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PSKANALISE

E
SOCIOLOGIA
por uma síntese
antropológica
R.KALIVODA

uma sociedade
unidimensional?
CRIT CA DAVID HOROWITZ
NOVA
PSICANÁLISE E SOCIOLOGIA

Por uma síntese antropológica


Uma sociedade unidimensional?

R. Kalivoda é um sociólogo tche


co cujos trabalhos começam a ter
ampla difusão e repercussão em
tôda a Europa e que pertence à
mesma escola da nova geração de
pensadores tchecos da qual fazem
parte Ota Klein e Radovan Richta,
já publicados por NOVA CRÍTICA
em As Opções da Nova Sociedade.

David Horowitz é o sociológo e


editor americano cujas análises já
são bem conhecidas pelo público
interessado de todo o mundo, for
mando ao lado de Paul Baran,
Sweezy e outros um dos grupos
"

mais lúcidos e atualizados da mo


derna crítica sociológica ameri
cana.
PSICANÁLISE E SOCIOLOGIA
Por uma síntese antropológica
Uma sociedade unidimensional?

R. Kalivoda

David Horowitz

Nova Crítica
ÍNDICE

POR UMA SÍNTESE ANTROPOLÓGICA

Preliminar 9

1. A condição natural do homem 11

2. "Natureza humana" e "natural do homem" 17

3. Estrutura material e psiquismo 23

4. A constante antropológica 34

5. A estrutura psico-social 43

UMA SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL?

1. A sociedade em equilíbrio 73

2. Estagnação e industrialização 85

3. Capitalismo e industrialização 91

4. Fôrças neutralizantes 95

5. A crise atual e suas perspectivas 101


POR UMA SÍNTESE ANTROPOLÓGICA

R. Kalivoda
PRELIMINAR

Não se justifica o abandono em que, até bem recen


temente, foi deixada a psicanálise pelas demais ciências
humanas, em especial pela sociologia e mais particular
mente pela sociologia que se alimenta também com as
aquisições do pensamento marxiano. A psicanálise é
mais do que um simples método terapêutico; é, sim, uma
antropologia filosófica que necessita portanto de uma in
terpretação e uma crítica filosóficas totalizadoras, que
só podem ser realizadas a partir da interpenetração dos
campos da psicanálise e da sociologia.
Este ensaio tende, de um lado, a uma interpretação
crítica da psicanálise do ponto de vista da sociologia e
da filosofia marxiana do homem e, por outro lado, a uma
integração crítica da psicanálisé nessa mesma filosofia,
visando assim o desenvolvimento de sua problemática.
É necessário constatar a mútua atração entre a psi
canálise e o marxismo, constatação esta que só é para
doxal para aquêles que nestas últimas décadas fizeram
proliferar, em publicações ditas marxistas, suas conde
nações simplistas da psicanálise, então chamada de irra
cional. Muitos intelectuais de países socialistas, e mes
mo o próprio pensamento científico, conheceram, duran
te êsse período, horas verdadeiramente difíceis, senão
trágicas: citemos o caso de Wilhelm Reich, excomunga
do pelos comunistas e pelos psicanalistas alemães no prin

9
cípio dos anos trinta, morto numa prisão americana, pri
meiro psicanalista que tentou uma síntese séria entre a
psicanálise e o marxismo; o caso do intelectual tcheco
Závis Kalandra (uma das primeiras vítimas das repres
sões estalinistas na Tchecoslováquia) que aplicou a psi
canálise, de modo notável, na interpretação das velhas
lendas tchecas, ou o caso de Bohuslav Brouk, membro
do grupo surrealista tcheco, que se tornou emigrado an
timarxista depois da guerra.
Os surrealistas e os membros da escola filosófica de

Frankfurt tentaram essa integração crítica: entre os sur


realistas, foi André Breton e seu livro Os vasos comuni
cantes (1932); em relação à escola de Frankfurt, ressal
temos o nome de Erich Fromm e, a seguir, o do filósofo
Herbert Marcuse em seu livro Eros e Civilização (1955).
Em relação à Tchecoslováquia, deve-se falar dos surrea
listas (Karel Teige, Vitezslav Nezval) e do "grupo his
tórico" (V. Husa, J. Pachta, V. Charvat e outros).
Assim, êste ensaio reivindica para si uma longa tra
dição que constitui uma continuidade histórica e uma con
tinuidade ideológica, e evita sacrificar-se a um elemento
qualquer, pois para o marxismo, diversamente das outras
doutrinas, a absorção crítica de Freud não conduz a uma
superação da teoria, mas sim ao seu enriquecimento.
No século passado, a teoria marxista insistiu na des
crição dos interêsses de classes, pois era aí que apare
ciam os componentes naturais do homem. Mas hoje é
preciso ver que a pesquisa da estrutura do homem e da
sociedade nos leva a estudar um segundo nível que con
diciona a própria evolução das relações econômicas e so
ciais sem, com isso, nos fazer cair na concepção antro
pológico-naturalista de um Feuerbach. Com efeito, Marx
e Engels nunca dissolveram no "homem econômico-social"
os restos do "homem natural".

10
A CONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM

Os componentes naturais do homem ocupavam na


teoria marxista do século passado, inclusive em Marx e
Engels, um lugar tão secundário, e as dimensões de clas
se e histórico-sociais um lugar tão preponderante que
uma aliança do "biologismo" freudiano e do "historicis
mo" marxista, tal como a tentaram no começo dos
anos trinta os surrealistas e os filósofos "de Frank

furt", pôde parecer, para os "marxistas médios" dessa


época, alguma coisa de muito suspeito, e mesmo de re
preensível. Isso lhes parecia uma aliança entre a água
e o fogo.

Mesmo assim, permanece o fato de que a pesquisa


dessas duas correntes guarda uma considerável importân
cia e não apenas no que concerne à integração efetiva
das descobertas da psicanálise na concepção marxista do
homem; em relação direta com essa pesquisa foram colo
cadas as bases da restituição dos dados fundamentais da
teoria marxista da existência pela sua explicação cientí
fica e por seu desenvolvimento ulterior. Esse dossier não
diz respeito simplesmente ao desenvolvimento da teoria
social marxista mas ainda ao desenvolvimento da antro

pologia marxista.
Os surrealistas efetuaram essa restituição por uma
intuição particular sem se entregar, em geral, a um es
tudo histórico detalhado da evolução das idéias de Marx.

11
Karel Teige (1) era, por certo uma exceção. Todavia,
suas conclusões podem constituir, por seu caráter de evi
dência e por seu "anti-intelectualismo de especialistas",
um ponto de partida para a pesquisa mais fácil que o
estudo filosófico e erudito de Erich Fromm sôbre a con

cepção marxiana do homem, que não pode ser utilizado,


a nosso ver, a não ser depois de uma revisão crítica apro
fundada.

Apesar disso, a obra de Fromm O conceito mar-

xista do homem é um estudo fundamental, uma das


-

mais notáveis entre as obras recentes dedicadas ao hu

manismo de Marx. Seu valor excepcional reside no fa


to de que prova incontestàvelmente a continuidade de pen
samento entre o jovem Marx e o "Marx da maturidade",
permitindo assim acabar de uma vez por tôdas com aquê
les que pretendem, de uma maneira ou de outra, pôr em
causa essa continuidade. É de suma importância para
nosso estudo que Fromm, enquanto psicanalista que uti
liza desde os anos trinta, e com sucesso, o conceito de

energia psíquica elementar que êle encara como uma


-

fôrça motriz comum do homem tenha tido sucesso em


-

encontrar em Marx elementos que mostram uma proximi


dade de gênero entre o humanismo marxista e a psica
nálise de Freud. Não apenas Fromm provou que Marx,
em seus primeiros escritos, utiliza a categoria da cons
tância e da generalidade de um "natural" do homem,

1. Por seu estudo sistemático de Marx e em particular de seus


primeiros escritos, Teige ocupa um lugar à parte, não apenas entre os
surrealistas mas também entre os marxistas dos anos trinta em geral. Foi
graças à utilização criadora e à aplicação dos primeiros escritos de Marx
que êle pôde, em inúmeras ocasiões, assumir posições originais que,
diversamente das de muitos de seus contemporâneos, ainda hoje perma
necem válidas.

12
como, além do mais, provou que essa categoria é uma
constante em tôda a obra de Marx (2).

2. Fromm apoia sua demonstração na polêmica do "Marx da ma


turidade" com Bentham: "Se quisermos saber o que convém a um ca
chorro, é necessário antes de mais nada estudar o "natural" do cachorro.
Esse natural não pode ser reconstituído apenas a partir do “princípio de
utilidade". Se quisermos aplicar èsse princípio ao homem, é preciso
conhecer o natural do homem em geral e suas modificações em cada
época histórica determinada". (Sublinhado por Erich Fromm, citação do
Capital, tomo I, p. 642).
Fromm mostra igualmente que, aqui, o "Marx da maturidade", o
Marx do Capital, repete palavra por palavra o "jovem" Marx, o dos
primeiros escritos; êste último, com efeito, distinguia em seus primeiros
passos "dois tipos de móveis e motivos humanos: os primeiros são cons
tantes ou fixos como a fome ou o desejo sexual que formam uma parte
invisível do natural do homem e que só podem mudar em formas e
direções correspondentes a culturas respectivamente diferentes; os se
gundos são os motivos "relativos" que não formam uma parte indivisível
do natural do homem e que "são determinados por certos componentes
sociais e por certas condições da produção e do trabalho" (op. cit., p.
16, 11, sublinhado por Erich Fromm, cit. de Marx, MEGA V, p. 596).
Esta passagem é extraída do manuscrito da Ideologia Alemã, da parte
intitulada "Santo Max" que foi tirada do manuscrito. Trata-se por certo
de um texto autêntico de Marx e Engels: o manuscrito foi corrigido por
suas próprias mãos, e êles realizaram nesse manuscrito correções defi
nitivas que incidem tanto sobre o fundo quanto sobre a forma. Erich
Fromm tem aliás o grande mérito de ter identificado os pontos funda
mentais da tese dêsse texto no Capital de Marx.
Como se trata de um texto de importância capital para a compreensão
da concepção de Marx e Engels referentes aos fatores elementares da
existência humana e às relações entre comunismo e natural humano,
convém citá-lo in extenso, ainda que seja relativamente longo: "Os comu
nistas, através de seu ataque contra os fundamentos materiais sobre os
quais repousou até hoje a fixação ("Fixität", nota de R. K.) necessária
do desejo ou dos pensamentos, são os únicos cuja ação histórica fará
com que efetivamente a libertação dêsses pensamentos fixados seja

