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O CONCEITO E A TRAGÉDIA DA CULTURA
Georg Simmel

O homem não se ordena à realidade natural do mundo como o animal,


antes ele se arranca dela e se contrapõe a ela, exigindo, lutando, violentando e
sendo violentado - com este primeiro grande dualismo inicia-se o processo
infindável entre o sujeito e o objeto. Este processo encontra sua segunda
instância dentro do próprio espírito. O espírito gera incontáveis criações que
seguem existindo com uma autonomia peculiar e que são independentes tanto
da alma que as criou como daquelas outras que as recebem ou recusam.
Deste modo, o sujeito encontra-se perante a arte e o direito, a religião e a
técnica, a ciência e a moral - não apenas coberto aqui e repelido ali por seu
conteúdo, já fundido a eles como se estes fossem uma parte do seu, logo em
uma relação de estranheza e intocabilidade com eles; antes eles constituem a
forma da estabilidade, da existência insistente com a qual o espírito tomado
objeto opõe-se à vivacidade torrencial, à responsabilidade interior e à
cambiante tensão da alma subjetiva; isto como espírito intimamente ligado ao
espírito, mas, justamente por isso, vivenciando incontáveis tragédias nesta
profunda contradição de forma entre a vida subjetiva infatigável mas
temporalmente finita e seus conteúdos, que, uma vez criados, são estáticos,
mas têm uma validade atemporal.
A idéia de cultura encontra-se no meio deste dualismo. Ela se
fundamenta em um fato interior que só pode ser expresso como totalidade de
um modo metafórico e um tanto confuso: como caminho da alma para si
mesmo; pois nenhuma alma jamais é apenas aquilo que ela é num dado
instante, e sim algo mais: uma forma superior e mais bem-acabada de si
mesma em sua existência pré-formada e irreal. Não se trata aqui de um ideal
designável fixado em algum lugar do mundo espiritual, e sim da liberação das
energias que repousam na própria alma, do desenvolvimento de seu germe
mais peculiar que obedece a um impulso de forma interior. Assim como a vida -
e acima de tudo sua elevação na consciência - contém seu passado em si de

1
uma forma imediata, como se fora uma parcela qualquer de algo inorgânico,
assim como este passado continua existindo na consciência não apenas como
causa mecânica de mudanças posteriores, mas segundo seu conteúdo original,
ela abrange também seu futuro de uma maneira que não encontra analogia
com o mundo inanimado. Em cada momento de vida de um organismo que
cresce e se reproduz, a forma posterior está presente com uma necessidade e
pré-figuração internas absolutamente incomparáveis àquelas com a qual a
mola tensionada contém seu relaxamento. Enquanto o que é inanimado possui
pura e simplesmente o instante do presente, o ser vivo estende-se ao passado
e ao futuro. Todos os movimentos anímicos, como a vontade, o dever, a
vocação e a esperança, constituem a continuação espiritual da determinação
fundamental da vida: conter seu futuro - de uma forma especial que existe
apenas no processo da vida - em seu presente.
E isto diz respeito não apenas a desenvolvimentos específicos. Antes, a
personalidade como totalidade e unidade traz em si uma imagem como que
desenhada com linhas invisíveis, e apenas com a realização desta imagem ela
alcançaria sua realidade completa em vez de sua potencialidade. Mesmo que a
maturação das forças anímicas se realize nas tarefas e interesses específicos
e por assim dizer periféricos, permanece de algum modo a exigência de que
com todos eles a totalidade anímica como tal deveria cumprir uma promessa
dela mesma, e, com isso, todos os refinamentos específicos aparecem apenas
como uma pluralidade de caminhos pelos quais a alma chega até si mesma.
Isto constitui um pressuposto metafísico de nossa essência prática e relativa
aos sentimentos, indiferente da distância que esta expressão simbólica
mantém com o comportamento real. A unidade da alma não é simplesmente
um laço formal que abrange o desenvolvimento de suas forças específicas de
um modo sempre igual. Antes, por meio destas forças específicas, um
desenvolvimento desta unidade da alma como totalidade é sustentado. E o
objetivo de um refinamento - para o qual todo aquele potencial e aquelas
perfeições constituem um meio - precede interiormente o desenvolvimento da
totalidade. E aqui se manifesta a primeira determinação do conceito de cultura,
que, por enquanto, segue apenas o sentimento da língua. Não somos ainda
cultivados se tivermos desenvolvido em nós este ou aquele saber ou
capacidade específicos; só o somos se todos esses saberes e capacidades

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servirem ao desenvolvimento daquela centralidade anímica, ao qual eles estão
ligados mas com o qual eles não coincidem. Nossos esforços conscientes e
perceptíveis podem estar valendo para os interesses e potências particulares, e
por isso o desenvolvimento de cada homem aparece - considerando sua
nomeabilidade - como um feixe de linhas de crescimento, que se estende em
direções efetivamente distintas com comprimentos também distintos. Mas o
homem se cultiva não a partir dessas linhas de crescimento tomadas em seus
desenvolvimentos singulares, mas apenas com sua significação para o
desenvolvimento da unidade pessoal indefinível. Em outras palavras: cultura é
o caminho que sai da unidade fechada, passando pela pluralidade desen-
volvida, chegando à unidade desenvolvida. Mas sob todas circunstâncias pode
se tratar apenas da concretização de um fenômeno esboçado nas forças
germinativas da personalidade como seu plano ideal.
Também neste caso a linguagem é um guia seguro. Denominamos
cultivada uma fruta de quintal que o trabalho do jardineiro criou a partir de uma
fruta silvestre lenhosa e intragável, ou seja, esta árvore selvagem foi cultivada,
tornando-se um fruta de quintal. Por outro lado, caso se produzisse com a
mesma árvore um mastro para um veleiro - com o que se aplicaria a ela um
trabalho que também visa a uma finalidade -, não diríamos de maneira alguma
que o tronco foi cultivado para tornar-se um mastro. Esta nuance da linguagem
explicita que a fruta, mesmo não alcançando o patamar proporcionado pelo
esforço humano, brota das próprias forças propulsoras da árvore e preenche
apenas uma possibilidade prefigurada em si mesma, enquanto a forma de
mastro é acrescida ao tronco a partir de um sistema de finalidade que lhe é
completamente estranho e destituído de qualquer pré-formação nas tendências
de sua própria essência. Considerados justamente neste mesmo sentido, todos
os conhecimentos, virtuosidades e refinamentos possíveis de uma pessoa não
nos permitem ainda declará-la realmente cultivada, caso eles atuem apenas
corno acréscimos à sua personalidade advindos de uma esfera de valor que
lhe é e permanece em última instância exterior. Em tais casos, a pessoa possui
em verdade cultivações (Kultiviertheiten), mas não é cultivada; esta última
comparece apenas se os conteúdos suprapessoais recebidos parecem - corno
que por meio de urna harmonia predeterminada - desenvolver na alma apenas
aquilo que existe nela mesma como sua pulsão mais peculiar e prefiguração

3
interior de sua perfeição subjetiva.
E aqui se evidencia finalmente o condicionamento da cultura, pelo qual
ela representa urna solução da equação sujeito-objeto. Recusamos o conceito
de cultura onde a perfeição não é sentida corno desenvolvimento próprio do
centro da alma; mas ele tampouco é corretamente aplicável onde esta
perfeição comparece como um desenvolvimento próprio que prescinde de
quaisquer meios ou estações que lhe sejam objetivos e exteriores. Muitos
movimentos conduzem realmente - corno é exigido por aquele ideal - a alma a
si mesma, ou seja, à realização do ser completo e peculiar que lhe é
predeterminado e que inicialmente existe apenas corno possibilidade. Mas na
medida em que a alma alcança isso puramente a partir de dentro, nas
elevações religiosas, na dedicação moral, no predomínio da intelectualidade e
na harmonia da vida total, ela pode ainda carecer da posse específica da
cultivação (Kultiviertheit). Não apenas porque com isto pode lhe faltar o que é
total ou relativamente exterior - e que a linguagem desclassifica corno mera
civilização.1 Não se trata absolutamente disso. Mas, cultivação (Kultiviertheit)
em seu sentido mais puro e profundo não acontece onde a alma percorre
aquele caminho de si própria para si própria, da possibilidade de nosso eu mais
verdadeiro para sua realidade, exclusivamente com suas forças subjetivas e
pessoais - ainda que, de uma perspectiva superior, estas perfeições sejam as
mais valiosas; com o que ficaria comprovado que a cultura não constitui a
definição exclusiva de valor da alma. Seu sentido específico só é preenchido
onde o homem inclui naquele desenvolvimento algo que lhe é exterior, onde o
caminho da alma passa por valores e séries que não são em si subjetivos e
interiores. Aquelas formações espirituais objetivas que mencionei no início -
arte e moral, ciência e objetos formados segundo uma finalidade, religião e
direito, técnica e normas sociais - são estações pelas quais o sujeito deve
passar para alcançar o valor próprio especial, que é a sua cultura. Ele deve
abrangê-las em si, mas também as deve abranger em si e não simplesmente
deixá-las existir como valores objetivos. O fato de a vida subjetiva - que
sentimos em seu contínuo fluir e que a partir de si impele à sua perfeição
interior - não poder absolutamente, da perspectiva da idéia de cultura, alcançar

1
Cf. distinção de Kultur e Zivilisation em Norbert Elias. O processo civilizador. VoI. I. Rio de
Janeiro, Zahar, 1994. (N. do T.)

