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Universidade de São Paulo

Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária

Departamento de Economia

Formação Econômica e Social do Brasil: uma síntese

Gabriel Galeti Mauro

São Paulo

2019
SUMÁRIO

* PREFÁCIO

PRIMEIRA PARTE

I. Estabelecimento e sedimentação do paradigma pradiano

II. O sentido da colonização

III. O sentido profundo da colonização

IV. História e subdesenvolvimento: a contribuição de Celso Furtado

V. Formação do Estado Português e a expansão quatrocentista

VI. Portugal: da expansão quatrocentista ao império colonial

VII. Fundamentos econômicos da ocupação territorial

VIII. Economia açucareira I

IX. Economia açucareira II

X. Economia açucareira III

XI. Mineração I

XII. Mineração II

XIII. A crise do Antigo Sistema Colonial

XIV. Os interesses “internos”: o parecer de Rodrigues de Brito

XV. A presença inglesa no Brasil

XVI. Emancipação política I

XVII. Emancipação política II


XVIII. Economia cafeeira I

XIX. Economia cafeeira II

XX. Economia cafeeira III

XXI. O complexo cafeeiro

SEGUNDA PARTE

XXII. A proclamação da República

XXIII. O processo político-partidário na Primeira República

XXIV. A política monetária na primeira década republicana

XXV. A defesa do café

XXVI. A industrialização controversa

XXVII. A crise da Primeira República

XXVIII. O Golpe de 1937 e o Estado Novo

XXIX. A modernização nos anos Vargas (1930 – 1945)

XXX. A política econômica no primeiro Governo Vargas (1930 – 1945)

XXXI. A defesa da indústria na Era Vargas (1930 – 1945)

XXXII. A economia brasileira na Segunda Guerra Mundial

XXXIII. O Governo Dutra e a política econômica no pós-guerra

XXXIV. O segundo Governo Vargas (1951 – 1954)

** Bibliografia básica
PRIMEIRA PARTE
PREFÁCIO

O presente trabalho nada mais é do que uma breve síntese do processo histórico

de formação da economia brasileira. Embasado nas aulas ministradas pelo Professor

José Flávio Motta e pela Professora Luciana Suarez Lopes, trata-se de um pequeno

resumo que teve a intenção de ajudar os alunos matriculados na disciplina chamada

Formação Econômica e Social do Brasil no ano de 2019. Não obstante, a intenção de

tornar público este texto é justamente, e apenas, a de ajudar a todos os futuros alunos

desse curso, independentemente do professor responsável. O autor não pretende ir além

desse objetivo.

Mesmo que o propósito seja de ajudar a todos os futuros matriculados nessa

disciplina, inclusive os com pouco interesse nos temas de História Econômica e História

do Pensamento Econômico, o autor ficaria profundamente satisfeito se ao menos um

dos possíveis leitores passasse a ter gosto por essas áreas magníficas das ditas

humanidades, passando então a estuda-las com mais afinco. Todo bom economista

precisa conhecer muito bem os fundamentos da Macroeconomia, da Microeconomia e

da Econometria. Não apenas conhecer, como também saber como os operar na vida

prática com muita precisão. Caso contrário, o economista estará perdido. Ele, contudo,

será tosco se não desenvolver o mínimo interesse pelo estudo da dinâmica histórica que

está por trás da construção da economia moderna, sobre a qual o economista realiza

suas intervenções e sobre a qual se ergue toda a Teoria Econômica. A Economia é um

dos campos científicos mais brilhantes, exatamente por ter como estruturas basilares a

História e a Matemática, aparentemente tão distantes.

7
Com relação à estrutura desse compêndio, cada capítulo corresponde a uma aula

ministrada pelos docentes. Algumas aulas, infelizmente, não foram sintetizadas. Não

convém explicitar as razões para tal.

Finalmente, o autor pede perdão por não ter conseguido sistematizar

perfeitamente as notas de rodapé e as referências ao longo das páginas. Ele crê, no

entanto, que isso não causará transtornos à leitura.

G.G.M.

São Paulo, julho de 2019

8
I

Estabelecimento e sedimentação do paradigma pradiano

Caio Prado Jr. (1907-1990) pode sem quaisquer ressentimentos ser colocado na

lista seleta dos maiores historiadores que a intelectualidade brasileira já conheceu,

sendo, por assim dizer, até hoje uma referência primordial para os estudiosos da

História econômica e social do Brasil.

Em termos de História Econômica, Prado ficou marcado pela obra Formação do

Brasil Contemporâneo: Colônia (1942). É a partir dela que a sua interpretação a

respeito formação econômica e social brasileira ganhou relevância, permitindo que hoje

possa se falar de um paradigma pradiano na historiografia. Não obstante, o título do

livro apresenta uma aparente contradição: afinal, se o tema é do Brasil contemporâneo,

por qual razão o autor nos remete aos três primeiros séculos de nossa história, ou seja,

ao período colonial? Justamente pelo fato de que o plano original de Caio Prado Jr. era

escrever acerca da História Econômica nacional abarcando inclusive os anos de sua

época. Infelizmente, o projeto não se concretizou.

De qualquer forma, é na obra de 1942 que o “modelo” pradiano, ou seja, sua

interpretação historiográfica se encontra mais bem sedimentada. Nas palavras de

Antonio Candido:

Os homens que estão hoje [1967] um pouco para cá ou um pouco para lá

dos 50 anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em

termos de passado e em função de três livros: Casa Grande & Senzala

(1933), de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes

9
do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando

estávamos no curso complementar; Formação do Brasil Contemporâneo

(1942), de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola

superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem

exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise

social que eclodiu depois da revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo,

abafado pelo Estado Novo1.

Dos três autores citados, é justamente Prado que possui um enfoque mais forte e

profundo na análise econômica dentro da historiografia. A relação disso com a

influência da metodologia marxista, que permeou todo o pensamento pradiano, é

inegável. Ainda segundo Candido:

Trazendo para a linha de frente os informantes coloniais de mentalidade

econômica mais sólida e prática, dava o primeiro grande exemplo de

interpretação do passado em função das realidades básicas da produção, da

distribuição e do consumo. Nenhum romantismo, mas o desnudamento

operoso dos substratos materiais. Em consequência, uma exposição de tipo

factual, inteiramente afastada do ensaísmo (marcante nos dois anteriores

[Freyre e Holanda]) e visando a convencer pela massa do dado e do

argumento.2

Previamente à década de 1930, o principal modelo teórico para a explicação da

realidade social imediata do Brasil estava pautado nas explicações de cunho étnico-

racial. Num contexto de substituição da mão-de-obra escrava pela livre e assalariada,

permeado inclusive pela nova roupagem do jogo de interesses, formam-se novos

critérios de cidadania, marcados pela rígida hierarquização social, que necessitam de

1
CANDIDO, A. O significado de Raízes do Brasil. In HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do
Brasil. Edição comemorativa 70 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 235-236.
2
Idem, pp. 237
10
justificativa plausível. É nesse sentido que as teorias raciais, fortalecidas na transição do

século XIX para o XX, apesar de todas as implicações negativas, tornam-se o principal

argumento para sacramentar as diferenças sociais.

Mas, é justamente na transição da República Oligárquica para a Era Vargas que

as doutrinas raciais se tornam insuficientes para explicar o movimento histórico que

começava a assentar-se em bases industriais. A elite intelectual brasileira exigia uma

reformulação das ciências sociais. Como disse Rosa Maria Vieira:

O que se percebe é que o Brasil dos anos 30, que aos poucos passa a viver

sob o signo de uma modernidade contraditória, instiga a intelligentsia

nacional e pede um novo tratamento, para além das abordagens étnico-

raciais dominantes. As elites intelectuais são levadas a atualizar a discussão

da problemática nacional, (...). A grande crise econômica da terceira

década, a agitação social, a cisão oligárquica, a escassa representatividade

política dos novos estratos sociais, a intensa movimentação cultural (de que

o modernismo é boa expressão) configuram um “presente problemático”,

cujas raízes – a “formação nacional” – devem ser investigadas. E, nesse

processo, os recursos da análise social do período são questionados,

abrindo-se espaço para a renovação das ciências sociais no Brasil.3

Vale ressaltar também, a partir da chamada Revolução de 1930, a influência dos

Annales de L. Febvre e M. Bloch na historiografia brasileira, no sentido em que os dois

historiadores franceses combatiam a dita História “dos acontecimentos”

(événementielle). Aquela que tomava como ponto fundamental os acontecimentos

singulares de ordem política, diplomática e até mesmo militar (enfatizando, assim, as

grandes figuras, tais como reis, príncipes, generais, etc.). Ao contrário, Febvre e Bloch

buscavam uma análise histórica que abrisse espaço para a interpretação ao redor dos

3
VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). São Paulo:
EDUC, 2007, p. 75
11
fatos centrais. Preferiam, inclusive, um diálogo mais fecundo com a antropologia, a

psicologia, a geografia, a economia, a sociologia, etc. De acordo com Ronaldo Vainfas:

Contra a tal história historicizante, Febvre e Bloch opunham uma história

problematizadora do social, preocupada com as massas anônimas, seus

modos de viver, sentir e pensar. Uma história de estruturas em movimento,

com grande ênfase no estudo das condições de vida material (...). Uma

história preocupada não com a apologia dos príncipes ou generais em feitos

singulares, senão com a sociedade global, e com a reconstrução dos fatos

em série passíveis de compreensão e explicação.4

Não é por acaso que, ao buscar cobrir a vida humana como um todo e não

apenas os indivíduos “especiais”, e, portanto, ampliando seus horizontes no espaço e no

tempo, o estudo da História passou por uma profunda especialização. “Ai no quadro

das Histórias especiais, ganhou vulto, sobretudo em nossos dias, a Econômica, exigida

pela realidade” (IGLESIAS, 1970, p. 9).

De fato, a História Econômica como tal ganhou força no Brasil principalmente a

partir de Caio Prado Jr. Mas, desde o século XVI, é possível reconhecer obras que

podem hoje ser chamadas de sementes da historiografia econômica. É o caso de

Tratado descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza; Diálogo das

Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão e Cultura e Opulência

(1711), de Pe. Antonil. De caráter fundamentalmente descritivo, funcionam hoje como

fontes para a historiografia propriamente dita. O mesmo acontece com os ricos

relatórios de províncias e de viajantes da colônia.

É em 1935, com a publicação de Evolução econômica do Brasil por John F.

Normano, já com enfoque mais quantitativo e com a presença de dados estatísticos e


4
VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro:
Campus, 2002, p. 17
12
fontes primárias, que a História Econômica amadurece profundamente. Influenciado por

João Lúcio de Azevedo, que, em 1928, publica Épocas de Portugal econômico: esboços

de história, Normano sistematiza a noção de ciclo econômico no período colonial,

balizando a obra de autores essenciais na historiografia econômica, tais como Roberto

Simonsen, Celso Furtado e o próprio Caio Prado Jr. De acordo com Normano:

A história da economia brasileira (...) constitui, na verdade, a história do

aparecimento e desaparecimento por assim dizer de sistemas econômicos

inteiros em que uma nação baseia sua existência. A sua característica

principal é a permanente mudança das condições dos produtos que

poderemos chamar de “produtos reis”. Açúcar, cacau, ouro, fumo,

borracha, café – cada um desses produtos tem seu lugar na história do país e

foram, cada um no seu tempo, o “eixo” da economia nacional (ou estadual),

dando ao Brasil uma supremacia mundial temporária.5

A primeira obra que de fato pode ser considerada como de História Econômica é

História econômica do Brasil (1500-1820), publicada em 1938 por Roberto Simonsen,

onde o autor consolida em definitivo a ideia de ciclo econômico. Falta, entretanto, o

aspecto totalizante da economia nacional no período colonial, aquilo que norteia todo o

processo. Na visão de muitos autores mais recentes, tais como Maria Yedda Linhares, a

proposta de Simonsen acabou resultando numa visão compartimentada e estanque da

história econômica brasileira no período em análise.

Essa lacuna será preenchida justamente por Caio Prado em seu Formação do

Brasil Contemporâneo, caracterizando um salto qualitativo frente a Simonsen. Prado é

quem, por enxergar o processo econômico globalmente, vai mostrar um quadro que não

se altera apesar das distintas atividades econômicas ao longo da colonização, que possui

5
NORMANO, John F. Evolução econômica do Brasil. 2.ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1945, p. 23
13
“uma forma homogênea e única”, como diria Alice Canabrava. Foi esse mesmo autor

que percebeu algo mais profundo que a mudança do “produto-rei” de Normano: a

integração do Brasil à lógica capitalista mercantil das metrópoles europeias, pontuando

uma estrutura fundamentalmente exportadora nos trópicos. Em suma, foi Caio Prado Jr.

quem percebeu que os ciclos econômicos são manifestações distintas de uma realidade

quase que petrificada ao longo dos mais de 300 anos de colonização.

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos

trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que

a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a

explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do

comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de

que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos

fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução

históricas dos trópicos americanos.6

Além dessa visão totalizante e estrutural da economia colonial brasileira,

marcante na obra de Prado, outros aspectos que nortearam sua obra deram a seus

estudos um salto qualitativo e uma posição de destaque dentro da intelectualidade se o

compararmos com autores anteriores e até mesmo contemporâneos. O primeiro deles é a

consideração dada às especificidades históricas (algo compartilhado inclusive por Celso

Furtado), analisando os quadros conjunturais, evitando e criticando a defesa da

aplicação irrestrita dos modelos econômicos internacionais clássicos. Em seu História e

desenvolvimento (1972), entrando em discordância com as teses de W. W. Rostow,

Prado explica:

A ideia central consiste em figurar como ponto de partida do

desenvolvimento moderno aquilo que se denominaria ‘sociedade

6
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Brasiliense.
14
tradicional’, que compreenderia genericamente todas as formas econômico-

sociais que precederam o capitalismo industrial. Mas não se tratará de

caracterizar essa ‘sociedade tradicional’, determinar suas relações de

produção e trabalho; (...). (...) defini-la como momento ou fase de um

processo evolutivo. E sim unicamente marcar com ela um ponto de partida

cômodo onde fosse possível situar o modelo de crescimento econômico de

antemão preparado. Em suma, a ‘sociedade tradicional’ não se caracteriza

por si e em si; e sim apenas em contraste com o que vem depois dela (...).7

O segundo fator fundamental é a perspectiva totalizante, aquela que refletia a paixão de

compreender o Brasil como um todo, numa visão global e que teve como grandes

representantes, além de Caio Prado: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso

Furtado e Raimundo Faoro. Finalmente, é necessário frisar a relação pradiana entre

teoria e a práxis política: a história não poderia se resumir à academia, antes ela deveria

funcionar como instrumento para a militância ativa. A compreensão da realidade

brasileira com vias a estimular a luta política. As descobertas históricas estavam longe

de servir apenas para verificação, mas sim para abrir caminho para movimentos de

combate à injustiça social e que pudessem levar a um desenvolvimento mais sólido.

II

O sentido da colonização

7
PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1972, p. 25
15
O início dessa que é uma das maiores obras de Caio Prado Jr. trata

especificamente das motivações e do direcionamento que foi dado à experiência

colonizadora no Brasil. Basicamente, o “sentido da colonização” ao que o autor se

refere baseia-se na exploração dos recursos naturais do território descoberto, atendendo

às demandas do mercado europeu, que ganhava cada vez mais força. Assim, a

colonização nos trópicos teve, desde o introito, o aspecto de uma vasta empresa. É

justamente desse sentido que resulta os fundamentos econômico e social da formação e

evolução históricas do território brasileiro. Mas, nas palavras do próprio autor:

(...) um tal caráter mais estável, permanente, orgânico, de uma sociedade

própria e definida, só se revelará aos poucos, dominado e abafado que é

pelo que o precede, e que continuará mantendo a primazia e ditando os

traços essenciais de nossa evolução colonial8.

Mesmo que, num dado momento histórico, já fosse possível observar a

estabilidade e a organicidade na colônia 9, tal fator nunca foi capaz de eliminar aquilo

que o autor chama de “linha-mestra” da colonização: o fornecimento dos gêneros

tropicais, raros na Europa e, portanto, com alto potencial de lucratividade para a

metrópole, tais como o açúcar, o tabaco, os minérios preciosos, o café, etc. Eis a

essência da formação brasileira e dela derivaram todas as atividades econômicas

realizadas no Brasil até sua emancipação política.

Como já foi visto, Caio Prado Jr. teve, em toda sua trajetória política e

acadêmica, a influência da metodologia e da análise histórica marxista, o que lhe deu

8
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011,
pp. 28-29.
9
É o que quis dizer Gilberto Freyre ao afirmar que, na experiência colonizadora, formou-se
“uma sociedade com característicos nacionais e qualidades de permanência” (FREYRE, p.
16).
16
um olhar atento para as estruturas socioeconômicas que moldaram a tessitura social

brasileira. Essa “preocupação pradiana” fez com que o autor analisasse com demasiada

atenção o caráter de permanência de muitos elementos coloniais aparentemente

anacrônicos, mas que estavam, no momento em que Prado escreve Formação do Brasil

contemporâneo, profundamente arraigados, dando ao processo de modernização

nacional um caráter conservador, uma vez que as mudanças, ao longo de quatro séculos

até a publicação da obra, não foram capazes de romper esses obstáculos impostos pelo

“sentido da colonização”. Ainda segundo o próprio autor:

É esta em suma a conjuntura em que hoje se encontra a economia brasileira

como resultante do processo histórico em que ela se formou e evoluiu até

nossos dias (...). Conjuntura esta onde se insinuam as contradições em que

se debate a economia brasileira e que se configuram sobretudo na

permanência de um sistema que vindo do passado e embora já obsoleto e

anacrônico, persiste e põe obstáculos ao desenvolvimento (...)10.

É nesse sentido que é possível notar a ligação da obra pradiana com a práxis

política do autor (outro fruto de sua ligação profunda com o marxismo), na medida em

que Caio Prado escreve seus principais textos sempre como instrumento, ou melhor,

estímulo às mudanças revolucionárias, aquelas que produzem abalos estruturais na

economia e no corpo social e que, na visão do autor, são as únicas capazes de varrer

toda essa “permanência deletéria” de elementos chave da nossa colonização. Ainda

assim, toda essa análise foi construída “com certa obsessão. Nesse sentido, a projeção

que [o autor] faz para o Brasil não é nada animadora” (AMARAL LAPA, 1999, p.

263).

Embora a obra trate da experiência colonizadora como um todo, o autor se

utiliza de um recorte temporal preciso: a primeira metade do século XIX. A escolha não
10
PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1972, p. 91-92
17
é inocente e, muito menos, fortuita. Na realidade, é nesse momento em que temos a

expressão plena e mais clara de todos os elementos da colonização, quando essa etapa

de nossa formação econômica e social estava mais bem sedimentada. É também a

localização temporal onde se inicia um processo de transformação e renovação, apesar

de seu caráter conservador, como observamos acima. A partir dos primeiros cinquenta

anos dos “oitocentos”, portanto, é que Prado se dispõe a “olhar para trás” e entender o

que foi, do ponto de vista econômico e social, a colonização do Brasil.

É fato consumado que, ao longo dos primeiros trezentos anos de existência do

Brasil, não faltaram peculiaridades fenomênicas. Só o exemplo econômico nos fornece

inúmeros ciclos de atividade produtiva, com distintos polos de concentração de capitais

e mão-de-obra. Todas elas, no entanto, acabam ofuscando, de acordo com Caio Prado, o

sentido, a “linha-mestra”, os determinantes fundamentais da colonização. Adentrando

numa profundidade de análise um pouco maior, o autor poderá, por sua vez,

compreender que “não sofremos nenhuma descontinuidade no correr da história da

colônia” (PRADO, 2011). Por outro lado, a nossa colonização, com seu sentido e

inclusive com seus “incidentes” secundários, faz parte de um todo maior, inserindo-se

na lógica capitalista do mercado europeu a partir do século XVI.

Compreendido o sentido da colonização e seu caráter mais profundo em relação

aos incidentes fenomênicos, Prado nos leva à conclusão de que o caráter desse momento

histórico da formação brasileira não poderia ser diferente do que foi, ou seja, que a

existência da agro exportação, com vistas a atender à demanda do mercado capitalista

europeu, foi uma consequência natural e necessária de algumas condições: “o caráter

tropical da terra, os objetivos que animam os colonizadores, as condições gerais dessa

nova ordem econômica do mundo que se inaugura (...)” (PRADO, 2011, p. 124).

18
Quanto às condições naturais e físicas da colônia, as descrições de Gilberto

Freyre servem bem para o esclarecimento:

O português vinha encontrar na América tropical uma terra de vida

aparentemente fácil; na verdade dificílima para quem quisesse aqui

organizar qualquer forma permanente ou adiantada de economia e de

sociedade. Se é certo que nos países de clima quente o homem pode viver

sem esforço da abundância de produtos espontâneos, convém, por outro

lado, não esquecer que igualmente exuberantes são, nesses países, as formas

perniciosas de vida vegetal e animal, inimigas de toda cultura agrícola

organizada e de todo trabalho regular e sistemático (...). Foi dentro de

condições físicas assim adversas que se exerceu o esforço civilizador dos

portugueses nos trópicos. Tivessem sido aquelas condições as fáceis e doces

de que falam os panegiristas da nossa natureza e teriam razão os sociólogos

e economistas que, contrastando o difícil triunfo lusitano no Brasil com o

rápido e sensacional dos ingleses naquela parte da América de clima

estimulante, flora equilibrada, fauna antes auxiliar que inimiga do homem,

condições agrológicas e geológicas favoráveis, onde esplende a formidável

civilização dos Estados Unidos, concluem pela superioridade do colonizador

louro sobre o moreno11.

Além das condições físicas mostradas acima, Caio Prado analisa também o estilo

do colono que se dirigiu ao Brasil no início de sua colonização. Tendo em vista as

adversidades naturais, o português que chegava aos trópicos, marcado por sua origem

nobre e fidalga em Portugal, não se predispôs a uma vida de trabalhador, vivendo para a

simples subsistência. Na realidade, o colono na América portuguesa é

(...) o empresário de um grande negócio. Vem para dirigir: e se é para o

campo que se encaminha, só uma empresa de vulto, a grande exploração

rural em espécie e em que figure como senhor, o pode interessar. Vemos

11
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 51ª ed. rev. São Paulo: Global, 2005, p. 78
19
assim que, de início, são grandes áreas de terras que se concedem no Brasil

aos colonos. (...) Nenhum daqueles colonos (...) aceitaria outra coisa12.

Percebe-se, portanto, que a agro exportação, comandada por um senhor, está, no

caso da colonização brasileira, intimamente associada ao latifúndio, a essas enormes

porções de terra que foram distribuídas (sob o nome de “sesmarias”) aos colonos

portugueses dirigentes e onde se realizava a produção em escala para fornecer ao

mercado capitalista europeu gêneros tropicais.

Finalmente, falta delinear o caráter da mão-de-obra. Tendo em vista o estilo da

atividade econômica (realizada em larga escala, exigindo quantidade massiva de

trabalhadores) e a predisposição do colono português para dirigir ao invés de trabalhar,

vemos que o trabalho compulsório de africanos escravizados era mais que bem-vindo.

Caio Prado nos confirma isso ao dizer:

Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho

escravo. Não só Portugal não contava com a população suficiente para

abastecer sua colônia de mão-de-obra, como também, já o vimos, o

português, como qualquer outro colono europeu, não emigra para os

trópicos, em princípio, para se engajar como simples trabalhador

assalariado do campo. A escravidão torna-se assim uma necessidade (...)13.

Assim, o cerne da colonização brasileira, a célula fundamental que dá o sentido

dessa etapa de nossa formação econômica e social, que caracteriza a chamada “linha-

mestra” reside na grande propriedade, sustentada pelo trabalho escravo, comandada pelo

empresário português e que existe como uma inserção, um elo na lógica mercantil do

capitalismo europeu em consolidação. O Brasil, portanto, assume o mero papel de

12
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 124
13
Idem, p. 126-127
20
fornecedor de gêneros tropicais, altamente lucrativos para a metrópole, na divisão

internacional do trabalho da época.

Esse modelo de produção, essa estrutura produtiva nem de longe, na visão de

Caio Prado, foi um modelo eleito dentre outros possíveis. Como já foi visto, foi uma

consequência natural e imposta pelas condições internas e externas que moldaram nossa

experiência colonizadora. Assim, a única via possível era a colonização de exploração,

tornando inimaginável, em território brasileiro, a de povoamento14.

O autor não se limita a analisar somente a grande produção agrária, por mais que

ela seja o núcleo básico de nossa evolução econômica e social. Para ele, outras duas

atividades foram marcantes em nossa formação e legaram as bases de nosso

desenvolvimento: a mineração e o extrativismo. Ambas, porém, são muito semelhantes,

na sua essência, à plantation:

Mutatis mutandis, a mineração, que a partir do século XVIII formará a par

da agricultura entre as grandes atividades da colônia, adotará uma

organização que afora as distinções de natureza técnica, é idêntica à da

agricultura. (...) É ainda a exploração em larga escala que predomina:

grandes unidades, trabalhadas por escravos (...). O terceiro setor das

grandes atividades fundamentais da economia brasileira é o extrativo.

Organizar-se-á de forma diferente, porque não terá por base a propriedade

territorial (...); os colhedores têm a liberdade de se dirigirem para onde lhes

convenha nesta floresta suficiente para todos que forma uma propriedade

comum (...). Trata-se em suma de uma exploração primitiva e rudimentar

(...). Mas afora isto, a extração não se distingue, na organização de seu

trabalho e estruturação econômica, dos demais setores da atividade

colonial. Encontra-se aí o empresário, embora não seja proprietário

14
Prado utiliza esses termos tomando como base o trabalho de Leroy-Beaulieu, que consagrou a
dicotomia “povoamento-exploração” em sua obra De la colonisation chez les peuples modernes.
21
fundiário como o fazendeiro e o minerador, mas que dirige e explora, como

estes, uma numerosa mão-de-obra que trabalha para ele e sob suas ordens15.

Cabe agora analisar, a partir da perspectiva pradiana, as decorrências estruturais

desse modelo econômico existente na experiência colonizadora. Além de se constituir

como um mero fornecedor de gêneros para o mercado europeu na divisão internacional

do trabalho (algo que já havíamos notado), Prado percebe uma intensa concentração da

riqueza nas mãos dos colonos dirigentes e, intimamente relacionado a isso, um imenso

vácuo social (em termos qualitativos) numa estratificação marcada por dois polos da

produção: os senhores e os escravos. É justamente nessa lacuna social que o autor

encontra aquilo que ele chama de “formas inorgânicas da vida social”, marcadas pela

marginalização, pela miserabilidade, pela escassez de recursos materiais disponíveis à

população que não estava nas pontas, pela extrema degradação moral, pela inutilidade e

indigência, ajudando a constituir uma “casta numerosa de vadios” (PRADO, 2011, p.

299-301). É necessário pontuar que toda essa descrição pradiana bruta e com deslizes

preconceituosos, por mais que o autor norteie sua obra pela práxis política de viés

revolucionário, pode gerar efeitos colaterais indesejados. Nas palavras de Iraci del Nero:

Parece-nos desnecessário lembrar que tratar tal povo como

inexistente [à la Couty] ou categorizá-lo, sem mais, como composto de

marginais sociais significa reproduzir as ideologias próprias das velhas

elites dominantes e abrir as portas para teses simplistas como a que reduziu

a questão social a uma questão de polícia16.

O autor de modo algum se deixa esquecer da existência de um mercado interno

na colônia. Mas, Caio Prado secundariza sua importância, colocando esse setor da

economia como “de pouca monta, será subsidiário e destinado unicamente a amparar
15
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 117-118.
16
DEL NERO DA COSTA, Iraci. Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior
(parte I). São Paulo: Informações fipe, fevereiro de 2007, p. 26.
22
e tornar possível a realização daquele fim essencial” (PRADO, 2011, p. 123). É certo

que a perspectiva pradiana clássica não nega um efetivo crescimento do mercado

interno ao longo do período colonial: fatores, como o crescimento populacional, além de

outros que invariavelmente alteraram o quadro inicial que moldou o desenvolvimento,

certamente deram maior dinamismo e autonomia, dando mais vida a um setor

econômico propriamente nacional. Mas,

(...) aquele crescimento é muito mais quantitativo que qualitativo (...). Em

substância, nas suas linhas gerais e caracteres fundamentais de sua

organização econômica, o Brasil continuava, três séculos depois do início da

colonização, aquela mesma colônia visceralmente ligada (...) à economia da

Europa; simples fornecedora de mercadorias para o seu comércio. Empresa

de colonos brancos acionada pelo braço de raças estranhas, dominadas mas

ainda não fundidas pela sociedade colonial17.

Estudos mais recentes sobre esse momento histórico do Brasil e sobre o

paradigma pradiano, porém, contestam essa afirmação pouco flexível de Caio Prado,

chegando à conclusão de que, em conjunturas e regiões específicas, esse setor

“propriamente nacional” obteve autonomia, importância e dinamismo de relevância tão

grande quanto à do setor externo, voltado para o fornecimento de gêneros18.

17
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 130.
18
É o que nos diz José Roberto do Amaral Lapa: “quanto à existência ou não de um mercado
interno no Brasil, dentro do sistema colonial, bem como ainda chamamos de comércio
intercolonial, (...) para nós, ambos esses mercados conseguem em diferentes conjunturas e
regiões da colônia apresentar um certo grau de autonomia e dinâmica, capaz de conferir-lhes
um desempenho que não está necessariamente atrelado à grande lavoura de exportação.” (DO
AMARAL LAPA, José Roberto. Caio Prado: Formação do Brasil contemporâneo. In: MOTA,
L. D. (Org). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 2. ed. São Paulo: Editora SENAC,
1999, p. 265).
23
III

O sentido profundo da colonização

Trataremos, neste capítulo, da análise do historiador Fernando A. Novais a

respeito da colonização na América Portuguesa, tomando como base o capítulo

Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial, parte de seu livro intitulado Portugal e

Brasil na crise do antigo sistema colonial.

24
A interpretação de Novais, segundo o próprio autor, guarda proximidade com o

paradigma pradiano a respeito da experiência colonial. Novais absorve a perspectiva de

Caio Prado Jr., não a nega, mas procura aprofundá-la e alargar seu campo de visão. Ele

busca entender a colonização portuguesa no trópico, assim como toda a expansão

ultramarina europeia, como um dos elos do processo de formação do capitalismo a

partir da decomposição das bases materiais feudais. Nas suas palavras:

‘Brasil’, é claro, não existia, senão como colônia, e é da colônia portuguesa

que trata Caio Prado Jr.: a questão é saber se não seria preciso a

consideração do conjunto do mundo colonial. Expansão comercial europeia

é, na realidade, a face mercantil de um processo mais profundo, a formação

do capitalismo moderno; a questão é saber se não seria preciso procurar as

articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudal-

capitalista.19

Caio Prado, na visão do autor, acaba sendo mais específico, analisando

fundamentalmente o modelo de produção agrária que vigorou na colônia tropical e sua

articulação com os interesses e diretrizes da metrópole lusitana. Fernando Novais, por

sua vez, pretende alargar a análise e entender o papel das colônias na formação do

capitalismo moderno.

Seria possível, não obstante, afirmar que a perspectiva pradiana aborda

implicitamente o “sentido profundo da colonização”. Caio Prado não deixa de frisar que

a colonização tropical é um detalhe, um episódio que se encaixa nesse contexto de

formação de uma nova ordem econômica. Mas, em suma, entende o processo de

exploração ultramarina somente como um “capítulo” da história comercial europeia,

marcada pelo estabelecimento de novas rotas, fenômeno este que transformou o quadro

geopolítico de forças no velho continente.


19
NOVAIS, Fernando. Sobre Caio Prado Júnior. In: Aproximações: estudos de história e
historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp. 288-289.
25
É nesse sentido que a análise pradiana, embora válida, acaba sendo insuficiente

para a proposta de Novais, que, por sua vez, busca aprofundar o conceito. Assim, o

autor relaciona a colonização com a formação dos Estados nacionais modernos

(fenômeno que hoje se convenciona chamar de Antigo Regime), momento histórico em

que inclusive se deu a “hegemonia” das políticas econômicas da “escola

mercantilista”20. O esforço de aprofundamento, portanto, acaba levando Novais a

entender as articulações das colônias com as normas mercantilistas, permitindo que o

autor enxergue, a partir dessa compreensão, uma forma particular de exploração

colonial, diferente de todas as outras experiências pretéritas de colonização pelas quais

passou a civilização. Nas palavras de Postlethwayt, um economista britânico do século

XVIII, defensor das práticas mercantilistas: “as colônias devem (...) dar à metrópole

um maior mercado para seus produtos; (...) ocupação a seus manufatureiros, artesãos

e marinheiros; (...) fornecer-lhe uma maior quantidade dos artigos de que precisa”

(Apud. NOVAIS, 1990, p. 16). De fato, a colônia acabou servindo como um dos

principais suportes às políticas mercantilistas, justamente num momento em que a

concorrência entre as metrópoles europeias se intensificava, diminuindo os ganhos

extraordinários. Percebe-se, assim, com o que foi exposto, que a colonização nos

trópicos, para Novais, não poderia ter tido outro direcionamento além daquele marcado

pela exploração mercantil, alicerçada na grande propriedade agrária sustentada pelo

20
Alguns historiadores, tais como o sueco E. Hecksher, entendem sim o mercantilismo como
um corpo teórico bem sedimentado, apesar de não ser tão harmônico como outras escolas
econômicas (clássica, neoclássica, marxista, keynesiana, etc.). O próprio Novais admite: “ É
importante destacar, desde já, e a partir dessa formulação básica, que a doutrina mercantilista
tem o imediato objetivo de formular normas de política econômica, parte dessa problemática e
só para justificar o seu receituário é que se alça à formulação duma teoria explicativa da vida
econômica como tal. Não parte de conceitos puros e de uma sistemática explicação da
economia para deduzir normas de intervenção nesta realidade, senão percorrer quase o
caminho inverso; paralelamente, as preocupações de seus doutrinadores não ultrapassam as
fronteiras de suas respectivas nações” (NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo
sistema colonial. São Paulo, 1990, p. 6)
26
trabalho escravo (do qual trataremos adiante com mais detalhe), permitindo, dessa

forma, o fornecimento de gêneros naturais altamente lucrativos para a metrópole 21.

A segunda “etapa” desse esforço de aprofundamento consiste, para Novais,

justamente em entender as ligações existentes entre a colonização e a formação do

Ancien Régime, ou seja, as articulações do novo mundo com a formação dos Estados

nacionais europeus. Segundo o autor:

Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política

mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, parte de um

todo, interagem reversivamente neste complexo a que se poderia chamar,

mantendo um termo da tradição, Antigo Regime. São no conjunto processos

correlatos e interdependentes, produtos todos das tensões sociais geradas na

desintegração do feudalismo em curso, para a constituição do modo de

produção capitalista (...). Enquanto, porém, o último passo não era

alcançado, a economia capitalista comercial, e pois a burguesia mercantil

ascendente não possuía ainda suficiente capacidade de crescimento

endógeno; a capitalização resultante do puro e simples jogo do mercado não

permitia a ultrapassagem do componente decisivo – a mecanização da

produção.22

A colonização, portanto, serviu, nesse processo de inserção na transição, como

mecanismo importante de acumulação originária/primitiva de capital. Originária, nos

termos marxistas, justamente porque o processo endógeno de acumulação (aquele

pautado, como Marx explicitou brilhantemente nos primeiros capítulos de sua Magnum

oppus, pela valorização do valor, extração de mais-valia a partir do uso da força de

trabalho do proletariado; em suma, pelo esquema ampliado de circulação capitalista de

21
Percebe-se que, embora o autor entenda que Prado tenha ficado “no meio do caminho”, é
impossível não notar aproximações e conexões muito profundas entre as análises históricas de
ambos, principalmente no que tange à essência da exploração colonial no trópico.
22
NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial. São Paulo, 1990, pp.
31-32)
27
mercadorias: D – M – Processo produtivo, uso de força do trabalho – M’ – D’, com

D’>D) ainda não era viável em larga escala, permitindo que o capitalismo amadurecesse

e “andasse com as próprias pernas”, fazendo-se uso, com isso, de “pontos de apoio fora

do sistema, induzindo a uma acumulação que, por se gerar fora do sistema, Marx

chamou de originária ou primitiva” (NOVAIS, 1990). Assim, o autor destaca dois

mecanismos, intrínsecos à exploração colonial, que se tornaram cruciais para a

acumulação originária: exclusivo metropolitano e trabalho escravo. Ambos, cada um de

um modo particular, permitiram considerável transferência de recursos e rendas para as

metrópoles.

O exclusivo metropolitano era o principal mecanismo gerador de lucros

extraordinários no comércio colonial, que se operacionalizava através do esquema

“monopólio-monopsônio” ou “monopólio bilateral”: a colônia deveria fornecer seus

gêneros apenas para sua metrópole, a qual, por sua vez, seria a única permitida a vender

produtos manufaturados para a colônia. Monopólio na demanda, assim como na oferta,

permitindo uma manipulação dos preços que deprimia absurdamente a cotação dos

gêneros e inflava o valor dos manufaturados. O resultado não poderia ser outro além da

sistemática transferência de renda e recursos para o continente europeu.

É bem verdade que o regime do exclusivo não era de uma rigidez impenetrável.

Na realidade, foram comuns casos de concessões (principalmente em momentos de

dificuldade financeira, como no caso português após a Restauração de 1640 23), de roubo

e contrabando. Tais brechas, porém

(...) se situam mais na área da disputa entre as várias metrópoles europeias

para se apropriarem das vantagens da exploração colonial – que funciona


23
“É bem verdade que (...) a monarquia ibérica se debatia em dificuldades financeiras
enormes, o que levou o rei de Espanha e Portugal, apesar das novas proibições (por exemplo,
em 9/2/1591), à concessão de licenças especiais, o que chegou a ponto de permitir um tráfico
regular direto com Hamburgo que movimentou 19 navios entre 1590 e 1602” (Idem, p. 49)
28
no conjunto do sistema, isto é, nas relações da economia central europeia

com as economias coloniais periféricas. Não atingem, portanto, a essência

do sistema de exploração colonial.24

A escravidão, por sua vez, era a forma de trabalho par excellence para sustentar

a acumulação originária. Na medida em que as colônias se relacionavam com o

comércio especificamente colonial, necessitava-se de uma produção em larga escala, em

grandes propriedades, de gêneros tropicais que pudessem garantir lucros comerciais

extraordinários, possibilitando uma transferência consistente de renda. O trópico se

moldou ao sistema mercantil vigente e, com isso, fazia necessária a imposição de um

modelo de trabalho que foi recuperado após longo período de “esquecimento”: o

escravismo.

Chega a ser aparentemente contraditório que, em economias integradas ao

capitalismo, o qual ganhava força justamente pelo desatamento dos laços servis de

produção e pela dupla libertação do trabalhador (livre do jugo do senhor feudal, livre

dos meios de produção que utilizava para sua subsistência), fosse necessário e plausível

o uso de trabalho compulsório. Sabemos que o modo de produção típico do sistema

capitalista se baseia no regime assalariado de trabalho. É ele que permite, a partir da

transformação da força de trabalho em mercadoria, a generalização da produção para o

mercado, assim como a acumulação endógena de capital: inverte-se capital, permitindo

a produção e venda de mercadorias; realiza-se a extração da mais-valia a partir do uso

da força de trabalho, após a remuneração dos fatores de produção, ocorre nova inversão

em escala ampliada. O fluxo do capital, sua rotação, é muito mais rápida e dinâmica, ao

passo que a escravidão, que exige uma manutenção constante da mercadoria-escravo,

assim como um pagamento prévio por ela (a compra do escravizado), emperra o fluxo e

bloqueia a flexibilidade. Cabe inclusive dizer que a existência de escravismo impede


24
Ibidem, p. 66

29
inclusive o ajuste da mão-de-obra (consequentemente da produção) às flutuações de

demanda no mercado (não se pode dispensar algo que é sua propriedade, no caso o

escravo). Por que, então, o uso de escravos nos trópicos?

Para isso, Novais recorre ao marxista E. Williams 25. Este, entendendo as

condições históricas que articularam as relações econômicas entre as colônias e a

Europa, entende a adequação daquelas, como já frisamos, ao processo de emergência do

capitalismo (ainda em sua forma comercial), funcionando como alicerces da

acumulação originária. Essa especificidade das colônias exigia o uso de formas

compulsórias de trabalho, do contrário, a abundância de terras livres permitiria a

formação de núcleos de povoamento, com produção voltada para a subsistência e o

mercado interno, totalmente desvinculada da economia mercantil europeia, travando os

impulsos expansionistas do capitalismo europeu. A escravidão, portanto, não foi um

delírio dos dirigentes econômicos. Foi, na verdade, uma imposição das especificidades

conjunturais das colônias, nas suas articulações históricas com a transição para o

capitalismo moderno. Na dialética do movimento histórico, porém, Williams nos mostra

que, na medida em que o trabalho escravo estimulou e alicerçou a formação do

capitalismo industrial, este, no seu apogeu em pleno século XIX, “se virou e destruiu a

força motriz do capitalismo mercantil, a escravidão, e todo seu funcionamento”

(WILLIAMS, 2012).

Fator fundamental (apesar da importância das observações de Willians para a

análise do autor), entretanto, segundo Novais, que tornou preferível a escravização

africana nas colônias é o novo setor comercial que se impulsiona por meio dela: o

tráfico negreiro. Este era extremamente lucrativo para os mercadores europeus,

garantindo uma outra linha de transferência de renda. A acumulação, aqui

25
Cf. Eric Williams – Capitalism & Slavery, 2ª ed, N. York, 1961, pp. 3-7.
30
especificamente, não surgia da produção de gêneros com mão-de-obra escrava, nem

com o monopólio bilateral do exclusivo metropolitano, mas sim do próprio tráfico de

pessoas coisificadas, mercantilizadas. A escravização indígena, supostamente recusada

por conta da “indolência do nativo brasileiro”, fomentava, na verdade um negócio, a

caça, fundamentalmente interno, diminuindo a transferência de renda e recursos. Parece

paradoxal, mas, para Novais, “é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a

escravidão africana colonial, e não o contrário” (NOVAIS, 1990).

IV

História e subdesenvolvimento: a contribuição de Celso Furtado

A análise deste capítulo consiste fundamentalmente no esclarecimento das

contribuições do célebre economista Celso Furtado para o pensamento econômico

brasileiro, assim como para a sedimentação do estudo do subdesenvolvimento da

periferia do capitalismo. O texto que embasa nossas palavras é o de Francisco de

Oliveira: Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro26.

26
Capítulo elaborado para a obra Inteligência brasileira, organizada por Reginaldo Moraes,
Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante. São Paulo: Brasiliense, 1986.
31
Antes de mais nada, é primordial ressaltar como Furtado, com brilhantismo, foi

capaz de unir tanto sua formulação econômica teórica com sua práxis política. Nas

palavras de Oliveira, Furtado foi

(...) uma rara figura intelectual e homem de ação. Essas duas qualidades
poucas vezes vêm juntas, e no Brasil infelizmente essa coincidência é ainda

mais escassa. Alguns notáveis estruturadores do pensamento social

brasileiro ou não experimentaram por em ação sua doutrina ou não tiveram

essa chance; de outro lado, a maioria dos homens públicos brasileiros não

têm doutrina – são apenas políticos profissionais, uns mais florentinos,

outros mais malufados, quase todos o avesso do avesso: pensam-se heróis, e

são anti-heróis; como o personagem Macunaíma, têm em comum apenas a

falta de caráter27.

De fato, Furtado ficou marcado por, sempre em que esteve na chefia de um

cargo importante (como na Sudene ou até mesmo no Ministério do Planejamento),

concretizar suas formulações teóricas, ou pelo menos se esforçar para tal, nas políticas

econômicas. Mas de onde emerge o pensamento furtadiano e quais as suas

características centrais? Quais as influências mais profundas? Essas perguntas merecem

maior atenção.

Furtado inicia suas problematizações a partir de seus estudos na CEPAL

(Comissão Econômica para a América Latina) no início da década de 1950. Lá é o

ponto de partida do seu método dito “histórico-estrutural”, construído para explicar a

formação econômica da periferia do capitalismo, enfatizando as conjunturas peculiares

e as especificidades históricas dessas sociedades, mostrando como o desenvolvimento

das mesmas é essencialmente distinto se comparado ao dos países centrais. Não é

surpreendente, tomando como base o exposto, que Furtado venha a pensar reformas que
27
OLIVEIRA, Francisco de. Celso Furtado e o pensamento econômico brasileiro. In:
Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 47.
32
acabem por ser igualmente distintas daquelas que vigoraram no centro do sistema. Esse

“olhar furtadiano” para o desenvolvimento econômico mostra como “o esforço de

teorização desse processo seria, necessariamente, original” (VIEIRA, 2007, p. 90): a

análise econômica em perspectiva histórica.

Interessa-nos, agora, ter contato com suas principais influências para a

consolidação do mencionado método “histórico-estrutural”. A primeira delas vem

justamente do pensamento “cepalino-keynesiano” do economista argentino Raúl

Prebisch, um dos fundadores da CEPAL. Mas, de acordo com Francisco de Oliveira,

“Furtado é mais aberto, alargando o campo de reflexão para além dos limites em que o

economista trabalha” (OLIVEIRA, 2003, p. 41). De fato, Prebisch acaba realizando

uma análise horizontal, enfatizando a descontinuidade estrutural entre o centro e a

periferia do capitalismo, propulsionando dinâmicas distintas no desenvolvimento

contemporâneo de ambos. Seu “discípulo” (assim diria Francisco de Oliveira), por sua

vez, interessava-se em “captar o desenrolar dos acontecimentos no tempo, o

encadeamento dos fatores que perpetuavam o atraso clamoroso da economia

brasileira” (FURTADO, 1997, p. 163). Acabava dando, portanto, um papel

infinitamente maior para as causas históricas do subdesenvolvimento.

A segunda influência está no pensamento econômico brasileiro. Aqui, Furtado

trava diálogo profundo com o chamado “pensamento autoritário”, representado

principalmente por O. Vianna e A. Torres, que, podemos assim dizer, dominou as

Ciências Sociais até meados da década de 1930. O ponto de contato entre Furtado e

esses autores, cotidianamente rotulados como membros da direita intelectual brasileira,

surge na medida em que todos eles constroem uma interpretação a respeito do Estado

Nacional, dando a ele o importante papel de principal veia condutora do

desenvolvimento econômico do Brasil. Mas, Francisco de Oliveira nos alerta:

33
Não se está dizendo, reitere-se, que há filiações entre Furtado e os

autoritários clássicos brasileiros, o que de resto não seria infamante, já que

eram intelectuais legitimamente preocupados com os destinos do país, (...) e,

na história das ideias e das posições assumidas por intelectuais, filiações

que desembocam em orientações diametralmente opostas são mais comuns

que o contrário28.

Mas, seria nula a participação daquele “sopro de radicalismo intelectual”, nas

palavras de A. Candido, ou seja, não teria Furtado também buscado apoio em Freyre,

Hollanda e Prado? Oliveira diz que sim. Apesar das obras dos três já terem sido

publicadas muito antes da magnum opus de Furtado e, além disso, deles tratarem de

temas cujo conteúdo é muito semelhante (a própria formação social e econômica do

Brasil), Oliveira mostra que “Furtado não dialoga com os ‘novos clássicos’ da

modernidade, a geração que justamente veio à luz na década de 1930” (OLIVEIRA,

2003, p. 60).

Outros pesquisadores da historiografia econômica brasileira, como Rosa Maria

Vieira, porém, discordam do posicionamento de Francisco de Oliveira, afirmando

categoricamente que, na realidade, a “tríade” das ciências sociais na década de 1930

teve influência marcante na produção intelectual de Celso Furtado. A mesma afirma que

Em síntese, o que se quer lembrar é que Celso Furtado, antes de ser um dos

mais importantes teóricos da CEPAL, é um intelectual brasileiro herdeiro e

continuador do movimento de intensa renovação do pensamento social que,

a partir da década de 1930 (...) redescobriu o Brasil em termos de teoria e

projeto nacional. Ignorar essas determinações nacionais é fechar uma

28
OLIVEIRA, Francisco de. Viagem ao olho do furacão: Celso Furtado e o pensamento
autoritário brasileiro. In: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo:
Boitempo, 2003, p. 82.
34
dimensão essencial para o entendimento das razões do vigor explicativo e a

força de convencimento de suas análises29.

Se hoje é possível pensar a história econômica do Brasil em termos

“furtadianos”, como afirmou Rosa Maria Vieira, é justamente graças à conjunção de

dois fatores: “a força do moderno pensamento social brasileiro, nascido com os ares de

30, e o vigor da descoberta teórica do subdesenvolvimento” (VIEIRA, 2007, p. 88).

Chegamos a ficar em dúvida, porém, se de fato há uma influência tão forte dessa

tríade, principalmente de Caio Prado Jr., na obra de Furtado. Isso porque não há, no seu

Formação Econômica do Brasil, referências bibliográficas extensas a esses autores.

Tamás Szmrecsányi acaba por esclarecer nossa dúvida, afirmando que “o trabalho não

passa de ‘um esboço do processo histórico de formação da economia brasileira’: por

esse motivo, há uma omissão quase total de referências à bibliografia histórica”

(SZMRECSÁNYI, 1999, pp. 207-214). A ausência de citações e referências, portanto,

não elimina o fato de que Celso Furtado se baseia extensamente nas análises da “tríade”

dos anos de 1930 para compor a sua própria formulação teórica. Toda a análise de nossa

formação econômica se deu “à luz da documentação disponível e das ideias pioneiras

de Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e de Caio Prado Jr. (Formação do Brasil

Contemporâneo)” (SZMRECSÁNYI, 1999, pp. 207-214).

Com a exposição acima, conclui-se que Celso Furtado se amparou em Caio

Prado Jr. para formular toda sua produção intelectual a respeito do desenvolvimento (e

do subdesenvolvimento) da economia brasileira. Esse quadro, porém, não elimina

divergências nas propostas de resolução derivadas de análises que, embora dialoguem,

têm distinções. Prado, como sabemos, era filiado, desde o início de sua vida acadêmica,

à corrente teórica marxista. Propunha, com isso, a partir de sua formulação consistente a

VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). São Paulo:
29

EDUC, 2007, p. 88.


35
respeito de nosso processo de formação, a solução da superação revolucionária do

atraso econômico e social. Havia, portanto, para Prado, uma relação intrínseca entre o

atraso, refletido e materializado na miséria das massas, e a revolução política. Assim, a

proposta pradiana “jamais poderia ter se transformado em pauta de ação para a

burguesia, sendo ao contrário, parte da ampla cultura de esquerda que começava a se

formar” (OLIVEIRA, 2003). Furtado, por sua vez, ignora essa vinculação tão forte

entre revolução e subdesenvolvimento, preferindo a opção reformista, ao afirmar

categoricamente que reformas “são necessárias para manter uma sociedade aberta e

pluralista, que sobreviva às tensões de sua própria expansão/transformação”

(OLIVEIRA, 2003, p. 25). Partindo de propostas reformistas de estabilização

econômica, Furtado, diferentemente de Prado, acabou tendo respaldo das classes

dominantes do Brasil. É nesse ponto que, retornando ao que foi dito no segundo

parágrafo, ele conseguiu a amálgama entre formulação teórica e práxis política, o que

acabou sendo “ao mesmo tempo, a força e a fraqueza do pensamento de Furtado”

(OLIVEIRA, 2003).

É força na medida em que esse respaldo lhe permitiu a formulação de políticas

econômicas marcadas pela implementação, no setor público, de suas teorias, buscando

concretizar, nessas políticas, uma teoria industrial baseada na superação da dependência

brasileira do centro capitalista, da divisão internacional do trabalho. Isso garante que

Celso Furtado seja visto, até hoje, como um dos maiores economistas do Brasil. É, ao

mesmo tempo, fraqueza justamente porque o mesmo, junto com a CEPAL, acabou

funcionando como uma “arma ideológica poderosa a serviço da nova burguesia

industrial emergente no Brasil e em outros países da América Latina” (OLIVEIRA,

2003) que buscava desvencilhar-se da subordinação ao capital internacional. Assim,

esquecia-se de um movimento histórico dialético, baseado nos antagonismos entre as

36
classes sociais (o que configura uma lacuna teórica), submetendo os oprimidos aos

interesses “emancipacionistas” das elites, justificando essa prática com o uso do termo

vago “interesses nacionais”.

Apesar dessa dupla consequência da “amálgama furtadiana”, é inegável que sua

contribuição foi extensa, profícua e inovadora. Furtado, ao enfatizar as especificidades

históricas e conjunturais, encontrando a peculiaridade das economias periféricas,

conseguiu se colocar como uma “terceira via” entre a teoria econômica neoclássica e o

marxismo deturpado pelo stalinismo soviético (que se expandiu, infelizmente, ao longo

de todo o século XX, ofuscando, eliminando e distorcendo obras fundamentais de

Lênin, Luxemburgo, Trotsky, entre outros). Aquela é marcada pela ausência de uma

análise histórica, focada quase que exclusivamente na modelagem econométrica para

aplicações micro e macroeconômicas. O stalinismo deturpador, por sua vez, é

dogmático, etapista, compartilhando uma visão estanque do desenvolvimento histórico

das classes e das forças produtivas, colocando as economias subdesenvolvidas como um

ponto numa curva linear da história, avançando de forma igualmente linear até o limite

entre o capitalismo e a revolução (como se a história fosse uma função de primeiro grau

com inclinação positiva), esquecendo-se da possibilidade de rupturas e transformações

multifacetadas, que comecem na periferia e não no centro. Torna-se, assim, não

dialética, afastando-se totalmente do marxismo.

37
V

Formação do Estado português e a expansão portuguesa quatrocentista

Este capítulo se baseia na análise do historiador brasileiro Jacob Gorender a

respeito da expansão ultramarina portuguesa nos séculos XV e XVI. O autor estuda, no

quarto capítulo de seu livro O Escravismo Colonial30 (cujo nome é A sociedade

portuguesa e a expansão ultramarina), as relações dessa expansão com a formação

30
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. 4.ed. São Paulo: Ática, 1985.
38
sócio-política lusitana prévia, tentando entender, a partir disso, o quão influente foi essa

conexão no desenvolvimento econômico português após o período dos descobrimentos.

Com base nisso, Gorender volta seus olhos para a formação do Estado Nacional

português nos primórdios do milênio passado. É a peculiaridade de sua constituição que,

na visão de nosso autor, atua, dialeticamente, como causa do pioneirismo português no

comércio marítimo, transformando a expansão potencial em expansão efetiva 31, e do

declínio da economia lusitana na passagem definitiva do feudalismo para o capitalismo

na Europa.

Em linhas gerais, a precoce centralização monárquica lusitana se constrói a partir

da Guerra de Reconquista. Eliminar a hegemonia muçulmana na porção portuguesa da

Península Ibérica exigia uma unificação política que permitisse a acumulação de

recursos materiais e humanos significativos. Contribuiu para tal o afluxo de estrangeiros

(principalmente franceses naturais da Borgonha) que viam no combate militar a

possibilidade de enriquecimento e conquista de novas terras. É o que nos mostra Rui

Ramos, quando este fala que

(...) foi sobretudo dessas paragens – da Borgonha, do Languedoc, da

Aquitânia – que acorreram à Península Hispânica cavaleiros movidos pelo

intuito de combater o poderio muçulmano e de buscar fortuna através da

atividade guerreira e da conquista de novas terras. (...) [A] Península era, de

fato, um palco privilegiado para a atuação de jovens membros da nobreza

31
Muita importância é dada a fatores geográficos quando se debate a respeito das causas do
pioneirismo expansionista português. É bem verdade que a localização privilegiada (convém
lembrar que Portugal está na saída do Mediterrâneo em direção ao Atlântico) contribuiu para a
saída lusitana para os oceanos. Convém lembrar, entretanto, que a expansão se deu num ponto
determinado do movimento histórico e não em qualquer outro. Assim, outros fatores foram
ainda mais essenciais para efetivar a expansão. Aí reside o esforço de Gorender em estudar a
formação do Estado Português.
39
que não possuíam grande pecúlio ou que se viam arredados dos títulos

nobiliárquicos e do patrimônio familiar.32

É nessa categoria de nobres que estavam os cavaleiros Raimundo e Henrique.

