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A Concepção Física
do Mundo
Como os seres humanos criam
o universo em que vivem
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EDUARDO SIMÕES
A Concepção Física
do Mundo
Como os seres humanos criam
o universo em que vivem
2021
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Simões, Eduardo
A concepção física do mundo : como os seres humanos criam o universo em que vivem /
Eduardo Simões. – São Paulo: Livraria da Física, 2021.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5563-035-0
20-49776 CDD-501
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora.
Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107
da Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998
Para
Alana e Dafne, minhas queridas filhas;
Silvana, minha esposa;
Maria das Graças, minha mãe.
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SUMÁRIO
Prefácio ..................................................................................................................13
Apresentação .........................................................................................................25
CAPÍTULO I
O ATOMISMO METAFÍSICO DA ANTIGUIDADE GREGA ..................29
1.1 A (meta)física grega e a fabricação da realidade................................................30
CAPÍTULO II
O ATOMISMO EPICURISTA DE PIERRE GASSENDI CONTRA O
SUBSTANCIALISMO ARISTOTÉLICO E A METAFÍSICA DE RENÉ
DESCARTES ......................................................................................................47
2.1 Gassendi contra a autoridade da filosofia aristotélica-escolástica .....................48
2.2 Gassendi contra a metafísica de Descartes........................................................53
2.3 O atomismo epicurista de Pierre Gassendi .......................................................60
CAPÍTULO III
O ATOMISMO HERÉTICO DE GALILEU GALILEI ................................71
3.1 Galileu herético? ...............................................................................................76
CAPÍTULO IV
O ÁTOMO, O ÉTER E AS EXPLICAÇÕES METAFÍSICAS DA
MECÂNICA NA IDADE MODERNA ............................................................87
4.1 O dualismo metafísico de Descartes e a resposta ao problema das qualidades
secundárias .............................................................................................................88
4.2 A metafísica de Boyle como resposta aos problemas da ciência moderna .........93
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CAPÍTULO V
NEWTON METAFÍSICO ...............................................................................101
5.1 Os componentes metafísicos da física newtoniana..........................................102
CAPÍTULO VI
ELETROMAGNETISMO: PARA ALÉM DAS LEIS DE NEWTON .......113
6.1 O eletromagnetismo e sua história .................................................................114
CAPÍTULO VII
HEINRICH HERTZ: MECÂNICA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA ...........125
7.1 A mecânica de Hertz: considerações preliminares ..........................................127
7.2 A mecânica de Hertz ......................................................................................133
CAPÍTULO VIII
ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO...147
8.1 Precedentes realistas nas teorias atômicas anteriores ao século XX no campo da
Química ...............................................................................................................151
8.2 Primeiros passos na descoberta do comportamento dos átomos: a radiação
ionizante...............................................................................................................158
8.3 Planck, Einstein e a teoria dos Quanta de energia e de luz .............................161
8.4 O modelo atômico de Rutherford ..................................................................164
8.5 O átomo de Niels Bohr e a explicação da estabilidade dos elétrons ................166
CAPÍTULO IX
O ANTIRREALISMO NA AURORA DA MECÂNICA QUÂNTICA ......173
9.1 A dualidade onda-partícula ............................................................................176
9.2 A mecânica matricial e o princípio da incerteza de W. Heisenberg ................180
9.3 E. Schrödinger: função e colapso de ondas .....................................................188
9.4 A Interpretação de complementaridade ..........................................................195
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CAPÍTULO X
A QUEBRA DA MONOCRACIA DA INTERPRETAÇÃO DE
COPENHAGUE ...............................................................................................209
10.1 O debate Einstein-Bohr sobre os fundamentos da mecânica quântica .........210
10.2 David Bohm: realismo e não-localidade na mecânica quântica ....................222
10.3 A desigualdade de John Bell .........................................................................226
10.4 O gato de Schrödinger..................................................................................229
10.5 Hugh Everett III e a interpretação dos estados relativos ..............................233
CAPÍTULO XI
O MISTICISMO QUÂNTICO COMO RADICALIZAÇÃO DE COMO OS
SERES HUMANOS CRIAM O UNIVERSO EM QUE VIVEM.................247
11.1 O misticismo quântico..................................................................................248
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PREFÁCIO
A
despeito das diferentes abordagens epistemológicas e da diversidade
de respostas quanto à ontologia das entidades físicas mais básicas, os
físicos filósofos, como Einstein, Heisenberg e Schrödinger, concor-
davam em relação às origens gregas da ciência moderna. Einstein e Infeld
salientaram que a atitude científica fundamental, o núcleo epistemológico das
ciências físicas, da filosofia natural dos antigos gregos à física moderna de seu
tempo, consistia em buscar reduzir a pluralidade, multiplicidade e complexi-
dade dos fenômenos naturais aparentes a causas únicas, simples e inteligíveis.
Heisenberg pensava que a dedicação à física nuclear exigia o estudo da história
do átomo, remontando à Grécia Antiga, e Schrödinger concebia que a teoria
quântica começara há 24 séculos, com a primeira teoria discreta da matéria,
entre os atomistas. A matéria seria descontínua e poderia ser finitamente sub-
dividida até alcançarmos unidades básicas sem estrutura interna.
Pode nos parecer um continuísmo exagerado afirmar que a física de partí-
culas é o desdobramento contemporâneo de um “programa” de investigação tão
antigo. Mas nos parece inegável que esse ramo atual da pesquisa básica busca,
através dos mais avançados recursos experimentais, contribuir para o aumento
de nossa compreensão acerca de grandes questões, que são filosóficas, tanto por
sua história quanto por sua natureza. Se, conforme Heisenberg, quem desejar
compreender os mais atuais desenvolvimentos físicos acerca dos constituin-
tes últimos da matéria deverá estudar a rica história do conceito filosófico de
átomo, então, com o lançamento desta obra do professor Eduardo Simões, o
público brasileiro ganhará valioso material para tal empreendimento.
Como já afirmamos, além de apontar as raízes gregas do átomo, Simões
vai além, e demonstra a presença de inúmeras outras entidades inobserváveis
postuladas em diversos períodos da História da Física. O presente livro não
é uma “História do Atomismo” ou da matéria, nem uma discussão filosófica
acerca do realismo de entidades ao longo do tempo. Ele engloba tais tópicos,
mas me parece, sobretudo, uma discussão filosófica e histórica acerca do papel
da criação racional de entidades metafísicas (com finalidades de completude
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14 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Prefácio 15
16 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Prefácio 17
18 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Prefácio 19
1 No livro B (terceiro) da Metafísica, Aristóteles se refere aos φύσεως, como Empédocles, que
buscavam reduzir a realidade à unidade inteligível. Na tradução de Edson Bini (2012) pela
Edipro da passagem (1001a1 [10]) do Livro Três, o termo escolhido em língua portuguesa é fí-
sicos, ao passo que Reale (2002), pela Edições Loyola, optara anteriormente por naturalistas para
traduzir o mesmo termo. Bini, em nota, utiliza filósofos da natureza como equivalente a físicos.
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20 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Prefácio 21
22 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Prefácio 23
APRESENTAÇÃO
O
livro que ora se apresenta com o título A Concepção Física do Mundo
nasceu do meu desejo em ver reunidos textos por mim utilizados,
semestre a semestre, em minhas aulas de filosofia da ciência. Trata-se
de uma coletânea de artigos e capítulo de livro por mim publicados – além
de uma série de textos inéditos – e que tem como viés a análise histórica e
filosófica do desenvolvimento do atomismo, do corpuscularismo, da filosofia
mecânica e da física de partículas, além de abrigar discussões sobre entidades
metafísicas na história da física, como é o caso do espaço absoluto, das massas
ocultas e do éter. Não se trata, entretanto, de uma análise exaustiva de como
a filosofia se debruça sobre tais temas desvendando-lhes o seu caráter meta-
físico. Trata-se, contudo, de um trabalho de esforço em tentar demonstrar aos
meus alunos – e agora aos meus leitores – como é possível que, mesmo com
a pressuposta intenção de objetividade, ainda assim, o campo da ciência deixa
um amplo espaço para a filosofia, especialmente para a metafísica, quando da
pretensão do tratamento da natureza última da realidade.
É sabido que muitas das teorias científicas, visto da necessidade de uni-
versalidade e independência formal dos seus sistemas teóricos, criam realida-
des aquém do próprio funcionamento da natureza a fim de antecipar possíveis
ocorrências naturais, mesmo a contragosto da própria realidade. Não se nega,
com isso, o caráter objetivo da maioria delas, nem mesmo a honestidade inte-
lectual daqueles que as desenvolvem; questiona-se, contudo, a necessidade do
amplo emprego de subterfúgios ad hoc para a explicação da realidade, a ponto
de se estabelecer uma confusão sobre fronteiras, isto é, sobre o que há de cientí-
fico e o que há de filosófico nas pretensas teorias. E é sobre isso que o presente
livro pretende tratar.
Quando oferto uma disciplina como a de filosofia da ciência, minha pre-
ocupação primeira, uma vez que estou lidando com alunos de graduação, é a de
não focar o trabalho em um ponto específico e nem me permitir um viés exclu-
sivista sobre algum autor ou sobre alguma teoria. Procuro ampliar o máximo
possível as perspectivas, possibilitando que o aluno, que se encontra em fase de
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26 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
preparação acadêmica, tenha uma visão mais panorâmica possível da área que
necessita conhecer, visto que tais discussões são partes integrantes do seu cur-
rículo. Assim procedendo, procuro também não me deixar atraiçoar pelo risco
do superficialismo e pelo perigo da análise precária do objeto de investigação.
Em virtude disso, deparo-me com a exigência de eleger um viés, um objeto de
discussão, que propicie o encadeamento dos diversos autores e análises sobre
o conteúdo programático da disciplina. Dessa forma foi que elegi, de forma
não exclusiva, o átomo para cumprir esse objetivo de encadeamento, visto que,
sob a perspectiva do atomismo, é possível envolver uma grande gama de itens
intimamente ligados aos mais interessantes problemas que a filosofia da ciên-
cia pode nos oferecer. É justamente a partir dessa perspectiva que nasce e se
desenvolve o nosso A Concepção Física do Mundo. Estou ciente das limitações
das discussões aqui propostas e, em virtude disso, gostaria de tomar o presente
trabalho muito mais como um projeto a ser desenvolvido oportunamente do
que como uma obra acabada.
Pretendendo uma análise acerca da natureza da realidade, sob o viés do
materialismo atomista e dos seus reflexos sobre a filosofia mecânica, apresento
ao leitor uma visão panorâmica de como essas concepções se desenvolveram,
percorrendo um caminho que envolve nomes como os de Leucipo, Demócrito,
Epicuro, Lucrécio, Gassendi, Galileu, Descartes, Boyle, Newton, Maxwell,
Hertz, perpassando pelo atomismo químico do século XIX até a física quân-
tica no século XX. Trata-se de uma análise histórica e parcial acerca das ideias
filosóficas subjacentes às teorias de todo esse período, com o fito de demons-
trar a engenhosidade do gênio humano em criar a sua própria realidade. Em
virtude disso, dois são os vieses principais que me orientam: a) o do antirre-
alismo filosófico subjacente a essas teorias, como é o caso dos pensamentos
de Demócrito, Descartes, Boyle, Hertz, das interpretações ortodoxas da física
quântica e do misticismo quântico no século XX; b) o do realismo das teorias
de Epicuro, Gassendi, Galileu e do atomismo químico do século XIX e físico
do início do século XX. Dessa forma, o leitor terá acesso ao desenvolvimento
da teoria da matéria, intimamente ligada à filosofia mecânica (em que entida-
des metafísicas estão profundamente relacionadas à questão do movimento),
onde encontrará conceitos distintos sobre o elemento último da matéria, que
ora se apresenta com a roupagem de atomismo, outra ora como corpuscu-
larismo, perpassando por noções de minima naturalia, minima sutilíssimos,
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Apresentação 27
minima quant, quantum etc. Todas essas noções pretendendo representar a tra-
dução temporal de como determinada filosofia idealiza esse algo que possa
servir de fundamento último e explicação da realidade material, por isso o
subtítulo Como os seres humanos criam o universo em que vivem.
Conforme adiantei, trata-se muito mais de um projeto, mas que, ainda
assim, espero que seja de utilidade aos leitores e que continue servindo de
deleite aos acadêmicos, sejam do curso de filosofia, de física, de química, de
ciências ou de história da ciência. O importante é que permitamos que o
tema da natureza última da realidade não se perca sob a justificativa de que o
mundo é tal e se encontra e permanece de tal forma, visto que um dia assim
nos foi legado seja por quem for. Sob o pretexto da busca pela inteligibilidade
da matéria, deveria estar subentendida a necessidade de pensarmos sobre as
nossas origens materiais, sobre o nosso lugar no cosmo e sobre a nossa efeme-
ridade, portanto, sobre a nossa transitoriedade. Que o conhecimento teórico
sobre os meandros da matéria seja um pretexto para o conhecimento acerca de
nós mesmos!
Por fim, gostaria de externar aqui alguns agradecimentos. Primeiramente,
agradeço ao prof. Dr. Vinícius Carvalho da Silva (UFMS) pela leitura aten-
ciosa do manuscrito e pelas diversas sugestões de aprimoramento ao texto,
bem como pela redação do Prefácio do livro. Suas intervenções fizeram-me
certificar que o caminho para a conclusão deste projeto ainda é muito longo!
Agradeço também a Universidade Federal do Tocantins (UFT) por ter me
concedido licença de um ano para pesquisa na modalidade de pós-doutorado,
cujo resultado foi a produção dessa obra, e pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) por ter me acolhido tão bem no estágio pós-doutoral, sob a
supervisão do prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé. Agradeço, ainda, a todos
os que de alguma forma contribuíram para a realização desse livro, o que de
forma nominal ficaria difícil de fazê-lo aqui dado ao grande contingente de
pessoas que contribuíram para a efetivação do que ora apresento ao público. A
todos vocês, o meu muito obrigado!
28 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
SIMÕES, Eduardo. Eletromagnetismo: para além das leis de Newton. Pesquisa &
Extensão – FACIT, v. 4, n. 1, p. 7-14, 2014.
CAPÍTULO I
Introdução
H
á no interior das ciências naturais a pretensa resistência em considerar
uma verdade que lhe parece peculiar, mas que, por sua necessidade de
prova empírica, muitas vezes prefere ignorar: a de que teorias científi-
cas, quase sempre travestidas de uma suposta objetividade, podem trazer no
seu interior uma robusta metafísica resistente aos dados experimentais. Isso
acontece, por exemplo, com a identificação contemporânea da realidade do
átomo e de sua estrutura. Até que ponto a indicação de elementos atômicos
(ou subatômicos) aponta para a realidade material? O que constitui, de fato,
substância física ou entidade metafísica em tais elementos? Qual elemento
serve ao cumprimento de uma necessidade lógica dedutiva de funcionamento
do sistema e qual, de fato, existe? A inexistência do “elemento x” não colapsaria
todo o sistema? A existência do “elemento y” não pressuporia a inteligibili-
dade do sistema? Questões próprias do materialismo, que têm sido fruto de
discussões históricas a respeito da realidade do átomo, não foram necessaria-
mente fruto da preocupação dos antigos. Mais do que uma preocupação com a
necessidade de uma prova objetiva, material, estavam os gregos, desde Leucipo,
preocupados com a função lógica desempenhada pelo átomo no interior de
seus sistemas. Por isso, desencadearam uma série de explicações, cuja coerência
lógica era a exigência de fundo, onde o átomo desempenhou o papel não de
coadjuvante, mas de protagonista de argumentos nos quais se constituiu como
fundamento.
Diante do exposto, a intenção do presente capítulo, muito mais do que o
da defesa de qualquer ponto de vista, ou mesmo de qualquer tese, visa eluci-
dar algumas questões que serão de capital importância para o entendimento
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30 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
2 Os átomos são introduzidos como realidade ontológica no interior das teorias da mecânica
como explicação para os fenômenos da ação por contato. A posteriori, especialmente depois de
Descartes e Newton, é o éter que toma seu lugar quando utilizado para explicação dos fenôme-
nos eletromagnéticos.
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32 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
“calor retira do úmido geração e vida”, a “semente de todas as coisas tem uma
natureza úmida”, de tal forma que “a água é o princípio da natureza de todas as
coisas úmidas” (ARISTÓTELES, Metafísica, 1969). Além do que, a água pode
assumir as mais numerosas e variadas formas: pode surgir como gelo e neve,
transformar-se em vapor e formar nuvens, parece transformar-se em terra nos
deltas dos rios. Enfim, ela é um elemento vital e é natural que, ao pensar em
um elemento primordial, a água apareça em primeiro lugar. Portanto, Tales
apresenta uma realidade ainda não criada, muito provavelmente, entendida
a partir de suas observações meteorológicas. Mas o que pretendemos aqui é
identificar onde a realidade começa a ser uma criação nossa, com todas as bases
materiais passíveis de questionamento.
A busca por um elemento primordial foi levada adiante por Anaximandro
(611-546 a.C.), discípulo e concidadão de Tales. Para Anaximandro, tal ele-
mento não poderia ser o princípio, mas derivaria desse princípio, chamado por
ele de ápeiron, privado de peras (de limites ou determinações), que compreende
uma infinidade de realidades e mesmo de mundos possíveis. O ilimitado é a
causa universal de toda geração e corrupção e pode se transformar nas várias
substâncias com as quais estamos familiarizados. Ele é o conflito eterno entre
o ser o e vir-a-ser: o primeiro, imutável, vê sua forma se degradar no vir-a-ser,
mas, ainda assim, permanece incorruptível3. É essa luta eterna entre os con-
trários a responsável pela criação do mundo: “o quente é oposto ao frio, o seco
ao molhado etc. Esses opostos combatem entre si e qualquer predominância
de um sobre o outro é vista como uma ‘injustiça’, razão pela qual os opostos
devem oferecer reparação, um ao outro no tempo marcado” (HEISENBERG,
1995, p. 50). Nota-se que Anaximandro não apresenta nenhum dos quatro ele-
mentos como sendo o elemento constitutivo de todas as coisas (nem a água, nem
o ar, nem a terra e nem o fogo), ao contrário, introduz em sua filosofia um ele-
mento ad hoc responsável por toda geração e corrupção. Teríamos aí a primeira
concepção ontológica de mundo? O que seria o ápeiron do milesiano? Qual
a justificativa para a introdução de tal elemento em sua teoria? Qual a neces-
sidade subjacente a tal construção? Sem que tenhamos uma resposta defini-
tiva para tal necessidade, resta-nos conjecturar que a introdução do ilimitado
como o princípio constitutivo de todas as coisas, deve-se a uma necessidade
3 “Disse também que as partes sofrem mudanças, porém o todo é imutável” (LAÊRTIOS, 2008,
p. 47).
