Você está na página 1de 265

Remova Wondershare

Marca d'água PDFelement


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A Concepção Física
do Mundo
Como os seres humanos criam
o universo em que vivem
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Conselho Editorial da Editora Livraria da Física

Amílcar Pinto Martins – Universidade Aberta de Portugal

Arthur Belford Powell – Rutgers University, Newark, USA

Carlos Aldemir Farias da Silva – Universidade Federal do Pará

Emmánuel Lizcano Fernandes – UNED, Madri

Iran Abreu Mendes – Universidade Federal do Pará

José D’Assunção Barros – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Luis Radford – Universidade Laurentienne, Canadá

Manoel de Campos Almeida – Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Maria Aparecida Viggiani Bicudo – Universidade Estadual Paulista - UNESP/Rio Claro

Maria da Conceição Xavier de Almeida – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Maria do Socorro de Sousa – Universidade Federal do Ceará

Maria Luisa Oliveras – Universidade de Granada, Espanha

Maria Marly de Oliveira – Universidade Federal Rural de Pernambuco

Raquel Gonçalves-Maia – Universidade de Lisboa

Teresa Vergani – Universidade Aberta de Portugal

Ubiratan D’Ambrosio – Universidade Anhanguera, São Paulo


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

EDUARDO SIMÕES

A Concepção Física
do Mundo
Como os seres humanos criam
o universo em que vivem

2021
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Copyright © 2021 Editora Livraria da Física


1ª Edição

Direção editorial: José Roberto Marinho

Capa: Fabrício Ribeiro


Projeto gráfico e diagramação: Fabrício Ribeiro

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Simões, Eduardo

A concepção física do mundo : como os seres humanos criam o universo em que vivem /
Eduardo Simões. – São Paulo: Livraria da Física, 2021.

Bibliografia.
ISBN 978-65-5563-035-0

1. Atomismo (Filosofia) - História 2. Ciência - História 3. Metafísica 4. Teoria atômica - História


I. Título.

20-49776 CDD-501

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia da ciência 501

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora.
Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107
da Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998

Editora Livraria da Física


www.livrariadafisica.com.br
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Para
Alana e Dafne, minhas queridas filhas;
Silvana, minha esposa;
Maria das Graças, minha mãe.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

“Quem fez a experiência de pensar


em outro domínio sobrepuja sempre
aquele que não pensa de modo algum
ou muito pouco”
Albert Einstein, Como vejo o mundo.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

SUMÁRIO

Prefácio ..................................................................................................................13
Apresentação .........................................................................................................25

CAPÍTULO I
O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA ..................29
1.1 A (meta)física grega e a fabricação da realidade................................................30

CAPÍTULO II
O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O
SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A METAFÍSICA DE RENÉ
DESCARTES ......................................................................................................47
2.1 Gassendi contra a autoridade da filosofia aristotélica-escolástica .....................48
2.2 Gassendi contra a metafísica de Descartes........................................................53
2.3 O atomismo epicurista de Pierre Gassendi .......................................................60

CAPÍTULO III
O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI ................................71
3.1 Galileu herético? ...............................................................................................76

CAPÍTULO IV
O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA
MECÂNICA NA IDADE MODERNA ............................................................87
4.1 O dualismo metafísico de Descartes e a resposta ao problema das qualidades
secundárias .............................................................................................................88
4.2 A metafísica de Boyle como resposta aos problemas da ciência moderna .........93
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO V
NEWTON METAFÍSICO ...............................................................................101
5.1 Os componentes metafísicos da física newtoniana..........................................102

CAPÍTULO VI
ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON .......113
6.1 O eletromagnetismo e sua história .................................................................114

CAPÍTULO VII
HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA ...........125
7.1 A mecânica de Hertz: considerações preliminares ..........................................127
7.2 A mecânica de Hertz ......................................................................................133

CAPÍTULO VIII
ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO...147
8.1 Precedentes realistas nas teorias atômicas anteriores ao século XX no campo da
Química ...............................................................................................................151
8.2 Primeiros passos na descoberta do comportamento dos átomos: a radiação
ionizante...............................................................................................................158
8.3 Planck, Einstein e a teoria dos Quanta de energia e de luz .............................161
8.4 O modelo atômico de Rutherford ..................................................................164
8.5 O átomo de Niels Bohr e a explicação da estabilidade dos elétrons ................166

CAPÍTULO IX
O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA ......173
9.1 A dualidade onda-partícula ............................................................................176
9.2 A mecânica matricial e o princípio da incerteza de W. Heisenberg ................180
9.3 E. Schrödinger: função e colapso de ondas .....................................................188
9.4 A Interpretação de complementaridade ..........................................................195
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO X
A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE
COPENHAGUE ...............................................................................................209
10.1 O debate Einstein-Bohr sobre os fundamentos da mecânica quântica .........210
10.2 David Bohm: realismo e não-localidade na mecânica quântica ....................222
10.3 A desigualdade de John Bell .........................................................................226
10.4 O gato de Schrödinger..................................................................................229
10.5 Hugh Everett III e a interpretação dos estados relativos ..............................233

CAPÍTULO XI
O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS
SERES HUMANOS CRIAM O UNIVERSO EM QUE VIVEM.................247
11.1 O misticismo quântico..................................................................................248
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

PREFÁCIO

A
despeito das diferentes abordagens epistemológicas e da diversidade
de respostas quanto à ontologia das entidades físicas mais básicas, os
físicos filósofos, como Einstein, Heisenberg e Schrödinger, concor-
davam em relação às origens gregas da ciência moderna. Einstein e Infeld
salientaram que a atitude científica fundamental, o núcleo epistemológico das
ciências físicas, da filosofia natural dos antigos gregos à física moderna de seu
tempo, consistia em buscar reduzir a pluralidade, multiplicidade e complexi-
dade dos fenômenos naturais aparentes a causas únicas, simples e inteligíveis.
Heisenberg pensava que a dedicação à física nuclear exigia o estudo da história
do átomo, remontando à Grécia Antiga, e Schrödinger concebia que a teoria
quântica começara há 24 séculos, com a primeira teoria discreta da matéria,
entre os atomistas. A matéria seria descontínua e poderia ser finitamente sub-
dividida até alcançarmos unidades básicas sem estrutura interna.
Pode nos parecer um continuísmo exagerado afirmar que a física de partí-
culas é o desdobramento contemporâneo de um “programa” de investigação tão
antigo. Mas nos parece inegável que esse ramo atual da pesquisa básica busca,
através dos mais avançados recursos experimentais, contribuir para o aumento
de nossa compreensão acerca de grandes questões, que são filosóficas, tanto por
sua história quanto por sua natureza. Se, conforme Heisenberg, quem desejar
compreender os mais atuais desenvolvimentos físicos acerca dos constituin-
tes últimos da matéria deverá estudar a rica história do conceito filosófico de
átomo, então, com o lançamento desta obra do professor Eduardo Simões, o
público brasileiro ganhará valioso material para tal empreendimento.
 Como já afirmamos, além de apontar as raízes gregas do átomo, Simões
vai além, e demonstra a presença de inúmeras outras entidades inobserváveis
postuladas em diversos períodos da História da Física. O presente livro não
é uma “História do Atomismo” ou da matéria, nem uma discussão filosófica
acerca do realismo de entidades ao longo do tempo. Ele engloba tais tópicos,
mas me parece, sobretudo, uma discussão filosófica e histórica acerca do papel
da criação racional de entidades metafísicas (com finalidades de completude
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

14 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

lógica de sistemas de física teórica), na história da ciência. Em palavras mais


simples, o presente livro parece ser uma reflexão sobre como os seres humanos
criam o universo em que habitam. Não no sentido místico espetacular, mas no
sentido epistemológico mais sutil. O tecido do espaço-tempo sobre o qual nos-
sos corpos se movimentam foi confeccionado nos teares da razão. Não porque
a observação consciente crie, em sentido estrito, a realidade física, mas porque
tudo o que é palavra, número, signo, símbolo e significado é obra de criadores
incansáveis. 
Preciso destacar que, das muitas coisas que gostei no texto, uma me cha-
mou a atenção com tamanha vivacidade logo na apresentação. Trata-se dessa
elevada beleza de propósito, com ares de poesia, que o autor escreve sua obra.
A ideia de que a investigação das origens e dos desdobramentos do conceito de
matéria, antes de representar um tecnicismo no bojo de uma cultura de espe-
cialistas, é um modo de nos fazer pensar sobre o nosso lugar no universo reme-
teu-me à resposta que Schrödinger oferece para a questão do valor da ciência.
O que torna a ciência uma parte fulcral da cultura humana, o que faz dela um
ideal de vida, uma forma de encarar o nosso papel no grande drama cósmico,
diz Schrödinger, não é sua dimensão utilitária, mas seu espírito filosófico. A
ciência participa da busca por responder uma questão metafísica fundamental:
“Quem somos nós?”. Que essa seja uma das premissas do presente livro é algo
significativo, que o reveste de um sentido pedagógico, e mesmo existencial, da
mais alta importância, sobretudo nos tempos utilitaristas em que vivemos.
Os leitores, absorvendo esse sentido, entrarão em contato não somente
com questões de epistemologia e ontologia das ciências físicas, mas, o que nos
parece ainda mais importante, com uma determinada concepção de ciência
que nos é muito cara, e que foi nutrida por grandes pensadores, como Planck,
Einstein e Schrödinger, por exemplo. Uma concepção não utilitária de ciência,
na qual a metafísica exerce um papel fundamental na constituição de pressu-
postos, na elaboração dos fundamentos conceituais, na postulação de entidades
físicas. Em tal concepção de ciência, há espaço não somente para a metafísica,
mas também para outros ramos da tradição filosófica, como a estética e a axio-
logia. É assim que critérios lógicos e estéticos, como simplicidade, economia,
concisão, elegância e beleza desempenham funções epistêmicas na física teó-
rica, e que valores, ou princípios axiológicos, como busca da verdade, hones-
tidade, autocrítica e natureza pública, podem nortear o mundo da pesquisa,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Prefácio 15

como os contornos de um horizonte utópico para o qual devemos sempre nos


encaminhar, e para o qual devemos buscar voltar a cada novo desafio.
Não temos aqui a intenção de fazer uma resenha do livro que o leitor
tem em mãos. Isso retiraria dele o prazer de descobrir por si o ineditismo e
a originalidade do texto. Contudo, das muitas características gerais da obra
de Eduardo Simões, algumas das quais já elencamos, cabe enfatizar uma. O
presente texto nos mostra como a concepção física do mundo, como o próprio
termo “concepção” deve sugerir, é obra do engenho, da imaginação, para nos
utilizar das palavras de Einstein, do “pensamento puro” que concebe o real,
postulando, por necessidade lógica, a existência de entidades. As entidades
assim assumidas, como os átomos, não são criações arbitrárias e triviais, mas
peças sem as quais o quebra-cabeça do sistema, a consistência lógica da teoria,
não se completaria.
A necessidade lógica que movia a física dos primeiros filósofos é da
mesma natureza daquela da moderna física teórica: para que o templo da teoria
seja concluído sem lacunas, com consistência lógica, beleza, elegância e harmo-
nia, é preciso ir além do que os sentidos podem nos informar. É preciso criar,
conceber, imaginar, enfim, postular entidades inobserváveis, entidades teóricas
puramente abstratas. Desde os gregos, os physikós trataram de elaborar suas
imagens da natureza se valendo de tal recurso. Como Simões nos mostra, isso
alterou todo o curso do pensamento ocidental subsequente. Parece que aqui,
então, já dispomos de ao menos duas características gerais que, a despeito de
todas as rupturas e peculiaridades de cada época que possam ser invocadas
por historiadores descontinuístas, são traços do pensamento filosófico antigo
que foram herdados pelos que vieram depois. Primeiro, a busca por unidade,
ordem e harmonia, que se resume na tentativa de reduzir a diversidade de
fenômenos múltiplos e complexos a causas naturais únicas e simples. Segundo,
a atitude teorética, isto é, a criação de uma concepção física do mundo sob
a forma de um sistema lógico dotado de conceitos fundamentais, dentre os
quais, as entidades inobserváveis, como os átomos dos antigos e os quarks dos
contemporâneos.
Esses dois traços se completam, como que formando as “regras do jogo”.
Por meio deles, alguns pressupostos são admitidos e postulados são assumidos.
A natureza deve ser ordenada e dotada de unidade, mas não se espera que essa
imagem do mundo seja passivamente descoberta nem tampouco sensivelmente
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

16 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

observada. Cabe à razão concebê-la, de modo ativo. Contrariamente ao que


uma compreensão etimológica da palavra poderia nos sugerir, os teóricos não
simplesmente contemplam a natureza, não, ao menos, sem antes fazê-la vir a
ser, como suas obras. As teorias, tal como grandes construções, não se limitam
a refletir a realidade, como espelhos. Antes, o que nos exige outras metáforas,
elas projetam a realidade sob uma tela branca, elas representam o real, tal como
a criação dos pintores.
Que a representação pictórica e a realidade se aproximem é o desejo, o
ideal. Mas os teóricos não sabem fazer espelhos que simplesmente captem o
real. Em sua busca pela unidade física do mundo, eles devem compor a ima-
gem capaz de expressar a harmonia desejada. O texto de Simões nos faz per-
ceber essa faceta do pensamento filosófico desde a antiguidade, ajudando-nos
a entender o quanto ativa, inventiva e criativa é a atividade de um teórico da
natureza.
Quando pisamos no solo das ciências – e no nosso caso, especificamente
da física –, basta ter olhos educados para saber reconhecer que há metafísica
por toda parte. O livro de Eduardo Simões tem o mérito de nos mostrar que
a física, que não se resume a contemplar o real, mas a construí-lo, se utiliza de
pedras criadas e lapidadas pela razão pura: o átomo, o espaço absoluto, o éter,
os campos, os quantas, e tantas outras. Muitas das construções assim edificadas
nascem no terreno puramente formal da intelecção, e se dirigem às alturas das
mais elevadas abstrações, sem jamais tocar a outra margem do rio, sem nunca
estabelecer uma conexão com o mundo da experiência. Outras construções,
contudo, assumem a forma de pontes, e não de torres, e estabelecem corres-
pondências mais ou menos consistentes entre o mundo das ideias e o mundo
dos fatos. Não duvidaria, no entanto, se alguém me dissesse que também há
pontes que se constroem de lá para cá, ou simultaneamente de ambos os lados,
e que em algum momento se encontram acima de águas revoltas.
Esses criadores e construtores, que são os teóricos, mas também os expe-
rimentais, independentemente do quanto estejam cientes disso, cultivam cren-
ças metafísicas, e seus trabalhos contribuem para a constante renovação da
questão fundamental acerca da natureza da realidade. Qualquer entidade física
postulada e assumida como real – sobretudo nos períodos em que as bases
empíricas a favor de sua existência são escassas ou mesmo inexistentes – revela
a presença de um programa metafísico realista, assim como qualquer entidade
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Prefácio 17

hipotética postulada e assumida estritamente como um instrumento mate-


mático, uma construção intelectual, uma ferramenta de cálculo, será agente
de uma metafísica antirrealista de algum tipo. Até mesmo o positivismo em
sua voraz fé antimetafísica, na medida em que pretende deliberar sobre o que
podemos e não podemos falar acerca da natureza das coisas, acaba por reforçar
a inevitabilidade da metafísica.
O presente livro de Eduardo Simões tem mais um mérito, o de demons-
trar, por meio de inúmeros exemplos históricos, que a inevitabilidade da meta-
física deve ser tomada sem juízo de valor. Isto é, do fato de que há metafísica,
não se segue que seja boa, frutífera e logicamente necessária. Para tomar ter-
mos – embora não seus sentidos – emprestados de Lakatos, poderíamos dizer
que há programas metafísicos degenerativos e construtivos. Os construtivos,
bem já os citamos em diversos exemplos, se revestem de necessidade lógica,
como as pedras fundamentais que reivindicam, garantem ou asseguram a com-
pletude de um sistema: dos átomos de Demócrito, passando pelos campos de
Maxwell ao quantum de Planck. Em que “lugar” poderia Newton construir
o magnífico templo da física clássica, senão no espaço absoluto? Por onde as
ondas gravitacionais se propagariam se Einstein não lhes tivesse concebido
como palco a métrica do espaço-tempo? Os programas metafísicos degenera-
tivos, por sua vez, poderiam ameaçar a própria consistência, a credibilidade e a
prosperidade da ciência.
Talvez boa parte do misticismo quântico, analisado aqui por Simões,
baseada em doutrinas metafísicas exóticas, possua uma ação corrosiva para
a pesquisa científica, contaminando seus bastidores com confusão, minando
as bases da credibilidade pública da ciência e confundindo os leigos quanto
aos reais problemas e debates científicos. Ainda assim, não seria sensato con-
siderarmos tudo o que advém do misticismo quântico como desprovido de
interesse. O misticismo não deve ser simploriamente combatido, com postura
cientificista, mas entendido, compreendido, analisado tanto em sentido his-
tórico e sociológico quanto epistemológico. É o que Simões realiza na última
parte da obra.
Sua problematização da filosofia da mecânica quântica nos presta um
importante serviço, oferecendo-nos a oportunidade de refletirmos sobre as res-
postas científicas mais recentes para uma das questões metafísicas mais anti-
gas: Qual é a natureza última da realidade? O tratamento que Eduardo Simões
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

18 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

dá a diversos problemas de mecânica quântica (MQ) nos apresenta às tensões


entre múltiplas formas de realismo e antirrealismo na física contemporânea, e
levanta questões inquietantes, algumas gerais, como “Quais as bases metafísi-
cas das muitas interpretações da MQ?” e outras mais específicas, como “Qual a
natureza da função de onda?” e “O que provoca o seu colapso?” – se há algum
colapso. Embora possamos defender abordagens diferentes no que diz respeito
ao debate entre realismo e antirrealismo em filosofia da mecânica quântica,
devo reconhecer que o presente livro me parece não somente instrutivo como
provocativo, podendo nos proporcionar ótimos momentos de pesquisa, refle-
xão, diálogo e debate.
Alguém poderia argumentar que, para aqueles que desejam compreender
a filosofia da mecânica quântica, a que se dedica o autor nos capítulos finais
do livro, a primeira parte, que empreende uma reflexão epistemológica sobre
o problema da constituição básica e da natureza da matéria, começando pelos
antigos gregos, como Leucipo, Demócrito e Epicuro, passando pelos latinos,
como Lucrécio, até chegar aos filósofos naturais da Europa, como Galileu,
Newton, Gassendi e Descartes, compreende uma discussão menos atual e
interessante. Pensamos de modo diverso. Muitos dos físicos filósofos pionei-
ros da mecânica quântica recorreram aos gregos, enaltecendo sua vitalidade e
atualidade. Quando Eduardo Simões faz o mesmo, ele cria o alicerce histórico
e filosófico necessário para que possamos entender o estado da arte no que diz
respeito às questões filosóficas que perpassam a mecânica quântica.
Além disso, procurando me desvencilhar de qualquer forma de presen-
tismo ou anacronismo, e reconhecendo as inúmeras peculiaridades dos estilos
de pensamento de outras épocas e sociedades, confesso que estou entre aqueles
que admiram a atualidade dos gregos. “Qual é a natureza do nosso universo
e do que ele é feito?”. Essa questão imediatamente nos remete ao estilo de
pensamento e ao tipo de investigação racional dos primeiros cosmólogos gre-
gos, cujo objetivo intelectual era elaborar uma cosmovisão racional que uni-
ficasse e ordenasse a natureza, acomodando os eventos, ou “coisas naturais”
(τὰ φυσικά), ao mesmo quadro teórico, fazendo todo o turbilhão multifacetado
de fenômenos observáveis provir de uma única causa puramente intelectiva e,
assim, inobservável. Se a filosofia nasce como física e cosmologia, estas, desde
sua aurora, se fundam em princípios metafísicos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Prefácio 19

Os physikós (φυσικός)1, aqueles pensadores originários que tomaram a


physis por objeto, conhecidos posteriormente como filósofos pré-socráticos,
inauguraram um estilo de pensamento e colocaram questões fundamentais,
dentre as quais aquelas que perguntam pelos princípios que organizam a reali-
dade e pela constituição fundamental de todas as coisas. Tais questões perma-
necem tão atuais que são as primeiras coisas que lemos ao acessarmos a página
oficial do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, que abriga o Grande Colisor
de Hádrons, o LHC; What is the nature of our universe? What is the made of ?.
O texto de apresentação continua afirmando que o que move os cientistas de
todo o mundo na pesquisa básica em física de partículas é a busca por respostas
para tais questões fundamentais. Questões que, como vimos, foram formuladas
pelos gregos antigos. De certo modo, uma das características das questões fun-
damentais é sua perenidade. As respostas podem ser provisórias, sofrer revés,
modificarem-se radicalmente, mas as perguntas permanecem atuais.
A maneira como o CERN se apresenta ao mundo não deve ser encarada
de modo trivial, tampouco como mera coincidência ou marketing científico.
De fato, ao acelerar feixes com 1011 prótons a velocidades relativísticas, obtendo
em média 30 colisões próton-próton a cada 25 nano-segundos em experimen-
tos como o ATLAS, o que os físicos de partículas pretendem, valendo-se das
mais altas energias que já fomos capazes de controlar em colisão de partículas,
é mergulhar um pouco mais fundo na estrutura fundamental da matéria a fim
de entender de que todas as coisas são feitas.
Os physikós gregos desejavam o mesmo, mas valiam-se, àquela altura, do
pensamento puro, de conjecturas audazes, e dos recursos parcos da experiência
imediata. Demócrito poderia observar o movimento desordenado de partícu-
las em suspensão, como grânulos de poeira expostos a um feixe de luz, algo
imaginativamente próximo ao movimento browniano observado muitos sécu-
los depois e, por analogia, poderia conjecturar que toda a matéria era composta
por corpúsculos indestrutíveis e indivisíveis, para os quais cabia perfeitamente
o nome de átomos. Parece-nos exagerada, no entanto, qualquer tentativa de
supervalorizar o papel dos sentidos na elaboração do conceito de átomo por

1 No livro B (terceiro) da Metafísica, Aristóteles se refere aos φύσεως, como Empédocles, que
buscavam reduzir a realidade à unidade inteligível. Na tradução de Edson Bini (2012) pela
Edipro da passagem (1001a1 [10]) do Livro Três, o termo escolhido em língua portuguesa é fí-
sicos, ao passo que Reale (2002), pela Edições Loyola, optara anteriormente por naturalistas para
traduzir o mesmo termo. Bini, em nota, utiliza filósofos da natureza como equivalente a físicos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

20 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Leucipo e Demócrito, como nos demonstra Eduardo Simões na presente obra.


O pensamento puro, ao que tudo indica, exerceu o protagonismo nesse caso.
Para Heisenberg, é justamente essa a grande diferença entre a física dos filó-
sofos antigos e a filosofia dos físicos modernos: o experimento exerce, para os
últimos, um papel desconhecido pelos primeiros. Einstein, por sua vez, con-
cordava com os antigos quanto à potência do pensamento puro em desvelar os
segredos da natureza. Se a relação entre razão e experiência é o que demarca
a diferença entre os filósofos antigos e os físicos modernos, então a física teó-
rica da aurora do século XX se encarregaria de nos mostrar, na concepção de
Einstein, que estávamos mais próximos dos antigos do que poderíamos consi-
derar costumeiramente.
Mais de 2300 anos depois, os trabalhos de Einstein, de 1905, sobretudo
dois artigos publicados na Annalen der Physik, a versão reduzida de sua “dis-
sertação” de doutorado, Uma nova determinação das dimensões moleculares, e o
artigo intitulado Sobre o movimento de pequenas partículas em suspensão den-
tro de líquidos em repouso, tal como exigido pela teoria cinético-molecular do calor
não somente assumiram, como reforçaram, o realismo de entidades acerca
da existência física objetiva dos átomos, tal como antes fizeram Maxwell e
Boltzmann, tendo sido duramente combatidos por positivistas como Mach,
que, ao conceber o átomo como uma entidade “meramente” teórica, encarava-
-o como um instrumento de cálculo, uma ferramenta de trabalho, destituído
de realidade física. A existência física do átomo, segundo Mach, deveria ser
expurgada da ciência como uma ideia metafísica. Einstein, por sua vez, que
assim como Planck advogava que não é possível fazer ciência sem metafísica,
permaneceu sendo fiel à concepção de que as partículas elementares, os blocos
de construção de toda matéria, eram reais, e só mais tarde substituiu, em sua
cosmovisão, a ideia de partícula pela de campo.
A estrutura fundamental da matéria deveria ser buscada por uma teo-
ria de campos. Esse abandono de uma perspectiva corpularista não foi uma
exclusividade de Einstein. Heisenberg, assumindo ao máximo o programa
pitagórico-platônico de matematização da física e geometrização da natureza,
postulou que as partículas elementares de matéria eram produtos de princípios
formais de simetrias, isto é, expressões físicas de relações matemáticas puras, ao
passo que Schrödinger pontuou o quanto a mecânica quântica havia nos afas-
tado da noção ordinária de matéria, introduzindo-nos em uma nova concepção
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Prefácio 21

física do mundo, em que as partículas de matéria são “criações temporárias” em


uma estrutura mais vasta formada por um “campo de ondas”.
O século XX foi marcado por diversos episódios que protagoniza-
ram debates acerca da natureza da matéria e da realidade física de entida-
des inobserváveis. Advogando que beleza e simetria devem ser propriedades
fundamentais de teorias verdadeiras, Dirac previu a existência dos pósitrons,
posteriormente observados. Décadas depois, Murray-Gelmann apresentou os
quarks à física de partículas. As novas entidades, consideradas como ideias ele-
gantes por Gell-Mann, não passavam, em seu pensamento, de entidades teó-
ricas, ideais, embora não no sentido platônico strictu sensu. Foi preciso que as
evidências se acumulassem a favor da existência física objetiva dos quarks para
que o próprio Gell-Mann reconhecesse que a livre e engenhosa criação de sua
razão pura, que postulara a existência daquelas entidades com o intuito formal
de dar mais um passo na direção da completude lógica do modelo-padrão,
correspondia a partículas reais.
Na era dos colisores de partículas, diversas outras “ascensões ontológicas”
foram testemunhadas. Higgs previu com antecedência de décadas o bóson, que
só foi observado muito recentemente a custo dos mais sofisticados e potentes
experimentos já realizados em faixas de energia altíssimas. O que era uma enti-
dade hipotética passou a integrar o hall das entidades físicas reais. Mas histori-
camente os realistas não esperam pela confirmação experimental da existência
de uma entidade. Eles assumem-na, geralmente motivados pelos pressupostos
metafísicos de unidade e ordenamento do real, e pelos ideais filosóficos de
completude e simplicidade lógica das teorias.
Assim Demócrito assumiu a existência dos átomos, e séculos depois,
também Galileu, Boltzmann, Einstein e tantos outros; Newton assumiu a exis-
tência do espaço e do tempo absolutos; Boyle, a do Éter; Faraday e Maxwell
a do campo eletromagnético; e hoje, os teóricos das cordas postulam entida-
des incrivelmente menores do que nossas partículas elementares do modelo-
-padrão, enroladas em espaços multidimensionais que, na escala da natureza,
são as menores estruturas do mundo. Defensores da gravitação quântica em
loop, pensando a constante de Planck como a unidade mínima indivisível de
espaço, identificam-na como o quanta do espaço-tempo, cosmólogos assumem
a existência de matéria e energia escura a fim de solucionarem o problema da
estrutura e da expansão do universo e adeptos do modelo-padrão de cosmologia,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

22 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

proponentes do Big Bang e de outros modelos cosmológicos singulares tratam


como uma realidade o maior inobservável de todos: a singularidade.
A singularidade, conforme críticos do modelo-padrão e defensores de
universos eternos ou universos cíclicos não singulares, demarcaria o fim da
ciência, por ser inobservável em si. Isto é, seu status de entidade inobservável
não seria provisório. Sua “inobservabilidade” seria intrínseca, não decorrendo
de qualquer limitação metodológica ou tecnológica. A singularidade é um
conceito matemático que representa um ponto de raio nulo que concentraria
todo espaço-tempo e toda massa-energia que hoje observamos no universo
em larga escala. O Big Bang, longe do que o nome sugere, corresponderia aos
eventos que se sucedem após a quebra da singularidade, com o subsequente
início da inflação de todo o espaço-tempo e massa-energia resultantes, e não
a nenhuma explosão – na singularidade não pode haver explosão, pois não há
“onde”, “quando” e nem “o que” explodir.
Basear a cosmologia na singularidade seria fundar a ciência sobre um
inobservável extremo e inexorável? Em algo que é inobservável por sua própria
natureza? O “Debate de Munich”, envolvendo nomes como George Ellis, Sean
Carrol e Richard Dawid, tocou na raiz do problema. A base empírica e a con-
firmação experimental são critérios inegociáveis de cientificidade e verdade,
como argumenta Ellis, ou teorias como as teorias de cordas e supercordas, que
postulam entidades intrinsecamente inobserváveis, podem ser não somente
científicas, como consideradas verdadeiras, a partir de critérios exclusivamente
teóricos, epistemológicos, lógicos e estéticos, como a (suposta) capacidade da
teoria em unificar a relatividade geral e a mecânica quântica, além de sua con-
sistência lógica e beleza matemática?
Se tivéssemos que enumerar todas as questões filosóficas que o livro de
Eduardo Simões levanta, sem dúvida padeceríamos de tarefa com elevado grau
de dificuldade. Não se trata de fazer um inventário, de escrever uma lista. O
leitor terá em suas mãos dezenas de páginas cheias de análises detalhadas sobre
a vida e a obra de muitos pensadores, abarcando vários períodos históricos,
passando por muitas teses filosóficas e teorias científicas. Em certas passagens,
a competência com que o autor aborda questões muito específicas nos faz pen-
sar que o livro fora escrito por um físico, outras nos convencem de que é obra
de historiador, também vemos no texto a mente e as mãos de um epistemólogo.
É, portanto, obra plural, cheia de uma expertise multidisciplinar.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Prefácio 23

Como não vamos pontuar uma a uma as questões epistemológicas, lógi-


cas, científicas e históricas que o livro introduz, devemos, para finalizar e con-
cluir esse prefácio, ao menos destacar os principais filamentos da tessitura que
perpassa e sustenta a obra, recapitulando o que já dissemos anteriormente.
Trata-se de um livro que aborda filosoficamente como as questões acerca dos
constituintes básicos de todas as coisas e da estrutura fundamental da matéria
foram tratadas em diversos momentos históricos, da antiguidade grega à física
atual. No entanto, tal discussão se revela compreendida por outra, não somente
mais ampla, como também mais profunda, que é a da natureza filosófica da
ciência enquanto atividade de criação. A criação do conceito de átomo é a
porta de entrada para esse universo mais vasto. Em última análise, tal como
a compreendo, a obra de Eduardo Simões trata da relação entre logos e cos-
mos, não é sobre o átomo, o éter, campos ou funções de onda, mas sobre seres
inteligentes que criam a realidade. Seres que inventam linguagens, sistemas
simbólicos, conceitos e, a partir deles, escrevem o infindável livro da natureza.

Vinícius Carvalho da Silva – UFMS


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

APRESENTAÇÃO

O
livro que ora se apresenta com o título A Concepção Física do Mundo
nasceu do meu desejo em ver reunidos textos por mim utilizados,
semestre a semestre, em minhas aulas de filosofia da ciência. Trata-se
de uma coletânea de artigos e capítulo de livro por mim publicados – além
de uma série de textos inéditos – e que tem como viés a análise histórica e
filosófica do desenvolvimento do atomismo, do corpuscularismo, da filosofia
mecânica e da física de partículas, além de abrigar discussões sobre entidades
metafísicas na história da física, como é o caso do espaço absoluto, das massas
ocultas e do éter. Não se trata, entretanto, de uma análise exaustiva de como
a filosofia se debruça sobre tais temas desvendando-lhes o seu caráter meta-
físico. Trata-se, contudo, de um trabalho de esforço em tentar demonstrar aos
meus alunos – e agora aos meus leitores – como é possível que, mesmo com
a pressuposta intenção de objetividade, ainda assim, o campo da ciência deixa
um amplo espaço para a filosofia, especialmente para a metafísica, quando da
pretensão do tratamento da natureza última da realidade.
É sabido que muitas das teorias científicas, visto da necessidade de uni-
versalidade e independência formal dos seus sistemas teóricos, criam realida-
des aquém do próprio funcionamento da natureza a fim de antecipar possíveis
ocorrências naturais, mesmo a contragosto da própria realidade. Não se nega,
com isso, o caráter objetivo da maioria delas, nem mesmo a honestidade inte-
lectual daqueles que as desenvolvem; questiona-se, contudo, a necessidade do
amplo emprego de subterfúgios ad hoc para a explicação da realidade, a ponto
de se estabelecer uma confusão sobre fronteiras, isto é, sobre o que há de cientí-
fico e o que há de filosófico nas pretensas teorias. E é sobre isso que o presente
livro pretende tratar.
Quando oferto uma disciplina como a de filosofia da ciência, minha pre-
ocupação primeira, uma vez que estou lidando com alunos de graduação, é a de
não focar o trabalho em um ponto específico e nem me permitir um viés exclu-
sivista sobre algum autor ou sobre alguma teoria. Procuro ampliar o máximo
possível as perspectivas, possibilitando que o aluno, que se encontra em fase de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

26 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

preparação acadêmica, tenha uma visão mais panorâmica possível da área que
necessita conhecer, visto que tais discussões são partes integrantes do seu cur-
rículo. Assim procedendo, procuro também não me deixar atraiçoar pelo risco
do superficialismo e pelo perigo da análise precária do objeto de investigação.
Em virtude disso, deparo-me com a exigência de eleger um viés, um objeto de
discussão, que propicie o encadeamento dos diversos autores e análises sobre
o conteúdo programático da disciplina. Dessa forma foi que elegi, de forma
não exclusiva, o átomo para cumprir esse objetivo de encadeamento, visto que,
sob a perspectiva do atomismo, é possível envolver uma grande gama de itens
intimamente ligados aos mais interessantes problemas que a filosofia da ciên-
cia pode nos oferecer. É justamente a partir dessa perspectiva que nasce e se
desenvolve o nosso A Concepção Física do Mundo. Estou ciente das limitações
das discussões aqui propostas e, em virtude disso, gostaria de tomar o presente
trabalho muito mais como um projeto a ser desenvolvido oportunamente do
que como uma obra acabada.
Pretendendo uma análise acerca da natureza da realidade, sob o viés do
materialismo atomista e dos seus reflexos sobre a filosofia mecânica, apresento
ao leitor uma visão panorâmica de como essas concepções se desenvolveram,
percorrendo um caminho que envolve nomes como os de Leucipo, Demócrito,
Epicuro, Lucrécio, Gassendi, Galileu, Descartes, Boyle, Newton, Maxwell,
Hertz, perpassando pelo atomismo químico do século XIX até a física quân-
tica no século XX. Trata-se de uma análise histórica e parcial acerca das ideias
filosóficas subjacentes às teorias de todo esse período, com o fito de demons-
trar a engenhosidade do gênio humano em criar a sua própria realidade. Em
virtude disso, dois são os vieses principais que me orientam: a) o do antirre-
alismo filosófico subjacente a essas teorias, como é o caso dos pensamentos
de Demócrito, Descartes, Boyle, Hertz, das interpretações ortodoxas da física
quântica e do misticismo quântico no século XX; b) o do realismo das teorias
de Epicuro, Gassendi, Galileu e do atomismo químico do século XIX e físico
do início do século XX. Dessa forma, o leitor terá acesso ao desenvolvimento
da teoria da matéria, intimamente ligada à filosofia mecânica (em que entida-
des metafísicas estão profundamente relacionadas à questão do movimento),
onde encontrará conceitos distintos sobre o elemento último da matéria, que
ora se apresenta com a roupagem de atomismo, outra ora como corpuscu-
larismo, perpassando por noções de minima naturalia, minima sutilíssimos,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

Apresentação 27

minima quant, quantum etc. Todas essas noções pretendendo representar a tra-
dução temporal de como determinada filosofia idealiza esse algo que possa
servir de fundamento último e explicação da realidade material, por isso o
subtítulo Como os seres humanos criam o universo em que vivem.
Conforme adiantei, trata-se muito mais de um projeto, mas que, ainda
assim, espero que seja de utilidade aos leitores e que continue servindo de
deleite aos acadêmicos, sejam do curso de filosofia, de física, de química, de
ciências ou de história da ciência. O importante é que permitamos que o
tema da natureza última da realidade não se perca sob a justificativa de que o
mundo é tal e se encontra e permanece de tal forma, visto que um dia assim
nos foi legado seja por quem for. Sob o pretexto da busca pela inteligibilidade
da matéria, deveria estar subentendida a necessidade de pensarmos sobre as
nossas origens materiais, sobre o nosso lugar no cosmo e sobre a nossa efeme-
ridade, portanto, sobre a nossa transitoriedade. Que o conhecimento teórico
sobre os meandros da matéria seja um pretexto para o conhecimento acerca de
nós mesmos!
Por fim, gostaria de externar aqui alguns agradecimentos. Primeiramente,
agradeço ao prof. Dr. Vinícius Carvalho da Silva (UFMS) pela leitura aten-
ciosa do manuscrito e pelas diversas sugestões de aprimoramento ao texto,
bem como pela redação do Prefácio do livro. Suas intervenções fizeram-me
certificar que o caminho para a conclusão deste projeto ainda é muito longo!
Agradeço também a Universidade Federal do Tocantins (UFT) por ter me
concedido licença de um ano para pesquisa na modalidade de pós-doutorado,
cujo resultado foi a produção dessa obra, e pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) por ter me acolhido tão bem no estágio pós-doutoral, sob a
supervisão do prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé. Agradeço, ainda, a todos
os que de alguma forma contribuíram para a realização desse livro, o que de
forma nominal ficaria difícil de fazê-lo aqui dado ao grande contingente de
pessoas que contribuíram para a efetivação do que ora apresento ao público. A
todos vocês, o meu muito obrigado!

Eduardo Simões – UFT


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

28 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Referências das publicações originais


SIMÕES, Eduardo. O atomismo metafísico da antiguidade grega. Griot – Revista de
Filosofia, v. 15, n. 1, p. 324-339, 2017.

SIMÕES, Eduardo. O atomismo herético de Galileu Galilei. Griot – Revista de


Filosofia, v. 11, n. 1, p. 22-35, 2015.

SIMÕES, Eduardo. O Átomo, o Éter e as Explicações Metafísicas da Mecânica na


Idade Moderna. Pesquisa & Extensão – FACIT, v. 5, n. 1, p. 9-16, 2015.

SIMÕES, Eduardo. Newton Metafísico. Argumentos: Revista de Filosofia, ano 7, n. 13,


p. 266-280, jan./jun. 2015.

SIMÕES, Eduardo. Eletromagnetismo: para além das leis de Newton. Pesquisa &
Extensão – FACIT, v. 4, n. 1, p. 7-14, 2014.

SIMÕES, Eduardo. Heinrich Hertz: mecânica e filosofia da Ciência. In: SIMÕES,


Eduardo. Hertz, Wittgenstein e a Representação do Mundo. Curitiba: CRV, 2012. p.
47-106.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO I

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA

Introdução

H
á no interior das ciências naturais a pretensa resistência em considerar
uma verdade que lhe parece peculiar, mas que, por sua necessidade de
prova empírica, muitas vezes prefere ignorar: a de que teorias científi-
cas, quase sempre travestidas de uma suposta objetividade, podem trazer no
seu interior uma robusta metafísica resistente aos dados experimentais. Isso
acontece, por exemplo, com a identificação contemporânea da realidade do
átomo e de sua estrutura. Até que ponto a indicação de elementos atômicos
(ou subatômicos) aponta para a realidade material? O que constitui, de fato,
substância física ou entidade metafísica em tais elementos? Qual elemento
serve ao cumprimento de uma necessidade lógica dedutiva de funcionamento
do sistema e qual, de fato, existe? A inexistência do “elemento x” não colapsaria
todo o sistema? A existência do “elemento y” não pressuporia a inteligibili-
dade do sistema? Questões próprias do materialismo, que têm sido fruto de
discussões históricas a respeito da realidade do átomo, não foram necessaria-
mente fruto da preocupação dos antigos. Mais do que uma preocupação com a
necessidade de uma prova objetiva, material, estavam os gregos, desde Leucipo,
preocupados com a função lógica desempenhada pelo átomo no interior de
seus sistemas. Por isso, desencadearam uma série de explicações, cuja coerência
lógica era a exigência de fundo, onde o átomo desempenhou o papel não de
coadjuvante, mas de protagonista de argumentos nos quais se constituiu como
fundamento.
Diante do exposto, a intenção do presente capítulo, muito mais do que o
da defesa de qualquer ponto de vista, ou mesmo de qualquer tese, visa eluci-
dar algumas questões que serão de capital importância para o entendimento
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

30 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

da realidade do átomo na Antiguidade grega. Trata-se, assim, de um capítulo


propedêutico e elucidativo para quem ainda não se iniciou em ciência. Para
os especialistas, resta um breve passeio pelos caminhos da filosofia do átomo,
recapitulando temas supostamente dissecados, elucidados e resolvidos, mas
cuja atualidade não se perdeu. A despeito dos que não têm profundidade no
tratamento do desenvolvimento da história da ciência, ou dos que não con-
seguem vislumbrar que em seu interior houve (e há) lugar para o desenvolvi-
mento da metafísica, as discussões que se seguem tornar-se-ão substanciais,
visto que é da produção grega que partem os desenvolvimentos posteriores
acerca do entendimento do atomismo e de seus desdobramentos.

1.1 A (meta)física grega e a fabricação da realidade


Os períodos da filosofia antiga que aqui serão abordados referem-se, pri-
meiramente, ao período naturalista (século VI a.C.), cuja principal preocu-
pação é com o problema da physis (com a busca por um princípio substancial
responsável pela ordenação de todas as coisas), e terá como culminância a filo-
sofia helenística, com a análise do atomismo de Epicuro e Lucrécio. A preocu-
pação principal nessa análise não será necessariamente com a ciência nascente
e seus reflexos sobre uma sociedade radicada na cultura mítica. O foco será,
portanto, na visão cosmo-ontológica dos gregos e seus reflexos para as primei-
ras propostas de criação de uma realidade. O protagonista dessa discussão, que
entra em cena com toda sua força, apresentando-se de tempos em tempos com
novas roupagens, mas nunca excluído do imaginário coletivo de nossos cientis-
tas/filósofos, é o átomo. Este, desde os gregos, compõe uma realidade que, até
em seu nível mais fundamental ou subatômico, segundo observou Heisenberg
(1995, p. 27), é muito mais criada do que observada pelos físicos2.
Poderíamos iniciar essa exposição diretamente com o atomismo de
Leucipo e Demócrito, assim, já teríamos assegurado o entendimento de como
a criação da realidade se deu entre os gregos. No entanto, entender a necessi-
dade de postular as partículas elementares pressupõe entender quais discussões

2 Os átomos são introduzidos como realidade ontológica no interior das teorias da mecânica
como explicação para os fenômenos da ação por contato. A posteriori, especialmente depois de
Descartes e Newton, é o éter que toma seu lugar quando utilizado para explicação dos fenôme-
nos eletromagnéticos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 31

que as precederam, o que sugere uma breve retroação à filosofia naturalista do


período pré-socrático.
A física e a filosofia confundem suas origens na aurora do pensamento
grego; não é sem razão que a doxografia antiga denominou os primeiros filóso-
fos de oi physikói, ou “os físicos”, investigadores legítimos da physis, tendo sido
eles os primeiros a empreenderem uma importante superação do pensamento
mítico em favor do entendimento racional da ordem do universo. Foi na Jônia
que surgiram as primeiras concepções científicas e filosóficas da cultura oci-
dental. Os primeiros filósofos teriam sido os pensadores de Mileto: Tales,
Anaximandro e Anaxímenes. Também faz parte da escola jônica Heráclito de
Éfeso.
Procurando reduzir a multiplicidade à unidade exigida pela razão, os pen-
sadores de Mileto propuseram sucessivas versões de uma física e de uma cos-
mologia constituídas em termos qualitativos: qualidades sensíveis (frio, quente,
leve, pesado etc.) eram entendidas como realidades em si (“o frio”, “o quente”,
“o leve”, “o pesado”) e o universo era concebido como um conjunto no qual se
contrapunham os pares opostos. O mais antigo filósofo reconhecido como tal
é Tales de Mileto. Não se tem informações precisas sobre seu nascimento e
morte, o que se sabe é que ele estava no apogeu aproximadamente no ano de
585 a.C. – data em que teria previsto o eclipse do sol de 28 de maio. Atribui-se
a Tales muitas contribuições para o conhecimento, a saber: que sustentou pela
primeira vez a imortalidade da alma, que foi o primeiro a determinar o curso
do sol de solstício a solstício, que definiu o tamanho do sol como a 720ª parte
do círculo solar, que foi o primeiro a dar ao último dia do mês o nome de trigé-
simo e o primeiro a discutir problemas físicos (LAÊRTIOS, 2008, p. 18). Em
geometria, foi o primeiro que demonstrou que o diâmetro divide o círculo em
duas partes iguais, que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais,
que encontrou um método para medir a altura das pirâmides, medindo sua
sombra no momento que ela é regularmente igual ao tamanho de seu corpo
etc. Mas o mais importante para os nossos propósitos é o que Tales concebe
como arché, como elemento constitutivo de todas as coisas (sentido atribuído a
essa palavra entre os pré-socráticos).
Segundo Aristóteles (1969), o princípio constitutivo de todas as coisas,
sustentado por Tales, é a água. E o que justifica a escolha de tal princípio é
o fato de que “a terra flutuava sobre a água”, “que todo alimento é úmido”, o
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

32 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

“calor retira do úmido geração e vida”, a “semente de todas as coisas tem uma
natureza úmida”, de tal forma que “a água é o princípio da natureza de todas as
coisas úmidas” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969). Além do que, a água pode
assumir as mais numerosas e variadas formas: pode surgir como gelo e neve,
transformar-se em vapor e formar nuvens, parece transformar-se em terra nos
deltas dos rios. Enfim, ela é um elemento vital e é natural que, ao pensar em
um elemento primordial, a água apareça em primeiro lugar. Portanto, Tales
apresenta uma realidade ainda não criada, muito provavelmente, entendida
a partir de suas observações meteorológicas. Mas o que pretendemos aqui é
identificar onde a realidade começa a ser uma criação nossa, com todas as bases
materiais passíveis de questionamento.
A busca por um elemento primordial foi levada adiante por Anaximandro
(611-546 a.C.), discípulo e concidadão de Tales. Para Anaximandro, tal ele-
mento não poderia ser o princípio, mas derivaria desse princípio, chamado por
ele de ápeiron, privado de peras (de limites ou determinações), que compreende
uma infinidade de realidades e mesmo de mundos possíveis. O ilimitado é a
causa universal de toda geração e corrupção e pode se transformar nas várias
substâncias com as quais estamos familiarizados. Ele é o conflito eterno entre
o ser o e vir-a-ser: o primeiro, imutável, vê sua forma se degradar no vir-a-ser,
mas, ainda assim, permanece incorruptível3. É essa luta eterna entre os con-
trários a responsável pela criação do mundo: “o quente é oposto ao frio, o seco
ao molhado etc. Esses opostos combatem entre si e qualquer predominância
de um sobre o outro é vista como uma ‘injustiça’, razão pela qual os opostos
devem oferecer reparação, um ao outro no tempo marcado” (HEISENBERG,
1995, p. 50). Nota-se que Anaximandro não apresenta nenhum dos quatro ele-
mentos como sendo o elemento constitutivo de todas as coisas (nem a água, nem
o ar, nem a terra e nem o fogo), ao contrário, introduz em sua filosofia um ele-
mento ad hoc responsável por toda geração e corrupção. Teríamos aí a primeira
concepção ontológica de mundo? O que seria o ápeiron do milesiano? Qual
a justificativa para a introdução de tal elemento em sua teoria? Qual a neces-
sidade subjacente a tal construção? Sem que tenhamos uma resposta defini-
tiva para tal necessidade, resta-nos conjecturar que a introdução do ilimitado
como o princípio constitutivo de todas as coisas, deve-se a uma necessidade

3 “Disse também que as partes sofrem mudanças, porém o todo é imutável” (LAÊRTIOS, 2008,
p. 47).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 33

implícita, a saber, a de dar um caráter de necessidade e coerência lógica ao seu


pensamento. O ápeiron, dentre outras coisas, possibilita a universalidade do
sistema de Anaximandro, na medida em que se torna eterno. Temos aí a pri-
meira concepção de realidade mais criada do que observada. É a partir daí que
essa prática se torna comum no pensamento ocidental.
Quanto a Anaxímenes (metade do séc. VI a.C.), discípulo e continuador
de Anaximandro, renunciou a ter por princípio o ilimitado e o ar toma o lugar
de matéria ou substrato, que por rarefação e condensação engendra todos os
seres: condensando-se e reunindo-se o ar dá origem à água e à terra, enquanto
rarefazendo-se e dilatando-se dá origem ao éter e ao fogo e, retomando sua
própria natureza, volta a ser ar.
Como foi afirmado, os filósofos de Mileto propuseram uma física e uma
cosmologia constituídas em termos qualitativos. Foi Pitágoras (582-500 a.C.),
no entanto, quem promoveu uma virada no modo de pensar pré-socrático
quando propôs a matematização da experiência humana, reduzindo a análise
da qualidade à quantidade e traduzindo os fenômenos naturais em termos
matemáticos.
Conta-se que a escola pitagórica funcionava como uma espécie de seita;
os pitagóricos levavam uma vida monástica na qual, após uma iniciação de
duração variável, completava-se primeiro um noviciado de três anos (para os
acusmáticos ou fiéis), seguido de cinco anos de silêncio (para os matemáticos ou
sábios). Diz-se4, também, que Pitágoras teria sido o inventor da palavra filosofia
quando interrogado pelo tirano de Fliús sobre “quem era ele, respondeu: ‘um
Filósofo’. Comparava a vida aos Grandes Jogos, aos quais alguns compareciam
para lutar, outros para fazer negócios, e outros ainda – os melhores – como
espectadores; com efeito, alguns crescem escravos da fama, outros ambiciosos
de ganho, e os filósofos ávidos da verdade” (LAÊRTIOS, 2008, p. 230). O que
nos é relevante, contudo, é como Pitágoras concebe a realidade e o que ele
entende ser o princípio de todas as coisas.

4 As expressões “conta-se”, “diz-se”, devem-se ao fato da incerteza quanto à vida de Pitágoras que
não deixou nenhum documento escrito. Seus ensinamentos, conforme Diógenes Laércio, eram
transmitidos oralmente e guardados em segredo por seus primeiros discípulos que, também,
nada escreveram. Daí a dificuldade de distinguir o que era realmente de Pitágoras das ideias de
seus discípulos tardios.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

34 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Para Pitágoras, a realidade é formada pelo número e pelo universo


governado pela harmonia. O número é a essência de todas as coisas e todas
as coisas são números. A matemática, especialmente a geometria, foi a sua
paixão. Quanto à geometria, além de aperfeiçoá-la, dedicou-se ao estudo do
seu aspecto aritmético: descobriu o cânone monocórdio e que o quadrado da
hipotenusa num triângulo retângulo é igual à soma dos quadrados de seus
catetos. O filósofo admitia que a mais bela das figuras sólidas era a esfera e das
planas, o círculo. Mais ainda, os pitagóricos associavam os quatro elementos
da natureza aos sólidos regulares: a terra ao cubo, o fogo à pirâmide, o ar ao
octaedro e a água ao icosaedro e, com isso, reduziam todas as coisas do cosmo
ao número ou à inteligibilidade do pensamento.
Quanto ao princípio de todas as coisas tal como Pitágoras concebia,
Diógenes Laércio (2008) diz que Alexandre (historiador da primeira metade
do século I a.C.) teria afirmado em suas Sucessões dos Filósofos que nas Memórias
Pitagóricas havia prescrito que “a mônada é o princípio de todas as coisas”.
Produzida pela mônada, a díade indefinida existe como seu substrato material,
cuja causa é a própria mônada. São a mônada e a díade indefinida que engen-
dram os números, dos números nascem os pontos, dos pontos nascem a linhas
e das linhas nascem as figuras planas, as quais produzem figuras tridimensio-
nais. “Destas nascem os corpos perceptíveis pelos sentidos, cujos elementos
são quatro: o fogo, a água, a terra e o ar. Esses elementos transmudam-se para
produzir um cosmo animado, inteligente, esférico, tendo em seu centro a terra”
(LAÊRTIOS, 2008, p. 234). O texto não diz como se efetua essa geração. Isso
denuncia que a concepção pitagórica de realidade é, também, a de uma reali-
dade criada, onde o ideal de natureza é muito mais fundamentado na imate-
rialidade e inteligibilidade matemática do que na observação empírica. Certo é
que o pitagorismo exerceu profunda influência na filosofia grega posterior, quer
pela reação polêmica que provocou (em Xenófanes, Heráclito, Parmênides,
Zenão de Eléia), quer pelos pontos positivos que passaram para os pensado-
res posteriores. Mas, interessa-nos muito mais as polêmicas! Delas podemos
extrair exemplos imediatos de como a realidade, a partir de então, perde de vez
o caráter de realidade ipso facto. E Parmênides é o principal responsável.
Representante da Escola Eleata, fundada no começo do século VI a.C.
por Xenófanes, Parmênides (530-460 a.C.), Melisso e Zenão de Eleia for-
mavam o corpo dos três filósofos mais ilustres dessa escola. Em busca de um
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 35

princípio de inteligibilidade, os eleatas situavam esse princípio no Deus Uno


de Xenófanes, no Uno e no Ser de Parmênides e Melisso, ou ainda, no Uno-
múltiplo de Zenão. Sempre colocando a identidade do ser com o que o inte-
lecto apreende.
Enquanto os pitagóricos pensavam na imaterialidade e inteligibilidade
como fundamento do cosmo, Parmênides elaborou algo completamente novo
na filosofia: com ele a cosmologia (preocupação dos jônicos e dos pitagóricos)
transformou-se em ontologia. É justamente aqui que os nossos interesses se
firmam.
A atitude polêmica de Parmênides contra os pitagóricos gira em torno,
primeiramente, do dualismo defendido pelos pitagóricos: o da mônada e da
díade. O princípio de todas as coisas é a mônada (um princípio único ou o
Uno); da mônada vem a díade indefinida (a matéria ou “o dois” que é uma
emanação do princípio Uno); contudo, em terceiro lugar, vem o número, cujos
elementos são o par e o ímpar (sendo o primeiro ilimitado e o segundo limi-
tado); e o Uno deriva desses dois elementos, pois ele é ao mesmo tempo par e
ímpar. Por fim, o número deriva do Uno e o céu em sua totalidade é número
(ARISTÓTELES, Metafísica, 1969, A, 5.986 a 15). Como consequência do
dualismo pitagórico, nota-se que o Uno não é mais o primeiro, e a ordem então
seria: I) os Princípios: limitado e ilimitado, II) os Elementos: ímpar e par, III)
O Uno, a mistura e IV) O Número.
Parmênides rejeita esse dualismo e os desdobramentos dele advindos: o
ser e o não-ser, o cheio e o vazio, o móvel e o imóvel. E em vez de perguntar
qual é a origem do cosmo e de responder “é o número”, ou “os contrários”,
ou “a água”, ou “o ar”, prefere concentrar-se na natureza própria do saber, que
demonstra ser indissociável do ser. É assim que a ontologia se sobrepõe à cos-
mologia. Em segundo lugar, Parmênides polemiza contra os pitagóricos visto
que não concebe a existência do vazio; e isso por razões lógicas: o não-ser – o
vazio – não pode existir. Quando se assume que toda mudança requer espaço
vazio, assume-se a existência de tal espaço, e para não ter que se submeter a tal
aceitação, Parmênides radicaliza em rejeitar a ideia de mudança por considerá-
-la uma ilusão5.

5 Veremos que tal concepção é uma antecipação do que defenderão Aristóteles e René Descartes.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

36 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Nos fragmentos de seu texto que chegou até nós, intitulado Da Natureza,
a partir de um suposto diálogo com a deusa, fica-nos explícita a radical oposi-
ção entre o ser (que é pensado) e o não-ser: “É necessário que o ser, o dizer e o
pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é” (PARMÊNIDES, 2002,
p. 15). E o ser é ingênito, indestrutível, compacto, inabalável, sem fim e sem
princípio, homogêneo, uno, contínuo, indivisível, imóvel etc. Já quanto ao não-
-ser, nada se pode falar a respeito dele, nem pensar sobre ele, “pois não é dizível,
nem pensável, visto que não é” (PARMÊNIDES, 2002, p. 16). Quanto à via
da verdade, da investigação, essa pressupõe dois caminhos: “um que é, que não
é para não ser”, e “o outro que não é, que tem de não ser” (PARMÊNIDES,
2002, p. 14). O paradoxo de Parmênides encerra-se no seguinte fato:

A relação entre o primeiro e o segundo caminho é evidente: o que um


afirma o outro nega. Que sucede, porém, se a cada um deles aplicamos
a indicação do outro (negando o primeiro e afirmando o segundo)? A
resposta não pode ser mais simples: caímos no segundo e voltamos ao pri-
meiro (a negação nega a afirmação e a dupla negação é a esta equivalente)
(SANTOS, 2002, p. 66).

Desse paradoxo podem-se extrair consequências lógicas interessantes


quando se admite que através do pensamento só se pode afirmar ou negar:
quando a afirmação é igual à afirmação e a negação é igual à negação (A = A),
tem-se o princípio da identidade; quando a afirmação é diferente da negação
(A ≠ ~A), tem-se o princípio da contradição; e quando entre a afirmação e a
negação não há um terceiro termo (A ˅ ~A), tem-se o princípio do terceiro
excluído. Essas são as consequências do paradoxo de Parmênides.
O que os jônicos e os pitagóricos pretendiam com suas filosofias era
encontrar na natureza um princípio que fosse concorde com a razão e, em
consequência disso, acreditavam que o mundo da experiência real participava
da natureza do pensamento, de modo que a razão poderia ser o princípio de
investigação. Parmênides radicaliza essa ideia ao admitir que o ser e o pensar
são a mesma coisa, isso é, a estrutura do ser e do pensamento é uma e a mesma
– “[...] pois o mesmo é pensar e ser” (PARMÊNIDES, 2002, p. 15). Uma vez
que a estrutura fundamental do ser é a mesma estrutura do pensamento, isso
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 37

significa que investigando a estrutura fundamental do segundo, investigaremos


a estrutura do primeiro.
Certo é que Parmênides legou à filosofia posterior o como proceder à
reconstrução do mundo fenomênico respeitando um princípio supremo, a
saber, afirmando o ser e negando o não-ser. Mas, com isso, ele também cria um
problema para a filosofia ulterior: como conciliar o ser parmenidiano com o
que a experiência nos apresenta? Como reconhecer qualquer coisa no mundo
que se identifica com tal ser? Ou mesmo, como proceder à reconstrução feno-
mênica do mundo afirmando o ser e negando o não-ser? Quem aceitará a
empreitada da resolução desse problema serão Leucipo e Demócrito que,
mesmo admitindo (como Parmênides) a não inteligibilidade da gênese e cor-
rupção, tentam conciliar essa “realidade” com os fatos da experiência cotidiana.
Sobre a vida de Leucipo (séc. V a. C.) não se sabe quase nada. Aristóteles
o considera como o criador do atomismo que foi a posteriori desenvolvido por
Demócrito. Assim, é no atomismo de Demócrito (460-370 a.C.) que se fir-
mam as discussões subsequentes.
A primeira proposta a ser apresentada é a sustentação de que as teses do
atomismo servem de resposta à ontologia de Parmênides e, ao mesmo tempo,
superam-na no sentido de apresentar um elemento novo que, ao menos, pode
ser pensado em termos de realidade apreendida. No entanto, sem querer apressar
respostas que supostamente serão encontradas através da análise, afirma-se,
também, que esse mesmo atomismo é muito próximo tanto do pensamento
pitagórico quanto do pensamento dos eleatas. Na medida em que se afastam,
aproximam-se também.
Átomo é uma palavra grega que significa indivisível. Para os atomistas os
princípios que permitem explicar a realidade são os átomos e o vazio. Isso nos
permite, desde já, conjecturar que esses dois elementos sejam uma transposição
da questão do ser e do não-ser de Parmênides para o campo da filosofia ato-
mista. Segundo Dumont (2004), a tradição diz que três são as origens possíveis
do atomismo grego: em primeiro lugar, a inspiração seria de Mileto, especifica-
mente, de Anaximandro e de seus alunos: “o infinito, ou o ilimitado, é substi-
tuído pela infinitude em número de átomos. Estes são corpos capazes, quando
reunidos, de engendrar corpos materiais” (DUMONT, 2004, p. 130). Em
segundo lugar, os átomos, tal como concebidos, aproximam-se dos números
dos pitagóricos em inteligibilidade (são apreendidos pela inteligência) e, assim
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

38 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

como os números, servem-se como elementos cujos sensíveis são por eles cons-
truídos. E, por fim, a influência eleata aparece mais forte por três fatores: a) os
átomos estão para o ser como o vazio está para o não-ser – um não-ser necessá-
rio aos átomos, pois, na verdade, trata-se do seu espaço de locomoção (ao vazio é
atribuído um certo ser); b) os átomos são seres inteligíveis que somente o inte-
lecto pode conceber; e c) a oposição democritiana entre intelecção e opinião
restitui o dualismo do poema de Parmênides: os átomos representam as ideias,
enquanto as qualidades sensíveis não existem senão para os sentidos e opinião.
Mas de que maneira se pode entender a teoria de Demócrito? Como resposta a
essa questão, a primeira coisa que deve ser observada no sistema democritiano
é que os elementos átomos e vazio preenchem a necessidade básica de justifi-
car todos os fenômenos. Assim, a locomoção dos átomos, sua configuração e
desarranjo explicam, por uma causalidade puramente mecânica, o conjunto de
toda existência. Em seu sistema não se encontra nenhuma espécie de teleolo-
gia; nada na natureza remete a um fim. Diferentemente de Aristóteles, ele não
trata da causa final, tudo é delegado ao puro acaso (os átomos agrupam-se e
reagrupam-se ocasionalmente para formar todos os elementos). Tudo acontece
por força do acaso, ele é o redemoinho causador da origem de todas as coisas.
Diógenes Laércio (2008) atribui a Demócrito a ideia de que os mundos
são infinitos, sujeitos à geração e ao perecimento, isso porque tais mundos são
formados por átomos que se locomovem no vazio para lhes formar. Tais átomos,
contudo, são divisíveis do ponto de vista matemático, mas indivisíveis do ponto
de vista físico, e não apresentam propriedades físicas como cor, odor ou sabor.
Nada é gerado pelo não-ser e nada perece no não-ser. Os átomos são infinitos
em tamanho e número; movem-se como um vórtice e geram assim todas as
coisas compostas: fogo, água, ar e terra. Essas, por sua vez, são elementos que
também são uniões de determinados átomos, que por sua solidez são impassí-
veis e imutáveis. Até mesmo o sol e a lua se compõem de tais massas atômicas
lisas e esféricas. Igualmente a alma, que é idêntica à mente (LAÊRTIOS, 2008,
p. 263). Com relação à mente, à inteligência ou ao conhecimento, Demócrito
formula a oposição inteligência vs. sensível e toma por única verdade a compre-
ensão dos inteligíveis: apenas os átomos e o vazio podem ser objetos de um
saber seguro. Tudo o que é sensível depende da opinião; as qualidades sensíveis
dos corpos não são reais, mas imaginárias. Demócrito é citado por Galeno
(2000, p. 282) como tendo dito que “por convenção há cor, por convenção há
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 39

o doce, por convenção há o amargo, mas na realidade há somente os átomos e


o vazio”. A única realidade é constituída pela realidade inteligível dos átomos,
pelas ideias; por outro lado, a realidade dos corpos sensíveis e suas qualidades
são recusadas pelo abderiano.
A mecânica atomística de Demócrito funciona da seguinte maneira: pri-
meiramente, os átomos são qualitativamente idênticos (o que diferencia é o
arranjo – figura, ordem e posição – e não o átomo em si): “Pois as diferenças
do ser resumem-se ao ritmo, à associação, e à modalidade. O que eles chamam
de ritmo é a figura, associação é a ordem e a modalidade é a posição. Assim,
A é diferente de N pela figura, AN de NA pela ordem e Ι de H pela posi-
ção” (DUMONT, 2004, p. 132)6. Essas diferenças tornam-se mais claras no
seguinte comentário: “O sabor amargo é produzido por átomos pequenos, lisos
e redondos, cuja atual circunferência é sinuosa, e por isso é viscosa e pegajosa.
O sabor ácido é causado por átomos grandes, não-redondos e, às vezes, até
angulosos” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969, A 4.985 b 4). Portanto, os áto-
mos possuem as mais variadas formas, o que justifica a diferenciação de cada
um dos seres e elementos da natureza. Por exemplo, os elementos água, fogo,
terra e ar são definidos pelo tamanho dos átomos; por outro lado, odor e sabor
são explicados pela forma atômica. Os cheiros e sabores agradáveis, como o
doce, estão associados aos átomos arredondados e lisos, diferentemente dos
sabores amargos. Quanto às cores, estas são definidas pelo arranjo dos átomos
de um corpo: quando os arranjos dos átomos se alteram na superfície de um
corpo, consequentemente, há uma mudança de cor. E o que atesta a mudança
da propriedade de um elemento, por exemplo, sua cor? Essa percepção não está
no próprio objeto, ela é subjetiva. No entanto, existe um sustentáculo causal
para ela, o que torna inteligível sua alteração. As coisas emitem uma espécie de
espectros ou imagens sutis, composta de átomos mais finos, que penetram nos
órgãos dos sentidos. Desse modo, a mente recebe uma cópia ou réplica da coisa
e é nisso que consiste o conhecimento. Demócrito faz referência aos objetos
da experiência sensível ao mesmo tempo em que respeita o princípio racional
de identidade.

6 “A letra I (iôta maiúsculo, escrito com duas longas barras, inferior e superior) é idêntica à letra H
(êta maiúsculo) que não é senão um iôta deitado. A geração dos corpos é um efeito da escritura
ou da associação tipográfica. Notemos ainda que o uso das letras deitadas corresponde à notação
musical. Assim, à harmonia pitagórica substitui uma escritura musical, a ser colocada em para-
lelo com o ritmo” (DUMONT, 2004, p. 132).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

40 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Como se viu, a constituição do mundo segundo o atomismo abderiano só


é concebida a partir da causalidade mecânica fruto do acaso. Ficam, portanto,
algumas questões a serem respondidas e cujas respostas não encontramos no
próprio sistema atomístico de Demócrito: de onde provém o movimento ini-
cial do átomo? Ele se encontra no próprio átomo ou há uma causa primordial
que o justifica? Como se explica o seu processo de aglutinação e dispersão?
Quais elementos nos levam a sustentar que na estrutura externa dos átomos,
por suas diferenciações, encerram os elementos da natureza? Como se vê, tais
respostas não são encontradas no próprio atomismo antigo, o que sugere mais
uma construção intelectual de um sistema não sustentado na observação. Mais
uma vez, estamos diante de um processo de fabricação da realidade comum
desde as bases da construção do conhecimento ocidental. Tal prática perdurará
e a própria concepção de átomos se apresentará sob várias facetas até a atual
física quântica, a maioria delas produto de nosso imaginário criativo que, não
encontrando respostas empíricas, assenta-se na metafísica. E parece ser esse o
elemento definidor da filosofia: fazer filosofia é tentar dizer algo de metafísico,
já dizia o filósofo L. Wittgenstein. Só que, como se verá, tal procedimento não
é exclusivo da filosofia; a própria ciência, em muitas ocasiões, sobrepõe a teoria
à realidade e espera que a segunda confirme as verdades da primeira. Quando
isso não acontece, temos mais um sistema metafísico, agora, não no interior da
filosofia, mas da própria ciência.
Como se verá, a história do atomismo subsiste aos séculos e nossa con-
cepção atual de mundo é fruto do desenvolvimento dessa história. Na esteira
do atomismo de Demócrito, encontramos o neoatomismo de Epicuro (341-
270 a.C.) e o de Lucrécio (96-55 a.C.).
Famoso por ter uma doutrina sempre confundida com o incentivo pela
busca do gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se sua doutrina não se
distinguisse de um hedonismo puro e simples7, Epicuro representa um marco
na mudança da concepção atômica que o precedia. De sua obra conservou-
-se três cartas que costumam ser apontadas como a súmula do pensamento
epicurista: a primeira, dirigida A Heródoto, trata da física; a segunda, dirigida A

7 Essa interpretação da vida e doutrina de Epicuro contém muito mais um caráter anedótico do
que real, pois, segundo Diógenes Laércio (Vidas, p. 286-288), no “Jardim de Epicuro” vicejava
uma autêntica comunidade, onde o mestre e discípulos viviam de maneira quase ascética, consu-
mindo apenas hortaliças que eles próprios cultivavam, às quais acrescentavam apenas pão e água,
ou ainda queijo em ocasiões especiais.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 41

Pítocles, trata da meteorologia e da astronomia; a terceira, dirigida A Meneceu,


trata das concepções sobre a vida humana. É mais especificamente na carta
A Heródoto que se encontra o cerne do atomismo físico epicurista. A física,
também tida como a ciência do nascimento e da morte, abrange toda teoria
da natureza.
Para Epicuro, da mesma forma que para Demócrito, não existe nada além
das coisas físicas ou corpóreas e de sua ausência (do átomo e do vazio). Mas
engana-se quem porventura espera que seja Demócrito sua principal inspira-
ção; na verdade, sua admiração é muito maior por Anaxágoras e os seus átomos
assemelham-se mais às homeomerias anaxagorianas do que ao sistema demo-
critiano, ao qual ele se opõe. A principal modificação que Epicuro introduz
no mecanicismo atômico de Demócrito é que, se para o abderiano os átomos
seriam simplesmente ideias, para Epicuro estes são corpos que possuem peso
e outras qualidades materiais – e não existiria outro critério para o conhe-
cimento que não a sensação. No entanto, Epicuro não parece se atentar para
alguns problemas advindos dessa forma de pensar: como é que um filósofo,
que fixa tudo a partir dos sentidos, pode conceber “realidades” invisíveis como
o átomo e o vazio? Outra coisa, como provar a existência do vazio que, por
definição, não é sensível?
Outra modificação é introduzida por Epicuro no pensamento de
Demócrito. Se o segundo explicava o movimento sem apontar nenhuma jus-
tificativa teleológica (tudo acontece ao acaso), Epicuro explica o movimento
pelo peso dos átomos, que é responsável pela sua queda8. Mas, por esse tipo
de movimento, os átomos cairiam paralelamente e jamais se chocariam para
produzir a diversidade das coisas. Daí é que Epicuro introduz a ideia de um
novo tipo de movimento, a declinação (clinâmen). Por meio dela os átomos
se desviariam de sua trajetória retilínea para colidir com outros e produzir a
diversidade do real. Contudo, mais um questionamento pode ser levantado
sobre esse tipo de mecanicismo: e o que explica essa declinação? Existiria um
fator externo atuando sobre ela? Para Epicuro, não. A declinação não se explica
porque é manifestação da liberdade do átomo. Dessa forma, Epicuro cria uma
espécie de teoria materialista da liberdade, onde, no lugar da necessidade,
introduz-se uma indeterminação natural.