Parentes dos condes e duques borgonheses, ambos partiram à Península Ibérica na busca

do enriquecimento e da conquista fundiária. Atribui-se a essas figuras históricas o

germinar da Dinastia Afonsina (1139-1383), consolidada com a vitória da casa

portucalense, liderada por Afonso Henriques, sobre a casa leonina (chefiada por sua

própria mãe Teresa de Leão).

Passada a etapa inicial de centralização no século XII, o Estado português, no

século XIII, inicia uma política régia cujo objetivo primordial era a concentração e o

fortalecimento do poder real. É claro que o efeito mais imediato dessa diretriz – um

efeito evidentemente desejado – era o enfraquecimento das casas nobiliárquicas,

potenciais concorrentes ao comando estatal. A relação conflituosa que se estabelece a

partir daí entre a nobreza e a Corte pode ser ilustrada pelas políticas de Afonso II

(carinhosamente chamado de Afonso, “o Gordo”), o qual determinava que todos os

títulos (bens, privilégios e jurisdições) dos senhores feudais e até mesmo eclesiásticos

“deveriam requerer a respectiva confirmação das propriedades e direitos por parte da

Coroa” (RAMOS, 2010, p. 51). Ainda nas palavras de Ramos:

Afonso II deu forma, desde o início de seu governo, a uma concepção de

monarquia na qual o rei era soberano nas suas decisões e na sua atuação.

Manifestava-se, assim, de modo precoce, um nítido propósito de

concentração de poder por parte da Coroa. É claro que esse processo não

foi simples nem linear. Mas estava dado o mote que seria, desde muito cedo,

um elemento recorrente na História portuguesa: a monarquia enraizava-se e

32
RAMOS, Rui. História de Portugal. 6.Ed [1.Ed., nov. 2009]. Lisboa: A Esfera dos Livros,
2010, p. 23.
40
consolidava-se concentrando poder, procurando limitar e sobrepor-se aos

poderes concorrentes.33

É nesse contexto que Gorender inicia sua problematização a respeito do caráter

do Estado português. Afinal, Portugal, no início de sua história, era feudal? A resposta

de nosso autor é positiva, apesar da ausência do feudo clássico em terras lusitanas. O

autor ressalta, porém, a necessidade de se abstrair desse fator superestrutural para

encontrar a verdadeira essência da sociedade e do Estado português no período do qual

estamos tratando:

“No Estado português, que começou a se formar no século XII, não se

constituíram feudos (...). Mas, se abstrairmos deste aspecto da

superestrutura e encararmos o feudalismo como um modo de produção, (...)

[será possível identificarmos] os elementos fatuais conducentes à conclusão

sobre a existência da época feudal na história do reino lusitano.34

É latente que Gorender, para chegar a essa conclusão, fia-se nas definições de

Maurice Dobb sobre o significado de feudalismo. O historiador inglês, não se deixando

levar pelas interpretações jurídico-institucionais (sugestivas, justamente porque o termo

feudalismo deriva de feudo, expressão cuja categoria é jurídico-institucional, ao

contrário de capitalismo e mercantilismo, expressões de etimologia econômica),

entende o feudalismo a partir de sua raiz econômica, associando sua existência à de um

modo específico de produção: a servidão.

Gorender, a partir de sua interpretação marxista, se choca com a leitura, a

respeito do mesmo tema, de outro importante autor brasileiro: Raymundo Faoro.

Pautado pela análise de cunho jurídico (exatamente oposta à de Gorender, como vimos),

Faoro, partindo da inexistência da gleba rural típica, não encontrando, com isso, o título
33
Idem, p. 57.
34
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4.ed. São Paulo: Ática, 1985, p. 105-106
41
que empoderava o senhor feudal, conclui pela ausência das relações clássicas de

suserania e vassalagem. Na realidade, a centralização monárquica acabou, logicamente,

impossibilitando a fragmentação do poder real, tornando as casas nobiliárquicas uma

continuação muito mais enfraquecidas, se comparadas com domínios de outras regiões

da Europa no mesmo período. Faoro, com isso, conclui que Portugal se constituía,

naquele contexto histórico, como um

Estado patrimonial, portanto, e não feudal, o de Portugal medievo.

(...) Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos,

senhor da riqueza territorial, dono do comércio (...), capaz de gerir

as maiores propriedades do país, dirigir o comércio, conduzir a

economia como se fosse empresa sua35.

Em fins do século XIV, mais especificamente no ano de 1383, a Coroa

Portuguesa entra em crise em função da morte de Dom Fernando I, instaurando um

dilema sucessório que vai se situar exatamente num momento de explosão

revolucionária: é a Revolução de Avis. Mais uma vez, Jacob Gorender entra em

polêmica. Discutindo o caráter desse processo de ruptura, o historiador baiano entra em

confronto teórico com o grande economista Celso Furtado.

Furtado enxerga a Revolução de Avis como um momento de tomada do poder

pela burguesia, a qual, por sua vez, já não possuía quaisquer laços com a nobreza

feudal, interessada não na posse e nos privilégios enraizados no nascimento, mas sim

nos ganhos comerciais, resultantes da diferença entre preço de compra e preço de venda.

Gorender, por outro lado, entende a formação da Dinastia de Avis como uma

“revolução nacional”. Isso porque o autor não enxerga uma mudança na estrutura de

35
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Edição
comemorativa 50 anos). 4.ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 38
42
classes da sociedade portuguesa. A burguesia típica não alcançava o trono e suplantava

o então setor dominante, como foi o caso das revoluções Puritana e Francesa de 1640 e

1789, respectivamente. Na realidade, houve um processo de “rejuvenescimento”, dando

a nobreza um caráter cada vez mais aburguesado: é o reflexo de uma classe mercantil

que, embora fora do comando social, galgava alianças com a Coroa na pretensão de

atingir seus objetivos comerciais. Essa amálgama do Estado feudal português

(extremamente peculiar, mas ainda assim feudal) com os interesses da burguesia

insurgente servirá, para Gorender, como a base da expansão ultramarina lusitana. É ela

que irá funcionar, como havíamos dito no início de nossa explanação, como vetor do

pioneirismo e, simultaneamente, como obstáculo a um desenvolvimento capitalista

sólido.

De fato, foi na Dinastia de Avis que a expansão acabou atendendo a interesses,

todos em íntima conexão, da nobreza, dos comerciantes e até mesmo da Igreja. A

exploração oceânica acabou por elevar as disponibilidades de terra, permitindo à

nobreza auferir maior renda; ampliou as unidades de pesca sob posse tanto de nobres

como de mercadores; garantiu o monopólio da venda de gêneros naturais, possibilitando

extensa lucratividade para Coroa e burguesia; permitiu inclusive a expansão da

cristandade para o Novo Mundo. O problema da baixa lucratividade da produção interna

(que afetava o lucro comercial, as arrecadações régia e clerical, a renda senhorial)

acabou sendo minimizado pelas conquistas de Ceuta, das ilhas africanas na costa oeste,

assim como pelo descobrimento do Brasil. Nas palavras de Arno e Maria José Wehling:

É inútil procurar exclusividades. Combinaram-se causas econômicas,

políticas e religiosas. A escassez de ouro na Europa do século XV e sua

consequente valorização estimularam a busca do ouro africano (‘ouro do

Sudão’). Os estabelecimentos pesqueiros controlados pelo rei, pela nobreza

e por comerciantes tenderam a expandir-se, beneficiados pelo aumento do

43
consumo(...). A tudo isso, acrescente-se o espírito de Cruzada,

consubstanciado na luta contra os muçulmanos e na conversão das

populações vencidas ao cristianismo. Esta luta se fundamentava em crenças

religiosas profundamente arraigadas, estimuladas pela Igreja de Portugal e

pelo apoio do Papado, que em pelo menos duas bulas, a Sane Charissimus,

de 1418, e a Rex Regum, de 1436, deu aos empreendimentos portugueses o

status de Cruzada.36

Ao mesmo tempo, a Dinastia de Avis sobreviveu como uma organização

monopolista, distribuindo os ganhos entre a Coroa e a nobreza parasitária. A expansão

ultramarina, na mesma medida em que beneficiava os setores politicamente

hegemônicos, fortalecia cada vez mais a burguesia comercial que, embora aliada a boa

parte das políticas de Estado implantadas pela família real portuguesa, ganhava cada vez

mais estímulos para consolidar não só o poder econômico, mas também o político. Essa

gritante contradição de classe engendrada pelo próprio pioneirismo lusitano era

solucionada pela violenta intervenção régia, que chegou ao ponto de permitir a entrada

da Santa Inquisição em território português, reprimindo os mercadores,

intencionalmente associados aos cristão-novos (também chamados de cripto-judeus). O

caráter classista dessa medida, imposta por D. João III, é um exemplo do fortalecimento

da ordem institucional feudal, funcionando como entrave a um desenvolvimento mais

aberto e mais amplo do modo de produção tipicamente capitalista, essencial para que

Portugal, ao longo dos séculos XVII e XVIII, pudesse alcançar níveis de

desenvolvimento econômico que permitissem ao país competir com outras nações em

franca ascensão, tais como Inglaterra e Holanda. Segundo Saraiva:

Desta forma, se o Estado português no século XVI oferece exteriormente

uma aparência ‘moderna’, na medida em que é uma grande empresa

36
WEHLING, Arno & José Maria. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1994, p. 37.
44
econômica, por outro lado, ele assegura, no interior do país, a persistência

de uma sociedade arcaica, na medida em que garante o domínio de uma

classe tradicionalmente dominante, cujo espírito está nos antípodas do

burguês.37

Complementando a ideia da dialética entre o pioneirismo e o declínio da

economia portuguesa na expansão ultramarina, Gorender entende a prática mercantilista

lusitana como uma espécie de “mercantilismo inferior”. Isso porque, se se quisesse

implantar medidas mercantilistas em sua totalidade, seria necessária a proteção da

indústria nacional e de seus ganhos, políticas praticadas em larga escala por Inglaterra e

França e que acabaram, posteriormente, permitindo a esses dois países, um

desenvolvimento industrial muito mais sólido nos séculos XVIII e XIX. Portugal, na

condição de pioneiro, não atentou para esse ponto específico, redobrando esforços

“apenas” para o bullionismo e para a expansão colonizadora.

Finalmente, convém explicitar o questionamento de Jacob Gorender em relação

as teses de Fernando Novais a respeito do chamado “sentido profundo da colonização”.

Como sabemos, este entende a experiência colonizadora nos trópicos como a principal

alavanca para a acumulação originária/primitiva de capital. Aquele, por sua vez, entende

que essa proposição apenas faz sentido quando analisamos o impacto da transferência

de renda das colônias para as metrópoles no caso de nações europeias que já haviam

transcorrido um sólido e robusto desenvolvimento do modo de produção capitalista,

como era o caso da Inglaterra, cuja dissolução das bases materiais feudais já estava

praticamente completa38. Esse não era nem de longe o caso português nos séculos XVII

e XVIII. É assim que o autor conclui que a maneira com que Novais trata o tema baseia-

37
SARAIVA, António José. Inquisição e cristãos-novos. Porto: Ed. Inova, 1969, p. 53-54.
38
É por essa razão que o autor justifica o olhar do historiador britânico Eric Williams, apesar
das ideias deste a respeito da acumulação originária/primitiva de capital terem embasado em
boa parte as conclusões de Novais, “precisamente porque teve em mira a conexão do
colonialismo com a formação do capitalismo na Inglaterra” (GORENDER, 1985, p. 114.).
45
se numa “ideia simplista em cuja refutação coincidiram Marx e Weber, apesar de

divergirem na explicação das origens do capitalismo” (GORENDER, 1985, p. 113.).

VI

Portugal: da expansão quatrocentista ao império colonial

Este capítulo tratará, com base nas explanações do inglês C. R. Boxer 39, do

processo histórico de construção do império intercontinental lusitano a partir de sua

exploração oceânica iniciada no século XIV.


39
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, cap. 2, pp. 54-79.
46
Antes de iniciarmos a análise da questão, convém recordar a, assim chamada por

Jacob Gorender, “forma portuguesa de feudalismo”: um modo de produção associado à

servidão, com extração de renda feudal (que chegou a consumir cerca de 70% do

produto português), mas fora dos limites da gleba senhorial, uma vez que ela era

praticamente ausente. Os rendimentos da produção dirigiam-se primordialmente à

Coroa e de lá eram repassadas parcelas às casas nobiliárquicas e ao clero. De fato, a

centralização monárquica precoce no século XII enfraqueceu o poder senhorial direto

sobre o camponês (poder esse que justamente se materializa na existência do latifúndio

pessoal), ao mesmo tempo que permitiu o rápido engajamento da Coroa e de seus

funcionários no comércio marítimo, competindo com negociantes tradicionais. R.

Watkins nos fornece um panorama interessante sobre esse quadro de tensão política:

(...) as Cortes aumentaram suas queixas criticando a rainha, os grandes

mestres das ordens religiosas, os bispos e outros clérigos, cavaleiros e

funcionários do governo por engajarem-se agressivamente no comércio,

competindo com os negociantes tradicionais (...). A participação dessas

classes no comércio teve profunda influência nos eventos subsequentes.40

É nesse contexto que a marinha lusitana conquista Ceuta, no norte da África. É o

marco inicial do processo de expansão ultramarina. O território era uma zona comercial

já estabelecida e consolidada, funcionando como entreposto de rotas importantes que

transportavam especiarias africanas como tecidos, pescados, mel e cera. Era uma área

inclusive de criação de cavalos e cabras, além da produção de cereais. Uma das razões

para esse empreendimento era justamente a possibilidade de fornecer recursos à classe

senhorial dominante41 mediante o saque e a pilhagem, dada a incapacidade régia, na


40
WATKINS, Ronald. Unknown Seas: The Portuguese Captains and the Passage to India
[kindle edition]. Amazon Digital Services, cap. 3, “The enterprise of Ceuta”.
41
Apesar das tensões políticas explicitadas no segundo parágrafo, a nobreza continuava no
comando social e mantinha, mesmo que a constituição política do Estado português pudesse
gerar situações de tensão, relações íntimas com as diretrizes econômicas da Coroa, buscando
sempre tirar benefício delas, como foi o caso do empreendimento de Ceuta.
47
virada do século XIV para o XV, de garantir apenas pela produção interna a distribuição

dos rendimentos feudais às casas nobiliárquicas. Cabe ressaltar que a ação também foi

idealizada com o objetivo de aumentar a disponibilidade de terras para a nobreza e o

Estado, o que permitiria a própria sobrevivência da Dinastia de Avis (o que acaba nos

dando uma pista sobre o caráter essencialmente estatal do empreendimento 42). Nas

palavras de Rui Ramos, a “ida para o Norte de África era assimilável a uma natural

continuação da Reconquista” (RAMOS, 2010, p. 176).

A conquista e manutenção de Ceuta pelo Estado português, potencial

sustentáculo para Avis, acabou, porém, resultando em frustração. As rotas comerciais,

com a chegada lusitana, dispersaram-se, impedindo que a Coroa pudesse apropriar-se

das cargas transportadas pelas caravanas. A produção de trigo era insuficiente, exigindo

a constante importação do cereal. Vale dizer também que Portugal não conseguiu

alcançar o ouro africano a partir de sua posição em Ceuta. Após completar o saque da

cidade, os homens portugueses retornaram à península ibérica e deixaram a cidade

(...) à Coroa portuguesa. Isolada das terras à sua volta, praticamente já não

tinha mais qualquer utilidade (...). Em 1425, já o príncipe regente, D. Pedro,

se queixava perante as cortes, dizendo que Ceuta apenas servia para

devorar pessoas, armas e dinheiro.43

Fracassado o empreendimento inicial, restavam três políticas de expansão da

Dinastia de Avis: o “caminho do Levante”, a ocupação no Marrocos e o contorno da

costa oeste africana. O primeiro era de execução mais difícil e arriscada: navegar pelo

Mar Mediterrâneo implicava entrar em conflitos com Egito, Veneza, Gênova e Aragão,

os quais já possuíam estabelecimentos consolidados ao longo de todo o mar,

potencializando inclusive a escassez de recursos para o Estado português. Ocupar


RAMOS, Rui. História de Portugal. 6.ed. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 178.
42

43
PAGE, Martin. Portugal e a revolução global: como um dos menores países do mundo
mudou a nossa história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 123.
48
Marrocos atendia a interesses nobiliárquicos ligados à expansão da territorialidade

mediante conquista de novas terras, podendo ampliar a renda senhorial. A navegação

pelo litoral africano acabou sendo a principal veia de expansão ultramarina portuguesa:

mediante uma política de descobrimentos, a Dinastia de Avis conseguiu se apoderar de

especiarias africanas de altíssima lucratividade, além do acesso ao ouro e aos escravos.

Na virada para o século XVI, houve o contorno da costa leste africana, permitindo o

estabelecimento de novas rotas comerciais (quebrando inclusive os monopólios

muçulmano e italiano das rotas que passavam pelo mediterrâneo). A veia de expansão

chegou até o extremo oriente em Nagasaki. Por toda a extensão, do oeste africano até o

oriente, Portugal foi estabelecendo feitorias fortificadas, sendo principais as de São

Jorge da Mina (1482), Arguim44 (1445), Sofala (1505), Moçambique (1507). Os

próprios títulos dos monarcas lusitanos nos dão uma pista de como a expansão

ultramarina teve razoável sucesso a partir do contorno pelo oeste africano:

D. João I, o monarca que iniciou a empresa sistemática das conquistas e

descobrimentos além-mar, intitulou-se senhor de Ceuta. O mesmo título usou

o rei Duarte. Afonso V alargou-o para ‘rei de Portugal e dos Algarves

daquém e dalém-mar em África’. João II intitulou-se pela primeira vez

senhor de Guiné. Por sua vez D. Manuel aumentou extraordinariamente as

fardagens dos títulos: ‘Rei de Portugal e dos Algarves daquém e d’além-mar

em África, senhor da Guiné, da conquista, navegação e comércio da Etiópia,

Arábia, Pérsia e Índia’.45

44
A primeira feitoria instalada por Portugal na África.
45
COELHO, António Borges. Clérigos, mercadores, “judeus” e fidalgos – Questionar a
história, II. Lisboa: Editorial Caminho, 1994, p. 12. O excerto de António Borges Coelho
inclusive nos dá uma pista da reduzida importância dada ao Brasil por Portugal. Frente aos
enormes ganhos lucrativos dos lusitanos no Oriente, a porção de terra americana, na qual a ação
lusitana se resumia basicamente à extração de pau-brasil, de fato se mostrava muito pouco
atrativa. Essa condição, como veremos, irá se inverter na virada do século XVI para o XVII.
49
Pode-se dizer que a expansão ultramarina em direção ao Oriente esteve sempre

norteada por interesses territoriais e mercantis46. Aquele se mostrou mais presente nas

ocupações portuguesas das ilhas atlânticas e até mesmo do Marrocos, onde se

estabeleceram donatarias (as quais depois seriam implementadas no Brasil ao longo do

século XVI) vitalícias para diversos membros da classe senhorial 47. Este, por sua vez,

foi mais fecundo em toda a costa africana do Atlântico-sul e do Índico, assim como no

litoral da Índia e na Indonésia, regiões cuja ocupação se sacramentou mediante a

construção de feitorias fortificadas48. Esse modelo foi fundamental para o

desenvolvimento comercial lusitano no Oriente, potencializado e favorecido pela fraca

resistência das frotas mercantes árabe e guzerate ao avanço português, como nos mostra

Boxer:

A frota mercante árabe, guzerate e a controlada por outros muçulmanos, que

dominava o comércio do oceano Índico, compreendia tanto grandes navios

oceânicos como pequenas embarcações costeiras; mas mesmo os navios

maiores eram desprovidos de artilharia e não se utilizava ferro na

construção dos cascos. (...) Eram, portanto, mais frágeis em relação às

carracas e aos galeões portugueses com os quais tinham que se defrontar.

(...) Somente os juncos de guerra chineses podiam [efetivamente desafiar, no

alto-mar, as grandes carracas e galeões]; mas as operações das frotas

costeiras chinesas limitavam-se estritamente às suas águas territoriais, por

ordem do governo imperial.49

46
Vale sempre ressaltar que, embora as motivações da nobreza e da burguesia portuguesas na
exploração oceânica possuíssem peculiaridades e distinções, ignorar a mescla e a fusão entre as
duas, insistindo numa suposta exclusividade, incorreria numa narrativa histórica estanque,
compartimentada e, porque não dizer, falsa.
47
O próprio D. Henrique foi donatário, com exceção de São Tomé e Príncipe, até sua morte no
ano de 1460.
48
As principais estavam em Goa (1510), Ormuz (1511) e Málaca (1515).
49
BOXER, Charles R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 59 e 73
50
Mesmo com poucos obstáculos, é engano achar que os portugueses não

impuseram sua ocupação territorial com violência. Na realidade, a existência de uma

rede comercial árabe e muçulmana prévia já bem consolidada há muito mais tempo

exigiu da marinha lusitana uma força capaz de destruí-la para então formar uma nova,

que, a partir de então, beneficiasse única e exclusivamente o império marítimo

português. Mais uma vez, Boxer nos esclarece:

O fato de terem [os adeptos do Profeta] cooperado estreita e cordialmente

com os ricos mercadores e rajás hindus, em especial na costa ocidental da

Índia, sem que nenhuma das partes tentasse converter a outra, consolidou o

monopólio muçulmano do comércio do oceano Índico. Os portugueses

perceberam imediatamente que só poderiam destruí-lo pela força bruta, e

não pela competição pacífica.50

Tendo em vista a escassez de recursos humanos e de navios durante todo o

empreendimento explorador, a presença de adversários mais bem capacitados se

comparados aos que os espanhóis encontraram na América durante o mesmo período, a

existência de apenas um porto bem estruturado (que era o de Goa), Boxer é levado a

concluir pela elevada notabilidade da expansão ultramarina portuguesa.

Uma vez entendido todo o processo de formação do Império Português no

Oriente, cabe a nós esclarecer o modus operandi do comércio lusitano na região. O

sustentáculo primordial era justamente o monopólio mercantil. O empreendimento era

da Coroa e pela Coroa. Aqueles que não eram portugueses e se interessassem em ofertar

as lucrativas especiarias orientais poderiam fazê-lo mediante pagamento de licença ao

Estado e de taxas alfandegárias nos portos de Ormuz, Goa e Málaca. Todas as

mercadorias eram ou negociadas nos próprios estuários ou levadas para Lisboa, de onde

50
Idem, p. 61.
51
partiam para o Mediterrâneo e o Atlântico. Nota-se inclusive uma dispersão e

diversidade dos produtos vendidos pelos portugueses: temos o

ouro da Guiné (Elmina), do sudeste africano (Monomotapa) e de Sumatra

(Kampar); o açúcar da Madeira, de São Tomé e do Brasil; a pimenta de

Malabar e da Indonésia; o macis e a noz-moscada de Banda; o cravo de

Ternate, Tidore e Amboíno; a canela do Ceilão; o ouro, as sedas e a

porcelana da China; a prata do Japão; os cavalos da Pérsia e da Arábia; os

têxteis de algodão de Cambaia (Guzerate) e de Coromandel.51

Sob o reinado de D. João III (1521-1557), a importância relativa entre Oriente e

o Brasil começa e se inverter em razão de fatores econômicos e geopolíticos

desfavoráveis: a derrota naval para a China em 1521, o acirramento da disputa pelas

Molucas com o espanhol Carlos V, assim como a presença de corsários franceses no

território que hoje corresponde ao Rio de Janeiro (chegando a fundar a França Antártica

em 1555), além de um lucro potencial dos gêneros brasileiros maior se comparado,

naquele momento, aos recursos orientais que iam para o mercado. Essa confluência de

fatores fez com que o monarca adotasse uma postura diferente da de seu antecessor,

objetivando consolidar a hegemonia da Coroa no Atlântico-sul, tanto na costa brasileira

como na africana. A partir da transição para o século XVII, o território sul-americano

suplanta o Oriente em termos de relevância e, ao final da União Ibérica em 1640, o

Brasil torna-se o principal eixo de sustentação econômica do Estado português.

51
Ibidem, p. 66.
52
VII

Fundamentos Econômicos da Ocupação Territorial

A descoberta do território tropical que hoje corresponde ao Brasil costuma ser

considerada, pela Historiografia Brasileira tradicional, como um episódio

“secundário”52, se for considerado um elemento integrante do conjunto de interesses e

práticas metropolitanas. De fato, para o Estado Português, interessado, nos primeiros

decênios do século XVI, na elevada lucratividade das especiarias do Oriente, as terras

sul-americanas tinham muito menos a oferecer e ainda colocavam dificuldades muito

maiores ao processo de ocupação colonial.

52
“A descoberta das terras americanas (...) [d]e início pareceu ser episódio secundário. E na
verdade o foi para os portugueses durante todo um meio século.”: FURTADO, Celso.
Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 50.
53
Fazendo o esforço, porém, de inverter o “mirante” da análise, poderemos

concluir não pela pouca importância do descobrimento, mas exatamente pelo contrário.

Se do ponto de vista metropolitano a nova porção de terra era pouco atraente em

comparação com as feitorias do Oriente, a chegada de portugueses aos trópicos alterou

profundamente as relações sociais entre os nativos e forjou um contato profícuo destes

com os europeus, inclusive do ponto de vista comercial. O encontro dos índios,

principalmente os tupi-guarani, com os lusitanos resultou numa nova dinâmica social

dentro do território recém integrado à expansão colonial.

Um dos elementos dessa nova dinâmica certamente foi a prática do escambo.

Com a entrada dos portugueses, introduziu-se no Brasil o ferro. O metal, como um

diferencial de poder para as tribos nativas, facilmente apareceu como atrativo para os

chefes das famílias, que ofereciam suas filhas aos colonizadores em troca da posse do

novo material. Surge aí a figura do “genro português”:

Assim passaram a ter um papel que antes não existia na sociedade tupi: o de

pessoas ricas, capazes de acumular a partir de trocas comerciais. Alguns

nomes de portugueses nessa situação e nesse período foram registrados por

historiadores: Vasco Fernandes Lucena, em Pernambuco; Diogo Álvares

Correia, o Caramuru, na Bahia; João Ramalho e Antônio Rodrigues, em São

Vicente.53

Outra transformação importante se deu com relação aos cativos de guerra, que,

se antes eram incorporados à tribo indígena vencedora do conflito, passavam a ser

empregados no trabalho produtivo português, inclusive podendo ser vendidos como

mercadorias pelos genros. Vale dizer que “já na segunda metade do século XVI esses

negócios se tornaram comuns em todo o litoral – e, em vários portos surgiram

53
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e
governos. São Paulo: Estação Brasil, 2017, p. 35
54
entrepostos permanentes comandados pelos genros dos chefes” (CALDEIRA, 2017, p.

35).

Cabe a nós, agora, entender em que contexto se deu a famigerada descoberta do

Brasil por Pedro Álvares Cabral. É fundamental frisar desde já que a vaga noção de que

o descobrimento foi pura obra do acaso coloca-se como antiquada. Jorge Couto 54 nos

mostra uma gama de variáveis geopolíticas e econômicas sugerindo que a expedição

cabralina foi fruto de um projeto de Estado encabeçado por D. Manuel, cujo objetivo era

encontrar um suporte para a rota do Cabo rumo ao Oriente. Tomado fundamentalmente

por interesses de cruzada, D. Manuel enxergava o Brasil como um mero ponto de

amparo técnico para as naus que partiam em direção às Índias Orientais para a conquista

de Jerusalém55. A própria condição geográfica, no que concerne aos ventos e aos mares

do Atlântico-Sul, nos dá pistas sobre o caráter intencional da expedição que atracou em

Porto Seguro em abril de 1500:

Desde o século passado que os marinheiros e geógrafos que estudaram o

percurso de Cabral (...) foram unânimes em mostrar, com argumentos que

seria ocioso repetir aqui, que no condicionalismo físico de ventos e correntes

do Atlântico meridional nada implicava tamanho bordo para sudoeste numa

viagem em direção ao Cabo —pelo que parece impor-se a conclusão de que

o bordo foi intencional.56

É necessário, porém, questionar essa relação tão direta entre a viagem de Cabral

e os desígnios religiosos de D. Manuel. Reconhece-la implica ocultar interesses

econômicos da classe mercantil portuguesa. Com muito menos recursos que o grosso
54
A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a
finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 182.
55
“O grande projeto de d. Manuel (r. 1495-1521) era, na sua essência, um projeto de cruzada,
visando ao ataque ao Império Mameluco pelo mar Roxo e a recuperação de Jerusalém. O Brasil
não podia representar nele senão o modesto papel de escala técnica para as naus da Índia.”
THOMAZ, Luís Filipe F. R. D. Manuel, a Índia e o Brasil. Rev. de História, USP, n. 161, 2º
semestre de 2009, pp. 13-57.
56
Idem, pp. 13-57.
55
dos comerciantes do norte da Itália, os mercadores lusitanos encontravam consideráveis

barreiras de entrada nos negócios das Índias Orientais. A exploração das terras sul-

americanas exigia um menor cabedal de recursos, tornando interessante para os reinóis

o desvio da rota a sudoeste, encontrando regiões mais próximas da metrópole. O Brasil

desponta, portanto, como uma veia alternativa de expansão econômica para os

comerciantes portugueses.

Percebe-se, com isso, que a rota para o Brasil certamente não foi uma

coincidência ou, como já se pensou por muito tempo, um erro de cálculo da navegação

cabralina. Mesmo assim, convém mostrar que a Historiografia mais recente coloca em

xeque a ideia de que D. Manuel tenha sido o único fator responsável pela descoberta da

nova porção territorial na América. Na realidade, foi uma confluência de fatores, sendo

que um deles, o econômico, era capaz até mesmo de se chocar com a estratégia religiosa

do Venturoso:

O descobrimento do Brasil terá, então, sido mais o fruto da política

comercial, liberalizante e atlântica, da oposição ao Venturoso que dos

desígnios imperiais do soberano. [...] Se tudo leva a crer que o

descobrimento do Brasil não foi ocasional, é impossível determinar com

certeza de quem foi a intenção. À falta de mais ampla documentação coeva,

o mistério permanecerá, provavelmente, para sempre; mas, mesmo assim é

lícito formular hipóteses(...).57

É nesse contexto que a passagem do trono português para D. João III, marcada

por uma inflexão na política imperial, ganha importância redobrada quando se quer

discutir a razão de ser da colônia brasileira no século XVI. Vimos anteriormente, por

meio do texto de C. R. Boxer, que uma série de acontecimentos e vetores geopolíticos

57
Ibidem, pp. 13-57.
56
desfavoráveis fizeram com que a Coroa voltasse os olhos com mais atenção para as

terras tropicais:

O novo monarca português adotou uma orientação política oposta à seguida

pelo seu antecessor. (...) Optou, sempre que possível, por concentrar

esforços na manutenção da hegemonia no Atlântico Sul e conferiu especial

ênfase à ocupação das duas margens atlânticas: a africana e, sobretudo, a

americana, opção em que se inserem o projeto de colonização da Costa da

Malagueta, na fachada ocidental da África, e o início do processo de

colonização do Brasil.58

A presença, inclusive, de corsários franceses, os quais chegaram a fundar, no

que hoje corresponde ao Estado do Rio de Janeiro, a França Antártica, redobrou os

esforços régios pela manutenção da porção de terra tropical na América. O sistema

simples de capitanias privadas, que vigorou nos primórdios da colonização portuguesa

no Brasil, mostrou-se incapaz de evitar invasões estrangeiras. Tornava-se, assim, cada

vez mais necessária uma consolidação do Estado Lusitano nos trópicos.

Como tornar, portanto, economicamente viável a manutenção do Brasil como

“propriedade” portuguesa? Celso Furtado59 nos mostra com clareza que a exploração

agrícola nos trópicos era extremamente arriscada e praticamente impossível. Dos

possíveis gêneros, quase nenhum poderia ser introduzido a um comércio de grande

escala na Europa. O lucro potencial era muito baixo. Os custos de frete, inclusive,

devido às dificuldades de transporte somadas à distância, tornavam ainda mais

desinteressante a empresa agrícola na colônia, fazendo com que “somente os produtos

manufaturados e as chamadas especiarias do Oriente podiam comporta-los”

(FURTADO, 2009, p. 53). Somente a motivação metalista (impulsionada inclusive pela

58
COUTO, Jorge. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do
povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 202-203.
59
Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 53
57
descoberta imediata de ouro e prata em largas quantidades pelos espanhóis em suas

possessões na América) foi capaz de compensar a incerteza e o pessimismo

portugueses. Uma vez que o ouro foi encontrado no Brasil somente na transição do

século XVII para o XVIII, era necessário garantir até lá a manutenção econômica do

trópico lusitano por meio da exploração agrícola, em particular a açucareira:

De simples empresa espoliativa e extrativa idêntica à que na mesma época

estava sendo empreendida na costa da África e nas Índias Orientais  a

América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva

europeia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma

permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu.60

Uma vez que era necessário o trabalho agrícola, cabe a nós compreender as

razões para seu sucesso. Na medida em que nos esforçamos para encontra-lo, é um

equívoco esquecer da experiência prévia que os portugueses adquiriram nos

empreendimentos açucareiros estabelecidos nas ilhas da costa oeste africana 61. São

Tomé foi o ponto em que houve o maior acúmulo de conhecimentos sobre o trato da

cana. O pequeno entreposto, portanto, acabou sendo o principal exemplo para o

desenvolvimento da empresa açucareira no nordeste brasileiro.

Não só a experiência técnica se mostrou necessária para o sucesso da economia

açucareira no Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII. A participação holandesa, como

sabemos, foi essencial. Do ponto de vista comercial, a distribuição do açúcar na Europa

pelos mercadores holandeses (fruto do enorme poder financeiro de Amsterdã) garantia a

lucratividade dos produtores portugueses, assim como permitia a abertura de novos

mercados para o açúcar brasileiro no Velho Continente. O que é interessante, por outro

60
FURTADO, Celso. Idem, pp. 52-53.
61
Vale dizer que desde o final do século XV, políticas implementadas por D. Manuel já visavam
o estabelecimento de feitorias açucareiras nos entrepostos da Costa Oeste africana. Celso
Furtado nos indica que, em 1496, a produção máxima chegava a 120 mil arrobas.
58
lado, é ver que os Países Baixos contribuíam inclusive com a inversão de capitais na

própria produção interna, garantindo maior potencial tecnológico no trato da cana,

ampliando a produtividade.

Finalmente, é válido ressaltar o conhecimento, por parte dos mercadores e da

Coroa Portuguesa, do mercado de escravos africanos. É bom lembrar que o negro

escravizado já estava mais disciplinado e adaptado ao trabalho do açúcar, tendo a

experiência dos empreendimentos na costa oeste africana. Além disso, o tráfico

negreiro, com lucratividade elevadíssima, era um enorme atrativo para o uso dos

escravos na produção açucareira. Por outro lado, é muito curioso como a troca de

atividade econômica na colônia (da extração de pau-brasil para a plantation

agroexportadora) transformou por completo a visão que se tinha acerca do nativo

escravizado:

O estereótipo do índio brasileiro como filho da natureza no estado mais puro

foi logo substituído pela convicção portuguesa popular de que era um

selvagem irremediável, ‘sem fé, sem rei, sem lei’. Essa mudança de atitude

tornou-se muito mais pronunciada e geral embora nunca chegasse a ser

universal depois de meados do século XVI. E deveu-se em grande parte à

substituição do pau-brasil pelo açúcar como principal exportação da região,

e a consequente necessidade de uma força de trabalho disciplinada (ou

escrava).62

Mesmo quando se tentou implementar o trabalho escravo indígena na produção

de açúcar, o resultado ficou muito aquém do esperado. A oferta de mão-de-obra nativa

ficou muito deprimida em função do alastramento de epidemias como a de varíola, fruto

do intenso contato com os europeus. Houve, portanto, uma redução fortíssima da

62
BOXER, Charles R. O Império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 99-100.
59
população de indígenas, em função da chegada de doenças para as quais eles não tinham

qualquer imunidade.

Foi a confluência de todos esses fatores (experiência prévia, participação

holandesa e uso cada vez mais intensivo de trabalho escravo) que deu à economia

açucareira um caráter central – deixando de ser uma mera atividade tampão até que se

descobrisse o ouro para a cunhagem de moedas – dentro da gama de interesses

econômicos portugueses. Na transição para o século XVII, o Brasil suplantava o

Oriente, cada vez mais secundarizado, em termos de lucratividade, produtividade e

atração dos mercados europeus.

Após o sucesso inicial do empreendimento açucareiro, como explanamos até

aqui, cabe entender como ele se transformou em monopólio lusitano até fins do século

XVII. Para isso, podemos olhar para outra potência colonial da época: a Espanha.

Diferentemente de Portugal, os espanhóis encontraram ouro na sua porção territorial

americana quase que de imediato63. Pouca atenção, a partir daí, foi dada para atividades

econômicas complementares. As colônias eram cada vez mais sucateadas, uma vez que

o trabalho realizado era puramente extrativo. Não se dava a oportunidade para concorrer

com o açúcar português a partir das Antilhas. Permitiu-se assim, que o trato da cana no

Nordeste açucareiro se expandisse sem grandes obstáculos concorrenciais até que se

passasse a produzir açúcar nas Antilhas pelos holandeses na segunda metade do século

XVII.

63
O brutal afluxo de metais para a Espanha fez com que o país se tornasse um centro de inflação
crônica, que acabou se espalhando por toda a Europa, induzido a um quadro de déficit na
Balança Comercial, debilitando tanto a metrópole como as colônias americanas.
60
VIII

A Economia Açucareira I

Vimos que, a princípio, a porção de terra americana pertencente a Portugal

possuía um caráter secundário para a Coroa, dados seus interesses econômico e

geopolítico. As feitorias do Oriente, na transição do século XV para o XVI, eram muito

mais lucrativas com suas especiarias e funcionavam como um vetor estratégico para

uma expansão da cristandade na Ásia (objetivo primordial da política expansionista de

D. Manuel). Esse quadro porém, como mostramos, se transforma na passagem para o

século XVII. O Brasil acaba se tornando o principal sustentáculo econômico e

geopolítico do Império Português. A produção de açúcar no nordeste brasileiro

transformou-se em ponto nevrálgico da sobrevivência de Portugal como potência

colonial:

61
Quaisquer que pudessem ter sido os números reais, não há dúvida de que a

rápida expansão da indústria açucareira no Brasil, de 1575 a 1600, era um

dos maiores acontecimentos do mundo atlântico da época. [...] No fim do

século, um produtor podia vangloriar-se junto ao governo de Lisboa de que

o açúcar do Brasil era mais lucrativo para a monarquia ibérica do que toda

a pimenta, especiarias, jóias e mercadorias de luxo que os navios mercantes

importavam da ‘Goa dourada’.64

O objetivo, agora, dado que entendemos a importância da cana-de-açúcar

nordestina para os interesses econômicos lusitanos, é compreender o caráter e o

mecanismo da produção açucareira no Brasil. Ao analisar a combinação entre o trabalho

agrícola inicial e o beneficiamento da matéria-prima, podemos perceber que o engenho

no nordeste brasileiro possuía um “caráter industrial distintivo” (SCHWARTZ, 1988,

p. 101). Essa visão é reforçada quando vemos as necessidades constantes de capital fixo,

tecnologia e mão-de-obra em larga escala, o que tornava o engenho uma propriedade

consideravelmente dispendiosa, com uma complexidade de operações de fato moderna.

Os estudos de S. Schwartz65 nos indicam que a produção açucareira brasileira, tão

grande era seu caráter de “vanguarda”, acabou mesmo servindo como exemplo para a

produção em outras regiões americanas: mestres portugueses foram enviados ao

México, assim como produtores ingleses de Barbados viajavam para o nordeste com o

objetivo de aprender a metodologia lusitana do trato da cana, introduzindo-a em suas

possessões. Do ponto de vista da organização do trabalho, por outro lado, nota-se com

clareza um movimento regular, bem determinado do início ao fim, com uma disciplina

rigorosa, assemelhando-se a uma “linha de produção” (GAMA, 1983, p. 28)

manufatureira:

64
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 118-119.
65
Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 116.
62
(...) o fabrico do açúcar já apresentava características nitidamente

manufatureiras de divisão do trabalho. O açúcar já era, nos primeiros

engenhos brasileiros, produto do ‘trabalhador coletivo’. Isto, para a época,

era um progresso extraordinário, como forma de trabalho em cooperação, e

uma antecipação da total ruptura das formas de divisão profissional do

trabalho prevalecente na produção artesanal. (...)66

É importante frisar, porém, que, apesar de todo o caráter moderno da produção

açucareira no Brasil, ele acaba mascarando uma estrutura de trabalho mais profunda e

até mesmo “arcaica” que é o modo de produção escravista, para utilizar o termo do

historiador Jacob Gorender. A bem da verdade, o escravo brasileiro, inserido num

processo produtivo inteiramente inovador para o momento, acabou funcionando como

um ancestral do proletário, uma vez que o fabrico do açúcar “mais se assemelha ao

processo de trabalho numa grande fábrica inglesa do século XIX, que o característico

dos séculos XVI e XVII na Europa” (CASTRO, 1980, p. 92). Esse quadro complexo,

entretanto, nos permite questionar se de fato a empresa açucareira no Brasil era

essencialmente capitalista: certamente, a plantation se integrava ao processo crescente

de mercantilização da economia europeia nos séculos XV, XVI e XVII, funcionando

como um eixo para a acumulação primitiva de capital (como nos mostrou Novais,

embora seja questionável acreditar, como fez o autor, que a colonização tenha sido a

principal força motriz para a acumulação primitiva de capital); o cativo, por sua vez,

operava o sistema com a disciplina e a regularidade de um trabalhador fabril do século

XIX. A presença, porém, bem clara de um modo de produção escravista fornece a essa

moderna produção um quadro incompleto. Faltava o elemento do trabalhador livre, que

vendia sua força de trabalho em troca de um salário para sua reprodução material,

liberando o patrão de custos fixos com manutenção dos escravos, permitindo inclusive

66
GAMA, Ruy. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 342
63
que sua produção fosse absorvida pelos produtores, fechando um ciclo de consumo e

formando um fluxo circular da renda:

No regime social que aqui se instala há dois teclados; os teclados são dois,

mas a música é uma só. Há a produção de mercadorias, com a sua partitura

composta de determinações econômicas. E há a escravidão, um velho tema,

que permite improvisos de muita força.67

Uma vez concluída a discussão analítica a respeito do caráter da fabricação do

açúcar no nordeste brasileiro, é possível realizar uma descrição sobre o processo

produtivo em si. Agosto era o mês em que se fazia o preparo prévio para as safras (que

duravam do fim de agosto até meados de maio do ano seguinte): reparava-se o

maquinário, as caldeiras eram substituídas, contratos de fornecimento de lenha e cana

eram renovados e os bois eram trazidos dos pastos para os engenhos 68. Vale dizer que o

trabalho nos canaviais e nas moendas era praticamente ininterrupto: estas chegavam a

funcionar por até 20 horas diárias, parando somente para poucas horas de limpeza.

Havia momentos mesmo em que o escravo trabalhava em turnos dobrados. Finalmente,

é importante ressaltar que a expansão tecnológica era contínua e razoavelmente estável,

permitindo ganhos seculares de produtividade.

Iniciada a safra, o ciclo da cana começava com um trato do solo baseado no uso

de machados, foices, picaretas e enxadas. Era, portanto, o trabalho pesado e exaustivo

dos cativos que possibilitava a introdução do vegetal nas terras de massapé. Uma vez

que o corte da cana dependia essencialmente da idade da planta, os canaviais eram

organizados levando em conta exatamente esse fator temporal: o amadurecimento

67
CASTRO, Antonio Barros de. A economia política, o capitalismo e a escravidão. In:
AMARAL LAPA, J. R. do (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes,
1980, p. 106-107.
68
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 96.
64
deveria ser sucessivo, permitindo um corte sequencial e, com isso, um fluxo constante

de cana para as moendas.

O trabalho nas safras, porém, sofria algumas interrupções ao longo do período.

A retenção dos engenhos para limpeza e fiscalização, a escassez de cana nos períodos

chuvosos, assim como o descanso nos domingos, dias santos e dias de festa consumia

28% do tempo de trabalho na temporada. Ao longo do período de trabalho, por sua vez,

os engenhos funcionavam com moendas de rolos, com cilindros horizontais, pelo menos

no período inicial da economia açucareira. Esse material de madeira resistia pouco ao

desgaste advindo dos dentes de ferro incrustados na moenda. Fora isso, a prensagem da

cana era incompleta, necessitando de animais de tração para complementar a pressão.

Ao longo do século XVII, porém, difundiu-se na produção a moenda de entrosas, com

três cilindros verticais, permitindo alimentação de cana por um lado e realimentação por

outro, garantindo continuidade na moagem. A alimentação manual, entretanto,

implicava um tamanho menor das moendas. Isso não eliminou a enorme vantagem em

termos de produtividade que teve a produção açucareira:

Ela oferecia grandes vantagens: era mais fácil de construir, prensava

melhor a cana, eliminando com isso a necessidade de prensas auxiliares,

não exigia quantidades tão grandes de animais como força motriz e podia

moer a cana a um ritmo mais rápido. O Engenho Sergipe, no Recôncavo,

adotou-a em 1617, e logo seu uso difundiu-se por toda a colônia.69

Uma última questão referente à descrição da economia açucareira se faz

necessária: o refino do açúcar. Sabemos que boa parte do processo de purificação do

produto brasileiro era realizado pelas empresas holandesas associadas aos mercadores

dos Países Baixos. Nessa etapa, o trabalho era livre e artesanal, garantindo lucros

correspondentes à terça parte do valor total da commoditie. De fato, praticamente não


69
Idem, pp. 117-118.
65
havia refinarias no Brasil e em Portugal. Era uma prerrogativa holandesa (assim como o

transporte a distribuição), o que fez Furtado afirmar que “o negócio do açúcar era na

realidade mais deles que dos portugueses” (FURTADO, 2009, p. 57). A inexistência de

refinarias na colônia, por sua vez, era até mesmo uma imposição metropolitana:

(...) os governos metropolitanos impuseram uma dualidade no processo

produtivo, seccionando o fluxo da produção açucareira. À colônia

correspondia a primeira etapa, produção de açúcar mascavo na

realidade, praticamente o que hoje chamamos de massa cozida , e à

metrópole competia a purificação final e a purga(...). Certamente, o

estabelecimento dessas refinarias na Europa não correspondia a uma

política da produção, do ponto de vista tecnológico, mas a um objetivo de

sujeição e subordinação colonial. Objetivava-se, conscientemente, que o

desenvolvimento das colônias, em qualquer ramo da produção, fosse inferior

ao da metrópole e dela dependesse.70

Schwartz, por sua vez, não elimina a existência de uma imposição política

metropolitana como fator crucial para a inexistência de refinarias na colônia (o que,

certamente, ampliava as possibilidades de lucro para os mercadores holandeses), como

nos mostrou Fraginals. O autor, porém, problematiza a questão ao afirmar que a própria

característica do açúcar feito no nordeste brasileiro eliminava a necessidade de

refinarias. O produto brasileiro era “barreado, que resultava em açúcares brancos de

qualidade superior, e no pardacento e inferior mascavado. Ambos os tipos eram

apropriados para o consumo imediato” (SCHWARTZ, 1988, pp. 145-146). Esse

açúcar, inclusive, foi amplamente consumido na Europa, sendo popularizado como

“açúcar do Brasil”.

70
FRAGINALS, Manuel Moreno. O engenho: complexo socioeconômico açucareiro cubano.
São Paulo: Hucitec / Ed. Da UNESP, 1987, v. I, p. 15
66
IX

Economia Açucareira II

Ao estudar o quadro de capitalização e nível de renda na economia açucareira,

Celso Furtado chegou a uma conclusão pouco animadora a respeito desses montantes:

“não se pode ir além de vagas conjeturas” (FURTADO, 2009, p. 98). O autor, partindo

dessa limitação, estabelece estimativas a respeito da distribuição e do nível de renda no

nordeste colonial, embasando-se fundamentalmente nos dados que R. Simonsen coletou

a partir dos estudos de Varnhagen.

O primeiro passo de Furtado para entender o quadro econômico da zona

produtora foi estimar a constituição da população colonial na passagem para o século

XVII: de um total de 100.000 habitantes, 30.000 eram brancos, enquanto os outros

70.000 eram compostos por negros, índios e mestiços 71. Seguindo em frente, ele

concluiu que, em 1600, a produção total de açúcar girava em torno de 2.000.000 de

71
Furtado compila esses dados a partir da coleta de Contreiras Rodrigues
67
arrobas, fabricadas em 120 engenhos que contavam, ao todo, com 15.000 escravos

(correspondendo a 75% da mão-de-obra cativa do Brasil naquele período). Uma vez que

a inversão de capital era de 15.000 libras por engenho e de 25 libras por escravo, vemos

que a mão-de-obra era equivalente a cerca de 20% de todo o capital fixo investido por

Portugal na colônia.

Essas estimativas iniciais permitiram a Furtado concluir que, num ano favorável,

a exportação total de açúcar brasileiro estava próxima de 2.500.000 libras, gerando uma

renda bruta de 2.000.000 de libras na colônia. 75% desta era a renda líquida da

economia açucareira. Assim, tendo como denominador os 30.000 brancos, senhores de

engenho, a renda per capita do Nordeste açucareiro chegava a ser de 67 libras. A

conclusão imediata de Celso Furtado é de que “em nenhuma outra época de sua

história – nem mesmo no auge da produção de ouro – o Brasil logrou recuperar esse

nível [de renda per capita]” (FURTADO, 2009, pp. 99-100). Finalmente, ao olhar o

quadro distributivo, o autor estima que 90% desse montante de renda estava direcionado

para senhores de engenho e plantadores de cana, ao passo que os 10% restantes eram

absorvidos nos serviços de transporte e armazenamento, na compra de gado e lenha e no

pagamento de assalariados. É de se esperar que, com tamanha concentração de renda, o

potencial de reinvestimento e, concomitantemente, de crescimento da economia

açucareira, até em períodos “menos favoráveis”72, era elevadíssimo:

Os dados (...) sugerem que a indústria açucareira era suficientemente

rentável para autofinanciar uma duplicação de sua capacidade produtiva a

cada dois anos. Aparentemente o ritmo de crescimento foi dessa ordem nas

etapas mais favoráveis.73

72
Nos “anos menos favoráveis”, Furtado estima que a renda líquida da economia açucareira era
de cerca de 1.200.000 libras, sendo que 50% dela era alocada em consumo.
73
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 101.
68
É bem verdade, porém, que em certos momentos a capacidade de reinvestimento

e acumulação de capital diminuía. Isso porque uma parcela considerável dos capitais

pertencia aos comerciantes, implicando transferência da renda gerada pelos capitais

fixos para outro setor que não os senhores de engenho. Em termos de contabilidade

nacional, “seria o que modernamente se chama renda de não-residentes, e permanecia

fora da colônia” (FURTADO, 2009, p. 102).

As pesquisas e conclusões de Furtado, elencadas acima, a respeito do nível de

renda e de seu quadro distributivo, acabaram por gerar controvérsias na historiografia,

principalmente quando analisamos os estudos de Frédéric Mauro 74 a respeito do mesmo

tema. O historiador francês, coletando dados, referentes ao período de 1622 até 1635, do

Engenho Sergipe do Conde (à época administrado pelo Pe. Pereira), questiona o elevado

grau de concentração de renda na economia açucareira mostrado por Furtado: os lucros

sobre o capital, ao longo dos anos em análise, variavam entre 1,2% e 3,4%, estando

muito longe, portanto, daqueles 90% da renda líquida apropriados pelos senhores (os

quais garantiam para si um lucro sobre o capital entre 70% e 80%). Mauro não é o

único, na historiografia, a questionar as estimativas de Furtado. Historiadores mais

recentes também problematizaram os dados apresentados pelo autor de Formação

Econômica do Brasil:

(...) os historiadores posteriores, que tiveram o cuidado de examinar os

documentos, acharam a sua descrição altamente exagerada. (...) Mircea

Buescu, por exemplo, fez notar que os cálculos de Celso Furtado sobre o

açúcar produzido ao redor de 1600 implicavam uma produção média por

engenho de umas 16.667 arrobas (...)número completamente impossível,

jamais alcançado por qualquer engenho, mesmo grande, em qualquer época

74
Le Portugal et l’Atlantique au XVII Siécle.
69
que se saiba. Uma análise cuidadosa de algumas fontes contemporâneas

aproximaria esse número de 6.000 ou menos75

A bem da verdade, existem estudos posteriores aos de Mauro que também

questionam as suas conclusões a respeito do nível de rentabilidade e de apropriação dos

lucros por parte dos senhores de engenho. O período em que o autor analisa Sergipe do

Conde foi marcado por uma profunda queda nos preços do açúcar, depressão essa que

perdurou na Europa mais ou menos até 1633, o que explica em parte uma queda nos

lucros ao longo da década estudada por Mauro. Outro aspecto importante captado pela

historiografia recente reside na atitude do próprio administrador do engenho: o Pe.

Pereira, nas demonstrações contábeis dos resultados operacionais, muito provavelmente

diminuía seus lucros reais, numa forma de encobrir acusações a respeito de sua péssima

gestão do Sergipe do Conde.

Podemos ver, portanto, que, se Furtado exagera a produção de açúcar e,

consequentemente, o nível de renda e de concentração desta nas mãos dos senhores,

Mauro acaba indo pelo lado oposto: uma lucratividade muito pequena para uma

produção que era, não obstante o exagero furtadiano, considerável. Como encontrar um

meio termo? Recorremos a S. Schwartz, mostrando a nós, a partir de estudos já citados

aqui, que, o retorno de um engenho no nordeste brasileiro avaliado em 20 contos

flutuava entre 2 e 3 contos de réis. Esperava-se portanto, uma lucratividade de 10% ou

até mesmo 15%, “embora em tempos de prosperidade pudessem ser obtidos retornos

muito maiores” (SCHWARTZ, 1988, pp. 195-196):

O bom senso conduz à conclusão de que, embora os senhores de engenhos

fossem constrangidos por uma grande proporção de custos fixos e vez por

outra operassem com prejuízo para conseguir pagar as dívidas e outras

75
JOHNSON, H & SILVA, Maria B. N. da (Coords.). O Império Luso-Brasileiro, 1500-1620
In: SERRÃO, J. & MARQUES, A. H. de O. (dirs.). Nova História da Expansão Portuguesa,
Volume VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1992, p. 273.
70
obrigações, a indústria açucareira baiana como um todo não operou com

déficit durante períodos prolongados. Nas Antilhas britânicas, níveis de

lucro de 5% eram considerados aceitáveis pelos senhores de engenho, e de

10%, excelentes.76

Como podemos perceber, a rentabilidade da economia açucareira

agroexportadora, independentemente dos exageros ou dos ceticismos, era considerável.

