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ANTROPOLOGIA

DE LUTERO
AULA 1 - UM PANORAMA DOS ESCRITOS O primeiro texto em ordem cronológica é o Tratado da
DE LUTERO SOBRE O TEMA Liberdade Cristã (1520). Nele, Lutero faz uma definição de
um ser humano interior e exterior. Ali, ele ataca a ideia de

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uitas vezes, temos nossos pré-conceitos e conceitos que as obras possam ter alguma relação com a salvação.
daquilo que seria a concepção de Lutero a respeito Ele questiona, por exemplo, se vestimentas clericais trazem
da pessoa. Por exemplo, sempre ouvimos falar de algum tipo de santidade para a alma da pessoa. A grande
que o homem é uma pessoa ensimesmada, Lutero utiliza pergunta que se levanta nesse contexto da liberdade cristã
muitas vezes essa formulação latina incurvato in se ipso, que é se Lutero tinha algum conceito dicotômico do ser humano.
é um ser “autoencurvado”. Um ser humano que olha apenas Porque, se ele tiver um conceito dicotômico do ser humano,
para o seu próprio umbigo. Esse é um conceito já bem comum ele acabará desconectando as coisas materiais das coisas
e conhecido de todos nós. Muitas vezes também ouvimos relativas à alma, as coisas espirituais. Com isso, ao falar que
falar do escrito de Lutero, “A vontade cativa”, do cativeiro da o material não atua no espiritual, de certa forma, o espiritual
vontade humana. Nele, temos o conceito de que o ser humano acaba não atuando no material. Com isso, ao falar que o
é incapaz de crer por si mesmo. O ser humano é incapaz de ter material não atua no espiritual, de certa forma, o espiritual
fé por si mesmo. Também temos talvez a ideia mais conhecida acaba não atuando no material. que coisas externas, obras
de todos nós que o ser humano é simultaneamente justo e da lei, vestimenta, cultos, missas, sacrifícios, peregrinações,
pecador, não todo ser humano, mas especificamente do ser nada disso tem valor eterno. Nada disso influencia a
humano cristão. Este é visto como simultaneamente justo e salvação, a santificação do indivíduo.
pecador. Além disso, temos uma outra visão que também vem
de Lutero. A ideia de que o cristão é livre de todas as coisas, O próximo escrito que quero tratar é o “De servo arbítrio”
ou seja, liberto por causa de Cristo, mas, ao mesmo tempo, (1525), ou “Da vontade cativa”. Nesse texto, Lutero trata
ele vive essa liberdade cristã em favor do outro e é por isso mais com relação à vontade do ser humano. Não o que hoje
também um servo de Deus, um servo de todas as coisas. entendemos por vontade como vontade de comer, vontade
de beber, de fazer isso ou aquilo, mas a faculdade de tomar
Irei repassar os principais escritos de Lutero. Será uma decisões, de fazer escolhas livres. Ou seja, a pergunta “o ser
exposição rápida do que é o conteúdo desses escritos em humano é determinado ou tem livre-arbítrio?”.
relação ao tema da Antropologia de Lutero.

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Primeiramente, Lutero faz uma pequena diferença, que na pessoas, segundo Lutero, e nem na própria pessoa. Para
verdade é uma grande diferença. Segundo ele, o livre-arbítrio Lutero, isso está ligado à aliança de Deus com os seres
existe apenas para as coisas chamadas “inferiores”. Ou seja, humanos. Uma pessoa só tem responsabilidade pelos atos
a roupa que você vai usar, se vai sair de casa nessa manhã que ela pratica e não pelas consequências dos seus atos.
ou não, qual trabalho você terá na vida secular, que função Lutero quer criticar essa teoria justamente para dizer que
você quer atuar na sociedade, que faculdade você quer fazer, não há algo inato no ser humano que o habilite a receber a
o que você quer comer. Todas essas decisões cotidianas, graça. Senão, seria muito fácil. O ser humano tem um módulo
você tem pleno livre-arbítrio. Ele até diz que não gosta de que permite que ele creia, então Deus só precisaria dar um
usar a palavra “livre-arbítrio”, porque, de fato, apenas Deus pouco de ajuda para ele e o ser humano crê por si mesmo,
teria livre arbítrio, porque é faculdade de tomar decisões porque já está por natureza apto a crer. Lutero critica isso e
sem qualquer influência de outro meio. Somente Deus teria usa o exemplo das ações dos seres humanos. Digamos que
essa possibilidade de tomar decisões plenamente livres. O eu cometa um ato pecaminoso, por exemplo, roubar um livro
ser humano tomará suas decisões invariavelmente sob a da biblioteca.Tenho plena responsabilidade por ter roubado
ação do pecado e sob a ação de Satanás. É invariável que o livro da biblioteca e preciso cumprir a pena determinada
nossas decisões cotidianas sejam tomadas sob a influência pela lei pelo roubo que eu fiz. Porém, não tenho como me
do pecado, mesmo as mais simples. Com relação à salvação, responsabilizar por efeitos secundários que vão acontecer
Lutero diz que somos como um cavalo que ou é montado pelo fato de eu ter roubado esse livro. Tais efeitos não estão
por Deus, e assim guiado por ele e conduzido à salvação, ou mais sob meu controle. Do ponto de vista filosófico, Lutero
então pelo diabo que nos guia conforme a sua vontade para diz que eu não tenho como alterar aquilo que passa além do
praticar obras que vão glorificar o mal e não a Deus. ato cometido. Posso até comprar outro livro, pagar minha
multa etc. Porém, o fato de alguém não poder mais ler esse
O próximo escrito que quero tratar é um comentário de livro porque eu roubei, isso não posso mais mudar e está
Eclesiastes de Salomão, na verdade são mais anotações em além da minha capacidade de mudar.
relação ao livro, feito no ano de 1526. Nesse escrito, Lutero
critica uma posição filosófica bem corrente na Idade Média O próximo comentário bíblico também muito importante
que é a “Teoria das essências''. Ela diz que as ações das é o “Comentário aos Gálatas” (1531). Nesse comentário,
pessoas e mesmo a lei natural não residem na essência das Lutero trabalha a diferença entre as palavras latinas caros e

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espiritus. Caro significa carne e espiritus, espírito. Ele quer onde ele exemplifica, a partir do pecado de Davi, como é que
dizer que, em grande medida, quando Paulo trata de carne e o pecado do ser humano funciona. Lutero usa o exemplo do
espírito, ele não está tratando do corpo material e o Espírito pecado sexual, que é o que levou Davi a pecar desejando
Santo, mas está tratando do corpo material em relação à sua Bate-Seba. Por causa de seu desejo, ele acabou enviando
parte imaterial, a sua alma – aqui retratada como espírito. o marido dela para o combate onde ele morreu. Com isso,
Daí vem a pergunta novamente: “Lutero é tricotômico?”, “será Davi pode assumi-la como esposa, mas ela já estava grávida.
que Lutero, em vez de dicotômico, como vimos na ‘liberdade Antes ele teria tentado forjar que essa gravidez fosse do
cristã’, teria uma visão tricotômica?” Esse assunto também marido e não funcionou. Então ele o mandou para a guerra.
trataremos mais adiante.
Lutero vai trabalhando cada um desses pecados
Lutero faz uma distinção bastante importante que é a de que consecutivamente demonstrando que Davi quebra os 10
o corpo, a carne na verdade, o corpo seria outro assunto, mandamentos ao pecar com Bate-Seba. Obviamente ele
produz obras. Enquanto que o espírito produz frutos. É desobedece a Deus como seu servo. Ele deseja a mulher
isso que Lutero usa para distinguir qual a relação disso no do próximo, comete adultério, mente, assassina, engana o
linguajar de Paulo. Ao dizer então que as obras da carne próprio povo, desonra pai e mãe – porque toma a mulher
e os frutos do espírito estão em contraposição. A pessoa do outro. De certa forma até um pouco forçosa, Lutero
cristã não mais produz obras da carne, mas produz frutos do enxerga que os 10 mandamentos de forma completa foram
espírito, que é a relação dessa pessoa com o Espírito Santo, quebrados por Davi. Com isso, ele quer dizer que os atos
a partir da fé em Jesus Cristo. Lutero deixa bem claro que de Davi, ou seja, os pecados do ser humano só mostram
não é uma obra apenas do espírito humano, mas de todo o que, no fundo, nós somos pecadores em nossa essência.
homem, do homem completo – o totus homu. Esse assunto Nós somos plenamente pecadores, corruptos desde a
também é tratado em “de homine”, acerca da disputa sobre o infância e entregues às forças do pecado. Então, com isso,
ser humano. ele critica a teologia medieval que dizia que o pecado havia
tomado apenas parte do ser humano e, com a graça infusa
Outro texto bastante importante para Lutero é a "Enarratio" no batismo, o pecado original seria retirado. Dessa forma, a
no Salmo 51 (1532). Esse texto é uma espécie de comentário pessoa poderia ir melhorando eticamente e se livrando do
pecado à medida em que participava do sacramento e da