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4 As expressões “conta-se”, “diz-se”, devem-se ao fato da incerteza quanto à vida de Pitágoras que
não deixou nenhum documento escrito. Seus ensinamentos, conforme Diógenes Laércio, eram
transmitidos oralmente e guardados em segredo por seus primeiros discípulos que, também,
nada escreveram. Daí a dificuldade de distinguir o que era realmente de Pitágoras das ideias de
seus discípulos tardios.
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34 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
5 Veremos que tal concepção é uma antecipação do que defenderão Aristóteles e René Descartes.
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36 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Nos fragmentos de seu texto que chegou até nós, intitulado Da Natureza,
a partir de um suposto diálogo com a deusa, fica-nos explícita a radical oposi-
ção entre o ser (que é pensado) e o não-ser: “É necessário que o ser, o dizer e o
pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é” (PARMÊNIDES, 2002,
p. 15). E o ser é ingênito, indestrutível, compacto, inabalável, sem fim e sem
princípio, homogêneo, uno, contínuo, indivisível, imóvel etc. Já quanto ao não-
-ser, nada se pode falar a respeito dele, nem pensar sobre ele, “pois não é dizível,
nem pensável, visto que não é” (PARMÊNIDES, 2002, p. 16). Quanto à via
da verdade, da investigação, essa pressupõe dois caminhos: “um que é, que não
é para não ser”, e “o outro que não é, que tem de não ser” (PARMÊNIDES,
2002, p. 14). O paradoxo de Parmênides encerra-se no seguinte fato:
38 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
como os números, servem-se como elementos cujos sensíveis são por eles cons-
truídos. E, por fim, a influência eleata aparece mais forte por três fatores: a) os
átomos estão para o ser como o vazio está para o não-ser – um não-ser necessá-
rio aos átomos, pois, na verdade, trata-se do seu espaço de locomoção (ao vazio é
atribuído um certo ser); b) os átomos são seres inteligíveis que somente o inte-
lecto pode conceber; e c) a oposição democritiana entre intelecção e opinião
restitui o dualismo do poema de Parmênides: os átomos representam as ideias,
enquanto as qualidades sensíveis não existem senão para os sentidos e opinião.
Mas de que maneira se pode entender a teoria de Demócrito? Como resposta a
essa questão, a primeira coisa que deve ser observada no sistema democritiano
é que os elementos átomos e vazio preenchem a necessidade básica de justifi-
car todos os fenômenos. Assim, a locomoção dos átomos, sua configuração e
desarranjo explicam, por uma causalidade puramente mecânica, o conjunto de
toda existência. Em seu sistema não se encontra nenhuma espécie de teleolo-
gia; nada na natureza remete a um fim. Diferentemente de Aristóteles, ele não
trata da causa final, tudo é delegado ao puro acaso (os átomos agrupam-se e
reagrupam-se ocasionalmente para formar todos os elementos). Tudo acontece
por força do acaso, ele é o redemoinho causador da origem de todas as coisas.
Diógenes Laércio (2008) atribui a Demócrito a ideia de que os mundos
são infinitos, sujeitos à geração e ao perecimento, isso porque tais mundos são
formados por átomos que se locomovem no vazio para lhes formar. Tais átomos,
contudo, são divisíveis do ponto de vista matemático, mas indivisíveis do ponto
de vista físico, e não apresentam propriedades físicas como cor, odor ou sabor.
Nada é gerado pelo não-ser e nada perece no não-ser. Os átomos são infinitos
em tamanho e número; movem-se como um vórtice e geram assim todas as
coisas compostas: fogo, água, ar e terra. Essas, por sua vez, são elementos que
também são uniões de determinados átomos, que por sua solidez são impassí-
veis e imutáveis. Até mesmo o sol e a lua se compõem de tais massas atômicas
lisas e esféricas. Igualmente a alma, que é idêntica à mente (LAÊRTIOS, 2008,
p. 263). Com relação à mente, à inteligência ou ao conhecimento, Demócrito
formula a oposição inteligência vs. sensível e toma por única verdade a compre-
ensão dos inteligíveis: apenas os átomos e o vazio podem ser objetos de um
saber seguro. Tudo o que é sensível depende da opinião; as qualidades sensíveis
dos corpos não são reais, mas imaginárias. Demócrito é citado por Galeno
(2000, p. 282) como tendo dito que “por convenção há cor, por convenção há
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6 “A letra I (iôta maiúsculo, escrito com duas longas barras, inferior e superior) é idêntica à letra H
(êta maiúsculo) que não é senão um iôta deitado. A geração dos corpos é um efeito da escritura
ou da associação tipográfica. Notemos ainda que o uso das letras deitadas corresponde à notação
musical. Assim, à harmonia pitagórica substitui uma escritura musical, a ser colocada em para-
lelo com o ritmo” (DUMONT, 2004, p. 132).
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40 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
7 Essa interpretação da vida e doutrina de Epicuro contém muito mais um caráter anedótico do
que real, pois, segundo Diógenes Laércio (Vidas, p. 286-288), no “Jardim de Epicuro” vicejava
uma autêntica comunidade, onde o mestre e discípulos viviam de maneira quase ascética, consu-
mindo apenas hortaliças que eles próprios cultivavam, às quais acrescentavam apenas pão e água,
ou ainda queijo em ocasiões especiais.
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8 Diferentemente de Demócrito que indicava como atributos dos átomos o tamanho e a forma,
Epicuro acreditava que o peso, também, é inerente ao átomo.
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42 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
44 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Como foi dito, tal pensamento é muito mais importante pela divulgação
e propagação do atomismo, que teria começado por Leucipo e Demócrito e
desaguado no atomismo de Epicuro, do que por suas contribuições originais.
Como se verá, mesmo diante de todos os problemas concernentes à produção
do conhecimento na Idade Média, o atomismo renasceu com Gassendi e teria
sido a causa da condenação de Galileu, que fora considerado herético por sua
adesão a doutrinas atomistas.
Considerações finais
Encerra-se, portanto, a reflexão acerca da criação da realidade na
Antiguidade. O objetivo do presente capítulo foi o de buscar a origem e os
fundamentos da concepção de mundo enquanto criação humana, os funda-
mentos de uma ontologia que insiste em criar a realidade. O que parece sub-
jazer à intenção dos gregos foi conceber sistemas de explicação da realidade
cuja objetividade fosse elucidada, além de buscarem pela universalidade e pela
identidade formal dos seus sistemas filosóficos. Em outras palavras, preten-
diam elucidar a objetividade por meio da homogeneidade da realidade com o
pensamento, afastando o sujeito conhecedor da pura descrição fenomênica do
mundo.
Certo é que foram tais ideias que deixaram o legado para o que na con-
temporaneidade haveria de ser entendido como átomo, tal como sobre sua
funcionalidade. O retorno às bases antigas nos dá uma noção de que, mesmo
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Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo,
1969.
46 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
CAPÍTULO II
Introdução
T
ito Lucrécio Caro foi a última voz do atomismo na Antiguidade. Foi
justamente ele quem deu ênfase ao pensamento de Epicuro de Samos
na Roma Antiga por meio de seu poema De rerum natura. Depois dele,
inaugurou-se o período medieval que silenciou o atomismo por mais de milê-
nio. Numa época marcada pela atuação da religião revelada, onde Deus é o
criador de todas as coisas e quem comanda os destinos do homem e da natu-
reza, a aceitação do atomismo epicurista que, dentre outras coisas, fixa-se na
ideia da abolição das imposições da necessidade, do destino e dos deuses para
introduzir o homem na história como senhor de si, sem constrangimento e
livre para ser feliz, jamais poderia ser aceita. O atomismo epicurista, enquanto
filosofia materialista, não admitia nenhum argumento de ordem teleológica
que propusesse que os fenômenos possuem causas dependentes de qualquer
que seja a divindade. Para tal doutrina, apesar dos fenômenos possuírem movi-
mentos aleatórios, incluindo o clinâmen, ainda assim, tais movimentos não
podem ser ditos independentes de leis naturais inalteráveis. Dessa forma, é
justificável que não haja na Idade Média espaço para esse tipo de discussão e
que filosofias teleológicas como as de Aristóteles, ou mesmo as idealísticas de
Platão9, encaixem-se perfeitamente bem às pretensões de expansão e domínio
48 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
religioso que vigoraram nessa época. A última coisa que um cristão virtuoso
pode almejar é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista.
Foi o renascimento cultural do século XV que propiciou a retomada do
atomismo antigo e a consequente reinserção do pensamento de Epicuro em
tempos de “revolução científica”10. As ideias de Lucrécio foram redescober-
tas quando um dos seus manuscritos foi encontrado por Poggio Braccioli, em
1417, o que permitiu a reprodução e a ampliação do acesso à obra. E com a
recuperação da obra de Diógenes Laércio, a sociedade europeia tomou ciência
das três cartas de Epicuro que expunham a sua filosofia. Com a repercussão
dessas obras, o atomismo é retomado: algumas vezes com a feição materialista
original e outras vezes misturado com elementos de outras escolas, como é
o caso do neoplatonismo, que substituía o caráter mecanicista de ação local
original por elementos animistas que atribuíam ao objeto o autocontrole e
intencionalidade própria. Sintomático do que se afirma é o pensamento de
Giordano Bruno (1548-1600), que concebeu o universo formado por átomos
em movimento, infinito, entretanto, dotado de alma universal da qual cada
átomo participa. Tal concepção configura um princípio não material que dirige
o movimento, um princípio animista, e funde o atomismo antigo com ele-
mentos do neoplatonismo misturados com uma boa dose de esoterismo. No
entanto, é justamente a retomada desse tipo de filosofia que coloca em xeque
elementos essenciais da filosofia aristotélica, amplamente aceita nos meios
acadêmicos europeus entre os séculos XV e XVI, e Pierre Gassendi (1592-
1655) constitui aquele que definitivamente reintroduziu o atomismo na Idade
Moderna, revivendo o epicurismo como substituto do aristotelismo e reconci-
liando o atomismo mecanicista com a crença cristã num Deus infinito.
do real, enquanto imediatamente dado, seu pensamento se configura como um idealismo (vide
justificativa na nota 40).
10 Período que vai de 1543, ano da publicação do De revolutionibus de Copérnico até 1687, ano da
publicação de Philosophiae naturalis principia mathematica de Newton
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50 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
11 Seus alunos.
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52 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
para o correto pensar. É justamente essa noção de correto pensar que encami-
nha a concepção de ciência dos aristotélicos para um conhecimento essencial
das coisas, contra o qual Gassendi lutou. Para ele, é impossível “um conheci-
mento certo e evidente, que afirma de uma maneira infalível e certa que uma
coisa seja por natureza, nela mesma e em virtude de causas profundas, necessá-
rias e infalíveis, constituída de tal maneira” (GASSENDI, Exercitationes, Opera
omnia III, 1964, 192b). E o que justifica isso é justamente nossa contingência
e fragilidade, que nos impedem de ter acesso às essências ou causas metafí-
sicas das coisas. “Logo, sobre o real que poder-se-á dizer, senão que em tais
circunstâncias se produzem tais aparências e outras em outras circunstâncias
outras aparências, mas sobre o que seriam as coisas elas mesmas há dúvida”
(GASSENDI, Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201b). Assim, faz-se
necessário pensar em uma nova ciência que descreva a variedade das aparên-
cias e que não almeje o conhecimento da natureza das coisas independente de
tais aparências, pois “as condições de uma ciência existem, mas de uma ciên-
cia experimental e, se posso dizer, fundada sobre as aparências” (GASSENDI,
Exercitationes, Opera omnia III, 1964, 201). “Uma ciência de essências inde-
pendente do que aparece ao homem, isto é, uma ciência sub specie aeternitas, é
possível somente ‘à natureza angélica e mesmo divina, e não convém à simples
humanidade’” (MAIA NETO, 1997, p. 33).
54 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
12 AT = Oeuvres de Descartes, edited by Charles Adam and Paul Tannery, 11 vols. Paris: J. Vrin,
1964–71.
CSM = The Philosophical Writings of Descartes, translated by John Cottingham, Robert Stoothoff,
and Dugald Murdoch, 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1984–5.
13 Essa referência depreciativa de Gassendi a Descartes é feita por toda obra quando o primeiro
trata o segundo com o uso de termos como “a alma” ou “o espírito”.
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VII.352 / CSM II.244). Ele reclama que Gassendi “parece não entender
completamente o que o uso do argumento racional envolve” (AT VII.354
/ CSM II.245) e o descreve como “empregando truques retóricos ao invés
de raciocínio” (AT VII. 350 / CSM II.243). Presumivelmente, Descartes
sabia que Gassendi ficaria ofendido: ele pediu a Mersenne que publicasse
as Objeções imediatamente, explicando que elas “contêm tão poucos bons
argumentos que duvido que ele queira permitir que sejam impressos, uma
vez que tenha visto minha resposta” (Carta de 23 de junho de 1641: AT
III.384 / CSMK 184) (LOLORDO, 2019, p. 599).
56 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
O que você deveria estar trabalhando não é tanto em confirmar esta regra,
que torna tão fácil tomar o falso pelo verdadeiro, mas sim propor um
método para nos guiar e nos ensinar quando estamos errados e quando
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não estamos nos casos em que pensamos que percebemos algo de forma
clara e distinta (GASSENDI, Disquisitio, Opera omnia, III, 315a).
58 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Claro, Gassendi não nega que temos uma ideia de Deus. O que ele nega é
que tenhamos a ideia particular de Deus que Descartes requer: uma ideia
positiva de um ser absolutamente infinito. Podemos pensar em um ser
perfeito ou infinito aumentando gradualmente nossas ideias das perfei-
ções que observamos nos seres humanos ao nosso redor, mas tal ideia não
pode realmente capturar o infinito e, portanto, não pode representar Deus
“como ele é” (AT VII. 287 / CSM II.200 / Gassendi 1658: III.323b)
(LOLORDO, 2019, p. 604).
60 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
14 Que não pode ser confundida com a Philosophiae Epicuri syntagma, que é um manual que trata
das três partes da filosofia de Epicuro, a saber, a lógica, a física e a ética.
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62 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
15 Segundo Koyré (2011, p. 337), Gassendi nada inventou e nada descobriu e, a despeito da sua
nova filosofia, afirma: “É que sua física, sendo e pretendendo-se antiaristotélica, permanece tão
qualitativa quanto a de Aristóteles, e quase nunca ultrapassa o nível da experiência bruta para
elevar-se ao nível da experimentação”.
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64 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Mas, a fim de que aceiteis todas essas suposições com menos dificuldade,
sabei que eu não concebo as pequenas partes dos corpos terrestres como
átomos ou partículas indivisíveis, mas que, julgando-as todas de uma
mesma matéria, creio que cada uma poderia ser subdividida de uma infi-
nidade de maneiras e que elas diferem entre si como as pedras de várias
figuras diferentes que tivessem sido cortadas de um mesmo rochedo
(DESCARTES, AT, 6, p. 238-239).
movimentos distintos, coisa com a qual Gassendi não coadunava: “um átomo
é de uma natureza sólida e plena e não possui nenhuma mistura de vazio,
então não há possibilidade de que uma fissura se acarrete para que ele possa
ser quebrado em pedaços” (GASSENDI, Syntagma philosophicum, Opera omnia
I, 258b). Descartes, por outro lado, admite que esses corpúsculos nunca estão
bem arranjados e unidos a ponto de não existirem espaços entre eles. Contudo,
eles não estão vazios, pois estão preenchidos de uma matéria sutil (o éter) em
constante movimento. A posição de Descartes quanto ao vazio, por outro lado,
é a seguinte:
16 “Procedendo assim, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste em
ser uma coisa dura, pesada ou colorida, ou que afeta os sentidos de qualquer outra maneira, mas
que é apenas uma substância extensa em comprimento, largura e altura”. (DESCARTES, 2006,
p. 60)
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66 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Se o espaço vazio não é nem substância nem acidente, não pode ser outra
coisa senão o nada, e se o nada não pode, evidentemente, possuir atribu-
tos, não pode ser objeto de medidas. O volume e a distância não podem
medir o nada. As dimensões têm que ser dimensões de alguma coisa, isto
é, de substância e não do nada (KOYRÉ, 2011, p. 340).
[...] esta teoria da matéria tem a vantagem de que não faz um mau traba-
lho ao explicar como a composição e a resolução nas partículas elemen-
tares primárias ocorrem, e por esta razão uma coisa é sólida, ou corpórea,
como se torna menor ou maior, rarefeita ou densa, macia ou dura, afiada
ou cega, e assim por diante [...]. Essas questões e outras similares não
são claramente resolvidas em outras teorias onde a matéria é conside-
rada tanto infinitamente divisível ou pura potencialidade (GASSENDI,
Syntagma philosophicum, Opera omnia, I, 280a).
68 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações Finais
Conforme se viu, a filosofia de Gassendi acaba por representar um passo
decisivo na retomada do atomismo, que propiciou o seu desenvolvimento
posterior. Depois de séculos de adormecimento, o atomismo acaba por ser
resgatado e se torna um componente importante na explicação empírica da
realidade. Eximindo-se da ontologia mecanicista que lançava mão de explica-
ções e conceitos abstratos, que reportavam às essências ou às causas metafísicas
dos fenômenos, o atomismo epicurista de Gassendi propôs uma explicação
baseada nos próprios fenômenos naturais. Contudo, conforme demonstrado,
apesar dos méritos da ontologia materialista de Gassendi na explicação cien-
tífica, ainda assim, ele não conseguiu se esquivar dos vícios do passado ao se
deixar levar pela influência religiosa, que o fez ceder às pressões do seu tempo,
fazendo com que a sua filosofia se tornasse um misto de materialismo e dog-
matismo. Mesmo assim, a postura cética de Gassendi, no que diz respeito às
questões epistêmicas, deixa-nos um legado que perdurará, pois nos orienta que,
na busca do conhecimento da natureza, faz-se necessária a suspensão do assen-
timento, visto que isso propicia a liberdade do pensar e não nos compromete
com os modismos de uma época. Se Gassendi deixou-se atraiçoar pelas suas
convicções religiosas e, com isso, errou, não nos compete aqui um juízo de
valor, pois, no contexto da redação desse capítulo, diferentemente de Koyré,
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fomos profundamente afetados pela acatalepsia dos céticos antigos e, com isso,
preferimos manter a suspensão momentânea do assentimento.
Referências
ADAM, C.; TANNERY, P. Oeuvres de Descartes. Edited by Charles Adam and Paul
Tannery, 11 vols. Paris: J. Vrin, 1964-71.
