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JAMES THROWER

Breve História do Ateísmo


Ocidental
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Breve História do Ateísmo Ocidental


Título original: A Short History of Western Atheism

© 1971 James Thrower

Tradução de Ana Mafalda Tello e Mariana Pardal Monteiro Capa


de Fernando Camilo
Direitos reservados para a Língua Portuguesa

EDIÇÕES 70 - Av. Duque de Ávila, 69-r/c. Esq. 1000 Lisboa - Tels.:


55 68 98/57 20 01
Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES Rua Conselheiro
Ramalho, 330/340 -São Paulo

James Thrower
Breve História do Ateísmo Ocidental edições 70

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JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

À MINHA MÃE E
À MEMÓRIA DE MEU PAI

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JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .................................................................................... 5
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 6
PRIMEIRA PARTE
O ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA.................................................. 11
Capítulo I: Período Pré-Socrático ......................................................... 12
Capítulo II: PERÍODO SOCRÁTICO ......................................................... 33
Capítulo III: PERÍODO HELENÍSTICO...................................................... 47
Capítulo IV: PERÍODO ROMANO ........................................................... 58
Capítulo V: CONCLUSÃO....................................................................... 66
SEGUNDA PARTE
O ATEÍSMO OCIDENTAL ATÉ AO SÉC XVII ................................................. 71
Capítulo VI: A IDADE MÉDIA ................................................................. 72
Os sécs. XII e XIII ........................................................................... 72
O séc. XIV ..................................................................................... 80
Capítulo VII: O RENASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA 88
O Renascimento Clássico .............................................................. 92
O desenvolvimento da ciência e a filosofia mecanicisto-materialista
.................................................................................................... 99
TERCEIRA PARTE
O ATEÍSMO MODERNO .......................................................................... 117
Capítulo VIII: O ILUMINISMO .............................................................. 118
Capítulo IX: DO SÉC. XIX ATÉ AOS NOSSOS DIAS................................ 146
Existencialismo ateu ................................................................... 155
Ciência e Religião ....................................................................... 156
O Positivismo e Empirismo Lógicos ............................................. 165
CONCLUSÃO ....................................................................................... 170

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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer à Universidade do Gana e, muito es-
pecialmente ao antigo Director do meu Departamento, Professor
Christian Baeta, terem-me concedido autorização para não fre-
quentar as aulas durante um período lectivo em 1968, a fim de
poder começar a trabalhar no presente livro. Aos Srs. Andrew
Walls, do Departamento de Estudos Religiosos, e Nigel Dower, do
Departamento de Lógica e Filosofia Moral, e ainda ao Dr. George
Molland do Departamento de História e Filosofia da Ciência - cole-
gas da Universidade de Aberdeen - agradeço a amabilidade de
terem lido as provas, e a Miss Amelia Davidson de Robert Gordo-
n's College, Aberdeen, a preparação do índice Remissivo. Gostaria
ainda de agredecer a todos aqueles cuja colaboração tornou pos-
sível a feitura deste livro e que, creio, ter referido devidamente no
texto e respectivas Notas, bem como aos próprios atheoi. Não
fosse a dívida maior reconhecida na dedicatória deste pequeno
trabalho, teria sido sem dúvida a estes últimos que a obra teria
sido dedicada.

James Thrower, Junho 1971

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INTRODUÇÃO
Até há bem pouco tempo, era prática corrente entre os teó-
logos apologéticos iniciarem a discussão das provas a favor da
concepção religiosa e, sobretudo, teísta do mundo, invocando
aquilo a que se chama o argumentum e consensum gentium, ou
seja, o argumento do consenso universal. Trata-se de um argu-
mento extremamente antigo. Já no séc. III d. C. Lactâncio recorreu
a ele ao falar da "noção que tem em sua defesa o testemunho de
povos e nações que não divergem neste aspecto particular" 1. Cer-
ca de seis séculos antes, Platão invocara também aquilo que ele
considerava o facto de "toda a humanidade, incluindo gregos e
não gregos, acreditar na existência de deuses" 2.

Mais recentemente, o Prof. John Baillie apresenta-o como


primeiro argumento da sua apologia teísta, afirmando categori-
camente que "não temos conhecimento de qualquer sociedade
humana, por mais selvagem e atrasada que seja, à qual seja alheio
o conceito do divino" 3 Todavia, nem sempre se esteve de acordo
quanto à existência de tal consenso que foi sobretudo contestado
no séc. XVIII; mas atendendo às provas históricas e antropológicas
de que dispomos actualmente, parece poder-se afirmar que, no
passado, aquilo a que, em termos gerais, se poderá chamar crença
religiosa, foi a norma mais do que a excepção entre os povos do
mundo.

Hoje em dia a situação modificou-se, pelo menos no que diz


respeito à chamada cultura da Europa Ocidental. Na conferência

1
Lactancio, Institutorum. Lib. I. De Falsa Religione § 2.
2
Platão. Leis, 886a.
3
J. Baillie, Our Knowledge of God p. 6.

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de abertura da cadeira de Literatura Medieval e Renascentista da


Universidade de Cambridge em 1951, o Dr. C. S. Lewis estabeleceu
uma distinção entre a nossa época que, segundo ele, teve início
nos fins do século passado, e as precedentes, tomando por base o
facto de no passado se aceitar uma concepção sobrenatural do
mundo, o que já não acontece hoje em dia 4. À luz de tal distinção,
afirmou, divisões mais antigas da história cultural, como por
exemplo as que separavam a Antiguidade Clássica da Idade das
Trevas e esta da Idade Média e do Renascimento, perdiam grande
parte do seu significado. Aquilo a que estamos a assistir e a ver
hoje em dia é uma transição de uma cultura de orientação teísta e
sobrenatural para uma cultura de orientação naturalista, facto
que para Lewis implica as mais graves consequências para todos
os aspectos da nossa vida. Numa perspectiva positiva, podemos
dizer que se assiste hoje ao aparecimento de um secularismo mais
generalizado e universal do que jamais existiu, e Lewis salientou
um aspecto muito importante: que se deve distinguir este secula-
rismo não só das épocas em que a Fé prevalecia, como do Paga-
nismo com o qual é frequentemente confundido. "O homem da
era pós-cristã", diz ele, "não é um pagão; seria o mesmo que pen-
sar que uma mulher casada recupera a virgindade ao divorciar-se.
O homem pós-cristão está desligado do passado cristão, e está-o
duplamente do passado pagão" 5. O Cónego Demant defende um
ponto de vista idêntico quando afirma que "os paganismos anti-
gos, a Bíblia e a Igreja Cristã, têm em comum o facto de sustenta-
rem que a origem de todas as coisas é uma realidade divina que
transcende o mundo ao mesmo tempo que actua dentro dele. Os

4
C. S. Lewis, De Descriptione Temporum. Reeditado na sua obra They Asked for a
Paper.
5
They Asked for a Paper p. 20.

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secularismos de hoje têm em comum o facto de defenderem que


o significado do mundo se encontra no próprio mundo" 6.

Mas embora a situação que existe hoje seja em grande me-


dida única, sobretudo no que diz respeito à sua extensão, não
deixa de ter precedentes, e a sua origem remonta pelo menos à
última parte do Renascimento e, como espero mostrar, a uma
época ainda mais longínqua. É precisamente isto que me propo-
nho analisar.

Conquanto seja verdade que no passado e até há relativa-


mente pouco tempo - "anteontem", para usar a expressão de Le-
wis - tivéssemos um sistema de referência comum baseado numa
interpretação religiosa ou sobrenatural do mundo, não podemos
esquecer que, em determinados períodos, houve na nossa história
intelectual e cultural um pequeno número de pensadores e esco-
las que rejeitaram conscientemente essa interpretação, defen-
dendo, pelo contrário, dum ou doutro modo, uma concepção na-
turalista do mundo. É precisamente esta história da descrença,
que está ainda por fazer e da qual praticamente não existem re-
gistos, que pretendo examinar nas páginas que se seguem. O meu
plano consistirá em apontar aqueles pensadores e escolas a que
se chamou, ou a que se poderia ter chamado, agnósticos ou ateus,
partindo das origens da tradição intelectual ocidental tal como se
encontram na Grécia e em Roma e, em menor grau no que respei-
ta à ausência de fé, em Israel. O período mais importante para a
ascensão do secularismo na Europa Ocidental foi, na minha opini-
ão, a última parte da Idade Média e a dissociação entre fé e razão
- ou, para empregar as palavras que irei utilizar adiante, as limita-

6
V. A. Demant, Religion and The Decline of Capitalism p. 111.

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ções impostas à esfera da razão - que então se deu, e que veio a


dar origem ao desenvolvimento da ciência física como meio exclu-
sivo e exaustivo de encarar o mundo.

Proponho-me igualmente tentar determinar as causas prin-


cipais do ateísmo e mostrar quais são as principais questões que
separam o crente do descrente, o teísta do agnóstico e do ateísta.
Não pretendo, portanto, ser apenas um historiador de ideias, pois
espero lançar um pouco de luz filosófica sobre uma das principais
questões do nosso tempo. O ateísmo tem um carácter sistemático
e discordo, portanto, da opinião de Charles B. Upton que, ao es-
crever sobre "Ateísmo" na Encyclopaedia of Religion and Ethics,
afirma que "a sua história é pouco mais do que uma colectânea de
casos isolados em que se pôs em dúvida ou negou um elemento
essencial do teísmo" 7. O ateísmo é mais do que isto. A perspectiva
naturalista tem uma coerência que faz dela uma maneira nova e
genuína de encarar o mundo diferente daquela que inspira os
crentes. Claro que Upton, em determinado sentido, tem razão.
Como adiante veremos há muitas formas de ateísmo que só pode-
rão ser entendidas à luz do teísmo que pretendiam rejeitar. Este
ateísmo é um ateísmo relativo. Há, no entanto, uma maneira de
encarar e interpretar o mundo, cujas origens, como espero vir a
demonstrar, remontam aos primórdios do próprio pensamento
especulativo, e a que chamarei naturalista, ou seja, ateísta per se,
na medida em que é incompatível com toda e qualquer forma de
aceitação do sobrenatural. Embora não deixe de referir os ateís-
mos relativos, é evidente que o ateísmo naturalista ou absoluto é,
fundamentalmente, mais importante e, também, de maior inte-

7
Encyclopaedia of Religion and Ethics (Ed. Hastings) Vol. I. Artigo, "Ateísmo" p.
174. 16

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resse, pois representa uma polaridade no desenvolvimento do


espírito humano, e é dele que irei sobretudo tratar nas páginas
seguintes.

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Primeira Parte
O ATEÍSMO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

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Capítulo I: Período Pré-Socrático

Muitas das questões respeitantes à controvérsia sobre reli-


gião e ateísmo são tão antigas como o próprio pensamento e to-
mámos, portanto, como ponto de partida o aparecimento do pen-
samento especulativo na Europa, ou seja, o despertar do espírito
filosófico entre os filósofos físicos jónios no princípio do séc. VI a.
C. Dá-se a este sistema o nome de escola jónica porque foi inicia-
do por Tales e pelos seus sucessores Anaximandro e Anaximenes
em Mileto, uma das colónias gregas da costa da Ásia Menor. Por
este mesmo motivo são também designados filósofos milésios. A
designação "filósofos físicos" deve-se ao facto de se terem preo-
cupado sobretudo com a natureza daquilo a que chamavam "de-
vir", isto é, a forma como o mundo funciona, embora isso os tenha
levado igualmente a fazer perguntas quanto à origem última do
mundo e a postular a existência de uma substância primária da
qual teria surgido a pluralidade de coisas que agora vemos no
mundo. Os seus estudos culminariam dois séculos mais tarde com
as teorias atomistas de Leucipo e Demócrito.

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Porém, estes filósofos antigos, ou cientistas, como alguns


preferem chamar-lhes, não surgem perante nós como Melquise-
deque, sem qualquer genealogia. Esse grande estudioso da Grécia
antiga, F. M. Cornford, adverte-nos numa das suas obras contra
aqueles que gostariam de escrever a história da filosofia como se
Tales "tivesse caído do céu subitamente e exclamado ao aterrar: 'é
tudo feito de água'" 8. Os pensadores milésios tiveram antecesso-
res, e para se compreender a sua originalidade é necessário de-
bruçarmo-nos brevemente sobre eles, pois isso não diminui de
forma alguma as contribuições muito reais e fecundas associadas
aos seus nomes, que estão directamente relacionadas com o as-
sunto que nos propomos abordar. Na realidade, dá-se precisa-
mente o contrário se compararmos a sua maneira de entender o
mundo natural com aquela que caracterizava as épocas preceden-
tes, e é no facto de terem abandonado esta última que reside jus-
tamente a sua originalidade.

Mas antes de analisarmos as características que distinguem


esta nova espécie de filósofos dos antigos escritores mitológicos,
vejamos quais foram as influências que contribuíram para a pers-
pectiva milésia. Entre estas deverão referir-se o muito que deviam
aos egípcios e aos babilónios, os escritos teogónicos de Hesíodo,
bem como o espírito e antecedentes culturais da época e do local
em que viviam que terão constituído talvez uma das influências
mais importantes. Na sua monumental História da Filosofia Grega,
falando desses antecedentes, o Prof. W. K. C. Guthrie chama a
nossa atenção para a importante posição económica de Mileto e
para o seu elevado nível de vida. Refere-se à sua cultura dizendo

8
In From Religion to Philosophy, onde Cornford analisa a origem da filosofia
milésia a partir da religião tradicional.

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que “poderá descrever-se em termos gerais como uma cultura de


tendência humanista e materialista”, acrescentando: "Era demasi-
ado evidente que o seu elevado nível de vida se devia à energia,
iniciativa e recursos humanos para que se sentisse em dívida para
com os deuses. A poesia do poeta jónio Mimnermo exprimia bem
o espírito de Mileto nos fins do séc. VII. Na sua opinião, se os deu-
ses existiam, não iriam decerto preocupar-se com as questões
humanas. 'Dos deuses não nos vem nem bem nem mal'. O poeta
olhava para dentro de si, para a vida humana. Exaltava os prazeres
momentâneos dizendo que se deviam colher as rosas enquanto
duravam, ao mesmo tempo que chorava a brevidade da juventude
e a infelicidade e debilidade da velhice. O filósofo do mesmo perí-
odo e da mesma sociedade olhava para fora, para o mundo da
natureza, desafiando os segredos desta com a sua inteligência
humana. Tanto um como outro são produtos inteligíveis da mes-
ma cultura material e do mesmo espírito secular" 9.

Por outro lado, a influência exercida pela racionalização par-


cial dos mitos da religião tradicional, iniciada pelos autores das
Teogonias, entre os quais se destaca Hesíodo, constitui, para al-
guns estudiosos, uma importante fase de transição entre os escri-
tores mitológicos antigos, como Homero, e os novos filósofos.
Chegamos assim à relação entre a religião tradicional e a nova
filosofia.

Segundo Guthrie, a filosofia começou quando "começou a


ganhar forma no espírito dos homens a ideia de que o caos apa-
rente escondia uma ordem subjacente e que esta ordem era re-

9
W. R. C. Guthrie, History of Greek Philosophy. Vol. I, p. 30.

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sultante de forças impessoais" 10, o que constitui uma tentativa de


explicação dos fenómenos do mundo totalmente oposta à da reli-
gião politeísta tradicional que se poderá designar mitológica. Não
há melhor descrição deste último tipo de explicação do que aque-
la que podemos ler nos primeiros capítulos do livro do Prof. G.
Lowes Dickinson The Greek View of Life. Aí se refere que os deu-
ses do panteão grego tradicional serviam para explicar tanto os
fenómenos da natureza como os das paixões e actos que não po-
diam ser atribuídos a um desígnio humano. Para ilustrar a sua
afirmação. Lowes Dickinson cita uma série de passagens daquela
verdadeira Bíblia da cultura grega, o Corpos Homericus, e talvez
seja conveniente analisarmos pelo menos uma delas pormenori-
zadamente, pois a questão levantada pelos filósofos milésios ao
rejeitarem tal explicação é fundamental para a controvérsia sobre
a crença e a descrença tanto no seu tempo como nos nossos dias.
É uma questão que se levanta ao longo de toda a história intelec-
tual do Ocidente.

Vou tomar o primeiro exemplo referido pelo Prof. Lowes


Dickinson, extraído da Odisseia de Homero. Ulisses regressa a Íta-
ca, vindo de Tróia, navegando num "mar escuro como vinho",
quando de súbito rebenta uma tempestade. A explicação que
Homero dá deste acontecimento é a seguinte: "Ora o Senhor, sa-
cudidor da terra, que vinha de entre os Etíopes, viu-o de longe,
dos montes Solimos: daí o viu navegar sobre o mar; e de coração
ainda mais aceso em ira e sacudindo a cabeça falou para si. 'Oh!
certamente os deuses mudaram de resolução a respeito de Ulis-
ses durante a minha ausência entre os Etíopes. E agora que ele já
se encontra perto da terra dos Faécios, onde é seu destino esca-

10
Ibid., p. 26.

15
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par às atribulações que sobre ele pesam, mas parece-me que ain-
da o farei sofrer muito'".

"Dito isto reuniu as nuvens e agitou as águas do mar, to-


mando o tridente nas mãos; de todos os ventos fez tempestades e
envolveu de nuvens a terra e o mar e do céu caiu a noite. O Vento
do Nascente e o Vento do Sul, o impetuoso Vento do Ocidente e o
Vento do Norte que nasce no ar luminoso, entrechocaram-se sus-
citando uma onda gigantesca" 11.

Os leitores que conhecem bem a Bíblia hebraica poderão


comparar esta passagem da obra de Homero com uma série de
relatos das acções do deus Iave que, embora descritas de uma
maneira mais impressionante e sóbria, são muito semelhantes.

Para a mitologia, os acontecimentos do mundo surgem co-


mo resultado da actividade de vontades superiores e são produto
de forças pessoais que ora se opõem ora favorecem a vontade do
homem. O mesmo se poderá dizer das paixões humanas que mui-
tas vezes se abatem sobre nós e nos possuem, não por nossa von-
tade mas a despeito dela. Os escritores mitológicos não hesitavam
em explicar esse fenómeno em termos de vontades conscientes e
de vontades alheias. Um amor violento era obra de Afrodite, a
inspiração musical e artística de Apolo, a sabedoria era um dom
de Atena, e a loucura surgia porque Zeus tirava ao homem a inte-
ligência.

A verdadeira inovação introduzida pelos filósofos jónios con-


sistiu em se desligarem desta interpretação do mundo pelo menos

11
Odisseia. V. 282.

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no que diz respeito aos fenómenos físicos, substituindo-a por uma


explicação em termos de necessidade, que fez deles os primeiros
representantes da concepção do mundo em que assenta a cultura
contemporânea. Para usar as palavras de Guthrie: "Sob a influên-
cia dos primeiros filósofos o 'Pai dos deuses e dos homens' e a sua
família divina desapareceram para dar lugar a uma 'necessidade'
impessoal, a uma questão de leis naturais e de interacção daquilo
a que, no Fédon, Sócrates chama “ares, éteres, águas e outras
coisas estranhas'" 12.

Já no séc. V Aristóteles reconheceu tratar-se do início de


uma nova era e foi ele o primeiro a estabelecer a distinção entre
aqueles que descreviam o mundo em termos do mito e do sobre-
natural e aqueles que tentaram, pela primeira vez, interpretá-lo
em termos de forças naturais. Aos primeiros chamou “theologi” e
aos últimos “physiologi”, e considerou que a nova era começara
com Tales de Mileto 13.

Mas embora se tratasse efectivamente do início de uma no-


va era, a observação da Francoforte de que os primeiros filósofos
tinham partido "de uma hipótese que não estava comprovada e
agido com uma ousadia absurda" 14 talvez seja um tanto exagera-
da. Como sabemos, os pensadores milésios conheciam a matemá-
tica dos egípcios e dos babilónios e a forma como estes últimos a
tinham aplicado para prever os movimentos dos corpos celestes -
que, nesse tempo, os gregos consideravam seres divinos. Na reali-
dade, segundo a tradição, Tales teria utilizado com êxito esse co-

12
Guthrie, op. cit., p. 27.
13
Aristóteles, Metafísica. A. 983, p. 20.
14
Citado com autorização de Guthrie, op. cit., p. 23

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nhecimento adquirido para prever o eclipse de 585 a. C. Assim, é


muito possível que os primeiros pressentimentos de que o mundo
é governado por leis, e não por capricho divino, como acontecia
na obra de Homero, não fosse "uma hipótese não comprovada",
mas antes uma hipótese que poderia ter sido deduzida das previ-
sões, mais tarde confirmadas, dos seus antecessores babilónios e
que, muito provavelmente, os teria levado a pôr em dúvida a na-
tureza divina das forças naturais.

A interpretação mitológica não só procurara explicar os


acontecimentos do dia-a-dia como tentara responder as pergun-
tas sobre a origem remota do mundo. A Teogonia de Hesíodo,
muito especialmente, dera uma explicação mitológica da geração
do mundo pelos antepassados divinos, a Terra e o Céu, e, sobre-
tudo pela forma como foi escrita, decerto também abriu caminho
à especulação jónia sobre o problema, como já tive oportunidade
de referir. Não se sabe ao certo se o próprio Hesíodo teria chega-
do a considerar os seus deuses personificações de forças naturais,
mas quando os pensadores jónios surgem, já poucos vestígios
restam da concepção mitológica do mundo. Como Guthrie diz,
esta concepção consistiu "no abandono, a todos os níveis do pen-
samento consciente, de soluções mitológicas para os problemas
relativos à origem e natureza do universo e dos processos que aí
se dão. A fé religiosa é substituída pela fé que esteve, e continua a
estar, na base do pensamento científico apesar de todas as suas
conquistas e limitações, isto é, a fé em que o mundo visível es-
conde uma racionalidade e uma ordem inteligível, que se devem
procurar as causas do mundo natural dentro dos seus próprios

18
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

limites, e que a razão autónoma é o instrumento único e suficien-


te de que dispomos para as procurar" 15.

Esta opinião de que já nos princípios do pensamento grego,


e portanto europeu, se estava a assistir ao aparecimento de uma
concepção puramente secular do mundo que hoje conhecemos
tão bem, é não só a apinião sustentada por Guthrie, que acaba-
mos de citar, mas também a de muitos outros estudiosos clássi-
cos.

John Burnet, há cerca de cinquenta anos, pensava da mes-


ma maneira, e a sua obra sobre este período - The Early Greek
Philosophers - é ainda considerada uma obra fundamental por
muitos estudiosos contemporâneos. Nela Burnet sustentava não
só que a ciência jónia, como ele lhe chamava, era um produto
local que nada devia, quer à religião tradicional, quer às crenças
arcaicas que com ela coexistiam, uma opinião em relação à qual
devo manifestar algumas reservas, como afirma, inequivocamen-
te, ser a especulação jónia de natureza secular e naturalista. Para
Burnet, o facto dos milésios terem continuado a empregar a pala-
vra "deus" ou "divino" ao falarem da natureza, não tinha qualquer
significado religioso. Diz ele: "O emprego da palavra 'theos' nos
documentos que chegaram até nós não deve induzir-nos em erro.
Embora seja verdade que os jónios a utilizavam quando se referi-
am à 'matéria primária' e ao mundo ou mundos, isso não tem nem
mais nem menos significado do que o facto de terem utilizado os
epítetos divinos 'eterno' e 'imortal'... No sentido religioso, a pala-
vra 'deus' significa antes de mais um objecto de veneração, mas já
em Homero deixara de ser esse o seu único significado.

15
Ibid., p. 29.

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A Teogonia de Hesíodo é a melhor prova dessa mudança.


Não há dúvida de que muitos dos deuses referidos não eram ado-
rados por ninguém e de que alguns deles não passavam de perso-
nificações de paixões humanas. Esta utilização não religiosa da
palavra 'deus' é uma característica de todo esse período... e é ex-
tremamente importante que se compreenda isso para não se cair
no erro de se pensar que a ciência derivou da mitologia" 16.

Isto parece-me uma opinião demasiado extremista e julgo


que poderá pôr-se em dúvida, como na realidade já aconteceu, se
o pensamento jónio terá sido, na sua fase inicial, tão extrema e
abertamente secular e naturalista como Burnet, e em menor grau
Guthrie, mantêm. Não há dúvida que os filósofos milésios puse-
ram de parte a antiga explicação mitológica do mundo segundo a
qual os acontecimentos eram fruto do capricho divino, mas o que
se pode contestar e já se contestou, é que a sua concepção do
mundo seja, de facto, totalmente secular e que tenham negado
inteiramente o Divino como realidade ordenadora do mundo e a
ele subjacente.

Não se pode afirmar com segurança que tenham tido uma


concepção naturalista do processo do "devir" que abrangesse to-
da a sua compreensão do mundo, ou que na sua ontologia, isto é.
a sua concepção daquilo que é, apenas interviessem forças natu-
rais impessoais. Werner Jaeger, nas suas Conferências Gifford17
subordinadas ao tema A Teologia dos primeiros filósofos gregos,
sustenta que não. e acusa Burnet, tal como julgo que teria acusa-

16
Burnet, op. cit., p. 14.
17
Conferências Gifford: Ciclos de conferências sobre Teologia Natural nas Univer-
sidades de Edimburgo, Glasgow. Aberdeen e St. Andrews. cujo nome se deve a
Lord Gifford, juiz e filantropo escocês. (N. do T.)

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JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

do Guthrie caso a obra deste existisse no tempo em que escreveu,


de atribuir aos filósofos jónios o espírito de um físico dos fins do
séc XIX 18. A sua própria leitura dos jónios está tão longe desta in-
terpretação "positivista", como ele lhe chama, que não só nega
completamente a interpretação naturalista, como vê Tales e Ana-
ximandro não como ateus mas, pelo menos numa faceta da sua
obra, como defensores de uma concepção metafísica nova e ex-
tremamente sofisticada do divino. Vai ainda mais longe ao recla-
mar para Anaximandro o título de primeiro teólogo natural e, em
defesa da sua posição, aponta o emprego constante do termo
"apeiron" - "infinito" - por Anaximandro para designar o princípio
originário ou "arche", e os predicados de que se serve para o des-
crever: "não procriado", "imperecível", "que contém tudo" e "que
tudo governa". Em seguida convida-nos a dizer com Aristóteles
que, para Anaximandro, isto era o divino. É também esta a sua
interpretação da máxima de Tales de que "todas as coisas estão
povoadas de deuses". Na opinião de Jaeger, embora a palavra
"deus" seja utilizada por Tales de uma maneira relativamente dife-
rente daquela como era empregue na religião tradicional, conti-
nua no entanto a ser utilizada num sentido religioso. Segundo ele,
aquilo que Tales está a dizer é que o facto de se sentir a natureza
de uma maneira diferente, nos proporciona uma nova fonte de
conhecimento do divino. Neste caso, muito, se não tudo, depende
da importância que atribuirmos ao predicado "divino". Guthrie, tal
como Burnet, não hesita, de uma maneira geral, em ignorar o em-
prego desse termo. Referindo-se ao facto de Tales o empregar
como predicado da sua matéria primária, a água, Guthrie deduz
que o que ele pretendia dizer era que a água continha em si a

18
W. Jaeger, The Theology of the Early Greek Philosophers. Ver pp. V, 7-8 e 19-
20. 25

21
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

causa do movimento e da mudança; para os gregos, isto significa-


ria, segundo ele, que a água era da natureza da psique, ou seja,
substância vital, e como tal viva e eterna. "Aqui", diz Guthrie, "o
espírito grego avançou mais um passo. Se perguntássemos a qual-
quer grego qual a coisa que para ele era imortal, se é que havia
alguma, a resposta seria sempre theos ou to theion. A vida eterna
é característica exclusiva do divino. Assim, embora Tales rejeitasse
as divindades antropomórficas da religião popular, podia continu-
ar a utilizar a sua linguagem e dizer que, num certo sentido, o
mundo estava povoado de deuses. Podemos fazer uma compara-
ção com o emprego dos atributos divinos por Anaximandro" 19. O
Prof. A. H. Armstrong adopta um ponto de vista semelhante ao
dizer que "chamavam divina a esta substância, querendo prova-
velmente apenas dizer com isso que era viva e eterna" 20. Jaeger
vai mais longe ao analisar a utilização da expressão to theion afir-
mando que Tales e Anaximandro tinham um motivo muito concre-
to para manter este conceito. "O que acontece na argumentação
de Anaximandro", diz ele, "(e na dos seus sucessores nesta linha) é
que o predicado Deus, ou melhor, Divino, é transferido das divin-
dades tradicionais para o primeiro princípio do Ser (a que chega-
ram por via racional) na medida em que os predicados normal-
mente atribuídos aos deuses de Homero e Hesíodo são inerentes
àquele princípio num grau mais elevado ou podem ser- lhe atribu-
ídos com maior certeza".

19
Guthrie, op. cit., pp. 67-78. Porém, cf. p. 4, onde Guthrie admite que os filóso-
fos jónios "não excluíam de forma alguma a possibilidade de intervenção divina"
acrescentando, "mas chegaram a uma concepção do divino muito diferente da da
sociedade grega contemporânea".
20
Introduction to Ancient Philosophy, p. 3. 13 Jaeger, op. cit., p. 204

22
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Em seguida, partindo desta hipótese original, Jaeger analisa


a obra de Anaxágoras e, sobretudo a filosofia pós-socrática.

Assim, a darmos razão a Jaeger, longe de serem naturalistas


no sentido ateísta da palavra, os filósofos milésios lançaram as
bases da concepção metafísica da Divindade que os Padres gregos
da Igreja Cristã viriam a desenvolver cerca de oito ou nove séculos
mais tarde. A sua conclusão é a seguinte: "Nesta filosofia natural,
como é chamada, existem lado a lado a teologia, a teogonia e a
teodiceia... O aparecimento da ideia do kosmos significa simulta-
neamente uma nova maneira de encarar a organização do estado
como derivante das leis eternas do Ser e uma recriação da religião
em termos da ideia de Deus e do governo divino do mundo tal
como a natureza no-lo revela. Este conceito não é apenas caracte-
rístico de Anaximandro pois permanece intrinsecamente ligado à
nova concepção filosófica, voltando a aparecer em Anaxímenes" 21.

No primeiro capítulo do seu livro God and Philosophy 22,


Etienne Gilson também contesta o facto de se fazer uma interpre-
tação naturalista dos filósofos jónios. Referindo-se à passagem de
Burnet que acabamos de citar, Gilson escreve: "A única objecção
que tenho a pôr é que há poucas palavras que tenham uma cono-
tação mais nitidamente religiosa do que a palavra 'deus'... nada
impede que se interprete a frase 'todas as coisas estão povoadas
de deuses' como querendo dizer que não existe um único deus
em nada, mas o mínimo que se poderá dizer de tal interpretação é
que é bastante ousada" 23.

21
Ibid., p. 36.
22
Deus e a Filosofia. (N. do T.) 27
23
É. Gilson. God and Philosophie. tro. 4-5.

23
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

R. G. Collingwood chega a uma conclusão semelhante no


seu estudo da filosofia da natureza grega, que contrapõe à do Re-
nascimento e à moderna. Para Collingwood, a concepção jónia. tal
como as restantes concepções gregas da natureza, distingue-se
pela pressuposição de que o mundo da natureza está saturado e
impregnado 'de espírito. Diz ele que, para os gregos. o mundo da
natureza não só estava vivo como era inteligente, fazendo uma
observação muito significativa a esse respeito: "Os pensadores
gregos consideravam a presença do espírito na natureza como
fonte da regularidade e ordem do mundo natural, presença essa
que tornou possível a ciência da natureza" 24. Collingwood susten-
ta que a concepção mecanicísta da natureza (as "forças impesso-
ais" de Guthrie) só surge na última parte do Renascimento, desig-
nando antes a concepção grega como organicista.

Penso, portanto, que a conclusão a tirar é que é inútil procu-


rar nos filósofos jónios uma interpretação totalmente naturalista
do mundo. Eles não só consideram a natureza uma coisa viva e,
portanto, divina, como o seu pensamento contém pelo menos o
embrião que irá dar origem ao aparecimento de um conceito me-
tafísico de Deus, como Jaeger demonstra. Porém, uma vez aceite
este ponto de vista, temos de salientar um outro aspecto igual-
mente verdadeiro, ou seja, que a sua concepção da natureza e da
origem do mundo contém também a semente da posição natura-
lista que outros pensadores, sobretudo os atomistas do século
seguinte, haviam de retomar e formular claramente. Este aspecto,
que é extremamente importante criara a controvérsia sobre a
crença e a descrença, resulta sobretudo do alcance limitado das

24
R. G. Collingwood, The Idea of Nature, p. 3. Para uma análise dos jónios, cf. pp.
29-48. 28

24
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

questões por eles levantadas ou pelo menos, do que outros consi-


deravam ser o alcance limitado dessas questões: é o caso de Aris-
tóteles que os censurava por se interessarem apenas pelas causas
materiais e não pelas causas últimas.

O lugar que os jónios ocupam na história da descrença é,


portanto, ambíguo. O que é sem dúvida verdade é que foram eles
os principais responsáveis pelo declínio do velho conceito mitoló-
gico dos deuses e da religião tradicional embora, evidentemente,
apenas no plano intelectual. Mas como A. N. Whitehead observou
"a evolução da religião define-se pela denúncia dos deuses" 25, e à
luz daquilo que acabamos de dizer verificamos que isto se aplica
não só aos filósofos jónios como à maioria dos pensadores da tra-
dição grega, como adiante se verá, pois na realidade poucos são
os exemplos de ateísmo absoluto que iremos encontrar. Veremos
que a maioria dos pensadores que autores posteriores designa-
ram de atheoi se limitaram, afinal, a negar os deuses tal como
eram apresentados pela religião popular, e isto, regra geral, como
prelúdio para a formulação de um conceito mais sofisticado e de-
senvolvido do divino. Mas Max Muller defende que o termo "ade-
vismo" descreve melhor este tipo de negação do que ateísmo e
tem, sem dúvida, razão18.