Isso não significa que, no Nordeste brasileiro, houve uma internalização dessa renda,

com a formação de um fluxo circular dentro da colônia. Na realidade, ocorria

exatamente o oposto: “não havia (...) nenhuma possibilidade de que o crescimento com

base no impulso externo originasse um processo de desenvolvimento de

autopropulsão” (FURTADO, 2009, pp. 101 e 109). A autossuficiência não foi um

elemento do ciclo do açúcar no Brasil. Apesar dos constantes reinvestimentos em

capital fixo para ampliar a produção, eles acabavam apenas reproduzindo

continuamente o grau de dependência da economia colonial em relação aos interesses da

metrópole portuguesa e do mercado europeu como um todo.

O que explica o “paradoxo” enunciado acima é justamente a presença do modo

de produção escravista na colônia. Tratando em termos keynesianos (fazendo, portanto,

uma aproximação com a linha de pensamento de Furtado), a existência de um trabalho

nesses moldes dificulta e muito a formação de um mercado interno consistente (o

escravo, diferentemente do assalariado, não recebe um montante em dinheiro necessário

para sua subsistência, dinheiro esse que é gasto no mercado. Pelo contrário, ele acaba

sobrevivendo a partir daquilo que o próprio engenho fornece), inviabilizando um efeito

mais robusto de um multiplicador de dispêndio. O baixo grau de internalização da renda

na economia nordestina agravava-se ainda mais pelo fato de que boa parte do consumo

76
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195-196.
71
dos senhores de engenho (maiores apropriadores da renda) era de artigos importados.

Assim, no lado do investimento e no do consumo, o fluxo de renda monetária era

fundamentalmente externo.

Estudos posteriores, como o de Francisco Teixeira da Silva 77, revisam, por sua

vez, esse caráter subsidiário do mercado interno brasileiro. É certo que a diretriz

principal estava na economia açucareira agroexportadora. Mas, a coleta de fontes

primárias indica que a Coroa acabou mesmo por incentivar uma produção interna de

cereais, de modo a abastecer o Brasil (e até mesmo possessões na África e Sacramento,

que hoje corresponde ao Uruguai) com alimentos. Estimulou-se, para esse fim, a vinda

de colonos com disponibilidade insuficiente de capitais para administrar um engenho.

Temos autores que chegam até mesmo a diminuir o caráter hegemônico da economia

açucareira:

Nelas [nas áreas das vilas em que não havia exportação – sécs. XVI, XVII]

se instalaram muitos tipos de produção, com destaque para a pecuária no

Nordeste e os produtos de abastecimento e artesanato em todo o território. A

pequena produção era a regra —manufaturas como a do capitão Guilherme

Pompeu de Almeida [negócios com ferro; capitão-mor, na segunda metade

do séc. XVII era dono de uma grande manufatura com 5 oficinas

especializadas] ou os engenhos do Nordeste, a exceção. A busca de riqueza

dava sentido à vida. O empreendedor era a figura central.78

Finalmente, um último fator, referente ao nível de especialização na economia

açucareira, merece atenção. Partindo da historiografia tradicional, o nível de

especialização numa economia cujo modo de produção é escravista é bem baixo. Isso

77
Conquista e colonização da América portuguesa – o Brasil colônia, 1500/1750. In:
LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990,
cap. 1, p. 77.
78
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e
governos. São Paulo: Estação Brasil, 2017, p. 117.
72
porque “não se pode esperar que os escravos realizem mais do que aquilo que são

forçados a fazer” (WALLERSTEIN, 1988, pp. 120-121). A especialização exigia um

método alternativo de trabalho que não fosse a escravidão, a qual, por sua vez, implica

reduzida produtividade e, portanto, baixo nível de mais-valia relativa. Schwartz,

claramente um representante da historiografia disposta a revisar os trabalhos clássicos,

por sua vez, não nega o caráter brutal do trabalho escravo (que seria o fator de maior

impedimento à especialização), mas explica que, ao contrário do que os historiadores

“famosos” teorizam, a escravidão foi menos brutal do que se imaginou, permitindo,

portanto, nível maior de especialização do trabalho:

Sem dúvida é verdade que os trabalhadores livres tendiam a ocupar as

funções que demandavam maior especialização nos engenhos, porém nunca

chegaram a substituir completamente os escravos e, na verdade, em algumas

propriedades os cativos realizavam todas as tarefas. A escravidão na grande

lavoura mostrou-se menos rígida do que seus estudiosos muitas vezes

descreveram.79

79
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195-196.

73
X

Economia Açucareira III

Um dos eventos mais importantes para os destinos de Portugal e,

consequentemente, do Brasil a partir do século XVII foi o conjunto de conflitos entre os

Países Baixos e a Espanha no período que vai de 1568 até 1648, conhecido como

“Guerra dos Oitenta Anos”. Era a luta pela independência dos Estados liderados pela

Holanda:

Indo até as últimas consequências, os Países Baixos desafiaram a maior

potência do mundo no século XVI, o Império espanhol, para conseguir, a

todo custo, sua independência. Liderados pela Holanda, (...) os Países

Baixos lutaram durante várias décadas, a Guerra dos Oitenta Anos [1568-

1648], com todos os seus recursos, contra o Império habsbúrgico, onde o sol

nunca se punha.80

Esse quadro de tensões invariavelmente afetou a Coroa Portuguesa, justamente

por ela, no período em que acontece a “Guerra dos Oitenta Anos”, fazer parte da União

Ibérica. Todas as suas colônias, incluindo o Brasil, estiveram, de 1580 a 1640, sob

domínio espanhol. É nesse quadro geopolítico que se consolida a União de Utrecht,

representação política dos Estados holandeses independentes e que foram alvo de

80
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A revolução holandesa: origens e projeção oceânica.
São Paulo: Perspectiva, 2014, p. XI.
74
intensa perseguição espanhola ao longo do conflito. Sustentados financeiramente por

Inglaterra e França, os holandeses, embora desejosos das minas ibéricas no México e no

Peru, focam seus ataques nas possessões portuguesas. Do ponto de vista econômico, é

certo que o ouro e a prata das colônias espanholas eram de lucratividade muito maior na

comparação com os territórios portugueses. O fator decisivo, entretanto, que moldou as

ações dos Países Baixos foi de caráter militar: as áreas de domínio lusitano, bem mais

espalhadas ao redor do globo, acabavam sendo mais vulneráveis e frágeis frente a uma

invasão estrangeira (a maioria delas estavam situadas na costa, estando, portanto, muito

mais expostas, facilitando uma potencial invasão). Soma-se a isso o fato de que o ouro e

a prata, principal meio de sobrevivência da Espanha no conflito, estavam concentrados e

extremamente protegidos. Assim, uma vez definido que a estratégia principal era

concentrar os ataques nas áreas lusitanas, a União centraliza seus recursos materiais e

humanos no tráfico negreiro africano, nas especiarias do Oriente e, principalmente, no

Nordeste açucareiro do Brasil:

(...) quando os holandeses passaram à ofensiva em sua Guerra dos Oitenta

anos pela independência contra a Espanha, no final do século XVI, foi nas

possessões portuguesas mais do que nas espanholas que se concentraram

seus ataques mais pesados e persistentes. Uma vez que as possessões

ibéricas estavam espalhadas pelo mundo todo, a luta subsequente foi travada

em quatro continentes e nos sete mares; e essa conflagração seiscentista

merece muito mais ser chamada de Primeira Guerra Mundial do que a

carnificina de 1914-8, a que geralmente se atribui essa honra duvidosa.81

Uma vez definida a estratégia dos Países Baixos, como vimos, o Nordeste

açucareiro é então invadido pelos holandeses após uma tentativa fracassada de tomar

possessões caribenhas anos antes. É justamente no período de trégua do conflito (1609-


BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
81

Letras, 2002, p. 120.


75
1621) entre União Ibérica e Utrecht que temos, na região, inovações tecnológicas

importantes (como a já citada introdução da moenda com três cilindros verticais) nos

engenhos. Foi também nesse momento, vale dizer, que a economia do açúcar conseguiu

“completar sua transição do trabalho indígena para o africano” (MELLO, 1998, pp.

24-25). Não é surpreendente, tendo como base tais dados históricos, que a produção de

açúcar no Brasil tenha retomado um crescimento consistente exatamente nos anos da

trégua. A moenda de entrosas ampliava e muito a produtividade, uma vez que permitia a

constante alimentação com matéria-prima, além de ser muito mais potente para prensar

a cana. O escravo africano, por sua vez, já estava muito mais adaptado ao trato do

açúcar, dado que, em inúmeras ilhas do oeste africano, principalmente a da Madeira e a

de São Tomé e Príncipe, já se organizava o fabrico do açúcar desde o século XV.

A presença holandesa no Nordeste, porém, foi também marcada por

complicações, principalmente quando analisamos a questão da unidade territorial na

colônia portuguesa na América. Se a restauração portuguesa de 1640 não se

concretizasse, dificilmente os holandeses teriam deixado a produção açucareira no

Brasil em 1654. Isso porque, em 1648, época em que a Espanha ainda tentava

reestabelecer a União Ibérica, estava previsto, pelo tratado de Münster, a concessão do

Nordeste brasileiro aos Países Baixos:

Foi aí [no Nordeste] que nossa integridade territorial correu maior perigo.

Por lamentável que tivesse sido, a perda do Rio Grande do Sul não teria

comprometido a unidade nacional, como não o fez a independência do

Uruguai, mas a consolidação do Brasil holandês teria estilhaçado a América

portuguesa.82

82
MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 14.
76
Foi apenas com o tratado de Haia, em 1669, que a Holanda de fato reconheceu a

soberania portuguesa no Nordeste brasileiro, recebendo, em troca, importantes

concessões financeiras e comerciais lusitanas. De 1654 até o ano do tratado, esteve

sempre presente na Coroa Portuguesa o medo de uma invasão dos Países Baixos que

pudesse comprometer o estado de coisas no Brasil. A saída definitiva dos holandeses da

região açucareira, por sua vez, acabou transformando completamente os destinos dessa

economia no Brasil, colocando em xeque, inclusive, o monopólio português do trato da

cana, já que, na segunda metade do século XVII, a Holanda centraliza seus recursos nas

Antilhas. Analisemos, agora, os principais períodos de produção açucareira nessas ilhas

do Caribe.

No início do século XVI, principalmente na região que englobava as Canárias e

São Domingos, a Espanha já havia organizado um razoável sistema de produção

açucareira. A primeira exportação para a Europa ocorreu em 1516; em 1534, o

complexo passou a ter 34 engenhos; em 1568, as plantations chegavam a ser ocupadas

por até 200 escravos. Não obstante, essa atividade econômica sempre teve caráter

secundário nas assim chamadas “Grandes Antilhas”, o que não surpreende se pudermos

enxergar que a prioridade da Coroa Espanhola residia na extração de ouro e prata.

Diferentemente de Portugal, a Espanha encontrou vastas quantidades de metais

preciosos logo que chegou aos territórios americanos. Assim, atividades econômicas

distintas da puramente extrativa acabaram sendo secundarizadas e, posteriormente,

entraram num grave quadro de sucateamento.

Se nas Grandes Antilhas, como vimos, o quadro era de notável abandono por

parte da metrópole, as Pequenas Antilhas serão palco de um fenômeno um tanto quanto

inusitado, mas, acima de tudo, decisivo para a história da América do Norte. É nelas que

as novas potências coloniais França e Inglaterra, assim como a mais tradicional


77
Holanda, contestando abertamente a divisão do mundo entre Espanha e Portugal

prevista no tratado de Tordesilhas, irão introduzir, nas primeiras décadas do século

XVII, pequenas propriedades de subsistência, planejando o assentamento e a conquista

da região. O objetivo dessa manobra era, futuramente, uma vez conquistadas as ilhas

antilhanas, tomar posse do quinhão minerador espanhol nas zonas mais afastadas do

mar. São Cristóvão e São Eustáquio foram alguns dos pontos de assentamento dessas

novas populações:

No fim do século XVII, (...) A França dominava ainda parte de São Cristóvão

e havia estendido sua dominação às ilhas de Guadalupe (...), à Martinica,

Maria-Galante, São Bartolomeu e parte de São Martinho, além da metade

ocidental da ilha de São Domingos. Os ingleses ocupavam Barbados, Nevis,

Antígua, Redonda, Montserrat, Barbuda, Anguilla, Bahamas, Bermudas,

Jamaica e parte de São Cristóvão. Os holandeses, além de Santo Eustáquio,

haviam-se tornado senhores das ilhas de Saba, parte de São Martinho e

Bonaire, Curaçao e Aruba junto ao litoral do continente sul-americano. Os

dinamarqueses, só em 1697 conseguiram uma base nas Antilhas, (...) ilha de

São Tomás.83

Uma das primeiras atividades econômicas que emergem dessa estratégia

geopolítica ousada das novas potências foi a produção do fumo. Ela já marca uma

transição da economia de pequena propriedade para a de grandes extensões de terras, a

qual foi impulsionada com a posterior chegada dos holandeses. Com base nos dados de

V. T. Harlow84, Barbados, um dos pontos de assentamento inglês, viu o quadro de

11.200 pequenos proprietários em 1645 transformar-se num de 745 grandes fazendeiros

em 1667. A mesma região presenciou o aumento vertiginoso da população africana

83
CANABRAVA, Alice Piffer. O açúcar nas Antilhas (1697-1755). São Paulo: IPE/USP, 1981,
p. 21-22.
84
HARLOW, V. T. A history of Barbados. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 76, nota 30.
78
escravizada: “os negros haviam aumentado de 5.680 para 82.203” (FURTADO, 2009,

p. 76). Paralelamente, na região que hoje corresponde à costa leste dos Estados Unidos,

desenvolve-se, no mesmo período, a partir da ocupação de perseguidos políticos

ingleses85, produções pautadas em pequenos assentamentos, dado que a massa britânica

que chega à Nova Inglaterra tem como objetivo primário reproduzir seu estilo de vida

antes consolidado na metrópole. Se, de início, a pequena produção nessas regiões

resultou em considerável fracasso, o contínuo desenvolvimento da economia açucareira

antilhana acabou por impulsionar o crescimento paralelo dessa economia de

subsistência no Atlântico Norte:

Brotaram os engenhos de açúcar para moer as canas, mas Barbados não

tinha força hidráulica para acioná-los. A alternativa era usar moendas

movidas a cavalos, por isso foram adquiridos cavalos na Nova Inglaterra.

Também eram necessários tonéis e barris onde acondicionar o açúcar. Estes

foram fornecidos pelas abundantes florestas de Massachusetts e

Connecticut.86

Esse desenvolvimento paralelo, mas, ao mesmo tempo, associado entre as duas

atividades, possibilitou, na Nova Inglaterra, a consolidação de uma economia similar à

que se instalava em definitivo na Europa: uma que funcionava de dentro para fora, com

valorização substancial do mercado interno, “sem uma separação fundamental entre as

85
No período de crescimento da produção antilhana de açúcar, a Inglaterra passa por agitações
político-religiosas cruciais: a realeza, que havia adotado o Anglicanismo como orientação
religiosa no final do século XVI, instaura um quadro de perseguições constantes à massa de
calvinistas revoltosos no país. Muitos deles, fugindo do país de origem, partem rumo ao
atlântico norte, fundando os Estados de Massachussets (1620), Connecticut (1633) e Rhode
Island (1636). Essa tensão político-religiosa é um dos aspectos mais importantes da Revolução
Puritana de 1640. Tomemos o cuidado, porém, de não inverter a lógica e colocar esse quadro
como a raiz da convulsão social pela qual passou a Inglaterra, esquecendo-nos de enfatizar o
papel crucial das transformações econômicas materiais sofridas séculos antes. Para uma melhor
compreensão da matéria, o livro The English Revolution 1640, de Christopher Hill, é
fundamental.
86
HARLOW, V. T. A history of Barbados. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 76, nota 33.
79
atividades produtivas destinadas à exportação e aquelas ligadas ao mercado interno”

(FURTADO, 2009, p. 79), abastecendo o exterior com o excedente, permitindo, com

isso, uma enorme internalização da renda gerada.

O terceiro período que pretendemos analisar é o da consolidação da presença

holandesa nas Antilhas, já na transição para o século XVIII. É nesse momento que a

atividade é valorizada tanto nas pequenas como nas grandes ilhas, consolidando-se um

ciclo econômico na região. O crescimento da produção açucareira nas Antilhas, além de

ter quebrado definitivamente o monopólio português no trato da cana, acabou por influir

consideravelmente na política dentro da própria Europa (muitos latifundiários das

Antilhas inglesas eram membros do próprio Parliament, defendendo os interesses dos

rentistas britânicos, alvos de severas críticas do célebre D. Ricardo):

Em contraste com o século XVII, por excelência o século das atividades

parasitárias contra a marinha espanhola, da aventura marítima e da

ocupação belicosa das ilhas do mar dos Caraíbas, o século XVIII é,

sobretudo, o da atividade colonial, no sentido da valorização daquelas

colônias, as quais passaram a influir poderosamente na política e na

economia europeia.87

Uma vez compreendido o complexo quadro envolvendo a produção de açúcar

nas Antilhas ao longo de três séculos, podemos retornar ao ciclo açucareiro no Brasil e

discutir, numa maneira mais aprofundada, a formação daquilo que Celso Furtado

nomeou “complexo econômico nordestino”, marcado pelo diálogo entre a produção

agroexportadora característica e uma economia voltada para dentro que era a pecuária.

Esta, por sua vez, antes de servir como fonte importante de abastecimento para os

87
CANABRAVA, Alice Piffer. O açúcar nas Antilhas (1697-1755). São Paulo: IPE/USP, 1981,
p. 22.
80
engenhos (trataremos disso posteriormente), funcionou como o primeiro vetor de

expansão interna portuguesa na colônia:

Já no governo de Tomé de Sousa, iniciou Garcia de Ávila o estabelecimento

de currais pelo interior da Bahia. (...) Em 1589, Cristóvão de Barros ocupou

a costa até o São Francisco, expulsando os selvagens. [...] Os Ávilas e os

seus associados prosseguem na invasão do sertão com seus currais, (...)

levandoos ao Maranhão, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. (...)

Subindo o São Francisco, atingem o interior mineiro. Passando para os

vales do Tocantins e Araguaia, estende-se a criação para os sertões goianos

(...). Via Goiás, penetrou o gado as regiões do Mato Grosso, onde foi de

encontro às manadas que subiam da Vacaria e das possessões espanholas;

assim também o gado que subia o São Francisco foi-se encontrar com o que

pela Capitania de São Vicente tinha sido introduzido em (...) Minas Gerais.88

Esse potencial de expansão teve como um dos alicerces a própria disponibilidade de

terras da colônia, marcada por uma fluidez fronteiriça considerável. Como projeção da

economia açucareira, a pecuária era uma atividade de baixa rentabilidade se comparada

ao setor agroexportador: limitava-se ao fornecimento de animais de tiro para o engenho,

aproveitando-se, ao mesmo tempo, de uma exportação residual de couro. Essa

característica que marca a etapa inicial da atividade criatória está intimamente associada

ao crescimento extensivo dessa economia, ampliando os horizontes territoriais do

Brasil.

A quebra do monopólio português do açúcar, da qual tratamos em parágrafos

anteriores, foi responsável pela diminuição vertiginosa dos preços da commoditie no

mercado europeu, reduzindo e muito a lucratividade dos senhores de engenho. Acabou

por ser, portanto, um dos fatores responsáveis pela crise do Nordeste açucareiro. Se a
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil, (1500-1820). 8.ed. São Paulo: Ed.
88

Nacional, 1978, p. 152.

81
demanda por capital fixo se manteve muito parecida mesmo nesse momento turbulento,

a mão-de-obra necessária foi diminuindo cada vez mais e, com isso, se transferia para o

setor de criação de gado. Uma vez que a procura por animais de tiro diminuía

continuamente, a pecuária, que sofria um aumento de sua força de trabalho, regrediu

para um quadro de involução econômica. Menos renda monetária era necessitada, uma

vez que se formava um quadro de autoconsumo, dado que o couro não era mais

exportado e os animais não eram mais enviados para o litoral. A produtividade, que já

era pequena, diminuía cada vez mais, assim como o grau de especialização e,

consequentemente, de divisão do trabalho.

82
XI

Mineração I

Quando fazemos o estudo do ciclo metalista na colônia, é fundamental, ao

mesmo tempo que inevitável, compará-lo com a economia açucareira dos séculos XVI e

XVII. A extração mineral possuía um potencial de desenvolvimento endógeno e,

portanto, autopropulsionado muito maior do que a fabricação de cana. As barreiras de

entrada no negócio do ouro eram muito menores, no seu conjunto, dado que, de acordo

com as fontes de Simonsen, 85% da produção mundial do metal se dava na forma de

aluvião. O quadro acabava atraindo pessoas com uma disponibilidade de capitais que,

para garantir a sobrevivência no ramo da cana, era insuficiente, mas que bastava para

entrar na mineração. A grande semelhança entre os dois ciclos, por sua vez, é que, assim

como no Nordeste açucareiro, o desenvolvimento endógeno não se concretizou. No

período de decadência das minas, assim como no complexo econômico nordestino, o

resultado, como nos mostra Furtado, foi uma profunda regressão e involução.

Se, no século XIX, a participação brasileira na produção aurífera chegou a ser de

ínfimos 2,0%89, em função dos descobrimentos de novas regiões mineradoras na

89
De acordo com dados do DNPM.
83
Califórnia, na Austrália, no Alasca e até mesmo na África do Sul, um século antes o

Brasil contribuía com 60%, a maior parcela na época. Se compararmos com o que se

extraiu no século XX e com o que se produz hoje, as quantidades do século XVIII eram

bem pequenas, muito em função é claro, dos avanços tecnológicos ao longo do tempo

pelos quais passou o setor. Mas, até aquele período, a colônia portuguesa na América

era dona da “maior massa aurífera explorada e produzida após a queda de Roma”

(SIMONSEN, 1978, p. 248).

Os dados enunciados acima, porém, não consideram o grosso de metais que

eram contrabandeados, o que gera um diferença estatística considerável, uma vez que,

se incluída a produção ilegal, a contribuição brasileira é ainda maior no século XVIII:

A análise das cargas de ouro nas frotas, as notícias sobre os descaminhos e

as várias formas de contrabando fazem crer que a produção brasileira de

ouro está acima dos cálculos que os documentos permitem realizar. (...) [A]

exploração maciça e simultânea das regiões mineiras como as Gerais,

Bahia, Mato Grosso e Goiás, entre o meado da década de 20 e o começo da

década de 50, teria elevado a produção brasileira de ouro a um nível entre

18 a 20t anuais.90

Dado esse complexo sistema de produção metalista, em que a participação do

contrabando era deveras considerável, a Coroa Lusitana e seu regime administrativo

operavam sempre entre dois polos: o risco de uma sublevação dos mineradores, em caso

de uma fiscalização mais rigorosa, e um prejuízo comercial que colocaria em xeque a

sobrevivência da própria metrópole enquanto nação soberana, numa situação em que a

produção ilegal fugisse do controle. Uma vez reconhecida a incapacidade régia de

eliminar por completo este último elemento, “sobreleva-se o reconhecimento de que o


90
PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição
aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Cia. Ed. Nacional; Brasília, INL,
1979, p. 116-117.
84
descaminho é uma prática social constitutiva e formadora daquela sociedade colonial”

(CAVALCANTE, 2006, p. 211).

Como se deu a transição do ciclo açucareiro para esse quadro complexo em que

se envolve a extração de metais nas Gerais? A crise da produção nordestina fez com

que, a partir do século XVIII, a política metropolitana retomasse o objetivo inicial,

aquele real estímulo para a manutenção da soberania Portuguesa nos trópicos sul-

americanos, que do ponto de vista mercantilista/bullionista dava sentido econômico à

existência da colônia: a descoberta dos metais preciosos, principalmente o ouro 91. Isso

porque “era mais ou menos evidente que da agricultura tropical não se podia esperar

outro milagre similar ao do açúcar” (FURTADO, 1980, p. 73). Nos primeiros passos

para a consolidação da região mineradora como posse lusitana, a administração régia

apoia-se muito nas atividades dos bandeirantes paulistas, os quais, conforme a

decadência da fabricação de açúcar aumenta, passam a direcionar seus planos de

desbravamento territorial para a descoberta dos metais e não mais para a captura do

nativo com vistas a usá-lo no trabalho agrícola. Concessões foram dadas aos paulistas,

tais como a posse das primeiras datas mineradoras na região das Gerais (questão que

será tratada com mais afinco posteriormente). Esta é uma amostra da importância que

tiveram as bandeiras para o controle metropolitano da zona extrativa. Nas palavras de

Furtado:

91
Um segundo ponto de vista interessante para entender os rumos tomados pela Coroa no século
XVIII consiste na análise de Adriana Romeiro: Bem diferente do que afirmam alguns
historiadores, o evento [a descoberta do ouro] suscitou receio e temor nos dois lados do
Atlântico, afigurando-se às autoridades, funcionários e conselheiros régios uma séria ameaça
ao domínio português na América Portuguesa. Do ponto de vista político, temia-se que as
riquezas recém-descobertas viessem a se transformar rapidamente em alvo da cobiça das
nações estrangeiras, que não hesitariam em invadir a assaltar os portos marítimos em busca do
ouro. Teria Portugal como resistir a inimigos reconhecidamente superiores no plano militar
naval? (Paulistas e emboabas no coração das Minas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.
35.)

85
Os governantes portugueses cedo se deram conta do enorme capital que,

para a busca das minas, representavam os conhecimentos que do interior do

país tinham os homens do planalto de Piratininga. Com efeito, se estes já

não haviam descoberto o ouro em suas entradas pelos sertões, era por falta

de conhecimentos técnicos.92

A historiografia mais recente, porém, contesta a afirmação de Furtado a respeito do

know-how bandeirante. Mafalda Zemella93 nos mostra que o bandeirante, já

experimentado na extração mineral a partir de trabalhos em minas de Jaraguá e

Paranaguá, possuíam qualidades técnicas que lhes permitiram o descobrimento dos

primeiros metais nas Gerais:

O ano de 1674 é o momento culminante da bandeira pesquisadora. Foi

quando entrou para o sertão a bandeira de Fernão Dias Pais, bandeira essa

que abriu largamente as portas da região aurífera, facilitando o caminho

para as minas, pontilhando-o de roças. [...]A primeira notícia oficial da

descoberta do ouro deve-se a Antônio Rodrigues Arzão que, partindo de

Taubaté, colheu o metal precioso nos sertões do Rio Casca, em 1693.94

Para compreender em sua totalidade a consolidação da presença portuguesa na

região das minas, falta delinear as estratégias régias, tanto fiscais como sociais, tomadas

no início dos setecentos com vistas a garantir a soberania lusitana nessa porção colonial.

Na passagem para o século XVIII, o governador geral D. João de Lencastro (1694-

1702), intimamente associado aos interesses dos senhores de engenho nordestinos, é

responsável pelo que se convencionou chamar “Políticas de Portas Fechadas”: uma

conexão unilateral entre Bahia e as Gerais, favorecendo os latifundiários do açúcar, uma

92
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 133.
93
O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2.ed. São Paulo: Hucitec;
Edusp, 1990, p. 37.
94
Idem, p. 38.
86
vez que caberia exclusivamente a eles o abastecimento da região mineradora com mão-

de-obra e animais de tração. Em 1701, entretanto, “a proibição de toda e qualquer

comunicação entre a Bahia e a zona mineradora ordenada pela Coroa (...) sepultou

definitivamente o projeto de Lencastro” (ROMEIRO, 2008, p. 43). A partir de então,

mediante proposta do governador do Rio de Janeiro Artur de Sá e Meneses, instaura-se

exatamente o contrário, ou seja, uma “Política de Portas Abertas”. O objetivo era o

rápido povoamento da região, ampliando assim a produção e, principalmente, a

arrecadação tributária (mais pessoas nas datas equivalia a um maior recolhimento do

quinto). A estratégia também englobava uma cooptação dos bandeirantes paulistas, os

quais, por sua vez, acolheram de imediato a proposta lusitana. Em troca de privilégios e

concessões aos sertanistas (uma ilustração é a anistia de Borba Gato, que antes era

perseguido por seus assassinatos e, com Sá e Meneses, torna-se tenente general do

descobrimento de prata de Sabarabuçu), os quais tiveram o domínio político inicial da

região das minas, considerando-se novamente como parte do Império, Portugal garantia,

por meio dos mesmos, o controle do ouro e da arrecadação.

É bem verdade, contudo, que o rápido povoamento, um objetivo nos primeiros

anos da mineração, transforma-se num quadro de calamidade pública ao longo do

século XVIII, motivando políticas de restrição migratória, dificultando a entrada nas

zonas extrativas:

(...) aquele rush em direção às minas gerais se transformou em calamidade

pública. (...) surgiu o perigo de despovoar-se o Reino. Também as cidades

litorâneas do Brasil viram-se diante da mesma ameaça. [...] Não havia gente

para as fileiras do exército. Faltavam tripulantes para as embarcações. Não

havia artesãos nem oficiais para as manufaturas. Faltavam braços para as

construções e até faltavam clérigos para as necessidades do espírito. As

87
minas (...) começaram a ser olhadas como causadoras de desgraças e fontes

de malefícios.95

Finalmente, uma vez que entendemos a constituição da soberania portuguesa nas

minas mediante suas estratégias de negociação e cooptação, convém analisar o

complexo social em que as Gerais se encaixaram nos primórdios do século XVIII. A

região era com certeza muito mais explosiva do que sua antecessora, o Nordeste

açucareiro. Emergiam vilas violentas, cada uma das quais com sua legislação própria,

estando sempre presentes os cruéis ritos de violência, como por exemplo as assuadas,

marcadas pela exibição pública de poder pelos paulistas. Embora o controle português,

como vimos, fosse uma realidade, as estratégias de negociação para sua sobrevivência

nos primeiros anos abriam uma margem muito maior para uma estrutura de poder

privado vindo dos próprios mineradores, principalmente os paulistas:

Estupefatos, cronistas e autoridades retrataram um quadro assustador da

vida nas Minas nos primeiros anos do século XVIII, comparando a região a

um verdadeiro talho, onde todos os dias muitos perdiam a vida em

circunstâncias extremamente violentas. Ao lado do enxame dos pobres e

vadios, que viviam de faiscar nas lavras abandonadas, cometendo aqui e ali

pequenos e grandes delitos, havia ainda a sanha dos potentados, homens

enriquecidos que se entregavam a grandes demonstrações de poder,

perseguindo e justiçando os inimigos. Ao contrário da tão propalada

desordem política, o cenário político caracterizou-se antes por uma ordem

de outra natureza, irredutível às concepções tradicionais sobre o bom

governo político. Os arranjos políticos e os equilíbrios sociais, ainda que

frágeis, forjados no alvorecer das Minas, baseavam-se em regras definidas e

coletivamente aceitas, que rapidamente foram incorporadas à tradição (...).

Não obstante a implantação de um aparato administrativo

95
Ibidem, p. 47-48.

88
institucionalizado, tal estrutura de poder ―marcada pela violência e de

caráter privado― sobreviveria por muito tempo, garantindo aos potentados

um papel de destaque na história política da capitania.96

Com o crescimento demográfico vertiginoso no início do século, com o afluxo

populacional vindo do próprio reino, de São Paulo e inclusive do Nordeste, o poder

paulista passa a ser cada vez mais contestado. Os forasteiros, pejorativamente

conhecidos como emboabas, colocavam contra a parede o “quase-monopólio” dos

bandeirantes na extração mineral. O grau de contradição e acirramento das tensões entre

forasteiros e paulistas culminou na Guerra dos Emboabas.

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas. Belo Horizonte: Editora
96

UFMG, 2008, p. 84
89
XII

Mineração II

No início do ciclo minerador no Brasil, as Gerais não haviam passado por uma

diversificação da atividade econômica. O foco, como era de se esperar, tanto por parte

de forasteiros como por parte da própria Coroa, era única e exclusivamente a extração

de ouro e prata. Assim, as crescentes demandas por abastecimento na região das minas

resultaram invariavelmente na elevação dos preços dos alimentos e dos transportes nas

áreas vizinhas. O quadro acabou funcionando como um “mecanismo de irradiação dos

benefícios econômicos da mineração” (FURTADO, 2009, p. 137). O estímulo ao

abastecimento a partir das capitanias circundantes elevava e muito o potencial de uma

economia monetária nas Gerais, com a consequente criação de um fluxo circular da

renda.

Um dos principais fornecedores de alimentos das Gerais era São Paulo.

Produziam-se em especial as “drogas da terra”: farinha, panos de algodão, redes, trigo,

marmelo, couros e carnes.97 Nas últimas décadas do século XVII, eram responsáveis

pelo abastecimento do Rio de Janeiro. Mas, assim que se concretizou a atividade

extrativa no centro da colônia, cada vez mais os paulistas foram se especializando em

prover os mineradores com seus gêneros. De início, apenas os “restos” da pequena

produção eram destinados às minas. Conforme os lucros potenciais iam aumentando,

97
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2.ed.
São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990, p. 56.
90
porém, os paulistas intensificavam ainda mais a produção, podendo até mesmo

comprometer o consumo local:

(...) a princípio, os habitantes de Piratininga limitaram-se a mandar para as

Gerais as sobras de sua minguada produção. Depois, atraídos pelos gordos

lucros, intensificaram essa produção, com o fito de vender cada vez mais,

ainda que fosse com sacrifício dos consumidores locais. Em seguida (...)

foram buscar, em regiões por vezes distanciadas, tudo aquilo de que os

mineiros careciam e que eles mesmos não podiam produzir.98

Deve-se enfatizar, por sua vez, o papel do Rio de Janeiro na formação de novos

caminhos até as Gerais. Antes, partindo de Parati e cruzando por Taubaté (era o

encontro dos “caminhos velhos” paulista e fluminense) 99, demorava-se entre 43 e 60

dias para chegar às datas mineradoras. Com o “caminho novo” do Rio de Janeiro, o

tempo reduzia-se para até 12 dias. Não havia capitania melhor para se chegar às minas

do que a do Rio de Janeiro e, a partir do século XVIII, tanto o ouro a ser exportado

como os escravos importados passavam necessariamente pelo litoral fluminense. Nas

palavras de Zemella (1990, pp. 119-120): “a abertura desse caminho representou uma

verdadeira revolução no sistema de comunicação com as Gerais”.

Quando analisamos a economia mineradora, a análise do grau de mobilidade

social se torna um tanto quanto urgente. Se comparadas aos engenhos açucareiros, as

Gerais apresentavam-se muito mais flexíveis do ponto de vista social. A maneira de

extração do ouro, como vimos anteriormente, abria muito maior espaço para pessoas

com baixa disponibilidade de capitais. O homem médio, portanto, encontrava muito

mais chances de sucesso econômico explorando o ouro de aluvião do que se pensasse

98
Idem, pp. 60-61.
99
“(...) Enquanto o caminho paulista exigia dois meses para ser transposto, e no ‘caminho velho
do Rio de Janeiro’ gastavam-se quarenta e três dias, o ‘caminho novo’ era vencido, (...) em
‘marcha escoteira’, de dez a doze dias.” Ibidem, pp.119-120.
91
em administrar um engenho (o que, na maioria dos casos, mostrava-se quase que

impossível). A própria formação de atividades auxiliares voltadas para o abastecimento

com alimentos e transportes tornava muito maior a presença dos indivíduos de pequenas

posses, os quais passaram a formar, graças à mineração, uma classe média branca mais

robusta.

Não só a formação de uma classe média a partir do modelo extrativo e da

existência de um mercado interno mais sólido deve ser levada em conta. O próprio

regimento de distribuição das datas acabou estimulando a presença do pequeno

lavrador. Interessada na arrecadação volumosa dos quintos, a Coroa disponibilizava, no

início, terras até mesmo para aqueles que não possuíam nenhum escravo 100. É bem

verdade que, com o passar do tempo, mais restrições foram impostas “à medida em que

os trabalhos exigiam maior vulto e, portanto, indivíduos com elevados recursos

materiais” (LUNA, 1981, p.56), como nos mostra o Artigo 5º do Regimento de 19 de

abril de 1702:

(...) se não dará segunda data a pessoa alguma sem ter lavrado a primeira e

estando porém todos os mineiros acomodados e havendo mais terras para

repartir, então se atenderá aos que tiverem mais negros porque tendo mais

dos doze pertencentes à primeira data se fará com eles a repartição na

forma do Capítulo deste regimento dando-se duas braças e meia a cada

negro, e constando também ao guarda mor que cada um dos mineiros tem

100
“E porque é muito prejudicial repartirem-se aos poderosos em cada Ribeiro que se descobre
sua data, ficando por esta causa, muitos pobres sem ela ou sucede ordinariamente por não
poderem lavrar tantas datas venderem os pobres, ou estarem muito tempo por lavrar o que não é
somente em prejuízos dos meus Vassalos, mas também dos meus Quintos, pois podendo-se tirar
logo se dilatam como se não lavrarem as ditas datas, e havendo ficado muitos dos meus
Vassalos sem elas, por evitar esta injustiça (...)”. Artigo 5º do Regimento de abril de 1702. In:
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Notícias das minas de São Paulo e dos sertões da
mesma Capitania. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, p. 199.

92
lavrado, havendo terra para repartir, a repartirá novamente com ele na

forma que fica dito.101

Convém dizer que, por mais que a distribuição das datas ficasse mais restrita, ela não foi

capaz de eliminar o pequeno lavrador em benefício do grande minerador. Mantinha-se,

assim, uma classe média bem consolidada na região.

Um elemento fundamental que caracteriza a complexidade da sociedade

mineradora e que, portanto, esclarece ainda mais a questão da mobilidade é a estrutura

da posse de escravos. Com base nos trabalhos de Francisco V. Luna 102, podemos dizer

que, na média, havia 6,5 escravos por proprietário. O elemento do grande proprietário,

possuidor de enormes massas de escravos, foi uma figura que, embora não inexistente,

não se constituiu como regra pelo menos durante boa parte do ciclo minerador. Luna,

com isso, problematiza o paradigma pradiano ao tornar mais diversificado o quadro da

posse de cativos:

De modo geral, os resultados apresentados, quanto à estrutura de posse de

cativos, demonstram uma sociedade na qual predominavam,

incontestavelmente, os pequenos proprietários; indivíduos possuidores de

escravaria de um, dois ou, no máximo, cinco escravos. [...] Assim, a nosso

ver, em Minas, as grandes lavras devem ter constituído a exceção e não a

regra quanto à organização da estrutura produtiva.103

Não só a estrutura de posse, mas também as relações entre senhores e escravos

formam um quadro muito peculiar na região das minas, quadro esse que era distinto

daquele no Nordeste açucareiro. Embora estivessem juridicamente ligados aos

proprietários, grandes ou pequenos, os cativos tinham muito maior liberdade de ação e

101
Idem, p. 199.
102
Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo: IPE/USP, 1981.
103
LUNA, Francisco V. Idem.
93
atividade nas Gerais. Muitas vezes acabavam exercendo até mesmo um trabalho

remunerado e, com a parcela de ouro que era descoberta, podiam acumular recursos

para comprar a alforria. O mais curioso é que, a partir de Luna, vemos que 20% dos

proprietários eram forros, sendo a maioria inclusive composta por mulheres.

Finalmente, para tornar ainda mais complexa a tessitura social das Gerais, havia

o elemento do faiscador: o pequeno minerador que, por lhe faltarem recursos

necessários até para a compra de um único escravo, empreendia a extração de metais

apenas com suas próprias forças. Corria, portanto, o risco de empobrecer ainda mais, ao

mesmo tempo em que se abria a oportunidade de enriquecimento e consequente

ascensão social. Dentro da historiografia clássica, a figura do faiscador suscitou debates

interessantes. Caio Prado Jr. entende esse elemento como um claro sinal de decadência,

marcando um processo de extinção e declínio irreversível da atividade mineradora:

[...] a mineração, que a partir do século XVIII formará a par da agricultura

entre as grandes atividades da colônia, adotará uma organização que, afora

as distinções de natureza técnica, é idêntica à da agricultura [...]. É ainda a

exploração em larga escala que predomina: grandes unidades, trabalhadas

por escravos. A atividade dos ‘faiscadores’ [...] é, como veremos, resultado

da decomposição do regime econômico e social das minas. Representa um

índice de decadência e extinção gradual da atividade mineradora, e não

constitui em si uma forma orgânica e estável; é a transição para o

aniquilamento.104

Celso Furtado, por sua vez, inverte o mirante e coloca o faiscador como porta de entrada

para a mineração de maiores escalas. De fato, o risco de estagnação e até mesmo

empobrecimento desses “aventureiros” sempre existiu. Mas, dada a chance de

JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo – colônia. São Paulo: Companhia
104

das Letras, 2011, p. 187-188.


94
enriquecimento e consolidação de uma posição como empresário, o faiscador podia

permitir às Gerais uma atividade extrativa de maior porte. Nas palavras do autor:

Se dispunha de recursos, podia organizar uma lavra em escala grande [...].

Se eram reduzidos os seus recursos iniciais, podia limitar sua empresa às

mínimas proporções permitidas pela divisibilidade da mão de obra, isto é,

um escravo. Por último, se seus recursos não lhe permitiam mais que

financiar o próprio sustento durante um período limitado de tempo, podia

trabalhar ele mesmo como faiscador. Se lhe favorecia a sorte, em pouco

tempo ascenderia à posição de empresário. [...] “À medida que se reduzia a

produção, [...] muitos empresários de lavras, com o tempo, se foram

reduzindo a simples faiscadores.105

Para encerrar, é necessário que se discuta se a potencial monetização da

economia e o potencial fluxo circular da renda de fato conseguiram criar raízes

profundas no ciclo do ouro. E de fato eles eram consideráveis, mesmo que, em termos

absolutos, o nível anual de renda nas minas fosse menor do que aquele encontrado na

economia açucareira (Furtado nos aponta uma média de 3,6 milhões de libras nos anos

mais favoráveis). O que poderia contribuir também para uma internalização da renda,

além da existência de atividades auxiliares as quais já citamos, era o baixo coeficiente

de importações: dado o grau de interiorização da atividade extrativista, a importação de

artigos acabava sendo muito mais cara e, portanto, compensava menos do que se

abastecer daquilo que a própria colônia fornecia. O mais importante de tudo isso é que,

uma vez reconhecida a complexidade da estratificação social mineira, podemos concluir

por um menor nível de concentração de renda, o que ampliava ainda mais o potencial de

criação de um fluxo circular a partir da internalização:

105
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 136 e 146
95
Esse conjunto de circunstâncias tornava a região mineira muito mais

propícia ao desenvolvimento de atividades ligadas ao mercado interno do

que havia sido até então a região açucareira. Contudo, o desenvolvimento

endógeno isto é, com base no seu próprio mercado  da região mineira

foi praticamente nulo.106

Essa conclusão desanimadora de Furtado requer uma explicação mais

apropriada. Costuma-se atribuir ao decreto de 1785, outorgado por D. Maria I, a

responsabilidade pelo baixíssimo grau de desenvolvimento endógeno na colônia nos

séculos XVIII e XIX. Furtado descarta essa possibilidade para, ao invés disso, olhar as

implicações do próprio desenvolvimento técnico da metrópole e da vigência do tratado

de Methuen. Portugal, país com grau manufatureiro bem baixo, não foi capaz de

transferir ao Brasil o know-how necessário para a consolidação de indústrias na colônia:

Houvessem chegado ao Brasil imigrantes com alguma experiência

manufatureira, e o mais provável é que as iniciativas surgissem no momento

adequado, desenvolvendo-se uma capacidade de organização e técnica que a

colônia não chegou a conhecer [...]. A primeira condição para que o Brasil

tivesse algum desenvolvimento manufatureiro na segunda metade do século

XVIII teria de ser o próprio desenvolvimento manufatureiro de Portugal.107

E por mais que se tentasse uma política de proteção à indústria nascente na metrópole

(num momento em que a balança comercial se mostrava deficitária), o acordo de

Methuen acabou bloqueando qualquer tentativa nessa direção, dado que a Inglaterra

soube aproveitar a reação dos grupos produtores e exportadores de vinhos a qualquer

ensaio de protecionismo. Soma-se a isso o fato de que a descoberta de ouro no mesmo

período em que o tratado entra em vigência fornece uma base real para a sobrevivência

106
Idem, p. 140.
107
Ibidem, Editora Nacional, 1980, p. 80.
96
de Methuen108. O metal garante um equilíbrio na balança comercial, afluindo quase que

na sua totalidade para as manufaturas inglesas 109. Assim, a atividade mineradora acabou,

no fim das contas, potencializando ainda mais a industrialização britânica, ao mesmo

tempo em que foi responsável por “entorpecer o desenvolvimento manufatureiro da

Metrópole” (FURTADO, 2009, p. 142.).

Uma vez compreendido esse quadro, fica claro que a decadência do ciclo do

ouro foi sucedida por uma lenta involução econômica: a aplicação de capitais reduziu

consideravelmente, a rentabilidade tendeu a zero, a economia monetária praticamente

atrofiou e o grau de subsistência da atividade ficou cada vez maior.

XIII
108
Sem o ouro, era impossível que apenas o vinho fosse capaz de compensar a entrada dos
têxteis ingleses. O grau de déficit comercial chegaria a um nível muito mais crítico,
possibilitando que se mobilizassem interesses que convergissem a uma política fiscal
protecionista, desbancando as intenções dos produtores rurais.
109
A Inglaterra, vale dizer, já havia passado por transformações estruturais importantes, tais
como os enclosures, que lhe permitiram aproveitar e internalizar os ganhos com o tratado de
1703.
97
A crise do Antigo Sistema Colonial

É chegado o momento, após delinear a constituição e o desenvolvimento dos

principais ciclos econômicos subjacentes ao período colonial brasileiro, de compreender

a dinâmica histórica por trás do processo de independência do Brasil. Para estabelecer

um primeiro contato com a problemática, serão de grande valia as conclusões de

Fernando Novais110 sobre a emancipação política da América portuguesa.

Com o objetivo de acompanhar os raciocínios de Novais a respeito desse ponto

nevrálgico da trajetória histórica brasileira, faz-se necessário retomar o conceito,

desenvolvido pelo próprio autor, de Antigo Sistema Colonial. Este foi um elemento

integrante do Ancién Regime (contribuindo para a superação da crise feudal),

conseguindo, inclusive, materializar e dar corpo às ideias gerais que formaram a

estrutura teórica da política econômica mercantilista. O Antigo Sistema Colonial, nesse

sentido, foi importantíssimo na medida em que funcionou, de acordo com o autor, como

principal alavanca da acumulação primitiva de capital. Isso se deu através de

mecanismos específicos: exclusivo metropolitano, tráfico negreiro e o estabelecimento,

nas colônias, do modo de produção escravista. Ganhava forma, assim, aquilo que

Novais chamou de “sentido profundo da colonização”.

As dimensões da independência. In: MOTA, C. G. (org.). 1822: Dimensões. 2.ed. São Paulo:
110

Perspectiva, 1986, pp. 15-26.


98
Essa face111 da acumulação primitiva de capital, contribuindo na gestação do

capitalismo, necessariamente potencializou o desenvolvimento da indústria nos

principais Estados da Europa Ocidental. Tem-se início a negação capitalista ao

mercantilismo e, consequentemente, ao Absolutismo Monárquico. Certamente isso terá

efeitos nas zonas coloniais, as quais não ficarão inertes às transformações econômicas e

políticas pelas quais passava a Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX.

A consolidação de uma economia industrial moderna nas principais potências

europeias, com a burguesia tendo o controle definitivo do poder político, não poderia

mais conviver com o quadro econômico típico das colônias americanas. Na periferia do

capitalismo, o modo de produção escravista, intimamente associado com a estreiteza do

mercado interno, impedia a ampliação das faixas de consumo de bens industrializados.

Um mercado consumidor robusto, algo difícil de se imaginar quando a economia se

assenta na escravidão, garantiria uma maior circulação de mercadorias europeias nas

colônias. Com a solidificação dos mecanismos endógenos de acumulação de capital,

essa estrutura interna, somada aos monopólios comerciais metropolitanos, passa a

constituir um problema para a burguesia dos centros econômicos. Se foram relevantes

para a formação do capitalismo, num contexto em que os meios de acumulação eram

111
Embora Novais coloque os mecanismos subjacentes à colonização como a principal
ferramenta de acumulação primitiva, é necessário enfatizar que outros elementos, internos ao
próprio modo feudal de produção, foram cruciais para a formação do capitalismo. Marx, assim
como outros autores marxistas (tais como M. H. Dobb), dão peso elevado e priorizam as
contradições e transformações subjacentes ao próprio feudalismo. Isso porque são elas que
evidenciam o processo de formação do proletariado moderno e até mesmo a consolidação de
elementos que posteriormente comporiam a burguesia industrial, ou seja, explicam a
constituição dos dois principais organismos do capitalismo, as duas classes que produzem seu
movimento. J. Gorender, outro historiador marxista de contribuição considerável, mostra que o
desenvolvimento do comércio, em que estão inclusos os mecanismos da colonização,
potencializaram o capitalismo naqueles Estados em que o feudalismo já havia passado por
mudanças e decomposições profundas em seu modo de produção. Assim, é importante que se
coloque o Antigo Sistema Colonial como uma face da acumulação primitiva, não
correspondendo à totalidade do processo.
99
fundamentalmente exógenos, passam a constituir entraves para seu desenvolvimento

pleno a nível internacional. É o que nos aponta Novais:

Em suma: a economia colonial mercantil-escravista tem necessariamente um

mercado interno reduzidíssimo. [...] Dada a estreiteza do mercado interno,

não tinha condições de auto estimular-se, ficando ao sabor dos impulsos do

centro dinâmico dominante, isto é, do capitalismo comercial europeu. [Esse

mercado reduzido] [...] responde ao funcionamento do sistema, enquanto as

economias centrais se desenvolvem apenas no nível da acumulação primitiva

de capitais, e a produção se expande no nível artesanal ou mesmo

manufatureiro. Quando porém essa etapa é ultrapassada, e a mecanização

da produção com a Revolução Industrial, potenciando a produtividade de

uma forma rápida e intensa, leva a um crescimento da produção capitalista

num volume e ritmo que passam a exigir no Ultramar mais amplas faixas de

consumo, consumo não só de camadas superiores da sociedade, mas agora

da sociedade como um todo; o que se torna imprescindível é a generalização

das relações mercantis. Então o sistema se compromete e entra em crise.112

A passagem nos mostra como a industrialização a pleno vapor não podia mais

suportar as barreiras coloniais. Todos os elementos constituintes do “sentido profundo

da colonização”, cruciais para o desenvolvimento inicial do capitalismo (na fase que

compreende, como vimos, o mercantilismo e o Ancién Regime, reiteradamente chamada

112
NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial (séculos XVI-XVIII),
5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 100.
100
de “capitalismo comercial” por Novais 113), acabaram criando os mecanismos para a

destruição do próprio sistema colonial.

Em suma, a Europa passava por uma Revolução Industrial decisiva, além de ter

visto a crise generalizada do Antigo Regime com as convulsões sociais de 1640 e 1789

na Inglaterra e na França, respectivamente. Vimos, nos parágrafos anteriores, que o

Antigo Sistema Colonial será negado pelo capitalismo a partir do século XVIII.

Convém, a partir de então, olhar para o que estava ocorrendo especificamente dentro

das colônias. Para o nosso interesse, estaremos restritos ao quadro brasileiro.

A América portuguesa passava, na transição para o século XIX, por um

fenômeno que começou a ser denominado, pela historiografia, de Renascimento

Agrícola. O processo de independência dos EUA, as emancipações na América

espanhola (fatores conjunturais muito enfatizados por Celso Furtado), a Revolução

Industrial e a explosão populacional europeia (elementos estruturais que pesam na

análise de Caio Prado) deram aos produtos agrícolas brasileiros novos mercados e novas

possibilidades de expansão comercial após séculos de estagnação. Era um quadro que

permitia inclusive mecanismos de alavancagem para a posterior produção cafeeira.

Além de uma economia agrícola que parecia superar o quadro de estagnação

produtiva, a política econômica na colônia ganhava nova roupagem. A chegada da corte

ao Rio de Janeiro em 1808 foi acompanhada, pouco tempo depois, duma espécie de
113
Se pensarmos a partir do marxismo, Novais incorre num erro teórico. Nunca existiu esse
chamado “capitalismo comercial”, justificado muitas vezes pela robustez do capital comercial
nos séculos que compreendem o Absolutismo. A existência do capital comercial precede o
capitalismo: não é por acaso que Marx afirma que “o capital é antediluviano, mas o capitalismo
é recente” (O Capital. Boitempo Editorial, 2013). Até mesmo na Antiguidade greco-romana a
vida econômica era regida pelo capital comercial. Nem por isso chamamos esse período da
História de capitalista. O capitalismo é a estrutura econômica regida pelo capital industrial, com
um modo de produção específico que lhe corresponde. O termo torna-se ainda mais
problemático quando vemos que o Estado Absolutista era ainda feudal, dado que a classe
dominante continuava sendo, mutatis mutandis, a dos nobres e que o modo de produção ainda
era, apesar das transformações sofridas ao longo de séculos, caracterizado pela servidão. Sobre
esse tema, convém ler Linhagens do Estado Absolutista, do inglês Perry Anderson.
101
liberalismo que marcou inúmeros decretos de D. João VI. O liberalismo é notado, por

exemplo: na abertura dos portos, nos tratados comerciais com a Inglaterra a partir de

1810, na criação do Banco do Brasil, assim como na revogação do alvará de 1785.

Essa roupagem liberal da qual falamos acima precisa, entretanto, ser

problematizada. Torna-se necessário uma análise das conjunturas específicas que de

fato levaram D. João a assinar medidas desse caráter. No caso da abertura dos portos,

era necessário que Portugal garantisse à Inglaterra, sufocada pelo bloqueio napoleônico,

um mercado para seus artigos industrializados. Abrindo essa janela para a economia

britânica, os Bragança tinham a contrapartida da proteção militar e marítima, por parte

do governo inglês, contra quaisquer ameaças francesas. Celso Furtado nos mostra a

superficialidade desse “liberalismo” quando aponta para a reação da burocracia inglesa

em relação à abertura:

[...] os ingleses que acreditavam menos em Adam Smith do que José da

Silva Lisboa tampouco ficaram muito satisfeitos, conforme se deduz das

palavras de seu representante no Rio, Mr. Hill, a Dom João, a propósito da

medida: ‘isso não deixaria de causar boa impressão na Inglaterra, mas a

satisfação teria sido maior se a admissão dos navios e das manufaturas

britânicos fosse autorizada em condições mais vantajosas do que as

concedidas aos navios e mercadorias de outras nações estrangeiras’.114

Os tratados comerciais entre Portugal e Inglaterra firmados a partir de 1810,

embora sejam liberais, ainda mais se confrontados historicamente com os séculos em

que o exclusivo metropolitano esteve vigente, apresentam, para um olhar mais retido,

um certo ranço colonial inglês. A tarifa preferencial de 15% dada ao artigo britânico não

foi de toda aceita pelos articuladores ingleses. A Inglaterra queria descontos maiores

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
114

nota 76, p. 157.


102
para seus produtos e taxas alfandegárias mais elevadas para seus rivais no comércio

exterior, o que não é uma postura efetivamente liberal, se levarmos a rigor os escritos

dos principais autores da Economia Política Clássica: para a principal economia do

mundo na época, o liberalismo de outros Estados com ela era vantajoso na medida em

que ampliava os mercados para seus produtos; ao mesmo tempo, políticas protecionistas

para seus principais concorrentes eram vistas com bons olhos, exatamente porque

restringia o mercado para os produtos dos mesmos.

