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Um Argumento Moral para o Ateísmo

Autor: Raymond D. Bradley

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos (blog Rebeldia Metafísica)

[Apresentado na University of Western Washington em 27 de maio de 1999,


e — numa versão revisada — na University of Auckland em 29 de Setembro
de 1999.]

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Preâmbulo para filósofos

O argumento que estou prestes a apresentar é direcionado principalmente


a um público leigo, sem formação filosófica. Filósofos profissionalmente
treinados podem questionar o fato de eu dizer pouco sobre o Deus da
tradição filosófica e bastante sobre o Deus do púlpito e dos bancos de
igreja.

Ofereço-lhes duas breves explicações.

Primeira: há um amplo precedente para o que estou fazendo. Sócrates, por


exemplo, examinou as crenças religiosas de seus contemporâneos —
especialmente a crença de que devemos fazer o que os deuses nos
ordenam — e demonstrou-lhes ser tanto mal fundamentada quanto
conceitualmente confusa.

Desejo seguir suas pegadas, mas sem compartilhar seu destino. Uma taça
de vinho, não de veneno, seria a recompensa que eu escolheria.
Portanto, como Sócrates, eu me posiciono contra o Deus da crença popular,
não contra o Deus da teologia natural.

E como Deus, na mente da maioria dos ocidentais, é predominantemente o


Deus das escrituras judaico-cristãs [1], tenho poucas opções além de citar a
Bíblia livremente de maneira a confrontar diretamente as crenças teístas
que são meu alvo e me antecipar às acusações de ter compreendido ou
interpretado mal minhas fontes.

Segunda: o fato é que a maioria dos filósofos da religião renomados que


publicam em periódicos acadêmicos como Faith and Philosophy creem no
Deus da Bíblia, não somente no Deus dos filósofos.

Para citar apenas alguns nomes, tenho em mente pessoas como William
Alston, Peter van Inwagen e Alvin Plantinga. Todos eles são, como Plantinga
coloca, “pessoas da Palavra que consideram as Escrituras um caso especial
de revelação do próprio Deus” [2].

Nenhum deles reluta em citar capítulo e versículo das Escrituras Sagradas


— os mais palatáveis, obviamente — tanto em suas publicações quanto no
púlpito.

William Alston, por exemplo, afirma: “…uma grande parcela das Escrituras
consiste de registros de comunicações entre Deus e os homens “, e sustenta
que Deus continua a se revelar a “cristãos sinceros” de hoje de maneiras
que variam de orações respondidas a pensamentos que simplesmente
pipocam na mente de alguém. [3]

Peter van Inwagen confessa: “Aceito plenamente os ensinamentos de


minha denominação segundo os quais ‘as Escrituras Sagradas do Velho e do
Novo Testamento são a Palavra revelada de Deus’ “. [4]
E Alvin Plantinga sustenta que: “A Escritura é inerrante: o Senhor não
comete erros; o que ele propõe para conteúdo de nossas crenças é o que
devemos acreditar. “ [5]

Estes pontos de vista caracterizam o tipo de teísmo, a saber, o teísmo


bíblico, a cuja refutação tenho me dedicado.

Agora vamos a meu argumento para o ateísmo.

Introdução:

“Se Deus não existe, todas as coisas são permitidas.” Assim disse um dos
personagens de Dostoievski na obra “Os irmãos Karamazov”.

Ele estava afirmando que se Deus não existe, então os valores morais
seriam uma questão meramente subjetiva a ser determinada por caprichos
individuais ou pela contagem de cabeças no grupo social ao qual alguém
pertence; ou talvez ele estivesse mesmo dizendo que valores morais seriam
totalmente ilusórios e o niilismo moral prevaleceria.

Resumindo — o argumento continua — se verdades morais objetivas


existem, então Deus deve existir.

A título de contraste, argumento que se verdades morais objetivas existem,


então Deus não existe. Apresento um argumento moral para o ateísmo.

A: Pontos de concordância com os teístas.


A respeito de quatro pontos, dois terminológicos e dois substantivos, eu
concordo com meus oponentes teístas.

Primeiro: eu concordo com eles a respeito do significado do termo “Deus”,


e nego que Deus exista. Não estamos falando de qualquer divindade
obsoleta.

Não estamos falando, por exemplo, sobre Baal (deus dos cananitas) ou Aton
(deus egípcio), ou Zeus (deus grego), ou Brama (divindade hindu), ou
Huitzilopochtli (deus asteca).

Todos esses, junto com outros 200 ou mais, citados em obras sobre religião
comparada, foram divindades supremas. Cada uma delas foi adorada e
obedecida por milhões. Contudo, como H. L. Mencken colocou em seu
artigo de 1922 “Serviço Memorial”, “todos estão mortos.”

Apesar de o termo “teísmo” ser frequentemente utilizado num sentido


amplo de forma a abranger a crença em qualquer tipo de deus ou deuses
sobrenaturais que se revelam para os humanos, eu o utilizarei — como a
maioria dos filósofos e teólogos agora fazem — num sentido um tanto mais
estrito.

O teísmo sobre o qual estarei falando a respeito não é somente a crença


num ou noutro deus qualquer. É a crença no Deus das tradições ortodoxas
judaicas, cristãs e islâmicas. É a crença num Deus que se distingue de todos
estes outros em dois aspectos principais.

Primeiro, ele é santo (isto é, moralmente perfeito). Segundo, ele se revelou


para nós nas Escrituras Sagradas. É em virtude de sua Santidade que ele é
considerado digno de adoração e obediência. E é em virtude de ter se
revelado a nós nas Escrituras que sabemos sobre sua natureza e quais ações
ele nos permite ou proíbe fazer.
O Deus do Teísmo, assim compreendido, é um ser sobrenatural robusto. Ele
não deve, portanto, ser identificado com o Deus metafisicamente mutilado
de teólogos liberais como Paul Tillich e o bispo Robinson, para os quais Deus
é algo como “nossa mais profunda inquietação” e a Bíblia é apenas uma
fábula inventada pelo homem, ou na melhor das hipóteses um romance
quase-histórico.

Nem deveria ser o Deus dos teístas identificado com o ser incognoscível dos
deístas como Voltaire e Thomas Paine para os quais Deus era uma entidade
hipotética invocada meramente para explicar as origens e a natureza do
universo, e a Bíblia uma fraude moral e intelectual impingida sobre os
crédulos pelos profetas, papas, padres e pastores.

No sentido estrito da palavra, cada um dos quatro pensadores citados é um


ateu. E, no mesmo sentido, também eu sou. Mas não vejo nenhuma
necessidade de um deus ou qualquer coisa do tipo. Vejo apenas
obscuridades semânticas na roupagem liberal de sentimentos humanistas
(que eu aplaudo) combinadas com tagarelice piedosa (que eu deploro).

