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Introdução ao volume I das Obras Completas de Miguel Baptista Pereira

I
Este volume reune dois textos longos que pertencem a um género literário muito
específico. Trata-se, com efeito, do texto de duas dissertações académicas, apresentadas
à Universidade de Coimbra. Antes de analisar alguns aspectos mais relevantes de cada
uma destas dissertações importa situá-las no contexto académico em que nasceram.
O quadro teórico em que se desenvolvem estas investigações é dominado por questões
centrais da metafísica e da antropologia filosófica. O autor escolhido por Miguel Baptista
Pereira para base textual e foco das suas investigações foi Pedro da Fonseca, figura
cimeira do pensamento filosófico conimbricense. As dissertações de licenciatura e de
doutoramento que se publicam neste volume da Obra Completa são o contributo decisivo
de Miguel Baptista Pereira para superar aquele “esquecimento secular” que atingiu a obra
de Pedro da Fonseca, entre outros.
Desde o magistério de Joaquim de Carvalho, Pedro da Fonseca era visto, entre nós,
antes de mais, como um precursor de Suárez. Era um ponto de vista muito comum na
época e que ainda hoje é dominante naquele circulo restrito de investigadores que dão
alguma atenção ao que hoje se designa por escolástica moderna. Na sua comunicação
ao primeiro congresso nacional de filosofia na Argentina (Cuyo, 1949) programaticamente
intitulada “Pedro da Fonseca, precursor de Suarez na renovação da metafísica”, Joaquim
de Carvalho sublinhava a importância dos Comentários à Metafísica de Aristóteles no
processo de constituição da Metafísica moderna, na transição do séc xvi para o séc. xvii,
a par das Disputationes Metaphysicae de Suárez. Nessa mesma comunicação anunciava
a intenção de publicar uma edição autónoma das Quaestiones inseridas nos volumes dos
Comentários à Metafísica de Aristóteles. 1 Joaquim de Carvalho nunca chegaria a publicar
esta edição da parte sistemática e construtiva da obra metafísica de Pedro da Fonseca.
Seria Arnaldo Miranda Barbosa quem iria retomar, a partir do final dos anos 50, um
ambicioso projecto de publicação da obra de Pedro da Fonseca. Consciente das
dificuldades próprias de uma edição crítica, Miranda Barbosa propunha um trabalho em
duas frentes: 1) uma editio accurata das obras de Pedro da Fonseca; 2) trabalhos
monográficos que permitissem “o perfeito enquadramento daquela obra no complexo
histórico-doutrinário em que se situa”.2