13
realizada; assim essa libertação não será mais uma prece moral impotente
como foi até o momento em todos os moralistas, incluindo Stirner. A
organização comunista atua de dois modos sobre os desejos criados no
indivíduo pelas atuais relações; alguns dêsses desejos, aquêles que existem
sob não importa quais relações e que as diferentes relações sociais só
mudam em sua forma e em seu alcance, como dizia, alguns dêsses de
sejos só serão mudados, nessa forma social, na medida em que lhes sejam
dados os meios de se desenvolver, de se afirmar normalmente; em com

pensação, os outros, que devem sua existência apenas a formas sociais


particulares, a certas condições da produção e das relações sociais, per
derão tôda razão de existir. Sòmente na praxis, pela mudança dos
desejos reais e práticos e não por comparação com relações históricas
anteriores, é que se pode divisar aquêles que serão conservados e aquêles
que desaparecerão na organização comunista.
"Por certo, esses têrmos "fixo" ("fix”, nota de R. K.) e "desejos"
("Begierden", nota de R. K.) que acabamos de empregar para refutar
Stirner expõe o fato de que em nossa sociedade atual um indivíduo
particular pode satisfazer suas necessidades em detrimento de todos os
outros indivíduos e diz que "isso não deve ser", que êsse é "mais ou
menos" o caso de todos os indivíduos no momento atual e que assim isso
torna impossível o livre desenvolvimento do indivíduo inteiro; com efeito,
êste não saberia nada da ligação empírica dêsse fato com a organização
atual do mundo no qual desejos de egoístas diferentes se fixam ("fix
werden", nota de R. K.). Ora, por sua própria existência, o desejo é
qualquer coisa de fixo ("etwas Fixes", isto é, estável e constante, nota
de R. K.) e só à mente de São Max e de pessoas de sua espécie é que
pode ocorrer de "fazer fixar" ("fix werden lassen", nota de R. K.), por
exemplo, seu desejo sexual que já está fixo e que não pode ser outro a
não ser por castração ou impotência. Tôda necessidade sobre a qual
se baseia um "desejo" é igualmente qualquer coisa de "fixo" ("Fixes")
e São Max, apesar de todos os seus esforços, não poderá afastar tôda sua
“fixidez” (“Fixität”, isto é, "permanência” e não “fixação”) e, por exemplo
não comer no intervalo de unidades de tempos "fixos" ("fixar" ou seja
"fixos", no sentido de determinados").

14
"Os comunistas não pensaram nem um segundo em afastar essa
fixação (“Fixität") de seus desejos e necessidades como lhes pede Stirner
em seu mundo imaginário; êles lutam por uma organização da produção
e das relações que lhes ofereça a satisfação ("Belfriedigung") normal de
todas as suas necessidades, isto é, limitada apenas por essas necessidades"
(sublinhado por R. K.).
Essa passagem mostra que Marx e Engels caracterizam a sexualidade
e a fome como necessidades e desejos fixos que constituem uma camada
constante da existência humana (numa página antes, pode-se ler na
Ideologia Alemã: "O cristianismo só quis nos libertar do domínio do corpo
e dos "desejos que nos excitam" porque considerava nosso corpo e nossos
desejos como estranhos a nós; queria nos resgatar de nossa determinação
pela natureza ùnicamente por causa da idéia que nossa própria natureza
não nos convém. Se portanto eu mesmo não sou natureza, se minhas
necessidades naturais, se tôda minha natureza própria não me pertence,
como prega o cristianismo, então tôda determinação pela natureza, quer
seja através de minha natureza própria ou através do que se convencionou
chamar de natureza externa, me aparece como uma determinação por
qualquer coisa de estrangeiro, como uma coação opressiva que é exer
cida sôbre mim" (ver op. cit., p. 255). Sobressai igualmente dessa
passagem que Marx e Engels criticam a noção de "fixo" em Stirner ao
rejeitar a fixação stirneriana que é fixação ativa das necessidades naturais
fundamentais do homem sôbre "condições e situações do mundo" (ver
op. cit., p. 256 e 257).
É justamente contra essa relativização das necessidades constantes do
homem, contra a teoria que os faz derivar das "condições" (donde os
têrmos "fix werden", "fixação ativa") que Marx e Engels apresentam
uma fixidez efetiva como tal, isto é, uma permanência, uma continuidade
de caráter constante dessas necessidades naturais fundamentais. Estas
não dependem das condições sociais, não são formadas por elas. As
condições sociais só podem modificá-las. Essas necessidades, tais como
as entende Stirner, isto é, "fixadas por um certo estado de coisas", não
deixam por isso de ter uma existência real mas se alinham no segundo
tipo de móveis, precisamente, o tipo dos móveis que não são fixos.

15
Essa argumentação é de uma importância fundamental para a com
preensão da antropologia de Marx. Ela é na realidade um exemplo
clássico que mostra que essa obra (a obra de Marx), da qual se diz
que ela "dissolveu de maneira histórico-materialista" os fenômenos antro
pológicos constantes do homem nas "condições sociais", pelo contrário
esclarece conceitualmente esses fenômenos antropológicos constantes numa
polêmica contra "sua dissolução histórico-materialista nas condições so
ciais", o que faz Stirner.

16
"NATUREZA HUMANA"
E "NATURAL DO HOMEM"

Essa tese de Marx sôbre as constantes do "natural"

do homem, a fome e a sexualidade, que podem ser nu

ma determinada época histórica modificadas quanto à


sua forma e à sua direção mas que são componentes per
manentes da concepção marxiana do homem, reduz a na
da a idéia segundo a qual o Marx "maduro" teria com
preendido o homem como um "conjunto de relações
sociais".

Todavia, é necessário distinguir nìtidamente o con


ceito marxiano de "natureza humana" (no sentido de es
sência, de substância) do conceito marxiano de "natural
do homem", pois o Marx "maduro" se afasta efetivamen
te do primeiro. Fromm identifica falsamente êsses con
ceitos de "natural do homem" e de "natureza humana"

em Marx, o que o impede de notar a continuidade da no


ção de "natural do homem" até mesmo nos Manuscritos
econômico-filosóficos. É bem nos Manuscritos que encon
tramos a formulação mais elaborada e mais desenvolvi
da do conceito de "natural do homem" em Marx, formu
lação de capital importância para compreender as rela
ções entre as concepções marxianas e freudianas do ho
mem: "O homem é em si um ser natural". Enquanto ser
natural e enquanto ser natural vivo, por um lado êle está
equipado com forças naturais, fôrças da vida, é um ser

17
natural ativo; essas forças existem nêle na condição de
dons e faculdades, na condição de instintos; por outro la
do, êsse ser natural, corporal, sensível e objetivo é um
ser que sofre, submetido e limitado assim como o são os
animais e as plantas, o que equivale a dizer que os objetos
de seu instinto existem fora dêle, enquanto objetos inde
pendentes dêle, enquanto êle tem necessidade dêles para
exprimir e afirmar suas fôrças essenciais e não o pode
fazer sem êles. O fato de que o homem é um ser cor
póreo, dotado de fôrças naturais, um ser vivo, real, sen
sível e objetivo, significa que os objetos de seu ser, de
sua manifestação no mundo, são reais, são objetos sen
síveis; por outras palavras, significa que êle não pode
manifestar sua existência a não ser por objetos sensí
veis reais... A fome é uma necessidade natural, e por
tanto o homem tem necessidade da natureza existente fo
ra dêle, de algum objeto fora dêle para o satisfazer...
O homem enquanto ser sensível objetivo é portanto um
ser que sofre (leidend) e, sendo um ser que sente seu
sofrimento, é um ser apaixonado. A paixão (Leidens
chaft) é uma fôrça essencial do homem que deseja ar
dentemente seu objeto (3)".

3. Manuscritos econômico-filosóficos
Logo depois das frases citadas, começa um parágrafo ("Mas o homem
é apenas um ser natural, um ser natural humano...") no qual Marx
faz uma distinção nítida entre o natural humano e o natural original do
homem que êle acaba de definir com precisão um pouco mais acima.
Sobressai indubitàvelmente de uma outra passagem dos Manuscritos que
há uma grande diferença quantitativa entre essas duas categorias de
naturais. Essa passagem é a seguinte: "Pode-se concluir daí (isto é,
da alienação do operário no capitalismo) que o homem (o operário) só
conhece atos livres nas suas funções animais, na alimentação, no beber,
na reprodução, em suma no alojamento, na construção, etc., enquanto que
em todas as suas funções humanas êle não se sente mais do que um

18
animal. O animal torna-se o humano, e o humano torna-se o animal.

A alimentação, o beber, a reprodução etc, são de fato igualmente fun


ções humanas. Mas na abstração, que as separa do resto do ciclo da
atividade humana e de fato dos objetivos finais e únicos, são animais
(ver op. cit.).
O tema central dos Manuscritos, a saber "o comunismo enquanto
destruição positiva da propriedade privada” (op. cit.) conduz diretamente
à idéia segundo a qual o desabrochar total do homem natural e social
em regime de comunismo "positivo" significa simplesmente "a aquisição
efetiva da essência do humano pelo homem e para o homem" (op. cit.).
Essa diferenciação entre o natural original do homem e a natureza
humana, tão nitidamente efetuada por Marx nos Manuscritos, é de uma
capital importância para a compreensão de sua concepção do homem
e de sua dinâmica evolutiva. Basta ressaltar aqui que a compreensão de
tôda evidência metafísica da natureza humana comunista nos Manuscritos
não deve ser tomada por aquilo que é do Capital; o conceito de natu
reza humana dos Manuscritos não poderia ser identificado com o de
natural humano do Capital. Este último toma diretamente por ponto de
partida o conceito de natural humano original do homem dos Manus
critos.

Fromm, que faz da identificação errônea dessas duas categorias uma


das partes essenciais de seu estudo, de qualquer forma tem razão ao
ressaltar que, em certas passagens do Capital, pode-se observar a irrupção
da natureza humana dos Manuscritos no "natural humano" próprio ao
Capital. Isso aparece em particular no tomo II, onde está escrito que os
produtores unidos na sociedade comunista "regulamentam a troca de seus
produtos baseando-se nas condições mais dignas e mais adequadas para
o natural humano". (Ver Capital, III-2, pág. 368 em tcheco). Todavia,
o emprego do superlativo indica que se trata apenas de uma "pressão"
da natureza humana sôbre um terreno que ela já perdeu. Em relação
à alienação, o problema é, por certo, mais complexo, como veremos na
última parte de nosso estudo.

Fromm igualmente tem razão ao escrever que a sexta tese de Marx


sôbre Feuerbach não significa para Marx uma evolução em direção a uma
concepção (definição) puramente sociológica do homem. Sua argumen
tação concreta entretanto não é tópica: Fromm confunde uma vez mais

19
Essa excelente aplicação de Marx (4) sôbre o natu
ral humano nos leva ao âmago da problemática da teo
ria freudiana da existência humana. E se tivermos em

"natureza" e "natural" e não vê que, em Marx, a idéia da “natureza


humana enquanto conjunto de relações sociais" e a possibilidade de com
preender a natureza humana em Feuerbach ùnicamente enquanto “es
pécie" (genus), noção imanente, interior, que une os indivíduos apenas
pela ordem do nascimento (ver Marx e Engels, Escritos, 3, p 18-19) não
são ainda função a não ser da apreensão unívoca da natureza humana
dos Manuscritos. Isto é confirmado muito claramente pela décima tese
onde se pode ler que "o objeto do materialismo antigo é a sociedade
"civil"; o objeto do nôvo materialismo é a sociedade humana, isto é, a
humanidade que Marx, sem prestar atenção a seus exegetas super
ficiais e continuando a utilizar a categoria de um natural humano cons
tante, destrói êle mesmo a opinião errônea muito corrente que desejaria
que a sexta tese sôbre Feuerbach soasse o toque do "antropologismo"
de Marx.