A criação do Banco do Brasil, que também se enquadra nessa série de medidas

liberais, precisa ser pormenorizada a partir das suas circunstâncias específicas que

permearam sua efetivação. A chegada da Corte Portuguesa ao Brasil deu luz a um

problema monetário: os 80 mil contos de réis trazidos por D. João na forma de haveres

conflitavam-se com a escassez de numerário na colônia, dado que havia, no Brasil,

cerca de 9 a 10 mil contos de réis. Estava clara a necessidade da fundação de um banco

para atender aos desígnios monetários dos Bragança. Em 1809, tem início a circulação

fiduciária com vistas a estimular os negócios e diminuir, assim, as limitações de

numerário.

Cada vez mais, porém, com as crescentes despesas da Coroa, o Banco do Brasil

passava a exercer a função de cobrir o déficit público real. Desviava-se da possibilidade

de ser um financiador, mediante linhas de crédito, da atividade econômica incipiente na

colônia. A necessidade de garantir, por outro lado, que a moeda corrente estivesse

lastreada exigia uma regulação monetária. Nota-se, nesse sentido, um caráter ambíguo

nas diretrizes do Banco do Brasil. Ambiguidade essa que é marcada, na realidade, por

conflitos entre a expansão fiscal e a contração monetária. Rosado Gambi esclarece ainda

mais o problema:

103
A ‘pressão’ do governo para que o banco lhe fornecesse recursos

comprometia seu papel regulador do valor da moeda. [...] Quer dizer, os

recursos que entravam no banco serviam de lastro para a emissão de suas

notas que, por sua vez serviam para financiar as despesas estatais. [...] Os

estatutos do banco não previam nenhum limite para a emissão dessas notas e

isso, de certa maneira, deixava espaço livre para o aumento do gasto do

Estado. As políticas fiscal e monetária do governo eram conflitantes.

Premido pela realidade, o governo adotava uma política fiscal expansionista

financiada, em boa medida, com a ajuda do Banco do Brasil. Sem querer

abrir mão da ilusão do lastro metálico para o troco das notas bancárias, o

mesmo governo adotava uma política monetária restritiva. Mas a realidade

sempre prevalecia [...].115

Toda a problematização sobre o “liberalismo” das medidas adotadas por D. João

VI assim que a Coroa chegou ao Brasil nos levam ao que Furtado chamou de “falsa

euforia” no início do século XIX. A realidade brasileira era outra: na passagem para a

independência, havia a herança de dívidas contraídas por Portugal com a Inglaterra; o

câmbio sofria pesada desvalorização por conta dos déficits na balança comercial (era

impossível, mesmo que se tentasse uma proteção cambial, competir com os artigos

industrializados ingleses, muito mais qualificados), desestimulando qualquer tentativa

de importação de bens de capital com vistas a estimular a industrialização no país; os

conflitos militares no início de nossa história independente forçavam uma expansão

fiscal constante, impedindo a efetivação de uma política monetária contracionista. O

resultado necessariamente era o da inflação, pressionando negativamente a balança

comercial, desvalorizando ainda mais o câmbio. Esse círculo vicioso, para Furtado, só

se resolveria com a ascensão da produção cafeeira, a qual seria responsável por

superávits comerciais importantes. Outros autores, porém, como Simonsen e Caio

GAMBI, Thiago F. R. O banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro (1853-


115

1866). São Paulo: Alameda, 2015, p. 54.


104
Prado, sobrelevam a ausência de uma proteção tarifária desde o período joanino. O

“não-protecionismo” do período, para esses historiadores, impediu o fomento à

industrialização nacional e, consequentemente, barrou a modernização econômica do

Brasil. No momento em que o protecionismo poderia ser um elemento favorável à ex-

colônia, Simonsen afirmou que “tornamo-nos, no entanto, campeões de um liberalismo

econômico na América”.

105
XIV

Os interesses “internos”: o parecer de Rodrigues de Brito

Celso Furtado, ao analisar a situação da economia brasileira na transição do

século XVIII para o XIX, nos mostra um quadro pouco animador: o ocaso da mineração

veio acompanhado de um declínio no nível de renda agregada 116. O problema tornava-se

ainda mais grave na medida em que não havia, na colônia, uma base técnica, ou melhor,

um know-how que permitisse um empreendimento industrial robusto no Brasil.

Tornava-se necessário, com isso, importar tecnologia avançada se o intuito era

de fato abrir caminhos para a industrialização da América portuguesa. A cobertura das

despesas com importação, por sua vez, deveria ser feita com o aumento nas

exportações117, impulsionando a entrada de moeda forte no Brasil. E aqui é onde reside

o problema para Furtado. Nas primeiras décadas do século retrasado, os preços de

exportação diminuíram em 40%, sendo que os gastos com importação continuaram


116
Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX. In.: FURTADO,
Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980, pp. 106-110.
117
Furtado de fato enfatiza consideravelmente a alta das exportações como condição necessária
à industrialização. Ele mesmo, porém, afirma ser essa uma condição não suficiente para a
modernização econômica: a burguesia rural escravista como classe dominante, tendo em suas
mãos os rumos da colônia e, posteriormente, do Brasil Independente, funcionava como grande
barreira para empreendimentos industriais de maior escala. Nas palavras do próprio autor:
“Mesmo deixando de lado a consideração de que uma política inteligente de industrialização
seria impraticável num país dirigido por uma classe de grandes senhores agrícolas escravistas, é
necessário reconhecer que a primeira condição para o êxito daquela política teria sido uma firme
e ampla expansão do setor exportador”. In.: Idem, p. 107.
106
estáveis ao longo do período. O setor exportador cresceu apenas 0,8% (sustentado em

boa medida pela produção cafeeira no Vale do Paraíba), não conseguindo acompanhar o

avanço populacional de 1,3%. Não bastasse isso, os mercados para artigos

industrializados eram muito pequenos no Brasil: praticamente não se absorviam os

produtos da siderurgia, ao passo que os têxteis eram facilmente vencidos na competição

com os de origem britânica. Eram diminutos, nesse sentido, os incentivos à

modernização econômica.

Os tecidos ingleses, de maior qualidade, tinham outro fator que lhes dava

vantagem na competição com artigos do mesmo tipo feitos no Brasil, como vimos

acima. A Revolução Industrial britânica é marcada por um avanço tecnológico

profundo. As transformações positivas na produtividade jogaram para baixo os custos

de produção, diminuindo o preço pelo qual a Inglaterra exportava seus têxteis, os quais

eram os mais competitivos do mundo naquela época. É esse quadro de preços no

mercado externo que faz com que Furtado conclua pela pequena eficiência, em termos

de consolidar a industrialização, de uma proteção tarifária no Brasil. De acordo com o

autor:

A baixa de preços foi de tal ordem que se tornava praticamente impossível

defender qualquer indústria local por meio de tarifas. Houvera sido

necessário estabelecer cotas de importação. Cabe reconhecer, entretanto,

que dificultar a entrada no país de um produto cujo preço apresentava tão

grande declínio seria reduzir substancialmente a renda real numa etapa em

que esta atravessava grandes dificuldades.118

Se somarmos esse quadro desanimador à crise financeira do início de nossa

emancipação, da qual tratamos anteriormente, chegamos à conclusão furtadiana de que

o Brasil, na primeira metade do século XIX, atravessou um processo de involução

118
FURTADO, Celso. Ibidem, p. 106.
107
econômica, marcada pelo aumento do setor de subsistência, sem modernização

produtiva.

Para contrapor as análises de Furtado a respeito da economia brasileira nos

primeiros cinquenta anos do século retrasado, será de grande valia os estudos de Mircea

Buescu119 sobre o mesmo período de nossa história.

Buescu faz um resgate histórico do período levando em conta não só o quadro

econômico, mas enfatizando também os aspectos sociais, políticos, culturais e,

principalmente, ideológicos. Para este, Furtado acaba minimizando a importância do

período: apesar de um sensível declínio na renda, a primeira metade do século XIX

legou bases importantes que geraram frutos para o desenvolvimento do Brasil nos anos

subsequentes. É nesse momento que aparecem novas variáveis na sociedade brasileira:

um sistema educacional renovado, novos quadros jurídico-institucionais, a abolição do

tráfico negreiro, o surto da produção cafeeira, assim como o crescimento de uma classe

média antes muito incipiente.

Um fator que chamou mais a atenção de Buescu foi a maior difusão, a partir dos

primeiros anos do século XIX, do ideário iluminista na então colônia americana

portuguesa. Esse elemento está intimamente associado ao surgimento de uma elite

intelectual no Brasil. Para esta, ficava cada vez mais claro que a Coroa Portuguesa

funcionava como um entrave político-administrativo, dificultando a fluidez de seus

negócios e a ampliação de seus lucros. Crescia a convicção de que era momento de

divorciar os cidadãos do Estado, identificado, por sua vez, com a metrópole espoliadora.

Buescu capta esse novo espírito que permeia a elite intelectual na colônia a partir

dos escritos de Rodrigues de Brito, um dos homens integrantes da burocracia real

Rodrigues de Brito: um libelo contra o colonialismo. In.: BUESCU, M. História econômica


119

do Brasil: pesquisas e análises. Rio de Janeiro: APEC, 1970.


108
lusitana. Inspirado nos textos formadores da Economia Política Clássica, Brito avança

contra as medidas restritivas da Metrópole com relação à produção agrícola no Brasil.

Afirma ser necessário que se garanta liberdade aos produtores para empregarem

trabalho e capital da maneira mais vantajosa, assim como liberdade para que eles

escolham os melhores compradores, eliminando monopsônios, permitindo um aumento

no nível de preços dos gêneros agrícolas. Nas palavras de Brito:

Tolher aos lavradores a liberdade de vender os seus gêneros no lugar em

que têm maior valor, é o mesmo que lhes roubar uma porção desse valor;

isto é privá-los das riquezas que eles fizeram nascer com o suor do seu rosto

e emprego dos seus fundos.120

Percebe-se no burocrata português as influências de autores como Smith, Ricardo, Say e

Sismondi. Todos esses economistas em alguma medida contribuíram para a formação

do pensamento liberal clássico, que foi hegemônico na Economia Política até meados

do século XIX. Isso é passível de comprovação até mesmo nas palavras de Brito a

respeito do excesso de fiscalismo português no seu território americano:

Toda essa massa de encargos, de qualquer natureza que sejam, equivale

quanto aos efeitos a um roubo que se fizesse aos miseráveis vivandeiros.

Porque tanto importa ao farinheiro, por exemplo, que traz um barco de

farinha no valor de cem moedas, que depois de vendido por esse preço os

ladrões lhe roubem dez, como ver-se obrigado por conta dos regulamentos a

liquidar noventa unicamente.121

Os ataques de Brito ao fiscalismo e às restrições comerciais denotam, na visão

de Buescu, um gérmen, ou melhor, uma semente de um espírito que posteriormente

viria a ganhar solidez nos anos de nossa emancipação. O autor, porém, enfatiza que sua

postura liberal na realidade serve mais como pano de fundo para uma luta econômica

120
Idem, 1970.
121
Ibidem, 1970.
109
contra as restrições reais impostas à colônia. O burocrata português não pensava em

abolir o absolutismo, clássico no pensamento francês iluminista. Era necessário que se

abrisse mão do mercantilismo na política metropolitana com relação a suas possessões.

A partir dessa premissa, Brito estaria de fato absorvido por um pensamento

transformador, ou era aliado de uma espécie de despotismo ilustrado que pudesse dar

nova feição às relações entre Brasil e Portugal? A questão acaba nos remetendo às

discussões historiográficas sobre o caráter desse absolutismo esclarecido. Veja o que

nos apontam José Luís Cardoso e Alexandre Mendes Cunha:

[...] diversos historiadores tenderam a perceber o despotismo esclarecido

apenas como um instrumento de adaptação, e não de transformação, de

estruturas sociais tradicionais; ou ainda, na frase sarcástica de Perry

Anderson, de que se trata mais propriamente de uma “nova carapaça

política de uma nobreza atemorizada”.122

Partindo desse pressuposto, Brito teria um caráter transformador limitado.

Transformador porque de fato advoga pelo fim das restrições comerciais e dos

monopólios concernentes ao exclusivo metropolitano. Limitado na medida em que todo

seu discurso liberal não avança para a luta contra a monarquia absolutista. A intenção

estava em dar uma maior racionalidade econômica à colônia (e posteriormente à nação

independente), o que poderia inclusive amortecer tensões entre a massa escrava, à qual

Brito sequer faz referência no seu discurso liberal, a aristocracia rural brasileira e os

comerciantes lusitanos.

Outros historiadores, como Karla Maria Silva, não enxergam todas essas

limitações no pensamento transformador de homens como Rodrigues de Brito. Na

realidade, a nova mentalidade liberal, que via o desenvolvimento pleno das metrópoles e

CARDOSO, José L. & CUNHA, Alexandre M. Discurso econômico e política colonial no


122

Império Luso-Brasileiro (1750-1808). Tempo 17 (31): 65-88, 2011, p. 71.


110
das colônias intimamente associado a uma maior liberdade econômica, abrindo novas

possibilidades de política econômica que não fossem necessariamente mercantilistas,

era por si só uma grande amostra de renovação ideológica na elite intelectual. Nas

palavras da própria autora:

[...] surgiram, em Portugal e no Brasil, grupos de pensadores ilustres e

homens públicos que passaram a defender a ideia de que tanto o

desenvolvimento da metrópole quanto o da colônia estaria diretamente

ligado à maior liberdade nas relações sociais, de produção e

comercialização nos dois lados do Atlântico. As renhidas lutas políticas e

teóricas acerca da necessidade de liberar ou intervir, travadas além e

aquém-mar, descortinaram outras possibilidades político-econômicas e

apresentaram novos horizontes para um e outro lado [...]. Superando a ideia

de que as medidas adotadas por esses quadros da administração portuguesa

foram efetivadas com o intuito de contornar possíveis tensões com a colônia

e prevenir uma iminente revolução, poderíamos compreendê-las como

expressão da tentativa de integrar o desenvolvimento colonial e o

metropolitano, sob a influência do espírito de renovação derivado do

pensamento ilustrado e dos princípios liberais.123

123
SILVA, Karla M. Os escritos de João Rodrigues de Brito (1807): um retrato das novas
ideias no mundo íbero-americano. Intellèctus XV (2): 43-65, 2016. pp. 44-48.
111
XV

A presença inglesa no Brasil

As relações diplomáticas entre Portugal e Inglaterra têm origens na Dinastia

Afonsina, período de formação do Estado Lusitano. Já em 1386, os dois países

assinaram tratados que englobavam a proteção militar portuguesa pela Inglaterra em

troca de concessões comerciais do reino ibérico ao Estado britânico 124. A partir do

século XVII, porém, o enfraquecimento econômico e militar de Portugal (consequência

principal dos 60 anos de vigência da União Ibérica) tornava-o cada vez mais dependente

da potência inglesa. Era necessário à Coroa Lusitana garantir o seu quinhão colonial na

América e, para isso, uma aliança. A partir de então, os tratados entre os dois países

cada vez consolidavam a submissão portuguesa às deliberações inglesas. Um exemplo

prático é o acordo selado em 1642, descrito com clareza por Alan K. Manchester:

Pelas 21 cláusulas do tratado, a Inglaterra garantia tolerância religiosa a

seus súditos residentes em Portugal  que em sua maioria eram

negociantes  e proteção contra os principais danos resultantes da ação da

Inquisição; o status de nação mais favorecida comercialmente; uma

jurisdição territorial limitada, mas efetiva, subordinada a seu próprio

cônsul, e ainda a imunidade das leis portuguesas para os súditos ingleses.

[...] Deveriam ser indicados comissários para tratar das concessões aos

ingleses no comércio brasileiro, o que representou a primeira batida formal

dos ingleses à porta da América do Sul portuguesa. Procurava-se, em vão,


124
“Em Londres [...] foi negociado e assinado um tratado entre D. João, Mestre de Avis, e o rei
Ricardo II. [...] Essencialmente, a Inglaterra comprometeu-se a ir em defesa de Portugal,
assegurando, em contrapartida, privilégios comerciais no porto de Lisboa. [...] Foi acordado
também o casamento entre Filipa, filha mais velha do duque [de Lencastre, tio do rei inglês], e o
Mestre de Avis [...].” PAGE, Martin. Portugal e a revolução global: como um dos menores
países do mundo mudou a nossa história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 114-115.
112
uma cláusula econômica em benefício dos portugueses. Tudo o que estes

conseguiram foi o reconhecimento de sua independência e a amizade da

Inglaterra, o que não era uma mercadoria muito estável em 1642.125

Os inúmeros tratados assinados entre Portugal e Inglaterra durante o século

XVII, como esse de 1642, são, para Manchester, as raízes da dominação diplomática e

comercial deste país sobre aquele126. O autor, nesse sentido, desbanca a tese de que foi a

partir de 1703, com o Tratado de Methuen, que o reino ibérico passou a ser um vassalo

comercial da Inglaterra. A subjugação, na realidade, atinge um ponto ótimo nesse

momento, mas tem sementes nos séculos passados127.

É bem verdade, porém, que, na segunda metade do século XVIII, Portugal

pretendia alcançar maior grau de autonomia em relação à Inglaterra. Um exemplo

importante é o tratado de 1793: no contexto do conflito entre França e Inglaterra,

Portugal deveria comprometer-se a fechar seus portos para navios de guerra e corsários

franceses; permitia, por outro lado, a entrada ininterrupta de embarcações inglesas, dado

que o acordo afirmava que navios britânicos e lusitanos deveriam ser considerados do

mesmo país. Vale dizer que esse tratado reafirmava o que já havia sido estabelecido

entre os dois países no século XVII. Era a reafirmação, portanto, da “soberania” inglesa

sobre o pequeno reino ibérico. Ainda nas palavras de Manchester, “o pequeno tratado

de seis artigos profetizava claramente a luta entre Napoleão e a Inglaterra pelo

controle dos portos portugueses, cuja importância residia no seu valor estratégico e

comercial” (MANCHESTER, 1973, p. 60). D. João, por sua vez, apesar de firmar o

125
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973, p.
20.
126
Idem, p. 32.
127
Cf.: “Ao longo do século XVIII, a política externa portuguesa teve como sua chave mestra a
aliança inglesa, tal como fora plasmada pelos tratados de 1642, 1654 e 1661, completados, no
campo econômico, pelo de Methuen, em 1703.” ALEXANDRE, Valentim. A carta régia de
1808 e os tratados de 1810. In.: OLIVEIRA, L. V. de & RICUPERO, R. (org.). A abertura dos
portos. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007, p. 101.
113
acordo, hesitava em obedecê-lo, na suposta tentativa de estabelecer uma política

portuguesa de neutralidade no continente europeu.

A neutralidade, todavia, não se concretiza em função das inflexões geopolíticas

decisivas nos primeiros anos do século XIX europeu. O bloqueio continental

napoleônico deixou Portugal num verdadeiro beco sem saída: aceitando as condições

francesas, comprometia sua aliança vital com a Inglaterra; negando-as, corria o sério

risco de ter seu território invadido pelas tropas do Imperador francês. A solução

encontrada por D. João, como sabemos, foi transferir a Coroa para o principal

sustentáculo português: o Brasil. Pressionado pela Inglaterra, interessada no mercado

colonial brasileiro (com vistas a evitar o sufocamento em virtude do bloqueio

continental), em 1808 a Corte parte para o Rio de Janeiro, escoltada pelas tropas

britânicas.

A chegada dos Bragança às terras sul-americanas data a transferência da

influência econômica britânica de Portugal para o Brasil. O primeiro exemplo mais

claro dessa inflexão é a abertura dos portos: era o fim do exclusivo metropolitano, com

a eliminação do intermediário português nas negociações entre produtores coloniais e

compradores estrangeiros. Sem o entreposto lusitano, naturalmente houve uma queda

nos preços dos artigos estrangeiros no Brasil. Outro aspecto que merece atenção quando

se discute a abertura dos portos é que a possessão portuguesa na América passava a ser,

num contexto de bloqueio comercial na Europa, o único mercado disponível para os

industrializados ingleses. O resultado final foi um excesso de oferta das mercadorias

britânicas no território brasileiro. Como bem notou Olga Pantaleão, a maioria dos

produtos vindos da Inglaterra não foram imediatamente absorvidos pelo mercado

consumidor brasileiro. De acordo com a autora:

114
o abarrotamento do mercado [...] tornou difícil o escoamento das

mercadorias. Isso refletiu-se imediatamente nos preços dos produtos. Houve

uma baixa grande de preços, agravada ainda pela pressa de alguns

indivíduos em vender rapidamente sua mercadoria. Assim, boa cutelaria foi

vendida por metade do preço corrente na Inglaterra; chapéus para homens

de 26 sh. venderam-se a 4 sh.; meias de algodão de 7 sh. 6 d. caíram para 4

sh. 6 d.128

A abertura comercial também evidenciou outros problemas estruturais da

economia brasileira, os quais ajudam ainda mais a compreender esse abarrotamento do

mercado notado por Pantaleão. Os portos coloniais não conseguiam acomodar todos os

navios lotados de mercadoria, sofrendo frequentes congestionamentos. Os armazéns não

conseguiam comportar todo o volume de bens trazidos pelos mercadores ingleses.

Criavam-se assim, dificuldades para o comércio em larga-escala 129. A autora nos mostra

que os próprios tratados comerciais de 1810, imbuídos de um discurso liberal inclusive

por parte de D. João130, buscaram até mesmo aprimorar a infraestrutura da colônia nesse

momento novo para sua economia.

Os mesmos tratados, porém, ainda segundo Pantaleão, deram uma condição

extremamente vantajosa para o artigo inglês. Os descontos alfandegários, que

diminuíam ainda mais o preço do produto britânico de melhor qualidade, impediam

qualquer concorrência com os mercadores ingleses. O efeito mais marcante desses

128
PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa no Brasil. In.: HOLANDA, S. B. de (org.).
História Geral da Civilização Brasileira. 6.ed. São Paulo: DIFEL, 1985, vol. 3, p. 76.
129
A própria Pantaleão nos mostra que os artigos ingleses, uma vez passados pela alfândega,
num moroso trajeto desde o cais, eram jogados todos juntos e misturados, comercializados nas
próprias ruas. É mais uma amostra muito clara da enorme precariedade estrutural da economia
colonial, incapaz, na época, de se adaptar a uma mudança econômica daquela magnitude.
130
Cf.: “[...] para criar um Império nascente, fui servido adotar os princípios mais demonstrados
de sã economia política, quais o da liberdade e franqueza do comércio, o da diminuição dos
direitos das Alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, e de maneira que promovendo-se o
comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar o melhor consumo para os seus produtos, e
que daí resultasse o maior adiantamento na geral cultura, [...].” (Discurso de D. João para o
clero, a nobreza e o povo, escrito em 07 de março de 1810).
115
acordos comerciais, de acordo com a autora, foi que “tal concessão [...] impediu o

desenvolvimento da indústria no Brasil, pois seus produtos não podiam concorrer com

as mercadorias inglesas vendidas a preços muito mais baixos” (PANTALEÃO, 1985).

Novamente, os resultados efetivos dos tratados de 1810 apontam para o caráter limitado

do liberalismo neles presente, evidenciando o ranço mercantilista inglês, como dissemos

anteriormente.

Em suma, a abertura dos portos em 1808 e o estabelecimento dos tratados de

1810, apesar de todas as vicissitudes a eles relacionadas, caracterizam a importância que

passou a ter o Brasil para a economia inglesa. Uma importância maior do que para o

combalido reino português. O consumo brasileiro absorvia 25% a mais dos artigos

ingleses do que toda a Ásia. É bem verdade que isso foi realidade num contexto de

bloqueio continental, o qual restringia as possibilidades de comércio da Inglaterra com

outras regiões do globo. Com a queda de Napoleão, cada vez mais diminuía a relevância

brasileira para os ingleses. É o que nos mostra Manchester:

Uma comparação das exportações britânicas para vários mercados

estrangeiros demonstra a importância do comércio brasileiro para a

Inglaterra. Em 1812, a América portuguesa recebia 25% a mais de

mercadorias inglesas do que toda a Ásia, ½ do que recebiam os Estados

Unidos e as Índias Ocidentais Britânicas, e mais de 4/5 do total enviado

para a América do Sul. [...] A paz mundial em 1815, com mercados sedentos

subitamente abertos aos exportadores britânicos, reduziu a importância da

América portuguesa [...].131

Após a Independência em 1822, acontece a consolidação da influência inglesa

sobre o Brasil. Os tratados de 1827 entre o novo Estado e a potência britânica

concretizam exatamente isso. Os privilégios dos comerciantes ingleses são mantidos e a

131
MANCHESTER, Alan K. Op. cit., pp. 94-95.
116
industrialização continua atravancada. Nem mesmo o “tarifaço” de Alves Branco em

1844, que acabou com a tarifa de importação de 15% para a mercadoria britânica, foi

capaz de eliminar por completo a submissão brasileira aos interesses da Inglaterra. Para

Pantaleão, “o século XIX, sobretudo em sua primeira metade, foi assim, no Brasil, o

século inglês por excelência” (PANTALEÃO, 1985).

XVI

117
Emancipação Política I

O processo de independência brasileira, rompendo definitivamente os laços

coloniais com Portugal, é motivo de estudos históricos desde o século XIX. Emília

Viotti da Costa (importante pesquisadora e professora do Departamento de História na

FFLCH-USP entre 1964 e 1969), discutindo sobre esse interesse da historiografia pela

emancipação, emitiu uma frase provocadora: “a emancipação política do Brasil é um

dos assuntos mais estudados pela historiografia brasileira e, no entanto, um dos menos

conhecidos” (COSTA, 1981, p. 64). Os motivos dessa crítica, para a autora, residem no

fato de que nossos historiadores clássicos do século retrasado embasaram-se numa

análise meramente documental, de feitos políticos individuais, sem uma compreensão

de um pano de fundo econômico e social mais complexo. A historiografia teria muito a

percorrer ainda se quisesse ter um entendimento maior das questões pertinentes à

independência do Brasil. Nas palavras de Lúcia M. Bastos P. das Neves:

Se o tema da independência tem sido recorrente em estudos historiográficos,

não está, contudo, esgotado, pois ainda suscita opiniões diversas,

demonstrando que fatos e personagens merecem estudo mais minucioso;

visões cristalizadas necessitam de novo olhar; e informações a respeito das

diversas partes que constituíam o território, naquela época, precisam ser

coligidas para conhecimento mais denso desse período de constituição de

um país chamado Brasil. Refletir sobre o processo da emancipação política

e sobre a construção do Império do Brasil significa embrenhar-se em

múltiplas descrições e interpretações que tentam, ao longo de quase dois

séculos, explicar movimentos de continuidades e de rupturas no pacto

118
outrora estabelecido entre as partes da América portuguesa e sua

metrópole.132

Buscando uma análise que supere as limitações historiográficas enunciadas

acima, Viotti tenta traçar elementos que formam esse pano de fundo econômico e social

no qual a independência tomará forma. Nesse sentido, todos eles se encaixam, de

alguma maneira, na crise do Antigo Sistema Colonial. A Revolução Industrial, marcada

pela consolidação da máquina no processo produtivo, garantiu a existência de

mecanismos endógenos de acumulação de capital133. Não era mais conveniente, a partir

daí, a manutenção de privilégios e monopólios comerciais, regentes das relações

Portugal-Brasil ao longo de três séculos. Eles passaram a funcionar como barreiras ao

pleno desenvolvimento internacional do capitalismo. O exclusivo metropolitano, um

dos elementos marcantes na acumulação primitiva, acabou sendo desbancado pelo

próprio resultado desse processo histórico. É importante ressaltar que a negação aos

monopólios não atingiu, num primeiro momento, a estrutura produtiva dentro da

colônia: o modo escravista de produção continuou vigorando no Brasil até 1888, quando

definitivamente não se comportava mais com a economia moderna.

Não só os monopólios e as restrições comerciais tornaram-se incompatíveis com

o modo capitalista de produção, como também havia sido rompida a comunhão de

interesses entre o produtor agrícola colonial, a Coroa e os comerciantes lusos. Esse

aspecto aponta para a complexa e gradual tomada de consciência passada pela elite

colonial brasileira. Cada vez mais esta se aproximava do ideário liberal. É importante,

porém, que se questione até que ponto o Liberalismo foi absorvido pela burguesia rural

132
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Estado e política na independência In: GRINBERG, K. &
SALLES, R. (org.). O Brasil Imperial – Volume I – 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009, p. 97
133
A consolidação desses mecanismos endógenos (a valorização do valor mediante criação e
reprodução constante de mais-valia) deu à esfera da produção um caráter definitivamente
capitalista.
119
do Brasil. De cunho notadamente anticolonialista, o que de fato ocorreu, de acordo com

Emília Viotti e outros autores mais recentes, foi uma “filtragem” desse ideário burguês

europeu pela nossa elite rural. De acordo com Kenneth Maxwell:

A tradição histórica anglo-americana ainda tende a presumir que o

Iluminismo seja sinônimo de liberdade, em especial as liberdades postas no

relicário da Constituição dos Estados Unidos e da Declaração dos Direitos

Humanos, direitos que têm como objetivo fundamental proteger o indivíduo

contra o Estado. [...] Mas essa visão nem sempre se sustenta quando

examinamos a periferia europeia. Aqui [...] o Iluminismo casou-se mais

vezes com o absolutismo do que com o constitucionalismo. Aqui, o século

XVIII está menos caracterizado pelo indivíduo, que busca a proteção do

Estado, do que pelo Estado, que busca a proteção dos indivíduos muito

poderosos.134

Para melhor compreender as intenções liberais no Brasil e o caráter limitado

dessas no contexto emancipacionista, convém analisar três movimentos importantes

ocorridos no Brasil num período próximo ao de nossa independência: a Inconfidência

Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817). Em

todos eles, já é possível adiantar, a liderança coube à elite econômica da respectiva

província.

Nas Gerais, a crítica ao fiscalismo régio, cada vez mais pesado num contexto de

declínio da mineração, assim como a repulsa às intervenções estatais na atividade

comercial, ganhavam cada vez mais a forma do liberalismo e do iluminismo americano.

Como nos mostra João Pinto Furtado:

Em 1788-9, a crítica ao sistema tributário e de poder poderia se apresentar

sob nova terminologia, com roupagem mais propriamente anticolonial ou

MAXWELL, K. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


134

1996, p. 171-172.
120
iluminista, conforme se depreende dos depoimentos de alguns dos

inconfidentes [...]. O conteúdo do movimento adviria de uma síntese que

bebe de uma tradição insurgente que já havia, em certo sentido, demarcado

o profundo descontentamento dos colonos, ricos e pobres, contra os excessos

fiscais da Coroa, sobretudo no que se refere a novos lançamentos

tributários.135

Os questionamentos, entretanto, não se dirigiram à estrutura produtiva em nenhum

momento. O modo escravista de produção poderia, para os inconfidentes, alinhar-se

muito bem com seus interesses anticolonialistas. Não é de se estranhar, uma vez que a

maioria dos líderes do movimento, membros das castas mais altas da sociedade mineira,

eram donos de larga quantidade de escravos. Para citar um exemplo: do total do

patrimônio de Alvarenga Peixoto, 14,33% correspondia à posse de cativos136.

Quando analisamos os acontecimentos na Bahia, por sua vez, vemos que, ao

contrário do que ocorreu nas Gerais, a participação social foi muito mais alargada. Até

mesmo elementos escravos estavam presentes num movimento que, ainda assim, era

liderado pelas elites provinciais. Dialeticamente, a própria composição social da

Conjura Baiana colocava em xeque seu sucesso. De fato, a viabilização de uma proposta

fundada na luta contra a metrópole portuguesa exigia uma amplitude social maior nas

reivindicações. A sua realização, entretanto, arriscava a estrutura produtiva e econômica

da colônia (uma vez que havia, a partir de então, a possibilidade incômoda de uma

tomada de poder político e econômico pelas massas), da qual as lideranças do

movimento tiravam enorme proveito. Subentende-se que a Conjura era dotada, no seu

núcleo, de uma interessante contradição que impedia o seu próprio sucesso. Nas

palavras de István Jancsó:

135
FURTADO, João P. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência
Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 223.
136
Idem, 2002.
121
A sua fragilidade resulta daí, pois era por demais evidente [...] que a

viabilização da proposta, na sua inteireza, pressupunha a adesão de

segmentos sociais tidos e mantidos à margem da vida política (povo

mecânico, plebe urbana, massa de escravos) o que, na prática, tendia a

inviabilizá-la, incompatível que era com os interesses de qualquer setor das

elites coloniais, cuja adesão era reconhecida, e como tal anunciada,

condição necessária de sucesso. [...] Ainda que percebessem que a

ampliação de sua autonomia política era de seu interesse, as elites regionais,

na América portuguesa primeiro, e no Império brasileiro, posteriormente,

revelaram-se incapazes de se erigir em vanguardas de alianças de classe em

escala regional, na medida em que os seus interesses não apresentavam

pontos de intersecção com aqueles da grande maioria da população.137

A Revolução Pernambucana, assim como foi na Bahia, também contou com

importante participação popular. Diferente do caso de 1798, porém, as elites souberam

usar a revolta das massas para benefício próprio. Estas não ultrapassaram o limite

estreito a elas imposto no movimento, fazendo-se de tudo para que não tivessem acesso

à difusão do ideário liberal que percorria o pensamento das elites. Fugindo do controle

da classe dominante pernambucana, os setores populares poderiam estender os

parâmetros das agitações sociais, comprometendo os interesses do setor dirigente, os

quais residiam numa maior liberdade administrativa e no fim das restrições comerciais e

dos monopólios. Como nos diz Emília Viotti:

Para os despossuídos, a revolução implicava antes de mais nada a

subversão da ordem, enquanto para os privilegiados, a condição necessária

da revolução era a preservação da ordem, que garantia seus privilégios.[...]

O temor da população culta e ilustrada diante da perspectiva de agitação

das massas explica porque a ideia de realizar a Independência com o apoio

do príncipe pareceria tão sedutora: permitiria emancipar a nação do jugo

JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São
137

Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996, p. 212.


122
metropolitano sem que para isso fosse necessário recorrer à rebelião

popular.138

A discussão do caráter específico de cada um desses movimentos nos dá uma

boa evidência de como o liberalismo foi muito bem “filtrado” por nossa elite ruralista.

Isso fica ainda mais claro quando Emília Viotti nos mostra que era muito corrente na

articulação política brasileira a ideia de uma monarquia dual. Às vésperas da definitiva

emancipação, argumentava-se que era possível manter Brasil e Portugal sob uma mesma

soberania política (no caso, sob o jugo dos Bragança), desde que tivessem liberdade

administrativa e, o mais importante, garantia do fim das restrições comerciais e dos

monopólios. A proposta, como veremos logo mais, não se efetivou. Mesmo assim, é

possível, com isso, ir mais além na análise das limitações do “liberalismo brasileiro”.

Na absorção do pensamento iluminista pela elite intelectual colonial, o elemento

essencialmente político foi, grosso modo, renegado. Não interessava, para uma classe

cuja sobrevivência dependia do modo escravista de produção, que as massas tivessem

contato com o discurso de liberté, egalité, fraternité. O discurso e as reivindicações

fecharam-se ao caráter econômico: bastava que se quebrassem os laços mercantilistas

entre Portugal e Brasil. Mais uma vez Viotti é assertiva ao afirmar que “para esta

aristocracia rural, a escravidão constituía o limite do liberalismo no Brasil” (COSTA,

1981, p. 92). Pode-se inclusive questionar até que ponto a independência brasileira foi

de fato um processo revolucionário. É o que faz Lúcia M. Bastos P. das Neves:

O processo de independência do Brasil, portanto, não foi uma revolução,

nem produto de uma consciência nacional forjada por misteriosas forças

anônimas. Ao contrário, envolveu apenas um público reduzido, formado

pelos membros das elites e por um pequeno número de homens livres, com

COSTA, Emília V. da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: MOTA,
138

Carlos Guilherme (org.) Brasil em perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1981, p. 98-99.
123
acesso mais ou menos direto à cultura escrita em que eram veiculados os

principais debates.139

Retomando a discussão da monarquia dual em si, sua efetivação esbarrava nos

interesses antagônicos entre as elites portuguesa e brasileira. Esta, como vimos, exigia a

liberdade comercial e produtiva. O exclusivo metropolitano não podia mais ser uma

realidade para nossa burguesia rural. As cortes de Lisboa, por sua vez, objetivavam a

tomada do poder político (com o fim do despotismo dos Bragança a partir da formação

de uma monarquia constitucional), para então reestabelecer a coerção política e

econômica sobre o Brasil, reafirmando as restrições e os monopólios 140. Essas intenções

díspares tentaram ser acomodadas pela política liberal de D. João enquanto esteve no

Brasil. Com uma mão favorecia os brasileiros, eliminando o monopólio. Mas buscava

sempre limitar tais regalias na medida em que buscava atender às demandas dos

deputados portugueses. Tudo em vão. Como afirma Viotti, “não conseguia D. João VI

senão descontentar a todos” (COSTA, 1981, p. 78). E assim, aparecia como única saída

possível a independência, como de fato aconteceu em 07 de setembro de 1822.

XVII

Emancipação Política II

139
NEVES, Lúcia M. Bastos P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 22.
140
Cf.: “[...] a revolução liberal do Porto continha, nos seus fundamentos, uma intenção
antiliberal”. COSTA, Emília V. Op. cit., 1981.
124
É conhecido por todos que, após a complexa etapa da independência brasileira

em 1822, o Estado recém-nascido acabaria por se constituir uma monarquia

centralizada, cuja vida terminou apenas em 1889, com o golpe republicano. Na visão de

pesquisadores mais recentes, a historiografia clássica nacional acabou por naturalizar a

solução monárquica unitária141. A formação do Império do Brasil é, para os pais de

nossa historiografia, um fato puramente sequencial à emancipação, como que fosse uma

certeza. O mérito dos estudos mais recentes, nesse sentido, é tentar entender como se

deu realmente a constituição imperial, analisando os intensos debates entre federalistas e

centralistas no Congresso Nacional, em que se colocava como pauta o grau de

autonomia provincial na nação independente. O mérito, portanto, está no fato de que a

historiografia “mais nova” conseguiu enxergar que, apesar de o fato ter sido o Império,

outras alternativas foram colocadas em discussão ao longo dos primeiros anos de nossa

vida emancipada. Nas palavras de Evaldo Cabral de Mello: “se a Revolução

Portuguesa de 1820 fazia previsível a mudança do status quo colonial, não estava

escrito nas estrelas que ela desembocaria no Império do Brasil” (MELLO, 2004, p.

11).

Convém, antes de tratar especificamente dos pormenores da constituição política

brasileira no pós-independência, recordar as peculiaridades de nossa emancipação. A

dissolução dos laços entre Portugal e Brasil, com singularidades cujas raízes podemos

encontrar na chegada dos Bragança ao Rio de Janeiro em 1808, é marcada pela ausência

de tensões sociais, pela ausência de um caráter eminentemente popular, pela

141
Cf.: “a historiografia teria naturalizado a solução unitária, apresentando as demandas
federalistas como antinacionais, sem perceber que, em 1822, a nação ainda não estava
constituída.” COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, 1823-
1866. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008, p. 10.

125
manutenção, portanto, do status quo político de nossa elite intelectual, assentada no

modo de produção escravista. Como nos mostra Luiz Werneck Viana:

O novo Estado, portanto, surge de uma revolução sem revolução,

conformado por elites políticas portadoras dos ideais da civilização e com a

missão auto-atribuída de forjar, ao longo do tempo, uma nação. Essa

solução aborta uma revolução nacional-libertadora, que germinava desde as

últimas décadas do século XVIII, mas não retira de cena nem seus

personagens nem os princípios liberais que os animavam.142

Nos eventos que imediatamente antecedem a independência do Brasil, é

possível, incorrendo infelizmente no erro de cair num esquematismo perigoso, delinear

a existência de três grupos principais no debate político. A elite portuguesa instalada no

Brasil entendia como necessário a manutenção da dominação portuguesa sobre o Brasil,

mas envolvida num invólucro constitucional. Havia também os chamados “coimbrãos”:

portugueses com formação principalmente jurídica, acreditavam ser possível a solução

da “monarquia-dual”. Não eram avessos à estrutura econômica assentada na escravidão,

mas não admitiam o retorno às bases político-administrativas coloniais. Como nos

mostra Lúcia M. Bastos P. das Neves:

[...] Imbuídos de um ideal reformador, esses jovens estavam mais

identificados com a ideia de um grande império luso-brasileiro do que com o

separatismo político. [...] Buscavam mudanças inovadoras, mas ao mesmo

tempo queriam conservar o espírito das antigas estruturas econômico-

sociais. [...] Não deixavam de simpatizar com o ideário de um liberalismo

moderado, que conservava a figura do rei como representante da Nação,

mas negava que a soberania pudesse residir no povo.143

VIANA, Luiz W. In: COSER, Ivo. Op. cit., p. 10.


142

143
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; FAPERJ, 2003, p. 51.
126
O último grupo, finalmente, era o da elite “brasiliense”. Adeptos de uma postura mais

radical, com ampla influência do ideário iluminista e sem uma formação acadêmica

extensa, eram partidários do separatismo. Ainda segundo Neves, “identificavam a

pátria com o lugar em que tinham nascido, ao qual deviam prestar a principal

lealdade, ao invés de fazê-lo ao império luso-brasileiro. Foram os ideólogos do

separatismo brasileiro” (NEVES, 2003, p. 51).

Com a independência consolidada, o grupo “brasiliense”, antes aparecendo

como um todo unitário, passa por uma decomposição. Abrem-se os interesses reais a

respeito da constituição política do novo Estado. Aparecem em cena os dois principais

setores: os centralistas e os federalistas144. José Bonifácio, partidário da solução unitária,

enxergava como principal problema o plano da autonomia provincial. É o que nos

mostra Evaldo Cabral de Mello:

O perigo para José Bonifácio vinha precisamente destes ‘incompreensíveis’

que pululavam nas províncias do Norte e, em particular, em Pernambuco.

Dissociando federalismo e república, os ‘bispos sem papa’ se acomodariam

a uma monarquia que, pari passu, teria sido despojada dos seus atributos

essenciais, tornando-se de fato uma república cujo chefe de Estado, em vez

de Presidente, se intitulasse Imperador. Eles constituíam assim ameaça

muito maior do que os corcundas e os republicanos.145

De fato, na ala mais radical entre os federalistas estavam os deputados pernambucanos.

Entendiam que o processo de independência pelo qual passou o Brasil nada mais fez do

que transferir o autoritarismo de Lisboa para o Rio de Janeiro. Era necessária uma maior

autonomia provincial, sem submissão ao Estado Unitário. As províncias deveriam ser

144
É importante ressaltar que os últimos não eram contrários à uma monarquia constitucional,
desde que garantissem maior autonomia às províncias formadoras do Brasil. Assim, num
primeiro momento, o movimento republicano acabou por ficar esvaziado.
145
MELLO, Evaldo C. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824.
São Paulo: Editora 34, 2004, p. 18.
127
soberanas, podendo ou não aceitar o pacto nacional com a monarquia. Com a

emancipação, o debate político se consolida entre pernambucanos e os “deputados do

sul”, principalmente paulistas e fluminenses, ao longo dos anos de 1823 e 1824 (um

período um tanto quanto esquecido pela historiografia tradicional 146). É bem verdade

que os últimos balizavam a estratégia no binômio Brasil-Portugal. Bastava a

emancipação em relação à antiga metrópole. A liberdade das províncias era indesejada

e, para eles, perigosa. Veja como Ivo Coser traça o panorama:

Enquanto os deputados paulistas e fluminenses falavam nos Reinos do Brasil

e de Portugal, [...] os deputados das províncias da Bahia e de Pernambuco

se opuseram ao fortalecimento do governo do Rio de Janeiro, presente na

proposta paulista. Para eles, não haveria o Reino do Brasil, mas as

províncias portuguesas na América. Neste sentido, para essa corrente

política, a proposta paulista, centrada na autonomia do governo situado no

Rio de Janeiro, ao qual estariam submetidos os governos provinciais, soava

como um novo pacto colonial.147

É importante levar em conta, e isso acabará sendo um fator que nos ajuda a entender

porque a solução centralista se saiu vitoriosa, que os partidários do federalismo ficaram

especialmente restritos a Pernambuco e à Bahia. E mesmo o federalismo baiano acabou

ficando ofuscado em razão da ocupação portuguesa, que perdurou até 1823. Coube,

portanto, aos pernambucanos a ingrata luta contra os “deputados do sul” em defesa da

alternativa federalista.

146
Cf.: “Uma das consequências do rio-centrismo da historiografia da Independência consistiu
em limitar o processo emancipacionista ao triênio 1820-1822. Na realidade, 1823 e 1824,
marcados pela dissolução da Constituinte e pela Confederação do Equador, foram anos cruciais
para a consolidação do Império, na medida em que ambos os episódios permitiram ao Rio
resolver a contento a questão fundamental da distribuição do poder no novo Estado. Questão
que não se reduzia à disputa entre o Legislativo e o Executivo, privilegiada pelos historiadores
do período, mas dizia respeito sobretudo ao conflito entre o centralismo da Corte e o
autogoverno provincial.” MELLO, Evaldo C. Op. cit., p. 12.
147
COSER, Ivo. Op. cit., p. 37.
128
O ponto de inflexão fundamental que marca a vitória da “causa centralista” é as

relações entre Bonifácio e D. Pedro I. Indignado com a usurpação dos poderes de seu

pai em Lisboa pelos constitucionalistas do Porto, o herdeiro, ainda circundado pelo

universo do Antigo Regime, interessa-se pela administração absoluta do novo país. Ao

mesmo tempo que utilizado como ferramenta pelos centralistas, D. Pedro se aproveita

das convulsões no Congresso para então aplicar um golpe de Estado que lhe garantia a

outorga da Constituição de 1824. O Brasil tornava-se uma monarquia imperial unitária.

Fechamos com a palavra de Neves, segundo a qual o herdeiro:

[...] logo aprendeu a jogar com os interesses de coimbrãos e brasilienses,

vendo no Império americano não só a possibilidade imediata de livrar-se do

jugo da Assembleia, como a perspectiva futura de um Império dual, sobre o

qual reinaria, após a morte de d. João VI, com redobrada autoridade e

autonomia, de acordo com concepções derivadas ainda na maior parte do

universo do Antigo Regime.148

XVIII

Economia cafeeira I

148
NEVES, Lúcia M. B. P. das. Op. cit., p. 418.
129
Ao longo do século XIX, o Brasil entrará num novo ciclo econômico marcante

para os rumos da economia do novo país independente. Traçando um panorama geral do

que foi visto até aqui: os séculos XVI e XVII assistiram à hegemonia do açúcar no

Nordeste; o século XVIII é o auge da mineração nas Gerais. Chegava o momento em

que o café passava a ser o principal produto nas pautas brasileiras de exportação. De

fato, entre 1810 e 1840, a produção e, consequentemente, as vendas desse gênero

tiveram considerável expansão: a variação foi positiva em aproximadamente 20 milhões

de sacas (o equivalente a 60 kg). Posteriormente, entre 1870 e 1910, a variação é ainda

mais expressiva: um aumento em aproximadamente 100 milhões de sacas. Algo que,

num primeiro olhar, parece curioso é a estagnação nas pautas de exportação de café

entre as décadas de 1850 e 1870. As vendas estacionaram em cerca de 30 sacas 149. Na

realidade, o que nos ajuda a compreender o quadro econômico desse pequeno intervalo

é a situação da mão-de-obra no país. É precisamente nessas décadas que a chegada de

africanos escravizados diminui vertiginosamente em função da abolição do tráfico

negreiro. As palavras de Bacha:

O Brasil apresentou um desenvolvimento extraordinário da produção

a partir do final de década de 1810. Mas essa expansão acelerada

praticamente terminou no final da década de 1840. Nas três décadas

seguintes, a expansão foi muito lenta. Os principais problemas deste

período da história brasileira do café foram a falta de transporte e de

mão de obra.150

A questão da mão-de-obra será motivo de discussão intensa na política brasileira ao

longo de toda a segunda metade do século XIX. Era necessário pensar em alternativas

objetivas para solucionar a iminente escassez de mão-de-obra. Trataremos disso quase


149
MARTINS, M. & JOHNSTON, E. 150 anos de café. São Paulo: Salamandra Consultoria
Editorial, 1992, p. 324-325
150
BACHA, E. L. In: MARTINS, M. & JOHNSTON, E. Op. cit., p. 21.
130
que à exaustão posteriormente. É importante, contudo, traçar um quadro a respeito dos

inícios da expansão cafeeira do século retrasado.

Analisando o quadro que antecede essa consolidação do ciclo cafeeiro, Celso

Furtado nos aponta um momento delicado da economia brasileira e com perspectivas

nada positivas. Para o autor, “Dificilmente um observador que estudasse a economia

brasileira pela metade do século XIX chegaria a perceber a amplitude das

transformações que nela se operariam no correr do meio século que se iniciava”

(FURTADO, 2009, p. 176). Isso porque o Brasil passava, desde o fim da expansão

mineradora, por fortes estagnação e involução econômicas, implicando considerável

diminuição da renda per capita. Nem mesmo a “falsa euforia” foi capaz de animar

nossa economia (e justamente por isso é que era falsa).

O Brasil, na visão de Furtado, necessitava, para livrar-se desse panorama

indigesto, de uma reinserção no comércio mundial em expansão. Era preciso encontrar

um novo gênero que reanimasse a atividade econômica ligada à terra (fator de produção

mais abundante do país até então). A solução foi encontrada exatamente com o

desenvolvimento da cultura do café. Novamente o Brasil se encaixava nos parâmetros

do mercado internacional, retomando seu papel agroexportador. Nem mesmo uma

queda inicial nos preços de exportação foram capazes de inibir a produção do artigo

tropical151. Celso Furtado nos enuncia as razões para essa insistência com o café. Os

escravos, pouco utilizados nas Gerais ao longo das primeiras décadas do século XIX,

funcionaram como “capacidade ociosa” nas plantações do Vale do Paraíba. Os gastos

com mão-de-obra, portanto, acabavam sendo vantajosos para os fazendeiros. Além

disso, a proximidade entre as zonas cafeicultoras e a capital escoadora invariavelmente

Cf.: “Com efeito, a quantidade exportada mais que quintuplicou entre 1821-30 e 1841-50, se
151

bem que os preços médios se hajam reduzido em cerca de 40% durante esse período.”
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.
181.
131
levava a uma redução dos custos de transporte do café até o litoral. Finalmente, e aqui

temos embates historiográficos152, o novo gênero tinha exigências de capitalização

muito menores se comparadas à cultura do açúcar.

A historiografia mais recente também diverge das análises de Furtado, mas não

necessariamente em relação ao nível de capitalização, como é o caso quando lemos Caio

Prado Jr. A discussão girou em torno dessa “capacidade ociosa” salientada pelo autor.

Isso porque outros historiadores apontam para um uso considerável de escravos nas

Gerais ao longo de todo o século XIX, como faz Roberto Borges Martins:

A ideia de que Minas tenha sido um exportador de escravos na primeira

metade do século é contestada, mais que por qualquer outra evidência, pelo

vigoroso crescimento da população escrava da província. Em 1808, Minas

tinha 148.772 escravos, contingente esse que cresceu para 168.543 em 1819,

constituindo-se na maior população cativa do Brasil e representando 15,2%

do total. Seu rápido crescimento entre 1819 e 1872 reforçou essa posição e a

participação nessa última data passou a 24,7%. Nesse período, a população

escrava de Minas cresceu a uma taxa cerca de duas vezes e meia maior que

a média nacional e o seu aumento absoluto foi igualado apenas pelo do Rio

de Janeiro.153

Outros historiadores, como Renato Leite Marcondes 154, apontam que, na realidade, eram

provenientes do Rio de Janeiro a maioria dos cativos que abasteciam as lavouras do

Vale do Paraíba. Segundo ele, a província havia passado, ao longo dos 60 anos entre

152
Cf.: “Outra dificuldade da lavoura cafeeira é que a planta somente começa a produzir ao cabo
de 4 a 5 anos de crescimento; é um longo prazo de espera que exige pois maiores inversões de
capital.” JÚNIOR, Caio P. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 161.
153
MARTINS, Roberto B. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa
economia não-exportadora. Estudos Econômicos vol. 13, nº. 1, p. 181-209, jan./abr. 1983, p.
187.
154
O evolver demográfico e econômico nos espaços fluminenses (1780-1840). Estudos
Econômicos vol. 25, nº. 2, pp. 235-270, maio/ago. 1995, p. 239.
132
1780 e 1840, por um crescimento demográfico vertiginoso, provocando, por esse

motivo, fluxos migratórios importantes da massa escrava.

Para enriquecer ainda mais a discussão e os debates historiográficos a respeito

dos inícios da expansão cafeeira, é possível apontar outros motivos, não captados por

Furtado, que ajudam a entender a pequena sensibilidade da produção à queda nos

preços. Analisando núcleos cafeeiros no interior de São Paulo, José Flavio Motta nos

mostra que o caráter da propriedade e do próprio produtor não permitiam uma

elasticidade preço da oferta muito elevada. Nas palavras do autor:

[...] o mais das vezes, para os não-escravistas e também para os

proprietários de menor porte, a lavoura cafeeira, voltada precipuamente à

comercialização, tinha o significado de um desdobramento possível a partir

de uma agricultura de subsistência, perante a qual se colocava como uma

atividade subsidiária.155

Como frisamos anteriormente, tratar da expansão cafeeira necessariamente

implica uma análise a respeito de suas relações com a situação da mão-de-obra no Brasil

em meados do século retrasado. A transição do trabalho escravo para o assalariado está

presente em estudos consagrados de Caio Prado Júnior, Octávio Ianni, Fernando

Novais, Celso Furtado e Paula Beiguelman.

A interpretação clássica sobre o fim da escravidão, presente nos estudos dos três

primeiros autores citados acima, pauta-se pela incompatibilidade entre o modo

escravista de produção e o capitalismo plenamente consolidado. Apesar de ter sido

ferramenta importante no processo de acumulação primitiva de capital, a escravidão, na

medida em que os mecanismos endógenos criadores e reprodutores de mais-valia

estavam “ativados”, tornava-se um obstáculo. Impedia a formação de um sólido

MOTTA, José F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em
155

Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999.


133
mercado interno que absorvesse as mercadorias produzidas nas indústrias dos países

centrais. Criava, ao mesmo tempo, limites ao desenvolvimento das forças produtivas e,

portanto, à geração de mais-valia relativa. Assim, cada vez mais as potências centrais (e

o primeiro país atuando nesse sentido foi a Inglaterra), encabeçando a Revolução

Industrial, marco da consolidação do capitalismo, passaram a atuar contra a

sobrevivência da escravidão nos países em que ela era ainda vigente. Dialeticamente, a

nova estrutura econômica desbancava um de seus “Founding Fathers” (mesmo não

sendo o principal e decisivo, como já reiteramos aqui inúmeras vezes). Veja como Caio

Prado endossa o que acabou de ser dito:

O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de

um indivíduo; assim sendo, mesmo sem considerar o risco que representa a

vida humana, forma um adiantamento a longo prazo de sobretrabalho

eventual a ser produzido; e portanto um empate de capital. O assalariado,

pelo contrário, fornece aquele sobretrabalho sem adiantamento ou risco

algum. Nestas condições, o capitalismo é incompatível com a escravidão; o

capital, permitindo dispensá-la, a exclui. É o que se deu com o advento da

indústria moderna.156

Ianni completa:

Ao compreender que o lucro não é apenas função de barganha no mercado,

mas também dos custos, e que estes podem ser controlados e reduzidos pela

organização mais ou menos racional da empresa ou da fazenda, evidencia-se

ao empresário que já não é mais negócio comprar escravos. Torna-se óbvio

que é preferível operar com o trabalhador livre, colono ou assalariado, cuja

remuneração (...) é função do produto da força de trabalho.157

JÚNIOR, Caio P. Op. cit., p. 175, nota 57.


