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Os Princípios Fundamentais do Marxismo

G. V. Plekhanov

Introdução

O marxismo é toda uma concepção do mundo. Em poucas palavras, é o


materialismo contemporâneo que representa o mais alto grau daquela concepção
do mundo, cujas bases foram lançadas, na velha Hélade, por Demócrito, assim
como pelos pensadores jônios, seus precursores. O chamado hilozoísmo não é,
pois, outra coisa que um materialismo ingênuo. O mérito principal de ter
recuperado e formulado os princípios fundamentais do materialismo moderno
pertence incontestavelmente a Karl Marx e a seu amigo Friedrich Engels. Os
aspectos histórico e econômico dessa concepção do mundo, a qual se designa
comumente por materialismo histórico, assim como o conjunto, a ele ligado, das
concepções sobre os problemas, o método e as categorias da economia política,
sobre o desenvolvimento econômico da sociedade e, muito particularmente da
sociedade capitalista, são quase que exclusivamente a obra de Marx e Engels. A
contribuição de seus predecessores, neste domínio, deve ser considerada como
um trabalho preparatório. Materiais, às vezes abundantes e preciosos, haviam sido
reunidos mas não sistematizados nem elucidados do ponto de vista de um
pensamento geral e, portanto, não puderam ser apreciados nem utilizados como
deviam. O que fizeram, neste domínio, os adeptos de Marx e Engels na Europa e
na América, foi o estudo mais ou menos feliz de problemas particulares, algumas
vezes, é verdade, da maior importância. Daí entender-se geralmente por
"marxismo" apenas os dois aspectos acima mencionados da atual concepção
materialista do mundo, e isto não apenas no que se refere ao "grande público",
que ainda não está educado para a compreensão profunda das doutrinas
filosóficas, mas também entre aqueles que se consideram os discípulos fiéis de
Marx e Engels, tanto na Rússia como no resto do mundo civilizado. Esses dois
aspectos são considerados algo completamente independente do "materialismo
filosófico" e quase mesmo seus opostos. Mas como eles, arbitrariamente
desligados do conjunto das concepções que lhe são aparentadas e formam sua
base teórica, não podem ficar suspensos no ar, aqueles que os separaram sentem
naturalmente a necessidade de "reembasar o marxismo", acoplando-o - e ainda
desta vez arbitrariamente e, com muita freqüência, sob o domínio das correntes
filosóficas predominantes entre os ideólogos da burguesia - a este ou àquele
filósofo: Kant, Mach, Avenarius, Ostwald e, nos últimos tempos, a Joseph
Dietzgen. É verdade que as concepções filosóficas de J. Dietzgen se formaram
independentemente das influências burguesas, pois são, numa medida notável,
aparentadas às de Marx e Engels. Mas as concepções filosóficas destes últimos
têm um conteúdo incomparavelmente mais ordenado e mais rico e, já por esta
única razão, não podem ser completadas mas, no máximo, até certo ponto
popularizadas com a ajuda da doutrina de Dietzgen. Até agora não se tentou
"completar Marx" com São Tomás de Aquino. Entretanto, não é nada impossível
que, apesar da recente encíclica papal contra os modernistas, o mundo católico
produza um pensador capaz desta proeza teórica.

Freqüentemente pleiteia-se a necessidade de "completar" o marxismo com tal ou


qual filosofia, alegando que em lugar algum Marx e Engels expuseram suas
concepções filosóficas. Mas tal alegação é pouco convincente, e mesmo se fosse
fundamentada, não seria razão para substituir as concepções filosóficas de Marx e
Engels pelas do primeiro pensador que surge e que freqüentemente se coloca sob
um ponto de vista totalmente diferente. É necessário lembrar que dispomos de
dados suficientes para ter uma idéia justa das concepções filosóficas de Marx e
Engels.
Estas concepções, em seu aspecto definitivo, foram expostas de maneira
suficientemente completa, se bem que polêmica, na primeira parte do livro de
Engels: "Herrn Eugen Dürings Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring)"
(da qual existem várias traduções russas). Na notável brochura do mesmo autor:
"Ludwig Feuerbach und der Ausgang der Klassischen deutschen Philosophie"
(brochura por nós traduzida ao russo e munida de um prefácio e notas
explicativas), as concepções que constituem a base filosófica do marxismo são
então expostas de forma positiva. Uma caracterização breve, mas brilhante, destas
mesmas concepções, em suas relações com o agnosticismo, foi formulada por
Engels no prefácio à tradução inglesa da brochura "Socialismo Utópico e
Socialismo Científico". No que concerne a Marx, é oportuno salientar, como de
grande importância para a compreensão do aspecto filosófico de sua doutrina,
inicialmente a caracterização da dialética materialista feita por ele mesmo, em
oposição à dialética idealista de Hegel, no prefácio da segunda edição do primeiro
tomo do "Capital"; em seguida, as numerosas observações detalhadas,
consignadas de passagem, no mesmo tomo, no decorrer da exposição. Algumas
páginas da "Miséria da Filosofia" são igualmente, sob certos aspectos, da maior
importância. Por último, o processus da evolução das idéias filosóficas de Marx e
Engels se destaca com uma clareza suficiente de seus primeiros escritos,
publicados recentemente por F. Mehring sob o título: "Aus dem literarischen
Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle", Stuttgart
1902.
Em sua tese de doutorado intitulada "Differenz der Demokritischen und
Epikureischen Naturphilosophie", assim como em certos artigos reproduzidos por
Mehring no primeiro tomo da edição recém-citada, o jovem Marx ainda aparece
como o idealista puro-sangue da escola hegeliana. Mas nos artigos publicados
inicialmente no "Deutsch-Französische Jahrbücher" e inseridos agora no mesmo
primeiro tomo, Marx, e com ele Engels, que igualmente colaborou no Jahrbücher,
já se coloca firmemente sob o ponto de vista do humanismo de Feuerbach. Na
obra intitulada "Die Heilige Familie, oder Kritk der kritischen Kritik" (A Sagrada
Família ou Crítica da Crítica Crítica), publicada em 1845 e reproduzida no
segundo tomo da edição de Mehring, os dois autores, isto é, Marx e Engels,
realizaram alguns progressos importantes no que concerne ao desenvolvimento da
filosofia de Feuerbach. A direção na qual empreenderam este trabalho é visível
nas onze "Teses sobre Feuerbach", que Marx redigira na primavera de 1845 e que
Engels publicou no anexo à brochura Ludwig Feuerbach, que mencionamos
acima.
Em suma, não são, no caso, os materiais que faltam; é apenas necessário saber
servir-se deles, ou seja, estar preparado para compreendê-los. Mas os leitores
atuais não estão preparados para isto e logo não sabem deles se servir.
E por quê? Por múltiplas razões. Uma das mais importantes é que atualmente se
conhece muito mal não só a filosofia hegeliana, sem a qual é difícil assimilar o
método de Marx, mas também a história do materialismo, sem a qual não é
possível ter uma idéia clara da doutrina de Feuerbach, que foi, em filosofia, o
predecessor imediato de Marx, e que forneceu, em considerável medida, a base
filosófica da concepção de mundo de Marx e Engels.
O "humanismo" de Feuerbach é freqüentemente apresentado como algo bastante
confuso e indeterminado. F. A. Lange, que muito contribuiu para divulgar, junto
ao "grande público" e ao mundo erudito, uma idéia completamente falsa da
essência do materialismo e de sua história, recusa-se totalmente a reconhecer o
"humanismo" de Feuerbach como uma doutrina materialista. O exemplo de F. A.
Lange foi seguido pela quase totalidade daqueles que escreveram sobre
Feuerbach, tanto na Rússia como no estrangeiro. P. A. Berline, que descreve o
humanismo de Feuerbach como um materialismo não "puro”, também não pôde,
visivelmente, subtrair-se à influência de Lange. Confessamos não ver muito
claramente o que pensa sobre esta questão Fr. Mehring, o melhor e talvez único
conhecedor de filosofia entre os social-democratas alemães. Em contrapartida,
está perfeitamente claro para nós que Marx e Engels viam em Feuerbach um
materialista. É certo que Engels chama a atenção para a inconseqüência de
Feuerbach. Mas isso não o impede, absolutamente, de reconhecer os princípios
fundamentais de sua filosofia como puramente materialistas. E não pode ser de
outra forma para quem quer que se dê ao trabalho de estudar a fundo a doutrina
de Feuerbach.
II
Dizendo isso, compreendemos perfeitamente que corremos o risco de surpreender
um grande número de nossos leitores. Mas isso não nos deve intimidar, pois tinha
razão o pensador antigo que dizia que a surpresa era o começo da ciência. E para
que nossos leitores não fiquem, por assim dizer, no estágio da surpresa,
recomendamo-lhes, antes de mais nada, que se perguntem o que exatamente
pretendia Feuerbach exprimir quando, esboçando brevemente, mas de forma
muito característica seu curriculum vitae filosófico, escrevia: "Deus foi o meu
primeiro pensamento, a razão o segundo e o homem, meu terceiro e último".
Afirmamos que esta questão encontra incontestavelmente solução nestas palavras
muito significativas do próprio Feuerbach: "Na discussão entre o materialismo e
o espiritualismo, o que está em questão, é a cabeça humana".
Uma vez fixados sobre a matéria da qual é feita o cérebro, logo chegaremos a
uma visão clara no que concerne igualmente toda outra matéria, no que concerne
à matéria em geral. Em outra parte, ele declara que sua antropologia, quer dizer,
seu humanismo, significa unicamente que Deus, não é outra coisa que o próprio
espírito humano. Esse ponto de vista antropológico, observa Feuerbach, já não era
estranho ao próprio Descartes. Mas o que significa tudo isto? Significa que
Feuerbach tinha tomado "o homem" como ponto de partida de seus raciocínios
filosóficos unicamente porque esperava, partindo deste ponto, chegar mais cedo
ao objetivo, que era dar uma idéia justa da matéria, em geral, e de suas relações
com o espírito. Estamos pois, neste caso, tratando com um procedimento
metodológico cujo valor era condicionado pelas circunstâncias de tempo e lugar,
ou seja, pelos modos de raciocinar habituais aos eruditos alemães, ou
simplesmente aos alemães cultos da época, mas que não dependia absolutamente
de qualquer concepção particular do mundo.
Já se vê, conforme nossa citação das palavras de Feuerbach a propósito da
"cabeça humana", que na época em que ele as escreveu, a questão da "matéria da
qual é feito o cérebro" tinha sido resolvida num sentido puramente materialista. E
essa solução tinha sido igualmente adotada por Marx e Engels. Ela tornou-se a
base de sua própria filosofia e isso sobressai com a mais completa clareza das
obras de Engels: Ludwig Feuerbach e Anti-Dühring, por nós já mencionadas. Eis
porque devemos examinar mais de perto essa solução, pois estudando-a,
estudaremos ao mesmo tempo o aspecto filosófico do marxismo.
Em seu artigo intitulado: "Vorlaufige Thesen zur Reform der Philosophie",
surgido em 1842, e que exerceu uma grande influência sobre Marx, Feuerbach
declara que "as verdadeiras relações entre o pensar e o ser devem ser expressas
da seguinte maneira: o ser é o sujeito, e o pensar é o atributo". O pensamento é
condicionado pelo ser, não o ser pelo pensamento. O ser é condicionado por si
mesmo... tem seu fundamento em si mesmo.
Essa concepção das relações entre o ser e o pensamento colocados por Marx e
Engels na base da interpretação materialista da história constitui o resultado mais
importante da crítica ao idealismo hegeliano que, em seus traços principais foram
feita pelo próprio Feuerbach, cujas conclusões podem ser assim resumidas:
Feuerbach achava que a filosofia de Hegel suprimira a contradição existente entre
o ser e o pensar. Mas segundo ele ela suprimiu esta contradição mantendo-se
ainda em seu interior, ou seja, no interior de um dos elementos dessa contradição,
a saber, o pensamento. Em Hegel o pensamento é precisamente o ser: o
pensamento é sujeito, o ser é atributo. Daí decorre que Hegel - em geral o
idealismo - só suprime a contradição por meio da supressão de seus elementos
constitutivos, a saber, o ser ou a existência da matéria, da natureza. Mas suprimir
um dos elementos constitutivos da contradição não significa absolutamente
resolvê-la. "A doutrina de Hegel, segundo a qual a natureza "é criada" pela idéia
representa a tradução, em linguagem filosófica, da doutrina teológica segundo a
qual, a natureza é criada por Deus, a realidade, a matéria, por um ser abstrato,
imaterial". E isto não se refere apenas ao idealismo absoluto de Hegel. O
idealismo transcendental de Kant, segundo o qual o mundo exterior recebe suas
leis da Razão, e não inversamente, é estreitamente aparentado à concepção
teológica segundo a qual é a razão divina que dita ao mundo as leis que o regem.
O idealismo não estabeleceu a unidade entre o ser e o pensamento, e não pode
estabelecê-la, ao contrário, ele a rompe. O ponto de partida da filosofia idealista -
o eu, como princípio filosófico fundamental - é totalmente errado. O ponto de
partida da verdadeira filosofia não deve ser o eu, mas o eu e o tu. Só este ponto de
partida permite chegar a uma justa compreensão das relações entre o pensamento
e o ser, entre o sujeito e o objeto. Eu sou "eu" para mim mesmo e
simultaneamente "tu" para um outro. Eu sou ao mesmo tempo sujeito e objeto. É
necessário observar, além disso, que o "eu", não é o ser abstrato com o qual opera
a filosofia idealista. Eu sou um ser real; meu corpo pertence à minha existência;
ainda mais meu corpo, considerado como um todo, é precisamente meu "eu",
minha verdadeira entidade. Não é o ser abstrato que pensa, mas precisamente esse
ser real, esse corpo. Daí resulta que, contrariamente ao que afirmam os idealistas,
é o ser material real que é sujeito, e o pensamento atributo. E precisamente nisto
que consiste a única solução possível da contradição entre o ser e o pensar, a qual
se debatia sem resultado no idealismo. No presente caso, não se suprime nenhum
dos elementos da contradição; eles são conservados ambos, ao mesmo tempo em
que manifestam sua verdadeira unidade. "O que para mim, ou subjetivamente, é
um ato puramente espiritual, imaterial, não sensível, é em si, objetivamente, um
ato material sensível".
Observemos que, dizendo isso, Feuerbach aproxima-se de Espinosa, cuja filosofia
ele expunha com muita simpatia já na época em que seu divórcio com o idealismo
apenas se esboçava, ou seja, quando escrevia sua história da nova filosofia. Em
1843, ele observa muito habilmente em seus Grunsatze que o panteísmo é um
materialismo teológico, uma negação da teologia, negação que se mantém num
ponto de vista teológico. E nessa confusão do materialismo com a teologia que
residia a inconseqüência de Espinosa, inconseqüência que, entretanto, não o
impediu de encontrar "a expressão justa, ao menos para seu tempo, para os
conceitos materialistas da época moderna". Por isso Feuerbach denominava
Espinosa "o Moisés dos livres-pensadores e materialistas modernos". Em 1847,
Feuerbach coloca a questão: "O que Espinosa chama, lógica ou metafisicamente,
substância, e teologicamente, Deus?" E, a essa questão, ele responde
categoricamente: "Nada mais que a natureza". Ele vê como principal falha do
espinosismo que a essência sensível, antiteológica da natureza, adquire, para ele,
o aspecto de um ser abstrato, metafísico". Espinosa suprimiu o dualismo entre
Deus e a natureza, pois considera os fenômenos naturais como atos de Deus. Mas,
precisamente porque os fenômenos naturais são a seus olhos os atos de Deus, este
último permanece para ele um tipo de ser distinto da natureza e sobre o qual ela
se apóia. Deus se apresenta como sujeito, a natureza como atributo. A filosofia,
que se emancipou definitivamente das tradições teológicas, deve suprimir essa
falha considerável da filosofia, no fundo exata, de Espinosa. "Abaixo esta
contradição!" exclama Feuerbach. Não Deus "sive natura", mas "Aut deus aut
natura". Aí está a verdade.
Portanto, o humanismo de Feuerbach aparece como não sendo outra coisa que o
espinosismo desembaraçado de seu apêndice teológico. Foi precisamente este
espinosismo desembaraçado por Feuerbach de seu apêndice teológico, que Marx
e Engels adotaram, quando romperam com o idealismo.
Mas desembaraçar o espinosismo de seu apêndice teológico significava
desvendar seu verdadeiro conteúdo materialista. Logo, o espinosismo de Marx e
Engels, era precisamente o materialismo mais moderno.
Mas não é tudo. O pensar não é a causa do ser, mas sua conseqüência, ou mais
exatamente, sua propriedade. Feuerbach diz: "Folge und Eigenschaft"
(conseqüência e propriedade). Eu sinto e eu penso, de maneira alguma como um
sujeito oposto ao objeto, mas como um sujeito-objeto, como um ser real, material.
E o objeto é para mim, não apenas a coisa que eu sinto, mas também o
fundamento, a condição indispensável de minha sensação. O mundo objetivo não
se encontra apenas fora de mim, ele está também em mim, em minha própria
pele. O homem é só uma parte da natureza, uma parte do ser; eis porque não há
lugar para a contradição entre seu pensamento e seu ser. O espaço e o tempo não
existem apenas para o pensamento. Eles são igualmente formas do ser. São
formas da minha contemplação. Mas eles o são unicamente porque eu mesmo sou
um ser que vive no tempo e no espaço e que só percebo e sinto porque sou um tal
ser. De maneira geral, as leis do ser são ao mesmo tempo também as leis do
pensar.
Assim se expressava Feuerbach. E é também isso que dizia Engels, se bem que
em outros termos, em sua polêmica contra Dühring. Já se vê qual parte
importante da filosofia de Feuerbach foi transportada para a filosofia de Marx e
Engels.
Se Marx começou sua obra de interpretação materialista da história pela crítica da
filosofia hegeliana do direito, só pôde assim proceder porque a crítica da filosofia
especulativa de Hegel já fora feita por Feuerbach.
Mesmo criticando Feuerbach em suas teses, Marx muito freqüentemente
desenvolve e completa suas idéias. Eis um exemplo extraído do domínio da
"gnosiologia". Segundo Feuerbach, o homem, antes de pensar o objeto,
experimenta sobre si sua ação, contempla-o, sente-o.
Marx tem em vista esse pensamento de Feuerbach, quando diz: "A principal falha
do materialismo - aí incluído o de Feuerbach - consistia, até aqui, em que ele só
concebe a realidade, o mundo objetivo e sensível sob a forma do objeto ou sob a
forma da contemplação e não como atividade humana concreta, não como
exercício prático, não subjetivamente". É esta falha do materialismo, diz Marx
adiante, que explica que Feuerbach, em seu livro sobre a Essência do
Cristianismo, só considere como atividade verdadeiramente humana a atividade
teórica. Em outros termos, Feuerbach chama a atenção para o fato que nosso "eu"
conhece o objeto somente expondo-se à sua ação; entretanto Marx replica: nosso
"eu" conhece o objeto agindo, por sua vez, sobre ele. O pensamento de Marx é
perfeitamente justo: já dissera Fausto: "No começo era a ação".
Certamente pode-se responder, em defesa de Feuerbach, que também no processo
de nossa ação sobre os objetos, nós só conhecemos suas propriedades, na medida
em que eles agem, por sua vez, sobre nós. Nos dois casos, o pensamento é
precedido pela sensação: nos dois casos, experimentamos de início as
propriedades dos objetos e somente após pensamos sobre elas. Marx não o
negava. Para ele, não se tratava do fato incontestável que a sensação precede o
pensamento, mas do fato que o homem é levado ao pensamento principalmente
pelas sensações que experimenta no processo de sua ação sobre o mundo exterior.
