e dos Atos
(que são uma unidade em vez de duas obras distintas), fornecem uma base sólida

2:32) . Por si só, Lucas é incompleto. Ver Joel B. Green, The Gospel of Luke, New International Com-
mentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 6–10.
528
Lucas 22:7–15 indica que na noite em que o cordeiro pascal foi sacrificado, Jesus celebrou a Páscoa
com seus discípulos (ver também Mateus 26:17–20). (A Páscoa, é claro, era a comemoração da libertação
de Israel do Egito por Deus, especialmente quando o anjo da morte “passou por cima” das casas marca-
das com sangue de cordeiro nas ombreiras [Êxodo 12:13 e segs.].) João 18:28 parece contradizer isso:
“Então os judeus levaram Jesus de Caifás ao palácio do governador romano. A essa altura já era de ma-
nhã cedo e, para evitar a impureza cerimonial, os judeus não entraram no palácio; eles queriam poder
comer a Páscoa”.
João 19:14 (também 19:31) fala do “dia da preparação”. Mas preparação para quê? Se for a prepara-
ção para a Páscoa, então João sugere que Jesus foi enviado para a execução mais ou menos na mesma
época em que os cordeiros da Páscoa estavam sendo abatidos. Se for esse o caso, então a refeição que Je-
sus e seus discípulos desfrutaram na noite anterior não foi a ceia da Páscoa, o que contradiz o que os
Evangelhos Sinópticos indicam - que eles comeram a Páscoa. (Veja Marcos 14:12, onde os preparativos
foram feitos para a Páscoa; o cordeiro pascal foi abatido entre 3:00 e 5:00 da tarde no décimo quarto dia
de Nisan, que aconteceu na quinta-feira durante este ano em particular [D. A. Carson, The Evangelho se-
gundo João (Grand Rapids: Baker, 1991), 456]). No entanto, os sinópticos parecem corretos ao insinuar
que os discípulos comeram a ceia da Páscoa com Jesus. Então, quando Judas supostamente saiu, depois
de ter comido esta última ceia, “para comprar o necessário para a festa” (João 13:28–29), ele não iria
comprar nada para a festa da Páscoa, que já havia acontecido. celebrado e que deu início à Festa dos Pães
Ázimos, que durou uma semana. Ele estava recebendo o que era necessário para a próxima refeição du-
rante a Festa dos Pães Asmos (ou seja, para a noite de sexta-feira).
Assim, quando João se refere ao desejo dos líderes judeus de “comer a páscoa”, deveria significar
“comer a refeição que caiu no dia da festa da páscoa” (ou seja, durante a festa dos pães ázimos de uma
semana)., não a refeição da Páscoa em que o cordeiro abatido foi comido (David Wenham, Easter Enig-
ma, 2ª ed. [Grand Rapids: Baker, 1992], 151 n). Os quatro Evangelhos concordam, portanto, que a ceia
da Páscoa era comido na quinta-feira à noite (o início da sexta-feira, de acordo com a contagem judaica) e
não uma refeição comum (Carson, O Evangelho segundo João, 604):

• Dia 1 (Páscoa) — quinta-feira (14 de Nisan/2 de abril de 33 d.C. — embora muitos historiadores
acreditem que foi em 30 d.C.): Início da Semana da Páscoa/Festa dos Pães Asmos. Páscoa cele-
brada.
• Dia 2 (Dia da Preparação)—Sexta-Feira Santa (15 de Nisan/3 de abril): O “dia da Preparação”
(para o sábado [João 19:14]); os discípulos acreditaram que Judas iria comprar algo para esta re-
feição (João 13:28–29).
• Dia 3 (Sábado)—Sábado (16 de Nisan/4 de abril).
• Dia 4 (Primeira Páscoa)—Domingo (17 de Nisan/5 de abril).
230

para ver Lucas como um historiador antigo eminentemente confiável.529 O Evange-


lho de João também toma o cuidado de observar importantes informações geográ-
ficas, culturais e topográficas - muitas das quais foram verificadas arqueologica-
mente (Pórtico de Salomão, Porta das Ovelhas, Piscina de Siloé e assim por dian-
te). Isso é significativo: uma vez que a maioria dos estudiosos pensa que João es-
creveu após a destruição de Jerusalém, o autor deste Evangelho deve estar total-
mente familiarizado com os costumes e o layout da Palestina/Jerusalém antes de
Jerusalém ser dizimada; ele não estava simplesmente inventando sua história à dis-
tância. Tanto em Lucas-Atos quanto em João, portanto, ambos os escritores enfati-
zam o tema significativo do testemunho e “sua capacidade de induzir a fé”.530 Eles
querem que os leitores levem a sério sua tentativa de precisão e seu desejo de per-
suadir as pessoas da verdade transformadora do evangelho de Jesus. Para repetir a
essência desses assuntos introdutórios: Os Evangelhos apresentam um relato histó-
rico confiável do ministério de Jesus.
Como, então, podemos harmonizar supostos conflitos e discrepâncias nos
Evangelhos sem forçar a credibilidade histórica? Considerando as ênfases particu-
lares de um escritor do Evangelho, prestando atenção ao seu público, observando
suas estratégias literárias e examinando o contexto social e cultural de sua obra –
para não mencionar uma série de outros cenários (que não podemos cobrir aqui).
Primeiro, a harmonização geralmente é possível quando notamos a ênfase es-
tratégica (ou “teologia”) de um determinado evangelista. Você provavelmente

529
Lucas 2:1–2 indica que um censo foi feito por César Augusto para que o mundo civilizado fosse tribu-
tado — um censo durante a época de Quirino, governador da Síria. De 6 a 9 d.C., Publius Sulpicius Qui-
rinius foi um legado ou governante designado sobre a Síria e morreu em 21 d.C. Surgem alguns proble-
mas: (1) Jesus provavelmente nasceu em 4 a.C. (pouco antes de Herodes, o Grande, morrer; quanto tem-
po Jesus esteve no Egito com Maria e José não está claro); então isso teria acontecido antes de Quirino
ser governador ou governante da Síria. (2) Não há vestígios de um decreto neste momento na pesquisa
histórica existente.
Sem dúvida, houve um decreto sob Augusto, emitido em 10–9 a.C., e isso se repetia a cada quatorze
anos. Augusto decretou censos várias vezes; simplesmente não temos acesso a todos eles. E às vezes o
que um governador começava era completado pelo próximo, que então recebia o crédito por isso. Um
censo decretado sem dúvida levaria muito tempo para ser concluído. Mas e quanto a esse censo ocorrido
durante o governo de Quirino? Primeiro, tenha em mente que Quirino pode ter governado a Síria durante
dois períodos separados, um entre 12 e 2 a.C. Embora a maioria das traduções para o inglês afirme que o
censo ocorreu durante seu governo, o texto poderia ser traduzido como “Este censo ocorreu antes de
[prôtos ser usado em sentido comparativo aqui] Quirino ser governador da Síria”. João 5:36 e 1 Coríntios
1:25 têm o mesmo significado (Marshall, Commentary on Luke, New International Greek Testament
Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1978], 99, 104). Portanto, talvez com todos esses fatores em
mente, o relato bíblico não deva ser julgado como historicamente impreciso. (Para uma discussão mais
detalhada, veja Darrell L. Bock, Lucas 1:1–9:50, Baker Exegetical Commentary on the New Testament,
vol. 1 [Grand Rapids: Baker, 1994], 903–9.)
530
A. A. Trites, The New Testament Concept of Witness, Studies in the New Testament Series, Mono-
graph 31 (New York: Cambridge University Press, 1977), 128.
231