E eu encontro somente inferências falaciosas na suposição de que podemos


explicar porque qualquer coisa existe conjecturando que alguma outra
coisa existe além do explicandum; pois tal suposição segue rumo a uma
regressão infinita.

Segundo: penso que os teístas concordariam comigo sobre o que queremos


dizer quando falamos de moralidade objetiva. Queremos dizer um conjunto
de verdades morais que permaneceriam verdadeiras não importa o que
qualquer indivíduo ou grupo social pensasse ou desejasse.

A noção de moralidade objetiva é antitética a todas as formas de


subjetivismo moral. Ela sustenta, primeiro, que possuímos crenças morais
que são ou verdadeiras ou falsas; que elas não são meras expressões de
emoções e sentimentos, similares a suspiros e gemidos de prazer e dor.

Ela sustenta, em segundo lugar, que a falsidade ou veracidade de nossos


julgamentos morais é uma função de se os objetos de apreciação moral, os
agentes e suas ações, possuem as propriedades morais que lhes
imputamos, ou não; que sua veracidade ou falsidade não é uma mera
função dos pensamentos, sentimentos ou atitudes de indivíduos ou de
convenções sociais.

E ela sustenta, em terceiro lugar, que podem existir verdades morais que
ainda aguardam pela nossa descoberta, pela revelação (sob a interpretação
teísta) ou através da razão e da experiência — combinadas, talvez, com
nossa biologia cambiante — (sob a minha interpretação).

Terceiro: concordarei com meus oponentes teístas em sustentar que ao


menos alguns princípios morais são objetivamente verdadeiros. Admitimos
que discordâncias sobre temas morais — sobre a permissibilidade do
aborto ou da pena de morte, por exemplo — frequentemente originam
fortes reações emocionais.

Mas isto não significa que tais desacordos sejam nada além de rompantes
emocionais. Pois consideramos um fato da psicologia moral que possuímos
crenças bem como emoções a respeito de tais temas controversos.

E uma vez que nada conta como crença a menos que seja verdadeiro ou
falso, concluímos que nossas crenças morais — à semelhança de crenças a
respeito do formato do planeta e da idade do universo — são verdadeiras
ou falsas.

Nem, a partir do fenômeno da discordância moral, segue-se que a verdade


ou falsidade de um julgamento moral é determinável por cada indivíduo ou
pela contagem de cabeças. Pois consideramos que a perspectiva relativista
acerca de temas morais não é mais defensável do que o relativismo a
respeito de questões de fato.

Quarto: seria de se esperar que os teístas concordem comigo quando eu


oferecer alguns exemplos concretos de princípios morais que eu considero
serem objetivamente verdadeiros.

A exigência de objetividade para os valores morais é estritamente uma: ela


implica que eles devem ser universais no sentido de não admitirem exceção
— isto é, de serem válidos para todas as pessoas, lugares e épocas.

Assim, em meu ponto de vista, o princípio segundo o qual é moralmente


proibido matar outras pessoas não é objetivamente verdadeiro uma vez
que — como quase todos concordariam — ele admite exceções tais como
matar um assassino em potencial em defesa própria ou de seus familiares.

Formulado desta maneira é um princípio moral falso. Podemos ter uma


obrigação prima facie de não matar outra pessoa. Mas pensadores morais
sofisticados consentiriam que existem situações nas quais o princípio
deveria ser colocado de lado em virtude de considerações morais
compensatórias.

Se formos apresentar princípios morais que sejam válidos sem necessidade


de restrições, precisamos formula-los de forma a englobar adequadamente
estas outras considerações.

B. Exemplos de verdades morais objetivas

Apresento agora alguns exemplos de princípios morais que considero


serem paradigmas de verdades morais objetivas:
P1: É moralmente errado assassinar deliberada e impiedosamente
homens, mulheres e crianças que sejam inocentes de quaisquer
transgressões graves.

Uma violação flagrante deste princípio é encontrada nas políticas genocidas


da SS nazista que, seguindo as ordens de Hitler, assassinaram seis milhões
de judeus, junto com incontáveis ciganos, homossexuais, e outros assim
chamados “indesejáveis”.

Não é desculpa, da maneira como vejo, o fato de eles acreditarem estar


extirpando um câncer da sociedade, ou que eles estivessem, como Hitler
explicou em 1933, apenas fazendo aos judeus o que os cristãos vinham
pregando por dois milênios [6].

Outra violação mais recente deste princípio pode ser encontrada nas
práticas genocidas de Milosevic e seus capangas, para os quais não é
desculpa dizer que estavam apenas corrigindo injustiças passadas ou,
através da limpeza étnica, lançando os fundamentos de uma sociedade
mais coesa e estável.

P2: É moralmente errado guarnecer o exército de alguém com mulheres


jovens feitas prisioneiras para serem utilizadas como escravas sexuais.

Este princípio, ou algum similar a este, jaz por trás de nossa repulsa moral
às políticas dos altos comandos japoneses e alemães que selecionavam
jovens mulheres sexualmente atraentes, especialmente virgens, para
proporcionar pretensos “confortos” a seus soldados.

É irrelevante, quero dizer, que, historicamente, a maioria das sociedades


tenha considerado tais “confortos” como espólios de guerra aceitáveis.
P3: É moralmente errado obrigar pessoas a canibalizarem seus amigos e
familiares.

Talvez possamos imaginar situações — como a queda de um avião nos


Andes — nas quais atos de canibalismo possam ser exonerados. Mas fazer
as pessoas comerem os membros de sua própria família — como várias
tribos polinésias são acusadas de terem feito — com o objetivo de puni-las,
ou para horrorizar e impingir medo nos corações de seus inimigos, é
inconcebível.

P4: É moralmente errado imolar seres humanos em sacrifício, queimando-


os ou por outros meios.

Não há dúvidas, o sacrifício humano era largamente praticado pelas tribos


contra as quais os filhos de Israel lutaram, e — do outro lado do Atlântico
— pelos astecas e incas. Mas isto — espero que todos vocês concordem —
não torna a prática aceitável, mesmo se fosse realizada para apaziguar os
deuses nos quais eles acreditavam.

P5: É moralmente errado torturar pessoas eternamente por suas crenças.

Talvez possamos imaginar situações nas quais seria permissível torturar


alguém que seja ele próprio um torturador de maneira a obter informações
sobre a localização dos prisioneiros que de outra maneira morrerão como
consequência das agressões que lhes estão a ser infligidas.

Mas casos como o do Papa Pio V, que assistiu a Inquisição Romana queimar
um acadêmico religioso dissidente por volta de 1570, ultrapassam o limite
do moralmente aceitável; ele não pode ser isentado pelo fato de que
pensava estar desta maneira salvando a alma do dissidente das chamas
eternas do Inferno.
A respeito de todos estes exemplos, gosto de pensar, teístas e outras
pessoas moralmente esclarecidas concordarão comigo.