4
esta perfeição a partir de si, mas somente por meio daquelas criações que se
tomaram totalmente estranhas a ela e que se cristalizaram em uma instância
fechada, constitui o paradoxo da cultura. Cultura surge - e isto é simplesmente
o essencial para a sua compreensão - na medida em que há a aproximação de
dois elementos: a alma subjetiva e o produto espiritual objetivo; sendo que
nenhum deles a contém por si.
Aqui se enraíza a significação metafísica deste produto histórico. Um
certo número das decisivas atividades essenciais do homem constrói pontes
inconclusas - e se concluídas, são sempre demolidas - entre o sujeito e o
objeto, tais como: o conhecimento, o trabalho acima de tudo e, em algumas de
suas significações, também a arte e a religião. O espírito se vê perante um ser
para o qual tanto a necessidade como a espontaneidade de sua natureza o
impulsionam; mas ele permanece eternamente em movimento, proscrito em si
mesmo, em um círculo que apenas roça o ser, e em cada momento em que ele
deseje penetrar no ser, abandonando a tangente de sua trajetória, a imanência
de sua lei o afasta novamente à sua órbita fechada em si mesma. Na formação
do conceito: sujeito-objeto como correlato, no qual cada um só encontra seu
sentido no outro, já há a nostalgia e a antecipação de uma superação deste
último e rígido dualismo. Aquelas atividades mencionadas deslocam este
dualismo para uma atmosfera especial, na qual a estranheza radical de seus
pólos é minorada e certas fusões são admitidas. Mas, uma vez que isso só
ocorre sob as modificações que são criadas por meio das condições da
atmosfera de províncias especiais, aquelas atividades não logram superar a
estranheza das partes em seus fundamentos e permanecem, portanto,
tentativas finitas de resolver uma tarefa infinita.
Já a nossa relação com aqueles objetos nos quais nos cultivamos é
outra, porque eles próprios já são espíritos objetivados naquelas formas éticas
e intelectuais, sociais e estéticas, religiosas e técnicas; o dualismo, no qual o
sujeito voltado para si se contrapõe ao objeto que existe por si, experimenta
uma configuração incomparável se ambas as partes são espírito. Destarte, o
espírito subjetivo deve em verdade abandonar sua subjetividade mas não sua
espiritualidade, de modo a experimentar uma relação com o objeto, pela qual
se consuma sua cultivação (Kultivierung). Esta é a única maneira na qual a
forma de existência dualista, com a existência do sujeito imediatamente

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postulada, se articula em uma organização internamente unitária. Neste caso, o
sujeito torna-se objetivo, e o objeto torna-se subjetivo, fato que constitui o que
há de específico no processo da cultura, no qual se mostra - para além de seus
conteúdos específicos - sua forma metafísica. Sua compreensão profunda
exige, portanto, o prosseguimento na análise daquela objetivação do espírito.
Este ensaio partiu da profunda estranheza ou inimizade que existe entre
o processo de vida e de criação da alma, por um lado, e seus conteúdos e
produtos, por outro. Contraposto à vida vibrante e infatigável da alma criadora,
que se desenvolve sem limites, está seu produto fixo, idealmente irremovível,
que retroativamente fixa de um modo inquietante aquela vivacidade e a
imobiliza; freqüentemente é como se a mobilidade criadora da alma morresse
em seu próprio produto. Aqui temos uma forma fundamental de nosso
sofrimento pelo próprio passado, pelo próprio dogma e pela própria fantasia.
Esta discrepância, que existe entre o status da vida interior e os seus
conteúdos, torna-se, em certa medida, racionalizada e menos claramente
perceptível pelo fato de o homem – por meio de sua produção teórica e prática
- contrapor-se àqueles produtos e conteúdos (e os ver), como um universo do
espírito objetivo, que é, em um sentido determinado, autônomo. A obra exterior
ou imaterial na qual a vida interior se materializou é percebida como um valor
especial; a vida, fluindo para dentro dela, pode se perder num beco sem saída
ou a corrente da vida pode seguir seu fluxo, deixando para trás esta criação
lançada fora deste fluxo. A riqueza humana específica é constituída justamente
pelo fato de os produtos da vida objetiva pertencerem simultaneamente a uma
ordem objetiva de valores, não fluida - a uma ordem de valores lógica ou moral,
religiosa ou artística, técnica ou jurídica. Na medida em que estes produtos da
vida objetiva se manifestam como portadores de tais valores, como membros
de tais séries, eles são não apenas tirados - por meio de seus entrelaçamentos
e sistematização recíprocos - do rígido isolamento com o qual eles se
afastaram do ritmo do processo da vida, como também este próprio processo
obtém com isso uma significação que não seria alcançada pela não-interrupção
de seu simples curso. Nas objetivações do espírito sobressai uma acentuação
de valor - que com efeito nasce na consciência subjetiva - com a qual esta
consciência, no entanto, se refere a algo que está além da consciência
subjetiva. No caso, o valor não precisa de maneira alguma ser sempre positivo,

6
entendido no sentido do bem; antes, o mero dado formal de que o sujeito
realizou algo objetivo, de que a vida deste se materializou a partir daquele é
percebido como algo significativo, porque justamente apenas a autonomia do
objeto assim formado pelo espírito pode liberar a tensão fundamental existente
entre processo e conteúdo da consciência, pois, assim, como representações
espaciais naturais acalmam a inquietação de insistir no processo fluido da
consciência como algo de forma inteiramente fixa, pelo fato de elas legitimarem
esta estabilidade na sua relação com o mundo exterior objetivo, também a
objetividade do mundo espiritual desempenha um papel correspondente.
Sentimos toda a vivacidade de nosso pensamento na inamovibilidade de
normas lógicas, toda a espontaneidade de nossa ação vinculada a normas
morais. Todo o processo de nossa consciência é preenchido com
conhecimentos, heranças e impressões de um ambiente de algum modo
formado pelo espírito. A rigidez e como que insolubilidade química de tudo isso
apresenta um dualismo problemático em relação ao ritmo incansável do
processo anímico subjetivo, no qual eles são criados como representação,
como conteúdo anímico subjetivo. Mas na medida em que eles pertencem a
um mundo ideal que está acima da consciência individual, esta oposição
adquire um fundamento e um direito.
Certamente, para o sentido cultural do objeto - que é finalmente o que
nos interessa aqui -, o fato decisivo é que nele são agrupados vontade e
inteligência, individualidade e ânimo, forças e disposição de almas específicas
(e também de um conjunto delas). Somente na medida em que isto ocorre,
aquelas significações anímicas alcançam o ponto final de sua determinação.
Na felicidade do criador advinda de sua obra - não importando quão grande ou
pequena ela seja -, ao lado da descarga das tensões internas, da comprovação
da força subjetiva e da satisfação com respeito à exigência preenchida, existe
provavelmente ainda uma satisfação objetiva pelo fato de esta obra passar a
existir, pelo fato de o universo das coisas que têm um certo valor ter sido
acrescido desta peça. Talvez não haja nenhuma fruição pessoal da própria
obra que seja mais sublime do que percebê-la em sua impessoalidade e em
seu distanciamento de toda nossa subjetividade. E assim como o valor das
objetivações do espírito ultrapassa o processo de vida subjetivo que nelas
penetrou como sua causa, ele também está além das demais objetivações do

