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Universidade de São Paulo

Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária

Departamento de Economia

Formação Econômica e Social do Brasil: uma síntese

Gabriel Galeti Mauro

São Paulo

2019
SUMÁRIO

* PREFÁCIO

PRIMEIRA PARTE

I. Estabelecimento e sedimentação do paradigma pradiano

II. O sentido da colonização

III. O sentido profundo da colonização

IV. História e subdesenvolvimento: a contribuição de Celso Furtado

V. Formação do Estado Português e a expansão quatrocentista

VI. Portugal: da expansão quatrocentista ao império colonial

VII. Fundamentos econômicos da ocupação territorial

VIII. Economia açucareira I

IX. Economia açucareira II

X. Economia açucareira III

XI. Mineração I

XII. Mineração II

XIII. A crise do Antigo Sistema Colonial

XIV. Os interesses “internos”: o parecer de Rodrigues de Brito

XV. A presença inglesa no Brasil

XVI. Emancipação política I

XVII. Emancipação política II


XVIII. Economia cafeeira I

XIX. Economia cafeeira II

XX. Economia cafeeira III

XXI. O complexo cafeeiro

SEGUNDA PARTE

XXII. A proclamação da República

XXIII. O processo político-partidário na Primeira República

XXIV. A política monetária na primeira década republicana

XXV. A defesa do café

XXVI. A industrialização controversa

XXVII. A crise da Primeira República

XXVIII. O Golpe de 1937 e o Estado Novo

XXIX. A modernização nos anos Vargas (1930 – 1945)

XXX. A política econômica no primeiro Governo Vargas (1930 – 1945)

XXXI. A defesa da indústria na Era Vargas (1930 – 1945)

XXXII. A economia brasileira na Segunda Guerra Mundial

XXXIII. O Governo Dutra e a política econômica no pós-guerra

XXXIV. O segundo Governo Vargas (1951 – 1954)

** Bibliografia básica
PRIMEIRA PARTE
PREFÁCIO

O presente trabalho nada mais é do que uma breve síntese do processo histórico

de formação da economia brasileira. Embasado nas aulas ministradas pelo Professor José

Flávio Motta e pela Professora Luciana Suarez Lopes, trata-se de um pequeno resumo

que teve a intenção de ajudar os alunos matriculados na disciplina chamada Formação

Econômica e Social do Brasil no ano de 2019. Não obstante, a intenção de tornar público

este texto é justamente, e apenas, a de ajudar a todos os futuros alunos desse curso,

independentemente do professor responsável. O autor não pretende ir além desse

objetivo.

Mesmo que o propósito seja de ajudar a todos os futuros matriculados nessa

disciplina, inclusive os com pouco interesse nos temas de História Econômica e História

do Pensamento Econômico, o autor ficaria profundamente satisfeito se ao menos um dos

possíveis leitores passasse a ter gosto por essas áreas magníficas das ditas humanidades,

passando então a estuda-las com mais afinco. Todo bom economista precisa conhecer

muito bem os fundamentos da Macroeconomia, da Microeconomia e da Econometria.

Não apenas conhecer, como também saber como os operar na vida prática com muita

precisão. Caso contrário, o economista estará perdido. Ele, contudo, será tosco se não

desenvolver o mínimo interesse pelo estudo da dinâmica histórica que está por trás da

construção da economia moderna, sobre a qual o economista realiza suas intervenções e

sobre a qual se ergue toda a Teoria Econômica. A Economia é um dos campos científicos

mais brilhantes, exatamente por ter como estruturas basilares a História e a Matemática,

aparentemente tão distantes.

7
Com relação à estrutura desse compêndio, cada capítulo corresponde a uma aula

ministrada pelos docentes. Algumas aulas, infelizmente, não foram sintetizadas. Não

convém explicitar as razões para tal.

Finalmente, o autor pede perdão por não ter conseguido sistematizar perfeitamente

as notas de rodapé e as referências ao longo das páginas. Ele crê, no entanto, que isso não

causará transtornos à leitura.

G.G.M.

São Paulo, julho de 2019

8
I

Estabelecimento e sedimentação do paradigma pradiano

Caio Prado Jr. (1907-1990) pode sem quaisquer ressentimentos ser colocado na

lista seleta dos maiores historiadores que a intelectualidade brasileira já conheceu, sendo,

por assim dizer, até hoje uma referência primordial para os estudiosos da História

econômica e social do Brasil.

Em termos de História Econômica, Prado ficou marcado pela obra Formação do

Brasil Contemporâneo: Colônia (1942). É a partir dela que a sua interpretação a respeito

formação econômica e social brasileira ganhou relevância, permitindo que hoje possa se

falar de um paradigma pradiano na historiografia. Não obstante, o título do livro

apresenta uma aparente contradição: afinal, se o tema é do Brasil contemporâneo, por

qual razão o autor nos remete aos três primeiros séculos de nossa história, ou seja, ao

período colonial? Justamente pelo fato de que o plano original de Caio Prado Jr. era

escrever acerca da História Econômica nacional abarcando inclusive os anos de sua

época. Infelizmente, o projeto não se concretizou.

De qualquer forma, é na obra de 1942 que o “modelo” pradiano, ou seja, sua

interpretação historiográfica se encontra mais bem sedimentada. Nas palavras de Antonio

Candido:

Os homens que estão hoje [1967] um pouco para cá ou um pouco para lá dos

50 anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em

termos de passado e em função de três livros: Casa Grande & Senzala (1933),

de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil

9
(1936), de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso

complementar; Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado

Júnior, publicado quando estávamos na escola superior. São estes os livros

que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade

ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois

da revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo 1.

Dos três autores citados, é justamente Prado que possui um enfoque mais forte e

profundo na análise econômica dentro da historiografia. A relação disso com a influência

da metodologia marxista, que permeou todo o pensamento pradiano, é inegável. Ainda

segundo Candido:

Trazendo para a linha de frente os informantes coloniais de mentalidade

econômica mais sólida e prática, dava o primeiro grande exemplo de

interpretação do passado em função das realidades básicas da produção, da

distribuição e do consumo. Nenhum romantismo, mas o desnudamento

operoso dos substratos materiais. Em consequência, uma exposição de tipo

factual, inteiramente afastada do ensaísmo (marcante nos dois anteriores

[Freyre e Holanda]) e visando a convencer pela massa do dado e do

argumento.2

Previamente à década de 1930, o principal modelo teórico para a explicação da

realidade social imediata do Brasil estava pautado nas explicações de cunho étnico-racial.

Num contexto de substituição da mão-de-obra escrava pela livre e assalariada, permeado

inclusive pela nova roupagem do jogo de interesses, formam-se novos critérios de

cidadania, marcados pela rígida hierarquização social, que necessitam de justificativa

1
CANDIDO, A. O significado de Raízes do Brasil. In HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil.
Edição comemorativa 70 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 235-236.
2
Idem, pp. 237
10
plausível. É nesse sentido que as teorias raciais, fortalecidas na transição do século XIX

para o XX, apesar de todas as implicações negativas, tornam-se o principal argumento

para sacramentar as diferenças sociais.

Mas, é justamente na transição da República Oligárquica para a Era Vargas que

as doutrinas raciais se tornam insuficientes para explicar o movimento histórico que

começava a assentar-se em bases industriais. A elite intelectual brasileira exigia uma

reformulação das ciências sociais. Como disse Rosa Maria Vieira:

O que se percebe é que o Brasil dos anos 30, que aos poucos passa a viver sob

o signo de uma modernidade contraditória, instiga a intelligentsia nacional e

pede um novo tratamento, para além das abordagens étnico-raciais

dominantes. As elites intelectuais são levadas a atualizar a discussão da

problemática nacional, (...). A grande crise econômica da terceira década, a

agitação social, a cisão oligárquica, a escassa representatividade política dos

novos estratos sociais, a intensa movimentação cultural (de que o modernismo

é boa expressão) configuram um “presente problemático”, cujas raízes – a

“formação nacional” – devem ser investigadas. E, nesse processo, os recursos

da análise social do período são questionados, abrindo-se espaço para a

renovação das ciências sociais no Brasil.3

Vale ressaltar também, a partir da chamada Revolução de 1930, a influência dos

Annales de L. Febvre e M. Bloch na historiografia brasileira, no sentido em que os dois

historiadores franceses combatiam a dita História “dos acontecimentos” (événementielle).

Aquela que tomava como ponto fundamental os acontecimentos singulares de ordem

política, diplomática e até mesmo militar (enfatizando, assim, as grandes figuras, tais

como reis, príncipes, generais, etc.). Ao contrário, Febvre e Bloch buscavam uma análise

3
VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). São Paulo:
EDUC, 2007, p. 75
11
histórica que abrisse espaço para a interpretação ao redor dos fatos centrais. Preferiam,

inclusive, um diálogo mais fecundo com a antropologia, a psicologia, a geografia, a

economia, a sociologia, etc. De acordo com Ronaldo Vainfas:

Contra a tal história historicizante, Febvre e Bloch opunham uma história

problematizadora do social, preocupada com as massas anônimas, seus

modos de viver, sentir e pensar. Uma história de estruturas em movimento,

com grande ênfase no estudo das condições de vida material (...). Uma história

preocupada não com a apologia dos príncipes ou generais em feitos

singulares, senão com a sociedade global, e com a reconstrução dos fatos em

série passíveis de compreensão e explicação.4

Não é por acaso que, ao buscar cobrir a vida humana como um todo e não apenas

os indivíduos “especiais”, e, portanto, ampliando seus horizontes no espaço e no tempo,

o estudo da História passou por uma profunda especialização. “Ai no quadro das

Histórias especiais, ganhou vulto, sobretudo em nossos dias, a Econômica, exigida pela

realidade” (IGLESIAS, 1970, p. 9).

De fato, a História Econômica como tal ganhou força no Brasil principalmente a

partir de Caio Prado Jr. Mas, desde o século XVI, é possível reconhecer obras que podem

hoje ser chamadas de sementes da historiografia econômica. É o caso de Tratado

descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza; Diálogo das Grandezas do

Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão e Cultura e Opulência (1711), de Pe.

Antonil. De caráter fundamentalmente descritivo, funcionam hoje como fontes para a

historiografia propriamente dita. O mesmo acontece com os ricos relatórios de províncias

e de viajantes da colônia.

4
VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro:
Campus, 2002, p. 17
12
É em 1935, com a publicação de Evolução econômica do Brasil por John F.

Normano, já com enfoque mais quantitativo e com a presença de dados estatísticos e

fontes primárias, que a História Econômica amadurece profundamente. Influenciado por

João Lúcio de Azevedo, que, em 1928, publica Épocas de Portugal econômico: esboços

de história, Normano sistematiza a noção de ciclo econômico no período colonial,

balizando a obra de autores essenciais na historiografia econômica, tais como Roberto

Simonsen, Celso Furtado e o próprio Caio Prado Jr. De acordo com Normano:

A história da economia brasileira (...) constitui, na verdade, a história do

aparecimento e desaparecimento por assim dizer de sistemas econômicos

inteiros em que uma nação baseia sua existência. A sua característica

principal é a permanente mudança das condições dos produtos que poderemos

chamar de “produtos reis”. Açúcar, cacau, ouro, fumo, borracha, café – cada

um desses produtos tem seu lugar na história do país e foram, cada um no seu

tempo, o “eixo” da economia nacional (ou estadual), dando ao Brasil uma

supremacia mundial temporária.5

A primeira obra que de fato pode ser considerada como de História Econômica é

História econômica do Brasil (1500-1820), publicada em 1938 por Roberto Simonsen,

onde o autor consolida em definitivo a ideia de ciclo econômico. Falta, entretanto, o

aspecto totalizante da economia nacional no período colonial, aquilo que norteia todo o

processo. Na visão de muitos autores mais recentes, tais como Maria Yedda Linhares, a

proposta de Simonsen acabou resultando numa visão compartimentada e estanque da

história econômica brasileira no período em análise.

5
NORMANO, John F. Evolução econômica do Brasil. 2.ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1945, p. 23
13
Essa lacuna será preenchida justamente por Caio Prado em seu Formação do

Brasil Contemporâneo, caracterizando um salto qualitativo frente a Simonsen. Prado é

quem, por enxergar o processo econômico globalmente, vai mostrar um quadro que não

se altera apesar das distintas atividades econômicas ao longo da colonização, que possui

“uma forma homogênea e única”, como diria Alice Canabrava. Foi esse mesmo autor

que percebeu algo mais profundo que a mudança do “produto-rei” de Normano: a

integração do Brasil à lógica capitalista mercantil das metrópoles europeias, pontuando

uma estrutura fundamentalmente exportadora nos trópicos. Em suma, foi Caio Prado Jr.

quem percebeu que os ciclos econômicos são manifestações distintas de uma realidade

quase que petrificada ao longo dos mais de 300 anos de colonização.

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos

trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que

a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a

explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio

europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil

é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no

econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos

americanos.6

Além dessa visão totalizante e estrutural da economia colonial brasileira, marcante

na obra de Prado, outros aspectos que nortearam sua obra deram a seus estudos um salto

qualitativo e uma posição de destaque dentro da intelectualidade se o compararmos com

autores anteriores e até mesmo contemporâneos. O primeiro deles é a consideração dada

às especificidades históricas (algo compartilhado inclusive por Celso Furtado),

analisando os quadros conjunturais, evitando e criticando a defesa da aplicação irrestrita

6
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Brasiliense.
14
dos modelos econômicos internacionais clássicos. Em seu História e desenvolvimento

(1972), entrando em discordância com as teses de W. W. Rostow, Prado explica:

A ideia central consiste em figurar como ponto de partida do

desenvolvimento moderno aquilo que se denominaria ‘sociedade tradicional’,

que compreenderia genericamente todas as formas econômico-sociais que

precederam o capitalismo industrial. Mas não se tratará de caracterizar essa

‘sociedade tradicional’, determinar suas relações de produção e trabalho;

(...). (...) defini-la como momento ou fase de um processo evolutivo. E sim

unicamente marcar com ela um ponto de partida cômodo onde fosse possível

situar o modelo de crescimento econômico de antemão preparado. Em suma,

a ‘sociedade tradicional’ não se caracteriza por si e em si; e sim apenas em

contraste com o que vem depois dela (...).7

O segundo fator fundamental é a perspectiva totalizante, aquela que refletia a paixão de

compreender o Brasil como um todo, numa visão global e que teve como grandes

representantes, além de Caio Prado: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso

Furtado e Raimundo Faoro. Finalmente, é necessário frisar a relação pradiana entre teoria

e a práxis política: a história não poderia se resumir à academia, antes ela deveria

funcionar como instrumento para a militância ativa. A compreensão da realidade

brasileira com vias a estimular a luta política. As descobertas históricas estavam longe de

servir apenas para verificação, mas sim para abrir caminho para movimentos de combate

à injustiça social e que pudessem levar a um desenvolvimento mais sólido.

7
PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1972, p. 25
15
II

O sentido da colonização

O início dessa que é uma das maiores obras de Caio Prado Jr. trata especificamente

das motivações e do direcionamento que foi dado à experiência colonizadora no Brasil.

Basicamente, o “sentido da colonização” ao que o autor se refere baseia-se na exploração

dos recursos naturais do território descoberto, atendendo às demandas do mercado

europeu, que ganhava cada vez mais força. Assim, a colonização nos trópicos teve, desde

o introito, o aspecto de uma vasta empresa. É justamente desse sentido que resulta os

fundamentos econômico e social da formação e evolução históricas do território

brasileiro. Mas, nas palavras do próprio autor:

(...) um tal caráter mais estável, permanente, orgânico, de uma sociedade

própria e definida, só se revelará aos poucos, dominado e abafado que é pelo

que o precede, e que continuará mantendo a primazia e ditando os traços

essenciais de nossa evolução colonial8.

Mesmo que, num dado momento histórico, já fosse possível observar a

estabilidade e a organicidade na colônia9, tal fator nunca foi capaz de eliminar aquilo que

o autor chama de “linha-mestra” da colonização: o fornecimento dos gêneros tropicais,

raros na Europa e, portanto, com alto potencial de lucratividade para a metrópole, tais

8
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011,
pp. 28-29.
9
É o que quis dizer Gilberto Freyre ao afirmar que, na experiência colonizadora, formou-se “uma
sociedade com característicos nacionais e qualidades de permanência” (FREYRE, p. 16).
16
como o açúcar, o tabaco, os minérios preciosos, o café, etc. Eis a essência da formação

brasileira e dela derivaram todas as atividades econômicas realizadas no Brasil até sua

emancipação política.

Como já foi visto, Caio Prado Jr. teve, em toda sua trajetória política e acadêmica,

a influência da metodologia e da análise histórica marxista, o que lhe deu um olhar atento

para as estruturas socioeconômicas que moldaram a tessitura social brasileira. Essa

“preocupação pradiana” fez com que o autor analisasse com demasiada atenção o caráter

de permanência de muitos elementos coloniais aparentemente anacrônicos, mas que

estavam, no momento em que Prado escreve Formação do Brasil contemporâneo,

profundamente arraigados, dando ao processo de modernização nacional um caráter

conservador, uma vez que as mudanças, ao longo de quatro séculos até a publicação da

obra, não foram capazes de romper esses obstáculos impostos pelo “sentido da

colonização”. Ainda segundo o próprio autor:

É esta em suma a conjuntura em que hoje se encontra a economia brasileira

como resultante do processo histórico em que ela se formou e evoluiu até

nossos dias (...). Conjuntura esta onde se insinuam as contradições em que se

debate a economia brasileira e que se configuram sobretudo na permanência

de um sistema que vindo do passado e embora já obsoleto e anacrônico,

persiste e põe obstáculos ao desenvolvimento (...)10.

É nesse sentido que é possível notar a ligação da obra pradiana com a práxis

política do autor (outro fruto de sua ligação profunda com o marxismo), na medida em

que Caio Prado escreve seus principais textos sempre como instrumento, ou melhor,

estímulo às mudanças revolucionárias, aquelas que produzem abalos estruturais na

economia e no corpo social e que, na visão do autor, são as únicas capazes de varrer toda

10
PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1972, p. 91-92
17
essa “permanência deletéria” de elementos chave da nossa colonização. Ainda assim, toda

essa análise foi construída “com certa obsessão. Nesse sentido, a projeção que [o autor]

faz para o Brasil não é nada animadora” (AMARAL LAPA, 1999, p. 263).

Embora a obra trate da experiência colonizadora como um todo, o autor se utiliza

de um recorte temporal preciso: a primeira metade do século XIX. A escolha não é

inocente e, muito menos, fortuita. Na realidade, é nesse momento em que temos a

expressão plena e mais clara de todos os elementos da colonização, quando essa etapa de

nossa formação econômica e social estava mais bem sedimentada. É também a

localização temporal onde se inicia um processo de transformação e renovação, apesar de

seu caráter conservador, como observamos acima. A partir dos primeiros cinquenta anos

dos “oitocentos”, portanto, é que Prado se dispõe a “olhar para trás” e entender o que foi,

do ponto de vista econômico e social, a colonização do Brasil.

É fato consumado que, ao longo dos primeiros trezentos anos de existência do

Brasil, não faltaram peculiaridades fenomênicas. Só o exemplo econômico nos fornece

inúmeros ciclos de atividade produtiva, com distintos polos de concentração de capitais

e mão-de-obra. Todas elas, no entanto, acabam ofuscando, de acordo com Caio Prado, o

sentido, a “linha-mestra”, os determinantes fundamentais da colonização. Adentrando

numa profundidade de análise um pouco maior, o autor poderá, por sua vez, compreender

que “não sofremos nenhuma descontinuidade no correr da história da colônia”

(PRADO, 2011). Por outro lado, a nossa colonização, com seu sentido e inclusive com

seus “incidentes” secundários, faz parte de um todo maior, inserindo-se na lógica

capitalista do mercado europeu a partir do século XVI.

Compreendido o sentido da colonização e seu caráter mais profundo em relação

aos incidentes fenomênicos, Prado nos leva à conclusão de que o caráter desse momento

histórico da formação brasileira não poderia ser diferente do que foi, ou seja, que a
18
existência da agro exportação, com vistas a atender à demanda do mercado capitalista

europeu, foi uma consequência natural e necessária de algumas condições: “o caráter

tropical da terra, os objetivos que animam os colonizadores, as condições gerais dessa

nova ordem econômica do mundo que se inaugura (...)” (PRADO, 2011, p. 124).

Quanto às condições naturais e físicas da colônia, as descrições de Gilberto Freyre

servem bem para o esclarecimento:

O português vinha encontrar na América tropical uma terra de vida

aparentemente fácil; na verdade dificílima para quem quisesse aqui organizar

qualquer forma permanente ou adiantada de economia e de sociedade. Se é

certo que nos países de clima quente o homem pode viver sem esforço da

abundância de produtos espontâneos, convém, por outro lado, não esquecer

que igualmente exuberantes são, nesses países, as formas perniciosas de vida

vegetal e animal, inimigas de toda cultura agrícola organizada e de todo

trabalho regular e sistemático (...). Foi dentro de condições físicas assim

adversas que se exerceu o esforço civilizador dos portugueses nos trópicos.

Tivessem sido aquelas condições as fáceis e doces de que falam os panegiristas

da nossa natureza e teriam razão os sociólogos e economistas que,

contrastando o difícil triunfo lusitano no Brasil com o rápido e sensacional

dos ingleses naquela parte da América de clima estimulante, flora equilibrada,

fauna antes auxiliar que inimiga do homem, condições agrológicas e

geológicas favoráveis, onde esplende a formidável civilização dos Estados

Unidos, concluem pela superioridade do colonizador louro sobre o moreno 11.

Além das condições físicas mostradas acima, Caio Prado analisa também o estilo

do colono que se dirigiu ao Brasil no início de sua colonização. Tendo em vista as

adversidades naturais, o português que chegava aos trópicos, marcado por sua origem

11
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 51ª ed. rev. São Paulo: Global, 2005, p. 78
19
nobre e fidalga em Portugal, não se predispôs a uma vida de trabalhador, vivendo para a

simples subsistência. Na realidade, o colono na América portuguesa é

(...) o empresário de um grande negócio. Vem para dirigir: e se é para o campo

que se encaminha, só uma empresa de vulto, a grande exploração rural em

espécie e em que figure como senhor, o pode interessar. Vemos assim que, de

início, são grandes áreas de terras que se concedem no Brasil aos colonos.

(...) Nenhum daqueles colonos (...) aceitaria outra coisa 12.

Percebe-se, portanto, que a agro exportação, comandada por um senhor, está, no

caso da colonização brasileira, intimamente associada ao latifúndio, a essas enormes

porções de terra que foram distribuídas (sob o nome de “sesmarias”) aos colonos

portugueses dirigentes e onde se realizava a produção em escala para fornecer ao mercado

capitalista europeu gêneros tropicais.

Finalmente, falta delinear o caráter da mão-de-obra. Tendo em vista o estilo da

atividade econômica (realizada em larga escala, exigindo quantidade massiva de

trabalhadores) e a predisposição do colono português para dirigir ao invés de trabalhar,

vemos que o trabalho compulsório de africanos escravizados era mais que bem-vindo.

Caio Prado nos confirma isso ao dizer:

Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho

escravo. Não só Portugal não contava com a população suficiente para

abastecer sua colônia de mão-de-obra, como também, já o vimos, o português,

como qualquer outro colono europeu, não emigra para os trópicos, em

princípio, para se engajar como simples trabalhador assalariado do campo.

A escravidão torna-se assim uma necessidade (...)13.

12
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 124
13
Idem, p. 126-127
20
Assim, o cerne da colonização brasileira, a célula fundamental que dá o sentido

dessa etapa de nossa formação econômica e social, que caracteriza a chamada “linha-

mestra” reside na grande propriedade, sustentada pelo trabalho escravo, comandada pelo

empresário português e que existe como uma inserção, um elo na lógica mercantil do

capitalismo europeu em consolidação. O Brasil, portanto, assume o mero papel de

fornecedor de gêneros tropicais, altamente lucrativos para a metrópole, na divisão

internacional do trabalho da época.

Esse modelo de produção, essa estrutura produtiva nem de longe, na visão de Caio

Prado, foi um modelo eleito dentre outros possíveis. Como já foi visto, foi uma

consequência natural e imposta pelas condições internas e externas que moldaram nossa

experiência colonizadora. Assim, a única via possível era a colonização de exploração,

tornando inimaginável, em território brasileiro, a de povoamento14.

O autor não se limita a analisar somente a grande produção agrária, por mais que

ela seja o núcleo básico de nossa evolução econômica e social. Para ele, outras duas

atividades foram marcantes em nossa formação e legaram as bases de nosso

desenvolvimento: a mineração e o extrativismo. Ambas, porém, são muito semelhantes,

na sua essência, à plantation:

Mutatis mutandis, a mineração, que a partir do século XVIII formará a par

da agricultura entre as grandes atividades da colônia, adotará uma

organização que afora as distinções de natureza técnica, é idêntica à da

agricultura. (...) É ainda a exploração em larga escala que predomina:

grandes unidades, trabalhadas por escravos (...). O terceiro setor das grandes

atividades fundamentais da economia brasileira é o extrativo. Organizar-se-á

de forma diferente, porque não terá por base a propriedade territorial (...); os

14
Prado utiliza esses termos tomando como base o trabalho de Leroy-Beaulieu, que consagrou a
dicotomia “povoamento-exploração” em sua obra De la colonisation chez les peuples modernes.
21
colhedores têm a liberdade de se dirigirem para onde lhes convenha nesta

floresta suficiente para todos que forma uma propriedade comum (...). Trata-

se em suma de uma exploração primitiva e rudimentar (...). Mas afora isto, a

extração não se distingue, na organização de seu trabalho e estruturação

econômica, dos demais setores da atividade colonial. Encontra-se aí o

empresário, embora não seja proprietário fundiário como o fazendeiro e o

minerador, mas que dirige e explora, como estes, uma numerosa mão-de-obra

que trabalha para ele e sob suas ordens15.

Cabe agora analisar, a partir da perspectiva pradiana, as decorrências estruturais

desse modelo econômico existente na experiência colonizadora. Além de se constituir

como um mero fornecedor de gêneros para o mercado europeu na divisão internacional

do trabalho (algo que já havíamos notado), Prado percebe uma intensa concentração da

riqueza nas mãos dos colonos dirigentes e, intimamente relacionado a isso, um imenso

vácuo social (em termos qualitativos) numa estratificação marcada por dois polos da

produção: os senhores e os escravos. É justamente nessa lacuna social que o autor

encontra aquilo que ele chama de “formas inorgânicas da vida social”, marcadas pela

marginalização, pela miserabilidade, pela escassez de recursos materiais disponíveis à

população que não estava nas pontas, pela extrema degradação moral, pela inutilidade e

indigência, ajudando a constituir uma “casta numerosa de vadios” (PRADO, 2011, p.

299-301). É necessário pontuar que toda essa descrição pradiana bruta e com deslizes

preconceituosos, por mais que o autor norteie sua obra pela práxis política de viés

revolucionário, pode gerar efeitos colaterais indesejados. Nas palavras de Iraci del Nero:

Parece-nos desnecessário lembrar que tratar tal povo como

inexistente [à la Couty] ou categorizá-lo, sem mais, como composto de

marginais sociais significa reproduzir as ideologias próprias das velhas elites

15
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 117-118.
22
dominantes e abrir as portas para teses simplistas como a que reduziu a

questão social a uma questão de polícia16.

O autor de modo algum se deixa esquecer da existência de um mercado interno na

colônia. Mas, Caio Prado secundariza sua importância, colocando esse setor da economia

como “de pouca monta, será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar

possível a realização daquele fim essencial” (PRADO, 2011, p. 123). É certo que a

perspectiva pradiana clássica não nega um efetivo crescimento do mercado interno ao

longo do período colonial: fatores, como o crescimento populacional, além de outros que

invariavelmente alteraram o quadro inicial que moldou o desenvolvimento, certamente

deram maior dinamismo e autonomia, dando mais vida a um setor econômico

propriamente nacional. Mas,

(...) aquele crescimento é muito mais quantitativo que qualitativo (...). Em

substância, nas suas linhas gerais e caracteres fundamentais de sua

organização econômica, o Brasil continuava, três séculos depois do início da

colonização, aquela mesma colônia visceralmente ligada (...) à economia da

Europa; simples fornecedora de mercadorias para o seu comércio. Empresa

de colonos brancos acionada pelo braço de raças estranhas, dominadas mas

ainda não fundidas pela sociedade colonial17.

Estudos mais recentes sobre esse momento histórico do Brasil e sobre o paradigma

pradiano, porém, contestam essa afirmação pouco flexível de Caio Prado, chegando à

conclusão de que, em conjunturas e regiões específicas, esse setor “propriamente

16
DEL NERO DA COSTA, Iraci. Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior
(parte I). São Paulo: Informações fipe, fevereiro de 2007, p. 26.
17
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 130.
23
nacional” obteve autonomia, importância e dinamismo de relevância tão grande quanto à

do setor externo, voltado para o fornecimento de gêneros18.

18
É o que nos diz José Roberto do Amaral Lapa: “quanto à existência ou não de um mercado
interno no Brasil, dentro do sistema colonial, bem como ainda chamamos de comércio
intercolonial, (...) para nós, ambos esses mercados conseguem em diferentes conjunturas e
regiões da colônia apresentar um certo grau de autonomia e dinâmica, capaz de conferir-lhes
um desempenho que não está necessariamente atrelado à grande lavoura de exportação.” (DO
AMARAL LAPA, José Roberto. Caio Prado: Formação do Brasil contemporâneo. In: MOTA,
L. D. (Org). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. São Paulo: Editora SENAC,
1999, p. 265).
24
III

O sentido profundo da colonização

Trataremos, neste capítulo, da análise do historiador Fernando A. Novais a

respeito da colonização na América Portuguesa, tomando como base o capítulo Estrutura

e dinâmica do antigo sistema colonial, parte de seu livro intitulado Portugal e Brasil na

crise do antigo sistema colonial.

A interpretação de Novais, segundo o próprio autor, guarda proximidade com o

paradigma pradiano a respeito da experiência colonial. Novais absorve a perspectiva de

Caio Prado Jr., não a nega, mas procura aprofundá-la e alargar seu campo de visão. Ele

busca entender a colonização portuguesa no trópico, assim como toda a expansão

ultramarina europeia, como um dos elos do processo de formação do capitalismo a partir

da decomposição das bases materiais feudais. Nas suas palavras:

‘Brasil’, é claro, não existia, senão como colônia, e é da colônia portuguesa

que trata Caio Prado Jr.: a questão é saber se não seria preciso a

consideração do conjunto do mundo colonial. Expansão comercial europeia

é, na realidade, a face mercantil de um processo mais profundo, a formação

do capitalismo moderno; a questão é saber se não seria preciso procurar as

articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudal-

capitalista.19

Caio Prado, na visão do autor, acaba sendo mais específico, analisando

fundamentalmente o modelo de produção agrária que vigorou na colônia tropical e sua

19
NOVAIS, Fernando. Sobre Caio Prado Júnior. In: Aproximações: estudos de história e
historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp. 288-289.
25
articulação com os interesses e diretrizes da metrópole lusitana. Fernando Novais, por sua

vez, pretende alargar a análise e entender o papel das colônias na formação do capitalismo

moderno.

Seria possível, não obstante, afirmar que a perspectiva pradiana aborda

implicitamente o “sentido profundo da colonização”. Caio Prado não deixa de frisar que

a colonização tropical é um detalhe, um episódio que se encaixa nesse contexto de

formação de uma nova ordem econômica. Mas, em suma, entende o processo de

exploração ultramarina somente como um “capítulo” da história comercial europeia,

marcada pelo estabelecimento de novas rotas, fenômeno este que transformou o quadro

geopolítico de forças no velho continente.

É nesse sentido que a análise pradiana, embora válida, acaba sendo insuficiente

para a proposta de Novais, que, por sua vez, busca aprofundar o conceito. Assim, o autor

relaciona a colonização com a formação dos Estados nacionais modernos (fenômeno que

hoje se convenciona chamar de Antigo Regime), momento histórico em que inclusive se

deu a “hegemonia” das políticas econômicas da “escola mercantilista”20. O esforço de

aprofundamento, portanto, acaba levando Novais a entender as articulações das colônias

com as normas mercantilistas, permitindo que o autor enxergue, a partir dessa

compreensão, uma forma particular de exploração colonial, diferente de todas as outras

experiências pretéritas de colonização pelas quais passou a civilização. Nas palavras de

20
Alguns historiadores, tais como o sueco E. Hecksher, entendem sim o mercantilismo como um
corpo teórico bem sedimentado, apesar de não ser tão harmônico como outras escolas econômicas
(clássica, neoclássica, marxista, keynesiana, etc.). O próprio Novais admite: “É importante
destacar, desde já, e a partir dessa formulação básica, que a doutrina mercantilista tem o
imediato objetivo de formular normas de política econômica, parte dessa problemática e só para
justificar o seu receituário é que se alça à formulação duma teoria explicativa da vida econômica
como tal. Não parte de conceitos puros e de uma sistemática explicação da economia para
deduzir normas de intervenção nesta realidade, senão percorrer quase o caminho inverso;
paralelamente, as preocupações de seus doutrinadores não ultrapassam as fronteiras de suas
respectivas nações” (NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial. São
Paulo, 1990, p. 6)
26
Postlethwayt, um economista britânico do século XVIII, defensor das práticas

mercantilistas: “as colônias devem (...) dar à metrópole um maior mercado para seus

produtos; (...) ocupação a seus manufatureiros, artesãos e marinheiros; (...) fornecer-lhe

uma maior quantidade dos artigos de que precisa” (Apud. NOVAIS, 1990, p. 16). De

fato, a colônia acabou servindo como um dos principais suportes às políticas

mercantilistas, justamente num momento em que a concorrência entre as metrópoles

europeias se intensificava, diminuindo os ganhos extraordinários. Percebe-se, assim, com

o que foi exposto, que a colonização nos trópicos, para Novais, não poderia ter tido outro

direcionamento além daquele marcado pela exploração mercantil, alicerçada na grande

propriedade agrária sustentada pelo trabalho escravo (do qual trataremos adiante com

mais detalhe), permitindo, dessa forma, o fornecimento de gêneros naturais altamente

lucrativos para a metrópole21.

A segunda “etapa” desse esforço de aprofundamento consiste, para Novais,

justamente em entender as ligações existentes entre a colonização e a formação do Ancien

Régime, ou seja, as articulações do novo mundo com a formação dos Estados nacionais

europeus. Segundo o autor:

Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política

mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, parte de um

todo, interagem reversivamente neste complexo a que se poderia chamar,

mantendo um termo da tradição, Antigo Regime. São no conjunto processos

correlatos e interdependentes, produtos todos das tensões sociais geradas na

desintegração do feudalismo em curso, para a constituição do modo de

produção capitalista (...). Enquanto, porém, o último passo não era alcançado,

a economia capitalista comercial, e pois a burguesia mercantil ascendente não

21
Percebe-se que, embora o autor entenda que Prado tenha ficado “no meio do caminho”, é
impossível não notar aproximações e conexões muito profundas entre as análises históricas de
ambos, principalmente no que tange à essência da exploração colonial no trópico.
27
possuía ainda suficiente capacidade de crescimento endógeno; a capitalização

resultante do puro e simples jogo do mercado não permitia a ultrapassagem

do componente decisivo – a mecanização da produção.22

A colonização, portanto, serviu, nesse processo de inserção na transição, como

mecanismo importante de acumulação originária/primitiva de capital. Originária, nos

termos marxistas, justamente porque o processo endógeno de acumulação (aquele

pautado, como Marx explicitou brilhantemente nos primeiros capítulos de sua Magnum

oppus, pela valorização do valor, extração de mais-valia a partir do uso da força de

trabalho do proletariado; em suma, pelo esquema ampliado de circulação capitalista de

mercadorias: D – M – Processo produtivo, uso de força do trabalho – M’ – D’, com D’>D)

ainda não era viável em larga escala, permitindo que o capitalismo amadurecesse e

“andasse com as próprias pernas”, fazendo-se uso, com isso, de “pontos de apoio fora do

sistema, induzindo a uma acumulação que, por se gerar fora do sistema, Marx chamou

de originária ou primitiva” (NOVAIS, 1990). Assim, o autor destaca dois mecanismos,

intrínsecos à exploração colonial, que se tornaram cruciais para a acumulação originária:

exclusivo metropolitano e trabalho escravo. Ambos, cada um de um modo particular,

permitiram considerável transferência de recursos e rendas para as metrópoles.

O exclusivo metropolitano era o principal mecanismo gerador de lucros

extraordinários no comércio colonial, que se operacionalizava através do esquema

“monopólio-monopsônio” ou “monopólio bilateral”: a colônia deveria fornecer seus

gêneros apenas para sua metrópole, a qual, por sua vez, seria a única permitida a vender

produtos manufaturados para a colônia. Monopólio na demanda, assim como na oferta,

permitindo uma manipulação dos preços que deprimia absurdamente a cotação dos

22
NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial. São Paulo, 1990, pp. 31-
32)
28
gêneros e inflava o valor dos manufaturados. O resultado não poderia ser outro além da

sistemática transferência de renda e recursos para o continente europeu.

É bem verdade que o regime do exclusivo não era de uma rigidez impenetrável.

Na realidade, foram comuns casos de concessões (principalmente em momentos de

dificuldade financeira, como no caso português após a Restauração de 1640 23), de roubo

e contrabando. Tais brechas, porém

(...) se situam mais na área da disputa entre as várias metrópoles europeias

para se apropriarem das vantagens da exploração colonial – que funciona no

conjunto do sistema, isto é, nas relações da economia central europeia com as

economias coloniais periféricas. Não atingem, portanto, a essência do sistema

de exploração colonial.24

A escravidão, por sua vez, era a forma de trabalho par excellence para sustentar a

acumulação originária. Na medida em que as colônias se relacionavam com o comércio

especificamente colonial, necessitava-se de uma produção em larga escala, em grandes

propriedades, de gêneros tropicais que pudessem garantir lucros comerciais

extraordinários, possibilitando uma transferência consistente de renda. O trópico se

moldou ao sistema mercantil vigente e, com isso, fazia necessária a imposição de um

modelo de trabalho que foi recuperado após longo período de “esquecimento”: o

escravismo.

Chega a ser aparentemente contraditório que, em economias integradas ao

capitalismo, o qual ganhava força justamente pelo desatamento dos laços servis de

produção e pela dupla libertação do trabalhador (livre do jugo do senhor feudal, livre dos

23
“É bem verdade que (...) a monarquia ibérica se debatia em dificuldades financeiras enormes,
o que levou o rei de Espanha e Portugal, apesar das novas proibições (por exemplo, em
9/2/1591), à concessão de licenças especiais, o que chegou a ponto de permitir um tráfico regular
direto com Hamburgo que movimentou 19 navios entre 1590 e 1602” (Idem, p. 49)
24
Ibidem, p. 66

29
meios de produção que utilizava para sua subsistência), fosse necessário e plausível o uso

de trabalho compulsório. Sabemos que o modo de produção típico do sistema capitalista

se baseia no regime assalariado de trabalho. É ele que permite, a partir da transformação

da força de trabalho em mercadoria, a generalização da produção para o mercado, assim

como a acumulação endógena de capital: inverte-se capital, permitindo a produção e

venda de mercadorias; realiza-se a extração da mais-valia a partir do uso da força de

trabalho, após a remuneração dos fatores de produção, ocorre nova inversão em escala

ampliada. O fluxo do capital, sua rotação, é muito mais rápida e dinâmica, ao passo que

a escravidão, que exige uma manutenção constante da mercadoria-escravo, assim como

um pagamento prévio por ela (a compra do escravizado), emperra o fluxo e bloqueia a

flexibilidade. Cabe inclusive dizer que a existência de escravismo impede inclusive o

ajuste da mão-de-obra (consequentemente da produção) às flutuações de demanda no

mercado (não se pode dispensar algo que é sua propriedade, no caso o escravo). Por que,

então, o uso de escravos nos trópicos?

Para isso, Novais recorre ao marxista E. Williams25. Este, entendendo as

condições históricas que articularam as relações econômicas entre as colônias e a Europa,

entende a adequação daquelas, como já frisamos, ao processo de emergência do

capitalismo (ainda em sua forma comercial), funcionando como alicerces da acumulação

originária. Essa especificidade das colônias exigia o uso de formas compulsórias de

trabalho, do contrário, a abundância de terras livres permitiria a formação de núcleos de

povoamento, com produção voltada para a subsistência e o mercado interno, totalmente

desvinculada da economia mercantil europeia, travando os impulsos expansionistas do

capitalismo europeu. A escravidão, portanto, não foi um delírio dos dirigentes

25
Cf. Eric Williams – Capitalism & Slavery, 2ª ed, N. York, 1961, pp. 3-7.
30
econômicos. Foi, na verdade, uma imposição das especificidades conjunturais das

colônias, nas suas articulações históricas com a transição para o capitalismo moderno. Na

dialética do movimento histórico, porém, Williams nos mostra que, na medida em que o

trabalho escravo estimulou e alicerçou a formação do capitalismo industrial, este, no seu

apogeu em pleno século XIX, “se virou e destruiu a força motriz do capitalismo

mercantil, a escravidão, e todo seu funcionamento” (WILLIAMS, 2012).

Fator fundamental (apesar da importância das observações de Willians para a

análise do autor), entretanto, segundo Novais, que tornou preferível a escravização

africana nas colônias é o novo setor comercial que se impulsiona por meio dela: o tráfico

negreiro. Este era extremamente lucrativo para os mercadores europeus, garantindo uma

outra linha de transferência de renda. A acumulação, aqui especificamente, não surgia da

produção de gêneros com mão-de-obra escrava, nem com o monopólio bilateral do

exclusivo metropolitano, mas sim do próprio tráfico de pessoas coisificadas,

mercantilizadas. A escravização indígena, supostamente recusada por conta da

“indolência do nativo brasileiro”, fomentava, na verdade um negócio, a caça,

fundamentalmente interno, diminuindo a transferência de renda e recursos. Parece

paradoxal, mas, para Novais, “é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a

escravidão africana colonial, e não o contrário” (NOVAIS, 1990).

31
IV

História e subdesenvolvimento: a contribuição de Celso Furtado

A análise deste capítulo consiste fundamentalmente no esclarecimento das

contribuições do célebre economista Celso Furtado para o pensamento econômico

brasileiro, assim como para a sedimentação do estudo do subdesenvolvimento da periferia

do capitalismo. O texto que embasa nossas palavras é o de Francisco de Oliveira: Celso

Furtado e o pensamento econômico brasileiro26.

Antes de mais nada, é primordial ressaltar como Furtado, com brilhantismo, foi

capaz de unir tanto sua formulação econômica teórica com sua práxis política. Nas

palavras de Oliveira, Furtado foi

(...) uma rara figura intelectual e homem de ação. Essas duas qualidades

poucas vezes vêm juntas, e no Brasil infelizmente essa coincidência é ainda

mais escassa. Alguns notáveis estruturadores do pensamento social brasileiro

ou não experimentaram por em ação sua doutrina ou não tiveram essa chance;

de outro lado, a maioria dos homens públicos brasileiros não têm doutrina –

são apenas políticos profissionais, uns mais florentinos, outros mais

malufados, quase todos o avesso do avesso: pensam-se heróis, e são anti-

heróis; como o personagem Macunaíma, têm em comum apenas a falta de

caráter27.

26
Capítulo elaborado para a obra Inteligência brasileira, organizada por Reginaldo Moraes,
Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante. São Paulo: Brasiliense, 1986.
27
OLIVEIRA, Francisco de. Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro. In: Inteligência
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 47.
32
De fato, Furtado ficou marcado por, sempre em que esteve na chefia de um cargo

importante (como na Sudene ou até mesmo no Ministério do Planejamento), concretizar

suas formulações teóricas, ou pelo menos se esforçar para tal, nas políticas econômicas.

Mas de onde emerge o pensamento furtadiano e quais as suas características centrais?

Quais as influências mais profundas? Essas perguntas merecem maior atenção.

Furtado inicia suas problematizações a partir de seus estudos na CEPAL

(Comissão Econômica para a América Latina) no início da década de 1950. Lá é o ponto

de partida do seu método dito “histórico-estrutural”, construído para explicar a formação

econômica da periferia do capitalismo, enfatizando as conjunturas peculiares e as

especificidades históricas dessas sociedades, mostrando como o desenvolvimento das

mesmas é essencialmente distinto se comparado ao dos países centrais. Não é

surpreendente, tomando como base o exposto, que Furtado venha a pensar reformas que

acabem por ser igualmente distintas daquelas que vigoraram no centro do sistema. Esse

“olhar furtadiano” para o desenvolvimento econômico mostra como “o esforço de

teorização desse processo seria, necessariamente, original” (VIEIRA, 2007, p. 90): a

análise econômica em perspectiva histórica.

Interessa-nos, agora, ter contato com suas principais influências para a

consolidação do mencionado método “histórico-estrutural”. A primeira delas vem

justamente do pensamento “cepalino-keynesiano” do economista argentino Raúl

Prebisch, um dos fundadores da CEPAL. Mas, de acordo com Francisco de Oliveira,

“Furtado é mais aberto, alargando o campo de reflexão para além dos limites em que o

economista trabalha” (OLIVEIRA, 2003, p. 41). De fato, Prebisch acaba realizando uma

análise horizontal, enfatizando a descontinuidade estrutural entre o centro e a periferia do

capitalismo, propulsionando dinâmicas distintas no desenvolvimento contemporâneo de

ambos. Seu “discípulo” (assim diria Francisco de Oliveira), por sua vez, interessava-se

33
em “captar o desenrolar dos acontecimentos no tempo, o encadeamento dos fatores que

perpetuavam o atraso clamoroso da economia brasileira” (FURTADO, 1997, p. 163).

Acabava dando, portanto, um papel infinitamente maior para as causas históricas do

subdesenvolvimento.

A segunda influência está no pensamento econômico brasileiro. Aqui, Furtado

trava diálogo profundo com o chamado “pensamento autoritário”, representado

principalmente por O. Vianna e A. Torres, que, podemos assim dizer, dominou as

Ciências Sociais até meados da década de 1930. O ponto de contato entre Furtado e esses

autores, cotidianamente rotulados como membros da direita intelectual brasileira, surge

na medida em que todos eles constroem uma interpretação a respeito do Estado Nacional,

dando a ele o importante papel de principal veia condutora do desenvolvimento

econômico do Brasil. Mas, Francisco de Oliveira nos alerta:

Não se está dizendo, reitere-se, que há filiações entre Furtado e os autoritários

clássicos brasileiros, o que de resto não seria infamante, já que eram

intelectuais legitimamente preocupados com os destinos do país, (...) e, na

história das ideias e das posições assumidas por intelectuais, filiações que

desembocam em orientações diametralmente opostas são mais comuns que o

contrário28.

Mas, seria nula a participação daquele “sopro de radicalismo intelectual”, nas

palavras de A. Candido, ou seja, não teria Furtado também buscado apoio em Freyre,

Hollanda e Prado? Oliveira diz que sim. Apesar das obras dos três já terem sido

publicadas muito antes da magnum opus de Furtado e, além disso, deles tratarem de temas

cujo conteúdo é muito semelhante (a própria formação social e econômica do Brasil),

28
OLIVEIRA, Francisco de. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o pensamento
autoritário brasileiro. In: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo:
Boitempo, 2003, p. 82.
34
Oliveira mostra que “Furtado não dialoga com os ‘novos clássicos’ da modernidade, a

geração que justamente veio à luz na década de 1930” (OLIVEIRA, 2003, p. 60).

Outros pesquisadores da historiografia econômica brasileira, como Rosa Maria

Vieira, porém, discordam do posicionamento de Francisco de Oliveira, afirmando

categoricamente que, na realidade, a “tríade” das ciências sociais na década de 1930 teve

influência marcante na produção intelectual de Celso Furtado. A mesma afirma que

Em síntese, o que se quer lembrar é que Celso Furtado, antes de ser um dos

mais importantes teóricos da CEPAL, é um intelectual brasileiro herdeiro e

continuador do movimento de intensa renovação do pensamento social que, a

partir da década de 1930 (...) redescobriu o Brasil em termos de teoria e

projeto nacional. Ignorar essas determinações nacionais é fechar uma

dimensão essencial para o entendimento das razões do vigor explicativo e a

força de convencimento de suas análises29.

Se hoje é possível pensar a história econômica do Brasil em termos “furtadianos”,

como afirmou Rosa Maria Vieira, é justamente graças à conjunção de dois fatores: “a

força do moderno pensamento social brasileiro, nascido com os ares de 30, e o vigor da

descoberta teórica do subdesenvolvimento” (VIEIRA, 2007, p. 88).

Chegamos a ficar em dúvida, porém, se de fato há uma influência tão forte dessa

tríade, principalmente de Caio Prado Jr., na obra de Furtado. Isso porque não há, no seu

Formação Econômica do Brasil, referências bibliográficas extensas a esses autores.

Tamás Szmrecsányi acaba por esclarecer nossa dúvida, afirmando que “o trabalho não

passa de ‘um esboço do processo histórico de formação da economia brasileira’: por

esse motivo, há uma omissão quase total de referências à bibliografia histórica”

(SZMRECSÁNYI, 1999, pp. 207-214). A ausência de citações e referências, portanto,

29
VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). São Paulo:
EDUC, 2007, p. 88.
35
não elimina o fato de que Celso Furtado se baseia extensamente nas análises da “tríade”

dos anos de 1930 para compor a sua própria formulação teórica. Toda a análise de nossa

formação econômica se deu “à luz da documentação disponível e das ideias pioneiras de

Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e de Caio Prado Jr. (Formação do Brasil

Contemporâneo)” (SZMRECSÁNYI, 1999, pp. 207-214).

Com a exposição acima, conclui-se que Celso Furtado se amparou em Caio Prado

Jr. para formular toda sua produção intelectual a respeito do desenvolvimento (e do

subdesenvolvimento) da economia brasileira. Esse quadro, porém, não elimina

divergências nas propostas de resolução derivadas de análises que, embora dialoguem,

têm distinções. Prado, como sabemos, era filiado, desde o início de sua vida acadêmica,

à corrente teórica marxista. Propunha, com isso, a partir de sua formulação consistente a

respeito de nosso processo de formação, a solução da superação revolucionária do atraso

econômico e social. Havia, portanto, para Prado, uma relação intrínseca entre o atraso,

refletido e materializado na miséria das massas, e a revolução política. Assim, a proposta

pradiana “jamais poderia ter se transformado em pauta de ação para a burguesia, sendo

ao contrário, parte da ampla cultura de esquerda que começava a se formar”

(OLIVEIRA, 2003). Furtado, por sua vez, ignora essa vinculação tão forte entre revolução

e subdesenvolvimento, preferindo a opção reformista, ao afirmar categoricamente que

reformas “são necessárias para manter uma sociedade aberta e pluralista, que sobreviva

às tensões de sua própria expansão/transformação” (OLIVEIRA, 2003, p. 25). Partindo

de propostas reformistas de estabilização econômica, Furtado, diferentemente de Prado,

acabou tendo respaldo das classes dominantes do Brasil. É nesse ponto que, retornando

ao que foi dito no segundo parágrafo, ele conseguiu a amálgama entre formulação teórica

e práxis política, o que acabou sendo “ao mesmo tempo, a força e a fraqueza do

pensamento de Furtado” (OLIVEIRA, 2003).

36
É força na medida em que esse respaldo lhe permitiu a formulação de políticas

econômicas marcadas pela implementação, no setor público, de suas teorias, buscando

concretizar, nessas políticas, uma teoria industrial baseada na superação da dependência

brasileira do centro capitalista, da divisão internacional do trabalho. Isso garante que

Celso Furtado seja visto, até hoje, como um dos maiores economistas do Brasil. É, ao

mesmo tempo, fraqueza justamente porque o mesmo, junto com a CEPAL, acabou

funcionando como uma “arma ideológica poderosa a serviço da nova burguesia

industrial emergente no Brasil e em outros países da América Latina” (OLIVEIRA,

2003) que buscava desvencilhar-se da subordinação ao capital internacional. Assim,

esquecia-se de um movimento histórico dialético, baseado nos antagonismos entre as

classes sociais (o que configura uma lacuna teórica), submetendo os oprimidos aos

interesses “emancipacionistas” das elites, justificando essa prática com o uso do termo

vago “interesses nacionais”.

Apesar dessa dupla consequência da “amálgama furtadiana”, é inegável que sua

contribuição foi extensa, profícua e inovadora. Furtado, ao enfatizar as especificidades

históricas e conjunturais, encontrando a peculiaridade das economias periféricas,

conseguiu se colocar como uma “terceira via” entre a teoria econômica neoclássica e o

marxismo deturpado pelo stalinismo soviético (que se expandiu, infelizmente, ao longo

de todo o século XX, ofuscando, eliminando e distorcendo obras fundamentais de Lênin,

Luxemburgo, Trotsky, entre outros). Aquela é marcada pela ausência de uma análise

histórica, focada quase que exclusivamente na modelagem econométrica para aplicações

micro e macroeconômicas. O stalinismo deturpador, por sua vez, é dogmático, etapista,

compartilhando uma visão estanque do desenvolvimento histórico das classes e das forças

produtivas, colocando as economias subdesenvolvidas como um ponto numa curva linear

da história, avançando de forma igualmente linear até o limite entre o capitalismo e a

37
revolução (como se a história fosse uma função de primeiro grau com inclinação

positiva), esquecendo-se da possibilidade de rupturas e transformações multifacetadas,

que comecem na periferia e não no centro. Torna-se, assim, não dialética, afastando-se

totalmente do marxismo.

38
V

Formação do Estado português e a expansão portuguesa quatrocentista

Este capítulo se baseia na análise do historiador brasileiro Jacob Gorender a

respeito da expansão ultramarina portuguesa nos séculos XV e XVI. O autor estuda, no

quarto capítulo de seu livro O Escravismo Colonial30 (cujo nome é A sociedade

portuguesa e a expansão ultramarina), as relações dessa expansão com a formação sócio-

política lusitana prévia, tentando entender, a partir disso, o quão influente foi essa

conexão no desenvolvimento econômico português após o período dos descobrimentos.

Com base nisso, Gorender volta seus olhos para a formação do Estado Nacional

português nos primórdios do milênio passado. É a peculiaridade de sua constituição que,

na visão de nosso autor, atua, dialeticamente, como causa do pioneirismo português no

comércio marítimo, transformando a expansão potencial em expansão efetiva31, e do

declínio da economia lusitana na passagem definitiva do feudalismo para o capitalismo

na Europa.

Em linhas gerais, a precoce centralização monárquica lusitana se constrói a partir

da Guerra de Reconquista. Eliminar a hegemonia muçulmana na porção portuguesa da

Península Ibérica exigia uma unificação política que permitisse a acumulação de recursos

30
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. 4.ed. São Paulo: Ática, 1985.
31
Muita importância é dada a fatores geográficos quando se debate a respeito das causas do
pioneirismo expansionista português. É bem verdade que a localização privilegiada (convém
lembrar que Portugal está na saída do Mediterrâneo em direção ao Atlântico) contribuiu para a
saída lusitana para os oceanos. Convém lembrar, entretanto, que a expansão se deu num ponto
determinado do movimento histórico e não em qualquer outro. Assim, outros fatores foram ainda
mais essenciais para efetivar a expansão. Aí reside o esforço de Gorender em estudar a formação
do Estado Português.
39
materiais e humanos significativos. Contribuiu para tal o afluxo de estrangeiros

(principalmente franceses naturais da Borgonha) que viam no combate militar a

possibilidade de enriquecimento e conquista de novas terras. É o que nos mostra Rui

Ramos, quando este fala que

(...) foi sobretudo dessas paragens – da Borgonha, do Languedoc, da

Aquitânia – que acorreram à Península Hispânica cavaleiros movidos pelo

intuito de combater o poderio muçulmano e de buscar fortuna através da

atividade guerreira e da conquista de novas terras. (...) [A] Península era, de

fato, um palco privilegiado para a atuação de jovens membros da nobreza que

não possuíam grande pecúlio ou que se viam arredados dos títulos

nobiliárquicos e do patrimônio familiar.32

É nessa categoria de nobres que estavam os cavaleiros Raimundo e Henrique.