156

157
IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, p. 6.
134
A análise de Celso Furtado, embora não entre em debate explícito com os dois

anteriores, não se aprofunda nesse detalhamento teórico como fazem Prado e Ianni. Na

realidade, o autor enfatiza os problemas derivados da escassez de mão-de-obra a partir

da abolição do tráfico negreiro na década de 1850. O fim do abastecimento externo de

cativos, somado à pequena disponibilidade interna de mão-de-obra (trataremos desse

assunto com mais propriedade posteriormente) acabou culminando na solução da

imigração. Esta, por sua vez, foi muito mais decisiva na estrutura política do poder local

do que nos aspectos econômicos organizacionais, dado que conseguiu abalar a velha

aristocracia rural, cuja força assentava-se na posse de escravos. Veja nas palavras de

Furtado:

Observada a abolição de uma perspectiva ampla, comprova-se que a mesma

constitui uma medida de caráter mais político que econômico. A escravidão

tinha mais importância como base de um sistema regional de poder que

como forma de organização da produção. Abolido o trabalho escravo,

praticamente em nenhuma parte houve modificações de real significação na

forma de organização da produção e mesmo na distribuição de renda.158

Finalmente, para concluir o panorama historiográfico, temos a proposta de

Beiguelman. Partindo da questão da escassez de mão-de-obra nas economias periféricas,

principalmente no Brasil, mas realizando uma discussão de caráter teórico, a autora vai

de encontro com a análise clássica de Prado e Ianni. Para ela, a escravidão, servindo

como instrumento de acumulação primitiva, é uma criação capitalista, podendo se

encaixar num contexto de Revolução Industrial. Na realidade, a modernização

econômica exigia, acima de tudo, mão-de-obra barata para a produção em larga escala.

Assim, não havia uma relação de incompatibilidade, mas sim de indiferença entre a

indústria e a escravidão, que poderia ou não ser dispensada por um trabalho assalariado.

158
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 213.
135
Essa conclusão faz com que a autora afirme ser necessário estudo pormenorizado de

cada região periférica em que a escravidão foi abolida. Como diz Beiguelman:

Ou seja: temos que o sistema, depois da revolução industrial, tanto pode

inserir como dispensar a escravidão, diversamente do que ocorria quando o

tráfico (elemento ao qual se vincula a necessidade do escravismo) era peça

relevante no processo de acumulação capitalista. [...] Assim [...] não há

fundamento para estabelecer entre o escravismo e o sistema inclusivo outra

relação que a de indiferença. [Verifica-se a] possibilidade (desprovida,

porém, de necessidade) aberta pelo sistema à destruição da escravidão.159

XIX

Economia Cafeeira II

Com a prévia discussão a respeito dos problemas referentes ao estado da mão-

de-obra na economia brasileira ao longo da expansão cafeeira, é possível agora

aprofundar-nos ainda mais nas interpretações historiográficas sobre como se deu a

transição do trabalho escravo para o assalariado no Brasil.

159
BEIGUELMAN, P. A destruição do escravismo moderno, como questão teórica. In:
BEIGUELMAN, P. Pequenos estudos de ciência política. 2.ed. ampliada. São Paulo: Pioneira,
1973, p. 5 e 8.
136
Uma das análises canônicas a respeito dessa transformação marcante passada

pelo Brasil no século XIX é, como sabemos, a de Caio Prado Jr. O autor, inserido na

tradição marxista de pensamento histórico e, portanto, imbuído de uma certa concepção

dialética da dinâmica histórica, concebe o capitalismo plenamente desenvolvido como

incompatível com a escravidão colonial.

O autor, para explicar essa incompatibilidade, observa o próprio funcionamento

do próprio funcionamento do modo escravista de produção: o cativo é um trabalhador-

mercadoria, funcionando como um capital fixo e, acima de tudo, um adiantamento de

longo prazo. Não se pagam salários de subsistência periódicos como no caso

assalariado. O escravo, nesse sentido, é impedido de se transformar num consumidor.

Emperra-se, com isso, a solidificação de um mercado consumidor em escala nacional.

Contextualizando no caso brasileiro, Caio Prado conclui que essa condição

específica do trabalho escravo caminhava na direção contrária ao desenvolvimento

industrial que ocorria na Europa naquele momento, especificamente na Inglaterra. Esta

necessitava de mercados consumidores internacionais para seus produtos, dentre eles o

brasileiro. Era algo impensável em um país cujo modo de produção hegemônico era o

escravista. Caberia a este país, portanto, a pressão política e diplomática pelo fim da

escravidão no Brasil. E o objetivo britânico, para o autor, começa a materializar-se com

as disputas pela abolição do tráfico negreiro.160

Na prática, as pressões inglesas, num momento inicial, acabaram efervescendo

uma retórica nacionalista em defesa do escravismo por parte de nossa classe política.

Reforçavam-se os argumentos favoráveis a essa estrutura produtiva, ancorados inclusive

no próprio desenvolvimento da cultura do café no Brasil. Era impossível, porém, que a

160
É bem verdade que é notada pelo autor uma certa “postura moral”, tanto na Inglaterra quanto
no Brasil, contrária ao tráfico de africanos escravizados. Ao final do processo de emancipação,
ia-se desenvolvendo um “espírito antiescravista” no jovem país.
137
atuação inglesa não surtisse nenhum efeito. Convinha para a Inglaterra a abolição

imediata do tráfico e, na realidade, houve um direcionamento das tratativas para punir

os traficantes “notórios”, numa forma inclusive de amenizar as pressões britânicas.

Esses “comerciantes” eram alvo até mesmo de oposição dos próprios fazendeiros

brasileiros, uma vez que estes eram devedores daqueles. Encontrava-se então o

mecanismo objetivo e circunstancial que tornava possível o fim do comércio de

escravizados. Em 1850, com a famosa Lei Eusébio de Queirós, era abolido o tráfico

negreiro, afetando principalmente esses traficantes “notórios”.161

Com a extinção do tráfico, tornava-se lógico, para Prado, o fim definitivo do

modo escravista de produção.162 A partir de 1850, a questão da abolição ganha lugar

central nas discussões políticas e até mesmo nas agitações sociais. Ao mesmo tempo,

porém, em que se desenvolvem projetos políticos e sociais abolicionistas, forma-se

também a reação escravocrata dos antigos fazendeiros aristocratas do Centro-Sul,

abastecidos de mão-de-obra pelo tráfico interprovincial. É importante ressaltar que o

Vale do Paraíba, primeira zona com forte produção cafeeira, dependia quase que

161
Um dos efeitos mais imediatos, segundo Prado, da abolição do tráfico foi o
redirecionamento de capitais ingleses para o Brasil. Com a amenização das tensões
diplomáticas, o fluxo de ativos foi regularizado. É uma análise que, embora pautada numa
circunstância particular, se choca com o ponto de vista furtadiano a respeito dessa mesma
questão. Para este autor, mesmo após o fim do comércio regular de escravizados, a entrada de
capitais continuou baixa e instável. Não teria sido a melhora nas relações diplomáticas bilaterais
o principal fator que estimulou o retorno de ativos. Na realidade, Furtado busca mostrar que é a
retomada do ritmo crescente nas exportações e, consequentemente, uma melhora nas próprias
condições econômicas do país que deu aos investidores estrangeiros um maior grau de
confiança, garantindo maior entrada de capitais no Brasil.

162
É importante ressalvar que, embora a Lei Áurea de 1888 seja o marco do fim da escravidão,
não podemos dar um salto interpretativo e afirmar temerariamente que ela é a causa única e
exclusiva da abolição. O escravismo já vinha definhando, passando por transformações
estruturais e sofrendo implicações políticas, há anos desde o final do processo emancipatório,
até um ponto em que seu fim era irreversível. 1888 sela algo que tem raízes em décadas
passadas. Se me permitem uma analogia, a Revolução Puritana Inglesa de 1640 marca o fim do
feudalismo na Inglaterra e, consequentemente, do modo de produção servil. Ela, no entanto, é
reflexo de um longo processo anterior de transformações estruturais concernentes ao próprio
feudalismo, que foi decompondo-se até um nível de maturação que tornava necessária e
possível, dada a conjuntura, uma revolução social.
138
totalmente do trabalho negro cativo. A abolição selaria, portanto, a ruína desses

produtores.

Seguindo pari passu as tensões políticas concernentes à discussão abolicionista,

inúmeras propostas de Lei passam a ser colocadas em pauta a partir da década de 1860.

Prado, do total desse conjunto, observa principalmente a Lei do Ventre Livre de 1871,

que tornavam emancipados os filhos de cativas logo após o nascimento (não é por acaso

que a Lei é também chamada de Lei dos Nascituros). O autor traça sua crítica

fundamentalmente no caráter conciliador da medida. A proposta, de cunho

diversionista, serviu para frear as organizações mais radicais e assim bloquear avanços

da pauta abolicionista, aliviando pressões pelo fim da escravidão. Veja nas palavras de

Caio Prado:

A lei de 28 de setembro nada produzirá de concreto, e servirá apenas para

atenuar a intensidade da pressão emancipacionista. [...] No pé em que se

encontravam as coisas, isto constituía na realidade uma vitória da reação

escravista. [...] A lei do Ventre Livre não resultou assim, em última análise,

senão numa diversão, uma manobra em grande estilo que bloqueou muito

mais que favoreceu a evolução do problema escravista no Brasil.163

Na década de 1880, os efeitos do fim do tráfico negreiro tornam-se mais fortes e

perigosos para aqueles que dependiam da mão-de-obra escravizada. Nem mesmo essas

medidas conciliadoras dos anos de 1860 e 1870, como a Lei do Ventre Livre, foram

capazes de impedir o quadro alarmante em que se encontrava o modo escravista de

produção no Brasil. Basicamente, com a abolição do tráfico, o estoque de trabalhadores

cativos diminuía sensivelmente, até que chegou a níveis muito baixos nos últimos

JÚNIOR, Caio P. História econômica do Brasil. 20.ed. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 178-
163

179.
139
decênios do século XIX. Esvaía-se a galinha dos ovos de ouro que sustentava a

opulência magnânima dos aristocratas fundiários brasileiros.

Não bastasse o quadro de escassez, a opinião pública fiava-se cada vez mais na

pauta abolicionista. Aumentava o número de fugas, organizadas pelos grupos partidários

da abolição, nas lavouras do interior. O espaço público ia sendo tomado pelas

campanhas em prol do fim da escravidão, corroboradas principalmente pela imprensa.

Até mesmo as Forças Armadas se recusaram a capturar os escravos fugidos, negando

qualquer tipo de intervenção. Nem mesmo a Lei dos Sexagenários de 1885, que,

segundo Prado, foi recebida com “gargalhadas” pelos abolicionistas, conseguiu evitar o

inevitável: o fim da escravidão, que se concretizaria em 1888.

Dos inúmeros ataques posteriores que sofreu a interpretação pradiana sobre o

fim da escravidão, será de grande valia a revisão de Paula Beiguelman a respeito do

tema. Partindo do pressuposto de que o capitalismo não é antagônico ao escravismo

(vimos que Beiguelman coloca o escravismo como uma criação capitalista e que, com a

consolidação da Revolução Industrial na Europa, a economia moderna tornou-se

indiferente a ele), a autora minimiza a importância do elemento externo, no caso a

pressão inglesa desde a primeira metade do século XIX, para os desdobramentos

históricos que levaram ao fim do trabalho escravo. Na realidade, pretende analisar o

processo de extinção do modo de produção até então vigente no Brasil a partir das

articulações políticas intranacionais, pressupondo que as transformações econômicas

internas compõem os elementos decisivos para a abolição.

Ao diminuir a importância desse elemento externo para a extinção do

escravismo, Beiguelman aponta para o caráter quase que irrelevante da ação dos navios

ingleses: ela foi moldada por motivos muito mais localizados, que envolviam discussões

dentro do Parliament entre os livre-cambistas e os fazendeiros escravistas (compunham


140
o Parlamento, mas possuíam representantes nas colônias americanas), interessados

principalmente nas questões concernentes ao mercado antilhano do açúcar. Para a

autora, a influência principal veio do próprio Brasil, dentro do debate político nacional,

em que se esclareciam interesses dos partidos conservador e liberal, assim como da

Coroa.

Um outro ponto de divergência entre Beiguelman e Caio Prado reside na análise

a respeito da Lei do Ventre Livre. Aquela, em clara oposição a este, vê a medida como

responsável por abalos importantes nas bases do escravismo brasileiro. Dando

importância até mesmo à Coroa nesse trâmite político, a autora entende a Lei como um

acelerador da decomposição do modo de produção hegemônico da época. É a partir

desse momento que a causa abolicionista começa a ganhar contornos mais gerais na

população brasileira, dado que a Lei dos Nascituros foi aclamada tanto pelos

conservadores quanto pelos liberais. Nas palavras de Beiguelman:

No caso da lei do ventre livre, o papel da Coroa é fundamental já na própria

proposição do problema, que é por ela levantado praticamente do nada

⎯para criar um irreversível, posto tratar-se de questão que, uma vez agitada,

precisava ser resolvida. Subjetivamente, a Coroa atuava investida da missão

de tornar manifesta a repulsa ao escravismo (mal necessário) formulada

pela consciência ético-jurídica do país, desde a Independência.

Objetivamente, operava como o instrumento histórico através do qual se

respondia às exigências estruturais profundas da economia em

crescimento.164

Com a Lei do Ventre Livre, há uma diminuição consistente do preço das

escravas, depreciando e desestimulando o investimento servil. Torna-se claro o fim da

possibilidade de criação de cativos, fazendo com que os interesses opostos à abolição

BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos 3.ed.


164

São Paulo: EDUSP, 2005, p. 82.


141
rareassem cada vez mais (esvaíam-se as possibilidades de investimento a longo prazo na

criação de cativos, bloqueando vendas lucrativas de escravos no futuro). Ampliavam-se

os interesses, nesse sentido, pela solução imigratória. A melhor alternativa seria adotar o

trabalho assalariado.

Com o quadro claramente desfavorável à sobrevivência do escravismo, surgem

alianças regionais em favor da imigração de trabalhadores europeus para serem

alocados nas lavouras. A principal se dará entre o Oeste “Novo” Paulista e o Vale do

Paraíba. Este encontrava-se num nível elevado de saturação da mão-de-obra,

diminuindo vertiginosamente o preço do escravo, tornando muito pouco vantajosa a

entrada de mais cativos. Aquela, pelo contrário, estava pouco abastecida de braços. Não

obstante, olhava o assalariado imigrante como economicamente vantajoso frente ao

“trabalhador-mercadoria”, até porque tinha mais condições de sustentar o pagamento de

salários periódicos do que realizar um adiantamento a longo prazo (nas palavras de

Prado). As duas regiões da província paulista, nesse contexto, uniram-se para bloquear a

entrada de cativos em São Paulo, contando inclusive com apoio do Norte brasileiro. A

área estava também saturada de mão-de-obra, ficando praticamente impedida de vender

escravos e lucrar com esse regime de trabalho.

Nem mesmo a reação nordestina, vinda dos fazendeiros do açúcar, amplamente

dependentes do trabalho escravo, conseguiu barrar a força dessas alianças regionais.

Estas, por sua vez, ganharam ainda mais coro com a criação da Sociedade Promotora da

Imigração e com o a concretização das políticas imigratórias com subvenção estatal.

Chegava-se a um quadro irreversível de transição do trabalho escravo para o livre.

142
XX

Economia Cafeeira III

Existe, entre a abolição da escravidão no Brasil e a consolidação do trabalho

assalariado como modo de produção hegemônico na economia nacional, um importante

período de transição que merece agora um olhar mais atento de nossa parte. Podemos,

nesse sentido, dividi-lo em três partes (não podemos esquecer, mesmo assim, que,

apesar de sucederem no tempo, estabeleceram contatos e intersecções): o momento dos

143
núcleos coloniais, o do sistema de parcerias e o da grande imigração subvencionada

pelo Estado.

Os núcleos coloniais estavam baseados na pequena propriedade agrícola. Apesar

de ser uma ideia interessante, cujo sucesso poderia dar outra direção à distribuição

fundiária no Brasil ao longo do século XX, na prática acabaram entrando num círculo

vicioso, de acordo com Celso Furtado. A concretização dos núcleos coloniais na

produção agrícola exigia um desenvolvimento dos mercados no país, que, por sua vez,

necessitava de uma expansão nas pautas de exportação. A expansão, finalmente, tinha

como pré-requisito a solução do problema da mão-de-obra nas lavouras. Perceba que

existe uma falha sistêmica inerente aos núcleos coloniais, dado que, para resolver o

problema, bastava que as pequenas propriedades passassem a exportar por conta

própria, o que entrava em choque com os interesses dos fazendeiros do café.

Um outro aspecto que contribuiu para o insucesso desse modelo de trabalho

assalariado nas lavouras era o próprio estado de muitas das propriedades, induzindo

muitos colonos a deixarem os lotes e partirem para o trabalho nas grandes fazendas. É o

que nos mostra Emília V. da Costa:

Entre 1827 e 37, cerca de 1.200 colonos foram localizados em diferentes

pontos da Província. Encaminhados para zonas de difícil acesso, solos maus,

ou cobertos de florestas, longe dos mercados consumidores, os colonos

acabaram, na sua maioria, por debandar, abandonando seus lotes depois de

terem, inutilmente, tentado enfrentar as numerosas dificuldades que se lhes

deparavam.165

É importante ressaltar que, apesar desse “contratempo” bem observado por

Costa, não podemos afirmar que, do ponto de vista do colono, a existência dos núcleos

coloniais terminaram em fracasso. O que nos ajuda a confirmar esse ponto é o fato de
165
COSTA, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 100-102.
144
que, entre 1827 e 1889, o Rio Grande do Sul assistiu à formação de quase 100 colônias

particulares no campo, surgindo até mesmo nos períodos turbulentos da Regência

brasileira. De fato, as “falhas sistemáticas” dos núcleos notadas por Furtado fazem

sentido quando analisamos essa estrutura partindo dos olhos do grande proprietário, que

necessitava de mão-de-obra barata para sua produção e não de pequenos produtores

autônomos concorrentes.

Com a iminente impossibilidade de se consolidarem os núcleos coloniais,

somada ao fim do tráfico intercontinental de africanos escravizados, as pressões dos

grandes proprietários para que o problema da mão-de-obra fosse solucionado ganham

maiores proporções. É dessa conjuntura adversa que tem início o modelo de parcerias,

funcionando como eixo de sustentação do ainda incipiente modo assalariado de

produção. Antes de chegar ao Brasil, os imigrantes já assinavam contratos na Europa,

comprometendo-se a trabalhar numa fazenda específica. O fazendeiro, por sua vez,

comprometia-se a pagar a viagem para o novo continente, assim como garantia o

sustento de seus trabalhadores nos primeiros meses. Ao longo da produção, havia a

meação dos lucros líquidos, oriundos tanto da plantação do café quanto da venda do

excedente da subsistência.

Num primeiro olhar, parece que o grande beneficiado era o próprio trabalhador

imigrante. Ledo engano. Ele já iniciava seus trabalhos com alto endividamento, dado

que os custos de viagem e de inicial sustento no campo eram arcados pelo proprietário.

Era necessário trabalhar até que a “conta” fosse paga. Na prática, acabava funcionando

como instrumento de imobilização espacial, o que era de interesse do fazendeiro. Em

segundo lugar, os colonos eram alocados em cafezais já constituídos, com solo em alto

grau de saturação, dificultando a plantações dos bens necessários à subsistência.

Finalmente, eram recorrentes os casos de fraudes nos preços dos bens e nas passagens

145
para o Brasil, aumentando indevidamente as dívidas dos trabalhadores, forjando uma

espécie de “servidão disfarçada” no sistema de parcerias. O grau de exploração a que

ficaram sujeitos os colonos acabou gerando focos de tensão e revolta, como no caso de

Ibicaba em 1856.

Uma vez que o sistema de parcerias se mostrava inviável no longo prazo pelas

razões apontadas acima, a questão da mão-de-obra continuava em aberto. O espaço se

abria cada vez mais para solucionar o problema pela via da imigração subvencionada

pelo governo. A expansão das produções cafeeira e, em menor grau, algodoeira, assim

como a iminência da abolição da escravatura a partir de 1870 acabaram funcionando

como alavanca para que o Estado arcasse com o ônus do estabelecimento de imigrantes

nas fazendas cafeeiras. Além disso, os fazendeiros do Oeste Novo, setor produtivo que

mais crescia e que ainda não se mostrava pleno de mão-de-obra, clamavam por braços

que pudessem acompanhar as crescentes demandas pelo gênero tropical. Acabaram,

portanto, conduzindo as tratativas no Congresso Nacional para consolidar a imigração

subvencionada. Finalmente, a introdução de um “sistema misto”, que gradualmente

transitava da meação de lucros para o assalariamento puro, dava ao colono uma garantia

maior de receita: independentemente do quadro da colheita, seu salário estava

garantido.166 Assim, tanto do lado da oferta quanto do lado da demanda por mão-de-

obra, a imigração subvencionada era vista com bons olhos.

O que influiu e contribuiu também para o sucesso da imigração subvencionada

foi inclusive o quadro social na Europa, principalmente na Itália (de onde vinha o

grosso da mão-de-obra assalariada para o café). O processo de unificação italiana, que


166
Abria-se também para o imigrante europeu a possibilidade de uma paulatina acumulação
econômica com o ganho constante de salários, estimulando a formação de uma poupança. Essa
perspectiva dos colonos foi bem notada pelo cafeicultor, que entendia a necessidade de dar a
seus funcionários boas condições de trabalho, estimulando-os a continuar trabalhando naquela
dada propriedade. Era importante que fosse dado um tratamento mais digno aos assalariados, se
comparados aos escravos, por parte dos colonos.
146
invariavelmente acabou levando a um quadro de desorganização da produção no sul do

país, ampliava as dificuldades do Estado nascente para gerir a massa crescente de

desempregados e subempregados que colocava em risco suas bases econômicas. A

demanda brasileira por mão-de-obra acabaria servindo como válvula de escape.167

Realizado o estudo panorâmico sobre a constituição do modo assalariado de

produção, podemos adentrar numa discussão interessante encabeçada por Celso

Furtado: havia no país a disponibilidade de mão-de-obra livre. Por que, então, preferiu-

se o trabalhador estrangeiro? Localizados principalmente no Nordeste brasileiro, os

“roceiros” (que compunham a mão-de-obra livre nacional), além de dispersos pela

região, eram intimamente ligados aos latifundiários exportadores, estabelecendo assim

uma relação social muito profunda. Assim, a cooptação desses trabalhadores exigiria

extensa mobilização de recursos e, principalmente, deveria contar com a ajuda dos

próprios fazendeiros. Essa cooperação era simplesmente inviável, já que o poder

político desses “proto-coronéis” assentava-se em arregimentar no seu núcleo uma

considerável quantidade de famílias roceiras.

A atração de mão-de-obra livre nacional para a produção cafeeira foi dificultada

não só pelo obstáculo intencional dos fazendeiros, mas também pelo surto da borracha

em meados da segunda metade do século XIX. Responsável pela transumância

amazônica, a expansão vertiginosa da fabricação de látex conseguiu quebrar qualquer

resistência vinda dos latifundiários, atraindo massas robustas de nordestinos para o

trabalho da borracha. Contribuiu também para o fenômeno a crítica seca nos sertões,

que perdurou de 1877 até 1880. Dizimando praticamente todo o gado e contribuindo

para quase 200 mil mortes, o fenômeno natural agravou uma condição social

167
PETRONE, M. T. S. Imigração assalariada. HOLANDA, S. B. de (org.). História Geral da
Civilização Brasileira. 5.ed. São Paulo: DIFEL, t. 2: O Brasil Monárquico, v. 3: Reações e
transações, 1985, p. 274-296.
147
estruturalmente calamitosa, levando os roceiros para a Zona da Mata. Esta, por sua vez,

incapaz de lidar com o quadro turbulento que tomava forma, funcionou como

“catapulta” de trabalhadores para as seringueiras da Amazônia. Vejamos a célebre

passagem de Euclides da Cunha:

Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejaram

sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas

semanas de uma população adventícia de famintos assombrosos, devorados

das febres e das bexigas ⎯ a preocupação exclusiva dos poderes públicos

consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros

moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os

vapores com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos

para a Amazônia ⎯vastíssima, despovoada, quase ignota⎯ o que equivalia a

expatriá-los dentro da própria Pátria. A multidão martirizada, perdidos

todos os direitos, rotos os laços da família, que se fracionava no tumulto dos

embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de

prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e

os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades

mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava

mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca, até os nossos dias,

a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a

missão dolorosíssima e única de desaparecerem ...168

Comprovada a impossibilidade de usar o elemento nacional livre, ele passa a ser

visto de maneira muito pouco lisonjeira pela burguesia rural brasileira. Colocado como

reserva do trabalhador imigrante (antes era o substituto ocasional do escravo enquanto o

modo vigente de produção era o escravista), acumulava as funções mais pesadas e de

menor remuneração, sendo apregoado como indolente, desmotivado e pouco afeito ao


168
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 2016.
148
trabalho. Ao mesmo tempo, o europeu era saudado como um trabalhador muito mais

predisposto e com maiores aptidões para os serviços no campo.

Finalizando o tratamento sobre a questão da mão-de-obra, convém mencionar

que a solução da imigração subvencionada foi bem-sucedida principalmente na

província de São Paulo. Isso não implica o mesmo êxito em outras regiões do país, as

quais precisaram arregimentar o trabalhador nacional livre. É o que nos aponta Ana

Lanna:

A proposta imigrantista venceu em São Paulo, mas no resto do país também

se realizou a transição para o trabalho livre. A bibliografia, ao estudar os

caminhos percorridos para a organização do trabalho livre, atém-se à

análise do que foi a proposta vitoriosa –a imigração– como se este fosse o

único caminho possível de encaminhamento da transição. [...] o sucesso da

experiência paulista faz com que a província mineira estabeleça uma série

de políticas imigrantistas [...]. Estas políticas resultam em sistemáticos

fracassos. [...]. [O]s poucos trabalhadores introduzidos apresentam

problemas. [...] [Vários] emigram para São Paulo [...]. Os cafeicultores

encaram com a máxima reserva a introdução de imigrantes [...]. Essa

negação da imigração como solução de braços para a lavoura não significa

arcaísmo ou recusa das relações de trabalho livre. Antes demonstra que a

solução para a questão da mão de obra foi encontrada internamente, com a

população existente. Por isso, os cafeicultores reivindicam a aprovação de

boas e eficazes Leis de Locação de Serviços, para reprimir o ócio e a

vagabundagem.169

LANNA, Ana L. D. A transformação do trabalho: a passagem para o trabalho livre na Zona


169

da Mata mineira, 1870-1920. Campinas: Editora da UNICAMP; Brasília: CNPq, 1988, p. 107.
149
XXI

O complexo cafeeiro

No que consiste o assim chamado “complexo cafeeiro”? Basicamente, trata-se

de um conjunto de processos empresariais múltiplos e paralelos, os quais se expandem a

partir dos anos de 1870. Em suma, é a diversificação dos investimentos, refletindo o

150
ampliação do movimento e do dinamismo do capital paulista, cujas bases estruturais

estão na elevação das exportações de café. É a produção deste gênero, portanto, que

promove o desenvolvimento econômico do Brasil na passagem do século XIX para o

XX. Como afirma Sérgio Silva, “A partir da década de 1870, e sobretudo a partir de

1880, [...] o café torna-se o centro motor do desenvolvimento do capitalismo no

Brasil.”170

Uma vez definido o conceito de complexo cafeeiro, convém traçar um quadro

sobre as origens desse fundamento econômico. Ele nasce a partir do esgotamento dos

solos no Vale do Paraíba (primeira região com sólida produção de café no país), que é

sucedido por uma lógica diminuição nos rendimentos marginais. Por mais que a velha

zona cafeicultora tenha servido de inspiração literária para Monteiro Lobato em fins do

século retrasado, o quadro econômico e produtivo era lastimável. É o que nos mostra

Pierre Monbeig:

[...] Taubaté, Pindamonhangaba, Jacareí, Bananal e São José dos Campos

conservavam, cada um, de 3 a 9 milhões de cafeeiros. Mas a produção, por

outro lado, atesta uma baixa contínua [...]. Ravinadas pela erosão, mal

cuidadas por uma mão de obra insuficiente desde a abolição da escravatura,

os cafezais do vale do Paraíba detinham os mais baixos rendimentos de todo

o Estado [...]. [...] 2 arrobas por 1.000 pés em Jacareí, 16 em Bananal, 18

em Pindamonhangaba e um máximo de 30 em São José dos Campos. Nada

mais se poderia esperar dessa região, pelo menos para o café.171

A partir de então, as plantações do gênero seguem rumo a oeste da província de São

Paulo. Irão consolidar-se na região que compreende a cidade de Jundiaí.

170
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega,
1976, p. 49.
171
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Polis, 1984, p.
167-172.
151
Um dos principais e primeiros fatores que contribuíram para a constituição do

complexo cafeeiro foi a construção das ferrovias que partiam do Oeste novo para o

porto de Santos (que passava a ser, na passagem para o século XX, o principal ponto de

escoamento do produto no Brasil). De início, na década de 1860, o quadro era

desanimador, sendo rara a existência de estradas carroçáveis. As dificuldades eram

tantas que davam aos custos a terça parte do preço final do café. Veja a descrição de

Emília Viotti da Costa:

Até então [anos de 1860], eram excepcionais na Província de São Paulo as

estradas carroçáveis. As que existiam, em geral, possibilitavam apenas a

passagem de tropas de burro. Algumas não mereciam sequer o nome de

estradas: eram veredas por onde mal passavam as tropas, em alguns pontos

tão estreitas que tinham apenas largura necessária para uma mula

carregada. Nesses lugares, ao cruzarem-se duas tropas, era necessário que

uma delas recuasse, o que dava margem a brigas e ocasionava transtornos

desagradáveis. Em 1838, o Presidente da Província de São Paulo mandou

engajar, na Europa, cem trabalhadores e dois mestres, além de canteiros,

pedreiros, calçadores de estrada, ferreiros, carpinteiros, para serem

empregados no serviço de construção e conservação de estradas e pontes da

Província. Os colonos chegaram de fato a vir, mas acabaram, como os

demais, por se dispersar, abandonando os serviços para os quais haviam

sido contratados.172

A partir da década de 1870, a economia cafeeira sofre importantes inflexões que

acabaram por alterar o quadro logístico da produção do gênero de exportação. É nesse

momento que o preço do escravo paulista se eleva. Ao mesmo tempo, o café se

espalhava pelo interior e ficava mais distante do litoral. Era necessário, vista a

confluência desses dois elementos, transformar, ou melhor, aprimorar a situação das

172
COSTA, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 101.
152
estradas para que o crescimento dos custos não acabasse por inviabilizar a lucratividade

dos empresários do complexo. Nesse sentido, a expansão ferroviária viria como forma

de superação da crise dos transportes. Ao mesmo tempo, dada a base ainda escravista de

nossa economia, o uso de trabalhadores imigrantes assalariados na construção das

estradas de ferro acentuaria ainda mais os problemas referentes à já referenciada

“questão da mão-de-obra”.

Essa expansão ferroviária seria sustentada pelas concessões fornecidas ao capital

externo, por parte das províncias e do governo central, para a construção das estradas no

território paulista. Assim, apesar de tais medidas já estarem presentes na jurisdição

brasileira desde os anos de 1830, é em 1852 que ocorre a primeira concessão efetiva

dada ao empresário estrangeiro: a Lei nº 641 garantia aos empreendedores o pagamento

incondicional de juros com taxa de 7,0 % (5% provenientes do Império e 2% originários

da província). Flávio Saes nos fornece um bom panorama sobre como essa política de

concessões ancoradas em garantias de juros favoreceu o espalhamento inconteste das

empresas estrangeiras no ramo da construção civil paulista:

O exemplo da Estrada de Ferro Baía ao São Francisco é típico: Joaquim

Alves Branco Muniz Barreto obteve, em 19 de dezembro de 1853, a

concessão para o trecho inicial da linha; já em 9 de junho de 1855 o Decreto

1614 aprova os Estatutos da Bahia and São Francisco Railway Company,

organizada na Inglaterra, que absorvera a concessão inicial de Muniz

Barreto. Dessa forma, ao longo da segunda metade do século XIX vamos

encontrar muitas empresas ferroviárias estrangeiras no Brasil e cujo

principal atrativo (senão o único) era a Garantia de Juros agregada à

concessão da via férrea.173

SAES, Flávio A. M. de. A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira: 1850-
173

1930. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 31.

153
É importante ver, com base no que já foi exposto, que a expansão das vias

férreas na segunda metade do século XIX é reflexo de um processo fundamental pelo

qual passava a economia global: a ampliação e a consolidação de largos fluxos de

capitais entre o centro e a periferia mundiais, marcando um novo estágio no

desenvolvimento do modo de produção capitalista, que era exatamente o que veio a ser

chamado de imperialismo.174 O capital financeiro ganhava cada vez mais importância

nas relações econômicas e evidentemente deixou sua marca sobre a produção paulista,

tornando-se deveras influente nas direções tomadas pelo capital cafeeiro. Uma amostra

disso é que os próprios fazendeiros do café possuíam participações acionárias na

construção de ferrovias, derivando altos rendimentos desse setor da construção civil.

Confira o que nos aponta Silva quanto a esse novo patamar alcançado pelo capital

financeiro:

A partir da segunda metade do século XIX, o capital não se limita mais, ao

nível internacional, à troca de produtos; ele se apropria da própria

produção ao nível mundial. A partir desse momento, o desenvolvimento do

comércio internacional torna-se apenas uma parte (aspecto subordinado) do

desenvolvimento capitalista (da produção capitalista) em escala

internacional. É aliás por essa razão que o comércio mundial passa a

desenvolver-se num ritmo sem precedentes. [...] o que devemos destacar

nessas transformações não é o próprio desenvolvimento do comércio

internacional [que também ocorre], mas justamente o fato de que o comércio

deixa de ser o aspecto principal das relações econômicas internacionais. A

passagem do capitalismo a um estágio superior do seu desenvolvimento, se

caracteriza precisamente [...] pelo papel dominante que a partir dessa época

passa a ser desempenhado pelas exportações de capitais.175


174
Sobre o assunto, convém ler o célebre texto de Vladimir Lenin: Imperialismo, fase superior
do capitalismo.
175
SILVA, Sérgio. Op. cit., p. 30. É importante, numa análise retida ao caso paulista, ressaltar
que, de acordo com o próprio autor, o comissariado do porto de Santos (representantes do
capital comercial brasileiro) nunca conseguiu exercer forte influência sobre os interesses dos
154
Um outro elemento que moldou as bases de expansão do café foi o

fortalecimento de um sistema creditício, marcando a transição do domínio dos capitais

comercial e usurário176 para o do capital bancário como principal mecanismo fornecedor

de crédito para a produção agrícola. É justamente a partir dos anos de 1880, o sistema

paulista de crédito, com prazos mais vantajosos e taxas de juros mais aprazíveis, ganha

força e torna-se o principal centro irradiador de recursos monetários para a cultura do

café no interior.

É importante ressalvar que essa expansão do capital bancário e, em

consequência, do sistema creditício não se deixou subordinar pela política monetária do

governo imperial. Isso porque o crescimento da produção de café não foi acompanhado

de uma elevação na expansão de moeda. Não obstante, os efeitos do multiplicador dos

meios de pagamento foram notáveis: as contas nos bancos (em que estão inclusas as

letras a prêmio e os depósitos) chegaram a decuplicar no período que vai de 1875 até

1887.

fazendeiros paulistas. Era um caso inverso àquele típico do Vale do Paraíba numa época
anterior.
176
No caso do capital comercial, o comerciante fazia as vezes de “banco”, indo além de mero
intermediário entre produção e consumo, passando a adiantar recursos. No caso do usurário, é a
típica relação capitalista individual, em que o emprestador garante recursos ao produtor, com
certeza de um rendimento oriundo dos juros.
155
SEGUNDA PARTE

XXII

A proclamação da República

156
O processo de queda da Monarquia Brasileira, passando pela substituição desta

por uma República Federativa, engloba um rico arcabouço historiográfico dentro do

qual questões fundamentais são discutidas no que se refere ao Quinze de Novembro. 177

Uma delas, e talvez a mais importante, é sobre quais teriam sido os principais

motivadores da ruptura política na passagem da década de 1880 para a de 1890. Nesse

sentido, balizaremos nossa análise no contraponto de Emília Viotti da Costa (célebre

historiadora, responsável por publicações importantes sobre a Independência e a

Proclamação nos anos de 1960) à historiografia tradicional sobre esse período,

hegemônica na passagem do século retrasado para o passado.

Antes de entrarmos de fato nessa discussão historiográfica, porém, é importante

delinear o quadro geral da economia brasileira nesse momento de transição. Com

relação a nossa pauta de exportações, não é surpresa para ninguém que o café ocupava o

grosso de nossas operações no comércio internacional. Nos anos de 1840, o gênero era

responsável por cerca de 40% das nossas vendas para o exterior. Cinco décadas depois,

o percentual sobe para pouco mais de 60%. Uma composição tal como essa de nossas

exportações deixa clara a vulnerabilidade de nossa economia, naquele período, a

quaisquer choques negativos no mercado mundial de commodities. E quando ele

realmente aconteceu, já no período final do Império, o Brasil acabou sofrendo uma

defasagem na balança comercial. O nível das exportações evidentemente diminuía logo

após o choque. A defasagem se dava em função da permanência do quadro de

importações por um período mais prolongado. Chegávamos a uma situação de déficit na

balança comercial, culminando, dada a estrutura sistêmica da economia nacional, numa

desvalorização cambial que, internamente, produzia um aumento da inflação. A

desvalorização estimulava as exportações do café, garantindo, assim, os lucros dos

177
Claramente faço referência à data oficial de proclamação da República (quinze de novembro
de 1889).
157
fazendeiros. Do ponto de vista do restante da população, porém, que consumia uma

enorme soma de bens importados, havia uma perda de renda, em termos reais, e de

poder de compra, justamente por conta do aumento do nível de preços. Esse fenômeno

peculiar de nossa economia no século XIX foi chamado por Celso Furtado de

“socialização das perdas”.

O país passava também pela consolidação do chamado complexo cafeeiro. Ao

mesmo tempo em que, com o aumento das exportações após a desvalorização cambial,

se introduzia massivamente a mão-de-obra imigrante livre e assalariada (é a passagem

do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista no Brasil), as

regiões produtoras de café sofriam intensa modernização da infraestrutura. Ferrovias

eram construídas, assim como novos bancos, essenciais para o financiamento tanto da

produção quanto de nossa malha ferroviária.

Um outro elemento importante que merece atenção além desses já tratados é o

da diversificação da economia brasileira no final do século XIX. Mesmo que de forma

ainda muito incipiente, o país assiste a uma expansão da produção de borracha no

norte178, a uma recuperação da cultura do açúcar no nordeste após praticamente dois

séculos de letargia e involução econômica, a uma ramificação da própria produção de

café (introduzindo-se lentamente em Minas Gerais e nas terras do atual norte

paranaense) e, finalmente, a uma elevação da importância qualitativa da pecuária sulina.

Finalmente, é importante ressaltar que, até 1889, a política monetária brasileira

era marcada por uma enorme adstringência, com baixíssimos níveis de liquidez

econômica. A contração da base monetária e a consequente escassez de meios de

Não só a borracha, mas também o fumo e a erva-mate foram commodities que tiveram suas
178

pautas de exportação ampliadas no final do século XIX.


158
pagamento disponíveis gerava um quadro complicado de dívida externa. É o que nos

mostra Furtado:

A política monetária do governo imperial nos anos oitenta, traumatizada

pela miragem da “conversibilidade”, por um lado conduzia a um grande

aumento da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em

regime de permanente escassez de meios de pagamento.179

Traçado o quadro geral da economia brasileira nos momentos imediatamente

anteriores ao Quinze de Novembro, podemos agora nos debruçar com mais atenção às

discussões sobre quais teriam sido os determinantes da Proclamação da República.

A historiografia tradicional sobre a Proclamação, da qual um dos grandes

expoentes foi Oliveira Vianna, focaliza seu olhar nas chamadas Questões Militar,

Religiosa e da Abolição. As três em conjunto teriam abalado as estruturas basilares de

nossa monarquia, indispondo, simultaneamente, os bispos, os fazendeiros sustentados

pelo trabalho escravo e os homens fortes do exército nacional. A confluência desses três

elementos de instabilidade teriam dado poder de organização aos militares, os quais

foram os principais responsáveis pela deposição da Família Real brasileira em 1889.

Veja como a própria Emília Viotti, que nos anos de 1960 realizaria um importante

trabalho de revisão sobre o período, traça a metodologia empregada pelos historiadores

canônicos do Quinze de Novembro:

É opinião corrente que a proclamação da República resultou das crises que

abalaram o fim do Segundo Reinado: a Questão Religiosa, a Questão Militar

e a Abolição. Afirma-se que a prisão dos bispos do Pará e de Pernambuco

incompatibilizou a Coroa com extensas camadas da população. A Abolição,

por sua vez, indispôs os fazendeiros contra o regime, levando-os a aderir em

massa às ideias republicanas. Finalmente, a Questão Militar, que se vinha


179
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1970, pp. 170.
159
agravando desde a Guerra do Paraguai em virtude do descontentamento

crescente dos militares em relação ao tratamento que lhes dispensava o

governo, levou-os a tramar o golpe de 15 de novembro que derrubou a

Monarquia e implantou o regime republicano no país. [...] Utilizando

documentos testemunhais os historiadores elaboraram uma crônica pouco

objetiva dos fatos que culminaram com a proclamação da República, e

muitos continuam a repeti-la até hoje. Sabemos, no entanto, como são

deformados e incompletos os depoimentos dos que vivem um momento

revolucionário, seja por interesse, seja por paixão, seja por ignorância ou

por falta de informações exatas, seja pela dificuldade de abarcar o processo

como um todo, nas suas múltiplas contradições.180

De fato, a forma clássica de tratar da proclamação se dá com base num

sequenciamento puramente lógico e nem um pouco dialético. Em linhas gerais, cada um

dos elementos cruciais do “tripé monárquico” foi sendo derrubado um após o outro em

função dessas Questões que nada mais seriam do que momentos de instabilidade

política. Com a queda definitiva do tripé, caia junto a Família Real brasileira.

Assim, se a historiografia tradicional já não mais satisfazia aos estudos

históricos sobre a proclamação da República em meados do século XX, então qual teria

sido a proposta chave de Viotti para reinterpretar o processo sob novas lentes? Imbuída

de uma metodologia marxista, pelo menos nos aspectos mais essenciais de seus

trabalhos, a autora se propõe a entender como as transformações socioeconômicas

estruturais ocorridas ao longo da segunda metade do século retrasado forneceram o

fundo material necessário para o processo de derrubada da monarquia. 181 Nesse sentido,
180
COSTA, E. V. da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Fundação
Editora UNESP, 1999, p. 447-449.
181
Cf.: “Nenhuma revolução é feita em nome de ideias que não tenham alguma receptividade e
as razões que explicam por que certas ideias surgem ou vencem em determinado momento só
podem ser entendidas quando se analisa a realidade vivida pelos homens que lutam a favor ou
contra elas. A proclamação da República é o resultado, portanto, de profundas transformações
160
a transição da escravidão ao trabalho livre e assalariado, em que pesou a imigração

europeia para as lavouras de café no sudeste, assim como o fortalecimento relativo do

mercado interno num contexto de diversificação da economia são fatores fundamentais

para que possamos entender bem o Quinze de Novembro. A partir de tais mudanças,

novos grupos foram ganhando força, com novos interesses político e econômico,

solapando gradualmente as forças hegemônicas até então. Trata-se das classes médias

urbanas, dos industriais que paulatinamente começavam a surgir em São Paulo e no Rio

de Janeiro, assim como dos novos fazendeiros comumente chamados de

“progressistas”.182 Formava-se, com base nessas transformações, uma contradição

explosiva na sociedade brasileira. O equilíbrio de forças se rompia e um pacto

federativo republicano estava por vir como “solução” para o problema. Veja nas

palavras da própria autora:

A decadência das oligarquias tradicionais, ligadas à terra, a Abolição, a

imigração, o processo de industrialização e urbanização, o antagonismo

entre zonas produtoras, a campanha pela federação contribuíram para

minar o edifício monárquico e para deflagrar a subversão. [...] Diante de

tantas contradições a solução parecia estar no sistema federativo. A

excessiva centralização que caracterizava a administração imperial

desgostava uma parcela da opinião pública que considerava tal sistema um

entrave ao desenvolvimento do país e à solução dos problemas mais

urgentes. A ideia federativa adquiria assim maior prestígio.183

Vemos que, de fato, é nos anos de 1960 que a historiografia sobre a proclamação

da República ganha um caráter mais “robusto”. Não obstante, já na década de 1930 com

que se vinham operando no país.” Idem, p. 451.


182
É importante ressaltar que a nomenclatura usada nesse caso não é unânime. Isso porque
muitos desses latifundiários fizeram bom proveito do trabalho escravo compulsório até que se
tornasse vantajoso pleitear a abolição, quando o trabalho livre já era muito mais promissor
economicamente. Assim, seria no mínimo questionável chamá-los de “progressistas”.
183
COSTA, E. V. da. Op. cit., p. 470.
161
Caio Prado Júnior, a metodologia tradicional sofria questionamentos importantes. Para

o autor de Formação do Brasil Contemporâneo, a nova dinâmica econômica da segunda

metade do século XIX, da qual a questão da transição dos modos de produção no Brasil

é um grande exemplo, e seu descompasso com o funcionamento das instituições

imperiais teriam sido o ponto de inflexão que culminou com a fundação da República.

De acordo com Prado:

A história do segundo reinado nos fornece em toda sua evolução as mais

evidentes provas de que as instituições imperiais representavam um passado

incompatível com o progresso do país [...] A questão servil é disto o mais

frisante exemplo.184

É interessante notar como essa afirmação se aproxima muito do panorama

traçado por Furtado em 1959 na sua Magnum opus:

A incapacidade do governo imperial para dotar o país de um sistema

monetário adequado, bem como sua inaptidão para encaminhar com firmeza

e positivamenmte a solução do problema da mão-de-obra, refletem em boa

medida divergências crescentes de interesses entre distintas regiões do país.

Nas etapas anteriores, mesmo que fossem reduzidas as relações econômicas

entre essas regiões, nenhuma divergência de interesses fundamentais as

separava. No norte e no sul as formas de organização social eram as

mesmas, as classes dirigentes falavam a mesma linguagem e estavam unidas

em questões fundamentais, como fora o caso da luta pela manutenção do

tráfico de escravos. Nos últimos decênios do século as divergências

começam a aprofundar-se. A organização social do sul transformou-se

rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de

café e nos centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região da

colonização das províncias meridionais.185

184
JÚNIOR, C. Prado. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. 1933, p. 91.
185
FURTADO, C. Op. cit., p. 171.
162
Dado o quadro explosivo de contradições engendradas na própria sociedade brasileira

em seu fundo material, era de se esperar que cedo ou tarde ganhasse força um

movimento de caráter republicano que questionasse os fundamentos da monarquia

brasileira. Em 1873 é fundada a Convenção Republicana na cidade de Itu. Composta

majoritariamente de fazendeiros paulistas do Oeste Novo (aqueles que chamamos de

“progressistas” páginas acima) e de elementos da classe média urbana fluminense, a

organização ganha força na década final do Império com a adesão da imprensa em prol

da mudança no regime institucional.

Compreendendo bem a crise em que se colocou a monarquia, os homens fortes

da Família Real logo idealizaram um pacote de reformas ditas “estruturais” com o exato

objetivo de arrefecer o movimento republicano. 186 Conhecidas como Reformas de Ouro

Preto, o conjunto de propostas a serem analisadas no Congresso englobavam a

ampliação da representação eleitoral, a temporariedade do Senado (que antes, como

sabemos, era de caráter vitalício), a liberdade de culto e de ensino, uma mudança na Lei

de Terras, assim como uma maior autonomia para as províncias e municípios.187

O pacote descrito acima, mesmo que bastante “inovador” para os padrões

monárquicos da política brasileira da época, não foi capaz de impedir a intensificação da

186
Veja como o próprio Visconde de Ouro Preto compreendeu a complicada conjuntura política
nacional: “Vossa Majestade terá seguramente notado que em algumas províncias agita-se uma
propaganda ativa cujos intuitos são a mudança da forma de governo. [...] No meu humilde
conceito é mister não desprezar essa torrente de ideias falsas e imprudentes cumprindo
enfraquecê-la, inutilizá-la, não deixando que se avolume. Os meios de consegui-lo, não são os
da violência ou repressão, consistem simplesmente na demonstração prática de que o atual
sistema de Governo tem elasticidade bastante para admitir a consagração dos princípios mais
adiantados (...). Chegaremos a este resultado, senhor, empreendendo com ousadia e firmeza
largas reformas na ordem política, social e econômica, inspiradas na escola democrática.
Reformas que não devem ser adiadas para não se tornarem improfícuas. O que hoje bastará,
amanhã talvez seja pouco.” Apud. COSTA, E. V. da. Op. cit., p. 486.
187
É importante ressaltar que as Reformas tinham o intuito não só de esfriar as pressões
republicanas, mas também de frear o movimento federalista, que surge exatamente por conta da
pouca autonomia dada às Províncias nos anos da monarquia.
163
demanda por uma república. De um lado, os conservadores do Império reclamavam que

o pacote era demasiado radical. Na outra ponta, os republicanos viam as propostas como

insuficientes. Todo o receio que se formou em torno das Reformas de Ouro Preto fez

com que apenas a Lei Bancária fosse aprovada no Congresso.

Nenhuma reforma proposta foi capaz de eliminar a pressão republicana. Com o

apoio de boa parte do exército, era praticamente inviável que a monarquia se

sustentasse. A estrutura material brasileira, elemento decisivo em última instância na

transformação do quadro socioeconômico e político, já não mais comportava um

Império. A elite monárquica é então substituída pela elite republicana.

XXIII

O processo político partidário na Primeira República

A mudança do regime político brasileiro no final do século XIX, como

analisamos anteriormente, trouxe junto a ela uma série de consequências importantes. A

nova elite que se apossou do poder transferiu o centro de decisão da União para os
164
Estados (antes denominados Províncias). A república, uma vez ancorada nos princípios

do federalismo e do presidencialismo, tinha como núcleo duro do poder as oligarquias

estaduais.188 Isso se comprova inclusive pela ausência de partidos nacionais. Ao longo

dos 40 anos que englobaram nossa primeira fase republicana, as agremiações que irão

ditar a ordem do dia serão estaduais, a saber: o PRP (Partido Republicano Paulista) e o

PRM (Partido Republicano Mineiro), seguidos de perto pelos gaúchos.

Toda essa vasta autonomia que foi dada aos Estados com o fim do Império é

confirmada com a Constituição de 1891. Com base nela, as unidades da federação

tinham permissão para contrair empréstimos no exterior, gravar impostos sobre

exportações, promulgar constituições próprias, dispor de corpos militares próprios e

elaborar códigos eleitorais e judiciários próprios.

Enganam-se aqueles, entretanto, que ingenuamente acreditam que a passagem da

monarquia para a República se deu sem contratempos. Toda transição em que se

envolvem as facetas política e socioeconômica de uma comunidade é marcada por

instabilidades e mudanças profundas no caminho previamente trafegado por aquela

sociedade, a qual toma uma nova direção após o imbróglio transitório. A eleição de

Deodoro da Fonseca, tendo Floriano Peixoto como vice, em 1891 foi acompanhada de

ferrenha oposição por parte dos paulistas, que haviam lançado a candidatura de

Prudente de Morais. Ora, é natural que, com a vitória de uma figura indesejada, passasse

a existir um descompasso entre a representatividade no Congresso e os interesses dos


188
Os chefes dos Estados tinham pesada influência inclusive sobre os dirigentes locais, também
conhecidos como “coronéis”, incumbidos de controlar a massa ao redor (o chamado curral
eleitoral) e forçá-la a eleger o candidato do partido local, o que não era difícil uma vez que o
voto era aberto. Todo o processo eleitoral era condicionado pelo fenômeno do “coronelismo”,
apesar de, no regime republicano, os critérios monárquicos, inclusive o pecuniário, terem sido,
com exceção da exclusão dos analfabetos, abandonados. Dava-se a aparência, com isso, de uma
ampla representatividade eleitoral, a qual se colocava, junto ao presidencialismo e ao
federalismo, como um dos pilares da República. Cf. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O
processo político-partidário na Primeira República. In MOTTA, C. G. Brasil em perspectiva.
São Paulo: DIFEL, 1971, p. 163.

165
principais Estados. A oposição então só aumenta e, com a intenção de brecá-la, Fonseca

afasta opositores das juntas governativas. Incapaz de reduzir a instabilidade, o

presidente acabou por fechar e dissolver o Congresso Nacional, o que minou ainda mais

sua sustentação, levando-o a renunciar ainda em 1891, episódio que se deu

concomitantemente ao afastamento de uma série de militares. Com isso, o novo

presidente do país passa a ser Floriano Peixoto.

O segundo governo continuou assombrado pela instabilidade política, mas esta,

por sua vez, dava sinais mais claros de que iria diminuir. O sufocamento das revoltas

monarquistas da Armada e Federalista é uma amostra convincente de maior coesão no

exército, o que dava à República uma maior segurança para sua sobrevivência. Esse

fortalecimento do regime se deu também pela via do apoio paulista, uma vez que o PRP

já havia lançado Floriano como vice de Prudente de Morais antes da eleição de

Deodoro.

Com a eleição de Prudente de Morais em 1894, temos a presidência sendo

chefiada por um civil pela primeira vez. Não obstante, a homogeneidade no Congresso

ainda era uma miragem: os conflitos entre os Estados e dentro dos partidos que os

representavam dificultavam e muito um corpo coeso de deputados e senadores. É só

com a passagem de bastão para Campos Sales, outro paulista, e, portanto, com uma

continuidade política que refletia os interesses do PRP que a República terá de fato uma

vida mais tranquila. É importante, portanto, entender como o governo de Campos Sales

foi capaz de, no plano político, esfriar as tensões que rondavam o novo regime.

