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Um Argumento Cosmológico A Partir Do Big Bang Para A Inexistência de

Deus

Parte 7 – A Questão Da Necessidade Metafísica De Um Universo A Partir do


Big Bang

Autor: Quentin Smith


Fonte:
http://www.infidels.org/library/modern/quentin_smith/bigbang.html
[Publicado originalmente em FAITH AND PHILOSOPHY em abril de 1992
(Volume 9, No. 2, págs. 217-237)]
Tradução: Gilmar Pereira dos Santos (blog Rebeldia Metafísica)

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De acordo com o essencialismo, as leis naturais, tal como a lei de que a água
é H2O, são metafisicamente necessárias; elas vigoram em todos os mundos
possíveis, de modo que Deus não poderia ter criado um universo em que
elas são violadas.

Consequentemente, se é uma lei natural que um universo sujeito às


soluções de Friedmann para a equação de Einstein e aos teoremas da
singularidade de Hawking-Penrose começa numa singularidade, então Deus
não poderia ter criado um universo Friedmann-Hawking-Penrose (FHP) de
outra maneira que não primeiro criando uma singularidade imprevisível.

Dado isto, e dado seu desejo de que o universo fosse animado, ele então
seria obrigado a intervir para assegurar que o universo fosse animado. Isto
não seria um sinal de ineficiência ou incompetência, já que este seria o
único modo possível pelo qual se poderia garantir que o universo fosse
animado.

Minha resposta a esta objeção é que mesmo se esta hipótese essencialista


for sólida, não se segue que Deus deve criar uma singularidade do Big Bang
se ele almeja criar um universo animado. Pois o fato de que certas leis
naturais são metafisicamente necessárias não implica que elas sejam
necessariamente instanciadas.

Se pegamos emprestado o simbolismo, se não o ponto de vista, de D. M.


Armstrong [24], podemos dizer que uma lei natural metafisicamente
necessária possui uma forma como:

(L) [ ] (N(F,G))

onde F e G são universais e N uma relação entre eles. N é a relação da


necessitação nômica. Armstrong considera N primitiva, mas penso que
podemos definir N em termos de coexemplificação.

(L) significa que em todos os mundos possíveis em que F é exemplificado, G


é coexemplificado. Se F é água e G H2O, então (L) declara que em cada
mundo possível em que ser água é exemplificado, ser H2O é exemplificado
por seja lá o que for que exemplifique ser água.

Mas (L) não implica que F ou G são exemplificados. O fato de que água é
H2O em todos os mundos possíveis em que há água não implica que exista
água em todos os mundos.

Analogamente, o fato de que um universo que satisfaz as leis FHP começa


numa singularidade do Big Bang em todos os mundos possíveis em que tal
universo existe não implica que exista um universo FHP em todos os
mundos.

Pois outras espécies de universo também são possíveis, universos que


satisfazem outros conjuntos de leis, incluindo conjuntos de leis que
permitem que o estado mais antigo seja, ou evolua previsivelmente, até um
estado animado.

Se Deus existe e almeja que exista um universo animado, ele teria criado
um destes universos (ou um universo animado sem princípio).

Esta resposta à objeção essencialista pode ser rejeitada com base em que
o essencialismo e a teoria FHP conjugados implicam que os únicos universos
metafisicamente possíveis são universos FHP.

Seja F a propriedade ser um universo e G a propriedade ser um universo


FHP. De acordo com (L), ser um universo não pode ser exemplificada a
menos que ser um universo FHP seja coexemplificada.

Acredito, contudo, que podemos conceder até mesmo esta objeção


consistentemente com a solidez do argumento ateológico. Para ver porque
isto é possível, devemos refletir sobre as evidências aduzidas para a
necessidade metafísica das leis naturais.

Kripke, Putnam e outros pioneiros do essencialismo reconhecem que


alguma razão deve ser dada para sustentar que uma lei natural seja
necessária que anule a razão usual para considerá-las contingentes,
nomeadamente, que se pode conceber coerentemente que elas não
vigoram.
A razão para sustentar que alguns princípios sejam necessários, tal como as
tautologias (todos os homens não casados são homens), princípios
analíticos (todos os homens não casados são solteiros) e princípios
sintéticos a priori (todos os objetos completamente verdes não são
simultaneamente completamente vermelhos) é que não se pode conceber
coerentemente que eles sejam falsos.

Mas este não é o caso das leis naturais. Como Putman assinala, ‘podemos
nos imaginar perfeitamente bem tendo experiências que nos convenceriam
(e que tornariam racional acreditar que) água não é H2O.

Nesse sentido, é concebível que água não seja H2O [25]. Mas neste caso, a
conceptibilidade de ser um caso diferente é um guia anulado para a
contingência, pois considerações de como a referência de ‘água’ é
estabelecida, em conjunção com observações científicas, mostram que
‘água’ é necessariamente ‘H2O’.