E como esta ação sobre o mundo exterior lhe é imposta pela luta pela existência, a
teoria do conhecimento está, em Marx, estreitamente ligada à sua concepção
materialista da história. Não é sem razão que este mesmo pensador, que redigira
contra Feuerbach a tese acima referida, escreveu no primeiro tomo de seu Capital:
"Agindo sobre a natureza, exterior a si, o homem transforma ao mesmo tempo
sua própria natureza". Esta fórmula só revela todo seu profundo sentido à luz da
teoria do conhecimento formulada por Marx. E veremos adiante até que ponto
esta teoria é confirmada pela história da civilização e pela lingüística. É
necessário reconhecer entretanto que a teoria do conhecimento de Marx provém
em linha direta da de Feuerbach ou, se quisermos, que ela é, propriamente
falando, a de Feuerbach, só que aprofundada, de forma genial, por Marx.
Acrescentemos, de passagem, que este aperfeiçoamento genial havia sido
sugerido pelo "espírito da época". A tendência a considerar a relação recíproca de
ação e reação entre o objeto e o sujeito precisamente da perspectiva em que o
sujeito assume um papel ativo, era o reflexo do estado de espírito que animava a
sociedade da época, onde se precisou a concepção de mundo de Marx e Engels. A
revolução de 1848 já não estava longe...
III
A teoria da unidade entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser, que é própria
tanto a Feuerbach quanto a Marx e Engels, foi igualmente a dos materialistas
mais eminentes dos séculos XVII e XVIII.
Nós havíamos mostrado algures que La Mettrie e Diderot haviam chegado - se
bem que, é necessário dizer, cada um por via distinta - a uma concepção do
mundo que era "uma espécie de espinosismo'', quer dizer, a um espinosismo
privado de seu apêndice teológico, que lhe desfigurava o verdadeiro conteúdo.
Seria fácil demonstrar que, no que concerne à unidade entre o sujeito e o objeto,
Hobbes está também muito próximo de Espinosa. Mas isto nos levaria muito
longe. E, além disso, não existe nenhuma necessidade premente em fazê-lo. Será
bem mais interessante para o leitor constatar que atualmente todo naturalista que
reflete, por pouco que seja, sobre a questão das relações entre o pensar e o ser,
chega à teoria de sua unidade que encontráramos em Feuerbach.
Quando Huxley escrevia: "Em nossos dias, nenhum daqueles que estão ao
corrente da ciência contemporânea e que conhecem os fatos, pode duvidar que é
necessário buscar as bases da psicologia, na fisiologia do sistema nervoso e que
aquilo que chamamos de atividade do espírito é um complexo de funções
cerebrais", ele exprimia precisamente o que dizia Feuerbach. Só que aí agregava
concepções bem menos claras e por isso pôde tentar aliar sua maneira de ver ao
ceticismo filosófico de Hume.
Da mesma forma o "monismo" de Haeckel, aquela doutrina que tanta repercussão
teve, nada mais é que uma doutrina puramente materialista, no fundo, próxima da
doutrina de Feuerbach sobre a unidade entre o sujeito e o objeto. Mas Haeckel
conhece muito mal a história do materialismo e por isto julga necessário combater
"seu caráter unilateral", quando deveria dar-se ao trabalho de estudar a teoria
materialista do conhecimento na forma que ela adquiriu em Feuerbach e Marx.
Isso o teria preservado contra muitos erros e opiniões unilaterais que facilitam
consideravelmente a seus adversários lutar contra ele no terreno filosófico.
Em suas diferentes obras, como por exemplo, no relatório intitulado "Cérebro e
Alma", lido no 66º congresso dos naturalistas e médicos alemães em Viena (26 de
setembro de 1894), Auguste Forel aproxima-se muito do materialismo moderno,
do materialismo de Feuerbach-Marx-Engels. Em certos pontos, Forel não apenas
expressa idéias muito semelhantes às de Feuerbach, mas, o que é verdadeiramente
surpreendente, ele dispõe seus argumentos exatamente da mesma forma que
Feuerbach.
Segundo Forel, cada novo dia traz novas e convincentes provas do fato que a
psicologia e a fisiologia do cérebro são apenas duas formas diferentes de
considerar "uma só e mesma coisa". O leitor não terá esquecido o ponto de vista
idêntico de Feuerbach, citado acima, sobre esta questão. Este ponto de vista,
pode-se completar aqui com a seguinte frase de Feuerbach: "Eu sou para mim
mesmo um objeto psicológico; mas um objeto fisiológico para o outro". Afinal, a
idéia principal de Forel se reduz à tese na qual a consciência é "um reflexo
interior da atividade cerebral". E isto já é uma concepção puramente materialista.
Os idealistas e os kantistas de todas as espécies e de todos os matizes objetam aos
materialistas que nós podemos conhecer diretamente apenas o aspecto físico dos
fenômenos tratados por Forel e Feuerbach. Esta objeção, Schelhing já havia
formulado de forma extremamente clara. Ele dizia que o "espírito permanecerá
para sempre uma ilha, à qual só se poderia atingir através do oceano da
matéria, sob condição de dar um salto". Forel sabe perfeitamente disso, mas
prova de forma concludente que a ciência seria verdadeiramente impossível, se
nós não quisermos ultrapassar os limites desta ilha. "Cada homem", diz ele, "não
teria mais que a psicologia de seu subjetivismo e deveria positivamente colocar
em dúvida a existência do mundo exterior, inclusive a dos outros homens". Mas
tal dúvida é um absurdo. "As conclusões tiradas por analogia, a indução
aplicada segundo as ciências naturais e físicas, a comparação da experiência de
nossos cinco sentidos nos prova a existência do mundo exterior, assim como a de
nossos semelhantes e de sua psicologia. Da mesma forma, elas nos mostram que
há uma psicologia comparativa, uma psicologia dos animais. Enfim, nossa
própria psicologia seria para nós incompreensível e cheia de contradições, se
quiséssemos considerá-la fora de toda relação com a atividade de nosso cérebro;
ela estaria sobretudo em contradição com a lei da conservação da energia".
Feuerbach não se limita a indicar as contradições nas quais caem inevitavelmente
aqueles que repudiam o ponto de vista materialista; ele mostra também por qual
caminho os idealistas atingem sua "ilha". Ele diz: "Eu sou eu para mim mesmo e
tu para os outros. Mas só o sou enquanto ser sensível, ou seja, material. Mas a
razão abstrata isola este 'ser para si mesmo' enquanto substância, átomo, 'eu',
Deus. Eis porque ela só pode estabelecer de maneira arbitrária a relação entre o
'ser para si mesmo' e o 'ser para os outros'. Aquilo que eu penso sem
sensibilidade, eu penso fora de toda relação". Esta consideração extremamente
importante é acompanhada em Feuerbach, da análise do processo de abstração
que culmina no nascimento da lógica hegeliana como doutrina ontológica.
Se Feuerbach dispusesse dos conhecimentos que fornece a etnologia atual, teria
podido acrescentar que o idealismo filosófico procede, historicamente, do
animismo, próprio às raças primitivas. Isso já havia sido indicado por E. Taylor, e
alguns historiadores da filosofia já começaram a levar parcialmente em conta - se
bem que, no momento, mais como curiosidade do que como um fato de
considerável importância teórica.
Todas estas considerações e argumentos de Feuerbach não somente eram bem
conhecidos de Marx e Engels, que sobre elas haviam refletido profundamente,
mas contribuíram, indubitavelmente em grande medida, para a formação de sua
própria concepção do mundo. Se, mais tarde, Engels manifestou o maior desprezo
pela filosofia alemã posterior a Feuerbach, é porque ela nada mais fazia, em sua
opinião, que reanimar os velhos erros filosóficos que Feuerbach já havia
revelado. E, na realidade, assim era. Nenhum dos modernos críticos do
materialismo trouxe um argumento que já não tenha sido refutado, seja pelo
próprio Feuerbach, ou ainda antes dele, pelos materialistas franceses. Mas, para
os "críticos de Marx" - E. Bernstein, K. Schmidt, B. Croce e outros - a
"deplorável sopa eclética" da filosofia alemã mais moderna parece um prato
novo: eles aí se alimentam e, vendo que Engels não considerava útil dele ocupar-
se acreditavam que ele se "esquivava" ao exame de uma argumentação que já há
muito ele analisara e declarara sem nenhum valor. É uma velha história, sempre
nova, no entanto. Os ratos jamais deixarão de acreditar que o gato é muito mais
forte que o leão.
Mesmo reconhecendo a incrível semelhança e, em parte, a identidade das
concepções de Feuerbach e Forel, observemos que, se este último possui
conhecimentos muito mais consideráveis no domínio das ciências naturais,
Feuerbach era-lhe muito superior no domínio filosófico. E por isso Forel comete
erros que não encontramos em Feuerbach. Forel chama sua teoria de teoria
psicofisiológica da identidade. A isto nada há de essencial a objetar, pois toda
terminologia é coisa convencional. Mas como a teoria da identidade esteve
outrora na base de uma filosofia idealista bem determinada, Forel teria feito
melhor chamando sua doutrina, franca e corajosamente, de doutrina materialista.
Mas ele conservou, visivelmente, alguns preconceitos contra o materialismo e
essa é a razão pela qual escolheu outro nome. Por isso consideramos necessário
advertir que a identidade, no sentido que lhe dá Forel, nada tem em comum com a
identidade no sentido idealista corrente.
Os "críticos de Marx" tampouco sabem disso. Em sua polêmica conosco, K.
Schmidt atribuía aos materialistas a doutrina idealista da identidade. Realmente, o
materialismo reconhece a unidade entre o sujeito e o objeto, mas nunca sua
identidade. E foi ainda Feuerbach que explicou isso muito bem.
Segundo Feuerbach, a unidade entre o sujeito e o objeto, entre o pensar e o ser, só
tem sentido quando o homem é tomado como base desta unidade. Isto tem ainda
um certo ar de "humanismo" e a maioria dos que estudaram Feuerbach acharam
desnecessário refletir seriamente sobre a forma na qual o homem serve de base da
unidade dos opostos acima mencionados. Na realidade Feuerbach compreende
isso da seguinte maneira: "O pensamento só não está desligado do ser onde não é
um sujeito para si mesmo, mas o atributo de um ser real (quer dizer, material)".
Ora, em quais sistemas filosóficos o pensamento é "sujeito para si mesmo", ou
seja, algo independente da existência corporal do indivíduo pensante? A resposta
é clara: nos sistemas idealistas. Os idealistas transformam inicialmente o
pensamento em uma entidade autônoma, independente do homem (em "sujeito
para si") e, depois, declaram que, nessa entidade - precisamente porque ela tem
existência distinta, independente da matéria - se resolve a contradição entre o ser
e o pensamento. E, com efeito, ela aí se resolve, pois o que é afinal esta entidade?
li o pensamento. E este pensamento tem uma existência completamente
independente. Mas esta solução da contradição é uma solução puramente formal.
Obtém-se este resultado, como já havíamos dito, suprimindo um dos elementos
da contradição, a saber, o ser independente do pensar. O ser se apresenta como
simples propriedade do pensar e, quando dizemos que tal objeto existe, isto
apenas significa que ele existe em nosso pensamento. Assim o compreendia, por
exemplo, Schelling. Para ele, o pensar era o princípio absoluto, de onde procedia
necessariamente o mundo real, que dizer, a natureza e o espírito "finito". Mas
como? Que significava a existência do mundo real? Nada mais que a existência
no pensamento. Para Schelling, o universo era só autocontemplação do espírito
absoluto. O mesmo se dava em Hegel. Mas Feuerbach não se contenta com tal
solução, puramente formal, da contradição entre o pensar e o ser. Ele mostra que
não há e não pode haver pensamento independente do homem, quer dizer, do ser
real, material. O pensamento é uma atividade do cérebro. "Mas o cérebro só é um
órgão de pensamento na medida em que está ligado a uma cabeça e a um corpo
humanos".
Vemos agora em que sentido o homem é, para Feuerbach, a base da unidade entre
o ser e o pensar; no sentido em que ele mesmo nada mais é que um ser material
que possui a faculdade de pensar. Mas se ele é um tal ser, está claro que nenhum
dos elementos da contradição tem necessidade de ser nele suprimido: nem o ser,
nem o pensar, nem a "matéria", nem o "espírito", nem o sujeito, nem o objeto.
Eles nele se unem exatamente como um sujeito-objeto. "Eu sou e eu penso...
unicamente como um sujeito-objeto", diz Feuerbach.
Ser não significa existir no pensamento. Neste aspecto, a filosofia de Feuerbach é
muito mais clara que a de J. Dietzgen. "Provar que uma coisa existe", diz
Feuerbach, "é provar que ela existe não simplesmente no pensamento". E isto é
perfeitamente justo. Mas isto quer dizer que a unidade do pensar e do ser não
significa e não pode significar, sua identidade. Aqui aparece um dos traços mais
importantes que distinguem o materialismo do idealismo.
IV
Quando se diz que Marx e Engels foram durante certo tempo adeptos de
Feuerbach, freqüentemente quer-se dizer com isto, que sua concepção do mundo
se modificou posteriormente e se diferenciou completamente da de Feuerbach. É
também o que pensa K. Diehl, que acha que normalmente se exagera muito a
influência exercida por Feuerbach sobre Marx. Aí está um erro formidável.
Mesmo após ter deixado de seguir Feuerbach, Marx e Engels continuaram a
partilhar de uma parte considerável de seus pontos de vista filosóficos. É isto que
aparece claramente nas teses de Marx sobre Feuerbach. Estas teses não refutam
absolutamente Feuerbach; elas as completam apenas e, sobretudo, exigem que
estas idéias sejam, de forma mais conseqüente que em Feuerbach, aplicadas à
interpretação da realidade que rodeia o homem e, em particular, a interpretação de
sua própria atividade. "Não é o pensar que determina o ser, é o ser que determina
o pensar". Este pensamento que está na base de toda filosofia de Feuerbach, Marx
e Engels o colocam também na base da interpretação materialista da história. O
materialismo de Marx e Engels é uma doutrina bem mais desenvolvida que o
materialismo de Feuerbach. Mas as concepções materialistas de Marx e Engels se
desenvolveram no próprio sentido indicado pela lógica interna da filosofia de
Feuerbach. Eis porque estas concepções e particularmente seu aspecto filosófico,
jamais serão completamente claras para aquele que não quiser se dar ao trabalho
de conhecer a parte considerável da filosofia de Feuerbach que entrou na
concepção do mundo dos fundadores do socialismo científico. E se vocês virem
alguém esforçar-se por encontrar um "fundamento filosófico" para o materialismo
histórico, esteja persuadido que existe, no saber deste mortal, apesar de sua
profundidade, grande lacuna a este respeito.
Mas deixemos os espíritos profundos entregues a seus trabalhos. Já em sua
terceira tese sobre Feuerbach, Marx aborda o problema mais árduo de todos os
que devia enfrentar no domínio da "prática" histórica do homem social e que
resolve com a ajuda do conceito justo, elaborado por Feuerbach, da unidade entre
o sujeito e o objeto. Esta tese é assim concebida: "A doutrina materialista
segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação... não
tem em conta o fato que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos
homens e que o próprio educador também deve ser educado". Uma vez resolvido
este problema, o "segredo" da interpretação materialista da história foi
encontrado. Mas precisamente Feuerbach não podia resolvê-lo. No domínio da
história, ele permanecia idealista - exatamente como os materialistas franceses do
século XVIII, com os quais ele tinha aliás muitos traços comuns. Então foi
necessário a Marx e Engels tudo reconstruir, utilizando o material teórico
acumulado até então pela ciência social e, era particular, pelos historiadores
franceses da época da Restauração. Mas, também no que se refere a isto, a
filosofia de Feuerbach lhes forneceu um grande número de indicações preciosas.
Feuerbach disse particularmente: "A arte, a religião, a filosofia e a ciência não
são mais que as manifestações ou as revelações da 'essência humana' ". Daí
decorre que é necessário procurar na "essência humana" a explicação de todas as
ideologias, ou seja, que a sua evolução é determinada pela evolução da "essência
humana". Mas o que é a essência humana? A isto Feuerbach responde: "A
essência humana só reside na comunidade, na unidade do homem com o homem".
É muito vago. E eis-nos diante do limite que Feuerbach jamais ultrapassou. Mas é
justamente para além deste limite que começa o domínio da interpretação
materialista da história descoberta por Marx e Engels. Esta interpretação nos
indica as causas que que determinam, no curso da evolução humana, "a
comunidade, a unidade do homem com o homem", ou seja, as relações mútuas
que os homens estabelecem entre si. Este limite, que separa Marx de Feuerbach,
mostra também até que ponto eles estão próximos.
Lê-se na sexta tese sobre Feuerbach que a essência humana é o conjunto de todas
as relações sociais. É bem mais preciso que em Feuerbach, mas aqui se revelam,
talvez mais claramente que em qualquer outro lugar, as estreitas relações
existentes entre a concepção do mundo de Marx e a filosofia de Feuerbach.
Quando Marx escreveu esta tese, já conhecia não só a direção na qual era
necessário buscar a solução do problema, mas também a própria solução. Em sua
"Introdução à Critica da Filosofia do Direito de Hegel", ele mostrara que as
relações dos homens em sociedade, "as relações jurídicas, assim como as formas
do Estado, não podem ser explicadas nem por si mesmas nem pela chamada
evolução geral do espírito humano; que elas têm suas raízes nas condições
materiais de existência, cujo conjunto foi denominado "sociedade civil" por
Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII; que a anatomia da
sociedade civil deve ser buscada em sua "economia".
Não faltava, daí por diante, senão explicar a origem e a evolução da economia,
para ter a solução completa do problema que o materialismo não pudera resolver
durante séculos. E esta explicação foi dada por Marx e Engels.
É evidente que, falando de solução completa deste grande problema, nós só temos
em vista a solução geral, algébrica, que o materialismo não pôde encontrar
durante vários séculos. É evidente que falando de solução completa, nós temos
em vista, não a aritmética do desenvolvimento social, mas sua álgebra, não a
explicação das causas dos diferentes fenômenos, mas a explicação do
procedimento ao qual é preciso ater-se para descobrir estas causas. Isto significa
que a interpretação materialista da história tem sobretudo um valor metodológico.
Isso Engels compreendia muito bem quando escreveu: "O que é necessário, não
são tanto os resultados brutos quanto o estudo; os resultados nada são sem a
evolução que a eles conduziu". Mas é isto que não compreendem, a maior parte
do tempo, nem os "críticos" de Marx - aos quais, como se diz, o Senhor perdoará
- nem alguns de seus "adeptos", o que é bem pior. Miguel Ângelo dizia: "Meus
conhecimentos engendrarão um grande número de ignorantes". Essa predição
infelizmente se verificou. Agora, são os conhecimentos de Marx que engendram
ignorantes. A falha não é, evidentemente, de Marx, mas daqueles que dizem
tantas tolices em seu nome. Mas para evitar estas tolices é necessário
precisamente compreender o valor metodológico do materialismo histórico.
V
Um dos maiores méritos de Marx e Engels no que diz respeito ao materialismo é
o de ter criado um método justo. Concentrando todos os seus esforços na luta
contra o elemento especulativo da filosofia de Hegel, Feuerbach dela havia pouco
apreciado e utilizado o elemento dialético. Ele declarava: "A verdadeira dialética
não é absolutamente um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um
diálogo entre o eu e o tu". Mas, em primeiro lugar, para Hegel, a dialética não
tinha tampouco o valor de um "monólogo do pensador solitário consigo mesmo",
e, em segundo, a observação de Feuerbach define de forma justa o ponto de
partida, mas não o método da filosofia. Esta lacuna foi preenchida por Marx e
Engels, que compreenderam que não era necessário, ao combater a filosofia
especulativa de Hegel, ignorar sua dialética. Alguns críticos afirmam que, nos
primeiros tempos após sua ruptura com o idealismo, Marx manifestava também
uma grande indiferença para com a dialética. Mas esta opinião, que parece exata à
primeira vista, é desmentida pelo fato, assinalado anteriormente, que já nos
"Deutsch-französische Jahrbücher" (Anais Franco-Alemães), Engels tratava o
método como a própria alma do novo sistema.