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espírito que, como conseqüência das primeiras, delas depende. Gostamos
muito e preponderantemente de ver as organizações da sociedade e a
formação técnica dos dados da natureza, a obra de arte e o conhecimento
científico da verdade, uso e costumes em suas irradiações na vida e em seus
desenvolvimentos de almas - com freqüência, e talvez sempre, encontre-se
entrelaçado nisto o reconhecimento de que estas formações existem, de que o
mundo abrange também esta configuração do espírito; isto constitui uma
diretriz de nossas formas de atribuir valor, que pára na existência própria do
que é espiritual-objetivo, sem, para além do que é definitivo nestas próprias
coisas, questionar suas conseqüências no plano da alma.
Paralelo a toda fruição subjetiva, com a qual por exemplo percebemos
uma obra de arte, consideramos um valor de um tipo especial o fato de ela
existir, o fato de o espírito ter criado para si este recipiente. Assim como pelo
menos uma linha do desejo artístico desemboca na existência própria da obra
de arte, entrelaçando uma valoração meramente objetiva na autofruição da
força criadora ativa, também uma linha na mesma direção percorre o interior da
atitude do espectador. E de fato em uma diferença clara com relação aos
valores que cobrem o dado puramente objetivo, o que é naturalmente objetivo,
pois exatamente estes tais - o mar e as flores, os Alpes e o céu estrelado - têm
o que se poderia denominar seu valor apenas em seu reflexo na alma
subjetiva, pois, uma vez abstraindo da humanização mística e fantástica da
natureza, ela constitui justamente uma totalidade contínua coerente, cuja indife-
rente conformidade a leis não inveja nenhuma parte de um acento
fundamentado em sua existência objetiva, não inveja sequer uma existência
objetivamente delimitada por outras. Somente nossas categorias humanas
recortam partes específicas desta totalidade, às quais acoplamos reações
estéticas, sublimes e simbolicamente significativas: a proposição segundo a
qual a natureza seria "serena em si mesma" se legitima apenas como ficção
poética; para a consciência que busca a objetividade, não se encontra nela
nenhuma outra serenidade, além da que ela provoca em nós. Assim, enquanto
o produto das forças meramente objetivas só pode ter valor subjetivamente, o
produto das forças subjetivas, ao contrário, tem para nós valor objetivo. As
formações materiais e imateriais nas quais são investidas vontade e
capacidade, saber e sentimento humanos são formações objetivas que

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sentimos como significação e enriquecimento da existência, mesmo quando
não levamos absolutamente em consideração seu vir a ser visto, usado ou
desfrutado. Mesmo o fato de o valor e a significação, o sentido e a importância
serem produzidos exclusivamente na alma humana - o que se confirma
continuamente com respeito à natureza - não impede a existência do valor
objetivo daquelas formações nas quais forças e valores anímicos criadores e
formadores já foram investidos. Um nascer do sol que não é visto por nenhum
olho humano não acresce absolutamente valor ao mundo, nem o toma mais
sublime, uma vez que sua facticidade objetiva prescinde dessas categorias;
mas tão logo um pintor reproduza a atmosfera, o sentido da forma e da cor e a
capacidade de expressão deste nascer do sol em um quadro, passamos a
considerá-lo um enriquecimento, uma elevação de valor da existência em geral
(a que categoria metafísica, não está em discussão aqui); a existência do
mundo nos parece mais digna, e seu sentido nos parece mais próximo, se a
fonte de todo valor, a alma humana, houver desaguado em um tal fato que
pertence também ao mundo objetivo - não importando, nesta significação
peculiar, que posteriormente uma alma venha novamente a libertar este valor
ali magicamente introduzido e a diluí-lo na corrente de seu sentimento
subjetivo. Tanto o nascer do sol natural como a pintura existem como
realidade, mas aquele só encontra seu valor na percepção do sujeito psíquico,
ao passo que nesta, que já absorveu em si aquela vida e a configurou em um
objeto, nossa percepção de valor pára em algo definitivo, que prescinde de
qualquer subjetivação.
Separando estes momentos em seus pólos constitutivos, temos de um
lado a apreciação exclusiva da vida subjetiva dinâmica, a partir da qual não
apenas são criados todo sentido, valor e significação, mas na qual,
exclusivamente, tudo isso vive. Por outro lado, no entanto, a acentuação radical
do valor tomado objetivo não é menos compreensível. Naturalmente, isto não
estaria vinculado à produção original de obra de arte e religiões, técnicas e
conhecimentos; tudo o que o homem realiza deve trazer uma contribuição ao
universo ideal, histórico e materializado do espírito, para ser considerado um
valor. Isto diz respeito não à imediaticidade subjetiva de nosso ser e de nossa
ação, mas ao seu conteúdo objetivamente normatizado e ordenado, de modo
que, finalmente, apenas estas normatizações e ordenações conteriam a

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substância de valor e a informariam à história pessoal fluida. Mesmo a
autonomia da vontade moral em Kant não envolve nenhum valor a não ser este
em sua facticidade psicológica; antes, ela o vincula à realização de uma forma
existente como idealidade objetiva. O próprio modo de pensar e a
personalidade adquirem sua significação - tanto para o bem como para o mal -
pelo fato de pertencerem a um reino do suprapessoal. Na medida em que esta
valoração do espírito subjetivo e do objetivo contrapõe um ao outro, a cultura
conduz sua unidade por meio de ambos, posto que ela significa aquele modo
de perfeição individual, que só se consuma pela recepção ou utilização de uma
formação suprapessoal exterior ao sujeito. O valor específico da cultivação
(Kultiviertheit) é inacessível ao sujeito, se este não o alcança por meio de
realidades espirituais objetivas, as quais constituem valores culturais apenas
na medida em que, por seu intermédio, conduzem a alma por aquele caminho
que vai de si mesma para si mesma, do que se pode chamar sua condição
natural para sua condição cultural.
Portanto, pode-se exprimir assim a estrutura do conceito de cultura: não
há nenhum valor de cultura que seja apenas valor de cultura; cada um precisa
antes, para alcançar esta significação, ser também valor em uma série objetiva.
Mas ainda onde exista um valor no sentido supramencionado ou onde uma
capacidade de nossa essência tenha experimentado um fomento por meio de
tal valor, ele será considerado um valor de cultura apenas caso este
desenvolvimento parcial simultaneamente eleve a totalidade de nosso eu,
aproximando-o um degrau de sua unidade perfeita. Assim, tornam-se
compreensíveis dois fenômenos negativos correspondentes da história do
espírito. Um deles é o fato de pessoas do mais profundo interesse cultural
apresentarem, amiúde, uma estranha indiferença - e mesmo recusa - para com
os conteúdos objetivos específicos da cultura, na medida em que eles não
logram descobrir a contribuição geral deles para a promoção da totalidade da
personalidade; e não existe nenhum produto humano que deva
necessariamente apresentar uma tal contribuição, nem tampouco um que não
poderia apresentá-la. Um outro é o surgimento de fenômenos que apenas
parecem ser valores culturais, como certas formalidades e refinamentos da
vida, que ocorrem em épocas de cadentes, pois onde a vida em si tornou-se
vazia e sem sentido, toda a vontade e potencialidade de desenvolvimento até o