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missa. Ele critica isso e diz que o ser humano é radicalmente imagem de Deus e ter um mandato cultural. Ele fundamenta a
entregue ao pecado e a natureza humana está plenamente responsabilidade do ser humano para com a criação. Ele fala
chafurdada pelo pecado. sobre a questão da política, economia, família, matrimônio,
sexualidade. Ele traz um pacote bem interessante de como
O próximo texto é a “Disputatio de homine” (1536). Esse o ser humano foi criado por Deus e para quem o ser humano
texto é um debate sobre o valor do ser humano. É um debate está aqui na terra e como ele deve agir.
mais filosófico e teológico. É uma proposta de antropologia
teológica-filosófica, porque, em boa parte dos argumentos,
Lutero parte da filosofia depois argumenta com a Bíblia.
Logicamente, o ponto alto está em dizer que Deus enxerga
o ser humano através de Cristo Jesus na cruz. Ou seja, Deus
enxerga o ser humano com misericórdia e graça, e não com
olhos de justiça. É claro que nesse texto temos informações
muito importantes a respeito da razão do ser humano – o
que pode a razão do ser humano? –, a respeito da própria
concepção de Imago Dei, de qual é o poder do conhecimento
humano, de como é o conhecimento teológico da realidade
que nos permite ter uma visão mais realista das coisas. Tudo
isso encontramos nesse texto.

O último escrito é o comentário de Gênesis (1535-45). Ele


é a base bíblica da antropologia de Lutero. Quando vemos
uma afirmação dele acerca do homem, precisamos dar uma
buscadinha rápida na interpretação de Gênesis dele para
poder entender biblicamente aquilo que ele está afirmando.
É uma tentativa de Lutero de construir o que significaria a

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AULA 2 - ESTRUTURAS DE ARGUMENTA- Então, Hugo de São Victor escreve o seguinte: “O homem foi
ÇÃO EM PARES ANTITÉTICOS criado à imagem e semelhança de Deus, pois ele na alma,
que é a melhor parte do homem, ou melhor, ela mesma

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esta aula, veremos a questão das estruturas era o homem, era imagem e semelhança de Deus. Imagem
antropológicas em Lutero, isto é, como ele utilizava segundo a razão. Semelhança segundo o amor. Imagem
diversos pares de conceitos para expor a sua segundo o conhecimento da verdade. Semelhança segundo
antropologia. Iniciando com um conceito bem paulino, por o amor à virtude. Imagem porque ele é racional. Semelhança
assim dizer, até porque Lutero tomou esses dois termos pois ele é espiritual”.
de Paulo propriamente dito. A terminologia é o par: carne e
espírito. Muitas vezes em discussões nas igrejas falamos em O que acontece com Hugo de São Victor é que ele abraça
carne versus espírito por causa daquele versículo da carne uma antropologia aristotélica e lê o texto bíblico de acordo
que milita contra o espírito. Essa terminologia aparece na com essa antropologia. Ele não é o inventor desse esquema,
pena de Lutero. mas ele o condensa muito bem. Até porque esse esquema
pode ser visto em livros-texto, como, por exemplo, um que
Era uma argumentação que, de certa forma, muda com um havia na época de Lutero que mostrava todo o esquema
esquema já bem desenvolvido ao longo de toda a Idade tricotômico aristotélico explicado por meio de versículos
Média. Isso porque, ao longo de toda Idade Média, um bíblicos. Então dá para ver como a filosofia de Lutero estava
escrito de Hugo de São Victor a respeito dos sacramentos sendo reinterpretada à luz da Escritura. Lutero, de certa
disse que havia certa argumentação a respeito de carne e forma, cresce e aprende teologia nesse meio, mas discorda
espírito, a respeito do que significava corpo, alma e espírito em certos pontos dessa forma de interpretação.
naquele esquema tricotômico que já conhecemos de várias
antropológicos. Ele, por um lado, abraça essa tricotomia até certo ponto, mas
se distancia e chega perto de uma dicotomia. Na primeira
Há aí uma ligação entre esses conceitos de corpo, alma e tese acerca do homem em um escrito de Lutero chamado
espírito da antropologia de Aristóteles com a interpretação “Debate acerca do homem” diz que a filosofia e a sabedoria
da imagem e semelhança de Deus no ser humano na criação. humana descreve o homem como um animal-racional-

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sensitivo-corpóreo. Isso é muito próximo a Aristóteles, Com isso, ele vê o ser humano como, na verdade, uma
porque “animal-racional” é muito próximo àquela concepção totalidade. Ele usa o termo latino totus homu, o ser
de Aristóteles do ser humano como um ser político, como humano como um todo. Para ele, imagem e semelhança
um ser racional. O sensitivo e corpóreo não é diretamente são termos correlatos. Ele não quer dizer que são iguais.
ligado à filosofia de Aristóteles ou à sua antropologia. Isso é São termos correlatos que servem à função de explicar a
mais uma reinterpretação aristotélica da escolástica – que totalidade do seria o ser humano em relação a Deus. Em sua
vai desde Aquino até Gerson e há também uma influência de argumentação, Lutero acaba criticando o seu grande pai na
Occam – que é essa visão como ser humano animal-racional- teologia que é Agostinho e toda uma derivação posterior que
sensitivo-corpóreo. Lutero, na sua segunda tese, vai dizer via na constituição da alma do ser humano algo de análogo
que não quer discutir essa questão, porque não era consenso à Trindade. Por essa razão, Lutero rejeita o conceito da Idade
entre os filósofos. Lutero dá uma escorregada na casca de Média de pecado, o qual estava mais próximo da esfera
banana, mas, em grande medida, era uma concepção bem da moralidade e menos atacando o centro do ser humano.
aceita. O que aconteceu é que Lutero via o pecado atacando na
sua radicalidade o ser humano como um todo. Para Lutero,
Lutero muda essa posição quando interpreta Gênesis não era importante em quantas partes o ser humano era
1-3. Essa interpretação ocorre no mesmo período que ele composto. Para ele, era importante afirmar que o pecado em
escreve esse debate acerca do homem. Em resumo, nessa sua radicalidade atinge o ser humano completo. Nada sobra
interpretação de Gênesis, Lutero não vê uma diferença no ser humano que seja ainda por natureza bom e passível de
essencial entre imagem e semelhança na criação. Dessa alcançar a graça por si mesmo. Assim, Lutero não tem alma,
forma, ele rejeita essa visão da Idade Média, a visão razão nem intelecto no ser humano que o habilite a alcançar
escolástica, de enxergar a imagem como ligada a uma parte a salvação. Lutero também rejeita a ideia de que haveria no
do esquema tricotômico, por exemplo, a imagem ligada à ser humano uma razão que não foi bem atacada pelo pecado,
razão, ao conhecimento e a racionalidade; e a semelhança ou que haveria um sentimento, um amor ainda puro no ser
ligada mais aos sentimentos, ao amor, ao amor à virtude, humano que ali Deus se conecta.
à espiritualidade do ser humano. Lutero rejeita essa forma
de interpretação das funções, ou das partes funcionais da Com isso, ele diz que essas antropologias são falsas,
antropologia do ser humano. porque negam a radicalidade do pecado e permitem que