Parentes dos condes e duques borgonheses, ambos partiram à Península Ibérica na busca

do enriquecimento e da conquista fundiária. Atribui-se a essas figuras históricas o

germinar da Dinastia Afonsina (1139-1383), consolidada com a vitória da casa

portucalense, liderada por Afonso Henriques, sobre a casa leonina (chefiada por sua

própria mãe Teresa de Leão).

Passada a etapa inicial de centralização no século XII, o Estado português, no

século XIII, inicia uma política régia cujo objetivo primordial era a concentração e o

fortalecimento do poder real. É claro que o efeito mais imediato dessa diretriz – um efeito

evidentemente desejado – era o enfraquecimento das casas nobiliárquicas, potenciais

concorrentes ao comando estatal. A relação conflituosa que se estabelece a partir daí entre

a nobreza e a Corte pode ser ilustrada pelas políticas de Afonso II (carinhosamente

chamado de Afonso, “o Gordo”), o qual determinava que todos os títulos (bens,

32
RAMOS, Rui. História de Portugal. 6.Ed [1.Ed., nov. 2009]. Lisboa: A Esfera dos Livros,
2010, p. 23.
40
privilégios e jurisdições) dos senhores feudais e até mesmo eclesiásticos “deveriam

requerer a respectiva confirmação das propriedades e direitos por parte da Coroa”

(RAMOS, 2010, p. 51). Ainda nas palavras de Ramos:

Afonso II deu forma, desde o início de seu governo, a uma concepção de

monarquia na qual o rei era soberano nas suas decisões e na sua atuação.

Manifestava-se, assim, de modo precoce, um nítido propósito de concentração

de poder por parte da Coroa. É claro que esse processo não foi simples nem

linear. Mas estava dado o mote que seria, desde muito cedo, um elemento

recorrente na História portuguesa: a monarquia enraizava-se e consolidava-

se concentrando poder, procurando limitar e sobrepor-se aos poderes

concorrentes.33

É nesse contexto que Gorender inicia sua problematização a respeito do caráter

do Estado português. Afinal, Portugal, no início de sua história, era feudal? A resposta de

nosso autor é positiva, apesar da ausência do feudo clássico em terras lusitanas. O autor

ressalta, porém, a necessidade de se abstrair desse fator superestrutural para encontrar a

verdadeira essência da sociedade e do Estado português no período do qual estamos

tratando:

“No Estado português, que começou a se formar no século XII, não se

constituíram feudos (...). Mas, se abstrairmos deste aspecto da superestrutura

e encararmos o feudalismo como um modo de produção, (...) [será possível

identificarmos] os elementos fatuais conducentes à conclusão sobre a

existência da época feudal na história do reino lusitano.34

É latente que Gorender, para chegar a essa conclusão, fia-se nas definições de

Maurice Dobb sobre o significado de feudalismo. O historiador inglês, não se deixando

levar pelas interpretações jurídico-institucionais (sugestivas, justamente porque o termo

33
Idem, p. 57.
34
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4.ed. São Paulo: Ática, 1985, p. 105-106
41
feudalismo deriva de feudo, expressão cuja categoria é jurídico-institucional, ao contrário

de capitalismo e mercantilismo, expressões de etimologia econômica), entende o

feudalismo a partir de sua raiz econômica, associando sua existência à de um modo

específico de produção: a servidão.

Gorender, a partir de sua interpretação marxista, se choca com a leitura, a respeito

do mesmo tema, de outro importante autor brasileiro: Raymundo Faoro. Pautado pela

análise de cunho jurídico (exatamente oposta à de Gorender, como vimos), Faoro,

partindo da inexistência da gleba rural típica, não encontrando, com isso, o título que

empoderava o senhor feudal, conclui pela ausência das relações clássicas de suserania e

vassalagem. Na realidade, a centralização monárquica acabou, logicamente,

impossibilitando a fragmentação do poder real, tornando as casas nobiliárquicas uma

continuação muito mais enfraquecidas, se comparadas com domínios de outras regiões

da Europa no mesmo período. Faoro, com isso, conclui que Portugal se constituía, naquele

contexto histórico, como um

Estado patrimonial, portanto, e não feudal, o de Portugal medievo. (...)

Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor

da riqueza territorial, dono do comércio (...), capaz de gerir as maiores

propriedades do país, dirigir o comércio, conduzir a economia como se

fosse empresa sua35.

Em fins do século XIV, mais especificamente no ano de 1383, a Coroa Portuguesa

entra em crise em função da morte de Dom Fernando I, instaurando um dilema sucessório

que vai se situar exatamente num momento de explosão revolucionária: é a Revolução de

35
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Edição
comemorativa 50 anos). 4.ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 38
42
Avis. Mais uma vez, Jacob Gorender entra em polêmica. Discutindo o caráter desse

processo de ruptura, o historiador baiano entra em confronto teórico com o grande

economista Celso Furtado.

Furtado enxerga a Revolução de Avis como um momento de tomada do poder

pela burguesia, a qual, por sua vez, já não possuía quaisquer laços com a nobreza feudal,

interessada não na posse e nos privilégios enraizados no nascimento, mas sim nos ganhos

comerciais, resultantes da diferença entre preço de compra e preço de venda.

Gorender, por outro lado, entende a formação da Dinastia de Avis como uma

“revolução nacional”. Isso porque o autor não enxerga uma mudança na estrutura de

classes da sociedade portuguesa. A burguesia típica não alcançava o trono e suplantava o

então setor dominante, como foi o caso das revoluções Puritana e Francesa de 1640 e

1789, respectivamente. Na realidade, houve um processo de “rejuvenescimento”, dando

a nobreza um caráter cada vez mais aburguesado: é o reflexo de uma classe mercantil que,

embora fora do comando social, galgava alianças com a Coroa na pretensão de atingir

seus objetivos comerciais. Essa amálgama do Estado feudal português (extremamente

peculiar, mas ainda assim feudal) com os interesses da burguesia insurgente servirá, para

Gorender, como a base da expansão ultramarina lusitana. É ela que irá funcionar, como

havíamos dito no início de nossa explanação, como vetor do pioneirismo e,

simultaneamente, como obstáculo a um desenvolvimento capitalista sólido.

De fato, foi na Dinastia de Avis que a expansão acabou atendendo a interesses,

todos em íntima conexão, da nobreza, dos comerciantes e até mesmo da Igreja. A

exploração oceânica acabou por elevar as disponibilidades de terra, permitindo à nobreza

auferir maior renda; ampliou as unidades de pesca sob posse tanto de nobres como de

mercadores; garantiu o monopólio da venda de gêneros naturais, possibilitando extensa

lucratividade para Coroa e burguesia; permitiu inclusive a expansão da cristandade para

43
o Novo Mundo. O problema da baixa lucratividade da produção interna (que afetava o

lucro comercial, as arrecadações régia e clerical, a renda senhorial) acabou sendo

minimizado pelas conquistas de Ceuta, das ilhas africanas na costa oeste, assim como

pelo descobrimento do Brasil. Nas palavras de Arno e Maria José Wehling:

É inútil procurar exclusividades. Combinaram-se causas econômicas,

políticas e religiosas. A escassez de ouro na Europa do século XV e sua

consequente valorização estimularam a busca do ouro africano (‘ouro do

Sudão’). Os estabelecimentos pesqueiros controlados pelo rei, pela nobreza e

por comerciantes tenderam a expandir-se, beneficiados pelo aumento do

consumo(...). A tudo isso, acrescente-se o espírito de Cruzada,

consubstanciado na luta contra os muçulmanos e na conversão das

populações vencidas ao cristianismo. Esta luta se fundamentava em crenças

religiosas profundamente arraigadas, estimuladas pela Igreja de Portugal e

pelo apoio do Papado, que em pelo menos duas bulas, a Sane Charissimus, de

1418, e a Rex Regum, de 1436, deu aos empreendimentos portugueses o status

de Cruzada.36

Ao mesmo tempo, a Dinastia de Avis sobreviveu como uma organização

monopolista, distribuindo os ganhos entre a Coroa e a nobreza parasitária. A expansão

ultramarina, na mesma medida em que beneficiava os setores politicamente hegemônicos,

fortalecia cada vez mais a burguesia comercial que, embora aliada a boa parte das

políticas de Estado implantadas pela família real portuguesa, ganhava cada vez mais

estímulos para consolidar não só o poder econômico, mas também o político. Essa gritante

contradição de classe engendrada pelo próprio pioneirismo lusitano era solucionada pela

violenta intervenção régia, que chegou ao ponto de permitir a entrada da Santa Inquisição

em território português, reprimindo os mercadores, intencionalmente associados aos

36
WEHLING, Arno & José Maria. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1994, p. 37.
44
cristão-novos (também chamados de cripto-judeus). O caráter classista dessa medida,

imposta por D. João III, é um exemplo do fortalecimento da ordem institucional feudal,

funcionando como entrave a um desenvolvimento mais aberto e mais amplo do modo de

produção tipicamente capitalista, essencial para que Portugal, ao longo dos séculos XVII

e XVIII, pudesse alcançar níveis de desenvolvimento econômico que permitissem ao país

competir com outras nações em franca ascensão, tais como Inglaterra e Holanda. Segundo

Saraiva:

Desta forma, se o Estado português no século XVI oferece exteriormente uma

aparência ‘moderna’, na medida em que é uma grande empresa econômica,

por outro lado, ele assegura, no interior do país, a persistência de uma

sociedade arcaica, na medida em que garante o domínio de uma classe

tradicionalmente dominante, cujo espírito está nos antípodas do burguês.37

Complementando a ideia da dialética entre o pioneirismo e o declínio da economia

portuguesa na expansão ultramarina, Gorender entende a prática mercantilista lusitana

como uma espécie de “mercantilismo inferior”. Isso porque, se se quisesse implantar

medidas mercantilistas em sua totalidade, seria necessária a proteção da indústria nacional

e de seus ganhos, políticas praticadas em larga escala por Inglaterra e França e que

acabaram, posteriormente, permitindo a esses dois países, um desenvolvimento industrial

muito mais sólido nos séculos XVIII e XIX. Portugal, na condição de pioneiro, não

atentou para esse ponto específico, redobrando esforços “apenas” para o bullionismo e

para a expansão colonizadora.

Finalmente, convém explicitar o questionamento de Jacob Gorender em relação

as teses de Fernando Novais a respeito do chamado “sentido profundo da colonização”.

Como sabemos, este entende a experiência colonizadora nos trópicos como a principal

37
SARAIVA, António José. Inquisição e cristãos-novos. Porto: Ed. Inova, 1969, p. 53-54.
45
alavanca para a acumulação originária/primitiva de capital. Aquele, por sua vez, entende

que essa proposição apenas faz sentido quando analisamos o impacto da transferência de

renda das colônias para as metrópoles no caso de nações europeias que já haviam

transcorrido um sólido e robusto desenvolvimento do modo de produção capitalista, como

era o caso da Inglaterra, cuja dissolução das bases materiais feudais já estava praticamente

completa38. Esse não era nem de longe o caso português nos séculos XVII e XVIII. É

assim que o autor conclui que a maneira com que Novais trata o tema baseia-se numa

“ideia simplista em cuja refutação coincidiram Marx e Weber, apesar de divergirem na

explicação das origens do capitalismo” (GORENDER, 1985, p. 113.).

38
É por essa razão que o autor justifica o olhar do historiador britânico Eric Williams, apesar das
ideias deste a respeito da acumulação originária/primitiva de capital terem embasado em boa parte
as conclusões de Novais, “precisamente porque teve em mira a conexão do colonialismo com a
formação do capitalismo na Inglaterra” (GORENDER, 1985, p. 114.).
46
VI

Portugal: da expansão quatrocentista ao império colonial

Este capítulo tratará, com base nas explanações do inglês C. R. Boxer 39, do

processo histórico de construção do império intercontinental lusitano a partir de sua

exploração oceânica iniciada no século XIV.

Antes de iniciarmos a análise da questão, convém recordar a, assim chamada por

Jacob Gorender, “forma portuguesa de feudalismo”: um modo de produção associado à

servidão, com extração de renda feudal (que chegou a consumir cerca de 70% do produto

português), mas fora dos limites da gleba senhorial, uma vez que ela era praticamente

ausente. Os rendimentos da produção dirigiam-se primordialmente à Coroa e de lá eram

repassadas parcelas às casas nobiliárquicas e ao clero. De fato, a centralização

monárquica precoce no século XII enfraqueceu o poder senhorial direto sobre o camponês

(poder esse que justamente se materializa na existência do latifúndio pessoal), ao mesmo

tempo que permitiu o rápido engajamento da Coroa e de seus funcionários no comércio

marítimo, competindo com negociantes tradicionais. R. Watkins nos fornece um

panorama interessante sobre esse quadro de tensão política:

(...) as Cortes aumentaram suas queixas criticando a rainha, os grandes

mestres das ordens religiosas, os bispos e outros clérigos, cavaleiros e

funcionários do governo por engajarem-se agressivamente no comércio,

39
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, cap. 2, pp. 54-79.
47
competindo com os negociantes tradicionais (...). A participação dessas

classes no comércio teve profunda influência nos eventos subsequentes. 40

É nesse contexto que a marinha lusitana conquista Ceuta, no norte da África. É o

marco inicial do processo de expansão ultramarina. O território era uma zona comercial

já estabelecida e consolidada, funcionando como entreposto de rotas importantes que

transportavam especiarias africanas como tecidos, pescados, mel e cera. Era uma área

inclusive de criação de cavalos e cabras, além da produção de cereais. Uma das razões

para esse empreendimento era justamente a possibilidade de fornecer recursos à classe

senhorial dominante41 mediante o saque e a pilhagem, dada a incapacidade régia, na

virada do século XIV para o XV, de garantir apenas pela produção interna a distribuição

dos rendimentos feudais às casas nobiliárquicas. Cabe ressaltar que a ação também foi

idealizada com o objetivo de aumentar a disponibilidade de terras para a nobreza e o

Estado, o que permitiria a própria sobrevivência da Dinastia de Avis (o que acaba nos

dando uma pista sobre o caráter essencialmente estatal do empreendimento42). Nas

palavras de Rui Ramos, a “ida para o Norte de África era assimilável a uma natural

continuação da Reconquista” (RAMOS, 2010, p. 176).

A conquista e manutenção de Ceuta pelo Estado português, potencial sustentáculo

para Avis, acabou, porém, resultando em frustração. As rotas comerciais, com a chegada

lusitana, dispersaram-se, impedindo que a Coroa pudesse apropriar-se das cargas

transportadas pelas caravanas. A produção de trigo era insuficiente, exigindo a constante

importação do cereal. Vale dizer também que Portugal não conseguiu alcançar o ouro

40
WATKINS, Ronald. Unknown Seas: The Portuguese Captains and the Passage to India [kindle
edition]. Amazon Digital Services, cap. 3, “The enterprise of Ceuta”.
41
Apesar das tensões políticas explicitadas no segundo parágrafo, a nobreza continuava no
comando social e mantinha, mesmo que a constituição política do Estado português pudesse gerar
situações de tensão, relações íntimas com as diretrizes econômicas da Coroa, buscando sempre
tirar benefício delas, como foi o caso do empreendimento de Ceuta.
42
RAMOS, Rui. História de Portugal. 6.ed. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 178.
48
africano a partir de sua posição em Ceuta. Após completar o saque da cidade, os homens

portugueses retornaram à península ibérica e deixaram a cidade

(...) à Coroa portuguesa. Isolada das terras à sua volta, praticamente já não

tinha mais qualquer utilidade (...). Em 1425, já o príncipe regente, D. Pedro,

se queixava perante as cortes, dizendo que Ceuta apenas servia para devorar

pessoas, armas e dinheiro.43

Fracassado o empreendimento inicial, restavam três políticas de expansão da

Dinastia de Avis: o “caminho do Levante”, a ocupação no Marrocos e o contorno da costa

oeste africana. O primeiro era de execução mais difícil e arriscada: navegar pelo Mar

Mediterrâneo implicava entrar em conflitos com Egito, Veneza, Gênova e Aragão, os

quais já possuíam estabelecimentos consolidados ao longo de todo o mar, potencializando

inclusive a escassez de recursos para o Estado português. Ocupar Marrocos atendia a

interesses nobiliárquicos ligados à expansão da territorialidade mediante conquista de

novas terras, podendo ampliar a renda senhorial. A navegação pelo litoral africano acabou

sendo a principal veia de expansão ultramarina portuguesa: mediante uma política de

descobrimentos, a Dinastia de Avis conseguiu se apoderar de especiarias africanas de

altíssima lucratividade, além do acesso ao ouro e aos escravos. Na virada para o século

XVI, houve o contorno da costa leste africana, permitindo o estabelecimento de novas

rotas comerciais (quebrando inclusive os monopólios muçulmano e italiano das rotas que

passavam pelo mediterrâneo). A veia de expansão chegou até o extremo oriente em

Nagasaki. Por toda a extensão, do oeste africano até o oriente, Portugal foi estabelecendo

feitorias fortificadas, sendo principais as de São Jorge da Mina (1482), Arguim44 (1445),

Sofala (1505), Moçambique (1507). Os próprios títulos dos monarcas lusitanos nos dão

43
PAGE, Martin. Portugal e a revolução global: como um dos menores países do mundo mudou
a nossa história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 123.
44
A primeira feitoria instalada por Portugal na África.
49
uma pista de como a expansão ultramarina teve razoável sucesso a partir do contorno pelo

oeste africano:

D. João I, o monarca que iniciou a empresa sistemática das conquistas e

descobrimentos além-mar, intitulou-se senhor de Ceuta. O mesmo título usou

o rei Duarte. Afonso V alargou-o para ‘rei de Portugal e dos Algarves daquém

e dalém-mar em África’. João II intitulou-se pela primeira vez senhor de

Guiné. Por sua vez D. Manuel aumentou extraordinariamente as fardagens

dos títulos: ‘Rei de Portugal e dos Algarves daquém e d’além-mar em África,

senhor da Guiné, da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia,

Pérsia e Índia’.45

Pode-se dizer que a expansão ultramarina em direção ao Oriente esteve sempre

norteada por interesses territoriais e mercantis46. Aquele se mostrou mais presente nas

ocupações portuguesas das ilhas atlânticas e até mesmo do Marrocos, onde se

estabeleceram donatarias (as quais depois seriam implementadas no Brasil ao longo do

século XVI) vitalícias para diversos membros da classe senhorial47. Este, por sua vez, foi

mais fecundo em toda a costa africana do Atlântico-sul e do Índico, assim como no litoral

da Índia e na Indonésia, regiões cuja ocupação se sacramentou mediante a construção de

feitorias fortificadas48. Esse modelo foi fundamental para o desenvolvimento comercial

45
COELHO, António Borges. Clérigos, mercadores, “judeus” e fidalgos – Questionar a história,
II. Lisboa: Editorial Caminho, 1994, p. 12. O excerto de António Borges Coelho inclusive nos dá
uma pista da reduzida importância dada ao Brasil por Portugal. Frente aos enormes ganhos
lucrativos dos lusitanos no Oriente, a porção de terra americana, na qual a ação lusitana se resumia
basicamente à extração de pau-brasil, de fato se mostrava muito pouco atrativa. Essa condição,
como veremos, irá se inverter na virada do século XVI para o XVII.
46
Vale sempre ressaltar que, embora as motivações da nobreza e da burguesia portuguesas na
exploração oceânica possuíssem peculiaridades e distinções, ignorar a mescla e a fusão entre as
duas, insistindo numa suposta exclusividade, incorreria numa narrativa histórica estanque,
compartimentada e, porque não dizer, falsa.
47
O próprio D. Henrique foi donatário, com exceção de São Tomé e Príncipe, até sua morte no
ano de 1460.
48
As principais estavam em Goa (1510), Ormuz (1511) e Málaca (1515).
50
lusitano no Oriente, potencializado e favorecido pela fraca resistência das frotas

mercantes árabe e guzerate ao avanço português, como nos mostra Boxer:

A frota mercante árabe, guzerate e a controlada por outros muçulmanos, que

dominava o comércio do oceano Índico, compreendia tanto grandes navios

oceânicos como pequenas embarcações costeiras; mas mesmo os navios

maiores eram desprovidos de artilharia e não se utilizava ferro na construção

dos cascos. (...) Eram, portanto, mais frágeis em relação às carracas e aos

galeões portugueses com os quais tinham que se defrontar. (...) Somente os

juncos de guerra chineses podiam [efetivamente desafiar, no alto-mar, as

grandes carracas e galeões]; mas as operações das frotas costeiras chinesas

limitavam-se estritamente às suas águas territoriais, por ordem do governo

imperial.49

Mesmo com poucos obstáculos, é engano achar que os portugueses não

impuseram sua ocupação territorial com violência. Na realidade, a existência de uma rede

comercial árabe e muçulmana prévia já bem consolidada há muito mais tempo exigiu da

marinha lusitana uma força capaz de destruí-la para então formar uma nova, que, a partir

de então, beneficiasse única e exclusivamente o império marítimo português. Mais uma

vez, Boxer nos esclarece:

O fato de terem [os adeptos do Profeta] cooperado estreita e cordialmente com

os ricos mercadores e rajás hindus, em especial na costa ocidental da Índia,

sem que nenhuma das partes tentasse converter a outra, consolidou o

monopólio muçulmano do comércio do oceano Índico. Os portugueses

perceberam imediatamente que só poderiam destruí-lo pela força bruta, e não

pela competição pacífica.50

49
BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 59 e 73
50
Idem, p. 61.
51
Tendo em vista a escassez de recursos humanos e de navios durante todo o

empreendimento explorador, a presença de adversários mais bem capacitados se

comparados aos que os espanhóis encontraram na América durante o mesmo período, a

existência de apenas um porto bem estruturado (que era o de Goa), Boxer é levado a

concluir pela elevada notabilidade da expansão ultramarina portuguesa.

Uma vez entendido todo o processo de formação do Império Português no Oriente,

cabe a nós esclarecer o modus operandi do comércio lusitano na região. O sustentáculo

primordial era justamente o monopólio mercantil. O empreendimento era da Coroa e pela

Coroa. Aqueles que não eram portugueses e se interessassem em ofertar as lucrativas

especiarias orientais poderiam fazê-lo mediante pagamento de licença ao Estado e de

taxas alfandegárias nos portos de Ormuz, Goa e Málaca. Todas as mercadorias eram ou

negociadas nos próprios estuários ou levadas para Lisboa, de onde partiam para o

Mediterrâneo e o Atlântico. Nota-se inclusive uma dispersão e diversidade dos produtos

vendidos pelos portugueses: temos o

ouro da Guiné (Elmina), do sudeste africano (Monomotapa) e de Sumatra

(Kampar); o açúcar da Madeira, de São Tomé e do Brasil; a pimenta de

Malabar e da Indonésia; o macis e a noz-moscada de Banda; o cravo de

Ternate, Tidore e Amboíno; a canela do Ceilão; o ouro, as sedas e a porcelana

da China; a prata do Japão; os cavalos da Pérsia e da Arábia; os têxteis de

algodão de Cambaia (Guzerate) e de Coromandel.51

Sob o reinado de D. João III (1521-1557), a importância relativa entre Oriente e o

Brasil começa e se inverter em razão de fatores econômicos e geopolíticos desfavoráveis:

a derrota naval para a China em 1521, o acirramento da disputa pelas Molucas com o

espanhol Carlos V, assim como a presença de corsários franceses no território que hoje

51
Ibidem, p. 66.
52
corresponde ao Rio de Janeiro (chegando a fundar a França Antártica em 1555), além de

um lucro potencial dos gêneros brasileiros maior se comparado, naquele momento, aos

recursos orientais que iam para o mercado. Essa confluência de fatores fez com que o

monarca adotasse uma postura diferente da de seu antecessor, objetivando consolidar a

hegemonia da Coroa no Atlântico-sul, tanto na costa brasileira como na africana. A partir

da transição para o século XVII, o território sul-americano suplanta o Oriente em termos

de relevância e, ao final da União Ibérica em 1640, o Brasil torna-se o principal eixo de

sustentação econômica do Estado português.

53
VII

Fundamentos Econômicos da Ocupação Territorial

A descoberta do território tropical que hoje corresponde ao Brasil costuma ser

considerada, pela Historiografia Brasileira tradicional, como um episódio “secundário”52,

se for considerado um elemento integrante do conjunto de interesses e práticas

metropolitanas. De fato, para o Estado Português, interessado, nos primeiros decênios do

século XVI, na elevada lucratividade das especiarias do Oriente, as terras sul-americanas

tinham muito menos a oferecer e ainda colocavam dificuldades muito maiores ao

processo de ocupação colonial.

Fazendo o esforço, porém, de inverter o “mirante” da análise, poderemos concluir

não pela pouca importância do descobrimento, mas exatamente pelo contrário. Se do

ponto de vista metropolitano a nova porção de terra era pouco atraente em comparação

com as feitorias do Oriente, a chegada de portugueses aos trópicos alterou profundamente

as relações sociais entre os nativos e forjou um contato profícuo destes com os europeus,

inclusive do ponto de vista comercial. O encontro dos índios, principalmente os tupi-

guarani, com os lusitanos resultou numa nova dinâmica social dentro do território recém

integrado à expansão colonial.

Um dos elementos dessa nova dinâmica certamente foi a prática do escambo. Com

a entrada dos portugueses, introduziu-se no Brasil o ferro. O metal, como um diferencial

52
“A descoberta das terras americanas (...) [d]e início pareceu ser episódio secundário. E na
verdade o foi para os portugueses durante todo um meio século.”: FURTADO, Celso. Formação
econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 50.
54
de poder para as tribos nativas, facilmente apareceu como atrativo para os chefes das

famílias, que ofereciam suas filhas aos colonizadores em troca da posse do novo material.

Surge aí a figura do “genro português”:

Assim passaram a ter um papel que antes não existia na sociedade tupi: o de

pessoas ricas, capazes de acumular a partir de trocas comerciais. Alguns

nomes de portugueses nessa situação e nesse período foram registrados por

historiadores: Vasco Fernandes Lucena, em Pernambuco; Diogo Álvares

Correia, o Caramuru, na Bahia; João Ramalho e Antônio Rodrigues, em São

Vicente.53

Outra transformação importante se deu com relação aos cativos de guerra, que, se

antes eram incorporados à tribo indígena vencedora do conflito, passavam a ser

empregados no trabalho produtivo português, inclusive podendo ser vendidos como

mercadorias pelos genros. Vale dizer que “já na segunda metade do século XVI esses

negócios se tornaram comuns em todo o litoral – e, em vários portos surgiram

entrepostos permanentes comandados pelos genros dos chefes” (CALDEIRA, 2017, p.

35).

Cabe a nós, agora, entender em que contexto se deu a famigerada descoberta do

Brasil por Pedro Álvares Cabral. É fundamental frisar desde já que a vaga noção de que

o descobrimento foi pura obra do acaso coloca-se como antiquada. Jorge Couto54 nos

mostra uma gama de variáveis geopolíticas e econômicas sugerindo que a expedição

cabralina foi fruto de um projeto de Estado encabeçado por D. Manuel, cujo objetivo era

encontrar um suporte para a rota do Cabo rumo ao Oriente. Tomado fundamentalmente

por interesses de cruzada, D. Manuel enxergava o Brasil como um mero ponto de amparo

53
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e
governos. São Paulo: Estação Brasil, 2017, p. 35
54
A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a finais
de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 182.
55
técnico para as naus que partiam em direção às Índias Orientais para a conquista de

Jerusalém55. A própria condição geográfica, no que concerne aos ventos e aos mares do

Atlântico-Sul, nos dá pistas sobre o caráter intencional da expedição que atracou em Porto

Seguro em abril de 1500:

Desde o século passado que os marinheiros e geógrafos que estudaram o

percurso de Cabral (...) foram unânimes em mostrar, com argumentos que

seria ocioso repetir aqui, que no condicionalismo físico de ventos e correntes

do Atlântico meridional nada implicava tamanho bordo para sudoeste numa

viagem em direção ao Cabo —pelo que parece impor-se a conclusão de que o

bordo foi intencional.56

É necessário, porém, questionar essa relação tão direta entre a viagem de Cabral

e os desígnios religiosos de D. Manuel. Reconhece-la implica ocultar interesses

econômicos da classe mercantil portuguesa. Com muito menos recursos que o grosso dos

comerciantes do norte da Itália, os mercadores lusitanos encontravam consideráveis

barreiras de entrada nos negócios das Índias Orientais. A exploração das terras sul-

americanas exigia um menor cabedal de recursos, tornando interessante para os reinóis o

desvio da rota a sudoeste, encontrando regiões mais próximas da metrópole. O Brasil

desponta, portanto, como uma veia alternativa de expansão econômica para os

comerciantes portugueses.

Percebe-se, com isso, que a rota para o Brasil certamente não foi uma coincidência

ou, como já se pensou por muito tempo, um erro de cálculo da navegação cabralina.

Mesmo assim, convém mostrar que a Historiografia mais recente coloca em xeque a ideia

55
“O grande projeto de d. Manuel (r. 1495-1521) era, na sua essência, um projeto de cruzada,
visando ao ataque ao Império Mameluco pelo mar Roxo e a recuperação de Jerusalém. O Brasil
não podia representar nele senão o modesto papel de escala técnica para as naus da Índia.”
THOMAZ, Luís Filipe F. R. D. Manuel, a Índia e o Brasil. Rev. de História, USP, n. 161, 2º
semestre de 2009, pp. 13-57.
56
Idem, pp. 13-57.
56
de que D. Manuel tenha sido o único fator responsável pela descoberta da nova porção

territorial na América. Na realidade, foi uma confluência de fatores, sendo que um deles,

o econômico, era capaz até mesmo de se chocar com a estratégia religiosa do Venturoso:

O descobrimento do Brasil terá, então, sido mais o fruto da política comercial,

liberalizante e atlântica, da oposição ao Venturoso que dos desígnios

imperiais do soberano. [...] Se tudo leva a crer que o descobrimento do Brasil

não foi ocasional, é impossível determinar com certeza de quem foi a intenção.

À falta de mais ampla documentação coeva, o mistério permanecerá,

provavelmente, para sempre; mas, mesmo assim é lícito formular

hipóteses(...).57

É nesse contexto que a passagem do trono português para D. João III, marcada

por uma inflexão na política imperial, ganha importância redobrada quando se quer

discutir a razão de ser da colônia brasileira no século XVI. Vimos anteriormente, por meio

do texto de C. R. Boxer, que uma série de acontecimentos e vetores geopolíticos

desfavoráveis fizeram com que a Coroa voltasse os olhos com mais atenção para as terras

tropicais:

O novo monarca português adotou uma orientação política oposta à seguida

pelo seu antecessor. (...) Optou, sempre que possível, por concentrar esforços

na manutenção da hegemonia no Atlântico Sul e conferiu especial ênfase à

ocupação das duas margens atlânticas: a africana e, sobretudo, a americana,

opção em que se inserem o projeto de colonização da Costa da Malagueta, na

fachada ocidental da África, e o início do processo de colonização do Brasil. 58

A presença, inclusive, de corsários franceses, os quais chegaram a fundar, no que

hoje corresponde ao Estado do Rio de Janeiro, a França Antártica, redobrou os esforços

57
Ibidem, pp. 13-57.
58
COUTO, Jorge. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do
povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 202-203.
57
régios pela manutenção da porção de terra tropical na América. O sistema simples de

capitanias privadas, que vigorou nos primórdios da colonização portuguesa no Brasil,

mostrou-se incapaz de evitar invasões estrangeiras. Tornava-se, assim, cada vez mais

necessária uma consolidação do Estado Lusitano nos trópicos.

Como tornar, portanto, economicamente viável a manutenção do Brasil como

“propriedade” portuguesa? Celso Furtado59 nos mostra com clareza que a exploração

agrícola nos trópicos era extremamente arriscada e praticamente impossível. Dos

possíveis gêneros, quase nenhum poderia ser introduzido a um comércio de grande escala

na Europa. O lucro potencial era muito baixo. Os custos de frete, inclusive, devido às

dificuldades de transporte somadas à distância, tornavam ainda mais desinteressante a

empresa agrícola na colônia, fazendo com que “somente os produtos manufaturados e as

chamadas especiarias do Oriente podiam comporta-los” (FURTADO, 2009, p. 53).

Somente a motivação metalista (impulsionada inclusive pela descoberta imediata de ouro

e prata em largas quantidades pelos espanhóis em suas possessões na América) foi capaz

de compensar a incerteza e o pessimismo portugueses. Uma vez que o ouro foi encontrado

no Brasil somente na transição do século XVII para o XVIII, era necessário garantir até

lá a manutenção econômica do trópico lusitano por meio da exploração agrícola, em

particular a açucareira:

De simples empresa espoliativa e extrativa ⎯idêntica à que na mesma época

estava sendo empreendida na costa da África e nas Índias Orientais⎯ a

América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva

europeia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma

permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu.60

59
Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 53
60
FURTADO, Celso. Idem, pp. 52-53.
58
Uma vez que era necessário o trabalho agrícola, cabe a nós compreender as razões

para seu sucesso. Na medida em que nos esforçamos para encontra-lo, é um equívoco

esquecer da experiência prévia que os portugueses adquiriram nos empreendimentos

açucareiros estabelecidos nas ilhas da costa oeste africana61. São Tomé foi o ponto em

que houve o maior acúmulo de conhecimentos sobre o trato da cana. O pequeno

entreposto, portanto, acabou sendo o principal exemplo para o desenvolvimento da

empresa açucareira no nordeste brasileiro.

Não só a experiência técnica se mostrou necessária para o sucesso da economia

açucareira no Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII. A participação holandesa, como

sabemos, foi essencial. Do ponto de vista comercial, a distribuição do açúcar na Europa

pelos mercadores holandeses (fruto do enorme poder financeiro de Amsterdã) garantia a

lucratividade dos produtores portugueses, assim como permitia a abertura de novos

mercados para o açúcar brasileiro no Velho Continente. O que é interessante, por outro

lado, é ver que os Países Baixos contribuíam inclusive com a inversão de capitais na

própria produção interna, garantindo maior potencial tecnológico no trato da cana,

ampliando a produtividade.

Finalmente, é válido ressaltar o conhecimento, por parte dos mercadores e da

Coroa Portuguesa, do mercado de escravos africanos. É bom lembrar que o negro

escravizado já estava mais disciplinado e adaptado ao trabalho do açúcar, tendo a

experiência dos empreendimentos na costa oeste africana. Além disso, o tráfico negreiro,

com lucratividade elevadíssima, era um enorme atrativo para o uso dos escravos na

produção açucareira. Por outro lado, é muito curioso como a troca de atividade econômica

61
Vale dizer que desde o final do século XV, políticas implementadas por D. Manuel já visavam
o estabelecimento de feitorias açucareiras nos entrepostos da Costa Oeste africana. Celso Furtado
nos indica que, em 1496, a produção máxima chegava a 120 mil arrobas.
59
na colônia (da extração de pau-brasil para a plantation agroexportadora) transformou por

completo a visão que se tinha acerca do nativo escravizado:

O estereótipo do índio brasileiro como filho da natureza no estado mais puro

foi logo substituído pela convicção portuguesa popular de que era um

selvagem irremediável, ‘sem fé, sem rei, sem lei’. Essa mudança de atitude

tornou-se muito mais pronunciada e geral ⎯embora nunca chegasse a ser

universal⎯ depois de meados do século XVI. E deveu-se em grande parte à

substituição do pau-brasil pelo açúcar como principal exportação da região,

e a consequente necessidade de uma força de trabalho disciplinada (ou

escrava).62

Mesmo quando se tentou implementar o trabalho escravo indígena na produção

de açúcar, o resultado ficou muito aquém do esperado. A oferta de mão-de-obra nativa

ficou muito deprimida em função do alastramento de epidemias como a de varíola, fruto

do intenso contato com os europeus. Houve, portanto, uma redução fortíssima da

população de indígenas, em função da chegada de doenças para as quais eles não tinham

qualquer imunidade.

Foi a confluência de todos esses fatores (experiência prévia, participação

holandesa e uso cada vez mais intensivo de trabalho escravo) que deu à economia

açucareira um caráter central – deixando de ser uma mera atividade tampão até que se

descobrisse o ouro para a cunhagem de moedas – dentro da gama de interesses

econômicos portugueses. Na transição para o século XVII, o Brasil suplantava o Oriente,

cada vez mais secundarizado, em termos de lucratividade, produtividade e atração dos

mercados europeus.

62
BOXER, Charles R. O Império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 99-100.
60
Após o sucesso inicial do empreendimento açucareiro, como explanamos até aqui,

cabe entender como ele se transformou em monopólio lusitano até fins do século XVII.

Para isso, podemos olhar para outra potência colonial da época: a Espanha.

Diferentemente de Portugal, os espanhóis encontraram ouro na sua porção territorial

americana quase que de imediato63. Pouca atenção, a partir daí, foi dada para atividades

econômicas complementares. As colônias eram cada vez mais sucateadas, uma vez que o

trabalho realizado era puramente extrativo. Não se dava a oportunidade para concorrer

com o açúcar português a partir das Antilhas. Permitiu-se assim, que o trato da cana no

Nordeste açucareiro se expandisse sem grandes obstáculos concorrenciais até que se

passasse a produzir açúcar nas Antilhas pelos holandeses na segunda metade do século

XVII.

63
O brutal afluxo de metais para a Espanha fez com que o país se tornasse um centro de inflação
crônica, que acabou se espalhando por toda a Europa, induzido a um quadro de déficit na Balança
Comercial, debilitando tanto a metrópole como as colônias americanas.
61
VIII

A Economia Açucareira I

Vimos que, a princípio, a porção de terra americana pertencente a Portugal possuía

um caráter secundário para a Coroa, dados seus interesses econômico e geopolítico. As

feitorias do Oriente, na transição do século XV para o XVI, eram muito mais lucrativas

com suas especiarias e funcionavam como um vetor estratégico para uma expansão da

cristandade na Ásia (objetivo primordial da política expansionista de D. Manuel). Esse

quadro porém, como mostramos, se transforma na passagem para o século XVII. O Brasil

acaba se tornando o principal sustentáculo econômico e geopolítico do Império

Português. A produção de açúcar no nordeste brasileiro transformou-se em ponto

nevrálgico da sobrevivência de Portugal como potência colonial:

Quaisquer que pudessem ter sido os números reais, não há dúvida de que a

rápida expansão da indústria açucareira no Brasil, de 1575 a 1600, era um

dos maiores acontecimentos do mundo atlântico da época. [...] No fim do

século, um produtor podia vangloriar-se junto ao governo de Lisboa de que o

açúcar do Brasil era mais lucrativo para a monarquia ibérica do que toda a

pimenta, especiarias, jóias e mercadorias de luxo que os navios mercantes

importavam da ‘Goa dourada’.64

O objetivo, agora, dado que entendemos a importância da cana-de-açúcar

nordestina para os interesses econômicos lusitanos, é compreender o caráter e o

64
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 118-119.
62
mecanismo da produção açucareira no Brasil. Ao analisar a combinação entre o trabalho

agrícola inicial e o beneficiamento da matéria-prima, podemos perceber que o engenho

no nordeste brasileiro possuía um “caráter industrial distintivo” (SCHWARTZ, 1988, p.

101). Essa visão é reforçada quando vemos as necessidades constantes de capital fixo,

tecnologia e mão-de-obra em larga escala, o que tornava o engenho uma propriedade

consideravelmente dispendiosa, com uma complexidade de operações de fato moderna.

Os estudos de S. Schwartz65 nos indicam que a produção açucareira brasileira, tão grande

era seu caráter de “vanguarda”, acabou mesmo servindo como exemplo para a produção

em outras regiões americanas: mestres portugueses foram enviados ao México, assim

como produtores ingleses de Barbados viajavam para o nordeste com o objetivo de

aprender a metodologia lusitana do trato da cana, introduzindo-a em suas possessões. Do

ponto de vista da organização do trabalho, por outro lado, nota-se com clareza um

movimento regular, bem determinado do início ao fim, com uma disciplina rigorosa,

assemelhando-se a uma “linha de produção” (GAMA, 1983, p. 28) manufatureira:

(...) o fabrico do açúcar já apresentava características nitidamente

manufatureiras de divisão do trabalho. O açúcar já era, nos primeiros

engenhos brasileiros, produto do ‘trabalhador coletivo’. Isto, para a época,

era um progresso extraordinário, como forma de trabalho em cooperação, e

uma antecipação da total ruptura das formas de divisão profissional do

trabalho prevalecente na produção artesanal. (...)66

É importante frisar, porém, que, apesar de todo o caráter moderno da produção


ele = Gama
açucareira no Brasil, ele acaba mascarando uma estrutura de trabalho mais profunda e até

mesmo “arcaica” que é o modo de produção escravista, para utilizar o termo do

historiador Jacob Gorender. A bem da verdade, o escravo brasileiro, inserido num

65
Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 116.
66
GAMA, Ruy. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 342
63
processo produtivo inteiramente inovador para o momento, acabou funcionando como

um ancestral do proletário, uma vez que o fabrico do açúcar “mais se assemelha ao

processo de trabalho numa grande fábrica inglesa do século XIX, que o característico

dos séculos XVI e XVII na Europa” (CASTRO, 1980, p. 92). Esse quadro complexo,

entretanto, nos permite questionar se de fato a empresa açucareira no Brasil era

essencialmente capitalista: certamente, a plantation se integrava ao processo crescente de

mercantilização da economia europeia nos séculos XV, XVI e XVII, funcionando como

um eixo para a acumulação primitiva de capital (como nos mostrou Novais, embora seja

questionável acreditar, como fez o autor, que a colonização tenha sido a principal força

motriz para a acumulação primitiva de capital); o cativo, por sua vez, operava o sistema

com a disciplina e a regularidade de um trabalhador fabril do século XIX. A presença,

porém, bem clara de um modo de produção escravista fornece a essa moderna produção

um quadro incompleto. Faltava o elemento do trabalhador livre, que vendia sua força de

trabalho em troca de um salário para sua reprodução material, liberando o patrão de custos

fixos com manutenção dos escravos, permitindo inclusive que sua produção fosse

absorvida pelos produtores, fechando um ciclo de consumo e formando um fluxo circular

da renda:

No regime social que aqui se instala há dois teclados; os teclados são dois,

mas a música é uma só. Há a produção de mercadorias, com a sua partitura

composta de determinações econômicas. E há a escravidão, um velho tema,

que permite improvisos de muita força.67

Uma vez concluída a discussão analítica a respeito do caráter da fabricação do

açúcar no nordeste brasileiro, é possível realizar uma descrição sobre o processo

67
CASTRO, Antonio Barros de. A economia política, o capitalismo e a escravidão. In: AMARAL
LAPA, J. R. do (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p.
106-107.
64
produtivo em si. Agosto era o mês em que se fazia o preparo prévio para as safras (que

duravam do fim de agosto até meados de maio do ano seguinte): reparava-se o

maquinário, as caldeiras eram substituídas, contratos de fornecimento de lenha e cana

eram renovados e os bois eram trazidos dos pastos para os engenhos68. Vale dizer que o

trabalho nos canaviais e nas moendas era praticamente ininterrupto: estas chegavam a

funcionar por até 20 horas diárias, parando somente para poucas horas de limpeza. Havia

momentos mesmo em que o escravo trabalhava em turnos dobrados. Finalmente, é

importante ressaltar que a expansão tecnológica era contínua e razoavelmente estável,

permitindo ganhos seculares de produtividade.

Iniciada a safra, o ciclo da cana começava com um trato do solo baseado no uso

de machados, foices, picaretas e enxadas. Era, portanto, o trabalho pesado e exaustivo dos

cativos que possibilitava a introdução do vegetal nas terras de massapé. Uma vez que o

corte da cana dependia essencialmente da idade da planta, os canaviais eram organizados

levando em conta exatamente esse fator temporal: o amadurecimento deveria ser

sucessivo, permitindo um corte sequencial e, com isso, um fluxo constante de cana para

as moendas.

O trabalho nas safras, porém, sofria algumas interrupções ao longo do período. A

retenção dos engenhos para limpeza e fiscalização, a escassez de cana nos períodos

chuvosos, assim como o descanso nos domingos, dias santos e dias de festa consumia

28% do tempo de trabalho na temporada. Ao longo do período de trabalho, por sua vez,

os engenhos funcionavam com moendas de rolos, com cilindros horizontais, pelo menos

no período inicial da economia açucareira. Esse material de madeira resistia pouco ao

desgaste advindo dos dentes de ferro incrustados na moenda. Fora isso, a prensagem da

68
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 96.
65
cana era incompleta, necessitando de animais de tração para complementar a pressão. Ao

longo do século XVII, porém, difundiu-se na produção a moenda de entrosas, com três

cilindros verticais, permitindo alimentação de cana por um lado e realimentação por

outro, garantindo continuidade na moagem. A alimentação manual, entretanto, implicava

um tamanho menor das moendas. Isso não eliminou a enorme vantagem em termos de

produtividade que teve a produção açucareira:

Ela oferecia grandes vantagens: era mais fácil de construir, prensava melhor

a cana, eliminando com isso a necessidade de prensas auxiliares, não exigia

quantidades tão grandes de animais como força motriz e podia moer a cana a

um ritmo mais rápido. O Engenho Sergipe, no Recôncavo, adotou-a em 1617,

e logo seu uso difundiu-se por toda a colônia.69

Uma última questão referente à descrição da economia açucareira se faz

necessária: o refino do açúcar. Sabemos que boa parte do processo de purificação do

produto brasileiro era realizado pelas empresas holandesas associadas aos mercadores dos

Países Baixos. Nessa etapa, o trabalho era livre e artesanal, garantindo lucros

correspondentes à terça parte do valor total da commoditie. De fato, praticamente não

havia refinarias no Brasil e em Portugal. Era uma prerrogativa holandesa (assim como o

transporte a distribuição), o que fez Furtado afirmar que “o negócio do açúcar era na

realidade mais deles que dos portugueses” (FURTADO, 2009, p. 57). A inexistência de

refinarias na colônia, por sua vez, era até mesmo uma imposição metropolitana:

(...) os governos metropolitanos impuseram uma dualidade no processo

produtivo, seccionando o fluxo da produção açucareira. À colônia

correspondia a primeira etapa, produção de açúcar mascavo ⎯na realidade,

praticamente o que hoje chamamos de massa cozida⎯, e à metrópole

competia a purificação final e a purga(...). Certamente, o estabelecimento

69
Idem, pp. 117-118.
66
dessas refinarias na Europa não correspondia a uma política da produção, do

ponto de vista tecnológico, mas a um objetivo de sujeição e subordinação

colonial. Objetivava-se, conscientemente, que o desenvolvimento das colônias,

em qualquer ramo da produção, fosse inferior ao da metrópole e dela

dependesse.70

Schwartz, por sua vez, não elimina a existência de uma imposição política

metropolitana como fator crucial para a inexistência de refinarias na colônia (o que,

certamente, ampliava as possibilidades de lucro para os mercadores holandeses), como

nos mostrou Fraginals. O autor, porém, problematiza a questão ao afirmar que a própria

característica do açúcar feito no nordeste brasileiro eliminava a necessidade de refinarias.

O produto brasileiro era “barreado, que resultava em açúcares brancos de qualidade

superior, e no pardacento e inferior mascavado. Ambos os tipos eram apropriados para

o consumo imediato” (SCHWARTZ, 1988, pp. 145-146). Esse açúcar, inclusive, foi

amplamente consumido na Europa, sendo popularizado como “açúcar do Brasil”.

70
FRAGINALS, Manuel Moreno. O engenho: complexo socioeconômico açucareiro cubano. São
Paulo: Hucitec / Ed. Da UNESP, 1987, v. I, p. 15
67
IX

Economia Açucareira II

Ao estudar o quadro de capitalização e nível de renda na economia açucareira,

Celso Furtado chegou a uma conclusão pouco animadora a respeito desses montantes:

“não se pode ir além de vagas conjeturas” (FURTADO, 2009, p. 98). O autor, partindo

dessa limitação, estabelece estimativas a respeito da distribuição e do nível de renda no

nordeste colonial, embasando-se fundamentalmente nos dados que R. Simonsen coletou

a partir dos estudos de Varnhagen.

O primeiro passo de Furtado para entender o quadro econômico da zona produtora

foi estimar a constituição da população colonial na passagem para o século XVII: de um

total de 100.000 habitantes, 30.000 eram brancos, enquanto os outros 70.000 eram

compostos por negros, índios e mestiços71. Seguindo em frente, ele concluiu que, em

1600, a produção total de açúcar girava em torno de 2.000.000 de arrobas, fabricadas em

120 engenhos que contavam, ao todo, com 15.000 escravos (correspondendo a 75% da

mão-de-obra cativa do Brasil naquele período). Uma vez que a inversão de capital era de

15.000 libras por engenho e de 25 libras por escravo, vemos que a mão-de-obra era

equivalente a cerca de 20% de todo o capital fixo investido por Portugal na colônia.

Essas estimativas iniciais permitiram a Furtado concluir que, num ano favorável,

a exportação total de açúcar brasileiro estava próxima de 2.500.000 libras, gerando uma

renda bruta de 2.000.000 de libras na colônia. 75% desta era a renda líquida da economia

71
Furtado compila esses dados a partir da coleta de Contreiras Rodrigues
68
açucareira. Assim, tendo como denominador os 30.000 brancos, senhores de engenho, a

renda per capita do Nordeste açucareiro chegava a ser de 67 libras. A conclusão imediata

de Celso Furtado é de que “em nenhuma outra época de sua história – nem mesmo no

auge da produção de ouro – o Brasil logrou recuperar esse nível [de renda per capita]”

(FURTADO, 2009, pp. 99-100). Finalmente, ao olhar o quadro distributivo, o autor

estima que 90% desse montante de renda estava direcionado para senhores de engenho e

plantadores de cana, ao passo que os 10% restantes eram absorvidos nos serviços de

transporte e armazenamento, na compra de gado e lenha e no pagamento de assalariados.

É de se esperar que, com tamanha concentração de renda, o potencial de reinvestimento

e, concomitantemente, de crescimento da economia açucareira, até em períodos “menos

favoráveis”72, era elevadíssimo:

Os dados (...) sugerem que a indústria açucareira era suficientemente rentável

para autofinanciar uma duplicação de sua capacidade produtiva a cada dois

anos. Aparentemente o ritmo de crescimento foi dessa ordem nas etapas mais

favoráveis.73

É bem verdade, porém, que em certos momentos a capacidade de reinvestimento

e acumulação de capital diminuía. Isso porque uma parcela considerável dos capitais

pertencia aos comerciantes, implicando transferência da renda gerada pelos capitais fixos

para outro setor que não os senhores de engenho. Em termos de contabilidade nacional,

“seria o que modernamente se chama renda de não-residentes, e permanecia fora da

colônia” (FURTADO, 2009, p. 102).

72
Nos “anos menos favoráveis”, Furtado estima que a renda líquida da economia açucareira era
de cerca de 1.200.000 libras, sendo que 50% dela era alocada em consumo.
73
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 101.
69
As pesquisas e conclusões de Furtado, elencadas acima, a respeito do nível de

renda e de seu quadro distributivo, acabaram por gerar controvérsias na historiografia,

principalmente quando analisamos os estudos de Frédéric Mauro74 a respeito do mesmo

tema. O historiador francês, coletando dados, referentes ao período de 1622 até 1635, do

Engenho Sergipe do Conde (à época administrado pelo Pe. Pereira), questiona o elevado

grau de concentração de renda na economia açucareira mostrado por Furtado: os lucros

sobre o capital, ao longo dos anos em análise, variavam entre 1,2% e 3,4%, estando muito

longe, portanto, daqueles 90% da renda líquida apropriados pelos senhores (os quais

garantiam para si um lucro sobre o capital entre 70% e 80%). Mauro não é o único, na

historiografia, a questionar as estimativas de Furtado. Historiadores mais recentes

também problematizaram os dados apresentados pelo autor de Formação Econômica do

Brasil:

(...) os historiadores posteriores, que tiveram o cuidado de examinar os

documentos, acharam a sua descrição altamente exagerada. (...) Mircea

Buescu, por exemplo, fez notar que os cálculos de Celso Furtado sobre o

açúcar produzido ao redor de 1600 implicavam uma produção média por

engenho de umas 16.667 arrobas (...)⎯número completamente impossível,

jamais alcançado por qualquer engenho, mesmo grande, em qualquer época

que se saiba. Uma análise cuidadosa de algumas fontes contemporâneas

aproximaria esse número de 6.000 ou menos75

A bem da verdade, existem estudos posteriores aos de Mauro que também

questionam as suas conclusões a respeito do nível de rentabilidade e de apropriação dos

lucros por parte dos senhores de engenho. O período em que o autor analisa Sergipe do

74
Le Portugal et l’Atlantique au XVII Siécle.
75
JOHNSON, H & SILVA, Maria B. N. da (Coords.). O Império Luso-Brasileiro, 1500-1620 In:
SERRÃO, J. & MARQUES, A. H. de O. (dirs.). Nova História da Expansão Portuguesa, Volume
VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1992, p. 273.
70
Conde foi marcado por uma profunda queda nos preços do açúcar, depressão essa que

perdurou na Europa mais ou menos até 1633, o que explica em parte uma queda nos lucros

ao longo da década estudada por Mauro. Outro aspecto importante captado pela

historiografia recente reside na atitude do próprio administrador do engenho: o Pe.

Pereira, nas demonstrações contábeis dos resultados operacionais, muito provavelmente

diminuía seus lucros reais, numa forma de encobrir acusações a respeito de sua péssima

gestão do Sergipe do Conde.

Podemos ver, portanto, que, se Furtado exagera a produção de açúcar e,

consequentemente, o nível de renda e de concentração desta nas mãos dos senhores,

Mauro acaba indo pelo lado oposto: uma lucratividade muito pequena para uma produção

que era, não obstante o exagero furtadiano, considerável. Como encontrar um meio

termo? Recorremos a S. Schwartz, mostrando a nós, a partir de estudos já citados aqui,

que, o retorno de um engenho no nordeste brasileiro avaliado em 20 contos flutuava entre

2 e 3 contos de réis. Esperava-se portanto, uma lucratividade de 10% ou até mesmo 15%,

“embora em tempos de prosperidade pudessem ser obtidos retornos muito maiores”

(SCHWARTZ, 1988, pp. 195-196):

O bom senso conduz à conclusão de que, embora os senhores de engenhos

fossem constrangidos por uma grande proporção de custos fixos e vez por

outra operassem com prejuízo para conseguir pagar as dívidas e outras

obrigações, a indústria açucareira baiana como um todo não operou com

déficit durante períodos prolongados. Nas Antilhas britânicas, níveis de lucro

de 5% eram considerados aceitáveis pelos senhores de engenho, e de 10%,

excelentes.76

76
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195-196.
71
Como podemos perceber, a rentabilidade da economia açucareira

agroexportadora, independentemente dos exageros ou dos ceticismos, era considerável.