Esta palavra define bem os filósofos jónios pois se eles fo-


ram os primeiros filósofos naturais, foram também os primeiros
teólogos naturais. O facto do aspecto puramente naturalista do
seu pensamento ter sido aquele que, posteriormente, maior in-
fluência teve, é talvez uma injustiça para com eles, pois foi preci-

25
A. N. Whitehead, Adventures of Ideas, p. 19. 18 F. Max-Muller, Natural Reli-
gion, p. 228.

25
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

samente a esta faceta do seu entendimento do mundo que os


atomistas e outros pensadores do século seguinte se agarraram e,
ainda, aquela de que se serviram como arma para contestar não
só a interpretação mitológica dos fenómenos como qualquer con-
ceito do divino existente. Foi por este motivo que Platão conside-
rou o desenvolvimento da concepção jónia um perigo espiritual e
o combateu com toda a sua inteligência.

Mas antes de analisarmos este período altamente significa-


tivo, há outras figuras da tradição pré-socrática que merecem a
nossa atenção, atendendo aos juízos que gerações posteriores
fizeram sobre elas.

No seu estudo intitulado Atheism in Pagan Antiquity 26, Dra-


chmann apresenta uma lista dos filósofos gregos que viriam mais
tarde a ser designados de atheoi ou acusados de impiedade19. No
período anterior a Sócrates, Xenófanes e Anaxágoras foram acu-
sados de impiedade, enquanto que Diógenes de Apolónia, Hipo de
Régio, Protágoras, Pródico, Crítias e Diágoras de Melos foram acu-
sados de ateísmo. Consideremos agora algumas destas figuras e
outras do período pré-socrático que embora não sejam mencio-
nadas por Drachmann certamente merecem a nossa atenção.

Xenófanes não é um ateu mas sim um adevista e, talvez até,


o melhor exemplo de adevista no período anterior a Platão. É so-
bretudo conhecido pela forma satírica, mas séria, como atacou as
concepções antropomórficas dos deuses. Vale a pena citar algu-
mas das suas máximas. Uma das que lhe é atribuída é a seguinte:
"Os homens pensam que os deuses se vestem, falam e são como

26
O Ateísmo na Antiguidade Pagã. (N. do T.) 19 Op. cit., p. 13.

26
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

eles" 27. E outra mais mordaz: "Se os bois, os cavalos e os leões


soubessem desenhar e pintar, fariam os deuses à sua própria ima-
gem" 28. Outra ainda: "Os negros acreditam que os seus deuses
têm o nariz achatado e que são pretos: os trácios, que têm os
olhos azuis e cabelo ruivo" 29.

Tal como Jaeger apontou, Xenófanes representa a faceta


conscientemente crítica da filosofia especulativa que se desenvol-
vera pouco tempo antes. Embora tenha vindo da escola italiana da
filosofia grega, como os antigos lhe chamavam, é, intelectualmen-
te, um filho dos jónios, tendo desenvolvido as implicações críticas
da sua filosofia para a religião antropomórfica e mitológica tradi-
cional. Vai além daquilo que sabemos dos jónios na medida em
que não só criticou explicitamente o antropomorfismo da velha
religião, como também atacou as suas implicações morais. Home-
ro, de cuja influência e autoridade ele estava bem consciente -
"aquele", diz Xenófanes, "com quem todos os homens aprende-
ram inicialmente" - e Hesíodo, "atribuíram aos deuses toda a es-
pécie de actos que os homens considerariam vergonhosos- adul-
térios, furtos e recíprocos enganos" 30.

Xenófanes opõe à religião antiga uma versão mais conscien-


te da divindade dos jónios. "Há um deus que está acima de todos
os deuses e dos homens; não se assemelha aos mortais nem na
forma nem no pensamento" 31. "Vê como um todo, apreende co-

27
Frag. 14.
28
Frag. 15.
29
Frag. 16.
30
Frag. 11.
31
Frag. 23.

27
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mo um todo, ouve como um todo" 32; e ainda, "Está sempre no


mesmo sítio, sem se mover, nem lhe advém benefício algum de ir
aqui ou além em diferentes alturas; mas, pela força do seu espíri-
to, faz estremecer todas as coisas" 33. Não podemos ver aqui um
monoteísmo explícito e deparamos com certas dificuldades ao
analisarmos algumas das outras coisas que Xenófanes diz acerca
do seu deus - que é esférico, por exemplo - mas como autores
posteriores observaram, não está muito longe disso.

Xenófanes tinha, na realidade, consciência de que a nova


concepção filosófica de deus levantava muitos problemas e diz,
em determinado momento, que há sempre uma parcela de dúvida
quando se pensa sobre as questões mais importantes 34; mas
atendendo às afirmações teológicas positivas que encontramos
em Xenófanes, não devemos de forma alguma tomar aquela afir-
mação como uma declaração de agnosticismo dogmático como
fizeram alguns doxógrafos gregos, nomeadamente Sexto Empírico.

Por outro lado, Xenófanes rejeitava a divinação. Isto coadu-


na-se com a sua rejeição da mitologia e abre o caminho para a
explicação naturalista deste fenómeno que encontramos nos au-
tores médicos do final do séc. V. a.C.

Creio ter já demonstrado que Xenófanes não pode de forma


alguma ser considerado nem um ateu nem um agnóstico no sen-
tido actual de qualquer dos termos. Na verdade, longe de ser quer
uma coisa quer outra, Xenófanes contribuiu para um desenvolvi-
mento subsequente da concepção grega de divindade, tendo des-

32
Frag. 24.
33
Frag. 25 e 26
34
Frag 34

28
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

te modo exercido uma influência considerável na evolução da reli-


gião.

Das outras grandes figuras da era pré-socrática, Pitágoras e


Heráclito estão decididamente fora do âmbito da nossa pesquisa,
na medida em que eram ambos pensadores eminentemente reli-
giosos; e Parménides, embora tenha exercido uma grande in-
fluência no naturalismo, não pode verdadeiramente ser conside-
rado um descrente. Tal como Armstrong refere, Parménides não
era um homem particularmente religioso 35, mas o juízo de Karl
Reinhardt de que ele era "um pensador cujo único objectivo era o
conhecimento, cujo único grilhão era a lógica e a quem Deus e o
sentimento deixavam indiferentes" 36 não faz justiça à faceta teo-
lógica positiva das suas reflexões sobre o mistério do Ser; aliás, as
imagens carregadas de religiosidade que encontramos na primeira
parte do poema de Parménides, que revelam nítida influência do
Orfismo, parecem excluir uma afirmação tão exagerada.

Na tradição órfica, temos também o pensador pós-


parmenidiano Empédocles, embora tenha havido algumas tentati-
vas, incluindo a do poeta-filósofo epicurista romano, Lucrécio,
para apresentar o seu pensamento, ou pelo menos uma faceta
desse pensamento - normalmente considerada a sua expressão
amadurecida - como materialista e completamente divorciada da
sua outra faceta que é essencialmente religiosa. O problema ad-
vém do facto de apenas terem sobrevivido fragmentos de dois dos
seus poemas épicos: o primeiro, Da Natureza, dedica-se ao aspec-
to puramente físico da filosofia da natureza; o outro, as purifica-

35
Op. Cit, P. 13
36
citado in Jaeger, op. cit., p. 90.

29
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ções (ou Katharmoi), revela já influências do pietismo órfico. É,


evidentemente, a primeira que dá origem à reputação de materia-
lista atribuída a Empédocles. A dificuldade está, portanto, em con-
ciliar estas duas obras de natureza essencialmente diferente e em
ver nelas o produto de um único espírito. Houve já quem tentasse
atribuir estes trabalhos a dois períodos consecutivos da vida de
Empédocles, sendo o Katharmoi considerado por alguns o fruto de
um fervor adolescente posteriormente rejeitado, por outros uma
obra de um derradeiro período de desespero em que Empédocles,
cansado de tentar explicar o mundo em termos mecanicistas, se
teria entregue a uma fé órfica irracional 37. Todavia, tal como Jae-
ger e Guthrie, bem como alguns dos comentadores mais recentes,
demonstraram, quando interpretadas no contexto da época, estas
duas facetas do pensamento de Empédocles coadunam-se perfei-
tamente 38.

Anaxágoras, o outro grande pensador pós-parmenidiano,


contemporâneo de Empédocles, é uma figura muito mais interes-
sante. Embora não possa de forma alguma ser considerado um
ateu, contribuiu largamente para o desenvolvimento da interpre-
tação naturalista do mundo. Enquanto que os adivinhos e sacer-
dotes da religião tradicional haviam interpretado os fenómenos da
natureza, sobretudo os mais bizarros e espectaculares, como sen-
do provocados pelos deuses e, como tal, mensagens desses mes-
mos deuses, Anaxágoras opôs-se firmemente a uma tal interpre-
tação procurando uma explicação em termos de causas naturais.
A razão oficial para a sua expulsão de Atenas alguns anos antes do
nascimento de Platão, consistiu no facto de ele sustentar que os

37
Bidé é a favor da primeira hipótese e Diels da segunda.
38
Jaeger, op. cit., p. 130ff. Guthrie, op. cit., p. 123ff. Vol. II. 32

30
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

corpos celestes eram objectos naturais. Para ele o sol não passava
duma pedra incandescente que brilhava no céu. Mas embora
Anaxágoras tenha, afinal, prosseguido e consolidado aquela inter-
pretação da natureza e dos processos naturais que os jónios ti-
nham iniciado mais de um séculos antes, deu um grande passo em
frente ao identificar o primeiro princípio com a Mente. Porém,
como Sócrates afirma na pequena biografia que encontramos no
Fédon em que nos fala da esperança com que se voltara para a
hipótese apresentada por Anaxágoras por ver nela a solução dos
seus próprios problemas, este pouco uso fez dela mais tarde ao
descrever a sua concepção do mundo. Mas tal como Armstrong
aponta, Sócrates não acusa Anaxágoras de limitar a acção da sua
Inteligência a um início do movimento no espaço e, em seguida de
explicar toda a acção no mundo como sendo resultado de causas
mecânicas, embora seja, frequentemente, esta a interpretação
dada à crítica de Sócrates. Aquilo que leva Sócrates a criticar
Anaxágoras é o facto deste não ter feito qualquer tentativa para
explicar o fim ou objectivo da acção dessa Inteligência, ou a forma
como ordenou todas as coisas da melhor maneira 39. Não há dúvi-
da que Anaxágoras sustentava que o mundo era fruto de uma
Mente ordenadora; o que não disse foi quais eram, efectivamen-
te, os objectivos dessa Mente. Todavia, ao introduzir a noção de
uma Mente ordenadora como causa do mundo, quer tenha ou
não identificado essa Mente com a divindade, Anaxágoras forne-
ceu elementos que Platão e os seus sucessores não deixariam de
desenvolver num sentido teísta.

Diógenes de Apolónia, um contemporâneo de Anaxágoras,


levou este raciocínio mais longe. Acusado por autores posteriores

39
Op. cit., p. 17.

31
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

não só de impiedade como de ateísmo, a sua posição não é, de


facto, muito diferente da de Anaxágoras, embora se distinga deste
por ter retomado a doutrina jónia e procurado uma única subs-
tância primária que, para ele, era o ar. Além disso identificou esta
substância primária com a Mente. Diz ele: "Parece-me que aquilo
que tem o poder de saber é aquilo a que os homens chamam ar, e
que este conduz e controla todas as coisas. Pois eu sinto que isto é
deus, e que se estende a tudo e dispõe todas as coisas e existe em
todas as coisas, e não há nada que não participe dele" 40. Porém,
Diógenes não só se refere à Mente como sendo divina, como
também vai além de Anaxágoras ao tentar interpretar os fenóme-
nos individuais em termos de finalidade, ou seja, em termos teleo-
lógicos; aliás, é muito provável que tenha sido a ele que Sócrates
foi buscar aquela versão do argumento teleológico com que, se-
gundo os Memoráveis de Xenofonte, procurou refutar o deísmo
de um dos seus mais jovens discípulos.

40
Frag. B 5.

32
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo II: PERÍODO SOCRÁTICO

O estudo de Sócrates leva-nos até fins do séc. V, período em


que o antagonismo entre a filosofia natural e a religião se tomou
um conflito aberto e explícito. O melhor testemunho deste confli-
to e das questões que levantou é-nos dado por Platão que empe-
nhou todas as suas energias na luta contra as implicações irreligio-
sas da nova filosofia. Mas os autores dramáticos da época tam-
bém nos podem ajudar a fazer uma ideia daquilo que deve ter
sido uma das grandes controvérsias de então; é o caso de Aristó-
fanes, autor de diversas comédias, que utiliza essa controvérsia
como tema da peça intitulada As Nuvens.

Porém, antes de analisarmos as questões filosóficas, e já que


referimos os dramaturgos, vejamos aquilo que Eurípedes e Sófo-
cles têm a dizer acerca da crítica moral crescente da religião tradi-
cional e das histórias dos deuses. Vimos já que esta atitude crítica
surgira cerca de um século antes com Xenófanes; com Eurípedes e
Sófocles ela torna-se extremamente evidente. A obra destes dois

33
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

autores contém inúmeras passagens em que as acções dos deu-


ses, sobretudo tal como são relatadas por Homero, são alvo de
reprovação moral. Na verdade, tal como Lowes Dickinson diz, a
atitude de Eurípedes para com a religião popular "é tão aberta-
mente crítica que ... o objectivo principal que tinha em mente ao
construir as suas peças era desacreditar os mitos que escolhera
para tema" 41. Sófocles e Ésquilo representam o reverso desta ati-
tude, mostrando claramente que o desenvolvimento moral da
religião grega em direcção ao monoteísmo não dependeu exclusi-
vamente da acção dos filósofos, tendo antes recebido um impulso
considerável dos poetas trágicos. Podemos ilustrar este ponto
com uma passagem de Sófocles. Fala o Coro:

Possa o destino encontrar-me sempre cumpridor das pala-


vras e actos ordenados pelas leis que vigoram lá no alto; leis cria-
das no ar subtil dos céus cujo único pai é Olimpo; nenhuma criatu-
ra moral as procriou, não há esquecimento que as possa fazer
adormecer; pois Deus existe nelas em toda a sua grandeza e não
envelhece 42.

Nestas palavras está implícita uma alteração radical do con-


ceito tradicional de divindade. Debrucemo-nos agora sobre as
questões filosóficas, considerando em primeiro lugar o conflito
entre o naturalismo e a mitologia tal como é apresentado pelo
poeta cómico Aristófanes. Na passagem de As Nuvens a seguir
apresentada, vemos que o principal objecto da sua sátira é o ca-
rácter materialista da interpretação física da natureza que preva-
lecia na época. Infelizmente, o próprio Sócrates é apresentado no

41
Op. cit, p. 48.
42
Sófocles, O Rei Édipo, 865.

34
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

papel de advogado da nova concepção naturalista do mundo, mas


o facto da posição do filósofo não ter sido correctamente enten-
dida não nos deve impedir de ver qual é o tema da discussão que
se segue. Embora Sócrates não tenha assumido a posição que
Aristófanes ataca, houve sem dúvida outros que o fizeram. A pas-
sagem acima referida começa com um coro de As Nuvens, as no-
vas divindades dos filósofos físicos, que dão as boas-vindas a Só-
crates, seu herói. O diálogo que se segue é entre Estrepsíade e
Sócrates:

Estrepsíade: Ó terra! que som augusto e profundo que me


enche de admiração e temor.

Sócrates: (referindo-se às Nuvens). Então, são elas as únicas


divindades, o resto não passa de uma mentira.

Estrep.: Então e Zeus? Que ele é um Deus ninguém duvida;


nem tu o podes negar.

Sócr.: Qual Zeus! Não digas disparates. Não existe Zeus ne-
nhum.

Estrep.: Que dizes? Então terás de me explicar primeiro


quem é que faz a chuva, senão não poderei acreditar-te.

Sócr.: Pois então que se saiba que só a elas devemos a chu-


va; posso prová-lo com um argumento irrefutável. Já alguma vez
se viu chover quando o céu está limpo e azul? E, no entanto, tu
dizes que ele pode fazer chover num dia de sol sem nuvens.

Estrep.: Bem, devo confessar que o teu argumento é perti-


nente; vejo-me forçado a acreditar nas tuas palavras. E, todavia

35
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

sonhei que chovia quando Zeus urinava através de um crivo. Mas,


então, meu amigo, donde vem a trovoada que nos faz tremer de
medo?

Sócr.: Pois bem, são elas que a fazem ao rolar pelo ar.

Estrep.: O quê, as nuvens? Será que te ouvi bem?

Sócr.: Com certeza! Quando a transbordar de água elas são


obrigadas a deslocar se e ficam suspensas na abóbada dos céus; a
meio do seu percurso entrechocam-se com grande violência e
troveja sem cessar.

Estrep.: Mas não é Zeus quem as obriga a deslocar-se?

Sócr.: Não há Zeus nenhum, mas sim um turbilhão de ar.

Estrep.: Um turbilhão? Espantas-me, confesso. Não sabia


que Zeus não existe e que em seu lugar reina um turbilhão... 43

Assim prossegue a discussão com uma explicação naturalista


das causas de outros fenómenos da natureza, dando-se a enten-
der que o ateu que dá tais explicações é antisocial e imoral. Mas o
que nos interessa é o facto de se contrapor uma explicação natu-
ral à interpretação mitológica dos fenómenos naturais; não obs-
tante tratar-se de uma comédia, a passagem acima transcrita
mostra bem o tipo de explicação, em termos de causas físicas ac-
tuando por força da necessidade, que a nova filosofia da natureza
propunha em oposição às explicações da mitologia religiosa tradi-
cional. É precisamente este tipo de explicação causal que Sócrates

43
Aristófanes, As Nuvens, 358.

36
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

critica naquela biografia que encontramos no Fédon de Platão.


"Quando era jovem", diz Sócrates a Cebe, "estava ansioso por al-
cançar aquele conhecimento a que chamam história da natureza,
pois parecia-me uma coisa sublime conhecer as causas de tudo,
saber por que é que cada coisa é gerada, por que morre e por que
existe" 44. Eram sobretudo os trabalhos de Anaxágoras que pareci-
am oferecer-lhe aquilo que procurava, pois ali estava um filósofo
que "diz que é a inteligência que ordena e que é a causa de todas
as coisas". E Sócrates prossegue: "Piquei encantado com esta cau-
sa e de certo modo pareceu- me estar certo que fosse a inteligên-
cia de todas as coisas".

A sua satisfação, porém, não durou muito e a sua desilusão


está bem patente nestas palavras: "Depressa me vi forçado a
abandonar essa esperança maravilhosa, pois à medida que fui
lendo os seus trabalhos, deparei com um homem que não usa a
inteligência, nem indica causas nenhumas para a forma como to-
das as coisas estão ordenadas, dizendo antes que as causas são o
ar, o éter e a água e muitas outras coisas igualmente absurdas".
Sócrates ilustra aquilo que pretende dizer reportando-se as suas
próprias acções. Anaxágoras parece-lhe ser o tipo de pessoa que
explicaria o facto de ele, Sócrates, permanecer em Atenas onde a
prisão e a morte o esperavam, dizendo que isso se devia a carac-
terísticas físicas deste e não ao facto de o desejar e de ter bons
motivos para o fazer. Chamar a isso uma explicação é absurdo, diz
ele, embora reconheça que "se alguém dissesse que sem ossos e
músculos, e todas as outras coisas de que sou feito, não poderia
fazer o que entendo, estaria a falar verdade".

44
Fédon, 96 ff. Citações extraídas de Cinco Diálogos de Platão p. 185 ff, Every-
man Library Edition, edit. por A. D. Lindsay.

37
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Quer-me parecer que aquilo que Sócrates pretende dizer é


que uma explicação causal do tipo proposto pelos filósofos físicos
é uma explicação limitada e não satisfaz de forma alguma aqueles
a quem se põem outras questões; que procuram uma explicação
em termos de significado e finalidade; que como o próprio Sócra-
tes, procuram motivos mais do que causas, bem como aquilo que
Aristóteles viria mais tarde a chamar a causa última do funciona-
mento das coisas.

O ponto em questão é este e voltará a surgir mais tarde, no


séc. XVII, quando a procura das causas últimas, de um significado
transcendente e inteligível do universo, que ressurgira na Idade
Média, começa a abrandar e aparece de novo uma interpretação
do mundo que não está muito longe daquela que os antigos filó-
sofos físicos haviam procurado.

Outras provas do carácter generalizado da interpretação


empírica e naturalista dos fenómenos em meados do séc. V, são-
nos dadas pelos autores médicos da época, cujos trabalhos chega-
ram até nós através de Hipócrates. F. M. Cornford e outros, são
em grande parte responsáveis pela consciência que temos hoje da
importância destes escritos para uma melhor compreensão do
naturalismo 45.

Num dos mais conhecidos tratados desta escola, intitulado


Da Natureza da Doença Sagrada, designação dada à epilepsia, o
autor, dotado de um espírito essencialmente empírico, analisa a
pretensa origem divina da doença levantando, desse modo, algu-
mas questões importantes quanto à natureza do divino e ao seu

45
Cf. o ensaio sobre a escola hipocrática na sua obra Principium Sapientiae.

38
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

modo de intervenção. Põe de parte a noção mitológica de que a


epilepsia é fruto da intervenção divina e procura explicá-la como
sendo resultado directo do mesmo tipo de causas naturais que as
outras doenças. "A chamada doença sagrada", escreve ele, "ad-
vém das mesmas causas que qualquer outra doença: das coisas
que entram no corpo e das que dele saem; do frio e do sol e dos
ventos, que estão em constante mutação e nunca estão parados.
Estas coisas são divinas e, portanto, não há necessidade alguma
de pôr esta doença de parte e considerá-la mais divina do que
qualquer outra: todas elas são divinas e todas elas são huma-
nas" 46.

Seria interessante comparar esta atitude com o método


empírico e ponderado utilizado, nesta mesma época, por Tucídi-
des no domínio da história. Se compararmos a forma como este
narra a guerra do Peloponeso com relatos de acontecimentos
semelhantes em Homero ou Heródoto, não deixaremos de notar a
diferença que existe entre eles. Enquanto que Homero e Heródo-
to apresentam causas naturais e sobrenaturais a actuar simulta-
neamente, Tucídides elimina completa- mente o elemento sobre-
natural relatando a guerra em termos comuns. Tal como Drach-
mann diz, "Tucídides não só ignorou totalmente presságios e divi-
nações, excepto na medida em que 'representavam um factor
puramente psicológico, como omitiu completamente na sua nar-
rativa qualquer referência aos deuses. Era uma atitude sem pre-
cedentes na época" 47.

46
Hipócrates. Sobre a Doença Sagrada. Cap. 21.
47
Op. cit., p. 28.

39
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Trata-se de uma maneira de encarar a narração e compre-


ensão da história que só conseguiu impor- se verdadeiramente
nos nossos dias.

Mas o meado do séc. V é, por excelência, a época dos sofis-


tas e embora com eles se tenha assistido a um processo de trans-
ferência do interesse pelo objecto do conhecimento para o sujei-
to, do interesse pelo mundo exterior para a vida do homem na
sociedade, o cepticismo da época é neles ainda mais pronunciado.
A religião, a moral e a sociedade são alvo de uma crítica acerba.
Poderá pôr-se em dúvida se o opróbio que Platão lançou sobre
esse termo é ou não justificado pelos ensinamentos de homens
como Górgias, Protágoras e Pródico, mas do que não há dúvida é
que, para bem ou para mal, eles submeteram a religião e a moral
sobre as quais toda a estrutura tradicional da sociedade assentava
a uma crítica rigorosa sem, por outro lado, apresentarem nada de
positivo para as substituir. De um modo geral, os seus ensinamen-
tos eram sobretudo retórica e o seu objectivo era ajudar os jovens
a vencer na vida pública. Armstrong dá às suas teorias a designa-
ção de "agnosticismo humanista" 48, o que parece justificar-se
atendendo às suas declarações tal como as conhecemos hoje e
ainda à posição relativista que assumiram quer perante a religião
quer perante a moral. A posição daqueles pensadores foi clara-
mente expressa por Protágoras que dizia que o homem é "a medi-
da de todas as coisas, da realidade das que são e da irrealidade
das que não são" - afirmação que os defensores do humanismo
adoptaram desde então. Quanto à questão da existência de deu-
ses, Protágoras assume uma atitude nitidamente agnóstica e a sua
opinião tem sido frequentemente repetida com sincera convicção:

48
Op. cit, p. 23.

40
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

"No que diz respeito aos deuses não posso ter a certeza de que
existem ou de que não existem, nem do seu aspecto, pois há mui-
tas coisas que nos impedem de o saber com segurança: a obscuri-
dade do assunto e a curta duração da vida humana" 49. Segundo
Drachmann, Protágoras foi o primeiro pensador a admitir que a
questão estava em aberto e que o seu esclarecimento poderia
levar a uma resposta negativa.

Os sofistas retomaram, assim, e responderam, a uma per-


gunta que já havia sido tema de controvérsia mas a que eles se
entregaram com redobrada tenacidade. O contacto com outras
culturas tinha levado os gregos há já algum tempo a tomarem
consciência de que a sua cultura - a sua religião, a sua moral e a
sua organização política e social - não era única, embora a pudes-
sem considerar superior. Ao reflectirem sobre a diversidade de
opiniões que havia quanto a estas questões, foram levados a per-
guntar se a religião, a moral e a estrutura social seriam efectiva-
mente inerentes à ordem natural das coisas, só admitindo, por-
tanto, uma única forma legítima, ou se seriam apenas fruto do
costume e, como tal, relativas e sujeitas a mudanças. Como eles
próprios disseram: seriam coisas da natureza ou da lei? Os sofistas
não hesitaram em optar pela segunda alternativa. Para eles, a
religião, a moral e a sociedade não passavam de costumes criados
pelo homem. Uma consequência interessante idesta atitude foi o
facto dos sofistas se terem, com ela, colocado numa posição que
lhes permitia não só atacar a religião mas ainda ir mais além e dar
uma explicação naturalista da sua origem. Chegaram até nós vá-
rias teorias deste tipo. Um dos sofistas mais importantes, Pródico
de Cos, defendia que a ideia dos deuses surgiu como um acto de

49
Frag. 4.

41
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

gratidão e adoração da parte do homem para com as forças bené-


ficas da natureza, posição a que tanto Eurípedes como o escritor
estóico Lucilo Balbo se haviam de referir mais tarde. Assim, para
Pródico, os primeiros deuses tinham sido Ceres, Liber, Demeter e
Dionísio. Um pouco mais tarde, um dos seus mais jovens discípu-
los, Crítias, um cínico e um niilista, sustentou numa obra sua agora
desaparecida, Sísifo, aquilo a que poderemos chamar a "teoria dos
deuses-polícia". Segundo ele, os deuses teriam sido inventados
como autoridades morais destinadas a pôr fim à anarquia. Para
compreendermos bem tal afirmação temos de ter presente o pa-
pel que as "testemunhas" desempenhavam na moral da época. Os
sofistas sustentavam que as leis eram fruto da vontade arbitrária
dos governantes, contrapondo-lhes a justiça natural em que vence
a vontade do mais forte. Defendiam, assim, que os homens agiri-
am de uma maneira diferente se não houvesse qualquer possibili-
dade de serem descobertos, isto é, se não houvesse testemunhas.
Platão levanta esta questão ao contar a história do anel de Giges 50
que tornava invisível qualquer pessoa que o usasse. Na opinião de
Crítias os deuses tinham sido inventados como testemunhas ocul-
tas de actos privados a fim de se criar a coerção necessária sem a
qual a moral, tal como a conhecemos, deixaria de existir.

Um outro pensador que formulou uma teoria naturalista da


origem da religião, embora desta vez aliada a uma teoria materia-
lista da natureza, foi o atomista Demócrito, um homem que não
pode de forma alguma ser considerado um sofista no sentido con-
vencional da palavra. Em Demócrito encontramos ainda o velho
interesse jónio e pós-parmenidiano pela natureza e pelos proces-
sos naturais. No entanto, vai mais longe, na medida em que rejeita

50
República, Lv. II 359-60.

42
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

qualquer forma de divindade quer na natureza quer fora dela.


Como Jaeger diz, "a sua descrição da natureza em termos da inte-
racção de inúmeros átomos existentes no vácuo governados pela
força do acaso não deixava lugar à teleologia nem à deificação de
quaisquer forças móveis ou causa originária única" 51. Tal como já
foi salientado muitas vezes, com Demócrito verificamos que as
implicações naturalistas da filosofia da natureza dos jónios che-
gam a uma conclusão última e lógica, e temos uma afirmação ex-
plícita daquilo "a que os filósofos chamam materialismo e as pes-
soas religiosas chamam ateísmo", para usar as palavras de P. M.
Cornford 52.

Porém, o facto de existirem nos espíritos dos homens con-


cepções do divino e dos deuses levantou a Demócrito, tal como
viria mais tarde a levantar a Epicuro que trabalhou com a filosofia
natural daquele, um problema epistemológico. Como é que se
podia explicar a ideia dos deuses?

Demócrito apresenta duas teorias. A primeira relega os deu-


ses para "um ramo crepuscular de fenómenos psíquicos materiali-
zados" 53, na medida em que aquilo que Demócrito sugere é que
as imagens dos deuses, a que chama "espectros", provêm dos
sonhos, nomeadamente de sonhos resultantes de uma má consci-
ência em que os deuses aparecem a castigar os homens pelos
seus actos condenáveis. Demócrito admite, assim, não só o papel
real dos deuses na vida do homem, como o lugar da oração, que
segundo ele podia ser considerada um desejo de encontrar ima-

51
Op. cit., p. 180.
52
Cornford, Before and After Socrates, p. 27. 13 Jaeger, op. cit, p. 181.
53
Jaeger, op. cit, p. 181.

43
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

gens propícias estando, portanto, associada à moral, embora, na


ausência de religião a fé de Demócrito na moral se baseie na fé
numa força moral proveniente de uma sensação interior de auto-
respeito do homem 54.

A outra teoria de Demócrito quanto à origem da religião


apresenta-a como fruto do temor do homem perante as maravi-
lhas da natureza. Tal como muitas pessoas hoje em dia, Demócrito
decerto pensava que uma vez que a origem natural dos fenóme-
nos da natureza fosse totalmente apreendida, a religião deixaria
de se justificar.

Deverá ainda acrescentar-se que Demócrito não acreditava


numa vida depois da morte, sustentando que tudo o que existe na
natureza está sujeito à putrefacção e à extinção.

Um pouco mais adiante veremos como é que Epicuro apli-


cou as ideias de Demócrito ao campo da moral.

Gostaria de terminar este capítulo do nosso estudo com a


história que se conta daquele ateu característico da última parte
da Antiguidade, Diágoras de Melos. Diz-se que ele se tornou ateu
não como resultado da especulação, mas por ter perdido um ma-
nuscrito e ter rezado em vão aos deuses para o voltar a encontrar.
Infelizmente, pouco mais se sabe a seu respeito, a não ser que foi
condenado à morte em Atenas em 415 a. C, depois de ter sido
preso por ridicularizar os Mistérios de Elêusis.

Chegamos, assim, ao fim do estudo da descrença no período


pré-socrático e socrático, período esse que abrange os dois sécu-

54
Cf. Stob iv. 5, 46 (Demócrito 264).

44
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

los que decorrem entre o início do séc. VI e o fim do séc. V a.C.


São dois os pontos principais a ter presentes. Temos, por um lado,
a partir dos jónios, o aparecimento de um naturalismo que atinge
o seu apogeu com o Atomismo de Demócrito e que é consolidado
na última parte do séc. V pela crítica relativista dos sofistas. Por
outro lado, começamos a assistir ao despertar de uma concepção
mais complexa do divino que, mais tarde, com Platão e Aristóte-
les, virá em grande medida a substituir a religião tradicional e,
numa outra fase mais avançada, a tornar- se uma verdadeira al-
ternativa para essa mesma religião.

Mas paralelamente a estas correntes intelectuais da época,


a religião tradicional continua a sobreviver e a desenvolver-se nas
suas múltiplas formas juntamente com o Orfismo e os Mistérios,
bem como inúmeros outros cultos e práticas. Claro que é impossí-
vel determinar qual a influência da controvérsia filosófica sobre a
devoção popular.

Platão e Aristóteles não cabem de forma alguma num estu-


do desta natureza. O primeiro porque a sua filosofia se inspira
numa concepção moral e metafísica que é profundamente religio-
sa tanto na intenção como na prática, além de ser motivada pelo
desejo de combater o livre-pensamento de orientação secular
existente na época. O segundo, embora mais difícil de analisar, na
medida em que a sua teologia pouco tem que ver com o resto da
sua filosofia, sobretudo no que diz respeito à ética, pode no en-
tanto ser considerado o precursor do deísmo que viria a dominar
determinados estágios posteriores da teologia. A sua concepção é
essencialmente profana, e embora o seu Deus, que ele designa de
"Motor Imóvel", chame a Si o mundo graças à sua inerente perfei-

45
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ção, constitui sobretudo um postulado metafísico, um "Deus dos


filósofos" de que muitos defensores da religião, incluindo Pascal,
se viriam a queixar. A influência da sua concepção naturalista,
para não dizer racionalista, da natureza, da política e da ética, far-
se-á sentir em toda a Europa quando as suas obras voltarem a
aparecer no período medieval. No capítulo VI analisaremos as
suas implicações e as questões que levantaram.