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um semipelagianismo invada a igreja. Assim, os conceitos não tem interesse nessa separação, antes ele quer enfatizar
empregados por Lutero em sua antropologia vão diferir do que o ser humano é uma unidade de corpo-alma-espírito
uso comum na escolástica. O grande exemplo disso é o par sendo que para ele alma e espírito são a mesma coisa, a
carne-espírito que foi citado logo no começo. Os dois termos saber apenas a alma.
não se referem mais a uma diferenciação entre uma parte
material, carne como corpo, e uma parte imaterial, o espírito, Um exemplo da integralidade no pensamento de Lutero é que
ou a alma, mas segundo o próprio apóstolo Paulo se refere as obras chamada “do Espírito” como paz, fidelidade, domínio
a uma luta interior de duas inclinações no ser humano. A próprio só podem ocorrer no corpo. Para ele, ninguém pode
inclinação ao pecado e a inclinação resultante do Espírito demonstrar paz ou fidelidade apenas na sua alma, mas seu
Santo atuando na vida do cristão. A carne que milita contra o corpo precisa atuar junto. Da mesma forma, inimizade e
espírito seria, na opinião de Lutero, um pecado que ainda está ódio são obras da carne, segundo o texto de Gálatas, mas
no ser humano e que milita contra o Espírito Santo, o qual são sentimentos que acontecem no nosso interior e que de
atua no ser humano para a sua santificação. Desta forma, alguma forma externalizamos. Então não dá para identificar
o ser humano justificado e salvo ainda sofre as tentações obras da carne como relacionadas ao corpo e obras do
da carne que buscam afastá-lo daquilo que o Espírito Santo Espírito como relacionadas ao nosso intelecto, porque
produz nele. tanto obras da carne como fruto do espírito são coisas que
atingem o ser humano na sua totalidade. Seja no pecado, seja
Lutero é categórico no seu comentário aos gálatas quanto na obra da justificação, a qual também atinge o ser humano
à impossibilidade da identificação do termo paulino “carne” na sua totalidade. Dessa forma não dá para dividir aquilo
como sendo identificado ao corpo e o termo espírito como que o corpo físico produz e aquilo que a alma do ser humano
sendo identificado ao imaterial, a alma ou o espírito humano. produz naturalmente. Carne e espírito são dimensões da
Para ele, o ser humano é totus homu, o homem todo, o ser ação do pecado e de Deus e não possuem relação direta com
humano integral. Em sua argumentação, ele cita Jerônimo, a constituição do ser humano. Carne diz respeito à atuação
Orígenes, quanto à aceitação desses da tricotomia. Ele acaba do pecado e espírito diz respeito à atuação do Espírito Santo
dizendo que todas as preocupações exegéticas dos pais de Deus.
com relação a 1 Tessalonicenses 5.23 não são assim tão
importantes como os pais se preocuparam. Lutero diz que

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O segundo par antitético que aparece em Lutero é o homem eu fiz é ruim? Não, humanamente falando, ajudar uma pessoa
interior e o homem exterior. Esse conceito aparece no tratado tem que ser qualificado com algo bom e justo. A questão é
da liberdade cristã e tem uma ideia muito próxima com a que Lutero diz que uma obra é qualificada como sendo boa
ideia de carne e espírito. Em resumo, Lutero se questiona que na perspectiva de Deus, ou seja, Coram Deo – expressão que
benefício há em se utilizar de coisas externas, doações, boas significa perante Deus – apenas a partir dos olhos da fé. Ou
obras, veste litúrgica, para a salvação do indivíduo. Lutero seja, quando nós cremos, quando somos justificados, quando
pergunta se um bispo utilizando todas aquelas vestes que a pessoa é tornada santa por causa da eleição de Deus, então
ele deveria usar com todas aquelas jóias e pompa alteraria as obras que essa pessoa realizará são obras provenientes
o estado da alma daquela pessoa com relação à eternidade. da fé e da graça justificante de Deus. Estas obras serão
Lutero diz que não. Nenhuma roupa, veste litúrgica, nenhuma justas e boas porque provém de um homem novo, um homem
doação, nem mandar construir uma igreja, nem mandar fazer justificado, e santo. Elas refletem aquilo que está dentro do
uma cruzada para Jerusalém, nada disso altera a situação ser humano.
da alma do ser humano com relação à eternidade. Ou seja,
segundo o reformador, nada do que a pessoa faça, nenhuma Enquanto que as obras, mesmo que humanamente boas
das suas obras altera o destino da sua pessoa na eternidade. vindas de uma pessoa que está no pecado, estando afastada
Tanto faz o que você come veste ou faz, do que você se de Deus e não tendo uma relação de obediência com Deus,
priva, quais pecados você não comete, isso não muda o não são vistas perante Deus como obras justas e boas. Mas
seu destino eterno. O que muda na verdade é quando o ser como obras meramente de um homem pecador e por isso
humano interior é atingido pela graça justificante e nele brota não têm valor eterno.
a fé que se agarra na palavra da promessa no evangelho,
nessa nova obediência, é que as obras externas vão refletir
a mudança ocorrida no homem interior. Dessa forma, é a A próxima distinção que Lutero faz é entre o senhor livre e
mudança no homem interior, por causa da fé, que vai alterar o escravo submisso. Essa distinção se encontra também no
a forma, ou a qualidade, das obras exteriores. É claro que as escrito que mencionei anteriormente, “da liberdade cristã”.
obras exteriores podem ser classificadas como boas. Afinal, Logo nas primeiras frases, Lutero diz que um cristão é um
se vejo uma pessoa passando necessidade e eu auxiliar essa senhor livre de todas as coisas e um escravo submisso a
pessoa, você poderia dizer, humanamente falando, que o que todos. Essa distinção Lutero não faz com relação a todas as

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pessoas, mas apenas diz respeito aos cristãos. Por causa O último par que quero tratar aqui é com relação à razão. Em
da justificação, por causa da salvação operada na pessoa alguns momentos, Lutero diz que a razão é uma majestade,
humana, o cristão não é mais um escravo do pecado, mas o sol que ilumina todas as coisas, mas em outros momentos
passa a ser um senhor livre que não está mais sujeito a mais diz que ela é uma prostituta que nada vale e que nada produz
nada. Ele não está sujeito ao diabo, nem à morte, nem ao de bom. Segundo Lutero, em “Disputatio de hominem", a
pecado. Ele agora é livre,mas é agora escravo submisso de razão é um sol que ilumina a todos, a majestade da criação,
Jesus Cristo. a inventora de todas as artes e de todas as coisas. Porém,
num outro escrito, onde ele ataca principalmente Karlstadt,
No escrito Da vontade cativa, Lutero nos compara a um que foi um de seus colegas na reforma, mas que depois
animal de carga, um jumento. Se somos montados pelo acabou descambando para uma ala mais radical. Lutero
diabo, fazemos o que o diabo quer. Ou somos cavalgados ataca-os e diz que eles se baseiam na razão, por isso diz
por Deus. Não existe um jumento que não seja cavalgado por que a razão é uma prostituta. Lutero faz isso para dizer
alguém. Ele nunca está livre por aí fazendo o que quer. Então, que todas as elucubrações pensadas pelo movimento de
não há uma posição de neutralidade. Aqui ele dá um ponto Karlstadt são frutos da prostituta do diabo, a razão. Apesar
final nessas ideias de livre arbítrio, semipelagianismo etc. O dos termos fortes empregados por Lutero essa ideia está
ser humano não tem posição de neutralidade: ou é escravo em consonância com o debate de Heidelberg. Nesse
do pecado, ou de Jesus. Por isso, Lutero diz que agora é um debate, Lutero diz que quem quiser filosofar sem perigo em
senhor livre – livre do pecado, da morte e do diabo – e um Aristóteles primeiro precisa se tornar um tolo em Cristo.
escravo submisso – a Deus, a Jesus. Isso não quer dizer que ele é contra filosofia ou que a acha
inútil. Porém, quer dizer que para filosofar de forma correta é
necessário que primeiro você se converta a Cristo e se torne
Deus liberta o ser humano para viver para a glória de Deus. um tolo, porque a fonte de toda sabedoria está no temor do
E, o homem vive para glória de Deus amando a Deus e ao Senhor. Isso é, usando uma linguagem paulina, se tornar tolo
próximo – este é o resumo de tudo. Isso não é uma liberdade para o mundo. A mensagem de Cristo é uma maluquice para
libertina, mas uma liberdade para servir. Lutero inclusive os gregos e escândalo para judeus. É isso que Lutero quer
diz que a fé não é ociosa, mas sempre está buscando o que dizer. Você precisa se tornar um doido em Cristo, mas não
fazer. É uma liberdade para amar o próximo. o de cheirar a Bíblia, um maluco para o mundo para então