70 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
ROCHOT, B. Les travaux de Gassendi sur Épicure et sur l’atomisme, 1619-1658. Paris:
J. Vrin, 1944.
CAPÍTULO III
Introdução
A
filosofia grega que entra em declínio no Período Helenístico com as
invasões bárbaras agoniza de vez no Período Greco-Romano com a
ascensão da filosofia cristã. Em Plotino, encontramos o último suspiro
da tentativa do pensar independente. Com isso, inaugura-se na Idade Média
o famigerado movimento patrístico que transcorre do século II ao século VIII
depois de Cristo. Trata-se de um período em que a Igreja Católica, precisando
se firmar enquanto instituição político-religiosa em um ambiente pagão pós-
-invasões germânicas, vai buscar na filosofia grega argumentos racionais em
vista da defesa das verdades cristãs. É nesse cenário que surgem os chamados
padres da Igreja: intelectuais convertidos que empregaram toda força na defesa
racional da fé.
Com Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nazianzo,
Gregório de Nissa, Basílio Magno, Agostinho, entre outros, vê-se alvorecer um
grande contingente de Apologias: alegado jurídico cujas argumentações visa-
vam obter dos imperadores o reconhecimento do direito legal que os cristãos
teriam para existir em um império oficialmente pagão. É nesse período que se
vê a perversão sistemática da filosofia grega em vista dos interesses cristãos.
Os pensamentos pressupostamente “religiosos” de Pitágoras, Platão, Zenão de
Cítio e Pirro de Élida foram cristianizados, desaparecendo de vez a aplicação
da razão nos diversos campos (como haviam feito os gregos) para lhe empregar
somente em um campo. Agora não mais existem os “amantes da sabedoria”
(filósofos), na acepção típica dos gregos, e sim, pesquisadores e comentadores
das obras produzidas pelos antigos mestres. Inicia-se um período de calmaria
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72 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
74 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
76 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
E foi justamente isso que Galileu fez. Ele, que particularmente jamais
apresentou uma teoria sistemática sobre a natureza da luz, havia apresentado
em 1611 uma experiência de ótica física que impressionou os aristotélicos: foi
a experiência da pedra luminescente de Bolonha (sulfato de Bário). Essa pedra,
depois de ter sido exposta à luz do dia, poderia brilhar na obscuridade; e aquela
luz brilhando na escuridão poderia ser dissociada da ideia de calor ou de uma
fonte luminosa, o que acabara por abalar a verdade aristotélica da luz como
uma qualidade de um meio transparente iluminado. “Em vez de uma quali-
dade, era um corpo ‘quantum’ e se propagava, portanto, mediante uma emissão
de corpúsculos invisíveis” (REDONDI, 1991, p. 16).
Em sua Física, Aristóteles professa o que é chamado de realismo metafí-
sico. Todos os fenômenos físicos são entendidos em termos de qualidades sen-
síveis: todas as qualidades (cor, sabor, cheiro, calor, dureza etc.) são inerentes
a uma substância e nenhuma qualidade pode existir sem ela. Tais qualidades,
mesmo sendo apresentadas de infinitas maneiras aos sentidos, mantêm entre si
algumas formas fundamentais (são quentes ou frias, secas ou úmidas).
A física, em termos bastante gerais, é o estudo do movimento das coisas
materiais que compõem o mundo. Os dados dos sentidos podem ser conheci-
dos e são os mais dignos de fé. Os elementos fundamentais da física aristotélica
são os mesmos de Empédocles: água, ar, terra e fogo; cada um, por sua própria
natureza, tende a ocupar o seu “lugar natural” (o que explica porque o fogo e
o ar sobem; ou porque a água e a terra descem). Esses elementos podem se
converter uns nos outros dada a troca de qualidades que lhes são comuns, por
exemplo, um corpo frio em movimento rápido aquece-se porque, movendo-
-se, recebe do ar quente e úmido a qualidade de ser quente. Há uma constante
passagem de um elemento a outro, num movimento circular que imita, a seu
modo, o movimento circular das esferas celestes. O que se vê são as inúmeras
diferenças que nos são apresentadas pela realidade, por exemplo, de cor, de
odor, de fluidez, de dureza e assim por diante; e todas elas eram explicadas,
obscuramente, por essas sucessíveis mudanças de qualidade.
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78 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
80 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Acidentes (cor, odor, sabor) sem sujeito, matéria sem extensão, aciden-
tes sem substância etc. trata-se de uma saída um tanto quanto obscura, mas
racionalmente projetada, que havia abrigado o mistério eucarístico longe das
controvérsias dos “hereges”. Mas o que Galileu havia a dizer sobre essa questão
que o incriminaria e o tornaria suspeito de heresia? Na verdade, o Saggiatore
não trata diretamente de nenhuma dessas questões. O orgulho ferido de Grassi
foi quem assim o interpretou com o objetivo último de incriminá-lo – um
revanchismo contra o golpe que sofrera no passado. Sua pretensão foi a de
acusar o Saggiatore de afirmar “expressamente” a teoria subjetiva das qualida-
des sensíveis também para os acidentes eucarísticos e professar o atomismo
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82 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
84 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Santo Ofício, naquela época, composto em sua maioria por jesuítas. Mas resta
salientar que a condenação foi por heresia inquisitorial, ou seja, disciplinar, não
teológica ou doutrinal, o que em outras palavras significa dizer traição.
Com a decisão, o papa afasta todos os envolvidos no caso Galileu de
Roma – os prós e os contras: dos amigos do florentino aos caluniadores jesuítas,
incluindo o padre Grassi, e coloca o Diálogo no Índex. Mas o que tem a ver o
padre Grassi, aparentemente tão distante da atual controvérsia com o Diálogo?
Aqui o termo “aparentemente” cai muito bem. O padre Grassi, denunciante
protagonista no caso Galileu, sempre esteve nos bastidores, travestido de outras
identidades, escamoteando-se como um camaleão. Seu rancor teria triunfado
diante do atomismo inovador que colocara o mistério da Eucaristia sob sus-
peita e, consequentemente, dado aos protestantes motivos para desmerecer as
determinações de Trento. Sua morte em 1654 teria impedido, no entanto, que
ele tivesse sido definitivamente coroado quando, em 1685, Luís XIV revoga o
Edito de Nantes e anuncia a “conversão geral” dos protestantes franceses. Esse
feito dá à Igreja um novo vigor, cancelando a crise gerada pela Reforma. O
resultado foi o silêncio dos inovadores com a “interdição” das teorias atomistas
– tudo iniciado por Grassi. Na esteira de Galileu, viram-se também silenciados
Pascal, Port-Royal, Malebranche, Gassendi, Descartes. Mas o atomismo não
estava morto.
Considerações finais
Pretendíamos aqui apresentar uma nova versão da condenação de Galileu.
Como foi alertado desde o início desse capítulo, trata-se de uma versão de
Pietro Redondi que, em seu livro Galileu Herético (1991), afirma ter tido acesso
aos autos da condenação de Galileu, com a autorização do Vaticano, e desco-
briu que a verdade oficial não condizia com o que realmente está registrado
nos arquivos.
Certo é que sua obra promove um impacto na comunidade científica,
bem como um incômodo nas autoridades eclesiásticas. Tanto é que em 1998,
ao lançar a Encíclica Fides et Ratio, João Paulo II pede perdão pelo erro da
Igreja e, ainda, afirma: “Galileu, fiel e sincero, mostrou-se mais perspicaz do
que seus adversários teólogos”. A importância da revisão da história está no
fato de que é aprendendo com os erros que avançaremos rumo aos acertos,
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pois “um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”, dizia
o historiador Eduardo Bueno. O caso Galileu é um exemplo típico de que, para
o avanço do conhecimento e da ciência, é necessário fazer com que o homem
esteja de pleno gozo da liberdade de pensamento e expressão.
Referências
REDONDI, P. Galileu Herético. Tradução de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
CAPÍTULO IV
Introdução
A
Idade Moderna foi profícua no entendimento físico do funcionamento
do universo. Newton, por exemplo, deixou um legado que ultrapassou
os séculos fixando sua influência em domínios, como: teoria das ondas
luminosas, teoria cinética do calor, compreensão da eletricidade e do magne-
tismo e descobertas de Faraday e Maxwell em eletrodinâmica e óptica. Sua
física norteou a ciência por mais de duzentos anos – até a primeira metade do
século XX –, quando Einstein demonstrou que a física precisava crescer para
além da estrutura newtoniana. No entanto, em sua produção teórica e expe-
rimental, é inegável o tributo de precursores como Descartes e Boyle. Desses,
Newton extrai elementos metafísicos que o inspiram e o orientam como, por
exemplo, a noção do elemento que comporia o espaço absoluto.
O presente capítulo tem, portanto, a intenção de apresentar o pensa-
mento desses autores no que concerne à origem e aos fundamentos da meta-
física mecânica na modernidade. Para tal, escolhemos dois elementos-chave
na história da construção da realidade moderna: o átomo e o éter. Ambos
suprem a necessidade de construção de teorias que vislumbram a criação de
sistemas universais, cuja inteligibilidade não é questionada por ser fundamen-
tada em bases dedutivamente sólidas. Aqui, as filosofias mecânicas propostas
por Descartes e Boyle, ainda que possam representar algum avanço ante o
pensamento de Galileu, não conseguem se divorciar da influência exercida pela
metafísica em séculos de história do atomismo.
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88 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
90 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Como se vê, Descartes acaba por entrar na mesma discussão que Galileu
e tantos outros entraram e, por tal, sofreram represálias e sérias perseguições
por parte da Igreja. Não seria concebível que um pensador de sua envergadura
trilhasse o mesmo caminho que os seus predecessores e insistisse no mesmo
“erro” do passado, mas essa foi a sua escolha.
Com relação às qualidades secundárias, Descartes orienta sua análise das
sensações para os fundamentos da física, acabando por criticar as qualidades
escolásticas e assumindo o corpuscularismo de Galileu. O “meu Mundo” sobre
qual Descartes havia incumbido de escrever em três anos era, na verdade, o
Monde ou Traité de La Luminère. Nesse trabalho, o que ele propunha era tratar
dos problemas cognitivos gerais das sensações e da física, terminando-o ao
analisar os fenômenos dos cometas (justamente o caminho inverso de Galileu).
E o ponto crucial de sua argumentação é o entendimento de que as qualidades
secundárias são reconhecidas como qualidades subjetivas; não existe objetivi-
dade nos fenômenos sensíveis.
Quando elas são consideradas como certas coisas que subsistem além de
nossas mentes, somos totalmente incapazes de formar qualquer conceito
a seu respeito. Com efeito, quando alguém nos diz que vê a cor de um
corpo ou que sente dor em uma perna, isto é exatamente o mesmo que
dizer que ele viu ou sentiu algo cuja natureza ignora totalmente, ou que
não sabia o que viu ou sentiu (DESCARTES, Princípios 68 e seg.).
Mas como sabemos, pela natureza de nossa alma, que os diversos movi-
mentos do corpo são suficientes para produzir nele todas as sensações
que experimenta e como aprendemos pela experiência que muitas de suas
sensações são, na verdade, causadas por tais movimentos, enquanto não
descobrimos que qualquer coisa além desses movimentos passa dos órgãos
dos sentidos ao cérebro, temos razão para concluir que não apreendemos,
de modo algum, aquilo que nos objetos exteriores denominamos luz, cor,
odor, paladar, som, calor ou frio, e as demais qualidades tácteis, ou aquilo
que denominamos suas formas substanciais, a não ser como as várias dis-
posições desses objetos que têm o poder de impressionar nossos nervos de
diferentes modos (DESCARTES, Princípio 2).
92 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
18 A pergunta de Descartes teria sido: “Quando uma substância corpórea é transformada em outra,
e todos os acidentes da primeira permanecem, o que é que mudou?” (Nota nossa).
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94 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
jamais perdera sua visão religiosa, onde Deus e o mundo mecânico mantêm
uma relação de intimidade.
O ponto a ser destacado sobre o trabalho de Boyle, e que serve direta-
mente aos nossos interesses, é que ele remonta ao corpuscularismo, que foi
introduzido na ciência moderna pela obra de Descartes. “Ora, não é casual
que Boyle evite enfaticamente utilizar a palavra atomismo nas suas obras e
tenha optado por corpuscularismo. A última coisa que nosso cristão virtuoso
almejaria é ser confundido com um ateu, ímpio e materialista” (ZATERKA,
2004, p. 72). No entanto, sua concepção de filosofia corpuscular ou de filosofia
mecânica pretende ser apresentada subtraída as conotações metafísicas dos que
o precederam.
Sua proposta era a análise química das coisas que nos rodeiam, análise
essa que fosse para além dos métodos místicos e mágicos da alquimia (que
considerava o sal, o enxofre e o mercúrio como os três princípios químicos
constituintes últimos da matéria), dos quatro elementos peripatéticos (água,
fogo, terra e ar) e das concepções de átomo como entidade metafísica subja-
cente a toda realidade. Tratava-se de uma química fundamentada na análise
racional dos fatos sensoriais e confirmada pela experiência.
Mesmo cheio de boas intenções, talvez pelas suas convicções religio-
sas, Boyle deixou-se atraiçoar quanto à sua fundamentação na experiência.
Propôs a defesa de uma visão mecânica de mundo (mesmo que as fronteiras
da mecânica até o presente momento ainda não estivessem totalmente delimi-
tadas), onde a matemática (a metafísica matemática aos moldes de Galileu e
Descartes) serviria à interpretação atomística do mundo (BURTT, 1983). Sua
concepção era a de que os princípios matemáticos eram “o alfabeto com que
Deus escreveu o mundo”: “Encaro os princípios metafísicos e matemáticos [...]
como verdades de tipo transcendental, que não pertencem propriamente seja
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96 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
fermentação, etc.” (BOYLE, 1672, I, p. 308). E o que ele faz, além de confirmar
a realidade das qualidades secundárias, é reafirmar uma posição com a qual se
mantém fiel à antiga noção de causa final – todas as qualidades apontam para
algo que transcendentalmente as antecede: existe “a admirável cooperação das
diversas partes do universo para a produção de efeitos particulares; e é difícil
dar explicações satisfatórias para todos eles sem reconhecer um ser inteligente
que crie ou disponha das coisas” (BOYLE, 1672, II, p. 76).
A adesão de Boyle a conceitos que pareciam terem sido superados pelos
seus predecessores deve-se única e exclusivamente à sua necessidade de resgatar
o homem do materialismo do século XVII. O mundo real era o domínio dos
pensamentos de Galileu e Descartes; esse mundo era matemática e mecanica-
mente inteligível e todo esforço racional devia-se à explicação do seu funciona-
mento. A razão tornou-se, então, o fundamento último de sua explicação. No
entanto, essa visão que dominou a época, esqueceu-se do homem e o colocou
como uma espécie de apêndice, puro espectador da natureza. “Contrapondo-se
a essa tendência aparentemente irresistível de expulsar o homem da natureza
e de diminuir sua importância, Boyle empenhou-se positivamente em rea-
firmar o lugar factual do homem no cosmos e sua dignidade singular como
filho de Deus” (BURTT, 1983, p. 142). E é por isso que as qualidades primá-
rias não são mais reais que as secundárias: elas estão no homem e, “uma vez
que o homem, com seus sentidos, é parte do universo, todas as qualidades são
igualmente reais”. Como ele próprio afirma, “não vejo a necessidade de que a
inteligibilidade com relação ao entendimento humano seja necessária para a
verdade ou a existência de uma coisa, assim como a visibilidade com relação
ao olho humano não é necessária para a existência de um átomo, ou de um
corpúsculo de ar, ou dos eflúvios de um imã, etc.” (BOYLE, 1672, IV, p. 450).
E, justamente pensando nessa noção de não necessidade da inteligibilidade
das coisas para que elas de fato existam, é que Boyle propõe uma das mais
estranhas (no entanto, muito comum em sua época) concepções metafísicas da
história da química moderna: a filosofia do éter.
Como se disse, na época de Boyle era muito comum a crença na existên-
cia de um meio etéreo – seja para justificar a comunicação do movimento por
impacto sucessivo ou através das distâncias (Descartes), ou para explicar os
fenômenos do magnetismo. Ele próprio, num primeiro momento, encarou-o
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como algo duvidoso, mas a posteriori admitiu que pudesse sim existir uma
substância etérea “muito tênue e difusa”.
19 Reforça-se, portanto, nossa tese de que boa parte das teorias da ciência precisa recorrer à meta-
física no intuito de justificar o injustificável – e esse foi, também, o caso de Boyle.
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98 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações finais
Apresentamos os pensamentos de Descartes e Boyle sobre os elementos
metafísicos que compuseram suas teorias. Conforme se viu, os corpúsculos
e o éter preenchiam a necessidade de explicação de fenômenos que, se não
injustificados, encontravam-se ainda inconclusos. As qualidades secundárias
já haviam sido motivo de disputa e de condenações na Idade Média e início
da Idade Moderna. Não se admitia qualquer teoria, mesmo sob justificativa de
cunho metafísico, que viesse ferir os dogmas da Igreja Católica sobre os mis-
térios eucarísticos. Querer propor qualquer teoria de cunho atomista ou cor-
puscularista que negasse os mistérios da transubstanciação, por entender que a
matéria continuava a mesma depois da pronunciação da fórmula litúrgica, era
negar a interferência do divino na materialidade criada. Descartes, então, tal
como Galileu, mesmo percebendo o campo minado no qual estava pisando,
manteve a sua vocação científica propondo bases corpuscularistas para a cons-
tituição do universo. Sua postura redundou, como é sabido, no adiamento da
publicação do seu Monde, que só veio a ser levado a público postumamente.
Ele intentou também a explicação do funcionamento da gravidade de
modo inteiramente mecânico. O movimento que se dava por impacto suces-
sivo fornecia explicação para todas as experiências que contradiziam a exis-
tência de um vácuo na natureza e dependia da suposição de um meio etéreo
onipresente que se formava por uma série de vórtices de diversos tamanhos. É
justamente a concepção de um meio etéreo e, consequentemente, a admissão
de que existe o elemento éter que servirão de inspiração para teoria de Boyle.
Vimos que a proposta do cientista irlandês era justamente utilizar do
éter como elemento que pudesse justificar os fenômenos do magnetismo, isto
é, da atração à distância de corpos que possuem tal capacidade. Posto entre as
estrelas, o éter era visto como um grande oceano no qual os “globos luminosos”
flutuavam e se sustentavam. Ele servia, assim, como uma justificativa meta-
física mecânica para a comunicação do movimento e para os fenômenos do
magnetismo.
Mesmo que se esperasse do gênio experimental de Newton a supera-
ção do éter para a explicação da ação à distância – o que não aconteceu –,
foram Michelson e Morley, em 1887, que mediante experimentos demonstra-
ram que a velocidade da luz era a mesma em qualquer direção e em qualquer
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100 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Referências
BOYLE, Robert. The Works of the Honorable Robert Boyle. Londres: Ed. Thomas Birch,
1672. 6 v.