46
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo III: PERÍODO HELENÍSTICO

No período helenístico, época em que a cultura e a civiliza-


ção gregas transpuseram as fronteiras da sua terra natal como
resultado das conquistas de Alexandre da Macedónia passando a
dominar todo o pensamento do mundo mediterrânico, assiste-se
ao aparecimento de quatro grandes escolas filosóficas que contes-
tam, com maior ou menor êxito, os sistemas platónico e aristotéli-
co. São elas as escolas estóica, cínica, epicurista e céptica. O Estoi-
cismo era essencialmente panteísta - uma estranha mistura da
concepção platónica da providência, com uma boa parte da dou-
trina aristotélica e uma linguagem que fazia lembrar a doutrina
jónia da "substância vital". Segundo esta escola, todos os homens
participam em Deus ou no Divino por meio da razão, da centelha
divina - o logos spermatikos - que têm em si. Na realidade, todo o
universo é divino, provindo do fogo primordial divino ao qual aca-
bará por retornar. A influência dos estóicos fez-se sentir, sobretu-
do, no campo da moral, e à medida que esta se foi libertando das
bases teológicas em que assentava, foi-se consolidando vindo a

47
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

influenciar alguns dos melhores espíritos da parte final da Antigui-


dade.

O Cinismo, sistema filosófico criado por Diógenes de Sinopla,


contemporâneo de Aristóteles, era essencialmente uma maneira
de viver que se baseava na doutrina de que a virtude, entendida
como vida conforme à natureza, é a única coisa importante não
passando o resto de tuphos, ou vento. Sabe-se que Diógenes não
adorava deuses porque, para ele, estes não precisavam de nada,
mas desconhecem-se quaisquer outras opiniões teológicas que
possa ter defendido. A posição dos cínicos em matéria de religião
caracterizava-se, sobretudo pela indiferença e, como tal, pode
considerar-se que eram ateus, embora teoricamente fossem, de
facto, agnósticos.

As filosofias do Epicurismo e do Cepticismo interessam-nos


muito mais; a primeira porque tem sido frequentemente conside-
rada uma das grandes filosofias humanistas e seculares da Anti-
guidade 55, a última porque, em muitos aspectos, quando analisa-
da conjunta-mente com o Cepticismo da Nova Academia, é pre-
cursora de um Cepticismo que surgirá novamente no Renascimen-
to e mais tarde no séc. XVIII com David Hume. Aliás, a tradição
filosófica que este iniciou é ainda hoje uma das concepções filosó-
ficas dominantes.

No séc. I a. C, Lucrécio refere-se a Epicuro, fundador 'da filo-


sofia que recebeu o seu nome e que morrera mais de um século
antes em 270 a. C, como o homem que libertara o espírito huma-

55
Cf. por exemplo H. J. Blackham na obra recentemente publicada, Humanism, p.
107 ff. 48

48
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

no do jugo das superstições da religião nos seguintes termos:


"Quando a vida humana perdera toda a dignidade aos olhos dos
homens, esmagada sob o peso morto ida superstição cuja figura
severa olhava os mortais ameaçadoramente dos quatro cantos do
céu, um homem da Grécia foi o primeiro a elevar os olhos em de-
safio, o primeiro a erguer-se e a enfrentar o perigo. Não o intimi-
daram as histórias dos deuses, nem o relâmpago e a ameaça cres-
cente dos céus. Antes lhe avivaram a coragem, de que pela pri-
meira vez um homem desejou ardentemente forçar as portas da
natureza. A energia vital do seu espírito venceu. Aventurou-se
muito além das muralhas flamejantes do mundo e viajou em espí-
rito pela infinidade. Ao regressar vitorioso anunciou-nos o que
pode e o que não pode ser: que há um limite e uma fronteira ina-
movível para tudo. A superstição jaz, assim, por seu turno, esma-
gada a seus pés e, graças ao seu triunfo, fomos elevados ao mes-
mo nível que céus" 56.

A filosofia de Epicuro, tal como a dos estóicos, incide essen-


cialmente sobre a moral e, tal como estes, Epicuro procurou uma
maneira de viver que lhe desse ataraxia ou apatheia, imperturba-
bilidade ou paz, nos tempos conturbados em que vivia. A sua re-
flexão sobre a moral baseava-se no antigo interesse dos jónios
pela natureza, o qual viria mais tarde a dar origem ao Atomismo.
Como acreditava que aquilo que mais se opunha à tranquilidade
de espírito e das emoções que procurava alcançar eram as supers-
tições da religião - medo dos deuses e daquilo que poderá esperar
o homem depois da morte - Epicuro encontrou no Atomismo de
Demócrito uma filosofia que, graças à sua perspectiva materialis-

56
Lucrécio, De Rerum Natura. Trad. de R. E. Lathan, ed. Penguin Classics, p. 29.
49

49
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ta, excluía precisamente esses motivos de dor e preocupação.


Assim, adoptando o materialismo de Demócrito, os homens sen-
satos poderiam alcançar a paz e a auto-confiança, graças à sua
concepção naturalista do mundo.

Mas embora a sua filosofia seja, para todos os efeitos, uma


filosofia ateísta, por estranho que pareça Epicuro admitia a exis-
tência dos deuses da religião tradicional. Estes eram, evidente-
mente, materiais, como todas as outras coisas, mas também eram
eternos. A teologia de Epicuro é extremamente original, inferindo-
se directamente das premissas materialistas fundamentais do seu
sistema. Epicuro, tal como Demócrito, procurou explicar o facto
não só de os homens acreditarem nos deuses mas de pretende-
rem ter tido "visões" desses mesmos deuses. A sua teoria era que
os deuses, embora invisíveis aos olhos normais, eram feitos de
uma substância mais subtil que os objectos da nossa experiência
normal do mundo e que mais se assemelhava àquela de que são
formadas as almas. Assim, os átomos que os deuses emitiam, pe-
netravam nos espíritos dos homens dando origem às "Imagens"
dos deuses que viam durante o sono ou quando estavam em tran-
se.

Todavia, os deuses de Epicuro não desempenhavam qual-


quer papel nos assuntos do mundo e poderiam, quando muito, ser
considerados um ideal da vida humana - da vida de um filósofo
epicurista.

A última escola do período pós-aristotélico sobre a qual nos


vamos debruçar, e talvez a mais importante, é a dos cépticos. As
origens desta escola remontam a Pirro de Élis, contemporâneo de
Aristóteles, e é do seu nome que provém a expressão "Pirronis-

50
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mo", normalmente utilizada desde essa altura e até aos fins do


séc. XIX para designar o Cepticismo. Pirro não deixou qualquer
obra escrita; aquilo que sabemos da sua doutrina devemo-lo ao
seu discípulo Timão de Flio. De acordo com aquilo que pudemos
reconstituir, Pirro defendia que, uma vez que não é possível saber
nada com absoluta certeza, nada se deve afirmar ou negar. Isto
levou-o, naturalmente, a assumir uma posição agnóstica perante a
fé religiosa. Porém, o cepticismo de Pirro era, fundamentalmente,
motivado por uma busca de tranquilidade que, para ele, só pode-
ria ser alcançada mediante uma total suspensão do juízo, forma
de cepticismo que viria a reaparecer no séc. I a. C. com Enesidemo
e que no século II d.C. haveria de dar origem àquela notável mani-
festação do Cepticismo antigo que encontramos em Sexto Empíri-
co.

Desenvolvimentos posteriores na Academia Platónica deram


origem a uma outra forma de Cepticismo que, ao contrário do
Cepticismo de Pirro, se caracterizava por um espírito dialéctico
mais aniquilador; embora, inicialmente, esta dialéctica destrutiva
tivesse sido utilizada para contestar os argumentos dos estóicos -
a quem os cépticos chamavam "Os Dogmáticos" - era uma arma
que podia ser usada para combater todas as formas de dogmatis-
mo, fosse ele filosófico ou religioso.

Foi Arcesilau quem, nos princípios do séc. II a. C, introduziu


as doutrinas cépticas na Academia Platónica, fundando assim a
Segunda Academia ou Nova Academia, nome por que é conheci-
da. Segundo parece, partindo da crítica aos critérios dos estóicos
sobre a verdade, Arcesilau teria sido levado a sustentar que não se
podiam estabelecer quaisquer critérios sobre a verdade e que,

51
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

portanto, não se podia ter a certeza de nada. Poderia haver,


quando muito, probabilidades, aquilo a que ele chamava "ta eulo-
ga", o razoável. Ignora-se se isto o terá levado a um cepticismo
total em relação à religião.

Não temos, porém, quaisquer dúvidas quanto à atitude cép-


tica do seu sucessor, Carnêiades de Cirene (213-129 a.C), em rela-
ção à religião, pois tanto Cícero como Sexto Empírico, dois cépti-
cos posteriores, nos deram a conhecer a sua doutrina 57. Segundo
Carnêiades, não podia haver certeza nenhuma quer em matéria
de fé religiosa, quer em qualquer outro campo. Mas a crítica que
ele fez à religião, e muito especialmente ao teísmo, foi muito mais
longe do que isso e, pelo menos num aspecto, foi ele o primeiro a
contestar o conceito de Deus em termos a que ainda hoje se re-
corre para criticar o teísmo.

A teologia estóica não era muito diferente da teologia cristã


que, efectivamente, influenciou em muitos aspectos fundamen-
tais. Um dos elementos comuns a estas duas teologias é uma teo-
ria teleológica do universo que tem por base a fé em Deus e na
protecção providencial que Ele dá ao homem, e ainda em que o
mundo é ordenado para esse mesmo fim. Foi a versão estóica
desta teoria que Carnêiades se propôs criticar.

Ao inquirir sobre as provas a favor de tal posição, Carnêiades


começou por tentar refutar aquelas que se inferiam da universali-
dade do teísmo - primeiro argumento da apologia dos Estóicos e,
também, o argumento referido na Introdução deste livro. Car-

57
Cf. Cícero, Sobre a Natureza dos Deuses, III. Sexto Empírico, Contra os Matemá-
ticos, IX 51

52
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

nêiades defendia que se a crença nos deuses era universal por que
haveria ela de se apoiar em argumentos e correr o risco de assim
dar a entender tratar-se de matéria susceptível de ser discutida.
Conquanto ele próprio pusesse em questão a universalidade da
crença, mesmo que ela fosse aceite, o que é que isso provava,
perguntava ele. A esta pergunta respondia dizendo que apenas
provava o facto sociológico ou antropológico de que os homens
acreditavam na existência de deuses; seria necessário apresentar
outros argumentos para provar que os deuses existem de facto.
Um ponto simples mas extremamente importante e lógico. Argu-
mentava ainda que as questões relativas à verdade não podiam
ser decididas por plebiscito, contando as pessoas que tinham o
mesmo ponto de vista. É um tanto estranho, dizia ele, que os es-
tóicos, que na sua grande maioria consideravam os homens em
geral pouco mais do que idiotas, deixem ao seu critério uma ques-
tão tão importante.

Carnêiades rejeitava igualmente as provas a favor do teísmo


- ou, para ser mais preciso, neste caso, do politeísmo - que se ba-
seavam nas aparições dos deuses aos homens e na divinação. Re-
jeitava as primeiras sumariamente, considerando-as pouco mais
do que histórias de comadres; quanto às segundas, devido ao res-
peito que a divinação inspirava, Carnêiades tinha de fundamentar
devidamente a sua contestação. Focava sobretudo a arbitrarieda-
de da divinação. Se esta fosse uma maneira de predizer aconteci-
mentos, assentaria em princípios racionais e não na rotina e na
tradição. Mas, tal como se apresentava, não era muito mais do
que uma questão de sorte que nada devia à inspiração divina.

53
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

O próprio Carnêiades acreditava que a crença na existência


dos deuses resultara, na maior parte dos casos, da deificação de
fenómenos naturais que inspiravam temor, embora nos mostre
mais uma vez a subtileza lógica do seu espírito ao acrescentar que
a origem de uma crença só por si não nos diz nada acerca da vali-
dade dessa mesma crença. Trata-se de um ponto que não deixa
de ter interesse actualmente, já que muitas pessoas consideraram
que a questão da existência de Deus ficou resolvida quando se
negou essa mesma existência e se explicou a origem de tal crença
- hoje em dia, geralmente, em termos psicológicos ou sociológi-
cos. Aquilo que Carnêiades pretende demonstrar é que, em maté-
ria de crenças, se deve distinguir entre "razões" e "causas". As
causas só têm interesse e só são importantes como meio de expli-
car os motivos que levam as pessoas a ter determinada crença, no
momento em que chegamos à conclusão de que, independente
das causas, não há razões que justifiquem que se tenha essa cren-
ça.

Carnêiades defende que é precisamente isto que se passa


no que diz respeito à crença na existência de deuses. Na realida-
de, vai mais longe, e num tom que faz lembrar algumas críticas
recentes do teísmo, sustenta que o conceito de Deus, pelo menos
tal como fora formulado pelos estóicos, não só é falso como não
tem qualquer significado na medida em que é contraditório- ou,
como diriam os filósofos modernos, intrinsecamente inconsciente.
Os seus argumentos não se restringem, contudo, à concepção
estóica de divindade. Tal como R. D. Hicks salientou num estudo
acerca da filosofia de Carnêiades sobre a religião, "este pensador
arguto emprega argumentos que vão muito mais longe e que tra-
zem à luz os problemas fundamentais de qualquer concepção de

54
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Deus, quer este seja concebido como um Deus pessoal ou impes-


soal, finito ou infinito, quer se oculte sob uma abstracção qual-
quer como o absoluto ou o incondicionado"58.

Carnêiades argumentava apenas que não podemos conferir


a Deus atributos pessoais sem limitar a sua natureza. Todavia
Deus, tal como era concebido tradicionalmente pelos Estóicos (e,
evidentemente, pelos Judeus e Cristãos) é simultaneamente ilimi-
tado e infinito e, no entanto, pessoal. Para nos debruçarmos a
fundo sobre o raciocínio de Carnêiades teríamos que nos afastar
do assunto que nos propusemos analisar, mas não quero deixar
de dar um exemplo que ilustra bem em que medida ele contribuiu
para que este problema passasse a ser abordado de uma maneira
diferente. Para os estóicos, Deus era um ser racional dotado da
maior perfeição. Mas a virtude, tal como a entendemos, é incom-
patível com tal noção pois pressupõe que se tenha vencido uma
imperfeição. Por exemplo, para se ser corajoso é preciso que se
tenha estado exposto a um perigo; para mostrar temperança é
preciso que haja um prazer a que resistir. Como é que Deus pode
ter tal virtude, pergunta Carnêiades. Como é que um Ser que é
omnipotente pode fazer face ao perigo ou resistir a um prazer
quando não tem paixões e, portanto, lhes é insensível? Nesse ca-
so, será que Ele não tem as virtudes da fortaleza e da temperan-
ça? Se as tem, como é que se pode dizer que é todo- virtuoso?
Honra e proveito não cabem num saco, ou, em termos mais filosó-
ficos, não é possível afirmar e negar simultaneamente um atributo
em relação a um mesmo sujeito. Carnêiades disse muito mais
acerca dos outros atributos de Deus, como por exemplo a sua
racionalidade e infinidade, e fê-lo no mesmo tom.

58
R. D. Hicks, Stoic and Epicurean, p. 330. 53 53

55
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Antes de deixarmos Carnêiades há que falar da sua crítica da


concepção estóica de providência divina, pois ao atacar esta dou-
trina ele está também a atacar-num tom semelhante àquele que
David Hume viria a empregar no séc. XVIII - o Argumento Teleoló-
gico. Carnêiades considera inconcludentes as provas de um plano
para o mundo, apontando as características deste que parecem
negar ser ele fruto de um plano traçado por um Arquitecto divino
- cobras venenosas, agentes de destruição no mar e na terra, a
doença, etc. Sustenta se que a maior dádiva de Deus ao homem é
a razão. Mas se Deus é providente, por que é que esta dádiva foi
distribuída de uma maneira tão desigual e injusta? Poder-se-á
acusar Deus de favoritismo nas suas relações com os homens!
Não. Para Carnêiades, tal como para Hume e mais tarde John Stu-
art Mill, a conclusão mais razoável parece ser negar a existência
de Deus ou defender que, se Deus existe, não podemos saber nem
dizer nada a seu respeito o que é praticamente a mesma coisa.
Parece, portanto, justificar-se a observação de Hicks sobre Car-
nêiades quando diz: "é curioso verificar como Carnêiades formu-
lou muitos conceitos que viriam mais tarde a fazer parte da meta-
física; aliás, quando a sua argumentação foi traduzida para inglês,
adoptou-se, quase involuntariamente, a linguagem da filosofia
moderna" 59.

Há uma outra figura que temos de considerar antes de pas-


sannos do período helenístico para os princípios do império ro-
mano. Trata-se de Evémero, pensador que deu o seu nome à teo-
ria sobre a origem dos deuses que é conhecida por Evemerismo,
segundo a qual os deuses são apenas heróis glorificados de um
passado distante. Todavia pouco se sabe acerca de Evémero, mas

59
Op. cit, p. 337.

56
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

a sua teoria de que os deuses não passavam afinal dos heróis mais
antigos da tradição popular grega não é inteiramente original, pois
de acordo com essa mesma tradição, os deuses tinham tido uma
existência no tempo e levado uma vida que não era muito diferen-
te da dos heróis do passado numa determinada região do mundo.
Já Hecateu também sustentara que todos os homens perfeitos se
tornavam deuses. A doutrina de Evémero, porém, caiu em terreno
fértil, e estava destinada a subsistir durante muito tempo. No
mundo romano do séc. II d. C, ao escrever a sua história, Diódoro
considerou o Evemerismo a melhor explicação científica da reli-
gião, e houve muitos outros, nomeadamente Thomas Carlyle, que
seguiram esta linha de pensamento no século passado.

57
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo IV: PERÍODO ROMANO

No início do Império Romano ou, mais precisamente, no úl-


timo século antes de Cristo e durante os dois primeiros séculos da
Era Cristã, embora as grandes escolas filosóficas do período pós-
aristotélico tenham continuado a desenvolver-se e se tenha assis-
tido ao notável ressurgimento da mais importante dentre elas, a
escola platónica, aparecem também uma série de figuras que se
nos apresentam como expoentes de uma concepção de vida que,
de um modo geral, se pode designar de secular ou humanista.
Mas, infelizmente, não se trata de pensadores notáveis ou origi-
nais. A sua concepção era própria de homens civilizados e urbanos
e a filosofia em que assentava era essencialmente de origem gre-
ga. Entre essas figuras destacam-se as de Cícero, Lucrécio e Plínio,
o Velho. Mas antes de mais gostaria de dizer algumas palavras
acerca da época em que viveram. O estado romano reconhecia a
importância da religião como pilar da moral - pelo menos no que
dizia respeito às massas. Num estágio mais avançado, a religião
tornou-se também uma prova de ortodoxia política. Porém, tal

58
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

como Glover observa no seu livro The Conflict of Religions in the


Early Roman Empire 60, dificilmente se encontra uma época que
menos interesse tivesse mostrado pela religião - a não ser a nossa,
evidentemente. Glover refere-se, naturalmente, às classes mais
altas. A obra de Cícero ilustra bem o seu secularismo e cinismo. Ao
escrever a sua mulher do exílio diz, por exemplo: "Se, todavia, este
infortúnio for permanente, então, minha querida, quero ver-te o
mais depressa possível e morrer nos teus braços, já que nem os
deuses que tu adoraste... nem os homens que eu sempre servi,
nos deram qualquer recompensa" 61 . Como outros já tiveram
oportunidade de observar, a filosofia era a religião de Cícero, o
seu consolo na adversidade e também a fonte onde ia procurar os
princípios orientadores da sua vida. Do ponto de vista filosófico
partilhava o cepticismo dos Académicos, embora dificilmente se
possa chamar estóica à sua filosofia da religião. Como estadista
defendia a religião romana instituída, como demonstram as suas
obras O Estado e As Leis, embora essa adesão fosse puramente
política, e podemos afirmar que, na prática, Cícero era, para todos
os efeitos, um ateu, embora o não fosse em teoria. Drachmann,
por outro lado, refere que essa atitude era comum entre as clas-
ses altas dos princípios da era cristã, uma época em que a filoso-
fia, e sobretudo a filosofia ética, detinham uma posição de desta-
que e em que a religião era mais ignorada como algo de irrelevan-
te para os problemas reais da vida, do que combatida 62. O poeta
Horácio tinha o mesmo espírito secular e nas suas Odes vemo-lo

60
O Conflito de Religiões nos princípios do Império Romano. (N. do T.) 55
61
Cícero, Ad Fam. 14.4 Citado in Latin Literature in Translation, p. 223, por Kevin
Guinagh e Alfred P. Dorjahn.
62
Op. cit., p. 116.

59
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

trocar não só da superstição como de qualquer sugestão de um


interesse divino pelos homens.

Porém, embora as classes altas não mostrassem um interes-


se esclarecido pela religião, este período não só foi um período de
grande devoção religiosa por parte das massas que aderiam em
grandes números ao culto frígio, egípcio e outros cultos orientais,
como mais tarde um período em que a necessidade de religião
por parte dessas mesmas camadas da comunidade foi em grande
medida satisfeita pela recém-criada seita cristã.

Entre os pensadores que formularam efectivamente, em


termos filosóficos, uma doutrina sobre a descrença, não podemos
esquecer Lucrécio e, mais tarde, Plínio, o Velho.

Como já referimos, Lucrécio inspirou-se em Epicuro. O seu


excelente poema intitulado Sobre a Natureza do Universo não
deixa quaisquer dúvidas quanto à sua posição ateísta. Lucrécio foi,
aliás, o único escritor europeu a apresentar um sistema filosófico,
por oposição a teológico, sob a forma de um grande poema. A sua
posição era a de um homem reconciliado com a vida pela con-
templação serena das leis que governam o universo e pela convic-
ção de que os deuses não existem e de que a vida termina com a
morte. Defendia que a religião era responsável por muitos actos
condenáveis, e o sacrifício humano era um deles, e que portanto
devia ser inteiramente abolida. Por outro lado, estava consciente
da força poética da natureza e por vezes, mostrava uma certa
compreensão em relação aos argumentos dos seus adversários
que falavam de um poder divino da natureza, embora não estives-
se de acordo com eles.

60
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Em Plínio, o Velho, vamos mais uma vez encontrar um pan-


teísmo, que identifica Deus e o Universo a tal ponto que Drach-
mann, no seu estudo intitulado Atheism in Pagart Antiquity, a que
já fizemos referência, é levado a descrevê-lo como ateu, e não há
dúvida de que a passagem da sua História citada por Drachmann,
mostra que a sua atitude em relação ao divino era, pelo menos,
uma atitude de indiferença. Escreve ele: "Considero, portanto, um
indício de fraqueza humana pretender saber qual é a forma de
Deus. Quem quer que Deus seja, se é que existe outro Deus (que
não seja o Universo), e esteja ele onde estiver, ele é todo percep-
ção, todo visão, todo ouvido, todo alma. todo razão, todo ser" 63.
Isto é o panteísmo estóico levado à sua conclusão lógica, e Dra-
chmann sustenta que era este o ponto a que as classes altas ro-
manas dos princípios do Império tinham chegado sob a influência
do helenismo. Para Glover, o estoicismo deste período, que influ-
enciou a maioria das classes altas, também era, na prática, fun-
damentalmente ateísta. Tudo dependia da vontade individual. Diz
ele: "Se, como Séneca afirma, os deuses auxiliam o homem na sua
ascenção, é o próprio homem que tem de abrir caminho à custa
de temperança e fortaleza. Afinal, dificilmente se poderá distinguir
'o espírito santo em nós' de consciência, intelecto e vontade.
Deus, diz Epicteto, ordena que se desejais o bem que o procureis
vós mesmos." 64 Séneca, por seu turno, diz: "Para que quereis vós
as orações? Procurai ser felizes." 65 Os estóicos deste período pou-
co têm a dizer de concreto quer acerca do politeísmo quer da per-
sonalidade dos deuses. Os termos "Deus", "os deuses" e "Zeus"
são, muitas vezes, empregues indiscriminadamente para designar

63
Citado por Drachmann, op. cit., p. 118; cf. Plínio, História Natural, II. 57
64
Op. cif., p. 65.
65
Ibid., p.

61
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

destino, natureza e universo. Assim, como Glover refere, o Estoi-


cismo viu-se perante um dilema que não conseguiu resolver. Por
um lado, não estava suficientemente agarrado ao passado para
poder apoiar a religião popular; por outro lado, não tinha a firme-
za necessária para romper definitivamente com ela. Vacilou.

A figura mais destacada do Estoicismo deste período depois


de Epicteto foi, evidentemente, o Imperador Marco Aurélio. Nele
encontramos num grau ainda mais elevado o agnosticismo e o
ateísmo prático que caracterizavam outros estóicos, e a tal ponto
que, como F. W. Myers diz, "devido ao seu espírito invulgar, o Im-
perador solitário tornou-se o santo e o modelo do Agnosticismo".
Segundo Glover, Marco Aurélio era um homem que "não era cren-
te nem descrente — para ele a antítese 'ou deuses ou átomos' era
inevitável e havia tanto a dizer quer a favor quer contra qualquer
dessas alternativas que era impossível fazer uma opção" 66.

Os poetas dos primeiros dois séculos da Era Cristã adopta-


ram também a atitude geral de agnosticismo e cinismo para com a
religião. Na sua obra Os Impostores Desmascarados, Oenomas
ataca violentamente os oráculos que para ele não passam de uma
fraude dos sacerdotes. Mais importante, porém, foi Luciano em
quem podemos ver uma prefiguração de Voltaire, embora se dis-
tinga deste pela falta de objectivos e princípios definidos. Para
Luciano, a fé religiosa era essencialmente ridícula e, como tal, um
tema apropriado para as suas sátiras ligeiras em que escarnecia da
crença nos deuses. O seu Amante de Mentiras toma os deuses tal
como eles se lhe apresentam, reduzindo ao absurdo as situações
relatadas pela religião tradicional. A certo ponto, Zeus "autoriza-o

66
Ibid., p. 198.

62
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

amavelmente a vê-lo trabalhar, ouvindo as orações que lhe são


transmitidas através de tubos e concedendo-as ou rejeitando-as,
resolvendo em seguida alguns augúrios e dispondo finalmente
sobre o estado do tempo" 67. As suas obras Zeus Tragoedus e Zeus
Elenchomenus 68 foram escritas no mesmo tom. Na primeira, Luci-
ano põe os deuses a ouvir uma discussão na terra sobre a sua exis-
tência que eles próprios acabam por resolver com uma boa des-
carga de relâmpagos. Luciano não foi, porém, um pensador im-
portante. Como Glover observa, as questões que levanta são su-
perficiais, tal como são superficiais as respostas que apresenta
para elas, e é em vão que procuraremos nele algo mais do que
uma sátira sobre a religião popular 69. Antes de terminar esta aná-
lise da descrença na Antiguidade Clássica, há que referir um outro
pensador. Trata-se de Sexto Empírico que viveu entre finais do
séc. II e princípios do séc. III d. C. Sexto é não só o último e o maior
pensador da tradição céptica, como também uma das fontes prin-
cipais de que dispomos sobre as origens da filosofia. É um céptico
na tradição epicurista que procura libertar-se das emoções men-
tais a fim de alcançar a paz de espírito. Moralmente, tenta atingir
uma posição para além da luta entre o bem e o mal. "O céptico",
escreve ele, "recusa a ideia de que haja qualquer coisa que seja
má por natureza". Chegaram até nós duas obras suas cujos títulos
são significativos: As Hipotiposes Pirrónicas e Contra os Matemáti-
cos. Robert Flint, no seu monumental estudo sobre o Agnosticis-
mo, diz o seguinte acerca desses dois trabalhos: "Todo o cepticis-
mo grego, tudo aquilo que era importante na forma de agnosti-

67
Glover, ibid., p. 209, cf. Luciano, I Caromen, 24.
68
Zeus Refutado e Duas Vezes Acusado. (N. do T.)
69
Mas cf. Edwyn Bcvan, Stoics and Ceptics, p. 158, para uma opinião muito mais
favorável sobre a importância de Luciano.

63
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

cismo mais completa e coerente que jamais surgiu no mundo,


parece ter subsistido nelas." 70 Foi grande a influência que exerce-
ram em pensadores posteriores. É à obra de Sexto Empírico que o
cepticismo que veremos renascer na Europa a partir dos princípios
do séc. XVI vai buscar a sua inspiração, os seus princípios, os seus
métodos e até mesmo os seus argumentos. Montaigne e Hume,
por exemplo, citaram-no frequentemente, bem como Sir Walter
Raleigh 71. Todavia, as conclusões dos cépticos do período clássico
quanto à prática religiosa mostravam-se favoráveis a uma manu-
tenção do status quo. Assim, o próprio Sexto Empírico, embora
contestasse filosoficamente a prática religiosa (e, evidentemente,
a descrença, sendo como era um agnóstico coerente!) afirmava
simultaneamente a sua fé nos deuses e no seu interesse provi-
dencial pela humanidade. Escreve ele: "O céptico deverá reconhe-
cer os deuses em conformidade com os costumes do seu país e a
lei, e fazer tudo aquilo que possa contribuir para que sejam con-
venientemente adorados e venerados, mas não deverá fazer
qualquer afirmação irreflectida no domínio da especulação filosó-
fica." 72 Assim, Cota, que detinha o cargo de Pontífice no Estado
romano e que Cícero apresenta no papel de céptico na sua de
Natura Deorum, pôde dizer: "Sempre defendi e sempre defende-
rei as cerimónias tradicionais da religião... se tu, como filósofo,
conseguires justificar a minha convicção com argumentos racio-
nais, muito bem, caso contrário vejo-me obrigado a acreditar nos
nossos antepassados, embora eles não apresentem quaisquer
razões". Dito isto, começa a destruir as provas da providência di-

70
Robert Flint, Agnosticism, p. 95.
71
Cf. G. T. Buckley, Atheism in Eglish Renaissance. Cap. XI 11 Ad Math. IX. 49.
72
Op. cit, Liv. 14.

64
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

vina aduzidas pelo estóico com argumentos que vai buscar a Car-
nêiades.

Esta posição de descrença pessoal e profissão pública de fé


viria a ser adoptada em épocas posteriores por muitos homens
que desempenhavam cargos de responsabilidade.

65
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo V: CONCLUSÃO

Antes de encerrarmos esta primeira parte do nosso estudo,


talvez valha a pena recordar o período em análise e considerar as
principais manifestações de descrença. Vemos, assim, que há cin-
co pontos principais a considerar. Mas antes de mais gostaria de
fazer uma observação de carácter geral: o objectivo que nos pro-
pusemos foi o estudo do ateísmo e do agnosticismo, e poderá
parecer que, nas páginas precedentes, nos afastámos desse mes-
mo objectivo na medida em que apenas conseguimos referir mui-
to poucos casos de ateísmo declarado e explícito e, excepto no
fim do período em questão, poucos mais de agnosticismo. Toda-
via, tal como tentei mostrar, é neste período que encontramos as
origens das concepções naturalista e céptica que tanto contribui-
ram para o aparecimento de um ateísmo mais profundo e mais
claro. Chegamos, assim, ao primeiro ponto que queria referir.

A interpretação naturalista dos fenómenos do mundo inicia-


da pelos filósofos jónios, da qual encontrámos também exemplos

66
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

nos autores médicos do séc. V bem como em Tucídides e na forma


como este encarava a narração da história, que se impôs com os
atomistas e foi um dos principais temas de controvérsia no perío-
do socrático, é um tipo de interpretação que voltaremos a encon-
trar em diversos períodos do pensamento ocidental. Por outro
lado, não deixa de ter interesse actual, na medida em que as
questões que levanta para o teísmo continuam bem vivas ainda
hoje. Grande parte da linguagem teológica contemporânea é ain-
da "mitológica"- descaradamente mitológica - pois os fenómenos
do mundo são interpretados em termos de uma linguagem feita
de uma mistura de natural e de sobrenatural. Rudolf Bultmann, o
grande teólogo alemão que tanto contribuiu para a desmitização
da linguagem religiosa, compara a interpretação da religião com a
da ciência moderna em que a relação causa- efeito é fundamental.
"O homem moderno", diz ele, "parte do princípio que o curso da
natureza e da história, tal como a sua vida interior e a sua vida
prática, nunca é perturbado pela intervenção de forças sobrenatu-
rais" 73. Bultmann, John Robinson e outros são grandemente res-
ponsáveis pelo descrédito actual daquilo que se designa de "lin-
guagem intervencionista", e embora não seja nossa intenção dis-
cutir a sua legitimidade ou ilegitimidade, é interessante verificar
que os argumentos apresentados hoje em dia pelos teólogos con-
tra essa linguagem já haviam sido apresentados há mais de dois
mil anos. Esses argumentos são fundamentais para a filosofia da
religião. Deverão os fenómenos do mundo ser entendidos exclusi-
vamente como resultado de causas naturais, ou será que pode-
mos ver neles, quer isoladamente quer em conjunto, uma inter-
venção e objectivo divinos? A fé judaico-cristã tradicional respon-

73
Rudolf Bultmann, Jesus and Mythology, p. 16. 62

67
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

deu afirmativamente a esta pergunta. Segundo ela, o mundo é


fruto de um objectivo e de uma providência divinos e alguns fe-
nómenos são resultado de uma intervenção divina directa. Porém,
bem ou mal, toda a evolução da nossa interpretação do mundo,
pelo menos a partir do séc. XVI, se afastou de tal concepção. A
origem dessa outra interpretação está, como espero ter mostra-
do, no período Clássico, e foi esta a contribuição mais significativa
deste período para o desenvolvimento do ateísmo.

O segundo ponto a salientar em relação ao período Clássico


é a crítica moral crescente da religião tradicional iniciada por Xe-
nófanes e continuada pelos dramaturgos do período socrático,
embora isto, como vimos, tenha levado menos ao ateísmo do que
a um conceito aperfeiçoado de divindade.

Em terceiro lugar há que referir a tendência crescente para


o agnosticismo que atinge o seu apogeu com as escolas cépticas
da última parte da Antiguidade - a noção de que o conteúdo da
teologia é demasiado complexo e a vida humana demasiado curta
para que possa haver certezas em relação a essa matéria. Trata-se
de um estado de espírito que voltará a surgir várias vezes na histó-
ria do pensamento.