Isso não significa que, no Nordeste brasileiro, houve uma internalização dessa renda, com

a formação de um fluxo circular dentro da colônia. Na realidade, ocorria exatamente o

oposto: “não havia (...) nenhuma possibilidade de que o crescimento com base no

impulso externo originasse um processo de desenvolvimento de autopropulsão”

(FURTADO, 2009, pp. 101 e 109). A autossuficiência não foi um elemento do ciclo do

açúcar no Brasil. Apesar dos constantes reinvestimentos em capital fixo para ampliar a

produção, eles acabavam apenas reproduzindo continuamente o grau de dependência da

economia colonial em relação aos interesses da metrópole portuguesa e do mercado

europeu como um todo.

O que explica o “paradoxo” enunciado acima é justamente a presença do modo de

produção escravista na colônia. Tratando em termos keynesianos (fazendo, portanto, uma

aproximação com a linha de pensamento de Furtado), a existência de um trabalho nesses

moldes dificulta e muito a formação de um mercado interno consistente (o escravo,

diferentemente do assalariado, não recebe um montante em dinheiro necessário para sua

subsistência, dinheiro esse que é gasto no mercado. Pelo contrário, ele acaba

sobrevivendo a partir daquilo que o próprio engenho fornece), inviabilizando um efeito

mais robusto de um multiplicador de dispêndio. O baixo grau de internalização da renda

na economia nordestina agravava-se ainda mais pelo fato de que boa parte do consumo

dos senhores de engenho (maiores apropriadores da renda) era de artigos importados.

Assim, no lado do investimento e no do consumo, o fluxo de renda monetária era

fundamentalmente externo.

72
Estudos posteriores, como o de Francisco Teixeira da Silva77, revisam, por sua

vez, esse caráter subsidiário do mercado interno brasileiro. É certo que a diretriz principal

estava na economia açucareira agroexportadora. Mas, a coleta de fontes primárias indica

que a Coroa acabou mesmo por incentivar uma produção interna de cereais, de modo a

abastecer o Brasil (e até mesmo possessões na África e Sacramento, que hoje corresponde

ao Uruguai) com alimentos. Estimulou-se, para esse fim, a vinda de colonos com

disponibilidade insuficiente de capitais para administrar um engenho. Temos autores que

chegam até mesmo a diminuir o caráter hegemônico da economia açucareira:

Nelas [nas áreas das vilas em que não havia exportação – sécs. XVI, XVII] se

instalaram muitos tipos de produção, com destaque para a pecuária no

Nordeste e os produtos de abastecimento e artesanato em todo o território. A

pequena produção era a regra —manufaturas como a do capitão Guilherme

Pompeu de Almeida [negócios com ferro; capitão-mor, na segunda metade do

séc. XVII era dono de uma grande manufatura com 5 oficinas especializadas]

ou os engenhos do Nordeste, a exceção. A busca de riqueza dava sentido à

vida. O empreendedor era a figura central.78

Finalmente, um último fator, referente ao nível de especialização na economia

açucareira, merece atenção. Partindo da historiografia tradicional, o nível de

especialização numa economia cujo modo de produção é escravista é bem baixo. Isso

porque “não se pode esperar que os escravos realizem mais do que aquilo que são

forçados a fazer” (WALLERSTEIN, 1988, pp. 120-121). A especialização exigia um

método alternativo de trabalho que não fosse a escravidão, a qual, por sua vez, implica

reduzida produtividade e, portanto, baixo nível de mais-valia relativa. Schwartz,

77
Conquista e colonização da América portuguesa – o Brasil colônia, 1500/1750. In:
LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990,
cap. 1, p. 77.
78
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e
governos. São Paulo: Estação Brasil, 2017, p. 117.
73
claramente um representante da historiografia disposta a revisar os trabalhos clássicos,

por sua vez, não nega o caráter brutal do trabalho escravo (que seria o fator de maior

impedimento à especialização), mas explica que, ao contrário do que os historiadores

“famosos” teorizam, a escravidão foi menos brutal do que se imaginou, permitindo,

portanto, nível maior de especialização do trabalho:

Sem dúvida é verdade que os trabalhadores livres tendiam a ocupar as funções

que demandavam maior especialização nos engenhos, porém nunca chegaram

a substituir completamente os escravos e, na verdade, em algumas

propriedades os cativos realizavam todas as tarefas. A escravidão na grande

lavoura mostrou-se menos rígida do que seus estudiosos muitas vezes

descreveram.79

79
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195-196.

74
X

Economia Açucareira III

Um dos eventos mais importantes para os destinos de Portugal e,

consequentemente, do Brasil a partir do século XVII foi o conjunto de conflitos entre os

Países Baixos e a Espanha no período que vai de 1568 até 1648, conhecido como “Guerra

dos Oitenta Anos”. Era a luta pela independência dos Estados liderados pela Holanda:

Indo até as últimas consequências, os Países Baixos desafiaram a maior

potência do mundo no século XVI, o Império espanhol, para conseguir, a todo

custo, sua independência. Liderados pela Holanda, (...) os Países Baixos

lutaram durante várias décadas, a Guerra dos Oitenta Anos [1568-1648], com

todos os seus recursos, contra o Império habsbúrgico, onde o sol nunca se

punha.80

Esse quadro de tensões invariavelmente afetou a Coroa Portuguesa, justamente

por ela, no período em que acontece a “Guerra dos Oitenta Anos”, fazer parte da União

Ibérica. Todas as suas colônias, incluindo o Brasil, estiveram, de 1580 a 1640, sob

domínio espanhol. É nesse quadro geopolítico que se consolida a União de Utrecht,

representação política dos Estados holandeses independentes e que foram alvo de intensa

perseguição espanhola ao longo do conflito. Sustentados financeiramente por Inglaterra

e França, os holandeses, embora desejosos das minas ibéricas no México e no Peru, focam

seus ataques nas possessões portuguesas. Do ponto de vista econômico, é certo que o ouro

80
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A revolução holandesa: origens e projeção oceânica.
São Paulo: Perspectiva, 2014, p. XI.
75
e a prata das colônias espanholas eram de lucratividade muito maior na comparação com

os territórios portugueses. O fator decisivo, entretanto, que moldou as ações dos Países

Baixos foi de caráter militar: as áreas de domínio lusitano, bem mais espalhadas ao redor

do globo, acabavam sendo mais vulneráveis e frágeis frente a uma invasão estrangeira (a

maioria delas estavam situadas na costa, estando, portanto, muito mais expostas,

facilitando uma potencial invasão). Soma-se a isso o fato de que o ouro e a prata, principal

meio de sobrevivência da Espanha no conflito, estavam concentrados e extremamente

protegidos. Assim, uma vez definido que a estratégia principal era concentrar os ataques

nas áreas lusitanas, a União centraliza seus recursos materiais e humanos no tráfico

negreiro africano, nas especiarias do Oriente e, principalmente, no Nordeste açucareiro

do Brasil:

(...) quando os holandeses passaram à ofensiva em sua Guerra dos Oitenta

anos pela independência contra a Espanha, no final do século XVI, foi nas

possessões portuguesas mais do que nas espanholas que se concentraram seus

ataques mais pesados e persistentes. Uma vez que as possessões ibéricas

estavam espalhadas pelo mundo todo, a luta subsequente foi travada em

quatro continentes e nos sete mares; e essa conflagração seiscentista merece

muito mais ser chamada de Primeira Guerra Mundial do que a carnificina de

1914-8, a que geralmente se atribui essa honra duvidosa.81

Uma vez definida a estratégia dos Países Baixos, como vimos, o Nordeste

açucareiro é então invadido pelos holandeses após uma tentativa fracassada de tomar

possessões caribenhas anos antes. É justamente no período de trégua do conflito (1609-

1621) entre União Ibérica e Utrecht que temos, na região, inovações tecnológicas

importantes (como a já citada introdução da moenda com três cilindros verticais) nos

81
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 120.
76
engenhos. Foi também nesse momento, vale dizer, que a economia do açúcar conseguiu

“completar sua transição do trabalho indígena para o africano” (MELLO, 1998, pp. 24-

25). Não é surpreendente, tendo como base tais dados históricos, que a produção de açúcar

no Brasil tenha retomado um crescimento consistente exatamente nos anos da trégua. A

moenda de entrosas ampliava e muito a produtividade, uma vez que permitia a constante

alimentação com matéria-prima, além de ser muito mais potente para prensar a cana. O

escravo africano, por sua vez, já estava muito mais adaptado ao trato do açúcar, dado que,

em inúmeras ilhas do oeste africano, principalmente a da Madeira e a de São Tomé e

Príncipe, já se organizava o fabrico do açúcar desde o século XV.

A presença holandesa no Nordeste, porém, foi também marcada por

complicações, principalmente quando analisamos a questão da unidade territorial na

colônia portuguesa na América. Se a restauração portuguesa de 1640 não se concretizasse,

dificilmente os holandeses teriam deixado a produção açucareira no Brasil em 1654. Isso

porque, em 1648, época em que a Espanha ainda tentava reestabelecer a União Ibérica,

estava previsto, pelo tratado de Münster, a concessão do Nordeste brasileiro aos Países

Baixos:

Foi aí [no Nordeste] que nossa integridade territorial correu maior perigo.

Por lamentável que tivesse sido, a perda do Rio Grande do Sul não teria

comprometido a unidade nacional, como não o fez a independência do

Uruguai, mas a consolidação do Brasil holandês teria estilhaçado a América

portuguesa.82

Foi apenas com o tratado de Haia, em 1669, que a Holanda de fato reconheceu a

soberania portuguesa no Nordeste brasileiro, recebendo, em troca, importantes

82
MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 14.
77
concessões financeiras e comerciais lusitanas. De 1654 até o ano do tratado, esteve

sempre presente na Coroa Portuguesa o medo de uma invasão dos Países Baixos que

pudesse comprometer o estado de coisas no Brasil. A saída definitiva dos holandeses da

região açucareira, por sua vez, acabou transformando completamente os destinos dessa

economia no Brasil, colocando em xeque, inclusive, o monopólio português do trato da

cana, já que, na segunda metade do século XVII, a Holanda centraliza seus recursos nas

Antilhas. Analisemos, agora, os principais períodos de produção açucareira nessas ilhas

do Caribe.

No início do século XVI, principalmente na região que englobava as Canárias e

São Domingos, a Espanha já havia organizado um razoável sistema de produção

açucareira. A primeira exportação para a Europa ocorreu em 1516; em 1534, o complexo

passou a ter 34 engenhos; em 1568, as plantations chegavam a ser ocupadas por até 200

escravos. Não obstante, essa atividade econômica sempre teve caráter secundário nas

assim chamadas “Grandes Antilhas”, o que não surpreende se pudermos enxergar que a

prioridade da Coroa Espanhola residia na extração de ouro e prata. Diferentemente de

Portugal, a Espanha encontrou vastas quantidades de metais preciosos logo que chegou

aos territórios americanos. Assim, atividades econômicas distintas da puramente extrativa

acabaram sendo secundarizadas e, posteriormente, entraram num grave quadro de

sucateamento.

Se nas Grandes Antilhas, como vimos, o quadro era de notável abandono por parte

da metrópole, as Pequenas Antilhas serão palco de um fenômeno um tanto quanto

inusitado, mas, acima de tudo, decisivo para a história da América do Norte. É nelas que

as novas potências coloniais França e Inglaterra, assim como a mais tradicional Holanda,

contestando abertamente a divisão do mundo entre Espanha e Portugal prevista no tratado

de Tordesilhas, irão introduzir, nas primeiras décadas do século XVII, pequenas


78
propriedades de subsistência, planejando o assentamento e a conquista da região. O

objetivo dessa manobra era, futuramente, uma vez conquistadas as ilhas antilhanas, tomar

posse do quinhão minerador espanhol nas zonas mais afastadas do mar. São Cristóvão e

São Eustáquio foram alguns dos pontos de assentamento dessas novas populações:

No fim do século XVII, (...) A França dominava ainda parte de São Cristóvão

e havia estendido sua dominação às ilhas de Guadalupe (...), à Martinica,

Maria-Galante, São Bartolomeu e parte de São Martinho, além da metade

ocidental da ilha de São Domingos. Os ingleses ocupavam Barbados, Nevis,

Antígua, Redonda, Montserrat, Barbuda, Anguilla, Bahamas, Bermudas,

Jamaica e parte de São Cristóvão. Os holandeses, além de Santo Eustáquio,

haviam-se tornado senhores das ilhas de Saba, parte de São Martinho e

Bonaire, Curaçao e Aruba junto ao litoral do continente sul-americano. Os

dinamarqueses, só em 1697 conseguiram uma base nas Antilhas, (...) ilha de

São Tomás.83

Uma das primeiras atividades econômicas que emergem dessa estratégia

geopolítica ousada das novas potências foi a produção do fumo. Ela já marca uma

transição da economia de pequena propriedade para a de grandes extensões de terras, a

qual foi impulsionada com a posterior chegada dos holandeses. Com base nos dados de

V. T. Harlow84, Barbados, um dos pontos de assentamento inglês, viu o quadro de 11.200

pequenos proprietários em 1645 transformar-se num de 745 grandes fazendeiros em 1667.

A mesma região presenciou o aumento vertiginoso da população africana escravizada:

“os negros haviam aumentado de 5.680 para 82.203” (FURTADO, 2009, p. 76).

Paralelamente, na região que hoje corresponde à costa leste dos Estados Unidos,

83
CANABRAVA, Alice Piffer. O açúcar nas Antilhas (1697-1755). São Paulo: IPE/USP, 1981,
p. 21-22.
84
HARLOW, V. T. A history of Barbados. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 76, nota 30.
79
desenvolve-se, no mesmo período, a partir da ocupação de perseguidos políticos

ingleses85, produções pautadas em pequenos assentamentos, dado que a massa britânica

que chega à Nova Inglaterra tem como objetivo primário reproduzir seu estilo de vida

antes consolidado na metrópole. Se, de início, a pequena produção nessas regiões resultou

em considerável fracasso, o contínuo desenvolvimento da economia açucareira antilhana

acabou por impulsionar o crescimento paralelo dessa economia de subsistência no

Atlântico Norte:

Brotaram os engenhos de açúcar para moer as canas, mas Barbados não tinha

força hidráulica para acioná-los. A alternativa era usar moendas movidas a

cavalos, por isso foram adquiridos cavalos na Nova Inglaterra. Também eram

necessários tonéis e barris onde acondicionar o açúcar. Estes foram

fornecidos pelas abundantes florestas de Massachusetts e Connecticut.86

Esse desenvolvimento paralelo, mas, ao mesmo tempo, associado entre as duas

atividades, possibilitou, na Nova Inglaterra, a consolidação de uma economia similar à

que se instalava em definitivo na Europa: uma que funcionava de dentro para fora, com

valorização substancial do mercado interno, “sem uma separação fundamental entre as

atividades produtivas destinadas à exportação e aquelas ligadas ao mercado interno”

(FURTADO, 2009, p. 79), abastecendo o exterior com o excedente, permitindo, com isso,

uma enorme internalização da renda gerada.

85
No período de crescimento da produção antilhana de açúcar, a Inglaterra passa por agitações
político-religiosas cruciais: a realeza, que havia adotado o Anglicanismo como orientação
religiosa no final do século XVI, instaura um quadro de perseguições constantes à massa de
calvinistas revoltosos no país. Muitos deles, fugindo do país de origem, partem rumo ao atlântico
norte, fundando os Estados de Massachussets (1620), Connecticut (1633) e Rhode Island (1636).
Essa tensão político-religiosa é um dos aspectos mais importantes da Revolução Puritana de 1640.
Tomemos o cuidado, porém, de não inverter a lógica e colocar esse quadro como a raiz da
convulsão social pela qual passou a Inglaterra, esquecendo-nos de enfatizar o papel crucial das
transformações econômicas materiais sofridas séculos antes. Para uma melhor compreensão da
matéria, o livro The English Revolution 1640, de Christopher Hill, é fundamental.
86
HARLOW, V. T. A history of Barbados. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 76, nota 33.
80
O terceiro período que pretendemos analisar é o da consolidação da presença

holandesa nas Antilhas, já na transição para o século XVIII. É nesse momento que a

atividade é valorizada tanto nas pequenas como nas grandes ilhas, consolidando-se um

ciclo econômico na região. O crescimento da produção açucareira nas Antilhas, além de

ter quebrado definitivamente o monopólio português no trato da cana, acabou por influir

consideravelmente na política dentro da própria Europa (muitos latifundiários das

Antilhas inglesas eram membros do próprio Parliament, defendendo os interesses dos

rentistas britânicos, alvos de severas críticas do célebre D. Ricardo):

Em contraste com o século XVII, por excelência o século das atividades

parasitárias contra a marinha espanhola, da aventura marítima e da ocupação

belicosa das ilhas do mar dos Caraíbas, o século XVIII é, sobretudo, o da

atividade colonial, no sentido da valorização daquelas colônias, as quais

passaram a influir poderosamente na política e na economia europeia.87

Uma vez compreendido o complexo quadro envolvendo a produção de açúcar nas

Antilhas ao longo de três séculos, podemos retornar ao ciclo açucareiro no Brasil e

discutir, numa maneira mais aprofundada, a formação daquilo que Celso Furtado nomeou

“complexo econômico nordestino”, marcado pelo diálogo entre a produção

agroexportadora característica e uma economia voltada para dentro que era a pecuária.

Esta, por sua vez, antes de servir como fonte importante de abastecimento para os

engenhos (trataremos disso posteriormente), funcionou como o primeiro vetor de

expansão interna portuguesa na colônia:

Já no governo de Tomé de Sousa, iniciou Garcia de Ávila o estabelecimento

de currais pelo interior da Bahia. (...) Em 1589, Cristóvão de Barros ocupou

87
CANABRAVA, Alice Piffer. O açúcar nas Antilhas (1697-1755). São Paulo: IPE/USP, 1981,
p. 22.
81
a costa até o São Francisco, expulsando os selvagens. [...] Os Ávilas e os seus

associados prosseguem na invasão do sertão com seus currais, (...) levandoos

ao Maranhão, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. (...) Subindo o

São Francisco, atingem o interior mineiro. Passando para os vales do

Tocantins e Araguaia, estende-se a criação para os sertões goianos (...). Via

Goiás, penetrou o gado as regiões do Mato Grosso, onde foi de encontro às

manadas que subiam da Vacaria e das possessões espanholas; assim também

o gado que subia o São Francisco foi-se encontrar com o que pela Capitania

de São Vicente tinha sido introduzido em (...) Minas Gerais. 88

Esse potencial de expansão teve como um dos alicerces a própria disponibilidade de terras

da colônia, marcada por uma fluidez fronteiriça considerável. Como projeção da

economia açucareira, a pecuária era uma atividade de baixa rentabilidade se comparada

ao setor agroexportador: limitava-se ao fornecimento de animais de tiro para o engenho,

aproveitando-se, ao mesmo tempo, de uma exportação residual de couro. Essa

característica que marca a etapa inicial da atividade criatória está intimamente associada

ao crescimento extensivo dessa economia, ampliando os horizontes territoriais do Brasil.

A quebra do monopólio português do açúcar, da qual tratamos em parágrafos

anteriores, foi responsável pela diminuição vertiginosa dos preços da commoditie no

mercado europeu, reduzindo e muito a lucratividade dos senhores de engenho. Acabou

por ser, portanto, um dos fatores responsáveis pela crise do Nordeste açucareiro. Se a

demanda por capital fixo se manteve muito parecida mesmo nesse momento turbulento,

a mão-de-obra necessária foi diminuindo cada vez mais e, com isso, se transferia para o

setor de criação de gado. Uma vez que a procura por animais de tiro diminuía

continuamente, a pecuária, que sofria um aumento de sua força de trabalho, regrediu para

88
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil, (1500-1820). 8.ed. São Paulo: Ed.
Nacional, 1978, p. 152.
82
um quadro de involução econômica. Menos renda monetária era necessitada, uma vez

que se formava um quadro de autoconsumo, dado que o couro não era mais exportado e

os animais não eram mais enviados para o litoral. A produtividade, que já era pequena,

diminuía cada vez mais, assim como o grau de especialização e, consequentemente, de

divisão do trabalho.

83
XI

Mineração I

Quando fazemos o estudo do ciclo metalista na colônia, é fundamental, ao mesmo

tempo que inevitável, compará-lo com a economia açucareira dos séculos XVI e XVII. A

extração mineral possuía um potencial de desenvolvimento endógeno e, portanto,

autopropulsionado muito maior do que a fabricação de cana. As barreiras de entrada no

negócio do ouro eram muito menores, no seu conjunto, dado que, de acordo com as fontes

de Simonsen, 85% da produção mundial do metal se dava na forma de aluvião. O quadro

acabava atraindo pessoas com uma disponibilidade de capitais que, para garantir a

sobrevivência no ramo da cana, era insuficiente, mas que bastava para entrar na

mineração. A grande semelhança entre os dois ciclos, por sua vez, é que, assim como no

Nordeste açucareiro, o desenvolvimento endógeno não se concretizou. No período de

decadência das minas, assim como no complexo econômico nordestino, o resultado, como

nos mostra Furtado, foi uma profunda regressão e involução.

Se, no século XIX, a participação brasileira na produção aurífera chegou a ser de

ínfimos 2,0%89, em função dos descobrimentos de novas regiões mineradoras na

Califórnia, na Austrália, no Alasca e até mesmo na África do Sul, um século antes o Brasil

contribuía com 60%, a maior parcela na época. Se compararmos com o que se extraiu no

século XX e com o que se produz hoje, as quantidades do século XVIII eram bem

pequenas, muito em função é claro, dos avanços tecnológicos ao longo do tempo pelos

89
De acordo com dados do DNPM.
84
quais passou o setor. Mas, até aquele período, a colônia portuguesa na América era dona

da “maior massa aurífera explorada e produzida após a queda de Roma” (SIMONSEN,

1978, p. 248).

Os dados enunciados acima, porém, não consideram o grosso de metais que eram

contrabandeados, o que gera um diferença estatística considerável, uma vez que, se

incluída a produção ilegal, a contribuição brasileira é ainda maior no século XVIII:

A análise das cargas de ouro nas frotas, as notícias sobre os descaminhos e

as várias formas de contrabando fazem crer que a produção brasileira de ouro

está acima dos cálculos que os documentos permitem realizar. (...) [A]

exploração maciça e simultânea das regiões mineiras como as Gerais, Bahia,

Mato Grosso e Goiás, entre o meado da década de 20 e o começo da década

de 50, teria elevado a produção brasileira de ouro a um nível entre 18 a 20t

anuais.90

Dado esse complexo sistema de produção metalista, em que a participação do

contrabando era deveras considerável, a Coroa Lusitana e seu regime administrativo

operavam sempre entre dois polos: o risco de uma sublevação dos mineradores, em caso

de uma fiscalização mais rigorosa, e um prejuízo comercial que colocaria em xeque a

sobrevivência da própria metrópole enquanto nação soberana, numa situação em que a

produção ilegal fugisse do controle. Uma vez reconhecida a incapacidade régia de

eliminar por completo este último elemento, “sobreleva-se o reconhecimento de que o

descaminho é uma prática social constitutiva e formadora daquela sociedade colonial”

(CAVALCANTE, 2006, p. 211).

90
PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos
estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Cia. Ed. Nacional; Brasília, INL, 1979,
p. 116-117.
85
Como se deu a transição do ciclo açucareiro para esse quadro complexo em que

se envolve a extração de metais nas Gerais? A crise da produção nordestina fez com que,

a partir do século XVIII, a política metropolitana retomasse o objetivo inicial, aquele real

estímulo para a manutenção da soberania Portuguesa nos trópicos sul-americanos, que do

ponto de vista mercantilista/bullionista dava sentido econômico à existência da colônia:

a descoberta dos metais preciosos, principalmente o ouro91. Isso porque “era mais ou

menos evidente que da agricultura tropical não se podia esperar outro milagre similar

ao do açúcar” (FURTADO, 1980, p. 73). Nos primeiros passos para a consolidação da

região mineradora como posse lusitana, a administração régia apoia-se muito nas

atividades dos bandeirantes paulistas, os quais, conforme a decadência da fabricação de

açúcar aumenta, passam a direcionar seus planos de desbravamento territorial para a

descoberta dos metais e não mais para a captura do nativo com vistas a usá-lo no trabalho

agrícola. Concessões foram dadas aos paulistas, tais como a posse das primeiras datas

mineradoras na região das Gerais (questão que será tratada com mais afinco

posteriormente). Esta é uma amostra da importância que tiveram as bandeiras para o

controle metropolitano da zona extrativa. Nas palavras de Furtado:

Os governantes portugueses cedo se deram conta do enorme capital que, para

a busca das minas, representavam os conhecimentos que do interior do país

tinham os homens do planalto de Piratininga. Com efeito, se estes já não

91
Um segundo ponto de vista interessante para entender os rumos tomados pela Coroa no século
XVIII consiste na análise de Adriana Romeiro: Bem diferente do que afirmam alguns
historiadores, o evento [a descoberta do ouro] suscitou receio e temor nos dois lados do
Atlântico, afigurando-se às autoridades, funcionários e conselheiros régios uma séria ameaça ao
domínio português na América Portuguesa. Do ponto de vista político, temia-se que as riquezas
recém-descobertas viessem a se transformar rapidamente em alvo da cobiça das nações
estrangeiras, que não hesitariam em invadir a assaltar os portos marítimos em busca do ouro.
Teria Portugal como resistir a inimigos reconhecidamente superiores no plano militar naval?
(Paulistas e emboabas no coração das Minas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 35.)

86
haviam descoberto o ouro em suas entradas pelos sertões, era por falta de

conhecimentos técnicos.92

A historiografia mais recente, porém, contesta a afirmação de Furtado a respeito do know-

how bandeirante. Mafalda Zemella93 nos mostra que o bandeirante, já experimentado na

extração mineral a partir de trabalhos em minas de Jaraguá e Paranaguá, possuíam

qualidades técnicas que lhes permitiram o descobrimento dos primeiros metais nas

Gerais:

O ano de 1674 é o momento culminante da bandeira pesquisadora. Foi quando

entrou para o sertão a bandeira de Fernão Dias Pais, bandeira essa que abriu

largamente as portas da região aurífera, facilitando o caminho para as minas,

pontilhando-o de roças. [...]A primeira notícia oficial da descoberta do ouro

deve-se a Antônio Rodrigues Arzão que, partindo de Taubaté, colheu o metal

precioso nos sertões do Rio Casca, em 1693.94

Para compreender em sua totalidade a consolidação da presença portuguesa na

região das minas, falta delinear as estratégias régias, tanto fiscais como sociais, tomadas

no início dos setecentos com vistas a garantir a soberania lusitana nessa porção colonial.

Na passagem para o século XVIII, o governador geral D. João de Lencastro (1694-1702),

intimamente associado aos interesses dos senhores de engenho nordestinos, é responsável

pelo que se convencionou chamar “Políticas de Portas Fechadas”: uma conexão

unilateral entre Bahia e as Gerais, favorecendo os latifundiários do açúcar, uma vez que

caberia exclusivamente a eles o abastecimento da região mineradora com mão-de-obra e

animais de tração. Em 1701, entretanto, “a proibição de toda e qualquer comunicação

92
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 133.
93
O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2.ed. São Paulo: Hucitec;
Edusp, 1990, p. 37.
94
Idem, p. 38.
87
entre a Bahia e a zona mineradora ordenada pela Coroa (...) sepultou definitivamente o

projeto de Lencastro” (ROMEIRO, 2008, p. 43). A partir de então, mediante proposta do

governador do Rio de Janeiro Artur de Sá e Meneses, instaura-se exatamente o contrário,

ou seja, uma “Política de Portas Abertas”. O objetivo era o rápido povoamento da região,

ampliando assim a produção e, principalmente, a arrecadação tributária (mais pessoas nas

datas equivalia a um maior recolhimento do quinto). A estratégia também englobava uma

cooptação dos bandeirantes paulistas, os quais, por sua vez, acolheram de imediato a

proposta lusitana. Em troca de privilégios e concessões aos sertanistas (uma ilustração é

a anistia de Borba Gato, que antes era perseguido por seus assassinatos e, com Sá e

Meneses, torna-se tenente general do descobrimento de prata de Sabarabuçu), os quais

tiveram o domínio político inicial da região das minas, considerando-se novamente como

parte do Império, Portugal garantia, por meio dos mesmos, o controle do ouro e da

arrecadação.

É bem verdade, contudo, que o rápido povoamento, um objetivo nos primeiros

anos da mineração, transforma-se num quadro de calamidade pública ao longo do século

XVIII, motivando políticas de restrição migratória, dificultando a entrada nas zonas

extrativas:

(...) aquele rush em direção às minas gerais se transformou em calamidade

pública. (...) surgiu o perigo de despovoar-se o Reino. Também as cidades

litorâneas do Brasil viram-se diante da mesma ameaça. [...] Não havia gente

para as fileiras do exército. Faltavam tripulantes para as embarcações. Não

havia artesãos nem oficiais para as manufaturas. Faltavam braços para as

construções e até faltavam clérigos para as necessidades do espírito. As minas

88
(...) começaram a ser olhadas como causadoras de desgraças e fontes de

malefícios.95

Finalmente, uma vez que entendemos a constituição da soberania portuguesa nas

minas mediante suas estratégias de negociação e cooptação, convém analisar o complexo

social em que as Gerais se encaixaram nos primórdios do século XVIII. A região era com

certeza muito mais explosiva do que sua antecessora, o Nordeste açucareiro. Emergiam

vilas violentas, cada uma das quais com sua legislação própria, estando sempre presentes

os cruéis ritos de violência, como por exemplo as assuadas, marcadas pela exibição

pública de poder pelos paulistas. Embora o controle português, como vimos, fosse uma

realidade, as estratégias de negociação para sua sobrevivência nos primeiros anos abriam

uma margem muito maior para uma estrutura de poder privado vindo dos próprios

mineradores, principalmente os paulistas:

Estupefatos, cronistas e autoridades retrataram um quadro assustador da vida

nas Minas nos primeiros anos do século XVIII, comparando a região a um

verdadeiro talho, onde todos os dias muitos perdiam a vida em circunstâncias

extremamente violentas. Ao lado do enxame dos pobres e vadios, que viviam

de faiscar nas lavras abandonadas, cometendo aqui e ali pequenos e grandes

delitos, havia ainda a sanha dos potentados, homens enriquecidos que se

entregavam a grandes demonstrações de poder, perseguindo e justiçando os

inimigos. Ao contrário da tão propalada desordem política, o cenário político

caracterizou-se antes por uma ordem de outra natureza, irredutível às

concepções tradicionais sobre o bom governo político. Os arranjos políticos e

os equilíbrios sociais, ainda que frágeis, forjados no alvorecer das Minas,

baseavam-se em regras definidas e coletivamente aceitas, que rapidamente

foram incorporadas à tradição (...). Não obstante a implantação de um

aparato administrativo institucionalizado, tal estrutura de poder ―marcada

95
Ibidem, p. 47-48.
89
pela violência e de caráter privado― sobreviveria por muito tempo,

garantindo aos potentados um papel de destaque na história política da

capitania.96

Com o crescimento demográfico vertiginoso no início do século, com o afluxo

populacional vindo do próprio reino, de São Paulo e inclusive do Nordeste, o poder

paulista passa a ser cada vez mais contestado. Os forasteiros, pejorativamente conhecidos

como emboabas, colocavam contra a parede o “quase-monopólio” dos bandeirantes na

extração mineral. O grau de contradição e acirramento das tensões entre forasteiros e

paulistas culminou na Guerra dos Emboabas.

96
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008, p. 84
90
XII

Mineração II

No início do ciclo minerador no Brasil, as Gerais não haviam passado por uma

diversificação da atividade econômica. O foco, como era de se esperar, tanto por parte de

forasteiros como por parte da própria Coroa, era única e exclusivamente a extração de

ouro e prata. Assim, as crescentes demandas por abastecimento na região das minas

resultaram invariavelmente na elevação dos preços dos alimentos e dos transportes nas

áreas vizinhas. O quadro acabou funcionando como um “mecanismo de irradiação dos

benefícios econômicos da mineração” (FURTADO, 2009, p. 137). O estímulo ao

abastecimento a partir das capitanias circundantes elevava e muito o potencial de uma

economia monetária nas Gerais, com a consequente criação de um fluxo circular da renda.

Um dos principais fornecedores de alimentos das Gerais era São Paulo.

Produziam-se em especial as “drogas da terra”: farinha, panos de algodão, redes, trigo,

marmelo, couros e carnes.97 Nas últimas décadas do século XVII, eram responsáveis pelo

abastecimento do Rio de Janeiro. Mas, assim que se concretizou a atividade extrativa no

centro da colônia, cada vez mais os paulistas foram se especializando em prover os

mineradores com seus gêneros. De início, apenas os “restos” da pequena produção eram

destinados às minas. Conforme os lucros potenciais iam aumentando, porém, os paulistas

97
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2.ed.
São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990, p. 56.
91
intensificavam ainda mais a produção, podendo até mesmo comprometer o consumo

local:

(...) a princípio, os habitantes de Piratininga limitaram-se a mandar para as

Gerais as sobras de sua minguada produção. Depois, atraídos pelos gordos

lucros, intensificaram essa produção, com o fito de vender cada vez mais,

ainda que fosse com sacrifício dos consumidores locais. Em seguida (...) foram

buscar, em regiões por vezes distanciadas, tudo aquilo de que os mineiros

careciam e que eles mesmos não podiam produzir.98

Deve-se enfatizar, por sua vez, o papel do Rio de Janeiro na formação de novos

caminhos até as Gerais. Antes, partindo de Parati e cruzando por Taubaté (era o encontro

dos “caminhos velhos” paulista e fluminense)99, demorava-se entre 43 e 60 dias para

chegar às datas mineradoras. Com o “caminho novo” do Rio de Janeiro, o tempo reduzia-

se para até 12 dias. Não havia capitania melhor para se chegar às minas do que a do Rio

de Janeiro e, a partir do século XVIII, tanto o ouro a ser exportado como os escravos

importados passavam necessariamente pelo litoral fluminense. Nas palavras de Zemella

(1990, pp. 119-120): “a abertura desse caminho representou uma verdadeira revolução

no sistema de comunicação com as Gerais”.

Quando analisamos a economia mineradora, a análise do grau de mobilidade

social se torna um tanto quanto urgente. Se comparadas aos engenhos açucareiros, as

Gerais apresentavam-se muito mais flexíveis do ponto de vista social. A maneira de

extração do ouro, como vimos anteriormente, abria muito maior espaço para pessoas com

baixa disponibilidade de capitais. O homem médio, portanto, encontrava muito mais

98
Idem, pp. 60-61.
99
“(...) Enquanto o caminho paulista exigia dois meses para ser transposto, e no ‘caminho velho
do Rio de Janeiro’ gastavam-se quarenta e três dias, o ‘caminho novo’ era vencido, (...) em
‘marcha escoteira’, de dez a doze dias.” Ibidem, pp.119-120.
92
chances de sucesso econômico explorando o ouro de aluvião do que se pensasse em

administrar um engenho (o que, na maioria dos casos, mostrava-se quase que impossível).

A própria formação de atividades auxiliares voltadas para o abastecimento com alimentos

e transportes tornava muito maior a presença dos indivíduos de pequenas posses, os quais

passaram a formar, graças à mineração, uma classe média branca mais robusta.

Não só a formação de uma classe média a partir do modelo extrativo e da

existência de um mercado interno mais sólido deve ser levada em conta. O próprio

regimento de distribuição das datas acabou estimulando a presença do pequeno lavrador.

Interessada na arrecadação volumosa dos quintos, a Coroa disponibilizava, no início,

terras até mesmo para aqueles que não possuíam nenhum escravo100. É bem verdade que,

com o passar do tempo, mais restrições foram impostas “à medida em que os trabalhos

exigiam maior vulto e, portanto, indivíduos com elevados recursos materiais” (LUNA,

1981, p.56), como nos mostra o Artigo 5º do Regimento de 19 de abril de 1702:

(...) se não dará segunda data a pessoa alguma sem ter lavrado a primeira e

estando porém todos os mineiros acomodados e havendo mais terras para

repartir, então se atenderá aos que tiverem mais negros porque tendo mais

dos doze pertencentes à primeira data se fará com eles a repartição na forma

do Capítulo deste regimento dando-se duas braças e meia a cada negro, e

constando também ao guarda mor que cada um dos mineiros tem lavrado,

100
“E porque é muito prejudicial repartirem-se aos poderosos em cada Ribeiro que se descobre
sua data, ficando por esta causa, muitos pobres sem ela ou sucede ordinariamente por não poderem
lavrar tantas datas venderem os pobres, ou estarem muito tempo por lavrar o que não é somente
em prejuízos dos meus Vassalos, mas também dos meus Quintos, pois podendo-se tirar logo se
dilatam como se não lavrarem as ditas datas, e havendo ficado muitos dos meus Vassalos sem
elas, por evitar esta injustiça (...)”. Artigo 5º do Regimento de abril de 1702. In: LEME, Pedro
Taques de Almeida Paes. Notícias das minas de São Paulo e dos sertões da mesma Capitania.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, p. 199.

93
havendo terra para repartir, a repartirá novamente com ele na forma que fica

dito.101

Convém dizer que, por mais que a distribuição das datas ficasse mais restrita, ela não foi

capaz de eliminar o pequeno lavrador em benefício do grande minerador. Mantinha-se,

assim, uma classe média bem consolidada na região.

Um elemento fundamental que caracteriza a complexidade da sociedade

mineradora e que, portanto, esclarece ainda mais a questão da mobilidade é a estrutura da

posse de escravos. Com base nos trabalhos de Francisco V. Luna102, podemos dizer que,

na média, havia 6,5 escravos por proprietário. O elemento do grande proprietário,

possuidor de enormes massas de escravos, foi uma figura que, embora não inexistente,

não se constituiu como regra pelo menos durante boa parte do ciclo minerador. Luna, com

isso, problematiza o paradigma pradiano ao tornar mais diversificado o quadro da posse

de cativos:

De modo geral, os resultados apresentados, quanto à estrutura de posse de

cativos, demonstram uma sociedade na qual predominavam,

incontestavelmente, os pequenos proprietários; indivíduos possuidores de

escravaria de um, dois ou, no máximo, cinco escravos. [...] Assim, a nosso ver,

em Minas, as grandes lavras devem ter constituído a exceção e não a regra

quanto à organização da estrutura produtiva.103

Não só a estrutura de posse, mas também as relações entre senhores e escravos

formam um quadro muito peculiar na região das minas, quadro esse que era distinto

daquele no Nordeste açucareiro. Embora estivessem juridicamente ligados aos

proprietários, grandes ou pequenos, os cativos tinham muito maior liberdade de ação e

101
Idem, p. 199.
102
Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo: IPE/USP, 1981.
103
LUNA, Francisco V. Idem.
94
atividade nas Gerais. Muitas vezes acabavam exercendo até mesmo um trabalho

remunerado e, com a parcela de ouro que era descoberta, podiam acumular recursos para

comprar a alforria. O mais curioso é que, a partir de Luna, vemos que 20% dos

proprietários eram forros, sendo a maioria inclusive composta por mulheres.

Finalmente, para tornar ainda mais complexa a tessitura social das Gerais, havia

o elemento do faiscador: o pequeno minerador que, por lhe faltarem recursos necessários

até para a compra de um único escravo, empreendia a extração de metais apenas com suas

próprias forças. Corria, portanto, o risco de empobrecer ainda mais, ao mesmo tempo em

que se abria a oportunidade de enriquecimento e consequente ascensão social. Dentro da

historiografia clássica, a figura do faiscador suscitou debates interessantes. Caio Prado Jr.

entende esse elemento como um claro sinal de decadência, marcando um processo de

extinção e declínio irreversível da atividade mineradora:

[...] a mineração, que a partir do século XVIII formará a par da agricultura

entre as grandes atividades da colônia, adotará uma organização que, afora

as distinções de natureza técnica, é idêntica à da agricultura [...]. É ainda a

exploração em larga escala que predomina: grandes unidades, trabalhadas

por escravos. A atividade dos ‘faiscadores’ [...] é, como veremos, resultado da

decomposição do regime econômico e social das minas. Representa um índice

de decadência e extinção gradual da atividade mineradora, e não constitui em

si uma forma orgânica e estável; é a transição para o aniquilamento.104

Celso Furtado, por sua vez, inverte o mirante e coloca o faiscador como porta de entrada

para a mineração de maiores escalas. De fato, o risco de estagnação e até mesmo

empobrecimento desses “aventureiros” sempre existiu. Mas, dada a chance de

104
JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo – colônia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, p. 187-188.
95
enriquecimento e consolidação de uma posição como empresário, o faiscador podia

permitir às Gerais uma atividade extrativa de maior porte. Nas palavras do autor:

Se dispunha de recursos, podia organizar uma lavra em escala grande [...]. Se

eram reduzidos os seus recursos iniciais, podia limitar sua empresa às

mínimas proporções permitidas pela divisibilidade da mão de obra, isto é, um

escravo. Por último, se seus recursos não lhe permitiam mais que financiar o

próprio sustento durante um período limitado de tempo, podia trabalhar ele

mesmo como faiscador. Se lhe favorecia a sorte, em pouco tempo ascenderia

à posição de empresário. [...] “À medida que se reduzia a produção, [...]

muitos empresários de lavras, com o tempo, se foram reduzindo a simples

faiscadores.105

Para encerrar, é necessário que se discuta se a potencial monetização da economia

e o potencial fluxo circular da renda de fato conseguiram criar raízes profundas no ciclo

do ouro. E de fato eles eram consideráveis, mesmo que, em termos absolutos, o nível

anual de renda nas minas fosse menor do que aquele encontrado na economia açucareira

(Furtado nos aponta uma média de 3,6 milhões de libras nos anos mais favoráveis). O que

poderia contribuir também para uma internalização da renda, além da existência de

atividades auxiliares as quais já citamos, era o baixo coeficiente de importações: dado o

grau de interiorização da atividade extrativista, a importação de artigos acabava sendo

muito mais cara e, portanto, compensava menos do que se abastecer daquilo que a própria

colônia fornecia. O mais importante de tudo isso é que, uma vez reconhecida a

complexidade da estratificação social mineira, podemos concluir por um menor nível de

concentração de renda, o que ampliava ainda mais o potencial de criação de um fluxo

circular a partir da internalização:

105
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 136 e 146
96
Esse conjunto de circunstâncias tornava a região mineira muito mais propícia

ao desenvolvimento de atividades ligadas ao mercado interno do que havia

sido até então a região açucareira. Contudo, o desenvolvimento endógeno

⎯isto é, com base no seu próprio mercado⎯ da região mineira foi

praticamente nulo.106

Essa conclusão desanimadora de Furtado requer uma explicação mais apropriada.

Costuma-se atribuir ao decreto de 1785, outorgado por D. Maria I, a responsabilidade

pelo baixíssimo grau de desenvolvimento endógeno na colônia nos séculos XVIII e XIX.

Furtado descarta essa possibilidade para, ao invés disso, olhar as implicações do próprio

desenvolvimento técnico da metrópole e da vigência do tratado de Methuen. Portugal,

país com grau manufatureiro bem baixo, não foi capaz de transferir ao Brasil o know-how

necessário para a consolidação de indústrias na colônia:

Houvessem chegado ao Brasil imigrantes com alguma experiência

manufatureira, e o mais provável é que as iniciativas surgissem no momento

adequado, desenvolvendo-se uma capacidade de organização e técnica que a

colônia não chegou a conhecer [...]. A primeira condição para que o Brasil

tivesse algum desenvolvimento manufatureiro na segunda metade do século

XVIII teria de ser o próprio desenvolvimento manufatureiro de Portugal. 107

E por mais que se tentasse uma política de proteção à indústria nascente na metrópole

(num momento em que a balança comercial se mostrava deficitária), o acordo de Methuen

acabou bloqueando qualquer tentativa nessa direção, dado que a Inglaterra soube

aproveitar a reação dos grupos produtores e exportadores de vinhos a qualquer ensaio de

protecionismo. Soma-se a isso o fato de que a descoberta de ouro no mesmo período em

106
Idem, p. 140.
107
Ibidem, Editora Nacional, 1980, p. 80.
97
que o tratado entra em vigência fornece uma base real para a sobrevivência de Methuen108.

O metal garante um equilíbrio na balança comercial, afluindo quase que na sua totalidade

para as manufaturas inglesas109. Assim, a atividade mineradora acabou, no fim das contas,

potencializando ainda mais a industrialização britânica, ao mesmo tempo em que foi

responsável por “entorpecer o desenvolvimento manufatureiro da Metrópole”

(FURTADO, 2009, p. 142.).

Uma vez compreendido esse quadro, fica claro que a decadência do ciclo do ouro

foi sucedida por uma lenta involução econômica: a aplicação de capitais reduziu

consideravelmente, a rentabilidade tendeu a zero, a economia monetária praticamente

atrofiou e o grau de subsistência da atividade ficou cada vez maior.

108
Sem o ouro, era impossível que apenas o vinho fosse capaz de compensar a entrada dos têxteis
ingleses. O grau de déficit comercial chegaria a um nível muito mais crítico, possibilitando que
se mobilizassem interesses que convergissem a uma política fiscal protecionista, desbancando as
intenções dos produtores rurais.
109
A Inglaterra, vale dizer, já havia passado por transformações estruturais importantes, tais como
os enclosures, que lhe permitiram aproveitar e internalizar os ganhos com o tratado de 1703.
98
XIII

A crise do Antigo Sistema Colonial

É chegado o momento, após delinear a constituição e o desenvolvimento dos

principais ciclos econômicos subjacentes ao período colonial brasileiro, de compreender

a dinâmica histórica por trás do processo de independência do Brasil. Para estabelecer um

primeiro contato com a problemática, serão de grande valia as conclusões de Fernando

Novais110 sobre a emancipação política da América portuguesa.

Com o objetivo de acompanhar os raciocínios de Novais a respeito desse ponto

nevrálgico da trajetória histórica brasileira, faz-se necessário retomar o conceito,

desenvolvido pelo próprio autor, de Antigo Sistema Colonial. Este foi um elemento

integrante do Ancién Regime (contribuindo para a superação da crise feudal),

conseguindo, inclusive, materializar e dar corpo às ideias gerais que formaram a estrutura

teórica da política econômica mercantilista. O Antigo Sistema Colonial, nesse sentido, foi

importantíssimo na medida em que funcionou, de acordo com o autor, como principal

alavanca da acumulação primitiva de capital. Isso se deu através de mecanismos

específicos: exclusivo metropolitano, tráfico negreiro e o estabelecimento, nas colônias,

do modo de produção escravista. Ganhava forma, assim, aquilo que Novais chamou de

“sentido profundo da colonização”.

110
As dimensões da independência. In: MOTA, C. G. (org.). 1822: Dimensões. 2.ed. São Paulo:
Perspectiva, 1986, pp. 15-26.
99
Essa face111 da acumulação primitiva de capital, contribuindo na gestação do

capitalismo, necessariamente potencializou o desenvolvimento da indústria nos principais

Estados da Europa Ocidental. Tem-se início a negação capitalista ao mercantilismo e,

consequentemente, ao Absolutismo Monárquico. Certamente isso terá efeitos nas zonas

coloniais, as quais não ficarão inertes às transformações econômicas e políticas pelas

quais passava a Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX.

A consolidação de uma economia industrial moderna nas principais potências

europeias, com a burguesia tendo o controle definitivo do poder político, não poderia mais

conviver com o quadro econômico típico das colônias americanas. Na periferia do

capitalismo, o modo de produção escravista, intimamente associado com a estreiteza do

mercado interno, impedia a ampliação das faixas de consumo de bens industrializados.

Um mercado consumidor robusto, algo difícil de se imaginar quando a economia se

assenta na escravidão, garantiria uma maior circulação de mercadorias europeias nas

colônias. Com a solidificação dos mecanismos endógenos de acumulação de capital, essa

estrutura interna, somada aos monopólios comerciais metropolitanos, passa a constituir

um problema para a burguesia dos centros econômicos. Se foram relevantes para a

formação do capitalismo, num contexto em que os meios de acumulação eram

111
Embora Novais coloque os mecanismos subjacentes à colonização como a principal ferramenta
de acumulação primitiva, é necessário enfatizar que outros elementos, internos ao próprio modo
feudal de produção, foram cruciais para a formação do capitalismo. Marx, assim como outros
autores marxistas (tais como M. H. Dobb), dão peso elevado e priorizam as contradições e
transformações subjacentes ao próprio feudalismo. Isso porque são elas que evidenciam o
processo de formação do proletariado moderno e até mesmo a consolidação de elementos que
posteriormente comporiam a burguesia industrial, ou seja, explicam a constituição dos dois
principais organismos do capitalismo, as duas classes que produzem seu movimento. J. Gorender,
outro historiador marxista de contribuição considerável, mostra que o desenvolvimento do
comércio, em que estão inclusos os mecanismos da colonização, potencializaram o capitalismo
naqueles Estados em que o feudalismo já havia passado por mudanças e decomposições profundas
em seu modo de produção. Assim, é importante que se coloque o Antigo Sistema Colonial como
uma face da acumulação primitiva, não correspondendo à totalidade do processo.
100
fundamentalmente exógenos, passam a constituir entraves para seu desenvolvimento

pleno a nível internacional. É o que nos aponta Novais:

Em suma: a economia colonial mercantil-escravista tem necessariamente um

mercado interno reduzidíssimo. [...] Dada a estreiteza do mercado interno, não

tinha condições de auto estimular-se, ficando ao sabor dos impulsos do centro

dinâmico dominante, isto é, do capitalismo comercial europeu. [Esse mercado

reduzido] [...] responde ao funcionamento do sistema, enquanto as economias

centrais se desenvolvem apenas no nível da acumulação primitiva de capitais,

e a produção se expande no nível artesanal ou mesmo manufatureiro. Quando

porém essa etapa é ultrapassada, e a mecanização da produção com a

Revolução Industrial, potenciando a produtividade de uma forma rápida e

intensa, leva a um crescimento da produção capitalista num volume e ritmo

que passam a exigir no Ultramar mais amplas faixas de consumo, consumo

não só de camadas superiores da sociedade, mas agora da sociedade como

um todo; o que se torna imprescindível é a generalização das relações

mercantis. Então o sistema se compromete e entra em crise. 112

A passagem nos mostra como a industrialização a pleno vapor não podia mais

suportar as barreiras coloniais. Todos os elementos constituintes do “sentido profundo da

colonização”, cruciais para o desenvolvimento inicial do capitalismo (na fase que

compreende, como vimos, o mercantilismo e o Ancién Regime, reiteradamente chamada

de “capitalismo comercial” por Novais113), acabaram criando os mecanismos para a

destruição do próprio sistema colonial.

112
NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial (séculos XVI-XVIII),
5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 100.
113
Se pensarmos a partir do marxismo, Novais incorre num erro teórico. Nunca existiu esse
chamado “capitalismo comercial”, justificado muitas vezes pela robustez do capital comercial nos
séculos que compreendem o Absolutismo. A existência do capital comercial precede o
capitalismo: não é por acaso que Marx afirma que “o capital é antediluviano, mas o capitalismo
é recente” (O Capital. Boitempo Editorial, 2013). Até mesmo na Antiguidade greco-romana a
vida econômica era regida pelo capital comercial. Nem por isso chamamos esse período da
História de capitalista. O capitalismo é a estrutura econômica regida pelo capital industrial, com
101
Em suma, a Europa passava por uma Revolução Industrial decisiva, além de ter

visto a crise generalizada do Antigo Regime com as convulsões sociais de 1640 e 1789

na Inglaterra e na França, respectivamente. Vimos, nos parágrafos anteriores, que o

Antigo Sistema Colonial será negado pelo capitalismo a partir do século XVIII. Convém,

a partir de então, olhar para o que estava ocorrendo especificamente dentro das colônias.

Para o nosso interesse, estaremos restritos ao quadro brasileiro.

A América portuguesa passava, na transição para o século XIX, por um fenômeno

que começou a ser denominado, pela historiografia, de Renascimento Agrícola. O

processo de independência dos EUA, as emancipações na América espanhola (fatores

conjunturais muito enfatizados por Celso Furtado), a Revolução Industrial e a explosão

populacional europeia (elementos estruturais que pesam na análise de Caio Prado) deram

aos produtos agrícolas brasileiros novos mercados e novas possibilidades de expansão

comercial após séculos de estagnação. Era um quadro que permitia inclusive mecanismos

de alavancagem para a posterior produção cafeeira.

Além de uma economia agrícola que parecia superar o quadro de estagnação

produtiva, a política econômica na colônia ganhava nova roupagem. A chegada da corte

ao Rio de Janeiro em 1808 foi acompanhada, pouco tempo depois, duma espécie de

liberalismo que marcou inúmeros decretos de D. João VI. O liberalismo é notado, por

exemplo: na abertura dos portos, nos tratados comerciais com a Inglaterra a partir de

1810, na criação do Banco do Brasil, assim como na revogação do alvará de 1785.

um modo de produção específico que lhe corresponde. O termo torna-se ainda mais problemático
quando vemos que o Estado Absolutista era ainda feudal, dado que a classe dominante continuava
sendo, mutatis mutandis, a dos nobres e que o modo de produção ainda era, apesar das
transformações sofridas ao longo de séculos, caracterizado pela servidão. Sobre esse tema,
convém ler Linhagens do Estado Absolutista, do inglês Perry Anderson.
102
Essa roupagem liberal da qual falamos acima precisa, entretanto, ser

problematizada. Torna-se necessário uma análise das conjunturas específicas que de fato

levaram D. João a assinar medidas desse caráter. No caso da abertura dos portos, era

necessário que Portugal garantisse à Inglaterra, sufocada pelo bloqueio napoleônico, um

mercado para seus artigos industrializados. Abrindo essa janela para a economia

britânica, os Bragança tinham a contrapartida da proteção militar e marítima, por parte do

governo inglês, contra quaisquer ameaças francesas. Celso Furtado nos mostra a

superficialidade desse “liberalismo” quando aponta para a reação da burocracia inglesa

em relação à abertura:

[...] os ingleses ⎯que acreditavam menos em Adam Smith do que José da Silva

Lisboa⎯ tampouco ficaram muito satisfeitos, conforme se deduz das palavras

de seu representante no Rio, Mr. Hill, a Dom João, a propósito da medida:

‘isso não deixaria de causar boa impressão na Inglaterra, mas a satisfação

teria sido maior se a admissão dos navios e das manufaturas britânicos fosse

autorizada em condições mais vantajosas do que as concedidas aos navios e

mercadorias de outras nações estrangeiras’.114

Os tratados comerciais entre Portugal e Inglaterra firmados a partir de 1810,

embora sejam liberais, ainda mais se confrontados historicamente com os séculos em que

o exclusivo metropolitano esteve vigente, apresentam, para um olhar mais retido, um

certo ranço colonial inglês. A tarifa preferencial de 15% dada ao artigo britânico não foi

de toda aceita pelos articuladores ingleses. A Inglaterra queria descontos maiores para

seus produtos e taxas alfandegárias mais elevadas para seus rivais no comércio exterior,

o que não é uma postura efetivamente liberal, se levarmos a rigor os escritos dos

principais autores da Economia Política Clássica: para a principal economia do mundo na

114
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
nota 76, p. 157.
103
época, o liberalismo de outros Estados com ela era vantajoso na medida em que ampliava

os mercados para seus produtos; ao mesmo tempo, políticas protecionistas para seus

principais concorrentes eram vistas com bons olhos, exatamente porque restringia o

mercado para os produtos dos mesmos.

