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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Lisa Bortolloti

TRADUÇÃO
JORGE BELEZA

REVISÃO CIENTÍFICA
AIRES ALMEIDA

Gradiva
Título original An Introduction to the Philosophy of Science © Lisa Bortolloti, 2008 Esta edição é publicada por acordo com
Polity Press Ltd., Cambridge

Tradução Jorge Beleza


Revisão científica Aires Almeida
Revisão de texto Maria de Fátima Carmo

Capa Armando Lopes (arranjo gráfico)/©Michael Stones (ilustração)


Fotocomposição Gradiva
Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.da

Reservados os direitos para a língua portuguesa por


Gradiva Publicações, S. A.
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www.gradiva.pt

l.a edição Novembro de 2013

Depósito legal 366 955/2013

ISBN 978-989-616-557-4

Colecção coordenada por AIRES ALMEIDA

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Gradiva

EDITOR GUILHERME VALENTE


À Rita, que sempre me ajudou
Índice

Agradecimentos

Introdução: O que é a ciência?

1. Demarcação
1.1 Ciência e não-ciência
1.2 Ciência e pseudociência
1.3 Ciências naturais e sociais
1.4 O que é a investigação científica?
1.5 Boa e má ciência

2. Raciocínio
2.1 Maneiras de raciocinar
2.2 O método científico: a indução
2.3 O problema da indução

3. Conhecimento
3.1 O que é uma teoria?
3.2 Confirmação de teorias
3.3 Modelos de explicação

4. Linguagem e realidade
4.1 Significado, referência e categorias naturais.
4.2 Implicações do descritivismo
4.3 Realismo
4.4 O debate sobre o realismo

5. Racionalidade
5.1 Revoluções
5.2 Mudanças de paradigma
5.3 Além das revoluções

6. Ética
6.1 Instrumentalização
6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação
6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação
6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica

Conclusão: A ciência como actividade

Glossário
Bibliografia temática
Indice de figuras
Indice de quadros
Agradecimentos

Escrever este livro foi uma tarefa que contou com mais colaboração do que pode parecer à primeira vista. Ao longo dos
capítulos que se seguem, passo em revista os debates clássicos em filosofia da ciência, mas também me debruço sobre
argumentos específicos que desenvolvi com outros filósofos, em particular Matteo Mameli (sobre a ilusão metodológica na
investigação em psicologia), Bert Heinrichs (sobre a delimitação do conceito de investigação) e John Harris (sobre a ética
dos aperfeiçoamentos).
Também estou em dívida para com Ángel Fernandez, Asja Portsch, Francis Longworth, Maggie Curnutte e Nigel Leary pelas
suas muitas sugestões úteis. O Nigel foi uma ajuda absolutamente fantástica em várias fases do projecto, sendo inteiramente
responsável pelo enriquecimento da bibliografia sobre os termos para categorias naturais, em especial sobre «jade». Fico
muito grata pela sua competência, valorosa assistência e entusiasmo.
Nunca teria escrito este livro sem o encorajamento de Keith Maslin (Esther College), Emma Hutchinson (Polity Press) e da
maravilhosa directora do meu departamento, Helen Beebee. Escrever este livro teria sido muito mais difícil sem o constante
apoio dos meus tão compreensivos pais e amigos. Agradeço a Yujin Nagasawa, Matteo Mameli, Matthew Broome, Dan López
de Sa, Jordi Fernández, Edoardo Zamuner e Esa Díaz-León por terem estado sempre lá e por me terem ajudado amavelmente a
atingir a meta.
Também estou grata a todas as pessoas que me ensinaram a amar a filosofia em geral e a filosofia da ciência em particular:
Maurizio Pancaldi, Eva Picardi, Maurizio Ferriani, Geoffrey Cantor, Donald Gillies, David Papineau, Bill Newton-Smith,
Martin Davies, Kim Sterelny e John Harris (pela ordem em que tive o prazer de os conhecer).
Tive a sorte de fazer parte de um ambiente de investigação muito estimulante quando trabalhei no Projecto EURECA (sobre a
Delimitação do Conceito de Investigação e das Actividades de Investigação) no Centre for Social Ethics and Policy em
Manchester, de 2004 a 2005. Desde que passei a fazer parte do Departamento de Filosofia da Universidade de Birmingham,
pude usufruir de um apoio fantástico de todos, e testei versões prévias de capítulos deste livro em estudantes de licenciatura
muito pacientes. Recentemente, tive também a oportunidade de visitar a Escola Europeia de Medicina Molecular (SEMM), na
Fundação do Instituto de Oncologia Molecular em Milão, onde testemunhei os frutos inspiradores do casamento feliz entre a
ciência e a filosofia.
Muito antes de ter descoberto a filosofia, prometi que dedicaria o meu primeiro livro à minha irmã. Nem a Rita nem eu
imaginávamos então que o livro seria uma introdução à filosofia da ciência, mas ei-lo. Espero que ela não fique muito
desapontada.
Introdução: O que é a ciência?

Este livro é um guia para as questões filosóficas centrais levantadas pela prática da ciência. Não se destina apenas ao filósofo
curioso pela ciência, mas também ao cientista que quer saber mais sobre filosofia. E também a todo aquele que se interessa
pelo que confere à ciência um estatuto especial, pese embora a continuidade entre a investigação científica e as outras
actividades humanas.
Cada capítulo centra-se num conjunto de problemas e pretende dotar o leitor de ferramentas básicas para a apreciação dos
debates clássicos numa área tradicional de exploração filosófica. No capítulo 1, sobre a demarcação, são revistas e avaliadas
algumas das tentativas de resposta filosófica à questão do que torna a ciência algo de especial. No capítulo 2, sobre o
raciocínio, são identificadas e comparadas algumas estratégias de aquisição e derivação do conhecimento científico. No
capítulo 3, sobre o conhecimento, procede-se ao exame da estrutura das teorias científicas, da sua formação e confirmação,
bem como da natureza da explicação. No capítulo 4, sobre a linguagem e a realidade, é analisada a linguagem usada nas
teorias científicas, em especial a distinção entre termos observacionais e teóricos, e as potenciais barreiras linguísticas e
conceptuais à compreensão científica. Também é tratada a questão da finalidade da ciência: ela visa descrever como as coisas
realmente são, ou apenas dotar-nos dos meios para prevermos os fenómenos por que nos interessamos? No capítulo 5, sobre a
racionalidade, é investigada a natureza da mudança de teorias e do progresso científico. No capítulo 6, sobre a ética, são
discutidos alguns exemplos da relação complexa entre a ciência e a sociedade, e são colocadas questões sobre os
constrangimentos éticos que devem ser impostos à investigação científica. A capacidade que a ciência tem de proporcionar
benefícios moralmente relevantes aos indivíduos e às sociedades é também aflorada.
O livro dá ênfase a duas áreas: (1) a aquisição, sistematização e revisão de conhecimento em ciência; (2) a complexidade da
relação entre a ciência e o resto da sociedade. Irá ler sobre os debates clássicos e actuais acerca do raciocínio científico e a
racionalidade na ciência, e será a todo o momento convidado a reflectir sobre a autoridade e as responsabilidades daqueles
que promovem a ciência e abraçam a investigação científica na nossa sociedade.
Poderá estar ainda a pensar: «Qual a vantagem de ler uma introdução à filosofia da ciência?» Embora sejamos bombardeados
com informação sobre o que os cientistas fazem e como a ciência afecta todos os aspectos das nossas vidas, raramente
paramos para reflectir sobre o peso da investigação científica, sobre o seu estatuto e sobre como difere das outras actividades
humanas. Ao longo da nossa formação e na vida de todos os dias, ficamos apenas com uma vaga ideia do que é a ciência.
Quando vemos um documentário sobre os fósseis nas Ilhas Galápagos, quando ouvimos a notícia de um surto recente de gripe
das aves ou quando lemos sobre os buracos negros em livros de divulgação científica, ficamos a par dos esforços e dos
resultados da investigação científica, aumentando o nosso conhecimento sobre a natureza. Mas quando somos confrontados
com a variedade de métodos e objectivos da investigação científica, com os seus êxitos e os seus fracassos, é-nos
extremamente difícil perceber o que torna a prática científica única.
Em termos corriqueiros, se ninguém se tivesse dedicado de uma maneira sistemática à investigação empírica da natureza, hoje
não beneficiaríamos dos muitos avanços tecnológicos que caracterizam os nossos estilos de vida, como a vacinação, as
medidas preventivas para os terramotos, e os telemóveis. Quase tudo o que nos rodeia — o vestuário, os alimentos, os
edifícios — não estaria aqui (pelo menos na sua forma actual) se não tivesse havido pessoas a investir o seu precioso tempo e
os seus poucos recursos a fazer ciência. E, no entanto, a investigação científica não tem afectado apenas o estilo de vida de
muitos seres humanos. Os seus resultados também moldaram as nossas crenças sobre o mundo, ao alterarem o que pensamos
sobre nós próprios e sobre as diferenças entre os seres humanos e outros seres vivos na Terra. Influenciando os nossos
sistemas de crenças, elementos importantes do chamado método científico alimentaram o estilo e a forma da nossa maneira
quotidiana de pensar. Acreditamos que a racionalidade exige que prevejamos acontecimentos futuros com base nos
conhecimentos actuais. Valorizamos explicações para os acontecimentos que observamos se estas forem abrangentes e
consistentes com os indícios disponíveis. Quando nos deparamos com problemas, encontramos soluções que se baseiam na
nossa experiência passada e, com o tempo, vamo-nos tornando melhores a resolvê-los. Até mudamos de ideias quando a
experiência não apoia as nossas crenças iniciais. Ainda que raramente ou nunca reflictamos sobre a forma como formamos
opiniões e explicamos os factos que são para nós importantes, registamos informações, aprendemos com os nossos erros,
revemos as nossas crenças e melhoramos o poder preditivo e explicativo das nossas teorias. Num sentido fraco, todos somos
— ou tentamos ser — cientistas no dia-a-dia.
Estas observações imprimem uma tensão ao nosso conceito de ciência. Por um lado, a investigação científica parece ser única
entre as actividades humanas, e investida de uma importância e de uma responsabilidade especiais. Há mesmo quem diga que
os esforços e os feitos da ciência são a marca da humanidade. Em muitas sociedades contemporâneas, a ciência é uma
autoridade, e os cientistas são os especialistas consultados pelos governos em estados de emergência, bem como no
planeamento do futuro, na melhoria da qualidade de vida e na prevenção das catástrofes naturais. Por outro lado, os objectivos
e os métodos da investigação científica estão de tal modo intrincados com outros objectivos e métodos, que se torna bastante
difícil assinalar as características da investigação científica que fazem dela verdadeiramente única.
Ao pensarmos sobre a ciência de uma maneira sistemática, podemos ficar em melhor posição para resolver a tensão entre o
seu carácter único e omnipresente. Nesta introdução à filosofia da ciência, revisitaremos alguns dos debates clássicos em
filosofia sobre a racionalidade e o raciocínio, a formação e a justificação de teorias e a natureza da realidade e do progresso.
Também exploraremos os debates actuais sobre o modo como os nossos conceitos fraccionam a natureza, e sobre como a ética
e a ciência se impõem mutuamente constrangimentos. Embarcar nesta viagem pode ajudar-nos a ficar com uma ideia mais
informada e menos turvada do que é a ciência e porque ela é importante.
Esta viagem destina-se ao principiante, que poderá encontrar ajuda sob a forma de perguntas e exercícios para avaliar a
compreensão e orientar a pesquisa; quadros para facilitar a compreensão e ilustrar alguns pontos discutidos no texto; exemplos
das ciências naturais, sociais e médicas; questões para convidar à reflexão, dar forma ao trabalho de grupo, estimular o debate
ou orientar a redacção de ensaios; algumas sugestões de leituras complementares no final de cada capítulo; uma bibliografia
temática exaustiva no final; um glossário substancial de termos técnicos, que também contém pequenos apontamentos
biográficos de cientistas e filósofos importantes que vão aparecendo ao longo do texto.
Espero que gostem!
1. Demarcação

Há um grande cepticismo sobre a possibilidade de se distinguir efectivamente a ciência da não-ciência. A ideia de que não
podemos ter um critério de demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal critério no passado, e
pela observação da diversidade cada vez maior de métodos e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar
como científicas. Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da investigação uma investigação
científica, em disciplinas tão diferentes como a física, a geologia e a economia?
Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas razões para continuar a insistir. É importante
saber em que especialistas se deve confiar, que projectos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas. E as
decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na consistência teórica ou na aparente adequação da
teoria aos dados empíricos. Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e de que metas e
métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável que a explicação bem-sucedida (se é que tal coisa existe) seja
muito específica, pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos diferentes de indícios e, além do
mais, a diferentes critérios para o êxito nas ciências naturais e entre estas e as ciências sociais.
As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na sociedade contemporânea, onde a ciência é
investida de uma autoridade e responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os governantes
sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude
dos seus conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles são chamados a encontrar soluções
para muitos dos nossos problemas quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas de ensino
produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica
como um todo, parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é uma disciplina propriamente
científica, por oposição ao exercício de disciplinas que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a
astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em
recursos energéticos renováveis, por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e portanto é algo
que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados,
ele está em fazer pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de investigação científica e
projectos de investigação válidos.
Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência estruturava-se em torno da tentativa de
explicar por que razão a física é uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente da magia ou
da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de
questões inter-relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência que responda a todas elas de
uma só vez.
Eis uma lista provisória:

•Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projecto de investigação é considerado científico?
•Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências legítimas mesmo não sendo governadas por leis?
•O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão não é visto por muitos como uma teoria
científica legítima?
•Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem chegar a uma melhor compreensão dos
fenómenos à nossa volta?

No século XX, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo Lógico analisaram formas de obter e organizar
conhecimento com vista a identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência e a ética. Os
positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor
da ciência (é por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de única fonte respeitável de
conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam
positivistas lógicos). Um dos objectivos deste capítulo é passar em revista e avaliar os pontos fortes e as limitações da sua
explicação da demarcação entre a ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos posteriores das
suas ideias e das objecções que tal explicação originou.
Algumas destas objecções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que
partilha alguma da ênfase dos positivistas lógicos no valor e na objectividade da ciência, segue uma linha de orientação
diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a ciência é a tarefa racional por excelência e procura
activamente uma estratégia viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira vista parecem
científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de pseudociência).
Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos factores históricos e sociais que determinam o
êxito de uma teoria científica ou de um projecto de investigação. Uma teoria ou um projecto podem ser considerados
científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os critérios que uma teoria ou um projecto precisam de
satisfazer para poderem ser considerados ciência também variam. Com base na análise feita por Kuhn da ciência sensível à
história, Thagard desenvolve um critério de demarcação dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas
disciplinas podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-versa. Feyerabend adopta uma posição
mais radical, negando qualquer espécie de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da
metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento.
Após esta breve história selectiva do critério de demarcação, apresentarei algumas conclusões sobre os desenvolvimentos
recentes do debate e deixarei uma sugestão para a delimitação das actividades de investigação.
No final deste capítulo o leitor estará habilitado para:

•Assinalar algumas diferenças entre a ciência e a metafísica e entre a ética e a ciência à luz das considerações apresentadas
pelos positivistas lógicos.
•Explicar e avaliar a tentativa de Popper no sentido de prover um critério de demarcação entre ciência e pseudociência.
•Estar ciente dos factores sociais que podem contribuir para a mudança de estatuto de uma teoria e discutir os méritos e as
limitações de uma metodologia anárquica.
•Discutir e classificar diferentes tentativas de demarcar a ciência com base em exemplos de pseudociência e má ciência.
•Identificar os desafios que se apresentam ao projecto de delimitar as actividades de pesquisa.

1.1 Ciência e não-ciência

A questão de quando os seres humanos começaram a fazer ciência é controversa, como veremos no capítulo seguinte, no qual
iremos em busca das origens do chamado método experimental. Em todas as civilizações houve sempre pessoas interessadas
em descrever e explicar acontecimentos naturais como o movimento dos corpos celestes, os nascimentos ou a ocorrência de
cheias. Construíam hipóteses e tiravam conclusões após terem completado uma série de observações sobre os fenómenos que
queriam explicar. Num sentido lato, estavam a fazer ciência. No entanto, a ideia comummente aceite é a de que a ciência
moderna tem um carácter especial que não é passível de ser encontrado nas tentativas anteriores de explicar os fenómenos
naturais. A questão de saber em que consiste este carácter especial é objecto de discussão, conquanto se pressuponha que para
que uma hipótese seja considerada científica é preciso que se apoie em indícios.
Desde a Física de Aristóteles (350 a. C.), o raciocínio científico tem consistido em formar hipóteses para explicar um
acontecimento observado e em rever as hipóteses explicativas se as observações futuras não forem consentâneas com elas. Se
este processo pode ser considerado como a disponibilização de um corpo de indícios também é uma questão aberta a
interpretações. Será que a ciência moderna começou quando os humanos foram além da observação passiva da natureza e
começaram a intervir activamente nos fenómenos naturais? Actualmente, a manipulação da natureza é comum em muitas das
ciências nas quais os experimentadores criam condições especiais para a ocorrência de um evento para poderem controlar as
variáveis e afinarem as suas hipóteses. Porém, durante muito tempo na história das investigações humanas sobre a natureza, a
base para as teorias aceites era principalmente constituída por experiências mentais e observações a olho nu, pelo que a
distinção contemporânea entre ciência e filosofia era, no melhor dos casos, difusa.
Poder-se-ia argumentar que fiarmo-nos em indícios e que mesmo a manipulação activa da natureza não são critérios
suficientes para distinguir a ciência moderna de outras teorizações com base em indícios. Uma série de hipóteses que
explicam a ocorrência dos fenómenos por que nos interessamos não constitui conhecimento científico a menos que as hipóteses
sejam coerentes. As hipóteses testadas têm de fazer parte de um sistema estruturado e coerente de modo a contribuírem para o
corpo do conhecimento científico.
A formulação de hipóteses explicativas, a manipulação da natureza com vista a afiná-las e a testá-las, bem como a formação
de teorias coerentes, são algumas das coisas que os cientistas fazem. Ora, haverá uma lista de condições necessárias ou
suficientes para que um corpo de conhecimento seja genuinamente científico ou para que uma actividade seja considerada
investigação científica?
No que se segue consideraremos com algum pormenor as razões pelas quais se pensa que os cientistas e os filósofos se
ocupam de tarefas distintas.
Exercício: Antes de prosseguir, tome nota de três diferenças entre ciência e filosofia, com base na sua compreensão dos
respectivos métodos e objectivos.

1.1.1 Afirmações analíticas e sintéticas

Há afirmações de vários tipos. Umas são sintéticas, ou seja, não poderíamos saber se são verdadeiras ou falsas ao
reflectirmos sobre a sua estrutura lógica ou sobre o significado dos termos que contêm. «Hoje vai nevar» é uma afirmação
sintética. Outras afirmações são analíticas, ou seja, são ou verdadeiras ou falsas em virtude da sua estrutura lógica ou do
significado dos termos nelas contidos. «Um quadrado tem quatro lados iguais» é uma afirmação analítica, uma vez que por
definição os quadrados têm quatro lados iguais. «Hoje pode nevar ou não» é uma afirmação analítica, porque se trata de uma
disjunção de afirmações que são mutuamente exaustivas (Isto significa que a disjunção de ambas as afirmações esgota os estados de coisas possíveis - N. do
R.).

Os positivistas lógicos pensavam que todo o conhecimento sintético tem de ser adquirido e verificado por meio da experiência
(é por isso que também se lhes chama empiristas lógicos), ao passo que a experiência é irrelevante para a aquisição ou
verificação do conhecimento analítico. Porém, nem todos os exemplos de afirmações sintéticas parecem funcionar assim. Há
algumas afirmações sintéticas — aquelas a que chamamos normativas, como «matar é errado» — que não são sempre
verdadeiras ou falsas por definição, mas cuja veracidade ou falsidade não pode ser facilmente definida por uma investigação
empírica. Outras afirmações sintéticas há cuja veracidade ou falsidade depende de facto de como as coisas são, mas não nos é
possível conceber uma maneira de a testarmos, de a verificarmos. «Ser filósofo era uma propriedade essencial de Aristóteles»
— esta afirmação não satisfaz as condições da analiticidade, mas é difícil dizer que testes empíricos poderiam determinar a
sua veracidade ou falsidade. Poderíamos basear-nos numa teoria sobre o que é uma propriedade essencial, mas não em algo
de empírico (conquanto existam noções mais ou menos úteis sobre o que é uma propriedade essencial, dado o estado presente
do mundo).
A ideia tradicional é a de que existe uma diferença fundamental entre o descritivo e o empírico, por um lado, e o prescritivo e
o normativo, por outro. As ciências naturais incidem em factos. Qual é a temperatura da água quando entra em ebulição? Quão
rápida é a aceleração de um corpo em queda? Qual é a idade daquele fóssil? Porque é que os terramotos acontecem? O que
causa uma reacção química? Porque é que os primatas usam sinais de alarme? Noutras disciplinas, contudo, também
descrevemos e explicamos os factos. Quais são as metáforas mais comuns para a morte, e são partilhadas pelas diferentes
culturas? Quais foram os efeitos da Primeira Guerra Mundial na Europa? Porque é que os pintores começaram a usar a
perspectiva no século XV?
Embora muitas disciplinas estudem aparentemente factos, descrever e explicar como as coisas são não é tudo o que fazemos.
Por vezes queremos saber como as coisas deveriam ser com base num princípio ou numa norma. Será a democracia a melhor
forma de governo? Matar é intrinsecamente mau? Descarregar música da internet deve ser considerado crime? As formas de
governo e os exemplos de comportamento humano são objectos de avaliação e podem ser bons ou maus, adequados ou
inadequados, certos ou errados. E pouco provável que estas afirmações normativas possam ser justificadas com base na mera
experiência.
Para os positivistas lógicos, o que distingue as afirmações científicas das da lógica, filosofia, religião, literatura, etc., é serem
sintéticas e a sua veracidade poder ser definida por meio de testes empíricos (ou seja, são verificáveis). Na sua perspectiva, a
possibilidade de conceber indícios que possam confirmar ou não uma afirmação é o que faz uma afirmação sintética ter
significado. Por outro lado, as afirmações sintéticas que não podem ser confirmadas ou infirmadas por meio de indícios
empíricos não têm significado algum. A experiência pode confirmar a afirmação de que a água na chaleira está a ferver, mas
que observação directa pode confirmar a afirmação de que matar é errado? Os positivistas lógicos não se contentam com a
maneira de pensar da tradição segundo a qual algumas afirmações não são nem analíticas nem verificáveis por meio da
experiência, querendo encontrar uma maneira de explicar a natureza aparentemente inexplicável de tais afirmações.
No que se segue passaremos em revista algumas das implicações da ideia de que só as afirmações sintéticas podem ser
verificadas e têm significado, e reflectiremos sobre a maneira como os positivistas lógicos caracterizaram a diferença entre a
ciência e a ética, bem como entre a ciência e a metafísica.

1.1.2 A «eliminação» da ética

Para Alfred Ayer (1936), que defendeu e divulgou muitas das ideias avançadas pelos positivistas lógicos sobre a distinção
entre ciência e filosofia, as afirmações éticas não podem ser verificadas apelando à experiência. Segundo ele, isto explica por
que razão as questões éticas geram discussões infindáveis que acabam por ser infrutíferas. Ayer diz que quando pensamos em
afirmações éticas, temos a impressão de que precisamos de nos agarrar a como as coisas deveriam ser, à sua dimensão
normativa. Mas essa aparência de normatividade nas afirmações éticas, diz ele, é apenas uma ilusão. Não há uma dimensão
normativa nas afirmações éticas; há apenas preferências que acabam por ser subjectivas e que frequentemente chocam com as
preferências dos outros.
Ayer defende que a ética enquanto disciplina normativa não tem razão de ser. O que está em causa nas discussões sobre ética é
a expressão de preferências que são em parte determinadas por factos psicológicos e culturais sobre os indivíduos ou os
grupos que as expressam. Quando defendo que matar é errado, tudo o que estou a dizer é que matar não é uma prática que
aprovo porque tenho associada a isso uma emoção negativa («Matar é errado» quer dizer apenas «Matar nem pensar!», diria
Ayer). E esta associação negativa é em parte determinada pelo facto de eu ter sido criado num contexto em que matar sem
necessidade é condenado pela sociedade no seu todo. A conclusão de Ayer é que a ética não deve ser vista como uma
disciplina independente que emite afirmações normativas, mas, ao invés, deve ser subordinada a ciências empíricas como a
psicologia ou a sociologia.
As ideias de Ayer sobre a ética são radicais e controversas. Para considerarmos algumas alternativas à sua posição, teríamos
de explorar o vasto debate filosófico sobre a natureza dos factos éticos. Mas para o que aqui nos interessa, o que é relevante é
que, na sua opinião: 1) as afirmações científicas são afirmações sintéticas que podem ser verificadas; 2) as afirmações éticas
podem ser vistas quer como afirmações sintéticas que não podem ser verificadas (e que portanto são destituídas de significado
e uma perda de tempo), quer como afirmações sintéticas sobre preferências individuais ou sociais que podem ser estudadas
empiricamente pelas ciências psicológicas ou sociais.

Exercício: Das frases seguintes, quais representam a realidade e quais expressam sentimentos ou preferências?

• A ansiedade conduz à depressão.


• Todos os acontecimentos têm uma causa.
• Jogar às cartas é uma perda de tempo.
• O sumo de cenoura faz bem porque contém vitamina C.
• Entrar em guerra foi um erro.

Hans Reichenbach (1951), outro positivista lógico, chega de maneira independente a uma conclusão muito semelhante à de
Ayer, e também o faz reflectindo sobre a natureza daquilo que parecem ser afirmações éticas. Argumenta que estas expressões
linguísticas não são afirmações genuínas, pois não descrevem como as coisas são, mas emitem directivas ou manifestam
desejos e, portanto, não podem ser verdadeiras ou falsas.

Dizer que matar é errado é ou equivalente ao imperativo «Não matarás!», uma elocução linguística que as pessoas usam para
influenciar ou controlar o comportamento de outras, ou a expressão de uma preferência por um mundo onde matar não existe.
Enquanto as afirmações que podem ser verificadas têm um significado empírico ou cognitivo, as directivas ou os desejos têm
apenas um valor instrumental, pois são uma maneira de o enunciador atingir algo que quer ou de expressar uma preferência. A
ética não é a «ciência do bem último»: não contribui de modo algum para o conhecimento científico ou empírico e não é sobre
o bem último, o que quer que este seja. É uma expressão da vontade de um indivíduo ou de um grupo de influenciar a conduta
de outros.
Os positivistas lógicos têm ideias muito radicais sobre o estatuto da ética porque tendem a ver toda a aquisição de
conhecimento genuíno como uma tarefa fundamentalmente empírica, e impõem a verificabilidade como uma condição para o
significado a todas as afirmações que não qualificam como analíticas. A normatividade das afirmações éticas é por eles
interpretada como uma ilusão criada pela maneira como a linguagem é (quantas vezes impropriamente) usada. Na sua maneira
de ver as coisas, a análise dos enunciados linguísticos é um meio de pôr a nu a alegada natureza das afirmações éticas,
proporcionando uma demarcação entre estas e as afirmações científicas legítimas.

1.1.3 A metafísica enquanto poesia

Como devemos pensar a distinção entre ciência e metafísica? Há um sentido no qual tanto as ciências naturais como a
metafísica apontam para uma melhor compreensão da natureza. É interessante reflectir sobre a história da relação entre a
ciência e a metafísica, uma vez que pensadores que contribuíram tão enormemente para o progresso da ciência como Isaac
Newton ou Albert Einstein expressaram pontos de vista metafísicos e trabalharam com base em pressupostos metafísicos
explícitos.
Para os positivistas lógicos, a diferença entre a ciência e a metafísica está nos métodos pelos quais a investigação da natureza
é conduzida e no significado das alegações formuladas no âmbito destas disciplinas. Tomemos por exemplo o filósofo grego
Platão. Em muitos diálogos que escreveu, afirma que o mundo da nossa experiência, incluindo as cadeiras em que nos
sentamos, o Sol que vemos a nascer e a pôr-se todos os dias, é apenas meio real. A realidade última é feita, não de objectos
materiais, mas de formas, ou ideias, que não podemos ver nem tocar, pois habitam um mundo diferente do mundo da nossa
experiência e não podem ser apreendidas pelos nossos sentidos. Mas se as formas não podem ser vistas ou tocadas, então não
podemos saber com base nos nossos sentidos se existem e se têm os atributos que Platão lhes imputa.
Os positivistas lógicos consideravam que alegações metafísicas como «O mundo das Formas não pode ser apreendido pelos
nossos sentidos» não tinham significado empírico ou factual algum porque não eram analíticas e não eram de modo algum
baseadas na experiência. O seu ponto de vista é o de que a maioria das alegações metafísicas não tem significado e conduz ao
erro, uma vez que essas afirmações empregam palavras que se referem comummente a objectos que podemos apreender com
os nossos sentidos para descrever objectos que, por definição, estão fora ou além dessa experiência.
Rudolf Carnap (1935) compara uma afirmação sobre a existência das formas platónicas a uma afirmação sobre a existência de
cangurus. Observa que quando os zoólogos afirmam que os cangurus existem, a sua asserção pode ser verificada, uma vez que
dela se segue que, em certos momentos e lugares, podem ser observadas coisas de um certo tipo. A asserção de Platão
segundo a qual as formas existem é diferente, pois as formas nunca podem ser apreendidas. Carnap pensa que afirmações
metafísicas como «As formas existem numa esfera sem espaço e sem tempo» não representam a realidade, e que portanto não
podem ser verdadeiras ou falsas. Ao contrário, elas expressam algo, como o desejo de acreditar em entidades que não estão
tão sujeitas à alteração e à destruição como os objectos físicos. O desejo expresso por uma afirmação metafísica não tem
conteúdo científico nem teórico, podendo ser comparado ao trabalho de um poeta. Há, contudo, uma diferença entre a atitude
do metafísico e a do poeta. O poeta sabe quando está a descrever sentimentos e desejos nos seus escritos, ao passo que o
metafísico está iludido, erroneamente convencido de que está a contribuir para uma forma de conhecimento factual. A prova
desta ilusão está no facto de o metafísico se preparar para entrar numa discussão com outros metafísicos sobre a verdade de
alegações acerca de objectos ou propriedades que não podem ser experienciados. Para Carnap, as alegações metafísicas são
expressivas e não representacionais, e apenas parecem ter conteúdo teórico para aqueles que as advogam.

Discussão: A distinção de Carnap entre expressões de sentimentos e desejos e afirmações representacionais é


convincente? É útil?

Karl Popper (1959, 2002) discorda da ideia positivista lógica de que as afirmações metafísicas não têm mas hipóteses
metafísicas tiveram uma importante influência no desenvolvimento de hipóteses científicas. Dá o exemplo do atomismo. A
teoria de que toda a matéria é composta por partes indivisíveis («átomos») surgiu na Grécia antiga e foi primeiramente
formulada por Leucipo (c. 500 a. C.) e Demócrito (460-370 a. C.). Esta teoria foi resultado da especulação filosófica,
desenvolvendo-se como uma tentativa de resolver paradoxos sobre o movimento e a alteração. Permaneceu uma hipótese
metafísica sobre a natureza da realidade durante muito tempo: no século xvii, foram articuladas diferentes versões a partir
dela, pelos filósofos que se interessavam pela natureza e composição últimas da matéria.
Pode dizer-se que a partir do século xix o atomismo passou a ser uma hipótese científica, desenvolvida por John Dalton na
química orgânica e por James Maxwell no que respeita à teoria cinética dos gases. No século xx, a existência de átomos
deixou de ser uma questão controversa. É claro que os átomos cuja existência nós hoje aceitamos são descritos de uma
maneira muito diferente dos átomos de que Leucipo e Demócrito primeiramente falaram, mas pode dizer-se que o atomismo
enquanto hipótese científica não teria surgido na ausência da tradição metafísica anterior. Popper considera isto como um caso
difícil para quem insiste que as hipóteses metafísicas não têm um significado representacional. Defende que mesmo os mitos
podem derivar em hipóteses que estão sujeitas ao teste empírico: o sistema copernicano, por exemplo, inspirou-se no fascínio
neoplatónico pela luz emitida pelo Sol.
O modo como a natureza de uma alegação metafísica é considerada é parcialmente explicado pela maneira como ela é
justificada. Metafísicos da Grécia antiga como Demócrito e Platão não conduziram experiências nem basearam as suas ideias
numa série de observações exaustivas. Chegavam às suas conclusões unicamente pela razão, com argumentos para os seus
pontos de vista que normalmente não incluíam afirmações empíricas como premissas. Os metafísicos contemporâneos estão
menos virados para a especulação sobre um mundo de objectos e propriedades inobserváveis, preferindo compreender a
realidade de uma maneira que seja compatível com as teorias físicas actualmente aceites, e que por vezes até funcione como
um auxiliar conceptual para as mesmas. Um exemplo desta interacção entre a metafísica e a física é o estudo da natureza do
tempo, que foi informado e inspirado pela teoria da relatividade, e as suas importantes consequências para a noção de
realidade do senso comum.
Ainda que em metafísica não esperemos que os investigadores montem experiências e encontrem confirmação empírica para
todas as afirmações nas suas teorias, a verdade é que alguns metafísicos iriam ter em conta o que a física deu a conhecer sobre
a estrutura da realidade, elucidariam os conceitos envolvidos na explicação dada pelas teorias científicas aceites e
aprofundariam a nossa compreensão desses conceitos (Ladyman et al. 2007). Pese embora isto, o debate sobre o papel da
metafísica é ainda extremamente acalorado, e as tradições filosóficas diferem no que respeita à maneira como a relação entre
a ciência e a metafísica é concebida.

Exercício: É capaz de dar exemplos de hipóteses que são consideradas científicas mas que não têm bases empíricas?
Deveriam estas hipóteses ser consideradas científicas?

1.2. Ciência e pseudociência

Os positivistas lógicos proporcionaram o critério de verificabilidade como um critério para o significado das afirmações:
uma afirmação tem significado se for sintética e puder ser verificada por meio da experiência ou se for analítica. As
afirmações científicas genuínas (por exemplo, «Fumar muito aumenta a probabilidade de se contrair cancro do pulmão»)
parecem satisfazer o critério, pois são afirmações sintéticas que podem ser verificadas, mas muitas alegações éticas e
metafísicas parecem sintéticas e no entanto não podem ser verificadas por meio da experiência, pelo que falham no teste do
significado.
As coisas são mais complicadas do que a clara distinção avançada pelos positivistas lógicos podia sugerir. Segundo Schlick,
nas suas conferências «Forma e Conteúdo» (1938), a afirmação de Descartes de que «Só os seres humanos são dotados de
consciência» não pode ser empiricamente verificada. No entanto, a questão de querermos considerar as afirmações sobre a
consciência como metafísicas ou outra coisa depende do tipo de justificação que podemos dar para as aprovarmos. Se temos
uma definição de consciência que torna impossível a outros seres que não os humanos serem conscientes, então a alegação é
uma afirmação analítica. Mas se a definição de consciência não exclui a priori que os seres não humanos podem ser
conscientes, a alegação de Descartes é considerada sintética e podemos facilmente imaginar formas cientificamente
respeitáveis de lhe dar uma justificação.
Suponhamos que pensávamos que algumas regiões do cérebro humano estavam envolvidas em alguma experiência que
consideramos consciente, e que também soubéramos que tais regiões eram significativamente diferentes nos cérebros dos
animais não humanos, ou que estes não as tinham de todo. Em tais circunstâncias, teríamos algumas bases empíricas para
avaliar a verdade de alegações sobre a consciência em seres não humanos. A alegação de Descartes passaria a ser uma
afirmação sintética verificável.
Schlick pensou que este era um bom exemplo de uma afirmação metafísica não verificável porque assumiu que o filósofo que a
tinha avançado, Descartes, não a justificou com base em dados empíricos que podia ter verificado (embora Descartes fosse
um vivisseccionista nato e tivesse muitos conhecimentos práticos de fisiologia animal). O exemplo mostra, porém, que a
distinção entre o que pode ser verificado e o que não pode ser verificado não é algo estabelecido de forma definitiva, e que
problemas aparentemente intratáveis podem tornar-se mais abertos à investigação empírica graças aos avanços da ciência e da
tecnologia.
Foram feitas outras críticas ao critério de verificabilidade enquanto critério de significado, e também enquanto critério de
demarcação. Há dúvidas de que o critério possa ser suficiente para distinguir afirmações que pertencem a teorias
genuinamente científicas de afirmações que não lhes pertencem. Por exemplo, o critério parece não ter os recursos para
discriminar as afirmações sintéticas que fazem parte de uma teoria física respeitável das de um horóscopo semanal. A maioria
das alegações dos astrólogos é indubitavelmente sintética, e algumas alegações são até sujeitas a verificação. Estas
afirmações satisfazem o critério do significado, e no entanto resistimos a aceitá-las como científicas, considerando muitas
vezes que são falhas em justificação e base empírica. Portanto, temos de procurar noutro lado uma maneira de delimitar o
abismo que se considera existir entre a física e a astrologia.

Exercício: Antes de continuar a ler, tome algumas notas sobre as principais diferenças entre a física e a astrologia.

1.2.1. Será a astrologia falsificável?

Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado por Popper (1959, 2002), que era da opinião de
que a ciência é diferente da pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis. Popper não está
convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de
uma estratégia alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem ser verificadas pela experiência,
uma vez que seria necessário um número infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias para
verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos
passados, presentes e futuros de X, e portanto nenhum número de observações de X constituiria prova suficiente para
estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é
razoável que espere que o próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a observação de um
cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal
de contas a afirmação geral é falsa.
O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma única experiência pode contradizer a previsão
baseada numa hipótese geral, e que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as hipóteses
científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao
fracasso empírico. Por este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora de distinguir a
ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia?
Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre a) prever indícios observacionais com base numa dada teoria e
b ) modelar os indícios de modo a serem compatíveis com a teoria. A primeira prática caracteriza os empreendimentos
científicos saudáveis, ao passo que a última é típica das pseudociências. Segundo Popper, uma boa teoria científica é
incompatível com a ocorrência de certos eventos, e por conseguinte impede que certas coisas aconteçam. Neste sentido, a
ciência é uma coisa arriscada. Popper ilustra este argumento com o exemplo da teoria da relatividade de Einstein. As
previsões que a teoria nos permite fazer são passíveis de confirmação e infirmação, e se forem infirmadas a teoria não terá um
futuro risonho.
Eis outro exemplo de uma previsão arriscada. Suponha que está a considerar um modelo de flutuações do mercado de acções
segundo o qual de cada vez que há instabilidade política num país, os preços das acções caem. Com base neste modelo, prevê
que da próxima vez que haja instabilidade política em Itália, os preços das acções na Bolsa de Milão cairão. Se a sua
previsão não se verificar, o modelo foi falsificado.
Ao contrário de uma teoria científica, que faz previsões arriscadas, as teorias pseudocientíficas são praticamente irrefutáveis.
Não há indícios que possam ir contra estas teorias e levar-nos a rejeitá-las, pois são formuladas de uma maneira ambígua ou
podem ser modeladas de modo a acomodar todos os indícios aparentemente contrários. Um dos exemplos preferidos de
Popper é a psicanálise. Qualquer observação clínica pode ser interpretada à luz da teoria, e nenhum exemplo de
comportamento humano poderia claramente contradizer as hipóteses construídas com base na teoria. A astrologia também
encaixa nesta descrição: as suas previsões são frequentemente formuladas em termos tão gerais, que nenhum acontecimento
futuro poderá claramente contradizê-las, o que garante imunidade à teoria.
Suponha que ainda está interessado em prever o comportamento do mercado de acções. Desta feita usa um modelo diferente,
que lhe diz que de cada vez que há estabilidade política num país, o custo das acções altera-se — mas não lhe diz se sobem ou
descem. Este modelo ainda é arriscado (pois seria falsificado se os preços das acções continuassem exactamente os mesmos
durante um período de instabilidade política), mas é menos arriscado do que o modelo que antes considerámos, pois não
especifica como os preços mudam, e por conseguinte é imune a alguns casos de infirmação empírica. Para Popper, o modelo
seria pseudocientífico se não houvesse circunstâncias nas quais pudesse fazer previsões que acabariam por ser falsas.
Resumindo, para Popper, as pseudociências não estão genuinamente abertas à falsificação, uma vez que é óbvio que nenhum
evento é por elas excluído.

Exercício: Faça alguma investigação sobre duas das seguintes actividades — homeopatia; frenologia; arqueologia;
ovnilogia; psicologia evolucionária —, e em seguida decida se satisfazem os critérios de pseudociência de Popper.
Os críticos de Popper puseram em causa a falsificabilidade enquanto critério de demarcação entre ciência e pseudociência
com base no facto de alguns elementos de uma teoria científica (como as leis na física teórica) não serem directamente
falsificáveis, ao passo que uma pseudociência como a astrologia pode gerar afirmações falsificáveis. Se estes críticos
estiverem certos, então a falsificabilidade não é nem suficiente nem necessária para a demarcação.
Não é suficiente porque parece haver hipóteses falsificáveis que não são científicas. Por exemplo, Paul Thagard (1978) relata
algumas tentativas de confirmar empiricamente, por meio de métodos estatísticos, a ideia de que a posição dos planetas no
momento do nascimento está correlacionada com a escolha da actividade da pessoa na sua vida futura. Ora, descobrir que o
nascimento de uma pessoa não está correlacionado com a sua posterior ocupação, como as teorias astrológicas indicam, pode
em princípio constituir uma falsificação da teoria.
A falsificabilidade não é sequer um critério necessário da demarcação. Alan Chalmers (1999) recorda-nos que o fracasso de
uma previsão nem sempre indica que uma teoria científica está afinal errada. Como veremos quando discutirmos as teorias
científicas nos capítulos 3 e 5, mesmo que as observações pareçam contradizer os princípios de uma teoria, na prática da
ciência por vezes é perfeitamente aceitável conservar a teoria, e, ao invés, modificar as hipóteses auxiliares que precisamos
de combinar com a teoria, de modo a torná-la testável (Lakatos 1970; Kuhn 1962,1970; Kuhn 1996). Pode haver hipóteses
científicas que, de tão acerrimamente defendidas pelos cientistas que as testam, são feitas para resistir a tentativas de
falsificação perante previsões inexactas.

1.2.2 Factores dependentes do contexto na demarcação

Inspirado pela análise histórica e social da ciência feita por Kuhn, Thagard concorda com Popper no ponto em que a
astrologia é uma pseudociência, mas defende que as razões pelas quais a astrologia é uma pseudociência não se esgotam na
aplicação do critério de falsificabilidade. Para determinarmos o estatuto de uma disciplina, também precisamos de examinar
algumas características da comunidade daqueles que a praticam, bem como o contexto histórico no qual estas investigações
são conduzidas. Uma disciplina científica saudável possui uma comunidade de praticantes que, em grande medida, concorda
com os principais princípios e métodos que a caracterizam. Os praticantes ficam seriamente preocupados com indícios
aparentemente infirmantes, tentam encontrar soluções para a inadequação entre a teoria e os dados e envolvem-se activamente
no teste rigoroso da teoria. Quer o estádio do desenvolvimento da disciplina, quer o reconhecimento da existência de uma
competição, são importantes para o seu estatuto enquanto ciência. Será que a teoria dominante se tem estado a debater há
muito com aparentes contra-provas? Haverá outras teorias que possam explicar os fenómenos relevantes de uma maneira mais
satisfatória?
Segundo Thagard, a razão pela qual a astrologia está em má forma hoje em dia deve-se ao facto de os seus praticantes não
terem feito progressos significativos durante algum tempo e de agora termos formas mais bem-sucedidas e fiáveis de explicar
o comportamento humano no âmbito da psicologia cognitiva e social. Thagard não exclui que, em certo momento no passado,
como por exemplo antes do desenvolvimento da psicologia, a astrologia pudesse ser considerada capaz de proporcionar uma
explicação e uma previsão científica genuínas sobre o comportamento humano. Actualmente, porém, os praticantes da
astrologia não fazem esforço algum para desenvolver soluções para os problemas que a disciplina enfrenta, não se empenham
no teste rigoroso das suas teorias, parecem ser selectivos na maneira como consideram os indícios que apoiam ou contrariam
as suas alegações e não comparam o seu enquadramento explicativo com enquadramentos explicativos alternativos. Segundo
Thagard, estes sintomas sugerem que hoje em dia a astrologia não consegue obter o estatuto de ciência.

Discussão: Concorda com a ideia de que o contexto n/ histórico é importante para se saber se uma disciplina é
considerada genuinamente científica? A título de exemplo, considere a química e a psicologia.

1.2.3 «Vale tudo»

Na edição de Setembro/Outubro de 1975 da revista The Humanist surgiu uma declaração sobre a astrologia subscrita por 186
cientistas e eruditos. Nela, defendiam que os conceitos modernos da astronomia e da física, bem como a ciência da psicologia,
não sustentavam de modo algum a ideia de que a posição dos planetas pode afectar a vida e o comportamento dos seres
humanos.
Paul Feyerabend (1979) defende que a declaração não contém argumento algum convincente que apoie a ideia de que a
astrologia é menos respeitável do que qualquer outra das disciplinas mencionadas. Feyerabend admite que, em grande parte, a
prática contemporânea da astrologia tem como objectivo «impressionar o ignorante» e não constitui um exemplo de
investigação progressiva, mas contesta a maneira como os cientistas proeminentes envolvidos na declaração tentam
ridicularizá-la. Na declaração, defende-se que a astrologia surgiu da magia, e que os seus princípios originais não são de
modo algum confirmados pela ciência contemporânea. Feyerabend responde que se isto é uma objecção, então é uma objecção
ao estatuto científico não apenas da astrologia, mas também de muitas outras disciplinas que são normalmente consideradas
exemplos paradigmáticos de ciência. A alquimia, que não era desprovida de referências mágicas, é a precursora da química
moderna.
Feyerabend (1975) defende um ponto de vista segundo o qual a ciência é apenas uma tradição de pensamento entre muitas
outras, e que não é caracterizada por um qualquer tipo de regras metodológicas próprias e rígidas. O desenvolvimento
histórico da ciência mostrou que foram feitos vários tipos de abordagens a questões a que hoje chamamos científicas, e que foi
precisamente esta variedade de métodos que tornou o progresso possível. Referindo-se a alguns exemplos de prática científica
em diferentes disciplinas e em diferentes épocas, Feyerabend tenta mostrar que estamos enganados quando pensamos que um
único método unifica todos os empreendimentos da ciência. Ao invés, defende que as Leis da Razão que comummente
consideramos como parte do método científico, incluindo a ideia de que as teorias científicas estão estreitamente relacionadas
com a realidade por via da observação e das experiências, são apenas uma reconstrução racional post hoc (Locução latina que
significa literalmente «depois disso». Não confundir com a falácia post hoc ergo propter hoc [depois disso; logo, por causa disso], por vezes abreviadamente referida
como post hoc - N. do R.)
da metodologia científica e são divulgadas para fins de propaganda política.
Nas nossas sociedades, argumenta Feyerabend, os cientistas têm um poder que lhes é conferido com base no facto de serem
depositários de um método racional para investigar a realidade. Para conservarem o seu poder, dão uma imagem distorcida da
sua maneira de pensar como superior, pondo de parte tradições de pensamento alternativas. No capítulo 5, passaremos em
revista e avaliaremos os argumentos a favor e contra a racionalidade do progresso científico, e discutiremos estes assuntos
com maior pormenor. Em especial, pensaremos sobre a questão de saber se pode haver critérios objectivos para classificar
diferentes metodologias, e se a ciência contemporânea nos dá realmente um estilo de pensamento que é superior ao de outras
tradições de pensamento. Para a presente discussão, porém, será suficiente dizer que pensadores como Feyerabend são da
opinião de que não é possível encontrar um critério de demarcação coerente e satisfatório entre ciência e não-ciência.

Exercício: Enuncie três razões a favor e três razões contra a negação de Feyerabend da supremacia metodológica da
ciência.

1.3 Ciências naturais e sociais

A questão do estatuto das ciências sociais, de saber se são exemplos genuínos de ciência, parece girar em torno da
comparação entre a sua metodologia, dada a natureza dos fenómenos que estudam, e a metodologia da física. Ora, será que
podemos realmente encontrar elementos de continuidade suficientes entre a economia e a física para considerarmos ambas
ciências? Popper (1957) distingue duas abordagens à distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais: o naturalismo e
o antinaturalismo.
De acordo com a perspectiva antinaturalista, há um abismo entre as metodologias da física e da sociologia. Eis uma listagem
parcial de alguns dos factores que sugerem uma profunda desanalogia:

• Generalizações. Nas ciências físicas fazemos generalizações a partir de factos particulares para chegarmos a verdades
universais com base no pressuposto de que existem algumas regularidades na natureza. Na sociologia, porém, este
procedimento não é frutífero, pois as circunstâncias são peculiares de um momento histórico no tempo, e ignorar este aspecto
seria ignorar o facto de a sociedade estar em constante evolução.
• Experiências. Na física, as experiências representam uma maneira de isolarmos um fenómeno para podermos controlar
algumas variáveis e nos centrarmos num número limitado de factores relevantes. Na sociologia, este método não funcionaria,
uma vez que não há um princípio para decidir que factores são relevantes para as questões a que se deve responder numa
investigação. Além disso, em física as experiências podem ser repetidas em diferentes laboratórios e podem obter-se os
mesmos resultados, ao passo que na sociologia as observações sãosempre únicas, pois dependem das características do facto
observado.
• Complexidade. Os factos sociais são complexos, não só porque as variáveis não podem ser facilmente controladas em
situações artificiais, devido à sua contingência histórica, mas também porque as vidas mentais são importantes para o
desenvolvimento da sociedade, e para se compreender o papel explicativo das vidas mentais têm de ser invocados factos
psicológicos e biológicos.
• Previsão. O ponto é: embora seja possível fazer previsões em sociologia, é extremamente difícil, devido à complexidade
dos factos sociais, mas também ao efeito que o fazer uma determinada previsão pode produzir no facto que será previsto. Por
exemplo, prever que um banco enfrentará uma crise financeira produz um efeito nos consumidores que confiaram as suas
poupanças a esse banco. E provável que retirem o seu dinheiro do banco com medo de o perderem, comprometendo assim
ainda mais a situação financeira da instituição.
• Objectividade. Toda a relação entre a pessoa que observa aquele facto e o facto observado é uma questão que, até certo
ponto, também diz respeito às ciências naturais, mas que parece mais premente no caso das ciências sociais. O sujeito que
tenta dar uma explicação para um facto social não está fora do facto, numa posição de neutralidade; muitas vezes, está
incorporado nele. Uma consequência extrema desta alegação é que, diferentemente da física, na sociologia o objectivo do
cientista não é revelar verdades, mas originar uma nova fase de desenvolvimento social.
• Holismo. A partir do que os antinaturalistas dizem sobre a complexidade e a inadequação das experiências nas ciências
sociais, há uma outra questão que afecta a esfera da previsão e da explicação: o holismo. A ideia é que, em física, um
agregado pode ser apenas a soma das suas partes, mas um grupo social é sempre mais do que a soma dos seus membros,
porque as relações pessoais podem facilmente alterar a dinâmica e o comportamento do grupo. O próprio grupo terá a sua
história, que não se esgota na história pessoal dos seus membros. Isto significa que quando tentamos dar uma explicação ou
fazer uma previsão em ciências sociais temos sempre de tomar atenção a como acontecimentos ou interacções particulares,
que parecem ter consequências muito limitadas e confinadas, determinam alterações em toda a estrutura do fenómeno social a
estudar; e não podemos oferecer explicações ou previsões localizadas, mas temos sempre de analisar a totalidade dos factos
sociais relevantes.
• Compreensão. Como fazemos quando queremos compreender factos? Se os factos forem naturais, provavelmente
procuraremos o que os causou. Se forem factos sociais, diz o antinaturalista, procuraremos o significado e a finalidade.
Enquanto o primeiro objectivo, a explicação causal, pode ser posto em prática pela observação de regularidades e
generalizações, o último, a compreensão, requer imaginação e empa tia.

Exercício: Que outras possíveis diferenças metodológicas entre as ciências naturais e sociais consegue imaginar?

1.3.1 Leis e experiências nas ciências sociais

Popper discorda fortemente da posição antinaturalista, defendendo uma maior continuidade entre as metodologias das ciências
naturais e sociais. Argumenta convincentemente que a comparação antinaturalista entre a física e a economia, ou entre a física
e a sociologia, se baseia numa imagem positivista cândida e demasiado simplificada de como a comunidade científica se
dedica ao estudo da natureza.
Ainda que possa ser verdade que as generalizações em sociologia assumem uma forma diferente das da física, também é
verdade que ambas podem ser interpretadas como leis ou hipóteses que estabelecem uma proibição. Eis dois dos exemplos do
próprio Popper: «Não se pode construir uma máquina de movimento perpétuo», ou: «Não se pode ter emprego para todos sem
inflação.»

Exercício: Consegue imaginar outros exemplos de proibições estabelecidas por generalizações nas ciências sociais?

Popper também defende que a ênfase no holismo está mal pensada, da mesma maneira que a rejeição da metodologia daquelas
experiências que pretendem encontrar regularidades em alguns aspectos do desenvolvimento social em vez de na sociedade
como um todo. Refere que há exemplos bem-sucedidos de experiências fragmentárias que são relevantes para a articulação
de teorias sociológicas.
Pensemos na famosa experiência sobre a obediência à autoridade conduzida por Stanley Milgram em 1974 (a que voltaremos
no capítulo 6). Num cenário experimental, mostrou que as pessoas estão fortemente inclinadas a obedecer a figuras de
autoridade que lhes dizem o que fazer, mesmo que esse pedido implique agir de uma maneira considerada moralmente
objectável. Milgram queria compreender melhor o que tinha acontecido na Alemanha nazi, onde ocorrera uma indignação
relativamente moderada quanto à maneira como as pessoas e as comunidades judaicas tinham sido perseguidas. A sua hipótese
é muito geral, uma vez que pode ser aplicada a diferentes pessoas em diferentes sociedades e em diferentes contextos
históricos: as pessoas têm dificuldade em desobedecer a ordens dadas por figuras de autoridade. E, no entanto, a experiência
foi conduzida num laboratório, com a metodologia de investigação da psicologia social do seu tempo. Os resultados
experimentais confirmaram a hipótese e geraram um debate acalorado sobre as constantes do comportamento humano,
contribuindo assim para uma melhor compreensão da dinâmica da obediência e da resistência em regimes autoritários.

Exercício: Conhece outras experiências que tenham sido importantes para as ciências sociais?

Experiências como a de Milgram podem contribuir para a aquisição de conhecimento generalizável. O método utilizado, diz
Popper, é o método que recomenda para todas as ciências: tentativa e erro. Tentamos resolver um problema dada uma certa
hipótese e podemos falhar ou ser bem-sucedidos, mas o que realmente importa é que aprendemos com os erros que
cometemos. Se a hipótese não parece funcionar, é revista ou rejeitada, e são feitos novos testes. A dificuldade de abordarmos
as experiências de uma maneira holística é que se testamos hipóteses que dizem respeito à sociedade como um todo e
fracassamos, torna-se extremamente difícil saber exactamente qual foi o erro. Ao invés, isolar variáveis, quando isso é
possível, parece ser útil tanto nas ciências físicas como nas sociais.
Há também outros elementos de continuidade no que respeita à questão da experimentação. Tanto na física como noutras
ciências, há experiências potencialmente muito reveladoras que não podem ser conduzidas devido a limitações metodológicas
ou tecnológicas. Nestes casos, os cientistas têm muitas vezes de fazer as experiências na sua cabeça e usar a sua imaginação
para prever o que poderiam ser os resultados, em vez de conduzir as experiências propriamente ditas (como veremos no
próximo capítulo). Nem mesmo no que respeita ao uso comum de experiências mentais parece haver um abismo entre as
ciências naturais e sociais.
Harold Kincaid (2004) defende um ponto de vista naturalista, alegando que pode haver leis nas ciências sociais. Porém, a sua
perspectiva é diferente da de Popper. Em vez de identificar as leis com afirmações que estabelecem uma proibição, descreve-
as como afirmações que identificam factores causais relevantes. A complexidade dos fenómenos sociais não parece ser um
obstáculo à identificação de factores causais que contribuem para uma explicação de factores sociais. Para Kincaid, não há
uma boa razão para pensar que a noção de compreensão em ciências sociais tem de ser concebida como marcadamente
diferente da noção de explicação causal nas ciências físicas.
O ponto de vista antinaturalista afirma que nas ciências sociais os «objectos» investigados são pessoas com livre-arbítrio e
com a sua maneira de conceptualizar o mundo, não são matéria inerte. E isto que determinará o tipo de explicação procurada
para o comportamento estudado. O comportamento humano, diz ainda este ponto de vista, não pode ser explicado com os
mesmos princípios do comportamento dos objectos físicos, requerendo um esforço de interpretação que tem em conta as
perspectivas das pessoas cujo comportamento é estudado (Taylor 1971). Kincaid não pretende excluir que alguns factos
sociais (como um ritual, por exemplo) sejam mais bem explicados fazendo referência ao seu significado em vez de àquilo que
os originou, mas isto não significa que a procura das causas esteja condenada ao fracasso ou seja irrelevante para as
finalidades da explicação nas ciências sociais. Afinal de contas, o que as ciências sociais procuram estudar é não apenas o
comportamento de alguns indivíduos em algum momento, mas também a natureza das instituições e o desenvolvimento de
fenómenos em larga escala (e frequentemente recorrentes). Por vezes pode ser necessária uma compreensão empática para ver
uma determinada situação da mesma maneira que as pessoas que estão nela incorporadas, mas esta actividade interpretativa
não exclui outros métodos para averiguar a perspectiva de um sujeito, que se baseiam na psicologia humana, por exemplo, e
que podem conduzir a conclusões em certa medida generalizáveis.

1.4 O que é a investigação científica?

Abordaremos agora a questão da demarcação a partir de um ângulo diferente. Em vez de procurarmos uma explicação da
ciência como um corpo de conhecimento unificado e estático ou uma explicação do que faz uma disciplina ser científica,
consideremos outro projecto de demarcação. O que caracteriza uma actividade humana como uma instância de investigação
científica? Três conjuntos distintos de questões parecem surgir quando consideramos respostas possíveis para esta pergunta.
Primeiro, uma actividade considerada como investigação possui uma dimensão metodológica e é sistemática em vez de
aleatória. Segundo, uma actividade considerada como investigação tem uma função específica e visa contribuir para um corpo
de conhecimento. Terceiro, as actividades consideradas investigação científica possuem alguns aspectos sociológicos em
comum, tais como o papel que os cientistas desempenham na resolução de disputas sobre questões empíricas ou a maneira
como as novas gerações são formadas em ciências.

Exercício: A dimensão sociológica da investigação não será aqui explorada, mas poderá reflectir e discutir sobre as
seguintes questões: 1) A investigação é acessível a qualquer pessoa, ou será necessário algum tipo de formação ou
estatuto? 2) É importante o local onde a investigação é conduzida, o modo como é financiada ou se se enquadra num
projecto mais alargado que é reconhecido por uma comunidade de investigadores?