Em quarto lugar, é interessante verificar uma tendência da


parte dos ateus deste período para dar uma explicação naturalista
da religião e dos conceitos religiosos. Essa tendência também sub-
sistiu e voltaremos a encontrá-la quando tratarmos do séc. XIX.

Em último lugar, devemos prestar uma atenção muito espe-


cial ao materialismo que encontramos nos atomistas do séc. V,

68
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

pois este ressurgirá também no séc. XIX e será utilizado como ar-
gumento na eterna controvérsia da crença e da descrença.

Verificamos, assim, no que diz respeito aos filósofos e pen-


sadores, que no período Clássico a interpretação religiosa do
mundo nem sempre se conseguiu impor. Houve vozes poderosas
e insistentes que se ergueram contra a concepção religiosa das
coisas e que viriam a ecoar ao longo de épocas posteriores. Po-
demos ver nelas as sementes, e para o fim do período quase a
flor, do agnosticismo e do ateísmo.

Podemos considerar que o encerramento das escolas filosó-


ficas pagãs pelo Imperador cristão Justiniano em 529 d. C. marcou
o fim do período Clássico que foi também um período de livre-
pensamento. Durante quase seiscentos anos o pensamento do
Mundo Ocidental seria dominado pela interpretação cristã da rea-
lidade tal como fora formulada filosoficamente sob influência de
pensadores platónicos e neo-platónicos. Foi só com o aparecimen-
to dos filósofos árabes e judeus dos sécs. XI e XII que voltou a sur-
gir algo que se assemelhasse à inteligência especulativa livre da
Grécia e assim passamos, sem nos determos mais, à análise da
crença e da descrença no período medieval.

Nota sobre o ateísmo e o agnosticismo no pensamento ju-


daico no período que precedeu a queda de Jerusalém em 71 d.C.

Ao escrever sobre o ateísmo no Judaísmo, Salis Daiches diz o


seguinte: "O ateísmo como sistema de pensamento não existe no
judaísmo não havendo na língua hebraica qualquer termo equiva-
lente... A negação deliberada da existência dum Ser responsável
pela acção ida natureza e pelo curso da história, pressupõe uma

69
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

análise e explicação sistemáticas dos fenómenos naturais e histó-


ricos enquanto efeitos necessários de causas incriadas existentes.
O hebreu antigo não se sentia predisposto a analisar os fenóme-
nos naturais como os gregos haviam feito, nem a tentar procurar
as suas origens em leis e princípios físicos - base indispensável de
todas as doutrinas ateístas conscientes" 74. Embora isto seja ver-
dade como explicação da concepção hebraica do mundo, deve-
mos apontar que o fenómeno da descrença não era totalmente
desconhecido no Israel antigo. O autor do Salmo 14, por exemplo,
diz: "O insensato diz no seu coração: 'Não há Deus'". Mas, de um
modo geral, aquilo que tanto os salmistas como os profetas con-
testavam, não era tanto a inexistência de uma crença teórica em
Deus como um ateísmo prático que ignora as exigências morais de
Deus e age como se Ele não castigasse a improbidade.

O único autor judaico a discutir efectivamente o ateísmo é o


judeu alexandrino, Fílon, do séc. I, que dedica dois capítulos do
seu De Sommis à refutação do ateísmo; mas não podemos esque-
cer que as circunstâncias em que ele escreve são muito diferentes
das da cultura hebraica tradicional.

Deverá, no entanto, referir-se o estado de espírito de ex-


tremo pessimismo que encontramos na parte final do Livro da
Sabedoria (de influência grega) e, em particular, no Livro do Ecle-
siastes. Não se trata de ateísmo no sentido teórico, mais se apro-
ximando de um ateísmo e agnosticismo práticos quanto à possibi-
lidade de relacionamento com o divino.

74
Hastings (ed.), Encyclopaedia of Religion and Ethics, Vol. I, p. 187. 64

70
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Segunda Parte
O ATEÍSMO OCIDENTAL ATÉ AO SÉC XVII

71
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo VI: A IDADE MÉDIA

Os sécs. XII e XIII


No seu conjunto, os quatro séculos da história europeia - do
séc. XII ao XV - que constituem a Idade Média apresentam algu-
mas semelhanças com o período que acabámos de estudar. No
seu trabalho sobre a evolução do pensamento medieval, o Prof.
Dom David Knowles assinala três fases de desenvolvimento co-
muns aos períodos clássico e medieval. Esta comparação, desde
que não seja levada demasiado longe, constitui um esquema útil a
ter presente. Os três factores em que Knowles se baseia para es-
tabelecer essa comparação são: em primeiro lugar, um súbito e
inexplicável despertar intelectual no início de ambos os períodos;
em segundo, o papel desempenhado pela filosofia dialéctica e
especulativa neste despertar; por último, tal como no tempo do
Cepticismo, também nos finais do século XIV vemos as armas da
lógica e da dialéctica voltaram-se contra certas instituições e dou-
trinas veneráveis. "Também neste caso, escreveu ele, "uma escola
de pensamento céptica e oportunista conseguiu deitar abaixo o

72
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

edifício construído pelos grandes mestres" 75 Entre a especulação


na Antiguidade e no período medieval existe, porém, uma diferen-
ça muito importante, particularmente no que diz respeito à evolu-
ção do pensamento num sentido secular. É que no mundo grego
não existia uma sociedade teocrática que reprimisse a livre espe-
culação, que também não estava sujeita a pressões por parte das
instituições eclesiásticas oficiais. Na Idade Média vemos muitos
dos pensadores especulativos mais ousados entrarem em perma-
nente conflito com a ortodoxia estabelecida. O centro do pensa-
mento era então a Universidade que, no séc. XII, nasceu das primi-
tivas escolas catedrais e que embora tivesse leigos como professo-
res, era quase totalmente controlada pela Igreja e as ordens reli-
giosas a quem não faltavam meios eficazes de repressão. Assim,
excluindo um único caso digno de referência, ou seja, a escola
panteísta que existiu em Paris nos princípios do séc. XIII, só com o
declínio da estrutura social medieval da Igreja e do Império, que
se verificou ao longo dos séculos catorze e quinze, vimos a encon-
trar a expressão explícita do pensamento agnóstico e ateísta.

Mas, antes de nos debruçarmos sobre o pensamento secu-


lar durante esse período, convém dar uma ideia geral da evolução
do pensamento desde o fim da época clássica.

O período do pensamento cristão que começou no séc. II


com os Padres da Igreja gregos e latinos foi dominado por Platão e
pensadores neo-platónicos. Embora Aristóteles não fosse desco-
nhecido, na sua maioria as suas obras principais ainda não tinham
sido divulgadas e só no séc. XII, com a reintrodução da sua filoso-
fia, é que a sua influência se impôs. Porém, ao surgir de novo na

75
David Knowles, Evolution of Medieval Thought, p. 83. 67

73
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

tradição Ocidental graças aos comentadores árabes e judeus, aca-


bou por prevalecer sobre a velha tradição platónica que quase
eclipsou.

A introdução da obra de Aristóteles, no Ocidente, que se fi-


cou a dever sobretudo aos comentadores árabes, é precisamente
o que dá origem a posições mais próximas de descrença dos prin-
cípios da Idade Média.

Knowles resume a questão da seguinte maneira: "A introdu-


ção do pensamento aristotélico no Ocidente foi um processo que
levou cerca de cem anos. A primeira vaga consistiu nas obras so-
bre lógica que foram fácil e avidamente assimiladas pois vieram
dar continuação e aperfeiçoar uma disciplina que estava já ligada
ao método aristotélico. A segunda vaga foi a das obras filosóficas
difíceis e profundas, que criaram mais problemas e foram assimi-
ladas com maior dificuldade, embora os seus efeitos tivessem
marcado aquela época. Por último, os seus tratados sobre ética,
política e literatura apresentaram à Europa um filósofo que enca-
rava a vida humana de um ponto de vista terreno puramente na-
turalista. No geral, as traduções de Aristóteles deram pela primei-
ra vez aos pensadores ocidentais material com que construir um
sistema completo e coerente mas a atmosfera, as bases desta
grande escola de pensamento não eram nem medievais nem cris-
tãs, tendo antes origem na Grécia Antiga e sendo não-religiosas,
para não dizer racionalistas na sua essência"76.

Tal como observámos no capítulo anterior, para Aristóteles,


Deus era apenas um postulado metafísico necessário para explicar

76
Op. cit., p. 192.

74
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

a mudança e o movimento no Universo, concepção muito diferen-


te da do Deus vivo da Fé Cristã. Excluindo esse aspecto, todo o seu
sistema é de tendência e carácter naturalista. Mais, nas suas obras
há duas teses que se opõem à doutrina Cristã (e islâmica): a de
que o mundo é eterno, o que implica a negação do acto da criação
pelo qual, segundo a fé cristã (e islâmica), Deus fez o mundo; e
uma segunda que rejeita toda e qualquer noção de imortalidade
do homem.

Também os comentadores árabes, dos quais os mais famo-


sos e influentes foram os filósofos conhecidos no Ocidente pelos
nomes de Avicena (D. C. 980-1037) e Averroes (D. C. 1126-98),
tiveram grande dificculdade em conciliar as doutrinas aristotélicas
com a fé islâmica77.

Nos princípios do século XI, Avicena conseguiu em grande


medida fazer uma reformulação neoplatónica de Aristóteles, tor-
nando assim mais fácil a sua aceitação no mundo islâmico.

Um século mais tarde, ao procurar apresentar uma versão


da obra de Aristóteles não adulterada pelo pensamento neo-
platónico, Averroes deparou ainda com maiores dificuldades. A
única saída que encontrou foi propor uma doutrina segundo a
qual há diferentes graus ou níveis de verdade - que veio mais tar-
de a ser conhecida por teoria da dupla verdade 78 - doutrina que
iria ter uma considerável influência ao longo e mesmo depois do
período medieval e em que se iria inspirar S. Tomás de Aquino ao
estabelecer a diferença entre fé e razão. Ao contrário do que se

77
Em árabe, Ibm Sina e Ibm Rushd
78
Designada "doutrina da dupla verdade" por alguns estudiosos.

75
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

pensou na época e do que muito mais tarde vieram a pensar, essa


doutrina não sustentava que duas proposições contraditórias pu-
dessem ser ambas verdadeiras, mas que a verdade se apresentava
de maneiras diferentes e espíritos diferentes. Para os homens
simples e de pouca inteligência, bastavam a fé e a autoridade.
Para o filósofo, era necessária a demonstração absoluta. De facto,
tal como disse Gordon Leff, a doutrina de Averroes "dava carta
branca à filosofia, independentemente e ao contrário do que es-
tabelecem as normas da fé" 79. A teoria da dupla verdade veio a
tornar-se uma arma extremamente útil no séc. XIV, quando o con-
flito entre a fé e a razão se agudizou.

O que nos interessa neste momento é a influência do aristo-


telismo, tal como foi apresentado por Averroes, na primeira parte
do período medieval que foi considerável. Escrevendo sobre esse
assunto na sua obra The Mediaeval World, disse o grande medie-
valista alemão Friedrich Heer: "Alguns ensinamentos actuaram
como uma droga que cria habituação; assim, a matéria é eterna e
está em perpétuo movimento; o acto da criação não existiu nun-
ca; só há um intelecto, a capacidade de pensar comum a todos os
homens; só há uma alma universal que subsiste em todas as coi-
sas vivas; a imortalidade do homem não existe; a fé e a razão de-
vem estar totalmente separadas; a ciência tem por objecto a na-
tureza e os processos naturais e a teologia não é uma ciência" 80.

Foi precisamente por dar origem à situação descrita por


Heer nas três últimas afirmações acima referidas, ou seja, a sepa-
ração da fé e da razão e a opinião de que a ciência tem por objec-

79
Gordon Leff, Medieaval Thought, p. 157.
80
Fiederich Heer, The Medieaval World, 263.

76
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

to a natureza e os processos naturais e de que a teologia não é


uma ciência, que se pode justificadamente atribuir à influência de
Averroes o aparecimento da concepção moderna do mundo e do
processo de secularização que iria afastar a teologia da nossa in-
terpretação do mundo e restringi-la ao domínio da "fé". Mas vol-
taremos a falar deste aspecto quando analisarmos o séc. XIV.

De momento, referimos apenas que a reintrodução de Aris-


tóteles no pensamento europeu fez ressurgir o livre-pensamento
e a especulação da Grécia. Nos finais do século XII destacam-se
duas figuras Amalrico de Bena e David de Dinant.

Segundo Heer, em Amalrico de Bena, cujo corpo foi exuma-


do e queimado em 1210, quatro anos após a sua morte, podem
detectar-se "as origens desse humanismo terreno que os averroís-
tas formularam claramente no século XIII e em que assentaria a
evolução da filosofia". E acrescenta: "esse humanismo tem sido a
base do pensamento humanista, não-cristão e militante desde
então até Gide, Sartre e Camus" 81.

Infelizmente pouco se sabe acerca das ideias de Amalrico e


aquilo que efectivamente se sabe é por via indirecta, através de
citações, mas, entre outras coisas, teria ensinado que o inferno é a
ignorância e que está em nós como um dente estragado; que há
uma identidade total entre Deus e tudo o que existe, mesmo no
mal, e que um homem que sabe que Deus se manifesta através de
tudo não pode pecar; e, por último, que o facto de esse homem o
reconhecer o leva ao céu que é a única ressurreição possível. Não
há outra vida e, por isso, a realização do homem só pode ter lugar

81
Op, cit., p. 262.

77
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

nesta. As origens desta doutrina não remontam apenas a Aristóte-


les. Como Leff observa, a proposição panteísta de que Deus era
todas as coisas, constituiu um avanço fácil mas nem por isso me-
nos importante em relação ao neo-platonismo de Erigena e da
Escola de Chartres que viam Deus em todas as coisas 82.

O panteísmo de David de Dinant, cujo nome aparece associ-


ado ao de Amalrico na condenação conciliar, era um pouco dife-
rente. Heer considera-o um discípulo fiel de Aristóteles e um ma-
terialista. Leff chama-o monista. Tanto quanto se sabe, ensinava
que Deus é matéria e que, fora de Deus, não há realidade. Para
ele, a matéria, o pensamento e Deus eram idênticos.

A partir daqui não se justifica determo-nos sobre eles pois,


se têm interesse para nós, é menos por aquilo que defendiam -
embora o mínimo que se pode dizer de algumas das posições de
Amalrico é que são de facto interessantes - do que por constitui-
rem exemplos de um ressurgimento, ao fim de quase mil anos, do
livre-pensamento especulativo, e uma recusa de permanecer den-
tro da camisa de forças que era a doutrina cristã ortodoxa, quan-
do a razão ditava o contrário. Esta tendência irá impor-se cada vez
mais ao longo de toda a Idade Média. As origens deste livre-
pensamento são em parte neo-platónicas e em parte aristotélicas,
mas devemo-lo sobretudo ao espírito indomável de certos ho-
mens que se recusaram a aceitar o que quer que fosse que a ra-
zão não lhes permitisse aceitar. Com o decurso do tempo, esse
espírito ir-se-á tornando cada vez mais forte.

82
Op. cit, p. 128.

78
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

No séc. XIII, S. Tomás de Aquino conseguiu de certo modo


conter por algum tempo a vaga crescente de pensamento secular,
não só interpretando Aristóteles de modo a integrá-lo na teologia
natural cristã, como retomando e desenvolvendo a distinção hoje
consagrada entre fé e razão.

Para S. Tomás, não existe entre elas qualquer contradição.


Algumas coisas, tal como a existência de Deus, podem provar-se
pela razão natural a partir de certas características do mundo na-
tural observadas empiricamente. Mas reconhece que, tendo pou-
ca capacidade e não dispondo de tempo para pensar em tais coi-
sas, a maioria dos homens tem que aceitar essas verdades pela fé.
Há, no entanto, outras verdades que não se opõem à razão mas
que esta, pelo menos num estado corrompido, não consegue
atingir, só podendo ser conhecidas pela fé; é esse, por exemplo, o
caso da verdade segundo a qual o mundo foi criado. Portanto, a fé
e a razão não se opõem, sendo antes vias diferentes e comple-
mentares de alcançar a verdade. Por vezes sobrepõem-se - no
caso da existência de Deus, por exemplo; porém, em geral são
separáveis mas não contraditórias. Se a razão chegasse a uma
conclusão que não fosse conforme à verdade revelada, S. Tomás
consideraria esse facto uma prova de que ou o pensador partira
de premissas falsas ou o seu raciocínio estava errado. A fé é, por-
tanto, suprema - a norma - e, em última análise, a razão está-lhe
sujeita; S. Tomás reconhece, no entanto, a autonomia da filosofia
em determinadas matérias. Essa relação entre fé e razão, teologia
e filosofia sofrerá uma alteração radical no século seguinte em
que se notará uma tendência cada vez maior para se desenvolve-
rem separadamente, como adiante verificaremos. Ao deixar de
estar dependente da fé, a razão passará a explorar o mundo natu-

79
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ral pelos seus próprios meios, tornando-se eventualmente indife-


rente ao que aquela possa ter a dizer sobre o assunto.

O séc. XIV
Passemos então para o séc. XIV - "O Século Céptico" como
Leff lhe chama - em que as concepções seculares do mundo se
foram enraizando, abrindo, assim, caminho ao desenvolvimento
da ciência naturalista que iria ter lugar nos sécs. XVI, XVII e sobre-
tudo no séc. XVIII.

Vemos desenvolverem-se em muitos dos principais pensa-


dores deste século as formas de pensamento naturalistas, en-
quanto que as tendências panteístas, tão evidentes nos finais do
séc. XII e princípios do séc. XIII desaparecem. Todo o conhecimen-
to de Deus e a sua relação com o mundo se baseia agora quase
inteiramente na fé.

Os aspectos sociais deste período merecem também a nossa


atenção. O séc. XIV foi uma época marcada por grandes transfor-
mações em quase todos os planos da vida e do pensamento. A
autoridade papal e a imperial estavam em declínio e a confiança
do homem no poder da razão especulativa começara a diminuir.

Segundo Leff sustenta no trabalho já aqui referido, o inte-


resse intelectual dominante neste século não foi, como a certa
altura se pensou, a controvérsia sobre realismo e nominalismo,
mas o desejo, por parte dos principais pensadores, de separar fé e
razão. "A distinção entre fé e razão", escreve ele: "que S. Tomás
defendera tornou-as independentes uma da outra; o natural e o
sobrenatural não só estavam em planos diferentes como não ti-
nham qualquer ponto comum; e, como tratavam de verdades dis-

80
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

tintas, elas não podiam esclarecer-se uma à outra" 83. Tal como
Leff sublinha, isto só podia conduzir a maneiras de pensar diver-
gentes. Por um lado, a um empirismo autosuficiente cuja pedra-
de-toque eram os factos, para além dos quais se entrava no domí-
nio da incerteza e da conjectura; por outro, à noção de que as
questões da fé não estavam sujeitas à razão, posições que só po-
dia levar aqueles que defendiam acima de tudo a razão a encara-
rem a fé com cepticismo. À luz da razão, as leis da revelação care-
ciam de validade. Por seu turno, também a fé se foi tornando cada
vez mais independente, apoiando-se na revelação e na autoridade
e abdicando gradualmente do pensamento racional. Também aqui
vemos em muitos dos principais pensadores, o cepticismo e a au-
toridade unirem-se para defender a ortodoxia tradicional.

Na sua grande obra 'History of Philosophy', Copleston con-


firma estas tendências 84. Também ele nota no aristotelismo aver-
roísta a que chama "integral", uma tendência para separar a fé da
razão e a teologia da filosofia, bem como para afirmar a completa
independência de cada uma delas em relação à outra. Uma vez
reconhecida como disciplina independente - diz ele, atribuindo o
facto em grande parte ao interesse do séc. XIV pela lógica, em
detrimento da metafísica - a filosofia tendeu, como era de espe-
rar, a seguir o seu próprio caminho e sua dependência e união
com a teologia começaram a atenuar-se, situação que encontra-
mos no movimento normalmente associado ao nome de Guilher-
me Occam (1300-1349), embora nesta também haja esse misto de
cepticismo e autoridade que atras referimos. Tal como Sexto Em-
pírico, Occam sustenta que, se a razão não pode confirmar a fé,

83
Op. cit., p. 258.
84
Cf. Copleston, History of Phylosophy, Vol. 3, I Parte, p. 21. 74

81
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

também não a pode destruir e, assim, nada o impede de manter


tranquilamente o status quo. Também ele podia ter dito com
Pomponazzi, um dos principais averroístas da Kenascença: "Acre-
dito como cristão naquilo que não posso acreditar como filósofo".

A realização mais importante deste século foi, como já dis-


semos, a definição de uma nova relação entre fé e razão para a
qual Occam certamente contribuiu. A pergunta que ele fazia era
mais ou menos esta: "O que é que a razão pode saber sobre a
fé?". Tanto ele como o movimento associado ao seu nome res-
pondiam "muito pouco".

Na realidade, esta questão já tinha sido levantada e resolvi-


da de maneira semelhante nos finais do século anterior por Duns
Scotus (1220-1308) que se tinha empenhado também em separar
o que pertencia ao domínio da teologia daquilo que era acessível à
razão. Segundo Leff, foi ele o impulsionador da primeira grande
tentativa para isolar a fé da razão, devendo-se-lhe também uma
reformulação radical das relações entre ambas. Eram duas as con-
siderações que dominavam o seu pensamento: os limites da razão
e a liberdade absoluta de Deus. O seu objectivo era, portanto,
redefinir os campos específicos da filosofia e da teologia de modo
a que a primeira se cingisse ao estudo do Ser e seus atributos.

Sustentava que a razão não podia confirmar o que é revela-


do por Deus porque a aceitação da revelação é uma questão de fé
e não de experiência natural 85. Não pode haver identidade entre o

85
Compare com a definição de revelação in Catholic Encyclopaedia, em que é
definida como "comunicação de uma verdade por Deus a uma criatura racional
por meios que ultrapassam o âmbito normal da natureza". O Concílio do Vatica-
no de 1870 definia a fé como sendo "uma virtude sobrenatural pela qual, inspira-

82
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

teólogo e o filósofo pois dedicam-se a matérias diferentes. A teo-


logia deixou, assim, de ser uma ciência. Embora o próprio Scotus
desse uma prova da existência de Deus a partir do "Ser" que pou-
co diferia do argumento ontológico exposto por Anselmo no séc.
XI, ao fazê-lo, separou as duas maneiras de conhecer a existência
de Deus, tal como tinham sido concebidas até então: pela experi-
ência dos sentidos e pela iluminação divina. Uma prova extraída
do mundo físico não poderia ir além desse mesmo mundo e, para
ser a posteriori, como geralmente se exigia que fosse, não se po-
dia falar de iluminação divina.

A figura de Duns Scotus como um dos primeiros pensadores


puramente fideístas impor-se-á mais se considerarmos o aspecto
teológico do seu pensamento. Para Duns, Deus define-se essenci-
almente em termos de vontade. Deus, diz ele, é pura vontade e,
por isso, a razão não pode fornecer qualquer explicação sobre o
seu modo de actuar. Ao contrário do que acontecia, por exemplo,
com S. Tomás de Aquino, no pensamento de Scotus não há conti-
nuidade entre Deus e o homem criado. Ao considerar a vontade
de Deus a única lei da criação, adoptou como ponto de partida a
sua incognoscibilidade; por outro lado, a distinção entre fé e razão
gerou uma situação de consequências terríveis para a teologia
pois essa dicotomia entre fé e razão, sobrenatural e natural, in-
troduzida por Scotus no seio das tendências dominantes do pen-
samento teológico cristão, libertou a razão, permitindo-lhe explo-
rar o mundo natural pelos seus próprios meios. Tal como Leff diz:
"O seu sistema abalou o precário equilíbrio entre fé e razão. Ele

dos e assistidos pela graça de Deus, acreditamos que as coisas que Este revelou
são verdadeiras". Os conceitos de fé e de revelação de Scotus são muito seme-
lhantes a estes, se não mesmo idênticos.

83
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

abriu uma brecha demasiado profunda na unidade que existia


entre elas para que outros não tentassem ir mais longe... a razão
natural não podia transcender as limitações das causas secundá-
rias. Deus não tem limites e, portanto, só a fé - nunca a razão - o
pode descrever" 86. A conclusão de Leff merece ser assinalada. "O
cepticismo a que a teoria de Scotus deu origem", diz ele, "está no
extremo oposto àquele a que a doutrina de Occam havia de con-
duzir mas nem por isso deixa de ser cepticismo e contituiu o maior
legado ao séc. XIV".

As questões levantadas por Scotus e que se mantiveram ao


longo do séc. XIV e não só, tiveram consequências muito graves
para a teologia e por vezes também para a própria religião porque
nem Scotus nem depois Occam se limitaram a separar a razão da
fé. Importa acima de tudo entender porque achavam que a razão
não tinha nada que ver com os assuntos que dizem respeito à fé.
O que eles contestavam era a própria metafísica enquanto tal e,
assim, as suas obras reflectem a sua total falta de confiança na
capacidade de o espírito transcender o mundo natural e alcançar
o conhecimento do que fica para além da experiência sensorial,
falta de confiança que, com a evolução do pensamento Ocidental,
havia de atingir a sua expressão definitiva no séc. XVIII nos escritos
filosóficos de Emanuel Kant.

Também podemos ver nesta evolução uma limitação do que


implicava o significado de razão. Os primeiros pensadores da Ida-
de Média faziam a distinção entre a inteligência como ratio e co-

86
Leff, op. cit., p. 272.

84
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mo intellectus 87. Ratio era o poder do pensamento lógico discursi-


vo: de investigação e de verificação, de abstracção, de definição e
de formulação de conclusões. Intellectus era a inteligência en-
quanto capacidade de simplex intuitus - em que a verdade era
apreendida intuitivamente. Para S. Tomás e os pensadores dos
princípios da Idade Média, a faculdade da mente, o conhecimento
do homem é ambas as coisas numa só-simultaneamente ratio e
intellectus. O processo de conhecer é a acção conjunta das duas.

Nos finais da Idade Média, com a importância atribuída à ló-


gica em detrimento da metafísica, a inteligência como intellectus
dá lugar a uma concentração quase exclusiva na inteligência como
ratio, deixando a razão de se ocupar das verdades sobre o Ser
para se dedicar ao estudo das relações existentes entre as coisas
sensíveis.

Ao aceitar unicamente as respostas dadas pela fé, os ho-


mens deixaram de sentir necessidade de pedir à realidade respos-
tas para tais perguntas que, assim, foram sendo gradualmente
abandonadas pelas principais correntes do pensamento filosófico,
tendo, no entanto, sido retomadas algumas vezes em épocas pos-
teriores.

Vemos assim que a posição de Occam tinha já sido defendi-


da por alguns dos seus antecessores mas ele deu-lhe "uma coesão
com efeitos destrutivos que não tinham precedentes em mil anos
de controvérsia" 88.

87
Para uma análise mais profunda desta distinção cf. Josef Pieper Leisure, the
Basis of Culture, p. 33.
88
Leff, op. cit., p. 279.

85
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Occam era acima de tudo um lógico, e um lógico que critica-


va os argumentos e provas metafísicas em nome da lógica. Criti-
cou particularmente as pretensas provas da existência de Deus e
da imortalidade da alma por não se basearem em princípios evi-
dentes ou por as premissas não autorizarem que se tirassem essas
conclusões. Admitia, no entanto, que alguns argumentos metafísi-
cos fossem correctos. A filosofia de Occam alia um empirismo ab-
soluto a uma contingência igualmente radical. Para ele, só o indi-
vidual era real - pelo menos no que dizia directamente respeito à
experiência humana. Para tudo o resto o árbitro era a vontade de
Deus. O seu pensamento funcionava, portanto, em dois planos.
No plano natural, era um empirista que se recusava a aceitar que
o conhecimento ultrapassasse os limites da experiência verificável.
No plano sobrenatural, era, tal como Scotus, simultaneamente
fideísta e céptico, atribuindo à fé todas as certezas religiosas e
negando à razão a capacidade de as provar.

Como Copleston observa, daí adviriam duas consequências.


A teologia e a filosofia tenderam a separar-se e esta última agora
que os importantes problemas da metafísica que tinham servido
para a unir à teologia tinham sido relegados para o domínio da fé,
tendia a adoptar cada vez mais um carácter secular 89. Tal como
Deff sublinha, Occam deu uma nova solidez ao conhecimento na-
tural.

Coube, porém, aos seguidores de Occam, tirar todas as im-


plicações cépticas da posição daquele. Occam era um teólogo in-
teressado em libertar a concepção cristã de Deus da necessidade
dos gregos. Tanto ele como Scotus pretendiam impor a liberdade

89
Op. cit, p. 23.

86
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

e supremacia de Deus. O mesmo não acontecia, porém, com mui-


tos dos seus continuadores, cujo interesse principal era a filosofia
e que se concentraram sobretudo no aspecto crítico da sua obra.
Entre eles os mais importantes foram Nicolau de Autrecourt e
João de Mirecourt.

Nicolau (1300-1347) levou o nominalismo de Occam, que


defendia que só o individual é real e que não existe qualquer rela-
ção real entre as coisas pelo que não é possível inferir uma coisa a
partir de outra, a um ponto que não ficava muito aquém daquele
a que Hume viria a chegar no séc. XVIII. Aliás, tem sido chamado o
Hume medieval 90. Também ele negava que pudéssemos ter um
conhecimento racional daquilo que ficava para além da experiên-
cia sensorial. Só podemos ter certezas no campo da lógica e da
matemática e da percepção imediata. A certeza teológica não era
apreensível pela experiência e pela razão, baseando-se exclusiva-
mente na revelação aceite pela fé. A separação da filosofia e da
teologia a que assistimos no séc. XIV e que desviou a filosofia da
especulação metafísica, fazendo-a voltar-se para o mundo da ex-
periência, foi acentuada por essa modificação radical da concep-
ção de vida do homem Ocidental a que se dá o nome de Renasci-
mento e que em seguida iremos estudar.

90
Por Hastings Rashdall. Ver o seu trabalho Nicolau de Autrecourt a Medieaval
Thought P. A. S. 1906-7.

87
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo VII: O RENASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO


DA CIÊNCIA

O período da história intelectual que agora vamos estudar e


que abrange os sécs. XV, XVI e XVII, não representa uma ruptura
súbita e total com o passado. Já vimos como nos fins da Idade
Média o pensamento europeu se afastou da especulação teológi-
ca e metafísica, passando a dar maior atenção ao conhecimento
do mundo natural ao mesmo tempo que a filosofia assumia um
carácter cada vez mais secular; e como o interesse pela lógica e
pela ciência dominava o movimento ocamista. Além disso, tal co-
mo demonstrou o estudioso americano Charles Homer Haskins, o
Renascimento italiano dos sécs. XV e XVI deveu-se em grande me-
dida a um anterior Renascimento que teve lugar no séc. XII e em
que se assistiu ao aparecimento das línguas vernáculas, ao ressur-
gimento dos clássicos latinos, da poesia e do Direito Romano, à
recuperação da ciência e grande parte da filosofia gregas bem
como à criação das universidades, das cidades e do estado sobe-

88
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

rano 91. Hoje em dia, a maioria dos historiadores do Renascimento


concorda que grande parte dos interesses dominantes deste perí-
odo tinha surgido nos finais da Idade Média, e ainda que os prin-
cipais movimentos dos fins da época medieval continuaram a
crescer e a desenvolver-se ao mesmo tempo que despertava de
novo o interesse pela herança Clássica.

O que aconteceu durante o período a que chamamos Re-


nascimento foi que, segundo as palavras de Windelband, "a cor-
rente que durante cerca de mil anos tinha acompanhado o princi-
pal movimento religioso da vida intelectual dos povos Ocidentais,
manifestando de tempos a tempos uma força maior, conseguiu
nesta altura impor-se efectivamente" 92. O resultado foi a criação
de novos valores e de uma nova maneira de olhar para as coisas.
No campo da cosmologia, Copérnico pode ter abalado a teoria
segundo a qual o homem ocupava o centro do universo; ideologi-
camente, porém, os humanistas do Renascimento puseram o ho-
mem e os seus interesses em primeiro plano. Daí que inicialmente
a mudança associada ao Renascimento tenha sido sobretudo uma
mudança de perspectiva. Durante este período, começou a ter
cada vez mais aceitação a ideia de que este mundo merecia a
atenção das melhores inteligências e de que o homem, indepen-
dentemente de ter ou não uma origem sobrenatural, era digno de
ser estudado. O Renascimento marca o início da concepção secu-
lar, hoje tão generalizada, do conhecimento do homem e do seu
meio. O homem e o mundo deixaram de ser vistos apenas dentro
de um contexto religioso e de ter lugar definido na hierarquia do
Ser; as suas acções deixaram de ser julgadas unicamente em ter-

91
Charles Homer Haskins, The Renaissance of the Twelfth Century.
92
Wilhelm Windelband, History of Philosophy, Vol. II, p. 348. 80

89
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mos do drama da sua salvação e o mundo e o seu conteúdo de ser


vistos como pouco mais do que os sinais exteriores de um signifi-
cado teológico interior. Tanto o homem como o mundo passaram
a ser estudados e entendidos por e para si próprios.

