Você está na página 1de 42

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS


PROGRAMA DE EDUCAÇÃO TUTORIAL

LUCA VILELA ZWERNEMANN

A DIALÉTICA RADICAL DO “CIRCUITO FECHADO”: Florestan Fernandes, Clóvis


Moura e os limites da sociologia acadêmica no capitalismo dependente

Belo Horizonte
2022
Luca Vilela Zwernemann

A dialética radical do “circuito fechado”:

Clóvis Moura, Florestan Fernandes e os limites da sociologia acadêmica no


capitalismo dependente

Monografia apresentada ao Programa de


Educação Tutorial (PET) do curso de
graduação em Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Minas Gerais
(FACE/UFMG), no primeiro semestre de
2022.
Orientador: Leonardo Gomes de Deus

Belo Horizonte
2022

2
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho


Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

(História Para Ninar Gente Grande)

3
SUMÁRIO

1. Introdução..........................................................................................................5
2. Vida e obra de Florestan Fernandes................................................................7
3. A Revolução Burguesa no Brasil....................................................................11
4. A educação e a universidade em Florestan Fernandes.................................17
5. O limite da sociologia acadêmica: a dialética radical de Clóvis Moura......21
6. Panorama geral do escravismo pleno............................................................25
7. Do escravismo pleno à dependência..............................................................32
8. Conclusão.........................................................................................................35
9. Referências.......................................................................................................38

4
1. Introdução

A modernização capitalista do Brasil, desencadeada nas últimas décadas do


século XIX (BAMBIRRA, 2019, p.57), produziu uma série de interpretações, teses e
propostas a respeito dos fundamentos da economia e da sociedade brasileira.
Enquanto algumas passaram relativamente despercebidas, outras foram
prontamente assimiladas pelas classes e frações de classe em confronto. Machado
de Assis (1861 apud. SUASSUNA, 1999), símbolo do período em questão, chegou a
definir o problema da seguinte maneira:

Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real,
esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato
e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos
perfeitamente. No que diz respeito à política, nada temos a invejar ao reino
de Liliput.

A contradição apontada por Machado, onipresente na história nacional e


profundamente enraizada na identidade brasileira, pode ser abordada de diferentes
formas. No presente trabalho, buscamos destrinchá-la por um caminho que, apesar
de já ter sido exaustivamente explorado por pensadoras e pensadores atentos,
permanece incontornável. Trata-se da discussão a respeito da formação econômico-
social brasileira, do processo de “integração do negro na sociedade de classes”; e
das robustas respostas teóricas e científicas que o Brasil real – o Brasil de Machado
– deu às caricaturas e aos mitos do Brasil oficial. Para tanto, focamos na obra de dois
cientistas sociais, Florestan Fernandes e Clóvis Moura, que, de maneira pioneira,
tentaram encontrar as respostas aos dilemas nacionais não no interior do romantismo
que ressurge em nosso país de tempos em tempos, mas sim do socialismo científico.

Na primeira parte do trabalho, tratamos, de maneira resumida, da vida e da


obra de Florestan Fernandes, com ênfase nas suas influências intelectuais, políticas
e acadêmicas. Também debatemos alguns elementos do ensaio A Revolução
Burguesa no Brasil e os motivos pelos quais ele representa, aos nossos olhos, uma
síntese do sistema teórico proposto pelo autor. Por fim, analisamos a atuação de
Florestan no campo da educação e os dilemas enfrentados pelo sociólogo no
ambiente acadêmico, com destaque para as suas reflexões sobre o papel da
universidade na superação do subdesenvolvimento.

5
Na segunda parte, contrapomos as suas reflexões epistemológicas e
sociológicas às do piauiense Clóvis Moura, apontando diferenças e semelhanças
entre o pensamento de ambos. Demonstramos, também, como a análise de Moura a
respeito da desagregação do regime escravista e da emergência da ordem burguesa
representa uma forte ruptura com as principais teses das ciências sociais do século
XX. Discutimos as categorias escravismo pleno e escravismo tardio e os mecanismos
de estagnação e desequilíbrio que levaram à passagem de uma fase à outra e à
emergência do capitalismo dependente.

A partir das reflexões postas em livros como Rebeliões da Senzala, Dialética


Radical do Brasil Negro e A Sociologia posta em questão, por fim, debatemos não só
os limites da reflexão sociológica pura de Florestan, simbolizada pela categoria
circuito fechado, mas também algumas contradições do pensamento de outros
cientistas sociais do século XX, como Celso Furtado, Gilberto Freyre e Fernando
Henrique Cardoso. Ainda que a nossa análise tenha um caráter essencialmente
introdutório, sem os aprofundamentos necessários para uma crítica mais aguda, nos
arriscamos a dizer que as principais lacunas e fragilidades do pensamento destes
autores surgiram no momento em que eles aceitaram a ideologia – refutada por
Florestan e Moura – do equilíbrio entre dominados e dominadores. Embora essa
ideologia de fato tenha se constituído como uma mola propulsora da economia
brasileira, como ideia-força necessária à superação das crises agudas e permanentes
do capitalismo dependente, ela sempre esteve presa à esfera da modernização sem
mudança social. Clóvis Moura se utiliza de uma metáfora que demonstra bem esse
argumento – e que é um bom ponto de partida para o leitor do nosso trabalho. De
acordo com Moura, os nossos dilemas contemporâneos são um reflexo do fato de
sermos o único país em que, “no fim do escravismo, os senhores podiam caçar negro
fugido através do telefone” – o mesmo telefone, aliás, que hoje, mais de 100 anos
depois, continua sendo usado na filmagem de assassinatos, linchamentos e atos de
tortura1 Brasil afora.

1
Ver Rodrigues D. (2013, p.633)

6
2. Vida e obra de Florestan Fernandes2

Quando o assunto é o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, a obra de


Florestan Fernandes merece um lugar especial. De fato, sua produção intelectual,
marcada ora por uma rigidez teórico-metodológica profunda, ora por arriscadas
empreitadas intelectuais, nem sempre foi recebida de maneira unânime. De acordo
com Clóvis Moura (2014, p.1), no Brasil,

(…) é aquela que apresenta maior leque de diversificações. Desde as


contribuições teóricas propriamente ditas, às discussões na área da
etnografia e etnologia, do folclore, do problema educacional, da sociologia
do desenvolvimento, e, especialmente, das relações interétnicas no Brasil.

Sua escrita peculiar e provocadora lhe rendia, por isso, não somente uma série
de conflitos teóricos e políticos frutíferos, mas também várias caricaturas e acusações
infundadas. Certo é que a vida de Florestan se confunde com aquilo que há de mais
elementar em seu pensamento: a busca constante pela contradição e pela
transformação radical da sociedade. Nascido em São Paulo no ano de 1920, filho de
uma lavadeira portuguesa e de um pai desconhecido (STEFANELLI, 2004, min. 1)
Florestan cresce nos cortiços de uma metrópole em formação. Na juventude, chega
a trabalhar como engraxate, garçom e alfaiate, antes de ingressar na graduação
noturna de Ciências Sociais, em 1944. A partir daquele momento, a sua vida passa a
se dividir entre dois mundos, como mostram Bastos et al. (2018, p.17). O mundo do
professor catedrático, dos profissionais liberais e da alta intelectualidade paulistana,
por um lado, e o mundo dos trabalhadores, por outro.

Visando criar uma sociologia genuinamente brasileira desde os seus primeiros


dias enquanto cientista, Florestan dedicou-se, entre outros, ao estudo das classes
populares, dos imigrantes, dos negros e dos indígenas. Abordou esses grupos
sociais, no entanto, buscando romper com as ideias postas por autores como Oliveira
Viana (2005), Gilberto Freyre (2001) e Nina Rodrigues (2010, 2011) e com visões
vanguardistas e impressionistas como as de Sérgio Buarque de Holanda (1995). Para

2
A maior parte das informações biográficas desta seção foi obtida no curso Celso Furtado e Florestan
Fernandes: dois centenários, ministrado na FACE-UFMG, em 2020, pelo professor João Antônio de
Paula.

7
tanto, publicou, já em 1948, a sua primeira grande obra, sobre a Organização Social
dos Tupinambá (FERNANDES, 1949).

A respeito desses primeiros passos no mundo acadêmico, é importante notar


que Florestan também se dedicava à militância política. Em 1946, atuante no Partido
Socialista Revolucionário (DA SILVA, 2012, p.55) – posto na clandestinidade pelo
Estado Novo – Florestan traduziu e introduziu Contribuição à Crítica da Economia
Política, de Marx (2008, p.19-44). Esse contato primário com o marxismo e com o
método de Marx permitiu que ele desenvolvesse um conjunto de ferramentas de
análise social que nunca mais abandonou ao longo de sua vida, mas também
representou um obstáculo crescente em termos de inserção nos circuitos acadêmicos
dominantes. De acordo com Sacchetta (1996, p.1),

(...) com o passar do tempo, encargos intelectuais, discentes e depois


docentes, foram exigindo uma dedicação cada vez maior. Diminuía sua
disponibilidade para a ação política, o que criava problemas de consciência
no militante devotado e leal. Nesse momento, segundo recordava com muito
carinho, foi aconselhado por Sacchetta a optar pelo trabalho na universidade,
em tempo integral, onde poderia ser mais útil ao movimento socialista.