E em todo caso, a segunda parte da "Miséria da Filosofia" não deixa nenhuma
dúvida sobre o fato que Marx, na época de sua polêmica com Proudhon,
apreciava perfeitamente o valor do método dialético e sabia muito bem dele
servir-se. Nesta discussão, a vitória de Marx sobre Proudhon foi a de um homem
que sabe pensar dialeticamente, sobre outro que não soubera compreender a
essência da dialética, mas entretanto se esforçara em aplicar o método dialético na
análise da sociedade capitalista. E esta mesma segunda parte da "Miséria da
Filosofia" mostra que a dialética que, em Hegel, tivera um caráter puramente
idealista, e o mantivera em Proudhon, na proporção em que este o assimilara, foi
assentada por Marx sobre um fundamento materialista.
Posteriormente, caracterizando sua dialética materialista, Marx escrevia: "Para
Hegel, o processo lógico, que ele transforma em sujeito autônomo,
denominando-o idéia, é o demiurgo da realidade, a qual não é outra coisa que
sua manifestação exterior. Para mim, é justamente o contrário: o ideal é apenas
o material transformado e traduzido no cérebro humano". Esta caracterização
pressupõe um acordo completo com Feuerbach, em primeiro lugar, no que
concerne à opinião sobre a "idéia" de Hegel e, em segundo, no que concerne às
relações entre o pensamento e o ser. Apenas um homem convencido da justeza do
princípio fundamental da filosofia de Feuerbach — não é o pensar que condiciona
o ser, mas o ser que condiciona o pensar — era capaz de "colocar sobre seus
próprios pés" a dialética hegeliana.
Muitas pessoas confundem a dialética com a doutrina da evolução. A dialética é,
com efeito, uma doutrina da evolução. Mas ela difere essencialmente da "teoria
da evolução" vulgar, que repousa essencialmente sobre o princípio que nem a
natureza, nem a história dão saltos e que todas as transformações no mundo só se
dão gradualmente. Já Hegel demonstrara que, assim compreendida, a doutrina da
evolução era inconsistente e ridícula.
"Quando queremos representar o aparecimento ou o desaparecimento de
qualquer coisa" — diz ele no primeiro tomo de sua Lógica — "os representamos
geralmente como um aparecimento ou desaparecimento graduais. No entanto, as
transformações do ser são, não apenas a passagem de uma quantidade à outra,
mas também a passagem da quantidade à qualidade e, inversamente, passagem
que, acarretando a substituição de um fenômeno por outro, é uma ruptura da
progressividade". E cada vez que há uma ruptura da progressividade produz-se
um salto no curso do desenvolvimento. Hegel mostra adiante, através de toda uma
série de exemplos, com qual freqüência se produzem saltos na natureza tanto
quanto na história, e desvenda o erro ridículo que está na base da "teoria da
evolução" vulgar. "Na base da doutrina da progressividade", diz ele, "encontra-
se a idéia que aquilo que surge já existe efetivamente e permanece imperceptível
unicamente em razão de sua pequenez. Da mesma forma, quando se fala de
desaparecimento gradual de um fenômeno, representa-se este desaparecimento
como um fato consumado, como se o fenômeno que toma o lugar do procedente
já existisse, mas ainda não sendo perceptíveis, nem um nem outro... Mas desta
forma, suprime-se de fato todo aparecimento e todo desaparecimento... Explicar
o aparecimento ou o desaparecimento de um fenômeno dado, pela
progressividade da transformação, é levar tudo a uma tautologia fastidiosa, pois
é considerar como previamente pronto (quer dizer, como já aparecido ou como
já desaparecido) tudo aquilo que está em vias de aparecer ou de desaparecer".
Marx e Engels adotaram inteiramente esta concepção dialética de Hegel, sobre a
inevitabilidade dos saltos no processo do desenvolvimento. Engels a desenvolve
de maneira detalhada em sua polêmica com Dühring e, nesta ocasião, ele a
"coloca sobre os próprios pés", quer dizer, sobre uma base materialista.
E assim ele mostra que a passagem de uma forma de energia à outra, não pode
consumar-se de outra forma que por meio de um salto. Assim, ele procura na
química moderna a confirmação do princípio dialética da transformação da
quantidade em qualidade. Em geral, as leis do pensamento dialético são
confirmadas, segundo ele, pelas propriedades dialéticas do ser. Aqui ainda, o ser
condiciona o pensar.
Sem entrar numa caracterização detalhada da dialética materialista (no que
concerne às suas relações com a chamada lógica elementar, paralelamente à
matemática elementar, ver nosso prefácio à nossa tradução da brochura Ludwig
Feuerbach), lembraremos ao leitor que a teoria que via no processo da evolução
apenas modificações progressivas e que dominou no decorrer dos últimos vinte
anos, começou a perder terreno mesmo no domínio da biologia, onde antes era
quase que universalmente reconhecida. Em relação a isto, os trabalhos de Armand
Gautier e Hugo de Vries parece que deverão marcar época. É suficiente dizer que
a teoria das mutações de Vries não é outra coisa que a teoria da evolução das
espécies operando-se por saltos. (Ver sua obra em dois tomos: Die
Mutationstheorie, Leipzig 1901-1903; seu relatório: Die Mutationen und die
Mutationsperioden bei der Entstehung der Arten, Leipzig 1901, assim como suas
conferências na Universidade da Califórnia, editadas em tradução alemã sob o
título: Arten und Varietaten und ihre Entstehung durch die Mutation, Berlim
1906).
Na opinião deste eminente naturalista, o aspecto fraco da teoria de Darwin sobre a
origem das espécies é precisamente a idéia que esta origem possa ser explicada
por transformações graduais. Também muito interessante e justa é a observação
de De Vries, que constata que a teoria das transformações graduais, que dominava
na doutrina da origem das espécies, exerceu uma influência desfavorável sobre o
estudo experimental das questões relativas a este domínio.
É preciso acrescentar que, nos meios naturalistas modernos, e muito
particularmente entre os neolamarckistas, observa-se uma difusão bastante rápida
da teoria da matéria animada, teoria segundo a qual a matéria em geral e a matéria
orgânica, em particular, considerada por alguns como sendo diretamente aposta
ao materialismo (ver, por exemplo, o livro de R. H. Francé: Der heutige Stand der
Darwin'shen Frage, Leipzig 1907), representa na realidade, se ela é compreendida
de forma justa, apenas a tradução, em linguagem naturalista moderna, da doutrina
materialista de Feuerbach, da unidade entre o ser e o pensar, entre o objeto e o
sujeito. Pode-se afirmar com certeza que Marx e Engels teriam mostrado o maior
interesse por esta corrente das ciências naturais, que está, na verdade, no
momento, ainda muito insuficientemente estudada.
Alexandre Herzen diz com razão que a filosofia de Hegel, por muitos considerada
como conservadora em alto grau, é uma verdadeira álgebra da revolução. Mas em
Hegel, esta álgebra ficava sem nenhuma aplicação às questões candentes da vida
prática. O elemento especulativo devia introduzir necessariamente o espírito de
conservadorismo na filosofia do grande idealista. Ocorre diferentemente com a
filosofia materialista de Marx. A "álgebra" revolucionária aí aparece com toda
força invencível de seu método dialético. Marx diz: "Em sua forma mística, a
dialética se tornou moda alemã, porque ela parecia glorificar o estado de coisas
existente. Em sua forma racional, a dialética não é, aos olhos da burguesia e de
seus teóricos, senão escândalo e horror, porque além da compreensão positiva
do que existe, ela engloba também a compreensão da negação, do
desaparecimento inevitável do estado de coisas existente; porque ela considera
toda forma sob o aspecto do movimento, portanto também sob seu aspecto
transitório; porque ela não se inclina diante de nada e é, por sua essência,
crítica e revolucionária".
Se se considera a dialética materialista do ponto de vista da literatura russa, pode-
se dizer que esta dialética foi a primeira a fornecer um método necessário e
suficiente para a solução da questão do caráter racional de tudo aquilo que é,
problema que tanto havia atormentado nosso genial Bielinski. Apenas o método
dialético de Marx, aplicado ao estudo da vida russa, mostrou-nos o que havia de
real e o que apenas parecia sê-lo.
VI
Quando abordamos a interpretação materialista da história, enfrentamos de início,
como vimos, a questão de saber onde estão as verdadeiras causas do
desenvolvimento das relações sociais. Já sabemos que a "anatomia da sociedade
civil" é determinada por sua economia. Mas o que é que determina esta
economia?
A isto Marx responde: "Na produção social de sua vida, os homens se acham
ligados por certas relações indispensáveis, independentes de sua vontade, por
relações de produção, que correspondem a um grau determinado da evolução de
suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se
levanta a superestrutura jurídica e política".
Esta resposta de Marx reduz, pois, toda a questão do desenvolvimento da
economia às das causas que condicionam o desenvolvimento das forças
produtivas da sociedade. E, nesta última forma, a questão se resolve antes de mais
nada pela indicação das propriedades do meio geográfico.
Já Hegel assinala, em sua filosofia da história, o papel importante da "base
geográfica da história universal". Mas como, para ele, a causa de toda evolução é
no final de contas, a Idéia, e como ele só recorria à explicação materialista dos
fenômenos de passagem e nos casos de importância secundária, por assim dizer,
contra vontade, a concepção profundamente justa expressa por ele sobre a grande
importância histórica do meio geográfico não poderia levá-lo a todas as fecundas
conclusões que daí decorrem. Estas conclusões só foram tiradas em toda sua
amplitude pelo materialista Marx.
As propriedades do meio geográfico determinam o caráter, tanto dos produtos da
natureza dos quais se serve o homem para satisfazer suas necessidades, quanto
dos objetos que ele produz para o mesmo fim. Onde não existiam metais, as tribos
aborígines não puderam ultrapassar com seus próprios meios os limites da
chamada "idade da pedra". Da mesma forma, para que os pescadores e os
caçadores primitivos pudessem passar ao pastoreio e à agricultura, eram
necessárias condições geográficas apropriadas, ou seja, uma fauna e uma flora
correspondentes. L. G. Morgan observa que a ausência, no Hemisfério Ocidental,
de animais passíveis de serem domesticados, assim como as diferenças existentes
entre as floras dos dois hemisférios, explicam o curso tão diferente da evolução
social de seus habitantes.
Waitz diz a respeito dos peles-vermelhas da América do Norte: "Entre eles é
completa a ausência de animais domésticos. Este fato é muito importante, pois
constitui o fator principal que os mantém num baixo nível de desenvolvimento".
Schweinfurth relata que na África, quando uma localidade está superpovoada,
uma parte da população emigra e então ocorre que ela modifica seu gênero de
vida segundo o meio geográfico. "As tribos que até então se ocupavam da
agricultura, passam à caça, e tribos que viviam do pastoreio de seus rebanhos,
passam à agricultura". Segundo Schweinfurth, os habitantes de uma região rica
em ferro e que engloba uma parte considerável da África Central, puseram-se
naturalmente a produzir e a trabalhar o ferro.
Mas ainda não é tudo. Já nos mais baixos estágios da evolução humana, as tribos
entram em relação umas com as outras, trocando entre si seus produtos. Isto tem
por resultado alargar os limites do meio geográfico, o qual, por sua vez, influi
sobre o desenvolvimento das forças produtivas de cada uma destas tribos,
acelerando assim a marcha deste desenvolvimento. Mas é compreensível que a
facilidade maior ou menor com a qual tais relações se estabelecem e se
desenvolvem depende também das propriedades do meio geográfico. Hegel já
dizia que os mares e os rios aproximam os homens, enquanto as montanhas os
separam. Os mares, porém, só aproximam os homens quando o desenvolvimento
das forças produtivas já atingiu um nível relativamente elevado. Quando este
nível é baixo, o mar — como diz tão justamente Ratzel — dificulta fortemente as
relações entre as raças que ele separa. Mas, quaisquer que sejam, é indubitável
que, quanto mais variadas são as propriedades do meio, mais elas são propícias ao
desenvolvimento das forças produtivas. "Não é a fertilidade absoluta do solo",
diz Marx, "mas sua diferenciação, a variedade de seus produtos naturais que
constituem a base natural da divisão social do trabalho e que impulsionam o
homem, em virtude da variedade das condições naturais em que vive, a variar
suas necessidades e suas capacidades, seus meios e seus modos de produção".
Quase nos mesmos termos que Marx, Ratzel diz: "O que importa, sobretudo, não
é uma maior facilidade de achar a alimentação, é que algumas tendências, certos
hábitos e, finalmente, algumas necessidades sejam despertadas no próprio
homem".
Assim, portanto, as propriedades do meio geográfico determinam o
desenvolvimento das forças produtivas que, por sua vez, determina o
desenvolvimento das forças econômicas e, com estas, o de todas as outras
relações sociais. Marx explica isto nos seguintes termos: "As relações sociais que
os produtores contraem entre si, as condições de sua atividade recíproca e sua
participação no conjunto da produção diferem também segundo o caráter das
forças produtivas. A invenção de um novo instrumento de guerra, a arma de
fogo, devia necessariamente modificar toda a organização interior do exército,
as relações em cujo quadro os indivíduos formam um exército e que dele fazem
um conjunto organizado enfim, também as relações entre exércitos diferentes".
Para tornar esta explicação mais concludente, citaremos um exemplo. Os massais,
na África oriental, matam seus prisioneiros porque — como diz Ratzel — este
povo de pastores ainda não tem a possibilidade técnica de aproveitar utilmente
seu trabalho de escravos. Mas os wakambas, que são agricultores próximos dos
pastores, têm o meio de explorar este trabalho, e por isso deixam vivos seus
prisioneiros, que escravizam. O aparecimento da escravidão pressupõe portanto
que as forças sociais atingiram um grau de desenvolvimento que permite explorar
o trabalho de cativos. Mas a escravidão é uma relação de produção cuja aparição
marca o início da divisão em classes numa sociedade que até então não conhecia
outras divisões que as correspondentes ao sexo e à idade. Quando a escravidão
atinge seu pleno desenvolvimento, marca toda a economia da sociedade e, através
desta economia, todas as outras relações sociais e, antes de mais nada, o regime
político. Diferentes que fossem os Estados antigos em seus regimes políticos
tinham todos um traço comum: cada um deles era uma organização política que
expressava e defendia os interesses dos homens livres.
VII
Sabemos agora que o desenvolvimento das forças produtivas, que determina, em
definitivo, o desenvolvimento de todas as relações sociais, depende das
propriedades do meio geográfico. Mas, uma vez que certas relações sociais
surgem, elas exercem, por sua vez, uma grande influência sobre o
desenvolvimento das forças produtivas. De forma que, aquilo que primitivamente
foi uma conseqüência, se torna, por sua vez, causa; entre a evolução das forças
produtivas e o regime social, se produz uma ação e uma reação recíprocas, que
tomam, em diferentes épocas, as formas mais variadas.
É preciso também não perder de vista que o estado das forças produtivas
condiciona não apenas as relações interiores existentes no seio de uma dada
sociedade, mas também suas relações exteriores. A cada grau do desenvolvimento
das forças produtivas corresponde um caráter determinado do armamento, da arte
militar e, enfim, do direito internacional ou, mais exatamente, do direito inter-
social e, dentre outros, do direito entre tribos. As tribos de caçadores não tem
condições de constituir organizações políticas consideráveis, precisamente porque
o baixo nível de suas forças produtivas as obriga, segundo uma velha expressão
russa, a se dispersar, cada um por si, em pequenos grupos sociais à procura de sua
subsistência. Quanto mais, porém, estes grupos sociais "se dispersam cada um
por si'', mais é inevitável que se travem lutas mais ou menos sangrentas para
resolver aqueles litígios que, numa sociedade civilizada, poderiam facilmente ser
ajustados por um juiz de paz. Eyre relata que, quando várias tribos australianas se
encontram para certos fins, numa localidade determinada, estes contatos jamais
são de longa duração. Antes mesmo que a falta de alimento ou a necessidade de
partir à caça tenham obrigado os aborígines australianos a se separarem, eclodem
entre eles conflitos que culminam rapidamente em batalhas.
Todos compreendem que semelhantes choques podem produzir-se pelas causas
mais diversas. Mas é notável que a maioria dos viajantes as atribuam a causas
econômicas. Quando Stanley perguntava aos indígenas da África Equatorial
porque eles guerreavam com as tribos vizinhas, eles lhe respondiam: "Os nossos
partem à caça. Os vizinhos se põem a rechaçá-los. Então nós atacamos os
vizinhos, eles nos atacam por sua vez e nos batemos até que não agüentemos
mais ou que um dos dois campos seja vencido". Burton também diz: "Todas as
guerras na África têm duas causas principais: o roubo de gado ou a captura de
homens". Ratzel considera provável que na Nova Zelândia, as guerras entre
indígenas não tivessem freqüentemente outro móvel que o desejo de se regalar
com carne humana. Mas a própria inclinação acentuada dos indígenas para a
antropofagia se explica pela pobreza da fauna neozelandesa.
Todos sabem quanto o resultado de uma guerra depende do armamento das partes
beligerantes. Mas seu armamento é determinado pelo estado de suas forças
produtivas, por sua economia e pelas relações sociais que se constituíram sobre a
base desta economia. Dizer que tais povos ou tais tribos foram conquistados por
outros povos, ainda não é explicar porque as repercussões sociais de sua
subjugação foram precisamente umas e não outras. As conseqüências sociais da
conquista da Gália pelos romanos não foram absolutamente as mesmas que as da
conquista deste país pelos germânicos. As conseqüências sociais da conquista da
Inglaterra pelos normandos não foram absolutamente as mesmas acarretadas pela
conquista da Rússia pelos mongóis. Em todos estes casos, a diferença foi
determinada, em última análise, pela diferença existente entre o regime
econômico da sociedade que tinha sido subjugada e o da sociedade que a havia
subjugado. Quanto mais as forças econômicas de tal tribo ou tal povo se
desenvolvem, mais aumenta para esta tribo ou este povo a possibilidade de, pelo
menos, melhor se armar tendo em vista a luta pela existência.
Esta regra geral, entretanto, admite numerosas exceções que merecem que nelas
nos detenhamos. Quando o desenvolvimento das forças produtivas está num nível
muito baixo, a diferença no armamento de tribos que se encontram em estágios
muito diferentes de desenvolvimento econômico — por exemplo, os pastores
nômades ou os agricultores sedentários — não pode ser tão grande quanto se
tornará posteriormente. Além disso, a progressão na via do desenvolvimento
econômico, exercendo uma influência determinante sobre o caráter de um dado
povo, diminui seu espírito guerreiro, algumas vezes a tal ponto que o torna
incapaz de se opor a um inimigo economicamente mais atrasado, mas, em
compensação, mais acostumado à guerra. Eis porque não é raro que pacíficas
tribos de agricultores caiam sob o jugo de povos belicosos. Ratzel observa que os
mais sólidos organismos estatais são criados por "povos semicultos" porque estes
dois elementos — o elemento agrícola e o elemento pastoril — foram reunidos
pela conquista. Por justa que seja, em geral, esta observação, é necessário
entretanto lembrar que, mesmo em tais casos — a China é um excelente exemplo
disso — , os conquistadores economicamente atrasados sofrem completamente,
pouco a pouco, a influência do povo conquistado, economicamente mais
avançado.
O meio geográfico exerce grande influência não apenas sobre as tribos primitivas,
mas também sobre os chamados povos cultos. Marx diz: "A necessidade de
estabelecer um controle social sobre tal força natural, de explorá-la de forma
econômica, de captá-la de início ou domá-la por meio de obras consideráveis,
erigidas pelo esforço humano organizado, esta necessidade exerce um papel
decisivo na história da indústria. Tal foi a importância da regulamentação das
águas no Egito, na Lombardia, nos Países Baixos, na Pérsia e na Índia, onde a
irrigação por meio de canais artificiais leva ao solo não apenas a água
indispensável, mas, ao mesmo tempo, com o barro que esta carrega, o fertilizante
mineral das montanhas. O segredo da arrancada da indústria na Espanha e na
Sicília sob a dominação árabe residia na canalização".
