Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Belo Horizonte
2022
Luca Vilela Zwernemann
Belo Horizonte
2022
2
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
3
SUMÁRIO
1. Introdução..........................................................................................................5
2. Vida e obra de Florestan Fernandes................................................................7
3. A Revolução Burguesa no Brasil....................................................................11
4. A educação e a universidade em Florestan Fernandes.................................17
5. O limite da sociologia acadêmica: a dialética radical de Clóvis Moura......21
6. Panorama geral do escravismo pleno............................................................25
7. Do escravismo pleno à dependência..............................................................32
8. Conclusão.........................................................................................................35
9. Referências.......................................................................................................38
4
1. Introdução
Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real,
esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato
e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos
perfeitamente. No que diz respeito à política, nada temos a invejar ao reino
de Liliput.
5
Na segunda parte, contrapomos as suas reflexões epistemológicas e
sociológicas às do piauiense Clóvis Moura, apontando diferenças e semelhanças
entre o pensamento de ambos. Demonstramos, também, como a análise de Moura a
respeito da desagregação do regime escravista e da emergência da ordem burguesa
representa uma forte ruptura com as principais teses das ciências sociais do século
XX. Discutimos as categorias escravismo pleno e escravismo tardio e os mecanismos
de estagnação e desequilíbrio que levaram à passagem de uma fase à outra e à
emergência do capitalismo dependente.
1
Ver Rodrigues D. (2013, p.633)
6
2. Vida e obra de Florestan Fernandes2
Sua escrita peculiar e provocadora lhe rendia, por isso, não somente uma série
de conflitos teóricos e políticos frutíferos, mas também várias caricaturas e acusações
infundadas. Certo é que a vida de Florestan se confunde com aquilo que há de mais
elementar em seu pensamento: a busca constante pela contradição e pela
transformação radical da sociedade. Nascido em São Paulo no ano de 1920, filho de
uma lavadeira portuguesa e de um pai desconhecido (STEFANELLI, 2004, min. 1)
Florestan cresce nos cortiços de uma metrópole em formação. Na juventude, chega
a trabalhar como engraxate, garçom e alfaiate, antes de ingressar na graduação
noturna de Ciências Sociais, em 1944. A partir daquele momento, a sua vida passa a
se dividir entre dois mundos, como mostram Bastos et al. (2018, p.17). O mundo do
professor catedrático, dos profissionais liberais e da alta intelectualidade paulistana,
por um lado, e o mundo dos trabalhadores, por outro.
2
A maior parte das informações biográficas desta seção foi obtida no curso Celso Furtado e Florestan
Fernandes: dois centenários, ministrado na FACE-UFMG, em 2020, pelo professor João Antônio de
Paula.
7
tanto, publicou, já em 1948, a sua primeira grande obra, sobre a Organização Social
dos Tupinambá (FERNANDES, 1949).
8
(BASTIDE & FERNANDES, 1959), uma obra que Guerreiro Ramos via como um
estudo de caso “sobre minudências da vida social”, isto é, estudos basicamente
empiricistas, à maneira da sociologia americana e seus estudos de caso, que
focalizariam pequenos grupos e comunidades“. (BARIANI, 2006, p.152)
3
Esta interpretação também foi desenvolvida pelo professor João Antônio de Paula no referido curso.
Ver nota 2.
9
Essa inflexão teórica se intensificará a partir do golpe militar de 1964, que
Florestan preferiu identificar como contrarrevolução preventiva (FERNANDES,
2020b, p.442). Ainda no ano de 1964, é publicado A integração do negro na sociedade
de classes, considerado por Almeida (apud FERNANDES 2020a, orelha do livro)
“uma das mais sofisticadas reflexões sobre o capitalismo no Brasil, e que tem no
racismo um de seus elementos centrais”. A partir de 1968, já com o AI-5, a expulsão
da USP, o exílio na América do Norte e o retorno ao Brasil em 1972, Florestan lançou
uma série de obras que formam o núcleo de sua “sociologia militante” (IANNI, 2004):
Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968), Capitalismo Dependente e
Classes Sociais na América Latina (1973), A Revolução Burguesa no Brasil (1975),
Da Guerrilha ao Socialismo: A Revolução Cubana (1979), O que é Revolução?