Florestan se tornou livre-docente no Departamento de Sociologia da


Universidade de São Paulo no início da década de 1950, um período marcado por
mudanças sociais e políticas profundas. Inicialmente, o sociólogo se dedicou
intensamente aos debates metodológicos, publicando, entre outros, Ensaio sobre o
método de interpretação funcionalista na sociologia (FERNANDES, 1953) e A
etnologia e a sociologia no Brasil (FERNANDES, 1958). Nesse último texto, em
específico, Florestan debate algumas questões que haviam sido levantadas por
Alberto Guerreiro Ramos, no II Congresso Latino-Americano de Sociologia. De modo
geral, o debate entre os dois pensadores girou em torno das formas de investigação
sociológica necessárias à apreensão e transformação da realidade nacional.
Enquanto Guerreiro Ramos compreendia que a superação do subdesenvolvimento
dependia fundamentalmente de esforços racionais de planificação estratégica,
ancorados em uma “redução sociológica” (RAMOS, 1996, p.57-58) verdadeiramente
brasileira, Florestan, à época bastante próximo do funcionalismo estadunidense,
valorizava o estudo de particularidades objetivas (BARIANI, 2006, p.159). Em
conjunto com Roger Bastide, publica, por exemplo, Brancos e Negros em São Paulo

8
(BASTIDE & FERNANDES, 1959), uma obra que Guerreiro Ramos via como um
estudo de caso “sobre minudências da vida social”, isto é, estudos basicamente
empiricistas, à maneira da sociologia americana e seus estudos de caso, que
focalizariam pequenos grupos e comunidades“. (BARIANI, 2006, p.152)

A relação de Florestan não só com o funcionalismo, mas também com a


sociologia weberiana e o marxismo, merecem atenção especial nesse sentido.
Mobilizando ferramentas dessas três correntes teóricas, o autor foi capaz de articular
aquele que talvez seja uma das categorias mais importantes de sua obra: ordem
social competitiva. Se o funcionalismo de Durkheim o ajudou a descrever
objetividades e fenômenos pontuais com alcance médio (tipo médio) na vida social,
sem digressões profundas sobre a relação entre o universal e o particular, a sociologia
de Weber lhe deu algo a mais. Permitiu que ele desenvolvesse um verdadeiro filtro
de particularidades, isto é, um mecanismo de seleção dos tipos ideais mais
proveitosos à explicação da realidade brasileira e mundial3. Em Weber (1923, p.15),
no entanto, a ação social pragmática obedece, em si mesma, ao cálculo entre meios
e fins. Se há meios sem fins ou fins sem meios, não há racionalidade. E se não há
racionalidade, não há história.

Por isso, o pensamento de Marx foi fundamental para Florestan. A partir da


leitura da Crítica da Economia Política, o autor compreendeu que a falta de “rumo
social” decorrente da concorrência capitalista expressa o fato de o capital se
reproduzir ora de maneira irracional, mesmo tendo fins claros, ora de maneira
racional, mesmo tendo fins indefinidos. Falar em ordem social competitiva só faria
sentido, portanto, se levados em conta a dialética entre preços de produção e preços
de mercado e os mecanismos de nivelamento da taxa de lucro no mercado mundial.
Não bastava olhar para a concorrência enquanto epifenômeno da modernidade, como
queria o acomodado weberianismo uspiano. Era preciso compreender as raízes
histórico-concretas da formação do mercado mundial e, no caso brasileiro em
específico, a inserção do país nessa ordem internacional.

3
Esta interpretação também foi desenvolvida pelo professor João Antônio de Paula no referido curso.
Ver nota 2.

9
Essa inflexão teórica se intensificará a partir do golpe militar de 1964, que
Florestan preferiu identificar como contrarrevolução preventiva (FERNANDES,
2020b, p.442). Ainda no ano de 1964, é publicado A integração do negro na sociedade
de classes, considerado por Almeida (apud FERNANDES 2020a, orelha do livro)
“uma das mais sofisticadas reflexões sobre o capitalismo no Brasil, e que tem no
racismo um de seus elementos centrais”. A partir de 1968, já com o AI-5, a expulsão
da USP, o exílio na América do Norte e o retorno ao Brasil em 1972, Florestan lançou
uma série de obras que formam o núcleo de sua “sociologia militante” (IANNI, 2004):
Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968), Capitalismo Dependente e
Classes Sociais na América Latina (1973), A Revolução Burguesa no Brasil (1975),
Da Guerrilha ao Socialismo: A Revolução Cubana (1979), O que é Revolução?
(1981), Poder e Contrapoder na América Latina (1981) e Significado do Protesto
Negro (1989).

Apesar de trazerem discussões diversas, todas essas obras estão ancoradas


em um núcleo comum que é a descrição dos conflitos e dilemas internos à ordem
social competitiva. Por isso, entende-se que o mais importante aqui não é detalhar
com precisão as reflexões postas em cada uma delas, mas sim elucidar, a partir da
análise de alguns textos em específico, o que há de fundamental no sistema teórico
proposto por Florestan Fernandes. Hoje, parece consensual que A Integração do
Negro na Sociedade Classes e A Revolução Burguesa no Brasil – reeditados pela
Editora Contracorrente em 2020 – talvez sejam os textos mais impactantes do autor,
conforme se buscará demonstrar a seguir. Embora tenham sido publicados com um
intervalo de aproximadamente dez anos de diferença, fazem parte de um mesmo
projeto teórico-político.

10
3. A Revolução Burguesa no Brasil

Em A Revolução Burguesa no Brasil, o objetivo de Florestan consiste,


resumidamente, em explicar o que há de específico no tipo de capitalismo existente
no Brasil desde o século XIX. De acordo com o autor,

(…) falar em Revolução Burguesa, nesse sentido, consiste em procurar os


agentes humanos das grandes transformações histórico-sociais que estão
por trás da desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação
de uma sociedade de classes no Brasil.(FERNANDES, 2020b, p.37)

No ensaio, que mescla objetividade sociológica com formalismo literário, Florestan


capta as particularidades da revolução burguesa no Brasil, diferenciando-a daquelas
ocorridas em países como Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Japão
e Itália, entre outros. Em um primeiro momento o autor ressalta, portanto, que a
independência do Brasil configurava uma independência parcial, já que a tutela
externa deixava de ser portuguesa para ser britânica.

Nem mesmo a abdicação de Dom Pedro I ao trono conseguiu, de fato,


engendrar um processo de autonomização econômico-cultural semelhante àquele
que se observava nos países do centro do sistema capitalista. De acordo com
Florestan, houve, entre 1808 e 1850, um período semicolonial, em que a
independência formal se mesclava com a dominação colonial e estamental própria do
Antigo Regime. Apesar de contraditória e autocrática, a independência se realiza; e
avança:

(...) a transformação do horizonte cultural das camadas dirigentes, a


reorganização do fluxo da renda e do sistema econômico, o aparecimento e
a intensificação de mecanismos permanentes de absorção cultural e a
emergência da política econômica como dimensão técnica da burocratização
da dominação estamental (FERNANDES, 2020, p.80).

Mas quais agentes teriam impulsionado, do ponto de vista sociológico, esse


processo de transição? Na primeira parte da obra, Florestan mostra que, logo após a
ruptura do estatuto colonial, o senhor de engenho passou a ser responsabilizado pela
implantação de um Estado nacional e a “sua capacidade de entender a significação
política dos privilégios sociais comuns aumentou” (op.cit, p.63). De acordo com ele,

11
“a dominação senhorial alcança, dessa maneira, as formas de poder político da
sociedade “nacional” e passa a ser um dos fatores mais importantes da integração de
sua ordem social” (op. cit, p.64). Nesse contexto, “os agentes que “viveram o drama”
e podem ser vistos como principais autores e fautores do desencadeamento da
Revolução Burguesa”, são “o fazendeiro do café e o imigrante” (op. cit, p.123).

No momento em que o fazendeiro do café, representante do capital exportador,


deparou-se com “o complexo problema de como criar uma nação num país destituído
até das condições elementares mínimas de uma sociedade nacional” (op. cit, p.55),
surge, de acordo com Florestan, um liberalismo especificamente brasileiro. A ruptura
puramente ideológica entre o passado e o presente promovia uma força histórica que
“se impunha como um momento de vontade indecisa” (op.cit, p.72, grifo nosso),
mantendo intactas as estruturas da grande lavoura escravista. Por isso, na medida
em que a sociedade civil nascia enquanto reafirmação do status patrimonialista, o
liberalismo tinha que se apresentar naturalmente de maneira contrarrevolucionária.

Esse fato tem algumas implicações importantes não só para quem analisa a
ideologia burguesa nos países que se emancipavam do sistema colonial, mas
também para quem quer compreender a configuração da ideologia liberal nas antigas
potências coloniais. Se o liberalismo de fato cumpria um papel revolucionário na
Europa ao longo do século XIX, ele se convertia em um dispositivo abertamente
reacionário no nível do mercado mundial. Em artigo do dia 8 de agosto de 1853, no
New York Daily Tribune, Marx (2013a, p.571-572, Tradução livre e grifo nosso)
escreve, por exemplo:

Eu não posso abandonar a questão indiana sem algumas palavras finais. A


hipocrisia profunda e a barbaridade natural da cultura burguesa estão
explícitas em frente aos nossos olhos. Basta olharmos, a partir de sua
terra natal, onde ela se esforça em ter modos respeitáveis, para as
colônias, onde aparece com toda a sua nudez. (...) As consequências
devastadoras da indústria britânica sobre a Índia, um país do tamanho da
Europa e com uma área 150 milhões de acres, estão explícitas hoje em dia
e são terríveis.

O liberalismo europeu, sobretudo britânico, encontrou um terreno ambíguo não


só na Índia, como mostra Marx, mas também no Brasil. Se, em 1824, o diplomata Sir
Charles Stuart, enviado da coroa britânica para assinar o tratado de reconhecimento
do Império brasileiro, era recebido por Maria da Glória, tutora e governanta de Dom
Pedro II, como “the most important and the most popular man in this immensidade of

12
Brazil”. (BETHELL, 2015, p.26), o preço pago pelo reconhecimento da independência
já era considerado uma derrota pouco tempo depois. Os tratados foram considerados

(...) um sacrifício excessivo (e possivelmente desnecessário) dos interesses


nacionais (ou pelo menos dos interesses da classe dominante de
proprietários de terra e donos de escravos) e da soberania nacional à
insistência de uma Grã-Bretanha imperial e poderosa, que perseguia seus
próprios interesses econômicos, políticos e ideológicos, quando o Império
brasileiro, recentemente independente, estava mais vulnerável. (BETHELL,
2015, p.30)

Para compreender melhor os desdobramentos históricos dessa contradição


que surge no momento em que o Brasil se integra aos mercados mundiais, Florestan
Fernandes desenvolve o conceito de dupla-articulação. Conforme é possível
identificar no esquema abaixo, elaborado com as informações expostas em
Fernandes (2020b, p.278), o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pode ser
dividido em 3 fases.