8 Diferentemente de Demócrito que indicava como atributos dos átomos o tamanho e a forma,
Epicuro acreditava que o peso, também, é inerente ao átomo.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

42 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Epicuro se opôs com grande aversão às concepções fundamentais dos pla-


tônicos e dos aristotélicos, tornando-se o primeiro materialista consciente
do próprio materialismo, como clara e explícita negação do suprassensí-
vel, do incorpóreo e do imaterial, e, consequentemente, da imortalidade e
imaterialidade da alma” (ROCHA, 2007, p. 35).

Por questões morais e não somente físicas, a introdução do clinâmen na


teoria de Epicuro tinha um segundo propósito, a saber, abolir as imposições
da necessidade, do destino e dos deuses e introduzir o homem na história
como sendo o senhor de si, sem constrangimento e livre para ser feliz. A pró-
pria ataraxia (prazer em repouso) apregoada por Epicuro é expressão máxima
dessa liberdade ou libertação (dos deuses, do destino, do medo da morte etc.)
e se resume em suas quatro máximas: “não há que temer aos deuses”; “morte
significa ausência de sensações”; “é fácil procurar o bem”; e “é fácil suportar o
mal”. Com sua teoria, consegue suprir dois ideais que guiariam a história da
humanidade: o de dar inteligibilidade à natureza formando um sistema de
ideias coerente, lógico e necessário (da mesma forma que os seus antecessores
o fizeram) e o de pensar em um ideal democrático da liberdade humana. Aqui
a criação da realidade conjuga-se com a própria realidade.
Mas, retornando à questão do atomismo epicurista e do seu funciona-
mento que, excetuando o que foi supramencionado, parece-se muito ao de
Demócrito (na questão do átomo e do vazio, do princípio de conservação, o
caráter dos átomos, do infinito e do imutável e das propriedades do átomo),
uma coisa chama a atenção e merece uma alínea: sua concepção de mundos
possíveis. Retomando Diógenes Laércio (2008), temos a seguinte afirmação:

Além disso, existe um número infinito de mundos, tanto semelhantes ao


nosso como diferentes dele, pois os átomos, cujo número é infinito como
acabamos de demonstrar, são levados em seu curso a uma distância cada
vez maior. E os átomos dos quais poderia formar-se um mundo, ou dos
quais poderia criar-se um mundo, não foram todos consumidos na for-
mação de um mundo só, nem de um número limitado de mundos, nem
de quantos mundos sejam semelhantes a este ou diferentes deste. Nada
impede que se admita um número infinito de mundos (LAÊRTIOS,
2008, p. 293).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 43

O que se vê aqui, desde a Antiguidade, é a defesa da possibilidade da


existência de uma infinidade de mundos possíveis – ideia comumente atribu-
ída a G. Leibniz. E isso é possibilitado pela postulação do átomo enquanto
componente constitutivo e básico de todas as coisas. O que em filosofia é cha-
mado de um mundo possível é uma entidade hipotética que nos permite falar,
ou conjecturar, sobre os vários aspectos em que o universo poderia ter sido
diferente. Paralelo a cada aspecto ou combinação de aspectos no mundo real,
existe um outro aspecto que num mundo possível poderia ter sido diferente.
“Mas os mundos também são em número infinito, uns semelhantes a este aqui,
outros diferentes. Pois os átomos sendo em número infinito, como acabou
de ser demonstrado, são levados às maiores distâncias” (EPICURO, Carta a
Heródoto, §45 apud DUMONT, 2004, p. 520).
Segundo G. Bailey (1926), a filosofia de Epicuro foi tão vulgarizada no
mundo romano que o poeta Tito Lucrécio Caro experimentou uma necessi-
dade urgente de oferecer ao público culto uma exposição sistemática da dou-
trina do Jardim, compondo, à maneira dos pré-socráticos, um poema intitulado
De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). No entanto, apesar de tal poema
representar uma ponte entre o atomismo antigo e o seu ressurgimento na
Idade Moderna, não apresentou nenhuma novidade diante do pensamento de
Epicuro. As questões como a do peso e da declinação, do vínculo entre decli-
nação e liberdade, das sensações, da alma e da morte, permanecem quase que
intocadas. Mesmo assim, De rerum natura, primeiro texto filosófico em latim,
é considerado como um dos maiores poemas filosóficos de todos os tempos,
mas que se limita a expor em versos o pensamento de Epicuro, ressaltando sua
crítica à religião como causa dos temores do homem. O que se pode chamar
de inovação no referido texto em relação ao pensamento de Epicuro é que nele
Lucrécio reinventa o atomismo promovendo uma comparação entre os áto-
mos e as letras do alfabeto: “da mesma forma como alguns átomos são lisos e
outros curvos, também algumas letras são abertas e outras fechadas. Da mesma
maneira que a combinação de algumas letras produz as palavras ‘branco’ ou
‘perfume’, a combinação de alguns átomos produz uma cor branca ou um per-
fume” (ROCHA, 2007, p. 38). No entanto, sabe-se bem que, da mesma forma
que uma combinação de algumas letras pode não formar palavra alguma, a
combinação de alguns átomos pode não produzir objeto algum, ser apenas um
amontoado disforme de átomos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

44 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Certo é que as ideias de Lucrécio ultrapassaram da Antiguidade à


Idade Média e teriam sido “redescobertas”, em 1417, por Poggio Braccioli.
Enfatiza-se o termo redescobertas visto que o seu pensamento fora conhecido
por outros autores em outras ocasiões. Pelo menos é o que afirma Alistair
Crombie (2007, p. 38):

Certamente as ideias de Lucrécio não eram desconhecidas antes desta


data: elas aparecem, por exemplo, nos escritos de Hrabanus Maurus,
Willian de Conches e Nicolas de Autrecourt. Porém, o poema de
Lucrécio parece ter sido conhecido apenas em partes, em citações nos
livros dos gramáticos. Ele foi impresso mais tarde no final do século XV
e depois disto muitas vezes.

Como foi dito, tal pensamento é muito mais importante pela divulgação
e propagação do atomismo, que teria começado por Leucipo e Demócrito e
desaguado no atomismo de Epicuro, do que por suas contribuições originais.
Como se verá, mesmo diante de todos os problemas concernentes à produção
do conhecimento na Idade Média, o atomismo renasceu com Gassendi e teria
sido a causa da condenação de Galileu, que fora considerado herético por sua
adesão a doutrinas atomistas.

Considerações finais
Encerra-se, portanto, a reflexão acerca da criação da realidade na
Antiguidade. O objetivo do presente capítulo foi o de buscar a origem e os
fundamentos da concepção de mundo enquanto criação humana, os funda-
mentos de uma ontologia que insiste em criar a realidade. O que parece sub-
jazer à intenção dos gregos foi conceber sistemas de explicação da realidade
cuja objetividade fosse elucidada, além de buscarem pela universalidade e pela
identidade formal dos seus sistemas filosóficos. Em outras palavras, preten-
diam elucidar a objetividade por meio da homogeneidade da realidade com o
pensamento, afastando o sujeito conhecedor da pura descrição fenomênica do
mundo.
Certo é que foram tais ideias que deixaram o legado para o que na con-
temporaneidade haveria de ser entendido como átomo, tal como sobre sua
funcionalidade. O retorno às bases antigas nos dá uma noção de que, mesmo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA 45

sem a percepção das aplicações práticas recentes, a funcionalidade do átomo


sempre foi reconhecida como explicação racional do real. É importante o
conhecimento de tal história e o reconhecimento de que, se houve alguma
originalidade na inspiração criativa da ideia do átomo, essa originalidade foi,
de fato, grega.
Por fim, salienta-se que, nesse capítulo, a escolha do átomo como viés de
exposição da metafísica grega foi-nos intencional – sabe-se que as fronteiras da
metafísica grega se estendem por caminhos muito mais vastos. Até o desenvol-
vimento da física contemporânea, o que era conhecido como átomo (primeira
partícula indivisível, na etimologia grega) não era mais que um subterfúgio
metafísico para explicar (ou justificar) fenômenos até então inexplicáveis, dilu-
ídos na tradição mitológica precedente. O átomo enquanto realidade física só
pode ser considerado enquanto tal a partir dos trabalhos em química inicia-
dos por Robert Boyle, transcorridos nos trabalhos sobre eletromagnetismo por
Faraday e efetivados em física atômica por Ernest Rutherford e Niels Bohr,
aos quais devemos a sua descrição moderna. Antes disso, o átomo nada mais
era do que uma conjectura, utilizada principalmente associada aos princípios
mecânicos da matéria.

Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo,
1969.

CROMBIE, A. Medieval and Early Modern Science. In: MCDONNELL, J. J. The


Concept of an Atom from Democritus to John Dalton. Nova Iorque: The Edwin Mellen
Press, 1992.

DUMONT, Jean-Paul. Elementos de história da filosofia antiga. Tradução de Georgete


M. Rodrigues. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004.

GALENO. Sobre a Medicina Empírica, 1259, B apud Os Pré-Socráticos. Tradução de


Anna L. A. A. Prado. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Coleção Os Pensadores).

HEISENBERG, Werner. Física e Filosofia. Tradução de Jorge Leal Ferreira. 3. ed.


Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995.

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução de Mário da


Gama Kury. 2. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2008.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

46 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução de José Trindade Santos. São Paulo: Loyola,


2002.

ROCHA, Gustavo Rodrigues. História do atomismo: como chegamos a conceber o


mundo como o concebemos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007.

SANTOS, José Trindade. Interpretação do Poema de Parmênides. In: PARMÊNIDES.


Da Natureza. Tradução de José Trindade Santos. São Paulo: Loyola, 2002.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO II

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI


CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO
E A METAFÍSICA DE RENÉ DESCARTES

Introdução

T
ito Lucrécio Caro foi a última voz do atomismo na Antiguidade. Foi
justamente ele quem deu ênfase ao pensamento de Epicuro de Samos
na Roma Antiga por meio de seu poema De rerum natura. Depois dele,
inaugurou-se o período medieval que silenciou o atomismo por mais de milê-
nio. Numa época marcada pela atuação da religião revelada, onde Deus é o
criador de todas as coisas e quem comanda os destinos do homem e da natu-
reza, a aceitação do atomismo epicurista que, dentre outras coisas, fixa-se na
ideia da abolição das imposições da necessidade, do destino e dos deuses para
introduzir o homem na história como senhor de si, sem constrangimento e
livre para ser feliz, jamais poderia ser aceita. O atomismo epicurista, enquanto
filosofia materialista, não admitia nenhum argumento de ordem teleológica
que propusesse que os fenômenos possuem causas dependentes de qualquer
que seja a divindade. Para tal doutrina, apesar dos fenômenos possuírem movi-
mentos aleatórios, incluindo o clinâmen, ainda assim, tais movimentos não
podem ser ditos independentes de leis naturais inalteráveis. Dessa forma, é
justificável que não haja na Idade Média espaço para esse tipo de discussão e
que filosofias teleológicas como as de Aristóteles, ou mesmo as idealísticas de
Platão9, encaixem-se perfeitamente bem às pretensões de expansão e domínio

9 Acerca do pensamento de Platão, a despeito das disposições em contrário, como é o caso da


interpretação de Leibniz (1768, p. 186), alguns comentadores retiram-no do rol dos idealistas e
rotulam-no como defensor do “realismo das ideias” (seja qual for o significado que isso pretenda
ter). Tomando parte de uma controvérsia que não tem fim, para nós, por tratar de ideias e não
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

48 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

religioso que vigoraram nessa época. A última coisa que um cristão virtuoso
pode almejar é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista.
Foi o renascimento cultural do século XV que propiciou a retomada do
atomismo antigo e a consequente reinserção do pensamento de Epicuro em
tempos de “revolução científica”10. As ideias de Lucrécio foram redescober-
tas quando um dos seus manuscritos foi encontrado por Poggio Braccioli, em
1417, o que permitiu a reprodução e a ampliação do acesso à obra. E com a
recuperação da obra de Diógenes Laércio, a sociedade europeia tomou ciência
das três cartas de Epicuro que expunham a sua filosofia. Com a repercussão
dessas obras, o atomismo é retomado: algumas vezes com a feição materialista
original e outras vezes misturado com elementos de outras escolas, como é
o caso do neoplatonismo, que substituía o caráter mecanicista de ação local
original por elementos animistas que atribuíam ao objeto o autocontrole e
intencionalidade própria. Sintomático do que se afirma é o pensamento de
Giordano Bruno (1548-1600), que concebeu o universo formado por átomos
em movimento, infinito, entretanto, dotado de alma universal da qual cada
átomo participa. Tal concepção configura um princípio não material que dirige
o movimento, um princípio animista, e funde o atomismo antigo com ele-
mentos do neoplatonismo misturados com uma boa dose de esoterismo. No
entanto, é justamente a retomada desse tipo de filosofia que coloca em xeque
elementos essenciais da filosofia aristotélica, amplamente aceita nos meios
acadêmicos europeus entre os séculos XV e XVI, e Pierre Gassendi (1592-
1655) constitui aquele que definitivamente reintroduziu o atomismo na Idade
Moderna, revivendo o epicurismo como substituto do aristotelismo e reconci-
liando o atomismo mecanicista com a crença cristã num Deus infinito.

2.1 Gassendi contra a autoridade da filosofia aristotélica-escolástica


Filósofo, astrônomo e matemático seiscentista, Gassendi viveu imerso na
realidade da revolução científica supramencionada e gozou do privilégio de
ter sido contemporâneo dos maiores nomes da ciência da época. Afinal, foi
nesse período que viveram Evangelist Torricelli (1608-1647), Galileu Galilei

do real, enquanto imediatamente dado, seu pensamento se configura como um idealismo (vide
justificativa na nota 40).
10 Período que vai de 1543, ano da publicação do De revolutionibus de Copérnico até 1687, ano da
publicação de Philosophiae naturalis principia mathematica de Newton
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 49

(1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630), Tycho Brahe (1546-1601), Francis


Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Robert Boyle (1627-1691)
e Isaac Newton (1642-1727), por exemplo. Como se disse, seu projeto era
o de resgatar o atomismo epicurista, postulando a existência dos átomos em
número finito, ainda que inumerável, criados por Deus. Tratava-se de um pro-
jeto de cunho empirista, pois Gassendi acreditava que todo o conhecimento
advinha da experiência sensível. É em virtude de tal convicção que a filosofia
de Aristóteles – bem como a de Descartes – torna-se seu principal alvo, pre-
tendendo ele resgatar a autoridade da experiência sensível que havia perdido o
seu status epistêmico em virtude da existência de um modelo de filosofia que é
baseado sobre definições a priori e que julga captar as essências ou causas mate-
riais dos fenômenos, como é o caso da filosofia aristotélica.
É na obra Exercitationes paradoxicae adversus Aristoteleos (Exercícios para-
doxais contra os aristotélicos) que Gassendi polemiza contra os aristotélicos que
dominavam as discussões acadêmicas de sua época. Segundo o prefácio da obra,
a proposta era a publicação de sete livros das Exercitationes, que refutariam
diversas disciplinas da filosofia aristotélica, especialmente a física, a metafísica,
a ética e a lógica. Entretanto, conforme Maia Neto (1997, p. 31), “a reação do
establishment filosófico ao primeiro livro das Exercitationes foi tão negativa que
Gassendi sustou a publicação dos demais”. O começo do segundo livro dessa
obra teve publicação póstuma datada de 1658 e trata da lógica aristotélica. Os
livros com os demais assuntos provavelmente nunca foram publicados (MAIA
NETO, 1997). É pelo prefácio do Livro I, por meio de um resumo dado por
Gassendi, que se tem uma noção do que seriam os sete livros e de que maneira
eles se colocariam contra o aristotelismo. Dessa forma, caso a obra fosse pro-
duzida conforme a pretensão original, a linha de combate de Gassendi seguir-
-se-ia no seguinte sentido: no Livro I – efetivamente publicado –, Gassendi
critica a forma de filosofar dos aristotélicos, acusando-os de uso de método
errôneo por afastarem-se da natureza e reduzirem sua prática à mera verbosi-
dade; no Livro II, a proposta seria colocar-se contra a lógica aristotélica para
expor a sua inutilidade e criticar suas noções de universais, categorias e propo-
sições; o Livro III seria dedicado à física, criticando os elementos primários, a
noção de movimento natural e as formas acidentais, isso para readmitir a noção
de espaço dos antigos e reintroduzir o vazio no universo, além de redefinir a
noção de tempo aristotélica; o Livro IV tencionaria apresentar discordâncias
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

50 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

às considerações aristotélicas sobre a astronomia, nomeadamente, a respeito


da causa dos movimentos dos corpos celestes, da luz e da geração e corrupção,
além de refutar os aristotélicos no que diz respeito aos elementos: ao número
deles, às suas qualidades, às transmutações recíprocas, aos compostos e às subs-
tâncias mistas; o projeto do Livro V seria o de refutar a noção de substân-
cias mistas dos aristotélicos; o planejamento do Livro VI proporia colocar-se
contra a Metafísica de Aristóteles, atacando principalmente os princípios e as
propriedades do ser; por fim, a pretensão do Livro VII seria tratar da filosofia
moral, apresentando a doutrina do prazer de Epicuro, a fim de mostrar que ele
se trata do bem maior e prêmio para as virtudes humanas. Tratava-se de um
projeto ambicioso, mas que, infelizmente, não foi executado conforme a pre-
tensão original. Contudo, críticas de Gassendi a Aristóteles apresentam-se em
outras de suas obras, o que nos dá uma exata noção de sua visão depreciativa
do aristotelismo escolástico.
Apesar de a proposta do Livro VII ser a de tratar da ética epicurista,
vemos que o projeto das Exercitationes ainda não era o de apresentar a filosofia
atomista de Epicuro como opção à filosofia de Aristóteles. Tal obra objetivava
uma oposição radical à filosofia aristotélica em virtude de um comportamento
cético assumido por Gassendi – nesse caso, uma espécie de “ceticismo miti-
gado” –, adotado para criticar Aristóteles, que, em outras obras, é substitu-
ído por “uma teoria que ficaria entre o completo ceticismo e o dogmatismo”
(POPKIN, 2003, p. 94). O que se encontra por trás do comportamento cético
de Gassendi é a sua fascinação pela acatalepsia (suspensão do assentimento)
que, segundo ele, era “exaltada pelos Acadêmicos e Pirrônicos”.

Desde então eu comecei a investigar os ensinamentos de outros grupos


para testar se eles poderiam ter algo mais sensato para propor. De todos
os lados encontrei dificuldades de toda categoria, mas uma coisa devo
confessar francamente: de todas as opiniões, nenhuma me agradou tanto
quanto a akatalêpsia (ακταλήψια) exaltada pelos Acadêmicos e Pirrônicos.
Isso porque, depois que me foi possibilitado ver o tamanho do abismo
que separa o gênio da natureza da capacidade humana, o que mais pode-
ria pensar senão que as causas mais secretas dos efeitos naturais fogem
para além da penetração da vista humana? (GASSENDI, Exercitationes,
Opera omnia III, 1964, 99).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 51

E por que a suspensão de assentimento se tornou uma prática de


Gassendi? Nesse caso, o resumo do Livro I, intitulado “Contra os ensina-
mentos dos aristotélicos”, antecipa-nos sua motivação. Para ele, a filosofia de
Aristóteles não goza de nenhum status privilegiado diante das demais filoso-
fias. Assim, defende a liberdade filosófica e acusa os aristotélicos de a terem
acabado. O aristotelismo não é merecedor da preferência que goza, tendo em
vista as suas omissões, passagens supérfluas, erros e contradições nos textos
que são atribuídos a Aristóteles. Interessante notar que, mesmo tendo diri-
gido críticas diretamente Aristóteles, a crítica principal de Gassendi é diri-
gida aos aristotélicos. Ele acaba, portanto, por levantar a hipótese de que a
obra de Aristóteles pode ter sido adulterada, ou então, ter chegado de forma
incompleta aos leitores do seu tempo, podendo, assim, ter motivado questões
irrelevantes à revelia das preocupações próprias de Aristóteles. Certo é que,
para Gassendi, a concepção de magister dixit, quando se trata do pensamento
de Aristóteles, não se sustentava, visto que se trata de um sacrilégio pensar que
tudo o que Aristóteles disse é inegável.
Segundo Gassendi, desde muito jovem, quando teve contato com a filo-
sofia aristotélica, ao analisá-la mais a fundo, viu que ela era uma disciplina vã
e inútil. E as razões que justificam a sua visão depreciativa quanto ao pensa-
mento aristotélico fundam-se em duas vertentes: I) na sua postura de “suspen-
são do assentimento” ou acatalepsia, isto é, antes de se acreditar piamente nas
verdades inerentes a uma dita doutrina, é coerente a abertura para a avaliação
das doutrinas rivais: “os ouvintes11 eram admoestados para que não fizessem
pronunciamentos temerários, dado que viam que nenhuma proposição ou opi-
nião era tão aceita, e tão atraente, contra a qual não fosse possível uma oposta
e igualmente provável, ou até mesmo muito mais provável” (GASSENDI,
Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 100); II) na sua crença empirista que não
admite, aos moldes dos aristotélicos, o dito conhecimento das “essências” ou
das “causas metafísicas” dos fenômenos, visto que “[...] toda notícia que temos
na mente alvorece dos sentidos” (GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III,
1964, 81b).
Vê-se que o pretenso ceticismo mitigado de Gassendi não objetivava
colocar-se contra o conhecimento – justamente por isso ele é mitigado – e sim

11 Seus alunos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

52 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

contra o conhecimento a priori pretendido pelos aristotélicos. Dessa forma, a


suspensão do assentimento significa evitar que a verdade conviva com o erro,
funcionando muito mais como uma estratégia do que como uma convicção.
O que se faz necessário é evidenciar que o aristotelismo errou, inclusive, em
questões de fé. Ele se tornou um prejuízo para a fé cristã porque pretendeu
introduzir a filosofia em questões reveladas que ultrapassam o terreno da razão.
Em virtude disso, Gassendi propõe um convite à observação e à experiência,
coisa sobre a qual o aristotelismo é estéreo, segundo ele. E, se sobre a experi-
ência pesa-lhe a acusação de caráter duvidoso, basta guiá-la por instrumentos
metodológicos, tais como a Canônica de Epicuro, que preconiza que os senti-
dos são os primeiros critérios irredutíveis ou o canon da verdade. Se os sentidos
podem incorrer em erro, é só submeter-lhes às correções para fazer com que a
filosofia se transforme em algo útil para o ser humano.
Sintomático do que Gassendi chama de conhecimento estéreo e não
observacional é a lógica de Aristóteles. Segundo ele, a lógica aristotélica não
revela a existência de nada. Diz respeito apenas a um conhecimento que não
é necessário totalmente e nem absolutamente, portanto, que não é útil. As
noções de universais, categorias e proposições da lógica aristotélica, tratam-se
somente de um expediente formal, conforme admitem os próprios aristotéli-
cos, que é dispensável para a aquisição do conhecimento.

A aquisição de conhecimento de uma coisa não implica que se conheça


lógica para que proceda, pois através da percepção uma criança ou um
fazendeiro (ignorantes no que diz respeito à lógica) podem explicar bem
algo que conhecem bem e isso por conta da percepção que têm das coisas
que conhecem. Um lógico experiente poderia definir uma coisa melhor
do que um lógico sem treino no que diz respeito à sua arte, mas o que se
conhece da coisa, conhecimento esse obtido por via da observação, não
pode ser aumentado e aprimorado com o emprego desse instrumento.
Um navegador sabe mais sobre o navio do que um homem que ficou apli-
cando regras da lógica aristotélica em vários aspectos de assuntos náuti-
cos, por exemplo (ROVARIS, 2012, p. 49-50).

É em virtude disso que a opção que Gassendi faz é pelo empirismo e


pela razão natural em detrimento do formalismo lógico aristotélico que, como
afirma Aristóteles, trata-se de um instrumento (Órganon) da ciência, utilizado
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 53

para o correto pensar. É justamente essa noção de correto pensar que encami-
nha a concepção de ciência dos aristotélicos para um conhecimento essencial
das coisas, contra o qual Gassendi lutou. Para ele, é impossível “um conheci-
mento certo e evidente, que afirma de uma maneira infalível e certa que uma
coisa seja por natureza, nela mesma e em virtude de causas profundas, necessá-
rias e infalíveis, constituída de tal maneira” (GASSENDI, Exercitationes, Opera
omnia III, 1964, 192b). E o que justifica isso é justamente nossa contingência
e fragilidade, que nos impedem de ter acesso às essências ou causas metafí-
sicas das coisas. “Logo, sobre o real que poder-se-á dizer, senão que em tais
circunstâncias se produzem tais aparências e outras em outras circunstâncias
outras aparências, mas sobre o que seriam as coisas elas mesmas há dúvida”
(GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201b). Assim, faz-se
necessário pensar em uma nova ciência que descreva a variedade das aparên-
cias e que não almeje o conhecimento da natureza das coisas independente de
tais aparências, pois “as condições de uma ciência existem, mas de uma ciên-
cia experimental e, se posso dizer, fundada sobre as aparências” (GASSENDI,
Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201). “Uma ciência de essências inde-
pendente do que aparece ao homem, isto é, uma ciência sub specie aeternitas, é
possível somente ‘à natureza angélica e mesmo divina, e não convém à simples
humanidade’” (MAIA NETO, 1997, p. 33).

2.2 Gassendi contra a metafísica de Descartes


O gênero de saber de uma filosofia aperta et sensibilis – clara, pública e
comprovável empiricamente – mantém-se na luta de Gassendi contra outros
opositores. Contra o saber mágico e cabalístico de Robert Fludd (1574-1637),
Gassendi propôs a sua Epistolica exercitatio in qua praecipua principia philoso-
phiae Roberti Fluddi reteguntur (1630); contra a concepção platônico-escolás-
tica de Herbert de Cherbury (1583-1648), apresentou a sua obra Ad librum
D. Edoardi Herberti de veritate epistula (1634); e contra a metafísica de René
Descartes (1596-1650), Gassendi dedicou duas obras: as Objectiones quin-
tae, essa em objeção à obra Metafísica de Descartes (1641) e, como expansão
dessas Objectiones, a pedido de S. Sorbier, publicou a Disquisitio Metaphysica
seu Dubitationes et Instantiae Adversus R. Cartesi Metaphysicam, et Responsa
(Investigações Metafísicas ou Dúvidas e Instâncias contra a Metafísica de Descartes
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

54 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

e suas Respostas – 1644) em réplica às Respostas de Descartes. Estas objeções


foram encomendadas pelo editor das Meditações e amigo comum de Descartes
e Gassendi, Marin Mersenne.
Na obra Disquisitio, Gassendi mostra o seu desapontamento com as
promessas feitas por Descartes no Prefácio das Meditações que, segundo ele,
não foram cumpridas (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 225b). Ali
Descartes promete demonstrar três coisas: a existência de Deus, a imortalidade
da alma e a distinção real entre mente e corpo. Para Gassendi, os argumentos
usados para as demonstrações cartesianas são falhos. Dessa forma, discorre
sobre os erros envoltos nas três demonstrações, mas concentra-se na última,
já que para ele as duas primeiras são triviais e verdadeiras, além de não serem
controversas.
As Meditationes de prima philosophia, in qua Dei existentia et animæ immor-
talitas demonstratur (Meditações sobre a filosofia primeira em que são demonstra-
das a existência de Deus e a imortalidade da alma) de Descartes, trata-se de uma
obra dividida em seis meditações, cujas objeções de Gassendi a elas se direcio-
naram. Ele apresenta objeções às seis meditações, contudo, as Objectiones quin-
tae são as mais longas e detalhadas de todas. O grande problema no “diálogo”
entre Gassendi e Descartes está na forma como as objeções se apresentaram,
que não foram simpáticas e enfureceram Descartes. Por outro lado, a reação de
Descartes também não foi nada amistosa, o que gerou uma indisposição entre
esses dois grandes pensadores.

Gassendi zomba da descrição que o meditador faz de si mesmo como, “em


sentido estrito, apenas uma coisa que pensa” (AT VII.27 / CSM II.18)12 e,
como resultado, ao longo das Objeções, ele se dirige a Descartes como “O
Mente”13 (AT VII.265 / CSM II.185 / Gassendi 1658: III.298a). Por sua
vez, Descartes – que pensa que a mente de Gassendi está “tão imersa nos
sentidos que [ela se esquiva] de todos os pensamentos metafísicos” (AT
VII.348 / CSM II.241) – dirige-se a Gassendi como “A Matéria” (AT

12 AT = Oeuvres de Descartes, edited by Charles Adam and Paul Tannery, 11 vols. Paris: J. Vrin,
1964–71.
CSM = The Philosophical Writings of Descartes, translated by John Cottingham, Robert Stoothoff,
and Dugald Murdoch, 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1984–5.
13 Essa referência depreciativa de Gassendi a Descartes é feita por toda obra quando o primeiro
trata o segundo com o uso de termos como “a alma” ou “o espírito”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 55

VII.352 / CSM II.244). Ele reclama que Gassendi “parece não entender
completamente o que o uso do argumento racional envolve” (AT VII.354
/ CSM II.245) e o descreve como “empregando truques retóricos ao invés
de raciocínio” (AT VII. 350 / CSM II.243). Presumivelmente, Descartes
sabia que Gassendi ficaria ofendido: ele pediu a Mersenne que publicasse
as Objeções imediatamente, explicando que elas “contêm tão poucos bons
argumentos que duvido que ele queira permitir que sejam impressos, uma
vez que tenha visto minha resposta” (Carta de 23 de junho de 1641: AT
III.384 / CSMK 184) (LOLORDO, 2019, p. 599).

É claro que Gassendi ficaria ofendido e a tréplica às provocações de


Descartes é dada justamente na Disquisitio Metaphysica. Nessa obra, Gassendi
explica como Descartes entendeu mal ou falhou em responder adequadamente
a vários pontos, expondo a sua decepção em ver que um matemático habili-
doso como Descartes “desfilou esses argumentos espúrios como demonstra-
ções” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 275b). Mas qual era de fato
a questão mal resolvida entre esses dois autores? O que justificava os ataques
de Gassendi contra Descartes? Aqui, mais uma vez, a estratégia cética da sus-
pensão do assentimento, atrelada à defesa do saber de ordem empírica, faz
Gassendi colocar-se contra a Metafísica de Descartes.
Descartes representa para Gassendi a reconstrução da filosofia da subs-
tância e das essências, um gênero de saber apriorístico e dedutivo que é pri-
vado de um verdadeiro contato com a experiência, a exemplo dos aristotélicos.
É importante, entretanto, salientar que Gassendi não nega a importância de
alguns gêneros de conhecimento que são essenciais na filosofia de Descartes,
por exemplo, o da existência de Deus, o da imortalidade da alma ou o da vera-
cidade da experiência do cogito. Com relação à Objectiones quintae, que acaba
por tocar todos os pontos das Meditações, Gassendi descreve essa obra como
a lógica de Descartes e afirma que o princípio fundamental de sua lógica é o
que agora chamamos de regra da verdade, isto é, o princípio de que tudo o que
percebo clara e distintamente é verdadeiro. Ele argumenta que, devido a essa
confiança na percepção clara e distinta, Descartes está preso na “prisão do [seu]
intelecto”, incapaz de fazer contato com “o teatro da natureza” (GASSENDI,
Disquisitio, Opera omnia, III, 382a). Argumenta, portanto, que percepção clara
e distinta é inútil como um critério de verdade – em parte porque falha ao
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

56 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

fazer uso de cenários céticos na Meditação Primeira (sentidos, sonho, gênio


maligno) para ajudar a isolar as percepções claras e distintas.

Ao considerar o critério cartesiano da verdade, de que tudo o que é clara-


mente e distintamente percebido é verdade, Gassendi pontuou primeiro
que muitas grandes mentes, que, aparentemente, viram algumas coisas
de forma clara e distinta, concluíram que nunca poderíamos ter certeza
de que algo era verdadeiro. Em segundo lugar, nossa experiência pessoal
deve nos dar escrúpulos, visto que muitas coisas que outrora acreditá-
vamos perceber clara e distintamente e aceitávamos como certas, mais
tarde as rejeitamos. A única coisa que parece clara, distinta e verdadeira
é que, o que aparece para alguém, aparece. Mesmo na matemática, algu-
mas proposições que foram tomadas como claras e distintas acabaram se
revelando falsas. As intermináveis controvérsias que ocorrem no mundo
sugerem, em terceiro lugar, que “cada pessoa pensa que percebe clara e dis-
tintamente aquela proposição que ela defende”. Não é o caso que essas pes-
soas estão apenas fingindo que realmente acreditam nas proposições que
defendem, mas estão tão certas de que estão dispostas a morrer por causa
de suas opiniões. Portanto, o que isso parece indicar é que clareza e dis-
tinção são critérios inadequados para determinar o que é verdadeiro, a
menos que haja outro critério para distinguir o que é realmente claro e
distinto daquilo que parece ser. (Isso, é claro, geraria a necessidade de um
número infinito de critérios para distinguir o que parece ser realmente
claro e distinto do que é realmente claro e distinto, e assim por diante)
(POPKIN, 1960, p. 203-204).

Então, o que é pensar clara e distintamente? Existem percepções que são


aparentemente claras e distintas? É possível que eu possa estar errado ao acre-
ditar que estou percebendo algo de forma clara e distinta? E se existe uma dife-
rença entre uma genuína percepção clara e distinta e uma que me parece clara e
distinta, qual é o critério metodológico que devo utilizar para decidir qual per-
cepção é realmente clara e distinta? Como crítica às conclusões de Descartes a
respeito da clareza e distinção quando se trata da percepção, Gassendi afirma:

O que você deveria estar trabalhando não é tanto em confirmar esta regra,
que torna tão fácil tomar o falso pelo verdadeiro, mas sim propor um
método para nos guiar e nos ensinar quando estamos errados e quando
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 57

não estamos nos casos em que pensamos que percebemos algo de forma
clara e distinta (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 315a).

A posição de Gassendi é a de que, no caso das percepções, ideias claras e


distintas não podem ser verdadeiras para diferentes pessoas, isso porque pessoas
honestas e que pensaram cuidadosamente a respeito dessas percepções dirão ter
percebido diferentes coisas incompatíveis clara e distintamente (GASSENDI,
Disquisitio, Opera omnia, III, 315a). A única maneira dos relatos dessas per-
cepções claras e distintas serem falsas é se quem relata estiver simplesmente
mentindo. Entretanto, em alguns casos, podemos descartar a possibilidade das
pessoas estarem mentindo, visto que há “homens que vão ao encontro da morte
por causa de alguma opinião” e isso “parece ser um argumento perspicaz de que
eles percebem isso de forma clara e distinta” (GASSENDI, Disquisitio, Opera
omnia, III, 317a).
A resposta de Descartes é a de que percepção clara e distinta não pre-
cisa de nenhum critério e que os exemplos de percepções apresentados por
Gassendi não são genuinamente claros e distintos. Quando Gassendi pede
por um método que possa ser usado “para nos guiar e nos ensinar quando
estamos errados e quando não estamos”, isto é, que possa nos dizer se estamos
percebendo algo claro e distinto, a resposta de Descartes é: “Afirmo que cui-
dadosamente forneci tal método no lugar apropriado, onde primeiro eliminei
todas as opiniões preconcebidas e depois listei todas as minhas ideias prin-
cipais, distinguindo as que eram claras das que eram obscuras ou confusas”
(AT VII. 361-362). Mas Gassendi não estava satisfeito com os critérios de
Descartes e retorna à Meditação Primeira, onde Descartes utiliza-se dos três
argumentos céticos, para demonstrar o abuso que ali é feito do ceticismo para
comprovar a ideia de clareza e distinção. Nesse caso, a censura de Gassendi a
Descartes se dá devido ao fato de o segundo tomar como falso o que é apenas
duvidoso e por tomar proveito do argumento do sonho e do gênio maligno
(Deus enganador).

[...] Gassendi diz ser a dúvida cartesiana exagerada (não há necessidade


de se invocar um Deus enganador para livrar dos preconceitos através
da dúvida), artificiosa (baseada em suposições absurdas como a de um
Deus enganador e, portanto, dependendo de um ato da vontade e não de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

58 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

argumentos persuasivos) e desviada da “via tradicional” (MAIA NETO,


1997, p. 34).

Em virtude disso, para Gassendi, as hipóteses céticas globais da Meditação


Primeira produzem, na melhor das hipóteses, uma dúvida “meramente verbal”
(GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 280b).

Gassendi acha que Descartes não conseguiu entender como funciona


o ceticismo. Ele supõe, por causa de sua própria ênfase na necessidade
de modelos antigos, que Descartes está tentando fazer algo semelhante
ao que os antigos céticos fizeram. Mas ele também tem razões teóricas
para pensar que a Meditação Primeira deve produzir suspensão universal
de julgamento para que o método de Descartes tenha uma chance. Pois,
argumenta, a menos que suspendamos todos os julgamentos, não pode-
mos ter certeza de que estamos livres da influência perniciosa de opiniões
previamente adquiridas (LOLORDO, 2019, p. 602).

Mas não podemos rejeitar todas as ideias previamente adquiridas. Os


céticos antigos, por exemplo, colocavam em dúvida “as naturezas e as causas
ditas internas e primeiras, assim como as propriedades das coisas mesmas, não
os fenômenos, as coisas que aparecem aos nossos sentidos, como são o calor do
fogo, a doçura do mel e as demais aparências” (GASSENDI, Disquisitio, Opera
omnia, III, 286b). Contudo, “você age de maneira completamente diferente,
pois não admite as aparências que se apresentam aos sentidos, considerando-
-as como incertas e falsas” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 286b).
Se, per impossibile, tivesse rejeitado todas as crenças e ideias adquiridas por
meio dos sentidos, não teria mais nenhum estoque de conceitos para traba-
lhar e, na melhor das hipóteses, poderia dizer simplesmente: “Eu, eu, eu ...”
(GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 320a). Eis que esse foi justamente
o resultado do edifício metafísico de Descartes: “Eu penso, logo, eu existo”.
Certo é que o método cartesiano, que visa superar toda dúvida com a fun-
dação de uma ciência provida de certeza metafísica, propicia a introdução de
um sujeito não corporal, essencialmente pensante, que substitui a sensibilidade
como base do conhecimento. Com base no conhecimento sensível, segundo
Descartes, seríamos incapazes de determinar quais de nossas ideias são inatas,
portanto, seríamos incapazes de identificar quaisquer naturezas verdadeiras e
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 59

imutáveis e, como resultado, os argumentos que provam a existência de Deus


falhariam, assim como o argumento para a distinção real entre mente e corpo.
O uso que Descartes faz do ceticismo antigo para a eliminação da base sensível
do conhecimento não pode ser advogado como a forma de pensar dos céticos
da Antiguidade, pois “as aparências incorrigíveis que os céticos acatam, por
exemplo, não são cogitações de um sujeito não-extenso, mas afecções que não
podem prescindir do corpo” (MAIA NETO, 1997, p. 36). Conduzida de um
ponto de vista nominalista, materialista e sensualista, a crítica de Gassendi
a Descartes – bem como a Aristóteles – só pode ser entendida sob o viés
do empirismo, da mesma forma que o ceticismo antigo, pois limites que são
impostos ao conhecimento advêm da natureza falível do corpo. É justamente
em virtude disso que Gassendi nega da filosofia de Descartes, por exemplo, que
se possa passar da experiência do cogito à substância da res cogitans, isso por-
que o homem não conhece nem as essências e nem as substâncias das coisas.
Em consequência, ele nega também a verdade das “demonstrações” cartesianas
acerca da existência de Deus. “Antes de mais nada, a ideia não é de algum
modo inata, e sim uma ideia que se constitui historicamente, de modo que a
prova cartesiana que pressupõe tal ideia como inata não é válida” (REALE;
ANTISERI, 2007, p. 159).

Claro, Gassendi não nega que temos uma ideia de Deus. O que ele nega é
que tenhamos a ideia particular de Deus que Descartes requer: uma ideia
positiva de um ser absolutamente infinito. Podemos pensar em um ser
perfeito ou infinito aumentando gradualmente nossas ideias das perfei-
ções que observamos nos seres humanos ao nosso redor, mas tal ideia não
pode realmente capturar o infinito e, portanto, não pode representar Deus
“como ele é” (AT VII. 287 / CSM II.200 / Gassendi 1658: III.323b)
(LOLORDO, 2019, p. 604).

Assim, não se sustenta a prova que se pauta na série de causas eficientes,


isso porque com a série de causas não se pode sair do âmbito físico.
Por fim, Gassendi não aceita o argumento ontológico de Descartes, que
afirma que “a existência é logicamente necessária à natureza de um Existente
(i.e. Ser) necessário” (GEISLER, 1998, p. 654). Para ele, a própria noção
de existência não é uma perfeição, ela é muito mais aquilo “sine qua non há
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

60 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

perfeições”, isso porque a essência não precede à existência. “Quando você


percebe acidentes, você concebe que há algo que é o sujeito dos acidentes”
(GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 290b). O conhecimento das essên-
cias, ao contrário, “requer um certo exame interno completo”, então “a essência
não se torna conhecida exceto trazendo à luz todas as profundidades inter-
nas” (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 311b-312a). É próprio de
uma alma incapaz de moderar seus desejos e ignorante de sua condição querer
conhecer a natureza essencial das coisas independentemente de como apare-
cem para homens dotados de órgãos precários de percepção (GASSENDI,
Disquisitio, Opera omnia, III, 312b). O ceticismo antigo deveria ser uma bús-
sola a guiar o conhecimento humano ao mostrar que os limites que demarcam
o conhecer têm origem no fenômeno sensível.

2.3 O atomismo epicurista de Pierre Gassendi


Como se sabe, as críticas de Gassendi à pseudociência e verbosidade de
Aristóteles, bem como à metafísica de Descartes, sugerem como contrapartida
a substituição dessas filosofias pela filosofia atomista de Epicuro, posto que,
para ele, tal teoria era considerada a melhor das explicações para a matéria e
o único princípio eficaz de organização da natureza. O projeto atomista de
Gassendi encontra-se na sua Syntagma philosophicum (Sistema de Filosofia)14.
Em termos gerais, o atomismo antigo caracteriza-se por acreditar na
indivisibilidade e imutabilidade das unidades elementares da matéria, afir-
mando a permanência dos átomos no tempo – a única coisa que mudava era a
sua configuração, seu caráter de organizar e reorganizar acidentalmente. Além
disso, concebia a existência do vazio, onde se moviam os átomos. Cultivava,
ainda, uma visão reducionista da natureza por entender as propriedades dos
objetos materiais em termos de movimento e organização dos átomos. E, por
fim, comungava de uma visão mecanicista, uma vez que oferecia “uma imagem
geral de como o mundo físico deve ser explicado, quais são os seus constituin-
tes últimos, e quais processos que nele ocorrem no nível mais fundamental”
(GAUKROGER, 2006, p. 254). É conhecida a oposição de Aristóteles a esse
tipo de mecanicismo atomista:

14 Que não pode ser confundida com a Philosophiae Epicuri syntagma, que é um manual que trata
das três partes da filosofia de Epicuro, a saber, a lógica, a física e a ética.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 61

Para Aristóteles, o atomismo é capaz de explicar as mudanças acidentais


que ocorrem nas substâncias, nas quais estas não alteram sua natureza,
mas não é capaz de explicar as mudanças intrínsecas propriamente ditas,
ou seja, nas quais as coisas perdem ou alteram a sua própria natureza.
Além disso, para o filósofo, o atomismo não dá conta da inumerável varie-
dade das coisas naturais. Mais uma vez ele poderia até esclarecer a varie-
dade acidental, mas não o fato de que a natureza apresenta uma ordem
fixa, uma ordem que permanece constante apesar da existência transitória
dos fenômenos (ZATERKA, 2004, p. 73-74).

É justamente o aspecto de transitoriedade das configurações dos áto-


mos que indica um estado de mudança permanente, aquilo que constitui o
maior incômodo de Aristóteles com a teoria atomista. Para uma filosofia que
se baseia em definições a priori que, presumidamente, captam as “essências” ou
as “causas materiais”, conciliar as características cambiantes do mecanicismo
atomista com a necessidade de uma “ordem fixa”, “permanente” da natureza
é praticamente impossível. “Para Aristóteles, o aspecto permanente não pode
ser atribuído a uma coisa material finita, mas somente a um princípio; de fato,
para as coisas existirem, elas têm que ser constituídas de matéria e forma”
(ZATERKA, 2004, p. 74). E respaldado pela sua concepção de “matéria e
forma”, Aristóteles tenta superar a filosofia atomista antiga.
A teoria das quatro causas formulada por Aristóteles, abordada tanto na
sua obra Metafísica como em sua Física, pretende dar conta do estudo das cau-
sas de quaisquer fenômenos. Tais causas são de quatro tipos: materiais (relativas
à matéria de que algo é feito); formais (relativas à forma de algo, ao que algo é);
eficientes (relativas a quem produziu); e as finais (relativas à finalidade, ao telos,
à intenção). Quanto às causas formal e material, estas se distinguem pelo fato
de que: a) a primeira determina o que o ser é em si e por si; b) a segunda é um
termo relativo à primeira, isso porque a matéria em si é indeterminada. O que
determina a matéria é a forma que é capaz de lhe dar um caráter de organiza-
ção. Dessa forma, temos a imbricação entre matéria e forma, que compõem as
substâncias individuais. E o que justifica a mudança das coisas?
Em Da geração e corrupção, Aristóteles explica as mudanças por meio do
artifício do que ele chama de “mera mudança”, “mudança total” e “fenômeno
intermediário de composição”, contudo, ele não admite que uma composição
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

62 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

seja uma mera mistura de componentes inalteráveis de tipo epicurista. “Uma


composição é o vir-a-ser de um dos reagentes que sofreu alteração. Assim, o
que vem à existência é uma nova forma específica de ser [...]. A soma total das
suas propriedades não é simplesmente a soma total das propriedades dos ele-
mentos constituintes [...] (ZATERKA, 2004, p. 78). E o que justifica a geração
e corrupção – ou o intensio e remissio, ou o fortalecimento e enfraquecimento
– é explicado à luz da teleologia aristotélica: cada coisa esforça-se para ir em
direção à sua finalidade. “As coisas mudam porque uma forma é substituída
por outra e nas mudanças mais radicais surge uma nova forma substancial, ou
seja, o que muda é sua própria natureza” (ZATERKA, 2004, p. 85). Entretanto,
conforme Van Melsen (1952, p. 129 apud ZATERKA, 2004, p. 85), “isso não
significa que Aristóteles não pensou em partículas minúsculas. Embora ele
não tenha proposto uma teoria corpuscular, encontramos alguns comentários
que poderiam ser o ponto inicial para tal teoria”. E um dos comentários que
apontam para um corpuscularismo em Aristóteles encontra-se na sua Física:

A carne, os ossos e outras coisas semelhantes são parte do animal, como


os frutos são partes das plantas. É evidente, então, que a carne ou o osso
ou alguma outra coisa não pode ser de qualquer tamanho, nem com
relação ao maior nem ao menor [...]. Se da carne fosse extraída água e
de novo surgisse mais carne por separação na água residual, ainda que
a parte fosse cada vez menor não chegaria jamais a ser tão pequena que
não teria nenhuma magnitude. Por conseguinte, se o processo de sepa-
ração chegasse ao fim, toda coisa não estaria em toda coisa (pois não
haveria carne na água residual). Mas se não parasse e a extração da carne
pudesse continuar indefinidamente, haveria então um número infinito de
partículas iguais finitas em uma magnitude finita, mas isso é impossível
(ARISTÓTELES, Física, I, 4, 187 b 18-34).

Esse corpuscularismo aristotélico, que nega a divisibilidade infinita da


matéria, fora desenvolvido pelos comentadores medievais de Aristóteles sob o
cognome de teoria dos minima naturalia. Tal teoria advoga que, para além de
um certo limite, as formas substanciais não são preservadas. Vê-se, com isso,
que tal teoria está completamente justaposta à noção aristotélica de forma, o
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 63

que é incompatível com o atomismo epicurista. É justamente a substituição


dessa filosofia antiga que Gassendi pretende com a sua “nova filosofia”15.
Gassendi parte do princípio de que é preciso erradicar da filosofia da
natureza toda tentativa de misturar matéria – que é conhecida exclusivamente
pelos sentidos – com princípios de organização não material, aos moldes do
substancialismo dos aristotélicos que compõem a realidade como mistura de
matéria e forma. A verborragia e o obscurantismo da filosofia aristotélica,
segundo Gassendi, admitem que o conhecimento das verdades universais da
natureza advenha da combinação da experiência observacional, da intuição
intelectual e da demonstração lógica. Tudo isso era necessário para conhecer
os princípios e as causas da organização do mundo, a essência das coisas. Para
Gassendi, o conhecimento da natureza e a consequente explicação da diver-
sidade das coisas está nos átomos. “Os corpos macroscópicos se modificam
quando as configurações dos átomos que os compõem se alteram por causa de
interações mecânicas com outros corpos” (MAIA NETO, 1997, p. 37). Um
conceito como o de substância, por exemplo, mescla um componente material
com um imaterial e não favorece a obtenção de verdades acerca do mundo
porque não consegue efetivar a ligação entre a matéria e a forma.

Para Gassendi o melhor sistema explanatório [para a natureza] era o ato-


mismo, que poderia explicar as qualidades sensíveis que encontramos na
experiência e poderia prover um modelo para os dados conhecidos sobre
o mundo observado. O atomismo de Gassendi, derivado de um estudo
dos textos clássicos de Epicuro, não era avançado como uma teoria meta-
física sobre a verdadeira natureza das coisas. O mundo atômico é inferido
de sinais indicativos experimentais que é confirmado ao verificar as predi-
ções sobre os efeitos atômicos no mundo observacional. Gassendi limitou
suas descrições das características dos átomos para qualidades sensoriais
encontradas na experiência (POPKIN, 1967, p. 217).

Segundo a justificativa de Gassendi, a escolha por Epicuro se dá devido ao


fato de que seu atomismo elucida melhor o mundo, uma vez que faz com que

15 Segundo Koyré (2011, p. 337), Gassendi nada inventou e nada descobriu e, a despeito da sua
nova filosofia, afirma: “É que sua física, sendo e pretendendo-se antiaristotélica, permanece tão
qualitativa quanto a de Aristóteles, e quase nunca ultrapassa o nível da experiência bruta para
elevar-se ao nível da experimentação”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

64 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

os dados sensoriais, que explicam o mundo, fiquem inteligíveis aos homens:


tudo é composto de átomos e a junção destes, a fim de compor as coisas da
natureza, dá-se a partir da sua locomoção no espaço vazio. A adoção do ato-
mismo epicurista por Gassendi, entretanto, não se dá em sua completude, visto
que nos chega modificado. Da ontologia epicurista, por exemplo, Gassendi
retira o clinâmen, conservando o que lhe é de mais essencial: os átomos e o
vazio, princípios básicos que compõem o mundo natural.

O espaço, para Gassendi, é o mesmo que o vácuo (um receptáculo incor-


póreo, tridimensional e infinito) que quando ocupado por um corpo é
chamado de lugar e quando desocupado é chamado de vazio. A distinção
entre corpo e vazio, para os atomistas, é a mesma da dicotomia entre tan-
gível e intangível, o corpo sendo a extensão tangível e o vazio a extensão
intangível (ROCHA, 2007, p. 71).

No caso do átomo, este é dotado de tamanho, forma e peso e constitui a


menor parte da matéria. O vazio, por outro lado, tem por função propiciar o
movimento do átomo. Essa concepção atomista de entendimento do funcio-
namento da realidade da natureza pretende também ser oposição ao pensa-
mento de Descartes.
Descartes não compartilhava da concepção de átomos e vazio como
explicação da natureza. Para ele no mundo natural só se admite extensão e
movimento, com isso, não há lugar para a existência de átomos indivisíveis e
nem para o vazio. Sua postura é de um corpuscularista e não de um atomista.
Quanto às pequenas partes dos corpos, Descartes afirma em Os Meteoros:

Mas, a fim de que aceiteis todas essas suposições com menos dificuldade,
sabei que eu não concebo as pequenas partes dos corpos terrestres como
átomos ou partículas indivisíveis, mas que, julgando-as todas de uma
mesma matéria, creio que cada uma poderia ser subdividida de uma infi-
nidade de maneiras e que elas diferem entre si como as pedras de várias
figuras diferentes que tivessem sido cortadas de um mesmo rochedo
(DESCARTES, AT, 6, p. 238-239).

Dessa forma, Descartes admite a matéria composta por corpúsculos,


indefinidamente divisíveis, de diversos tamanhos, com figuras, disposições e
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 65

movimentos distintos, coisa com a qual Gassendi não coadunava: “um átomo
é de uma natureza sólida e plena e não possui nenhuma mistura de vazio,
então não há possibilidade de que uma fissura se acarrete para que ele possa
ser quebrado em pedaços” (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia
I, 258b). Descartes, por outro lado, admite que esses corpúsculos nunca estão
bem arranjados e unidos a ponto de não existirem espaços entre eles. Contudo,
eles não estão vazios, pois estão preenchidos de uma matéria sutil (o éter) em
constante movimento. A posição de Descartes quanto ao vazio, por outro lado,
é a seguinte:

Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam essa palavra, isto


é, como um espaço onde não há nenhuma substância, é evidente que tal
espaço não existe no universo, porque a extensão do espaço ou do lugar
interior não é diferente da do corpo. E dado que só podemos deduzir que
um corpo é uma substância porque é extenso em comprimento, largura e
altura, como concebemos que não é possível que o nada tenha extensão,
então devemos concluir a mesma coisa acerca do espaço que se supõe
vazio, isto é: dado que ele tem extensão, então é necessariamente substân-
cia (DESCARTES, 2006, p. 66).

É justamente contra essa identificação da matéria física com a extensão


geométrica16 que Gassendi insurge propondo a existência dos átomos e do
vazio. Em uma carta a André Rivet, segundo Rochot (1944), Gassendi teria
escrito:

Não é necessário mencionar os pontos particulares, pois desde os pri-


meiros princípios – que o mundo material é infinito ou, como diz ele
sutilmente, indefinido; que o mundo material é, em si mesmo, absoluta-
mente cheio e não se distingue da extensão; que o mundo material pode
ser triturado em pequenos fragmentos suscetíveis de mudar localmente
de posição de diversas maneiras sem interposição de vácuo; e outros do
mesmo gênero –, quem não vê quanto tudo isso acarreta de dificuldades e
de contradições? Não que o autor não consiga ou, pelo menos, não tente

16 “Procedendo assim, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste em
ser uma coisa dura, pesada ou colorida, ou que afeta os sentidos de qualquer outra maneira, mas
que é apenas uma substância extensa em comprimento, largura e altura”. (DESCARTES, 2006,
p. 60)
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

66 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

conseguir iludir e refugiar-se em suas sutilezas. Mas, se os ignorantes e


os espíritos vazios se deixam prender às palavras, seguramente as pessoas
apegadas à verdade não têm hesitações e, deixando de lado as vãs palavras,
só atentam, em suas pesquisas, para as coisas como elas são (ROCHOT,
1944, p. 172).

Na verdade, Gassendi, ao questionar a ontologia dos princípios de


Descartes, está negando uma tradição que retroage a Aristóteles e que o fez
também negar o vácuo. Para Aristóteles qualquer coisa ou é substância ou é
acidente. Tudo o que não é substância ou acidente é não-entidade, não-coisa
ou nada. A ontologia aristotélica que divide o ser em substância e aciden-
tes, para Gassendi, seria um erro, pois tanto o lugar quanto o tempo não têm
substância e acidentes – trata-se de coisas transcendentes, pois o primeiro se
estende mais do que o mundo e o segundo dura mais do que ele – e, ainda
assim, são algo, isto é, justamente o lugar e o tempo de todas as substâncias e
de todos os acidentes. É justamente por tomar tal ontologia como certa que
Descartes comete o erro de negar o vazio:

Se o espaço vazio não é nem substância nem acidente, não pode ser outra
coisa senão o nada, e se o nada não pode, evidentemente, possuir atribu-
tos, não pode ser objeto de medidas. O volume e a distância não podem
medir o nada. As dimensões têm que ser dimensões de alguma coisa, isto
é, de substância e não do nada (KOYRÉ, 2011, p. 340).

Contudo, para Gassendi, a geometrização do espaço proposta por


Descartes não é garantia da geometrização da matéria, pois não é possível
identificar a matéria com a extensão geométrica. O princípio que rege a maté-
ria, segundo Gassendi, decorre do fato de que as coisas se distinguem em vir-
tude de suas formas, formas estas que não existem por si mesmas, mas que
mantêm uma dependência intrínseca com a matéria. É a matéria que garante
a massa, a grandeza e a quantidade das coisas. E, como nada pode ser criado
do nada e nada ser reduzido ao nada, então, é a causa material que permite
explicar a diversidade do mundo e da natureza e não uma estrutura metafísica
baseada na distinção entre substância e acidente (ROCHA, 2007).
O mecanicismo de Gassendi, portanto, lança mão do atomismo de
Epicuro para explicar os fenômenos naturais a partir das noções de matéria e
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 67

de movimento. Todas as propriedades observáveis dos objetos são o resultado


das combinações e das ações dos átomos e toda ação ocorre pelo contato de um
corpo com o outro. Dessa forma, o atomismo de Gassendi, além de permitir o
entendimento empírico dos fenômenos da natureza sem recorrer a uma teoria
da forma e das essências, aos moldes de Aristóteles, ainda dispensa a noção
de ação à distância, já que o movimento é explicado pela ação por contato. É
a admissão da noção de vazio que justifica a possibilidade do movimento dos
corpos pela movimentação dos átomos. Isso é uma das vantagens da teoria
atomista, que dispensa uma série de elementos metafísicos ad hoc que pos-
sam servir à explicação dos fenômenos, dos quais lançaram mão Aristóteles e
Descartes.

[...] esta teoria da matéria tem a vantagem de que não faz um mau traba-
lho ao explicar como a composição e a resolução nas partículas elemen-
tares primárias ocorrem, e por esta razão uma coisa é sólida, ou corpórea,
como se torna menor ou maior, rarefeita ou densa, macia ou dura, afiada
ou cega, e assim por diante [...]. Essas questões e outras similares não
são claramente resolvidas em outras teorias onde a matéria é conside-
rada tanto infinitamente divisível ou pura potencialidade (GASSENDI,
Syntagma philosophicum, Opera omnia, I, 280a).

Dessa forma, a ontologia atomista de Gassendi cumpre com dois objeti-


vos que nos parecem claros: I) selecionar uma filosofia materialista que pudesse
atacar o substancialismo e a metafísica do campo científico; II) eliminar desse
materialismo as partes contrárias à religião e demonstrar que as verdades cien-
tíficas não precisavam entrar em choque com a fé religiosa. Assim, afirma
Gassendi que “[...] não há nada que nos impeça de defender a opinião que
decide que a matéria do mundo e de todas as coisas contidas nele é formada
de átomos, contanto que repudiemos qualquer falsidade que esteja misturada a
ela” (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia, I, 280a). Em virtude
de tal perspectiva, tal como Descartes, Gassendi sustenta o papel fundamental
de Deus na criação da matéria e das leis que governam o mundo. Influenciado
pela crença religiosa, o atomismo de Gassendi acaba por dispensar caracterís-
ticas essenciais do atomismo de Epicuro, a saber: a) a noção de que os átomos
são incriados e incorruptíveis, pois, para Gassendi, eles foram criados e podem
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

68 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

ser aniquilados por Deus; b) o entendimento de que o movimento é eterno,


pois assevera que Deus é a força que gera o movimento; c) a crença de que
a ordem do mundo é criada por encontros casuais dos átomos, pois defende
que o universo é governado pela providência divina; e) a crença de que a alma,
sendo feita de átomos, é mortal, pois acreditava que, além das almas vegetativa
e sensível, há também a alma intelectiva que é incorpórea e imortal. Enfim,
o pretenso materialismo de Gassendi, que se pautava por atacar as filosofias
das substâncias e das essências, demonstrou-se parte de um lugar-comum que,
tendo mudado o rótulo, não mudou os objetivos dos seus predecessores. Talvez
seja por isso que Koyré (2011) não consegue ver na teoria de Gassendi nada do
que pode ser chamado de original, concluindo a respeito: “[...] meu julgamento
é severo. Infelizmente, é o julgamento da história” (KOYRÉ, 2011, p. 342).

Considerações Finais
Conforme se viu, a filosofia de Gassendi acaba por representar um passo
decisivo na retomada do atomismo, que propiciou o seu desenvolvimento
posterior. Depois de séculos de adormecimento, o atomismo acaba por ser
resgatado e se torna um componente importante na explicação empírica da
realidade. Eximindo-se da ontologia mecanicista que lançava mão de explica-
ções e conceitos abstratos, que reportavam às essências ou às causas metafísicas
dos fenômenos, o atomismo epicurista de Gassendi propôs uma explicação
baseada nos próprios fenômenos naturais. Contudo, conforme demonstrado,
apesar dos méritos da ontologia materialista de Gassendi na explicação cien-
tífica, ainda assim, ele não conseguiu se esquivar dos vícios do passado ao se
deixar levar pela influência religiosa, que o fez ceder às pressões do seu tempo,
fazendo com que a sua filosofia se tornasse um misto de materialismo e dog-
matismo. Mesmo assim, a postura cética de Gassendi, no que diz respeito às
questões epistêmicas, deixa-nos um legado que perdurará, pois nos orienta que,
na busca do conhecimento da natureza, faz-se necessária a suspensão do assen-
timento, visto que isso propicia a liberdade do pensar e não nos compromete
com os modismos de uma época. Se Gassendi deixou-se atraiçoar pelas suas
convicções religiosas e, com isso, errou, não nos compete aqui um juízo de
valor, pois, no contexto da redação desse capítulo, diferentemente de Koyré,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A... 69

fomos profundamente afetados pela acatalepsia dos céticos antigos e, com isso,
preferimos manter a suspensão momentânea do assentimento.

Referências
ADAM, C.; TANNERY, P. Oeuvres de Descartes. Edited by Charles Adam and Paul
Tannery, 11 vols. Paris: J. Vrin, 1964-71.

ARISTOTLE. The complete works of Aristotle. Ed. Jonathan Barnes. Princeton:


Princeton University Press, 1984. 2 v.

DESCARTES, R. (1644). Princípios de Filosofia. Tradução de J. Gama. Lisboa:


Edições 70, 2006.

GASSENDI, P. Opera omnia. Lyon: Reprinted Stuttgard-Bad Canstatt: Friedrich


Frommann Verlag, 1964. (VI vols. 1658).

GAUKROGER, S. The emergence of a scientific culture: Science and the Shaping of


Modernity 1210-1685. Oxford: Oxford University Press, 2006.

GEISLER, N. L. Baker Encyclopedia of Christian Apologetics. Michigan: Baker


Academic, 1998.

KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. 3. ed. Tradução de Márcio


Ramalho. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

LOLORDO, A. Gassendi as critic of Descartes. In: NADLER, S.; SCHMALTZ,


T. M.; ANTONIE-MAHUT, D. The Oxford Handbook of Descartes and Cartesianism.
Oxford: Oxford University Press, 2019. p. 596-609.

MAIA NETO, J. R. Usos do Ceticismo no Nascimento da Ciência Moderna por


Gassendi. O que nos faz pensar, nº 12, Set. 1997. p. 29-38.

POPKIN, R. H. The History of Scepticism from Eramus to Descartes. Assen/Netherlands:


Koninklijke Van Gorcum & Comp. N. V., 1960.

POPKIN, Richard H. The Encylopedia of Philosophy. New York: Macmillan e Free


Press, 1967. Vol. 3.

POPKIN, Richard H. The History of Scepticism: from Savonarola to Bayle. Nova


Iorque: Oxford University Press, 2003.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: de Spinoza a Kant. 2. ed. Tradução


de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2007.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

70 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

ROCHA, G. R. História do atomismo: como chegamos a conceber o mundo como o


concebemos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007.

ROCHOT, B. Les travaux de Gassendi sur Épicure et sur l’atomisme, 1619-1658. Paris:
J. Vrin, 1944.

ROVARIS, T. R. A noção de alma na teoria do conhecimento de Pierre Gassendi. 2012. Tese


(Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2012. Disponível em: http://repositorio.unicamp.
br/jspui/handle/REPOSIP/280330. Acesso em: 15 ago. 2020.

VAN MELSEN, A. G. M. From atomos to atom. Pittsburg: Duquesne University Press,


1952.