Isto não quer dizer, no entanto, que o Renascimento Italiano


fosse irreligioso, embora seja certo que muitos historiadores, es-
pecialmente no século passado, mostrassem uma tendência para
associar o Renascimento e o Humanismo italiano a esta ou aquela
forma de irreligião, vendo-o, por exemplo, como um ateísmo se-
creto ou um novo paganismo incompatível com o Cristianismo. Tal
como diz uma das maiores autoridades deste período, a separa-
ção total da razão e da fé... foi considerada uma maneira hipócrita
de encobrir um certo ateísmo ao passo que a importância dada
pelos filósofos platónicos e estóicos a uma religião natural comum
a todos os homens, bem patente nas suas obras, era uma forma
de panteísmo 93. A sua opinião pessoal sobre o Humanismo dos
primeiros tempos do Renascimento italiano opõe-se radicalmente
a esta noção. "Não há dúvida que na literatura do Renascimento
havia", reconhece ele "referências frequentes a deuses e heróis
pagãos o que se justificava dizendo tratar-se de alegorias... mas
foram poucos os pensadores- se é que houve alguns - que preten-
deram ressuscitar os cultos pagãos. A palavra panteísmo ainda
não fora inventada e, embora o termo ateísmo fosse geralmente
utilizado nas polémicas dos finais do século XVI, não é provável
que tenha havido muitos ateus ou panteístas verdadeiros durante
o Renascimento. O máximo que podemos dizer é que alguns pen-
sadores podem ser considerados... precursores do livre-

93
P. O. Kristeller, Renaissance Thought, p. 71. 4 Ibid., pp. 71-72.

90
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

pensamento do séc. XVIII" 94. Não é aí que se deve ir buscar a ex-


plicação da tradição de paganismo do Renascimento mas sim ao
"constante e irresistível desenvolvimento dos interesses intelectu-
ais não-religiosos que, mais do que opor-se ao conteúdo da dou-
trina religiosa, competiam com ele, procurando atrair sobre si a
atenção dos indivíduos e da sociedade" 95. No que toca ao início do
Renascimento, esta posição parece-me estar mais próxima da ver-
dade, embora, como adiante veremos, tenhamos de a rever parci-
almente ao estudarmos fases posteriores deste período.

O Renascimento divide-se em dois momentos distintos mas


não totalmente desligados: um primeiro Renascimento Clássico e
aristocrático, caracterizado pelo gosto pela arte e literatura grega
e romana e por um interesse por um passado considerado uma
Idade de Ouro da humanidade - que é geralmente conhecido co-
mo a fase humanista do Renascimento - e um segundo período
que veio a suplantar aquele - "um Renascimento mais popular e
empírico, menos tradicional e hierárquico e mais científico e vol-
tado para o futuro"6. Em muitos aspectos o primeiro abriu cami-
nho ao segundo. Já Windelbandi diz: "O conhecimento da filosofia
da Antiguidade que o movimento humanista veio trazer foi avi-
damente assimilado e os sistemas da filosofia grega ressurgiram,
opondo-se violentamente à tradição medieval. Mas do ponto de
vista da evolução geral da história, este regresso à Antiguidade
apresenta-se apenas como uma preparação intuitiva para aquilo
que viria a ser a verdadeira obra do espírito moderno" 96. A história
da filosofia do Renascimento é essencialmente a história do pro-

94
Ibid., p. 72.
95
J. Bronowski e Mazlish, The Western Intellectual Tradition, p. 23. 81
96
Op. cit., p. 351.

91
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

cesso que teve início com o ressurgimento humanista do espírito


grego e de que resultou a interpretação científica do mundo.

A fase inicial do período humanista não deixa, no entanto,


de ter interesse para nós uma vez que ali se podem detectar já os
primeiros indícios dessa atitude céptica em relação à religião que
se tornará no séc. XVIII o traço dominante da tradição intelectual
Ocidental. Vamos, pois, debruçar-nos sobre ele.

O Renascimento Clássico
Se bem que a opinião de Kristeller, segundo a qual durante a
primeira fase humanista do Renascimento raramente se encon-
tram posições inequivocamente ateístas, corresponda dum modo
geral à realidade - pelo menos no que se refere a Itália - é efecti-
vamente neste período que se prepara o terreno para a concep-
ção mais secular dos séculos seguintes.

Isto torna-se bem evidente se olharmos para aquilo que


constituiu de facto a preocupação dominante do movimento hu-
manista, isto é, a recuperação do saber clássico. A atitude da Igre-
ja medieval para com a literatura pagã caracterizou-se sobretudo
por uma selecção. Alguns autores clássicos - Ovídio e Terêncio,
por exemplo- tinham todas as suas obras incluídas na lista de li-
vros proibidos e outros, apenas algumas, enquanto que aqueles
que não eram incompatíveis com a doutrina cristã eram inteira-
mente tolerados. Neste último caso - e foi o que aconteceu com
Platão e Aristóteles - a Igreja não os considerava pagãos mas sim
precursores do Evangelho e em certos aspectos dignos de figurar
ao lado dos Padres da Igreja.

92
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

No Renascimento, graças à intervenção erudita e crítica dos


primeiros humanistas, os autores clássicos começaram a ser lidos
na íntegra e apenas por si próprios, verificando-se que, longe de
serem precursores do Cristianismo, eram antes representativos de
uma cultura e de um modo de vida válido por si próprio embora
diferente de e alheio aos Cristãos.

No seu estudo sobre o ateísmo do Renascimento Inglês, Bu-


ckley define assim a situação: "Dado que todo o Renascimento se
caracterizou por uma tendência para o secularismo e que os clás-
sicos passaram a ser compreendidos como veículos das ideias de
uma outra religião, é evidente que para um defensor dessas cor-
rentes, a leitura de qualquer obra 'da literatura grega ou latina
dificilmente podia constituir uma experiência capaz de o tornar
melhor cristão. Os clássicos talvez fizessem dele um moralista me-
lhor ou um filósofo mais profundo e, à primeira vista, poderia pa-
recer que isso o ajudaria a consolidar a fé cristã, mas, com o de-
correr do tempo, verificou-se que nem todos os bons moralistas e
filósofos profundos eram cristãos e que o Cristianismo apoiado
pelo pensamento pagão mostrava cada vez mais uma tendência
desconcertante para deixar de ser quer uma coisa quer outra,
transformando-se num novo sistema que viria mais tarde a ser
conhecido pelo nome de religião natural ou deísmo" 97.

Prosseguindo a sua análise, acrescenta: "Além do grande


conjunto de obras puramente literárias que, na sua maioria, pou-
co significado religioso tinham, havia ainda toda uma série de
obras de carácter céptico e especulativo, obras essas que tinham
um conteúdo agnóstico, se não mesmo ateu, e que não eram con-

97
George T. Buckley, Atheism in English Renaissance, p. 3. 9 Ibid., p. 23.

93
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ciliáveis com os dogmas do Cristianismo"9. A influência dos auto-


res destas últimas, dentre os quais se destacam Cícero, Plutarco,
Plínio e sobretudo Luciano e Lucrécio foi grande e, tal com Buckley
demonstra no seu estudo pormenorizado e bem fundamentado
deste período, eles foram dos espíritos que mais profundamente
influenciaram os livres-pensadores franceses e ingleses dos sécs.
XV e XVI.

Assim, o ressurgimento do pensamento clássico deu origem


a um afastamento em relação ao Cristianismo e de certo modo a
todas as religiões, em dois planos. Por um lado, desviou muitos
pensadores da época de um interesse tacanho pelas exigências de
uma determinada religião, confrontando-os com uma cultura dife-
rente e capaz de competir com a sua, facto que viria a ser reforça-
do pelos viajantes e exploradores que começaram a pôr o Ociden-
te em contacto com culturas e civilizações que tanto eles como a
Bíblia que liam ignoravam na sua maioria 98. Por outro lado, essa
cultura clássica tinha um espírito especulativo e céptico que en-
controu eco em muitos pensadores.

Vamos, pois, estudar o ressurgimento do cepticismo clássi-


co. Ao falar da Inglaterra do séc. XVI na obra a que anteriormente
fizemos referência, Buckley afirma que "se pode dizer com segu-
rança que os cépticos da Antiguidade Clássica foram uma das fon-
tes mais importantes da dúvida religiosa" 99. Plínio, Luciano, Lucré-
cio, Cícero e Plutarco foram lidos e 'divulgados e o seu agnosticis-
mo e a sua sábia aceitação da condição humana foram realçados e

98
O grande impacto da consciência comparativa de outras culturas e religiões
far-se-ia sentir sentir intensamente nos finais do séc. XVII. Cf. P. Hazzard, The
European Mind 1680-1715, Cap. I.
99
Op. cit., p. 4.

94
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

tomados como exemplo. Isto aplica-se tanto à Itália como à Fran-


ça.

São bem característicos do espírito que os clássicos ajuda-


ram em grande parte a criar os escritos de Miguel de Montaigne
(1533-1592), autor desse monumento ao cepticismo da Antigui-
dade que é a Apologia de Raymond Sebond, mais tarde integrada
no segundo volume dos seus hoje justamente famosos Ensaios.
Não acreditando na possibilidade de conhecer questões tão com-
plexas como a existência de Deus e a Imortalidade da Alma, mas
disposto a confiar na fé e a manter-se de acordo, ainda que ape-
nas formalmente, com a religião instituída, Montaigne procurou
alcançar a paz de espírito da mesma maneira que Séneca e Plutar-
co, que eram aliás os seus autores preferidos, o tinham feito, ou
seja, através do autoconhecimento e da auto-disciplina que para
ele eram os dois valores em que assentava a filosofia clássica. Se-
gundo Windelband, "todo o pensamento filosófico contido nos
Ensaios tem origem no pirronismo. Assim se retomou uma tradi-
ção que fora abandonada. A relatividade das opiniões teóricas e
das teorias éticas, as ilusões dos sentidos, a distância entre sujeito
e objecto, a mudança constante a que ambas estão sujeitas, a
dependência do trabalho do intelecto de dados tão pouco seguros
- todos esses argumentos defendidos pelos antigos cépticos va-
mos encontrar aqui, mas não de uma forma sistemática mas dis-
persos e inseridos na discussão de questões individuais e, como
tal, muito mais evidentes" 100.

Posteriormente Sanches (1562-1632) retomou o cepticismo


com um espírito filosófico mais formal e anunciou uma nova ciên-

100
Op. cit, p. 362.

95
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

cia da natureza de base empírica. Charron (1541-1603), descrendo


também da possibilidade de conhecer teoricamente questões
importantes da vida, procurou na autoanálise o conhecimento
prático que, na sua opinião, constituía a base da vida moral.

Os três, porém, defendiam a autoridade da fé e da Igreja,


permanecendo assim fiéis à tradição céptica clássica.

Mas o ressurgimento do cepticismo antigo não foi de modo


nenhum a única causa da descrença generalizada com que depa-
ramos no séc. XVI. Também outros autores clássicos, incluindo
Luciano cujo tom levemente irónico agradava naquela época, tive-
ram uma acção importante. Lucrécio também exerceu uma in-
fluência considerável - a suficiente para que Sir Philip Sidney, por
exemplo, dedicasse um capítulo inteiro da sua Arcádia a refutá-
lo 101. Os epicuristas - assim se chamavam os seguidores de Lucré-
cio - também ocupam um lugar de destaque na denúncia do ate-
ísmo feita por Calvino nos Institutos onde observa que: "Outrora
havia alguns e actualmente também não são poucos os que ne-
gam a existência de Deus", o que constitui uma prova significativa
da preocupação que inspirava a crescente falta de fé. Calvino as-
sociava no seu espírito os epicuristas com os filósofos da escola de
Pádua que, a exemplo de Averróis, negavam a imortalidade da
alma - outrora causa de descrença no séc. XVI.

Há ainda a assinalar neste período duas causas de descren-


ça 102.
Em primeiro lugar, aquilo que na época foi designado por
"maquiavelismo" e, em segundo, a guerra que opunha várias cor-

101
Sir Philip Sidney, Arcádia, L. III, Cap. IV.
102
Cf. Buckley, op. cit., Capítulos III e IV.

96
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

rentes cristãs. A acreditar nos escritores franceses e ingleses da


época, o maquiavelismo representou a maior fonte de ateísmo da
Europa Ocidental. Segundo Buckley, Maquiavel foi para os poetas
e teólogos, para os intelectuais e panfletários o arqui-ateu, o de-
mónio que ensinara os homens a usar a religião para os seus pró-
prios fins, que corrompera a França e dera origem à carnificina do
dia de S. Bar-tolomeu, que ensinara os Ingleses simples a serem
ateus e que seria a desgraça da Cristandade se as suas obras não
fossem proibidas ou eficazmente combatidas. Tanto assim que do
seu nome se veio a formar o adjectivo "maquiavélico", comum-
mente empregue como sinónimo de diabólico 103. Na sua obra
Scholemaster, Roger Asham criticou a sua influência em Inglater-
ra. Por sua vez, Gentillet, referindo-se à sua influência em França
lamentava "a miséria e a desgraça dos tempos que atravessamos
que estão tão infestados de ateus e de homens que desprezam
Deus e toda e qualquer religião, que são aqueles que não têm
religião os mais apreciados e hipocritamente chamados homens
prestáveis, pois, estando corrompidos pela impiedade e o ateísmo
e tendo estudado bem Maquiavel que sabem na ponta da língua,
não têm escrúpulos nem consciência"104.

O facto de as lutas que alastraram no séc. XVI entre as inú-


meras seitas religiosas e a guerra entre a Igreja Católica Romana e
as igrejas protestantes que acabavam de aparecer, terem contri-
buído mais para a perda da fé do que constituído um meio de es-
palhar as convicções religiosas, não é tão estranho como à primei-
ra vista pode parecer. O que acontecia é que várias instituições,
todas elas defensoras basicamente do mesmo credo, reinvindica-

103
Op. cit, p. 31.
104
Citado por Buckley, op. cit., p. 41.

97
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

vam para si o monopólio exclusivo da verdade revelada. Quem


podia dizer e com que base, qual delas é que tinha razão? Não
admira, pois, que, ao referir-se à existência de ateus em Pierce
Pennilesse (1592), Thomas Nashe tivesse considerado a polémica
religiosa a principal causa de descrença. Também. Hooker, afirma-
va na sua obra intitulada Laws of Ecclesiastical Politie: "as nossas
lutas só reforçam as suas (dos ateus) posições anti-religiosas" 105.
No seu famoso ensaio "On Atheism", Bacon apontava essas mes-
mas polémicas como causa de ateísmo.

Muitas seitas, tal como por exemplo os Unitários e os Socia-


nistas,. eram em grande parte agnósticos ou praticamente ateís-
tas. Aqueles últimos merecem um interesse particular na medida
em que elevaram o princípio da razão à categoria dum primeiro
princípio supremo, adiantando-se assim ao séc. XVIII e passando a
ocupar um lugar de modo nenhum insignificante na história do
racionalismo. Ao escrever nos meados do séc. XVII sobre essa sei-
ta, então já solidamente estabelecida, Cheynell previa que a ade-
são a esse princípio iria aumentar.

Segundo Buckley, "pensando que estava a levar os argumen-


tos dos Socianistas até aos limites máximos do absurdo, Cheynell
acabou por fazer uma profecia bastante acertada acerca da evolu-
ção do pensamento filosófico durante os cem anos seguintes" 106.
Vale a pena citar aqui as suas palavras: "Os Socianistas tomam por
base o princípio da razão, mantendo-se tão perto dele que negam
os dogmas mais importantes da Pé Cristã porque a Razão não po-
de determinar se são verdadeiras à luz da própria razão... antes da

105
L V, Secção II, citado por Buckley, p. 44.
106
Op. cit, p. 60.

98
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

iluminação do Espírito Santo tal como eles explicam... A Razão fez-


lhes descobrir que o bom Deus tinha destinado todas as nossas
almas imortais à felicidade eterna: se isso bastasse (tal como os
Socianistas pretendem) para receber todas as coisas como 'Princí-
pios de Religião cuja realidade pode ser determinada à luz da Ra-
zão... nesse caso os Filósofos, especialmente os Platonistas esta-
vam numa situação óptima e qualquer homem teria o direito de
gritar Sit anima mea cum Philosophis, nunca podendo ser acusado
de ser um ateu...

Canonizemos pois os pagãos e acrescentemos nos nossos


Missais os nomes de Hermes. Phocyledes, Pitágoras. Sócrates.
Platão, Plotínio, Cícero, Zoroastro. Jâmblico, Epicteto e Simplício.
não nos esquecendo também de incluir Aristóteles, Alexandre ou
Averróis 107.

Antes de estudarmos o Iluminismo, altura em que o pensa-


mento que os Socianistas representam atinge a sua plenitude,
vamos debruçar-nos sobre um acontecimento importante, a que
até aqui só nos referimos de passagem: o desenvolvimento da
ciência que marca a segunda fase do Renascimento e em que as-
senta o mundo moderno e a maior parte das suas atitudes e con-
vicções.

O desenvolvimento da ciência e a filosofia mecanicisto-


materialista
O leitor decerto terá estranhado que ainda aqui não se te-
nha feito qualquer referência ao desenvolvimento da ciência em-
pírica, frequentemente considerado uma das causas de descrença

107
Citado por Bukley, op. dt., pp. 59-60. 87

99
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

neste período. A verdade, porém, é que, tal como cedo se veio a


verificar, embora a nova concepção científica do mundo pudesse
implicar ateísmo e descrença, só nos sécs. XVII e XVIII se chegou
explicitamente a essa conclusão. Numa carta escrita a Edmundo
Spencer nos finais do séc. XVI, Gabriel Harvey manifestava a sua
contrariedade perante a tendência que revelava a nova ciência
para tratar um número cada vez maior de fenómenos que até
então pertenciam ao domínio da Fé. Mas Buckley sustenta que
uma análise da literatura do séc. XVI demonstra que os agnósticos
e ateus só muito raramente recorreram a argumentos baseados
na ciência para apoiar as suas teses. Diz ele: "Uma das coisas que
mais surpreende um aluno que queira estudar a Inglaterra do séc.

XVI, é o facto de a maioria dos escritores e a população de


um modo geral parecerem não ter tido consciência ou se mostra-
rem pouco interessados nas descobertas revolucionárias de pio-
neiros como Magalhães e Copérnico, que marcaram o início de
uma nova era. Não é difícil percorrer esse período e recolher cita-
ções que provam que havia pessoas que estavam perfeitamente
ao par do que se passava. Aliás, a reacção imediata da Santa Sé
contra Galileu e Bruno prova à saciedade que aqueles cujos inte-
resses estavam mais directamente ameaçados acompanhavam os
progressos do "pensamento científico desse tempo. No entanto, a
verdade é que isso não impediu que as novas ideias tardassem a
tornar-se conhecidas da maioria e só muito mais tarde passassem
a ser objecto de uma controvérsia generalizada. Tem havido muita
especulação à volta deste ponto, principalmente da parte daque-
les que não se deram ao trabalho de ler as fontes originais, e pa-
rece efectivamente que a nova ciência teria sido um factor impor-
tante de descrença religiosa pelo menos a partir de 1575. Eu, po-

100
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

rém, tenho uma opinião diferente, baseada no meu conhecimento


da literatura desse período e, portanto, não considero as desco-
bertas científicas uma das causas principais de falta de fé em In-
glaterra antes de 1600" 108. Nem mesmo os primeiros cientistas
retiraram quaisquer conclusões anti-religiosas das suas obras.
Todavia no seu ensaio "On Atheism", escrito em 1597, Francis
Bacon enumera três tipos de ateus: os ateus superficiais e irreve-
rentes; os estadistas ateus e, por último, os ateus científicos. Infe-
lizmente ele pouco diz acerca deste último grupo, mas que já exis-
tia nos finais do séc. XVI, que continuou a aumentar no século
seguinte até se tornar no séc. XVIII uma força que não era possível
ignorar.

Uma das maneiras possíveis de encarar o desenvolvimento


da ciência é considerá-lo uma consequência do desejo ou da ne-
cessidade de encontrar uma explicação mais satisfatória. É esta a
perspectiva de Basil Willey no seu notável estudo sobre os ante-
cedentes da literatura inglesa do séc. XVIII. Segundo Willey, uma
explicação é aquilo que toma uma coisa ou um fenómeno inteligí-
vel, ao permitir a sua reformulação em termos dos interesses e
hipóteses desse tempo. Tal explicação satisfaz, diz ele, "porque
recorre a esse conjunto específico de hipóteses que veio substituir
os de uma época ou de um estado de espírito anteriores" 109. Para
uma explicação ser satisfatória os seus termos têm que parecer
definitivos e não susceptíveis de uma análise ulterior.

Quais eram então as hipóteses que pareciam satisfazer os


espíritos dos cientistas naturais do séc. XVII? Quais as hipóteses

108
Buckley, op. cit., p. 79.
109
Basil Willey, The Seventeenth Century Background, p. 10.

101
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

que elas vieram substituir e que passaram a ser consideradas ina-


ceitáveis? Aristóteles definira quatro tipos de causas em termos
das quais se podia explicar um fenómeno ou uma-coisa. Eram
elas: em primeiro lugar a causa material - a substância de que uma
coisa era feita; em segundo, a causa formal - a ideia ou modelo da
coisa em mente; em terceiro, a causa eficaz - aquela que dá ime-
diatamente origem a um fenómeno ou a uma coisa; e por último,
a causa final - o fim ou objectivo desse fenómeno ou dessa coisa.
Até quase aos finais da Idade Média, focou-se sobretudo a causa
última ou final, ou seja, o fim ou objectivo de um fenómeno ou de
uma coisa, na medida em que está relacionado com o objectivo
supremo do Criador. As explicações eram, portanto, então quase
exclusivamente teleológicas ou teológicas. No séc. XVII a atenção
(e a necessidade) começou a desviar-se das explicações sobrena-
turais das coisas para incidir nas naturais, abandonou-se a causa
final pela eficaz, isto é, os fenómenos deixaram de ser explicados
em função da vontade de Deus para serem explicados pela histó-
ria natural.

Para ilustrar o carácter mutável das explicações, não se po-


de encontrar melhor exemplo do que os cometas. Na Antiguidade
e na Idade Média, eles eram, acima de tudo, sinais que anuncia-
vam a ira ou, na melhor das hipóteses, a vontade de Deus. Ao
chegarmos ao fim do séc. XVII, esta explicação começou, pelo me-
nos no espírito das pessoas cultas, a dar lugar a uma outra formu-
lada em termos naturais. Escrevendo sobre este fenómeno em
1682, Pierre Bayle (1647-1706) ataca a antiga interpretação, pro-
curando mostrar que tal crença é um fruto da imaginação e que
não se podia provar a existência de qualquer relação empírica
entre cometas, catástrofes naturais e a vontade de Deus. Em vez

102
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

da velha teoria, ele apresenta uma totalmente formulada em ter-


mos naturais 110. E vai mesmo mais longe ao expor as implicações
que essa explicação tinha para a teologia.

"Não deveis acreditar no poder dos cometas", diz ele (e aqui


cito a paráfrase que Paul Hazzard fez das palavras de Bayle 111),
"ainda que nações inteiras o atestem, ainda que milhões de pes-
soas o jurem, ainda que seja proclamado por consenso universal".
Assim, se bem que sem intenção de o fazer e embora isso caracte-
rize o espírito daquele tempo, Bayle ataca os principais argumen-
tos utilizados para convencer os ateus da existência de Deus. E
afirma: "Não há maior engano do que supor que uma ideia não
pode ser inteiramente falsa só porque foi transmitida de geração
em geração desde tempos imemoriais". Já não é a autoridade mas
sim a investigação que está na ordem do dia. Por outro lado, acre-
ditava-se também na estabilidade que já admitia uma intervenção
divina e arbitrária. Bayle passa depois a atacar os milagres. Segun-
do ele, os milagres são contrários à razão porque não há nada
mais consentâneo com a grandeza infinita de Deus do que o res-
peito pelas leis da natureza, leis essas que foram por Ele próprio
criadas. Não há nada de mais indigno do que supô-lo capaz de
interferir no seu funcionamento normal. Esta posição viria a gene-
ralizar-se no século seguinte, a representar, talvez involuntaria-
mente, mais um passo no sentido naturalista coerente e ainda a
afastar Deus do mundo, atribuindo-lhe funções que não diferiam
muito daquelas que tinha no sistema aristotélico- de Criador ou

110
Carta a Mladc, Professor da Sorbonne. "Onde se prova à luz de vários argu-
mentos extraídos da Filosofia e da Teologia que os; cometas de modo nenhum
pressagiam desgraças". Citado por Hazzard, | op. cit, p. 186 f.
111
Ibid., p. 188.

103
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Causa Primeira. Ela deu às pessoas a possibilidade de se entrega-


rem a uma observação empírica liberta das explicações de carác-
ter sobrenatural. O mundo transformou-se assim num sistema
racional e independente cuja existência era atribuída a um único
acto criador de Deus mas que podia ser entendida sem necessida-
de de qualquer outra referência ao sobrenatural.

Importa, no entanto, sublinhar que este novo método de


explicar os fenómenos do mundo não nega necessariamente nem
implica sequer a falsidade da antiga explicação teleológica. Levan-
taram-se então novas questões para as quais se encontraram no-
vas respostas, fruto de uma maneira diferente de olhar o mundo e
de diferentes necessidades. Diz Willey: "De uma maneira geral,
pode dizer-se que a necessidade de uma explicação se deve ao
desejo de nos libertarmos do mistério. Essa necessidade tornar-
se-á mais premente sempre que os mistérios se tornem particu-
larmente incómodos como parece ter acontecido no tempo de
Epicuro e também durante o Renascimento.

Nestes momentos críticos, os homens pretendiam explica-


ções 'científicas' porque não queriam continuar a sentir o que lhes
tinham ensinado a sentir sobre a natureza das coisas. Libertar-se
do medo - medo do desconhecido, dos deuses, das estrelas ou do
demónio - e a necessidade de venerar o que se não podia com-
preender eram algumas das necessidades mais urgentes do mun-
do moderno tal como já antes tinham sido da Antiguidade, e foi
precisamente por satisfazer essas necessidades que a explicação
científica foi aceite como revelação da verdade" 112.

112
Op. cit., p. 12.

104
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Mas Willey prossegue: "Não havia apenas uma necessidade


de libertação das obsessões tradicionais. Os homens queriam
também sentir-se à vontade nesse admirável mundo novo cujas
portas lhes tinham sido abertas por Colombo, Copérnico e Galileu
e vê-lo 'controlado, apoiado e agitado por leis de certo modo se-
melhantes às que regiam a razão humana. Deixar de estar à mercê
da natureza e das limitações que um mistério arbitrário impunha
eram benefícios que traziam consigo um admirável poder, o poder
de controlar as forças naturais e de aproveitar nas palavras de
Bacon, 'as ocasiões e necessidades da vida' para o 'alívio da condi-
ção humana'" 113.

Foi aqui que surgiu o espírito moderno a que o teólogo ale-


mão Bonhoeffer, que tanto lutou para explicar esse espírito aos
homens religiosos dos nossos dias, chamou a "maioridade do ho-
mem", Prometeu liberto, e que no séc. XX Swinburne viria a cantar
dizendo: "Glória ao homem nas alturas porque ele é senhor de
todas as coisas".

Voltaremos a abordar este assunto quase no final deste li-


vro, quando nos debruçarmos sobre as questões filosóficas que
foram levantadas na controvérsia sobre crença e descrença. Agora
importa só reter que esta nova concepção e maneira de estar no
mundo foi mais aceite e insinuada do que propriamente discutida.
As velhas maneiras de encarar os fenómenos não foram aberta-
mente refutadas, tendo apenas sido abandonadas e substituídas
por outras, à medida que os interesses e necessidades do homem
foram mudando. Há provas de que actualmente os interesses e
necessidades do homem ocidental estão de novo a mudar e que

113
Op. cit, p. 13.

105
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ele procura outros significados e outras interpretações do mundo


e de si próprio, para além dos que a ciência lhe dá. Mas falaremos
disto mais adiante.

Agora voltemos ao séc. XVII. Durante um certo tempo, até


meados do séc. XVIII, para ser preciso, as diferentes explicações
dadas pela religião e pela ciência coexistiram lado a lado. A dou-
trina da dupla verdade - das verdades da fé e das da razão - salva-
guardava não só a explicação sobrenatural mas também a crença
num mundo que estava por trás ou acima do mundo natural e que
era, se não o verdadeiro reino do homem, pelo menos o seu outro
reino. Tal como dizia Sir Thomas Browne, na sua maioria os pen-
sadores do séc. XVII podiam ser classificados de "grande anfíbios"
que viviam simultaneamente segundo as leis naturais e sobrena-
turais.

Porém, citando Willey de novo, "se é verdade que estava em


curso uma revolução, ela consistia numa transferência geral dos
interesses da metafísica para a física, da contemplação do Ser pa-
ra a observação do Devir" 114, processo que, como já vimos teve o
seu início nos fins da Idade Média e no final do séc. XVII tinha pra-
ticamente terminado.

Neste século, destacam-se três filósofos que tipificam esse


desenvolvimento, cada um à sua maneira. São eles: Descartes
(1596-1650), Hobbes (1588-1679) e Espinoza (1632-1677). Cada
um deles formula a nova filosofia de uma maneira muito própria e
é importante porque representa aquilo que estava a tornar-se a

114
Op. cit., p. 13.

106
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

relação típica entre a nova filosofia e a fé religiosa. Debrucemo-


nos em primeiro lugar sobre Descartes.

"No início, a filosofia cartesiana veio dar o que parecia ser


um apoio extremamente valioso à causa da religião. Mas esta
mesma filosofia continha dentro de si um embrião de irreligião
que o tempo haveria de trazer à luz e que actua, funciona e é deli-
beradamente utilizado para destruir e minar as bases da fé" 115.
Esta opinião sobre o significado último do cartesianismo para a fé
religiosa expressa por Paul Hazzard encontra eco em muitos histo-
riadores do pensamento filosófico116. À primeira vista pode pare-
cer estranha pois o próprio Descartes considerava que a sua filo-
sofia dava precisamente à religião o apoio intelectual de que, no
seu entender, ela tanto necessitava. Para ele, a existência de Deus
era uma certeza tão fácil de demonstrar como a existência do ser
e da alma.

Porém, tal como Hazzard observa, o que caracteriza o pen-


samento cartesiano, mesmo no que toca à religião, é a clareza, o
poder de análise, a investigação e o espírito crítico. Assuntos até
então restritos ao domínio da fé e da experiência começaram a
estar muito perto de se tornarem hipóteses racionais, o que era
muito perigoso e como o tempo viria a demonstrar, se opunha a
que fossem simultaneamente objecto da devoção religiosa 117.
Esta tendência acentuou-se quando Descartes que traçara clara-
mente a distinção entre alma e corpo, invocou Deus, a quem con-

115
Paul Hazzard, op. cit., p. 160.
116
Basil Willey, op. cit., Cap. 5
117
Para um estudo mais profundo deste tema na filosofia da religião contempo-
rânea cf. o ensaio de Alasdair MacIntyre "O Estatuto Lógico da Fé Religiosa" in
Metaphysical Beliefs, Ed. MacIntyre.

107
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

siderava responsável pelo funcionamento harmonioso do conjun-


to formado por essas duas entidades ontológicas diferentes. Não
admira, por isso, que o pensador profundamente religioso que foi
Pascal se empenhasse tão apaixonadamente em distinguir o Deus
de Abraão, Isac e Jacob do Deus dos filósofos.

Parece, portanto, justificar-se a posição de Willey que aliás


reforça a de Hazzard e segundo a qual "o pensamento cartesiano
veio aumentar a tendência crescente para aceitar a visão científica
do mundo como sendo a única verdadeira" opondo-se, assim, às
intuições da poesia e da religião que "advêm de formas de conhe-
cimento inteiramente diferentes". Uma vez banido do reino da
experiência da vida para o da explicação racional, Deus tendia a
desaparecer completamente, ao surgirem hipóteses mais natura-
listas. A história de Newton, tal como é contada pelo Professor C.
A. Coulson, ilustra bem a tendência da nova ciência para invocar
Deus como hipótese nos momentos em que, pelo menos tempo-
rariamente, a explicação científica parecia não bastar. Diz ele: "Ao
tentar aplicar a sua extraordinária descoberta da lei da gravidade
ao maior número possível de problemas diferentes e ao descobrir
que, embora explicasse o movimento da lua à volta da terra e des-
ta à volta do sol, não explicava o movimento rotativo da terra em
torno do seu eixo nem o facto de haver dia e noite, Newton escre-
veu ao Director da sua Universidade em Cambridge, a Universida-
de de Trinity dizendo: 'as rotações diurnas dos planetas não são
uma sequência da gravidade, sendo antes fruto da intervenção
divina'" 118.

118
C. A. Coulson, Science and Christian Belief, pp. 32-33. Depois de ter escrito
esta passagem chamaram a minha atenção para o facto de poder dar origem a

108
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Deus foi assim integrado na nova maneira científica de in-


terpretar os fenómenos do mundo, para acabar por ser abolido –
ou na melhor das hipóteses, relegado para a categoria de Causa
Primeira - quando, adaptando as famosas palavras de Laplace a
Napoleão- "deixou de se fazer sentir a necessidade dessa hipóte-
se". Esta mudança foi fatal para a religião, contribuindo apenas
para o desenvolvimento do naturalismo.

É em Thomas Hobbes, filósofo inglês, que encontramos a


expressão acabada do pensamento naturalista da época; aliás as
implicações ateístas da sua filosofia foram inteiramente apreendi-
das e apreciadas pelos seus contemporâneos.

Escrevendo sobre Hobbes, Richard Peters refere-se a uma


ocasião, quase no fim da vida daquele filósofo, em que este se
sentiu em perigo de morte - e não era a primeira vez que isso
acontecia - e com uma certa razão porque, depois da Praga e do
Grande Fogo de Londres começou-se a procurar uma razão que
explicasse o motivo que teria levado Deus a provocar essas catás-
trofes, principalmente numa nação que tinha sido alvo de uma
prova tão grande da Sua bondade como fora a derrota da Armada
Espanhola. "Não seria natural", pergunta Peters, "que um povo
que dava abrigo a um ateu tão famoso como Thomas Hobbes ti-
vesse que sofrer?" 119 Assim, foi apresentado no Parlamento um
projecto de lei que propunha a abolição do ateísmo, tendo-se
constituído uma Comissão para se pronunciar sobre a principal

interpretações erradas. O principal objectivo de Newton é demonstrar que a


actual constituição do universo não se podia só dever à acção da gravidade par-
tindo de uma distribuição inicialmente uniforme da matéria. Com esse fim, ele
recorre a vários argumentos um dos quais é aquele a que me refiro.
119
Richard Peters, Hobbes, p. 41.