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seu ápice constituem apenas um desenvolvimento esquemático, que não tem
mais condições de retirar do conteúdo objetivo das coisas e das idéias alimento
e fomento - assim como o corpo doente não consegue mais assimilar as
substâncias dos víveres, com as quais ele adquire forças e alcança um
crescimento sadio. Neste caso, o desenvolvimento individual só pode retirar
das normas sociais o bom comportamento social, das artes a fruição
improdutiva e do progresso técnico apenas o lado negativo da ausência de
esforço e da indiferença do curso do dia - surgindo um tipo de cultura formal-
subjetiva, sem aquele entrelaçamento interior com o elemento objetivo, que
preenche o conceito de uma cultura concreta. Temos, portanto, de um lado,
uma acentuação tão apaixonadamente centralizada da cultura que o conteúdo
de seus fatores objetivos é de tal modo demasiado e desviante para ela que ele
como tal não é assimilado e não é assimilável em sua função de cultura; e, de
outro, uma tal fraqueza e vazio da cultura que ela não está absolutamente em
condições de assimilar em si os fatores objetivos, segundo seu conteúdo.
Ambos os fenômenos, que aparecem inicialmente como instâncias opostas ao
vínculo da cultura pessoal com os dados impessoais, confirmam antes a
exatidão desse vínculo.
A circunstância de os fatores da vida últimos e decisivos unificarem-se
assim na cultura manifesta-se exatamente no fato de o desenvolvimento de
cada um deles poder acontecer com uma autonomia que não apenas prescinde
da motivação do ideal de cultura, mas a recusa diretamente, pois a atenção em
uma ou outra direção mostra-se distante da unidade de sua intenção, caso ela
deva ser determinada por uma síntese de ambas. Justamente os espíritos que
criam conteúdos duradouros, isto é, o elemento objetivo da cultura, se
recusariam a retirar motivos e valor de sua realização imediatamente da idéia
de cultura. Antes, temos aqui a seguinte situação interior: no fundador de
religião e no artista, no homem público e no inventor, no erudito e no legislador,
atua um duplo princípio: a descarga de suas forças essenciais, a ascensão de
sua natureza até a altura na qual eles lideram de si os conteúdos da vida
cultural - e a paixão pelas coisas em cuja perfeição autônoma o sujeito se toma
indiferente a si mesmo e se apaga. No gênio, essas duas correntes são uma
só: o desenvolvimento do espírito subjetivo em função de si mesmo, em função
de suas forças impulsoras, constitui para o gênio uma unidade indissociável

11
com a entrega total e desinteressada às tarefas objetivas. Cultura, como
mostrei, é sempre síntese. Mas a síntese não é a única nem a mais imediata
forma de unidade, uma vez que ela pressupõe sempre a separação. dos
elementos como etapa anterior ou seu correlato. Somente uma época tão
analítica como a modernidade pode encontrar na síntese a profundeza, a
unidade e a totalidade da relação formal do espírito com o mundo - ao passo
que há uma unidade original, anterior à diferenciação; na medida em que essa
unidade permite apenas que os elementos analíticos se desenvolvam a partir
dela - como o germe orgânico que se ramifica em uma pluralidade de membros
separados -, ela se coloca além da análise e da síntese - seja pelo fato de que
ambas se desenvolvem a partir dela, em uma atuação recíproca na qual, em
cada degrau, uma pressupõe a outra, ou pelo fato de a síntese unificar
posteriormente os elementos analiticamente separados (unidade, no entanto,
inteiramente diversa daquela que existia anteriormente a toda separação). O
gênio criador possui aquela unidade original do subjetivo e do objetivo, que
precisa primeiramente se diferenciar para, de certa maneira, ressurgir em uma
forma sintética totalmente diferente nos processos de cultivação dos indivíduos.
Portanto, o interesse na cultura com respeito a ambos - o puro
desenvolvimento autônomo do espírito subjetivo e o envolvimento nas coisas -
não está no mesmo nível; antes, ele se vincula ao segundo como um interesse
secundário e reflexo, abstrato e geral, além do imediato impulso de valor
interior da alma. Enquanto a alma por assim dizer percorre seu caminho
apenas por regiões próprias e se perfaz no puro desenvolvimento autônomo da
própria essência - não importando quão objetivamente esta seja determinada -,
a cultura permanece fora do jogo.
Vendo o outro fator da cultura - aqueles produtos maduros do espírito
em sua existência específica ideal, independente de toda mobilidade psíquica -
em seu isolamento auto-suficiente, percebemos que seu sentido e valor mais
próprios tampouco coincidem com seu valor cultural; em verdade, como
formações objetivas, estes produtos do espírito não se preocupam com sua
significação cultural. A obra de arte deve ser perfeita, segundo as normas da
arte, as quais não consideram nada além de si mesmas e conferiram ou
negariam à obra seu valor, mesmo se não existisse nada no mundo além
dessa obra; o resultado da pesquisa como tal deve ser verdadeiro e nada mais,

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a religião fecha seu sentido em si com a salvação que ela traz à alma, o
produto da economia quer ser enquanto econômico perfeito e nessa medida
não reconhece nenhuma outra escala de valor para si além da econômica.
Todas estas séries seguem a coerência de leis puramente interiores, e nada
importa à sua significação - medida por normas puramente objetivas válidas
exclusivamente para elas - se e com quais valores elas se deixam juntar àquele
desenvolvimento de almas subjetivas.
Com esta situação objetiva toma-se compreensível o fato de
encontrarmos, amiúde, tanto nas pessoas que se interessam apenas pelo
sujeito, como naquelas que se interessam apenas pelo objeto, uma indiferença
e mesmo uma aversão aparentemente estranhas à cultura. A valoração de
quem se preocupa somente com a salvação da alma, com o ideal da força
pessoal ou com o desenvolvimento individual interior, intangível a qualquer
momento exterior, carece justamente de um dos fatores integrantes da cultura,
ao passo que o outro falta àquelas pessoas que só se preocupam com a pura
perfeição objetiva de nossas obras. O caso extremo do primeiro tipo é o
devoto, do outro é o especialista enclausurado no fanatismo da sua área de
trabalho ou pesquisa. O fato de os portadores de tais "valores culturais"
indiscutíveis, como religiosidade, formação da personalidade e técnicas
diversas, desprezarem ou combaterem o conceito de cultura adquire num
primeiro relance algo de surpreendente - o que é esclarecido com a concepção
segundo a qual cultura significa apenas a síntese de um desenvolvimento
subjetivo e de um valor espiritual objetivo e de que a manifestação exclusiva de
um destes elementos exclui necessariamente o entrelaçamento de ambos.
Tal dependência do valor cultural em relação à atuação conjunta de um
segundo fator que está além da série de valor própria e objetiva do objeto toma
compreensível o fato de este alcançar freqüentemente uma marca totalmente
diferente na escala dos valores culturais do que na das meras significações
objetivas. Muitas obras artísticas, técnicas e intelectuais que ficam abaixo da
altura já alcançada por outras têm, no entanto, a capacidade de inserir-se da
maneira mais efetiva no caminho de várias pessoas como catalisador de suas
forças latentes, como ponte para a estação superior seguinte. Assim como
dentre as impressões da natureza não é de modo algum apenas das mais
dinâmicas e poderosas ou das esteticamente mais perfeitas que nos vêm uma

13
felicidade profunda e o sentimento de que os elementos abafados e não
realizados em nós se tomaram repentinamente claros e harmoniosos, assim
como nós devemos isto freqüentemente a uma paisagem completamente plana
ou ao jogo de sombra de uma tarde de verão, também a significação da obra
do espírito, indiferentemente de quão alta ou baixa ela seja em sua própria
série, é constituída pelo que esta obra pode nos proporcionar com respeito ao
caminho da cultura, pois aqui o fundamental é que aquela significação especial
da obra tenha uma contribuição paralela, que é servir ao desenvolvimento
central ou geral da personalidade. E o fato de esta contribuição poder ser
inversamente proporcional ao valor próprio ou interior tem várias causas. Há
obras humanas perfeitas às quais não temos acesso ou que não têm nenhum
acesso a nós, justamente em função de suas perfeições sem lacunas. Uma tal
obra permanece em seu lugar, do qual ela não pode ser transplantada para
nosso convívio; ela permanece uma perfeição solitária, à qual talvez nos
entregamos, mas que não podemos levar conosco, para nos elevarmos a ela
na perfeição de nós mesmos.
Para o sentimento de vida moderno, a antigüidade tem muitas vezes
esta coerência auto-suficiente e acabada que impede sua recepção em nosso
ritmo pulsante e ininterrupto de desenvolvimento. E isto pode hoje determinar
para algumas pessoas a busca de um outro fator fundamental para nossa
cultura. É justamente o que percebemos em certos ideais éticos. As formações
do espírito objetivo assim indicadas são talvez mais que outras determinadas a
sustentar e dar a direção ao desenvolvimento de nossa totalidade, da mera
possibilidade para a mais alta realidade. Acresce, porém, que alguns
imperativos éticos contêm um ideal de perfeição tão rígido que nenhuma
energia que poderíamos receber em nosso desenvolvimento se deixa atualizar
a partir dele. Mesmo com toda sua altura na série das idéias éticas, como
elemento de cultura, ele ficará facilmente atrás de outros que, apesar de sua
posição inferior naquela série, são melhor assimilados ao ritmo do nosso
desenvolvimento e se adaptam a ele reforçando-o. Um outro motivo de tal
desproporção entre o valor objetivo e o valor cultural de uma formação
relaciona-se com a unilateralidade do fomento que experimentamos por meio
daquele. Muitos conteúdos do espírito objetivo nos tornam mais inteligentes ou
melhores, mais felizes ou mais hábeis, mas, de fato, com isso, eles não nos