ZATERKA, L. A filosofia experimental na Inglaterra do séc. XVII: Francis Bacon e


Robert Boyle. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2004. (Estudos
Seiscentistas)
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO III

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI

Introdução

A
filosofia grega que entra em declínio no Período Helenístico com as
invasões bárbaras agoniza de vez no Período Greco-Romano com a
ascensão da filosofia cristã. Em Plotino, encontramos o último suspiro
da tentativa do pensar independente. Com isso, inaugura-se na Idade Média
o famigerado movimento patrístico que transcorre do século II ao século VIII
depois de Cristo. Trata-se de um período em que a Igreja Católica, precisando
se firmar enquanto instituição político-religiosa em um ambiente pagão pós-
-invasões germânicas, vai buscar na filosofia grega argumentos racionais em
vista da defesa das verdades cristãs. É nesse cenário que surgem os chamados
padres da Igreja: intelectuais convertidos que empregaram toda força na defesa
racional da fé.
Com Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nazianzo,
Gregório de Nissa, Basílio Magno, Agostinho, entre outros, vê-se alvorecer um
grande contingente de Apologias: alegado jurídico cujas argumentações visa-
vam obter dos imperadores o reconhecimento do direito legal que os cristãos
teriam para existir em um império oficialmente pagão. É nesse período que se
vê a perversão sistemática da filosofia grega em vista dos interesses cristãos.
Os pensamentos pressupostamente “religiosos” de Pitágoras, Platão, Zenão de
Cítio e Pirro de Élida foram cristianizados, desaparecendo de vez a aplicação
da razão nos diversos campos (como haviam feito os gregos) para lhe empregar
somente em um campo. Agora não mais existem os “amantes da sabedoria”
(filósofos), na acepção típica dos gregos, e sim, pesquisadores e comentadores
das obras produzidas pelos antigos mestres. Inicia-se um período de calmaria
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

72 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

do pensamento criativo em prol de um trabalho de reordenamento, de inter-


pretação (exegese) das obras dos predecessores gregos.
Os ditos “problemas filosóficos” que, ora em diante, ocupam os padres da
Igreja são os da existência e cognoscibilidade de Deus, da criação do mundo e
da natureza, da origem do mal, do corpo e da alma, da verdade do cristianismo
etc., e tudo foi feito para que os argumentos racionais gregos viessem endos-
sar as certezas cristãs. Um típico exemplo do que acontecia encontra-se em
Gregório de Nissa (335-394). Utilizando-se da divisão dicotômica de Platão e
Aristóteles dos mundos intelectivo e sensível, ele define o homem como sendo
de natureza espiritual e material, reforçando seu argumento com os elemen-
tos muito utilizados na cosmologia pré-socrática (fogo, ar, água e terra). “O
homem pertence, através do seu corpo (água e terra), ao mundo da natureza,
e por este pertencer, Deus já está presente nele. Mas o homem pertence tam-
bém ao mundo do espírito (ar e fogo), havendo, portanto, nele, um ‘Nous’”17
(apud SPINELLI, 1990, p. 76). Certo é que não somente os pensamentos de
Platão e Aristóteles, ou dos pré-socráticos, são utilizados pelos pensadores da
Igreja nascente. Os padres se apropriam, também, de elementos da ontolo-
gia grega, da teodiceia, da dialética, da ética, da metafísica – tudo em prol da
“sistematização” de uma nova filosofia que agora passa a ser serva da teologia.
Mas, felizmente, ao lado do que os comentadores exegetas “produziram”, ainda
sobreviveram os pensamentos dos doutos “cientistas” que abriram margem
para outros tipos de estudos que afloraram no decorrer da Idade Média. É
o caso da geometria, aritmética e astronomia, fundamentadas nas obras de
Euclides, Aristarco, Arquimedes e Ptolomeu.
Outro movimento intelectual erigido na Idade Média foi a Escolástica,
assim nomeada em designação aos chamados “escolásticos”, professores das
escolas da época. O movimento escolástico inicia-se no século VIII, quando
Carlos Magno (742-814) resolve organizar o ensino por seu império e fundar
escolas ligadas às instituições católicas. Analfabeto até a idade adulta, tendo
sua preocupação sempre voltada para a arte da guerra, mesmo assim, promoveu
o desenvolvimento cultural do Império Franco abrindo escolas e mosteiros,
estimulando a tradução de obras antigas, patrocinando o trabalho dos artistas

17 O termo “Nous” é utilizado correntemente no mundo grego significando “mente”, “intelecto”,


“razão”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 73

e investindo na cultura. Esse seu trabalho de estímulo à atividade cultural rece-


beu o nome de Renascença Carolíngia.
O modelo escolástico que, no início, foi organizado pelo copista e erudito
inglês chamado Alcuíno (735-804), a mando de Carlos Magno, que dese-
java organizar a “Escola Palatina” (fundada em 782), funcionava da seguinte
maneira: privilegiava-se primeiramente o estudo da linguagem com o Trivium,
que enfatizava a gramática, a retórica e a dialética; depois partia para o exame
das coisas com o Quadrivium, que enfatizava o estudo da geometria, da aritmé-
tica, da astronomia e da música. Quanto ao método de ensino, este se desen-
volvia em dois momentos fundamentais: a lectio, significando leitura de um
texto, com interpretação dada pelo professor que analisava as palavras, des-
tacava e comparava ideias de outros autores, e a quaestio, isto é, perguntas do
didascalus aos alunos e destes ao mestre. Tratava-se de um método rigoroso, um
método universitário, que ficou conhecido como “método parisiense” (modus
parisiensis).
Das sete Artes Liberais promovidas pela renascença carolíngia, aquela
que teve mais destaque e importância, renome e utilização foi a dialética, na
forma da disputatio. Essa se desenvolveu no ambiente acadêmico e sua vulgari-
zação foi motivo de preocupação para as autoridades eclesiais.
Desde sua ascensão, com a queda do Império Romano em 476, fato que
marca a transição da Antiguidade para a Idade Média, a Igreja Católica usa de
subterfúgios para a manutenção do seu poder. Um desses é a própria transmis-
são da crença em uma verdade revelada que induz os menos avisados ao cul-
tivo de uma santa ignorância, desobrigados de qualquer exercício racional, em
nome da fé. Para outro exemplo, temos a instituição do Concílio que, diante
de algo que pudesse contrariar as verdades da fé, submetia esse algo à discus-
são e à possível regulamentação ou revogação – tudo isso para manter a todos
dentro dos limites da ortodoxia e disciplinação. Tanto era que, durante alguns
séculos, os estudos só interessavam a monges e clérigos, os únicos que sabiam
ler e escrever. Mesmo assim, os meios acadêmicos estavam profundamente
envolvidos nas disputas dialéticas, úteis para aguçar a inteligência e a perspi-
cácia de raciocínio. A dialética foi uma das disciplinas mais bem-sucedidas na
escolaridade medieval, fruto do estudo da lógica que veio com a tradução das
obras de Aristóteles (Categorias, Da Interpretação, Tópicos, Analíticos Anteriores
e Posteriores etc.), lidas e difundidas nos meios acadêmicos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

74 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Só que o sucesso da dialética, pela sua vulgarização, acabou por ultra-


passar o ambiente acadêmico, tornando-se um instrumento subversivo que
precisava ser atacado, uma vez que, pelos desmandos de “certos dialéticos”,
via-se que a lógica estava sendo sobreposta à fé. Um caso típico foi o de Pedro
Abelardo (1079-1142), religioso perseguido muito mais por suas convicções
heterodoxas (defendidas dialeticamente) do que por sua vida pessoal (por seu
amor a Heloísa).
Em decorrência dos movimentos dialéticos e dos atos de subversivi-
dade, em 1232, a Inquisição foi instituída pelo papa Gregório IX e sua ação
estendeu-se por vários reinos cristãos – Itália, França, Alemanha, Portugal e,
especialmente, Espanha – com o objetivo de ver disciplinadas as opiniões e
convicções pessoais dos subordinados. E foi por causa dela, como meio para se
esquivar das garras dos inquisidores, que se criou a chamada “teoria da dupla
verdade”.

Quando os autores do século XIII tinham que prestar conta à autoridade


eclesiástica sobre suas discutíveis opiniões do ponto de vista teológico,
desculpavam-se dizendo que sustentaram tais opiniões em função de
meros exercícios de disputa dialética (gratia exercitii, probabiliter o dis-
putationis causa), mas sem garantir que fossem verdadeiras. Tal tipo de
justificativa, todavia, surgia como consequência inevitável de ter sido a
dialética, ou a disputatio, implantada como método de ensino nas univer-
sidades (SPINELLI, 1990, p. 104).

Para os “doutores eclesiásticos”, inimigos da dialética, a máxima de


Abelardo de que duvidando chegamos à investigação e investigando perce-
bemos a verdade (Dubitando ad inquisitionem venimus; inquiriendo veritaten
percipimus), não era concebível, visto que tal procedimento poderia de algum
modo contrariar a “revelação”.
A Inquisição, que com o passar do tempo reduz suas atividades, é reati-
vada a posteriori, em meados do século XVI, diante do avanço do protestan-
tismo. Exatamente nessa época os caminhos do Renascimento firmam-se na
construção de uma nova imagem de homem e de universo.
Com o reflorescimento do comércio, o desenvolvimento da burguesia e
a Reforma Protestante, a Igreja, que se via enfraquecida, insistia em manter as
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 75

bases do passado e refrear o progresso humano. No entanto, o que se viu foi


a substituição paulatina do teocentrismo pelo antropocentrismo, da verdade
revelada por aquela estabelecida pela razão, do idealismo religioso pelo mate-
rialismo racional. A natureza passa a ser observada, experimentada, pesquisada
e não mais contemplada como obra da criação. Mesmo com a força brutal
do Tribunal da Inquisição, os pioneiros da ciência moderna não se deixaram
abater e levaram seus projetos às últimas consequências – foram os casos de
Giordano Bruno (1548-1600), Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu
Galilei (1564-1642), que enfrentaram de perto a fúria da Igreja que insistia em
legislar, além de matéria de religião, em matéria de astronomia, matemática
e filosofia natural, discussões que fugiam de seu campo estrito de atuação e
competência.
Mesmo diante da pressão imposta pela Igreja durante toda Idade Média,
as ideias atomísticas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio sobreviveram e de
tempos em tempos manifestavam-se com toda sua força. Tais ideias estavam
presentes em Cícero (107-43 a. C.), no De natura deorun, onde ele identifica
os átomos com caracteres de ouro ou de bronze, multiformes, que pela pressão
do peso podiam se inserir nos corpos dos objetos; em Galeno (129-199), no
De elementis, onde a cor e o sabor eram opiniões e os “átomos e o vazio, ver-
dades”; em Giordano Bruno, no De mínimo, onde, como em Lucrécio, para ler
o universo bastava combinar um número bastante reduzido de caracteres ou
de letras para formar inumeráveis espécies; em Telesio (1509-1588), no De
rerum natura iuxita propria principia, onde a causa do calor seria a emissão de
partículas de fogo e de outros elementos, tanto do céu como da terra. Essas
são apenas algumas das muitas manifestações do atomismo na Idade Média e
todas elas tinham um fundo lucreciano que fora muito difundido por toda essa
Idade. O De rerum natura de Lucrécio, que era muito citado na universidade e
muitíssimo lido fora dela, “fora condenado pela Igreja no V Concílio de Latrão
e depois condenado novamente, porque continuava sendo muito difundido e
lido, pelo Sínodo Florentino de 1518” (REDONDI, 1991, p. 107). Mas o que
é que tinha de tão perigoso no atomismo de Lucrécio? O caso Galileu nos dará
uma resposta.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

76 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

3.1 Galileu herético?


Se se conhece a história de Galileu, sabe-se muito bem sobre sua conde-
nação: ele fora condenado em 1632 porque com seu Dialogo sopra i due massimi
sistemi del mondo (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo) desobede-
ceu à ordem expressamente imputada pelo inquisidor, cardeal Bellarmino, que
em 1616 teria lhe proibido de desenvolver e/ou propagar qualquer ideia de
cunho copernicista, isto é, qualquer ideia que visasse retirar a terra do centro
do universo (lugar escolhido por Deus para a obra de sua criação). Por sua
desobediência, Galileu foi condenado à prisão domiciliar perpétua por alta
traição e obrigado a abjurar-se publicamente. Pelo menos é isso que muitos
historiadores da ciência nos apresentam em seus livros-textos.
Pietro Redondi, em seu Galileu Herético (1991), nos apresenta outra ver-
são da condenação de Galileu, a partir de um documento até então secreto, que
ele mesmo teria descoberto no Vaticano: a de que a condenação de Galileu se
deu por sua adesão às doutrinas atomistas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
Resumidamente, o que teria ocorrido fora o seguinte: a filosofia oficialmente
aceita no período escolástico, principalmente depois de Tomás de Aquino, era
a de Aristóteles. Lia-se e comentava em todas as universidades e ordens reli-
giosas os Primeiros e Segundos Analíticos, o De anima, a Física, o De generatione
et corruptione, os Meteorológicos, mas tudo era interpretado sob a luz da fé cató-
lica. O neófito Aristóteles, que respondia todas as controvérsias e endossava
todas as teorias, tinha resposta para tudo: magister dixit! (O mestre disse!), esse
era o lema. Mas os interesses filosóficos de Galileu eram outros que não a filo-
sofia de Aristóteles. Interessava-se pelo atomismo físico que representava uma
perspectiva renovadora diante do que era oficialmente oferecido: a concep-
ção aristotélica de mundo. Importava-se, portanto, com o De rerum natura de
Lucrécio e com o Pneumatica de Héron de Alexandria (REDONDI, 1991, p.
21). Em seu Discorso sulle cose che stanno in sull’acqua (Discurso em torno às coisas
que estão sobre a água ou que nela se movem –1612), Galileu havia submetido a
validade das ideias de Demócrito sobre o calor composto de átomos de fogo
ao teste da hidrostática:

O resultado, com alguma crítica e reserva, fora encorajante: o atomismo


era uma hipótese de pesquisa legítima e fecunda para apresentar as quali-
dades da física como ações cinéticas e mecânicas de corpúsculos materiais.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 77

Tratava-se de transformar aquela hipótese num programa teórico sufi-


cientemente geral que se tornasse uma máquina de guerra eficaz em física
contra a concepção aristotélica do mundo (REDONDI, 1991, p. 21).

E foi justamente isso que Galileu fez. Ele, que particularmente jamais
apresentou uma teoria sistemática sobre a natureza da luz, havia apresentado
em 1611 uma experiência de ótica física que impressionou os aristotélicos: foi
a experiência da pedra luminescente de Bolonha (sulfato de Bário). Essa pedra,
depois de ter sido exposta à luz do dia, poderia brilhar na obscuridade; e aquela
luz brilhando na escuridão poderia ser dissociada da ideia de calor ou de uma
fonte luminosa, o que acabara por abalar a verdade aristotélica da luz como
uma qualidade de um meio transparente iluminado. “Em vez de uma quali-
dade, era um corpo ‘quantum’ e se propagava, portanto, mediante uma emissão
de corpúsculos invisíveis” (REDONDI, 1991, p. 16).
Em sua Física, Aristóteles professa o que é chamado de realismo metafí-
sico. Todos os fenômenos físicos são entendidos em termos de qualidades sen-
síveis: todas as qualidades (cor, sabor, cheiro, calor, dureza etc.) são inerentes
a uma substância e nenhuma qualidade pode existir sem ela. Tais qualidades,
mesmo sendo apresentadas de infinitas maneiras aos sentidos, mantêm entre si
algumas formas fundamentais (são quentes ou frias, secas ou úmidas).
A física, em termos bastante gerais, é o estudo do movimento das coisas
materiais que compõem o mundo. Os dados dos sentidos podem ser conheci-
dos e são os mais dignos de fé. Os elementos fundamentais da física aristotélica
são os mesmos de Empédocles: água, ar, terra e fogo; cada um, por sua própria
natureza, tende a ocupar o seu “lugar natural” (o que explica porque o fogo e
o ar sobem; ou porque a água e a terra descem). Esses elementos podem se
converter uns nos outros dada a troca de qualidades que lhes são comuns, por
exemplo, um corpo frio em movimento rápido aquece-se porque, movendo-
-se, recebe do ar quente e úmido a qualidade de ser quente. Há uma constante
passagem de um elemento a outro, num movimento circular que imita, a seu
modo, o movimento circular das esferas celestes. O que se vê são as inúmeras
diferenças que nos são apresentadas pela realidade, por exemplo, de cor, de
odor, de fluidez, de dureza e assim por diante; e todas elas eram explicadas,
obscuramente, por essas sucessíveis mudanças de qualidade.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

78 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Mas Galileu não estava em conformidade com afirmações desse tipo. Em


seu livro, Saggiatore (O Ensaiador), publicado em 1623 com a aprovação do
Santo Ofício, defendia uma teoria muito diversa da teoria física aristotélica.
Com relação ao calor, por exemplo, ao invés de concebê-lo fruto do movi-
mento, associa-o à emissão de partes muito sutis de substância. O calor é pro-
duzido quando a fricção entre dois corpos é tão forte que desprende algumas
partículas de matéria. Essas “partes sutis”, ou partículas, eram designadas por
Galileu pelos termos “partículas ígneas”, “minima ígneos”, “minima sutilíssi-
mos”, “minima quant”; somente com relação à luz ele usava expressamente a
palavra átomo – o que não inviabiliza, em hipótese alguma, sua postura ato-
mista. O calor enquanto dado do sentido (bem como a cor, o odor, o sabor)
não era para Galileu mais do que intuição subjetiva promovida pelos órgãos
dos sentidos e sua tácita constituição devia-se a causas atômicas. Com isso, “o
Saggiatore propunha definitivamente substituir a física aristotélica traduzindo
suas proposições predicativas que diziam respeito a experiências de qualida-
des para uma nova linguagem: ‘o fogo é quente’ para ‘o fogo transmite uma
sensação de calor’” (REDONDI, 1991, p. 66). Daí que, no novo vocabulário
galileano, as qualidades aristotélicas de branco, doce, quente etc. ganham sta-
tus apenas de nomes – tais palavras são nomes e nada mais do que isso (vale
lembrar que Galileu é representante do nominalismo escolástico advindo dos
tempos medievais). Tais qualidades são simplesmente estímulos sensíveis erro-
neamente atribuídos, por Aristóteles, ao mundo objetivo.
Galileu não havia percebido em qual arena entrara e acabou, mesmo sem
intenção, por tocar em um tema melindroso sobre o qual há séculos a Igreja
havia firmado uma ortodoxia: o tema da Eucaristia. É aqui que entra em cena
a figura do padre Orazio Grassi (1583-1654), da Companhia de Jesus, que
promove uma perseguição a Galileu que perdurará até sua condenação defini-
tiva em 1632.
O Saggiatore teve uma aceitação imediata do mundo intelectual de sua
época, contou com a aprovação das mais altas autoridades eclesiásticas, além
da aprovação do papa. Mas a história retroage há alguns anos antes, em 1618,
quando da passagem de três cometas.
Naquela época, o padre Orazio Grassi, aproveitando um estudo prece-
dente de Tycho Brahe, que em 1577 havia conjecturado sobre o movimento
desses corpos, decide aperfeiçoar sua teoria e explicar aquele fenômeno que
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 79

tinha surpreendido o público da época. Sem mais detalhes sobre as teorias


em jogo, sabe-se (vide REDONDI, 1991, p. 38-40) que os sistemas, tanto de
Brahe como de Grassi (esse expresso em De tribus cometis anni MDCXVIII
disputatio astronomica habita in Collegio romano – 1619), atingiam frontal-
mente a teoria de Copérnico sobre o movimento da terra. Teoria essa que
tinha a adesão de Galileu a ponto de ele receber, em 1616, uma advertência
do cardeal Bellarmino para o abandono da teoria heliocêntrica. Mas o que
fazer para paralisar as tentativas de Grassi de sobrepujar o heliocentrismo de
Copérnico? O que fazer para que Copérnico não fosse desacreditado? Parece
que a única opção era atacar de frente a astronomia dos adversários. E com
qual teoria? Qualquer uma que demonstrasse o movimento circular dos
cometas em torno do sol. Para isso, “havia uma muito sedutora, atribuída a
Demócrito e Anaxágoras, que explicava os cometas como aglomerados estela-
res” (REDONDI, 1991, p. 39), que não foi escolhida por Galileu. Ele preferiu,
em um Discorso delle comete (Discurso sobre os cometas), através de um interposto
(seu aluno Mario Guiducci), negar a existência física dos cometas atribuindo-
-lhes somente a condição de aparências luminosas, meteoros óticos subjetivos,
simulacros, puros reflexos sobre vapores, sem nenhum aspecto térmico em vir-
tude do movimento. Teoria esdrúxula, é claro, para qualquer teoria moderna
sobre cometas, mas que não era qualquer “opinião” lançada ao vento, ao sabor
de conjecturas irresponsáveis. Por trás de sua teoria havia uma robusta mate-
mática, aliada à física, com um tempero dialético digno dos maiores literatos.
O efeito pretendido por Galileu foi alcançado: havia ridicularizado seu adver-
sário e, por extensão, toda ordem dos jesuítas, composta pelos mais famosos
teólogos, filósofos e cientistas da época – sem contar que era ela quem tinha
maior influência sobre o Santo Ofício e, consequentemente, sobre o tribunal
da Inquisição.
Desse momento em diante, não faltaram tentativas, por parte de Grassi e
dos jesuítas, de colocar os escritos de Galileu no Índex romano. A hostilidade
de Galileu à filosofia de Aristóteles, oficialmente aceita pela Igreja e difun-
dida pelos jesuítas, era conhecida, mas dessa vez ele tinha ido longe demais.
E o começo da contraofensiva jesuítica dá-se com uma obra do padre Grassi,
assinada com o pseudônimo de Lotario Sarsi (provavelmente para não com-
prometer o Colégio Romano com controvérsias desse tipo, visto que, uma vez
sendo aceito pelo próprio papa, questioná-la seria questionar o seu pontificado)
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

80 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

e intitulada Libra astronômica ac philosophica (1619). O interessante é que por


trás de toda uma argumentação sobre a natureza dos cometas, onde o autor
invoca dos pitagóricos a Tycho Brahe para o seu auxílio argumentativo, vê-se
escondida uma polêmica que extrapola o campo científico e deságua no campo
religioso. “O misterioso Sarsi traz uma invencível propensão a introduzir na
polêmica científica suposições hipócritas e insinuações sobre opiniões religio-
sas do adversário” (REDONDI, 1991, p. 51). “Galileu é um herético” e sua
heresia dá-se no ponto em que o seu escrito atinge frontalmente o misté-
rio do Santíssimo Sacramento (a Eucaristia): esse era o resumo da acusação.
Acusação que era grave e que gerou uma série de controvérsias a respeito da
teoria que ali se encontrava. Tais controvérsias obrigam Galileu a mais tarde
reescrever o Discorso, alterando e aperfeiçoando sua posição, através da obra
intitulada Saggiatore. Como foi dito, esse seu escrito teve aceitação imediata,
foi autorizado pelas autoridades eclesiais do Santo Ofício, recebeu o imprima-
tur, e, para endossar de fato seu conteúdo, foi “abençoado” pelo papa Urbano
VIII (amigo de Galileu) que, na época, estava disposto a conviver com as novi-
dades advindas da filosofia natural.
Sem entrar nos detalhes técnicos acerca das questões astronômicas ali
tratadas, a antiga ideia de as qualidades aristotélicas serem apenas nomes per-
manece intocada nessa nova obra: cor, odor, sabor etc. são expressões de estados
subjetivos e nada mais, isto é, são apenas nomes, ilegitimamente atribuídos ao
mundo objetivo. Galileu dá um exemplo: as cócegas produzidas por uma pena
quando atritada com o nariz ou nos pés são apenas sensações, na pena pro-
priamente dita não é encontrada nenhuma propriedade como essa. O mesmo
vale para o calor: “o calor é produzido pela dissolução de um corpo em partes
finíssimas. No caso de sua percepção sensível não se trata de uma modificação
de propriedade ou de estado, mas da penetração da carne com maior ou menor
intensidade” (REDONDI, 1991, p. 67). Mas o que isso tem a ver com heresia?
Onde entra a Eucaristia nessa história? Procede a acusação de Grassi?
Por trás dos termos cor, odor, sabor havia séculos de debate Eucarístico.
A palavra transubstanciação sancionada pelo Concílio de Latrão em 1215 e
afirmada como dogma era, por séculos, oficiosamente difundida e vivenciada
pelos católicos. Com o Concílio de Trento (1545-1563), no movimento de
Contrarreforma, vê-se definitivamente estabelecida como doutrina certa. Mas
que querela estava por trás dessa palavra? Trata-se de um dogma que torna
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 81

flagrante a antinomia entre o testemunho dos sentidos e a fé doutrinal. Uma


filosofia da matéria segundo a qual há nos corpos uma realidade fundamental
que os constitui e uma realidade aparente aos sentidos: substância e qualidades
(ou espécies, propriedades). Como conceber que depois da “fórmula” pronun-
ciada pelo sacerdote, aquelas substâncias, pão e vinho, venham se transfor-
mar em corpo e sangue de Cristo? As espécies eucarísticas, ou as qualidades
eucarísticas (cor, sabor, odor – qualidades secundárias), são realidades objetivas
ou impressões subjetivas? Tudo o que no rito denomina-se transubstanciação
parece trair os nossos sentidos, restando somente a fé para salvaguardar. Mais
uma vez, está colocado o embate entre a fé e a razão.
No entanto, para a doutrina católica, a realidade eucarística não é essa:
existe ali, de fato, uma mudança de substância, não é só uma questão de fé. E o
argumento utilizado para tal defesa, evidentemente, é o do aristotélico Tomás
de Aquino:

São Tomás tinha a audácia intelectual de afirmar aquilo que os seus


predecessores [...] haviam apenas timidamente exposto: os fenômenos
eucarísticos são fenômenos sensíveis separados da substância, acidentes
sem sujeito. Portanto, a quantidade (extensão) da hóstia consagrada não é
mantida nem pela matéria do pão nem pelo ar ambiente. Ela permanece
milagrosamente, sem substância. Assim também todos os outros aciden-
tes aderentes à extensão: os famigerados “cor, odor, sabor”. Estes persis-
tem e agem “como se” dependessem de uma substância, mas na realidade
persistem e agem sem substância (REDONDI, 1991, p. 238).

Acidentes (cor, odor, sabor) sem sujeito, matéria sem extensão, aciden-
tes sem substância etc. trata-se de uma saída um tanto quanto obscura, mas
racionalmente projetada, que havia abrigado o mistério eucarístico longe das
controvérsias dos “hereges”. Mas o que Galileu havia a dizer sobre essa questão
que o incriminaria e o tornaria suspeito de heresia? Na verdade, o Saggiatore
não trata diretamente de nenhuma dessas questões. O orgulho ferido de Grassi
foi quem assim o interpretou com o objetivo último de incriminá-lo – um
revanchismo contra o golpe que sofrera no passado. Sua pretensão foi a de
acusar o Saggiatore de afirmar “expressamente” a teoria subjetiva das qualida-
des sensíveis também para os acidentes eucarísticos e professar o atomismo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

82 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

substancial “homeomérico” de Anaxágoras. Daí que a acusação era a de que


a “doutrina de Galileu não é compatível com a existência dos acidentes euca-
rísticos estabelecidos pelo cânone 2 da XVIII Sessão do Concílio de Trento”
(REDONDI, 1991, p. 183). A grande questão era: se para a doutrina a matéria
é transubstanciada após o rito da consagração, não subsistirá nenhuma maté-
ria do pão e do vinho depois, e os acidentes (cor, sabor, odor), por extensão,
também não subsistirão. Mas, se interpretarmos em termos atômicos, assim
como pensa o Saggiatore, que, reitera-se, não está preocupado com a questão
do dogma eucarístico, estas “partículas mínimas” de substância, responsáveis
pelos acidentes eucarísticos, permanecerão mesmo após a consagração. E o
que se entende por acidentes (ou qualidades) são apenas sensações de estados
subjetivos. Objetivamente, o que se tem são apenas partículas (ou átomos) de
pão na hóstia, mesmo depois de consagrada – assim, não há uma verdadeira
transubstanciação. “[...] A permanência de partículas de substância explicando
os acidentes sensíveis implica a permanência do pão e do vinho mesmo após
a consagração. Então não haveria nenhum milagre [...]” (REDONDI, 1991,
p. 185). E as aparências externas – cor, sabor e odor – seriam apenas nomes.
Tais acusações foram suficientes para que Galileu fosse taxado de heré-
tico. No entanto, nenhum processo formal foi levantado contra ele (somente
uma representação anônima, provavelmente do padre Orazio Grassi, foi apre-
sentada), isso porque questionar uma obra amplamente aprovada e endossada
pelo papa seria afrontar a própria autoridade de Urbano VIII, que era amigo
do cientista florentino.
Com o passar do tempo, mais especificamente em 1632, o papa enfrenta
uma grande crise política motivada pela Companhia de Jesus e encabeçada
pelo cardeal Borgia, protetor da Espanha (REDONDI, 1991, p. 256). Há uma
ameaça explícita de deposição. Na pauta das reivindicações dos jesuítas estava,
dentre outras coisas, a acusação de que o “santo padre” era conivente com as
heresias dos inimigos da religião: os inovadores, os antiaristotélicos. E, como
se disse, a reivindicação era a da ação com braço forte contra as heresias em
troca de sua permanência no comando da Igreja – ameaçada pela intervenção
espanhola. É nesse mesmo ano (1632) que surge o Diálogo sobre os dois máximos
sistemas do mundo, de Galileu.
A obra, como o Saggiatore, cumpre com todas as exigências protocolares
para a publicação, isso pressupõe um longo caminho até o prelo. Sobre seu
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 83

conteúdo, é sabido que se trata de uma obra de astronomia, antiaristotélica,


que, ao invés de apresentar uma hierarquia entre mundo celeste e mundo ter-
restre (Da geração e corrupção), defende uma homogeneidade entre esses dois
mundos, “ambos formados de uma natureza comum, natureza toda e em todas
as partes cognoscível como uma idêntica observação racional dos fenômenos
ou ‘acidentes’” (REDONDI, 1991, p. 262). Criticava também a teoria aristo-
télica da vida sobre a terra que, por geração e corrupção, era produzida por
elementos contrários: depois da destruição a matéria é transformada em outro
corpo totalmente diverso dela: do frio advém o calor, do úmido o seco etc. Ao
invés dessa teoria, Galileu preferiu uma posição atomista (indireta, é claro), que
era a de se pensar não na destruição e corrupção, mas em movimentos locais de
partes da matéria – “Galileu negava a escolástica e se atinha ao atomismo de
Demócrito” (REDONDI, 1991, p. 264). Mas o objetivo principal da referida
obra era a defesa, também implícita, do sistema heliocêntrico de Copérnico; e
a melhor forma de se fazer isso era atacando a astronomia de Aristóteles, com
a defesa do atomismo de Demócrito. Contudo, tal teoria recai, de novo, no
velho problema dos acidentes eucarísticos: assim como a matéria se corrompe
em movimentos locais, os acidentes eucarísticos se corrompem, se alteram e
mudam de natureza. Isso estava tudo muito implícito no Diálogo, visto que, em
nenhuma vez sequer, Galileu entra em questões de ordem religiosa. Mesmo
assim, isso foi a gota d’água que faltava para uma nova acusação contra Galileu
que, dessa vez, dadas as pressões políticas contra Urbano VIII, não mais podia
contar com a proteção do seu amigo.
O livro caiu nas garras dos jesuítas e na pessoa do cientista ligado ao
Colégio Romano, o padre Cristopher Scheiner, Galileu teve o seu primeiro
opositor, que procurou nas páginas que tratavam do problema da incorrup-
tibilidade dos céus a teoria materialista da “transmutação substancial”. Sem
maiores detalhes, antes que as acusações chegassem ao Santo Ofício (o que
seria muito pior), o papa formou uma comissão particular, cuja presidência era
de sua responsabilidade, para analisar a nova obra de Galileu, cujos resultados,
depois de algumas sessões de reunião, foram os seguintes: Galileu foi acusado
de desobediência às determinações de 1616 do cardeal Bellarmino, o que recaía
em alta traição. Por isso, devia abjurar-se publicamente e, ainda, recolher-se em
prisão domiciliar perpétua (condenação anunciada em 22 de junho de 1633)
–, o que ficou barato em vista da possibilidade de enfrentar diretamente o
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

84 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Santo Ofício, naquela época, composto em sua maioria por jesuítas. Mas resta
salientar que a condenação foi por heresia inquisitorial, ou seja, disciplinar, não
teológica ou doutrinal, o que em outras palavras significa dizer traição.
Com a decisão, o papa afasta todos os envolvidos no caso Galileu de
Roma – os prós e os contras: dos amigos do florentino aos caluniadores jesuítas,
incluindo o padre Grassi, e coloca o Diálogo no Índex. Mas o que tem a ver o
padre Grassi, aparentemente tão distante da atual controvérsia com o Diálogo?
Aqui o termo “aparentemente” cai muito bem. O padre Grassi, denunciante
protagonista no caso Galileu, sempre esteve nos bastidores, travestido de outras
identidades, escamoteando-se como um camaleão. Seu rancor teria triunfado
diante do atomismo inovador que colocara o mistério da Eucaristia sob sus-
peita e, consequentemente, dado aos protestantes motivos para desmerecer as
determinações de Trento. Sua morte em 1654 teria impedido, no entanto, que
ele tivesse sido definitivamente coroado quando, em 1685, Luís XIV revoga o
Edito de Nantes e anuncia a “conversão geral” dos protestantes franceses. Esse
feito dá à Igreja um novo vigor, cancelando a crise gerada pela Reforma. O
resultado foi o silêncio dos inovadores com a “interdição” das teorias atomistas
– tudo iniciado por Grassi. Na esteira de Galileu, viram-se também silenciados
Pascal, Port-Royal, Malebranche, Gassendi, Descartes. Mas o atomismo não
estava morto.

Considerações finais
Pretendíamos aqui apresentar uma nova versão da condenação de Galileu.
Como foi alertado desde o início desse capítulo, trata-se de uma versão de
Pietro Redondi que, em seu livro Galileu Herético (1991), afirma ter tido acesso
aos autos da condenação de Galileu, com a autorização do Vaticano, e desco-
briu que a verdade oficial não condizia com o que realmente está registrado
nos arquivos.
Certo é que sua obra promove um impacto na comunidade científica,
bem como um incômodo nas autoridades eclesiásticas. Tanto é que em 1998,
ao lançar a Encíclica Fides et Ratio, João Paulo II pede perdão pelo erro da
Igreja e, ainda, afirma: “Galileu, fiel e sincero, mostrou-se mais perspicaz do
que seus adversários teólogos”. A importância da revisão da história está no
fato de que é aprendendo com os erros que avançaremos rumo aos acertos,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI 85

pois “um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”, dizia
o historiador Eduardo Bueno. O caso Galileu é um exemplo típico de que, para
o avanço do conhecimento e da ciência, é necessário fazer com que o homem
esteja de pleno gozo da liberdade de pensamento e expressão.

Referências
REDONDI, P. Galileu Herético. Tradução de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.

SPINELLI, Miguel. Filosofia e Ciência. São Paulo: EDICON, 1990.


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO IV

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS


DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA

Introdução

A
Idade Moderna foi profícua no entendimento físico do funcionamento
do universo. Newton, por exemplo, deixou um legado que ultrapassou
os séculos fixando sua influência em domínios, como: teoria das ondas
luminosas, teoria cinética do calor, compreensão da eletricidade e do magne-
tismo e descobertas de Faraday e Maxwell em eletrodinâmica e óptica. Sua
física norteou a ciência por mais de duzentos anos – até a primeira metade do
século XX –, quando Einstein demonstrou que a física precisava crescer para
além da estrutura newtoniana. No entanto, em sua produção teórica e expe-
rimental, é inegável o tributo de precursores como Descartes e Boyle. Desses,
Newton extrai elementos metafísicos que o inspiram e o orientam como, por
exemplo, a noção do elemento que comporia o espaço absoluto.
O presente capítulo tem, portanto, a intenção de apresentar o pensa-
mento desses autores no que concerne à origem e aos fundamentos da meta-
física mecânica na modernidade. Para tal, escolhemos dois elementos-chave
na história da construção da realidade moderna: o átomo e o éter. Ambos
suprem a necessidade de construção de teorias que vislumbram a criação de
sistemas universais, cuja inteligibilidade não é questionada por ser fundamen-
tada em bases dedutivamente sólidas. Aqui, as filosofias mecânicas propostas
por Descartes e Boyle, ainda que possam representar algum avanço ante o
pensamento de Galileu, não conseguem se divorciar da influência exercida pela
metafísica em séculos de história do atomismo.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

88 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

4.1 O dualismo metafísico de Descartes e a resposta


ao problema das qualidades secundárias
Galileu havia firmado o ideal da ciência moderna quando disse que a
filosofia estava escrita no grande livro da natureza, escrito em linguagem mate-
mática, cujos caracteres eram triângulos, circunferências e outras figuras geo-
métricas. Ideal esse que foi muito bem assimilado por Descartes.
Herdeiro da concepção de que o universo material poderia ser matema-
tizado, Descartes propôs em sua geometria analítica que existia uma corres-
pondência biunívoca entre o reino dos números (a aritmética e a álgebra) e o
reino da geometria (o espaço). Em ciência, sua maior contribuição aparece em
seu Discurso sobre o Método que, alicerçado na dúvida metódica e no raciocínio
lógico, propõe sua metodologia: não aceitar acriticamente os dados do sentido,
isto é, levantar suspeita sobre o que eles nos dizem e sobre os seus resultados,
refletidos em nosso raciocínio. A única verdade totalmente livre da dúvida
era a de que “os meus pensamentos existem” e tal existência se confunde com
a minha própria. Com isso, chega à sua famosa sentença: cogito ergo sum, ou
melhor, “penso, logo existo”.
Com seu método da dúvida, Descartes abalou profundamente o edifício
do conhecimento estabelecido e celebrizou-se muito mais pelas questões que
levantou do que pelas respostas encontradas. De seu cogito pode-se extrair uma
importante consequência: a de que o pensamento (consciência) é mais certo do
que a existência (matéria corporal). É a partir do “penso” que se conclui pelo
“existo”, portanto, o pensamento precede à existência. Com isso, Descartes fixa
um aspecto famoso de sua metafísica, o dualismo das entidades fundamen-
tais e mutuamente independentes, a res extensa e a res cogitans, isto é, “coisa
extensa” e “coisa pensante”. A coisa extensa pertence ao mundo dos corpos,
cuja essência é a extensão: cada corpo é parte do espaço, uma grandeza espacial
limitada, diferente dos demais corpos apenas por diferentes modos de exten-
são e cognoscível apenas pela matemática pura (num mundo geométrico). Já
a coisa pensante, constituinte do mundo interior, tem o pensamento como
sua essência e cujo modo é composto por processos subsidiários, como a per-
cepção, a vontade, o sentimento, a imaginação etc.; reino que não é dotado de
extensão, que é independente do outro, onde tudo o que existe nele é a subs-
tância pensante. Essa dicotomia cartesiana cria para Descartes um problema
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 89

que também é dual: em qual reino devemos colocar as qualidades primárias e


em qual devemos colocar as secundárias? Quanto à forma, extensão, peso etc.
(qualidades primárias), já está resolvido que pertencem à res extensa; e a cor,
o odor, o sabor etc. (qualidades secundárias) pertencem a qual reino? A res-
posta é do próprio Descartes: “na verdade, elas não podem ser representativas
de nada que exista fora de nossas mentes” (DESCARTES, 1978, Princípios,
70, 17). “Elas são, por certo, causadas pelos vários efeitos que os movimentos
das partes pequenas e imperceptíveis dos corpos produzem em nossos órgãos”
(DESCARTES, 1824, p. 235). E aqui Descartes parece ter entrado no mesmo
campo minado de Galileu, primeiramente, por admitir tais qualidades (aquelas
que estavam envolvidas na querela da Eucaristia) como algo que não exista fora
de nossa mente (só faltou dizer que estas são apenas nomes) e por reduzi-las ao
efeito proporcionado por uma realidade corpuscular. Aqui temos o Descartes
corpuscularista, conforme vimos no Capítulo II.
Segundo Redondi (1991, p. 78), Descartes teria sido aquele que “apren-
deu admirar Galileu desde os tempos de colégio” e que é certo que “em
1638 Descartes conhecia perfeitamente as teorias atomísticas de Galileu”
(REDONDI, 1991, p. 313). No entanto, mesmo na certeza de que teria sido
ele, juntamente com Gassendi, que teria introduzido o atomismo/corpus-
cularismo na ciência moderna (SCHRÖDINGER, 1996. p. 78), não é fácil
identificar imediatamente o percentual de influência que ele teria herdado do
pensamento de Galileu, “dada à bem conhecida reticência cartesiana em indi-
car as próprias fontes, em reconhecer os próprios débitos intelectuais e em
recordar explicitamente os livros lidos, ainda que por uma simples menção
breve e rápida (REDONDI, 1991, p. 314). Certo é que em 1630 ele estava tra-
balhando em um projeto audacioso onde estudava os fenômenos dos cometas
(assim como o Saggiatore de Galileu, mas de um outro ponto de vista) e da luz,
com o qual pretendia elaborar uma física toda inteira. Dessa época, tem-se uma
carta onde ele escreve de Amsterdam para o padre Mersenne (DESCARTES,
1630, p. 177-182) falando desse seu projeto. Dentre outras coisas, afirma:

Quero ali inserir um discurso em que tentarei explicar a natureza das


cores e da luz, no qual me detenho há seis meses, e do qual ainda não
está feita nem a metade. Mas ele será também mais longo do que penso
e conterá quase uma Física toda inteira; de modo que pretendo que ele
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

90 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

servirá para desincumbir-me da promessa que vos fiz, de ter terminado


meu Mundo em três anos, porque será quase um resumo dele. [...] Creio
que vos enviarei esse discurso sobre a luz, assim que estiver pronto, e
antes de enviar-vos o resto da Dioptrique: porque querendo aí explicar as
cores a minha moda, e em consequência estando obrigado a explicar como
a brancura do pão permanece no Santo Sacramento, ficarei mais à vontade
se ele for examinado por meus amigos, antes que visto por todo mundo
(grifos nossos).

Como se vê, Descartes acaba por entrar na mesma discussão que Galileu
e tantos outros entraram e, por tal, sofreram represálias e sérias perseguições
por parte da Igreja. Não seria concebível que um pensador de sua envergadura
trilhasse o mesmo caminho que os seus predecessores e insistisse no mesmo
“erro” do passado, mas essa foi a sua escolha.
Com relação às qualidades secundárias, Descartes orienta sua análise das
sensações para os fundamentos da física, acabando por criticar as qualidades
escolásticas e assumindo o corpuscularismo de Galileu. O “meu Mundo” sobre
qual Descartes havia incumbido de escrever em três anos era, na verdade, o
Monde ou Traité de La Luminère. Nesse trabalho, o que ele propunha era tratar
dos problemas cognitivos gerais das sensações e da física, terminando-o ao
analisar os fenômenos dos cometas (justamente o caminho inverso de Galileu).
E o ponto crucial de sua argumentação é o entendimento de que as qualidades
secundárias são reconhecidas como qualidades subjetivas; não existe objetivi-
dade nos fenômenos sensíveis.

Descartes parecia, porém, recordar muito bem o que Galileu escrevera


no Saggiatore, tão bem que o Monde, para criticar a teoria escolástica das
qualidades sensíveis, usava o exemplo muito sugestivo – utilizado tam-
bém no Saggiatore – da pena que produz uma sensação de cócegas nas
partes sensíveis do corpo sem possuir nenhuma virtude titilante: “uma
criança que dorme”, lê-se no Monde, “sobre cujos lábios se passe suave-
mente uma pena sentirá cócegas: pensais talvez que a ideia de cócegas
por ela concebida seja semelhante a qualquer coisa que exista na pena?”.
“Aquela titilação”, podia-se continuar a ler no Saggiatore, “está toda em
nós e não na pena” (REDONDI, 1991, p. 315).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 91

Não estamos diante do mesmo problema enfrentado por Galileu no


Saggiatore? Certo é que, como no Saggiatore, em Monde, temos a eliminação
da qualidade e dos acidentes da filosofia escolástica, que são substituídas pelos
movimentos locais de partes de matéria: partes mínimas de terra, de ar e de
fogo. Cor, odor, calor etc. não podem ser representativos de nada que exista
fora de nossas mentes; possuímos conhecimento dessas qualidades quando as
consideramos simplesmente como sensações ou pensamentos.

Quando elas são consideradas como certas coisas que subsistem além de
nossas mentes, somos totalmente incapazes de formar qualquer conceito
a seu respeito. Com efeito, quando alguém nos diz que vê a cor de um
corpo ou que sente dor em uma perna, isto é exatamente o mesmo que
dizer que ele viu ou sentiu algo cuja natureza ignora totalmente, ou que
não sabia o que viu ou sentiu (DESCARTES, Princípios 68 e seg.).

Podemos imaginar facilmente como o movimento de um corpo pode ser


causado pelo de outro e diferenciado pelo tamanho, configuração e situ-
ação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como
essas mesmas coisas (tamanho, configuração e movimento) podem pro-
duzir algo cuja natureza é inteiramente diferente da delas próprias, como,
por exemplo, as formas substanciais e qualidades reais que muitos filóso-
fos supõem existir nos corpos (DESCARTES, Princípios 198, 199).

Mas como sabemos, pela natureza de nossa alma, que os diversos movi-
mentos do corpo são suficientes para produzir nele todas as sensações
que experimenta e como aprendemos pela experiência que muitas de suas
sensações são, na verdade, causadas por tais movimentos, enquanto não
descobrimos que qualquer coisa além desses movimentos passa dos órgãos
dos sentidos ao cérebro, temos razão para concluir que não apreendemos,
de modo algum, aquilo que nos objetos exteriores denominamos luz, cor,
odor, paladar, som, calor ou frio, e as demais qualidades tácteis, ou aquilo
que denominamos suas formas substanciais, a não ser como as várias dis-
posições desses objetos que têm o poder de impressionar nossos nervos de
diferentes modos (DESCARTES, Princípio 2).

Vê-se explicitamente o dualismo metafísico manifesto no pensamento de


Descartes: por um lado, o mundo é uma máquina estendida no espaço e, por
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

92 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

outro, consiste em espíritos pensantes. Tudo o que foge à esfera da extensão,


fisicamente matematizável, pertence à esfera do pensamento – e esse é o caso
das qualidades secundárias.
Onde estaria então o envolvimento da filosofia de Descartes com pro-
blemas religiosos então em voga? Em 1633 o livro Monde estava concluído,
no entanto, seu lançamento foi suspenso por Descartes dado o que havia
acontecido com Galileu. Mas, quais eram os problemas que ele apresentava?
Justamente os mesmos apresentados por Galileu: uma teoria corpuscular que
feria frontalmente os dogmas da Igreja com relação à Eucaristia. Em linhas
gerais, o problema era esse: Monde mantinha as críticas de Princípios de
Filosofia de que as qualidades secundárias (cor, odor, sabor etc.) eram dados
subjetivos e identificava matéria com extensão. E quais eram as objeções à sua
teoria? Eram as de que

a concepção corpuscular e a identificação entre substância e extensão ou


quantidade significavam, como todos sabiam, negar a objetividade das
espécies eucarísticas e tornar contraditória a transubstanciação. Se, como
queria Descartes, a matéria é extensiva, então, como na hóstia consagrada
permanece a extensão original, permanecerá também a substância ori-
ginal18. Como se vê, traduzir a segunda parte do dogma, aquela sobre as
espécies sensíveis, em termos cartesianos significava falsificar a primeira
parte, a da transubstanciação (REDONDI, 1991, p. 316).

De qualquer maneira, dados os precedentes de Descartes que, em 1649,


teria sido denunciado por heresia eucarística em virtude da física corpuscular
dos Princípios, em 1662, teve sua obra condenada pela Congregação do Índex:
por sua recusa dos acidentes reais sem sujeito e por ter promovido a associação
da substância com a extensão. Em virtude disso, o Monde só foi publicado
postumamente em 1664.
Se Galileu aboliu de sua ciência as substâncias e a causas escolásticas
em favor da noção de que os corpos são compostos de átomos irredutíveis,
dotados exclusivamente de qualidades matemáticas, que se movem no espaço
e no tempo, infinitos e homogêneos, e em cujos termos o processo real do

18 A pergunta de Descartes teria sido: “Quando uma substância corpórea é transformada em outra,
e todos os acidentes da primeira permanecem, o que é que mudou?” (Nota nossa).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 93

movimento pode ser formulado matematicamente, Descartes é quem radi-


caliza essa noção. Seu pensamento, orientado por uma experiência mística e
fortalecido pela sua invenção da geometria analítica, transcende fronteiras.
Quando vê que nem todas as qualidades podem ser redutíveis a um sistema
geométrico, Descartes propõe uma metafísica que dava conta de explicar as
qualidades que não pertencem ao mundo da natureza. Era só bani-las do
domínio do espaço e classificá-las como modos do pensamento – substância
totalmente diferente da extensão e que existe independente dela. E assim nasce
o conceito de res cogitans, que dá conta de responder à questão fundamental da
existência das qualidades secundárias.
As qualidades do movimento com as quais Galileu se ocupava também
foram explicadas pela metafísica mecânica de Descartes. O movimento que
se dá por impacto sucessivo fornecia explicação para todas as experiências que
contradiziam a existência de um vácuo na natureza, mas, no entanto, dependia
da suposição de um meio etéreo onipresente que se formava por uma série de
vórtices de diversos tamanhos que proporcionava a explicação, por exemplo, da
gravidade de modo inteiramente mecânico. E foi essa vaga caracterização de
éter, que ocultava a real explicação do movimento, que inspirou Robert Boyle,
um dos precursores da química moderna, a construir um sistema metafísico
explicativo dos principais problemas que ocupavam os modernos e que inspi-
rou diretamente Isaac Newton.

4.2 A metafísica de Boyle como resposta aos


problemas da ciência moderna
Robert Boyle (1627-1691), físico e químico irlandês, escreveu O Químico
Cético (1661), onde defendeu o ideal de que as substâncias devem ser estudadas
por meio de experiências práticas e que só são corretas as teorias comprova-
das por experiências. Mesmo assim, foi ele responsável por uma importante
construção metafísica explicativa da realidade na modernidade. Sua teoria não
traça os limites de sua atuação como químico ou como filósofo: aceita a visão
mecânica cartesiana de mundo, valoriza as explicações qualitativas e teleoló-
gicas, insiste na realidade das qualidades secundárias (até então, combatidas
por seus predecessores), mantém uma visão pessimista sobre o conhecimento
humano e constrói sua estranha filosofia do éter. Tudo isso tendo em vista que
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

94 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

jamais perdera sua visão religiosa, onde Deus e o mundo mecânico mantêm
uma relação de intimidade.
O ponto a ser destacado sobre o trabalho de Boyle, e que serve direta-
mente aos nossos interesses, é que ele remonta ao corpuscularismo, que foi
introduzido na ciência moderna pela obra de Descartes. “Ora, não é casual
que Boyle evite enfaticamente utilizar a palavra atomismo nas suas obras e
tenha optado por corpuscularismo. A última coisa que nosso cristão virtuoso
almejaria é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista” (ZATERKA,
2004, p. 72). No entanto, sua concepção de filosofia corpuscular ou de filosofia
mecânica pretende ser apresentada subtraída as conotações metafísicas dos que
o precederam.

Supus poder prestar pelo menos um serviço não-desprezível aos filóso-


fos corpusculares ilustrando algumas de suas noções com experimentos
sensoriais e manifestando que as coisas por mim tratadas podem ser pelo
menos plausivelmente explicadas sem recurso a formas inexplicáveis,
qualidades reais, os quatro elementos peripatéticos, ou ainda os três prin-
cípios químicos (BOYLE, 1672, p. 356).

Sua proposta era a análise química das coisas que nos rodeiam, análise
essa que fosse para além dos métodos místicos e mágicos da alquimia (que
considerava o sal, o enxofre e o mercúrio como os três princípios químicos
constituintes últimos da matéria), dos quatro elementos peripatéticos (água,
fogo, terra e ar) e das concepções de átomo como entidade metafísica subja-
cente a toda realidade. Tratava-se de uma química fundamentada na análise
racional dos fatos sensoriais e confirmada pela experiência.
Mesmo cheio de boas intenções, talvez pelas suas convicções religio-
sas, Boyle deixou-se atraiçoar quanto à sua fundamentação na experiência.
Propôs a defesa de uma visão mecânica de mundo (mesmo que as fronteiras
da mecânica até o presente momento ainda não estivessem totalmente delimi-
tadas), onde a matemática (a metafísica matemática aos moldes de Galileu e
Descartes) serviria à interpretação atomística do mundo (BURTT, 1983). Sua
concepção era a de que os princípios matemáticos eram “o alfabeto com que
Deus escreveu o mundo”: “Encaro os princípios metafísicos e matemáticos [...]
como verdades de tipo transcendental, que não pertencem propriamente seja
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 95

à filosofia, seja à teologia, mas que constituem bases universais e instrumentos


de todo o conhecimento que nós, mortais, podemos adquirir” (BOYLE, 1672,
VI, p. 711). A visão mecânica da natureza envolve, portanto, uma concepção
mecânica de suas operações: quase todos os tipos de qualidades podem ser
produzidos mecanicamente e, em última análise, os agentes corpóreos podem
ser redutíveis a corpúsculos, dotados apenas de qualidades primárias.
Das qualidades primárias, Boyle destaca especialmente o movimento e
tenta explicar toda variedade e mudança através dele. É a partir da matéria,
posta em movimento, que todos os fenômenos podem ser explicados (sejam
eles os infinitamente grandes ou infinitamente pequenos).

O movimento, que parece um princípio tão simples, especialmente nos


corpos simples, pode, mesmo neles, ser muito diversificado; pois ele pode
ser mais ou menos rápido em graus infinitamente variados; pode ser sim-
ples ou composto, uniforme ou variado, e a maior rapidez pode ocorrer
no início ou no fim. O corpo pode mover-se em linha reta, ou circu-
lar, ou segundo alguma outra linha curva; [...] o corpo pode também ter
movimento ondulante, [...] ou apresentar rotação ao redor de suas partes
centrais, etc. (BOYLE, 1672, III, p. 299).

A explicação que Boyle dá do mundo a partir do movimento visa, na


verdade, demonstrar que, pelas suas permutações e combinações, um número
pequeno de diferenças primárias de movimento, figura e volume pode dar ori-
gem, a partir de várias combinações possíveis, a uma grande diversidade de
fenômenos. E esses movimentos, assim como pensavam Galileu e Descartes,
deveriam ser explicados em termos matemáticos exatos.
Mas se até agora Boyle parece apresentar uma concepção coerente de rea-
lidade, explicada em termos matemáticos, qual é a sua contribuição para uma
metafísica explicativa da realidade? Era justamente nesse ponto que pretendí-
amos chegar. Ao propor a explicação dos fenômenos a partir das qualidades
primárias do movimento, do volume e da forma, Boyle não conseguiu fugir das
famigeradas qualidades secundárias e, para elas, não alcança explicações que se
esquivem das dos peripatéticos: “não se deve desprezar as explicações em que
efeitos particulares são deduzidos a partir das mais óbvias e familiares qualida-
des ou estados dos corpos, tais como o calor, o frio, o peso, a fluidez, a dureza, a
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

96 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

fermentação, etc.” (BOYLE, 1672, I, p. 308). E o que ele faz, além de confirmar
a realidade das qualidades secundárias, é reafirmar uma posição com a qual se
mantém fiel à antiga noção de causa final – todas as qualidades apontam para
algo que transcendentalmente as antecede: existe “a admirável cooperação das
diversas partes do universo para a produção de efeitos particulares; e é difícil
dar explicações satisfatórias para todos eles sem reconhecer um ser inteligente
que crie ou disponha das coisas” (BOYLE, 1672, II, p. 76).
A adesão de Boyle a conceitos que pareciam terem sido superados pelos
seus predecessores deve-se única e exclusivamente à sua necessidade de resgatar
o homem do materialismo do século XVII. O mundo real era o domínio dos
pensamentos de Galileu e Descartes; esse mundo era matemática e mecanica-
mente inteligível e todo esforço racional devia-se à explicação do seu funciona-
mento. A razão tornou-se, então, o fundamento último de sua explicação. No
entanto, essa visão que dominou a época, esqueceu-se do homem e o colocou
como uma espécie de apêndice, puro espectador da natureza. “Contrapondo-se
a essa tendência aparentemente irresistível de expulsar o homem da natureza
e de diminuir sua importância, Boyle empenhou-se positivamente em rea-
firmar o lugar factual do homem no cosmos e sua dignidade singular como
filho de Deus” (BURTT, 1983, p. 142). E é por isso que as qualidades primá-
rias não são mais reais que as secundárias: elas estão no homem e, “uma vez
que o homem, com seus sentidos, é parte do universo, todas as qualidades são
igualmente reais”. Como ele próprio afirma, “não vejo a necessidade de que a
inteligibilidade com relação ao entendimento humano seja necessária para a
verdade ou a existência de uma coisa, assim como a visibilidade com relação
ao olho humano não é necessária para a existência de um átomo, ou de um
corpúsculo de ar, ou dos eflúvios de um imã, etc.” (BOYLE, 1672, IV, p. 450).
E, justamente pensando nessa noção de não necessidade da inteligibilidade
das coisas para que elas de fato existam, é que Boyle propõe uma das mais
estranhas (no entanto, muito comum em sua época) concepções metafísicas da
história da química moderna: a filosofia do éter.
Como se disse, na época de Boyle era muito comum a crença na existên-
cia de um meio etéreo – seja para justificar a comunicação do movimento por
impacto sucessivo ou através das distâncias (Descartes), ou para explicar os
fenômenos do magnetismo. Ele próprio, num primeiro momento, encarou-o
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 97

como algo duvidoso, mas a posteriori admitiu que pudesse sim existir uma
substância etérea “muito tênue e difusa”.

Considerei que a parte interestelar do universo, consistente de ar e de


éter, ou de fluidos análogos a um deles, é diáfana; e que o éter é como se
fosse um vasto oceano no qual os globos luminosos, que, aqui e ali, nadam
como peixes, por seus próprios movimentos, ou que, como corpos em
redemoinhos, são transportados pelo ambiente, encontram-se grande-
mente dispersos, de modo que a proporção das estrelas fixas e dos corpos
planetários com relação à parte diáfana é extremamente pequena e mal
pode ser considerada (BOYLE, 1672, IV, p. 451).

Essa “substância”, em Descartes, era concebida como um fluido homo-


gêneo e fleumático que preenchia todo o espaço (com uma série de vórtices
de diversos tamanhos) não ocupado por outros corpos e que não possuíam
características que não pudessem ser deduzidas da extensão. Em Boyle o éter
mostraria sua serventia na medida em que pudesse encontrar nele dois tipos
de matéria: uma que explicasse a comunicação por movimento e a outra que
justificasse os fenômenos do magnetismo. E ele vai encontrar justamente na
teoria corpuscular a orientação de que precisava para comungar essas duas
dificuldades da ciência moderna em uma filosofia do éter19. Afirma:

Pode, portanto, não ser desarrazoado confessar-vos que entretive leves


suspeitas de que, além dos tipos mais numerosos e uniformes de partículas
diminutas de que alguns dos novos filósofos pensam que é composto o
éter sobre o qual venho discorrendo, é possível a existência de outros tipos
de corpúsculos, capazes de consideráveis operações quando encontram cor-
pos congruentes sobre os quais podem atuar; mas, embora seja possível,
e talvez provável, que os efeitos que estamos considerando possam ser
explicados plausivelmente pelo éter, tal como ele é realmente entendido,
tenho certas suspeitas de que tais efeitos possam não ser devidos exclu-
sivamente às causas que lhes são imputadas, mas sim que possivelmente
existam, como eu começava a dizer, tipos peculiares de corpúsculos, que até
aqui não tem nome próprio, que podem revelar faculdade e maneiras de

19 Reforça-se, portanto, nossa tese de que boa parte das teorias da ciência precisa recorrer à meta-
física no intuito de justificar o injustificável – e esse foi, também, o caso de Boyle.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

98 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

atuar peculiares ao encontrar-se com corpos cuja estrutura os leve a admi-


tir a eficácia desses agentes desconhecidos ou a concorrer para ela. Esta
minha suspeita parecerá menos improvável se considerardes que, embora
no éter dos antigos não existisse nada que se pudesse notar além de uma
substância difusa e muita tênue, hoje estamos dispostos a admitir que
existe permanentemente no ar uma multidão de eflúvios que se movem
em um curso determinado entre o pólo norte e o pólo sul (BOYLE, 1672,
III, p. 316, grifos nossos).

Como se vê, a introdução do éter na teoria boyliana segue o mesmo prin-


cípio de seus antecessores, salvo acréscimos sutis no que concerne ao encontro
com os corpos congruentes sobre os quais podem atuar, isto é, trata-se de uma
teoria corpuscular, onde o éter é composto dos tipos mais numerosos e unifor-
mes de partículas diminutas.
Certo é que, mesmo sem um aparato na experiência, a concepção do éter
serviu para preencher duas funções distintas sobre as quais os modernos deba-
tiam: a explicação da propagação do movimento através de distâncias e a expli-
cação de fenômenos tais como a coesão, o magnetismo etc. que, até então, não
podiam ser reduzidos à matemática exata. E essa “distinção entre dois tipos de
matéria etérea, feita com o objetivo de que o éter pudesse fornecer uma expli-
cação adequada para estes dois tipos de fenômenos, será novamente examinada
com Newton” (BURTT, 1983, p. 149).
Enquanto trata do éter como uma necessidade de um princípio explica-
tivo de algo que até então era inexplicável, Boyle debate com o mesmo pro-
blema de seus predecessores, que é o de responder: o que é o éter? De que é
composto? Com qual matéria do universo ele se identifica? Para tais perguntas,
dada a impossibilidade concreta de resposta, ele se vê, também, obrigado a
recorrer à “realidade” corpuscular como válvula de escape para resolução dos
problemas teóricos, ainda que não houvesse qualquer prova empírica irrefutá-
vel da existência física dos corpúsculos/átomos. E, mais uma vez, é a metafísica
que, na obra de Boyle, sobrepõe-se a uma explicação que se pretendia química
dos fenômenos. É Newton quem assumirá o compromisso da explicação da
realidade onde todas as hipóteses seriam eliminadas, restando somente a expe-
riência para confirmar os dados da natureza. Quanto ao sucesso de seu projeto,
a história já nos certificou.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA MECÂNICA NA IDADE MODERNA 99

Considerações finais
Apresentamos os pensamentos de Descartes e Boyle sobre os elementos
metafísicos que compuseram suas teorias. Conforme se viu, os corpúsculos
e o éter preenchiam a necessidade de explicação de fenômenos que, se não
injustificados, encontravam-se ainda inconclusos. As qualidades secundárias
já haviam sido motivo de disputa e de condenações na Idade Média e início
da Idade Moderna. Não se admitia qualquer teoria, mesmo sob justificativa de
cunho metafísico, que viesse ferir os dogmas da Igreja Católica sobre os mis-
térios eucarísticos. Querer propor qualquer teoria de cunho atomista ou cor-
puscularista que negasse os mistérios da transubstanciação, por entender que a
matéria continuava a mesma depois da pronunciação da fórmula litúrgica, era
negar a interferência do divino na materialidade criada. Descartes, então, tal
como Galileu, mesmo percebendo o campo minado no qual estava pisando,
manteve a sua vocação científica propondo bases corpuscularistas para a cons-
tituição do universo. Sua postura redundou, como é sabido, no adiamento da
publicação do seu Monde, que só veio a ser levado a público postumamente.
Ele intentou também a explicação do funcionamento da gravidade de
modo inteiramente mecânico. O movimento que se dava por impacto suces-
sivo fornecia explicação para todas as experiências que contradiziam a exis-
tência de um vácuo na natureza e dependia da suposição de um meio etéreo
onipresente que se formava por uma série de vórtices de diversos tamanhos. É
justamente a concepção de um meio etéreo e, consequentemente, a admissão
de que existe o elemento éter que servirão de inspiração para teoria de Boyle.
Vimos que a proposta do cientista irlandês era justamente utilizar do
éter como elemento que pudesse justificar os fenômenos do magnetismo, isto
é, da atração à distância de corpos que possuem tal capacidade. Posto entre as
estrelas, o éter era visto como um grande oceano no qual os “globos luminosos”
flutuavam e se sustentavam. Ele servia, assim, como uma justificativa meta-
física mecânica para a comunicação do movimento e para os fenômenos do
magnetismo.
Mesmo que se esperasse do gênio experimental de Newton a supera-
ção do éter para a explicação da ação à distância – o que não aconteceu –,
foram Michelson e Morley, em 1887, que mediante experimentos demonstra-
ram que a velocidade da luz era a mesma em qualquer direção e em qualquer
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

100 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

momento. Portanto, ao se acreditar que tal velocidade fosse diminuída quando


do movimento de “subida” pelo éter, viu-se que nada disso acontecia, pois a luz
não muda sua velocidade independentemente de estar “subindo ou descendo
a corrente” ao viajar através de um éter inexistente. E foi assim que se viu a
derrocada do éter na história da ciência como um dos mais interessantes ele-
mentos de explicação da ação mecânica do universo, mas que não ultrapassava
a condição imaterial e metafísica de existência.

Referências
BOYLE, Robert. The Works of the Honorable Robert Boyle. Londres: Ed. Thomas Birch,
1672. 6 v.

BURTT, E. A. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna. Tradução de José Viegas Filho,


Orlando Araújo Henriques. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983.

DESCARTES, R. Carta ao padre Mersenne, 25 nov. 1630, AT, I, p. 177-182.

DESCARTES, R. Opere, VI, p. 348, linhas 31-32 apud REDONDI, 1991.

DESCARTES, R. Princípios da Filosofia. Lisboa, 1978. Parte I.

REDONDI, P. Galileu Herético. Tradução de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia


das Letras, 1991.

SCHRÖDINGER, E. A Natureza e os Gregos. Tradução de Jorge Almeida e Pinho.


Lisboa: Edições 70, 1996.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO V

NEWTON METAFÍSICO

Introdução

C
onhecido como uma das mentes mais brilhantes da história da huma-
nidade, Isaac Newton (1643-1727) foi imortalizado por sua obra mais
significativa, o Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural), de 1687. Nela ele consegue promover a
unificação dos corpos planetários e terrestres por meio de um conjunto de
equações capazes de prever exatamente – com base no volume de um corpo
qualquer, na velocidade e na direção do movimento – como esse corpo se
movimentaria sob o impulso de uma força conhecida. Com isso, postulou que
se fosse dado a conhecer as posições e forças de todas as coisas no universo em
um determinado instante, e se predissesse o curso integral dos acontecimentos
desde os maiores corpos do universo aos mais leves átomos, nada seria incerto,
e o futuro, à semelhança do passado, estaria presente diante dos olhos.
Mas foi a elaboração da lei da gravidade o grande feito de Newton20. Sua
ideia foi a de que existe uma força invisível que exerce controle sobre a matéria
sem haver um contato físico direto. A palavra gravidade foi cunhada a partir
da palavra latina gravitas, que significa “peso”. Com ela Newton explicou com
tanta precisão os movimentos das luas de Júpiter, de Saturno e da Terra, bem
como os movimentos de todos os planetas ao redor do sol, que nos duzentos
anos seguintes poucas melhorias significativas foram feitas em relação à sua
obra. Essa força invisível está em ação entre as massas e é proporcional ao
valor delas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas.

20 Dado o desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral no século XX, a gravitação universal


newtoniana se torna uma aproximação, um caso limite da relatividade para baixas velocidades e
campos gravitacionais “clássicos”, em que a curvatura do espaço-tempo é relativamente “suave”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

102 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Isso significa que se duas massas são separadas, a força da gravidade entre
elas diminui de tal forma que, quando a distância chega a 10 vezes, a força é
100 vezes (quadrado de dez) menor do que a atração inicial. No caso do Sol,
que está 400 vezes mais distante da Terra do que a Lua, o fator inversamente
proporcional redutor da força gravitacional fica em cerca de 4002 (16.000) –
mas essa enorme redução é compensada pela massa imensamente maior do
Sol em comparação à da Lua (a proporção de massa Sol-Lua é 30.000.000:1).
Assim, a Terra orbita o Sol. Toda essa explicação faz parte do terceiro livro21 do
Principia, que termina por explicar os movimentos precisos da Lua e ensinar
que as marés oceânicas se devem à atração gravitacional da Lua e do Sol sobre
as águas. Além disso, calcula a atração do Sol sobre os cometas.
Mas é sabido que as correspondências entre Newton e Boyle eram fre-
quentes e que seu pensamento, especialmente no que concerne à aceitação
de um meio etéreo universal, teria sido influenciado por esse último22. Faz-se
necessário, portanto, entender o pensamento de Boyle (previamente exposto)
no cenário da ciência moderna, levantar suas principais contribuições para o
desenvolvimento da física clássica para, somente mais tarde, averiguar quem é
o “Newton metafísico” – proposta principal desse capítulo.

5.1 Os componentes metafísicos da física newtoniana


Uma das principais preocupações do pensamento de Newton foi com a
busca de uma resposta à pergunta sobre como se altera o estado de movimento
de uma massa puntiforme (que tem forma ou aparência de ponto) num tempo
infinitamente curto sob a influência de uma força externa. Para essa questão,
ele chegou à resposta analisando a trajetória de uma partícula ideal. Aplicou as
suas leis do movimento a um pequeno intervalo de tempo e, com isso, previu a
posição da partícula e a velocidade ao final desse intervalo. E essa experiência,

21 O Principia que granjeou imediatamente uma fama para Newton, na verdade, é um livro muito
complexo e difícil de compreender (cinquenta anos se passaram até que o esquema newtoniano
fosse plenamente aceito e ensinado nas escolas e universidades). Ele se divide em três livros,
embora tenha sido publicado em um único volume em 1687: o primeiro livro trata da mecânica e
explica a razão por que os corpos se movem de determinada maneira no espaço vazio; o segundo
livro trata do movimento dos corpos em meios que oferecem resistência, como o ar ou a água; e
o terceiro livro é o que trata da estrutura e funcionamento do sistema solar e da gravidade.
22 “Seu próprio pensamento sobre o assunto parece ter sido estimulado intimamente por Boyle,
com quem tinha estreita comunicação a respeito de tais questões, como prova sua carta, datada
de 1678, ao famoso químico” (BURTT, 1983, p. 149).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

NEWTON METAFÍSICO 103

que foi repetida sucessivas vezes aplicando o mesmo cálculo, permitiu-lhe esti-
mar a trajetória total. E isso só foi possível com a aplicação de um atalho mate-
mático que ele inventou (paralelamente a Gottfried Leibniz – 1646-1716)
chamado cálculo diferencial. Com o cálculo ele conseguiu abreviar o processo
passo a passo, o que lhe possibilitou analisar o que acontece à velocidade de
uma partícula em movimento à medida que a diferença temporal se torna infi-
nitesimal. Nisso resultou as suas três conhecidas leis do movimento:
a) a primeira afirma que “todo corpo persevera em seu estado de repouso
ou de movimento retilíneo uniforme, a menos que seja compelido a
mudar seu estado por forças aplicadas”. Em outras palavras, um corpo
continuará em repouso a menos que uma força atue sobre ele, e um corpo em
movimento retilíneo uniforme continuará a mover-se na mesma veloci-
dade em linha reta a menos que uma força atue sobre ele. Isso quer dizer
que uma bola completamente lisa em uma superfície plana perfeita
somente se moverá se uma força atuar sobre ela. Se uma força a faz
começar a rolar e se ela não encontra nenhum atrito com a superfí-
cie ou algum obstáculo em seu caminho, ela continuará rolando na
mesma direção para sempre. Esse princípio pode também ser cha-
mado princípio da inércia, sendo esta a propriedade da matéria que a
faz resistir a qualquer mudança em seu movimento;
b) a segunda lei enuncia que “uma alteração no movimento é proporcio-
nal à força motora e ocorre ao longo da linha reta na qual tal força é
aplicada”. O que quer dizer que a aceleração (taxa de variação do movi-
mento23) é diretamente proporcional à força. Por exemplo, quanto maior
a força gerada pelo motor de um automóvel, mais o carro se acelerará.
O dobro da força duplicará a aceleração;
c) no caso da terceira lei, essa afirma que “para qualquer ação existe sem-
pre uma reação oposta e idêntica; em outras palavras, as ações de dois
corpos um sobre o outro são sempre idênticas e sempre opostas em
termos de direção”. Por exemplo, a ação de uma bala disparada por um
revólver resulta na reação do coice da arma. Ou então, quando estamos
sentados em uma cadeira, esta exerce uma força para cima de nós para

23 A “quantidade de movimento”, ou “movimento”, é dada pelo produto da massa de um corpo por


sua velocidade: “F=ma”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

104 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

compensar o nosso peso, que pressiona para baixo. Dizia Newton que
isso acontece também no céu: enquanto a Terra exerce um arranjo
gravitacional sobre a Lua, mantendo-a em órbita, a Lua faz o mesmo
em relação à Terra, criando as marés nos oceanos.
O ponto fraco da teoria gravitacional de Newton concentra-se, no entanto,
na exigência promovida por esta da existência de um tempo e espaço absolutos.
E é justamente esse o rito de passagem de sua física para a metafísica.
É sabido de todos a obsessão de Newton pela conclusão experimental de
suas teorias. Tanto é que somente vinte anos depois de ter chegado a todas as
conclusões do Principia e encorajado pelo matemático Edmond Halley (1656-
1742), que arcou com os custos da publicação, que tais conclusões chegaram
a público. Sua justificativa era a de que para as suas descobertas seriam neces-
sárias mais experimentações e provas. Determinados cálculos não lhe pare-
ciam precisos, pois eram baseados no valor aceito (mais incorreto) do diâmetro
da Terra e ele não admitia hipóteses. “Se ainda houver alguma dúvida [sobre
minhas conclusões], é melhor colocar o caso em circunstâncias mais aprofun-
dadas do experimento do que aquiescer à possibilidade de qualquer explicação
hipotética” (NEWTON, Opera, 1779 apud BURTT, 1983, p. 173). Isso porque

qualquer coisa não deduzida de fenômenos deve ser chamada de hipótese;


e hipóteses, sejam metafísicas ou físicas, referentes a qualidades ocultas ou
mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nesta filosofia, pro-
posições particulares são inferidas dos fenômenos, e tornadas gerais, em
seguida, por indução. Assim foi que a impenetrabilidade, a mobilidade,
e a força impulsiva dos corpos, e as leis de movimento e de gravitação
foram descobertas (NEWTON, Principles, III, 1803, p. 314).