CAPÍTULO V
NEWTON METAFÍSICO
Introdução
C
onhecido como uma das mentes mais brilhantes da história da huma-
nidade, Isaac Newton (1643-1727) foi imortalizado por sua obra mais
significativa, o Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural), de 1687. Nela ele consegue promover a
unificação dos corpos planetários e terrestres por meio de um conjunto de
equações capazes de prever exatamente – com base no volume de um corpo
qualquer, na velocidade e na direção do movimento – como esse corpo se
movimentaria sob o impulso de uma força conhecida. Com isso, postulou que
se fosse dado a conhecer as posições e forças de todas as coisas no universo em
um determinado instante, e se predissesse o curso integral dos acontecimentos
desde os maiores corpos do universo aos mais leves átomos, nada seria incerto,
e o futuro, à semelhança do passado, estaria presente diante dos olhos.
Mas foi a elaboração da lei da gravidade o grande feito de Newton20. Sua
ideia foi a de que existe uma força invisível que exerce controle sobre a matéria
sem haver um contato físico direto. A palavra gravidade foi cunhada a partir
da palavra latina gravitas, que significa “peso”. Com ela Newton explicou com
tanta precisão os movimentos das luas de Júpiter, de Saturno e da Terra, bem
como os movimentos de todos os planetas ao redor do sol, que nos duzentos
anos seguintes poucas melhorias significativas foram feitas em relação à sua
obra. Essa força invisível está em ação entre as massas e é proporcional ao
valor delas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas.
102 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Isso significa que se duas massas são separadas, a força da gravidade entre
elas diminui de tal forma que, quando a distância chega a 10 vezes, a força é
100 vezes (quadrado de dez) menor do que a atração inicial. No caso do Sol,
que está 400 vezes mais distante da Terra do que a Lua, o fator inversamente
proporcional redutor da força gravitacional fica em cerca de 4002 (16.000) –
mas essa enorme redução é compensada pela massa imensamente maior do
Sol em comparação à da Lua (a proporção de massa Sol-Lua é 30.000.000:1).
Assim, a Terra orbita o Sol. Toda essa explicação faz parte do terceiro livro21 do
Principia, que termina por explicar os movimentos precisos da Lua e ensinar
que as marés oceânicas se devem à atração gravitacional da Lua e do Sol sobre
as águas. Além disso, calcula a atração do Sol sobre os cometas.
Mas é sabido que as correspondências entre Newton e Boyle eram fre-
quentes e que seu pensamento, especialmente no que concerne à aceitação
de um meio etéreo universal, teria sido influenciado por esse último22. Faz-se
necessário, portanto, entender o pensamento de Boyle (previamente exposto)
no cenário da ciência moderna, levantar suas principais contribuições para o
desenvolvimento da física clássica para, somente mais tarde, averiguar quem é
o “Newton metafísico” – proposta principal desse capítulo.
21 O Principia que granjeou imediatamente uma fama para Newton, na verdade, é um livro muito
complexo e difícil de compreender (cinquenta anos se passaram até que o esquema newtoniano
fosse plenamente aceito e ensinado nas escolas e universidades). Ele se divide em três livros,
embora tenha sido publicado em um único volume em 1687: o primeiro livro trata da mecânica e
explica a razão por que os corpos se movem de determinada maneira no espaço vazio; o segundo
livro trata do movimento dos corpos em meios que oferecem resistência, como o ar ou a água; e
o terceiro livro é o que trata da estrutura e funcionamento do sistema solar e da gravidade.
22 “Seu próprio pensamento sobre o assunto parece ter sido estimulado intimamente por Boyle,
com quem tinha estreita comunicação a respeito de tais questões, como prova sua carta, datada
de 1678, ao famoso químico” (BURTT, 1983, p. 149).
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que foi repetida sucessivas vezes aplicando o mesmo cálculo, permitiu-lhe esti-
mar a trajetória total. E isso só foi possível com a aplicação de um atalho mate-
mático que ele inventou (paralelamente a Gottfried Leibniz – 1646-1716)
chamado cálculo diferencial. Com o cálculo ele conseguiu abreviar o processo
passo a passo, o que lhe possibilitou analisar o que acontece à velocidade de
uma partícula em movimento à medida que a diferença temporal se torna infi-
nitesimal. Nisso resultou as suas três conhecidas leis do movimento:
a) a primeira afirma que “todo corpo persevera em seu estado de repouso
ou de movimento retilíneo uniforme, a menos que seja compelido a
mudar seu estado por forças aplicadas”. Em outras palavras, um corpo
continuará em repouso a menos que uma força atue sobre ele, e um corpo em
movimento retilíneo uniforme continuará a mover-se na mesma veloci-
dade em linha reta a menos que uma força atue sobre ele. Isso quer dizer
que uma bola completamente lisa em uma superfície plana perfeita
somente se moverá se uma força atuar sobre ela. Se uma força a faz
começar a rolar e se ela não encontra nenhum atrito com a superfí-
cie ou algum obstáculo em seu caminho, ela continuará rolando na
mesma direção para sempre. Esse princípio pode também ser cha-
mado princípio da inércia, sendo esta a propriedade da matéria que a
faz resistir a qualquer mudança em seu movimento;
b) a segunda lei enuncia que “uma alteração no movimento é proporcio-
nal à força motora e ocorre ao longo da linha reta na qual tal força é
aplicada”. O que quer dizer que a aceleração (taxa de variação do movi-
mento23) é diretamente proporcional à força. Por exemplo, quanto maior
a força gerada pelo motor de um automóvel, mais o carro se acelerará.
O dobro da força duplicará a aceleração;
c) no caso da terceira lei, essa afirma que “para qualquer ação existe sem-
pre uma reação oposta e idêntica; em outras palavras, as ações de dois
corpos um sobre o outro são sempre idênticas e sempre opostas em
termos de direção”. Por exemplo, a ação de uma bala disparada por um
revólver resulta na reação do coice da arma. Ou então, quando estamos
sentados em uma cadeira, esta exerce uma força para cima de nós para
104 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
compensar o nosso peso, que pressiona para baixo. Dizia Newton que
isso acontece também no céu: enquanto a Terra exerce um arranjo
gravitacional sobre a Lua, mantendo-a em órbita, a Lua faz o mesmo
em relação à Terra, criando as marés nos oceanos.
O ponto fraco da teoria gravitacional de Newton concentra-se, no entanto,
na exigência promovida por esta da existência de um tempo e espaço absolutos.
E é justamente esse o rito de passagem de sua física para a metafísica.
É sabido de todos a obsessão de Newton pela conclusão experimental de
suas teorias. Tanto é que somente vinte anos depois de ter chegado a todas as
conclusões do Principia e encorajado pelo matemático Edmond Halley (1656-
1742), que arcou com os custos da publicação, que tais conclusões chegaram
a público. Sua justificativa era a de que para as suas descobertas seriam neces-
sárias mais experimentações e provas. Determinados cálculos não lhe pare-
ciam precisos, pois eram baseados no valor aceito (mais incorreto) do diâmetro
da Terra e ele não admitia hipóteses. “Se ainda houver alguma dúvida [sobre
minhas conclusões], é melhor colocar o caso em circunstâncias mais aprofun-
dadas do experimento do que aquiescer à possibilidade de qualquer explicação
hipotética” (NEWTON, Opera, 1779 apud BURTT, 1983, p. 173). Isso porque
24 “Pequenas partículas dos corpos de certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais agem a
distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas tam-
bém umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza” (NEWTON,
Opticks, 1721, p. 350).
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106 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
108 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
férias de suas funções primordiais. Onde caberia a ação divina se tudo funcio-
nasse como uma espécie de relógio, harmonicamente acertado? Deus parecia
ter sido varrido da existência e nada havia para tomar o seu lugar, exceto esses
seres matemáticos ilimitados. Isso ecoou mais intolerável para Newton do que
a própria querela entre ele e Leibniz sobre o plágio que esse último teria feito
de sua invenção: o cálculo infinitesimal25. Mas as acusações eram injustifica-
das. Esse relógio que era o universo, para Newton, não poderia funcionar para
sempre sem a intervenção de Deus, pois, assim, sua necessidade seria supérflua.
Certas irregularidades no sistema solar, não explicadas pelos movimentos dos
planetas, poderiam sim tirar todo o sistema dos eixos, daí caberia a intervenção
divina para colocar tudo novamente em ordem. Sua outra concepção sobre
Deus é a de que Ele é o sensorium uniforme e ilimitado, onde todos os corpos se
movem. Ele é o próprio espaço absoluto.
25 Sobre a intriga entre Newton e Leibniz a respeito da anterioridade na invenção do cálculo, uma
boa referência é: HELLMAN, Hal. Grandes Debates da Ciência: Dez das maiores contendas de
todos os tempos. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
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26 Carta a Oldenburg, secretário da Sociedade Real, em 1675. Esta carta encontra-se no reunido
de cartas de Brewster (em I, p. 390), Memoirs of the Life, Writings and Discoveres of Isaac Newton,
Edinburgo, 1855 – citado por BURTT, 1983, p. 211.
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110 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Como se vê, Newton não possuía quaisquer certezas acerca dessa enti-
dade “fantasmagórica” e, daí, podemos levantar alguns problemas a partir de
suas palavras: o primeiro diz respeito às suposições que envolvem a explicação
da gravidade. A todo o momento encontramos expressões como “assim talvez
o Sol...” ou “quem quiser também pode supor...”, e outras mais; e isso implica a
falta de respostas conclusivas do próprio Newton para esse fenômeno. Assim,
fica mais fácil e universalizante deduzir a presença de um “espírito etéreo”
em “um corpo fleumático”, pois isso propicia uma independência formal ao
seu sistema. O segundo problema diz respeito às dificuldades conceituais que
geram sua teoria: o que seria esse corpo fleumático pelo qual espírito eté-
reo se move? E o que é o próprio espírito etéreo? Como foi visto na citação
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E se todos supusessem que o éter (como o nosso ar) pode conter partículas
que tendem a afastar umas das outras (pois não sei o que é esse éter), e
que suas partículas são extremamente menores que as do ar, ou mesmo
que as da luz: a extrema pequenez de suas partículas pode contribuir para
a grandeza da força pela qual aquelas partículas podem afastar-se umas
das outras, e, desse modo, tornar aquele meio extremamente mais rare-
feito e elástico que o ar, e, por consequência, extremamente menos capaz
de resistir aos movimentos de projéteis e extremamente mais capaz de
fazer pressão sobre os corpos volumosos, na sua tendência à expansão
(NEWTON, Opticks, 1721, p. 323).
Vemos que o éter de Newton tem a mesma natureza do ar, mas é muito
mais rarefeito. Suas partículas são muito pequenas e estão presentes em maior
quantidade de acordo com sua distância dos poros interiores dos corpos sóli-
dos. São elásticas por possuírem poderes mutuamente repulsivos e tendem
constantemente a afastar-se umas das outras e essa tendência é a causa dos
fenômenos de gravidade, isso porque todo o mundo físico pode consistir de
partículas que se atraem em proporção ao seu tamanho, passando à atração
através de um ponto zero para a repulsão até chegar às menores partículas que
compõem o que se denomina éter. Essas são as consequências do casamento
entre física e metafísica no sistema newtoniano.
Considerações finais
O impacto das teorias newtonianas ainda se fez sentir no século XX
em muitos campos da ciência. A teoria das ondas luminosas usa as leis do
movimento de Newton e o mesmo se pode dizer da teoria cinética do calor.
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112 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Referências
BOYLE, R. The works of the honourable Robert Boyle. Londres: Thomas Birch, 1672.
6 v.
NEWTON, I. Isaaci Newtoni opera quae exstant omnia. Edição Samuel Horsley, 5 vls.,
L.L.D: Londres, 1779.
CAPÍTULO VI
Introdução
O
sistema newtoniano por muito tempo foi considerado definitivo: um
sistema de definições e axiomas que dá lugar a um conjunto de equa-
ções matemáticas que descrevem a estrutura eterna da natureza, inde-
pendentemente de um dado espaço ou tempo. Newton fixou sua influência
na mecânica tratando desde o movimento de pontos materiais, passando pela
mecânica dos sólidos, pelos movimentos contínuos de um fluído até os movi-
mentos vibratórios de um corpo elástico. Sua influência se estende também da
dinâmica para a acústica e a hidrodinâmica, que se tornaram ramos da mecâ-
nica. Seu método levou ao desenvolvimento da astronomia quando permitiu
determinações precisas dos movimentos dos planetas e de suas interações. E
até a teoria do calor pôde ser reduzida à mecânica, com base na hipótese de
que o calor consiste em um movimento estatístico complicado de partículas
diminutas da matéria. Com a eletricidade e o magnetismo deu-se da mesma
forma: quando essas forças foram descobertas, compararam-nas às forças gra-
vitacionais e suas ações sobre o movimento dos corpos puderam também ser
estudadas nas linhas da mecânica newtoniana. Entretanto, dificuldades sur-
giram nos estudos sobre o campo eletromagnético, isso porque, ao invés de
se admitir, assim como fez Newton, a possibilidade de uma força agindo a
grandes distâncias, a realidade deste campo apontava para a ação de um ponto
vizinho a outro, caso o comportamento desses campos fosse descrito por equa-
ções diferenciais.
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114 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
F = k × Q × q / R2
F = G × M × m / R2
27 Tratava-se de um instrumento com o qual Coulomb fazia medidas da força de atração e repulsão
entre duas esferas eletricamente carregadas. A balança se caracteriza por ter uma haste suspensa
por um fio com uma esfera em cada uma de suas extremidades. Ao tomar outra haste com uma
esfera também eletrizada, aproxima-se as duas. Em virtude da força elétrica que se manifesta no
processo, a haste que está suspensa por um fio gira, provocando uma torção no fio. Ao medir o
ângulo de torção, Coulomb conseguia determinar a força entre as esferas.
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116 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
28 “Ao denominar o estado de equilíbrio de eletrotônico, Faraday quis dizer que os sistemas elé-
tricos dentro de um campo magnético ganham uma certa energia que fica armazenada da mes-
ma forma que uma mola sob tensão fica comprimida e armazena energia” (CRUZ, 2005, p.
124-125)
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118 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
o insight substancial que teve: deduziu que as linhas de força seriam análogas a
cordas espalhadas pelo espaço formando o campo e, da mesma forma que uma
perturbação em uma corda esticada se propaga na forma de onda, uma varia-
ção do campo deveria se propagar no espaço como uma onda (CRUZ, 2005).
Essa conjectura foi o ponto de partida dos trabalhos de Maxwell. Faraday pro-
porcionou a Maxwell a possibilidade da elaboração de equações diferenciais
para descrever o mais novo conceito da ciência: uma onda eletromagnética. E
acompanhado desse novo passo rumo ao desenvolvimento da ciência, assisti-
mos o retorno do antigo conceito metafísico ao campo das teorias científicas:
o éter.
James Clerk Maxwell (1831-1879) impressionou-se bastante com os
resultados obtidos por Faraday. Resultados estes que, mesmo sendo obtidos
por meios experimentais, por não terem sido escritos em linguagem matemá-
tica, eram vistos com reservas por muitos cientistas. Foi daí que em 1855, em
um artigo intitulado Sobre as linhas de força de Faraday, começou a provar as
ideias de Faraday, partindo da demonstração de que por trás do conceito de
linhas de força havia um pensamento matemático – apesar de, como se disse,
Faraday não ter se utilizado de fórmulas para descrever sua teoria.
No prefácio de sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism29, afirma:
29 MAXWELL, James Clerk. A Treatise on Electricity and Magnetism. Nova York: Oxford
University Press, 1998.
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120 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
obtida, em laboratório, da velocidade da luz. Assim, ele inferiu que a luz devia
ser uma onda eletromagnética.
Mas as pretensões de Maxwell giravam ao redor da necessidade da com-
provação da existência do campo e da conexão dinâmica que ele estabelece:
agindo sobre os corpos e sofrendo a sua ação, isto é, o papel principal do campo
é a criação de um vínculo, de uma conexão entre os corpos elétricos e magnéti-
cos. De forma geral, suas equações são para um sistema onde dois corpos estão
conectados através de um terceiro, mas ele introduz nelas as especificidades
dos fenômenos elétricos e magnéticos e analisa os fenômenos de indução, que
exibem o papel do campo, fazendo uma conexão entre dois circuitos ou duas
correntes.
Maxwell apresenta mais de 20 equações, equações essas reduzidas a um
número de quatro por Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos desen-
volvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemá-
tico que permite que tais equações sejam escritas nessa forma sintética, como
são conhecidas hoje. No geral, é isso que dizem as equações de Maxwell:
a) uma carga elétrica produz um campo elétrico;
b) existe um campo magnético entre os polos de um magneto;
c) campos elétricos são produzidos por mudança de campos magnéticos;
d) campos magnéticos são produzidos por mudança de campos elétricos
e por correntes elétricas.
122 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações finais
Esse capítulo pretendeu cumprir com as suas pretensões iniciais. Algumas
questões podem, no entanto, surgir como por exemplo: o que é que se define
aqui como metafísica? Com quais critérios tal metafísica é identificada? Onde
se apresenta a metafísica nas discussões que envolvem a eletrodinâmica que, ao
que parece, perverte toda e qualquer concepção que não seja eminentemente
física? Não seria a pretensão de identificar as bases metafísicas da ciência um
desrespeito para com toda sua construção empírica historicamente constituída?
Como representantes do espírito filosófico, primeiramente, diríamos que
a atitude dogmática diante da realidade (quer seja científica ou não), muitas
das vezes apresentada como verdade fixa e definitiva, não pode ser nossa pos-
tura; e o respeito a toda construção científica durante os séculos foi previa-
mente expresso por nossas pretensões. No entanto, nada nos impede de querer
identificar nas construções teóricas a genialidade humana que, diante da falta
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124 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Referências
BRAGA, Marco (Org.) Faraday e Maxwell: eletromagnetismo – da indução aos
dínamos. São Paulo: Atual, 2004. (Ciência no Tempo)
CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São
Paulo: Odysseus Editora, 2005.
CAPÍTULO VII
Introdução
N
o capítulo anterior, vimos Maxwell apresentar um modelo de equa-
ções como instrumento para tratar, segundo as leis da mecânica newto-
niana, o campo não newtoniano de Faraday. É importante ressaltar que
em momento algum Maxwell desmereceu a mecânica como um instrumento
obsoleto para tratar dos fenômenos da natureza. Sua proposta era a de por
meio da mecânica superar o modelo newtoniano da ação à distância e lançar
luz sobre os campos. E foi pela formalização de suas equações que ele conse-
guiu relacionar todas as grandezas do campo eletromagnético e ainda mostrar
que a velocidade de uma onda eletromagnética é igual à da luz, lançando mão,
é claro, da crença de um meio etéreo pelo qual tais ondas viajariam.
Por volta de 1870, o alemão Hermann Von Helmholtz (1821-1894),
tendo em vista a confusão da situação do eletromagnetismo, de várias teorias
para explicar o mesmo fenômeno, fundamentou seu trabalho na formulação
de um potencial eletrodinâmico que generalizava os resultados dos trabalhos
dos físicos, especialmente, de W. Weber, Neumann e J. Maxwell. Segundo
Helmholtz,
126 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
128 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
32 Redução que ocorreu definitivamente com Oliver Heaviside, físico inglês que trabalhou nos de-
senvolvimentos posteriores da teoria de Maxwell, criando o formalismo matemático que permite
que tais equações sejam escritas na forma sintética, como são conhecidas hoje.