A criação do Banco do Brasil, que também se enquadra nessa série de medidas

liberais, precisa ser pormenorizada a partir das suas circunstâncias específicas que

permearam sua efetivação. A chegada da Corte Portuguesa ao Brasil deu luz a um

problema monetário: os 80 mil contos de réis trazidos por D. João na forma de haveres

conflitavam-se com a escassez de numerário na colônia, dado que havia, no Brasil, cerca

de 9 a 10 mil contos de réis. Estava clara a necessidade da fundação de um banco para

atender aos desígnios monetários dos Bragança. Em 1809, tem início a circulação

fiduciária com vistas a estimular os negócios e diminuir, assim, as limitações de

numerário.

Cada vez mais, porém, com as crescentes despesas da Coroa, o Banco do Brasil

passava a exercer a função de cobrir o déficit público real. Desviava-se da possibilidade

de ser um financiador, mediante linhas de crédito, da atividade econômica incipiente na

colônia. A necessidade de garantir, por outro lado, que a moeda corrente estivesse

lastreada exigia uma regulação monetária. Nota-se, nesse sentido, um caráter ambíguo

nas diretrizes do Banco do Brasil. Ambiguidade essa que é marcada, na realidade, por

conflitos entre a expansão fiscal e a contração monetária. Rosado Gambi esclarece ainda

mais o problema:

A ‘pressão’ do governo para que o banco lhe fornecesse recursos comprometia

seu papel regulador do valor da moeda. [...] Quer dizer, os recursos que

entravam no banco serviam de lastro para a emissão de suas notas que, por

sua vez serviam para financiar as despesas estatais. [...] Os estatutos do banco

104
não previam nenhum limite para a emissão dessas notas e isso, de certa

maneira, deixava espaço livre para o aumento do gasto do Estado. As políticas

fiscal e monetária do governo eram conflitantes. Premido pela realidade, o

governo adotava uma política fiscal expansionista financiada, em boa medida,

com a ajuda do Banco do Brasil. Sem querer abrir mão da ilusão do lastro

metálico para o troco das notas bancárias, o mesmo governo adotava uma

política monetária restritiva. Mas a realidade sempre prevalecia [...].115

Toda a problematização sobre o “liberalismo” das medidas adotadas por D. João

VI assim que a Coroa chegou ao Brasil nos levam ao que Furtado chamou de “falsa

euforia” no início do século XIX. A realidade brasileira era outra: na passagem para a

independência, havia a herança de dívidas contraídas por Portugal com a Inglaterra; o

câmbio sofria pesada desvalorização por conta dos déficits na balança comercial (era

impossível, mesmo que se tentasse uma proteção cambial, competir com os artigos

industrializados ingleses, muito mais qualificados), desestimulando qualquer tentativa de

importação de bens de capital com vistas a estimular a industrialização no país; os

conflitos militares no início de nossa história independente forçavam uma expansão fiscal

constante, impedindo a efetivação de uma política monetária contracionista. O resultado

necessariamente era o da inflação, pressionando negativamente a balança comercial,

desvalorizando ainda mais o câmbio. Esse círculo vicioso, para Furtado, só se resolveria

com a ascensão da produção cafeeira, a qual seria responsável por superávits comerciais

importantes. Outros autores, porém, como Simonsen e Caio Prado, sobrelevam a ausência

de uma proteção tarifária desde o período joanino. O “não-protecionismo” do período,

para esses historiadores, impediu o fomento à industrialização nacional e,

consequentemente, barrou a modernização econômica do Brasil. No momento em que o

115
GAMBI, Thiago F. R. O banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro (1853-
1866). São Paulo: Alameda, 2015, p. 54.
105
protecionismo poderia ser um elemento favorável à ex-colônia, Simonsen afirmou que

“tornamo-nos, no entanto, campeões de um liberalismo econômico na América”.

106
XIV

Os interesses “internos”: o parecer de Rodrigues de Brito

Celso Furtado, ao analisar a situação da economia brasileira na transição do século

XVIII para o XIX, nos mostra um quadro pouco animador: o ocaso da mineração veio

acompanhado de um declínio no nível de renda agregada116. O problema tornava-se ainda

mais grave na medida em que não havia, na colônia, uma base técnica, ou melhor, um

know-how que permitisse um empreendimento industrial robusto no Brasil.

Tornava-se necessário, com isso, importar tecnologia avançada se o intuito era de

fato abrir caminhos para a industrialização da América portuguesa. A cobertura das

despesas com importação, por sua vez, deveria ser feita com o aumento nas

exportações117, impulsionando a entrada de moeda forte no Brasil. E aqui é onde reside o

problema para Furtado. Nas primeiras décadas do século retrasado, os preços de

exportação diminuíram em 40%, sendo que os gastos com importação continuaram

estáveis ao longo do período. O setor exportador cresceu apenas 0,8% (sustentado em boa

medida pela produção cafeeira no Vale do Paraíba), não conseguindo acompanhar o

avanço populacional de 1,3%. Não bastasse isso, os mercados para artigos

116
Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX. In.: FURTADO,
Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980, pp. 106-110.
117
Furtado de fato enfatiza consideravelmente a alta das exportações como condição necessária à
industrialização. Ele mesmo, porém, afirma ser essa uma condição não suficiente para a
modernização econômica: a burguesia rural escravista como classe dominante, tendo em suas
mãos os rumos da colônia e, posteriormente, do Brasil Independente, funcionava como grande
barreira para empreendimentos industriais de maior escala. Nas palavras do próprio autor:
“Mesmo deixando de lado a consideração de que uma política inteligente de industrialização seria
impraticável num país dirigido por uma classe de grandes senhores agrícolas escravistas, é
necessário reconhecer que a primeira condição para o êxito daquela política teria sido uma firme
e ampla expansão do setor exportador”. In.: Idem, p. 107.
107
industrializados eram muito pequenos no Brasil: praticamente não se absorviam os

produtos da siderurgia, ao passo que os têxteis eram facilmente vencidos na competição

com os de origem britânica. Eram diminutos, nesse sentido, os incentivos à modernização

econômica.

Os tecidos ingleses, de maior qualidade, tinham outro fator que lhes dava

vantagem na competição com artigos do mesmo tipo feitos no Brasil, como vimos acima.

A Revolução Industrial britânica é marcada por um avanço tecnológico profundo. As

transformações positivas na produtividade jogaram para baixo os custos de produção,

diminuindo o preço pelo qual a Inglaterra exportava seus têxteis, os quais eram os mais

competitivos do mundo naquela época. É esse quadro de preços no mercado externo que

faz com que Furtado conclua pela pequena eficiência, em termos de consolidar a

industrialização, de uma proteção tarifária no Brasil. De acordo com o autor:

A baixa de preços foi de tal ordem que se tornava praticamente impossível

defender qualquer indústria local por meio de tarifas. Houvera sido necessário

estabelecer cotas de importação. Cabe reconhecer, entretanto, que dificultar

a entrada no país de um produto cujo preço apresentava tão grande declínio

seria reduzir substancialmente a renda real numa etapa em que esta

atravessava grandes dificuldades.118

Se somarmos esse quadro desanimador à crise financeira do início de nossa

emancipação, da qual tratamos anteriormente, chegamos à conclusão furtadiana de que o

Brasil, na primeira metade do século XIX, atravessou um processo de involução

econômica, marcada pelo aumento do setor de subsistência, sem modernização produtiva.

118
FURTADO, Celso. Ibidem, p. 106.
108
Para contrapor as análises de Furtado a respeito da economia brasileira nos

primeiros cinquenta anos do século retrasado, será de grande valia os estudos de Mircea

Buescu119 sobre o mesmo período de nossa história.

Buescu faz um resgate histórico do período levando em conta não só o quadro

econômico, mas enfatizando também os aspectos sociais, políticos, culturais e,

principalmente, ideológicos. Para este, Furtado acaba minimizando a importância do

período: apesar de um sensível declínio na renda, a primeira metade do século XIX legou

bases importantes que geraram frutos para o desenvolvimento do Brasil nos anos

subsequentes. É nesse momento que aparecem novas variáveis na sociedade brasileira:

um sistema educacional renovado, novos quadros jurídico-institucionais, a abolição do

tráfico negreiro, o surto da produção cafeeira, assim como o crescimento de uma classe

média antes muito incipiente.

Um fator que chamou mais a atenção de Buescu foi a maior difusão, a partir dos

primeiros anos do século XIX, do ideário iluminista na então colônia americana

portuguesa. Esse elemento está intimamente associado ao surgimento de uma elite

intelectual no Brasil. Para esta, ficava cada vez mais claro que a Coroa Portuguesa

funcionava como um entrave político-administrativo, dificultando a fluidez de seus

negócios e a ampliação de seus lucros. Crescia a convicção de que era momento de

divorciar os cidadãos do Estado, identificado, por sua vez, com a metrópole espoliadora.

Buescu capta esse novo espírito que permeia a elite intelectual na colônia a partir

dos escritos de Rodrigues de Brito, um dos homens integrantes da burocracia real lusitana.

Inspirado nos textos formadores da Economia Política Clássica, Brito avança contra as

medidas restritivas da Metrópole com relação à produção agrícola no Brasil. Afirma ser

119
Rodrigues de Brito: um libelo contra o colonialismo. In.: BUESCU, M. História econômica
do Brasil: pesquisas e análises. Rio de Janeiro: APEC, 1970.
109
necessário que se garanta liberdade aos produtores para empregarem trabalho e capital da

maneira mais vantajosa, assim como liberdade para que eles escolham os melhores

compradores, eliminando monopsônios, permitindo um aumento no nível de preços dos

gêneros agrícolas. Nas palavras de Brito:

Tolher aos lavradores a liberdade de vender os seus gêneros no lugar em que

têm maior valor, é o mesmo que lhes roubar uma porção desse valor; isto é

privá-los das riquezas que eles fizeram nascer com o suor do seu rosto e

emprego dos seus fundos.120

Percebe-se no burocrata português as influências de autores como Smith, Ricardo, Say e

Sismondi. Todos esses economistas em alguma medida contribuíram para a formação do

pensamento liberal clássico, que foi hegemônico na Economia Política até meados do

século XIX. Isso é passível de comprovação até mesmo nas palavras de Brito a respeito

do excesso de fiscalismo português no seu território americano:

Toda essa massa de encargos, de qualquer natureza que sejam, equivale

quanto aos efeitos a um roubo que se fizesse aos miseráveis vivandeiros.

Porque tanto importa ao farinheiro, por exemplo, que traz um barco de farinha

no valor de cem moedas, que depois de vendido por esse preço os ladrões lhe

roubem dez, como ver-se obrigado por conta dos regulamentos a liquidar

noventa unicamente.121

Os ataques de Brito ao fiscalismo e às restrições comerciais denotam, na visão de

Buescu, um gérmen, ou melhor, uma semente de um espírito que posteriormente viria a

ganhar solidez nos anos de nossa emancipação. O autor, porém, enfatiza que sua postura

liberal na realidade serve mais como pano de fundo para uma luta econômica contra as

restrições reais impostas à colônia. O burocrata português não pensava em abolir o

120
Idem, 1970.
121
Ibidem, 1970.
110
absolutismo, clássico no pensamento francês iluminista. Era necessário que se abrisse

mão do mercantilismo na política metropolitana com relação a suas possessões. A partir

dessa premissa, Brito estaria de fato absorvido por um pensamento transformador, ou era

aliado de uma espécie de despotismo ilustrado que pudesse dar nova feição às relações

entre Brasil e Portugal? A questão acaba nos remetendo às discussões historiográficas

sobre o caráter desse absolutismo esclarecido. Veja o que nos apontam José Luís Cardoso

e Alexandre Mendes Cunha:

[...] diversos historiadores tenderam a perceber o despotismo esclarecido

apenas como um instrumento de adaptação, e não de transformação, de

estruturas sociais tradicionais; ou ainda, na frase sarcástica de Perry

Anderson, de que se trata mais propriamente de uma “nova carapaça política

de uma nobreza atemorizada”.122

Partindo desse pressuposto, Brito teria um caráter transformador limitado. Transformador

porque de fato advoga pelo fim das restrições comerciais e dos monopólios concernentes

ao exclusivo metropolitano. Limitado na medida em que todo seu discurso liberal não

avança para a luta contra a monarquia absolutista. A intenção estava em dar uma maior

racionalidade econômica à colônia (e posteriormente à nação independente), o que

poderia inclusive amortecer tensões entre a massa escrava, à qual Brito sequer faz

referência no seu discurso liberal, a aristocracia rural brasileira e os comerciantes

lusitanos.

Outros historiadores, como Karla Maria Silva, não enxergam todas essas

limitações no pensamento transformador de homens como Rodrigues de Brito. Na

realidade, a nova mentalidade liberal, que via o desenvolvimento pleno das metrópoles e

122
CARDOSO, José L. & CUNHA, Alexandre M. Discurso econômico e política colonial no
Império Luso-Brasileiro (1750-1808). Tempo 17 (31): 65-88, 2011, p. 71.
111
das colônias intimamente associado a uma maior liberdade econômica, abrindo novas

possibilidades de política econômica que não fossem necessariamente mercantilistas, era

por si só uma grande amostra de renovação ideológica na elite intelectual. Nas palavras

da própria autora:

[...] surgiram, em Portugal e no Brasil, grupos de pensadores ilustres e homens

públicos que passaram a defender a ideia de que tanto o desenvolvimento da

metrópole quanto o da colônia estaria diretamente ligado à maior liberdade

nas relações sociais, de produção e comercialização nos dois lados do

Atlântico. As renhidas lutas políticas e teóricas acerca da necessidade de

liberar ou intervir, travadas além e aquém-mar, descortinaram outras

possibilidades político-econômicas e apresentaram novos horizontes para um

e outro lado [...]. Superando a ideia de que as medidas adotadas por esses

quadros da administração portuguesa foram efetivadas com o intuito de

contornar possíveis tensões com a colônia e prevenir uma iminente revolução,

poderíamos compreendê-las como expressão da tentativa de integrar o

desenvolvimento colonial e o metropolitano, sob a influência do espírito de

renovação derivado do pensamento ilustrado e dos princípios liberais. 123

123
SILVA, Karla M. Os escritos de João Rodrigues de Brito (1807): um retrato das novas ideias
no mundo íbero-americano. Intellèctus XV (2): 43-65, 2016. pp. 44-48.
112
XV

A presença inglesa no Brasil

As relações diplomáticas entre Portugal e Inglaterra têm origens na Dinastia

Afonsina, período de formação do Estado Lusitano. Já em 1386, os dois países assinaram

tratados que englobavam a proteção militar portuguesa pela Inglaterra em troca de

concessões comerciais do reino ibérico ao Estado britânico124. A partir do século XVII,

porém, o enfraquecimento econômico e militar de Portugal (consequência principal dos

60 anos de vigência da União Ibérica) tornava-o cada vez mais dependente da potência

inglesa. Era necessário à Coroa Lusitana garantir o seu quinhão colonial na América e,

para isso, uma aliança. A partir de então, os tratados entre os dois países cada vez

consolidavam a submissão portuguesa às deliberações inglesas. Um exemplo prático é o

acordo selado em 1642, descrito com clareza por Alan K. Manchester:

Pelas 21 cláusulas do tratado, a Inglaterra garantia tolerância religiosa a

seus súditos residentes em Portugal ⎯ que em sua maioria eram negociantes

⎯ e proteção contra os principais danos resultantes da ação da Inquisição;

o status de nação mais favorecida comercialmente; uma jurisdição territorial

limitada, mas efetiva, subordinada a seu próprio cônsul, e ainda a imunidade

das leis portuguesas para os súditos ingleses. [...] Deveriam ser indicados

comissários para tratar das concessões aos ingleses no comércio brasileiro, o

que representou a primeira batida formal dos ingleses à porta da América do

124
“Em Londres [...] foi negociado e assinado um tratado entre D. João, Mestre de Avis, e o rei
Ricardo II. [...] Essencialmente, a Inglaterra comprometeu-se a ir em defesa de Portugal,
assegurando, em contrapartida, privilégios comerciais no porto de Lisboa. [...] Foi acordado
também o casamento entre Filipa, filha mais velha do duque [de Lencastre, tio do rei inglês], e o
Mestre de Avis [...].” PAGE, Martin. Portugal e a revolução global: como um dos menores países
do mundo mudou a nossa história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 114-115.
113
Sul portuguesa. Procurava-se, em vão, uma cláusula econômica em benefício

dos portugueses. Tudo o que estes conseguiram foi o reconhecimento de sua

independência e a amizade da Inglaterra, o que não era uma mercadoria muito

estável em 1642.125

Os inúmeros tratados assinados entre Portugal e Inglaterra durante o século XVII,

como esse de 1642, são, para Manchester, as raízes da dominação diplomática e comercial

deste país sobre aquele126. O autor, nesse sentido, desbanca a tese de que foi a partir de

1703, com o Tratado de Methuen, que o reino ibérico passou a ser um vassalo comercial

da Inglaterra. A subjugação, na realidade, atinge um ponto ótimo nesse momento, mas

tem sementes nos séculos passados127.

É bem verdade, porém, que, na segunda metade do século XVIII, Portugal

pretendia alcançar maior grau de autonomia em relação à Inglaterra. Um exemplo

importante é o tratado de 1793: no contexto do conflito entre França e Inglaterra, Portugal

deveria comprometer-se a fechar seus portos para navios de guerra e corsários franceses;

permitia, por outro lado, a entrada ininterrupta de embarcações inglesas, dado que o

acordo afirmava que navios britânicos e lusitanos deveriam ser considerados do mesmo

país. Vale dizer que esse tratado reafirmava o que já havia sido estabelecido entre os dois

países no século XVII. Era a reafirmação, portanto, da “soberania” inglesa sobre o

pequeno reino ibérico. Ainda nas palavras de Manchester, “o pequeno tratado de seis

artigos profetizava claramente a luta entre Napoleão e a Inglaterra pelo controle dos

portos portugueses, cuja importância residia no seu valor estratégico e comercial”

125
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973, p.
20.
126
Idem, p. 32.
127
Cf.: “Ao longo do século XVIII, a política externa portuguesa teve como sua chave mestra a
aliança inglesa, tal como fora plasmada pelos tratados de 1642, 1654 e 1661, completados, no
campo econômico, pelo de Methuen, em 1703.” ALEXANDRE, Valentim. A carta régia de 1808
e os tratados de 1810. In.: OLIVEIRA, L. V. de & RICUPERO, R. (org.). A abertura dos portos.
São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007, p. 101.
114
(MANCHESTER, 1973, p. 60). D. João, por sua vez, apesar de firmar o acordo, hesitava

em obedecê-lo, na suposta tentativa de estabelecer uma política portuguesa de

neutralidade no continente europeu.

A neutralidade, todavia, não se concretiza em função das inflexões geopolíticas

decisivas nos primeiros anos do século XIX europeu. O bloqueio continental napoleônico

deixou Portugal num verdadeiro beco sem saída: aceitando as condições francesas,

comprometia sua aliança vital com a Inglaterra; negando-as, corria o sério risco de ter seu

território invadido pelas tropas do Imperador francês. A solução encontrada por D. João,

como sabemos, foi transferir a Coroa para o principal sustentáculo português: o Brasil.

Pressionado pela Inglaterra, interessada no mercado colonial brasileiro (com vistas a

evitar o sufocamento em virtude do bloqueio continental), em 1808 a Corte parte para o

Rio de Janeiro, escoltada pelas tropas britânicas.

A chegada dos Bragança às terras sul-americanas data a transferência da

influência econômica britânica de Portugal para o Brasil. O primeiro exemplo mais claro

dessa inflexão é a abertura dos portos: era o fim do exclusivo metropolitano, com a

eliminação do intermediário português nas negociações entre produtores coloniais e

compradores estrangeiros. Sem o entreposto lusitano, naturalmente houve uma queda nos

preços dos artigos estrangeiros no Brasil. Outro aspecto que merece atenção quando se

discute a abertura dos portos é que a possessão portuguesa na América passava a ser, num

contexto de bloqueio comercial na Europa, o único mercado disponível para os

industrializados ingleses. O resultado final foi um excesso de oferta das mercadorias

britânicas no território brasileiro. Como bem notou Olga Pantaleão, a maioria dos

produtos vindos da Inglaterra não foram imediatamente absorvidos pelo mercado

consumidor brasileiro. De acordo com a autora:

115
o abarrotamento do mercado [...] tornou difícil o escoamento das

mercadorias. Isso refletiu-se imediatamente nos preços dos produtos. Houve

uma baixa grande de preços, agravada ainda pela pressa de alguns indivíduos

em vender rapidamente sua mercadoria. Assim, boa cutelaria foi vendida por

metade do preço corrente na Inglaterra; chapéus para homens de 26 sh.

venderam-se a 4 sh.; meias de algodão de 7 sh. 6 d. caíram para 4 sh. 6 d.128

A abertura comercial também evidenciou outros problemas estruturais da

economia brasileira, os quais ajudam ainda mais a compreender esse abarrotamento do

mercado notado por Pantaleão. Os portos coloniais não conseguiam acomodar todos os

navios lotados de mercadoria, sofrendo frequentes congestionamentos. Os armazéns não

conseguiam comportar todo o volume de bens trazidos pelos mercadores ingleses.

Criavam-se assim, dificuldades para o comércio em larga-escala129. A autora nos mostra

que os próprios tratados comerciais de 1810, imbuídos de um discurso liberal inclusive

por parte de D. João130, buscaram até mesmo aprimorar a infraestrutura da colônia nesse

momento novo para sua economia.

Os mesmos tratados, porém, ainda segundo Pantaleão, deram uma condição

extremamente vantajosa para o artigo inglês. Os descontos alfandegários, que diminuíam

ainda mais o preço do produto britânico de melhor qualidade, impediam qualquer

concorrência com os mercadores ingleses. O efeito mais marcante desses acordos

128
PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa no Brasil. In.: HOLANDA, S. B. de (org.). História
Geral da Civilização Brasileira. 6.ed. São Paulo: DIFEL, 1985, vol. 3, p. 76.
129
A própria Pantaleão nos mostra que os artigos ingleses, uma vez passados pela alfândega, num
moroso trajeto desde o cais, eram jogados todos juntos e misturados, comercializados nas próprias
ruas. É mais uma amostra muito clara da enorme precariedade estrutural da economia colonial,
incapaz, na época, de se adaptar a uma mudança econômica daquela magnitude.
130
Cf.: “[...] para criar um Império nascente, fui servido adotar os princípios mais demonstrados
de sã economia política, quais o da liberdade e franqueza do comércio, o da diminuição dos
direitos das Alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, e de maneira que promovendo-se o
comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar o melhor consumo para os seus produtos, e
que daí resultasse o maior adiantamento na geral cultura, [...].” (Discurso de D. João para o clero,
a nobreza e o povo, escrito em 07 de março de 1810).
116
comerciais, de acordo com a autora, foi que “tal concessão [...] impediu o

desenvolvimento da indústria no Brasil, pois seus produtos não podiam concorrer com

as mercadorias inglesas vendidas a preços muito mais baixos” (PANTALEÃO, 1985).

Novamente, os resultados efetivos dos tratados de 1810 apontam para o caráter limitado

do liberalismo neles presente, evidenciando o ranço mercantilista inglês, como dissemos

anteriormente.

Em suma, a abertura dos portos em 1808 e o estabelecimento dos tratados de 1810,

apesar de todas as vicissitudes a eles relacionadas, caracterizam a importância que passou

a ter o Brasil para a economia inglesa. Uma importância maior do que para o combalido

reino português. O consumo brasileiro absorvia 25% a mais dos artigos ingleses do que

toda a Ásia. É bem verdade que isso foi realidade num contexto de bloqueio continental,

o qual restringia as possibilidades de comércio da Inglaterra com outras regiões do globo.

Com a queda de Napoleão, cada vez mais diminuía a relevância brasileira para os

ingleses. É o que nos mostra Manchester:

Uma comparação das exportações britânicas para vários mercados

estrangeiros demonstra a importância do comércio brasileiro para a

Inglaterra. Em 1812, a América portuguesa recebia 25% a mais de

mercadorias inglesas do que toda a Ásia, ½ do que recebiam os Estados

Unidos e as Índias Ocidentais Britânicas, e mais de 4/5 do total enviado para

a América do Sul. [...] A paz mundial em 1815, com mercados sedentos

subitamente abertos aos exportadores britânicos, reduziu a importância da

América portuguesa [...].131

Após a Independência em 1822, acontece a consolidação da influência inglesa

sobre o Brasil. Os tratados de 1827 entre o novo Estado e a potência britânica concretizam

131
MANCHESTER, Alan K. Op. cit., pp. 94-95.
117
exatamente isso. Os privilégios dos comerciantes ingleses são mantidos e a

industrialização continua atravancada. Nem mesmo o “tarifaço” de Alves Branco em

1844, que acabou com a tarifa de importação de 15% para a mercadoria britânica, foi

capaz de eliminar por completo a submissão brasileira aos interesses da Inglaterra. Para

Pantaleão, “o século XIX, sobretudo em sua primeira metade, foi assim, no Brasil, o

século inglês por excelência” (PANTALEÃO, 1985).

118
XVI

Emancipação Política I

O processo de independência brasileira, rompendo definitivamente os laços

coloniais com Portugal, é motivo de estudos históricos desde o século XIX. Emília Viotti

da Costa (importante pesquisadora e professora do Departamento de História na FFLCH-

USP entre 1964 e 1969), discutindo sobre esse interesse da historiografia pela

emancipação, emitiu uma frase provocadora: “a emancipação política do Brasil é um dos

assuntos mais estudados pela historiografia brasileira e, no entanto, um dos menos

conhecidos” (COSTA, 1981, p. 64). Os motivos dessa crítica, para a autora, residem no

fato de que nossos historiadores clássicos do século retrasado embasaram-se numa análise

meramente documental, de feitos políticos individuais, sem uma compreensão de um

pano de fundo econômico e social mais complexo. A historiografia teria muito a percorrer

ainda se quisesse ter um entendimento maior das questões pertinentes à independência do

Brasil. Nas palavras de Lúcia M. Bastos P. das Neves:

Se o tema da independência tem sido recorrente em estudos historiográficos,

não está, contudo, esgotado, pois ainda suscita opiniões diversas,

demonstrando que fatos e personagens merecem estudo mais minucioso;

visões cristalizadas necessitam de novo olhar; e informações a respeito das

diversas partes que constituíam o território, naquela época, precisam ser

coligidas para conhecimento mais denso desse período de constituição de um

país chamado Brasil. Refletir sobre o processo da emancipação política e

sobre a construção do Império do Brasil significa embrenhar-se em múltiplas

descrições e interpretações que tentam, ao longo de quase dois séculos,

119
explicar movimentos de continuidades e de rupturas no pacto outrora

estabelecido entre as partes da América portuguesa e sua metrópole.132

Buscando uma análise que supere as limitações historiográficas enunciadas acima,

Viotti tenta traçar elementos que formam esse pano de fundo econômico e social no qual

a independência tomará forma. Nesse sentido, todos eles se encaixam, de alguma maneira,

na crise do Antigo Sistema Colonial. A Revolução Industrial, marcada pela consolidação

da máquina no processo produtivo, garantiu a existência de mecanismos endógenos de

acumulação de capital133. Não era mais conveniente, a partir daí, a manutenção de

privilégios e monopólios comerciais, regentes das relações Portugal-Brasil ao longo de

três séculos. Eles passaram a funcionar como barreiras ao pleno desenvolvimento

internacional do capitalismo. O exclusivo metropolitano, um dos elementos marcantes na

acumulação primitiva, acabou sendo desbancado pelo próprio resultado desse processo

histórico. É importante ressaltar que a negação aos monopólios não atingiu, num primeiro

momento, a estrutura produtiva dentro da colônia: o modo escravista de produção

continuou vigorando no Brasil até 1888, quando definitivamente não se comportava mais

com a economia moderna.

Não só os monopólios e as restrições comerciais tornaram-se incompatíveis com

o modo capitalista de produção, como também havia sido rompida a comunhão de

interesses entre o produtor agrícola colonial, a Coroa e os comerciantes lusos. Esse

aspecto aponta para a complexa e gradual tomada de consciência passada pela elite

colonial brasileira. Cada vez mais esta se aproximava do ideário liberal. É importante,

porém, que se questione até que ponto o Liberalismo foi absorvido pela burguesia rural

132
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Estado e política na independência In: GRINBERG, K. & SALLES,
R. (org.). O Brasil Imperial – Volume I – 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 97
133
A consolidação desses mecanismos endógenos (a valorização do valor mediante criação e
reprodução constante de mais-valia) deu à esfera da produção um caráter definitivamente
capitalista.
120
do Brasil. De cunho notadamente anticolonialista, o que de fato ocorreu, de acordo com

Emília Viotti e outros autores mais recentes, foi uma “filtragem” desse ideário burguês

europeu pela nossa elite rural. De acordo com Kenneth Maxwell:

A tradição histórica anglo-americana ainda tende a presumir que o

Iluminismo seja sinônimo de liberdade, em especial as liberdades postas no

relicário da Constituição dos Estados Unidos e da Declaração dos Direitos

Humanos, direitos que têm como objetivo fundamental proteger o indivíduo

contra o Estado. [...] Mas essa visão nem sempre se sustenta quando

examinamos a periferia europeia. Aqui [...] o Iluminismo casou-se mais vezes

com o absolutismo do que com o constitucionalismo. Aqui, o século XVIII está

menos caracterizado pelo indivíduo, que busca a proteção do Estado, do que

pelo Estado, que busca a proteção dos indivíduos muito poderosos. 134

Para melhor compreender as intenções liberais no Brasil e o caráter limitado

dessas no contexto emancipacionista, convém analisar três movimentos importantes

ocorridos no Brasil num período próximo ao de nossa independência: a Inconfidência

Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817). Em

todos eles, já é possível adiantar, a liderança coube à elite econômica da respectiva

província.

Nas Gerais, a crítica ao fiscalismo régio, cada vez mais pesado num contexto de

declínio da mineração, assim como a repulsa às intervenções estatais na atividade

comercial, ganhavam cada vez mais a forma do liberalismo e do iluminismo americano.

Como nos mostra João Pinto Furtado:

Em 1788-9, a crítica ao sistema tributário e de poder poderia se apresentar

sob nova terminologia, com roupagem mais propriamente anticolonial ou

134
MAXWELL, K. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996, p. 171-172.
121
iluminista, conforme se depreende dos depoimentos de alguns dos

inconfidentes [...]. O conteúdo do movimento adviria de uma síntese que bebe

de uma tradição insurgente que já havia, em certo sentido, demarcado o

profundo descontentamento dos colonos, ricos e pobres, contra os excessos

fiscais da Coroa, sobretudo no que se refere a novos lançamentos

tributários.135

Os questionamentos, entretanto, não se dirigiram à estrutura produtiva em nenhum

momento. O modo escravista de produção poderia, para os inconfidentes, alinhar-se

muito bem com seus interesses anticolonialistas. Não é de se estranhar, uma vez que a

maioria dos líderes do movimento, membros das castas mais altas da sociedade mineira,

eram donos de larga quantidade de escravos. Para citar um exemplo: do total do

patrimônio de Alvarenga Peixoto, 14,33% correspondia à posse de cativos136.

Quando analisamos os acontecimentos na Bahia, por sua vez, vemos que, ao

contrário do que ocorreu nas Gerais, a participação social foi muito mais alargada. Até

mesmo elementos escravos estavam presentes num movimento que, ainda assim, era

liderado pelas elites provinciais. Dialeticamente, a própria composição social da Conjura

Baiana colocava em xeque seu sucesso. De fato, a viabilização de uma proposta fundada

na luta contra a metrópole portuguesa exigia uma amplitude social maior nas

reivindicações. A sua realização, entretanto, arriscava a estrutura produtiva e econômica

da colônia (uma vez que havia, a partir de então, a possibilidade incômoda de uma tomada

de poder político e econômico pelas massas), da qual as lideranças do movimento tiravam

enorme proveito. Subentende-se que a Conjura era dotada, no seu núcleo, de uma

135
FURTADO, João P. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira
de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 223.
136
Idem, 2002.
122
interessante contradição que impedia o seu próprio sucesso. Nas palavras de István

Jancsó:

A sua fragilidade resulta daí, pois era por demais evidente [...] que a

viabilização da proposta, na sua inteireza, pressupunha a adesão de

segmentos sociais tidos e mantidos à margem da vida política (povo mecânico,

plebe urbana, massa de escravos) o que, na prática, tendia a inviabilizá-la,

incompatível que era com os interesses de qualquer setor das elites coloniais,

cuja adesão era reconhecida, e como tal anunciada, condição necessária de

sucesso. [...] Ainda que percebessem que a ampliação de sua autonomia

política era de seu interesse, as elites regionais, na América portuguesa

primeiro, e no Império brasileiro, posteriormente, revelaram-se incapazes de

se erigir em vanguardas de alianças de classe em escala regional, na medida

em que os seus interesses não apresentavam pontos de intersecção com

aqueles da grande maioria da população.137

A Revolução Pernambucana, assim como foi na Bahia, também contou com

importante participação popular. Diferente do caso de 1798, porém, as elites souberam

usar a revolta das massas para benefício próprio. Estas não ultrapassaram o limite estreito

a elas imposto no movimento, fazendo-se de tudo para que não tivessem acesso à difusão

do ideário liberal que percorria o pensamento das elites. Fugindo do controle da classe

dominante pernambucana, os setores populares poderiam estender os parâmetros das

agitações sociais, comprometendo os interesses do setor dirigente, os quais residiam

numa maior liberdade administrativa e no fim das restrições comerciais e dos monopólios.

Como nos diz Emília Viotti:

Para os despossuídos, a revolução implicava antes de mais nada a subversão

da ordem, enquanto para os privilegiados, a condição necessária da revolução

137
JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São
Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996, p. 212.
123
era a preservação da ordem, que garantia seus privilégios.[...] O temor da

população culta e ilustrada diante da perspectiva de agitação das massas

explica porque a ideia de realizar a Independência com o apoio do príncipe

pareceria tão sedutora: permitiria emancipar a nação do jugo metropolitano

sem que para isso fosse necessário recorrer à rebelião popular. 138

A discussão do caráter específico de cada um desses movimentos nos dá uma boa

evidência de como o liberalismo foi muito bem “filtrado” por nossa elite ruralista. Isso

fica ainda mais claro quando Emília Viotti nos mostra que era muito corrente na

articulação política brasileira a ideia de uma monarquia dual. Às vésperas da definitiva

emancipação, argumentava-se que era possível manter Brasil e Portugal sob uma mesma

soberania política (no caso, sob o jugo dos Bragança), desde que tivessem liberdade

administrativa e, o mais importante, garantia do fim das restrições comerciais e dos

monopólios. A proposta, como veremos logo mais, não se efetivou. Mesmo assim, é

possível, com isso, ir mais além na análise das limitações do “liberalismo brasileiro”. Na

absorção do pensamento iluminista pela elite intelectual colonial, o elemento

essencialmente político foi, grosso modo, renegado. Não interessava, para uma classe

cuja sobrevivência dependia do modo escravista de produção, que as massas tivessem

contato com o discurso de liberté, egalité, fraternité. O discurso e as reivindicações

fecharam-se ao caráter econômico: bastava que se quebrassem os laços mercantilistas

entre Portugal e Brasil. Mais uma vez Viotti é assertiva ao afirmar que “para esta

aristocracia rural, a escravidão constituía o limite do liberalismo no Brasil” (COSTA,

1981, p. 92). Pode-se inclusive questionar até que ponto a independência brasileira foi de

fato um processo revolucionário. É o que faz Lúcia M. Bastos P. das Neves:

138
COSTA, Emília V. da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: MOTA,
Carlos Guilherme (org.) Brasil em perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1981, p. 98-99.
124
O processo de independência do Brasil, portanto, não foi uma revolução, nem

produto de uma consciência nacional forjada por misteriosas forças

anônimas. Ao contrário, envolveu apenas um público reduzido, formado pelos

membros das elites e por um pequeno número de homens livres, com acesso

mais ou menos direto à cultura escrita em que eram veiculados os principais

debates.139

Retomando a discussão da monarquia dual em si, sua efetivação esbarrava nos

interesses antagônicos entre as elites portuguesa e brasileira. Esta, como vimos, exigia a

liberdade comercial e produtiva. O exclusivo metropolitano não podia mais ser uma

realidade para nossa burguesia rural. As cortes de Lisboa, por sua vez, objetivavam a

tomada do poder político (com o fim do despotismo dos Bragança a partir da formação

de uma monarquia constitucional), para então reestabelecer a coerção política e

econômica sobre o Brasil, reafirmando as restrições e os monopólios140. Essas intenções

díspares tentaram ser acomodadas pela política liberal de D. João enquanto esteve no

Brasil. Com uma mão favorecia os brasileiros, eliminando o monopólio. Mas buscava

sempre limitar tais regalias na medida em que buscava atender às demandas dos

deputados portugueses. Tudo em vão. Como afirma Viotti, “não conseguia D. João VI

senão descontentar a todos” (COSTA, 1981, p. 78). E assim, aparecia como única saída

possível a independência, como de fato aconteceu em 07 de setembro de 1822.

139
NEVES, Lúcia M. Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 22.
140
Cf.: “[...] a revolução liberal do Porto continha, nos seus fundamentos, uma intenção
antiliberal”. COSTA, Emília V. Op. cit., 1981.
125
XVII

Emancipação Política II

É conhecido por todos que, após a complexa etapa da independência brasileira em

1822, o Estado recém-nascido acabaria por se constituir uma monarquia centralizada, cuja

vida terminou apenas em 1889, com o golpe republicano. Na visão de pesquisadores mais

recentes, a historiografia clássica nacional acabou por naturalizar a solução monárquica

unitária141. A formação do Império do Brasil é, para os pais de nossa historiografia, um

fato puramente sequencial à emancipação, como que fosse uma certeza. O mérito dos

estudos mais recentes, nesse sentido, é tentar entender como se deu realmente a

constituição imperial, analisando os intensos debates entre federalistas e centralistas no

Congresso Nacional, em que se colocava como pauta o grau de autonomia provincial na

nação independente. O mérito, portanto, está no fato de que a historiografia “mais nova”

conseguiu enxergar que, apesar de o fato ter sido o Império, outras alternativas foram

colocadas em discussão ao longo dos primeiros anos de nossa vida emancipada. Nas

palavras de Evaldo Cabral de Mello: “se a Revolução Portuguesa de 1820 fazia previsível

a mudança do status quo colonial, não estava escrito nas estrelas que ela desembocaria

no Império do Brasil” (MELLO, 2004, p. 11).

Convém, antes de tratar especificamente dos pormenores da constituição política

brasileira no pós-independência, recordar as peculiaridades de nossa emancipação. A

141
Cf.: “a historiografia teria naturalizado a solução unitária, apresentando as demandas
federalistas como antinacionais, sem perceber que, em 1822, a nação ainda não estava
constituída.” COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, 1823-
1866. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008, p. 10.

126
dissolução dos laços entre Portugal e Brasil, com singularidades cujas raízes podemos

encontrar na chegada dos Bragança ao Rio de Janeiro em 1808, é marcada pela ausência

de tensões sociais, pela ausência de um caráter eminentemente popular, pela manutenção,

portanto, do status quo político de nossa elite intelectual, assentada no modo de produção

escravista. Como nos mostra Luiz Werneck Viana:

O novo Estado, portanto, surge de uma revolução sem revolução, conformado

por elites políticas portadoras dos ideais da civilização e com a missão auto-

atribuída de forjar, ao longo do tempo, uma nação. Essa solução aborta uma

revolução nacional-libertadora, que germinava desde as últimas décadas do

século XVIII, mas não retira de cena nem seus personagens nem os princípios

liberais que os animavam.142

Nos eventos que imediatamente antecedem a independência do Brasil, é possível,

incorrendo infelizmente no erro de cair num esquematismo perigoso, delinear a existência

de três grupos principais no debate político. A elite portuguesa instalada no Brasil

entendia como necessário a manutenção da dominação portuguesa sobre o Brasil, mas

envolvida num invólucro constitucional. Havia também os chamados “coimbrãos”:

portugueses com formação principalmente jurídica, acreditavam ser possível a solução da

“monarquia-dual”. Não eram avessos à estrutura econômica assentada na escravidão, mas

não admitiam o retorno às bases político-administrativas coloniais. Como nos mostra

Lúcia M. Bastos P. das Neves:

[...] Imbuídos de um ideal reformador, esses jovens estavam mais identificados

com a ideia de um grande império luso-brasileiro do que com o separatismo

político. [...] Buscavam mudanças inovadoras, mas ao mesmo tempo queriam

conservar o espírito das antigas estruturas econômico-sociais. [...] Não

deixavam de simpatizar com o ideário de um liberalismo moderado, que

142
VIANA, Luiz W. In: COSER, Ivo. Op. cit., p. 10.
127
conservava a figura do rei como representante da Nação, mas negava que a

soberania pudesse residir no povo.143

O último grupo, finalmente, era o da elite “brasiliense”. Adeptos de uma postura mais

radical, com ampla influência do ideário iluminista e sem uma formação acadêmica

extensa, eram partidários do separatismo. Ainda segundo Neves, “identificavam a pátria

com o lugar em que tinham nascido, ao qual deviam prestar a principal lealdade, ao

invés de fazê-lo ao império luso-brasileiro. Foram os ideólogos do separatismo

brasileiro” (NEVES, 2003, p. 51).

Com a independência consolidada, o grupo “brasiliense”, antes aparecendo como

um todo unitário, passa por uma decomposição. Abrem-se os interesses reais a respeito

da constituição política do novo Estado. Aparecem em cena os dois principais setores: os

centralistas e os federalistas144. José Bonifácio, partidário da solução unitária, enxergava

como principal problema o plano da autonomia provincial. É o que nos mostra Evaldo

Cabral de Mello:

O perigo para José Bonifácio vinha precisamente destes ‘incompreensíveis’

que pululavam nas províncias do Norte e, em particular, em Pernambuco.

Dissociando federalismo e república, os ‘bispos sem papa’ se acomodariam a

uma monarquia que, pari passu, teria sido despojada dos seus atributos

essenciais, tornando-se de fato uma república cujo chefe de Estado, em vez de

Presidente, se intitulasse Imperador. Eles constituíam assim ameaça muito

maior do que os corcundas e os republicanos.145

143
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 51.
144
É importante ressaltar que os últimos não eram contrários à uma monarquia constitucional,
desde que garantissem maior autonomia às províncias formadoras do Brasil. Assim, num primeiro
momento, o movimento republicano acabou por ficar esvaziado.
145
MELLO, Evaldo C. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824.
São Paulo: Editora 34, 2004, p. 18.
128
De fato, na ala mais radical entre os federalistas estavam os deputados pernambucanos.

Entendiam que o processo de independência pelo qual passou o Brasil nada mais fez do

que transferir o autoritarismo de Lisboa para o Rio de Janeiro. Era necessária uma maior

autonomia provincial, sem submissão ao Estado Unitário. As províncias deveriam ser

soberanas, podendo ou não aceitar o pacto nacional com a monarquia. Com a

emancipação, o debate político se consolida entre pernambucanos e os “deputados do

sul”, principalmente paulistas e fluminenses, ao longo dos anos de 1823 e 1824 (um

período um tanto quanto esquecido pela historiografia tradicional146). É bem verdade que

os últimos balizavam a estratégia no binômio Brasil-Portugal. Bastava a emancipação em

relação à antiga metrópole. A liberdade das províncias era indesejada e, para eles,

perigosa. Veja como Ivo Coser traça o panorama:

Enquanto os deputados paulistas e fluminenses falavam nos Reinos do Brasil

e de Portugal, [...] os deputados das províncias da Bahia e de Pernambuco se

opuseram ao fortalecimento do governo do Rio de Janeiro, presente na

proposta paulista. Para eles, não haveria o Reino do Brasil, mas as províncias

portuguesas na América. Neste sentido, para essa corrente política, a proposta

paulista, centrada na autonomia do governo situado no Rio de Janeiro, ao

qual estariam submetidos os governos provinciais, soava como um novo pacto

colonial.147

É importante levar em conta, e isso acabará sendo um fator que nos ajuda a entender

porque a solução centralista se saiu vitoriosa, que os partidários do federalismo ficaram

146
Cf.: “Uma das consequências do rio-centrismo da historiografia da Independência consistiu
em limitar o processo emancipacionista ao triênio 1820-1822. Na realidade, 1823 e 1824,
marcados pela dissolução da Constituinte e pela Confederação do Equador, foram anos cruciais
para a consolidação do Império, na medida em que ambos os episódios permitiram ao Rio resolver
a contento a questão fundamental da distribuição do poder no novo Estado. Questão que não se
reduzia à disputa entre o Legislativo e o Executivo, privilegiada pelos historiadores do período,
mas dizia respeito sobretudo ao conflito entre o centralismo da Corte e o autogoverno provincial.”
MELLO, Evaldo C. Op. cit., p. 12.
147
COSER, Ivo. Op. cit., p. 37.
129
especialmente restritos a Pernambuco e à Bahia. E mesmo o federalismo baiano acabou

ficando ofuscado em razão da ocupação portuguesa, que perdurou até 1823. Coube,

portanto, aos pernambucanos a ingrata luta contra os “deputados do sul” em defesa da

alternativa federalista.

O ponto de inflexão fundamental que marca a vitória da “causa centralista” é as

relações entre Bonifácio e D. Pedro I. Indignado com a usurpação dos poderes de seu pai

em Lisboa pelos constitucionalistas do Porto, o herdeiro, ainda circundado pelo universo

do Antigo Regime, interessa-se pela administração absoluta do novo país. Ao mesmo

tempo que utilizado como ferramenta pelos centralistas, D. Pedro se aproveita das

convulsões no Congresso para então aplicar um golpe de Estado que lhe garantia a

outorga da Constituição de 1824. O Brasil tornava-se uma monarquia imperial unitária.

Fechamos com a palavra de Neves, segundo a qual o herdeiro:

[...] logo aprendeu a jogar com os interesses de coimbrãos e brasilienses,

vendo no Império americano não só a possibilidade imediata de livrar-se do

jugo da Assembleia, como a perspectiva futura de um Império dual, sobre o

qual reinaria, após a morte de d. João VI, com redobrada autoridade e

autonomia, de acordo com concepções derivadas ainda na maior parte do

universo do Antigo Regime.148

148
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Op. cit., p. 418.
130
XVIII

Economia cafeeira I

Ao longo do século XIX, o Brasil entrará num novo ciclo econômico marcante

para os rumos da economia do novo país independente. Traçando um panorama geral do

que foi visto até aqui: os séculos XVI e XVII assistiram à hegemonia do açúcar no

Nordeste; o século XVIII é o auge da mineração nas Gerais. Chegava o momento em que

o café passava a ser o principal produto nas pautas brasileiras de exportação. De fato,

entre 1810 e 1840, a produção e, consequentemente, as vendas desse gênero tiveram

considerável expansão: a variação foi positiva em aproximadamente 20 milhões de sacas

(o equivalente a 60 kg). Posteriormente, entre 1870 e 1910, a variação é ainda mais

expressiva: um aumento em aproximadamente 100 milhões de sacas. Algo que, num

primeiro olhar, parece curioso é a estagnação nas pautas de exportação de café entre as

décadas de 1850 e 1870. As vendas estacionaram em cerca de 30 sacas 149. Na realidade,

o que nos ajuda a compreender o quadro econômico desse pequeno intervalo é a situação

da mão-de-obra no país. É precisamente nessas décadas que a chegada de africanos

escravizados diminui vertiginosamente em função da abolição do tráfico negreiro. As

palavras de Bacha:

O Brasil apresentou um desenvolvimento extraordinário da produção

a partir do final de década de 1810. Mas essa expansão acelerada

praticamente terminou no final da década de 1840. Nas três décadas

seguintes, a expansão foi muito lenta. Os principais problemas deste

149
MARTINS, M. & JOHNSTON, E. 150 anos de café. São Paulo: Salamandra Consultoria
Editorial, 1992, p. 324-325
131
período da história brasileira do café foram a falta de transporte e de

mão de obra.150

A questão da mão-de-obra será motivo de discussão intensa na política brasileira ao longo

de toda a segunda metade do século XIX. Era necessário pensar em alternativas objetivas

para solucionar a iminente escassez de mão-de-obra. Trataremos disso quase que à

exaustão posteriormente. É importante, contudo, traçar um quadro a respeito dos inícios

da expansão cafeeira do século retrasado.

Analisando o quadro que antecede essa consolidação do ciclo cafeeiro, Celso

Furtado nos aponta um momento delicado da economia brasileira e com perspectivas nada

positivas. Para o autor, “Dificilmente um observador que estudasse a economia brasileira

pela metade do século XIX chegaria a perceber a amplitude das transformações que nela

se operariam no correr do meio século que se iniciava” (FURTADO, 2009, p. 176). Isso

porque o Brasil passava, desde o fim da expansão mineradora, por fortes estagnação e

involução econômicas, implicando considerável diminuição da renda per capita. Nem

mesmo a “falsa euforia” foi capaz de animar nossa economia (e justamente por isso é que

era falsa).

O Brasil, na visão de Furtado, necessitava, para livrar-se desse panorama

indigesto, de uma reinserção no comércio mundial em expansão. Era preciso encontrar

um novo gênero que reanimasse a atividade econômica ligada à terra (fator de produção

mais abundante do país até então). A solução foi encontrada exatamente com o

desenvolvimento da cultura do café. Novamente o Brasil se encaixava nos parâmetros do

mercado internacional, retomando seu papel agroexportador. Nem mesmo uma queda

150
BACHA, E. L. In: MARTINS, M. & JOHNSTON, E. Op. cit., p. 21.
132
inicial nos preços de exportação foram capazes de inibir a produção do artigo tropical151.

Celso Furtado nos enuncia as razões para essa insistência com o café. Os escravos, pouco

utilizados nas Gerais ao longo das primeiras décadas do século XIX, funcionaram como

“capacidade ociosa” nas plantações do Vale do Paraíba. Os gastos com mão-de-obra,

portanto, acabavam sendo vantajosos para os fazendeiros. Além disso, a proximidade

entre as zonas cafeicultoras e a capital escoadora invariavelmente levava a uma redução

dos custos de transporte do café até o litoral. Finalmente, e aqui temos embates

historiográficos152, o novo gênero tinha exigências de capitalização muito menores se

comparadas à cultura do açúcar.

A historiografia mais recente também diverge das análises de Furtado, mas não

necessariamente em relação ao nível de capitalização, como é o caso quando lemos Caio

Prado Jr. A discussão girou em torno dessa “capacidade ociosa” salientada pelo autor.

Isso porque outros historiadores apontam para um uso considerável de escravos nas

Gerais ao longo de todo o século XIX, como faz Roberto Borges Martins:

A ideia de que Minas tenha sido um exportador de escravos na primeira

metade do século é contestada, mais que por qualquer outra evidência, pelo

vigoroso crescimento da população escrava da província. Em 1808, Minas

tinha 148.772 escravos, contingente esse que cresceu para 168.543 em 1819,

constituindo-se na maior população cativa do Brasil e representando 15,2%

do total. Seu rápido crescimento entre 1819 e 1872 reforçou essa posição e a

participação nessa última data passou a 24,7%. Nesse período, a população

escrava de Minas cresceu a uma taxa cerca de duas vezes e meia maior que a

151
Cf.: “Com efeito, a quantidade exportada mais que quintuplicou entre 1821-30 e 1841-50, se
bem que os preços médios se hajam reduzido em cerca de 40% durante esse período.” FURTADO,
Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 181.
152
Cf.: “Outra dificuldade da lavoura cafeeira é que a planta somente começa a produzir ao cabo
de 4 a 5 anos de crescimento; é um longo prazo de espera que exige pois maiores inversões de
capital.” JÚNIOR, Caio P. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 161.
133
média nacional e o seu aumento absoluto foi igualado apenas pelo do Rio de

Janeiro.153

Outros historiadores, como Renato Leite Marcondes154, apontam que, na realidade, eram

provenientes do Rio de Janeiro a maioria dos cativos que abasteciam as lavouras do Vale

do Paraíba. Segundo ele, a província havia passado, ao longo dos 60 anos entre 1780 e

1840, por um crescimento demográfico vertiginoso, provocando, por esse motivo, fluxos

migratórios importantes da massa escrava.

Para enriquecer ainda mais a discussão e os debates historiográficos a respeito dos

inícios da expansão cafeeira, é possível apontar outros motivos, não captados por Furtado,

que ajudam a entender a pequena sensibilidade da produção à queda nos preços.

Analisando núcleos cafeeiros no interior de São Paulo, José Flavio Motta nos mostra que

o caráter da propriedade e do próprio produtor não permitiam uma elasticidade preço da

oferta muito elevada. Nas palavras do autor:

[...] o mais das vezes, para os não-escravistas e também para os proprietários

de menor porte, a lavoura cafeeira, voltada precipuamente à comercialização,

tinha o significado de um desdobramento possível a partir de uma agricultura

de subsistência, perante a qual se colocava como uma atividade subsidiária.155

Como frisamos anteriormente, tratar da expansão cafeeira necessariamente

implica uma análise a respeito de suas relações com a situação da mão-de-obra no Brasil

em meados do século retrasado. A transição do trabalho escravo para o assalariado está

153
MARTINS, Roberto B. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa
economia não-exportadora. Estudos Econômicos vol. 13, nº. 1, p. 181-209, jan./abr. 1983, p. 187.
154
O evolver demográfico e econômico nos espaços fluminenses (1780-1840). Estudos
Econômicos vol. 25, nº. 2, pp. 235-270, maio/ago. 1995, p. 239.
155
MOTTA, José F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em
Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999.
134
presente em estudos consagrados de Caio Prado Júnior, Octávio Ianni, Fernando Novais,

Celso Furtado e Paula Beiguelman.