Pré 1808 1ª fase (1808 – 1860) 2ª fase (1860 – 1955) 3ª fase (1955 – )

Escravismo Neocolonialismo Capitalismo competitivo Capitalismo monopolista

Estado colonial Império Republicanismo Autocracia burguesa

Mercado colonial Mercado interno pequeno Mercado interno médio Mercado interno amplo

Escravo Imigrante / Liberto Assalariamento parcial Proletário

Senhores de engenho Fazendeiros do café Industriais nacionais Industriais nacionais associados

Campo Cidade média Cidade grande Metrópole

Faculdades no exterior Faculdades nacionais Universidades Públicas Universidades Privadas4

A dupla-articulação seria, nesse sentido, o mecanismo encontrado pela


burguesia brasileira (e pelo imperialismo5) para manter a estabilidade da dominação
burguesa (em nível nacional e internacional) ao longo do tempo. Em um primeiro
momento, correspondente à fase 2 do esquema, tratava-se de garantir, ao mesmo
tempo, a coerência interna do escravismo e a modernização urbano-comercial do

4
Obviamente as universidades públicas não desapareceram, mas a quantidade de matrículas em
universidades e faculdades privadas aumenta fortemente a partir da década. Para mais detalhes ver
Fernandes (2020c, p.82)
5
Para um aprofundamento sobre a teoria do imperialismo na obra de Florestan Fernandes ver Conti
(2015)

13
país. Em um segundo momento, correspondente à fase 3, buscou-se uma
autonomização relativa da acumulação interna, sobretudo a partir da abolição – ainda
que tardia, em comparação internacional – da escravidão. A respeito desse dilema,
vale questionar por que o autor não se debruça de maneira aprofundada sobre o papel
exercido pela classe de escravos na transição do primeiro ao segundo período.
Queiroz (2021, p.11-12) afirma corretamente que na interpretação de Florestan “os
elementos políticos dinamizadores estão nas mãos das elites”, enquanto ”o negro,
reduzido a escravo, era entendido apenas como agente econômico, isto é, base da
acumulação capitalista que impulsionaria os efeitos liberalizantes na sociedade
brasileira do século XIX.”

Florestan Fernandes parece conseguir explicar corretamente a transformação


do senhor de engenho em burguês, mas apresenta dificuldades para compreender os
movimentos históricos que desencadearam a transformação do escravo em
trabalhador assalariado. Teria sido deliberada, para um pensador de tal envergadura,
a escolha de excluir o escravo enquanto agente histórico presente e ativo no contexto
em que ocorreu a revolução burguesa brasileira? À primeira vista, considerando a
cegueira de grande parte dos intelectuais da época de Florestan a respeito das lutas
do povo negro no Brasil, pode parecer uma simples adaptação ao espirito do tempo.
Porém, se lembrarmos que Florestan se dedicava exaustivamente ao assunto, a
resposta fica mais nebulosa. A exclusão do escravo na dinâmica descrita em A
Revolução Burguesa no Brasil é um simples reflexo do fato de se tratar de um ensaio
sobre as ações estritamente burguesas de transformação da realidade nacional,
enquanto A Integração do Negro na Sociedade de Classes seria uma obra
complementar, na qual se avaliam os dilemas especificamente proletários? Apesar
de que possa haver alguma interpretação nesse sentido, a resposta aponta no sentido
contrário. Florestan de fato inaugura uma nova fase nas ciências sociais brasileiras,
introduzindo a questão racial nos circuitos acadêmicos dominantes – uma “revolução
dentro da ordem”, termo que ele mesmo usava. No entanto – como fica claro em
Significado do Protesto Negro (FERNANDES, 2017), lançado já na fase em que o
sociólogo era deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores – o papel de sua obra
circunscreve-se a essa esfera. No Brasil, a revolução “contra a ordem” não seria
preconizada pela ação do branco, este mesmo incubido da “tarefa essencial de
passar a limpo a noção de trabalho livre como categoria histórica” factível (op. cit,

14
p.109), mas sim pelo proletário negro, que solapa de uma só vez o regime de classes
e de raças. De certa maneira, é nesse ponto que a obra de Florestan chega ao fundo
das contradições táticas e estratégicas enfrentadas pelo movimento operário no Brasil
e no mundo. As suas reflexões tardias, inclusive, apontavam cada vez mais nesse
sentido.

Em, Nós e o Marxismo (FERNANDES, 2009), por exemplo, publicado em 1981,


Florestan critica a tendência altamente difundida nas discussões da época de que as
teorias marxistas estariam em crise por estarem limitadas à interpretação do contexto
do capitalismo industrial do século XIX (MORATO & VILELA, 2020, p.1). No ensaio,
baseado em anotações de uma aula sobre “desenvolvimento independente de classe
e luta de classes”, dada na PUC-SP em um momento de defensiva do movimento
socialista mundial, o autor reafirma, de maneira ousada e refinada, a sua adesão à
leitura marxista clássica a respeito da luta de classes e dos seus desdobramentos
políticos. Uma posição presente também em O que é Revolução?, publicado no
mesmo ano. Nesse texto, o autor afirma:

Estamos em uma época na qual se deve ler e reler o Manifesto Comunista.


Ele não é um catecismo e o mundo histórico para o qual ele foi calibrado não
existe mais. No entanto, é preciso relê-lo a fundo por outra razão: trata-se de
como recuperar a verdadeira ótica do socialismo revolucionário e do
comunismo. (FERNANDES, 2018, p.50)

Vale lembrar que, ao final de sua vida, Florestan poderia muito bem ter optado
pelo caminho trilhado pela maioria daqueles que o cercavam, como Fernando
Henrique Cardoso, seu amigo pessoal e colega de departamento. Mas não foi isso
que ocorreu. Mesmo atuando no interior da institucionalidade que se estabelecia com
a Nova República – analisada por Florestan de maneira crítica em uma série de
artigos que seriam reunidos em Que tipo de República? (FERNANDES, 1987) – o
agora parlamentar manteve-se fiel às suas posições políticas. Na medida em que a
revolução, seja ela burguesa ou proletária, sempre foi uma preocupação teórica e
política do sociólogo, a contrarrevolução também sempre aparecia, do ponto de vista
do seu entorno intelectual, como opção histórica permanente. Nesse sentido, como
“revolução e contrarrevolução constituem, por consequência, duas faces de uma
mesma realidade” (FERNANDES, 2018, p.34) escolher o segundo caminho, como o
fez FHC, não teria uma opção política difícil.

15
Florestan, porém, não costumava escolher caminhos simples em sua trajetória
intelectual. Apesar de ter sido considerado eclético muitas vezes por causa dessa
característica sui generis, nunca deixava de explorar os problemas sociais até as
últimas consequências (COHN, 2020, apud FERNANDES, 2020b, p.465). Para ele,
somente seria possível apontar, de maneira dialética, para a construção de um mundo
novo, buscando constantemente o ponto de suprassunção (Aufhebung) da
sociabilidade capitalista. Dessa maneira, ao reivindicar indiretamente a realização
histórica de uma Revolução Burguesa inconclusa ou incompleta, Florestan aponta o
socialismo como o caminho mais coerente – do ponto de vista científico – para a
superação do subdesenvolvimento. De acordo com Clóvis Moura (2014),

(...) essa ligação orgânica entre o cientista e o homem levava-o a procurar a


solução política para o problema e nela interferir numa práxis de totalidade
entre o cientista, o homem com a sua sensibilidade e o político com suas
ferramentas de ação. Florestan Fernandes transcende, portanto, os limites
do saber universitário. Ele acha que o seu pensamento tem uma função
política além do circuito acadêmico, projetando-se no conjunto da sociedade
civil, procurando nela influir.

16
4. A educação e a universidade em Florestan Fernandes

A atuação de Florestan Fernandes como professor e educador é, nesse


sentido, um último ponto que merece destaque. A sua atuação no campo da
educação, que se encerra com na Comissão de Educação da Assembleia Constituinte
e com importante participação na redação do capítulo III (Da Educação, da Cultura e
do Desporto) da Constituição de 1988, data de 1960 (OKUMURA, 2019, p.14). Nesse
ano, o à época deputado federal Carlos Lacerda apresentou um substitutivo à Lei de
Diretrizes Básicas da Educação, privilegiando a escola privada e de cunho religioso.
Tratava-se, em suma, de uma reação ultraconservadora aos importantes avanços que
a LDB, prevista na Constituição de 1934, mas somente formulada como projeto de lei
em 1948, havia trazido6. Nesse contexto, surge, em São Paulo, a Campanha em
Defesa da Escola Pública, liderada por Florestan em conjunto com outros nomes
importantes da vida pública brasileira, como Anísio Teixeira e José Chasin. De
maneira geral, o objetivo da campanha foi propor uma visão de escola pública oposta
à de Carlos Lacerda, que representava uma junção entre liberalismo privatizante e
conservadorismo religioso. De acordo com Saviani (1996, p.84),

(...) a experiência prática de militância em defesa da escola pública foi, pois,


decisiva na formação e amadurecimento do cientista. E, aliada aos
elementos teóricos e empíricos decorrentes das investigações desenvolvidas
em articulação com seu grupo de pesquisa, tornou possível a elaboração
de A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, obra
densa e madura, com certeza o coroamento da produção científica de
Florestan Fernandes.

Apesar do êxito relativo da campanha, quando um projeto semelhante ao


substitutivo de Lacerda é aprovado, em 1962, no período parlamentarista, Florestan
passou a aprofundar as suas reflexões sobre a educação no Brasil. A sua indignação
com a reação conservadora se manifestou, em um primeiro momento, na obra
Educação e Sociedade no Brasil, de 1966. Ali,

(...) lembrando Patrocínio e a Campanha Abolicionista, [Florestan – LVZ ]


afirma: ‘como a ele, coube-me o dever de levar ao mundo cultivado do Brasil
as angústias, os sentimentos e as obsessões dos esbulhados, e honro-me
ao lembrar que não trepidei, por um instante, diante dos imperativos desse
dever‘. (SAVIANI, 1996, p.79)

6
Informação obtida no referido curso do professor João Antônio de Paula. Ver nota 2.

17
A defesa da escola pública como uma expressão da necessidade de se
controlar racionalmente o processo de transformação social, toma novos contornos
com o aprofundamento da autocracia burguesa, em 1964. Em entrevista concedida a
José Chasin e Heleieth Safiotti, entre outros, Florestan (1980, p.27) afirma:

(...) havia [naquele momento – LVZ] toda uma consciência civilista, no


sentido que a palavra civilista tomou no início do século aqui, principalmente
através da campanha de Rui Barbosa e do que sobrou do Movimento
Abolicionista. Havia dentro de um setor mais liberal ou radical da burguesia
possibilidades de dinamizar uma relação com os problemas do país que era
muito construtiva. Hoje não, pois estamos num período de recesso da contra-
revolução e seria um engano pegar elementos que foram ativos num
momento em que a burguesia estava em ascenção [...] Um Estado ditatorial
pode superar muitas das tensões centralizando o poder de decisão. Não há
mais ambiente para repetir aquela experiência.