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130 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
33 Embora ele fosse kantiano, considerando a necessidade formal do pensamento tema do livro I
de The principles of mechanics, era também, como Kant, implacavelmente empírico considerando
as relações coordenadas do pensamento aos fatos (tema do livro II da mesma obra) – “aquilo que
é derivado da experiência pode novamente ser anulado pela experiência”. Para Hertz o teste de
verdade é, por fim, um problema experimental (HERTZ, 1956, p. 9).
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132 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
134 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Por enquanto, ela nos permite abordar todo o domínio da mecânica, ela
nos mostra quais são os limites deste domínio. Ao nos fornecer apenas
fatos conhecidos, sem atribuir a eles qualquer aparência de necessidade,
ela nos torna capazes de reconhecer que tudo poderia ser completamente
diferente (HERTZ, 1956, p. 38).
136 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
E conclui:
138 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Vê-se aqui que Hertz mantém a noção grega original de que as partículas
materiais (átomos, no caso de Demócrito) são invariáveis e indestrutíveis. Mas,
como entender massa por uma definição como essa? Parece-nos que a melhor
maneira de a entender sob esse ponto de vista é caracterizando a “partícula
material” a partir de sua associação de pontos em uma espécie de sistema de
coordenadas. Isso fortifica a geometrização hertziana a partir de um modelo
previamente estabelecido34. E se Hertz está definindo massa como invariável e
indestrutível, isso se deve à proposta geral do livro I: apresentar seus elementos
como julgamentos a priori no sentido de Kant. Daí, a massa será entendida
dentro das formas kantianas de espaço e tempo35, portanto, será uma experi-
ência a priori. Hertz não está falando em partículas materiais das quais trata a
física de partículas, está tratando de simplicidade lógica – algo muito parecido
com o atomismo de Demócrito. Hertz descreve uma Massenteilchen (partícula
material) como uma propriedade característica do espaço e tempo, ela não é
o objeto material no espaço e tempo. Partículas materiais são propriedades do
espaço e não têm extensão espacial (não têm, por exemplo, a propriedade de
ser pesada); sua função é simplesmente para marcar uma única localização no
espaço-tempo.
A segunda definição é dada e essa trata diretamente da conceituação de
massa:
34 Não podemos esquecer que Hertz está propondo uma representação da mecânica numa espécie
de modelo generalizado e formalmente sistematizado.
35 “[...] na parte analítica da Crítica se demonstrará que espaço e tempo são apenas formas da
intuição sensível, isto é, somente condições da existência das coisas como fenômenos e que, além
disso, não possuímos conceitos de entendimento e, portanto, tampouco elementos para o conhe-
cimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição correspondente a esses conceitos;
daí não podemos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão-somente
como objeto da intuição sensível [...]”. (KANT, 2008, BXXVI)
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140 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
apresenta suas ideias sobre modelos ou imagens, dizendo que “nós formamos
para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos; de tal modo que as
consequências necessárias das imagens no pensamento são sempre as imagens
das consequências necessárias na natureza das coisas retratadas” (HERTZ,
1956, p. 1). Dessa forma, nós podemos prever os eventos futuros e conferir a
validade de nossas imagens. Essas imagens não retratam coisas em si mesmas,
elas retratam determinadas estruturas das coisas, o arranjo das coisas. Elas são
nossas concepções das coisas e a conformidade delas com a natureza se esgota
na adequação ao que delas é requisitado no processo anteriormente descrito.
O que vemos é que Hertz está fazendo um esforço para criar os fun-
damentos de uma ciência da mecânica que não postulasse nada sobre coisas
em si mesmas. Os únicos objetos apropriados da física seriam os sistemas de
pontos materiais, formados por partículas materiais. Nós podemos postular
um certo comportamento, ou certas leis para um certo sistema, e conferir se
eles acontecem na natureza. Mas os objetos, os simples, nós só podemos defi-
nir logicamente. O ponto é que, mesmo que nós não possamos saber sobre a
realidade, podemos ainda lhe alcançar fundamento para nossa ciência, quando
conhecermos a sua estrutura. E isso é tudo que precisamos para a física36.
Na sequência do livro I, portanto, vemos Hertz apresentar, além das defi-
nições de tempo, espaço e massa, a descrição de conexões, trajetórias mínimas,
trajetórias geodésicas, trajetórias “mais retilíneas” e “uma série de proposições
arbitrárias” (HERTZ, 1956, p. 135) que devem ser remetidas ao conteúdo do
livro II. E sua crença na imutabilidade da componente a priori se expressa na
conclusão desse livro: “[...] a correção ou incorreção dessas investigações não
podem ser nem confirmadas nem negadas por quaisquer possíveis experiências
futuras” (HERTZ, 1956, p. 135).
O livro II, denominado “Geometria e Cinemática dos Sistemas
Materiais”, trata da mecânica propriamente dita – da componente que deriva
da experiência. Nele Hertz trata novamente do tempo, espaço e massa, da lei
fundamental, do movimento de sistemas livres, dos sistemas de massas ocul-
tas e dos sistemas com descontinuidade. Nesse livro, “[...] tempos, espaços e
37 Aqui Abrantes (1992) cita o próprio Hertz (1956, p. 195), D’Agostinho (1990, p. 391) e Cohen
(1956).
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142 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
ocultas38. O que seriam essas massas ocultas? Que exemplos teríamos delas?
Infelizmente, essa resposta terá que ser adiada porque Hertz não dá sequer
um breve esclarecimento. O próprio Helmholtz, no Prefácio da obra, lamenta
a ausência de exemplos que ilustrem a aplicação e, portanto, a necessidade da
hipótese de massas e movimentos ocultos.
Mas o que não faltam são críticas e objeções a esse elemento suprassensí-
vel que, além de “nada” esclarecer ou ajudar no sistema (do ponto de vista dos
seus críticos), ainda introduz novas dificuldades:
38 Bem como com o conceito de éter, que se trata de um expediente adicional que acaba por imer-
gir a mecânica num mar de complicações que extravasam quaisquer critérios que pretendam
simplicidade.
39 Segundo Moreira (1995, p. 40), quando muito, as referências ao The principles of mechanic de
Hertz, aparecem nos meios acadêmicos quando se trata do princípio mecânico do trajeto mais
“reto” ou de menor curvatura. E isso se deve ao fato de ser uma obra complicada e incapaz de
resolver os problemas apresentados pelas representações newtoniana e energetista da mecânica.
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144 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações Finais
O presente capítulo objetivou apresentar o pensamento de H. Hertz. Num
primeiro momento, nossa pretensão era a de inseri-lo na tradição dos campos
eletromagnéticos e demonstrar como é nítida sua superioridade tanto com
relação aos que o precederam, quanto aos seus contemporâneos. Superioridade
não no sentido de anterioridade a qualquer das teorias disponíveis, mas no
sentido de como foi capaz de ir além de qualquer concepção empirista ingê-
nua. Sua superação se deu em várias direções: primeiro, conseguiu distinguir
nas equações de Maxwell relações contraditórias, circulares e vazias (sem des-
merecer a importância do pensamento do escocês); propôs a abreviação de
suas equações e conseguiu identificar e qualificar o caráter ondulatório dos
fenômenos eletromagnéticos refletidos nas equações de Maxwell. Segundo,
superou Helmholtz no sentido de demonstrar que para efetivação de mecânica
energetista caberia melhor uma teoria onde a ação física se transmitisse de
forma contígua e mediatizada do que à distância. Terceiro, conseguiu identi-
ficar nas mecânicas newtoniana e energetista “relações vazias” promovidas por
ideias “supérfluas e rudimentares”, isto é, conseguiu coligar as ideias de força
e energia a pseudoconceitos que não apontavam para nada na natureza. Em
substituição, ou em aperfeiçoamento dessas imagens, sedimentadas no ideário
da comunidade científica, propôs uma terceira imagem, na qual ideias como
a de força e energia desapareceriam. Em troca, alvitrou um sistema mecânico
fundamentado na relação de conexões geométricas que admitia liberdade para
introduzir elementos suprassensíveis (massas ocultas, éter). Tais elementos,
que pareciam não apontar para nada, na verdade, eram representação de algo
na realidade do fenômeno. Mas, para nós, o mais importante, e em quarto
lugar, está sua contribuição para a filosofia da ciência, contribuição essa refle-
tida em sua concepção filosófico-metodológica do funcionamento da ciência.
Baseado no ideal kantiano das formas representação, Hertz propôs que os
problemas subjacentes às teorias da ciência tivessem base no modo como tais
teorias eram representadas. Toda e qualquer teoria que propõe termos para os
quais nada se pode apontar incorre no risco de tornar-se autocontraditória e
confusa. E na representação de uma teoria, nada funciona melhor que o cálculo
(a estrutura matemática), interpretado como regra de correspondência, como
componente a priori dessa mesma teoria. No entanto, para se verificar se uma
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Referências
ABRANTES, P. A filosofia da Ciência de Heinrich Hertz. In: ÉVORA, F. R. R. (Ed.).
Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas: Unicamp, 1992. p.
351-375.
CRUZ, Frederico Firmo de Souza. Faraday e Maxwell: Luz sobre os campos. São
Paulo: Odysseus Editora, 2005.
KANT, I. Crítica da razão pura. tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
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146 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
MACH, E. The Science of mechanics: a critical and historical account of its development.
Open Court Publishing Company, 1960.
MAXWELL, James Clerk. A treatise on electricity and magnetism. Nova York: Oxford
University Press, 1998. 2 vols.
CAPÍTULO VIII
ANTECEDENTES REALÍSTICOS DO
ATOMISMO PRÉ-QUÂNTICO
Introdução
A
história do realismo e antirrealismo na física do século XX trata-se, na
verdade, de desdobramentos de discussões mais antigas em filosofia que
envolvem um debate entre materialistas e idealistas acerca da natureza
da realidade. Tal discussão acabou por promover desenvolvimentos de outras
doutrinas sob a égide de nomenclaturas que fazem defesa de ideais diversos,
tais como: naturalismo, determinismo, reducionismo, positivismo, empirismo,
fideísmo, ceticismo, sensualismo, solipsismo, agnosticismo etc. Todas essas
doutrinas estão de certa forma envolvidas com a questão da natureza última da
realidade e compõem o debate inicial fomentado pelas correntes materialistas
e idealistas dentro da história da Filosofia.
Em termos resumidos, o materialismo defende a ideia do reconhecimento
da existência dos objetos em si, fora da mente, e de que as ideias e as sensações
são cópias ou reflexos desses objetos. Por outro lado, o idealismo concebe a
realidade como existindo dependentemente da mente humana. Os objetos não
existem fora da mente, eles não são mais do que combinações de sensações. Vê-se,
portanto, que para o idealista a ausência do observador consciente, que capta e
reflete acerca da realidade, inviabiliza a existência da própria realidade.
No campo filosófico, o debate materialismo vs. idealismo retroage às dis-
putas na Antiguidade grega, que envolvem nomes como os de Platão40 e de
40 Grande parte dos intérpretes da filosofia de Platão convencionou que seu pensamento defende
um tipo de realismo, a saber, o “realismo das ideias”, isso porque, segundo eles, o “idealismo” pla-
tônico remete à Ideia, aos Eidos, e não à primazia da mente como fundamento último da reali-
dade e essa leitura parece-me correta. Contudo, ainda assim, mantenho a leitura do pensamento
platônico, em concordância com Heisenberg, como sendo um tipo de idealismo, idealismo das
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148 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
formas puras. Para tal, levo em consideração que “formas puras” ou “entes matemáticos” não são
realidades que existem independentemente da mente, sendo, portanto, reais. Em Problemas da
Física Moderna, ao se referir às simetrias como as “formas puras” da matéria, Heisenberg chama
tal posição de “idealismo platônico” por conceber as partículas elementares da matéria como
expressões de princípios formais de simetria, que seriam os eidos da matéria. Para ele, a moderna
física estaria mais próxima do idealismo platônico do que do atomismo materialista de Epicuro.
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41 Importante observar que não estamos falando da vertente ortodoxa da “física quântica” sobre a
qual trataremos mais tarde.
42 Em filosofia, principalmente nas correntes filosóficas que adotam o pensamento científico como
ponto de partida, esse tipo de realismo ganha diversas denominações: realismo empírico (I.
Kant), realismo natural (W. Hamilton), realismo ingênuo (G. Schuppe), realismo científico (O.
Külpe), realismo crítico ( J. Maritain) e materialismo (Lenin). Trata-se de um tipo de realismo
que na filosofia contemporânea geralmente é encontrado no existencialismo, no instrumentalis-
mo e no empirismo lógico.
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150 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
43 Reforça-se, entretanto, que se todo materialismo é realismo, nem todo realismo é materialismo.
É por isso que, para não nos metermos nas confusões conceituais da esotérica taxonomia dos
realismos e antirrealismos promovida pela filosofia da física, o que propiciaria, por exemplo, que
um mesmo pensador pudesse muito bem ser realista em relação a “p, q, r” e um antirrealista em
relação a “x, y, z”*, restringiremos a nossa análise, ora em diante, apenas àquilo que diz respeito ao
realismo de entidades ou de substâncias.
*
“Heisenberg foi um anti-materialista, isto é, negou a partícula elementar de matéria como a
realidade última a partir da qual todas as coisas são feitas, e assumiu um nível mais profundo
de realidade, do qual a matéria seria o fenômeno. É, portanto, à ontologia do realismo de subs-
tância que o físico filósofo se contrapôs. Ele assume um realismo matemático nomológico, ou
desubstancializado, mas nega o realismo materialista que postula as partículas elementares como
constituintes da realidade física última” (DA SILVA; BRANCO, 2019, p. 268).
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152 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
45 Segundo Stahl, o flogisto tratava-se de uma substância invisível, inodora, insípida, incolor e de
peso negativo que justificava o fato de que um material se tornava mais pesado quando entrava
em combustão, sofria corrosão ou era calcinado, isso porque perdia o seu flogisto. Quanto mais
combustível for um material, mais flogisto liberta na combustão.
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154 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
46 Lavoisier foi o primeiro a empregar o termo oxigênio, de oxygine, isto é, formador de ácido.
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ocorre quando os átomos de dois ou mais elementos formam uma firme união,
ou molécula.
O trabalho de Dalton foi a primeira aplicação sistemática e bem-sucedida
do atomismo às observações quantitativas. Entretanto, um problema ainda
persistia no atomismo químico moderno, contra o qual Dalton já havia inves-
tido. A questão da indivisibilidade do átomo era crucial para a manutenção da
teoria, sem ela faltaria a base firme para a teoria química, conforme as leis de
Proust e do próprio Dalton. Um problema, contudo, fez-se presente: a partir de
um volume de oxigênio e um de nitrogênio, dois volumes de óxido de nitrogê-
nio são formados. Se a partir de um átomo de oxigênio e um de nitrogênio for-
mou-se dois óxidos de nitrogênio, isso significa que os átomos foram divididos,
o que perverteria o princípio da indivisibilidade do átomo (ROCHA, 2007).
A solução para esse problema veio por meio das leis volumétricas de Joseph
Gay-Lussac (1778-1850) e da hipótese de Amadeo Avogadro (1776-1856).
A lei volumétrica dos reagentes gasosos em uma reação química foi
enunciada por Lussac em 1808 e apresentada à Sociedade de Arcueil em 1809,
e afirma:
156 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
com um elemento de peso atômico 44 que teria que ser encontrado para ocu-
par o espaço seguinte ao cálcio. Em 1879, o químico sueco Lars Fredrik Nilson
(1840-1899) descobriu o escândio.
Até o fim do século XIX, as teorias químicas não conseguiam dar conta
do comportamento do átomo. Os físicos desse período achavam insatisfatória
a descrição do átomo feita por Dalton, visto que não se enquadraria no sis-
tema newtoniano dos princípios físicos, bem como não dava conta do com-
portamento elétrico da matéria, isto é, não explicava o comportamento elétrico
dos gases quando combinados à eletricidade. Foi o químico e físico britânico
William Crookes (1832-1919) que, em 1879, apresentou o resultado de suas
pesquisas envolvendo descargas elétricas através do gás.
Os experimentos com descarga elétrica nos gases raros já haviam retido
a atenção de Faraday (1839), de Geissler (1860) e de Hittorf (1860), mas o
estudo completo do que G. H. Wiedmann (1826-1899) chamou de “raios
catódicos” se deu com Crookes. Com o uso de um tubo de gás concebido pelo
próprio Crookes, que continha um cátodo e um ânodo (elétrodos positivo e
negativo), desenvolveu experimentos que permitiam que uma carga elétrica
passasse pelo tubo. O resultado de suas observações foi o de que raios de com-
posição e origem desconhecidos saíam do tubo quando eletricidade passava
através do gás nele. Com isso, Crookes consegue identificar várias caracterís-
ticas desses raios, dentre elas a de que se propagam em linha reta e produzem
fosforescência e calor em determinados materiais para os quais Crookes não
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158 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Entretanto, essa emissão era diferente da luz, uma vez que a visão não
a percebe, excita a fluorescência do platino-cianeto de bário, mas não produz
efeito de calor, não reflete e nem sofre refração, polarização ou concentração por
uma lentícula e nem interferência (PIZON, 1975). Mesmo assim, Röntgen dá
sequência aos seus experimentos metodologicamente conduzidos, utilizando-
-se de uma série de materiais alternativos (porta pintada por pigmento branco
constituído de carbonato de chumbo, fio metálico enrolado em bobina, bússola
e lâminas de metais diversos). Com esses experimentos, percebeu que os raios
saíam do tubo e penetravam várias substâncias e objetos na sala, e que a origem
da emissão se situava no ponto de impacto do feixe catódico com a parede do
tubo que se tornava fluorescente. Depois de investigar o efeito por semanas,
Röntgen dirigiu os raios para chapas de fotografias sensíveis e conseguiu regis-
trar os ossos da mão da sua esposa em 22 de dezembro de 1895. Em virtude do
uso do símbolo científico “X” para o que não se conhece, ele chamou aqueles
raios de raio X. Pela sua descoberta do raio X, Röntgen se tornou o primeiro a
receber o Prêmio Nobel de Física em 1901.
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160 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
162 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Planck sugeriu que a energia dos átomos não podia ser emitida continua-
mente, era irradiada por fracções; por outras palavras, que a energia, exa-
tamente como a matéria, era atómica, e que a sua atomicidade não estava
na energia em si mas numa curiosa quantidade-acção (ou energia multi-
plicada pelo tempo). Havia por conseguinte um quantum (ou quantidade
suficiente de acção) constante, a constante de Planck (h = 6,6 × 10-27
ergo por segundo), que controlava a quantidade de todas as trocas de
energia nos sistemas atómicos (BERNAL, 1969, p. 741).
