Você está na página 1de 20

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA AMBIENTAL - PROCAM

PROJETO DE PESQUISA

COMMUNITY LAND TRUSTS: UMA ESTRATÉGIA DE OCUPAÇÃO


FUNDIÁRIA MAIS SUSTENTÁVEL PARA A MACROMETRÓPOLE PAULISTA?

Candidata: Camila Jorge Haddad

Orientadora: Profa. Dra. Tatiana Gomes Rotondaro,


Faculdade de Administração e Economia, USP

São Paulo, 10 de outubro de 2018


SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................... 2
Problema de pesquisa ........................................................................................................ 4
Hipótese............................................................................................................................. 5
Objetivos ........................................................................................................................... 5
Justificativa ....................................................................................................................... 5
Revisão da literatura ........................................................................................................ 10
Metodologia .................................................................................................................... 16
Cronograma ..................................................................................................................... 16
Bibliografia ..................................................................................................................... 18

1
RESUMO


Nas cidades globais, e mais especificamente, na cidade de São Paulo, a apropriação do

espaço urbano pelo capital financeiro tem gerado enormes desafios no uso sustentável

da terra, tanto em termos de conservação ambiental, quanto de justiça social. Esse

trabalho tem por objetivo analisar os Community Land Trusts - CLTs como potencial

mecanismo de recuperação dos comuns urbanos, aliando as questões de acesso à

moradia e preservação ambiental no uso e ocupação do solo. Para tal será estudado o

modelo bem sucedido de Troy Gardens, nos Estados Unidos, e sua potencial

aplicabilidade em uma ocupação periurbana na Macrometrópole Paulista.

Palavras-chave: cidades sustentáveis; comuns urbanos; Community Land Trusts.

2
INTRODUÇÃO

Segundo dados da UN-HABITAT (2012), mais da metade da população mundial

vive em cidades. No Brasil, a população residente em ambientes urbanos já ultrapassa a

casa dos 80% (IBGE, 2010). A intensificação da urbanização traz muitos desafios,

especialmente nas megacidades, marcadas por grandes contradições. Por um lado o

adensamento traz vantagens ligadas à eficiência na produção econômica e na oferta de

serviços públicos, e também à diversidade responsável pelo surgimento de polos de

inovação artística e cultural. Por outro, a pressão pelo uso da terra traz consequências

como a impermeabilização do solo e as enchentes, a canalização e contaminação dos

rios, a má destinação do lixo, assim como o déficit habitacional e os desafios de

mobilidade. Em adição, no contexto neoliberal, as cidades são marcadas por profundas

desigualdades sociais e injustiça ambiental. Poucos aproveitam as oportunidades

oferecidas pela cidade e todos vivem as mazelas produzidas pelo estilo de vida urbano.

Dentro deste contexto, esta pesquisa pretende discutir os limites do atual projeto

de cidade, apontando as possibilidades que surgem a partir de uma nova visão: a da

cidade como comum. Ela parte de uma inquietação inicial: Como seria uma cidade feita

por e para seus habitantes, e com os recursos locais disponíveis? É possível pensarmos

em cidades que caminhem em uma direção mais comprometida com o meio ambiente

resolvendo simultaneamente a questão das desigualdade?

Com foco na Macrometrópole Paulista (MMP), vou olhar centralmente para o

problema fundiário e de ocupação da terra, que entendo como unidade fundamental de

expropriação do sistema capitalista mas também de oportunidade de reapropriação do

comum. Analisando os exemplos bem sucedidos de Community Land Trusts (CLTs),

um instrumento desenvolvido nos Estados Unidos a partir dos anos 1960 para resolver o

problema de oferta de moradia acessível, pretendo investigar sua efetividade também na

3
direção de criar uma cidade mais ambientalmente sustentável, distribuída e

colaborativa.