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poder filosofar sem perigo em Aristóteles. Em relação às
coisas divinas, a filosofia natural não consegue encontrar
resposta e é por isso que precisamos da fé em Jesus
Cristo para ter um conhecimento ampliado com relação às
estruturas do ser humano. Em contrapartida, com relação às
coisas deste mundo como política, sociedade, organização
da nossa vida, há, sim, um espaço para atuação da razão,
mas com relação a isso falarei na próxima aula.

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AULA 3 - CARACTERÍSTICAS DA RAZÃO tona todas as ciências, as artes e o conhecimento humano.
HUMANA Lutero trata quando ele fala de alma, espírito, razão, coração,
ele trata todos esses termos da antropologia como funções.

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or causa de alguns tipos de grosserias germânicas, Ele nunca trata isso de forma literal, mas como funções. Ele
como, por exemplo, chamar Erasmo de Roterdã de trata isso como algo que está ali para explicar uma realidade
sapo coaxante, Lutero seria conhecido mundialmente no ser humano e não como algo em si. Então, ele nunca
e desprezado como uma pessoa que não dá importância às toma o coração, a alma como algo ontológico, mas tem isso
finas artes, nem à filosofia, nem ao conhecimento natural como questões funcionais. Inclusive, voltando a falar sobre
do ser humano. Não é por menos que há diversas críticas a a razão, em um primeiro momento, Lutero é bem favorável
respeito de Lutero vindo tanto de mentes mais iluministas a uma ideia de razão natural. Para isso, ele utiliza o termo
quanto também de irmãos reformados calvinistas que dizem sintereses. Ele herdou esse termo da escolástica que definia
que Lutero propaga uma antropologia dicotômica e dualista e a sintereses como hábitos, os quais eram uma pré-condição
continua aumentando o fosso de separação entre natureza e para distinguir o bem e o mal. Assim entendia Aquino,
graça que faz até uma diferença entre o que seria sintereses e
o consciência. A sintereses seria a pré-condição para que
uma pessoa possa conhecer ou distinguir o bem e o mal. A
Porém, é preciso levar em consideração a forma de
consciência é de fato a ação de distinguir bem e mal. Isso
pensamento dialético de Lutero para poder interpretá-lo
fica mais claro na antropologia de Gerson.
melhor e reconhecer como ele trabalha nas suas distinções
e que distinguir não é mesma coisa que separar. Assim,
podemos ter uma interpretação mais coerente daquilo que Lutero fala positivamente da razão nos comentários
Lutero quis dizer e de certa forma dar uma desculpada nele marginais nas obras de Agostinho e de Lombardo onde ele
pela verborragia e pelos ataques dele na sua época. retrata a razão como um órgão que possibilita o ser humano
lutar contra o pecado. Lutero fazia anotações nas margens
dos livros e os estudiosos definiram como Lutero interpretava
Entender como Lutero entendia a razão humana é importante
Agostinho a partir disso. Ele vai interpretar Agostinho que era
para percebermos como funcionam essas distinções. É a
alguém que não via essa inatividade do ser humano para o
razão humana que ele vai colocar como a função que traz à
bem, até porque ele tinha um conceito de pecado bem mais

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abrangente. Nessas notas marginais, ele acaba dizendo que No comentário de Gênesis, Lutero defende que antes da
a razão é o lugar onde o ser humano se comunica com Deus. queda, Adão tinha uma razão reta e uma boa vontade. Essa
Ele muda, porém, nas preleções sobre os Salmos entre os é uma conexão bem importante entre razão e vontade. Isso
anos 1513-1515 quando ele busca em Gerson a ideia das quer dizer que, de certa forma, Adão tinha livre-arbítrio.
sintereses. Nesse momento é que ele desloca da razão para Após a queda, tanto a razão quanto a vontade são atingidas
a sintereses, o “modo de comunicação” entre Deus e o ser pelo pecado em sua totalidade de forma que não é mais
humano. possível falar de uma parte do ser humano por menor que
ela fosse que se mantivesse intacta após a queda. Isso não
A sintereses ainda é muito ligada com a vontade do ser quer dizer que o homem sem Cristo seria incapaz de fazer
humano. Aqui começam os primeiros passos da mudança algo meramente externo, ou moralmente externo que seja
reformatória, da descoberta da justificação pela fé. Quando bom. Lutero defende que as obras que são moralmente boas
conecta sintereses com vontade, a qual ele já estava não tornam o ser humano bom. Não é a obra que altera a
definindo como algo entregue ao pecado, ele dará um passo qualidade do ser humano interior, mas é a fé que muda a
que será dizer que não sobra nada no ser humano que não qualidade da obra. O ser humano justificado que faz obras
tenha sido atacado pelo pecado. Então, a sintereses, aquela boas e justas, mas não são as obras boas e justas que
que desejaria o bem, é vista ora como positiva e ora como tornam o ser humano bom.
negativa. Principalmente quando ela é ligada à vontade. Em
Lutero, é importante dizer, a sintereses nunca é vista como Por isso, no Debate sobre o homem, Lutero pode dizer que a
aquela que deseja o bem supremo, ela apenas deseja o bem razão é algo como que divino no ser humano, ela é o sol que
aqui neste mundo. É justamente a introdução da ideia de ilumina a todos, ela é a administradora de todas as coisas, a
vontade que vai trazer essa mudança que Lutero pode falar inventora das Artes, da Medicina, do Direito. E, mesmo depois
mais tarde que a razão é a senhora prostituta. A transição da da queda, Deus confirma que a razão é a majestade de todas
razão de boa senhora para prostituta acontece justamente as coisas. Como pode Lutero afirmar tão positivamente a
pela conexão de razão e vontade no pensamento de Lutero. respeito da razão nesse texto sendo que, em outro, ele trata a
Para entender, precisamos desenvolver como isso aconteceu. razão como uma prostituta? Lutero, em “Da vontade cativa”,
diz que há três luzes. A primeira luz é a da natureza. Essa
luz da natureza capacita o ser humano a ter uma visão, um