48 O efeito fotoelétrico figurava-se bem misterioso, pois que a energia dos elétrons arrancados ao
metal por uma luz qualquer é independente da do feixe luminoso, isto demonstra que a teoria da
luz como onda era falsa ou, no mínimo, insuficiente.
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164 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
49 RUTHERFORD, E. The Scattering of α e β Particles by Matter and the Structure of the Atom.
Philosophical Magazine, 21, series 6 (April, 1911).
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166 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
uma nova partícula, uma partícula neutra. Essa partícula, que tinha a mesma
massa de um próton, era pesada o suficiente para expulsar prótons da parafina,
entretanto, não tinha carga. Ela foi batizada de nêutron e o modelo do átomo
foi reorganizado.
Pela descrição que fez do átomo, Rutherford recebeu várias honrarias e foi
sagrado cavaleiro em 1914. Ele recebeu, inclusive, o Prêmio Nobel de Química
pela pesquisa sobre a desintegração de elementos e sobre a química das substâncias
radioativas, mas nunca recebeu o Prêmio Nobel de Física. Embora seu traba-
lho fornecesse a base para a atual compreensão do átomo, sabe-se que sofre
de restrições importantes. Diversos físicos, incluindo o próprio Rutherford,
concluíram que, se o modelo estivesse correto, teria que haver uma razão que
justificasse o fato de os elétrons em órbita não serem sugados para dentro do
núcleo com carga positiva. O modelo de Rutherford, contudo, era inteligível,
mas o seu átomo era instável mecânica e eletromagneticamente falando. Tal
fato marcou o início do esforço conjunto para encontrar um mecanismo que
pudesse equilibrar a estrutura do átomo.
168 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
uma fórmula que Joseph Balmer (1825-1898) havia desenvolvido e que for-
necia a frequência da luz emitida por átomos. De imediato, Bohr associou a
referida fórmula com a teoria dos quanta de Planck e Einstein para descrever
o comportamento dos elétrons que orbitavam em torno do núcleo. A aplicação
da fórmula aos quanta demonstrou:
a) Os elétrons negativamente carregados trafegam por órbitas em torno
de um núcleo carregado positivamente, à maneira dos planetas que
orbitam o Sol;
b) Os elétrons são mantidos próximos ao núcleo por meio de forças ele-
trostáticas (atração mútua entre cargas positivas e negativas);
c) Um sistema atômico possui um número de estados nos quais nenhuma
emissão de radiação se efetua. Possui, portanto, uma energia constante.
Esses estados são denominados “estados estacionários do sistema”;
d) De todas as órbitas infinitas permitidas pela teoria clássica, somente
são possíveis aquelas nas quais o momento angular orbital do elétron
é um múltiplo inteiro n da constante de Planck h 50;
e) Por fim, um elétron que salta de uma órbita para outra acarreta um
aumento ou uma liberação de um quantum de energia.
Segundo Bohr, os elétrons podem se mover entre órbitas subindo e des-
cendo na escala. Esses movimentos são conhecidos como saltos quânticos. Um
átomo não emite radiação quando de seu estado estacionário; isso só ocorre
quando faz uma transição, dá um salto, de um estado para o outro. A diferença
de energia entre os degraus é adquirida ou perdida com o elétron absorvendo
ou emitindo luz de uma frequência correspondente. Tal energia se apresenta na
forma de radiação eletromagnética, que pode ser vista sob forma de luz – isso
produz as linhas espectrais. Em suma, o átomo não absorve nem emite radia-
ção continuamente, somente por meio dos saltos quânticos.
A teoria de Bohr teve êxito imediato, que fora amplificado com Henry
Moseley (1887-1915) que, em 1913, demonstrou que ela explica totalmente
50 “Os diferentes possíveis estados estacionários são constituídos por elétrons solitários, girando em
torno de um núcleo positivo, com um momento angular L dado pela expressão:
L = n. (h/2π)
Sendo h a constante de Planck e n um número inteiro e positivo, chamado usualmente de ‘nú-
mero quântico’” (MARTINS, 2001, 54).
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Considerações finais
O objetivo do presente capítulo, conforme apresentado ao longo das pági-
nas precedentes, foi o de apresentar a historiografia das teorias atômicas dos
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170 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Referências
ANDRADE, E. N. da C. Rutherford and the Nature of the Atom. Nova York: Doubleday,
1964.
BERKELEY, G. Três Diálogos entre Hylas e Philonous. Tradução de Gil Pinheiro. São
Paulo: Ícone, 2005. (Coleção Fundamentos de Filosofia).
BOHR, N. Sobre a Constituição dos Átomos e Moléculas. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1963. vol. 2
BOYLE, R. The Works of the Honourable Robert Boyle. Londres: Ed. Thomas Birch,
1672. 6 v.
OKI, M. C. M. Controvérsias sobre o atomismo no século XIX. Quim. Nova, Vol. 32,
No. 4, 2009, p. 1072-1082.
PIZON, P. O Átomo e a História. Trad. A. Faia. Porto: Afrontamento, 1975. (Col. Viver
é Preciso)
CAPÍTULO IX
O ANTIRREALISMO NA AURORA
DA MECÂNICA QUÂNTICA
Introdução
N
esse capítulo, ao tratar da teoria quântica, não estabeleceremos qual-
quer distinção entre os termos física quântica, teoria quântica ou mecâ-
nica quântica. Toda a discussão será abrigada sob o cognome de “teoria
quântica”. Teoria esta que trata de analisar e descrever o comportamento dos
sistemas físicos de dimensões reduzidas, próximos dos tamanhos de moléculas,
átomos e partículas subatômicas.
Na teoria quântica, veremos que o determinismo da física clássica não
se aplica e que as medidas obtidas de sistemas quânticos são expressas em
termos de probabilidades. Todo o seu desenvolvimento teve como suporte a
descoberta de Planck de que a energia, tal como a matéria, era atômica e que a
sua atomicidade não estava na própria energia, mas num quantum (quantidade
suficiente de ação) constante que controlava a quantidade de todas as trocas
de energia. Entretanto, foi da teoria dos quanta aplicada ao átomo de Bohr
que vimos nascer a teoria quântica que se tornou capaz de compreender meca-
nismos como os decaimentos radioativos, a emissão e absorção de luz pelos
átomos, a produção de raios x, o efeito fotoelétrico, as propriedades elétricas
dos semicondutores etc. Em suma, trata-se de um dos mais bem-sucedidos
campos da física, cujos desenvolvimentos nos levam ao conhecimento das mais
estranhas explicações do comportamento da realidade na escala do átomo,
quando do indeterminismo e da irracionalidade no interior dos postulados de
algumas interpretações.
No século XX, principalmente na sua primeira metade, os rumos da física
se alteraram com o caminhar do desenvolvimento das teorias atômicas. Até o
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174 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
176 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
exposição dos itens que, a nosso ver, na teoria quântica, apresentam-nos as mais
interessantes questões filosóficas a respeito da concepção física do mundo, isto
é, de como os seres humanos criam o universo em que vivem, e que nos pro-
porcionam bons conteúdos de reflexão.
Afinal, é a luz onda ou partícula? De Newton tínhamos uma primeira
resposta que admitia a natureza corpuscular da luz, isto é, a luz era feita de
corpúsculos ou partículas. A noção geral que vigorou na mecânica clássica
era a de que uma partícula é uma entidade bem pequena que se locomove
no espaço, cuja posição é bem definida, possuindo uma velocidade precisa.
A partícula descreve uma trajetória contínua e mantém sua identidade sem
desintegrar (até uma certa energia de destruição). Por outro lado, o eletromag-
netismo defendia a luz como sendo uma onda eletromagnética de frequência
extremamente alta que viajava num meio tênue e imóvel, sem peso, invisível,
de viscosidade zero, chamado éter, cuja realidade era resumida elegantemente
nas equações de Maxwell.
Um exemplo simples e recorrente em livros técnicos a respeito da estra-
nha propriedade onda-partícula da matéria pode ser esclarecedor. Trata-se do
exemplo das famosas franjas de Young. Em 1801, o físico britânico Thomas
Young (1773-1829), por meio de um pedaço de cartolina com duas fendas nele
recortadas, fez passar um raio de sol. A luz projetou uma série de listas que
ficaram conhecidas como franjas de Young. Com o fechamento de uma das
fendas, aparecia um único arco-íris que era ladeado por algumas manchas mais
fracas. Young compreendeu que a luz estava se comportando como ondas de
água, pois se temos uma onda de água (plana) que é barrada por uma parede
qualquer e essa parede possui uma abertura, parte da água passará pela abertura
e formará uma onda circular. Algo mais ou menos assim:
178 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
O resultado foi que, “ao usar uma dupla fenda, Young fez dois fluxos de
luz – um de cada – interferirem. Suas fases relativas eram ditadas pelas dife-
rentes trajetórias ao atravessar a cartolina e depois disso. Onde as ondas se
combinavam para reforçar uma à outra, o resultado era uma listra brilhante.
Onde elas se anulavam, o fundo ficava escuro” (BAKER, 2015, p. 21). Algo que
pode ser assim ilustrado:
180 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
182 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
O problema era que Bohr, Planck e a maioria dos físicos de sua época
imaginavam regras e números quânticos que emergiam das regularidades nas
estruturas básicas dos átomos. Não tinham ciência, portanto, de que o determi-
nismo clássico não é regra para os atributos quânticos, que têm outra “lógica”
de funcionamento.
Em 1924, Heisenberg visitava periodicamente Bohr para fins de estudos
e tentava maneiras de calcular as linhas espectrais do hidrogênio. Sua ideia
foi a de que, em virtude do fato de que os físicos não sabem nada sobre o
que acontece dentro do átomo, o negócio era trabalhar com o que podia ser
observado. Com isso, começou a elaborar uma estrutura intelectual que con-
jugasse todas as variáveis quânticas. Mas Heisenberg tinha um problema sério
de alergias e, no verão de 1925, teve que ir se recuperar de um ataque de febre
do feno na ilha de Helgoland, na costa alemã do mar do Norte, lugar onde teve
um insight revelador. Inspirado em suas conversas com Bohr sobre os mistérios
do quantum, juntou as peças e criou a mecânica matricial, a primeira mecânica
quântica surgida no mundo.
Se as matrizes não são comutativas, isso significa que px ≠ xp, o que obri-
gava Heisenberg a introduzir um postulado para saber qual é a diferença entre
px e xp. A fim de obter um sistema de equações que levasse aos valores corretos
das frequências e das intensidades relativas das linhas espectrais, Heisenberg
concluiu que a equação px – xp = i(h/4π)1, em que 1 é a matriz unitária. O
resultado desse cálculo foi a relação de incerteza de Heisenberg exposta na
seguinte fórmula: ∆x . ∆p ≥ h/4π.
Mas o que revela a mecânica matricial desenvolvida por Heisenberg?
Com o seu ex-aluno Pascual Jordan, Max Born, a quem Heisenberg havia
mostrado os seus cálculos, adensou as equações em formato de matriz. Os
valores na tabela ligavam energias dos elétrons com as linhas do espectro e não
eram baseados na imagem de órbitas inobserváveis de elétrons e sim em um
formalismo matemático que eliminava as representações mentais deficientes,
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184 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Quando queremos ter clareza sobre o que se deve entender pelas palavras
“posição do objeto”, por exemplo do elétron (relativamente a um dado
referencial), então é preciso especificar experimentos definidos com o
auxílio dos quais se pretenda medir a “posição do elétron”; caso contrário,
a expressão não terá nenhum significado (HEISENBERG, 1983, p. 64).
186 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
188 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
[...] Os problemas linguísticos são, nesse caso, realmente sérios. Nós, afi-
nal, desejamos poder falar – de alguma maneira – sobre a estrutura dos
átomos, digamos, e não somente acerca de “fatos”, esses últimos sendo, por
exemplo, manchas negras em uma chapa fotográfica ou gotículas d’água
em uma câmara de Wilson. Mas não teremos como descrever a estrutura
dos átomos na linguagem comum (HEISENBERG, 1995, p. 135).
190 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Bem, na verdade crê-se que nos fornece informações acerca de fatos obser-
vados e da sua dependência mútua. Existe uma perspectiva otimista,
nomeadamente a que defende que esta perspectiva nos fornece todas as
informações que se podem obter a partir dos fatos observáveis e da sua
interdependência. Mas esta perspectiva – que pode estar ou não correta –
é otimista apenas na medida em que serve para lisonjear o nosso orgulho
por possuirmos, em princípio, todas as informações que se podem obter.
É pessimista no que diz respeito a um outro aspecto, talvez se pudesse
mesmo afirmar que é epistemologicamente pessimista. Porque as infor-
mações que obtemos relativamente à dependência causal dos fatos observáveis é
incompleta. (O problema tinha de surgir algures!). As lacunas, eliminadas
da imagem das ondas, passaram para a ligação entre a imagem das ondas e
os fatos observáveis. Estes últimos não estão em correspondência unívoca
com a imagem. Continua a existir muita ambiguidade e, tal como afirmei,
alguns pessimistas otimistas ou otimista pessimistas acreditam que esta
ambiguidade é essencial, não pode ser evitada (SCHRÖDINGER, 1996,
p. 124-125).
192 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Essa ideia de que “uma onda real vai se propagando por aí e, quando é
observada (medida), sofre um colapso” nunca foi muito bem aceita entre
os físicos, pela seguinte razão. Considere a região em torno do ponto Q,
na figura. Logo antes da detecção em P, havia uma onda em torno de Q,
mas com a detecção em P, a onda em Q desaparece instantaneamente.
P e Q podem estar separados a uma distância imensa, como a distância
entre a Terra e o Sol: como é que uma medição na Terra (P) poderia afetar
instantaneamente uma onda no Sol (Q)?
Neumann, que previa que, se a mecânica quântica estivesse correta, não haveria
de conceber a existência de objetos comuns que combinam entre si de maneira
razoável. O teorema de Bell admite a interconectividade que é comprovada
pela experiência Einstein, Podolsky e Rosen (EPR), que veremos adiante.
Sobre von Neumann, gostaríamos de fazer um adendo para apresentar,
em linhas gerais, como ele trata da questão do colapso da função de onda e
como seu tratamento escancarou as portas para as mais estranhas concepções,
que propõem seus fundamentos na teoria quântica, mas que, ao fim e ao cabo,
introduzem esse campo da física no mais profundo pântano do chamado mis-
ticismo quântico. Nesse caso, referimo-nos às chamadas interpretações ondu-
latórias subjetivistas.
Conhecido mundialmente por ter participado de grandes e importan-
tes projetos no século XX (concepção de computador programável, teoria dos
jogos estratégicos, primeiros robôs, desenvolvimento da bomba atômica etc.)
o matemático húngaro John von Neumann (1903-1957), juntamente com
Garrett Birkhoff (1911-1996), propôs a ideia da lógica quântica, mas se tornou
notável pelo seu livro, a bíblia quântica, Mathematical Foundations of Quantum
Mechanics.
194 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Von Neumann não pôde encontrar um lugar natural para colocar o seu
“milagre”. Tudo, afinal de contas é feito de átomos: não há nada de santo
num instrumento de medida. Seguindo a cadeia que tem o seu nome,
impulsionado por sua própria lógica, em desespero von Neumann agar-
rou-se ao seu único elo estranho: o processo pelo qual um sinal físico
no cérebro se transforma numa experiência da mente humana. Esse é o
único processo em toda a cadeia de von Neumann que não consiste de
meras moléculas em movimento. Relutantemente, von Neumann chegou
à conclusão de que a consciência humana é o local do colapso da função ondu-
latória (HERBERT, 1989, p. 181, grifos nossos).
196 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Bohr, por sua vez, gostou da teoria de Heisenberg, pois esta se relacionou
bem com suas ideias sobre saltos quânticos discretos e com a sua noção de
complementaridade.
As posições de Heisenberg e Schrödinger, bem como dos partidários
que cada um havia de ganhar em apoio, na verdade, refletiam a realidade de
uma época, onde a física quântica nascente debatia-se com os problemas da
representação clássica e lutava para fixar uma identidade própria – a despeito
dos seus muitos críticos, como era o caso de Einstein, que também fora um
dos seus fundadores. Holton (1984, p- 49-50) resume muito bem o estado de
coisas que, naquela época, representava as diferenças básicas das descrições
clássica e quântica da física:
1) Na física clássica, o movimento dos planetas ou de objetos suficien-
temente grandes podem ser explicados, descritos e definidos com
pequena interferência do observador e com pequena incerteza. Na
física quântica, a descrição do estado do sistema não pode ser feita sem a
influência do observador. “A razão de tal situação é simples: os átomos,
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198 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
200 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
inferir trajetórias) (PESSOA JR., 2000)52. O que ficará resolvido é que, para
sistemas existentes na escala atômica, não existe um valor predeterminado para
as grandezas físicas, são as medições que determinam o que deve aparecer
durante eventos de observação.
O terceiro tipo de complementaridade é entre os observáveis incompatíveis,
como é o caso da posição e do movimento. Segundo Bohr (2000, p. 139),
202 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
53 No caso de Bohr, o antirrealismo vem seguido de um fundo positivista por depositar no ins-
trumento de medida a inteira confiança no deciframento da realidade, isto é, por sacralizar os
instrumentos de medida.
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54 Mais tarde, já em 1955, quando Bohr profere um discurso numa reunião da Real Academia
Dinamarquesa de Ciência, em Copenhague, ele tenta se defender de tal acusação. Segundo ele,
“em vista da influência da concepção mecanicista da natureza no pensamento filosófico, é com-
preensível que às vezes se tenha visto na noção de complementariedade uma referência ao obser-
vador subjetivo, incompatível com a objetividade da descrição científica [...]. Na física quântica,
como vimos, a explicação do funcionamento dos instrumentos de medida é indispensável à
definição dos fenômenos, e devemos distinguir entre o sujeito e o objeto, por assim dizer, de tal
maneira que cada caso isolado assegure a aplicação inambígua dos conceitos físicos elementares
empregados da descrição. Longe de conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a
noção de complementariedade aponta para as condições lógicas da descrição e da compreensão
da experiência na física atômica” (BOHR, 1995, p. 114-115).
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204 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações Finais
Conforme vimos, o nascimento da física quântica trouxe com ele um rico
material filosófico no que diz respeito à metafísica da natureza da realidade.
É justamente da confirmação experimental da realidade do comportamento
do átomo ora como onda, ora como partícula, que vimos surgir problemas
que alimentaram o imaginário dos físicos e que encheram os olhos filósofos.