A interpretação clássica sobre o fim da escravidão, presente nos estudos dos três

primeiros autores citados acima, pauta-se pela incompatibilidade entre o modo escravista

de produção e o capitalismo plenamente consolidado. Apesar de ter sido ferramenta

importante no processo de acumulação primitiva de capital, a escravidão, na medida em

que os mecanismos endógenos criadores e reprodutores de mais-valia estavam

“ativados”, tornava-se um obstáculo. Impedia a formação de um sólido mercado interno

que absorvesse as mercadorias produzidas nas indústrias dos países centrais. Criava, ao

mesmo tempo, limites ao desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, à geração

de mais-valia relativa. Assim, cada vez mais as potências centrais (e o primeiro país

atuando nesse sentido foi a Inglaterra), encabeçando a Revolução Industrial, marco da

consolidação do capitalismo, passaram a atuar contra a sobrevivência da escravidão nos

países em que ela era ainda vigente. Dialeticamente, a nova estrutura econômica

desbancava um de seus “Founding Fathers” (mesmo não sendo o principal e decisivo,

como já reiteramos aqui inúmeras vezes). Veja como Caio Prado endossa o que acabou

de ser dito:

O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de

um indivíduo; assim sendo, mesmo sem considerar o risco que representa a

vida humana, forma um adiantamento a longo prazo de sobretrabalho

eventual a ser produzido; e portanto um empate de capital. O assalariado,

pelo contrário, fornece aquele sobretrabalho sem adiantamento ou risco

algum. Nestas condições, o capitalismo é incompatível com a escravidão; o

capital, permitindo dispensá-la, a exclui. É o que se deu com o advento da

indústria moderna.156

156
JÚNIOR, Caio P. Op. cit., p. 175, nota 57.
135
Ianni completa:

Ao compreender que o lucro não é apenas função de barganha no mercado,

mas também dos custos, e que estes podem ser controlados e reduzidos pela

organização mais ou menos racional da empresa ou da fazenda, evidencia-se

ao empresário que já não é mais negócio comprar escravos. Torna-se óbvio

que é preferível operar com o trabalhador livre, colono ou assalariado, cuja

remuneração (...) é função do produto da força de trabalho.157

A análise de Celso Furtado, embora não entre em debate explícito com os dois

anteriores, não se aprofunda nesse detalhamento teórico como fazem Prado e Ianni. Na

realidade, o autor enfatiza os problemas derivados da escassez de mão-de-obra a partir da

abolição do tráfico negreiro na década de 1850. O fim do abastecimento externo de

cativos, somado à pequena disponibilidade interna de mão-de-obra (trataremos desse

assunto com mais propriedade posteriormente) acabou culminando na solução da

imigração. Esta, por sua vez, foi muito mais decisiva na estrutura política do poder local

do que nos aspectos econômicos organizacionais, dado que conseguiu abalar a velha

aristocracia rural, cuja força assentava-se na posse de escravos. Veja nas palavras de

Furtado:

Observada a abolição de uma perspectiva ampla, comprova-se que a mesma

constitui uma medida de caráter mais político que econômico. A escravidão

tinha mais importância como base de um sistema regional de poder que como

forma de organização da produção. Abolido o trabalho escravo, praticamente

em nenhuma parte houve modificações de real significação na forma de

organização da produção e mesmo na distribuição de renda.158

157
IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1972, p. 6.
158
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 213.
136
Finalmente, para concluir o panorama historiográfico, temos a proposta de

Beiguelman. Partindo da questão da escassez de mão-de-obra nas economias periféricas,

principalmente no Brasil, mas realizando uma discussão de caráter teórico, a autora vai

de encontro com a análise clássica de Prado e Ianni. Para ela, a escravidão, servindo como

instrumento de acumulação primitiva, é uma criação capitalista, podendo se encaixar num

contexto de Revolução Industrial. Na realidade, a modernização econômica exigia, acima

de tudo, mão-de-obra barata para a produção em larga escala. Assim, não havia uma

relação de incompatibilidade, mas sim de indiferença entre a indústria e a escravidão, que

poderia ou não ser dispensada por um trabalho assalariado. Essa conclusão faz com que

a autora afirme ser necessário estudo pormenorizado de cada região periférica em que a

escravidão foi abolida. Como diz Beiguelman:

Ou seja: temos que o sistema, depois da revolução industrial, tanto pode

inserir como dispensar a escravidão, diversamente do que ocorria quando o

tráfico (elemento ao qual se vincula a necessidade do escravismo) era peça

relevante no processo de acumulação capitalista. [...] Assim [...] não há

fundamento para estabelecer entre o escravismo e o sistema inclusivo outra

relação que a de indiferença. [Verifica-se a] possibilidade (desprovida, porém,

de necessidade) aberta pelo sistema à destruição da escravidão.159

159
BEIGUELMAN, P. A destruição do escravismo moderno, como questão teórica. In:
BEIGUELMAN, P. Pequenos estudos de ciência política. 2.ed. ampliada. São Paulo: Pioneira,
1973, p. 5 e 8.
137
XIX

Economia Cafeeira II

Com a prévia discussão a respeito dos problemas referentes ao estado da mão-de-

obra na economia brasileira ao longo da expansão cafeeira, é possível agora aprofundar-

nos ainda mais nas interpretações historiográficas sobre como se deu a transição do

trabalho escravo para o assalariado no Brasil.

Uma das análises canônicas a respeito dessa transformação marcante passada pelo

Brasil no século XIX é, como sabemos, a de Caio Prado Jr. O autor, inserido na tradição

marxista de pensamento histórico e, portanto, imbuído de uma certa concepção dialética

da dinâmica histórica, concebe o capitalismo plenamente desenvolvido como

incompatível com a escravidão colonial.

O autor, para explicar essa incompatibilidade, observa o próprio funcionamento

do próprio funcionamento do modo escravista de produção: o cativo é um trabalhador-

mercadoria, funcionando como um capital fixo e, acima de tudo, um adiantamento de

longo prazo. Não se pagam salários de subsistência periódicos como no caso assalariado.

O escravo, nesse sentido, é impedido de se transformar num consumidor. Emperra-se,

com isso, a solidificação de um mercado consumidor em escala nacional.

Contextualizando no caso brasileiro, Caio Prado conclui que essa condição

específica do trabalho escravo caminhava na direção contrária ao desenvolvimento

industrial que ocorria na Europa naquele momento, especificamente na Inglaterra. Esta

necessitava de mercados consumidores internacionais para seus produtos, dentre eles o

138
brasileiro. Era algo impensável em um país cujo modo de produção hegemônico era o

escravista. Caberia a este país, portanto, a pressão política e diplomática pelo fim da

escravidão no Brasil. E o objetivo britânico, para o autor, começa a materializar-se com

as disputas pela abolição do tráfico negreiro.160

Na prática, as pressões inglesas, num momento inicial, acabaram efervescendo

uma retórica nacionalista em defesa do escravismo por parte de nossa classe política.

Reforçavam-se os argumentos favoráveis a essa estrutura produtiva, ancorados inclusive

no próprio desenvolvimento da cultura do café no Brasil. Era impossível, porém, que a

atuação inglesa não surtisse nenhum efeito. Convinha para a Inglaterra a abolição

imediata do tráfico e, na realidade, houve um direcionamento das tratativas para punir os

traficantes “notórios”, numa forma inclusive de amenizar as pressões britânicas. Esses

“comerciantes” eram alvo até mesmo de oposição dos próprios fazendeiros brasileiros,

uma vez que estes eram devedores daqueles. Encontrava-se então o mecanismo objetivo

e circunstancial que tornava possível o fim do comércio de escravizados. Em 1850, com

a famosa Lei Eusébio de Queirós, era abolido o tráfico negreiro, afetando principalmente

esses traficantes “notórios”.161

160
É bem verdade que é notada pelo autor uma certa “postura moral”, tanto na Inglaterra quanto
no Brasil, contrária ao tráfico de africanos escravizados. Ao final do processo de emancipação,
ia-se desenvolvendo um “espírito antiescravista” no jovem país.
161
Um dos efeitos mais imediatos, segundo Prado, da abolição do tráfico foi o
redirecionamento de capitais ingleses para o Brasil. Com a amenização das tensões diplomáticas,
o fluxo de ativos foi regularizado. É uma análise que, embora pautada numa circunstância
particular, se choca com o ponto de vista furtadiano a respeito dessa mesma questão. Para este
autor, mesmo após o fim do comércio regular de escravizados, a entrada de capitais continuou
baixa e instável. Não teria sido a melhora nas relações diplomáticas bilaterais o principal fator
que estimulou o retorno de ativos. Na realidade, Furtado busca mostrar que é a retomada do ritmo
crescente nas exportações e, consequentemente, uma melhora nas próprias condições econômicas
do país que deu aos investidores estrangeiros um maior grau de confiança, garantindo maior
entrada de capitais no Brasil.

139
Com a extinção do tráfico, tornava-se lógico, para Prado, o fim definitivo do modo

escravista de produção.162 A partir de 1850, a questão da abolição ganha lugar central nas

discussões políticas e até mesmo nas agitações sociais. Ao mesmo tempo, porém, em que

se desenvolvem projetos políticos e sociais abolicionistas, forma-se também a reação

escravocrata dos antigos fazendeiros aristocratas do Centro-Sul, abastecidos de mão-de-

obra pelo tráfico interprovincial. É importante ressaltar que o Vale do Paraíba, primeira

zona com forte produção cafeeira, dependia quase que totalmente do trabalho negro

cativo. A abolição selaria, portanto, a ruína desses produtores.

Seguindo pari passu as tensões políticas concernentes à discussão abolicionista,

inúmeras propostas de Lei passam a ser colocadas em pauta a partir da década de 1860.

Prado, do total desse conjunto, observa principalmente a Lei do Ventre Livre de 1871,

que tornavam emancipados os filhos de cativas logo após o nascimento (não é por acaso

que a Lei é também chamada de Lei dos Nascituros). O autor traça sua crítica

fundamentalmente no caráter conciliador da medida. A proposta, de cunho diversionista,

serviu para frear as organizações mais radicais e assim bloquear avanços da pauta

abolicionista, aliviando pressões pelo fim da escravidão. Veja nas palavras de Caio Prado:

A lei de 28 de setembro nada produzirá de concreto, e servirá apenas para

atenuar a intensidade da pressão emancipacionista. [...] No pé em que se

encontravam as coisas, isto constituía na realidade uma vitória da reação

escravista. [...] A lei do Ventre Livre não resultou assim, em última análise,

162
É importante ressalvar que, embora a Lei Áurea de 1888 seja o marco do fim da escravidão,
não podemos dar um salto interpretativo e afirmar temerariamente que ela é a causa única e
exclusiva da abolição. O escravismo já vinha definhando, passando por transformações estruturais
e sofrendo implicações políticas, há anos desde o final do processo emancipatório, até um ponto
em que seu fim era irreversível. 1888 sela algo que tem raízes em décadas passadas. Se me
permitem uma analogia, a Revolução Puritana Inglesa de 1640 marca o fim do feudalismo na
Inglaterra e, consequentemente, do modo de produção servil. Ela, no entanto, é reflexo de um
longo processo anterior de transformações estruturais concernentes ao próprio feudalismo, que
foi decompondo-se até um nível de maturação que tornava necessária e possível, dada a
conjuntura, uma revolução social.
140
senão numa diversão, uma manobra em grande estilo que bloqueou muito mais

que favoreceu a evolução do problema escravista no Brasil.163

Na década de 1880, os efeitos do fim do tráfico negreiro tornam-se mais fortes e

perigosos para aqueles que dependiam da mão-de-obra escravizada. Nem mesmo essas

medidas conciliadoras dos anos de 1860 e 1870, como a Lei do Ventre Livre, foram

capazes de impedir o quadro alarmante em que se encontrava o modo escravista de

produção no Brasil. Basicamente, com a abolição do tráfico, o estoque de trabalhadores

cativos diminuía sensivelmente, até que chegou a níveis muito baixos nos últimos

decênios do século XIX. Esvaía-se a galinha dos ovos de ouro que sustentava a opulência

magnânima dos aristocratas fundiários brasileiros.

Não bastasse o quadro de escassez, a opinião pública fiava-se cada vez mais na

pauta abolicionista. Aumentava o número de fugas, organizadas pelos grupos partidários

da abolição, nas lavouras do interior. O espaço público ia sendo tomado pelas campanhas

em prol do fim da escravidão, corroboradas principalmente pela imprensa. Até mesmo as

Forças Armadas se recusaram a capturar os escravos fugidos, negando qualquer tipo de

intervenção. Nem mesmo a Lei dos Sexagenários de 1885, que, segundo Prado, foi

recebida com “gargalhadas” pelos abolicionistas, conseguiu evitar o inevitável: o fim da

escravidão, que se concretizaria em 1888.

Dos inúmeros ataques posteriores que sofreu a interpretação pradiana sobre o fim

da escravidão, será de grande valia a revisão de Paula Beiguelman a respeito do tema.

Partindo do pressuposto de que o capitalismo não é antagônico ao escravismo (vimos que

Beiguelman coloca o escravismo como uma criação capitalista e que, com a consolidação

da Revolução Industrial na Europa, a economia moderna tornou-se indiferente a ele), a

163
JÚNIOR, Caio P. História econômica do Brasil. 20.ed. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 178-
179.
141
autora minimiza a importância do elemento externo, no caso a pressão inglesa desde a

primeira metade do século XIX, para os desdobramentos históricos que levaram ao fim

do trabalho escravo. Na realidade, pretende analisar o processo de extinção do modo de

produção até então vigente no Brasil a partir das articulações políticas intranacionais,

pressupondo que as transformações econômicas internas compõem os elementos

decisivos para a abolição.

Ao diminuir a importância desse elemento externo para a extinção do escravismo,

Beiguelman aponta para o caráter quase que irrelevante da ação dos navios ingleses: ela

foi moldada por motivos muito mais localizados, que envolviam discussões dentro do

Parliament entre os livre-cambistas e os fazendeiros escravistas (compunham o

Parlamento, mas possuíam representantes nas colônias americanas), interessados

principalmente nas questões concernentes ao mercado antilhano do açúcar. Para a autora,

a influência principal veio do próprio Brasil, dentro do debate político nacional, em que

se esclareciam interesses dos partidos conservador e liberal, assim como da Coroa.

Um outro ponto de divergência entre Beiguelman e Caio Prado reside na análise

a respeito da Lei do Ventre Livre. Aquela, em clara oposição a este, vê a medida como

responsável por abalos importantes nas bases do escravismo brasileiro. Dando

importância até mesmo à Coroa nesse trâmite político, a autora entende a Lei como um

acelerador da decomposição do modo de produção hegemônico da época. É a partir desse

momento que a causa abolicionista começa a ganhar contornos mais gerais na população

brasileira, dado que a Lei dos Nascituros foi aclamada tanto pelos conservadores quanto

pelos liberais. Nas palavras de Beiguelman:

No caso da lei do ventre livre, o papel da Coroa é fundamental já na própria

proposição do problema, que é por ela levantado praticamente do nada ⎯para

criar um irreversível, posto tratar-se de questão que, uma vez agitada,

142
precisava ser resolvida. Subjetivamente, a Coroa atuava investida da missão

de tornar manifesta a repulsa ao escravismo (mal necessário) formulada pela

consciência ético-jurídica do país, desde a Independência. Objetivamente,

operava como o instrumento histórico através do qual se respondia às

exigências estruturais profundas da economia em crescimento. 164

Com a Lei do Ventre Livre, há uma diminuição consistente do preço das escravas,

depreciando e desestimulando o investimento servil. Torna-se claro o fim da possibilidade

de criação de cativos, fazendo com que os interesses opostos à abolição rareassem cada

vez mais (esvaíam-se as possibilidades de investimento a longo prazo na criação de

cativos, bloqueando vendas lucrativas de escravos no futuro). Ampliavam-se os

interesses, nesse sentido, pela solução imigratória. A melhor alternativa seria adotar o

trabalho assalariado.

Com o quadro claramente desfavorável à sobrevivência do escravismo, surgem

alianças regionais em favor da imigração de trabalhadores europeus para serem alocados

nas lavouras. A principal se dará entre o Oeste “Novo” Paulista e o Vale do Paraíba. Este

encontrava-se num nível elevado de saturação da mão-de-obra, diminuindo

vertiginosamente o preço do escravo, tornando muito pouco vantajosa a entrada de mais

cativos. Aquela, pelo contrário, estava pouco abastecida de braços. Não obstante, olhava

o assalariado imigrante como economicamente vantajoso frente ao “trabalhador-

mercadoria”, até porque tinha mais condições de sustentar o pagamento de salários

periódicos do que realizar um adiantamento a longo prazo (nas palavras de Prado). As

duas regiões da província paulista, nesse contexto, uniram-se para bloquear a entrada de

cativos em São Paulo, contando inclusive com apoio do Norte brasileiro. A área estava

164
BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos 3.ed.
São Paulo: EDUSP, 2005, p. 82.
143
também saturada de mão-de-obra, ficando praticamente impedida de vender escravos e

lucrar com esse regime de trabalho.

Nem mesmo a reação nordestina, vinda dos fazendeiros do açúcar, amplamente

dependentes do trabalho escravo, conseguiu barrar a força dessas alianças regionais.

Estas, por sua vez, ganharam ainda mais coro com a criação da Sociedade Promotora da

Imigração e com o a concretização das políticas imigratórias com subvenção estatal.

Chegava-se a um quadro irreversível de transição do trabalho escravo para o livre.

144
XX

Economia Cafeeira III

Existe, entre a abolição da escravidão no Brasil e a consolidação do trabalho

assalariado como modo de produção hegemônico na economia nacional, um importante

período de transição que merece agora um olhar mais atento de nossa parte. Podemos,

nesse sentido, dividi-lo em três partes (não podemos esquecer, mesmo assim, que, apesar

de sucederem no tempo, estabeleceram contatos e intersecções): o momento dos núcleos

coloniais, o do sistema de parcerias e o da grande imigração subvencionada pelo Estado.

Os núcleos coloniais estavam baseados na pequena propriedade agrícola. Apesar

de ser uma ideia interessante, cujo sucesso poderia dar outra direção à distribuição

fundiária no Brasil ao longo do século XX, na prática acabaram entrando num círculo

vicioso, de acordo com Celso Furtado. A concretização dos núcleos coloniais na produção

agrícola exigia um desenvolvimento dos mercados no país, que, por sua vez, necessitava

de uma expansão nas pautas de exportação. A expansão, finalmente, tinha como pré-

requisito a solução do problema da mão-de-obra nas lavouras. Perceba que existe uma

falha sistêmica inerente aos núcleos coloniais, dado que, para resolver o problema,

bastava que as pequenas propriedades passassem a exportar por conta própria, o que

entrava em choque com os interesses dos fazendeiros do café.

Um outro aspecto que contribuiu para o insucesso desse modelo de trabalho

assalariado nas lavouras era o próprio estado de muitas das propriedades, induzindo

muitos colonos a deixarem os lotes e partirem para o trabalho nas grandes fazendas. É o

que nos mostra Emília V. da Costa:

145
Entre 1827 e 37, cerca de 1.200 colonos foram localizados em diferentes

pontos da Província. Encaminhados para zonas de difícil acesso, solos maus,

ou cobertos de florestas, longe dos mercados consumidores, os colonos

acabaram, na sua maioria, por debandar, abandonando seus lotes depois de

terem, inutilmente, tentado enfrentar as numerosas dificuldades que se lhes

deparavam.165

É importante ressaltar que, apesar desse “contratempo” bem observado por Costa,

não podemos afirmar que, do ponto de vista do colono, a existência dos núcleos coloniais

terminaram em fracasso. O que nos ajuda a confirmar esse ponto é o fato de que, entre

1827 e 1889, o Rio Grande do Sul assistiu à formação de quase 100 colônias particulares

no campo, surgindo até mesmo nos períodos turbulentos da Regência brasileira. De fato,

as “falhas sistemáticas” dos núcleos notadas por Furtado fazem sentido quando

analisamos essa estrutura partindo dos olhos do grande proprietário, que necessitava de

mão-de-obra barata para sua produção e não de pequenos produtores autônomos

concorrentes.

Com a iminente impossibilidade de se consolidarem os núcleos coloniais, somada

ao fim do tráfico intercontinental de africanos escravizados, as pressões dos grandes

proprietários para que o problema da mão-de-obra fosse solucionado ganham maiores

proporções. É dessa conjuntura adversa que tem início o modelo de parcerias,

funcionando como eixo de sustentação do ainda incipiente modo assalariado de produção.

Antes de chegar ao Brasil, os imigrantes já assinavam contratos na Europa,

comprometendo-se a trabalhar numa fazenda específica. O fazendeiro, por sua vez,

comprometia-se a pagar a viagem para o novo continente, assim como garantia o sustento

de seus trabalhadores nos primeiros meses. Ao longo da produção, havia a meação dos

165
COSTA, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 100-102.
146
lucros líquidos, oriundos tanto da plantação do café quanto da venda do excedente da

subsistência.

Num primeiro olhar, parece que o grande beneficiado era o próprio trabalhador

imigrante. Ledo engano. Ele já iniciava seus trabalhos com alto endividamento, dado que

os custos de viagem e de inicial sustento no campo eram arcados pelo proprietário. Era

necessário trabalhar até que a “conta” fosse paga. Na prática, acabava funcionando como

instrumento de imobilização espacial, o que era de interesse do fazendeiro. Em segundo

lugar, os colonos eram alocados em cafezais já constituídos, com solo em alto grau de

saturação, dificultando a plantações dos bens necessários à subsistência. Finalmente,

eram recorrentes os casos de fraudes nos preços dos bens e nas passagens para o Brasil,

aumentando indevidamente as dívidas dos trabalhadores, forjando uma espécie de

“servidão disfarçada” no sistema de parcerias. O grau de exploração a que ficaram

sujeitos os colonos acabou gerando focos de tensão e revolta, como no caso de Ibicaba

em 1856.

Uma vez que o sistema de parcerias se mostrava inviável no longo prazo pelas

razões apontadas acima, a questão da mão-de-obra continuava em aberto. O espaço se

abria cada vez mais para solucionar o problema pela via da imigração subvencionada pelo

governo. A expansão das produções cafeeira e, em menor grau, algodoeira, assim como

a iminência da abolição da escravatura a partir de 1870 acabaram funcionando como

alavanca para que o Estado arcasse com o ônus do estabelecimento de imigrantes nas

fazendas cafeeiras. Além disso, os fazendeiros do Oeste Novo, setor produtivo que mais

crescia e que ainda não se mostrava pleno de mão-de-obra, clamavam por braços que

pudessem acompanhar as crescentes demandas pelo gênero tropical. Acabaram, portanto,

conduzindo as tratativas no Congresso Nacional para consolidar a imigração

subvencionada. Finalmente, a introdução de um “sistema misto”, que gradualmente

147
transitava da meação de lucros para o assalariamento puro, dava ao colono uma garantia

maior de receita: independentemente do quadro da colheita, seu salário estava

garantido.166 Assim, tanto do lado da oferta quanto do lado da demanda por mão-de-obra,

a imigração subvencionada era vista com bons olhos.

O que influiu e contribuiu também para o sucesso da imigração subvencionada foi

inclusive o quadro social na Europa, principalmente na Itália (de onde vinha o grosso da

mão-de-obra assalariada para o café). O processo de unificação italiana, que

invariavelmente acabou levando a um quadro de desorganização da produção no sul do

país, ampliava as dificuldades do Estado nascente para gerir a massa crescente de

desempregados e subempregados que colocava em risco suas bases econômicas. A

demanda brasileira por mão-de-obra acabaria servindo como válvula de escape.167

Realizado o estudo panorâmico sobre a constituição do modo assalariado de

produção, podemos adentrar numa discussão interessante encabeçada por Celso Furtado:

havia no país a disponibilidade de mão-de-obra livre. Por que, então, preferiu-se o

trabalhador estrangeiro? Localizados principalmente no Nordeste brasileiro, os “roceiros”

(que compunham a mão-de-obra livre nacional), além de dispersos pela região, eram

intimamente ligados aos latifundiários exportadores, estabelecendo assim uma relação

social muito profunda. Assim, a cooptação desses trabalhadores exigiria extensa

mobilização de recursos e, principalmente, deveria contar com a ajuda dos próprios

fazendeiros. Essa cooperação era simplesmente inviável, já que o poder político desses

166
Abria-se também para o imigrante europeu a possibilidade de uma paulatina acumulação
econômica com o ganho constante de salários, estimulando a formação de uma poupança. Essa
perspectiva dos colonos foi bem notada pelo cafeicultor, que entendia a necessidade de dar a seus
funcionários boas condições de trabalho, estimulando-os a continuar trabalhando naquela dada
propriedade. Era importante que fosse dado um tratamento mais digno aos assalariados, se
comparados aos escravos, por parte dos colonos.
167
PETRONE, M. T. S. Imigração assalariada. HOLANDA, S. B. de (org.). História Geral da
Civilização Brasileira. 5.ed. São Paulo: DIFEL, t. 2: O Brasil Monárquico, v. 3: Reações e
transações, 1985, p. 274-296.
148
“proto-coronéis” assentava-se em arregimentar no seu núcleo uma considerável

quantidade de famílias roceiras.

A atração de mão-de-obra livre nacional para a produção cafeeira foi dificultada

não só pelo obstáculo intencional dos fazendeiros, mas também pelo surto da borracha

em meados da segunda metade do século XIX. Responsável pela transumância

amazônica, a expansão vertiginosa da fabricação de látex conseguiu quebrar qualquer

resistência vinda dos latifundiários, atraindo massas robustas de nordestinos para o

trabalho da borracha. Contribuiu também para o fenômeno a crítica seca nos sertões, que

perdurou de 1877 até 1880. Dizimando praticamente todo o gado e contribuindo para

quase 200 mil mortes, o fenômeno natural agravou uma condição social estruturalmente

calamitosa, levando os roceiros para a Zona da Mata. Esta, por sua vez, incapaz de lidar

com o quadro turbulento que tomava forma, funcionou como “catapulta” de trabalhadores

para as seringueiras da Amazônia. Vejamos a célebre passagem de Euclides da Cunha:

Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejaram

sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas

semanas de uma população adventícia de famintos assombrosos, devorados

das febres e das bexigas ⎯ a preocupação exclusiva dos poderes públicos

consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros

moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores

com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a

Amazônia ⎯vastíssima, despovoada, quase ignota⎯ o que equivalia a expatriá-

los dentro da própria Pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os

direitos, rotos os laços da família, que se fracionava no tumulto dos embarques

acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o

desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus

variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais

salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela.

149
Cessava a intervenção governamental. Nunca, até os nossos dias, a

acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a

missão dolorosíssima e única de desaparecerem ...168

Comprovada a impossibilidade de usar o elemento nacional livre, ele passa a ser

visto de maneira muito pouco lisonjeira pela burguesia rural brasileira. Colocado como

reserva do trabalhador imigrante (antes era o substituto ocasional do escravo enquanto o

modo vigente de produção era o escravista), acumulava as funções mais pesadas e de

menor remuneração, sendo apregoado como indolente, desmotivado e pouco afeito ao

trabalho. Ao mesmo tempo, o europeu era saudado como um trabalhador muito mais

predisposto e com maiores aptidões para os serviços no campo.

Finalizando o tratamento sobre a questão da mão-de-obra, convém mencionar que

a solução da imigração subvencionada foi bem-sucedida principalmente na província de

São Paulo. Isso não implica o mesmo êxito em outras regiões do país, as quais precisaram

arregimentar o trabalhador nacional livre. É o que nos aponta Ana Lanna:

A proposta imigrantista venceu em São Paulo, mas no resto do país também

se realizou a transição para o trabalho livre. A bibliografia, ao estudar os

caminhos percorridos para a organização do trabalho livre, atém-se à análise

do que foi a proposta vitoriosa –a imigração– como se este fosse o único

caminho possível de encaminhamento da transição. [...] o sucesso da

experiência paulista faz com que a província mineira estabeleça uma série de

políticas imigrantistas [...]. Estas políticas resultam em sistemáticos fracassos.

[...]. [O]s poucos trabalhadores introduzidos apresentam problemas. [...]

[Vários] emigram para São Paulo [...]. Os cafeicultores encaram com a

máxima reserva a introdução de imigrantes [...]. Essa negação da imigração

168
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 2016.
150
como solução de braços para a lavoura não significa arcaísmo ou recusa das

relações de trabalho livre. Antes demonstra que a solução para a questão da

mão de obra foi encontrada internamente, com a população existente. Por

isso, os cafeicultores reivindicam a aprovação de boas e eficazes Leis de

Locação de Serviços, para reprimir o ócio e a vagabundagem. 169

169
LANNA, Ana L. D. A transformação do trabalho: a passagem para o trabalho livre na Zona
da Mata mineira, 1870-1920. Campinas: Editora da UNICAMP; Brasília: CNPq, 1988, p. 107.
151
XXI

O complexo cafeeiro

No que consiste o assim chamado “complexo cafeeiro”? Basicamente, trata-se de

um conjunto de processos empresariais múltiplos e paralelos, os quais se expandem a

partir dos anos de 1870. Em suma, é a diversificação dos investimentos, refletindo o

ampliação do movimento e do dinamismo do capital paulista, cujas bases estruturais estão

na elevação das exportações de café. É a produção deste gênero, portanto, que promove

o desenvolvimento econômico do Brasil na passagem do século XIX para o XX. Como

afirma Sérgio Silva, “A partir da década de 1870, e sobretudo a partir de 1880, [...] o

café torna-se o centro motor do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.”170

Uma vez definido o conceito de complexo cafeeiro, convém traçar um quadro

sobre as origens desse fundamento econômico. Ele nasce a partir do esgotamento dos

solos no Vale do Paraíba (primeira região com sólida produção de café no país), que é

sucedido por uma lógica diminuição nos rendimentos marginais. Por mais que a velha

zona cafeicultora tenha servido de inspiração literária para Monteiro Lobato em fins do

século retrasado, o quadro econômico e produtivo era lastimável. É o que nos mostra

Pierre Monbeig:

[...] Taubaté, Pindamonhangaba, Jacareí, Bananal e São José dos Campos

conservavam, cada um, de 3 a 9 milhões de cafeeiros. Mas a produção, por

outro lado, atesta uma baixa contínua [...]. Ravinadas pela erosão, mal

170
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega,
1976, p. 49.
152
cuidadas por uma mão de obra insuficiente desde a abolição da escravatura,

os cafezais do vale do Paraíba detinham os mais baixos rendimentos de todo

o Estado [...]. [...] 2 arrobas por 1.000 pés em Jacareí, 16 em Bananal, 18 em

Pindamonhangaba e um máximo de 30 em São José dos Campos. Nada mais

se poderia esperar dessa região, pelo menos para o café.171

A partir de então, as plantações do gênero seguem rumo a oeste da província de São Paulo.

Irão consolidar-se na região que compreende a cidade de Jundiaí.

Um dos principais e primeiros fatores que contribuíram para a constituição do

complexo cafeeiro foi a construção das ferrovias que partiam do Oeste novo para o porto

de Santos (que passava a ser, na passagem para o século XX, o principal ponto de

escoamento do produto no Brasil). De início, na década de 1860, o quadro era

desanimador, sendo rara a existência de estradas carroçáveis. As dificuldades eram tantas

que davam aos custos a terça parte do preço final do café. Veja a descrição de Emília

Viotti da Costa:

Até então [anos de 1860], eram excepcionais na Província de São Paulo as

estradas carroçáveis. As que existiam, em geral, possibilitavam apenas a

passagem de tropas de burro. Algumas não mereciam sequer o nome de

estradas: eram veredas por onde mal passavam as tropas, em alguns pontos

tão estreitas que tinham apenas largura necessária para uma mula carregada.

Nesses lugares, ao cruzarem-se duas tropas, era necessário que uma delas

recuasse, o que dava margem a brigas e ocasionava transtornos

desagradáveis. Em 1838, o Presidente da Província de São Paulo mandou

engajar, na Europa, cem trabalhadores e dois mestres, além de canteiros,

pedreiros, calçadores de estrada, ferreiros, carpinteiros, para serem

empregados no serviço de construção e conservação de estradas e pontes da

171
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Polis, 1984, p.
167-172.
153
Província. Os colonos chegaram de fato a vir, mas acabaram, como os demais,

por se dispersar, abandonando os serviços para os quais haviam sido

contratados.172

A partir da década de 1870, a economia cafeeira sofre importantes inflexões que

acabaram por alterar o quadro logístico da produção do gênero de exportação. É nesse

momento que o preço do escravo paulista se eleva. Ao mesmo tempo, o café se espalhava

pelo interior e ficava mais distante do litoral. Era necessário, vista a confluência desses

dois elementos, transformar, ou melhor, aprimorar a situação das estradas para que o

crescimento dos custos não acabasse por inviabilizar a lucratividade dos empresários do

complexo. Nesse sentido, a expansão ferroviária viria como forma de superação da crise

dos transportes. Ao mesmo tempo, dada a base ainda escravista de nossa economia, o uso

de trabalhadores imigrantes assalariados na construção das estradas de ferro acentuaria

ainda mais os problemas referentes à já referenciada “questão da mão-de-obra”.

Essa expansão ferroviária seria sustentada pelas concessões fornecidas ao capital

externo, por parte das províncias e do governo central, para a construção das estradas no

território paulista. Assim, apesar de tais medidas já estarem presentes na jurisdição

brasileira desde os anos de 1830, é em 1852 que ocorre a primeira concessão efetiva dada

ao empresário estrangeiro: a Lei nº 641 garantia aos empreendedores o pagamento

incondicional de juros com taxa de 7,0 % (5% provenientes do Império e 2% originários

da província). Flávio Saes nos fornece um bom panorama sobre como essa política de

concessões ancoradas em garantias de juros favoreceu o espalhamento inconteste das

empresas estrangeiras no ramo da construção civil paulista:

O exemplo da Estrada de Ferro Baía ao São Francisco é típico: Joaquim Alves

Branco Muniz Barreto obteve, em 19 de dezembro de 1853, a concessão para

172
COSTA, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 101.
154
o trecho inicial da linha; já em 9 de junho de 1855 o Decreto 1614 aprova os

Estatutos da Bahia and São Francisco Railway Company, organizada na

Inglaterra, que absorvera a concessão inicial de Muniz Barreto. Dessa forma,

ao longo da segunda metade do século XIX vamos encontrar muitas empresas

ferroviárias estrangeiras no Brasil e cujo principal atrativo (senão o único)

era a Garantia de Juros agregada à concessão da via férrea.173

É importante ver, com base no que já foi exposto, que a expansão das vias férreas

na segunda metade do século XIX é reflexo de um processo fundamental pelo qual

passava a economia global: a ampliação e a consolidação de largos fluxos de capitais

entre o centro e a periferia mundiais, marcando um novo estágio no desenvolvimento do

modo de produção capitalista, que era exatamente o que veio a ser chamado de

imperialismo.174 O capital financeiro ganhava cada vez mais importância nas relações

econômicas e evidentemente deixou sua marca sobre a produção paulista, tornando-se

deveras influente nas direções tomadas pelo capital cafeeiro. Uma amostra disso é que os

próprios fazendeiros do café possuíam participações acionárias na construção de

ferrovias, derivando altos rendimentos desse setor da construção civil. Confira o que nos

aponta Silva quanto a esse novo patamar alcançado pelo capital financeiro:

A partir da segunda metade do século XIX, o capital não se limita mais, ao

nível internacional, à troca de produtos; ele se apropria da própria produção

ao nível mundial. A partir desse momento, o desenvolvimento do comércio

internacional torna-se apenas uma parte (aspecto subordinado) do

desenvolvimento capitalista (da produção capitalista) em escala

internacional. É aliás por essa razão que o comércio mundial passa a

desenvolver-se num ritmo sem precedentes. [...] o que devemos destacar nessas

173
SAES, Flávio A. M. de. A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira: 1850-
1930. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 31.
174
Sobre o assunto, convém ler o célebre texto de Vladimir Lenin: Imperialismo, fase superior
do capitalismo.
155
transformações não é o próprio desenvolvimento do comércio internacional

[que também ocorre], mas justamente o fato de que o comércio deixa de ser o

aspecto principal das relações econômicas internacionais. A passagem do

capitalismo a um estágio superior do seu desenvolvimento, se caracteriza

precisamente [...] pelo papel dominante que a partir dessa época passa a ser

desempenhado pelas exportações de capitais.175

Um outro elemento que moldou as bases de expansão do café foi o fortalecimento

de um sistema creditício, marcando a transição do domínio dos capitais comercial e

usurário176 para o do capital bancário como principal mecanismo fornecedor de crédito

para a produção agrícola. É justamente a partir dos anos de 1880, o sistema paulista de

crédito, com prazos mais vantajosos e taxas de juros mais aprazíveis, ganha força e torna-

se o principal centro irradiador de recursos monetários para a cultura do café no interior.

É importante ressalvar que essa expansão do capital bancário e, em consequência,

do sistema creditício não se deixou subordinar pela política monetária do governo

imperial. Isso porque o crescimento da produção de café não foi acompanhado de uma

elevação na expansão de moeda. Não obstante, os efeitos do multiplicador dos meios de

pagamento foram notáveis: as contas nos bancos (em que estão inclusas as letras a prêmio

e os depósitos) chegaram a decuplicar no período que vai de 1875 até 1887.

175
SILVA, Sérgio. Op. cit., p. 30. É importante, numa análise retida ao caso paulista, ressaltar
que, de acordo com o próprio autor, o comissariado do porto de Santos (representantes do capital
comercial brasileiro) nunca conseguiu exercer forte influência sobre os interesses dos fazendeiros
paulistas. Era um caso inverso àquele típico do Vale do Paraíba numa época anterior.
176
No caso do capital comercial, o comerciante fazia as vezes de “banco”, indo além de mero
intermediário entre produção e consumo, passando a adiantar recursos. No caso do usurário, é a
típica relação capitalista individual, em que o emprestador garante recursos ao produtor, com
certeza de um rendimento oriundo dos juros.
156
SEGUNDA PARTE

157
XXII

A proclamação da República

O processo de queda da Monarquia Brasileira, passando pela substituição desta

por uma República Federativa, engloba um rico arcabouço historiográfico dentro do qual

questões fundamentais são discutidas no que se refere ao Quinze de Novembro.177 Uma

delas, e talvez a mais importante, é sobre quais teriam sido os principais motivadores da

ruptura política na passagem da década de 1880 para a de 1890. Nesse sentido,

balizaremos nossa análise no contraponto de Emília Viotti da Costa (célebre historiadora,

responsável por publicações importantes sobre a Independência e a Proclamação nos anos

de 1960) à historiografia tradicional sobre esse período, hegemônica na passagem do

século retrasado para o passado.

Antes de entrarmos de fato nessa discussão historiográfica, porém, é importante

delinear o quadro geral da economia brasileira nesse momento de transição. Com relação

a nossa pauta de exportações, não é surpresa para ninguém que o café ocupava o grosso

de nossas operações no comércio internacional. Nos anos de 1840, o gênero era

responsável por cerca de 40% das nossas vendas para o exterior. Cinco décadas depois, o

percentual sobe para pouco mais de 60%. Uma composição tal como essa de nossas

exportações deixa clara a vulnerabilidade de nossa economia, naquele período, a

quaisquer choques negativos no mercado mundial de commodities. E quando ele

realmente aconteceu, já no período final do Império, o Brasil acabou sofrendo uma

177
Claramente faço referência à data oficial de proclamação da República (quinze de novembro
de 1889).
158
defasagem na balança comercial. O nível das exportações evidentemente diminuía logo

após o choque. A defasagem se dava em função da permanência do quadro de importações

por um período mais prolongado. Chegávamos a uma situação de déficit na balança

comercial, culminando, dada a estrutura sistêmica da economia nacional, numa

desvalorização cambial que, internamente, produzia um aumento da inflação. A

desvalorização estimulava as exportações do café, garantindo, assim, os lucros dos

fazendeiros. Do ponto de vista do restante da população, porém, que consumia uma

enorme soma de bens importados, havia uma perda de renda, em termos reais, e de poder

de compra, justamente por conta do aumento do nível de preços. Esse fenômeno peculiar

de nossa economia no século XIX foi chamado por Celso Furtado de “socialização das

perdas”.

O país passava também pela consolidação do chamado complexo cafeeiro. Ao

mesmo tempo em que, com o aumento das exportações após a desvalorização cambial, se

introduzia massivamente a mão-de-obra imigrante livre e assalariada (é a passagem do

modo de produção escravista para o modo de produção capitalista no Brasil), as regiões

produtoras de café sofriam intensa modernização da infraestrutura. Ferrovias eram

construídas, assim como novos bancos, essenciais para o financiamento tanto da produção

quanto de nossa malha ferroviária.

Um outro elemento importante que merece atenção além desses já tratados é o da

diversificação da economia brasileira no final do século XIX. Mesmo que de forma ainda

muito incipiente, o país assiste a uma expansão da produção de borracha no norte178, a

uma recuperação da cultura do açúcar no nordeste após praticamente dois séculos de

letargia e involução econômica, a uma ramificação da própria produção de café

178
Não só a borracha, mas também o fumo e a erva-mate foram commodities que tiveram suas
pautas de exportação ampliadas no final do século XIX.
159
(introduzindo-se lentamente em Minas Gerais e nas terras do atual norte paranaense) e,

finalmente, a uma elevação da importância qualitativa da pecuária sulina.

Finalmente, é importante ressaltar que, até 1889, a política monetária brasileira

era marcada por uma enorme adstringência, com baixíssimos níveis de liquidez

econômica. A contração da base monetária e a consequente escassez de meios de

pagamento disponíveis gerava um quadro complicado de dívida externa. É o que nos

mostra Furtado:

A política monetária do governo imperial nos anos oitenta, traumatizada pela

miragem da “conversibilidade”, por um lado conduzia a um grande aumento

da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em regime de

permanente escassez de meios de pagamento.179

Traçado o quadro geral da economia brasileira nos momentos imediatamente

anteriores ao Quinze de Novembro, podemos agora nos debruçar com mais atenção às

discussões sobre quais teriam sido os determinantes da Proclamação da República.

A historiografia tradicional sobre a Proclamação, da qual um dos grandes

expoentes foi Oliveira Vianna, focaliza seu olhar nas chamadas Questões Militar,

Religiosa e da Abolição. As três em conjunto teriam abalado as estruturas basilares de

nossa monarquia, indispondo, simultaneamente, os bispos, os fazendeiros sustentados

pelo trabalho escravo e os homens fortes do exército nacional. A confluência desses três

elementos de instabilidade teriam dado poder de organização aos militares, os quais foram

os principais responsáveis pela deposição da Família Real brasileira em 1889. Veja como

a própria Emília Viotti, que nos anos de 1960 realizaria um importante trabalho de revisão

sobre o período, traça a metodologia empregada pelos historiadores canônicos do Quinze

de Novembro:

179
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1970, pp. 170.
160
É opinião corrente que a proclamação da República resultou das crises que

abalaram o fim do Segundo Reinado: a Questão Religiosa, a Questão Militar

e a Abolição. Afirma-se que a prisão dos bispos do Pará e de Pernambuco

incompatibilizou a Coroa com extensas camadas da população. A Abolição,

por sua vez, indispôs os fazendeiros contra o regime, levando-os a aderir em

massa às ideias republicanas. Finalmente, a Questão Militar, que se vinha

agravando desde a Guerra do Paraguai em virtude do descontentamento

crescente dos militares em relação ao tratamento que lhes dispensava o

governo, levou-os a tramar o golpe de 15 de novembro que derrubou a

Monarquia e implantou o regime republicano no país. [...] Utilizando

documentos testemunhais os historiadores elaboraram uma crônica pouco

objetiva dos fatos que culminaram com a proclamação da República, e muitos

continuam a repeti-la até hoje. Sabemos, no entanto, como são deformados e

incompletos os depoimentos dos que vivem um momento revolucionário, seja

por interesse, seja por paixão, seja por ignorância ou por falta de informações

exatas, seja pela dificuldade de abarcar o processo como um todo, nas suas

múltiplas contradições.180

De fato, a forma clássica de tratar da proclamação se dá com base num

sequenciamento puramente lógico e nem um pouco dialético. Em linhas gerais, cada um

dos elementos cruciais do “tripé monárquico” foi sendo derrubado um após o outro em

função dessas Questões que nada mais seriam do que momentos de instabilidade política.

Com a queda definitiva do tripé, caia junto a Família Real brasileira.

Assim, se a historiografia tradicional já não mais satisfazia aos estudos históricos

sobre a proclamação da República em meados do século XX, então qual teria sido a

proposta chave de Viotti para reinterpretar o processo sob novas lentes? Imbuída de uma

180
COSTA, E. V. da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Fundação
Editora UNESP, 1999, p. 447-449.
161
metodologia marxista, pelo menos nos aspectos mais essenciais de seus trabalhos, a

autora se propõe a entender como as transformações socioeconômicas estruturais

ocorridas ao longo da segunda metade do século retrasado forneceram o fundo material

necessário para o processo de derrubada da monarquia.181 Nesse sentido, a transição da

escravidão ao trabalho livre e assalariado, em que pesou a imigração europeia para as

lavouras de café no sudeste, assim como o fortalecimento relativo do mercado interno

num contexto de diversificação da economia são fatores fundamentais para que possamos

entender bem o Quinze de Novembro. A partir de tais mudanças, novos grupos foram

ganhando força, com novos interesses político e econômico, solapando gradualmente as

forças hegemônicas até então. Trata-se das classes médias urbanas, dos industriais que

paulatinamente começavam a surgir em São Paulo e no Rio de Janeiro, assim como dos

novos fazendeiros comumente chamados de “progressistas”.182 Formava-se, com base

nessas transformações, uma contradição explosiva na sociedade brasileira. O equilíbrio

de forças se rompia e um pacto federativo republicano estava por vir como “solução” para

o problema. Veja nas palavras da própria autora:

A decadência das oligarquias tradicionais, ligadas à terra, a Abolição, a

imigração, o processo de industrialização e urbanização, o antagonismo entre

zonas produtoras, a campanha pela federação contribuíram para minar o

edifício monárquico e para deflagrar a subversão. [...] Diante de tantas

contradições a solução parecia estar no sistema federativo. A excessiva

centralização que caracterizava a administração imperial desgostava uma

181
Cf.: “Nenhuma revolução é feita em nome de ideias que não tenham alguma receptividade e as
razões que explicam por que certas ideias surgem ou vencem em determinado momento só podem
ser entendidas quando se analisa a realidade vivida pelos homens que lutam a favor ou contra
elas. A proclamação da República é o resultado, portanto, de profundas transformações que se
vinham operando no país.” Idem, p. 451.
182
É importante ressaltar que a nomenclatura usada nesse caso não é unânime. Isso porque muitos
desses latifundiários fizeram bom proveito do trabalho escravo compulsório até que se tornasse
vantajoso pleitear a abolição, quando o trabalho livre já era muito mais promissor
economicamente. Assim, seria no mínimo questionável chamá-los de “progressistas”.
162
parcela da opinião pública que considerava tal sistema um entrave ao

desenvolvimento do país e à solução dos problemas mais urgentes. A ideia

federativa adquiria assim maior prestígio.183

Vemos que, de fato, é nos anos de 1960 que a historiografia sobre a proclamação

da República ganha um caráter mais “robusto”. Não obstante, já na década de 1930 com

Caio Prado Júnior, a metodologia tradicional sofria questionamentos importantes. Para o

autor de Formação do Brasil Contemporâneo, a nova dinâmica econômica da segunda

metade do século XIX, da qual a questão da transição dos modos de produção no Brasil

é um grande exemplo, e seu descompasso com o funcionamento das instituições imperiais

teriam sido o ponto de inflexão que culminou com a fundação da República. De acordo

com Prado:

A história do segundo reinado nos fornece em toda sua evolução as mais

evidentes provas de que as instituições imperiais representavam um passado

incompatível com o progresso do país [...] A questão servil é disto o mais

frisante exemplo.184

É interessante notar como essa afirmação se aproxima muito do panorama traçado

por Furtado em 1959 na sua Magnum opus:

A incapacidade do governo imperial para dotar o país de um sistema

monetário adequado, bem como sua inaptidão para encaminhar com firmeza

e positivamenmte a solução do problema da mão-de-obra, refletem em boa

medida divergências crescentes de interesses entre distintas regiões do país.

Nas etapas anteriores, mesmo que fossem reduzidas as relações econômicas

entre essas regiões, nenhuma divergência de interesses fundamentais as

separava. No norte e no sul as formas de organização social eram as mesmas,

as classes dirigentes falavam a mesma linguagem e estavam unidas em

183
COSTA, E. V. da. Op. cit., p. 470.
184
JÚNIOR, C. Prado. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. 1933, p. 91.
163
questões fundamentais, como fora o caso da luta pela manutenção do tráfico

de escravos. Nos últimos decênios do século as divergências começam a

aprofundar-se. A organização social do sul transformou-se rapidamente, sob

a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros

urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região da colonização das

províncias meridionais.185

Dado o quadro explosivo de contradições engendradas na própria sociedade brasileira em

seu fundo material, era de se esperar que cedo ou tarde ganhasse força um movimento de

caráter republicano que questionasse os fundamentos da monarquia brasileira. Em 1873

é fundada a Convenção Republicana na cidade de Itu. Composta majoritariamente de

fazendeiros paulistas do Oeste Novo (aqueles que chamamos de “progressistas” páginas

acima) e de elementos da classe média urbana fluminense, a organização ganha força na

década final do Império com a adesão da imprensa em prol da mudança no regime

institucional.

Compreendendo bem a crise em que se colocou a monarquia, os homens fortes da

Família Real logo idealizaram um pacote de reformas ditas “estruturais” com o exato

objetivo de arrefecer o movimento republicano.186 Conhecidas como Reformas de Ouro

Preto, o conjunto de propostas a serem analisadas no Congresso englobavam a ampliação

185
FURTADO, C. Op. cit., p. 171.
186
Veja como o próprio Visconde de Ouro Preto compreendeu a complicada conjuntura política
nacional: “Vossa Majestade terá seguramente notado que em algumas províncias agita-se uma
propaganda ativa cujos intuitos são a mudança da forma de governo. [...] No meu humilde
conceito é mister não desprezar essa torrente de ideias falsas e imprudentes cumprindo
enfraquecê-la, inutilizá-la, não deixando que se avolume. Os meios de consegui-lo, não são os da
violência ou repressão, consistem simplesmente na demonstração prática de que o atual sistema
de Governo tem elasticidade bastante para admitir a consagração dos princípios mais adiantados
(...). Chegaremos a este resultado, senhor, empreendendo com ousadia e firmeza largas reformas
na ordem política, social e econômica, inspiradas na escola democrática. Reformas que não devem
ser adiadas para não se tornarem improfícuas. O que hoje bastará, amanhã talvez seja pouco.”
Apud. COSTA, E. V. da. Op. cit., p. 486.
164
da representação eleitoral, a temporariedade do Senado (que antes, como sabemos, era de

caráter vitalício), a liberdade de culto e de ensino, uma mudança na Lei de Terras, assim

como uma maior autonomia para as províncias e municípios.187

O pacote descrito acima, mesmo que bastante “inovador” para os padrões

monárquicos da política brasileira da época, não foi capaz de impedir a intensificação da

demanda por uma república. De um lado, os conservadores do Império reclamavam que

o pacote era demasiado radical. Na outra ponta, os republicanos viam as propostas como

insuficientes. Todo o receio que se formou em torno das Reformas de Ouro Preto fez com

que apenas a Lei Bancária fosse aprovada no Congresso.

Nenhuma reforma proposta foi capaz de eliminar a pressão republicana. Com o

apoio de boa parte do exército, era praticamente inviável que a monarquia se sustentasse.

A estrutura material brasileira, elemento decisivo em última instância na transformação

do quadro socioeconômico e político, já não mais comportava um Império. A elite

monárquica é então substituída pela elite republicana.

187
É importante ressaltar que as Reformas tinham o intuito não só de esfriar as pressões
republicanas, mas também de frear o movimento federalista, que surge exatamente por conta da
pouca autonomia dada às Províncias nos anos da monarquia.
165
XXIII

O processo político partidário na Primeira República

A mudança do regime político brasileiro no final do século XIX, como analisamos

anteriormente, trouxe junto a ela uma série de consequências importantes. A nova elite

que se apossou do poder transferiu o centro de decisão da União para os Estados (antes

denominados Províncias). A república, uma vez ancorada nos princípios do federalismo

e do presidencialismo, tinha como núcleo duro do poder as oligarquias estaduais.188 Isso

se comprova inclusive pela ausência de partidos nacionais. Ao longo dos 40 anos que

englobaram nossa primeira fase republicana, as agremiações que irão ditar a ordem do

dia serão estaduais, a saber: o PRP (Partido Republicano Paulista) e o PRM (Partido

Republicano Mineiro), seguidos de perto pelos gaúchos.

Toda essa vasta autonomia que foi dada aos Estados com o fim do Império é

confirmada com a Constituição de 1891. Com base nela, as unidades da federação tinham

permissão para contrair empréstimos no exterior, gravar impostos sobre exportações,

promulgar constituições próprias, dispor de corpos militares próprios e elaborar códigos

eleitorais e judiciários próprios.

188
Os chefes dos Estados tinham pesada influência inclusive sobre os dirigentes locais, também
conhecidos como “coronéis”, incumbidos de controlar a massa ao redor (o chamado curral
eleitoral) e forçá-la a eleger o candidato do partido local, o que não era difícil uma vez que o voto
era aberto. Todo o processo eleitoral era condicionado pelo fenômeno do “coronelismo”, apesar
de, no regime republicano, os critérios monárquicos, inclusive o pecuniário, terem sido, com
exceção da exclusão dos analfabetos, abandonados. Dava-se a aparência, com isso, de uma ampla
representatividade eleitoral, a qual se colocava, junto ao presidencialismo e ao federalismo, como
um dos pilares da República. Cf. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo político-
partidário na Primeira República. In MOTTA, C. G. Brasil em perspectiva. São Paulo: DIFEL,
1971, p. 163.

166
Enganam-se aqueles, entretanto, que ingenuamente acreditam que a passagem da

monarquia para a República se deu sem contratempos. Toda transição em que se

envolvem as facetas política e socioeconômica de uma comunidade é marcada por

instabilidades e mudanças profundas no caminho previamente trafegado por aquela

sociedade, a qual toma uma nova direção após o imbróglio transitório. A eleição de

Deodoro da Fonseca, tendo Floriano Peixoto como vice, em 1891 foi acompanhada de

ferrenha oposição por parte dos paulistas, que haviam lançado a candidatura de Prudente

de Morais. Ora, é natural que, com a vitória de uma figura indesejada, passasse a existir

um descompasso entre a representatividade no Congresso e os interesses dos principais

Estados. A oposição então só aumenta e, com a intenção de brecá-la, Fonseca afasta

opositores das juntas governativas. Incapaz de reduzir a instabilidade, o presidente acabou

por fechar e dissolver o Congresso Nacional, o que minou ainda mais sua sustentação,

levando-o a renunciar ainda em 1891, episódio que se deu concomitantemente ao

afastamento de uma série de militares. Com isso, o novo presidente do país passa a ser

Floriano Peixoto.

O segundo governo continuou assombrado pela instabilidade política, mas esta,

por sua vez, dava sinais mais claros de que iria diminuir. O sufocamento das revoltas

monarquistas da Armada e Federalista é uma amostra convincente de maior coesão no

exército, o que dava à República uma maior segurança para sua sobrevivência. Esse

fortalecimento do regime se deu também pela via do apoio paulista, uma vez que o PRP

já havia lançado Floriano como vice de Prudente de Morais antes da eleição de Deodoro.

Com a eleição de Prudente de Morais em 1894, temos a presidência sendo

chefiada por um civil pela primeira vez. Não obstante, a homogeneidade no Congresso

ainda era uma miragem: os conflitos entre os Estados e dentro dos partidos que os

representavam dificultavam e muito um corpo coeso de deputados e senadores. É só com

167
a passagem de bastão para Campos Sales, outro paulista, e, portanto, com uma

continuidade política que refletia os interesses do PRP que a República terá de fato uma

vida mais tranquila. É importante, portanto, entender como o governo de Campos Sales

foi capaz de, no plano político, esfriar as tensões que rondavam o novo regime.

É fundamental, no que diz respeito ao mandato de Campos Sales, compreender as

alterações feitas na Lei de Verificação dos direitos e da diplomação de deputados e

senadores. Se anteriormente isso era de responsabilidade do Poder Judiciário, a partir de

Campos Sales, e assim será até o início da Era Vargas, é o poder Legislativo que estará

encarregado de diplomar seus membros. Convém entender o quão habilmente essa

alteração funcionou como mecanismo de controle eleitoral. Isso porque, na prática,

somente os candidatos eleitos da situação, ou seja, dos Estados que detinham a hegemonia

no movimento político, é que acabavam sendo empossados, possuindo assim plenos

poderes para exercer as funções que lhes cabiam. O Congresso Nacional, a partir de então,

passa a depender quase totalmente dos interesses das principais unidades federativas (São

Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, em menor medida, Rio de Janeiro). Se por um

lado o terceiro presidente deu a República uma duradoura estabilidade e uma importante

homogeneidade entre deputados e senadores, ele também fez com que os próximos chefes

do executivo se tornassem inteiramente dependentes dos interesses dos principais

governadores. Completava-se, com isso, a já mencionada transferência de poder da União

para os Estados, culminando na chamada Política dos Governadores. O que foi falado no

parágrafo pode muito bem ser ilustrado pelas palavras de Maria do Carmo Campello de

Souza:

Ante o perigo de lutas e de um Congresso fracionado como os anteriores,

decidiu Campos Sales garantir-se o suporte das grandes bancadas de Minas,

São Paulo e Bahia e, fundado em mudança do Regimento Interno da Câmara,

impor ao Congresso uma certa linha de conduta na fase de reconhecimento

168
dos poderes. Definia-se ela por reconhecer somente os diplomas dos

candidatos eleitos pelas situações no poder naquele momento dos respectivos

Estados, não importando a que grupo pertencessem [...]. No nível nacional,

sob a hegemonia dos Estados mais fortes, Minas Gerais e São Paulo,

desenrolava-se o processo político: um ajustamento e compromisso entre

todos os Estados da Federação para a escolha do presidente da República,

ponto crucial e quase único importante no quadro da vida republicana. 189

É importante notar que os principais Estados (São Paulo e Minas Gerais) que regeram o

processo político-partidário na Primeira República eram, como pode-se esperar, os que

ditavam a atividade econômica e que levaram o quadro agroexportador da economia

brasileira para um outro patamar com a produção de café. Nas palavras de Caio Prado

Júnior:

Os anos que se seguem e o primeiro decênio do século atual assinalam o

apogeu desta economia voltada para a produção extensiva e em larga escala,

de matérias-primas e gêneros tropicais destinados à exportação, e que vimos

em pleno crescimento no período anterior.190

189
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. cit., p. 181.
190
PRADO JUNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 207.
169
XXIV

A política monetária na primeira década republicana

Traçado o quadro geral do processo político que engloba a constituição e a

consolidação do regime republicano no Brasil, podemos enfim discutir os caminhos da

política econômica e monetária nos anos iniciais da República Velha.