E, além disso, também me agradaria pensar que os teístas concordariam


comigo em sustentar que qualquer um que cometesse, causasse,
comandasse ou tolerasse atos de violação de qualquer destes princípios —
os cinco aos quais me referirei de agora em diante como “nossos”
princípios” — é não somente cruel como abominável.

C: As violações de Deus de nossos princípios morais.

E agora vem o elemento decisivo de meu argumento moral contra o teísmo.


Pois, como demonstrarei agora, o Deus teísta — como ele supostamente se
revela nas Escrituras judaicas e cristãs — ou comete ele próprio, ou ordena
que outros cometam, ou permite, atos que violam cada um de nossos cinco
princípios.

Em violação de P1, por exemplo, o próprio Deus afogou toda a raça humana
exceto Noé e sua família [Gen. 7:23]; ele puniu o rei Davi por realizar um
censo por ele ordenado e então atendeu à solicitação de Davi de que outros
fossem punidos em seu lugar através do envio de uma praga que matou
70.000 pessoas [II Sam. 24:1-15]; e ele ordenou que Josué assassinasse
velhos e jovens, pequenas crianças, virgens e mulheres (os habitantes de
uns 31 reinos) enquanto prosseguia em suas práticas genocidas de limpeza
étnica nas terras que judeus ortodoxos ainda consideram parte da Grande
Israel (veja o cap. 10 do livro de Josué em particular).

Estes são somente três de centenas de exemplos das violações de Deus de


P1.
Em violação de P2, após ordenar que soldados chacinassem todos os
homens, mulheres e garotos midianitas sem piedade, Deus autorizou que
os soldados dispusessem sexualmente das 32.000 virgens sobreviventes.
[Num. 31:17-18].

Em violação de P3, Deus repetidamente diz ter feito, ou que fará, pessoas
canibalizarem suas próprias crianças, maridos, esposas e amigos para puni-
los por sua desobediência. [Lev. 26:29, Deut. 28:53-58, Jer. 19:9, Ezeq. 5:10]

Em violação de P4, Deus tolerou que Jeftá lhe ofertasse em sacrifício numa
fogueira sua única filha [Juízes 11:30-39].

Finalmente, em violação de P5, o cordeiro sacrificial do próprio Deus, Jesus,


observará impassível enquanto Ele tortura a maior parte dos membros da
raça humana eternamente, principalmente porque não acreditaram nele.

O livro do Apocalipse nos diz que “cada um cujo nome não tiver sido escrito
desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro que foi morto”
[Apoc. 13:8] irá para o inferno, onde “serão atormentados com fogo e
enxofre na presença dos anjos sagrados e na presença do Cordeiro; e a
fumaça de seu tormento subirá eternamente: e eles não terão descanso dia
ou noite” [Apoc. 14:10-11].

D: Um dilema lógico para os teístas: uma tétrade inconsistente

Estas — e incontáveis outras — passagens da Bíblia significam que os teístas


são confrontados com um dilema lógico que atinge o âmago de sua crença
de que o Deus das Escrituras é santo. Eles não podem, sem se
contradizerem, acreditar em todas as quatro afirmações a seguir:
(1) Qualquer ato que Deus realize, cause, ordene ou tolere é moralmente
permissível.

(2) A Bíblia nos revela vários atos realizados, causados, ordenados ou


tolerados por Deus.

(3) É moralmente inadmissível para qualquer um realizar, causar, ordenar


ou tolerar atos que violem nossos princípios morais.

(4) A Bíblia nos diz que Deus de fato cometeu, causou, ordenou ou tolerou
atos que violam nossos princípios morais.

O problema é que estas declarações formam uma tétrade inconsistente tal


que a partir de quaisquer três delas alguém pode inferir validamente a
falsidade da remanescente.

Assim, alguém pode coerentemente afirmar (1), (2) e (3) somente ao custo
de abrir mão de (4); afirmar (2), (3) e (4) somente ao custo de desistir de
(1); e assim por diante.

O problema para um teísta é decidir qual destas quatro declarações


abandonar a fim de salvaguardar o requisito mínimo de verdade e
racionalidade, a saber, a consistência lógica.

Afinal, se alguém mantém crenças que se contradizem então suas crenças


não podem ser todas verdadeiras. E discussão racional com pessoas que se
autocontradizem é impossível; se contradições são permitidas então
qualquer coisa pode acontecer.

Mas qual dos quatro enunciados irá nosso teísta negar?


Negar (1) seria admitir que Deus ocasionalmente comete, causa, ordena ou
tolera atos moralmente inadmissíveis. Mas isso significaria que o próprio
Deus é imoral, ou até mesmo, dependendo da magnitude de seus delitos,
que ele é maligno.

Isso implicaria negar que ele é santo e digno de adoração; e negaria,


adicionalmente, que sua santidade é o fundamento da moralidade.

Negar (2), para o teísta, seria abandonar o principal fundamento da


epistemologia religiosa e moral (maneiras de adquirir conhecimento
religioso e moral). Pois se (2) fosse falsa, surgiria então a questão de como
saberíamos da existência de Deus, ou, ainda pior, como ele nos serviria
como referência moral.

Afinal, é uma característica distintiva do teísmo, em oposição ao deísmo,


sustentar que Deus se revela para nós e, de tempos em tempos, intervém
na história humana. E a Bíblia, segundo os teístas, é o principal registro de
suas intervenções revelatórias.

Se a Bíblia, com suas histórias sobre Moisés e Jesus, não é sua palavra
revelada e presumivelmente verdadeira, então como teremos
conhecimento sobre ele? Se Deus não se revela através de Moisés no Velho
Testamento e de Jesus no Novo Testamento, então através de quem ou de
que ele se revela?

A bem da verdade, um teísta poderia afirmar que Deus também se revela


por outros canais além da Bíblia: razão, tradição e experiências religiosas
sendo todas exemplos em questão.
Mas negar que a Bíblia seja seu principal modo de comunicação seria negar
que os principais personagens do Judaísmo e do Cristianismo possam
realmente ser, afinal, conhecidos.

Fora dos registros escriturais, saberíamos muito pouco, se é que


saberíamos qualquer coisa, acerca de Moisés ou Jesus, sendo bastante
questionável se a história secular possui qualquer coisa confiável a dizer a
respeito de qualquer um deles.

Afora os registros escriturais não teríamos conhecimento algum dos assim


chamados Dez Mandamentos que Deus supostamente entregou a Moisés,
ou dos princípios éticos que Jesus supostamente proferiu em seus sermões
e parábolas.