(1981), Poder e Contrapoder na América Latina (1981) e Significado do Protesto
Negro (1989).
10
3. A Revolução Burguesa no Brasil
11
“a dominação senhorial alcança, dessa maneira, as formas de poder político da
sociedade “nacional” e passa a ser um dos fatores mais importantes da integração de
sua ordem social” (op. cit, p.64). Nesse contexto, “os agentes que “viveram o drama”
e podem ser vistos como principais autores e fautores do desencadeamento da
Revolução Burguesa”, são “o fazendeiro do café e o imigrante” (op. cit, p.123).
Esse fato tem algumas implicações importantes não só para quem analisa a
ideologia burguesa nos países que se emancipavam do sistema colonial, mas
também para quem quer compreender a configuração da ideologia liberal nas antigas
potências coloniais. Se o liberalismo de fato cumpria um papel revolucionário na
Europa ao longo do século XIX, ele se convertia em um dispositivo abertamente
reacionário no nível do mercado mundial. Em artigo do dia 8 de agosto de 1853, no
New York Daily Tribune, Marx (2013a, p.571-572, Tradução livre e grifo nosso)
escreve, por exemplo:
12
Brazil”. (BETHELL, 2015, p.26), o preço pago pelo reconhecimento da independência
já era considerado uma derrota pouco tempo depois. Os tratados foram considerados
Pré 1808 1ª fase (1808 – 1860) 2ª fase (1860 – 1955) 3ª fase (1955 – )
Mercado colonial Mercado interno pequeno Mercado interno médio Mercado interno amplo
4
Obviamente as universidades públicas não desapareceram, mas a quantidade de matrículas em
universidades e faculdades privadas aumenta fortemente a partir da década. Para mais detalhes ver
Fernandes (2020c, p.82)
5
Para um aprofundamento sobre a teoria do imperialismo na obra de Florestan Fernandes ver Conti
(2015)
13
país. Em um segundo momento, correspondente à fase 3, buscou-se uma
autonomização relativa da acumulação interna, sobretudo a partir da abolição – ainda
que tardia, em comparação internacional – da escravidão. A respeito desse dilema,
vale questionar por que o autor não se debruça de maneira aprofundada sobre o papel
exercido pela classe de escravos na transição do primeiro ao segundo período.
Queiroz (2021, p.11-12) afirma corretamente que na interpretação de Florestan “os
elementos políticos dinamizadores estão nas mãos das elites”, enquanto ”o negro,
reduzido a escravo, era entendido apenas como agente econômico, isto é, base da
acumulação capitalista que impulsionaria os efeitos liberalizantes na sociedade
brasileira do século XIX.”
14
p.109), mas sim pelo proletário negro, que solapa de uma só vez o regime de classes
e de raças. De certa maneira, é nesse ponto que a obra de Florestan chega ao fundo
das contradições táticas e estratégicas enfrentadas pelo movimento operário no Brasil
e no mundo. As suas reflexões tardias, inclusive, apontavam cada vez mais nesse
sentido.
Vale lembrar que, ao final de sua vida, Florestan poderia muito bem ter optado
pelo caminho trilhado pela maioria daqueles que o cercavam, como Fernando
Henrique Cardoso, seu amigo pessoal e colega de departamento. Mas não foi isso
que ocorreu. Mesmo atuando no interior da institucionalidade que se estabelecia com
a Nova República – analisada por Florestan de maneira crítica em uma série de
artigos que seriam reunidos em Que tipo de República? (FERNANDES, 1987) – o
agora parlamentar manteve-se fiel às suas posições políticas. Na medida em que a
revolução, seja ela burguesa ou proletária, sempre foi uma preocupação teórica e
política do sociólogo, a contrarrevolução também sempre aparecia, do ponto de vista
do seu entorno intelectual, como opção histórica permanente. Nesse sentido, como
“revolução e contrarrevolução constituem, por consequência, duas faces de uma
mesma realidade” (FERNANDES, 2018, p.34) escolher o segundo caminho, como o
fez FHC, não teria uma opção política difícil.