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conhecimento das coisas naturais, para enxergar a realidade viemos e para onde vamos. Essa pergunta é a luz da graça
a partir de um conhecimento natural. Através dela, vemos a que responde. E isso muda a forma com que lidamos com a
realidade desse mundo, o mundo da experiência, o mundo ciência, com o conhecimento deste mundo, com as técnicas,
sensitivo, e podemos alcançar um conhecimento correto a com a razão e com tudo o que está à nossa volta.
respeito das ciências naturais, da experiência, a respeito da
lógica do pensamento filosófico. Isso tudo é possibilitado Para Lutero, a razão do ser humano não desempenha um
pela luz da natureza. Porém, há uma segunda luz, a lua da papel ativo na salvação do indivíduo, mas desempenha um
graça. Por meio da luz da graça o ser humano passa a ter papel importante em relação à vida neste mundo. Não é que
um conhecimento da sua causa eficiente, a causa primeira Lutero veja as invenções da razão, do Direito, da Medicina e
de todas as coisas que é Deus. O ser humano passa a da Arte como algo à toa. Lutero vê isso como algo positivo.
reconhecer Deus como o Senhor e Salvador da sua vida por O universo acadêmico é visto por Lutero como invenção da
meio da luz da graça. Ele passa a enxergar o mundo não só razão e isso é algo muito bom. Isso é a majestade. Isso é
através da luz natural, mas também através da luz da graça. algo supremo. Ele reconhece que há esse espaço de atuação
Isso muda a perspectiva com que o ser humano reconhece da graça comum. Isso é uma ação de Deus, algo que ele
e conhece a realidade diante de seus olhos. Porém, há deu a todo ser humano por meio da graça comum para, por
uma terceira luz, a luz da glória de Deus. Ela diz respeito meio da função da razão, governar todas as coisas e ter essa
ao conhecimento que terá na eternidade no reino vindouro. capacidade inventiva, mas não criativa. Lutero não fala de
Os que forem iluminados por esse conhecimento advindo criatividade, ele fala de inventividade, porque criação é algo
da glória de Deus terão um conhecimento como Deus que compete somente a Deus.
conhece. Então, terão um conhecimento amplo e irrestrito de
todas as coisas. Então é preciso distinguir as coisas. O ser
humano natural sem Cristo pode conhecer todas as coisas Isso se dá de acordo com a preleção de Gênesis, pois Deus
deste mundo. Ele pode criar ciências, governar o mundo, definiu que mesmo após a queda do ser humano, este deveria
pode inventar coisas maravilhosas, mas é o conhecimento cuidar das relações no âmbito da casa. Ou seja, desde a
da graça de Deus que habilita o ser humano a ter um criação, e mesmo depois da queda, o homem é responsável
conhecimento do porquê eu vivo nesse mundo e para Deus por cuidar do matrimônio, da família, das relações dentro de
criou todas essas coisas e para onde nós vamos. De onde casa, do trabalho, da obtenção do seu alimento. A relação

14
com seus congêneres surgirá como consequência da queda. estabelece limites para a ação do ser humano, portanto a
Ali é que o ser humano terá que lidar com seu vilarejo, seus exploração, segundo Lutero, como a caça de animais apenas
vizinhos, com a relação de comércio e a sociedade. É nesse por deleite é fruto do pecado. Isso não é um exercício correto
caso que o ser humano avança numa relação com os seus da ação de dominar. A caça indiscriminada não é domínio
semelhantes. do ser humano, mas é pecado, segundo Lutero, porque
ultrapassa os limites dados por Deus no domínio.
Lutero interpreta o verbo dominar que está presente em
Gênesis 1.26 como a tarefa do ser humano com relação a Por último, é preciso falar da razão entre razão e vontade.
seus semelhantes, com relação à criação e aos animais. Esse Lutero considera que a vontade do ser humano é totalmente
verbo “dominar” Lutero não entende como uma exploração, cativa pelo pecado após a queda. Para ele, não existe
mas no sentido de cuidado. Antes da queda, o ser humano livre-arbítrio. Via de regra, só Deus tem livre-arbítrio. O ser
só comia vegetais, ele era basicamente vegetariano. Depois humano, Adão, teria livre-arbítrio não no sentido de uma
da queda, Deus ainda não permite que o ser humano coma liberdade libertária, mas no sentido Agostiniano de posse
animais. Ele só vai permitir que o ser humano se alimente de non pecare, o poder não pecar. Isto é, Adão podia não pecar.
carne após o dilúvio. Apenas em Noé haverá uma permissão Lutero segue essa interpretação de Agostinho. Quando
para que o ser humano coma carne. Ainda assim, é uma Adão, de fato, peca acontece que ele se torna escravo dessa
permissão que tem limite, pois o ser humano só poderá nova condição de non posse non pecare, o não poder não
comer carne de animais puros – segundo a interpretação pecar. Adão após a queda não podia não pecar, ou seja,
de Lutero – e não poderá comer carne com sangue. O que estava fadado a cometer atos de pecado por causa do
Lutero quer colocar com essas delimitações que Deus pecado original que ele cometeu. Com isso, a vontade do
coloca no domínio do ser humano é que Deus é o Senhor ser humano se torna cativa do pecado e precisa ser liberta.
de todas as coisas e aquele que tem o poder de legislar. É Somente por meio da justificação pela fé e por causa da
Deus quem estabelece as regras e os limites para atuação do obra de Cristo é que o ser humano é posto em uma nova
ser humano e também o domínio do ser humano não é sem relação com Deus onde não é mais o pecado que tem o
limites. É colocado um limite através da Lei de Deus que diz senhorio sobre o ser humano, mas Deus somente por meio
até onde o ser humano pode ir e até onde o ser humano não de Jesus que é estabelecido um novo senhorio. Assim
pode ultrapassar e isso está colocado pela Lei de Deus. Deus sendo, a razão também sofre com as consequências do

15
pecado, pois, quando ela se eleva acima de Deus e quer se
julgar como absoluta, soberana por si mesma e não porque
Deus assim possibilitou por meio do imperativo de dominar,
quando a razão quer se colocar acima de Deus e roubar o
seu trono, é ali que se mostra como senhora prostituta. Por
isso, Lutero ataca a razão que quer se colocar acima de
Deus e não quer reconhecê-lo como Deus. Isso se mostra
na história da humanidade e também nos dias de hoje por
meio das ideologias que querem ocupar o lugar de Deus e se
colocar como científicas, como verdade acima de tudo, como
coisas absolutas, como portadoras da liberdade para o ser
humano. Essas promessas da filosofia, das ideologias, da
razão humana que querem destronar Deus é que são frutos
da senhora meretriz, da prostituta do diabo, a razão. Por
isso, Lutero precisa afirmar também que a razão necessita
da redenção em Cristo e, por isso, filosofar sem perigo é
possível somente para uma pessoa convertida. Somente o
servo de Jesus Cristo é que filosofa com Aristóteles sem
perigo. Lutero defendia um pensamento integral do ser
humano onde a redenção ocupava o papel central sem com
isso desmerecer a graça comum. Assim, a ideia de pecado
que ataca todo ser humano é também colocada lado a lado
com a justificação que ataca todo ser humano e que abarca
todas as esferas da vida do ser humano. Ela redime o ser
humano na sua integralidade como pessoa e na integralidade
das suas relações.

16
AULA 4 – JUSTIFICAÇÃO COMO PONTO Lutero afirma que toda a antropologia cristã se resume nessa
CENTRAL DA ANTROPOLOGIA DE LUTE- frase se sabemos que nem todas as pessoas alcançarão a
RO salvação? Nem todas as pessoas são eleitas. Nem todas
são santas e justas. Nem todas estarão no reino dos céus.

N
esta aula, falaremos como a justificação pela fé se Então como Lutero pode dizer que o cerne do ser humano é a
relaciona com a antropologia de Lutero. Ou seja, justificação se nem todos serão justificados? São somente os
como o ser humano justificado, salvo, por meio de cristãos, os justificados pela fé, que são realmente humanos?
Jesus Cristo é visto em relação à sua própria humanidade. Ou seria uma visão mais ampla do que seria o ser humano?
Não será abordado tanto como acontece a justificação, Seria uma justificação num sentido mais amplo? Seria uma
porque ela acontece, quais são os parâmetros da justificação espécie de abertura para a salvação universal?
na teologia de Lutero. Até porque isso demandaria outra
abordagem que levasse em conta a relação de Lei e Para entender essa afirmação de Lutero, é preciso analisar
Evangelho, especialmente a relação de promissão e de fé. o contexto em que ela aparece. Nas teses anteriores à
“Disputatio de hominem”, Lutero critica a teologia escolástica
Falando em justificação pela fé, o que vem à mente é uma e a filosofia do seu tempo que busca no interior do ser
frase clássica de Lutero: simultaneamente justo e pecador. humano uma qualidade inata que o habilite para que ele faça
É mais ou mesmo a respeito disso que abordaremos nesta boas obras, para que o habilite que ele alcance salvação por
aula. si mesmo através das boas obras. Ou seja, através da justiça
própria. Lutero critica essas posições, porque acredita que
nada no homem o torne digno da salvação. Nada que o ser
Começando com o Debate acerca do homem, o famoso
humano faça o torne digno da graça de Deus. Nada no ser
texto já citado aqui – “Disputatio de homine”. Após um
humano o habilita a ser merecedor da salvação. Para Lutero,
longo debate e crítica de Lutero a respeito das concepções
não há sequer uma capacidade ativa de escolher entre o bem
filosóficas vigentes na sua época, ele atesta que o
e o mal, entre vida e morte. Para sustentar tais afirmações
conhecimento teológico a respeito do ser humano pode
da impossibilidade da autojustificação do ser humano é que
ser condensado em uma única citação do apóstolo Paulo:
Lutero cita Paulo nesse momento: o homem é justificado pela
o homem é justificado pela fé (Rom 3.28). Porém, como
fé somente.