Negar (3) seria declarar que é moralmente admissível violar nossos cinco
princípios morais. Seria tornar-se cúmplice de monstros morais como
Ghenghis Khan, Hitler, Stalin e Pol Pot. Seria abandonar toda e qualquer
pretensão a uma crença em valores morais objetivos.

Mais ainda, se é permissível violar os princípios acima, então não é fácil ver
que tipos de ações não seriam admissíveis. A negação de (3), então, seria
equivalente a adotar o niilismo moral. E nenhum teísta que acredita nos Dez
Mandamentos ou no Sermão da Montanha consentiria nisso.

Isso deixa apenas (4). Mas negar (4) seria colidir com a realidade de fatos
determináveis por qualquer um que faça uma leitura cuidadosa: fatos
objetivos sobre o que Bíblia realmente diz.

Adiante argumentarei que tanto (3) quanto (4) são verdadeiras; desta
maneira confrontarei os teístas com a necessidade de abandonar (1) ou (2)
— os dois pilares principais da crença teísta. Meus argumentos mostrarão
que se Deus existisse então ele ou não seria santo ou as Escrituras não
seriam sua palavra revelada.

Devo, entretanto, lidar com os contra-argumentos dos que defendem Deus


e as Escrituras contra críticas como as minhas. Apologistas teístas possuem
duas estratégias principais.

Uma é tentar mostrar, contrariando (4), que a Bíblia ou não diz realmente
o que eu afirmo que ela diz, ou que as passagens que cito não significam o
que eu digo que significam. Esta tática envolve um certo tipo de maquiagem
das passagens em discussão de modo a torná-las moralmente inócuas.

A outra é tentar mostrar, contrariando (3), que nossos princípios morais são
ou inaplicáveis às situações descritas em (4) ou que eles admitem exceções
que absolveriam Deus por violá-los.

Eu me ocuparei com estas duas estratégias apologéticas à medida em que


surgirem em conexão com minha defesa da veracidade de (4) e (3), nesta
ordem.

E: Uma defesa de (4): O que a Bíblia de fato diz sobre as violações de


nossos princípios morais por Deus.

P1 e a matança de inocentes.

Primeiro: considere a história, nos capítulos 6 e 7 do livro de Gênesis, do


Grande Dilúvio e da Arca de Noé. É uma história conhecida o bastante para
me dispensar de recontá-la detalhadamente.

Basta dizer que por causa da perversidade que Deus viu sobre a terra, ele
decidiu — em suas próprias palavras — “Destruirei o homem que criei de
sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à
ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gen. 6:7). As únicas
exceções humanas foram Noé e sua família.

Segundo: considere a estranha história sobre Deus ordenando ao Rei Davi


que fizesse um censo de seu povo.

É estranha por três razões. Da maneira que a história é contada em 2


Samuel, cap. 24, é-nos ditos que Deus expediu Davi com a ordem “Vá, conte
Israel e Judá”; que após cumprir esta ordem, Davi chegou à estranha
conclusão de que havia por esse meio “cometido um grande pecado”.

Deus então ofereceu a Davi escolher entre três castigos: sete anos de fome
e escassez, três dias de peste, ou três meses sendo perseguido e
importunado por seus inimigos.

Nosso nobre rei escolheu a fome ou a peste para os outros em vez de expor
a si próprio; e Deus aquiesceu: “o Senhor enviou uma praga sobre Israel…”;
e “setenta mil homens do povo que habitava desde Dan até Beersheba
morreram.”

É intrigante que um Deus justo desejaria punir Davi por obedecer suas
ordens. Mais intrigante é o fato do Deus santo derramar sua fúria sobre
outros matando setenta mil homens (e um número indeterminado de
mulheres e crianças, que parecem não ser considerados na maioria das
narrativas bíblicas).

É ainda mais intrigante que quando a história é recontada em I Crônicas,


cap. 21, descobrimos que foi Satanás, não Deus, que incitou Davi a
empreender o censo.
A inconsistência já é ruim o bastante uma vez que pelo menos uma destas
histórias deve ser falsa. É ainda pior que, em ambas as versões, é Deus —
não Satanás — que assassina quem não tinha nada a ver com o suposto
pecado de Davi.

Terceiro, considere o caso no qual Deus manda Josué matar virtualmente


todos os habitantes da terra de Canaã.

A história começa no capítulo 6 do livro de Josué, contando como o herói e


seu exército conquistou a antiga cidade de Jericó onde eles “tudo quanto
havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem
até a mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao
jumento.”

Então, do capítulo 7 até o 12, somos brindados com uma crônica arrepiante
sobre os 31 reinos e todas as cidades que continham, que caíram vítimas
das políticas genocidas de Deus e de Josué.

Vez ou outra lemos as frases “ele destruiu completamente cada pessoa que
havia nela”, “não deixou sobreviventes”, e “nenhum foi deixado
respirando”.

E a título de explicação da razão pela qual apenas um dos povos autóctones


selou a paz com os invasores, é-nos dito “Pois de Jeová veio o
endurecimento dos seus corações, para saírem à guerra contra Israel, a fim
de que fossem destruídos totalmente, e não achassem piedade alguma…
[Josué 11:20]. A ocasião e a justificativa para matar fora forjada pelo próprio
Deus.

O que é moralmente preocupante sobre cada um destes três casos é que


Deus aparentemente não teve escrúpulos em ordenar a matança de
pessoas que, em qualquer sentido ordinário das palavras, eram “inocentes
de transgressões sérias.”

Afinal, é uma questão fatual empírica explícita que crianças recém-


nascidas, e menos ainda aquelas não-nascidas, não são capazes de fazer os
tipos de coisas que justificam punições como afogamentos, ser morto no
fio da espada, arrancado do útero de sua mãe [7], ou morrer de uma praga
enviada por Deus.

A Bíblia, contudo, relata despudoradamente que elas estavam dentre as


incontáveis vítimas das ações ou das ordens de Deus.

P2 e a entrega de virgens capturadas para as tropas

O livro dos Números, cap. 31, começa com o Senhor dizendo a Moisés,
“Vingue-se plenamente pelos filhos de Israel dos midianitas”, então
dizendo como — em obediência às ordens de Deus — doze mil guerreiros
primeiro “mataram todos os homens” [vers. 7], e “aprisionaram todas as
mulheres de Midian e suas crianças” [vers. 9].

Mas nós lemos, “Moisés estava furioso com os oficiais do exército … e


perguntou-lhes, Vocês pouparam todas as mulheres?… Agora, pois, mate
todos os meninos dentre as crianças, e mate toda mulher que tenha
conhecido intimamente um homem. Mas todas as jovens que não
conheceram um homem intimamente, poupem-nas para vocês.” [vers. 15-
18]

Agora, deve ser admitido que em nenhum lugar desta história de violência
e escravização é-nos dito explicitamente que as tropas dos exércitos do
Senhor usaram as virgens capturadas para sua própria satisfação sexual.
Então não chega a surpreender que alguns apologistas se amparem nesta
omissão a fim de argumentar que P2 absolutamente não foi violado.