15
Florestan, porém, não costumava escolher caminhos simples em sua trajetória
intelectual. Apesar de ter sido considerado eclético muitas vezes por causa dessa
característica sui generis, nunca deixava de explorar os problemas sociais até as
últimas consequências (COHN, 2020, apud FERNANDES, 2020b, p.465). Para ele,
somente seria possível apontar, de maneira dialética, para a construção de um mundo
novo, buscando constantemente o ponto de suprassunção (Aufhebung) da
sociabilidade capitalista. Dessa maneira, ao reivindicar indiretamente a realização
histórica de uma Revolução Burguesa inconclusa ou incompleta, Florestan aponta o
socialismo como o caminho mais coerente – do ponto de vista científico – para a
superação do subdesenvolvimento. De acordo com Clóvis Moura (2014),
16
4. A educação e a universidade em Florestan Fernandes
6
Informação obtida no referido curso do professor João Antônio de Paula. Ver nota 2.
17
A defesa da escola pública como uma expressão da necessidade de se
controlar racionalmente o processo de transformação social, toma novos contornos
com o aprofundamento da autocracia burguesa, em 1964. Em entrevista concedida a
José Chasin e Heleieth Safiotti, entre outros, Florestan (1980, p.27) afirma:
18
universidade socialista no Brasil. Nesse ponto, é provável que a experiência nos
Estados Unidos e no Canadá tenha contribuído para a adoção dessa postura mais
revolucionária, já que permitiu a Florestan observar, in loco, as estruturas financeiras,
organizativas e logísticas do sistema universitário do capitalismo central (BLANCO &
BRASIL JR, 2018, p.91). Ademais, é também em Universidade Brasileira que
Florestan passa a defender, de maneira mais explícita, uma leitura leninista a respeito
do papel da universidade. De acordo com ele, em países de capitalismo dependente,
submetidos aos monopólios estrangeiros, como o Brasil, o primeiro passo seria:
(…) fazer uma revolução de natureza mental e técnica, que nos torne aptos
a dar origem às condições instrumentais (de cálculo de custos, de
programação e planejamento educacionais, e de estruturação racional dos
serviços, como um todo e em suas partes), sem as quais a própria
universidade integrada e multifuncional é impossível. (FERNANDES, 2020c,
p.153)
19
Para Florestan, os movimentos socialistas somente conseguiriam conter as
forças reacionárias e conservadoras a partir dessa articulação prolongada entre
técnica e política. São as escolas superiores que possuem os recursos para mobilizar,
por um lado, intelectuais orgânicos em defesa da soberania nacional e popular, e, por
outro, pesquisadoras e pesquisadores interessados na edificação de um complexo
técnico-científico socialmente orientado. Um desafio que, para se concretizar, requer
uma ruptura profunda com o “despotismo” do professor catedrático. Este, diz
Florestan, é o “alfa e o ômega da persistência indefinida do padrão brasileiro de escola
superior”, já que “permanece surdo às críticas renovadoras e impermeável às
exigências da época, timbrando por resguardar ou fortalecer a escola superior
profissional, que o formou segundo a sua própria imagem.” (op.cit, p.133). Florestan
foi duramente criticado e contestado por essa concepção, não só pela direita, mas
também por diferentes setores da esquerda. Guerreiro Ramos, por exemplo,
considerava que a sua postura e linguagem frente aos dilemas da universidade era
demasiadamente polida, defendendo uma ciência mais ousada em que “os fatores
exógenos do conhecimento estão presentes em todas as etapas da produção do
saber sociológico.” (BARIANI, 2006, p.6). Clóvis Moura, por sua vez, teceu críticas
mais indiretas do que as de Guerreiro, conforme veremos de maneira mais detalhada
no próximo capítulo da nossa investigação. Apesar de elogiar Florestan abertamente
em um seminário de 1996, louvando a sua conduta de deixar de ser de “um sociólogo
interessado em um assunto ou no desenvolvimento de um estudo acadêmico” para
“tornar-se um político orientado pela militância daquele segmento oprimido e
discriminado da sociedade racista do Brasil”, Moura (2014) faz uma ressalva,
afirmando que essa contradição entre o discurso acadêmico e uma práxis
revolucionária nunca foi totalmente resolvida. No entanto, acrescenta, Florestan se
distingue justamente pela autoconsciência crítica a respeito desse dilema; e apesar
de fechado, o circuito do seu pensamento encontra-se sempre na iminência de
abertura, pois é permanentemente inundado por elementos externos e negativos,
notadamente aqueles provenientes do movimento negro. Ou seja: o sociólogo
piauiense reconhece a importância da sociologia militante de Florestan, mas
negando-a. Junta-se a ela, mas como elemento externo e dinâmico, incorporando o
que ela tem de mais avançado. Se Florestan nos diz o que fazer – para aludirmos ao
famoso ensaio de Lenin (2015) – é com Moura, portanto, que descobrimos o como.