109
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

obra de Hobbes, Leviathan. Hobbes porém, nunca se declarou


abertamente ateu, antes pelo contrário. A sua filosofia era inequi-
vocamente naturalista, ou melhor, materialista. Segundo ele, "o
universo que é o conjunto de todas as coisas que existem, é mate-
rial, ou seja, é um corpo e tem três dimensões, a saber: compri-
mento, largura e profundidade; do mesmo modo, todas as partes
desse corpo são também um corpo e têm também aquelas di-
mensões; por conseguinte, todas as partes do universo são corpos
e tudo o que não é um corpo não faz parte do universo; e como o
universo é tudo, aquilo que não faz parte dele não existe e não
está em alguma parte" 120. Quantificou tudo e, ao fazê-lo, vingou-
se. Uma tal ontologia exclui toda e qualquer relação com o sobre-
natural e o transcendente, com algo tão imaterial como Deus-
opinião que se confirma ao considerarmos os conceitos de
Hobbes sobre a alma e o livre arbítrio que são ambos descritos e
explicados em termos materiais embora a existência do último
seja formalmente negada. A explicação que Hobbes dá da religião,
que por vezes quase coloca em pé de igualdade com a supersti-
ção, não é muito lisonjeira. Como Peters sublinha, Hobbes é um
dos raros pensadores do séc. XVII, época em que a religião estava
ainda inextricavelmente ligada a tudo o resto, que se distancia, a
fim de tentar reflectir abstractamente sobre os seus dogmas. Não
se limitou a separar rigorosamente a teologia e a religião da filoso-
fia - o que só por si, não traria nada de novo - mas foi mais longe,
procurando dar uma explicação naturalista da religião em termos
que hoje designaríamos de psicológicos. Para ele, a religião surge
como consequência da curiosidade do homem, do seu desejo de
conhecer (ou inventar) as causas das coisas especialmente as da

120
Hobbes, Leviathan, Cap. 46.

110
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

boa e da má fortuna, bem como do seu medo do desconhecido.


Segundo ele: "(Em quatro coisas) consiste a semente natural da
religião: acreditar-se em fantasmas, desconhecerem-se as causas
segundas, venerar-se aquilo que se teme e tomarem-se os factos
meramente fortuitos por presságios" 121. A religião do homem é
em certa medida um tributo, embora deslocado, à sua racionali-
dade inata, à sua necessidade de ordem, ao seu desejo de encon-
trar o significado das coisas. Mas, tal como já vimos no caso de
Newton, o problema de se recorrer a uma causa sobrenatural pa-
ra explicar os fenómenos que se passam no mundo reside no facto
de essa causa ter uma tendência inquietante para se tornar supér-
flua quando surge uma explicação naturalista. Hobbes, porém, era
um filósofo demasiado profundo para aceitar que essa explicação
era quanto bastava para que se pudesse pôr de parte a religião.
Assim, passa depois a distinguir aquilo a que chama "verdadeira
religião" da "suprestição". Mas o critério que adopta não é tão
claro como desejaríamos. Diz ele, no capítulo 45 do Leviathan: "O
medo de uma força invisível inventada pelo espírito ou imaginada
a partir de histórias geralmente aceites: RELIGIÃO; não aceites:
SUPERSTIÇÃO. Quando a força imaginada é verdadeiramente aqui-
lo que imaginamos, RELIGIÃO VERDADEIRA". A dificuldade reside
em saber o que Hobbes quer dizer com "verdadeiramente" por
oposição a "falsamente imaginamos" porque noutra ocasião ele
sustenta que o conceito de verdadeiro só se pode aplicar a propo-
sições, nunca aos produtos da nossa imaginação.

A única conclusão que daí podemos tirar é que, para


Hobbes, as convicções religiosas não eram verdadeiras ou falsas
mas sim expressões de devoção baseadas numa fé na pessoa que

121
Op. cit., Cap. 12.

111
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

as defende 122. Esta opinião é reforçada pelo que Hobbes diz sobre
a crença religiosa noutras partes da sua obra. A religião é para ele
quase inteiramente uma questão de fé, sendo, contudo, bem útil
e necessária como instrumento de ordem social. Hobbes defende,
porém, que Deus era a causa do mundo e apresenta no Leviathan
uma versão bastante generalizada da Prova Cosmológica. Para
além de se afirmar que Deus existe, nada se pode dizer sobre a
Sua natureza com base na razão natural. Os superlativos que os
homens têm utilizado para descrever a natureza de Deus - altíssi-
mo, sagrado, sumamente bom, etc.- são simples manifestações da
sua admiração por Ele. Fora isso, só nos resta descrevê-lo negati-
vamente através de adjectivos como infinito e incompreensível e
aceitar a revelação tal como foi interpretada pelo soberano. A
veneração que temos para com as escrituras como veículo da pa-
lavra de Deus é, em última análise, outro aspecto do dever geral
de obedecer à autoridade devidamente constituída 123.

O nosso veredicto final é, portanto, que embora Hobbes não


seja um ateu, em sentido estrito, também não é verdadeiramente
um homem religioso. Crê que a religião é necessária para o bem-
estar da Comunidade e um assunto que pertence ao domínio da
obediência e da fé. Segundo Willey, o seu juízo final sobre a reli-
gião só se pode comparar em ironia com os últimos parágrafos do
ensaio de Hume sobre os milagres. Diz ele: "Com os mistérios da
nossa religião passa-se o mesmo que com certos comprimidos
que se forem engolidos inteiros pelos doentes têm a virtude de os
curar; mas se forem mastigados são quase sempre vomitados sem
que produzam qualquer efeito".

122
R. S. Peters, Hobbes, p. 244. 36 Leviathan, pp. 95-96.
123
Cf. Willey, op. cit., p. 109. 38 Leviathan, Cap. 32.

112
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

A posição de Espinoza é muito mais complexa. Embora ti-


vesse um temperamento intrinsecamente mais religioso do que
Hobbes, as hipóteses de que parte assemelham-se muito as da
nova filosofia do séc. XVII e, se bem que o seu modelo de funcio-
namento do mundo se baseie mais na matemática e na lógica do
que na mecânica, o seu universo não é menos rigidamente de-
terminista do que o de Hobbes, excepto no que diz respeito a cau-
sa e efeito que o seu espírito mais metafísico substitui por razão e
consequente. Para Espinoza, Deus é a razão do mundo; teologi-
camente, é portanto um panteísta. Segundo ele, Deus não é um
postulado metafísico ou quase científico exterior à ordem natural
na relação com o Primeiro Motor. É a ordem natural. Para ele,
Deus e a natureza (Deus Sive Natura) são idênticos.

É apenas neste sentido que Espinoza é um ateu. Ele nega a


transcendência de Deus. Quanto ao resto, o seu sistema começa,
desenvolve-se e termina em Deus. Tudo é visto em termos de
Deus. Deus é a única substância que existe em si e é constituída
por um número infinito de atributos, cada um dos quais expressa
uma essência eterna e infinita. Tudo o que existe é Deus e nada
pode ser ou ser concebido fora d’Ele. Todas as circunstâncias da
nossa experiência - até nós próprios - são modos do Seu Ser. No
entanto, seria um erro ver nisto apenas misticismo porque aquilo
que Espinoza pretende realçar diz respeito à natureza da causa-da
maneira como o mundo funciona; e, pelo menos no seu espírito,
era esta a conclusão a que se chegava partindo de definições
exactas e seguindo uma lógica rigorosa. A distinção vulgar entre
Deus e o mundo, o Criador e a coisa criada, é para Espinoza mais o
fruto de uma interferência da imaginação antropomórfica do que
da razão. Se nos libertarmos de todas as descrições figurativas e

113
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

imagens relacionadas com a palavra "Deus", a razão leva-nos for-


çosamente a concluir que Deus e a natureza não se podem 'distin-
guir. A tradição judaico-cristã e a concepção aristotélica, segundo
as quais Deus é imaginado como um ser superior com uma vonta-
de e objectivos semelhantes aos dos homens, é para Espinoza
uma concepção que lança o teólogo em contradições perpétuas
quanto ao problema do mal, à liberdade de escolha de Deus, etc.
Para Espinoza, o conceito tradicional de Deus é contraditório.

Em lugar da concepção tradicional e imaginativa da relação


de Deus com o mundo, Espinoza postula que há uma substância
que depende de si, ou seja, um último sujeito cujos atributos ou
modificações são todos explicáveis em termos da sua própria na-
tureza, que ele identifica com a natureza concebida como um to-
do. Esta substância única pode, por definição, ser criada por qual-
quer coisa exterior a si própria. A ideia de um criador que não seja
a natureza é, portanto, uma contradição.

Se atacassem a prova monista de Espinoza, a sua resposta


seria apontar para as antinomias que a distinção entre criador e
criação implicam necessariamente. Uma delas é a seguinte: Se
Deus se distingue da natureza que Ele cria, então Deus não é infi-
nito nem todo-poderoso uma vez que existe outra coisa para além
d'Ele, que possui atributos que Ele próprio não possui e que limita,
portanto, o Seu poder e perfeição 124. Ora, não é possível conceber
tal Deus.

Para Espinoza, Deus não é, portanto, a causa transcendente


mas sim a causa imanente e eterna de todas as coisas, que, tal

124
Spinoza Ethics, Pt. I, Prop. IV. 40 Stuart Hampshire, Spinoza, p. 44.

114
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

como Stuart Hampshire diz no seu famoso estudo sobre aquele


filósofo, é apenas, uma vez entendida a identidade de Deus e Na-
tureza, "uma outra maneira de dizer que tudo deve ser explicado
como pertencendo a um único sistema que inclui tudo - a Nature-
za - e que nenhuma causa (nem mesmo a Causa Primeira) pode
ser concebida como algo exterior ou independente da ordem da
Natureza".

Ao negar assim ao mesmo tempo a noção duma Causa Pri-


meira transcendente e o modelo mecanicisto-materialista de fun-
cionamento do universo, Espinoza estava a atacar as bases do
compromisso entre fé e razão, entre teologia e ciência que não só
vigorava nos seus dias como viria a ser o fulcro do compromisso
deísta do século seguinte.

Antes de terminarmos a nossa análise de Espinoza quere-


mos aqui referir a sua descrição de vida boa como "o amor inte-
lectual de Deus". Também neste caso alguns pensadores, como
por exemplo Coleridge e Shelley, iriam dar um significado místico
a uma frase que o não tinha como se conclui ao ler a proposição
XXIV, parte V da Ética onde é explicada em termos simples e cla-
ros. Diz a proposição: "Quanto melhor compreendermos as coisas
individuais, melhor compreenderemos Deus". Segundo Hamps-
hire, "compreender Deus quer dizer compreender a Natureza, que
se cria a si própria e é criada por si própria; no terceiro plano do
conhecimento intuitivo - que é o mais elevado - vê-se que todo o
pormenor individual do mundo natural está relacionado com a
estrutura global da Natureza; quanto mais prazer sentirmos como
filósofos naturalistas ao estabelecer rigorosamente a ordem das

115
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

causas naturais, tanto mais mereceremos que se diga de nós que


temos um amor intelectual a Deus"125.

Chegamos, assim ao fim do nosso estudo sobre a controvér-


sia sobre crença e descrença no séc. XVII. Não era difícil perceber
quais as questões que estavam em jogo nos finais do séc. XVII.
Segundo as palavras de Pierre Bayle, "os defensores 'da Razão e os
defensores da Religião combatiam desesperadamente para con-
quistar as almas dos homens, defrontando-se numa luta que toda
a Europa intelectual acompanhava" 126. Era uma batalha que iria
continuar durante o Iluminismo.

125
Op. cit., p. 169.
126
Paul Hazzard, op. cit., p. 9.

116
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Terceira Parte
O ATEÍSMO MODERNO

117
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo VIII: O ILUMINISMO

"A maioridade do homem". Como já tive oportunidade de


referir, era assim que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que
morreu tragicamente às mãos da Gestapo no fim da II Guerra
Mundial, descrevia o espírito moderno. Inicialmente, porém, foi a
resposta que Kant deu quando, em fins do séc. XVIII, reflectiu so-
bre o significado desse século e o termo utilizado para o designar -
Aufklärung, Humanismo. Ao responder à pergunta, Was ist Auf-
klãrung?, Kant dizia que o séc. XVIII correspondera a uma fase de
crescimento no desenvolvimento do homem, em que este se li-
bertara de infantilidades e tutelas, tornando-se independente e,
sobretudo, em que tentara servir-se da razão e pensar por si pró-
prio. O séc. XVIII é, por excelência, a Idade da Razão. Se o séc. XVII
foi o século em que se travou a batalha entre a verdade científica
e outros tipos de verdade, em detrimento de todas aquelas ver-
dades que não fossem a verdade científica, o séc. XVIII foi o perío-
do em que os resultados dessa batalha se fizeram sentir em todos
os planos da vida; em que se tentou submeter não só as formas

118
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

exteriores mas todas as formas da natureza e, sobretudo, a natu-


reza humana, ao primado da razão e do modelo científico. A lei do
homem, a sua moral, a sua arte e a sua religião, bem como a pró-
pria sociedade, ficarão estruturadas duma vez para sempre, ou
pelo menos assim se espera, numa base científica e racional, ou
seja, de acordo com a natureza, o que para o séc. XVIII era prati-
camente a mesma coisa. Razão, Lei, Natureza. É destes três con-
ceitos fundamentais que depende qualquer tentativa de compre-
ensão do Iluminismo. A nova filosofia dos sécs. XVI e XVII pusera a
natureza a funcionar de acordo com a Lei, criando assim a ciência
da natureza. Por que não haveriam a sociedade, a moral e a pró-
pria religião de ser vistas duma forma semelhante? Havia que pôr
termo à autoridade e à superstição. Como Voltaire (1694-1778)
viria mais tarde a escrever: "É certo que o conhecimento da natu-
reza, a atitude céptica em relação a velhas fábulas que dão pelo
nome de história, a metafísica sã liberta dos absurdos das escolas,
são fruto desse século em que a razão atingiu a perfeição".

O que é que tudo isto implicava para a religião? Como já vi-


mos, o cepticismo quanto à concepção religiosa do mundo não
era novidade nenhuma. Segundo Paul Hazzard, já Pierre Bayle, nos
fins do século anterior "apresentara, com uma persistência inque-
brantável, a sua solução última que leva à conclusão de que é não
possível ter a certeza absoluta de nada" 127. No seu ensaio sobre os
"Cometas", também já aqui referido, afirmara ainda que "só um
preconceito generalizado nos pode fazer pensar que o ateísmo é
um estado terrível". E a influência de Bayle continuava a fazer-se
sentir, como P. Hazzard demonstra no estudo intitulado European

127
Op. cit., p. 135.

119
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Thought in the Eighteenth Century 128. Na Bibliothèque Germani-


que, publicada em 1729, afirmava-se ser um facto que "os traba-
lhos de P. Bayle perturbaram um grande número de leitores e
nuseram em questão alguns dos princípios mais enraizados da
moral e da religião". Refutar Bayle era considerado um acto de
devoção, e os ataques contra ele eram tão virulentos três auartos
de século depois da sua morte como o haviam sido enquanto vive-
ra. Poucos são os que conseguem igualar a sua influência nos
anais do cepticismo. No séc. XVIII. os discípulos de Bayle retoma-
ram o ataque deste contra a religião, bem como os seus argumen-
tos de que a religião e a verdade são incompatíveis e de que reli-
gião e moral não estão necessariamente ligadas. Voltaire, por seu
turno, ressuscitou o argumento da redução ao absurdo de Bayle,
segundo o qual aquilo que não podia ser explicado pela razão de-
via ser explicado pela religião, por mais absurda que fosse a expli-
cação podendo, portanto, ser considerado um ponto de doutrina
digno de respeito.

Todavia, a influência de Bayle desvaneceu-se na última parte


do século, pois por essa altura grande parte das posições que de-
fendera tinham-se tornado já lugares-comuns e os espíritos da
época estavam mais interessados em construir do que em destru-
ir. A batalha terminara. À Ortodoxia derrotada pouco restava.
Aqueles que não eram ateus consumados tinham abandonado a
fé, explicando a pouca religião que lhes restava em termos racio-
nais. Nos casos em que se admitia a revelação tentava-se, igual-
mente, conciliá-la com a razão.

128
O Pensamento Europeu no Séc. XVIII. (N. do T.) 2 Cf. especialmente, p. 45 ff.

120
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Se no séc. XVII a descrença era "ocultada e reprimida e, por


assim dizer, temperada por um resto de respeito pelo Cristianis-
mo" 129, no séc. XVIII era declarada, revelando na maior parte dos
casos hostilidade não só em relação à religião cristã, como a todas
as religiões. Na realidade, pouca distinção se fazia entre elas. Co-
mo veremos adiante, isto aplica-se também aos defensores da
religião. A religião natural procurou determinar aquilo que era
comum a todas as religiões, pois não podia preocupar-se com o
que cada uma delas reivindicava para si.

Ao escrever sobre o conflito entre a razão e a religião no


séc. XVIII, P. Hazzard disse que ele tivera início com a crítica à or-
dem social existente, mas que os adversários da religião não tar-
daram "em fazer abertamente uma acusação de uma ousadia
nunca vista - o réu era levado a tribunal e quem havia de ser ele
senão o próprio Cristo? O séc. XVIII exigia algo mais do que uma
reforma: o derrubamento da Cruz, a rejeição total da ideia de que
o homem alguma vez recebera uma mensagem directa de Deus
ou, por outras palavras, da Revelação. Aquilo que os críticos da
religião queriam à viva força destruir era a interpretação religiosa
da vida" 130.

Em seu lugar poriam a razão e a natureza - e uma lei moral


liberta da teologia. Hazzard afirma ter sido esta a causa célebre da
época e que as questões à volta da qual girou foram apresentadas
sem rodeios. Deus e a alma, ou não? Era esta a pergunta que to-
dos faziam.

129
D. Cairns, Unbelief in the Eighteenth Century, Cap. II sobre o séc. XVII, p. 42.
105
130
Hazzard, European Thought in the Eighteenth Century, p. 8. 5 B. Willey, The
Eighteenth Century Background, p. 47.

121
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

A crítica da religião era também uma crítica moral. Embora


houvesse quem aceitasse aquilo a que Willey chamou um "opti-
mismo metafísico"5 e quem, como Leibnitz (1646-1716) tentasse
justificar a ordem existente como "o melhor dos mundos possí-
vel", houve também quem argumentasse que se o teísmo era ver-
dade então o universo era pouco melhor do que uma piada de
mau gosto. Foi o caso do padre apóstata Jean Meslier, cura de
Etrepigny em Champagne, que morreu em 1729, deixando um
testamento em que declarava não só o seu ateísmo como o seu
ódio visceral pela religião, causa de todos os males da humanida-
de e responsável pelo maior logro de que ela tem sido vítima. Foi
ele quem disse que os males que afligem o homem só poderiam
ser curados quando "o último rei tivesse sido enforcado com as
entranhas do último padre". A princípio Meslier não era um ateu
mas um blasfemo. Nos seus momentos mais calmos, porém, ad-
mitia que o Deus-monstro que invectivava não podia, efectiva-
mente, existir, facto que o entristecia e deprimia como parece,
mais tarde ter entristecido e derrimido John Stuart Mill e Bertrand
Russell, o que tirou força à sua atitude de revolta. O desafio pro-
metaico não se coadunava com a razão. Viria, no entanto, a ser
essa a posição dominante do ateísmo romântico do século seguin-
te.

Embora no criticismo do séc. XVIII estivesse implícita uma


crítica moral, ele teve um carácter essencialmente naturalista gi-
rando à volta da ideia da revelação.

Enquanto que épocas anteriores, procurando resolver as


questões levantadas pelo naturalismo, aceitaram a doutrina da
dupla verdade - religião e fé por um lado, e conhecimento por

122
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

outro - o séc. XVIII rejeitou esta dicotomia. Uma religião que não
pudesse ser] comprovada pela razão não era religião mas apenas
superstição. Neste aspecto os livres-pensadores e, na maioria dos
casos, os teólogos, estavam de acordo.

Os adversários da revelação procuraram demonstrar dois


pontos: que, por princípio, a revelação era uma coisa que não po-
dia existir e que, historicamente, não existira de facto. Para eles, o
primeiro era evidente na medida em que a revelação implicava
algo de miraculoso e, tal como a razão demonstrara já pela filoso-
fia científica, os milagres não existiam. Quanto ao segundo, de-
monstravam-no baseando-se na pouca confiança que inspiravam
os registos históricos.

Eram estes os dois aspectos do argumento com que se ata-


cava a revelação em toda a Europa, incluindo Inglaterra. Toland,
Collins, Thomas Gordon, Wolston, Middleton, Tindal, Thomas
Chubb, Thomas Morgan e Peter Annet estavam de acordo sobre
este ponto e limitei-me a referir apenas alguns dos nomes mais
importantes. No entanto, nem todos eram ateus. Nas obras intitu-
ladas, respectivamente, Christianity Not Mysterious e Christianity
As Old As Creation 131, Toland e Tindal defenderam ambos uma
forma de Cristianismo puramente moralista divorciada da revela-
ção que assentava na razão e na lei natural. Porém, tal como os
livre-pensadores, atacaram ambos a revelação. O argumento de
Tindal é o mais interessante e viria a ressurgir a partir de meados
do século quando o livre-pensamento inglês começou a difundir-
se em França e, sobretudo, na Alemanha. A religião, defendia ele,

131
O Cristianismo não contém Mistérios e O Cristianismo é tão antigo como a
Criação. (N. do T.)

123
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

deve basear-se na lei moral à qual Deus se deve sujeitar, pois se


assim não for estará a agir apenas por capricho, o que é impensá-
vel. Por outro lado, se Deus age de acordo com a lei moral, a reve-
lação deixa de ser necessária, uma vez que o homem poderá des-
cobrir essa lei e reconhecer ser seu dever obedecer-lhe, servindo-
se da sua razão natural.

O maior livre-pensador francês foi, sem dúvida, Voltaire. Tal


como Toland e Tindal, Voltaire não era um ateu mas um deísta
que sofreu grande influência dos deístas ingleses e ainda da filoso-
fia newtoniana. Os seus críticos mais acerbos diziam: "Voltaire é
um hipócrita pois acredita em Deus". Aquilo que ele atacava e que
era também o alvo da sua sátira e ironia que, não sendo de uma
maneira geral mordazes, não deixavam de ser penetrantes - não
era, como muitas vezes se pensa, o teísmo, nem a religião, nem
sequer o cristianismo a não ser nos seus aspectos mais ortodoxos
e institucionalizados, mas sim aquilo a que se chama "a ortodoxia
privilegiada e opressora".

O deísmo de Voltaire é característico dos princípios do sécu-


lo, sobretudo na medida em que reflectia as opiniões científicas
da época. Como já se disse, Voltaire era um seguidor de Newton.
e a física newtoniana substituíra praticamente a concepção do
mundo cartesiana não só em Inglaterra como em toda a Europa.
As novas descobertas da biologia, que já em fins do séc. XVII havi-
am começado a lançar dúvidas sobre o mecanicismo e materialis-
mo que implicava o dualismo cartesiano, contribuíram grande-
mente para essa mudança. Ambas essas ciências levantavam dú-
vidas quanto ao método dedutivo de Descartes, segundo o qual a
organização do mundo se podia deduzir a partir de primeiros prin-

124
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

cípios, e quanto à noção cartesiana de percepções claras e distin-


tas. Ambas demonstrarem por meio de experiências originais que
o mundo não era aquilo que a filosofia cartesiana pretendia, o que
teve consequências importantes. “Para Descartes, tal como para a
maioria das pessoas no séc. XVII. a ciência, a teologia e a metafísi-
ca eram maneiras intimamente ligadas de encarar uma experiên-
cia humana única".

"A filosofia cartesiana partira do princípio de que os homens


eram dotados do conhecimento de determinados princípios fun-
damentais cuja autenticidade era garantida por Deus. Mediante a
aplicação de uma argumentação lógica a essas verdades aceites,
era possível atingir-se um certo entendimento do mundo da expe-
riência a fim de se descobrir não só leis científicas, como a razão
que as tornava necessárias. Locke... desacreditara todo o conceito
de ideias inatas que substituíra por simples impressões de sensa-
ção humanas. Por seu turno, o novo cientista partia de experiên-
cias concretas, sem pretender com isso confirmar o resultado do
raciocínio dedutivo como fizera Descartes. Daí adivinha, ou pare-
cia advir, a negação da existência de causas últimas para além da
capacidade de conhecimento do homem que, a partir desse mo-
mento, passou a mover-se num mundo baseado em leis, sem es-
perança de alcançar as razões em que se fundamentavam" 132. O
conhecimento passou, então, a depender das percepções dos
sentidos tornando-se, portanto, subjectivo. O que as coisas eram
em si e qual a sua relação com o Todo e com Deus era inescrutá-
vel - opinião defendida por Condillac no seu Tratado das Sensa-
ções (1754) e ainda por Réaumur e Voltaire. Todos os "sistemas"

132
Norman Hampson, Pelican History of European Thought, Vol. 4, The Englight-
enment, p. 75.

125
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

eram suspeitos. Mas a substituição da concepção do mundo car-


tesiana pela newtoniana não significou apenas o fim da procura
das causas das causas. Como já dissemos num capítulo anterior 133,
o universo newtoniano não dependia apenas dum acto de Criação,
mas também de uma intervenção divina constante.

Enquanto que a filosofia cartesiana tendera para uma inter-


pretação mecanicista do universo físico, a filosofia newtoniana
realçava a impossibilidade do homem alcançar o conhecimento
das causas últimas e o facto do mundo estar dependente duma
ordenação divina. Era sobretudo esta noção que agradava a Vol-
taire e aos deístas ingleses e aquela que apresentaram insisten-
temente como argumento contra os ateus que, como aquele filó-
sofo dizia, haviam sido induzidos em erro pelos cartesianos. Nisto
foram grandemente ajudados por aqueles que viam na mão de
Deus uma Providência benéfica permanentemente preocupada
em ordenar a natureza para deleite e conforto do homem, como
era o caso do Abade Pluche.

Segundo Hampson, teria sido isto que, por algum tempo, fez
passar para segundo plano alguns dos discípulos mais materialis-
tas de Descartes, nomeadamente Hobbes e, de tal maneira que
"os cientistas pareciam ter relegado o ateísmo para o sótão da
especulação clássica então ultrapassada" 134. O ateísmo viria no
entanto a ressurgir, e a partir de meados do século haveria de
desenvolver-se e florescer de um modo que não tinha preceden-
tes. Falemos, portanto, daqueles cujo pensamento seguiu uma
linha inteiramente secular e que contribuíram para a evolução e

133
Cf. supra, p. 94.
134
Op. cit., p. 84.

126
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

fortalecimento da doutrina naturalista que nos propusemos estu-


dar.

Hampson resume a situação a partir de meados do século


da seguinte maneira: "As tréguas entre a ciência e a religião cons-
tituíram um estímulo para que se procurasse alcançar o conheci-
mento, apesar das advertências que os jansenistas franceses fazi-
am na publicação clandestina Nouvelles Ecclesiastiques. Tendo
abandonado a procura de implicações metafísicas os cientistas
contentavam-se, como Réaumur, com observar e registar. As suas
descobertas eram aclamadas pelos teólogos que viam nelas um
meio de defenderem a doutrina da Providência. A posição dos
católicos, dos protestantes e dos deístas em relação ao valor da
experiência era idêntica, pois para os cristãos o pecado original
deixara de ser o fulcro da doutrina cristã e os deístas estavam de
acordo em que os céus proclamavam a glória de Deus. Foi nesta
atmosfera que a investigação científica começou a ser levada a
cabo de uma forma intensiva e se emancipou 'definitivamente da
teologia" 135.

Porém, o mundo estático dos cientistas dos meados do séc.


XVIII, cujo princípio se devia a um acto de criação divina que dera
à paisagem terrestre e às espécies vegetais e animais uma forma
muito semelhante à que tinham e que tanto impressionara Voltai-
re, como sinal da providência divina, não iria sobreviver muito
tempo. Já em 1764 vemos Voltaire argumentar com aqueles que,
tal como os atomistas da Antiguidade, sustentavam que a matéria
e o movimento, desde que dispusessem de um tempo infinito,
poderiam produzir todas as combinações possíveis de fenómenos

135
Op. cit., p. 85.

127
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

incluindo aquela que então existia - argumento que o céptico Fílon


apresenta na obra dramática de Hume, Dialogues on Natural Reli-
gion (1779)-e ao fazê-lo Voltaire estava na defensiva.

A partir de 1740 assiste-se ao aparecimento de novas ideias


científicas que põem em questão a imutabilidade da ordem natu-
ral e da providência benéfica. Não dispondo de muito mais pontos
de apoio, o teísmo do séc. XVIII estava em riscos de se desmoro-
nar. Caberia ao séc. XIX apresentar novos conceitos em que o te-
ísmo se pudesse basear.

Foram várias as descobertas científicas que abalaram os


pressupostos fundamentais da concepção do mundo existente
nos princípios do séc. XVIII. As mais importantes foram as que se
deram ao domínio da biologia e que levaram a que se pusesse de
parte a velha doutrina genética da pré-existência, que explicava a
hereditariedade segundo a teoria de que a semente de todos os
seres vivos fora criada no princípio do mundo e que a partir daí
fora simplesmente transmitida de geração em geração. Em sua
substituição surgiu a teoria da geração espontânea que implicava
a atribuição à matéria de uma forma de vida e, ainda, que a orga-
nização espontânea da matéria podia dar origem a seres sensíveis
e inteligentes. Como Buffon disse: "Em vez de serem um grau me-
tafísico de existência, a vida e o movimento são antes proprieda-
des físicas da matéria". Com esta teoria deixou de ser necessário
partir-se do princípio da imutabilidade das espécies. A estabilidade
de uma ordem imutável de origem divina foi rejeitada a favor dum
novo conceito segundo o qual a vida estava em constante evolu-
ção.

128
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

O pressuposto newtoniano da intervenção divina foi o outro


conceito a ser alvo de contestação na época. D'Alembert, por
exemplo, afirmava que era possível explicar a conservação do mo-
vimento sem recorrer a tal intervenção. Demonstrou-se que irre-
gularidades que Newton considera cumulativas eram periódicas e
continham em si os elementos necessários à sua própria correc-
ção - exemplo significativo da resolução de um problema por via
naturalista mediante o seu enquadramento no contexto da época.
A grande época da geologia, que haveria de surgir no século se-
guinte, viria a a reforçar este ponto. Mas começara já a pôr-se em
questão a escala de tempo da Bíblia. A ciência começou assim a
dispensar Deus como factor necessário para explicar o universo. O
naturalismo começara a desenvolver-se verdadeiramente e os
espíritos reflexivos não tardaram em tirar conclusões de carácter
ateísta. Foi, por exemplo, o caso de Diderot (1713-1784) e do Ba-
rão d'Holbach (1723-1789).

Diderot, que colaborou com d'Alembert na feitura daquele


monumento ao pensamento do séc. XVIII, A Enciclopédia, era um
ateu declarado que se servia dos argumentos da ciência para de-
fender a sua posição. No seu livro, Interpretation de la Nature
(1754), por exemplo, disse que se a gravitação era inerente à ma-
téria, então o caos não podia existir, uma vez que a matéria se
organizaria automaticamente, argumento que Hume viria a utilizar
com algumas alterações na sua obra Dialogues, e que o ateu mais
famoso da época, o Barão d'Holbach, viria a desenvolver num sen-
tido mais moderno. Diria ele mais tarde que na natureza não exis-
te, efectivamente, ordem nem desordem, mas apenas aquilo que
se nos apresenta como tal. Chamamos "desordem" àquilo que nos
perturba ou nos aflige, mas é tudo ordem pois tudo resulta de

129
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

uma causa constante. Kant viria mais tarde a dar uma forma defi-
nitiva às afirmações de Holbach ao dizer que a estrutura metafísi-
ca dos nossos espíritos não nos permite ordenar o mundo de ou-
tra forma que não seja aquela como o fazemos. Mas voltemos a
Diderot que tinha a reputação de ser um deísta no campo e um
ateu em Paris.