14
desenvolvem propriamente, e sim um lado ou uma qualidade em si objetiva
apegada a nós; trata-se, aqui, naturalmente, de uma diferença resvalante e
infinitamente tênue, exteriormente intangível, que se vincula à misteriosa
relação entre a nossa totalidade unitária e as nossas energias e perfeições
específicas. Decerto, só podemos designar a realidade fechada, completa, que
denominamos nosso sujeito, como a soma de tais especificidades, sem que no
entanto este possa ser montado a partir dessas especificidades; e a única
categoria à disposição - a parte e o todo - não esgota absolutamente esta
relação singular. Observadas em si, todas aquelas especificidades têm um
caráter objetivo; tomadas isoladamente, cada uma delas poderia ser percebida
em vários sujeitos, e elas alcançam o caráter de nossa subjetividade somente
em seu lado interior, do qual resulta justamente aquela unidade de nossa
essência. Tomadas isoladamente, aquelas especificidades fazem uma ponte
até o valor das objetividades; elas encontram-se em nossa periferia, que entra
em contato com o mundo objetivo, tanto exterior como espiritual. Mas assim
que esta função dirigida para fora, alimentada de exterioridades, voltando-se
para dentro, desembocando em nosso centro, isola a significação, surge
aquela discrepância: nós nos tornamos instruídos, mais práticos, mais ricos em
prazer e capacidades, talvez mesmo mais "cultos" - mas nossa cultivação não
avança, pois, em verdade, passamos de uma posse e de uma capacidade
inferior para outra superior, mas não de nós mesmos como inferiores para nós
mesmos como superiores.
Esta possibilidade da discrepância entre a significação objetiva e a
significação cultural de um mesmo objeto foi destacada aqui com o intuito de
observar mais enfaticamente a dualidade de princípio dos elementos, que
somente entrelaçados propiciam a existência da cultura. Este entrelaçamento
constitui algo singular na medida em que o desenvolvimento culturalmente
significativo do ser pessoal configura uma circunstância que existe puramente
no sujeito, mas uma circunstância tal que não pode absolutamente ser
alcançada a não ser pela recepção e utilização de conteúdos objetivos. Por
isso, cultivação é, por um lado, uma tarefa situada no infinito - uma vez que o
emprego de momentos objetivos para a perfeição do ser pessoal nunca pode
ser visto como algo concIuso - e, por outro, as nuances da linguagem seguem
esta matéria com muita precisão, na medida em que a cultura ligada a algo

15
objetivo específico - cultura religiosa, cultura artística, etc. - é normalmente
utilizada não para indicar estados dos indivíduos, mas apenas de espíritos
públicos - no sentido de que em uma época existem muitíssimos e
impressionantes conteúdos espirituais de um determinado tipo, por meio dos
quais se perfaz a cultivação dos indivíduos. Estes podem, num sentido preciso,
ser mais ou menos cultivados, mas não podem ser assim ou assado
especializadamente cultivados. Uma cultura objetiva especializada do indivíduo
pode significar apenas que uma perfeição cultural, e como tal supra-
especializada, do indivíduo adquiriu por meio deste um conteúdo unilateral ou
que paralelo à sua própria cultivação se formou ainda uma considerável
capacidade ou saber relativo a uma matéria. Cultura artística de um indivíduo,
por exemplo - caso ela deva ser algo além da perfeição em termos artísticos,
que pode comparecer também em outros "sinais de não cultivação" de uma
pessoa -, pode significar apenas que nesse caso exatamente estas perfeições
objetivas efetuaram a perfeição do ser total pessoal.
Agora, no entanto, surge uma fenda no interior desta estrutura da
cultura, que decerto já existia em seu fundamento, e que a partir da síntese
sujeito-objeto, da significação metafísica de seu conceito se torna um
paradoxo, ou mesmo uma tragédia. O dualismo de sujeito e objeto,
pressuposto por sua síntese, não é por assim dizer apenas um dualismo
substancial, que diz respeito ao ser de ambos. Antes, a lógica interna, segundo
a qual cada um deles se desenvolve, não coincide naturalmente de maneira
alguma com a do outro. Uma vez que certos motivos iniciais do direito, da arte
e da moral são criados - talvez segundo a nossa espontaneidade mais peculiar
e interior -, já não controlamos mais para que tipo de formação específica eles
se desenvolvem; ao criá-los ou recebê-los, percorremos antes o fio condutor de
uma necessidade ideal, que é completamente objetiva e não menos
despreocupada com as exigências de nossa individualidade - não importando
quão central elas sejam - do que as forças físicas e suas leis. Sem dúvida, a
afirmação de que a língua pensa e compõe por nós, ou seja, de que ela recebe
os impulsos - fragmentários ou vinculados de nossa própria essência e os
conduz à uma perfeição, à qual estes impulsos não chegariam, se
dependessem puramente de nós mesmos, é em geral tida como correta. Mas
este paralelismo do desenvolvimento objetivo e do subjetivo, tomado

16
isoladamente, não tem por princípio alguma necessidade. Mesmo a língua é
ocasionalmente sentida por nós como um poder natural que torce e mutila não
apenas nossas exteriorizações como ainda nossas tendências mais interiores.
E a religião - que certamente surgiu da alma buscando a si mesma -, a asa que
impulsiona a força própria da alma, de modo a trazê-la à sua altura própria,
mesmo ela, uma vez surgida, tem certas leis de formação que desenvolvem a
sua necessidade, mas nem sempre desenvolvem a nossa necessidade. O que
é amiúde censurado na religião como seu espírito anticultural não é apenas
sua hostilidade ocasional contra valores intelectuais, artísticos e morais, mas
ainda algo mais profundo: que ela percorre seu próprio caminho, determinado
por sua lógica imanente, no qual ela abarca a vida; mas, independentemente
de quais bens transcendentes a alma venha a encontrar nesse caminho, ele a
conduz freqüentemente à imperfeição de sua totalidade, que é indicada por
suas próprias possibilidades, e que, absorvendo em si a significação das
formações objetivas, constitui justamente a cultura.
Na medida em que a lógica das criações e esferas impessoais adquire
uma dinâmica, surgem entre estas e as normas e pulsões da personalidade
fricções rigorosas, que na forma da cultura como tal experimentam uma
aglutinação e uma intensificação singulares. A partir do momento em que o
homem usou o termo eu para se designar e se tomou um objeto, sobre e
contraposto a si mesmo, desde que por esta forma de nossa alma seus
conteúdos se reuniram em um centro, cresceu na alma, a partir desta forma, o
ideal de que isto que está assim ligado ao ponto central constituiria uma
unidade, que seria fechada em si e, portanto, constituiria uma totalidade auto-
suficiente. Os conteúdos, nos quais o eu deve executar essa organização
visando a um mundo unitário próprio, não pertencem somente a ele; eles lhe
são dados por uma instância espacial, temporal e idealmente exterior, eles são
ao mesmo tempo os conteúdos de algum outro mundo - social e metafísico,
conceitual e ético -, e nesses mundos eles possuem entre si formas e
conexões que não coincidem com as do eu. Nesses conteúdos, que configu-
ram de um modo especial o eu, os mundos exteriores agarram o eu, para
incorporá-lo a si. Na medida em que eles formam os conteúdos segundo suas
exigências, eles não permitem que os conteúdos tenham um centramento em
torno do eu. A mais ampla e mais profunda manifestação disto seria o conflito

