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Vincent Cheung e o Hipercalvinismo Inglês do Século 18

Daniel H. Chew

Uma Introdução
Venho oscilando minha opinião a respeito de Cheung durante o passar dos anos. A
princípio, eu me deparei faz um bom tempo com as coisas que ele escreve e as achei
estimulantes. Mas veja bem, eu as achei estimulantes, não necessariamente
ortodoxas.

Meu principal artigo em que interajo com os pensamentos de Cheung lida com aquilo
que provavelmente seja a posição mais terrível, ultrajante e escandalosa que ele
mantém, a de que Deus é o autor do pecado.1 Claro, esta é apenas a superfície das
muitas heresias que Cheung afirma; às vezes ele é Racionalista (com “R” maiúsculo) e,
outras vezes, quando lhe convém “biblicista”. Cheung utiliza a filosofia como seu
princípio primeiro, ainda que muitos asseverem o contrário. Afinal, o ocasionalismo
não é ensinado em nenhuma parte das Escrituras; você não encontrará tal
ensinamento nas páginas da bíblia. Alguns podem defender essa doutrina, como p. ex.
Jonathan Edwards, mas eu duvido que o ocasionalismo defendido por Edwards seja
tão ruim quanto o de Cheung. Partindo de “princípios lógicos” a priori, Cheung se vale
de proposições das Escrituras isoladas e fora do contexto para poder embasar sua
própria filosofia, ao invés de utilizar as Escrituras como o princípio do conhecimento
(principium cognoscendi).

Não é difícil de encontrar um exemplo do Racionalismo afirmado por Cheung. Ele


escreve em um de seus livros, obra herética sobre Deus ser “o autor do pecado”, a
respeito do “distanciamento metafísico”. Bom, eu tenho sérias dúvidas de que este
conceito tenha sido de alguma forma discutido na Assembleia de Westeminster. Os
cristãos devem meditar nisso? Sim, eu creio que devamos, motivo por que a princípio
tive uma visão positiva para com Cheung enquanto interlocutor. Porém, perceba que,
embora importante, este é um tópico apologético; é algo em que devemos pensar a
fim de formularmos uma resposta apologética racional. O conceito de “distanciamento
metafísico” em si mesmo não deveria exercer nenhum tipo de influência sobre a
doutrina bíblica de Deus e da teodiceia; pelo contrário, é um conceito que deveria ser
discutido após a doutrina ter sido fundamentada, e não como fundamento à doutrina.
Escrituras antes da razão, razão a serviço da fé: é assim que o cristianismo opera entre
os extremos do racionalismo e irracionalismo. Nós raciocinamos DEPOIS que cremos,
não antes (meu maior motivo para ser contra a teologia natural).

1
Daniel H. Chew, God, Author of Sin and Metaphysical Distanciation: A Brief Rebuttal of Vincent
Cheung’s Theodicy (Deus, o Autor do Pecado e Distanciamento Metafísico: Uma Breve Refutação à
Teodiceia apresentada por Cheung). Acesse em:
<http://www.angelfire.com/falcon/ddd_chc82/theology/CheungAuthorSin.html>.
Cheung se posiciona via internet como um especialista no que está dizendo e
estabelece uma posição que reivindica ser o melhor extraído do pressuposicionalismo
vantiliano e clarkiano, ainda que ele rejeite tudo o que venha a achar falso e errado.
Claro, como vocês devem estar se perguntando, quem é Vincent Cheung? Quem o
conhece? Ele é pastor de qual igreja? A quem ele presta contas? Duvido que a maioria
saiba disso. Infelizmente, é fato que na internet aquelas pessoas que mais fazem
barulho e mais aparentam inteligência têm uma influência que bem provavelmente
não teriam na vida real. Igualmente lamentável é o fato de que pessoas que anseiam
por mais da verdade de Deus é que serão atraídas à aparência de piedade que Cheung
esboça. Há tempos que ele é exposto; e eu ou qualquer que se identifique com a
apologética clarkiana não queremos ter qualquer tipo de relação com suas posições
heréticas. Ele não fala por Gordon Clark e não existe “progressão” de Clark para
Cheung. Eu li Clark, eu li Van Til e eu li Cheung. E com isso eu quero dizer o seguinte: se
eu precisasse escolher entre Van Til e Cheung, eu mesmo ficaria com Van Til. Mesmo a
doutrina “uma-pessoa” de Van Til é mais ortodoxa, se comparada às blasfêmias de
Cheung.