Velho (2016, p.250) mostra como essa reorganização do pensamento


educacional do autor também se relaciona ao abandono da noção de atraso (ou
demora) cultural, conceito que descrevia os desajustes socioculturais, educacionais
e econômicos decorrentes da absorção assimétrica, no interior da sociedade
brasileira, dos surtos industriais das décadas de 1930 e 1940. Florestan deixa de
incluir o Brasil no rol dos países “atrasados”, passando a identificá-lo como país com
um capitalismo – ainda que dependente – plenamente estabelecido. No livro
Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução, de 1975, em que se analisa o
processo de consolidação do modelo autocrático burguês de educação, essas
reflexões aparecem de forma mais madura. Tomando a universidade como conjunto
isolado no interior do capitalismo dependente brasileiro, o autor inicia o livro
explicando práticas e comportamentos pontuais e de caráter essencialmente técnico:

A instituição [universidade – LVZ] é uma sociedade em miniatura. Possui


uma estrutura, pessoal e cultura próprios; e conta com padrões
organizatórios específicos, que regulam sua capacidade de atender aos fins
e às necessidades sociais que dão sentido à sua existência, continuidade e
transformação. Graças a essas peculiaridades, a instituição tem seus ritmos
próprios e, em certos limites, pode-se impor aos condicionamentos e à
evolução do meio societário inclusivo. Tais ritmos não são, porém,
autodeterminados e autossuficientes. Não só as instituições extraem sua
razão de ser do meio societário inclusivo. Este é que alimenta o fluxo de seus
ritmos, intensificando-os ou moderando-os, preservando-os ou alterando-os,
fortalecendo-os ou solapando-os etc. (FERNANDES, 2020c. p.153)

Em seguida, realiza uma abstração teórica, indicando os traços gerais – do


ponto de vista técnico, político, ideológico e administrativo – de uma hipotética

18
universidade socialista no Brasil. Nesse ponto, é provável que a experiência nos
Estados Unidos e no Canadá tenha contribuído para a adoção dessa postura mais
revolucionária, já que permitiu a Florestan observar, in loco, as estruturas financeiras,
organizativas e logísticas do sistema universitário do capitalismo central (BLANCO &
BRASIL JR, 2018, p.91). Ademais, é também em Universidade Brasileira que
Florestan passa a defender, de maneira mais explícita, uma leitura leninista a respeito
do papel da universidade. De acordo com ele, em países de capitalismo dependente,
submetidos aos monopólios estrangeiros, como o Brasil, o primeiro passo seria:

(…) fazer uma revolução de natureza mental e técnica, que nos torne aptos
a dar origem às condições instrumentais (de cálculo de custos, de
programação e planejamento educacionais, e de estruturação racional dos
serviços, como um todo e em suas partes), sem as quais a própria
universidade integrada e multifuncional é impossível. (FERNANDES, 2020c,
p.153)

Somente com essa "universidade integrada e multifuncional", o processo de


desenvolvimento econômico seria capaz de autonomizar-se de fato. Obviamente, o
contato com os países centrais e o fluxo concomitante de capitais e pesquisadores
não cessa. O que se transforma é, principalmente, “o caráter desse fluxo, que tende
a ser controlado e gradualmente determinado a partir de dentro.” (FERNANDES,
2020c, p.137) Seguindo Lenin (1985, p.91) Florestan ressalta várias vezes que a
universidade orientada pelos interesses de uma só classe não desaparece totalmente
no decorrer de um processo revolucionário. Na verdade, ele se conserva no interior
de sua própria negação, produzindo uma forma de universidade radicalmente distinta,
na qual o monopólio da produção científica, antes sob o domínio do capital, é
apropriado pela classe trabalhadora. Se, antes, a situação econômica e da
universidade se caracterizava pelo “desperdício crônico [e pela] subutilização normal
dos recursos mobilizados socialmente” (FERNANDES, 2020c, p.138), agora ela se
pauta sobretudo em "objetivos nacionais, definidos a largo prazo." (op. cit, p.149)
Objetivos esses que terão "um substrato cultural idêntico e permanente: associar a
universidade à conquista de graus ascendentes de autonomização intelectual e
política". (op.cit, p.150) Esse substrato é o que transforma, qualitativamente, o
processo de desenvolvimento econômico. Não se trata somente de desenvolver as
forças produtivas, em termos estritamente utilitaristas, mas principalmente de
organizar esse desenvolvimento técnico tendo em vista elementos políticos que
consigam projetar, permanentemente, um futuro emancipador.

19
Para Florestan, os movimentos socialistas somente conseguiriam conter as
forças reacionárias e conservadoras a partir dessa articulação prolongada entre
técnica e política. São as escolas superiores que possuem os recursos para mobilizar,
por um lado, intelectuais orgânicos em defesa da soberania nacional e popular, e, por
outro, pesquisadoras e pesquisadores interessados na edificação de um complexo
técnico-científico socialmente orientado. Um desafio que, para se concretizar, requer
uma ruptura profunda com o “despotismo” do professor catedrático. Este, diz
Florestan, é o “alfa e o ômega da persistência indefinida do padrão brasileiro de escola
superior”, já que “permanece surdo às críticas renovadoras e impermeável às
exigências da época, timbrando por resguardar ou fortalecer a escola superior
profissional, que o formou segundo a sua própria imagem.” (op.cit, p.133). Florestan
foi duramente criticado e contestado por essa concepção, não só pela direita, mas
também por diferentes setores da esquerda. Guerreiro Ramos, por exemplo,
considerava que a sua postura e linguagem frente aos dilemas da universidade era
demasiadamente polida, defendendo uma ciência mais ousada em que “os fatores
exógenos do conhecimento estão presentes em todas as etapas da produção do
saber sociológico.” (BARIANI, 2006, p.6). Clóvis Moura, por sua vez, teceu críticas
mais indiretas do que as de Guerreiro, conforme veremos de maneira mais detalhada
no próximo capítulo da nossa investigação. Apesar de elogiar Florestan abertamente
em um seminário de 1996, louvando a sua conduta de deixar de ser de “um sociólogo
interessado em um assunto ou no desenvolvimento de um estudo acadêmico” para
“tornar-se um político orientado pela militância daquele segmento oprimido e
discriminado da sociedade racista do Brasil”, Moura (2014) faz uma ressalva,
afirmando que essa contradição entre o discurso acadêmico e uma práxis
revolucionária nunca foi totalmente resolvida. No entanto, acrescenta, Florestan se
distingue justamente pela autoconsciência crítica a respeito desse dilema; e apesar
de fechado, o circuito do seu pensamento encontra-se sempre na iminência de
abertura, pois é permanentemente inundado por elementos externos e negativos,
notadamente aqueles provenientes do movimento negro. Ou seja: o sociólogo
piauiense reconhece a importância da sociologia militante de Florestan, mas
negando-a. Junta-se a ela, mas como elemento externo e dinâmico, incorporando o
que ela tem de mais avançado. Se Florestan nos diz o que fazer – para aludirmos ao
famoso ensaio de Lenin (2015) – é com Moura, portanto, que descobrimos o como.

20
5. O limite da sociologia acadêmica: a dialética radical de Clóvis Moura

Conforme vimos, o “momento de vontade indecisa” (FERNANDES, 2020b,


p.72), termo que explica não só a postura da classe senhorial durante a sua
transformação em burguesia, mas também a atuação científica do próprio Florestan
como acadêmico de origem operária na universidade burguesa, não perpassa a obra
de Clóvis Moura, menos inclinada para a produção acadêmica pura. De acordo com
o autor:
(...) mesmo a consciência crítica da sociologia acadêmica é anticientífica. [...]
Quando ela se institucionaliza, quando se transforma em tática auxiliar de
uma estrutura estática, procurando eternizar o seu perfil, passa a ser uma
simples técnica de manutenção do status quo, mas, nunca, uma ciência que
seja “a autoconsciência do processo objetivo do desenvolvimento social da
sociedade” (MARX, 1947). Esta ligação estrutural entre a sociologia
acadêmica e a sociedade capitalista é que lhe tira a possibilidade de ser uma
ciência para transformar-se em uma técnica refinada que racionaliza as
suas contradições. (MOURA, 1978, p.12)

Para Moura, esse afastamento da sociologia acadêmica representou, por um


lado, como é de se esperar, uma maior dificuldade de publicar e participar do debate
público, mas, por outro, foi indispensável para que ele construísse um pensamento
autônomo e livre, tornando-se um “intelectual orgânico do seu povo negro”.
(MUNANGA, 2020b, p.16). O contexto que levou à publicação, em 1954, de Rebeliões
da Senzala, um estudo minucioso sobre a luta de classes na sociedade escravista
que será analisado mais adiante, demonstra bem a trajetória de Moura. Em 1949,
quando escreveu uma carta a Caio Prado Junior, para perguntá-lo sobre o que ele
pensava acerca de um estudo que tratasse especificamente da luta dos escravos no
Brasil, o jovem sociólogo recebeu um conselho que, felizmente, não acatou. Caio
Prado sugeriu que:

(...) o rapaz abandonasse o plano original, pois morava numa região onde a
escravatura não tinha tido um grande papel. E, mais grave, ali não teria
condições de ter acesso às fontes históricas necessárias para desenvolver
tão ousado projeto. Então, propunha que o missivista pegasse a ‘pena’ e
contasse ‘com toda simplicidade’ o que ‘observava à sua volta’. Ou seja,
descrevesse a situação do sertão baiano, onde vivia. Uma sugestão bastante
prudente. Nove entre dez orientadores acadêmicos proporiam a mesma
coisa. (BUONICORE, 2020, p.19)

O livro, que acabou sendo publicado pela editora Zumbi em 1959 e reeditado
várias vezes – a última edição é de 2020 – conta com 10 capítulos, bastante diversos.
De acordo com Munanga (apud Moura, 2020b, p.16) é o primeiro trabalho científico

21
no Brasil que combate a figura do negro submisso e ausente no processo histórico,
tirando-o da posição de mero objeto de pesquisa acadêmica. Para Queiroz e Gomes
(2021, p.741), por sua vez,

(...) inicia os primeiros passos de um caminho que a historiografia


contemporânea seguiria nas décadas seguintes, recorrendo a fontes do
direito para alargar nossas percepções sobre o passado, sobretudo no que
se refere às dinâmicas, aos fluxos, aos imaginários e às trajetórias da
população negra.