PROBLEMA DE PESQUISA

A partir da compreensão de que, para tornar as cidades mais sustentáveis é

necessário resistir aos processos de privatização dos espaços públicos e especulação

imobiliária – que cria uma pressão sobre qualquer tentativa de uso do solo que gere uma

taxa de retorno financeiro baixa ou negativa – e, por consequência, retomar o espaço

urbano como um comum, faz-se necessário investigar ferramentas que permitam essa

“reapropriação” pela sociedade civil.

Os Community Land Trusts (CLTs) são um mecanismo criado por Robert Swan

e Slater King no contexto da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos com o objetivo

de possibilitar o acesso à propriedade de terra pela população negra do sul. Os Trusts

são estruturas que permitem separar o direito legal de propriedade do direito de usufruto

de suas benfeitorias e rendimentos (SOTTO, 2016). Nesse sentido é possível desacoplar

a terra das flutuações de preço do mercado e não só desonerar o acesso a ela por uma

comunidade de interesse como também criar mecanismos mais horizontais de

governança e gestão.

Embora normalmente usados para assegurar que determinada região mantenha

um estoque de moradias economicamente acessíveis para as populações de renda mais

baixa, os CLTs variam em escopo e podem ser usados para fins de conservação,

fomento da agricultura urbana e periurbana, e até proteção de comércios locais (YUEN,

2014).

No contexto desse projeto, os CLTs urbanos serão estudados de forma a

responder à seguinte pergunta: no caso da Macrometrópole Paulistana, os CLTs podem,

4
para além de prover moradias economicamente acessíveis, incorporar a questão de

preservação e uso sustentável do solo e, portanto, ser uma ferramenta em direção a uma

ocupação urbana mais justa e sustentável?

HIPÓTESE

Apesar de o Brasil não possuir a figura jurídica dos trusts, nem haver projetos já

constituídos similares aos CLTs, a hipótese apresentada é de que é possível sim

construir proxys de sua estrutura de governança para, além da questão da moradia,

incorporar também as questões ambientais que, inclusive, afetam prioritariamente as

populações mais vulneráveis da Macrometrópole Paulista.

OBJETIVOS

Esse trabalho tem por objetivo geral analisar a importância do debate teórico

sobre os comuns na criação de novas possibilidades de ação da sociedade civil na busca

por cidades mais justas e sustentáveis.

Para tanto os CLTs serão estudados como um potencial modelo de governança e

gestão dos comuns no processo de ocupação urbana. Assim, tem-se os seguintes

objetivos específicos:

• Analisar o atual momento da reprodução do espaço urbano na Macrometrópole,

seus desafios e especificidades.

• Investigar na literatura os casos bem sucedidos de CLTs em outros contextos

urbanos de forma a compreender o que poderia ser adaptado para a MMP.

• Efetuar um estudo de campo em uma ocupação urbana ou periurbana, de forma

a compreender as redes de relações e o modelo de governança e gestão adotados

para realizar um paralelo com os CLTs e avaliar a sua aplicabilidade nesse caso

5
específico.

JUSTIFICATIVA

“A Cidade sustentável só o poderá ser pela força da ruptura
com um paradigma de sociedade que confunde desenvolvimento
com crescimento.” (LUCIANO in: SALAT et al, 2017: s/p) 1

As megacidades são expressões concretas da perversidade do modelo econômico

neoliberal, visível tanto em termos sociais quanto ambientais. Segundo o relatório State

of the World’s Cities (UN-HABITAT, 2012) a urbanização pode, se presentes

determinadas condições institucionais, sociais e políticas, representar uma oportunidade

real de desenvolvimento econômico, político e social para todos os países. Mas o

mesmo relatório alerta para as tendências de “cercamento” dos bens públicos e comuns

ou restrição de seu acesso em enclaves de prosperidade, e de depleção desses bens a

partir de seu uso insustentável.