Tendo dito tudo acima, então por que eu justaponho Cheung com o hipercalvinismo
inglês do séc. 18? Eu os ponho em patamar de igualdade porque a emersão de Cheung
é muito semelhante à emersão do hipercalvinismo inglês. A esfera espiritual da época
era similar, as pressões sobre a fé eram similares e as “soluções” que tanto Cheung
como o hipercalvinismo apresentam são similares. Espera-se de nós que, olhando o
desenvolvimento histórico do hipercalvinismo inglês do séc. 18, possamos enxergar as
semelhanças daquela época com o nosso tempo e, tendo-a enxergado, que nos
acautelemos não somente de Cheung, mas de quaisquer pessoas que sejam como ele.

O Contexto Sociorreligioso
Primeiramente, devemos ver que logo após a Restauração da monarquia
inglesa ter seu início, no ano de 1600, o calvinismo ortodoxo foi posto, por
assim dizer, em uma posição de cerco. A maioria dos calvinistas ortodoxos
puritanos deixou a Igreja da Inglaterra em 1662 e tornou-se não conformista.
Em tais condições, a liderança religiosa da nação foi fixada com força nas mãos
de homens arminianos ou calvinistas moderados em suas teologias. Os
ministros expulsos e agora não conformistas foram subjugados a restrições
severas e cruéis até o ano de 1688; consequentemente, tais restrições limitaram
bastante a influência destes homens sobre o pensamento religioso da nação.
Conforme ministros e homens mais velhos morriam, os mais novos, educados
sob influências liberais holandesas, tomavam seus lugares e, por conseguinte, o
calvinismo moderado começou aos poucos a ganhar popularidade,
principalmente entre os dissidentes presbiterianos. Com o passar dos anos, o
calvinismo forte2 era cada vez mais e mais uma característica exclusiva, “sola”
dos separatistas e dos batistas particulares. A controvérsia antinomiana de
1690 serviu para aumentar a separação entre o calvinismo forte e o calvinismo

2
No original, High Calvinism, modo como o hipercalvinismo era chamado ao final do séc. 18.
moderado; os anos do século 18 corriam, e com esse passar o calvinismo forte
tornou-se, na maioria dos casos, a fé dos batistas e separatistas pouco
estudados. Tais homens, agarrados às doutrinas do calvinismo forte,
consideravam-se um grupo preservado por Deus em uma era apóstata com o
propósito de defender “a fé uma vez por todas confiada aos santos”, homens
que despendiam o tempo de que dispunham para a defesa da fé que
mantinham. Foi nesta atmosfera de cerco em que o hipercalvinismo nasceu e foi
nutrido.3

A Inglaterra ao final do séc. 17 e ao início do séc. 18 passava por uma era de


moderação religiosa. Era o período augustano, seguido do período vitoriano. A
revolução gloriosa em 1688 havia deposto o último monarca católico romano da Casa
dos Stuart, James II, rei que encabeçara a perseguição contínua aos não conformistas e
os campos de extermínio da Escócia, onde tentou impor prelazia sobre os escoceses.
Após todo o conflito interconfessional, a terrível guerra dos trinta anos (1619-1648),
de proporção continental, e tanto a guerra civil inglesa (1642-1651) quanto a
implacável perseguição com derramamento de sangue seguinte à Restauração da
monarquia inglesa em 1660, o cristianismo europeu entrou numa era anticonfessional
e iluminista. O povo desejava por paz e tolerância, mesmo dentro das igrejas. Qual foi
a mensagem passada por todo aquele conflito, como se matar qualquer um que
discordasse de você fosse a solução? Foi assinado, em 1689, o Tratado de Tolerância; a
lei agora permitia o ajuntamento para culto de protestantes dissidentes (mas não para
católicos romanos), contanto que eles efetuassem registro no governo.