O emprego vasto e amplo de fontes diretas para tratar do povo brasileiro é de


fato uma característica que distingue a sociologia de Clóvis Moura da de seus
contemporâneos. Ao rejeitar o tipo ideal de Weber (2002) e a Sociologia do
Conhecimento de Mannheim (1972) – autores muito influentes na sociologia brasileira
do século XX – Moura conseguiu substituir o sujeito social abstrato, uma construção
ideológica em si mesma, pelo sujeito histórico concreto. Ora, para conservar o método
weberiano naquilo que ela tinha de fundamental, livrando-se, contudo, de suas
contradições mais aparentes, Mannheim – e pensadores por ele influenciados, como
Florestan Fernandes e Celso Furtado7 – desenvolveram um método de
particularização dos fenômenos sociais. Essa postura se explica não só pela
necessidade de propor ao cientista social um novo arcabouço de “neutralização” dos
dilemas inerentes à produção científia na sociedade capitalista8, mas sobretudo pela
demanda histórica de se adaptar a sociologia acadêmica aos embates e às lutas
políticas do século XX.

No Brasil, esse fenômeno passou a ser observado muito claramente a partir da


década de 1930. Com a diminuição da efervescência modernista, que havia marcado
o Brasil nos anos anteriores, e com o acirramento das contradições cada vez mais
aparentes do capitalismo dependente latino-americano, a partir da Revolução de
1930, interpretações ensaísticas e mitológicas a respeito do Brasil e de seu povo
tornaram-se cada vez mais inadequadas. Clóvis Moura mostra que, as respostas
burguesas a esse impasse histórico se dividiam, de modo geral, entre duas vertentes.

7
Sobre a influência de Karl Mannheim na obra de Florestan Fernandes e Celso Furtado, ver Cêpeda
& Mazucato (2015) e Rezende (2004)
8
Trata-se de uma dinâmica recorrente nas ciências sociais acadêmicas. Nos anos 1980, a crítica social
do julgamento de Bourdieu (1988, 2007), por exemplo, teve um papel semelhante.

22
Enquanto alguns autores, como Artur Ramos, mantinham-se fieis ao racismo
científico de Nina Rodrigues e Sílvio Romero (1890), requintando-o com argumentos
psicanalíticos extraídos de autores como Freud, Jung e Adler, outros, influenciados
pelo culturalismo de Boas (2010), como Gilberto Freyre e Afonso Arinos de Melo
Franco (2001), buscavam relativizá-lo, em maior ou menor grau, com argumentos
culturalistas e etnológicos. Florestan Fernandes assume um papel bastante ambíguo
nesse contexto. De fato, o projeto iniciado em Brancos e Negros em São Paulo
(BASTIDE & FERNANDES, 1959) e concluído em Integração do Negro na Sociedade
de Classes, trazia mudanças bastante significativas. Pela primeira vez, o racismo era
reconhecido como fenômeno social concreto a ser estudado; e a tese da democracia
racial de Freyre era frontalmente atacada. No entanto, a questão ainda assim
continuava a ser vista – devido à forte influência mannheimiana do autor – de maneira
particularizada, no curto prazo histórico. A respeito disso, Moura (2020b, p.32) afirma:

Não querendo absolutizar essa vertente teórica, devemos dizer que


alguns cientistas sociais nem sempre a aceitaram. No entanto, o
caudal que era tido como científico na época se baseava nesses
critérios, especialmente depois que cientistas sociais norte-
americanos, como Donald Pierson, M.J. Hershkovits e outros
introduziram nas universidades brasileiras o método histórico cultural
como verdade definitiva. Essa tendência dominante nas universidades
desviou de tal maneira a direção dos estudos sobre a escravidão negra
no Brasil que, durante muito tempo, quem não seguisse esse
direcionamento se marginalizava academicamente.

Nesse sentido, Rebeliões da Senzala mostra ser um livro ainda mais


revolucionário. Apesar da enorme carência de informações sobre a origem, a
procedência geográfica e a vida da população que habitou o Brasil a partir de 1500,
Moura foi capaz não só de descrever o que há em comum entre diferentes revoltas
individuais e coletiva dispersas ao longo do período escravista – dando um sentido
histórico a cada uma delas – mas também de contribuir para a elaboração de uma
nova estratégia política no Brasil do século XX e XXI. Nos próximos capítulos
analisaremos mais profundamente a divisão que o autor faz entre escravismo pleno
e escravismo tardio. Durante o primeiro período, que vai de 1550 a 1850, as relações
escravistas de produção dominaram a quase totalidade da dinâmica socioeconômica
brasileira, sendo o número de pessoas escravizadas, em alguns momentos, superior
à de pessoas livres. Durante o escravismo tardio, que vai de 1850 até 1889, por sua
vez, todos os suportes fundamentais do sistema escravista ficaram em desarmonia

23
com a modernização capitalista observada em determinados segmentos da
sociedade – e as tecnologias novas passaram a alimentar as estruturas arcaicas.
Consequentemente, mudaram não só as estruturas senhoriais de exercício do poder
político – muito bem examinadas por Florestan, como vimos – mas também a forma
e a linguagem das rebeliões escravas.

24
6. Panorama geral do escravismo pleno

Rebeliões da Senzala se inicia, a propósito, com um panorama geral do


escravismo pleno, e só depois é que revoltas específicas, como a República dos
Palmares e as insurreições baianas, são analisadas. Moura começa, portanto,
respondendo a uma pergunta clássica da historiografia nacional: o que teria levado à
substituição do indígena pelo negro na escravidão brasileira? O principal motivo, além
do extermínio acelerado dos povos originários, seria o avanço do capital comercial
sobre as terras latino-americanas e “a transformação do tráfico de simples atividade
de pirataria em atividade mercantil” (MOURA, 2020b, p.74). Essa essência mercantil
do tráfico transatlânticos pode ser observada no gráfico apresentado abaixo, que
mostra a diferença entre a quantidade de pessoas sequestradas do continente
africano e as que efetivamente conseguiam sobreviver até a chegada no Brasil.

Embarques e desembarcaques no tráfico transatlântico de


escravos com destino ao Brasil (1501-1850)
6000000
5750000
5500000
5250000
5000000
4750000
4500000
4250000
4000000
3750000
3500000
3250000
3000000
2750000
2500000
2250000
2000000
1750000
1500000
1250000
1000000
750000
500000
250000
0
l
5

ta
52

55

57

60

62

65

67

70

72

75

77

80

82

85

To
-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1
01

26

51

76

01

26

51

76

01

26

51

76

01

26
15

15

15

15

16

16

16

16

17

17

17

17

18

18

Embarcados Desembarcados

Fonte: elaboração própria com dados do Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico

Como o escravo era, ao mesmo tempo, uma mercadoria e um produtor de


mercadorias (açúcar, ouro, café etc.), a sua comercialização era uma atividade em si

25
mesmo contraditória. Se, pelo lado da oferta, ela gerava um excedente aos agentes
atuantes no tráfico internacional – agora uma esfera semiautônoma ou autônoma de
acumulação – ela também dependia, pelo lado da procura, de uma ampliação dos
mercados de escoamento do excedente produzido nas lavouras e plantations
demandantes de mão de obra escrava. Clóvis Moura mostra como os lucros
extraordinários alcançados nesse sistema elevaram sobremaneira o peso do
mercado capitalista na demais esferas da economia, consolidando o processo de
acumulação primitiva e de subsunção real do trabalho ao capital. Gilroy (1993), por
sua vez, fala em Atlântico Negro, uma “realidade geográfica e espaçamento
discursivo-cultural que foi constantemente ziguezagueado por movimentos dos povos
negros (não só como sujeitos escravizados, mas também nas suas lutas por
emancipação, autonomia e cidadania)” (QUEIROZ, 2017, p.37). Esse sistema social,
cultural e econômico não só subordinou e pautou as demais atividades produtivas na
América, mas também dinamizou e ampliou a si mesmo, dando origem ao processo
de valorização do valor.9 Como potência comercial ascendente, a Inglaterra foi a
nação que mais se beneficiou dessa “caça comercial de peles negras10”:

A sua burguesia comercial auferia lucros elevadíssimos do comércio de


carne humana. [...] No começo do século XVIII a Inglaterra assegurou o
monopólio do tráfico negreiro para a Espanha e suas colônias na América do
Sul. Em 1776 tinha quinhentos mil escravos em suas colônias da América do
Norte. Em 1792 existiam mais de 132 embarcações para essa mesma
finalidade. (MOURA, 2020b, p.81)

No entanto, a continuidade da escravidão se transformou, já no século XIX, em


um entrave ideológico ao desenvolvimento da economia inglesa; e o império passou
a tomar atitudes contraditórias. Enquanto pressionava pelo fim do tráfico e da
escravidão no Brasil, apoiava os confederados na Guerra da Secessão. Moura
(2020b, p.84-85) mostra que o país

(...) necessitava do algodão produzido no sul dos Estados Unidos para


alimentar a sua indústria têxtil, uma vez que, com a aplicação do algodão

9
Vale ressaltar que a palavra “origem” aqui empregada não deve ser entendida de maneira positivista,
mas sim dialética, tal como Marx ressalta já no início do capítulo 24, quando faz questão de lembrar
que o processo de acumulação primitiva não é totalmente anterior nem exterior ao capitalismo.

10
No capítulo 24 do Livro I d‘o Capital, Marx (2008, p. 821) afirma: “A descoberta das terras auríferas
e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas
minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva
para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista.“

26
nesse setor em substituição à lã, os industriais ingleses tiveram de depender
dos mercados produtores do ‘ouro branco’. Mais de quatro milhões de
pessoas viviam, direta ou indiretamente, dessa indústria.

Pois bem, ainda em 1780, à época da Guerra de Independência dos Estados


Unidos, a produção de algodão se limitava aos estados da Carolina do Sul e da
Georgia, que abasteciam o mercado interno. Por isso, a chegada de algodão
estadunidense ao porto de Liverpool naquele ano causou um grande espanto entre
os alfandegários, que acreditavam se tratar de um produto contrabandeado das Índias
Ocidentais. No entanto, ao final do século XVIII, a produção passou a ser incentivada
por diversos empresários, devido às excelentes condições de produção; e os Estados
Unidos rapidamente derrubaram a dominância otomana, indiana e brasileira no
mercado mundial de algodão. De acordo com Furtado, foi como exportadores dessa
matéria prima “que os EUA tormaram posição na vanguarda da Revolução Industrial,
praticamente desde os primórdios desta.” (FURTADO, 2007, p.155) O produto tornou-
se “o principal fator dinâmico do desenvolvimento da economia norte-americana na
primeira metade do século XIX.” (FURTADO, 2007, p.157). Beckert (2016, p.135)
mostra que, entre 1790 e 1800, um período que ficou conhecido como cotton rush, as
exportações de algodão da Carolina do Sul cresceram em torno de 64.000%.