Mesmo com tantas reservas com relação às hipóteses, suas concepções


sobre espaço e tempo, especialmente sobre espaço e tempo absolutos, deixam
margens para questionamentos, principalmente, sobre o valor não hipotético
deles. E é justamente esse o ponto de convergência de sua teoria com as con-
cepções metafísicas da ciência moderna.
Apesar dos avanços de seus predecessores, foi com Newton que a natu-
reza passou a ser pensada essencialmente como o domínio das massas que se
movem de acordo com leis matemáticas no espaço e no tempo sob a influência
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

NEWTON METAFÍSICO 105

de forças definidas e confiáveis. A definição de massa é dada por ele já no


primeiro parágrafo do Principia e é feita em termos de densidade e volume.
E a descoberta sobre ela é que possui diferentes pesos a distâncias diferentes
do centro da Terra e que é composta em última análise de partículas abso-
lutamente rígidas, indestrutíveis, impenetráveis etc. E todas as mudanças na
natureza devem ser vistas como separações, associações e movimentos desses
átomos permanentes que são predominantemente matemáticos.

Aprendemos, pela experiência, que a maior parte dos corpos é dura; e


como a dureza do todo deriva da dureza das partes, nós justamente infe-
rimos, portanto, a dureza das partículas não divididas não somente dos
corpos que percebemos, mas também de todos os outros. Não é da razão,
mas, sim, da sensação que concluímos que todos os corpos são impe-
netráveis (...). E daí concluímos serem as menores partículas de todos
os corpos também dotadas de extensão, duras, impenetráveis, capazes de
serem movimentadas e dotadas de suas próprias vis inertiae (NEWTON,
Principles, 1803, II, p. 161).

Vemos aqui que Newton também recorre à realidade do átomo24, até


então desconhecido empiricamente, para explicar a composição última da
matéria. Assim, é admissível o uso que é feito do atomismo, visto que é “óbvio”
que por trás de todo real deve haver um componente último do mesmo real;
que aquilo que caracteriza o todo deve caracterizar também a parte. Portanto,
aqui, ainda é possível conceber os argumentos newtonianos como genuina-
mente físicos e manter o devido respeito a sua personalidade experimental.
Mas as coisas se complicam na medida em que ele passa da definição de massa
à definição de tempo e espaço absolutos – é nesse ponto que ele abandona seu
empirismo, não conseguindo se esquivar da metafísica. Ele mesmo admite que
ao oferecer caracterizações de espaço, tempo e movimento, “devemos abstrair-
-nos dos nossos sentidos e considerar as coisas por si próprias, distintas do que
são apenas medidas perceptíveis delas” (NEWTON, Principles, 1803, I, p. 9).

24 “Pequenas partículas dos corpos de certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais agem a
distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas tam-
bém umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza” (NEWTON,
Opticks, 1721, p. 350).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

106 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

As definições newtonianas que se seguem, de tempo e espaço absolutos, são


extraídas de Burtt (1983, p. 193-194):

I – O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si, e pela sua própria


natureza, flui uniformemente, sem observar qualquer coisa externa, e é
chamado, também, de duração: o tempo relativo, aparente e comum, é
uma medida perceptível e externa (seja precisa ou variável) de duração
por meio do movimento, que é comumente utilizada em vez do tempo
verdadeiro, como uma hora, um dia, um mês, um ano.

II – O espaço absoluto, por sua própria natureza, indiferente a qualquer


coisa externa, permanece sempre similar e imóvel. O espaço relativo é uma
dimensão móvel ou medida dos espaços absolutos; o que nossos sentidos
determinam por sua posição relativa aos corpos, e que é vulgarmente tido
como espaço imóvel; esta é a dimensão de um espaço subterrâneo, aéreo
ou celeste, determinada por sua posição com relação à Terra. O espaço
absoluto e o relativo são iguais em figura e magnitude; mas não permane-
cem sempre numericamente iguais. Porque, se a Terra se move, por exem-
plo, um espaço do nosso ar que, com relação à Terra, sempre permanece o
mesmo, será em determinado momento parte do espaço absoluto no qual
passa o ar; em outro momento, corresponderá a outra parte do mesmo, e
assim, absolutamente compreendido, será perpetuamente mutável.

A confusão acaba de ser instaurada: o que é o tempo absoluto? E o rela-


tivo? E quanto ao espaço absoluto? E o relativo? Qual é a necessidade subja-
cente a essas divisões? O que as justifica? Todas essas respostas são dadas pelo
próprio Newton, encaixam perfeitamente bem em seu sistema, mas parece-nos
a contragosto da própria realidade empírica.
“O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si, e pela sua própria
natureza, flui uniformemente [...]”. “O espaço absoluto, por sua própria natu-
reza, indiferente a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel
[...]”. Vejamos um exemplo de sua justificativa: um passageiro de um barco se
move em relação ao barco, o barco se move em relação à Terra, a Terra se move
em relação ao Sol – e tudo o que é físico se move em relação a um referencial
espaço-temporal que se encontra em “repouso”, absoluto. Quanto ao espaço
e tempo absolutos, “estes são infinitos, homogêneos, entidade contínuas,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

NEWTON METAFÍSICO 107

inteiramente independentes de qualquer objeto perceptível ou movimento


pelo qual tentamos medi-lo, e o tempo flui uniformemente da eternidade
para a eternidade, e o espaço todo, ao mesmo tempo, em imobilidade infinita”
(BURTT, 1983, p. 195). A questão que ora nos fica é: e qual é a natureza desse
referencial universal?
Ainda sem respostas para as confusas elucubrações de Newton, vem-nos
imediatamente a questão de saber se a exigência de tempo e espaço absolutos
convive com a concepção de um movimento absoluto ou mesmo um repouso
absoluto? E o que seriam eles? A resposta é positiva. Quando um corpo se
transfere de uma parte do espaço absoluto para outra parte, temos um movi-
mento absoluto e quando há uma continuidade de um corpo na mesma parte do
espaço absoluto temos o repouso absoluto.

A existência de um movimento absoluto implica a existência de um


ambiente infinito no qual podem mover-se, e a mensurabilidade exata
daquele movimento sugere que esse ambiente é um sistema geométrico per-
feito e um tempo matemático puro – em outras palavras, movimento absoluto
sugere duração absoluta e espaço absoluto (BURTT, 1983, p. 202).

O que vemos aqui é que Newton, forçosamente, quer transformar tempo


e espaço em entidades reais e absolutas que existem independentemente da
mente humana, onde o movimento funciona na mais perfeita harmonia. Essa
certeza proporcionou uma fundação sólida sobre a qual a ciência construiu o
que veio chamar de “física clássica” e que funcionou perfeitamente bem até
o advento da relatividade no século XX. Só que sua teoria se aplica bem ao
movimento dos grandes sistemas; permite que uma inteligência humana, se
lhe fosse dado conhecer as posições e forças das coisas no universo em um
determinado instante, prediga o curso integral dos acontecimentos, desde os
maiores corpos do universo aos mais leves átomos – desde que seus movimen-
tos sejam harmônicos.
Alguns religiosos de plantão, como era o caso Leibniz, que foi um crítico
ferrenho de Newton, apontaram para aquilo que chamaram de influência anti-
cristã dos Principia: as posições fundamentais foram as de que espaço e tempo
infinitos e absolutos eram admitidos como entidades independentes, vastas,
nas quais as massas moviam-se mecanicamente, e isso significaria dar a Deus
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

108 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

férias de suas funções primordiais. Onde caberia a ação divina se tudo funcio-
nasse como uma espécie de relógio, harmonicamente acertado? Deus parecia
ter sido varrido da existência e nada havia para tomar o seu lugar, exceto esses
seres matemáticos ilimitados. Isso ecoou mais intolerável para Newton do que
a própria querela entre ele e Leibniz sobre o plágio que esse último teria feito
de sua invenção: o cálculo infinitesimal25. Mas as acusações eram injustifica-
das. Esse relógio que era o universo, para Newton, não poderia funcionar para
sempre sem a intervenção de Deus, pois, assim, sua necessidade seria supérflua.
Certas irregularidades no sistema solar, não explicadas pelos movimentos dos
planetas, poderiam sim tirar todo o sistema dos eixos, daí caberia a intervenção
divina para colocar tudo novamente em ordem. Sua outra concepção sobre
Deus é a de que Ele é o sensorium uniforme e ilimitado, onde todos os corpos se
movem. Ele é o próprio espaço absoluto.

É admitido por todos que o Supremo Deus existe, necessariamente; e


pela mesma necessidade Ele existe sempre e em toda parte. Donde Ele
também é todo similar, todo olho, todo ouvido, todo cérebro, todo braço,
todo poder de percepção, para compreender e para agir; mas de maneira
não-humana, não-corpórea; de maneira absolutamente desconhecida por
nós (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 311).

Essas duas concepções citadas (de Deus como coordenador do funciona-


mento da máquina e de Deus como sensorium), mais uma vez, foram motivo
de escárnio por parte de Leibniz: primeiramente, “ria-se da suposição de que
Deus seria uma espécie de encarregado de manutenção em nível astronômico”,
segundo, quanto à ideia de que o espaço era uma espécie de sensorium de Deus,
o questionamento de Leibniz era: “Será que Deus precisaria de órgãos sen-
soriais a fim de perceber?” (HELLMAN, 1999, p. 85-86). Certo é que Deus
permanece intacto em seu sistema e que as concepções newtonianas, muito
além de físicas, estão carregadas de uma robusta metafísica que as sustentam
e as mantém.

25 Sobre a intriga entre Newton e Leibniz a respeito da anterioridade na invenção do cálculo, uma
boa referência é: HELLMAN, Hal. Grandes Debates da Ciência: Dez das maiores contendas de
todos os tempos. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

NEWTON METAFÍSICO 109

James Gleick, um biógrafo de Newton, diz que “Deus inspirou a crença


de Newton em um espaço absoluto e um tempo absoluto”, mesmo assim,
ele deve ter tido algumas dúvidas sobre a veracidade de um tempo e espaço
absolutos, pois também observou em Principia: “Talvez não exista um movi-
mento uniforme que possa servir para mensurar com precisão o tempo. Talvez
nenhum corpo esteja efetivamente em repouso de modo a servir de referência
para a posição e o movimento de outros” (NEWTON, Principles, 1803, II, p.
315). Para o jovem estudante de física, Einstein, uma especulação similar fun-
cionaria como forte estímulo para a criação da Teoria da Relatividade.
A presença de premissas teológicas na física newtoniana sobre espaço e
tempo é reforçada na medida em que aparece outro aspecto fortemente con-
servador em sua metafísica: Newton concebe que exista um meio etéreo sus-
cetível a vibrações.
Na época de Boyle, o meio etéreo era utilizado para justificar o movi-
mento propagado à distância e explicava fenômenos extramecânicos como o
magnetismo e a coesão. Em Descartes, o meio etéreo aparece como fluido
denso, compacto e que equilibrava os planetas em suas órbitas pelo seu movi-
mento de vórtices. Já em Newton, cujo pensamento a esse respeito havia sido
estimulado por Boyle, sua concepção sobre o meio etéreo, que a princípio soava
como uma hipótese, passou a ser um elemento fundamental de sua metafí-
sica (lembre-se de como ele atacava qualquer hipótese): “Se tivesse de presu-
mir uma hipótese, seria esta, se proposta de forma mais geral, de modo a não
determinar o que é a luz; além de ser ela algo capaz de estimular vibrações no
éter; pois assim ela tornar-se-á geral e abrangerá outras hipóteses, de modo a
deixar pouco espaço para invenção de novas hipóteses”26. E, com essa hipótese,
Newton passa a explicar vários tipos de fenômenos como a gravidade, a eletri-
cidade, a coesão, a sensação animal e o movimento, a refração, a reflexão e as
cores da luz etc.

Assim, a atração gravitacional da Terra pode ser causada pela contínua


condensação de um outro espírito etéreo similar, que não o corpo fleu-
mático principal do éter, mas algo muito tênue e difundido sutilmente

26 Carta a Oldenburg, secretário da Sociedade Real, em 1675. Esta carta encontra-se no reunido
de cartas de Brewster (em I, p. 390), Memoirs of the Life, Writings and Discoveres of Isaac Newton,
Edinburgo, 1855 – citado por BURTT, 1983, p. 211.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

110 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

através dele, de natureza talvez oleosa, pegajosa, tenaz e elástica, e desem-


penhando uma relação com o éter muito semelhante à que o espírito
aéreo vital requer para a conservação da chama e que os movimentos
vitais fazem ao ar (BREWSTER, 185I, p. 393-394 apud BURTT, 1983,
p. 213-214).

E no último parágrafo de Principia, onde Newton já havia superado a


divisão entre o corpo fleumático principal do éter e os diversos espíritos etéreos
difundidos através dele, escreve:

Agora acrescentaremos algo concernente a um certo espírito muito tênue,


que permeia e permanece escondido em todos os corpos densos, por cuja
força e ação as partículas dos corpos atraem-se mutuamente à distân-
cias próximas e se integram, se contíguas; e os corpos elétricos operam,
a maiores distâncias, tanto repelindo como atraindo os corpúsculos vizi-
nhos; e a luz é emitida, refletida, refratada, desviada e aquece os corpos; e
toda sensação é estimulada, e os membros dos corpos animais se movem
ao comando da vontade, pelas vibrações desse espírito, propagado mutu-
amente ao longo dos filamentos sólidos dos nervos, dos órgãos externos
de sensação ao cérebro, e do cérebro aos músculos. Mas essas são coisas
que não podem ser explicadas em poucas palavras nem estamos providos
de experimentos suficientes, necessários para uma determinação e uma
demonstração acurada das leis pelas quais esse espírito elétrico e elástico
opera (NEWTON, Principles, 1803, II, p. 314).

Como se vê, Newton não possuía quaisquer certezas acerca dessa enti-
dade “fantasmagórica” e, daí, podemos levantar alguns problemas a partir de
suas palavras: o primeiro diz respeito às suposições que envolvem a explicação
da gravidade. A todo o momento encontramos expressões como “assim talvez
o Sol...” ou “quem quiser também pode supor...”, e outras mais; e isso implica a
falta de respostas conclusivas do próprio Newton para esse fenômeno. Assim,
fica mais fácil e universalizante deduzir a presença de um “espírito etéreo”
em “um corpo fleumático”, pois isso propicia uma independência formal ao
seu sistema. O segundo problema diz respeito às dificuldades conceituais que
geram sua teoria: o que seria esse corpo fleumático pelo qual espírito eté-
reo se move? E o que é o próprio espírito etéreo? Como foi visto na citação
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

NEWTON METAFÍSICO 111

supramencionada, Newton não “provia de experimentos suficientes” que apre-


sentassem respostas conclusivas para essas questões. Ele é mais um dentre
aqueles que, não tendo aparatos técnicos e tecnológicos para explicar experi-
mentalmente tais fenômenos, foi obrigado a recorrer à metafísica na explicação
da realidade física.
Só nos resta, por fim, tentar explicar a composição desse meio etéreo tal
como Newton o concebe e essa explicação não poderia ser outra, para a nossa
“surpresa”, que não atomista:

E se todos supusessem que o éter (como o nosso ar) pode conter partículas
que tendem a afastar umas das outras (pois não sei o que é esse éter), e
que suas partículas são extremamente menores que as do ar, ou mesmo
que as da luz: a extrema pequenez de suas partículas pode contribuir para
a grandeza da força pela qual aquelas partículas podem afastar-se umas
das outras, e, desse modo, tornar aquele meio extremamente mais rare-
feito e elástico que o ar, e, por consequência, extremamente menos capaz
de resistir aos movimentos de projéteis e extremamente mais capaz de
fazer pressão sobre os corpos volumosos, na sua tendência à expansão
(NEWTON, Opticks, 1721, p. 323).

Vemos que o éter de Newton tem a mesma natureza do ar, mas é muito
mais rarefeito. Suas partículas são muito pequenas e estão presentes em maior
quantidade de acordo com sua distância dos poros interiores dos corpos sóli-
dos. São elásticas por possuírem poderes mutuamente repulsivos e tendem
constantemente a afastar-se umas das outras e essa tendência é a causa dos
fenômenos de gravidade, isso porque todo o mundo físico pode consistir de
partículas que se atraem em proporção ao seu tamanho, passando à atração
através de um ponto zero para a repulsão até chegar às menores partículas que
compõem o que se denomina éter. Essas são as consequências do casamento
entre física e metafísica no sistema newtoniano.

Considerações finais
O impacto das teorias newtonianas ainda se fez sentir no século XX
em muitos campos da ciência. A teoria das ondas luminosas usa as leis do
movimento de Newton e o mesmo se pode dizer da teoria cinética do calor.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

112 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

A teoria newtoniana foi importante também no desenvolvimento de nossa


compreensão da eletricidade e do magnetismo e nas descobertas de Faraday
e Maxwell em eletrodinâmica e óptica. Sua física norteou a ciência por mais
de duzentos anos – até a primeira metade do século XX –, quando Einstein
demonstrou que a física precisava crescer para além da estrutura newtoniana.
O necessário crescimento da física a partir de Newton devia-se, também, pela
necessidade de superação dos elementos metafísicos que foram incorporados
no seu pensamento.

Referências
BOYLE, R. The works of the honourable Robert Boyle. Londres: Thomas Birch, 1672.
6 v.

BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Tradução de José Viegas Filho,


Orlando Araújo Henriques. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.

HELLMAN, H. Grandes debates da ciência: dez das maiores contendas de todos os


tempos. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

NEWTON, I. Isaaci Newtoni opera quae exstant omnia. Edição Samuel Horsley, 5 vls.,
L.L.D: Londres, 1779.

NEWTON, I. Mathematical principles of natura philosophy. Tradução de Andrew


Motte. 3 vls. Londres, 1803.

NEWTON, I. Opticks: or, a treatise of the reflections, refractions, inflection, and


colours of light. 3 ed. Londres, 1721.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO VI

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM


DAS LEIS DE NEWTON

Introdução

O
sistema newtoniano por muito tempo foi considerado definitivo: um
sistema de definições e axiomas que dá lugar a um conjunto de equa-
ções matemáticas que descrevem a estrutura eterna da natureza, inde-
pendentemente de um dado espaço ou tempo. Newton fixou sua influência
na mecânica tratando desde o movimento de pontos materiais, passando pela
mecânica dos sólidos, pelos movimentos contínuos de um fluído até os movi-
mentos vibratórios de um corpo elástico. Sua influência se estende também da
dinâmica para a acústica e a hidrodinâmica, que se tornaram ramos da mecâ-
nica. Seu método levou ao desenvolvimento da astronomia quando permitiu
determinações precisas dos movimentos dos planetas e de suas interações. E
até a teoria do calor pôde ser reduzida à mecânica, com base na hipótese de
que o calor consiste em um movimento estatístico complicado de partículas
diminutas da matéria. Com a eletricidade e o magnetismo deu-se da mesma
forma: quando essas forças foram descobertas, compararam-nas às forças gra-
vitacionais e suas ações sobre o movimento dos corpos puderam também ser
estudadas nas linhas da mecânica newtoniana. Entretanto, dificuldades sur-
giram nos estudos sobre o campo eletromagnético, isso porque, ao invés de
se admitir, assim como fez Newton, a possibilidade de uma força agindo a
grandes distâncias, a realidade deste campo apontava para a ação de um ponto
vizinho a outro, caso o comportamento desses campos fosse descrito por equa-
ções diferenciais.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

114 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

6.1 O eletromagnetismo e sua história


Como o próprio nome sugere, eletromagnetismo refere-se a uma força
ou fenômeno que é uma combinação de eletricidade e magnetismo. Como
foi dito, seguindo o exemplo de Newton e aplicando o método científico ao
ramo da física denominado mecânica, pesquisadores do século XVIII e XIX,
como Charles Coulomb (1736-1806), André-Marie Ampère (1775-1836), o
físico italiano Alessandro Volta (1745-1827), o matemático alemão Karl F.
Gauss (1777-1855), realizaram centenas de experimentos com eletricidade e
magnetismo procurando entender esses fenômenos. Esses pensadores, conhe-
cidos como mecanicistas, foram assim reconhecidos por acreditarem que as
leis da mecânica poderiam explicar todos os fenômenos naturais. Mas resta-
-nos entender o pensamento daqueles que foram além das leis da mecânica e,
portanto, além das leis de Newton, para explicar fenômenos eletromagnéticos:
é o caso do físico e químico Michael Faraday (1791-1867) e do físico escocês
James Clerk Maxwell (1831-1879).
A começar pelos partidários da aplicação da mecânica de Newton ao
estudo dos fenômenos elétricos e magnéticos, temos Charles Coulomb.
Coulomb, como um bom mecanicista, além de defender que as forças da natu-
reza poderiam ser explicadas por leis mecânicas, defendia também a neces-
sidade de que os fenômenos fossem explicados por relações algébricas, pois
achava ser a matemática o caminho para se compreender a natureza. Defendeu,
portanto, que a expressão matemática para calcular a força elétrica entre cor-
pos eletrizados tinha formato semelhante àquela proposta por Newton para
a atração gravitacional. Para a força elétrica é possível utilizar-se da seguinte
fórmula:

F = k × Q × q / R2

(Q = carga elétrica de um dos corpos; q = carga elétrica do outro corpo;


e R = distância entre os corpos). Observe, portanto, que essa equação é muito
parecida com a expressão matemática que explica a atração gravitacional,
criada por Newton:

F = G × M × m / R2

(K e G nas duas equações eram consideradas como constantes universais).


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON 115

Com seu trabalho, Coulomb “eliminou” qualquer dúvida quanto à capa-


cidade das leis mecânicas em explicar os mais variados tipos de fenômenos
naturais, afinal, a constante presente em sua lei era universal, independente-
mente do lugar da realização da experiência. Mostrou, também, por meio de
sua experiência com uma balança de torção27, que as forças elétricas e magnéti-
cas eram de naturezas diferentes, não havendo ligação entre elas: o movimento
de fluidos elétricos explicava os fenômenos elétricos e os fluidos magnéticos, os
fenômenos magnéticos. Mas a conclusões de Coulomb pareciam equivocadas.
Foi o que demonstrou Oersted.
Hans Christian Oersted (1777-1851), por meio de suas experiências
com a pilha de Volta, estudou com afinco a natureza da eletricidade. Mas foi
sua experiência com a agulha imantada que lhe deu a certeza da concepção
de natureza orgânica. Em suas experiências, ele observou o que acontecia nas
imediações de um fio condutor atravessado por corrente elétrica. Para tanto,
realizou várias experiências aproximando uma agulha imantada a um fio con-
dutor retilíneo por onde passava uma corrente elétrica. A consequência foi que
a agulha imantada sofria perturbação ao ser aproximada do fio condutor atra-
vessado por corrente elétrica. O resultado de seus experimentos foi publicado
em um artigo, em 1820, intitulado Experimentos sobre o efeito do conflito elétrico
sobre a agulha magnética. Nesse artigo, Oersted demonstra teoricamente como
a agulha imantada podia se movimentar na presença de uma corrente elétrica.
Assim, fica definitivamente estabelecida na história da ciência a relação entre
eletricidade e magnetismo: um efeito elétrico produzira um efeito magnético.
Outra coisa, sua experiência acaba por contrariar os padrões newtonianos de
força.
Segundo Newton, as forças deveriam estar sempre ao longo da linha reta
que une dois corpos – é o caso da gravidade. No entanto, a experiência de
Oersted demonstra o contrário. Se se coloca a agulha da bússola em posições
diferentes ao redor do fio, observa-se algo diferente: a agulha da bússola está
tangente à linha que forma um círculo. Isso significa que a força magnética

27 Tratava-se de um instrumento com o qual Coulomb fazia medidas da força de atração e repulsão
entre duas esferas eletricamente carregadas. A balança se caracteriza por ter uma haste suspensa
por um fio com uma esfera em cada uma de suas extremidades. Ao tomar outra haste com uma
esfera também eletrizada, aproxima-se as duas. Em virtude da força elétrica que se manifesta no
processo, a haste que está suspensa por um fio gira, provocando uma torção no fio. Ao medir o
ângulo de torção, Coulomb conseguia determinar a força entre as esferas.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

116 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

é circular e não retilínea. Nos padrões newtonianos, dada a realização desse


experimento, a agulha da bússola deveria estar paralela a uma linha reta que sai
radialmente do fio.
O impacto do resultado foi tão forte que os grandes nomes da física duvi-
daram de sua veracidade; esse foi o caso de André-Marie Ampère (1775-1836).
Ampère, que até o ano de 1820 (ano da publicação do artigo de Oersted)
tinha uma participação incipiente na comunidade científica, não passando da
publicação de alguns poucos artigos sobre Química e Matemática, ganha pro-
eminência a partir da análise da experiência da agulha imantada. Anos antes,
havia defendido que o magnetismo se devia a um fluido magnético diferente
do elétrico e que, portanto, eram fenômenos independentes. Instigado pelos
resultados, abandonou suas teses sobre os fluidos distintos e passou a inter-
pretar o magnetismo como um efeito secundário, gerado por correntes elé-
tricas. Nos ímãs ou materiais imantados, o magnetismo seria originado em
pequenas correntes circulares nas moléculas constituintes. Observou através
de seus experimentos que, ao se colocarem duas correntes circulares girando
em mesmo sentido, elas se atraem e, em sentidos opostos, elas se repelem –
analogamente à atração e repulsão de dois ímãs. Suas ideias, no entanto, eram
fruto de uma concepção ainda newtoniana de que uma força, originada em um
corpo, surgia instantaneamente em outro corpo, distante do primeiro. E é por
isso que ele se mantinha fiel à concepção de interação apenas entre corpos de
mesma natureza: sendo a eletricidade o fenômeno fundamental, o magnetismo
seria apenas um efeito secundário.
Foram justamente essas conclusões o ponto de partida das críticas de
Faraday ao trabalho de Ampère. Mesmo se respeitando mutuamente, o diá-
logo entre Faraday e Ampère foi repleto de discussões. Faraday não concor-
dava, por exemplo, com a ideia newtoniana de uma força de um corpo atuando
à distância sobre o outro e tinha uma forma de mostrar que o magnetismo se
estendia pelo espaço vizinho de fios e ímãs.

Analisando o comportamento da força magnética ao redor de um fio


condutor, ele construiu um dispositivo que lhe permitiu mostrar que um
fio condutor atravessado por corrente elétrica poderia girar ao redor de
um ímã fixo. Da mesma forma, um ímã móvel poderia movimentar-se
ao redor de um fio condutor fixo por onde passava corrente elétrica. Esse
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON 117

experimento registrou pela primeira vez a conversão de eletricidade em


movimento (BRAGA, 2004, p. 43).

Com isso, Faraday provou a possibilidade da obtenção da eletricidade


por um efeito magnético e um efeito magnético por efeitos elétricos. Além
disso, analisou como uma corrente elétrica poderia induzir uma nova corrente
elétrica num circuito vizinho – obteve corrente elétrica numa bobina isolada,
usando um circuito elétrico vizinho em vez de usar um ímã (corrente por indu-
ção). Apresentou uma explicação única para todos esses casos, que recebeu
o nome de Lei da Indução de Faraday. Criticou, também, a inconsistência
entre as forças elétricas entre corpos carregados e as forças entre correntes
de Ampère. Contrário aos resultados do francês, demonstrou que corpos com
cargas diferentes se atraem e com cargas iguais se repelem.
Faraday rejeitou a tese newtoniana de que todos os fenômenos podiam
ser compreendidos como resultado da atração ou repulsão à distância entre
partículas ou entre fluidos. Propôs uma explicação na qual transmissões elé-
tricas, magnéticas e eletromagnéticas ocorriam de forma contínua através de
linhas de força. “Buscando uma explicação, ele estudou o movimento das car-
gas no condutor e a configuração das linhas de força. Notou que as cargas no
condutor se movimentam perpendicularmente às linhas de campo, assim por
dizer ‘cortando-as’” (CRUZ, 2005, p. 126). Com isso, abandonou seu antigo
conceito de estado eletrotônico28em favor das linhas de força como a princi-
pal explicação dos fenômenos eletromagnéticos. No entanto, não somente os
fenômenos eletromagnéticos frequentavam o imaginário criativo de Faraday.
Sua obsessão era a de estabelecer uma relação entre força, matéria e luz, isto é,
buscar uma teoria unificada para as forças da natureza, demonstrar experimen-
talmente a relação entre eletricidade, magnetismo e gravidade. O resultado
de suas especulações chegou à conjectura de “que a força, ela mesma, seria
matéria e que os corpos materiais, as moléculas, seriam um concentrado de
forças, um nó de linhas de força. Em defesa dessa conjectura, ele argumentava
que a gravidade é uma força e, ao mesmo tempo, uma propriedade da matéria”
(CRUZ, 2005, p. 136). Mas o mais importante nas especulações de Faraday foi

28 “Ao denominar o estado de equilíbrio de eletrotônico, Faraday quis dizer que os sistemas elé-
tricos dentro de um campo magnético ganham uma certa energia que fica armazenada da mes-
ma forma que uma mola sob tensão fica comprimida e armazena energia” (CRUZ, 2005, p.
124-125)
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

118 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

o insight substancial que teve: deduziu que as linhas de força seriam análogas a
cordas espalhadas pelo espaço formando o campo e, da mesma forma que uma
perturbação em uma corda esticada se propaga na forma de onda, uma varia-
ção do campo deveria se propagar no espaço como uma onda (CRUZ, 2005).
Essa conjectura foi o ponto de partida dos trabalhos de Maxwell. Faraday pro-
porcionou a Maxwell a possibilidade da elaboração de equações diferenciais
para descrever o mais novo conceito da ciência: uma onda eletromagnética. E
acompanhado desse novo passo rumo ao desenvolvimento da ciência, assisti-
mos o retorno do antigo conceito metafísico ao campo das teorias científicas:
o éter.
James Clerk Maxwell (1831-1879) impressionou-se bastante com os
resultados obtidos por Faraday. Resultados estes que, mesmo sendo obtidos
por meios experimentais, por não terem sido escritos em linguagem matemá-
tica, eram vistos com reservas por muitos cientistas. Foi daí que em 1855, em
um artigo intitulado Sobre as linhas de força de Faraday, começou a provar as
ideias de Faraday, partindo da demonstração de que por trás do conceito de
linhas de força havia um pensamento matemático – apesar de, como se disse,
Faraday não ter se utilizado de fórmulas para descrever sua teoria.
No prefácio de sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism29, afirma:

Na medida em que eu prosseguia meus estudos sobre Faraday, percebi


que seus métodos de conceber os fenômenos eram também matemáticos,
embora não fossem exibidos na forma matemática convencional. Descobri
também que esses métodos podiam ser expressos na forma convencional
de símbolos matemáticos e então ser comparados com os resultados dos
denominados matemáticos. Por exemplo, Faraday, em sua concepção, vê
linhas de força atravessando todo o espaço, enquanto os matemáticos
veem centros de força atraídos à distância; Faraday vê um meio onde eles
nada veem além da distância. Faraday enxerga a base dos fenômenos na
ação real que ocorre no meio; eles estão satisfeitos por terem encontrado
isso numa força de ação à distância impressa nos fluidos elétricos.

29 MAXWELL, James Clerk. A Treatise on Electricity and Magnetism. Nova York: Oxford
University Press, 1998.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON 119

Certo é que com essa matematização dos trabalhos de Faraday, Maxwell


pretendia fixar de vez a sua oposição diante da concepção newtoniana de ação
à distância e à extensão de sua física, que era elevada por partidários como F. E.
Neumann (1798-1895) e Wilhelm Weber (1804-1891), que teriam obtido um
artefato matemático que unificava a eletricidade estática, a atração entre cor-
rentes e a indução destas, tendo com isso “conseguido” estender a teoria newto-
niana à eletricidade. Maxwell aceitava os resultados matemáticos obtidos por
essa teoria, mas questionava a concepção de realidade por trás dela, isso porque,
se tomarmos como exemplo a teoria de condução de calor, verificaremos que
este tem como base a ação contígua, isto é, ele é transmitido por contato entre
partículas vizinhas – ideia matematizável (como a teoria de Weber), mas com-
pletamente distinta de uma ação à distância. “Maxwell conclui que é possível
ter-se equações matematicamente análogas, mas com base em uma concepção
física diferente da noção à distância, isto é, uma teoria baseada na ação con-
tígua, em um conceito de campo” (CRUZ, 2005, p. 185). E é justamente o
conceito de campo de Faraday que ele irá retomar, com o propósito de lhe dar
um suporte matemático. É exatamente aqui o lugar em que sua física está mais
carregada de metafísica.
Sem a construção de modelos materiais, como era costume de Maxwell
produzir em outras situações e experimentações, seu pensamento orientou-se
da seguinte maneira: o campo de Faraday seria como líquido; um fluido que
tomava todo espaço e, como em um rio, as correntes (linhas de força) deveriam
determinar a direção e o movimento dos corpos. Esse líquido imaginário seria
o éter: substância absolutamente imóvel, sem peso, invisível, de viscosidade
zero, com uma resistência maior que a do aço e que não é detectado por ins-
trumento algum. Essa substância que preenchia os interstícios entre a matéria
seria o ambiente transmissor das ondas eletromagnéticas.

As vastas regiões interplanetárias e interestelares não serão mais conside-


radas como regiões desoladas, as quais o Criador não achou apropriado
preencher como os símbolos da múltipla ordem de seu Reino. Deveremos
encontrá-las já preenchidas com este meio maravilhoso, tão pleno, que
nenhum poder humano poderá removê-lo da menor porção do espaço,
ou produzir a mais leve falha em sua infinita continuidade. Ele se estende
de estrela a estrela, e quando uma molécula de hidrogênio vibra em uma
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

120 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

estrela da constelação do Cão, o meio recebe os impulsos destas vibrações,


e depois de transportá-la em seu imenso regaço por três anos, entrega-os
no devido tempo, de maneira regular, ao espectroscópio do Sr. Huggins,
em Tulse Hill (MAXWELL apud TORT; CUNHA; ASSIS, 2004, p.
281).

Com a necessidade de se postular mais uma vez o éter na história da ciên-


cia, vemos a física recair no mesmo tipo de explicação metafísica dos modernos
Descartes, Boyle, Newton: sem se ter explicações empíricas para os fenôme-
nos próprios da natureza, faz-se necessário que se recorra a “substâncias” cuja
função não é mais do que a de dar inteligibilidade a um sistema. Nos dizeres
de Poincaré, “pouco nos importa que o éter exista realmente: é um problema
para os metafísicos. O importante para nós é que tudo se passa como se ele
existisse, e essa é uma hipótese cômoda para a explicação dos fenômenos”
(POINCARÉ, 1984, p. 157). Mas não será por isso que a contribuição de
Maxwell será diminuída na história da ciência. Na verdade, a onda eletromag-
nética não precisaria do éter para se propagar. Foi o que ficou demonstrado
pelo famoso experimento de Michelson e Morley30, que eliminaram de vez a
existência do éter dos terrenos da física.
Muito mais importante do que a ideia de como esse campo era “fisica-
mente” constituído é a contribuição de Maxwell para a matematização do pró-
prio campo, como também dos fenômenos eletromagnéticos. Ele desenvolveu
um trabalho matemático com o propósito de construir expressões que descre-
vessem como as ações eletromagnéticas ocorriam e como eram transmitidas.
Elaborou equações diferenciais para descrever uma onda eletromagnética. A
energia de tal onda está contida em dois campos, o elétrico e o magnético,
que se encontram polarizados, transversamente e perpendiculares entre si,
enquanto a própria onda se propaga em ângulo reto com o plano da polari-
zação. Quando calculou a velocidade de propagação a partir de suas equações,
Maxwell descobriu que esse resultado coincidia com a mais recente estimativa

30 Sem maiores detalhes, em 1887, A. A. Michelson (1852-1931) e E. Morley (1838-1923), por


meio de experimentos, demonstraram que a velocidade da luz era a mesma em qualquer direção
e em qualquer momento. Portanto, ao se esperar que tal velocidade fosse diminuída quando
do movimento de “subida” pelo éter, viu-se que nada disso acontecia, pois a luz não muda sua
velocidade independentemente de estar “subindo a corrente” ou “descendo a corrente” ao viajar
através de um éter inexistente.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON 121

obtida, em laboratório, da velocidade da luz. Assim, ele inferiu que a luz devia
ser uma onda eletromagnética.
Mas as pretensões de Maxwell giravam ao redor da necessidade da com-
provação da existência do campo e da conexão dinâmica que ele estabelece:
agindo sobre os corpos e sofrendo a sua ação, isto é, o papel principal do campo
é a criação de um vínculo, de uma conexão entre os corpos elétricos e magnéti-
cos. De forma geral, suas equações são para um sistema onde dois corpos estão
conectados através de um terceiro, mas ele introduz nelas as especificidades
dos fenômenos elétricos e magnéticos e analisa os fenômenos de indução, que
exibem o papel do campo, fazendo uma conexão entre dois circuitos ou duas
correntes.
Maxwell apresenta mais de 20 equações, equações essas reduzidas a um
número de quatro por Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos desen-
volvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemá-
tico que permite que tais equações sejam escritas nessa forma sintética, como
são conhecidas hoje. No geral, é isso que dizem as equações de Maxwell:
a) uma carga elétrica produz um campo elétrico;
b) existe um campo magnético entre os polos de um magneto;
c) campos elétricos são produzidos por mudança de campos magnéticos;
d) campos magnéticos são produzidos por mudança de campos elétricos
e por correntes elétricas.

Os dois primeiros princípios explicam os campos elétricos e magnéti-


cos estáticos, ou seja, campos sem correntes ou mudanças de correntes.
A contribuição mais significativa de Maxwell foi o quarto princípio.
Ele reconheceu que os campos magnéticos não são produzidos apenas
por correntes elétricas, mas também por mudança de campos elétricos.
Depois de começar seu trabalho e elaborar as quatro equações, ele per-
cebeu que as leis de número três e quatro significam que campos elé-
tricos e campos magnéticos em propagação não podem ser separados
porque um produz o outro. A partir dessa percepção, ele previu a exis-
tência de ondas de energia em sua maior parte invisíveis, que atualmente
denominamos radiação eletromagnética. Ou seja, com base fundamen-
talmente na terceira e na quarta equações, Maxwell previu a existência
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

122 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

de “campos” eletromagnéticos oscilatórios movendo-se pelo espaço como


ondas ou pequenas ondulações em um lago irradiando-se de sua fonte
(BRODY,1999, p. 204).

As ondas eletromagnéticas que consistem em uma série de cristas e


depressões possuem três características: I) comprimento, que é a distância entre
as cristas adjacentes; II) velocidade, que é a medida do movimento entre cristas
e III) frequência, que é a quantidade que indica quantas cristas passam por
um dado ponto em um segundo. Tais ondas só seriam encontradas oito anos
após a morte de Maxwell, quando Heinrich Hertz (1857-1894) começou a
procurar por elas, confirmando sua existência em 1888. Hertz demonstrou que
as ondas de rádio, luz e calor irradiados eram as ondas eletromagnéticas cujo
comportamento havia sido descrito pelas equações de Maxwell e que todas
viajavam na velocidade da luz. Dessa forma, na eletrodinâmica – embora não
na mecânica –, já não era mais necessário buscar refúgio na ação à distância
instantânea newtoniana; o campo eletromagnético transmitia forças elétricas e
magnéticas numa velocidade finita, a velocidade da luz. “As definições e axio-
mas, que Newton construíra, referiam-se a corpos e seus movimentos; mas,
com Maxwell, os campos de força pareciam ter adquirido o mesmo status de
realidade que os corpos na teoria newtoniana” (HEISENBERG, 1995. p. 75).

Considerações finais
Esse capítulo pretendeu cumprir com as suas pretensões iniciais. Algumas
questões podem, no entanto, surgir como por exemplo: o que é que se define
aqui como metafísica? Com quais critérios tal metafísica é identificada? Onde
se apresenta a metafísica nas discussões que envolvem a eletrodinâmica que, ao
que parece, perverte toda e qualquer concepção que não seja eminentemente
física? Não seria a pretensão de identificar as bases metafísicas da ciência um
desrespeito para com toda sua construção empírica historicamente constituída?
Como representantes do espírito filosófico, primeiramente, diríamos que
a atitude dogmática diante da realidade (quer seja científica ou não), muitas
das vezes apresentada como verdade fixa e definitiva, não pode ser nossa pos-
tura; e o respeito a toda construção científica durante os séculos foi previa-
mente expresso por nossas pretensões. No entanto, nada nos impede de querer
identificar nas construções teóricas a genialidade humana que, diante da falta
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON 123

de respostas e confirmações empíricas para a própria natureza, ousa utilizar-se


do imaginário criativo e fabricar a própria realidade, isto é, elabora a teoria –
dedutivamente costurada e matematicamente axiomatizada – e espera que esta
seja endossada pela realidade. Contudo, o ponto de convergência da metafísica
na ciência moderna altera-se depois de Newton: das leis da mecânica passa-
-se para a eletrodinâmica, com ênfase nos fenômenos eletromagnéticos. Nesse
entremeio o atomismo mantém-se vívido com a teoria cinética dos gases, que
será de vital importância para o entendimento da estrutura e funcionamento
do átomo nas teorias no século XIX e início do século XX. Os trabalhos pre-
cursores nesse campo foram os de Clausius, Maxwell e Boltzmann, que preten-
diam derivar as leis dos gases a partir do movimento das moléculas hipotéticas.
Quanto a Maxwell,

Em 1860, James Clerk Maxwell aprofundou o trabalho de Clausius,


levando em consideração que os diferentes átomos presentes em qualquer
volume se moviam a diferentes velocidades. Assim, mais apropriado do
que utilizar nos cálculos um valor médio de velocidade, comum a todos
os átomos, seria utilizar uma distribuição estatística de velocidades, repre-
sentada por uma função matemática. Com base nessa proposta, em 1866
Maxwell foi capaz de mostrar que, a partir da teoria cinética, dotada das
distribuições de velocidade que tinha introduzido, era possível calcular
parâmetros macroscópicos do gás como, por exemplo, sua viscosidade.
Por sua vez, baseado nesse cálculo da viscosidade, o químico austríaco
Josef Lorschmidt obteve uma estimativa para o tamanho dos átomos.
Desta forma, começavam a surgir as primeiras implicações quantitativas
da teoria atomística, que podiam ser comparadas com dados experimen-
tais (PORTO, 2013, p. 9).

Contudo, ainda assim, as representações metafísicas permanecem ativas.


Vê-se isso, por exemplo, na insistência dos muitos físicos do século XIX que,
por causa de uma visão mecanicista da natureza, foram obrigados a defender a
existência de um ambiente misterioso que permeava todo o universo: o meio
etéreo – como era o caso de Maxwell.
E em que toda essa discussão contribui para a continuidade do desenvol-
vimento da física? Ela simplesmente lança luz sobre os campos os quais irão
se desenvolver no século XX e que projeta grandes nomes como os de Ernest
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

124 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Rutherford (1871-1937), Niels Bohr (1885-1962), Albert Einstein (1879-


1955) e muitos outros.

Referências
BRAGA, Marco (Org.) Faraday e Maxwell: eletromagnetismo – da indução aos
dínamos. São Paulo: Atual, 2004. (Ciência no Tempo)

BRODY, D. E.; BRODY, A. R. As sete maiores descobertas científicas da história e seus


autores. Tradução de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São
Paulo: Odysseus Editora, 2005.

HEISENBERG, W. Física e Filosofia. Tradução de Jorge Leal Ferreira. 3. ed. Brasília:


Editora da Universidade de Brasília, 1995.

TORT, A. C.; CUNHA, A. M., ASSIS, A. K. T. Uma tradução comentada de um


texto de Maxwell sobre a ação à distância. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 26,
p. 273-282, 2004.

POINCARÉ, J. H. A Ciência e a Hipótese. Tradução de Maria Auxiliadora Kneipp.


Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984.

PORTO, C. M. O atomismo grego e a formação do pensamento físico moderno.


Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 35, n. 4, 4601, p. 1-11, 2013.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO VII

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Introdução

N
o capítulo anterior, vimos Maxwell apresentar um modelo de equa-
ções como instrumento para tratar, segundo as leis da mecânica newto-
niana, o campo não newtoniano de Faraday. É importante ressaltar que
em momento algum Maxwell desmereceu a mecânica como um instrumento
obsoleto para tratar dos fenômenos da natureza. Sua proposta era a de por
meio da mecânica superar o modelo newtoniano da ação à distância e lançar
luz sobre os campos. E foi pela formalização de suas equações que ele conse-
guiu relacionar todas as grandezas do campo eletromagnético e ainda mostrar
que a velocidade de uma onda eletromagnética é igual à da luz, lançando mão,
é claro, da crença de um meio etéreo pelo qual tais ondas viajariam.
Por volta de 1870, o alemão Hermann Von Helmholtz (1821-1894),
tendo em vista a confusão da situação do eletromagnetismo, de várias teorias
para explicar o mesmo fenômeno, fundamentou seu trabalho na formulação
de um potencial eletrodinâmico que generalizava os resultados dos trabalhos
dos físicos, especialmente, de W. Weber, Neumann e J. Maxwell. Segundo
Helmholtz,

lado a lado com a teoria de Weber, existiam inúmeras outras, as quais


tinham em comum o seguinte: todas elas consideravam que a intensidade
da força expressa pela lei de Coulomb seria modificada pela influência de
alguma componente da velocidade das quantidades elétricas em movi-
mento (HELMHOLTZ, 1956)31.

31 HELMHOLTZ, H. von. Prefácio. In: HERTZ, H. The principles of mechanics: presented in a


new form. Preface by Hermann von Helmholtz. Authorized English translation by D. E. Jones
e J. T. Walley. With a new introduction by R. S. Cohen. New York: Dover Publication, 1956.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

126 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Suas questões no campo do eletromagnetismo, especialmente sua contri-


buição para a formulação da Lei da Conservação de Energia, vai ao encontro
justamente da certeza de que teorias como as de Weber e de Neumann, desen-
volvidas a partir da noção da ação à distância de Ampère (ou de Newton)
não poderiam conviver cientificamente lado a lado com a teoria de Maxwell.
Utilizando-se do princípio da conservação de energia, Helmholtz consegue
deduzir as equações de Newton e, com isso, conclui que todas as teorias físicas
ou deveriam ser newtonianas ou violariam a conservação de energia (CRUZ,
2005, p. 213). É o caso da teoria de Weber que introduz uma força indepen-
dente da velocidade, o que viola os princípios de Newton e, portanto, o princí-
pio da conservação de energia.

Após um estudo mais aprofundado, Helmholtz concluiu que as diferen-


ças mais importantes entre as teorias estavam relacionadas com previsões
e explicações sobre fenômenos envolvendo correntes abertas. Essas cor-
rentes ocorrem em circuitos que tenham fios separados por uma certa
distância, isto é, separados por uma camada de dielétrico. Por exemplo,
um circuito que tenha um capacitor ou um circuito com extremidades
próximas, mas separadas pelo ar. Nesses circuitos as correntes de deslo-
camento de Maxwell têm um papel fundamental (CRUZ, 2005, p. 213).

Helmholtz decide, então, testar as teorias eletromagnéticas disponíveis.


Segundo suas afirmações, feitas no Prefácio de The principles of mechanics de
Hertz, o que ele faz, primeiramente, é averiguar a adequação das diversas teo-
rias ao comportamento da corrente elétrica em circuitos abertos e fechados.
As questões a serem respondidas eram: quem estaria certo, o partido de Weber
que, admitindo a ação à distância, sugeria que a eletricidade seria dotada de
“um certo grau de inércia” ou o de Maxwell, que rejeitava a ação à distância e
propunha a explicação dos fenômenos eletromagnéticos a partir da polarização
dielétrica de um meio interveniente hipotético? Coube ao seu pupilo, Hertz,
procurar experimentalmente a resposta.
Hertz, elogiado por Helmholtz como um “ser dotado dos mais raros
dotes de caráter e intelecto” (HELMHOLTZ, 1956, Prefácio), a convite do
próprio Helmholtz, inicia o que viria ser um dos trabalhos científicos de maior
impacto em todos os tempos na história da ciência. Enquanto pesquisador do
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 127

laboratório comandado por Helmholtz em Berlim, suas pesquisas decidiram


a questão proposta por seu mestre. Projetou experimentos para investigar se a
variação da polarização de um dielétrico, isto é, a corrente de deslocamento,
poderia induzir ou não efeitos magnéticos. As teorias em questão forneciam
conclusões diversas sobre o assunto. Hertz, no entanto, percebe que esses efei-
tos poderiam ser mais facilmente detectados se um campo elétrico alternado
de alta frequência fosse aplicado ao circuito. A oscilação causaria uma rápida
agitação da polarização do dielétrico, o que amplificaria o efeito – e foi assim
que ele identificou “oscilações elétricas” (HELMHOLTZ, 1956, Prefácio)
propagando-se entre extremidades de condutores abertos. Observando que a
frequência tinha um papel importante nos efeitos, Hertz busca nas diversas
teorias um apoio para interpretar os resultados e prosseguir a investigação. Ao
se aprofundar na teoria de Maxwell consegue controlar as características das
oscilações produzidas, medir o comprimento de sua onda e a velocidade de
propagação no ar. A conclusão foi a de que a perturbação que se propagava
de um circuito para outro era uma onda eletromagnética à velocidade da luz.
Isso lhe permitiu investigar a existência de comportamentos ondulatórios, tais
como interferência, reflexão e refração e os resultados obtidos comprovaram
todas as previsões de Maxwell.
Mas como o trabalho de Hertz ultrapassa os limites do domínio do ele-
tromagnetismo e da ótica e o limite desse capítulo funda-se na análise dos
conceitos centrais de sua filosofia da ciência e não de sua física como um todo,
propomo-nos entender o funcionamento de sua mecânica e averiguar como
seu ideal filosófico de representação ali se manifesta. O principal procedi-
mento em busca dos necessários esclarecimentos é o de tentar entender o que
The principles of mechanics (presented in a new form) pretendiam resolver.

7.1 A mecânica de Hertz: considerações preliminares


A obra Eletric Waves (1893) foi o ponto de partida para a análise filosó-
fico-metodológica das teorias científicas por parte de Hertz e a culminância
dessa prática deu-se com The principles of mechanics (1894). Nas introduções a
essas duas obras, um tema meta-científico se apresenta como núcleo central.
Nelas Hertz trata das diferentes representações, imagens ou modelos (esque-
mas conscientemente construídos, portanto, Darstellungen) dos fenômenos
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

128 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

físicos: no caso da primeira obra, dos fenômenos eletromagnéticos; no caso


da segunda, dos fenômenos mecânicos. E a questão que tenta resolver é a
seguinte: qual é a origem da pluralidade de imagens nas teorias científicas?
Seria ela inevitável?
Em Electric Waves, o foco da análise se dá sobre os diferentes conjuntos
de equações utilizadas por Maxwell para expressar sua teoria eletromagnética.
Hertz entende que no Treatise on Electricity and Magnetism (1873), Maxwell
oscila entre diferentes modos de representação de sua teoria, o que explicaria
inconsistências em seu interior, favorecendo a introdução de “ideias supérfluas
e rudimentares”. É o caso do conceito de eletricidade, “Hertz considerava
ser impossível dar uma significação única ao termo ‘eletricidade’ como ele é
empregado por Maxwell [...]. Convivem lado a lado na teoria duas concepções
incompatíveis entre ‘eletricidade’ e ‘polarização’” (ABRANTES, 1992, p. 356).
Tentando determinar a natureza precisa da teoria de Maxwell através da
análise do conjunto de equações que expressam sua teoria e, com isso, discernir
sobre o que Maxwell está tratando acerca da natureza dos fenômenos eletro-
magnéticos, Hertz conclui que Maxwell não dizia nada acerca da natureza
física desses fenômenos. Sua teoria, “muito abstrata e sem colorido”, resume-
-se em equações que eram fórmulas lógicas que o habilitavam a lidar com os
fenômenos e a entender como eles funcionavam. Daí, Hertz chega à conclusão
sobre a teoria de Maxwell:

À questão, “O que é a teoria de Maxwell?” Eu não conheço uma resposta


mais direta ou definitiva do que a seguinte: - a teoria de Maxwell é o sis-
tema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo sistema
de equações, e, portanto, abranja os mesmos fenômenos, eu consideraria
uma forma ou um caso especial da teoria de Maxwell [...]. Assim, neste
sentido, e apenas neste sentido, podem as duas dissertações teóricas tra-
tadas no presente livro ser consideradas como representações da teoria
de Maxwell. Em nenhum sentido elas podem ter a pretensão de serem
consideradas traduções precisas das ideias de Maxwell. Ao contrário, é
duvidoso que Maxwell, enquanto vivo, as reconheceria como representan-
tes de seus próprios pontos de vista em qualquer aspecto (HERTZ, 1956
apud COHEN, 1955, Ensaio Introdutório – grifos nossos).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 129

Hertz propõe, então, a reconstrução axiomática da teoria de Maxwell


reduzindo as suas equações a apenas quatro32, adotando-as em um sistema
dedutivo, onde estas são apresentadas como “relações entre magnitudes físicas
que são efetivamente observadas, e não entre magnitudes que servem somente
ao cálculo” (HERTZ, 1962, p. 196). Isso resolveria um problema prático ao
invés de somente fornecer um quadro de referência matemático para tratar
de problemas da física, dotando-a de uma estrutura lógica. Hertz reconhece
que “não é agradável ver equações apresentadas como resultados diretos da
observação, onde estávamos acostumados a ver longas deduções como provas
aparentes delas”. Mas reconhece que esse é o preço que se paga por confundir
“a figura simples e familiar apresentada pela natureza, com os trajes vistosos
com que nos habituamos a vesti-la” (HERTZ, 1962, p. 28).
Segundo Abrantes (1992, p. 356), em Electric Waves já se encontram defi-
nidas as posições metodológicas de Hertz e sua concepção da tarefa da filosofia
da ciência, que são:

1. A tese de que nossas “ideias físicas e matemáticas” constituem “modos


de representação” dos fenômenos (que subdeterminam tais modos de
representação).
2. Importância do critério lógico (consistência) na aceitabilidade da teoria
científica.
3. A exigência de parcimônia no emprego de hipóteses nas teorias
científicas.

Mas é a obra Princípios da Mecânica que irá aprofundar e sedimentar a


visão crítica de Hertz acerca da física do seu tempo.
Publicada postumamente, The principles of mechanics – Presented in a new
form, de 1894, ocupou os três últimos anos da vida de Hertz. Sobre a estrutura
e finalidade dessa obra, sua leitura parece apontar para a realidade da represen-
tação no interior das teorias científicas: sua forma, conteúdo e finalidade.
O termo “representação” havia ganhado bastante destaque entre os cientis-
tas-filósofos alemães no século XIX – é o caso de G. Kirchhoff, H. Helmholtz,

32 Redução que ocorreu definitivamente com Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos de-
senvolvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemático que permite
que tais equações sejam escritas na forma sintética, como são conhecidas hoje.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

130 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

E. Mach, L. Boltzmann – e teria entrado em circulação através das filosofias


de Kant e Schopenhauer. Segundo Janik e Toulmin (1991, p. 147-156), dois
termos na língua alemã equivalem à palavra “representação”, com significados
completamente diferentes, mas que, até hoje, são confundidos e trocados um
pelo outro: um com sentido usualmente ligado ao “sensorial” ou “perceptivo”
e o outro mais “público” ou “linguístico”. O primeiro (sensorial) estava ligado
à palavra alemã Vorstellung e o segundo (público), à palavra Darstellung. O
primeiro pode ser relacionado com a óptica de Helmholtz ou a psicologia de
Mach e equivale ao termo lockiano “ideia” – termo utilizado pelos filósofos bri-
tânicos e que equivale a “sensações”. Mas, na Alemanha, Vorstellung “é a palavra
corretamente empregada pelos alemães para denotar um quadro mental de um
dado sensorial” ( JANIK, TOULMIN, 1991, p. 156). Já no caso de Darstellung
(termo utilizado na mecânica de Hertz), o mesmo não quer significar uma
representação como reprodução de impressões sensoriais, mais do que isso,
equivale a “esquemas cognitivos”, “fórmulas”, “modelos” – esquemas conscien-
temente construídos para o conhecimento: “Nesse modo de representação, os
homens não são meros espectadores passivos a quem as “representações” (como
as “impressões” de Hume ou as “sensações” de Mach), simplesmente acontecem”
( JANIK, TOULMIN, 1991, p. 156). É da confusão na tradução desses dois
termos que muitos problemas interpretativos surgem.
Na época de Hertz, havia duas representações da mecânica em voga: uma
derivada da mecânica newtoniana, que tinha no conceito de força um dos seus
elementos fundamentais; e a outra, baseada no Princípio da Conservação da
Energia, que partia dos mesmos fundamentos da primeira, com exceção do
conceito de força, que fora substituído pelo de energia. Na primeira represen-
tação, o conceito newtoniano de força era por Hertz considerado problemático
e servia como uma espécie de engrenagem extra da descrição mecânica (tal
conceito era ao mesmo tempo confuso e supérfluo, na avaliação de Hertz). No
caso da segunda representação, era o conceito de energia que se apresentava
problemático – “surgem aqui problemas com o significado de energia: como
distinguir, no caso geral, os dois tipos (cinética e potencial) e onde ‘situar’ a
energia potencial [...]” (MOREIRA, 1995, p. 34). Certo é que Hertz procurará
fazer a mais ambiciosa unificação da descrição mecânica da natureza. E por
que isso? A mecânica até então desenvolvida não serviria mais à tarefa para a
qual se dispunha?
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 131

Até aquele momento a busca de uma explicação mecânica para todos os


fenômenos naturais era aceita como possível e o que variavam eram os mode-
los de teoria para teoria – a sistematização ou representação dessas teorias. É o
próprio Hertz quem explicará seus motivos:

Eu não me dediquei a esta tarefa porque a mecânica vem mostrando


sinais de inadequação em suas aplicações, nem porque ela, de alguma
forma, conflita com a experiência, mas, somente, como forma de me livrar
do sentimento opressivo de que seus elementos não estariam livres de
coisas obscuras e ininteligíveis. Não procuro a única imagem da mecâ-
nica, nem ainda a melhor imagem, eu só procuro encontrar uma imagem
inteligível e mostrar por um exemplo que isso é possível e que se deve
procurar como (HERTZ, 1956, p. 33).

Assim, os conceitos de força e energia, ponto fulcral da mecânica, precisa-


riam ser revistos, isso porque classificar-se-iam como “obscuros” e “ininteligí-
veis” por perverter os três critérios, formulados por Hertz, que permitem avaliar
criticamente qualquer teoria científica, a saber: permissibilidade (Zulaessigkeit)
lógica, correção (Richtigkeit) e adequação (Zwegmaessigkeit) (HERTZ, 1956,
p. 2).
A permissibilidade é o requisito de consistência lógica que tem que ser
cumprido por qualquer teoria: as imagens não podem contrariar as “leis do
nosso pensamento”, isto é, não podem ser logicamente contraditórias. A corre-
ção é o requisito de que haja correção empírica: qualquer teoria proposta tem
que ser compatível com os dados da experiência existentes; as imagens devem
satisfazer à exigência de conformidade com os fatos33. Por fim, a adequação, que
tem a ver com a forma exterior da teoria, com a simplicidade e elegância dos
conceitos e leis utilizados. Se duas teorias são permissíveis e corretas empirica-
mente, então podemos ainda escolher entre elas olhando para a simplicidade
e elegância dos seus conceitos e leis fundamentais. Segundo Hertz, conside-
rando os três critérios, não há ambiguidade quanto à aplicação do primeiro e

33 Embora ele fosse kantiano, considerando a necessidade formal do pensamento tema do livro I
de The principles of mechanics, era também, como Kant, implacavelmente empírico considerando
as relações coordenadas do pensamento aos fatos (tema do livro II da mesma obra) – “aquilo que
é derivado da experiência pode novamente ser anulado pela experiência”. Para Hertz o teste de
verdade é, por fim, um problema experimental (HERTZ, 1956, p. 9).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

132 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

do segundo critérios, já que a aplicação do primeiro depende da “natureza de


nossa mente” (1956, p. 3) e do segundo do “estado presente de nossa experi-
ência” (1956, p. 3). No entanto, há margem para interpretações diferentes do
terceiro, isto é, da “adequação”: “Uma imagem pode ser mais adequada para um
propósito, outra para outro; somente testando gradualmente várias imagens
podemos finalmente ter sucesso em obter a mais apropriada” (HERTZ, 1956,
p. 3). E se há uma antecedência entre um critério e outro, Hertz deixa claro sua
predileção pelo critério de permissividade lógica:

O conhecimento maduro vê a clareza lógica como de importância pri-


mordial: somente imagens claras logicamente são testadas quanto à cor-
reção; somente imagens corretas são testadas quanto à sua adequação.
Pela pressão das circunstâncias o processo é, frequentemente, invertido
(HERTZ, 1956, p. 10).

Os critérios apresentados na Introdução aos Principles formam uma filo-


sofia da ciência bastante sofisticada que inspirou muitos epistemólogos do
século XX: é o caso de Boltzmann, que definiu a ordem de critérios para acei-
tação das teorias físicas tendo como precedência I) a correção e II) a simplici-
dade (para ele as leis do pensamento não são perfeitas e as teorias evoluem aos
saltos); Poincaré que ordenou assim os seus critérios: I) unidade da natureza,
II) simplicidade e III) correção; e Albert Einstein que, enquanto defensor do
racionalismo crítico e do realismo, assim definiu seus critérios: I) correção, II)
naturalidade ou simplicidade lógica e III) generalidade, abrangência da teoria
(MOREIRA, 1995, p. 43).
Outra contribuição dada à epistemologia e que já se apresenta na
Introdução ao The principles of mechanics é o seu método crítico de análise
de problemas filosóficos no interior das teorias físicas, isto é, um método de
clarificação filosófica. Com esse método é possível identificar problemas filo-
sóficos no interior dos debates científicos. É o caso das questões sobre a natu-
reza do conceito de “força” ou de “energia”. No entendimento desses conceitos
encontram-se subjacentes pseudoproblemas que devem ser eliminados e não
resolvidos. E foram justamente eles os que promoveram as representações his-
tóricas da mecânica supramencionadas e que não representam nada mais que
um emaranhado de problemas filosóficos.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 133

7.2 A mecânica de Hertz


Segundo Videira (1995), o século em que viveram Helmholtz, Boltzmann
e Hertz testemunhou o nascimento de um novo ramo de especialização da
física, denominado física teórica – que se utiliza de modelos matemáticos e
conceitos físicos juntos com técnicas de dedução, como a lógica e a análise
crítica, com o objetivo de explicar de modo racional e prever fenômenos físi-
cos. “Essa especialização acarretou a impossibilidade, salvo honrosas exceções,
como a dos três cientistas, de uma pessoa ser ao mesmo tempo, físico teórico
e físico experimental” (VIDEIRA, 1995. p. 12-13). Seu surgimento granjeou-
-lhe grande relevância, garantindo-lhe cadeiras nas maiores universidades
do mundo. E se a física teórica conseguiu tamanha relevância no campo do
conhecimento, isso se deve às obras dos três grandes cientistas supracitados.
E o que tem The principles of mechanics a ver com física teórica? A resposta é
simples: dada a identificação de “ideias rudimentares e supérfluas” nas duas
primeiras representações da mecânica, Hertz propõe uma terceira que aqui
denominamos por “mecânica de Hertz”. Nessa representação teórica da mecâ-
nica, o que ele faz é dar uma explicação racional dos fenômenos mecânicos,
aperfeiçoando e corrigindo teorias precedentes e traduzindo-as para uma lin-
guagem matemática mais apropriada. Alguém poderia, no entanto, retorquir:
mas na física teórica, a teoria formulada não é alimentada pelos dados obtidos
na experiência, oferecendo explicações para esses dados e prevendo efeitos e
fenômenos que possam ser testados experimentalmente? E aqui encontrare-
mos um “problema” na mecânica de Hertz que vai justamente ao encontro de
seus objetivos e que recai exatamente em sua filosofia da ciência: estaria Hertz
preocupado que sua teoria se confirmasse com a experiência? Parece não ser
esse o caso tendo em vista esta sua afirmação:

O tema do primeiro livro é completamente independente da experiência.


Todas as afirmações feitas são julgamentos a priori no sentido de Kant.
Elas são baseadas nas leis da intuição interna, nas formas lógicas seguidas
pela pessoa que faz as asserções; com a experiência externa elas não têm
qualquer outra conexão além das que essas intuições e formas podem ter
(HERTZ, 1956, p. 45).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

134 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Mas tal afirmação representa um primeiro momento do Principles, o do


primeiro livro, que introduz os conceitos físicos e teoremas sem referência ao
mundo externo (daí sua filosofia da ciência); todas as proposições expressas, de
acordo com o que foi dito, “são julgamentos a priori no sentido de Kant”. Elas
são afirmadas pelas “leis da imaginação interior” e pelas formas da lógica. No
entanto, no segundo livro, serão as concepções físicas, assim definidas, relacio-
nadas a eventos no mundo externo. Para Hertz, embora a mecânica vista como
um sistema formal parecesse muito similar com o sistema formal de lógica,
ela mantém sua relação referencial com a natureza. Do contrário, a afirmação
exposta anteriormente contrariaria a exigência de que sua própria teoria não
desrespeitasse o critério de “correção” – mas adiaremos um pouco essa reflexão.
Como se caracteriza, então, a representação hertziana da mecânica?
Primeiramente, ela evita a utilização de conceitos como “força” e “energia” e
“parte de apenas três concepções fundamentais independentes, ou seja, tempo,
espaço e massa” (HERTZ, 1956, p. 24) e o seu objetivo é “representar as rela-
ções naturais entre estas três concepções, e apenas três” (HERTZ, 1956, p.
25). A justificativa para a rejeição dos dois primeiros grandes sistemas mecâ-
nicos foi dada anteriormente, resta-nos saber de que forma tais sistemas serão
superados.
Em substituição ao conceito de força, Hertz introduzirá sistemas com
vínculos regidos por uma lei fundamental que reza que “todo sistema livre
persiste em seu estado de repouso ou de movimento uniforme na trajetória
a mais retilínea” (HERTZ, 1956, p. 144). De acordo com ele, no enunciado
da lei fundamental de sua imagem da mecânica, estão condensados a lei da
inércia de Newton e o princípio da ação mínima de Gauss. Trata-se de um
princípio variacional local, ao contrário do princípio de Hamilton, que possui
um caráter global, mas cuja explicação é geral, aplicando-se, evidentemente, a
qualquer outra representação caracterizada por um conjunto de princípios ou
leis fundamentais.

De acordo com o grau de complexidade envolvido, Hertz irá estabele-


cer também um tipo de hierarquia dos sistemas: sistemas livres, onde a
aplicação de sua lei é imediata; sistemas “adaptáveis”, onde é necessária
para a descrição a introdução de massas ocultas; sistemas vivos, que não
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 135

podem ser representados diretamente no seu modelo, mas para os quais a


hipótese é permissível (MOREIRA, 1995, p. 34).

Portanto, a aplicação de sua lei fundamental restringe-se apenas à apli-


cação mecânica da natureza inanimada e não aos processos internos da vida:

Por enquanto, ela nos permite abordar todo o domínio da mecânica, ela
nos mostra quais são os limites deste domínio. Ao nos fornecer apenas
fatos conhecidos, sem atribuir a eles qualquer aparência de necessidade,
ela nos torna capazes de reconhecer que tudo poderia ser completamente
diferente (HERTZ, 1956, p. 38).

Em sua representação, o conceito de força somente aparecerá como uma


espécie de auxílio matemático ou resultado da interdependência dos movimen-
tos de dois corpos pertencentes a um mesmo sistema – “o movimento do pri-
meiro corpo determina uma força e esta força, então, determina o movimento do
segundo corpo” (HERTZ, 1956, p. 28). Conforme determinado pela lei funda-
mental, nesse caso, a força será considerada como causa e consequência do movi-
mento, apresentando-se como “uma consequência necessária do pensamento”
(HERTZ, 1956, p. 28). Outra substituição promovida pelo sistema hertziano,
ou pela mecânica de Hertz, é do conceito de energia ou da estranheza do con-
ceito de energia potencial. Na superação das dificuldades promovidas por esse
conceito, Hertz vê-se envolvido com a noção de objetos físicos não mensuráveis
(massas ocultas), pelos quais irá pagar um alto preço.