Os tempos estavam mudando, período que precedeu a revolução industrial. Descartes


havia dado início ao pensamento moderno tentando surgir com uma terceira via (tertia
via), reação aos terríveis massacres advindos de guerras religiosas. Voltar-se à razão ou
à investigação empírica buscava fundamentar o conhecimento em algo mais objetivo,
algo que pudesse ser demonstrado, ao invés dos becos sem saída confessionais entre
catolicismo romano e protestantismo. O iluminismo não proveniente da França,
diferente do racionalismo moderno, não estava tentando, de modo geral, suplantar a
religião. Em vez disso, o iluminismo aos moldes anglo-americanos desejava usar a
razão a fim de explicar as verdades da religião. Os três principais moldes do iluminismo
(francês, anglo-americano, alemão) podem ser vistos como as reações mais amargas
contra o cativeiro da igreja causado por Constantino, tanto partindo de romanistas
como de protestantes.

Não é de se surpreender, embora seja triste, que as pessoas estejam abandonando a


fé cristã para perseguir ensinamentos modernos. O socianismo chegou a Inglaterra e
foi logo adotado por membros internos da Igreja da Inglaterra, fator que ocasionou
controvérsias na Comunhão Anglicana.4 Samuel Clarke, um racionalista e biblicista,
publicou um livro intitulado “A Doutrina Escriturística da Trindade” (Scripture Doctrine
of the Trinity) no ano de 1712, publicação por meio da qual examinou esta doutrina e

3
Peter Toon, The Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity, 1689-1765 (London, UK: The
Olive Tree, 1967), p. 146.
4
Ibid., pp. 36-37.
negou ser ela um ensino das Escrituras.5 Devemos nos lembrar de que Clarke não
estava negando a Trindade por, de alguma forma, negar a autoridade das Escrituras;
pelo contrário, ele estava alegando que isto se dava exatamente por ser ele um
seguidor das Escrituras somente (de forma biblicista, isto é) e que, por conseguinte, a
doutrina da Trindade devia ser negada. A eclosão do socianismo e do arianismo dentro
de todo o corpo eclesiástico já estabelecido causou diversas controvérsias.

Muitos entre os dissidentes calvinistas foram influenciados pelo “calvinismo


moderado” da Escola de Saumur (mais conhecido pelo “calvinismo de quatro pontos”
ou amiraldismo), ao passo que outros seguiram o pensamento neonomianista de
Richard Baxter. O “calvinismo moderado” provou por diversos erros ser um cavalo de
Tróia: na Europa continental, causou anticonfessionalismo e, no início do séc. 18,
tolerância para com erros nos dias de Jean Alphonse Turrentin; na Inglaterra,
transformou-se no instrumento para o racionalismo religioso, causando a negação da
doutrina da Trindade por parte de muitos dissidentes (principalmente presbiterianos)
e a conversão destes ao arianismo.6 A apostasia se espalhou tanto na igreja oficial
como nos círculos dissidentes; foram tempos verdadeiramente tristes para a
ortodoxia.

O grupo seguidor da ortodoxia entre os dissidentes era formado em sua maioria por
homens de pouca instrução, ministros não ordenados; além do quê, eram cada vez
mais batistas que compunham esse corpo.7 Eles sentiram a obrigação de defenderem a
fé ao terem de encarar tantos ataques contra a ortodoxia. Muitos deles eram
autodidatas e buscavam defender a fé calvinista da melhor forma que lhes fosse
possível. Uma vez sendo menos instruídos, existia uma tendência de ir ao outro
extremo do qual se opunham, o que acarretou em diversas controvérsias que viriam a
contaminar o movimento não conformista no início do séc. 18.

A relevância que tudo isso tem para nossos dias pode ser vista na similaridade entre os
meios sociais em que vivemos. A maioria das denominações cristãs, desde as mais
voltadas à ortodoxia até as evangélicas modernas, está repleta de erros, de todos os
tipos, sendo muitos deles graves. É necessário que defendamos a fé e afirmemos as
verdades ensinadas nas Escrituras. Para ser mais específico, o calvinismo tem sido
suavizado entre os assim chamados “neocalvinistas”, cujo “calvinismo” tem mais em
comum com o amiraldismo do que com o verdadeiro calvinismo ortodoxo. 8 Os
contextos sociorreligiosos da Inglaterra no início do séc. 18 e da nossa era são muito
semelhantes; a sã doutrina era e ainda é extremamente necessária. Em ambos os
momentos da história, porém, a catástrofe atingiu em cheio até mesmo a ortodoxia.