A doutrina da influência exercida pelo meio geográfico sobre a evolução histórica
da humanidade era freqüentemente reduzida ao simples reconhecimento da
influência imediata do "clima" sobre o homem social: supunha-se que, sob a
influência do "clima", uma "raça" tornava-se amante da liberdade, outra tendia a
sofrer pacientemente o poder de um soberano mais ou menos despótico, uma
terceira tornava-se supersticiosa e logo caía na dependência do clero. Tal
concepção prevalece ainda, por exemplo, em Buekle. Segundo Marx, o meio
geográfico age sobre o homem por intermédio das relações de produção que
nascem num meio determinado, sobre a base de forças de produção determinadas,
cuja primeira condição de desenvolvimento é representada precisamente pelas
propriedades desse mesmo meio. A etnologia moderna se aproxima cada vez mais
deste ponto de vista e, portanto, vai reservando à "raça" um lugar cada vez mais
restrito na história, da "civilização". "A posse de algum patrimônio de
civilização", diz Ratzel, "nada tem a ver com a raça em si".
Mas uma vez atingido em certo estado de "civilização" ele exerce
incontestavelmente sua influência sobre as qualidades físicas e psíquicas da
"raça".
A influência do meio geográfico sobre o homem social representa uma
quantidade variável. A evolução das forças produtivas condicionada pelas
propriedades deste meio aumenta o poder do homem sobre a natureza e, por isso
mesmo, cria uma relação nova entre o homem e o meio geográfico ambiente. Os
ingleses de nossos dias reagem a este meio de modo muito diverso que as tribos
que povoavam a Inglaterra no tempo de Júlio César. Com isto se encontra
definitivamente descartado o argumento segundo o qual o caráter da população de
um dado país pode transformar-se fundamentalmente, mesmo que as condições
geográficas permaneçam as mesmas.
VIII
As relações jurídicas e políticas engendradas por uma dada estrutura econômica
exercem uma influência decisiva sobre toda a psicologia do homem social. Marx
diz: "Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condições sociais de
existência, vem-se erigir toda uma superestrutura de sensações, ilusões,
maneiras de pensar, de conceber a vida, todas diversas e singulares em seu
gênero". O "ser" determina o "pensar". E podemos dizer que cada novo progresso
realizado pela ciência na explicação do processo do desenvolvimento social,
representa um novo argumento em favor desta tese fundamental do materialismo
moderno.
Já em 1877, Ludwig Noiré escrevia: "Foi à atividade em comum, dirigida para
um objetivo comum, foi o trabalho primordial de nossos ancestrais que
produziram a linguagem e a vida cultural". Desenvolvendo este notável
pensamento, L. Noiré indica que, primitivamente, a linguagem designa as coisas
do mundo objetivo, não como figuras mas como coisas que adquiriram uma
figura (nichtals Gestalten, sondernals gestaltete), não como seres ativos,
exercendo uma ação, mas como seres passivos, sofrendo uma ação. E ele explica
isso por intermédio da consideração justa de que "todas as coisas surgem no
campo visual do homem, ou seja, elas adquirem para ele existência de coisas,
unicamente na medida em que sofrem sua ação, e é de acordo com isso que elas
recebem suas denominações, seus nomes". Em resumo, é a atividade humana, na
opinião de Noiré, que dá conteúdo às raízes primitivas da linguagem. É
interessante constatar que Noiré via o primeiro germe de sua teoria no
pensamento de Feuerbach segundo o qual a essência do homem reside na
comunidade, na unidade do homem com o homem. Visivelmente ele ignorava
totalmente Marx; senão teria percebido que sua concepção do papel da atividade
na formação da linguagem é mais próxima da de Marx que, em sua teoria do
conhecimento, insistia sobretudo na atividade humana, em oposição a Feuerbach,
que falava de preferência da "contemplação".
É desnecessário relembrar, a propósito da teoria de Noiré, que o caráter da
atividade humana no processo da produção é determinado pelo estado das forças
produtivas. Isto é evidente. E mais útil notar que a influência decisiva do modo de
existência sobre o pensamento é particularmente visível nas raças primitivas, cuja
vida social e intelectual é incomparavelmente mais simples que a dos povos
civilizados. Van den Steinen escreve a respeito dos indígenas do Brasil central,
que nós só os compreenderemos ao considerá-los como o produto de uma
sociedade baseada na caça. "A fonte principal de sua experiência", diz ele, "era
seu contato com os animais, e é sobretudo desta experiência que se valiam...
para explicar a natureza, para formar uma concepção do mundo". As condições
de uma vida feita de caças determinaram não apenas a concepção do mundo
própria a estas tribos, mas também suas idéias morais, seus sentimentos e
(observa o mesmo autor) até seus gostos artísticos. E vemos exatamente a mesma
coisa entre os povos pastores. Dentre aqueles que Ratzel chama de povos pastores
exclusivos, o "assunto de noventa por cento das conversações é o gado, suas
origens, seus hábitos, suas qualidades e seus defeitos". Os infelizes herreros, que
os "alemães civilizados" recentemente pacificaram com tanta crueldade bestial,
pertenciam a estes "povos pastores exclusivos".
Urna vez que a principal fonte de experiência era para o caçador primitivo o gado
e toda a sua concepção do mundo se baseava sobre esta experiência, não é de
admirar que na mesma fonte tenha sido colhido o conteúdo de toda a mitologia
das tribos de caçadores, que para estes faz as vezes tanto de filosofia quanto de
teologia e ciência. "O que caracteriza a mitologia dos bosquímanos", diz Andrew
Lang, "é o papel quase exclusivo que aí representam os animais. Com exceção de
uma velha mulher que aparece aqui e ali em suas lendas incoerentes, o homem aí
não representa nenhum papel". Segundo Br. Smith, os indígenas da Austrália
que, como os bosquímanos, ainda não estão no estágio da caça, têm
principalmente por deuses os pássaros e os animais.
A religião das raças primitivas não está, no momento, ainda suficientemente
pesquisada. Mas o que dela já sabemos confirma absolutamente a justeza da
breve fórmula de Feuerbach: "não é a religião que faz o homem mas é o homem
que faz a religião". Taylor diz: "É evidente que, entre todos os povos, o homem
era o protótipo da divindade. Isto explica porque a estrutura da sociedade
humana e seu governo se tornam o modelo sobre o qual se representam a
sociedade celeste e o governo dos céus". Isto já é, não há dúvida, uma concepção
materialista da religião. Sabe-se que Saint-Simon sustentava um ponto de vista
oposto, que ele explicava o regime social e político dos antigos gregos, por suas
crenças religiosas. Bem mais importante ainda, porém, é o fato que a ciência já
começa a descobrir a relação causal existente entre o desenvolvimento da técnica
das raças primitivas e sua concepção do mundo. É certo que descobertas
numerosas e preciosas a esperam, por este lado.
De todas as ideologias da sociedade primitiva, a arte é atualmente a que foi
melhor pesquisada. Neste domínio reuniram-se materiais extremamente
abundantes que constituem a prova mais inatacável e a mais concludente da
justeza e, porque não dizer, da inevitabilidade da interpretação materialista da
história. Estes materiais são tão numerosos que só podemos enumerar aqui as
obras mais importantes da literatura sobre o assunto: Schweinfurth, Artes
Africanae, Leipzig 1875; R. Andree, Ethnographische Parallelen, artigo intitulado
Das Zeichnen bei den Naturvölkern; Von den Steinen, Unter den Naturvölkern
Zentral-Brasiliens. Berlim 1894; C. Mallery. Picture Writing of the American
Indians — Annual Report 0f the Bureau of Ethnology, Washington 1893 (os
relatórios dos outros anos contêm informações preciosas sobre a influência
exercida pela técnica, principalmente da arte têxtil, na ornamentação); Hoernes,
Urgeschichte der bildenden Kunst in Europa, Viena 1898; Ernest Crosse, Die
Anfange der Kunst e seu outro livro: Kunstwissenschaftliche Studien, Tübingen
1900; Yrjö Hirn, Der Ursprung der Kunst, Leipzig 1904; Karl Bücher, Arbeit und
Rhythmus, 3ª. edição, 1902; Gabriel e Adr. de Mortillet, Le Préhistorique, Paris,
1900; páginas 217-230; Hörnes, Der diluvuale Mensch in Europa, Brunswick
1903; Sophus Müller, L'Europe préhistorique, traduzido do dinamarquês por Em.
Philippot, Paris 1907; Rich. Wallascheck, Anfänge der Tonkunst, Leipzig 1903.
Veremos, de acordo com as teses que se seguem, recolhidas entre os autores
acima citados, quais são as conclusões às quais a ciência moderna chega na
questão do nascimento da arte.
Hornes diz:"A arte ornamental só pode desenvolver-se partindo da atividade
industrial, que é sua condição material prévia... Povos sem nenhuma indústria
não têm ornamentação e não podem absolutamente tê-la".
Von den Steinen avalia que o desenho (Zeichnen) surgiu dos signos (Zeichen)
adotados em objetivos práticos para designar os objetos.
Bücher chegou à conclusão que "o trabalho, a música e a poesia deviam, em seu
estágio primitivo, formar um amálgama único, mas que o elemento fundamental
desta trindade era o trabalho, enquanto os dois outros só tinham valor
acessório". Em sua opinião, "a origem da poesia deve ser buscada no trabalho".
Ele observa que nenhuma língua dispõe em ordem rítmica as palavras que
formam uma proposição. É, portanto, impossível que os homens tenham chegado
à linguagem poética cadenciada, pela via do emprego de sua linguagem comum.
A isto se opunha a lógica interna desta última. Mas como explicar o nascimento
da linguagem ritmada? Bücher supõe que os movimentos rítmicos e coordenados
do corpo comunicaram à linguagem figurada as leis de sua coordenação. É ainda
mais plausível que, nos graus inferiores da evolução, estes movimentos rítmicos
sejam habitualmente acompanhados de canto. Mas como se explica a
coordenação dos movimentos corporais? Pelo caráter dos processos de produção.
Assim, portanto, "o segredo da versificação reside na atividade produtiva".
R. Wallascheck formula sua concepção sobre a origem das produções cênicas
entre as raças primitivas nos seguintes termos:
"Os temas destes jogos cênicos eram:
1. a caça, a guerra, a canoa (entre os caçadores, a vida e os hábitos dos
animais; pantomimas animalescas e máscaras);
2. a vida e os hábitos do rebanho (entre os povos pastores);
3. o trabalho (entre os agricultores: a semeadura, a debulha do trigo, o cultivo
das vinhas).
A representação é assegurada por toda a tribo (coro) que canta e representa.
Cantam-se quaisquer palavras, pois o conteúdo dos cantos é precisamente o
aspecto cênico (pantomima). Só se interpretam os atos da vida cotidiana, cuja
execução é absolutamente necessária na luta pela existência". Wallascheck diz
que, num grande número de tribos, quando acontecem tais representações, o coro
era dividido em duas partes colocadas uma na frente da outra. "Tal era",
acrescenta ele, "o aspecto primitivo do drama grego que, originariamente era
também uma pantomima animalesca. O animal que tinha maior papel na vida
econômica grega era a cabra donde a palavra tragédia, que deriva de tragos,
bode)."
É impossível imaginar ilustração mais brilhante da tese, segundo a qual não é o
ser que é determinado pelo pensamento, mas o pensamento pelo ser.
IX
A vida econômica se desenvolve sob a influência do crescimento das forças
produtivas. É isto que explica porque as relações existentes entre os homens no
processo da produção se transformam e com elas o estado psíquico humano.
Marx diz:
"Num certo grau de sua evolução, as torças produtivas da sociedade entram em
contradição com as relações de produção existentes no seio desta sociedade ou,
em termos jurídicos, com as relações de propriedade em cujo quadro estas forças
evoluíram. De formas que favoreciam a evolução das forças produtivas, estas
relações se tornam grilhões que as entravam. Inicia-se então uma época de
revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a formidável
superestrutura levantada sobre ela se transforma num ritmo mais ou menos
rápido. Nenhuma formação social desaparece antes que nela se tenham
desenvolvido as forças produtivas que ela comporta, e relações de produção
novas e superiores jamais ocupam o lugar das precedentes antes que as
condições materiais indispensáveis à sua existência tenham amadurecido no seio
da mesma antiga sociedade. Eis porque a humanidade só se coloca problemas
que ela pode resolver, pois se considero as coisas mais de perto, se chegará
sempre à conclusão que o problema só é proposto onde as condições materiais
necessárias à sua solução já existem, ou, pelo menos, estão cm vias de
aparecimento".
Temos aqui, sob os olhos uma verdadeira "álgebra", uma "álgebra" puramente
materialista, da evolução social. Nesta álgebra tanto há lugar para os "saltos" —
da época da revolução social — quanto para as transformações graduais.
Transformações graduais que, operando quantitativamente nas propriedades de
uma dada ordem de coisas, culminam finalmente numa transformação da
qualidade, ou seja, no desaparecimento do antigo modo de produção — ou da
antiga formação social, segundo expressão empregada por Marx neste caso — e
na sua substituição por um modo de produção novo. Segundo Marx, os modos de
produção oriental, antigo, feudal e burguês contemporâneo, podem ser
considerados, de forma geral, como épocas consecutivas ("progressivas") da
evolução econômica da sociedade. Mas é de supor que após ter tomado
conhecimento do livro de Morgan sobre a sociedade primitiva, Marx modificou
sua concepção da relação existente entre o modo de produção antigo e o modo de
produção oriental. Com efeito, a lógica do desenvolvimento econômico do modo
de produção feudal levou à revolução social que marcou o triunfo do capitalismo.
Mas a lógica do desenvolvimento econômico, por exemplo da China ou do Egito
Antigo, não conduziu absolutamente ao aparecimento do modo antigo de
produção. No primeiro caso, tratam-se de duas fases do desenvolvimento, onde
uma sucede à outra e é engendrada por coexistentes de desenvolvimento
econômico. A sociedade antiga sucedeu à organização social por clãs, e esta
precedeu igualmente ao advento do regime social oriental. Cada um destes dois
tipos de organização econômica surgiu como resultado do crescimento das forças
produtivas, que se operara no seio da organização social baseada no clã e que
devia, finalmente, levar à decomposição dessa organização. E se estes dois tipos
diferem consideravelmente um do outro, seus signos distintivos principais se
formaram sob a influência do meio geográfico. Num caso, ele prescrevia à
sociedade que havia atingido um grau determinado de desenvolvimento das
forças produtivas um certo conjunto de reclamações de produção, num outro
caso, outro conjunto, bem distinto do primeiro.
A descoberta da organização em clãs é evidentemente chamada a ter na
sociologia o mesmo papel que a descoberta da célula na biologia. E enquanto
Marx e Engels não tinham conhecimento da organização em clãs, sua teoria da
evolução social não podia deixar de comportar lacunas consideráveis, o que
posteriormente foi reconhecido pelo próprio Engels.
Mas a descoberta da organização social em clã, que, pela primeira vez, permitia
compreender os estágios inferiores da evolução social, nada mais foi que um
argumento novo e poderoso a favor da interpretação materialista da história, não
contra ela. Esta descoberta permitiu compreender bem melhor o processo das
primeiras fases do ser social, assim como a maneira pela qual este último
determinou então o pensamento social. E assim, esta mesma descoberta deu um
brilho surpreendente à verdade que o pensamento social é determinado pelo ser
social.
Isto, porém, foi dito apenas de passagem. O principal, sobre o qual é preciso reter
a atenção é a indicação feita por Marx, que as relações de propriedade
estabelecidas num grau determinado do desenvolvimento das forças produtivas
favorecem durante um certo tempo, o crescimento destas forças, e ulteriormente
começam a entravá-las. Ainda que um certo estado das forças produtivas seja a
causa que suscita determinadas relações de produção, e em particular, de
propriedade, estas últimas, uma vez surgidas como a conseqüência da causa
indicada, começaram a influir, por sua vez, sobre esta mesma causa. Estabelece-
se assim um sistema de ação e reação recíprocas entre as forças produtivas e a
economia social. Por outro lado, vêm-se edificar sobre a base econômica toda
uma superestrutura de relações sociais, assim como sentimentos e concepções da
mesma ordem. Ora, como esta superestrutura também começa a favorecer o
desenvolvimento econômico, para em seguida, entravá-lo, se estabelece também
uma ação e uma reação recíprocas entre a superestrutura e a base. Este fato
resolve inteiramente o mistério de todos estes fenômenos, que parecem, numa
primeira abordagem, contradizer a tese fundamental do materialismo histórico.
Tudo o que foi dito até hoje pelos "críticos" de Marx sobre o suposto caráter
unilateral do marxismo e sobre seu pretenso desprezo por todos os "fatores" da
evolução social, exceto o fator econômico, resulta simplesmente da
incompreensão do papel que Marx e Engels reservam à ação e reação recíprocas
entre a "base" e a "superestrutura". Para persuadir-se quão pouco Marx e Engels
pretendiam ignorar, por exemplo, a importância do fator político, é suficiente ler
as páginas do "Manifesto Comunista", onde é abordado o movimento de
emancipação da burguesia. Está dito: "Classe oprimida pelo despotismo feudal,
associação armada se auto-governando na comuna, aqui livre república
municipal, lá terceiro estado tributário da monarquia, depois, durante o período
manufatureiro, contrapeso da nobreza nas monarquias limitadas ou absolutas,
pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, após o estabelecimento da
grande indústria e do mercado mundial, conquistou finalmente o poder político
exclusivo no Estado representativo moderno. O governo moderno nada mais é
que um comitê administrativo dos negócios comuns da classe burguesa".
A importância do "fator" político aparece aqui com nitidez suficiente — alguns
"críticos" iriam até considerá-la exagerada. Mas a origem e a força deste fator,
assim como a sua maneira de atuar em cada período dado do desenvolvimento da
sociedade burguesa, são explicados no Manifesto pela marcha do
desenvolvimento econômico e, conseqüentemente, a variedade dos "fatores" em
nada prejudica a unidade da causa inicial.
Não há dúvida que as relações políticas influem sobre o desenvolvimento
econômico, mas é também indubitável que antes de influir sobre este
desenvolvimento, elas são por ele criadas.
É preciso dizer o mesmo do estado psíquico do homem social, daquilo que
Stammler chamava, um pouco unilateralmente, os conceitos sociais. O Manifesto
prova incontestavelmente que seus autores tinham compreendido bem o valor do
"fator" ideológico. Mas vemos, de acordo com o mesmo Manifesto, que se o
"fator" ideológico representa um papel importante no desenvolvimento da
sociedade, ele próprio é previamente criado por este desenvolvimento.
"Quando o mundo antigo estava decadente, as velhas religiões foram vencidas
pela religião cristã. Quando as idéias cristãs sucumbiram ante as idéias de
progresso do século XVIII, a sociedade feudal travava uma luta de morte contra
a burguesia, então revolucionária". Mas no caso que nos interessa, o último
capítulo do Manifesto é ainda mais convincente. Seus autores aí dizem que seus
companheiros de idéias aspiram inculcar nos operários, tão nitidamente quanto
possível, a consciência do antagonismo existente entre os interesses da burguesia
e os do proletariado. É compreensível que aquele que não atribua importância ao
"fator" ideológico, não tenha motivo algum para aspirar a conscientizar do que
quer que seja, a não importa qual grupo social.
X
Nós citamos o Manifesto de preferência aos outros escritos de Marx e Engels
porque ele se refere à primeira época de sua atividade onde, como asseguram
alguns de seus "críticos", eles tinham uma forma particularmente "unilateral" de
compreender as relações existentes entre os diferentes "fatores" do
desenvolvimento social. Vemos claramente que também nesta época, Marx e
Engels não se distinguiam por uma "maneira unilateral" de compreender as
coisas, mas apenas por uma tendência ao monismo, por uma certa repugnância
pelo ecletismo que tão manifestamente permeava as observações dos senhores
"críticos".
Não é raro que se refira a duas cartas de Engels, publicadas no "Sozialistischer
Akademiker" e escritas uma em 1890, outra em 1894. M. Bernstein se apossou
com alegria destas duas cartas, cujo conteúdo constituiria um suposto testemunho
evidente da evolução que se teria consumado nas opiniões do amigo e
colaborador de Marx. Ele extraiu daí duas passagens, em sua opinião, das mais
convincentes, que consideramos necessário reproduzir aqui, dado que provam
exatamente o contrário do que pretendeu provar M. Bernstein.