Notemos a sinceridade corajosa e direta com que Fromm interpreta


o Capital no espírito dos Manuscritos e que êle usa ao tentar impor a
ética (ethos) da substância humana dos Manuscritos. Encontra-se essa

mesma tendência em outros marxianos, "filósofos da praxis" mesmo que


com menos franqueza ou pureza conseqüente que se acha em Fromm.
Analisaremos as conseqüências lógicas dessas concepções, a nosso ver
errôneas, na última parte de nosso estudo. Resta-nos aqui ressaltar que
essa nobre "natureza humana" comunista do Marx dos Manuscritos certa
mente esteve presente no ponto de partida da concepção frommiana do
humanismo que o fêz afastar-se das idéias de Freud e tornar-se um
dos representantes marcantes da "neo-análise" psicanalítica. Ora, esta
última compromete, a nosso ver, a força de explicação própria ao freu
dismo autêntico. Essa secessão de Fromm, protagonista e representante
notável da tentativa de integração da psicanálise na filosofia marxista do
homem, secessão motivada sem dúvida por um respeito devoto e conse
qüente das visões humanistas ideais do jovem Marx, é no entanto bastante
lamentável.

4. Seria possível multiplicar as citações que provam a continuidade


dêsse conceito do Marx dos Manuscritos na obra do Marx da maturidade;

20
mente o fato que, para Marx, o natural humano comum
só pode ser modificado pela sociedade e pela história e
se conserva nelas por seu caráter constante, não se pode
censurar os surrealistas por terem renovado, atualizado
e enriquecido, nos anos trinta dêste século, essas premis
sas esquecidas da antropologia marxiana (5). O mais
exato, o mais marxiano mas também o mais inovador dê

les todos continua a ser Karel Teige quando escreve: "A


revolta da poesia é feita sob a bandeira da liberdade hu
mana e do amor humano, e é assim um apêlo aos sonhos
pré-históricos, a êste "humano eterno", a êste ser ante
social do homem que "por sua carne, seu cérebro e seu
sangue pertence à natureza" (Engels); ela tende a de
senvolver na sua integridade os desejos dêsse homem
eterno, modelado, cultivado e simultâneamente deforma
do e truncado pela evolução histórica da sociedade e,
através disso, fazer explodir as proibições materiais e
ideológicas que ensinam o homem a curvar a espinha dian
te dos grandes dêste mundo, a renunciar ao prazer e a
recuar no dia da vingança (6)".
Por sua vez, Jan Mukarovsky tirou das fórmulas sur
realistas a categoria bem definida da constituição antro

limitar-nos-emos a lembrar uma fórmula lacônica de um outro texto


fundamental de Marx, texto do qual deveria nascer o Capital, a saber
os Fundamentos da crítica da economia política: "anderseits, soweit ich
bestimmt werde, forciert durch meine Bedurfnisse, its es nur meine eigne
Natur, die ein Ganzes von Bedurfnissen und Trieben ist, das mir Gewalt
antut..."

5. André Breton exprime essa concepção, na sua linguagem poética


inimitável, em Os vasos comunicantes (1932)
6. Ver o estudo de Teige: "Um romântico revolucionário, K. M.
Macha", na coletânea Ni cygne ni lune, Praga, 1946.

21
pológica que êle soube aplicar em suas pesquicas teóri
cas (7).
Mas é possível a partir de agora considerar o natu
ral originário constante do homem em Marx enquanto
constante antropológica no sentido amplo da palavra?
Para esclarecer esta questão, devemos agora nos virar na
direção de Sigmund Freud.

7. Ver o estudo de Mukarovsky, "Pode o valor estético da arte


ser um valor absoluto?", de 1941, reeditado nos Estudos de estética do
autor, Praga, 1966.
O autor ainda usa aí diversas variantes terminológicas; vê-se aparecer
no seu estudo, ao lado do têrmo "constituição antropológica" os termos
"organização antropológica comum", "fundamento antropológico da huma
nidade", "constante antropológica" e mesmo "natureza" (no caso, subs
tância, essência, natureza humana) antropológica; trata-se por certo da
expressão de um mesmo conceito que não tem nada em comum com a
"natureza humana" da metafísica e onde a constante humana é compreen
dida de maneira estrutural (trata-se aí da "organização" constante do
homem).
No seu estudo bastante precioso sôbre "O homem da permanência e
o homem do acaso na estética surrealista" (in Orientace, 1966, 3) Oleg
Sus escolheu, entre todas essas variantes terminológicas, a de "constante
antropológica", uma vez que esta última faz com que sobressaia mais
ainda uma formulação fundamental. Esta escolha nos parece bem funda
mentada. Com efeito, trata-se bem de exprimir o que existe de perma
nente na "constituição" do homem; o têrmo "constante" torna mais di
fícil uma confusão com "natureza" metafísica. O caráter estrutural dessa

constante deve se originar de sua definição conceitual.

22
ESTRUTURA MATERIAL E PSIQUISMO

Não seria possível propor, para essa questão, uma


resposta precipitada ou apressada demais. Apenas atra
vés de um exame detalhado, ponto por ponto, do concei
to de natural humano é que poderemos tentar respondê
-la. Este exame nos levará necessàriamente a colocar a

nós mesmos uma outra questão, a da estrutura material


da existência humana.
Já ressaltamos que uma análise precisa do natural
humano de Marx, tal como está enunciado nos Manuscri
tos, nos conduz ao âmago da problemática da concepção
freudiana do homem. Isso poderá parecer surpreenden
te, mas é fato que Freud, na elaboração de seu conceito
das forças elementares da existência humana, toma obje
tivamente Marx por ponto de partida. Ele o toma por
ponto de partida em particular quando êste último ca
racteriza os instintos como forças de vida, talentos cria
dores e faculdade da substância * humana natural e ativa,
quando êle entende por homem um ser objetivo, um ser
que sofre e que é limitado pelo fato que os objetos de
suas necessidades, que lhe são indispensáveis em razão de
sua natureza, são independentes dessas mesmas necesi
dades.

* O ser, o existir do homem.

23
Reconhece-se aí uma interpretação que, no seu es
sencial, é a mesma que a da noção tìpicamente freudiana do
instinto e do princípio freudiano fundamental do ananké
(necessidade ou falta existencial), do conflito determi
nante que Freud descobriu entre o homem e a realidade,
entre o princípio de prazer e o princípio de realidade.
Todavia, Freud concretiza e desenvolve mais adiante
êsse conceito comum. Essa concretização permite, a se
guir, resolver o dilema que encontramos nos Manuscritos.
essa contradição cujos têrmos eram, para o jovem Marx,
um natural humano originário puramente animal e uma
natureza humana, pura nobreza e distinção.
O imenso alcance da teoria freudiana do instinto

em relação à teoria geral do homem reside antes de mais


nada no fato de que os instintos, mais particularmente na
última fase das pesquisas de Freud, não têm em absoluto
nada de comum com simples instintos fisiológicos. Tôda
a esfera do "id" é precisamente psíquica; sua organiza
ção corpórea e sua cena (Schauplatz) estão bem localiza
das no cérebro e no sistema nervoso, mas em caso algum
estão em relacionamento direto com êstes últimos; a ciên
cia pode conseguir localizar com precisão os processos
mentais no sistema nervoso, mas apesar disso essa loca
lização não pode contribuir em nada para a compreensão
dêsses processos (8).
Essa concepção do psiquismo fêz, e ainda faz, com
que alguns qualificassem os ensinamentos de Freud como
ensinamentos idealistas. Esse julgamento é devido, sem
dúvida, a uma incompreensão grosseira da coisa. Pois
compreender o psiquismo como uma esfera relativamente
autônoma, que não tem relações diretas com o sistema
nervoso, não significa negar uma mútua dependência na

8. Ver Freud, Abriss der psychoanalyse.

24
qual o aparelho nervoso representa o papel de portador
(Schauplatz) dos atos psíquicos; trata-se aí de uma in
terdependência provada pela psicanálise num grande nú
mero de casos onde o ato psíquico influiu exatamente ső
bre o ato neurofisiológico.
O fundamento do materialismo psicanalítico reside no
fato de que a camada fundamental do psiquismo, a cama
da do instinto Freud a explicou repetidas vêzes em
relação à sexualidade não depende de um órgão cor
-

póreo em particular mas encontra sua origem material


em todas as zonas corpóreas. Ela é portanto um produ
to do homem objetivo enquanto totalidade biológica. Não
obstante, ela é irredutível à organização corpórea do ho
mem, pois ela vive de sua própria vida psíquica.
Quanto a nós, parece-nos que o têrmo que melhor ex
prime e define êsses traços específicos da camada mate
rial do instinto da existência humana é o têrmo energia
biopsíquica. Trata-se aí, sem dúvida, de um fator funda
mental da existência natural do homem.

Mas não se trata de fato apenas de um fator natu


ral na acepção corrente do têrmo? Trata-se aqui de uma
identificação total do homem e do animal? Notemos ini
cialmente que uma certa idiossincrasia tirada da compa
ração do homem e do animal provém frequentemente de
uma concepção um pouco metafísica da grandeza, da no
breza e da unicidade do homem; mesmo aqui, a dialé
tica não é uma coisa inútil: com efeito, esquemàticamen
te, o homem ao mesmo tempo é e não é um animal; o
mesmo certamente acontecerá na sociedade comunista, o
mesmo certamente aconteceu no transcorrer de tôda a
existência histórica do homem. Em relação ao compor
tamento de seu natural humano, o homem anterior ao
comunismo em nada se distingue do futuro homem comu
nista.

25
Todavia, o homem se distingue do animal a partir da
esfera primária do instinto. É a variabilidade da ener
gia do instinto humano, é seu dinamismo conflitante, é
sua aptidão à metamorfose que distinguem o instinto de
vida humana dos instintos dos animais. A psicanálise, e
acima de tudo sem dúvida o próprio Freud, tiveram o in
comensurável mérito de fazer progredir qualitativamente
o conhecimento do homem pelo próprio fato de ter ana
lisado a variabilidade e a aptidão à transformação da
energia do instinto humano, em particular da sexualida
de natural do homem (9).
A possibilidade de dominar os instintos e de trans
formar sua energia é um traço específico do natural hu
mano. A partir dessa camada primária do psiquismo hu
mano observa-se uma certa linha de demarcação entre o
homem e o animal. Ainda que essa camada seja histò
ricamente a primeira e que ela fundamenta as outras,
característica que ela conserva permanentemente, não se
pode explicá-la nem compreendê-la isoladamente. Para

que essas mesmas variações e regulações possam aconte


cer, uma outra camadà fundamental da estrutura psíqui
ca do homem, o princípio do "ego", deve entrar em jogo.
Por outras palavras, a humanização dos instintos
animais em instintos humanos não se faz automàticamen
te; deve-se essa passagem a uma fôrça “organizante" e
organizadora do aparelho psíquico do homem que Freud
descobriu no princípio do "ego". Todavia, convém acres

9. Esta variabilidade não está em contradição com o que se costuma


chamar de conservantismo do instinto. É exatamente o conflito entre
o conservantismo dos instintos e a necessidade de sua regulamentação, a
necessidade de transformação da energia do instinto, que dão à exis
tência humana seu caráter dialético específico. É o eterno confronto
entre o "eterno" e o "humano" no homem.