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Disso decorre que para o ser humano ser justificado presente em Lutero.
então não há algo no ser humano que o habilite para tal, a
impossibilidade de se autojustificar e a necessidade de ser O ser humano é, para Lutero, hoje, matéria prima para aquilo
justificado por Deus, ou seja, passivamente. Daí é necessário que virá a ser. Aqui está a grande questão da argumentação
analisar o que no ser humano que o impossibilita de se de Lutero. Para Lutero, aquilo que temos hoje para o ser
autojustificar. Essa impossibilidade é decorrente do pecado. humano ainda não é aquilo que Deus planejou. Não em um
Quem precisa ser justificado por Deus precisa primeiro ser sentido de que Deus fez em Adão algo ainda provisório. Deus
visto como um pecador. Assim, Lutero afirma que, em termos deseja que nós possamos voltar ao estado paradisíaco, ou
universais, tudo o que é chamado de homem está sob o seja, ser de novo como um dia Adão foi, ou melhor, avançar
pecado. Logo, essa afirmação de Lutero sobre a justificação e ser aquilo que Jesus é, não no sentido de ser Deus, mas no
não quer significar que todos os seres humanos serão salvos, sentido da plena humanidade.
mas que todos estão perdidos a menos que sejam salvos
por Deus. Então, “o homem é justificado pela fé somente”
significa que aqueles que não são justificados permanecem É nesse ponto que Lutero define o ser humano como um “vir
no seu pecado, culpa e morte. a ser” não como um “ser”. Ou seja, não estamos prontos,
mas seremos um dia aquilo que Deus entendeu que nós
fôssemos. O ser humano é justificado e por meio disso terá
Qual é a função da justificação da fé na argumentação a a imagem de Deus reconstituída na eternidade. Agora é que
respeito do homem, na argumentação antropológica de a frase simultaneamente justo e pecador faz sentido. Lutero
Lutero? Porque aqui ele está tratando apenas de soteriologia, ainda acrescenta um aposto a essa frase: simultaneamente
mas o debate é antropológico. A justificação serve para pecador, de fato, e simultaneamente justo, na esperança. Ou
mostrar que o ser humano tem em Deus seu ponto de partida seja, há o elemento do pecado que é uma realidade da qual
e de chegada. Deus é o criador e o consumador de todas as o ser humano não escapa. Ou seja, mesmo na fé, mesmo
coisas. Ele é aquele que desde o princípio até o final conduz justificado, continuamos pecando. Cometemos pecado e
o ser humano. Ele cria o ser humano para sua própria honra continuamos na condição de pecador. Porém, somos justos,
e glória, como os catecismos e ensinos reformados já dizem salvos, santificados em Cristo na esperança da vida eterna,
que Deus tem como finalidade na vida no ser humano é na esperança de um dia não pecarmos mais, na esperança
honrar e glorificar a Deus. Essa ideia já está logicamente

18
de que um dia Deus cumprirá todas as suas promessas A ressurreição do corpo, assim, adquire uma importância
para nós. Por isso, simultaneamente justo e pecador não fundamental para a antropologia cristã, pois é a partir
é uma desculpa para pecar. O sentido é que estamos na da ressurreição do corpo que temos um vislumbre da
condição de pecador, de fato, presos a esta natureza e esta transformação pela qual passaremos. Ou melhor, a
condição humana transitória, mas por causa de Cristo, da sua ressurreição do corpo de Jesus nos dá um vislumbre daquilo
justificação em nós, já experimentamos e vivenciamos hoje que acontecerá para nós. Em Jesus, temos a primícia da
uma realidade que será completamente nova, completamente ressurreição entre os mortos e ali enxergamos aquilo que nós
restabelecida a partir da ressurreição dos mortos. seremos.

Então, este mundo da razão é para Lutero apenas aparência O ser humano nesse mundo ainda não é o ser humano. Ele
daquilo que virá a ser. Ainda não vivemos na plenitude e será quando Deus o transformar.O fim último do ser humano
a justificação é então uma antecipação escatológica de é estar em Cristo. Novamente um vocabulário paulino que
uma antropologia futura. Vivemos hoje uma aparência de Lutero usa e traz para a sua Teologia do mesmo modo que
realidade, mas a realidade final das coisas só será de fato Paulo fala do casamento, por exemplo. Nesse casamento,
experimentada escatológicamente. Por isso, um dos grandes Lutero usa a imagem de Cristo como Noivo e a Igreja como
pesquisadores de Lutero com relação à Antropologia, Wilfried Noiva, “estar em Cristo” presente diversas vezes na Bíblia,
Jost, ao comentar sobre a antropologia de Lutero, diz que é em Filipenses por exemplo. Lutero traz novamente essa
excêntrica e escatológica. Excêntrica porque o ser humano linguagem para falar dessa relação próxima entre o crente e
só encontra resposta para a sua origem e a razão da sua Jesus Cristo.
existência fora de si mesmo, em Deus. O ser humano não
encontra “de onde venho” ou “para onde vou” dentro de Os pesquisadores nórdicos de Lutero gostam muito disso
si mesmo .Ela é uma pergunta que só encontra resposta para falar da união mística e da pessoa cristã. Viver em
em Deus e na revelação de Deus. Ela é uma antropologia união com Cristo aqui, glorificando por meio dele a Deus
escatológica porque a plenitude da humanidade, a plenitude e estar no futuro plenamente com Cristo na eternidade é
do ser humano só será experimentada na nova criação. que é a finalidade do ser humano. Por isso, a partir da sua
origem e da sua finalidade é que Lutero define o ser humano

19
e a justificação pela fé mostra já hoje o centro daquilo que
o ser humano foi criado. O ser humano foi criado para ser
justificado, para ser plenitude em Deus, para glorificar a Deus
e por isso este é o ponto central da antropologia de Lutero.
Não que com isso ele queira dizer que todo ser humano será
salvo, mas que o ser humano foi criado com essa intenção
por Deus e por causa do pecado, logicamente uma massa
perdida acaba indo para a condenação e apenas alguns
sendo eleitos, mas o objetivo de Deus com o ser humano era
e é salvá-lo e que ele glorifique a Deus em toda sua vida.