Um dos principais motivos para essa expansão vertiginosa foi a Revolução


Haitiana de 1791, que isolou a ilha de Santo Domingo do mercado mundial, gerando
uma enorme escassez de oferta. O movimento liderado por Toussaint Louverture teve
impacto não somente nos Estados Unidos, mas em todas as Américas, inclusive no
Brasil. Queiroz (2017, p.80) mostra como essa revolução:

mais do que iluminar o questionamento que muitos historiadores e teóricos


da diáspora africana têm se confrontado – o fato evidente de que a abolição
da escravidão e a criação de estados pós-coloniais não provocaram igual
liberdade e bem-estar para todos e todas –, ela ajuda a perceber que a
liberdade moderna, nas suas acepções teóricas, filosóficas, políticas e
práticas, nasce e depende de uma condição oriunda da empreitada colonial:
é preciso ver, imaginar, mutilar e matar escravos para se sentir exaltado pela
ideia de liberdade.

O enorme impacto político e econômico dessa revolução liderada pelos


jacobinos negros (JAMES, 2010) a transforma em um dos principais marcos do
surgimento do capitalismo moderno, pois evidencia como, historicamente,

27
a concepção moderna de liberdade como possuir a si mesmo está
atrelada ao tráfico de escravos e à escravização de milhões de
africanos; e o racismo, enquanto dimensão estruturante e necessária
da escravidão e da empreitada colonial, ganha espaço central.
(QUEIROZ, 2017, p.81)

Nos Estados Unidos, os seus efeitos foram evidentes. Na última década do


século XVIII, pouco tempo após a instituição de um moderno regime constitucional, a
população cativa nos EUA quase duplicou, chegando a 60% da população total em
algumas regiões do estado da Carolina do Sul (BECKERT, 2016, p.137). Além do
crescimento da população escravizada, houve também sucessivas altas nos preços
do algodão e ganhos extraordinários de produtividade, o que fez com que a plantation
escravagista se espalhasse por todo o sul do país, especialmente no Mississipi e no
Alabama. A produção total saiu de 1,5 milhões de libras, em 1790, para
aproximadamente 170 milhões, em 1820, transformando os Estados Unidos, já em
1802, no principal fornecedor de algodão da Grã Bretanha. (BECKERT, 2016, p.138).
Essa conquista violenta do hinterland para produção de algodão relaciona-se não
somente com o desenvolvimento de ferrovias, hidrovias e outras forças produtivas
modernas, mas também com a formação de uma cultura armamentista e militarizada
no sul dos Estados Unidos. A ideia comumente propagada de que a independência
do país teria sido um marco da liberdade dos povos mostra-se, dessa maneira,
terrivelmente falsa. Na verdade, havia, em 1830, poucas décadas após a Revolução
Americana, cerca de 1 milhão de pessoas escravizadas trabalhando nas plantações
de algodão. No delta do Yazzoo-Mississipi, por exemplo, cada família branca
mantinha, em média, 80 pessoas escravizadas. (Beckert, 2016, p.142).

No Brasil, por sua vez, ao contrário dos Estados Unidos, o principal produto da
expansão econômica escravagista não foi o algodão. Conforme é possível ver no
gráfico apresentado abaixo, a região que cresceu de maneira mais vigorosa no início
do período colonial foi o Nordeste, com o seu complexo açucareiro (Furtado, 2007,
p.75). Baseado na utilização de mão de obra escrava, este caracterizava-se por uma
grande concentração de renda e poder nas mãos dos senhores de engenho.

28
Número documentado e região de chegada das
pessoas escravizadas no Brasil
1.500.000
1.425.000
1.350.000
1.275.000
1.200.000
1.125.000
1.050.000
975.000
900.000
825.000
750.000
675.000
600.000
525.000
450.000
375.000
300.000
225.000
150.000
75.000
0

ão
0

5
65

67

70

72

75

77

80

82

85

87

gi
-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

re
26

51

76

01

26

51

76

01

26

51

or
16

16

16

17

17

17

17

18

18

18

lp
ta
To
Amazônia Pernambuco Bahia Sudeste Total

Fonte: elaboração própria com dados do Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico11

Por isso, de acordo com Moura (2020b, p.159), onde quer que a escravidão
surgisse, o quilombo surgia junto, enquanto “unidade básica de resistência do
escravo”. Em alguns casos, com até vinte mil integrantes, como no quilombo Campo
Grande – presente no sul de Minas Gerais entre aproximadamente 1720 e 1759 (op.
cit, p.167). Dentre as táticas de luta adotadas dentro e fora dos quilombos, destacam-
se, para Moura (op. cit, p.397),

• Suicídios
• Assassinatos dos próprios filhos ou de outros escravos
• Ataques a fazendas, engenhos e casas de senhores
• Tentativas de assassinato dos senhores
• Incêndios em canaviais
• Participação em atividades de garimpo e contrabando de diamantes
• Insurreições citadinas e guerrilhas em matas e estradas
• Raptos e sequestros de outros escravos

11
Ressaltamos que os números contidos no banco de dados, apesar de serem uma amostra
significativa, são muito inferiores aos números reais.

29
Tudo isso representava, de acordo com o autor, “uma subtração ao conjunto das
forças produtivas dos senhores de engenho” (op. cit, p.160), que, para obterem os
maiores retornos possíveis dos seus investimentos, não tinham outra opção senão o
desenvolvimento de um rígido aparelho de subordinação e repressão social. Este,
contudo, nem sempre tinha êxito imediato, e muitas vezes os senhores tinham que
mobilizá-lo repetidas vezes para conseguirem destruir um quilombo, como foi o caso,
entre outros, nos de Ambrósio e Palmares (op. cit, p.171). Este último, com efeito,
recebe uma atenção especial por parte do autor, não só por ter sido o maior12 e mais
famoso, “a maior tentativa de autogoverno dos negros fora do continente africano”
(op. cit, p.299), mas também devido às caricaturas e lendas construídas a seu
respeito.

Moura mostra que Palmares seguia uma organização política republicana, tendo
como instância deliberativa um conselho composto pelos principais chefes de
quilombo da região. Além disso, havia também um exército, comandado por Ganga-
Muiça, e que tinha o seu quartel general no mocambo de Subupira, onde havia mais
de 800 casas (op. cit, p.302) e uma rígida estrutura de defesa. No nível da
organização social, por sua vez, as famílias poliândricas e poligâmicas13 eram as
unidades fundamentais, não por fatores de exostismo, como quer Gilberto Freyre
(2001, p.93):

A poligamia não corresponde entre os selvagens que a praticam - incluídos


neste número os que povoavam o Brasil - apenas ao desejo sexual, tão difícil
de satisfazer no homem com a posse de uma só mulher; corresponde
também ao interesse econômico de cercar-se o caçador, o pescador ou o
guerreiro dos valores econômicos vivos, criadores, que as mulheres
representam

mas sim “em consequência das circunstâncias em que os seus habitantes não podiam
controlar: a desproporção gritante entre os sexos” (op. cit, p.304). Evitava-se, dessa
maneira, que a coesão econômica, social e militar do quilombo fosse afetada, algo
que de fato só ocorreu depois que sucessivas incursões militares da coroa portuguesa

12
De acordo com Moura (p.303) a área da República de Palmares era de aproximadamente 27.000
quilômetros quadrados, o equivalente, em termos atuais, a países como Haiti, Ruanda ou Albânia.
13
A poliandria funcionava “majoritariamente no conjunto da comunidade que não tinha níveis de poder
decisório nos assuntos mais importantes”, ao passo que a poligamia era praticada “pelos membros da
estrutura de poder que governava a República” (MOURA, p.303-304)

30
levaram, ao final dos anos 1670, à morte de vários integrantes da República e ao
acirramento das disputas internas pelo poder político.

Quando o preço do açúcar começa a cair, devido ao aumento da produção nas


Antilhas, esse sistema, que já era altamente instável, entra “numa letargia secular”
(FURTADO, 2007, p.91). Intensifica-se, assim, na segunda metade do século XVII, a
busca por alternativas econômicas. Furtado explica que a única saída para essa crise
estava no aumento da extração de metais preciosos e no povoamento extenso das
regiões meridionais, de modo que a mineração passou a atrair “um maior contingente
de população para o Brasil do que a Espanha para todas as suas colônias da América”
(op, cit. p.119). No entanto, a intensidade e velocidade da exploração mineral acabou
gerando grandes instabilidades econômicas, já que as regiões mais ricas eram
também as de vida produtiva mais curta. Moura (2020b, p.165) mostra, por exemplo,
que “em consequência das facilidades que os escravos encontravam para a fuga na
mineração, a repressão se processará com mais vigilância em Minas Gerais do que
nas demais capitanias”.

Ademais, a elevada demanda por ouro brasileiro também refletia o início de


um processo de concentração de reservas metálicas nos países da Europa, o que
dificultará, na segunda metade do século XIX, a política monetária e cambial dos
governos brasileiros. Ao final do século XVIII, a descapitalização da economia
escravista mineira já era tão intensa que surgiu uma “massa de população totalmente
desarticulada” (FURTADO, 2007, p.134). Enquanto a concorrência internacional
crescia com a entrada definitiva dos EUA no mercado mundial, a permanência da
escravidão – essencial para a manutenção do poder da classe senhorial –
impossibilitava a criação de um mercado consumidor interno. A solução encontrada
para permitir o desenvolvimento de novos fluxos de renda e investimento foi, portanto,
o deslocamento do centro dinâmico da economia para a lavoura cafeeira.

31
7. O escravismo tardio e a consolidação da dependência

Conforme vimos, ao longo do período em que o escravismo esteve plenamente


estabelecido no Brasil, a luta da classe de escravos “não foi um simples espocar
inconsequente de uma malta descontrolada de desordeiros que investia contra tudo
e todos a fim de satisfazer instintos baixos ou intenções inconfessáveis” (op. cit,
p.381). Muito ao contrário: tratava-se, na verdade, do verdadeiro elemento
dinamizador da sociedade brasileira, de uma força histórica ativa que impulsionou o
conjunto das estruturas econômicos em direção a uma nova forma de divisão social
do trabalho. Essa transição não se deu, contudo, de maneira imediata, no curto-prazo
histórico. Ainda que ela tenha se iniciado na década de 1850, seus primeiros sinais
começam a aparecer ainda antes da independência, em movimentos como a
Revolução dos Alfaiates. De acordo com Moura (2020b, p.128), esta foi

do ponto de vista do conteúdo político e definição programática, o mais


profundo acontecimento que antecedeu a independência [...] organizada e
desenvolvida basicamente por elementos das camadas que se encontravam
asfixiadas dentro da capilaridade quase inexistente da sociedade colonial (...)