O estudo em referência, lido em conjunto com o “Por uma estratégia de cidade

sustentável” (SALAT et al., 2017), aponta para uma necessidade de se expandir o

domínio do público – em oposição aos movimentos de privatização - e de se consolidar

o direito aos “comuns” para todos como forma de alcançar a prosperidade. Manter o

caminho atualmente em curso seria seguir construindo cidades

“que mais não são do que somas prováveis de guetos sociais,


culturais e econômicos que substituem a vivência plena da
cidade pela construção de muralhas invisíveis que garantem o
eterno conforto de uns e o eterno desconforto de outros, ou, de
forma ainda mais evidente, garantem que a cidade seja vivida a
uma escala de tal forma atomizada, que cada um tenha a sua
pequena cidade para viver.” (SALAT et al., 2017:9).

No pensamento de Sassen (2016), mais do que a construção de muralhas, o

capitalismo contemporâneo realiza, de forma predatória, uma efetiva “expulsão” das


1
Discurso de Eduardo Luciano, prefeito de Évora, que abre a publicação Por uma estratégia de cidade
sustentável: expansão urbana planeada, encomendada pela UN-HABITAT.

6
pessoas, não só do espaço, mas “de projetos de vida e de meios de sobrevivência, de um

pertencimento à sociedade, e do contrato social que está no centro da democracia

liberal” (SASSEN, 2016:39).

De forma a ilustrar essas expulsões, inclusive analisando as cidades globais da

América Latina, Sassen (2016) enquadra os problemas urbanos no contexto do capital

financeiro global e destaca a mercantilização da terra, e sua consequente

financeirização, como um de seus principais causadores. De forma simplificada,

podemos pensar que quando a terra se transforma em um ativo financeiro seu uso será

definido não mais no contexto das decisões políticas e de planejamento urbano locais,

mas no contexto do retorno econômico gerado para seus investidores em diversas partes

do mundo.

Contudo, é como forma de resistência a esses processos que é possível apontar

um “retorno dos comuns”. Para Coriat (2015) esse é um processo que começa a partir

da crise de 2008 com o enfraquecimento da ideia de que os mercados são capazes de

garantir as melhores alocações de recursos na economia. A partir disso

“a tese subjacente – que é a sua condição e o seu fundamento –


de que a propriedade privada, e exclusivamente ela, é a única
forma capaz de assegurar o bom funcionamento da sociedade,
passou a ser também veementemente negada, inclusive pelos
próprios fatos.” 2 (CORIAT, 2017:s/p)

Contudo, a grande novidade desse movimento é a de que a rejeição aos

mercados não se converte automaticamente em uma defesa do Estado. Há, pelo

contrário, um entendimento de que Estado e mercado estão cada vez mais

indissociáveis. Olhando para a história do surgimento dos Estados-nação, Hardt e Negri

(2016), afirmam que a res pública nasceu com a finalidade de garantir o direito à

propriedade privada. Para eles, o socialismo de Estado, de um lado, e o republicanismo

liberal, de outro, são dois meios para um mesmo fim: a reprodução do capital.

2
Benjamin Coriat em entrevista à revista Contretemps em 15 de Janeiro de 2017.

7
Especificamente no caso da crise política brasileira, a parceria entre agentes públicos e

privados não na sustentação do comum, mas na apropriação de riqueza para um grupo

muito restrito de pessoas, é cada vez mais clara para os cidadãos.

Nesse contexto, o retorno dos comuns é a retomada de um pensamento que

procura novas formas institucionais, para além da dicotomia Estado-mercado e seus

respectivos espelhos público-privado. Como exemplo podemos citar os modelos de

política insurgente dos movimentos contrários à globalização que cresceram nos anos

90, ou de democracia autônoma praticada por grupos como os zapatistas mexicanos

(HARDT & NEGRI, 2016).