Diderot também ressuscitou o velho argumento de Lucrécio


de que a ordem que se encontra na natureza se explica pelos
inúmeros acasos que advêm dos diversos movimentos das partes
que o compõem desde toda a eternidade e que acabaram por
levar à organização actual. Começou como deísta, mas não tardou
em ultrapassar o deísmo e tornar-se um ateu. Se não acreditamos
nos deuses, dizia ele, por que havemos apenas de os banir para os
intermúndios? Por que não negá-los abertamente? E foi isto que
fez. Tornou-se um ateu acreditando que os problemas do mundo
se resolveriam se apenas se pudesse obliterar a ideia de Deus.
Como Hazzard disse, "estava cheio de ira, amargura e cólera con-
tra Deus; se não veja-se a sua história do misantropo que se es-
condeu numa caverna e meditou longa e profundamente acerca
daquilo que poderia fazer para se vingar da raça humana. Acabou
por sair da caverna a gritar Deus! Deus! 'A sua voz ressoou dum
pólo ao outro e os homens começaram a discutir, a odiar-se e a
cortar os pescoços uns dos outros. E desde o momento em que
esse nome odioso foi pronunciado nunca mais deixaram de o fazer
e continuarão a agir do mesmo modo até que o processo dos
tempos esteja cumprido'." 136

136
Hazzard, European Thought in the Eighteenth Century, 407-408. 112

130
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Todavia, é com o Barão d'Holbach que as tendências verda-


deiramente ateístas do pensamento do séc. XVIII virão a ser for-
muladas em termos filosóficos num primeiro passo em direcção à
argumentação naturalista, do século seguinte. Foi à sua mesa que
David Hume] confessou nunca ter conhecido um ateu, ao que lhe-
retorquiram estar nesse momento na companhia de dezassete 137.
Holbach é talvez o primeiro ateu inequivocamente declarado da
tradição ocidental. Nele vemos as consequências lógicas dos pres-
supostos da nova filosofia científica levadas à sua primeira conclu-
são explícita e, assim, nele podemos ver o que significa "A Nature-
za" depois de eliminadas todas as conotações religiosas 138. Para
Holbach a Natureza, ou Universo, não passa de matéria em movi-
mento. Não se deverá, no entanto, considerar a matéria inerte e
incapaz de movimento a não ser que seja movida de fora, pois a
matéria está em constante movimento. Ela é totalmente prede-
terminada - tal como o homem que faz igualmente parte da natu-
reza – uma conclusão de que se fez eco um outro ateu francês, La
Mettrie, no seu livro L’Homme Machine. Holbach ataca aberta-
mente a religião como podemos ver na sua obra The System of
Nature (1770). Nela se fazem três acusações principais à religião.
Em primeiro lugar, o facto de constituir uma base errada para a
moral, e neste aspecto Holbach antecipa-se a um dos argumentos
preferidos do nosso século, ou seja, que é perigoso fazer da reli-
gião os alicerces da moral pois se esses alicerces se desmorona-
rem, a moral corre o risco de se desmoronar com eles. A sua se-
gunda crítica é que a religião não é científica e que os seus ensi-

137
Burton, Life of Hume, Vol. II, p. 220.
138
Pelo menos na primeira parte de The System of Nature. Para o fim encontra-
mos a conclusão lírica que tanto marcou Shelley e que mostra que este não se
libertara inteiramente do sentimento religioso.

131
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

namentos se opõem à verdade científica. Por último, Holbach sus-


tenta que a religião é o suporte principal de uma ordem social
corrupta (e aqui antecipa-se à crítica de Marx) e que a sua doutri-
na da vida depois da morte desvia a nossa atenção dos males pre-
sentes.

Dá ainda uma explicação naturalista da origem da religião


segundo a qual esta advém do medo e da ignorância- medo do
desconhecido e ignorância das causas naturais. Ao contestar o
teólogo inglês Samuel Clarke, cujo tratado intitulado The Being
and Attributes of God era uma obra obrigatória dos apologistas
cristãos da época, Holbach afirma, antecipando-se desta vez ao
precursor de Marx, Feuerbach, que tudo aquilo que Clarke diz de
Deus se aplica mais à Natureza que é realmente eterna, infinita e
única. Condena, no entanto, o panteísmo de Spinoza. Nos nossos
dias verificou-se algo de semelhante em relação ao dualismo da
alma e do corpo. Segundo o Dr.

Ramsey, Bispo de Durham, há um "parentesco lógico" entre


Deus e a alma 139, e portanto não nos devemos surpreeender que
ao dualismo de Deus e do Mundo se siga o da Alma e do Corpo.
Mas voltemos a Hoibach. Para ele a Natureza é um fim em si
mesma e o seu único objectivo é ser.

Holbach não quer ter nada a ver com a teleologia. Então e a


moral? É esta a principal preocupação de Holbach que procura
criar bases mais sólidas para a moral do que aquela que a religião
representara até então. Para ele a base da moral é social devendo
provir de sentimentos de auto- respeito. Diz ele: "Pergunta-se que

139
I. T. Ramsey, Religious Language, p .38.

132
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

motivos poderá ter um ateu para fazer o bem. A vontade de dar


satisfação a si e aos outros; de viver feliz e em paz; de conquistar
o afecto e estima dos homens, cuja existência é muito mais certa
e cujas disposições se podem conhecer muito melhor do que as
dum ser incognoscível por natureza. 'Poderá aquele que não teme
os deuses temer alguma coisa?' Pode temer os homens; pode
temer o desprezo, a desonra e os castigos da lei; e pode temer-se
a si mesmo e ao remorso que sentem todos aqueles que têm
consciência de ter chamado sobre si e merecido o ódio dos seus
semelhantes..." 140 O passado da religião no domínio da moral, diz
Holbach, está longe de ser meritório, observação que lhe dá um
enorme campo de acção de que ele não deixa de se servir. Por
outro lado, aponta ateus - Epicuro, Lucrécio, Bodin, Spinoza e
Hobbes - que eram homens pacíficos e estudiosos. "Hobbes não
fez correr sangue nenhum em Inglaterra", escreve ele, "ao passo
que durante a sua vida o fanatismo religioso levou à condenação e
à morte dum rei" 141. Todavia, o ateísmo não é um credo para um
povo, pelo menos por enquanto, portanto não há nada a recear.
Como autor esclarecido que é, Holbach afirma estar a escrever
para a posteridade e não para a sua época, para quem as suas

140
D'Holbach, Good Sense (1772), Caps. CLXVII e CLXVIII. Citado por Margaret
Knight, Humanist Anthology, p. 46.
141
Talvez valha a pena referir que Patrick Nowell-Smith explica os crimes cometi-
dos em nome da religião da seguinte maneira: "E, na prática, o objectivista (em
ética) está, como seria de esperar, numa posição muito pior no que respeita à
resolução dos conflitos morais. Atribui, necessariamente, a recusa da verdade por
parte dos seus adversários a uma perversidade intencional; sustenta que, apesar
dessa recusa, os seus adversários não podem deixar de ver constantemente a
verdade pelo que precisam não de que se argumente com eles mas de ser casti-
gados... a teoria objectivista, longe de minimizar o emprego da força para resol-
ver discussões sobre moral, pode ser e tem sido frequentemente utilizada para o
justificar. Não é por acaso que as perseguições religiosas são monopólio dos
defensores da teoria objectivista." Ethics, pp. 4647.

133
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

doutrina ateístas eram demasiado avançadas. Quando analisar-


mos, no capítulo seguinte, o ateísmo do séc. XIX e recordarmos os
maus presságios de Nietzsche quanto às consequências morais do
ateísmo, deveremos ter presente o optimismo setecentista de
Holbach.

Temos de considerar dois outros pensadores do séc. XIX, um


dos quais é um escocês e o outro um alemão de origem escocesa,
se quisermos compreender inteiramente a evolução do Natura-
lismo e a posição que este tem actualmente em relação à religião.
São eles David Hume (1711-1776) e Emanuel Kant (1724-1804).

Hume é um céptico na tradição clássica. Ainda hoje a sua in-


fluência é considerável e a "revolução" que se deu na filosofia no
nosso século considera ter sido ele o seu promotor 142. É antes de
mais um empirista na medida em que sustenta, tal como o seu
precursor Locke, que tudo aquilo que sabem provém das sensa-
ções. As impressões e as ideias que se formam a partir delas são
os postulados fundamentais da sua epistemologia. Contudo, ao
contrário de Locke, Hume não admite qualquer via pela qual se
possa alcançar o conhecimento religioso. Aceita o pressuposto do
seu século de que a crença em Deus é uma hipótese que se pode
provar racionalmente, mas sustenta que essa hipótese ainda não
fora provada. Escreveu numerosos trabalhos sobre religião que
culminaram com a sua obra Dialogues Concerning Natural Reli-
gion.

142
Cf. A. J. Ayer, Language, Truth and Logic, p. 31, e Gilbert Ryle (Ed.) The Revolu-
tion in Philosophy, Passim.

134
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

É difícil determinar qual é a tese desta obra, mas o Prof.


Norman Kemp Smith, no estudo que fez sobre Hume e a relação
deste com os Diálogos, demonstra claramente que a posição do
céptico Fílon, um dos personagens, é a que mais se aproxima da
do próprio Hume, facto que outros trabalhos seus e testemunhos
de pessoas que o conheciam confirmam 143. Nos Diálogos, Fílon
refere uma a uma as provas tradicionais da existência de Deus,
incluindo o Argumento Teleológico, e tenta demonstrar que ainda
não se chegou a conclusão nenhuma. Aquilo que ele próprio con-
clui, numa atitude muito pouco frequente no séc. XVIII, é que a
única coisa a que se pode recorrer é à fé que, como vimos, é tam-
bém uma atitude característica do cepticismo clássico. Que Hume
levava isto muito a sério, embora talvez um pouco superficialmen-
te, parece poder confirmar-se pela forma como contestou o ate-
ísmo declarado que se lhe deparou em Paris - à custa de ser ridi-
cularizado devido aos seus "preconceitos" - e pela observação que
se diz ter feito perante a dor e comoção pela morte de sua mãe ao
ser acusado de ter abandonado a fé cristã: "Embora eu especule
para entretenimento do mundo culto e metafísico, aquilo que
penso sobre outras coisas não é muito diferente do que pensa a
maioria das pessoas"18.

Se quiséssemos analisar pormenorizadamente os argumen-


tos que Hume efectivamente utilizou contra a racionalidade do
teísmo, teríamos de nos afastar muito do objectivo deste estudo.
Há, no entanto, dois ou três que importa referir. Em primeiro lu-
gar a análise da causalidade feita por Hume e as consequências

143
N. Kemp Smith, Introdução à sua edição de Dialogues Concerning Natural
Religion de Hume. 18 Citado por D. Cairns, Unbelief in the Eighteenth Century, p.
91.

135
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

que teve para o Argumento Cosmológico da existência de Deus;


em segundo lugar, a sua crítica da teleologia e do Argumento Te-
leológico; e, por último, a sua argumentação contra os milagres.

Na sua formulação clássica, e equivalendo à primeira das


cinco vias de S. Tomás, o Argumento Cosmológico afirmava que a
fim de se romper a cadeia dum retrocesso infinito de agentes cau-
sais seria necessário postular uma primeira causa não-causada do
mundo. É evidente que falta neste argumento uma outra premis-
sa, que até Hume foi tomada como evidente, de que todos os
acontecimentos têm uma causa. Hume, porém, analisa a causali-
dade empiricamente em termos daquilo a que chama "sucessão
constante". Dizer que A é causa de B é apenas dizer que sempre
que observámos A verificámos que era seguido de B, e vice-versa.
Podemos, portanto, dizer que sempre que observamos A este será
seguido de B e, reciprocamente, que sempre que observámos B, A
o precederá. A causalidade é a relação que existe entre dois fe-
nómenos observáveis. Assim, como nem Deus, nem o mundo,
nem a relação que existe entre eles são observáveis, Hume con-
cluiu que não podemos ver Deus como a causa última do mundo.
Para o fazer teríamos de ter observado a criação de mundos e
ainda verificado que nenhum mundo fora criado sem a interven-
ção de um Deus. Talvez seja importante referir que este argumen-
to só é válido em relação à formulação causal do Argumento Cos-
mológico e não em relação a algumas das suas formulações mais

136
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

recentes 144. Mas no séc. XVIII a forma causal era praticamente a


única e, nesse aspecto, a crítica de Hume tinha razão de ser.

A crítica que Hume fez do Argumento Teleológico é ainda


mais significativa. Este Argumento partia do aparecimento de uma
ordem no mundo, do "ajustamento dos meios aos fins", para che-
gar a um Arquitecto divino. Era de longe o argumento principal do
teísmo no séc. XVIII. Assentava numa suposta semelhança entre o
mundo e uma máquina imaginária complexa, e foi precisamente
essa analogia que Hume atacou, sustentando que haveria tanta,
ou muito mais razão, atendendo ao desenvolvimento das ciências
biológicas, para dizer que o mundo se assemelhava não a uma
coisa mecânica mas a uma coisa orgânica, como por exemplo uma
planta. Ora, nós não vemos as plantas a serem criadas pela inter-
venção de criadores de plantas. Se virmos o mundo como um or-
ganismo, por que haveremos de supor que terá de ter um criador?
Porém, Hume argumenta que a insistir-se num modelo mecânico
seria mais lógico postular uma equipa ou uma comissão de Arqui-
tectos e chegar, assim, não ao monoteísmo mas sim ao politeís-
mo. A explicação que este filósofo dá da ordem do universo segue
uma linha epicurista, na medida em que ele argumenta, à maneira
de Diderot, que dispondo de um tempo infinito a ordem actual do
mundo teria surgido forçosamente, o que viria a ser reforçado no
século seguinte pela hipótese de Darwin. Hume defendeu ainda
que o mal que existe no mundo, aquilo a que se chama "disteleo-
logia", se opunha à noção de um Arquitecto inteligente e cheio de
amor pelo universo.

144
Cf. por exemplo a formulação do P.e Copleston em termos de "explicação"
apresentada na sua exegese das cinco vias de S. Tomás. Copleston, Aquinas, pp.
110.

137
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

A argumentação de Hume quanto à existência ou não de mi-


lagres é, mais uma vez, fruto do seu empirismo, pois gira à volta
da questão de se poder ou não acreditar na veracidade ou exacti-
dão dos "testemunhos". Tal como acontece em relação a todas as
convicções supostamente informativas acerca do mundo, a crença
em milagres deve assentar na experiência, neste caso de que os
homens têm recordações que são normalmente verídicas. Mas os
testemunhos podem contradizer-se e quando os "factos" atesta-
dos são maravilhosos e não são corroborados pela nossa própria
experiência da forma como as coisas acontecem no mundo, en-
tão, aquele mesmo princípio da experiência que nos permite
acreditar com alguma certeza nas declarações de testemunhas dá-
nos também neste caso motivos para não acreditarmos nos factos
que pretende estabelecer. Se o fenómeno for não só maravilhoso
como miraculoso, violando desse modo leis confirmadas da natu-
reza, "tal como uma experiência firme e inalterável as compro-
vou", vemo-nos perante uma prova que está em contradição com
outra e terá de prevalecer a mais forte. Hume sustenta que não há
nenhum acontecimento miraculoso que tenha sido comprovado
de uma forma de tal modo irrefutável que tenha conseguido aba-
lar a nossa convicção quanto à autenticidade das leis da natureza
que, além do mais, é universal; não há nenhum acontecimento
miraculoso que tenha sido tão bem demonstrado que a sua não-
veracidade pudesse ser mais miraculosa do que o "facto" em que
se baseia.

A parte final do "Ensaio Sobre os Milagres" é particularmen-


te interessante na medida em que mostra Hume, nas palavras de
Willey, "em equilíbrio instável na escarpa do pensamento setecen-
tista, bastando apenas um pequeno toque para o fazer resvalar

138
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

pelo declive kantiano abaixo. A natureza é um hábito do espírito, a


moral um sentimento do coração, as crenças um produto da ima-
ginação e não da razão: e agora? Hume aceitou todas estas con-
clusões, preferindo em último recurso a natureza à razão; será
que agora ele nos vai dizer que a religião se baseia na fé e na ra-
zão, e pedir-nos que demos à fé aquilo que é da fé?" 145 Como vi-
mos, é precisamente isso que ele faz.

No "Ensaio Sobre os Milagres", Hume põe a questão da se-


guinte maneira: "Sinto-me tanto mais satisfeito com o raciocínio
que aqui acabo de expor, quanto penso que poderá perturbar
aqueles amigos perigosos ou inimigos disfarçados da religião cristã
que se propuseram defendê-la com base nos princípios da razão
humana. A nossa sacratíssima religião fundamenta-se na Pé, e não
na razão, e uma maneira certa de a denunciar é sujeitá-la a uma
prova que não está em condições de suportar” 146.

Seria uma tentação ver nas palavras de Hume uma predis-


posição para se lançar no mesmo projecto que Kant viria a empre-
ender mais tarde ou, para empregar as famosas palavras deste
último, "a negar a razão a fim de arranjar um lugar para a fé". To-
davia, não é isto que Hume pretende, pois é por demais evidente
no resto da sua obra que assim que ele põe de parte a dúvida cép-
tica, e a aceitação do "hábito" e da "experiência" parece apontar
para o mistério, Hume recorre à razão que tanto menospreza. As
convicções não são raciocínio, mas as nossas convicções têm de
ser razoáveis. Hume é filho do Iluminismo de uma maneira que

145
Willey, The Eighteenth Century Background, p. 126. 118
146
Hume, Enquiry Concerning Human Understanding, Sec. X, Pt. 11, ed. Selby-
Bigge, Sec. 100.

139
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Kant, que escreveu nos finais deste período, nunca foi. A fé de


Hume parece não ser muito profunda. É algo que se deve aceitar,
mas que não pode servir de base aos nossos actos. Kant viria, no
entanto, a seguir a tendência do pensamento de Hume e a desen-
volvê-la numa direcção mais teísta. O aspecto crítico da obra de
Kant é tão decisivo, ou mais, do que o de Hume, e é sobre isso que
nos iremos debruçar agora.

Tal como Hume, Kant propôs-se destruir a base racional em


que assentava o teísmo do séc. XVIII. Não o fez, porém, em nome
do ateísmo nem de um agnosticismo reverente ou irreverente,
mas a fim de dar ao teísmo bases mais sólidas que pudessem re-
sistir à crítica da razão. A principal tarefa que se impõe na primeira
das suas três Críticas - A Crítica da Razão Pura - foi determinar os
limites da razão pura e uma das conclusões a que chegou foi que
esta não podia dizer-nos absolutamente nada acerca de Deus ou
de qualquer relação que pudesse haver entre Ele e o mundo. A
argumentação de que se serviu foi, em poucas palavras, aquela
que passo a referir.

Sustentava ele que não podíamos ter um conhecimento cer-


to das coisas em si, pois a nossa experiência, a que Kant na sua
terminologia arrevesada chamava "a unidade transcendental da
apercepção", é de forma condicionada pelo nosso espírito, tal
como ele é, que só podemos experimentar o mundo da forma
como o fazemos. Os nossos espíritos não descobrem um ordem
necessária inerente à natureza, antes lhe impõem essa ordem.
Assim, aprendemos a realidade através da lente do espírito, por
assim dizer. A causalidade, por exemplo, é apenas uma das cate-
gorias mediante a qual o nosso espírito ordena a realidade no es-

140
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

paço e no tempo - as intuições primárias. É esta a resposta que


Kant dá a Hume e, também, a sua interpretação da natureza sinté-
tica e, simultaneamente, apriorística de leis como as de causa e
efeito. Assim, o Argumento Cosmológico, segundo o qual se todos
os fenómenos têm uma causa o mundo também tem que ter, cai
por terra - pois a necessidade não está ligada a nenhum princípio
limitativo do mundo da natureza, mas apenas à forma como o
espírito ordena os fenómenos naturais.

Há, no entanto, uma outra dificuldade mais grave e que vicia


toda e qualquer tentativa de desenvolver uma argumentação a
partir do mundo para aquilo que está para lá dele: os dados a que
o espírito, por meio de categorias, impõe uma ordem, têm a sua
origem em fenómenos que se verificam no espaço e no tempo.
Ora tanto o Argumento Cosmológico como o Argumento Teleoló-
gico procuram inferir, a partir da nossa experiência no espaço e no
tempo, um ponto exterior a ela - uma causa transcendente. É pre-
cisamente esta tentativa de chegar a um ponto exterior à experi-
ência e observação por meio de categorias cuja única esfera de
actuação possível é no espaço e no tempo, que dá origem àquilo a
que Kant chama as "antinomias", ou contradições, da razão pura,
invalidando desse modo o argumento. Como é que, pergunta
Kant, podemos utilizar uma linguagem proveniente da nossa expe-
riência no mundo que é, aliás, o único domínio a que essa mesma
linguagem se pode aplicar, para falar significativamente quer
acerca do mundo como um todo, quer acerca daquilo que o trans-
cende?

Se aliarmos a crítica de Kant à de Hume será fácil compre-


endermos por que motivo tantos filósofos hoje defendem que

141
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

estes dois pensadores destruiram as provas tradicionais da exis-


tência de Deus a um ponto que invalida, duma vez para sempre, o
programa que a teologia natural se propusera. Todavia, isto não
impediu outros filósofos de tentar reestruturar esses argumentos
de modo a ultrapassar as críticas de Hume e de Kant. Historica-
mente, porém, o criticismo destes dois filósofos teve uma influên-
cia enorme e imediata e, tanto assim, que muitos pensadores do
séc. XIX e mesmo deste círculo perderam toda a confiança no po-
der da razão especulativa para demonstrar a validade da doutrina
teísta.

Ao contrário de Hume, porém, Kant procurou dar ao teísmo


bases mais sólidas, e embora estivesse, tal como aquele, disposto
a falar em "fé". já não estava disposto a deixar de analizar esse
conceito. Aquilo que tentou fazer foi demonstrar que a fé em
Deus é um postulado necessário da vida moral, da vida vivida de
acordo com a razão prática. Será necessário dizer alguma coisa
acerca deste assunto a fim de melhor podermos compreender o
ateísmo do século seguinte.

Comecemos por referir que Kant não era um simples meca-


nicisto-materialista. Tinha demasiada consciência da importância
da capacidade do homem para ter uma existência moral, para se
deixar arrastar por uma tese que negaria necessariamente a liber-
dade do homem in toto. No plano fenomenal da nossa experiência
e entendimento da natureza, o homem poderia muito bem apre-
sentar-se como um ser determinado, o que parecia ser efectiva-
mente o caso. Mas para Kant isso provava apenas as limitações
existentes no campo fenomenal. Segundo ele, o homem também
pertencia ao mundo numenal - das coisas tal como são em si

142
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mesmas e não determinadas pelas categorias - tomando conhe-


cimento desse mesmo mundo pela experiência moral, e era atra-
vés dete que apreendia a noção de dever como imperativo cate-
górico sem qualquer relação com o desejo ou a propensão. Esse
imperativo era absoluto e incondicional. Kant sustentava que, a
fim de se reconhecer esse imperativo como base de toda a vida
moral, era necessário reconhecer outros aspectos. Em primeiro
lugar, que o homem dispõe de livre-arbítrio não sendo, portanto,
determinado, como aconteceria se a tese mecanicisto-materialista
fosse verdadeira e o homem fizesse inteiramente parte da nature-
za. Ilustrava isto mesmo, argumentando que o facto de eu saber
que devo fazer x implica que posso fazer x. Em segundo lugar, o
homem teria de reconhecer que era imortal, pois se o não fosse, a
vida moral que lhe impõe um ideal que lhe é impossível atingir
nesta vida - nomeadamente a tarefa de ajustar a sua vontade à
vontade inteiramente boa revelada pelo imperativo categórico-
seria absurda. Por último, teria de reconhecer a existência de
Deus que, em última análise, tomará real a correlação entre virtu-
de e felicidade cuja inexistência neste plano de vida é por demais
evidente.

Assim, para Kant, o homem vive simultaneamente em duas


esferas: a esfera fenomenal, que pertence à ordem da natureza
tal como é entendida pelas categorias do entendimento, e a esfe-
ra numenal, que pertence à ordem da liberdade e na qual o ho-
mem toma consciência dos imperativos da vida moral. É devido a
esta dualidade que o homem não pode deixar de se interrogar
quanto à relação que existe entre as duas. Serão elas complemen-
to uma da outra, ou será que o mundo dos fenómenos e os aspec-
tos fenomenais do homem como ser são insensíveis aos seus con-

143
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

flitos morais? Kant acreditava que perguntas deste tipo levavam


forçosamente aqueles que tomam a vida moral a sério a conside-
rar que a natureza foi criada por um Deus que está interessado no
progresso e realização morais.

É contra esta forma de teísmo e contra a consequente expli-


cação da moral que muitos dos ateus do séc. XIX irão lutar.

Chegamos, assim, ao fim do estudo do ateísmo no Iluminis-


mo, e parece-me que algumas das questões da controvérsia da
crença e da descrença começaram já a tornar-se claras. Segundo
os filósofos, a nova ciência da natureza, agora solidamente im-
plantada e destinada a seguir um caminho triunfante, destruirá
duma vez para sempre toda a necessidade de explicar o funcio-
namento do mundo em termos teístas. Permitira, ainda, que se
rejeitasse a categoria da revelação, pelo menos no que respeita à
sua correlação tradicional com acontecimentos miraculosos. Por
outro lado, assistiu-se a uma consolidação da tendência verificada
já nos finais da Idade Média para circunscrever o termo conheci-
mento à esfera natural tal como era interpretada pelo método
científico, posição a que Kant deu uma formulação quase definiti-
va. Assim, a tarefa que se depara ao teísmo no fim do séc. XVIII
consiste não em alicerçar a fé nas areias movediças de razões ex-
traídas do mundo natural, o que como já vimos foi desastroso,
mas em fundamentá-la noutros princípios. Foi Kant quem indicou
o caminho a seguir, e depois dele viriam outros que procurariam
basear a fé em Deus não só na experiência moral mas também na
experiência religiosa. Poucos serão, até aos nossos dias, aqueles
que irão contestar toda a evolução da concepção naturalista do
mundo como sendo a única possível, bem como o conceito já mais

144
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

limitado de razão em que assenta. É um período de desânimo pa-


ra a metafísica.

145
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Capítulo IX: DO SÉC. XIX ATÉ AOS NOSSOS DIAS

A posição de Kant ao considerar a experiência moral como


aquilo que distingue o homem e o salva da completa absorção na
esfera natural é uma prova da crescente recusa em aplicar os con-
ceitos materialistas e mecanicistas à vida humana. No princípio do
séc XIX surge o homem de sentimento e impõe-se um movimento,
hoje conhecido pelo nome de Romantismo, que procurará resta-
belecer o equilíbrio herdado do Iluminismo.

Mas entramos agora numa fase mais complexa e pluralista


da história intelectual em que desaparece a unidade que, de uma
maneira geral, caracterizou o Zeitgeist dos períodos anteriores.
Assim, embora o Romantismo tenha sido um factor importante e
de peso inegável no séc. XIX, de modo nenhum afectou todos os
aspectos da vida intelectual desse tempo, o que nos obriga a es-
tudar outros movimentos e personalidades que tomaram parte na
controvérsia da crença e descrença. Mas analisemos primeiro a
reacção romântica.

146
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

O movimento romântico admirava acima de tudo a sensibi-


lidade. Era também um movimento do indivíduo contra as massas.
Não deve, portanto, surpreender-nos que o seu principal repre-
sentante religioso, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), tivesse
formulado uma doutrina apologética baseada no sentimento reli-
gioso individual.

Contudo, do ponto de vista da religião, é lamentável que, os


românticos em geral, com excepção talvez de Coleridge, não ti-
vessem nunca submetido os pressupostos epistemológicos de
uma concepção que assentava no sentimento a uma análise filo-
sófica rigorosa. Como a crítica posterior viria a demonstrar, os
problemas suscitados por essa forma de conhecimento do mundo
- principalmente quando associada a uma teologia do encontro,
como mais tarde veio a acontecer - eram muitos e ainda hoje se
mantêm.

O projecto teológico de Schleiermacher teve um início aus-


picioso. Segundo Rudolf Otto 147 visava "fazer regressar às origens
uma época cansada e afastada da religião". Assim, para Schleier-
macher, não é um processo de raciocínio natural que poderá levar
a Deus mas sim a consciência religiosa. Numa época que tanto
valorizava a experiência parecia ser um bom começo. Porém, ca-
recendo de uma epistemologia do "sentimento" como actividade
cognitiva - como experiência de uma coisa - a tentativa de Sch-
leiermacher de basear a religião nos sentimentos religiosos, parti-
cularmente em sentimentos de dependência absoluta, estava à

147
Rudolf Otto, Informação à edição de Harper Torch Books da obra de Schlei-
ermacher On Religion - Speeches to its Cultured Despisers; pp. VII-VIII.

147
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

partida sujeita à mesma crítica que iria pôr em questão a tentativa


de Kant de basear o teísmo nos imperativos da consciência moral;
ou seja, que se se encontrasse para essa consciência uma explica-
ção naturalista ou qualquer outra explicação plausível, se poderia
passar sem o teísmo. Assim também a tentativa de Schleierma-
cher de basear o teísmo na consciência religiosa foi alvo de críti-
cas, na medida em que encerrava Deus nessa mesma consciência
e que não era possível pôr de parte a hipótese de se vir a encon-
trar uma explicação naturalista e não-religiosa de tal consciência e
de a teologia se vir a transformar em antropologia.

Aliás, foi o que de facto veio a acontecer. Foi precisamente a


essa conclusão que chegou Luidwig Feuerbach (1804-1872) na sua
obra notável, The Essence of Christianism* (1841), que viria a
exercer uma influência decisiva em Karl Marx.

A intenção explícita de Feuerbach, ao escrever essa obra,


era transformar a "teologia em antropologia", "a ciência do Deus
em ciência homem". Para ele, a consciência religiosa do homem
era apenas a projecção dos seus ideais mais sublimes num ser
sobrenatural. Segundo Feuerbach, o verdadeiro campo de aplica-
ção desses ideais, era o próprio homem, ou, pelo menos, aquilo
que ele podia vir a ser. Diz Feuerbach numa outra obra: "Deus
como epítome de todas as realidades ou perfeições não é senão
um resumo conciso inventado para benefício do indivíduo com
todas as suas limitações, um epítome das qualidades humanas
genéricas distribuídas pelos homens, na realização da espécie no
decurso da história do mundo" 148.

148
Feuerbach, The Philosophy of the Future, p. 28.

148
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Não obstante Feuerbach ser ateísta, o seu objectivo não era


destruir a religião mas sim, como Engels viria a observar, aperfei-
çoá-la. Segundo as palavras de Marx, a vitória de Feuerbach con-
sistiu em "reduzir o mundo religioso à sua base secular" 149. Para
Feuerbach a questão teísta não se punha. "O problema da exis-
tência ou não-existência de Deus, a oposição entre teísmo e ate-
ísmo", escreveu ele, "é própria dos sécs. XVI e XVII, não do séc.
XIX. Nego Deus. Mas, para mim, isso significa negar a negação do
homem" 150. Deus tem que morrer para que o homem possa viver.
Foi este o lema que Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche
(1844-1900) viriam a adoptar.

A posição de Marx em relação à religião era basicamente a


mesma de Feuerbach e consistia em reinterpretá-la. A religião era
um fenómeno demasiado importante para ser tratado superficial
e sumariamente. Para Marx, ela representava uma tentativa de o
homem superar aquilo a que chamava "alienação" e de se realizar
verdadeiramente - embora de uma maneira imaginária. Dizia ele:
"A base da crítica irreligiosa é: é o homem que faz a religião e não
a religião que faz o homem. Por outras palavras, a religião é a au-
toconsciência e sentimento do homem que ainda não se encon-
trou ou que se voltou a perder. Mas o homem não é um ser abs-
tracto que vive fora do mundo. O homem é o mundo do homem,
o estado, a sociedade. O estado e a sociedade inventam a religião,
uma consciência invertida do mundo pois eles são um mundo in-
vertido. A religião é a teoria geral desse mundo, o seu compêndio
enciclopédico, a sua lógica numa versão popular, o seu ponto de
honra espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, a sua

149
Marx, Theses on Feuerbach, IV.
150
Feuerbach, Essence of Christianity, p. 26.

149
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

realização solene, a sua razão universal de consolação e justifica-


ção. É a realização fantástica da essência humana porque a essên-
cia humana não tem verdadeira realidade. A luta contra a religião
é, portanto, indirectamente a luta contra o outro mundo, de que a
religião é o aroma espiritual".

"A angústia religiosa é ao mesmo tempo expressão de uma


angústia real. A religião é a esperança dos oprimidos, o coração de
um mundo sem coração, tal como é o ânimo de uma situação de-
sesperada. É o ópio do povo".

"Para que as pessoas possam conhecer uma felicidade real


há que acabar com a religião como felicidade ilusória. É preciso
abandonar as ilusões sobre a condição humana para se alcançar
uma condição em que não sejam necessárias ilusões" 151.

Mas, embora relegada para o domínio da fantasia, a religião


representava para Marx algo de muito importante na vida huma-
na, algo que apontava para a necessidade de transformar a socie-
dade de modo a tornar possível uma realização mais autêntica e
verdadeiramente humana. A análise e a concepção de religião de
Marx têm uma profundidade que muitas outras tentativas de che-
gar às origens e explicar a sobrevivência da religião não possuem,
embora o próprio Marx tenha considerado algumas delas - como
por exemplo, que a religião nasceu simplesmente devido ao medo
que a natureza inspirava ao homem - noutras alturas da sua vida.
A explicação dada por Marx aproxima-o de Freud (1856-1939) que
também relegava a religião para o mundo da realização fantástica.

151
Karl Marx, Contribution to the Critique of HegeVs Philisophy of Right. K. Marx
and F. Engels, On Religion (Foreign Languages Pu-blishing House, Moscovo), pp.
4143.

150
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Mas, antes de nos debruçarmos sobre Freud, estudemos primeiro


o outro grande ateu do séc. XIX, Friedrich Nietzsche.

Nietzsche foi um dos espíritos precursores da consciência


europeia moderna, o seu psicólogo mais profundo e o seu mais
acertado profeta. Ele próprio definiu a situação a partir da qual
nasceu o seu pensamento dando-lhe o nome de "nihilismo". Este
era uma característica da última parte do séc. XIX, que ele consi-
derava um desafio que havia que enfrentar. O facto de o ter feito
foi de certo modo notável se tivermos em conta as circunstâncias
históricas em que escreveu a sua obra. Os exércitos prussianos
tinham imposto a supremacia germânica na Europa. A Grã- Breta-
nha estava consciente da sua supremacia no mar. No domínio da
ciência e da tecnologia, começaram a fazer-se progressos espec-
taculares e até então totalmente impensáveis. Imperavam o espí-
rito de reforma e o optimismo. Contudo, para Nietzsche, a estabi-
lidade política e o desenvolvimento da época não valiam nada,
comparados com o único facto que para ele contava, mas que os
seus contemporâneos se recusavam a aceitar: Deus tinha morrido.