26
centar que esse "ego" não cai do céu, mas que é causado
pelo conflito entre princípio de prazer e princípio de rea
lidade de que falamos mais acima.
É nessa concepção da situação conflitante do homem
objetivo que verificamos a concordância do pensamento
fundamental entre Marx e Freud. Este último concreti
zou e desenvolveu para adiante a idéia de Marx, encon
trando nessa situação o ponto de partida para a compreen
são do princípio regulador ou princípio do "ego". Só
com o aparecimento dêsse princípio é que se forma o ho
mem no animal e que os instintos animais se trasformam
qualitativamente em instintos humanos. A situação inter
mediária na qual o animal não pode ainda encontrar uma
solução para sua necessidade existencial e não encontra
na natureza objetiva elementos para a saciedade de suas
necessidades naturais, leva ao desaparecimento do ani
mal. O momento, ou mais exatamente a época histórica,
em que êsse mesmo animal, na sua necessidade existen
cial objetiva, desenvolve uma faculdade de adaptação e
encontra um novo meio de saciedade de suas necessida
des existencias, não é o da morte do animal, mas sim o
do aparecimento do homem.
O princípio de variação, ligado ao aparecimento do
"ego", provoca a vinda ao mundo do homem que não
existe ainda no estágio anterior. É necessário completar
nosso raciocínio lembrando aqui um aspecto fundamental
da questão. Vimos que Marx definiu pela fome e pela
sexualidade as necessidades fundamentais do instinto hu
mano. Consideramos que essa delimitação da esfera do
instinto na existência humana é perfeitamente exata.
Ora, Freud interessou-se mais particularmente pelo estu
do da energia sexual, não descobrindo na saciedade da
necessidade de alimentação êsse tipo de variabilidade de
que dispõe a energia sexual e que forma o eixo central da

27
libido humana. Evidente que a necessidade de sacieda
de da fome dificilmente pode ser sublimada. Encontra
mos aí, sem dúvida, um outro tipo de variabilidade que
tem uma importância extrema para a existência do ho
mem e a evolução de sua libido.
Há uma base para supor que essa situação de falta
existencial na qual o homem surgiu era provocada pela
necessidade fundamental de saciedade, e que o homem
fêz variar a maneira animal de matar a fome ao desco
brir o trabalho, isto é, ao descobrir a economia política.
Trata-se apenas dêsse ato “único” da gênese própria do
homem. A fome nunca foi sublimada, nem mesmo a se

guir. Entretanto, as transformações na maneira de sa


ciar a fome representam, mesmo posteriormente, um pa
pel decisivo na evolução da libido do homem, constituin
do o fundamento de sua existência e de suas próprias
transformações. O trabalho e a economia política, pelos
quais o homem desde seu aparecimento sacia sua fome,
criam as condições da humanização e do desabrochar de
sua vida erótica, quer seja na sua forma sublimada ou
não sublimada: mas criam igualmente a própria possibi
lidade de realização e de desdobramento das fôrças agres
sivas do homem que consideramos, com Freud, como sen
do um elemento constitutivo do fundamento do instinto

humano. O princípio de poder e de dominação no qual


a agressividade humana se realiza, sob uma forma subli
mada, só aparece na base do trabalho e da economia po
lítica, criada pela forma humana de saciamento da fome.
Esta última é por isso um dos constituintes essenciais da
esfera do instinto no homem.

Neste ponto de nosso estudo, pode-se tirar algumas


conclusões parciais. Até aqui, a tendência dominante na
explicação materialista do homem justificava a ação hu

28
mana pelas condições materiais e sociais, isto é, econô
micas, procurando no caso o substrato neurofisiológico do
homem. O fio material da existência humana se estabe
lece em ligação com êsses dois pontos. Portanto, utili
za-se aqui dois dados: de um lado, o homem como uma
certa organização da matéria (em sua expressão elevada,
e mesmo, a mais elevada), e por outro lado, a sociedade
e sua economia política. Do problema assim colocado, de
correm a seguir diversas teorias reflexiológicas que en
contram a chave da consciência humana e dos fenômenos
fundamentais da vida humana na ação da sociedade, na
necessidade da natureza exterior do homem e no seu tra
tamento pelo aparelho neurofisiológico e cerebral (10).
Entendia-se por materialismo uma concepção pela
qual, de um lado, o pensamento e a função consciente são
produtos da matéria (do cérebro) e pela qual, por outro
lado, o fator econômico é a força decisiva da determina
ção sócio-humana do homem. Como essa concepção só
reconhecia essas duas unidades (dados), o freudismo foi
taxado de "biologismo", isto é, de idealismo. Nessas con
dições, a opinião segundo a qual a concepção materialis
ta do homem deve considerar certas forças biológicas ele
mentares que se situam nalgum lugar entre o organismo
neurofisiológico e a existência social do homem e que for
mam ao mesmo tempo uma unidade particular e indepen

10. O desaparecimento do psiquismo enquanto fator independente


levou, nestes últimos anos, à liquidação de fato da psicologia. Esta
última estava reduzida ao estado de um simples componente da fisiologia
de uma função nervosa superior. Freud foi "apagado" por Pavlov. Este
se levantou contra Freud de uma maneira absolutamente inadequada e
que em nada correspondia à lógica da pesquisa nos dois setores eminente
mente representados por esse dois teóricos. Na realidade, êles estão
longe de se excluírem mútuamente; pelo contrário, sua pesquisa é paralela
a correlativa.

29
dente, era de uma certa forma inacessível a semelhante
forma de pensamento.
Sem dúvida, sobressai de nossa explicação que essa
forma "a duas dimensões" da teoria materialista do ho

mem é inteiramente insuficiente e, quanto ao princípio,


inteiramente errônea. As condições da existência huma
na não são apenas fisiológicas e sociais, mas, antes de
mais nada, biopsíquicas. Parece mesmo que os fatôres
biopsíquicos estão não apenas na base dos dados naturais
mas também dos dados sociais da existência humana. Es

forçamo-nos por mostrar que êsses fatôres biopsíquicos,


por sua variabilidade, não são apenas simples fatôres na
turais, mas igualmente fatôres "naturalo-humanos".
A estrutura material da existência humana é portan
to um todo fundamental no qual se organizam e funcio
nam, interpenetrando-se, as dimensões fisiológico-biológico,
biopsíquico e histórico-social do homem. Não basta falar
en passant da energia biopsíquica específica que está no
homem, pois isso seria deixar escapar o "nervo" central
da objetividade do homem.
Os processos neurofisiológicos que se produzem no ho
mem condicionam absolutamente sua existência mas não

agem diretamente sobre a elaboração de seu con


teúdo (11).

11. A pesquisa das correlações fisiológico-químicas dos processos


psíquicos é certamente uma tarefa importante e que convém realizar.
Entretanto, seus resultados terão poucas implicações sobre o estudo do
conteúdo do psiquismo humano; é possível mesmo temer que essas cor
relações não sejam nunca estabelecidas. Lenin, por exemplo, não gostava
desmesuradamente da poesia de Maiakovski. Ora, a correlação química
dêsse sentimento não seria estabelecida nem mesmo se Lenin tivesse
vivido mil anos.

30
No contexto sócio-existencial da vida humana situa
-se uma interação fundamental entre suas dimensões bio
psíquicas e sócio-econômica. Sem dúvida, não se pode
pôr em questão nem por um segundo a importância ca
pital do fator sócio-econômico. Mas, como ressaltamos
na parte anterior, a atividade econômica do homem é, num
certo sentido, "fundamental", sendo uma simples "super
estrutura" em outras ocasiões. Em relação às forças bio
psíquicas do homem, ela é secundária, sendo uma proje
ção social da necessidade do instinto humano.
Para falar a verdade, não se pode considerar a ati
vidade econômica do homem como um fator material de

cisivo. No plano do conteúdo, é exatamente a energia


biopsíquica do homem que representa êsse papel. Por
outras palavras, a oposição e o desenvolvimento das ca
madas de cultura e de civilização não podem ser explica
das, para o materialismo, apenas pelos interêsses econô
micos de classe do homem histórico, ainda que êsses in
terêsses influam de maneira determinante sobre o sentido
da atividade cultural e civilizadora e sobre seu conteúdo

sócio-ideológico. Sem mesmo falar no fato de que esses in


terêsses de classe são apenas modos transitórios parti
culares de forças e pressões antrópicas mais profundas,
pode-se ver que a energia biopsíquica se exterioriza
se objetiva diretamente e como tal no conteúdo vital
-

das camadas de civilização e de cultura do homem social.


É necessário ressaltar ainda que a energia biopsíqui
ca é a própria fonte da atividade humana. A teoria re
flexológica da existência humana foi inteiramente incapaz
de compreender e de explicar a atividade humana exata
mente por ter eliminado ou ignorado as forças biopsíqui
cas internas do homem. Não basta querer provar que o
homem percebe alguma coisa ou reage a partir de certos
impulsos exteriores e que êle os transforma de uma ma

31
neira ou de outra; dêste modo, em nada se explica as
causas dessas ações (reações).
Só depois de termos compreendido que a energia in
terna do instinto nos obriga a um conflito permanente
com a realidade, depois de termos compreendido que ela
obriga o homem sitiar, a ocupar, a absorver e a reno
var constantemente o modus vivendi existencial e que as
antenas sensoriais do homem são apenas os instrumentos
dessas necessidades vitais internas, é que poderemos en
fim comprender que o homem não é apenas o objeto e o
ponto de encontro de certas influências, mas que, pelo
contrário, êle representa nesse conjunto de influências
o papel de uma unidade motora fundamental.
Nestes últimos tempos, "a filosofia da praxis" lançou
ataques decisivos contra essa concepção reflexológica.
Após um longo período de silêncio, essa filosofia devol
veu à atividade criadora do homem o lugar que ela me
rece, no próprio centro da filosofia marxista. Apesar
disso, essa "filosofia da praxis" sofre ainda frequente
mente de uma abstração grande demais na compreensão
da praxis humana. Ela responde à questão: como com
preender a praxis humana? com a afirmação de que, para
o homem, a atividade criadora prática é a determinação
fundamental, isto é, que o homem é simplesmente pràtica
mente ativo; ela acrescenta que o homem igualmente trans
forma a natureza e que simultâneamente êle também se
transforma; sua argumentação se apóia em diversas con
clusões tiradas das teses de Marx a Feuerbach. Essas
teses são, sem dúvida nenhuma, excelentes mas infelizmen
te não explicam em nada por que o homem é pràticamen
te ativo.