conhece o livro Homens são de Marte, mulheres são de Vênus.531 Embora contes-
tado por alguns no passado, as diferenças gerais (embora variando em grau) entre
homens e mulheres são óbvias. Mesmo que os cônjuges compartilhem muitos inte-
resses semelhantes e uma visão comum da vida, eles frequentemente verão e avali-
arão situações, relacionamentos e conversas pessoais de maneira diferente.
Mas isso não é verdade apenas em um cenário masculino-feminino. Isso é ver-
dade para os historiadores, que escrevem de uma perspectiva particular e com um
propósito particular em mente. Quando um historiador inicia sua tarefa, ele limita
sua pesquisa; isto é, ela se concentra em um determinado tópico ou tese e então faz
julgamentos sobre o que é relevante para seu trabalho e o que não é. Ela simples-
mente não pode incluir tudo. Da mesma forma, os escritores do Novo Testamento
não devem ser criticados por, digamos, não mencionarem o nascimento virginal ou
o túmulo vazio aqui ou ali; em muitos casos, é provável que eles simplesmente
presumissem que seu público sabia sobre isso e, portanto, não sentiam que preci-
savam cobrir o terreno antigo.
Além disso, o argumento “Paulo não menciona explicitamente o nascimento
virginal;532 portanto, não aconteceu”533 não é aceitável. A ausência de evidência
não é evidência de ausência, e é claro que Paulo estava interessado no nascimento
de Jesus (Rom. 1:3; Gal. 4:4–5). Além disso, um cristão poderia responder a um
cético: “E se o apóstolo mencionou isso?” O cético provavelmente não veria isso
como evidência a favor do nascimento virginal de qualquer maneira.534
Ironicamente, quando os escritores do Evangelho se concentram em temas es-
pecíficos, os críticos os acusam de distorção, embelezamento ou fabricação com-
pleta. Como já tratei de algumas dessas acusações errôneas em outro lugar, 535 vou
me concentrar especificamente em como os julgamentos editoriais e literários fei-
tos pelos evangelistas não precisam ser interpretados como distorções.
531
John Gray, Men Are from Mars, Women Are from Venus (Nova York: HarperCollins, 1992).
532
Paulo dá a impressão de estar familiarizado com as circunstâncias que cercam o nascimento de Jesus.
Paulo observa que Jesus nasceu “sob a lei” (Gálatas 4:4), o que sugere sua circuncisão e apresentação no
templo (Lucas 2:23–24). Jesus também “nasceu de mulher” (Gálatas 4:4); sua mãe (em vez de seu pai) é
destacada, o que reforça o tema do nascimento virginal em Mateus e Lucas. Além disso, Mateus e Lucas
estavam se arriscando ao mencionar o nascimento virginal porque isso poderia ser mal interpretado pelos
críticos como uma tentativa de encobrir um nascimento ilegítimo. Paulo diz que Jesus nasceu “quando o
tempo havia chegado” (Gálatas 4:4), que é o que Lucas 1–2 observa especialmente sobre a chegada de
Jesus como o cumprimento do que o Antigo Testamento antecipou. Paulo está trabalhando dentro do
mesmo tipo de estrutura de Mateus e Lucas. Para uma discussão sobre a suposição de Paulo em relação
ao nascimento virginal, veja David Wenham, Paul: Follower of Jesus or Founder of Christianity? (Grand
Rapids: Eerdmans, 1995), 338-43.
533
O ateu Michael Martin faz essa acusação em The Case against Christianity (Philadelphia: Temple
University Press, 1991), 109.
534
Michael Martin aplica o argumento do silêncio a Marcos e João: “Nem Marcos nem João dão [sic]
qualquer relato do nascimento de Jesus. . . . Isso é notável” (The Case against Christianity, 108).
535
Veja meu “Verdadeiro para você, mas não para mim”, 100–106.
232

Vejamos uma ênfase teológica particular no Evangelho de Marcos para levar


esse ponto adiante. Marcos enfatiza o “mal-entendido messiânico” – que a messia-
nidade de Jesus não poderia ser entendida à parte de sua morte na cruz.536 Conse-
quentemente, neste Evangelho, Jesus frequentemente silencia aqueles que anunci-
am que ele é o Filho de Deus ou que querem contar sobre seus milagres (1:24–25,
34, 43–44; 3:11–12; 5 :43; 7:36; 9:9; e assim por diante) para que sua missão não
seja mal interpretada como tendo uma agenda política, anti-romana e revolucioná-
ria. Mesmo os discípulos de Jesus consistentemente falham em ver o que o Messi-
as realmente deveria realizar. No clímax do livro de Marcos (8:29), Pedro expõe a
verdadeira identidade de Jesus (“Tu és o Cristo”). Nesse ponto, Jesus, pela primei-
ra vez, ensina aos discípulos e esclarece o necessário papel de sofrimento do Mes-
sias - e sua ressurreição (9:12; 9:31; 10:33-34). Em uma série de três lições, Jesus
usa os erros e o comportamento orgulhoso dos discípulos (8:32–33; 9:33–34;
10:35–41) para ensinar-lhes lições de discipulado, abnegação e humildade. Ao fa-
zer isso, como o humilde e sofredor Messias,537 ele se coloca como o exemplo que
eles deveriam seguir (8:34–9:1; 9:35–10:31; 10:42–45).
Porque Marcos usa frases como, “[Pedro] não sabia o que dizer” (9:6) ou, “Vo-
cê não entende esta parábola?” (4:13) – linhas que foram omitidas em outros
Evangelhos538 – não devemos supor que Mateus e Lucas (que usaram o Evangelho
de Marcos como uma de suas fontes para escrever)539 ignoraram essas ocorrências.
Marcos tem uma ênfase particular (ou, alguns podem dizer, uma “teologia”) em
discípulos incompetentes.
Quando Jesus caminha sobre as águas (Mateus 14:24–33; Marcos 6:47–52),
Marcos diz: “Eles ficaram completamente maravilhados, porque não haviam en-
tendido sobre os pães [alimentar os cinco mil]; seus corações estavam endureci-
dos” (vv. 51–52); O relato de Mateus termina: “E os que estavam no barco o ado-
raram, dizendo: ‘Verdadeiramente tu és o Filho de Deus’.” Muitos críticos veem
isso como uma contradição irreconciliável. Mas isso não precisa ser assim. Marcos
usa esse incidente para destacar como os discípulos não aprenderam a confiar em
Jesus à luz de seu milagre recentemente realizado de alimentar cinco mil. Mateus
enfatiza sua admiração e adoração por Aquele que controla a natureza. Mas, como
vemos em outro lugar, é possível que alguém fique cheio de medo e alegria simul-
taneamente (Mateus 28:8) - ou fique maravilhado com a grandeza de Deus com

536
Ibid.
537
Para uma brilhante defesa bíblica do sofrimento necessário do Messias - e uma defesa da identidade de
Jesus como Deus - veja o livro conciso e legível de Richard Bauckham, God Crucified; ver também Larry
W. Hurtado, One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism (Philadel-
phia: Fortress Press, 1988).
538
Outro exemplo é Marcos 3:17, onde a lista de apóstolos inclui o nome não tão elogioso de Tiago e Jo-
ão — Boanerges, ou “Filhos do Trovão”. Este título é omitido na lista de discípulos de Mateus e Lucas.
539
Ver Robert Stein, The Synoptic Problem: An Introduction (Grand Rapids: Baker, 1987).
233

uma mistura de medo (Lucas 9:43, 45). Alguns podem se surpreender com o ensi-
no de Jesus e também se ofender com ele (Mateus 13:54, 57; comparar com Lucas
4:22–28). Uma passagem chave é Lucas 5:26 (depois que o paralítico foi curado):
As multidões estavam “glorificando a Deus” enquanto estavam “cheias de espan-
to” e “cheias de medo” (NASB). Marcos e os outros evangelistas indicam que uma
mistura de crença e descrença pode coexistir dentro de uma pessoa (por exemplo,
Marcos 9:24: “Eu creio; ajuda-me a vencer minha incredulidade”). Na verdade, to-
dos os evangelistas apontam como as pessoas (1) reconhecem a identidade de Je-
sus até certo ponto e, ainda assim, (2) falham em ver o significado ou as implica-
ções de sua identidade.540
Algumas pessoas veem conflitos sérios e problemáticos nos relatos do nasci-
mento virginal e nas genealogias de Jesus. Mas estes não parecem intransponíveis.
Mais uma vez, Mateus e Lucas estão empregando estratégias diferentes. Embora
existam diferenças entre as histórias de nascimento virginal (por exemplo, em Ma-
teus, José é notificado por um anjo, enquanto Maria é informada em Lucas), elas
podem ser harmonizadas. Quando comparamos as histórias, vemos que Mateus es-
tá olhando a situação do ponto de vista de José.541 Joseph estava noivo de uma mu-
lher que, ao que parecia, daria à luz um filho ilegítimo. Grande parte da narrativa
do nascimento de Mateus está preocupada em esclarecer o assunto para a satisfa-
ção moral de José. Daí a necessária visitação angélica. Lucas escreve da perspecti-
va de Maria e capta sua alegria pelo privilégio de dar à luz o realizador das espe-
ranças de Israel. Lucas se concentra nas alegres notícias, não no dilema de José.
E quanto às discrepâncias entre as genealogias de Jesus em Mateus 1:1–17 e
Lucas 3:23–37? O mais provável é esta sugestão: Mateus, que apresenta Jesus co-
mo o Messias e Filho de Davi - o cumprimento e o clímax da história e profecia do
Antigo Testamento - rastreia a linhagem real dos descendentes de Davi.542 Lucas
simplesmente nos dá a linha biológica particular à qual Joseph pertencia.543 Além
disso, "filho de" nessas genealogias - como nas genealogias do Antigo Testamento,
nas quais "x gerou y" - não precisa implicar uma conexão direta entre pai e filho;
em vez disso, permite o salto de gerações (cp. Jesus sendo chamado de “filho de
Davi”).