5
Ibid., p. 37.
6
Ibid., p. 39.
7
Ibid., p. 146.
8
Um exemplo disto pode ser visto nas visões neo-amiraldianas de David Byrne. Para ler uma refutação
acerca dessa questão, leia Daniel H. Chew, Interpretation of Bunyan’s Quote and a Brief Response to
Tony Byrne’s Neo-Amyraldism. Acesse em:
<http://www.angelfire.com/falcon/ddd_chc82/theology/NeoAmyraldismRefutation1.pdf>.
A Ascensão de Heresias
Em segundo lugar, entre os anos de 1689 e 1765, o calvinismo forte foi
posicionado em um contexto que dava ênfase ao papel da razão na fé religiosa.
Isto significa que os calvinistas fortes estavam em perigo tanto se absorvessem
o racionalismo, se o rejeitassem por completo ou se fizessem ambas as coisas.
Joseph Hussey aparenta ter sido presa de ambas as tentações. Ele absorveu
tendências racionalistas da época e aplicou uma lógica estrita a doutrinas
bíblicas de modo que, a partir das doutrinas de eleição eterna e graça
irresistível, ele deduziu que Cristo não devia ser oferecido a todos os homens. E
também deduziu a doutrina de que a humanidade de Cristo estava “à espera
permanente em Deus” antes da criação do mundo, a partir da porção que
acreditava ele ser o papel que Cristo desempenhou no pacto da graça. Um dos
seguidores de Hussey, Samuel Strockell, abandonou a doutrina da geração
eterna porque ele próprio não conseguia conceber como “o Pai, que gerou, e o
Filho, que foi gerado, poderiam ser idênticos em eras”. Lewis Wayman, John Gill
e John Brine aplicaram a lógica ao [sic] (hipotético) pacto de obras e deduziram
a doutrina de que não é um dever dos ouvintes do Evangelho crer no Senhor
Jesus Cristo. Não obstante tais homens não criam que estivessem sendo
racionalistas num sentido humano, mas que simplesmente com tudo isso
estivessem eles aplicando a “razão evangélica” ou a razão inspirada pelo
Espírito Santo aos ensinamentos da bíblia.9

Os que mantinham a ortodoxia no séc. 18 (o que Peter Toon chamou de “calvinistas


fortes”) estavam chocados com o crescimento cada vez maior da apostasia dentro dos
círculos anglicanos e, principalmente, dos não conformistas. Horrorizados, “um grupo
de ministros não ordenados decidiu responsabilizar-se por uma série de palestras cuja
essência era defender o que eles acreditavam serem as principais doutrinas da fé
protestante”10. Deu-se como desfecho a forte reafirmação da sã doutrina, ainda que o
perigo persistisse à espreita mesmo dentro do próprio arraial. A ortodoxia não estava
imune ao espírito da época (“zeitgeist”) racionalista. Eles resolveram se valer do que
pensavam ser uma “razão evangélica”. Até aqui já pudemos enxergar um problema
com a hermenêutica por eles aplicada. A razão de acordo com a sã ortodoxia é a razão
que raciocina após crer, depois da fé. Fides quaerens intellectum: a fé em busca do
entendimento, da compreensão. A fé provê onde e como exercitar a razão. Entretanto,
na assim chamada “razão evangélica” é a razão que decide como raciocinar e, então, a
fé providencia os “alojamentos” a partir de porções das Escrituras fora de contexto. A
visão tradicional nos diz que a razão opera somente após a fé ter construído o
fundamento para que aquela possa operar corretamente. A nova visão “evangélica”
nos diz que a razão fornece e provê os fundamentos ao passo que a fé providencia
somente os alojamentos. E é esse o motivo para termos biblicistas como Samuel
Stockell abandonando a doutrina da eterna geração do Filho, e seu raciocínio se dava
da seguinte maneira: as premissas derivadas das Escrituras são “O Filho, que é gerado,
é desde a eternidade”. “Por definição”, o Pai, que gerou, é temporalmente anterior ao
9
Peter Toon, The Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity, 1689-1765 (London, UK: The
Olive Tree, 1967), p. 147.
10
Ibid., p. 42.
Filho, que é gerado; portanto, conclui-se que a eterna geração do Filho deve ser
negada. Perceba que o raciocínio feito por Stockell utiliza verdades bíblicas como
meras premissas. Ao invés de antes compreender a estrutura de raciocínio por trás da
doutrina da eterna geração do Filho e somente então avaliá-la racionalmente, ele usa
uma forma de argumento racionalista com uma pitada de premissas bíblicas em seu
método de “razão evangélica”.