1.4.1 Questões processuais

Há várias questões processuais que são relevantes para a demarcação das actividades de investigação. As actividades de
investigação tendem a ser sistemáticas e a seguir um método cujas prescrições dependerão em muito da disciplina no âmbito
da qual a investigação é conduzida. Enquanto as ciências naturais e sociais podem requerer testes empíricos rigorosos, outras
disciplinas podem requerer que as suas práticas correntes sejam apenas transparentes e abertas à crítica racional.
Quando pensamos nas questões de procedimentos tradicionais, parece que encontramos uma tensão reflectida no
desenvolvimento da filosofia da ciência do século xx. Por um lado, a ciência está de tal modo compartimentada e os
procedimentos científicos variam tanto, que talvez só as comunidades científicas especializadas possam determinar se uma
actividade particular se conforma às exigências tantas vezes abstractas da metodologia actualmente aceite. Por exemplo, Max
Black (1954, cap. i) observa que quando falamos em metodologia científica em geral tendemos a abstrair a partir do que
sabemos sobre física, mas que na astronomia não há experiências e que a geografia é em grande medida descritiva. Tal sugere
que não se espera encontrar uma descrição muito pormenorizada do método científico que se adeqúe a todas as ciências. Por
outro lado, para a compreensão por parte do público e para a delineação de políticas, torna-se necessária alguma espécie de
critério de demarcação. Embora não seja realista aspirar a descrever um método definitivo para todas as disciplinas que
possa ser considerado científico, existem elementos metodológicos aparentemente essenciais que nos ajudam a distinguir a
investigação de outras actividades. Falar de uma metodologia científica parece erróneo não apenas devido à diversificação
das disciplinas científicas, mas também porque o método usado na investigação científica, assim como as teorias científicas a
que se chegou por via desse método, podem ser passíveis de revisão.
Em termos muito genéricos, há duas exigências metodológicas que parecem aplicar-se a toda a actividade que gostaríamos de
considerar investigação científica. Primeiro, a investigação científica deve ser conduzida de uma maneira que permita o cotejo
com a realidade, ou seja, os testes devem fazer parte do processo de chegar a conclusões e de justificá-las. Segundo, quer as
conclusões a que se chegou, quer os passos do raciocínio necessários para a elas se chegar, devem ser transparentes e
passíveis de serem criticados.
Estes dois pontos parecem adequar-se a alguns dos requisitos sugeridos por Popper e Thagard no que toca às diferenças
percebidas entre a prática da física e da astrologia. Mas note-se que enquanto os requisitos de sensibilidade aos dados
empíricos, de transparência e de abertura à crítica racional eram tradicionalmente explicados nos termos da distinção entre
disciplinas ou corpos de conhecimento, agora tentamos identificar se algumas actividades serão instâncias de investigação
científica.

Exercícios: 1) Ilustre com alguns exemplos a maneira como os requisitos processuais antes descritos são aplicados pela
ciência natural ou social com que está mais familiarizado. 2) Consegue imaginar outras actividades que se adeqúem a
estes requisitos processuais mas que não sejam manifestamente exemplos de investigação científica?

1.4.2 Questões funcionais

É completamente incontroverso que a principal finalidade da investigação seja contribuir para um corpo de conhecimento, mas
nem todos concordam na definição com maior pormenor do tipo de conhecimento que a investigação pretende produzir. Por
exemplo, quando anteriormente falámos sobre as possíveis diferenças entre as ciências naturais e sociais, perguntámos se os
resultados produzidos no decurso de uma investigação da estrutura ou da história da sociedade humana podiam ser
generalizados. Uma ideia comum é que, para que a investigação seja considerada um exemplo de investigação científica
genuína, os seus resultados precisam de ser generalizáveis, e que toda a investigação que não produz resultados generalizáveis
não consegue ser científica. Focar-nos-emos aqui noutro requisito: a novidade.
Parece ser consensual classificar a confirmação de resultados e a reorganização de dados anteriormente conhecidos como
investigação quando a confirmação é necessária e quando há um elemento de originalidade ou novidade na actividade. Este
elemento de originalidade pode ser esgotado pela possibilidade de se tirar mais conclusões ou de se fazer mais generalizações
a partir do mesmo corpo de dados, reorganizando ou reinterpretando os dados à luz de novos pressupostos teóricos. Para Imre
Lakatos (1970), que retrata a ciência como a sucessão dinâmica de programas de investigação e não como o agrupar de
afirmações teóricas, um programa de investigação é científico se for progressivo. Para que seja progressivo no que respeita a
um estádio prévio de desenvolvimento científico, o programa de investigação tem de ter pelo menos o mesmo conteúdo
empírico e tem de ser capaz de proporcionar uma explicação para os mesmos fenómenos de uma maneira pelo menos
igualmente satisfatória. Além disso, tem de fazer novas previsões que possam ser confirmadas pela experiência. Um programa
de investigação é degenerativo (isto é, é ainda ciência, mas não uma ciência muito boa) se as novas previsões que são feitas
não são confirmadas pela experiência.
Embora a perspectiva de Lakatos tenha sido até agora extremamente influente no âmbito do estudo da metodologia científica,
têm sido levantados alguns problemas no que respeita à noção de novos factos e novas previsões. Os factos e as previsões
devem ser novos em relação a quê? A literatura apresenta respostas diferentes, que variam entre a novidade temporal e a
novidade da interpretação. As consequências do tipo de novidade que escolhemos são muito importantes para a definição dos
programas de investigação progressivos. A novidade temporal requer apenas que os factos que antes não eram considerados
prováveis possam agora ser previstos. Ao contrário, a novidade da interpretação é bastante mais fraca, requerendo apenas
que os factos antigos sejam revisitados e reavaliados pelo programa de investigação. O tipo de novidade requerida para que
uma actividade seja considerada investigação original é uma questão difícil, e as respostas podem variar, dependendo dos
objectivos de uma disciplina científica ou mesmo do estádio de desenvolvimento dessa disciplina. Porém, para a finalidade
muito geral da nossa discussão aqui, a novidade da interpretação parece ser necessária para que uma actividade seja
considerada investigação original.

Exercício: Quais das seguintes considerações poderiam originar um critério funcional para a investigação científica: um
maior poder explicativo; estimular o debate num campo de investigação; pôr em causa ideias preconcebidas; ter
aplicações tecnológicas significativas; ser compatível com outros programas de investigação bem-sucedidos; gerar
resultados num vasto leque de fenómenos inter-relacionados?
Discussão: Que outros critérios funcionais acrescentaria à novidade?

1.4.3 A delimitação da investigação

De que maneira podemos combinar as considerações anteriores sobre as dimensões funcionais e processuais da investigação
para chegarmos a uma explicação da demarcação? A investigação científica é uma actividade humana que visa contribuir, de
modo inovador, para um corpo de conhecimento coerente por via da adopção sistemática de um método crítico. Há duas
maneiras de identificar a função de uma actividade: subjectivamente, olhando para as intenções primárias das pessoas
envolvidas na actividade; objectivamente, olhando para aquilo que efectivamente os resultados da actividade acrescentam.
Em muitos casos coincidem, mas por vezes as pessoas ou os grupos que pretendem adoptar um método crítico ou contribuir
para um corpo de conhecimento coerente de uma nova maneira não conseguem fazê-lo.
O propósito de uma actividade pode contribuir para a compreensão das razões subjacentes ao comportamento humano, o que é
visto como um objectivo científico legítimo, sem que nenhum método crítico e transparente seja adoptado — alguns diriam que
escrever horóscopos diários se insere nesta categoria. Uma actividade pode ser conduzida por via de um método crítico sem
visar alargar um corpo de conhecimento de uma maneira nova — por exemplo, o trabalho de um aluno da licenciatura em
física pode ser metodologicamente indistinguível do trabalho feito pelos cientistas de topo na mesma área, contudo, a sua
função principal é provar a competência do aluno, e não contribuir de uma maneira original para o conhecimento partilhado
pela comunidade científica.
Estes recursos conceptuais também nos podem ajudar a entender a distinção entre investigação e terapia na biomedicina. Os
mesmos dados, obtidos por via de um método empírico respeitável, podem ser usados quer para alargar os conhecimentos
biomédicos, quer para fornecer uma terapia imediata. Estas funções não se excluem, sendo defensável dizer que obter
conhecimentos de biomedicina tem sempre uma função terapêutica subjacente. As tentativas terapêuticas que usam métodos ou
fármacos não validados podem gerar uma hipótese que é depois testada num ensaio clínico.
E disto um bom exemplo o caso Simms v Simms and An NHS Trust (2002). Neste caso, o tribunal decidiu que era legal
administrar uma terapia experimental a um doente incapaz, Jonathan Simms, afectado pela variante da doença de Creuzfeldt-
Jakob. O fármaco que lhe foi administrado, pentosano polissulfato, nunca tinha sido usado em seres humanos afectados pela
vDCJ, e foi injectado directamente no cérebro, através de um procedimento cirúrgico arriscado. A decisão do tribunal foi
motivada pelo prognóstico grave de Jonathan Simms e pela falta de alternativas disponíveis. O caso sugere que não existem
fronteiras bem definidas entre a investigação e a terapia, além de que uma actividade pode ter ambas as funções.

1.5 Boa e má ciência

A distinção entre disciplinas que são científicas e disciplinas que o não são (ou entre disciplinas que são consideradas
investigação e disciplinas que o não são) não envolve necessariamente um juízo avaliativo. Poder-se-ia pensar que os tipos de
investigação que não se enquadram nos critérios processuais para a investigação científica ou que não visam contribuir para
um corpo de conhecimento podem, não obstante, ser de grande importância, e deviam ser financiados e realizados juntamente
com a investigação científica. Porém, as expressões «pseudociência» e «má ciência» têm conotações pejorativas. Uma
disciplina ou um tipo de investigação que é classificado como pseudocientífico normalmente não passa no teste da
demarcação mas apresenta-se como científico, ou é considerado por alguns sectores da população como tendo o mesmo
estatuto de uma disciplina científica ou como uma instância de investigação científica. A conotação negativa deve-se ao facto
de haver um elemento de simulação ou de engano.
Recentemente, o debate sobre o criacionismo reacendeu as preocupações práticas que emergem da necessidade de distinguir a
ciência da pseudociência. Será o criacionismo científico? Deverá ser ensinado nas escolas em conjunto com a teoria da
evolução? De uma maneira geral, a comunidade científica nega que o criacionismo ofereça uma explicação científica da
origem da vida. As razões desta posição devem-se principalmente a uma avaliação de factores processuais. O criacionismo é
considerado pseudociência porque introduz factores sobrenaturais na explicação de como a vida evoluiu. Além do mais,
algumas das suas hipóteses são baseadas em noções vagas. Por exemplo, os críticos defendem que o conceito de «tipo» como
uma das diferentes formas pelas quais a vida foi criada não é suficientemente elaborado, e que este carácter vago torna
extremamente difícil assinalar indícios que pudessem falsificar alegações sobre a maneira como os diferentes tipos interagem
uns com os outros. Estas objecções ao estatuto científico do criacionismo parecem estar fundadas na ideia de que há aspectos
da teoria que comprometem quer a transparência das hipóteses oferecidas, quer a possibilidade de serem testadas.
Considerar factores contextuais pode ser ainda mais problemático para o estatuto do criacionismo. O argumento é que existe
uma disciplina alternativa que pode oferecer uma explicação mais empiricamente fundamentada e no geral mais convincente
do desenvolvimento da vida na Terra — a biologia evolucionária —, e que os dados recolhidos nesta área não são tidos em
conta, ou são descartados de forma precipitada pelos criacionistas.
A distinção entre boa e má ciência (ou boa e má investigação) é, uma vez mais, diferente. Há empreendimentos que, se
conduzidos de uma maneira satisfatória, poderiam contribuir para um corpo de conhecimento partilhado. E há investigadores
que subscrevem uma metodologia que, se correctamente aplicada, poderia ser considerada crítica e aberta ao confronto com a
realidade. No entanto, os resultados da actividade não conseguem contribuir para um corpo de conhecimento partilhado ou a
metodologia não é correctamente aplicada. Trata-se de casos de má ciência. Em certa medida a actividade cumpre os
requisitos para a investigação científica, mas não de uma maneira satisfatória, pelo que o modo como é conduzida é objecto de
um exame minucioso e de uma crítica exaustiva.
Na literatura sobre a história da ciência há exemplos interessantes de fracassos deste tipo. Há programas de investigação que
pretendem provar a existência de agentes causais cuja presença só pode ser detectada pela via da experiência. Estes casos são
pervertidos quando a presumível existência destes agentes é justificada com alegações que podem entrar em conflito com a
experiência e quando, em resposta a críticas, se oferecem ajustamentos aã hoc à hipótese inicial. Outro problema comum é
que os resultados não podem ser reproduzidos por outros investigadores ou equipas.
A história da tentativa de obter a fusão nuclear fria inclui um episódio que é frequentemente descrito como um exemplo de má
ciência. Em 1989, Fleischmann e Pons, que faziam investigação na Universidade do Utah, afirmaram ter obtido a fusão nuclear
ao libertarem deutério de água pesada (Dz O) num eléctrodo de paládio. Sem se deixarem desencorajar pelas tentativas
anteriores falhadas de fusão fria, Fleischmann e Pons utilizaram um aparelho muito rudimentar, basicamente um jarro de água
cuja temperatura fora medida antes e depois da experiência. Relataram ter encontrado um aumento de temperatura que
interpretaram como um sinal de que a fusão tinha ocorrido, e que tinham sido produzidos neutrões. A notícia espalhou-se,
criando grandes expectativas, especialmente no governo americano, que estava interessado em investigar as possíveis
aplicações da fusão fria à criação de fontes de energia.
Os dois cientistas foram pressionados para submeter um artigo com os resultados para publicação, o artigo foi revisto pelos
pares e foi publicado. Outras equipas de cientistas reproduziram as mesmas condições da experiência, mas não conseguiram
obter os resultados descritos por Fleischmann e Pons, mesmo nos casos em que o equipamento utilizado era mais sofisticado
do que o original. O artigo publicado com as alegações de que a fusão fria tinha sido atingida também fora recebido com muito
cepticismo, uma vez que foram revelados alguns erros básicos no modo como a experiência tinha sido conduzida, erros esses
que tinham afectado as estimativas do calor produzido.
Devido a estes desenvolvimentos, a alegação de que a fusão fria tinha sido atingida foi depois rejeitada, e a reacção da
comunidade científica ao trabalho de Fleischmann e Pons chegou às páginas de ciência dos jornais mais importantes (como
The New York Times, por exemplo). O financiamento para o projecto da fusão fria de Fleischmann e Pons foi retirado como
consequência de não terem conseguido responder satisfatoriamente às objecções de outros especialistas.
No caso da tentativa da fusão fria por Fleischmann e Pons, as suas actividades tinham todos os indicadores sociológicos de
uma actividade científica: trabalhavam como investigadores para uma instituição respeitável e publicaram os seus resultados
numa revista com revisão pelos pares. O que correu mal, então? Uma linha de explicação pode focar-se em factores que são
«externos» à ciência como influindo indevidamente no modo como a experiência foi conduzida e como os resultados foram
publicados. Poder-se-á dizer que houve uma pressão excessiva por parte da universidade no sentido de tornar os resultados
públicos antes de terem sido obtidos resultados semelhantes por grupos de investigação concorrentes que estivessem a
trabalhar em projectos semelhantes. Outro factor será possivelmente um optimismo excessivo por parte dos investigadores:
Fleischmann e Pons desejavam de tal maneira obter o tão ansiado resultado da fusão fria, que negligenciaram questões
metodológicas básicas no seu procedimento experimental e subestimaram o significado das objecções dos críticos. Uma outra
linha de explicação pode reforçar o que esteve em falta no que respeita aos critérios metodológicos de instâncias saudáveis de
investigação científica. A alegação de que a fusão fria tinha sido atingida não fora confirmada pelos indícios disponíveis, e os
resultados da experiência não puderam ser replicados por outras equipas de investigadores.
A questão de saber se é sempre possível uma distinção clara entre casos de má ciência e casos de pseudociência está em
aberto. Por exemplo, será possível que uma investigação que vise aumentar o conhecimento falhe de tal modo no que respeita
aos critérios processuais que deixe pura e simplesmente de ser ciência?

Exercício: Procure outro exemplo de má ciência e identifique os factores que contribuem para que seja má.

Discussão: Acha que as razões que os cientistas x/ podem ter para acreditar na verdade das suas hipóteses podem alguma
vez ser «externas» à prática da ciência?

Resumo
Neste capítulo começámos por enquadrar várias questões que podem ser colocadas na tentativa de delimitar os conceitos de
ciência e de investigação científica. Nos capítulos que se seguem iremos concentrarmos em áreas distintas da prática da
ciência, entre as quais a sua metodologia, a sua linguagem, o seu desenvolvimento histórico, os seus pressupostos ontológicos,
o seu progresso e a sua relação com o resto da sociedade. No decurso do exame das questões filosóficas que se levantam
nessas áreas, encontraremos outros critérios que poderão ajudar-nos a obter uma explicação mais satisfatória sobre a
distinção entre ciência e não-ciência.
Aqui abordámos a questão da demarcação de uma maneira mais geral, e revimos algumas das explicações disponíveis sobre
as diferenças que se considera haver entre ciência e ética, ciência e metafísica, ciência e pseudociência, entre as ciências
naturais e sociais, e entre a boa e a má ciência. Também reflectimos sobre o conceito de investigação científica e os seus
aspectos processuais e funcionais.
Até agora, a ideia que fica é uma ideia de continuidade, na qual as diferenças que se considera haver entre o que é tomado
como ciência e o que não é não resultam muito claras, pelo que as esperanças de conseguirmos uma distinção clara e imediata
a partir dos critérios de verificabilidade e falsificabilidade acabam por cair por terra. Mas isto não é, necessariamente,
motivo para preocupação.

Cenas dos próximos capítulos


No capítulo 2 continuaremos a discussão sobre o que torna a ciência diferente da não-ciência, focando-nos nas características
do raciocínio científico e no método científico. No capítulo 5 reconsideraremos as questões da demarcação no que respeita à
racionalidade da ciência e ao modo como progride.

Questões para pensar


1. Serão o marxismo e a homeopatia pseudocientíficos? Porquê?
2. Quais são as analogias entre a ciência e a metafísica?
3. Em que medida a falsificabilidade funciona como um critério de demarcação?
4.4Que factores determinam se a astrologia é uma ciência?
5. Em que é que a psicologia e a física diferem?
6. Se a ciência é apenas uma tradição de pensamento entre outras, o que será responsável pelo papel especial que parece
desempenhar na sociedade contemporânea?

Leituras complementares

Uma influente e muito citada conferência de Imre Lakatos sobre ciência e pseudociência pode ser descarregada a partir do
portal da London School of Economics (www.lse.ac.uk/collections/lakatos/scienceAnd Pseudoscience.htm). Na conferência
(primeiramente divulgada em 1973), Lakatos resume o seu ponto de vista sobre o problema da demarcação, que também pode
ser encontrado em A Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Outras leituras de obras clássicas incluem
escritos de Popper, Kuhn e Laudan, que se encontram na colectânea de Curd e Co ver (1998).
Na literatura mais recente, encontrará contributos para o debate sobre se disciplinas ou programas de investigação
particulares são cientificamente respeitáveis, mais do que saber se são respostas ao problema da demarcação em geral. Por
exemplo, há uma série de leituras sobre se a investigação em psicologia (Chauvin 1999; Lilienfeld et al. 2004) ou se as
teorias do desígnio inteligente (Haack 2005; Kitcher 1982; Fuller 2007) podem ser qualificadas propriamente como
científicas. Para uma abordagem mais exaustiva, veja duas tentativas de redefinir o problema da demarcação em Dupré (1993)
e Kitcher (1993).
Há também muitos exemplos fascinantes de ciência patológica em duas publicações recentes: Gratzer (2000) e Park (2000).
2. Raciocínio

A natureza do raciocínio científico e da metodologia científica sempre desempenharam um papel fundamental na distinção
entre ciência e não-ciência. Quase todas as respostas à pergunta sobre a demarcação fazem explicitamente referência à
maneira como os cientistas raciocinam para chegar à articulação das suas teorias e à formulação dos princípios que governam
os fenómenos naturais e sociais. Será legítimo acreditar que a ciência tem um método único, rigoroso e fiável, que permite aos
cientistas chegar a conclusões que são falíveis, mas nas quais se pode confiar?
Neste capítulo focar-nos-emos principalmente na natureza, na força e nas limitações do chamado «método científico».
Algumas questões que os filósofos colocaram e ainda colocam são sobre as origens do método científico, sobre se pode ser
aplicado ao domínio vasto e heterogéneo de todas as disciplinas científicas, e sobre se é mesmo fiável. Para lhes
respondermos, precisamos de alguma terminologia. Assim, na primeira parte do capítulo, incidiremos nos diferentes tipos de
afirmações e argumentos. Veremos que há maneiras diferentes de raciocinar, que algumas têm como objectivo principal a
aquisição de informação nova e que, ao contrário, outras procuram consolidar o conhecimento já existente.
Na segunda parte do capítulo, aludiremos a alguns exemplos históricos para ilustrar as mudanças importantes que ocorreram
durante a revolução que, segundo a tradição, marca o nascimento da ciência madura. Identificaremos as características que a
distinguem de anteriores tentativas de compreensão e descrição da natureza, e veremos como muitos factores tiveram nisso um
papel de relevo, incluindo alguns pressupostos metafísicos sobre o lugar da humanidade na natureza, algumas inovações
metodológicas, como o reconhecimento da importância da repetibilidade das experiências e das observações, e algumas
mudanças no seio das instituições, como a criação de sociedades eruditas e de redes de pessoas interessadas em desenvolver
a ciência, que promoveram a troca de ideias e a transparência dos métodos.
A ênfase na inovação não deve levar-nos a pensar que a ciência foi completamente reinventada após a Revolução
Copernicana, ou que as mudanças descritas foram súbitas e abruptas. Podem ser identificados elementos de continuidade entre
a física aristotélica e a newtoniana, além de que uma característica da ciência — o uso de experiências mentais — é um
excelente exemplo desta continuidade, uma vez que vai de Aristóteles a Einstein.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Identificar e comparar diferentes tipos de raciocínio.


• Reconhecer uma variedade de estratégias argumenta tivas.
• Avaliar os pontos fortes e fracos da indução.
• Identificar alguns aspectos fundamentais da mudança de metodologia que ocorreu durante a revolução científica.
• Discutir o papel das experiências mentais e das experiências reais na prática da ciência.

2.1 Maneiras de raciocinar

Os filósofos em geral, e os filósofos da ciência em particular, prestam especial atenção às várias maneiras como adquirimos,
processamos e organizamos a informação. Somos a todo o momento depositários de crenças, como por exemplo que amanhã
choverá ou que 2 + 2 = 4. Que amanhã choverá é uma afirmação a posteriori, isto é, a sua verdade ou falsidade não pode ser
determinada sem nos basearmos em alguma forma de indícios (a experiência dos sentidos ou o testemunho). Já 2 + 2 = 4 é uma
afirmação a priori, uma vez que a sua verdade ou falsidade depende das convenções da matemática. Nenhuns indícios podem
vir em apoio da verdade da afirmação, e a própria afirmação não oferece descrição alguma de factos empíricos.
«Ela pode tanto comparecer na cerimónia como não» é outro exemplo de uma afirmação a priori. Podemos assegurar a
verdade desta afirmação sem nos basearmos em qualquer tipo de experiência, pois é a estrutura lógica da afirmação (ou seja,
a disjunção de duas alternativas que se excluem mutuamente) que garante a sua verdade.

2.1.1 Justificação e verdade

De que maneira formamos e actualizamos as nossas crenças? Podemos acreditar que amanhã vai chover porque ouvimos a
previsão do tempo na rádio. E provável que mantenhamos esta crença se não encontrarmos indícios em contrário. Acreditamos
que 2 + 2 = 4 porque fomos ensinados que assim é quando aprendemos matemática na escola, quando o tornarmo-nos hábeis
nestes cálculos básicos fez parte do modo como começámos a compreender o conceito de números, e de operações como as
somas e as subtracções. Mantemos as crenças que adquirimos desse modo, a menos que questionemos as convenções da
matemática.
Quando testemunhamos um acidente ou olhamos para o termostato ou misturamos azeite com água na cozinha ou observamos
um eclipse raro a olho nu, adquirimos crenças sobre o comportamento das coisas e das pessoas à nossa volta. Em todos estes
casos, temos a experiência directa do que acontece, do que vemos ou sentimos, e em grande medida ganhamos essa
experiência por via da observação. Mais frequentemente, porém, as nossas crenças provêm de fontes indirectas, algumas mais
fiáveis que outras (especialistas destacados, professores, livros, televisão, internet, boatos, tradição, por exemplo). E há,
finalmente, crenças que retiramos de crenças anteriores. Se sei que o meu amigo João é alérgico aos camarões e que no
banquete há um salteado que contém camarão-tigre, então formo a crença de que o João deve evitar o salteado.
As nossas crenças são justificadas se temos boas razões que sustentem o seu conteúdo. Mas há uma diferença entre verdade e
justificação. A minha crença de que amanhã vai chover pode ser justificada — pode, por exemplo, provir de uma fonte fiável
— e no entanto acabar por ser falsa. A justificação não garante a verdade. Por outro lado, posso ter uma crença verdadeira,
como por exemplo que o meu vizinho é um espião, sem ter a mínima prova que a apoie. O que eu acho ou o que neste caso o
meu instinto me disse, coincidiu por acaso com algo que é verdade, mas a minha crença não é justificada.
Há pelo menos duas razões para nos interessarmos pelas crenças justificadas. Primeiro, por vezes a verdade não chega.
Termos uma justificação para as nossas crenças torna mais fácil convencer os outros da sua verdade. No tribunal, por
exemplo, o que eu acho e o meu instinto me diz não contam. É preciso provas de que o acusado é culpado ou de que não houve
crime. Segundo, é mais provável que, desde que coerentemente organizadas, as crenças justificadas ofereçam uma explicação
satisfatória para os fenómenos por que nos interessamos. Dificilmente valorizaríamos um conjunto aleatório de crenças
verdadeiras, mas se tivermos fundamentos para elas, é mais provável que vejamos as ligações entre elas e que delas retiremos
outras implicações, o que potencialmente alarga o conhecimento.
Por vezes, os sistemas de crenças coerentemente organizados formam teorias. Formamos teorias em contextos muito
diferentes, não apenas no contexto das disciplinas científicas formais. Temos teorias sobre toda a variedade de coisas: por
exemplo, sobre como ser bem-sucedido nas entrevistas de emprego, sobre o que originou a tensão no Médio Oriente, sobre o
motivo por que John Grisham vende tantos livros.

Exercícios: 1) Pense noutros exemplos de crenças não justificadas que acabam por ser verdadeiras e b) crenças
justificadas que acabam por ser falsas. 2) Em que condições não confiaria a) na experiência directa e b) no testemunho?

2.1.2 Argumentos dedutivos

Suponhamos que encontra o André numa festa e que ele lhe diz que gosta de todas as comédias escritas por Shakespeare. Diz-
lhe: «Portanto, deves gostar de Muito Barulho por Nada. É a minha preferida!» A sua resposta mostra que fez uma dedução,
ou seja, que chegou a uma nova crença a partir de duas outras crenças que já tinha. A estrutura do argumento é a seguinte:

Argumento 1

Premissa 1: O André gosta de todas as comédias escritas por Shakespeare.


Premissa 2: Muito Barulho por Nada é uma comédia e foi escrita por Shakespeare.
Conclusão: O André gosta de Muito Barulho por Nada.

Consideremos outro exemplo de um argumento dedutivo. Imaginemos que precisa desesperadamente de uma boleia e que está
à procura de alguém que o possa levar ao hospital. Saul, o irmão do seu amigo, está mesmo do outro lado da rua, mas não lhe
pede a ele, pois o Saul tem apenas 13 anos.
Argumento 2

Premissa 1: Com 13 anos não se pode ter uma carta de condução válida.
Premissa 2: Saul tem 13 anos.
Conclusão: Saul não tem uma carta de condução válida.

Estes exemplos mostram que usamos a dedução com frequência, quando retiramos informação adicional a partir da informação
que já temos. Nos argumentos atrás esquematizados, a conclusão não contém qualquer informação nova. A conclusão torna
explícito algo que já está implicitamente contido nas premissas (A caracterização do raciocínio dedutivo aqui apresentada
pela autora, segundo a qual a conclusão dos argumentos dedutivos está implicitamente contida nas premissas, tem sido
disputada. Se interpretarmos a expressão «está contida em» em sentido lógico, então isso apenas significa que a conclusão é
implicada pelas premissas [que a conclusão é uma consequência lógica delas], o que é trivialmente verdadeiro e, portanto,
indisputável. Mas há também uma interpretação epistémica da expressão «está contida em», caso em que se quer dizer que a
conclusão não acrescenta informação que as premissas não contenham já. Isto é o que pensa também a autora, mas é esta
interpretação que outros autores [Russell, por exemplo, em Os Problemas da Filosofia, Cap. 8] não consideram adequada. A
ideia de quem não partilha esta interpretação é que se a conclusão do argumento dedutivamente válido não acrescentasse
informação nova ao que já se encontra nas premissas, então a demonstração dos teoremas da incompletude [assim como
muitos outros resultados da matemática] não constituíam genuínas descobertas realizadas por Gödel, nem contavam como um
genuíno avanço no conhecimento, o que parece claramente inaceitável. -N. do R.).
Repare que há uma relação especial entre as premissas e a conclusão. Se as premissas forem verdadeiras e o argumento for
válido, a conclusão não pode ser falsa. Uma maneira de descrever esta relação é dizer que a conclusão é uma consequência
lógica das premissas, ou que se segue logicamente das premissas. A estrutura dos argumentos apresentados é tal, que a
transmissão da verdade das premissas para a conclusão está garantida.

Exercício: Identifique a estrutura lógica do argumento 2 e encontre outro exemplo de argumento que se enquadre nessa
estrutura.

Quando avaliamos um argumento dedutivo, interessa-nos a sua validade e solidez. Um argumento é válido se a conclusão se
segue logicamente das premissas, como nos exemplos do Quadro 2. A validade depende da forma lógica do argumento
(Tipicamente, a validade dedutiva depende exclusivamente da forma lógica. Porém, há casos menos frequentes de inferências dedutivamente válidas cuja validade não
depende da forma lógica. E o que se passa com os argumentos cuja validade depende dos termos ou conceitos envolvidos nas premissas e na conclusão, como, no
exemplo: «A mochila da Maria é azul. Logo, é colorida.» Esta inferência é dedutivamente válida mas a sua validade não se deve à sua forma lógica - N. do R.). Um
argumento válido é também sólido se as premissas são verdadeiras. O argumento 3 é um exemplo de um argumento dedutivo
válido que não é sólido porque a premissa 1 é falsa.

Argumento 3

Premissa 1: Todos os marcianos são verdes.


Premissa 2: Eu não sou verde.
Conclusão: Logo, eu não sou uma marciana.

2.1.3 Argumentos não dedutivos


Suponhamos que convidou a Sara para ver o último filme de Tarantino. Ela abana a cabeça e diz: «Desculpa, mas não vou. Já
vi três filmes dele e todos tinham cenas de violência. Não me apetece ver um filme desse género hoje.» A Sara raciocinou
indutivamente. Viu três filmes de um realizador e reparou numa característica comum a todos eles. Ela espera que o último
filme do realizador tenha essa característica. A estrutura do seu argumento é a seguinte:

Argumento 4

Premissa 1: Cães Danados, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.


Premissa 2: Pulp Fiction, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.
Premissa 3: Jackie Brown, o filme de Tarantino, continha cenas de violência.
Conclusão: O novo filme de Tarantino também contém cenas de violência.

As premissas constituem a base indutiva para a conclusão da Sara, que é uma previsão com base na experiência anterior.
Consideremos um cenário ligeiramente diferente. Suponhamos que nunca estive no hemisfério sul e que nunca fui a um jardim
zoológico. Se me perguntar se existem cisnes negros, poderei raciocinar do seguinte modo:

Argumento 5

Premissa 1: Todos os cisnes que vi até hoje são brancos.


Conclusão: Todos os cisnes são brancos.

Aqui, generalizo a minha crença sobre a cor dos cisnes a partir de uma amostra limitada (constituída por todos os cisnes que
vi na minha vida) para a população total de cisnes. O argumento 4 e o argumento 5 são ambos casos de indução por
enumeração. O raciocínio indutivo por enumeração ocorre quando ampliamos de um número de casos de que tivemos
experiência até a o próximo caso ou a uma generalização universal, e quando alargamos a relação entre duas propriedades
numa amostra à relação entre essas duas propriedades numa população. O argumento 4 é um exemplo de indução por
enumeração até ao próximo caso (o próximo filme de Tarantino), ao passo que o argumento 5 é um exemplo de indução por
enumeração até uma generalização universal («Todos os cisnes são brancos»), uma afirmação do tipo «Todo o A é B».
Ao comparar estes exemplos de raciocínio indutivo com os anteriores, poderá verificar que há diferenças significativas entre
a indução e a dedução. O raciocínio indutivo é mais audaz que o raciocínio dedutivo: a conclusão contém informação que não
aparece logo nas premissas. No raciocínio indutivo, inferimos a partir de indícios disponíveis para casos de que não tivemos
ainda experiência (o próximo caso) ou de que nunca conseguiremos ter experiência na sua totalidade (a generalização
universal). Por mais vasto que seja, o nosso corpo de indícios nunca poderá garantir a verdade da conclusão.
Nos argumentos dedutivos, se as premissas forem verdadeiras e se o argumento for válido, então a conclusão tem de ser
verdadeira. Nos argumentos indutivos, as premissas só podem apoiar a conclusão, tornando mais provável que seja
verdadeira. O que ainda não sabemos pode não ser bem como o que já sabemos: afinal, os cisnes da Australásia são negros e
o próximo filme de Tarantino pode não conter cenas de violência.
Há um outro tipo de inferência não dedutiva, chamada inferência a favor da melhor explicação. Imagine que Daniel é um
detective que está a investigar um assassínio misterioso. Há muitas pistas que o podem conduzir ao assassino, mas nenhuma é
conclusiva. Daniel tem de tomar uma decisão e tem três suspeitos. Ele pode raciocinar do seguinte modo: que hipótese explica
melhor todas as pistas disponíveis? E assim que os médicos muitas vezes raciocinam para chegarem a um diagnóstico. Quando
diagnosticam uma doença, podem chegar à conclusão de que o doente sofre da doença que melhor explica a ocorrência de
todos os sintomas que relata.
Estes exemplos mostram algumas das características da inferência a favor da melhor explicação. Ela pretende alargar o nosso
conhecimento, ao invés de tornar explícito na conclusão o que já está contido nas premissas, e portanto parece-se mais com a
indução do que com a dedução. A inferência a favor da melhor explicação, como a indução por enumeração, recomenda a
conclusão como provável dadas as premissas, e não como seguindo-se necessariamente das premissas.
Uma limitação da inferência a favor da melhor explicação é que, quando se selecciona uma série de hipóteses explicativas
viáveis, a explicação correcta pode não se encontrar entre as hipóteses que estão a ser consideradas. Quando o detective ou o
médico escolhem entre hipóteses explicativas viáveis, baseiam-se em crenças e critérios preexistentes para o que é
considerado uma boa explicação, o que pode depender de outras teorias que aceitam.

Quadro 2.2 — Diferenças e semelhanças entre três tipos comuns de argumentos

*Ver nota do revisor da p. 44. Vale a pena insistir que muitos autores caracterizam a diferença entre tipos de argumentos não por uns, ao contrário de outros, serem ampliativos, mas antes pelo modo como isso
ocorre. Assim, defendem que as inferências dedutivas são também ampliativas, só que isso se deve ao seu carácter estritamente combinatório, o que não sucede com as inferências indutivas. N. do R.

Podemos dizer que um argumento indutivo ou uma inferência são sólidos se tanto as premissas como a conclusão forem
verdadeiras, mas não podemos dizer que são válidos da mesma maneira que um argumento dedutivo o é, ou seja, logicamente
válidos. Num argumento dedutivo ou numa inferência a favor da melhor explicação, a conclusão não deriva das premissas.
Mas podemos dizer que um argumento indutivo ou que uma inferência a favor da melhor explicação são «correctos» se as
premissas apoiam a conclusão (neste caso, a conclusão pode acabar por ser falsa).

Exercício: Identifique mais três exemplos de raciocínio indutivo ou de inferência a favor da melhor explicação.

Discussaõ: Será que a probabilidade de a conclusão ser verdadeira varia nos exemplos dados? De que depende?

2.1.4 O raciocínio na prática científica

Nos exemplos de dedução, indução e inferência a favor da melhor explicação que até agora considerámos, vimos que estas
formas de raciocínio são empregues no raciocínio e na resolução de problemas quotidianos. Ora, será que a distinção entre
estes tipos de raciocínio também é importante para a prática da ciência?
A dedução é um poderoso gerador de inferências, e está patente no raciocínio que ocorre quando tentamos provar que a soma
dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180°; retiramos o que queremos provar a partir dos axiomas do nosso sistema
formal de geometria e dos teoremas que temos ao nosso dispor. Nas ciências empíricas, porém, os princípios a partir dos
quais retiramos mais hipóteses para provar também precisam de confirmação empírica, e usamo-los nas nossas deduções por
nossa conta e risco. A maioria dos filósofos da ciência concordaria que as leis da natureza não possuem uma natureza
convencional e não são como as verdades lógicas ou como as meras definições de conceitos, mas são consideradas
afirmações gerais sobre fenómenos num domínio particular, e normalmente chega-se a elas por via da abstracção com base
nos resultados da observação e da testagem. A compreensão, descrição rigorosa e previsão de factos que se enquadram no
âmbito de uma teoria parecem ser reféns da indução. Isto é, em certa medida, controverso, e alguns filósofos defenderam que a
indução não é necessária na ciência (ver Popper 1953).
A indução por enumeração, ao fundamentar as crenças sobre os fenómenos gerais na experiência anterior de fenómenos
particulares, sustenta as nossas acções e expectativas quotidianas, e é comummente considerada a base de todo o
conhecimento empírico. É uma forma de raciocínio ampliadora, ou seja, visa alargar o domínio do nosso conhecimento. Mas
não proporciona certeza alguma, pois todas as generalizações a partir de observações anteriores são falíveis.
Na ciência temos muitos exemplos de casos em que o que era considerado uma explicação convincente dos dados disponíveis
acabou por se revelar incompleto ou erróneo. Tomemos o exemplo do debate sobre as causas das úlceras no estômago na
investigação médica. Durante anos, os investigadores acreditaram, com base nas suas observações, que as bactérias não
conseguiam sobreviver num ambiente ácido como o do estômago, e portanto excluíram a possibilidade de as bactérias serem a
causa das úlceras. O stress e a comida muito condimentada eram considerados os possíveis causadores das úlceras, pelo que
o tratamento recomendado consistia na prescrição de fármacos para bloquear a produção de ácido. Recentemente, Warren e
Marshall descobriram que há um microorganismo responsável por muitas úlceras no estômago e no duodeno (Helicobacter
pilori) que vive no estômago e que se adapta ao seu meio hostil. Hoje, a cura consiste na eliminação deste microorganismo. O
mundo da investigação científica lembra-nos sem cessar que por mais que as hipóteses que temos se adeqúem aos dados
previamente recolhidos ou estejam arreigadas à nossa maneira de ver as coisas, podem sempre resultar incompletas ou
imprecisas, e precisar de ser revistas ou substituídas.
A inferência a favor da melhor explicação é alegadamente uma forma de raciocínio aplicada pelos cientistas em circunstâncias
em que os indícios não excluem hipóteses explicativas incompatíveis, mas são melhor explicados por algumas das hipóteses
explicativas disponíveis do que por outras. Em Companion to the Philosophy of Science, Peter Lipton (2001), ilustra este
caso com o exemplo de Darwin, que alinhou com a hipótese da selecção natural porque estava convencido de que esta
proporcionava a melhor explicação para os indícios biológicos disponíveis.
Outro exemplo clássico de uma descoberta científica feita por inferência a favor da melhor explicação é o de Kepler, ao
chegar à conclusão de que a órbita de Marte é elíptica. De acordo com uma reconstrução controversa (Hanson 1958), o que
Kepler fez foi partir dos indícios de que dispunha para chegar a uma hipótese capaz de proporcionar a melhor explicação para
os mesmos, com base em algumas crenças de base e princípios metodológicos. Na época, havia explicações rivais para as
observações do movimento de Marte. Estas observações pareciam não apoiar a ideia aristotélica comummente aceite de que
os corpos celestes se movimentam em círculos. Algumas hipóteses mantinham que a órbita era circular, mas acrescentavam
alguns expedientes para explicar as irregularidades (o ponto equante de Ptolomeu ou os movimentos epicíclicos). Para Kepler,
no entanto, a hipótese de que a órbita era de facto elíptica possuía várias vantagens sobre as adversárias: explicava
satisfatoriamente todos os indícios disponíveis; parecia satisfazer os constrangimentos da sua teoria astronómica; não
implicava expedientes geométricos irrealistas; permitia previsões precisas.
Os problemas com a inferência a favor da melhor explicação surgem quando nos focamos mais de perto na noção adequada de
explicação. As comparações entre os poderes explicativos de hipóteses alternativas só podem ser feitas se tivermos uma
forma objectiva de medir esses poderes, e, como veremos, os filósofos da ciência dão explicações muito diferentes sobre as
condições que uma boa explicação tem de cumprir.
No que respeita aos pontos fortes e às limitações do raciocínio indutivo, manter-nos-ão ocupados até ao final deste capítulo.

2.2 O método científico: a indução

O primeiro filósofo a afirmar explicitamente a centralidade do raciocínio indutivo na metodologia científica foi Francis
Bacon, na sua obra Novum Organum (Novo Método). Esta obra pretendia substituir o texto metodológico oficial há muito
estabelecido do filósofo grego Aristóteles, intitulado Organum. Bacon viveu numa época (século XVII) em que o estudo das
ciências naturais florescia e a autoridade dos grandes pensadores do passado começava a ser questionada. Estava ciente de
que se inseria numa importante fase de transição, na qual a física e a astronomia aristotélicas eram postas em causa pelas
obras de Copérnico, Kepler e Galileu, e, com determinação, avançou a sua própria visão de como a ciência deveria proceder.
O método indutivo descrito por Bacon começa com a observação dos fenómenos naturais. Bacon pensa que devemos
apresentar os resultados das nossas observações em tabelas, para compararmos os dados. Da experiência sensível, partimos
então para axiomas inferiores, e dos axiomas inferiores para axiomas superiores, que operam a um nível de generalidade cada
vez maior. A partir dos axiomas superiores, podemos esperar obter leis da natureza a partir das quais se podem prever novos
dados e organizar observações de novos fenómenos. Mas Bacon pensava que, antes que os dados pudessem dar origem a
axiomas, devíamos usar um procedimento a que muitas vezes se chama indução eliminativa. Este consiste em identificar
várias hipóteses explicativas para um conjunto de dados, e excluir aquelas para as quais se encontraram contra-exemplos.
Podem ser concebidas experiências para confirmar ou contestar as hipóteses, até que uma sobreviva aos testes. Os passos
descritos por Bacon formam um ciclo de conhecimento (a partir de um nível de generalização inferior até um superior, e
depois do superior ao inferior) que supostamente conduz os cientistas a uma maior proximidade da verdade.
Além da ênfase na indução, há outros aspectos importantes do trabalho de Bacon que veremos com maior pormenor em
seguida: defendeu uma metodologia empírica numa época em que o uso de observações e de experiências na ciência não era
ainda a norma, e deu valor à dimensão colaborativa da prática científica.

2.2.1 As inovações na emergência da ciência moderna

Bacon faz parte da chamada «revolução científica». Os acontecimentos que conduziram à aceitação do sistema copernicano do
movimento dos planetas, que culminaram na formulação das leis da física de Newton, são muitas vezes caracterizados como
os capítulos fundamentais da fascinante história do nascimento da ciência moderna. A razão para se investir a Revolução
Copernicana de um papel tão importante na filosofia da ciência não tem apenas a ver com o derrube espectacular das teorias
astronómicas e físicas de Aristóteles e Ptolomeu, mas também com as inovações metodológicas que foram ocorrendo
gradualmente a partir do final do século XVI.
Eis as cinco mudanças mais dignas de nota:

1. A autoridade dos filósofos naturais do passado é posta em causa com base em novas observações e novas ideias sobre o
método da ciência;
2. A matemática passa a ser concebida como a linguagem da natureza, e é conferida uma estrutura explicitamente matemática
às teorias da física e da astronomia;
3. Os cientistas começam a fazer uso de experiências e da observação mediada de uma maneira regular e sistemática,
intervindo activamente na natureza;
4. Dá-se uma certa institucionalização da investigação colaborativa, o que origina o desenvolvimento de sociedades eruditas;
5. A perspectiva na qual se enquadra a explicação da natureza (o movimento, a cosmologia, a fisiologia, etc.) deixa
gradualmente de ser organicista, ou seja, de ver os fenómenos naturais como o resultado de intenções, para passar a ser
mecanicista, vendo os fenómenos naturais como efeitos de interacções causais entre as várias partes de uma máquina de
funcionamento perfeito, quer se trate do corpo humano, quer do universo como um todo.

Estes elementos estão inter-relacionados, e, vistos como um todo, dão-nos uma ideia de como a ciência moderna emergiu não
somente da conquista de descobertas teóricas e da adopção de novas metodologias, mas também da instauração gradual de
novos enquadramentos explicativos e da emergência de uma nova concepção da natureza. No que se segue focar-nos-emos em
alguns destes pontos, e daremos uma explicação sobre a maneira como contribuíram para transformar quer a natureza da
investigação científica, quer o papel do investigador (que de «filósofo natural» passou a «cientista»).
Há duas maneiras de conceber o papel da matemática na prática da ciência. Uma pode ver a matemática como um mero
instrumento para facilitar previsões. Esta abordagem era comum numa disciplina como a astronomia, cujos principais
objectivos pareciam ser a previsão do movimento dos planetas por meio de cálculos complexos. Se os cálculos adoptados
revelavam a estrutura física do universo era uma questão que podia ser secundarizada, desde que o movimento dos planetas
pudesse ser rigorosamente antecipado (a perspectiva instrumentalista). Ou então a matemática pode ser considerada como
uma linguagem que capta as próprias relações entre os fenómenos observáveis e promove uma compreensão mais aprofundada
dessas relações (a perspectiva realista).
Os principais intervenientes da Revolução Copernicana viam a matemática em termos realistas, e usavam-na para obter uma
descrição rigorosa da realidade. O exemplo mais flagrante da concepção realista da matemática vem do próprio Nicolau
Copérnico. No seu De revolutionibus orbium celestium (Sobre o movimento das esferas celestes ), avança a ideia de que a
Terra se move e o Sol é o centro do universo. Esta ideia não era inédita, mas nunca tinha sido fundamentada com um trabalho
matemático tão preciso e pormenorizado. Os cálculos matemáticos não somente apoiaram a perspectiva heliocêntrica, como
também foram a razão principal para uma mudança bastante radical na concepção dos chamados corpos celestes e do mundo
físico em geral, que era um dado adquirido para leigos, intelectuais e autoridades religiosas por igual. O que conduziu
Copérnico ao modelo heliocêntrico como uma representação do universo foi o facto de o sistema ptolemaico não conseguir
fazer previsões astronómicas precisas. Para ele, a matemática era um guia para a realidade: se os cálculos não funcionassem,
então a teoria física que supostamente lhes corresponderia tinha de ser substituída.
Da mesma maneira, as experiências também não eram desconhecidas antes do século xvi, sendo frequentemente conduzidas e
relatadas em textos científicos observações no campo da astronomia e da física terrestre. Uma vez mais, porém, o papel do
trabalho experimental não possuía a centralidade que tem hoje na nossa concepção da metodologia científica. Nas décadas que
precederam os Principia Mathematica Philosophiae Naturalis (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), obra
publicada em 1687, o passo em frente consistiu na legitimação do uso de experiências como uma componente aceite da prática
da ciência. Na tradição anatómica e alquímica, tornava-se cada vez mais comum fazer e registar experiências para finalidades
de ensino e investigação. A título de exemplo, William Harvey, que descobriu como a circulação sanguínea funciona,
empregou técnicas experimentais e fez vivissecção.
O uso de instrumentação para ajudar nas observações da natureza também estava a ser introduzido, mesmo que alguns
instrumentos inovadores ainda fossem encarados com desconfiança. O exemplo mais famoso é o telescópio de Galileu.
Galileu construiu um telescópio para observar os céus e, na sequência das suas observações, afirmou que a Lua tinha uma
superfície imperfeita e que o Sol tinha manchas. Estas descobertas foram incrivelmente revolucionárias, uma vez que a ideia
comummente aceite era que os corpos «celestes» eram feitos de uma substância especial e que, ao contrário da Terra, tinham
uma superfície perfeitamente lisa. Muitos astrónomos teóricos duvidaram da fiabilidade do telescópio, sugerindo que era
enganoso, e que as observações mediadas por um instrumento assim não deviam ser consideradas como provas contra a ideia
vigente dos corpos celestes. Afinal de contas, se ao telescópio a Lua parecia tão mais próxima de nós do que na realidade, o
que poderia garantir que o telescópio não criaria outras «ilusões»? A nossa resposta seria: os conhecimentos de óptica que
Galileu possuía, e o facto de combinar as lentes de tal modo que ampliavam objectos distantes sem alterar a sua aparência.
Mas se nos lembrarmos que a óptica era então uma ciência muito jovem e que ainda não se tinha chegado a um consenso sobre
as leis que a governavam, podemos começar a perceber como era difícil para os cientistas justificar o uso de equipamento
novo e a sua fiabilidade.
Outro sinal importante da ciência madura é o reconhecimento da natureza colaborativa da investigação e a necessidade de
instituições que promovam a troca de ideias e ocasiões para o debate. No século XVII foram fundadas três instituições
importantes: a Academia dei Cimento em Itália, em 1657, a Royal Society em Londres, em 1660, e a Académie Royale des
Sciences, em Paris, em 1666. Estas instituições promoviam a correspondência entre os praticantes de ciência, e as suas
publicações celebravam o recentemente instituído método empírico da ciência. Alguns historiadores observaram que a
influência crescente do método experimental tornou a comunicação científica ainda mais importante, uma vez que os cientistas
tinham de ser capazes de reproduzir as experiências de modo a avaliar os resultados obtidos e divulgados por outros.
Fazendo uso do exemplo dos estudos de pneumática feitos por Robert Boyle por meio de experiências com uma bomba de ar
no século xvii, Steven Shapin (1984) defende que na ciência moderna já não é suficiente ter a tecnologia material para realizar
as experiências, mas que também é necessário ter os meios para permitir que as pessoas conheçam os resultados das
experiências e determinar regras de base para a aceitação das alegações de conhecimento em ciência. (Isto recordá-lo-á da
ênfase na transparência e na abertura à crítica como um critério processual para a demarcação entre ciência e não-ciência que
considerámos no capítulo anterior.) No momento em que Boyle fazia as suas experiências, a Real Sociedade Filosófica
londrina transformava-se num espaço público onde os resultados das investigações científicas podiam ser partilhados e
debatidos. A ideia de que as hipóteses experimentais precisavam da aprovação de uma comunidade de praticantes para ser
legitimada como conhecimento científico emergia lentamente, sendo hoje uma característica definidora da investigação
científica.
Exercício: Consegue pensar em exemplos de novasdescobertas na ciência contemporânea que deram origem não só a
novas hipóteses teóricas, como também a inovações metodológicas?

2.2.2 Experiências mentais

Quando descrevemos o impacto de uma revolução científica, é sempre fácil destacar a importância das inovações. No entanto,
há elementos de continuidade que persistem juntamente com os sucessos metodológicos pioneiros. Actualmente, os cientistas
que se dedicam ao trabalho experimental fazem parte de uma comunidade que tem mecanismos prontos para confirmar a
fiabilidade dos seus procedimentos experimentais e a consistência dos seus resultados. Este aparato não surgiu de um dia para
o outro, e a presença de instituições de investigação foi apenas o início da formação de uma comunidade científica capaz de
dar credibilidade ao trabalho de investigadores ou de equipas de investigação.
Pese embora isso, os cientistas estão sempre à procura de maneiras de resolver o problema de encontrar estratégias
argumentativas bem-sucedidas para defender novas hipóteses e fazer face ao cepticismo dos seus públicos. O uso de
experiências mentais, por exemplo, parece resistir à passagem do tempo. Enquanto metodologia, foi criada para proporcionar
uma justificação quer à física aristotélica, quer à newtoniana, e também foi frequentemente usada no desenvolvimento da
teoria da relatividade. Há uma longa tradição de experiências mentais importantes nas ciências naturais, uma tradição que
começa quando Aristóteles e Galileu tentam descobrir as leis do movimento dos objectos terrestres, e que continua com o
exemplo de Albert Einstein do comboio atingido por raios, no seu primeiro artigo sobre a relatividade (1905).
Galileu queria testar as ideias de Aristóteles sobre a queda dos corpos, em particular o pensamento de que os corpos mais
pesados caem mais depressa. Imaginou então o que aconteceria se lançasse objectos da Torre de Pisa para observar a que
velocidade caíam. Se Aristóteles estivesse certo, uma pesada bala de canhão cairia a uma velocidade maior do que uma mais
leve bala de mosquete. Mas o que aconteceria se atirasse uma bala de canhão fixada a uma bala de mosquete (ou seja, um
agregado de dois corpos, um mais pesado e outro mais leve)? Este corpo agregado supostamente cai quer mais rápido do que
a bala de canhão por si só, porque é mais pesado, quer mais lentamente, uma vez que a parte mais leve desaceleraria a mais
pesada. Por conseguinte, a linha de raciocínio baseada na lei do movimento de Aristóteles conduz a uma contradição, o que
significa que o pressuposto de que Galileu partiu — que os corpos mais pesados caem mais depressa — tem de ser rejeitado.

Exercício: Será que Galileu apresenta aqui um bom argumento contra a lei do movimento de Aristóteles?

Einstein usou a famosa experiência mental do comboio para provar que a ideia newtoniana de que o espaço e o tempo são
absolutos estava errada. Para argumentar que são relativos, Einstein mostra que determinar se dois acontecimentos são
simultâneos é uma questão que depende do referencial adoptado. Imaginemos que uma carruagem de comboio viaja a uma
velocidade uniforme e que um passageiro (P) se encontra no meio da carruagem a observar uma lâmpada que emite raios de
luz que chegam aos dois extremos da carruagem, onde foram colocados dois detectores (Dl e D2). Para esta pessoa, se a
lâmpada também se encontra à mesma distância das duas extremidades, os raios chegam aos detectores ao mesmo tempo.
Imaginemos agora que há um observador externo (O) que olha para o comboio a passar e que vê a lâmpada e os detectores
através de uma janela aberta. O observador não vai percepcionar a detecção dos dois raios como simultânea, pois está a ver o
comboio em movimento. A luz chegará a um detector (Dl) mais cedo do que ao outro (D2) porque, embora a velocidade da luz
seja constante, a distância que a luz tem de percorrer para chegar a D2 é maior do que a distância que tem de percorrer para
chegar a Dl. A experiência mental tem como objectivo mostrar que a simultaneidade dos acontecimentos depende do
referencial (a perspectiva dos observadores, por exemplo). (Ver figuras 2.1 e 2.2.)

As experiências mentais são experiências conduzidas na cabeça do experimentador, ao invés de na natureza ou no laboratório.
O experimentador pensa numa situação específica, imagina que algo acontece em tal cenário, e tira conclusões com base nas
consequências desse acontecimento imaginário. Muitas vezes a experiência é imaginada em vez de realizada devido a
limitações físicas ou tecnológicas. Outras vezes, a experiência mental é uma sonda de intuição, usada para tornar explícita a
maneira como pensamos sobre certas situações ou para destacar inconsistências não antes detectadas.
Se as experiências mentais são ou não um recurso científico de valor é uma questão passível de discussão, e as posições
variam consideravelmente. Segundo Thomas Kuhn (1977, 1979) e Tamar Szabó Gendler (1998), elas podem promover
reformas conceptuais e levar à substituição de uma teoria por outra. Kuhn defende que o uso de experiências mentais não
apenas clarifica o aparato conceptual no âmbito do qual os cientistas operam, como também reproduz o choque entre
interpretações opostas da natureza, preparando assim o terreno para revisões teóricas radicais. O seu ponto de vista é
apelidado «construtivista» porque, segundo o mesmo, ao invés de porem em causa uma teoria existente, as experiências
mentais põem em causa todo um modo de pensar, todo um aparato conceptual. O seu exemplo preferido é o da série de
experiências que Galileu concebeu para mostrar as inadequações conceptuais da física aristotélica, em particular a que
descrevemos antes, expondo a inconsistência de se supor que os corpos mais pesados caem mais depressa, mas que os
agregados de corpos caem a uma velocidade intermédia.
Nem todos os autores concordam com Kuhn. Alguns defenderam a ideia de que as experiências mentais são apenas formas
imaginosas de desenvolver um argumento a priori, e que não possuem qualquer conteúdo ou valor adicionais (ver Norton
1996 e Atkinson 2003). Opondo-se à abordagem construtivista, estes autores observam que nem todas as experiências mentais
dão origem a revisões conceptuais. Algumas, por exemplo, são próprias de uma teoria, e não põem em causa os conceitos
existentes. A tese «empirista», defendida por John Norton, consiste em defender que só os métodos que podem, legitimamente,
permitir-nos retirar informação nova da natureza (como as experiências efectivas), podem apresentar informação nova sobre a
natureza. Dado que as experiências mentais não fazem perguntas a que a observação da natureza possa responder, não
aumentam o nosso conhecimento da natureza. Da mesma maneira que os argumentos dedutivos, apenas tornam explícita
informação que já se encontrava disponível antes de a experiência mental ter sido conduzida.
Para outros autores ainda, as experiências mentais são um meio para adquirir conhecimento (ver Brown 1991 e Bishop 1999).
Estes autores inserem-se numa abordagem «racionalista» da importância epistemológica das experiências mentais pois, apesar
de concederem que estas não contribuem para o conhecimento empírico sobre a natureza, defendem que o seu papel é alargar o
conhecimento a priori. Em particular, na sua resposta a Norton, Michael Bishop defende que as experiências mentais não
podem ser somente argumentos, uma vez que os cientistas podem chegar a conclusões diferentes ao reflectirem sobre a mesma
experiência mental. Tal sugere que os cientistas podem usar argumentos diferentes para interpretar ou reconstruir uma
experiência mental. James Brown, por exemplo, faz a afirmação positiva de que as experiências mentais auxiliam as
investigações empíricas da natureza, mas transcendem a experiência. São concebidas com base em intuições sobre leis da
natureza e revelam relações entre propriedades, independentemente de estas serem ou não instanciadas. Pensemos no seguinte
exemplo, apresentado por Brown (2004). No seu tratado De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas ), Lucrécio pretende
demonstrar que o espaço é infinito. Antes de mais, convida-nos a imaginar que atiramos uma lança até ao limite do universo.
Se a lança o atravessar, não existe limite; se fizer ricochete, então tem de haver algo além do limite. Por via desta experiência
mental, ficámos a saber algo sobre a relação entre a propriedade de ser finito e a propriedade de ter um limite, mas não
demonstrámos empiricamente que o espaço é infinito.

Exercício: Consegue imaginar outras experiências mentais? Como foram usadas no contexto em que as encontrou? Para
explicar um conceito? Para contestar uma posição, mostrando que gerava contradições? Para outra finalidade?

Ora, qual das explicações discutidas é a mais convincente? O facto de as experiências mentais serem usadas à discrição pelos
cientistas podia ser uma razão prima facie contra a tese de que são «apenas argumentos». Isto deve-se à ideia preconcebida de
que os argumentos que não são baseados, nem em dados novos, nem numa interpretação original de dados previamente
disponíveis não são uma maneira respeitável de adquirir conhecimento nas ciências. Esta concepção ingénua da prática da
ciência assenta na ideia de que as decisões sobre que teoria adoptar são feitas apenas a partir de bases empíricas. Mas isto é
uma maneira muito simplista e, no fundo, enganadora, de descrever a prática da ciência. Há uma continuidade muito maior
entre a ciência e a metafísica do que os positivistas lógicos pensavam, não só porque as teses sobre a natureza da realidade
que são formadas com base em argumentos conceptuais podem promover investigações empíricas, como também porque,
como Popper sugeriu, os objectivos e os métodos da ciência e da filosofia por vezes coincidem. O uso de experiências
mentais não é mais do que um exemplo desta continuidade.

Discussão: Será plausível defender que a maneira como as experiências mentais contribuem para o conhecimento em
ciência variam consoante a finalidade das experiências mentais específicas?