20
5. O limite da sociologia acadêmica: a dialética radical de Clóvis Moura
(...) o rapaz abandonasse o plano original, pois morava numa região onde a
escravatura não tinha tido um grande papel. E, mais grave, ali não teria
condições de ter acesso às fontes históricas necessárias para desenvolver
tão ousado projeto. Então, propunha que o missivista pegasse a ‘pena’ e
contasse ‘com toda simplicidade’ o que ‘observava à sua volta’. Ou seja,
descrevesse a situação do sertão baiano, onde vivia. Uma sugestão bastante
prudente. Nove entre dez orientadores acadêmicos proporiam a mesma
coisa. (BUONICORE, 2020, p.19)
O livro, que acabou sendo publicado pela editora Zumbi em 1959 e reeditado
várias vezes – a última edição é de 2020 – conta com 10 capítulos, bastante diversos.
De acordo com Munanga (apud Moura, 2020b, p.16) é o primeiro trabalho científico
21
no Brasil que combate a figura do negro submisso e ausente no processo histórico,
tirando-o da posição de mero objeto de pesquisa acadêmica. Para Queiroz e Gomes
(2021, p.741), por sua vez,
7
Sobre a influência de Karl Mannheim na obra de Florestan Fernandes e Celso Furtado, ver Cêpeda
& Mazucato (2015) e Rezende (2004)
8
Trata-se de uma dinâmica recorrente nas ciências sociais acadêmicas. Nos anos 1980, a crítica social
do julgamento de Bourdieu (1988, 2007), por exemplo, teve um papel semelhante.
22
Enquanto alguns autores, como Artur Ramos, mantinham-se fieis ao racismo
científico de Nina Rodrigues e Sílvio Romero (1890), requintando-o com argumentos
psicanalíticos extraídos de autores como Freud, Jung e Adler, outros, influenciados
pelo culturalismo de Boas (2010), como Gilberto Freyre e Afonso Arinos de Melo
Franco (2001), buscavam relativizá-lo, em maior ou menor grau, com argumentos
culturalistas e etnológicos. Florestan Fernandes assume um papel bastante ambíguo
nesse contexto. De fato, o projeto iniciado em Brancos e Negros em São Paulo
(BASTIDE & FERNANDES, 1959) e concluído em Integração do Negro na Sociedade
de Classes, trazia mudanças bastante significativas. Pela primeira vez, o racismo era
reconhecido como fenômeno social concreto a ser estudado; e a tese da democracia
racial de Freyre era frontalmente atacada. No entanto, a questão ainda assim
continuava a ser vista – devido à forte influência mannheimiana do autor – de maneira
particularizada, no curto prazo histórico. A respeito disso, Moura (2020b, p.32) afirma:
23
com a modernização capitalista observada em determinados segmentos da
sociedade – e as tecnologias novas passaram a alimentar as estruturas arcaicas.
Consequentemente, mudaram não só as estruturas senhoriais de exercício do poder
político – muito bem examinadas por Florestan, como vimos – mas também a forma
e a linguagem das rebeliões escravas.