A primeira condição para abordar a problemática de modo adequado é entender

que toda a política econômica empreendida na primeira década republicana está

condicionada pela crise da economia brasileira no final do Império. Nesse sentido,

sobreleva-se a influência da transição do modo de produção escravista-colonial para o

assalariado em fins do século XIX. É essa transformação estrutural que impõe a nossa

economia uma maior flexibilidade monetária. Isso porque, com a abolição de 13 de maio

de 1888, o grosso da mão-de-obra não é mais de trabalhadores-mercadoria, mas sim de

trabalhadores-consumidores, os quais vendem sua força de trabalho em troca de salários.

Há, com isso, uma ampliação substancial do fluxo de renda no Brasil, levando aos

agricultores e proprietários fundiários maior necessidade de linhas de crédito. Veja que a

transição entre os modos de produção na economia nacional produz dois efeitos que

atuam conjunta e simbioticamente no aumento da demanda por moeda no Brasil.

Existe, porém, um enorme obstáculo que impede o imediato atendimento de tal

procura monetária. Trata-se da característica adstringência de moeda no país, tônica dos

anos imperiais. Esta, por sua vez, era agravada pelo frágil sistema bancário brasileiro do

período: estava fora dos costumes da população brasileira o apelo aos bancos, o que acaba

tirando destes boa parte do poder de multiplicação monetária. Podemos ter uma ilustração

170
desse quadro a partir de um depoimento do jornal The Economist, datado de 1890, sobre

a relação da população brasileira com os bancos:

[...] era raro o uso de cheques, com hábito comum ali de reterem os indivíduos

em seu poder largas quantias em vez de depositá-las em bancos. Os pequenos

negociantes, os taverneiros, por exemplo, no Rio de Janeiro, apenas

excepcionalmente depositam nos estabelecimentos. De ordinário preferem ter

consigo seu dinheiro até a época de pagamentos (...), satisfazendo então os

seus débitos com as somas acumuladas em casa no decurso de seis a nove

meses.191

Se numa estrutura ancorada na escravidão a baixa liquidez de nossa economia não se fazia

sentir, a passagem para o trabalho assalariado provocou graves crises de liquidez. Nem

mesmo uma expansão da base monetária em 25 mil contos de réis feita por Ouro Preto

foi capaz de amenizar o problema.192 Em suma, o quadro monetário se mostrava

completamente antiquado para as transformações produtivas pelas quais passou o Brasil.

Nas palavras de Celso Furtado:

O sistema monetário de que dispunha o país demonstrava ser totalmente

inadequado para uma economia baseada no trabalho assalariado. [...] Era

totalmente destituído de elasticidade e sua expansão anterior havia resultado

de medidas de emergência tomadas em momento de crise, ou do simples

arbítrio dos governantes.193

191
Apud. FRANCO, Gustavo H. B. A primeira década republicana. In ABREU, Marcelo de P. A
ordem do Progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2014, p. 34.
192
Cf.: “Além do padrão-ouro, a outra importante medida de política econômica tomada por Ouro
Preto seria a criação dos chamados auxílios à lavoura. Tratava-se de um vasto programa de
concessão de crédito destinado a servir como compensação aos ex-proprietários de escravos [...]
o programa resultou em uma distribuição bastante seletiva dos créditos que favoreceria em última
instância [...] ‘a lavoura que tivesse condições de vida’.” Idem., p. 37.
193
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 170.

171
Era clara a incompatibilidade entre oferta e demanda de moeda no país e já em 1887 se

reclamava em alto tom de voz por uma maior flexibilidade monetária em nossa

economia.194

A política econômica no início da vida republicana, portanto, tem como pano de

fundo essa quadro monetário extremamente desconfortável. Uma série de medidas com

ênfase no atendimento à ampliada demanda por moeda são colocadas em discussão no

Congresso a partir dos planos do então ministro da fazenda Rui Barbosa. O primeiro passo

foi um maior fornecimento, por parte do governo federal, de linhas de crédito tanto para

industriais quanto para agricultores.

O elemento mais importante, porém, dessa “virada” na política monetária é a

aprovação de uma nova Lei Bancária. A partir dela, instauravam-se três regiões do Brasil

com autorização para a emissão de meios de pagamento: o Norte, que englobava os

Estados da Bahia até o Amazonas; o Centro, que era composto por São Paulo, Minas

Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina; e o Sul, abarcando o Mato

Grosso, o Rio Grande do Sul e Goiás. As três zonas foram autorizadas a emitir 450 mil

contos de réis lastreados em títulos da dívida pública do governo brasileiro. Pouco tempo

depois, outros bancos (Banco do Brasil, Banco Nacional do Brasil e Banco dos Estados

Unidos do Brasil) foram autorizados pelo governo federal a emitir moeda sem qualquer

tipo de lastreamento e sem conversibilidade. O resultado imediato é mais que previsível:

a rápida quantidade de papel-moeda emitido (335 mil contos) era 1,5 vez maior do que

toda a quantidade de meios de pagamentos disponíveis até então para circulação na

economia brasileira, provocando rápido aumento no nível de preços. Veja o gráfico que

194
FRANCO, Gustavo H. B. Op. cit., p. 36.

172
mostra a expansão vertiginosa de nossa base monetária nos anos em que Rui Barbosa

esteve na chefia do ministério da Fazenda:

900.0

800.0

700.0

600.0

500.0

400.0

300.0

200.0

100.0

0.0
1885

1891
1886
1887
1888
1889
1890

1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900

O aumento imediato da disponibilidade de moeda provocou uma euforia feroz na

economia, a qual se deu também muito em função da aprovação da Lei das Sociedades

Anônimas. Com uma diminuição das restrições para a abertura de empresas, há uma

maior facilidade na abertura de capitais na bolsa. O quadro especulativo que daí se

originou chegou a níveis alarmantes a ponto de se presenciar a inauguração de empresas

fantasmas com ações na bolsa.195

195
“Por volta de outubro de 1890, o governo mostra preocupações claras sobre o andamento da
especulação bursátil e chega inclusive a tomar medidas para detê-la através de um decreto
elevando os depósitos mínimos para a constituição de novas sociedades, o que criaria certa
dificuldade na praça. [...] O trabalho de “limpar” as carteiras dos bancos de emissão preservando
os empreendimentos viáveis se estenderia, na verdade, por vários anos.” FRANCO, Gustavo H.
B. Op. cit., p. 39.
173
Não é necessária muita perspicácia para ver que a economia caminhava para uma

situação quase catastrófica. A exagerada expansão monetária, somada a uma

intensificação das especulações na bolsa com a feroz abertura de novas empresas sem que

a atividade econômica estivesse devidamente preparada para isso, provocou um quadro

de elevada inflação e pesada desvalorização cambial. O gráfico abaixo mostra exatamente

a correlação entre a ampliação desmedida da base monetária e a desvalorização

cambial:196

900.0 30.000

800.0
25.000
700.0

600.0 20.000

500.0
15.000
400.0

300.0 10.000

200.0
5.000
100.0

0.0 0.000
1885
1886
1887
1888
1889
1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900

A grave crise econômica em que se encontrava o país tornava insustentável a

permanência de Rui Barbosa como ministro da Fazenda. Depois do jurista, Conselheiro

Araripe e Barão de Lucena evitaram controlar a expansão monetária muito por conta da

falência do Baring Brothers e da moratória argentina, que se somavam à intensa crise

196
Em laranja temos a taxa de câmbio em pence/mil-réis, ao passo que a curva azul aponta para
a base monetária
174
política. Todos esses fatores agravavam ainda mais a desvalorização cambial e a inflação

consequentemente. De acordo com Franco:

Ruy Barbosa deixaria a pasta da Fazenda no começo de 1891 e seria sucedido

pelo conselheiro Alencar Araripe [...] e em seguida pelo Barão de Lucena.

Ambos eximiram-se de proceder ao saneamento do grande instituto emissor

recém-criado, com isso se abstendo de arrefecer o fervor especulativo

reinante. Não resta dúvida, por outro lado, de que influências “exógenas”,

ligadas aos efeitos sobre as entradas de capital no Brasil do colapso da casa

Baring Brothers e, Londres, em outubro de 1890, e da moratória argentina,

teriam grande influência sobre o mercado de câmbio no Brasil em 1891.197

Os rumos da política econômica mudam com a eleição de Campos Sales e a

nomeação de Joaquim Murtinho para o ministério da Fazenda. Seria levada a cabo uma

conduta de saneamento monetário. O projeto seria construído a partir de um grande

empréstimo externo tomado junto à Casa dos Rothschild, consolidando a dívida pública

sem a necessidade de maiores emissões não lastreadas. Como garantia de que a

contrapartida brasileira, o saneamento, fosse devidamente realizada, o Brasil colocava a

arrecadação alfandegária com as transações correntes. O plano recebeu o nome de

funding-loan.198 É inegável o efeito da política contracionista de Murtinho sobre a queda

no nível de preços e também sobre a valorização cambial. A política monetária deixaria

para trás seu caráter inflacionista e assumiria uma postura visivelmente deflacionista, com

uma redução de 13,5% do meio circulante entre 1898 e 1902 e uma concomitante queda

de 30% do nível de preços da economia. O principal efeito colateral do saneamento,

porém, foi a falência de considerável porção do sistema bancário, adaptado à antiga Lei

197
FRANCO, Gustavo H. B. Op. cit., p. 40.
198
Idem, p. 43.
175
Bancária dos anos de Barbosa e que subitamente teve uma diminuição brutal de suas

reservas.199

A continuação da política de saneamento no início do século XX, porém, traria

frutos positivos para a economia brasileira a partir de 1903. Tem-se início, no governo de

Rodrigues Alves, uma retomada do crescimento econômico, impulsionado também pela

maior participação do Estado na economia, com robustos investimentos públicos

(financiados com empréstimos externos) em infraestrutura logística que acabaram por

acelerar a atividade econômica e inclusive possibilitar o aquecimento de nosso jovem

ambiente industrial. O que acabamos de dizer é bem ilustrado por Villela e Suzigan:

[...] apesar de a política econômica, seguida a partir de 1903, ter seguido

basicamente as diretrizes da política depressiva de 1899-1902, deu-se o que

se chamou na época de um período de “reerguimento econômico”. Isso se

deveu unicamente ao fato de ter o Governo, embora ainda preocupado em

manter o equilíbrio orçamentário, iniciado um extenso programa de

investimentos públicos em infraestrutura de transportes e melhoramentos na

Capital Federal. [...] Uma grande parte desses investimentos foi, contudo,

financiada com recursos específicos provenientes de empréstimos externos.

Assim, não foi difícil à política monetária e financeira do Governo manter o

desejado equilíbrio orçamentário e estabilidade monetária, pelo menos até

1907 [...]. Os primeiros anos da República do Brasil são talvez o único

período, antes dos anos trinta, em que a política do Governo manifestou

interesse em promover o desenvolvimento industrial. 200

Com a aceleração no ritmo da atividade, não é surpreendente que houvesse um

igual aumento no nível das exportações de café, amparadas pela renovada estrutura

199
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira.
Brasília: IPEA, 1973, p. 106.
200
Idem, p. 106.
176
logística. A defesa dos preços do café (sobre a qual falaremos com muito mais detalhe

posteriormente) na primeira década do século passado também ampliou ainda mais os

rendimentos da agricultura. A poupança gerada pelo setor cafeeiro provocou os primeiros

surtos de industrialização sofridos pelo país, antes do robusto deslocamento do centro

dinâmico a partir de 1930. Mas é importante ressaltar que, como nos mostrou Furtado, a

ausência de base técnica para a industrialização tornaria o Brasil constantemente

dependente da importação de bens de capital, a qual seria viabilizada pelas exportações

de gêneros, no caso o café. E foi exatamente isso que aconteceu.201 Note o aumento da

Formação Bruta de Capital Fixo a partir da década de 1900 e que segue uma tendência

ascendente que se intensifica até meados do decênio seguinte (provocando, assim, uma

alteração na nossa composição de importações, nas quais passou a ter maior peso os

insumos ao invés dos bens finais):

1.4000E-09

1.2000E-09

1.0000E-09

8.0000E-10

6.0000E-10

4.0000E-10

2.0000E-10

0.0000E+00

201
“É geralmente aceito que a mola propulsora do surto industrial ocorrido em São Paulo, e
provavelmente em outros Estados a partir da República, foi a própria monocultura do café. Ela
gerou as poupanças que os fazendeiros investiram não só em infraestrutura mas também em
atividades industriais substitutivas de manufaturas de consumo importadas, como tecidos,
alimentos, bebidas, etc.” Ibidem, p. 123.

177
XXV

A defesa do café

1.) Episódica

Dado que realizamos a análise e a descrição da transição política brasileira, assim

como traçamos um quadro suficiente a respeito da primeira década de política monetária

republicana, podemos adentrar no estudo sobre a defesa dos preços daquele que era na

época nosso principal gênero de exportação: o café. Começaremos, no que nos aparenta

ser mais adequado, delinear os antecedentes da política de valorização.

O mercado cafeeiro, na ausência de qualquer intervenção oficial, possuía um

comportamento cíclico dada a própria natureza da planta. Existe uma expansão inicial da

oferta dado que o cafeeiro produz de forma perene, completando seu ciclo em até cinco

anos. E mesmo assim ele continua produzindo em condições economicamente viáveis ao

longo de mais de uma década, o que faz com que a oferta do gênero dependa dos preços

que se formam não no primeiro ano, mas em momentos anteriores, no início da cultura.

A procura, por sua vez, segue um caminho menos “tortuoso”, dado que reflete os preços

presentes. É claro, com base na explanação, que deveria haver, ao final do ciclo uma

queda no valor do gênero. Esta depreciação, porém, não teria duração por tempo

indeterminado uma vez que outros ciclos de produção poderiam ter início, havendo então

novo ajuste entre oferta e procura. Veja a descrição, sobre o que acabamos de dizer, feita

por Delfim Netto:

É fácil compreender-se porque o mercado cafeeiro deve, em condições

normais, apresentar um comportamento oscilatório. [...] o cafeeiro é uma

178
planta perene que apenas produz completamente no seu quarto ou quinto ano

de vida e, depois disso, continua produzindo economicamente durante um

número bem variável de anos [...] Nessas circunstâncias, a oferta de café do

ano “t” dependeria, não do preço do café no ano “t”, mas de seu preço no

ano “t-4” (quando a plantação foi realizada) [...]. A procura do café,

entretanto, depende, no caso mais simples, somente do preço no ano “t”

[...].202

Considerando a história cafeeira sem quaisquer intervenções oficiais, podemos

identificar três ciclos da produção do gênero. De todos eles, o mais decisivo certamente

é o segundo (1869 – 1885). Isso porque este tem como pano de fundo a expansão das

ferrovias na formação do complexo cafeeiro. A nova estrutura logística teria sido crucial

no novo quadro em que se encontrava a cultura de café: o Oeste Paulista, e não mais o

Vale do Paraíba, era a maior e mais importante zona produtora do gênero. O fim do tráfico

negreiro e da escravidão, que era o eixo norteador da produção dos Vales paulista e

fluminense, concretizaram essa transferência, produzindo graves desdobramentos para os

empresários mais antigos das duas Províncias: arcaram com as pesadas consequências

que se refletiam numa maior necessidade de crédito e de capitais para o pagamento de

salários, num contexto de elevada adstringência monetária nos anos imperiais. 203 Os

homens fortes do Oeste, principalmente do Oeste Novo, foram, por outro lado, capazes

de absorver plenamente a onda de trabalhadores assalariados livres e imigrantes, da qual

o empresariado “progressista” tirou excelente proveito.

A passagem da Monarquia para a República, porém, foi marcada por uma sensível

queda nos preços de exportação do café, o qual passava por seu auge, como pudemos

descrever panoramicamente no parágrafo acima. A política monetária de Barbosa, que

202
DELFIM NETTO, Antônio. O problema do café no Brasil. São Paulo: IPE/USP, 1981.
(Ensaios Econômicos, 16), p. 8.
203
Idem, pp. 21 – 23.
179
culmina na crise do encilhamento, provocou uma pesada desvalorização cambial,

servindo como um “colchão protetor” para os cafeicultores paulistas. Era assim dado um

estímulo inicial para a produção e a subsequente exportação do gênero. Já se notava, a

partir disso, um descolamento da oferta em relação à demanda nos primeiros anos da

década de 1890 (principalmente porque o câmbio descia a taxas muito maiores que o

valor do bem).204 A saída do jurista da pasta da Fazenda, no entanto, e o início do

saneamento de Murtinho em meados do último decênio dos oitocentos, reduzindo

consideravelmente a disponibilidade de meio circulante na economia pressionava o

câmbio para uma valorização. Esta, por sua vez, deveria continuar a derrubada dos preços

do café, iniciada com a defasagem, que aumentaria cada vez mais, entre oferta e

procura.205 Veja a ilustração gráfica:

Taxa de câmbio (mil-réis/libra) Preço do café (U$c/lb)


60
50
40
30
20
10
0
-10
-20
-30
-40
-50

204
Cf.: “O quadro anterior revela a gênese do problema cafeeiro nacional. A coincidência de uma
queda mais rápida do câmbio do que dos preços do café criou condições para a expansão da
cultura cafeeira quando o mercado já não podia absorver a quantidade produzida a não ser a níveis
ínfimos de preços.” Ibidem, pp. 29 – 30.
205
Lembremos da relação que explicita os termos de troca, muito referenciada pelo cepalino R.
Prebisch em seu relatório de 1949: Px/Pm = 1/θ, em que Px é o preço de exportação, Pm é o preço
de importação e θ é o câmbio real.
180
Com a oferta nacional não se encaixando nos limites da demanda mundial (a qual

possuía baixíssima elasticidade preço, o que colocava os rendimentos do setor cafeeiro

brasileiro em risco quando acontecia casos de desequilíbrios no mercado) por café, já se

colocava em pauta a necessidade de intervenções oficiais com o objetivo de defender os

preços do café. Em 1902, temos as primeiras evidências de intervenção estatal na

produção cafeeira. O Estado de São Paulo proibiu, no mesmo ano, um aumento das áreas

plantadas de café por todo o seu território. Durante 5 anos a oferta do bem não poderia

ser expandida.206 Mas é apenas em 1906, ano de uma desesperadora supersafra do café,

que a discussão sobre um plano mais robusto de valorização dos preços do gênero ganhará

força. Estamos falando do Convênio de Taubaté, idealizado pelo governador do Rio de

Janeiro Quintino Bocaiúva. As outras duas unidades federativas que entrariam na

empreitada seriam, como é de se esperar, as principais produtoras de café: São Paulo e

Minas Gerais.

O Convênio teria suas intenções materializadas a partir de um financiamento

estrangeiro, com autorização da União. Os Rothschild emprestariam aos Estados

idealizadores do plano a soma de 15 milhões de libras esterlinas, as quais seriam pagas a

partir da arrecadação com a sobretaxa de 3 francos sobre cada saca de café exportado.207

O empréstimo, o qual lastrearia as emissões monetárias a partir de então, serviria para

custear a formação de estoques do gênero produzido no Brasil, de modo que os preços do

café se mantivessem em torno de 32$000.

O plano de valorização, embora tivesse como prioridade a manutenção de um

nível razoável para os preços do café, possuía um segundo pilar: a estabilização cambial.

206
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 43.
207
É bem verdade que políticas de “marketing”, com vistas a estimular a demanda internacional,
seriam levadas a cabo.
181
O êxito da defesa dos preços sem que as exportações diminuíssem sensivelmente

poderiam provocar uma reação em cadeia que culminaria numa apreciação do câmbio,

atenuando os benefícios trazidos pelo aumento dos preços externos do café aos

cafeicultores. A valorização cambial espelharia os efeitos de um aumento nos preços

externos da commoditie com uma diminuição de seus preços dentro do país,

comprometendo a lucratividade do empresariado. Assegurar os benefícios implicava

defender não só os preços externos no nível de 32$000, mas também a estabilidade do

câmbio.208

O grande problema que permeava o duplo plano de defesa do Convênio era que,

embora estivessem profundamente interligadas e fizessem parte do mesmo esforço dos

cafeicultores em garantir a lucratividade da produção, a valorização dos preços externos

e a estabilidade cambial possuíam determinações distintas. A queda do valor da saca de

208
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 65. A defesa da estabilização cambial, embora
estivesse plenamente adequada aos interesses específicos da burguesia cafeicultora brasileira, era
tida como uma demanda quase que nacional, tanto por parte da população como por parte da
União. O controle do câmbio foi, pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, uma meta a ser
atingida. A grande questão é que os cafeicultores e os ditos economistas ortodoxos do período
divergiam quanto ao que seria o nível “adequado” da estabilização: aqueles pretendiam um grau
muito mais desvalorizado que estes, interessados no retorno da paridade de 1847 (26 pence/mil-
réis). Cf.: “Examinando as políticas monetárias, adotadas no Brasil antes da Primeira Guerra
Mundial, fica clara a constante preocupação do Governo com a estabilidade cambial. Não só o
Governo buscava uma taxa de câmbio estável, mas a estabilidade era desejada pela maior parte
da população. Havia então, como há agora, um consenso, de que a estabilidade da taxa de câmbio
era, ao menos em princípio, uma meta a ser atingida […]. Com o objetivo de defender sua renda,
os cafeicultores passaram a pressionar o Governo a adotar medidas que viessem não só a aumentar
os preços do café no mercado internacional mas, também, impedir que esses preços continuassem
caindo em moeda nacional […]. As divergências entre os cafeicultores e o Congresso não se
referiam às vantagens e desvantagens de se estabelecer um mecanismo que tornasse a moeda
conversível e mantivesse o câmbio estável. A discussão que se travou então foi, sobretudo, a
respeito do nível de taxa cambial a ser adotado pela Caixa de Conversão. Os cafeicultores
reivindicavam uma taxa desvalorizada […] os políticos ortodoxos defendiam uma valorização ao
nível da velha paridade de 1847 [...].” OLIVEIRA, Maria Teresa R. de; SILVA, Maria Luiza F.
O Brasil no padrão-ouro: a caixa de conversão de 1906-1914. História Econômica &História de
Empresas IV, I (2001), p. 83 – 114.

182
café tinha sua raiz numa defasagem do mercado, dado que desde a última década do

século XIX a oferta excedia em alta proporção a demanda pelo gênero agrícola. A

superprodução estava no fundo do problema da formação dos preços. Adicionar à defesa

artificial destes a busca pela estabilização cambial num patamar desvalorizado por

intermédio da Caixa de Conversão justamente para impedir a corrosão dos lucros do

empresariado rural acabaria por transferir aos consumidores de bens importados (que

compunham boa parcela da população brasileira no início do século XX) uma série de

perdas em função da elevação dos preços desses mesmos bens. Veja nas palavras do

próprio Delfim Netto:

O Convênio de Taubaté representa a origem do tratamento confuso de dois

problemas que, apesar de interdependentes, devem ser tratados cada um de

um ponto de vista […] o problema do café era um problema de mercado.

Existia uma superprodução, causada por várias razões, e é certo que uma boa

parte da culpa cabia ao comportamento governamental que se seguiu à

proclamação da República […] Confundir o problema cafeeiro com o

problema cambial e procurar baixar a taxa cambial e fixá-la nesse nível (era

essa, pelo menos a intenção dos participantes do Convênio, que esperavam a

estabilização em 12 dinheiros por mil-réis, quando o câmbio estava a 16)

simplesmente para favorecer os cafeicultores, era estimular uma transferência

de rendimentos dos consumidores de produtos importados para os produtores

de café.209

Uma vez que os objetivos do Convênio foram acima analisados, podemos delinear as

premissas que embasavam o projeto de valorização: a) a sobretaxa de 3 francos sobre

cada safra de café exportado deveria ser imperceptível ao consumidor, de modo que a

procura sofresse mínimos impactos; b) a elevação dos preços do café para o nível de

209
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 66.
183
32$000 não poderiam ativar uma concorrência internacional no mercado do gênero (o

que era de fato improvável, dado que o segundo maior produtor, que era a Colômbia,

estava muito abaixo do Brasil em termos de produção e exportação);210 c) a produção

nacional não poderia crescer substancialmente em razão das limitações ao plantio

determinadas em 1902.211

Tratamos dos objetivos e das premissas que embasaram o Convênio de Taubaté

(nossa primeira estratégia significativa de defesa do café). Convém agora explicitar como

se deu realmente a execução do plano de valorização. Se era necessário contrair um

empréstimo externo no total de 15 milhões de libras esterlinas, a situação tornou-se

extremamente delicada quando apenas o Estado de São Paulo decidiu assumir por

completo os riscos da operação, conseguindo um empréstimo de apenas 1 milhão de libras

junto ao Brasilianisch Bank fur Deutschland, cobrando, não obstante, a sobretaxa de 3

francos. Veja de acordo com Delfim Netto:

Na hora de executar o plano, verificou-se que seria impossível levantar-se os

15 milhões de libras esterlinas. A situação começou a agravar-se diante da

indiferença tanto dos governos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, como do

Federal, que deveria abandonar o poder a 15 de novembro de 1906. Diante

desses fatos, o Estado de S. Paulo decidiu empreender, por sua própria conta,

a valorização, obtendo financiamentos por caminhos inteiramente diferentes

dos que até então haviam sido pensados.212

É só com a eleição do paulista A. Pena, totalmente alinhado aos interesses dos

cafeicultores paulistas, para a Presidência da República, que a União se dispõe a realizar

o financiamento junto aos Rotschild.

210
Cf. Martins & Johnston, 150 anos de café, Apêndice estatístico.
211
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 76.
212
Idem, pp. 67 – 68.
184
Garantido o empréstimo que serviria de lastreamento para as emissões monetárias

necessárias para a viabilidade do plano, tem início a estocagem das sacas de café de

melhor qualidade, as quais seriam armazenadas na Europa, nos EUA e em algumas

localidades do Brasil. Para que o café mineiro e fluminense não fosse prejudicado no

processo de estocagem, o Governo Federal também interviu no armazenamento. É

notável, entretanto, que os preços externos do café só atingiriam o nível considerado

“ótimo” no ano de 1908. Até então, a expectativa do mercado era de que a União e o

Estado de São Paulo saldariam suas dívidas com os estoques. É só quando essa incerteza

é eliminada que o valor da safra passa a reagir positivamente.

O plano de valorização, levando em consideração os objetivos perseguidos, deve

ser visto como bem-sucedido. De fato, entre 1908 e 1912, os preços aumentam

substancialmente, permitindo inclusive que os cafeicultores paulistas liquidassem todas

as dívidas oriundas de compromissos realizados desde 1906.213 Estoques foram vendidos

e ainda restariam praticamente 3,5 milhões de sacas em armazenamento. Mas é crucial

que se perceba que, considerando o já mencionado comportamento cíclico da economia

cafeeira, os preços normalizariam mesmo sem a intervenção estatal da União e dos

paulistas. A superprodução de 1906 provocou intenso desmatamento dos solos, o que

certamente levaria a uma diminuição da oferta, adequando-se ou ficando até inferior à

demanda. De acordo novamente com Delfim:

A situação caminharia com rapidez para a regularização, pois as safras

brasileiras dos próximos anos não deveriam superar, em média 12 milhões de

sacas, as quais, somadas a mais ou menos 3,6 milhões produzidas por nossos

213
Além do empréstimo principal de 15 milhões de libras esterlinas assumido conjuntamente por
São Paulo e a União (a unidade federativa, como vimos, tomou 1 milhão emprestado do
Brasilianisch Bank fur Deutschland e o restante foi levado a cabo pelo Governo Federal junto aos
Rotschild), os paulistas arrendaram a sorocabana e contraíram novo empréstimo de 2 milhões de
libras esterlinas. Outra forma de financiamento veio por intermédio da União, que forneceu ao
Estado crédito de 3 milhões de libras de modo a regularizar a estocagem.
185
concorrentes, dava um suprimento de 15 a 16 milhões de sacas por ano,

enquanto o consumo era da ordem de 19 milhões de sacas.214

O êxito do Convênio de Taubaté não evitou, porém, que o projeto de defesa

trouxesse consequências graves do ponto de vista da política econômica. As intervenções

oficiais frequentes no mercado produziram distorções estruturais no sistema de preços do

café, assim como abriram precedente para futuras ingerências estatais na economia

cafeeira. Os empresários ganhariam cada vez mais dependência em relação aos Governos

Federal e Estadual no que concernia a futuras defasagens entre oferta e demanda. Abria-

se, com isso, margem para novos planos de valorização artificial.215

A memória do êxito na defesa de 1906 com o Convênio de Taubaté se faria sentir

já em 1917. O apelo da cafeicultura para a intervenção estatal (tanto a nível federal como

a nível estadual) tem raízes em dois fatores imbricados e que atuaram, por assim dizer,

conjuntamente na perspectiva da burguesia cafeeira de que haveria queda nos preços: a

expectativa de uma supersafra naquele ano e as restrições comerciais impostas pelos

principais compradores internacionais (EUA e Europa Ocidental) no auge da Primeira

Guerra Mundial.

O Governo Federal, nesse sentido, atendendo às demandas dos empresários do

café, mobiliza 110 mil contos de réis para a formação de estoques. É importante ressaltar

que a União havia retomado, como forma de financiamento do déficit público, as

emissões de meio circulante, ampliando a base monetária e tornando possível o repasse

desse montante de meios de pagamento. Paralelo a isso, o Estado de São Paulo adquiriu

3,1 milhões de sacas de café no porto de Santos pelo valor de 30$000 cada uma.

214
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 75.
215
Idem, p. 90.
186
A segunda operação de valorização, que pudemos descrever panoramicamente

acima, com toda a certeza dependeu dos esforços das instâncias do executivo federal e

estadual, diminuindo os estoques visíveis e assim comprimindo a oferta brasileira, e

consequentemente mundial, do bem. Não podemos, entretanto, esquecer de um fenômeno

natural crucial para a elevação dos preços: a geada de 1918 no Estado de São Paulo. A

restrição natural do suprimento mundial de café elevou o valor da saca de café de tal

forma que todos os estoques, inclusive aqueles realizados em 1906 no Convênio, foram

vendidos. Ao fim e ao cabo, os homens fortes da cafeicultura recolheram lucros

extraordinários de 129 mil contos.216

Se a segunda defesa episódica do café foi extremamente bem-sucedida ao

defender o preço do gênero no mercado mundial, não podemos fazer vista grossa com

relação a seus efeitos colaterais sobre a coletividade brasileira. A compra e a formação de

novos estoques se deu, como vimos, por intermédio de um aumento da base monetária.

A expansão dos meios de pagamento com vistas a financiar a operação acabou por

produzir, na forma de uma escalada inflacionária, um imposto sobre o grosso dos bens

consumidos pela população. Como nos afirma Delfim Netto:

Sendo as compras financiadas por emissões de papel-moeda, isto representou

um imposto (sob a forma de inflação) sobre toda a coletividade, que passou,

assim, a assumir o risco da operação.217

A escalada dos preços do café em 1918 abriu novo precedente para que, no

quadriênio 1921 – 1924, o Governo Federal, contraindo empréstimos estrangeiros,

interviesse na oferta do bem, quando as perspectivas de desequilíbrio se mostravam reais.

O quadro da economia mundial que motivou a terceira operação de defesa era, por sua

216
Ibidem, p. 98.
217
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., pp. 99 – 100.
187
vez, o de uma restrição do crédito americano e europeu para importar sacas de café, num

ambiente inflacionário nos EUA e hiperinflacionário na Europa do pós-guerra. Foram

feitas inclusive tentativas frequentes de restringir, nesse intervalo, a entrada de café nos

portos.

Nessa época, porém, já se falava, inclusive o Pres. Epitácio Pessoa, na necessidade

de um mecanismo de defesa permanente dos preços do café.

2.) Permanente

O propósito da política de defesa permanente dos preços do café era o de uma

intervenção perene das instâncias do executivo federal e estadual na oferta do bem. A

materialização do plano se daria com a formação de pontos de armazenagem do café nos

entroncamentos entre as ferrovias que desembocavam nos portos. Com isso, regulava-se

a entrada da commoditie no litoral, restringindo severamente sua oferta no mercado

internacional, estabilizando os preços em níveis razoavelmente altos. Os estoques que se

acumulavam nos armazéns do interior do Estado de São Paulo serviriam, por sua vez,

como garantia de empréstimos realizados a juros módicos.

Até mesmo mecanismos institucionais foram colocados em pauta para o bom

andamento da defesa permanente. Os dois principais nesse sentido foram o Instituto de

Defesa Permanente da Produção Nacional e o Instituto Paulista de Defesa Permanente do

Café. Ambos foram os principais emprestadores para a formação de estoques nos

armazéns criados nas estradas de ferro.

Com o que foi ligeiramente exposto nos dois parágrafos anteriores, podemos ver

que a nova estratégia de defesa do café tem um fundamento completamente diverso das

políticas anteriores. Agora, a intervenção oficial não se daria em períodos de crítico e

desesperador desequilíbrio do mercado mundial do bem, tendo, por assim dizer, caráter

188
esporádico. Na realidade, o que se buscava agora era a fixação de um preço tal que os

lucros da cafeicultura e, portanto, os rendimentos da principal atividade econômica do

Brasil, estivessem salvaguardados tanto em condições normais como em quadros de

defasagem entre a oferta e a demanda internacional de café.218 Celso Furtado, porém, nos

mostra precisamente que uma política cujo norte se dava pela manutenção teimosa do

nível de preços em um patamar elevado acabaria estimulando consistentemente a oferta

brasileira do gênero no mercado internacional, produzindo uma tendência ao

desequilíbrio externo.219

O mecanismo de defesa permanente funcionou relativamente bem até o final da

década de 1920, quando a crise de 1929 o sepultou em definitivo. O colapso da economia

mundial expôs o enorme desequilíbrio que se formou, desde o início das operações nos

anos de 1920, entre a oferta e procura mundial por café. Os problemas estruturais que

derivam da defesa permanente e que Furtado nos apontou ficam evidentes com o gráfico

abaixo:

218
Cf.: “É preciso considerar-se com cuidado a diferença entre esta nova fase da defesa e as
anteriores. Até aqui as intervenções tinham tomado o caráter de medida de salvação da lavoura
[...]; eram tomadas já quando a situação do mercado cafeeiro era suficientemente grave e mesmo
assim só depois de muita discussão e oposição [...] Ora, a ideia da defesa permanente era
exatamente o oposto.” Idem, p. 125.
219
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 182.
189
Consumo Mundial Produção Mundial + Estoques

A formação de novos estoques no desesperador quadro colocado pela crise mundial se

mostrava praticamente inviável dada a falta de recursos oriunda do plano político de

Washington Luís de salvar a candidatura de seu sucessor Júlio Prestes. O governo

experimentara uma baixa nos preços esperando por uma elevação da demanda, o que

efetivamente não ocorreu muito em função da baixíssima elasticidade preço da procura

por café.220 Era necessário, em função da escassez de recursos, que o valor da saca de

café fosse defendido por meio de métodos inteiramente novos e arriscados. No início da

Era Vargas, o Governo Federal assume o compromisso de queimar as sacas de café.221 É

o keynesianismo avant-la-lettre do saudoso Chico de Oliveira.

A destruição volumosa dos estoques de café tornar-se-ia prerrogativa exclusiva da

União a partir de 1931, sendo financiada mediante empréstimos que totalizavam a soma

de 20 milhões de libras esterlinas, colocando os estoques como garantia. É importante

notar que, ao praticar uma política extremamente heterodoxa (em comparação ao que já

tinha sido feito anteriormente) de defesa dos preços do café, o Governo Federal,

220
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 138.
221
Trataremos com muito mais detalhes posteriormente a respeito do período que compreende o
fim da Primeira República e o início da Era Vargas.
190
interessado em defender o principal setor da burguesia nacional (e, portanto, daquela

classe que sustentava o Estado Burguês brasileiro e a economia burguesa nacional),

acabou por defender a renda e o nível de emprego na principal atividade do país.

Atenuava-se, com isso, o multiplicador do desemprego e, já em 1932, a economia

brasileira dava sinais de recuperação. Nas palavras de Furtado:

Ao garantir preços mínimos de compra, remunerados para a grande maioria

dos produtores, estava-se na realidade mantendo o nível de emprego na

economia exportadora, e, indiretamente, nos setores produtores ligados ao

mercado interno. Ao evitar-se uma contração de grandes proporções na renda

monetária do setor exportador, reduziam-se proporcionalmente os efeitos do

multiplicador de desemprego sobre os demais setores da economia [...].

Explica-se, assim, que já em 1933 tenha recomeçado a crescer a renda

nacional no Brasil, quando nos EUA os primeiros sinais de recuperação só se

manifestam em 1934. [...] O impulso de que necessitava a economia para

crescer já havia sido recuperado.222

222
FURTADO, Celso. Op. cit., pp. 190 – 193.
191
XXVI

A industrialização controversa

O Brasil é um dos países latino-americanos que se encontram, assim como

Argentina e México, no rol das nações que passaram pelo complexo processo de

industrialização tardia na periferia do capitalismo no século XX.223 A natureza árida e

não-linear que permeia a formação do parque industrial brasileiro não poderia provocar,

na academia, outra coisa que não um extenso debate historiográfico acerca do fenômeno.

Nossa industrialização é com certeza um dos temas sobre os quais o pensamento

econômico brasileiro (e até mesmo internacional) mais se debruçou.

É possível, com base no que foi afirmado acima, identificar quatro linhas

historiográficas que tratam da industrialização nacional: a) a Teoria dos Choques

Adversos, b) a Industrialização induzida pelas exportações de café, c) a industrialização

como um fenômeno do Capitalismo Tardio e d) a industrialização como resultado de

Políticas Governamentais. Cabe agora delinear com mais detalhe o que cada vertente diz

sobre a modernização da economia brasileira e como cada uma olha para o processo.

a) Teoria dos Choques Adversos

O que significa, por assim dizer, um choque adverso? Basicamente, é quando um

abalo externo, ou melhor, uma crise internacional afeta a atividade primário-exportadora

223
Há quem diga, não obstante, que o Brasil hoje passa por uma desindustrialização. Claramente,
um debate que tenha como núcleo tal problemática só pode ser rodeado de economistas ou outros
profissionais e acadêmicos que não possuem a menor ideia a respeito dos fundamentos básicos
da História Econômica do Brasil. Não nos esforçaremos, portanto, em entrar, nem que
superficialmente, em tal discussão.
192
da economia nacional, de modo que a demanda pelo gênero diminua sensivelmente. Vale

notar que o impacto vindo de fora faz-se sentir inclusive no sistema de preços, elevando

consideravelmente a cotação internacional. Impõe-se, a partir disso, sérias dificuldades

às importações de bens finais, abrindo a oportunidade para que a atividade econômica se

desloque para os setores importadores de bens de capital, promovendo a formação da

indústria nacional a partir da substituição de importações.224

Dentro da linha dos choques adversos, é possível identificar os trabalhos da

CEPAL, de Celso Furtado e de Maria da Conceição Tavares. Os principais nomes do

pensamento cepalino, inclusive Prebisch, partem, no entanto, da versão extrema da Teoria

dos Choques Adversos. Analisando um padrão de relações entre o centro e a periferia do

capitalismo, os expoentes da CEPAL viam nos Estados latino-americanos uma estrutura

que refletia o desenvolvimento e os fluxos econômicos que ocorriam na área desenvolvida

do globo. O “centro de decisão” das economias subdesenvolvidas residia fora delas,

residia na demanda internacional por bens primários. O deslocamento do centro só

poderia, nesse sentido, acontecer pelas vias da industrialização. Veja como as palavras de

Suzigan fazem coro ao que foi aqui explicitado:

A base da doutrina econômica da CEPAL reside no padrão de relações de

comércio exterior entre os países do centro (industrializados) e os países da

periferia (América Latina). [...] o padrão de crescimento dos países periféricos

era “voltado para fora” [...] com a procura externa funcionando como “motor

do crescimento” [...], o “centro de decisão” da economia dos países

periféricos ficava fora desses países, caracterizando-os como economias

“reflexas e dependentes”. [...] a mudança para um novo padrão de

224
Cf. SUZIGAN, W. A indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo:
HUCITEC/UNICAMP, 2000, p. 25.
193
crescimento, “voltado para dentro”, somente seria possível por meio da

industrialização.225

Mas por qual razão podemos dizer que a CEPAL se encaixa na chamada versão extrema?

Basicamente pelo fato de que seus principais pensadores “generalizam” os efeitos que

potencializariam a industrialização para quaisquer abalos externos de relevância razoável.

Assim, não só a crise de 1929 e a Grande Depressão são descritos como acontecimentos

externos que fundamentaram a industrialização nos países subdesenvolvidos. As duas

grandes guerras mundiais também teriam funcionado, na medida em que comprometeram

a demanda mundial pelas commodities e elevaram os preços dos bens importados pela

periferia, como choques adversos, promovendo a substituição das importações. O

relatório de 1949 da CEPAL aponta exatamente para o que acabamos de descrever:

Antes de la primera guerra mundial, ya se habían dado, en los países de

producción primaria, algunas manifestaciones incipientes de esa nueva etapa.

Mas hizo falta que sobrevinieses con el primer conflicto belico universal,

serias dificultades de importación, para que los hechos demonstraran las

posibilidades industriales de aquellos países […] y que, en seguida, la gran

depresión económica de los años treinta corroborase el convencimiento de que

era necesario aprovechar tales posibilidades, para compensar así, mediante

el desarrollo desde dentro, la notoria, insuficiencia del impulso que desde

fuera había estimulado hasta entonces la economía latinoamericana

[…]corrobación ratificada durante la segunda guerra mundial, cuando la

industria de la América Latina, con todas sus improvisaciones y dificultades,

se transforma, sin embargo, en fuente de ocupación y de consumo para una

parte apreciable y creciente de la población.226

225
Idem, p. 26.
226
Estudio Económico de America Latina, 1949. Elaborado por la secretaria de la Comision
Económica para America Latina. Naciones Unidas, Departamento de Asuntos Económicos. NY,
1951, p. 4.
194
É fundamental notar, porém, que Furtado e Tavares, expoentes da primeira

geração cepalina, divergem da Comissão no que concerne à interpretação sobre

industrialização brasileira.227 Para ambos (principalmente para Furtado), o único

elemento externo que se poderia considerar como um choque adverso promotor da

indústria nacional teria sido a crise de 1929 e a Grande Depressão subsequente.

Compreender como Furtado descreve a industrialização brasileira na década de

1930 exige que seja realizado o esforço de enxergar como o autor articula o abalo externo

da grave crise mundial com as políticas governamentais de queima das sacas de café no

início da Era Vargas (a política econômica anticíclica, ou melhor, o keynesianismo avant-

la-lettre). Haveria, portanto, uma dupla causalidade na modernização da economia

brasileira.

Como vimos no capítulo anterior, a estratégia “ultra heterodoxa” que consistia em

destruir os estoques do café para garantir um patamar razoável de preços acabou

funcionando como um atenuante do multiplicador do desemprego, uma vez que realizou

na prática a defesa do nível de renda (e do consumo consequentemente) no principal setor

da atividade econômica brasileira. A crise de 1929, por sua vez, tem um duplo

direcionamento. Ela represa internamente o nível de renda que havia sido defendido pela

intervenção estatal, uma vez que os preços de importação tornam-se mais caros,

reduzindo o coeficiente de importações (denotado muitas vezes por my nos principais

manuais de macroeconomia).228 Por outro lado, permite a transferência dessa mesma

227
Vale dizer que Tavares, como veremos a seguir, migra da linha dos choques adversos para
aquela que interpreta a industrialização brasileira com base no desenvolvimento do capitalismo
tardio. A autora estaria, com isso, movimentando-se do pensamento cepalino para o marxista.
228
É importante que se note que o aumento do nível de preços dos bens importados tem como
fatores de causalidade tanto a crise de 1929 como a política de defesa do café empreendida no
início da década de 1930. De fato, o choque negativo da economia mundial, produzindo um
quadro inflacionário na Europa e nos EUA, encareceu a mercadoria importada. Mas, é necessário
ressaltar que a forma de financiamento da queima das sacas de café (expansão creditícia)
195
renda para outros nichos da economia brasileira. A depressão mundial teve impacto

certeiro na demanda internacional pelo café brasileiro, colocando os lucros dos

cafeicultores numa espiral negativa. Forma-se, a partir desse movimento da renda

nacional, uma pressão sobre os produtores nacionais para o mercado interno, os quais

investem na aquisição de bens de capital de segunda mão a preços baixíssimos, ampliando

a capacidade produtiva nacional.229 Furtado assim nos explica como a indústria já

alcançaria elevado grau de desenvolvimento no ano de 1933, quando as principais

economias do mundo davam ainda seus primeiros passos rumo à recuperação.

b) A industrialização induzida pela expansão das exportações

Essa linhagem interpretativa tem como principais nomes Dean e Nicol, os quais

desenvolvem uma tese que corrobora muito com a interpretação furtadiana sobre a

formação das indústrias antes do processo que fundamentou, na década de 1930, o

deslocamento do centro dinâmico.

A ótica da industrialização induzida pela expansão das exportações sugere uma

conexão direta entre o progresso das fábricas e as pautas de exportações de café. Expansão

destas implica necessariamente um crescimento de nosso parque industrial, justamente

porque o complexo cafeeiro que se formou na passagem do século XIX para o século XX

criou as condições para a modernização da economia brasileira. A citação de Dean não

poderia ser mais ilustrativa a esse respeito:

provocou intensa desvalorização cambial, contribuindo também para o encarecimento dos bens
internacionais. Cf. FURTADO, Celso, Op. cit., pp. 195 – 197.
229
Cf.: “[...] a política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num
verdadeiro programa de fomento da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente,
uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer
dos países industrializados. [...] Que destino tomava essa renda, que, devendo ser despendida no
exterior em importações, ficava represada dentro do país pelo mecanismo corretor da baixa do
referido coeficiente? É evidente que ia pressionar sobre os produtores internos. [...] Outro fator
que se deve ter em conta é a possibilidade que se apresentou de adquirir a preços muito baixos,
no exterior, equipamentos de segunda mão.” FURTADO, Celso. Op. cit., p. 199.
196
É evidente que o crescimento continuado da indústria paulista resultou do

crescimento do comércio de café. O negócio do café proporcionava a procura,

as perspectivas do negócio do café estimulavam o investimento, em sua

maioria do setor do café, e o negócio do café criava as despesas gerais

econômicas necessárias e pagava os impostos.230

Warren Dean também possui extensa contribuição no que concerne às origens do

empresariado paulista. A raiz da classe dos industriais do Estado de São Paulo está nos

imigrantes, os quais passaram a atuar como comerciantes importadores. Isso porque esses

agentes, dadas as boas relações com os demandantes europeus, possuíam condições para

concessão de crédito muito mais vantajosas na comparação com comerciantes brasileiros.

Não apenas esse aspecto, mas também o maior conhecimento a respeito do mercado de

bens industrializados internacionais sedimentou bases para que tais imigrantes tornassem-

se futuramente os primeiros industriais de São Paulo.231

c) O Capitalismo Tardio

Os principais nomes da corrente marxista que trata da industrialização brasileira nos

anos de 1930 são Sérgio Silva, João Manuel Cardoso de Mello e Maria da Conceição

Tavares.

O interesse desses autores está em entender como se deu a consolidação do modo

capitalista de produção em formações socioeconômicas cuja peculiaridade histórica se

encontra na dependência que estas guardam com relação ao centro do desenvolvimento

230
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1976, p. 93.
231
Cf.: “Em sua interpretação [de Warren Dean] foi a familiaridade dos comerciantes
importadores com o mercado consumidor de manufaturas e com os produtos industriais que
costumavam importar que lhes abriu a porta para que produzissem eles mesmos a mercadoria que
mandavam trazer do estrangeiro.” Tradução livre de MARTINS, José de Souza. El café y la
génesis de la industrialización en São Paulo. Revista Mexicana de Sociología, vol. 39, no. 3,
Cuestiones agrarias en America Latina (Jul. - Sep., 1977), pp. 781-797. Publicado por Universidad
Nacional Autónoma de México. DOI: 10.2307/3539877. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/3539877.
197
da economia moderna. Não é por acaso que os grandes pensadores do Capitalismo Tardio

focalizam a análise nos países latino-americanos. A dependência e o subdesenvolvimento

são as bases comuns a esses Estados, cujas industrializações possuem um caráter

totalmente problemático e particular exatamente porque se dão na periferia do capitalismo

mundial.232 De acordo com Mello:

[...] Dependência e Desenvolvimento representa uma tentativa de constituir

uma nova problemática, a problemática da “instauração de um modo de

produção capitalista em formações sociais que encontram na dependência seu

traço histórico peculiar”, a problemática da formação e do desenvolvimento

do modo de produção capitalista na América Latina. [...] o desenvolvimento

latino-americano não é um desenvolvimento qualquer, mas um

desenvolvimento capitalista; [...] o desenvolvimento capitalista na América

Latina é específico, porque realizado numa “situação periférica nacional”. É

disto, na verdade, que o conceito de dependência pretendeu dar conta.233

O fundamento da historiografia embasada pelas lentes do Capitalismo Tardio é o

estudo sobre a transição do modo de produção escravista da antiga economia colonial

para o modo de produção assalariado. Essa passagem é o ponto de partida para o

desenvolvimento e a modernização característica das sociedades latino-americanas.

Nesse sentido, não é por acaso que a atenção, quando analisamos especificamente o Brasil

(como fizeram Silva, Tavares e Mello), seja dada para a cafeicultura como o “marco-

zero” de todo o processo. Ela atinge seus picos mais altos justamente na transição

estrutural! O que também não é mera coincidência, dado que uma economia sustentada

232
Apesar das industrializações periféricas da América Latina terem sido colocadas em marcha
com as bases comuns da dependência e do subdesenvolvimento, é inconcebível abstrair das
peculiaridades entre os processos de modernização pelos quais cada nação latino-americana
passou nos séculos XIX e XX. Este trabalho, porém, não será capaz de aprofundar tais
pormenores.
233
MELLO, João M. C. de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 25.

198
por trabalhadores-mercadoria ao invés de trabalhadores-consumidores e possuidores

apenas de sua força de trabalho impõe limites para a acumulação de capital na atividade

cafeeira. Não se pretende aqui dizer que o capitalismo não conviveu ou não consegue

conviver com formas pré-capitalistas de produção. Na realidade, essa é uma das tônicas

da problemática interna nos países da periferia da economia mundial. O convívio,

entretanto, não se dá com harmonia pura e simplesmente, mas sim em viva contradição a

partir do momento em que o modo capitalista de produção consegue se reproduzir

endogenamente. No caso brasileiro, a contradição se resolveu pela superação da

escravidão e a introdução do trabalhador imigrante livre e assalariado. A acumulação de

capital com a produção de café alcançaria níveis inéditos nos decênios finais do século

XIX.234 E será ela o fio condutor da acumulação de capital industrial.

Até aqui parece que a interpretação descrita acima se espelha na linha da

industrialização induzida pela expansão das exportações. De fato, quando se pensa que a

acumulação de capital no complexo cafeeiro “ditou as regras” da acumulação de capital

na indústria, imagina-se, como falou Dean, uma conexão direta e linear entre uma e outra.

A grande diferença entre uma e outra interpretação, porém, se dá pelo fato de que os

autores do Capitalismo Tardio enxergam uma relação não direta e lógica, mas sim

dialética entre os dois processos de acumulação. A dominância da produção de café,

reflexo material da interação “centro-periferia”, sedimentava as bases da acumulação de

capital industrial, assim como impunha limites a ela. Ao mesmo tempo em que havia um

sequenciamento entre uma e outra, deveria necessariamente haver um bloqueio. De

acordo com Silva:

234
Cf.: “Há contradição entre capitalismo industrial e formas de trabalho compulsório porque se
exige, na periferia, generalização das relações mercantis, quer dizer, mercantilização das forças
de trabalho. Só o trabalho assalariado poderia significar mercados os mais amplos possíveis e,
simultaneamente, produção mercantil complementar em massa.” Idem, p. 45.
199
[...] as relações entre o comércio exterior e a economia cafeeira de um lado, e

a indústria nascente de outro, implicam ao mesmo tempo a unidade e a

contradição. A unidade está no fato de que o desenvolvimento capitalista

baseado na expansão cafeeira provoca o nascimento de um certo

desenvolvimento da indústria [...] a contradição, nos limites impostos ao

desenvolvimento da indústria pela própria posição dominante da economia

cafeeira na acumulação de capital.235

d) A industrialização intencionalmente promovida por políticas do governo

A contribuição para essa linha historiográfica foi dada fundamentalmente pelos

Versiani. Toda a análise está fundamentada num estudo quantitativo a respeito das

indústrias algodoeiras no período anterior a 1930.

Dado esse panorama inicial, pode-se dizer que a tese dos autores é a de que deveria

haver uma relação de forte causalidade entre picos de produção industrial algodoeira e

variações na taxa de câmbio. Como é de se esperar, nos períodos de valorização cambial,

a facilidade de importações subsequente produzia um ambiente favorável para o

aparecimento de surtos industriais, com ampliação da capacidade produtiva.236

Uma vez identificada a conexão entre os picos produtivos e a taxa de câmbio, o papel

da política estatal se apresenta exatamente nas tentativas sucessivas de proteger a

produção nacional mediante a implementação de reformas tarifárias e cambiais. O grande

exemplo disso foi a instauração das tarifas Alves-Branco em 1844. Ou seja, já no período

imperial se tinha em mente a necessidade de se defender a indústria nacional e aproveitar

235
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega,
p. 97.
236
Nesse sentido, os Versiani, aproximando-se ligeiramente de Dean, mostram a importância dos
comerciantes importadores para o processo de formação industrial brasileira. Cf. VERSIANI F.
& VERSIANI, M. T. R. O. A industrialização brasileira antes de 1930: uma contribuição. Estudos
Econômicos. São Paulo, v. 5, n. 1, jan/abr 1975, p. 42 – 43.
200
os surtos produtivos até mesmo como forma de sanar o déficit orçamentário do Estado.