Um apologista deste tipo afirma implicitamente que os soldados levaram as


mulheres somente como “esposas ou servas”. Afinal, ele nos tranquiliza, “a
lei de Deus dizia que qualquer um que mantivesse relações sexuais fora do
casamento heterossexual seria condenado à morte” e que “qualquer
homem que cometesse fornicação… seria forçado a casar com a mulher e
nunca lhe seria permitido se divorciar dela.”[8]

Mas isso não resiste a uma análise mais detalhada. A Bíblia narra
numerosos casos de assim chamados “homens de Deus” que fornicaram e
não casaram — e às vezes até casaram — e não foram punidos seja pelos
homens seja por Deus.

Exemplos incluem os encontros sexuais de Abraão e sua escrava egípcia


Agar; o relacionamento adúltero do rei Davi com Bathsheba; e o rei
Salomão, fruto deste relacionamento, e suas trezentas concubinas.

Alguém teria que ser extraordinariamente ingênuo para supor que, dos
doze mil soldados, não houve nenhum que não tirou vantagem sexual das
trinta e duas mil virgens — mais de duas para cada soldado — que Deus
lhes concedeu para uso próprio.

P3 e fazer com que pessoas canibalizem seus parentes.

Há ao menos cinco passagens nas quais Deus diz a seu povo que se eles não
o obedecerem eles serão punidos sendo reduzidos uma penúria tão
extrema que se verão obrigados a canibalizarem uns aos outros: filhos,
filhas, maridos, esposas, pais, mães, e irmãos, para nada dizer dos meros
amigos [9].
O livro de Jeremias é especialmente revelador. No capítulo 19, versículo 9,
o próprio Deus reivindica responsabilidade direta por estes horrores
quando diz: “E eu os farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas
filhas…”

Para estas passagens os apologistas costumam oferecer duas


racionalizações principais. Uma é que Deus está meramente ameaçando
seu povo escolhido com a fatalidade que lhes sucederá se eles não
obedeceram a seus mandamentos.

A segunda é que ele está meramente prevendo a sina que lhes sobrevirá
durante os iminentes cercos a serem realizados por seus inimigos. O
problema com a hipótese da ameaça é que, em cada exemplo, os Filhos de
Israel na verdade desobedeceram seus mandamentos, apesar das graves
ameaças.

Assim, se Deus não faz o que ameaçou fazer, suas ameaças eram vazias e
ele repetidamente falhou em manter sua palavra. E o problema com a
hipótese da profecia, é que se as coisas não saíssem como Deus previu,
então ele teria feito uma falsa profecia.

Mas em qualquer caso nenhuma das explicações ajudaria com a passagem


do livro de Jeremias, na qual Deus não está simplesmente prevendo o que
os inimigos de Israel o forçarão a fazer, mas declarando o que ele próprio o
obrigará a fazer.

Não há contradição no fato de que se a palavra de Deus é verdadeira, então


ele força os outros a violar P3.

P4 e a tolerância com o sacrifício de crianças


No capítulo 11 do livro de Juízes, somos afrontados com um conto
cauteloso sobre a quebra de um juramento e suas consequências.

Jeftá, é-nos dito, foi um homem poderoso que foi usado por Deus para dar
continuidade à tradição de Josué, eliminando da terra de outro povo
etnicamente distinto, os filhos de Amon.

Lemos que Jeftá “fez um juramento a Deus, e disse, se me entregares nas


mãos os filhos de Amon, a pessoa, seja ela qual for, que sair da porta da
minha casa ao meu encontro, quando eu voltar vitorioso dos filhos de
Amon, será de Jeová e eu a oferecerei em holocausto.” (vers. 31-32)

O Senhor, ao que parece, achou isto perfeitamente aceitável. Ele manteve


sua parte da barganha entregando os amonitas e suas vinte cidades “com
uma grandiosa matança” nas mãos de Jeftá. Então foi a vez de Jeftá de
cumprir sua parte no acordo.

Mas, lamentavelmente, foi sua filha quem saiu-lhe ao encontro para


cumprimentá-lo. Jeftá percebeu, no entanto, que devia manter a fé e a
palavra dada a Deus.

Assim lemos: “Passados os dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe
fez segundo seu juramento…”. Em outras palavras, Jeftá manteve sua
promessa oferecendo sua amada filha em sacrifício numa fogueira para seu
Deus implacável.

Assim Jeftá angariou para si uma menção honrosa na Epístola aos Hebreus
[10], onde ele é citado junto com quinze ou mais homens de “grande fé”
como Noé, Abraão, Moisés, Sansão, Davi e Samuel.
A melhor interpretação que pode ser feita desta história horripilante é que
ela é um tipo de fábula, um conto inventado por homens com a intenção
de nos ensinar uma lição sobre a necessidade de reflexão e ponderação
antes de assumir compromissos com os outros, especialmente com uma
divindade.

Tal exegese, entretanto, dificilmente pode ser aceitável para um teísta que
creia piamente na Bíblia. Mas em qualquer caso, não deveríamos ficar
realmente surpresos com a aceitação, por Deus, do sacrifício de Jeftá.

Afinal, o próprio Deus — os teístas cristãos acreditam — ofereceu seu


próprio filho Jesus como um sacrifício de sangue pelos pecados da
humanidade.

P5 e a tortura eterna que Deus reserva para os que não acreditam que
Jesus é o Senhor e Salvador

A sorte da filha de Jeftá esmaece até a insignificância quando comparada


com a que o Deus cristão reserva para ateus sinceros como eu; e não
somente para os ateus, mas para todos que falham em aceitar Jesus Cristo
como seu salvador pessoal.

Jesus, que possui a duvidosa reputação de haver inventado a doutrina da


danação nas chamas do inferno, descreve nosso destino vividamente.

No Evangelho de Mateus sozinho ele o caracteriza em termos que os


evangelistas adoram: “fogo inextinguível”, “inferno ardente” (duas vezes),
“tormento”, “queimado com fogo” “fornalhas do inferno” (duas vezes),
“choro e ranger de dentes” (cinco vezes), “fogo eterno”, e “o fogo eterno
que foi preparado para o demônio e seus anjos.”
Presumindo que Jesus soube como dizer precisamente o que ele quis que
fosse entendido, a sina dos descrentes é indubitável.

Não é um mero arremesso honroso no esquecimento. Não é simplesmente


a angústia de uma alma apartada de Deus. É o tormento e a agonia de um
corpo ressurreto, tortura que difere da experimentada pelas vítimas da
Inquisição somente pelo fato de que dura não somente por minutos, mas
por toda a eternidade.