24
6. Panorama geral do escravismo pleno
ta
52
55
57
60
62
65
67
70
72
75
77
80
82
85
To
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
01
26
51
76
01
26
51
76
01
26
51
76
01
26
15
15
15
15
16
16
16
16
17
17
17
17
18
18
Embarcados Desembarcados
Fonte: elaboração própria com dados do Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico
25
mesmo contraditória. Se, pelo lado da oferta, ela gerava um excedente aos agentes
atuantes no tráfico internacional – agora uma esfera semiautônoma ou autônoma de
acumulação – ela também dependia, pelo lado da procura, de uma ampliação dos
mercados de escoamento do excedente produzido nas lavouras e plantations
demandantes de mão de obra escrava. Clóvis Moura mostra como os lucros
extraordinários alcançados nesse sistema elevaram sobremaneira o peso do
mercado capitalista na demais esferas da economia, consolidando o processo de
acumulação primitiva e de subsunção real do trabalho ao capital. Gilroy (1993), por
sua vez, fala em Atlântico Negro, uma “realidade geográfica e espaçamento
discursivo-cultural que foi constantemente ziguezagueado por movimentos dos povos
negros (não só como sujeitos escravizados, mas também nas suas lutas por
emancipação, autonomia e cidadania)” (QUEIROZ, 2017, p.37). Esse sistema social,
cultural e econômico não só subordinou e pautou as demais atividades produtivas na
América, mas também dinamizou e ampliou a si mesmo, dando origem ao processo
de valorização do valor.9 Como potência comercial ascendente, a Inglaterra foi a
nação que mais se beneficiou dessa “caça comercial de peles negras10”:
9
Vale ressaltar que a palavra “origem” aqui empregada não deve ser entendida de maneira positivista,
mas sim dialética, tal como Marx ressalta já no início do capítulo 24, quando faz questão de lembrar
que o processo de acumulação primitiva não é totalmente anterior nem exterior ao capitalismo.
10
No capítulo 24 do Livro I d‘o Capital, Marx (2008, p. 821) afirma: “A descoberta das terras auríferas
e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas
minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva
para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista.“
26
nesse setor em substituição à lã, os industriais ingleses tiveram de depender
dos mercados produtores do ‘ouro branco’. Mais de quatro milhões de
pessoas viviam, direta ou indiretamente, dessa indústria.
27
a concepção moderna de liberdade como possuir a si mesmo está
atrelada ao tráfico de escravos e à escravização de milhões de
africanos; e o racismo, enquanto dimensão estruturante e necessária
da escravidão e da empreitada colonial, ganha espaço central.
(QUEIROZ, 2017, p.81)
No Brasil, por sua vez, ao contrário dos Estados Unidos, o principal produto da
expansão econômica escravagista não foi o algodão. Conforme é possível ver no
gráfico apresentado abaixo, a região que cresceu de maneira mais vigorosa no início
do período colonial foi o Nordeste, com o seu complexo açucareiro (Furtado, 2007,
p.75). Baseado na utilização de mão de obra escrava, este caracterizava-se por uma
grande concentração de renda e poder nas mãos dos senhores de engenho.
28
Número documentado e região de chegada das
pessoas escravizadas no Brasil
1.500.000
1.425.000
1.350.000
1.275.000
1.200.000
1.125.000
1.050.000
975.000
900.000
825.000
750.000
675.000
600.000
525.000
450.000
375.000
300.000
225.000
150.000
75.000
0
ão
0
5
65
67
70
72
75
77
80
82
85
87
gi
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
-1
re
26
51
76
01
26
51
76
01
26
51
or
16
16
16
17
17
17
17
18
18
18
lp
ta
To
Amazônia Pernambuco Bahia Sudeste Total
Fonte: elaboração própria com dados do Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico11
Por isso, de acordo com Moura (2020b, p.159), onde quer que a escravidão
surgisse, o quilombo surgia junto, enquanto “unidade básica de resistência do
escravo”. Em alguns casos, com até vinte mil integrantes, como no quilombo Campo
Grande – presente no sul de Minas Gerais entre aproximadamente 1720 e 1759 (op.
cit, p.167). Dentre as táticas de luta adotadas dentro e fora dos quilombos, destacam-
se, para Moura (op. cit, p.397),
• Suicídios
• Assassinatos dos próprios filhos ou de outros escravos
• Ataques a fazendas, engenhos e casas de senhores
• Tentativas de assassinato dos senhores
• Incêndios em canaviais
• Participação em atividades de garimpo e contrabando de diamantes
• Insurreições citadinas e guerrilhas em matas e estradas
• Raptos e sequestros de outros escravos
11
Ressaltamos que os números contidos no banco de dados, apesar de serem uma amostra
significativa, são muito inferiores aos números reais.