Se tentarmos entender os movimentos dos corpos à nossa volta, e remetê-


-los a regras simples e claras, prestando atenção somente no que pode ser
diretamente observado, nossa tentativa, geralmente, falhará. Logo per-
ceberemos que a totalidade das coisas visíveis e tangíveis não forma um
universo de acordo com a lei, no qual os mesmos resultados sempre são
obtidos a partir das mesmas condições. Nós nos convenceremos de que a
diversidade do universo real deve ser maior do que a diversidade do uni-
verso que nos é diretamente revelado pelos nossos sentidos. Se desejar-
mos obter uma imagem do universo que seja bem modelada, completa e
conforme a lei, temos que pressupor, por trás das coisas que vemos, outras
coisas invisíveis: devemos imaginar aliados ocultos além dos limites de nossos
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

136 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

sentidos. Tais influências subjacentes foram identificadas nas duas primei-


ras representações; nós as imaginamos como tipos especiais e peculia-
res de entidades e, então, criamos as ideias de força e energia. Mas um
outro caminho se mostra aberto. Podemos admitir que exista algo oculto
atuando e, mesmo assim, negar que esse algo pertença a uma categoria
especial. Estamos livres para assumir que este algo escondido não é nada
mais do que movimento e massa novamente – movimento e massa que
diferem dos casos visíveis apenas por não poderem ser percebidos pelos
nossos meios usuais de percepção. Este modo de concepção é simples-
mente nossa hipótese (HERTZ, 1956, p. 25, grifos nossos).

Mesmo admitindo que o conceito de massa oculta represente uma difi-


culdade extra no sistema de Hertz, visto que desrespeita seu próprio critério de
simplicidade, dando a aparência de que a metafísica entrou pela porta do fundo
e tomou o lugar da física, para Hertz a questão não era bem assim: “não se
remove uma dúvida que impressiona nossas mentes ao chamá-la de metafísica”
(HERTZ, 1956, p. 23). Quanto às massas ocultas, “a razão da complicação é
perfeitamente óbvia. A perda de simplicidade não se deve à natureza, mas ao
nosso conhecimento imperfeito da natureza” (HERTZ, 1956, p. 39). Hertz
promove, então, uma distinção entre teses ontológicas (de que há “desígnios
na natureza”, assim como pensava Aristóteles) e exigências metodológicas.
No caso das massas ocultas, estas representam uma exigência metodológica
importante em seu sistema e não se trata de uma tese ontológica.

É verdade que não podemos a priori exigir simplicidade da natureza, nem


podemos julgar o que é simples na opinião da natureza. Mas, com res-
peito a imagens de nossa própria criação, podemos estabelecer exigências.
Estamos justificados em decidir que, se nossas imagens são bem adap-
tadas às coisas, as relações reais das coisas devem ser representadas por
relações simples entre as imagens (HERTZ, 1956, p. 23).

E conclui:

Portanto, nossa exigência de simplicidade não se aplica à natureza, mas às


imagens dela que nós talhamos; e nossa repugnância com respeito a uma
proposição complicada como uma lei fundamental somente expressa a
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 137

convicção de que, se os conteúdos da proposição são corretos e abrangen-


tes, ela pode ser formulada de forma mais simples por uma escolha mais
conveniente das concepções fundamentais (HERTZ, 1956, p. 24).

Portanto, reitera-se, a introdução das massas ocultas não promove a cons-


trução de uma tese ontológica, mas trata-se de uma exigência metodológica:
“O problema que um sistema com massas ocultas oferece para a consideração
da mecânica é o seguinte: - Predeterminar os movimentos das massas visí-
veis do sistema, ou as mudanças de suas coordenadas visíveis, não obstante
nossa ignorância sobre as posições das massas ocultas” (HERTZ, 1956, p. 224).
Então, não é necessariamente um problema, mas uma imagem, um modelo
matemático, que na prática figuraria um evento do mundo. Uma boa repre-
sentação teórica igual à mecânica hertziana, implicando pseudo-objetos como
partes constitutivas, mostra a generalidade e a independência formal do sis-
tema; este deveria ser o caso para qualquer representação das ciências naturais,
independentemente de como elas possam aparecer. Já com relação à mecânica,
a partir do que foi por ele estabelecido, pode-se derivar “todo resto da mecâ-
nica por meio de puro raciocínio dedutivo” (HERTZ, 1956, p. 28).
A própria organização de The principles of mechanics denuncia suas pre-
tensões. A questão não era a de construir uma nova teoria mecânica, porque,
como vimos, isso ainda não era visto como necessário por parte de Hertz. Sua
pretensão resumia-se em apresentar a mecânica sob uma nova forma, que fosse
mais interessante do ponto de vista lógico e físico.
O livro I trata da “Geometria e Cinemática dos Sistemas Materiais” e
deste livro interessa-nos o entendimento dos capítulos I (“Tempo, espaço e
massa”), capítulo II (“Posições e deslocamentos de pontos e sistemas”) e capí-
tulo VII (“Cinemática”). Além da nota preliminar do livro I, que nos chama a
atenção sobre suas intenções, de que “suas asserções são julgamentos a priori
no sentido de Kant”, surpreendem-nos, no capítulo I, as definições que Hertz
dá de tempo, espaço e massa: “O tempo do primeiro livro é o tempo de nossa
intuição interna [...]. O espaço do primeiro livro é o espaço tal como nós o
concebemos [...]. A massa do primeiro livro será introduzida por uma defi-
nição” (HERTZ, 1956, p. 45). A noção de massa será expressa por meio de
definições:
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

138 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Definição 1: Uma partícula material é uma característica pela qual


associamos sem ambiguidade um ponto dado no espaço em um dado
momento com um ponto dado no espaço em qualquer outro momento.
Cada partícula material é invariável e indestrutível (HERTZ, 1996, p. 45).

Vê-se aqui que Hertz mantém a noção grega original de que as partículas
materiais (átomos, no caso de Demócrito) são invariáveis e indestrutíveis. Mas,
como entender massa por uma definição como essa? Parece-nos que a melhor
maneira de a entender sob esse ponto de vista é caracterizando a “partícula
material” a partir de sua associação de pontos em uma espécie de sistema de
coordenadas. Isso fortifica a geometrização hertziana a partir de um modelo
previamente estabelecido34. E se Hertz está definindo massa como invariável e
indestrutível, isso se deve à proposta geral do livro I: apresentar seus elementos
como julgamentos a priori no sentido de Kant. Daí, a massa será entendida
dentro das formas kantianas de espaço e tempo35, portanto, será uma experi-
ência a priori. Hertz não está falando em partículas materiais das quais trata a
física de partículas, está tratando de simplicidade lógica – algo muito parecido
com o atomismo de Demócrito. Hertz descreve uma Massenteilchen (partícula
material) como uma propriedade característica do espaço e tempo, ela não é
o objeto material no espaço e tempo. Partículas materiais são propriedades do
espaço e não têm extensão espacial (não têm, por exemplo, a propriedade de
ser pesada); sua função é simplesmente para marcar uma única localização no
espaço-tempo.
A segunda definição é dada e essa trata diretamente da conceituação de
massa:

Definição 2: O número de partículas materiais em qualquer espaço, com-


parado com o número de partículas materiais em algum espaço escolhido

34 Não podemos esquecer que Hertz está propondo uma representação da mecânica numa espécie
de modelo generalizado e formalmente sistematizado.
35 “[...] na parte analítica da Crítica se demonstrará que espaço e tempo são apenas formas da
intuição sensível, isto é, somente condições da existência das coisas como fenômenos e que, além
disso, não possuímos conceitos de entendimento e, portanto, tampouco elementos para o conhe-
cimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição correspondente a esses conceitos;
daí não podemos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão-somente
como objeto da intuição sensível [...]”. (KANT, 2008, BXXVI)
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 139

em um momento fixo, é chamado de a massa contida no primeiro espaço


(HERTZ, 1956, p. 46).

Interpretada como definição de massa a priori, pode-se dizer que se pode


escolher certa área de pontos no espaço, definida por um jogo de coordenadas,
e usar isso como unidade de medida a fim de definir a massa de algum outro
jogo de pontos do espaço.
Após introduzir o conceito de massa, Hertz introduz o conceito de ponto
material, utilizando-se do conceito de massa. A massa relacionada à região do
espaço-tempo é chamada de “ponto material” de acordo com a definição 3.

Definição 3: Uma pequena massa finita ou infinita, concebida como


estando contida em um espaço infinitamente pequeno, é chamada um
ponto material. Um ponto material consequentemente consiste de qual-
quer número de partículas materiais conectadas umas às outras (HERTZ,
1956, p. 46).

Um ponto material é um determinado arranjo de partículas materiais.

Definição 4: Um número de pontos materiais considerados simultanea-


mente é chamado de um sistema de pontos materiais, ou resumidamente
um sistema. O total das massas dos pontos separados é, pelo § 4, a massa
do sistema. Daí um sistema finito consiste de um finito número de finitos
pontos materiais, ou de um número infinito ou infinitamente pequeno
ponto material, ou de ambos. É sempre permissível considerar um sis-
tema de pontos materiais como sendo composto de um infinito número
de partículas materiais (HERTZ, 1956, p. 46).

Hertz desenvolve sua representação da mecânica a partir do estudo de


sistemas materiais, partindo do pressuposto que cada sistema é formado pela
conjunção de pontos materiais e que “um ponto material pode ser considerado
como um caso especial e como um simples exemplo de um sistema de pontos
materiais” (HERTZ, 1956, p. 47). Somente esses sistemas podem ser objetos
apropriados de teorias físicas.
É importante compreender por que Hertz propõe todas essas definições
a priori para chegar à noção de um sistema. Já na Introdução ao Principles, ele
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

140 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

apresenta suas ideias sobre modelos ou imagens, dizendo que “nós formamos
para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos; de tal modo que as
consequências necessárias das imagens no pensamento são sempre as imagens
das consequências necessárias na natureza das coisas retratadas” (HERTZ,
1956, p. 1). Dessa forma, nós podemos prever os eventos futuros e conferir a
validade de nossas imagens. Essas imagens não retratam coisas em si mesmas,
elas retratam determinadas estruturas das coisas, o arranjo das coisas. Elas são
nossas concepções das coisas e a conformidade delas com a natureza se esgota
na adequação ao que delas é requisitado no processo anteriormente descrito.
O que vemos é que Hertz está fazendo um esforço para criar os fun-
damentos de uma ciência da mecânica que não postulasse nada sobre coisas
em si mesmas. Os únicos objetos apropriados da física seriam os sistemas de
pontos materiais, formados por partículas materiais. Nós podemos postular
um certo comportamento, ou certas leis para um certo sistema, e conferir se
eles acontecem na natureza. Mas os objetos, os simples, nós só podemos defi-
nir logicamente. O ponto é que, mesmo que nós não possamos saber sobre a
realidade, podemos ainda lhe alcançar fundamento para nossa ciência, quando
conhecermos a sua estrutura. E isso é tudo que precisamos para a física36.
Na sequência do livro I, portanto, vemos Hertz apresentar, além das defi-
nições de tempo, espaço e massa, a descrição de conexões, trajetórias mínimas,
trajetórias geodésicas, trajetórias “mais retilíneas” e “uma série de proposições
arbitrárias” (HERTZ, 1956, p. 135) que devem ser remetidas ao conteúdo do
livro II. E sua crença na imutabilidade da componente a priori se expressa na
conclusão desse livro: “[...] a correção ou incorreção dessas investigações não
podem ser nem confirmadas nem negadas por quaisquer possíveis experiências
futuras” (HERTZ, 1956, p. 135).
O livro II, denominado “Geometria e Cinemática dos Sistemas
Materiais”, trata da mecânica propriamente dita – da componente que deriva
da experiência. Nele Hertz trata novamente do tempo, espaço e massa, da lei
fundamental, do movimento de sistemas livres, dos sistemas de massas ocul-
tas e dos sistemas com descontinuidade. Nesse livro, “[...] tempos, espaços e

36 “Nós consideramos um fenômeno do mundo material como mecanicamente e, portanto, fisica-


mente explicado, quando nós provamos ser ele uma consequência necessária da lei fundamental
e daquelas propriedades dos sistemas materiais que são independentes do tempo” (HERTZ,
1956, p. 145).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 141

massas, são símbolos para objetos da experiência externa [...]”. As relações


entre tais símbolos devem, portanto, “satisfazer não somente as leis de nossa
intuição e pensamento, mas também a experiência” (HERTZ, 1956, p. 139).
Isso porque, conforme a exigência de “correção” (e aqui voltamos à questão que
deixamos em aberto), instituída por ele mesmo, qualquer teoria proposta tem
que ser compatível com os dados da experiência existentes – “a questão da cor-
reção de nossas proposições coincide, portanto, com a questão da correção ou
validade geral daquela única proposição” (HERTZ, 1956, p. 139). No entanto,
segundo Abrantes (1992), essa relação entre teoria e experiência em Hertz é
um tanto quanto confusa, isso porque,

Em certas passagens, Hertz afirma que as relações fundamentais (“leis”)


das diversas representações podem ser confrontadas diretamente à expe-
riência. Ele afirma, por exemplo, que toda a contribuição da experiência
está contida na “lei fundamental” [...]. Em outras passagens, contudo,
ele parece adotar uma posição holística semelhante à defendida por P.
Duhem: “cada fórmula separada não pode ser especialmente testada pela
experiência, mas somente o sistema como um todo”37 (ABRANTES,
1992, p. 372-373).

Assim, podemos perguntar: a mecânica hertziana resiste aos próprios cri-


térios elaborados por Hertz para avaliar criticamente qualquer teoria científica?
Quanto ao critério de permissibilidade lógica e de adequação, Hertz
assume que a sua imagem da mecânica se equipara à representação newto-
niana. Primeiro porque ambas foram colocadas em uma forma completamente
satisfatória do ponto de vista lógico e, segundo, por assumir que a primeira
imagem (a newtoniana) tem se completado por adequadas adições e que as
vantagens de ambas, em direções diferentes, são de igual valor (HERTZ, 1956,
p. 40). Sem mais explicações, ele avança para tratar do critério de correção. Para
ele apenas uma das duas imagens pode ser correta, no entanto, a sua represen-
tação se define, do ponto de vista da correção, como melhor “na medida em
que um conhecimento mais refinado nos mostra que a suposição de forças à
distância invariáveis fornece apenas uma primeira aproximação da verdade”

37 Aqui Abrantes (1992) cita o próprio Hertz (1956, p. 195), D’Agostinho (1990, p. 391) e Cohen
(1956).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

142 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

(HERTZ, 1956, p. 41). Os fenômenos eletromagnéticos não apenas são capa-


zes de consolidar a terceira imagem (a hertziana) como a mais apropriada, mas
também definem os pressupostos sobre os quais se apoiariam a mecânica:

O balanço das evidências será inteiramente favorável à terceira imagem


quando uma segunda aproximação da verdade puder ser obtida pela asso-
ciação das supostas ações à distância a movimentos em um meio que
tudo permeia, cujas partes estão sujeitas a conexões rígidas; um caso que
também parece muito próximo de ser concretizado na mesma esfera das
forças eletromagnéticas. Este é o campo no qual será travada a batalha
decisiva entre os pressupostos fundamentais (HERTZ, 1956, p. 41).

E aqui, mais uma vez, compromete-se a intenção de correção da mecâ-


nica hertziana que por si só é complicada. Seu compromisso para com o pro-
grama do éter parece atropelar de vez seu critério de correção. Não é possível
se pensar em um critério que tem como pressuposto que uma teoria científica
deve satisfazer à exigência de conformidade com os fatos, estando subjacente
a essa teoria a ideia da “associação de supostas ações à distância a movimentos
em um meio que tudo permeia (meio etéreo)”. Isso nos remete a uma questão
instigante e de difícil resposta: por que Hertz mantém a ideia de éter, apesar
de essa estar em aparente contradição com seus critérios? Acreditamos que
seu compromisso com tal programa se deve à sua filiação maxweliana, que
tinha a pretensão de desenvolver uma teoria completa dos fenômenos eletro-
magnéticos a partir da noção de ação física que se transmite de forma contí-
gua e mediatizada. Daí a evocação do éter, como no caso das massas ocultas,
servir-se-ia como uma espécie de linguagem figurada que apontaria para uma
“realidade” no sistema. Em resumo, sua admissão estaria compromissada com
a universalização e independência formal do seu sistema, aos moldes da teo-
ria de Descartes, que explicaria a atração gravitacional à distância, postulando
movimentos giratórios dos vórtices de centro invisível no onipresente éter. Sua
existência é postulada, seus arranjos e relações são também postulados, mas sua
admissão assegura formalmente a inteligibilidade do sistema.
Se a representação hertziana da mecânica se complica com o critério de
correção, muito mais se complicará com o de adequação (simplicidade). E toda
essa complicação, como já foi adiantado, remonta-se ao conceito de massas
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 143

ocultas38. O que seriam essas massas ocultas? Que exemplos teríamos delas?
Infelizmente, essa resposta terá que ser adiada porque Hertz não dá sequer
um breve esclarecimento. O próprio Helmholtz, no Prefácio da obra, lamenta
a ausência de exemplos que ilustrem a aplicação e, portanto, a necessidade da
hipótese de massas e movimentos ocultos.

Infelizmente ele não deu exemplos que ilustrassem a suposta maneira


pela qual tal mecanismo hipotético deveria atuar; a explicação nesses ter-
mos, mesmo dos casos mais simples de forças físicas, demandaria, clara-
mente muita intuição científica e capacidade imaginativa. Neste sentido,
Hertz parece ter depositado bastante confiança na introdução de sistemas
cíclicos com movimentos invisíveis (1956, Prefácio).

Mas o que não faltam são críticas e objeções a esse elemento suprassensí-
vel que, além de “nada” esclarecer ou ajudar no sistema (do ponto de vista dos
seus críticos), ainda introduz novas dificuldades:

O conceito de massas ocultas parecia uma especulação desnecessária e, se


substituía conceitos confusos como o de força ou possuidores de alguma
ambiguidade, como o de energia, não era isento de desvantagens, além de
tornar a explicação mecânica dependente de objetos não observáveis, para
usar um termo atual (MOREIRA, 1995, p. 36).

Assim, verificamos que, mesmo a par das convicções pessoais de Hertz,


sob o olhar de estudiosos de física, sua obra não subsiste aos critérios por ele
próprio estabelecidos. E se os Principles não encontraram repercussão nos
meios acadêmicos não aparecendo nas mesas de discussões ou em livros-
-texto39, o mesmo não pode ser dito de sua filosofia da ciência. Sua análise dos
aspectos filosófico-metodológicos das teorias científicas ganhou repercussão e
foi fonte de inspiração para muitos pensadores.

38 Bem como com o conceito de éter, que se trata de um expediente adicional que acaba por imer-
gir a mecânica num mar de complicações que extravasam quaisquer critérios que pretendam
simplicidade.
39 Segundo Moreira (1995, p. 40), quando muito, as referências ao The principles of mechanic de
Hertz, aparecem nos meios acadêmicos quando se trata do princípio mecânico do trajeto mais
“reto” ou de menor curvatura. E isso se deve ao fato de ser uma obra complicada e incapaz de
resolver os problemas apresentados pelas representações newtoniana e energetista da mecânica.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

144 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Considerações Finais
O presente capítulo objetivou apresentar o pensamento de H. Hertz. Num
primeiro momento, nossa pretensão era a de inseri-lo na tradição dos campos
eletromagnéticos e demonstrar como é nítida sua superioridade tanto com
relação aos que o precederam, quanto aos seus contemporâneos. Superioridade
não no sentido de anterioridade a qualquer das teorias disponíveis, mas no
sentido de como foi capaz de ir além de qualquer concepção empirista ingê-
nua. Sua superação se deu em várias direções: primeiro, conseguiu distinguir
nas equações de Maxwell relações contraditórias, circulares e vazias (sem des-
merecer a importância do pensamento do escocês); propôs a abreviação de
suas equações e conseguiu identificar e qualificar o caráter ondulatório dos
fenômenos eletromagnéticos refletidos nas equações de Maxwell. Segundo,
superou Helmholtz no sentido de demonstrar que para efetivação de mecânica
energetista caberia melhor uma teoria onde a ação física se transmitisse de
forma contígua e mediatizada do que à distância. Terceiro, conseguiu identi-
ficar nas mecânicas newtoniana e energetista “relações vazias” promovidas por
ideias “supérfluas e rudimentares”, isto é, conseguiu coligar as ideias de força
e energia a pseudoconceitos que não apontavam para nada na natureza. Em
substituição, ou em aperfeiçoamento dessas imagens, sedimentadas no ideário
da comunidade científica, propôs uma terceira imagem, na qual ideias como
a de força e energia desapareceriam. Em troca, alvitrou um sistema mecânico
fundamentado na relação de conexões geométricas que admitia liberdade para
introduzir elementos suprassensíveis (massas ocultas, éter). Tais elementos,
que pareciam não apontar para nada, na verdade, eram representação de algo
na realidade do fenômeno. Mas, para nós, o mais importante, e em quarto
lugar, está sua contribuição para a filosofia da ciência, contribuição essa refle-
tida em sua concepção filosófico-metodológica do funcionamento da ciência.
Baseado no ideal kantiano das formas representação, Hertz propôs que os
problemas subjacentes às teorias da ciência tivessem base no modo como tais
teorias eram representadas. Toda e qualquer teoria que propõe termos para os
quais nada se pode apontar incorre no risco de tornar-se autocontraditória e
confusa. E na representação de uma teoria, nada funciona melhor que o cálculo
(a estrutura matemática), interpretado como regra de correspondência, como
componente a priori dessa mesma teoria. No entanto, para se verificar se uma
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 145

teoria se sustenta, é preciso submetê-la ao crivo dos critérios estabelecidos pelo


próprio Hertz, que avaliam sua permissibilidade lógica (a coerência interna),
sua correção (a compatibilidade com os dados da experiência) e sua adequação
(a que melhor representa as relações essenciais do objeto). Hertz propõe, então,
um misto de teoria que se apresenta primeiramente como um sistema dedutivo
baseado na intuição interna e, depois, como proposições que são símbolos de
objetos de nossa experiência externa. A componente a priori de sua represen-
tação, antes de apontar para qualquer realidade metafísica, indica uma neces-
sidade metodológica de seu sistema, isso porque, para ele, teoria e experiência
são indissociáveis. E o que ele trata por inserção de “relações vazias” refere-se a
um legítimo procedimento pelo qual o pensamento antecipa eventos futuros.

Referências
ABRANTES, P. A filosofia da Ciência de Heinrich Hertz. In: ÉVORA, F. R. R. (Ed.).
Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas: Unicamp, 1992. p.
351-375.

COHEN, R. S. Hertz’s philosophy of science: an introductory essay. In: HERTZ, H.


The principles of mechanics. New York: Dover, 1956.

CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São
Paulo: Odysseus Editora, 2005.

HELMHOLTZ, H. von. Prefácio. In: HERTZ, H. The principles of mechanics:


presented in a new form. Preface by Hermann von Helmholtz. Authorized English
translation by D. E. Jones e J. T. Walley. With a new introduction by R. S. Cohen.New
York: Dover Publication, 1956.

HERTZ, H. Electric Waves. New York: Dover Publications, 1962.

HERTZ, H. The principles of mechanics: presented in a new form. Preface by Hermann


von Helmholtz. Authorized English translation by D. E. Jones e J. T. Walley. With a
new introduction by R. S. Cohen. New York: Dover Publication, 1956.

JANIK, A.; TOULMIN, S. A Viena de Wittgenstein. Tradução de Álvaro Cabral. Rio


de Janeiro: Campus, 1991.

KANT, I. Crítica da razão pura. tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

146 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

MACH, E. The Science of mechanics: a critical and historical account of its development.
Open Court Publishing Company, 1960.

MAXWELL, James Clerk. A treatise on electricity and magnetism. Nova York: Oxford
University Press, 1998. 2 vols.

MOREIRA, I. C. As visões física e epistêmica de Hertz e suas representações. Revista


da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 13, p. 33-43, jan.-jun., 1995.

VIDEIRA, A. A. P. A Física entre a Mecânica Clássica e a Filosofia: os exemplos de


Helmholtz, Boltzmann e Hertz. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência,
n. 13, p. 11-14, jan.- jun., 1995.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO VIII

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO
ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO

Introdução

A
história do realismo e antirrealismo na física do século XX trata-se, na
verdade, de desdobramentos de discussões mais antigas em filosofia que
envolvem um debate entre materialistas e idealistas acerca da natureza
da realidade. Tal discussão acabou por promover desenvolvimentos de outras
doutrinas sob a égide de nomenclaturas que fazem defesa de ideais diversos,
tais como: naturalismo, determinismo, reducionismo, positivismo, empirismo,
fideísmo, ceticismo, sensualismo, solipsismo, agnosticismo etc. Todas essas
doutrinas estão de certa forma envolvidas com a questão da natureza última da
realidade e compõem o debate inicial fomentado pelas correntes materialistas
e idealistas dentro da história da Filosofia.
Em termos resumidos, o materialismo defende a ideia do reconhecimento
da existência dos objetos em si, fora da mente, e de que as ideias e as sensações
são cópias ou reflexos desses objetos. Por outro lado, o idealismo concebe a
realidade como existindo dependentemente da mente humana. Os objetos não
existem fora da mente, eles não são mais do que combinações de sensações. Vê-se,
portanto, que para o idealista a ausência do observador consciente, que capta e
reflete acerca da realidade, inviabiliza a existência da própria realidade.
No campo filosófico, o debate materialismo vs. idealismo retroage às dis-
putas na Antiguidade grega, que envolvem nomes como os de Platão40 e de

40 Grande parte dos intérpretes da filosofia de Platão convencionou que seu pensamento defende
um tipo de realismo, a saber, o “realismo das ideias”, isso porque, segundo eles, o “idealismo” pla-
tônico remete à Ideia, aos Eidos, e não à primazia da mente como fundamento último da reali-
dade e essa leitura parece-me correta. Contudo, ainda assim, mantenho a leitura do pensamento
platônico, em concordância com Heisenberg, como sendo um tipo de idealismo, idealismo das
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

148 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Epicuro e que tratam da questão a respeito da relação entre o pensar e o ser ou


sobre aquilo que seria originário: a natureza ou o espírito? Como se disse, essa
questão ganhou relevância filosófica por séculos e de tempos em tempos ela
se revela ora mais forte em tons materialistas (Epicuro, Lucrécio, la Mettrie,
Holbach, Gassendi, Feuerbach, Marx, Engels, Lênin etc.), ora em tons ide-
alistas (Platão, Berkeley, Kant, Fichte, Schelling, Hegel etc.). Sobre o mate-
rialismo de Epicuro, sobre o qual tratamos no Capítulo I, esse, de uma forma
ou de outra, reflete as posições materialistas ortodoxas da física clássica. Por
outro lado, teorias como as do misticismo quântico e aquelas que dão ênfase à
subjetividade no entendimento da realidade, podem também estar atreladas ao
idealismo filosófico quando da defesa de que a mente tem um papel essencial
na constituição da realidade. Em filosofia, quem radicaliza esse tipo de ideia é
o idealismo imaterialista de George Berkeley (1685-1753).
Berkeley, no seu Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710)
e em Três Diálogos entre Hylas e Phylonous (1712), defende seu imaterialismo
sustentado na negação da realidade de qualquer objeto no mundo exterior que
não fosse percebido pelo espírito ou pela mente. Para ele, ser é ser percebido (esse
percipiti), isto é, as coisas só existem se, e enquanto, alguém as percebe. O ponto
de partida de sua filosofia, portanto, é por demais conhecido: seu ideal é o da
defesa da religião contra as ameaças da filosofia atomista (Gassendi, Galileu,
Basson, Bérigard) e contra todas as ideias que pudessem conduzir ao mate-
rialismo e ao ceticismo. Uma filosofia corpuscular conflita com os princípios
religiosos, pois se todos os eventos são determinados por condições físicas,
somos forçados a assumir também uma concepção materialista do “espírito
humano”. Em virtude disso, na mente do bispo Berkeley, fazia-se necessário
a destruição do ceticismo propiciado pela nova ciência materialista, visto que
suas “verdades” são totalmente incompatíveis com a religião revelada. Diz o
filósofo: “Como já mostramos, a doutrina da matéria ou substância corpórea
foi o verdadeiro pilar ou suporte do ceticismo e sobre a mesma base assentaram
os sistemas do ateísmo e da irreligião” (BERKELEY, 1710, § 92).

formas puras. Para tal, levo em consideração que “formas puras” ou “entes matemáticos” não são
realidades que existem independentemente da mente, sendo, portanto, reais. Em Problemas da
Física Moderna, ao se referir às simetrias como as “formas puras” da matéria, Heisenberg chama
tal posição de “idealismo platônico” por conceber as partículas elementares da matéria como
expressões de princípios formais de simetria, que seriam os eidos da matéria. Para ele, a moderna
física estaria mais próxima do idealismo platônico do que do atomismo materialista de Epicuro.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 149

Em suma, o que defende o imaterialismo de Berkeley é que as coisas são


um conjunto de ideias. Os objetos não existem fora da mente e a realidade é
aquilo que nós percebemos, isto é, combinações de sensações. Segundo Berkeley
(1710, § 5), “o objeto e a sensação são a mesma coisa e não podem por isso ser
abstraídos um do outro”. O espaço e todas as coisas que nele existem (casas,
montanhas, rios, vales, árvores etc.) são em si impossíveis, simples imaginações.

[...] Se a palavra substância for tomada no sentido filosófico – como a


base de acidentes ou de qualidades (existentes) fora da consciência –,
então, reconheço realmente que a elimino, se é que se pode falar de eli-
minação daquilo que nunca existiu, não existiu sequer na imaginação
(BERKELEY, 1710, § 37).

Com essa postura, Berkeley inaugura a corrente do idealismo imateria-


lista dogmático, cujos reflexos hão de se apresentar, com nuances particulares,
nas filosofias da ciência de Ernst Mach, Richard Avenarius, Karl Pearson, P.
Duhem e Henri Poincaré e que, consequentemente, refletir-se-á em algumas
interpretações da realidade na física do século XX. Por outro lado, o mate-
rialismo filosófico apresentar-se-á, sob forma de realismo científico, em toda
vertente ortodoxa da física contemporânea41, cujas linhas mestras serão apre-
sentadas adiante. Resta-nos, entretanto, apresentar o que se espera com tradu-
ção dos termos materialismo e idealismo para a física do século XX.
O que apresentamos por materialismo em filosofia aqui será traduzido
para o campo da física e do atomismo químico pré-quântico, com a termino-
logia de realismo, a saber, realismo fisicalista42. Em geral, a tese que lhe sub-
jaz é a de que tudo o que existe pode ser reduzido a realidades físicas, como
matéria, energia, entropia, campos etc. e que as entidades atômicas são objetos
reais que independem na nossa mente. Trata-se, portanto, de uma concepção
epistemológica que se convencionou chamar de realismo de entidades, isso

41 Importante observar que não estamos falando da vertente ortodoxa da “física quântica” sobre a
qual trataremos mais tarde.
42 Em filosofia, principalmente nas correntes filosóficas que adotam o pensamento científico como
ponto de partida, esse tipo de realismo ganha diversas denominações: realismo empírico (I.
Kant), realismo natural (W. Hamilton), realismo ingênuo (G. Schuppe), realismo científico (O.
Külpe), realismo crítico ( J. Maritain) e materialismo (Lenin). Trata-se de um tipo de realismo
que na filosofia contemporânea geralmente é encontrado no existencialismo, no instrumentalis-
mo e no empirismo lógico.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

150 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

para diferenciar das dezenas de realismos encontrados na literatura perti-


nente da filosofia da física (realismo ontológico, epistemológico, objetivista,
de potencialidades, relacionista, metafísico, harmônico, comunicável, desubs-
tancializado, axiológico, simbólico etc.)43. Tal abordagem realista fisicalista não
pode ser confundida com positivismo, que se trata de concepção diversa. O
positivismo, no pensamento científico, tem como tarefa fundamental a des-
crição positiva dos fenômenos naturais a partir dos dados da experiência. O
positivista fixa-se nas observações, nos dados positivos obtidos pelos instru-
mentos científicos e declara como metafísica qualquer teoria que reconheça a
existência e a cognoscibilidade da realidade objetiva fundada em premissas não
observáveis. Há de se ressaltar, entretanto, que, diferentemente do positivismo,
o realismo científico, no contexto da descoberta, pode manter uma perspectiva
realista de entidades não observáveis.
Substituiremos, por outro lado, o termo idealismo por antirrealismo
científico. Aqui, mais uma vez, excluiremos de nossa análise o montante de
antirrealismos da taxonomia da filosofia da física (antirrealismo subjetivista,
epistemológico, subjetivista objetificado, parcial, transformador, criador, volun-
tarista etc.). Isso porque o nosso interesse restringir-se-á ao antirrealismo que
diz respeito a entidades e substâncias.
No antirrealismo, tal como no idealismo, duas posturas se destacam: I) a
de que não existe uma realidade que independe da mente; II) a de que a mente
tem um papel essencial na constituição do mundo. Tais posturas são muito
comuns em teorias físicas em que o misticismo toma conta da teoria, dei-
xando margem para asserções contraintuitivas e por demais esquisitas, como
naquelas em que a mente desempenha um papel essencial no desdobramento
dos fenômenos quânticos. Circunscreveremos também no campo das teorias

43 Reforça-se, entretanto, que se todo materialismo é realismo, nem todo realismo é materialismo.
É por isso que, para não nos metermos nas confusões conceituais da esotérica taxonomia dos
realismos e antirrealismos promovida pela filosofia da física, o que propiciaria, por exemplo, que
um mesmo pensador pudesse muito bem ser realista em relação a “p, q, r” e um antirrealista em
relação a “x, y, z”*, restringiremos a nossa análise, ora em diante, apenas àquilo que diz respeito ao
realismo de entidades ou de substâncias.
*
“Heisenberg foi um anti-materialista, isto é, negou a partícula elementar de matéria como a
realidade última a partir da qual todas as coisas são feitas, e assumiu um nível mais profundo
de realidade, do qual a matéria seria o fenômeno. É, portanto, à ontologia do realismo de subs-
tância que o físico filósofo se contrapôs. Ele assume um realismo matemático nomológico, ou
desubstancializado, mas nega o realismo materialista que postula as partículas elementares como
constituintes da realidade física última” (DA SILVA; BRANCO, 2019, p. 268).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 151

antirrealistas, incluindo algumas teorias ortodoxas, aquelas que se fundam no


ideal de que o formalismo matemático deve dar conta de uma suposta reali-
dade, mas não assegura que tais equações digam respeito à própria realidade,
isto é, não assume a perspectiva realista de entidades não observáveis. Esse tipo
de teoria antirrealista acaba por funcionar muito mais como uma fabricação
da realidade, uma vez que o formalismo fornece inteligibilidade e universali-
dade à teoria, mas, de maneira ad hoc, introduz acréscimos impossíveis de se
testar, que servem para resolver aquilo que se evidencia problemático. O que
se pergunta, entretanto, é se, nesses casos, um programa de pesquisa quando
se depara com algumas dificuldades, ou com alguns fenômenos recalcitrantes,
deveria ser abandonado? Ou se vale para a manutenção do programa a criação
de elementos ad hoc, mesmo que esses possam não dar conta do fenômeno
real? Ou se, por fim, bastaria um ajuste no “cinturão de proteção”44, mesmo a
contragosto da realidade, para que os físicos pudessem “tocar a vida adiante”?
No lado das teorias realistas, mesmo sendo difícil de rotular um teórico
qualquer – nem sempre eles deixam pistas sobre o que professam –, acreditamos
estarem os nomes de Einstein, de Broglie, David Bohm, John Bell, Taketani,
Jordan, Zeh, Cramer, Everett, Zurek, Giraldhi, Landé; e no lado das teorias
antirrealistas poderíamos levantar as interpretações de Bohr, Heisenberg,
Schrödinger, von Neumann, London & Bauer, von Weizsäcker, Wheeler,
Wigner, Heitler. Suas teorias compõem o desenvolvimento da física atômica
no século XX e a maiorias das interpretações acerca da realidade encaixam-se
no campo da física quântica. Entretanto, anterior a isso, cumpre-nos apre-
sentar os precedentes ortodoxos das teorias atômicas desenvolvidas no século
XIX e que formam a base daquilo que viemos a conhecer sobre a realidade do
átomo no século XX.

8.1 Precedentes realistas nas teorias atômicas


anteriores ao século XX no campo da Química
O ideal que governava a observação e a explicação físicas de Demócrito
até Descartes chegando aos filósofos naturalistas do século XIX, era aquele que
admitia que a inteligência seria capaz de um conhecimento total e definitivo
44 Tese fundamental de Imre Lakatos (1922-1974) na qual o cinturão protetor se refere a uma série
de teorias auxiliares que protegem o núcleo firme e proíbe a falsidade (heurística negativa) do
programa de pesquisa.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

152 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

da natureza – que existia independentemente de nossas mentes – donde o


comportamento e o movimento da matéria, pelo seu caráter de objetividade,
estariam sujeitos a leis rígidas. Tratava-se de um mecanicismo que supunha
que todo o universo se reduzia a um sistema de volumes geométricos animados
de movimentos, os quais eram compostos de pequenas partes indivisíveis da
matéria, os átomos. Eram justamente esses componentes últimos da realidade
que propiciavam a explicação, a diversidade, a mensurabilidade e a tangibili-
dade da matéria.

Durante a segunda metade do século XIX a matéria parecia ser algo de


permanente a que nós podíamos agarrar. Existia um pedaço de matéria
que nunca tinha sido criado (tanto quanto cada físico sabia) e que nunca
podia ser destruído! Podia-se pegar nele e sentir que não fugiria por entre
os dedos (SCHRÖDINGER, 1999, p. 104).

Visto dessa forma, o realismo fisicalista de entidades era quem vigorava.


Os físicos clássicos estavam convencidos de que os átomos eram individuais,
identificáveis, pequenos corpos, tais como os demais objetos palpáveis que nos
rodeiam. Tais átomos se movimentavam segundo as forças de partes próximas
da matéria exercidas sobre eles. Todo o seu movimento era previsível, possibi-
litando, com isso, a formulação de leis, já que o seu comportamento era rigida-
mente determinado pelas condições iniciais. A previsibilidade era possível ao
se lançar mão de um instrumento matemático, fundado sobre um sistema de
equações diferenciais, para abreviar o processo de análise do comportamento
da matéria passo a passo, permitindo analisar o que poderia acontecer à velo-
cidade de uma partícula em movimento à medida que a diferença temporal
se tornasse infinitesimal. Essa posição realista constituía-se da ideia de que
as teorias científicas não eram puramente construções mentais possíveis. Elas
eram, de fato, conhecimentos verdadeiros a respeito do mundo, da realidade.
Dessa forma, não havia como separar a questão do realismo científico da ques-
tão da verdade, pois em toda posição realista a aceitação de uma teoria cientí-
fica envolvia a crença de que ela era verdadeira.
Pode-se dizer que a concepção moderna de átomo enquanto corpúsculo
permeado por um enorme espaço vazio retroage a Robert Boyle. Em 1661,
quando publicou O Químico Cético, Boyle questionou uma concepção que
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 153

retroagia a Empédocles e Aristóteles e que vigorava até o século XVII: a de


que o fundamento último da realidade estava sustentado sobre os quatro ele-
mentos primordiais, a saber, água, fogo, terra e ar. Mesmo com a luta de Francis
Bacon contra os ídolos e com a sua inauguração do método científico de fundo
empirista, ainda assim, as pessoas não reconheciam que esses quatro elementos
eram feitos de uma combinação de elementos mais básicos. Boyle, imerso na
pesquisa qualitativa, utilizou-se de ferramentas científicas (fotômetro de cha-
mas, testes de triagem, testes de precipitação, etc.) para descobrir os elementos
básicos componentes dos minerais e outros materiais. Em 1662, ele desco-
briu que o volume de um gás é inversamente proporcional à pressão exercida
sobre ele. Se se dobra a pressão sobre o gás, reduz-se consequentemente o seu
volume à metade; reduzindo-se, por outro lado, a pressão para a metade do
estado original, o gás dobrará o seu volume. Com isso, a conclusão de Boyle
foi a de que os gases são feitos de minúsculos corpúsculos permeados por um
enorme espaço vazio. Essa concepção fora endossada por seu amigo Isaac
Newton quando se referiu aos átomos como “pequenas partículas dos corpos
de certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais agem a distância não
apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas
também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da
natureza” (NEWTON, 1721, p. 350). Mesmo com a apresentação racional
prévia da realidade do átomo feita por Boyle será John Dalton (1766-1844)
aquele a construir a primeira teoria moderna dos átomos, seguido de Dmitri
Ivanovitch Mendeleev (1834-1907), que desenvolverá a estrutura conceitual
para os elementos que ocorrem na natureza, com os seus respectivos números
e pesos atômicos.
Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) foi quem, no desenvolvimento
da teoria de Joseph Priestley (1733-1804) – que havia isolado o oxigênio em
1774 e descrito o seu papel na combustão e respiração, mas que ainda manti-
nha a concepção de ar desflogistizado em alusão ao flogisto45 de Georg Ernst
Stahl (de 1729) –, transpôs a teoria do flogisto pesando cuidadosamente as
substâncias para determinar o efeito do aquecimento em cada uma delas. Com

45 Segundo Stahl, o flogisto tratava-se de uma substância invisível, inodora, insípida, incolor e de
peso negativo que justificava o fato de que um material se tornava mais pesado quando entrava
em combustão, sofria corrosão ou era calcinado, isso porque perdia o seu flogisto. Quanto mais
combustível for um material, mais flogisto liberta na combustão.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

154 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

isso, ele isolou o oxigênio do ar e desenvolveu a teoria sobre a importância do


oxigênio no processo da combustão e na respiração. Na utilização de procedi-
mentos quantitativos e experimentos, Lavoisier chega a algumas conclusões:
I) que uma substância só pode ser considerada elementar se não se subdividir
em substâncias mais simples ao ser tratada quimicamente; II) que a água era
produto da combinação de oxigênio e hidrogênio; III) que o oxigênio tem uma
lógica própria46; IV) que era possível enunciar uma lei da conservação das mas-
sas – que foi resumida no seguinte princípio: “na natureza nada se cria, nada se
perde, tudo se transforma”; V) que era possível expandir a lista de elementos
conhecidos a 33 elementos – isso foi feito no seu Traité Élémentaire de Chimie
(1789). Foi justamente a base dos estudos de Lavoisier que proporcionou a
Dalton o caminho para a formulação da teoria moderna do átomo.
Retomando o trabalho de Dalton, sua obra A New System of Chemical
Philosophy (1808) foi quem lhe granjeou o status de pai da teoria atômica
moderna. Nessa obra, ele formula o princípio de que cada elemento químico
é composto de átomos idênticos de massa característica e que os compostos
são combinações de átomos de elementos diferentes em proporções numéri-
cas simples. Ele aprimora também o conceito de elemento de Lavoisier, for-
necendo-lhe uma fundamentação ontológica por meio da articulação com o
conceito de átomo. A reelaboração do conceito possibilitou a compreensão dos
átomos como unidades mínimas de combinação da matéria.
Em uma apresentação à Sociedade Literária e Filosófica de Manchester
sobre a mistura e a solubilidade de diferentes gases, Dalton confirma o sucesso
de suas investigações a respeito da realidade dos átomos, quando afirma: “Uma
investigação sobre os pesos relativos das partículas últimas dos corpos é um
assunto, até onde eu sei, inteiramente novo. Eu venho, ultimamente, empre-
endendo essa investigação com notável sucesso” (DALTON, 1805 apud OKI,
2009, p. 1073). O sucesso da investigação de Dalton se pauta nas seguintes
conclusões: a) os elementos são compostos de minúsculas partículas indivisí-
veis, denominadas átomos; b) os átomos de cada elemento são parecidos, mas
diferem dos átomos de todos os demais elementos (define o peso atômico
como a massa de um átomo de hidrogênio); c) não há criação nem destrui-
ção de matéria durante as transformações químicas; d) a combinação química

46 Lavoisier foi o primeiro a empregar o termo oxigênio, de oxygine, isto é, formador de ácido.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 155

ocorre quando os átomos de dois ou mais elementos formam uma firme união,
ou molécula.
O trabalho de Dalton foi a primeira aplicação sistemática e bem-sucedida
do atomismo às observações quantitativas. Entretanto, um problema ainda
persistia no atomismo químico moderno, contra o qual Dalton já havia inves-
tido. A questão da indivisibilidade do átomo era crucial para a manutenção da
teoria, sem ela faltaria a base firme para a teoria química, conforme as leis de
Proust e do próprio Dalton. Um problema, contudo, fez-se presente: a partir de
um volume de oxigênio e um de nitrogênio, dois volumes de óxido de nitrogê-
nio são formados. Se a partir de um átomo de oxigênio e um de nitrogênio for-
mou-se dois óxidos de nitrogênio, isso significa que os átomos foram divididos,
o que perverteria o princípio da indivisibilidade do átomo (ROCHA, 2007).
A solução para esse problema veio por meio das leis volumétricas de Joseph
Gay-Lussac (1778-1850) e da hipótese de Amadeo Avogadro (1776-1856).
A lei volumétrica dos reagentes gasosos em uma reação química foi
enunciada por Lussac em 1808 e apresentada à Sociedade de Arcueil em 1809,
e afirma:

Gases [...] combinam-se entre si em proporções muito simples, e a con-


tração de volume que eles experimentam durante a combinação também
segue uma lei regular. Compostos de substâncias gasosas umas com as
outras são sempre formados nas razões mais simples (nas proporções mais
simples) e de forma que quando um dos termos é representado pela uni-
dade, o outro é 1 ou 2 ou no máximo 3 [...] (LUSSAC, 1809 apud OKI,
2009, p. 1074).

Seguindo a tradição empirista do início do século XIX, que valorizava as


propriedades mensuráveis, como volume e equivalente, e questionando o uso
de entidades não visíveis como os átomos, a lei de Lussac especifica que “i) as
combinações dos gases sempre ocorrem em proporções simples de volume; ii)
quando o produto da reação é ela mesma um gás, seu volume também forma
uma proporção simples com aquelas de seus componentes” (ROCHA, 2007,
p. 74). Foram justamente as ideias de Lussac sobre a combinação gasosa que
deram a Avogadro a possibilidade de formular, em 1811, as hipóteses de que as
partículas elementares não são necessariamente átomos, mas podem ser grupos
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

156 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

de átomos unidos em moléculas; e de que volumes iguais de gases contêm


números iguais de moléculas.

Introduzindo suas próprias ideias sobre a constituição de moléculas,


Avogadro usou preferencialmente o termo molécula em lugar de átomo
na defesa do seu ponto de vista. Os dois termos eram usados no início
do século XIX, embora os significados atribuídos diferissem dos atuais.
Na sua hipótese mais popular, ele admitia que volumes iguais de gases
diferentes, nas mesmas condições de temperatura e pressão continham o
mesmo número de moléculas (OKI, 2009, p. 1074).

Avogadro demonstrou que a sua hipótese estava de acordo com as obser-


vações de Lussac. Tal hipótese implica que as massas relativas das molécu-
las podem ser determinadas sem mesmo precisarmos observar um átomo ou
molécula individual, basta medir as massas relativas das amostras macroscópi-
cas sob condições ideais.
Apesar da exatidão e utilidade, a hipótese de Avogadro não condizia com
princípios aceitos na época. A diferenciação entre os conceitos de átomo e
molécula não aconteceu com facilidade naquele período. Foi somente a expan-
são gradual da lista de elementos que ocorrem naturalmente que conduziu
à tabela periódica desenvolvida de maneira independente por Julius Lothar
Meyer (1830-1895) e Dmitri Mendeleev.
Em 1869 eram conhecidos 63 elementos naturais quando Mendeleev
publicou a sua tabela que refletia a periodicidade destes. Na prática, o que
Mendeleev fez foi preparar um conjunto de cartões nos quais as proprieda-
des dos elementos eram catalogadas separadamente e, ao ordenar e reordenar
os cartões, percebeu que as propriedades (peso atômico, gravidade específica,
volume, valência, calor específico etc.) recorriam periodicamente (por isso,
tabela periódica) na organização dos cartões, de acordo com o peso atômico
crescente. Assim, em virtude dessa regularidade entre pesos atômicos, foi pos-
sível prever, de uma forma razoavelmente acurada, várias propriedades físicas
e químicas dos elementos que estavam faltando. Para isso, como ele descobriu
que diversos elementos químicos não haviam ainda sido descobertos, deixou
espaços em branco na tabela para que fossem preenchidos futuramente na
medida da descoberta de tais elementos. Foi o que aconteceu, por exemplo,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 157

com um elemento de peso atômico 44 que teria que ser encontrado para ocu-
par o espaço seguinte ao cálcio. Em 1879, o químico sueco Lars Fredrik Nilson
(1840-1899) descobriu o escândio.

Posteriormente, duas novidades foram importantes para o desenvolvi-


mento da tabela periódica: a primeira com relação ao gases nobres, que
pareceram, inicialmente, não ter um lugar na tabela periódica, mas que
depois, devido ao fato de não formarem combinações químicas graças à
conexão mútua destes elementos, foram considerados um grupo especial;
a segunda extensão, de grande importância para a fundamentação teórica
da tabela periódica, foi a presença de isótopos, que se tornaram eviden-
tes através do estudo da radioatividade. Contudo, a razão fundamental
dessas observações, e da periodicidade das propriedades dos elementos,
permaneceu desconhecida. Apenas meio século depois do trabalho de
Mendeleev esses fenômenos receberiam um modelo explicativo através
da estrutura eletrônica dos átomos (ROCHA, 2007, p. 75).

Até o fim do século XIX, as teorias químicas não conseguiam dar conta
do comportamento do átomo. Os físicos desse período achavam insatisfatória
a descrição do átomo feita por Dalton, visto que não se enquadraria no sis-
tema newtoniano dos princípios físicos, bem como não dava conta do com-
portamento elétrico da matéria, isto é, não explicava o comportamento elétrico
dos gases quando combinados à eletricidade. Foi o químico e físico britânico
William Crookes (1832-1919) que, em 1879, apresentou o resultado de suas
pesquisas envolvendo descargas elétricas através do gás.
Os experimentos com descarga elétrica nos gases raros já haviam retido
a atenção de Faraday (1839), de Geissler (1860) e de Hittorf (1860), mas o
estudo completo do que G. H. Wiedmann (1826-1899) chamou de “raios
catódicos” se deu com Crookes. Com o uso de um tubo de gás concebido pelo
próprio Crookes, que continha um cátodo e um ânodo (elétrodos positivo e
negativo), desenvolveu experimentos que permitiam que uma carga elétrica
passasse pelo tubo. O resultado de suas observações foi o de que raios de com-
posição e origem desconhecidos saíam do tubo quando eletricidade passava
através do gás nele. Com isso, Crookes consegue identificar várias caracterís-
ticas desses raios, dentre elas a de que se propagam em linha reta e produzem
fosforescência e calor em determinados materiais para os quais Crookes não
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

158 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

encontrava uma resposta definitiva. Foi justamente o esforço para entender a


natureza dos raios catódicos quem propiciou uma ligação direta para a desco-
berta da estrutura e do comportamento dos átomos.

8.2 Primeiros passos na descoberta do comportamento


dos átomos: a radiação ionizante
A marca histórica do início da descoberta da radiação ionizante foi o dia
8 de novembro de 1895, quando Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923) reto-
mou seus experimentos sobre a descarga elétrica nos gases rarefeitos.

Tendo enviado a descarga elétrica produzida por uma potente bobina


de indução para o seu tubo de Crookes cuidadosamente envolvido em
papel negro, ficou surpreendido com a fluorescência de um écran de pla-
tino-cianeto de bário abandonado em cima da mesa, e ainda mais pela
persistência dessa fluorescência quando o écran foi afastado dois metros.
Roentgen teve imediatamente a intuição genial de que a emissão prove-
niente do tubo devia ser análoga a uma luz (PIZON, 1975, p. 67).

Entretanto, essa emissão era diferente da luz, uma vez que a visão não
a percebe, excita a fluorescência do platino-cianeto de bário, mas não produz
efeito de calor, não reflete e nem sofre refração, polarização ou concentração por
uma lentícula e nem interferência (PIZON, 1975). Mesmo assim, Röntgen dá
sequência aos seus experimentos metodologicamente conduzidos, utilizando-
-se de uma série de materiais alternativos (porta pintada por pigmento branco
constituído de carbonato de chumbo, fio metálico enrolado em bobina, bússola
e lâminas de metais diversos). Com esses experimentos, percebeu que os raios
saíam do tubo e penetravam várias substâncias e objetos na sala, e que a origem
da emissão se situava no ponto de impacto do feixe catódico com a parede do
tubo que se tornava fluorescente. Depois de investigar o efeito por semanas,
Röntgen dirigiu os raios para chapas de fotografias sensíveis e conseguiu regis-
trar os ossos da mão da sua esposa em 22 de dezembro de 1895. Em virtude do
uso do símbolo científico “X” para o que não se conhece, ele chamou aqueles
raios de raio X. Pela sua descoberta do raio X, Röntgen se tornou o primeiro a
receber o Prêmio Nobel de Física em 1901.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 159

Algumas questões, entretanto, ficaram para as quais respostas eram neces-


sárias: os raios catódicos seriam luz ou eletricidade? Seriam onda luminosa ou
partícula material?
Antoine Henri Becquerel (1852-1908), que em 1896 estudava a fosfores-
cência produzida por diversos tipos de rochas que brilhavam no escuro, ficou
particularmente interessado pelos resultados de Röntgen e passou a testar a
hipótese da relação entre os raios X e a luz. Em seu relatório à Academia de
Ciência em Paris, em 24 de fevereiro de 1896, Becquerel informou que a fosfo-
rescência das rochas expostas à luz ultravioleta do sol também emite raios X.
Entretanto, percebeu que algo estava errado, visto que as chapas fotográficas
estavam registrando imagem, apesar de estarem guardadas numa gaveta escura.
Foi aí que Becquerel deduziu que o urânio presente em um pedaço de sulfato
potássico de urânio guardado dentro da gaveta estava emitindo radiação sem
ser exposto à luz solar.

Essa emissão chamada “radiação urânica” é o “primeiro exemplo” de um


metal que apresenta um fenômeno do tipo de uma fosforescência invisí-
vel; apresenta-se semelhante aos raios X emitidos pelo tubo de Crookes,
em particular pelas propriedades ionizantes, mas difere deles por uma
energia incomparavelmente mais elevada (PIZON, 1975, p. 67).

Marie Curie (1867-1934), que estava fascinada com as descobertas dos


raios X de Röntgen e com a radiação invisível do urânio por Becquerel, em
1896, escolheu como problema de tese de doutorado as seguintes questões:
Qual era a fonte da energia que escurecera as chapas fotográficas de Becquerel? O
que eram os raios que emanaram do urânio? Para responder a essas questões, M.
Curie fez um estudo sistemático de diversos minerais recorrendo às proprie-
dades ionizantes da emissão por meio de um eletrômetro de piezoquartzo47,
que fora concebido pelo seu esposo Pierre Curie (1859-1906) em 1885. Com
o uso do eletrômetro, M. Curie descobre que na pechblenda havia um corpo
desconhecido cuja emissão superava em intensidade o urânio e o tório. Esse
corpo fora designado por ela de polônio (cujo nome foi dado em homenagem
à Polônia). Meses depois, ela anuncia a existência de outro elemento chamado

47 O eletrômetro de piezoquartzo media a débil corrente elétrica que emanava do urânio e de


outras substâncias.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

160 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

rádio (que se tratava de um elemento um milhão de vezes mais radioativo que


o urânio). Inventou o termo “radioatividade”, do latim radius, que significa
“raio” para definir a espontaneidade da emissão e o seu caráter atômico. Foi
M. Curie quem desenvolveu a teoria de que a emissão dos raios tinha que ser um
fenômeno advindo do interior do próprio átomo de urânio e que átomos de ele-
mentos diferentes poderiam possuir um componente básico comum.
Ernest Rutherford (1871-1937) foi quem, em 1907, fez uma síntese dos
conhecimentos adquiridos pelo casal Curie, edificando a teoria das transfor-
mações radioativas fundamentada nas seguintes premissas: I) corpos radioati-
vos sucedem uns aos outros; II) tais corpos permanecem em equilíbrio quando
a produção é igual à destruição espontânea; III) apresentam suas individuali-
dades químicas quando estão isolados.

A partir desses trabalhos, notou-se que certos elementos de grande peso


atômico espontaneamente se desintegram em elementos de peso atômico
menor. Além disso, a desintegração é acompanhada por emissão de raios,
cuja investigação revelou serem de três tipos, que foram chamados de alfa,
beta e gama. Os raios alfa e beta foram identificados como feixes rápidos
de partículas materiais que tinham, respectivamente, carga elétrica posi-
tiva e negativa, e que se diferenciavam da química orgânica pela massa e
pela velocidade (ROCHA, 2007, p. 76).

Rutherford demonstrou evidente que a radioatividade é própria dos ele-


mentos cujas massas atômicas são muito elevadas. Depois da radiação gama
(radiação eletromagnética), antecipada por Becquerel, e do feixe beta (feixe de
elétrons de energia anormalmente elevada), descoberta por Becquerel e Pierre
Curie (em 1900) e, por fim, do feixe alfa (não desviado pelo campo magnético,
mas detido pelo alumínio), descoberto por Paul Villard (também em 1900),
Rutherford demonstrou, em 1906, que a partícula alfa, de carga elétrica posi-
tiva, é constituída pelo hélio sob a forma ionizada, isto é, com núcleos de hélio
desprovidos dos seus elétrons.
Enfim, o que se pode concluir das pesquisas com radiação ionizante é que
“a emissão radioativa é uma emissão permanente de radiações eletromagnéti-
cas, de elétrons, de núcleos de hélio, todos dotados de uma energia variável,
mas sempre considerável, que só poderia ser proveniente da própria matéria
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 161

na ausência de qualquer dependência de uma energia exterior” (PIZON, 1975,


p. 77). Tal fenômeno radioativo, portanto, só pode ser proveniente do núcleo
do átomo, de uma transformação atômica que implicasse a substituição em
filiação de um a outro elemento.

8.3 Planck, Einstein e a teoria dos Quanta de energia e de luz


As novas descobertas do século XIX agregaram uma série de novos
conhecimentos que as teorias clássicas até então vigentes não davam conta de
explicar. Descobertas acerca da estrutura eletrônica dos átomos, da radioati-
vidade e do efeito fotoelétrico faziam crescer cada vez mais o conhecimento
acerca da luz, da energia e da matéria. E a física, que até então conseguia
explicar os fenômenos na esfera do macro, já não dava conta de elucidar os
fenômenos recentemente estabelecidos à escala do átomo. A natureza da luz,
da eletricidade e do magnetismo excitava o espírito da física contemporânea na
tentativa da descoberta dos seus fundamentos últimos. A explicação para esses
fenômenos até então era dada pela teoria do eletromagnetismo de Maxwell,
que foi resumida em suas equações de 1865. Essa teoria postula que a luz é
uma onda eletromagnética que se propaga num ambiente imaterial cognomi-
nado éter. Apesar dos experimentos de Michelson e Morley demonstrarem, em
1887, que a invariabilidade da velocidade da luz, “ao subir e ao descer o éter”,
negaria a existência do próprio éter, H. A. Lorentz (1853-1928) conseguiu, em
1893, desenvolver um meio algébrico para validar as equações de Maxwell. A
validação desse artifício matemático se deu em 1896, quando Lorentz explicou
a modificação das raias do espectro luminoso quando submetido ao campo
magnético.
Em 1897, Joseph John Thomson (1856-1940) demonstrou que pelo
menos um tipo da radiação emitida do tubo de raios catódicos de Röntgen
consistia, segundo sua denominação, em um fluxo de pequenos corpúsculos,
que vieram a ganhar o nome de elétrons. A descoberta dos elétrons levantara
dificuldades para a teoria da radiação luminosa, visto que, se a luz era produ-
zida por elétrons que giravam ou vibravam, deveria mudar continuamente a
cor conforme os elétrons fossem perdendo a energia por radiação. Entretanto,
o testemunho do comprimento de onda constante no espectro óptico pro-
vava que não era assim. “Por outro lado, a termodinâmica, a radiação do corpo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

162 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

negro, a distribuição do espectro num recinto vazio, a relação entre o espectro


e a temperatura do corpo emissor, levantaram o problema da natureza da ener-
gia, da sua conservação e das suas trocas com a matéria” (PIZON, 1975, p. 79).
De acordo com a teoria eletromagnética clássica, toda a energia de um
corpo quente deveria estar concentrada num comprimento de onda curta. Isso
explicaria o fato de que, na radiação de um corpo negro (carvão ou ferro, por
exemplo), o brilho de tais materiais deveria apresentar cor azul. Entretanto, o
que se vê, na prática, é o brilho do carvão em brasa vermelho. Em 1900, Max
Planck (1858-1947) publicou o seu famoso trabalho sobre o estudo da radia-
ção do corpo negro, onde consegue eliminar essa dificuldade ao tratar o ele-
tromagnetismo da mesma forma que se tratava a termodinâmica. No lugar de
átomos, imaginou campos eletromagnéticos gerados por pequenos osciladores,
onde cada um poderia assumir certa quantia da energia eletromagnética que
era compartilhada entre muitas dessas outras entidades elementares.

Planck sugeriu que a energia dos átomos não podia ser emitida continua-
mente, era irradiada por fracções; por outras palavras, que a energia, exa-
tamente como a matéria, era atómica, e que a sua atomicidade não estava
na energia em si mas numa curiosa quantidade-acção (ou energia multi-
plicada pelo tempo). Havia por conseguinte um quantum (ou quantidade
suficiente de acção) constante, a constante de Planck (h = 6,6 × 10-27
ergo por segundo), que controlava a quantidade de todas as trocas de
energia nos sistemas atómicos (BERNAL, 1969, p. 741).

As trocas entre a energia da onda eletromagnética e a matéria efetuam-se


por porções descontínuas e invisíveis, múltiplos de uma quantidade funda-
mental que é o quantum: constante de ação que controlava a quantidade de
todas as trocas de energia dos sistemas atômicos. Com isso, Planck acabara por
descobrir a estrutura quântica da radiação eletromagnética. Mesmo assim, ele
não avaliava de modo realista o seu trabalho e via todo o seu esforço somente
como um artifício matemático para se obter a resposta esperada. A sua noção
de “pacotes de energia” fazia-o acreditar que os tais pacotes não surgiam das
ondas de luz em si, mas de algumas propriedades dos átomos que emitiam
e absorviam radiação somente em quantidades discretas. “Apenas cinco anos
após o trabalho de Planck, o quantum de luz foi entendido como uma entidade
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 163

física existente independentemente do mecanismo de sua emissão ou absorção


pelos átomos” (ROCHA, 2007, p. 87).
Foi Albert Einstein quem, em 1905, partindo da hipótese do quantum de
luz (que em 1920 irá receber o nome de fóton), não só derivou a fórmula de
Planck como explicou fenômenos até então inexplicáveis, como o efeito foto-
elétrico48. Raciocinando sobre o conceito do quantum de energia de Planck,
Einstein argumentou que a luz existe em pequenos pacotes, isto é, em porções
descontínuas e indivisíveis de corpúsculos que viajam no vazio à velocidade de
300.000 km/s, caracterizados por uma energia ligada à frequência da onda ele-
tromagnética por intermédio do quantum de energia de Planck. A existência
do quantum de luz correndo livremente pelo espaço pressupunha a garantia da
explicação das leis empíricas a respeito do efeito fotoelétrico.

Com efeito, parece-me que as observações da “radiação do corpo negro”,


fotoluminescência, produção de raios catódicos por luz ultravioleta, e
outros fenômenos relacionados associados com a emissão ou a transfor-
mação da luz parecem mais facilmente entendidos se supusermos que a
energia da luz seja distribuída descontinuamente no espaço (EINSTEIN,
2005, p. 178).

A ideia dos quanta de luz de Einstein não teve aceitação imediata da


comunidade dos físicos. No geral, eles não gostavam dela porque não reveren-
ciava a descrição de luz como ondas, resumida elegantemente nas equações de
Maxwell. Einstein havia invertido a imagem ondulatória da luz e regressado à
ideia de Newton, segundo a qual, a luz era feita de partículas. Mas um mon-
tante de experimentos que confirmaram que as energias dos elétrons libertados
cresciam com a frequência da luz rapidamente tornaram essa ideia um fato.
Em virtude dessa teoria, em 1921, Einstein ganhou o Prêmio Nobel de Física,
e não pela Teoria da Relatividade.

48 O efeito fotoelétrico figurava-se bem misterioso, pois que a energia dos elétrons arrancados ao
metal por uma luz qualquer é independente da do feixe luminoso, isto demonstra que a teoria da
luz como onda era falsa ou, no mínimo, insuficiente.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

164 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

8.4 O modelo atômico de Rutherford


Embora as pesquisas com os raios X, a luz e as ondas de rádio continu-
assem no início do século XX, uma vez que a descoberta dos raios X levou a
pesquisas sobre o átomo, inevitavelmente, a partir de agora, o foco das pesqui-
sas se transfere para as partículas subatômicas a exemplo do elétron, do fóton
e das partículas alfa.
A descoberta dos elétrons, que estariam carregados negativamente, levou
os físicos à suposição da existência de alguma matéria com carga positiva nos
átomos. Entretanto, diante da falta de informação a esse respeito, eles só tinham
como pensar vagamente a respeito de tal realidade. Até o presente momento,
ninguém havia apresentado uma imagem convincente do átomo. Foi assim
que, em 1897, J. J. Thomson, disparando uma corrente elétrica através do gás
contido em um tubo de vidro, libertou elétrons dos átomos. Como quase nada
se sabia sobre como os elétrons distribuíam-se na matéria, ele propôs o modelo
atômico do “pudim de ameixas”, no qual elétrons carregados negativamente
ficavam cravejados como ameixas em uma massa de carga positiva. A atração
entre os elétrons e as cargas positivas supostamente mantinha o átomo coeso,
misturando-se ao longo do pudim.
Em 1907, quando Rutherford retornara para a Universidade de
Manchester, Inglaterra, prosseguiu seu diálogo com Becquerel a respeito do
comportamento das partículas alfa emitidas por materiais radioativos. De
Becquerel, Rutherford teve a informação de que as partículas alfa, pelo que
indicavam os experimentos, pareciam desviar-se em moléculas de ar que se
encontravam pelo caminho. Em 1909, juntamente com os seus colegas Hans
Geiger (1882-1945) e Ernest Marsden (1889-1970), Rutherford embrenha-se
na tentativa de descobrir por que isso ocorria. Dessa forma, dispararam partí-
culas alfa pesadas, emitidas por polônio radioativo, contra uma chapa de folha
de ouro extremamente fina, com a espessura de poucos átomos, e descobriram
que a cada oito mil partículas alfa uma ricocheteava quando batia na chapa.
Muitas tinham a direção invertida, sendo desviadas por ângulos grandes, obtu-
sos, como se tivessem atingido algo duro. Rutherford falou, numa palestra pro-
ferida no final da sua vida, sobre a época em que Geiger e Marsden fizeram o
experimento pela primeira vez:
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 165

Então me lembro de que dois ou três dias depois Geiger me procurou


muito entusiasmado e disse: “Conseguimos obter algumas das partículas
alfa que vinham de trás...”. Era sem dúvida o acontecimento mais inacre-
ditável que eu jamais testemunhara na minha vida. Era quase tão inacre-
ditável como se você tivesse disparado uma bala de 38cm num lenço de
papel e ela tivesse voltado e batido em você (ANDRADE, 1964, p. 11).

Em 1911, Rutherford aventou que, para as partículas alfa ricochete-


arem, a maior parte do átomo deveria estar concentrada em um minúsculo
núcleo compacto, duro e maciço carregado em seu centro. Daí sua rejeição
pelo modelo de J. J. Thomson, pois o modelo do “pudim de ameixas” não podia
explicar tal fenômeno. Esse modelo concebia o átomo como uma mistura de
cargas positivas e negativas que não eram duras ou pesadas o suficiente para
poder bloquear uma partícula alfa. Ao invés disso, em 7 de março de 1911,
em uma reunião da Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, Rutherford
anunciou sua comprovação experimental de que o átomo é dotado de uma carga
elétrica concentrada em uma região ultraminúscula, envolvida por uma distribuição
esférica uniforme de eletricidade oposta e de igual quantidade. Em outras palavras,
o átomo consiste em um centro com carga positiva, ou “núcleo”, que con-
tém quase toda sua massa, e é cercado por uma nuvem de elétrons com carga
negativa. Dois meses depois, o modelo do átomo nuclear estava publicado no
volume 21 da Philosophical Magazine49, mostrando que o núcleo atômico con-
centra toda a carga elétrica positiva e praticamente toda a massa do átomo. Era
o início da era da física nuclear contemporânea.
Em 1815, William Prout (1785-1850) havia sugerido que os átomos
eram compostos de múltiplos do átomo mais simples, nesse caso, o hidrogênio.
Rutherford conseguiu demonstrar que os outros elementos, de fato, contêm
núcleos de hidrogênio, uma vez que cargas positivas eram extraídas quando
partículas alfa eram disparadas através de gás nitrogênio, que acabava por se
transformar em oxigênio nesse processo, transformando um elemento em
outro. Em 1920, Rutherford nomeou o núcleo de hidrogênio como “próton”,
em grego, “primeiro”, para evitar confusão com o gás hidrogênio propriamente
dito. James Chadwick (1891-1974), colega de Rutherford, em 1932, encontrou

49 RUTHERFORD, E. The Scattering of α e β Particles by Matter and the Structure of the Atom.
Philosophical Magazine, 21, series 6 (April, 1911).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

166 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

uma nova partícula, uma partícula neutra. Essa partícula, que tinha a mesma
massa de um próton, era pesada o suficiente para expulsar prótons da parafina,
entretanto, não tinha carga. Ela foi batizada de nêutron e o modelo do átomo
foi reorganizado.
Pela descrição que fez do átomo, Rutherford recebeu várias honrarias e foi
sagrado cavaleiro em 1914. Ele recebeu, inclusive, o Prêmio Nobel de Química
pela pesquisa sobre a desintegração de elementos e sobre a química das substâncias
radioativas, mas nunca recebeu o Prêmio Nobel de Física. Embora seu traba-
lho fornecesse a base para a atual compreensão do átomo, sabe-se que sofre
de restrições importantes. Diversos físicos, incluindo o próprio Rutherford,
concluíram que, se o modelo estivesse correto, teria que haver uma razão que
justificasse o fato de os elétrons em órbita não serem sugados para dentro do
núcleo com carga positiva. O modelo de Rutherford, contudo, era inteligível,
mas o seu átomo era instável mecânica e eletromagneticamente falando. Tal
fato marcou o início do esforço conjunto para encontrar um mecanismo que
pudesse equilibrar a estrutura do átomo.