Eis a primeira destas passagens:
"Existem, portanto, forças inumeráveis que se entrecruzam, um número infinito
de paralelogramos de forças, dando uma resultante, o evento histórico, que pode,
por sua vez, ser considerado como o produto de uma potência agindo como um
todo, sem consciência nem vontade. Pois aquilo que cada um quer
separadamente, é impedido por todos os demais, e aquilo que daí resume, algo
que ninguém quis" (Carta de 1890).
E agora, eis a outra passagem:
"O desenvolvimento econômico, jurídico, filosófico, literário, artístico etc.,
repousa sobre o desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem,
conjuntamente e separadamente, um sobre o outro e sobre a base econômica"
(Carta de 1894).
M. Bernstein achou que "isto soa um pouco diferentemente" do prefácio da obra
"Zur Kritik der politischen Oekonomie", que salienta a relação entre a "base"
econômica e a "superestrutura" que sobre ela se levanta. Mas por que então
"diferentemente"? A passagem acima nada mais faz, na realidade, que repetir o
que foi dito no prefácio em questão. Este desenvolvimento político, como outros,
repousa sobre o desenvolvimento econômico. O próprio Bernstein,
evidentemente, compreendeu o prefácio de Zur Kritik um pouco diferentemente,
ou seja, no sentido de que a superestrutura social e ideológica que vem se levantar
sobre a "base econômica" não exerce nenhuma influência sobre ela. Mas já
sabemos que não há nada mais errado que tal maneira de compreender o
pensamento de Marx. E aqueles que acompanharam de perto os ensaios "críticos"
de M. Bernstein só podem dar de ombros vendo que o homem que outrora se
havia proposto popularizar a doutrina de Marx não se dera ao trabalho, ou mais
exatamente, se mostrara incapaz de compreender previamente esta doutrina.
Na segunda das cartas citadas por Bernstein, há para elucidar o sentido causal da
teoria histórica de Marx e Engels, passagens talvez bem mais importantes que as
linhas tão mal compreendidas por M. Bernstein, acima reproduzidas. Uma destas
passagens é concebida nestes termos:
"Não existe, portanto, um efeito automático da situação econômica, como alguns
gostam de interpretar por comodismo. São os próprios homens que fazem sua
própria história, porém dentro de um meio dado, que os condiciona, sobre a base
de relações efetivas dadas. Entre estas últimas, as relações econômicas, por mais
poderosa que seja a influência exercida sobre elas pelas outras relações de
ordem política e ideológica, são, apesar de tudo, aquelas cuja ação é decisiva,
no final de contas, e constituem o fio condutor que permite compreender o
conjunto do sistema".
Entre as pessoas que interpretam a doutrina histórica de Marx e Engels no sentido
que "existe um efeito automático da situação econômica", se encontrava também,
como vemos agora, o próprio M. Bernstein, na época em que era ainda
"ortodoxo"; entre estas pessoas é preciso incluir também um grande número de
"críticos" de Marx que recuaram "do marxismo ao idealismo". Estes espíritos
profundos dão prova de uma grande suficiência quando descobrem e mostram aos
espíritos "unilaterais" que são Marx e Engels que a história é feita pelos homens
e não pelo movimento automático da economia. Assim, testemunham seu apreço
por Marx e nem sequer desconfiam em sua incrível ingenuidade, que o Marx que
"criticam" nada tem em comum, salvo o nome, com o verdadeiro Marx, o
primeiro nada mais sendo que a criação de sua própria incompreensão que, entre
eles, é verdadeiramente "multilateral". É natural que "críticos" deste jaez tenham
sido totalmente incapazes de "completar" e de "corrigir" o que quer que seja no
materialismo histórico. Sendo assim, não nos ocuparemos mais deles, preferindo
tratar daqueles que lançaram as bases desta teoria.
É extremamente importante salientar que quando Engels, pouco tempo antes de
sua morte, repudiava a forma "automática" de conceber a ação histórica da
economia, ele apenas repetia — quase nos mesmos termos — e comentava aquilo
que Marx escrevera já em 1845, na terceira tese sobre Feuerbach, anteriormente
reproduzida por nós. Marx reprovava ao materialismo anterior a ele ter esquecido
que "se, de um lado, os homens são um produto do meio, este é, por outro lado,
transformado precisamente pelos homens". A tarefa do materialismo no domínio
da história, tal como a concebia Marx, consistia portanto em explicar
precisamente de que forma o "meio" pode ser transformado pelos homens que
são, eles mesmos, os produtos deste meio. E ele encontrava a solução deste
problema indicando as relações de produção que se estabelecem sob a influência
de condições independentes da vontade humana. As relações de produção são as
relações que se estabelecem entre os homens no processo social da produção.
Dizer que as relações de produção se modificam é dizer que as relações existentes
entre os homens no processo em questão, se modificam. A transformação destas
relações não pode se efetuar "automaticamente", quer dizer, independentemente
da atividade humana, porque elas são relações que estabelecem os homens no
processo de sua atividade.
Mas estas relações podem se transformar — e efetivamente, com freqüência, se
transformam — numa direção bem diferente daquela na qual os homens
tencionavam modificá-las . O caráter da "estrutura econômica" e o sentido no
qual este caráter se transforma não dependem da vontade humana, mas do estado
das forças produtivas e da própria natureza das transformações que se produzem
nas relações de produção e se tornam necessárias à sociedade em conseqüência do
desenvolvimento destas forças. Engels explica isto nos seguintes termos:
"Os próprios homens fazem sua história, mas até agora, mesmo nas sociedades
bem delimitadas, eles fizeram conforme uma vontade de conjunto nem segundo
um plano geral. Suas aspirações se entrecruzam e é precisamente por isto que,
em todas as sociedades semelhantes, reina a necessidade, da qual o acaso é o
complemento e a forma sob a qual se manifesta".
A própria atividade humana se define aqui não como uma atividade livre, mas
como uma atividade necessária, quer dizer, regida por leis e podendo constituir o
objeto de um estudo científico. Assim, portanto, o materialismo histórico,
assinalando constantemente que o meio é modificado pelos homens, possibilita ao
mesmo tempo, pela primeira vez, considerar o processo desta modificação do
ponto de vista da ciência. E eis porque estamos no direito de dizer que a
interpretação materialista da história fornece os prolegômenos indispensáveis a
toda doutrina sociológica que pretenda o título de ciência.
Tudo isto é tão verdade que, desde já, todo estudo de um aspecto qualquer da vida
social só adquire valor científico na medida em que se aproxima da explicação
materialista de seu objeto. E, apesar da famosa "ressurreição do idealismo" na
sociologia, tal explicação se torna cada vez mais corrente onde os cientistas não
se entregam a meditações edificantes e a discursos grandiloqüentes sobre o
"ideal", mas se atribuem a tarefa de descobrir a relação causal entre os
fenômenos. Atualmente, as pessoas que, além de não serem partidárias da
concepção materialista da história, dela não têm sequer a menor idéia, sustentam
que são materialistas em suas pesquisas históricas. E então sua ignorância desta
concepção materialista ou sua prevenção contra ela, impedindo-os de bem
compreendê-la em todos os seus aspectos, leva-as efetivamente àquilo que
conviria chamar concepções unilaterais e estreitas.
XI
Eis um exemplo. Há dez anos, o célebre sábio francês Alfred Espinas — seja dito
de passagem, grande adversário dos socialistas atuais — publicava "Origens da
Tecnologia", "estudo sociológico" extremamente interessante, ao menos pela
idéia que desenvolve. Partindo da tese puramente materialista que, na história da
humanidade, a prática sempre precede a teoria, ele examina em sua obra a
influência da técnica sobre o desenvolvimento da ideologia, ou seja, da religião e
da filosofia, na Grécia Antiga. Ele chega à conclusão que, em cada período deste
desenvolvimento, a concepção do mundo dos antigos gregos era determinada pelo
estado de suas forças produtivas. Este é, certamente, um resultado muito
interessante e importante. Mas quem está habituado a aplicar o método
materialista para a compreensão dos fenômenos históricos achará certamente que
a idéia expressa no "estudo" de Espinas é demasiadamente unilateral. E isto pela
simples razão que o sábio francês quase não deu atenção aos outros "fatores" do
desenvolvimento da ideologia, tais como, por exemplo, a luta de classes. E no
entanto, este fator tem uma importância realmente formidável.
Na sociedade primitiva, que ignora a divisão em classes, a atividade produtiva
exerce uma influência direta sobre a concepção do mundo e sobre o gosto
estético. A ornamentação recebe seus motivos da técnica e a dança — a arte
talvez mais importante em tal sociedade — limita-se o mais freqüentemente a
reproduzir um processo de produção. Isto é particularmente visível entre as tribos
caçadoras situadas no mais baixo grau de desenvolvimento econômico, acessível
a nossa observação. É por esta razão que nos referimos principalmente a estas
tribos quando tratamos da dependência na qual se encontra o estado psíquico do
homem primitivo em relação à sua atividade econômica. Mas, numa sociedade
dividida em classes, a influência direta desta atividade sobre a ideologia se torna
bem menos aparente. Isto é compreensível. Se, por exemplo, um gênero de dança
executado pela australiana nativa reproduz simbolicamente seu trabalho de
colheita de raízes, é evidente que nenhuma destas danças elegantes com as quais
se divertiam, por exemplo, as belas mundanas da França no século XVIII, podia
ser a interpretação de um trabalho produtivo destas damas, visto que elas não se
ocupavam com nenhum trabalho produtivo, preferindo dedicar-se à "ciência do
doce amor". Para compreender a dança da australiana nativa basta conhecer o
papel que representa na vida de uma tribo australiana a colheita, pelas mulheres,
das raízes das plantas selvagens. Mas para compreender, por exemplo, o minueto,
não basta, absolutamente, conhecer a economia da França no século XVIII. Neste
último caso está em questão uma dança que é uma expressão da psicologia de
uma classe não produtora. A grande maioria dos "usos e conveniências" da
chamada "boa sociedade" se explica por este mesmo gênero de psicologia.
Assim, portanto o "fator" econômico cede, aqui, o lugar ao fator psicológico. Mas
não se pode esquecer que o próprio advento de classes não produtoras na
sociedade é o produto de seu desenvolvimento econômico. Isto quer dizer que o
"fator" econômico conserva inteiramente seu valor predominante, mesmo quando
cede seu lugar a outros. Ao contrário, é precisamente então que este valor se faz
sentir mais, pois são determinadas por ele a possibilidade e os limites da
influência dos outros fatores.
Mas ainda não é tudo. A classe superior olha a classe inferior com um desprezo
não velado, mesmo quando ela torna parte no processo de produção na qualidade
de classe dirigente. Isto se reflete também na ideologia das classes em questão.
As trovas francesas da Idade Média, e particularmente as canções de gesta,
representam o camponês de então sob um aspecto dos mais desagradáveis. A dar-
lhes crédito:
Li vialaen sont de laide forme
Aine si tres laide ne vit home;
Chaucuns a XV piez de granz
Em auques ressemblet jâianz,
Mais trop sont de laide manière;
Boçu sont devant et derrière.
Mas os camponeses, evidentemente, tinham de si mesmo uma idéia totalmente
diferente. Indignando-se com a arrogância dos feudais, cantavam:
Nous sommes des hommes, tout comme eux, Et capables dc soufrir tout autant
qu'eux,
e assim por diante.
E eles perguntavam: "Enquanto Adão arava e Eva fiava onde estava o fidalgo?"
Em suma, cada uma destas duas classes via as coisas de seu próprio ponto de
vista, cuja característica particular era condicionada pela situação que estas
classes ocupavam na sociedade. A luta de classes influenciava a psicologia das
partes em luta. E assim era, naturalmente, não apenas na Idade Média e nem só na
França. Quanto mais a luta de classes se acirrava num país e numa época dados,
mais forte se tornava sua influência sobre a psicologia das classes em luta. Aquele
que pretende estudar a história das ideologias numa sociedade dividida em
classes, deve consagrar toda sua atenção a esta influência. De outra forma, nada
compreenderá. Experimente-se dar uma explicação econômica direta do
aparecimento da escola de Davi na pintura francesa do século XVIII e se chegará
a um resultado que nada mais será que um contra-senso ridículo e fastidioso. Mas
se considera escola como o reflexo ideológico da luta de classes que se
desenvolve no seio da sociedade francesa às vésperas da Grande Revolução,
imediatamente a questão mudará totalmente de aspecto. A arte de Davi que, como
outras, poder-se-ia crer, é tão desvinculada da economia social que não se pode,
por meio algum, associá-las a esta última, se tornar então perfeitamente
compreensível.
É preciso que se diga o mesmo da história das ideologias na Grécia Antiga: ela
sentiu profundamente a influência da luta de classes. E é precisamente esta
influência que Espinas pouco enfatizou em seu interessante estudo, o que dá a
suas importantes conclusões um caráter demasiadamente unilateral. Poder-se-ia,
já agora, citar numerosos exemplos semelhantes e todos eles testemunhariam que
a influencia do materialismo de Marx sobre muitos estudiosos seria extremamente
benéfica, no sentido em que ela lhes ensinaria a considerar outros "fatores" além
dos fatores técnico e econômico. Isto parece um paradoxo, mas é uma verdade
incontestável, que não mais nos surpreenderá se nos lembrarmos que, ainda que
em Marx, todo movimento social seja explicado pelo desenvolvimento
econômico da sociedade, ele é muito freqüentemente explicado por este
desenvolvimento apenas em última análise, ou seja, este movimento pressupõe a
ação intermediária de toda uma série de outros "fatores".
XII
Atualmente, uma outra tendência começa a se esboçar na ciência moderna. Ela é
diametralmente oposta àquela que viemos de constatar em Espinas e se propõe a
explicar a história das idéias pela influência exclusiva da luta de classes. Esta
tendência bem nova, e no momento ainda pouco evidente, desenvolveu-se sob a
influência direta do materialismo histórico de Marx. Nós a encontramos nos
trabalhos do autor grego A. Eleuteropoulos, cuja obra principal, Wirtchaft und
Philosophie (t. I, Die Philosophie und die Lebensauffassung des Griechen-tums
au/ Grund der gesellschaftlichen Zustãnde e t. II, Die Philosophie und die
Lebensau/jassung der germanish-römischen Volker), surgiu em Berlim em 1900.
Eleuteropoulos sustenta que a filosofia de cada época expressa a concepção do
mundo e da vida (Lebens-und Weltanschauung) próprios desta época. Isto não é
muito novo. Hegel já dizia que cada sistema filosófico é a expressão ideológica
de sua época. Mas, para Hegel, as particularidades das diferentes épocas e,
portanto, das fases correspondentes ao desenvolvimento da filosofia, eram
determinadas pelo movimento da Idéia absoluta, enquanto que para
Eleuteropoulos, cada época é caracterizada antes de mais nada pelo estado
econômico que lhe corresponde. A economia de cada povo determina a
concepção do mundo deste povo, concepção que encontra, como outras, sua
expressão na filosofia. Ao mesmo tempo que se transforma a base econômica da
sociedade, transforma-se também sua superestrutura ideológica. Mas tendo o
desenvolvimento econômico conduzido à divisão da sociedade em classes e à sua
luta, a concepção do mundo própria a uma época determinada não tem caráter
uniforme: ela difere segundo as classes e se modifica segundo a situação, as
necessidades, as aspirações destas classes e as vicissitudes da luta entre elas.
Este é o ponto de vista de Eleuteropoulos a respeito de toda a história da filosofia.
Ele merece, incontestavelmente, a maior atenção e toda aprovação. Há muito
tempo já se constatava na literatura filosófica uma certa tendência a não mais
querer aceitar o velho método que consiste em só considerar a história da filosofia
a simples filiação dos sistemas filosóficos. Em sua brochura publicada por volta
de 1890 e consagrada à questão de saber como é preciso estudar a história da
filosofia, Picavet, o conhecido escritor francês, declarava que tal filiação explica,
na verdade, muito pouca coisa. Poder-se-ia saudar a publicação do livro de
Eleuteropoulos como um novo passo à frente no estudo da história da filosofia e
como uma vitória do materialismo histórico aplicado a uma das ideologias mais
distanciadas da economia. Mas, que pena! Eleuteropoulos não demonstrou um
grande engenho no manejo do método dialético do materialismo. Ele simplificou
ao extremo os problemas que surgiam diante dele e, portanto, só pôde encontrar
para eles soluções muito unilaterais e, logo, muito pouco satisfatórias.
Tomemos, por exemplo, Xenófanes. De acordo com Eleuteropoulos, foi, em
filosofia, o intérprete das aspirações do proletariado da Grécia Antiga. Foi o
Rousseau de sua época. Ele era partidário de uma reforma social pela igualdade
de todos os cidadãos, e sua teoria da unidade do mundo nada mais era que a base
teórica de seus projetos de reformas. Sobre esta base teórica das tendências
reformadoras de Xenófanes vinham logicamente edificar-se todos os detalhes de
sua filosofia, iniciando por sua concepção da divindade e terminando por sua
teoria, segundo a qual nossos sentidos nos dão uma representação ilusória do
mundo exterior.
A filosofia de Heráclito, o Obscuro, fora engendrada pela reação dos aristocratas
contra as aspirações revolucionárias do proletariado grego. A igualdade universal
é impossível; a própria natureza faz os homens desiguais. Cada um deve
contentar-se com sua sorte. No Estado é preciso objetivar não a derrubar a ordem
estabelecida, mas a supressão do arbitrário, tanto sob o domínio de alguns quanto
sob o da massa. O poder deve pertencer à lei, na qual a lei divina encontra sua
expressão. A lei divina não exclui a unidade; mas a unidade, segundo esta lei é a
unidade dos antagonismos. E por isto a realização dos planos de Xenófanes seria
uma infração à lei divina. Desenvolvendo este pensamento e apoiando-o em
outros argumentos, Heráclito criou sua doutrina do devir.
Isto é o que diz Eleuteropoulos. A falta de lugar não nos permite reproduzir
outros extratos de sua análise das causas determinantes da evolução da filosofia.
Mas não há quase necessidade em fazê-lo. O leitor, esperamos, vê por si mesmo
que esta análise teve pouco êxito. Na realidade, o processo da evolução das
ideologias é incomparavelmente mais complexo. Lendo suas considerações —
não se pode ser mais simplista — sobre a influência que a luta de classes exerceu
sobre a história da filosofia, lamentamos que Eleuteropoulos não tenha conhecido
o livro precitado de Espinas, cuja maneira unilateral, somada à sua própria, teria,
talvez, preenchido muitas lacunas em sua análise.
Qualquer que seja, a infeliz tentativa de Eleuteropoulos não deixa de constituir
um argumento novo em favor da tese — inesperada para muitos — que um
conhecimento mais aprofundado do materialismo histórico de Marx seria de
grande utilidade a inúmeros estudiosos contemporâneos, justamente para
preservá-los de cair em formas unilaterais de tratar as questões. Eleuteropoulos
conhece o materialismo histórico de Marx. Conhece-o, porem, mal. Prova disso é
a pretensa retificação que ele supõe necessária aí introduzir.
Ele observa que as relações econômicas de um determinado povo só condicionam
"a necessidade de seu desenvolvimento". O próprio desenvolvimento seria um
problema individual; de forma que a concepção do mundo deste povo está
determinada, em primeiro lugar, por seu caráter e o da região que habita, em
segundo, pelas necessidades desse povo e, finalmente, pelas qualidades pessoais
dos homens que atuam como reformadores em seu seio. É somente neste sentido,
observa Eleuteropoulos, que se pode falar de uma relação da filosofia com a
economia. A filosofia satisfaz as exigências de seu tempo, e isto conforme a
personalidade do filósofo.
Eleuteropoulos pretende, evidentemente, que esta concepção das relações entre a
filosofia e a economia represente algo muito novo face à concepção materialista
de Marx e Engels. Ele julga necessário dar um novo nome à sua interpretação da
história, denominando-a a teoria grega do devir. É simplesmente divertido, e a
propósito só se pode dizer uma coisa: a "teoria grega do devir" não sendo, na
realidade, nada mais que materialismo histórico muito mal digerido e exposto de
maneira muito incoerente, promete entretanto, muito mais do que dá
Eleuteropoulos quando passa da caracterização de seu método à sua aplicação.
Então ele já se distancia totalmente de Marx.