É fundamental, no que diz respeito ao mandato de Campos Sales, compreender

as alterações feitas na Lei de Verificação dos direitos e da diplomação de deputados e

senadores. Se anteriormente isso era de responsabilidade do Poder Judiciário, a partir de

Campos Sales, e assim será até o início da Era Vargas, é o poder Legislativo que estará

166
encarregado de diplomar seus membros. Convém entender o quão habilmente essa

alteração funcionou como mecanismo de controle eleitoral. Isso porque, na prática,

somente os candidatos eleitos da situação, ou seja, dos Estados que detinham a

hegemonia no movimento político, é que acabavam sendo empossados, possuindo assim

plenos poderes para exercer as funções que lhes cabiam. O Congresso Nacional, a partir

de então, passa a depender quase totalmente dos interesses das principais unidades

federativas (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, em menor medida, Rio de

Janeiro). Se por um lado o terceiro presidente deu a República uma duradoura

estabilidade e uma importante homogeneidade entre deputados e senadores, ele também

fez com que os próximos chefes do executivo se tornassem inteiramente dependentes

dos interesses dos principais governadores. Completava-se, com isso, a já mencionada

transferência de poder da União para os Estados, culminando na chamada Política dos

Governadores. O que foi falado no parágrafo pode muito bem ser ilustrado pelas

palavras de Maria do Carmo Campello de Souza:

Ante o perigo de lutas e de um Congresso fracionado como os anteriores,

decidiu Campos Sales garantir-se o suporte das grandes bancadas de Minas,

São Paulo e Bahia e, fundado em mudança do Regimento Interno da

Câmara, impor ao Congresso uma certa linha de conduta na fase de

reconhecimento dos poderes. Definia-se ela por reconhecer somente os

diplomas dos candidatos eleitos pelas situações no poder naquele momento

dos respectivos Estados, não importando a que grupo pertencessem [...]. No

nível nacional, sob a hegemonia dos Estados mais fortes, Minas Gerais e

São Paulo, desenrolava-se o processo político: um ajustamento e

compromisso entre todos os Estados da Federação para a escolha do

presidente da República, ponto crucial e quase único importante no quadro

da vida republicana.189

189
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. cit., p. 181.
167
É importante notar que os principais Estados (São Paulo e Minas Gerais) que regeram o

processo político-partidário na Primeira República eram, como pode-se esperar, os que

ditavam a atividade econômica e que levaram o quadro agroexportador da economia

brasileira para um outro patamar com a produção de café. Nas palavras de Caio Prado

Júnior:

Os anos que se seguem e o primeiro decênio do século atual assinalam o

apogeu desta economia voltada para a produção extensiva e em larga

escala, de matérias-primas e gêneros tropicais destinados à exportação, e

que vimos em pleno crescimento no período anterior.190

XXIV

A política monetária na primeira década republicana

Traçado o quadro geral do processo político que engloba a constituição e a

consolidação do regime republicano no Brasil, podemos enfim discutir os caminhos da

política econômica e monetária nos anos iniciais da República Velha.


190
PRADO JUNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 207.
168
A primeira condição para abordar a problemática de modo adequado é entender

que toda a política econômica empreendida na primeira década republicana está

condicionada pela crise da economia brasileira no final do Império. Nesse sentido,

sobreleva-se a influência da transição do modo de produção escravista-colonial para o

assalariado em fins do século XIX. É essa transformação estrutural que impõe a nossa

economia uma maior flexibilidade monetária. Isso porque, com a abolição de 13 de

maio de 1888, o grosso da mão-de-obra não é mais de trabalhadores-mercadoria, mas

sim de trabalhadores-consumidores, os quais vendem sua força de trabalho em troca de

salários. Há, com isso, uma ampliação substancial do fluxo de renda no Brasil, levando

aos agricultores e proprietários fundiários maior necessidade de linhas de crédito. Veja

que a transição entre os modos de produção na economia nacional produz dois efeitos

que atuam conjunta e simbioticamente no aumento da demanda por moeda no Brasil.

Existe, porém, um enorme obstáculo que impede o imediato atendimento de tal

procura monetária. Trata-se da característica adstringência de moeda no país, tônica dos

anos imperiais. Esta, por sua vez, era agravada pelo frágil sistema bancário brasileiro do

período: estava fora dos costumes da população brasileira o apelo aos bancos, o que

acaba tirando destes boa parte do poder de multiplicação monetária. Podemos ter uma

ilustração desse quadro a partir de um depoimento do jornal The Economist, datado de

1890, sobre a relação da população brasileira com os bancos:

[...] era raro o uso de cheques, com hábito comum ali de reterem os

indivíduos em seu poder largas quantias em vez de depositá-las em bancos.

Os pequenos negociantes, os taverneiros, por exemplo, no Rio de Janeiro,

apenas excepcionalmente depositam nos estabelecimentos. De ordinário

preferem ter consigo seu dinheiro até a época de pagamentos (...),

169
satisfazendo então os seus débitos com as somas acumuladas em casa no

decurso de seis a nove meses.191

Se numa estrutura ancorada na escravidão a baixa liquidez de nossa economia não se

fazia sentir, a passagem para o trabalho assalariado provocou graves crises de liquidez.

Nem mesmo uma expansão da base monetária em 25 mil contos de réis feita por Ouro

Preto foi capaz de amenizar o problema. 192 Em suma, o quadro monetário se mostrava

completamente antiquado para as transformações produtivas pelas quais passou o

Brasil. Nas palavras de Celso Furtado:

O sistema monetário de que dispunha o país demonstrava ser totalmente

inadequado para uma economia baseada no trabalho assalariado. [...] Era

totalmente destituído de elasticidade e sua expansão anterior havia resultado

de medidas de emergência tomadas em momento de crise, ou do simples

arbítrio dos governantes.193

Era clara a incompatibilidade entre oferta e demanda de moeda no país e já em 1887 se

reclamava em alto tom de voz por uma maior flexibilidade monetária em nossa

economia.194

A política econômica no início da vida republicana, portanto, tem como pano de

fundo essa quadro monetário extremamente desconfortável. Uma série de medidas com

ênfase no atendimento à ampliada demanda por moeda são colocadas em discussão no

Congresso a partir dos planos do então ministro da fazenda Rui Barbosa. O primeiro

191
Apud. FRANCO, Gustavo H. B. A primeira década republicana. In ABREU, Marcelo de P.
A ordem do Progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2014, p. 34.
192
Cf.: “Além do padrão-ouro, a outra importante medida de política econômica tomada por
Ouro Preto seria a criação dos chamados auxílios à lavoura. Tratava-se de um vasto programa
de concessão de crédito destinado a servir como compensação aos ex-proprietários de escravos
[...] o programa resultou em uma distribuição bastante seletiva dos créditos que favoreceria em
última instância [...] ‘a lavoura que tivesse condições de vida’.” Idem., p. 37.
193
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 170.
194
FRANCO, Gustavo H. B. Op. cit., p. 36.

170
passo foi um maior fornecimento, por parte do governo federal, de linhas de crédito

tanto para industriais quanto para agricultores.

O elemento mais importante, porém, dessa “virada” na política monetária é a

aprovação de uma nova Lei Bancária. A partir dela, instauravam-se três regiões do

Brasil com autorização para a emissão de meios de pagamento: o Norte, que englobava

os Estados da Bahia até o Amazonas; o Centro, que era composto por São Paulo, Minas

Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina; e o Sul, abarcando o

Mato Grosso, o Rio Grande do Sul e Goiás. As três zonas foram autorizadas a emitir

450 mil contos de réis lastreados em títulos da dívida pública do governo brasileiro.

Pouco tempo depois, outros bancos (Banco do Brasil, Banco Nacional do Brasil e

Banco dos Estados Unidos do Brasil) foram autorizados pelo governo federal a emitir

moeda sem qualquer tipo de lastreamento e sem conversibilidade. O resultado imediato

é mais que previsível: a rápida quantidade de papel-moeda emitido (335 mil contos) era

1,5 vez maior do que toda a quantidade de meios de pagamentos disponíveis até então

para circulação na economia brasileira, provocando rápido aumento no nível de preços.

Veja o gráfico que mostra a expansão vertiginosa de nossa base monetária nos anos em

que Rui Barbosa esteve na chefia do ministério da Fazenda:

171
900.0

800.0

700.0

600.0

500.0

400.0

300.0

200.0

100.0

0.0
85

87

89

91

93

95

97

99
18

18

18

18

18

18

18

18

O aumento imediato da disponibilidade de moeda provocou uma euforia feroz na

economia, a qual se deu também muito em função da aprovação da Lei das Sociedades

Anônimas. Com uma diminuição das restrições para a abertura de empresas, há uma

maior facilidade na abertura de capitais na bolsa. O quadro especulativo que daí se

originou chegou a níveis alarmantes a ponto de se presenciar a inauguração de empresas

fantasmas com ações na bolsa.195

Não é necessária muita perspicácia para ver que a economia caminhava para

uma situação quase catastrófica. A exagerada expansão monetária, somada a uma

intensificação das especulações na bolsa com a feroz abertura de novas empresas sem

195
“Por volta de outubro de 1890, o governo mostra preocupações claras sobre o andamento da
especulação bursátil e chega inclusive a tomar medidas para detê-la através de um decreto
elevando os depósitos mínimos para a constituição de novas sociedades, o que criaria certa
dificuldade na praça. [...] O trabalho de “limpar” as carteiras dos bancos de emissão
preservando os empreendimentos viáveis se estenderia, na verdade, por vários anos.” FRANCO,
Gustavo H. B. Op. cit., p. 39.
172
que a atividade econômica estivesse devidamente preparada para isso, provocou um

quadro de elevada inflação e pesada desvalorização cambial. O gráfico abaixo mostra

exatamente a correlação entre a ampliação desmedida da base monetária e a

desvalorização cambial:196

900.0 30.000

800.0
25.000
700.0

600.0 20.000

500.0
15.000
400.0

300.0 10.000

200.0
5.000
100.0

0.0 0.000

A grave crise econômica em que se encontrava o país tornava insustentável a

permanência de Rui Barbosa como ministro da Fazenda. Depois do jurista, Conselheiro

Araripe e Barão de Lucena evitaram controlar a expansão monetária muito por conta da

falência do Baring Brothers e da moratória argentina, que se somavam à intensa crise

política. Todos esses fatores agravavam ainda mais a desvalorização cambial e a

inflação consequentemente. De acordo com Franco:

Ruy Barbosa deixaria a pasta da Fazenda no começo de 1891 e seria

sucedido pelo conselheiro Alencar Araripe [...] e em seguida pelo Barão de

196
Em laranja temos a taxa de câmbio em pence/mil-réis, ao passo que a curva azul aponta para
a base monetária
173
Lucena. Ambos eximiram-se de proceder ao saneamento do grande instituto

emissor recém-criado, com isso se abstendo de arrefecer o fervor

especulativo reinante. Não resta dúvida, por outro lado, de que influências

“exógenas”, ligadas aos efeitos sobre as entradas de capital no Brasil do

colapso da casa Baring Brothers e, Londres, em outubro de 1890, e da

moratória argentina, teriam grande influência sobre o mercado de câmbio

no Brasil em 1891.197

Os rumos da política econômica mudam com a eleição de Campos Sales e a

nomeação de Joaquim Murtinho para o ministério da Fazenda. Seria levada a cabo uma

conduta de saneamento monetário. O projeto seria construído a partir de um grande

empréstimo externo tomado junto à Casa dos Rothschild, consolidando a dívida pública

sem a necessidade de maiores emissões não lastreadas. Como garantia de que a

contrapartida brasileira, o saneamento, fosse devidamente realizada, o Brasil colocava a

arrecadação alfandegária com as transações correntes. O plano recebeu o nome de

funding-loan.198 É inegável o efeito da política contracionista de Murtinho sobre a queda

no nível de preços e também sobre a valorização cambial. A política monetária deixaria

para trás seu caráter inflacionista e assumiria uma postura visivelmente deflacionista,

com uma redução de 13,5% do meio circulante entre 1898 e 1902 e uma concomitante

queda de 30% do nível de preços da economia. O principal efeito colateral do

saneamento, porém, foi a falência de considerável porção do sistema bancário, adaptado

à antiga Lei Bancária dos anos de Barbosa e que subitamente teve uma diminuição

brutal de suas reservas.199

A continuação da política de saneamento no início do século XX, porém, traria

frutos positivos para a economia brasileira a partir de 1903. Tem-se início, no governo

197
FRANCO, Gustavo H. B. Op. cit., p. 40.
198
Idem, p. 43.
199
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira.
Brasília: IPEA, 1973, p. 106.
174
de Rodrigues Alves, uma retomada do crescimento econômico, impulsionado também

pela maior participação do Estado na economia, com robustos investimentos públicos

(financiados com empréstimos externos) em infraestrutura logística que acabaram por

acelerar a atividade econômica e inclusive possibilitar o aquecimento de nosso jovem

ambiente industrial. O que acabamos de dizer é bem ilustrado por Villela e Suzigan:

[...] apesar de a política econômica, seguida a partir de 1903, ter seguido

basicamente as diretrizes da política depressiva de 1899-1902, deu-se o que

se chamou na época de um período de “reerguimento econômico”. Isso se

deveu unicamente ao fato de ter o Governo, embora ainda preocupado em

manter o equilíbrio orçamentário, iniciado um extenso programa de

investimentos públicos em infraestrutura de transportes e melhoramentos na

Capital Federal. [...] Uma grande parte desses investimentos foi, contudo,

financiada com recursos específicos provenientes de empréstimos externos.

Assim, não foi difícil à política monetária e financeira do Governo manter o

desejado equilíbrio orçamentário e estabilidade monetária, pelo menos até

1907 [...]. Os primeiros anos da República do Brasil são talvez o único

período, antes dos anos trinta, em que a política do Governo manifestou

interesse em promover o desenvolvimento industrial. 200

Com a aceleração no ritmo da atividade, não é surpreendente que houvesse um

igual aumento no nível das exportações de café, amparadas pela renovada estrutura

logística. A defesa dos preços do café (sobre a qual falaremos com muito mais detalhe

posteriormente) na primeira década do século passado também ampliou ainda mais os

rendimentos da agricultura. A poupança gerada pelo setor cafeeiro provocou os

primeiros surtos de industrialização sofridos pelo país, antes do robusto deslocamento

do centro dinâmico a partir de 1930. Mas é importante ressaltar que, como nos mostrou

Furtado, a ausência de base técnica para a industrialização tornaria o Brasil

200
Idem, p. 106.
175
constantemente dependente da importação de bens de capital, a qual seria viabilizada

pelas exportações de gêneros, no caso o café. E foi exatamente isso que aconteceu. 201

Note o aumento da Formação Bruta de Capital Fixo a partir da década de 1900 e que

segue uma tendência ascendente que se intensifica até meados do decênio seguinte

(provocando, assim, uma alteração na nossa composição de importações, nas quais

passou a ter maior peso os insumos ao invés dos bens finais):

1.4000E-09

1.2000E-09

1.0000E-09

8.0000E-10

6.0000E-10

4.0000E-10

2.0000E-10

0.0000E+00
01 903 905 907 909 911 913 915 917 919 921 923 925 927 929
19 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

XXV

A defesa do café

1.) Episódica

201
“É geralmente aceito que a mola propulsora do surto industrial ocorrido em São Paulo, e
provavelmente em outros Estados a partir da República, foi a própria monocultura do café. Ela
gerou as poupanças que os fazendeiros investiram não só em infraestrutura mas também em
atividades industriais substitutivas de manufaturas de consumo importadas, como tecidos,
alimentos, bebidas, etc.” Ibidem, p. 123.

176
Dado que realizamos a análise e a descrição da transição política brasileira,

assim como traçamos um quadro suficiente a respeito da primeira década de política

monetária republicana, podemos adentrar no estudo sobre a defesa dos preços daquele

que era na época nosso principal gênero de exportação: o café. Começaremos, no que

nos aparenta ser mais adequado, delinear os antecedentes da política de valorização.

O mercado cafeeiro, na ausência de qualquer intervenção oficial, possuía um

comportamento cíclico dada a própria natureza da planta. Existe uma expansão inicial

da oferta dado que o cafeeiro produz de forma perene, completando seu ciclo em até

cinco anos. E mesmo assim ele continua produzindo em condições economicamente

viáveis ao longo de mais de uma década, o que faz com que a oferta do gênero dependa

dos preços que se formam não no primeiro ano, mas em momentos anteriores, no início

da cultura. A procura, por sua vez, segue um caminho menos “tortuoso”, dado que

reflete os preços presentes. É claro, com base na explanação, que deveria haver, ao final

do ciclo uma queda no valor do gênero. Esta depreciação, porém, não teria duração por

tempo indeterminado uma vez que outros ciclos de produção poderiam ter início,

havendo então novo ajuste entre oferta e procura. Veja a descrição, sobre o que

acabamos de dizer, feita por Delfim Netto:

É fácil compreender-se porque o mercado cafeeiro deve, em condições

normais, apresentar um comportamento oscilatório. [...] o cafeeiro é uma

planta perene que apenas produz completamente no seu quarto ou quinto

ano de vida e, depois disso, continua produzindo economicamente durante

um número bem variável de anos [...] Nessas circunstâncias, a oferta de café

do ano “t” dependeria, não do preço do café no ano “t”, mas de seu preço

no ano “t-4” (quando a plantação foi realizada) [...]. A procura do café,

177
entretanto, depende, no caso mais simples, somente do preço no ano “t”

[...].202

Considerando a história cafeeira sem quaisquer intervenções oficiais, podemos

identificar três ciclos da produção do gênero. De todos eles, o mais decisivo certamente

é o segundo (1869 – 1885). Isso porque este tem como pano de fundo a expansão das

ferrovias na formação do complexo cafeeiro. A nova estrutura logística teria sido crucial

no novo quadro em que se encontrava a cultura de café: o Oeste Paulista, e não mais o

Vale do Paraíba, era a maior e mais importante zona produtora do gênero. O fim do

tráfico negreiro e da escravidão, que era o eixo norteador da produção dos Vales

paulista e fluminense, concretizaram essa transferência, produzindo graves

desdobramentos para os empresários mais antigos das duas Províncias: arcaram com as

pesadas consequências que se refletiam numa maior necessidade de crédito e de capitais

para o pagamento de salários, num contexto de elevada adstringência monetária nos

anos imperiais.203 Os homens fortes do Oeste, principalmente do Oeste Novo, foram, por

outro lado, capazes de absorver plenamente a onda de trabalhadores assalariados livres e

imigrantes, da qual o empresariado “progressista” tirou excelente proveito.

A passagem da Monarquia para a República, porém, foi marcada por uma

sensível queda nos preços de exportação do café, o qual passava por seu auge, como

pudemos descrever panoramicamente no parágrafo acima. A política monetária de

Barbosa, que culmina na crise do encilhamento, provocou uma pesada desvalorização

cambial, servindo como um “colchão protetor” para os cafeicultores paulistas. Era assim

dado um estímulo inicial para a produção e a subsequente exportação do gênero. Já se

notava, a partir disso, um descolamento da oferta em relação à demanda nos primeiros

anos da década de 1890 (principalmente porque o câmbio descia a taxas muito maiores
202
DELFIM NETTO, Antônio. O problema do café no Brasil. São Paulo: IPE/USP, 1981.
(Ensaios Econômicos, 16), p. 8.
203
Idem, pp. 21 – 23.
178
que o valor do bem).204 A saída do jurista da pasta da Fazenda, no entanto, e o início do

saneamento de Murtinho em meados do último decênio dos oitocentos, reduzindo

consideravelmente a disponibilidade de meio circulante na economia pressionava o

câmbio para uma valorização. Esta, por sua vez, deveria continuar a derrubada dos

preços do café, iniciada com a defasagem, que aumentaria cada vez mais, entre oferta e

procura.205 Veja a ilustração gráfica:

Taxa de câmbio (mil-réis/libra) Preço do café (U$c/lb)


60

40

20

-20

-40

-60

Com a oferta nacional não se encaixando nos limites da demanda mundial (a

qual possuía baixíssima elasticidade preço, o que colocava os rendimentos do setor

cafeeiro brasileiro em risco quando acontecia casos de desequilíbrios no mercado) por

café, já se colocava em pauta a necessidade de intervenções oficiais com o objetivo de

defender os preços do café. Em 1902, temos as primeiras evidências de intervenção

204
Cf.: “O quadro anterior revela a gênese do problema cafeeiro nacional. A coincidência de
uma queda mais rápida do câmbio do que dos preços do café criou condições para a expansão
da cultura cafeeira quando o mercado já não podia absorver a quantidade produzida a não ser a
níveis ínfimos de preços.” Ibidem, pp. 29 – 30.
205
Lembremos da relação que explicita os termos de troca, muito referenciada pelo cepalino R.
Prebisch em seu relatório de 1949: P x/Pm = 1/θ, em que Px é o preço de exportação, P m é o preço
de importação e θ é o câmbio real.
179
estatal na produção cafeeira. O Estado de São Paulo proibiu, no mesmo ano, um

aumento das áreas plantadas de café por todo o seu território. Durante 5 anos a oferta do

bem não poderia ser expandida.206 Mas é apenas em 1906, ano de uma desesperadora

supersafra do café, que a discussão sobre um plano mais robusto de valorização dos

preços do gênero ganhará força. Estamos falando do Convênio de Taubaté, idealizado

pelo governador do Rio de Janeiro Quintino Bocaiúva. As outras duas unidades

federativas que entrariam na empreitada seriam, como é de se esperar, as principais

produtoras de café: São Paulo e Minas Gerais.

O Convênio teria suas intenções materializadas a partir de um financiamento

estrangeiro, com autorização da União. Os Rothschild emprestariam aos Estados

idealizadores do plano a soma de 15 milhões de libras esterlinas, as quais seriam pagas a

partir da arrecadação com a sobretaxa de 3 francos sobre cada saca de café exportado. 207

O empréstimo, o qual lastrearia as emissões monetárias a partir de então, serviria para

custear a formação de estoques do gênero produzido no Brasil, de modo que os preços

do café se mantivessem em torno de 32$000.

O plano de valorização, embora tivesse como prioridade a manutenção de um

nível razoável para os preços do café, possuía um segundo pilar: a estabilização

cambial. O êxito da defesa dos preços sem que as exportações diminuíssem

sensivelmente poderiam provocar uma reação em cadeia que culminaria numa

apreciação do câmbio, atenuando os benefícios trazidos pelo aumento dos preços

externos do café aos cafeicultores. A valorização cambial espelharia os efeitos de um

aumento nos preços externos da commoditie com uma diminuição de seus preços dentro

do país, comprometendo a lucratividade do empresariado. Assegurar os benefícios

206
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 43.
207
É bem verdade que políticas de “marketing”, com vistas a estimular a demanda internacional,
seriam levadas a cabo.
180
implicava defender não só os preços externos no nível de 32$000, mas também a

estabilidade do câmbio.208

O grande problema que permeava o duplo plano de defesa do Convênio era que,

embora estivessem profundamente interligadas e fizessem parte do mesmo esforço dos

cafeicultores em garantir a lucratividade da produção, a valorização dos preços externos

e a estabilidade cambial possuíam determinações distintas. A queda do valor da saca de

café tinha sua raiz numa defasagem do mercado, dado que desde a última década do

século XIX a oferta excedia em alta proporção a demanda pelo gênero agrícola. A

superprodução estava no fundo do problema da formação dos preços. Adicionar à

defesa artificial destes a busca pela estabilização cambial num patamar desvalorizado

por intermédio da Caixa de Conversão justamente para impedir a corrosão dos lucros do

empresariado rural acabaria por transferir aos consumidores de bens importados (que

compunham boa parcela da população brasileira no início do século XX) uma série de

208
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 65. A defesa da estabilização cambial, embora
estivesse plenamente adequada aos interesses específicos da burguesia cafeicultora brasileira,
era tida como uma demanda quase que nacional, tanto por parte da população como por parte da
União. O controle do câmbio foi, pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, uma meta a ser
atingida. A grande questão é que os cafeicultores e os ditos economistas ortodoxos do período
divergiam quanto ao que seria o nível “adequado” da estabilização: aqueles pretendiam um grau
muito mais desvalorizado que estes, interessados no retorno da paridade de 1847 (26 pence/mil-
réis). Cf.: “Examinando as políticas monetárias, adotadas no Brasil antes da Primeira Guerra
Mundial, fica clara a constante preocupação do Governo com a estabilidade cambial. Não só o
Governo buscava uma taxa de câmbio estável, mas a estabilidade era desejada pela maior parte
da população. Havia então, como há agora, um consenso, de que a estabilidade da taxa de
câmbio era, ao menos em princípio, uma meta a ser atingida […]. Com o objetivo de defender
sua renda, os cafeicultores passaram a pressionar o Governo a adotar medidas que viessem não
só a aumentar os preços do café no mercado internacional mas, também, impedir que esses
preços continuassem caindo em moeda nacional […]. As divergências entre os cafeicultores e o
Congresso não se referiam às vantagens e desvantagens de se estabelecer um mecanismo que
tornasse a moeda conversível e mantivesse o câmbio estável. A discussão que se travou então
foi, sobretudo, a respeito do nível de taxa cambial a ser adotado pela Caixa de Conversão. Os
cafeicultores reivindicavam uma taxa desvalorizada […] os políticos ortodoxos defendiam uma
valorização ao nível da velha paridade de 1847 [...].” OLIVEIRA, Maria Teresa R. de; SILVA,
Maria Luiza F. O Brasil no padrão-ouro: a caixa de conversão de 1906-1914. História
Econômica &História de Empresas IV, I (2001), p. 83 – 114.

181
perdas em função da elevação dos preços desses mesmos bens. Veja nas palavras do

próprio Delfim Netto:

O Convênio de Taubaté representa a origem do tratamento confuso de dois

problemas que, apesar de interdependentes, devem ser tratados cada um de

um ponto de vista […] o problema do café era um problema de mercado.

Existia uma superprodução, causada por várias razões, e é certo que uma

boa parte da culpa cabia ao comportamento governamental que se seguiu à

proclamação da República […] Confundir o problema cafeeiro com o

problema cambial e procurar baixar a taxa cambial e fixá-la nesse nível (era

essa, pelo menos a intenção dos participantes do Convênio, que esperavam a

estabilização em 12 dinheiros por mil-réis, quando o câmbio estava a 16)

simplesmente para favorecer os cafeicultores, era estimular uma

transferência de rendimentos dos consumidores de produtos importados

para os produtores de café.209

Uma vez que os objetivos do Convênio foram acima analisados, podemos delinear as

premissas que embasavam o projeto de valorização: a) a sobretaxa de 3 francos sobre

cada safra de café exportado deveria ser imperceptível ao consumidor, de modo que a

procura sofresse mínimos impactos; b) a elevação dos preços do café para o nível de

32$000 não poderiam ativar uma concorrência internacional no mercado do gênero (o

que era de fato improvável, dado que o segundo maior produtor, que era a Colômbia,

estava muito abaixo do Brasil em termos de produção e exportação); 210 c) a produção

nacional não poderia crescer substancialmente em razão das limitações ao plantio

determinadas em 1902.211

Tratamos dos objetivos e das premissas que embasaram o Convênio de Taubaté

(nossa primeira estratégia significativa de defesa do café). Convém agora explicitar

209
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 66.
210
Cf. Martins & Johnston, 150 anos de café, Apêndice estatístico.
211
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 76.
182
como se deu realmente a execução do plano de valorização. Se era necessário contrair

um empréstimo externo no total de 15 milhões de libras esterlinas, a situação tornou-se

extremamente delicada quando apenas o Estado de São Paulo decidiu assumir por

completo os riscos da operação, conseguindo um empréstimo de apenas 1 milhão de

libras junto ao Brasilianisch Bank fur Deutschland, cobrando, não obstante, a sobretaxa

de 3 francos. Veja de acordo com Delfim Netto:

Na hora de executar o plano, verificou-se que seria impossível levantar-se os

15 milhões de libras esterlinas. A situação começou a agravar-se diante da

indiferença tanto dos governos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, como do

Federal, que deveria abandonar o poder a 15 de novembro de 1906. Diante

desses fatos, o Estado de S. Paulo decidiu empreender, por sua própria

conta, a valorização, obtendo financiamentos por caminhos inteiramente

diferentes dos que até então haviam sido pensados.212

É só com a eleição do paulista A. Pena, totalmente alinhado aos interesses dos

cafeicultores paulistas, para a Presidência da República, que a União se dispõe a realizar

o financiamento junto aos Rotschild.

Garantido o empréstimo que serviria de lastreamento para as emissões

monetárias necessárias para a viabilidade do plano, tem início a estocagem das sacas de

café de melhor qualidade, as quais seriam armazenadas na Europa, nos EUA e em

algumas localidades do Brasil. Para que o café mineiro e fluminense não fosse

prejudicado no processo de estocagem, o Governo Federal também interviu no

armazenamento. É notável, entretanto, que os preços externos do café só atingiriam o

nível considerado “ótimo” no ano de 1908. Até então, a expectativa do mercado era de

que a União e o Estado de São Paulo saldariam suas dívidas com os estoques. É só

quando essa incerteza é eliminada que o valor da safra passa a reagir positivamente.

212
Idem, pp. 67 – 68.
183
O plano de valorização, levando em consideração os objetivos perseguidos, deve

ser visto como bem-sucedido. De fato, entre 1908 e 1912, os preços aumentam

substancialmente, permitindo inclusive que os cafeicultores paulistas liquidassem todas

as dívidas oriundas de compromissos realizados desde 1906. 213 Estoques foram

vendidos e ainda restariam praticamente 3,5 milhões de sacas em armazenamento. Mas

é crucial que se perceba que, considerando o já mencionado comportamento cíclico da

economia cafeeira, os preços normalizariam mesmo sem a intervenção estatal da União

e dos paulistas. A superprodução de 1906 provocou intenso desmatamento dos solos, o

que certamente levaria a uma diminuição da oferta, adequando-se ou ficando até inferior

à demanda. De acordo novamente com Delfim:

A situação caminharia com rapidez para a regularização, pois as safras

brasileiras dos próximos anos não deveriam superar, em média 12 milhões

de sacas, as quais, somadas a mais ou menos 3,6 milhões produzidas por

nossos concorrentes, dava um suprimento de 15 a 16 milhões de sacas por

ano, enquanto o consumo era da ordem de 19 milhões de sacas.214

O êxito do Convênio de Taubaté não evitou, porém, que o projeto de defesa

trouxesse consequências graves do ponto de vista da política econômica. As

intervenções oficiais frequentes no mercado produziram distorções estruturais no

sistema de preços do café, assim como abriram precedente para futuras ingerências

estatais na economia cafeeira. Os empresários ganhariam cada vez mais dependência em

relação aos Governos Federal e Estadual no que concernia a futuras defasagens entre

213
Além do empréstimo principal de 15 milhões de libras esterlinas assumido conjuntamente por
São Paulo e a União (a unidade federativa, como vimos, tomou 1 milhão emprestado do
Brasilianisch Bank fur Deutschland e o restante foi levado a cabo pelo Governo Federal junto
aos Rotschild), os paulistas arrendaram a sorocabana e contraíram novo empréstimo de 2
milhões de libras esterlinas. Outra forma de financiamento veio por intermédio da União, que
forneceu ao Estado crédito de 3 milhões de libras de modo a regularizar a estocagem.
214
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 75.
184
oferta e demanda. Abria-se, com isso, margem para novos planos de valorização

artificial.215

A memória do êxito na defesa de 1906 com o Convênio de Taubaté se faria

sentir já em 1917. O apelo da cafeicultura para a intervenção estatal (tanto a nível

federal como a nível estadual) tem raízes em dois fatores imbricados e que atuaram, por

assim dizer, conjuntamente na perspectiva da burguesia cafeeira de que haveria queda

nos preços: a expectativa de uma supersafra naquele ano e as restrições comerciais

impostas pelos principais compradores internacionais (EUA e Europa Ocidental) no

auge da Primeira Guerra Mundial.

O Governo Federal, nesse sentido, atendendo às demandas dos empresários do

café, mobiliza 110 mil contos de réis para a formação de estoques. É importante

ressaltar que a União havia retomado, como forma de financiamento do déficit público,

as emissões de meio circulante, ampliando a base monetária e tornando possível o

repasse desse montante de meios de pagamento. Paralelo a isso, o Estado de São Paulo

adquiriu 3,1 milhões de sacas de café no porto de Santos pelo valor de 30$000 cada

uma.

A segunda operação de valorização, que pudemos descrever panoramicamente

acima, com toda a certeza dependeu dos esforços das instâncias do executivo federal e

estadual, diminuindo os estoques visíveis e assim comprimindo a oferta brasileira, e

consequentemente mundial, do bem. Não podemos, entretanto, esquecer de um

fenômeno natural crucial para a elevação dos preços: a geada de 1918 no Estado de São

Paulo. A restrição natural do suprimento mundial de café elevou o valor da saca de café

de tal forma que todos os estoques, inclusive aqueles realizados em 1906 no Convênio,

215
Idem, p. 90.
185
foram vendidos. Ao fim e ao cabo, os homens fortes da cafeicultura recolheram lucros

extraordinários de 129 mil contos.216

Se a segunda defesa episódica do café foi extremamente bem-sucedida ao

defender o preço do gênero no mercado mundial, não podemos fazer vista grossa com

relação a seus efeitos colaterais sobre a coletividade brasileira. A compra e a formação

de novos estoques se deu, como vimos, por intermédio de um aumento da base

monetária. A expansão dos meios de pagamento com vistas a financiar a operação

acabou por produzir, na forma de uma escalada inflacionária, um imposto sobre o

grosso dos bens consumidos pela população. Como nos afirma Delfim Netto:

Sendo as compras financiadas por emissões de papel-moeda, isto

representou um imposto (sob a forma de inflação) sobre toda a coletividade,

que passou, assim, a assumir o risco da operação.217

A escalada dos preços do café em 1918 abriu novo precedente para que, no

quadriênio 1921 – 1924, o Governo Federal, contraindo empréstimos estrangeiros,

interviesse na oferta do bem, quando as perspectivas de desequilíbrio se mostravam

reais. O quadro da economia mundial que motivou a terceira operação de defesa era, por

sua vez, o de uma restrição do crédito americano e europeu para importar sacas de café,

num ambiente inflacionário nos EUA e hiperinflacionário na Europa do pós-guerra.

Foram feitas inclusive tentativas frequentes de restringir, nesse intervalo, a entrada de

café nos portos.

Nessa época, porém, já se falava, inclusive o Pres. Epitácio Pessoa, na

necessidade de um mecanismo de defesa permanente dos preços do café.

2.) Permanente

216
Ibidem, p. 98.
217
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., pp. 99 – 100.
186
O propósito da política de defesa permanente dos preços do café era o de uma

intervenção perene das instâncias do executivo federal e estadual na oferta do bem. A

materialização do plano se daria com a formação de pontos de armazenagem do café

nos entroncamentos entre as ferrovias que desembocavam nos portos. Com isso,

regulava-se a entrada da commoditie no litoral, restringindo severamente sua oferta no

mercado internacional, estabilizando os preços em níveis razoavelmente altos. Os

estoques que se acumulavam nos armazéns do interior do Estado de São Paulo

serviriam, por sua vez, como garantia de empréstimos realizados a juros módicos.

Até mesmo mecanismos institucionais foram colocados em pauta para o bom

andamento da defesa permanente. Os dois principais nesse sentido foram o Instituto de

Defesa Permanente da Produção Nacional e o Instituto Paulista de Defesa Permanente

do Café. Ambos foram os principais emprestadores para a formação de estoques nos

armazéns criados nas estradas de ferro.

Com o que foi ligeiramente exposto nos dois parágrafos anteriores, podemos ver

que a nova estratégia de defesa do café tem um fundamento completamente diverso das

políticas anteriores. Agora, a intervenção oficial não se daria em períodos de crítico e

desesperador desequilíbrio do mercado mundial do bem, tendo, por assim dizer, caráter

esporádico. Na realidade, o que se buscava agora era a fixação de um preço tal que os

lucros da cafeicultura e, portanto, os rendimentos da principal atividade econômica do

Brasil, estivessem salvaguardados tanto em condições normais como em quadros de

defasagem entre a oferta e a demanda internacional de café. 218 Celso Furtado, porém,

nos mostra precisamente que uma política cujo norte se dava pela manutenção teimosa

218
Cf.: “É preciso considerar-se com cuidado a diferença entre esta nova fase da defesa e as
anteriores. Até aqui as intervenções tinham tomado o caráter de medida de salvação da lavoura
[...]; eram tomadas já quando a situação do mercado cafeeiro era suficientemente grave e
mesmo assim só depois de muita discussão e oposição [...] Ora, a ideia da defesa permanente
era exatamente o oposto.” Idem, p. 125.
187
do nível de preços em um patamar elevado acabaria estimulando consistentemente a

oferta brasileira do gênero no mercado internacional, produzindo uma tendência ao

desequilíbrio externo.219

O mecanismo de defesa permanente funcionou relativamente bem até o final da

década de 1920, quando a crise de 1929 o sepultou em definitivo. O colapso da

economia mundial expôs o enorme desequilíbrio que se formou, desde o início das

operações nos anos de 1920, entre a oferta e procura mundial por café. Os problemas

estruturais que derivam da defesa permanente e que Furtado nos apontou ficam

evidentes com o gráfico abaixo:

Consumo Mundial Produção Mundial + Estoques

A formação de novos estoques no desesperador quadro colocado pela crise mundial se

mostrava praticamente inviável dada a falta de recursos oriunda do plano político de

Washington Luís de salvar a candidatura de seu sucessor Júlio Prestes. O governo

experimentara uma baixa nos preços esperando por uma elevação da demanda, o que

efetivamente não ocorreu muito em função da baixíssima elasticidade preço da procura

por café.220 Era necessário, em função da escassez de recursos, que o valor da saca de

219
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 182.
220
DELFIM NETTO, Antônio. Op. cit., p. 138.
188
café fosse defendido por meio de métodos inteiramente novos e arriscados. No início da

Era Vargas, o Governo Federal assume o compromisso de queimar as sacas de café. 221 É

o keynesianismo avant-la-lettre do saudoso Chico de Oliveira.

A destruição volumosa dos estoques de café tornar-se-ia prerrogativa exclusiva

da União a partir de 1931, sendo financiada mediante empréstimos que totalizavam a

soma de 20 milhões de libras esterlinas, colocando os estoques como garantia. É

importante notar que, ao praticar uma política extremamente heterodoxa (em

comparação ao que já tinha sido feito anteriormente) de defesa dos preços do café, o

Governo Federal, interessado em defender o principal setor da burguesia nacional (e,

portanto, daquela classe que sustentava o Estado Burguês brasileiro e a economia

burguesa nacional), acabou por defender a renda e o nível de emprego na principal

atividade do país. Atenuava-se, com isso, o multiplicador do desemprego e, já em 1932,

a economia brasileira dava sinais de recuperação. Nas palavras de Furtado:

Ao garantir preços mínimos de compra, remunerados para a grande maioria

dos produtores, estava-se na realidade mantendo o nível de emprego na

economia exportadora, e, indiretamente, nos setores produtores ligados ao

mercado interno. Ao evitar-se uma contração de grandes proporções na

renda monetária do setor exportador, reduziam-se proporcionalmente os

efeitos do multiplicador de desemprego sobre os demais setores da economia

[...]. Explica-se, assim, que já em 1933 tenha recomeçado a crescer a renda

nacional no Brasil, quando nos EUA os primeiros sinais de recuperação só

se manifestam em 1934. [...] O impulso de que necessitava a economia para

crescer já havia sido recuperado.222

221
Trataremos com muito mais detalhes posteriormente a respeito do período que compreende o
fim da Primeira República e o início da Era Vargas.
222
FURTADO, Celso. Op. cit., pp. 190 – 193.
189
XXVI

A industrialização controversa

O Brasil é um dos países latino-americanos que se encontram, assim como

Argentina e México, no rol das nações que passaram pelo complexo processo de

industrialização tardia na periferia do capitalismo no século XX. 223 A natureza árida e

não-linear que permeia a formação do parque industrial brasileiro não poderia provocar,

na academia, outra coisa que não um extenso debate historiográfico acerca do

fenômeno. Nossa industrialização é com certeza um dos temas sobre os quais o

pensamento econômico brasileiro (e até mesmo internacional) mais se debruçou.

223
Há quem diga, não obstante, que o Brasil hoje passa por uma desindustrialização.
Claramente, um debate que tenha como núcleo tal problemática só pode ser rodeado de
economistas ou outros profissionais e acadêmicos que não possuem a menor ideia a respeito dos
fundamentos básicos da História Econômica do Brasil. Não nos esforçaremos, portanto, em
entrar, nem que superficialmente, em tal discussão.
190
É possível, com base no que foi afirmado acima, identificar quatro linhas

historiográficas que tratam da industrialização nacional: a) a Teoria dos Choques

Adversos, b) a Industrialização induzida pelas exportações de café, c) a

industrialização como um fenômeno do Capitalismo Tardio e d) a industrialização

como resultado de Políticas Governamentais. Cabe agora delinear com mais detalhe o

que cada vertente diz sobre a modernização da economia brasileira e como cada uma

olha para o processo.

a) Teoria dos Choques Adversos

O que significa, por assim dizer, um choque adverso? Basicamente, é quando um

abalo externo, ou melhor, uma crise internacional afeta a atividade primário-exportadora

da economia nacional, de modo que a demanda pelo gênero diminua sensivelmente.

Vale notar que o impacto vindo de fora faz-se sentir inclusive no sistema de preços,

elevando consideravelmente a cotação internacional. Impõe-se, a partir disso, sérias

dificuldades às importações de bens finais, abrindo a oportunidade para que a atividade

econômica se desloque para os setores importadores de bens de capital, promovendo a

formação da indústria nacional a partir da substituição de importações.224

Dentro da linha dos choques adversos, é possível identificar os trabalhos da

CEPAL, de Celso Furtado e de Maria da Conceição Tavares. Os principais nomes do

pensamento cepalino, inclusive Prebisch, partem, no entanto, da versão extrema da

Teoria dos Choques Adversos. Analisando um padrão de relações entre o centro e a

periferia do capitalismo, os expoentes da CEPAL viam nos Estados latino-americanos

uma estrutura que refletia o desenvolvimento e os fluxos econômicos que ocorriam na

área desenvolvida do globo. O “centro de decisão” das economias subdesenvolvidas

Cf. SUZIGAN, W. A indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo:


224

HUCITEC/UNICAMP, 2000, p. 25.


191
residia fora delas, residia na demanda internacional por bens primários. O deslocamento

do centro só poderia, nesse sentido, acontecer pelas vias da industrialização. Veja como

as palavras de Suzigan fazem coro ao que foi aqui explicitado:

A base da doutrina econômica da CEPAL reside no padrão de relações de

comércio exterior entre os países do centro (industrializados) e os países da

periferia (América Latina). [...] o padrão de crescimento dos países

periféricos era “voltado para fora” [...] com a procura externa funcionando

como “motor do crescimento” [...], o “centro de decisão” da economia dos

países periféricos ficava fora desses países, caracterizando-os como

economias “reflexas e dependentes”. [...] a mudança para um novo padrão

de crescimento, “voltado para dentro”, somente seria possível por meio da

industrialização.225

Mas por qual razão podemos dizer que a CEPAL se encaixa na chamada versão

extrema? Basicamente pelo fato de que seus principais pensadores “generalizam” os

efeitos que potencializariam a industrialização para quaisquer abalos externos de

relevância razoável. Assim, não só a crise de 1929 e a Grande Depressão são descritos

como acontecimentos externos que fundamentaram a industrialização nos países

subdesenvolvidos. As duas grandes guerras mundiais também teriam funcionado, na

medida em que comprometeram a demanda mundial pelas commodities e elevaram os

preços dos bens importados pela periferia, como choques adversos, promovendo a

substituição das importações. O relatório de 1949 da CEPAL aponta exatamente para o

que acabamos de descrever:

Antes de la primera guerra mundial, ya se habían dado, en los países de

producción primaria, algunas manifestaciones incipientes de esa nueva

etapa. Mas hizo falta que sobrevinieses con el primer conflicto belico

universal, serias dificultades de importación, para que los hechos

225
Idem, p. 26.
192
demonstraran las posibilidades industriales de aquellos países […] y que, en

seguida, la gran depresión económica de los años treinta corroborase el

convencimiento de que era necesario aprovechar tales posibilidades, para

compensar así, mediante el desarrollo desde dentro, la notoria, insuficiencia

del impulso que desde fuera había estimulado hasta entonces la economía

latinoamericana […]corrobación ratificada durante la segunda guerra

mundial, cuando la industria de la América Latina, con todas sus

improvisaciones y dificultades, se transforma, sin embargo, en fuente de

ocupación y de consumo para una parte apreciable y creciente de la

población.226

É fundamental notar, porém, que Furtado e Tavares, expoentes da primeira

geração cepalina, divergem da Comissão no que concerne à interpretação sobre

industrialização brasileira.227 Para ambos (principalmente para Furtado), o único

elemento externo que se poderia considerar como um choque adverso promotor da

indústria nacional teria sido a crise de 1929 e a Grande Depressão subsequente.

Compreender como Furtado descreve a industrialização brasileira na década de

1930 exige que seja realizado o esforço de enxergar como o autor articula o abalo

externo da grave crise mundial com as políticas governamentais de queima das sacas de

café no início da Era Vargas (a política econômica anticíclica, ou melhor, o

keynesianismo avant-la-lettre). Haveria, portanto, uma dupla causalidade na

modernização da economia brasileira.

Como vimos no capítulo anterior, a estratégia “ultra heterodoxa” que consistia

em destruir os estoques do café para garantir um patamar razoável de preços acabou

226
Estudio Económico de America Latina, 1949. Elaborado por la secretaria de la Comision
Económica para America Latina. Naciones Unidas, Departamento de Asuntos Económicos. NY,
1951, p. 4.
227
Vale dizer que Tavares, como veremos a seguir, migra da linha dos choques adversos para
aquela que interpreta a industrialização brasileira com base no desenvolvimento do capitalismo
tardio. A autora estaria, com isso, movimentando-se do pensamento cepalino para o marxista.
193
funcionando como um atenuante do multiplicador do desemprego, uma vez que realizou

na prática a defesa do nível de renda (e do consumo consequentemente) no principal

setor da atividade econômica brasileira. A crise de 1929, por sua vez, tem um duplo

direcionamento. Ela represa internamente o nível de renda que havia sido defendido

pela intervenção estatal, uma vez que os preços de importação tornam-se mais caros,

reduzindo o coeficiente de importações (denotado muitas vezes por m y nos principais

manuais de macroeconomia).228 Por outro lado, permite a transferência dessa mesma

renda para outros nichos da economia brasileira. A depressão mundial teve impacto

certeiro na demanda internacional pelo café brasileiro, colocando os lucros dos

cafeicultores numa espiral negativa. Forma-se, a partir desse movimento da renda

nacional, uma pressão sobre os produtores nacionais para o mercado interno, os quais

investem na aquisição de bens de capital de segunda mão a preços baixíssimos,

ampliando a capacidade produtiva nacional. 229 Furtado assim nos explica como a

indústria já alcançaria elevado grau de desenvolvimento no ano de 1933, quando as

principais economias do mundo davam ainda seus primeiros passos rumo à recuperação.

b) A industrialização induzida pela expansão das exportações

228
É importante que se note que o aumento do nível de preços dos bens importados tem como
fatores de causalidade tanto a crise de 1929 como a política de defesa do café empreendida no
início da década de 1930. De fato, o choque negativo da economia mundial, produzindo um
quadro inflacionário na Europa e nos EUA, encareceu a mercadoria importada. Mas, é
necessário ressaltar que a forma de financiamento da queima das sacas de café (expansão
creditícia) provocou intensa desvalorização cambial, contribuindo também para o
encarecimento dos bens internacionais. Cf. FURTADO, Celso, Op. cit., pp. 195 – 197.
229
Cf.: “[...] a política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se
num verdadeiro programa de fomento da renda nacional. Praticou-se no Brasil,
inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer
preconizado em qualquer dos países industrializados. [...] Que destino tomava essa renda, que,
devendo ser despendida no exterior em importações, ficava represada dentro do país pelo
mecanismo corretor da baixa do referido coeficiente? É evidente que ia pressionar sobre os
produtores internos. [...] Outro fator que se deve ter em conta é a possibilidade que se
apresentou de adquirir a preços muito baixos, no exterior, equipamentos de segunda mão.”
FURTADO, Celso. Op. cit., p. 199.
194
Essa linhagem interpretativa tem como principais nomes Dean e Nicol, os quais

desenvolvem uma tese que corrobora muito com a interpretação furtadiana sobre a

formação das indústrias antes do processo que fundamentou, na década de 1930, o

deslocamento do centro dinâmico.

A ótica da industrialização induzida pela expansão das exportações sugere uma

conexão direta entre o progresso das fábricas e as pautas de exportações de café.

Expansão destas implica necessariamente um crescimento de nosso parque industrial,

justamente porque o complexo cafeeiro que se formou na passagem do século XIX para

o século XX criou as condições para a modernização da economia brasileira. A citação

de Dean não poderia ser mais ilustrativa a esse respeito:

É evidente que o crescimento continuado da indústria paulista resultou do

crescimento do comércio de café. O negócio do café proporcionava a

procura, as perspectivas do negócio do café estimulavam o investimento, em

sua maioria do setor do café, e o negócio do café criava as despesas gerais

econômicas necessárias e pagava os impostos.230

Warren Dean também possui extensa contribuição no que concerne às origens do

empresariado paulista. A raiz da classe dos industriais do Estado de São Paulo está nos

imigrantes, os quais passaram a atuar como comerciantes importadores. Isso porque

esses agentes, dadas as boas relações com os demandantes europeus, possuíam

condições para concessão de crédito muito mais vantajosas na comparação com

comerciantes brasileiros. Não apenas esse aspecto, mas também o maior conhecimento

a respeito do mercado de bens industrializados internacionais sedimentou bases para

que tais imigrantes tornassem-se futuramente os primeiros industriais de São Paulo.231


230
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1976, p. 93.
231
Cf.: “Em sua interpretação [de Warren Dean] foi a familiaridade dos comerciantes
importadores com o mercado consumidor de manufaturas e com os produtos industriais que
costumavam importar que lhes abriu a porta para que produzissem eles mesmos a mercadoria
que mandavam trazer do estrangeiro.” Tradução livre de MARTINS, José de Souza. El café y la
195
c) O Capitalismo Tardio

Os principais nomes da corrente marxista que trata da industrialização brasileira nos

anos de 1930 são Sérgio Silva, João Manuel Cardoso de Mello e Maria da Conceição

Tavares.

O interesse desses autores está em entender como se deu a consolidação do modo

capitalista de produção em formações socioeconômicas cuja peculiaridade histórica se

encontra na dependência que estas guardam com relação ao centro do desenvolvimento

da economia moderna. Não é por acaso que os grandes pensadores do Capitalismo

Tardio focalizam a análise nos países latino-americanos. A dependência e o

subdesenvolvimento são as bases comuns a esses Estados, cujas industrializações

possuem um caráter totalmente problemático e particular exatamente porque se dão na

periferia do capitalismo mundial.232 De acordo com Mello:

[...] Dependência e Desenvolvimento representa uma tentativa de constituir

uma nova problemática, a problemática da “instauração de um modo de

produção capitalista em formações sociais que encontram na dependência

seu traço histórico peculiar”, a problemática da formação e do

desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina. [...] o

desenvolvimento latino-americano não é um desenvolvimento qualquer, mas

um desenvolvimento capitalista; [...] o desenvolvimento capitalista na

América Latina é específico, porque realizado numa “situação periférica

génesis de la industrialización en São Paulo. Revista Mexicana de Sociología, vol. 39, no. 3,
Cuestiones agrarias en America Latina (Jul. - Sep., 1977), pp. 781-797. Publicado por
Universidad Nacional Autónoma de México. DOI: 10.2307/3539877. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/3539877.
232
Apesar das industrializações periféricas da América Latina terem sido colocadas em marcha
com as bases comuns da dependência e do subdesenvolvimento, é inconcebível abstrair das
peculiaridades entre os processos de modernização pelos quais cada nação latino-americana
passou nos séculos XIX e XX. Este trabalho, porém, não será capaz de aprofundar tais
pormenores.
196
nacional”. É disto, na verdade, que o conceito de dependência pretendeu dar

conta.233

O fundamento da historiografia embasada pelas lentes do Capitalismo Tardio é o

estudo sobre a transição do modo de produção escravista da antiga economia colonial

para o modo de produção assalariado. Essa passagem é o ponto de partida para o

desenvolvimento e a modernização característica das sociedades latino-americanas.

Nesse sentido, não é por acaso que a atenção, quando analisamos especificamente o

Brasil (como fizeram Silva, Tavares e Mello), seja dada para a cafeicultura como o

“marco-zero” de todo o processo. Ela atinge seus picos mais altos justamente na

transição estrutural! O que também não é mera coincidência, dado que uma economia

sustentada por trabalhadores-mercadoria ao invés de trabalhadores-consumidores e

possuidores apenas de sua força de trabalho impõe limites para a acumulação de capital

na atividade cafeeira. Não se pretende aqui dizer que o capitalismo não conviveu ou não

consegue conviver com formas pré-capitalistas de produção. Na realidade, essa é uma

das tônicas da problemática interna nos países da periferia da economia mundial. O

convívio, entretanto, não se dá com harmonia pura e simplesmente, mas sim em viva

contradição a partir do momento em que o modo capitalista de produção consegue se

reproduzir endogenamente. No caso brasileiro, a contradição se resolveu pela superação

da escravidão e a introdução do trabalhador imigrante livre e assalariado. A acumulação

de capital com a produção de café alcançaria níveis inéditos nos decênios finais do

século XIX.234 E será ela o fio condutor da acumulação de capital industrial.

233
MELLO, João M. C. de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 25.
234
Cf.: “Há contradição entre capitalismo industrial e formas de trabalho compulsório porque se
exige, na periferia, generalização das relações mercantis, quer dizer, mercantilização das forças
de trabalho. Só o trabalho assalariado poderia significar mercados os mais amplos possíveis e,
simultaneamente, produção mercantil complementar em massa.” Idem, p. 45.
197
Até aqui parece que a interpretação descrita acima se espelha na linha da

industrialização induzida pela expansão das exportações. De fato, quando se pensa que a

acumulação de capital no complexo cafeeiro “ditou as regras” da acumulação de capital

na indústria, imagina-se, como falou Dean, uma conexão direta e linear entre uma e

outra. A grande diferença entre uma e outra interpretação, porém, se dá pelo fato de que

os autores do Capitalismo Tardio enxergam uma relação não direta e lógica, mas sim

dialética entre os dois processos de acumulação. A dominância da produção de café,

reflexo material da interação “centro-periferia”, sedimentava as bases da acumulação de

capital industrial, assim como impunha limites a ela. Ao mesmo tempo em que havia

um sequenciamento entre uma e outra, deveria necessariamente haver um bloqueio. De

acordo com Silva:

[...] as relações entre o comércio exterior e a economia cafeeira de um lado,

e a indústria nascente de outro, implicam ao mesmo tempo a unidade e a

contradição. A unidade está no fato de que o desenvolvimento capitalista

baseado na expansão cafeeira provoca o nascimento de um certo

desenvolvimento da indústria [...] a contradição, nos limites impostos ao

desenvolvimento da indústria pela própria posição dominante da economia

cafeeira na acumulação de capital.235

d) A industrialização intencionalmente promovida por políticas do governo

A contribuição para essa linha historiográfica foi dada fundamentalmente pelos

Versiani. Toda a análise está fundamentada num estudo quantitativo a respeito das

indústrias algodoeiras no período anterior a 1930.

Dado esse panorama inicial, pode-se dizer que a tese dos autores é a de que deveria

haver uma relação de forte causalidade entre picos de produção industrial algodoeira e

235
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega,
p. 97.

198
variações na taxa de câmbio. Como é de se esperar, nos períodos de valorização

cambial, a facilidade de importações subsequente produzia um ambiente favorável para

o aparecimento de surtos industriais, com ampliação da capacidade produtiva.236

Uma vez identificada a conexão entre os picos produtivos e a taxa de câmbio, o

papel da política estatal se apresenta exatamente nas tentativas sucessivas de proteger a

produção nacional mediante a implementação de reformas tarifárias e cambiais. O

grande exemplo disso foi a instauração das tarifas Alves-Branco em 1844. Ou seja, já no

período imperial se tinha em mente a necessidade de se defender a indústria nacional e

aproveitar os surtos produtivos até mesmo como forma de sanar o déficit orçamentário

do Estado. De acordo com os autores:

Esse surto de iniciativa manufatureira costuma ser associado à reforma

tarifária de 1844, e especialmente à facilidade de importação de

equipamento têxtil estabelecida num decreto de 1846. [...] o efeito protetor

das tarifas podia ser importante na medida em que sobrevivia a essas fases,

estendendo-se aos anos de elevação do mil-réis e a compensando

parcialmente.237

236
Nesse sentido, os Versiani, aproximando-se ligeiramente de Dean, mostram a importância
dos comerciantes importadores para o processo de formação industrial brasileira. Cf.
VERSIANI F. & VERSIANI, M. T. R. O. A industrialização brasileira antes de 1930: uma
contribuição. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 5, n. 1, jan/abr 1975, p. 42 – 43.
237
Idem, p. 54.
199
XXVII

A Crise da Primeira República (1889 – 1930)

No final da década de 1920, em meio à crise econômica mundial e em meio à

falência dos mecanismos de defesa permanente do café (como já foi explicitado nos

capítulos anteriores), o Brasil se encontra no limiar de uma inflexão política que será

decisiva na trajetória de seu desenvolvimento econômico. A virada para o decênio de

1930 é marcada pelo fim da chamada República Velha e pela quebra da hegemonia das

oligarquias paulista e mineira no quadro nacional. O processo conhecido como

“Revolução de 1930” culmina com a subida de Getúlio Vargas para a chefia do

executivo e assim seria até o ano de 1945.