540
Observe também que logo após a confissão de Pedro de que Jesus é o Cristo, Jesus repreende Pedro
por rejeitar a necessidade de ir para a cruz (Mt 16:16-23); veja também Marcos 4:35–41.
541
Borg e Wright, O Significado de Jesus, 173.
542
Em seguida, a linha pula para Joseph por padrão. Veja D. A. Carson, “Mateus,” no Expositor’s Bible
Commentary, vol. 8, ed. Frank E. Gaebelein (Grand Rapids: Zondervan, 1984), 60–65. Além disso, o
número quatorze na genealogia de Mateus (dividido em três grupos de quatorze) é provavelmente a tenta-
tiva literária de Mateus de mostrar que Jesus é o herdeiro legítimo do trono davídico, usando gematria: o
nome Davi (dvd) tem o valor numérico de quatorze em hebraico (d=4, v=6, d=4) (Carson, “Mateus”, pp.
68–69).
543
Ver J. Gresham Machen, The Virgin Birth of Christ (Nova York: Harper & Row, 1930), 202–9.
234

Em segundo lugar, a harmonização é possível quando observamos o contexto


cultural. Os fundamentalistas de esquerda geralmente assumem que os Evangelhos
devem nos apresentar as palavras exatas de Jesus; quando não leem palavras idên-
ticas em passagens paralelas, pensam ter encontrado uma discrepância. Por um la-
do, uma vez que Jesus falava principalmente o aramaico em vez da língua do Novo
Testamento (grego), os Evangelhos não nos dão as palavras exatas de Jesus de
qualquer maneira - exceto Abba (“Pai”), Rabi (“Mestre” [literalmente, “meu gran-
de”]), ou Eloi, Eloi, lama sabachtani? (“Meu Deus, meu Deus, por que me desam-
paraste?”). Passemos a alguns exemplos que revelarão a importância do contexto
cultural.
Jesus, no Sermão da Montanha, diz: “Portanto, todo aquele que ouve estas mi-
nhas palavras e as põe em prática é como um homem sábio que edificou a sua casa
sobre a rocha” (Mt 7:24). A passagem paralela em Lucas 6:47-48 fala de um ho-
mem “que cavou fundo e lançou os alicerces na rocha”. Mateus estava escrevendo
para judeus familiarizados com a construção de casas na Palestina: Eles não cava-
ram fundações. O público gentio de Lucas, no entanto, estaria familiarizado com
cavar um alicerce antes de construir. Lucas adaptou a mensagem para seu público.
Em vez de manter as palavras exatas de Jesus (ipsissima verba), Lucas capta a in-
tenção ou voz exata de Jesus (ipsissima vox) para comunicar a estabilidade arquite-
tônica ao seu público específico. O mesmo é verdade em Marcos 2:4, onde Marcos
relata que os amigos de um paralítico cavaram o telhado de barro de uma casa na
Palestina do primeiro século; Lucas fala sobre a remoção de telhas do telhado (Lu-
cas 5:19), o que seria compreensível para os gregos, cujos telhados eram de telhas.
Outro evento registrado nos Evangelhos levanta a questão: Quem veio a Jesus?
Em Mateus 20:20–21, lemos que a mãe dos filhos de Zebedeu veio a Jesus para so-
licitar uma alta promoção no reino de Jesus; no entanto, Marcos 10:35–36 registra
que “Tiago e João, filhos de Zebedeu” vieram a Jesus para fazer esse pedido extra-
vagante. Quem realmente se aproximou de Jesus?
A mãe agia como representante de seus filhos, ou embaixadora (a palavra he-
braica é shaliach). Enquanto a mãe realmente perguntou, era como se seus filhos
estivessem falando desde que eles a incitaram a isso. Vemos essa ideia de um re-
presentante ao comparar Mateus 8:5–13 (no qual um centurião romano se aproxi-
ma de Jesus) e Lucas 7:1–10 (no qual uma delegação de anciãos judeus vem em
seu nome). Para o judeu do primeiro século, isso não é uma contradição. Mesmo
em nossos dias, quando um secretário de imprensa fala pela Casa Branca e a mídia
noticiosa proclama que “o presidente disse”, eles estão utilizando esse motivo re-
presentativo. Este motivo é ainda mais forte nas Escrituras. A exposição ao pano
de fundo cultural desse motivo, portanto, esclarece essa discrepância.
Outro exemplo em que o leitor deve ter em mente o contexto cultural de um
evento envolve o nascimento de Jesus. Ele nasceu em um estábulo ou em uma ca-
235

sa? O membro do Jesus Seminar, Marcus Borg, afirma que Jesus nasceu “em um
estábulo” de acordo com Lucas, mas em uma casa de acordo com Mateus.544
Acontece que isso simplesmente não é verdade. Ao contrário da história tradicio-
nal de Natal, Jesus nasceu em um lar. A afirmação de Borg é baseada no notável
erro de tradução de Lucas 2:7: “Não havia lugar para eles na estalagem”. Essa tra-
dução vai contra a intenção de Lucas. Primeiro, não haveria pousadas em uma ci-
dade atrasada como Belém. Em segundo lugar, a palavra para hospedaria (kataly-
ma) é a mesma para “quarto de hóspedes [de uma casa particular]”545 mencionada
em Marcos 14:14 e Lucas 22:11—o quarto onde a Última Ceia foi comido. Além
disso, esta palavra é diferente daquela em Lucas 10:34 (pandocheion=estalagem),
onde o homem espancado foi levado pelo compassivo samaritano. Esta pousada fi-
cava em uma via principal entre Jerusalém e Jericó, devo acrescentar. Terceiro, Jo-
sé, sem dúvida um marido atencioso, teria levado muito tempo para encontrar um
lugar para Maria dar à luz, e Lucas 2:6 indica exatamente isso: “E aconteceu que,
enquanto eles estavam lá, os dias se completaram para ela. para dar à luz”
(NASB). Tudo parece natural e não há corrida louca para encontrar uma sala de
parto decente. Quarto, em uma cultura que valorizava a hospitalidade, José teria
insultado seus parentes indo a uma hospedaria. Em vez disso, ele teria ficado com
parentes, que prontamente abririam espaço para sua futura esposa - mesmo que o
quarto de hóspedes estivesse lotado e o parto tivesse que ocorrer na sala principal,
à qual os galpões de animais costumavam ser anexados.546 Finalmente, quando os
magos chegam, eles chegam a uma casa (Mateus 2:11). (A maioria das pessoas as-
sume que os magos vieram muito mais tarde, daí a “casa”. Por que não a solução
mais simples de a casa ser uma e a mesma do relato de Lucas?)
Parte da compreensão do contexto cultural é perceber que os escritores do Novo
Testamento não usaram aspas para indicar citações textuais precisas. Em vez disso,
muitas vezes resumiam certas declarações ou discursos. Por exemplo, quando
comparamos a declaração de Mateus sobre a voz no batismo de Jesus – “Este é
meu Filho” (3:17) – com a de Marcos – “Tu és meu Filho” (1:11) – por que pensar
que isso é uma contradição quando o significado é o mesmo? Um ou outro poderia
simplesmente resumir, o que é aceitável.
No livro de Atos, Lucas condensa os sermões de Pedro, Estêvão e Paulo, que na
verdade eram muito mais longos; mas esta versão abreviada é perfeitamente legí-