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AULA 5 – O CORAÇÃO NA ANTROPOLO- seja, o local da formação dos pensamentos, da razão, das
GIA DE LUTERO decisões, da vontade, das emoções e das intenções das
pessoas. Nessa perspectiva, a imagem que Lutero constrói

C
oração é uma palavra muito empregada na do coração humano tem muito mais raízes no vocabulário do
espiritualidade, no uso comum das igrejas onde se fala AT do que propriamente em Aquino ou em Agostinho.
do coração, da fé do coração, o coração do homem
que se apega às coisas, onde se fala de um coração que ​ ara Lutero, a partir especialmente das suas preleções sobre
P
serve a Deus etc. Tudo isso tem uma relação com uma série os Salmos, o coração é visto como um sinônimo para vontade
de textos bíblicos e justamente pela mesma razão vemos e também para consciência. Lutero não se preocupou em
isso em Martinho Lutero bem apresentado. Ele, porém, não estabelecer uma relação entre o coração físico. Ele não
foi o primeiro a fazer uso do termo coração na reflexão estava muito preocupado com as relações fisiológicas e sua
antropológica dentro da Teologia. Antes dele, Tomás de relação com o movimento humano como os filósofos da
Aquino já havia utilizado o termo, mas numa recepção do uso Antiguidade, os naturalistas, estavam fazendo. Essa não era
aristotélico do uso de coração. Para Aristóteles, o coração é a preocupação de Lutero. Pelo contrário, ele manteve-se fiel
a instância que rege o movimento do corpo é a instância do ao uso de coração no AT. Até porque Lutero era alguém que
desejo humano. trabalhava muito intensamente com o AT. Um dos livros que
ele mais abordou em toda a sua jornada como teólogo foi o
Agostinho, já antes de Aquino, também entendia o coração livro de Salmos.
como o lugar das emoções, mas aquelas direcionadas mais
para um futuro, por isso a importância fundamental para Por que ele resolveu falar do coração como sede dos
questões religiosas, porque a própria questão da esperança pensamentos e da razão humana? Qual é o sentido de falar
no futuro, esperança da vida eterna, estaria ligada ao coração de coração como sinônimo de vontade e de razão? Não
no pensamento de Agostinho. É claro que a própria Escritura poderíamos abandonar essa ideia visto que temos uma
faz um uso muito intenso do vocábulo, como aponta o concepção mais científica acerca do que forma o cérebro e
trabalho de antropologia do AT de Hans-Walter Wolff. O poderíamos explicar isso de forma naturalista? A questão
estudioso afirma que na linguagem do AT o coração era algo é que Lutero dá uma interpretação diferenciada para o
parecido com aquilo que hoje entendemos por cérebro. Ou

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coração em relação à razão, consciência e outras faculdades alguém as respostas para a perguntas: “de onde venho?” e
mentais. O coração é relacionado com a emotividade, com a “para onde vou?”.
necessidade e a busca pelas emoções. Mas não só isso! Para
Lutero o coração crê! A fé se encontra no coração humano. Não é à toa que Lutero dizia que aquilo que no que o coração
A fé é aquilo no que o coração se agarra. Coração define se agarra, isso é o seu Deus. Isso pode ser uma coisa
assim aquilo que o ser humano procura, deseja, anseia e ao material, um partido político, um time de futebol, seu canal
que ele se apega em busca de encontrar uma razão para si no YouTube etc. Assim, é possível substituir esse amor
mesmo. A busca do ser humano pela razão da sua existência, pelo amor a essas coisas. Por isso criticamos esse amor
por um porto seguro na vida, por estabilidade emocional, como idolatria. Ou seja, não é simplesmente gostar demais,
por certeza é centrada no coração. Da mesma forma, o mas é, de fato, idolatria. É idolatria se apegar a uma coisa
descrente, em sua busca por respostas, é descrito por Lutero tão firmemente que nós nos desviamos do apego do nosso
como alguém cujo coração se inclina e busca por algo fora coração a Deus. Assim, o coração também é o lugar da
de si mesmo. O descrente é alguém que ao invés de procurar experiência da fé e do confronto com a Palavra. O coração
as respostas do seu coração em Deus, busca as respostas inquieto, que tem medo de Deus, que tem receios, que está
do seu coração no seu próprio coração. É isso que Lutero endurecido pelo pecado precisa ser atingido pela pregação
vai chamar de uma pessoa ensimesmada, uma pessoa que da lei que desmascara a sua falsidade e aquietado pelo
vive escrava do pecado. Por isto para Lutero o ser humano é evangelho que mostra o perdão e o amor de Deus. Assim
um ser excêntrico, pois busca respostas fora de si mesmo e a experiência da fé e da justificação acontece no coração
não no seu interior. Quando o ser humano busca respostas humano. Acusado do seu pecado pela Lei e aquietado e
no seu interior ele vive para si mesmo. Querendo ou não, perdoado pelo Evangelho. O coração que crê experimenta
todo ser humano acaba buscando respostas ao seu redor, essa felicidade, essa certeza da salvação nessa dinâmica de
seja na natureza, na filosofia, no esoterismo, numa ideologia Lei e Evangelho.
política, seja num conceito econômico, numa teologia, numa
religiosidade. O ser humano busca razões para o seu “estar
aqui” nesse mundo querendo ou não fora de si mesmo. É Claro, também o coração é algo que o ser humano não dirige
isso que Lutero quer dizer quando diz que o ser humano é por si mesmo. A vontade do coração não está sob controle do
excêntrico. O coração procura em algum lugar, em algo ou em ser humano por si mesmo. Tudo aquilo que é o ser humano

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está sob o controle do pecado e também assim o coração.
Isto demonstra como Lutero compreende que nenhuma parte
do ser humano foge da ação do pecado e também que com a
justificação todo o ser humano é atingido pela ação de Deus.

Neste sentido, aponta Oswald Bayer, Lutero e Calvino se


encontram. O coração humano é cor fingens, uma fábrica
de imagens. Ou o coração se agarra em Deus, que é único
verdadeiro senhor de todas as coisas, criador de todas as
coisas e aquele que realmente merece e é digno de honra
e glória, ou o ser humano se agarra em coisas, projetos,
pessoas, ou mesmo em outras divindades. Tudo isso é
idolatria. Tudo isso são imagens criadas pelo coração falso
do ser humano que busca criar para si mesmo imagens
falsas de Deus.

O coração será, portanto, fiel a Deus ou idólatra, ou um


ou outro, não há meio termo. Por isso, é muito importante
essa compreensão de coração nos reformadores, tanto em
Lutero, como em Calvino. De forma que também façamos
um uso do termo coração em nossa linguagem teológica em
conformidade com as Escrituras, mostrando que o coração
humano não é bonzinho, mas uma fábrica de idolatria que
precisa ser combatido pela Lei e acalmado pelo Evangelho.

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AULA 6 – O CORAÇÃO NA ANTROPOLO- Basicamente, para compreender como o pensamento
GIA DE LUTERO de Lutero se desenvolve, é importante ver os teólogos
e filósofos antes de Lutero. O esquema tricotômico era

N
esta aula, quero abordar a questão da alma em o esquema básico de toda a escolástica, especialmente
Martinho Lutero. Especialmente a questão da sistematizado por Gerson como o homem sensitivo,
dicotomia ou tricotomia. Lutero via o ser humano corpóreo e espiritual. Note que essa formulação é a que
como composto por uma parte material, o corpo, e uma Lutero usa na primeira tese da “Disputatio de homine”. Esse
imaterial, a alma. A questão que geralmente se pergunta com esquema de Gerson fazia uso de uma série de alegorias
relação à constituição do ser humano é: Lutero defende a retiradas da Bíblia para defender essa posição. Assim, por
dicotomia – corpo e alma – ou a tricotomia – corpo, alma e exemplo, corpo, alma e espírito seriam análogos ao templo
espírito? Há ainda correntes teológicas que vão pregar uma de Jerusalém: o pátio do templo seria o corpo, o lugar
espécie de unidade radical, onde corpo, alma e espírito seria santo seria a alma e o santo dos santos, o espírito do ser
uma coisa só. Mas essa não é a questão de Lutero. Bom, já humano. Ainda há outras alegorias como a de Agostinho
deixei escapar em outra aula que Lutero parece ter deixado que considera Adão como ser humano espiritual, Eva como
escapar, cá e lá, uns resquícios de tricotomia, mas em geral ser humano racional e o ser humano (em geral) após a
e de forma mais categórica ele afirmava que cria em uma queda como sensitivo. Não fica bem claro o que Agostinho
dicotomia. Isto é, o ser humano é composto por corpo e quis dizer com isso, mas é uma série de alegorias retiradas
alma. Porque ele critica a posição de Jerônimo em relação do texto bíblico que não parece assim, num primeiro
a 1 Tessalonicenses 5.23. Lutero afirma que ali Jerônimo momento, tão bem embasada. Desta forma, uma concepção
se apropria de uma concepção de Orígenes, que vem de neoplatônica de ser humano acaba embarcando na teologia
uma filosofia platônica, e tenta fazer uma interpretação cristã, que recebe o conceito da divisão da razão entre
espiritualista alegórica. Nessa interpretação, ele acaba porção inferior e superior. Especialmente em Agostinho
assumindo uma série de conceitos da filosofia que para que vai adaptar o neoplatonismo na sua concepção do ser
Lutero parece muito estranho. Por isso, Lutero diz que esse humano e falando de razão como tendo uma parte superior e
versículo não serve para comprovar uma doutrina mais bem uma inferior.
embasada.