Esse tipo de racionalismo evangélico do séc. 18 culminou em dois erros maiores dentro
dos círculos não conformistas: o antinomianismo e o hipercalvinismo. O
antinomianismo é a negação do terceiro uso da Lei, tendo Tobias Crisp (1600-1642)
como principal proponente. Perceba que estamos falando de um “antinomianismo
doutrinal” aqui, uma vez que não há indícios de que tais homens, que propagavam
esses ensinamentos, careciam de alguma forma na conduta cristã. Crisp negou, como
forma de reação ao neonomianismo de Richard Baxter, que a lei de Deus cumpria
qualquer tipo de papel para o cristão. Conforme Toon escreveu:

A diferença fundamental e implícita entre as opiniões na controvérsia


antinomiana dizia respeito à natureza da lei de Deus. Dado que o propósito de
Crisp era enaltecer a Cristo e a livre graça, ele tinha pouco a dizer acerca da lei
moral. (...) ele acreditava que a justiça de Deus é afrontada quando o homem
transgride a Lei, embora nunca a tenha enxergado como sendo a declaração
explícita da expressão eterna de Sua justiça perfeita, retidão e integridade.

(...)

Ele cria que a lei desempenhava um serviço e propósito muito úteis


convencendo homens à necessidade de um Salvador; apesar disso, ele lha dava
pouca ou nenhuma utilidade à vida do cristão, visto defender que “a livre graça
é a professora das boas obras”11.

Como se pode ver, a posição de Crisp é diretamente oposta e reacionária à ideia


neonomianista baxteriana acerca de uma salvação que tem as obras em consideração
em algum sentido.

O calvinismo seguia os passos da controvérsia antinomiana bombardeando pesado o


hipercalvinismo. Primeiro, a doutrina da Justificação Eterna foi propagada por Isaac
Chauncy.12 Conforme o tempo e a eternidade começavam a embaraçar-se entre si, a
doutrina da Justificação Eterna na teologia hipercalvinista se mostrava caída. A obra de
Deus era, aos olhos racionalistas, vista como um retrato espelhado das obras
imanentes executadas pela Trindade e, por conseguinte, a justificação devia ser
eterna, se realmente eficaz aos crentes. As distinções entre o ser de Deus, os decretos
de Deus e as obras de Deus se embaraçam entre si nessa teoria racionalista da Eterna
Justificação. Tamanho obscurecimento se codifica e, em conclusão lógica, se
sistematiza no hipercalvinismo. Nos anos de 1706 e 1707, Joseph Hussy tomou esse
obscurecimento filosófico entre a Trindade Imanente e Ontológica para concluir

11
Ibid., p. 54.
12
Ibid., p. 61.
logicamente a negação da oferta do Evangelho.13 Tendo-se em vista que Deus concede
sua graça irresistível tão somente aos eleitos, tal graça irresistível (proveniente da
Trindade Econômica) é um reflexo de Seu chamado somente aos eleitos (Trindade
Imanente). Ofertar [o Evangelho] aos não eleitos (Trindade Econômica) não tem
qualquer tipo de reflexo com o decreto eterno de Deus (Trindade Imanente); portanto,
deve-se rejeitar tal tipo de oferta. Uma das vinte proposições formuladas por Hussey
diz que “Devemos pregar o Evangelho pois este é o método mais preciso de se exibir a
graça eficaz”. Ofertar a graça de Deus é roubar: e Deus disse: Não roubarás”14. De
Joseph Hussey a Lewis Wayman, de John Gill a John Brine, esta tendência racionalista
se segue continuamente ao negarem a oferta do Evangelho. Com isso, claro, não quero
dizer que Hussey, Gill entre outros negavam que o Evangelho devia ser pregado a
todos. Em vez disso, eles não negavam isso, mas negavam que o Evangelho devesse
ser oferecido a todos.