De acordo com os autores:

Esse surto de iniciativa manufatureira costuma ser associado à reforma

tarifária de 1844, e especialmente à facilidade de importação de equipamento

têxtil estabelecida num decreto de 1846. [...] o efeito protetor das tarifas podia

ser importante na medida em que sobrevivia a essas fases, estendendo-se aos

anos de elevação do mil-réis e a compensando parcialmente.237

237
Idem, p. 54.
201
XXVII

A Crise da Primeira República (1889 – 1930)

No final da década de 1920, em meio à crise econômica mundial e em meio à

falência dos mecanismos de defesa permanente do café (como já foi explicitado nos

capítulos anteriores), o Brasil se encontra no limiar de uma inflexão política que será

decisiva na trajetória de seu desenvolvimento econômico. A virada para o decênio de

1930 é marcada pelo fim da chamada República Velha e pela quebra da hegemonia das

oligarquias paulista e mineira no quadro nacional. O processo conhecido como

“Revolução de 1930” culmina com a subida de Getúlio Vargas para a chefia do executivo

e assim seria até o ano de 1945.

Antes de adentrarmos de fato na análise da inflexão propriamente dita, convém

relembrar panoramicamente como se operacionalizava o jogo político na era das

oligarquias rurais. É necessário, nesse sentido, fazer menção à Política dos Governadores,

pano de fundo de um regime republicano com uma forte aparência de representatividade

e respeito ao rito eleitoral democrático. Na realidade, o que se passava era um verdadeiro

controle eleitoral por parte das unidades federativas, principalmente São Paulo e Minas

Gerais, construindo mecanismos até mesmo para barrar a legitimação de deputados

oposicionistas no Congresso Nacional (foi o caso da chamada Lei de Verificação dos

Poderes, que tirava a autoridade do Judiciário para empossar os parlamentares, passando-

a para as mãos do Legislativo). Na prática, o que acontecia realmente era um ajustamento

entre os partidos estaduais para determinar até mesmo quem seria o presidente.

202
Num quadro em que as principais agremiações políticas representavam os

latifundiários do café no sudeste brasileiro (em condições de quase total monopólio do

gênero no mercado mundial), torna-se claro que todo o invólucro político delineado acima

e em capítulos pregressos se fazia necessário para a defesa dos interesses da burguesia

cafeeira brasileira. O Estado era fruto das articulações da classe e, como não poderia

deixar de ser, tinha sua existência pautada pela defesa das vontades de seus chefes.

As evidências empíricas do que foi dito acima nós já tratamos quase que

exaustivamente nos textos anteriores. Tratamos do Convênio de Taubaté de 1906, da

fundação da Caixa de Conversão, das políticas episódicas de defesa dos preços do café,

dos mecanismos institucionais para viabilização da defesa permanente nos anos de 1920,

além das políticas creditícias geralmente expansionistas que permearam todo o esforço

de defesa desde o início do século XX, as quais serviram justamente para a manutenção

dos estoques e dos armazéns. Veja o que dizia o próprio presidente Epitácio Pessoa e

podemos então comprovar o quão lastreado nos interesses da burguesia cafeeira estava o

Estado da Primeira República:

O café representa a principal parcela no valor global de nossa exportação e é

portanto, o produto que mais ouro fornece à solução dos nossos compromissos

no estrangeiro. A defesa do valor do café constitui, portanto, um problema

nacional, cuja solução se impõe à boa política econômica e financeira do

Brasil.238

Não por acaso, é exatamente num ambiente de falência do programa de defesa

permanente, com os interesses da cafeicultura colocados em risco, que as turbulências

políticas serão alçadas a um nível perigoso para a sobrevivência da Primeira República.239

238
Epitácio Pessoa, 1921. Apud DELFIM NETTO, Antonio. O problema do café no Brasil. São
Paulo: IPE/USP, 1973, p. 110.
239
FURTADO, Celso. Op. cit., pp. 181 – 182.
203
Se até o fim dos anos de 1920, as fracas tensões existentes no seio da burguesia brasileira

garantiram o bom funcionamento do chamado complexo cafeeiro, esse quadro deixa de

ser a tônica na medida em que o setor industrial da classe dominante começa a ganhar

mais espaço no cenário econômico e político a partir disso. Não obstante, mesmo após o

fim da Primeira República, os latifundiários do café seguiriam tendo influência decisiva

nos rumos do desenvolvimento brasileiro pelo menos até o fim dos primeiros cinquenta

anos do século passado. A interpretação canônica da “Revolução de 1930”, a de Boris

Fausto, considera até mesmo que não havia, no seio da própria burguesia, nenhum

concorrente que pudesse realmente rivalizar com os produtores de café. E isso é que

acabaria por determinar os rumos da política nacional no ambiente de turbulência que

estamos analisando. De acordo com o autor:

[...] a organização social da Primeira República é marcada pela

predominância do setor agrário-exportador, pela inexistência de uma luta

nítida de facções no interior da burguesia entre o setor agrário e o industrial,

pela fraca integração nacional, com predominância do eixo São Paulo-Minas,

pelo caráter secundário das oposições de classe [...]. A um tempo dominante

e dependente, a burguesia cafeeira impôs ao país, durante os três primeiros

decênios do século, sua hegemonia social e política. Não se formou no interior

da classe dominante, até os fins da década de 20, nenhum grupo que

apresentasse uma opção viável, em oposição aos seus interesses [...]. Dentro

deste contexto, não se formaram partidos representativos de correntes

nacionais de opinião. As raras experiências de agrupamentos formalmente

nacional [...] são transitórias [...].240

Com base no que foi exposto e partindo da leitura de Fausto, a ausência de um

setor da burguesia forte o suficiente para fazer frente às oligarquias cafeeiras é a razão

240
Boris Fausto. A Revolução de 1930. In MOTA, Carlos G. (org.). Brasil em Perspectiva. São
Paulo: Difel, 1981, p. 233.

204
por trás da composição heterogênea da Aliança Liberal, principal organização de

contraponto ao Governo Federal. Montada a partir de frentes estaduais de oposição, a

agremiação não chegava a colocar-se como um partido cuja representação era

efetivamente classista, aglomerando em seu núcleo os interesses dos industriais, mas

também os setores urbanos médios e até mesmo militares de baixa patente (os tenentes

principalmente). A heterogeneidade se traduzia em vagueza de programa político. O

máximo que a Aliança Liberal poderia alcançar em suas demandas era uma reforma

política. O próprio discurso não progredia para além disso.241

Ao lado da Aliança Liberal, a “frente ampla” de oposição ao Governo de

Washington Luís se completava com o Partido Democrático. Fruto de uma cisão interna

no Partido Republicano Paulista, a organização era composta por membros da burguesia

cafeeira completamente insatisfeitos com a política cambial do presidente no contexto de

crise mundial. O presidente, interessado em garantir a continuidade política com a

candidatura de Júlio Prestes, vetou a autorização de políticas creditícias expansionistas,

estabilizando o câmbio a níveis mais valorizados que aqueles desejados pelo setor

primário exportador, interessado na manutenção dos preços de seu principal produto: o

café.

A crise interna em que se encontrava o invólucro político brasileiro naquele

momento certamente nos ajuda a entender a deposição de W. Luís e a ascensão de Vargas

ao poder. Mas o que não pode se ausentar na análise é o impacto do crack da Bolsa de

Nova York e do subsequente colapso da economia mundial em outubro de 1929,

golpeando de frente o já enfraquecido Estado Nacional Burguês que sustentava os lucros

da aristocracia cafeeira. Aponta Fausto:

241
Cf. Idem, pp. 235 – 240.
205
A rápida aglutinação, obtida em poucos meses, não pode ser explicada, se

afastarmos da interpretação dos fatos um dado que transcende o quadro

nacional: a crise de 1929. [...] ela golpeia o governo, ao produzir o

desencontro entre o Estado, como representante político da burguesia

cafeeira, e os interesses imediatos da classe.242

O próprio Estado que se configura a partir de 1930, nascido num ambiente sem

oposições classistas sólidas aos interesses da cafeicultura, adquire, segundo Fausto, um

certo “caráter de massas”, sem se ligar exclusivamente a um setor específico de nossa

burguesia. O executivo sob comando de Vargas ocupa, nesse sentido, o que antes se

apresentava como um vazio de poder, incapaz de ser preenchido por uma ou outra força

oposicionista.

OS “AUSENTES” DA “REVOLUÇÃO DE 1930” – A LEITURA DE TRONCA.

Mesmo que nossa aproximação sobre a inflexão política brasileira na passagem

para a década de 1930 tenha se fundamentado na interpretação clássica de Boris Fausto,

convém dar espaço para uma outra leitura a respeito do fim da República Velha. Trata-se

dos estudos de Ítalo Tronca sobre o papel do movimento operário no processo que

culmina com a “Revolução de 1930”.

Aproximando-se em boa medida de uma interpretação marxista do problema,

Tronca recusa a leitura de Fausto de que o Estado que vem com a “Revolução de 1930”

teria surgido “do alto”, com o fim único e exclusivo de preencher um vazio de poder dada

a heterogeneidade e a fraqueza do programa da oposição formal às oligarquias. Na

realidade, toda a inflexão é fruto das lutas de classes entre o operariado e a burguesia

242
Ibidem, p. 242
206
industrial. A própria CIESP (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) teria papel

fundamental em liquidar as lutas operárias na década de 1920.

O autor também sobreleva a participação do PCB e do BOC como

“representantes” do operariado. Na realidade, porém, Tronca nota que, ao enfatizarem a

necessidade de uma revolução burguesa antes da efetiva emancipação da classe

trabalhadora (fruto de uma visão dogmática sobre o Estado brasileiro, que ainda seria, em

pleno século XX, pré-capitalista), tais organizações acabaram por bloquear os

movimentos de base até que chegassem à capitulação. A própria divulgação do termo

“Revolução de 1930” por parte do próprio PCB acabou servindo para ofuscar o papel do

proletariado na inflexão do quadro político brasileiro na virada de década, uma vez que

este seria o momento em que a burguesia se alçava ao poder estatal, transformando a

sociedade brasileira finalmente em sociedade burguesa.243

243
Infelizmente não há espaço aqui para tratarmos detalhadamente dos riscos e do grande
equívoco que permeia essa interpretação dogmática da história brasileira, propagada pelo PCB e
por outros quadros do estalinismo nacional. Adiantamos já que a conclusão de que não havia
Estado Burguês no Brasil antes de 1930 e que este teria sido até então sustentado por uma
economia de caráter feudal soa para nós como completamente falsa e oportunista. Além disso,
está completamente distante do marxismo. Não há erro mais crasso em história econômica do que
afirmar que, em algum momento de nosso desenvolvimento, passamos pelo modo feudal de
produção, o qual, por sua vez, só teria sido varrido do país com a “Revolução Burguesa de 1930”.
Algumas linhas do estalinismo brasileiro perpetuaram o oportunismo, cravando que o Estado
Brasileiro até hoje não é plenamente burguês, sendo necessário, antes da emancipação definitiva
dos trabalhadores, a submissão do proletariado aos interesses da burguesia nacional anti-
imperialista. Fica aqui, para os estalinistas de plantão, uma pequena pergunta: se até 1930, nossa
economia e, consequentemente, nosso Estado eram feudais, como explicar a greve geral da classe
trabalhadora em 1917 e as consideráveis taxas de crescimento da produção e do investimento
industrial na década de 1910 antes do conflito mundial?
207
XXVIII

O Golpe de 1937 e o Estado Novo

Passados os anos turbulentos que imediatamente sucedem a inflexão política na

passagem da década de 1920 para a de 1930 e os anos do governo democrático de Getúlio

Vargas (1934 – 1937), é fundamental analisar o quadro nacional nos anos do Estado

Novo, ou seja, no período em que Vargas se consolida como ditador máximo do país.

O primeiro aspecto que merece atenção em nossa aproximação à problemática é

o fato de que somente a partir do golpe de 1937 nós podemos falar em um Estado

verdadeiramente “nacional”. No período que compreende a Primeira República, a

submissão do governo federal aos oligarcas regionais que compunham a burguesia

cafeeira faz com que fique muito difícil usar a mesma simbologia. É por isso que um dos

primeiros objetivos de Vargas como ditador é eliminar concretamente os regionalismos,

na busca por associar quase que unilateralmente sua figura à da Nação. O Estado Novo

teria de ser o Brasil e o Brasil teria de ser o Estado Novo. Veja de acordo com o próprio

ditador:

A consciência das nossas responsabilidades indicava, imperativamente, o

dever de restaurar a autoridade nacional, pondo termo a essa condição

anômala da nossa existência política, que poderá conduzir-nos à

desintegração, como resultado final dos choques de tendências

irreconciliáveis e do predomínio dos particularismos de ordem local.244

Uma das medidas mais marcantes de Vargas no sentido de eliminar os

regionalismos foi a de nomear, sucessivamente desde o início da década, interventores

federais para o Estado de São Paulo, eliminando a figura do governador, tão influente nos

244
Apud. SOLA, L. O Golpe de 37 e o Estado Novo. In: MOTA, C. G. (org.). Brasil em
perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1981, p. 257.

208
anos áureos das oligarquias do café. Veja o panorama dado por L. Sola a respeito dos

papeis cabíveis aos interventores varguistas nas unidades federativas:

Os interventores que substituíram os governadores, dependiam de nomeação

do Presidente e dispunham, como ele, não só de poderes executivos e

legislativos; eram também encarregados de aplicar, ao nível dos Estados, as

medidas em que implicava o estado de emergência.245

O golpe de 1937 foi articulado por um conjunto de generais das Forças Armadas

Brasileiras (Gaspar Dutra, Góes Monteiro, Daltro Filho, etc.) que serviriam inclusive

como suporte político e militar do regime. Comprometidos com ampla e violenta

repressão, os homens fortes de Vargas encabeçariam a perseguição de oposicionistas,

aplicando sempre que possível a Lei de Segurança Nacional.

Com o objetivo explícito de fortalecer o poder central, a nova constituição que se

seguia ao Estado Novo colocava todos os partidos (inclusive o Integralista de Plínio

Salgado, que havia sido suporte ideológico no período varguista democrático) na

ilegalidade. Para compreender bem os antecedentes do autoritarismo varguista que se

concretiza em 1937, é importante analisar a conjuntura política nos anos imediatamente

anteriores ao golpe, em que pese a ação da ANL e do PCB em específico. Este era um

dos poucos partidos suficientemente organizados à época, carregando um discurso

popular que poderia adquirir facilmente contornos nacionais, colocando em risco os

interesses de Vargas. A ANL, embora mais heterogênea, caminhava na mesma direção,

com um programa que englobava, entre outras coisas, a reforma agrária e o não

pagamento da dívida externa. As duas organizações eram dotadas de palavras de ordem

que poderiam motivar a classe trabalhadora e parte das classes médias urbanas.246

245
Idem, p. 268.
246
Ibidem, p. 260.
209
A retórica anticomunista (embora a ANL e o PCB, apesar do nome, estivessem

bem longe de um programa eminentemente comunista)247, portanto, será a justificativa

ideológica para as perseguições e para toda a repressão civil por parte do Estado varguista.

Ainda de acordo com Sola:

De um lado, estavam comprometidos com a violenta repressão contra civis,

com a neutralização dos grupos militares oposicionistas, através da intensa

aplicação das medidas na Lei de Segurança Nacional: reforma, exoneração,

perda de patentes e mesmo prisão; organizavam e participavam das tarefas de

controle e de espionagem [...]. Pelo artigo 186, era declarado o estado de

emergência em todo o território nacional, o que tornava possível ordenar

prisões, exílio, invasão de domicílio; instituía-se a prisão preventiva; tornava-

se legal a censura de todas as comunicações. Tais atos escapavam à decisão

do judiciário. 248

Outro aspecto da faceta política do Estado Novo que merece um olhar mais atento

de nossa parte é a relação que se estabelece entre Vargas e a classe trabalhadora. Estamos

certamente nos referindo à legislação trabalhista nos anos da ditadura. Numa primeira

aproximação, as leis que compunham a nova legislação se apresentam como uma grande

conquista para o proletariado brasileiro: jornada diária de 8 horas de trabalho; férias

remuneradas; estabilidade no emprego; indenização por demissão sem justa causa; etc.249

Não podemos, porém, cair numa ilusão perigosa. Junto às concessões, vieram as

restrições que completavam a legislação de modo a aparelhar os sindicatos, tornando-os

cada vez mais dependentes do aparelho estatal por meio da contribuição sindical

247
Em outra oportunidade poderemos explicar melhor. Fica aqui apenas o conselho: o nome de
um partido não necessariamente, e muitas vezes está longe de ser o caso, reflete seu programa,
seus interesses e suas táticas. O PCB, apesar de ter “comunista” no nome, está imbuído de um
programa, de uma lógica de funcionamento interno, e de um conjunto de táticas que o torna
razoavelmente distante das estratégias efetivamente comunistas.
248
SOLA, L. Op. cit., pp. 265 – 266.
249
Idem, p. 271.
210
obrigatória. Além disso, os sindicatos foram fracionados por profissão: cada categoria

teria um sindicato específico, separando internamente a classe trabalhadora, bloqueando

mecanismos de luta conjunta. Finalmente, as greves e os lockouts foram proibidas em

quaisquer circunstâncias.

Em resumo, a estratégia de Vargas foi arrefecer qualquer possibilidade de

radicalização proletária nos anos da ditadura, tornando os sindicatos um mecanismo de

negociação e conciliação entre patrões e trabalhadores, bloqueando as aspirações

emancipatórias da classe explorada.

Sobre os antecedentes econômicos do Estado Novo e a política econômica da

Primeira Era Vargas (1930 – 1945) em si, trataremos com mais detalhes nos próximos

tópicos, assim como da queda do Estado Novo ao final da Segunda Guerra Mundial.

Adiantamos agora, porém, que um dos aspectos inovadores do varguismo do ponto de

vista econômico será a ampla participação do Estado nas estratégias de desenvolvimento

do país. O Estado deixa de intervir somente quando necessário (como nos casos das

defesas do preço do café na República Velha), passando a assumir o papel de principal

investidor e agente do desenvolvimento.

211
XXIX

A modernização autoritária nos anos Vargas (1930 – 1945)

Delineado o panorama político do primeiro governo Vargas, podemos adentrar na

discussão a respeito do quadro do desenvolvimento econômico brasileiro a partir da crise

de 1929, dando atenção principalmente ao debate de caráter historiográfico sobre quais

as motivações, os pormenores e os resultados do processo a que nos referimos como

“modernização autoritária”. Nas palavras de Simão Silber:

A pergunta básica a ser respondida sobre o comportamento da economia

brasileira, durante a década dos 30, é a de saber quais os fatores responsáveis

pelo pequeno impacto da Grande Depressão sobre os níveis de produto real

de nossa economia, uma economia dependente do setor exportador como

gerador de renda […].250

Uma boa aproximação do objeto em análise requer a descrição de algumas

tendências significativas que se operavam na economia brasileira no início do decênio de

1930. Em primeiro lugar, vale apresentar a recuperação do nível de atividade econômica

a partir de 1931: se considerarmos o PIB a preços constantes de 1947, nota-se uma

considerável curva de crescimento do produto nacional, que é acompanhado pela

elevação do produção industrial em 11,3%. O que foi falado pode ser demonstrado no

gráfico abaixo:251

250
SILBER, Simão. Análise da Política econômica e do comportamento da economia brasileira
durante o período 1929/1939. In VERSIANI, F. R. & BARROS, J. R. M. de. (orgs) Formação
econômica do Brasil: a experiência da industrialização. 1a. Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p, 187.
251
Fonte: IPEADATA. Para 1901-1947: Haddad, Claudio Luiz da Silva. Crescimento do produto
real no Brasil, 1900-1947. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1978. Apud: Abreu,
212
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
1930
1931
1932
1933
1934
1935
1936
1937
1938
1939
1940
1941
1942
1943
1944
1945
Mais importante que apontar o crescimento quantitativo do PIB é apresentar a mudança

em sua composição, tomando como base o setor primário e o secundário. Em 1907, 79%

do produto nacional era ocupado pela produção agrícola, quadro que se mantém 12 anos

depois em 1919. É fundamental notar, porém, que o peso do setor industrial aumenta

consideravelmente a partir dos anos de 1930: se em 1919 o setor secundário contribuía

com 21% para a composição do PIB, 20 anos depois ele passa a formar 43% do valor

adicionado brasileiro. É empírico o aumento da importância da produção e do

investimento industrial na economia brasileira.252 De fato, se levarmos em conta o período

que vai de 1929 até 1939, podemos ver que a taxa média de elevação anual da produção

industrial foi de 8,4%.253

Deve-se salientar, entretanto, que a elevadíssima taxa média de crescimento

industrial apresentada pela economia brasileira num contexto de crise mundial deu-se

Marcelo de Paiva (Org.). A ordem do progresso - cem anos de política econômica republicana.
Rio de Janeiro: Campus, 1992. Obs.: Produto Interno Bruto (PIB). Série interrompida.
252
Cf. VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia
brasileira, 1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1973, p. 180 e p. 241 (gráfico)
253
Idem, p. 211 – 213.
213
num ambiente interno de restrição para as importações de maquinário. O bloqueio para a

compra de insumos e bens de produção necessários para o estímulo da atividade

secundária fez com que a indústria nacional passasse por surtos de industrialização com

baixo nível de aperfeiçoamento técnico e utilização de capacidade já instalada.254

O impacto da Grande Depressão claramente produziu, como vimos, modificações

no quadro industrial brasileiro. É um erro, no entanto, acreditar que o setor primário

passou imune pelos desdobramentos da crise mundial. Salientamos que a mudança mais

significativa sofrida pela atividade agrícola foi a diminuição da importância relativa do

café em nossa pauta de exportações, cedendo mais espaço para o algodão. Não é que a

produção daquele que era até então nossa principal commoditie diminuiu. Na realidade,

em termos absolutos ela teve elevação relevante. A grande diferença está no seguinte: o

desenvolvimento tecno-científico pelo qual passava a produção algodoeira é que fez com

que esse bem primário aumentasse seu percentual na composição de nossas vendas para

o comércio mundial. De acordo com Villela e Suzigan:

A partir de 1934, entretanto, ocorreu uma modificação marcante na estrutura

da atividade agrícola em São Paulo, quando a produção de algodão para

exportação experimentou um intenso período de prosperidade. Isso se deveu

à aceleração das pesquisas realizadas no Instituto Agronômico de Campinas

a partir de 1923, o que permitiu a obtenção de fibras maiores e de melhor

qualidade [...].255

Finalmente, é conveniente apresentar um outro aspecto importante das tendências

socioeconômicas que se apresentavam em nossa economia a partir da década de 1930.

Trata-se da nova dinâmica demográfica que passa a operar no Brasil neste período.

Estamos falando, como é de se esperar, da ampliação da população urbana e

254
Ibidem, p. 213.
255
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 202.
214
consequentemente do surgimento de grandes centros metropolitanos, dentre eles Rio de

Janeiro e São Paulo. Esse aumento da participação da “paisagem urbana” (peço perdão

aos geógrafos pela apropriação apressada de um termo tão caro à literatura geográfica por

parte de um simples estudante de economia e de história econômica) na demografia

brasileira pode ser creditado por um fenômeno novo para a época: a maciça entrada de

migrantes nordestinos nos principais centros industriais do país. O caráter da migração se

alterava, com o imigrante europeu (e principalmente italiano) cedendo espaço para o

nordestino que tentava a vida nas fábricas de São Paulo e do Rio de Janeiro.256

Uma vez que apresentamos o panorama geral das tendências que se apresentavam

em nossa economia, é possível agora adentrar na “polêmica” historiográfica acerca dos

elementos determinantes do caráter do desenvolvimento econômico brasileiro nos anos

em que Getúlio Vargas esteve na chefia do executivo. Qual foi o verdadeiro papel do

setor público no processo de “proteção” da economia nacional nos anos da Depressão?

Qual a importância do Estado para o crescimento da atividade industrial no mesmo

período? Essas e outras questões pertinentes foram objeto de estudo aprofundado de

autores reconhecidos no pensamento econômico brasileiro, dentre eles Furtado, Peláez,

Villela e Suzigan, Fishlow, Simão Silber, entre outros.

A interpretação canônica a respeito do desenvolvimento econômico brasileiro nos

anos de 1930 é aquela de Celso Furtado, o qual buscou analisar o deslocamento do centro

256
Cf.: “A década de 1930 foi o ponto alto das migrações internas para o antigo Distrito Federal
e para o Estado de São Paulo. Entre 1934 e 1940, só no Estado de São Paulo entraram cerca de
322 mil imigrantes brasileiros, dos quais 67% provinham da Bahia e do Nordeste. Esse anos
constituíram o período de transição da imigração internacional para a imigração interna. [...] Não
era coincidência que os dois maiores centros absorvedores de imigrantes brasileiros fossem
também os dois maiores centros industriais do País que, no momento, experimentavam rápido
desenvolvimento industrial. Entre 1920 e 1940, como consequência [...] observou-se grande
crescimento da população urbana [...] que passou de 4,6 milhões, em 1920 para 6,2 milhões, em
1940.” VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 181-182.

215
dinâmico. Como já vimos, o crack da bolsa de Nova York em outubro de 1929 e a crise

mundial que o sucedeu foi o elemento definitivo para a falência da estrutura institucional

montada nos anos de 1920 para a defesa permanente dos preços do café no mercado

mundial. O Estado brasileiro após o fim da República Velha teve a difícil tarefa de

encontrar um novo instrumento para a proteção de seu principal gênero de exportação. E

esta é garantida, por sua vez, por meio da queima extensiva de sacas de café antes

estocadas. Dado que o financiamento não se deu mediante empréstimos externos, mas

sim por meio da expansão creditícia nacional, era de se esperar que o resultado cambial

fosse uma desvalorização.

Essa depreciação do nosso câmbio, por seu turno, ao encarecer os bens

internacionais (já com preço elevado em função da escalada inflacionária nos países

centrais atingidos pela crise), diminuía a possibilidade de importação de bens de consumo

necessários à manutenção dos níveis de vida da população.

É importante ressaltar, porém, que a estratégia de defesa funcionou como uma

política pré-keynesiana anticíclica, segurando a renda nacional em níveis nos quais foi

possível desviar a demanda por bens de consumo para o mercado interno. O desvio, na

medida em que a renda paulatinamente se transferia ao setor secundário de nossa

economia, fez com que a indústria nacional passasse a ser o grande amortecedor das

pressões oriundas da demanda por mercadorias finais.

Eis o mecanismo mais geral pelo qual a economia brasileira acabou resistindo aos

impactos da Grande Depressão, ampliando sua produção industrial com utilização da

capacidade previamente instalada. Furtado assim explica a partir do deslocamento do

centro dinâmico como foi possível a rápida recuperação do PIB nacional na comparação

com outros países do mundo, principalmente os desenvolvidos.

216
O ponto de vista mais oposto ao de Furtado sobre os condicionantes da

recuperação econômica brasileira é aquele apresentado por C. M. Peláez. O panorama

que daremos sobre sua discussão historiográfica com o autor de Formação Econômica

do Brasil está fundamentado em dois textos: A Balança Comercial, a Grande Depressão

e a Industrialização Brasileira (PELÁEZ, 1968) e As Consequências Econômicas da

Ortodoxia Monetária, Cambial e Fiscal no Brasil entre 1889 – 1945 (PELÁEZ, 1971).

Em linhas gerais, se Furtado aponta categoricamente que o Estado, mesmo que de

forma não intencional, sedimentou as bases para o deslocamento do centro dinâmico e

para a nossa industrialização por meio de uma política anticíclica materializada na queima

perene de estoques volumosos de café, Peláez aponta que a estratégia tomada para a

proteção do setor cafeeiro, somada a uma política macroeconômica ortodoxa em suas

linhas mais gerais, foram os principais responsáveis pelo atraso do desenvolvimento

industrial brasileiro.

O autor, nessa linha de argumentação, recusa a ideia de um keynesianismo avant-

la-lettre promovido por Vargas nas queimas de sacas e mais sacas de café. Na realidade,

o que garantiu o “isolamento” da economia brasileira frente à depressão mundial teria

sido o saldo positivo na balança comercial nos anos de 1931 e de 1932. Isso porque apenas

em momentos muito específicos, e por razões também pontuais, o Estado empreendeu

uma política fiscal expansionista. A grave seca no Nordeste no início da década de 1930,

assim como a Revolução Constitucionalista de 1932, teriam sido as motivações imediatas

para um abandono “temporário” da condução ortodoxa da política econômica no governo

varguista. Peláez tenta fortalecer ainda mais seu argumento a respeito da ortodoxia

quando apresenta dois dados interessantes: (1) a partir de 1937, toda a queima de sacas

de café se realizou a partir do uso das chamadas quotas de sacrifício, permitindo ao

governo abrir mão de qualquer tentativa de ampliação do gasto público; (2) todo o

217
mecanismo de defesa do setor cafeeiro operacionalizado desde o início da década de 1930

foi financiado grosso modo por um aumento da carga tributária que incidia sobre a própria

cafeicultura. Assim, contrariando Furtado, o autor conclui que a fonte de financiamento

proveio mais da política de orçamento equilibrado do que por uma simples expansão do

crédito.

Finalmente, para concluir seu contraponto a Furtado, Peláez recusa a concepção

canônica de que a manutenção da renda no setor cafeeiro foi sucedida por uma

transferência desta para a atividade industrial. Na realidade, o que se passou, de acordo

com o autor, foi um desvio da renda nacional para outras atividades primárias,

referenciando-se principalmente à produção algodoeira. Em resumo, foi somente com o

fim definitivo da política de defesa do café que a atividade industrial pode dar saltos mais

altos no seu caminho de desenvolvimento.

Os autores Villela e Suzigan, famosos por seus estudos quantitativos, seguem as

linhas gerais da argumentação de Peláez que buscamos apresentar acima. Há

concordância com relação à conclusão de que a estratégia de política econômica teria

seguido uma diretriz mais ortodoxa do que aparentava, estando norteada pela ideia fixa

do equilíbrio orçamentário nas contas públicas, de modo que não houve uma reação

anticíclica pré-keynesiana como Furtado quis mostrar no seu capítulo sobre o

deslocamento do centro dinâmico. A divergência entre os pesquisadores, por sua vez,

insere-se na questão do próprio desenvolvimento industrial: se Peláez é peremptório em

afirmar que o setor secundário de nossa economia desenvolveu-se apenas com o fim do

Estado Novo e da estratégia de defesa do setor cafeeiro, Villela e Suzigan “pendem” para

a linha furtadiana nesse quesito quando confirmam um estímulo ao crescimento industrial

nesse período apesar da desvalorização cambial. A economia entrava no processo de

substituição de importações, em que a compra de bens finais cedia espaço para a aquisição

218
de insumos industriais, os quais se direcionaram principalmente para a metalurgia e

outros setores da chamada “indústria pesada”.

Continuando a discussão historiográfica, apresentaremos a participação de Albert

Fishlow no debate iniciado por Peláez nos anos de 1960. O autor é original ao afirmar

que a recuperação econômica brasileira a partir de 1932 fundamentou-se principalmente

na igual recuperação da demanda interna brasileira, estimulada principalmente pela

defesa da renda no setor cafeeiro. Fishlow aproxima-se, dessa maneira, da linha furtadiana

de análise, dado que aceita o papel do Estado brasileiro na garantia da renda e do emprego

na cafeicultura.

O economista também realiza uma ligeira defesa da interpretação proposta por

Furtado ao apontar que a política econômica, mesmo esta tenha sido inicialmente guiada

por diretrizes ortodoxas, paulatinamente foi assumindo um caráter keynesiano, o que se

deduz pelo interesse do governo em aumentar a expansão creditícia para garantir a queima

das sacas estocadas de café.

Fishlow, além de analisar o deslocamento do centro dinâmico proposto por

Furtado, como mostramos acima, também faz sua aproximação e qualificação a respeito

da interpretação de Peláez. O economista americano incorpora em sua análise a política

de orçamento equilibrado, ou seja, entende que o aumento da carga tributária na

cafeicultura de fato serviu como mecanismo de financiamento para a defesa do setor no

ambiente de recessão mundial. Mas Fishlow qualifica Peláez ao apontar que este não

considera o poderoso efeito multiplicador do empréstimo externo de 20 milhões de libras

contraídos para a proteção do café, garantindo assim o estímulo à atividade econômica

num ambiente de crise. Em segundo lugar, o autor aponta que o ônus tributário não foi

arcado pelos próprios latifundiários, como supôs Peláez, mas sim pelos consumidores

estrangeiros em função da baixa elasticidade preço da demanda internacional por café.

219
Em suma, Fishlow conclui sua análise afirmando que, embora a política

econômica varguista de defesa da cafeicultura não tenha proporcionado um estímulo à

atividade industrial tal como Furtado apontou, ela teve sim um papel crucial para o

desenvolvimento econômico nacional na década de 1930. Outros elementos, por sua vez,

que explicariam a recuperação da economia brasileira em meio à recessão mundial teriam

sido: a retomada da elevação das exportações entre 1932 e 1936, assim como a redução

dos impostos sobre a venda dos bens para o comércio mundial.

Para finalizar o balanço do debate, convém apresentar a interpretação de Simão

Silber sobre o desenvolvimento econômico brasileiro nos anos de 1930, assim como suas

críticas e qualificações a respeito das conclusões de Furtado, Peláez, Villela e Suzigan.

Separando os vinte anos entre 1919 e 1939 pelos decênios 1919 – 1929 e 1929 – 1939, o

autor faz uma dupla aproximação à política de defesa do café e às políticas monetária,

fiscal e cambial.

Assumindo o café como o centro dinâmico da economia pelo menos até a crise de

1929, e considerando o aumento das receitas com exportações a partir de 1919, Silber é

categórico em afirmar que a política de defesa do café (tanto a última de caráter episódico

como a permanente) foi bem sucedida em seus objetivos mais imediatos: garantir um

preço mínimo para a saca da commoditie e manter, consequentemente, o nível de

atividade naquele que era o principal setor da economia brasileira.

A política de defesa do café entre 1919 e 1929, apesar de atingir êxito, foi

acompanhada de um comportamento oscilante por parte da política cambial. Nesse

sentido, é importante recordar o que já foi tratado em capítulos anteriores: os

idealizadores do plano de valorização do café entendiam que era fundamental, para que

o efeito preço da defesa do gênero não fosse anulado, a manutenção e a estabilização do

câmbio em níveis mais ou menos desvalorizados. E é o que de fato ocorre entre 1919 e

220
1923. Nesse período inclusive Silber nota que a depreciação cambial funcionou também

como um mecanismo de proteção da indústria nacional. Com o decorrente encarecimento

das importações de bens finais, a produção interna passa a ser o principal componente

para o abastecimento da demanda nacional. Após 1923, porém, Silber nos aponta uma

estabilização do câmbio em taxas mais apreciadas, o que se explica pelo aumento da

entrada de divisas de exportação dado o sucesso das políticas de defesa do setor cafeeiro.

Assim, de fato há uma queda na produção industrial nacional, desprotegida em função do

barateamento dos bens estrangeiros como decorrência da valorização cambial. Não

obstante, abriu-se maior margem para a compra de bens de capital e consolidação da

capacidade instalada nas fábricas brasileiras.

Com a crise econômica mundial seguida do crack da bolsa de Nova York em 1929,

a política de defesa do café assume, como já demonstramos, um novo caráter e um novo

método de condução. Num ambiente de restrições para empréstimos externos, a queima

de sacas de café com o objetivo de defesa da renda no setor cafeeiro necessariamente se

operacionalizou a partir de uma expansão do crédito.

A desvalorização que se segue à expansão monetária no início do Governo Vargas

é acompanhada de uma deterioração nos termos de troca, refletida no encarecimento dos

bens importados e na subsequente queda nas importações. Silber nesse aspecto concorda

com Furtado ao salientar que houve um desvio da demanda nacional para o mercado

interno, o que foi viabilizado justamente pela defesa da renda na cafeicultura, mantendo

os níveis de emprego e de consumo consequentemente. A produção nacional então passa

a ser o principal amortecedor das pressões oriundas da demanda interna por bens finais.

O que acabamos de descrever acima mostra como Furtado e Silber convergem

para conclusões muito similares com relação ao desenvolvimento econômico, e industrial

em específico, do Brasil após o fim da República Velha. Não significa, porém, que este

221
autor não tenha feito as devidas qualificações à análise canônica daquele economista. As

críticas de Silber residem no fato de que Furtado não entendeu a dupla causalidade no

setor industrial das políticas de defesa do café, defasadas no tempo. Se realmente em

1930, a estratégia varguista de literalmente destruir o café funcionou como uma política

pré-keynesiana anticíclica, afirmar a mesma coisa para o período que vai de 1923 até

1929 não procede. Como mostramos, Silber nota uma distorção nos preços relativos por

conta da apreciação cambial que resulta do êxito da política de defesa a partir de 1919.

Distorção essa que bloqueou o aumento da produção industrial nacional, dado que o

barateamento das importações desprotegeu o empresário brasileiro. Por outro lado,

Furtado não notou, de acordo com Silber, o papel do empréstimo externo de 20 milhões

de libras que se deu com o objetivo claro de viabilizar a queima das sacas, o qual acabou

também funcionando como um efeito multiplicador na economia. O mesmo

“esquecimento” se deu com relação aos déficits fiscais entre 1930 e 1932 e o superávit

comercial no mesmo período, os quais funcionaram também como mecanismo protetor

da renda nacional. Finalmente, a crítica de Silber a Furtado reside no seguinte: o autor de

Formação Econômica do Brasil não conseguiu provar realmente a transferência de renda

do setor cafeeiro para o industrial. Tudo o que foi dito pode ser sintetizado nas palavras

do próprio autor:

Proteger o setor cafeeiro ao longo da década dos 30, ao contrário

dos anos 20, significou acelerar o desenvolvimento industrial. A demanda

interna por produtos industriais cresce neste período como subproduto da

defesa do setor cafeeiro. Parece-nos que Celso Furtado tem o insight correto

com relação aos impactos favoráveis sobre o nível de renda da defesa do café,

fazendo com que as repercussões da depressão fossem menores e facilitassem

a recuperação da economia brasileira […]. Porém, seu trabalho é falho como

pesquisa histórica ao deixar de considerar outros fatores que contribuíram

para minorar os efeitos da depressão e que possibilitaram a recuperação dos

222
níveis de produção, a partir de 1932. Não considera o empréstimo externo de

1930 […]. Os elevados déficits do governo no início da década, o aumento da

participação do governo ao longo dos anos 30, o superávit da balança

comercial no período 1930/1932, são, também, elementos responsáveis pelo

resultado que Furtado atribui exclusivamente à política do café […]. As

atividades do CNC e DNC nem sequer são mencionadas […].257

As qualificações de Silber a Furtado são relevantes, mas as mais categóricas se

dirigem a C. M. Peláez e, consequentemente, a A. Villela e W. Suzigan. Esses três autores,

como vimos anteriormente, possuem linhas argumentativas parecidas com relação ao

desenvolvimento industrial.

A crítica principal de Silber se dirige à constatação de Peláez sobre a diretriz

ortodoxa da política econômica nacional em suas facetas fiscal, monetária e cambial. Uma

estratégia de queima de sacas e mais sacas de café ao longo de anos não pode ser

considerada outra coisa que não uma política efetivamente anticíclica e que inclusive

favoreceu a recuperação da demanda interna e o subsequente fortalecimento da indústria

nacional nos anos de 1930 em diante. A própria grandeza do déficit fiscal nos primeiros

três anos em que Vargas esteve na chefia do poder executivo, assim como a necessidade

de expansões monetária e creditícia por parte da autoridade responsável, dificulta muito

afirmar que a condução da nossa economia tenha se dado em bases ortodoxas.

Continuando suas qualificações, Silber conclui que é um erro da parte de Peláez

afirmar que o aumento da carga tributária no setor cafeeiro tenha sido o único meio de

257
SILBER, Simão. Análise da Política econômica e do comportamento da economia brasileira
durante o período 1929/1939. In VERSIANI, F. R. & BARROS, J. R. M. de. (orgs) Formação
econômica do Brasil: a experiência da industrialização. 1a. Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 202
– 203.

223
financiamento governamental para a defesa do café. Não só o ônus da elevação de

impostos foi arcado pelo consumidor estrangeiro por conta da inelasticidade preço da

demanda internacional por café, mas também um outro mecanismo, o empréstimo

externo, garantiu o financiamento da defesa. Finalmente, a própria desvalorização

cambial que se segue ao keynesianismo avant-la-lettre empreendido por Vargas não foi

apontado por Peláez, o que é crucial para entender também a condução não ortodoxa da

política cambial. De acordo com Silber:

[Peláez] Não dá destaque à importância da primeira grande medida

de defesa do setor cafeeiro: o empréstimo externo de £ 20.000.000 […] Suas

afirmações de que as compras de café foram financiadas basicamente por

impostos não corresponde de forma exata aos seus próprios dados […]. […]

esquece em sua análise um elementos importante da defesa do setor cafeeiro:

a desvalorização cambial […] Com relação aos seus argumentos de que a

política monetária e fiscal se pautou, durante a década de 30, or princípios

‘ortodoxos’, parece-nos que Peláez incorre em um erro de interpretação.258

258
Idem, p. 203.
224
XXX

A Política Econômica no Primeiro Governo Vargas (1930 – 1945)

O debate que apresentamos e discutimos no capítulo anterior nos permitiu tirar

conclusões interessantes sobre os fundamentos da modernização econômica pela qual

passou o Brasil na década de 1930. É conveniente agora adentrar na análise da política

econômica propriamente dita e do papel do Estado no processo de desenvolvimento e

complexificação da economia brasileira. Com o objetivo de atingir uma noção mais clara

do ambiente da história econômica nacional em que estamos nos inserindo, separamos os

15 anos de diretrizes econômicas da primeira fase da Era Vargas em 3 grandes blocos: a)

o governo provisório (1930 – 1934); b) o interregno democrático (1935 – 1937); c) a

ditadura do Estado Novo (1937 – 1945).

a) O governo provisório (1930 – 1934)

Em meio ao crack da bolsa de Nova York e à recessão mundial subsequente, era

mais que esperado que a situação do Brasil na economia internacional se fundasse num

piso mais ou menos instável. No triênio de 1929 – 1931, as reservas em moeda

internacional que eram de posse do Banco de Brasil (que ainda naquele momento exercia

a dupla função de autoridade monetária e banco de varejo) estavam praticamente

225
zeradas.259 Do mesmo modo, nossas balanças de rendas e serviços, assim como a de

capitais, apresentavam déficit.260

A ausência de reservas num ambiente completamente caótico da economia

mundial na qual se inseria o Brasil era acompanhada de uma queda de 26% nas relações

de troca de nossa economia com o resto do mundo: embora as importações tenham

diminuído em 60%, sendo 40% no preço, as exportações sofreram desestímulo de 16%,

sendo 55% no preço. Estava assim montado todo o aparato para uma grave crise cambial,

uma vez que nosso regime cambial à época era flutuante. Não foi por mero acaso ou

coincidência, portanto, que sucessivas moratórias até o ano de 1931 chegaram a ser

executadas. Dado o caráter insustentável da situação em setembro do mesmo ano, o Banco

do Brasil adota o monopólio cambial. Voltávamos ao regime de câmbio fixo. Todas as

cambiais obtidas com exportação deveriam ser vendidas à autoridade monetária com base

no câmbio oficial, menor que a taxa de mercado. Nas palavras de Marcelo de Paiva Abreu:

Em 1930-1931, adotou-se uma política cambial aparentemente liberal, mas na

prática restritiva, decretando-se moratórias sucessivas em relação às dívidas

em moeda estrangeira. Em setembro de 1931, a situação tornou-se

insustentável, os pagamentos relativos à dívida pública externa foram

suspensos, reintroduzindo-se o monopólio cambial do Banco do Brasil.261

259
Uma das causas cuja menção se faz necessária é a falência da própria Caixa de Estabilização
no final do governo W. Luís. A própria entidade era responsável pelo gerenciamento de nossas
reservas em moeda internacional
260
Convém recordar das observações de Furtado a respeito do caráter adverso da “conta capital”
numa economia periférica como a brasileira. Em situações críticas como a da Grande Depressão,
a fuga de capitais para as nações centrais, mais “seguras”, tornava quase impossível evitar um
desequilíbrio para baixo da conta de capitais do Brasil.
261
ABREU, M. de P. Crise, crescimento e modernização autoritária: 1930-1945. In: ABREU,
M. de P. (org.). A ordem do progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2014, p. 80.

226
É nesse quadro cambial pouco alentador que a nova estratégia de negociação da

dívida externa por parte de nossas autoridades econômicas leva em consideração o

estabelecimento de um “novo funding loan” em 1931. Adequando os pagamentos às

disponibilidades de nossas reservas, mantinham-se os compromissos assumidos nos

fundings anteriores (1898 e 1914), mas os juros decorrentes de empréstimos realizados a

partir de 1931 seriam quitados no prazo de 3 anos, com lastreamento na emissão de títulos

com rendimento de 5%.262

Como último elemento para a análise da política econômica nesse primeiro bloco,

vale ressaltar a tentativa do governo brasileiro de conseguir um empréstimo britânico para

acomodar a crise cambial na qual se inseria o país. Conhecida como “Missão Niemeyer”,

o Brasil recebe a visita do banqueiro e funcionário público britânico de alto escalão Sir

Otto Niemeyer, o que acabou funcionando como uma pré-condição para a consolidação

do empréstimo. Marcelo de Paiva nos apresenta precisamente os resultados obtidos com

a missão:

Um comunicado oficial publicado em 10 de janeiro de 1931 anunciava a visita

de Sir Otto ao Brasil. A visita foi apresentada à opinião pública como

resultado de convite voluntário do governo brasileiro e, naturalmente, não

como pré-condição à eventual concessão de empréstimo britânico ao governo

federal [...]. Niemeyer verificou ser impossível obter no Brasil estatísticas

fidedignas referentes às contas públicas, sendo obrigado a aceitar

“estatísticas que considerava falsificadas ou baseadas em conceitos vagos”.

O Banco do Brasil foi considerado “inútil enquanto banco central, mal

organizado, mal administrado e sujeito a mudanças radicais de política a cada

mudança de governo” [...]. O relatório da missão, que foi publicado

simultaneamente em Nova York, Paris, Londres e Rio de Janeiro em 25 de

262
Idem, p. 81.
227
julho de 1931, propunha basicamente dois grupos de medidas, pois, de acordo

com Niemeyer, “a reconstrução financeira do Brasil, como em outros países,

requer duas bases: a) a manutenção do equilíbrio orçamentário por parte de

todas as autoridades públicas... b) a estabilização da moeda...”. [...] as

recomendações do relatório Niemeyer relativas à política fiscal não foram

adotadas pelo governo brasileiro, a Missão Niemeyer deve ser considerada

como um fracasso. Nenhuma de suas recomendações mais importantes foi

adotada [...].263

De fato, é muito difícil contrariar Niemeyer no que tange à tentativa de atingir o equilíbrio

orçamentário nos anos que se seguem à Grande Depressão. Em nenhum ano do decênio

1930 – 1939, as contas públicas do governo não fecharam “no vermelho”, o que se

apresentou para as autoridades financeiras britânicas como irresponsabilidade fiscal. Veja

o gráfico que Villela e Suzigan nos apresentam:264

263
Ibidem, A missão Niemeyer. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 14, n. 4, p.
07-28, agosto, 1974, pp. 15 – 21.
264
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira,
1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1973, p. 185.
228
1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939
0

-200

-400

-600

-800

-1000

-1200

-1400

b) O interregno democrático (1934 – 1937)

Em fins do funding loan de 1931, o Brasil já apresentava uma melhora

significativa em seu balanço de pagamentos. Não obstante, a situação cambial continuava

num quadro pouco animador. Isso porque, ao terminarem os pagamentos dos

empréstimos consagrados três anos antes, empresários norte – americanos já passavam a

pressionar o governo federal para o estabelecimento de um regime cambial que operasse

de acordo com seus interesses. O fundamental, na visão do estrangeiro, para reestimular

a atividade econômica no Brasil, não residia num tratamento cambial diferenciado (como

vinha sendo o caso desde o início do governo provisório), mas sim na elevação das pautas

de exportação, assim como numa maior ênfase por parte das autoridades numa política

comercial mais liberal. É nesse contexto de que se dá a “Missão Williams”:

Essas pressões provocaram o envio ao Brasil de missão chefiada por John

Williams, do Federal Reserve Bank of New York, para avaliar a situação

cambial brasileira. Em contraste com diagnósticos ortodoxos, tal como o de

229
Niemeyer em 1931, Williams reconheceu que a solução do problema cambial

não dependia das autoridades brasileiras e sim da recuperação do nível de

comércio internacional e da redução dos obstáculos ao livre comércio. 265

As pressões norte americanas surtiram o efeito desejado e o Brasil abandona

definitivamente o monopólio cambial ao final dos compromissos do funding loan em

1934. O ganho de divisas com exportações, até mesmo considerando as vendas de sacas

de café no mercado mundial, não mais se atrelava à cobertura cambial que se destinava

ao Banco do Brasil. O novo tratamento cambial valeria também no caso da concessão de

licenças para remessas de lucros ao exterior.

A liberalidade cambial descrita acima e o subsequente afrouxamento do controle

da movimentação de nossas reservas contribuiu para provocar nova crise cambial já em

1935, obrigando a autoridade monetária a estabelecer um regime cambial novamente mais

restritivo, mas sob novas bases. A partir do início daquele ano, 35% das cambiais obtidas

com exportações deveriam ser repassadas ao Banco do Brasil mediante taxa oficial, ao

passo que o restante poderia ser negociado livremente a partir da taxa de mercado.266

Finalmente, é importante perceber que, em meio às restrições cambiais que se

seguiam após 1935, o governo federal manteve as políticas fiscal, monetária e creditícia

expansionistas. O impacto disso foi a retomada do crescimento do produto no período

que vai de 1934 até 1937. A aceleração, por sua vez, teve de levar em conta a retomada

da trajetória ascendente da produção industrial. Isso era plenamente compreensível numa

265
ABREU, M. de. P. Op. cit., p. 86.
266
É bem verdade que, já a partir de fevereiro de 1935, o Banco do Brasil abriria mão da
obrigatoriedade dos 35% no que se referia às exportações. O repasse poderia se dar abaixo desse
patamar, variando consideravelmente no período do interregno democrático. No caso das
importações, porém, a cobertura cambial se manteve a níveis constantes. Cf. ABREU, M. de P.
Op. cit., pp. 87 – 88.
230
conjuntura de crise internacional, o que favorecia o processo de substituição de

importações. Nas palavras de M. Leopoldi:

O grande crescimento industrial de 1933 a 1936 (14,1% a.a.) ― os anos do

milagre ― puxa o PIB do período para uma taxa de 9,4% [...]. A alta taxa de

dinamismo do setor industrial no período se deve a uma base industrial

preexistente que pôde ser ampliada a partir da conjuntura internacional em

crise, que ajuda a substituição de importações.267

c) A ditadura do Estado Novo (1937 – 1945)

Com a consolidação do poder central de Vargas a partir do golpe de 1937 (cujos

determinantes político – institucionais foram aqui delineados previamente), o papel do

Estado no desenvolvimento econômico do país assume um novo caráter em termos

qualitativos e quantitativos. Ele deixa de ser apenas um “player” ocasional que assumia

as rédeas da condução econômica em situação mais aguda e passa a ser o principal agente

do desenvolvimento, atuando como o investidor mais importante nos negócios da

economia brasileira. É bem verdade que este é um processo que veio tomando forma

desde a “Revolução de 1930”, mas ele atinge seu ápice exatamente na ditadura varguista.

E é justo nessa inflexão que os planos de investimento industrial desenhados pelo Estado

já não coadunam mais com uma política cambial menos restritiva. O monopólio cambial

estrito é assim reestabelecido. Junto com o regime de câmbio fixo veio também a

estratégia de controle de importações, que serviria mais como uma forma de conter os

267
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 249.

231
déficits na balança comercial, o que vinha sendo o principal causador do rombo na dívida

externa.268 Novamente de acordo com Marcelo de Paiva Abreu:

O controle cambial e de importações depois de 1937 tornou-se o principal

instrumento de política comercial. Na prática, a aplicação dos controles de

importação resultou ser instrumento mais eficaz para conter ou reduzir o nível

agregado de importações do que para discriminar em favor das importações

definidas como essenciais.269

As restrições cambiais e o controle de importações não foram suficientes para

resolver no curto prazo o problema da dívida externa brasileira. O quadro crítico de

escassez de divisas exigiu a realização da chamada “Missão Aranha”. O ministro Oswaldo

Aranha teria sido encarregado de negociar junto ao Eximbank um empréstimo volumoso

para amortecer as pressões crescentes sobre nosso balanço de pagamentos. Em troca da

adoção de uma política cambial liberal e sem diferenciação, além do compromisso de

iniciar o pagamento dos juros da dívida pública no curto prazo, o que o Brasil conseguiu

foi um modesto empréstimo de US$ 19,2 milhões para descongelar os atrasados

comerciais com os EUA. A imposição do pagamento do serviço da dívida em especial foi

recebida com considerável insatisfação principalmente por parte das Forças Armadas,

uma vez que tal condição poderia funcionar como obstáculo para a importação de material

militar necessário ao funcionamento ordinário do exército.270

Mesmo que a contrapartida norte – americana no acordo estabelecido com a

“Missão Aranha” tenha sido modesta, Oswaldo Aranha se compromete com a adoção de

uma política cambial menos restritiva na comparação com aquela até então adotada desde

268
Cf.: “Em fins de 1937, a escassez de divisas, fruto da substancial elevação das importações,
que cresceram cerca de 40% em valor entre 1936 e 1937, foi usada como justificativa, após o
golpe de novembro, para o default da dívida externa e a adoção de monopólio cambial do
governo.” ABREU, M. de P. Op. cit., p. 93.
269
Idem, p. 93.
270
Cf. Ibidem, pp. 94 – 95.
232
o início da ditadura varguista. Assim, o nome regime cambial terá aspecto semelhante

àquele adotado em 1935 no interregno democrático. Das cambiais obtidas com as

exportações, 30% deveriam ser repassadas ao Banco do Brasil mediante taxa oficial

menor que a de mercado. As outras 70% poderiam ser negociadas livremente. Sendo a

taxa oficial mais vantajosa, o governo federal poderia ter a capacidade de liquidar seus

compromissos em moeda estrangeira Ainda de acordo com Marcelo de Paiva:

A reformulação da política cambial ocorrida em abril de 1939 correspondeu

parcialmente às promessas feitas por Aranha em Washington. O novo regime

cambial liberava 70% das cambiais geradas pelas exportações para o

mercado “livre” de divisas, que deveria suprir integralmente as divisas para

importação de mercadorias [...]. Os restantes 30% das cambiais de exportação

deveriam ser vendidos compulsoriamente ao Banco do Brasil à taxa oficial de

câmbio mais favorável ao governo do que a taxa “livre” – para uso no

pagamento de compromissos oficiais em moeda estrangeira [...]. Uma terceira

taxa de câmbio – a livre-especial – foi criada, englobando transações

financeiras privadas, especialmente remessas de lucros e dividendos de

capitais estrangeiros, mais depreciada do que a taxa do mercado “livre”.271

A economia brasileira, a partir da conflagração do conflito mundial mais

sangrento de toda a história da humanidade, passará por uma inflexão em seu trajeto que

será marcante em nossa história econômica até seu período mais recente. O fechamento

dos mercados centrais para os principais produtos brasileiros (entre eles obviamente o

café), ao mesmo tempo em que não houve aumento das importações dos países aliados

pelo menos até 1942, fez com que nossa balança comercial sofresse uma queda a níveis

acentuados. Comprometia-se assim a nossa capacidade para importar bens de capital e

outros insumos necessários ao processo de industrialização. O que é aparentemente

271
ABREU, M. de P. Op. cit., pp. 94 – 95.
233
paradoxal é que a mesma dificuldade de importações funcionou como um mecanismo

protetor para o industrial brasileiro, na medida em que ele pode se desenvolver sem

recorrer exclusivamente ao suprimento externo. Essa peculiaridade pode ser resumida por

Abreu:

As dificuldades relativas à obtenção de importações resultaram em efeitos

contraditórios sobre o desempenho da economia. Por um lado, a produção de

determinados bens podia desenvolver-se sem a alternativa de suprimento

externo; por outro o crescimento industrial era limitado pela dificuldade de

obtenção de insumos essenciais e de bens de capital que possibilitassem a

ampliação da capacidade.272

As dificuldades para importar devido ao quadro desfavorável de nossa balança

comercial tornaram mais fortes as percepções, por parte das autoridades, de que era

necessário uma intervenção estatal mais forte para a formação de um parque industrial de

insumos. É assim que o projeto estatal siderúrgico começa a se delinear, por exemplo.