Questões referentes à natureza dual do comportamento da matéria, à incer-
teza, à complementaridade e ao lugar da ocorrência do colapso da função de
onda quebraram o paradigma clássico que fazia o mundo parecer determinado,
contínuo e local, para cuja explicação seria necessário o uso da causalidade
e da ação por contato. Esses problemas levantados pela nascente mecânica
quântica fizeram nascer uma série de interpretações sobre a natureza última da
realidade a ponto de nos perdermos no contingente de propostas interpretati-
vas composto por quatro grandes grupos: interpretação ondulatória (no geral,
realista), interpretação corpuscular (realista), interpretação dualista realista e
interpretação dualista positivista (PESSOA JR., 2006). Nesse capítulo, a título
precário, uma vez que o presente livro não é específico sobre filosofia da física
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Referências
BAKER, J. 50 ideias de física quântica que você precisa conhecer. Tradução de Rafael
Garcia. São Paulo: Planeta, 2015.
206 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
HAWKING, S. Uma nova história do tempo. Tradução de Vera de Paula Assis. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2005.
PESSOA JR., O. Conceitos de Física Quântica. 4. ed. São Paulo: Livraria da Física,
2019. Vols. I e II.
PULLMAN, B. The Atom in the History of Human Thought. Oxford: Oxford Universiry
Press, 1998.
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CAPÍTULO X
A QUEBRA DA MONOCRACIA DA
INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGUE
Introdução
P
or muitos anos a ortodoxia da interpretação de Copenhague liderou os
debates na esfera da mecânica quântica. Isso, entretanto, não garantiu aos
seus partidários a “tranquilidade” esperada em tempos de ciência nor-
mal, na acepção de Kuhn. No próprio interior da ortodoxia, vimos desdobrar
uma série de interpretações que, se não contradizem a interpretação da com-
plementaridade, divergem em aspectos substanciais relacionados a ela. Dessa
forma é que surgem no interior das interpretações ortodoxas interpretações
como a ondulatória positivista, a subjetivista, a macrorrealista da complemen-
taridade, a eclética, as leituras realistas da complementaridade, o instrumenta-
lismo radical, a intepretação estroboscópica, a da matriz-S e a da soma sobre
histórias (PESSOA JR., 2006). Mas foi exatamente de fora que a ortodo-
xia liderada por Bohr sofreu as maiores contrariedades. A insatisfação com o
antirrealismo ortodoxo fez com que físicos defensores de posições, na maioria
das vezes realistas, levantassem as vozes contra a autoridade de Bohr, o que
gerou muitos dissabores e mais instabilidade no interior das interpretações
ortodoxas da mecânica quântica. Desse modo, ganharam voz o realismo local
de Einstein, o realismo das variáveis ocultas de Bohm, a não-localidade de Bell
e o realismo determinístico de Everett, só para citar alguns exemplos. O que se
vê com essas interpretações é que, muitas das vezes, o antirrealismo sustentado
pelas interpretações ortodoxas sofre de problemas que aguçam a percepção de
que há algo de errado com a mecânica quântica.
O que pretende o presente capítulo é justamente demonstrar que a
ortodoxia liderada por Bohr não é uma “verdade de fé” e que interpretações
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210 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
56 Mecânica Quântica.
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212 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Aqui vimos que uma entidade quântica (um fóton, por exemplo) seguiu a
sua trajetória e foi detectada como um ponto na posição d. Atrás da tela detec-
tora F temos um padrão de interferência formado pelo acúmulo de milhares
desses pontos. A questão que fica é: por qual fenda teria passado a partícula?
Bohr afirmava que esta pergunta não tinha resposta. Neste fenômeno
ondulatório (ou seja, que exibe franjas de interferência), não faria sentido
atribuir trajetória ao quantum detectado. Não se trata de uma questão de
ignorância: não é que o quantum passa por uma das fendas e nós nunca
saberemos por qual fenda ele passou. É mais do que isso! Na propagação,
o quantum não se comporta como partícula! Ele passa por ambas as fen-
das! (PESSOA JR., 2007-11, p. 34).
57 Complementaridade, conforme vimos, por meio da tese de que duas quantidades conjugadas
são complementares entre si no sentido de que ambas são mutuamente exclusivas, uma vez que
a determinação mais precisa do valor de uma delas resulta em maior incerteza com respeito à
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satisfeito com essa posição e, por mais “paradoxal” que fossem as implicações
físicas, quis mostrar a possibilidade da abordagem. Em um experimento de
pensamento simples, sugeriu que S2 fosse desconectado do suporte rígido para
lhe permitir movimento como resultado da colisão da partícula com as fendas.
Para as partículas que são registradas por F em pontos não remotos do eixo de
simetria do arranjo, um ricocheteio “para cima” por parte de S2 indica que a
partícula veio de b e um ricocheteio “para baixo” por parte de S2 indica que a
partícula veio de c. Dessa forma, a medição não provocaria nenhum distúrbio
na partícula, mas nos daria a informação necessária para determinar por qual
fenda ela passou. A interpretação de complementaridade estaria refutada!
Geralmente Einstein vinha ao café da manhã no hotel, onde estavam os
participantes do congresso, com as suas objeções; no jantar, Bohr comunicava
sua resposta. “O pobre Bohr não deve ter prestado muita atenção às secções
oficiais durante o dia” (BROWN,1981, p. 61). Em termos simples, Bohr con-
sidera S2, apesar do seu tamanho macroscópico, como um objeto quântico,
sujeito também às relações de incerteza.
A chave de sua resposta era que o anteparo (onde ficam as fendas) deveria
estar sujeito ao princípio de incerteza. Se este anteparo fosse suspenso em
molas, de forma a que se pudesse medir sua velocidade (para cima ou para
baixo) após a passagem do quantum, então, pelo princípio de incerteza,
sua posição não seria bem determinada (o princípio de incerteza diz que
se a velocidade é bem definida e exata, a posição terá que ser mal definida;
ou vice-versa). Ou seja, não se poderia controlar com exatidão a posição
das fendas. Mesmo que insistíssemos que um padrão de interferência se
formaria, tal padrão se deslocaria (para cima ou para baixo) a cada novo
quantum (pois, segundo o princípio da incerteza aplicado ao anteparo, a
posição das fendas seria diferente a cada novo quantum). Assim, é como
se esses padrões de interferência ficassem tremidos, borrando o resultado
final que é visível na tela, após milhares de quanta passarem pelo sistema.
214 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
216 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
58 “A correção de uma teoria é julgada pelo grau de concordância entre suas conclusões e a expe-
riência humana” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1891, p. 90).
59 C = completeza, nas palavras de Pessoa Jr.
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correta em seu formalismo, mas incompleta. É isso que o paradoxo EPR tenta
demonstrar.
O argumento EPR baseia-se na tentativa de negar a completude da
mecânica quântica através da noção de sistemas correlacionados. Vimos que
na teoria quântica a sobreposição de estados quânticos era tida como real: até
que um sistema quântico fosse medido, ele permanecia em estado de sobre-
posição de todos os estados. Isso aponta para a exigência da correlação entre o
sistema quântico e o observador, uma vez que a existência do sistema quântico
(a sua saída do limbo) depende do observador que procede ao ato da medição.
Na medida em que o observador mede uma partícula, as probabilidades da
função de onda de ambas partículas colapsam para consolidar o resultado. A
função de onda da segunda partícula colapsa exatamente no mesmo momento
que a da outra, não importa quão distantes as partículas estejam. Era esse tipo
de concepção que incomodava o realismo de Einstein, que se queixava com
asserções do tipo: “Não posso imaginar que um camundongo possa alterar
drasticamente o universo, meramente olhando para ele” (EINSTEIN, [s.d.],
apud HERBERT, 1989, p. 239).
Como se concebe na mecânica quântica, esse colapso da função de onda
se dá de modo instantâneo, à distância e de forma não-local. Isso sugere que
a informação do que foi medido em A foi transmitida instantaneamente para
B. A questão que fica, portanto, é: seria possível esse tipo de ação à distância,
que faz com que duas partículas interajam de forma instantânea e não-local,
mesmo estando essas partículas a milhares de quilômetros separadas umas das
outras? Caso tal “emaranhamento”, na linguagem de Schrödinger, seja possível,
cai por terra a noção de que nenhum sinal que carrega informação pode ser
enviado de forma mais rápida que a velocidade da luz (300 mil km/s).
EPR introduziram uma hipótese de localidade na qual seria impossível que
a medição de uma partícula em um ponto A tivesse reflexos instantâneos sobre
outra partícula, em outro ponto B, com velocidade maior do que a velocidade
da luz. “[...] Como no momento da medição os dois sistemas não mais estão
interagindo, não pode ocorrer nenhuma mudança real no segundo sistema
como decorrência de qualquer coisa que se faça no primeiro” (EINSTEIN;
PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 94). Isto é, caso decidíssemos medir a posi-
ção de A, descobriríamos que B tem posição bem definida e se medíssemos a
velocidade de A, descobriríamos que B também tem velocidade bem definida.
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218 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
físicas não comutam, essas quantidades não podem ter realidades simultâneas”
(EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 95, grifos nossos). A tabela
de verdade de uma disjunção exclusiva envolvendo as premissas (1) e (2) da
conclusão de EPR, na lógica proposicional, é a seguinte:
1 2 1∨2
V V F
F V V
V F V
F F F
220 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Depois que o artigo foi publicado, ele [Einstein] recebeu várias cartas de
físicos, “dizendo-lhe ansiosamente onde o argumento estava errado. O
que divertia Einstein foi que, embora todos os cientistas tivessem certeza
de que o argumento estava errado, cada um dava razões diferentes para a
sua afirmação!” ( JAMMER, 1974, p. 187).
sem ser medida, ou seja, tal propriedade não existe, não está oculta à espera
de um aparelho de medida ou de qualquer interferência do observador. Desse
modo, “do nosso ponto de vista, vemos agora que o fraseado do critério de
realidade física proposto por Einstein, Podolsky e Rosen, mencionado acima,
contém uma ambiguidade no que tange o significado da expressão ‘sem de
modo algum perturbar um sistema’” (BOHR, 1981, p. 103).
Vimos que a expressão “sem de modo algum perturbar um sistema” havia
sido utilizada por EPR (1981, p. 91). Bohr considerou, entretanto, que a esco-
lha de medir A ou B constituía uma influência nas próprias condições que
definem o “fenômeno”, já que arranjos experimentais diferentes teriam que
ser usados (PESSOA JR., 2019). Algo que já havia sido antecipado por EPR
quando afirmam que “de fato, nossa conclusão não seria alcançada se insis-
tíssemos em que duas ou mais quantidades físicas só poderiam ser encaradas
como elementos simultâneos de realidade quando pudessem ser simultaneamente
medidas ou previstas” (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSEN, 1981, p. 96).
Segundo Pessoa Jr. (2019), Bohr não teria, de fato, rejeitado o “elemento
de realidade” de EPR, mas sim a própria noção de localidade por meio de uma
noção de totalidade do fenômeno. Entretanto,
Certo é que, conforme disse o próprio Bohr, “os debates com Einstein,
tema deste artigo, estenderam-se por muitos anos, que assistiram a um grande
progresso no campo da física atômica. Quer nossos encontros tenham sido de
longa ou curta duração, eles sempre deixaram em minha mente uma impressão
profunda e duradoura” (BOHR, 1995, p. 82). O impasse, entretanto, foi que-
brado pelos esforços físicos teóricos de John Bell em 1964, mas, para enten-
dermos melhor seus resultados, analisemos primeiramente as contribuições de
David Bohm para esse contexto.
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222 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Bohm procura apresentar as razões pelas quais tais críticas seriam injus-
tificadas de um ponto de vista interessante, visto da diferente análise que ele
faz do mesmo problema nos artigos publicados em 1952 sobre a interpretação
causal. Na análise de 1951, Bohm identifica que EPR se comprometeram em
definir os critérios para a avaliação de uma teoria física, utilizando-se de dois
explícitos, mas sustentados por duas suposições implícitas, que são parte inte-
grante do tratamento dado pelos autores, mas que nunca foram explicitamente
declaradas. E quais seriam uns e outros?
Quanto aos critérios explícitos, eis aqueles já enunciados por EPR: “(1)
Todo elemento de realidade física deve ter uma contrapartida em uma teoria
física completa” (BOHM, 1951, p. 612) e “(2) Se, sem de modo algum perturbar
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o sistema, pudermos prever com certeza (i.e., com probabilidade igual à uni-
dade) o valor de uma quantidade física, então existe um elemento de realidade
correspondente a esta quantidade física” (BOHM, 1951, p. 612). Conforme
vimos, o primeiro desses critérios diz respeito ao critério de completude de EPR
e o segundo diz respeito ao critério utilizado para reconhecer um elemento de
realidade. Quanto às duas suposições implícitas, Bohm assim as enuncia:
224 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
quantidade matemática definida com precisão que aparece em uma teoria com-
pleta, então a suposição usual de que a função de onda fornece uma descrição
completa da realidade leva à conclusão de que A e B não podem existir simultane-
amente. Isso decorre do fato de que a teoria das ondas, supostamente completa,
não contém elementos matemáticos precisamente definidos, correspondentes à
existência simultânea de A e B. A consequência é que quando B é medido e se
obtém um valor definido, o elemento correspondente ao observável A é destru-
ído (BOHM, 1951). Para Bohm, é natural supor que essa destruição é devida
aos quanta transferidos do aparelho de medição para o sistema.
Dois temas estão envolvidos, portanto, nas considerações supramencio-
nadas de Bohm, a saber, variáveis ocultas e não-localidade que, por consequên-
cia, acabam por envolverem-se com o tema do realismo – pois nessa teoria de
variáveis ocultas a propriedade a ser medida é considerada real e está presente
no objeto – e do determinismo – uma vez que tal propriedade pode ser determi-
nada com certeza, isto é, todos os eventos são determinados por causas.
Vimos que, em 1923, de Broglie, em sua tese de doutorado, havia defen-
dido a ideia de que toda matéria consiste de partículas e onda, oscilando numa
frequência bem determinada – ideia esta que lhe daria o prêmio Nobel. Em
1927, no Congresso de Solvay, na Bélgica, de Broglie apresentou uma teoria
de variáveis ocultas que mantinha o determinismo e uma interpretação realista
na qual seria possível a “visualização” dos átomos e elétrons na descrição da
realidade por trás das observações. Tal realidade existiria independentemente
do observador, a cada instante e não somente no instante da observação. Sua
concepção, além de manter a noção de partícula e onda, ainda concebia a onda
contínua que guiava a partícula através do espaço. Tratava-se da onda piloto.
Contudo, nesse mesmo Congresso, Wolfgang Pauli (1900-1958) impôs uma
série de objeções à teoria realista de de Broglie, o que acabou por fazê-lo desis-
tir de sua tese dualista realista. Dessa forma, acabou vigorando a interpretação
de complementaridade de Bohr e a concepção de de Broglie foi engavetada
por cerca de um quarto de século.
Em 1952, em um artigo intitulado A Suggested Interpretation of the
Quantum Theory in Terms of “Hidden Variables”, Bohm ressuscitou a teoria das
variáveis ocultas e redescobriu, sem querer – pois ele não tinha conhecimento
desses trabalhos –, a ideia não publicada de de Broglie sobre a “onda guia”. O
artigo foi dividido em duas partes, sendo que a primeira delas correspondia
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Mas, a disputa não se fez presente porque, quando os artigos foram publi-
cados, Bohm reconheceu a anterioridade de de Broglie. Tanto as objeções de
Pauli à teoria de de Broglie quanto as objeções de von Neumann à existência
de objetos comuns e, portanto, ao realismo e ao determinismo, foram resolvi-
das por Bohm na sua descrição de variáveis ocultas do objeto quântico (nesse
caso, a posição e a velocidade das partículas), bem como na descrição das vari-
áveis ocultas do próprio aparelho de medição.
226 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
61 Onde fica o grande colisor de Hádrons, o LHC, na fronteira franco-suíça, perto de Genebra, que
conta com financiamento mundial para pesquisas em física de altas energias.
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cujo contraditório foi demonstrado pelos autores. Por outro lado, David Bohm,
em 1952, havia desenvolvido uma versão da teoria quântica na qual uma rea-
lidade poderia se propagar instantaneamente, isto é, desenvolveu uma versão
em que a realidade é não-local. Conforme Bohm sublinhara, sua teoria era
contextual e envolvia também variáveis ocultas que eram pertencentes ao apa-
relho de medição. Era também realista, pois tratava de uma “realidade” física,
apesar de possuir variáveis ocultas que não podiam ser observadas diretamente.
Diante desse conjunto de informações que lhe precedia, Bell fez a si as seguin-
tes perguntas: será que a não-localidade da teoria de variáveis ocultas seria uma
característica de qualquer teoria quântica? E se as coisas existem sem serem
observadas, terão elas que estabelecer entre si uma ação imediata à distância?
A ideia de Bell era a de que toda teoria física realista, que queira prever tudo
o que a física prevê, tem que ser não-local, como a teoria de Bohm. Essa con-
cepção ficou conhecida como teorema de Bell, que declara que nenhum modelo
local pode dar suporte aos fatos quânticos, logo a realidade deve ser necessa-
riamente não-local. Mas qual é o verdadeiro mérito do teorema de Bell? O que
o teorema diz é que se as variáveis ocultas e o realismo local fossem verdadei-
ros, qualquer decisão tomada sobre a medição de uma partícula próxima não
afetaria a propriedade de outra distante, o que Bell demonstrou não ocorrer.
Segue-se daí que se uma teoria física é realista, então, ela é não-local. E como
isso é demonstrado pelo teorema? Em resumo, o que postula o teorema é que
Há uma certa grandeza cujo valor, para qualquer teoria quântica realista
local, é sempre menor ou igual ao número 2 (trata-se, portanto, de uma
desigualdade). Já para a teoria quântica usual este valor pode ser maior
que 2. A teoria de Bohm é realista não-local, então o valor pode ser maior
que 2. A maioria dos físicos da época interpretava a Teoria Quântica de
maneira “não realista”, então, para eles, o valor também poderia ser maior
do que 2 (PESSOA JR., 2007-11, p. 37).
228 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Já faz muito tempo que sou fascinado pela experiência EPR. Ela con-
tém, ou não, um paradoxo? Impressionaram-me profundamente as res-
trições de Einstein a respeito da teoria quântica e sua opinião de que ela
seria uma teoria incompleta. Por razões diversas, aquele era para mim o
momento oportuno para atacar de frente o problema. O resultado foi o
inverso do que eu pensara. Mas fiquei maravilhado – numa área onde
tudo era indefinido e obscuro, eu encontrara algo sólido e claro.
230 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
é incompleta, pois deixa evidente que a função de onda não fornece toda a
informação disponível sobre o sistema, além de se fazer necessário encontrar
variáveis ocultas que carregam a informação não disponível.