Ao contrário de Auschwitz, o Inferno não oferece nenhuma finalidade para


aqueles de nós que preencherão seus fornos. Ninguém escapará de seus
horrores, e suas torturas — a serem levadas a cabo diante da plateia divina
— continuará indefinidamente. [11]

Fosse este destino escaldante reservado apenas para os impenitentes


genocidas e outros perpetradores do mal que tem manchado a história
humana, tal violação de P5 já seria ruim o bastante.

Mas Apocalipse 13:8 vaticina que este destino recairá sobre “todo aquele
cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da
vida do Cordeiro…”.

E Apocalipse 20:15 confirma a profecia quando nos diz que “se o nome de
qualquer pessoa não foi encontrado escrito no livro da vida, ele foi lançado
no lago de fogo.”

Quem são os predestinados à danação eterna? São todos aqueles que —


como os evangélicos gostam de colocar — não são cristãos “renascidos”.
Segundo Lucas, o pretenso autor dos Atos dos Apóstolos, “E em nenhum
outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há,
dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” (Atos 4:12).

E São Paulo torna ainda mais claro quando nos diz que “E a vós, que sois
atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde
o céu com os anjos do seu poder, como labareda de fogo, tomando
vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao
evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; os quais, por castigo, padecerão
eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder” (2
Tessalonicenses 1:7-9).

A esta altura, pode ocorrer a alguns de nós que como é uma condição
necessária da crença no nome de Jesus que vocês tenham tanto ouvido o
nome quanto compreendido seu significado, ninguém pode ser salvo do
inferno se não tiver ouvido o evangelho.

É esta, portanto, a origem da motivação dos missionários. Mas o que dizer


daqueles que viveram em épocas ou lugares nos quais o nome de Jesus era
desconhecido? Estão todos os que viveram antes da época de Cristo já
condenados?

E acerca daqueles que viveram, ou ainda vivem, ignorantes da história


cristã? Estão eles — a maior parte da raça humana — condenados pela
ausência de uma crença que, por razões históricas ou geográficas, estavam
impedidos de possuir?

Esta conclusão chocante é o que a Bíblia implica. Certamente, o próprio


Jesus parece tê-la aceitado tranquilamente: “E porque estreita é a porta, e
árduo o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.”
A exclusão da maior parte dos seres humanos — não importa quão
virtuosamente eles vivam — pela única razão de que eles não acreditam em
Jesus como Salvador, é uma consequência do fato de que a maioria da
população que já habitou o planeta até o presente sequer ouviu falar dele.

Se formos levar o próprio Jesus a sério, pouco conforto pode ser


encontrado na sugestão de São Paulo de que alguns podem encontrar a
salvação como resultado da assim chamada revelação geral.

Como um dos mais hábeis apologistas cristãos, William Lane Craig,


reconhece, tais exceções à regra da “salvação por nenhum outro nome”
podem na melhor das hipóteses serem raras. É por isto que Craig não
dissimula o fato de que em sua visão, e na de Jesus, mesmo os mais sinceros
adeptos de outras religiões mundiais estão “perdidos e morrendo sem
Cristo”. [12]

Contudo, toda esta conversa sobre o número de pessoas que serão


torturadas no inferno é um aspecto secundário do assunto. Que é a questão
de se os tormentos do inferno são finitos ou infinitos em duração.

Se houver uma pessoa sequer sofrendo as torturas dos condenados, então


o princípio moral que consagramos como P5 é desse modo violado pelo
próprio Deus. E em virtude de Deus violá-lo — junto com nossos outros
princípios morais — sua alegada santidade está indiscutivelmente
comprometida.

Assim como seria incoerente dizer que Hitler foi moralmente perfeito
apesar do fato de ter enviado pessoas para as câmaras de gás pelo “pecado”
de não possuírem a ancestralidade correta, também seria incoerente supor
que Deus é moralmente perfeito apesar do fato de que ele irá enviar
pessoas para assar no inferno pelo “pecado” de não possuírem as crenças
corretas.
Ao contrário, qualquer um que seja culpado de tais atrocidades é, sem
meias palavras, simplesmente mau, cruel, perverso, vil. Pouco surpreende,
então, que Deus diga sobre si mesmo não apenas “Eu faço a paz” como
também “Eu crio o mal” (Is. 45:7). [13]

Vale a pena notar que, comparado com Deus, Satanás é retratado na Bíblia
como um relativo paradigma de virtude. Satanás é culpado de apenas três
delitos principais.

Primeiro, segundo uma passagem que estabelece o tom moral da Bíblia,


Satanás — disfarçado de serpente — tenta Eva com o fruto proibido do
esclarecimento moral, fruto do que é descrito como “a árvore do
conhecimento do bem e do mal” [14].

Alguém pode ter pensado nisso como uma coisa boa pois Satanás, desta
maneira, colocou-a no caminho da educação moral. Mas Deus não queria
que seus olhos fossem “abertos”, como Gen. 3:5 coloca; ele desejava
obediência cega. E assim Deus reagiu de maneira característica.

Ele não somente puniu Eva por um ato que ela só soube que era errado
após realizá-lo. Ele também puniu Adão, e todos os seus descendentes,
incluindo você e eu. Ele impôs a todos nós o fardo do que os teólogos
chamam Pecado Original: ele assegurou que nenhum de nós pudesse
começar a vida sem esta insuperável desvantagem.

A próxima aparição de Satanás é no primeiro livro de Crônicas, onde ele


desempenha o mesmo papel atribuído a Deus em 2 Samuel. Então, onde foi
que ele errou desta vez? Se é bom o suficiente para Deus ordenar a Davi
que realizasse um censo, por que Satanás estaria sendo moralmente
condenável ao fazê-lo?
A terceira aparição é no Livro de Jó, onde ele torna difícil a vida do protegido
de Deus. Mas isso, deve-se notar, ocorre somente porque Deus lançara-lhe
um desafio.

Depois disso, Satanás não faz quase nada de natureza questionável exceto
por tentar o próprio Deus, na pessoa de Jesus, durante seu retiro de
quarenta dias no deserto — um exercício fadado ao fracasso.

O que é extraordinário, à luz da subsequente difamação sofrida por


Satanás, é que Satanás, ao contrário de Deus, não violou sequer um dos
importantes princípios morais listados de P1 a P5.

F: Uma defesa de (3): a inadmissibilidade das violações de nossos


princípios por Deus

A segunda estratégia apologética é argumentar que nossos princípios


admitem exceções que, quando levadas em consideração, absolvem Deus
da culpa.

O principal dentre os estratagemas apologéticos nesta categoria é o que eu


devo chamar “Exceção da Soberania”.