544
Wright e Borg, O Significado de Jesus, 180
545
R. T. France, The Evidence for Jesus (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1986), 159.
546
Na Palestina, uma manjedoura normalmente não era encontrada em um estábulo separado; ao contrá-
rio, era “na sala principal de uma casa camponesa, onde os animais são trazidos à noite” (França, The
Evidence for Jesus, p. 159). Para uma explicação mais completa do contexto cultural da história do Natal,
veja Kenneth E. Bailey, “The Cultural Background of Luke 2:7,” Evangelical Review of Theology 4
(1980): 201–17. Bailey observa que a manjedoura em que Cristo foi colocado foi “construída no chão do
terraço elevado da casa do camponês” (207).
236

tima e historicamente responsável. A mesma defesa é verdadeira em relação às va-


riações na confissão de Pedro ou na inscrição na cruz de Jesus.547
Além disso, certas informações do Evangelho podem ser recontadas tematica-
mente em vez de cronologicamente. Os escritores do evangelho não são obrigados
a seguir uma cronologia de eventos — especialmente quando têm um propósito te-
ológico ou literário em mente. No entanto, os fundamentalistas de esquerda muitas
vezes dão a impressão de que o material do Evangelho deve ser puramente crono-
lógico, ou então não é histórico. Mas os estudiosos da Bíblia sabem que, por
exemplo, Mateus agrupa tematicamente suas informações em duas categorias ge-
rais: (1) material de ensino/discurso de Jesus548 e (2) ministério de Jesus (por
exemplo, Mateus 8–9 apresenta uma série de curas e exorcismos).549 Devemos
permitir que os escritores bíblicos tenham liberdade para incluir, excluir e editar
determinado material de acordo com um tema específico que desejam enfatizar.
Resoluções adicionais poderiam ser oferecidas aos problemas levantados pelos
fundamentalistas de esquerda. Alguns problemas são resolvidos facilmente; outros
dão mais trabalho; ainda outros requerem mais evidências. No entanto, recursos
amplos, como livros de referência e comentários, lidam com a maioria desses tipos
de questões.
Enquanto os fundamentalistas de esquerda e direita tendem a perder as questões
mais “fundamentais” na crítica bíblica (eles tendem a ser ingênuos – ao invés de
críticos – realistas), o que eles enfatizam corretamente é a importância da história
para a fé cristã. Sem as obras históricas de Deus através do êxodo, da dinastia da-
vídica, dos profetas, da encarnação, da morte e ressurreição de Jesus, a fé cristã
não pode sobreviver.

RESUMO
547
Ressalto este ponto aqui: Marcos (assim como João) usa o título Rabi (“mestre”) para Jesus, e ele é
chamado de Rabi pelos crentes. Mateus, no entanto, freqüentemente usa o título oficial de Senhor
(kyrios), e aqueles que não acreditam plena ou verdadeiramente em Jesus o chamam de mestre em Ma-
teus (8:19; 12:38; 19:16; 22:16, 24, 36). Curiosamente, em Mateus, entre os discípulos, apenas Judas
chama Jesus de Rabi. O resto dos discípulos o chamam de Senhor.
548
Mateus 5:1–7:29; 10:5–11:1; 13:1–53; 18:1–19:2; 24:1–25:46.
549
O colchete de duas passagens de Mateus (chamado de inclusio) pretende fazer um ponto particular.
Em 4:23, Mateus escreve: “Jesus andava por toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evan-
gelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo”. Então a mesma frase é usada em
9:35: “Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino
e curando toda sorte de doenças e enfermidades”.
Entre esses dois versículos, vemos duas grandes seções que exemplificam essas duas áreas principais
do ministério de Jesus: (1) a pregação e o ensino de Jesus (no Sermão da Montanha em Mateus 5–7) e
depois (2) sua cura e exorcismos (Mateus 8–9). Então, no capítulo 10, os discípulos são enviados em uma
missão para “pregar” (10:7) e “curar todo tipo de doença e enfermidade” (10:1; comparar 10:8). O que
temos aqui é Jesus exemplificando o ministério que ele deseja que seus discípulos participem mais tarde.
Ele está mostrando a eles como ministrar efetivamente antes de enviá-los para o estágio.
237

• O estudo da história bíblica deve ser abordado com um realismo crítico, não
com um literalismo ingênuo (como é o caso dos fundamentalistas de esquer-
da): há uma realidade passada fora do historiador e dos documentos que ele
estuda (realismo), mas há frequentemente um processo interativo entre os
dados disponíveis e o historiador (crítico).
• A harmonização geralmente é possível quando notamos a ênfase estratégica
(ou “teologia”) de um determinado evangelista.
• Qualquer escritor de história deve se concentrar em um determinado tópico
ou tese e então fazer julgamentos sobre qual material é relevante para seu
trabalho e qual não é.
• A harmonização é possível quando observamos o contexto cultural de um
evento bíblico.
• Certas informações do Evangelho podem ser recontadas tematicamente em
vez de cronologicamente (por exemplo, Mateus agrupa distintamente o ma-
terial didático e a narrativa).
238
239

“PROFECIAS” DO ANTIGO TESTA-


MENTO SÃO TIRADAS DO CONTEXTO
NO NOVO TESTAMENTO

V
ocê já leu uma passagem do Novo Testamento que parecia ter sido tirada
do contexto do Antigo? Não é incomum, portanto, ouvir os críticos afir-
marem que os escritores do Novo Testamento foram negligentes em seu
uso do Antigo Testamento, que o exploraram em busca de qualquer coisa que pu-
dessem encontrar para reforçar sua crença de que Jesus era o tão esperado Messias,
que eles eram histórica e culturalmente insensíveis, arrancando do contexto quais-
quer passagens do Antigo Testamento adequadas à sua agenda, chamando-a de
“cumprimento” da profecia.
Mateus, por exemplo, cita o versículo “Do Egito chamei meu filho” do profeta
Oséias (11:1); como muitos geralmente pensam em “profecia” em termos de cum-
primento de predição, eles assumem erroneamente que Oséias estava predizendo a
partida de Jesus do Egito quando Herodes não fosse mais uma ameaça (Mateus
2:15). Entretanto, no contexto original, Oséias estava se referindo ao êxodo de Is-
rael do Egito — não a Jesus.550
Ou veja a passagem de Isaías 7:14, na qual Isaías se dirige a Acaz, o rei de Je-
rusalém, que teme uma invasão do reino do norte de Israel e seu parceiro, a Síria.
Isaías apresenta a mensagem de Yahweh: “A virgem [ou donzela] ficará grávida
[isto é, conceberá] e dará à luz um filho, e o chamará Emanuel.” Mateus cita esta
passagem, e muitos acreditam que Mateus quer dizer que este texto se refere ex-
clusivamente a Jesus, o Messias. Mas o contexto de Isaías 7:14 indica que esta cri-
ança nasceria nos dias de Acaz e que esta criança seria um sinal visível para Acaz
e sua corte: “Antes que o menino saiba o suficiente para rejeitar o errado e esco-
lher o certo, a terra dos dois reis que você teme serão devastados” (7:16); “Antes
que o menino saiba dizer ‘meu pai’ ou ‘minha mãe’, as riquezas de Damasco [Sí-

550
Craig A. Evans observa que o contexto de Oséias 11:1 “deixa bem claro” que “está olhando para trás,
para o êxodo, não para uma libertação futura” (“The Function of the Old Testament in the New”, em In-
troducing New Testament Interpretation, Ed. Scot McKnight [Grand Rapids: Baker, 1989], 174); ver
também Craig A. Evans, “From Language to Exegesis”, em The Interpretation of Scripture in Early Ju-
daism and Christianity: Studies in Language and Tradition, ed. Craig A. Evans, JSP Supplement
33/Studies in Scripture in Early Judaism and Christianity 7 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000),
19.
240

ria] e os despojos de Samaria [Israel] serão levados pelo rei da Assíria” (8:4). A
ameaça desses dois reis será cuidada por Deus - por meio do exército assírio. Em-
bora Mateus e Lucas descrevam claramente o nascimento de Jesus pela Virgem
Maria, o estudioso evangélico Craig Blomberg observa: “O fato de que o filho
nasceria nos dias de Acaz (Isaías 7:15–16) implica pelo menos um cumprimento
provisório em a vida de Isaías.551
Em Mateus 2, lemos como Herodes mandou matar os meninos de Belém meno-
res de dois anos. (Dado que a população de Belém era de aproximadamente mil, o
número de crianças mortas, é comumente aceito, teria sido em torno de dez ou do-
ze.) Mateus cita isso como uma profecia cumprida de Jeremias. No entanto, se
olharmos para o contexto da citação original de Jeremias (Jr 31:15), veremos que o
choro de Raquel se refere à invasão babilônica de Judá e seu exílio em 587/586
a.C.552 Jeremias não parece prever que Herodes mataria bebês de Belém. Como,
então, devemos interpretar o entendimento do Novo Testamento sobre “profecia” e
“cumprimento”?
Em primeiro lugar, a interpretação judaica do Antigo Testamento durante o
tempo de Jesus tinha nuances: havia quatro abordagens básicas para interpretar