29
Tudo isso representava, de acordo com o autor, “uma subtração ao conjunto das
forças produtivas dos senhores de engenho” (op. cit, p.160), que, para obterem os
maiores retornos possíveis dos seus investimentos, não tinham outra opção senão o
desenvolvimento de um rígido aparelho de subordinação e repressão social. Este,
contudo, nem sempre tinha êxito imediato, e muitas vezes os senhores tinham que
mobilizá-lo repetidas vezes para conseguirem destruir um quilombo, como foi o caso,
entre outros, nos de Ambrósio e Palmares (op. cit, p.171). Este último, com efeito,
recebe uma atenção especial por parte do autor, não só por ter sido o maior12 e mais
famoso, “a maior tentativa de autogoverno dos negros fora do continente africano”
(op. cit, p.299), mas também devido às caricaturas e lendas construídas a seu
respeito.
Moura mostra que Palmares seguia uma organização política republicana, tendo
como instância deliberativa um conselho composto pelos principais chefes de
quilombo da região. Além disso, havia também um exército, comandado por Ganga-
Muiça, e que tinha o seu quartel general no mocambo de Subupira, onde havia mais
de 800 casas (op. cit, p.302) e uma rígida estrutura de defesa. No nível da
organização social, por sua vez, as famílias poliândricas e poligâmicas13 eram as
unidades fundamentais, não por fatores de exostismo, como quer Gilberto Freyre
(2001, p.93):
mas sim “em consequência das circunstâncias em que os seus habitantes não podiam
controlar: a desproporção gritante entre os sexos” (op. cit, p.304). Evitava-se, dessa
maneira, que a coesão econômica, social e militar do quilombo fosse afetada, algo
que de fato só ocorreu depois que sucessivas incursões militares da coroa portuguesa
12
De acordo com Moura (p.303) a área da República de Palmares era de aproximadamente 27.000
quilômetros quadrados, o equivalente, em termos atuais, a países como Haiti, Ruanda ou Albânia.
13
A poliandria funcionava “majoritariamente no conjunto da comunidade que não tinha níveis de poder
decisório nos assuntos mais importantes”, ao passo que a poligamia era praticada “pelos membros da
estrutura de poder que governava a República” (MOURA, p.303-304)
30
levaram, ao final dos anos 1670, à morte de vários integrantes da República e ao
acirramento das disputas internas pelo poder político.
31
7. O escravismo tardio e a consolidação da dependência
14
Não vem ao caso, aqui, um detalhamento de todos os movimentos que precederam a independência.
Para mais informações, ver o segundo capítulo de Moura (2020b)
15
Importante ressaltar que o movimento teve várias frações. Ainda que tenham lutado por uma mesma
causa, figuras como Luís Gama e Joaquim Nabuco, por exemplo, tinham visões completamente
diferentes a respeito do sentido histórico da abolição.
32
também compreendia que a adoção plena desses mesmos padrões teria abalado
todos fundamentos de toda a ordem social, levando à ampliação da participação
popular na renda nacional. Desse impasse surgiu uma contradição que marca o
capitalismo dependente até os dias atuais: Ao contrário do que ocorre com a ideologia
burguesa dos países centrais, cuja essência está no apagamento, na mistificação e
na fetichização daquilo que vem de fora, a ideologia burguesa dos países
dependentes oculta aquilo que vem de dentro – no caso concreto que estamos
analisando, a contribuição ativa da classe de escravos na formação da sociedade
nacional. Ou melhor: enquanto a ideologia racista nos países centrais se agarra
sobretudo à figura do inimigo externo – imigrantes, negros, judeus, eslavos e
estrangeiros – nos países da América Latina ela tem como objeto principal o inimigo
interno.
33
Ora, num momento histórico em que o exército de Caxias – surgido justamente
no interior dessa irracionalidade brutal que o autor nos apresenta – parece prender-
se novamente ao poder; e em que a violência contra a população negra do Brasil se
encontra, como observamos nos gráficos abaixo, em patamares que não podemos
caracterizar senão como fascistas, a análise histórica de Moura transcende os limites
do puro discurso acadêmico. Ela se torna, em si mesma, uma arma concreta de
transformação do real, um dispositivo a serviço daqueles que desejam transformar o
Brasil.
34
8. Conclusão
16
Como contraponto a essa afirmação ver Nascimento (2016)
17
Quanto à ideia de que não teria havido esterilização, em grande escala, da herança cultural dos
povos colonizados, vale lembrar do seguinte comentário de Lélia Gonzalez: “Como consciência a gente
entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber.