1 Joaquim de Carvalho, “Pedro da Fonseca, precursor de Suarez na renovação da


metafísica”, Actas del Primer Congreso Nacional de Filosofía, Mendoza, Argentina, marzo-abril 1949, tomo 3, 1929-
1930.
2 A. Miranda Barbosa, Prefácio. Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas. Introdução, estabelecimento
do texto e tradução de Joaquim Ferreira Gomes, 2 volumes, Coimbra, 1964, XVII.
Os trabalhos académicos de Miguel Baptista Pereira, publicados neste volume, inserem-
se claramente neste contexto e dizem directamente respeito à segunda parte da proposta
de trabalhos de Miranda Barbosa.
A tese de licenciatura está mais focada no problema metafísico e antropológico da
individuação tal como aparece problematizada nas quaestiones dos Comentários à
Metafísica de Aristóteles. O quadro de referência da interpretação de Miguel Baptista
Pereira é constituído pelo texto de Fonseca lido à luz de uma interpretação do
desenvolvimento da filosofia muito próxima da visão de Etienne Gilson. Seria, então, o
essencialismo metafísico e a proximidade a posições teóricas de Duns Escoto aquilo que
melhor caracterizaria a solução adoptada por Pedro da Fonseca para o problema da
individuação. A fundamentação das suas posições em textos de Aristóteles e de Tomás
de Aquino, argumentativamente consolidada, é lida por Miguel Baptista Pereira como
denunciadora de uma falta de rigor histórico que reverte em originalidade para Pedro da
Fonseca. Cumpre assinalar a importância que Miguel Baptista Pereira atribui à questão do
Método na filosofia. A ela dedica o primeiro capítulo da sua dissertação de licenciatura e
será ela o grande tema da primeira parte da sua tese de doutoramento. Depois do
capítulo inicial sobre o método, Miguel Baptista Pereira constrói o resto da sua
dissertação de licenciatura em três momentos: 1) estudo da estrutura do ser e sua
unidade (capítulos 2-5); 2) as categorias e a unidade do universal (capítulo 6); 3) num
terceiro momento, analisa, no capítulo 7, a problemática da unidade individual e as
soluções possíveis para uma explicação metafísica do processo de individuação. A
dissertação termina, no capítulo 8, com uma brevíssima apresentação das principais
teses metafísicas de Fonseca, anteriormente analisadas, defendendo a necessidade de
uma reavalição dessas mesmas teses não apenas no sentido de uma mais rigorosa
compreensão do seu contexto histórico e da recepção na filosofia moderna anterior a Kant
mas também de um ponto de vista mais estritamente sistemático.
A dissertação de doutoramento, Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca. I. O método da
Filosofia, publicada em 1967, aprofunda e amplia os temas da investigação da tese de
licenciatura. No centro das preocupações de Miguel Baptista Pereira e do seu labor
filosófico continuam a ocupar lugar central as questões do método e as interrogações
fulcrais da antropologia filosófica e da metafísica. Retoma-se, assim, a análise
polifacetada e complexa da dimensão metafísica do homem tomando como ponto de
referência a obra de Pedro da Fonseca sem esquecer a “diferença histórica que dela nos
separa” como afirma programaticamente Miguel Baptista Pereira no proémio. Nesse
mesmo texto nos lembra que “Ser e Tempo, Sistema e Tradiçao, Verdade e História
profundamente se entrecruzam”. Por isso, a distinção entre os dois momentos de análise -
histórica e sistemática - é mais complexa do que pode pensar-se a partir de uma leitura
ingénua destas páginas repletas de erudição e densa reflexão.
No capítulo 1, sobre a actualidade da metafísica, procura Miguel Baptista Pereira captar
na filosofia contemporânea todos os pontos de vista que melhor iluminem a sua reflexão
sobre Ser e Pessoa. O confronto do regresso ao Ser operado em alguns autores
representativos da escolástica so século xx com as principais figuras da filosofia alemã e
francesa da mesma época culmina numa apreciação crítica dos limites e virtualidades do
método transcendental como via de acesso privilegiada à dimensão transcendental da
pessoa humana.
No intuito de situar a questão do método na filosofia de Pedro da Fonseca no contexto
mais amplo da tradiçao, Miguel Baptista Pereira dedica o capítulo 2 à análise das “raízes
clássicas do método filosófico” em que explora os múltiplos contributos de Platão e de
Aristóteles e seus comentadores para a explicitação de várias possibilidades
metodológicas. Termina este capítulo com uma reflexão importante sobre a via
augustiniana da interioridade, marcante nos desenvolvimentos posteriores do método.
O capítulo 3 versa sobre as “formas medievais do método filosófico” explorando não
apenas a presença não temática do método em muitos textos de filosofia medieval como
a terminologia metodológica dos principais autores medievais (Boaventura, Escoto,
Tomás de Aquino).
O capítulo 4 aborda explicitamente a problemática central enunciada no título da obra:
“Fonseca e o método da filosofia”. Antes de tratar mais diretamente da questão do
método em Fonseca, no intuito de salientar a novidade deste tipo de investigação em
Pedro da Fonseca, Miguel Baptista Pereira analisa longamente o contexto renascentista
mais próximo sob o título “Consciência metodológica do século XVI”. Pela importância que
assume na compreensão de toda a obra de Fonseca importa sublinhar a análise aqui
apresentada daquilo que caracteriza a mentalidade tópica do século xvi. É precisamente à
luz desta caracterização que o autor vai apresentar os traços mais característicos da
posição metodológica de Pedro da Fonseca mostrando como ela se reflete no tratamento
das principais questões metafísicas sem esquecer a dimensão teológica do método.
Além da breve mas densa conclusão com que termina esta dissertação de doutoramento,
haveria que mencionar também os excursos com que terminam os dois primeiros
capítulos. Sobre o método da filosofia na escolástica contemporânea e sobre o
essencialismo metafísico, dois anexos ao capítulo 1; e ainda dois excursos sobre
influências metodológicas no final do capítulo 2: “retórica, dialectica e direito” e
“Matemática e filosofia”. Não apenas estes excursos mas também algumas das notas
mais longas constituem verdadeiros esboços monográficos que constituem uma das notas
mais marcantes desta dissertação de doutoramento. Não devem ser lidas como mera
componente acidental de uma dissertação académica mas como parte integrante de um
método que o autor irá continuar a cultivar na sua produção filosófica posterior.
A referência explícita à obra de Fonseca irá naturalemente diluir-se mas reaparece em
dois textos publicados no volume II das obras completas: “Metafísica e Modernidade nos
caminhos do Milénio”(1999; Obras II, 647-691 ) e “Utopia e apocalíptica nos caminhos da
Existência”(2002; Obras II, 708-712).
II
Na preparação dos textos destas duas dissertações respeitou-se, no essencial, a forma
de citar e de organizar a bibliografia usada pelo autor. Este trabalho de preparação
editorial esteve a cargo de Mário Santiago de Carvalho, para o segundo texto, e de
António Manuel Martins, para o primeiro.
Coimbra, setembro de 2014

António Manuel Martins

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