200
Antes de adentrarmos de fato na análise da inflexão propriamente dita, convém

relembrar panoramicamente como se operacionalizava o jogo político na era das

oligarquias rurais. É necessário, nesse sentido, fazer menção à Política dos

Governadores, pano de fundo de um regime republicano com uma forte aparência de

representatividade e respeito ao rito eleitoral democrático. Na realidade, o que se

passava era um verdadeiro controle eleitoral por parte das unidades federativas,

principalmente São Paulo e Minas Gerais, construindo mecanismos até mesmo para

barrar a legitimação de deputados oposicionistas no Congresso Nacional (foi o caso da

chamada Lei de Verificação dos Poderes, que tirava a autoridade do Judiciário para

empossar os parlamentares, passando-a para as mãos do Legislativo). Na prática, o que

acontecia realmente era um ajustamento entre os partidos estaduais para determinar até

mesmo quem seria o presidente.

Num quadro em que as principais agremiações políticas representavam os

latifundiários do café no sudeste brasileiro (em condições de quase total monopólio do

gênero no mercado mundial), torna-se claro que todo o invólucro político delineado

acima e em capítulos pregressos se fazia necessário para a defesa dos interesses da

burguesia cafeeira brasileira. O Estado era fruto das articulações da classe e, como não

poderia deixar de ser, tinha sua existência pautada pela defesa das vontades de seus

chefes.

As evidências empíricas do que foi dito acima nós já tratamos quase que

exaustivamente nos textos anteriores. Tratamos do Convênio de Taubaté de 1906, da

fundação da Caixa de Conversão, das políticas episódicas de defesa dos preços do café,

dos mecanismos institucionais para viabilização da defesa permanente nos anos de

1920, além das políticas creditícias geralmente expansionistas que permearam todo o

esforço de defesa desde o início do século XX, as quais serviram justamente para a

201
manutenção dos estoques e dos armazéns. Veja o que dizia o próprio presidente Epitácio

Pessoa e podemos então comprovar o quão lastreado nos interesses da burguesia

cafeeira estava o Estado da Primeira República:

O café representa a principal parcela no valor global de nossa exportação e

é portanto, o produto que mais ouro fornece à solução dos nossos

compromissos no estrangeiro. A defesa do valor do café constitui, portanto,

um problema nacional, cuja solução se impõe à boa política econômica e

financeira do Brasil.238

Não por acaso, é exatamente num ambiente de falência do programa de defesa

permanente, com os interesses da cafeicultura colocados em risco, que as turbulências

políticas serão alçadas a um nível perigoso para a sobrevivência da Primeira

República.239 Se até o fim dos anos de 1920, as fracas tensões existentes no seio da

burguesia brasileira garantiram o bom funcionamento do chamado complexo cafeeiro,

esse quadro deixa de ser a tônica na medida em que o setor industrial da classe

dominante começa a ganhar mais espaço no cenário econômico e político a partir disso.

Não obstante, mesmo após o fim da Primeira República, os latifundiários do café

seguiriam tendo influência decisiva nos rumos do desenvolvimento brasileiro pelo

menos até o fim dos primeiros cinquenta anos do século passado. A interpretação

canônica da “Revolução de 1930”, a de Boris Fausto, considera até mesmo que não

havia, no seio da própria burguesia, nenhum concorrente que pudesse realmente

rivalizar com os produtores de café. E isso é que acabaria por determinar os rumos da

política nacional no ambiente de turbulência que estamos analisando. De acordo com o

autor:

238
Epitácio Pessoa, 1921. Apud DELFIM NETTO, Antonio. O problema do café no Brasil. São
Paulo: IPE/USP, 1973, p. 110.
239
FURTADO, Celso. Op. cit., pp. 181 – 182.
202
[...] a organização social da Primeira República é marcada pela

predominância do setor agrário-exportador, pela inexistência de uma luta

nítida de facções no interior da burguesia entre o setor agrário e o

industrial, pela fraca integração nacional, com predominância do eixo São

Paulo-Minas, pelo caráter secundário das oposições de classe [...]. A um

tempo dominante e dependente, a burguesia cafeeira impôs ao país, durante

os três primeiros decênios do século, sua hegemonia social e política. Não se

formou no interior da classe dominante, até os fins da década de 20, nenhum

grupo que apresentasse uma opção viável, em oposição aos seus interesses

[...]. Dentro deste contexto, não se formaram partidos representativos de

correntes nacionais de opinião. As raras experiências de agrupamentos

formalmente nacional [...] são transitórias [...].240

Com base no que foi exposto e partindo da leitura de Fausto, a ausência de um

setor da burguesia forte o suficiente para fazer frente às oligarquias cafeeiras é a razão

por trás da composição heterogênea da Aliança Liberal, principal organização de

contraponto ao Governo Federal. Montada a partir de frentes estaduais de oposição, a

agremiação não chegava a colocar-se como um partido cuja representação era

efetivamente classista, aglomerando em seu núcleo os interesses dos industriais, mas

também os setores urbanos médios e até mesmo militares de baixa patente (os tenentes

principalmente). A heterogeneidade se traduzia em vagueza de programa político. O

máximo que a Aliança Liberal poderia alcançar em suas demandas era uma reforma

política. O próprio discurso não progredia para além disso.241

Ao lado da Aliança Liberal, a “frente ampla” de oposição ao Governo de

Washington Luís se completava com o Partido Democrático. Fruto de uma cisão interna

no Partido Republicano Paulista, a organização era composta por membros da burguesia

Boris Fausto. A Revolução de 1930. In MOTA, Carlos G. (org.). Brasil em Perspectiva. São
240

Paulo: Difel, 1981, p. 233.


241
Cf. Idem, pp. 235 – 240.
203
cafeeira completamente insatisfeitos com a política cambial do presidente no contexto

de crise mundial. O presidente, interessado em garantir a continuidade política com a

candidatura de Júlio Prestes, vetou a autorização de políticas creditícias expansionistas,

estabilizando o câmbio a níveis mais valorizados que aqueles desejados pelo setor

primário exportador, interessado na manutenção dos preços de seu principal produto: o

café.

A crise interna em que se encontrava o invólucro político brasileiro naquele

momento certamente nos ajuda a entender a deposição de W. Luís e a ascensão de

Vargas ao poder. Mas o que não pode se ausentar na análise é o impacto do crack da

Bolsa de Nova York e do subsequente colapso da economia mundial em outubro de

1929, golpeando de frente o já enfraquecido Estado Nacional Burguês que sustentava os

lucros da aristocracia cafeeira. Aponta Fausto:

A rápida aglutinação, obtida em poucos meses, não pode ser explicada, se

afastarmos da interpretação dos fatos um dado que transcende o quadro

nacional: a crise de 1929. [...] ela golpeia o governo, ao produzir o

desencontro entre o Estado, como representante político da burguesia

cafeeira, e os interesses imediatos da classe.242

O próprio Estado que se configura a partir de 1930, nascido num ambiente sem

oposições classistas sólidas aos interesses da cafeicultura, adquire, segundo Fausto, um

certo “caráter de massas”, sem se ligar exclusivamente a um setor específico de nossa

burguesia. O executivo sob comando de Vargas ocupa, nesse sentido, o que antes se

apresentava como um vazio de poder, incapaz de ser preenchido por uma ou outra força

oposicionista.

242
Ibidem, p. 242
204
OS “AUSENTES” DA “REVOLUÇÃO DE 1930” – A LEITURA DE TRONCA.

Mesmo que nossa aproximação sobre a inflexão política brasileira na passagem

para a década de 1930 tenha se fundamentado na interpretação clássica de Boris Fausto,

convém dar espaço para uma outra leitura a respeito do fim da República Velha. Trata-

se dos estudos de Ítalo Tronca sobre o papel do movimento operário no processo que

culmina com a “Revolução de 1930”.

Aproximando-se em boa medida de uma interpretação marxista do problema,

Tronca recusa a leitura de Fausto de que o Estado que vem com a “Revolução de 1930”

teria surgido “do alto”, com o fim único e exclusivo de preencher um vazio de poder

dada a heterogeneidade e a fraqueza do programa da oposição formal às oligarquias. Na

realidade, toda a inflexão é fruto das lutas de classes entre o operariado e a burguesia

industrial. A própria CIESP (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) teria papel

fundamental em liquidar as lutas operárias na década de 1920.

O autor também sobreleva a participação do PCB e do BOC como

“representantes” do operariado. Na realidade, porém, Tronca nota que, ao enfatizarem a

necessidade de uma revolução burguesa antes da efetiva emancipação da classe

trabalhadora (fruto de uma visão dogmática sobre o Estado brasileiro, que ainda seria,

em pleno século XX, pré-capitalista), tais organizações acabaram por bloquear os

movimentos de base até que chegassem à capitulação. A própria divulgação do termo

“Revolução de 1930” por parte do próprio PCB acabou servindo para ofuscar o papel do

proletariado na inflexão do quadro político brasileiro na virada de década, uma vez que

este seria o momento em que a burguesia se alçava ao poder estatal, transformando a

sociedade brasileira finalmente em sociedade burguesa.243


243
Infelizmente não há espaço aqui para tratarmos detalhadamente dos riscos e do grande
equívoco que permeia essa interpretação dogmática da história brasileira, propagada pelo PCB e
por outros quadros do estalinismo nacional. Adiantamos já que a conclusão de que não havia
Estado Burguês no Brasil antes de 1930 e que este teria sido até então sustentado por uma
205
XXVIII

O Golpe de 1937 e o Estado Novo

Passados os anos turbulentos que imediatamente sucedem a inflexão política na

passagem da década de 1920 para a de 1930 e os anos do governo democrático de

Getúlio Vargas (1934 – 1937), é fundamental analisar o quadro nacional nos anos do

Estado Novo, ou seja, no período em que Vargas se consolida como ditador máximo do

país.

O primeiro aspecto que merece atenção em nossa aproximação à problemática é

o fato de que somente a partir do golpe de 1937 nós podemos falar em um Estado

verdadeiramente “nacional”. No período que compreende a Primeira República, a

submissão do governo federal aos oligarcas regionais que compunham a burguesia

cafeeira faz com que fique muito difícil usar a mesma simbologia. É por isso que um

dos primeiros objetivos de Vargas como ditador é eliminar concretamente os

regionalismos, na busca por associar quase que unilateralmente sua figura à da Nação.

economia de caráter feudal soa para nós como completamente falsa e oportunista. Além disso,
está completamente distante do marxismo. Não há erro mais crasso em história econômica do
que afirmar que, em algum momento de nosso desenvolvimento, passamos pelo modo feudal de
produção, o qual, por sua vez, só teria sido varrido do país com a “Revolução Burguesa de
1930”. Algumas linhas do estalinismo brasileiro perpetuaram o oportunismo, cravando que o
Estado Brasileiro até hoje não é plenamente burguês, sendo necessário, antes da emancipação
definitiva dos trabalhadores, a submissão do proletariado aos interesses da burguesia nacional
anti-imperialista. Fica aqui, para os estalinistas de plantão, uma pequena pergunta: se até 1930,
nossa economia e, consequentemente, nosso Estado eram feudais, como explicar a greve geral
da classe trabalhadora em 1917 e as consideráveis taxas de crescimento da produção e do
investimento industrial na década de 1910 antes do conflito mundial?
206
O Estado Novo teria de ser o Brasil e o Brasil teria de ser o Estado Novo. Veja de

acordo com o próprio ditador:

A consciência das nossas responsabilidades indicava, imperativamente, o

dever de restaurar a autoridade nacional, pondo termo a essa condição

anômala da nossa existência política, que poderá conduzir-nos à

desintegração, como resultado final dos choques de tendências

irreconciliáveis e do predomínio dos particularismos de ordem local.244

Uma das medidas mais marcantes de Vargas no sentido de eliminar os

regionalismos foi a de nomear, sucessivamente desde o início da década, interventores

federais para o Estado de São Paulo, eliminando a figura do governador, tão influente

nos anos áureos das oligarquias do café. Veja o panorama dado por L. Sola a respeito

dos papeis cabíveis aos interventores varguistas nas unidades federativas:

Os interventores que substituíram os governadores, dependiam de nomeação

do Presidente e dispunham, como ele, não só de poderes executivos e

legislativos; eram também encarregados de aplicar, ao nível dos Estados, as

medidas em que implicava o estado de emergência.245

O golpe de 1937 foi articulado por um conjunto de generais das Forças Armadas

Brasileiras (Gaspar Dutra, Góes Monteiro, Daltro Filho, etc.) que serviriam inclusive

como suporte político e militar do regime. Comprometidos com ampla e violenta

repressão, os homens fortes de Vargas encabeçariam a perseguição de oposicionistas,

aplicando sempre que possível a Lei de Segurança Nacional.

Com o objetivo explícito de fortalecer o poder central, a nova constituição que

se seguia ao Estado Novo colocava todos os partidos (inclusive o Integralista de Plínio

Salgado, que havia sido suporte ideológico no período varguista democrático) na


244
Apud. SOLA, L. O Golpe de 37 e o Estado Novo. In: MOTA, C. G. (org.). Brasil em
perspectiva. São Paulo: DIFEL, 1981, p. 257.
245
Idem, p. 268.
207
ilegalidade. Para compreender bem os antecedentes do autoritarismo varguista que se

concretiza em 1937, é importante analisar a conjuntura política nos anos imediatamente

anteriores ao golpe, em que pese a ação da ANL e do PCB em específico. Este era um

dos poucos partidos suficientemente organizados à época, carregando um discurso

popular que poderia adquirir facilmente contornos nacionais, colocando em risco os

interesses de Vargas. A ANL, embora mais heterogênea, caminhava na mesma direção,

com um programa que englobava, entre outras coisas, a reforma agrária e o não

pagamento da dívida externa. As duas organizações eram dotadas de palavras de ordem

que poderiam motivar a classe trabalhadora e parte das classes médias urbanas.246

A retórica anticomunista (embora a ANL e o PCB, apesar do nome, estivessem

bem longe de um programa eminentemente comunista) 247, portanto, será a justificativa

ideológica para as perseguições e para toda a repressão civil por parte do Estado

varguista. Ainda de acordo com Sola:

De um lado, estavam comprometidos com a violenta repressão contra civis,

com a neutralização dos grupos militares oposicionistas, através da intensa

aplicação das medidas na Lei de Segurança Nacional: reforma, exoneração,

perda de patentes e mesmo prisão; organizavam e participavam das tarefas

de controle e de espionagem [...]. Pelo artigo 186, era declarado o estado

de emergência em todo o território nacional, o que tornava possível ordenar

prisões, exílio, invasão de domicílio; instituía-se a prisão preventiva;

tornava-se legal a censura de todas as comunicações. Tais atos escapavam à

decisão do judiciário. 248


246
Ibidem, p. 260.
247
Em outra oportunidade poderemos explicar melhor. Fica aqui apenas o conselho: o nome de
um partido não necessariamente, e muitas vezes está longe de ser o caso, reflete seu programa,
seus interesses e suas táticas. O PCB, apesar de ter “comunista” no nome, está imbuído de um
programa, de uma lógica de funcionamento interno, e de um conjunto de táticas que o torna
razoavelmente distante das estratégias efetivamente comunistas.
248
SOLA, L. Op. cit., pp. 265 – 266.
208
Outro aspecto da faceta política do Estado Novo que merece um olhar mais

atento de nossa parte é a relação que se estabelece entre Vargas e a classe trabalhadora.

Estamos certamente nos referindo à legislação trabalhista nos anos da ditadura. Numa

primeira aproximação, as leis que compunham a nova legislação se apresentam como

uma grande conquista para o proletariado brasileiro: jornada diária de 8 horas de

trabalho; férias remuneradas; estabilidade no emprego; indenização por demissão sem

justa causa; etc.249 Não podemos, porém, cair numa ilusão perigosa. Junto às

concessões, vieram as restrições que completavam a legislação de modo a aparelhar os

sindicatos, tornando-os cada vez mais dependentes do aparelho estatal por meio da

contribuição sindical obrigatória. Além disso, os sindicatos foram fracionados por

profissão: cada categoria teria um sindicato específico, separando internamente a classe

trabalhadora, bloqueando mecanismos de luta conjunta. Finalmente, as greves e os

lockouts foram proibidas em quaisquer circunstâncias.

Em resumo, a estratégia de Vargas foi arrefecer qualquer possibilidade de

radicalização proletária nos anos da ditadura, tornando os sindicatos um mecanismo de

negociação e conciliação entre patrões e trabalhadores, bloqueando as aspirações

emancipatórias da classe explorada.

Sobre os antecedentes econômicos do Estado Novo e a política econômica da

Primeira Era Vargas (1930 – 1945) em si, trataremos com mais detalhes nos próximos

tópicos, assim como da queda do Estado Novo ao final da Segunda Guerra Mundial.

Adiantamos agora, porém, que um dos aspectos inovadores do varguismo do ponto de

vista econômico será a ampla participação do Estado nas estratégias de

desenvolvimento do país. O Estado deixa de intervir somente quando necessário (como

249
Idem, p. 271.
209
nos casos das defesas do preço do café na República Velha), passando a assumir o papel

de principal investidor e agente do desenvolvimento.

XXIX

A modernização autoritária nos anos Vargas (1930 – 1945)

Delineado o panorama político do primeiro governo Vargas, podemos adentrar

na discussão a respeito do quadro do desenvolvimento econômico brasileiro a partir da

crise de 1929, dando atenção principalmente ao debate de caráter historiográfico sobre

quais as motivações, os pormenores e os resultados do processo a que nos referimos

como “modernização autoritária”. Nas palavras de Simão Silber:

A pergunta básica a ser respondida sobre o comportamento da economia

brasileira, durante a década dos 30, é a de saber quais os fatores

responsáveis pelo pequeno impacto da Grande Depressão sobre os níveis de

210
produto real de nossa economia, uma economia dependente do setor

exportador como gerador de renda […].250

Uma boa aproximação do objeto em análise requer a descrição de algumas

tendências significativas que se operavam na economia brasileira no início do decênio

de 1930. Em primeiro lugar, vale apresentar a recuperação do nível de atividade

econômica a partir de 1931: se considerarmos o PIB a preços constantes de 1947, nota-

se uma considerável curva de crescimento do produto nacional, que é acompanhado

pela elevação do produção industrial em 11,3%. O que foi falado pode ser demonstrado

no gráfico abaixo:251

180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
9 30 931 932 933 934 935 936 937 938 939 940 941 942 943 944 945
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Mais importante que apontar o crescimento quantitativo do PIB é apresentar a mudança

em sua composição, tomando como base o setor primário e o secundário. Em 1907,

250
SILBER, Simão. Análise da Política econômica e do comportamento da economia brasileira
durante o período 1929/1939. In VERSIANI, F. R. & BARROS, J. R. M. de. (orgs) Formação
econômica do Brasil: a experiência da industrialização. 1a. Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p,
187.
251
Fonte: IPEADATA. Para 1901-1947: Haddad, Claudio Luiz da Silva. Crescimento do
produto real no Brasil, 1900-1947. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1978. Apud:
Abreu, Marcelo de Paiva (Org.). A ordem do progresso - cem anos de política econômica
republicana. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Obs.: Produto Interno Bruto (PIB). Série
interrompida.

211
79% do produto nacional era ocupado pela produção agrícola, quadro que se mantém 12

anos depois em 1919. É fundamental notar, porém, que o peso do setor industrial

aumenta consideravelmente a partir dos anos de 1930: se em 1919 o setor secundário

contribuía com 21% para a composição do PIB, 20 anos depois ele passa a formar 43%

do valor adicionado brasileiro. É empírico o aumento da importância da produção e do

investimento industrial na economia brasileira.252 De fato, se levarmos em conta o

período que vai de 1929 até 1939, podemos ver que a taxa média de elevação anual da

produção industrial foi de 8,4%.253

Deve-se salientar, entretanto, que a elevadíssima taxa média de crescimento

industrial apresentada pela economia brasileira num contexto de crise mundial deu-se

num ambiente interno de restrição para as importações de maquinário. O bloqueio para

a compra de insumos e bens de produção necessários para o estímulo da atividade

secundária fez com que a indústria nacional passasse por surtos de industrialização com

baixo nível de aperfeiçoamento técnico e utilização de capacidade já instalada. 254

O impacto da Grande Depressão claramente produziu, como vimos,

modificações no quadro industrial brasileiro. É um erro, no entanto, acreditar que o

setor primário passou imune pelos desdobramentos da crise mundial. Salientamos que a

mudança mais significativa sofrida pela atividade agrícola foi a diminuição da

importância relativa do café em nossa pauta de exportações, cedendo mais espaço para o

algodão. Não é que a produção daquele que era até então nossa principal commoditie

diminuiu. Na realidade, em termos absolutos ela teve elevação relevante. A grande

diferença está no seguinte: o desenvolvimento tecno-científico pelo qual passava a

produção algodoeira é que fez com que esse bem primário aumentasse seu percentual na

252
Cf. VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia
brasileira, 1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1973, p. 180 e p. 241 (gráfico)
253
Idem, p. 211 – 213.
254
Ibidem, p. 213.
212
composição de nossas vendas para o comércio mundial. De acordo com Villela e

Suzigan:

A partir de 1934, entretanto, ocorreu uma modificação marcante na

estrutura da atividade agrícola em São Paulo, quando a produção de

algodão para exportação experimentou um intenso período de prosperidade.

Isso se deveu à aceleração das pesquisas realizadas no Instituto Agronômico

de Campinas a partir de 1923, o que permitiu a obtenção de fibras maiores e

de melhor qualidade [...].255

Finalmente, é conveniente apresentar um outro aspecto importante das

tendências socioeconômicas que se apresentavam em nossa economia a partir da década

de 1930. Trata-se da nova dinâmica demográfica que passa a operar no Brasil neste

período. Estamos falando, como é de se esperar, da ampliação da população urbana e

consequentemente do surgimento de grandes centros metropolitanos, dentre eles Rio de

Janeiro e São Paulo. Esse aumento da participação da “paisagem urbana” (peço perdão

aos geógrafos pela apropriação apressada de um termo tão caro à literatura geográfica

por parte de um simples estudante de economia e de história econômica) na demografia

brasileira pode ser creditado por um fenômeno novo para a época: a maciça entrada de

migrantes nordestinos nos principais centros industriais do país. O caráter da migração

se alterava, com o imigrante europeu (e principalmente italiano) cedendo espaço para o

nordestino que tentava a vida nas fábricas de São Paulo e do Rio de Janeiro.256

255
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 202.
256
Cf.: “A década de 1930 foi o ponto alto das migrações internas para o antigo Distrito Federal
e para o Estado de São Paulo. Entre 1934 e 1940, só no Estado de São Paulo entraram cerca de
322 mil imigrantes brasileiros, dos quais 67% provinham da Bahia e do Nordeste. Esse anos
constituíram o período de transição da imigração internacional para a imigração interna. [...]
Não era coincidência que os dois maiores centros absorvedores de imigrantes brasileiros fossem
também os dois maiores centros industriais do País que, no momento, experimentavam rápido
desenvolvimento industrial. Entre 1920 e 1940, como consequência [...] observou-se grande
crescimento da população urbana [...] que passou de 4,6 milhões, em 1920 para 6,2 milhões, em
1940.” VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 181-182.

213
Uma vez que apresentamos o panorama geral das tendências que se

apresentavam em nossa economia, é possível agora adentrar na “polêmica”

historiográfica acerca dos elementos determinantes do caráter do desenvolvimento

econômico brasileiro nos anos em que Getúlio Vargas esteve na chefia do executivo.

Qual foi o verdadeiro papel do setor público no processo de “proteção” da economia

nacional nos anos da Depressão? Qual a importância do Estado para o crescimento da

atividade industrial no mesmo período? Essas e outras questões pertinentes foram objeto

de estudo aprofundado de autores reconhecidos no pensamento econômico brasileiro,

dentre eles Furtado, Peláez, Villela e Suzigan, Fishlow, Simão Silber, entre outros.

A interpretação canônica a respeito do desenvolvimento econômico brasileiro

nos anos de 1930 é aquela de Celso Furtado, o qual buscou analisar o deslocamento do

centro dinâmico. Como já vimos, o crack da bolsa de Nova York em outubro de 1929 e

a crise mundial que o sucedeu foi o elemento definitivo para a falência da estrutura

institucional montada nos anos de 1920 para a defesa permanente dos preços do café no

mercado mundial. O Estado brasileiro após o fim da República Velha teve a difícil

tarefa de encontrar um novo instrumento para a proteção de seu principal gênero de

exportação. E esta é garantida, por sua vez, por meio da queima extensiva de sacas de

café antes estocadas. Dado que o financiamento não se deu mediante empréstimos

externos, mas sim por meio da expansão creditícia nacional, era de se esperar que o

resultado cambial fosse uma desvalorização.

Essa depreciação do nosso câmbio, por seu turno, ao encarecer os bens

internacionais (já com preço elevado em função da escalada inflacionária nos países

centrais atingidos pela crise), diminuía a possibilidade de importação de bens de

consumo necessários à manutenção dos níveis de vida da população.

214
É importante ressaltar, porém, que a estratégia de defesa funcionou como uma

política pré-keynesiana anticíclica, segurando a renda nacional em níveis nos quais foi

possível desviar a demanda por bens de consumo para o mercado interno. O desvio, na

medida em que a renda paulatinamente se transferia ao setor secundário de nossa

economia, fez com que a indústria nacional passasse a ser o grande amortecedor das

pressões oriundas da demanda por mercadorias finais.

Eis o mecanismo mais geral pelo qual a economia brasileira acabou resistindo

aos impactos da Grande Depressão, ampliando sua produção industrial com utilização

da capacidade previamente instalada. Furtado assim explica a partir do deslocamento do

centro dinâmico como foi possível a rápida recuperação do PIB nacional na comparação

com outros países do mundo, principalmente os desenvolvidos.

O ponto de vista mais oposto ao de Furtado sobre os condicionantes da

recuperação econômica brasileira é aquele apresentado por C. M. Peláez. O panorama

que daremos sobre sua discussão historiográfica com o autor de Formação Econômica

do Brasil está fundamentado em dois textos: A Balança Comercial, a Grande

Depressão e a Industrialização Brasileira (PELÁEZ, 1968) e As Consequências

Econômicas da Ortodoxia Monetária, Cambial e Fiscal no Brasil entre 1889 – 1945

(PELÁEZ, 1971).

Em linhas gerais, se Furtado aponta categoricamente que o Estado, mesmo que

de forma não intencional, sedimentou as bases para o deslocamento do centro dinâmico

e para a nossa industrialização por meio de uma política anticíclica materializada na

queima perene de estoques volumosos de café, Peláez aponta que a estratégia tomada

para a proteção do setor cafeeiro, somada a uma política macroeconômica ortodoxa em

suas linhas mais gerais, foram os principais responsáveis pelo atraso do

desenvolvimento industrial brasileiro.

215
O autor, nessa linha de argumentação, recusa a ideia de um keynesianismo

avant-la-lettre promovido por Vargas nas queimas de sacas e mais sacas de café. Na

realidade, o que garantiu o “isolamento” da economia brasileira frente à depressão

mundial teria sido o saldo positivo na balança comercial nos anos de 1931 e de 1932.

Isso porque apenas em momentos muito específicos, e por razões também pontuais, o

Estado empreendeu uma política fiscal expansionista. A grave seca no Nordeste no

início da década de 1930, assim como a Revolução Constitucionalista de 1932, teriam

sido as motivações imediatas para um abandono “temporário” da condução ortodoxa da

política econômica no governo varguista. Peláez tenta fortalecer ainda mais seu

argumento a respeito da ortodoxia quando apresenta dois dados interessantes: (1) a

partir de 1937, toda a queima de sacas de café se realizou a partir do uso das chamadas

quotas de sacrifício, permitindo ao governo abrir mão de qualquer tentativa de

ampliação do gasto público; (2) todo o mecanismo de defesa do setor cafeeiro

operacionalizado desde o início da década de 1930 foi financiado grosso modo por um

aumento da carga tributária que incidia sobre a própria cafeicultura. Assim,

contrariando Furtado, o autor conclui que a fonte de financiamento proveio mais da

política de orçamento equilibrado do que por uma simples expansão do crédito.

Finalmente, para concluir seu contraponto a Furtado, Peláez recusa a concepção

canônica de que a manutenção da renda no setor cafeeiro foi sucedida por uma

transferência desta para a atividade industrial. Na realidade, o que se passou, de acordo

com o autor, foi um desvio da renda nacional para outras atividades primárias,

referenciando-se principalmente à produção algodoeira. Em resumo, foi somente com o

fim definitivo da política de defesa do café que a atividade industrial pode dar saltos

mais altos no seu caminho de desenvolvimento.

216
Os autores Villela e Suzigan, famosos por seus estudos quantitativos, seguem as

linhas gerais da argumentação de Peláez que buscamos apresentar acima. Há

concordância com relação à conclusão de que a estratégia de política econômica teria

seguido uma diretriz mais ortodoxa do que aparentava, estando norteada pela ideia fixa

do equilíbrio orçamentário nas contas públicas, de modo que não houve uma reação

anticíclica pré-keynesiana como Furtado quis mostrar no seu capítulo sobre o

deslocamento do centro dinâmico. A divergência entre os pesquisadores, por sua vez,

insere-se na questão do próprio desenvolvimento industrial: se Peláez é peremptório em

afirmar que o setor secundário de nossa economia desenvolveu-se apenas com o fim do

Estado Novo e da estratégia de defesa do setor cafeeiro, Villela e Suzigan “pendem”

para a linha furtadiana nesse quesito quando confirmam um estímulo ao crescimento

industrial nesse período apesar da desvalorização cambial. A economia entrava no

processo de substituição de importações, em que a compra de bens finais cedia espaço

para a aquisição de insumos industriais, os quais se direcionaram principalmente para a

metalurgia e outros setores da chamada “indústria pesada”.

Continuando a discussão historiográfica, apresentaremos a participação de

Albert Fishlow no debate iniciado por Peláez nos anos de 1960. O autor é original ao

afirmar que a recuperação econômica brasileira a partir de 1932 fundamentou-se

principalmente na igual recuperação da demanda interna brasileira, estimulada

principalmente pela defesa da renda no setor cafeeiro. Fishlow aproxima-se, dessa

maneira, da linha furtadiana de análise, dado que aceita o papel do Estado brasileiro na

garantia da renda e do emprego na cafeicultura.

O economista também realiza uma ligeira defesa da interpretação proposta por

Furtado ao apontar que a política econômica, mesmo esta tenha sido inicialmente guiada

por diretrizes ortodoxas, paulatinamente foi assumindo um caráter keynesiano, o que se

217
deduz pelo interesse do governo em aumentar a expansão creditícia para garantir a

queima das sacas estocadas de café.

Fishlow, além de analisar o deslocamento do centro dinâmico proposto por

Furtado, como mostramos acima, também faz sua aproximação e qualificação a respeito

da interpretação de Peláez. O economista americano incorpora em sua análise a política

de orçamento equilibrado, ou seja, entende que o aumento da carga tributária na

cafeicultura de fato serviu como mecanismo de financiamento para a defesa do setor no

ambiente de recessão mundial. Mas Fishlow qualifica Peláez ao apontar que este não

considera o poderoso efeito multiplicador do empréstimo externo de 20 milhões de

libras contraídos para a proteção do café, garantindo assim o estímulo à atividade

econômica num ambiente de crise. Em segundo lugar, o autor aponta que o ônus

tributário não foi arcado pelos próprios latifundiários, como supôs Peláez, mas sim

pelos consumidores estrangeiros em função da baixa elasticidade preço da demanda

internacional por café.

Em suma, Fishlow conclui sua análise afirmando que, embora a política

econômica varguista de defesa da cafeicultura não tenha proporcionado um estímulo à

atividade industrial tal como Furtado apontou, ela teve sim um papel crucial para o

desenvolvimento econômico nacional na década de 1930. Outros elementos, por sua

vez, que explicariam a recuperação da economia brasileira em meio à recessão mundial

teriam sido: a retomada da elevação das exportações entre 1932 e 1936, assim como a

redução dos impostos sobre a venda dos bens para o comércio mundial.

Para finalizar o balanço do debate, convém apresentar a interpretação de Simão

Silber sobre o desenvolvimento econômico brasileiro nos anos de 1930, assim como

suas críticas e qualificações a respeito das conclusões de Furtado, Peláez, Villela e

Suzigan. Separando os vinte anos entre 1919 e 1939 pelos decênios 1919 – 1929 e 1929

218
– 1939, o autor faz uma dupla aproximação à política de defesa do café e às políticas

monetária, fiscal e cambial.

Assumindo o café como o centro dinâmico da economia pelo menos até a crise

de 1929, e considerando o aumento das receitas com exportações a partir de 1919,

Silber é categórico em afirmar que a política de defesa do café (tanto a última de caráter

episódico como a permanente) foi bem sucedida em seus objetivos mais imediatos:

garantir um preço mínimo para a saca da commoditie e manter, consequentemente, o

nível de atividade naquele que era o principal setor da economia brasileira.

A política de defesa do café entre 1919 e 1929, apesar de atingir êxito, foi

acompanhada de um comportamento oscilante por parte da política cambial. Nesse

sentido, é importante recordar o que já foi tratado em capítulos anteriores: os

idealizadores do plano de valorização do café entendiam que era fundamental, para que

o efeito preço da defesa do gênero não fosse anulado, a manutenção e a estabilização do

câmbio em níveis mais ou menos desvalorizados. E é o que de fato ocorre entre 1919 e

1923. Nesse período inclusive Silber nota que a depreciação cambial funcionou também

como um mecanismo de proteção da indústria nacional. Com o decorrente

encarecimento das importações de bens finais, a produção interna passa a ser o principal

componente para o abastecimento da demanda nacional. Após 1923, porém, Silber nos

aponta uma estabilização do câmbio em taxas mais apreciadas, o que se explica pelo

aumento da entrada de divisas de exportação dado o sucesso das políticas de defesa do

setor cafeeiro. Assim, de fato há uma queda na produção industrial nacional,

desprotegida em função do barateamento dos bens estrangeiros como decorrência da

valorização cambial. Não obstante, abriu-se maior margem para a compra de bens de

capital e consolidação da capacidade instalada nas fábricas brasileiras.

219
Com a crise econômica mundial seguida do crack da bolsa de Nova York em

1929, a política de defesa do café assume, como já demonstramos, um novo caráter e

um novo método de condução. Num ambiente de restrições para empréstimos externos,

a queima de sacas de café com o objetivo de defesa da renda no setor cafeeiro

necessariamente se operacionalizou a partir de uma expansão do crédito.

A desvalorização que se segue à expansão monetária no início do Governo

Vargas é acompanhada de uma deterioração nos termos de troca, refletida no

encarecimento dos bens importados e na subsequente queda nas importações. Silber

nesse aspecto concorda com Furtado ao salientar que houve um desvio da demanda

nacional para o mercado interno, o que foi viabilizado justamente pela defesa da renda

na cafeicultura, mantendo os níveis de emprego e de consumo consequentemente. A

produção nacional então passa a ser o principal amortecedor das pressões oriundas da

demanda interna por bens finais.

O que acabamos de descrever acima mostra como Furtado e Silber convergem

para conclusões muito similares com relação ao desenvolvimento econômico, e

industrial em específico, do Brasil após o fim da República Velha. Não significa,

porém, que este autor não tenha feito as devidas qualificações à análise canônica

daquele economista. As críticas de Silber residem no fato de que Furtado não entendeu

a dupla causalidade no setor industrial das políticas de defesa do café, defasadas no

tempo. Se realmente em 1930, a estratégia varguista de literalmente destruir o café

funcionou como uma política pré-keynesiana anticíclica, afirmar a mesma coisa para o

período que vai de 1923 até 1929 não procede. Como mostramos, Silber nota uma

distorção nos preços relativos por conta da apreciação cambial que resulta do êxito da

política de defesa a partir de 1919. Distorção essa que bloqueou o aumento da produção

industrial nacional, dado que o barateamento das importações desprotegeu o empresário

220
brasileiro. Por outro lado, Furtado não notou, de acordo com Silber, o papel do

empréstimo externo de 20 milhões de libras que se deu com o objetivo claro de

viabilizar a queima das sacas, o qual acabou também funcionando como um efeito

multiplicador na economia. O mesmo “esquecimento” se deu com relação aos déficits

fiscais entre 1930 e 1932 e o superávit comercial no mesmo período, os quais

funcionaram também como mecanismo protetor da renda nacional. Finalmente, a crítica

de Silber a Furtado reside no seguinte: o autor de Formação Econômica do Brasil não

conseguiu provar realmente a transferência de renda do setor cafeeiro para o industrial.

Tudo o que foi dito pode ser sintetizado nas palavras do próprio autor:

Proteger o setor cafeeiro ao longo da década dos 30, ao contrário

dos anos 20, significou acelerar o desenvolvimento industrial. A demanda

interna por produtos industriais cresce neste período como subproduto da

defesa do setor cafeeiro. Parece-nos que Celso Furtado tem o insight correto

com relação aos impactos favoráveis sobre o nível de renda da defesa do

café, fazendo com que as repercussões da depressão fossem menores e

facilitassem a recuperação da economia brasileira […]. Porém, seu trabalho

é falho como pesquisa histórica ao deixar de considerar outros fatores que

contribuíram para minorar os efeitos da depressão e que possibilitaram a

recuperação dos níveis de produção, a partir de 1932. Não considera o

empréstimo externo de 1930 […]. Os elevados déficits do governo no início

da década, o aumento da participação do governo ao longo dos anos 30, o

superávit da balança comercial no período 1930/1932, são, também,

elementos responsáveis pelo resultado que Furtado atribui exclusivamente à

política do café […]. As atividades do CNC e DNC nem sequer são

mencionadas […].257

SILBER, Simão. Análise da Política econômica e do comportamento da economia brasileira


257

durante o período 1929/1939. In VERSIANI, F. R. & BARROS, J. R. M. de. (orgs) Formação


econômica do Brasil: a experiência da industrialização. 1a. Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p.
202 – 203.

221
As qualificações de Silber a Furtado são relevantes, mas as mais categóricas se

dirigem a C. M. Peláez e, consequentemente, a A. Villela e W. Suzigan. Esses três

autores, como vimos anteriormente, possuem linhas argumentativas parecidas com

relação ao desenvolvimento industrial.

A crítica principal de Silber se dirige à constatação de Peláez sobre a diretriz

ortodoxa da política econômica nacional em suas facetas fiscal, monetária e cambial.

Uma estratégia de queima de sacas e mais sacas de café ao longo de anos não pode ser

considerada outra coisa que não uma política efetivamente anticíclica e que inclusive

favoreceu a recuperação da demanda interna e o subsequente fortalecimento da indústria

nacional nos anos de 1930 em diante. A própria grandeza do déficit fiscal nos primeiros

três anos em que Vargas esteve na chefia do poder executivo, assim como a necessidade

de expansões monetária e creditícia por parte da autoridade responsável, dificulta muito

afirmar que a condução da nossa economia tenha se dado em bases ortodoxas.

Continuando suas qualificações, Silber conclui que é um erro da parte de Peláez

afirmar que o aumento da carga tributária no setor cafeeiro tenha sido o único meio de

financiamento governamental para a defesa do café. Não só o ônus da elevação de

impostos foi arcado pelo consumidor estrangeiro por conta da inelasticidade preço da

demanda internacional por café, mas também um outro mecanismo, o empréstimo

externo, garantiu o financiamento da defesa. Finalmente, a própria desvalorização

cambial que se segue ao keynesianismo avant-la-lettre empreendido por Vargas não foi

apontado por Peláez, o que é crucial para entender também a condução não ortodoxa da

política cambial. De acordo com Silber:

[Peláez] Não dá destaque à importância da primeira grande medida

de defesa do setor cafeeiro: o empréstimo externo de £ 20.000.000 […] Suas

222
afirmações de que as compras de café foram financiadas basicamente por

impostos não corresponde de forma exata aos seus próprios dados […]. […]

esquece em sua análise um elementos importante da defesa do setor

cafeeiro: a desvalorização cambial […] Com relação aos seus argumentos

de que a política monetária e fiscal se pautou, durante a década de 30, or

princípios ‘ortodoxos’, parece-nos que Peláez incorre em um erro de

interpretação.258

XXX

A Política Econômica no Primeiro Governo Vargas (1930 – 1945)

O debate que apresentamos e discutimos no capítulo anterior nos permitiu tirar

conclusões interessantes sobre os fundamentos da modernização econômica pela qual

passou o Brasil na década de 1930. É conveniente agora adentrar na análise da política

econômica propriamente dita e do papel do Estado no processo de desenvolvimento e

258
Idem, p. 203.
223
complexificação da economia brasileira. Com o objetivo de atingir uma noção mais

clara do ambiente da história econômica nacional em que estamos nos inserindo,

separamos os 15 anos de diretrizes econômicas da primeira fase da Era Vargas em 3

grandes blocos: a) o governo provisório (1930 – 1934); b) o interregno democrático

(1935 – 1937); c) a ditadura do Estado Novo (1937 – 1945).

a) O governo provisório (1930 – 1934)

Em meio ao crack da bolsa de Nova York e à recessão mundial subsequente, era

mais que esperado que a situação do Brasil na economia internacional se fundasse num

piso mais ou menos instável. No triênio de 1929 – 1931, as reservas em moeda

internacional que eram de posse do Banco de Brasil (que ainda naquele momento

exercia a dupla função de autoridade monetária e banco de varejo) estavam

praticamente zeradas.259 Do mesmo modo, nossas balanças de rendas e serviços, assim

como a de capitais, apresentavam déficit.260

A ausência de reservas num ambiente completamente caótico da economia

mundial na qual se inseria o Brasil era acompanhada de uma queda de 26% nas relações

de troca de nossa economia com o resto do mundo: embora as importações tenham

diminuído em 60%, sendo 40% no preço, as exportações sofreram desestímulo de 16%,

sendo 55% no preço. Estava assim montado todo o aparato para uma grave crise

cambial, uma vez que nosso regime cambial à época era flutuante. Não foi por mero

acaso ou coincidência, portanto, que sucessivas moratórias até o ano de 1931 chegaram

a ser executadas. Dado o caráter insustentável da situação em setembro do mesmo ano,

259
Uma das causas cuja menção se faz necessária é a falência da própria Caixa de Estabilização
no final do governo W. Luís. A própria entidade era responsável pelo gerenciamento de nossas
reservas em moeda internacional
260
Convém recordar das observações de Furtado a respeito do caráter adverso da “conta capital”
numa economia periférica como a brasileira. Em situações críticas como a da Grande
Depressão, a fuga de capitais para as nações centrais, mais “seguras”, tornava quase impossível
evitar um desequilíbrio para baixo da conta de capitais do Brasil.
224
o Banco do Brasil adota o monopólio cambial. Voltávamos ao regime de câmbio fixo.

Todas as cambiais obtidas com exportação deveriam ser vendidas à autoridade

monetária com base no câmbio oficial, menor que a taxa de mercado. Nas palavras de

Marcelo de Paiva Abreu:

Em 1930-1931, adotou-se uma política cambial aparentemente liberal, mas

na prática restritiva, decretando-se moratórias sucessivas em relação às

dívidas em moeda estrangeira. Em setembro de 1931, a situação tornou-se

insustentável, os pagamentos relativos à dívida pública externa foram

suspensos, reintroduzindo-se o monopólio cambial do Banco do Brasil.261

É nesse quadro cambial pouco alentador que a nova estratégia de negociação da

dívida externa por parte de nossas autoridades econômicas leva em consideração o

estabelecimento de um “novo funding loan” em 1931. Adequando os pagamentos às

disponibilidades de nossas reservas, mantinham-se os compromissos assumidos nos

fundings anteriores (1898 e 1914), mas os juros decorrentes de empréstimos realizados a

partir de 1931 seriam quitados no prazo de 3 anos, com lastreamento na emissão de

títulos com rendimento de 5%.262

Como último elemento para a análise da política econômica nesse primeiro

bloco, vale ressaltar a tentativa do governo brasileiro de conseguir um empréstimo

britânico para acomodar a crise cambial na qual se inseria o país. Conhecida como

“Missão Niemeyer”, o Brasil recebe a visita do banqueiro e funcionário público

britânico de alto escalão Sir Otto Niemeyer, o que acabou funcionando como uma pré-

condição para a consolidação do empréstimo. Marcelo de Paiva nos apresenta

precisamente os resultados obtidos com a missão:

261
ABREU, M. de P. Crise, crescimento e modernização autoritária: 1930-1945. In: ABREU,
M. de P. (org.). A ordem do progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2014, p. 80.
262
Idem, p. 81.
225
Um comunicado oficial publicado em 10 de janeiro de 1931 anunciava a

visita de Sir Otto ao Brasil. A visita foi apresentada à opinião pública como

resultado de convite voluntário do governo brasileiro e, naturalmente, não

como pré-condição à eventual concessão de empréstimo britânico ao

governo federal [...]. Niemeyer verificou ser impossível obter no Brasil

estatísticas fidedignas referentes às contas públicas, sendo obrigado a

aceitar “estatísticas que considerava falsificadas ou baseadas em conceitos

vagos”. O Banco do Brasil foi considerado “inútil enquanto banco central,

mal organizado, mal administrado e sujeito a mudanças radicais de política

a cada mudança de governo” [...]. O relatório da missão, que foi publicado

simultaneamente em Nova York, Paris, Londres e Rio de Janeiro em 25 de

julho de 1931, propunha basicamente dois grupos de medidas, pois, de

acordo com Niemeyer, “a reconstrução financeira do Brasil, como em

outros países, requer duas bases: a) a manutenção do equilíbrio

orçamentário por parte de todas as autoridades públicas... b) a estabilização

da moeda...”. [...] as recomendações do relatório Niemeyer relativas à

política fiscal não foram adotadas pelo governo brasileiro, a Missão

Niemeyer deve ser considerada como um fracasso. Nenhuma de suas

recomendações mais importantes foi adotada [...].263

De fato, é muito difícil contrariar Niemeyer no que tange à tentativa de atingir o

equilíbrio orçamentário nos anos que se seguem à Grande Depressão. Em nenhum ano

do decênio 1930 – 1939, as contas públicas do governo não fecharam “no vermelho”, o

que se apresentou para as autoridades financeiras britânicas como irresponsabilidade

fiscal. Veja o gráfico que Villela e Suzigan nos apresentam:264

263
Ibidem, A missão Niemeyer. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 14, n. 4,
p. 07-28, agosto, 1974, pp. 15 – 21.
264
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Política do governo e crescimento da economia brasileira,
1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1973, p. 185.
226
1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939
0

-200

-400

-600

-800

-1000

-1200

-1400

b) O interregno democrático (1934 – 1937)

Em fins do funding loan de 1931, o Brasil já apresentava uma melhora

significativa em seu balanço de pagamentos. Não obstante, a situação cambial

continuava num quadro pouco animador. Isso porque, ao terminarem os pagamentos dos

empréstimos consagrados três anos antes, empresários norte – americanos já passavam a

pressionar o governo federal para o estabelecimento de um regime cambial que operasse

de acordo com seus interesses. O fundamental, na visão do estrangeiro, para reestimular

a atividade econômica no Brasil, não residia num tratamento cambial diferenciado

(como vinha sendo o caso desde o início do governo provisório), mas sim na elevação

das pautas de exportação, assim como numa maior ênfase por parte das autoridades

numa política comercial mais liberal. É nesse contexto de que se dá a “Missão

Williams”:

227
Essas pressões provocaram o envio ao Brasil de missão chefiada por John

Williams, do Federal Reserve Bank of New York, para avaliar a situação

cambial brasileira. Em contraste com diagnósticos ortodoxos, tal como o de

Niemeyer em 1931, Williams reconheceu que a solução do problema cambial

não dependia das autoridades brasileiras e sim da recuperação do nível de

comércio internacional e da redução dos obstáculos ao livre comércio.265

As pressões norte americanas surtiram o efeito desejado e o Brasil abandona

definitivamente o monopólio cambial ao final dos compromissos do funding loan em

1934. O ganho de divisas com exportações, até mesmo considerando as vendas de sacas

de café no mercado mundial, não mais se atrelava à cobertura cambial que se destinava

ao Banco do Brasil. O novo tratamento cambial valeria também no caso da concessão

de licenças para remessas de lucros ao exterior.

A liberalidade cambial descrita acima e o subsequente afrouxamento do controle

da movimentação de nossas reservas contribuiu para provocar nova crise cambial já em

1935, obrigando a autoridade monetária a estabelecer um regime cambial novamente

mais restritivo, mas sob novas bases. A partir do início daquele ano, 35% das cambiais

obtidas com exportações deveriam ser repassadas ao Banco do Brasil mediante taxa

oficial, ao passo que o restante poderia ser negociado livremente a partir da taxa de

mercado.266

Finalmente, é importante perceber que, em meio às restrições cambiais que se

seguiam após 1935, o governo federal manteve as políticas fiscal, monetária e creditícia

expansionistas. O impacto disso foi a retomada do crescimento do produto no período

que vai de 1934 até 1937. A aceleração, por sua vez, teve de levar em conta a retomada

ABREU, M. de. P. Op. cit., p. 86.


265

266
É bem verdade que, já a partir de fevereiro de 1935, o Banco do Brasil abriria mão da
obrigatoriedade dos 35% no que se referia às exportações. O repasse poderia se dar abaixo desse
patamar, variando consideravelmente no período do interregno democrático. No caso das
importações, porém, a cobertura cambial se manteve a níveis constantes. Cf. ABREU, M. de P.
Op. cit., pp. 87 – 88.
228
da trajetória ascendente da produção industrial. Isso era plenamente compreensível

numa conjuntura de crise internacional, o que favorecia o processo de substituição de

importações. Nas palavras de M. Leopoldi:

O grande crescimento industrial de 1933 a 1936 (14,1% a.a.) ― os anos do

milagre ― puxa o PIB do período para uma taxa de 9,4% [...]. A alta taxa de

dinamismo do setor industrial no período se deve a uma base industrial

preexistente que pôde ser ampliada a partir da conjuntura internacional em

crise, que ajuda a substituição de importações.267

c) A ditadura do Estado Novo (1937 – 1945)

Com a consolidação do poder central de Vargas a partir do golpe de 1937 (cujos

determinantes político – institucionais foram aqui delineados previamente), o papel do

Estado no desenvolvimento econômico do país assume um novo caráter em termos

qualitativos e quantitativos. Ele deixa de ser apenas um “player” ocasional que assumia

as rédeas da condução econômica em situação mais aguda e passa a ser o principal

agente do desenvolvimento, atuando como o investidor mais importante nos negócios da

economia brasileira. É bem verdade que este é um processo que veio tomando forma

desde a “Revolução de 1930”, mas ele atinge seu ápice exatamente na ditadura

varguista. E é justo nessa inflexão que os planos de investimento industrial desenhados

pelo Estado já não coadunam mais com uma política cambial menos restritiva. O

monopólio cambial estrito é assim reestabelecido. Junto com o regime de câmbio fixo

veio também a estratégia de controle de importações, que serviria mais como uma forma

267
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 249.

229
de conter os déficits na balança comercial, o que vinha sendo o principal causador do

rombo na dívida externa.268 Novamente de acordo com Marcelo de Paiva Abreu:

O controle cambial e de importações depois de 1937 tornou-se o principal

instrumento de política comercial. Na prática, a aplicação dos controles de

importação resultou ser instrumento mais eficaz para conter ou reduzir o

nível agregado de importações do que para discriminar em favor das

importações definidas como essenciais.269

As restrições cambiais e o controle de importações não foram suficientes para

resolver no curto prazo o problema da dívida externa brasileira. O quadro crítico de

escassez de divisas exigiu a realização da chamada “Missão Aranha”. O ministro

Oswaldo Aranha teria sido encarregado de negociar junto ao Eximbank um empréstimo

volumoso para amortecer as pressões crescentes sobre nosso balanço de pagamentos.

Em troca da adoção de uma política cambial liberal e sem diferenciação, além do

compromisso de iniciar o pagamento dos juros da dívida pública no curto prazo, o que o

Brasil conseguiu foi um modesto empréstimo de US$ 19,2 milhões para descongelar os

atrasados comerciais com os EUA. A imposição do pagamento do serviço da dívida em

especial foi recebida com considerável insatisfação principalmente por parte das Forças

Armadas, uma vez que tal condição poderia funcionar como obstáculo para a

importação de material militar necessário ao funcionamento ordinário do exército. 270

Mesmo que a contrapartida norte – americana no acordo estabelecido com a

“Missão Aranha” tenha sido modesta, Oswaldo Aranha se compromete com a adoção de

uma política cambial menos restritiva na comparação com aquela até então adotada

desde o início da ditadura varguista. Assim, o nome regime cambial terá aspecto
268
Cf.: “Em fins de 1937, a escassez de divisas, fruto da substancial elevação das importações,
que cresceram cerca de 40% em valor entre 1936 e 1937, foi usada como justificativa, após o
golpe de novembro, para o default da dívida externa e a adoção de monopólio cambial do
governo.” ABREU, M. de P. Op. cit., p. 93.
269
Idem, p. 93.
270
Cf. Ibidem, pp. 94 – 95.
230
semelhante àquele adotado em 1935 no interregno democrático. Das cambiais obtidas

com as exportações, 30% deveriam ser repassadas ao Banco do Brasil mediante taxa

oficial menor que a de mercado. As outras 70% poderiam ser negociadas livremente.

Sendo a taxa oficial mais vantajosa, o governo federal poderia ter a capacidade de

liquidar seus compromissos em moeda estrangeira Ainda de acordo com Marcelo de

Paiva:

A reformulação da política cambial ocorrida em abril de 1939 correspondeu

parcialmente às promessas feitas por Aranha em Washington. O novo regime

cambial liberava 70% das cambiais geradas pelas exportações para o

mercado “livre” de divisas, que deveria suprir integralmente as divisas para

importação de mercadorias [...]. Os restantes 30% das cambiais de

exportação deveriam ser vendidos compulsoriamente ao Banco do Brasil à

taxa oficial de câmbio mais favorável ao governo do que a taxa “livre” –

para uso no pagamento de compromissos oficiais em moeda estrangeira [...].