Ora, é exatamente isso o que Marx explica nos Ma


nuscritos e o que Freud explica nas suas concepções do
natural humano e do princípio de realidade. Marx mos
32
trou nos Manuscritos, com a exatidão que lhe é própria,
que o homem é sensorial e objetivo pelo fato de que êle
depende, para o saciamento de suas necessidades e dese
jos fundamentais, de objetos independentes dêle.
O homem é também um ser que sofre (12) e deve in
cessantemente procurar uma solução para sua falta exis
tencial. Se o homem transforma e humaniza efetivamen
te a natureza e seu próprio ser, êle nem por isso perma
nece acima de tudo enquanto ser sensorial objetivo,
exclusivamente à mercê da natureza externa ao homem.
É nisso que reside a fôrça existencial profunda (13) de
sua atividade e da qual a energia biopsíquica é o motor.
Esforçamo-nos por expor uma certa concepção da estrutu
ra material da existência humana. Esta estrutura ma
terial deve ser compreendida no sentido de totalidade dos
fenômenos humano-naturais e sócio-humanos.
Teríamos conseguido delimitar de maneira adequada
o conceito de constante antropológica? Parece que não é
e por isso que não se pode, de fato, reduzir a constante
antropológica do homem à sua estrutura material.

12. Marx explica de maneira surpreendente a dialética sem ntica


dos têrmos "sofrer" e "paixão" empregando intencionalmente as ex
pressões alemãs "leidend" e "Leidenschaft" onde essa dialética representa
um nítido papel.
13. Acreditamos ser evidente para todos que o têrmo "existencial"
não é aqui tomado nem em qualquer parte dêste texto - no sentido
que lhe atribui a filosofia existencialista.

33
A CONSTANTE ANTROPOLÓGICA

A tensão e o conflito permanentes entre o homem e


a natureza formam portanto o princípio básico da exis
tência humana. Vimos que nesse conflito o "ego" se se
para do "id", da camada do instinto. O "ego" elaborou
a faculdade de pensar do homem, descobriu assim o tra
balho e transformou o animal em homem. É preciso ver
nesse relacionamento do "ego" com o "id", na gênese da
esfera do "ego" a partir da esfera do "id", o próprio fun
damento da explicação materialista do pensamento hu
mano. Nessa óptica, a atividade de pensar do "ego” é
aliás a função material da existência humana. Por outro
lado, de uma parte o pensamento, e de outra o trabalho
(a economia política), manifestam-se simultâneamente
como dois corpos gêmeos. Seria absurdo querer procurar
saber qual dos dois é anterior ao outro. O trabalho e o
pensamento são fatôres, de igual valor, do aparecimento
do homem.

Todavia, se o homem aparece no momento em que


descobre o trabalho, parece que êle aí se manifesta en
quanto ser social. Com efeito, o trabalho (a economia
política) leva-o automàticamente a se associar, a se agru
par num contexto sócio-humano. A matilha animal trans
forma-se num tipo primitivo particular de organização
humana, o da família humana.

34
O trabalho (a economia política) e a organização
social humana que daí decorrem introduzem um nôvo fa
tor na existência humana e isto pràticamente a partir
de sua própria origem, a saber a necessidade de regula
mentar suas necessidades instintivas, e isto não simples
mente em função da natureza mas também em função
social dessa existência humana, de sua organização so
cial, isto é, em relação a si mesma.
Certas formas de civilização, certas formas históri
co-culturais da existência humana aparecem desde a ori
gem do homem; da mesma forma, o “ego”, que até ago
ra só consideramos na sua relação com a esfera material
do homem, torna-se simultâneamente portador e torna
possível a necessidade e a reação culturo-civilizadora que
criam uma esfera secundária da existência sócio-humana.
Assim aparece, ao mesmo tempo que o "ego", um terceiro
fator que Freud define com o têrmo "super-ego". Este
é igualmente um componente da estrutura humana do ho
mem (14).

14. Se é verdade que em relação a Freud socializamos um pouco


mais do que êle, através de nossa compreensão da economia política, a es
fera material do homem, não é menos certo que, por sua compreensão da
esfera do "super-ego" enquanto componente constante da tripla estru
tura psíquica do homem ("id", "ego", "super-ego"), Freud entende
por existência humana uma existência eminentemente social. A hipótese
bastante difundida da qual compartilham mesmo inúmeros neo-analistas
segundo a qual seria necessário completar a concepção freudiana da
psicanálise por outros fatôres sociais, culturais e sociológicos particulares,
levam à confusão e ao ecletismo teóricos, à perda das possibilidades noé
ticas e ao idealismo.

Herbert Marcuse tem o grande mérito de, em Eros and Civilization,


ter explicado detalhadamente e provado êsse ponto por sua crítica, nesse
campo, do revisionismo neo-freudiano.

35
No homem, a esfera do "super-ego" é a que faz va
ler as necessidades da sociedade humana pela regulamen
tação da energia material do instinto. O princípio de rea
lidade que domina o homem não está portanto ùnicamen
te no relacionamento conflitante e dinâmico entre o ho
mem e a sociedade, relação regulamentada pelo "super
-ego" e isto através do "ego". É na descoberta e na es
pecificação dessas duas formas de relações conflitantes,
pelas quais o homem se realiza, que reside grande con
tribuição de Freud para o conhecimento da dialética con
creta da existência humana.

A descoberta de um estado conflitante sócio-humano,


no entanto, leva Freud apenas a uma compreensão de
masiado linear dêsse estado. Com efeito, para êle o "su
per-ego" em outras palavras, a função de civilização
e de cultura é antes de mais nada uma função de
repressão. É nisso que reside êsse "Mal-estar na Civili
zação" que Freud retomou no título de sua obra funda
mental dedicada a êsse problema.
Mas, pelo momento, nos daremos por satisfeitos com
essa definição "repressiva" da esfera do "super-ego" pois
será assim possível introduzir em nossa explicação uma
outra descoberta de primeira importância, a saber a des
coberta da sublimação.
O não saciamento das necessidades fundamentais do
instinto leva o ser natural, dominado por instintos natu
rais, ao estado de falta existencial que é um estado de
puras privações fatais; não se pode falar de recalque das
necessidades do instinto mas sim de sua satisfação sim
ples; a situação limite dêsse estado leva ao desapareci
mento do ser natural. O aparecimento do natural huma
no, como tentamos indicar mais acima, está ligado à fa
culdade de regulamentação da necessidade instintiva e à
faculdade de fazer variar a energia do instinto; a partir
36
das relações com a natureza externa ao homem, isso sig
nifica aprender a reprimir essas necessidades do instinto
no interêsse da conservação do homem.
Esse dever de conservar o homem fica no entanto a

cargo L
pràticamente desde o aparecimento do homem
de sua organização social.
A dimensão social do homem torna-se assim o princi
pal regulador de suas necessidades existenciais básicas.
E com essa regulação tornando-se uma constante perma
nente da realidade -
diferentemente do animal onde o

estado de falta existencial, isto é, de não-satisfação, é fa


tal ainda que transitório (ou êsse estado é afastado, ou
leva ao desaparecimento do ser natural) a energia do
instinto não pode se contentar indefinidamente com ser
reprimida, deve ser transformada de uma maneira ou de
outra, transposta para um outro plano. Esta é a base da
concepção psicanalítica da sublimação. A energia pri
mária e elementar do instinto que não encontra na rea
lidade o seu objeto, isto é, na medida em que a regula
ção social (ou seja, o princípio do super-ego) priva-a
dêsse objeto e torna impossível a satisfação espontânea
direta, é então transplantada, encontra noutro lugar uma
satisfação de compensação, cria uma nova realidade, uma
nova esfera ideal de sua satisfação, esfera de compensa
ção, e cria assim uma realidade espiritual (15). Assim
aparece a camada secundária da existência humana.

15. Ver a explicação freudiana da sublimação, por exemplo, em


Malaise dans la Civilisation. Freud interpreta aí desta maneira a atividade
científica e artística. Todavia, como veremos mais adiante, a esfera da

cultura é, para Freud, muito mais ampla, concepção aliás inteiramente


justa. Mas apenas a atividade científica e artística constitui, para éle,
uma esfera da cultura onde se produz uma sublimação da libido; essa
sublimação é bem uma compensação e provém, no seu essencial, da re

37
Para a antropologia científica, a capital importân
cia da teoria freudiana do "super-ego" e de sua teoria
da sublimação reside no fato de que elas contêm implìci
tamente as premissas de uma explicação materialista to
tal dessa esfera da existência humana que é habitualmen
te definida pelo têrmo da "super-estrutura". Para nós,
essa explicação não deve ser identificada com aquela
outra, bastante usual, que faz derivar instituições e va
lores espirituais e sócio-culturais da base econômica da
existência sócio-humana. Esta tese usual não explica su
ficientemente como uma energia material básica que está
no homem pode efetuar uma transformação interna e mu
tar-se em energia ideal, espiritual: de fato, é porque ela
não é indefinidamente reprimível desta maneira Freud
-

aplica de modo notável, e exatamente ao homem, o prin


cípio de conservação da energia que ela deve produzir
-

realidade espiritual enquanto o homem sensorial objeti


vo não pode se apossar da realidade sensorial objetiva.
O princípio de sublimação leva igualmente ao conflito
dialético no relacionamento com os fatôres material e es
piritual. Com efeito, ainda que tenhamos certas reservas
de princípio a respeito da compreensão freudiana, essen
cialmente repressiva da sublimação, é indubitável que es
ta última provém do conflito interno do homem e da rea
lidade, e das formas dêsse conflito interno à sociedade,
conflito que é simultâneamente uma forma da atividade
de conservação do homem social. Não se pode explicá-la
de outra forma.

pressão. Os outros componentes da cultura são os da esfera do "super


ego" que, na sua maioria, têm apenas uma função de repressão da libido
primária. A nosso ver, essa delimitação da problemática do "super-ego"
é o ponto mais contestável da concepção freudiana do homem; teremos
ocasião de observar êsse problema mais detalhadamente na segunda parte
de nosso ensaio.

38
Ainda que tenhamos reservas de princípio sobre a
concepção global da esfera do "super-ego", convém de
monstrar que Freud mostrou com isso que a necessidade
de conservação pessoal, isto é, uma necessidade material
da existência humana enquanto existência social, é bem
a fonte primeira do aparecimento dêsse fator (o "super
-ego") constante da estrutura humana, fato pelo qual o
homem regulamenta e, numa certa medida, reprime sua
própria vida, cria enfim uma esfera secundária, a esfera
espiritual da existência humana.
Assim, o fator do "super-ego", ainda que necessário,
oriundo da necessidade da conservação pessoal do homem,
é simultâneamente um fator constitutivo, que acaba de
tornar humano o homem e dêle faz uma totalidade estru

turada. Não se pode explicar inteiramente o aparecimen


to do homem pelo aparecimento do trabalho. Com o tra
balho e a economia política com efeito aparecem, no mes
mo instante, a organização social que, para sua conser
vação pessoal, impõe uma regulação permanente de seus
instintos de origem animal; êle os transforma em instin
tos (inclinações) variáveis que podem ser sublimados em
fruição secundária, isto é, em valores espirituais. O apa
recimento da esfera espiritual torna-se assim a condição
primordial da existência material do homem.
Será apenas com o aparecimento do "super-ego" e da
faculdade de sublimação que enfim se constitui e se esta
biliza de uma vez por tôdas a atitude específica do "id",
base material e instintiva do homem. A transformação
dos instintos animais em instintos humanos, a formação
da civilização e da cultura que daí decorrem são a trans
formação e a formação mútuas pelas quais o homem en
fim passa da espécie animal (species) para o gênero hu
mano (genus).