551
Craig L. Blomberg, Jesus and the Gospels (Nashville: Broadman & Holman, 1997), 200. Blomberg
acrescenta: “Provavelmente ‘virgem’ . . . significava simplesmente ‘uma jovem em idade de casar’, en-
quanto o filho prometido era Maher-Shalal-Hash-Baz (8:3).” No entanto, no contexto mais amplo de Isaí-
as 7–9, o filho nascido nos dias de Acaz aponta para um “Filho” maior que será o “Deus Forte” (9:6).
John N. Oswalt diz que “a opção mais atraente é que Emanuel e Mahershalal-hash-baz eram um e o
mesmo” (Isaiah 1–39, New International Commentary on the Old Testament [Grand Rapids: Eerdmans,
1986], 213) . Craig A. Evans observa que os próprios filhos de Isaías se encaixam melhor no contexto de
Isaías 7–8 — Shearjashub (7:3), Maher-shalal-hash-baz (8:3) e possivelmente Emanuel (7:14) (“ A Fun-
ção do Antigo Testamento no Novo”, 192). Ver também Herbert M. Wolf, “A Solution to the Immanuel
Prophecy in Isaiah 7:14–8:22,” Journal of Biblical Literature 91 (1972): 449–56. Wolf sugere que a mãe
de Shear-jashub (a primeira esposa de Isaías) pode ter morrido — talvez no parto; assim, Isaías tomou
outra donzela ('almah) como sua esposa (chamada “a profetisa” em 8:3, que mais tarde “concebeu e deu à
luz um filho” [8:3; comp. 7:14]). O filho que eles têm é chamado de “Maher-Shalal-Hash-Baz” (que sig-
nifica “apressado para o saque, rápido para a presa”)—um sinal da presença protetora de Deus com o po-
vo de Judá e Jerusalém (“Emanuel”—“ Deus conosco"). Na verdade, ambos (ou três) desses filhos são
“sinais e símbolos em Israel da parte do SENHOR dos Exércitos” (8:18).
Com relação à “exegese messiânica” e uma exploração da constelação de versículos como 2 Samuel
7:12–16; Isaías 7:14, 9:5–6; e Miquéias 5:2–4; ver Rudolf Pesch, “‘He Will Be Called a Nazarean’: Mes-
sianic Exegesis in Matthew 1–2”, em The Gospels and the Scriptures of Israel, ed. Craig A. Evans e Ja-
mes A. Sanders, JSOT Supplement 104/Studies in Scripture in Early Judaism and Christianity 3 (Sheffi-
eld: Sheffield Academic Press, 1994), 129–78.
552
Principalmente, Mateus está dizendo que a crueldade de Herodes, que trouxe tristeza, incorpora perfei-
tamente o que Jeremias estava falando quando Judá estava indo para o exílio. Talvez secundariamente,
Matthew está indo mais fundo. O contexto de Jeremias 31:15 é de esperança: Os exilados voltarão. Agora
Mateus, ecoando Jeremias, diz que “apesar das lágrimas das mães de Belém, há esperança porque o Mes-
sias escapou de Herodes e finalmente reinará”. Assim como as lágrimas associadas ao exílio terminarão,
esse Messias também encerrará as lágrimas durante seu reinado (D. A. Carson, “Matthew”, no Exposi-
tor's Bible Commentary, vol. 8, ed. Frank Gaebelein [Grand Rapids: Zondervan , 1984], 95).
241

as Escrituras. Muitos críticos da Bíblia afirmam que as “profecias cumpridas” a


respeito de Jesus foram simplesmente retiradas de seu contexto original para “pro-
var” um ponto sobre Jesus. Mas esses críticos falham em entender a maneira como
o judaísmo do primeiro século tratou e interpretou as Escrituras. Esse tratamento
do Antigo Testamento não era simplesmente um fenômeno entre os primeiros cris-
tãos que tentavam entender sua experiência com Cristo com base nas Escrituras do
Antigo Testamento. Eles estavam familiarizados com certas abordagens de inter-
pretação das Escrituras usadas pelos rabinos da época: literal, midrash, pesher e
alegórica.553 Se entendermos isso, não ficaremos confusos com a aparente metodo-
logia de “citação fora do contexto” que os escritores do Novo Testamento pareci-
am usar.554

1. literal: O texto bíblico é tomado em seu sentido mais direto. Quando usadas
dessa maneira, as Escrituras eram interpretadas literalmente, às vezes quase
inflexivelmente. Um exemplo desse método direto de interpretação é a cita-
ção de Jesus de Deuteronômio 6:4 (em Marcos 12:29): “Ouve, ó Israel, o
Senhor nosso Deus, o Senhor é um. Ame o Senhor seu Deus. . . .” O Novo
Testamento interpreta esta passagem exatamente como foi usada em seu
contexto original.
2. midrash: descobrir um pensamento ou ideia não vista na superfície do texto.
A palavra midrash significa literalmente “procurar, investigar”. Quando um
escritor usa esse procedimento, ele tenta ir além do sentido literal do texto
para o espírito do texto – um sentido que nem sempre é imediatamente ób-
vio. Alguém que usa essa abordagem começa com um texto ou frase, esten-
de seu significado e extrai suas implicações. Por exemplo, Hebreus 3 e 4
elaboram a palavra descanso encontrada em Josué 11:23; 14:15; 23:1; e
Salmo 95 para enfatizar nosso descanso em Cristo e o descanso final que es-
tá por vir.
3. pesher: “Esta situação refere-se àquela situação.” A palavra pesher significa
“solução, interpretação”. Pesher é a abordagem do tipo isto é aquilo: quando
surgia uma situação comparável a uma situação nas Escrituras, o rabino di-
zia: “Isto é aquilo”. Em outras palavras, a situação da qual o profeta falou é
esta nos dias atuais. Por exemplo, Jesus disse aos judeus incrédulos de sua
época: “Hipócritas! Isaías estava certo quando profetizou sobre vocês: ‘Este
553
Além dessas quatro, poderíamos acrescentar uma quinta categoria — targum. O Antigo Testamento
(uma vez canonizado) passou a ser parafraseado; tal paráfrase é chamada de targum. O Targum é uma pa-
ráfrase aramaica das Escrituras. Até mesmo a Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento, é uma
espécie de paráfrase e pode, portanto, ser considerada targum (Evans, “The Function of the Old Testa-
ment in the New”, 166).
554
Extraído de Richard Longenecker, Biblical Exegesis in the Apostolic Period (Grand Rapids: Eerd-
mans, 1975), que foi recentemente reimpresso pela InterVarsity Press.
242

povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim’” (Mateus
15:7–8; citando Isaías 29:13). De acordo com o método pesher, “Isto [sua
hipocrisia] é aquilo [sobre o qual Isaías falou]”. Isaías não predisse literal-
mente que Jesus lidaria com os fariseus hipócritas, cumprindo esta passa-
gem. Em vez disso, Jesus usou a situação da época de Isaías para ilustrar a
mesma situação em seus próprios dias.
4. alegórico: “Essa pessoa/situação representa essa pessoa/situação”. Este mé-
todo de interpretação muitas vezes era fantasioso e raramente era usado pe-
los escritores do Novo Testamento. Em Gálatas 4:21–31, Paulo transforma a
história do conflito entre a serva egípcia Hagar e sua senhora Sara (de Gêne-
sis 21) em uma alegoria, que o autor de Gênesis certamente não pretendia.
Nesta alegoria, Agar representa a lei de Moisés e Sara representa a promessa
de Deus a Abraão.555

Os primeiros pregadores cristãos não distinguiam entre os três primeiros desses


métodos; eles naturalmente utilizaram muitos dos métodos rabínicos tradicionais
de interpretação. Mas também devemos levar em consideração o fato de que eles
não eram dados a interpretações fantasiosas, como muitos rabinos da época.556
Em segundo lugar, a acusação de que os primeiros cristãos “saquearam” o
Antigo Testamento em busca de textos que se assemelhassem à situação e ao mi-
nistério de Jesus é uma distorção da evidência. Os fundamentalistas de esquerda
apontarão para o uso de Isaías 7:14 por Mateus como uma indicação de “arrancar
um texto de seu contexto” para “provar” que Jesus cumpriu as Escrituras. Eles irão
tão longe a ponto de dizer que o próprio Mateus fabricou o nascimento virginal.
Mas por que Lucas, que também afirma um nascimento virginal, não cita esse tex-
to do Antigo Testamento? Como observa N. T. Wright, esse argumento de “pilha-
gem” “parece escasso”.557 E quando Mateus cita Oséias 11:1, “Do Egito chamei
meu filho”, o evangelista estava bem ciente do que os céticos falham em lhe dar
crédito - que Oséias estava falando do êxodo de Israel do Egito.