2.2 O problema da indução

Bacon defendeu a ideia de que o raciocínio científico assenta na indução, e esta ideia é ainda hoje subscrita por muitos
filósofos da ciência. A centralidade da indução para formar hipóteses prováveis sobre factos empíricos gerou um interesse
especial pela justificação e racionalidade das inferências indutivas.
De acordo com a interpretação tradicional do problema da indução, o filósofo David Hume preocupou-se com a justificação
das inferências indutivas que tornam possível alargarmos a novos casos o que já sabemos com base na nossa experiência.
Consideremos a seguinte inferência indutiva:

1. Até agora o Sol nasceu todos os dias.


2. Amanhã o Sol vai nascer.

Será que o passo da afirmação 1 para a 2 é justificado? Estamos habituados a projectar as regularidades que observámos no
passado para o domínio do desconhecido, mas nada há que impeça que a afirmação 2 seja falsa e que a afirmação 1 seja
verdadeira. O que é que fundamenta o passo de 1 para 2? Podíamos basearmos num princípio que diz que o futuro vai ser
semelhante ao passado. Por exemplo:

3. A natureza funciona de uma maneira uniforme.

A afirmação em 3 chama-se o Princípio da Uniformidade da Natureza, e pode ajudar-nos a apoiar o passo inferencial de 1
para 2. É razoável assumir que o Sol se comportará como sempre fez, porque a natureza se repete e não é provável que as
regularidades observadas na natureza sejam quebradas. Como Bertrand Russell observa em Os Problemas da Filosofia, a
convicção que subjaz à nossa crença no Princípio da Uniformidade da Natureza é que tudo o que já aconteceu, que acontece
agora e que acontecerá no futuro é governado por uma regra geral sem excepções.
Mas, então, qual é o estatuto de 3? Para Hume, existem três tipos de afirmações:

a. afirmações que podem ser verdadeiras a priori, independentes da experiência, como: «O Sol vai nascer ou não vai nascer»;
b. afirmações que podemos apoiar por observação directa ou por outras formas de experiência, como: «O Sol está agora a
nascer»;
c. afirmações (sobre o futuro ou sobre o próximo caso não observado) que só podemos apoiar por meio do raciocínio
indutivo, como: «O Sol vai nascer outra vez amanhã.»

A que categoria pertence o Princípio da Uniformidade da Natureza? E uma suposição que fazemos, mas não é uma verdade
lógica nem é verdadeira por definição, pelo que precisamos de uma justificação a posteriori para ela. Porém, também não
podemos «observar» a verdade do princípio, e portanto não encaixa em a nem em b. O único tipo de justificação que o
princípio pode ter é uma justificação indutiva.
A única justificação que temos para 3 deriva de algo como 4:

4. No passado, a natureza funcionou de uma maneira uniforme.

E o passo inferencial de 4 para 3 é, de novo, indutivo. Generalizamos a partir da experiência do passado para obtermos o
Princípio da Uniformidade da Natureza. Mas se justificarmos todas as inferências indutivas indutivamente, a nossa justificação
acaba por ser circular, e temos de conceder que as inferências indutivas não podem ser justificadas de um modo
independente. Um argumento é circular quando, para acreditarmos que as suas premissas são verdadeiras, já temos de assumir
que a conclusão é verdadeira.
Vou dar um exemplo de circularidade (retirado sem grandes preocupações de rigor do cenário de ficção científica dos filmes
Matrix). Suponhamos que nos perguntam: «Como é que sabes que a tua experiência do dia-a-dia não passa do resultado de
uma engenhosa simulação de computador?» Sentir-nos-íamos tentados a responder: «Porque vejo que estou rodeado por
objectos reais e por pessoas reais.» Mas se de facto respondêssemos assim, incorreríamos numa petição de princípio, porque,
para aceitarmos o que dizemos como verdadeiro, temos de descartar a possibilidade de as nossas experiências quotidianas
serem o resultado de uma simulação de computador. Se o nosso objectivo é demonstrar que experienciamos objectos no
mundo real, não podemos desde logo assumir que o que experienciamos não é o efeito de uma simulação de computador.
As principais estratégias para lidar com o problema da indução têm sido duas: demonstrar que não é, verdadeiramente, um
problema, mas, ao contrário, um pseudoproblema, criado por alguma confusão ou incoerência conceptuais; admitir que há, de
facto, um problema, e sugerir uma solução. Veremos alguns exemplos de cada estratégia em seguida.
Antes de avançarmos para as respostas possíveis ao problema da indução, porém, devemos notar que, de acordo com recentes
interpretações influentes de Hume (em especial Beebee 2006), é erróneo atribuir o problema da indução a Hume, e por duas
razões. Primeiro, Hume não estava interessado no raciocínio indutivo per se, ou seja, na passagem de regularidades
observadas para uma generalização universal ou para a previsão de um novo caso, mas sim em raciocinar partindo de causas
para efeitos. Segundo, Hume não estava verdadeiramente interessado em justificar a nossa maneira de adquirir conhecimento
do mundo empírico, mas sim em descrever o mecanismo mental que nos permite formar crenças sobre o mundo empírico. O
que ele visava era, portanto, a questão psicológica da formação de crenças sobre o que ainda não experienciámos, e não a
questão epistemológica da sua justificação.
Ora, o que apoia esta leitura de Hume? Primeiro, ele proporciona, efectivamente, uma explicação psicológica sobre como
adquirimos crenças sobre o mundo empírico, introduzindo a noção de hábito, que descreve um mecanismo psicológico por
meio do qual observamos repetidamente a conjunção do acontecimento A e do acontecimento B, e assumimos que há uma
relação causal entre os dois. Mas não há, no trabalho de Hume, tentativa alguma de proporcionar uma justificação do passo de
raciocínio de 1) A ocorre, para 2) B segue-se de A. Segundo, concluir que devemos ser cépticos relativamente à indução — ou
ao raciocínio causal — enfraqueceria a perspectiva filosófica geral de Hume, dado que ele é um empirista, pelo que seria
contraproducente comprometer a própria possibilidade de obter conhecimento do mundo empírico. Esta interpretação de
Hume pode levar-nos a ver o problema da indução como um pseudoproblema, mas na literatura filosófica, e em especial na
filosofia da ciência, a justificação da indução tem sido objecto de um debate sem fim.

Exercício: Porque precisamos de uma justificação independente para a indução?

2.3.1 Poderemos fazer desaparecer o problema da indução?

Peter Strawson (1952) não está de modo algum convencido de que haja um «problema» com a indução. Argumenta que a nossa
preocupação com a justificação da indução surge da tentativa de responder a uma pergunta sem sentido: será razoável
acreditar na indução? Strawson defende que o significado e o uso da palavra «razoável» já pressupõem a nossa conformidade
com os padrões indutivos. Não poderíamos saber aquilo em que é razoável acreditar se não pudéssemos basear-nos em
inferências indutivas.
Strawson diagnostica o problema da indução como a busca infrutífera de uma justificação para a indução que esteja em
conformidade com os padrões do raciocínio dedutivo. Segundo Strawson, aquilo de que os filósofos parecem precisar é de um
argumento dedutivo que implique que os argumentos indutivos sejam sólidos. Mas não é claro que este projecto seja legítimo.
A única pergunta legítima acerca da justificação da indução que pode ser feita, argumenta Strawson, é se os indícios
oferecidos por argumentos indutivos específicos apoiam a conclusão de tais argumentos. A resposta a esta pergunta não pode
ser sobre a indução em geral. Há bons argumentos indutivos, nos quais os indícios disponíveis são suficientes para tornar a
conclusão provável, e maus argumentos indutivos, nos quais a conclusão não é tornada provável pelos indícios disponíveis.
Não satisfeito com a defesa da indução por Strawson, Max Black (1954) também contribuiu para este debate. Para Black, bem
como para Strawson, o problema da indução não é, na realidade, um problema. Segundo Black, o erro cometido pelos
filósofos é o de interpretarem mal a alegação de que não pode haver uma justificação indutiva para a indução. A razão por que
é defendida está na alegada circularidade de quaisquer justificações indutivas da indução, mas Black defende que há uma
maneira legítima e não circular de justificar a indução indutivamente. Começa por distinguir dois níveis de discurso: o
primeiro, que diz respeito a objectos, propriedades e relações no mundo; o segundo, que diz respeito a argumentos e regras
lógicas.
Ao primeiro nível, podemos dizer que o facto de todos os cisnes até agora observados serem brancos apoia a alegação de que
todos os cisnes são brancos. Este argumento é justificado por uma regra indutiva R (ao segundo nível), segundo a qual
podemos defender a partir de «todas as instâncias observadas de A foram B» que «todo o A é B». A regra justifica o
argumento, mas o que justifica a regra? Segundo Black, há um argumento indutivo que pode ser usado para justificar a regra, e
que diz mais ou menos o seguinte: R mostrou ser fiável em todas as instâncias observadas do uso da regra, pelo que temos
bons motivos para acreditar que R será fiável agora.
A questão que nesta altura se põe é: teremos incorrido em alguma circularidade? Justificámos um argumento indutivo com a
regra indutiva e justificámos a regra indutiva com outro argumento indutivo. De acordo com Black, não há aqui circularidade
alguma. Um argumento é circular se uma das premissas é idêntica à conclusão, ou se as premissas são tais que não as
poderíamos conhecer se não conhecêssemos já a conclusão. De acordo com esta definição de circularidade, o argumento
usado por Black para justificar a indução não é circular.
Mas persiste ainda uma outra preocupação. Talvez o argumento avançado por Black não seja qualificado como estritamente
circular, mas corra o risco da regressão ao infinito. Isto é, a justificação do argumento indutivo relativo aos cisnes brancos é
indefinidamente adiada, pois depende da justificação da regra da inferência, que por sua vez depende da justificação de outro
argumento indutivo, que por sua vez vai depender da justificação da mesma regra ou de outra regra indutiva, etc.
Elliot Sober (1988) é de opinião de que o projecto de proporcionar uma justificação para a indução defendendo o pressuposto
da uniformidade da natureza é enganador. Observa que o comportamento da natureza no passado não parece ser uma boa razão
para confiar na indução por oposição à contra-indução. Imaginemos que há um método de inferência (chamado contra-
indução) segundo o qual a natureza não é uniforme, e em que não é provável que as regularidades do passado se mantenham
iguais no futuro. Agora, torna-se fácil construir uma justificação contra-indutiva da contra-indução baseada na uniformidade da
natureza. No passado, a contra-indução não era fiável porque a natureza se revelara uniforme na maior parte dos casos, e
portanto podemos esperar que seja fiável no futuro.
Mas Sober não pensa que, na sua formulação humeana, o princípio da uniformidade da natureza seja plausível. E isto
compromete a plausibilidade da formulação clássica do problema da indução de Hume. A alegação de que a natureza é
uniforme é demasiado vaga para poder ter algum uso e, nessa forma, não pode ser um pressuposto ao qual nos vamos querer
agarrar quando fazemos inferências. Em alguns aspectos, a natureza é uniforme, mas noutros não. Sober dá o exemplo da cor:
esperamos que a cor de todas asesmeraldas seja o verde, sempre, mas não esperamos que a cor das folhas seja sempre o
verde. A falta de pormenor na formulação não é o único problema do princípio da uniformidade da natureza: segundo Sober,
tentar encontrar um pressuposto sobre a natureza das coisas que fundamente todas as nossas inferências indutivas não coexiste
alegremente com a flexibilidade das nossas práticas indutivas. É mais plausível que algumas crenças de base sejam mesmo
necessárias para o êxito das inferências indutivas, mas que crenças apoiam que inferências depende de cada inferência.

Discussão: Qual das resoluções do problema da indução apresentadas lhe parece mais plausível?

2.3.2 A tentativa de encontrar uma solução para o problema da indução

Inspirado por uma análise anterior de Reichenbach, Wesley Salmon (1974) argumenta que tanto a forma dedutiva como a
indutiva de justificar a indução estão condenadas ao fracasso, explorando uma alternativa mais pragmática. E se pudermos
demonstrar que confiar na indução é a única opção racional? Salmon defende que é mais prudente apostar no êxito do
raciocínio indutivo do que no seu fracasso.
Partamos do pressuposto de que a natureza é uniforme ou não, e de que, se decidirmos não usar a indução, as estratégias
disponíveis para a previsão de acontecimentos desconhecidos não são indutivas (ler folhas de chá, na bola de cristal ou
adivinhar, por exemplo). Se usarmos estratégias não indutivas e a natureza for uniforme, é provável que as nossas previsões
falhem. Se usarmos estratégias não indutivas e a natureza não for uniforme, é ainda provável que as nossas previsões falhem.
Se, em vez disso, usarmos a indução e a natureza não for uniforme, é provável que as nossas previsões falhem, uma vez mais.
Mas se usarmos a indução e se a natureza for uniforme, é provável que as nossas previsões sejam bem-sucedidas.
Embora a indução não seja um garante de sucesso, uma vez que não nos é possível descobrir independentemente se a natureza
é uniforme, ainda assim ela funciona melhor do que as alternativas disponíveis. Isto é uma maneira de defender que é racional
usar a indução, mas não responde à questão de saber se as inferências indutivas podem ser justificadas independentemente. E
portanto esta tentativa de solução falha o objectivo (ou, numa leitura mais benigna, proporciona uma redefinição do problema
da indução).
Em O Conhecimento Objectivo, Karl Popper declara ter resolvido o problema da indução. Primeiro, reformula o problema ao
fazer a seguinte pergunta: «Pode a alegação de que uma teoria universal é verdadeira ser justificada com base na verdade de
algumas afirmações observacionais?» Se a questão é esta, então Hume estava certo quando pensava que a resposta tem de ser
«não». Não há como justificar uma teoria universal com base na verdade de algumas das suas instâncias que podem ser
confirmadas pela observação. E, contudo, a solução está em fazer uma pergunta semelhante, que tem uma resposta positiva:
«Será que a alegação de que uma teoria universal é falsa pode ser justificada com base na falsidade de algumas afirmações
observacionais?»
De acordo com Popper, precisamos de desistir da ideia de que a ciência é baseada em inferências indutivas e aceitar uma
forma de dedutivismo, que funciona do seguinte modo. Primeiro, formulamos uma nova hipótese. Depois, derivamos dela, via
dedução, algumas afirmações cuja verdade ou falsidade podem ser comprovadas pela observação. Se, após um teste
minucioso, as afirmações se revelarem verdadeiras, nada de conclusivo mostrámos acerca da hipótese, que precisa de ser
submetida a mais testes. Se as afirmações se revelarem falsas, mostrámos que a hipótese é falsa (uma vez que produz as
consequências empíricas erradas) e avançámos um pouco. Por outras palavras, falsificámos a teoria. A sugestão de Popper
traz problemas, com os quais nos depararemos quando nos dedicarmos às questões relacionadas com a confirmação de
teorias, mas é interessante notar aqui que Popper pensava que a ciência não se baseia e não se deve basear em inferências
indutivas, e que sugeriu o que considerou uma alternativa plausível.

Exercício: Pense sobre a solução de Popper para o problema da indução e responda às seguintes questões: a) Como é que
chegamos a novas hipóteses a não ser pela indução? b) Podemos alguma vez ter justificação para aceitar uma teoria
usando o método de teste de Popper?

Discussão: Acha que o problema da ausência de justificação da indução pode ser resolvido?

Resumo
Neste capítulo, definimos primeiramente três formas de obter ou consolidar conhecimento que correspondem às três regras
diferentes da inferência: a dedução, a indução por enumeração e a inferência a favor da melhor explicação. Demos ênfase à
importância das inferências indutivas para a prática da ciência e discutimos algumas tentativas de justificar a fiabilidade da
indução.
Descrevemos algumas das inovações metodológicas que caracterizaram a revolução científica, e considerámo-las importantes
para a nossa compreensão contemporânea da ciência: a aceitação do raciocínio indutivo como base de todas as ciências
empíricas foi uma delas. Alguns dos outros aspectos foram o uso da observação mediada e de experiências na prática da
ciência, bem como a fundação de instituições que promoveram o desenvolvimento de uma comunidade de praticantes em
constante diálogo uns com os outros.
Todas estas peculiaridades metodológicas da prática da ciência podiam ser consideradas como critérios para distinguir as
actividades científicas propriamente ditas da pseudociência, mas isto seria demasiado precipitado. Primeiro, há elementos de
continuidade anteriores e posteriores à Revolução Copernicana, incluindo o papel dos pressupostos metafísicos que norteiam
os projectos de investigação. Estes elementos devem fazer-nos pensar duas vezes quando usamos as designações «pré-
ciência» ou «ciência primitiva» para nos referirmos às tentativas de descrição do mundo pelos Gregos antigos e pelos
filósofos naturais da Idade Média. Segundo, devemos ter em mente que há diferenças metodológicas importantes na prática das
diferentes disciplinas científicas. A maneira como os dados são recolhidos não é igual na biologia e na física, por exemplo,
além de que só pode ser feito um número muito reduzido de generalizações com segurança, no que respeita ao método.
Terceiro, a continuidade das estratégias e objectivos argumentativos parece reduzir a linha que separa a ciência «madura» da
«imatura». Os cientistas ainda vão querer explicar os fenómenos que nos rodeiam de uma maneira sistemática e satisfatória, e
ainda vão usar argumentos e experiências mentais à moda antiga para fazê-lo.

Cenas dos próximos capítulos


No capítulo 3 continuaremos a analisar o papel da indução na prática da ciência, e avaliaremos diferentes estratégias para a
confirmação das teorias científicas. Examinaremos o enigma da indução de Goodman e introduziremos outro paradoxo da
confirmação de teorias. Exploraremos com maior pormenor as noções de observação directa e mediada, e discutiremos a
relação entre a teoria e a observação no que respeita à estrutura e formação de teorias (capítulo 3), a natureza dos termos
teóricos e o debate realismo/anti-realismo (capítulo 4), e a natureza do progresso na mudança científica (capítulo 5).

Questões para pensar


1. Pode alguém ser cientista sem nunca fazer uma experiência efectiva?
2. De que maneira a colaboração entre cientistas é benéfica para a aquisição ou consolidação de conhecimento?
3. Será que as experiências mentais contribuem realmente para fazer ciência?
4. Qual é o tipo de raciocínio mais passível de orientar a prática científica?
5. Porque é que os filósofos se preocupam com a justificação da indução?
6. De que maneira o indutivismo de Bacon é ainda uma boa abordagem à metodologia científica? De que maneira é
ultrapassado?

Leituras complementares
Para uma introdução ao problema da indução e ao debate tradicional, leia algumas partes do Tratado de Hume (Livro i, Parte
in) e das suas Investigações (Secção iv e v), Popper (1953,1974) e Russell (1967, capítulo 6). Uma interpretação acessível e
estimulante do problema humeano da indução pode ser encontrada em Beebee (2006), e o dedutivismo de Popper é discutido
em pormenor em Newton-Smith (1981, capítulo 3).
A discussão sobre a natureza das experiências mentais entre Norton (2004) e Brown (2004) fá-lo-á reflectir mais sobre o uso
das mesmas em ciência, além de ser uma boa fonte de exemplos.
Se quiser saber mais sobre a revolução científica ou sobre outros episódios importantes da história da ciência em geral, pode
aceder a um guia para leituras complementares no portal da History of Science Society (www.hssonline.org/). Aí também
encontrará informação útil sobre novas publicações e conferências.
3. Conhecimento

Neste capítulo daremos seguimento à investigação sobre os aspectos epistemológicos e metodológicos da ciência iniciada no
capítulo anterior. Focar-nos-emos na estrutura, formação, confirmação e no papel explicativo das teorias científicas.
No último capítulo, vimos as primeiras tentativas de caracterizar o método científico na obra de Bacon. A imagem indutivista
simples da prática da ciência que sucintamente introduzimos põe em relevo os fundamentos empíricos das teorias científicas.
Os cientistas esvaziam as suas mentes de toda a opinião preconcebida e abrem os olhos: recolhem dados com base em
observações e experiências. Fazem abstracções a partir dos resultados destas observações e experiências, e formulam
hipóteses cada vez mais gerais. Depois testam as previsões que podem fazer com base nestas hipóteses e realizam mais
observações e experiências. A ideia é que, por meio do raciocínio indutivo, podemos chegar a uma generalização sobre um
tipo de objecto que tem uma certa propriedade num certo contexto, se tiverem sido encontrados objectos desse tipo que tenham
tal propriedade em contextos relevantemente semelhantes.
Esta concepção do modo como os cientistas operam está fundamentada na fiabilidade das inferências indutivas, e considera as
observações e as experiências como pedras angulares das teorias. Mas a relação entre a teoria e a observação tem de ser
explorada com maior pormenor. É que, como é o caso de Popper, alguns autores levantam objecções à ideia indutivista da
ciência, considerando que a fase da observação não pode ser anterior e independente da formação de uma hipótese específica.
Quando os cientistas observam, têm sempre algumas expectativas para orientar e enquadrar as suas observações, alguma ideia
do que vão ver.
As nossas teorias científicas dão sentido às observações que fazemos de uma maneira sistemática, e um dos propósitos da
teorização científica é a previsão de acontecimentos futuros. No entanto, muitas das observações não seriam sequer levadas a
cabo se não fosse para testar uma hipótese particular ou um conjunto de hipóteses, e as observações que constituem indícios
confirmantes das nossas hipóteses são muitas vezes mediadas por um equipamento sofisticado cuja fiabilidade depende de
mais pressupostos teóricos. Alguns filósofos falam da subdeterminação teórica da observação, ou seja, o facto de os dados
que adquirimos mediante a observação directa ou mediada não serem neutros no que respeita a todas as teorias, mesmo antes
de serem interpretados.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos em revista diferentes modelos de confirmação
e de explicação de teorias, e apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção sintáctica e a
concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à prova pelas teorias da confirmação e da explicação.
As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos em revista diferentes modelos de
confirmação e de explicação de teorias, e apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção
sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à prova pelas teorias da confirmação e da
explicação.
Ao longo da nossa curta introdução à noção de confirmação de uma teoria, veremos que é difícil caracterizar a forma como as
observações sustentam as hipóteses científicas. Quando passarmos aos diferentes modelos de explicação, passaremos em
revista as condições que tornam as teorias científicas capazes de proporcionar explicações adequadas dos fenómenos que nos
interessam. Poderemos explicar um facto sem apelar a uma lei da natureza? Como é que decidimos entre hipóteses
explicativas concorrentes dos mesmos fenómenos?
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a formação e a natureza de teorias científicas.
• Explicar a relação entre teoria e observação.
• Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a confirmação de teorias científicas.
• Discutir e avaliar modelos diferentes de explicação científica.
• Formar uma opinião sobre o que faz de um conjunto de afirmações uma teoria científica.

3.1 O que é uma teoria?

O que esperamos de uma teoria num domínio específico é uma explicação coerente e sistemática da razão por que alguns
factos ocorrem como ocorrem, e uma maneira fundamentada de prever os factos que ocorrerão no futuro. Por exemplo, uma
teoria sobre o movimento dos objectos terrestres diz-nos com base em que princípios os objectos de uma certa dimensão se
movimentam como se movimentam, e também nos permite prever como se movimentarão no futuro ou como se movimentariam
em contextos não reais (se não houvesse inércia, por exemplo)
Qualquer teoria científica implica uma série de afirmações, que variam entre afirmações empíricas sobre fenómenos
particulares observáveis (quer a olho nu, quer mediante instrumentos científicos), valores que podemos medir e princípios
gerais. Eis um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento particular em física: «O corpo cai à velocidade
de 40 km/h.» Um exemplo de um princípio geral é o princípio da inércia, segundo o qual um corpo conservará uma velocidade
constante, a menos que sobre ele actue uma força cuja resultante não seja nula. Um exemplo de uma afirmação empírica sobre
um acontecimento particular em psicologia social é: «Após terem desempenhado uma tarefa aborrecida como parte de uma
experiência psicológica, as pessoas que não receberam incentivo algum classificaram a tarefa como positiva.» Um exemplo de
um princípio é a hipótese da dissonância cognitiva: as pessoas tentam reduzir o conflito entre as atitudes de que estão cientes
(crenças, decisões, preferências, emoções, por exemplo) e alteram o seu comportamento em conformidade.
Nas ciências naturais como nas sociais, os princípios podem ser confirmados com base em afirmações empíricas sobre
fenómenos particulares que pertencem ao domínio abrangido pelos princípios. Quando perguntamos como os cientistas
formam teorias, muitas vezes interessa-nos a maneira como passam de afirmações observacionais sobre acontecimentos
particulares, de agentes, objectos, etc., a princípios gerais, e, por último, a leis. Há muito que os filósofos da ciência tentam
proporcionar uma reconstrução do que são as teorias científicas e de como a transição entre a observação de factos e a
formulação de hipóteses ou princípios gerais pode ser descrita.

Exercício: Consegue imaginar outras generalizações nas ciências naturais e sociais? O que têm todas em comum?

3.1.1 Concepções de teorias científicas

De acordo com uma versão popular da concepção sintáctica das teorias científicas (de sintaxe, o estudo das regras que
determinam como as frases são formadas), as teorias são compilações de afirmações que podem ter uma representação formal
enquanto sistemas axiomáticos. A ideia fundamental é que podemos separar a estrutura lógica da teoria ( calculus) do seu
conteúdo factual (Carnap 1967; Hempel 1970). As frases não interpretadas ligam-se umas às outras pela lógica: por exemplo,
os teoremas são derivados dos axiomas por dedução. Quando os axiomas e os teoremas são interpretados, obtemos as
afirmações que formam o corpo da teoria. Tais afirmações contêm termos lógicos, observacionais e teóricos. Pode-se atribuir
significado aos termos teóricos por correlação com termos observacionais por meio de regras de correspondência.
Os termos lógicos são termos como «e» ou «ou», que significam uma relação lógica entre predicados ou proposições. Na frase
«Tenho um carro velho e uma bicicleta de montanha nova», o termo «e» serve para exprimir a relação entre eu ter um carro
velho e uma bicicleta de montanha nova (que é uma relação de conjunção). A frase exprime uma proposição verdadeira se for
verdade quer eu ter um carro velho, quer eu ter uma bicicleta de montanha nova.
Os termos observacionais são termos que podemos aplicar na experiência directa. O termo «velho» na frase anterior é
observacional, pois posso determinar por meio da observação e da experiência directas que o meu carro é velho (olhando
para ele, ouvindo o barulho do motor, observando que demora a arrancar quando está frio, por exemplo).
Os termos teóricos são aqueles que não são lógicos nem observacionais. O termo «diabetes» pode ser um exemplo. Não
podemos definir se alguém tem esta doença por via da mera observação. Para se ver se uma pessoa tem as características
típicas desta doença é necessária investigação adicional: têm de ser feitas análises adequadas, que têm de ser interpretadas
por um médico. O método para descobrir se uma pessoa tem diabetes pode ser dividido numa série de observações, e portanto
é em princípio possível estabelecer uma correspondência entre afirmações sobre a diabetes e afirmações que contêm termos
exclusivamente observacionais.

Exercício: Pense noutros exemplos de termos observacionais e teóricos. Consegue encontrar um termo que seja
observacional nuns contextos e teórico noutros?

O aspecto atractivo da concepção sintáctica é que em princípio se pode separar a estrutura lógica — ou esqueleto — de uma
teoria (constituída pelos axiomas não interpretados e pelos teoremas) do seu conteúdo empírico e do seu significado. Porém, a
dificuldade em distinguir com precisão os termos teóricos dos termos observacionais, juntamente com o problema de
especificar regras de correspondência satisfatórias por meio das quais os termos teóricos adquirem o seu significado, levaram
os filósofos a desenvolver uma explicação alternativa das teorias científicas, a chamada concepção semântica.
Embora haja versões diferentes da concepção semântica (Van Fraassen 1980; Giere 1988; Suppe 1989), todas partilham a
rejeição da abordagem sintáctica. Uma teoria científica não pode ser adequadamente apresentada como um sistema axiomático
formal escrito na linguagem da lógica que, numa fase ulterior, é sujeito à interpretação semântica. Ao contrário, toda a teoria
deve ser apresentada como um conjunto de definições teóricas e um conjunto de afirmações que defendem que diversas coisas
no mundo satisfazem tais definições (hipóteses teóricas). De acordo com esta explicação, não é possível formular hipóteses
sobre uma divisão precisa entre estrutura lógica e significado, pois as definições não são necessariamente expressas numa
linguagem formal. Além disso, a relação entre as afirmações de uma teoria e o mundo da experiência já não está refém da
identificação de regras de correspondência, assentando antes na criação pelos cientistas de réplicas ou modelos abstractos da
realidade que se enquadrem nas definições teóricas fornecidas.
Voltemos aos exemplos antes mencionados e vejamos como se chega às afirmações de uma teoria, e como estas são testadas
nas duas concepções que apresentámos. Para o sintacticista, o princípio da inércia que pode ser derivado da observação de
como os corpos se movimentam seria formulado como um princípio lógico, e funcionaria como um axioma num sistema. A
partir dos axiomas derivar-se-iam e interpretar-se-iam teoremas, de modo a conterem termos teóricos, termos observacionais,
assim como termos lógicos. Tornar-se-iam afirmações sobre, por exemplo, o modo como os corpos de uma determinada massa
se movimentariam sob a influência de determinadas forças num meio onde algumas variáveis eram controladas. Os termos
teóricos contidos em tais afirmações («inércia», «força», aceleração», etc.) receberiam significado com base na sua
correlação com termos observacionais. Tais afirmações estariam então prontas para receber um maior suporte empírico,
mediante observações e experiências que visassem verificá-las (ou falsificá-las). O suporte empírico para as afirmações
transmitiria justificação empírica aos princípios de que são derivadas.
Para o semanticista, no momento de axiomatizar não seria necessário traduzir as afirmações científicas para frases numa
linguagem formal, e depois inverter o processo com o fim de testar os teoremas derivados à luz da observação e de
experiências. O princípio da inércia seria formulado com base em indícios indutivos, como vimos antes, e depois definir-se-ia
inércia. Uma hipótese teórica que satisfizesse tal definição seria então avançada. Essa hipótese referir-se-ia a uma réplica
abstracta e muitas vezes adequadamente simplificada da realidade (um meio em que algumas variáveis seriam melhor
controladas), que podia servir como modelo idealizado onde se observariam as relações básicas entre, por exemplo, a
velocidade de um corpo em queda e a (quantidade de) força aplicada a tal objecto. Não seria preciso seguir os passos da
interpretação e procurar as regras de correspondência para todos os termos teóricos usados, pois a definição e as hipóteses já
estariam «interpretadas», isto é, expressas na linguagem concreta da ciência e não na linguagem abstracta da lógica.
Frederick Suppe (1989) insiste que os semanticistas descrevem correctamente a forma como os cientistas procedem. Os
modelos e as réplicas abstractas são criados para ilustrar as relações complexas entre propriedades. Consideremos dois
exemplos. Na psicologia, o behaviorismo visa identificar os parâmetros que levam as pessoas a comportar-se como se
comportam, e descreve o comportamento como a função de estímulos e de padrões de resposta. Uma vez que é difícil isolar os
padrões motivacionais nos seres humanos, dado o número de interesses que têm, a relação entre o estímulo e a resposta pode
ser demonstrada observando o comportamento de outros seres dotados de cérebro, cujos interesses podem ser identificados e
controlados com maior facilidade. No cenário experimental, um rato com fome carrega numa alavanca e obtém comida.
Quando a mesma situação se repete, ou seja, o rato está outra vez com fome, a alavanca será accionada de novo e esperar-se-á
alimento. Por si só, estes parâmetros não são suficientes para explicar a variedade e a complexidade do comportamento
humano e até do comportamento animal, mas fornecem um modelo que aproxima a realidade que se pretende investigar,
permitindo aos cientistas explorar a relação entre estímulo e resposta.
Na física, o modelo atómico de Bohr (assim chamado por ter sido desenvolvido por Niels Bohr, em 1915) descreve os
electrões como circulando à volta do núcleo atómico (composto por neutrões e protões) do mesmo modo que os planetas
circulam à volta do Sol. Este modelo é útil para muitas finalidades educativas e outras finalidades explicativas, mas não nos
dá uma descrição precisa da natureza do átomo, pois a relação entre o núcleo do átomo e as órbitas dos electrões é diferente
da relação entre o Sol e as órbitas dos planetas. A título de exemplo, no sistema solar as órbitas planetárias estão confinadas a
um plano, o que não se aplica às órbitas descritas pelos electrões, além de que a força de atracção que faz os electrões
orbitarem à volta do núcleo atómico é muito maior do que a força gravitacional que actua sobre os planetas do nosso universo.
Encontrar exemplos de modelos na ciência não é difícil, mas explicar o modo como os modelos contribuem para a formação e
o desenvolvimento das teorias científicas é uma outra questão. Considere as seguintes perguntas:

a. Qual é a relação entre o modelo e os fenómenos que se pretende compreender? Será preciso que tenham a mesma estrutura?
b. Qual é a relação entre a teoria e os modelos relevantes? Será que os modelos podem substituir as teorias, ou será que
apenas as complementam?
c. O que são modelos? Serão entidades físicas, ou serão ficções?

Até certo ponto, a plausibilidade das respostas que podíamos dar às perguntas (a), (b) e (c) depende do tipo de modelo que se
considera, e portanto poder-se-ia defender uma abordagem pluralista à função e à natureza dos modelos em ciência. Porém,
dependendo de algumas das respostas dadas às perguntas antes feitas, foram formuladas e defendidas versões diferentes da
concepção semântica das teorias científicas. Vou dar um exemplo, em traços gerais, de um destes debates.
Consideremos o modelo (os planetas a orbitar à volta do Sol, por exemplo) como uma representação de um fenómeno (os
electrões a orbitar à volta de um núcleo atómico). Qual é a relação entre o fenómeno representado e a sua representação?
Alguns autores defendem que tem de haver isomorfismo entre os dois, em que «isomorfismo» significa literalmente «igualdade
de estrutura» (Van Fraassen 1980; Suppe 2002). Outros defendem que é suficiente estabelecer uma relação de semelhança
entre a representação e o fenómeno representado (Giere 2004; Teller 2001). Tem sido observado que a última versão é mais
prometedora como uma explicação geral da relação, uma vez que pode incluir modelos que são inexactos porque simplificam
de mais. Por outro lado, também tem sido observado que a explicação é demasiado vaga para ser genuinamente útil, se não
forem especificados graus de semelhança (ver Frigg e Hartmann 2006).

Exercício: Tente encontrar outro exemplo de um ^ modelo usado em ciência e volte às perguntas (a), (b) e (c) à luz do novo
exemplo.

Discussão: De que modo o modelo é útil? Quais são \/ as semelhanças e as dissemelhanças entre o fenómeno representado
e a sua representação?

Apresentámos duas concepções alternativas da natureza das teorias científicas. Mas Ronald Giere (2000) defendeu que o
debate entre a teoria sintáctica e a teoria semântica está ultrapassado. A motivação para discutir a natureza das teorias
científicas fez sentido no contexto de tentar proporcionar uma reconstrução filosófica da ciência, o que já não é propriamente
o que está em cima da mesa. Em certa medida, a emergência de diferentes tipos de disciplinas científicas legítimas nas quais
as teorias não se baseiam tanto como a física em modelos matemáticos (é o caso da biologia e da psicologia), mostrou que não
é realista tentar descrever a estrutura de todas as teorias científicas.
Além disso, o debate entre os semanticistas e os sintacticistas não esgota o espectro das possibilidades. Há explicações
alternativas, que podem ser encontradas no trabalho de Kuhn e de Feyerabend, que foram interpretadas como explicações que
desenvolvem uma visão historicista das teorias científicas (ver o capítulo 5 para mais pormenores), e no de Thagard, que
advoga uma explicação computacional das teorias científicas. Estes autores sublinham a importância de encontrar soluções
para problemas prementes na prática efectiva da ciência, e observam como os procedimentos que são considerados como um
modo racional de promover o avanço da ciência podem variar de acordo com o contexto histórico e com o contexto cultural
mais alargado em que os cientistas operam.

3.1.2 A complexidade oculta da observação

Para avaliarmos o indutivismo e as concepções das teorias que antes descrevemos, precisamos de compreender melhor a
relação entre observar e interpretar um acontecimento à luz de uma teoria.
O que é considerado observável? Rudolf Carnap (1966) defende que o cientista não usa o termo «observável» para se referir
a propriedades que podem ser directamente observadas, mas a propriedades que podem ser detectadas mediante os nossos
sentidos, como ser vermelho ou azul, quente ou frio, liso ou rugoso. De acordo com esta definição do que é observável,
«quente» é considerado um termo observacional, mas «com carga eléctrica» não. Suppe (1989) concorda que há contextos em
que as propriedades observáveis em teoria não podem ser atribuídas com base na observação. Por exemplo, dissemos que
«quente» é um termo observacional paradigmático, mas não poderíamos determinar por observação directa se o Sol é dotado
de tal propriedade. E há contextos em que a presença de propriedades mais abstractas, como possuir carga eléctrica, pode ser
verificada pela simples observação (o que acontece quando enfiamos um dedo numa tomada, por exemplo).
A importância da observação ser directa ou imediata também é controversa. Se não aceitamos que as entidades que
observamos ao microscópio têm o mesmo estatuto que as que vemos a olho nu, o que diremos do que vemos com os nossos
óculos de leitura? Parece haver um argumento forte a favor da ideia de que a distinção entre directamente observável e
inobservável não é nítida, mas toma a forma de uma «transição contínua» (Maxwell 1962).
Bas van Fraassen (1980) não considera convincente este argumento da continuidade. Mesmo que concordemos que a
dicotomia entre o observável e o não-observável comporta alguns elementos de arbitrariedade, há dois casos que têm de ser
distinguidos. Alguns objectos que são vistos por via da mediação de um instrumento também podem ser vistos a olho nu em
condições adequadas (por exemplo, os astronautas conseguem ver bem as luas de Júpiter sem um telescópio). Mas há objectos
que nunca podem ser vistos directamente, como uma plaqueta, e a impossibilidade deve-se às nossas limitações enquanto
seres humanos. Neste último caso, os instrumentos são necessários para termos a experiência dos objectos, e esta diferença
pode desempenhar um papel importante no debate sobre o estatuto ontológico de tais objectos (a que voltaremos no capítulo
4).

A. Discussão: Será realmente impossível ultrapassar as actuais limitações humanas e ver as plaquetas sem o auxílio de
instrumentos?

Ian Hacking (1981) tira algumas conclusões interessantes da história dos microscópios, contestando a distinção de Van
Fraassen entre o que é possível e impossível os seres humanos verem. Talvez o astronauta consiga ver bem as luas de Júpiter
ao voar no espaço, mas o microscopista consegue observar bem as plaquetas ao basear-se no mapa das interacções entre o
espécime e a sua imagem (se o mapa estiver bem feito). Hacking argumenta convincentemente contra a noção de observação
como algo passivo, que depende das características da propriedade ou do objecto a observar, sugerindo ao invés que a
observação é uma técnica e envolve algum fazer. Observar ao microscópio não permite só por si que as pessoas o usem
eficazmente: é a prática que lhes dá a técnica de observar ao microscópio (ou, melhor, com o microscópio), e esta
competência não depende necessariamente da adopção de uma teoria particular (ainda que a adopção de uma teoria particular
seja necessária para construir um microscópio).

Exercício: De que modo observar ao microscópio é diferente de ver através de uns óculos com lentes coloridas?

Discussão: Qual é a sua opinião sobre a «tese da \/ continuidade»? Haverá uma distinção clara entre o que podemos e o
que não podemos observar? Considere, por exemplo, a imagiologia por ressonância magnética (IRM), uma tecnologia
usada para avaliar tumores ou examinar possíveis danos cerebrais. Será o tumor ou o dano cerebral observável?

3.2 Confirmação de teorias

Ainda que as questões sobre o que as teorias científicas são e qual a melhor explicação da relação entre as observações e as
hipóteses teóricas possam continuar em aberto, os filósofos da ciência concordam que as teorias podem ser confirmadas ou
infirmadas por mais observações e experiências, o que garante a sua fundamentação empírica.
Quando afirmam que uma observação confirma (ou infirma) uma hipótese, os filósofos querem dizer que a observação
constitui um indício confirmante (ou infirmante) de tal hipótese. Como vimos, as hipóteses universais não podem ser
verificadas de modo definitivo, independentemente do número de observações que com elas concordem, pois o número destas
observações será sempre finito. Da mesma maneira, uma hipótese existencial não pode ser falsificada de modo definitivo, pois
um objecto cuja existência não foi ainda observada poderá ser descoberto no futuro.
No que se segue veremos com maior pormenor como uma teoria pode ser confirmada pelos indícios disponíveis, e
examinaremos alguns dos quebra-cabeças que geraram novas maneiras de articular a noção de confirmação. Enquanto Cari
Hempel pretende explicar a confirmação como uma relação puramente lógica (o modelo hipotético-dedutivo), outros filósofos
defendem que só ao introduzir a noção de probabilidade podemos apreender os aspectos da confirmação que são relevantes
para a prática científica efectiva (a abordagem bayesiana).

3.2.1 O paradoxo dos corvos

Muito embora a ideia de uma hipótese ser confirmada pela observação seja intuitiva e não ofereça grandes dúvidas, é difícil
fazer uma caracterização precisa da relação entre os indícios empíricos e as afirmações numa teoria que se espera que os
indícios apoiem. O ponto de partida para o debate é aquilo a que na literatura se chama Condição de Nicod: uma hipótese na
forma «A implica B» é confirmada sempre que observamos a presença de B num caso de A. Por conseguinte, a confirmação é a
relação entre uma hipótese e um objecto ou um acontecimento.
Foquemo-nos no exemplo clássico. A seguinte hipótese, (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, logo X é
negro», será confirmada pela observação de uma coisa negra que é um corvo. A ideia subjacente a esta condição é que,
quando temos uma afirmação universal, a probabilidade de esta ser verdadeira é originada ao encontrarmos uma instância da
generalização. Um corvo negro confirma (U), um corvo não negro infirma-a.
Hempel (1945) desenvolve a sua própria explicação da teoria da confirmação com base na Condição de Nicod. Abraça a
ideia de que a confirmação diz respeito à relação entre hipóteses e observações, mas concebe-a como uma relação lógica
entre afirmações, análoga à de consequência lógica. Uma afirmação observacional actua como um indício confirmante ou
infirmante para uma afirmação que relata uma hipótese científica. Hempel não se convence com os pormenores da explicação
de Nicod, pois esta viola o princípio da equivalência lógica. Este princípio afirma que se duas afirmações-hipóteses (Hl e
H2) são logicamente equivalentes, então toda a afirmação-observação (Ol) que confirma Hl também tem de confirmar H2.
(Ul), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo não negro, então X é um corvo e não é um corvo», é logicamente
equivalente a (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é negro» (Apesar de, à primeira vista, (Ul) e (U) não parecerem
logicamente equivalentes, elas são-no de facto, pois não há circunstância alguma em que elas tenham valores de verdade diferentes. - N. do R.) Contudo, nenhuma
observação pode confirmar (Ul), porque nada pode simultaneamente ser um corvo e não ser um corvo. O que significa que o
princípio da equivalência lógica é violado pela condição de Nicod.
Isto representa um problema para Hempel, pois ele não quer desenvolver uma noção de confirmação segundo a qual a relação
entre o fenómeno observado e a hipótese tornada mais ou menos provável por esse fenómeno seja refém do modo como as
hipóteses e as afirmações observacionais são formuladas. A afirmação observacional «Isto é um corvo e é negro» constitui um
indício confirmante para a afirmação (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é negro», e a relação entre
elas é análoga à da consequência lógica. Mas a afirmação observacional «Isto não é um corvo e não é negro» também
confirma (U), «Para todas as instâncias de X, se X é um corvo, então X é negro», porque confirma uma afirmação que é
logicamente equivalente a (U), isto é, (U2), «Para todas as instâncias de X, se X não é negro, então X não é um corvo».
Porém, defender o princípio da equivalência lógica levanta outros problemas, de que Hempel dá conta. Dada a nossa noção do
senso comum de confirmação, parece bastante contra-intuitivo defender que, ao depararmos com algo que não seja negro e que
não seja um corvo — um sapato branco ou uma folha verde, por exemplo —, as afirmações observacionais «Isto é um sapato e
é branco» e «Isto é uma folha e é verde» apoiam a afirmação universal «Para todas as instâncias de x, se x é um corvo, então x
é negro». Isto é desconcertante, uma vez que a observação de um sapato branco ou de uma folha verde não parece ter
relevância alguma para a hipótese de que todos os corvos são negros.

Hempel considera primeiramente algumas soluções possíveis para este problema, incluindo a introdução de uma qualificação
que determine o campo de aplicação de cada hipótese universal. Por exemplo, a hipótese «Para todas as instâncias de x, se x é
um corvo, então x é negro» só seria avaliada em termos da classe dos corvos, e a observação de sapatos e de folhas não seria
considerada relevante para a sua avaliação. Mas esta medida introduziria um elemento de arbitrariedade que é difícil de
justificar, e que pareceria um expediente ad hoc. Ao invés, Hempel quer advogar a conclusão contra-intuitiva: defende que,
muito embora a afirmação de que a observação de um sapato branco confirma que todos os corvos são negros pareça
desconcertante, deve-se aceitá-la. A razão do nosso desconcerto inicial prende-se com o facto de estarmos habituados a
conceber que uma hipótese universal determina uma verdade em relação a uma classe de indivíduos, quando as hipóteses
universais deviam ser consideradas como algo que emite uma proibição que se aplica a todos os objectos: se algo é um corvo,
então não pode ser outra coisa senão negro.
Segundo Hempel, na confirmação não estamos só a avaliar a relação entre um dado indício e a hipótese; estamos também a
avaliar a hipótese relativamente à conjunção dos novos indícios que acabámos de recolher e de todos os indícios
anteriormente disponíveis. A observação de um sapato branco aumenta fracamente a probabilidade de todos os corvos serem
negros. Com esta explicação da confirmação, que tem tacitamente em conta indícios anteriores, aceita-se outra conclusão
contra-intuitiva: a observação de um sapato branco não proporciona indícios confirmantes só para a afirmação de que todos os
corvos são negros, mas também para a afirmação de que todos os corvos são verdes. Mas de que modo pode a observação do
mesmíssimo objecto — um sapato branco — confirmar que todos os corvos são negros e que todos os corvos são verdes ao
mesmo tempo? A consideração dos indícios anteriormente recolhidos pode ajudar a responder a este quebra-cabeças, mas a
explicação revista não deixa os críticos de Hempel satisfeitos.

Exercícios: 1) Aplique o princípio da equivalência lógica a outro exemplo de confirmação. 2) Consegue detectar outras
consequências indesejáveis da explicação hempeliana da confirmação?

3.2.2 Abordagens alternativas da confirmação

Wesley Salmon (1975) acha que a defesa do modelo hipotético-dedutivo da confirmação por Hempel assenta numa confusão
de base entre duas concepções de confirmação: por um lado, podemos dizer que uma teoria é aceite por uma comunidade
científica porque obteve confirmação dos indícios disponíveis; por outro lado, podemos dizer que uma observação específica
aumenta a probabilidade de uma teoria, independentemente dos outros indícios disponíveis. Esta distinção é importante, como
podemos ver no seguinte caso: uma hipótese com um baixo nível de probabilidade, dados os indícios disponíveis, pode ser
«confirmada» (no último sentido) por mais um indício, e no entanto a sua probabilidade no que respeita ao conjunto dos
indícios anteriores e dos novos indícios não aumentou. Se já observámos alguns cisnes negros, não vamos depositar grande
confiança na hipótese de que todos os cisnes são brancos. Há, contudo, um sentido de confirmação segundo o qual a
observação de mais um cisne branco apoia de alguma maneira a afirmação de que todos os cisnes são brancos, se isolarmos
esse indício dos que recolhemos antes.
Richard Swinburne (1971) mostra bem o contraste entre as duas noções com o exemplo que se segue. Consideremos a
hipótese: «Todos os gafanhotos estão fora do condado de Yorkshire.» Se eu observar um gafanhoto que esteja fora do limite
do condado, esta observação deve servir para confirmar a hipótese. Mas, dado o que eu sei sobre os gafanhotos (que saltam
para aqui e para acolá, algo indiferentes aos limites dos condados), a minha observação torna mais provável que outros
gafanhotos tenham entrado no condado, o que enfraquece a hipótese inicial. O mesmo caso pode confirmar a hipótese de
acordo com um sentido de «confirmação» (baseado na relação de implicação entre os indícios e a hipótese), e infirmá-la de
acordo com o outro sentido de «confirmação» (se as crenças de base também forem tomadas em consideração).
Além de ser insensível à distinção entre estas duas noções de confirmação, segundo Salmon (1990) o modelo hipotético-
dedutivo defendido por Hempel tem uma série de fragilidades. Não parece permitir a possibilidade de hipóteses alternativas
poderem ser confirmadas pela mesma observação, e que algumas destas hipóteses podem ser mais plausíveis que outras, dada
essa observação. Pelo menos na sua formulação explícita, o modelo de Hempel não tem em conta a plausibilidade inicial das
hipóteses sujeitas a avaliação. Por fim, não lida muito bem com o caso das hipóteses estatísticas cujos indícios confirmantes
não podem ser deduzidos delas. Estes problemas foram tratados passando para a teoria das probabilidades, em particular o
Teorema de Bayes. Será que a sua aplicação à confirmação em ciência consegue melhores resultados?
O ponto de partida é assumir que aquilo que nos interessa quando estudamos a confirmação científica é o modo como um
indício sustenta uma hipótese, dados os indícios anteriormente disponíveis. As abordagens dedutivas da confirmação não
lidam muito bem com as hipóteses científicas que são confirmadas por uma afirmação observacional que não é uma
consequência directa delas. Ora, uma resposta às limitações das abordagens dedutivas consiste em tratar a confirmação
munindo-nos dos recursos da teoria das probabilidades. Quando os filósofos pensam sobre a probabilidade, podem ter uma
das seguintes concepções em mente: ou a probabilidade de uma teoria é objectiva, ou é subjectiva. No primeiro caso, a
probabilidade de uma teoria ser verdadeira depende de como as coisas são; no último, na confiança que os agentes têm na
verdade da teoria.
A explicação subjectiva pode ser usada para desenvolver uma explicação da confirmação alternativa à de Hempel. O
Teorema de Bay es, em particular, pode dizer-nos como a nossa atitude relativamente às nossas crenças actuais muda quando
são disponibilizados novos indícios (actualização de crenças). A probabilidade de uma hipótese H, dados novos indícios I, é
igual à probabilidade de I, dado H, vezes a probabilidade de H, todas divididas pela probabilidade de I.

Teorema de Bayes: P(H/I) = [P(I/H) P(H)] / P(I)

Eis um exemplo de como aplicar o teorema a um problema concreto. Imagine que a Ana mora numa casa com um jardim, e que
a casa do seu vizinho Tozé também tem um jardim. Em ambos os jardins há flores de vários tipos. Se alguém apanhar flores ao
acaso, a probabilidade de apanhar uma campainha no jardim do Tozé é 1/2, e a probabilidade de apanhar uma campainha no
jardim de Ana é 1/4. Se o João apanhasse uma flor num dos dois jardins ao acaso e se fosse uma campainha, qual a
probabilidade de a ter apanhado no jardim da Ana?

P(A2) é a probabilidade de o João ter apanhado uma flor no jardim da Ana.

P(T1) é a probabilidade de o João ter apanhado uma flor no jardim do Tozé.

P(B) é a probabilidade de uma campainha ter sido apanhada.

Ora, a probabilidade de se apanhar uma campainha no jardim da Ana (P(C/A2)) é 1/4. E a probabilidade de se apanhar uma
campainha no jardim do Tozé (P(C/T1)) é 1/2.

A probabilidade de o João apanhar flores no jardim do Tozé (P(T1)) é 1/2 (uma vez que ele escolheu ao acaso entre os dois
jardins). E a probabilidade de o João apanhar flores no jardim da Ana (P(A2)) também.
Portanto, a probabilidade de o João ter apanhado a campainha no jardim da Ana é de um terço.
De que modo a aplicação deste teorema nos ajuda a compreender a confirmação científica? Proporcionando recursos para
analisar a relação entre informação nova (um novo indício) e uma hipótese. Se um novo indício é irrelevante para a hipótese a
ser testada, então não a confirma nem a infirma. Os indícios são neutros no que respeita à hipótese, e a probabilidade da
hipótese, dados os (novos) indícios (probabilidade posterior), é igual à probabilidade da hipótese antes de os indícios se
terem tornado disponíveis (probabilidade anterior).

Neutralidade (ou irrelevância dos indícios): P(H/I) = P(H)

Se um novo indício apoia a hipótese a ser testada, podemos dizer que a probabilidade posterior da hipótese será maior que a
sua probabilidade anterior. Voltando aos corvos, o meu grau de crença na hipótese de que todos os corvos são negros será
maior depois de ter observado mais um corvo negro. Eis um outro exemplo, da tectónica de placas: a hipótese da deriva dos
continentes foi aceite muito depois de ter sido primeiramente desenvolvida, e a sua aceitação deveu-se a novos indícios
recolhidos sobre a natureza dos mecanismos geológicos, por meio dos quais os continentes se podiam deslocar ao longo da
superfície da Terra. Graças à descoberta destas anomalias geomagnéticas (e de outros indícios relevantes), a tomada de
consciência de que os continentes se podiam mover graças ao efeito da convecção térmica tornou mais plausível a teoria da
deriva dos continentes. A probabilidade da hipótese da deriva dos continentes após a descoberta das anomalias geomagnéticas
é maior do que a sua probabilidade antes da descoberta de tais anomalias. Os novos indícios confirmam a hipótese.

Confirmação: P(H/I) > P(H)

Os indícios minam a hipótese se a probabilidade da hipótese antes de os indícios estarem disponíveis for maior do que
probabilidade da hipótese, dados os indícios. A observação de um corvo branco faria a probabilidade da hipótese cair para
zero, pelo que não só não infirmaria como também falsificaria a hipótese de que todos os corvos são negros.
Eis um outro exemplo de infirmação, da teoria atómica: no início do século xix, Dalton formulou a hipótese de que toda a
matéria é composta por pequenas partículas indivisíveis chamadas átomos. Quando, no final do mesmo século, Thompson
conduziu experiências com raios X, descobriu que os átomos não eram partículas indivisíveis, mas que por sua vez eram
compostos por partículas mais pequenas, por electrões que se moviam rapidamente em redor de um núcleo. A observação de
Thompson tornou a probabilidade da hipótese de Dalton, de que os átomos são pequenas partículas indivisíveis, menos
provável, infirmando-a.

Infirmação: P(H/I) < P(H)

Note-se que, diferentemente do modelo de confirmação de Hempel, a abordagem bayesiana pode proporcionar uma indicação
da medida em que uma hipótese é apoiada por um novo indício. E isto parece ser vantajoso. Há também outros resultados da
aplicação do Teorema de Bayes à confirmação científica que são bastante prometedores. Por exemplo, podem explicar os
seguintes factos sobre a confirmação:

a. A confirmação é maior quando a probabilidade dos indícios independentes da hipótese é maior (por exemplo, resultados
inesperados que confirmam a hipótese, confirmam-na em maior grau).
b. Se uma hipótese implica os indícios («Todos os corvos são negros» implica «Este corvo é negro») e são encontrados
contra-indícios, nesse caso a hipótese é falsificada, pois a probabilidade posterior é 0.
c. Uma hipótese universal de que todo o F é G é confirmada pela observação de um não-G não F, mas em muito menor medida
do que a observação de um F que é G.

Este último ponto diz-nos que para os bayesianos, bem como para Hempel, o paradoxo dos corvos não é, verdadeiramente, um
paradoxo. Os bayesianos também concluem que devemos aceitar a alegação contra-intuitiva de que a observação de um sapato
branco constitui um indício confirmante para a hipótese de que todos os corvos são negros. Como diz Patrick Maher (2004), a
observação de um sapato branco confirma tenuamente que todos os corvos são negros porque um sapato branco não é um
contra-exemplo da hipótese de que todos os corvos são negros. O que os bayesianos alegam poder fazer e que o modelo de
Hempel não pode é medir o grau em que a observação confirma a hipótese e afirmar que uma instância positiva (um corvo
negro) confirma a hipótese de que todos os corvos são negros em muito maior medida do que uma instância contrapositiva (um
não-corvo não negro).
Discussão: Acha que as noções de confirmação e infirmação, tal como foram formalmente definidas pela probabilidade
bayesiana, encaixam na maneira como estas noções são usadas em ciência?

Os críticos da abordagem bayesiana da confirmação defendem que há outros aspectos da relação entre as hipóteses e os
indícios que esta abordagem não tem recursos para representar adequadamente. Ficam a pensar se na realidade os cientistas
raciocinam de uma maneira que pode ser formalizada mediante o cálculo de probabilidades. É que os seres humanos não
parecem bons estatísticos, e tendem a ser conservadores quando avaliam a importância de novos indícios (Kahneman et al.
1982; El-Gamal e Grether 1995): seja nos relatos em primeira mão, seja nas reconstruções post hoc sobre o modo como os
cientistas chegam à aceitação das teorias que defendem com base nos indícios disponíveis, é raro haver alguma menção à
probabilidade (Kelly e Glymour 2004).

Exercício: Acha que a maneira como os cientistas raciocinam quando avaliam a plausibilidade das suas teorias é
relevante para o projecto da definição da confirmação de teorias em ciência?

Aqui consideraremos apenas uma objecção à abordagem bayesiana à confirmação, levantada por Clark Glymour (1980). Na
literatura, esta objecção é conhecida pelo «problema dos velhos indícios». Glymour observa que o Teorema de Bayes nada
diz sobre as teorias que são confirmadas por indícios já conhecidos. O seu exemplo é o da teoria da relatividade de Einstein
(H) ser confirmada em 1915 pelas anomalias no periélio de Mercúrio (I), conhecidas há mais de um século. Será que os
indícios antigos podem confirmar uma hipótese no âmbito da abordagem bayesiana? Tudo leva a crer que não, se a
probabilidade dos dados é 1 e, consequentemente, a probabilidade anterior da hipótese é igual à probabilidade da hipótese
dados os indícios.
Howson e Urbach (2006) defendem o Teorema de Bayes, argumentando que deve considerar-se que o conhecimento prévio
que determina a probabilidade anterior de H não inclui I. Portanto, a probabilidade da hipótese deve ser tornada relativa às
crenças de base existentes, excluindo a crença nos indícios potencialmente confirmantes. Segundo os autores, este passo
justificar-se-ia dado que a finalidade do exercício é medir o impacto de I na probabilidade de H. Contudo, esta manobra deixa
muitas questões sem resposta: se a explicação não consegue produzir os resultados que esperamos no caso da confirmação de
uma teoria, dadas todas as crenças actuais, isso não será uma limitação? E exactamente como faríamos para excluir I do corpo
de conhecimento prévio?

Exercício: Consegue detectar outros problemas da abordagem de Bayes à confirmação?

A mensagem que até agora podemos retirar da discussão sobre duas das abordagens mais influentes à teoria da confirmação é
que qualquer tentativa de formalizar o modo como os cientistas operam quando avaliam hipóteses com base em indícios novos
ou previamente adquiridos é tendencialmente problemática. As tentativas de formalização dão origem a inconsistências e
paradoxos, ou não conseguem captar o que os cientistas efectivamente fazem, e se vêem a fazer, quando testam teorias. Ainda
que as reconstruções proporcionadas pelo modelo hipotético-dedutivo e pela abordagem probabilística bayesiana permitam
uma melhor compreensão da noção de confirmação e das suas dificuldades, não parecem ser explicações completamente
satisfatórias da prática da confirmação científica.

3.2.3 O novo enigma da indução

Os problemas que Hempel enfrentou com a sua explicação da teoria da confirmação também preocuparam Nelson Goodman.
Goodman (1954, 2006) apresenta um novo enigma, que salienta algumas dificuldades da indução para uma generalização
universal. Poderá alguma vez a observação de um corvo negro confirmar a afirmação geral de que todos os corvos são
negros?
Goodman introduz um novo termo, «verdul», que significa a propriedade de ser verde até um determinado momento no futuro
(31 de Dezembro de 2080, por exemplo) e azul após esse momento. A afirmação «Todas as esmeraldas que observei até agora
são verdes» parece apoiar indutivamente a hipótese de que «Todas as esmeraldas são verdes», mas também podia apoiar
indutivamente a hipótese de que «Todas as esmeraldas são verduis». Isto significa que devemos ser cautelosos quando nos
baseamos na indução para justificar as nossas hipóteses científicas, pois em alguns casos os mesmos indícios podem apoiar
duas hipóteses gerais que geram previsões concorrentes de observações futuras.
Com Hempel como seu alvo polémico, Goodman quer demonstrar que não é prometedor procurar uma resposta para o
problema da indução e para uma explicação da confirmação em ciência examinando as características sintácticas das
afirmações que relatam hipóteses e observações, e as relações lógicas entre tais afirmações. É a semântica que interessa:
segundo Goodman, só as afirmações gerais de um certo tipo, as afirmações legiformes, podem ser apoiadas por observações
particulares das suas instâncias. Não podemos determinar se uma afirmação é legiforme olhando simplesmente para a sua
forma sintáctica. Temos de prestar mais atenção às propriedades semânticas dos predicados que contém.
É assim que o problema pode ser formulado. Todas as esmeraldas observadas antes de 31 de Dezembro de 2080 são verdes.
Esperamos que a próxima esmeralda observada após essa data também seja verde, porque confiamos na afirmação geral de
que todas as esmeraldas são verdes. Todas as esmeraldas observadas antes de 31 de Dezembro de 2080 são também verduis,
dado o significado deste predicado, mas de alguma maneira não confiamos na previsão de que todas as esmeraldas serão
verduis após essa data. O que faz duas afirmações serem igualmente confirmadas pelas observações feitas até ao momento
presente, mas apenas uma gerar previsões que podem ser confiantemente projectadas no futuro?