8.5 O átomo de Niels Bohr e a explicação da estabilidade dos elétrons


Em 1911, o dinamarquês Niels Henrik David Bohr (1885-1962) chega à
Inglaterra para estudar no Cavendish com J. J. Thomson. O projeto inicial era
estudar o núcleo do “pudim de ameixa” de Thomson, mas as divergências entre
os dois a respeito das suas concepções de átomo fizera com que Bohr deixasse
o Cavendish para trabalhar com Rutherford em Manchester, em 1912. Uma
vez que as concepções de Bohr e Rutherford eram convergentes em muitos
aspectos, o resultado da parceria foi um trabalho frutífero no entendimento da
estrutura do átomo.
Rutherford desenvolvera um modelo planetário constituído segundo
uma lei análoga à da gravitação, onde as cargas elétricas no núcleo e as car-
gas eletrônicas no átomo desempenhavam o papel da gravitação no universo.
Entretanto, conforme a percepção de Bohr, tal modelo tornava-se insusten-
tável em virtude da sua instabilidade manifesta. Mas quais eram, de fato, os
problemas encontrados por Bohr a ponto de considerar o modelo de átomo de
Rutherford instável?
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 167

Fundamentalmente, as leis da Eletrodinâmica Clássica. Os elétrons, sendo


partículas carregadas negativamente, ao serem submetidas a uma força de
atração coulombiana do núcleo positivo, deveriam emitir uma radiação,
perdendo gradativamente energia e acabando por cair no núcleo. Haveria
uma perda contínua de energia, o que contrariava os resultados experi-
mentais da espectroscopia atômica que tinham sido obtidos no final do
século XIX (MARTINS, 2001, p. 52).

Em resumo, o modelo de átomo de Rutherford não estava de acordo


nem com o eletromagnetismo e nem com as leis dos espectros de emissão ou
absorção.
Em Sobre a Constituição de Átomos e Moléculas, de 1913, Bohr trata das
dificuldades enfrentadas pelo modelo de Rutherford:

Numa tentativa de explicar algumas das propriedades da matéria neste


modelo atômico deparamos, todavia, com dificuldades de natureza muito
séria derivadas da aparente instabilidade do sistema de elétrons [...].
Contudo, a maneira de considerar um problema dessa espécie sofreu alte-
rações em anos recentes devido ao desenvolvimento da teoria da radia-
ção de energia e à confirmação direta de novos pressupostos introduzidos
nessa teoria, encontrada em experiências relacionadas com fenômenos
muito diferentes tais como calores específicos, efeito fotoelétrico, raios
Röntgen, etc. O resultado da discussão dessas questões parece ser um
reconhecimento geral de que a eletrodinâmica não consegue descrever
o comportamento de sistemas de dimensões atômicas (BOHR, 1963,
95-97).

Para resolver o problema, Bohr sugeriu que as teorias de Planck e


Einstein a respeito da luz – que consistia em quantidades descontínuas de
energia denominadas quanta – poderia ser aplicada ao átomo. Seu pensamento
foi sobre a possibilidade de a quantização ser uma propriedade fundamental de
toda energia. Se assim o fosse, poder-se-ia explicar por que o átomo era estável.
O problema a ser desvendado, então, era: as órbitas fixas em torno do núcleo
poderiam estar relacionadas a quantidades fixas de energia? Com o problema
em foco, Bohr se esforçava para pensar uma teoria que pudesse lhe dar uma
resposta ao mesmo tempo conceitual e matemática, quando foi informado de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

168 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

uma fórmula que Joseph Balmer (1825-1898) havia desenvolvido e que for-
necia a frequência da luz emitida por átomos. De imediato, Bohr associou a
referida fórmula com a teoria dos quanta de Planck e Einstein para descrever
o comportamento dos elétrons que orbitavam em torno do núcleo. A aplicação
da fórmula aos quanta demonstrou:
a) Os elétrons negativamente carregados trafegam por órbitas em torno
de um núcleo carregado positivamente, à maneira dos planetas que
orbitam o Sol;
b) Os elétrons são mantidos próximos ao núcleo por meio de forças ele-
trostáticas (atração mútua entre cargas positivas e negativas);
c) Um sistema atômico possui um número de estados nos quais nenhuma
emissão de radiação se efetua. Possui, portanto, uma energia constante.
Esses estados são denominados “estados estacionários do sistema”;
d) De todas as órbitas infinitas permitidas pela teoria clássica, somente
são possíveis aquelas nas quais o momento angular orbital do elétron
é um múltiplo inteiro n da constante de Planck h 50;
e) Por fim, um elétron que salta de uma órbita para outra acarreta um
aumento ou uma liberação de um quantum de energia.
Segundo Bohr, os elétrons podem se mover entre órbitas subindo e des-
cendo na escala. Esses movimentos são conhecidos como saltos quânticos. Um
átomo não emite radiação quando de seu estado estacionário; isso só ocorre
quando faz uma transição, dá um salto, de um estado para o outro. A diferença
de energia entre os degraus é adquirida ou perdida com o elétron absorvendo
ou emitindo luz de uma frequência correspondente. Tal energia se apresenta na
forma de radiação eletromagnética, que pode ser vista sob forma de luz – isso
produz as linhas espectrais. Em suma, o átomo não absorve nem emite radia-
ção continuamente, somente por meio dos saltos quânticos.
A teoria de Bohr teve êxito imediato, que fora amplificado com Henry
Moseley (1887-1915) que, em 1913, demonstrou que ela explica totalmente

50 “Os diferentes possíveis estados estacionários são constituídos por elétrons solitários, girando em
torno de um núcleo positivo, com um momento angular L dado pela expressão:
L = n. (h/2π)
Sendo h a constante de Planck e n um número inteiro e positivo, chamado usualmente de ‘nú-
mero quântico’” (MARTINS, 2001, 54).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 169

a espectrografia dos raios X. Por uma série de experimentos, Moseley com-


provou que a luz emitida quando elétrons passam por um estado de alta para
baixa energia ocorria em forma de raios X – isso explica a relação entre elétrons
e raios X. Demonstra também que existe uma correlação matemática entre a
frequência de raios X de cada elemento e o seu número atômico. Se se conhece
a frequência dos raios X, logo, pode-se determinar a quantidade de carga que
há no núcleo.
Por fim, o modelo de Bohr permitiu fornecer uma base teórica à tabela
periódica dos elementos químicos, mais precisamente, forneceu uma explica-
ção para a ocorrência das ligações químicas. A associação dos átomos para for-
mar moléculas se dá quando há elétrons sem par na órbita exterior do átomo.
Os elétrons são compartilhados pelos átomos para formar moléculas, como
resultado da tendência que têm os elétrons para se distribuírem entre os áto-
mos de modo que a energia de um grupo de átomos seja mais baixa do que
a soma dos átomos componentes de tal grupo. A valência será, portanto, o
número de elétrons sem par em sua órbita e a covalência será a ligação ou o
compartilhamento de elétrons.
Grandes foram os passos dados por Bohr na construção da imagem da
estrutura e funcionalidade do átomo na contemporaneidade.

[...] Teve habilidade de combinar numa síntese as quatro linhas diferen-


tes: o núcleo duro da experiência de bombardeamento, as leis simples há
muito descobertas por Balmer (1825-1898) relativas às frequências no
espectro de hidrogênio, a regularidade dos comprimentos de onda dos
raios X dos vários elementos, e a teoria dos quanta de Planck, que serviria
para relacionar o conjunto (BERNAL, 1969, p. 743).

Entretanto, a introdução de elementos estranhos à física clássica no


modelo atômico, a exemplo do comportamento dual da radiação, acabou por
conduzir a física para uma imagem diferente da realidade, que obrigará o
desenvolvimento da mecânica quântica.

Considerações finais
O objetivo do presente capítulo, conforme apresentado ao longo das pági-
nas precedentes, foi o de apresentar a historiografia das teorias atômicas dos
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

170 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

séculos XIX e XX, cujo realismo compôs, na contemporaneidade, as bases para


os desenvolvimentos subsequentes que se deram com a mecânica quântica. A
proposta aqui não foi a de apresentar uma reflexão crítica sobre o que fora pro-
duzido nesse período, nem, muito menos, levantar as abordagens metafísicas,
uma vez que tais teorias dizem respeito à natureza da realidade e que, portanto,
carregam uma ontologia de fundo. Nosso enfoque foi mostrar que por trás da
abordagem do realismo fisicalista, encontra-se a preocupação com o real, cuja
inexistência implicaria a própria impossibilidade da ciência. As teorias que
aqui se apresentaram representam, com nuances diferentes, a preocupação com
a demonstração da própria natureza física do real e de como ele se comporta.
A par da assunção de que muitas dessas teorias ditas realistas trazem no seu
bojo o compromisso com entidade não observáveis, ainda assim, não podem
ser tratadas de antirrealistas, uma vez que não assumem o compromisso com a
ideia de que a realidade somente é possível em virtude da existência do sujeito
cognoscente que lhe dá o devido sentido. Por outro lado, o realismo ora aqui
apresentado não professa nenhuma espécie de realismo ingênuo que declara a
existência da realidade pela realidade, dispensando a presença e a importância
do sujeito pensante. Ao invés disso, provendo o realismo fisicalista de alto
grau de racionalidade, apesar de assumir que a realidade está posta e que existe
independentemente da mente humana, ainda assim, defende a importância
da razão no entendimento e no deciframento da natureza que se apresenta
em linguagem cifrada. É a razão a responsável em dar inteligibilidade ao real,
de exigir que a natureza apresente respostas às suas indagações e, por fim,
de representar, por meio de uma linguagem própria (a linguagem científico-
-matemática), a configuração simbólica, portanto, sintática da natureza. Dessa
forma, no processo de cognoscibilidade da natureza, faz-se necessário tanto
uma representação semântica, que concerne aos significados das mensagens
cifradas emanadas da natureza, quanto sintática, que representa a simbolização
ou formalização das mensagens em uma linguagem que, fugindo da coloquia-
lidade, faça-se entendida pela comunidade dos especialistas. Em tudo isso está
a razão que, a despeito desses procedimentos, assume que, ainda assim, a rea-
lidade (ou o mundo) existe independentemente da nossa certificação racional.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO 171

Referências
ANDRADE, E. N. da C. Rutherford and the Nature of the Atom. Nova York: Doubleday,
1964.

BERKELEY, G. Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano. In: FRASER, A.


Obras. Oxford, 1871. vol. 1

BERKELEY, G. Três Diálogos entre Hylas e Philonous. Tradução de Gil Pinheiro. São
Paulo: Ícone, 2005. (Coleção Fundamentos de Filosofia).

BERNAL, J. D. Ciência na História. Tradução de António Neves Pedro. Lisboa: Livros


Horizontes, 1969. v. 4.

BOHR, N. Sobre a Constituição dos Átomos e Moléculas. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1963. vol. 2

BOYLE, R. The Works of the Honourable Robert Boyle. Londres: Ed. Thomas Birch,
1672. 6 v.

DA SILVA, V. C.; BRANCO, J. C. A recepção de Kant na filosofia da física de


heisenberg. Griot: Revista de Filosofia, v. 19, n. 3, 2019, p. 266-279

EINSTEIN, A. On a Heuristic Point of View Concerning the Production and


Transformation of Light. In: Einstein’s Miraculous Year: Five Papers that Changed the
Face of Physics. John Stachel (Ed.), Princenton University Press, 2005.

MARTINS, J. B. A história do átomo: de Demócrito aos quarks. Rio de Janeiro: Editora


Ciência Moderna, 2001.

NEWTON, I. Opticks: Or, a Treatise of the Reflections, Refractions, Inflection, and


Colours of Light. 3. ed. Londres: Printed for William and John Innys at the Weft End
of St. Paul’s, 1721.

OKI, M. C. M. Controvérsias sobre o atomismo no século XIX. Quim. Nova, Vol. 32,
No. 4, 2009, p. 1072-1082.

PIZON, P. O Átomo e a História. Trad. A. Faia. Porto: Afrontamento, 1975. (Col. Viver
é Preciso)

ROCHA, G. R. História do atomismo: como chegamos a conceber o mundo como o


concebemos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007.

SCHRÖDINGER, E. Ciência e Humanismo. Tradução de Jorge Almeida e Pinho.


Lisboa: Edições 70, 1999 (Coleção Perfil História das Ideias e do Pensamento).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO IX

O ANTIRREALISMO NA AURORA
DA MECÂNICA QUÂNTICA

Introdução

N
esse capítulo, ao tratar da teoria quântica, não estabeleceremos qual-
quer distinção entre os termos física quântica, teoria quântica ou mecâ-
nica quântica. Toda a discussão será abrigada sob o cognome de “teoria
quântica”. Teoria esta que trata de analisar e descrever o comportamento dos
sistemas físicos de dimensões reduzidas, próximos dos tamanhos de moléculas,
átomos e partículas subatômicas.
Na teoria quântica, veremos que o determinismo da física clássica não
se aplica e que as medidas obtidas de sistemas quânticos são expressas em
termos de probabilidades. Todo o seu desenvolvimento teve como suporte a
descoberta de Planck de que a energia, tal como a matéria, era atômica e que a
sua atomicidade não estava na própria energia, mas num quantum (quantidade
suficiente de ação) constante que controlava a quantidade de todas as trocas
de energia. Entretanto, foi da teoria dos quanta aplicada ao átomo de Bohr
que vimos nascer a teoria quântica que se tornou capaz de compreender meca-
nismos como os decaimentos radioativos, a emissão e absorção de luz pelos
átomos, a produção de raios x, o efeito fotoelétrico, as propriedades elétricas
dos semicondutores etc. Em suma, trata-se de um dos mais bem-sucedidos
campos da física, cujos desenvolvimentos nos levam ao conhecimento das mais
estranhas explicações do comportamento da realidade na escala do átomo,
quando do indeterminismo e da irracionalidade no interior dos postulados de
algumas interpretações.
No século XX, principalmente na sua primeira metade, os rumos da física
se alteraram com o caminhar do desenvolvimento das teorias atômicas. Até o
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

174 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

emergir da física quântica, viu-se um movimento claro de inclusão do sujeito


observador na própria descrição da realidade, o que levou a física a adicionar
uma dimensão pragmática à imagem de conhecimento científico. Forma e con-
teúdo passaram a ser, portanto, fatores fundamentais da crítica antirrealista das
teorias atômicas de muitos físicos, isso porque, na explicação da questão sobre
como é que a individualidade surgia em objetos compostos por elementos não
individuais, era preciso que se ficassem claras as fronteiras que delimitavam
a diferença entre forma e configuração. “É evidentemente a forma ou confi-
guração (Gestalt) que indubitavelmente invoca a identidade e não o conteúdo
material”, afirmava Schrödinger (1999, p. 109). E, “quando se trata das partí-
culas elementares constituintes da matéria, parece que não faz sentido pensar
nelas novamente como constituindo em algo material” (SCHRÖDINGER,
1999, p. 110). Nesse sentido antirrealista, nós não teríamos acesso à realidade
última da matéria a não ser de forma conceitualizada e, por conseguinte, não
haveria como representar uma realidade independente de nós. O mundo não
seria aquilo a que corresponde uma proposição verdadeira, já que somos nós
quem conformamos o mundo com os nossos conceitos. Dessa forma, a estru-
tura externa passa a ser definida pelas condições internas do nosso entendi-
mento. Pensar com sentido sobre a estrutura elementar da matéria pressuporia
não pensar na existência de uma forma geométrica dos átomos – tais como
aquelas que se apresentam nos livro-textos do campo da física – e sim pensar
no modelo, na representação, ou na imagem mais adequada para que a teoria
possa explicar a realidade e deduzir as características observáveis a partir desse
modelo. Assim, falar sobre a verdade de uma teoria seria também um equívoco,
pois o conceito mais apropriado para tratar de um modelo – e a teoria é um
modelo – não é o de verdade e sim o de adequação.

À medida que os nossos olhos mentais penetram no interior de distâncias


cada vez mais pequenas e em tempos cada vez mais curtos, descobrimos
que a Natureza se comporta de forma tão completamente diferente daquela
que observamos nos organismos visíveis e palpáveis que nos rodeiam que
nenhum modelo moldado de acordo com as nossas experiências em larga
escala poderá alguma vez ser “verdadeiro” (SCHRÖDINGER, 1999, p.
113).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 175

A adequação do modelo e sua simplicidade (quanto mais simples a ima-


gem, mais adequada ela é) seriam os garantidores da dedução das característi-
cas observáveis dos próprios modelos. Toda teoria científica seria um sistema
de enunciados ou “um sistema lógico de pensamentos” (EINSTEIN, 2000,
p. 95), ou ainda, a “fundamentação da física dotada da máxima uniformidade
lógica possível” (EINSTEIN, 2000, p. 70).
No caso das teorias atômicas do século XX, em sua grande parte, afirmar
que se trata de uma teoria adequada e não verdadeira se justifica porque para
ser “verdadeira, deverá poder ser comparada diretamente com fatos verdadeiros.
E esse não é habitualmente o caso dos nossos modelos” (SCHRÖDINGER,
1999, p. 111). Nos dizeres de Heisenberg (1995, p. 140), “os próprios átomos
e partículas elementares não exibem o mesmo tipo de realidade: eles dão lugar
a um universo de potencialidades ou possibilidades ao invés de um mundo de
coisas e fatos”.
Conforme o quadro característico da representação da matéria no
século XX, vê-se uma tendência ao enviesamento para o antirrealismo, prin-
cipalmente entre aqueles que dialogam com a física quântica. Nesse campo,
tratar de órbitas eletrônicas, ondas materiais, densidades de carga, energia e
momento linear ou das partículas elementares que compõem o átomo é tratar
de termos teóricos que ocorrem nas teorias científicas aceitas, mas que não se
referem a entidades reais (VAN FRAASSEN, 1980). É claro que a maioria
dos físicos do século XX primava pelo caráter experimental da teoria, o que
os obrigava ao constante trabalho laboratorial. No entanto, dentro do trabalho
teórico, certifica-se também a dependência da inclusão de elementos ad hoc na
“explicação da realidade” a partir da criação de modelos que buscam antecipar
adequadamente essa mesma realidade. É o caso, por exemplo, do princípio
de complementaridade entre sujeito, aparelho de medição e objeto na teoria de
Niels Bohr que, mesmo sendo rotulado de positivista (PESSOA JR., 2001),
trata-se de uma visão que não coaduna com a realidade, portanto, de um antir-
realismo puro. Ou então, da noção de colapso da função de onda provocado
pelo observador, defendido por Heisenberg no Congresso de Solvay de 1927;
esse também não se trata de um fenômeno que possa ocorrer espontaneamente
na natureza. E é em virtude disso, e de muitos outros exemplos, que não se
pode rotular boa parte das interpretações da teoria quântica como representa-
tivas de uma realidade independente da mente.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

176 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Nesse capítulo, tomaremos como viés de nossa análise aquilo que há de


realismo materialista, de entidades, na teoria física do século XX, mas, em vir-
tude dos propósitos filosóficos que orientam essa obra, daremos tratamento
especial às manifestações de antirrealismo no interior dessas mesmas teorias.
Acreditamos nós serem tais teorias providas de maior material filosófico que
fundamenta a crítica que se pode fazer às explicações metafísicas que susten-
tam o entendimento da realidade quântica.

9.1 A dualidade onda-partícula


É extremamente complicado apresentar uma explicação que não seja
multifacetada à pergunta sobre a essência da física quântica e sobre a diferença
entre o quântico e o clássico no campo da física. Sobre a física clássica, penso
que já apresentamos nos itens precedentes um pouco sobre a sua essência.
Trata-se da física do determinismo causal, onde a mensuração e elucidação é
possível em todas as esferas, onde não há espaço para a dubiedade e irraciona-
lidade, onde a natureza se comporta de maneira previsível, não restando para
ela qualquer tipo de liberdade. Quanto à teoria quântica, além de apresentar
o ecletismo das dezenas de interpretações, abriga em seu interior as maiores
esquisitices elucidativas do comportamento do mundo na escala do átomo. No
entanto, ainda assim, é possível apresentar, a partir do interior dessas interpre-
tações, uma suposta essência da teoria quântica.
O nome “quântico” pode sugerir quantidades discretas de energia, ou
pacotes de energia e luz, aos moldes das teorias de Planck e Einstein. A teoria
quântica pode também ser tida como aquela que sugere uma indeterminação
na essência da realidade que só pode ser abarcada sob o viés da probabilidade.
Tal teoria também promove interpretações onde o observador possui o status
especial de não estar separado do objeto observado. Trata-se também de uma
teoria que admite a possibilidade da estranha superposição de estados quânti-
cos, a exemplo do gato de Schrödinger. Ou então, admite a realidade de uma
não-localidade, a exemplo do teorema de John Bell. Enfim, alguns acreditam
que o mais importante da teoria quântica e que, portanto, a caracteriza a con-
tento é “que ela atribui, para qualquer partícula individual, aspectos ondula-
tórios e, para qualquer forma de radiação, aspectos corpusculares” (PESSOA
JR., 2019, p. 1). É da noção de dualidade onda-partícula que começaremos a
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 177

exposição dos itens que, a nosso ver, na teoria quântica, apresentam-nos as mais
interessantes questões filosóficas a respeito da concepção física do mundo, isto
é, de como os seres humanos criam o universo em que vivem, e que nos pro-
porcionam bons conteúdos de reflexão.
Afinal, é a luz onda ou partícula? De Newton tínhamos uma primeira
resposta que admitia a natureza corpuscular da luz, isto é, a luz era feita de
corpúsculos ou partículas. A noção geral que vigorou na mecânica clássica
era a de que uma partícula é uma entidade bem pequena que se locomove
no espaço, cuja posição é bem definida, possuindo uma velocidade precisa.
A partícula descreve uma trajetória contínua e mantém sua identidade sem
desintegrar (até uma certa energia de destruição). Por outro lado, o eletromag-
netismo defendia a luz como sendo uma onda eletromagnética de frequência
extremamente alta que viajava num meio tênue e imóvel, sem peso, invisível,
de viscosidade zero, chamado éter, cuja realidade era resumida elegantemente
nas equações de Maxwell.
Um exemplo simples e recorrente em livros técnicos a respeito da estra-
nha propriedade onda-partícula da matéria pode ser esclarecedor. Trata-se do
exemplo das famosas franjas de Young. Em 1801, o físico britânico Thomas
Young (1773-1829), por meio de um pedaço de cartolina com duas fendas nele
recortadas, fez passar um raio de sol. A luz projetou uma série de listas que
ficaram conhecidas como franjas de Young. Com o fechamento de uma das
fendas, aparecia um único arco-íris que era ladeado por algumas manchas mais
fracas. Young compreendeu que a luz estava se comportando como ondas de
água, pois se temos uma onda de água (plana) que é barrada por uma parede
qualquer e essa parede possui uma abertura, parte da água passará pela abertura
e formará uma onda circular. Algo mais ou menos assim:

Fonte: uol.com.br/fisica/difração. Acesso em: 24 ago. 2020


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

178 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Por outro lado, quando a parede possui duas aberturas o comportamento


é outro. Formam-se duas ondas circulares com interferência entre elas (gerando
uma onda resultante igual à soma das perturbações de cada onda) e com locais
em que uma das ondas sempre cancela a outra. Temos um exemplo disso no
próprio artigo de Young de 1801, proferido na Royal Society de Londres e publi-
cado em 1802 nas Philosophical Transactions.

Fonte: Young (1801).

Os pontos C, D, E, F são as marcações onde ocorrem as interferências.


Nos pontos em que coincide de as cristas e os vales se encontrarem, as ondas
ajustam e crescem, isto é, acontece uma interferência construtiva. Já nos pontos
em que há um desajuste entre cristas e vales, isto é, quando uma crista não se
encontra com um vale, eles cancelam um ao outro.

Fonte: www.blog.ipv7.com.br/tecnica/interferencias. Acesso em: 24 ago. 2020


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 179

O resultado foi que, “ao usar uma dupla fenda, Young fez dois fluxos de
luz – um de cada – interferirem. Suas fases relativas eram ditadas pelas dife-
rentes trajetórias ao atravessar a cartolina e depois disso. Onde as ondas se
combinavam para reforçar uma à outra, o resultado era uma listra brilhante.
Onde elas se anulavam, o fundo ficava escuro” (BAKER, 2015, p. 21). Algo que
pode ser assim ilustrado:

Fonte: aminoapps.com/c/tudo-sobre-ciencia. Acesso em: 24 ago. 2020

A descoberta de Young, portanto, foi a de que a natureza da luz é ondu-


latória. Contudo, isso não foge de uma posição já convencionada na física clás-
sica – lembre-se, por exemplo, da descrição que Maxwell, para quem a luz
também é onda, dá desse mesmo fenômeno. Onde se dá, então, a passagem do
clássico para o quântico na análise desses exemplos?
Para transportar esse experimento de física clássica em física quântica,
precisa-se, primeiramente, diminuir exponencialmente a intensidade de luz e,
em segundo lugar, utilizar-se de um aparelho supersensível para detectar a luz.
Dessa forma, é possível medir as franjas de interferência ponto a ponto, como
na imagem a seguir.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

180 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Fonte: Pessoa Jr. (2019, p. 4)

O que se vê aqui são experimentos no campo da física que se revelam,


no mínimo, estranhos: vê-se que o padrão de interferência, na verdade, forma-
-se por manifestações que são pontuais, isto é, revela um fenômeno formado
por partículas. E, como pode um mesmo objeto, a luz, ser onda e partícula?
Não podemos dizer que a ocorrência das duas realidades se deu ao mesmo
tempo, pois, se assim o fosse, estaríamos diante de uma contradição mani-
festa. Entretanto, é estranho admitir que um objeto quântico, ao se propagar
(quando ainda não é medido), é onda, mas que em um outro momento, quando
detectado pela trajetória ou pelo caráter pontual, isto é, quando ele é medido,
é partícula. Se houve um colapso da onda quântica quando da detecção da
partícula, como explicar tal colapso? Onde ele se dá? Qual é a certeza que
temos acerca da existência do objeto quântico? Os experimentos que se dizem
quânticos aqui não são, na verdade, clássicos? Podemos admitir a realidade de
um objeto quântico ou isso não passa de uma pressuposição? Qual a metafísica
estaria alocada no interior de tais teorias? Seria a teoria quântica completa-
mente indeterminista? Veremos se é possível apresentar algumas respostas a
essas perguntas nos itens que se seguem.

9.2 A mecânica matricial e o princípio da incerteza de W. Heisenberg


As ideias sobre o dualismo onda-partícula para a luz foram estendidas
por Louis-Victor de Broglie (1892-1987) a todos os objetos atômicos dotados
de massa: elétrons, prótons, nêutrons e todos os sistemas atômicos e subatô-
micos dotados de massa (SELLERI, 1990). De Broglie, em uma tese defen-
dida em 1924, argumentou que, assim como Einstein mostrara, as ondas de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 181

luz possuíam propriedades inerentes às partículas, bem como poderia a luz


ter propriedades ondulatórias. Postulou também que se elétrons fossem ade-
quadamente submetidos ao experimento de dupla fenda, apresentariam um
padrão de interferência. Em 1927, o experimento de Davisson e Germer, nos
Laboratórios Bell, confirmou essa previsão de de Broglie, estabelecendo a dua-
lidade onda-partícula da matéria. O prenúncio de de Broglie foi um passo
importante para a nossa compreensão da realidade quântica; só precisava
que alguém viesse e sistematizasse teórica e matematicamente tal mecânica.
Werner Heisenberg (1901-1976) foi o primeiro.
Em 1920, Niels Bohr inaugurou um instituto de física na Universidade
de Copenhague. Para lá achegaram-se físicos do mundo inteiro para trabalhar
em sua teoria atômica. Como vimos anteriormente, o modelo das órbitas dos
elétrons de Bohr explicava o espectro do hidrogênio e algumas propriedades
da tabela periódica, mas vinha sofrendo grandes reveses, a saber: da evidência
da dualidade onda-partícula, da difração dos raios X, dos elétrons que tam-
bém comprovavam a hipótese de de Broglie e do fato de que as propriedades
das linhas espectrais dos átomos maiores não se encaixavam na sua teoria.
Bohr, após a introdução dos principais pressupostos do seu modelo, conse-
guiu explicar a emissão espectral dos átomos – uma espécie de quebra-cabeças
que a teoria atômica estava pendente de resolver. Para tal, derivou a chamada
constante de Rydberg, bem como o raio do hidrogênio no estado fundamental
e o potencial de ionização. No entanto, isso foi feito, conforme concepção de
Lakatos, em forma de ajustes no cinturão protetor. Ajustes esses que são ad hoc,
isto é, que não resultam em previsões de fatos novos ou, sendo previstos, não
são corroborados.

A concordância entre os comprimentos de ondas medidos e aqueles pre-


vistos por Bohr não foram perfeitos e, segundo Alfred Fowler, um espec-
trocopista britânico, a pequena discrepância era grande o suficiente para
invalidar a teoria. A reposta de Bohr, publicada na Nature no outono de
1913, foi um outro exemplo brilhante do que o filosofo Imre Lakatos tem
chamado ajuste monstruoso – tornar um contraexemplo num exemplo.
Bohr apontou que a quantidade m (massa do elétron) na expressão de R
(constante de Rydberg) deveria ser, na verdade, a massa reduzida mM/(m
+ M), com M sendo a massa nuclear. Com essa correção a discrepância
desapareceu (KRAGH, 2002, p. 55).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

182 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

O problema era que Bohr, Planck e a maioria dos físicos de sua época
imaginavam regras e números quânticos que emergiam das regularidades nas
estruturas básicas dos átomos. Não tinham ciência, portanto, de que o determi-
nismo clássico não é regra para os atributos quânticos, que têm outra “lógica”
de funcionamento.
Em 1924, Heisenberg visitava periodicamente Bohr para fins de estudos
e tentava maneiras de calcular as linhas espectrais do hidrogênio. Sua ideia
foi a de que, em virtude do fato de que os físicos não sabem nada sobre o
que acontece dentro do átomo, o negócio era trabalhar com o que podia ser
observado. Com isso, começou a elaborar uma estrutura intelectual que con-
jugasse todas as variáveis quânticas. Mas Heisenberg tinha um problema sério
de alergias e, no verão de 1925, teve que ir se recuperar de um ataque de febre
do feno na ilha de Helgoland, na costa alemã do mar do Norte, lugar onde teve
um insight revelador. Inspirado em suas conversas com Bohr sobre os mistérios
do quantum, juntou as peças e criou a mecânica matricial, a primeira mecânica
quântica surgida no mundo.

A formulação matematicamente precisa da teoria quântica emergiu final-


mente como consequência de dois diferentes desenvolvimentos. O primeiro
deles derivou do princípio de correspondência de Bohr. Tinha-se aqui que
abandonar o conceito de órbita eletrônica, mas mantê-lo no limite dos
grandes números quânticos, isto é, para as grandes órbitas. Nesse último
caso, a radiação emitida – por intermédio de suas frequências e intensida-
des – propicia uma imagem das órbitas eletrônicas que deriva do que os
matemáticos denominam de expansão de Fourier da órbita. A ideia trazia
consigo a sugestão de que se deveria expressar as leis mecânicas, não por
equações para as posições e velocidades dos elétrons, mas, sim, por equações
para as frequências e amplitudes da expansão de Fourier. Esse plano pode
de fato ser posto em prática e, no verão de 1925, deu lugar ao formalismo
matemático que foi denominado mecânica das matrizes ou, para se usar uma
expressão mais geral, mecânica quântica (HEISENBERG, 1995, p. 34-35).

As matrizes, usuais na matemática, mas incomuns na física, são arran-


jos de números formando um quadrado, sendo que cada matriz representa
um atributo diferente, tais como energia, quantidade de movimento, massa,
impulso etc. Suas diagonais mostram a probabilidade de que o sistema possua
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 183

aquele valor do atributo e os elementos fora da diagonal representam a inten-


sidade das conexões não clássicas entre os valores possíveis daquele atributo.

Desse modo, a quantidade de movimento p de um elétron não é represen-


tada por um número, como na física clássica, mas por uma dessas matrizes
quadradas. O mesmo acontece com a posição x, a energia E, ou qualquer
outro atributo do sistema: são todos representados por matrizes. A evolu-
ção dessas matrizes segue uma lei especial de movimento que lembra a lei
de Newton, mas contém diferenças que lhe são peculiares. Uma grande
diferença é que, ao contrário dos números, as matrizes não são comu-
tativas. Isso significa que faz diferença a ordem em que as matrizes são
multiplicadas. Em particular, se p e x são arranjos quadrados, o produto
de p por x não é igual ao produto de x por p (HERBERT, 1989, p. 59-60).

Se as matrizes não são comutativas, isso significa que px ≠ xp, o que obri-
gava Heisenberg a introduzir um postulado para saber qual é a diferença entre
px e xp. A fim de obter um sistema de equações que levasse aos valores corretos
das frequências e das intensidades relativas das linhas espectrais, Heisenberg
concluiu que a equação px – xp = i(h/4π)1, em que 1 é a matriz unitária. O
resultado desse cálculo foi a relação de incerteza de Heisenberg exposta na
seguinte fórmula: ∆x . ∆p ≥ h/4π.
Mas o que revela a mecânica matricial desenvolvida por Heisenberg?

Para prever a intensidade de várias linhas espectrais de um átomo, ele


substituiu a ideia de Bohr de órbitas fixas dos elétrons por uma descrição
matemática delas como harmônicos de ondas estacionárias. Ele conse-
guiu ligar suas propriedades às de saltos quânticos em energia, usando
uma série de equações equivalente a séries de multiplicações (BAKER,
2015, p. 58).

Com o seu ex-aluno Pascual Jordan, Max Born, a quem Heisenberg havia
mostrado os seus cálculos, adensou as equações em formato de matriz. Os
valores na tabela ligavam energias dos elétrons com as linhas do espectro e não
eram baseados na imagem de órbitas inobserváveis de elétrons e sim em um
formalismo matemático que eliminava as representações mentais deficientes,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

184 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

segundo Heisenberg, substituindo-as pelo que ele acreditava consistir na única


percepção possível da realidade.
O uso de matrizes originou implicações para a mecânica quântica. Pelo
seu enfoque nos níveis de energia e intensidade das linhas, acabou-se por não
dizer nada sobre o elétron (Onde ele se encontra? Como se movimenta?), bem
como sobre a própria matriz (O que são seus números? Qual o seu significado
na vida real?). Tudo era muito abstrato! E, no final, a mecânica de matriz não
podia explicar algumas qualidades dos átomos simultaneamente, por exemplo,
posição e quantidade de movimento, medida de energia e intervalo de tempo.
E o que restou? A incerteza!
Consequência algébrica da mecânica matricial de Heisenberg, a incerteza
enquanto princípio, tornou-se a derrocada do determinismo clássico newto-
niano. Como vimos, a mecânica newtoniana preconizava que se conhecêsse-
mos, em um determinado instante, as posições e velocidades das partículas
que compõem um sistema qualquer, poderíamos deduzir com certeza absoluta
as posições e as velocidades em todo instante passado e no futuro. Passado e
futuro, portanto, estariam em nossas mãos e toda a realidade seria previamente
determinada. O determinismo era a “mais bem estabelecida das crenças que
por séculos, senão por milênios, havia sido o próprio fundamento do estudo
científico do mundo. ‘Uma ciência que não seja determinista não é uma ciência
em absoluto’, havia afirmado Henri Poincaré ao final de 1912” (PULLMAN,
1998, p. 293). O princípio da incerteza de Heisenberg, entretanto, quebra
o determinismo e torna impossível, por exemplo, o conhecimento preciso e
simultâneo, no ato de medição, da posição e da quantidade de movimento de
uma partícula quântica. Pode-se medir, tão acuradamente quanto se queira,
um atributo isolado de um quantum, mas essa medida inevitavelmente tornará
impreciso algum outro atributo do quantum. Os atributos quânticos parecem
estar ligados a outros atributos, pelo menos durante o ato da medição. E o
fato de estarem conjugados limita a precisão com que se pode conhecê-los.
Para construir uma base apropriada para a estrutura do átomo, seria necessário
dar uma precisão ao que se quer dizer por “posição do elétron” por meio de
um experimento cuja finalidade seria justamente a medição da “posição do
elétron”. Caso isso não ocorresse, qualquer proposição que dissesse respeito à
tal “posição do elétron” seria sem sentido. Essa questão sugere um paradoxo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 185

que envolve o dualismo onda-partícula, que a ciência empírica não dá conta


de resolver.

Quando queremos ter clareza sobre o que se deve entender pelas palavras
“posição do objeto”, por exemplo do elétron (relativamente a um dado
referencial), então é preciso especificar experimentos definidos com o
auxílio dos quais se pretenda medir a “posição do elétron”; caso contrário,
a expressão não terá nenhum significado (HEISENBERG, 1983, p. 64).

O princípio da incerteza revolve o problema da dualidade onda-partícula


ao estabelecer a impossibilidade de conhecermos simultaneamente a posi-
ção e o momentum (quantidade de movimento) de uma partícula, ou então,
a impossibilidade de conhecermos simultaneamente a medida de energia de
uma determinada quantidade e a correspondente medida do tempo (∆E . ∆t ≥
h/4π). “As relações de Heisenberg demonstram que qualquer experiência terá
um ponto cego suficientemente grande para esconder a solução do enigma
onda/partícula” (HERBERT, 1989, p. 91). Assim, o que vigora é a incerteza
sobre o que de fato é a sua realidade: onda ou partícula?
O princípio da incerteza dá-nos também a percepção de que a ênfase nos
conceitos clássicos consistia em um passo retrógrado com relação à construção
de teorias científicas adequadas à microfísica, isso porque o que rege a reali-
dade do objeto quântico é a indeterminação que lhe subjaz. As características
de incerteza, conforme vimos, abalaram os pilares do realismo e racionalismo
da física clássica e impuseram implicações filosóficas por demais importan-
tes. Isso significa que princípios como os da causalidade ou do reducionismo
desenvolvidos desde a Antiguidade foram desafiados restando a indetermina-
ção como explicação para os fenômenos quânticos. No nível quântico, sabe-se
que o conhecimento é sempre limitado. O que podemos obter em termos de
conhecimento são valores prováveis e não exatos. E as implicações filosóficas
decorrentes do indeterminismo ou incerteza quântica, segundo Silva (2012,
p. 77-82), advêm das seguintes razões: I) Ontologicamente, a realidade é fun-
damentalmente incerta; não podemos conhecer os estados quânticos porque
estes são indeterminados.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

186 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

O limite imposto pelo princípio da incerteza não depende da maneira


pela qual você tenta medir a posição ou velocidade da partícula, nem do
tipo de partícula. O princípio da incerteza de Heisenberg é uma pro-
priedade fundamental, inescapável, do mundo, e teve profundas implica-
ções na maneira como vemos o mundo (HAWKING, 2005, p. 95 apud
SILVA, 2012, p. 78).

O princípio da incerteza rompe com a ontologia materialista dado o


antirrealismo que lhe é inerente. Sobre a “objetividade” das ondas, por exem-
plo, “dificilmente se poderá chamá-las de ‘reais’, a menos que se queira mudar
o sentido do termo” (HEISENBERG, 1995, p. 101); e sobre as partículas, “a
hipótese de que as partículas são reais, no sentido da ontologia materialista,
sempre conduzirá à tentação de se considerar desvios na validade do prin-
cípio de indeterminação como ‘basicamente’ possíveis” (HEISENBERG,
1995, p. 103). Segundo o antirrealismo de Heisenberg (e também de Bohr),
o objeto quântico não tem qualquer existência independente do sujeito que
observa51; II) Epistemologicamente, o entendimento humano revela-se limi-
tado para conhecer a ordem intrínseca da natureza que se encontra velada pela
incerteza manifesta; III) Tecnologicamente, os instrumentos de medição não
são suficientemente eficientes para dar conta do desvelamento das relações
de incerteza – restaria, entretanto, que o sujeito cognoscente, como os demais
instrumentos de medida, tornasse-se complementar à mensuração, a fim de lhe
atribuir valor epistêmico, conforme pretendia Bohr; IV) Estatisticamente, os sis-
temas quânticos são complexos e não individuais. Haverá sempre um atributo
quântico ligado a outros atributos, pelo menos durante o ato da medição. Isso
favorece que as relações de incerteza sejam produtos das análises estatísticas
dos sistemas quânticos, o que está inteiramente alinhado com o pensamento
de Einstein, que insistia que a mecânica quântica não deveria ser entendida
como uma teoria sobre objetos individuais, e sim sobre ensembles estatísticos.
Se se trata de uma mecânica que lida com agrupamentos de entidades quân-
ticas, portanto com complexos, seu comportamento tem que ser estatístico,
logo, indeterminado, provável. Acrescem-se aos fatores mencionados por Silva

51 Vale destacar que esse antirrealismo de Heisenberg é aquele da interpretação de Copenhagen.


Um “segundo Heisenberg”, já mais intelectualmente independente em relação a Bohr e menos
compromissado com Copenhagen, vai se afastando desse ideário antirrealista e se tornando um
pensador mais original.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 187

(2012), V) Logicamente, o princípio da incerteza perverte o princípio do ter-


ceiro excluído (tertium non datur) da lógica clássica. Se antes a percepção de
que para a proposição só existia dois caminhos possíveis, isto é, ou era verda-
deira ou era falsa – o terceiro caminho era excluído –, aqui temos a exigência
do desenvolvimento de uma nova lógica que, diferentemente das lógicas tra-
dicional e clássica, dê conta das relações de incerteza, substituindo talvez o
conectivo “necessariamente” por “possivelmente” aos moldes da lógica modal
– se é que ela dá conta da análise das proposições que envolvem a realidade
quântica.

Na teoria quântica, o “princípio do terço excluído” precisa ser modificado.


Poderemos, todavia, adotar uma atitude contrária a qualquer alteração
nesse princípio fundamental e argumentar, de pronto, que esse princípio
é implicitamente admitido na linguagem comum e que é nessa lingua-
gem que devemos nos expressar, mesmo que venhamos falar da eventual
modificação da lógica que a rege. Seria, portanto, mergulhar na contradi-
ção, pretender descrever, na linguagem comum, um esquema lógico que a
ela não se aplicasse (HEISENBERG, 1995, p. 137).

VI) Por fim, linguisticamente, o princípio da incerteza realoca um pro-


blema que é crucial para a física como um todo: como é possível expressar
a “realidade quântica” por vias da linguagem ordinária? Se a formalização
matemática parece suficiente para a descrição de fenômenos quânticos para
a comunidade dos físicos, isso não é uma verdade quando se fala no entendi-
mento do cidadão comum. Dessa forma, princípios como os da incerteza, no
campo da física, sofrem de restrições linguísticas na transliteração para a lin-
guagem ordinária. Como transpor equações matemáticas para o uso cotidiano?
“Aqui não se tem, de começo, nenhum critério simples para se correlacionar os
símbolos matemáticos aos conceitos da linguagem cotidiana; e a única coisa
que sabemos, como ponto de partida, é que os conceitos comuns não são apli-
cáveis ao estudo das estruturas atômicas” (HEISENBERG, 1995, p. 134). Isso
tem como reflexo o distanciamento, as controvérsias e, às vezes, até a rejeição
das ciências naturais e exatas pelo cidadão comum, em virtude do fato da difi-
culdade de comunicação de descrições da realidade em linguagem que seja
inteligível ao grande público. O que é, afinal, o átomo sobre o qual, e cujo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

188 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

comportamento incerto, os físicos querem inferir? Como elucidá-lo servindo-


-se de uma clareza que se faz necessária? Como torná-lo inteligível para os
simples mortais?

[...] Os problemas linguísticos são, nesse caso, realmente sérios. Nós, afi-
nal, desejamos poder falar – de alguma maneira – sobre a estrutura dos
átomos, digamos, e não somente acerca de “fatos”, esses últimos sendo, por
exemplo, manchas negras em uma chapa fotográfica ou gotículas d’água
em uma câmara de Wilson. Mas não teremos como descrever a estrutura
dos átomos na linguagem comum (HEISENBERG, 1995, p. 135).

Vemos, portanto, que o princípio da incerteza está envolvido com uma


realidade que não pode ser tratada em ato, aos moldes de Aristóteles. A única
opção que nos resta seria tratar essa realidade do ponto de vista da potência, o
que foi feito pelo próprio Heisenberg, cuja explanação foge dos propósitos do
presente tópico. Antes mesmo que os problemas da mecânica matricial e sua
consequente concepção de incerteza fossem resolvidos, tal mecânica foi supe-
rada por uma nova teoria. O físico E. Schrödinger apresentou uma explicação
concorrente para as energias dos elétrons baseada em suas funções de ondas.

9.3 E. Schrödinger: função e colapso de ondas


Como se viu, no início do século XX o tema da dualidade onda-partícula
estava em voga e já havia ocupado teorizações por parte de Einstein, Bohr,
de Broglie e Heisenberg, por exemplo. No fim de janeiro de 1926, Erwin
Schrödinger (1887-1961) conseguiu descrever matematicamente as energias
dos átomos ao tratá-los como ondas e não como partículas. Em uma série de
quatro artigos, ele inicia representando a substância quântica por meio de uma
forma ondulatória e formula as leis quânticas do movimento às quais tal forma
ondulatória deveria obedecer. Isso foi feito através da equação (denominada
equação de Schrödinger) que descreve a chance de uma partícula se comportar
como onda em determinado lugar. Previu, com isso, os comprimentos de onda
das linhas espectrais do hidrogênio. No segundo artigo, Schrödinger propôs
aplicar sua teoria a sistemas atômicos básicos, a exemplo da molécula diatô-
mica. No terceiro artigo, “descobriu, para sua surpresa e satisfação, que seu
próprio formalismo e o cálculo matricial de Heisenberg são matematicamente
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 189

equivalentes, apesar das disparidades óbvias em suas suposições básicas, apa-


rato matemático e teor geral” ( JAMMER, 1974, p. 22). E no quarto artigo,
incorporou a dependência do tempo, mostrando como uma função de onda
evoluiria.
A função de onda, apesar de sua intuitividade para aqueles que já estão
habituados com a teoria ondulatória clássica e de ter se mostrado um ótimo
expediente para explicar fenômenos quânticos como o comprimento das linhas
espectrais do hidrogênio, ainda assim, trata-se de um expediente probabilístico,
e deixa lacunas quanto ao que de fato descobrimos acerca do mundo real. A
onda é um simples instrumento do cálculo e não uma onda real localizada em
algum lugar do espaço, conforme asseverava von Neumann, que não associava
a função de onda a uma realidade. “Funções de onda são difíceis de captar, por-
que não as testemunhamos em nossa vivência pessoal e não é fácil de visualizá-
-las e interpretá-las. [...] Ainda havia um oceano entre a descrição matemática
de uma onda-partícula e a entidade real, um elétron ou um fóton, por exem-
plo” (BAKER, 2015, p. 62). Diferentemente da física clássica que nos permite
calcular a localização da partícula e a direção do seu movimento, por exemplo,
na mecânica ondulatória só podemos dar a probabilidade da localização do
elétron em virtude da amplitude da onda – quanto maior for a amplitude da
função de onda, maior a probabilidade de que um elétron esteja naquele lugar.

Apresentamos uma descrição completa e contínua no espaço e no tempo


sem quaisquer lacunas, conforme com o ideal clássico – uma descrição de
algo. Mas não afirmamos que este “algo” são os fatos observados ou obser-
váveis, e ainda menos afirmamos que desta forma conseguimos descrever
o que é realmente a Natureza (matéria, radiação, etc.). De fato, utilizamos
esta imagem (a referida imagem da onda) sabendo perfeitamente que não
é nenhum dos aspectos (SCHRÖDINGER, 1996, p. 124).

Os físicos utilizam a função de onda para calcular a probabilidade de que


certos valores de um atributo surjam na medição. Por lidar com a probabilidade,
tal função possui um significado estatístico evidente, relevante para o estudo
do comportamento de muitos objetos quânticos, bem como de um objeto
quântico isolado, pois se todos os objetos quânticos são fisicamente idênticos,
a distinção entre descrição estatística e descrição individual desaparece. Dessa
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

190 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

forma, sobressai-se na mecânica ondulatória uma descrição que é estatística e,


por se tratar de um recurso matemático de localização de algo que se manifesta
(o elétron na mais alta amplitude da onda, por exemplo), não diz nada acerca
do real. Assim, qual seria a vantagem da mecânica ondulatória, uma vez que
esta não nos descreve fatos observáveis ou o “aspecto real da Natureza”?

Bem, na verdade crê-se que nos fornece informações acerca de fatos obser-
vados e da sua dependência mútua. Existe uma perspectiva otimista,
nomeadamente a que defende que esta perspectiva nos fornece todas as
informações que se podem obter a partir dos fatos observáveis e da sua
interdependência. Mas esta perspectiva – que pode estar ou não correta –
é otimista apenas na medida em que serve para lisonjear o nosso orgulho
por possuirmos, em princípio, todas as informações que se podem obter.
É pessimista no que diz respeito a um outro aspecto, talvez se pudesse
mesmo afirmar que é epistemologicamente pessimista. Porque as infor-
mações que obtemos relativamente à dependência causal dos fatos observáveis é
incompleta. (O problema tinha de surgir algures!). As lacunas, eliminadas
da imagem das ondas, passaram para a ligação entre a imagem das ondas e
os fatos observáveis. Estes últimos não estão em correspondência unívoca
com a imagem. Continua a existir muita ambiguidade e, tal como afirmei,
alguns pessimistas otimistas ou otimista pessimistas acreditam que esta
ambiguidade é essencial, não pode ser evitada (SCHRÖDINGER, 1996,
p. 124-125).

Essa citação é parte do texto O Expediente da Mecânica Ondulatória que


se encontra no livro Ciência e Humanismo de Schrödinger. Depois de explicar
os usos e sentidos da mecânica ondulatória desde os estudos de Christiaan
Huygens (1629-1695), Schrödinger termina por assumir que “temos que
desistir de estabelecer, até à origem, a história de uma partícula que se apre-
senta na placa [...]. Não podemos dizer onde é que a partícula se encontrava antes
de atingir a placa. Não podemos dizer através de qual orifício é que ela sur-
giu” (SCHRÖDINGER, 1996, p. 129). Afirma que essa é uma lacuna na
descrição dos fenômenos que são observáveis e aponta que para resolver o
referido problema “temos de pensar em termos de ondas esféricas emitidas
pela fonte, em partes de cada frente de onda que passam através de ambos
os orifícios e que produzem o nosso modelo de interferência na placa – mas
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 191

esse modelo apresenta-se à observação sob a forma de partículas únicas”


(SCHRÖDINGER, 1996, p. 129). Dessa forma, Schrödinger antecipa uma
das estranhezas, ao nosso ver, que se manifesta nos fenômenos quânticos: se,
enquanto não medido, o objeto quântico propaga-se como onda, mas quando
medido é observado como partícula, o que aconteceu nessa transição? Como
e quando se dá o colapso da função ondulatória? Quem é responsável pelo
colapso da onda quântica? Como a mecânica quântica explica esse fato?
A questão do colapso da onda está intimamente relacionada com a ques-
tão da medição quântica. Existem concepções diversas sobre a medição quân-
tica que foram desenvolvidas por físicos como Bohr, Bohm e pelo matemático
von Neumann, por exemplo. A interpretação que aqui exploraremos, a realista
ondulatória, diz que um objeto quântico pode estar localizado em dois lugares
diferentes ao mesmo tempo. É como se antes da observação ele estivesse divi-
dido simetricamente em dois, apesar de sempre ser observado como um só. A
luz, por exemplo, é onda eletromagnética, mas, na detecção, se apresenta como
algo pontual, como um fóton. Quando a detectamos, a onda quântica colapsa
deixando uma forma: um pontinho na placa detectora. Segundo tal interpreta-
ção, a luz não faz isso para alterar seu comportamento, mas porque realmente
consiste nas duas coisas. Para explicar como isso se dá, tomaremos de emprés-
timo duas figuras de Pessoa Jr. (2007-11). A primeira figura, conforme vimos
anteriormente, mostra-nos a experiência de um objeto quântico – um elétron
ou um fóton, por exemplo – que passa por uma fenda e se propaga no formato
de uma onda circular. Nesse caso, o objeto quântico estaria espalhado, segundo
a presente interpretação.

Fonte: PESSOA JR. (2007-11)


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

192 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Entretanto, quando se coloca uma placa de detecção – uma tela de fós-


foro ou uma tela de cintilação, por exemplo –, o que o instrumento capta, ou
o que observamos, é um ponto (P). O objeto quântico é captado como uma
partícula e a onda que estava espalhada entra em colapso, desaparece.

Fonte: Pessoa Jr. (2007-11)

Segundo Pessoa Jr. (2007-11, p. 8),

Essa ideia de que “uma onda real vai se propagando por aí e, quando é
observada (medida), sofre um colapso” nunca foi muito bem aceita entre
os físicos, pela seguinte razão. Considere a região em torno do ponto Q,
na figura. Logo antes da detecção em P, havia uma onda em torno de Q,
mas com a detecção em P, a onda em Q desaparece instantaneamente.
P e Q podem estar separados a uma distância imensa, como a distância
entre a Terra e o Sol: como é que uma medição na Terra (P) poderia afetar
instantaneamente uma onda no Sol (Q)?

O que ocorreria aqui é um exemplo de uma “ação à distância”, “não-local”,


o que, segundo o autor, os físicos normalmente “odeiam”, gostando, entretanto,
de “ação por contato” ou “localidade”. Veremos, entretanto, que teoremas inte-
ressantes na física quântica, como é o caso do teorema de John Bell, preconi-
zam uma realidade não-local, admitindo, portanto, influências de velocidades
acima da luz. Tal teorema trata-se, por um lado, de uma resposta a todos os
modelos da realidade quântica, inclusive a interpretação de Copenhague, bem
como resolve um problema imposto pela formalização matemática de von
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 193

Neumann, que previa que, se a mecânica quântica estivesse correta, não haveria
de conceber a existência de objetos comuns que combinam entre si de maneira
razoável. O teorema de Bell admite a interconectividade que é comprovada
pela experiência Einstein, Podolsky e Rosen (EPR), que veremos adiante.
Sobre von Neumann, gostaríamos de fazer um adendo para apresentar,
em linhas gerais, como ele trata da questão do colapso da função de onda e
como seu tratamento escancarou as portas para as mais estranhas concepções,
que propõem seus fundamentos na teoria quântica, mas que, ao fim e ao cabo,
introduzem esse campo da física no mais profundo pântano do chamado mis-
ticismo quântico. Nesse caso, referimo-nos às chamadas interpretações ondu-
latórias subjetivistas.
Conhecido mundialmente por ter participado de grandes e importan-
tes projetos no século XX (concepção de computador programável, teoria dos
jogos estratégicos, primeiros robôs, desenvolvimento da bomba atômica etc.)
o matemático húngaro John von Neumann (1903-1957), juntamente com
Garrett Birkhoff (1911-1996), propôs a ideia da lógica quântica, mas se tornou
notável pelo seu livro, a bíblia quântica, Mathematical Foundations of Quantum
Mechanics.

Ao terminar a década de 20, os físicos haviam construído uma teoria


quântica, que satisfazia as suas necessidades do dia-a-dia, utilizando
uma grosseira estrutura matemática que organizava os fatos quânticos.
Nesse ponto, von Neumann entrou em cena, dando uma forma rigorosa à
crua teoria dos físicos, colocando a teoria quântica num elegante edifício
matemático denominado “espaço de Hilbert”, onde ela reside até hoje, e
conferindo à recém-nascida teoria física o selo de aprovação dos matemá-
ticos (HERBERT, 1989, p. 41).

Sobre o colapso da função ondulatória, von Neumann estava curioso em


encontrar o exato local de sua ocorrência, algo que era essencial para a sua
interpretação da mecânica quântica. Examinou detidamente o processo de
medida, dividiu o ato de medir em pequenos passos, formou uma cadeia que
ia desde a fonte do objeto quântico até a consciência do observador onde, segundo
ele, se dá o registro final da medição. Nesse processo, von Neumann procurou
a localização natural onde a cadeia pudesse interromper, isto é, onde de fato
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

194 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

se dava o colapso da função ondulatória. Descobriu, entretanto, que é possível


seccionar a cadeia e incluir o colapso em qualquer ponto que se deseje, isso
porque os resultados não nos fornecem quaisquer indícios sobre onde se loca-
liza a divisão entre o sistema e o instrumento de medição. Com isso, ele acabou
também por inaugurar a noção de “paralelismo psicofísico”, que preconiza que
o corte entre sujeito clássico e objeto quântico pode ser traçado em qualquer
ponto da cadeia ligando o objeto ao observador.

Von Neumann não pôde encontrar um lugar natural para colocar o seu
“milagre”. Tudo, afinal de contas é feito de átomos: não há nada de santo
num instrumento de medida. Seguindo a cadeia que tem o seu nome,
impulsionado por sua própria lógica, em desespero von Neumann agar-
rou-se ao seu único elo estranho: o processo pelo qual um sinal físico
no cérebro se transforma numa experiência da mente humana. Esse é o
único processo em toda a cadeia de von Neumann que não consiste de
meras moléculas em movimento. Relutantemente, von Neumann chegou
à conclusão de que a consciência humana é o local do colapso da função ondu-
latória (HERBERT, 1989, p. 181, grifos nossos).

Na verdade, a ideia de que a consciência humana é o local da função ondu-


latória, foi popularizada Fritz London e Edmond Bauer, em 1939, pois von
Neumann não havia incluído a consciência no observador na cadeia de medi-
ção. Segundo London e Bauer (1939, p. 42 apud WHEELER; ZUREK, 1983,
p. 259),

O observador possui uma impressão completamente diferente. Para ele, é


só o objeto x e o aparato y, que pertencem ao mundo externo, ao que ele
chama de “objetividade”. Por contraste, ele possui relações consigo mesmo
de uma característica muito especial. Ele possui uma característica e uma
faculdade bastante familiar, a qual nós podemos chamar de “faculdade
de introspecção”. Ele pode rastrear o caminho do seu próprio estado a
cada momento. Em virtude desse “conhecimento imanente” ele atribui a
si mesmo o direito de criar a sua própria objetividade – isto é, de cortar a
cadeia de correlações estatísticas (...) declarando “eu estou [nesse] estado”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 195

Esse subjetivismo travestido de objetividade é expressão de mais uma


manifestação de antirrealismo na mecânica quântica, uma vez que tem como
consequência o fato de que, no mundo criado pela consciência, as coisas não
existem a não ser que alguma mente as perceba e, inclusive, intervenha (“corte
a cadeia”) sobre elas. Como dissemos, essa conclusão de von Neumann – e a
consequente difusão por London e Bauer –, abre as portas para as mais diver-
sas formas de misticismo quântico que, por meio de um subjetivismo aquém da
própria ciência, pretende explicar a natureza da realidade colocando a mente
humana como protagonista não somente da explicação dos fenômenos quânti-
cos, mas também como responsável pela existência desses mesmos fenômenos,
uma vez que não é possível a existência da natureza independente do sujeito.
Há, contudo, uma espécie de misticismo, “conciliador” com a ciência, e que
pode ter tido a sua origem justamente na interpretação de Copenhague da
mecânica quântica: “mais obscura e mística, endossada pela maioria dos físicos
de hoje” (HERBERT, 1989, p. 12).

9.4 A Interpretação de complementaridade


Viu-se surgir nos anos de 1926 e 1927 duas interpretações que eram
compatíveis entre si em termos de descrição dos fenômenos quânticos, mas
concorrentes em popularidade entre os físicos da época. A mecânica matricial
de Heisenberg demorou a ganhar impulso e levantou muitas controversas, pois
se encontrava numa linguagem matemática com a qual os físicos não estavam
habituados. Ela explicava muito bem fenômenos descontínuos, de movimen-
tos discretos de dimensão finita, e asseverava que tanto faz usar uma represen-
tação em termos de partículas quanto ondulatória, visto que ambas fornecem
as mesmas previsões experimentais. Por outro lado, a mecânica ondulatória
de Schrödinger, justamente por ser ondulatória – baseada na noção de conti-
nuidade, de transição gradual –, ganhou rapidamente simpatia entre os físicos
porque era baseada no recurso de equações diferenciais, muito comuns entre
eles. Por ser semelhante à mecânica clássica dos fluidos, a imagem era facil-
mente visualizável e sugestiva.

Aqueles que em seu desejo pela continuidade odiavam renunciar à


máxima clássica natura a non facit saltus aclamaram Schrödinger como
o mensageiro de uma nova aurora. De fato, em poucos meses, a teoria
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

196 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

de Schrödinger cativou o mundo da física, pois parecia prometer a “rea-


lização daquele desejo irreprimível e por longo tempo malogrado” nas
palavras de K. K. Darrow [...]. Planck declarou: “Estou lendo-a com a
sensação de uma criança que monta um quebra-cabeças”, e Sommerfeld
ficou exultante. Assim, naturalmente, estava Einstein que, em princípios
de 1920, escrevera a Bohr, “Eu não acredito que alguém vai resolver os
quanta abandonando o continuum” (HOLTON, 1984, p. 58).

Os próprios Heisenberg e Schrödinger marcaram suas posições quanto


às impressões que tiveram a respeito das resultantes físicas e teóricas das inter-
pretações uns dos outros.

Em uma carta a Pauli, ele [Heisenberg] escreveu: “Quanto mais eu penso


sobre a parte física da teoria de Schrödinger, mais detestável (desto abs-
cheulicher) me parece”. Schrödinger não foi menos franco sobre a teo-
ria de Heisenberg quando disse: “... fiquei desencorajado (abgeschreckt),
se não repugnado (abgestoβen) pelo que me pareceu um método bas-
tante difícil de álgebra transcendental, desafiando qualquer visualização
(Anschaulichkeit) ( JAMMER, 1966, p. 272 apud HOLTON, 1984, p. 58).

Bohr, por sua vez, gostou da teoria de Heisenberg, pois esta se relacionou
bem com suas ideias sobre saltos quânticos discretos e com a sua noção de
complementaridade.
As posições de Heisenberg e Schrödinger, bem como dos partidários
que cada um havia de ganhar em apoio, na verdade, refletiam a realidade de
uma época, onde a física quântica nascente debatia-se com os problemas da
representação clássica e lutava para fixar uma identidade própria – a despeito
dos seus muitos críticos, como era o caso de Einstein, que também fora um
dos seus fundadores. Holton (1984, p- 49-50) resume muito bem o estado de
coisas que, naquela época, representava as diferenças básicas das descrições
clássica e quântica da física:
1) Na física clássica, o movimento dos planetas ou de objetos suficien-
temente grandes podem ser explicados, descritos e definidos com
pequena interferência do observador e com pequena incerteza. Na
física quântica, a descrição do estado do sistema não pode ser feita sem a
influência do observador. “A razão de tal situação é simples: os átomos,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 197

tanto no sistema a ser observado quanto no instrumento utilizado


para fazer a observação, nunca são arbitrariamente precisos em suas
reações” (HOLTON, 1984, p. 50). Vimos sobre isso quando tratamos
do princípio da incerteza de Heisenberg;
2) Um sistema clássico pode ser considerado fechado, apesar de estar
sendo observado, visto que o fluxo de energia para dentro e para fora
é insignificante comparado com as trocas de energia durante as inte-
rações das partes do mesmo sistema. Na descrição quântica, por outro
lado, não se pode negar a interação entre o sujeito da observação (ope-
ração ou equipamentos utilizados para a observação) com o próprio
objeto (sistema a ser observado);
3) No sistema clássico, temos noções de causalidade e coordenação nor-
mal espaço-tempo que podem coexistir. No caso do sistema quântico,
não existe corrente de causalidade por se tratar de uma física indeter-
minista e probabilística. “Se submetermos o ‘objeto’ a observações de
espaço-tempo, ele não mais realizará sua própria sequência de causa-
lidade probabilisticamente” (HOLTON, 1984, p. 50);
4) Na física clássica, questões como a da natureza da luz, fenômenos de
interferência no vácuo e as propriedades óticas nos meios materiais são
explicados pela teoria eletromagnética e pelo princípio da superposi-
ção teórica da onda. Por outro lado, na física quântica, “a conservação
de energia e movimentos realizados durante a interação entre radia-
ção e matéria, como evidente nos efeitos fotoelétricos e de Compton,
encontram sua expressão adequada exatamente à luz da ideia quântica
difundida por Einstein” (HOLTON, 1984, p. 50).
Por trás dessas posições antagônicas, numa terminologia kuhniana, estava
o questionamento a respeito da incomensurabilidade dos paradigmas. O para-
digma quântico impôs uma revolução que requer a revogação do paradigma
clássico? Ou entre as posições paradoxais uma seria de alguma forma subordi-
nada ou dissolvida na outra?
O ponto fulcral que marca a diferença entre essas duas representações da
física e que requeria uma resposta – que ocupou longos anos da vida de Bohr
– são as antinomias existentes entre duas posições igualmente experenciáveis,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

198 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

lógicas ou coerentes, mas que chegam a conclusões diametralmente opostas:


continuidade vs. descontinuidade, causalidade vs. indeterminação, localidade
vs. não-localidade, ação por contato vs. ação à distância. Foi justamente ten-
tando conciliar essas posições antitéticas que Bohr chegou na sua interpretação
de complementaridade, também chamada de interpretação de Copenhague.
Foi em setembro de 1927, em Como, na Itália, durante o Congresso
Internacional de Física realizado em comemoração ao centenário da morte de
Alessandro Volta (1745-1827), que Niels Bohr, pela primeira vez, apresentou
ao público a sua formulação da complementaridade. Estava reunida a maioria
dos fundadores da teoria quântica, exceto Einstein e Ehrenfest, que se encon-
trariam com Bohr no 5º Congresso de Solvay, em Bruxelas, no mês seguinte,
onde sua palestra seria repetida. Em uma palestra intitulada O Postulado
Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria Atômica, Bohr faz, primeira-
mente, um apanhado do estado da arte da teoria quântica tratando dos seus
problemas contemporâneos – a exemplo do princípio da incerteza. Trata tam-
bém do desenvolvimento da mecânica matricial, da mecânica ondulatória, dos
problemas da interpretação de Schrödinger, dos estados estacionários de um
átomo e sobre as perspectivas futuras da teoria quântica.
Em segundo lugar, Bohr trata de todos os temas resumidos por Holton
(1984) nos itens precedentes, enfatizando as diferenças básicas das descrições
clássica e quântica da física: discorre sobre a característica de descontinuidade
dos processos quânticos, estranha às teorias clássicas; trata da renúncia que o
postulado quântico faz a respeito da coordenação espaço-temporal de proces-
sos atômicos; aborda a interação entre o agente de observação e os fenômenos
atômicos; expressa seu antirrealismo ao afirmar que não faz sentido atribuir
realidade ao objeto físico independente de um observador: “[...] uma realidade
independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenô-
menos, nem aos agentes da observação” (BOHR, 2000, p. 136); discute sobre
a irracionalidade inerente ao postulado quântico quando da possibilidade do
corte entre o sujeito e o objeto quântico em qualquer ponto da cadeia que une
os dois; discorre sobre sistema físico que requer a eliminação de todos os dis-
túrbios externos, nesse caso, sobre a equação de Schrödinger ou outro tipo de
evolução unitária que se aplica a sistemas fechados; trata também do sistema
em que há uma interação com o aparelho de medição, onde não se aplica uma
equação determinista e sim um postulado de projeção: “[...] De modo a tornar
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 199

possível uma observação, permitimos certas interações com agentes apropria-


dos de medição que não pertencem ao sistema, então uma definição sem ambi-
guidades do estado do sistema naturalmente não é mais possível, e não se pode
falar em causalidade no sentido ordinário da palavra” (BOHR, 2000, p. 137).
No entanto, para os nossos propósitos, interessa-nos como ele introduz a sua
noção de complementaridade. E é aqui Bohr introduz o seu primeiro enun-
ciado da complementaridade:

A própria natureza da teoria quântica nos força assim a considerar a coor-


denação espaço-temporal e a asserção da causalidade, cuja união carac-
teriza as teorias clássicas, como aspectos complementares, mas exclusivos
da descrição, simbolizando a idealização da observação e da definição,
respectivamente (BOHR, 2000, p. 137).

Trata-se de um enunciado que envolve o primeiro tipo de complemen-


taridade de Bohr entre um par de características que são consistentes na física
clássica, a saber, coordenação espaço-temporal e causalidade – que nessa citação
deve ser entendida como “determinismo” – ou entre a observação e a defini-
ção. “De fato, na descrição de fenômenos atômicos, o postulado quântico nos
apresenta a tarefa de desenvolver uma teoria da ‘complementaridade’, cuja con-
sistência pode ser avaliada apenas pesando-se as possibilidades de definição e
observação” (BOHR, 2000, p. 137).