555
O uso de Paulo da abordagem alegórica em resposta aos judaizantes (que argumentavam que o cristia-
nismo deve ser centrado na Torá com circuncisão e leis alimentares como “marcadores de fronteira” para
o povo de Deus) os derrota em seu próprio jogo. Paulo dá uma interpretação cristocêntrica deste texto-
prova alegorizado favorito dos judaizantes. Veja Richard N. Longenecker, Galatians, Word Biblical
Commentary, vol. 41 (Dallas: Word, 1990), 197–219.
556
Moisés Silva escreve: “Se compararmos o volume de citações no Novo Testamento com o volume de
citações na literatura rabínica, não podemos deixar de ficar impressionados com a maior sensibilidade dos
escritores do Novo Testamento ao contexto original. . . . Um estudo compreensivo das passagens relevan-
tes do Novo Testamento revela um método notavelmente são e nada fantasioso (“The New Testament
Use of the Old Testament,” in Scripture and Truth, ed. D. A. Carson and John Woodbridge [Grand Ra-
pids: Zondervan, 1983], 159 ).
557
Em Borg e Wright, O Significado de Jesus, 174.
243

Tal acusação em si se baseia em uma suposição errônea do que significa cum-


primento — um tema que exploraremos a seguir.
Terceiro, na maioria dos casos, o termo cumprimento no Novo Testamento não
significa o cumprimento de uma predição; tem um uso muito mais amplo. Quando
os cristãos veem um livro intitulado Todas as Profecias Messiânicas da Bíblia, 558
eles provavelmente concluem que todos os versículos do Antigo Testamento cita-
dos nele preveem a vinda e o ministério do Messias. Mas isso é muito apressado e
precisa de qualificação. Nem toda profecia é preditiva, e nem todo cumprimento
implica a conclusão da predição. Quando Jesus explicou aos discípulos que “é ne-
cessário que se cumpra tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés,
nos Profetas e nos Salmos” (Lucas 24:44), ou quando disse: “Não penseis que vim
para abolir a Lei ou os Profetas. . . mas para cumpri-los” (Mateus 5:17), o que Je-
sus tinha em mente?
A palavra grega para “cumprir” (plêroô) significa algo muito mais amplo do
que “a conclusão de uma predição”.559 De fato, a maioria das ocorrências da pala-
vra cumprir não implica previsão alguma. O cumprimento faz parte do próprio te-
cido do Novo Testamento, que vê Jesus e sua obra concretizando o significado de
todo o Antigo Testamento.560 Não podemos limitar o cumprimento à conclusão de
uma previsão.
Considere Mateus 5:17 (que diz que Jesus vem para cumprir a Lei e os Profe-
tas). A lei de Moisés contém um punhado de casos que realmente preveem a vinda
do Messias.561 Não podemos dizer que a lei realmente previu que o Messias viria e
faria certas coisas. Em vez disso, a realização aqui tem o sentido de incorporar,
completar ou aperfeiçoar. Jesus cumpriu a lei de Moisés não apenas porque viveu
perfeitamente a intenção, ou significado, da lei. Em vez disso, ele trouxe à conclu-
são final tudo o que a lei representava - o sistema sacrificial, o sacerdócio, os dias
de festa, o ano do jubileu, o sábado e muito mais.562 Todas essas coisas na lei não
são preditivas, mas, como o Livro de Hebreus deixa claro, são uma sombra da
substância/cumprimento encontrada em Cristo.
Quando uma passagem do Antigo Testamento parece ter sido tirada do contexto
por um escritor do Novo Testamento que se refere à pessoa e obra de Jesus, pode-
mos ver com maior clareza o que o escritor está tentando fazer substituindo certas
palavras por cumprir, como completar, encarnar, tipificar. Quando vemos uma
cláusula como: “Isto foi para cumprir o que foi dito pelo profeta”, podemos lê-la
558
Herbert Lockyer, All the Messianic Prophecies of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1973).
559
Grande parte da minha discussão foi extraída de C. F. D. Moule, “Fulfillment-Words in the New Tes-
tament: Use and Abuse,” New Testament Studies 14 (1967–68): 293–320.
560
R. T. France, Matthew: Evangelist and Teacher (Grand Rapids: Zondervan, 1989), 168. Este livro foi
reimpresso pela InterVarsity Press.
561
Por exemplo, veja Gênesis 3:15; 49:8–12; Números 24:17; Deuteronômio 18:18; 30:6; 34:10–12.
562
Moule, “Fulfillment-Words,” 314.
244

como: “Isto foi para completar o que foi dito pelo profeta”. Isso não exclui, obvi-
amente, o elemento preditivo de algumas passagens proféticas, mas permite uma
compreensão muito mais ampla e rica do cumprimento na mente dos escritores do
Novo Testamento.
Considere o Salmo 22. O clamor de Jesus na cruz (Mateus 27:46) foi original-
mente o clamor de Davi. Davi foi quem se sentiu abandonado e foi ele próprio es-
carnecido (22:6-8). Ele era um justo sofredor, e Mateus usou essa situação como
uma figura de Jesus. Jesus cumpre ou personifica ou resume perfeitamente tal so-
frimento. Ele é a realização final das experiências e sentimentos pelos quais Davi
passou. Com relação às referências (em João 19, por exemplo) a roupas divididas
(v. 24), lançar sortes sobre roupas (v. 24) e crucificação (ou seja, mãos e pés perfu-
rados [v. 16 à luz do Salmo 22:16, 18]), John Wenham observa:

Esta não é uma prova lógica da [crucificação de Cristo] do cumprimento da profecia [prediti-
va]; mas para o crente, que sabe que as Escrituras são de Deus e que os eventos da Paixão fo-
ram ordenados por Deus, é uma coincidência que dificilmente pode ser acidental.563

Com relação a esses sofrimentos de Davi no Salmo 22, Doug Moo comenta: “Nem
sempre está claro que Davi sempre esteve ciente do significado final de sua lin-
guagem; mas Deus poderia ter ordenado suas experiências e seus registros nas Es-
crituras de tal forma que se tornassem uma antecipação dos sofrimentos do 'filho
maior de Davi'.”564

563
John W. Wenham, Christ and the Bible, 3d ed. (Downers Grove, Ill: InterVarsity Press, 1994), 106.
564
Douglas Moo, “The Problem of Sensus Plenior”, em Scripture and Truth, ed. D. A. Carson e John
Woodbridge (Grand Rapids: Zondervan, 1983), 197.
O que vemos no Salmo 22 descreve os tipos de aflições que os salmistas e outros escritores piedosos
do Antigo Testamento experimentaram:

• v. 1: “Deus meu, por que me desamparaste?” (comp. Sl. 42:9: “Por que te esqueceste de mim?”;
cp. Sl. 43:2).
• v. 2: “Clamo de dia . . . [e] de noite” (comp. Salmos 42:3: “Minhas lágrimas têm sido meu ali-
mento dia e noite”).
• vv. 6–8: “Eu sou . . . desprezado pelos homens e desprezado pelas pessoas. Todos os que me ve-
em zombam de mim. . . . ‘Ele confia no SENHOR; que o SENHOR o livre'” (comp. Salmos 42:3:
“enquanto os homens me perguntam o dia todo: ‘Onde está o seu Deus? ’”).
• vv. 12–13: “Muitos touros me cercam. . . . Leões rugindo dilacerando suas presas abrem suas bo-
cas contra mim” (cf. Salmos 35:11, 17; 58:4; 69:34).
• v. 14: “Eu me derramei como água, e todos os meus ossos se desconjuntaram” (comp. Jó 30:16–
17: “E agora minha vida se esvai. . . . A noite transpassa meus ossos”; Sal. 31:10: “Meus ossos
enfraquecem”; comparar Jó 23:16; Salmos 38:3–8; 55:4; 73:26).
• v. 16: “Cães me cercaram; um bando de homens maus me cercou (comp. Salmos 59:3, 6: “Ho-
mens ferozes conspiram contra mim... rosnando como cães”).
• v. 16: “Eles traspassaram minhas mãos e meus pés” (comp. Jó 30:17: “A noite transpassa meus
ossos”; Prov. 7:23; comp. Is 36:6: “mão furada”).
245