3.2.4 Soluções avançadas para o enigma de Goodman

Haverá algo errado com o termo «verdul»?

Os filósofos que pensam sobre a confirmação de teorias e a indução têm manifestado preocupação com o facto de o enigma
avançado por Goodman ser determinado pela introdução de um predicado que é criado artificialmente, e de as considerações
que se aplicam a tal predicado não se aplicarem aos que usamos na linguagem corrente. O predicado «verdul» parece
artificial porque é disjuntivo (ou seja, contém uma condição do tipo «ou..., ou...»).

Goodman observa, contudo, que a impressão de artificialidade se deve ao nosso hábito de considerar o predicado «verde»
como primitivo e o predicado «verdul» como derivativo. Se abandonarmos este pressuposto e considerarmos «verdul» e
«azerde» como primitivos (em que «azerde» significa «azul até 31 de Dezembro de 2080 e verde após essa data»), podemos
então definir «verde» como «verdul antes de 31 de Dezembro de 2080, e azerde após essa data». Assim definido, o predicado
«verde» seria disjuntivo, e, seguindo a linha de raciocínio antes apresentada, mais artificial que «verdul».
Se estivermos atentos às mudanças de significado dos predicados que são usados na linguagem corrente dias e na ciência,
podemos achar que alguns destes predicados se comportam um pouco como «verdul». O que os termos significam e aquilo a
que se referem mudou ao longo do tempo, juntamente com as descrições teóricas a eles associadas. Isto, por sua vez, produziu
um efeito no modo como se concebe a projectabilidade das generalizações que contêm tais termos.

Exercício: Consegue encontrar um outro exemplo de uma afirmação geral que é verdadeira mas que não pode ser
confiantemente projectada no futuro porque contém um predicado semelhante a «verdul»?
Eis outra linha de argumentação relacionada: o predicado «verdul» é artificial não por ser disjuntivo, mas por ser um
predicado inventado e não estar incorporado na nossa linguagem. Goodman define um predicado como projectável se
pudermos confiar nas inferências indutivas que o contêm, pois nessa altura aplica-se aos mesmos objectos a que se aplicava
no passado, e confiamos que assim aconteça no futuro. De acordo com Goodman, um predicado não pode ser confiantemente
projectado a menos que esteja enraizado na linguagem corrente e seja comummente usado. O problema de «verdul» é que lhe
falta enraizamento.
Porém, como Colin Howson (2000) observa, alguns predicados usados em hipóteses perfeitamente confirmadas são termos
completamente novos — refere o caso do escândio, um metal raro terrestre assim baptizado em 1879. O facto de as hipóteses
sobre o escândio serem bem confirmadas torna os falantes confiantes ao projectarem-nas para o futuro, independentemente de
as primeiras formulações de tais hipóteses conterem termos pouco familiares. Ainda que termos como «escândio» não tenham
um currículo estabelecido quando usados pela primeira vez e não tenham tido origem na linguagem de todos os dias, são
projectáveis de acordo com a definição de Goodman, o que sugere que o enraizamento não é uma condição necessária para a
projectabilidade.

Exercício: Tente encontrar outros exemplos de ermos teóricos recentemente introduzidos que surjam em generalizações
científicas.

A legiformidade

A diferença entre as afirmações legiformes e as generalizações acidentais pode explicar a razão por que a indução não parece
funcionar com predicados como «verdul». A afirmação «Todas as esmeraldas são verduis» não é uma afirmação legiforme,
mas sim uma generalização acidental. Se uma generalização é acidental, não pode ser confirmada mediante a observação de
uma das suas instâncias.
Pensemos num caso particular. «Este homem de camisa azul não é casado» não confirma a seguinte generalização: «Todos os
homens de camisa azul não são casados.» Uma das razões por que poderíamos pensar que a afirmação particular não apoia a
afirmação geral é que não há uma relação especial entre os predicados nas afirmações. O que uma pessoa veste não parece ter
qualquer ligação especial com o seu estado civil, a menos que haja uma convenção explícita em vigor que determine tal
ligação — a título de exemplo, por vezes conseguimos dizer se alguém é um padre ou uma freira católicos observando a sua
indumentária, e podemos fazer inferências dos seus papéis para o seu estado civil. No nosso exemplo original, contudo, é
acidental o homem que conhecemos na festa usar uma camisa azul e não ser casado.
Comparemos isto com a afirmação «Este rubi é vermelho», que parece confirmar a hipótese «Todos os rubis são vermelhos».
Parece haver uma relação especial entre ser rubi e ser vermelho. Os rubis, como muitas pedras preciosas, devem a cor às
impurezas que a sua estrutura contém (os rubis são cristais de corindo que contêm impurezas de crómio). Portanto, não é
acidental que o rubi que acabei de observar seja vermelho.
Voltemos então ao «verdul». Haverá uma razão baseada em princípios para considerar «Todas as esmeraldas são verdes»
como uma afirmação legiforme e «Todas as esmeraldas são verduis» como uma generalização acidental? Normalmente as
afirmações legiformes distinguem-se das generalizações acidentais porque as primeiras não fazem referência explícita a um
objecto, lugar ou tempo particulares. «Todos os morangos no meu frigorífico estão maduros» seria uma generalização
acidental porque contém uma expressão que especifica a localização dos morangos à qual atribuo o predicado de estarem
maduros. Como vimos antes, a definição de «verdul» contém uma referência ao tempo, mas o mesmo se pode dizer da
definição de «verde», se o definirmos com base em «verdul» e «azerde». Este critério (que levanta problemas independentes)
não parece ajudar-nos a resolver o enigma.

Exercício: Pense noutras limitações desta primeira tentativa de distinguir as generalizações acidentais das afirmações
legiformes.

Discussão: Poderá haver leis que contenham qualificações espaciotemporais?

Suponhamos que encontramos efectivamente um modo fiável e baseado em princípios de distinguir as generalizações
acidentais das afirmações legiformes. Ainda assim, poder-se-ia objectar a esta tentativa de solução que, quando as crenças de
base correctas estão presentes, as afirmações gerais são confirmadas com base nas suas instâncias observadas,
independentemente de haver uma relação especial entre os predicados contidos nas generalizações. A ideia é que a
legiformidade é suficiente, mas não necessária, para a projectabilidade. Ainda que nada pudéssemos pressupor acerca da
natureza da relação entre ser um rubi e ser vermelho antes de sabermos o que determina a cor das pedras preciosas, a
generalização «Todos os rubis são vermelhos» já estaria a ser projectada com segurança no futuro.
Parece que ainda não temos uma boa razão para acreditar que «Todas as esmeraldas são verduis» não vai gerar previsões
precisas sobre observações futuras de esmeraldas.

3.3 Modelos de explicação

No que se segue passaremos em revista algumas abordagens filosóficas à noção de explicação científica. De acordo com o
modelo nomológico, um acontecimento só pode ser explicado se for subsumido numa lei ou numa generalização estatística e
se a explicação tiver a forma de um argumento dedutivo ou indutivo. No modelo causal, a explicação científica trata de
identificar relações causais, cadeias causais ou causas comuns entre acontecimentos. A explicação pragmática está mais
interessada na maneira como a gramática das explicações funciona do que em proporcionar uma caracterização unificada de
todas as instâncias da explicação científica.

3.3.1 Os modelos de explicação de Hempel

O Modelo Nomológico-Dedutivo de Explicação (ND) é baseado na ideia de que qualquer explicação é constituída por:

• um explanandum (algo que precisa de ser explicado);


• um explanans (algo que explica).

O explanans tem de ser verdadeiro e o explanandum tem de ser uma das suas consequências lógicas para que a explicação
seja bem-sucedida. O modelo é «dedutivo» porque a explicação tem a forma de um argumento dedutivo, e é «nomológico»
porque o explanans tem de conter pelo menos uma lei da natureza (nomos = norma).
Um acontecimento singular A é explicado se, e apenas se, uma descrição de A for a conclusão de um argumento dedutivo
válido, cujas premissas envolvam uma afirmação legiforme e um conjunto de condições iniciais. O modelo também é referido
como o modelo da «cobertura por leis», porque a ocorrência do acontecimento a explicar tem de estar no âmbito de uma lei da
natureza. A ideia é que não se pode explicar um acontecimento particular a menos que este se possa deduzir de uma
generalização legiforme — as generalizações acidentais não servem. Contudo, como vimos no que respeita a uma das
tentativas de resolver o enigma de Goodman, é extremamente desafiante encontrar uma maneira baseada em princípios de
distinguir as generalizações acidentais das leis, pelo que isto pode ser considerado uma fragilidade do modelo ND.
Eis um exemplo (extremamente simplificado) da aplicação do modelo à explicação de um fenómeno particular:

Condições iniciais: i) As placas tectónicas A e B friccionaram-se no momento T1 no local L1


Generalizações legiformes: a) Quando as placas tectónicas se friccionam, o movimento transmite ondas de energia à
superfície da Terra, b) Quando a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem tremores e abalos, c) etc.
Explanandum: Houve um terramoto no momento T2 no local L2.

Para Hempel, são quatro as condições de adequação que se aplicam a este tipo de explicações.

1. O argumento tem de ser válido. A ocorrência do terramoto num momento particular e num local particular é implicada
pelas condições iniciais e pela generalização legiforme. Se as premissas dos argumentos são verdadeiras, também o é a
conclusão.
2. As premissas têm de incluir uma afirmação legiforme. Algumas das premissas do argumento antes apresentado têm de ser
generalizações legiformes: por exemplo, «Quando a energia é transmitida à superfície da Terra, ocorrem tremores e abalos».
3 . As premissas têm de ter conteúdo empírico e de ser verificáveis. As premissas têm conteúdo empírico e podem ser
verificadas, ainda que a tentativa de verificar (e não de confirmar) uma generalização legiforme quando é expressa por uma
afirmação universal possa ser problemática.
4. As premissas têm de ser verdadeiras. Esta condição é diferente das condições 1-3. Se não for satisfeita, então o argumento
do explanans ao explanandum ainda tem a forma correcta, ou seja, é uma explicação potencial. Se a condição 4 for satisfeita,
então o argumento já não é apenas válido, mas também é sólido, e isto é uma explicação real.

Hempel defende que o modelo pode dar conta da explicação causal, e que revela a simetria entre a explicação e a previsão.
Ora vejamos estes dois pontos cada um de sua vez. Hempel argumenta que a explicação causal é apenas um tipo de explicação
que pode ser representada pelo modelo ND. Tal como fez com a relação de confirmação entre uma afirmação observacional e
uma hipótese, Hempel explica a relação de causa e efeito por via da relação de implicação lógica. Da mesma maneira que
uma afirmação observacional se segue da hipótese que confirma, também um acontecimento a explicar se segue das condições
iniciais e das afirmações legiformes que contribuem para a sua explicação. A simetria entre a explicação e a previsão é
também um resultado desta abordagem. A afirmação legiforme e as condições iniciais explicam o acontecimento que é
descrito na conclusão do argumento, mas também o prevêem. No exemplo anterior, num exercício retrospectivo, explicámos a
ocorrência do terramoto com base na consideração das condições iniciais e da aplicação da generalização universal. Da
mesma maneira, num exercício prospectivo, poderíamos prever a ocorrência do terramoto com base na condição inicial e na
generalização legiforme.
De acordo com Hempel, também se aplica uma estrutura argumentativa semelhante às hipóteses estatísticas, mas nesse caso a
diferença é que a generalização torna a conclusão não implicada pelas premissas, mas mais provável, dadas as premissas
(Modelo Estatístico-Dedutivo, ED). O modelo ED é apropriado quando queremos explicar uma hipótese estatística e podemos
fazê-lo dedutivamente se uma das premissas for uma generalização estatística. Quando o acontecimento a explicar é um caso
único, o modelo dedutivo não pode ser usado e temos de apelar ao Modelo Estatístico-Indutivo de Explicação (EI). A
conclusão é considerada muito provável dadas as premissas, mas não se segue das premissas. No modelo ND, uma condição
de adequação para a explicação era que o explanans tinha de conter uma afirmação legiforme. Para o modelo EI, a condição é
que a generalização contida no explanans tem de ter uma probabilidade muito elevada. O argumento do modelo EI também
pode ser usado para previsões: dizer que as premissas explicam o acontecimento é também dizer que esperamos que o
acontecimento vai acontecer dadas as premissas.

Exercício: Identifique outras explicações que se adeqúem quer ao modelo ND, quer ao modelo El.

Os modelos de explicação de Hempel foram criticados por não conseguirem especificar condições necessárias e suficientes
plausíveis para explicações científicas satisfatórias. Segundo os críticos, alguns argumentos do modelo ND ou do modelo EI
não são verdadeiramente explicativos porque não apontam para a causa genuína do acontecimento a explicar. Noutros casos,
temos explicações perfeitamente satisfatórias que não se adequam ao modelo ND (porque o acontecimento a explicar não se
insere no âmbito de uma generalização legiforme, por exemplo) ou ao modelo EI (porque a generalização que explicaria o
acontecimento tem uma probabilidade baixa, por exemplo). Examinaremos duas objecções com maior pormenor: a relevância
e a simetria.

3.3.2 Relevância, simetria e relações causais


Wesley Salmon (1989) levantou o problema da relevância com o seguinte exemplo:

Condição inicial: Butch toma a pílula.


Generalização: As pessoas que tomam a pílula não engravidam.
Explanandum: Butch não engravidou.

De acordo com o modelo de Hempel, o argumento antes apresentado é explicativo, mas a primeira premissa parece ser
irrelevante para a conclusão. A razão por que Butch não engravidou nada tem a ver com ter tomado a pílula, mas sim com o
facto de ser do sexo masculino.
Consideremos o seguinte exemplo, que ilustra o mesmo problema:

Condição inicial: Ema toma vitamina C durante uma semana para tratar uma constipação.
Generalização: A probabilidade de se recuperar de uma constipação depois de se ter tomado vitamina C durante uma
semana é muito elevada.
Explanandum: Logo, é muito provável que Ema recupere.

Mesmo se a generalização é muito provável, a explicação é má. Normalmente as constipações passam numa semana, com ou
sem a toma regular de vitamina C. A probabilidade elevada da generalização foi introduzida por Hempel como uma condição
para argumentos do modelo EI bem-sucedidos, para garantir que havia uma boa base de indícios para a inferência indutiva. Na
realidade, contudo, a probabilidade elevada da segunda premissa não garante que a explicação seja boa. E preciso um critério
adicional de relevância, pois a satisfação dos requisitos formais para uma explicação adequada não é suficiente. Alguns
filósofos da ciência (ver Psillos 2002) defendem que uma referência a relações causais poderia ajudar-nos a discriminar entre
as explicações relevantes e as irrelevantes, mas que este tipo de relações não é abrangido pelo modelo de Hempel.
Sylvain Bromberger (1966) levantou o problema da simetria no modelo ND da explicação científica. Eis um exemplo
clássico:

Condição inicial: O barómetro cai rapidamente.


Generalização: Sempre que o barómetro cai rapidamente, aproxima-se uma tempestade.
Explanandum: Aproxima-se uma tempestade.

O barómetro a cair é um indicador da aproximação de uma tempestade, mas não explica a ocorrência da tempestade. E mais
intuitivo dizer que é a aproximação da tempestade que explica o barómetro a cair. Este caso destrói a desejada simetria entre
a explicação e a previsão. Ao usarmos um barómetro, podemos prever que vai haver uma tempestade, mas não explicamos
por que ocorre, pois tanto o barómetro a cair como a ocorrência da tempestade se devem a outra coisa — a uma alteração na
pressão. Hempel não consegue explicar a simetria entre a causa e o efeito no âmbito das explicações nomológicas-dedutivas.
O mesmo problema surge no exemplo da haste da bandeira do quadro 3.4. Podemos explicar o comprimento da sombra
fazendo referência às leis da óptica, à geometria e à altura da haste da bandeira. Note-se que também podemos «explicar» a
altura da haste da bandeira fazendo referência ao comprimento da sua sombra, e que esta direcção da explicação parece
contra-intuitiva:

Condição inicial: Comprimento da sombra.


Leis: Leis da óptica e da geometria.
Explanandum: Altura da haste da bandeira.

Estes exemplos sugerem que o modelo de Hempel não tem recursos para discriminar os papéis das condições iniciais e do
explanandum, pois cada qual pode ser usado para derivar o outro em conjunto com as leis ou generalizações usadas como a
segunda premissa do argumento. A análise deste exemplo torna explícita uma importante desanalogia entre a relação entre as
condições iniciais e o explanandum no senso comum (que não é entendida como simétrica) e a relação entre as condições
iniciais e o explanandum no modelo dedutivo (que é perfeitamente simétrica).
Foram feitas algumas tentativas para resolver os problemas da relevância e da simetria especificando outras condições que a
relação entre o explanans e o explanandum precisa de satisfazer. O modelo causal da explicação, desenvolvido por Salmon e
por outros, consegue resolver alguns problemas encontrados no modelo de explicação de Hempel, tais como a simetria, uma
vez que é baseado na ideia de que a relação entre o explanans e o explanandum é uma relação causal. A ideia de Salmon é
que todos os acontecimentos fazem parte de cadeias causais e estão relacionados uns com os outros por via da continuidade
espaciotemporal e da relevância estatística. Quando os valores se correlacionam, assumimos que possuem uma causa comum
prévia. Por exemplo, a alteração da pressão pode explicar tanto a ocorrência da tempestade como a queda do barómetro. Mas
talvez haja outros acontecimentos, anteriores à alteração da pressão, que são a causa comum de tal alteração e do
comportamento do barómetro. Este método de estabelecer causas pode levar-nos a uma regressão da explicação: quando é que
paramos de procurar uma causa comum?
A principal dificuldade da explicação causal é a clarificação da noção de «causar». Dizer que A causou B não é dizer que A é
necessário para a ocorrência de B, pois B podia ter ocorrido independentemente de A. O exemplo que se segue ilustra este
caso. Um homem ingere arsénico e morre 24 horas depois. O envenenamento é a causa da sua morte, mas podia ter morrido na
mesma se se tivesse distraído ao atravessar a rua ou se tivesse sido atingido por um raio.
Uma explicação contrafactual da causalidade sugere que sempre que «A causou B» é verdadeira, também é verdade que «Se A
não tivesse acontecido, logo B não teria acontecido». Porém, esta explicação apresenta outros problemas, pois as condições
antecedentes a A podiam estar na mesma relação contrafactual com B e, no entanto, não serem relevantes para uma explicação
causal para a ocorrência de B. Se é verdade que a ingestão de arsénico causou a morte do homem, então a morte não teria
ocorrido a menos que o homem tivesse sido envenenado. Contudo, também é verdade que a morte não teria ocorrido se o
homem não tivesse encontrado o seu irmão (que o envenenou), e, no entanto, o encontro com o irmão não parece ser a causa da
sua morte. Precisamos de uma maneira de nos focarmos nos factores salientes na cadeia causal dos acontecimentos que nos
conduza à morte do homem, se queremos dar uma explicação satisfatória da mesma.

Exercício: Consegue dar exemplos de boas explicações científicas que não mencionem causas?

Discussão: Será que os modelos causais obtêm melhores resultados do que o modelo de Hempel no sentido de
proporcionar condições necessárias e suficientes para a explicação científica?

3.3.3 Uma abordagem pragmática à explicação

Muitos dos problemas levantados pela teoria da explicação de Hempel, incluindo os dois que apresentámos (a relevância e a
simetria), podem ser, pelo menos em parte, tratados fazendo referência a uma relação causal entre o explanans e o
explanandum. Todavia, algumas teorias parecem explicar sem oferecer informação sobre processos causais (a mecânica
quântica elementar, a psicologia cognitiva ou a geometria, por exemplo), e isto leva-nos a perguntar se as explicações
científicas precisam de ser causais. Deverão os mecanismos causais ter um papel privilegiado na explicação?
Bas van Fraassen (1980) passa em revista a literatura sobre a explicação, desde os modelos de Hempel às explicações
causais, e põe em causa o pressuposto tanto da abordagem nomológica como da abordagem causal da explicação, de que esta
é uma relação entre o acontecimento a explicar e uma hipótese. Desenvolve um modelo pragmático da explicação, segundo o
qual um facto explica outro facto relativo a uma teoria que é aceite. Os pressupostos importantes nesta abordagem são: 1) a
teoria usada para dar uma explicação dos factos por que nos interessamos não precisa de ser verdadeira, ou mesmo
empiricamente adequada, para desempenhar o papel explicativo requerido; 2) as explicações são sempre relativas a um
contexto, o que significa que seria errado supor que, para cada facto que precisa de uma explicação, há apenas uma resposta
satisfatória para a(s) pergunta(s): «Como (porque) é que F aconteceu?»
Esta análise aponta para duas fontes de dependência do contexto. Primeiro, uma explicação é sempre relativa a uma teoria e
aos interesses das pessoas que procuram uma explicação. Estes dois elementos caracterizam o contexto no âmbito do qual
podemos avaliar a saliência e a relevância de factores explicativos alternativos. Segundo, a explicação é relativa a que
acontecimentos consideramos serem uma alternativa relevante ao acontecimento que precisamos de explicar.
Imaginemos a investigação de um homicídio. A pergunta «O que causou a morte desta pessoa?» terá respostas diferentes para
o médico que conduz o exame post-mortem e para o detective que procura um homicida. Ora isto determina a relevância
explicativa das hipóteses que serão avançadas. No primeiro contexto, as hipóteses explicativas alternativas para a morte da
vítima podem incluir, por exemplo, o afogamento ou ter sido baleada. No último contexto, o detective está à procura de
motivos plausíveis para o homicídio, e as hipóteses explicativas alternativas podem incluir, por exemplo, a esperança de
herdar uma fortuna ou ciúmes.
Van Fraassen apresenta outro exemplo no qual à pergunta «porquê?» se pode responder de maneiras diferentes, dependendo
do interesse da pessoa que a faz. Podíamos responder à pergunta «Porque é que o sangue circula no corpo?» quer fazendo
referência à função da circulação sanguínea («Para levar oxigénio aos tecidos do corpo»), quer ao mecanismo que torna a
circulação sanguínea possível («Porque o coração bombeia o sangue pelas artérias»).
Quando reflectimos sobre o acontecimento a explicar, contrastamo-lo com outros acontecimentos que podiam ter acontecido
em vez dele, e perguntamos porque ocorreu o acontecimento original (e não uma das alternativas que considerámos). O
detective pode procurar uma explicação para a razão por que o Senhor Belmiro foi assassinado em casa e não no escritório,
ou para a razão por que foi assassinado às 8 da noite e não às 6 da manhã. O anatomista pode perguntar-se por que razão o
sangue circula à velocidade x e não à velocidade y. O biólogo evolucionista pode pensar porque é que a circulação sanguínea
se desenvolveu em vez de outro meio que pudesse garantir o fornecimento de oxigénio aos tecidos do corpo. Os
acontecimentos possíveis que diferem do acontecimento efectivo a explicar neste ou naquele aspecto (o local do crime, a hora
do crime, por exemplo) constituem a classe de contraste relevante.
O que torna uma explicação uma boa explicação? Há três critérios principais. Primeiro, uma resposta à pergunta «porquê?»,
como «A ocorreu devido a E», pode ser avaliada por si só com base na verdade ou plausibilidade. No caso do homicídio,
uma explicação para a morte do Senhor Belmiro é a Menina Luísa ter-lhe dado um tiro. A hipótese de a Menina Luísa ter
disparado sobre a vítima pode perder plausibilidade se descobrirmos que ela nunca teve ou usou uma arma na vida.
Segundo, a resposta pode ser avaliada no que respeita à sua relevância para o acontecimento a explicar. Será que E realmente
apoia A no que respeita à sua classe de contraste (os acontecimentos que podiam ter ocorrido em vez de A)? Se a vítima
tivesse sido a Senhora Maria, que é tia da Menina Luísa e que lhe teria deixado uma boa herança, o motivo para o crime da
Menina Luísa seria claro e a explicação mais convincente. Mas a vítima foi o Senhor Belmiro, que, tanto quanto se sabe, não
tinha relação alguma com a Menina Luísa.
Terceiro, a resposta pode ser avaliada no que respeita a outras respostas possíveis à pergunta «porquê?» — por exemplo, será
«Porque A» mais provável do que «Porque B», dada a informação de que dispomos? Se se descobrir que outro suspeito com
um motivo forte e sem álibi, o Senhor Silva, é um atirador experiente, a probabilidade de a Menina Luísa ter cometido o crime
não parecerá tão elevada quanto a probabilidade de o Senhor Silva ter cometido o crime.
Na abordagem pragmática, a explicação de um acontecimento A é desmistificada: é vista apenas como uma resposta à pergunta
«porquê?» que é satisfatória relativamente a uma teoria de fundo que determina a série das hipóteses alternativas e os aspectos
em que o evento precisa de uma explicação. De acordo com Van Fraassen, parece não haver qualquer modo baseado em
princípios de distinguir a explicação em ciência de outros tipos de explicação, a não ser fazendo referência ao tipo de
acontecimentos que precisam de ser explicados e à série de teorias de fundo com base nas quais a hipótese explicativa
relevante é escolhida.

Exercício: O que torna pragmática a abordagem de Van Fraassen da explicação?

Resumo
Neste capítulo observámos modelos que foram concebidos para explicar o modo característico como o conhecimento é
adquirido, consolidado e posto em prática em ciência. A atenção que os positivistas lógicos dão à estrutura lógica e às
componentes sintácticas da confirmação e da explicação parece fazer parte de um projecto geral de explicar a prática da
ciência de uma maneira puramente objectiva (independente dos factos sociológicos e psicológicos da descoberta ou da
justificação), e de explanar os conceitos usados pelos cientistas de uma maneira clara e inequívoca.
Porém, ainda que as suas análises sejam bastante esclarecedoras e nos ajudem a chegar a algumas conclusões gerais sobre o
modo como os cientistas operam, a tentativa de explanar a confirmação e a explicação em termos das meras relações lógicas
entre afirmações não consegue abranger todas as características da confirmação e da explicação que são importantes na
prática da ciência.
Goodman e Van Fraassen defendem que as considerações semânticas e pragmáticas têm de ser tidas em conta para
compreender o modo como as teorias são formadas, testadas, aceites e aplicadas em ciência. Isto não vai, necessariamente,
contra a objectividade da ciência, e não é uma ameaça à ideia da ciência como progressiva e direccionada para a verdade,
podendo, no entanto, levar-nos a aceitar que há noções diferentes de confirmação e tipos diferentes de explicação que servem
finalidades diferentes e por vezes igualmente importantes.
A abordagem pragmática gera mais dúvidas sobre a legitimidade de um critério de demarcação bem definido entre a ciência e
a não-ciência. Se é verdade que, pelo menos algumas vezes, as teorias são desenvolvidas recorrendo a modelos cujo papel é
suscitar a análise e a reflexão e testar hipóteses, e que a adequação de uma explicação deve ser concebida como relativa a um
contexto e refém das nossas expectativas, então o abismo entre a prática das ciências naturais e a prática das ciências humanas
ou sociais, e entre a prática da ciência em geral e o raciocínio quotidiano, parece estreitar-se ao ponto de os elementos de
continuidade pesarem mais que os sinais de diferenciação.

Cenas dos próximos capítulos


O debate sobre a teoria e a observação continuará no próximo capítulo, em que perguntaremos se as teorias científicas
descrevem e representam a realidade tal como é, ou se apenas fornecem ferramentas úteis para a previsão e a manipulação da
natureza.
As dificuldades do desenvolvimento de uma explicação formal satisfatória da confirmação e explicação de teorias informarão
a nossa discussão sobre a racionalidade da mudança científica no capítulo 5. Será que podemos realmente escolher entre
teorias rivais baseando-nos na sua adequação empírica e no seu poder explicativo, ou haverá outros factores que determinam a
escolha de uma teoria?
Questões para pensar
1. Qual é a ligação entre o enigma de Goodman e o problema da indução de Hume?
2. Será «espécie» um predicado que pode ser projectado?
3. Que modelo de explicação se adequa melhor às ciências sociais?
4. O que torna um modelo de explicação «nomológico»?
5. Será que o Teorema de Bayes proporciona uma reconstrução de como actualizamos as nossas crenças, ou de como as
actualizaríamos se fôssemos agentes racionais?
6. Haverá uma ligação necessária entre ser um rubi e ser vermelho?

Leituras complementares
Se quiser explorar a bibliografia sobre a natureza das teorias científicas, um bom ponto de partida é a entrada Theories, por
Giere, no Blackzvell Companion to the Philosophy of Science (2000). Também há uma excelente entrada sobre Models in
Science, por Frigg e Hartmann, na Stanford Encyclopedia of Philosophy (2006). Os textos recomendados sobre a perspectiva
sintáctica das teorias são: Carnap (1966, capítulos 23-6) e Hempel (1970); sobre a perspectiva semântica, ver Suppe (1989) e
Van Fraassen (1980, capítulo 3).
Se quiser saber mais sobre as tentativas de solucionar os paradoxos da confirmação, comece pelo apanhado de Swinburne
(1971) e pela colectânea sobre o «verdul» organizada por Stalker (1994). Também pode deitar a mão aos clássicos de
Hempel (1945) e Goodman (1954, 2006). Está disponível uma quarta edição do texto clássico de Goodman, Facto, Ficção e
Previsão, com um prefácio de Hilary Putnam. Ver as partes m e iv para, respectivamente, uma formulação do paradoxo do
verdul, e uma tentativa de solução do mesmo.
Se é estreante na probabilidade e quiser compreender melhor as abordagens probabilísticas à confirmação, Hacking (2001)
ser-lhe-á útil. Para uma discussão pormenorizada sobre as explicações probabilísticas da confirmação e para provas de
algumas das alegações apresentadas na parte referente ao bayesianismo, investigue tanto em Maher (2004) como em Howson e
Urbach (2006).
Pode encontrar visões de conjunto críticas da bibliografia sobre os modelos de explicação em Salmon (1989) e Van Fraassen
(1980). Sobre os modelos de explicação computacionais, ver Thagard e Litt (2008).
4. Linguagem e realidade

No que se segue exploraremos algumas das questões levantadas pelo uso da linguagem na prática e na teorização científicas.
Algumas destas questões não serão completamente novas, seguindo-se naturalmente da nossa discussão anterior sobre a
natureza das teorias científicas. Haverá uma distinção coerente e significativa entre os termos teóricos e os observacionais?
De que maneira o significado de termos como «livro» (que denota um artefacto) difere do significado de termos como
«oxigénio» ou «casamento» (que denotam, respectivamente, uma categoria natural e uma categoria social)?
Para compreendermos o motivo para introduzir tais distinções, precisamos de saber um pouco mais sobre como a linguagem
em geral funciona. Há teorias contraditórias sobre a maneira como os termos que usamos obtêm o seu referente e sobre como
algo nas nossas mentes — uma ideia ou um conceito — consegue referir ou destacar um objecto no mundo. O debate entre os
adeptos da teoria causal da referência e os descritivistas será brevemente introduzido, preparando o terreno para a discussão
de questões mais específicas em filosofia da ciência. Será que teorias concorrentes podem ser comparadas se os termos
teóricos que usam se referem a entidades diferentes? Será que todas as entidades postuladas pelas teorias que actualmente
aceitamos existem mesmo?
O modo como a referência funciona é importante para a tarefa de comparar teorias científicas, pois quando as teorias são
derrubadas e substituídas, alguns dos termos empregues na teoria derrubada são mantidos, mas podem ser associados a
descrições teóricas diferentes. Outros termos há que perdem completamente os seus referentes: na nova teoria pode não haver
espaço para algumas das entidades cuja existência era antes aceite. Em todo o caso, a alteração de teorias tem um impacto
significativo tanto na linguagem como na ontologia usadas pelos cientistas e pelos leigos numa comunidade.
Quando a alteração devida ao derrube de uma teoria anteriormente aceite é absolutamente radical e são postuladas novas
entidades com as finalidades de explicação e de previsão, ou às entidades postuladas pela velha teoria são atribuídas
descrições teóricas diferentes, pode haver sérias preocupações quanto à eficácia da comunicação entre os cientistas
comprometidos com teorias concorrentes. Será que poderemos traduzir afirmações de uma teoria para afirmações de outra
teoria e preservar uma comunicação genuína? Se a resposta for negativa, a própria possibilidade de comparar as teorias
concorrentes (e de, por esse meio, avaliá-las com base em critérios como o poder explicativo e a simplicidade) fica minada.
As questões sobre o significado e a referência dos termos teóricos e sobre a possibilidade de comparar teorias reaparecem no
debate sobre o realismo científico. Qual é a relação entre a ciência e o mundo em que vivemos? Será que é suposto as teorias
científicas, ou pelo menos as teorias científicas que actualmente aceitamos, proporcionarem uma descrição de como o mundo é
realmente? Se assim for, poderemos dizer que as teorias científicas proporcionam uma descrição e uma representação
melhores, talvez mais fundamentais, do que os meios alternativos de descrição e representação? Consideraremos o realismo
científico no contexto do debate mais alargado sobre o realismo em filosofia, e em seguida apresentaremos uma série de
posições: há posições realistas plenas baseadas nos argumentos do êxito da ciência; posições instrumentalistas, relativistas ou
construtivistas, que reforçam o pressuposto de que a ciência é um guia para a realidade; há, por fim, posições intermédias
influentes, que concedem que o realismo pleno é insustentável, mas resistem às consequências radicais das alternativas anti-
realistas.

No final deste capítulo estará habilitado a:

•Revisitar a relação entre observação e teoria tendo como referência a linguagem das teorias científicas.
• Explicar como a linguagem da ciência muda quando as descrições teóricas aceites mudam.
• Distinguir duas teorias influentes sobre o significado e a referência.
• Explicar a distinção entre termos para categorias naturais e termos para categorias não naturais.
• Avaliar a hipótese de as teorias concorrentes dominantes serem incomensuráveis.
• Discutir o papel das teorias científicas e o modo como se relacionam com a realidade.
• Avaliar argumentos diferentes a favor do realismo e do anti-realismo.
• Ter uma opinião informada sobre o estatuto ontológico dos termos teóricos.

4.1 Significado, referência e categorias naturais

No que se segue introduziremos as noções de significado e de referência, e exploraremos a ideia de que os termos para
categorias naturais obtêm a sua referência de uma maneira que depende das propriedades essenciais da categoria natural que
nomeiam.

4.1.1 Como os termos adquirem o seu significado

Quando pensamos no significado de uma palavra, vêm-nos muitas coisas à cabeça. A palavra «cenoura» designa uma hortaliça
de uma certa cor, forma e tamanho que os seres humanos e outros animais por vezes comem. Se nos pedirem para explicar o
que significa «cenoura» a alguém que está a aprender inglês, podemos desenhar uma cenoura num papel como uma ilustração,
mostrar uma cenoura ou fazer uma listagem das propriedades que normalmente as cenouras têm, como por exemplo serem cor
de laranja, poderem ser cozinhadas ou consumidas cruas, conterem vitaminas, serem recomendadas para intensificar o
bronzeado natural, etc. Note-se que a última opção só é viável se a pessoa já tiver alguma competência no domínio da língua
inglesa. Há outros tipos de competências que podem ser relevantes: os utilizadores do termo «cenoura» sabem algo sobre as
cenouras, mas as pessoas que cultivam cenouras nas suas hortas, os nutricionistas ou os autores de livros de culinária sabem
muito mais sobre cenouras do que as outras pessoas, e seriam capazes de enunciar propriedades que não correspondem ao
estereótipo das cenouras.
Os filósofos da linguagem salientam dois aspectos do significado: 1) o facto de as palavras (pelo menos algumas) se referirem
a objectos específicos no mundo (a referência ou extensão) e 2) o facto de os falantes associarem uma descrição a tais
palavras (o sentido ou intensão). As teorias disponíveis sobre o significado dão conta destes dois factos, mas há duas que
disputam o que determina a referência para os nomes próprios, como «Max», «Paris» e «Neptuno». Para odescritivismo, a
descrição que o falante associa à palavra determina a referência do nome. Para a teoria causal da referência, a teoria rival, o
que determina a referência do nome são factos não mentais sobre o modo como o nome se relaciona com o objecto a que se
refere.
A teoria descritivista diz que a referência de um nome próprio é determinada pela descrição (ou conjunto de descrições) que
os falantes associam ao nome (Strawson 1957; Searle 1969). Há diferentes versões desta teoria. Uma das ideias é que há uma
descrição privilegiada que desempenha este papel de fixar a referência. A alternativa é sugerir que há várias descrições
associadas ao nome e que nem todas precisam de desempenhar esse papel de fixar a referência, ou de ser satisfeitas por um
objecto para que o nome a ele se refira com êxito (a «teoria do agregado»). As teorias descritivistas também diferem sobre se
a descrição é o que um falante individual associa ao nome, ou se se trata de um grupo de falantes relevantemente definido
(uma comunidade linguística, por exemplo). O nome «Daniel Kahneman» refere-se à pessoa que satisfaz a descrição que os
falantes associam ao nome. Para aqueles que não conhecem Daniel Kahneman pessoalmente mas conhecem o seu trabalho, ele
é o psicólogo que estudou as limitações do raciocínio humano e ganhou o Prémio Nobel da Economia em 2002. É provável
que para os seus familiares e vizinhos sejam mais relevantes outras descrições.
A teoria da referência rival, a teoria causal, diz que um nome ou um termo se refere a seja o que for com que mantém uma
ligação causal correcta (Kripke 1980). «Daniel Kahneman» referir-se-á à pessoa que foi chamada «Daniel Kahneman» e que
foi chamada por esse nome desde então, com base nesse acto inicial de baptismo.

Exercício: Consegue antever alguns dos problemas que as duas teorias da referência antes esquematizadas podem
enfrentar? Qual das duas teorias é mais convincente?

Discussão: Como se pode determinar que descrições são mais ou menos centrais ou representativas?

Um problema muito discutido na literatura, e frequentemente visto como uma objecção a uma explicação puramente
descritivista da referência dos nomes próprios, é o das descrições inadequadas. Suponhamos que durante muitos anos os
falantes estavam convencidos de que «Homero» se referia ao autor da Ilíada, e depois descobriam que afinal a Ilíada não fora
escrita por um só autor. O que pensariam sobre a referência «Homero»? Se a descrição que usavam para seleccionar o
indivíduo chamado «Homero» era inadequada, então «Homero» não refere. Contudo, se consideravam que o nome referia
quem quer que fosse que tivesse sido baptizado como «Homero» e que mais tarde fora identificado com esse nome, a questão
de a descrição comummente associada a «Homero» ser imprecisa já não se poria, e o nome não perderia, necessariamente, o
seu referente quando a verdade sobre a autoria da Ilíada fosse revelada. Neste último cenário, os falantes só precisam de
rever a descrição, e isto não tem consequências imediatas na determinação do referente de «Homero» ou na questão sobre se
Homero existiu.
No caso em que tudo o que os falantes sabem sobre Homero é pensarem que escreveu a Ilíada e em que nenhuma outra
descrição é associada ao uso do nome, a conclusão de que «Homero» refere alguém sobre quem nada sabiam e que não tem
ligação (especial) alguma com a Ilíada parece insatisfatória, pois não explica a maneira como o nome era usado antes de se
ter tornado conhecido que Homero não fora o único autor da Ilíada.
Alguns filósofos, muitas vezes motivados por casos como este, sugerem que podemos desenvolver uma posição intermédia
entre a teoria causal e a teoria descritivista da referência. Gareth Evans (1973), por exemplo, pensa que tanto as ligações
causais entre o nome como o seu uso são importantes, e que algumas descrições são centrais para a nossa compreensão de
como o nome tem sido usado. Avança a ideia de que o referente de um nome próprio é o que fez que os falantes associassem a
ele a descrição prevalecente que rege o uso do nome.

4.1.2 A terra gémea

De acordo com as teorias do significado inspiradas pelo descritivismo (Frege 1892; Russell 1905; Kuhn 1962, 1970), a
descrição que associamos a termos que designam categorias fundamentais na natureza determinam em que pensamos quando
usamos tais termos. As categorias naturais são frequentemente distinguidas dos agrupamentos de objectos abstractos (como os
números) ou dos artefactos (como cadeiras), mas também das categorias sociais (como o género). A palavra «electrão» é um
exemplo de um termo para uma categoria natural, e, para o descritivista, refere seja qual for a entidade que a sua descrição
teórica capta. Se para o leigo o electrão é a parte com carga negativa do átomo, para um químico ou para um físico a
descrição usada para identificar as entidades em que pensam quando falam em electrões será mais rica e mais pormenorizada,
pois compreendem melhor as propriedades dos átomos.
Nas teorias causais, o tratamento dos nomes próprios é alargado aos termos para categorias naturais (Putnam 1975). A
referência «ouro», «tigre» ou «água» é dada pelo que o ouro, os tigres e a água são, não pelo que sabemos sobre eles. O
referente de «ouro» será a coisa que foi primeiramente baptizada como «ouro» e depois identificada com esse termo,
independentemente das alterações que a sua descrição teórica sofreu desde o primeiro contacto com o ouro até ao uso actual
do termo.

Exercício: Será que a explicação do baptismo das categorias naturais também funciona com entidades que não são
directamente observáveis, como os electrões? Considere um termo teórico à sua escolha (por exemplo, «rendimento» na
economia ou «quantum» na física). O que determina o referente desse termo? Em que condições o termo muda de
referente?

Putnam (1975) concebeu uma experiência mental (hoje extremamente influente tanto na literatura sobre as categorias naturais
como sobre o conteúdo mental) para mostrar que as nossas intuições sobre o significado e a referência apoiam uma teoria
causal da referência dos termos para categorias naturais. Convida-nos a imaginar que existe um outro planeta quase
indistinguível do planeta Terra, a Terra Gémea. A única diferença entre a Terra e a Terra Gémea é que a substância a que
chamamos «água» na Terra é H2O e a substância a que chamam «água» na Terra Gémea é XYZ (em que isto significa a sua
composição química). O que é interessante neste caso imaginário é que em ambos os planetas as propriedades superficiais da
substância são idênticas: «água» denota um líquido incolor, inodoro, que mata a sede, que pode ser encontrado em rios, etc.
Eis um caso em que os habitantes da Terra e da Terra Gémea não especialmente versados em química partilham a mesma
descrição associada ao termo «água» (o que pode ser encontrado nos rios e nos lagos, por exemplo), mas em que o termo se
aplica a duas substâncias diferentes. Na Terra, refere-se a H2O; na Terra Gémea, a XYZ. Se esta for a maneira correcta de
interpretar a experiência mental, então mostra que o descritivismo tem de estar errado, e que a intensão (ou sentido) não pode
determinar a extensão (ou referência), pois podemos ter um termo com a mesma intensão mas com uma extensão diferente,
dependendo do meio em que é usado.
Putnam cria este cenário para nos fazer partilhar a intuição de que o significado depende quer do mundo exterior (o que a água
é, por exemplo), quer do modo como o trabalho linguístico é distribuído na comunidade. Mesmo que o leigo não consiga
distinguir a água da substância que corre nos rios na Terra Gémea, para os termos para categorias naturais como «água», a
maneira como identificamos instâncias de água depende da capacidade de identificar a sua estrutura oculta, as suas
propriedades essenciais, e não apenas as suas características superficiais, como a cor e o odor. Por outras palavras, Putnam
defende que o significado não é algo privado na cabeça de um falante, mas algo determinado pela natureza das coisas no
mundo que nos rodeia. Essa natureza (tantas vezes não aparente) é algo que aprendemos ao fazer ciência, e determina os
critérios que os especialistas usam para determinar se uma coisa é água ou outra coisa.
Fará sentido dizer que «água» tem duas extensões, H2O na Terra e XYZ na Terra Gémea? Para Putnam, não, da mesma
maneira que não faria sentido dizer que há duas entidades mediante as quais o nome «Homero» se refere à pessoa que se
julgava ter escrito a Ilíada a uma só mão e ao grupo de pessoas que contribuíram para a sua escrita. A água é H 2O e o termo
«água» sempre referiu H2O na Terra, mesmo quando as pessoas não reconheciam a água com base na sua composição química.
Na terminologia de Kripke, «água» é um designador rígido, ou seja, o seu referente é sempre o mesmo em todos os mundos
possíveis, e destaca o que é essencial sobre a água, a sua estrutura oculta. Mesmo no ano de 1750 na Terra, quando ninguém
conhecia a composição química da água, o termo «água» referia-se a H2O porque se comportava como um indexical. A
palavra «água» fora atribuída a uma substância uniforme particular pelo baptismo inicial que fixou a referência do termo:
quando alguém disse pela primeira vez «Isto é água». Como toda a expressão indexical, a sua referência é determinada pelo
mundo, pelas características daquilo para que os falantes apontam quando dizem «Isto é água».
Discussão: 1) A sua intuição diz-lhe que antes da descoberta do oxigénio e da composição química da água o termo
«água» referia-se a duas substâncias diferentes na Terra e na Terra Gémea? 2) A sua intuição diz-lhe que nessa altura os
habitantes da Terra e da Terra Gémea se referiam a coisas diferentes quando diziam «água»?

4.1.3 Intuições sobre categorias naturais

Os descritivistas afirmam ter intuições diferentes sobre o caso da Terra Gémea, e defendem uma perspectiva segundo a qual o
referente de «água» é a subsância que satisfaz uma descrição teórica aceite (ou uma definição operacional) de água, seja ela
qual for. A determinação da referência é relativa à teoria presentemente adoptada. Não faz sentido dizer que antes de 1750 os
falantes se referiam a H2O usando o termo «água» porque nessa altura nenhuma descrição desse tipo podia ter sido associada
à água, e nada que com isso se parecesse aparecia na melhor teoria disponível sobre o que a água era.
Pode-se levantar outra objecção à distinção entre propriedades superficiais e essenciais para as categorias naturais, que
interessa para a fixação da referência, e com a ideia, implícita na perspectiva defendida por Putnam, de que os referentes dos
termos para categorias naturais são determinados pelas propriedades essenciais e não pelas propriedades superficiais da
categoria natural. Que propriedades são essenciais e que propriedades são superficiais não é facilmente determinado
independentemente de uma teoria científica que explique os fenómenos que uma categoria natural implica. Mesmo que
houvesse propriedades essenciais que pudessem ser identificadas com base na investigação empírica, podiam não ser a
estrutura oculta. Por exemplo, que a estrutura oculta seja essencial para uma categoria natural faz sentido para algumas
categorias físicas ou químicas, mas é implausível no caso das categorias estudadas pelas ciências da vida.

Discussão: Devemos acreditar que algumas propriedades da água são mais importantes que outras e que são essenciais
para o que a água é? Será que o facto de a água ser H2O devia desempenhar um papel mais importante na fixação de uma
referência do que o facto de a água poder ser bebida?

As reflexões sobre o uso da linguagem e sobre a maneira como os significados são atribuídos conduzem a reflexões sobre a
maneira como identificamos a natureza dos objectos que os termos da nossa linguagem referem. Há um debate acalorado na
metafísica sobre o modo como a natureza é fraccionada: será que os cientistas estipulam ou descobrem que a água é Hz O? E
plausível que, quando nos damos conta da composição química da água por via da investigação empírica, fiquemos a saber o
que a água sempre foi. Como Putnam e outros essencialistas pensam a respeito das categorias naturais, o conhecimento
adquirido da identidade entre a água e Hz O é usado para corrigir usos passados do termo «água». Descobrimos a essência da
água.
Todavia, noutros casos de baptismo parece provável que os cientistas não tenham sido obrigados a caracterizar as categorias
naturais como fizeram mediante uma consideração das propriedades essenciais de uma categoria, mas, ao invés, tiveram
escolha. O termo «jade» refere-se à jadeíte e à nefrite, que partilham a maioria das propriedades observáveis, mas não a
mesma estrutura oculta. A descoberta das suas naturezas diferentes não levou a revisão alguma da linguagem. Quando da física
e da química passamos às ciências biológicas, vêm-nos à cabeça mais exemplos. As baleias foram classificadas como
mamíferos e não como peixes, mas poderia não ter sido assim (LaPorte 2004).
Embora a maioria dos filósofos reconheça que há um elemento de arbitrariedade nas escolhas que os falantes fazem sobre a
extensão dos termos para categorias naturais, discorda no que respeita à sua explicação. Alguns defendem que as categorias
naturais têm um valor explicativo e há uma série de modelos de classificação que funcionam para umas finalidades e não para
outras: a ciência não descobre como as coisas são, mas proporciona diferentes modos de as representar para diferentes
finalidades (Dupré 1981). Esta é a perspectiva anti-essencialista das categorias naturais.
Outros defendem que em alguns contextos os cientistas de facto fraccionam as coisas de uma maneira que é exclusivamente
determinada pela natureza dos fenómenos que estudam (os nomes dos elementos na química, por exemplo), mas que noutros
contextos há factores exteriores à ciência, e estes afectam o modo como é fixada uma referência de um termo para uma
categoria natural. Por exemplo, os rubis e as safiras possuem a mesma estrutura oculta, mas têm nomes diferentes. O nosso uso
vernáculo segue as diferentes propriedades de superfície dos compostos (vermelho e azul), que atribuímos às diferentes
impurezas que contêm, e não à sua estrutura interna, que é idêntica. As propriedades de superfície têm implicações
importantes no valor de mercado das pedras. Esta é uma perspectiva essencialista das categorias naturais, mas uma
perspectiva que reconhece que os interesses científicos são apenas uma das partes envolvidas na determinação do uso de
termos para as categorias naturais (Bird 2007).
Comparemos estas perspectivas com a explicação de Putnam: Putnam defende que se os tigres deixassem de ter listas não
deixariam de ser tigres, pois ter listas não é o que é essencial para ser um tigre. «X é listado» é apenas uma descrição. Os
falantes que não são especialistas podem basear-se nela quando lhes pedem para identificar tigres, mas não faz parte das
propriedades essenciais dos tigres. Esta explicação tem consequências importantes para a fixação de referências: ainda que a
maioria dos falantes reconheça os tigres pela sua aparência, por terem listas de um certo tipo e de uma certa cor, a extensão do
termo «tigre» é determinada por outra coisa, quaisquer que sejam as propriedades dos indivíduos que foram baptizados como
«tigres». Se «tigre» é um termo para uma categoria natural, as propriedades de ser um tigre serão identificadas pela mais
recente teoria de classificação das espécies em biologia e por outras informações empíricas relevantes sobre os tigres.

Exercício: Se a água perdesse todas as suas propriedades superficiais mas mantivesse a sua composição química, ainda
faria sentido chamar-lhe «água»?

Discussão: Será que a resposta à pergunta anterior nos diz alguma coisa sobre como as comunidades linguísticas operam
e evoluem, ou sobre o significado e a referência?

Há outras maneiras de explicar a fixação da referência e o nomear. Uma das opções é adoptar uma teoria híbrida da
referência: faria sentido dizer que «tigre» refere algo completamente diferente daquilo que os falantes actualmente pensam
porque uma nova teoria científica assim o diz? Michael Devitt (1981) argumenta que tem de haver um elemento descritivo na
fixação da referência dos nomes próprios; ou seja, temos de ter pelo menos uma coisa que sabemos sobre o objecto que
nomeamos para que as relações causais entre o nome e o objecto se mantenham, e para que desempenhem o papel sumamente
importante de determinar a referência para as gerações vindouras. Isto é, um falante tem de saber, pelo menos, que tipo de
coisa é o objecto em questão (para se nomear alguém como «Homero», tem de se saber pelo menos que Homero é um homem).
Poderá uma abordagem semelhante funcionar com os termos para categorias naturais? Se a química vier a revelar a verdade
última sobre a estrutura oculta da água e nada na descrição original associada à substância dita «água» estiver correcto, nessa
altura parecerá bastante contra-intuitivo defender que os falantes se estavam sempre a referir à água quando usavam o termo.
Não é suficiente apontar para a água e dizer «Isto é água» para baptizar instâncias de água como «água»; deve acrescentar-se
algum elemento descritivo ao indexical («Este líquido é água», por exemplo). Se depois se descobre que a água não é um
líquido, ter-se-á de concluir que no passado os falantes não tinham sido bem-sucedidos quando se referiam à água com o
termo «água». Da mesma maneira, não poderíamos fixar a referência «tigre» e ignorar que os tigres são animais («Este animal
é um tigre», por exemplo). Se mais tarde se descobrisse que os indivíduos chamados «tigres» não eram animais, ter-se-ia de
concluir que os usos de «tigre» anteriores a esta descoberta e baseados nesse acto de baptismo original não serviam como
referência.

Discussão: O que determina o nível de descrição do qualificativo (por exemplo, líquido, animal, etc.)? O que faria «tigre»
não referir se se desse o caso de os tigres serem outra coisa que não animais? Continuaria a referir caso se descobrisse
que os tigres são outra coisa que não listados?

Alguns filósofos concederam que no cenário descrito por Putnam a maior parte de nós tem intuições antidescritivistas, mas
revela-se preocupada quanto ao uso de um exemplo tão contrafeito. Afinal de contas, se duas substâncias têm uma estrutura
oculta radicalmente diferente (H20 e XYZ, por exemplo), é bastante implausível e irrealista supor que não há qualquer
diferença observável entre elas. Pelo menos no laboratório de química, o comportamento das pessoas na Terra Gémea com
aquilo a que chamam «água» é diferente do das pessoas na Terra, e formam crenças diferentes sobre as suas propriedades e a
sua estrutura. Mas, à parte estas preocupações metodológicas, o que a experiência mental consegue fazer com êxito é destacar
dois elementos distinguíveis em qualquer teoria do significado: o que os falantes pensam quando usam um termo e aquilo que
o termo refere no mundo.

4.2 Implicações do descritivismo

Putnam considera que a explicação do significado dos termos para categorias naturais é determinada por uma série de
factores, entre os quais a descrição comummente associada ao termo («Os tigres são animais felinos de grande porte com
listas») e a descrição da extensão do termo («Os tigres são animais com um determinado ADN, etc.»). Quando a teoria sobre o
que os tigres são muda, o estereótipo não muda, e a extensão «tigre» também não muda porque foi fixada no momento do
baptismo; mas a descrição teórica, sim.
Para os descritivistas, os termos adquirem a sua referência com base nas descrições a eles associadas. Os filósofos da ciência
que defendem uma explicação descritivista da referência dos termos teóricos argumentam frequentemente que a comunicação
entre os cientistas antes e depois de uma mudança significativa de teoria se torna difícil, ou mesmo impossível, porque a
descrição dos termos teóricos mudou, e com ela a sua referência. Após o derrube da teoria, teremos de dizer que alguns
termos teóricos cujas descrições se revelaram completamente incorrectas já não servem como referência. Esta alegação tem
implicações tanto para o realismo científico como para o progresso científico. É mais difícil defender a ideia de que as teorias
científicas estão a descrever a realidade de uma maneira que é, pelo menos aproximadamente, correcta, e que cada teoria nova
vai fazendo progressos relativamente a teorias anteriormente aceites, caso as afirmações teóricas das teorias antigas e novas
não possam ser comparadas.
Introduziremos aqui a noção de incomensurabilidade do significado, e em seguida questionaremos se é justificado pensarmos
que as nossas teorias científicas actuais são (pelo menos aproximadamente) verdadeiras. Consideraremos algumas das
implicações da incomensurabilidade no avanço da ciência no próximo capítulo.

4.2.1 A incomensurabilidaáe do significado

Kuhn parece dar a entender que não é possível compreender a linguagem de um paradigma a partir da perspectiva de outro, e
que, a par da possibilidade de compreensão, os cientistas em oposição também não têm a possibilidade de comunicar e de
comparar as formulações e as soluções proporcionadas pelas respectivas teorias. Chama a isto a tese da incomensurabilidade
(«ausência de uma medida comum») do significado.
Kuhn parece fundamentar a incomensurabilidade em duas teses: 1) a ideia de que não existe uma linguagem puramente
observacional; 2) a ideia de que os termos teóricos mudam de significado quando as teorias mudam. Desenvolve uma crítica
da tese neopositivista de que todas as afirmações teóricas podem ser reduzidas a uma linguagem observacional comum que
não é contaminada por pressupostos teóricos. Por via da ideia de Carnap de que é possível traduzir qualquer afirmação
teórica para uma afirmação que contém apenas termos observacionais (ver as regras de correspondência no capítulo anterior),
poder-se-ia pensar que é possível transpor o abismo conceptual entre duas afirmações teóricas que empregam termos aos
quais são associadas diferentes descrições. A linguagem da observação livre da teoria podia ser a intermediária, e garantir
uma compreensão mínima comum. Porém, para Kuhn, a ideia de uma linguagem puramente observacional e neutra no que
respeita à interpretação teórica é utópica.
A análise de Kuhn é inspirada por exemplos da história da ciência. Alguns termos foram redefinidos de uma maneira bastante
drástica, e a tal ponto que os primeiros usos de um termo quase nada têm em comum com os usos actualmente aceites do
mesmo termo. Consideremos o termo «elemento», que foi introduzido pelos gregos antigos e que foi depois usado pelos
alquimistas desde a Idade Média, fazendo hoje parte do vocabulário dos químicos contemporâneos. Para Aristóteles, os
elementos eram os constituintes básicos da matéria (terra, água, fogo e ar) que podiam ser convertidos uns nos outros (por
exemplo, a água pode ser convertida em ar), e eram caracterizados pelas propriedades de serem húmidos ou secos e quentes
ou frios. A descrição dos elementos na química de hoje difere muitíssimo da de Aristóteles, muito embora ainda sejam
genericamente caracterizados como os componentes fundamentais da matéria. Actualmente, os elementos são mais
precisamente caracterizados como as substâncias constituídas por apenas um tipo de átomo, e os cientistas descobriram mais
de uma centena deles. Muitas das propriedades de um elemento são consideradas como funções periódicas do número de
protões no núcleo atómico do elemento, e o número atómico determina a organização dos elementos numa tabela que tem como
objectivo ilustrar algumas das suas propriedades periódicas.

Embora tenhamos continuado a usar o termo «elemento», a descrição que a ele associamos (o que com ele queremos dizer) e
as coisas que queremos com ele referir (o referente) mudaram drasticamente ao longo de séculos de investigação científica, e
exemplos semelhantes abundam na história da ciência. Mas será que estes exemplos e as conclusões que deles retiramos
justificam a alegação de Kuhn de que as teorias são incomensuráveis?
Se nos pedissem para traduzir uma afirmação numa língua para uma afirmação numa língua radicalmente diferente, íamos
querer preservar as propriedades semânticas mais relevantes e, dado o nosso objectivo, provavelmente não chegaríamos a
uma tradução satisfatória ponto por ponto. A tradução pode ser geralmente problemática e localmente impossível, como
sentimos quando falamos uma língua que aprendemos e que não é a nossa língua materna. Ainda assim, para muitos críticos,
postular que a comunicação se torna impossível parece ser uma conclusão demasiado extrema. Uma compreensão parcial é
muitas vezes um objectivo que pode ser atingido com um esforço genuíno. No caso das afirmações teóricas que pertencem a
um enquadramento teórico diferente, a compreensão parcial é considerada um requisito essencial para a escolha racional de
uma teoria. Se as afirmações em duas teorias rivais não podem ser comparadas, então a escolha entre elas não pode ser feita
com base em considerações sobre o seu conteúdo (por exemplo: em que medida explicam; como respondem a potenciais
objecções; que implicações acarretam).
Kuhn estava certo quando salientou que os termos teóricos podem mudar de significado quando uma teoria é rejeitada e
substituída. Contudo, o fenómeno não está confinado às disciplinas científicas formais. Mesmo os termos da linguagem
corrente são passíveis de alterações frequentemente drásticas, em conformidade com uma alteração nos pressupostos e
crenças de base. Pensemos noutros dois exemplos: o uso quotidiano do termo «bruxa» e o uso de «combustão» nas ciências
químicas.
Nos dias de hoje, quando se usa o termo «bruxa» com a intenção de referir uma pessoa que tem poderes mágicos e que pratica
a feitiçaria, no geral pensa-se que não adquire a sua referência fora da ficção. É em parte por isso que o termo possui uma
série de usos metafóricos e não literais. «Ela é uma bruxa» pode referir-se a uma mulher que é considerada velha e feia, ou
que dá ares de má. Todavia, do século xv ao século xviii, o termo «bruxa» indicava outra coisa. As bruxas eram pessoas
(normalmente mulheres) que se faziam amigas do diabo e que se envolviam em conspirações para trazer o mal a outras
pessoas ou grupos de pessoas, e que de facto provocavam o mal lançando feitiços, trazendo o infortúnio e sendo responsáveis
por pragas e catástrofes. Quando capturadas, eram frequentemente torturadas até confessarem que tinham contactado com o
diabo, e em seguida mortas. O termo referia pessoas reais, e a descrição a ele associada proveio provavelmente de ideias
supersticiosas sobre as possíveis causas das catástrofes naturais e dos infortúnios pessoais, em conjunto com a observação de
um comportamento que era considerado insólito (possíveis casos de histeria, por exemplo). Ora, o que aqui nos interessa é
que a alteração das crenças de base entre esses tempos e os nossos tempos determinou uma alteração na descrição associada
ao termo «bruxa» e, ainda mais importante, uma resposta diferente à questão sobre se o termo refere genuinamente.