17
religioso entre a auto-suficiência ou a liberdade do homem e a sua inserção
nas ordenações divinas; mas ela representa - e nisso não se diferencia do
conflito social entre o homem como individualidade acabada e o mero membro
do organismo social - apenas um caso daquele dualismo puramente formal, no
qual o pertencimento de nossos conteúdos de vida a outros círculos além do
nosso eu nos envolve inevitavelmente. O homem não apenas se encontra
inúmeras vezes no ponto de interseção de dois círculos de forças e valores
objetivos, sendo que ambos gostariam de abarcá-lo, mas, especialmente, sente
a si próprio como centro que ordena ao redor de si, harmoniosamente e
segundo a lógica da personalidade, todos os seus conteúdos de vida - e se
sente ainda solidário com cada um destes conteúdos periféricos, que
pertencem, no entanto, a um outro círculo, que é aqui reivindicado por uma
outra lei do movimento, de tal modo que nossa essência forma por assim dizer
o ponto de interseção entre seu próprio círculo de exigência e um círculo de
exigência estranho. O fato cultural aproxima o mais possível estes partidos, na
medida em que ele vincula o desenvolvimento de um à condição de abranger o
outro em si (ou seja, é apenas assim que este desenvolvimento pode se
transformar em cultivação, portanto, na medida em que ele pressupõe um
paralelismo ou uma adaptação mútua de ambos. O dualismo metafísico de
sujeito e objeto, que esta estrutura da cultura em princípio havia superado,
ressurge como discordância dos conteúdos empíricos específicos de desen-
volvimentos subjetivos e objetivos.
Pode ser que a fenda se abra mais ainda, caso haja de seus lados
conteúdos igualmente direcionados, caso o que é objetivo ache sua
significação para o sujeito, por meio de suas determinações formais - a
autonomia e o seu caráter de massa. A fórmula da cultura é que as energias
anímicas subjetivas alcançam uma forma objetiva, independente do processo
de vida criador, e que essa, por sua vez, é reinserida no processo de vida
subjetivo de uma maneira que leve o sujeito a uma perfeição acabada de seu
ser central. Essa corrente de sujeito, via objeto, para sujeito, na qual uma
relação metafísica entre sujeito e objeto adquire uma realidade histórica, pode
agora, entretanto, perder sua continuidade. O objeto pode, em princípio, como
foi indicado até aqui, abandonar sua significação mediadora e com isso quebrar
a ponte sobre a qual passava seu caminho cultivador. O objeto adquire tal

18
isolamento e estranhamento em relação ao sujeito criador primeiramente em
função da divisão do trabalho. Os objetos que são produzidos pela cooperação
de várias pessoas constituem uma escala que leva em consideração em que
medida sua unidade tem origem na intenção unitária consoante o pensamento
de um indivíduo, ou em que medida ele se produz por si, sem uma tal origem
consciente, a partir das contribuições parciais de várias pessoas.
Nesta última extremidade temos, por exemplo, uma cidade que não é
construída segundo um plano anteriormente existente, e sim segundo as
necessidades e inclinações dos indivíduos e que constitui no entanto uma
formação aparentemente coesa, ligada organicamente em si e que como
totalidade é plena de sentido. O produto fabril - no qual atuaram conjuntamente
vinte trabalhadores, cada um sem conhecimento do (e sem interesse no)
trabalho parcial dos demais e da sua junção, sendo que a totalidade é dirigida
por uma vontade e intelecto pessoal central - exemplifica o outro pólo. Um
outro exemplo seria a apresentação de uma orquestra, na qual o oboísta ou o
percussionista não tem a menor idéia da afinação do violino ou do violoncelo e
não obstante produzem com estes um efeito único perfeito por meio da batuta
do maestro. Num ponto intermediário entre esses fenômenos, temos o jornal,
cuja unidade, ao menos exterior de aspecto e significação, se deve a uma
personalidade dirigente, mas que resulta em grande medida das mais variadas
contribuições - casuais uma em relação à outra - advindas de personalidades
distintas e estranhas entre si. O que tipifica este fenômeno é o seguinte:
mediante a atuação de diversas pessoas, surge um objeto cultural, que, como
totalidade, como unidade com um efeito específico, não tem nenhum produtor,
não provém da correspondente unidade de um sujeito anímico. Os elementos
reuniram-se como que segundo uma lógica e intenção de formação - que não
foram atribuídas a eles por seu criador - interior a eles como realidades
objetivas.
A objetividade do conteúdo espiritual, que o toma independente da
circunstância de vir ou não a ser acolhido, apresenta-se, neste caso, já no
âmbito da produção: independentemente do que cada indivíduo quis ou deixou
de querer, a criação conclusa realizada de um modo puramente corporal, com
sua significação efetiva atual não-alimentada sequer por um espírito - possui a
objetividade e pode retransmiti-la ao processo cultural. E nisto ela apresenta

19
uma mera diferença de grau com relação a uma criança pequena, que,
brincando com as letras do alfabeto, as ordena casualmente em uma palavra
com sentido; este sentido está lá em sua objetividade e concretude espiritual,
independente da completa ignorância a partir da qual ele foi produzido. Em
uma observação acurada, isto constitui apenas um caso assaz radical de um
destino espiritual humano geral, que abrange inclusive aqueles casos de
divisão do trabalho. A grande maioria dos produtos de nossa criação espiritual
contém dentro de sua significação uma certa quota que não criamos. E não
considero aqui a falta de originalidade, os valores herdados e a dependência a
modelos, posto que, mesmo com tudo isso, a obra ainda poderia, no que
respeita a seu conteúdo, ter nascido de nossa consciência, mesmo se essa
consciência apenas transmitisse, sem alterações, o que recebera. Antes, na
imensa maioria de nossas realizações que se oferecem objetivamente, está
contida uma parcela de significação que pode ser extraída por outras pessoas,
mas que não havia sido introduzida por nós mesmos. A realização acabada
contém acentos, relações e valores que são de responsabilidade exclusiva de
sua existência objetiva, não importando se o criador teve consciência de que
isto constituiu o resultado de sua criação. O fato de poder vincular-se a uma
formação material um sentido espiritual objetivo e reproduzível para qualquer
consciência, sentido espiritual objetivo este que não foi introduzido nesta
formação material por nenhuma consciência, ligando-se antes à pura
objetividade própria desta forma, é tão misterioso quanto indubitável.
Com respeito à natureza, o caso análogo não oferece nenhum
problema: nenhuma vontade artística conferiu às montanhas do sul a pureza de
estilo de seus contornos ou ao mar revolto seu simbolismo abalador. Em todas
as obras do espírito, no entanto, o puramente natural em primeiro lugar - na
medida em que ele é provido de tais possibilidades de significação, e além dele
também o conteúdo espiritual de seus elementos e a sua coerência que resulta
de si mesma - tem ou pode ter uma participação. A possibilidade de alcançar
um conteúdo espiritual subjetivo é investida neles como uma formação objetiva
- que não se deixa definir melhor - que deixou sua origem completamente para
trás. Tomando um exemplo extremo: um poeta compôs um jogo de
adivinhação. Posteriormente uma outra solução, tão adaptada, plena de
sentido e surpreendente como a primeira, é encontrada, de tal modo que

20
aquela é tão precisamente "correta" quanto esta. Destarte, apesar de ela ser
absolutamente estranha ao processo de criação, esta segunda palavra se
encaixa na criação como objetividade ideal tanto quanto a palavra para a qual o
enigma foi criado. A partir da conclusão da nossa obra, ela não apenas passa a
ter uma existência objetiva e uma vida própria - desligada de nós - mas
especialmente passa a conter nesta existência autônoma, como que por graça
do espírito objetivo, forças e fraquezas, componentes e significações, sobre os
quais não temos alguma responsabilidade e pelos quais somos freqüentemente
surpreendidos.
Estas possibilidades e medidas da autonomia do espírito objetivo devem
apenas tornar claro que ele, mesmo onde foi criado a partir da consciência de
um espírito subjetivo, após a objetivação, possui uma validade apartada deste
espírito subjetivo e uma chance independente de ressubjetivação; decerto, esta
chance não precisa ser realizada, pois, como no exemplo anteriormente citado,
a segunda solução da charada legitima-se em sua espiritualidade objetiva,
mesmo antes de ter sido descoberta e mesmo se isso jamais ocorresse. Esta
qualidade peculiar dos conteúdos da cultura - que até aqui esteve valendo para
os conteúdos específicos, isolados, da cultura - constitui o fundamento
metafísico da autonomia fatídica, em função da qual o reino dos produtos da
cultura cresce continuamente. Este crescimento dá-se como pulsão de uma
necessidade lógica interna, amiúde, quase que sem relação com a vontade e
com a personalidade dos produtores e indiferente não só à quantidade de
sujeitos pelos quais estes produtos da cultura são acolhidos e à quão profunda
e integralmente isto ocorre, mas ainda indiferente à possibilidade de acréscimo
de sua significação cultural.
O caráter fetichista que Marx confere aos objetos econômicos à época
da produção de mercadorias constitui apenas um caso especial, modificado,
deste destino geral de nossos conteúdos culturais. Estes conteúdos
encontram-se na situação paradoxal - e com a elevação da cultura cada vez
mais - de terem sido criados por sujeitos e destinarem-se a sujeitos, mas,
seguirem, na forma intermediária da objetividade, uma lógica de
desenvolvimento imanente e com isso se distanciarem tanto de sua origem
como de sua finalidade. Não se trata aqui, por exemplo, de necessidades
físicas, mas de fato apenas de necessidades culturais, que decerto não podem