No que concerne especialmente à "personalidade do filósofo" e, em geral, à de
todo homem que deixa na história humana o vestígio de sua atividade, é um grave
erro acreditar que a teoria de Marx e de Engels não lhes tenha reservado espaço.
Ela certamente reservou. Mas soube, ao mesmo tempo, evitar a admissível
oposição entre a atividade do "indivíduo" e a marcha dos acontecimentos,
determinada pela necessidade econômica. Recorrer a tal oposição, é provar que
não se compreendeu grande coisa da explicação materialista da história. A tese
inicial do materialismo, como repetimos inúmeras vezes, diz que a história é feita
pelos homens. E se ela é feita pelos homens, está claro que é feita, também, pelos
"grandes homens". Só resta discernir o que, exatamente, determina a atividade
destes homens. A propósito disto, Engels diz numa das cartas que citamos acima:
"Que um tal homem, e precisamente este, surja numa época determinada e num
país determinado é, naturalmente, puro acaso. Se nós, porém, o eliminamos, será
necessário um substituto, que acabamos sempre por encontrar, de uma forma ou
de outra. É preciso atribuir ao acaso o fato que o ditador militar, cujo advento se
tornara necessário para a República Francesa esgotada por suas próprias
guerras, fosse precisamente o corso Napoleão. Mas que, na falta de Napoleão,
outro teria preenchido seu lugar, está provado pelo fato que o homem
necessário, César, Augusto, Cromwell ou outro, foi encontrado sempre que
necessário. Se Marx descobriu a concepção materialista da história, o exemplo
de Thierry, Mignet, Guizot e de todos os historiadores ingleses até 1850 mostra
que havia uma tendência para este resultado; e a descoberta desta mesma
concepção por Morgan prova que havia chegado seu tempo e que ela era uma
necessidade. O mesmo sucede com todos os acasos ou com tudo o que parece
acaso na história. Quanto mais o domínio que exploramos se distancia da causa
econômica e adquire um caráter ideológico abstrato, mais nós encontramos
acasos em seu desenvolvimento, mais sua curva se desenha em ziguezague. Mas
trace o eixo médio da curva e você descobrirá que, quanto mais o período a
examinar é longo e o domínio tratado é vasto, mais este eixo tenderá a tornar-se
paralelo ao do desenvolvimento econômico".
A "personalidade" de todo homem eminente no domínio intelectual ou social
pertence ao rol destes acasos cujo aparecimento não impede, absolutamente, a
linha "média" do desenvolvimento intelectual da humanidade, de seguir um curso
paralelo ao de seu desenvolvimento econômico. Eleuteropoulos teria percebido
melhor o que precede, se tivesse estudado atentamente a teoria histórica de Marx
e se estivesse menos preocupado em criar sua própria "teoria grega".
Inútil acrescentar que atualmente estamos longe de poder descobrir sempre a
relação causal entre o aparecimento de uma idéia filosófica e a situação
econômica de sua época. Mas é porque apenas começamos a trabalhar nesta
direção; se nós estivéssemos à altura de dar uma resposta a todas as questões que
aqui se colocam, ou mesmo apenas à maioria delas, nosso trabalho já estaria
terminado, ou a ponto de sê-lo. O que importa, no presente caso, não é o fato de
ainda não sabermos dar conta de todas as dificuldades encontradas neste domínio.
Não há e não pode haver método capaz de suprimir de um só golpe todas as
dificuldades que surgem na ciência. O que importa é que a interpretação
materialista da história dá conta das dificuldades em questão com facilidade
incomparavelmente maior que as interpretações idealistas e ecléticas. A prova
disso é que o pensamento científico no domínio da história tendia com uma força
excepcional para uma explicação materialista dos fenômenos que, por assim
dizer, ela buscava com insistência desde a época da Restauração, não cessava de
gravitar em torno dela, de procurá-la até a época atual e isto apesar da nobre
indignação que se apodera de todo ideólogo burguês que se preze, quando ouve a
palavra "materialismo".
A obra de Franz Feuerherd, intitulada "Die Entstehung der Stile aus der
politischen Oekonomie, erster Theil" (Leipzig 1902), pode servir de terceiro
exemplo para mostrar como são atualmente inevitáveis as tentativas de fornecer
uma explicação materialista de todos os aspectos da cultura humana. Feuerherd
diz:
"Segundo o modo de produção predominante e a forma de Estado por ele
condicionada, a inteligência humana se desenvolve em sentidos determinados, os
outros lhe permanecendo inacessíveis. E por isto a existência de todo estilo (na
arte) pressupõe a existência de homens vivendo em condições políticas
determinadas, produzindo segundo um modo de produção determinado e
animados por ideais determinados. Quando estas causas prévias estão dadas, os
homens criam os estilos correspondentes, tão necessária e inevitavelmente
quanto a tela embranquece, o brometo da prata escurece e o arco-íris aparece
nas nuvens assim que o sol, sua causa, provoque estes efeitos".
Isto é justo, com efeito, e é interessante constatar que é um historiador da arte
quem o reconhece. Mas quando Feuerherd começa a explicar a origem dos
diversos estilos gregos pelo estado econômico da Grécia antiga, ele chega a um
resultado demasiadamente esquemático. Nós não sabemos se a segunda parte de
sua obra foi editada. Não nos interessamos em saber, porque compreendemos que
ele assimilou mal o método materialista moderno. Por seu esquematismo, seus
raciocínios nos lembram os dos nossos clotitrinários Fritsche e Rojkov, aos quais
é preciso recomendar, como a ele, que estudem, antes de mais nada e sobretudo, o
materialismo contemporâneo. Apenas o marxismo pode resguardá-los de cair no
esquematismo.
XIII
O falecido Nicolas Mikhailovsky afirmava outrora, em sua polêmica conosco,
que a teoria histórica de Marx jamais teria larga difusão no mundo dos sábios.
Acabamos de ver e ainda veremos que isto não é bem exato. Mas antes é
necessário desfazer ainda alguns outros mal-entendidos que prejudicam a
compreensão do materialismo histórico.
Se nos propuséssemos a expor brevemente a concepção de Marx e Engels, sobre a
relação entre a célebre "base" e a não menos célebre "superestrutura",
chegaríamos a isto:
1. Estados das forças produtivas;
2. Relações econômicas condicionadas por estas forças;
3. Regime sócio-político, edificado sobre uma "base" econômica dada;
4. Psicologia do homem social, determinada, em parte, diretamente pela
economia, em parte por todo o regime sócio-político edificado sobre ela;
5. Ideologias diversas refletindo esta psicologia.
Esta fórmula é suficientemente ampla para que todas as "formas" do
desenvolvimento histórico encontrem aí seu lugar; ao mesmo tempo é
completamente estranha àquele ecletismo que não sabe ir além da ação recíproca
entre as diferentes forças sociais e nem sequer duvida que o fato da ação
recíproca entre estas forças não resolve ainda a questão de sua origem. Nossa
fórmula é uma fórmula monista. Esta fórmula monista está essencialmente
impregnada de materialismo. Hegel dizia na Filosofia do Espírito: "O espírito é o
único princípio motor da história". Não se pode pensar de outra forma, atendo-se
ao ponto de vista do idealismo segundo o qual o ser é condicionado pelo pensar.
O materialismo de Marx mostra de que maneira a história do pensamento é
condicionada pela história de ser. Mas o idealismo não impediu Hegel de
reconhecer a ação da economia como a de uma causa "tornada efetiva por
intermédio do desenvolvimento do espírito". E, da mesma forma, o materialismo
não impediu Marx de reconhecer, na história, a ação do "espírito" como a de uma
força cuja direção, em cada época, é determinada pelo desenvolvimento da
economia.
Que todas as ideologias têm uma raiz comum, a saber, a psicologia da época em
questão, não é difícil de compreender, e todos disso se convencerão pondo-se,
mesmo que superficialmente, ao corrente dos fatos. Como exemplo, citaremos,
dentre outros, o romantismo francês. Vítor Hugo, Eugèrne Delacroix e Hector
Berlioz trabalhavam em três domínios artísticos totalmente diferentes. Estavam os
três, bastante distanciados um do outro. Pelo menos Vítor Hugo não gostava da
música e Delacroix desprezava os músicos "românticos". E apesar disso,
denomina-se, com razão, estes três homens notáveis, de a "trindade romântica".
Em suas obras se refletiu uma mesma psicologia. Pode-se dizer que o quadro
Dante e Virgílio, de Delacroix expressa o mesmo estado de alma que o que ditou
a Vítor Hugo seu Hernâni e a Berlioz sua Sinfonia Fantástica. Isto, seus
contemporâneos o sentiam, ou seja, aqueles que se interessavam seriamente por
literatura e arte. Clássico em seus gostos, Ingres chamava Berlioz "horrível
músico, o monstro, o bandido, o Anticristo". Isto lembra as opiniões lisonjeiras
expressas pelos clássicos em relação a Delacroix, cujo pincel eles qualificavam de
"vassoura ébria". Sabemos que Berlioz, assim como Vítor Hugo, teve que
sustentar verdadeiras batalhas. Sabemos também que ele obteve a vitória após
esforços incomparavelmente maiores que os de Hugo, e bem mais tarde. Por que
foi assim, sendo que a psicologia expressa em sua música foi a mesma que
encontrara sua expressão na poesia e no drama românticos? Para responder a esta
questão, seria necessário explicar-se muitos detalhes na história comparada da
música e da literatura francesas, detalhes que permanecerão talvez sem explicação
durante muito tempo, senão para sempre. Mas o que não pode suscitar nenhuma
dúvida, é que a psicologia do romantismo francês só se tornará compreensível
quando a considerarmos a psicologia de uma classe determinada, situada em
condições sociais e históricas determinadas.
J. Tiersot diz: "O movimento de 1830 na literatura e na arte estava longe de ter
um caráter de revolução popular". É bem verdade. O movimento em questão era
essencialmente burguês. Mas ainda não é tudo. No interior da própria burguesia,
tampouco, ele tinha a simpatia geral. Na opinião de Tiersot, ele expressava a
tendência de um pequeno grupo de "eleitos", suficientemente perspicazes para
saber descobrir o gênio lá onde ele se abrigava. Tiersot constata com isso, de
forma superficial — ou seja, idealista —, o fato que a burguesia da época não
compreendia grande parte das aspirações e sentimentos que, na literatura e na
arte, animavam então seus próprios ideólogos. Semelhante desacordo entre os
ideólogos e a classe cujas tendências e gostos eles expressavam não é coisa rara
na história. Este desacordo explica muitas particularidades no desenvolvimento
intelectual da humanidade. No caso, ele havia provocado, dentre outras, a atitude
de desprezo da "elite" "refinada" para com os burgueses "obtusos", atitude que,
até nossos dias, induz em erro as pessoas ingênuas e as torna decididamente
incapazes de compreender o caráter arquiburguês do romantismo. Mas, também
aqui, a origem e o caráter de um tal desacordo só podem ser explicados, em
última análise, pela situação econômica da classe social no seio da qual este
desacordo se manifestou. Aqui, como em tudo, somente o ser elucida os
"segredos" do pensar. E eis porque aqui — como aliás em tudo — só o
materialismo é capaz de dar uma explicação científica da "marcha das idéias".
XIV
Em seus esforços para explicar esta marcha, os idealistas jamais souberam olhar
atentamente da perspectiva do "curso das coisas". Assim, Taine explica as obras
de arte pelas propriedades do meio que cerca o artista. Mas quais? As
propriedades psicológicas, ou seja, aquela psicologia geral que é própria a uma
época dada e cujas propriedades têm, também, necessidade de uma explicação. O
materialismo, explicando a psicologia de uma sociedade ou de uma classe dada,
se refere à estrutura social criada pelo desenvolvimento econômico, mas Taine,
que é idealista, explicava a origem do regime social pela psicologia social, o que
o fez enredar-se em contradições sem saída. Os idealistas de todos os países não
gostam de Taine agora. Compreende-se porquê: por "meio" ele entende a
psicologia da massa, a psicologia do "homem médio" de uma época e de uma
classe determinadas e essa psicologia é para ele a última instância para qual o
estudioso pode apelar. Para Taine, portanto, o "grande" homem, pensa e sente
sempre inspirando-se no homem "médio", nas "mediocridades". Ora, isto é, além
de falso, embaraçoso para os "intelectuais'' burgueses, sempre propensos a se
situar mais ou menos na categoria dos grandes homens. Taine foi o homem que,
tendo dito "A", se mostrou impotente para pronunciar "B", arruinando assim a
própria causa. Para sair das contradições nas quais se enredara, não havia outra
saída, salvo no materialismo histórico, que reserva um lugar tanto para o
"indivíduo" como para o "meio", tanto para as pessoas "médias" como para os
grandes "eleitos da sorte".
Da Idade Média até 1871, inclusive, a França foi o país onde a evolução social e
política e a luta entre as diferentes classes sociais se revestiram do caráter mais
típico da Europa Ocidental. Isto dito, será interessante salientar que é
precisamente na França que se pode descobrir mais facilmente a relação causal
existente entre o desenvolvimento e a luta acima mencionada de um lado, e a
história das ideologias de outro.
Falando da razão pela qual se difundiram, na época da Restauração na França, as
idéias da escola teocrática sobre a filosofia da história, R. Flint observa:
"O sucesso de tal teoria permaneceria no entanto inexplicável se o caminho não
lhe tivesse sido preparado pelo sensualismo de Condillac, e se ela não tivesse
sido manifestamente destinada a servir os interesses de outra teoria que
representava as idéias de vasta classe da sociedade francesa após a
Restauração".
Isto é justo, evidentemente. E é fácil compreender qual era a classe que havia
encontrado, na escola teocrática, a expressão ideológica de seus interesses. Mas
aprofundemos nosso estudo da história francesa e coloquemo-nos a seguinte
questão: não seria possível descobrir também as causas sociais do sucesso do
sensualismo na França de antes da Revolução?
O movimento intelectual do qual haviam saído os teóricos do sensualismo não
expressava, por sua vez, as tendências de certa classe social? Incontestavelmente.
Este movimento expressava as tendências de emancipação do terceiro estado
francês. Se fôssemos mais longe neste sentido, veríamos que, por exemplo, a
filosofia de Descartes reflete muito vivamente as necessidades da evolução
econômica e a relação das forças sociais de sua época. Se nos reportássemos,
enfim, ao século XIV e fixássemos nossa atenção, por exemplo, sobre os
romances de cavalaria que tiveram grande sucesso na corte e entre a aristocracia
francesa da época, veríamos que estes romances eram o espelho da vida e das
preferências da classe em questão. Em poucas palavras, neste notável país, que
ainda há pouco estava perfeitamente no direito de dizer que "caminhava à testa
das nações", a curva do movimento intelectual toma urna direção paralela à curva
do desenvolvimento econômico e à do desenvolvimento social e político,
condicionado também pelo precedente.
Todos estes senhores que haviam "criticado" Marx em diferentes tons não faziam
a menor idéia de tudo isto. Não suspeitavam que se a crítica é, evidentemente,
coisa bela e louvável, é necessário criticar com conhecimento de causa, quer
dizer, compreender o que se critica. Criticar um dado método de investigação
científica, é determinar até que ponto ele pode servir para descobrir a relação
causal entre os fenômenos. Mas só se pode fazê-lo por meio da experiência, ou
seja, pela aplicação deste método. Criticar o materialismo histórico é tentar
utilizar o método de Marx e Engels no estudo do movimento histórico da
humanidade. Somente desta forma podemos descobrir os aspectos fortes e fracos
deste método. "The proof of the pudding is in the eating" (a prova do pudim está
no comer), disse Engels, explicando sua teoria do conhecimento. Isto também é
verdade para o materialismo histórico. Para criticar este prato, é necessário
inicialmente tê-lo experimentado. Para experimentar o método de Marx e Engels
é necessário saber dele servir-se. Mas servir-se adequadamente, pressupõe uma
preparação científica incomparavelmente mais séria e um trabalho intelectual
bem mais persistente que eloqüentes discursos pseudocientíficos sobre o caráter
"unilateral" do marxismo.
Os "críticos" de Marx dizem, uns com mágoa, outros com reprovação e ainda
outros com uma alegria malvada, que até o presente não foi editado sequer um
livro fornecendo uma justificação teórica do materialismo histórico. Por um tal
livro, eles entendem comumente algo no gênero de um tratado sucinto da história
universal do ponto de vista materialista. Mas, neste momento, tal tratado não
poderia ser escrito nem por estudioso isolado, por mais universais que pudessem
ser seus conhecimentos, nem por todo um grupo de estudiosos. Para tal livro, não
existem materiais suficientes e nem tempo. Estes materiais só podem ser
acumulados por meio de longa série de investigações sobre os detalhes dos
diversos domínios da ciência e feitas com a ajuda do método de Marx. Falando de
outra maneira, os "críticos" que exigem um tal livro queriam que o trabalho fosse
iniciado pelo fim, ou seja, que fosse previamente explicado do ponto de vista
materialista o próprio processo que se trata, propriamente falando, de expor. De
fato, este livro se escreve precisamente na medida em que os estudiosos
contemporâneos — o mais freqüentemente sem se dar conta, como já havíamos
dito — se vêem obrigados, pelo estado atual da sociologia, a dar uma explicação
materialista dos fenômenos que estudam. Por si sós, os exemplos anteriormente
citados, são uma prova suficiente que houve, até hoje, muito poucos destes
estudiosos.
Laplace diz que, após a grande descoberta de Newton, cinqüenta anos decorreram
antes que ela fosse completada por outras, descobertas de alguma importância.
Foi necessário a esta grande verdade todo este tempo para ser compreendida por
todos e para vencer os obstáculos que lhe eram lançados pela teoria dos turbilhões
e possivelmente pelo amor-próprio dos matemáticos contemporâneos de Newton.
Os obstáculos que encontra o materialismo moderno, enquanto teoria harmoniosa
e conseqüente, são incomparavelmente mais consideráveis que os que encontrou
em seu aparecimento a teoria de Newton. Contra ele se dirige direta e
resolutamente o interesse da classe atualmente dominante, a cuja influência se
submetem necessariamente a maior parte dos estudiosos de nossos dias. A
dialética materialista "que não se inclina diante de nada e considera as coisas
sob seu aspecto transitório" não pode gozar da simpatia da classe conservadora
que é atualmente, no Ocidente, a burguesia. Ela é a tal ponto contrária ao estado
de espírito desta classe que se apresenta naturalmente a seus ideólogos como algo
intolerável e inconveniente, como algo que não é digno nem de "pessoas
honestas" em geral, nem em particular dos "respeitáveis homens de ciência". Não
é de admirar que cada um destes "respeitáveis" sábios se considere moralmente
obrigado a afastar de si toda suspeita de simpatia pelo materialismo. E, muito
freqüentemente, ele o proclama com tanto mais força quanto persiste, em suas
pesquisas especiais, em manter-se num ponto de vista materialista. Daí resulta
uma espécie de "mentira convencional" semiconsciente que, evidentemente, só
pode ter influência das mais prejudiciais sobre o pensamento teórico.
XV
A "mentira convencional" de uma sociedade dividida em classes adquire
proporções tanto mais consideráveis quanto a ordem de coisas existente é abalada
pela ação do desenvolvimento econômico e da luta de classes por ele provocada.
Marx disse, com muita justeza, que quanto mais se desenvolvem os antagonismos
entre as forças produtivas crescentes, mais a ideologia da classe dominante se
impregna de hipocrisia. E quanto mais a vida desmascara a natureza mentirosa
dessa ideologia mais a linguagem desta classe se faz sublime e virtuosa (Sankt
Max. Dokumente des Sozialismus, agosto 1904, p. 370-371). A justeza deste
pensamento salta aos olhos com evidência particular, agora que, por exemplo, na
Alemanha, a propagação da corrupção, revelada pelo processo de Harden-Moltke,
caminha a par com o "renascimento do idealismo" em sociologia. E entre nós
encontra-se, mesmo nas fileiras dos "teóricos do proletariado", pessoas que não
compreendem a causa social deste "renascimento" e se submetem a sua
influência. Tal é o caso dos Bogdanov, Bazarov e outros.