Esse sentimento14 se generalizou sucessivamente em todo o território


nacional, como se fosse uma espécie de “fator anônimo da Independência.” (op. cit,
p.129); e quando a independência oficial de fato ocorreu, 24 anos depois, ela já era
muito mais um ato ideológico do que um ato histórico propriamente dito. O mesmo
sucede, mostra Moura, com o movimento abolicionista15. Ao sacramentar o que já se
impunha historicamente, pelo menos desde as primeiras décadas do século XIX,
como fato consumado – o fim do sistema escravista – figuras como Nabuco buscaram
assumir a hegemonia do processo.

Conforme já demonstramos no capítulo 2, a classe senhorial em decomposição


se sentia, nessa fase tardia do escravismo, impelida a reproduzir os padrões teóricos
e ideológicos produzidos pelos países imperialistas. Por outro lado, no entanto, ela

14
Não vem ao caso, aqui, um detalhamento de todos os movimentos que precederam a independência.
Para mais informações, ver o segundo capítulo de Moura (2020b)
15
Importante ressaltar que o movimento teve várias frações. Ainda que tenham lutado por uma mesma
causa, figuras como Luís Gama e Joaquim Nabuco, por exemplo, tinham visões completamente
diferentes a respeito do sentido histórico da abolição.

32
também compreendia que a adoção plena desses mesmos padrões teria abalado
todos fundamentos de toda a ordem social, levando à ampliação da participação
popular na renda nacional. Desse impasse surgiu uma contradição que marca o
capitalismo dependente até os dias atuais: Ao contrário do que ocorre com a ideologia
burguesa dos países centrais, cuja essência está no apagamento, na mistificação e
na fetichização daquilo que vem de fora, a ideologia burguesa dos países
dependentes oculta aquilo que vem de dentro – no caso concreto que estamos
analisando, a contribuição ativa da classe de escravos na formação da sociedade
nacional. Ou melhor: enquanto a ideologia racista nos países centrais se agarra
sobretudo à figura do inimigo externo – imigrantes, negros, judeus, eslavos e
estrangeiros – nos países da América Latina ela tem como objeto principal o inimigo
interno.

A ideia de que o povo brasileiro teria se constituído com base na democracia


racial, amplificada por Gilberto Freyre na década de 1930, decorre justamente dessa
dialética. Como não há inimigos externos significativos do ponto de vista da
burguesia – o imperialismo é visto como um aliado natural – é preciso encobrir as
graves contradições internas ao espaço nacional. Nas doutrinas militares
desenvolvidas pelas forças armadas brasileiras a partir da independência – e que se
perpetuam, em maior ou menor grau, até hoje – isso está bastante evidente. Ainda
que o seu campo concreto de atuação esteja (quase sempre) dentro das fronteiras
nacionais, as forças armadas brasileiras se organizam – do ponto de vista
estritamente ideológico – pela ótica da inimizade externa, pois absorvem os padrões
de dominação militar dos países imperialistas. No contexto do escravismo tardio,
Moura (2020a, p.132) mostra como essa contradição histórica tem como origem direta
a Guerra do Paraguai, considerada pelo autor o “desagregador final do sistema em
crise aguda”. De acordo com Moura, a “dialética radical do Brasil Negro” manifestou-
se, nesse conflito, de duas maneiras:

(...) de um lado, no sentido de se recrutarem escravos para defender [o


sistema escavista], e, de outro, de se escravizarem prisioneiros de guerra
objetivando repor os claros que essa tática produziu, procurando, com isto,
restabelecer o equilíbrio demográfico, a viabilidade e a racionalidade da
escravidão.

33
Ora, num momento histórico em que o exército de Caxias – surgido justamente
no interior dessa irracionalidade brutal que o autor nos apresenta – parece prender-
se novamente ao poder; e em que a violência contra a população negra do Brasil se
encontra, como observamos nos gráficos abaixo, em patamares que não podemos
caracterizar senão como fascistas, a análise histórica de Moura transcende os limites
do puro discurso acadêmico. Ela se torna, em si mesma, uma arma concreta de
transformação do real, um dispositivo a serviço daqueles que desejam transformar o
Brasil.

Quantidade de autos de resistência por ano (1989 - 2019)


2250
2000
1750
1500
1250
1000
750
500
250
0
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Fonte: elaboração própria com dados do Atlas da Violência do IPEA

Taxa de homicídios por 100 mil habitantes por raça no


Brasil (2000-2019)
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

População negra População não-negra

Fonte: elaboração própria com dados do Atlas da Violência do IPEA

34
8. Conclusão

Vimos, portanto, que pensar a economia e a sociedade brasileira de maneira


rigorosa significava, para Florestan Fernandes e Clóvis Moura, engajar-se na luta por
um sistema econômico que tornasse a classe trabalhadora – principalmente a sua
fração negra – verdadeiramente livre. Essa escolha permitiu que ambos, cada um à
sua maneira, produzissem uma verdadeira mudança de paradigma nas ciências
sociais brasileiras. Hoje, obras como Integração do Negro na Sociedade de Classes,
A Revolução Burguesa no Brasil, Rebeliões da Senzala e Dialética Radical do Brasil
Negro são cada vez mais estudadas no campo da sociologia, da história e da
antropologia, mas ainda recebem pouca ou nenhuma atenção por parte dos
economistas. Infelizmente, já que dilemas clássicos da história do pensamento
econômico nacional, como o chamado “problema da mão de obra”, abordado por
Celso Furtado no capítulo 21 de Formação Econômica do Brasil poderiam ser
debatidos e revistos de maneira mais aprofundada a partir das obras dos autores em
questão. Para ficarmos no exemplo utilizado, vejamos o que disse, em dois momentos
muito distintos de sua trajetória intelectual, aquele que é considerado por muitos o
mais importante economista brasileiro do século XX (2007, p.203-204):

O homem formado dentro desse sistema social está totalmente


desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não
possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza é
praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental
limita extremamente suas "necessidades". Sendo o trabalho para o escravo
uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima
de suas necessidades – que estão definidas pelo nível de subsistência de
um escravo – determina de imediato uma forte preferência pelo ócio. [...] A
escravidão tinha mais importância como base de um sistema regional de
poder que como forma de organização da produção.
Nossos sistemas de cultura emergem de um duplo processo de conquista e
colonização. As instituições clássicas transplantadas, como a encomienda e
o latifúndio, ou tomadas à tradição loca, como a mira, são a expressão de
rígido sistema de dominação social. Contudo, somente em casos
excepcionais esse sistema levou à destruição física da população
dominada16, ou à esterilização de sua herança cultural17. A regra geral foi a

16
Como contraponto a essa afirmação ver Nascimento (2016)
17
Quanto à ideia de que não teria havido esterilização, em grande escala, da herança cultural dos
povos colonizados, vale lembrar do seguinte comentário de Lélia Gonzalez: “Como consciência a gente
entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber.
É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber
que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da
emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a
memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso
dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição
do que ela, consciência, afirma como a verdade.” (GONZALEZ, Lélia, 1984, p.233-234)

35
simbiose de dominados e dominadores, e a emergência de nova realidade
cultural. (FURTADO, 1976, p.127, grifo nosso)

Acreditamos ter mostrado, no nosso trabalho, ao contrário do que afirma


Furtado, que a forma de organização e divisão do trabalho não é um elemento
aleatório de um modo de produção, um “sistema regional de poder”, passível de
interpretações pouco rigorosas. Apesar de aparecer de forma abstrata no capitalismo
(Marx, 2013b) o trabalho é sempre, como uma atividade de seres humanos em
contextos particulares, uma ação concreta, historicamente localizada e
temporalmente limitada. Por isso, interpretações superficiais – e insuficientes do
ponto de vista empírico – em relação ao processo de divisão social do trabalho no
Brasil, com generalizações infundadas a respeito da capacidade de adaptação dos
libertos no mercado de trabalho, acabaram se transformando em um elo frágil não só
da obra do economista paraibano, mas também de outros autores que seguiram
interpretações semelhantes, em maior ou menor grau, à sua.

No campo da Sociologia, por exemplo, sabemos que Fernando Henrique


Cardoso (1975, p.112) manifestou-se de maneira parecida, afirmando “que os
escravos foram testemunhos de uma história para a qual não existem senão como
uma espécie de instrumento passivo”. O ex-presidente revela, com isso, além de uma
ignorância profunda a respeito do modo de produção existente no Brasil colonial, a
adesão a um “conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a
realidade“, isto é, um conceito em que o progresso é, “em primeiro lugar, um
progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos.“
(BENJAMIN, 1987, p.229)

É justamente para facilitar a desmistificação de perspectivas como estas – da


simbiose entre dominados e dominadores ou da passividade do escravo – que
apresentamos as obras de Florestan Fernandes e Clóvis Moura ao leitor. Revisitar as
suas contribuições, por contraditórias que sejam em relação a determinados
assuntos, é essencial para quem deseja contrapor o Brasil real ao Brasil oficial – do
passado e do presente. Afinal, o espaço dado a “estereótipos muito cômodos, frutos
algumas vezes da nossa inércia mental e outras vezes produtos deliberados daqueles
deformadores profissionais da nossa história” (MOURA, 2020, p.58), já deveria ter se
esgotado há mais tempo.

36
Por fim, é preciso pontuar uma última questão. Apesar de ambos os autores,
sobretudo Moura, terem abordado o racismo e a história da população negra no Brasil
em obras específicas, dando a ela um destaque especial, como procuramos
demonstrar, nenhum dos dois autores a via de maneira “isolada”. Ambos sempre
buscaram “inseri-la” – se é que esse termo é adequado – em um projeto teórico mais
amplo, de caráter universal. Por isso, caso alguns leitor tenha se estranhado ao se
deparar com reflexões que tenha julgado “desconexas” com o assunto principal, o
nosso trabalho terá cumprido o seu papel. Afinal, o objetivo18 de Florestan e Clóvis
Moura era precisamente esse: mostrar que a luta da população negra não é um
circuito fechado19 em si mesmo, mas sim um movimento de caráter revolucionário
que submete todos os campos da vida social – a cultura, a educação, a política e a
economia, entre outros, – a tensionamentos constantes e permanentes. Ambos os
autores nos provam, do ponto de vista histórico, que olhares míopes para o passado
nunca se justificam, nem mesmo nos contextos em que a burguesia e seus
intelectuais orgânicos mais clamam por eles. Além disso, os dois também nos
deixaram um alerta profundamente atual: o de que não há mais como pensar o
capitalismo dependente e aquilo que o define concretamente – transferências
internacionais de valor, superexploração da força de trabalho e destruição das bases
autônomas de acumulação – sem pensar as questões mais elementares da formação-
econômico social brasileira. Ou pensamos o Brasil naquilo que ele de fato é, ou nunca
seremos capazes de transformá-lo naquilo que ele pode vir a ser.