É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber
que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da
emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a
memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso
dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição
do que ela, consciência, afirma como a verdade.” (GONZALEZ, Lélia, 1984, p.233-234)
35
simbiose de dominados e dominadores, e a emergência de nova realidade
cultural. (FURTADO, 1976, p.127, grifo nosso)
36
Por fim, é preciso pontuar uma última questão. Apesar de ambos os autores,
sobretudo Moura, terem abordado o racismo e a história da população negra no Brasil
em obras específicas, dando a ela um destaque especial, como procuramos
demonstrar, nenhum dos dois autores a via de maneira “isolada”. Ambos sempre
buscaram “inseri-la” – se é que esse termo é adequado – em um projeto teórico mais
amplo, de caráter universal. Por isso, caso alguns leitor tenha se estranhado ao se
deparar com reflexões que tenha julgado “desconexas” com o assunto principal, o
nosso trabalho terá cumprido o seu papel. Afinal, o objetivo18 de Florestan e Clóvis
Moura era precisamente esse: mostrar que a luta da população negra não é um
circuito fechado19 em si mesmo, mas sim um movimento de caráter revolucionário
que submete todos os campos da vida social – a cultura, a educação, a política e a
economia, entre outros, – a tensionamentos constantes e permanentes. Ambos os
autores nos provam, do ponto de vista histórico, que olhares míopes para o passado
nunca se justificam, nem mesmo nos contextos em que a burguesia e seus
intelectuais orgânicos mais clamam por eles. Além disso, os dois também nos
deixaram um alerta profundamente atual: o de que não há mais como pensar o
capitalismo dependente e aquilo que o define concretamente – transferências
internacionais de valor, superexploração da força de trabalho e destruição das bases
autônomas de acumulação – sem pensar as questões mais elementares da formação-
econômico social brasileira. Ou pensamos o Brasil naquilo que ele de fato é, ou nunca
seremos capazes de transformá-lo naquilo que ele pode vir a ser.
18
Se os autores apresentados conseguiram alcançar esse objetivo ou se esbarraram – como diz o
título da nossa investigação – nos limites da sociologia acadêmica no capitalismo dependente, cabe
ao leitor decidir.
19
O termo ”circuito fechado“ amplamente discutido neste trabalho, tem um papel fundamental na
sociologia de Florestan Fernandes. Caso o leitor queira buscar mais informações a seu respeito,
recomendamos que veja o artigo de Bastos (2020)
37
REFERÊNCIAS
BASTOS, Elide Rugai. A história nunca se fecha. Sociologia & Antropologia [online].
2020, v. 10, n. 2. pp. 677-694.
BECKERT, Sven. Empire of Cotton: A Global History. New York: Alfred A. Knopf,
2014
38
CARDOSO, Fernando Henrique. Classes sociais e história: considerações
metodológicas. In: Cardoso, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização.
Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1975.
39
_________. Florestan Fernandes: a pessoa e o político. [Entrevista concedida a] J.
Chasin, H. Saffioti, P. Barsotti, N. Rodrigues Jr., M. Pottes, E. Vaisman e P. Rezende.
Escrita/Ensaio, São Paulo. n.8. p.9-40. Dez 1980.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 42. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007
_________. Prefácio à Nova Economia Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
LENIN, V.I. Que Fazer?: problemas candentes do nosso movimento. São Paulo:
Expressão Popular, 2015.
MARX, Karl; Artikel über Indien und China in der New York Daily Tribune. In:
MARX, Karl. Werke, Schriften: Politische Schriften. Darmstadt: Lambert Schneider,
2013a
40
_________. Das Kapital: Kritik der Politischen Ökonomie. Band I. In: MARX, Karl.
Werke, Schriften: Ökonomische Schriften I. Darmstadt: Lambert Schneider, 2013b
_________. Dialética Radical do Brasil Negro. 3 ed. São Paulo: Anita Garibaldi,
2020a
41
RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. 3.ed. Rio de Janeiro: 3. Ed
UFRJ, 1996.
ROMERO, Sílvio. A história do Brasil ensinada pela biografia dos seus heróis. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1890
42