De resto, as vantagens que o método de Marx proporciona a todo investigador são
tão consideráveis que elas começam a ser plenamente reconhecidas mesmo pelas
pessoas que se submetem de bom grado à "mentira convencional" de nosso
tempo. Entre estas pessoas é necessário incluir, por exemplo, o americano
Seligman, autor do livro intitulado The Economic Interpictation of History,
editado em 1909. Seligman reconhece abertamente que aquilo que fazia recuar os
estudiosos diante da teoria do materialismo histórico, eram as deduções
socialistas tiradas por Marx. Mas ele acha que se pode satisfazer a cabra e ao
mesmo tempo salvar a couve, que se pode ser partidário do materialismo
econômico ''e entretanto permanecer adversário do socialismo. "O fato que as
concepções econômicas de Marx fossem erradas", diz ele, "não tem nenhuma
relação com a veracidade ou a falsidade de sua filosofia da história".
Na realidade, as concepções econômicas de Marx estavam estreitamente ligadas
às suas concepções históricas. Para bem compreender o Capital, é absolutamente
indispensável aprofundar bem o célebre prefácio a Zur Kritik der politischen
Oekonomie e assimilá-lo. Mas nós não poderíamos, aqui, nem expor as
concepções econômicas de Marx nem elucidar o fato, incontestável, entretanto,
de que elas são parte integrante da doutrina chamada materialismo histórico.
Acrescentaremos apenas que Seligman é um homem suficientemente
"respeitável" para se intimidar também com o materialismo. Este "partidário" do
materialismo econômico considera que é levar as coisas a um extremo intolerável,
procurar explicar "a religião e até mesmo o cristianismo" por causas econômicas.
Tudo isto mostra claramente a que ponto estão profundamente enraizados os
preconceitos e portanto também os obstáculos que a teoria de Marx deve
combater. E, apesar disso, o próprio fato do lançamento do livro de Seligman,
assim como o caráter das reservas que formula, permitem, numa certa medida,
alimentar esperanças que o materialismo histórico — mesmo que sob forma
lapidada, "depurada" — terminará por ser reconhecido pelos ideólogos da
burguesia que todavia ainda não renunciaram a pôr em ordem suas concepções
históricas.
Mas a luta contra o socialismo, o materialismo e outros extremos desagradáveis,
pressupõe a existência de certa "arma espiritual". Esta arma espiritual para a luta
contra o socialismo é sobretudo, atualmente, aquilo que chamamos "economia
política subjetiva", completada por uma estatística mais ou menos habilmente
violentada. A principal fortaleza na luta contra o materialismo é representado por
todas as variedades possíveis de kantismo. Na sociologia, utiliza-se para este fim
o kantismo como uma doutrina dualista, que rompe a relação existente entre o ser
e o pensar. Como o exame das questões econômicas não faz parte de nosso plano,
limitar-nos-emos aqui à apreciação da arma filosófica da qual se serve a reação
burguesa no domínio ideológico.
No fim de sua brochura "Socialismo Utópico e Socialismo Científico", Engels
observa que, quando os poderosos meios de produção criados pela época
capitalista se tornarem propriedade social e a produção tenha sido organizada de
forma consoante às necessidades da sociedade, os homens se tornarão finalmente
senhores da natureza e de si próprios. É somente então que eles começarão a fazer
conscientemente sua história; é somente então que as causas sociais acionadas por
eles terão cada vez mais os efeitos desejáveis. "A humanidade saltará do reino da
necessidade para o reino da liberdade".
Estas palavras de Engels suscitaram as objeções de todos aqueles que, refratários
em geral à idéia dos "saltos", não podiam e não queriam de forma alguma
compreender o "salto" do reino da necessidade para o da liberdade. Tal "salto"
lhes parecia mesmo estar em contradição com a concepção da liberdade que o
próprio Engels havia formulado na primeira parte do "Anti-Dühring"; para
explicar, portanto, em que consiste a confusão em suas idéias a este respeito,
somos obrigados a relembrar o que Engels dissera no livro em questão.
Explicando as palavras de Hegel: "A necessidade só é cega na medida em que
não é compreendida", Engels afirmava que a liberdade consiste "no domínio
exercido sobre nós e sobre a natureza externa, domínio fundado no
conhecimento das necessidades inerentes à natureza". Engels desenvolveu este
pensamento de forma suficientemente clara para aqueles que estão ao corrente da
doutrina de Hegel, à qual ele se referia. Mas o mal consiste precisamente em que
os kantistas modernos só fazem "criticar" Hegel, sem contudo estudá-lo. Não
conhecendo Hegel, não podiam tampouco conhecer Engels. Eles faziam, ao autor
de Anti-Dühring, a objeção que não há liberdade onde há submissão à
necessidade. Isto era bastante lógico, da parte de pessoas cujas concepções
filosóficas estão impregnadas de um dualismo que não sabe unir o pensar ao ser.
Do ponto de vista deste dualismo, o "salto" da necessidade para a liberdade,
permanece, com efeito, totalmente incompreensível. Mas a filosofia de Marx —
como a de Feuerbach — proclama a unidade entre o ser e o pensar. E se bem que
ela compreenda — como vimos anteriormente, ao falar de Feuerbach — esta
unidade, diferentemente do que compreendia o idealismo absoluto, não se
diferencia entretanto da teoria de Hegel na questão que nos ocupa, a saber, a da
relação entre a liberdade e a necessidade.
Todo o problema reside em saber o que é preciso entender exatamente por
necessidade. Aristóteles já havia indicado que o conceito da necessidade tem
muitas nuanças: é necessário usar o medicamento para curar; é necessário respirar
para viver; é necessário fazer uma Viagem a Egina para recuperar uma soma de
dinheiro. É uma necessidade, por assim dizer, condicional: é preciso que
respiremos, se queremos viver, é preciso usar um medicamento se nós queremos
livrar de uma doença e assim por diante. O homem está constantemente
enfrentando necessidade deste gênero, no processo de sua ação sobre a natureza
exterior: é-lhe necessário semear, se quer colher; lançar a flecha se quer matar a
caça: prover-se de combustível se quiser colocar em movimento uma maquina a
vapor e assim por diante. Se nos colocamos sob o ponto de vista da "crítica
neokantista" de Marx, é preciso admitir que, nesta necessidade condicional, existe
também um elemento de submissão. O homem seria mais livre se pudesse
satisfazer suas necessidades sem dispender nenhum esforço. Ele se submete à
natureza, mesmo quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição de
sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com isto, seu poder sobre ela,
ou seja, sua liberdade. Seria o mesmo no caso onde a produção social estivesse
organizada de forma racional. Ao se submeter às exigências da necessidade
técnica e econômica, os homens poriam termo a este regime insensato que faz
com que sejam dominados por seus próprios produtos, ou seja, aumentariam
formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão tornar-se-ia a fonte
de sua libertação.
E não é tudo. Afeitos à idéia de que o pensar está separado do ser por um abismo,
os "críticos" de Marx só conhecem uma única nuança da necessidade: utilizando
ainda uma vez os termos de Aristóteles, eles representam a necessidade
unicamente como uma força que nos impede de agir segundo nosso desejo e que
nos obriga a fazer o que é contrário a ele. Tal necessidade está, com efeito, em
oposição à liberdade e não pode deixar de pesar sobre nós. Mas é preciso não
perder de vista, tão pouco aqui, que uma força que se apresenta ao homem como
força exterior de coerção indo de encontro a seu desejo, pode, em outras
circunstâncias, apresentar-se a ele sob aspecto totalmente diferente. Tomemos,
como exemplo, a questão agrária tal como se nos apresenta atualmente na Rússia.
A "expropriação obrigatória da terra" pode parecer ao proprietário territorial
inteligente, a um "cadete", uma necessidade histórica mais ou menos triste —
mais ou menos triste segundo o montante da "compensação justa" que lhe é
atribuída. Mas, aos olhos do camponês, que acalenta a idéia de se ver atribuir
aquilo que ele chama a "terrinha", a necessidade mais ou menos triste será, ao
contrário, unicamente esta "compensação justa", enquanto a "expropriação
obrigatória" lhe parecerá, seguramente, ser a expressão de sua livre vontade e o
penhor mais precioso de sua liberdade.
Tocamos aqui no ponto talvez mais importante da doutrina da liberdade, que não
havia sido mencionada por Engels, pela única razão, evidentemente, que este
ponto era compreensível, sem maiores explicações a quem quer que tenha
seguido a escola de Hegel.
Em sua filosofia da religião, Hegel diz: "Die Freiheit ist dies; nichts zu wollen als
sich", quer dizer: "A liberdade consiste em nada querer além de si mesmo" . E
esta observação ilumina toda a questão da liberdade, na medida em que concerne
à psicologia social; o camponês que reivindica a "terrinha" ao grande proprietário
não quer "nada além de si mesmo". Mas o que o reformista agrário "cadete" que
consente em lhe ceder esta "terrinha" quer, não é mais a "si mesmo", mas apenas
aquilo que a história o obriga. O primeiro é livre, o segundo se submete
sabiamente à necessidade.
Seria o mesmo para o proletariado que transformaria os meios de produção em
propriedade social e organizaria a produção social em novas bases: ele não quer
nada além de si mesmo. E ele se sentiria completamente livre. Mas no que
concerne aos capitalistas, eles se sentiriam na melhor das hipóteses na situação do
reformista agrário que aceitara o programa agrário dos "cadetes"; eles só
poderiam constatar que a liberdade é uma coisa e a necessidade histórica outra.
Temos a impressão que aqueles que criticavam Engels não o compreendiam e
uma das razões dessa incompreensão é que, se eram capazes de se colocar
mentalmente na situação de um capitalista, não podiam, de maneira alguma,
imaginar a si próprios na "pele" dos proletários. E consideramos que para isto
havia também uma causa social particular, causa econômica em última instância.

XVI

O dualismo para o qual se inclinam atualmente os ideólogos da burguesia, dirige


ainda uma outra censura ao materialismo histórico. Na pessoa de Stammler, ele o
reprova por não levar absolutamente em conta a teleologia social. Esta segunda
censura, aliás estreitamente relacionada à primeira, não é menos desprovida de
fundamento.
Marx disse: "Para produzir, os homens contraem entre si relações
determinadas". Stammler vê nesta fórmula a prova de que o próprio Marx, a
despeito de sua teoria, não pôde evitar as considerações teleológicas. As palavras
de Marx significam, em sua opinião, que os homens contraem conscientemente as
relações sem as quais a produção é impossível. Estas relações, portanto, são o
resultado de uma ação levada a cabo tendo em vista o objetivo a atingir.
Não é difícil mostrar em que ponto deste raciocínio Stammler peca contra a
lógica e comete um erro que marcara todas as suas observações críticas
posteriores.
Tomemos um exemplo. Selvagens caçadores vão perseguir uma presa, digamos
um elefante. Para isto, eles se reúnem e dispõem suas forças numa certa ordem.
Onde está aqui o objetivo? Onde está o meio de atingi-lo? O objetivo consiste,
evidentemente, em capturar ou matar o elefante, e o meio é a perseguição do
animal com todas as forças conjugadas. Pelo quê o objetivo é sugerido? Pelas
necessidades do organismo humano. Pelo quê o meio é determinado? Pelas
condições da caça. As necessidades do organismo dependem do homem, de sua
vontade? Não, elas não dependem e isto, aliás, compete à fisiologia e não à
sociologia. Que poderemos aqui pedir à sociologia? Que explique por que razão
os homens, buscando satisfazer suas necessidades — digamos, a necessidade de
alimentação —, contraem, num momento, tais ou quais relações e, num outro,
relações totalmente diferentes. Este fato, a sociologia — na pessoa de Marx —
explica pelo estado das forças de produção. Agora, o estado destas forças depende
da vontade dos homens e dos objetivos que perseguem? A sociologia, de novo na
pessoa de Marx responde: não, não depende. E se não depende, é porque estas
forças aparecem em virtude de certa necessidade determinada por condições
dadas e situadas fora do homem.
O que resulta disto? Resulta que se a caça é uma atividade de acordo com o
objetivo que persegue o selvagem, este fato incontestável em nada diminui o
valor deste pensamento de Marx: as relações de produção que se estabelecem
entre os selvagens que se entregam à caça, se estabelecem em virtude de
condições, todavia, completamente independentes desta atividade, de acordo com
o objetivo perseguido. Em outros termos, se o caçador primitivo aspira
conscientemente matar o quanto for possível de caça, daí não decorre ainda que o
comunismo, próprio à vida que leva o caçador, tenha surgido como produto de
acordo com o objetivo de sua atividade. Não, o comunismo nasce, ou mais
exatamente, se conservou — visto que se constituiu bem antes — como o
resultado inconsciente, ou seja, necessário, desta organização do trabalho cujo
caráter era totalmente independente da vontade dos homens. É precisamente isto
que não compreendeu o kantista Stammler; ele tomou aqui um falso caminho, ao
mesmo tempo que arrastou consigo nossos Strouvé, Boulgakov e outros marxistas
temporários, cujos nomes formam uma legião.
Continuando suas observações críticas, Stammler diz que, se o desenvolvimento
social se efetuasse exclusivamente em virtude da necessidade causal, toda
tendência consciente a contribuir com este desenvolvimento seria um contra-
senso manifesto. De acordo com ele, de duas uma: ou eu considero um fenômeno
qualquer necessário, quer dizer, inevitável e então eu não tenho nenhuma
necessidade de contribuir para seu aparecimento; ou minha contribuição é
necessária para que este fenômeno possa produzir-se, e então não se pode chamá-
lo de necessária. Quem, afinal, procura contribuir com o nascer do sol, nascer
necessário, ou seja, inevitável?.
Aqui se manifesta de uma maneira notável o dualismo próprio às pessoas
educadas na filosofia de Kant: para elas, o pensar está sempre separado do ser.
O nascer do sol não está ligado de forma alguma, nem como causa, nem como
conseqüência, às relações sociais dos homens. E por isto pode-se opô-lo enquanto
fenômeno da natureza, às aspirações conscientes dos homens que tampouco tem
alguma relação causal com ele. Mas não é isso que acontece com os fenômenos
sociais da história. Nós já sabemos que a história é feita pelos homens. As
aspirações humanas, portanto, não podem ser um fator exclusivo do movimento
histórico. Mas a história é feita pelos homens de certa maneira e não de outra, em
conseqüência de certa necessidade da qual falamos o suficiente anteriormente.
Uma vez que esta necessidade está dada, as aspirações dos homens, aspirações
que constituem um fator inevitável da evolução social, estão também dadas como
conseqüência. Estas aspirações não excluem a necessidade, mas são, elas
mesmas, determinadas por esta última. É uma grande falta de lógica, portanto,
opô-las a esta mesma necessidade.
Quando uma classe que aspira à sua emancipação efetua uma revolução social,
ela age no caso, de forma mais ou menos apropriada ao objetivo que persegue e,
em todo caso, sua atividade é a causa desta revolução. Mas esta atividade, com
todas as aspirações que a suscitaram, é ela mesma a conseqüência do
desenvolvimento econômico e portanto ela é em si mesma determinada pela
necessidade.
A sociologia só se torna ciência na medida em que chega a compreender o
aparecimento de objetivos no homem social ("teleologia" social) como
conseqüência necessária do processo social, condicionado, em última instância,
pela marcha do desenvolvimento econômico.
E é muito característico que os adversários conseqüentes da interpretação
materialista da história se vejam obrigados a demonstrar que a sociologia é
impossível enquanto ciência. Isto significa que o "criticismo" se torna um
obstáculo ao desenvolvimento científico de nossa época. Aqueles que procuram
encontrar uma explicação científica da história das teorias filosóficas poderão
empreender uma tarefa interessante: determinar a maneira pela qual o papel do
"criticismo" se relaciona com a luta de classes.
Se pretendo tomar parte num movimento cujo triunfo me parece uma necessidade
histórica, isto significa unicamente que considero minha própria atividade
também como um elo indispensável na cadeia das condições cuja totalidade
assegurará necessariamente o triunfo do movimento que me é caro. Nem mais
nem menos. Isto um dualista não compreende. Mas é perfeitamente claro para
quem assimilou a teoria da unidade entre o sujeito e o objeto e compreendeu de
que maneira essa unidade se manifesta nos fenômenos de ordem social.
É extremamente importante notar que os teóricos do protestantismo na América
do Norte não compreendem evidentemente nada desta oposição entre a liberdade
e a necessidade que tanto preocupou e ainda preocupa muitos ideólogos da
burguesia européia. A. Bargy diz que "na América, os propagandistas da energia
mais convictos são poucos propensos a reconhecer a liberdade da vontade". Ele
explica isto pelo fato que estes homens, enquanto homens de ação, preferem as
decisões fatalistas. Mas Bargy se engana. O fatalismo nada tem com isto. O que
se pode ver em sua própria observação a respeito do moralista Jonathan
Edwards... é o ponto de vista de Edwards... é o ponto de vista de todo homem de
ação. Para quem jamais na vida se propôs um fim determinado, a liberdade é a
faculdade de colocar toda a sua alma em buscar este fim". Isto está muito bem
dito e parece bastante com o "nada querer além de si mesmo" de Hegel. Mas
quando o homem "nada quer além de si mesmo" ele não é absolutamente
fatalista; ele é um homem de ação, exclusivamente.
O kantismo não é uma filosofia de combate, não é uma filosofia de homens de
ação. É uma filosofia de pessoas que em tudo ficam a meio caminho, uma
filosofia de compromisso.
Engels diz que é preciso que os meios de suprimir o mal social sejam descobertos
nas condições materiais dadas da produção, mas não inventadas por este ou
aquele reformador social. Stammler está de acordo com Engels neste ponto, mas
o acusa de falta de clareza, visto que, segundo ele, o âmago da questão é saber
"com a ajuda de qual método esta descoberta deve ser feita''. Esta objeção apenas
testemunha a confusão que reina no próprio pensamento de Stammler. E ela se
esvazia pelo fato muito simples que mesmo se o caráter do "método" está, em tais
casos, determinado por grande número de "fatores" extremamente variados, todos
estes "fatores" entretanto podem ser reconduzidos, no final de contas, à sua fonte,
a saber, a marcha do desenvolvimento econômico. O próprio fato de a teoria de
Marx ter podido nascer foi condicionado pelo desenvolvimento do modo de
produção capitalista, enquanto a predominância do utopismo no socialismo
anterior a Marx é bem compreensível numa sociedade que tenha sofrido não
apenas o desenvolvimento do modo de produção indicado, mas também, talvez
ainda mais, da insuficiência deste desenvolvimento .
É inútil estender-nos ainda mais sobre este assunto. Mas talvez o leitor consentirá
que, ao terminar este artigo, chamemos sua atenção sobre a estreita relação entre
o "método" tático de Marx e Engels e as teses fundamentais de sua teoria
histórica.
Nós já sabemos que, nos termos desta teoria, a humanidade só se coloca
problemas que pode resolver "pois... o próprio problema só se apresenta onde as
condições materiais indispensáveis à sua solução já existem ou estão em vias de
aparecimento". Mas onde as condições já existem, a situação é totalmente
diferente daquela onde elas "apenas estão em vias de aparecimento". No primeiro
caso, o momento do "salto" já chegou; no segundo, o "salto" é coisa de um futuro
mais ou menos distante, um "objetivo final", cuja aproximação é preparada por
toda uma série de "transformações graduais" nas relações entre as classes sociais.
Qual deve ser o papel dos inovadores na época em que o "salto" ainda é
impossível? Só lhes resta, evidentemente, contribuir para as "transformações
graduais", falando de outra maneira, a lutar para obter reformas. Assim o
"objetivo final" tanto quanto as reformas encontram seu lugar, e a oposição entre
a reforma e o objetivo final perde toda a razão de ser e se encontra relegado ao
domínio das legendas utópicas. Qualquer que seja o homem que admita tal
oposição — "revisionista" alemão, no gênero de E. Bernstein, ou "sindicalista
revolucionário" italiano, do gênero daqueles que participaram do recente
congresso sindicalista de Ferrara — revela na mesma medida a sua incapacidade
de compreender o espírito e o método do socialismo científico moderno. Isto é
útil relembrar no momento atual em que o reformismo e o sindicalismo ousam
falar em nom de Marx.