Trata-se da ação de uma multidão diversa – diferente das massas modernas

homogêneas ou de um "público" dito universal – que produz bens, conhecimento e

serviços comuns e compartilhados. Uma multidão que se reapropria daquilo que lhe foi

retirado: dos vínculos sociais e meios de comunicação, ao acesso à terra e conexão com

a natureza.

Esse novo olhar, centrado nos comuns e no ato de “comunar”, pode ser

encontrado em diversos movimentos que surgiram na MMP nos últimos anos. Sem a

pretensão de ser nada próximo a uma lista exaustiva é possível citar:

i) A Batata precisa de você3: movimento formado por moradores e

frequentadores do Largo da Batata com o objetivo de “transformar a

Batata em um espaço de estar e não apenas de passagem”.

ii) Movimento Parque Augusta4: movimento de luta pela preservação de

uma área de mata nativa no centro de São Paulo, tentando

transformá-la em parque para evitar a construção de um

empreendimento imobiliário.


3
Ver mais em: http://largodabatata.com.br/a-batata-precisa-de-voce/
4
Ver mais em: https://www.facebook.com/parqueaugustaja/

8
iii) Cidades comestíveis5: uma rede colaborativa de compartilhamento de

recursos, conhecimentos e trabalho entre pessoas interessadas em

cultivar hortas comunitárias e caseiras.

iv) LABxS (LAB Santista): uma rede colaborativa de pessoas, iniciativas

e infraestruturas que se articulam para produzir soluções inovadoras

para a região da Baixada Santista.

São nesses exemplos que reside a potência na criação de novos arranjos para

uma cidade mais justa e ambientalmente equilibrada.

No entanto, não há como falar de uma ocupação urbana sustentável sem abordar

a questão da moradia. Primeiramente, porque a habitação é uma das principais formas

de uso do solo urbano. Ademais, porque a busca por moradia foi a força motriz de

expansão da metrópole a partir dos processos de valorização urbana que expulsaram a

população de baixa renda para as áreas cada vez mais distantes do centro, o que, muitas

vezes, acaba resultando em devastação ambiental de áreas periurbanas (ROLNIK,

2001). Por fim, porque o acesso à terra e à moradia é um dos principais elementos que

impulsionam a saída da linha de pobreza e, portanto, um potencial redutor de

desigualdades.

Tendo em vista a relevância de tal questão, este trabalho pretende investigar os

CLTs como um modelo de governança comunitária e colaborativa para o uso da terra,

especialmente para fins de moradia. Os CLTs nasceram nos Estados Unidos na década

de 80, mas se espalharam rapidamente pelo Canadá e Reino Unido – como alternativa

aos empreendimentos públicos conhecidos como council housing – chegando até países

em desenvolvimento como Uruguai, Bolívia e Quênia6.


5
Ver mais em: http://www.cidadescomestiveis.org/
6
Países com casos de CLT disponíveis no banco de dados da revista Resilience.org. Disponível em:
https://www.resilience.org.

9
Apesar de haver CLTs para fins de conservação e agricultura, há poucas

experiências urbanas documentadas que incorporam a questão da sustentabilidade

ambiental, especialmente de forma combinada com a moradia. Uma das exceções é o

caso Troy Gardens, na cidade de Madison, nos Estados Unidos, onde uma área urbana

de 12 hectares foi preservada a partir de uma ocupação que combina áreas verdes e

moradia popular (CAMPBELL et al., 2003). Dessa forma, pretende-se estudar a

literatura disponível sobre o caso para mapear os princípios, práticas e relações

desenvolvidas pela comunidade, os atores que cooperaram para sua existência, bem

como o possível corpo de leis e normas locais e regionais, e a pressão do mercado

imobiliário no contexto de Madison. A partir disso, será possível compreender o que

pode ou não ser aplicado na realidade brasileira e, mais especificamente, no caso da

Macrometrópole Paulista.