Um sistema isolado conserva energia e momento, e portanto pode-se


dizer que satisfaz a causalidade. Como, porém, ele não pode ser observado,
não é possível associar uma posição espacial e um instante temporal a ele.
Por outro lado, ao ser observado, um sistema passa a ter uma coordenação
espaço-temporal (dada pelo resultado da medição), mas seu estado (após a
redução) não evoluiu a partir do estado anterior de acordo com a lei da
causalidade (ou seja, de maneira determinista) (PESSOA JR., 2019, p.
94).

Essa primeira formulação da complementaridade, contudo, foi abando-


nada por Bohr, visto que para uma posição antirrealista tal como era a sua,
essa noção fazia uma distinção entre um átomo enquanto existente e o mesmo
átomo enquanto conhecido, o que não fazia sentido. “Apenas de um ponto
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

200 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

de vista realista é possível dar sentido a este 1º tipo de complementaridade”


(PESSOA JR., 2019, p. 94), o que não era o caso da interpretação de Bohr.
Um segundo tipo de complementaridade é apresentado por Bohr e
envolve a questão da complementaridade entre partícula e onda. Esse tipo de
complementaridade ocorre a contragosto da física clássica, onde onda e partí-
cula são elementos mutuamente excludentes. Bohr afirma:

O problema da natureza dos constituintes da matéria nos apresenta uma


situação análoga. A individualidade dos corpúsculos elétricos elementares
nos é imposta pela evidência geral. Contudo, experiência recente, sobre-
tudo a descoberta da reflexão seletiva de elétrons por cristais metálicos,
requer o uso do princípio de superposição da teoria ondulatória, em con-
formidade com as ideias originais de L. de Broglie. Exatamente como no
caso da luz, temos consequentemente, no caso da natureza da matéria,
enquanto aderirmos a conceitos clássicos, que enfrentar um dilema inevi-
tável que tem que ser considerado como a própria expressão da evidência
experimental. De fato, estamos aqui novamente tratando não de repre-
sentações contraditórias dos fenômenos, mas representações complemen-
tares, que somente juntas oferecem uma generalização natural do modo
clássico de descrição (BOHR, 2000, p. 138).

Para Bohr, os aspectos ondulatórios (princípio de superposição na teo-


ria ondulatória) e corpusculares (conservação de energia e momento) de um
objeto quântico, embora mutuamente excludentes, são complementares. A
definição pelo aspecto onda ou partícula dependerá do tipo de experimento
levado a cabo pelo observador: se ele optar pela experiência da dupla fenda, por
exemplo, evidenciará a natureza ondulatória; se a experiência for a do efeito
fotoelétrico, por outro lado, a natureza se evidenciará corpuscular. Essa duali-
dade constitui uma descrição “exaustiva” do objeto quântico, pois esgotam suas
possibilidades de descrição, ou seja, não haveria uma maneira mais completa
de representar uma entidade quântica. O que Bohr faz é associar o aspecto
ondulatório à definição (a função de onda ao não observado). Posteriormente,
ele passará a definir o fenômeno ondulatório no âmbito da observação (quando
ocorre interferência), assim como o fenômeno corpuscular (quando é possível
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 201

inferir trajetórias) (PESSOA JR., 2000)52. O que ficará resolvido é que, para
sistemas existentes na escala atômica, não existe um valor predeterminado para
as grandezas físicas, são as medições que determinam o que deve aparecer
durante eventos de observação.
O terceiro tipo de complementaridade é entre os observáveis incompatíveis,
como é o caso da posição e do movimento. Segundo Bohr (2000, p. 139),

As dificuldades que a descrição espaço-temporal causal enfrenta na teo-


ria quântica, e que têm sido assunto de repetidas discussões, estão agora
colocadas em primeiro plano pelo recente desenvolvimento de métodos
simbólicos. Uma contribuição importante para o problema de uma apli-
cação consistente destes métodos foi recentemente feita por Heisenberg.
Particularmente, ele salientou a peculiar incerteza recíproca que afeta
todas as medições de quantidades atômicas. Antes de entrarmos em seus
resultados, será vantajoso mostrar como a natureza complementar da
descrição que aparece nesta incerteza é inevitável já em uma análise dos
conceitos mais elementares usados na interpretação da experiência.

Vimos que o princípio da incerteza de Heisenberg preconizava a impos-


sibilidade de conhecimento preciso e concomitante da posição e da quanti-
dade de movimento de uma partícula no ato de uma medição e que, para
Heisenberg, tanto faz usar a representação corpuscular ou ondulatória, pois
ambas fornecem as mesmas previsões experimentais. O terceiro tipo de com-
plementaridade proposto por Bohr incorporou a física de Heisenberg à sua
como sinônimo de incerteza. Aqui a complementaridade se dá por meio da
tese de que duas quantidades conjugadas são complementares entre si no sen-
tido de que ambas são mutuamente exclusivas, uma vez que a determinação
mais precisa do valor de uma delas resulta em maior incerteza com respeito à
quantidade complementar, mas juntas exaurem a descrição do objeto atômico.
Somente de acordo com o experimento podemos usar ou uma descrição cor-
puscular ou uma ondulatória, mas nunca ambas ao mesmo tempo. Segundo
Bohr, o uso de um quadro corpuscular ou ondulatório depende do experimento
em questão e um “fenômeno” é a descrição daquilo que deve ser observado e

52 Nota 10 da tradução de: BOHR, N. (1928). O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento


da Teoria Atômica. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr. In: Fundamentos de Física I – Simpósio David
Bohm. Org. O. Pessoa Jr. São Paulo: Livraria da Física, 2000. p. 135-159.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

202 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

do equipamento usado para obter a observação, já que são complementares. O


desmembramento das representações é meramente um sinal do fato de que,
na linguagem normal a nós disponível para comunicarmos os resultados dos
nossos experimentos, só é possível expressar a unidade da natureza através de
um modelo complementar de descrição.

O que Bohr estava mostrando, em 1927, era a descoberta curiosa de que


no domínio atômico, a única maneira pela qual o observador (incluindo
seu equipamento) podia não ser envolvido era se ele não observasse nada.
Tão logo monta seu equipamento de observação, o sistema que escolheu
para a observação e os instrumentos de medida para realizar o traba-
lho formam um todo inseparável. Por isso, os resultados dependem em
grande parte do equipamento (HOLTON, 1984, p. 51).

Resumidamente, essa noção de complementaridade afirma que, em certo


sentido, o átomo não medido não é real: seus atributos são criados ou definidos
no ato da medição.

Quando você pergunta: “O que é a luz?” a resposta é: o observador, suas


variadas peças e tipos de equipamento, seus experimentos, suas teorias e
modelos de interpretação, e tudo o mais que encha uma sala que, de outra
forma, estaria vazia quando se faz com que a lâmpada se mantenha acesa.
Tudo isso, junto, é luz (HOLTON, 1984, p. 52).

Esse tipo de interpretação é característica de um típico antirrealismo pro-


fessado por Bohr53 e Heisenberg, que sustentam que o objeto não tem qualquer
existência independente do sujeito que o observa. O caso da luz é um exemplo
típico do que aqui se afirma: mesmo que existam a sala, o equipamento – com
as suas várias peças e tipos –, teorias, modelos e tudo mais que pudesse encher a
sala, ainda assim, sem a existência do sujeito que observa, que é complementar a
tudo o mais, a existência do objeto luz, definitivamente, estaria comprometida.
Os desdobramentos filosóficos dessa noção de complementaridade, por-
tanto, encaminham-se por três vias: 1º) professa um tipo de antirrealismo onde

53 No caso de Bohr, o antirrealismo vem seguido de um fundo positivista por depositar no ins-
trumento de medida a inteira confiança no deciframento da realidade, isto é, por sacralizar os
instrumentos de medida.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 203

palavras como “partícula” ou “onda” não designam nada a respeito de objetos


materiais ou propriedades materiais de tais objetos, isto é, não têm status onto-
lógico, são apenas descrições de certos experimentos; 2º) sacraliza os instru-
mentos de medição a ponto de fazer com que o ato de observação e a figura do
observador se tornem parte integral do próprio instrumento, isto é, perverte
a concepção dita científica da dissociação entre sujeito, objeto e instrumentos
científicos, além de tornar a medição o alfa e o ômega do conhecimento, já
que não há nada observado além da própria observação; 3º) compromete a
noção de “objetividade científica”, já que o fundamento do conhecimento cien-
tífico se desloca do protagonismo do “objeto” para aquele do “sujeito”. Aliás,
a distinção obsoleta entre sujeito e objeto já não é mais válida na visão dos
complementaristas54.
Segundo Schrödinger (1996, p. 131), o que Bohr e Heisenberg “querem
dizer é que as descobertas recentes na física fizeram avançar o limite miste-
rioso entre o sujeito e o objeto, e que assim verificou que esse limite não era, de
todo, um limite preciso”. Bohr, por outro lado, salienta sua esperança de que
“a ideia de complementaridade seja adequada para caracterizar a situação, que
traz uma analogia profunda com a dificuldade geral na formação de ideias
humanas, inerente na distinção entre sujeito e objeto” (BOHR, 2000, p. 159).
Contudo, a ideia de complementaridade, apesar de constituir fundamento para
a linha ortodoxa da teoria quântica, ainda assim não deixou de constituir-se em
objeto de crítica de muitos dos seus contemporâneos, bem como de estudiosos
recentes.

[...] Pode-se dizer que o conceito de complementaridade, introduzido por


Bohr na interpretação da teoria quântica, veio encorajar os físicos a uti-
lizar uma linguagem ambígua ao invés de desprovida de ambiguidades, a

54 Mais tarde, já em 1955, quando Bohr profere um discurso numa reunião da Real Academia
Dinamarquesa de Ciência, em Copenhague, ele tenta se defender de tal acusação. Segundo ele,
“em vista da influência da concepção mecanicista da natureza no pensamento filosófico, é com-
preensível que às vezes se tenha visto na noção de complementariedade uma referência ao obser-
vador subjetivo, incompatível com a objetividade da descrição científica [...]. Na física quântica,
como vimos, a explicação do funcionamento dos instrumentos de medida é indispensável à
definição dos fenômenos, e devemos distinguir entre o sujeito e o objeto, por assim dizer, de tal
maneira que cada caso isolado assegure a aplicação inambígua dos conceitos físicos elementares
empregados da descrição. Longe de conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a
noção de complementariedade aponta para as condições lógicas da descrição e da compreensão
da experiência na física atômica” (BOHR, 1995, p. 114-115).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

204 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

fazer uso de conceitos clássicos, de maneira muito vaga, em conformidade


com o princípio de indeterminação, a aplicar em alternância conceitos
clássicos distintos que, usados simultaneamente, levariam a contradições
(HEISENBERG, 1995, p. 135).

Segundo Bunge (2000, p. 237), ao olharmos para a concepção de comple-


mentaridade, vemos que ela “não é uma doutrina física, mas filosófica, porque
não se refere à matéria em movimento, mas aos conceitos e suas verbalizações”.
Ainda assim, o mérito de Bohr está, ao nosso ver, em conseguir aplicar também
os princípios da complementaridade em âmbitos que extrapolam as fronteiras
da física atômica. Para uma boa dica de como isso se deu, que por razões obje-
tivas não será tratado aqui, sugerimos a leitura de Holton (1984). Lá o leitor
encontrará um histórico de como Bohr aplica seu princípio de complementa-
ridade em outras áreas do saber, como: biologia, medicina, antropologia, etno-
logia, sociologia, ética e política, com a qual envolveu-se até os seus últimos
dias, dedicando-se à luta pelo uso pacífico da energia nuclear e pelo controle
de armas.

Considerações Finais
Conforme vimos, o nascimento da física quântica trouxe com ele um rico
material filosófico no que diz respeito à metafísica da natureza da realidade.
É justamente da confirmação experimental da realidade do comportamento
do átomo ora como onda, ora como partícula, que vimos surgir problemas
que alimentaram o imaginário dos físicos e que encheram os olhos filósofos.
Questões referentes à natureza dual do comportamento da matéria, à incer-
teza, à complementaridade e ao lugar da ocorrência do colapso da função de
onda quebraram o paradigma clássico que fazia o mundo parecer determinado,
contínuo e local, para cuja explicação seria necessário o uso da causalidade
e da ação por contato. Esses problemas levantados pela nascente mecânica
quântica fizeram nascer uma série de interpretações sobre a natureza última da
realidade a ponto de nos perdermos no contingente de propostas interpretati-
vas composto por quatro grandes grupos: interpretação ondulatória (no geral,
realista), interpretação corpuscular (realista), interpretação dualista realista e
interpretação dualista positivista (PESSOA JR., 2006). Nesse capítulo, a título
precário, uma vez que o presente livro não é específico sobre filosofia da física
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 205

quântica, quisemos dar ênfase ao caráter antirrealístico de interpretações que


compõem a chamada ortodoxia da mecânica quântica. Dessa forma, tratar da
interpretação da complementaridade de Borh, ou da interpretação ondulatória
positivista de von Neumann, ou da incerteza de Heisenberg – que está pró-
xima à complementaridade – é adiantar o compromisso que as interpretações
ortodoxas55 têm com o dualismo e o antirrealismo (às vezes, chamado de posi-
tivismo ou instrumentalismo) de tais interpretações. Porém, o realismo advo-
gado pela física clássica não havia sido revogado e diversas foram as tentativas
de demonstrar que a conversão acrítica à escola de Copenhague carecia de
sentido, pois, ao que parece, as proposições que fundamentam os argumentos
subjacentes às interpretações ortodoxas necessitavam serem mais bem qualifi-
cadas. Einstein será o líder da cruzada que tentará demonstrar que a mecânica
quântica, tal como entendida pela ortodoxia, era incompleta.

Referências
BAKER, J. 50 ideias de física quântica que você precisa conhecer. Tradução de Rafael
Garcia. São Paulo: Planeta, 2015.

BOHR, N. (1928) O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria


Atômica. Trad. Osvaldo Pessoa Jr. In: Fundamentos de Física I – Simpósio David Bohm.
Org. O. Pessoa Jr. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2000. p. 135-159.

BUNGE, M. Física e Filosofia. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,


2000. (Coleção Debates – Filosofia da Ciência).

EINSTEIN, A. Induction and deduction in physics. Tradução de A. M. Adam, Journal


for General Philosophy of Science, 31, p. 34-55, 2000.

55 O que se entende por interpretações ortodoxas da mecânica quântica, trata-se de um conjunto


de interpretações que “têm um compromisso com o dualismo, mas as fronteiras com as inter-
pretações corpusculares, de um lado, e ondulatórias, de outro, são um tanto quanto difusas. A
maioria apresenta também uma postura positivista, mas novamente a fronteira com o dualismo
realista é suave” (PESSOA JR., 2006, p. 139). Desse grupo de interpretações, a da “comple-
mentaridade” ou de “Copenhague” tem um certo destaque. Próximos a ele podemos mencionar
Pauli e Rosenfeld, e um pouco mais distante, Heisenberg, Born, Jordan e talvez Dirac. Louis
de Broglie foi convertido a essa visão, entre 1928 e 1952, influenciando os franceses, como
Bachelard. Há um outro grupo que muitas vezes é considerado ortodoxo, mas tem divergências
com o anterior, sendo às vezes chamado escola de Princeton. Congrega von Neumann e Wigner,
principalmente. Schrödinger e Einstein sempre se colocaram como oponentes a essas inter-
pretações, por diferentes motivos. De Broglie também, antes de 1928. Em 1952, David Bohm
redescobriu a interpretação realista de L. de Broglie, e este reconverteu. 
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

206 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

HAWKING, S. Uma nova história do tempo. Tradução de Vera de Paula Assis. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2005.

HEISENBERG, W. The physical content of quantum kinematics and mechanics.


(Trans. J. A. Wheeler e W. H. Zurek.). In: WHEELER, J. A.; ZUREK, W. H. (eds.).
Quantum Theory and Measurement. New Jersey, Princeton University Press, 1983. p.
62-84.

HEISENBERG, W. Física e filosofia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,


1995.

HERBERT, N. A realidade quântica: nos confins da nova física. Tradução de Mário C.


Moura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. (Coleção Ciência)

HOLTON, G. As raízes da complementaridade. Tradução de Dinorah de Oliveira


Mendes. Humanidades, v. 2, n. 9, p. 49-71, out./dez. 1984.

JAMMER, M. The Conceptual Development of Quantum Mechanics. New York:


McGraw-Hill, 1966.

JAMMER, M. The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum


Mechanics in Historical Perspective. Nova York: Wiley-Interscience Publication,
1974.

KRAGH, H. Quantum Generations: A History of Physics in the Twentieth Century.


Princenton: Princenton University Press, 2002.

PESSOA JR., O. O Sujeito na Física Quântica. In: OLIVEIRA, E. C. (org.).


Epistemologia, Lógica e Filosofia da Linguagem – Ensaios de Filosofia Contemporânea.
Feira de Santana/BA: Núcleo de Estudos Filosóficos. UEFS, 2001. p. 157-96.

PESSOA JR., O. Mapa da Interpretações da Teoria Quântica. In: MARTINS, R.


A.; BOIDO, G.; RODRÍGUEZ, V. (org.). Física: Estudos Filosóficos e Históricos.
Campinas: AFHIC, 2006. p. 119-152.

PESSOA JR., O. Física Quântica: entenda as diversas interpretações da física quântica.


2007-2011. Disponível em: http://www2.uol.com.br/vyaestelar/fisicaquantica_
artigos.htm. Acesso em: 08 maio 2020.

PESSOA JR., O. Conceitos de Física Quântica. 4. ed. São Paulo: Livraria da Física,
2019. Vols. I e II.

PULLMAN, B. The Atom in the History of Human Thought. Oxford: Oxford Universiry
Press, 1998.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA 207

SCHRÖDINGER, E. A natureza e os gregos. Tradução de Jorge Almeida e Pinho.


Lisboa: Edições 70, 1996.

SCHRÖDINGER, E. Ciência e Humanismo. Tradução de Jorge Almeida e Pinho.


Lisboa: Edições 70, 1999. (Coleção Perfil História das Ideias e do Pensamento)

SELLERI, F. Paradoxo e Realidade: Ensaio sobre os Fundamentos da Microfísica.


Tradução de Annetta Vox e Leonardo Pankovic. Lisboa: Fragmentos, 1990.

VAN FRAASSEN, B. C. The Scientific Image. Oxford: Clarendon Press, 1980.

SILVA, V. C. da. A interpretação filosófica da mecânica quântica de Werner Heisenberg:


ontologia matemática e crise nos fundamentos da lógica clássica. 2012. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://www.academia.edu/7121387.
Acesso em: 29 abr. 2020.

WHEELER, J. A.; ZUREK, W. H. (org.). Quantum Theory and Measurement. New


Jersey: Princeton Un. Press, 1983.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO X

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA
INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE

Introdução

P
or muitos anos a ortodoxia da interpretação de Copenhague liderou os
debates na esfera da mecânica quântica. Isso, entretanto, não garantiu aos
seus partidários a “tranquilidade” esperada em tempos de ciência nor-
mal, na acepção de Kuhn. No próprio interior da ortodoxia, vimos desdobrar
uma série de interpretações que, se não contradizem a interpretação da com-
plementaridade, divergem em aspectos substanciais relacionados a ela. Dessa
forma é que surgem no interior das interpretações ortodoxas interpretações
como a ondulatória positivista, a subjetivista, a macrorrealista da complemen-
taridade, a eclética, as leituras realistas da complementaridade, o instrumenta-
lismo radical, a intepretação estroboscópica, a da matriz-S e a da soma sobre
histórias (PESSOA JR., 2006). Mas foi exatamente de fora que a ortodo-
xia liderada por Bohr sofreu as maiores contrariedades. A insatisfação com o
antirrealismo ortodoxo fez com que físicos defensores de posições, na maioria
das vezes realistas, levantassem as vozes contra a autoridade de Bohr, o que
gerou muitos dissabores e mais instabilidade no interior das interpretações
ortodoxas da mecânica quântica. Desse modo, ganharam voz o realismo local
de Einstein, o realismo das variáveis ocultas de Bohm, a não-localidade de Bell
e o realismo determinístico de Everett, só para citar alguns exemplos. O que se
vê com essas interpretações é que, muitas das vezes, o antirrealismo sustentado
pelas interpretações ortodoxas sofre de problemas que aguçam a percepção de
que há algo de errado com a mecânica quântica.
O que pretende o presente capítulo é justamente demonstrar que a
ortodoxia liderada por Bohr não é uma “verdade de fé” e que interpretações
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

210 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

outras apresentam bons argumentos para justificar a necessidade da quebra


da monocracia da interpretação de Copenhague. Em termos gerais, o que os
argumentos demonstram é que, sob o ponto de vista de Copenhague, a mecâ-
nica quântica deve ser incompleta, nos dizeres de Einstein.

10.1 O debate Einstein-Bohr sobre os


fundamentos da mecânica quântica
Dizer que Einstein foi um inimigo da mecânica quântica é um erro, pois
ele foi um dos seus fundadores. Entretanto, o realismo de Einstein não coa-
dunava com as incertezas e com o antirrealismo da mecânica quântica e, jus-
tamente em virtude de seu conjunto de crenças clássicas, Einstein digladiou
algumas vezes na arena da física quântica e Bohr foi um dos seus principais
adversários intelectuais.
Vimos que a interpretação da complementaridade proposta por Bohr
defende que o ato da medição influencia um sistema quântico que o faz adotar
características que são observadas a posteriori. Por exemplo, a manifestação
da luz, ou como onda ou como partícula, depende do que o experimentalista
faz que ela seja. Enquanto não se manifesta como uma coisa, ou como outra, é
como que se ela permanecesse numa espécie de limbo. Até serem observados,
os sistemas quânticos permanecem como que em estado de sobreposição, isto
é, num misto de todos os estados possíveis.
Veremos que três momentos marcam a história dos debates entre Einstein
e Bohr a respeito das verdades da mecânica quântica: o 5º Congresso de Física do
Instituto Solvay em 1927; o 6º Congresso de Física do Instituto Solvay em 1930;
e o estudo publicado em 1935 que ficou conhecido como paradoxo Einstein-
Podolsky-Rosen (EPR).
O 5º Congresso de Física do Instituto Solvay, realizado em 1927 em
Bruxelas, reuniu os maiores nomes da física da época. Só na foto oficial do
evento constava 19 Prêmios Nobel (conquistados antes e depois do congresso).
O 5º Congresso de Solvay era dedicado ao tema “Elétrons e Fótons” e foi mar-
cado pelos grandes nomes que debateram sobre o status da mecânica quântica,
bem como pelo embate de Einstein contra a ortodoxia crescente liderada por
Bohr e corporificada na interpretação de Copenhague, cujos fundamentos se
davam na concepção de complementaridade desenvolvida pelo próprio Bohr.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 211

Segundo Brown (1981, p. 60), “antes de 1927, Einstein devotou energia


considerável a uma tentativa de reconciliar as condições quânticas com a des-
crição causal da teoria dos campos, ou seja, com a utilização de equações dife-
renciais para as equações de movimento”. A tentativa falhou, mas não o desejo
de Einstein em basear a teoria quântica em uma linguagem teórica causal de
campo. Em abril de 1927, ele recebeu de Bohr uma carta contendo uma cópia
da análise das relações de incerteza de Heisenberg. Como vimos, o princí-
pio de incerteza proibia que uma partícula tivesse medidos, ao mesmo tempo,
os valores exatos de posição e velocidade. Da mesma forma, o princípio de
complementaridade de Bohr, fundamentado na concepção de incerteza, impe-
dia que um fenômeno ondulatório endossasse a afirmação de que o quantum
detectado seguiria uma trajetória bem definida ao passar por uma fenda bem
determinada e que “os limites operacionais impostos pelas relações asseguram
a consciência da dualidade, pois ‘os aspectos diferentes do problema nunca se
manifestam simultaneamente’” (BROWN, 1981, 60).

Ora, é um dos dois temas essenciais da “oposição” de Einstein que esses


“aspectos diferentes do problema”, ou seja, as considerações espaço-tem-
porais e causais, não devem ser encarados na M.Q.56 como necessaria-
mente incompatíveis entre si, segundo alegava Bohr [...]. Se Bohr tivesse
razão, o programa da teoria causal seria fútil. A chamada tentativa de
Einstein de “desacreditar” a nova mecânica a partir de 1927 era primor-
dialmente motivada por essa consideração central (BROWN, 1981, 60).

Vê-se que o tema clássico da causalidade e das relações espaço-temporais


eram fortes em Einstein e que a incerteza quântica era um incômodo per-
manente, posto que “Deus não joga dados” (... ob der liebe Gott würfelt). E foi
justamente para negar essa noção que Einstein apresentou uma experiência de
pensamento como um desafio à incerteza e à complementaridade. Voltemos ao
exemplo do experimento das fendas:

56 Mecânica Quântica.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

212 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Fonte: aminoapps.com/c/tudo-sobre-ciencia Acesso em: 24 ago. 2020

Aqui vimos que uma entidade quântica (um fóton, por exemplo) seguiu a
sua trajetória e foi detectada como um ponto na posição d. Atrás da tela detec-
tora F temos um padrão de interferência formado pelo acúmulo de milhares
desses pontos. A questão que fica é: por qual fenda teria passado a partícula?

Bohr afirmava que esta pergunta não tinha resposta. Neste fenômeno
ondulatório (ou seja, que exibe franjas de interferência), não faria sentido
atribuir trajetória ao quantum detectado. Não se trata de uma questão de
ignorância: não é que o quantum passa por uma das fendas e nós nunca
saberemos por qual fenda ele passou. É mais do que isso! Na propagação,
o quantum não se comporta como partícula! Ele passa por ambas as fen-
das! (PESSOA JR., 2007-11, p. 34).

Além disso, em uma experiência na qual em cada momento uma e somente


uma das fendas b e c está aberta, sabe-se que as franjas de interferência não são
obtidas em F. A conclusão óbvia disso é que, se as partículas possuíssem tra-
jetórias definidas que atravessassem uma só fenda, então, o comportamento
da partícula ao atravessar a fenda em questão pareceria depender do fato de a
outra fenda estar aberta ou fechada! Bohr chamaria essa conclusão “paradoxal”
e a evitou por meio da tese de complementaridade57. Mas Einstein não estava

57 Complementaridade, conforme vimos, por meio da tese de que duas quantidades conjugadas
são complementares entre si no sentido de que ambas são mutuamente exclusivas, uma vez que
a determinação mais precisa do valor de uma delas resulta em maior incerteza com respeito à
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 213

satisfeito com essa posição e, por mais “paradoxal” que fossem as implicações
físicas, quis mostrar a possibilidade da abordagem. Em um experimento de
pensamento simples, sugeriu que S2 fosse desconectado do suporte rígido para
lhe permitir movimento como resultado da colisão da partícula com as fendas.
Para as partículas que são registradas por F em pontos não remotos do eixo de
simetria do arranjo, um ricocheteio “para cima” por parte de S2 indica que a
partícula veio de b e um ricocheteio “para baixo” por parte de S2 indica que a
partícula veio de c. Dessa forma, a medição não provocaria nenhum distúrbio
na partícula, mas nos daria a informação necessária para determinar por qual
fenda ela passou. A interpretação de complementaridade estaria refutada!
Geralmente Einstein vinha ao café da manhã no hotel, onde estavam os
participantes do congresso, com as suas objeções; no jantar, Bohr comunicava
sua resposta. “O pobre Bohr não deve ter prestado muita atenção às secções
oficiais durante o dia” (BROWN,1981, p. 61). Em termos simples, Bohr con-
sidera S2, apesar do seu tamanho macroscópico, como um objeto quântico,
sujeito também às relações de incerteza.

A chave de sua resposta era que o anteparo (onde ficam as fendas) deveria
estar sujeito ao princípio de incerteza. Se este anteparo fosse suspenso em
molas, de forma a que se pudesse medir sua velocidade (para cima ou para
baixo) após a passagem do quantum, então, pelo princípio de incerteza,
sua posição não seria bem determinada (o princípio de incerteza diz que
se a velocidade é bem definida e exata, a posição terá que ser mal definida;
ou vice-versa). Ou seja, não se poderia controlar com exatidão a posição
das fendas. Mesmo que insistíssemos que um padrão de interferência se
formaria, tal padrão se deslocaria (para cima ou para baixo) a cada novo
quantum (pois, segundo o princípio da incerteza aplicado ao anteparo, a
posição das fendas seria diferente a cada novo quantum). Assim, é como
se esses padrões de interferência ficassem tremidos, borrando o resultado
final que é visível na tela, após milhares de quanta passarem pelo sistema.

quantidade complementar. Na questão da radiação, os aspectos ondulatórios e corpusculares,


por exemplo, não são contraditórios e sim complementares. A definição pelo aspecto onda ou
partícula dependerá do tipo de experimento levado a cabo pelo observador: se ele optar pela
experiência da dupla fenda, evidenciará a natureza ondulatória, entretanto, se a experiência for
a do efeito fotoelétrico, a natureza se evidenciará por corpuscular. Para sistemas existentes na
escala atômica, não existe um valor predeterminado para as grandezas físicas, são as medições
que determinam o que deve aparecer durante eventos de observação, este ou aquele aspecto
complementar da realidade.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

214 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Segundo os cálculos relativamente simples de Bohr, a incerteza na posição


das fendas seria suficiente para borrar completamente o padrão de inter-
ferência. Ou seja, mesmo esta ideia de Einstein, de medir o momento
(ou velocidade) do anteparo após a detecção do quantum, acabaria elimi-
nando as franjas de interferência. Saberíamos as trajetórias, mas perderí-
amos as franjas ondulatórias. Exatamente como requerido pelo princípio
de complementaridade do dinamarquês (PESSOA JR., 2007-11, p. 35).

Dessa forma, vê-se que as relações de incerteza fazem parte integral da


“conspiração quântica” –, pois, para obter as franjas, a medida de localização
não pode ser executada – e reforçam a complementaridade, dando vitória a
Bohr nesse debate, o que contribuiu muito para a aceitação da interpretação
de Copenhague.
O debate Einstein-Bohr ganhou outras proporções no 6º Congresso de
Física do Instituto Solvay em 1930. Mais uma vez, Einstein e os representantes
da linha de Copenhague se envolveram em discussões sobre os fundamentos
da mecânica quântica. Dessa vez, a discussão abrangeu o princípio da incer-
teza para energia e massa, “em particular, a relação geral entre a energia e a
massa, expressa em sua famosa fórmula E = mc2, deveria permitir, através de
uma simples pesagem, medir a energia total de qualquer sistema e, com isso,
em princípio, controlar a energia transferida para ele em sua interação com um
objeto atômico” (BOHR, 1995, p. 65-66).
Para a sua tese, Einstein usou da experiência do fóton na caixa. Trata-se
de uma experiência de pensamento com a qual Einstein tentou, através da
consideração relativística da relação entre a energia e a massa, mostrar como
preparar um conjunto de fótons cuja energia e tempo de chegada são simulta-
neamente fixados.

Com um arranjo adequado para esse fim, Einstein propôs o dispositivo


[...], composto de uma caixa com uma abertura lateral, que poderia ser
aberta ou fechada por um obturador acionado por um relógio no inte-
rior da caixa. Se, no começo, a caixa contivesse uma certa quantidade
de radiação e o relógio fosse programado para abrir o obturador por um
intervalo curtíssimo num instante escolhido, seria possível conseguir que
um único fóton fosse liberado pela abertura num instante conhecido com
toda a precisão que se desejasse. Além disso, aparentemente também seria
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 215

possível, pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a


energia do fóton com toda a precisão desejada, o que definitivamente
entraria em contradição com a indeterminação recíproca do tempo e das
quantidades de energia na mecânica quântica (BOHR, 1995, p. 66).

Se o experimento de Einstein for consistente, isso indica que a relação de


energia e tempo de Heisenberg é inconsistente!
Einstein não esperava, entretanto, que Bohr conseguisse uma resposta
para a sua provocação e, dessa vez, utilizando a Teoria da Relatividade Geral
do próprio Einstein. Segundo Bohr, “a teoria da relatividade geral de Einstein
indica que existe uma indeterminação no instante da produção do fóton no
arranjo, que é diretamente ligada à indeterminação na medida de energia. E
o produto das indeterminações é consistente com a relação de Heisenberg!”
(BROWN,1981, p. 68). Dessa forma, o debate parecia de vez encerrado.
Entretanto, a inquietude que sempre acompanhou Einstein quando dos seus
enfrentamentos com problemas inerentes à explicação da realidade, fá-lo-ia
dar mais uma investida, dessa vez, com a apresentação de um artigo publicado
em 1935, juntamente com os seus colegas Boris Podolsky e Nathan Rosen.
Com o título A descrição da realidade física fornecida pela mecânica quântica
pode ser considerada completa?, o artigo de Einstein, Podolsky e Rosen (conhe-
cido como EPR), publicado na Physical Review (1935), tornou-se bombás-
tico por colocar em dúvida o postulado ortodoxo segundo o qual “quando se
conhece a quantidade de movimento de uma partícula, sua coordenada não tem
realidade física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 92). Segundo
Leon Rosenfeld, amigo de Bohr, “este ataque caiu sobre nós como um raio dos
céus” (ROSENFELD, 1967 apud WHEELER; ZUREK, 1983, p. 142).
Como se sabe, a atitude realista de Einstein, que acreditava na realidade
física objetiva do “mundo externo”, e, portanto, na realidade objetiva dos sis-
temas físicos, independente dos eventos de observação, não permitia a sua
aceitação passiva das incertezas da mecânica quântica que, na sua concepção,
representavam sintomas de que algo estava errado com a teoria e com a sua
interpretação. Segundo Herbert (1989, p. 239-240), Einstein argumentava
que “a crença num mundo externo independente da percepção subjetiva é a
base de todas as ciências naturais”. Por outro lado, Bohr “respondia compa-
rando Einstein aos críticos da sua própria teoria da relatividade, e ressaltava
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

216 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

que, graças a Einstein, os físicos tinham conseguido perceber que o tempo e o


espaço não são absolutos, e sim relativos, dependentes do estado de movimento
do observador” (HERBERT, 1989, p. 241). Cabe-nos ressaltar, entretanto, que,
na visão de Einstein, o problema não era com a correção da teoria58, pois está
resolvido que o formalismo da mecânica quântica é correto e que as afirmações
subjacentes a esse formalismo são coerentes. O que incomodava a Einstein – e
isso temos visto desde o debate de 1927 – era a questão da completude da teoria
quântica, objeto do questionamento de EPR no artigo em questão.

Einstein, Podolsky e Rosen não contestam a competência da teoria quân-


tica para descrever os fenômenos; eles afirmam, contudo, terem demons-
trado a existência de certos “elementos de realidade” (nas palavras de
Einstein), partes do mundo não observáveis diretamente, que a teoria quân-
tica simplesmente omite (HERBERT, 1989, p. 251).

Para os autores, a condição de completude de uma teoria pressupõe que


“todo elemento da realidade física precisa ter um correspondente na teoria
física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 90). Isto é, deve haver
uma correspondência da teoria física com a realidade objetiva para que se possa
construir uma imagem completa da realidade em questão. E o critério de rea-
lidade afirma que “se, sem de modo algum perturbar um sistema, pudermos
prever com certeza (ou seja, com probabilidade igual à unidade) o valor de uma
quantidade física, então existe um elemento de realidade física correspondente
a essa quantidade física” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 91).
A condição é necessária, mas não é suficiente para determinar a completude
de uma teoria física, visto que, por si só, não garante que a teoria seja de fato
completa, por exemplo, “dois elementos distintos da realidade poderiam ter
a mesma contrapartida em uma teoria física, de forma que a teoria não seria
completa, apesar de satisfazer C59. A condição C também permite que a teoria
postule entidades inexistentes” (PESSOA JR., 2019, p. 206). A interpreta-
ção de Copenhague da mecânica quântica, portanto, seria uma interpretação

58 “A correção de uma teoria é julgada pelo grau de concordância entre suas conclusões e a expe-
riência humana” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1891, p. 90).
59 C = completeza, nas palavras de Pessoa Jr.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 217

correta em seu formalismo, mas incompleta. É isso que o paradoxo EPR tenta
demonstrar.
O argumento EPR baseia-se na tentativa de negar a completude da
mecânica quântica através da noção de sistemas correlacionados. Vimos que
na teoria quântica a sobreposição de estados quânticos era tida como real: até
que um sistema quântico fosse medido, ele permanecia em estado de sobre-
posição de todos os estados. Isso aponta para a exigência da correlação entre o
sistema quântico e o observador, uma vez que a existência do sistema quântico
(a sua saída do limbo) depende do observador que procede ao ato da medição.
Na medida em que o observador mede uma partícula, as probabilidades da
função de onda de ambas partículas colapsam para consolidar o resultado. A
função de onda da segunda partícula colapsa exatamente no mesmo momento
que a da outra, não importa quão distantes as partículas estejam. Era esse tipo
de concepção que incomodava o realismo de Einstein, que se queixava com
asserções do tipo: “Não posso imaginar que um camundongo possa alterar
drasticamente o universo, meramente olhando para ele” (EINSTEIN, [s.d.],
apud HERBERT, 1989, p. 239).
Como se concebe na mecânica quântica, esse colapso da função de onda
se dá de modo instantâneo, à distância e de forma não-local. Isso sugere que
a informação do que foi medido em A foi transmitida instantaneamente para
B. A questão que fica, portanto, é: seria possível esse tipo de ação à distância,
que faz com que duas partículas interajam de forma instantânea e não-local,
mesmo estando essas partículas a milhares de quilômetros separadas umas das
outras? Caso tal “emaranhamento”, na linguagem de Schrödinger, seja possível,
cai por terra a noção de que nenhum sinal que carrega informação pode ser
enviado de forma mais rápida que a velocidade da luz (300 mil km/s).
EPR introduziram uma hipótese de localidade na qual seria impossível que
a medição de uma partícula em um ponto A tivesse reflexos instantâneos sobre
outra partícula, em outro ponto B, com velocidade maior do que a velocidade
da luz. “[...] Como no momento da medição os dois sistemas não mais estão
interagindo, não pode ocorrer nenhuma mudança real no segundo sistema
como decorrência de qualquer coisa que se faça no primeiro” (EINSTEIN;
PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 94). Isto é, caso decidíssemos medir a posi-
ção de A, descobriríamos que B tem posição bem definida e se medíssemos a
velocidade de A, descobriríamos que B também tem velocidade bem definida.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

218 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Como as partículas estão separadas por grande distância, a medição em A não


pode influenciar os valores da posição e da velocidade da partícula B. Ou seja,
B deveria ter, em princípio, a posição e a velocidade bem definidas ao mesmo
tempo. “As duas partículas no experimento imaginário já devem saber em quais
estados estão quando elas se separam, afirmou. Elas carregam esse conheci-
mento com elas, em vez de mudar de estado simultaneamente em distâncias
remotas” (BAKER, 2015, p. 78). Dessa forma, EPR instituiu uma situação
paradoxal da existência de duas noções contraditórias: localidade vs. não-loca-
lidade – a primeira era admitida pela maioria dos físicos da época e a segunda
estava então incrustada no formalismo da mecânica quântica. Com o paradoxo
instituído, não foi difícil para EPR apresentar argumentos que concluíssem
que, em virtude do que fora demonstrado, a mecânica quântica é incompleta.

Repassemos o argumento com um pouco mais de detalhe. Na Terra, posso


medir um observável A1, e com isso o estado da partícula nº 2 se reduzi-
ria a um auto-estado de A2. Mas na Terra eu também poderia medir um
observável B1, incompatível com A1 (ou seja, cujos operadores associados
não comutam), e assim na Lua o estado da partícula nº 2 se reduziria a
um auto-estado de B2 (que é incompatível com A2). Agora, veja bem: pela
hipótese da localidade, nada que eu faça na Terra pode afetar instantane-
amente (ou a uma velocidade maior do que a da luz) a realidade na Lua.
Mas como eu posso medir tanto A1 quanto B1, na Terra, então tanto um
auto-estado de A2 quanto um de B2 têm realidade simultânea na Lua, ao
contrário do que diz a Mecânica Quântica (pois A2 e B2 são incompatí-
veis). Assim, esta não daria conta de todos os detalhes da realidade, ela
seria incompleta (PESSOA JR., 2019, p. 205-206).

A conclusão de EPR enuncia um argumento na forma disjuntiva que é


de fácil análise60. Trata-se, na verdade, de uma “disjunção exclusiva”, envolvida
nas seguintes premissas dos autores: “Anteriormente demonstramos que ou
(1) a descrição quântica da realidade, fornecida pela função de onda, não é
completa, ou (2) quando os operadores correspondentes a duas quantidades

60 Contrariando o montante de análises lógicas, utilizando-se de análises clássicas (prova de de-


dução natural) e não-clássicas (lógica modal), que se têm apresentado como “deciframento” do
argumento EPR que, muitas das vezes, pelo grau de complexidade no entendimento, é preferível
ler o próprio artigo dos autores originais (vide, por exemplo, MCGRATH, 1978).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 219

físicas não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas”
(EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 95, grifos nossos). A tabela
de verdade de uma disjunção exclusiva envolvendo as premissas (1) e (2) da
conclusão de EPR, na lógica proposicional, é a seguinte:

1 2 1∨2
V V F
F V V
V F V
F F F

Isso significa que


a) Por se tratar de uma disjunção exclusiva, é impossível que (1) e (2)
sejam verdadeiras (V) ao mesmo tempo, daí o resultado da operação
de disjunção será falso (vide a primeira linha da tabela). Isso quer dizer
que, se é verdade (V) que “(1) a descrição quântica da realidade, for-
necida pela função de onda, não é completa”, então, a proposição “(2)
quando os operadores correspondentes a duas quantidades físicas não
comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas”
não pode ser verdadeira;
b) As proposições são mutuamente excludentes. Isso significa que, por
serem exclusivas, afirmar uma delas pressupõe negar a outra. Dessa
forma, se é verdade (V) que “(1) a descrição quântica da realidade,
fornecida pela função de onda, não é completa”, então, é falso (F) que
“(2) quando os operadores correspondentes a duas quantidades físicas
não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâ-
neas” ou vice-versa – ou uma coisa ou a outra, mas não as duas –, isso
fica evidenciado na segunda e terceira linhas da tabela;
c) Por fim, a negação de (1) implica a negação de (2), o que força EPR a
afirmar que (1) é verdadeira (V):

Partindo da suposição de que a função de onda fornece uma descrição


completa da realidade física, chegamos à conclusão de que duas quan-
tidades físicas com operadores não-comutativos podem ter realidades
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

220 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

simultâneas. Dessa maneira, a negação de (1) implica a negação da única


outra alternativa, (2). Somos assim forçados a concluir que a descrição
quântica da realidade física através das funções de onda não é completa
(EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 95-96).

Trata-se de uma formulação lógica interessante e que acaba por revelar


o incômodo de Einstein com a inteligibilidade desse tipo de emaranhamento
quântico, isto é, com pressuposto tácito de que a medida de uma das partículas
pode causar um efeito instantâneo no resultado da outra. Para ele, enquanto
um realista convicto, era difícil imaginar o universo envolto em uma teia de
conexões quânticas, com números desconhecidos de partículas comunicando
com suas gêmeas distantes. Ainda assim, para muitos, EPR teriam errado:
segundo alguns, em virtude da defesa do princípio de localidade; de acordo
com outros, em razão da defesa que fizeram da posição realista da existência
da realidade independente da medição.

Depois que o artigo foi publicado, ele [Einstein] recebeu várias cartas de
físicos, “dizendo-lhe ansiosamente onde o argumento estava errado. O
que divertia Einstein foi que, embora todos os cientistas tivessem certeza
de que o argumento estava errado, cada um dava razões diferentes para a
sua afirmação!” ( JAMMER, 1974, p. 187).

Apesar dos comentários, críticas e refutações ao paradoxo EPR, nenhuma


resposta foi dada logo depois da publicação do trabalho. Todos esperavam uma
manifestação do pai da interpretação da Copenhague e isso ocorreu cinco
meses depois do artigo EPR, quando Niels Bohr publica a sua resposta ao
paradoxo, com o mesmo título do artigo EPR, e na mesma revista onde este foi
publicado. Boa parte da resposta de Bohr é uma reiteração daquilo que ele já
tinha apresentado como resposta à provocação de Einstein em 1927 – “A linha
de argumentação foi, em essência, idêntica à exposta nas páginas anteriores
[...]” (BOHR, 1995, p. 73). Assim, não houve surpresas, visto que a estratégia
de Bohr era a de questionar o critério de realidade de EPR. Bohr argumenta,
portanto, que o critério de realidade de EPR contém uma ambiguidade que
o torna inaplicável no caso considerado, visto que uma influência física a par-
tir da medição de uma partícula até a outra partícula é excluída. Segundo o
dinamarquês, é impossível que uma entidade quântica tenha uma propriedade
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 221

sem ser medida, ou seja, tal propriedade não existe, não está oculta à espera
de um aparelho de medida ou de qualquer interferência do observador. Desse
modo, “do nosso ponto de vista, vemos agora que o fraseado do critério de
realidade física proposto por Einstein, Podolsky e Rosen, mencionado acima,
contém uma ambiguidade no que tange o significado da expressão ‘sem de
modo algum perturbar um sistema’” (BOHR, 1981, p. 103).
Vimos que a expressão “sem de modo algum perturbar um sistema” havia
sido utilizada por EPR (1981, p. 91). Bohr considerou, entretanto, que a esco-
lha de medir A ou B constituía uma influência nas próprias condições que
definem o “fenômeno”, já que arranjos experimentais diferentes teriam que
ser usados (PESSOA JR., 2019). Algo que já havia sido antecipado por EPR
quando afirmam que “de fato, nossa conclusão não seria alcançada se insis-
tíssemos em que duas ou mais quantidades físicas só poderiam ser encaradas
como elementos simultâneos de realidade quando pudessem ser simultaneamente
medidas ou previstas” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 96).
Segundo Pessoa Jr. (2019), Bohr não teria, de fato, rejeitado o “elemento
de realidade” de EPR, mas sim a própria noção de localidade por meio de uma
noção de totalidade do fenômeno. Entretanto,

ao descartar um “distúrbio mecânico”, Bohr parece aceitar o princípio de


localidade LOC, mas logo em seguida ele afirma que a própria “definição”
do sistema composto de duas partículas depende da escolha feita pelo
experimentador com relação a uma das partículas, o que é uma maneira
de reafirmar o caráter não-local da Mecânica Quântica (PESSOA JR.,
2019, p. 212).

Certo é que, conforme disse o próprio Bohr, “os debates com Einstein,
tema deste artigo, estenderam-se por muitos anos, que assistiram a um grande
progresso no campo da física atômica. Quer nossos encontros tenham sido de
longa ou curta duração, eles sempre deixaram em minha mente uma impressão
profunda e duradoura” (BOHR, 1995, p. 82). O impasse, entretanto, foi que-
brado pelos esforços físicos teóricos de John Bell em 1964, mas, para enten-
dermos melhor seus resultados, analisemos primeiramente as contribuições de
David Bohm para esse contexto.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

222 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

10.2 David Bohm: realismo e não-localidade na mecânica quântica


David Bohm (1917-1992) nasceu na Pensilvânia, EUA. Obteve seu
título de doutorado em física teórica, em 1943, na Universidade da Califórnia,
em Berkeley, sob a orientação de Robert Oppenheimer. Como ele partilhava
convicções marxistas e, no início dos anos 1940, havia se ligado ao Partido
Comunista norte-americano, foi vítima do Macarthismo, que o forçou a sair
dos EUA. Passou quase quatro anos em São Paulo – onde trabalhou na USP
– e em Haifa, Israel, mudando-se depois para o Reino Unido, em 1957, onde
trabalhou na Universidade de Bristol e no Birbeck College de Londres. No
fim da vida, Bohm também trabalhou em cognição e em assuntos sociais, além
de física quântica.
Em 1951, Bohm publicou o livro Quantum Theory, fruto de seus cursos
dessa disciplina na Universidade de Princeton, onde apresentou uma aborda-
gem do paradoxo EPR. Segundo Bohm, EPR levantaram uma crítica séria à
validade da interpretação, geralmente aceita na teoria quântica, mas que

De fato, as críticas foram injustificadas e baseadas em suposições relativas


à natureza da matéria que contradizem implicitamente a teoria quântica
desde o início. Não obstante, essas suposições implícitas parecem, à pri-
meira vista, tão naturais e inevitáveis que um estudo cuidadoso dos pon-
tos levantados pelos autores oferece uma visão profunda e penetrante da
diferença entre os conceitos clássicos e quânticos da natureza da matéria
(BOHM, 1951, p. 611).

Bohm procura apresentar as razões pelas quais tais críticas seriam injus-
tificadas de um ponto de vista interessante, visto da diferente análise que ele
faz do mesmo problema nos artigos publicados em 1952 sobre a interpretação
causal. Na análise de 1951, Bohm identifica que EPR se comprometeram em
definir os critérios para a avaliação de uma teoria física, utilizando-se de dois
explícitos, mas sustentados por duas suposições implícitas, que são parte inte-
grante do tratamento dado pelos autores, mas que nunca foram explicitamente
declaradas. E quais seriam uns e outros?
Quanto aos critérios explícitos, eis aqueles já enunciados por EPR: “(1)
Todo elemento de realidade física deve ter uma contrapartida em uma teoria
física completa” (BOHM, 1951, p. 612) e “(2) Se, sem de modo algum perturbar
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 223

o sistema, pudermos prever com certeza (i.e., com probabilidade igual à uni-
dade) o valor de uma quantidade física, então existe um elemento de realidade
correspondente a esta quantidade física” (BOHM, 1951, p. 612). Conforme
vimos, o primeiro desses critérios diz respeito ao critério de completude de EPR
e o segundo diz respeito ao critério utilizado para reconhecer um elemento de
realidade. Quanto às duas suposições implícitas, Bohm assim as enuncia:

(3) O mundo pode ser corretamente analisado em termos de “elementos


de realidade” existentes distinta e separadamente.
(4) Qualquer um desses elementos deve ser uma contrapartida de uma
quantidade matemática definida com precisão, presente em uma teoria
completa. (BOHM, 1951, p. 612)

Aqui a suposição (3) trata da separabilidade do universo em termos de


elementos de realidade distintos e independentes. Trata-se, portanto, de uma
tese realista mais forte do critério de elemento de realidade. E a suposição (4)
exige que a contrapartida na condição de completude seja precisa. Mas Bohm
sabia que esses critérios não deveriam ser aplicados em um nível quântico de
precisão.
Considerando que o objetivo de EPR era mostrar que a interpretação
corrente da teoria quântica era insuficiente e que a função de onda não con-
tinha uma descrição completa da realidade física, Bohm menciona que se seu
argumento estivesse correto, haveria a necessidade de se buscar uma teoria
mais completa, por meio de variáveis ocultas. “Se a disputa deles pudesse ser
provada, seria levado a procurar uma teoria mais completa, talvez contendo
algo como variáveis ocultas, em termos das quais a presente teoria quântica
seria um caso limitante” (BOHM, 1951, p. 612-613).
Para explorar o tema, Bohm começa considerando um observável arbi-
trário A com um conjunto de autoestado, Ψa, que diz que o sistema está em um
estado quântico no qual o observável A tem o valor definido a. Nessa situação,
EPR diriam que existe no sistema um elemento de realidade correspondente
ao observável A. Mas Bohm considera também um outro observável B, que
não comuta com A, de modo que não exista função de onda para a qual A e B
tenham valores definidos simultaneamente. Adotando a suposição implícita
(4) de que todo elemento da realidade deve ser uma contrapartida de uma
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

224 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

quantidade matemática definida com precisão que aparece em uma teoria com-
pleta, então a suposição usual de que a função de onda fornece uma descrição
completa da realidade leva à conclusão de que A e B não podem existir simultane-
amente. Isso decorre do fato de que a teoria das ondas, supostamente completa,
não contém elementos matemáticos precisamente definidos, correspondentes à
existência simultânea de A e B. A consequência é que quando B é medido e se
obtém um valor definido, o elemento correspondente ao observável A é destru-
ído (BOHM, 1951). Para Bohm, é natural supor que essa destruição é devida
aos quanta transferidos do aparelho de medição para o sistema.
Dois temas estão envolvidos, portanto, nas considerações supramencio-
nadas de Bohm, a saber, variáveis ocultas e não-localidade que, por consequên-
cia, acabam por envolverem-se com o tema do realismo – pois nessa teoria de
variáveis ocultas a propriedade a ser medida é considerada real e está presente
no objeto – e do determinismo – uma vez que tal propriedade pode ser determi-
nada com certeza, isto é, todos os eventos são determinados por causas.
Vimos que, em 1923, de Broglie, em sua tese de doutorado, havia defen-
dido a ideia de que toda matéria consiste de partículas e onda, oscilando numa
frequência bem determinada – ideia esta que lhe daria o prêmio Nobel. Em
1927, no Congresso de Solvay, na Bélgica, de Broglie apresentou uma teoria
de variáveis ocultas que mantinha o determinismo e uma interpretação realista
na qual seria possível a “visualização” dos átomos e elétrons na descrição da
realidade por trás das observações. Tal realidade existiria independentemente
do observador, a cada instante e não somente no instante da observação. Sua
concepção, além de manter a noção de partícula e onda, ainda concebia a onda
contínua que guiava a partícula através do espaço. Tratava-se da onda piloto.
Contudo, nesse mesmo Congresso, Wolfgang Pauli (1900-1958) impôs uma
série de objeções à teoria realista de de Broglie, o que acabou por fazê-lo desis-
tir de sua tese dualista realista. Dessa forma, acabou vigorando a interpretação
de complementaridade de Bohr e a concepção de de Broglie foi engavetada
por cerca de um quarto de século.
Em 1952, em um artigo intitulado A Suggested Interpretation of the
Quantum Theory in Terms of “Hidden Variables”, Bohm ressuscitou a teoria das
variáveis ocultas e redescobriu, sem querer – pois ele não tinha conhecimento
desses trabalhos –, a ideia não publicada de de Broglie sobre a “onda guia”. O
artigo foi dividido em duas partes, sendo que a primeira delas correspondia
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 225

praticamente à teoria de de Broglie. Somente ao enviar a versão preliminar


para Pauli é que Bohm ficou sabendo das críticas que foram dirigidas por ele
ao trabalho de de Broglie em 1927. A questão da prioridade, entretanto, estava
instaurada, pois de Broglie, em comunicado à Academia de Ciências, fez lem-
brar dos seus antigos trabalhos. Em carta a Pauli, Bohm, segundo Freire Jr.
(1999, p. 51), trata da questão da seguinte maneira:

Se um homem encontra um diamante, e em seguida abandona-o, porque


ele concluiu, erroneamente, que se tratava de uma pedra sem valor, e se
esta mesma pedra é encontrada mais tarde por um outro homem que
reconhece seu verdadeiro valor, você não diria que a pedra pertence ao
segundo homem? Eu penso que o mesmo raciocínio se aplica à interpre-
tação da física quântica.

Mas, a disputa não se fez presente porque, quando os artigos foram publi-
cados, Bohm reconheceu a anterioridade de de Broglie. Tanto as objeções de
Pauli à teoria de de Broglie quanto as objeções de von Neumann à existência
de objetos comuns e, portanto, ao realismo e ao determinismo, foram resolvi-
das por Bohm na sua descrição de variáveis ocultas do objeto quântico (nesse
caso, a posição e a velocidade das partículas), bem como na descrição das vari-
áveis ocultas do próprio aparelho de medição.

O grande avanço de Bohm em relação a de Broglie foi o de ter também


levado em consideração as variáveis ocultas do aparelho de medição. Esta
consideração das variáveis ocultas no contexto experimental (ou seja, no
aparelho ou no ambiente), conhecida como “contextualismo”, permitiu a
Bohm escapar da prova de insolubilidade de von Neumann [...]. Bohm
deixou claro também o caráter não-local de sua teoria [...] (PESSOA JR.,
2019, p. 236).

A teoria de Bohm, sendo determinista, preserva a causa e o efeito; nela


a partícula está viajando ao longo de uma trajetória como na física clássica.
Assim, ela elimina a necessidade do colapso de função de onda, contudo, não
evita a ação à distância, não contornando, dessa forma, o paradoxo EPR. Se
se muda um detector, o campo de onda da partícula, instantaneamente, muda
também. Em virtude disso, a teoria é considerada não-local.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

226 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

O mérito de Bohm foi o de demonstrar que era possível pensar em uma


versão da mecânica quântica envolvendo variáveis ocultas. O próximo passo
seria testá-la. Essa incumbência ficou a cargo de John Bell.

10.3 As desigualdades de John Bell


John Stewart Bell (1928-1990), físico de partícula, trabalhou no Conseil
Européen pour la Recherche Nucléaire (CERN)61. Quando de licença-prêmio, em
1964, resolveu investigar a questão da realidade quântica, algo pelo qual era
aficionado desde os tempos de universidade, época em que iniciou suas refle-
xões acerca dos fundamentos da mecânica quântica estudando as teorias de
von Neumann, de Broglie, EPR etc. Começando pela prova de von Neumann,
que previa que, se a mecânica quântica fosse correta, não se poderia conceber a
existência de objetos comuns que combinam entre si de “maneira razoável” – o
que negava o realismo e o determinismo –, Bell concluiu que, ainda assim, essa
prova não excluía os objetos que podem alterar os seus atributos reagindo ao
ambiente que os cerca, como no caso das variáveis ocultas pertencentes ao apa-
relho de medição. Era justamente essa brecha deixada por von Neumann que
permitia o desenvolvimento de modelos realistas como os de de Broglie (que a
essa altura havia tido a sua concepção determinista pisoteada pelas objeções de
Pauli e pelo próprio teorema de von Neumann, o que fez com que ele desistisse
dessa linha de pesquisa) e David Bohm, que foram construídos com base em
objetos comuns.
Durante a preparação do artigo sobre a prova de von Neumann, Bell pôs-
-se a pensar uma prova que pudesse prever a impossibilidade de qualquer reali-
dade que tivesse certas características físicas. Criou, portanto, uma prova com
a qual rejeitou todos os modelos de realidade com a propriedade de localidade
(HERBERT, 1989). Conforme vimos, a localidade se baseia na noção de que
nenhuma informação pode ser transmitida imediatamente e que os efeitos da
natureza se propagam à velocidade da luz, portanto, a uma velocidade finita.
EPR já haviam se debruçado sobre o problema da localidade e, em virtude do
experimento de pensamento, chegaram à conclusão de que a teoria quântica
seria incompleta, visto que se demonstrava funcionar de maneira “não-local”,

61 Onde fica o grande colisor de Hádrons, o LHC, na fronteira franco-suíça, perto de Genebra, que
conta com financiamento mundial para pesquisas em física de altas energias.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 227

cujo contraditório foi demonstrado pelos autores. Por outro lado, David Bohm,
em 1952, havia desenvolvido uma versão da teoria quântica na qual uma rea-
lidade poderia se propagar instantaneamente, isto é, desenvolveu uma versão
em que a realidade é não-local. Conforme Bohm sublinhara, sua teoria era
contextual e envolvia também variáveis ocultas que eram pertencentes ao apa-
relho de medição. Era também realista, pois tratava de uma “realidade” física,
apesar de possuir variáveis ocultas que não podiam ser observadas diretamente.
Diante desse conjunto de informações que lhe precedia, Bell fez a si as seguin-
tes perguntas: será que a não-localidade da teoria de variáveis ocultas seria uma
característica de qualquer teoria quântica? E se as coisas existem sem serem
observadas, terão elas que estabelecer entre si uma ação imediata à distância?
A ideia de Bell era a de que toda teoria física realista, que queira prever tudo
o que a física prevê, tem que ser não-local, como a teoria de Bohm. Essa con-
cepção ficou conhecida como teorema de Bell, que declara que nenhum modelo
local pode dar suporte aos fatos quânticos, logo a realidade deve ser necessa-
riamente não-local. Mas qual é o verdadeiro mérito do teorema de Bell? O que
o teorema diz é que se as variáveis ocultas e o realismo local fossem verdadei-
ros, qualquer decisão tomada sobre a medição de uma partícula próxima não
afetaria a propriedade de outra distante, o que Bell demonstrou não ocorrer.
Segue-se daí que se uma teoria física é realista, então, ela é não-local. E como
isso é demonstrado pelo teorema? Em resumo, o que postula o teorema é que

Há uma certa grandeza cujo valor, para qualquer teoria quântica realista
local, é sempre menor ou igual ao número 2 (trata-se, portanto, de uma
desigualdade). Já para a teoria quântica usual este valor pode ser maior
que 2. A teoria de Bohm é realista não-local, então o valor pode ser maior
que 2. A maioria dos físicos da época interpretava a Teoria Quântica de
maneira “não realista”, então, para eles, o valor também poderia ser maior
do que 2 (PESSOA JR., 2007-11, p. 37).

E o que isso significa? A dedução de Bell envolve a proporção com que


fótons correlacionados emitidos por uma única fonte combinam em polari-
zação ao atingir detectores distantes da fonte original62. Sua inequação (desi-
gualdade) descreve a proporção que se espera na correlação dos fótons sob

62 Para detalhes sobre o experimento, vide Herbert (1989, p. 253-270).


Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

228 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

condições bem definidas. As consequências mais interessantes do teorema


aconteceriam se um experimento violasse a desigualdade, isto é, se mostrasse
que x é maior que dois (x > 2). Nesse caso, teríamos que abrir mão de uma
das duas suposições: a) do realismo (as coisas existem independentemente de
serem observadas); b) da localidade (o mundo quântico não admite conexões
mais rápidas que a luz). Como a polarização de fótons derivados da experiência
de EPR viola a desigualdade de Bell, e como EPR insistia na postura realista,
fica demonstrado que a noção de realidade em seu paradoxo é não-local. Como
a fase é um atributo quântico que pode ser medido, e que está relacionado à
polaridade do campo associado ao fóton, pode-se interpretar o resultado de um
experimento baseado no teorema de Bell como uma indicação de que durante
a interação entre fótons ocorre um emaranhamento de fases. “Talvez nunca
venhamos a saber o que é realmente o embaralhamento de fases, mas o teo-
rema de Bell nos diz que esse embaralhamento não é uma ficção matemática
sem substância, e sim uma realidade com a qual se pode contar” (HERBERT,
1989, p. 267). E, se há emaranhamento de fases há ação à distância; se há ação à
distância, há a não-localidade, isto é, não existem variáveis ocultas compatíveis
com a teoria quântica – o que contraria EPR.
Segundo Herbert (1989, p. 253), Bell havia lhe confessado que

Já faz muito tempo que sou fascinado pela experiência EPR. Ela con-
tém, ou não, um paradoxo? Impressionaram-me profundamente as res-
trições de Einstein a respeito da teoria quântica e sua opinião de que ela
seria uma teoria incompleta. Por razões diversas, aquele era para mim o
momento oportuno para atacar de frente o problema. O resultado foi o
inverso do que eu pensara. Mas fiquei maravilhado – numa área onde
tudo era indefinido e obscuro, eu encontrara algo sólido e claro.

Bell apresentou seu teorema em 1964 em um artigo intitulado On the


Einstein-Podolsky-Rosen paradox. O teorema não teve grande repercussão. Ele
havia redigido um outro antes que era fundamental para chegar ao resultado,
mas, por erro do editor do periódico, acabou publicado somente em 1966. Foi
somente na década de 1970 que experimentos confirmaram que o valor da
grandeza mencionada poderia ser maior do que 2, ao contrário do que pre-
viam as teorias realistas locais. Em 1972, John Clauser e Stuart Freedman,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 229

na Universidade de Berkeley, conseguiram por meio de experimento violar


as desigualdades de Bell, o que apontou para a não-localidade da realidade –
ironicamente, Clauser era localista. Entretanto, o experimento seguiu incom-
preendido e desconsiderado pela comunidade dos físicos por cerca de uma
década. Somente com o aperfeiçoamento dos equipamentos de óptica, dentre
eles o laser, foi possível um experimento que se tornou um clássico da mecâ-
nica quântica. Em 1982, Alain Aspect, em um experimento feito com pares de
fótons emaranhados, conseguiu violar as desigualdades de Bell, demonstrando,
com isso, o caráter não-local da natureza: os dados mostraram x > 2. Esse expe-
rimento foi parte da tese de doutorado de Aspect, de cuja banca Bell partici-
pou. Em 2007, por fim, o grupo do físico austríaco Anton Zeilinger verificou a
violação das desigualdades usando fótons separados por 144 km. Esse tipo de
experimento acaba por inaugurar a área de informação quântica – que envolve
a criptografia quântica – e a busca por computadores quânticos ultravelozes.
A informação poderá ser enviada e recebida por meio de fótons emaranhados
que, submetidos às desigualdades de Bell, caso seja violada, não haverá possi-
bilidade de a mensagem ter sido escrutinada indevidamente.
A questão ontológica a ser respondida, entretanto, é: por que a natureza
optou por uma “ação fantasmagórica à distância”?

10.4 O gato de Schrödinger


Vimos que a interpretação de Copenhague se inspira na sugestão mate-
mática da forma da função de onda para postular que o ato de medição influen-
cia um sistema quântico que o faz adotar características que serão observadas a
posteriori. Enquanto não determinado por uma observação a assumir um único
estado, é como se os sistemas quânticos, até serem observados, permanecessem
num estado de sobreposição, num misto de todos os estados possíveis. Em
contrapartida, o caráter descontínuo da função de onda sugere o colapso do
sistema físico, caracterizado pelo posicionamento de parâmetros para que o
sistema seja medido em um estado específico. A posição realista de EPR, por
outro lado, dizia que o sistema físico está sempre posicionado em um estado
físico determinado. Dessa forma, não existe superposição real de estados
quânticos, muito menos o colapso do sistema em virtude de uma observação.
Consequentemente, EPR concluem que a interpretação da mecânica quântica
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

230 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

é incompleta, pois deixa evidente que a função de onda não fornece toda a
informação disponível sobre o sistema, além de se fazer necessário encontrar
variáveis ocultas que carregam a informação não disponível.
Segundo Holton (1984, p. 56, grifos nossos), antes da complementari-
dade, “[...] Bohr formulou uma proposta que veio a ser um meio caminho
moderadamente bem-sucedido em direção à reconciliação entre a mecânica clás-
sica e a quântica, na concepção que, a partir de 1918, tornou-se conhecida como
o princípio da correspondência”. Esse princípio assevera que a descrição quântica
da realidade microscópica deve corresponder à descrição clássica da realidade
macroscópica. Contudo, sabemos que a incerteza, a indeterminação, o antirre-
alismo e a não-localidade fazem parte dos sistemas quânticos, que são regidos
por leis particulares, das quais os sistemas clássicos não dão conta – apesar de
o formalismo matemático da teoria quântica satisfazer ao princípio da cor-
respondência. Mas o que esperar da adequação da realidade quântica com o
princípio da correspondência?
Foi no exílio em Oxford, em 1935, na redação de um artigo intitulado
The Present Situation in Quantum Mechanics, que Schrödinger tentou respon-
der a essa questão, examinando alguns problemas da mecânica quântica, den-
tre eles o problema das superposições quânticas de estados de emissão e não
emissão. Num experimento de pensamento, seguindo a mesma toada de EPR,
Schrödinger coloca em xeque a noção de nuvem de probabilidade de Bohr,
questionando a natureza contraintuitiva do colapso de função de onda, bem
como a da influência do observador. Apesar do sucesso da interpretação de
Copenhague entre muitos físicos, Schrödinger e Einstein nunca embarcaram
no “entusiasmo injustificado” de grande parte dos seus colegas. A questão que
se colocava, portanto, era: qual seria o estado do sistema macroscópico como
um todo ao final de um intervalo de tempo? E para demonstrar que as pro-
babilidades quânticas não fazem sentido na escala macroscópica, Schrödinger
escolheu algo que fosse capaz de atrair maior empatia, a saber, um gato.
Trata-se da imagem de um gato fechado dentro de uma câmara de aço
junto a um “dispositivo diabólico” (diabolical device) que incluía um pouco de
uma substância radioativa dentro de um vidro, o cianureto de hidrogênio, que
seria quebrado por um martelo, caso um átomo radioativo, que estivesse em
uma superposição (1 e 2), decaísse. Se o átomo estivesse em 1, a amplificação
levaria o martelo a quebrar o vidro, o que mataria o gato. Se o átomo estivesse
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 231

em 2, a amplificação não afetaria o martelo e o gato viveria tranquilamente. O


destino do gato, portanto, estaria atrelado à probabilidade de o átomo decair
ou não. O que dava a probabilidade ½ de acionar o detector dentro de um
intervalo de tempo. “Se alguém deixar o sistema intocado por uma hora, dirí-
amos que o gato ainda estaria vivo caso durante esse tempo nenhum átomo
tivesse decaído” (SCHRÖDINGER, 1980, p. 328).

Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020

“O primeiro decaimento atômico o teria envenenado”(SCHRÖDINGER,


1980, p. 328). Nesse caso, decaimento atômico pressupõe a descida do martelo
e a consequente morte do gato. O triste aparato de Schrödinger deixaria o gato
com chance de 50% de estar vivo ou morto quando a caixa fosse aberta depois
desse tempo.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

232 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020

O evento três está diretamente vinculado a uma visão subjetivista do


colapso da onda que estava em voga desde a década de 1930, quando von
Neumann chegou à conclusão de que a consciência humana é o local do
colapso da função ondulatória, isto é, o colapso só ocorre quando o ser cons-
ciente observa o objeto quântico. Até que isso aconteça, o objeto quântico se
encontraria em uma situação de superposição de estados. No caso específico
do gato, ele se encontraria em uma superposição de gato vivo e morto até que
a caixa fosse aberta por alguém.

Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 233

Dessa forma, o estado quântico só seria plenamente definido com o ato


de observação.

Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020

Mas Schrödinger não estava de acordo com essa concepção. Para ele seria
um absurdo transferir a noção de objeto quântico para o nível dos objetos
clássicos, visto que, além de não existir superposições no nível clássico – o gato
certamente estaria vivo ou morto e não os dois ao mesmo tempo –, o estado
macroscópico também não é afetado pela a observação. Implícito no paradoxo
de Schrödinger estava a mesma conclusão por EPR: a física quântica é incom-
pleta! Será a hipótese dos estados relativos de Everett aquela a dar um enca-
minhamento para a situação do paradoxo do gato, pois, segundo essa hipótese,
“cada vez que captamos o caráter de um fóton, o Universo se divide em dois.
Em um mundo a luz é uma onda; no outro é uma partícula. Em um universo
o gato está vivo quando abrimos a caixa; na dimensão complementar o animal
foi morto pelo veneno” (BAKER, 2015, p. 74-75).

10.5 Hugh Everett III e a interpretação dos estados relativos


Hugh Everett III (1930-1982) foi o criador da “interpretação dos estados
relativos” da mecânica quântica. Trata-se de uma visão apresentada em uma
tese de doutorado no fim de 1955 e publicada em 1957, e que teve a orientação
de John Archibald Wheeler (1911-2008). Everett, Bohm e Bell compõem um
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

234 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

período importante da quebra da monocracia da interpretação de Copenhague


da mecânica quântica quando promoveram o início de um ambiente crítico
acerca dos fundamentos da interpretação ortodoxa da teoria quântica, depois
das críticas de EPR e Schrödinger, em 1935. Em virtude do caráter hetero-
doxo do trabalho de Everett, ele foi rejeitado por Bohr e seus partidários. Esse
trabalho possui características interessantes que conflitam com a interpretação
ortodoxa da mecânica quântica, mas que abrem as portas para um fértil campo
de pesquisas a partir de então. Trata-se de uma interpretação que, dentre outras
coisas, descarta o postulado da projeção ou da noção de colapso de função de
onda, insere o observador num estado de superposição, além de ser determi-
nística e descritivista.
A escalada de Everett teve início em 1953, quando ele graduou, com
magna cum laude, engenharia química pela Universidade Católica da América,
em Washington. De lá, teve a recomendação para ingresso no doutorado em
Princeton, cuja aceitação se deu no mesmo ano. Em 1955, Everett já apresenta
a Wheeler dois manuscritos: o primeiro deles acerca de como efetuar uma
medida quantitativa da correlação entre dois sistemas e o segundo sobre pro-
babilidade em ondas mecânicas – que é uma apresentação da interpretação de
Everett, sem utilizar o formalismo matemático. Interessante é que a resposta
de Wheeler é que, quanto ao primeiro, este lhe parecia praticamente pronto
para publicar, mas quanto ao segundo, ele se sentia “francamente tímido em
mostrá-lo a Bohr em sua forma atual” e acrescenta que o seu receio se justi-
ficava “por causa de partes sujeitas a más interpretações místicas por muitos
leitores não qualificados” (FREITAS, 2007, p. 53-54). Mas por que requerer
as bênçãos a Bohr? Qual a justificativa para a preocupação de Wheeler? O
que seriam as tais interpretações místicas dos ditos leitores desqualificados?
Segundo Freitas (2007), Wheeler devotava um grande apreço e admiração por
Bohr, desde muito tempo. Havia passado um período de estudos de pós-douto-
ramento em Copenhague examinando a estrutura nuclear. Com isso, terminou
por se tornar o porta-voz de Bohr nos EUA, nutrindo um grande sentimento
de amizade e de admiração desenvolvidos nos tempos de Copenhague. “Dessa
forma é possível compreender a necessidade que Wheeler sentia de ver a inter-
pretação do seu pupilo aprovada por Bohr” (FREITAS, 2007, p. 53).
A tese de Everett, propriamente dita, saiu no final de 1955 com o título
The theory of the universal wave function. Trata-se de um texto que apresenta
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 235

sua interpretação pronta, mas que sofreu posterior redução em virtude da não
aceitação das ideias por parte de Bohr e dos seus partidários. Isso “obrigou”
Wheeler a tomar frente da reformulação do texto e o reduzir de 137 para
somente 36 páginas, apresentando-o, em 1957, com um título bastante neutro
e genérico, On the foundations of quantum mechanics. A versão final ganhou
uma explicação da interpretação de Everett por parte de Wheeler, intitulada
Assessment of Everett’s “Relative State” Formulation of Quantum Theory, que foi
enviada para ser publicada juntamente com a tese. Por fim, a tese foi publi-
cada, juntamente com o texto de Wheeler, no Reviews of Modern Physics, um
modesto periódico que não permitiria a projeção das ideias de Everett entre os
físicos de sua época. Em vez disso, como a publicação se deu nos proceedings de
uma conferência sobre cosmologia, pareceu que o artigo era restrito a essa área,
não tendo muito impacto no campo da física quântica, pervertendo, assim, o
objetivo do ambicioso projeto inicial.
Mas o que era a interpretação dos estados relativos de Everett?
Costumeiramente, essa interpretação é conhecida como aquela que faz alusão
a um conjunto de ideias que tratam de uma infinidade de “universos paralelos”
coexistentes. Contudo, essa não é a ideia original de Everett, e se ela ganhou
essa conotação, isso se deve ao fato de Bryce DeWitt que, juntamente com o
seu aluno Neill Graham, organizaram e editaram, em 1973, uma coletânea dos
trabalhos não publicados de Everett e deram o título A Interpretação do Muitos-
Mundos da Mecânica Quântica (DEWITT; GRAHAM, 1973). Entretanto, é
importante salientar que existem diferenças fundamentais entre a interpretação
dos estados relativos e as interpretações dos muitos-mundos (vide BEN-DOV,
1990) e que Everett nunca utilizou o termo muitos-mundos. Contudo, essa
distinção raramente ocorre na literatura. A principal diferença entre a visão de
Everett e a de DeWitt é que, segundo Everett, haveria apenas um único uni-
verso, de comportamento completamente quântico, enquanto DeWitt acredi-
tava que cada ramo seria um universo clássico diferente.
O ponto de partida do trabalho de Everett foram os fundamentos da
mecânica quântica, tal como concebida e formalizada no trabalho de von
Neumann, os quais se tornaram objetos de análise e crítica no que diz res-
peito às suas falhas, especialmente o que diz respeito ao postulado de projeção.
Sabe-se que um dos grandes problemas da mecânica quântica está no ato da
medição, naquilo que diz respeito ao colapso de onda. Trata-se de um problema
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

236 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

que, em virtude do fato da não observação direta, origina uma série de inter-
pretações sobre o que pode ter ocorrido que justifique tal colapso. No geral, a
função de onda evolui linear e deterministicamente, de acordo com a equação
de Schrödinger, num estado de superposição de diferentes estados. Contudo, o
ato de medição real sempre encontra um sistema físico em um estado definido.
Outra possibilidade de o sistema evoluir é passar instantaneamente, quando do
processo de medição, de uma superposição de autoestados para um autoestado
específico. Se na primeira interpretação problemas não são encontrados, visto
que ela está de acordo com o eletromagnetismo de Maxwell, bem como com a
física de I. Newton, para o segundo caso, temos um problema em aberto para
ser resolvido pela mecânica quântica, a saber: como ocorre o colapso da fun-
ção de onda? E o que justifica um estado de superposição se colapsar em um
autoestado? Esse problema é conhecido como problema da medição e ocupou
vários físicos desde os primórdios da física quântica.
Em 1932, von Neumann introduziu o postulado que denominou de “pos-
tulado de projeção”, anteriormente conhecido como “redução do pacote de
onda”. Segundo esse postulado, a equação de Schrödinger não teria validade
durante os processos de medição. Dessa forma, teríamos dois processos: o pri-
meiro na ausência de medição, no qual o processo seria regido pela equação de
Schrödinger, evoluindo de modo linear, contínuo e determinístico; e o segundo
ocorrendo durante a medição, onde o processo evoluiria regido pelo postulado
de projeção, sendo não linear, descontínuo e probabilístico.

Como a interação de medição, regida por esse postulado, é sempre feita


por um observador que é externo ao sistema quântico e não pode ser
descrito por esse formalismo (ao menos não enquanto no papel de obser-
vador), essa formulação também pode ser chamada de formulação da
observação externa (FREITAS, 2007, p. 16).

A formulação convencional da mecânica quântica segundo Everett, por-


tanto, é esta:

Consideramos a formulação convencional da Mecânica Quântica, ou


“formulação da observação externa”, como sendo essencialmente a
seguinte: um sistema físico é completamente descrito por uma função de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 237

estado, que é um elemento de um espaço de Hilbert, e que ademais dá


informação apenas no que tange à especificação das probabilidades dos
resultados das várias observações que podem ser feitas sobre o sistema por
observadores externos (EVERETT, 2012, p. 175).

Ainda assim, o postulado de projeção, que é responsável por fazer a cone-


xão entre a teoria e a experiência, tem as suas vantagens, a saber:

Explicar como se dá a evolução de estado de uma superposição para um


valor específico; em conjunto com a regra de Born63, fazer emergir o cará-
ter probabilista da teoria quântica, muito bem corroborado experimental-
mente; e, por fim, explica porque sempre obtemos os mesmos resultados
quando realizamos medições consecutivas (FREITAS, 2007, p. 16).

Mas se o postulado de projeção oferece tantas vantagens para o problema


da medição em mecânica quântica, qual teria sido o problema que Everett
encontrou nele? Quanto ao primeiro processo, isto é, na ausência de medição, o
processo seria regido pela equação de Schrödinger, evoluindo de modo linear, contínuo
e determinístico, para Everett, não há problema algum – não existe evidência
experimental que contradiga isso. Entretanto, no segundo processo que ocorre
durante a medição, onde o processo evoluiria regido pelo postulado de projeção, sendo
não linear, descontínuo e probabilístico, a questão que se impõe é: como imaginar
um sistema que evolui da superposição para um autoestado ou estado redu-
zido? O que causa essa redução? É o aparato experimental? É a consciência do
observador como sugeriu von Neumann? São questões como estas que põem
em xeque o problema da medição na mecânica quântica e foi objeto de reflexão
por parte de Einstein, Schrödinger, Heisenberg e Bohr, por exemplo. No caso
de Borh, já sabemos de antemão qual era a sua resposta. Segundo ele, esse fato
não representa necessariamente um problema, pois se trata de uma caracte-
rística inerente ao sistema que, em virtude disso, o torna especial. Entretanto,
para Everett, isso institui problemas profundos que sugerem a revisão dos fun-
damentos da mecânica quântica. Outro argumento do autor é que o postu-
lado de projeção é incompatível com a hipótese de localidade, pois sugere um

63 Trata da probabilidade de um sistema descrito por uma superposição de estados se encontrar em


um estado particular quando uma medição for efetuada.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

238 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

emaranhamento entre partículas que as faz comunicar de modo instantâneo,


ou de forma “fantasmagórica”, como havia sugerido Einstein e criticado EPR.
Segundo Freitas (2007), Everett aponta que ainda há mais três problemas
para a teoria quântica envolvendo esse tipo de evolução do estado físico do
sistema, são eles:
a) Aquilo que ficou conhecido como paradoxo do amigo de Wigner,
que é um desdobramento do paradoxo do gato de Schrödinger, que
emerge quando se tenta tratar da evolução do estado utilizando mais
de um observador.

Podemos pegar um sistema qualquer S e colocá-lo para evoluir no tempo


até uma observação feita por A. Porém, podemos tomar o sistema A+S
como constituindo um outro sistema fechado, S’, esse sujeito a observa-
ções de B. Então temos a seguinte questão: B possui ou não a função de
estado do sistema S’? Se negarmos que B possa usar a mecânica quân-
tica para descrever o sistema S’, então a teoria é incompleta porque não
permite que observadores como A, que no fundo não são nada além de
um conglomerado (extremamente complexo) de sistemas microscópicos,
sejam tratados dentro da teoria. Em especial existe o problema que a teo-
ria não específica o que pode ser tratado quanto-mecanicamente e o que
não pode, ou seja, o que é observador e o que é sistema. Porém, se permi-
timos que B tenha acesso a função de estado de S’ AS+, então enquanto B
não interagir com esse sistema, ou seja, não efetuar nenhuma observação
sobre ele, o sistema deve evoluir deterministicamente e nenhum tipo de
redução de estado pode ocorrer, mesmo que A esteja continuamente efe-
tuando observações sobre o sistema S. Nesse caso, temos que duas opções.
A primeira é que A está fazendo uma descrição incorreta do sistema S,
pois como a evolução de ambos é determinística, ele não poderia ter obser-
vado nenhum tipo de colapso. Mas se de fato A pode observar colapsos
da função de onda do sistema S e sua descrição é correta, então temos a
outra opção, que B não pode ter acesso à função de onda adequada para
descrever S’, pois de acordo com sua descrição nenhum colapso pode ter
acontecido e a evolução permaneceu linear e determinística. Assim, ou A
ou B podem ter acesso à descrição quântica objetiva do sistema sujeito
à observação, mas nunca ambos simultaneamente (FREITAS, 2007, p.
18-19).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 239

b) Aquele da impossibilidade de descrever medições imperfeitas utili-


zando-se de operadores de projeção. Nesse caso, o aparato interage
com o sistema físico, o que inviabiliza o conhecimento do que é “preci-
samente o resultado marcado no aparato e qual o estado remanescente
do sistema”. Para ser adequada, a teoria deveria especificar ambos, bem
como “a probabilidade de cada leitura em particular acontecer, o que
ela não faz” (FREITAS, 2007, p. 19).
c) Aquele contra a formulação da observação externa da teoria quântica,
no que diz respeito à descrição do universo fechado lançando mão da
presença de observadores externos.

Se o universo é um sistema completamente fechado, então não existem


observadores externos para efetuarem a transição de um estado para
outro, ou seja, induzir o colapso de função de onda e obter estados especí-
ficos e fica em aberto a questão de porque o universo não parece estar em
uma superposição (FREITAS, 2007, p. 19).

Em suma, a tese central dos problemas aqui expostos está envolta na


questão de como aplicar a teoria quântica aos sistemas isolados dispensando
um observador externo. É em virtude destas, e de outras questões, que Everett
afirma que

[...] a interpretação de Copenhague é irremediavelmente incompleta por


causa de sua dependência a priori da física clássica (excluindo por prin-
cípio qualquer dedução da física clássica a partir da teoria quântica, ou
qualquer investigação adequada do processo de medição), bem como por
ser uma monstruosidade filosófica, ao afirmar um conceito de “realidade”
para o mundo macroscópico e negá-lo para o microcosmo (EVERETT,
2012, p. 255).

Se assim o é, qual será a saída proposta para Everett? Segundo ele, exis-
tem duas maneiras fundamentalmente diferentes em que a função de estado
pode mudar:
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

240 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Processo 1: A mudança descontínua trazida pela observação de uma


quantidade com autoestados, ϕ1, ϕ2, ..., pela qual o estado ψ será alterado
para um estado ϕj com probabilidade |(ψ,ϕj)|2.
Processo 2: A mudança contínua, determinística, do estado de um sis-
tema isolado ao longo do tempo, de acordo com a equação = Aψ,
onde A é um operador linear. (EVERETT, 2012, p. 176)

O que Everett propõe, portanto, é eliminar a postulação do processo 1 e


considerar a mecânica ondulatória pura apenas aquela do processo 2, coinci-
dente com o processo ausente de medição, conforme von Neumann, que evolui
de modo linear, contínuo e determinístico. Dessa forma, dá para antecipar que
Everett acabará por contornar o problema da medição, descartando o processo
de colapso pela reformulação da relação entre o aparato de medição e o sis-
tema, de tal forma que uma linha das leis da mecânica quântica seja universal,
ou seja, os sistemas quânticos evoluiriam de modo linear e deterministica-
mente, de acordo com a equação de Schrödinger. O universo como um todo
deverá ser descrito por uma única função de onda. E é justamente a noção de
“estados relativos” relacionados a sistemas compostos que nos confere a justi-
ficativa para a eliminação do processo 1. Segundo Everett (2012, p. 179-180):

[...] Não existe algo como um único estado para um subsistema de um


sistema composto. Subsistemas não possuem estados que sejam inde-
pendentes dos estados do resto do sistema, de modo que os estados dos
subsistemas são geralmente correlacionados uns com os outros. Pode-se
arbitrariamente escolher um estado para um subsistema e assim ser levado
para estado relativo do resto. Assim, deparamo-nos com uma fundamental
relatividade de estados, que é implicada pelo formalismo de sistemas com-
postos. É sem sentido nos perguntarmos sobre o estado absoluto de um
subsistema – pode-se apenas perguntar qual o estado [de um subsistema]
relativamente a um dado estado do resto [do sistema composto].

Estados relativos seriam, portanto, um estado onde o estado do obser-


vador é definido em relação ao estado do sistema que ele observa. Essa noção
de estados relativos torna-se beligerante com a interpretação ortodoxa quando
aplicada a sistemas macroscópicos – algo como o gato de Schrödinger –, envol-
vendo observadores e aparelhos de medição.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 241

Será suficiente aos nossos propósitos considerar observadores como


detentores de memórias (i. e., partes de uma natureza relativamente
permanente cujos estados estão em correspondência com as experi-
ências passadas dos observadores). Com o intuito de fazer deduções
sobre as experiências passadas de um observador, é suficiente deduzir
os conteúdos presentes da memória, tal qual aparecem dentro de um
modelo matemático.
Como modelos de observadores, podemos, se assim desejarmos, consi-
derar automaticamente máquinas funcionais, possuidoras de aparatos
sensoriais e acopladas a instrumentos de gravação capazes de registrar
os dados sensoriais passados e as configurações da máquina [...]. Se con-
siderarmos que os dados sensoriais atuais, assim como as configurações
do aparelho, são imediatamente gravados na memória, então as ações
da máquina em um dado instante podem ser consideradas como função
apenas dos conteúdos da memória, e todas as experiências relevantes da
máquina serão contidas na memória (EVERETT, 2012, p. 183).

Se assim o é, na interpretação dos estados relativos, a noção de que o


“colapso” ocorre durante as medições é apenas uma ilusão que está ligada à
nossa trajetória de configurações de memória, isto é, todas as experiências relevantes
da máquina serão contidas na memória. Dessa forma, Everett afirma o realismo
determinístico e evita qualquer reviravolta antirrealista do programa ortodoxo
da interpretação da mecânica quântica.
No caso do estado relativo do observador, este, ao olhar para o resultado
do seu experimento, entraria também num estado de superposição quântica, e
não haveria mais somente uma versão, e sim duas do mesmo, isto é, dois ramos,
cada qual percebendo um resultado diferente para o experimento. Se não há
colapso – em experimentos que envolvem as propriedades da luz, por exemplo
–, não há porque se falar dele e muito menos sobre incerteza. O que acontece
é que em um ramo, um observador numa superposição quântica, irá observá-la
como onda e, no outro ramo, como partícula.

Chegamos assim ao seguinte panorama: ao longo de toda uma sequência


de processos de observação, existe apenas um único sistema físico represen-
tando o observador, e, no entanto, não há um único estado singular para
o mesmo (o que se segue das representações de sistemas em interação).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

242 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Não obstante, há uma representação em termos de uma superposição, cada


elemento da qual contém um estado do observador definido e um corres-
pondente estado do sistema. Assim, com cada observação (ou interação)
sucessiva, o estado do observador ramifica-se em um número [qualquer]
de diferentes estados. Cada ramo representa um resultado diferente para
a medição e o correspondente autoestado para o estado do objeto-sistema.
Todos os ramos existem simultaneamente na superposição após qualquer
sequência de observações (EVERETT, 2012, p. 188-189).

Cada ramo há de corresponder a um resultado da medição quântica e


a memória do observador, em um dos ramos, não teria acesso à memória do
outro, em outro ramo. Dessa forma, o observador teria acesso apenas a um dos
resultados da medição que foi produzida e, com isso, à consequente sensação
da ocorrência de um colapso do estado quântico. Na verdade, ele teria entrado
numa superposição macroscópica e nenhum colapso de fato ocorreu, apenas a
aparência desse colapso.
Como vimos, as consequências da interpretação dos estados relativos de
Everett foram profundas: descartou o postulado da projeção e o consequente
colapso de função de onda, inseriu o observador num estado de superposição,
derrubou a noção de observador externo ao sistema, apresentou uma interpre-
tação realista, determinista, linear e descritivista da mecânica quântica.
Se Jammer avalia que a interpretação de Everett não é satisfatória nem
em relação à “consistência lógica nem em relação à concordância com a expe-
riência” ( JAMMER, 1974, p. 513), ainda assim, tal interpretação representou
mais uma pedra no sapato de Bohr. Em virtude disso, era de se esperar a reação
que o físico dinamarquês e seus partidários tiveram diante da interpretação
dos estados relativos, rejeitando-a sumariamente e tornando a visita de Everett
a Bohr, em Copenhague, um verdadeiro “inferno”. A consequência de tama-
nha decepção foi Everett abandonar o campo da física e montar a sua própria
companhia, a Lambda Corp.114. Depois da visita a Bohr, Everett nunca mais
trabalhou com temas de teoria quântica. A sua decepção com todo o processo
e com a falta de repercussão de sua teoria inovadora o desanimaram para a
pesquisa em física. Ele foi primeiramente trabalhar para o Pentágono na defesa
nacional e, posteriormente, continuou prestando serviços ao governo ameri-
cano através de suas empresas.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 243

Considerações Finais
Objetivou-se com os itens precedentes – tanto no Capítulo IX quanto no
Capítulo X – tratar, em termos gerais, de algumas interpretações da teoria quân-
tica. A escolha, entretanto, não foi aleatória, visto os objetivos do presente livro.
A princípio, acreditávamos que os primórdios da mecânica quântica (mecânica
de matriz e mecânica ondulatória), bem como a interpretação de Copenhague,
tinham informações prestimosas para a filosofia da ciência. Noções como as
de incerteza, superposição, colapso de onda quântica e complementaridade, ao
nosso ver, carregam informações importantes no que diz respeito ao contin-
gente de metafísica com a qual tais noções podem estar envolvidas. E é justa-
mente o caráter heterodoxo da mecânica quântica que propicia que tais teorias
desaguem no mar de metafísicas explicativas da natureza da realidade. A inde-
terminação e a falta do nexo causal (causalidade) comprometem a mecânica
quântica a ponto de nos fazer questionar sobre o status ontológico do conteúdo
que a envolve. O que se vê, num primeiro momento, conforme Heisenberg
havia chamado a atenção, é que a ontologia da física clássica, estruturada no
materialismo, no mecanicismo e no determinismo, já não tem qualquer ser-
ventia para os fundamentos da mecânica quântica. Esta requer uma nova base
ontológica, onde o antirrealismo e formalismo puro aparecem como princípios
fundamentais do novo campo que se inicia. No entanto, o realismo sempre
encontra suas formas para resistir aos ataques, conforme vimos no presente
capítulo.
O que nos resta perguntar, contudo, é sobre o limiar que se estabelece
entre o formalismo e a estrutura real da natureza. É essa questão que parece
ficar “em aberto” quando acessamos os conteúdos referentes à teoria quântica
no geral. Por outro lado, interpretações que se propuseram realistas, a exemplo
das que apresentamos nesse capítulo, também acabaram por se envolver com
termos estranhos e confusos que, parecem-nos, não constituir uma realidade
para além de novos formalismos. Dessa forma, noções como as de variáveis
ocultas, emaranhamento quântico e estados relativos parecem não nos socor-
rer quando da necessidade de um porto seguro acerca da realidade íntima da
natureza. Resta-nos, portanto, agarrar-nos na genialidade de um Einstein e de
um Schrödinger que, mantendo uma visão filosófica acerca da avaliação que
faziam dos sucessos da mecânica quântica, não embarcaram no entusiasmo da
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

244 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

maioria de seus colegas que tinham a interpretação de Copenhague como uma


espécie de mantra. A interpretação de Copenhague, conforme vimos, teve o
mérito de propiciar um debate fervoroso entre realistas e antirrealista, mas, por
outro lado, constituiu também um terreno fértil para o surgimento das mais
estranhas e esotéricas interpretações dos fenômenos quânticos que se deram
no campo do misticismo e que merecem um capítulo à parte.

Referências
BAKER, J. 50 ideias de física quântica que você precisa conhecer. Tradução de Rafael
Garcia. São Paulo: Planeta, 2015.

BELL, J. On the Einstein-Podolsky-Rosen. Physics, 1, 1964, p. 195-200.

BEN-DOV, Y. Everett’s theory and the “many-worlds” interpretation. American


Journal of Physics, v. 58, n. 9, p. 829-832, 1990.

BOHM, D. A Suggested Interpretation of Quantum Theory in terms of “Hidden”


Variables, I and II. Physical Review, n. 85, p. 166-193, 1952.

BOHM, D. Quantum Theory. New York: Prentice-Hall, 1951.

BOHR, N. (1935). A descrição da realidade física fornecida pela mecânica quântica


pode ser considerada completa? Tradução de Cláudio Weber Abramo. Cadernos de
História e Filosofia da Ciência, São Paulo, UNICAMP, n. 2, p. 97-106, 1981.

BOHR, N. O Debate com Einstein. In: BOHR, N. Física Atômica e Conhecimento


Humano: Ensaios 1932-1957. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto,
1995.

BROWN, H. R. O Debate Einstein-Bohr sobre a mecânica quântica. Cadernos de


História e Filosofia da Ciência, São Paulo, UNICAMP, n. 2, p. 51-81, 1981.

DEWITT, B. S.; GRAHAM, N. The Many-Worlds Interpretation of Quantum


Mechanics. New Jersey: Princeton University Press, 1973.

EINSTEIN, A.; PODOLSKI, B; ROSEN, N. (1935). A descrição da realidade física


fornecida pela mecânica quântica pode ser considerada completa? Tradução de Cláudio
Weber Abramo. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, São Paulo, UNICAMP, n.
2, p. 90-96, 1981.

EVERETT III, H. The Everett Interpretation of Quantum Mechanics: Collected Works


1955-1980 with Commentary. New Jersey: Princeton University Press, 2012.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE 245

FREIRE JR., O. David Bohm e a controvérsia dos quanta. Campinas: Unicamp – Centro
de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 1999. (Coleção CLE, v. 27)

FREITAS, F. H. A. Os Estados Relativos de Hugh Everett III: uma análise histórica


e conceitual. 2007. 70 f. (Dissertação de mestrado – Programa de Pós-graduação
em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Universidade Estadual de Feira de
Santana, Feira de Santana, Bahia, 2007.

HERBERT, N. A realidade quântica: nos confins da nova física. Tradução de Mário C.


Moura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. (Coleção Ciência)

HOLTON, G. As raízes da complementaridade. Tradução de Dinorah de Oliveira


Mendes. Humanidades, v. 2, n. 9, p. 49-71, out./dez. 1984.

JAMMER, M. The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum


Mechanics in Historical Perspective. Nova York: Wiley-Interscience Publication,
1974.

McGRATH, J. A Formal Statement of the Einstein-Podolsky-Rosen Argument.


International Journal of Theoretical Physics, v. 17, n. 7, p. 557-571, 1978.

PESSOA JR., O. Mapa da Interpretações da Teoria Quântica. In: MARTINS, R.


A.; BOIDO, G.; RODRÍGUEZ, V. (org.). Física: Estudos Filosóficos e Históricos.
Campinas: AFHIC, 2006. p. 119-152.

PESSOA JR., O. Conceitos de Física Quântica. 4. ed. São Paulo: Livraria da Física,
2019. Vols. I e II.

PESSOA JR., O. Física Quântica: entenda as diversas interpretações da física quântica.


2007-2011. Disponível em: http://www2.uol.com.br/vyaestelar/fisicaquantica_
artigos.htm. Acesso em: 8 maio 2020.

SCHRÖDINGER, E. The Present Situation in Quantum Mechanics. In:


TRIMMER, John D. A Translation of Schrödinger’s “Cat Paradox” paper. Proceedings
of the American Philosophical Society, v. 124, n. 5, p. 323-338, oct. 10, 1980.

WHEELER, J. A.; ZUREK, W. H. (org.). Quantum Theory and Measurement. New


Jersey: Princeton Un. Press, 1983.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

CAPÍTULO XI

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO


RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS
CRIAM O UNIVERSO EM QUE VIVEM

Introdução

O
receio de Wheeler quanto às possíveis interpretações místicas do tra-
balho de Everett “por leitores não qualificados”, enfim, consumou-se.
Não só o trabalho de Everett, mas várias das interpretações da teoria
quântica tornaram-se objetos de especulações e aplicações que se deslocaram
do campo da física para o campo do místico. O poder explicativo e a gama
de aplicações sedimentaram a legitimidade desse novo campo da ciência, mas
também propiciaram que ela se tornasse vítima de várias interpretações que
extravasaram o seu campo de aplicação. Em virtude do sucesso da física quân-
tica, ela tem sido usada para os mais diversos fins, tendo em vista a necessidade
de dar credibilidade aos argumentos de quem a usa ou assegurar a confiança no
que está sendo exposto como uma verdade. Por exemplo, hoje pessoas vendem
colchão quântico, travesseiro quântico, panela quântica, calculadora quântica,
analgésico quântico, hidratante quântico, terapia quântica vibracional, enfim,
uma infinidade de “produtos quânticos”. Na esteira da hipocrisia administra-
tivo-organizacional, vem a “gestão quântica” e até o “coach quântico”. Difícil é
entender por que ele elegeu esse nome! Será porque é feito de partículas? Digo
isso porque a teoria quântica se aplica a descrever átomos, moléculas, suas inte-
rações mútuas e suas interações com diferentes formas de radiação. Qualquer
sentido para além do seu restrito campo de aplicação é má-fé e mau uso do
termo. O que aqui queremos chamar a atenção é justamente para esse mau uso
que as pessoas têm feito do termo “quântico”. E isso não é diferente quando se
trata do misticismo quântico.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

248 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

11.1 O misticismo quântico


Para fins de adiantamento, a fim de não fomentar no leitor posições pre-
conceituosas sobre o autor, gostaria de apressar minha posição acerca de temas
relacionados ao místico em geral. Sou de tradição mineira, portanto, cresci
numa comunidade onde um templo é muito mais que um edifício. Diante de
uma obra arquitetônica como aquela, as pessoas de lá se benzem, pensam em
Deus, sem se envergonharem de ter fé. Fui introduzido na religião católica e
coagido a passar por todo processo de formação espiritual daquela instituição
(batismo, primeira eucaristia e crisma). Tenho, portanto, influências psicoló-
gicas marcantes do meu processo de formação religiosa. Entretanto, foi jus-
tamente minha formação em filosofia que me fez ter uma visão diferente de
mundo. Não mantenho uma posição desafiadora, mas conciliadora com a ciên-
cia. Não acredito de forma literal nas diversas histórias da Bíblia e as concebo
muito mais por seu sentido figurado. Não acredito, por exemplo, no modelo
criacionista, tal como expresso na narrativa de Adão e Eva, bem como na lite-
ralidade de outras tantas histórias bíblicas. E por que isso tudo de partida? Para
adiantar ao leitor o caráter reticente que assumo diante do que aqui será posto
como misticismo quântico, principalmente quando este se apresentar como
desafiador da ciência.
O misticismo quântico teve o pontapé inicial no movimento hippie, que
surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos e que se colocava contra os
padrões familiares conservadores daquela época. Tratava-se de um movimento
de contracultura que, diante de uma sociedade que parecia não dar certo – com
suas guerras, ditaduras, polarizações no campo das ideias, consumismo exa-
cerbado –, propôs um modo alternativo de comportamento social. Os hippies
repudiavam o capital, o Estado e o individualismo de sua época. Em lugar
disso, optavam por uma vida em comunidade e em pleno contato com a natu-
reza. Vestiam roupas coloridas, os homens usavam barbas e cabelos compri-
dos, as mulheres andavam sempre com flores no cabelo, gostavam de músicas
acompanhadas por violão e de viverem em acampamentos. Revolucionaram o
movimento feminista ao dizer não ao machismo e à imagem de mulher-objeto.
Foi também a época da revolução sexual, quando a pílula anticoncepcional
tornou-se arma feminista na luta pelo direito ao prazer. Em suma, os hippies
recusavam a sociedade de consumo e a família tradicional. Eram admiradores
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 249

da cultura do Oriente e apreciavam a alimentação natural e o uso de aluci-


nógenos. Esse modo alternativo de vida nada mais era do que um recado à
sociedade de consumo e aos padrões familiares tradicionais (ROSZAK, 1972).
O campo das ciências acabou sendo marcado pela rebeldia daquela época:
pela geração paz e amor, pela luta pelos direitos civis, pela posição contrária à
guerra do Vietnã, pelo maio de 1968 na França, pelas filosofias orientais, pelas
drogas psicodélicas, pela telepatia etc. Dedicar-se à física, naquele contexto de
rebeldia, significava dedicar-se aos fundamentos teóricos da heterodoxa – não
ortodoxa – mecânica quântica e, para alguns, à possível conexão entre a física e
os poderes da mente. Dessa forma, tratar das teorias de EPR, Bell, Bohm, por
exemplo, era tratar de temas filosóficos e não físicos. Foi assim que, na década
de 1970, surgiu na Califórnia esse novo tipo de físico que mesclava física com
misticismo. Tratava-se de jovens formados nas melhores universidades dos
Estados Unidos, com os melhores dotes de competência acadêmica, mas com
suas vidas ligadas ao psicodelismo e ao misticismo.
O austríaco Fritjof Capra foi um dos precursores da relação entre o mis-
ticismo oriental e física quando da publicação, em 1975, do seu livro O Tao
da física. Ele viveu nos Estados Unidos na década de 1960, onde se envolveu
visceralmente com o movimento da contracultura, com o gosto pelo rock, com
o uso de drogas e com pesquisas com raios cósmicos. O próprio prefácio à
primeira edição da obra conta como foi o start da concepção do livro: sua
experiência em estar sentado na praia e “ver” cascatas de energia cósmica serem
criadas e destruídas e os átomos dos elementos participarem da dança cósmica,
o fez “ouvir” o ritmo e o som dessa energia. Ele confessa, entretanto, que para
sentir esse tipo de efeito transcendental, fora “ajudado pelas ‘plantas de poder’
– plantas alucinógenas – que me indicaram a forma pela qual a mente pode
fluir livremente, a forma pela qual as percepções espirituais surgem à tona, sem
qualquer esforço, emergindo das profundezas da consciência” (CAPRA, 2006,
p. 13, acréscimos e grifos nossos). Um rastro de obras semelhantes à de Capra
veio a seguir, formando o que hoje é chamado de misticismo quântico, que
constitui uma indústria que movimenta milhões em filmes, vídeos, workshops
e conferências.
Com a crise do petróleo da década de 1970, a rebeldia psicodélica junta-
-se à recessão econômica. Muitos jovens doutores em física ficaram desem-
pregados e voltaram-se aos estudos dos fundamentos da física quântica,
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

250 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

bem como dos poderes da mente. Os físicos Elizabeth Rauscher e George


Weissmann formaram um grupo de discussão conhecido como Fundamental
Fysiks Group (FFG). Esse grupo, da Universidade de Berkeley, reunia-se infor-
malmente para discutir os fundamentos filosóficos da física quântica. Dentre
os seus membros, estavam Jack Sarfatti, Fritjof Capra, John Clauser, Philippe
Eberhard, Nick Herbert, Saul-Paul Sirag, Henry Stapp e Fred Alan Wolf.
Segundo o historiador da ciência David Kaiser, em seu livro How the Hippies
Saved Physics (Como os hippies salvaram a física) (2011), teriam sido as ideias
desse grupo aquelas que vieram a formar as bases da ciência da informação
quântica contemporânea.
De fato, havia no grupo um real interesse nos estudos das variáveis ocul-
tas e do emaranhamento quântico. Desde 1969, Clauser juntamente com
os colegas Abner Shimony, Richard Holt e Michael Horne estudavam tais
fenômenos e haviam, inclusive, publicado um artigo intitulado Proposta de
Experimento para Testar Teorias de Variáveis Ocultas. A proposta era a de testar
as desigualdades de Bell com fótons, já que esses são mais fáceis de serem
gerados. Mas foi somente em 1972 que Clauser, juntamente com Freedman,
conseguiu violar as desigualdades de Bell. Utilizando-se de um aparato capaz
de polarizar pares de fótons entrelaçados, ele conseguiu medir essas polari-
zações. Clauser foi, então, convidado a participar da fundação do FFG e ali
tentava buscar uma explicação para o significado do seu experimento com um
debate que envolvia, segundo Kaiser, discussões sobre a possibilidade de comu-
nicação em velocidades maiores que a da luz, sobre a existência de dimensões
além das quatro conhecidas, a respeito da influência da mente sobre a matéria
e sobre a relação entre física quântica e paranormalidade. Segundo Elizabeth
Rauscher, até um especialista em óvnis foi levado para uma das reuniões do
grupo. Mas era a discussão sobre o teorema de Bell e suas consequências a
principal pauta de discussão desse grupo e um dos temas principais era sobre
a possibilidade de transmissão instantânea de informação através dos pares
entrelaçados de objetos quânticos. Nick Herbert, por exemplo, propôs um
mecanismo de transmissão capaz de transmissão instantânea de informação a
partir da possiblidade de amplificar, sem ruídos, um estado quântico; tese que
fora demonstrada impossível por Roy Glauber, já que a amplificação sempre
introduz ruídos. Henry Stapp empenhou-se na generalização do teorema de
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 251

Bell para casos que envolviam “mentes emaranhadas”. Jack Sarfatti, por outro
lado, defendia a ligação da física quântica com a paranormalidade.
Muitos desses físicos acabaram por formar grupos de vieses místicos para
vivenciarem as experiências nas quais acreditavam: Herbert fundou o CORE
Physics Technologium, onde desenvolvia o Tantra Quântico (fusão do ioga
tântrico com o misticismo quântico através da experiência sexual); Sarfatti,
juntamente com o místico Michael Murphy, fundou o Grupo de Pesquisa em
Consciência Física, cujos encontros aconteciam no Instituto Esalen – localizado
nos penhascos de Big Sur – entre os anos de 1976 e 1985. Para workshops de
Esalen achegaram-se personalidades importantes da física convencional, como
o Prêmio Nobel Richard Feynman. Também se tornou atento aos debates de
Esalen físicos famosos como John Wheeler que, mesmo mostrando-se interes-
sado nos assuntos discutidos, dizia que aqueles físicos eram malucos. Grupos
como esses passaram a ser financiados por pessoas como o milionário Werner
Erhard, fundador do Erhard Seminar Training (EST), que envolvia pessoas em
tratamento de choque; ou pelo Noetic Studies, fundado pelo astronauta Edwin
Mitchell, que teria tido uma experiência mística na órbita da lua; ou, então,
pelo maior financiador atual em questões que envolvam ciência, religiosidade
e parapsicologia, que é a Templeton Foundation.
Mas havia outro grupo bastante interessado na relação entre a física
quântica e os “fenômenos paranormais”, formado por Russell Targ e Hall
Puthoff, estudiosos em parapsicologia, que investigavam aqueles que diziam
ter o dom paranormal da “visão remota”, isto é, que podiam ver remotamente
cenas e situações ausentes. É justamente aqui que aparece o ilusionista israe-
lense Uri Geller. Geller tratava-se de um habilidoso fazedor de dinheiro que
fez fortunas “entortando colheres” e “fazendo relógios pararem” usando apenas
do poder da mente. Tais habilidades mentais foram desmascaradas pelo tam-
bém mágico cético-científico James Randi64; o mesmo Randi “que afirmou,
por sinal, que os físicos são as piores pessoas para investigar os fenômenos
paranormais, pois seriam muito crédulos para perceber os detalhes dos truques
e muito arrogantes para admitir seus próprios erros” (PESSOA JR., 2007-11,
p. 84). No caso dos estudos de Targ e Puthoff sobre os poderes de Geller, os

64 Quem não se lembra do Randi, no programa “Fantástico”, dando um milhão de dólares para
quem provasse ter poderes paranormais, afugentar Thomaz Green Morton, o “homem do Rá” e
guru das estrelas, que dizia ter poderes paranormais?!
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

252 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

resultados foram publicados na revista Nature e receberam uma chuva de crí-


ticas. Entretanto, ainda assim, tais estudos atraíram um consórcio de agências
de inteligências americanas, dentre elas a CIA e o Exército, que passaram a
financiar pesquisas sobre poderes parapsicológicos no sentido de desvendarem
os segredos da União Soviética através do artifício da visão remota, tudo isso
dentro de um projeto que ficou conhecido como Projeto Stargate. O resultado
de tais experimentos chegou a Sarfatti, que entrou em contato com os idea-
lizadores e foi convidado para conhecer o laboratório. Foi ali que ele recebeu
o convite para realizar testes na Europa, para onde Geller estava se dirigindo
em viagem de negócios. Em 1974, Sarfatti estava num laboratório inglês, ao
lado do físico David Bohm, para realizar experimentos de laboratório sobre os
poderes Geller. Elizabeth Rauscher também foi contratada por Targ e Puthoff
como consultora encarregada de explicar conceitualmente os resultados dos
experimentos com paranormalidade, o que acabou por resultar na formação
do FFG.
De certa forma, a formação do FFG foi influenciada pelos testes feitos
com Geller e tudo aquilo era parte de espionagem financiada pelos órgãos de
inteligência norte-americanos. Por mais que tais pesquisas se encaminhassem
com uma certa normalidade e com um certo grau de histeria que envolvia todo
o contexto, a maior parte dos físicos convencionais era hostil ao movimento
que se desenrolava naquela época. O FFG durou apenas quatro anos, mas o
contingente de obras e a influência mística por ele inspirada continuaram até
os dias atuais. Vasta é a literatura sobre a temática que envolve a física quântica
e o misticismo e que abarca, principalmente, a relação entre matéria e mente.
Algumas das obras mais importantes são: O Tao da física e O ponto de muta-
ção, de F. Capra; The Dancing Wu Li Masters, de Gary Zukav; Mind-reach, de
Harold Puthoff e Russell Targ; Espaço-tempo e além, de Fred Wolf; O ser quân-
tico, de Danah Zohar; Mind, matter and quantum mechanics e Mindful universe,
de Henry Stapp. Além desses, há uma infinidade de obras que vislumbram
relacionar a física quântica aos mais variados campos do conhecimento que
não envolvem diretamente a física teórica, nem a produção de tecnologia: psi-
cologia, administração, economia, literatura fantástica, religião, terapias ocu-
pacionais etc. Certo é que o uso inapropriado do termo quântico acaba por
conferir legitimidade, destaque e projeção por se fazer acreditar que aquilo
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 253

sobre o qual está sendo anunciado trata-se de uma verdade “cientificamente


comprovada”.
E, quanto ao uso do termo advindo dos próprios místicos quânticos,
como entendê-lo? Apesar do amplo panorama do que pode ser chamado de
misticismo quântico, iremos aqui tratar dos argumentos que versam sobre a
existência de uma conexão essencial entre física quântica e consciência. Dessa
forma, apresentaremos as teses do observador participante, da mente quântica e
da comunicação quântica, por sinal, muito bem trabalhadas por Pessoa Jr. (2007-
11; 2011; 2013), que aqui será nossa base de fundamentação.
Quanto à tese do observador participante e seus desdobramentos, apesar
de dita científica, constitui exatamente aquilo que incomoda o filósofo estu-
dioso da teoria quântica. No geral, o que se espera da ciência ao versar sobre
a realidade é que a realidade venha à tona, que os fatos sejam demonstrados
de maneira realística, que nenhuma tese científica se envolva com elementos
metafísicos intransponíveis e que a ciência possa demonstrar a materialidade
– ou os efeitos materialmente dados – do objeto sobre o qual ela trata. Essa é
uma espécie de provocação, muitas vezes injustificada, visto que nem sempre
o caráter realístico dos termos teóricos pode ser assegurado. Por outro lado,
qualquer teoria que tente abarcar os fundamentos últimos da realidade, por-
tanto, sua ontologia, é carregada de conotação metafísica. Tais termos teóricos
são importantes porque, ao se desconsiderar a existência de determinada enti-
dade expressa por eles, pode-se colocar em colapso o sistema como um todo.
Contudo, nem por isso tais teorias deixam de possuir uma conotação mística
pelos elementos nela envolvidos e pela forma como foram pensadas. Muitas
vezes soluções teóricas ad hoc são introduzidas a fórceps, o que assegura o cará-
ter confuso da própria teoria.
A tese do observador participante, portanto, desdobra-se em quatro ver-
tentes: a) o objeto observado é inseparável do sujeito; b) o observador humano
é o responsável pelo colapso da onda quântica; c) o observador escolhe se o
fenômeno é onda ou partícula; d) o observador cria a realidade (PESSOA JR.,
2011).
Por mais que a tese de que “o objeto observado é inseparável do sujeito”
possa ser tratada por Pessoa Jr. (2011) como uma tese que não é necessaria-
mente mística e nem idealística, ainda assim, salta-nos aos olhos a estranheza
do argumento que lhe sustenta. Segundo o autor, Bohr teria introduzido essa
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

254 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

tese na teoria quântica quando disse que “uma realidade independente no


sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos
agentes da observação” (BOHR, 1928 apud PESSOA JR., 2011, p. 287). Isto
é, se o objeto é um fenômeno observável, então ele é inseparável do sujeito –
não existe a “coisa em si”, todo fenômeno só é fenômeno porque é observável.
Se assim o é, não existe uma independência da existência da natureza com
relação à existência do sujeito? Se para você a natureza existe independente-
mente do sujeito ou da mente que a observa, então, você adota uma postura
realista perante a natureza. Se, ao contrário, a realidade existe somente porque
há um sujeito pensante, observador e atribuidor de sentido, então, essa posição
é antirrealista, pois condiciona a existência da realidade à existência do obser-
vador dotado de racionalidade. Essa foi uma tese antirrealista de Bohr que,
como qualquer antirrealismo (ou idealismo), está carregada de metafísica em
seu caráter místico, naturalístico e animístico.
A segunda tese é a de que “o observador humano é responsável pelo
colapso da onda quântica”. Fiquei muito impressionado quando vi a saída de
von Neumann para a questão do colapso da função de onda. Duas eram as
curiosidades de von Neumann no que diz respeito à teoria quântica: a primeira
era encontrar o lugar natural onde a cadeia pudesse interromper, propiciando
o colapso da onda quântica; e a segunda era sobre o que era responsável por tal
colapso. Para o primeiro problema, conforme vimos, von Neumann descobriu
que é possível seccionar a cadeia e incluir o colapso em qualquer ponto que se
desejasse, isso porque os resultados não nos fornecem quaisquer indícios sobre
onde se localiza a divisão entre o sistema e o instrumento de medição. E para
o segundo problema, ele chegou à conclusão de que a consciência humana é
o local do colapso da função ondulatória65. O problemático aqui é justamente
admitir a concepção de que é a consciência do observador que responde pelo
colapso da onda quântica. Trata-se de um dado curioso o fato de que, ao se
propagar, o objeto quântico seja uma onda e, quando medido, apresente-se
como partícula. No entanto, a explicação para tal fato não pode se reduzir a um
artifício ad hoc como esse.
Se tomarmos a explicação de von Neumann apenas como representação
matemática, para fins de cálculo, a justificativa é plausível. Mas

65 Segundo Pessoa Jr. (2011, p. 287), “esta tese é atribuída a von Neumann, mas quem a apresentou
em uma publicação foram Fritz London e Edmond Bauer (1939)”.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 255

é apenas quando a onda quântica é interpretada de maneira realista e


quando a noção de “observação” necessariamente implica a presença de
um observador consciente (ou seja, o colapso não poderia ocorrer apenas
com a interação do sistema quântico, com um instrumento de medição),
que essa interpretação torna-se mais “mística” (PESSOA JR., 2011, p.
287).

Quanto ao fato de que “o observador escolhe se o fenômeno é onda ou


partícula”, no processo de medição quântica – inclusive de forma demorada,
isto é, após o objeto quântico entrar no aparelho (PESSOA JR., 2007-11, p.
23-26) –, isso é fato passível de se verificar, a saber: se o experimento é enca-
minhado para exibir franjas de interferência, o processo é ondulatório; se se
consegue inferir a trajetória do objeto quântico detectado ou se ele aparece
como um ponto, esse fenômeno é corpuscular. O físico quântico, segundo a
complementaridade de Bohr, pode escolher medir um ou o outro fenômeno
(onda ou partícula). Assim, tal escolha torna-se dependente do caráter subje-
tivo envolvido na relação sujeito-objeto. Entretanto, “se os fenômenos corpus-
cular e ondulatório forem interpretados como diferentes estados da realidade,
então esta escolha passaria a ser interpretada como um poder de transformar a rea-
lidade” (PESSOA JR., 2011, p. 288, grifos nossos). E aqui está o questiona-
mento sobre o tom místico da questão: se é dado ao observador o “poder de
transformar a realidade”, poderia a vontade humana controlar o processo de
medição? Segundo o experimento de escolha demorada proposto por Carl von
Weizsäcker, em 1931, envolvendo duas partículas emaranhadas,

a escolha de como montar a aparelhagem afetaria o tipo do fenômeno


(onda ou partícula) da partícula localizada a distância, mas a vontade
humana não poderia controlar os resultados obtidos nas medições (senão
ter-se-ia transmissão instantânea de informação, o que é proibido pela
Teoria da Relatividade)” (PESSOA JR., 2011, p. 288).

De qualquer forma, esse tipo enunciado dará sempre a abertura para


introdução de interpretações místicas que surgem da divagação proporcionada
a partir desse tipo de entendimento do funcionamento da realidade.
Por fim, ainda dentro da tese do observador participante, temos a concep-
ção de que “o observador cria a realidade”. Essa tese coaduna com a expectativa
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

256 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

de que, em ciência, especialmente em física, há um procedimento que é his-


tórico, que é o de “fabricação da realidade”. Essa noção não é nova e aparece
em obras que pretendem discutir, ou mesmo combater, a postura idealista de
muitas teorias científicas. A física quântica, por seu caráter de indeterminação,
descontinuidade e não-localidade é vítima desse tipo de acusação, a exemplo
do que fez Pascual Jordan, em 1929, quando a acusou de idealista e subjeti-
vista. Fato notório da acusação de que no misticismo quântico o observador
cria a realidade está resumido nas três teses anteriores, quando são colocadas
num contexto fenomenalista: todas as teses supramencionadas não podem ser
aplicadas aos fenômenos da natureza!
O misticismo quântico se torna mais interessante, entretanto, quando
estendido para a tese da mente quântica. Essa tese desdobra-se também em
quatro direções: a) a consciência é um fenômeno quântico; b) o livre arbítrio é
garantido pelo princípio da incerteza; c) no dualismo corpo-alma a interação
entre os dois se dá por processos quânticos; d) o holismo quântico se manifesta
no cérebro (PESSOA JR., 2011).
Quanto à tese de que “a consciência é um fenômeno quântico”, a per-
gunta que se faz é sobre qual é o papel da teoria quântica nas teorias mate-
rialistas da consciência. Na verdade, há uma série de teorias favoráveis à tese
de que a física quântica é essencial para a consciência, por exemplo: a de que
o cérebro é um computador quântico (o que seria impossível, dado o fato de
que o cérebro é muito quente para a ocorrência de uma computação quântica);
a de que o cérebro computaria funções não-recursivas através da dita intuição
matemática, coisa que o computador não faz – daí deve haver alguma pro-
priedade quântica que seria a responsável por essa nossa grande capacidade
intelectual; a de que o cérebro seria regido por leis análogas às da mecânica
quântica, dessa forma, as funções cerebrais podem ser descritas por um “campo
dendrítico” que obedece à equações da teoria quântica de campos; a de que a
liberação de neurotransmissores é um processo probabilístico que só pode ser
descrito pela física quântica; a de que é no nível subneuronal, portanto, num
nível que só pode ser adequadamente descrito pela física quântica, que ocorre o
processamento da informação; por fim, a de que a mecânica quântica explicaria
fenômenos de percepção extrassensorial (PESSOA JR., 2007-11, p. 29-30).
No entanto, todas essas teses têm como questionamento de fundo, inclusive
na neurociência, a necessidade da física quântica para as explicar. O que tem
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 257

de misticismo nessas ideias é a defesa implícita de uma postura naturalista


animista, que embasa o princípio da identidade entre as leis da natureza e as
leis do indivíduo, que querem justificar teses para sustentar a chamada comu-
nicação quântica. Algo mágico e incrivelmente extraordinário!
Sobre a tese mística de que “o livre-arbítrio é garantido pelo princípio
da incerteza”, temos em sua defesa Arthur Eddington que, em 1932, deu-lhe
respaldo com o princípio de Heisenberg. A ideia geral é: “se o átomo tem
uma indeterminação, certamente a mente humana terá uma indeterminação
igual; pois dificilmente poderíamos aceitar uma teoria que faz a mente ser
mais mecanicista do que o átomo” ( JAMMER, 1966, p. 337 apud PESSOA
JR., 2011, p. 289). Segundo Pessoa Jr. (2011), a questão do livre-arbítrio não
implica em misticismo. Entretanto, o que se pergunta é: o que tem a ver um
princípio que defende a incerteza na medição simultânea da posição e da
quantidade de movimento de um objeto quântico com a tese do livre-arbítrio?
A sentença “se o átomo tem uma indeterminação, certamente a mente humana
terá uma indeterminação igual” não pode ser justificativa para a questão do
livre-arbítrio, mesmo sob a hipótese de que a mente não possa ser mais mecani-
cista que o átomo. Ainda assim, essas noções místicas são inseridas à força na
teoria quântica sem qualquer justificativa de sua plausibilidade.
Sobre a “interação alma-corpo ocorrendo por processos quânticos”,
Pessoa Jr. (2011, p. 290) afirma que “o misticismo quântico é muito próximo
de posições dualistas, para as quais a alma não emerge da matéria, mas tem
existência autônoma”. Essa noção, contudo, não é nova da história da filosofia
e tem Descartes como o seu maior defensor: res cogitans (consciência racional,
pensamento) e res extensa (mundo material, extensão) representam instâncias
autônomas que se interagem na glândula pineal. No caso do misticismo quân-
tico, “John Eccles é conhecido por defender uma visão dualista e por suge-
rir que a alma (ou mente) atuaria durante a liberação de neurotransmissores,
processo probabilístico regido pela física quântica, alterando levemente essas
probabilidades” (PESSOA JR., 2011, p. 290). Em sua perspectiva dualista, essa
baixa alteração probabilidade de exocitose (liberação de neurotransmissores)
constituiria um mecanismo de ação da mente sobre o cérebro que só poderia
ser explicada pela teoria quântica. Restaria, entretanto, que Eccles mostrasse
que a mecânica quântica, de fato, é necessária para explicar esse fenômeno e
como ele estaria ligado com a emergência da consciência.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

258 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

Por fim, dentro da tese da mente quântica, ainda temos a questão do


“holismo quântico se manifesta no cérebro”. Essa tese da integração do cére-
bro (o cérebro é altamente interligado) é uma das consequências da aplicação
da noção de emaranhamento quântico proveniente das desigualdades de Bell,
dentro do campo do misticismo. “No entanto, o cérebro é um sistema muito
grande e quente para que o emaranhamento desempenhe um papel de inte-
gração cerebral” (PESSOA JR., 2011, p. 290). Por outro lado, essa pretensa
integração do cérebro pode ser compreendida dentro do mundo clássico – dis-
pensando, portanto, a explicação quântica –, onde há um limite para a veloci-
dade da propagação da informação. O emaranhamento quântico, por exemplo,
é um fenômeno de não-localidade, portanto, sugere transmissão de informação
instantânea, isto é, acima da velocidade da luz.
Por mais que Herbert Fröhlich, em 1968, tenha descrito o “condensado
biológico” semelhante aos condensados Bose-Einstein, aquele funciona à tem-
peratura ambiente, este somente a baixíssimas temperaturas.

Se tal condensado de fato existisse nas membranas neuronais, ter-se-


-ia um comportamento ordenado de longo alcance (mas não uma não-
-localidade, no sentido das desigualdades de Bell, já que tais sistemas
de condensados têm no máximo apenas pares próximos de partículas
emaranhadas), o que excita a imaginação de muitos místicos quânticos
(PESSOA JR., 2011, p. 290).

Resta saber, por fim, que a teoria quântica lida com átomos mais ou
menos isolados e os processos por ela explicados são quantitativos, isso, por si,
exclui também o caráter qualitativo desempenhado pelo cérebro e manifestado
nos sentimentos, emoções, percepção, memória etc. Dessa forma, a chave para
o entendimento da integração do cérebro não deve estar na noção de emara-
nhamento quântico, já que esse é um processo altamente quantitativo e não
envolve qualidades mentais.
A terceira vertente de teses místicas diz respeito à comunicação quântica.
Para mim, essa constitui o aprofundamento e a radicalização do misticismo
quântico a ponto de perder completamente os possíveis vínculos com a teoria
quântica. Os desdobramentos da tese da comunicação quântica, segundo Pessoa
Jr. (2011), são: a) mentes quânticas interagem à distância; b) não-localidade
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 259

entre mentes permite transmissão instantânea de pensamentos; c) o obser-


vador conseguiria influenciar a estatística de resultados quânticos; d) a mente
pode se acoplar ao universo, transformando-o com pensamento positivo; e) há
uma física quântica da alma e de Deus.
Mais uma vez, as desigualdades de Bell e a questão da não-localidade
foram utilizadas para fundamentar a tese mística de que “mentes quânticas
interagem à distância”. Dessa vez, mescla-se às desigualdades de Bell a psi-
cologia analítica de Carl Jung que, em um artigo intitulado Sincronicidade:
um princípio de conexão acausal, cunhou o termo “sincronicidade” para justificar
as relações acausais que estariam por trás das coincidências significativas da
vida. O tom da teoria, entretanto, já levanta de imediato suspeitas na mente
do materialista, pois, para ele, coincidências são coincidências e nada mais do que
isso! Contudo, tal concepção tem sido utilizada para identificar as correlações
de sistemas quânticos emaranhados que, segundo dizem, propiciam a comu-
nicação quântica entre mentes emaranhadas que se comunicam à distância de
forma imediata (não-localidade). “Dessa maneira, vários fenômenos parapsi-
cológicos, como a alegada capacidade de sentir eventos distantes (tipicamente
tragédias com familiares), passaram a ser explicados pelos místicos como sendo
uma manifestação da física quântica” (PESSOA JR., 2011, p. 291). Vê-se que
essa é mais uma apropriação indevida da teoria quântica que, utilizada dessa
maneira, acaba por justificar uma série de “fenômenos” inexistentes, dando-
-lhes um caráter de “cientificamente comprovado”. Quem nos dera anteci-
par imediatamente ocorrências de eventos! Se isso fosse possível, o caminho
reverso também seria, daí poderíamos comunicar à distância aos nossos fami-
liares sobre o perigo iminente de morte.
A tese de que “não-localidade entre mentes permite transmissão instantâ-
nea de pensamentos”, por outro lado, é um desdobramento, ou um caso típico,
da tese de que mentes quânticas interagem à distância. Essa tese foi divulgada
por Amit Goswami em seu livro A Física da Alma (2005), onde ele defende a
veracidade de um experimento do mexicano Jacobo Grinberg-Zylberbaum e
seus colaboradores que teriam conseguido transmitir instantaneamente pen-
samentos à distância e que isso teria sido repetido por outros pesquisadores.
Como vimos, trata-se de um exemplo de não-localidade quântica que, se fosse
verdadeiro, violaria a Teoria da Relatividade Restrita por infringir a lei de que
uma transmissão de informação não pode ser feita com uma velocidade acima
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

260 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

da velocidade da luz, que é tida como a velocidade limite do universo. É jus-


tamente por perverter os resultados da ciência ortodoxa que “experimentos”
como esses não são levados a sério pela física convencional.
Quanto ao fato de o “observador conseguir influenciar a estatística de
resultados quânticos”, dois engenheiros da Universidade de Princeton, Robert
Jahn e Brenda Dunne, relatam em seu livro Margins of Reality que em seus
experimentos conseguiram um efeito micropsicocinético, onde um observa-
dor consciente alterou as probabilidades em diferentes processos estocásticos
(aqueles cujos estados são indeterminados, com origem em eventos aleatórios).
Esses experimentos não foram reproduzidos por cientistas respeitáveis, visto
que a ciência ortodoxa nega a possibilidade de a mente afetar um material
externo ao corpo. Caso fossem eles aceitos, segundo pretendem os místicos
quânticos, teríamos a evidência de que a física quântica explica eventos para-
normais. Entretanto, “é desnecessário dizer que tais resultados não são aceitos
pela comunidade científica, para quem se trata de um caso de autoengano ou
de fraude proposital” (PESSOA JR., 2011, p. 291).
Sobre a tese de que “a mente pode se acoplar ao universo, transformando-
-o com pensamento positivo”, gostaria de indicar ao leitor, mais uma vez, a
leitura de Pessoa Jr., o qual vejo ter maior tato e preocupação com esse tipo de
tema entre os autores de língua portuguesa. Ele escreveu um excelente texto,
intitulado Análise de um Típico Argumento Místico-Quântico (2013), no qual
trata da tese mística da “lei da atração”, que não é mais do que aquela que
afirma que o pensamento positivo poderia transformar a realidade direta-
mente e à distância. Não me deterei aqui na análise do texto, minha intenção
é somente a de indicá-lo para o leitor. Em resumo, essa tese é apresentada no
filme O Segredo e assim pode ser descrita:

Ao entrar em contato com outras pessoas ou ambientes, nossa mente pode


entrar em um “emaranhamento quântico” com essas outras mentes ou até
com objetos. Mesmo após a separação, o estado emaranhado permanece.
Podemos então efetuar uma medição quântica e com isso provocar um
colapso não-local da onda quântica emaranhada. O resultado disso é a
transformação do estado da outra pessoa ou do ambiente. Dado que na
física quântica o observador pode escolher se o fenômeno observado será
onda ou partícula, podemos também escolher se o colapso quântico será
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 261

associado a uma energia-chi66 positiva ou negativa. Para isso, é preciso


treinar as técnicas de pensamento positivo, divulgadas em diversos livros
de autoajuda quântica. Uma vez que esse segredo é aprendido, pode-se
utilizar o pensamento para alterar diretamente a realidade, mesmo à dis-
tância, e assim transformar o mundo de uma maneira positiva para nós
(PESSOA JR., 2013, p. 173).

Pela própria forma do argumento e pelos termos centrais que a susten-


tam (“emaranhamento com outras mentes”, “transformação de estado da outra
pessoa”, “energia-chi”, “pensamento positivo”, “autoajuda quântica”, “segredo”,
“alteração da realidade”, “transformação do mundo”, por exemplo), vê-se que
tal concepção não é digna de confiança científica. Entretanto, para os místicos
quânticos, “esse é o segredo, conhecido pelos ricos e famosos de nossa história,
e só agora revelado para o grande público!” (PESSOA JR., 2011, p. 291).
Por fim, dentro da tese da comunicação quântica, temos a defesa de que
“há uma física quântica da alma e de Deus”. Teses como essas foram desen-
volvidas, mais uma vez, por Amit Goswami, professor aposentado de física
da Universidade de Oregon, escritor de livros de autoajuda (A Física da Alma,
Criatividade para o Século 21, O Ativista Quântico) e estudioso de parapsicolo-
gia, segundo ele, um campo que propiciava a interseção entre ciência e consci-
ência. No geral, as teses de Goswami – algumas supramencionadas – tendem
a conjugar o misticismo quântico com as visões religiosas. Sobre isso, na visão
de muitos físicos contemporâneos, nem precisa reforçar que se trata de pseu-
dociência, não merecendo a atenção daqueles que desenvolvem ciência com
seriedade. Isso é uma consequência de como a física convencional trata de
visões que pretendem ser científicas, mas cujas ambições estão aquém ou além
daquilo que é cientificamente admitido. Não se trata de presunção da ciên-
cia em alijar do seu campo aquilo que pretensamente não se diz científico.
Trata-se de estabelecer um delineamento a respeito daquilo que é passível e
não passível de se enquadrar em seu campo metodológico.
É certo que a física quântica sempre esteve envolvida com estranhe-
zas que a colocaram sob julgamento. Contudo, o que pode ser entendido ali

66 “Designarei por ‘energia-chi’ a noção mais mística de energia associada às antigas filosofias
orientais, especialmente o taoísmo, distinguindo-a do conceito de ‘energia’ usado na física mo-
derna” (PESSOA JR. 2013, p. 173).
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

262 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

como uma esquisitice insere-se num contexto específico que é orientado não
somente pela teoria, mas também por um processo experimental. Ao estudar
esse campo, vê-se o comprometimento com a elucidação da estrutura última
da realidade a partir de suas bases físicas elementares, sempre com o envol-
vimento do suporte experimental, onde se identificam as ditas “esquisitices”
que são refletidas na teoria. Quando analisamos o misticismo quântico, prin-
cipalmente aquele que é desafiador da ciência, por outro lado, o que vemos é o
conjunto dos que estão com ele envolvidos agindo numa tentativa desenfreada
de tornar a realidade em algo mágico; de atribuir poderes aos seres humanos
os quais só seriam possíveis no âmbito dos sonhos, da realidade fantástica; de
tornar a realidade controlada por poderes, até então, restritos ao divino. É em
virtude disso, que alertei desde o início desse capítulo, minha postura reticente
a esse tipo de misticismo. Tenho a convicção de que a física quântica ainda há
de nos presentear com o que existe de mais evoluído em termos de tecnologia
– e ela tem tido grandes avanços nesse sentido. Contudo, não é a conjugando
com elementos estranhos à sua identidade que seremos mais realizados.

Considerações Finais
Mesmo de que forma bastante estrita, concluímos esse item. Apresentamos
aqui, panoramicamente e sem muitos aprofundamentos, algumas versões do
misticismo quântico que utiliza a física quântica para defender teses aquém ao
próprio escopo da física. As teses aqui apresentadas são as centrais, mas, dado
o deslumbre causado pelo mundo quântico, em virtude da sua indeterminação
e incerteza e da contraparte tecnológica por ele propiciada, isso tem oportu-
nizado que pessoas utilizem os termos, que são próprios à física quântica, para
aplicação em outras áreas, conforme dissemos, com o fito de tornar os seus
argumentos cientificamente comprovados e “universalmente” aceitos. Além
das teses místicas aqui expostas, ainda poderíamos levantar outras tantas, tais
como: a de que “a alma pode viver em universos paralelos e estas contrapartidas
podem se encontrar” (que é fundada na interpretação dos muitos mundos de
DeWitt); a de que os “atos no presente podem alterar o passado e a obser-
vação atualiza o passado” (fundada na noção de John Wheeler de que o pas-
sado, associado a um experimento quântico, só se torna concreto após a escolha
feita pelo físico experimental no presente); a do “paradigma holográfico onde
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS SERES HUMANOS... 263

cada parte contém o todo” (fundada na descoberta da holografia, em 1950, em


que cada parte do holograma contém a informação de todas as outras partes)
(PESSOA JR., 2011, p. 292-293). Resta reiterar, portanto, que os místicos
esqueceram somente de combinar com a física quântica sobre a aplicação e
veracidade dessas muitas teorias esotéricas.
Se há um mérito no trabalho dos místicos quânticos, esse se funda no fato
de que foram justamente eles quem expuseram as entranhas do caráter esoté-
rico da própria teoria quântica. E se é possível que uma teoria que foi criada
para fins outros que não o do místico, e esta, ainda assim, é usurpada por um
campo não afim, completamente “fora da caixinha”, isso é um bom sinal de que
tal teoria carece de um filtro que inviabilize que a sua aplicação seja feita para
além das suas estritas fronteiras. Contudo, não é isso que acontece com a teoria
quântica. Sem desprezar os diversos triunfos conseguidos por ela no campo
da tecnologia, ainda assim, vê-se que ela precisa de ajustes, que não sejam ad
hoc, a fim de criar um bloqueio ao caráter oculto, imaterial, indeterminado
e até místico para o significado de muitos dos seus termos que deveriam se
restringir ao campo dessa nova área do conhecimento. Faz-se necessário, por-
tanto, um compromisso científico com critérios como os de clareza, coerência
lógica, correção e simplicidade. No mais, não se nega que se trata de um campo
de grandes promessas para o desenvolvimento tecnológico que, certamente,
melhorará a qualidade de vida dos seres humanos.

Referências
BOHR, N. (1928). O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria
Atômica. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr. In: PESSOA JR., O. (org.). Fundamentos de
Física I – Simpósio David Bohm. São Paulo: Livraria da Física, 2000. p. 135-159.

CAPRA, F. O Tao da física. Tradução de José Fernandes Dias. São Paulo: Cultrix, 2006.

JAMMER, M. The Conceptual Development of Quantum Mechanics. New York:


McGraw-Hill, 1966.

PESSOA JR., O. Análise de um típico argumento místico-quântico. In: SILVA, C.


C.; PRESTES, M. E. B. (org.). Aprendendo ciência e sobre a sua natureza: abordagens
históricas e filosóficas. São Carlos: Tipographia Editora Expressa, 2013. p. 171-184.
Remova Wondershare
Marca d'água PDFelement

264 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem

PESSOA JR., O. Física Quântica: entenda as diversas interpretações da física quântica.


2007-2011. Disponível em: http://www2.uol.com.br/vyaestelar/fisicaquantica_
artigos.htm. Acesso em: 8 maio 2020.

PESSOA JR., O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. In: FREIRE JR. O.;
BROMBERG, J. L. (org.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais.
Campina Grande: EDUEPB/Livraria da Física, 2011. p. 281-302.

ROSZAK, T. A Contracultura. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Petrópolis:


Vozes, 1972.

Você também pode gostar