Exercício: Consegue pensar noutro caso em que a mudança da descrição associada a um termo, em conjunto com a
mudança das crenças de base, resultou num termo que deixou de referir algo real?

Consideremos agora o termo «combustão». Antes e durante a revolução química (que descreveremos com algum pormenor no
próximo capítulo), havia explicações científicas concorrentes sobre a combustão. Joseph Priestley via a combustão como um
processo mediante o qual um objecto a arder liberta flogisto, que é consequentemente absorvido pelo ar circundante. Para
Antoine Lavoisier, a combustão era um processo mediante o qual um objecto a arder se combina com o oxigénio retirado do ar
circundante. De acordo com uma explicação descritivista da referência, a questão sobre se o termo «combustão» refere
depende da descrição teórica a ele associada. Se a combustão é o que Priestley diz que é, então não refere processo real
algum (pensamos hoje), pois o flogisto não existe. (Um teórico causal diria que «combustão» sempre se referiu a algo como o
processo que Lavoisier descreveu, mas que tinha a ele associada uma descrição incorrecta antes de Lavoisier ter
«descoberto» o oxigénio.)
Kuhn está preocupado com a questão da compreensão. Será que podemos compreender as alegações dos caçadores de bruxas
do século xvi sobre os perigos das bruxas? Será que Lavoisier e Priestley se compreendem um ao outro quando falavam sobre
a combustão? Para o incomensurabilista, o significado de «combustão» está preso aos postulados de significado que a teoria
química aceite inclui. A concepção holística do significado que os incomensurabilistas apoiam leva-os a dizer que Priestley e
Lavoisier pensavam que se podiam compreender um ao outro, mas na realidade não podiam porque não havia terreno comum
suficiente nas suas abordagens teóricas incompatíveis sobre a combustão, além de que o significado diferente que atribuíam a
«combustão» afectou efectivamente o significado de muitos, se não de todos, os outros termos teóricos e até observacionais
que usavam. Se disséssemos que «um objecto a arder» é uma descrição que podiam ambos reconhecer como sendo da
combustão, Kuhn insistiria que entenderiam «a arder» de uma maneira diferente, e que não teriam usado e compreendido o
termo independentemente dos pressupostos teóricos acerca da natureza do processo de que partiam. Para Priestley,
«combustão» refere algo diferente de «combustão» para Lavoisier, da mesma maneira que «massa newtoniana» tem um
referente diferente de «massa einsteiniana». Priestley referia-se a algo que (pensamos hoje) não existia quançlo falava sobre a
combustão, e o mesmo acontecia quando falava sobre o flogisto.

Discussão: Por que razão a associação de um termo com descrições teóricas concorrentes gera uma falha de
compreensão? De que pressupostos parte Kuhn aqui?

4.2.2 Referência parcial e traduções imperfeitas

O anti-incomensurabilista pode rejeitar o descritivismo ou o holismo do significado. Pode insistir que há um significado de
«combustão» tão simples como «objecto a arder», partilhado por teóricos rivais. Depois há perspectivas incompatíveis sobre
como a combustão ocorre, mas que não impedem necessariamente que cientistas em campos opostos se compreendam
parcialmente e tenham uma ideia do que a teoria rival quer dizer. Há termos teóricos, incluídos numa teoria que já se provou
ser falsa, que cientistas posteriores consideram não referir algo real. Por exemplo, se a massa newtoniana existe ou não é uma
questão controversa. A massa, tal como é caracterizada pela teoria da relatividade de Einstein, não coincide com ela, e uma
vez que já rejeitámos a física newtoniana e aceitámos a teoria da relatividade, somos levados a pensar que nada há no mundo
que seja exactamente como a massa newtoniana. Por outro lado, a descrição da massa por Newton diz algo de verdadeiro
sobre a massa tal como hoje a entendemos.
Hartry Field (1973) sugere que os termos teóricos de teorias já rejeitadas só parcialmente referem objectos no mundo, e usa
justamente o exemplo de «massa». A ideia é que, até certo ponto, é indeterminado aquilo que referia o termo «massa», tal
como Newton o usou. No falar de Newton, «massa» refere parcialmente a massa relativista e parcialmente a massa
propriamente dita. Quando usamos a palavra «massa» como Newton a usou cometemos um erro, não porque o termo que
usamos já não refere, mas porque não nos permite fazer todas as distinções relevantes que poderíamos precisar de fazer
(Devitt 1997).
E que dizer de «flogisto»? A crer na teoria do oxigénio, «flogisto» é completamente destituído de referente, não havendo
entidade alguma no mundo que se comporte da maneira que é descrita pela teoria do flogisto. Somos obrigados a dizer que
«flogisto» nunca teve qualquer espécie de referente. Nada há que possamos destacar no mundo químico e identificar (ainda
que parcialmente) como o referente de tal palavra. Os cientistas integrados no enquadramento teórico formado por uma teoria
que vai ser rejeitada podem acreditar na existência de objectos que mais tarde se vem a provar serem meras «invenções»
teóricas.
Há quem tenha tentado refutar a teoria da incomensurabilidade de Kuhn usando um argumento que tem como alvo qualquer
instância de relativismo conceptual (Davidson 1974). O relativista defende que há diferentes pontos de vista, mas que estes
pontos não podem ser comparados porque não há um sistema de coordenadas comum que nos permita localizá-los. Mas, se
assim é, como é que podemos reconhecer que os pontos de vista são diferentes? Negar a possibilidade de reconhecer a
diferença mediante a comparação é também negar a própria diferença.
Esta é uma refutação convincente das formas de relativismo que supõem que há um dado, um conteúdo que ainda não foi
interpretado, e que as diferentes interpretações do mesmo são incomensuráveis. Se sabemos que as interpretações
concorrentes partilham uma base comum (um conteúdo neutro a ser interpretado), temos um terreno para as comparar e para
reconhecer como diferem. Mas a tese da incomensurabilidade de Kuhn parece ser imune a este tipo de crítica. Kuhn não
acredita que haja um terreno comum, um conteúdo que não é conceptualizado, uma linguagem com um carácter observacional
puro, e não fala de diferentes interpretações de dados partilhados. Recusa a ideia de que há uma explicação dos dados que é
neutra no que respeita às várias maneiras de os interpretar. Os próprios dados são diferentes, e as mesmas observações podem
ser explicadas de maneiras diferentes antes de se ter alcançado o estádio da interpretação. A incomensurabilidade invocada
por Kuhn é simplesmente a ausência de toda a medida comum, de todo o sistema de coordenadas no qual os pontos de vista
diferentes estão localizados. Temos de imaginar um sistema de coordenadas diferente para cada ponto e nenhum plano comum
onde assentem. A mudança de um enquadramento teórico para outro é tanto uma mudança de sistema quanto uma mudança de
ponto de vista.
Há uma rota alternativa para a rejeição da incomensurabilidade do significado. Primeiro, podemos conceder que muitas vezes
uma tradução ponto por ponto é não só impossível, mas, mesmo quando parece possível, é um verdadeiro quebra-cabeças e
exige que o tradutor faça escolhas difíceis e controversas. O mais provável é que ocorra alguma perda de significado. A
incomensurabilidade parcial pode então ser experienciada e faz parte da mudança de uma linguagem teórica para outra: pode
haver falhas (locais) de compreensão, devido ao uso do mesmo termo para referir entidades às quais são atribuídas diferentes
propriedades. No entanto, admitirmos que a tradução precisa entre linguagens teóricas é falível não nos obriga a adoptarmos a
tese da incomensurabilidade na sua plenitude. Os teóricos rivais compreendem (pelo menos até certo ponto) que diferenças
caracterizam as suas posições (caso contrário não poderiam envolver-se em debate significativo algum), e esta observação
por si só torna a tese da incomensurabilidade implausível, na medida em que o incomensurabilista insiste justamente na
possibilidade da comunicação ficar comprometida e na inevitabilidade dos erros de compreensão. O pensamento de que no
geral, e não em circunstâncias históricas particulares, os cientistas são sistematicamente enganados quando pensam que são
bem-sucedidos ao comunicar com teóricos rivais, é também uma tese implausível.
Consideremos um par de exemplos em que a compreensão parece ser alcançável. Relembremos a nossa discussão anterior
sobre o termo «elemento», e como a descrição teórica a ele associada mudou desde Aristóteles até à química contemporânea
por via de séculos de tradição alquímica. Quando pensamos em afirmações que contêm o termo «elemento», algumas
afirmações que um contemporâneo de Aristóteles julgaria verdadeiras (por exemplo, «A água é um elemento») são hoje falsas
(por exemplo, a água não é um dos constituintes básicos da matéria). Mas percebemos o que Aristóteles queria dizer ao
chamar elemento à água, ainda que esta compreensão só aconteça porque quisemos conhecer as crenças de base do seu tempo
sobre a constituição da matéria e do movimento, bem como as implicações que algo classificado como um elemento representa
para as teorias da física e da metafísica.
Eis outro exemplo. Henri Poincaré (1902, 2003, p. 42) tentou criar um dicionário peculiar para traduzir termos cruciais da
geometria euclidiana clássica para os termos de uma geometria não euclidiana, a geometria hiperbólica de Lobachevsky. O
desenvolvimento de novas geometrias na primeira metade do século xix significou que a geometria euclidiana deixou de ser a
única maneira de representar o espaço. Além do mais, a alegação de que a geometria euclidiana era verdadeira quanto ao
nosso mundo empírico também foi posta em questão, dada a concepção de espaço introduzida pela teoria da relatividade de
Einstein. A concepção de espaço de Einstein não é inteiramente compatível com a geometria euclidiana, que acaba por ser
apenas uma aproximação à geometria do espaço físico real. O quinto postulado da geometria euclidiana é rejeitado pela
geometria de Lobachevsky, e este é o postulado segundo o qual duas linhas rectas convergentes acabam por se intersectar na
direcção em que convergem.
De que maneira os termos usados na geometria euclidiana poderiam ser traduzidos para os termos da geometria hiperbólica de
Lobachevsky? Poincaré defende que, a existir um dicionário de termos geométricos, seria possível traduzir não apenas termos,
um por um, mas até teoremas. Aquilo a que chamamos «espaço» na geometria euclidiana é a porção de espaço situada acima
do plano fundamental na geometria hiperbólica, e o teorema de Lobachevsky que diz que a soma dos ângulos de um triângulo é
inferior a dois ângulos rectos traduzir-se-ia assim: «Se um triângulo curvilíneo tivesse como lados arcos de círculos que, se
prolongados, intersectariam ortogonalmente o plano fundamental, a soma dos ângulos deste triângulo curvilíneo seria inferior a
dois ângulos rectos.»
Eis um caso interessante em que se pode tentar uma tradução imperfeita entre formulações teóricas produzidas no âmbito de
paradigmas rivais. Não é uma tradução ponto por ponto elegante, e todas as complexidades conceptuais da comparação estão
reflectidas no esforço linguístico de transmitir ideias com ferramentas inadequadas. Porém, mostra que por vezes podemos
salvar a comunicação interteórica e a comensurabilidade reconhecendo as dificuldades criadas pela alteração conceptual e
tentando colmatá-las com os recursos disponíveis.

Exercício: Consegue dar outro exemplo de uma tradução parcialmente bem-sucedida entre afirmações pertencentes a
teorias concorrentes?

4.3 Realismo

O realismo filosófico é um ponto de vista sobre o que existe e o que podemos conhecer, e por conseguinte tem uma
componente ontológica e uma componente epistemológica. De acordo com a tese ontológica de um realista representativo, há
objectos e propriedades no mundo independentes da mente, objectos e propriedades que estariam no mundo mesmo que não
houvesse uma mente para pensar neles. De acordo com a tese epistemológica, podemos ter acesso a esses objectos e
propriedades, e as representações que deles fazemos, ainda que falíveis, não são sistematicamente enganadoras. A posição
realista é frequentemente caracterizada em termos de a nossa experiência perceptiva ser um guia fiável para o que é
independente da nossa experiência. O realista responderia afirmativamente a perguntas como: será que o carro que vejo à
minha frente existe realmente? Será que é na realidade (aproximadamente) como me parece?
Na vida de todos os dias, raramente paramos para considerar se as nossas experiências são verídicas. Mas há circunstâncias
em que ficamos com dúvidas. Confrontada com a possibilidade de um truque de ilusionismo, posso considerar a hipótese de o
carro que vejo à minha frente ser apenas um sofisticado holograma ou uma imagem em espelho muito bem conseguida. Talvez
haja um carro algures, mas não à minha frente. Os cépticos convidam-nos a generalizar a partir destas raras ocasiões, e
pedem-nos para imaginar que dúvidas semelhantes podem afectar o grosso das nossas experiências. Mas os realistas
respondem que a nossa experiência dos objectos e das propriedades no mundo nos dá razões para acreditar que esses objectos
e essas propriedades existem independentemente da nossa percepção, e que as nossas interacções causais, em grande parte
bem-sucedidas, com esses objectos e essas propriedades, nos dão razões para acreditar que a maneira como temos
experiência delas não é sistematicamente enganadora.
Embora o realismo seja a posição por omissão do senso comum, podemos facilmente imaginar reptos cépticos que insinuem
dúvidas sobre o que existe e o que conhecemos. O cenário dos cérebros numa cuba é o cenário típico no qual a informação
que recebemos por via da percepção não constitui um guia para o que é o mundo real. Hilary Putnam (1981, 1999) sugere que
as nossas experiências perceptivas podem provir não da nossa interacção causal com os objectos e as propriedades no mundo,
mas do facto de os nossos cérebros terem sido retirados dos nossos corpos e mantidos vivos no laboratório de um cientista
louco, recebendo impulsos eléctricos que proporcionam estímulos indistinguíveis dos estímulos que os nossos cérebros
receberiam quando percepcionam objectos e propriedades no mundo. O que toma esta hipótese tão interessante (e hipóteses
semelhantes, como a da dúvida hiperbólica de Descartes ou a possibilidade de uma simulação total de computador, como nos
filmes Matrix) é que se fôssemos apenas cérebros numa cuba, não teríamos maneira de o saber. Baseados unicamente nas
nossas experiências, não conseguimos discriminar entre a hipótese realista de que as nossas experiências são verídicas e
causadas pela interacção dos nossos corpos com outros objectos e propriedades no mundo, e a hipótese céptica de que as
nossas experiências são apenas o resultado da acção de um cientista louco que estimula os nossos cérebros fora do nosso
corpo (para uma discussão sobre esta questão, ver Pritchard 2005 e Goodman 2007).

4.3.1 O realismo na filosofia da ciência

A discussão sobre o realismo científico diz respeito à capacidade que as nossas teorias científicas actuais têm de descrever e
explicar a realidade, e a estrutura do debate entre realistas e anti-realistas não é dissemelhante da estrutura do debate sobre o
cepticismo que atrás sumariámos. A força da hipótese anti-realista reside no pensamento de que mesmo que as nossas teorias
científicas actuais não correspondessem correctamente a objectos e propriedades reais no mundo, provavelmente ainda assim
funcionariam suficientemente bem, e não teríamos maneira de discriminar entre o facto de serem (aproximadamente)
verdadeiras e apenas empiricamente adequadas.
Na filosofia da ciência, as questões sobre o realismo são na sua grande maioria formuladas nos termos do estatuto ontológico
quer das entidades inobserváveis, quer das relações entre acontecimentos que são postulados pelas nossas teorias científicas
actuais. Será que os electrões existem realmente? Será a inflação real? Eis o repto à posição realista: nada justificaria o passo
que vai entre aceitar uma teoria científica que pode prever eficazmente os fenómenos num dado domínio e acreditar que as
entidades e as relações postuladas pela teoria existem realmente. Note-se a analogia com o cenário céptico antes discutido:
nenhuma informação perceptiva que obtemos sobre o mundo nos pode dizer que não somos cérebros em cubas ou que não
estamos presos na matrix. Nenhumas provas confirmantes que recolhemos para cada teoria específica nos podem dizer se a
teoria é mais do que apenas uma ferramenta útil para a previsão dos acontecimentos que queremos ser capazes de controlar.
No que se segue passaremos em revista alguns dos reptos mais comuns ao realismo científico, e esquematizaremos algumas
posições alternativas à realista. As teses-alvo são as afirmações de que as teorias científicas actuais são verdadeiras e as
entidades teóricas, bem como as relações que postulam, existem verdadeiramente.

4.3.2 Argumentos contra o realismo

A meta-indução pessimista

Se todas as teorias anteriormente aceites provaram ser falsas, porque devemos acreditar na veracidade das nossas teorias
actuais? Este argumento foi popularizado por Hilary Putnam (1978). Putnam parte do pressuposto de que a maioria das teorias
científicas actuais é verdadeira. Em seguida argumenta que a maioria das teorias científicas do passado tem de ser falsa, pois
difere das teorias actuais e foi substituída por estas. Induzindo a partir das teorias do passado, concluímos que a maioria das
teorias científicas actuais também se revelará falsa. Esta conclusão entra em conflito com o nosso pressuposto inicial. O cerne
do argumento é fazer-nos perceber que não obtemos justificação quando defendemos que as teorias científicas actuais são
verdadeiras.

Exercício: Porque é que este argumento é uma meta-indução?

Larry Laudan (1981) avança um argumento com uma estrutura semelhante, pois consiste em assumir em primeiro lugar que o
êxito empírico de uma teoria é uma indicação da sua verdade, e depois em descobrir que este pressuposto nos conduz a uma
contradição. Se a maioria das teorias actuais é verdadeira, então a maioria das teorias científicas do passado é falsa, pois foi
substituída pelas teorias que actualmente aceitamos e diferem das teorias do passado. Porém, muitas destas teorias do passado
foram empiricamente bem-sucedidas. Por conseguinte, o facto de uma teoria ser empiricamente bem-sucedida não pode, afinal
de contas, ser considerado uma indicação de que a teoria é verdadeira. E podemos aplicar esta consideração não só às teorias
do passado, mas também às actuais. O seu êxito empírico não é uma razão suficientemente boa para acreditar que são
verdadeiras.
A versão do argumento de Laudan tem sido muito discutida na literatura sobre o realismo, recebendo dois tipos de críticas.
Alguns autores pensam que não é válida, e que portanto não põe o realismo verdadeiramente em causa. Outros levaram o
argumento a sério, assumindo como projecto seu rejeitar uma das premissas para defender uma versão de realismo.
No que resta deste capítulo passaremos em revista algumas tentativas de desenvolver formas moderadas de realismo que não
parecem ser tão vulneráveis ao repto de Laudan. Mas antes de mais devemos centrarmos nas preocupações quanto à validade
do argumento. Já foi apontado que algumas versões da indução pessimista podem ser acusadas de cair na «falácia da
rotatividade» (Lewis 2001; Lange 2002). O exemplo que se segue pode ajudar-nos a compreender o aspecto principal da
objecção: o facto de o conselho de administração de uma empresa ter sido sujeito a muitas alterações no passado não implica
que todos os membros actuais sejam substituídos em breve. Pode acontecer que alguns membros já ocupem os seus postos há
muitos anos, mas que nem por isso venham a ser substituídos no futuro próximo. Do facto de terem ocorrido muitas
substituições pode inferir-se que ocorrerão mais substituições no futuro, mas não se pode prever quando cada membro será
substituído.
Com base em indícios da história da ciência, poderíamos pensar que as teorias que presentemente aceitamos serão
consideradas falsas no futuro e substituídas por outras teorias, pese embora o facto de serem empiricamente bem-sucedidas
hoje. Mas este juízo não é justificado para todas as teorias actuais, pois pode dar-se o caso de algumas terem sido aceites
durante bastante tempo e de continuarem a ser aceites no futuro. O argumento precisaria de ter como uma das suas premissas a
afirmação de que em qualquer momento no passado a maioria das teorias aceites foi falsa (de acordo com os padrões
actuais). Mas é muito mais difícil justificar esta afirmação com base em indícios históricos.
Em resposta a esta objecção, poder-se-ia defender que, para que o argumento seja um repto ao realismo, a conclusão não
precisa de ser que a maioria das teorias actuais será substituída dentro de pouco tempo (Saatsi 2005). Ao contrário, tudo o que
o repto precisa é que se aceite a afirmação de que o êxito empírico não é necessariamente um guia para a verdade, e esta
afirmação é compatível com a possibilidade de todas as teorias científicas actuais serem quer empiricamente bem-sucedidas,
quer verdadeiras, e nunca virem a ser substituídas no futuro. Contudo, o argumento seria de certa maneira menos convincente
se os indícios indutivos não nos levassem a pensar que o que aconteceu às teorias bem-sucedidas do passado acontecerá
provavelmente às teorias actuais.

Discussão: Qual é a premissa mais fraca no argumento a favor da meta-indução pessimista?

Subdeterminação

Suponhamos que há duas teorias que são empiricamente equivalentes, ou seja, que não diferem nas conclusões a que chegam a
propósito de objectos e relações observados. No que concerne à previsão, as duas teorias oferecem os mesmos resultados,
mas estes são explicados de uma maneira diferente pelas duas teorias, uma vez que são postuladas entidades e relações
inobserváveis diferentes.
O debate entre os apoiantes dos sistemas astronómicos copernicano e ptolemaico no século xvi exemplifica esta situação —
antes dos novos dados a favor do sistema heliocêntrico se tornarem disponíveis. Ambas as teorias eram compatíveis com as
observações do movimento dos planetas e das luas, mas o modo como as trajectórias destes corpos eram calculadas era muito
diferente.
A explicação das psicopatologias é outro exemplo: antes de a neurociência conseguir apresentar indícios de lesões cerebrais
para pelo menos algumas das patologias, havia um debate acalorado entre as explicações psicodinâmicas e as explicações
neuropsicológicas cognitivas. Consideremos a síndrome de Capgras como um exemplo. Trata-se de um delírio no qual a
pessoa afirma que um ente querido foi substituído por um impostor. De acordo com as explicações psicodinâmicas, a
convicção de que a pessoa considerada (quase) idêntica ao cônjuge não é o cônjuge deve-se a uma tentativa de conciliar
sentimentos negativos relativamente ao cônjuge com o sentimento de que seria errado não amá-lo. De acordo com a explicação
neuropsicológica cognitiva, a patologia deve-se a lesões cerebrais no sistema de reconhecimento de rostos semelhantes.
Actualmente, este último modelo de explicação é o dominante; porém, antes de terem sido disponibilizados indícios de lesões
cerebrais em pessoas com a síndrome de Capgras, os indícios por si só não discriminavam entre as duas hipóteses.
A observação de que uma teoria tem teorias rivais empiricamente equivalentes chama-se «subdeterminação indutiva» (Okasha
2002) ou «subdeterminação fraca» (Devitt 2005). Uma formulação da tese da indeterminação indutiva é a de que não há
indícios efectivos no momento presente que possam ajudar-nos a discriminar entre duas ou mais teorias empiricamente
adequadas. Isto não exclui que no futuro novos indícios possam fazer desequilibrar a balança, ajudando-nos a escolher entre
tais teorias (como aconteceu durante a revolução científica, quando o sistema ptolemaico foi abandonado a favor do sistema
copernicano, e quando os dados da neurociência apoiaram o modelo neuropsicológico cognitivo dos delírios).
Um pensamento mais radical é o de que nenhuns indícios possíveis poderão alguma vez ajudar-nos a decidir entre duas ou
mais teorias, pois, independentemente da quantidade de dados que possamos recolher, as teorias serão indistinguíveis em
termos meramente empíricos. Este último tipo de subdeterminação, muitas vezes chamada «subdeterminação forte», foi
construído como repto a algumas versões de realismo (Duhem 1969; Van Fraassen 1980; Putnam 1983). Mas o que é,
exactamente, o repto? A ideia é que se há duas teorias empiricamente equivalentes, o realista não tem justificação quando nos
pede para nos comprometermos com a verdade de uma das teorias ou com a existência das entidades e das relações postuladas
por uma das teorias. O apelo à subdeterminação obriga-nos a rever a relação entre a teoria e os indícios, uma vez que a tese
da subdeterminação sugere que mediante os indícios por si só não podemos dizer se uma teoria é verdadeira. Tudo o que
podemos determinar ao considerarmos os indícios é se a teoria é empiricamente adequada.
Eis um exemplo (muito simplificado) retirado de estudos de etologia cognitiva e psicologia comparada. Desde os anos 70, os
primatólogos têm-se interessado por saber se os primatas são capazes de interpretar o comportamento de outrem (dos seus
congéneres ou de um treinador humano, por exemplo) com base na atribuição de estados mentais inobserváveis. Esta
capacidade é frequentemente referida como «teoria da mente». Não é surpreendente que os chimpanzés consigam interagir num
grupo e que isto requeira alguma coordenação. Mas o que não é claro é se conseguem pensar que outros indivíduos têm
crenças, desejos, emoções, etc.
Foram feitos muitos estudos para determinar se o comportamento dos primatas é a) um comportamento que responde apenas à
observação de outros, ou se é b) um comportamento que responde à observação do comportamento e dos estados mentais de
outros.
Há duas hipóteses dominantes neste debate: 1) os primatas respondem ao comportamento e aos estados mentais de outros em
algumas circunstâncias (Tomasello e colegas); 2) os primatas não respondem aos estados mentais subjacentes de outros
(Povinelli e colegas). A questão que recentemente se tem colocado no debate é se os dados até agora disponíveis podem
discriminar entre estas duas hipóteses. Poderemos concluir legitimamente que uma hipótese é mais bem apoiada pelos
indícios?
Se considerássemos o enorme e crescente repositório de dados sobre o comportamento dos primatas, é pouco provável que as
duas hipóteses fossem igual e consistentemente apoiadas, mas focar-nos-emos numa única experiência de extrema importância.
No que respeita a esta experiência, temos um exemplo de subdeterminação.
A experiência faz parte de um conjunto de estudos sobre a atenção e o seguimento do olhar, e tenta determinar se os
chimpanzés conseguem distinguir os treinadores que os vêem dos que não vêem. Quando os chimpanzés querem alguma coisa,
usam um «gesto de súplica» natural que é um sinal visual. Se os chimpanzés estivessem num recinto fechado com duas
pessoas, uma de frente para eles e outra virada para o outro lado, não os conseguindo ver, e se dirigissem sistematicamente o
seu gesto de súplica à pessoa que estava virada para eles, isto seria considerado como uma prova de que entendiam «ver». A
experiência proporciona este resultado — que os chimpanzés se aproximam do treinador que os vê quando pedem comida.
Temos portanto um apoio prima fade para a hipótese 1, de Tomasello e colegas, que diz que os primatas conseguem responder
aos estados mentais de outros (ao estado de ver, pelo menos) em algumas circunstâncias.
Mas os apoiantes da hipótese 2 defendem que o resultado da experiência podia ser igualmente bem explicado pelo facto de os
chimpanzés saberem pela sua experiência passada que os organismos que estão virados para eles têm maior probabilidade de
reagir ao seu gesto de súplica do que os organismos que não estão virados para eles. Portanto, pode haver uma boa explicação
para os resultados da experiência que não precise de partir do princípio do que quer que seja sobre a capacidade que os
chimpanzés possam ter para responder aos estados mentais de outros. Podiam estar simplesmente a responder a outros que os
olhavam de frente.
Eis um caso em que o resultado da experiência isolado de outros resultados não parece ser suficiente para discriminar entre as
duas hipóteses, podendo ser igualmente bem explicado no sentido de primatas a responder a comportamento e a estados
mentais ou de primatas a responder apenas a comportamento. Isto não significa que uma hipótese não possa ser preferida em
relação a outra, mas os critérios para esta preferência não serão critérios baseados em indícios. Se acreditarmos que a
parcimónia é uma virtude nas explicações teóricas, poderemos aceitar uma recomendação geral para a escolha de teorias,
segundo a qual quando os indícios não favorecem uma hipótese em detrimento de outra, devemos preferir a hipótese que nos
dá a explicação mais simples ou que nos compromete com a existência de menos objectos. Neste caso, é plausível que a
hipótese defendida por Povinelli e colegas seja escolhida como a mais parcimoniosa, pois não precisa de nos comprometer
com a ideia de que os primatas podem ter uma teoria da mente. Mas até esta avaliação é passível de discussão.

Exercício: Consegue dar outro exemplo para ilustrar a tese da subdeterminação fraca?

A tese de Duhem-Quine

Há uma outra tese que sugere que mediante os indícios por si só não podemos sequer saber se uma teoria é falsa,
contrariamente às aspirações do falsificacionismo de Popper. É a chamada tese de Duhem-Quine. Baseia-se na observação de
que quando testamos uma teoria, não a testamos completamente isolada de outras hipóteses. Se a experiência dá um resultado
que entra em conflito com a previsão feita com base na teoria e nas hipóteses auxiliares usadas para conceber a experiência, o
cientista fica a braços com uma escolha difícil: não pode rejeitar a teoria nem pôr em causa as hipóteses auxiliares. O que é
rejeitado como resultado da experiência não é determinado pelos indícios empíricos, ficando à discrição do cientista.
Pensemos na tentativa de falsificar uma teoria T1 É impossível conceber uma experiência cujo resultado possa ser previsto
apenas com base em T1, pois a instrumentação utilizada, por exemplo, também se baseará noutros pressupostos teóricos (h1 e
h2). O que o cientista está a testar não é apenas uma teoria, mas o conjunto da teoria com as hipóteses envolvidas na concepção
da experiência. Se a observação não corresponde ao que o cientista previra, o conjunto da teoria e dos outros pressupostos
tem de ser falso, mas o cientista não sabe qual dos conjuntos é responsável pelo insucesso empírico:

Premissa 1: T1 + h1 + h2 —» O

A conjunção da teoria e dos pressupostos permite-nos prever que um determinado acontecimento vai ocorrer.
Premissa 2: Não-O

O acontecimento previsto não ocorre.

Conclusão: Não-[T1 + h1 + h2]

Temos então de concluir que a conjunção da teoria e dos pressupostos é falsa. Mas será que é a teoria que tem de ser rejeitada
ou os pressupostos? Como podemos saber?
Eis um exemplo de como esta estratégia pode ser aplicada. Há um projecto na psicologia cognitiva que consiste em descobrir
se os seres humanos têm uma competência de raciocínio que corresponde às normas do raciocínio correcto. Este projecto de
investigação consiste em testar as capacidades do raciocínio humano pedindo aos participantes para resolverem tarefas cuja
solução correcta é determinada com base nas normas da lógica, da estatística, da probabilidade ou da teoria da decisão. Se a
maioria dos participantes falhar nas tarefas, a conclusão é que a sua competência de raciocínio não corresponde às normas do
raciocínio correcto.
A tese que os psicólogos cognitivos querem testar nas experiências é: (T1) a competência humana de raciocínio conforma-se
às normas ão raciocínio correcto. Eis dois dos pressupostos de que se tem de partir para fazer derivar a falha de
competência do insucesso na resolução das tarefas: (hl) as normas do raciocínio correcto são dadas pela lógica, estatística,
probabilidade e teoria da decisão; (h2) os erros cometidos na tentativa de resolver as tarefas atribuídas não são erros de
desempenho.
Suponhamos que a experiência é realizada e que a maioria dos participantes não consegue resolver as tarefas (T1 + h1 + h2 —>
O e não-O). Será que esta observação significa que esses participantes não têm uma competência de raciocínio que
corresponda aos padrões normativos do raciocínio correcto? Não, significa apenas que a conjunção da tese e dos dois
pressupostos é falsa (não-[T1 + h1 + h2). Que conjunto rejeitamos é uma questão em aberto (e esta questão em aberto deu
origem ao debate sobre a racionalidade nas ciências cognitivas). Podemos rejeitar a ideia de que a competência de raciocínio
é inadequada rejeitando a ideia de que a lógica, a estatística, a teoria das probabilidades e a teoria da decisão proporcionam
normas para o bom raciocínio, ou defendendo que os erros se deveram a erros de desempenho.

Exercício: Consegue dar outro exemplo ao qual a tese de Duhem-Quine possa ser aplicada?

Duhem não é completamente pessimista no que respeita às consequências da sua tese para a fiabilidade do método científico, e
defende que os cientistas podem usar o seu «bom senso» para tomar as decisões necessárias. Quine (1951) desenvolve uma
tese holística com uma abrangência muito maior, segundo a qual é o nosso conhecimento por inteiro que testamos sempre que
interrogamos a natureza. Nunca se pode mostrar que a nossa crença numa única hipótese é falsa pela experiência por si só,
pois é toda a teia de crenças que é sujeita a confirmação ou infirmação de cada vez que experienciamos um novo fenómeno.
Depois, podemos escolher rejeitar uma ou mais crenças no sistema, e, de acordo com Quine, devemos ser conservadores e
desistir da crença cuja rejeição resulta em menos alterações nas nossas crenças restantes. Para Duhem, dizer que o sistema
ptolemaico é falso não significa que foi falsificado pela experiência, mas que não se adequa às outras hipóteses aceites tão
bem como o sistema copernicano. Não é compatível com a física newtoniana, por exemplo.
Resumindo, pode lançar-se um repto ao realismo com base na ideia de que os indícios empíricos por si só não nos podem
dizer se uma teoria é verdadeira (a tese da subdeterminação) ou se é falsa (a tese de Duhem-Quine). O que podemos dizer
sobre as hipóteses que actualmente aceitamos é que, em conjunto com outras hipóteses, nos permitem fazer previsões
razoavelmente precisas. Normalmente os realistas respondem de duas maneiras aos reptos lançados pela tese da
subdeterminação: ou negam que possa haver teorias incompatíveis que apesar disso são empiricamente equivalentes, ou
concedem que pode haver teorias empiricamente equivalentes que são incompatíveis, mas defendem que se pode fazer uma
escolha entre as teorias com base noutra coisa que não a adequação empírica.

Discussão: Haverá uma forma de realismo imune à tese da subdeterminação?

4.4 O debate sobre o realismo

Antes de avaliarmos os argumentos a favor do realismo, vejamos quais são as posições alternativas. Apresentaremos três
opções: o instrumentalismo, caracterizado pela perspectiva semântica segundo a qual não se pode apurar o valor de verdade
das afirmações teóricas porque os termos teóricos que contêm não têm referência; o empirismo construtivo, cuja principal
alegação, de natureza epistémica, é que não podemos ter justificação ao considerarmos as nossas teorias científicas
verdadeiras em vez de empiricamente adequadas, dado os indícios de que dispomos; a atitude ontológica natural, baseada na
rejeição tanto do realismo como do anti-realismo, defendendo a ideia de que se as teorias científicas são verdadeiras, são-no
da mesma maneira que a percepção sensorial vulgar.

4.4.1 Alternativas ao realismo

Instrumentalismo

A ideia que caracteriza o instrumentalismo na ciência é que as teorias são instrumentos que empregamos para prever
acontecimentos. Contra o realista, o instrumentalista defende que enquanto as afirmações observacionais são verdadeiras ou
falsas, as nossas teorias não são nem verdadeiras nem falsas. Aceitamos teorias não por serem verdadeiras, mas porque as
suas previsões são exactas. E podemos avaliar legitimamente a exactidão das suas previsões porque podemos ver se as
afirmações observacionais derivadas das nossas teorias são verdadeiras.
Esta posição assenta numa distinção entre as afirmações teóricas (que não são nem verdadeiras nem falsas) e as afirmações
observacionais (que são verdadeiras ou falsas). O que explica esta diferença? Porque é que a verdade das afirmações teóricas
não pode ser apurada?
De acordo com o instrumentalista, nenhuma afirmação que contenha termos teóricos é verdadeira ou falsa porque os termos
teóricos não referem. Os instrumentalistas defendem que quando o significado de um termo não está associado a algo
observável, dependendo exclusivamente de uma descrição teórica, o termo não tem referência. Um exemplo de uma posição
instrumentalista extrema (a perspectiva eliminativista) é a de Ernst Mach, que acredita que os objectos físicos não são mais
que feixes de sensações. Nesta perspectiva, só as sensações são reais. A finalidade da ciência é postular ficções convenientes
que nos permitam identificar a maneira como as sensações se relacionam umas com as outras, mas a verdade do conteúdo de
afirmações sobre átomos e outras entidades inobserváveis não pode ser determinada.

Exercício: Será que a plausibilidade do instrumentalismo depende de uma explicação específica da referência?

Há várias modalidades de instrumentalismo, e, de acordo com a versão de Pierre Duhem, as teorias científicas não têm como
objectivo proporcionar explicação alguma da realidade (a perspectiva anti-explicacionista). Em vez disso, o seu objectivo é
«salvar os fenómenos», eles serem compatíveis com os dados disponíveis. A explicação está reservada para a metafísica.
Para Duhem, as hipóteses científicas não são afirmações sobre a natureza da realidade e não têm valor de verdade. Por
conseguinte, não deviam ser avaliadas em termos de captarem correctamente a realidade ou de serem verdadeiras, mas apenas
em termos de serem convenientes. A conveniência é determinada pelas consequências das hipóteses científicas se adequarem
aos dados. Relembremos os exemplos de subdeterminação fraca que explorámos antes.
Vimos que há um debate entre as explicações do comportamento dos primatas. Estas explicações diferem porque não
conseguem concordar sobre se os primatas têm a capacidade de pensar sobre os estados mentais de outros. De acordo com o
instrumentalismo defendido por Duhem, não é importante que explicação adoptamos, desde que possamos prever com êxito o
comportamento dos primatas com base nessa explicação. Isto porque não é suposto que a ciência dê uma explicação sobre a
razão por que o chimpanzé usa um certo gesto de súplica com maior frequência quando o treinador o olha de frente.

Empirismo construtivo

Os empiristas construtivos concordam com os instrumentalistas no que respeita à finalidade da ciência: não é suposto que as
teorias científicas descrevam como as coisas são na realidade, mas que assistam a experimentação, permitindo aos cientistas
formular perguntas claras e informar a concepção de experiências que possam responder a essas perguntas. Se é para isto que
as teorias servem, tudo o que sobre elas podemos dizer quando não são refutadas é que são empiricamente adequadas, mas não
necessariamente verdadeiras.
A diferença entre o instrumentalismo e o empirismo construtivo é que, de acordo com o primeiro, as afirmações teóricas não
são avaliáveis como sendo verdadeiras ou não, e, de acordo com o último, a verdade das afirmações teóricas é avaliável, mas
não temos justificação suficiente para afirmar que são verdadeiras.
Porque não temos indícios suficientes para sustentar a verdade das teorias que aceitamos? As razões para acreditar nas
entidades não observáveis que uma teoria postula residem nos resultados experimentais que podem ser acomodados mediante
o uso da teoria. Dizer que a teoria é verdadeira — em que «verdade» significa algo além da adequação empírica — seria
defender que, fora da prática da ciência onde a teoria é usada, estamos comprometidos com a existência das entidades
postuladas pela teoria. Mas isto não faz sequer sentido, pois não é possível descrever tais entidades sem fazer uso do
vocabulário da teoria que postula a sua existência (Van Fraassen 1980).
Nesta perspectiva, a aceitação de uma teoria não depende da verdade ou da aproximação à verdade; ao contrário, tem uma
dimensão pragmática. A partir do momento em que se descobre que teorias concorrentes são quer consistentes, quer
empiricamente adequadas, outros critérios recomendarão qual delas deve ser aceite, com base no papel pragmático que pode
desempenhar na prática da ciência.
Pensemos no nosso exemplo anterior da explicação das psicopatologias em termos das teorias psicodinâmicas ou no âmbito
do enquadramento neuropsicológico cognitivo. Ambos os tipos de explicação requerem que se postulem entidades não
observáveis, tais como desejos reprimidos e motivos inconscientes, ou lesões no lobo frontal de um cérebro humano, que só
podem ser «observadas» mediante instrumentação complexa teoricamente impregnada (como as imagens por ressonância
magnética, por exemplo). De acordo com o empirismo construtivo, não teríamos justificação ao afirmar que qualquer das duas
explicações é verdadeira ou é a correcta com base nos dados empíricos por si só, pois a única afirmação que pode ser
justificada em termos empíricos é uma afirmação de adequação empírica. Escolheremos a explicação que melhor se adeqúe às
observações que podemos fazer sobre o comportamento de indivíduos delirantes e, se forem ambas aceitáveis nesses termos,
faremos uma escolha com base noutros critérios (se a explicação se adequa a uma concepção materialista da mente que temos
razões independentes para preferir, por exemplo).

Exercício: Será que a própria ideia de empirismo construtivo ficaria comprometida se a distinção entre entidades
observáveis e não observáveis fosse enfraquecida?

NOA: O realismo não passa de um bater com o pé metafísico

Arthur Fine afirma que se deve resistir aos argumentos a favor do realismo e do anti-realismo, defendendo uma posição
intermédia a que chama a Atitude Ontológica Natural (Natural Ontological Attitude), cuja ideia-chave é que devíamos considerar
as verdades científicas como consideramos as verdades quotidianas da experiência dos sentidos, pois as teorias científicas
não nos dizem melhor o que é a natureza profunda da realidade.
Fine considera dois argumentos a favor do realismo e defende que ambos são fracos. Um deles diz que não pode ser
coincidência que num qualquer momento na história da ciência apenas um pequeno número de teorias seja considerado
plausível, e que as teorias sucessoras das teorias do passado se lhes assemelhem (o argumento do punhado [«Small handful
argument» no original]). Para o realista, isto é uma prova de que as teorias do passado e do presente se aproximam da verdade e
não são apenas conjecturas com o propósito de acomodar os dados de uma maneira coerente. Mas Fine responde que os anti-
realistas também podem explicar a coincidência: os elementos da teoria aceite no passado que são responsáveis pela obtenção
de previsões exactas são conservados, e são acrescentadas novas hipóteses à porção empiricamente bem-sucedida da teoria
para se fazer novas previsões. Este método pode aumentar a adequação empírica sem conduzir necessariamente à verdade.
O outro argumento realista que Fine rejeita é o de que por vezes as previsões bem-sucedidas são feitas com base na conjunção
de duas teorias aceites. O argumento realista sugere que este fenómeno pode ser facilmente explicado se acreditarmos que
ambas as teorias são verdadeiras dado que a sua conjunção também o será, mas não pode ser satisfatoriamente explicado se
considerarmos que as teorias são apenas empiricamente adequadas, pois não há razão alguma para acreditarmos que a sua
conjunção também o será. Fine não se deixa convencer por este argumento. Ainda que a conjunção das hipóteses verdadeiras
seja também verdadeira, é por de mais plausível (dadas as considerações sobre a meta-indução pessimista) que as nossas
teorias sejam apenas aproximadamente verdadeiras e não verdadeiras. Se assim for, então não temos razão alguma para
acreditar que a conjunção de hipóteses aproximadamente verdadeiras também será aproximadamente verdadeira. Fine conclui
que o realista sensato não pode ser bem-sucedido ao fazer uso deste argumento.

Discussão: Será que a posição de Fine difere do empirismo construtivo?

4.4.2 A defesa do realismo

O realismo é frequentemente apresentado como a atitude do senso comum, a adoptar acriticamente por defeito. Porém, os
argumentos a favor do realismo pleno têm sido considerados insatisfatórios porque não parecem apoiar a alegação de que as
teorias actuais são verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, em vez de apenas empiricamente adequadas. Sob pressão
dos reptos anti-realistas, os realistas desenvolveram defesas sofisticadas da sua posição.
Consideremos o argumento clássico da ausência de milagres. A estrutura simples deste argumento é uma inferência a favor da
melhor explicação. Queremos explicar o êxito esmagador e incontroverso da ciência. O realismo proporciona uma explicação
para o êxito da ciência: as nossas teorias científicas actuais são verdadeiras e os seus termos teóricos têm referência, sendo
por isso que as previsões que fazemos com base em tais teorias são exactas. Contudo, não é completamente claro porque é que
a afirmação de que as teorias científicas são verdadeiras deve proporcionar uma explicação para o êxito da ciência que não
esteja já disponível mediante a mera aceitação de tais teorias (Bird 1998). Aceitar uma teoria não envolve necessariamente a
crença de que ela é verdadeira, mas sim a crença de que é apoiada pelos indícios disponíveis e pode ser usada de uma
maneira frutífera num dado programa de investigação.
Haverá uma forma de realismo que faça alguma concessão aos argumentos anti-realistas e que no entanto resista às suas
conclusões? Em seguida passaremos em revista duas abordagens possíveis ao realismo moderado: o realismo estrutural e o
realismo interno.

Realismo estrutural

Os argumentos contra o realismo apontam para a tese de que as teorias científicas podem descrever a natureza da realidade.
Tais argumentos ganham credibilidade a partir da observação do fracasso de teorias científicas do passado. John Worrall
(1989) defendeu que há uma versão de realismo aberta àqueles que têm dificuldade em acreditar na existência dos electrões e
dos quanta, e consegue sobreviver aos reptos dos anti-realistas. E o realismo estrutural, a perspectiva segundo a qual na
ciência madura as teorias captam as relações entre os fenómenos que tentam explicar mesmo quando não conseguem captar a
s u a natureza. De acordo com Worrall, esta é a perspectiva que muitos filósofos considerados anti-realistas ou
instrumentalistas (como Duhem e Poincaré, por exemplo) sempre tinham tido em mente.
A perspectiva assenta na distinção entre estrutura e conteúdo: relativamente ao conteúdo, é verdade que teorias do passado se
revelaram falsas, dado que hoje se pensa que algumas das entidades teóricas que postulavam não existem; todavia, o que foi
retido das teorias do passado foram as relações formais (frequentemente expressas em termos matemáticos) entre as entidades
postuladas (Psillos 1999). Isto é compatível com uma versão fraca do argumento da Ausência de Milagres, uma vez que
explicaria parcialmente por que razão até as teorias do passado que foram rejeitadas eram até certo ponto empiricamente
adequadas, mas provaria menos do que o argumento da Ausência de Milagres, uma vez que não se comprometeria com a tese
de que os termos teóricos das teorias científicas actuais referem com sucesso.
O exemplo usado por Worrall é o da teoria da luz e da mudança da teoria da partícula de Fresnel para a teoria da onda de
Maxwell. Fresnel pensava que a luz era conduzida por via de um sólido elástico, ao passo que Maxwell acreditava que era
transportada por ondas num campo electromagnético. Embora discordassem no que respeita à natureza da luz, formularam leis
que são formalmente muito semelhantes, o que poderá explicar o facto de a teoria de Fresnel conseguir prever com exactidão
muitos fenómenos ópticos observáveis. A ideia é que, ao sermos realistas estruturais, conseguimos explicar a continuidade
que detectamos mesmo em teorias que precedem e sucedem uma revolução científica, e, por conseguinte, conseguimos
explicar o facto de o êxito das previsões feitas com base em teorias falsas não ser um milagre.
O problema desta explicação é que precisamos de uma boa justificação para a alegação de que numa teoria científica é sempre
possível distinguir o seu conteúdo (que pode não ser conservado em teorias futuras) e a sua estrutura (que é mais provável que
seja conservada).

Exercício: Haverá outros exemplos de mudança de teorias em que a alteração pode ser considerada uma alteração de
conteúdo e não uma alteração de estrutura?

Realismo interno

Hilary Putnam (1983) apresenta uma outra solução de compromisso para a oposição radical entre realistas e anti-realistas ao
defender que é vão falar de objectos que existem independentemente de como fraccionamos conceptualmente a natureza.
Putnam quer distanciar-se do realismo (metafísico) pleno porque pensa que isso levaria a tentar reduzir a existência dos
objectos de tamanho médio — como as árvores e as cadeiras — a objectos mais fundamentais descritos, digamos, pela física
contemporânea, e, por consequência, a afirmar que os objectos de tamanho intermédio não são reais. Por outro lado, rejeita o
instrumentalismo e o empirismo construtivo porque pensa que as cadeiras e os electrões têm o mesmo estatuto, e que as
entidades postuladas pelas teorias aceites não são menos reais que as entidades observáveis.
As perguntas «Quantos objectos existem?» e «Que objectos existem?» não podem ser respondidas independentemente dos
nossos conceitos de «objecto» e de «existência», e, neste sentido, há diferentes versões, diferentes descrições da realidade. A
nossa resposta à primeira pergunta variará consoante estivermos a contar moléculas ou móveis numa sala: dado que nós
determinamos o que um objecto é, não faz grande sentido perguntar se os objectos existem independentemente de nós. Para o
realista científico, só os objectos fundamentais como os descritos pela física existem, e os objectos que nos são visíveis são
apenas projecções das nossas mentes; para o anti-realista, só o que vemos é real e as entidades postuladas pelas teorias
físicas para explicar os acontecimentos observáveis são ficções.
Para Putnam, tanto o que vemos como o que não vemos é real no âmbito do esquema conceptual em que operamos. Porém,
também se quer distanciar do relativismo. Dizer que os nossos conceitos determinam a resposta à pergunta sobre quantos
objectos existem não significa que concordemos por convenção numa resposta, e que a nossa resposta seja tão boa como
qualquer outra. Ao invés, são os nossos conceitos que determinam a maneira com contamos objectos, mas a resposta à
pergunta sobre quantos objectos existem ainda tem de ser «descoberta».

Exercício: Identifique as semelhanças e as diferenças entre a NOA de Fine e o realismo interno de Putnam.
Resumo
Neste capítulo considerámos algumas questões que emergem da linguagem da ciência, em particular como os termos para as
categorias naturais obtêm o seu significado e referência, e se os termos teóricos têm referência. Estas questões transcendem a
semântica: a teoria causal da referência convida-nos a ver a ciência como a disciplina que descobre a essência dos
constituintes fundamentais da realidade, ao passo que a teoria descritivista se interessa mais pelo modo como os nossos
conceitos são um guia para a referência. As descrições associadas às categorias naturais não precisam de revelar quaisquer
propriedades essenciais. Da mesma maneira, a questão sobre se os termos teóricos conseguem referir tem implicações na
questão sobre se os cientistas que apoiam teorias rivais podem comunicar com êxito, e na tese de que as teorias científicas
apreendem a natureza verdadeira e profunda da realidade.
Se de facto os termos teóricos referem, então as afirmações teóricas que os contêm são ou verdadeiras ou falsas. Se são
verdadeiras, descrevem como as coisas são, e são mais do que um instrumento útil de previsão. Mas o anti-realista põe em
causa o pressuposto filosófico de que a ciência é o caminho para o nosso conhecimento da realidade e defende que as teorias
desempenham um papel mais limitado. Vimos que há uma série de posições moderadas entre o realismo pleno e o anti-
realismo que tendem a relativizar as afirmações sobre a realidade a factos sobre o nosso científicas captam como as coisas
são, mas não melhor do que a nossa conversa corriqueira sobre cadeiras e mesas.
A relação entre a linguagem e a realidade é muito complexa, e limitámo-nos a aflorá-la. Contudo, esta breve introdução à
bibliografia existente sobre o realismo científico é necessária para compreender as questões levantadas pela análise da
mudança científica e da sua racionalidade, e para avaliar como contribuem para a definição do papel da ciência na sociedade.

Cenas dos próximos capítulos


A maneira como perspectivamos a linguagem da ciência, em especial a questão da referência dos termos teóricos, bem como
o debate sobre o estatuto das teorias científicas, são essenciais para explicar a mudança e o progresso científicos. No próximo
capítulo veremos se a escolha de uma teoria é baseada em critérios objectivos e se o progresso pode ser considerado
cumulativo, tendo em conta as mudanças conceptuais radicais na história da ciência.

Questões para pensar


1. Será que as afirmações teóricas da física newtoniana podem ser reformuladas no âmbito da teoria da relatividade?
2. A que tipo de termos o descri ti vismo se adequa melhor?
3. Haverá uma diferença substancial entre as posições de um empirista construtivo e um realista moderado?
4. Poderemos ser essencialistas no que respeita às categorias sociais? O que fixa a extensão de termos para categorias sociais
como «raça», «fome», «feudalismo», «género» ou «revolução»?
5. Considera que as experiências mentais (como a Terra Gémea de Putnam) têm um papel útil a desempenhar na justificação
de posições filosóficas? Identifique algumas vantagens e desvantagens do uso de experiências mentais.
6. De que modo o realismo interno é diferente do relativismo conceptual?

Leituras complementares
A bibliografia sobre o significado e a referência no que respeita aos termos para categorias naturais é vasta, e levá-lo-á a
explorar a dimensão tanto epistemológica como metafísica do debate entre o descritivismo e a teoria causal da referência. Um
bom ponto de partida é o artigo fundamental de Hilary Putnam, «The Meaning of 'Meaning'», no qual o cenário da Terra
Gémea é analisado com algum pormenor. Em Kripke (1980) encontrará o enquadramento filosófico subjacente à ideia da
designação rígida e do baptismo, que será útil para uma análise do essencialismo. Para uma aplicação destas ideias à ciência,
ver Bird (2007), LaPorte (2004) e Dupré (1981).
Para mais pormenores sobre os vários desenvolvimentos da ideia da incomensurabilidade, pode começar por ler Kuhn
(1962,1970, capítulo 11) e Feyerabend (1975). Para críticas a esta ideia quanto à sua aplicação à mudança de referência dos
termos teóricos, ver Devitt (1979) e Field (1973). As implicações da incomensurabilidade no progresso serão discutidas no
próximo capítulo.
Para uma excelente introdução ao debate entre realistas e anti-realistas na ciência, ver Bird (1998, capítulo 4) e Papineau
(1996). Van Fraassen (1980) constitui o manifesto do empirismo construtivo, e Fine (1984) oferece um compromisso
interessante entre realismo e anti-realismo. Para uma perspectiva realista, ver Boyd (1990).
Se quiser saber mais sobre a chamada tese de Duhem-Quine e sobre as suas implicações na refutabilidade das teorias e no
realismo científico, pode começar com uma colectânea de artigos sobre o assunto, Harding (1976), e ler Lakatos (1978,
apêndice à parte I).
5. Racionalidade

O êxito da ciência é muitas vezes celebrado como a mais extraordinária conquista humana. Contudo, vimos que é difícil
assinalar o que a ciência tem de especial: as generalizações indutivas subjacentes à prática da ciência são falíveis; o método
usado pelas ciências não pode ser facilmente explicado de uma maneira única e distintiva; uma teoria científica não tem de ser
verdadeira nem de nos apresentar uma descrição precisa da realidade para receber confirmação empírica, para ser empregue
na explicação ou para funcionar como um instrumento de previsão eficaz. À luz destes debates, a questão de saber se temos
justificação ao atribuirmos à ciência um estatuto privilegiado no seio de outras práticas humanas torna-se ainda mais
premente. Mas antes de podermos responder a esta questão, temos mais duas outras para resolver: será que a ciência evolui de
uma maneira progressiva? Será a mudança na ciência guiada por princípios racionais?
Mesmo se formos realistas no que respeita às teorias científicas e acreditarmos que as entidades e as relações postuladas
pelas teorias científicas actuais existem realmente, a natureza do progresso em ciênciaobriga-nos a reconhecer que há teorias
que foram aceites no passado e que já não são consideradas verdadeiras, e que postulavam a existência de entidades ou
relações que hoje pensamos nunca terem existido. Como podemos confiar que as nossas teorias actuais são realmente
melhores do que as anteriores, e não meramente diferentes? Será que a escolha da teoria a adoptar pode ser apoiada por
argumentação racional? Quando uma comunidade científica destitui uma teoria e adopta outra, muitas vezes isto acontece
mediante um processo gradual de mudança que há muito os filósofos da ciência tentam compreender usando modelos
concorrentes.
As questões sobre se a mudança científica é racional e se o progresso é cumulativo têm constituído o objecto do debate
tradicional entre racionalistas e historicistas, e têm sido tratadas em conjunto com outras questões, tais como a referência dos
termos teóricos que já não usamos, a finalidade da ciência, a capacidade dos cientistas para comunicar eficazmente com os
que defendem teorias concorrentes, e a pluralidade de estilos de raciocínio que caracterizam as investigações humanas sobre a
natureza. Se pensamos que a teoria que hoje aceitamos está mais próxima da verdade (ou é mais adequada empiricamente) do
que a anterior e que consegue explicar mais factos de uma maneira mais satisfatória e abrangente, tenderemos a considerar a
mudança da teoria anterior para a teoria actual como um exemplo de progresso, um progresso baseado nos princípios
racionais da escolha de teorias.
Os racionalistas retratam a mudança exactamente nos seguintes termos: a comunidade científica avança com base em
argumentação sólida sustentada por indícios empíricos sólidos. De acordo com eles, o estilo de raciocínio promovido pela
ciência, modelado pelo método científico, é o estilo que mais contribui para o conhecimento. Os historicistas, porém, cuja
análise é inspirada pela análise pormenorizada de episódios específicos da história da ciência, sublinhando a complexidade
dos factores que frequentemente se vem a saber determinarem a mudança das teorias actuais, comparam provocatoriamente a
substituição de uma teoria dominante num domínio da investigação a uma conversão religiosa. A comunidade científica não é
um agente racional colectivo que pesa as razões a favor e contra teorias concorrentes de uma maneira objectiva. Ao contrário,
divide-se entre a sua atitude conservadora natural, que encoraja os cientistas a conservar as teorias existentes, e a pressão
resultante da constatação de que as teorias existentes podem ter deixado de se adequar satisfatoriamente aos dados. Neste
contexto, a escolha de uma teoria em detrimento das teorias concorrentes não é sempre defendida com base em argumentos
puramente racionais. O compromisso com a verdade ou a eficácia da teoria escolhida é um acto de fé da comunidade
científica (ou de parte da comunidade científica) em alguns pressupostos metafísicos e metodológicos, e não uma
consequência do juízo de que a teoria escolhida é superior às suas concorrentes no que respeita a indícios neutros e padrões
objectivos.
Para tornar o debate sobre a mudança científica ainda mais complexo, os historicistas vêem o papel dos indícios empíricos na
mudança de teorias de uma maneira diferente. Para o historicista, não podemos discriminar facilmente entre teorias rivais
baseando-nos apenas nos dados, uma vez que estes nunca são apresentados de uma maneira completamente neutra e podem ser
interpretados como apoiando uma ou outra das teorias incompatíveis. O racionalista pode concordar que os dados por si só
não são sempre suficientes para discriminar entre teorias rivais (relembremos a tese de Duhem-Quine que discutimos no
capítulo anterior), mas insiste que há critérios objectivos para a escolha de teorias que nos permitem considerar a mudança
como um exemplo de progresso.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Identificar os factores relevantes numa explicação filosófica sobre a mudança científica.


• Listar e comparar critérios possíveis para a escolha de teorias, bem como avaliar a alegação de que alguns critérios são
mais importantes que outros.
• Distinguir e avaliar as perspectivas racionalista e historicista sobre a mudança e o progresso.
• Identificar as implicações da tese da incomensurabilidade na ciência em geral e na noção de progresso cumulativo em
particular.
• Examinar criticamente várias interpretações da tese de que a ciência é racional.