Apesar de MMP não ter projetos de moradia que usem exatamente o modelo dos

CLTs, é possível estudar ocupações e movimentos de moradia que tenham como seu

centro a prática do comum, de forma a compreender se e como os CLTs poderiam

contribuir não só para a manutenção das moradias mas também para promoção de usos

mais sustentáveis do espaço em questão.

Assim, esse trabalho pretende construir um primeiro apanhado de potenciais

práticas de governança que possam ser usadas pelos movimentos de moradia, bem como

outras organizações da sociedade civil paulista, na busca por incorporar a dimensão da

sustentabilidade ambiental em suas ações e projetos.

REVISÃO DA LITERATURA

A fim de fundamentar teoricamente esse projeto de pesquisa pretendo responder

as seguintes questões: como o capitalismo se apropria do espaço urbano e configura

10
cidades cada vez mais insustentáveis? A ascensão dos comuns oferece uma possível

resistência a esse processo?

• A apropriação das cidades pelo capital e a busca pela sustentabilidade urbana

No contexto desse projeto vamos adotar a acepção de espaço não a partir de sua

condição material, mas como uma produção social. Trata-se do entendimento de que, ao

produzir a vida, os homens produzem o espaço, ou seja, a produção da vida – e das

condições materiais da história humana – só consegue se realizar através do

uso/apropriação espacial (CARLOS, 2011).

Assim, a cidade deixa de ser enxergada enquanto infraestrutura física ou

somatória do ambiente natural e o ambiente construído, e passa a ser entendida como a

rede de relações que nela se dão. Dessa forma, para melhor compreender o processo de

ocupação do espaço urbano devemos considerá-lo uma construção social determinada

historicamente (HARVEY, 2015).

No contexto brasileiro é importante, portanto, compreender os impactos da

sociedade escravocrata na formação das cidades. Como coloca Maricato (2014) em

entrevista concedida para o coletivo Nós Mulheres da Periferia:

“quando os escravos foram libertados, a abolição não se deu


com distribuição de terra e acesso a determinados direitos,
como aconteceu nos Estados Unidos. Parte da população
libertada estava velha, não se integrou como força de trabalho e
foi morar em áreas invadidas. Esse tipo de ocupação (...) gerou
o que é a periferia atual, o que são as favelas. Há uma parte da
população brasileira que não tem acesso à cidade”.
(MARICATO, 2014: s/p)

Nesta mesma entrevista, Maricato expõe que, com o início da industrialização,

na primeira metade do século XX, os operários que migravam para as cidades, sem

melhores oportunidades, acabaram por se instalar também nas periferias, produzindo

11
suas moradias a partir da autoconstrução. Como o avanço dos salários nunca alcança a

valorização das terras e, portanto, não acompanha o crescimento dos aluguéis, a

moradia nas grandes cidades é, em grande parte, resultado de parcelamentos de terra

ocupados ilegalmente ou de lotes clandestinos.

Esse processo, ainda em curso, está intrinsecamente ligado à lógica neoliberal e

à incorporação dos espaços urbanos no processo de acumulação capitalista. No contexto

de São Paulo, podemos entender que é a partir da busca insaciável do capital pela sua

valorização que as fronteiras da mancha urbana se expandem, pois o processo de

valorização-desvalorização do espaço urbano expulsa constantemente as populações de

baixa renda criando periferias marcadas pela vulnerabilidade socioambiental.

(ROLNIK, 2001) Decorrendo disto, a dimensão metropolitana emana, muito mais

enquanto uma configuração espacial da reprodução do valor do que como região

administrativa.

Para esclarecer a dinâmica do capitalismo contemporâneo, Sassen (2016)

articula duas questões centrais para essa pesquisa: a hegemonia das finanças na

economia, que acabou por criar um mercado global de terras, e o impacto desse

processo no meio ambiente ou, como ela descreve, na formação de “terra morta e água

morta”.