39
Chegamos enfim à conclusão de nossas considerações
sôbre "a constante antropológica" do homem: é preciso
considerá-la enquanto totalidade estruturada de fatores
constitutivos constantes entre as quais o "super-ego", es
trato espiritual e cultural da existência humana, ocupa
com as bases materiais do homem um lugar cent
A concepção materialista dessa totalidade estrutura
da é bem diferente dos "biologismos" e "economismos"
correntes que dissolvem o homem na sua existência social.
Os conceitos de "ser" e de "consciência", de "base" (subs
trato) e de "superestrutura" só terão seu verdadeiro sen
tido materialista quando compreendermos que a ativida
de econômica do homem é apenas um fator da existência
material bio-social do homem, que ela é apenas uma de
suas funções. A consciência, a "superestrutura”, não é
um emprêgo do ser ou do "substrato", mas um modo de
sua existência.

Nas suas abordagens do problema, a "filosofia da


praxis" tem em grande conta a totalidade da primeira e
da segunda camadas do homem e supera as diversas con
cepções vulgares, materialistas ou economistas. Todavia,
a falha dessas abordagens reside no fato de que elas com
preendem da mesma forma a energia material do homem
ùnicamente no plano sócio-econômico; em geral, a ener
gia biopsíquica do homem, fonte de sua atividade econô
mic escapa-lhes totalmente.
9 Da mesma forma, habitual
mente elas não vêem essa "totalidade ativa" dos fatores
materiais e espirituais da atividade criadora do homem
social sob seu aspecto conflitante fundamental. O todo
dessas abordagens parece, no entanto, harmonioso demais,
as relações de seus componentes são pouco concretizadas.
Além dêsses momentos de conflito dos quais disse
mos alguma coisa, é igualmente necessário falar aqui dês

40
se relacionamento antagonista dos componentes material
e espiritual do homem que nos faz descobrir a esfera es
piritual da atividade do homem enquanto projeção autên
tica e direta de sua energia material. A atividade espi
ritual do homem, produto da transformação e da subli
mação da necessidade primária de fruição material, apa
rece bem enquanto forma direta da existência das fôrças
materiais do homem: ela tira sua libido dessas fontes
materiais primárias; sem essa mesma libido ela perde seu
sentido humano e, com isso, a "razão de ser" de sua exis
tência. É nisso que reside o fundamento do monismo ma
terialista dessa concepção da totalidade.
Esse monismo materialista também enfatiza nìtida
mente o problema da realidade da idealidade: pode-se
falar aqui de uma função material da idealidade. Com
efeito, a sublimação, isto é, a idealidade é com
-
-

preendida enquanto condição de existência do homem: a


desmaterialização, a idealização de uma energia psíquica
material são, num certo sentido, a condição material da
existência humana. Mais do que o trabalho, é tôda a ca
mada secundária da vida e da atividade do homem social
que é uma necessidade vital para o gênero humano exa
tamente porque ela transformou a energia biológica do
animal em energia material biopsíquica do homem.
Também a esfera do "super-ego" é bem um compo
nente orgânico da constante antropológica do homem.
Para nós, esta última é definida pelo natural humano
marxiano que nos esforçamos por enriquecer e por con
cretizar sobremaneira ao nos referirmos a certos resulta
dos fundamentais das pesquisas de Freud sôbre a existên
cia humana.

Essa constante antropológica é igualmente definida


pela "natureza humana" dos Manuscritos de Marx? A

41
explicação precedente mostrou suficientemente como

esperamos que isso não acontece. Só se pode falar de


"natureza humana" na medida em que se pode e se deve
encontrar na existência humana uma estrutura constante,
cuja dialética histórica está contida no conflito dialético
permanente de seus componentes constantes.

42
A ESTRUTURA PSICO-SOCIAL

Mesmo que tenhamos encontrado em Freud elemen


tos interessantes de pesquisa e, em certas passagens, nì
tidamente revolucionárias nos quais aparece sua fa
-

culdade essencial de abordagem materialista e dialética


visando uma concepção geral do comportamento da es
trutura psico-social do homem, êste não pôde apreender
o caráter concretamente dialético do funcionamento dessa
estrutura e de suas partes constitutivas. Não se trata de
pôr em causa a dimensão ou os contextos de seu modo
de abordagem, nem de completar Freud através de acrés
cimos externos e estranhos que só levam à confusão e ao
ecletismo, mas trata-se de uma verificação crítica de seu
próprio sistema, de suas próprias categorias e das realida
des que elas exprimem. Já demonstramos a nossa con
cordância total com Herbert Marcuse e sua luta contra
uma crítica superficial e uma avaliação depreciativa da
"metapsicologia" de Freud tal como ela é exposta, na sua
parte essencial, em suas mas obras. O próprio Mar
cuse indica o caminho para essa crítica interna e esfor
ça-se por encontrar o meio de superar Freud servindo
-se dêle mesmo. Parece-nos entretanto que se Marcuse,
na sua procura dos meios de completar orgânicamente o
freudismo fêz ressaltar com pertinência, precisão e
-

um grande devotamento os problemas fundamentais que


estão em jogo, êle se tornou um devedor muito grande

43
de um esquema particular do aparelho conceptual freu
diano que, a nosso ver e a não ser que seja exposto a uma
revisão crítica interna, nos impede de encontrar uma so
lução real e realista para os problemas que Marcuse soube
distinguir. É sem dúvida inútil ressaltar ainda uma vez
que não se trata tanto dêsse aparelho conceptual em si
mesmo quanto da realidade na qual êle se insere.
Já indicamos que se trata do conteúdo concretamen
te dialético dessa realidade, realidade definida pelos con
ceitos essenciais do “Id” e do “Super-ego". A revisão crí
tica dêsses conceitos é solicitada pelos elementos históri
co-sociológicos que Freud estudou quando do estabeleci
mento de sua “metapsicologia”, isto é, de sua filosofia do
homem. Essa revisão crítica não pretende, com isso, re
jeitar pura e simplesmente êsses conceitos, mas reestudá
-los e reelaborá-los de modo crítico; o monismo dialético
de Marx e sua teoria dialética da história oferecem aqui,
a nosso ver, um ponto de partida de capital importân
cia (1).

1. É preciso deixar de lado, em nossa explicação, um certo número


de teoremas psicanalíticos concretos, mesmo os mais discutíveis ou os
mais discutidos; parece por exemplo que a fase anal da sexualidade é
exageradamente colocada antes do todo da vida sexual e exageradamente
absolutizada no seu alcance em relação a tôda a vida do espírito: certos
problemas fundamentais, provenientes da teoria da regressão (regressivi
dade) isto é, do retôrno da libido a um estágio pré-genético da sexuali
dade, estão mesmo ligados a êsses problemas? Certos psicanalistas têm,
a respeito da repressão, pontos de vista absolutos e simplistas e rela
cionam tôda sublimação da libido ao estágio pré-genital da sexualidade,
acima de tudo ao estágio anal-sádico; o próprio têrmo de estágio anal
sádico é, a nosso ver, bastante discutível, pois o sadismo está, sem
dúvida nenhuma, estreitamente ligado à fase evoluída, isto é, genital
da sexualidade e diz respeito indiscutivelmente à vida sexual na sua
totalidade. Aqui, só podemos lembrar êsses problemas, sem nos alongar
mos na sua discussão.

44
Em relação à esfera do "Id", é preciso antes de mais
nada insistir no seguinte ponto: a concepção muito fre
quente do freudismo enquanto pansexualismo é absoluta
mente errônea e desprovida de qualquer fundamento.
Freud jamais considerou a sexualidade como a única
energia da esfera do instinto. No primeiro estágio de
sua pesquisa, êle distinguia dois grupos de instintos: os
instintos sexuais, dotados da energia da libido, e os ins
tintos de conservação, instintos do Ego. A vida psíqui
ca do homem constituía-se a partir do conflito entre êles.
Esta concepção freudiana do substrato do instinto no ho
mem é no fundo, assim, idêntica à concepção de Marx
que igualmente distinguia duas necessidades instintivas
fundamentais: a sexualidade e a fome (2).
Nota-se, nesse período, que Freud não atribui aos
instintos de conservação seu valor total, pois nega a êles
qualquer caráter libidinal; a libido está ligada apenas à
sexualidade e pràticamente apenas essa esfera decide sô
bre o comportamento e o movimento do psiquismo hu
mano (3).

É evidente que a noção de libido "narcísica" leva ao


reconhecimento do caráter libidinal dos instintos "do
ego". Da mesma forma, o estudo da tensão entre o de
sejo do objeto de gôzo e sua liquidação pela satisfação

2. Sem dúvida, Freud não empresta, subjetivamente, essa concepção


de Marx, mas sim de Schiller. Ele dizia abertamente que, nos seus
primeiros passos na teoria, a frase de Schiller: "a fome e o amor man
têm a ordem do mundo" tinha sido para êle um decisivo impulso (in
Malaise dans la Civilization).

3. Esta tendência para reduzir o papel da fome persiste no último


estágio de seu pensamento quando reconhece aos instintos de conser
vação um caráter libidinal e os relaciona com a sexualidade num só todo,
"Eros". Isto aparece em sua última obra, "Abregé de la psychoanalyse".

45
indica uma transformação súbita e explosiva das tendên
cias do instinto pela sua liquidação total. O princípio
básico dêsse momento particular da evolução do pensa
mento freudiano é o princípio do Nirvana, que exprime
uma tendência do organismo humano para o retorno ao
estado anorgânico. Assim, Freud abre caminho para o
seu "instinto de morte" (Tanatos). O outro caminho que
também chegou a êsse resultado foi o estudo do sadismo
e do masoquismo, que lançou luz sôbre os princípios de
agressão e de destruição nas inclinações do instinto no
homem. Ao mesmo tempo se realiza, sem dúvida, a supe
ração da absolutização do princípio do Nirvana.
Assim se constitui sucessivamente a forma ideal da
teoria freudiana do instinto, forma esta que de novo é
dualista, assim como foi sua forma inicial. Mas agora
os instintos sexuais e os instintos de conservação estão
unidos num só todo, o "Eros", dotado de energia libidinal
e que visa à cópula, à união e à fusão; as inclinações
para a agressão e para a destruição são expressas pelo
instinto de destruição, isto é, pelo instinto de morte (Ta
natos), cuja energia, uma vez mais, não tem um caráter
libidinal (4).
Esta evolução de Freud em direção à concepção dua
lista "Eros-Tanatos", que apresenta elementos reais de
uma nova metafísica, não foi seguida longe disso -

4. A descrição da evolução de sua teoria do instinto feita pelo


próprio Freud é bastante preciosa e rica em ensinamentos: cf. Malaise
dans la Civilization. É necessário observar, no estudo da continuidade

teórico-filosófica dos ensinamentos de Freud, que êste se esforçou


através de seu instinto de morte por explicar racionalmente e real
mente essa dimensão da existência humana que se constitui no objeto,
em seu aspecto metafísico-mitológico, das pesquisas filosóficas de Hei
degger.