5.1 Revoluções

De acordo com a obra pioneira de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas, o processo da mudança científica pode ser
afectado por uma série de factores diversos e por pressões tanto internas como externas à comunidade científica. Como o
racionalista, Kuhn reconhece que uma nova teoria é em parte adoptada porque é confirmada por dados relevantes (por vezes,
obtém a sua vantagem com base no seu êxito nas chamadas experiências cruciais), e que as novas hipóteses propostas têm de
ser capazes de explicar fenómenos anteriormente recalcitrantes. Mas a confirmação e o poder explicativo cada vez maior
nunca são suficientes, por si só, para explicar a mudança: também temos de estar atentos à maneira como a comunidade
científica evolui; a que pressões está sujeita por parte das autoridades políticas ou religiosas ou da sociedade em geral; à
hierarquia e organização internas da comunidade científica, incluindo os princípios metodológicos da investigação científica,
a formação dos novos praticantes, o sistema de recompensas e punições, e o conjunto de problemas que é suposto a disciplina
enfrentar e solucionar.

5.1.1 Revoluções kuhnianas

Kuhn pensa que uma consideração apropriada destes factores torna muitas vezes mais difícil, se não mesmo impossível,
comparar duas teorias concorrentes em termos objectivos. Só depois de termos avaliado a perspectiva de que as tradições
teóricas concorrentes podem por vezes ser incomensuráveis é que estaremos em condições de determinar em que medida o
progresso científico pode ser cumulativo. Kuhn (1962, 1970) compara a mudança radical à queda súbita de um governo, a um
golpe de Estado. A analogia com a política implícita no termo «revolução» não é casual. Kuhn acredita que, em qualquer
momento na ciência madura, uma comunidade científica é dominada por uma teoria principal que só é derrotada quando a
tensão entre a teoria e os indícios científicos provoca uma crise de confiança na teoria no seio da comunidade, e quando são
disponibilizadas alternativas plausíveis.
Numa revolução científica, a comunidade científica é atingida por uma mudança que é muitas vezes radical e multifacetada, e,
como resultado, passa a dominar uma teoria alternativa. De acordo com Kuhn, e como veremos, a combinação de factores
políticos e sociais e a falta de êxito empírico de uma teoria provoca uma mudança científica, e muitas vezes a mudança
envolve uma alteração radical na linguagem — com a introdução de novos conceitos ou com uma mudança nas descrições
associadas à terminologia antes usada. Durante uma revolução científica não é só a teoria dominante que é derrubada: as
ideias metafísicas, os princípios da metodologia e outros aspectos da prática científica são todos submetidos a uma revisão. O
termo «revolução» sugere que há uma forte descontinuidade entre o período prée pós-revolucionário — o que significa que o
termo é mais adequado para descrever alguns, mas não todos, casos de mudança científica.

Discussão: Acha que a analogia entre as revoluções políticas e as mudanças radicais na ciência é convincente?

Exercício: Compare a Revolução Francesa no século XVIII Com a Revolução Copernicana e anote as desanalogias
relevantes.

Em A Lógica da Descoberta Científica (O título da edição original de 1934, em alemão, é Logik der Forschung, e o significado literal deste último termo é
«investigação». Mas em 1959, já em Inglaterra, Popper reescreveu partes importantes do livro em inglês, tendo sido publicado com o título The Logic of Scientific
Descovery. A tradução do livro para outras línguas não tem sido convergente. Por exemplo, a tradução brasileira [Cultrix] para português intitula-se Lógica da Pesquisa
Científica, ao passo que a italiana [Einaudi] se intitula Logica delia Scoperta Scientifica, a francesa [Payot] La Logique de la Découverte Scientifique e a espanhola
[Editorial Tecnos] La Lógica de la Investigación Científica .- N. do R.)
e Conjecturas e Refutações, Popper apresenta um retrato muito
diferente da mudança científica. A mudança é ditada pelas condições sob as quais uma teoria é refutada. Quando se demonstra
que as previsões feitas com base na teoria entram em conflito com os dados disponíveis, os cientistas têm de procurar noutro
lado e adoptar uma teoria alternativa que tenha pelo menos a mesma porção de conteúdo empírico que a teoria falsificada, mas
que ainda não tenha sido falsificada. Neste retrato, a teoria muda, mas o resto não muda grande coisa. Ambas as teorias, a
nova e a velha, dão resposta aos mesmos problemas e são testadas de acordo com os mesmos critérios. Nos termos da
analogia com a esfera política, a mudança científica descrita por Popper não é uma revolução, mas sim a formação de um novo
governo que foi regularmente eleito através de um processo democrático e vai manter a mesma Constituição.
5.1.2 Os racionalistas

Popper distingue três requisitos para o aumento do conhecimento. Uma nova teoria deve: (a) partir de uma ideia simples e
poderosa que ligue factos que anteriormente não estavam relacionados; (b) ser testável independentemente; (c) passar em
testes novos e rigorosos. Os dois primeiros são requisitos formais de originalidade e testabilidade. Quanto ao último, a teoria
que vai ser aceite tem de ser genuinamente nova e não explicar apenas o fenómeno que foi concebida para explicar, mas
também conduzir à previsão de outros fenómenos.
Enquanto sucessão de teorias que se aproximam cada vez mais da verdade, o progresso é considerado por Popper (1975)
como o modo pelo qual a espécie humana se adapta ao seu meio. Quando adoptamos uma nova teoria, fazemo-lo porque isso
resolve alguns problemas que não tínhamos sido capazes de resolver ao aplicar a teoria anterior. Contudo, a adopção de uma
nova teoria cria novos problemas que têm de ser enfrentados, e de facto enfrentamo-los testando mais a teoria, numa tentativa
de eliminar erros. Isto implica que há elementos tanto conservadores como revolucionários na mudança de teorias: a nova
teoria é revolucionária na medida em que tem de entrar em conflito com a predecessora de uma maneira significativa (e ajudar
a resolver problemas que não foram resolvidos antes); mas é também conservadora, pois tem de explicar a razão por que a sua
predecessora funcionava (pelo menos até certo ponto). Nesta perspectiva, o progresso é cumulativo: a nova teoria tem de ser
considerada um aperfeiçoamento da predecessora, e por conseguinte tem de ser possível a comparação entre as duas teorias.

Exercício: Consegue inferir a partir desta breve descrição da abordagem de Popper se ele vê o progresso como um
processo racional?

Popper quer distinguir a racionalidade do cientista que faz uma descoberta ou testa uma teoria da racionalidade do progresso
científico. O agente pode fazer uma escolha baseada numa intuição que não pode ser racionalizada com base nas regras
metodológicas da prática científica, mas nem por isso a racionalidade do progresso científico é comprometida. Para Popper,
os indícios da história de episódios específicos da ciência são pouco relevantes para a avaliação da racionalidade do
progresso científico: as revoluções científicas podem fazer-se acompanhar de revoluções ideológicas quando a descoberta
que é o foco da atenção da comunidade científica parece apoiar ou entrar em conflito com uma maneira de pensar, um dogma
religioso ou a visão do lugar da humanidade na natureza, por exemplo. Porém, o confronto de ideologias não é uma afecta a
racionalidade do processo a que a comunidade científica está a ser sujeita. Popper reconhece a existência de factores
psicológicos, sociológicos e ideológicos que podem influenciar a prática científica, mas defende que estes factores podem e
devem ser separados de uma análise da mudança científica, e que não devem afectar o nosso juízo da racionalidade do
progresso.
Larry Laudan (1987) é mais céptico no que respeita à ideia da racionalidade do progresso científico poder ser avaliada
independentemente da racionalidade da escolha de cientistas individuais. Laudan pondera se há continuidade entre as
metodologias científicas ao longo da história da ciência, e se estes elementos de continuidade ou descontinuidade são
consistentes com a ideia de que a mudança na ciência opera de acordo com princípios racionais. Será possível concebermos
uma descrição coerente da metodologia científica nos termos dos princípios da agência racional seguida pelos cientistas que
contribuíram em grande medida para o avanço das suas disciplinas?
Laudan defende que o projecto de se chegar a uma noção unificada do método científico com base em indícios históricos é
mal avisado, porque qualquer juízo de racionalidade envolve uma consideração precisa da natureza das acções efectuadas,
dos objectivos e das intenções do agente ao agir assim, bem como das crenças de base do agente sobre as possíveis
consequências das acções realizadas. Quando avaliamos a racionalidade dos métodos adoptados pelos cientistas no passado,
encontramos diferenças importantes entre os objectivos e crenças de base do agente e as nossas, não só porque o corpo de
conhecimento partilhado aumentou, mas também porque as crenças relevantes sobre a metodologia mudaram — sobre quais os
objectivos da investigação científica e qual a melhor maneira de os atingir, por exemplo. A falta de continuidade nas crenças
sobre os fins e os meios da ciência não é per se uma prova de irracionalidade, mas de facto sugere que a mudança científica
envolve algo mais do que a substituição de uma teoria por outra, e que também conduz a inovações metodológicas.
Consideremos o debate psicológico sobre a fiabilidade dos relatos introspectivos e o seu papel num projecto científico
legítimo. Antes do behaviorismo, os psicólogos estavam interessados na experiência consciente, fazendo uso dos relatos
introspectivos como uma maneira fiável de aceder à mesma (ainda que discordassem relativamente ao que era considerado um
relato introspectivo). Com o surgimento do paradigma behaviorista, o comportamento passou a ser o foco da investigação
científica e a sua observação substituiu o registo dos relatos introspectivos como o meio para recolher indícios sobre o
objecto de estudo. A questão sobre se a introspecção é um meio de obter conhecimento relevante depende de facto do que se
considera ser a finalidade da psicologia científica. Os relatos introspectivos podem ser uma importante fonte de indícios para
a psicologia descritiva e para as explicações fenomenológicas da experiência. Contudo, aceitá-los sem os questionar não
parece ser proveitoso para investigar aspectos da psicologia cognitiva e social, uma vez que não são um guia fiável para a
identificação do tipo de razões que levam as pessoas a agir de uma certa maneira. Isto deve-se ao fracasso generalizado do
autoconhecimento patente nos relatos introspectivos, e à prática comum de racionalizar os próprios pensamentos e acções para
dar uma imagem coerente de si mesmo. Titchener (1912) apresenta uma boa discussão sobre a legitimidade da introspecção
quando acontece uma mudança de paradigma.

Exercício: Consegue dar outro exemplo de uma mudança metodológica na história de uma ciência?

Laudan acaba por propor a adopção de uma concepção naturalizada de metodologia científica na qual uma estratégia é
considerada fiável quando é usada para atingir determinados objectivos a partir de determinadas crenças de base. A análise é
naturalizada porque as regras metodológicas são tão sujeitas aos indícios como as teorias, podendo ser revistas ou
modificadas consoante os mesmos. Um exemplo de uma regra deste tipo é: «Para chegar à formulação de teorias fiáveis, evite
modificações aã hoc das teorias que está a ter em conta.» A eficácia desta estratégia pode ser testada com base nas
consequências da sua adopção e no grau de progressismo da prática da ciência quando cumpre esta regra.
Laudan parece situar-se entre as posições de Popper e Kuhn. De certa maneira, Kuhn está certo: as teorias não são a única
coisa que muda quando acontece uma revolução científica. Por outro lado, as análises históricas da mudança científica e a
observação da mudança de métodos e objectivos na pesquisa científica não são contrários nem à racionalidade nem ao
progresso.

Discussão: Qual é o terreno comum das análises do progresso de Popper e de Laudan?

5.2 Mudanças de paradigma

Antes de podermos começar a descrever com maior pormenor o processo da mudança de teoria a que Kuhn chama «revolução
científica», temos de introduzir alguma terminologia, e em especial definir «ciência normal», «paradigmas» e «anomalias».
Em seguida, nos dois próximos subcapítulos, ilustraremos o modo como as revoluções funcionam, usando o exemplo da
revolução química.
De acordo com Kuhn, a maioria da prática científica caracteriza-se por ser ciência normal. A ciência normal é um período no
qual a investigação científica no âmbito de uma disciplina se propõe identificar que factos são importantes e precisam de ser
explicados; verificar se os factos observados se adequam à teoria dominante; desenvolver a teoria, alargando o seu poder
explicativo e preditivo a novas áreas de investigação, por exemplo. Nos períodos de ciência normal, os investigadores
consolidam a teoria e operam de uma maneira conservadora no âmbito de um paradigma.
O paradigma é um sistema que não inclui apenas afirmações teóricas aceites, mas também: crenças de base (frequentemente de
uma natureza metafísica ou ideológica); um conjunto de critérios mediante os quais os cientistas avaliam hipóteses (correcção,
consistência, simplicidade, etc.); estratégias para formular e testar novas hipóteses; modelos para a solução de problemas que
possuem valor metodológico e que também são usados em contextos educacionais, ou seja, para formar os jovens cientistas na
disciplina.
Quando as expectativas da comunidade científica no que respeita à adequação da teoria dominante aos factos observados são
goradas e a teoria não parece ser confirmada pelos dados, Kuhn fala na existência de anomalias. Encontrar anomalias não
condena por si só uma teoria; porém, se as anomalias se acumulam e enfraquecem a confiança que os cientistas depositam nos
poderes, explicativo e preditivo da teoria, segue-se um período de crise. Durante a crise, a rotina da ciência normal altera-se,
e é adoptada uma atitude mais crítica no que respeita à teoria dominante. Estes períodos de crise antecipam frequentemente
uma revolução.

5.2.1 A «descoberta» do oxigénio

O próprio Kuhn usa a revolução química como exemplo de como a mudança científica ocorre. A revolução química é
caracterizada por uma nova explicação teórica da combustão, pela rejeição da teoria do flogisto e pela descoberta do
oxigénio. É frequentemente apresentada como a contraposição de dois cientistas: Joseph Priestley (1733-1804), defensor da
teoria do flogisto, e Antoine-Laurent Lavoisier (1743-94), o primeiro a identificar o papel do oxigénio na combustão e na
respiração.
Ainda que os primeiros resultados de Lavoisier apontassem no sentido da rejeição da explicação aceite da combustão e da
calcinação, é provável que ele próprio não pensasse que eram incompatíveis com a teoria do flogisto. Saber exactamente
quando Lavoisier abandonou a teoria do flogisto permanece uma questão em aberto, mas é certo que hesitou no início das suas
investigações. Uma consciencialização gradual conduziu-o à fase de maturidade da teoria do oxigénio, que alterou a
explicação de muitos fenómenos na química.
Ainda que o mérito da teoria caiba indubitavelmente a Lavoisier, a ideia de que «descobriu» o oxigénio não é incontroversa.
Por um lado, introduziu correctamente a noção de oxigénio para explicar os resultados experimentais que obteve, mas não foi
o primeiro a efectuar tais experiências e a obter tais resultados. A novidade consistiu meramente na sua interpretação dos
resultados. Por outro lado, hoje não aceitaríamos a sua definição de oxigénio, dado o desenvolvimento da investigação
química desde então. Poderíamos dizer que, dependendo da nossa noção de «descoberta», o oxigénio foi descoberto ou antes
ou depois de Lavoisier, seja por aqueles que o isolaram pela primeira vez, seja pelos que primeiramente o definiram como
elemento da maneira que hoje consideramos correcta.
O que dizia a teoria do flogisto? Os combustíveis contêm um princípio inflamável que libertam quando são queimados. Foram
descobertas muitas semelhanças entre a combustão e a calcinação, e a calcinação dos metais era considerada como nada mais
que uma combustão lenta. Pensava-se que havia três tipos diferentes de constituintes dos corpos: 1) o ar, 2) a água e 3) as
terras. As terras podiam ser de três tipos diferentes: terra inflamável, terra mercurial e terra vítrea. Quando a combustão
ocorria, libertava-se terra inflamável. Esta substância era também chamada terra pinguis, que em latim significa «terra
gordurosa» ou phlogiston, que em grego era usado para «princípio do fogo».
Quais eram as propriedades do flogisto? Liberta-se de corpos que ardem com um movimento rápido, e está presente em todos
os corpos combustíveis e nos metais, que podem ser queimados para resultarem em cales. O produto queimado pode ser
reconvertido na substância original ao fornecer flogisto de qualquer substância que o contenha, como o azeite, a cera, o carvão
ou a fuligem. Ao ser aquecido ao rubro, o zinco arde com uma chama brilhante, e consequentemente o flogisto é libertado. O
resíduo branco é cal de zinco (Cal de zinco + Flogisto = Zinco). Se o resíduo for aquecido ao rubro com carvão, rico em
flogisto, o zinco é reconvertido. Se o fósforo for queimado, produz matéria ácida (Fósforo + Ácido = Flogisto). Se o ácido for
aquecido com carvão, o flogisto é absorvido e o fósforo é reproduzido.
Na versão de Georg Stahl (1659-1734), a teoria do flogisto explicava o fenómeno da combustão como a expulsão de uma
substância inflamável do objecto queimado (enxofre, por exemplo), e o da calcinação como a expulsão de flogisto dos metais
(ferro, por exemplo). A teoria era muito poderosa e abrangente porque, ao apelar ao flogisto, conseguia explicar algumas
características da respiração: se com a combustão o ar fica saturado de flogisto, a respiração torna-se difícil, pois a
respiração em si consiste na remoção de flogisto do corpo para o ar.
Contudo, esta teoria teve de enfrentar algumas anomalias evidentes. Primeiro, não conseguia explicar por que razão quando se
queimavam metais as cales eram mais pesadas do que o metal original, quando a substância tinha libertado flogisto no
processo. Segundo, não era claro por que razão a combustão cessa num volume encerrado de ar e por que razão o volume de
ar fica reduzido após a combustão. Os teóricos do flogisto tentaram encontrar diferentes soluções para estes problemas
(originando uma proliferação de teorias diferentemente ajustadas).
No seu Opusculum Chymico-Physico-Medicum (1715), Stahl defendeu a ideia de que quando uma substância arde perde
flogisto, e que por conseguinte pesa menos após a combustão. Isto aplicava-se ao que se observava na madeira, porque as
cinzas são menos pesadas do que o pedaço de madeira original. Todavia, a conversão de metais para cales mediante o calor
causava um incremento no peso. Esta anomalia era explicada pela suposição de que outras partículas penetravam na cal como
resultado do processo de aquecimento. A observação comum de que a combustão, a calcinação e a respiração não podem
ocorrer na ausência de ar também era tida em consideração pelos teóricos do flogisto. Se é o ar que absorve e remove o
flogisto, quando não há ar, o flogisto não pode ser absorvido nem emitido. Também havia uma resposta para a questão da
redução do volume de ar após a combustão: o ar flogisticado ocupa menos espaço do que o ar vulgar, e isto era coerente com
a ideia comum de que o flogisto tinha um peso negativo. Porém, ainda que fosse compatível com o fenómeno da combustão dos
metais, esta solução não explicava a combustão da madeira: como é que as cinzas podem ser menos pesadas que a madeira se
o flogisto, que está presente na madeira mas não nas cinzas, tem um peso negativo?
Lavoisier tirou as primeiras conclusões relevantes sobre a combustão e a calcinação em 1772, quando efectuou experiências
já conhecidas e reinterpretou os seus resultados. Explicou o facto de o enxofre e o fósforo aumentarem de peso quando são
queimados, e que ao mesmo tempo o volume de ar fica reduzido, supondo que durante a combustão o ar é por eles absorvido
(fixação). Embora não tivesse feito conjectura alguma sobre o oxigénio, é provável que se tenha deixado persuadir pelo facto
de as cales efervescentes conterem ar, uma vez que na calcinação os metais também aumentam de peso. Ainda que Lavoisier
tenha tomado logo consciência da importância dos seus resultados e conjecturas, não estava bem certo do que era libertado —
seria todo o ar ou apenas uma parte? Nesta fase, tudo leva a crer que ainda não tinha rejeitado a teoria do flogisto, pois em
1773 não punha de parte a possibilidade de o ar fixado ser combinado com o flogisto.
Antes de Lavoisier, já dois químicos tinham conseguido isolar o oxigénio e descoberto algumas das suas propriedades, mas
nenhum deles compreendera completamente o papel que desempenhava nos fenómenos da combustão e da calcinação. Um
deles era Priestley. As suas experiências estão relatadas na obra Experiments and Observations on Different Kinds of Air,
publicada entre 1774 e 1777. Em 1774, obteve oxigénio ao aquecer cal vermelha de mercúrio com uma lente, e mostrou que
este novo tipo de ar é insolúvel na água e permite a combustão de uma vela com uma chama vigorosa. Chamou a este tipo de
ar «ar puro» porque achou agradável respirá-lo e julgou que podia ser usado para fins terapêuticos. Depois chamou-o «ar
desflogisticado», porque o supôs livre de flogisto. Se queimarmos uma vela ao ar vulgar, o tempo de combustão é limitado,
pois o ar vulgar já contém flogisto e não pode absorver uma grande porção. Se a mesma combustão ocorrer ao ar puro, a vela
arde durante mais tempo, pois o novo gás, que não contém flogisto, pode absorver uma maior porção.
Lavoisier foi um dos primeiros químicos a adoptar um método quantitativo na condução de experiências— usava regularmente
uma balança, por exemplo. Isto é importante, pois podemos ver que o facto de levar a sério as anomalias da teoria do flogisto
dependia de dois pressupostos tácitos: o da indestrutibilidade da matéria e o da conservação da massa. Os aspectos
quantitativos dos resultados experimentais obtidos violavam estes princípios. Lavoisier fez suposições para justificar os
resultados que obteve com o fósforo, cujo peso aumenta após a combustão, e em 1774 repetiu as experiências de Priestley,
depois de o ter conhecido em Paris. Como outros antes dele, conseguiu isolar o oxigénio, a que nesta fase chamava «todo o
ar». Em 1778, porém, salientou o facto de este gás ser mais puro do que aquele em que vivemos, e definiu-o como «a porção
mais salubre e mais pura do ar», como Priestley tinha feito. Também reconheceu que era o verdadeiro corpo combustível, e
preparava-se para desenvolver uma teoria da combustão que era incompatível com a teoria baseada no flogisto de Stahl e uma
alternativa à mesma. O ar é composto por nitrogénio — a que Lavoisier chamava mophette — e ar puro. O ar puro é o que os
combustíveis absorvem e o que as cales contêm.

Em 1780, enunciou os pontos principais da sua teoria amadurecida:

•Em toda a combustão há uma libertação da matéria do fogo ou da luz.


•Um corpo só pode arder ao ar puro.
•Há uma destruição ou decomposição do ar puro, e o aumento do peso do corpo queimado é exactamente igual ao peso do ar
destruído ou decomposto.
•O corpo queimado transforma-se num ácido por adição da substância que faz aumentar o seu peso.
•O ar puro é um composto da matéria do fogo ou da luz com uma base.

Na combustão, o corpo a arder remove a base que atrai mais fortemente do que a matéria do calor, e liberta a matéria
combinada do calor. A teoria do flogisto localizava a matéria do fogo no combustível e não no ar puro. A partir de 1780,
Lavoisier passou a chamar ao ar puro principe oxygine, e é daqui que o termo «oxigénio» deriva. Trata-se de uma palavra
grega que significa «gerador de ácido», pois Lavoisier pensava que o oxigénio era o constituinte fundamental de todos os
ácidos (hoje sabemos que alguns ácidos não contêm oxigénio — como o ácido clorídrico, por exemplo). Contudo, em 1780 o
oxigénio de Lavoisier não é ainda um elemento como é para a química contemporânea, mas um composto constituído pelo
principe oxygine e pela matéria do fogo. Só mais tarde, em 1789, é que introduziria o oxigénio na sua tabela dos elementos,
juntamente com a luz e o calórico (= matéria do fogo e do calor). Ao apelar ao principe oxygine, Lavoisier rejeitou
definitivamente a teoria do flogisto, e em 1783 escreveu (Reflexões sobre o Flogisto) que, uma vez que tudo na química pode
ser explicado de uma maneira satisfatória sem o auxílio do flogisto, é provável que o flogisto não exista.

5.2.2 A revolução química como uma ilustração da teoria de Kuhn

Como vimos, a teoria do flogisto teve de enfrentar anomalias de monta (combustíveis que libertam flogisto e que se tornam
mais pesados, por exemplo) muito antes de ter sido disponibilizada uma alternativa. Kuhn diz que as contraprovas têm um
papel essencial, na medida em que provocam tensão e fazem os cientistas duvidar da eficácia da teoria a que aderem, mas que
as anomalias só são consideradas contra-instâncias em circunstâncias específicas. A perda de adequação empírica possui um
efeito psicológico: quando as anomalias aumentam, os cientistas desconfiam do poder preditivo da teoria com que estão
comprometidos, e começam a considerar as alternativas disponíveis. Na explicação de Kuhn sobre o modo como a ciência
opera, não há uma regra metodológica estrita que obrigue os cientistas a abandonar imediatamente a teoria que não se adequa
perfeitamente aos dados experimentais ou observacionais. Na ausência de outras razões para desconfiar do modelo em que
opera, é mais provável que o cientista questione a sua própria competência na condução da experiência do que a eficácia do
modelo.
A ocorrência inicial de anomalias não representa necessariamente uma ameaça decisiva para a teoria; pelo contrário, estimula
a pesquisa e a investigação no seu âmbito. E precisamente o que acontece na teoria do flogisto: o aumento «não previsto» de
peso dos combustíveis foi explicado de maneiras diferentes pelos teóricos do flogisto, e ocorreu uma proliferação de versões
ligeiramente diferentes da teoria-padrão. Kuhn refere que há sempre dificuldades na adequação paradigma-natureza, e que
nenhuma anomalia que possa surgir constitui por si só um argumento que derrube uma teoria. Kuhn não é optimista no que
respeita à possibilidade de falsificar uma teoria ou de escolher entre teorias mediante a pura observação ou a investigação
empírica. Até certo ponto, algumas teorias rivais parecem ser empiricamente equivalentes, e nenhuma experiência parece
conseguir discriminar entre elas. Da mesma maneira, quando ainda não há uma competição para a teoria dominante, os
resultados experimentais desconcertantes podem surtir um efeito reduzido na comunidade científica. Primeiro os cientistas vão
naturalmente tentar explicar as anomalias fazendo uso das ferramentas que o seu paradigma já proporciona.

Exercício: De que modo esta explicação da maneira como os cientistas lidam com as anomalias no modelo de Kuhn difere
da explicação de Popper sobre o método do falsificacionismo?

Quando uma teoria estabelecida não tem uma explicação para fenómenos que parecem contradizer as previsões que foram
feitas, testemunhamos o fenómeno da proliferação. Esta proliferação representa a resposta dos cientistas ao surgimento de
anomalias: o cientista que confia no seu paradigma tenta melhorar a sua coerência explicativa introduzindo hipóteses ad hoc.
Um exemplo deste fenómeno é a tentativa de Stahl de introduzir a leveza natural, ou peso negativo, para explicar por que razão
as substâncias que absorvem flogisto ficam mais leves do que antes. O resultado deste processo não é senão a produção
copiosa, não de alternativas, mas de tentativas de remediar os limites da teoria.
Numa fase mais avançada, quando as anomalias já se acumularam, os cientistas tomam consciência das dificuldades cada vez
maiores da adequação paradigma-natureza. O fracasso da resolução do problema é um primeiro passo para a formação das
suas atitudes críticas, ainda que outras razões possam causar descontentamento em relação a uma teoria. Num modelo em que a
atitude psicológica dos cientistas pode determinar o modo como reagem às anomalias, duvidar dos pressupostos filosóficos
envolvidos na aceitação de um paradigma pode ser relevante para a escolha de uma teoria.
Há aqui duas questões importantes: 1) se temos mesmo justificação ao usar o conceito de descoberta quando descrevemos a
introdução de alguns conceitos úteis que se referem a entidades teóricas antes desconhecidas; 2) qual a relevância destas
«descobertas» para a ocorrência de uma mudança revolucionária de paradigma. Kuhn introduz uma distinção entre
descobertas e invenções, alterando ligeiramente o uso comum destas palavras: as descobertas são novidades sobre factos, ao
passo que as invenções são novidades sobre teorias. As anomalias surgem, a teoria é explorada e ajustada para explicar os
factos novos, e em seguida a comunidade científica está pronta para uma mudança de teoria. O exemplo de Kuhn de como as
descobertas factuais e teóricas estão interligadas é o da descoberta do oxigénio. Sugere que devemos atribuir a descoberta do
oxigénio a Priestley e a sua invenção a Lavoisier, uma vez que foi este último e não Priestley que tomou consciência das
implicações teóricas da descoberta do oxigénio. Esta observação é indiciadora do que Kuhn pensa sobre uma descoberta:
primeiro, não tem significado sem uma invenção correspondente. Não poderíamos sequer dizer que Priestley tinha descoberto
o oxigénio se a teoria subsequente de Lavoisier não tivesse mostrado em que consistia o oxigénio e como a combustão
funciona. Em termos mais gerais, nenhum facto novo é relevante se não for teoricamente interpretado. A ideia é que, por si só,
um facto «novo» não pode ser usado nem para confirmar nem para infirmar uma teoria: uma descoberta só surte efeito na
dinâmica de uma teoria científica quando o surgimento de um fenómeno que antes não tinha sido considerado (que é novo) é
incluído num processo global de reinterpretação teórica. Neste contexto, três químicos isolaram o oxigénio, mas apenas um o
reconheceu como uma substância distinta que desempenha um papel na combustão e na calcinação. Priestley foi o primeiro a
isolar aquilo a que hoje chamamos oxigénio, mas não fez descoberta conceptual alguma, pois tratou-o como ar desflogisticado,
incluindo-o na explicação proporcionada pela teoria do flogisto.

Exercício: De que modo a distinção de Kuhn entre descoberta e invenção se liga ao uso comum destes termos?

A relação entre uma teoria e o mundo não pode ser considerada separadamente da relação entre uma teoria e a sua rival.
Efectivamente, as descobertas parecem ocorrer antes da revisão do paradigma e antecipar revoluções limitadas ou
prolongadas. Isto sugere que para os cientistas é mais fácil reconhecer factos novos na fase em que duvidam da eficácia do
paradigma como um dispositivo de resolução de problemas. Na nossa breve descrição da aproximação gradual de Lavoisier à
teoria do oxigénio, vimos que no início da sua pesquisa não estava suficientemente confiante para rejeitar a teoria do flogisto
de forma difinitiva, pois não dispunha de uma teoria alternativa da combustão. Contudo, as suas reflexões sobre o papel do
oxigénio na combustão e na calcinação foram decisivas, e conduziram-no à completa rejeição da perspectiva-padrão.
Kuhn defende que, no âmbito do carácter conservador da ciência normal, os cientistas confiam no seu modelo e resistem às
anomalias a menos que haja um modelo concorrente que lide melhor com pelo menos alguns problemas por resolver. Emprega
a noção de épocas de maturidade. Quando as revoluções ocorrem, são súbitas e dramáticas, mas não podem ocorrer sem
serem antecipadas por sintomas evidentes de crise. Um campo de estudo pode encontrar-se na fase de maturidade ou
imaturidade para a mudança, e quando inicialmente se afasta do seu paradigma, não é desde logo claro para os cientistas se a
teoria paradigmática necessita apenas de melhoramentos e ajustamentos, ou se se presta a ser substituída.
Kuhn tende a proporcionar um retrato psicologístico da mudança de uma teoria, sugerindo que frequentemente os cientistas
não estão conscientes das razões para a sua escolha, seja de conservar o velho paradigma, seja de adoptar um novo. Alguns
filósofos da ciência (Thagard 1993 e Laudan 1977) criticam a explicação de Kuhn e descrevem a mudança de uma teoria
estabelecida para uma teoria concorrente como uma exploração gradual de novas possibilidades conduzida conscientemente
pela comunidade científica. No entanto, note-se que Kuhn não vê a resistência a uma nova teoria como algo irracional só
porque depende da adesão obstinada a um paradigma no âmbito do qual os cientistas foram formados e estiveram a trabalhar.
Afinal de contas, a constância na defesa do que é considerado uma verdade estabelecida é reconhecida como uma virtude
racional. Kuhn admite que há algo de errado na recusa de Priestley em adoptar a teoria do oxigénio quando resiste aos
argumentos de Lavoisier e permanece isolado na comunidade científica ao continuar a aceitar a teoria do flogisto. Priestley,
nas palavras de Kuhn, deixou de ser um cientista quando se isolou para continuar o seu trabalho, pois deixou de estar
envolvido numa comunidade de praticantes. Se considerássemos o seu comportamento irracional, nem por isso atribuiríamos
irracionalidade à ciência em geral.

Discussão: Concorda com Kuhn quando ele diz que não se pode ser cientista quando se está isolado de uma comunidade
de praticantes com conhecimento partilhado e objectivos comuns? Poderá haver ciência num mundo habitado por uma só
pessoa?

Quando Kuhn descreve as revoluções como mudanças de mundivisão, tem em mente uma tese particular — a tese de que após
uma revolução os cientistas vêem um mundo diferente (e trabalham num mundo diferente). Entre as muitas alegações
surpreendentes de Kuhn, esta parece ser a negação mais evidente do realismo; porém, não é o realismo que está aqui em causa.
Kuhn nunca nega que Lavoisier e Priestley olhavam para o mesmo mundo químico, para os mesmos gases e combustíveis.
Nega que viam os mesmos objectos. Considerando o aspecto ontológico de um paradigma, percebemos que Kuhn reforce a
palavra «ver» e não «olhar» ou «interpretar». Os cientistas comprometidos com paradigmas rivais podem olhar para o mesmo
mundo, mas ver coisas diferentes. Voltando a Lavoisier e Priestley, ambos «olharam para» o ar puro; Lavoisier viu oxigénio,
ao passo que Priestley viu ar desflogisticado. Isto implica uma diferença de mundivisões, não de mundos. Eles não
«interpretaram» diferentemente o que viram; viram coisas diferentes. Se falássemos de interpretação, assumiríamos que há um
datum comum para interpretar, um dado para classificar à luz de esquemas conceptuais e categorias diferentes.
Todavia, Kuhn defende que na ciência não há um dado, que os dados são sempre recolhidos com dificuldade e que não são
neutros ou puros quando se tornam acessíveis aos cientistas, porque se tornam uma parte integrante de um sistema de crenças
de base e pressupostos metafísicos, linhas de orientação metodológicas e noções aprendidas durante a sua formação. Estas
crenças dão forma ao conhecimento dos cientistas e à sua maneira de ver o mundo, pelo que quando a comunidade testemunha
uma mudança de paradigma, o mundo da sua experiência muda.

Exercício: Escolha outra mudança de teoria importante na ciência (por exemplo: da física de Newton para a relatividade
de Einstein; do behaviorismo para o cognitivismo na psicologia; a revolução darwiniana na biologia) e faça alguma
pesquisa. Em seguida avalie em que medida essa mudança se adequa à explicação kuhniana das revoluções científicas.

Discussão: Haverá uma ligação entre a ideia de que \/ o mundo muda após a mudança de paradigma e a
incomensurabilidade?

5.3 Além das revoluções

A revolução química parece ser uma ilustração perfeita do modelo de mudança de teoria de Kuhn e das várias fases de uma
revolução. Porém, outros filósofos consideraram que a sua análise da mudança científica era ou enganadora, ou só aplicável a
um conjunto muito limitado de casos na história da ciência. Ora, quais são as alternativas à explicação de Kuhn? No que se
segue passaremos em revista algumas delas.

5.3.1 Programas de investigação

Entre os muitos críticos de Kuhn, Imre Lakatos é particularmente digno de nota, uma vez que tenta mediar entre a novidade da
análise de Kuhn e as ideias mais conservadoras de Popper sobre o progresso e a verdade. Lakatos vê com bons olhos o
reconhecimento da importância do papel da história e dos estudos de caso para a especificação do método científico. Também
admite que é correcto introduzir factores sociológicos, psicológicos e políticos (que os positivistas consideravam «factores
externos») na expücação do comportamento dos cientistas, e rejeitar uma versão ingénua do falsificacionismo. Por outro lado,
Lakatos critica a vagueza da noção de paradigma (que o torna teoricamente confuso) e as suas conotações metafísicas enquanto
mundivisão. Também nega a plausibilidade de apresentar as revoluções como conversões, bem como a tese da
incomensurabilidade. O seu propósito é promover uma reconstrução racional da ciência, redefinindo o progresso científico e
proporcionando uma versão mais sofisticada do falsificacionismo do que a de Popper.
De acordo com Lakatos, Kuhn descreve a ciência como irracional porque, ao discutir a natureza da mudança, fala das
revoluções como se fossem conversões religiosas, e para Lakatos isto significa ver a mudança científica como um esbatimento
irracional de quaisquer critérios de demarcação entre ciência e não-ciência. O que é que Kuhn quereria dizer com a sua
analogia entre a mudança científica e as conversões? Uma conversão é uma mudança não apenas de um conjunto de crenças,
mas também de muitos pressupostos fundamentais nos quais tais crenças assentam. Kuhn não é o primeiro autor a comparar a
mudança intelectual de crenças à experiência da conversão. Em Sobre a Certeza, o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951)
explora o problema da relação entre cepticismo e senso comum, focando a sua atenção num tipo especial de proposições (as
chamadas proposições estruturais) que damos como certas e raramente revemos. Estas proposições parecem proposições
empíricas sobre o mundo, mas o seu papel é quase gramatical, uma vez que descrevem a nossa maneira de ver o mundo e não
o próprio mundo (por exemplo: «O mundo já existia muito antes do meu nascimento»; «Tenho duas mãos»). Se rejeitássemos
estas proposições, adoptaríamos uma mundivisão completamente diferente. E se eu quisesse convencer um membro de uma
tribo remota e culturalmente isolada que não tinha sido ensinado a pensar que o mundo já existia antes de ter nascido e que não
acreditava em tal coisa, seria difícil convencê-lo só pela argumentação racional. Podia dizer-lhe que aprendi em História, uma
disciplina que me ensinaram na escola, que as pessoas viveram, prosperaram, construíram monumentos e combateram em
guerras muito antes de termos nascido. Podia dizer-lhe que conheço pessoas, entre as quais aquelas a quem chamo meus pais,
que são mais velhas que eu e já viveram mais tempo do que eu. Porém, estas considerações não são argumentos independentes
para a ideia de que o mundo já existia muito antes dos nossos nascimentos, pois não as levaríamos de todo a sério se não
assumíssemos já que o mundo existia muito antes do nosso nascimento. Se os membros da tribo passassem a ter a minha
mundivisão, não o fariam pressionados pela argumentação racional, pois todos os argumentos a favor da proposição de que o
mundo não começou a existir quando nascemos já pressupõem de alguma maneira a verdade da proposição.

Exercício: É capaz de imaginar uma situação na qual uma proposição estrutural é revista ou rejeitada?

Discussão: Será que a questão da conversão e das proposições estruturais também se pode aplicar às mudanças de
paradigma?

Lakatos reconhece que há alguns aspectos de um programa de investigação que têm menor probabilidade de ser revistos
(mesmo perante contraprovas), chamando-lhes o núcleo do programa de investigação (os princípios de base de uma teoria,
por exemplo). Outros aspectos são mais flexíveis e menos acerrimamente defendidos, e chama-lhes a cintura de protecção do
programa de investigação (as hipóteses auxiliares, por exemplo). Quando as provas infirmantes se tornam disponíveis,
duvida-se da cintura antes de se duvidar do núcleo, e podem ser adoptadas diferentes estratégias para «corrigir» o programa
de investigação. Lakatos acredita que esta explicação é preferível à de Kuhn, porque é historicamente mais realista e não
compromete a racionalidade da mudança. Para Lakatos, as razões para alterar a cintura de protecção ou preservar o núcleo
duro podem ser boas ou más, dependendo de os ajustamentos serem ad hoc ou conduzirem a novas previsões.
Se os paradigmas kuhnianos são como mundivisões, então alguns dos seus componentes são tais que não podemos abandoná-
los sem alterar o paradigma. Pode não haver boas razões interparadigmáticas para a mudança — a mudança é tão radical que
o que é considerado uma boa razão para a mesma também é passível de mudança. No entanto, isto não significa
necessariamente que a mudança ocorre sem razões ou por más razões. Após a conversão de uma comunidade científica, é
então possível encontrar razões que expliquem a mudança, e geralmente estas podem ser encontradas no facto de um novo
paradigma explicar áreas de investigação científica que não eram satisfatoriamente explicadas antes da mudança. Lakatos
opõe-se a esta noção de racionalidade enquanto racionalização post-hoc, e não deixa espaço para a mesma na sua descrição
de como um programa de investigação substitui outro. A principal diferença entre paradigmas e programas de investigação é
que a validade dos últimos pode ser avaliada objectivamente, de um ponto de vista que não tem de ser interno ao programa de
investigação que está a ser considerado. Como já antecipámos, os programas de investigação são sequências de teorias no
âmbito de um determinado domínio, e são constituídos por um núcleo teórico e hipóteses auxiliares (a cintura de protecção).
Quando as previsões feitas de acordo com um programa de investigação são falsificadas, nem sempre é claro o que deve ser
rejeitado (recordemos a tese de Duhem-Quine e as suas contraposições ao falsificacionismo). A actividade no âmbito de um
programa de investigação é guiada por uma heurística metodológica que ajuda os cientistas a decidir aquilo que mais
provavelmente será responsável por uma previsão falhada, seja o núcleo teórico, seja uma das hipóteses auxiliares. Se uma
teoria tem de ser rejeitada e substituída, um novo problema no âmbito de um programa de investigação passa a estar no centro
das atenções e a mudança pode ser progressiva ou degenerativa. Para que a mudança contribua para o progresso, a nova teoria
tem de: ser mais informativa do que a anterior; ser capaz de explicar o êxito da anterior; receber corroboração independente.
Lakatos sugere que o retrato de Kuhn da história da ciência como uma série de períodos de ciência normal interrompidos por
uma revolução não é correcto: na ciência, só raramente houve um monopólio genuíno. De acordo com Lakatos, a proliferação
de soluções alternativas para problemas existentes não é apenas uma característica de períodos de crise, mas sim um elemento
essencial da prática científica: a escolha entre teorias concorrentes no âmbito dos programas de investigação e entre
programas de investigação é necessária a todo o momento e não apenas durante uma grande revolução; fazer escolhas é a
única maneira de gerar progresso. Se os paradigmas são considerados mundivisões que tudo abrangem — no sentido em que
quando nos comprometemos com um novo paradigma vemos o mundo de uma maneira diferente e passamos a aceitar padrões
parcialmente novos para a escolha de teorias —, então a proliferação de paradigmas concorrentes torna-se de facto uma
situação excepcional. Porém, segundo Lakatos, devemos rejeitar tal concepção de paradigma.
Lakatos ataca em particular a ideia de que cada paradigma tem a sua própria racionalidade. Deparamo-nos com problemas
sérios quando nos perguntamos em que medida os paradigmas são independentes e não podem ser objectivamente avaliados,
pois a posição de Kuhn conduz-nos às teses da incomensurabilidade. A «incomensurabilidade» pode ser usada de diferentes
maneiras — refere-se à impossibilidade de comparar afirmações de teorias rivais, mas também à falta de regras
metodológicas comuns com base nas quais a conduta dos cientistas pertencentes a paradigmas diferentes pode ser avaliada,
bem como à falta de critérios comuns para a escolha de uma teoria independentes de um paradigma. Todas estas teses da
incomensurabilidade são postas em causa por Lakatos, para quem as estratégias metodológicas e os critérios para a escolha de
uma teoria não dependem da teoria.

Discussão: Será que a explicação da mudança de teoria de Lakatos é um melhoramento genuíno da noção de revolução de
Kuhn? Será que Lakatos consegue salvar a noção de racionalidade e progresso no âmbito da ciência?

5.3.2 Estilos de raciocínio

Em A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn defende que os paradigmas concorrentes são de facto incomensuráveis, e
usa a analogia provocatória da conversão: a mudança de um paradigma para outro não pode ser inteiramente devida a
argumentos, pois o que é considerado um argumento apoiado por boas razões para os cientistas que aderiram ao paradigma
anterior pode ser ignorado ou ser considerado um mau argumento para os cientistas que aderem ao último. Os paradigmas não
se limitam a possuir linguagens que resistem à tradução interparadigmática: também contêm conjuntos de valores que são
usados para avaliar se os argumentos são bons e as teorias bem-sucedidas. Se esses critérios forem internos a um paradigma,
nenhuma escolha entre paradigmas pode ser justificada apelando a tais valores, a menos que sejam partilhados pelos
paradigmas que nos interessa comparar. Paradigmas diferentes podem redefinir as finalidades da ciência e propor concepções
diferentes de prova, confirmação e explicação.
Uma alternativa às noções de paradigma e de programa de investigação é a dos estilos de raciocínio ou tradições. Tanto
Hacking (1982) como Feyerabend (1975) usam esta terminologia, mas chegam a conclusões diferentes sobre o modo como os
estilos de raciocínio determinam as respostas a questões ideológicas e metodológicas, e como se relacionam uns com os
outros quer em períodos de proliferação, quer de mudança. Fundamentalmente, o problema que tanto Hacking como
Feyerabend abordam de maneira diferente é se há elementos de relativismo em qualquer explicação historicamente correcta da
mudança científica e conceptual. Em particular, não estão interessados no corpo de crenças verdadeiras que podem ser
mantidas ou revistas de cada vez que uma nova teoria é avançada, mas sim no modo de pensar que vai dando forma à nossa
investigação sobre a natureza, bem como nos critérios para o que é considerado uma boa razão para apoiar uma mudança de
crença.
Feyerabend começa com uma crítica exaustiva a qualquer abordagem da metodologia científica que prescreva regras
imutáveis com base na observação de que na história da ciência diferentes estratégias foram bem-sucedidas. Tais estratégias
não podem ser vistas como excepções a um conjunto de regras: ao invés, o facto de terem sido adoptadas e de terem produzido
resultados indica que a proliferação de abordagens metodológicas é desejável. Em seguida, defende que para cada regra
codificada pelos filósofos da ciência há uma regra oposta que é igualmente aceitável, e afirma que na história da ciência os
maiores passos foram dados quando os cientistas foram menos conservadores e violaram regras metodológicas explícitas
como a consistência — ao avançarem hipóteses que não eram compatíveis com as teorias consideradas como verdades
estabelecidas na época, por exemplo.

Discussão: Será que a observação de uma pluralidade de métodos na ciência apoia a conclusão de que não há como
codificar a metodologia científica? Será que apoia a ideia de que não há racionalidade na ciência?

No âmbito da ciência há portanto uma pluralidade de métodos incompatíveis e igualmente aceitáveis. Para Feyerabend, é
importante salientar que as ideias a que não se chegou por uma via científica legítima contribuíram para a direcção na qual a
ciência avançou. Até ideias que foram impostas por preconceitos e por outras tendências «irracionais» foram essenciais para
o processo mediante o qual algumas teorias actuais levaram a melhor sobre as concorrentes. Dado o seu compromisso de
reconhecer elementos conducentes ao progresso em diferentes tradições de pensamento, Feyerabend é céptico no que respeita
à maneira como os cientistas vendem os seus programas de investigação como guiados por princípios racionais, e pensa que
arriscam limitar o progresso futuro ao impor constrangimentos às fontes de ideias que são consideradas aceitáveis. Rejeitar
uma ideia só porque parece ter sido gerada pela adopção de uma cosmologia há muito esquecida, por exemplo, seria um erro e
uma escolha míope. A tese é que a metodologia varia consoante a tradição de pensamento no âmbito da qual a ideia surge ou a
investigação é conduzida, e que mesmo no âmbito da ciência, que somos tentados a ver como um empreendimento
metodologicamente unificado, quase tudo vale.

Exercício: Pense num exemplo de um ponto de vista que foi posto de parte, mas gerou o que hoje consideraríamos
hipóteses científicas legítimas.
Discussão: Será que Feyerabend está certo no que respeita aos benefícios da proliferação? Que desvantagens pensa que a
proliferação pode ter?

Hacking partilha com Feyerabend um interesse, não pela mudança de teorias per se, mas pela variação perceptível no modo
como justificamos as teorias, pelo estilo de raciocínio que explícita ou implicitamente subscrevemos quando consideramos um
problema como um problema legítimo. Não é surpreendente que algumas pessoas achem verdadeiro o que outras acham falso.
Este tipo de desacordo pode persistir numa tradição de pensamento sem gerar qualquer choque ou revolução substanciais. O
que parece ser uma forma mais radical de mudança é a alteração de estilos de raciocínio: Hacking usa o exemplo das
doutrinas alquímicas e astrológicas da semelhança e similitude no Renascimento (1982, p. 60). Não entendemos estas
explicações como ciência porque actualmente empregamos conceitos diferentes (o conceito de prova alterou-se, por exemplo),
e temos razões completamente diferentes para acreditar que uma hipótese é explicativa (a título de exemplo, podemos entender
a alegação de que o unguento de mercúrio é bom para a sífilis, mas não conseguimos entender porquê — porque o mercúrio
está ligado ao planeta Mercúrio, que por sua vez está ligado ao mercado, onde a doença é contraída).
Bird (1998) proporciona outro bom exemplo de um tipo de explicação que Hempel considerava não científica: o astrónomo
Francesco Sizi defendia que o número de planetas é necessariamente sete porque temos sete «janelas na cabeça» (duas
narinas, dois ouvidos, dois olhos e a boca) e os metais são sete. Como Bird observa, a simetria podia ser defendida apelando
às intenções de um criador, e podia ser considerada uma razão para acreditar que o número de planetas é sete nesse contexto.
Na ciência contemporânea, porém, o modo como Sizi argumenta a favor da necessidade da existência de sete planetas não é
aceitável. Estes exemplos mostram que quando o estilo de raciocínio muda, o tipo de explicação e justificação que é
considerado aceitável também muda e, de acordo com Hacking, o entendimento pode falhar por esta razão.
Hacking discorda de Kuhn no que respeita a haver uma impossibilidade de tradução entre as afirmações de uma teoria e as da
sua rival. Contudo, concorda que há descontinuidade na mudança conceptual, na qual o fosso provém de uma variação na
maneira de pensar, e em particular no que é considerado uma boa razão para apoiar uma afirmação. Uma vez que são o
raciocínio e os métodos que são relativos a um estilo particular, os estilos não podem ser comparados uns com os outros com
êxito e os juízos de superioridade não podem ser justificados independentemente.

Discussão: Concorda com Hacking em que o entendimento entre os vários estilos de raciocínio falha? É capaz de
encontrar outros exemplos de estilos de raciocínio que num dado momento eram considerados científicos mas que hoje
seriam rejeitados por serem não científicos?

5.3.3 Escolha de teorias

Se pensarmos que os paradigmas, programas de investigação ou os estilos de raciocínio são as unidades mais adequadas da
mudança científica, deparamo-nos com sérias dificuldades na comparação de teorias rivais quando a alteração na descrição
dos termos teóricos e os pressupostos metodológicos opostos levantam a questão da incomensurabilidade. A
incomensurabilidade do significado e dos métodos tem implicações no progresso científico e na escolha de teorias. Se as
afirmações de teorias rivais não podem ser comparadas devido à falta de uma linguagem e de conceitos comuns, torna-se
extremamente difícil escolher entre elas com base na sua adequação empírica. Como é que podemos defender que uma teoria
tem mais conteúdo empírico do que outra, ou que é melhor a prever e a explicar fenómenos no mesmo domínio? A ideia de
que as novas teorias conseguem explicar o êxito parcial das suas antecessoras parece ser um passo fundamental para o
estabelecimento de uma noção de progresso genuinamente cumulativo.
Mas é claro que a tese de que teorias rivais não podem ser comparadas com base no seu conteúdo e, por conseguinte, com
base na sua adequação empírica, não exclui que haja outras formas de as distinguir e fazer uma escolha racional. As teorias
podem ser comparadas no que respeita a critérios que nos podem dar razões para justificar essa escolha. Mas quais são esses
padrões mediante os quais avaliamos teorias? No posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn enuncia alguns
destes valores: uma teoria deve fazer previsões exactas (na medida do possível, de uma natureza quantitativa, e não apenas
qualitativa); deve permitir a resolução de problemas; deve ser simples e consistente; deve ser em grande medida compatível
com outras teo-rias aceites. Newton-Smith (1981) enuncia outros valores: uma teoria deve ser fértil e permitir
desenvolvimentos teóricos e práticos; deve estar bem integrada, não apenas com outras teorias aceites, mas também com
alguns pressupostos metafísicos gerais sobre o mundo.
As listas são muito heterogéneas. Alguns critérios parecem ser puramente uma questão de juízo estético (a elegância de uma
prova matemática, por exemplo); outros parecem seguir virtudes epistémicas importantes: como observámos no capítulo 1, a
boa integração com outras teorias aceites é uma razão para preferir a psicologia à astrologia quando procuramos uma teoria
que possa dar uma explicação para o comportamento humano. Contudo, é discutível que todos os critérios sigam virtudes
epistémicas: o debate alargado sobre a simplicidade ou a parcimónia como um desideratum para as teorias mostra que não é
fácil discriminar as possíveis implicações dos critérios para a escolha de teorias antes da investigação empírica.

Exercício: Consegue acrescentaroutros critérios à lista?

Kuhn defende que os valores são bastante constantes entre paradigmas, mas que a sua aplicação pode ser sujeita a diferenças
individuais e a diferenças entre comunidades científicas: por exemplo, em que medida o facto de uma nova teoria poder estar
em tensão com outra teoria estabelecida antes da tensão se tornar um obstáculo à aceitação da nova teoria é relativo ao juízo
feito num contexto particular e a outras avaliações e interesses. Outro juízo que pode depender dos pressupostos
metodológicos numa comunidade científica é a importância relativa dos critérios, e se todos os critérios são aplicáveis a todas
as teorias científicas.

Discussão: Seria racional escolher uma teoria mais simples mas menos fértil?

Resumo
Neste capítulo considerámos diferentes abordagens filosóficas à mudança em ciência e as suas consequências para a tese de
que a ciência é um empreendimento racional. De acordo quer com os racionalistas quer com os historicistas, a racionalidade
da ciência parece ser refém do facto de a prática da ciência ser intocada por aqueles factores que não têm uma relevância
directa para a confirmação ou infirmação das teorias. Os racionalistas acreditam que a mudança de teorias é racional e há um
progresso cumulativo porque pensam que podem reconstruir o processo de mudança de uma forma que não tem de ter em conta
factores externos às condições para a realização de testes e ao método da ciência. Frequentemente, os historicistas negam a
racionalidade da mudança de teorias e a natureza cumulativa do progresso porque não acreditam que o processo de mudança
possa ser reconstruído independentemente de factores ideológicos, sociais, psicológicos, políticos e históricos.
Porém, devemos contestar o pressuposto partilhado neste debate: porque é que não pode haver racionalidade na mudança se
reconhecermos que esta é afectada não apenas pelos méritos objectivos de uma teoria e pela sua adequação aos indícios
disponíveis, mas também pela maneira como opera a comunidade científica como um todo? O significado do contributo da
ciência para o corpo de conhecimento partilhado nas nossas comunidades só pode ser completamente apreciado se virmos a
ciência como parte da sociedade. E por ter em certos momentos resistido e noutros sucumbido às pressões de «fora» que a
ciência se tornou o que é hoje: uma instituição social, ao invés de um mero conjunto de disciplinas académicas unidas por um
qualquer método abstracto.

Cenas dos próximos capítulos


Começámos por ver algumas das interacções mútuas entre ciência e não-ciência: pressupostos metafísicos, mudanças
ideológicas e conceptuais, traços psicológicos da motivação humana no raciocínio e na escolha de teorias contribuem todos
para dar forma à trajectória do progresso científico. No próximo capítulo, centrar-nos-emos nas responsabilidades éticas da
ciência no que respeita ao resto da sociedade.

Questões para pensar

1. Que noção de progresso científico é compatível com o ponto de vista da mudança de teorias de Kuhn?
2. De que modo os programas de investigação são comparáveis a paradigmas?
3. Acha que faz sentido falar numa teoria do «dado» neutro em ciência?
4. Poderá haver um progresso genuinamente cumulativo?
5. Que critérios são legítimos para a escolha de teorias?
6. Será possível (e, em caso afirmativo, desejável) postular uma noção de racionalidade independentemente dos requisitos da
metodologia científica?

Leituras complementares
Neste capítulo apresentei uma ilustração das ideias de Kuhn referente à revolução química. Poderá comparar a sua
perspectiva com outras perspectivas da mudança científica com base em exemplos de mudanças significativas na ciência,
como a Revolução Copernicana (Henry 1997; Hall 1983; Kuhn 1957, 1990; Cohen 1980). Outras opções incluem a mudança
da física newtoniana para a teoria da relatividade, ou a aceitação da teoria da evolução de Darwin. Outras leituras de Kuhn
podem ajudá-lo a compreender a importância do seu contributo e os pormenores da sua proposta: ver, por exemplo, Bird
(2000) e Hoyningen-Huene (1993). As ideias de Kuhn sobre a estrutura das revoluções na ciência foram aplicadas à cognição
e à computação nos trabalhos de Andersen et al. (2006) e de Thagard (1992), que se centram na aquisição e revisão de
conceitos.
Pode encontrar artigos úteis sobre a coerência e a plausibilidade da noção de «revolução científica» numa colectânea
organizada por Hacking (1981). Nos escritos de Popper (1963, 2002, cap. 10), Laudan (1984) e Lakatos (1970) é possível ver
perspectivas alternativas à teoria da revolução e do progresso de Kuhn. As colectâneas de artigos sobre a mudança científica
e a natureza do progresso também poderão dar-lhe uma ideia da estrutura do debate: ver, por exemplo, Radnitzky e Andersson
(1978); Niiniluoto e Tuomela (1979); Lakatos e Musgrave (1970); Harré (1975). Para uma introdução geral, ver Losee (2003).
Para contributos mais recentes da filosofia e das ciências sociais para o debate sobre o progresso científico, ver Bird (2007),
Chang (2007) e Lohmann (2004).
6. Ética

A concepção historicista da mudança de teorias levamos a considerar a interacção entre as comunidades científicas e a
sociedade como um todo no que respeita a ideologias partilhadas, a conflitos de interesses e a pressões financeiras. Um dos
aspectos em que a ciência e o resto da sociedade frequentemente colidem é a compreensão do modo como os constrangimentos
éticos devem ser aplicados ao desenvolvimento e financiamento dos programas de investigação, e aos avanços tecnológicos
que deles resultam. Outra questão que merece discussão filosófica é se há obrigações para com a ciência, ou seja, se apoiar a
ciência é um imperativo moral para os indivíduos e as sociedades.
Neste capítulo examinaremos a relação entre a ciência e o resto da sociedade, e discutiremos se os cientistas são imputáveis
de uma maneira diferente dos outros indivíduos na sociedade. Consideraremos alguns casos concretos, incluindo a ética dos
aperfeiçoamentos e o uso da ilusão na investigação em psicologia social. Porém, muitas mais questões poderiam ilustrar os
debates actuais sobre as consequências éticas dos métodos e dos objectivos da investigação científica.
Eis alguns exemplos: a ética da investigação das células estaminais de embriões precoces humanos; a ética da investigação
biomédica com primatas não humanos; as questões levantadas pelo aquecimento global; a ética dos ensaios clínicos nos países
em vias de desenvolvimento; a ética da investigação epidemiológica em psiquiatria.
Os casos que observaremos têm como função ilustrar a interacção entre a ciência e a ética, sugerindo como a investigação
científica poderia ser constrangida por princípios básicos como a autonomia do indivíduo, a evitação do sofrimento
desnecessário de seres sencientes e as obrigações que temos para com as gerações futuras. Fora da discussão sobre os
exemplos escolhidos, será desenvolvida uma perspectiva geral da relação entre a ciência e o resto da sociedade, e será
questionado o papel das autoridades políticas e religiosas, dos especialistas científicos e do público em geral nos debates que
envolvem a ciência.
O que devemos examinar criticamente é o pressuposto popular de que os interesses e os valores dos indivíduos e das
sociedades têm de ser salvaguardados da ambição cega de cientistas que tentam «brincar a Deus», da «ciência de
Frankenstein» ou de interesses empresariais malévolos que se escondem por detrás da procura da verdade e do progresso.
Muito embora haja riscos concretos (éticos e outros) na actividade da investigação científica, a retórica com que a ciência é
amiúde representada nos filmes, livros e até na imprensa popular, é muitas vezes injustificadamente negativa. Isto deve-se
possivelmente ao facto de a sociedade não conseguir criar oportunidades para um envolvimento público com a ciência, nas
quais os problemas concretos que afectam tanto os cientistas como os não-cientistas sejam discutidos de uma maneira
acessível e transparente.
No final deste capítulo estará habilitado a:

• Analisar os debates éticos actuais sobre os métodos e os objectivos da investigação científica.