Levantamentos como os da plataforma Land Matrix (2016) demonstram que,

entre 2000 e 2015, 26,7 milhões de hectares de terras ao redor do globo foram

adquiridos por empresas estrangeiras. Esse processo foi nomeado de land grabbing, ou

apropriação de terras. Ainda segundo os dados do plataforma, o Brasil é um dos cinco

países que mais transacionaram terras, o que provocou aumento dos preços em até

270%. Apesar de Sassen usar esses dados para analisar o impacto do mercado global de

terras principalmente no contexto rural e da especulação sobre o preço dos alimentos e

12
outras commodities “ambientais”, ele também pode ser visto na cidade, a partir da

especulação atrelada aos empreendimentos imobiliários.

Esse movimento de apropriação da cidade, no entanto, não se efetua sem

conflitos e contradições, aspectos que fazem das cidades “campo de batalha” entre os

interesses públicos e privados. O filósofo francês Henri Lefebvre (2008) já havia

sinalizado isso ao reconhecer no processo de industrialização o início da subordinação

do valor de uso (subjetividade, desejos, sonhos, festas etc.) à generalização do valor de

troca. Porém, ele mesmo insiste em afirmar que “a cidade e a realidade urbana

dependem do valor de uso” (LEFEBVRE, 2008 : 14). O resultado disso são as

contradições próprias da urbanização, e é nelas que reside a potência das ações de

resistência e reapropriação.

• A cidade como bem comum

Um outro conceito de Sassen se faz interessante ao olharmos para as metrópoles

como espaço de contradições: a rua global. Para ela, além dos usos ritualizados e

previsíveis (transporte para o trabalho, encontros, passeio no parque, etc) o espaço

público pode se tornar um espaço do fazer social e político. Esse espaço é a rua global,

que Sassen ilustra a partir dos protestos da primavera árabe, dos movimentos Occupy

nos Estados Unidos, do 15-M na Espanha e das jornadas de junho de 2013 no Brasil.

O que todos esses movimentos tem em comum é que se distinguiram de

protestos articulados por organizações políticas estruturadas (partidos, sindicatos, etc.),

com pautas e ações definidas a priori. Isso é razoavelmente consensual nas análises de

junho de 2013: um conjunto múltiplo e diverso de pessoas em torno de uma causa

13
comum – apesar de haver outras levantadas ao longo dos protestos – que era o preço das

passagens de transporte público.

Esse conjunto múltiplo e diverso que caracteriza a multidão descrita por Hardt e

Negri. Eles propõe uma filosofia política que substitui as categorias antigas de “povo” e

“público” para “multidão” e “comum”. Enquanto o povo é uma massa homogênea, a

multidão é um conjunto de corpos singulares. Para eles, para enfrentar o domínio do

capital e a “república da propriedade” o ponto de vista dos corpos é central pois, “estar

no interior da realidade concreta dos corpos implica uma relação fundamental com a

alteridade, estar entre os outros (...) E a experiência da alteridade é sempre

atravessada por um projeto de construção do comum.” (HARDT & NEGRI, 2016:46).

Nesse sentido, eles se referem à metrópole como o “corpo inorgânico da

multidão” por três motivos: primeiro, porque a cidade contemporânea é um local

privilegiado onde o “comum artificial” de linguagens, imagens, conhecimentos, afetos,

códigos, hábitos e práticas é produzido. Segundo, porque a cidade é um local de

encontros aleatórios – a “Festa” caracterizada por Lefebvre – e também de organização

política insurgente – tal como a rua global de Sassen. E, finalmente, a cidade

contemporânea é um local de exploração, antagonismo, conflito e, portanto, de

potencial rebelião.

É na metrópole que a resistência e a luta dos corpos da multidão produz a

subjetividade necessária “não só para a subversão das formas existentes de poder mas

também para constituição de instituições alternativas de libertação.” (HARDT &

NEGRI, 2016:47). Essas instituições são construídas a partir de um fazer do comum que

se situa fora das relações de propriedade. Portanto, sua governança só pode acontecer

através de redes horizontais de decisão democrática realizadas por um coletivo de

singularidades auto-organizado e autônomo.