Mas eu não seguirei Putnam à risca ao apresentar “o argumento a partir da


rigidez de ‘água’” já que formulações subsequentes proporcionaram
versões aprimoradas. Keith Donnellan [26] ofereceu uma versão melhorada
em relação à de Putnam e Nathan Salmon [27] aprimorou a versão de
Donellan.

Mas Paul Copeck [28] recentemente refinou a versão de Salmon e tomarei


parcialmente emprestada a versão de Copeck na seguinte declaração
resumida deste argumento.

A primeira premissa é uma formalização do significado rígido de ‘água’ em


termos da definição ostensiva da palavra e a segunda premissa é retirada
da teoria científica corrente:
(1) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma amostra de água se
e somente se tal coisa exemplifica d-isso (as propriedades P1, …Pn tal que
P1, …Pn são causalmente responsáveis pelas propriedades observáveis [por
exemplo, ser incolor, inodora e insípida] da substância da qual isso é uma
amostra).

(2) Isto (amostra líquida) possui a estrutura química H2O, tal que ser H2O é
a propriedade causalmente responsável pelas propriedades observáveis de
ser incolor, inodora, insípida, etc.

Portanto,

(3) É necessariamente o caso que: todas as amostras de água possuem a


estrutura química H2O.

O termo ‘d-isso’ na premissa (1) é o operador rigidificante de Kaplan, que


opera sobre ‘isso’ para produzir uma referência demonstrativa que é rígida.
Agora se construirmos um argumento análogo para a necessidade de um
universo ser FHP, ele seria como:

(4) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma instância de um


universo se e somente se tal coisa exemplifica d-isso (as propriedades
P1,…,Pn tais que P1,…,Pn são causalmente responsáveis pelas propriedades
observáveis [por exemplo, aglomerados de galáxias se afastando, a
radiação de micro-ondas de fundo de 2.7 K] de cujo tipo isso é uma
instância).

(5) Esta instância de um universo tem uma estrutura FHP, tal que ser um
universo FHP é a propriedade causalmente responsável pelas propriedades
observáveis de aglomerados se afastando, radiação de fundo, etc.
Portanto,

(6) É necessariamente o caso que: toda instância de um universo tem a


propriedade de ser um universo FHP.

Não desafiarei a solidez de (4)-(6) mas meramente mostrarei que sua


solidez é consistente com a solidez do argumento cosmológico a partir do
Big Bang para a inexistência de Deus.

Será útil esboçar um paralelo com o exemplo da água. Como Putnam


assinalou, há outro mundo possível em que uma substância possui uma
certa estrutura química, XYZ, tal que XYZ é causalmente responsável pelas
propriedades observáveis da substância de ser um líquido incolor, inodoro
e insípido.

Esta substância mão é água, mas algo cujas propriedades observacionais


são indistinguíveis das da água. Esta substância pode ser chamada ‘água1’,
tal que é metafisicamente necessário que água1 é XYZ.

Analogamente, há outro mundo possível W em que a estrutura cósmica


responsável pelas propriedades observáveis de aglomerados se afastando,
radiação de fundo, etc. não é uma estrutura FHP mas alguma outra
estrutura, digamos ABC.

Aquilo que tem esta estrutura não é um universo, já que ‘universo’ refere-
se rigidamente a alguma coisa com uma estrutura FHP. Mas podemos
chamá-lo de ‘universo1’, assim como podemos chamar XYZ de ‘água1’.

Ainda existem outros mundos em que as propriedades observacionais


relevantes não incluem aglomerados se afastando e radiação de fundo, mas
propriedades como as que se considera que os sistemas de Ptolomeu,
Copérnico ou Newton exemplifiquem.

O que é causalmente responsável por estas propriedades pode ser


chamado ‘um universo2’, ‘um universo3’, etc. Consequentemente, o
proponente do argumento ateológico pode conceder que Deus não poderia
ter criado um universo animado sem criar uma singularidade do Big Bang,
mas ele ressaltará que Deus estaria sendo irracional e incompetente ao
criar um universo animado; a coisa racional a ser feita seria criar um
universo1 animado, ou um universo2 animado, etc., tal que estes sistemas
não exigissem intervenções divinas para garantir estados animados.

Notas.

24. D. M. Armstrong, What Is A Law of Nature? (Cambridge: University


Press: 1983), p. 163. Armostrong rejeita a ideia de que as leis da natureza
são metafisicamente necessárias. Alfred J. Freddoso, por outro lado,
argumenta que as leis naturais são corretamente representadas por (L).
Veja seu ‘The Necessity of Nature,’ em Midwest Studies in Philosophy XI,
ed. P. French, et al. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986), pp.
215-42.

25. Hilary Putnam, Philosophical Papers, Vol. 2 (Cambridge: University


Press, 1975), p. 233.

26. Keith Donnellan, ‘Substance and Individuals,’ APA address, 1973.

27. Nathan Salmon, Reference and Essence (Princeton: University Press,


1981).
28. Paul Coppock, ‘Review of Nathan Salmon’s Reference and Essence’, em
The Journal of Philosophy 81 (1984): 261-270.

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