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Os discípulos de Agostinho desenvolveram isso a ponto de Isto se mostra na adoção de Lutero da doutrina do
dizer que na parte superior da razão haveria uma espécie traducianismo. Esta doutrina diz respeito à origem da
de possibilidade de contato com Deus, enquanto na inferior alma de uma pessoa. Basicamente havia duas doutrinas
estaria a concupiscência. Com isso, abre-se caminho dentro divergentes à época de Lutero sobre o assunto. A doutrina
dos discípulos de Agostinho para uma compreensão de que do criacionismo defendia que a alma era criada por Deus no
o ser humano poderia alcançar a graça por si mesmo e que momento da concepção de um ser humano. O criacionismo
o pecado não atinge o ser humano de forma integral, mas de tem sua origem no preexistencialismo de Orígenes, que é
forma parcial. É justamente isso que Lutero vai criticar aqui uma adaptação da ideia platônica e defendia que havia uma
nessa adaptação do neoplatonismo para dentro da filosofia alma primordial de onde todas as almas humanas derivam.
cristã. O criacionismo surge mais futuramente como uma tentativa
de refinar o preexistencialismo, mas é uma ideia claramente
É claro que nos escritos de Lutero ainda até 1518 é possível platônica.
encontrar menções ao esquema tricotômico de Gerson,
que Lutero herdou pelas leituras de Johannes Tauler. Por Já a doutrina do traducianismo de Tertuliano defendia que
exemplo, na preleção sobre Hebreus de 1518, Lutero define a alma é transmitida pelos pais na concepção. A diferença
o ser humano como dividido em três “andares” em analogia entre estas duas concepções – que de um ponto de vista
à arca de Noé. O que acontece paulatinamente com Lutero bíblico nem dá para concluir qual é a mais correta – implica
neste mesmo período desde 1516 é uma tentativa de diretamente na doutrina do pecado original. Se um ser
acomodar a antropologia de Gerson no esquema paulino humano recebe uma nova alma na concepção, esta que não
de velho/novo Adão, carnal/espiritual. Ele tenta encaixar tem qualquer relação com a alma dos pais, é uma nova alma,
o esquema de corpo-alma-espírito dentro desse esquema que de certa forma abre caminho para se falar de uma alma
dualista. Desta forma, Lutero se afasta da tentativa de que não herda o pecado original dos pais. Assim, pecado
localizar um lugar especial da ação de Deus no homem, para atual e pecado original acabam se desconectando dentro do
definir o ser humano todo como palco da atuação de Deus. criacionismo gerando novamente a possibilidade de se falar
Deus age no ser humano como um todo, não apenas na sua de uma abertura natural do ser humano para Deus. Enquanto
alma ou no seu espírito. isso, no traducianismo, ao ter sua alma originada da alma dos
pais, então o pecado original acaba sendo transmitido

25
Ao transmitir isso junto, o ser humano herda a culpa do quem dá forma para o corpo é alma. Ou seja, quem modela –
pecado original e o estado de catividade ao pecado. não em aparência externa – quem faz com que o ser humano
seja ser humano é a alma, não o seu corpo.
Essa seria para Lutero a principal vantagem do traducianismo
e efetivamente a razão pela qual ele o adota. Não por ser A alma, a forma serve justamente para delinear, definir e
biblicamente mais interessante que o outro, como eu disse, dar forma à matéria. Com isto haveria uma superioridade
os dois são biblicamente questionáveis. Particularmente, da forma em relação à matéria. Lutero evita este tipo de
acredito que nem dá para tomar partido. Porém, de um ponto formulações, pois não defende uma ontologia da substância,
de vista das implicações teológicas, o traducianismo pareceu mas uma ontologia da relação. Isto é, a alma tem sua origem
mais interessante para Lutero. em Deus não por derivar substancialmente de Deus, mas
por ter uma relação com Deus. Assim, a alma não é de certa
Poderíamos questionar Lutero como podemos continuar forma divina, apesar de Lutero falar disso em outro momento,
falando da imortalidade da alma sendo que a alma tem mas ela não é divina no sentido que deriva de Deus. Ela é
origem nos pais humanos e não de forma direta e imediata divina no sentido que é uma criação de Deus em Adão e por
em Deus. A questão aqui é entender o que Lutero pensa ele vai sendo transmitida adiante para todas as gerações.
sobre a imortalidade da alma. De forma geral, Lutero Assim, não é a origem da alma em Deus que é importante,
assina embaixo o 5º Concílio Lateranense com relação à por isso que não é uma ontologia da substância, mas é a
imortalidade da alma, inclusive criticando fortemente a relação da alma com Deus em fé, ou falta de fé, que será
adoção de Aristóteles no âmbito da teologia escolástica, definidora, por isso uma ontologia da relação.
por este negar a imortalidade da alma. Porém Lutero trata a
questão da imortalidade da alma sob um prisma um pouco Com isso, ele evita uma discussão se a alma precisa ser
diferente da escolástica. Enquanto a escolástica via o ser sempre subserviente às discussões filosóficas, preferindo
humano como composto de duas partes: uma parte física, o uma compreensão mais teológica da alma. Saber que a alma
corpo, que em linguagem filosófica era matéria, e uma parte é eterna por estar numa relação com Deus e não no sentido
imaterial, espiritual, a alma, que em linguagem filosófica era que ela deriva de alguma maneira materialmente de Deus.
forma. Se o corpo é a matéria e a parte imaterial é a forma, Poderíamos novamente criticar Lutero nos questionando se

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ele não deixou uma porta aberta para a doutrina do sono da Em resumo, não dá para identificar o pensamento de Lutero
alma com relação aos estado intermediário entre morte e diretamente com o pensamento de Platão com relação à
juízo final, ou até mesmo uma doutrina da morte total. origem e imortalidade da alma. Ele tem elementos muito
mais advindos das Escrituras que de Platão. Embora
Embora essas duas posições sejam comuns entre teólogos concorde com Platão em uma série de assuntos. Nem
Luteranos dos últimos dois séculos, Lutero usa a ideia mesmo Lutero concorda com Aristóteles nessa questão
do sono da alma da mesma forma como Paulo descreve. e aqui talvez seja onde ele quebra mais firmemente com
Ou seja, misturando outros elementos onde a alma está Aristóteles ao negar completamente a doutrina da alma como
consciente após a morte. Assim, não é possível definir com sede do movimento - se acaba o movimento, a vida acaba,
exatidão se o pensamento de Lutero é mais para o sono então a alma morre. Lutero é, nesse sentido, muito mais
da alma ou mais para uma consciência da alma no estado adepto de uma antropologia paulina, muito embora leve em
intermediário. O mais certo seria dizer que Lutero acreditava conta o vocabulário e as discussões filosóficas da sua época
que a alma estaria em algum estado de semiconsciência, na formulação das suas ideias.
pois, ao mesmo tempo, Lutero é capaz de afirmar que o
estado intermediário é comparável ao sono, mas durante um
sepultamento ele pode dizer que a alma do falecido já estava
com Deus.

Lutero não quer defender aqui, ao dizer que a alma do


falecido já estava com Deus, que existe uma ideia de
possibilidade de uma vida eterna acorporal. Bem pelo
contrário, Lutero permanece fiel ao ensino paulino da
ressurreição do corpo. Ou seja, a vida eterna é uma vida
corporal.

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