Mas que robusto otimismo emana destas palavras: "A humanidade só se coloca
problemas que ela pode resolver". Elas não significam, evidentemente, que toda
solução dos grandes problemas, apresentada pelo primeiro utopista que surja, seja
boa. Uma coisa é o utopismo, outra é a humanidade, ou mais exatamente falando,
a classe social que representa num momento dado os interesses supremos da
humanidade. O próprio Marx disse muito bem: "Quanto mais uma ação histórica
for profunda, mais crescerá a amplitude das massas que a efetuam". Por aí se
encontra definitivamente condenada toda atitude utópica em relação aos
problemas históricos. E se Marx pensava, contudo, que a humanidade jamais se
propõe problemas insolúveis, suas palavras, do ponto de vista teórico,
representam apenas uma nova expressão da idéia da unidade entre o sujeito e o
objeto aplicada ao processo do desenvolvimento histórico. Do ponto de vista
prático elas expressam a fé calma e viril de que o "objetivo final" será atingido, fé
que outrora fez exclamar nosso inesquecível N. G. Tchernychevsky com calorosa
convicção:
"Aconteça o que acontecer, será, apesar de tudo, o nosso campo que festejará a
vitória!"

Anexo – Os “Saltos” na Natureza e na História

"Entre nós, aliás não apenas entre nós", diz M. Tikhomírov, "enraizou-se
profundamente a idéia de que vivemos num período de destruição que, acredita-
se, terminará por uma terrível catástrofe, com torrentes de sangue, detonações
de dinamite e assim por diante. Após o que - supõe-se - abrir-se-á um "período
de construção". Esta concepção social é totalmente errada e não é mais que o
reflexo político das velhas idéias de Cuvier e da escola das bruscas catástrofes
geológicas. Mas, na realidade, a destruição e a construção vão ao par, e são
mesmo inconcebíveis uma sem a outra. Que um fenômeno caminhe para sua
destruição, resulta, na verdade, do fato que nele mesmo tem lugar algo de novo
constituindo-se e, inversamente, a formação de nova ordem de coisas não é nada
além da destruição da antiga".
Estas palavras não permitem uma compreensão muito clara; em todo caso, delas
podemos destacar duas teses:
1. "Entre nós, aliás não apenas entre nós", os revolucionários não têm
nenhuma idéia da evolução, da gradual "transformação do tipo dos fenômenos",
segundo expressão empregada por M. Tikhomírov;
2. Se eles tivessem uma idéia da evolução, da gradual "transformação dos
fenômenos", eles não pretenderiam que "vivemos num período de destruição".
Vejamos inicialmente como são as coisas não apenas entre nós, ou seja, no
Ocidente.
Como se sabe, existe atualmente no Ocidente um movimento revolucionário da
classe operária, que aspira à emancipação econômica. Ora, apresenta-se a
questão: os representantes teóricos deste movimento, ou seja, os socialistas,
teriam conseguido combinar suas tendências revolucionárias com uma teoria tão
pouco satisfatória do desenvolvimento social?
A esta questão, quem quer que tenha uma idéia, por fraca que seja, do socialismo
contemporâneo, responderá sem hesitação pela afirmativa. Todos os socialistas
sérios da Europa e da América se atêm à doutrina de Marx; mas então quem
ignora que esta doutrina é antes de mais nada a doutrina da evolução das
sociedades humanas? Marx era um defensor ardente da "atividade
revolucionária". Ele simpatizava profundamente com todo movimento
revolucionário dirigido contra a ordem social e política existente. Podem, se
quiserem, não partilhar de simpatias tão "destrutivas". Mas, em todo caso, só o
fato de elas terem existido não autoriza a concluir que a imaginação de Marx
estivesse exclusivamente "fixada nas transformações pela violência", que ele
esquecia a evolução social, o desenvolvimento lento e progressivo. Não apenas
Marx não esquecia a evolução, como descobriu grande número de suas leis mais
importantes. Em seu espírito, a história da humanidade se desenrolou pela
primeira vez num quadro harmonioso, não fantástico. Ele foi o primeiro a mostrar
que a evolução econômica leva às revoluções políticas. Graças a ele o movimento
revolucionário contemporâneo possui um objetivo claramente fixado e uma base
teórica vigorosamente formulada. Mas se é assim, por que então M. Tikhomírov
imagina poder, com algumas frases descosidas sobre a "construção" social,
demonstrar a inconsistência das tendências revolucionárias existentes "entre nós,
aliás não apenas entre nós"? Não será porque ele não se deu ao trabalho de
compreender a doutrina dos socialistas?
Agora M. Tikhomírov experimenta repugnância pelas "catástrofes súbitas" e
pelas "transformações pela violência". E seu problema: ele não é o primeiro, nem
o último. Mas ele está enganado ao pensar que as "catástrofes súbitas" não são
possíveis nem na natureza, nem nas sociedades humanas. Inicialmente a
"subitaneidade" de semelhantes catástrofes é uma idéia relativa. O que é súbito
para um, não o é para outro: os eclipses do Sol se produzem subitamente para o
ignorante, mas não são absolutamente súbitos para um astrônomo. Exatamente o
mesmo acontece com as revoluções. Estas "catástrofes" políticas se produzem
"subitamente" para os ignorantes e a multidão de filisteus pretensiosos, mas não
são absolutamente súbitas para um homem que esta a par dos fenômenos que se
passam no meio social que o cerca. Em seguida, se M. Tikhomírov
experimentasse volver os olhos para a natureza e a história, colocando-se do
ponto de vista da teoria que agora faz sua, ele se exporia a toda uma série de
surpresas espantosas. Ele tem bem fixado na memória que a natureza não dá
saltos e que se abandonamos o mundo das miragens revolucionárias para descer
ao terreno da realidade. "só se pode falar cientificamente da lenta transformação
de um dado tipo de fenômeno". Mas, no entanto, a natureza dá saltos, sem se
preocupar com todas as filípicas contra a "subitaneidade". M. Tikhomírov sabe
muito bem que as "velhas idéias de Cuvier" são erradas e que as bruscas
catástrofes geológicas e chega mais são que o produto de uma imaginação sábia.
Ele leva uma existência sem preocupações, digamos, no sul da França, sem
entrever nem alarmes, nem perigos. Mas eis, de repente, um tremor de terra,
semelhante ao que se produzira há dois anos. O solo oscila, as casas desabam, os
habitantes fogem terrificados, em poucas palavras, é uma verdadeira "catástrofe",
indicando um incrível desleixo na mãe natureza. Instruído por esta amarga
experiência, M. Tikhomírov verifica atentamente suas idéias geológicos e chega à
conclusão de que a lenta "transformação de um tipo de fenômeno" (no caso, o
estado da crosta terrestre) não exclui a possibilidade de transformações que
possam parecer, sob certo ponto de vista "súbitos" e produzidas pela "violência".
M. Tikhomírov aquece água, e esta, permanecendo água enquanto ele a aquece de
0º a 80º, não o inquieta nenhuma "subitaneidade". Mas eis que a temperatura se
eleva até o limite fatal, e de repente - oh terror! - a "catástrofe súbita" lá está: a
água se transforma em vapor, como se sua imaginação se houvesse "fixado nas
transformações pela violência".
M. Tikhomírov deixa resfriar a água e eis que a mesma estranha história se
repete. Pouco a pouco a temperatura da água se modifica sem que a água deixe de
ser água. Mas eis então que o resfriamento atinge 0º e a água se transforma em
gelo, sem absolutamente cogitar que as "transformações súbitas" representam
uma concepção errada.
M. Tikhomírov observa a evolução de um dos insetos que sofrem metamorfose. O
processo de evolução da crisálida efetua-se lentamente e, até nova ordem, a
crisálida permanece crisálida. Nosso pensador esfrega as mãos de contente.
"Aqui, tudo vai bem", diz de si para si, "nem o organismo social nem o organismo
animal experimentam estas transformações súbitas que fui obrigado a constatar
no mundo inorgânico. Ascendendo à criação dos seres vivos a natureza se torna
pausada". Mas rapidamente sua alegria dá lugar ao desgosto. Um belo dia, a
crisálida efetua uma "transformação pela violência" e entra no mundo sob a
forma de uma borboleta. Assim, pois, M. Tikhomírov é forçado a se convencer
que mesmo a natureza orgânica não está assegurada contra as "subitaneidades".
Exatamente o mesmo se dará com M. Tikhomírov, por pouco que ele "volte sua
atenção" para sua própria "evolução". É certo que aí também ele encontrará um
semelhante ponto de reviravolta ou "transformação violenta". Ele se lembrará
qual foi precisamente a gota que fez transbordar o copo de suas impressões e o
transformou, de defensor mais ou menos hesitante da "revolução", em seu
adversário mais ou menos sincero.
M. Tikhomírov e eu nos exercitamos em fazer adições aritméticas. Tomamos a
cifra cinco e, como pessoas sérias, a ela somamos "gradualmente", uma unidade
de cada vez: seis, sete, oito. Até nove, tudo vai bem. Mas logo que tentamos
aumentar esta cifra de uma unidade, uma infelicidade nos atinge: bruscamente, e
sem razão plausível, nossas unidades se transformam em uma dezena.
Experimentamos a mesma aflição, quando passamos das dezenas às centenas.
M. Tikhomírov e eu não nos ocuparemos de música: ai existem demasiadas
passagens "súbitas" de toda espécie, o que poderia colocar em desordem todas as
nossas "concepções".
A todos os confusos raciocínios de M. Tikhomírov sobre as "transformações pela
violência" os revolucionários contemporâneos podem retrucar com esta simples
questão: que é necessário fazer, em sua opinião, das "transformações violentas"
que já se produziram na "realidade da vida" e que, em todos os casos,
representam "períodos de destruição"? Iremos declará-las nulas e não acontecidas
ou considerá-las obra de pessoas frívolas e nulas cujos atos não merecem a
atenção de um "sociólogo" sério? Mas qualquer que seja a importância que se dê
a estes fenômenos, é necessário, apesar de tudo, reconhecer que houve na história
transformações pela violência e "catástrofes" políticas. Por que M. Tikhomírov
pensa que admitir a possibilidade futura de semelhantes fenômenos, é ter
"concepções sociais erradas?"
A história não dá "saltos"! É perfeitamente verdade. Mas, por outro lado, é
também verdade que a história já cometeu numerosos saltos, efetuou uma
multidão de "transformações pela violência". Os exemplos de semelhantes
transformações são inumeráveis. Que significa então esta contradição? Ela
significa unicamente que a primeira dessas teses não foi formulada muito
rigorosamente, o que faz com que muitos a compreendam mal. Deveríamos dizer
que a história não dá "saltos" sem que eles tenham sido preparados. Nenhum salto
pode acontecer sem uma causa suficiente, que reside na marcha anterior da
evolução social. Mas dado que esta evolução jamais se detém nas sociedades em
vias de desenvolvimento, pode-se dizer que a história está constantemente
ocupada com a preparação de saltos ou transformações violentas. Ela faz esta
obra assídua e imperturbavelmente, ela trabalha lentamente, mas os resultados de
seus esforços (os saltos e as catástrofes políticas) são inelutáveis e inevitáveis.
Lentamente se consuma a "transformação do tipo" da burguesia francesa. O
habitante da cidade da época da Regência não se assemelha ao da época de Luís
XI, mas, em suma, ainda assim não nega o tipo de burguês do antigo regime. Ele
se tornou mais rico, mais instruído, mais exigente, mas não deixou de ser o
plebeu que deve, sempre e em todas as ocasiões, ceder o passo à aristocracia. Mas
eis que chega o ano de 1789, o burguês levanta orgulhosamente a cabeça. Ainda
alguns anos se passam e ele se torna o senhor da situação, e de que maneira!
"com torrentes de sangue", no rufar dos tambores, acompanhado das "detonações
de pólvora", não de dinamite, porque ainda não fora inventada. Ele obriga a
França a atravessar um verdadeiro "período de destruição" sem se preocupar o
mínimo, que, com o tempo, existirá talvez um pedante que proclamará que as
transformações pela violência são uma "concepção errada".
Lentamente se transforma o "tipo" das relações sociais na Rússia: os ducados de
apanágio, cujos possuidores tinham desmembrado o país com suas lutas
intestinas, desaparecem, os boiardos descontentes se submetem definitivamente
ao poder do czar e se tornam simples nobres, submetidos, como toda a sua classe,
ao serviço da coroa. Moscou submete os ramos tártaros, adquire a Sibéria, anexa
a metade da Rússia Meridional; mas ainda assim permanece Mascou, a Asiática.
Pedro, o Grande faz sua aparição e efetua uma "transformação pela violência" na
vida da Rússia. Um período novo, europeu, da história russa se inicia. Os
eslavófilos intitulam Pedro, o Grande de Anticristo, precisamente por causa da
"subitaneidade" da transformação efetuada por ele. Eles afirmam que, em seu
zelo reformador, ele esquecera a necessidade da evolução, a lenta "transformação
do tipo" do regime social. Mas todo homem capaz de pensar, compreenderá
facilmente que a própria transformação efetuada por Pedro, o Grande era imposta
pela evolução histórica da Rússia, que a havia preparado.
As transformações quantitativas, acumulando-se pouco a pouco, tornam-se,
finalmente, transformações qualitativas. Estas transições se efetuam por saltos e
não podem efetuar-se de outra forma.
Os "gradualistas" de todos os matizes, os Moltchaline, que fazem da moderação
um dogma e da ordem minúcia, não podem compreender este fato há muito
tempo elucidado pela filosofia alemã. Neste caso como em muito outros, é útil
relembrar a concepção de Hegel, o qual certamente seria difícil de acusar de
apaixonado pela "atividade revolucionária". ''Quando queremos conceber o
advento ou o desaparecimento de qualquer coisa'', diz ele, imaginamos
comumente compreender a questão ao representar este advento e este
desaparecimento como se produzindo gradualmente. Está portanto confirmado
que as transformações do ser se consumam não apenas pela passagem de uma
quantidade a outra, mas também pela transformação das diferenças quantitativas
em diferenças qualitativas e inversamente, transformação que é uma interrupção
do "devir gradual" e uma maneira de ser qualitativamente diferente da
precedente. E cada vez que há interrupção do "devir gradual", produz-se no curso
da evolução um salto, em seguida ao qual o lugar de um fenômeno é ocupado por
outro. Na base da doutrina da gradualidade se encontra a idéia de que aquilo que
está cm vias de tornar-se, já existe de fato, mas ainda permanece imperceptível
em razão de suas pequenas dimensões. Da mesma forma, quando do
desaparecimento gradual de um fenômeno, representa-se a inexistência deste ou a
existência daquele que ocupa seu lugar como fatos que não são ainda
perceptíveis. Mas, desta forma, suprime-se todo advento e desaparecimento.
Explicar o advento ou o desaparecimento de qualquer coisa pela gradualidade da
transformação é reduzir tudo a uma tautologia fastidiosa, pois é considerar o
fenômeno pronto previamente (ou seja, já advindo ou já desaparecido) o que está
em vias de aparecer ou de desaparecer. O que quer dizer que, se houver
necessidade de explicar o nascimento de um Estado, há que imaginar, com
simplismo, uma microscópica organização de Estado que, modificando pouco a
pouco suas dimensões, faria enfim as "pessoas" se aperceberem de sua existência.
Da mesma forma, se for necessário explicar o desaparecimento das relações
primordiais de clã, há que dar-se ao trabalho de imaginar uma minúscula
inexistência destas relações - e o negócio estará feito. É evidente que com tais
procedimentos de pensamento não se irá muito longe nas ciências. É um dos
maiores méritos de Hegel ter depurado a doutrina da evolução de semelhantes
absurdos. Mas que importam a M. Tikhomírov, Hegel e seus méritos! Ele disse de
uma vez por todas que as teorias ocidentais não nos são aplicáveis.
A despeito da opinião de nosso homem sobre as transformações violentas e as
catástrofes políticas, diremos com segurança que, na época atual, a história
prepara, nos países avançados, uma transformação de importância excepcional, a
qual se está fundamentado a presumir que se produzirá pela violência. Ela
consistirá na transformação do modo de repartição dos produtos. A evolução
econômica criou forças de produção colossais que, para serem ativadas, exigem
uma organização determinada da produção. Estas forças só podem ser aplicadas
em grandes estabelecimentos industriais baseados no trabalho coletivo, na
produção social.
Mas a apropriação individual dos produtos, originando-se em condições
econômicas totalmente diferentes, numa época onde dominava a pequena
indústria e a pequena exploração agrícola, está em contradição flagrante com este
modo social de produção. Em virtude desse modo de apropriação, os produtos
criados pelo trabalho social dos operários se tornam propriedade privada dos
empresários. Esta contradição econômica inicial condiciona todas as outras
contradições sociais e políticas existentes no seio da sociedade atual. E ela se
torna cada vez mais grave. Os empresários não podem renunciar à organização
social da produção, pois ela é a fonte de sua riqueza. Por outro lado, a
concorrência os obriga a estender esta organização a outros ramos da indústria,
onde ela ainda não existe. As grandes empresas industriais eliminam os pequenos
produtores e determinam assim o crescimento em número, e portanto em força, da
classe operária. O desenlace fatal se aproxima. Para suprimir a contradição entre
o modo de produção dos produtos e o modo de sua repartição, contradição
prejudicial aos operários, estes devem tomar o poder político que se encontra
atualmente nas mãos da burguesia. Se quiserem, pode-se dizer que os operários
provocarão uma "catástrofe política". A evolução econômica leva
necessariamente à revolução política, e esta última será, por sua vez, a fonte de
transformações importantes no regime econômico da sociedade. O modo de
produção adquire lenta e gradualmente caráter social. A transformação do modo
de produção será o resultado de uma transformação efetuada pela violência.
É assim que o movimento histórico se desenrola, não entre nós, mas no Ocidente.
M. Tikhomírov não tem nenhuma "concepção" da vida social deste Ocidente, se
bem que se tenha ocupado com a "observação da poderosa civilização francesa".
Transformações pela violência, "torrentes de sangue machados e patíbulos,
pólvora e dinamite, são "tristes fenômenos". Mas que fazer, já que são
inevitáveis? A força sempre desempenhou o papel de parteira, cada vez que uma
nova sociedade vem ao mundo. Assim falava Marx, e ele não era o único a pensar
desta maneira. O historiador Schlosser estava convencido de que é unicamente "a
ferro e fogo" que se efetuam as grandes transformações nos destinos da
humanidade. Donde vem esta triste necessidade? De quem é a culpa?
Pois então o poder da verdade. Não pode tudo abarcar sobre esta terra?
Não, no momento ainda não tudo! E a razão está na diferença existente entre os
interesses das diferentes classes da sociedade. Para uma destas classes é útil, e
mesmo indispensável, refazer de certa forma a estrutura das relações sociais. Para
outra é proveitoso, e mesmo indispensável, opor-se a tal refazer. A uns ele
promete felicidade e liberdade; a outros o presságio da abolição de sua situação
privilegiada e mesmo sua supressão enquanto classe privilegiada. E qual é a
classe que não luta por sua existência, que não tem instinto de conservação. O
regime social proveitoso a uma dada classe lhe parece não apenas justo, mas
também o único possível. Essa classe considera que tentar mudar de regime é
destruir os fundamentos de toda comunidade humana. Ela se considera chamada a
defender estes fundamentos, mesmo que seja pela força das armas. Donde as
"torrentes de sangue", donde a luta e as violências.
Por outro lado, os socialistas, meditando sobre a transformação social a vir,
podem consolar-se com a idéia de que quanto mais as doutrinas "subversivas" se
difundem, mais a classe operária será desenvolvida, organizada e disciplinada,
menos a inevitável "catástrofe" necessitará de vítimas.
Ao mesmo tempo, o triunfo do proletariado, colocando fim à exploração do
homem pelo homem e portanto à divisão da sociedade em classe de exploradores
e classe de explorados, tornará as guerras civis não apenas inúteis mas também
diretamente impossíveis. A humanidade progredirá então unicamente pelo "poder
da verdade" e não terá mais necessidade do argumento das armas.

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