18
Se os autores apresentados conseguiram alcançar esse objetivo ou se esbarraram – como diz o
título da nossa investigação – nos limites da sociologia acadêmica no capitalismo dependente, cabe
ao leitor decidir.
19
O termo ”circuito fechado“ amplamente discutido neste trabalho, tem um papel fundamental na
sociologia de Florestan Fernandes. Caso o leitor queira buscar mais informações a seu respeito,
recomendamos que veja o artigo de Bastos (2020)

37
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S.L. de. Orelha do livro. In: FERNANDES, Florestan. A integração do


negro na sociedade de classes. 6 ed. São Paulo, Editora Contracorrente, 2020

BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano: 4 ed. rev.


Florianópolis: Insular, 2019.
BARIANI, Edson. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x Guerreiro
Ramos. Cronos, Natal-RN, v. 7, n. 1, p. 151-160, jan./jun. 2006. Disponível em:
<www.periodicos.ufrn.br/cronos/article/viewFile/3194/2584>. Acesso em: 25 de
janeiro de 2022.

BASTIDE, Roger. FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo:


ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do
preconceito de cor na sociedade paulistana. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1959

BASTOS, Elide Rugai. A história nunca se fecha. Sociologia & Antropologia [online].
2020, v. 10, n. 2. pp. 677-694.

BASTOS, Elide Rugai; COHN, Gabriel; PEIRANO, Mariza. Florestan Fernandes


entre dois mundos. [Entrevista concedida a] André Botelho, Antônio Brasil e
Maurício Hoelz. Sociologia & Antropologia [online], 2018, n.5., p.15-43

BECKERT, Sven. Empire of Cotton: A Global History. New York: Alfred A. Knopf,
2014

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. Tradução de Sérgio Paulo


Rouanet. In: Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e
política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 222-232

BETHELL, Leslie. Introdução. In: LIMA, Oliveira. O reconhecimento do Império:


história da diplomacia brasileira. 2ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015.

BLANCO, Alejandro., BRASIL JR, Antônio. A circulação internacional de Florestan


Fernandes, Sociologia & Antropologia, Río de Janeiro, vol .8, n° 1, 2018, pp. 69-107.

BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. Petrópolis: Vozes, 2010

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp,


2007.

_________. Homo academicus. Stanford: Stanford University Press, 1988.

BUONICORE, Augusto. Apresentação. In: MOURA, Clóvis. Dialética Radical do


Brasil Negro. 3 ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020

38
CARDOSO, Fernando Henrique. Classes sociais e história: considerações
metodológicas. In: Cardoso, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização.
Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1975.

CÊPEDA, Vera Alves; MAZUCATO, Thiago. Ciência, intelectuais e democracia no


centro e na periferia: o diálogo teórico entre Karl Mannheim e Florestan Fernandes.
In: CÊPEDA, Vera Alves; MAZUCATO, Thiago (org.) Florestan Fernandes, 20 anos
depois - um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições:
UFSCar: Centro Internacional Celso Furtado, 2015.

COHN, Gabriel. Florestan Fernandes e os limites da autocracia burguesa.


[Entrevista concedida] a Bernardo Ricupero e Leonardo Belinelli. 2020. In:
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

CONTI, M. Florestan Fernandes: imperialismo e luta de classes na era do capital


monopolista. 2015. 112 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279763>. Acesso em: 27 jan.
2022.

DA SILVA, M.G. O partido político em Florestan Fernandes. Florianópolis: Em


Debate, 2012, n. 8, p. 54-68.

FERNANDES, Florestan. A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre


aspectos da formação e do desenvolvimento das ciências sociais na sociedade
brasileira. São Paulo: Anhambi, 1958.

_________. A integração do negro na sociedade de classes. 6 ed. São Paulo,


Editora Contracorrente, 2020a

_________. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.


São Paulo: Editora Contracorrente, 2020b.

_________. Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia.


1953. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1953.

_________. Nós e o marxismo: 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.


_________. O que é revolução?.São Paulo: Expressão Popular, 2018

_________. Organização social dos Tupinambá. Instituto Progresso Editorial S. A.:


São Paulo, 1949.

_________. Que tipo de República?. São Paulo: Brasiliense, 1987

_________. Universidade brasileira: reforma ou revolução? Ed. Expressão


Popular, São Paulo, 2020c

39
_________. Florestan Fernandes: a pessoa e o político. [Entrevista concedida a] J.
Chasin, H. Saffioti, P. Barsotti, N. Rodrigues Jr., M. Pottes, E. Vaisman e P. Rezende.
Escrita/Ensaio, São Paulo. n.8. p.9-40. Dez 1980.

Florestan Fernandes: o mestre. Direção Roberto Stefanelli. Brasília: TV Câmara,


2004. 46 min. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/tv/151480-florestan-
fernandes-o-mestre/>. Acesso em: 21/02/2022

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as


origens brasileiras da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 42. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007

_________. Prefácio à Nova Economia Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976

GILROY, Paul. The black Atlantic: Modernity and double consciousness.


Cambridge: Harvard University Press, 1993.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências


Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223- 244.

IANNI, Octávio. Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante. São Paulo:


Editora Expressão Popular, 2004.

JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São


Domingos. São Paulo, Boitempo, 2010

LENIN, V.I. Que Fazer?: problemas candentes do nosso movimento. São Paulo:
Expressão Popular, 2015.

_________. Staat und Revolution. 24 ed. Berlim: Dietz Verlag, 1985.

MACHADO DE ASSIS, J.M. Comentários da semana. Publicado originalmente no


‘Diário do Rio de Janeiro’, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1861. In: SUASSUNA,
Ariano. A favela e o arraial. Folha de São Paulo, São Paulo, 27/04/1999. Opinião.
Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz27049907.htm>.Acesso
em: 20/02/2022

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972

MARX, Karl; Artikel über Indien und China in der New York Daily Tribune. In:
MARX, Karl. Werke, Schriften: Politische Schriften. Darmstadt: Lambert Schneider,
2013a

_________. Contribuição à crítica da economia política; tradução e introdução de


Florestan Fernandes. 2ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008

40
_________. Das Kapital: Kritik der Politischen Ökonomie. Band I. In: MARX, Karl.
Werke, Schriften: Ökonomische Schriften I. Darmstadt: Lambert Schneider, 2013b

_________. O capital: crítica da economia política; Livro III: o processo de


produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013c

MORATO, Julia Maciel Augusta; VILELA, Luca. Resenha: Florestan Fernandes –


Nós e o Marxismo. Revista Multiface Online, n° 8. 2020, p 82-88.

MOURA, Clóvis. A sociologia posta em questão. São Paulo: Livraria Editora


Ciências Humanas, 1978

_________. Dialética Radical do Brasil Negro. 3 ed. São Paulo: Anita Garibaldi,
2020a

_________. Florestan Fernandes e o negro: uma interpretação política. Artigo.


São Paulo: Fundação Grabois, 2014. Disponível em:
<https://www.grabois.org.br/portal/especiais/149038-42869/2014-01-14/artigo
florestan-fernandes-e-o-negro-uma-interpretacao-politica>. Accesso em: 16/01/2022.

_________. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 6. ed. São


Paulo: Anita Garibaldi, 2020b

MUNANGA, K. Prefaciando Rebeliões da Senzala de Clóvis Moura. Prefácio. In:


MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 6. ed.
São Paulo: Anita Garibaldi, 2020

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um


racismo mascarado. 1 ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

OKUMURA, Julio Hideyshi. Florestan Fernandes na Assembleia Nacional


Constituinte (1987-88): debates, propostas e pensamento educacional.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista. Marília, 2019.

QUEIROZ, Marcos; GOMES, Rodrigo Portela. A hermenêutica quilombola de


Clóvis Moura: teoria crítica do direito, raça e descolonização. Revista Culturas
Jurídicas, Vol.8, n. 20, mai./ago., 2021, p.733-754

QUEIROZ, Marcos. Clóvis Moura e Florestan Fernandes: interpretações marxistas


da escravidão, da abolição e da emergência do trabalho livre no Brasil. Revista Fim
do Mundo, n. 4, jan./abr., 2021.

_________. Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: A experiência


constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. Dissertação apresentada como
requisito parcial de obtenção do título de Mestre em Direito no Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2017.
Disponível em:http://repositorio.unb.br/handle/10482/23559.Acesso: 05 Julho 2020.

41
RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. 3.ed. Rio de Janeiro: 3. Ed
UFRJ, 1996.

REZENDE, M. J. Celso Furtado e Karl Mannheim: uma discussão acerca do papel


dos intelectuais nos processos de mudança social. Acta Scientiarum Human and
Social Sciences. Maringá, v.26, n.2, p. 239-250, 2004.

RODRIGUES, D. O círculo da punição: o linchamento como cena de acusação e


denúncia criminal. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de
Janeiro, v. 6, n. 4, p. 625- 643, 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2022.

RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro


Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

_________. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de


Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011

ROMERO, Sílvio. A história do Brasil ensinada pela biografia dos seus heróis. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1890

SACCHETTA, Vladimir (1996). Florestan Fernandes: o sociólogo militante.


Revista Estudos Avançados, n° 26, 1996, p.51-54

SAVIANI, Dermeval. Florestan Fernandes e a educação. Revista Estudos


Avançados, n° 26, 1996, p.71-87

VELHO, R. S. As Transfigurações da Educação na Teoria de Florestan


Fernandes: Escola e socialização política na formulação estratégica da revolução
socialista. 289f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2016.

VIANA, F. J. de Oliveira. Populações meridionaes do Brasil. Vol. 27. Senado


Federal, Conselho Editorial, 2005.

WEBER, Max. Wirtschaftsgeschichte: Abriss der universalen Sozial- und


Wirtschaftsgeschichte. München: Duncker & Humblot: 1923

WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie.


Tübingen: Mohr Siebeck, 2002.

42

Você também pode gostar