Em Mateus 15:7–8, Jesus ataca os líderes religiosos que honram a Deus com os
lábios, mas cujo coração está longe dele. Ele cita Isaías, declarando que Isaías pro-
fetizou sobre esses líderes. Mas deveria ser óbvio que Isaías não profetizou sobre
os oponentes de Jesus, mas sobre os contemporâneos de Isaías. Jesus não estava
dizendo que a situação em seus dias era o cumprimento de uma predição. Em vez
disso, a situação em que Isaías se encontrava foi tipificada ou cumprida na situação
paralela de Jesus. Como John Wenham observa, “Mateus frequentemente se preo-
cupa mais com o cumprimento do que é prefigurado do que com o cumprimento de
predições”.565
Quarto, Jesus, assim como os outros escritores do Novo Testamento, interpre-
taram o Antigo Testamento de maneira cristocêntrica: Jesus é a imagem perfeita
ou o completador de situações históricas prefiguradas, imagens e personagens do
Antigo Testamento. Os escritores do Novo Testamento viram o conteúdo do Anti-
go Testamento tornar-se claro à luz das reivindicações e da obra de Jesus. Como
vimos, Oséias estava pensando em Israel — não em Jesus — quando escreveu:
“Do Egito chamei a meu filho” (Oséias 11:1). Mas Mateus via Jesus como a per-
sonificação — o cumprimento — do que Deus pretendia para Israel. Portanto, ele
poderia aplicar esta passagem a Jesus como o Filho supremo de Deus: “E assim se
cumpriu o que o Senhor disse pelo profeta: ‘Do Egito chamei o meu Filho’” (Ma-
teus 2:15).566
Na maioria das vezes, devemos pensar na realização em termos de tipos ou pre-
núncios das coisas que estão por vir.567 As profecias do Antigo Testamento sobre
eventos históricos, atos ou pessoas - geralmente relacionadas a Israel - são padrões
repetidos em eventos, atos ou pessoas do Novo Testamento (centrados em Jesus)
para fazer um ponto teológico.568 Nas palavras de R. T. France, Jesus

• v. 18: “Repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre as minhas vestes” (Jó 27:17: “O
justo vestirá o justo, e o inocente repartirá a sua prata”).

No entanto, o notável agrupamento de frases que estão perfeitamente incorporadas ou completadas no so-
frimento de Jesus — o exemplo final do sofrimento dos inocentes — dificilmente pode ser acidental.
565
Ibid., 104.
566
Às vezes, os escritores do Novo Testamento combinam alusões ao Antigo Testamento. Por exemplo,
Mateus 27:3–8 refere-se a Zacarias 11:12–13 e (vagamente) Jeremias 18:1–3; 19:11; 32:6–15. Essas pas-
sagens do Antigo Testamento não são previsões sobre a compra do campo de um oleiro com dinheiro de
sangue. Zacarias está se referindo à ação do profeta de lançar trinta moedas de prata no tesouro do templo
(ou para o oleiro – o texto hebraico não é claro), enquanto Jeremias menciona o oleiro, o local do enterro
e a compra do campo do oleiro. Mateus está se baseando em mais de uma passagem das Escrituras e as
está ressignificando em 27:3-8, entendendo essas ações tipologicamente (ou como pesher [“isto é aqui-
lo”]). O que vemos no Novo Testamento é uma reconstituição da história das escrituras. Nesse sentido, a
profecia foi cumprida.
567
Por outro lado, os símbolos, nos quais algo material representa algo imaterial (como ouro, pão, sangue
ou sal) são transhistóricos (“atemporais”); seu significado atravessa os testamentos.
568
R. T. France, Jesus and the Old Testament (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1977), 38–39.
246

usa pessoas no Antigo Testamento como tipos de si mesmo (Davi, Salomão, Elias, Eliseu,
Isaías, Jonas) ou de João Batista (Elias); ele se refere às instituições do Antigo Testamento
como tipos de si mesmo e de sua obra (o sacerdócio e o convênio); ele vê nas experiências de
Israel prenúncios de sua autoria; ele encontra as esperanças de Israel realizadas em si mesmo
e em seus discípulos e vê seus discípulos assumindo o status de Israel; na libertação de Israel
por Deus, ele vê um tipo de reunião de homens em sua igreja, enquanto os desastres de Israel
são prenúncios da punição iminente daqueles que o rejeitam, cuja incredulidade é prefigura-
da na do ímpio Israel, e mesmo, em duas instâncias, na arrogância das nações gentias.569

Jesus se vê como o cumprimento de vários padrões do Antigo Testamento. Em sua


vida e morte, Jesus repete a história de Israel, embora em um plano superior. Por
exemplo, a tentação de Jesus no deserto por quarenta dias repete o tempo de pro-
vação de Israel no deserto por quarenta anos. Jesus seleciona doze discípulos como
símbolo de uma nova comunidade/novo Israel, apontando para as doze tribos de
Israel. No entanto, não há apenas repetição, mas também continuidade na obra
cumpridora de Jesus. Ele se concebe como sendo Israel e/ou cabeça de um novo
povo, que nele encontra sua identidade. Ele assume o papel e o destino de Israel,
levando-os ao cumprimento.570
A ideia por trás dessa tipologia nas Escrituras é a suposição de que as operações
de Deus na história passada têm uma influência teológica no presente em Cristo;
em Cristo, eventos históricos anteriores “prefigurados” (por exemplo, o êxodo, a
entrega da lei) recebem significado teológico571 (ou seja, Jesus vem como o novo

569
Ibid., 75 (grifo meu).

• Embora o Israel nacional fosse uma “videira” tirada do Egito (Sl 80:8) ou “vinha” (Is 5:1–7), que
produzia apenas uvas sem valor, Jesus se vê como “a verdadeira/genuína videira” ( João 15:1), e
aqueles que permanecem dependentes dele “dão muito fruto” (João 15:7–8).
• Embora Israel fosse uma luz para as nações (Isaías 42:6), Jesus se proclama a “luz do mundo”
(João 8:12) e, em virtude de seu relacionamento com ele, sua nova comunidade dos discípulos
participa desse papel (Mt 5:16).
• Aludindo ao maná que veio a Israel sob Moisés, Jesus chama a si mesmo de “o pão vivo” — ao
contrário do maná que estragou — e “o pão da vida” (João 6:48–51). Ele foi a conclusão perfeita
do que o maná não pode fazer: dar a vida eterna.
• Jesus não apenas é identificado como o novo e verdadeiro Israel no Novo Testamento, mas tam-
bém é o Salvador divino que resgatará seu povo do exílio do pecado. Veja Wright, The Challenge
of Jesus, e seus comentários em The Meaning of Jesus.
• Yahweh é o noivo de seu povo da aliança, Israel (Isaías 62:5), enquanto Jesus é o noivo de seu
povo (Marcos 2:19).
• Yahweh era o pastor de seu povo (Salmos 23:1; Ezequiel 34:15), enquanto Jesus se descreve co-
mo o “bom pastor” (João 10:11–16; compare Marcos 14:27).

570
Ibid., 59.
571
Evans, “Função do Antigo Testamento no Novo”, 169.
247

Moisés para libertar seu povo e sobe a montanha para dar seu novo comunidade
sua “lei”). A linguagem do Antigo Testamento não é “consumida” ou “cumprida”
em um único evento.572 Um autor do Novo Testamento, portanto, viu semelhanças
entre os eventos do Antigo Testamento e a situação de Cristo (ou mesmo a sua
própria), revelando significado teológico. Ele disse, portanto, sem pensar em ter-
mos de previsão: “Esta situação é um cumprimento da Escritura”.573
Quinto, o Antigo Testamento realmente contém certas predições claras sobre o
Messias ou a vinda da era da nova aliança que são especificamente cumpridas e
têm uma correspondência direta com sua predição. Simplesmente porque falamos
sobre o cumprimento do Antigo Testamento de maneira ampla e não preditiva, não
significa que o Antigo Testamento não contenha predições. Miquéias 5:2–4 indica
onde o Messias nasceria - Belém. Os estudiosos bíblicos convocados por Herodes,
o Grande, certamente acreditavam que Belém era o local de nascimento do Messi-
as (Mateus 2:5; compare João 7:42). Lemos sobre um profeta que viria em Deute-
ronômio 18:18–19 e implícito em 34:10–12. Isaías 52:13–53:12 fala da vinda do
Servo sofredor (Atos 8:30–35; 1 Pedro 2:23).574 A entrada triunfal de Jesus em um
jumento (João 12:14–15) é o cumprimento de uma predição (Zacarias 9:9). O se-
pultamento de Jesus na sepultura de um homem rico (Mateus 27:57-60) cumpre a
predição de Isaías 53:9. Malaquias 3:1–5 fala de um mensageiro vindouro, mas es-
se mensageiro é descrito como realizando a obra que somente o Senhor pode fazer.
Existem conexões predição-cumprimento, embora permaneça a verdade de que a
noção de cumprimento no Novo Testamento é mais complexa do que talvez te-
nhamos percebido inicialmente.
Sexto, não devemos tentar imitar os métodos judaicos de interpretação, mas
sim utilizar a abordagem gramatical-histórica para descobrir como os escritores
apostólicos lidaram com o texto. Embora devamos ser estudantes sábios e cuida-
dosos de como os escritores do Novo Testamento lidaram com o Antigo Testamen-
to, devemos estudar as palavras e a literatura das Escrituras como foram intencio-
nadas pelo autor dentro de sua situação histórica.575 Isso seria semelhante à abor-
dagem “literal” adotada pelos intérpretes do primeiro século. No entanto, devemos