14
Nesse mesmo sentido, os teóricos Dardot e Laval (2017) apresentam o comum

no espectro da luta contra o neoliberalismo, mas não tanto como uma categoria

conceitual e sim como estratégia de enfrentamento à “apropriação privada de todas as

esferas da sociedade, da cultura e da vida”.

Assim, tanto para Dardot e Laval, como para Hardt e Negri, a “estratégia” do

comum está centrada não nos recursos acessados por um determinado grupo, passíveis

desse ou daquele regime de propriedade, mas em uma ação de “comunar” ou agir como

um “commoner”. É um modo de ser e viver autodirigido e profundamente democrático

(AMADEU & SAVAZONI, 2018).

Como, então, o “fazer comum” na cidade pode contribuir para uma ocupação

urbana mais justa e sustentável? A primeira parte dessa resposta reside em um olhar

mais amplo para a questão dos assentamentos humanos. Reapropriar-se da cidade,

significa também, entender que os bens ambientais que a compõe são compartilhados.

Mais ainda, significa entender que não há diferença entre ambiente construído e natural,

homem e natureza.

“Esse conceito do comum não coloca a humanidade separada


da natureza, seja como sua exploradora ou sua guardiã; centra-
se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num
mundo comum, promovendo as formas benéficas do comum e
limitando as prejudiciais.” (HARDT; NEGRI, 2016:8).
A segunda contribuição do comum é a pluralidade de modelos de governança e

organização possíveis a partir de sua matriz conceitual. Analisando os mais diversos

casos de retomada dos comuns é possível desvendar as relações, comportamentos,

normas e instituições que permitiram uma ação coletiva bem sucedida.

Entendido como um modelo possível de gestão coletiva do comum, os CLTs, ao

mesmo tempo que trazem “receitas” de organização relacionadas à posse e usufruto da

terra, podem, simultaneamente, responder à realidade local incluindo os valores e

critérios definidos pela comunidade envolvida em sua manutenção, desde os residentes

15
e moradores do entorno, até, eventualmente, agricultores urbanos, ativistas ambientais e

outros interessados em construir um uso regenerador do terra urbana.

METODOLOGIA


Para realização deste trabalho, a investigação será realizada nas seguintes etapas:

1a etapa: Mapeamento de Community Land Trusts ou estruturas similares em

ambientes urbanos para fins de moradia, de preferência no Brasil e na América Latina.

Neste levantamento um dos objetivos é entender se e como essas iniciativas incorporam

critérios de sustentabilidade urbana;

2a etapa: Pesquisa de informações secundárias disponíveis sobre o caso de Troy

Gardens, nos Estados Unidos e, posteriormente, coleta adicional através de contato

direto com membros do trust de forma a entender seu histórico, sua configuração atual,

as ações e processos de gestão do espaço, bem como as estruturas de governança e

prestação de contas.

3a etapa: Pesquisa através de entrevistas abertas e semiestruturadas com

moradores de uma ocupação, provavelmente a Comuna da Terra Irmã Alberta, que fica

em uma área periurbana na zona norte de São Paulo. No trabalho de campo pretende-se

compreender as dinâmicas de relação, práticas, acordos e normas que regem esta

comunidade.

4ª Etapa: Realização de uma análise dos dados levantados no campo de forma a


comprovar ou não a aplicabilidade de ferramentas usadas em Troy Gardens no caso da
ocupação estudada.