Desse modo, podemos entender que o racionalismo causou a criação de duas heresias
em meio aos supostos defensores da fé. Como reação ao neonomianismo e o
arminianismo, eles oscilaram entre seus respectivos opostos extremos, que eram os
erros do antinomianismo e do hipercalvinismo. A ascensão de heresias
frequentemente parte de boas intenções, como esses contra-ataques não
conformistas no séc. 18 bem nos mostram.

Os paralelos com Vincent Cheung neste início do séc. 21 não são difíceis de enxergar.
Cheung também raciocina de forma racionalista utilizando verdades bíblicas e
premissas a partir de versículos fora do contexto para assim introduzir silogismos a
priori construídos com métodos racionalistas. Os hipercalvinistas do séc. 18 anularam a
distinção entre a Trindade Imanente e a Econômica, fato que culminou na propagação
do hipercalvinismo. Da mesma forma, Cheung anula a diferença existente entre
causalidade primária e causalidade secundária, raciocínio que resulta em sua doutrina
monstruosa cujo ensino afirma ser Deus o autor do pecado. Os hipercalvinistas do séc.
18 estavam reagindo ao arminianismo e ao socianismo; de forma semelhante, Cheung
reage à moderação do calvinismo nessas visões neo-amiraldianas do calvinismo
(evangélico) pós-moderno. Os paralelos são surpreendentes. E assim como os
hipercalvinistas do séc. 18 estavam em erro, do mesmo modo Cheung também está.

13
Ibid., pp. 74-75.
14
Ibid., p. 81.
Conclusão: a Tentação de Partir aos Extremos
Em quarto lugar, os hipercalvinistas eram homens sinceros e de inteligência
mediana, mas também eram homens carentes de um espírito de profecia e de
discernimento. Eles desejavam ardentemente glorificar a Deus e, por engano,
acreditaram que Deus seria mais glorificado pela exaltação da livre graça nos
púlpitos e nas páginas dos livros do que pelo evangelismo e pela conversão de
homens, mulheres e crianças. Eles se tornaram tão obcecados pela defesa do
que consideravam ser a sã doutrina que o tom evangelístico das Escrituras,
essencialmente uma proposta de Deus a pecadores, foi emudecido. Essa falta
de interesse pelo evangelismo (e é praticamente impossível encontrar qualquer
referência feita ao ato de evangelizar em seus escritos) se deu, como pudemos
ver, por deduzirem que o ministro tem por dever pregar aos homens a partir da
vontade secreta do Senhor, a vontade de Seus decretos. Eles não percebiam as
influências funestas que tais doutrinas viriam a ter sobre aqueles que seguiram
seus passos.15

Como pudemos nos aperceber, reações internas do não conformismo ao


neonomianismo e ao arminianismo resultaram na ascensão do antinomianismo e do
hipercalvinismo, no início do séc. 18. Os pastores e teólogos não conformistas tinham
boas intenções, mas somente e tão somente boas intenções não são suficientes na
vida cristã. É triste vermos como os esforços de tais homens resultaram numa igreja de
clima árido; tamanha foi a sequidão que Deus veio a usar o arminiano evangélico John
Wesley na segunda metade do séc. 18 para puni-los pela falta de preocupação para
com o evangelismo, falta esta causada pela teologia defeituosa que formularam.
Igualmente, fico profundamente preocupado com as visões extremistas que emanam
da caneta online de Vincent Cheung; além do quê, preocupo-me também com a
devoção que seus seguidores têm por elas, beirando ao fanatismo a ponto de
abandonarem e negligenciarem a maioria dos outros teólogos e olharem somente para
Cheung.