46
por todos os psicanalistas; ela provocou, pelo contrário,
uma nítida oposição no seio dêstes. O fato que inúmeros
psicanalistas, orientados na direção das ciências naturais
e da medicina, suportavam com dificuldades o nítido re
fôrço do aspecto psico-social das novas definições dos ins
tintos, representou um papel não negligenciável. O pon
to notável das novas concepções freudianas era com efei
to que "Eros", assim como "Tanatos", deixava-se apreen
der (domesticar) bastante fàcilmente exatamente na es
fera social: o instinto de destruição era certamente de um
interêsse determinante para a concepção freudiana da cul
tura e foi teorizada por Freud sem dúvida por isso. Da
mesma forma, muito fàcilmente "Eros" se vê dotado de
uma dimensão social e se torna o motor da aproximação
social dos homens, aproximação que perde todo caráter
sexual direto. "Eros" se torna verdadeiramente muito
1
"nobre" e Freud, sem que esteja muito consciente disso
e involuntàriamente, realiza uma humanização “não re
pressiva" da libido; em todo caso, a sexualidade torna-se
amor ao se equiparar sentimentalmente, e a libido é cul
tivada.
A maioria dos teóricos marxistas que tentaram uma
integração marxista de Freud recusaram, e êste é um fato
sintomático, sua teorização do instinto de morte; Reich,
Fromm e Brouk o fizeram sem, da mesma forma, insistir
sôbre isso. Herbert Marcuse tem o grande mérito de ter
transformado radicalmente a abordagem marxista do
instinto "metafísico" de morte em Freud e de ter mostra
do, com muita finesse e compreensão, seu fundo racio
nal. A forma cultural da esfera do "Id", estabelecida
nas últimas obras de Freud, parece lhe convir inteira
mente. Ele conseguiu extrair o máximo dela.
O papel manifesto da agressividade e da destruição
no transcorrer dos recentes períodos na vida da socieda

47
de moderna facilitou, para êle, a aceitação, no seu prin
cípio, do instinto freudiano de destruição do qual êle re
lativiza apenas a realidade.
Convém aprovar Herbert Marcuse quando êle diz que
o fator "destruinte" e destrutor é, sem dúvida, uma fôrça
essencial que age no homem, fôrça que em nada decorre
de uma organização social particular e que, a menos que
introduza o componente da destruição na estrutura do
instinto da existência humana, difìcilmente pode-se expli
car sua tensão conflitante. Freud enriqueceu indiscutì
velmente a antropologia científica pela introdução dessa
força elementar da mesma forma como Marcuse, por sua
vez, abriu justas perspectivas para o caminho marxista
da integração de Freud.
Apesar disso, estamos persuadidos, quanto a nós, que
a dualização freudiana dos dois instintos independentes,
Eros e Tanatos, não é justificável por diversas razões
teóricas e que ela não responde à realidade. Aqui apare
ce nìtidamente uma primeira possibilidade de enriquecer
a concepção de Freud pelo monismo dialético marxista
que, neste caso preciso, é sem dúvida o único que pode
atingir e exprimir teòricamente a totalidade dialética
concreta dessas duas tendências dos instintos que Freud
absolutizou metafisicamente em instinto de vida e instin
to de morte e, simultâneamente, idealizou até lhes dar
uma forma um pouco irreal. Com efeito, as tendências
de destruição e de copulação só são dotadas de sua reali
dade e materialidade efetivas se compreendidas enquanto
totalidade, enquanto instinto vital único.
É muito importante ressaltar que não é o caso de in
troduzir essa concepção na psicanálise pelo "exterior",
pela "especulação filosófica” apenas, mas sim que pes
quisas especializadas e concretas tendem para isso, por
assim dizer, involuntàriamente. Pensamos aqui em par
48
ticular nas análises do especialista em ciências naturais
Konrad Lorenz, expostas especialmente no seu livro "Das
sogennante Bose" (5) e que fazem a teoria psicanalítica
dos instintos dar um novo passo qualitativo, que signifi
ca a superação do dualismo metafísico de Freud por uma
teoria dialética da totalidade concreta.

Parece bem que a convergência entre um pensamen


to dialético autêntico e uma linha exata de pesquisa cien
tífica especializada efetivamente existe e conduz a filo
sofia marxista do homem a pontos de vista análogos e a
pesquisas especializadas particulares (6).
É também interessante observar que Freud tinha
uma clara consciência da profunda conexão dessas duas
tendências e que é exatamente o estudo do masoquismo e
do sadismo, isto é, de fenômenos onde a sexualidade
-

e a agressão se inserem diretamente que o levou a se


inclinar sobre a agressividade e a destruição; Freud sa

5. Viena, 1963.

6. De fato, a idéia de uma "dialetização monista" necessária da


dualidade freudiana "Eros-Tanatos", idéia esta que desenvolvemos aqui,
surgiu independentemente dos estudos de Lorenz. Estes desempenharam
o papel do "objeto achado" dos surrealistas.
Lorenz, eminente zoólogo austríaco e especialista em fisiologia com
parada do comportamento, mostra que a antítese 'Eros-Tanatos' é discutí
vel mesmo em seu fundamento e que parece que essas duas tendências
decorrem de uma origem comum. A destruição e a agressividade são
um princípio que vale para tôdas as manifestações da vida, sendo a
agressividade, para Lorenz, a função de vida fundamental de todo ser
vivo. No plano teórico, sua contribuição mais rica é a maneira pela
qual se unem, em sua obra, o materialismo monista e a refutação-supe
ração das teses reflexológico-materialistas sobre as manifestações da vida
nos setores animal e humano. Nestes últimos tempos, as posições de
Lorenz foram retomadas e verificadas em nosso país pelo pesquisador em
psicanálise P. Tautermam.

49
bia muito bem por exemplo que a satisfação da paixão
destruidora mais grosseira se deve a um gozo narcísico
excepcionalmente elevado (7). Em seu estudo "Abrégé
de la Psychoanalyse" encontra-se mesmo a seguinte for
mulação: "Nas funções biológicas, esses dois instintos fun
damentais agem um contra o outro ou se combinam entre
si. Assim o ato de comer representa a destruição do obje
to e visa a sua incorporação final, o engolimento (Einver
leibung), enquanto que o ato sexual visa a união mais
estreita. Esta ação comum e êsse confronto (Mit — und
Gegen einauderwirken) dos dois instintos básicos cons
tituem tôda a riqueza (ganze Buntheit) do conteúdo da
vida (8)".
Tudo parece indicar que Freud chegou ao portal da
compreensão da totalidade dialética dêsses dois fenôme
nos. No entanto, êle não o ultrapassou voluntàriamente
e, pelo contrário, teorizou êsses dois instintos como enti
dades independentes, recusando atribuir ao instinto de des
truição qualquer função libidinal. As razões dêsse em
preendimento não são muito claras. Um de seus moti
vos era sem dúvida a concepção freudiana global da cul
tura que exige a introdução de uma fôrça de destruição
fundamental que, enfim, não se assemelhasse com a libi
do. O próprio Freud, em relação a isso, escreve: "Re
conheço que o sadismo e o masoquismo são manifestações
do instinto de destruição dirigidas para o interior e para
o exterior e fortemente penetradas pelo erotismo; em
compensação, não posso compreender que se possa deixar
escapar a onipresença da destruição e da agressão não

7. Cf. Malaise dans la Civilisation.

8. Idem.

50
eróticas e que não se deva delimitar o lugar que lhes ca
be na explicação da vida (9)."
Não podemos evitar de pensar que Freud se deteve
voluntàriamente diante da idéia da agressividade libidi
nal onipresente, e que êle não se decidiu a fazer dela o
teorema básico de sua concepção. Semelhante teorema
não é muito estimulante e o humanismo clássico, de que
Freud era um grande representante, detesta a idéia de
um "núcleo anti-humano" dos valores humanos. Mas se
a concepção freudiana fundamental da cultura tampouco
é muito encorajadora, pelo menos é mais suportável para
o humanismo clássico explicar o mundo de maneira "ma
niqueísta" -

como uma arena eterna da luta entre o


"bem" e o "mal" -
do que reconhecer a sua dialética
concreta. Reconhecê-la significaria reconhecer igualmen
te a sua dialética social. Sem dúvida estava acima das
fôrças de Freud, sòzinho, tirar semelhantes conclusões.
Pela férrea lógica de seu pensamento, Freud foi condu
zido até diante dos problemas fundamentais da sociedade
humana; mas o psicólogo tornou-se então filósofo do ho
mem, preferiu enobrecer a sexualidade em "Eros" e le
vou para o combate contra o poder do mal êste outro po
der ideal (10), compreendido de maneira essencialmente
idealista.

9. Ibidem.

10. Aqui Freud conserva constantemente a diferença essencial entre


"Eros" culto e a sexualidade: ver por exemplo in Massenpsychologie und
Ich- Analyse. Sua primeira concepção da sexualidade, que aliás consi
deramos justa, está sempre presente. O problema do "Eros" que Freud
evidenciou é também muito atual e considerável. Assim mesmo, restaria
a ser feita uma análise de importância, a que consiste em ver como a
sexualidade efetiva é cultivada em "Eros". Sem dúvida, Freud não a

pôde realizar, pois, com sua concepção de Eros, êle por assim dizer
criou um segundo plano de sua compreensão da sexualidade e da libido,

51
No mundo da cultura, a posição do homem social é
muito ruim, pois o nobre "Eros" tem garantias seguras
do não-desaparecimento do "Bem", que não será inteira
mente desfeito.

Portanto, se a introdução da agressividade e da des


truição no âmago do modêlo teórico representa, para o
conhecimento, uma contribuição certa do Freud "tardio"
(isto é, do freudismo exposto nos últimos livros de
Freud), sua concepção metafísica dessa mesma agressi
vidade, cujo resultado é a não menos metafísica concep
ção de "Eros", nos faz enveredar por um caminho errado.
A agressividade está sempre ligada ao gôzo, à libi
do; ela é uma forma particular da manifestação da vida
humana (11). Apenas o instinto de vida é o primeiro

livres da agressividade e, assim, irreais. Tôda a complexidade da pas


sagem da sexualidade para Eros não pode ser realmente analisada. Freud
vem a considerar a libido, mesmo na sua forma inconsciente não dife

renciada, como fôrça de neutralização das inclinações de destruição que


existem paralelamente a ela (cf. Abrégé). Esta consideração, sem dú
vida, faz prova de um idealismo manifesto; em suma, o humanismo de
Freud não conseguiu tornar-se senhor da realidade na sua forma sócio
cultural.