CRONOGRAMA

Considerando as etapas detalhadas na Metodologia, o cronograma da pesquisa se
dará conforme a tabela que segue:

16
2019.1 2019.2 2020.1 2020.2 2021.1
Realização das
disciplinas da pós- X X
graduação
Revisão bibliográfica X X
1ª Etapa: Mapeamento
X
de iniciativas de CLT.
2ª Etapa:
Levantamento sobre o X
caso de Troy Gardens.
3ª Etapa: Elaboração e
realização do trabalho X
de campo
4ª Etapa: Análise do
X
trabalho de campo
Desenvolvimento da
X X X
dissertação
Preparação e exame
X
de qualificação
Depósito e defesa X

17
BIBLIOGRAFIA

AMADEU, Sergio; SAVAZONI, Rodrigo. O conceito do comum: apontamentos


introdutórios. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.14, n.1, pp. 5-18, maio 2018.

BUNCE, S. Pursuing urban commons: politics and alliances in Community Land Trust
activism in east London. Antipode. v. 48, n.1, pp. 134-150, junho 2015.

CAMPBELL, Marcia Caton; SALUS, Danielle A. Community and conservation land


trusts as unlikely partners? The case of Troy Gardens, Madison, Wisconsin. Land Use
Policy, v. 20, n. 2, pp. 169-180, 2003.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011.

CORIAT, Benjamin (org.). Le Retour des comuns: la crise de l’idéologie


propriétaire. Paris: Les Liens qui Libèrent, 2015.

______. Ne lisons pas les communs avec les clés du passé. Contretemps:
15/01/2017. Entrevista concedida à Cédric Durand. Disponível em:
<https://www.contretemps.eu/ne-lisons-pas-les-communs-avec-les-cles-du-passe-
entretien-avec-benjamin-coriat/>. Acesso em 09/10/18.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século


XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Bem-estar comum. São Paulo: Record, 2016.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São


Paulo: Martins Fontes, 2014.

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Atlas nacional do Brasil Milton


Santos. Rio de Janeiro, 2010.

LAND MATRIX. Global observatory on land deals. Base de dados online.


Disponível em: <https://landmatrix.org/en/>. Acesso em 28/09/18.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5ª Edição. São Paulo: Centauro, 2008.

MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular,
2015.

______. Uma parte da população brasileira não tem acesso à cidade. Nós Mulheres da
Periferia: 28/05/2014. Entrevista concedida a Mayara Penina. Disponível em:

18
<http://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/erminia-maricato/>. Acesso em
06/10/18.

MARTIN, Reinhold. Public and Common(s): exploring the philosophical


understandings of the terms, from Arendt and Habermas to Hardt and Negri. Places
Journal, Janeiro 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.22269/130124>. Acesso em
09/09/2018.

ROLNIK, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha, 2001.

SALAT, Serge; BOURDIC, Loeiz e KAMIYA, Marco. Por uma


estratégia de cidade sustentável: expansão urbana planeada, quadro
legal e financiamento autárquico. S/l: Edições Afrontamento, 2017.
Publicação em formato pdf. Disponível em:
<https://www.nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/11/cidade-
sustentavel.pdf>. Acesso em 05/10/2018.

SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. São


Paulo: Paz & Terra, 2016.

SOTTO, Debora. Redescobrindo o direito de superfície através dos Community Land


Trusts: alternativas para a realização do direito a moradia adequada no Brasil. In:
Vieira, Bruno Soeiro. (Org.). Instrumentos Urbanísticos e sua (in)efetividade. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2017, v. 1, pp. 157-174.

SWAN, Robert; GOTTSCHALK, Shimon; HANSCH, Erick e WEBSTER, Edward.


The Community Land Trust: A guide for a new model of land tenure in America.
Cambridge: Center for Community Economic Development, 1972.

UN-HABITAT. State of the world's cities 2010/2011: Bridging the urban divide.
Londres: Earthscan, 2008.

YUEN, Jeffrey. City Farms on CLTs: How Community Land Trusts are supporting
urban agriculture. Lincoln Institute of Land Policy, 2014. Disponível em:
<https://www.lincolninst.edu/publications/articles/city-farms-clts>. Acesso em
09/09/2018.

19

Você também pode gostar