21
ultrapassar os condicionamentos físicos. Mas o que impulsiona os produtos,
como produtos do espírito, como se um decorresse do outro, é a lógica cultural
dos objetos e não a lógica das ciências da natureza. Aqui temos a fatídica
compulsão interna de toda técnica, a partir do momento em que ela afastou seu
desenvolvimento do emprego imediato. Assim, por exemplo, a produção
industrial de certos produtos pode se aproximar da de produtos derivados para
os quais não existe realmente demanda; apenas uma contingência leva a isso:
aproveitar ao máximo a instalação já montada. A série técnica exige a partir de
si ser completada por elementos dos quais a série anímica, a que é
propriamente definitiva, não necessita - e assim surgem ofertas de mercadorias
que despertam necessidades que, de seu lado, são artificiais e que da
perspectiva da cultura dos sujeitos são desprovidas de sentido.
Em alguns ramos da ciência, a situação não é diferente. A técnica
filológica, por exemplo, por um lado, alcançou uma liberdade e perfeição
metódica insuperáveis, mas, por outro, os objetos que, trabalhados segundo
esse método, constituem um interesse real da cultura espiritual não crescem na
mesma velocidade, e assim o esforço filológico muitas vezes se toma uma
micrologia, um pedantismo e um tratamento do inessencial - como que um
ponto morto do método, uma continuação da norma objetiva, cujo caminho
autônomo já não coincide com o da cultura como um aperfeiçoamento da vida.
Em muitos círculos científicos surge, desta maneira, aquilo que se pode
chamar conhecimento superficial uma soma de conhecimentos metodicamente
irrepreensíveis, inatacáveis da perspectiva do conceito de saber abstrato, que,
no entanto, se distanciam do verdadeiro sentido final de toda pesquisa; e aqui
considero naturalmente não a finalidade exterior, mas a finalidade ideal e
cultural. A monstruosa oferta de forças direcionadas para a produção espiritual
- fato que é favorecido também pela pujança econômica -, sendo algumas,
amiúde, também talentosas, conduziu a uma valoração específica de cada
trabalho científico, cujo valor justamente muitas vezes constitui apenas uma
convenção, quase uma conspiração da casta erudita para um misterioso
cruzamento consangüíneo fecundo, cujas criações são, não obstante, tanto no
sentido interior como no da continuidade da atuação, infecundas. Aqui se funda
o culto ao fetiche, que já de um longo tempo é impulsionado com o "método" -
como se uma realização pudesse ser considerada valiosa exclusivamente em

22
função da correção do seu método; este é o meio deveras inteligente para a
legitimação e avaliação positiva de um número ilimitado de trabalhos, que
estão isolados do sentido e da coerência do desenvolvimento do
conhecimento.
Poder-se-ia, no entanto, objetar que por meio destas investigações
aparentemente inessenciais algumas vezes aquele desenvolvimento foi
promovido de um modo surpreendente. Acresce, porém, que estas vezes
constituem chances casuais que existem em qualquer área, e que não nos
podem impedir de conceder ou negar a uma atividade o seu direito e o seu
valor, segundo nossa racionalidade atual, mesmo sabendo que ela não é
onisciente. Ninguém consideraria sensato perfurar ao acaso qualquer lugar no
mundo em busca de carvão ou petróleo, mesmo sendo incontestável que existe
a possibilidade de se encontrar alguma coisa. Existe um certo limiar de
probabilidade para a utilidade de trabalhos científicos, que em um entre mil
casos se pode mostrar uma lei equivocada, mas que nem por isso legitima o
empenho dos 999 esforços frustrados. Sob a perspectiva da história da cultura,
isto constitui apenas uma manifestação particular daquele transplante dos
conteúdos da cultura em um solo, no qual eles são impulsionados por forças e
finalidades outras que não as culturalmente plenas de sentido e no qual eles,
amiúde, inevitavelmente geram flores estéreis.
Este mesmo motivo formal apresenta-se quando, no desenvolvimento da
arte, a capacidade técnica se toma grande o suficiente para emancipar-se da
finalidade cultural da arte. Obedecendo agora apenas à sua própria lógica
objetiva, a técnica desenvolve um refinamento sobre o outro, os quais
representam apenas aperfeiçoamentos da técnica, e não mais os do sentido
cultural da arte. A especialização excessiva, que hoje é lastimada em todas as
áreas de trabalho, e que, no entanto, obriga o desenvolvimento progressivo
delas segundo suas leis com uma inexorabilidade demoníaca,2 constitui
apenas uma configuração especial daquele destino geral dos elementos da
cultura: que os objetos têm uma lógica própria de desenvolvimento - não uma
lógica de desenvolvimento conceitual ou natural, mas apenas seu
desenvolvimento como obra humana cultural - em conseqüência da qual eles

2
No sentido grego do daimon: entidade sobrenatural. Cf., por exemplo. a descrição de Eros
feita por Sócrates em O Banquete, de Platão. (N. do T.)

23
se desviam da direção na qual eles poderiam se adaptar ao desenvolvimento
pessoal da alma humana. Por isto, esta discrepância não é de modo algum
idêntica àquela freqüentemente salientada: o desenvolvimento do meio ao valor
de finalidade última, como as culturas adiantadas têm paulatinamente
demonstrado, pois isto constitui algo puramente psicológico, uma acentuação a
partir de casualidades ou necessidades da alma e sem uma relação fixa com a
coerência objetiva das coisas. E aqui se trata exatamente disto, da lógica
imanente das configurações culturais das coisas; o homem toma-se agora o
mero portador de constrangimentos, com o qual esta lógica domina os
desenvolvimentos e os conduz como que à tangente do caminho, na qual eles
retomariam ao desenvolvimento cultural dos homens vivos. Isto constitui a
tragédia própria da cultura, pois como destino trágico - em contraposição ao
triste ou ao que destrói a partir de fora - entendemos o seguinte: que as forças
aniquiladoras dirigidas contra uma essência brotam das camadas mais
profundas desta mesma essência; que com a sua destruição se consuma um
destino que já estava instalado nela mesma e que o desenvolvimento lógico
constitui justamente a estrutura com a qual a essência construiu sua própria
positividade. O fato de o espírito criar algo objetivo autônomo, que se toma o
caminho para o desenvolvimento do sujeito de si mesmo para si mesmo,
constitui o conceito de toda cultura; mas justamente com isso aquele elemento
integrante e condicionante da cultura é predeterminado a um desenvolvimento
próprio, que consome continuamente forças dos sujeitos, que abarca sujeitos
em seu caminho, sem, no entanto, conduzi-l os à sua própria altura. O
desenvolvimento do sujeito agora não pode mais tomar o caminho do
desenvolvimento do objeto; seguindo-o, todavia, ele se perderá em um beco
sem saída ou em um esvaziamento da vida interior peculiar.
De um modo mais positivo ainda, o desenvolvimento da cultura exclui de
si o sujeito pela já indicada ausência de forma e de limites do espírito objetivo,
que resulta do número ilimitado de seus produtores. Qualquer um pode
contribuir para o acervo dos conteúdos culturais objetivados sem qualquer
consideração para com os outros contribuintes; este acervo possui em cada
época cultural específica uma determinada coloração, ele tem internamente um
limite de qualidade, mas não um limite de quantidade. Ele não tem nenhum
motivo para não aumentar infinitamente, para não alinhar livro sobre livro, obra