Na obra Gaia Ciência, publicada em 1882, encontramos esta


parábola. "Já ouviste falar de um louco que, numa manhã de sol,
acendeu uma lanterna e correu para o mercado, gritando sem
cessar: 'Procuro Deus, procuro Deus!'? Como muitos dos que lá
andavam e o ouviram não acreditavam em Deus, provocou o riso
geral. 'Porquê, ele perdeu<se?', disse um. 'Perdeu-se no caminho
como uma criança?', disse outro. 'Ou ter-se-á escondido?'... e as-
sim troçavam dele, rindo-se. O louco saltou para o meio deles e
trespassou-os com o olhar. 'Onde está Deus?', perguntou. 'Dir-
vos-ei. Matámo-lo vós e eu. Todos nós somos seus assassinos.

151
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Mas como é que o fizemos? Como é que fomos capazes de beber


o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
fizemos nós quando desligámos a terra do seu sol? Onde está ele
agora? E para onde vamos nós? Será que nos afastamos de todos
os sóis? Não estaremos nós continuamente a mergulhar? Para
baixo, para o lado, para a frente, em todas as direcções? Sabere-
mos ainda o que está certo e o que está errado?

Não andaremos à deriva como se atravessássemos um nada


infinito? Não sentimos o sopro do espaço vazio? Não é verdade
que ele é cada vez mais frio? Não será que nos espera uma noite
cada vez mais negra?... Deus morreu. E continua morto. E fomos
nós que o matámos. O que havia de mais sagrado e mais poderoso
em todo o mundo foi mortalmente ferido pelos nossos punhais.

Quem limpará o sangue que nos cobre? Não será esse um


acto demasiado grande para nós? Não teremos que nos tornar
deuses apenas para parecermos dignos desse acto?'... Depois de
proferir estas palavras o louco calou-se e voltou a olhar para os
que o escutavam que se calaram também e olharam atónitos. Por
fim atirou para o chão a lanterna que se partiu e afastou-se. "É
demasiado cedo', disse ele, 'ainda não chegou a minha hora'. 'Este
acontecimemto terrível ainda se está a preparar... ainda não che-
gou aos ouvidos do homem. O relâmpago e o trovão precisam de
tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os actos precisam de
tempo, mesmo quando são realizados antes de poderem ser vis-
tos ou ouvidos. Este acto está mais distante deles do que as estre-
las mais longínquas - e contudo foram eles próprios que o reali-
zaram'. Diz-se ainda que o louco entrou em várias igrejas onde
cantou o seu Requiem a eternam deo. Quando o expulsavam e o

152
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

intimavam a explicar o seu comportamento, respondia sempre da


mesma maneira: 'O que são estas igrejas se não os túmulos e mo-
numentos de Deus?'" 152.

Perdemos a fé em Deus, diz Nietzsche, que analisa as con-


sequências de tal perda, sobretudo no campo dos valores, com
maior perspicácia do que a maioria dos filósofos dos finais do séc.
XIX, especialmente dos ingleses. Resta-nos apenas o vazio, diz ele.
Já não temos dignidade; os nossos valores tradicionais foram aba-
lados e já ninguém sabe o que está certo e o que está errado. Tal
como os antigos profetas hebraicos, Nietzsche tinha uma tal capa-
cidade e poder de viver o seu trágico destino que este se tornou
como que a alegoria de algo que o transcendia. Sentia tão profun-
damente a agonia, o sofrimento e a miséria de viver num mundo
sem Deus, quando todos os seus contemporâneos eram comple-
tamente insensíveis às consequências da descrença, que viveu
antecipadamente o destino duma geração futura.

A filosofia de Nietzsche não é, no entanto, uma filosofia de


desespero fatalista. É uma tentativa positiva de reestruturar todo
o nosso sistema de valores, substituindo-o por outro que não se
baseasse nos princípios do teísmo tradicional. O objectivo de Ni-
etzsche era substituir uma moral transcendental, que ia buscar a
sua razão de ser à vontade de Deus, e uma teleologia orientada
para o divino por uma moral naturalista cuja razão de ser fosse a
condição humana. "Se Deus morreu", diz Ivan Karamazov no ro-
mance de Dostoievski instalado Os Irmãos Karamazov, "então tu-
do é permitido". Porém, ao passo que o reconhecimento de tal
facto confunde Ivan, levando-o ao desespero, em Nietzsche ele

152
F. Nietzsche, The Gay Science, p. 125.

153
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

tornasse um grito de afirmação triunfante. Depois de proclamar a


morte de Deus, Nietzsche exige uma transmutação de todos os
valores e uma nova casta de homens, os "super-homens" (uber-
mensch) que superarão o homem tal como hoje é e saberão viver
e fazer das suas vidas um exemplo da nova e terrível sensação de
liberdade do homem.

Tal como ele próprio reconheceu, foi na Genealogia da Mo-


ral e em O Anti-Cristo, duas das suas últimas obras, ele o primeiro
pensador a pôr em questão todos os valores morais cristãos.

A reacção dos intelectuais ingleses foi completamente dife-


rente como se pode avaliar pela nota escrita em 1856 por Sir Les-
lie Stephen, que perdera a fé. "Agora não acredito em nada", es-
creveu ele, "...mas nem por isso acredito menos na moral etc, etc.
Quero viver e morrer como um cavalheiro, se for possível". Como
Quentin Bell observou: "As implicações são óbvias; Stephen podia
pensar que as ideias cristãs sobre a origem e o destino último dos
homens e mulheres eram falsas, mas, na prática, isso de modo
nenhum alterava o seu conceito de conduta digna" 153.

O Dr. Bronowski faz uma observação semelhante. Ao escre-


ver sobre o medo que a Ortodoxia sentia de que a perda da fé
pudesse conduzir a uma queda da moral tradicional resume a res-
posta dos descrentes da seguinte maneira: "Não, responderam
Huxley, John Stuart Mill, George Elliot e Bagehot; não há dúvida
que somos todos pessoas de grande rectidão e, portanto, o senti-
do moral deve ser inato no homem" 154. Tal como Bronowski adi-

153
Ibid.
154
J. Bronowski, Unbelief and Science' in Ideas and Belliefs of the Victorians.

154
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

ante refere, uma das consequências dessa posição é que se senti-


am pessoalmente obrigados a levar uma vida duma terrível mono-
tonia mesmo quando pecavam 155.

Por um lado cepticismo religioso, por outro moral tradicio-


nal. Esta combinação estava destinada a não sobreviver ao teste
do tempo porque, tal como Nietzsche viu, o abandono da concep-
ção de vida religiosa e de orientação teleológica tinha consequên-
cias de grande alcance para a moral. Viria a caber à nossa geração
tirar daí as devidas conclusões. É esse em grande parte o fardo da
mensagem transmitida no nosso século pelos existencialistas, em
que o ateísmo romântico do séc. XIX atinge a sua plena realização.

Existencialismo ateu
É óbvio que nem todos os existencialistas são ateus. Muitos
deles, como, por exemplo, Marcel, que era católico, e Buber que
era judeu, são teístas. Quanto a Jaspers e Heidegger, julgo que se
considerariam agnósticos reverentes. Porém, no movimento asso-
ciado ao nome de Jean-Paul Sartre (1905-1980), que para muitos
se identifica com o existencialismo, o ateísmo é aceite como um
facto irrefutável. É até a sua primeira premissa. "Se Deus morreu,
então tudo é permitido. É este", diz Sartre, "o ponto de partida do
existencialismo" 156. E o seu principal objectivo é determinar as
consequências que uma posição ateísta coerente poderá ter para
a moral. Para Sartre, como para a maioria dos existencialistas, o
problema de Deus é real e não, como para tantos filósofos anglo-
saxónicos actuais, um pseudo-problema. Segundo ele, levantar o
problema de Deus é levantar o problema do sentido da vida hu-

155
Ibid.
156
J. P. Sartre, Existentialism and Humanism, p. I.

155
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mana. Se não há Deus então a vida do homem não tem necessari-


amente sentido. Deus e a teleologia estão inextricavelmente liga-
dos. Uma vez que se nega a existência de Deus 157, é cada indiví-
duo que tem que encontrar um sentido para a sua própria vida.
Albert Camus (1913-1960) lutou com o mesmo problema no seu
livro O Mito de Sísifo. Para Camus, a vida era no fundo um “absur-
do" - conceito que para ele surgia no ponto em que a necessidade
do homem de encontrar um sentido, esbarrava com a indiferença
do universo. Camus, porém, vai mais além do desespero que ca-
racterizou as primeiras obras de Sartre e procura encontrar uma
solução positiva para o problema de se viver num universo absur-
do porque privado de Deus, solução essa que fosse válida e rele-
vante para todos. Analisar a reacção de outros escritores perante
o declínio da concepção teísta do mundo ultrapassaria os objecti-
vos do modesto estudo que nos propusemos fazer, mas vale a
pena referir que ela se tornou um dos grandes temas da literatura
deste século, prova da gravidade da crise que a nossa civilização e
cultura atravessam, pelo menos no domínio dos sentimentos.

Ciência e Religião
Voltando ao séc. XIX, uma das grandes causas de descrença
que não podemos deixar de realçar, foi a crítica científica. Para
fazer uma análise rigorosa da questão no que toca ao século pas-
sado seria necessário outro livro. O máximo que aqui podemos
fazer é apontar alguns dos aspectos mais importantes, particular-
mente aqueles que constituem uma prova da tendência crescente
para interpretar a religião em termos naturalistas. Devemos tam-
bém observar, que a crítica mecanicisto- materialista anterior pas-

157
Sartre não apresenta realmente uma prova de que Deus não existe. Cf. Being
and Nothingness trad. Hazel E. Barnes; Introd. trad. pp. XXIX ff.

156
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

sa agora a fazer parte da crítica popular da religião, situação que


ainda hoje se mantém.

Comecemos por Preud que, apesar de ter sido o impulsio-


nador de um dos maiores avanços científicos do séc. XX, é em
grande parte sob o ponto de vista filosófico, um pensador do séc.
XIX. Tal como Marx e Nietzsche, Freud defende que uma moral
baseada em premissas religiosas é suspeita. Neste campo como
noutros, o homem deve aprender a contar apenas consigo mes-
mo.

Mas, ao passo que, como já vimos, Marx depositava a espe-


rança de uma nova moral numa renovação da sociedade e Nietzs-
che numa nova casta de homens disciplinados e autosuficientes,
Preud depositava-a na ciência. Também como Marx e Nietzsche,
Preud, antes de expor o que tinha a dizer sobre a religião, decidiu
que os princípios religiosos sobre o mundo não eram válidos 158
Assim, limitou-se a procurar explicar o fenómeno empírico da reli-
gião em termos naturalistas.

Como G. S. Spinks apontou, todos os escritos de Freud sobre


a religião - e são muitos-são em grande parte variações sobre o
tema de Deus como "pai supremo" 159. Para Freud, o teísmo é ba-
sicamente o resultado daquilo a que chama "projecção" - a pro-
jecção no universo do que, na realidade, são apenas processos
psicológicos. Esta posição está claramente expressa no seu livro O
Futuro duma Ilusão (1927). A cultura, sustenta Freud, exige a re-

158
Segundo Ernest Jones, Freud era um ateísta natural. Diz ele: "Cresceu sem
qualquer crença em Deus ou na Imortalidade e não parece ter sentido a sua fal-
ta". Sigmund Freud, Vol. I, p. 22.
159
G. S. Spinks, Psychology and Religion, p. 75.

157
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

núncia aos nossos instintos mais primitivos, mas essa renúncia só


é possível se se encontrar alguma gratificação compensadora.

Entre as gratificações compensadoras, a mais generalizada é


a religião. Mas a fé religiosa está a desaparecer - é cada vez mais
considerada uma ilusão - e Freud receia que se não encontrarem
outras gratificações compensadoras mais estáveis, a civilização e a
cultura sejam destruídas. A sensação de que o mundo estava con-
denado era nele quase tão forte como em Nietzsche. Porém, não
é isso que nos interessa, mas sim saber por que é que Freud acha-
va correcto pensar-se que a religião é uma ilusão. A sua posição é
ao mesmo tempo filosófica e psicológica. Do ponto de vista filosó-
fico, Freud aceitava os pressupostos científicos e anti-religiosos do
seu tempo. "A investigação dos segredos do universo", escreve
ele, "avança muito lentamente e há muitas perguntas a que a ci-
ência não sabe responder; mas o trabalho científico é o único ca-
minho que pode levar-nos ao conhecimento da realidade" 160.
Mas, segundo ele, por esse método nunca se pode chegar ao te-
ísmo, pelo que devemos pô-lo de parte. No entanto Freud nunca
aprofundou as bases filosóficas do teísmo nem analisou as razões
da sua rejeição filosófica da religião. Ele próprio nos fala na sua
autobiografia, do seu pouco interesse pela filosofia. "Mesmo
quando me afastava da observação", diz ele, "evitava cuidadosa-
mente a filosofia propriamente dita, atitude para que contribuiu
muito uma capacidade natural" 161.

À primeira vista dir-se-ia que a sua posição contra a religião


é essencialmente psicológica. A religião é uma forma de satisfazer

160
S. Preud, The Future of an Ilusion, p. 55.
161
S. Freud, An Autobiographical Study, p. 109.

158
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

desejos. A vida é difícil de suportar e o Homem procura alívio para


as duras realidades que ela lhe impõe, personificando as forças
impessoais da natureza, o que em certa medida consegue ao ten-
tar iludi-las. O protótipo desta situação é o desamparo da infância
em que se procura protecção nos pais. A religião, e o teísmo parti-
cularmente, são, portanto, para Freud, um regresso à infância. O
homem religioso, indefeso e dominado pelo medo perante o uni-
verso projecta na natureza a figura protectora do pai e cria assim
o seu Deus.

Esta explicação da origem da religião não prova, evidente-


mente, só por si que o homem religioso esteja errado e Freud tem
o cuidado de distinguir "ilusão" de "erro". Uma "ilusão" deriva dos
desejos do homem. É uma maneira de satisfazer um desejo. Que
seja ao mesmo tempo um erro é uma coisa que necessita de pro-
va ulterior. Para Preud, a religião era simultaneamente uma ilusão
e um erro - uma ilusão porque era a satisfação de um desejo e um
erro porque, como já vimos, ele pensava que não assentava em
bases racionais e científicas. Esta última razão é o fulcro da argu-
mentação de Freud como tinha sido o fulcro do combate à religião
quase desde a sua infância. Pode até dizer-se que era esse o seu
argumento chave contra a religião do séc. XIX. Já vimos como co-
meçou. Agora vamos estudar o avanço da crítica científica na se-
gunda metade do séc. XIX. Foi em Inglaterra que a controvérsia
entre ciência e religião foi tomada mais a sério. Em grande parte
ela incidia mais sobre argumentos contra dogmas cristãos especí-
ficos, como por exemplo a data e a forma como se deu a criação,
do que sobre o teísmo propriamente dito. Foi isso em grande par-
te que aconteceu em relação ao Darwinismo - a causa célebre da
época - que contestava os dogmas cristãos tradicionais sobre a

159
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

origem do homem tal como era definida a partir das escrituras


hebraicas. A teoria da selecção natural de Darwin exposta na sua
famosa obra A Origem das Espécies (1859) contestava o próprio
teísmo na medida em que punha em questão o tradicional argu-
mento teleológico. dando uma explicação naturalista da coerência
interna dos corpos animais e da sua adaptação ao meio ambiente.
Segundo a teoria de Darwin. os animais são organismos relativa-
mente eficientes no que diz respeito ao meio, pela simples razão
de que os indivíduos menos adaptados pereceram na luta perma-
nente pela sobrevivência e assim não perpetuaram a sua raça. É
na luta pela sobrevivência que assenta a evolução da vida para
formas cada vez mais complexas, na medida em que aquela exer-
ce uma pressão constante no sentido de se atingir uma adaptação
perfeita.

O próprio Darwin (1809-1882) era, na realidade, um agnós-


tico quanto ao efeito da sua teoria sobre o argumento teleológico,
ora se mostrando entusiasmado pela evolução ora deprimido pe-
los casos de disteleologia. "Parece-me", escreveu ele numa das
suas cartas, "que há demasiadas desgraças no mundo. Não consi-
go convencer-me de que um Deus benévolo e omnipotente tives-
se propositadamente criado os Ichneumonidae com a intenção
deliberada de fazer a sua sobrevivência depender das lagartas, ou
de os gatos perseguirem os ratos. Uma vez que não acredito nisto,
não vejo qualquer necessidade em acreditar que o olho tenha sido
expressamente concebido para um determinado fim. Por outro
lado, não me satisfaz de modo nenhum olhar para este universo
maravilhoso, e especialmente para a natureza do homem, e con-
cluir que é tudo resultado da força bruta. Sou levado a olhar para
tudo como sendo o resultado de leis preconcebidas em que os

160
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

pormenores, bons ou maus, são abandonados à acção daquilo a


que poderíamos chamar acaso. Não que esta ideia me satisfaça.
Sinto que toda esta questão é demasiado profunda para o intelec-
to humano... que cada um espere e acredite naquilo que pu-
der" 162.

A hipótese evolucionista acabou por ter implicações de mai-


or alcance para a religião do que a controvérsia darwiinista suge-
re, porque está inserida num contexto histórico mais amplo que,
na opinião de muitos, constitui a principal contribuição do séc. XIX
para a história intelectual. Pela primeira vez a religião começou a
ser estudada histórica e comparativamente, o que não podia dei-
xar de pôr em questão toda e qualquer doutrina que se apresen-
tasse como definitiva. Como Noël Annan observa: "Os homens
deixaram de ver a Verdade como absoluta, filosoficamente estáti-
ca, revelada duma vez para sempre para passarem a considerá-la
relativa, genética e evolutiva" 163.

Foi na década que teve início em 1870 que a controvérsia


entre a ciência e a religião começou verdadeiramente. Na sua ori-
gem esteve o famoso debate sobre a ascendência do homem,
entre Thomas Huxley e o Bispo Wilberforce que teve lugar em
Oxford, durante uma reunião da Sociedade Britânica para o Avan-
ço da Ciência, em 1860. Até então os "racionalistas" que tinham
conseguido algumas vantagens pelo facto de assim se denomina-
rem, tinham-se abstido de participar na polémica. Mas, depois da
célebre discussão de Oxford, foram os Agnósticos - como depois

162
Darwin a Asa Gray. Citado por John Green, Darwin and the Modern World
View, p. 44.
163
Noël Annan, Strands of Unbelief in Ideas and Beliefs of the Victorians, p. 151.

161
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

se viriam a chamar 164 - que se apropriaram do fervor moral. Tal


como Noël Annan explica: "Por volta de 1870 um grupo de ho-
mens, Huxley, Leslie, Stephen, John Morley e o jovem e brilhante
geómetra W. K. Clifford, decidiu converter o público através de
jornais com um zelo evangélico" 165. Foi assim que o Humanismo
científico se transformou num credo popular. Um apóstolo da
época, Margaret Knight, definiu-o da seguinte maneira: "Dizer de
alguém que é um humanista quer dizer que para essa pessoa não
há razão para se acreditar num Deus sobrenatural nem numa vida
depois da morte; que ela sustenta que o homem deve enfrentar
os seus problemas com a sua inteligência e com os seus recursos
morais, sem invocar a ajuda sobrenatural; e que a autoridade,
sobrenatural ou não, não deve constituir um obstáculo à investi-
gação em qualquer campo do pensamento" 166.

Estes princípios fundamentais pressupõem dois corolários.


"Primeiro, que a virtude consiste em promover o bem-estar da
humanidade... e em segundo lugar que a alavanca da acção moral
são... os instintos sociais".

Há dois humanistas que não podemos deixar de referir. São


eles: John Stuart Mill (1806-1873) e Bertrand Russell (1872-1970),
afilhado de Mill, embora "num sentido puramente secular", como
Mill insistiu ao aceitar tal honra.

164
A palavra foi criada por Huxley para definir a sua posição na Sociedade Meta-
física fundada em 1869 com o objectivo de promover uma discussão séria e res-
peitável da controvérsia da ciência e da religião.
165
Noël Annan, op. cit. p. 154.
166
Margaret Knight, Humanist Anthology, p. XIII. 137

162
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Na sua Autobiografia, Mill diz: "Sou uma das poucas pessoas


deste país que não perdeu a fé religiosa mas que nunca a conhe-
ceu" 167. Tal como seu pai James Mill, que em tempos pensara or-
denar-se, John Stuart continuou a tomar a religião a sério e a pen-
sar que os seus dogmas deviam ser refutados. Na sua obra Three
Essays on Religion, escrita já quase no fim da vida, Mill tenta mais
uma vez examinar os argumentos a favor e contra a existência de
Deus. As conclusões a que chega são negativas na sua quase tota-
lidade e a principal objecção que tem a pôr é de carácter moral.
Ao olhar para o sofrimento do mundo. Mill achava que era mo-
ralmente repugnante acreditar que um mundo como é aquele em
que vivemos pudesse ser obra do amor de um Deus infinitamente
bom e todo- poderoso.

Citando as suas famosas palavras: "Se a lei de toda a criação


fosse a justiça e se o criador fosse omnipotente, qualquer que
fosse o sofrimento e a felicidade concedidos ao mundo, o quinhão
correspondente a cada pessoa seria rigorosamente proporcional
aos seus actos bons ou maus... Ninguém pode ser cego ao ponto
de não ver que no mundo em que vivemos as coisas se passam de
uma maneira completamente diferente, de tal modo que a neces-
sidade de restabelecer o equilíbrio tem sido considerada um dos
argumentos de maior peso a favor de uma vida depois da morte, o
que equivale a reconhecer que a ordem que vigora nesta vida é
muitas vezes um exemplo de injustiça e não de justiça. Se para
Deus o prazer e a dor não são suficientemente importantes para
que sejam a recompensa dos bons ou o castigo dos maus. e se a
virtude é o maior bem e o vício o maior mal, nesse caso também

167
Mill, Antobiography; Essential Works de Tohn Stuart Mill, Edit. Bantam
Classsics. p. 34.

163
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

eles deveriam ser distribuídos por todos consoante o que tives-


sem feito para os merecer; o que acontece, porém, é que por fa-
talidade do seu nascimento, os homens herdam toda a espécie de
depravações morais, devido às culpas dos pais, da sociedade ou
de circunstâncias incontroláveis. mas certamente não por sua
própria culpa. Nem mesmo a teoria do bem mais distorcida, ja-
mais formulada pela religião ou pelo fanatismo filosófico, conse-
gue apresentar o governo do mundo como sendo obra de um ser
simultaneamente bom e omnipotente" 168. Noutras alturas a sua
repugnância atinge a dimensão dum desafio Prometeico. "Não
chamarei bom a nenhum Ser", diz ele, "que não seja aquilo que
quero dizer quando aplico esse epíteto aos meus semelhantes; e
se um tal Ser me pode condenar ao Inferno pelo facto de não o
fazer, pois então, irei para o Inferno".

Para Mill, como para tantos outros, então como agora, os


fenómenos do mundo que, quando relacionados com a crença
teísta num criador sumamente bom e todo-poderoso, levantam o
problema do mal falam em desabono dessa crença.

O ateísmo de Russel é clássico para não dizer monumental,


baseando-se também nas premissas do séc. XIX. Para Russell o
universo é um facto indiscutível. É, simplesmente 169. A ciência
explica ou virá eventualmente a explicar de modo satisfatório o
seu funcionamento e nada mais é necessário dizer. Russell permi-
tiu-se um único desvio em relação a esta posição num ensaio inti-
tulado "O Culto dum Homem livre" ao seguir o exemplo de Mill e

168
Mill, Three Essays, essay "On Nature"; Essential Works de John Stuart Mill,
Edit. Bantam Classics, p. 386.
169
Cf. as observações que fez no debate com Fr. Copleston; transcritas no seu
livro Why I am not a Christian. Edição portuguesa, Boa-Leitura, Lisboa.

164
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

queixar-se do Universo, por ser diferente daquilo que quereria


que ele fosse.

O Positivismo e Empirismo Lógicos


A crítica feita pela ciência à religião tornou-se mais precisa
nos nossos dias ao ser formulada de acordo com o interesse actu-
al pela semântica e pela filosofia da linguagem. Um exemplo disto
é a crítica segundo a qual a linguagem religiosa não tem qualquer
significado, feita durante a primeira parte do século pelo movi-
mento conhecido por Positivismo Lógico, cujo expoente mais re-
presentativo é Sir A. J. Ayer, presentemente Professor de Lógica
em Oxford. O movimento, porém, teve origem em Viena.

Tomando a linguagem científica como o modelo de toda a


linguagem com significado sobre o mundo, os positivistas respon-
diam à questão sobre o que é que dava significado à linguagem
científica, defenindo um critério conhecido pelo "princípio da veri-
ficação". Tal princípio foi formulado de várias maneiras mas, es-
sencialmente, os Positivistas sustentavam que (a) para uma pro-
posição ter significado devíamos saber em princípio como podia
ser verificado (ou negada) e que (b) a única válida era aquela que
é feita pelos sentidos 170. Segundo eles, as proposições religiosas
(bem como as éticas e as estéticas) não satisfaziam essa condição,
devendo portanto ser rejeitadas como carecendo de significado.

Esta posição está expressa de uma maneira clara e inequívo-


ca no capítulo seis da obra justamente famosa de Ayer Language,
Truth and Logic (1936). Para Ayer, há dois tipos de proposições
com significado. Por um lado, as proposições analíticas - que são

170
Publicado in Russell, Mysticism and Logic.

165
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

mais conhecidas como tautologias - que nada nos dizem acerca do


mundo, limitando-se a ilustrar a nossa insistência em usar símbo-
los de uma determinada maneira. É o caso das definições e de
toda a matemática e lógica. Por outro lado, as proposições sintéti-
cas ou empíricas que nos dizem efectivamente qualquer coisa
sobre o mundo. Para estas últimas o critério do significado é o
princípio da verificação. Não pertencendo a nenhum dos dois gru-
pos, as proposições religiosas reduzem-se a um outro tipo de
afirmação que por ser mais empírica é mais fácil de rejeitar, ou
são automaticamente postas de parte por não terem significado.

O Prof. J. J. C Smart, da Universidade de Adelaide, disse o


seguinte sobre esse ataque à religião: "O maior perigo para o te-
ísmo neste momento não vem das pessoas que negam a validade
dos argumentos a favor da existência de Deus, porque muitos teó-
logos não acreditam que se possa provar essa mesma existência...
O maior perigo para o teísmo vem das pessoas que pretendem
dizer que 'Deus existe' e 'Deus não existe' são duas afirmações
igualmente absurdas. Segundo elas, o próprio conceito de Deus é
absurdo" 171.

Assumindo uma posição semelhante, o Prof. John Mcquarrie


preveniu os homens religiosos de que "há que se enfrentar o de-
safio que a filosofia linguística lança ao pensamento teológico" e
sublinhou que "é um dos desafios mais radicais a que a teologia
jamais teve que fazer face, uma vez que diz respeito não só à ver-
dade mas até ao próprio significado dos princípios religiosos" 172.

171
J. J. C. Smart. "The Existence of God" in New Essays in Philisophical Theology,
Ed. A. N. C. Flew and A. MacIntyre.
172
J. Mcquarrie in Expository Times, Vol. LXVIII, No 12, Set. 1957, p. 365.

166
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Ayer e aqueles que o seguiram tinham sem dúvida tocado no cer-


ne da questão.

A sua posição é de certo modo única na história do ateísmo,


embora, tal como vimos na primeira parte deste estudo, ela esti-
vesse em parte contida na crítica feita por Carnêiades à concep-
ção estóica de Deus. Talvez tenha interesse citar aqui as palavras
do próprio Ayer. Em última análise, Ayer não é nem teísta, nem
ateísta, nem agnóstico. Tal como ele diz: "É importante não con-
fundir esta posição sobre os dogmas religiosos com a dos ateus e
agnósticos. Pois é característico dos agnósticos sustentar que a
existência de Deus é uma possibilidade em que não há razão para
acreditar ou deixar de acreditar, tal como é característico dos
ateus defender que não é provável que exista qualquer Deus. E a
nossa opinião, segundo a qual todas as afirmações sobre a nature-
za de Deus são absurdas, não só não corrobora qualquer das posi-
ções referidas, como na realidade é incompatível com elas. Se a
afirmação que Deus existe é um absurdo, a afirmação que Deus
não existe é igualmente absurda, pois só uma proposição com
significado pode ser coerentemente negada. Quanto ao agnóstico,
embora se abstenha de dizer se Deus existe ou não, não nega que
a questão da existência ou inexistência dum Deus transcendente
seja genuína. Não nega que as duas frases 'Há um deus transcen-
dente' e 'Não há um deus transcendente' expressam duas propo-
sições, das quais uma é verdadeira e outra falsa. Limita-se a dizer
que não temos meios de saber qual delas é a verdadeira e que,
portanto, não devemos defender nenhuma. Mas vimos que essas

167
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

frases não expressam qualquer proposição. Isto quer dizer que


também se deve pôr de lado o agnosticismo"173.

Ayer escreveu estas linhas em 1936. É certo que a situação


sofreu modificações mas não creio que se tenha alterado no es-
sencial. Sob a influência dos últimos escritos de Wittgenstein –
publicados postumamente, de um modo geral com base em apon-
tamentos tirados por alunos seus durante as aulas - os filósofos de
hoje estão mais conscientes do que nunca das funções complexas
da linguagem ou daquilo a que o próprio Wittgenstein chamava a
variedade das gramáticas lógicas ou dos jogos de linguagem. A
crítica da linguagem religiosa, das suas formas e funções, é consi-
derada bem menos simples do que se poderá depreender das
escassas quinze páginas que Ayer dedicou à sua refutação. Parece-
me, no entanto, que agora que temos conhecimento da lógica
complexa da linguagem religiosa, a questão que Ayer expôs de
uma maneira tão clara e inequívoca em relação ao poder cognitivo
de certas proposições religiosas para nos informarem sobre o
mundo e a relação deste com Deus continua a ser questão fun-
damental que o teísmo tem que enfrentar. Pode ser que, tal como
muitos teólogos e filósofos religiosos hoje declaram abertamen-
te 174, a religião seja uma perspectiva, uma atitude, uma maneira
de olhar o mundo mais do que uma explicação descritiva daquilo
que a realidade é efectivamente. Mas, assumir uma tal posição
não equivale apenas a abandonar os dogmas tradicionais da reli-
gião teísta, mas a reconhecer que a maneira naturalista de enten-
der e interpretar a realidade, seus métodos e categorias, é a única

173
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic, pp. 115-116.
174
R. B. Braithwaite, An Empiricist’s View of the Nature of Religious Belief, P. Van
Buren, The Secular Meaning of the Gospel.

168
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

possível; e o naturalismo exclui a religião da esfera cognitiva. Mui-


tos teólogos estão dispostos a aceitar esta posição 175. Mas muitos
outros pensam de outro modo e, tal como o falecido Dr. A. M.
Farrer, o Prof. E. L. Mascall, o P.e Copleston e muitos outros, pro-
curam desenvolver e alargar o velho programa da teologia natural,
convencidos de que o espírito pode atingir racionalmente o co-
nhecimento do ser e natureza de um Deus transcendente.

Outros ainda, tal como o actual Bispo de Durham, Dr. I. T.


Ramsey, estão a tentar formular uma teologia natural baseada
num empirismo mais lato do que aquele que tem prevalecido
desde meados do séc. XVII. A questão continua em aberto.

175
Cf. R. M. Hare, "Theology and Falsification" Sect. B in New Essays in Philosoph-
ical Theology, Edit. A. G. Flew and A. MacIntyre.

169
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

CONCLUSÃO

Eis-nos chegados ao fim deste estudo sobre o ateísmo Oci-


dental - desde a queda da concepção mitológica do mundo provo-
cada pelos filósofos pré-socráticos da Grécia Antiga até ao sólido
naturalismo dos nossos dias. Se ele trouxe ou não alguma luz é
coisa que cabe aos outros julgar. Parece não haver dúvida de que
o desenvolvimento do pensamento verificado na Antiguidade
Clássica voltou a surgir na Europa a partir do Renascimento, com a
diferença que, desta vez, a evolução se processou a partir de uma
natureza considerada como um organismo vivo, como uma cente-
lha de divindade, em direcção a uma concepção de natureza em
que só há vida e só tem significado na medida em que podem ser
quantificados de acordo com as categorias da ciência natural. Este
processo ainda não terminou. O próprio homem permanece não
quantificado e, a pergunta que se põe é: será quantificável? O
homem como objecto da ciência é ainda tal como o Prof. Sir Alfred

170
JAMES THROWER | BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Ayer mostra num artigo recente sob esse título 176, um tema de
controvérsia.

Parece-me, portanto, que a próxima fase da controvérsia da


crença e da descrença irá incidir no homem como ser e é muito
possível que os domínios desconhecidos do ser forneçam uma
analogia que permita olhar de novo para o mundo e ver se há do-
mínios em que a relação do homem com o mundo e a sua apreen-
são do mesmo não são susceptíveis de ser tratadas segundo um
método científico, domínios esses em que o homem toma consci-
ência de Deus.

Será que há para o homem um outro modo de apreender e


compreender a realidade que o rodeia que está ainda por desco-
brir? 177 Não sei. Mas de uma coisa estou certo, é que não se disse
tudo e que a disputa entre aqueles que vêem o mundo e o inter-
pretam em termos naturalistas e aqueles que, embora de uma
maneira vaga, se sentem descontentes com essa posição e enten-
demque há mais para "além", "por detrás" ou "na" natureza e ser
do homem, a que geralmente chamam "Deus" ou o "Divino" se
prolongará ainda por muito tempo.

176
A. J. Ayer, "Man as a Subject for Science" in Philosophy, Politics and Society,
Ed. Peter Lasslett and W. G. Runciman.
177
O Centro de Investigação de Experiência Religiosa, departamento experimen-
tal recentemente criado em Oxford sob a direcção de Sir Alisdair Hardy, aponta-
nos o caminho, embora ainda seja cedo para saber se os resultados desta inicia-
tiva irão provar alguma coisa.

171

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