• Identificar o modo como os interesses na ciência podem entrar em conflito com os interesses individuais na sociedade ou
promovê-los.
• Explicar a complexidade da relação entre a ciência e a sociedade em termos de obrigações e responsabilidades mútuas.
• Formar uma opinião sobre em que medida a investigação científica deve ser autónoma e se o princípio da liberdade da
investigação pode ser justificado.

6.1 Instrumentalização

São muitas as razões por que a investigação científica como actualmente a concebemos pode ser considerada geradora de
questões éticas ou a precisar de regulação ética. Por exemplo, podemos perguntar-nos se é legítimo conduzir experiências com
seres humanos ou animais não humanos quando estão presentes alguns riscos para a saúde, ou quando a dor e o sofrimento
precisam de ser infligidos como parte do objectivo experimental.
Há um argumento a favor da alegação de que nas actividades de investigação que envolvem seres humanos ou animais é
moralmente objectável usar seres humanos ou animais exclusivamente como um meio — para obter conhecimento, por
exemplo — quando estes indivíduos não beneficiam dos resultados da investigação. O poder persuasivo desse argumento não
depende da avaliação dos riscos potenciais. Mesmo se os riscos que os sujeitos da investigação correm forem insignificantes,
poder-se-ia argumentar que o uso de indivíduos com direitos e interesses para finalidades que podem não os beneficiar
directamente é moralmente dúbio.
O argumento é frequentemente atribuído a Kant, segundo o qual nunca devemos usar seres humanos apenas como fins (Kant
1785). Em anos mais recentes, os teóricos dos direitos dos animais tornaram esta ideia extensiva à protecção de alguns
animais. Tom Regan (1983), por exemplo, defendeu que os mamíferos de um ano ou mais nunca devem ser usados na
investigação, dado que possuem certas capacidades que justificam que lhes sejam atribuídos interesses, bem como uma versão
fraca de autonomia. De acordo com esta linha de pensamento, várias actividades que podem conduzir à instrumentalização (ou
a uma forma moralmente ilícita da mesma), como o uso de um outro indivíduo unicamente como um meio para atingirmos os
nossos próprios fins, devem ser evitadas mesmo que o risco real de causar danos a humanos ou animais seja baixo. Para os
utilitaristas, ao invés, não há uma resposta clara sobre se em geral os seres humanos ou os animais não humanos devem ser
usados na investigação (Singer 1974). É preciso calcular os benefícios e os riscos em cada caso, e decidir qual é a melhor
maneira de agir, dependendo de factores como: 1) a relevância dos resultados experimentais esperados; 2) o nível de dor, de
stress ou de sofrimento que vai ser infligido aos participantes; 3) o nível de complexidade das capacidades psicológicas dos
indivíduos envolvidos; 4) a existência de métodos de investigação alternativos que sejam fiáveis, etc. Uma experiência com
grandes benefícios potenciais que envolve um pequeno número de ratos mas que não lhes causa uma dor significativa pode ser
aceitável. Uma experiência menos prometedora em termos da relevância dos resultados esperados e que implica confinar e
infligir dor a um grande número de primatas pode não ser aceitável.

Exercício: E capaz de dar alguns exemplos de instrumentalização?

Discussão: Usar pessoas ou animais para os seus próprios fins será sempre moralmente objectável?

Discussão: Acha que é sempre moralmente permissível usar animais não humanos na investigação biomédica?

A noção de instrumentalização precisa de ser esmiuçada. O uso de participantes humanos na investigação científica pode não
ser moralmente problemático se certos princípios éticos — como o respeito pela autonomia pessoal — forem tidos em conta.
Frequentemente, tal princípio requer a obtenção do consentimento informado da parte dos participantes, ou seja, que sejam
abertamente informados sobre os riscos que a sua participação na investigação implica, e que a relevância do estudo lhes seja
explicada de forma clara. Se é verdade que a investigação científica, seja pura ou aplicada, beneficia todos os seres humanos,
então os próprios participantes podem estar interessados na realização e no desenvolvimento das actividades de investigação
desde que os riscos para a sua saúde física e psicológica sejam reduzidos. Poder-se-ia argumentar que «usar outros» não é
uma prerrogativa da investigação científica. Muitas das actividades humanas comummente aceites e por vezes até promovidas
nas nossas sociedades (a política, as empresas comerciais ou a publicidade, por exemplo) e muitas formas de interacção
social entre indivíduos ou grupos de indivíduos (a amizade, o casamento, por exemplo) implicam alguma forma de
instrumentalização. A instrumentalização não é necessariamente um aspecto moralmente objectável das nossas práticas
humanas, mas torna-se moralmente objectável quando implica exploração — ou seja, quando os interesses de outros seres
humanos ou dos animais não são respeitados no uso que deles fazemos (a escravatura, por exemplo). Ainda que a exploração
de outros seres humanos seja amplamente reconhecida como moralmente impermissível na nossa sociedade, a questão da
exploração dos animais é muito mais controversa no que respeita a práticas comuns como a agricultura intensiva ou a
investigação médica. Não há um consenso relativamente à questão de os seres não humanos terem um estatuto moral, e, mesmo
quando se admite que o têm, o que isto implica para a forma como são tratados não é claro.
Em ética, os filósofos correlacionam amiúde, implícita ou explicitamente, aquilo a que um indivíduo tem direito de um ponto
de vista moral com a complexidade da vida mental do mesmo. Esta correlação (a chamada «abordagem psicológica ao
estatuto moral») ocupa um papel central em muitas tentativas de responder à questão sobre se devemos atribuir direitos ou
estatuto moral aos indivíduos que não têm as capacidades que normalmente as pessoas têm — como a capacidade de
deliberação racional e de autoconsciência.

Exercício: Existem outras abordagens no sentido de determinar que obrigações morais temos e para com quem as temos.
Uma das perspectivas é a de que deve ser atribuída uma protecção especial aos mais vulneráveis, quer tenham ou não
capacidades psicológicas comparáveis às nossas. Consegue dar um exemplo ao qual esta linha de raciocínio possa ser
aplicada?

O debate sobre a permissibilidade moral da investigação científica com animais não humanos e embriões humanos (a
investigação oncológica com ratos ou qualquer investigação com células estaminais, por exemplo) é um bom exemplo de como
a opinião pública e a sociedade em geral têm impacto na ciência, e em especial no modo como alguns objectivos de
investigação são perseguidos. Ninguém põe em causa que fazer avançar a medicina e descobrir tratamentos para doenças tão
debilitantes como a doença de Alzheimer são objectivos de pesquisa eticamente legítimos, mas a questão que se coloca é se
todos os meios para atingir tais fins são permissíveis, ou se devem ser aplicados alguns limites sobre que seres podem ser
usados, a que seres pode ser infligido sofrimento ou que seres podem ser destruídos para tais fins. Além da questão da
instrumentalização e da exploração e de outros constrangimentos éticos aplicáveis aos métodos de investigação, há também
um debate acalorado sobre que prioridade deve ser atribuída às finalidades e aos objectivos dos projectos de investigação
publicamente financiados, dados os recursos limitados afectados à ciência, bem como sobre se alguns objectivos de
investigação devem ser completamente postos de parte por razões éticas.
Exploraremos estas questões analisando alguns exemplos específicos, tentando tirar algumas conclusões gerais sobre a forma
que tais debates podem assumir e sobre como se pode avançar no que a eles respeita.

6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação

Há duas razões independentes pelas quais os objectivos de uma proposta de investigação podem ser objecto de um exame
ético minucioso. Pode haver argumentos morais no sentido de que os recursos públicos para a investigação não são ilimitados
e devem ser distribuídos de uma forma justa, dando prioridade às áreas de investigação em que um maior benefício pode ser
obtido para o maior número de pessoas ou para os mais desfavorecidos, por exemplo — dependendo do conceito de justiça
subjacente. Este tipo de limitação dos objectivos da investigação é controverso, pois pode sujeitar o progresso da ciência à
tomada de decisão política no que respeita às questões da afectação de recursos.
Pode também haver razões para não dar seguimento a uma proposta de investigação que tem como objectivo provar uma tese
que é eticamente dúbia — como a superioridade de uma raça sobre outra, por exemplo. Muitos programas de investigação
activos no período do domínio nazi na Alemanha tinham o objectivo explícito ou implícito de provar a inferioridade mental da
população judaica. Um exemplo desta tentativa de «psicologia racial» era a recolha de indícios a favor da tese de que alguns
traços intelectuais necessários para se ser bem-sucedido na matemática eram racialmente distribuídos: a hipótese era que os
matemáticos judeus eram bons em termos analíticos (como outras populações latinas), e que a imaginação e a intuição dos
matemáticos alemães eram mais desenvolvidas. Estas mesmas teses — que não eram de todo apoiadas por indícios fiáveis,
baseando-se em rumores — torna vam-se objecções a estilos particulares de fazer matemática (ver os artigos de Ludwig
Bierbach sobre a vulgaridade da matemática judaica durante a década de 1930), e foram usadas como uma razão para boicotar
prelecções de colegas judeus e para lhes recusar lugares académicos.
Mais recentemente, a investigação sobre a guerra biológica ou química pode servir como exemplo de investigação científica
com objectivos moralmente objectáveis, dado ser provável que as potenciais aplicações da investigação venham a causar
danos em vez de promover o bem-estar.

Exercício: É capaz de dar exemplos de outros programas de investigação cujo objectivo principal pode ser considerado
objectável em termos morais?

Discussão: Acha que as preocupações morais devem funcionar sempre como um constrangimento no que respeita à
questão de aceitar um projecto de investigação, dados os seus objectivos?

No que se segue examinaremos o exemplo de um projecto de investigação cujo objectivo (o aperfeiçoamento genético) tem
sido considerado por alguns eticistas como moralmente inaceitável, e por outros como algo que devíamos ser obrigados a
promover.

6.2.1 Duas noções de deficiência

Suponha que dentro em breve vai ter um filho, e que sabe que há medidas simples que pode tomar para se certificar de que ele
será saudável. Suponha, em particular, que, se seguir o conselho do médico, pode evitar que o seu filho tenha uma deficiência,
pode torná-lo imune a uma série de doenças perigosas e até pode melhorar a sua inteligência futura. Tudo o que precisa de
fazer para que isto aconteça é cumprir alguns requisitos quanto ao seu estilo de vida e alimentação. Terá razões morais (ou
obrigações morais) para seguir o conselho do médico? Seria diferente se, em vez de seguir requisitos alimentares simples,
assentisse à aplicação da engenharia genética para se certificar de que o seu filho não teria deficiência alguma, seria saudável
e teria uma inteligência acima da média?
No debate sobre a ética do aperfeiçoamento genético, um dos argumentos avançados é o de que se concordarmos que a
deficiência deve ser evitada, também deveríamos concordar que devem ser postos em prática aperfeiçoamentos, uma vez que
a deficiência e o aperfeiçoamento parecem estar num continuum. É claro que esta perspectiva depende da concepção de
deficiência que se escolhe, e baseia-se na abordagem da deficiência com base na condição danosa (Harris 1992), que se opõe
à concepção social da deficiência (Reindal 2000; Koch 2001).
Na explicação com base na condição danosa, faz sentido afirmar que certas condições em que a pessoa se encontra podem ser
consideradas incapacitantes no seio do meio físico ou social em que está inserida quando se trata de condições causadoras de
dano em que uma pessoa racional preferiria não se encontrar. O que todas as condições incapacitantes têm em comum é que de
alguma maneira causam dano às pessoas que nelas se encontram (expondo-as a riscos, prejudicando a sua actividade,
limitando as suas oportunidades ou impedindo que tenham experiências que valham a pena ser vividas). Nesta perspectiva, as
condições incapacitantes constituem uma desvantagem no que respeita a alternativas relevantes, mas não necessariamente no
que respeita às condições do ser humano representativo. A alteração de factores ambientais ou novas descobertas sobre o
surto de doenças graves, por exemplo, podem levar a que as condições normais da nossa espécie se tornem incapacitantes.
De acordo com a concepção social de deficiência, todas as características incapacitantes da condição desapareceriam se a
sociedade fosse inclusiva e livre de discriminação ou preconceito. Embora seja certamente verdade que certas atitudes na
sociedade relativas às pessoas que são consideradas diferentes só podem piorar as coisas para as pessoas deficientes, em
muitos casos, e possivelmente na maioria dos casos, a sua condição prejudicial persistiria uma vez reformada a sociedade (a
surdez ou a síndrome de Down, por exemplo). Geralmente, a concepção com base no dano da condição é preferida à
concepção social de deficiência, pois consegue explicar como certas condições em que a pessoa se encontra permanecem
incapacitantes mesmo depois das questões de discriminação serem tratadas e da sociedade ser libertada de preconceitos.

Exercício: De que modo um defensor da concepção social de deficiência poderia responder a este argumento?

Um caso em que uma condição incapacitante deixaria de ser prejudicial se a sociedade fosse reformada é o de uma deficiência
inteiramente causada pelo contexto social adverso. Por exemplo, a história diz-nos que nascer do sexo feminino na Europa do
século XIX seria uma condição incapacitante comparada com ter nascido do sexo masculino. Excepções à parte, às mulheres
era negado o exercício de toda a forma de tomada de decisão autónoma, e frequentemente não tinham a oportunidade de
receber instrução. Da mesma maneira, nascer actualmente num país em vias de desenvolvimento em vez de num país
desenvolvido é, na maior parte dos casos, uma condição incapacitante, devido às consequências em termos de saúde,
educação, oportunidades de emprego e muitos outros aspectos da vida das pessoas.
Estas condições prejudiciais deixariam de ser consideradas incapacitantes se pudéssemos alterar o contexto social, político e
económico. A concepção de deficiência com base na condição danosa consegue reconhecer que as condições incapacitantes
podem ter uma série de causas sem se comprometer com a ideia de que ao alterar os factores sociais, políticos e económicos,
todas as deficiências desapareceriam.
A partir da perspectiva de uma explicação da deficiência com base no dano da condição, é possível explorar a relação entre
deficiência e aperfeiçoamento. O continuum dano-benefício é a ideia de que há continuidade entre as razões para não causar
dano a outros e as razões para os beneficiar. Poderia parecer que se temos razões morais para impedir que as pessoas se
encontrem em condições incapacitantes, também poderíamos ter razões morais para melhorar as suas condições, quer sejam
incapacitantes, quer não. Outras questões que se colocam são sobre se estas razões morais são (pelo menos em alguns casos)
obrigações morais, e se é errado não aperfeiçoar pessoas a quem poderíamos deste modo beneficiar. Examinaremos algumas
objecções comuns ao aperfeiçoamento, e concluiremos que há pelo menos três maneiras possíveis de conceber a ética do
aperfeiçoamento que são compatíveis com a explicação da deficiência com base no dano da condição.
Poderia parecer que temos razões morais para impedir condições incapacitantes como parte do nosso compromisso com o
princípio moral básico de evitar danos desnecessários. Isto significa que, quando podemos escolher, devemos dar a vida a
pessoas sem condições incapacitantes (conhecidas), ao invés de a darmos a pessoas em tais condições. Isto, porém, nada diz
sobre se essas razões morais dão origem a uma obrigação moral, ou sobre como a devemos pôr em prática. A lista seguinte
inclui apenas algumas das formas como se pode evitar gerar uma pessoa com uma deficiência: adiamento da concepção;
alteração do comportamento; terapia genética; selecção de embriões pré-implantação; aborto. Pode reconhecer-se a obrigação
moral de impedir ou erradicar deficiências, e ainda assim objectar, por razões morais ou outras, aos métodos mediante os
quais a obrigação pode ser posta em prática. Além disso, a força da obrigação pode variar de acordo com o contexto da
condição incapacitante e de acordo com o grau do dano que a condição incapacitante provavelmente causará às futuras
pessoas.

Exercício: Considere o seguinte exemplo (a partir de Harris 2004) e identifique as razões éticas que seriam relevantes
para tomar uma decisão neste caso. Uma mulher tem à sua disposição seis embriões pré-implantação in vitro que
aguardam implantação. Três desenvolverão asma e três parecem ser saudáveis. Que embriões deverá a mulher implantar?
Agora considere o seguinte caso e explique de que modo difere do anterior: é dito a uma mulher que se conceber
imediatamente terá uma criança com asma, mas que se adiar a gravidez, se fizer um tratamento e depois conceber, terá
uma criança saudável. O que deve ela fazer?

6.2.2 Objecqões ao aperfeiçoamento

Se aceitarmos que há razões morais para, quando possível, impedir ou erradicar uma deficiência, ficaremos obrigados por isto
a reconhecer que também temos razões morais para proceder ao melhoramento? Esta pergunta coloca-se com uma força
particular àqueles que acreditam que há um continuum entre os danos e os benefícios. Nesta perspectiva, as razões que temos
para evitar causar dano a outros são contínuas com as razões que temos para lhes conferir benefícios, se pudermos. Em
algumas teorias da responsabilidade para agir, segundo as quais podemos proteger as pessoas dos danos, escolher não o fazer
é tornar-se responsável pelos danos que podíamos ter impedido. Todas as acções são passíveis de ser redescritas como
omissões, e vice-versa. A decisão de salvar uma vida é a decisão de não permitir que alguém morra.

Exercício: Imagina que implicações contra-intuitivas esta ideia de responsabilidade moral pode ter?

Se aceitarmos a ideia de que há um continuum dano-benefício e que temos uma razão moral para evitar causar danos
desnecessários a outros, também temos uma razão moral para conferir benefícios a outros, e esta razão moral pode tornar-se
uma obrigação positiva na qual os custos para nós próprios são razoáveis, dado o grau do benefício. Isto é apoiado pela
analogia intuitiva entre a deficiência e o aperfeiçoamento. Se as condições incapacitantes constituem uma desvantagem no que
respeita a alternativas relevantes, as condições aperfeiçoadas constituem uma vantagem. Além disso, é fácil imaginar cenários
em que não melhorar a condição de uma pessoa significa criar uma deficiência. Num meio em que a maioria das pessoas viu a
sua memória a longo prazo ser aperfeiçoada em 20 por cento, as pessoas cuja memória não foi aumentada estão em
desvantagem em alguns contextos; se fosse desenvolvida uma vacina eficaz contra o VIH/SIDA, aqueles que não estivessem
protegidos estariam em grave desvantagem.
Contudo, há inúmeras objecções ao desenvolvimento de programas de investigação com o objectivo de aperfeiçoar condições
e capacidades, e passaremos aqui em revista algumas. Na literatura da bioética, na imprensa e até na cinematografia recente,
os aperfeiçoamentos são encarados com grande desconfiança.
Há muita gente preocupada com a segurança das tecnologias do aperfeiçoamento e com o conhecimento limitado que mesmo
os especialistas têm sobre as consequências da engenharia genética em certos domínios. Embora possa haver muito boas
razões para decidir contra o aperfeiçoamento com base em preocupações relativas à segurança dos procedimentos, este
argumento não é suficiente para mostrar que melhorar não é ético. Se houvesse um avanço científico significativo, a segurança
dos procedimentos poderia ser confirmada e as consequências do aperfeiçoamento poderiam ser controladas. Nessa altura,
não haveria objecção alguma a avançar com o aperfeiçoamento.
Outra objecção ao aperfeiçoamento deriva da ideia persistente de que o natural é bom e que o não-natural é mau: em poucas
palavras, que devemos dar prioridade ao natural em detrimento do artificial. Ainda que comum, a crença de que o natural deve
ter prioridade sobre o artificial tem sido considerada errada por muitos. Na medida em que os alimentos que surgem
naturalmente são mais seguros ou mais saudáveis, há uma razão para preferi-los; em muitos casos, porém, os alimentos
preparados artificialmente são mais seguros e mais saudáveis. Quando os processos naturais são menos dispendiosos ou
provocam menos danos no ambiente, há razões para preferi-los. Por conseguinte, não há razão alguma para preferir um
processo natural a um processo artificial na ausência de outras considerações relevantes. Estes exemplos pretendem mostrar
que o natural per se é moralmente neutro. Por vezes os acontecimentos naturais são bons, como um fabuloso pôr do Sol ou uma
colheita abundante. Frequentemente, porém, o natural provoca grandes danos (a pestilência ou as enchentes, por exemplo),
podendo causar enormes perdas de vidas humanas.
Poder-se-ia caracterizar a prática da medicina (e da ciência em geral) como a grande tentativa de mudar o curso da natureza,
pois as pessoas ficam naturalmente doentes, são invadidas por organismos naturais como vírus e bactérias, e morrem
naturalmente em tenra idade, frequentemente enquanto bebés. Se déssemos sempre prioridade ao natural, teríamos de
renunciar à prática da medicina e às descobertas da ciência médica, incluindo as vacinas e os antibióticos.

Exercício: Consegue pensar noutros debates onde há uma aceitação acrítica da ideia de que o que é natural é bom?

Há outras duas objecções que frequentemente andam a par. Uma é a objecção do «brincar a Deus» — a ideia de que ao
procedermos a certos aperfeiçoamentos somos culpados de arrogância. Esta ideia traduz-se nos seguintes termos: «Não é
suposto que os seres humanos criem melhores seres humanos, pois isso seria arrogante da sua parte. Deveriam apenas aceitar
o que Deus ou a Natureza lhes deu, sem tentarem melhorá-lo.» Esta objecção não é muito interessante, mas conduz
frequentemente a uma segunda e mais interessante objecção: Quais são as consequências dos aperfeiçoamentos? Ao intervir
nos genes, podemos modificar a natureza humana e evoluir por nós próprios. Haverá algo de errado nisto?
Uma possível resposta dependeria da ideia de que a espécie humana tal como é deve ser preservada. Isto decorre da crença de
que há algo de intrinsecamente bom no ser humano. Mas será que é realmente a humanidade enquanto tal, o seu conceito
biológico, que valorizamos? O que é de valor nos humanos talvez seja o facto de normalmente também serem pessoas, com a
capacidade de terem consciência de si mesmas, de tomar decisões por si de uma maneira racional e autónoma, e de terem
sentimentos e emoções complexos. O facto de todas as pessoas que conhecemos serem seres humanos é apenas um acaso. Se
encontrássemos essas características das pessoas em seres não humanos, íamos (ou devíamos) ainda valorizá-las e estimá-las.
Tais considerações podem apoiar a ideia de que o valor intrínseco e o estatuto moral não dependem da espécie a que os
indivíduos pertencem, mas do facto de serem pessoas, e de, enquanto tal, terem interesses de um certo tipo. Possivelmente, ser
humano não é nem necessário nem suficiente para ter direitos. Se reconhecermos que o que justifica conceder direitos a
indivíduos não é a espécie a que pertencem mas os interesses que possam ter, nesse caso a questão sobre se devem ser
concedidos direitos a pós-humanos resolve-se facilmente. O «humanos» na expressão «direitos humanos» serve apenas para
salientar que as diferenças de raça, género e riqueza não são relevantes para apurar se tais direitos devem ser concedidos a
alguém. Se levarmos a sério a preocupação de alguns filósofos com outro tipo de preconceito ou discriminação — o
especismo —, o termo «humanos» terá de sair e «direitos humanos» passará a ser «direitos das pessoas».

Discussão: Acha que os direitos devem ser reservados aos seres humanos enquanto tal?

Um outro conjunto de objecções decorre das implicações sociais da prática comum do aperfeiçoamento. Normalmente, pensa-
se que algumas estratégias de aperfeiçoamento — como a engenharia genética — serão bastante dispendiosas, e que só os
mais abastados poderão delas beneficiar. Como consequência, as divisões sociais actuais tornar-se-ão ainda mais
intransponíveis. As pessoas com mais meios terão mais vantagens sobre as outras: uma saúde melhor, mais inteligência, mais
talentos, etc. Embora esta preocupação seja justificada, note-se que não constitui uma objecção ética ao aperfeiçoamento
enquanto tal, mas sim uma preocupação no que respeita à distribuição justa dos recursos. Se nos preocupamos em saber se os
aperfeiçoamentos serão justamente distribuídos, isto significa que estes são considerados uma coisa boa.
Há quem pense que a prática de submeter capacidades ao aperfeiçoamento e à engenharia genética conduzirá a uma revisão
total da nossa concepção de agência. Normalmente, os agentes têm uma certa liberdade de acção e são sujeitos ao elogio pelos
seus feitos ou à censura pelos seus fracassos. Porém, se o feito físico ou intelectual do agente é apenas marginalmente devido
ao seu esforço e à sua disciplina, e principalmente resultante de um fármaco poderoso, por exemplo, o feito pode já não
constituir uma boa razão para admirar o agente. O argumento pretende mostrar que a utilização generalizada de
aperfeiçoamentos pode conduzir a um sentimento de agência e de responsabilidade reduzidos. Para avaliar a força deste
argumento, torna-se necessário ser capaz de explicar o que as consequências da prática do aperfeiçoamento realmente
representam para a nossa concepção de agência. Em parte, trata-se de uma questão empírica. Sabemos como são as nossas
reacções psicológicas actuais ao consumo de drogas ilícitas pelos atletas: achamos que é fazer batota. Todavia, o cenário em
que é dada a oportunidade a todas as pessoas de melhorar a sua condição é significativamente diferente, e as nossas reacções
podem reflectir essa mudança. Não é de todo óbvio que perderíamos o sentimento de posse das nossas acções se as
capacidades que tornaram possível atingirmos algo desejável com as nossas acções tivessem sido aperfeiçoadas. Uma
consequência possível dos aperfeiçoamentos generalizados poderia ser um efeito de «subir a bitola», que pouco subtrairia aos
méritos dos feitos pessoais do indivíduo.
Dito isto, a objecção da agência reduzida parece promissora. Suponha que é um corredor e que quer aumentar a sua
velocidade em 20 por cento. Suponha também que há dois métodos para atingir este alvo: pode tomar um comprimido que
melhorará imediatamente a sua velocidade, ou pode treinar três horas por dia durante dois meses (note-se que estas estratégias
são ambas estratégias de aperfeiçoamento). Ora, pode ter uma razão moralmente relevante para preferir o método mais difícil.
Pode valorizar a autodisciplina e pensar que crescerá como pessoa se atingir esse objectivo, fazendo um esforço consciente
para aperfeiçoar o seu corpo durante dois meses. Pode achar que o sentimento de satisfação que teria no final do treino por ter
atingido o objectivo vale o tempo e o esforço requeridos. Porém, todas estas considerações de valor não significam que seria
não ético escolher a opção fáci.

Discussão: Em que outras circunstâncias o progresso científico pode afectar a justiça social e alterar a «condição
humana»?

Esta última objecção presta-se a mais considerações sobre tipos diferentes de aperfeiçoamento. No exemplo do corredor que
quer ver a sua velocidade aumentar em 20 por cento e tem uma escolha, ele pode treinar três horas por dia durante dois meses
ou tomar um comprimido. Qual das duas estratégias é a mais natural? «Natural» pode referir-se a: 1) dons naturais com que
nascemos e que não adquirimos; 2) características que consideramos normais, por oposição às que resultam da doença; 3)
características que se mantiveram inalteradas por oposição às que alterámos; 4) algo que pertence ao mundo da natureza e que
não foi processado ou manufacturado. Uma estratégia não é obviamente melhor que a outra. E verdade que um treino regular
pode não implicar qualquer dos processamentos artificiais que a preparação do comprimido pode envolver, mas não
parecemos objectar eticamente a este tipo de processamento artificial quando tomamos medicamentos ou consumimos
alimentos que não foram criados por nós. É claro que podemos preferir evitar um processamento excessivo e optar pelos
chamados remédios «naturais» ou por alimentos de cultivo próprio quando possível, mas estas preferências não seguem
necessariamente razões morais. Não pensamos que é moralmente errado comprar legumes num supermercado. E nenhuma
estratégia é natural dos outros pontos de vista. Ambas visam a alteração de uma característica (a velocidade a correr) que não
é inata, mas adquirida. E correr três horas por dia não é algo que as pessoas normalmente façam.
Pode haver estratégias de aperfeiçoamento cujo objectivo principal seja a prevenção de uma doença e o aumento da esperança
de vida, e estratégias de aperfeiçoamento que visem melhorar as capacidades cognitivas ou a aparência física. Embora muitas
pessoas pensem que há uma diferença intuitiva entre estes diferentes objectivos de aperfeiçoamento, é difícil traçar, de um
ponto de vista ético, uma linha divisória clara entre eles. Se não é errado desejar que o nosso filho seja mais saudável,
inteligente ou bonito, é difícil ver como poderia ser errado satisfazer esse desejo caso pudéssemos.
A diferença entre os vários objectivos ou finalidades do aperfeiçoamento assenta nos riscos que valeria a pena correr para
atingi-los. Enquanto poderia ser justificável correr riscos consideráveis para curar uma doença terrível ou para nos
protegermos da morte quase certa numa pandemia, seria difícil justificar a exposição dos nossos filhos a riscos simplesmente
para mudar a cor dos seus olhos ou fazer deles melhores jogadores de ténis.

6.2.3 Teremos a obrigação moral de proceder ao aperfeiçoamento?

Tendo em conta os aspectos deste debate que até agora explorámos, há pelo menos três posições que podiam ser defendidas
com base na aceitação da ideia da condição danosa e do continuum dano-benefício. Na perspectiva do dever moral claro para
conferir benefícios, não importa quão ligeira a deficiência seja ou insignificante o aperfeiçoamento, os pais têm razões fortes,
que são sempre razões morais, para minimizar o dano ou conferir benefícios à pessoa a quem vão dar a vida (sujeitas, claro
está, a um método seguro para atingi-lo, e à natureza benéfica inequívoca dos efeitos propostos).
Numa perspectiva em que se estabelece um limiar, os pais têm razões morais fortes para impedir uma condição incapacitante
ou para proceder a um melhoramento só quando ao não fazê-lo estão a causar danos consideráveis aos seus filhos. No contexto
das escolhas reprodutivas, as acções dos pais deixam de ser moralmente neutras e tornam-se sujeitas à aprovação ou
condenação moral quando produzem efeitos significativos na pessoa a quem vão dar a vida em condições prejudiciais que
podem ser impedidas, ou outras condições que podem ser melhoradas. Se a desvantagem causada por não impedir uma
condição incapacitante ou não melhorar outra condição se situa abaixo de um certo limiar, nesse caso não há razões morais
para agir. Todavia, se a desvantagem for significativa, há razões morais para agir.
Na perspectiva da escala móvel, todas as acções estão sujeitas ao escrutínio moral e não apenas aquelas que produzem efeitos
significativos em termos de benefícios e danos para pessoas futuras. A ideia é que os pais têm sempre razões morais fortes
para o aperfeiçoamento e impedir a deficiência, mas que há uma diferença importante entre a opção do dever moral claro e a
escala móvel. Na primeira, conferir benefícios ou impedir danos está certo, e não conferir benefícios ou causar dano está
errado, não importa quão ligeira a deficiência seja ou importante o aperfeiçoamento. A razão para agir é uma razão moral, e o
grau de valorização ou condenação das nossas acções varia juntamente com o grau de benefício conferido ou dano impedido.
Por conseguinte, as razões para impedir as condições incapacitantes causadas pela holoprosencefalia têm um impacto moral
muito maior do que as razões para aumentar a inteligência em 15 por cento, por exemplo. Não estamos a falar do grau da força
das razões motivadoras — que podem obviamente variar igualmente nas três opções descritas —, mas do facto de serem
razões morais antes de mais.

Discussão: Qual das posições descritas estaria preparado para defender? E porquê?

Uma vantagem da opção do dever moral claro é que é uma opção coerente e simples, que parece ser compatível com a nossa
concepção de deficiência como uma condição prejudicial e com o continuum dano-benefício. O problema desta opção é que
do ponto de vista moral algumas distinções que muitas pessoas acham intuitivamente fortes (a distinção entre o impedimento
da deficiência grave e o aperfeiçoamento para benefícios menores) não são transparentes.
A posição do limiar tem dois problemas graves. Um deles é epistemológico. Nunca é fácil medir quão prejudicial ou benéfica
uma condição é, pois isso nem sempre pode ser feito fora do contexto ou intersubjectivamente. Este tipo de cálculo torna-se
ainda mais difícil quando aplicado a futuras pessoas, cujos interesses e inclinações ignoramos. A perda de um dedo pode ser
mais significativa para alguém que poderia desenvolver a ambição de se tornar um grande pianista do que para alguém que
não teria interesse algum em tocar instrumentos musicais, ainda que seja incapacitante para ambos. O outro problema é se esta
opção é realmente compatível com o continuum dano-benefício. Se reconhecemos que uma condição é prejudicial para
alguém, parece seguir-se que há razões morais para impedir tal condição independentemente do grau do dano. Poderão as
acções que visam impedir o dano ser moralmente neutras?
A opção da escala móvel tem alguns dos problemas epistemológicos que afectam a opção do limiar, mas no geral é mais
compatível com o continuum dano-benefício. O que parece pouco atraente nesta opção é a conclusão de que algumas razões
para agir só podem ser parcialmente morais. Embora seja perfeitamente razoável defender que podemos ter várias razões
para agir de uma certa maneira, já é mais difícil acreditar que cada uma das nossas razões para agir é apenas parcialmente
uma razão moral.

Exercício: Aplique as considerações que antes discutimos (as repercussões sociais de um novo desenvolvimento científico
ou de uma nova tecnologia na distribuição justa dos recursos, por exemplo) a um caso de um outro objectivo eticamente
controverso de um programa de investigação científica (tratamentos para prolongar a vida, por exemplo).

6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação

Quando pensamos na maneira como a investigação é conduzida e nas consequências da concepção e do cenário experimentais
para os participantes na investigação, entram em jogo outras questões. Há razões morais para nos certificarmos de que o bem-
estar e a autonomia das pessoas são tidos em conta, e de que não se causam danos desnecessários aos indivíduos.

6.3.1 A abordagem à ilusão na psicologia

Será ético iludir os participantes numa investigação em psicologia social? Muitos autores defenderam que não (Kelman 1967;
Bok 1999), e que os códigos de ética existentes — que permitem o uso da ilusão em algumas circunstâncias experimentais —
precisam de ser revistos (Clarke 1999; Herrera 1999; Pittinger 2003). Será que o uso da ilusão deve ser interditado na
investigação em psicologia social? Os que defendem a legitimidade do seu uso argumentam que os potenciais danos infligidos
aos participantes não são graves se os constrangimentos promulgados pelos códigos de conduta actuais forem respeitados, e
que os potenciais benefícios que as experiências podem proporcionar aos próprios participantes e à sociedade em geral têm
uma grande importância ética.
No que se segue passaremos em revista alguns dos argumentos a favor e contra o uso da ilusão na investigação psicológica. Os
códigos deontológicos da American Psychological Association (APA) e da British Psychological Association (BPS) permitem
o uso de métodos que façam uso da ilusão, ou dissimulação, em experiências psicológicas, mas também impõem limites ao uso
de tais métodos, e exigem que sejam cumpridas certas condições na sua utilização. Embora haja diferenças nas recomendações
feitas nos dois códigos, ambos requerem que a ilusão só seja usada quando:

1. Não há outros procedimentos eficazes para obter os resultados experimentais desejados.


2. Se espera que os resultados sejam muito significativos.
3. Não é causado dano físico ou perturbação grave aos participantes na investigação.

Recomenda-se que os experimentadores relatem aos participantes na investigação, o mais imediata e cautelosamente possível
após a experiência, toda a informação relevante sobre a estrutura, a finalidade e o valor da experiência. Para todos os
pormenores, sugerimos que consulte o artigo 8.07 do APA Ethical Principies of Psychologists and Code of Conduct (2002), e
o BPS Ethical Principies for Conducting Research with Human Participants (1992) [Poderá consultar o Código Deontológico da
Ordem dos Psicólogos Portugueses em: https://www.ordemdospsicologos.pt/pt/cod_ deontologico#.Ubo8oPn2Z8E. - N. do T.]

Exercício: Haverá situações experimentais em que as condições 1, 2 e 3 não podem ser satisfeitas mas em que o uso da
ilusão metodológica pode ser justificado?

Pese embora os vários constrangimentos impostos por estes códigos profissionais ao uso da ilusão na investigação
psicológica, alguns comentadores sugeriram que os participantes na investigação não estão suficientemente protegidos dos
possíveis danos da ilusão, e que os códigos deviam ser revistos em conformidade (Ortmann e Hertwig 1997; Pittinger 2002).
Ora, quais são os argumentos contra o uso constrangido da ilusão em psicologia?

6.3.2 Objecções à ilusão metodológica

Em muitos casos, a finalidade dos métodos que fazem uso da ilusão em psicologia é assegurar que os participantes na
investigação não se apercebem do aspecto do seu comportamento ou da sua psicologia que está a ser estudado. A lógica
metodológica subjacente é que saber que alguém está a estudar como nos comportamos em certas circunstâncias pode afectar,
e frequentemente afecta, a maneira como nos comportamos em tais circunstâncias. Porém, o uso generalizado da ilusão na
investigação psicológica pode ser metodologicamente contraproducente. Se a ilusão fosse usada na maioria das experiências
de uma disciplina e se os potenciais participantes nas experiências estivessem cientes deste facto, qualquer experiência na
disciplina geraria desconfiança nos participantes. Estes tentariam avaliar de antemão o experimentador, o que tornaria os
resultados experimentais muito difíceis de interpretar. Será que os resultados indicariam como as pessoas normalmente se
comportam, ou como se comportam quando tentam avaliar de antemão um experimentador?
Herbert Kelman (1967) chamou a atenção para esta possibilidade numa época em que o uso da ilusão não era tão
minuciosamente regulamentado como hoje. Contudo, graças em parte aos constrangimentos ao uso da ilusão promulgados
pelos códigos deontológicos antes mencionados, apenas algumas das experiências conduzidas por psicólogos para estudar o
comportamento humano a envolvem. Por este motivo, o risco de a ilusão se tornar uma estratégia contraproducente por razões
metodológicas é, de momento, extremamente reduzido.
O argumento mais influente contra o uso da ilusão na investigação psicológica será provavelmente o de que viola a autonomia
pessoal dos participantes enganados, e que a autonomia pessoal dos participantes na investigação nunca deve ser violada.
Pode ser desenvolvido criando uma analogia entre a investigação psicológica e outros exemplos de investigação científica que
envolve seres humanos, como a investigação biomédica. Se a investigação psicológica com seres humanos se tem de
conformar às mesmas directrizes que se aplicam, por exemplo, à investigação biomédica, nesse caso o princípio do respeito
pela autonomia pessoal exige o consentimento informado dos participantes na investigação no que respeita aos procedimentos
experimentais. Nos estudos que implicam o uso da ilusão, os participantes permanecem no desconhecimento de pormenores
importantes da investigação em que tomam parte, e por conseguinte não são completamente informados. Podem estar
enganados no que respeita ao verdadeiro objectivo da investigação, ou ao papel desempenhado por outros actores no cenário
experimental.
O argumento que estamos a considerar tem duas versões, uma mais forte e outra mais fraca. A versão mais forte diz que a
ilusão viola sempre a autonomia pessoal dos participantes na investigação, e que por isso devia ser sempre interditada em
situações experimentais, uma vez que deve procurar-se sempre um consentimento totalmente informado. A versão mais fraca,
ao invés, chama atenção para o facto de na investigação biomédica haver circunstâncias nas quais o potencial sujeito é incapaz
de dar ou de negar o consentimento no que respeita à sua participação numa dada experiência. Isto pode suceder quando o
sujeito é um paciente inconsciente ou gravemente doente, por exemplo. Nestes casos, é possível e legítimo pedir o
consentimento em nome do paciente a um representante legal ou a um familiar próximo, depois de ter sido proporcionada
informação sobre os pormenores do protocolo da investigação e sobre o papel que nela terá o paciente. Trata-se de uma forma
de consentimento informado indirecto. Por conseguinte, na investigação biomédica, o consentimento informado directo nem
sempre é necessário para que a autonomia pessoal do sujeito seja respeitada. De acordo com esta perspectiva, o mesmo se
aplicaria à investigação psicológica. Se a obtenção do consentimento informado directo comprometesse o valor dos resultados
experimentais, poder-se-ia procurar o consentimento informado indirecto; caso não fosse possível dispor de algum dos tipos
de consentimento, a experiência não seria conduzida.

Exercício: Saber se o consentimento informado é a melhor forma de proteger a autonomia pessoal é uma questão
controversa, mesmo no contexto da investigação biomédica. Quais poderiam ser os argumentos contra esta ideia?

A desanalogia entre o caso da investigação biomédica e o caso da investigação psicológica é digna de nota. A razão por que o
consentimento informado directo não é por vezes uma opção possível no caso biomédico é que os participantes não podem dar
o seu consentimento (devido ao seu estado de saúde ou à ausência de capacidade). Quando consideramos a psicologia, a razão
prende-se com uma necessidade metodológica, com o facto de que informar o participante na investigação sobre a natureza da
experiência invalidaria a mesma. Para que a versão mais fraca do argumento seja aceite, temos de admitir que a diferença
entre os dois casos é irrelevante no que respeita aos requisitos do princípio do respeito pela autonomia pessoal.
Poder-se-ia argumentar que, uma vez as medidas já em vigor, tal é suficiente para garantir o respeito pela autonomia pessoal
dos participantes na investigação: estes são informados antes da experiência sobre o possível uso da ilusão, são esclarecidos
com tacto sobre a investigação após a experiência ter sido conduzida, e têm sempre a opção de a abandonar a qualquer
momento. O facto de os participantes poderem não estar na posse de todos os pormenores relevantes sobre a finalidade, a
concepção ou o cenário experimentais não implica que o princípio do respeito pelas pessoas seja posto de parte ou violado.
De acordo com Alan Elms (1982), é provável que o uso da ilusão na investigação psicológica cause dano não só aos
participantes na investigação enganados, como também aos investigadores e à sua profissão. Os investigadores podem tornar-
se moralmente corruptos como resultado do emprego de estratégias que fazem uso da ilusão, e o conhecimento público da
existência de tais estratégias pode enfraquecer a confiança nos investigadores em geral. Porque é que o princípio da
confidencialidade é tão importante na medicina? Não o é só porque serve para proteger o direito à privacidade dos doentes,
mas também porque ajuda a criar e a manter boas relações entre os doentes e os clínicos. Da mesma maneira, a transparência
pode ajudar a aumentar a confiança por parte do público em geral nos psicólogos experimentais, e também pode contribuir
para atrair mais apoio para as suas investigações. Nesta perspectiva, uma consequência a longo prazo do uso generalizado da
ilusão em áreas sensíveis poderia ser a desconfiança por parte do público nos psicólogos em particular e nos cientistas em
geral. Se a relação de confiança entre os potenciais sujeitos experimentais e os experimentadores é sistematicamente violada,
os experimentadores podem acabar por ficar com má reputação, e o número de pessoas que desejam participar na investigação
psicológica — e financiar instituições que a promovem, seja através de donativos ou dos impostos — pode diminuir (Lawson
2001).
Também se pode objectar à ilusão metodológica considerando que os experimentadores que dela fazem uso se arriscam a
tornar-se moralmente corruptos. Todavia, eles sabem que a ilusão é um instrumento metodológico. O seu motivo para a
utilizarem é simplesmente o desejo de conduzir experiências metodologicamente robustas. Ao contrário de outras formas de
engano humano, não há uma motivação «malévola» por detrás do uso do engano experimental. Neste contexto, a ilusão não é
motivada pelo desejo de defraudar alguém, ou de obter uma vantagem injusta sobre alguém, etc. A sua natureza puramente
metodológica torna improvável que a ilusão metodológica produza algum efeito sobre as personalidades ou as inclinações
morais dos experimentadores.

Exercício: É capaz de dar exemplos de outros contextos nos quais o uso da ilusão é aceite?

O risco de a ilusão experimental manchar a reputação da psicologia será também reduzido se as experiências forem
conduzidas de uma maneira profissional. Se as pessoas em geral e os participantes nas experiências psicológicas em
particular compreenderem que a ilusão experimental é apenas um instrumento metodológico indispensável e não o resultado de
um desejo «malévolo» da parte do experimentador, não é provável que se crie algum sentimento de desconfiança para com os
investigadores. Isto é assim especialmente se, como as directrizes actuais especificam, após a experiência ter sido concluída,
os participantes na investigação forem informados sobre as razões por que a experiência foi conduzida, por que foi
metodologicamente necessária alguma forma de ilusão neste caso particular, e sobre o valor potencial dos resultados
experimentais esperados. Os participantes devem ser escrupulosamente informados sobre como foram evitados riscos, deve
ser-lhes permitido fazerem perguntas e devem ser tranquilizados no que respeita ao valor da investigação. Isto gerará
frequentemente um sentimento de satisfação por terem contribuído para a obtenção de resultados importantes. Além disso, e
como veremos, mesmo quando o que os participantes ficam a conhecer sobre si mesmos é perturbador, esses potenciais efeitos
prejudiciais podem ser mitigados pela compreensão de que a forma de comportamento por eles apresentada durante a
experiência não é de todo uma ocorrência isolada.

6.3.3 Benefícios da ilusão metodológica

Todo o debate sobre se o engano é moralmente permissível resultou de uma reflexão sobre as consequências potencialmente
prejudiciais do seu uso nos participantes em investigações. O exemplo clássico citado no contexto de uma discussão dos
potenciais efeitos psicológicos prejudiciais a longo prazo é a famosa experiência conduzida por Milgram sobre a tendência
das pessoas para obedecerem à autoridade. Quando os participantes nesta experiência foram recrutados, foi-lhes dito que iam
fazer parte de um estudo sobre a memória e sobre o modo como a punição afecta a aprendizagem. No laboratório, era dito a
cada participante que ele ou ela tinha de desempenhar o papel do «professor» e que outro participante na sala tinha de
desempenhar o papel do «aluno». O participante genuíno desconhecia que na realidade o aluno era cúmplice do
experimentador. Era suposto o professor fazer perguntas ao aluno e, no caso de as respostas estarem erradas, administrar
choques eléctricos de uma voltagem progressivamente mais elevada mediante um dispositivo electrónico simples. O
participante desconhecia que na realidade o aluno não recebia choque eléctrico algum. O aluno só fingia que sentia dor quando
o participante «administrava» o choque eléctrico, e as suas manifestações de dor eram proporcionais à voltagem do choque
eléctrico que o participante julgava administrar. No geral, quando as queixas de dor do aluno se tornavam relativamente
pungentes, os participantes manifestavam o seu mal-estar com o que (julgavam que) acontecia ao aluno. Muitos pediram ao
investigador para parar a experiência. Em resposta a tais pedidos, o experimentador exigia obediência, insistindo que era
muito importante que o professor seguisse as instruções independentemente de quão altos fossem os gritos do aluno. No final,
65 por cento dos participantes infligiram (o que julgavam ser) choques eléctricos da voltagem mais elevada ao seu respectivo
aluno, pese embora as súplicas deste para parar (Milgram 1974).

Discussão: Acha que foi não ético conduzir a experiência de Milgram?

Actualmente, muitos comentadores consideram a experiência de Milgram um exemplo paradigmático do uso não ético da
ilusão na investigação psicológica. Os participantes foram iludidos sobre a finalidade da experiência e sobre o papel dos
experimentadores e dos alunos. Além disso, foram colocados numa situação deveras angustiante devido ao facto de os
experimentadores lhes ordenarem que seguissem as instruções apesar do seu mal-estar. Após o esclarecimento, os
participantes tiveram de lidar com o conhecimento do facto de terem sido capazes, sob a influência da autoridade, de infligir
uma dor considerável a seres humanos inocentes. As directrizes para os esclarecimentos pós-investigação de então não eram
como as de hoje, e é possível que muitos participantes não tenham recebido uma explicação adequada sobre a natureza da
experiência e a sua razão de ser. É possível que o esclarecimento então apresentado não tenha ajudado todos os participantes
a lidar com o incómodo psicológico gerado pela tomada de consciência do que tinham feito.
Considera-se frequentemente que a experiência de Milgram causou danos psicológicos significativos aos participantes na
investigação. Todavia, o grau dos danos efectivamente causados aos participantes permanece controverso. Elms (1982), que
trabalhou nos bastidores da experiência e entrevistou os participantes após a mesma, afirma que os danos sofridos foram
surpreendentemente reduzidos dado o que esperava depois de ter testemunhado as suas reacções durante a experiência. Para
ele, a experiência tinha sido angustiante, mas não mais do que um filme emotivo ou uma entrevista de emprego decepcionante.
Saber se a experiência produziu danos psicológicos significativos nos participantes é uma questão empírica difícil, uma
questão que não pode ser respondida apelando a intuições não testadas ou a observações casuais. Efectivamente, foi para
responder a este tipo de questões que a psicologia experimental foi criada. E muito provável que seja uma daquelas questões a
que só se pode responder recorrendo a métodos que fazem uso da ilusão em cenários experimentais. Na realidade, não
sabemos se experiências do tipo da de Milgram produzem danos psicológicos significativos e a longo prazo nos participantes.
Se o fazem, nesse caso há razões morais para não as conduzir. Mas se as experiências não produzem quaisquer danos
psicológicos significativos, tais razões morais já não se aplicam. Além disso, a existência de razões morais contrárias à
condução de uma experiência é compatível com a existência de razões morais a favor da condução da experiência. Por
conseguinte, o facto de algumas experiências que fazem uso da ilusão gerarem algum nível de stress psicológico nos
participantes não implica por si só que tais experiências devam ser interditadas.
Que razões morais pode haver a favor de conduzir tais experiências? A ilusão no que respeita à finalidade principal da
experiência é usada para evitar o chamado «efeito de Hawthorne», ou seja, a tendência do participante na investigação para se
comportar de acordo com o que pensa que são as expectativas do experimentador (Gillespie 1991). Na psicologia social,
contudo, onde muitas vezes o objecto da investigação é uma forma de comportamento indesejável, pode ocorrer o efeito
contrário. Por exemplo, se os participantes na investigação são informados de que o objecto da experiência é o
comportamento agressivo, podem ficar inibidos e tentar activamente evitar um comportamento agressivo enquanto a
experiência durar.
Os indícios da psicologia sugerem que os dados fiáveis sobre o modo como as pessoas se comportam em certas situações não
podem ser obtidos perguntando-lhes simplesmente como se comportaram ou como se comportariam em situações semelhantes.
As pessoas estão frequentemente enganadas no que respeita às suas tendências comportamentais, e a forma como se descrevem
ou como revêem as descrições de si mesmas com base em indícios são normalmente tendenciosas devido ao seu desejo
(inconsciente) de corresponder a este ou àquele perfil particular. Daqui segue-se que há circunstâncias nas quais é
praticamente impossível estudar um fenómeno sem fazer uso de alguma forma de ilusão. Suponhamos que estamos a estudar o
comportamento de ajuda em situações de emergência. O que as pessoas dizem sobre o que fariam em situações de emergência
diz-nos muito pouco sobre o que realmente fariam em tais situações. É que as emergências reais não acontecem quando se
quer, nem é permissível provocá-las intencionalmente. Por conseguinte, o comportamento de ajuda em situações de
emergência só pode ser estudado mediante emergências simuladas, e estas são uma forma de ilusão. Consideremos a
experiência do Bom Samaritano (Darley e Batson, 1973), na qual os investigadores quiseram mostrar que o comportamento
altruísta é afectado por factores externos e contextuais e não por traços de personalidade. Darley e Batson pretenderam
mostrar que quando as pessoas estão com pressa é muito menos provável que ofereçam a sua assistência em situações de
emergência, independentemente da sua personalidade. Criaram uma experiência na qual era dito a alguns seminaristas que
tinham de chegar a um edifício a toda a pressa para cumprirem uma tarefa (é irónico que se aluda à história do Bom
Samaritano). A caminho do edifício, os participantes encontravam um homem caído num beco, mas a maior parte deles não
parou para o ajudar. Aqueles que pensavam que estavam atrasados apresentaram um comportamento menos altruísta do que os
que não estavam tão apressados.
Por outras palavras, há muitas situações experimentais nas quais a ilusão é metodologicamente necessária para se obter
resultados fiáveis. Mas isto não significa só por si que neste contexto a ilusão seja moralmente permissível. Como os
geneticistas muito bem sabem, as experiências reprodutivas controladas (por oposição às naturais) seriam metodologicamente
necessárias para se obter dados fiáveis sobre os efeitos dos genes humanos nos fenótipos humanos. Pese embora isto, tais
experiências não são moralmente permissíveis. Para se determinar se a ilusão experimental é moralmente permissível, temos
de determinar quais são os seus benefícios morais e os seus custos morais, e depois julgar se os benefícios pesam mais que os
custos.

6.3.4 A ilusão na psicologia e além da psicologia

Um argumento presente na literatura diz que, dado que o uso da ilusão é generalizado na vida de todos os dias e noutras áreas
de investigação, não devia ser interditado na psicologia social. Há quem tenha defendido que uma vez que o uso da ilusão é
tão generalizadamente aceite na pesquisa de mercado e nos mercados laborai e imobiliário, também devia ser aceite na
investigação em psicologia social, pois não há boas razões para aplicar critérios diferentes aos dois casos (Kimmel 2001;
Riach e Rich 2004).
Contudo, não é suficiente defender que a ilusão é usada numa série de outros contextos para mostrar que o seu uso na
psicologia social é justificado. Antes de mais, devem ser feitas comparações mais subtis para determinar se o uso da ilusão na
investigação em psicologia social é significativamente semelhante ao uso da ilusão na pesquisa de mercado e nos mercados
laborai e imobiliário no que respeita às variantes relevantes (o peso dos custos e dos benefícios, etc.). Além disso, o facto de
uma prática ser generalizadamente aprovada ou tolerada não a torna eticamente justificada. Não obstante, há casos em que
pode ser feita uma analogia proveitosa entre o uso da ilusão na psicologia social e o uso da ilusão noutras áreas.
As considerações éticas a favor da ilusão provêm de uma perspectiva utilitarista. Muitas experiências de valor que envolvem
a ilusão não causam mal-estar ou dano algum aos participantes na investigação. Nas experiências que causam algum grau de
mal-estar ou dano, há muitos casos em que a importância dos resultados pesa mais que a importância do potencial malestar ou
dano causados aos participantes. Na psicologia social, uma investigação metodologicamente sólida que requeira alguma forma
de ilusão pode ter uma grande utilidade quer para os participantes envolvidos, quer para a sociedade em geral. Uma boa
investigação pode contribuir para identificar alguns padrões comportamentais que afectam negativamente tanto a pessoa que os
apresenta como as que a rodeiam e que experienciam esse comportamento. O conhecimento de tendências comportamentais
potencialmente prejudiciais pode ajudar a desenvolver estratégias para evitar os seus efeitos nocivos.
Os resultados da investigação em psicologia social não ajudam apenas os cientistas sociais a compreender melhor o
comportamento humano e a forma como as sociedades humanas funcionam. Também aumentam a autoconsciência de cada
pessoa que participou na investigação. Relembremos os famosos estudos de Stanley Milgram sobre a obediência à autoridade.
Não é difícil ver o valor potencial dos resultados experimentais que Milgram obteve, especialmente se considerarmos o
contexto histórico no qual ele veio a interessar-se pela obediência. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram muitas questões
acerca dos mecanismos psicológicos e sociais que levaram um grande número de pessoas a envolverem-se em actividades de
limpeza étnica. Milgram queria testar a sua hipótese de que as pessoas têm tendência para obedecer à autoridade mesmo
quando as acções que lhes pedem para executar vão contra alguns dos seus valores mais profundamente pessoais. Os seus
resultados tornaram consciente na comunidade científica e em alguns sectores do público em geral que a influência da
autoridade pode levar uma pessoa a agir de uma maneira que ela própria acha errada ou imoral. Isto é importante, pois tal
consciência pode ajudar as pessoas e as sociedades a impedir que acontecimentos como o Holocausto ocorram no futuro.
Como antes referimos, se é provável que uma experiência cause algum mal-estar ou dano aos participantes, há razões morais
fortes contra a condução da experiência. Mas quando o dano e o mal-estar para os participantes não são graves, as razões
morais a favor da condução da experiência podem pesar mais. Pode argumentar-se que, se o dano psicológico infligido ao
participante na investigação ultrapassa um dado limiar, a experiência não é moralmente justificada. E pode-se chegar a esta
conclusão independentemente dos potenciais benefícios para o participante na investigação ou para a humanidade como um
todo, pois a condução da experiência constituiria um acto de injustiça contra o participante. Este argumento restringe o cálculo
utilitarista dos custos e benefícios de certas experiências ao dizer que os custos para o participante na investigação não podem
exceder um dado limiar. Porém, o argumento não implica que deve haver uma interdição generalizada do uso da ilusão nas
experiências. Ao invés, em vez de uma interdição da ilusão, sugere que deve ser identificado um limiar sensato para o dano
psicológico ao participante na investigação, e que devem ser concebidas regulamentações que assegurem que esse limiar
nunca é ultrapassado. É interessante notar que os códigos deontológicos existentes insistem que uma experiência nunca deve
ser conduzida se for provável que cause danos psicológicos graves ao participante. Ou seja, as regulamentações existentes
tentam assegurar o não franqueamento de um limiar sensato de dano e, por isso, parecem estar em conformidade com a
proposta que discutimos.
O estudo dos preconceitos e das atitudes tendenciosas contra indivíduos de uma raça, género, idade, preferência sexual ou
aparência física particulares pode ajudar a detectar aspectos do comportamento humano que causam uma discriminação
injusta, que os indivíduos e a sociedade podem depois tentar controlar ou alterar. É por esta razão que os resultados nesta área
de investigação têm tanto valor. Os dados sobre as tendências comportamentais relevantes podem ser obtidos em situações
laboratoriais, bem como em campo.
As implicações do uso da ilusão no laboratório de psicologia levantam muitas questões. Haverá algum interesse importante do
participante na investigação que os investigadores retêm fazendo primeiramente uso da ilusão e só depois relatando os
resultados do seu estudo? Adquirir conhecimento sobre os nossos próprios traços psicológicos negativos pode ser
perturbador. Partindo do princípio de que as pessoas estão interessadas em evitar situações psicologicamente perturbadoras,
segue-se que os participantes na investigação estão interessados em não adquirir conhecimento sobre os seus próprios traços
psicológicos negativos, e por isso estão interessados em não ser iludidos por investigadores que pretendem identificar e
estudar traços psicológicos negativos. Porém, a existência deste interesse por si só não mostra que o uso de métodos que
fazem uso da ilusão em experiências psicológicas é ilegítimo ou eticamente problemático. Nem todos os interesses são
legítimos e nem todos os interesses têm a mesma importância ética. Um preconceito contra candidatos a um emprego com
excesso de peso gera uma vantagem injusta a favor dos candidatos com um peso normal. Além disso, o preconceito prejudica
as empresas, uma vez que leva os empregadores a preferir contratar pessoas menos competentes com um peso normal em vez
de pessoas mais competentes com excesso de peso. Os empregadores que estão cientes da existência deste preconceito podem
ser capazes de evitar a rejeição injusta dos candidatos com excesso de peso. Desta forma, podem ser capazes de melhorar a
eficácia do processo de recrutamento e as possibilidades de êxito da sua empresa, bem como contribuir positivamente para a
justiça social. O conhecimento da existência do preconceito também pode ser útil na criação de legislação antidiscriminatória
e de outros mecanismos correctivos. Por conseguinte, o interesse que os participantes na investigação podem ter em
permanecer ignorantes no que respeita aos seus preconceitos discriminatórios inconscientes relativos a pessoas com excesso
de peso é menos eticamente importante do que os interesses que eles e a sociedade em geral têm em saber da existência de tais
preconceitos.
Também se pode objectar à importância ética dos interesses dos participantes na investigação a partir de uma perspectiva
diferente. É possível que para algumas pessoas e em algumas circunstâncias, estar ciente dos seus próprios preconceitos,
limitações ou outros traços psicológicos negativos possa resultar numa diminuição da auto-estima e ter consequências
negativas na sua felicidade futura. No geral, porém, se os resultados experimentais forem adequadamente explicados e
compreendidos, é pouco provável que tal aconteça.
Antes de mais, deve considerar-se que, nos casos que discutimos e em muitos outros casos semelhantes, os traços psicológicos
negativos detectados pelos investigadores estão presentes num sector muito vasto da população. Por outras palavras, tais
traços são estatisticamente normais. Além disso, saber que alguém tem uma tendência para cometer certos tipos de erros de
raciocínio ou para se envolver em certos tipos de comportamento discriminatório pode ter um efeito positivo na concepção de
si mesmo. Este conhecimento dá às pessoas a possibilidade de tentar vencer as suas limitações. E o facto de uma pessoa estar
em melhor posição para vencer as suas próprias limitações pode melhorar e não piorar a sua auto-estima.
Alguns autores defenderam que os métodos dissimulados e que fazem uso da ilusão podem ser aceitáveis no jornalismo de
investigação e nas actividades policiais, militares e de espionagem, mas não na investigação das ciências sociais, pois o
cientista social tem mais responsabilidade do que o resto da comunidade (Erikson 1967, p. 367). Muito embora haja
diferenças relevantes entre a investigação em psicologia social e, por exemplo, o jornalismo de investigação, diferenças essas
que podem afectar a justificação ética dos métodos usados em tais actividades, o uso da ilusão nas experiências da psicologia
social pode ser efectivamente considerado menos eticamente problemático do que o uso da ilusão em pelo menos alguns
desses outros contextos.
Centremo-nos no caso do jornalismo de investigação. Uma razão por que a ilusão é entendida por algumas pessoas como mais
problemática quando ocorre na investigação em psicologia social do que quando ocorre no jornalismo de investigação pode
ter a ver com o facto de (pelo menos no entender das pessoas) os potenciais benefícios da psicologia experimental produzirem
menos impacto do que os do jornalismo de investigação. Todavia, mesmo se frequentemente os resultados da investigação
psicológica não têm o mesmo potencial de primeira página que as descobertas do jornalismo de investigação, podem ser tão
ou mais benéficos para a sociedade do que os do melhor jornalismo de investigação. Por conseguinte, aqueles que concordam
que a ilusão é um instrumento legítimo num jornalismo de investigação profissional também deveriam concordar que a ilusão é
um instrumento legítimo em experiências psicológicas bem conduzidas.
Primeiramente, a conduta dos investigadores de psicologia social é mais rigorosamente controlada do que a conduta dos
jornalistas disfarçados. A razão para tal é que, de acordo com as normas actuais, os investigadores são obrigados a obter a
permissão de comissões de ética para avançar com as suas experiências, e têm de ser autorizados pelos próprios participantes
a utilizar os dados gerados por cada um deles, aquando do esclarecimento pós-investigação. Ao contrário, presentemente não
existem comissões de ética com o propósito de examinar as investigações do jornalismo de investigação antes de serem
conduzidas, e de detê-las quando necessário — ainda que os jornalistas sejam passíveis de processo judicial se invadirem
propriedade privada e se se envolverem noutras actividades semelhantes. Deve notar-se também que, mesmo quando os
investigadores causam alguma perturbação psicológica aos participantes na investigação, na realidade estão a beneficiá-los ao
permitir-lhes descobrir alguns dos seus traços psicológicos e ao dar-lhes a oportunidade de passar a ter alguma forma de
controlo sobre tais traços. O mesmo não se aplica aos jornalistas do jornalismo de investigação, cujo propósito é normalmente
mostrar que alguém tem conhecimento de que está a fazer algo que não devia ser feito.