24
de arte sobre obra-se-arte, descoberta sobre descoberta. A forma da
objetividade como tal possui uma capacidade de preenchimento ilimitada. Mas
com esta acumulabilidade inorgânica, ela se toma no fundo incomparável à
forma da vida pessoal. A capacidade de acolhimento desta não é apenas
limitada pela força e pela duração da vida, mas também por uma certa unidade
e uma relativa coerência de sua forma. Portanto, a ela é imposta uma escolha -
com um espaço de manobra determinado - dos conteúdos que se lhe oferecem
como meio para seu desenvolvimento individual. Na medida em que o indivíduo
pode deixar de lado o que seu desenvolvimento próprio não pode assimilar,
esta incomensurabilidade aparentemente poderia não se efetivar na prática. E
isso não se dá tão facilmente. O acervo do espírito objetivado, que cresce
interminavelmente, atiça pretensões no sujeito, desperta nele veleidades,
invade-o com sentimentos de insuficiência e desamparo peculiares e
finalmente entrelaça-o em relações totais de cuja totalidade ele não pode se
esquivar, a menos que domine seus conteúdos específicos. Assim surge a
situação problemática típica do homem moderno: o sentimento de ser
circundado por inúmeros elementos culturais que não lhe são desprovidos de
significação, mas que também não são, em seu fundamento, plenos de
significação - elementos culturais que no conjunto possuem algo de opressivo,
porque ele não pode assimilar interiormente a todos individualmente, e
tampouco pode simplesmente descartá-los, uma vez que eles pertencem
potencialmente à esfera de seu desenvolvimento cultural. Poder-se-ia
caracterizar isso com a inversão da frase que qualificava os primeiros
franciscanos em sua pobreza serena, em sua absoluta libertação de todas as
coisas, que de alguma maneira conduziriam o caminho da alma através de si e
fariam dele um caminho indireto: nihil habentes, omnia possidents - em vez
disso, os homens de culturas muito ricas e sobrecarregadas omnia habentes,
nihil possidentes.
Estas experiências já foram expressas em muitas formas;3 aqui se trata
de seu enraizamento profundo no centro do conceito de cultura. Toda a riqueza
que este conceito realiza se baseia no fato de que criações objetivas, sem
perder a sua objetividade, são incluídas no processo de aperfeiçoamento de

3
Eu as tratei detidamente em minha Philosophie des Geldes, em um grande número de
exemplos históricos concretos.

25
sujeitos como seu caminho ou meio. Se, agora, da perspectiva do sujeito, a
maneira superior de sua perfeição é assim alcançada - esta questão fica em
aberto; no entanto, para a intenção metafísica, que busca unificar o princípio do
sujeito e o do objeto como tais, encontra-se aqui uma das maiores garantias
contra não ter de reconhecer a si próprio como ilusão. A pergunta metafísica
encontra com isso uma resposta histórica. Nas criações culturais, o espírito
alcançou uma objetividade, que o tornou independente de todo acaso da
reprodução subjetiva e o tomou ao mesmo tempo útil à finalidade central da
perfeição subjetiva. Enquanto a resposta metafísica àquelas perguntas trata de
evitá-las, na medida em que ela mostra de alguma maneira a oposição sujeito -
objeto como sendo fútil, a cultura mantém-se firme na oposição total dos
partidos, na lógica supra-subjetiva das coisas espiritualmente formadas, na
elevação do sujeito sobre si mesmo até si mesmo. A capacidade básica do
espírito - poder abstrair de si mesmo e confrontar-se consigo como se fora um
terceiro, configurando, reconhecendo, valorando e somente nesta forma
alcançar a consciência de si mesmo - alcançou com o fato da cultura seu raio
mais extenso, afastando completamente o objeto do sujeito, para reconduzir
novamente um ao outro. Mas justamente nesta lógica própria do objeto - na
qual o sujeito se reconquista como um sujeito perfeito em si mesmo e em
conformidade consigo mesmo - rompe-se a imbricação dos partidos.
O que este ensaio já havia salientado: que o criador não pensa no valor
cultural, mas apenas na significação objetiva da obra significação objetiva que
é circunscrita pela idéia da própria obra -, resvala, com as transições
imperceptíveis de uma lógica de desenvolvimento puramente objetiva, para a
caricatura: uma especialização isolada da vida, uma autofruição da técnica que
já não encontra mais o caminho para o sujeito. Justamente esta objetividade é
possibilitada pela divisão do trabalho, que ajunta no produto específico as
energias de todo um complexo de personalidade, sem se preocupar se um
sujeito poderá novamente recuperar a quantidade de espírito e vida ali
investida para seu próprio fomento, ou se apenas uma necessidade periférica
exterior é satisfeita com isso. Aqui encontramos o fundamento profundo do
ideal ruskiniano de substituir todo trabalho fabril pelo trabalho artesanal dos
indivíduos. A divisão do trabalho desvincula o produto como tal de todo e
qualquer contribuinte específico. Ele passa a existir em uma objetividade

26
autônoma que em verdade torna o produto apropriado a inserir-se em uma
ordem das coisas ou a servir a um fim específico objetivamente determinado;
mas com isso escapa ao objeto aquela significação subjetiva interior, que
somente o homem inteiro pode dar à obra total e que sustenta sua inserção na
centralidade anímica de outros sujeitos. Por isso, a obra de arte constitui um
valor cultural incomensurável, uma vez que ela é inacessível a toda divisão do
trabalho, ou seja, uma vez que nela (pelo menos no sentido essencial atual e
ignorando as significações metaestéticas) a criação conserva interiormente o
criador. O que em Ruskin poderia aparecer como ódio da cultura constitui em
realidade paixão da cultura: ela intenciona fazer retroceder a divisão do
trabalho, que torna o conteúdo da cultura desprovido de sujeito e lhe dá uma
objetividade esvaziada de alma, com a qual o conteúdo da cultura é excluído
do verdadeiro processo cultural. E então manifesta-se o desenvolvimento
trágico que amarra a cultura na objetividade dos conteúdos, que, exatamente
por sua objetividade, entrega finalmente os conteúdos a uma lógica própria e
que evita a assimilação cultural pelo sujeito - isto se manifesta finalmente na
capacidade de crescimento dos conteúdos do espírito objetivo. Uma vez que a
cultura não possui nenhuma unidade de forma concreta - antes cada criador
coloca seu produto ao lado do dos outros como se fosse em um espaço sem
limite -, resulta aquela multiplicidade de coisas, das quais cada uma com um
certo direito tem a pretensão de tornar-se valor cultural e resulta também um
desejo nosso de aproveitá-las como tal. A ausência de forma do espírito
objetivado como totalidade permite a ele um ritmo de desenvolvimento, que se
distancia rapidamente do ritmo de desenvolvimento do espírito subjetivo, o qual
permanece necessariamente atrás daquele. Mas o espírito subjetivo não sabe
preservar totalmente a coerência de sua forma dos contatos, tentações e
deformações de todas aquelas coisas; a superioridade do objeto com respeito
ao sujeito, realizada em geral pelos rumos do mundo, que na cultura é anulada
em um equilíbrio feliz, torna-se novamente perceptível no âmbito da cultura
pela ausência de limites do espírito objetivo.
O que se lastima como sobrecarga de nossa vida com mil su-
perficialidades das quais não podemos nos libertar, como contínuo estímulo do
homem cultural, é que este não é levado à criatividade, mas ao consumo
passivo de mil coisas que o nosso desenvolvimento não pode abarcar e que

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permanecem nele como peso morto - todos estes sofrimentos culturais não são
nada além dos fenômenos daquela emancipação do espírito objetivado. O fato
de isto existir significa justamente que os conteúdos culturais seguem
finalmente uma lógica independente de suas finalidades culturais e que eles se
afastam sempre mais delas, sem que o caminho do sujeito seja dispensado de
todos estes conteúdos culturais que se tornaram qualitativa e quantitativamente
desmedidos. Antes, uma vez que este caminho como caminho cultural é
condicionado pela autonomização e objetivação dos conteúdos da alma, surge
a situação trágica de a cultura já abrigar em si, em seus primeiros momentos
de existência, aquelas formas de seu conteúdo que estão determinadas, por
meio de uma inevitabilidade imanente, a desviar, dificultar e tornar perplexo e
conflitante o caminho da alma em si como algo inconcIuso para si mesma algo
perfeito - que corresponde a sua essência interior.
O grande empreendimento do espírito - superar o objeto como tal por
meio da criação de si mesmo como objeto, para retornar a si mesmo com o
enriquecimento alcançado mediante esta criação - é bem-sucedido inúmeras
vezes; mas ele paga esta autoperfeição - condicionada à conformidade às leis
próprias do mundo criado por ele mesmo - com a chance trágica de ver uma
lógica e uma dinâmica serem produzidas, levando os conteúdos da cultura a se
afastarem continuamente e com uma aceleração crescente das finalidades da
cultura.

Extraído de: Souza, Jessé e ÖELZE, Berthold. 1998. Simmel e a modernidade.


Brasília: UnB. p. 79 -108.

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