Nas palavras de um apologista, ele sustenta que “Deus é soberano sobre a


vida” e pode, por conseguinte, fazer conosco o que desejar, “de acordo com
sua vontade”. [15]

Mas este argumento contém um equívoco fatal a respeito da palavra


“pode”. É uma verdade trivial que se Deus é — como os teístas acreditam
— soberanamente onipotente, então ele “pode” fazer seja o que for que
ele desejar no sentido de possuir o poder ou a potência para fazê-lo. Mas
poder, refletimos, não confere o direito.
Certamente não se segue que Deus “pode” violar princípios morais no
sentido de ser moralmente admissível ou correto para ele proceder assim.

Se assim fosse, os monstros morais da história humana que reinaram


soberanamente sobre seus impérios poderiam igualmente ser inocentes de
transgressão.

Uma segunda tática é argumentar que Deus é isento das proibições de


nossos princípios. Pode ser dito que conquanto estes sejam obrigatórios
para seres humanos, não o são para Deus.

Mas isso seria introduzir um padrão duplo e, portanto, comprometer a


universalidade dos princípios morais. Relativizaria a moralidade a
indivíduos ou épocas e a privaria da validade objetiva e absoluta com a qual
os teístas estão comprometidos.

Pior ainda para o caso teísta, colocaria em discussão a santidade de Deus.


Pois santo é o que age de maneira santa. Isto é, se é para qualquer um ser
apropriadamente descrito como moralmente perfeito, então seus atos de
instrução, de comando e de autorização também devem ser moralmente
perfeitos.

Dizer que Deus é santo apesar da natureza perversa do que ele faz seria
brincar com as palavras: seria privar a palavra “santo” de seu sentido usual
e torná-la sinônimo de “mau”.

Um terceiro estratagema é afirmar que em todas as situações que


consideramos, Deus está agindo em concordância com o que alguns podem
sustentar ser o princípio moral absoluto e primordial segundo o qual o
pecado deve ser castigado.
Pois a partir disso, junto com a doutrina teológica do Pecado Original — a
doutrina de que todo ser humano, mesmo os fetos recentemente
concebidos nos úteros de suas mães, herdam o pecado, ou ao menos a
inclinação para o pecado, de Eva — segue-se que Deus tem o direito, não
apenas o poder, de nos punir como lhe aprouver.

Como um apologista coloca: “Como o fardo do pecado é a morte, Deus tem


o direito de conceder e de tomar a vida.” [16]

Coloco de lado as questionáveis pressuposições desta doutrina: que o


pecado é genética ou espiritualmente herdado; e que há justiça em nos
considerar responsáveis por disposições para o pecado herdadas ou não
colocadas em prática.

Existe uma objeção mais importante a esta alegação apologética. Pois


suponha que admitamos como verdadeira a afirmação implausível de que
é em virtude da ausência universal da inocência humana que Deus deve ser
desculpado por suas práticas genocidas.

Então teremos que dizer que não há circunstâncias imagináveis, nem


mesmo a inocência das vítimas, nas quais é moralmente errado massacrar
homens, mulheres e crianças. Teríamos que abandonar P1 como uma
verdade moral objetiva uma vez que seria totalmente vazia, inaplicável.

E isso nos daria, como a Deus, autorização para chacinar impiedosamente


qualquer um que nos aprouver. Tudo o que precisamos fazer é invocar a
Exceção da Punição do Pecado Original. Afinal, a menos que adotemos o
relativismo de um padrão duplo, se é bom o bastante para Deus também
deve ser bom o bastante para nós.
Se uma sequer das exceções listadas acima aos nossos princípios fosse
sólida, tais princípios não seriam verdades morais, mas falsidades morais.

Na melhor das hipóteses, eles enunciariam meramente proibições morais


prima facie, proibições que — a fim de torná-las moralmente obrigatórias
— teriam que ser restringidas e modificadas de maneiras que autorizariam
alguns dos comportamentos mais moralmente abomináveis dos quais
qualquer pessoa poderia ser culpada.

Em resumo, se reformuladas para acomodar Deus, elas igualmente


acomodariam o Diabo e outras personificações do mal.

G: Consequências para o teísmo: a falsidade de pelo menos um de seus


pilares, (1) ou (2).

Retornemos agora à tétrade inconsistente que eu afirmei colocar tais


problemas para a crença teísta. Eu demonstrei, primeiro, que (4) é
verdadeira, isto é, que a Bíblia de fato nos diz que Deus viola nossos
princípios morais; segundo, que (3) é verdadeira, isto é, que é moralmente
inadmissível para qualquer um — incluindo Deus — violar estes princípios.

Mas se estou certo, então os teístas não possuem uma escapatória de seu
dilema lógico que não destrua o núcleo da crença teísta.

Eles têm uma escolha. Eles devem, sob pena de contradição, abandonar ao
menos um, se não ambos, entre (1), a crença de que todos os atos de Deus
são moralmente permissíveis, ou (2), a crença de que a Bíblia nos revela o
que vários destes atos são.
Ainda, como vimos, se eles abandonarem (1), com isso também
abandonarão a crença na santidade de Deus; ao passo que se abandonarem
(2), também se desfazem da crença na Bíblia como sua revelação.

E aqui eu termino a exposição de meu caso contra o teísmo: meu


argumento moral para o ateísmo.

H: Um corolário de meu argumento: a falsidade da teoria ética teísta

Antes de terminar, entretanto, desejo chamar a atenção para um corolário


de meu argumento. Considere, mais uma vez, a tétrade inconsistente pela
qual o edifício inteiro do teísmo desmorona. Mas desta vez substitua as
declarações (1), (2), (3) e (4) da tétrade inconsistente original por seus
respectivos corolários:

(1)* Qualquer ato que Deus nos ordene realizar é moralmente admissível.

(2)* A Bíblia nos revela vários dos atos que Deus nos ordena realizar.

(3)* É moralmente inadmissível para qualquer um cometer atos que violem


o princípio P1.

(4)* A Bíblia nos diz que Deus nos ordena realizar atos que violam o
princípio moral P1.

Então um dilema lógico paralelo surge para a crença do teísta de que Deus,
como revelado na Bíblia, é a fonte da moralidade objetiva ou, no mínimo, é
um guia confiável para o que deveríamos ou não deveríamos fazer.
Em vez de desenvolver o argumento novamente, apresentarei este
indiciamento adicional da crença teísta citando a Bíblia e então
endereçando uma série de questões para aqueles que, como o filósofo Alvin
Plantinga, afirmam que “o que [o Senhor] tenciona que seja o conteúdo de
nossas crenças é o que devemos acreditar.”

Pois deveria ser evidente que, se Plantinga e outros teístas bíblicos


estiverem certos, então, uma vez que as crenças que o Senhor propõe
incluem aquelas sobre o que devemos fazer, se o Senhor propõe que
deveríamos fazer assim e assim, então assim e assim é o que devemos fazer.