Exercício: Consegue dar outros exemplos de casos concretos nos quais os princípios do respeito pela autonomia pessoal e
da beneficência poderiam entrar em conflito?

Discussão: Acha que a investigação científica devia ser regulada mais apertadamente do que as outras actividades
humanas?

6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica

Já vimos como as questões éticas podem surgir tanto dos objectivos como dos métodos da investigação científica. Será que a
investigação devia ser regulada de uma forma que a diferenciasse das outras actividades humanas?
Olhando para as várias razões que militam a favor da regulação ética da investigação, torna-se claro que as questões éticas
podem surgir em quase toda a actividade de investigação, mas o modo como as actividades de investigação afectam os
interesses e os direitos dos indivíduos envolvidos podem variar consideravelmente. Contudo, da mesma maneira que há
exemplos perfeitamente respeitáveis de investigação científica que não parecem ser candidatos à regulação ética, também
parece haver actividades que não são consideradas investigação e que são moralmente problemáticas (como os inquéritos
exaustivos com finalidades políticas que envolvem dados pessoais sensíveis).
Aparentemente, o grupo de actividades que levanta questões éticas e que precisa de regulação ética não coincide com o grupo
das actividades que são consideradas investigação. A razão para tal será presumivelmente que o que realmente importa de um
ponto de vista ético é que os direitos dos indivíduos envolvidos na actividade sejam salvaguardados e que os seus interesses
sejam escrupulosamente tidos em consideração. Quando pensamos nas actividades que devem ser reguladas pela ética, a
questão principal não deve ser se são consideradas investigação científica de acordo com alguma proposta de demarcação,
mas se é provável que os interesses e os direitos dos indivíduos sejam afectados. Outra maneira de abordar a questão é dizer
que de um ponto de vista ético algumas actividades deviam ser avaliadas como a investigação, mesmo que não tenham como
objectivo aumentar o conhecimento por meio de um método cientificamente aceitável. Isto não significa que sejam
investigação, mas que devem ser monitorizadas devido aos efeitos que podem produzir.
Vou exemplificar esta ideia. O uso de fármacos inovadores não validados num cenário terapêutico pode não ser considerado
investigação se a contribuição sistemática para um corpo de conhecimento não for a sua finalidade principal. Contudo, em
alguns casos, a avaliação ética pode ser apropriada. Se os riscos são elevados, é defensável que uma comissão independente
avalie cuidadosamente o uso de fármacos não validados mesmo que isto não seja considerado investigação. A liberdade de
escolha terapêutica é um dos principais elementos da profissão médica. Todavia, se os médicos fazem uso de um
procedimento não estandardizado que pode ser perigoso para o paciente, a sua actividade pode ser tão eticamente
problemática como um exemplo de investigação. Os médicos podem ser irrealistas na sua avaliação e, como resultado, causar
dano desnecessário.
Da mesma maneira, se pensamos que alguns animais não humanos merecem consideração moral directa e não devem ser
confinados nem lhes deve ser infligida dor desnecessariamente, a investigação que os envolve deve ser regulada de modo a
reduzir o potencial para frustrar tais interesses básicos. Porém, outras actividades humanas que envolvem animais (como a
agricultura intensiva, por exemplo) também devem ser reguladas na mesma base. O mero facto de outras actividades humanas
não serem consideradas exemplos de investigação não deve isentá-las de regulação ética.

Resumo
Neste último capítulo focámos um aspecto da relação complexa entre a ciência e o resto da sociedade: a questão de saber se
os objectivos da investigação científica actual e se os procedimentos através dos quais estes objectivos são perseguidos
devem ser restringidos pela regulação ética. Explorámos estas questões aludindo aos pormenores de dois debates bastante
acalorados: um sobre a ética do aperfeiçoamento no contexto da reprodução assistida, e o outro sobre a legitimidade da ilusão
metodológica em psicologia.
Ao longo do nosso exame da ciência, pusemos em causa as presumíveis distinções metodológicas entre as ciências naturais e
sociais, e entre a racionalidade apresentada pelos cientistas e pelo pensar e teorizar quotidianos, bem como por outras áreas
nas quais o conhecimento é adquirido, sistematizado e revisto. Se o argumento a favor da continuidade for bem-sucedido,
nesse caso parece não haver razões para acreditar que a investigação científica deve ser restringida mais apertadamente de um
ponto de vista ético do que qualquer outra actividade humana que provavelmente terá impacto nos direitos e nos interesses dos
indivíduos envolvidos. Na medida em que a ciência é uma instituição poderosa nas nossas sociedades, o seu trabalho tem de
ser monitorizado e avaliado como o trabalho de qualquer outra instituição poderosa. Porém, nada parece haver de intrínseco à
prática científica que a torne mais perigosa do que qualquer outra prática humana.
Pelo contrário, a ciência parece investida de uma responsabilidade especial, pois é ao fazer ciência que muitas vezes
conseguimos avançar em direcção às nossas metas: curar doenças que causam sofrimento; definir que indivíduos podem sentir
dor, para proteger os seus interesses; revelar as nossas tendências implícitas para a discriminação racial e sexual; identificar
áreas nas quais o nosso juízo apressado cause injustiça; impedir condições incapacitantes (e a lista poderia continuar). Neste
aspecto, a ciência deve ser promovida, pois consiste numa maneira de os indivíduos e as sociedades atingirem o progresso
moral.

Questões para pensar


1. Em que sentido os cientistas têm uma responsabilidade ética para com o resto da sociedade?
2. Haverá algum direito pessoal que não possa ser violado na investigação científica?
3. Será que a investigação em países com culturas radicalmente diferentes das nossas deve ser conduzida de acordo com os
nossos princípios morais?
4. De que maneira podemos resolver o conflito entre o respeito pela autonomia e a beneficência?
5. Como se pode fazer a sociedade confiar na ciência?

Leituras complementares
Outros debates éticos que consideram os objectivos (a clonagem reprodutiva humana, por exemplo) ou nos métodos (o uso de
animais na investigação biomédica, por exemplo) de alguns projectos de investigação também podem ser caracterizados em
termos de haver constrangimentos éticos ou outros constrangimentos sociais à prática da ciência. A bibliografia sobre
objectivos de investigação ambiciosos e os debates que os acompanham é abundante. O portal Science in Society, do
Economic and Social Research Council (ESRC) (www.sci-soc.net/SciSoc/) e a selecção de podcasts no portal Science and
Society (www.scienceandsociety.net/ podcasts/) são alguns dos recursos gerais na internet. Na bibliografia temática
encontrará uma lista de leituras sobre algumas questões específicas que geraram acalorados debates bioéticos, e poderá
encontrar outras se aceder aos relatórios direccionados a responsáveis políticos (muitas vezes disponíveis na internet) e
consultar obras de referência e colectâneas de artigos em áreas específicas (genética, ética animal, ética computacional, ética
da investigação científica em países em vias de desenvolvimento, etc.).
Saber se a ciência tem um contributo para o resto da sociedade ao criar oportunidades de fazer o bem é também uma questão
muito interessante a colocar, negligenciada na literatura. Como aperitivo, recomendo o artigo controverso de Harris (2005)
sobre se há uma obrigação moral para apoiar ou mesmo participar na investigação científica.
Conclusão: A ciência como actividade

A ideia com que ficamos quando consideramos em pormenor as questões metodológicas, epistemológicas, ontológicas e éticas
respeitantes à prática da ciência é a de uma continuidade entre a investigação científica e as outras actividades humanas. E
aqui apenas entrevimos os muitos debates que põem em questão o estatuto especial da ciência. Poderemos realmente assinalar
o que faz de uma actividade humana um exemplo de investigação científica? Quando os cientistas defendem uma hipótese
particular, será que empregam estratégias argumentativas que não são acessíveis aos filósofos ou aos leigos? Será que as
teorias científicas captam a essência da realidade, ou será que apenas proporcionam uma explicação de fenómenos que é
adequada para uma finalidade específica? Será que a mudança em ciência é sempre baseada em princípios objectivos
racionais? Será que conduz sempre ao progresso? Será que a investigação científica devia ser regulada mais apertadamente ou
mais liberalmente do que outras actividades humanas que afectam interesses moralmente relevantes? Na linguagem corrente,
bem como na filosofia e na sociologia da ciência, «ciência» (ou «científico») pode referir-se a coisas diferentes:

1. Ao produto final da aplicação de um método de investigação a um certo domínio. Neste sentido, «ciência» refere-se a um
corpo de conhecimento com certas características.
2. Ao processo de adquirir conhecimento de uma forma que é sensível a indícios e aberta à crítica racional. Neste sentido,
«ciência» refere-se a um método de investigação.
3. A toda uma comunidade que se envolve na actividade definida em 1 e 2, incluindo as pessoas que fazem investigação, as
instituições onde trabalham, os laboratórios onde conduzem experiências, as revistas onde publicam o seu trabalho, os livros
que escrevem, etc. Neste sentido, «ciência» refere-se a uma instituição, a uma parte integrante de muitas sociedades humanas.

Nesta introdução, examinámos alguns aspectos de cada um destes significados da palavra «ciência». Muito embora as
considerações relevantes no que respeita a 1, 2 e 3 não possam ser facilmente separadas, houve uma progressão das questões
sobre o método para a consideração da ciência como um corpo de conhecimento, e finalmente para as pressões a que a ciência
está sujeita enquanto instituição, bem como para os seus valores. Nos capítulos 1, 2 e 3, centrámo-nos no método da ciência,
no processo mediante o qual o conhecimento científico é adquirido e na forma como as teorias são estruturadas, confirmadas
com base em indícios e usadas na explicação de fenómenos interessantes. Nos capítulos 4 e 5, virámo-nos para a ciência como
um corpo de conhecimento em contínuo desenvolvimento cuja linguagem se modifica com a aceitação e a rejeição de teorias, e
cujo progresso nem sempre é fácil de medir. A função das teorias científicas também foi examinada: será que servem para nos
dar uma compreensão de como as coisas realmente são, ou são instrumentos úteis para a previsão? Finalmente, no capítulo 6,
considerámos a ciência como uma comunidade de investigadores cujo trabalho é frequentemente restringido por questões que
afectam os interesses moralmente relevantes dos indivíduos na sociedade, ou que tem um contributo importante para tais
questões.
Será que conseguimos isolar um conjunto de características que só a ciência apresenta? Não fomos bem-sucedidos nesta
tarefa, mas por muito boas razões. O que encontrámos foi uma continuidade significativa entre a investigação científica e
outras actividades humanas, entre as ciências naturais e sociais, e mesmo entre a ciência e a filosofia. Mas salientar estes
elementos de continuidade e as dificuldades em demarcar a ciência não é tornar os epítetos «ciência» ou «científico»
obsoletos ou inúteis. Pelo contrário, só depois de reflectirmos sobre os elementos de continuidade entre a ciência e a não-
ciência nos poderemos aperceber das muitas dimensões da investigação científica e começar a compreender os valores muitas
vezes implícitos a que nos referimos quando dizemos que algo é uma ciência ou que é científico. Ainda que «ciência» e
«científico» não pareçam ser mais que termos descritivos, muitas vezes usamo-los como termos valorativos. Quando
chamamos a uma certa actividade um exemplo de investigação científica ou nos referimos a uma disciplina como científica,
podemos querer salientar que correspondem a certos padrões de racionalidade ou sistematicidade, ou podemos querer dizer
que o seu âmbito é limitado no que respeita aos seus objectivos ou à sua capacidade de ter em conta interesses humanos
relevantes. «A biologia evolucionista é ciência» pode ser um juízo sobre a respeitabilidade intelectual das actividades
envolvidas no desenvolvimento da teoria da evolução, ou uma defesa perante aqueles que criticam a disciplina como uma
hipótese infundada. Porém, dizer «Isso é apenas ciência» indica frequentemente que as questões de facto que podemos
investigar empiricamente por via dos métodos da ciência não esgotam o âmbito dos nossos interesses.
Quando empregamos tais epítetos, não estamos apenas a descrever como uma actividade ou uma disciplina são, mas também
as avaliamos com base em valores que dependem dos interesses que nós, enquanto indivíduos ou sociedades, temos ao
conduzir uma certa investigação sobre o contexto natural e social em que vivemos e operamos. No último capítulo, discutimos
com algum pormenor os constrangimentos éticos que se aplicam a exemplos específicos de investigação científica, e como se
pode objectar a alguns objectivos ou metodologias de investigação com base no impacto que podem ter em interesses
moralmente relevantes que queremos salvaguardar.
Porém, pode argumentar-se que, enquanto alguns interesses humanos podem entrar em conflito com os interesses de alguns
projectos científicos específicos, outros não podem ser adequadamente salvaguardados sem promover a ciência. Ao deixar a
ciência florescer, garantimos o contributo constante da comunidade científica como um todo para uma compreensão mais
profunda dos problemas que temos de enfrentar e do que pode melhorar o bem-estar dos indivíduos e das sociedades.
O contributo prático da ciência para o resto da sociedade é óbvio em algumas áreas: a investigação biomédica tem um
impacto muito visível no desenvolvimento de tratamentos para doenças debilitantes. Outros benefícios há, porém, cuja
aplicação é mais geral. A disponibilidade de hipóteses científicas empiricamente fundamentadas permite-nos apoiar alegações
empíricas em argumentos sobre questões que afectam a sociedade como um todo. Por mais falíveis que tais hipóteses sejam, a
sua disponibilidade significa que podemos justificar alegações empíricas com razões que estão abertas à avaliação e à crítica
racionais. Serão os psicopatas moralmente responsáveis pelas suas acções? Serão as galinhas que andam à solta mais felizes
que as de aviário? Os conflitos armados conseguirão conduzir à democracia? Estas são perguntas impregnadas de valores
sobre algumas das questões com que nos preocupamos, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, mas não podem ser
respondidas sem a análise de alguns dos conceitos envolvidos (a felicidade, a responsabilidade moral, a democracia, por
exemplo) e — o que é crucial — sem uma avaliação escrupulosa das alegações empíricas que são apoiadas ou rejeitadas com
base na investigação científica (como saber se o confinamento, por oposição ao andar em liberdade, afecta negativamente o
bem-estar físico e psicológico das galinhas).
O progresso que a ciência nos permite fazer não é medido exclusivamente em termos de dar origem a avanços tecnológicos ou
a uma série de avanços na medicina. Também é medido em termos da justificação que a ciência torna disponível para as
crenças que são a base da nossa interacção social e da nossa compreensão do que nos rodeia.
Glossário

O seguinte glossário contém definições básicas de termos filosóficos relevantes e uma breve introdução a algumas das ideias,
movimentos filosóficos e autores mencionados no texto.

a posteriori A verdade de uma afirmação é conhecida a posteriori se é conhecida com base na experiência. a priori A
verdade de uma afirmação é conhecida a priori se é conhecida independentemente da experiência. ad hoc Expressão latina
que significa «para este propósito». Uma explicação é ad hoc se envolve hipóteses que são introduzidas com a única
finalidade de salvar uma teoria da falsificação, analítica (afirmação) Uma afirmação cuja verdade ou falsidade depende da
sua estrutura lógica ou do significado dos termos que contém. Por exemplo: «Todos os edifícios altos são edifícios»; «Os
gatos são animais», anomalia Literalmente, «desvio da norma». Usada em filosofia da ciência para indicar a incongruência
entre um acontecimento observado e o que a teoria actual tinha previsto.
anterior (probabilidade) Probabilidade de um acontecimento/hipótese antes de ser tida em conta nova informação,
antinaturalismo No contexto do debate sobre o estatuto das ciências sociais, o antinaturalista defende uma descontinuidade
significativa entre as metodologias e os objectivos das ciências naturais e sociais, alegando que os factos sociais devem ser
explicados em termos de significado, finalidade ou interpretação, e não em termos de relações causais e leis da natureza,
aperfeiçoamento Qualquer estratégia ou tratamento que vise melhorar condições existentes. O termo é frequentemente usado
para fazer referência aos aperfeiçoamentos genéticos que podem ser aplicados a uma série de condições e capacidades, como
por exemplo a imunidade a certas doenças ou o aperfeiçoamento de competências cognitivas.
Aristóteles (384-322 a. C.) Filósofo grego que contribuiu em grande medida, mediante os seus ensinamentos e escritos
abrangentes, para a fundação da lógica, da metafísica, da epistemologia, da ética e da filosofia política, assim como da
biologia, da física e da astronomia, autonomia (princípio do respeito pela autonomia pessoal) A autonomia é o autogoverno e
a autodeterminação, a capacidade que os agentes têm de formar crenças e intenções, tomar decisões e agir com base em razões
que reflectem os seus valores, sem serem coagidos. O princípio do respeito pela autonomia pessoal diz que temos a obrigação
de respeitar as crenças, escolhas e acções dos agentes autónomos. O que o princípio implica é controverso, mas é
frequentemente considerado como a base para práticas que visam proteger a confidencialidade e obter o consentimento
informado, axiomático (sistema) Um sistema axiomático contém: termos primitivos indefinidos; termos definidos; axiomas
(afirmações aceites sem demonstração) e teoremas (afirmações sujeitas a demonstração), axiomatização A axiomatização é a
tentativa de captar a estrutura e o conteúdo de uma teoria científica num sistema formal de afirmações. Algumas destas
afirmações contêm termos primitivos indefinidos (axiomas), e as outras afirmações (teoremas) são delas dedutivamente
derivadas. A axiomatização requer que se caracterize com alguma precisão o domínio dos objectos postulados pela teoria,
proporcionando uma lista de termos primitivos, regras de composição de fórmulas bem formadas, definindo que afirmações
são axiomas, etc.
Ayer, Alfred (1910-1989) Filósofo inglês que divulgou as teses fundamentais do movimento positivista lógico na sua muito
influente obra Linguagem, Verdade e Lógica (1936).
Bacon, Francis (1561-1626) Filósofo e político que pôs em causa as ideias de Aristóteles e codificou o indutivismo como a
base da metodologia científica. A sua obra metodológica fundamental, Novum Organum, surgiu em 1620.
Bayes (Teorema de) O teorema de Bayes tem sido usado para formalizar explicações subjectivistas de informação e aspectos
da confirmação de teorias científicas. O teorema diz que a probabilidade de uma hipótese H condicional a um dado corpo de
dados I é a razão entre a probabilidade incondicional do conjunto da hipótese e dos dados, e a probabilidade incondicional
dos dados por si só.
bayesianismo A ideia de que as noções de justificação e confirmação científicas podem ser captadas pelo Teorema de Bayes.
beneficência (princípio da) Beneficência significa literalmente «fazer o bem». O princípio da beneficência diz que temos
obrigação de fazer o bem, isto é, de beneficiar os outros, bem como de impedir que lhes seja feito mal e de afastar deles o
mal. Tanto a formulação exacta do princípio como as suas implicações são uma questão controversa em ética.
Black, Max (1909-1988) Filósofo da linguagem, matemática e ciência influenciado por Frege, Russell e Wittgenstein.
Defendeu que a indução pode ser indutivamente justificada sem risco de circularidade.
Bohr, Niels (1885-1962) Físico responsável pelo desenvolvimento de um modelo da estrutura do átomo com base em
elementos da teoria quântica de Planck. Autor de A Teoria Atómica e a Descrição da Natureza (1934).
Boyd, Richard Filósofo da ciência e da mente contemporâneo, sobretudo conhecido por defender o realismo científico. Autor
de muitos artigos e de uma antologia de leituras essenciais, A Filosofia da Ciência.
Boyle, Robert (1627-1691) Cientista que contribuiu para a pneumática e para a química, e que nos seus escritos defendeu uma
explicação mecanicista da natureza e uma abordagem experimental à ciência. Foi um dos fundadores da Royal Society de
Londres.
Carnap, Rudolf (1891-1970) Membro principal do movimento do Positivismo Lógico, contribuiu significativamente para uma
variedade de questões da filosofia da ciência, adoptou a perspectiva clássica sobre as teorias e defendeu a possibilidade de
proporcionar uma tradução de afirmações teóricas para afirmações observacionais via regras de correspondência. E autor de
A Estrutura Lógica do Mundo (1928), A Sintaxe Lógica da Linguagem (1934) e de Fundamentos Filosóficos da Física
(1966).
categorias naturais Modo de classificar as coisas na natureza (por oposição aos artefactos). Para o essencialista, as
categorias naturais agrupam coisas quando estas têm as mesmas propriedades essenciais (frequentemente identificadas com
uma estrutura física subjacente). Para o anti-essencialista, as categorias naturais agrupam as coisas quando este agrupamento
serve alguma finalidade útil (para fazer generalizações ou explicar fenómenos, por exemplo).
causal (teoria da referência) De acordo com esta teoria da referência, um nome/termo para uma categoria natural adquire o
seu referente por via de um baptismo inicial, e mais tarde refere-se a essa entidade ao manter uma ligação causal com o
baptismo original, independentemente dos conceitos que os falantes a ele associem.
cérebros em cubas Cenário céptico tornado famoso por Hilary Putnam, que imagina um cientista malévolo que retira os
cérebros às pessoas durante a noite e os coloca em cubas. O cientista liga os cérebros a uma máquina sofisticada de
estimulação sensorial que reproduz as sensações que os cérebros receberiam se ainda estivessem nos corpos e interagissem
com o mundo exterior.
circularidade Um argumento é circular se uma das premissas é idêntica à conclusão ou se as premissas são tais que não
estamos em posição de as conhecer se não conhecermos já a conclusão, confirmação Qualquer processo por meio do qual a
probabilidade de uma hipótese ou teoria científica ser verdadeira aumenta. Normalmente consiste em observações que são
compatíveis com as previsões que podem ser feitas com base na hipótese ou na teoria em conjunto com hipóteses auxiliares,
construtivo (empirismo) Perspectiva desenvolvida por Van Fraassen que difere do realismo científico no ponto em que nega
que as teorias actuais são verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, mas que também difere do instrumentalismo, uma vez
que nega que as teorias não sejam susceptíveis de verdade. O empirista construtivo acha que não há uma boa justificação
independente para acreditar que as teorias são verdadeiras e devemos apenas aceitar as teorias actuais enquanto
empiricamente adequadas.
contingente O oposto de «necessário». Algo que é, mas que podia não ter sido. Ter escrito este livro é contingente (podia não
o ter escrito), conversão. Na explicação da mudança científica por Kuhn, a mudança de um paradigma para outro requer a
conversão, uma vez que não pode ser motivada por uma argumentação racional baseada em indícios. Isto porque os indícios
não podem ser neutros no que respeita a paradigmas concorrentes e porque não há razões independentes de um paradigma para
preferir um paradigma a outro.
Copérnico, Nicolau (1473-1543) Cientista responsável pela defesa sistemática da teoria heliocêntrica do movimento dos
planetas, apoiando-a em indícios astronómicos pormenorizados no seu tratado Das Revoluções dos Corpos Celestes, que
surgiu em 1543 e é considerado o impulsionador da revolução científica, correspondência (regras de) Afirmações que contêm
tanto termos teóricos como observacionais que pretendem proporcionar um sistema formal com conteúdo empírico, e que por
conseguinte permitem que os termos de uma teoria sejam primeiro interpretados e depois testados. A questão sobre se as
regras de correspondência são analíticas (como as definições) ou sintéticas é objecto de controvérsia. Eis um exemplo
(Carnap 1966): «Se há uma oscilação electromagnética com uma frequência específica, há uma cor azul-esverdeada visível de
uma certa tonalidade». É estabelecida uma correspondência entre um termo teórico («oscilação electromagnética») e um termo
observacional («cor azul-esverdeada»).
corroboração Esta noção, introduzida e desenvolvida por Popper, refere-se ao desempenho de uma teoria no passado e, em
particular, à forma como sobreviveu à discussão crítica e a testes rigorosos.
Darwin, Charles (1809-1882) Naturalista que iniciou uma revolução científica com as suas ideias, defendidas na obra A
Origem das Espécies (1859), sobre a evolução das espécies. Em A Descendência do Homem (1871) defendeu que os
humanos e outros primatas têm um antepassado comum, gerando fortes reacções na imprensa popular da época.
dedução Modo de inferência no qual a verdade das premissas pretende garantir a verdade da conclusão.
dedutivismo Estilo de raciocínio oposto ao indutivismo e defendido por Popper como o método da ciência. De acordo com
esta perspectiva, partimos do geral para o específico, e avaliamos afirmações gerais delas derivando hipóteses que podem ser
submetidas a testes.
demarcação (critério de) Explicação sistemática do que faz a ciência ser diferente da não-ciência ou da pseudociência. Os
positivistas lógicos pensavam que a verificabilidade podia proporcionar um critério de demarcação, ao passo que Popper
defendeu que a falsificabilidade tinha melhores hipóteses. Após a viragem social na filosofia da ciência, muitos autores
sugeriram que factores externos ao método científico são relevantes para o que é e não é considerado ciência.
deontologia Abordagem à ética segundo a qual a questão sobre se uma acção é certa ou errada não depende das
consequências que se seguem da acção, mas antes se diz respeito a certos princípios gerais (as ideias éticas baseadas no dever
foram defendidas de uma forma sistemática por Immanuel Kant). A teoria dos direitos é frequentemente integrada numa
abordagem deontológica, e diz-nos que temos obrigações especiais para com certos indivíduos com base no seu estatuto.
Descartes, René (1596-1650) Matemático, físico e filósofo que rompeu com a tradição aristotélica e tentou desenvolver
novas teorias sobre o espaço e o movimento. Também se interessou pela metodologia científica e filosófica, tendo tido uma
grande influência nos pensadores da sua época. Autor de Meditações (1641), Princípios da Filosofia (1644) e de As Paixões
da Alma (1649). descritivismo Na filosofia da linguagem, a ideia de que os termos vêem a sua referência fixada pelas
descrições que os falantes a eles associam. Frege e Russell são considerados descritivistas. designador rígido Um designador
rígido é um termo que se refere ao mesmo objecto ou propriedade em todos os mundos possíveis e que a nada mais se pode
referir. Se pensarmos que «água» é um designador rígido, em todos os mundos onde não há uma substância com as mesmas
características da água, o termo «água» não refere. A questão das características definidoras ou essenciais da água permanece
em aberto. Putnam acredita que os termos para categorias naturais são designadores rígidos, e que «água» designa todas as
substâncias com a mesma microestrutura daquilo a que chamamos «água» na Terra (H20). Duhem, Pierre (1861-1916) Físico,
matemático e filósofo da ciência que escreveu sobre a relação entre as observações e a teoria, e que defendeu que as
previsões falhadas tanto podiam falsificar a teoria testada como apenas as hipóteses auxiliares necessárias para a testagem (a
tese de Duhem-Quine). Também defendia uma visão instrumental das leis científicas. Autor de A Teoria Física, o seu Objecto
e a sua Estrutura (1906/1914).
dúvida hiperbólica Quando Descartes quis encontrar uma verdade de que não pudesse duvidar para nela basear o seu método
para a investigação filosófica, imaginou a existência de um génio maligno que o enganava constantemente. Entre outras coisas,
a existência deste génio fez Descartes duvidar de toda a sua experiência dos sentidos. A dúvida hiperbólica é frequentemente
considerada como o ponto de partida dos argumentos cépticos contra o realismo ingénuo.
Einstein, Albert (1879-1955) Físico que se interessava pela filosofia e pela cosmologia. Desenvolveu a teoria da
relatividade restrita guiado pela intenção de conciliar a mecânica newtoniana com as leis do electromagnetismo. empatia Já
foram formuladas diferentes noções de empa tia, mas uma definição geral considera o modo como uma pessoa pode
compreender as crenças e as emoções de outra, não pela mediação de uma teoria, mas pondo-se no seu lugar. Alguns autores
consideram que a empatia desempenha um papel importante na explicação em ciências sociais.
empírica (adequação) Uma teoria é empiricamente adequada se for compatível com os indícios disponíveis e se não for por
eles refutada, empirismo (adj. empirista) Oposto do racionalismo. Perspectiva segundo a qual todo o conhecimento provém da
experiência dos sentidos, enraizamento Característica de um predicado que está incorporada no discurso quotidiano e é usada
para descrever objectos e fazer previsões sobre observações futuras, equante e epiciclos Conceitos matemáticos
desenvolvidos por Ptolomeu para explicar o movimento aparentemente anómalo de alguns corpos celestes no seu modelo
geocêntrico do universo, equivalência lógica (princípio da) Se duas hipóteses são logicamente equivalentes, qualquer
afirmação observacional que confirme uma das hipóteses também confirmará a outra.
essencialismo A ideia de que algumas coisas (pessoas, categorias naturais, etc.) possuem propriedades essenciais que fazem
delas o que são, e que estão frequentemente ocultas ou não são superficialmente avaliáveis.
Estatístico-Dedutivo (Modelo) Perspectiva sobre a explicação científica avançada por Hempel para explicar a relação
lógica entre uma regularidade estatística que se pretende explicar e as leis estatísticas e as condições iniciais que contribuem
para a sua explicação quando a regularidade é a conclusão de um argumento dedutivo que tem como premissas a lei estatística
e as condições iniciais.
Estatístico-Indutivo (Modelo) Ideia sobre a explicação científica avançada por Hempel para explicar a relação lógica entre
um acontecimento a ser explicado e os factores que contribuem para a sua explicação, quando o acontecimento é a conclusão
de um argumento indutivo que tem como premissas as condições iniciais e uma generalização muito provável.
experiências mentais Situações imaginadas, não reais, cujos resultados pretendem mostrar algo relevante para a verdade de
uma dada teoria, princípio ou afirmação. A finalidade das experiências mentais e o seu papel metodológico na ciência e na
filosofia são controversos.
expressiva (afirmação) Uma afirmação é expressiva se for a manifestação do desejo ou da preferência de um indivíduo ou de
um grupo. As afirmações expressivas não são verdadeiras ou falsas em virtude de como as coisas são objectivamente, e (de
acordo com alguns positivistas lógicos) não são cognitivamente significativas.
falsificabilidade Critério de Popper para considerar uma teoria científica. Uma teoria é falsificável quando é possível que
gere previsões infirmadas por indícios em testes rigorosos.
falsificação Uma hipótese é considerada falsa quando pelo menos uma previsão feita com base nela foi infirmada por
indícios.
Feyerabend, Paul (1924-1994) Filósofo da ciência com uma agenda provocatória e um estilo de escrita cativante que
argumentou contra a supremacia da ciência sobre as outras tradições de pensamento, advogou a incomensurabilidade e
explorou as consequências do papel privilegiado da ciência nas sociedades democráticas. Autor de Contra o Método (1975).
Frege, Gottlob (1848-1925) Lógico e matemático considerado um dos fundadores da filosofia analítica. Foi responsável pela
ruptura com a tradição lógica aristotélica e pelo desenvolvimento de uma nova lógica quantificada. Também contribuiu
grandemente para a filosofia da linguagem ao discutir a relação entre o sentido e a referência. Apoiou o descritivismo em
«Sobre o Sentido e o Significado» (que surgiu em alemão em 1892).
Fresnel, Augustin (1788-1827) Um dos fundadores da teoria ondulatória da luz. Matemático e engenheiro civil, nos tempos
livres dedicava-se à óptica, desenvolvendo uma alternativa à teoria dominante — a teoria corpuscular da luz.
Galilei, Galileu (1564-1642) Astrónomo, físico e filósofo que se interessou pela mecânica, pela óptica e pelo movimento e
natureza dos «corpos celestes». Argumentou contra os princípios da física de Aristóteles tanto por meio de experiências
mentais, como por dados que recolheu via experiências reais e observações auxiliadas por um telescópio. Autor de Diálogo
dos Grandes Sistemas (1632), que lhe valeu a condenação por heresia.
Giere, Ronald Filósofo da ciência contemporâneo que se interessa pelo raciocínio e explicação científicos. Autor de
Explicar a Ciência: Uma Abordagem Cognitiva (1988).
Hacking, Ian Filósofo da ciência contemporâneo que escreve sobre a mudança conceptual, a construção social da realidade e
o realismo científico. Autor de Representar e Intervir (1983), onde discute o papel da experimentação na prática da ciência, e
de A Construção Social do Quê? (1999).
Harvey, William (1578-1657) Médico com muito êxito (foi o médico do Rei James I e do Rei Carlos I), investigador e lente
(de fisiologia e embriologia). No seu Ensaio Anatómico sobre o Movimento do Coração e do Sangue nos Animais (1628),
descreveu pormenorizadamente o funcionamento do sistema circulatório, explicando o papel do coração como uma bomba.
Baseou o seu trabalho em
investigações empíricas conduzidas em corpos de animais vivos e em corpos de humanos mortos. Hawthorne (efeito de) Um
efeito que pode distorcer os resultados de um estudo e produzir um impacto negativo na metodologia de uma experiência. Em
psicologia, é frequentemente utilizado para explicar como os participantes tendem a comportar-se de uma maneira que agrada
ao experimentador ou confirma as suas expectativas. Outros efeitos semelhantes são o efeito placebo e o efeito Pigmalião.
holismo (do significado) A ideia de que as expressões linguísticas adquirem os seus significados em relação a outras
expressões no sistema, e de que a alteração do significado de uma expressão determina uma alteração de significado em todas
as outras, uma vez que estão inter-relacionadas.
Hume, David (1711-1776) Filósofo e historiador que defendeu o empirismo e que apresentou uma análise crítica das
inferências causais e indutivas (originando o famoso problema da indução). Autor de Tratado da Natureza Humana (1739-
1740) e de Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748). implicação Relação lógica inversa da consequência. O facto
de eu ter um irmão ou uma irmã é uma consequência de ter uma irmã. O facto de ter uma irmã implica que tenho um irmão ou
uma irmã. impregnação teórica (da observação) Uma observação é teoricamente impregnada quando os pressupostos teóricos
afectam o conteúdo das afirmações observacionais que dela derivam. Estes pressupostos teóricos podem por vezes ser
necessários para desenvolver instrumentos que ajudam à observação, ou podem ser incorporados (frequentemente de uma
maneira não explícita) na linguagem mediante a qual a observação é relatada. Supõe-se que a alegação de que a observação é
teoricamente impregnada ponha em causa a ideia de que a observação é neutra no que respeita a abordagens teóricas rivais,
indexical Expressão linguística cuja referência se altera de acordo com as circunstâncias. A frase «Eu hoje estou cansada»
pode ter um significado diferente dependendo de quem a diz e de quando é dita, pois «Eu» e «hoje» são indexicais.
indução Modo de inferência no qual a verdade das premissas torna a conclusão provável, mas não necessariamente
verdadeira.
indutivismo Concepção do raciocínio e da prática científicos segundo a qual os cientistas chegam a teorias explicativas
fazendo observações e formulando generalizações com base nas suas observações específicas, inferência a favor da melhor
explicação Modo de inferência no qual a conclusão é sustentada porque o facto de ser verdadeira é a melhor explicação para
um acontecimento conhecido, dados todos os indícios disponíveis, interno (realismo) Forma de realismo moderado (defendido
por Putnam) segundo o qual se podem descobrir verdades mediante investigações científicas, mas estas verdades são internas
(e até certo ponto relativas) a um enquadramento conceptual, investigação (programas de) Unidades de prática científica
caracterizadas por um conjunto de teorias em desenvolvimento, metodologia semelhante e princípios teóricos nucleares. Um
programa de investigação é progressivo se as teorias subsequentes conseguem prever novos factos, ter mais poder explicativo
e adequar-se melhor aos indícios que as anteriores. Caso contrário, é degenerativo.
isomorfismo Do grego antigo, o termo significa «igualdade de forma, de estrutura», e é usado para descrever relações, como
por exemplo a relação entre um modelo e um conjunto de fenómenos que o modelo é suposto representar, ou a relação entre
uma teoria e a realidade que a teoria visa descrever e explicar, justificação Processo mediante o qual uma crença é apoiada
com base em bons indícios ou num bom argumento. Kepler, Johannes (1571-1630) Matemático e astrónomo que se interessou
tanto pela óptica como pela cosmologia e é responsável pela ideia de que os planetas se movem em órbitas elípticas, bem
como pelas três leis do movimento dos planetas (hoje conhecidas como Leis de Kepler).
Kuhn, Thomas (1922-1996) Físico, filósofo e historiador da ciência, Kuhn deixou a sua marca com a publicação de A
Estrutura das Revoluções Científicas (l.a ed., 1962), onde pôs em causa a ideia de que há um progresso contínuo e cumulativo
na ciência, e introduziu factores psicológicos e sociológicos na explicação da mudança de teorias científicas.
Lakatos, Imre (1922-1974) Filósofo da ciência cujo trabalho foi inspirado pelo de Karl Popper. Desenvolveu ideias
originais sobre o problema da demarcação e a melhor maneira de explicar a mudança científica. No seu trabalho mais
influente — «A Metodologia dos Programas de Investigação Científica», um artigo de 1970 —, defende a racionalidade da
ciência e a noção de progresso a partir dos questionamentos feitos por Kuhn.
Laudan, Larry Filósofo da ciência contemporâneo que escreveu substancialmente sobre o progresso e a racionalidade em
ciência. Defendeu uma explicação sofisticada do falsificacionismo, e argumentou contra o relativismo e o subjectivismo nas
explicações filosóficas da mudança científica. Autor de O Progresso e os seus Problemas (1977).
Lavoisier, Antoine (1743-1794) Químico que demonstrou a inconsistência da teoria do flogisto em Reflexões sobre o
Flogisto (1783) e que foi o principal responsável pela descoberta do oxigénio, originando a revolução química. No seu
Tratado de Química Elementar (1789) apresentou uma explicação unificada do conhecimento químico do seu tempo e exaltou
o papel das observações e das experiências.
legiformes (afirmações) As afirmações legiformes são afirmações que, se verdadeiras, expressam uma lei da natureza. A
questão sobre que características deverão ter está, até certo ponto, em aberto.
leis da natureza Princípios gerais que parecem desempenhar um papel central numa teoria científica e na explicação e
previsão de fenómenos particulares. O estabelecimento das características definidoras de uma lei (se capta uma verdade
necessária; se sustenta contrafactuais; se articula uma ligação causal, etc.) é controverso.
Lipton, Peter (1954-2007) Filósofo que contribuiu significativamente para a epistemologia (explicação, provas e testemunho,
por exemplo) e para as questões metafísicas (realismo) na filosofia da ciência. O seu livro Inferência a favor da Melhor
Explicação (primeiramente publicado em 1991; 2.a ed. 2004) é um clássico, lógica (forma) A forma lógica é a estrutura de
uma proposição ou de um argumento, exemplificada por cadeias de símbolos que obedecem a regras sintácticas de formação.
A forma lógica de um argumento é o padrão de inferência que é obtido ao abstrair a partir do conteúdo das suas premissas e
conclusões, lógicos (termos) Os termos lógicos são termos que representam predicados ou relações numa linguagem formal.
Por exemplo: em (x) Px®Qx, «P» é um termo lógico que representa um predicado; «®» é uma conectiva lógica que representa
uma relação condicional entre Px e Qx (se x é P, então x é Q).
Lucrécio (século i a.C.) Poeta latino que escreveu Sobre a Natureza das Coisas, onde argumenta a favor das ideias físicas e
cosmológicas defendidas pelo filósofo Epicuro (século ui a.C.), em especial o atomismo, a infinidade do universo e a
mortalidade da alma.
Mach, Ernst (1838-1916) Físico e filósofo que trabalhou em óptica e mecânica, obtendo resultados impressionantes que
abriram o caminho à teoria da relatividade. Em filosofia, é conhecido pela tese de que todo o conhecimento provém das
sensações, e que mesmo as leis da natureza são uma forma útil de descrever as relações entre as sensações. Esta ideia é
defendida em Contributos para a Análise das Sensações (1897).
Maxwell, James Clerk (1831-1879) Matemático e físico conhecido por ter descoberto equações simples que expressam a
relação entre campos eléctricos e magnéticos, e por defender a ideia de que a luz é um fenómeno electromagnético. Autor de
Tratado sobre Electricidade e Magnetismo (1873). mecanicismo Em termos gerais, a ideia de que o comportamento de um
sistema (como por exemplo o Universo) pode ser explicado fazendo referência a partículas materiais governadas por leis
determinísticas. É frequentemente contrastado com o organicismo. metafísica Estudo do que existe, do que é real. Ramo da
filosofia tradicionalmente caracterizado por uma tentativa de revelar princípios gerais e a natureza última da realidade, para
lá das propriedades observáveis das coisas existentes e dos acontecimentos que são o objecto da ciência, método científico O
método mediante o qual os cientistas operam. Pode ser interpretado descritivamente ou normativamente. Os filósofos que
pretendem descrever o método científico perguntarão como os cientistas operam nas suas comunidades científicas — que tipo
de raciocínio seguem a maior parte do tempo, como chegam a certas conclusões, etc. Os filósofos interessados pela dimensão
normativa perguntarão como os cientistas deviam operar para que a ciência seja progressiva e contribua para o conhecimento.
As opiniões diferem sobre se é possível codificar uma metodologia geral para todas as disciplinas científicas, ou se nos
devemos ficar pelas metodologias relativas a disciplinas, metodológico (pluralismo) A ideia de que a ciência não é uma
actividade unitária, e de que os seus métodos não podem ser apreendidos por uma explicação geral para as ciências naturais e
sociais.
Mill, John Stuart (1806-1873) Filósofo e economista cujas ideias estão associadas a uma defesa do empirismo e dos valores
liberais. Defendeu o utilitarismo em ética e escreveu sobre metodologia, identificando os princípios fundamentais da prática
científica no seu Sistema de Lógica Raciocinativa e Indutiva (1843). Também é o autor de Sobre a Liberdade (1859).
modelo Um modelo é uma ficção, um objecto, estrutura ou descrição que representa algumas componentes de uma teoria (o
modelo da dupla hélice do ADN, por exemplo).
O que os modelos são (mais precisamente) e o papel que desempenham na descoberta e na explicação científicas, são
questões controversas, naturalismo No contexto da filosofia das ciências sociais, a ideia de que há continuidade de objectivos
e métodos entre as ciências sociais e naturais, e de que ambos os tipos de ciência visam descobrir verdades sobre factos
naturais e sociais revelando ligações causais relevantes, necessário Oposto de contingente. Algo que é por necessidade e que
não podia ser de outra maneira. E necessário que os hexágonos tenham seis lados.
Newton, Isaac (1642-1727) Físico e matemático que escreveu os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (conhecidos
como Principia), publicados em 1687, onde expõe os fundamentos da mecânica e introduz a lei da gravitação. Nomológico-
Dedutivo (Modelo) Perspectiva sobre a explicação científica avançada por Hempel para clarificar er relação lógica entre um
acontecimento que se pretende explicar e os factores que contribuem para a sua explicação, quando o acontecimento é a
conclusão de um argumento dedutivo que tem como premissas a afirmação legiforme e as condições iniciais, normal (ciência)
Período caracterizado pelo desenvolvimento de uma disciplina científica no âmbito de um determinado paradigma, normativa
(afirmação) Uma afirmação é normativa se expressa um juízo sobre como as coisas deviam ser. objectiva (probabilidade)
Probabilidade de um acontecimento ocorrer, tendo em conta os dados disponíveis sobre os acontecimentos observáveis,
observacional (termo) Um termo é observacional se se refere a objectos observáveis ou a propriedades de objectos. Por
exemplo, na afirmação «As folhas de Outono são vermelhas», «vermelhas» é um termo observacional. A questão sobre se
«temperatura» é um termo observacional já é mais controversa, organicismo Em termos gerais, a ideia de que um sistema
(como, por exemplo, o Universo) opera da mesma forma que um organismo vivo com consciência ou intenções, e que por
conseguinte escapa à previsibilidade das relações de causa e efeito que governam a matéria inanimada. Caracterizações
diferentes ou mais específicas deste termo podem ser encontradas na biologia e na teoria da arte.
paradigma Um enquadramento que combina os pressupostos teóricos, metodológicos e metafísicos que dão forma ao trabalho
da comunidade científica em períodos de ciência normal. Há uma literatura vastíssima sobre os diferentes usos do termo
«paradigma», que entrou no discurso comum depois de a noção ter sido explorada por Kuhn na sua explicação das revoluções
científicas.
patológica (ciência) Os usos do termo «patológico» aplicados à ciência diferem consideravelmente na literatura, mas parece
ser uma estrutura comum aos exemplos de patologia nas ciências naturais que 1) alguns cientistas ponham a hipótese da
existência de uma entidade para explicar alguns fenómenos; 2) tal entidade seja inferida apenas como o resultado de uma
técnica experimental complexa que não parece obter os mesmos resultados quando adoptada por outros cientistas ou grupos de
cientistas; 3) tal entidade se revele fictícia. Além dos problemas de replicabilidade dos resultados experimentais, os exemplos
patológicos de ciência são frequentemente caracterizados por uma credulidade infundada na comunidade científica e por
defesas ad hoc das alegações feitas pelos cientistas «patológicos».
Platão (427-347 a. C.) Filósofo ateniense que escreveu diversos diálogos sobre questões no âmbito da epistemologia, ética,
política e metafísica, usando a figura histórica de Sócrates como personagem principal.
Poincaré, Henri (1854-1912) Matemático e físico que escreveu sobre a filosofia da ciência e, em especial, sobre a
descoberta e a confirmação científicas. Argumentou a favor do convencionalismo — a ideia de que as teorias são verdadeiras
por convenção. Autor de Ciência e Hipótese (1902), O Valor da Ciência (1905) e Ciência e Método (1908).
Popper, Karl (1902-1994) Filósofo da ciência muito influente que contribuiu grandemente para o debate sobre o critério de
demarcação, a confirmação das teorias científicas e a natureza da mudança e do progresso científicos. Embora fosse crítico
em relação a muitas ideias dos positivistas lógicos, partilhava a sua concepção da ciência como um feito paradigmático da
racionalidade humana. Defendeu o falsificacionismo em Conjecturas e Refutações (1963). positivismo lógico (ou empirismo
lógico) Movimento filosófico originalmente fundado em Viena, em 1922, por Moritz Schlick (físico), Otto Neurath
(economista) e Philipp Frank (professor de física). Visando promover e divulgar uma «concepção científica do mundo», foi
influenciado pela filosofia de Bertrand Russell e de Ludwig Wittgenstein. O epíteto «positivista» está ligado à ideia defendida
por estes autores de que o conhecimento científico é o único tipo de conhecimento legítimo, e que, por conseguinte, a ciência é
especialmente importante. O epíteto «empirista» refere-se à sua ideia de que o conhecimento sobre o mundo não pode ser
obtido sem recorrer à experiência por via de observações e testes empíricos, posterior (probabilidade) Probabilidade de um
acontecimento/hipótese após ter sido tida em conta nova informação.
Priestley, Joseph (1733-1804) Químico que ajudou a desenvolver e defendeu tenazmente a teoria do flogisto contra dúvidas
emergentes. Autor de Experiências e Observações em Diferentes Tipos de Ar (1774). projectável (predicado) Um predicado
é projectável se podemos esperar que no futuro se aplique ao mesmo objecto a que se aplicou até agora. Goodman criou um
predicado que não é projectável — «verdul». pseudociência Uma disciplina ou teoria é pseudocientífica se possui as
características superficiais de uma disciplina ou teoria científica, mas não satisfaz os critérios aceites para ser ciência. A
astrologia e o criacionismo são exemplos comuns (mas até certo ponto controversos), psicológica (abordagem ao estatuto
moral) Ideia de que as capacidades psicológicas de um indivíduo são relevantes para determinar se tem estatuto moral.
quebra-cabeças (resolução de) Actividade que para Kuhn caracteriza a ciência normal — quando os cientistas concentram os
seus esforços em explicar factos fazendo uso dos recursos proporcionados pela teoria dominante. Quine, W. V. O. (1908-
2000) Lógico matemático e filósofo muito influente conhecido por atacar a dicotomia entre analítico e sintético, desenvolver a
epistemologia naturalizada e conceber a filosofia como um ramo da ciência. Responsável por uma versão radical da chamada
tese de Duhem-Quine e autor de Palavra e Objecto (1960). racionalismo (adj. racionalista) Em epistemologia, o racionalismo
é a perspectiva segundo a qual podemos adquirir conhecimento independentemente da experiência dos sentidos. Em filosofia
da ciência, o termo também pode ser usado para se referir àqueles que pensam que a mudança científica obedece a critérios
racionais de escolha de teorias.
referência A relação entre as expressões linguísticas que usamos e as entidades que representam. Se tenho um cão que se
chama Fiel, o nome «Fiel» refere o meu cão. Reichenbach, Hans (1891-1953) Filósofo da ciência que pertenceu ao
movimento do Positivismo Lógico, promoveu o princípio da verificabilidade e estudou o conceito de espaço/tempo tal como
estava representados na teoria da relatividade. Autor de O Surgimento da Filosofia Científica (1951). relativismo
(conceptual) Em filosofia da ciência, a ideia de que os cientistas comprometidos com diferentes paradigmas empregam
conceitos diferentes e, como consequência, têm uma mundivisão diferente. O que é verdadeiro sobre a massa newtoniana pode
não o ser para a massa einsteiniana, não havendo um território neutro a partir do qual se possa ajuizar qual é a noção de massa
correcta, independentemente do compromisso com um paradigma, representacional (afirmação) Uma afirmação é
representacional se a sua verdade ou falsidade depende de como as coisas são objectivamente. Para os positivistas lógicos, só
as afirmações representacionais são cognitivamente significativas.
revolução De acordo com Kuhn, uma revolução é uma mudança dramática de paradigma no desenvolvimento de uma
disciplina científica, caracterizada pela substituição da teoria dominante e pela introdução de novos pressupostos metafísicos
e metodológicos. Os filósofos que negam que haja alguma vez uma mudança dramática em ciência negam a ocorrência de
revoluções científicas. Russell, Bertrand (1872-1970) Lógico e filósofo considerado um dos fundadores da filosofia analítica.
Interessou-se pelas questões levantadas pela metodologia científica e pela análise conceptual. Autor de Os Princípios da
Matemática (1903) e de Os Problemas da Filosofia (1912), onde trata do problema da indução. Também defendeu uma teoria
descritivista da referência em «Sobre Denotar» (1905). Salmon, Wesley (1925-2001) Historiador e filósofo da ciência que
escreveu prolificamente sobre as questões da confirmação de teorias e sobre probabilidade, indução, explicação e
causalidade. Autor de Os Fundamentos da Inferência Científica (1967) e de A Explicação Científica e a Estrutura Causal
do Mundo (1984). semântica (adj. semântico) Estudo do significado das expressões linguísticas, semântica (concepção de
teorias) De acordo com esta concepção, que tem diferentes versões, as teorias não deviam ser entendidas como interpretações
de sistemas axiomáticos e os modelos desempenham um papel importante na compreensão científica. Esta perspectiva é
defendida por Bas van Fraassen e Ronald Giere. sentido Conceitos associados por um determinado falante ou uma
comunidade linguística ao uso de uma expressão linguística. O termo «Terra» será associado por um falante com um grau de
instrução razoável dos dias de hoje à ideia de um planeta que gira à volta do Sol e é habitado pelos seres humanos, sintáctica
(concepção de teorias) De acordo com a concepção sintáctica, uma teoria científica pode ser formalizada num sistema
axiomático que revela o esqueleto ou a estrutura da teoria. O ponto principal é que a interpretação da teoria — como, por
exemplo, aquilo de que trata — pode ser separada da estrutura do sistema formalizado. Esta perspectiva é defendida por
Carnap e Hempel. Aqueles que se lhe opõem defendem normalmente a perspectiva semântica das teorias, sintaxe (adj.
sintáctico) Estudo das regras que governam a estrutura das frases, sintética (afirmação) Uma afirmação é sintética se a sua
verdade ou falsidade não depende nem da sua estrutura lógica nem dos significados dos termos que contém. Exemplos:
«Todos os edifícios altos são feios»; «Os gatos são preguiçosos».
Sober, Elliott Filósofo da ciência e da biologia contemporâneo que participou em debates sobre a distinção entre ciência e
pseudociência, sobre o papel da simplicidade na avaliação de teorias e as raízes do altruísmo. Autor de De um Ponto de Vista
Biológico (1994) e de Reconstruindo o Passado (1988), onde trata do problema da indução, sólido (argumento) Um
argumento dedutivo é sólido se for válido e tiver premissas verdadeiras.
Stahl, Georg (1659-1734) Médico e químico que desenvolveu a teoria do flogisto, foi o primeiro a explicar a combustão, e
que depois explicou uma série de fenómenos químicos. Autor de Opusculum Chymico-Physico-Medicum (1715). Strawson,
Peter (1919-2006) Filósofo interessado pela lógica e pelo projecto de desenvolver uma metafísica descritiva. Argumentou a
favor da dissolução do problema da justificação da indução. Autor de Introdução à Teoria Lógica (1952), Indivíduos (1959)
e Os limites do Sentido (1966). subdeterminação Um conjunto de hipóteses ou de teorias é subdeterminado pelos indícios
disponíveis se forem empiricamente equivalentes (ou seja, se os indícios não conseguem distingui-los) mas incompatíveis (ou
seja, não podem ser ambos verdadeiros). A subdeterminação tem várias forças: há autores que alegam que os indícios nunca
podem ser suficientes para determinar a escolha de teorias (a tese forte), ao passo que outros ficam pela tese mais moderada
de que em algumas circunstâncias a escolha de teorias é subdeterminada pelos indícios (a subdeterminação fraca).
subjectiva (probabilidade) Juízo de probabilidade baseado no grau de crença que um agente tem na ocorrência de um
acontecimento particular.
Suppe, Frederick Filósofo da ciência contemporâneo que desenvolveu a perspectiva semântica das teorias científicas. Autor
de A Concepção Semântica da Teoria e o Realismo Científico (1989) e organizador de uma colectânea influente de artigos, A
Estrutura das Teorias Científicas (1977). teoria/observação (distinção) A ideia de que as afirmações teóricas e as
afirmações observacionais diferem de uma maneira significativa (por exemplo: a sua verdade é determinada mediante um
processo diferente; todos os termos contidos nas afirmações observacionais referem, ao passo que nem todos os termos
contidos nas afirmações teóricas referem). A distinção é reforçada pelos positivistas lógicos, e é importante para a
plausibilidade do princípio da verificabilidade e para a concepção clássica das teorias. É enfraquecida pelos sociólogos da
ciência, que apelam à impregnação teórica das afirmações observacionais e à alegação de que o mundo da nossa experiência
se modifica após uma revolução científica. A distinção também desempenha um papel crucial no debate
realismo/anti-realismo. teóricas (definições) Uma definição teórica é uma estipulação por meio da qual um novo termo é
introduzido num enquadramento teórico (quantum, por exemplo) ou é dada uma nova conotação a um termo anteriormente
usado com base numa mudança de teoria («massa», por exemplo). A definição de um termo teórico deve tornar claro que o
papel da entidade ou propriedade que o termo refere está no âmbito da teoria, teóricos (termos) Termos que por norma não
referem entidades ou propriedades observáveis, mas entidades ou propriedades postuladas por uma teoria científica para
finalidades explicativas e preditivas («electrão», «flogisto» ou «condicionamento», por exemplo). A questão sobre se os
termos teóricos referem genuinamente e como o seu significado é determinado é controversa — ver o debate realismo/anti-
realismo e o debate entre os descri ti vistas e os adeptos da teoria causal da referência.
testemunho Forma de adquirir crenças não através de indícios directos ou da experiência pessoal, mas com base no relato de
alguém. O testemunho pode ser fiável ou não, dependendo das circunstâncias em que é obtido. Thagard, Paul Filósofo das
ciências cognitivas interessado na explicação científica e na mudança conceptual. Autor de Revoluções Conceptuais (1992).
utilitarista (cálculo) Processo mediante o qual determinamos se uma acção é certa ou errada com base nas suas consequências
globais para todos os indivíduos envolvidos. O que é calculado é a utilidade, que pode ser caracterizada de várias maneiras
(em termos de bem-estar, felicidade ou satisfação de preferências/interesses relevantes, por exemplo). Perspectiva ética
defendida por Jeremy Bentham, John Stuart Mill e, mais recentemente, Peter Singer. válido (argumento dedutivo) Um
argumento dedutivo é válido se for impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa.
Van Fraassen, Bas Filósofo da ciência contemporâneo que desenvolveu o empirismo construtivo como alternativa ao
realismo e ao instrumentalismo no seu influente livro A Imagem Científica (1980). Também defende uma perspectiva
pragmática da explicação e a distinção teoria/observação, verificabilidade Critério que uma afirmação sintética tem de
satisfazer para ser considerada significativa pelos positivistas lógicos. Uma afirmação sintética tem significado se pudermos
determinar a sua verdade com base em dados empíricos ou gerar previsões a partir dela que são confirmadas pelos dados,
verificação A verificação é o processo mediante o qual uma hipótese ou uma teoria é testada. A hipótese (ou teoria) é
verificada — ou seja, considerada verdadeira — se as previsões feitas com base nela foram até então confirmadas por
indícios, virtudes (ética das) Abordagem à ética que se centra na importância de os agentes desenvolverem um bom carácter
moral em vez de seguirem regras ou calcularem os possíveis efeitos das suas acções. Aristóteles é considerado o principal
filósofo responsável por esta abordagem da ética.
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Índice de figuras

2.1 O comboio de Einstein: a perspectiva do passageiro

2.2 O comboio de Einstein: a perspectiva do observador

4.1 Os elementos e as suas propriedades em Aristóteles


Índice de quadros

1.1 Desenvolvimento da concepção de átomo

2.1 A estrutura lógica do argumento 1 e de outro argumento exemplificativo

2.2 Diferenças e semelhanças entre três tipos comuns de argumentos

2.3 Figuras e avanços importantes da Revolução Copernicana

3.1 Um paradoxo para a teoria da confirmação de Hempel

3.2 Predicados não artificiais que se comportaram um pouco como «verdul»

3.3 O Modelo Estatístico-Indutivo de Explicação

3.5 Outros exemplos de explicação

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