Segundo Holton (1984, p. 56, grifos nossos), antes da complementari-
dade, “[...] Bohr formulou uma proposta que veio a ser um meio caminho
moderadamente bem-sucedido em direção à reconciliação entre a mecânica clás-
sica e a quântica, na concepção que, a partir de 1918, tornou-se conhecida como
o princípio da correspondência”. Esse princípio assevera que a descrição quântica
da realidade microscópica deve corresponder à descrição clássica da realidade
macroscópica. Contudo, sabemos que a incerteza, a indeterminação, o antirre-
alismo e a não-localidade fazem parte dos sistemas quânticos, que são regidos
por leis particulares, das quais os sistemas clássicos não dão conta – apesar de
o formalismo matemático da teoria quântica satisfazer ao princípio da cor-
respondência. Mas o que esperar da adequação da realidade quântica com o
princípio da correspondência?
Foi no exílio em Oxford, em 1935, na redação de um artigo intitulado
The Present Situation in Quantum Mechanics, que Schrödinger tentou respon-
der a essa questão, examinando alguns problemas da mecânica quântica, den-
tre eles o problema das superposições quânticas de estados de emissão e não
emissão. Num experimento de pensamento, seguindo a mesma toada de EPR,
Schrödinger coloca em xeque a noção de nuvem de probabilidade de Bohr,
questionando a natureza contraintuitiva do colapso de função de onda, bem
como a da influência do observador. Apesar do sucesso da interpretação de
Copenhague entre muitos físicos, Schrödinger e Einstein nunca embarcaram
no “entusiasmo injustificado” de grande parte dos seus colegas. A questão que
se colocava, portanto, era: qual seria o estado do sistema macroscópico como
um todo ao final de um intervalo de tempo? E para demonstrar que as pro-
babilidades quânticas não fazem sentido na escala macroscópica, Schrödinger
escolheu algo que fosse capaz de atrair maior empatia, a saber, um gato.
Trata-se da imagem de um gato fechado dentro de uma câmara de aço
junto a um “dispositivo diabólico” (diabolical device) que incluía um pouco de
uma substância radioativa dentro de um vidro, o cianureto de hidrogênio, que
seria quebrado por um martelo, caso um átomo radioativo, que estivesse em
uma superposição (1 e 2), decaísse. Se o átomo estivesse em 1, a amplificação
levaria o martelo a quebrar o vidro, o que mataria o gato. Se o átomo estivesse
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Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020
232 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020
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Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia
Acesso: 10 out. 2020
Mas Schrödinger não estava de acordo com essa concepção. Para ele seria
um absurdo transferir a noção de objeto quântico para o nível dos objetos
clássicos, visto que, além de não existir superposições no nível clássico – o gato
certamente estaria vivo ou morto e não os dois ao mesmo tempo –, o estado
macroscópico também não é afetado pela a observação. Implícito no paradoxo
de Schrödinger estava a mesma conclusão por EPR: a física quântica é incom-
pleta! Será a hipótese dos estados relativos de Everett aquela a dar um enca-
minhamento para a situação do paradoxo do gato, pois, segundo essa hipótese,
“cada vez que captamos o caráter de um fóton, o Universo se divide em dois.
Em um mundo a luz é uma onda; no outro é uma partícula. Em um universo
o gato está vivo quando abrimos a caixa; na dimensão complementar o animal
foi morto pelo veneno” (BAKER, 2015, p. 74-75).
234 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
sua interpretação pronta, mas que sofreu posterior redução em virtude da não
aceitação das ideias por parte de Bohr e dos seus partidários. Isso “obrigou”
Wheeler a tomar frente da reformulação do texto e o reduzir de 137 para
somente 36 páginas, apresentando-o, em 1957, com um título bastante neutro
e genérico, On the foundations of quantum mechanics. A versão final ganhou
uma explicação da interpretação de Everett por parte de Wheeler, intitulada
Assessment of Everett’s “Relative State” Formulation of Quantum Theory, que foi
enviada para ser publicada juntamente com a tese. Por fim, a tese foi publi-
cada, juntamente com o texto de Wheeler, no Reviews of Modern Physics, um
modesto periódico que não permitiria a projeção das ideias de Everett entre os
físicos de sua época. Em vez disso, como a publicação se deu nos proceedings de
uma conferência sobre cosmologia, pareceu que o artigo era restrito a essa área,
não tendo muito impacto no campo da física quântica, pervertendo, assim, o
objetivo do ambicioso projeto inicial.
Mas o que era a interpretação dos estados relativos de Everett?
Costumeiramente, essa interpretação é conhecida como aquela que faz alusão
a um conjunto de ideias que tratam de uma infinidade de “universos paralelos”
coexistentes. Contudo, essa não é a ideia original de Everett, e se ela ganhou
essa conotação, isso se deve ao fato de Bryce DeWitt que, juntamente com o
seu aluno Neill Graham, organizaram e editaram, em 1973, uma coletânea dos
trabalhos não publicados de Everett e deram o título A Interpretação do Muitos-
Mundos da Mecânica Quântica (DEWITT; GRAHAM, 1973). Entretanto, é
importante salientar que existem diferenças fundamentais entre a interpretação
dos estados relativos e as interpretações dos muitos-mundos (vide BEN-DOV,
1990) e que Everett nunca utilizou o termo muitos-mundos. Contudo, essa
distinção raramente ocorre na literatura. A principal diferença entre a visão de
Everett e a de DeWitt é que, segundo Everett, haveria apenas um único uni-
verso, de comportamento completamente quântico, enquanto DeWitt acredi-
tava que cada ramo seria um universo clássico diferente.
O ponto de partida do trabalho de Everett foram os fundamentos da
mecânica quântica, tal como concebida e formalizada no trabalho de von
Neumann, os quais se tornaram objetos de análise e crítica no que diz res-
peito às suas falhas, especialmente o que diz respeito ao postulado de projeção.
Sabe-se que um dos grandes problemas da mecânica quântica está no ato da
medição, naquilo que diz respeito ao colapso de onda. Trata-se de um problema
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236 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
que, em virtude do fato da não observação direta, origina uma série de inter-
pretações sobre o que pode ter ocorrido que justifique tal colapso. No geral, a
função de onda evolui linear e deterministicamente, de acordo com a equação
de Schrödinger, num estado de superposição de diferentes estados. Contudo, o
ato de medição real sempre encontra um sistema físico em um estado definido.
Outra possibilidade de o sistema evoluir é passar instantaneamente, quando do
processo de medição, de uma superposição de autoestados para um autoestado
específico. Se na primeira interpretação problemas não são encontrados, visto
que ela está de acordo com o eletromagnetismo de Maxwell, bem como com a
física de I. Newton, para o segundo caso, temos um problema em aberto para
ser resolvido pela mecânica quântica, a saber: como ocorre o colapso da fun-
ção de onda? E o que justifica um estado de superposição se colapsar em um
autoestado? Esse problema é conhecido como problema da medição e ocupou
vários físicos desde os primórdios da física quântica.
Em 1932, von Neumann introduziu o postulado que denominou de “pos-
tulado de projeção”, anteriormente conhecido como “redução do pacote de
onda”. Segundo esse postulado, a equação de Schrödinger não teria validade
durante os processos de medição. Dessa forma, teríamos dois processos: o pri-
meiro na ausência de medição, no qual o processo seria regido pela equação de
Schrödinger, evoluindo de modo linear, contínuo e determinístico; e o segundo
ocorrendo durante a medição, onde o processo evoluiria regido pelo postulado
de projeção, sendo não linear, descontínuo e probabilístico.
238 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Se assim o é, qual será a saída proposta para Everett? Segundo ele, exis-
tem duas maneiras fundamentalmente diferentes em que a função de estado
pode mudar:
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240 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
242 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Considerações Finais
Objetivou-se com os itens precedentes – tanto no Capítulo IX quanto no
Capítulo X – tratar, em termos gerais, de algumas interpretações da teoria quân-
tica. A escolha, entretanto, não foi aleatória, visto os objetivos do presente livro.
A princípio, acreditávamos que os primórdios da mecânica quântica (mecânica
de matriz e mecânica ondulatória), bem como a interpretação de Copenhague,
tinham informações prestimosas para a filosofia da ciência. Noções como as
de incerteza, superposição, colapso de onda quântica e complementaridade, ao
nosso ver, carregam informações importantes no que diz respeito ao contin-
gente de metafísica com a qual tais noções podem estar envolvidas. E é justa-
mente o caráter heterodoxo da mecânica quântica que propicia que tais teorias
desaguem no mar de metafísicas explicativas da natureza da realidade. A inde-
terminação e a falta do nexo causal (causalidade) comprometem a mecânica
quântica a ponto de nos fazer questionar sobre o status ontológico do conteúdo
que a envolve. O que se vê, num primeiro momento, conforme Heisenberg
havia chamado a atenção, é que a ontologia da física clássica, estruturada no
materialismo, no mecanicismo e no determinismo, já não tem qualquer ser-
ventia para os fundamentos da mecânica quântica. Esta requer uma nova base
ontológica, onde o antirrealismo e formalismo puro aparecem como princípios
fundamentais do novo campo que se inicia. No entanto, o realismo sempre
encontra suas formas para resistir aos ataques, conforme vimos no presente
capítulo.
O que nos resta perguntar, contudo, é sobre o limiar que se estabelece
entre o formalismo e a estrutura real da natureza. É essa questão que parece
ficar “em aberto” quando acessamos os conteúdos referentes à teoria quântica
no geral. Por outro lado, interpretações que se propuseram realistas, a exemplo
das que apresentamos nesse capítulo, também acabaram por se envolver com
termos estranhos e confusos que, parecem-nos, não constituir uma realidade
para além de novos formalismos. Dessa forma, noções como as de variáveis
ocultas, emaranhamento quântico e estados relativos parecem não nos socor-
rer quando da necessidade de um porto seguro acerca da realidade íntima da
natureza. Resta-nos, portanto, agarrar-nos na genialidade de um Einstein e de
um Schrödinger que, mantendo uma visão filosófica acerca da avaliação que
faziam dos sucessos da mecânica quântica, não embarcaram no entusiasmo da
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244 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Referências
BAKER, J. 50 ideias de física quântica que você precisa conhecer. Tradução de Rafael
Garcia. São Paulo: Planeta, 2015.
FREIRE JR., O. David Bohm e a controvérsia dos quanta. Campinas: Unicamp – Centro
de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 1999. (Coleção CLE, v. 27)
PESSOA JR., O. Conceitos de Física Quântica. 4. ed. São Paulo: Livraria da Física,
2019. Vols. I e II.
CAPÍTULO XI
Introdução
O
receio de Wheeler quanto às possíveis interpretações místicas do tra-
balho de Everett “por leitores não qualificados”, enfim, consumou-se.
Não só o trabalho de Everett, mas várias das interpretações da teoria
quântica tornaram-se objetos de especulações e aplicações que se deslocaram
do campo da física para o campo do místico. O poder explicativo e a gama
de aplicações sedimentaram a legitimidade desse novo campo da ciência, mas
também propiciaram que ela se tornasse vítima de várias interpretações que
extravasaram o seu campo de aplicação. Em virtude do sucesso da física quân-
tica, ela tem sido usada para os mais diversos fins, tendo em vista a necessidade
de dar credibilidade aos argumentos de quem a usa ou assegurar a confiança no
que está sendo exposto como uma verdade. Por exemplo, hoje pessoas vendem
colchão quântico, travesseiro quântico, panela quântica, calculadora quântica,
analgésico quântico, hidratante quântico, terapia quântica vibracional, enfim,
uma infinidade de “produtos quânticos”. Na esteira da hipocrisia administra-
tivo-organizacional, vem a “gestão quântica” e até o “coach quântico”. Difícil é
entender por que ele elegeu esse nome! Será porque é feito de partículas? Digo
isso porque a teoria quântica se aplica a descrever átomos, moléculas, suas inte-
rações mútuas e suas interações com diferentes formas de radiação. Qualquer
sentido para além do seu restrito campo de aplicação é má-fé e mau uso do
termo. O que aqui queremos chamar a atenção é justamente para esse mau uso
que as pessoas têm feito do termo “quântico”. E isso não é diferente quando se
trata do misticismo quântico.
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248 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
250 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Bell para casos que envolviam “mentes emaranhadas”. Jack Sarfatti, por outro
lado, defendia a ligação da física quântica com a paranormalidade.
Muitos desses físicos acabaram por formar grupos de vieses místicos para
vivenciarem as experiências nas quais acreditavam: Herbert fundou o CORE
Physics Technologium, onde desenvolvia o Tantra Quântico (fusão do ioga
tântrico com o misticismo quântico através da experiência sexual); Sarfatti,
juntamente com o místico Michael Murphy, fundou o Grupo de Pesquisa em
Consciência Física, cujos encontros aconteciam no Instituto Esalen – localizado
nos penhascos de Big Sur – entre os anos de 1976 e 1985. Para workshops de
Esalen achegaram-se personalidades importantes da física convencional, como
o Prêmio Nobel Richard Feynman. Também se tornou atento aos debates de
Esalen físicos famosos como John Wheeler que, mesmo mostrando-se interes-
sado nos assuntos discutidos, dizia que aqueles físicos eram malucos. Grupos
como esses passaram a ser financiados por pessoas como o milionário Werner
Erhard, fundador do Erhard Seminar Training (EST), que envolvia pessoas em
tratamento de choque; ou pelo Noetic Studies, fundado pelo astronauta Edwin
Mitchell, que teria tido uma experiência mística na órbita da lua; ou, então,
pelo maior financiador atual em questões que envolvam ciência, religiosidade
e parapsicologia, que é a Templeton Foundation.
Mas havia outro grupo bastante interessado na relação entre a física
quântica e os “fenômenos paranormais”, formado por Russell Targ e Hall
Puthoff, estudiosos em parapsicologia, que investigavam aqueles que diziam
ter o dom paranormal da “visão remota”, isto é, que podiam ver remotamente
cenas e situações ausentes. É justamente aqui que aparece o ilusionista israe-
lense Uri Geller. Geller tratava-se de um habilidoso fazedor de dinheiro que
fez fortunas “entortando colheres” e “fazendo relógios pararem” usando apenas
do poder da mente. Tais habilidades mentais foram desmascaradas pelo tam-
bém mágico cético-científico James Randi64; o mesmo Randi “que afirmou,
por sinal, que os físicos são as piores pessoas para investigar os fenômenos
paranormais, pois seriam muito crédulos para perceber os detalhes dos truques
e muito arrogantes para admitir seus próprios erros” (PESSOA JR., 2007-11,
p. 84). No caso dos estudos de Targ e Puthoff sobre os poderes de Geller, os
64 Quem não se lembra do Randi, no programa “Fantástico”, dando um milhão de dólares para
quem provasse ter poderes paranormais, afugentar Thomaz Green Morton, o “homem do Rá” e
guru das estrelas, que dizia ter poderes paranormais?!
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252 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
254 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
65 Segundo Pessoa Jr. (2011, p. 287), “esta tese é atribuída a von Neumann, mas quem a apresentou
em uma publicação foram Fritz London e Edmond Bauer (1939)”.
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256 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
258 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
Resta saber, por fim, que a teoria quântica lida com átomos mais ou
menos isolados e os processos por ela explicados são quantitativos, isso, por si,
exclui também o caráter qualitativo desempenhado pelo cérebro e manifestado
nos sentimentos, emoções, percepção, memória etc. Dessa forma, a chave para
o entendimento da integração do cérebro não deve estar na noção de emara-
nhamento quântico, já que esse é um processo altamente quantitativo e não
envolve qualidades mentais.
A terceira vertente de teses místicas diz respeito à comunicação quântica.
Para mim, essa constitui o aprofundamento e a radicalização do misticismo
quântico a ponto de perder completamente os possíveis vínculos com a teoria
quântica. Os desdobramentos da tese da comunicação quântica, segundo Pessoa
Jr. (2011), são: a) mentes quânticas interagem à distância; b) não-localidade
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260 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
66 “Designarei por ‘energia-chi’ a noção mais mística de energia associada às antigas filosofias
orientais, especialmente o taoísmo, distinguindo-a do conceito de ‘energia’ usado na física mo-
derna” (PESSOA JR. 2013, p. 173).
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262 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
como uma esquisitice insere-se num contexto específico que é orientado não
somente pela teoria, mas também por um processo experimental. Ao estudar
esse campo, vê-se o comprometimento com a elucidação da estrutura última
da realidade a partir de suas bases físicas elementares, sempre com o envol-
vimento do suporte experimental, onde se identificam as ditas “esquisitices”
que são refletidas na teoria. Quando analisamos o misticismo quântico, prin-
cipalmente aquele que é desafiador da ciência, por outro lado, o que vemos é o
conjunto dos que estão com ele envolvidos agindo numa tentativa desenfreada
de tornar a realidade em algo mágico; de atribuir poderes aos seres humanos
os quais só seriam possíveis no âmbito dos sonhos, da realidade fantástica; de
tornar a realidade controlada por poderes, até então, restritos ao divino. É em
virtude disso, que alertei desde o início desse capítulo, minha postura reticente
a esse tipo de misticismo. Tenho a convicção de que a física quântica ainda há
de nos presentear com o que existe de mais evoluído em termos de tecnologia
– e ela tem tido grandes avanços nesse sentido. Contudo, não é a conjugando
com elementos estranhos à sua identidade que seremos mais realizados.
Considerações Finais
Mesmo de que forma bastante estrita, concluímos esse item. Apresentamos
aqui, panoramicamente e sem muitos aprofundamentos, algumas versões do
misticismo quântico que utiliza a física quântica para defender teses aquém ao
próprio escopo da física. As teses aqui apresentadas são as centrais, mas, dado
o deslumbre causado pelo mundo quântico, em virtude da sua indeterminação
e incerteza e da contraparte tecnológica por ele propiciada, isso tem oportu-
nizado que pessoas utilizem os termos, que são próprios à física quântica, para
aplicação em outras áreas, conforme dissemos, com o fito de tornar os seus
argumentos cientificamente comprovados e “universalmente” aceitos. Além
das teses místicas aqui expostas, ainda poderíamos levantar outras tantas, tais
como: a de que “a alma pode viver em universos paralelos e estas contrapartidas
podem se encontrar” (que é fundada na interpretação dos muitos mundos de
DeWitt); a de que os “atos no presente podem alterar o passado e a obser-
vação atualiza o passado” (fundada na noção de John Wheeler de que o pas-
sado, associado a um experimento quântico, só se torna concreto após a escolha
feita pelo físico experimental no presente); a do “paradigma holográfico onde
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Referências
BOHR, N. (1928). O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria
Atômica. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr. In: PESSOA JR., O. (org.). Fundamentos de
Física I – Simpósio David Bohm. São Paulo: Livraria da Física, 2000. p. 135-159.
CAPRA, F. O Tao da física. Tradução de José Fernandes Dias. São Paulo: Cultrix, 2006.
264 A Concepção Física do Mundo: Como os seres humanos criam o universo em que vivem
PESSOA JR., O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. In: FREIRE JR. O.;
BROMBERG, J. L. (org.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais.
Campina Grande: EDUEPB/Livraria da Física, 2011. p. 281-302.