572
Klyne Snodgrass, “The Use of the Old Testament in the New,” in New Testament Criticism and Inter-
pretation, ed. David Alan Black e David S. Dockery (Grand Rapids: Zondervan, 1991), 416.
573
Ver Craig A. Evans, “Old Testament in the Gospels”, em Dictionary of Jesus and the Gospels, ed. I.
Howard Marshall et al. (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1992), 570-90; e Robert Banks, Je-
sus and the Law in Synoptic Tradition (Cambridge: Cambridge University Press, 1975). Outra peça digna
de nota é F. F. Bruce, The Time Is Fulfilled (Grand Rapids: Eerdmans, 1978).
574
N. T. Wright fala da fluidez de pensamento entre Israel como o servo e uma figura divina em Isaías
42–53 (Jesus and the Victory of God [Minneapolis: Fortress Press, 1996], 602). Em Jesus, vemos a com-
binação desses referentes – a figura divina e o verdadeiro Israel.
575
Ver Richard Longenecker, "'De Quem [sic] Está Falando o Profeta?' Algumas Reflexões sobre o Uso
do Antigo pelo Novo Testamento", Themelios 13 (outubro-novembro de 1987): 4–8.
248

ter cuidado para não imitar os outros métodos rabínicos de interpretação (midrash,
pesher e alegoria) comuns no judaísmo do primeiro século. Caso contrário, nos
abrimos a uma abordagem arbitrária que não possui controles para guiá-la.
Devemos descobrir como os apóstolos interpretaram o Antigo Testamento, mas
não devemos imitar sua abordagem em todas as suas características. Klyne Snod-
grass resume bem algumas das preocupações levantadas:

O abuso da mensagem do Antigo Testamento é muito comum na história cristã. Claramente,


a proximidade dos apóstolos com o ministério, morte e ressurreição de Jesus os coloca em
uma categoria única. . . . Devemos nos guiar pela intenção do autor. No entanto, também le-
mos as Escrituras à luz da pessoa e obra de Cristo. Devemos resistir a sobrepor a teologia
cristã aos textos do Antigo Testamento e não devemos sentir nenhuma compulsão de dar a
cada texto do Antigo Testamento, ou mesmo à maioria deles, uma conclusão cristológica.
Mas teremos falhado se não perguntarmos como os textos do Antigo Testamento funcionam
em todo o contexto da Escritura.576

RESUMO

• A interpretação judaica do Antigo Testamento durante a época de Jesus era


matizada: havia quatro abordagens básicas para interpretar as Escrituras: li-
teral, midrash, pesher e alegórica.
• A acusação de que os primeiros cristãos “saquearam” o Antigo Testamento
em busca de textos que se assemelhassem à situação e ao ministério de Jesus
é uma distorção do que realmente aconteceu. Os autores do Novo Testamen-
to não ignoravam que, por exemplo, “Do Egito chamei meu filho” se referia
ao êxodo de Israel do Egito.
• Na maioria dos casos, o termo cumprimento no Novo Testamento não signi-
fica o cumprimento de uma predição; tem um uso muito mais amplo: encar-
nar, tipificar, sintetizar, atingir seu clímax e assim por diante.
• Jesus, assim como os outros escritores do Novo Testamento, interpretaram o
Antigo Testamento de maneira cristocêntrica: Jesus é o retrato perfeito ou o
completador de situações históricas prefiguradas, imagens e personagens do
Antigo Testamento.
• Embora o cumprimento signifique mais do que “completar uma predição”, o
Antigo Testamento contém certas predições claras sobre o Messias ou a vin-

576
Snodgrass, “The Use of the Old Testament”, 427. Devemos ter cuidado ao impor padrões interpretati-
vos contemporâneos aos escritores do Novo Testamento (o que os estudiosos liberais tendem a fazer) e
impor interpretações não naturais a uma “profecia” (como cumprimento de predição). quando a previsão
não estava em vista pelo escritor do Antigo Testamento ou do Novo Testamento (o que os conservadores
tendem a fazer). Cp. Evans, “Função”, 193.
249

da da era da nova aliança que são especificamente cumpridas e têm uma cor-
respondência direta com sua predição.
• Não devemos tentar imitar os métodos judaicos de interpretação, mas sim
utilizar a abordagem gramatical-histórica para descobrir como os escritores
apostólicos lidaram com o texto.
250
251

CONCLUSÃO

A
o escrever este livro, condenei e resumi as respostas aos vários desafios
que os céticos lançam contra os crentes. Isso tem benefícios óbvios: as
respostas são acessíveis tanto no formato quanto no estilo. Mas há des-
vantagens: muito mais poderia ser dito — volumes escritos — sobre cada um des-
ses tópicos. Estou consciente do fato de que onde a brevidade abunda, nuances e
qualificações devem abundar ainda mais. Mas, como disse Shakespeare, “é melhor
ser breve do que tedioso”.577 Então, terei que me arriscar.
Começamos discutindo ataques à objetividade da verdade e da realidade, e des-
cobrimos que a verdade e a realidade são inescapáveis e inegáveis — mesmo nas
tentativas de evitá-las. O próximo tópico envolvia cosmovisões: qual cosmovisão –
teísmo, naturalismo ou monismo oriental – faz o melhor trabalho para responder
de forma coerente a uma ampla gama de perguntas e juntar as peças da vida para
nós? Certamente parece que o naturalismo e o panteísmo oriental são insuficientes
e mal equipados para fazê-lo. Racionalidade; valores morais objetivos; responsabi-
lidade moral e liberdade; significado humano, dignidade e identidade; significado
na vida; e mesmo o horror do mal são muito menos difíceis de entender em um
contexto teísta. Esses assuntos podem ser reduzidos estritamente a entidades e pro-
cessos naturais? Ou o monista deveria rejeitar como ilusória a moralidade, o mal
ou as leis lógicas que tornam o discurso possível? Parece que nenhuma das alterna-
tivas é o caminho adequado. Em vez disso, o teísmo é o caminho.
O teísmo que defendi não é um teísmo genérico, de tamanho único, mas um te-
ísmo trinitário robusto, no qual refletimos a imagem de um Deus relacional, amo-
roso e bom. Este Deus entrou na história humana e se aproximou de nós na pessoa
de Jesus Cristo, “a imagem do Deus invisível” (Col. 1:15) e “a representação exata
do ser [de Deus]” (Heb. 1:3). As doutrinas fundamentais da Trindade e da encar-
nação – ignoradas de forma tão decepcionante e dolorosa por muitos que citam o
nome de Cristo – devem moldar nosso pensamento e nossa vida como portadores
da imagem corporal e relacional de Deus. Esses princípios da fé cristã – além da
graciosa revelação de Deus nas Escrituras – não são apenas defensáveis, mas
verdadeiramente gloriosos no que mostram. Por meio do Espírito capacitador de
Deus, essas doutrinas podem motivar e transformar as maneiras pelas quais a co-
munidade cristã adora, vive e se envolve com a cultura.
Apesar das perguntas e mistérios inescapáveis e persistentes que nos confron-
tam em nossas peregrinações intelectuais e espirituais particulares, podemos de-
fender a fé cristã com integridade e honestidade. Razões para acreditar estão dis-
577
Richard III, ato I, cena 4.
252

poníveis para aqueles que procuram. No entanto, muitos argumentos céticos po-
dem ser construídos e brechas descobertas para aqueles que se recusam a fazê-lo.
O fato de sermos chamados a amar a Deus com tudo o que temos — coração, al-
ma, mente e força — significa que as pessoas também podem se afastar de Deus
com todo o seu ser. De maneiras sutis ou não tão sutis, eles podem ignorar ou re-
pudiar as influências amorosas de Deus em busca de seus próprios objetivos e en-
tão tentar justificar sua posição formulando argumentos céticos. Não devemos dei-
xar que essas expressões pessoais e volitivas de resistência a Deus nos impeçam de
valorizar e defender as verdades centrais do cristianismo e o evangelho histórico
no mercado de ideias.
Ao mesmo tempo em que defendemos o evangelho de Cristo, porém, devemos
também torná-lo atrativo por nossas vidas. O amor de uma comunidade solidária e
de oração, a integridade pessoal dos cristãos no local de trabalho, a hospitalidade
de uma família crente podem ilustrar e incorporar a mensagem que Deus ilustrou e
incorporou: “Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu sua vida por nós.
E nós devemos dar as nossas vidas [uns pelos outros]” (1 João 3:16).
253

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