Considere 1 Samuel 15:3 onde o Senhor ordena a seu povo:

“Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver,
e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os
meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos
até aos jumentos.”

Agora pergunte-se:

1. “…matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de


peito…” foi a palavra do próprio Deus que você adora?

2. É concebível que seu Senhor possa expedir novamente a mesma ordem


em nossa época?

3. Se você acreditasse que recebeu tal ordem de seu Senhor, poderia e


deveria você obedecê-lo?

Se você responder “Não” à questão 1, você nega a autoridade da assim


chamada palavra de Deus, a Bíblia. Se você responder “Não” à segunda
pergunta — talvez porque você pense que seu Senhor possa ter corrigido e
aprimorado suas maneiras — você nega que os mandamentos de Deus
possuem o tipo de aplicabilidade universal que é condição necessária para
que sejam concordantes com, para não mencionar a fonte de, verdades
morais.

Se você responder “Não” à terceira pergunta, você deve pensar que


algumas vezes é correto, ou talvez obrigatório, desobedecer a Deus. Desta
maneira você admite que as verdades morais são independentes e podem
até mesmo colidir com as ordens de Deus.

Você admite que a ética é, como a maioria dos filósofos tem há muito
insistido, autônoma; e que devemos, portanto, pensar moralmente por nós
mesmos.

Mas se você responder “Sim” a cada questão, então eu acuso sua crença no
Deus do teísmo bíblico de ser não somente equivocada, mas moralmente
abominável.

Pois, nas palavras de meu amigo, John Patrick, que pediu demissão do
ministério presbiteriano da Nova Zelândia depois de descobrir quantos de
seus paroquianos também responderam “Sim” às três perguntas:

“Uma doutrina que afirme que as Escrituras contêm a Palavra de Deus, o


governante supremo da fé e do dever, tem o poder de transformar pessoas
que, em outros contextos são ponderadas, gentis e amáveis, num grupo
disposto a aprovar o genocídio em nome do Senhor que eles adoram.” [17]

1. Para os objetivos presentes não digo nada sobre o Deus do Alcorão. Basta
dizer que meu argumento, se sólido, também é aplicável contra o teísmo
islâmico.
2. Alvin Plantinga, “When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible,”
Christian Scholar’s Review, Vol. XXI, No. 1, (Setembro de 1991), p. 8.

3. William Alston, “Divine-Human Dialogue and the Nature of God,” Faith


and Philosophy, (Janeiro de 1985, p.6).

4. Peter van Inwagen, “Genesis and Evolution,” in Reasoned Faith, ed.


Eleonore Stump, Cornell University Press, 1993, p.97.

5. Alvin Plantinga, p.12.

6. Rod Evans and Irwin Berent, Fundamentalism: Hazards and Heartbreaks,


Open Court, La Salle, Illinois, 1988, pp. 120-1. Também James A. Haught,
Holy Horrors: an Illustrated History of Religious Murder and Madness,
Prometheus Books, Buffalo, New York, 1990, p.163.

7. Veja Oséias 13:16: Samaria virá a ser deserta, porque se rebelou contra
o seu Deus; cairão à espada, seus filhos serão despedaçados, e as suas
grávidas serão fendidas pelo meio.

8. Brad Warner, “Deus, o Mal e o Professor Bradley” (manuscrito divulgado


em caráter privado em resposta a meu debate com o representante da
Cruzada Acadêmica por Cristo, Dr. Chamberlain, sobre o tema “Pode existir
uma moralidade objetiva sem Deus?”). O debate aconteceu na Simon
Fraser University em 25 de Janeiro de 1996.

9. No Levítico, cap. 26, vers. 28-29, lemos: “Também eu para convosco


andarei contrariamente em furor; e vos castigarei sete vezes mais por causa
dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas
filhas.” No Deuteronômio, cap. 28, após o Senhor listar as dezenas de
desastres e infortúnios que sucederão a seus povo se ele não observar
todos os seus mandamentos e estatutos, ele diz (nos vers. 53-58): “E
comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas…
Quanto ao homem mais mimoso e delicado no meio de ti, o seu olho será
maligno para com o seu irmão, e para com a mulher do seu regaço, e para
com os demais de seus filhos que ainda lhe ficarem; De sorte que não dará
a nenhum deles da carne de seus filhos, que ele comer…” E mulheres
refinadas e delicadas, também nos é dito, farão o mesmo. Em Jeremias, cap.
19, vers. 9, o show de horrores continua quando o Senhor diz: “E lhes farei
comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e comerá cada um a
carne do seu amigo, no cerco e no aperto em que os apertarão os seus
inimigos, e os que buscam a vida deles.” Finalmente, em Ezequiel, cap. 5,
vers. 10, a dieta divina é estendida aos pais quando Deus diz: “Portanto os
pais comerão a seus filhos no meio de ti, e os filhos comerão a seus pais; e
executarei em ti juízos, e tudo o que restar de ti, espalharei a todos os
ventos.”

10. De autoria desconhecida apesar de erroneamente atribuída a São Paulo.

11. [Apocalipse 14:10-11] Verdade seja dita, o versículo continua


identificando aqueles que sofrem essa sina com “aqueles adoram a besta e
sua imagem, e qualquer pessoa que receber a marca de seu nome.” Mas
eles já haviam sido identificados, no capítulo anterior, 13, vers. 8-18, como
aqueles que não foram predestinados para a salvação.

12. William Lane Craig, “Nenhum outro nome: uma perspectiva do


conhecimento médio sobre a exclusividade da salvação através de Cristo”,
Faith and Philosophy, Abril de 1989, p. 187. Em seu ponto de vista, Deus
está justificado em enviar descrentes voluntários e involuntários para o
inferno porque ele sabe — antes de criá-los — que eles não teriam
acreditado em Jesus como Salvador mesmo se tivessem ouvido sobre ele.

13. O termo hebraico que é traduzido aqui como “mal” é “rah”. Os


tradutores da New American Standard, entretanto, preferem traduzi-lo
como “calamidade” na passagem de Isaías e como “aflição” na passagem
das Lamentações. Mas tal sanitização do original não ajuda realmente.
Proporciona ao crente pouco alívio ouvir que Deus é a origem e a fonte das
calamidades. E “aflição” — aprendemos com o New Collegiate Dictionary
do Webster — é apenas um sinônimo de “mal”.

14. Genesis 2:9.

15. Brad Warner, p.15.

16. Brad Warner, p.14.

17. John Patrick, “Por qual autoridade?” publicado em Setembro de 1984


num boletim a seus companheiros clérigos da Igreja Presbiteriana da Nova
Zelândia explicando por que se demitiu. Minhas três perguntas são
derivadas das que ele colocou a seus paroquianos.

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