Veremos mais adiante que o Estado Varguista será o principal componente na formação

de todo o complexo de infraestrutura que englobou não só a siderurgia, mas o petróleo e

a geração de energia elétrica.

É importante perceber, porém, que a partir de 1942 as importações aliadas atingem

um grau considerável e o Brasil certamente assume um papel importante no suprimento

dos interesses estratégicos das nações centrais que rivalizam com o Nazi – Fascismo pela

hegemonia do globo. Com isso, a oferta brasileira se direciona para o mercado externo,

de modo que a renda gerada com o crescimento do PIB desde 1935 fica represada sem

ser atendida pelo mercado nacional. Ao mesmo tempo em que se materializava uma

defasagem entre a demanda interna agregada e a oferta, potencializada pela restrição às

272
Idem, p. 96.
234
importações brasileiras devido ao esforço de guerra, o Governo Federal apelava para

emissões monetárias lastreadas em títulos públicos assim como emissões primárias,

ambas servindo para financiar o déficit público oriundo dos gastos decorrentes do projeto

nacional – desenvolvimentista. A combinação de políticas monetária e fiscal

expansionistas com um crescente desequilíbrio entre oferta e procura necessariamente

conduziram a economia para um quadro inflacionário com crescimento econômico. O

nível de preços chegou a subir anualmente no intervalo entre 15% e 20%. 273 De acordo

com o gráfico:274

400

300

200

100

0
1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945

273
Ibidem, p. 96.
274
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 424.
235
XXXI

A defesa da indústria na Era Vargas (1930 – 1945)

Seguindo a discussão sobre o desenvolvimento e a modernização da economia

brasileira nos anos em que Vargas esteve na chefia do executivo nacional até 1945,

abrimos espaço agora para analisar em mais pormenores o papel do Estado no processo

de complexificação do nosso parque industrial. Colocaremos em relevo, nesse sentido, o

posicionamento da historiografia sobre qual teria sido a real intencionalidade do

executivo brasileiro na promoção de nossa modernização. Será dado, assim, maior espaço

para a interpretação de Maria Antonieta Leopoldi no que diz respeito ao desenvolvimento

da indústria brasileira no período em questão.

A autora é categórica ao enfatizar que não houve uma intenção a priori de

desenvolvimento industrial por parte do Estado Burguês varguista. Na realidade, o projeto

de industrialização se fundamenta a partir de elementos históricos e econômicos externos

às aspirações do Estado. A proposta estatal de desenvolvimento teria se materializado, de

acordo com Leopoldi, nos desdobramentos da conjuntura econômica nacional, baseando-

se mais no próprio movimento histórico do que numa intencionalidade pregressa que

automaticamente teria se concretizado. Nas palavras da própria autora:

[...] não se sustenta a ideia de que existiu um projeto varguista de

desenvolvimento que serviu de base para as políticas desse período. Tal

projeto foi sendo construído em cima dos acontecimentos, respondendo aos

desafios conjunturais, que não foram poucos, e às várias demandas

236
econômicas e políticas, e só pode ser compreendido se visto de uma

perspectiva histórica.275

Leopoldi conclui sua premissa básica afirmando que, apesar da inconsistência da

tese que defende a intencionalidade a priori do Estado, este acabou exercendo um papel

fundamental no desenvolvimento da indústria nacional que se solidifica a partir dos

desdobramentos histórico – econômicos favoráveis do início da década de 1930. É nesse

ambiente que o executivo poderá empreender uma política cujo enfoque se direciona para

os ditos “setores estratégicos” de infraestrutura: petróleo, siderurgia e energia elétrica são,

no conjunto de todos contemplados, os principais e os que serão aqui analisados mais

retidamente.276

É nesses complexos de infraestrutura que Vargas enxerga a possibilidade de

superar os gargalos estruturais da nossa economia que atravancavam o desenvolvimento.

O desenho do plano de modernização, nesse sentido, deveria levar em conta as formas de

financiamento necessárias à materialização dos projetos de infraestrutura. Como realizar

a transferência de tecnologia? Como ponderar bem a participação dos capitais nacional e

estrangeiro no processo de desenvolvimento? Além disso, a relação do Estado com a

disponibilidade de recursos naturais que o Brasil oferecia deveria tornar-se mais estreita

a partir de então: um novo marco regulatório institucional passou a ser pauta nacional

justamente para dar ao executivo federal maior acesso ao solo e às potencialidades da

natureza brasileira. Confira os artigos da Constituição de 1937 que apontam exatamente

para esse fortalecimento dos laços governamentais com os recursos naturais:

275
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 248.
276
Idem, pp. 250 – 252.
237
Art 143 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d'água

constituem propriedade distinta da propriedade do solo para o efeito de

exploração ou aproveitamento industrial. O aproveitamento industrial das

minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica, ainda que de

propriedade privada, depende de autorização federal.

§ 1º - A autorização só poderá ser concedida a brasileiros, ou empresas

constituídas por acionistas brasileiros, reservada ao proprietário preferência

na exploração, ou participação nos lucros

§ 4º - Independe de autorização o aproveitamento das quedas d'água já

utilizadas industrialmente na data desta Constituição, assim como, nas

mesmas condições, a exploração das minas em lavra, ainda que

transitoriamente suspensa

Art 144 - A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas

minerais e quedas d'água ou outras fontes de energia assim como das

indústrias consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar

da Nação.

Art 146 - As empresas concessionárias de serviços públicos federais, estaduais

ou municipais deverão constituir com maioria de brasileiros a sua

administração, ou delegar a brasileiros todos os poderes de gerência.

Art 147 - A lei federal regulará a fiscalização e revisão das tarifas dos serviços

públicos explorados por concessão para que, no interesse coletivo, delas retire

o capital uma retribuição justa ou adequada e sejam atendidas

convenientemente as exigências de expansão e melhoramento dos serviços.

a) O petróleo

Até o final da década de 1920, a incipiente indústria brasileira dependia em larga

medida da queima de combustíveis sólidos, tais como a lenha e o bagaço de cana. É só

em meados do decênio seguinte que o petróleo passa a ser visto como uma alternativa

para a solução do problema energético. Olhando para as experiências mexicana e

238
argentina, o executivo federal em conjunto com as Forças Armadas colocam o

desenvolvimento do projeto petrolífero não só como uma ponte necessária ao

desenvolvimento industrial, mas principalmente como um mecanismo de segurança

nacional.277 Isso porque com uma nova alternativa para o fornecimento de energia, viria

junto uma maior independência nacional com relação aos interesses das companhias

estrangeiras de matérias primas e insumos para as fábricas. Não é por acaso, portanto, que

em 1938 tenha sido criado o Conselho Nacional do Petróleo, comandado pelo General

Horta.

Se era consenso a necessidade de apresentar uma alternativa para o fornecimento

energético de nossa indústria, de modo a dinamizar seu desenvolvimento, estava longe de

ser unanimidade a forma como se daria a realização do projeto petrolífero. Já na década

de 1940, a questão do petróleo nacional se transformará em palco de debates sobre a

possibilidade/viabilidade da participação do capital privado nacional e internacional no

desenvolvimento desse “setor estratégico”. De acordo ainda com Leopoldi:

No início dos anos 40, as controvérsias em torno da política do petróleo

começaram a se tornar mais claras. De um lado, o general Horta Barbosa, à

frente do CNP, defendia um projeto totalmente estatal [...]. Do outro lado, os

empresários brasileiros, donos de refinarias, queriam um modelo nacional

privado para o petróleo. Com a aproximação entre o Brasil e os Estados

Unidos durante a guerra, a linha estatizante de Horta Barbosa foi perdendo

força e ele acabou sendo afastado do CNP em 1943.278

Os planos do petróleo nacional ganharão contornos mais reais a partir do segundo

governo de Getúlio Vargas (1951 – 1954), quando é criado o imposto único sobre os

277
Cf.: “Inspirados pelo exemplo da Argentina, que criara em 1922 uma empresa estatal de
petróleo, e pelo México, que em 1938 expropriara as refinarias estrangeiras instaladas no país, os
militares brasileiros começaram a tornar pública sua posição de que a dependência da importação
do petróleo precisava ser revertida, pois era uma questão de segurança nacional.” Ibidem, p. 254.
278
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 254.
239
derivados do petróleo, idealizado fundamentalmente para o financiamento da estatal

brasileira petrolífera: a famigerada Petrobrás, estabelecida no ano de 1953 após aprovação

no Congresso Nacional.279

b) A siderurgia

Quando falamos de siderurgia no Brasil, logo nos vem ao pensamento uma série de

empresas de grande porte e de demasiada importância para toda nossa cadeia produtiva.

Não é de se esperar outra coisa que não lembrar da CSN (Companhia Siderúrgica

Nacional) e da Vale do Rio Doce. A grande questão que não pode faltar à análise histórica,

porém, são os antecedentes desse quadro que ganha robustez a partir dos anos de 1940.

Até o final da década de 1920, o parque siderúrgico nacional era extremamente

incipiente. Contava basicamente com os modestos investimentos privados do norte –

americano Percival Farquhar.280 Era corrente, entretanto, a noção de que deveria haver

um grande projeto de desenvolvimento da siderurgia brasileira. O “sonho”, por assim

dizer, acabava sendo compartilhado por militares, engenheiros civis e também pela classe

política. Mas esbarravam na realidade ao ver a falta de aço para a modernização e

complexificação de áreas como a construção civil e a indústria metalúrgica.281

É só no final da década de 1930 que estratégias mais elaboradas para o

desenvolvimento da siderurgia brasileira começam a ser pensadas. A formação de um

parque siderúrgico mais robusto necessariamente deveria levar em conta a questão da

transferência de tecnologia. E o caminho inicialmente encontrado foi um acordo de

279
Idem, p. 255.
280
Nos anos de 1940, as propriedades de Farquhar foram apropriadas pelo Estado Brasileiro
para a construção da Acesita em Minas Gerais (1942). O empresário viria a morrer na miséria.
281
Ibidem, pp. 256 – 257.
240
compensação comercial com a Alemanha, selado em 1937.282 O projeto avança já na

década de 1940 com a criação da Comissão Executiva do Plano Siderúrgico. A entidade

se encarregou de negociar com o governo norte – americano, através do Eximbank, um

acordo que garantia o apoio estado – unidense para a construção de nosso parque

siderúrgico. Em troca da concessão de uma base militar brasileira no Nordeste para uso

exclusivo dos EUA em 1942, o Eximbank estabelece uma linha de crédito no montante

de 20 milhões de dólares para a construção da CSN no mesmo ano. Outros 25 milhões

seriam investidos pelo próprio governo federal com financiamento vindo de fontes

diversas. Estava montado o grande projeto de desenvolvimento do nosso parque

siderúrgico. De acordo com Leopoldi:

A CSN foi o último empreendimento significativo do primeiro período de

Vargas no governo e o símbolo de um projeto nacional desenvolvimentista que

envolveu uma aliança entre Estado, industriais e militares. A CSN pôs em

relevo também a capacidade de negociação da diplomacia brasileira, que

reconheceu o momento ideal para barganhar com os interesses estratégicos

dos americanos [...].283

c) As hidrelétricas

Com a urbanização e o desenvolvimento da indústria nacional no período que

compreende os decênios de 1920 e de 1930, cada vez mais se avoluma uma defasagem

entre a demanda e a oferta de energia elétrica no país e principalmente nas metrópoles do

sudeste brasileiro. As necessidades cada vez maiores dos empresários e da própria

população citadina por um abastecimento energético eficiente já não mais poderiam ser

acomodadas pela incipiente e rudimentar oferta nacional. Leopoldi aponta:

282
Com a conflagração do conflito mundial e o posterior alinhamento brasileiro ao lado dos
aliados faz com que cessem as relações diplomáticas entre Brasil e a Alemanha Nazista, indo pelo
ralo os acordos comerciais antes selados.
283
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 257.
241
No início do governo Vargas [...]. Boa parte do país ainda recorria aos

lampiões de querosene, à lenha e aos geradores particulares para iluminar as

residências e movimentar as indústrias [...]. A partir de 1930, enquanto a

economia crescia, recuperando-se da crise e apresentando um crescimento

industrial surpreendente, a oferta de energia elétrica estagnava [...].284

É importante mencionar que o suprimento de energia elétrica era feito

basicamente por empresas subsidiárias, centrais térmicas e hidrelétricas. Estas chegaram

a compor cerca de 60% da capacidade instalada brasileira de energia elétrica no início

dos anos de 1930.285

É só no final da ditadura do Estado Novo que um projeto mais robusto de geração

de energia elétrica ganha força no país. Abrindo mão do sistema de concessões para

subsidiárias estrangeiras (a tônica até o momento), o Estado passaria a ter papel

fundamental no desenvolvimento desse setor estratégico de nosso complexo de

infraestrutura, atuando junto com os governos estaduais no processo de geração e de

distribuição de energia. O que acabamos de dizer novamente pode ser sintetizado pelas

palavras de Leopoldi:

Os sinais de um novo modelo energético em germinação, que substituiria o

sistema de concessões pela ação direta do Estado na geração e distribuição

da energia hidrelétrica, vieram dos governos estaduais, durante a Segunda

Guerra (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro), e da criação, em

1945, da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a primeira empresa de

eletricidade do governo federal [...].286

284
Idem, p. 259.
285
Ibidem, p. 260.
286
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 261.
242
XXXII

A economia brasileira na Segunda Guerra Mundial

Em 1942, em meio ao conflito mais sangrento de toda a história da civilização

humana, o Brasil oficialmente entra na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados. Era

declarado Estado de Guerra em todo o território nacional. As relações diplomáticas e

comerciais que existiam com os países do Eixo Roma – Berlim – Tóquio foram

definitivamente rompidas, assim como perseguições a alemães, japoneses e italianos que

viviam no país passaram a ser perseguidos oficialmente pelo Estado.287

Por mais interessante que possa ser o estudo e a análise da Segunda Guerra em si,

assim como deve ser igualmente estimulante entender de maneira aprofundada os

determinantes para a entrada do Brasil no conflito e seus resultados políticos, daremos

ênfase aqui ao quadro da economia nacional durante a sangria que perdurou de 1939 até

1945.

O primeiro aspecto que merece um olhar mais atento é a questão do financiamento

do setor siderúrgico brasileiro, ponto nevrálgico que envolvia duas nações rivais em

conflito: Alemanha e EUA. O Brasil havia selado um acordo bilateral de compensação

com os germânicos em 1937, em que ocorreria a transferência de tecnologia para a

construção siderúrgica em Volta Redonda. Ao mesmo tempo, como já pontuamos no

capítulo X, existiam tratativas de Vargas com a diplomacia norte – americana para um

287
Os dois times brasileiros de futebol que carregavam o nome de Palestra Itália, um em São
Paulo e outro em Minas Gerais, foram obrigados a mudar o título da agremiação: em São Paulo,
passou a ser a Sociedade Esportiva Palmeiras; em Minas Gerais, tornou-se o Cruzeiro Esporte
Clube. Futebol também é História.
243
plano robusto de financiamento do aço no Brasil. Se Maria Leopoldi aponta no sentido

de um eminente poder de barganha por parte do governo brasileiro, que teria usado da

ameaça alemã para atrair o investimento estado-unidense, outras interpretações da

historiografia questionam essa análise.288

Marcelo de Paiva Abreu é um dos autores que nega essa habilidade presente na

diplomacia brasileira que permitiu a captação dos recursos norte – americanos. Na

realidade, tratava-se, segundo o pesquisador, de uma estratégia da própria potência

mundial que buscava exercer cada vez mais sua hegemonia econômica e política na

América Latina e via no Brasil o melhor país para estabelecer sua influência. De fato, a

própria Alemanha nazista romperia com Vargas no exato momento em que este teria

declarado seu apoio oficial aos aliados (EUA, Inglaterra, França e URSS), desfazendo o

acordo de compensação comercial selado em 1937. De acordo com Paiva:

É difícil aceitar acriticamente, apesar dos comentários de Vargas, a alegação

de que os norte-americanos decidiram sob temor de que os alemães

concedessem os financiamentos e fornecessem o equipamento para Volta

Redonda. Não se pode levar a sério a presunção de que a Alemanha ocuparia

sua capacidade produtiva com a encomenda de equipamentos para Volta

Redonda ou que os britânicos permitiriam que estes fossem transportados sem

problemas para o Brasil. A ênfase de Vargas na ameaça alemã só pode ser

vista como um típico blefe. O que se argumenta aqui é que, subjacente à

decisão norte-americana de ir adiante com o financiamento e com o

fornecimento de material para Volta Redonda, ‘não’ estava o temor de uma

altamente improvável alternativa alemã, mas sim considerações relativas a

uma política de longo prazo para a América Latina que dependia do

fortalecimento do Brasil em detrimento da Argentina.289

288
Vide nota 25.
289
ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999, p. 327.
244
Uma vez em Estado de guerra, o Brasil assume seus compromissos e encontra

uma velha solução para financiá-los: a emissão monetária. 3 milhões de contos de réis

foram emitidos na forma de títulos públicos com rendimento de 6,0% a.a., os quais

deveriam ser compulsoriamente repassados a funcionários públicos. Além disso, mais 1

milhão de contos foram vendidos aos bancos comerciais na forma de letras do Tesouro

Nacional. Além das emissões monetárias, mais acordos entre EUA e Brasil foram

realizados para o financiamento do esforço de guerra nacional. Inicialmente, foram

estabelecidas linhas de crédito na base de 100 milhões de dólares, de modo que a

contrapartida brasileira seria o comprometimento com o fornecimento de matérias –

primas estratégicas para os planos norte – americanos. Após o rompimento com o Eixo,

o crédito estrangeiro expande para 200 milhões de dólares. Ao fim e ao cabo, o Brasil foi

receptor de praticamente 330 milhões de dólares, dos quais uma parte foi diretamente

enviada para a FEB na Itália.290

As medidas de expansão monetária, mais cedo ou mais tarde, acabariam levando

a uma escalada do nível de preços. O impacto inflacionário pode ser visto a partir de duas

óticas. De um lado temos a análise canônica de Celso Furtado, que encontra as razões da

inflação num desequilíbrio entre a oferta e a procura por bens dentro do país. As políticas

anticíclicas da década de 1930 teriam tido o mérito de “isolar” a economia brasileira dos

efeitos mais nefastos da crise mundial, possibilitando a abertura de um caminho para a

expansão da renda. E se antes do conflito a oferta teria sido capaz de suprir a demanda

agregada que se desviara para o mercado interno, com a entrada do Brasil na Segunda

Guerra Mundial, aquilo que era direcionado “para dentro” toma o caminho das

exportações. Cria-se um desequilíbrio que só poderia ser resolvido pelo mecanismo da

290
Idem, p. 332.
245
elevação dos preços. Por outro lado, a historiografia mais recente, em que está incluso

Marcelo de Paiva Abreu, aponta para um descontrole da emissão monetária justamente

pela ausência de um Banco Central propriamente dito. A política econômica e monetária

em específico estava dividida entre o Banco do Brasil, a SUMOC (precursora do BACEN,

que seria fundado na ditadura militar) e o Ministério da Fazenda. Tornava-se muito

frequente, nesse sentido, a descontinuidade e a inexistência de um plano monetário mais

claro e direcionado. A inflação teria sido, por assim dizer, o resultado de anos de

imprudência no controle da moeda. Veja a tabela que explicita a evolução do nível de

preços da economia brasileira entre 1934 e 1945:291

Anos Índice de Preços Taxa de câmbio

1934 112,6 73$423

1935 114,9 85$112

1936 138,2 86$230

1937 162,1 78$788

1938 161,2 86$387

1939 157,6 85$746

1940 165,8 79$989

1941 186,3 79$971

291
VILLELA & SUZIGAN, p. 426.
246
1942 206,8 79$590

1943 253,9 79$586

1944 288,7 79$290

1945 360,9 78$901

Além do mecanismo de financiamento, convém lançar luz sobre o fato de que a

própria estrutura de arrecadação tributária passou por importante ponto de inflexão. Com

a conflagração do conflito mundial, necessariamente o comércio internacional sofreria

modificações no sentido de seu maior fechamento. Os países centrais, imbuídos do

esforço de guerra, restringiram substancialmente suas exportações, o que é análogo a

dizer que o potencial do Brasil para importar havia diminuído. Ora, uma vez que a

principal fonte de receita do governo federal vinha por meio da arrecadação do imposto

de importações, era de se esperar que, sem nenhuma mudança na organização tributária,

nossas receitas teriam de reduzir. O fato é que passam a ganhar muita importância os

impostos de renda e sobre consumo na medida em que caem as compras no exterior.292

Com os desdobramentos da sangria mundial, não só as questões referentes ao

plano de desenvolvimento siderúrgico, aos mecanismos de financiamento e à mudança

no quadro da arrecadação tributária merecem destaque, mas também é relevante discutir

o comportamento do gasto público no mesmo período. Partindo da prerrogativa de

ampliar a garantia de segurança nacional em meio à guerra, o Estado passa a ter

292
Nos seis anos de duração da Guerra, a porcentagem do tributo de importação na receita federal
vai de 32,4% para 12,4%. O imposto de renda amplia sua participação de 9,4% para 27,1%. Cf.
Idem, p. 223.
247
justificativas concretas para a realização de obras públicas cujo fim último era a defesa

da famigerada soberania nacional. É nesse sentido que são empreendidas as atividades

para a realização do Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa

Nacional e do Plano de Obras e Equipamentos. Em tais conjuntos de obras se

enquadravam a construção e o aparelhamento de novos quartéis, assim como a criação de

novas ferrovias e rodovias de importância claramente militar. Não é por acaso, portanto,

que nos anos da Segunda Guerra Mundial, a participação dos gastos do governo na dívida

pública chegam ao patamar de 19,0%, enquanto nos anos de 1930, ela não havia

ultrapassado modestos 6,0%. Em todo o intervalo 1940 – 1945, o saldo governamental

realizado ficou abaixo do saldo previsto, assim como a despesa realizada ficou acima da

orçada no mesmo período.

Um último elemento que merece destaque em nossa análise é a participação

efetiva do Brasil no comércio internacional nos anos da Guerra. Nesse sentido, é

extremamente relevante notar que 75% de nossa pauta de exportações estava

comprometida pelos acordos comerciais bilaterais com os EUA e com a Inglaterra. Com

os norte – americanos especificamente estavam englobados os seguintes produtos: café,

minerais, borracha, babaçu, algodão, mamona, cacau e arroz. Mas o que mais impressiona

é o comportamento dos têxteis. Chegavam a compor aproximadamente 20% de nossa

parcela no mercado mundial. Veja como cresce a produção de algodão para a indústria de

tecidos durante o conflito mundial:

248
1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0
1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947

Tecido de algodão

A expansão da produção reflete-se num aumento das taxas de lucro dos empresários do

setor, as quais variavam entre 50% e 80%.293

Apesar do excelente desempenho dos têxteis nacionais no mercado mundial, é

importantíssimo pontuar a falta de ética comercial por parte de nossos empresários. Isso

justamente porque a maioria dos tecidos enviados para o exterior (especialmente para a

Argentina e para a África do Sul) eram de qualidade inferior àquela estabelecida

previamente em contrato, o que acabou contribuindo e muito para um desgaste do Brasil

no comércio internacional.

Essa falta de confiança do setor externo com relação à capacidade do Brasil de

arcar com seus compromissos impactou inclusive no quadro das importações de bens de

293
É fundamental pontuar que o aumento da produção têxtil no Brasil reflete uma mudança no
comportamento demográfico, com uma ampliação da urbanização no período de modernização
da economia nacional no decênio de 1930.
249
capital e de outros insumos. Não que o Brasil não tenha ampliado sua capacidade para

importar. Pelo contrário: com a elevação de nossas exportações, ela aumentou, apesar da

queda média de 20% das nossas compras. Na realidade, o que houve foi a venda, por parte

principalmente de Inglaterra e EUA, de bens de capital de segunda mão e sem garantia.

Era uma espécie de retaliação, a qual acabou trazendo consequências indesejáveis para o

desenvolvimento da nossa indústria, uma vez que, com o aquecimento da produção, a

inferior qualidade dos insumos utilizados potencializaria ainda mais o desgaste e a

saturação de nosso parque.

250
XXXIII

O Governo Dutra e a política econômica no pós-guerra

Passadas as turbulências da Segunda Guerra Mundial no quadro da economia

brasileira, assim como em seu invólucro político, os rumos da política econômica ganham

novos contornos com a queda de Getúlio Vargas e a chegada do General Eurico Gaspar

Dutra à chefia do poder executivo federal. No debate público, duas vertentes mais amplas

de pensamento econômico ganham força na busca por hegemonia sobre os desenhos de

planejamento. A primeira delas, de caráter mais liberal e ancorada na tradição austríaca

de F. Hayek, não intervencionista e internacionalista, era representada principalmente por

Eugênio Gudin (1886 – 1986). A rival, fundamentada numa visão próxima da linha

keynesiana, via o Estado como um agente importante do desenvolvimento e o único capaz

de realmente planejar a economia nacional, tendo como “líder” o empresário Roberto

Simonsen (1889 – 1948). Aqueles enxergavam a política desenvolvimentista como a

causa por trás da ineficiência e da baixa produtividade da indústria nacional, cada vez

mais afastada do investimento direto estrangeiro na medida em que o Estado assumia uma

posição mais e mais intervencionista desde o golpe do Estado Novo em 1937. Estes, por

outro lado, eram entusiastas do desenvolvimentismo, visto como necessário à

modernização de nosso parque industrial ainda em processo de formação. E por isso a

necessidade de um executivo cada vez mais atuante, que estivesse interessado em

desenhos de planejamento econômico efetivamente nacionais. Nas palavras de Leopoldi:

Quando a guerra chegava ao fim veio à tona no Brasil um intenso debate sobre

como deveria ser a política econômica no pós-guerra. De um lado estavam os

251
neoliberais (Eugênio Gudin, Octavio Gouveia de Bulhões, Valentim Bouças),

que tinham alguma conexão com companhias estrangeiras ou uma visão mais

internacionalista da economia [...]. Essa corrente era contrária ao

envolvimento do Estado com a política industrial, na forma de tarifas

protecionistas ou controle cambial. Para essa corrente, o protecionismo

industrial levava à baixa produtividade industrial e a preços altos. O

planejamento também era muito criticado, porque lembrava socialismo e

dirigismo. De outro lado, havia uma variedade de orientações

desenvolvimentistas (empresariais, estatistas, comunistas) que apoiavam, com

menor ou maior ênfase, o papel do Estado e do planejamento para promover

o desenvolvimento industrial [...] estavam em acordo quanto ao papel central

da industrialização e da necessidade de proteção da indústria local pelo

Estado. Os industriais brasileiros, tendo à frente líderes como Roberto

Simonsen e Euvaldo Lodi [...] tornaram público seu projeto econômico para

Brasil do pós-guerra [...] propunham que o governo brasileiro destinasse

reservas cambiais do país para a importação de equipamentos e insumos

necessários à indústria, selecionando as importações essenciais. 294

Concretamente, o embate entre as duas vertentes de política econômica se

expressou na criação do CNPIC (Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial),

chefiado por Simonsen, e da CPE (Comissão de Planejamento Econômico), liderado por

Gudin.

O empresário paulista, sendo um entusiasta do pensamento de John Maynard

Keynes, entendia que o desenvolvimento industrial tinha de ser fundamentado no crédito

e no investimento estatais, de modo que este último complementasse o investimento do

294
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 279.

252
empresariado nacional, o qual não teria condições de consolidar um parque inteiro por

conta própria. No que concernia às relações bilaterais Brasil – EUA, Simonsen admitia

um financiamento externo que viesse do próprio governo norte – americano, e não por

meio de investidores privados. Em suma, a proteção nacional era a única forma de

garantir, segundo Simonsen, a sobrevivência das indústrias locais frente àquelas dos

países mais desenvolvidos no pós-guerra.295

O engenheiro carioca, por seu turno, representava no Brasil a crítica

antikeynesiana que Hayek realizava na arena internacional. O planejamento econômico

estatal acompanhado do intervencionismo e do dirigismo, longe de estimular o

desenvolvimento, produzia ineficiência e lançava o risco de se instaurar, no país, uma

linha de política econômica em suas versões nazi-fascista ou até mesmo estalinista. O

protecionismo seria o mecanismo pelo qual a coletividade se sacrificava em prol de umas

pequenas oligarquias, abrindo caminho para o autoritarismo e colocando obstáculos à

redemocratização brasileira após os anos da ditadura varguista.296

Como já afirmamos aqui várias vezes, antes de delinear a política econômica em

si, é fundamental que se detalhe o quadro da própria economia brasileira no período em

que Dutra esteve na presidência. Isso porque o desenho de qualquer planejamento, quando

estudamos com um pouco mais de seriedade a história econômica brasileira, não é feito

no vácuo e no escuro, mas na realidade está condicionado à própria estrutura da economia

e sua dinâmica interna.

O aspecto mais importante que merece de nós um olhar mais atento é o quadro

inflacionário que seguia escalando após o fim da Segunda Guerra Mundial. O conflito

295
BASTOS, Pedro Paulo Z. O presidente desiludido: pêndulo de política econômica no governo
Dutra. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, 2004, p. 107.
296
Idem, p. 108.
253
mundial alterou drasticamente a relação que se havia estabelecido no país entre a demanda

interna por bens de consumo e sua oferta doméstica. Essa, se antes conseguia abastecer

bem a procura (ampliada robustamente por conta das políticas expansionistas vigentes

em boa parte da década de 1930), muda de direção na medida em que o Brasil se vê

obrigado a atender os países aliados, os quais haviam entrado em esforço de guerra

durante o conflito. É esse comprometido brasileiro com o atendimento das exigências

internacionais que se coloca na base de uma defasagem entre a oferta real e a procura

monetária. O desequilíbrio, na ausência de qualquer intervenção imediata,

necessariamente deveria ser corrigido com um aumento no nível de preços. De acordo

com Celso Furtado:

Enquanto isso, o fluxo de renda continuava a avolumar-se. O setor externo

gerava uma massa de poder de compra que ia aumentando com a elevação

dos preços internacionais. O governo distribuía uma massa de salários maior

[...]. Entre 1940 e 1943 a quantidade total de bens e serviços à disposição da

população no território nacional aumentou apenas 2 por cento, enquanto o

fluxo de renda se incrementou em 43 por cento. Essa disparidade dá uma ideia

do desequilíbrio que se formou entre a oferta real e a procura monetária.297

É exatamente sobre esse fundo inflacionário que o governo Dutra propõe uma

nova política cambial e de comércio exterior por conseguinte. Não bastava, para conter a

inflação, estabilizar o câmbio. Era necessário sua estabilidade a níveis mais valorizados.

Passava a ser institucionalizado o mercado livre de câmbio, de modo que a taxa oficial

passava a ser a de 1939, ou seja Cr$18,50/US$. A remodelagem da política cambial se

fazia de acordo com o objetivo de facilitar a importação de matérias primas e de bens de

capital, assim como para atrair uma soma maior de investimentos estrangeiros. Em suma,

297
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1995, p. 210-213.
254
buscava-se corrigir o desequilíbrio interno entre a procura monetária e a oferta real da

economia. O câmbio novamente serviria como o estabilizador dos preços.

O que essa política econômica não considerou ou não conseguiu controlar foi o

comportamento da disponibilidade de divisas. Com a valorização forçada do câmbio, o

que se passou no Brasil foi um déficit em moedas fortes conversíveis, ao passo que havia

superávit em moedas consideradas fracas, ou seja, justamente aqueles que se encontravam

bloqueadas pela autoridade monetária. Com o déficit veio a queda brusca das reservas

internacionais em ouro, de modo que em 1947 o governo federal autoriza novamente o

controle cambial baseado nas restrições às importações. À taxa oficial de câmbio de

Cr$18,50 por dólar, 30% das cambiais deveriam ser repassadas ao BB, de modo que os

70% restantes poderiam ser negociados no mercado livre, mas de acordo com uma tabela

de importações prioritárias da CEXIM (Comissão de Exportações e Importações). A

política restritiva, claramente sendo seguida de acordo com uma linha mais ortodoxa que

objetivava o equilíbrio na balança de pagamentos, tornou-se ainda mais rígida após

fevereiro de 1948. Funcionava, em linhas gerais, da seguinte maneira: os artigos

essenciais, tais como remédios, fertilizantes e inseticidas, poderiam ser importados

livremente; dentre aqueles que entravam nas regras do licenciamento, os prioritários eram

os alimentos, os combustíveis, papel e maquinaria; os mais desencorajados eram os bens

de consumo duráveis, que eram colocados em longa lista de espera para então serem

importados.

Uma vez que o combate à inflação foi considerado pelo Governo Dutra como a

principal tarefa de seu mandato, a política cambial não poderia ser vista como suficiente

por si só para frear o aumento no nível de preços. A ortodoxia como linha de política

econômica também tomou conta dos lados fiscal e monetário. Tanto o investimento

público como a emissão primária de meio circulante foram rigorosamente contraídos, de

255
forma tanto a conter o déficit governamental como a eliminar o efeito monetário sobre a

inflação. A liberação de crédito por parte do Banco do Brasil, por exemplo, seguiu as

orientações ministeriais, sofrendo uma contração real de 2,0%. De fato, a inflação sentiu

os efeitos da ortodoxia na medida em que o nível geral de preços reduziu-se para 9,0%.

O resultado paralelo a isso, porém, foi uma diminuição do fôlego da atividade econômica

e do ritmo de crescimento, na medida em que o PIB passou a crescer apenas 2,40% no

mesmo período.

É justamente essa queda na curva de crescimento do produto que acabou

motivando, a partir de 1949 (quando o orçamento federal estava razoavelmente

equilibrado), a adoção de políticas mais flexíveis, em que pesavam o apoio à expansão

do crédito e à maior participação do gasto público na composição do produto. O

rompimento com as estratégias contracionistas pré-1949 acabaram provocando o

“retorno” da inflação e do déficit público. Isso porque o nível geral de preços aumentou

no patamar de 9,2% no ano de 1950. Veja o comportamento oscilante dos preços no

gráfico abaixo:298

298
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sistema de Contas Nacionais Referência 2000
(IBGE/SCN 2000 Anual).
256
25

20

15

10

0
1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951
Taxa de inflação (Medida pelo deflator implícito do PIB)

É interessante analisar o que esteve por trás, além da queda no ritmo de

crescimento, da adoção de uma política econômica mais flexível. Nesse sentido, dois

fatores podem ser elencados: a) a proximidade das eleições, em que Dutra pensava na

vitória de seu sucessor, fazia com que as políticas de desenvolvimento servissem também

como propaganda política (nenhum governante pode pensar em se eleger com o seguinte

discurso: “reduzi a inflação por um ou dois anos, mas a economia já não cresce mais

como antes justamente por causa da minha estratégia recessiva”); b) o crescimento da

produção industrial e da demanda por insumos, o que acabou atrelando-se a uma

exigência maior de crédito por parte do empresariado, interessado em importar cada vez

mais, dado que o câmbio mantinha-se razoavelmente valorizado.

Em suma, a economia brasileira ao final dos anos Dutra pode ser caracterizada da

seguinte forma: o relativo “abandono” das políticas fiscal e monetária contracionistas

permitiram a retomada do crescimento econômico em largas bases e da produção

industrial especificamente. A aceleração do grau de atividade foi acompanhada,

entretanto, de uma escalada da inflação, fruto de um afrouxamento no controle da emissão

de meio circulante.

257
O último elemento marcante do Governo Dutra é o Plano SALTE. Este, ao

contrário do que uma leitura apressada pode apontar, não se tratava de um plano global

na medida em que não incorporava o papel que o setor privado poderia ter nos projetos

de desenvolvimento. Funcionava mais como uma estratégia de intervenção do Estado nos

desafios que a economia brasileira poderia impor às autoridades. Nesse sentido, o Plano

englobava quatro setores considerados estratégicos: saúde, educação, transportes e

energia.299 Idealizado para durar no período que vai de 1950 até 1954, o SALTE deveria

se ancorar num montante de recursos que chegava à praticamente 20 bilhões de cruzeiros,

os quais deveriam ser assim distribuídos:300

Energia Saúde
16% 13%

Alimentação
14%

Transportes
57%

O governo contava com a seguinte configuração de financiamento: 30% viriam do próprio

orçamento da União, ao passo que os outros 70% originar-se-iam de empréstimos na base

de 7 bilhões de cruzeiros, de reajustamentos nos mecanismos de arrecadação aduaneira,

299
Era necessário ampliar e melhorar os serviços de saúde pública e de abastecimento de
gêneros alimentícios. Por outro lado, a expansão do quadro gerador de energia elétrica e a
modernização dos sistemas de transporte intranacional eram tidos como elementos fundamentais
para o desenvolvimento.
300
BAER. Industrialização e desenvolvimento econômico, p. 63.
258
da venda de divisas por parte do Banco do Brasil e também da criação de impostos que

incidiriam sobre os rendimentos do próprio SALTE.

Por falta de recursos, porém, o plano falhou em seus objetivos e durou apenas por

um ano.

259
XXXIV

O Segundo Governo Vargas (1951 – 1954)

Ao final do mandato do Gal. Dutra no ano de 1950, já se colocavam em disputa

os candidatos para a sucessão presidencial. Além de Cristiano Machado e o Brigadeiro

Eduardo Gomes, uma velha figura da política nacional voltava ao palco depois de uma

década e meia: Getúlio Vargas voltava do ostracismo tentando novamente alçar-se ao

posto de presidente do Brasil. Com 49% dos votos válidos, o executivo nacional colocava

o retrato do velho outra vez.

Para fins de nosso trabalho, porém, mais relevante que o panorama político que

tem como resultado a eleição de Vargas são os precedentes da economia brasileira

responsáveis pelo alinhamento das estratégias de desenvolvimento e de planejamento

econômico empreendidas no início dos anos de 1950. Ao final do Governo Dutra, a

condução razoavelmente não ortodoxa das diretrizes econômicas, com expansões fiscal e

creditícia, produzia novamente um quadro inflacionário que se unia a um desequilíbrio

orçamentário cada vez maior. Para além disso, vale mencionar as estratégias adotadas

para a proteção do setor industrial, as quais estavam perfeitamente interligadas ao debate

econômico “Gudin x Simonsen”. Como já vimos, as restrições à importações e a política

cambial de valorização do cruzeiro frente ao dólar americano serviram como duplo

mecanismo de proteção e estímulo ao empresário brasileiro. De acordo com Sérgio

Besserman Vianna:

[...] efeito subsídio, associado a preços relativos artificialmente mais baratos

para bens de capital, matérias-primas e combustíveis importados; efeito

260
protecionista, através das restrições à importação de bens competitivos e

efeito lucratividade, resultante do fato de que a taxa de câmbio

sobrevalorizada tendeu a alterar a estrutura das rentabilidades relativas, no

sentido de estimular a produção para o mercado doméstico em comparação

com a produção para exportação.301

É essa a conjuntura, em linhas gerais, que opera como antecedente imediato à linha de

política econômica inicialmente adotada por Getúlio Vargas em seu governo

democrático.

A historiografia tradicional do período costuma traçar uma linha divisória bem

clara entre duas vertentes de planejamento adotadas por Vargas enquanto este foi

presidente do país nos anos de 1950. Nos primeiros anos, para conter a aceleração da

inflação e garantir a estabilização do orçamento, as autoridades teriam lançado mão de

um extenso arcabouço ortodoxo para a condução das políticas fiscal e monetária. Teria

sido essa a fase “Campos Sales” do governo Vargas, em alusão à política de saneamento

monetário encabeçada por Joaquim Murtinho a partir de 1898 para conter a crise

inflacionária oriunda da descontrolada expansão monetária e creditícia autorizada por

Ruy Barbosa no início da década de 1890. Passado o período da estabilização, era urgente

tomar uma atitude que seguisse em direção ao desenvolvimentismo. A política econômica

deveria estar comprometida com o crescimento e com a aceleração da atividade

econômica. Era a fase “Rodrigues Alves”, numa referência ao período que vai de 1902

até 1906 em que o executivo federal pensou com mais carinho na criação de um complexo

de infraestrutura para a acomodação do à época incipiente parque industrial. Já nos anos

de 1950, com Vargas, essa segunda fase de política econômica não foi desenhada sem dar

301
VIANNA, Sérgio Besserman. Política econômica externa e industrialização. In: ABREU, M.
de P. (org.). A ordem do progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. 2.ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2014, p. 113.

261
espaço à participação da capital estrangeiro na estratégia de desenvolvimento. É pensando

nessa segunda fase de política econômica que a CMBEU (Comissão Mista Brasil-Estados

Unidos) já é fundada logo após a eleição de Vargas. Ainda segundo Vianna:

A CMBEU era fundamental para o sucesso da segunda fase do projeto do

governo por duas razões: primeiro, porque o financiamento dos projetos por

ela elaborados pelo Banco Mundial e pelo Eximbank asseguraria a superação

de gargalos na infraestrutura econômica do país [...] fornecendo

simultaneamente as divisas absolutamente necessárias para essa finalidade.

[...] Segundo, porque o afluxo de capital estrangeiro permitiria [...] que se

cumprisse a fase das realizações e empreendimentos sem prejuízo da

manutenção de uma política econômica austera e ortodoxa.302

Para além do desenho da política econômica a ser empreendida no longo prazo, o

executivo federal lança mão de uma velha “aliada” que desde os tempos do Convênio de

Taubaté serviu como muleta para as estratégias de condução da economia brasileira.

Estamos falando obviamente da política cambial. O câmbio, assim como nos anos Dutra,

deveria ser estabilizado a níveis razoavelmente valorizados, num regime fixo. Além disso,

dava-se continuidade às restrições de importações a partir das tabelas de prioridades da

CEXIM.

O que acabou “furando” a política da CEXIM foi a deflagração da Guerra da

Coreia. O temor que se seguia ao conflito no Extremo Oriente de que um novo banho de

sangue mundial estaria por vir fez com que as restrições às importações fossem

flexibilizadas. Era uma medida de segurança, dado que, se realmente fosse ocorrer uma

nova Guerra Mundial em proporções ainda maiores, os países com maior envolvimento

poderiam novamente entrar em esforço de guerra, limitando suas vendas para a periferia.

O descontrole sobre o comércio exterior que se seguiu a isso, uma vez que se concretizou

302
Idem, pp. 124 – 125.
262
uma defasagem entre a concessão das licenças e a efetivação das importações (algo não

previsto pelas autoridades da CEXIM), culminou numa crise cambial que motivou o

fortalecimento das restrições.303

Internamente, dava-se início, no ano de 1951, à condução ortodoxa da política

econômica. Pautava-se pela adoção de políticas monetária e creditícia contracionistas,

assim como pelo corte das despesas governamentais, as quais se somariam a uma

ampliação da arrecadação tributária para equilibrar o orçamento. A fraqueza da estratégia

desenhada por Vargas ficava clara na medida em que ela era confrontada com a própria

realidade: a ausência de uma articulação entre o Ministério da Fazenda e o presidente do

Banco do Brasil, Ricardo Jafet, bloqueou a contração eficiente do crédito e da base

monetária. O chefe da autoridade monetária brasileira à época aumentou a disponibilidade

do meio circulante nacional, conduzindo a política monetária no sentido contrário àquele

idealizado pelo ministro Horácio Lafer. Por outro lado, o corte nas despesas

governamentais tornou-se extremamente difícil na medida em que o orçamento para 1951

já havia sido aprovado ao final do governo de Eurico Gaspar Dutra. Ao mesmo tempo, a

utilização do novo sistema tributário que almejava ampliar a arrecadação federal não seria

possível para o exercício contábil do mesmo ano.

Apesar das dificuldades, do ponto de vista fiscal a política econômica foi capaz

de reduzir suas despesas e alcançar um pequeno saldo orçamentário positivo nas contas

públicas. A falta de coordenação no tratamento dos meios de pagamentos, por seu turno,

acabou produzindo efeito contrário àquele desejado pelas autoridades: a inflação não

conseguiu ser contida e, a título de exemplo, o nível geral de preços ao consumidor no

Rio de Janeiro saltou de 12,1% ao ano em 1951 para 17,3% em 1952. Não obstante, a

303
Ibidem, p. 128.
263
mesma expansão creditícia promovida por Jafet a contragosto de Lafer abriu margem para

a ampliação dos investimentos privados no biênio 1951 – 1952. Na própria composição

do PIB, que tem uma ampliação do crescimento de 4,9% para 7,3%, a participação do

componente “I” da demanda agregada tornou-se maior. Ainda segundo Vianna:

[...] elevadas taxas de investimento, fomentadas pela liberalização de

importações com taxa de câmbio sobrevalorizada e ajudadas pela expansão

do crédito no período. São alteradas substancialmente as participações dos

setores privado e público (em favor do primeiro) nos investimentos totais

realizados no país. [...] o PIB real cresceu 4,9% e 7,3% em 1951 e 1952,

respectivamente. O setor de serviços, impulsionado pelo comércio importador,

foi o que apresentou as maiores taxas de crescimento.304

A partir de 1953, o governo Vargas sofre uma importante inflexão. Em março

desse mesmo ano eclode uma greve geral de 300 mil trabalhadores que colocava em risco

a própria estabilidade política do mandatário. As expectativas que pairavam sobre as

promessas de crescimento e de melhorias no nível de vida da classe trabalhadora, assim

como de uma maior distribuição de renda, começavam a inverter-se e isso trouxe grandes

consequências à condução da política econômica.305 No mesmo ano, Vargas empreende

uma reforma ministerial: Horácio Lafer deixa a pasta da Fazenda, que é assumida pelo

velho conhecido Oswaldo Aranha. Este, por sua vez, comprometia-se com o objetivo da

estabilização e do controle inflacionário. Além disso, numa forma de ganhar novamente

a confiança do proletariado, João Goulart, afiliado político de Vargas, assumia o

Ministério do Trabalho. É importante ver como o Presidente se colocava numa aparente

“ambiguidade” na medida em que dava posse a um diplomata comprometido com as

ortodoxias fiscal e monetária, num aceno à oposição encabeçada pela UDN, ao mesmo

304
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. cit., p. 130.
305
Idem, p.137.
264
tempo em que deixava um novo líder do movimento trabalhista no comando da pasta do

Trabalho, o que se apresentava como um apelo às demandas mais urgentes da classe

trabalhadora. De acordo novamente com Vianna:

Getúlio [...] desejava estar preparado para seguir mais à direita ou mais à

esquerda, de acordo com o rumo dos acontecimentos. Com [...] Osvaldo

Aranha, acenava para a UDN, reafirmava o propósito de perseguir a

estabilização da economia e criava uma alternativa ampla para sua sucessão.

A outra face da política foi a escolha de João Goulart para o Ministério do

Trabalho, visando a recompor seu prestígio entre os trabalhadores e [...]

deixando em aberto uma alternativa distinta para o encaminhamento da

sucessão presidencial.306

A política de estabilização de Oswaldo Aranha foi acompanhada da retomada do

monopólio cambial com a instauração da Instrução 70 da SUMOC, na qual o controle

estrito de importações por parte da CEXIM foi substituído pelos leilões de câmbio. Eram

estipuladas as taxas múltiplas de câmbio para tipos específicos de compras no mercado

internacional. Para as importações consideradas especiais e importantes, tais como o

trigo, o câmbio determinado era o da taxa oficial apenas. Algumas compras, porém, eram

realizadas olhando para o câmbio oficial somado a uma sobretaxa fixa: era o caso de

importações realizadas pelo governo, pelas autarquias ou até mesmo por sociedades

mistas. As demais importações, por outro lado, estavam sujeitas aos leilões de cambiais.

Aquelas compras no estrangeiro consideradas menos essenciais estavam passíveis de

alcançar taxas mais altas no leilão, ou seja, com um câmbio mais desvalorizado, o que

encarecia a importação. Por outro lado, as categorias de importação consideradas mais

relevantes para o desenvolvimento econômico acabavam absorvendo a maior parte dos

306
Ibidem, p. 137.
265
recursos. De qualquer modo, em todas as categorias inclusas na instrução deveriam incidir

ágios cuja função teria de ser a de ampliar a arrecadação da União.

A análise mais panorâmica dos resultados da Instrução 70 da SUMOC nos aponta

para uma estabilização das importações acompanhada de um aumento das exportações.

Veja que o saldo “Ex. – Im.” no período de janeiro a setembro era de US$ 55 milhões,

saltando para US$ 241,7 milhões no acumulado de janeiro a dezembro. É também

importante ressaltar que o mecanismo de desvalorização cambial serviu como

desestímulo à demanda nacional por bens estrangeiros. Ao mesmo tempo, permitiu uma

ampliação vertiginosa em meados de 1953 das vendas de café para o exterior, por mais

que este tenha sofrido uma ligeira queda no fim deste ano e no início de 1954.307 No

segundo governo de Getúlio Vargas, essa commoditie chegou a compor aproximadamente

0,81 de nossa pauta de exportações. Veja o seguinte gráfico:

307
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. Cit., p. 146.
266
Carne bovina
congelada
Borracha Açúcar
0.04%
0.13% 1.69% Erva-mate
0.55% Couros e
peles
Fumo 1.10% Algodão
1.24% 7.66%
Cacau
5.66%

Café
81.93%

A melhora no saldo da balança de pagamentos, como vimos acima, não conseguiu

ser acompanhada de uma estabilização dos preços. A própria desvalorização do câmbio,

se por um lado ampliou a participação do Brasil no comércio exterior, funcionou

internamente como uma alavanca para o aumento no nível de preços. Este, por outro lado,

tem como antecedente a política de Jango no Ministério do Trabalho, o qual, numa

tentativa de apelo às massas, dobrou o salário mínimo.

A dicotomia: “entreguismo” e nacionalismo

É muito comum, principalmente nos manuais de história do Brasil do século XX,

pautar o segundo Governo Vargas pela oposição entre os interesses dos protoneoliberais

internacionalistas, chamados pejorativamente de entreguistas por aqueles filiados a uma

agenda nacional-desenvolvimentista. Vargas teria abruptamente abandonado o primeiro

267
grupo na passagem para a segunda fase do governo democrático, assumindo a partir de

1953 o nacionalismo convicto como estratégia para o planejamento econômico.

Membros importantes da historiografia do século XX brasileiro, porém, tais como

Vianna e Maria Celina D’Araújo, recusam a dicotomia. Na realidade, a convivência entre

esses interesses aparentemente distintos teria sido a tônica de todo o segundo governo de

Getúlio Vargas. Isso porque a aparente ambiguidade era fruto de uma estratégia

preconcebida de conciliação entre esses polos da burguesia brasileira: uma mais alinhada

aos interesses do capital estrangeiro e outra partidária da política nacional-

desenvolvimentista de proteção da indústria local. Segundo D’Araújo:

[...] é improcedente [...] inferir a [...] existência de uma fase “entreguista” e

de outra “nacionalista”. A nosso ver, ambas as posições políticas e

econômicas coexistiram, refletindo necessariamente o resultado de políticas

geradas a partir de instâncias e de posições contraditórias que compunham o

Governo. [...] é a ambiguidade e mesmo a ausência de um comprometimento

político maior, tanto com ideias quanto com organizações, que marcará

profundamente um Governo que oscilou entre posições nacionalistas e

soluções conciliatórias e tradicionais. É nesse sentido que se pode dizer que o

Governo é coerente em sua ambiguidade. A ambiguidade decorre diretamente

da existência de duas posições distintas que convivem no poder e que contam

com o apoio sistemático do Governo.308

Essa posição dúbia, porém não ingênua e/ou fortuita, do segundo mandato de

Getúlio Vargas, materializa-se inclusive quando analisamos as duas instâncias da

autoridade econômica em seu governo. De um lado havia a Assessoria Econômica, uma

linha técnica e puramente administrativa, distantes dos holofotes e atrelada a um projeto

nacionalista de desenvolvimento a longo prazo. Contrastava, por outro lado, com o

308
D’ARAÚJO, Maria Celina Soares de. O segundo governo Vargas, 1951-1954: democracia,
partidos e crise política. 2a. Edição. São Paulo: Ática, 1992, p. 148.
268
próprio Ministério da Fazenda, que tinha boa influência nos “corredores liberais” do

Congresso Nacional.309 Perceba como, no fundo, a “ambiguidade” era apenas a

externalização de um plano de governo por parte de Vargas. Interessado na estabilidade

política, era tido como certo que o caminho a ser trilhado deveria ser o da conciliação de

interesses dentro da própria burguesia brasileira fracionada. E na realidade foi no

momento em que os choques não puderam ser amortecidos que a crise ganha contornos

cada vez maiores até que o desfecho é o suicídio do próprio Presidente.

Um outro elemento que costuma servir como prova cabal da “guinada

nacionalista” de Vargas é a extinção da CMBEU. O episódio é fruto de desentendimentos

entre as diplomacias brasileira e norte-americana, os quais derivam exatamente da

oposição que Vargas passa a fazer ao capital estrangeiro, assumindo em definitivo uma

postura em favor do desenvolvimento econômico autônomo contra os interesses do

imperialismo. Vianna, por outro lado, recusa essa tese ao afirmar que o fim da CMBEU

foi o resultado da inflexão na própria estratégia geopolítica norte-americana na América

Latina. Com a eleição de D. Eisenhower, os EUA preferem estreitar suas relações com a

Europa Ocidental do pós-guerra e diminuem a ênfase em sua política de boa vizinhança.

Assim, se antes uma boa relação comercial com o Brasil era vista com bons olhos, ela

deixa de ser prioritária de acordo com os interesses da diplomacia americana. Ao mesmo

tempo, na medida em que a influência dos EUA na periferia latino-americana deixava de

ser a tônica, o Banco Mundial encontrou maior espaço para exercer suas diretrizes de

política econômica sobre os países demandantes de crédito estrangeiro. Essa

centralização também pesou contra a continuidade da CMBEU, mais do que uma suposta

demonstração de força nacionalista por parte de Vargas. Em suma, Vianna nos afirma:

309
Idem, pp. 149 – 150.
269
É conveniente, em primeiro lugar, afastar a versão corrente na historiografia

que atribui a uma suposta “virada nacionalista” [...] um papel decisivo nos

desentendimentos do governo brasileiro com o governo norte-americano e o

Banco Mundial, sendo mesmo a causa do final precipitado da CMBEU. De

fato, as causas decisivas foram: a mudança de governo nos Estados Unidos;

a tentativa do Banco Mundial de exercer uma função tutorial sobre a política

econômica dos países demandantes de crédito [...] O Projeto Campos Sales-

Rodrigues Alves apoiava-se no saneamento econômico-financeiro da nação e

no afluxo de capital estrangeiro, esperado a partir dos trabalhos da CMBEU.

O colapso cambial e a deterioração das relações econômicas com os Estados

Unidos determinaram seu abandono.310

310
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. cit., pp. 130 – 132.
270
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