Uma terceira taxa de câmbio – a livre-especial – foi criada, englobando

transações financeiras privadas, especialmente remessas de lucros e

dividendos de capitais estrangeiros, mais depreciada do que a taxa do

mercado “livre”.271

A economia brasileira, a partir da conflagração do conflito mundial mais

sangrento de toda a história da humanidade, passará por uma inflexão em seu trajeto que

será marcante em nossa história econômica até seu período mais recente. O fechamento

dos mercados centrais para os principais produtos brasileiros (entre eles obviamente o

café), ao mesmo tempo em que não houve aumento das importações dos países aliados

pelo menos até 1942, fez com que nossa balança comercial sofresse uma queda a níveis

acentuados. Comprometia-se assim a nossa capacidade para importar bens de capital e

outros insumos necessários ao processo de industrialização. O que é aparentemente

271
ABREU, M. de P. Op. cit., pp. 94 – 95.
231
paradoxal é que a mesma dificuldade de importações funcionou como um mecanismo

protetor para o industrial brasileiro, na medida em que ele pode se desenvolver sem

recorrer exclusivamente ao suprimento externo. Essa peculiaridade pode ser resumida

por Abreu:

As dificuldades relativas à obtenção de importações resultaram em efeitos

contraditórios sobre o desempenho da economia. Por um lado, a produção

de determinados bens podia desenvolver-se sem a alternativa de suprimento

externo; por outro o crescimento industrial era limitado pela dificuldade de

obtenção de insumos essenciais e de bens de capital que possibilitassem a

ampliação da capacidade.272

As dificuldades para importar devido ao quadro desfavorável de nossa balança

comercial tornaram mais fortes as percepções, por parte das autoridades, de que era

necessário uma intervenção estatal mais forte para a formação de um parque industrial

de insumos. É assim que o projeto estatal siderúrgico começa a se delinear, por

exemplo. Veremos mais adiante que o Estado Varguista será o principal componente na

formação de todo o complexo de infraestrutura que englobou não só a siderurgia, mas o

petróleo e a geração de energia elétrica.

É importante perceber, porém, que a partir de 1942 as importações aliadas

atingem um grau considerável e o Brasil certamente assume um papel importante no

suprimento dos interesses estratégicos das nações centrais que rivalizam com o Nazi –

Fascismo pela hegemonia do globo. Com isso, a oferta brasileira se direciona para o

mercado externo, de modo que a renda gerada com o crescimento do PIB desde 1935

fica represada sem ser atendida pelo mercado nacional. Ao mesmo tempo em que se

materializava uma defasagem entre a demanda interna agregada e a oferta,

potencializada pela restrição às importações brasileiras devido ao esforço de guerra, o

272
Idem, p. 96.
232
Governo Federal apelava para emissões monetárias lastreadas em títulos públicos assim

como emissões primárias, ambas servindo para financiar o déficit público oriundo dos

gastos decorrentes do projeto nacional – desenvolvimentista. A combinação de políticas

monetária e fiscal expansionistas com um crescente desequilíbrio entre oferta e procura

necessariamente conduziram a economia para um quadro inflacionário com crescimento

econômico. O nível de preços chegou a subir anualmente no intervalo entre 15% e

20%.273 De acordo com o gráfico:274

400
350
300
250
200
150
100
50
0
1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945

XXXI

273
Ibidem, p. 96.
274
VILLELA, A. & SUZIGAN, W. Op. cit., p. 424.
233
A defesa da indústria na Era Vargas (1930 – 1945)

Seguindo a discussão sobre o desenvolvimento e a modernização da economia

brasileira nos anos em que Vargas esteve na chefia do executivo nacional até 1945,

abrimos espaço agora para analisar em mais pormenores o papel do Estado no processo

de complexificação do nosso parque industrial. Colocaremos em relevo, nesse sentido, o

posicionamento da historiografia sobre qual teria sido a real intencionalidade do

executivo brasileiro na promoção de nossa modernização. Será dado, assim, maior

espaço para a interpretação de Maria Antonieta Leopoldi no que diz respeito ao

desenvolvimento da indústria brasileira no período em questão.

A autora é categórica ao enfatizar que não houve uma intenção a priori de

desenvolvimento industrial por parte do Estado Burguês varguista. Na realidade, o

projeto de industrialização se fundamenta a partir de elementos históricos e econômicos

externos às aspirações do Estado. A proposta estatal de desenvolvimento teria se

materializado, de acordo com Leopoldi, nos desdobramentos da conjuntura econômica

nacional, baseando-se mais no próprio movimento histórico do que numa

intencionalidade pregressa que automaticamente teria se concretizado. Nas palavras da

própria autora:

[...] não se sustenta a ideia de que existiu um projeto varguista de

desenvolvimento que serviu de base para as políticas desse período. Tal

projeto foi sendo construído em cima dos acontecimentos, respondendo aos

desafios conjunturais, que não foram poucos, e às várias demandas

econômicas e políticas, e só pode ser compreendido se visto de uma

perspectiva histórica.275

275
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
234
Leopoldi conclui sua premissa básica afirmando que, apesar da inconsistência da

tese que defende a intencionalidade a priori do Estado, este acabou exercendo um papel

fundamental no desenvolvimento da indústria nacional que se solidifica a partir dos

desdobramentos histórico – econômicos favoráveis do início da década de 1930. É nesse

ambiente que o executivo poderá empreender uma política cujo enfoque se direciona

para os ditos “setores estratégicos” de infraestrutura: petróleo, siderurgia e energia

elétrica são, no conjunto de todos contemplados, os principais e os que serão aqui

analisados mais retidamente.276

É nesses complexos de infraestrutura que Vargas enxerga a possibilidade de

superar os gargalos estruturais da nossa economia que atravancavam o

desenvolvimento. O desenho do plano de modernização, nesse sentido, deveria levar em

conta as formas de financiamento necessárias à materialização dos projetos de

infraestrutura. Como realizar a transferência de tecnologia? Como ponderar bem a

participação dos capitais nacional e estrangeiro no processo de desenvolvimento? Além

disso, a relação do Estado com a disponibilidade de recursos naturais que o Brasil

oferecia deveria tornar-se mais estreita a partir de então: um novo marco regulatório

institucional passou a ser pauta nacional justamente para dar ao executivo federal maior

acesso ao solo e às potencialidades da natureza brasileira. Confira os artigos da

Constituição de 1937 que apontam exatamente para esse fortalecimento dos laços

governamentais com os recursos naturais:

Art 143 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas

d'água constituem propriedade distinta da propriedade do solo para o efeito

de exploração ou aproveitamento industrial. O aproveitamento industrial

das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica, ainda

que de propriedade privada, depende de autorização federal.


Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 248.
276
Idem, pp. 250 – 252.
235
§ 1º - A autorização só poderá ser concedida a brasileiros, ou empresas

constituídas por acionistas brasileiros, reservada ao proprietário

preferência na exploração, ou participação nos lucros

§ 4º - Independe de autorização o aproveitamento das quedas d'água já

utilizadas industrialmente na data desta Constituição, assim como, nas

mesmas condições, a exploração das minas em lavra, ainda que

transitoriamente suspensa

Art 144 - A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas

minerais e quedas d'água ou outras fontes de energia assim como das

indústrias consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar

da Nação.

Art 146 - As empresas concessionárias de serviços públicos federais,

estaduais ou municipais deverão constituir com maioria de brasileiros a sua

administração, ou delegar a brasileiros todos os poderes de gerência.

Art 147 - A lei federal regulará a fiscalização e revisão das tarifas dos

serviços públicos explorados por concessão para que, no interesse coletivo,

delas retire o capital uma retribuição justa ou adequada e sejam atendidas

convenientemente as exigências de expansão e melhoramento dos serviços.

a) O petróleo

Até o final da década de 1920, a incipiente indústria brasileira dependia em larga

medida da queima de combustíveis sólidos, tais como a lenha e o bagaço de cana. É só

em meados do decênio seguinte que o petróleo passa a ser visto como uma alternativa

para a solução do problema energético. Olhando para as experiências mexicana e

argentina, o executivo federal em conjunto com as Forças Armadas colocam o

desenvolvimento do projeto petrolífero não só como uma ponte necessária ao

desenvolvimento industrial, mas principalmente como um mecanismo de segurança

236
nacional.277 Isso porque com uma nova alternativa para o fornecimento de energia, viria

junto uma maior independência nacional com relação aos interesses das companhias

estrangeiras de matérias primas e insumos para as fábricas. Não é por acaso, portanto,

que em 1938 tenha sido criado o Conselho Nacional do Petróleo, comandado pelo

General Horta.

Se era consenso a necessidade de apresentar uma alternativa para o fornecimento

energético de nossa indústria, de modo a dinamizar seu desenvolvimento, estava longe

de ser unanimidade a forma como se daria a realização do projeto petrolífero. Já na

década de 1940, a questão do petróleo nacional se transformará em palco de debates

sobre a possibilidade/viabilidade da participação do capital privado nacional e

internacional no desenvolvimento desse “setor estratégico”. De acordo ainda com

Leopoldi:

No início dos anos 40, as controvérsias em torno da política do petróleo

começaram a se tornar mais claras. De um lado, o general Horta Barbosa, à

frente do CNP, defendia um projeto totalmente estatal [...]. Do outro lado, os

empresários brasileiros, donos de refinarias, queriam um modelo nacional

privado para o petróleo. Com a aproximação entre o Brasil e os Estados

Unidos durante a guerra, a linha estatizante de Horta Barbosa foi perdendo

força e ele acabou sendo afastado do CNP em 1943.278

Os planos do petróleo nacional ganharão contornos mais reais a partir do

segundo governo de Getúlio Vargas (1951 – 1954), quando é criado o imposto único

sobre os derivados do petróleo, idealizado fundamentalmente para o financiamento da

277
Cf.: “Inspirados pelo exemplo da Argentina, que criara em 1922 uma empresa estatal de
petróleo, e pelo México, que em 1938 expropriara as refinarias estrangeiras instaladas no país,
os militares brasileiros começaram a tornar pública sua posição de que a dependência da
importação do petróleo precisava ser revertida, pois era uma questão de segurança nacional.”
Ibidem, p. 254.
278
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 254.
237
estatal brasileira petrolífera: a famigerada Petrobrás, estabelecida no ano de 1953 após

aprovação no Congresso Nacional.279

b) A siderurgia

Quando falamos de siderurgia no Brasil, logo nos vem ao pensamento uma série de

empresas de grande porte e de demasiada importância para toda nossa cadeia produtiva.

Não é de se esperar outra coisa que não lembrar da CSN (Companhia Siderúrgica

Nacional) e da Vale do Rio Doce. A grande questão que não pode faltar à análise

histórica, porém, são os antecedentes desse quadro que ganha robustez a partir dos anos

de 1940.

Até o final da década de 1920, o parque siderúrgico nacional era extremamente

incipiente. Contava basicamente com os modestos investimentos privados do norte –

americano Percival Farquhar.280 Era corrente, entretanto, a noção de que deveria haver

um grande projeto de desenvolvimento da siderurgia brasileira. O “sonho”, por assim

dizer, acabava sendo compartilhado por militares, engenheiros civis e também pela

classe política. Mas esbarravam na realidade ao ver a falta de aço para a modernização e

complexificação de áreas como a construção civil e a indústria metalúrgica. 281

É só no final da década de 1930 que estratégias mais elaboradas para o

desenvolvimento da siderurgia brasileira começam a ser pensadas. A formação de um

parque siderúrgico mais robusto necessariamente deveria levar em conta a questão da

transferência de tecnologia. E o caminho inicialmente encontrado foi um acordo de

compensação comercial com a Alemanha, selado em 1937. 282 O projeto avança já na

279
Idem, p. 255.
280
Nos anos de 1940, as propriedades de Farquhar foram apropriadas pelo Estado Brasileiro para
a construção da Acesita em Minas Gerais (1942). O empresário viria a morrer na miséria.
281
Ibidem, pp. 256 – 257.
282
Com a conflagração do conflito mundial e o posterior alinhamento brasileiro ao lado dos
aliados faz com que cessem as relações diplomáticas entre Brasil e a Alemanha Nazista, indo
238
década de 1940 com a criação da Comissão Executiva do Plano Siderúrgico. A entidade

se encarregou de negociar com o governo norte – americano, através do Eximbank, um

acordo que garantia o apoio estado – unidense para a construção de nosso parque

siderúrgico. Em troca da concessão de uma base militar brasileira no Nordeste para uso

exclusivo dos EUA em 1942, o Eximbank estabelece uma linha de crédito no montante

de 20 milhões de dólares para a construção da CSN no mesmo ano. Outros 25 milhões

seriam investidos pelo próprio governo federal com financiamento vindo de fontes

diversas. Estava montado o grande projeto de desenvolvimento do nosso parque

siderúrgico. De acordo com Leopoldi:

A CSN foi o último empreendimento significativo do primeiro período de

Vargas no governo e o símbolo de um projeto nacional desenvolvimentista

que envolveu uma aliança entre Estado, industriais e militares. A CSN pôs

em relevo também a capacidade de negociação da diplomacia brasileira,

que reconheceu o momento ideal para barganhar com os interesses

estratégicos dos americanos [...].283

c) As hidrelétricas

Com a urbanização e o desenvolvimento da indústria nacional no período que

compreende os decênios de 1920 e de 1930, cada vez mais se avoluma uma defasagem

entre a demanda e a oferta de energia elétrica no país e principalmente nas metrópoles

do sudeste brasileiro. As necessidades cada vez maiores dos empresários e da própria

população citadina por um abastecimento energético eficiente já não mais poderiam ser

acomodadas pela incipiente e rudimentar oferta nacional. Leopoldi aponta:

No início do governo Vargas [...]. Boa parte do país ainda recorria aos

lampiões de querosene, à lenha e aos geradores particulares para iluminar

as residências e movimentar as indústrias [...]. A partir de 1930, enquanto a

pelo ralo os acordos comerciais antes selados.


283
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 257.
239
economia crescia, recuperando-se da crise e apresentando um crescimento

industrial surpreendente, a oferta de energia elétrica estagnava [...].284

É importante mencionar que o suprimento de energia elétrica era feito

basicamente por empresas subsidiárias, centrais térmicas e hidrelétricas. Estas chegaram

a compor cerca de 60% da capacidade instalada brasileira de energia elétrica no início

dos anos de 1930.285

É só no final da ditadura do Estado Novo que um projeto mais robusto de

geração de energia elétrica ganha força no país. Abrindo mão do sistema de concessões

para subsidiárias estrangeiras (a tônica até o momento), o Estado passaria a ter papel

fundamental no desenvolvimento desse setor estratégico de nosso complexo de

infraestrutura, atuando junto com os governos estaduais no processo de geração e de

distribuição de energia. O que acabamos de dizer novamente pode ser sintetizado pelas

palavras de Leopoldi:

Os sinais de um novo modelo energético em germinação, que substituiria o

sistema de concessões pela ação direta do Estado na geração e distribuição

da energia hidrelétrica, vieram dos governos estaduais, durante a Segunda

Guerra (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro), e da criação,

em 1945, da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a primeira empresa

de eletricidade do governo federal [...].286

XXXII

A economia brasileira na Segunda Guerra Mundial


284
Idem, p. 259.
285
Ibidem, p. 260.
286
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Op. cit., p. 261.
240
Em 1942, em meio ao conflito mais sangrento de toda a história da civilização

humana, o Brasil oficialmente entra na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados.

Era declarado Estado de Guerra em todo o território nacional. As relações diplomáticas

e comerciais que existiam com os países do Eixo Roma – Berlim – Tóquio foram

definitivamente rompidas, assim como perseguições a alemães, japoneses e italianos

que viviam no país passaram a ser perseguidos oficialmente pelo Estado.287

Por mais interessante que possa ser o estudo e a análise da Segunda Guerra em

si, assim como deve ser igualmente estimulante entender de maneira aprofundada os

determinantes para a entrada do Brasil no conflito e seus resultados políticos, daremos

ênfase aqui ao quadro da economia nacional durante a sangria que perdurou de 1939 até

1945.

O primeiro aspecto que merece um olhar mais atento é a questão do

financiamento do setor siderúrgico brasileiro, ponto nevrálgico que envolvia duas

nações rivais em conflito: Alemanha e EUA. O Brasil havia selado um acordo bilateral

de compensação com os germânicos em 1937, em que ocorreria a transferência de

tecnologia para a construção siderúrgica em Volta Redonda. Ao mesmo tempo, como já

pontuamos no capítulo X, existiam tratativas de Vargas com a diplomacia norte –

americana para um plano robusto de financiamento do aço no Brasil. Se Maria Leopoldi

aponta no sentido de um eminente poder de barganha por parte do governo brasileiro,

que teria usado da ameaça alemã para atrair o investimento estado-unidense, outras

interpretações da historiografia questionam essa análise.288

287
Os dois times brasileiros de futebol que carregavam o nome de Palestra Itália, um em São
Paulo e outro em Minas Gerais, foram obrigados a mudar o título da agremiação: em São Paulo,
passou a ser a Sociedade Esportiva Palmeiras; em Minas Gerais, tornou-se o Cruzeiro Esporte
Clube. Futebol também é História.
288
Vide nota 25.
241
Marcelo de Paiva Abreu é um dos autores que nega essa habilidade presente na

diplomacia brasileira que permitiu a captação dos recursos norte – americanos. Na

realidade, tratava-se, segundo o pesquisador, de uma estratégia da própria potência

mundial que buscava exercer cada vez mais sua hegemonia econômica e política na

América Latina e via no Brasil o melhor país para estabelecer sua influência. De fato, a

própria Alemanha nazista romperia com Vargas no exato momento em que este teria

declarado seu apoio oficial aos aliados (EUA, Inglaterra, França e URSS), desfazendo o

acordo de compensação comercial selado em 1937. De acordo com Paiva:

É difícil aceitar acriticamente, apesar dos comentários de Vargas, a

alegação de que os norte-americanos decidiram sob temor de que os

alemães concedessem os financiamentos e fornecessem o equipamento para

Volta Redonda. Não se pode levar a sério a presunção de que a Alemanha

ocuparia sua capacidade produtiva com a encomenda de equipamentos para

Volta Redonda ou que os britânicos permitiriam que estes fossem

transportados sem problemas para o Brasil. A ênfase de Vargas na ameaça

alemã só pode ser vista como um típico blefe. O que se argumenta aqui é

que, subjacente à decisão norte-americana de ir adiante com o

financiamento e com o fornecimento de material para Volta Redonda, ‘não’

estava o temor de uma altamente improvável alternativa alemã, mas sim

considerações relativas a uma política de longo prazo para a América

Latina que dependia do fortalecimento do Brasil em detrimento da

Argentina.289

Uma vez em Estado de guerra, o Brasil assume seus compromissos e encontra

uma velha solução para financiá-los: a emissão monetária. 3 milhões de contos de réis

foram emitidos na forma de títulos públicos com rendimento de 6,0% a.a., os quais

deveriam ser compulsoriamente repassados a funcionários públicos. Além disso, mais 1


ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro:
289

Civilização Brasileira, 1999, p. 327.

242
milhão de contos foram vendidos aos bancos comerciais na forma de letras do Tesouro

Nacional. Além das emissões monetárias, mais acordos entre EUA e Brasil foram

realizados para o financiamento do esforço de guerra nacional. Inicialmente, foram

estabelecidas linhas de crédito na base de 100 milhões de dólares, de modo que a

contrapartida brasileira seria o comprometimento com o fornecimento de matérias –

primas estratégicas para os planos norte – americanos. Após o rompimento com o Eixo,

o crédito estrangeiro expande para 200 milhões de dólares. Ao fim e ao cabo, o Brasil

foi receptor de praticamente 330 milhões de dólares, dos quais uma parte foi

diretamente enviada para a FEB na Itália.290

As medidas de expansão monetária, mais cedo ou mais tarde, acabariam levando

a uma escalada do nível de preços. O impacto inflacionário pode ser visto a partir de

duas óticas. De um lado temos a análise canônica de Celso Furtado, que encontra as

razões da inflação num desequilíbrio entre a oferta e a procura por bens dentro do país.

As políticas anticíclicas da década de 1930 teriam tido o mérito de “isolar” a economia

brasileira dos efeitos mais nefastos da crise mundial, possibilitando a abertura de um

caminho para a expansão da renda. E se antes do conflito a oferta teria sido capaz de

suprir a demanda agregada que se desviara para o mercado interno, com a entrada do

Brasil na Segunda Guerra Mundial, aquilo que era direcionado “para dentro” toma o

caminho das exportações. Cria-se um desequilíbrio que só poderia ser resolvido pelo

mecanismo da elevação dos preços. Por outro lado, a historiografia mais recente, em

que está incluso Marcelo de Paiva Abreu, aponta para um descontrole da emissão

monetária justamente pela ausência de um Banco Central propriamente dito. A política

econômica e monetária em específico estava dividida entre o Banco do Brasil, a

SUMOC (precursora do BACEN, que seria fundado na ditadura militar) e o Ministério

290
Idem, p. 332.
243
da Fazenda. Tornava-se muito frequente, nesse sentido, a descontinuidade e a

inexistência de um plano monetário mais claro e direcionado. A inflação teria sido, por

assim dizer, o resultado de anos de imprudência no controle da moeda. Veja a tabela

que explicita a evolução do nível de preços da economia brasileira entre 1934 e 1945:291

Anos Índice de Preços Taxa de câmbio

1934 112,6 73$423

1935 114,9 85$112

1936 138,2 86$230

1937 162,1 78$788

1938 161,2 86$387

1939 157,6 85$746

1940 165,8 79$989

1941 186,3 79$971

1942 206,8 79$590

1943 253,9 79$586

1944 288,7 79$290

1945 360,9 78$901

291
VILLELA & SUZIGAN, p. 426.
244
Além do mecanismo de financiamento, convém lançar luz sobre o fato de que a

própria estrutura de arrecadação tributária passou por importante ponto de inflexão.

Com a conflagração do conflito mundial, necessariamente o comércio internacional

sofreria modificações no sentido de seu maior fechamento. Os países centrais, imbuídos

do esforço de guerra, restringiram substancialmente suas exportações, o que é análogo a

dizer que o potencial do Brasil para importar havia diminuído. Ora, uma vez que a

principal fonte de receita do governo federal vinha por meio da arrecadação do imposto

de importações, era de se esperar que, sem nenhuma mudança na organização tributária,

nossas receitas teriam de reduzir. O fato é que passam a ganhar muita importância os

impostos de renda e sobre consumo na medida em que caem as compras no exterior.292

Com os desdobramentos da sangria mundial, não só as questões referentes ao

plano de desenvolvimento siderúrgico, aos mecanismos de financiamento e à mudança

no quadro da arrecadação tributária merecem destaque, mas também é relevante discutir

o comportamento do gasto público no mesmo período. Partindo da prerrogativa de

ampliar a garantia de segurança nacional em meio à guerra, o Estado passa a ter

justificativas concretas para a realização de obras públicas cujo fim último era a defesa

da famigerada soberania nacional. É nesse sentido que são empreendidas as atividades

para a realização do Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa

Nacional e do Plano de Obras e Equipamentos. Em tais conjuntos de obras se

enquadravam a construção e o aparelhamento de novos quartéis, assim como a criação

de novas ferrovias e rodovias de importância claramente militar. Não é por acaso,

portanto, que nos anos da Segunda Guerra Mundial, a participação dos gastos do

governo na dívida pública chegam ao patamar de 19,0%, enquanto nos anos de 1930,

ela não havia ultrapassado modestos 6,0%. Em todo o intervalo 1940 – 1945, o saldo
292
Nos seis anos de duração da Guerra, a porcentagem do tributo de importação na receita
federal vai de 32,4% para 12,4%. O imposto de renda amplia sua participação de 9,4% para
27,1%. Cf. Idem, p. 223.
245
governamental realizado ficou abaixo do saldo previsto, assim como a despesa realizada

ficou acima da orçada no mesmo período.

Um último elemento que merece destaque em nossa análise é a participação

efetiva do Brasil no comércio internacional nos anos da Guerra. Nesse sentido, é

extremamente relevante notar que 75% de nossa pauta de exportações estava

comprometida pelos acordos comerciais bilaterais com os EUA e com a Inglaterra. Com

os norte – americanos especificamente estavam englobados os seguintes produtos: café,

minerais, borracha, babaçu, algodão, mamona, cacau e arroz. Mas o que mais

impressiona é o comportamento dos têxteis. Chegavam a compor aproximadamente

20% de nossa parcela no mercado mundial. Veja como cresce a produção de algodão

para a indústria de tecidos durante o conflito mundial:

246
A expansão da produção reflete-se num aumento das taxas de lucro dos empresários do

setor, as quais variavam entre 50% e 80%.293

Apesar do excelente desempenho dos têxteis nacionais no mercado mundial, é

importantíssimo pontuar a falta de ética comercial por parte de nossos empresários. Isso

justamente porque a maioria dos tecidos enviados para o exterior (especialmente para a

Argentina e para a África do Sul) eram de qualidade inferior àquela estabelecida

previamente em contrato, o que acabou contribuindo e muito para um desgaste do Brasil

no comércio internacional.

Essa falta de confiança do setor externo com relação à capacidade do Brasil de

arcar com seus compromissos impactou inclusive no quadro das importações de bens de

capital e de outros insumos. Não que o Brasil não tenha ampliado sua capacidade para

importar. Pelo contrário: com a elevação de nossas exportações, ela aumentou, apesar

da queda média de 20% das nossas compras. Na realidade, o que houve foi a venda, por

293
É fundamental pontuar que o aumento da produção têxtil no Brasil reflete uma mudança no
comportamento demográfico, com uma ampliação da urbanização no período de modernização
da economia nacional no decênio de 1930.
247
parte principalmente de Inglaterra e EUA, de bens de capital de segunda mão e sem

garantia. Era uma espécie de retaliação, a qual acabou trazendo consequências

indesejáveis para o desenvolvimento da nossa indústria, uma vez que, com o

aquecimento da produção, a inferior qualidade dos insumos utilizados potencializaria

ainda mais o desgaste e a saturação de nosso parque.

XXXIII

O Governo Dutra e a política econômica no pós-guerra

248
Passadas as turbulências da Segunda Guerra Mundial no quadro da economia

brasileira, assim como em seu invólucro político, os rumos da política econômica

ganham novos contornos com a queda de Getúlio Vargas e a chegada do General Eurico

Gaspar Dutra à chefia do poder executivo federal. No debate público, duas vertentes

mais amplas de pensamento econômico ganham força na busca por hegemonia sobre os

desenhos de planejamento. A primeira delas, de caráter mais liberal e ancorada na

tradição austríaca de F. Hayek, não intervencionista e internacionalista, era representada

principalmente por Eugênio Gudin (1886 – 1986). A rival, fundamentada numa visão

próxima da linha keynesiana, via o Estado como um agente importante do

desenvolvimento e o único capaz de realmente planejar a economia nacional, tendo

como “líder” o empresário Roberto Simonsen (1889 – 1948). Aqueles enxergavam a

política desenvolvimentista como a causa por trás da ineficiência e da baixa

produtividade da indústria nacional, cada vez mais afastada do investimento direto

estrangeiro na medida em que o Estado assumia uma posição mais e mais

intervencionista desde o golpe do Estado Novo em 1937. Estes, por outro lado, eram

entusiastas do desenvolvimentismo, visto como necessário à modernização de nosso

parque industrial ainda em processo de formação. E por isso a necessidade de um

executivo cada vez mais atuante, que estivesse interessado em desenhos de

planejamento econômico efetivamente nacionais. Nas palavras de Leopoldi:

Quando a guerra chegava ao fim veio à tona no Brasil um intenso debate

sobre como deveria ser a política econômica no pós-guerra. De um lado

estavam os neoliberais (Eugênio Gudin, Octavio Gouveia de Bulhões,

Valentim Bouças), que tinham alguma conexão com companhias

estrangeiras ou uma visão mais internacionalista da economia [...]. Essa

corrente era contrária ao envolvimento do Estado com a política industrial,

249
na forma de tarifas protecionistas ou controle cambial. Para essa corrente, o

protecionismo industrial levava à baixa produtividade industrial e a preços

altos. O planejamento também era muito criticado, porque lembrava

socialismo e dirigismo. De outro lado, havia uma variedade de orientações

desenvolvimentistas (empresariais, estatistas, comunistas) que apoiavam,

com menor ou maior ênfase, o papel do Estado e do planejamento para

promover o desenvolvimento industrial [...] estavam em acordo quanto ao

papel central da industrialização e da necessidade de proteção da indústria

local pelo Estado. Os industriais brasileiros, tendo à frente líderes como

Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi [...] tornaram público seu projeto

econômico para Brasil do pós-guerra [...] propunham que o governo

brasileiro destinasse reservas cambiais do país para a importação de

equipamentos e insumos necessários à indústria, selecionando as

importações essenciais.294

Concretamente, o embate entre as duas vertentes de política econômica se

expressou na criação do CNPIC (Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial),

chefiado por Simonsen, e da CPE (Comissão de Planejamento Econômico), liderado por

Gudin.

O empresário paulista, sendo um entusiasta do pensamento de John Maynard

Keynes, entendia que o desenvolvimento industrial tinha de ser fundamentado no

crédito e no investimento estatais, de modo que este último complementasse o

investimento do empresariado nacional, o qual não teria condições de consolidar um

parque inteiro por conta própria. No que concernia às relações bilaterais Brasil – EUA,

Simonsen admitia um financiamento externo que viesse do próprio governo norte –

americano, e não por meio de investidores privados. Em suma, a proteção nacional era a
294
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-
1945): a política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, J. & DELGADO, L. de
A. N. (org.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado
Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 279.

250
única forma de garantir, segundo Simonsen, a sobrevivência das indústrias locais frente

àquelas dos países mais desenvolvidos no pós-guerra.295

O engenheiro carioca, por seu turno, representava no Brasil a crítica

antikeynesiana que Hayek realizava na arena internacional. O planejamento econômico

estatal acompanhado do intervencionismo e do dirigismo, longe de estimular o

desenvolvimento, produzia ineficiência e lançava o risco de se instaurar, no país, uma

linha de política econômica em suas versões nazi-fascista ou até mesmo estalinista. O

protecionismo seria o mecanismo pelo qual a coletividade se sacrificava em prol de

umas pequenas oligarquias, abrindo caminho para o autoritarismo e colocando

obstáculos à redemocratização brasileira após os anos da ditadura varguista.296

Como já afirmamos aqui várias vezes, antes de delinear a política econômica em

si, é fundamental que se detalhe o quadro da própria economia brasileira no período em

que Dutra esteve na presidência. Isso porque o desenho de qualquer planejamento,

quando estudamos com um pouco mais de seriedade a história econômica brasileira, não

é feito no vácuo e no escuro, mas na realidade está condicionado à própria estrutura da

economia e sua dinâmica interna.

O aspecto mais importante que merece de nós um olhar mais atento é o quadro

inflacionário que seguia escalando após o fim da Segunda Guerra Mundial. O conflito

mundial alterou drasticamente a relação que se havia estabelecido no país entre a

demanda interna por bens de consumo e sua oferta doméstica. Essa, se antes conseguia

abastecer bem a procura (ampliada robustamente por conta das políticas expansionistas

vigentes em boa parte da década de 1930), muda de direção na medida em que o Brasil

se vê obrigado a atender os países aliados, os quais haviam entrado em esforço de

295
BASTOS, Pedro Paulo Z. O presidente desiludido: pêndulo de política econômica no governo
Dutra. História Econômica & História de Empresas, v. 7, n. 1, 2004, p. 107.
296
Idem, p. 108.
251
guerra durante o conflito. É esse comprometido brasileiro com o atendimento das

exigências internacionais que se coloca na base de uma defasagem entre a oferta real e a

procura monetária. O desequilíbrio, na ausência de qualquer intervenção imediata,

necessariamente deveria ser corrigido com um aumento no nível de preços. De acordo

com Celso Furtado:

Enquanto isso, o fluxo de renda continuava a avolumar-se. O setor externo

gerava uma massa de poder de compra que ia aumentando com a elevação

dos preços internacionais. O governo distribuía uma massa de salários

maior [...]. Entre 1940 e 1943 a quantidade total de bens e serviços à

disposição da população no território nacional aumentou apenas 2 por

cento, enquanto o fluxo de renda se incrementou em 43 por cento. Essa

disparidade dá uma ideia do desequilíbrio que se formou entre a oferta real

e a procura monetária.297

É exatamente sobre esse fundo inflacionário que o governo Dutra propõe uma

nova política cambial e de comércio exterior por conseguinte. Não bastava, para conter

a inflação, estabilizar o câmbio. Era necessário sua estabilidade a níveis mais

valorizados. Passava a ser institucionalizado o mercado livre de câmbio, de modo que a

taxa oficial passava a ser a de 1939, ou seja Cr$18,50/US$. A remodelagem da política

cambial se fazia de acordo com o objetivo de facilitar a importação de matérias primas e

de bens de capital, assim como para atrair uma soma maior de investimentos

estrangeiros. Em suma, buscava-se corrigir o desequilíbrio interno entre a procura

monetária e a oferta real da economia. O câmbio novamente serviria como o

estabilizador dos preços.

O que essa política econômica não considerou ou não conseguiu controlar foi o

comportamento da disponibilidade de divisas. Com a valorização forçada do câmbio, o

297
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1995, p. 210-213.
252
que se passou no Brasil foi um déficit em moedas fortes conversíveis, ao passo que

havia superávit em moedas consideradas fracas, ou seja, justamente aqueles que se

encontravam bloqueadas pela autoridade monetária. Com o déficit veio a queda brusca

das reservas internacionais em ouro, de modo que em 1947 o governo federal autoriza

novamente o controle cambial baseado nas restrições às importações. À taxa oficial de

câmbio de Cr$18,50 por dólar, 30% das cambiais deveriam ser repassadas ao BB, de

modo que os 70% restantes poderiam ser negociados no mercado livre, mas de acordo

com uma tabela de importações prioritárias da CEXIM (Comissão de Exportações e

Importações). A política restritiva, claramente sendo seguida de acordo com uma linha

mais ortodoxa que objetivava o equilíbrio na balança de pagamentos, tornou-se ainda

mais rígida após fevereiro de 1948. Funcionava, em linhas gerais, da seguinte maneira:

os artigos essenciais, tais como remédios, fertilizantes e inseticidas, poderiam ser

importados livremente; dentre aqueles que entravam nas regras do licenciamento, os

prioritários eram os alimentos, os combustíveis, papel e maquinaria; os mais

desencorajados eram os bens de consumo duráveis, que eram colocados em longa lista

de espera para então serem importados.

Uma vez que o combate à inflação foi considerado pelo Governo Dutra como a

principal tarefa de seu mandato, a política cambial não poderia ser vista como suficiente

por si só para frear o aumento no nível de preços. A ortodoxia como linha de política

econômica também tomou conta dos lados fiscal e monetário. Tanto o investimento

público como a emissão primária de meio circulante foram rigorosamente contraídos, de

forma tanto a conter o déficit governamental como a eliminar o efeito monetário sobre a

inflação. A liberação de crédito por parte do Banco do Brasil, por exemplo, seguiu as

orientações ministeriais, sofrendo uma contração real de 2,0%. De fato, a inflação sentiu

os efeitos da ortodoxia na medida em que o nível geral de preços reduziu-se para 9,0%.

253
O resultado paralelo a isso, porém, foi uma diminuição do fôlego da atividade

econômica e do ritmo de crescimento, na medida em que o PIB passou a crescer apenas

2,40% no mesmo período.

É justamente essa queda na curva de crescimento do produto que acabou

motivando, a partir de 1949 (quando o orçamento federal estava razoavelmente

equilibrado), a adoção de políticas mais flexíveis, em que pesavam o apoio à expansão

do crédito e à maior participação do gasto público na composição do produto. O

rompimento com as estratégias contracionistas pré-1949 acabaram provocando o

“retorno” da inflação e do déficit público. Isso porque o nível geral de preços aumentou

no patamar de 9,2% no ano de 1950. Veja o comportamento oscilante dos preços no

gráfico abaixo:298

25

20

15

10

0
1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951

Taxa de inflação (Medida pelo deflator implícito do PIB)

É interessante analisar o que esteve por trás, além da queda no ritmo de

crescimento, da adoção de uma política econômica mais flexível. Nesse sentido, dois

fatores podem ser elencados: a) a proximidade das eleições, em que Dutra pensava na

vitória de seu sucessor, fazia com que as políticas de desenvolvimento servissem

298
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sistema de Contas Nacionais Referência 2000
(IBGE/SCN 2000 Anual).
254
também como propaganda política (nenhum governante pode pensar em se eleger com o

seguinte discurso: “reduzi a inflação por um ou dois anos, mas a economia já não cresce

mais como antes justamente por causa da minha estratégia recessiva”); b) o crescimento

da produção industrial e da demanda por insumos, o que acabou atrelando-se a uma

exigência maior de crédito por parte do empresariado, interessado em importar cada vez

mais, dado que o câmbio mantinha-se razoavelmente valorizado.

Em suma, a economia brasileira ao final dos anos Dutra pode ser caracterizada

da seguinte forma: o relativo “abandono” das políticas fiscal e monetária contracionistas

permitiram a retomada do crescimento econômico em largas bases e da produção

industrial especificamente. A aceleração do grau de atividade foi acompanhada,

entretanto, de uma escalada da inflação, fruto de um afrouxamento no controle da

emissão de meio circulante.

O último elemento marcante do Governo Dutra é o Plano SALTE. Este, ao

contrário do que uma leitura apressada pode apontar, não se tratava de um plano global

na medida em que não incorporava o papel que o setor privado poderia ter nos projetos

de desenvolvimento. Funcionava mais como uma estratégia de intervenção do Estado

nos desafios que a economia brasileira poderia impor às autoridades. Nesse sentido, o

Plano englobava quatro setores considerados estratégicos: saúde, educação, transportes

e energia.299 Idealizado para durar no período que vai de 1950 até 1954, o SALTE

deveria se ancorar num montante de recursos que chegava à praticamente 20 bilhões de

cruzeiros, os quais deveriam ser assim distribuídos:300

299
Era necessário ampliar e melhorar os serviços de saúde pública e de abastecimento de
gêneros alimentícios. Por outro lado, a expansão do quadro gerador de energia elétrica e a
modernização dos sistemas de transporte intranacional eram tidos como elementos
fundamentais para o desenvolvimento.
300
BAER. Industrialização e desenvolvimento econômico, p. 63.
255
Energia Saúde
16% 13%

Alimentação
14%

Transportes
57%

O governo contava com a seguinte configuração de financiamento: 30% viriam do

próprio orçamento da União, ao passo que os outros 70% originar-se-iam de

empréstimos na base de 7 bilhões de cruzeiros, de reajustamentos nos mecanismos de

arrecadação aduaneira, da venda de divisas por parte do Banco do Brasil e também da

criação de impostos que incidiriam sobre os rendimentos do próprio SALTE.

Por falta de recursos, porém, o plano falhou em seus objetivos e durou apenas

por um ano.

256
XXXIV

O Segundo Governo Vargas (1951 – 1954)

Ao final do mandato do Gal. Dutra no ano de 1950, já se colocavam em disputa

os candidatos para a sucessão presidencial. Além de Cristiano Machado e o Brigadeiro

Eduardo Gomes, uma velha figura da política nacional voltava ao palco depois de uma

década e meia: Getúlio Vargas voltava do ostracismo tentando novamente alçar-se ao

posto de presidente do Brasil. Com 49% dos votos válidos, o executivo nacional

colocava o retrato do velho outra vez.

257
Para fins de nosso trabalho, porém, mais relevante que o panorama político que

tem como resultado a eleição de Vargas são os precedentes da economia brasileira

responsáveis pelo alinhamento das estratégias de desenvolvimento e de planejamento

econômico empreendidas no início dos anos de 1950. Ao final do Governo Dutra, a

condução razoavelmente não ortodoxa das diretrizes econômicas, com expansões fiscal

e creditícia, produzia novamente um quadro inflacionário que se unia a um desequilíbrio

orçamentário cada vez maior. Para além disso, vale mencionar as estratégias adotadas

para a proteção do setor industrial, as quais estavam perfeitamente interligadas ao

debate econômico “Gudin x Simonsen”. Como já vimos, as restrições à importações e a

política cambial de valorização do cruzeiro frente ao dólar americano serviram como

duplo mecanismo de proteção e estímulo ao empresário brasileiro. De acordo com

Sérgio Besserman Vianna:

[...] efeito subsídio, associado a preços relativos artificialmente mais baratos

para bens de capital, matérias-primas e combustíveis importados; efeito

protecionista, através das restrições à importação de bens competitivos e

efeito lucratividade, resultante do fato de que a taxa de câmbio

sobrevalorizada tendeu a alterar a estrutura das rentabilidades relativas, no

sentido de estimular a produção para o mercado doméstico em comparação

com a produção para exportação.301

É essa a conjuntura, em linhas gerais, que opera como antecedente imediato à linha de

política econômica inicialmente adotada por Getúlio Vargas em seu governo

democrático.

A historiografia tradicional do período costuma traçar uma linha divisória bem

clara entre duas vertentes de planejamento adotadas por Vargas enquanto este foi

VIANNA, Sérgio Besserman. Política econômica externa e industrialização. In: ABREU, M.


301

de P. (org.). A ordem do progresso: dois séculos de política econômica no Brasil. 2.ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2014, p. 113.

258
presidente do país nos anos de 1950. Nos primeiros anos, para conter a aceleração da

inflação e garantir a estabilização do orçamento, as autoridades teriam lançado mão de

um extenso arcabouço ortodoxo para a condução das políticas fiscal e monetária. Teria

sido essa a fase “Campos Sales” do governo Vargas, em alusão à política de saneamento

monetário encabeçada por Joaquim Murtinho a partir de 1898 para conter a crise

inflacionária oriunda da descontrolada expansão monetária e creditícia autorizada por

Ruy Barbosa no início da década de 1890. Passado o período da estabilização, era

urgente tomar uma atitude que seguisse em direção ao desenvolvimentismo. A política

econômica deveria estar comprometida com o crescimento e com a aceleração da

atividade econômica. Era a fase “Rodrigues Alves”, numa referência ao período que vai

de 1902 até 1906 em que o executivo federal pensou com mais carinho na criação de um

complexo de infraestrutura para a acomodação do à época incipiente parque industrial.

Já nos anos de 1950, com Vargas, essa segunda fase de política econômica não foi

desenhada sem dar espaço à participação da capital estrangeiro na estratégia de

desenvolvimento. É pensando nessa segunda fase de política econômica que a CMBEU

(Comissão Mista Brasil-Estados Unidos) já é fundada logo após a eleição de Vargas.

Ainda segundo Vianna:

A CMBEU era fundamental para o sucesso da segunda fase do projeto do

governo por duas razões: primeiro, porque o financiamento dos projetos por

ela elaborados pelo Banco Mundial e pelo Eximbank asseguraria a

superação de gargalos na infraestrutura econômica do país [...] fornecendo

simultaneamente as divisas absolutamente necessárias para essa finalidade.

[...] Segundo, porque o afluxo de capital estrangeiro permitiria [...] que se

cumprisse a fase das realizações e empreendimentos sem prejuízo da

manutenção de uma política econômica austera e ortodoxa.302

302
Idem, pp. 124 – 125.
259
Para além do desenho da política econômica a ser empreendida no longo prazo,

o executivo federal lança mão de uma velha “aliada” que desde os tempos do Convênio

de Taubaté serviu como muleta para as estratégias de condução da economia brasileira.

Estamos falando obviamente da política cambial. O câmbio, assim como nos anos

Dutra, deveria ser estabilizado a níveis razoavelmente valorizados, num regime fixo.

Além disso, dava-se continuidade às restrições de importações a partir das tabelas de

prioridades da CEXIM.

O que acabou “furando” a política da CEXIM foi a deflagração da Guerra da

Coreia. O temor que se seguia ao conflito no Extremo Oriente de que um novo banho de

sangue mundial estaria por vir fez com que as restrições às importações fossem

flexibilizadas. Era uma medida de segurança, dado que, se realmente fosse ocorrer uma

nova Guerra Mundial em proporções ainda maiores, os países com maior envolvimento

poderiam novamente entrar em esforço de guerra, limitando suas vendas para a

periferia. O descontrole sobre o comércio exterior que se seguiu a isso, uma vez que se

concretizou uma defasagem entre a concessão das licenças e a efetivação das

importações (algo não previsto pelas autoridades da CEXIM), culminou numa crise

cambial que motivou o fortalecimento das restrições.303

Internamente, dava-se início, no ano de 1951, à condução ortodoxa da política

econômica. Pautava-se pela adoção de políticas monetária e creditícia contracionistas,

assim como pelo corte das despesas governamentais, as quais se somariam a uma

ampliação da arrecadação tributária para equilibrar o orçamento. A fraqueza da

estratégia desenhada por Vargas ficava clara na medida em que ela era confrontada com

a própria realidade: a ausência de uma articulação entre o Ministério da Fazenda e o

presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet, bloqueou a contração eficiente do crédito

303
Ibidem, p. 128.
260
e da base monetária. O chefe da autoridade monetária brasileira à época aumentou a

disponibilidade do meio circulante nacional, conduzindo a política monetária no sentido

contrário àquele idealizado pelo ministro Horácio Lafer. Por outro lado, o corte nas

despesas governamentais tornou-se extremamente difícil na medida em que o orçamento

para 1951 já havia sido aprovado ao final do governo de Eurico Gaspar Dutra. Ao

mesmo tempo, a utilização do novo sistema tributário que almejava ampliar a

arrecadação federal não seria possível para o exercício contábil do mesmo ano.

Apesar das dificuldades, do ponto de vista fiscal a política econômica foi capaz

de reduzir suas despesas e alcançar um pequeno saldo orçamentário positivo nas contas

públicas. A falta de coordenação no tratamento dos meios de pagamentos, por seu turno,

acabou produzindo efeito contrário àquele desejado pelas autoridades: a inflação não

conseguiu ser contida e, a título de exemplo, o nível geral de preços ao consumidor no

Rio de Janeiro saltou de 12,1% ao ano em 1951 para 17,3% em 1952. Não obstante, a

mesma expansão creditícia promovida por Jafet a contragosto de Lafer abriu margem

para a ampliação dos investimentos privados no biênio 1951 – 1952. Na própria

composição do PIB, que tem uma ampliação do crescimento de 4,9% para 7,3%, a

participação do componente “I” da demanda agregada tornou-se maior. Ainda segundo

Vianna:

[...] elevadas taxas de investimento, fomentadas pela liberalização de

importações com taxa de câmbio sobrevalorizada e ajudadas pela expansão

do crédito no período. São alteradas substancialmente as participações dos

setores privado e público (em favor do primeiro) nos investimentos totais

realizados no país. [...] o PIB real cresceu 4,9% e 7,3% em 1951 e 1952,

respectivamente. O setor de serviços, impulsionado pelo comércio

importador, foi o que apresentou as maiores taxas de crescimento.304

304
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. cit., p. 130.
261
A partir de 1953, o governo Vargas sofre uma importante inflexão. Em março

desse mesmo ano eclode uma greve geral de 300 mil trabalhadores que colocava em

risco a própria estabilidade política do mandatário. As expectativas que pairavam sobre

as promessas de crescimento e de melhorias no nível de vida da classe trabalhadora,

assim como de uma maior distribuição de renda, começavam a inverter-se e isso trouxe

grandes consequências à condução da política econômica. 305 No mesmo ano, Vargas

empreende uma reforma ministerial: Horácio Lafer deixa a pasta da Fazenda, que é

assumida pelo velho conhecido Oswaldo Aranha. Este, por sua vez, comprometia-se

com o objetivo da estabilização e do controle inflacionário. Além disso, numa forma de

ganhar novamente a confiança do proletariado, João Goulart, afiliado político de

Vargas, assumia o Ministério do Trabalho. É importante ver como o Presidente se

colocava numa aparente “ambiguidade” na medida em que dava posse a um diplomata

comprometido com as ortodoxias fiscal e monetária, num aceno à oposição encabeçada

pela UDN, ao mesmo tempo em que deixava um novo líder do movimento trabalhista

no comando da pasta do Trabalho, o que se apresentava como um apelo às demandas

mais urgentes da classe trabalhadora. De acordo novamente com Vianna:

Getúlio [...] desejava estar preparado para seguir mais à direita ou mais à

esquerda, de acordo com o rumo dos acontecimentos. Com [...] Osvaldo

Aranha, acenava para a UDN, reafirmava o propósito de perseguir a

estabilização da economia e criava uma alternativa ampla para sua

sucessão. A outra face da política foi a escolha de João Goulart para o

Ministério do Trabalho, visando a recompor seu prestígio entre os

trabalhadores e [...] deixando em aberto uma alternativa distinta para o

encaminhamento da sucessão presidencial.306

305
Idem, p.137.
306
Ibidem, p. 137.
262
A política de estabilização de Oswaldo Aranha foi acompanhada da retomada do

monopólio cambial com a instauração da Instrução 70 da SUMOC, na qual o controle

estrito de importações por parte da CEXIM foi substituído pelos leilões de câmbio.

Eram estipuladas as taxas múltiplas de câmbio para tipos específicos de compras no

mercado internacional. Para as importações consideradas especiais e importantes, tais

como o trigo, o câmbio determinado era o da taxa oficial apenas. Algumas compras,

porém, eram realizadas olhando para o câmbio oficial somado a uma sobretaxa fixa: era

o caso de importações realizadas pelo governo, pelas autarquias ou até mesmo por

sociedades mistas. As demais importações, por outro lado, estavam sujeitas aos leilões

de cambiais. Aquelas compras no estrangeiro consideradas menos essenciais estavam

passíveis de alcançar taxas mais altas no leilão, ou seja, com um câmbio mais

desvalorizado, o que encarecia a importação. Por outro lado, as categorias de

importação consideradas mais relevantes para o desenvolvimento econômico acabavam

absorvendo a maior parte dos recursos. De qualquer modo, em todas as categorias

inclusas na instrução deveriam incidir ágios cuja função teria de ser a de ampliar a

arrecadação da União.

A análise mais panorâmica dos resultados da Instrução 70 da SUMOC nos

aponta para uma estabilização das importações acompanhada de um aumento das

exportações. Veja que o saldo “Ex. – Im.” no período de janeiro a setembro era de US$

55 milhões, saltando para US$ 241,7 milhões no acumulado de janeiro a dezembro. É

também importante ressaltar que o mecanismo de desvalorização cambial serviu como

desestímulo à demanda nacional por bens estrangeiros. Ao mesmo tempo, permitiu uma

ampliação vertiginosa em meados de 1953 das vendas de café para o exterior, por mais

que este tenha sofrido uma ligeira queda no fim deste ano e no início de 1954. 307 No

307
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. Cit., p. 146.
263
segundo governo de Getúlio Vargas, essa commoditie chegou a compor

aproximadamente 0,81 de nossa pauta de exportações. Veja o seguinte gráfico:

A melhora no saldo da balança de pagamentos, como vimos acima, não

conseguiu ser acompanhada de uma estabilização dos preços. A própria desvalorização

do câmbio, se por um lado ampliou a participação do Brasil no comércio exterior,

funcionou internamente como uma alavanca para o aumento no nível de preços. Este,

por outro lado, tem como antecedente a política de Jango no Ministério do Trabalho, o

qual, numa tentativa de apelo às massas, dobrou o salário mínimo.

A dicotomia: “entreguismo” e nacionalismo

É muito comum, principalmente nos manuais de história do Brasil do século

XX, pautar o segundo Governo Vargas pela oposição entre os interesses dos

264
protoneoliberais internacionalistas, chamados pejorativamente de entreguistas por

aqueles filiados a uma agenda nacional-desenvolvimentista. Vargas teria abruptamente

abandonado o primeiro grupo na passagem para a segunda fase do governo

democrático, assumindo a partir de 1953 o nacionalismo convicto como estratégia para

o planejamento econômico.

Membros importantes da historiografia do século XX brasileiro, porém, tais

como Vianna e Maria Celina D’Araújo, recusam a dicotomia. Na realidade, a

convivência entre esses interesses aparentemente distintos teria sido a tônica de todo o

segundo governo de Getúlio Vargas. Isso porque a aparente ambiguidade era fruto de

uma estratégia preconcebida de conciliação entre esses polos da burguesia brasileira:

uma mais alinhada aos interesses do capital estrangeiro e outra partidária da política

nacional-desenvolvimentista de proteção da indústria local. Segundo D’Araújo:

[...] é improcedente [...] inferir a [...] existência de uma fase “entreguista” e

de outra “nacionalista”. A nosso ver, ambas as posições políticas e

econômicas coexistiram, refletindo necessariamente o resultado de políticas

geradas a partir de instâncias e de posições contraditórias que compunham

o Governo. [...] é a ambiguidade e mesmo a ausência de um

comprometimento político maior, tanto com ideias quanto com organizações,

que marcará profundamente um Governo que oscilou entre posições

nacionalistas e soluções conciliatórias e tradicionais. É nesse sentido que se

pode dizer que o Governo é coerente em sua ambiguidade. A ambiguidade

decorre diretamente da existência de duas posições distintas que convivem

no poder e que contam com o apoio sistemático do Governo.308

D’ARAÚJO, Maria Celina Soares de. O segundo governo Vargas, 1951-1954: democracia,
308

partidos e crise política. 2a. Edição. São Paulo: Ática, 1992, p. 148.
265
Essa posição dúbia, porém não ingênua e/ou fortuita, do segundo mandato de

Getúlio Vargas, materializa-se inclusive quando analisamos as duas instâncias da

autoridade econômica em seu governo. De um lado havia a Assessoria Econômica, uma

linha técnica e puramente administrativa, distantes dos holofotes e atrelada a um projeto

nacionalista de desenvolvimento a longo prazo. Contrastava, por outro lado, com o

próprio Ministério da Fazenda, que tinha boa influência nos “corredores liberais” do

Congresso Nacional.309 Perceba como, no fundo, a “ambiguidade” era apenas a

externalização de um plano de governo por parte de Vargas. Interessado na estabilidade

política, era tido como certo que o caminho a ser trilhado deveria ser o da conciliação de

interesses dentro da própria burguesia brasileira fracionada. E na realidade foi no

momento em que os choques não puderam ser amortecidos que a crise ganha contornos

cada vez maiores até que o desfecho é o suicídio do próprio Presidente.

Um outro elemento que costuma servir como prova cabal da “guinada

nacionalista” de Vargas é a extinção da CMBEU. O episódio é fruto de

desentendimentos entre as diplomacias brasileira e norte-americana, os quais derivam

exatamente da oposição que Vargas passa a fazer ao capital estrangeiro, assumindo em

definitivo uma postura em favor do desenvolvimento econômico autônomo contra os

interesses do imperialismo. Vianna, por outro lado, recusa essa tese ao afirmar que o

fim da CMBEU foi o resultado da inflexão na própria estratégia geopolítica norte-

americana na América Latina. Com a eleição de D. Eisenhower, os EUA preferem

estreitar suas relações com a Europa Ocidental do pós-guerra e diminuem a ênfase em

sua política de boa vizinhança. Assim, se antes uma boa relação comercial com o Brasil

era vista com bons olhos, ela deixa de ser prioritária de acordo com os interesses da

diplomacia americana. Ao mesmo tempo, na medida em que a influência dos EUA na

309
Idem, pp. 149 – 150.
266
periferia latino-americana deixava de ser a tônica, o Banco Mundial encontrou maior

espaço para exercer suas diretrizes de política econômica sobre os países demandantes

de crédito estrangeiro. Essa centralização também pesou contra a continuidade da

CMBEU, mais do que uma suposta demonstração de força nacionalista por parte de

Vargas. Em suma, Vianna nos afirma:

É conveniente, em primeiro lugar, afastar a versão corrente na

historiografia que atribui a uma suposta “virada nacionalista” [...] um papel

decisivo nos desentendimentos do governo brasileiro com o governo norte-

americano e o Banco Mundial, sendo mesmo a causa do final precipitado da

CMBEU. De fato, as causas decisivas foram: a mudança de governo nos

Estados Unidos; a tentativa do Banco Mundial de exercer uma função

tutorial sobre a política econômica dos países demandantes de crédito [...] O

Projeto Campos Sales-Rodrigues Alves apoiava-se no saneamento

econômico-financeiro da nação e no afluxo de capital estrangeiro, esperado

a partir dos trabalhos da CMBEU. O colapso cambial e a deterioração das

relações econômicas com os Estados Unidos determinaram seu abandono.310

310
VIANNA, Sérgio Besserman. Op. cit., pp. 130 – 132.
267
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