Minhas perguntas a Cheung e a seus seguidores são, portanto, as seguintes: vocês


estão abertos à possibilidade de simplesmente estarem errados? Não os perturba o
fato de que ninguém mais em todos os outros vinte séculos de história da igreja
defendeu a posição por vocês defendida? Vocês conseguem enxergar que podem
simplesmente ter partido para outro extremo como reação aos erros das igrejas
americanas (e das influenciadas pela América) pós-modernas, assim como os não
conformistas no séc. 18 partiram para outro extremo dos erros daquela era?

Quando vocês leem autores com quem não concordam, vocês tentam lê-los a fim de
compreenderem de qual contexto eles vêm e de que ponto eles estão partindo em vez
de cortarem relações, isolarem-se com seus grupinhos e começarem a rotulá-los com
nomes e termos? Eu não sou um vantiliano, porém aprecio seus escritos, e continuo
apreciando-os mesmo quando discordo de algo que ele diz. Vocês podem dizer o
mesmo a respeito daqueles autores de que discordam? Vocês podem dizer que,

15
Ibid., p. 148.
efetivamente, fazem um esforço para compreenderem de que ponto eles estão
partindo? Vocês ao menos consideram as objeções que os autores ou as pessoas têm
feito, ao invés de atribuírem às palavras que eles usam o significado que vocês
quiserem e bem entendem, ou de ver, p. ex., qualquer crítica ao racionalismo como
um ataque à racionalidade propriamente dita?

Eu admiro o zelo de vocês [seguidores de Cheung], mas ele está mal orientado e é
usado de forma errada. A filosofia de vocês turvou seus pensamentos e raciocínio ao
invés de clarificá-los. Há um motivo para que a tradição (‘t’ minúsculo) exista; não é
para que dela sejamos prisioneiros, mas para que por ela sejamos guiados no caminho
correto quando fizermos especulações teológicas. O cristianismo não nasceu ontem; e
a verdadeira teologia não estava perdida em trevas até que o alvorecer de Cheung (ou
quem quer que se disponha a discorrer sobre os assuntos aqui abordados)
amanhecesse em nossas vidas e nos iluminasse. O mais correto não seria ser guiado
pela tradição cristã e reformada em vez de pensar que todos (cada um de vocês)
devem formular a teologia tudo de novo? Para apontar alguns casos que precederam
os dias de hoje, grande parte dos biblicistas se desviou da fé de alguma forma,
nalguma parte do caminho: dos Adventistas do Sétimo Dia às Testemunhas de Jeová;
podemos citar até mesmo Barton Stone e Alexander Campbell (fundadores do
Movimento Stone-Campbell). O biblicismo pode nos ter dado tudo, menos frutos
bíblicos: assim, por que vocês insistem em percorrer o mesmo caminho?

A tentação de partir a outro extremo está sempre presente, e ceder a esse caminho na
maioria das vezes demonstra consequências mortais. Pelo amor da alma de vocês
mesmos, por favor!, abandonem o cheunguianismo. Ser “lógico” (o que é diferente de
ser verdadeiramente bíblico <E> lógico) não vale o risco de pôr em perigo sua própria
salvação. Parem com esse orgulho, com essa autoconfiança, com essa autocerteza tão
típica de vocês e venham aprender da tradição reformada. Tudo bem, nem tudo na
tradição reformada estará correto, mas ao menos vocês estarão trilhando o caminho
certo.

Estejam advertidos de que, se persistirem nos erros de Cheung, vocês estarão


trilhando caminhos que levam à morte. Por amor de suas almas, acordem deste
torpor, levantem-se desta sonolência embriagante e abandonem esses caminhos de
morte. Não sejam enganados, não há vida nesse caminho e somente os tolos o trilham.

“Há um caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da
morte.” (Provérbios 14:12)

Fonte:
<http://www.angelfire.com/falcon/ddd_chc82/theology/CheungN18CHyperCal.pdf>

Tradução: Cesare Turazzi


Revisão final: Vitor Ávila e Cesare Turazzi
Publicado em Piedade Racional (www.piedaderacional.wordpress.com)

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