11. Isto é igualmente válido para a autodestruição humana em


tôdas suas metamorfoses, inclusive naquilo que se chama de "mortifi
cações". O princípio do Nirvana é também uma forma limite da dialética
da procura da satisfação e da satisfação obtida. Aliás, os desejos de
eternidade e de repouso eterno têm um caráter libidinal no psiquismo
humano e é possível considerá-los no plano teórico exatamente através
da noção de libido narcísica. Através da sua teorização do instinto de
morte, Freud realizou um paralelo inadequado e mecânico entre o au
têntico retorno físico do homem ao estado anorgânico e a "manifestação
psíquica" dêsse retôrno. Com efeito, o psiquismo não se comporta como
o corpo. Pelo contrário, opõe-se a ésse retôrno e seu mundo limite de
mortificação pelo Nirvana é apenas a manifestação limite do desejo de
eternidade do homem, desejo realizado, "adaptado" ùnicamente pelo

52
a poder atingir a dialética concreta das forças do instin
to, fôrças antagonistas, em conflito umas com as outras
mas ao mesmo tempo constituindo-se umas a partir das
outras. Nossa compreensão do instinto de vida único
abrange justamente a utilização das descobertas do Freud
"tardio". Os dois componentes principais da totalidade
dessas forças do instinto humano, a fome e a sexualida
de, possuem como ressaltou o próprio Freud uma

estrutura básica idêntica: os dois formam a totalidade


dialética da tendência incorporadora e copulativa e da
tendência destrutiva e agressiva. A agressividade, que
está contida nesses dois componentes essenciais do ins
tinto de vida único, é dotada da libido e da faculdade de
metamorfose, de sublimação. A agressividade, que par
ticipa do modo de saciamento da fome na sociedade hu
mana, isto é, na economia política, certamente tem as mes
mas faculdades de sublimação que a agressividade sexual.
No momento de sua sublimação fundamental pela qual a
agressividade do instinto delimita o aparecimento do ho
mem, essas duas formas da agressividade formam sem dú
vida um todo indissolúvel: isto se produz quando da sua
sublimação no princípio de autoridade soberana, de do
minação social do homem sobre o homem.
Pela sublimação, nossa proposição vem da esfera dos
instintos para a esfera do "Super-ego", e chegamos assim
ao último objetivo que nos propusemos, no caso o estu .

do crítico desta categoria freudiana.

estado de morte de fato. Por essa adaptação, o homem no entanto


quer existir e não desaparecer. E as diversas situações nas quais o homem
se destrói conscientemente são o resultado de uma falta existencial, as

sim como a autodestruição é nesse caso precisamente manifestação da


vida, de uma vida que não quer suportar por mais tempo essa falta
existencial.

53
Já indicamos antes que se encontra em Freud uma
concepção "mais estreita" da cultura, a qual entende por
cultura uma atividade espiritual, acima de tudo cientí
fica e artística pela qual se realiza essa sublimação da
energia libidinal primária; esta é caracterizada como um
sucedâneo da satisfação material primária. Mas também
se encontra em Freud uma concepção mais ampla da cul
tura, encarada neste caso como um todo da civilização
humana; êste todo é o conjunto das atividades e institui
ções de cultura e de civilização, isto é, da ideologia, da
política, do direito, do estado, da moral e da religião (12).
Todo êsse conteúdo da civilização humana forma en
tão o conteúdo próprio da esfera do "Super-ego". É mui
to importante e de muito valor que Freud tenha conce
bido essa esfera de maneira eminentemente social e que
êle tenha incluído tôda atividade sócio-cultural na cons
tante antrópica do homem.
Mas Freud atribui ao mesmo tempo a êsse "Super
-ego" um caráter acima de tudo repressivo: êle é uma
fôrça que cria um conflito permanente entre os desejos
libidinais elementares, as necessidades e a existência so
cial do homem. Êle reprime as tendências primárias do
ser e as inclinações do homem: é o inimigo principal de
tôdas elas e com isso torna o homem infeliz permanente
mente. Esta situação é mais ou menos fatal e insuperá
vel. É o núcleo da concepção freudiana fundamental da
cultura e da civilização humana, concepção desenvolvida e
explicada no seu famoso livro Malaise dans la Civilisation.
Esta concepção é por natureza inadmissível para o
marxismo, que tende a encontrar um caminho para a li
bertação do homem. Da mesma forma, todos os marxis
tas que tentaram uma integração de Freud no marxismo
12. Acima de tudo, cf. Malaise dans la Civilisation.

54
procuraram um meio de superar crìticamente este artigo
da doutrina freudiana.
Entre os surrealistas, André Breton esforçou-se por
trazer uma modificação à teoria freudiana dos sonhos na
sua obra básica Les Vases Communicants (13).
Verificou-se cada claramente que o pro
vez m

blema fundamental que estava em discussão era o da re


presentatividade no que diz respeito ao conjunto da exis
tência sócio-cultural do homem, o problema da repressi
vidade na sublimação. A possibilidade de uma "sublima
ção não repressiva" tornou-se assim a questão principal
de tôda tentativa de simbiose crítica entre Freud e Marx.
Entre os surrealistas, foi sobretudo Bohuslav Brouk
que expôs êsse problema, e isto desde o ano 1932 (14).
E é esta necessidade lógica de concentrar sua atenção
sôbre êste ponto que levou Herbert Marcuse -
quase um

quarto de século depois a tomar objetivamente Brouk


-

13. Se os sonhos, enquanto componentes pré-conscientes do incons


ciente humano (do "Id" humano), são precisamente para Freud uma
manifestação dêsse inconsciente já reprimido e que tende a sê-lo ainda
pela consciência cultural do homem, o objetivo dos Vases Communicants
de Breton é mostrar que as esferas do inconsciente e do consciente, dos
sonhos e da vida acordada, criam uma unidade construtiva ativa e que
repressões e conflitos unilaterais não estão sòzinhas, mas que existe tam
bém um fecundo enriquecimento mútuo.
14. Cf., em particular, o livro de Brouk intitulado Psychoanalyse,
em tcheco, Praga, 1932. Ainda que esta obra não deixe uma impressão
geral de clareza dado suas premissas unilaterais mecanicistas e indefen
sáveis e, além disso, uma linguagem muito ruim, ela contém todavia
pensamentos e observações preciosas sobre certas questões básicas que
representam, objetivamente, um passo adiante na interpretação marxista
da psicanálise. Isto é válido sobretudo para a sublimação e a elaboração
que Brouk faz do modêlo de "sublimação não repressiva" que Herbert
Marcuse retomará e estudará em profundidade mais de vinte anos depois.

55
como ponto de partida e que o levou a fazer do problema
da “sublimação não repressiva" a questão central de sua
obra Eros e Civilização.
Já tivemos ocasião de observar que a obra de Her
bert Marcuse é incontestàvelmente a mais notável entre

tôdas as pesquisas de integração mútua de Marx e Freud.


Indicamos, aliás, grande contribuição de Eros e Civili
zação em certos aspectos fundamentais da problemática
que nos interessa. Em relação exatamente a esta ques
tão, a hipótese inicial de uma “sublimação não repressi
va" na sociedade humana libertada é de uma certa forma

o fio de Ariadne dos empreendimentos teóricos dêsse li


vro. Nesse plano, a contribuição teórica de Marcuse re
side na sua distinção entre “"repressão adicional", que de
corre da supremacia social histórica do homem sôbre o
homem, e “repressão básica", indispensável à conserva
ção da existência cultural do gênero humano. Um modo
particular de repressão das tendências libidinais é por
tanto necessário mesmo numa sociedade libertada que es
taria, caso contrário, destinada ao desaparecimento. Um
princípio de realidade particular existe mesmo para uma
tal sociedade. Essa é uma constatação extremamente im
portante que apresenta em suas justas proporções os prin
cípios de prazer (gôzo) e de repressão. Sòmente com
essas proporções é que se pode compreender que o desen
volvimento efetivo da libido não reprimida é condiciona
do por uma certa forma de contrôle e de regulação que,
exatamente, torna possível sua própria existência.
Em relação com essa definição de uma "repressão
adicional", Marcuse introduz uma categoria corresponden
te, a do "princípio de produção” (leistungsprinzip). O "prin
cípio de produção” caracteriza, até o momento, a existência
histórica do homem para a qual o trabalho é um ato de
conservação pessoal (de autoconservação) que ocupa prà

56
ticamente toda a vida do indivíduo e no transcorrer do qual
o prazer está "suspenso". Só quando essa função de auto
conservação do trabalho fôr relegada a um segundo-plano,
numa sociedade emancipada e materialmente rica e quando
a livre criação humana tiver se tornado um objetivo em
si mesmo, um livre jôgo das forças criadoras do homem,
é que o princípio de prazer poderá se afirmar mesmo nessa
esfera da vida humana. E em relação a uma possibilidade
real de sublimação não repressiva na sociedade humana
emancipada, Marcuse encontra um ponto de apôio e uma
base inicial para a sua definição num empreendimento
semelhante ao do Freud "tardio" na elaboração de seu
conceito de Eros (15).
A exatidão do pensamento e o amplo alcance da abor
dagem marcusiana do problema da "sublimação não re
pressiva" são uma contribuição importante para a análise
marxista dessa mesma questão. O caráter universal da
definição do princípio de realidade da sociedade que dará
livre curso à libido humana representa sem dúvida um
grande progresso; todavia, uma problemática básica não
está esclarecida, e por assim dizer seu esclarecimento tor

15. Ver em particular Marcuse, op. cit. e todo um capítulo de Die


Verwandlung der sexualitat in den Eros. Quando da utilização do con
cento freudiano de "Eros" na sua própria concepção, Marcuse revelou,
sem querer, uma contradição entre a nova concepção freudiana do "Eros"
e a concepção da sublimação que deriva de uma compreensão, original
mente menos elevada (menos nobre) da energia libidinal. Aliás, reside
aí a inconseqüência principal da teoria freudiana “repressiva" da cultura.
Na sua nova concepção do "Eros", Freud estabeleceu a nova premissa
de uma sublimação não repressiva que êle tinha deixado de lado quando
de sua explicação "repressiva" da cultura. O empreendimento de Marcuse
na sua definição de uma "sublimação não repressiva" é discutível na
medida em que êle parte precisamente dêsse "Eros" do Freud "tardio"
que é idealização da energia libidinal autêntica.

1
57
nou-se impossível. Com efeito, essa generalidade, em di
reção à qual Marcuse se inclina nìtidamente e que é devida
igualmente a um aspecto abstrato e hegeliano do empre
endimento global de seu pensamento, guarda em si uma
visão geral e abstrata do conflito interno do homem e de
sua cultura que é característica de Freud. Mesmo a di
mensão social do homem que Marcuse, diversamente de
Freud, desenvolve e esclarece, permanece geral demais e
sua dialética interna profunda não é expressa em sua
totalidade. Enfim, o fato de que Marcuse retoma, no seu
conteúdo e na sua dualidade, as categorias freudianas
"Eros-Tanatos" retira da perspectiva de uma sociedade cul
tural “não repressiva" algumas de suas dimensões reais.
Assim como observamos que Freud conseguiu atingir
o conflito fundamental da estrutura humana, é preciso ver
agora que seu esquema dêsse conflito é abstratamente dia
lético. Sua teoria dos instintos marca mesmo a vitória de
um dualismo anti-dialético. Em relação às esferas do "Id"
e do "Super-ego", o conflito entre elas é indicado de ma
neira extremamente linear; Freud não apreende a comple
xidade, a diversidade e a variabilidade das relações dialé
ticas do "Super-ego” e, também, da ligação entre essas duas
esferas. Ele não vê que a civilização e a cultura, que o
homem cria na época da supremacia do princípio de domi
nação e de opressão, têm um caráter ambivalente e duplo
e que esse princípio de dominação e de opressão também
possui êsse mesmo caráter.
Essas relações e conflitos freudianos, abstratamente
dialéticos, podem ser esclarecidos pela concepção concreta
mente dialética do dinamismo dos conflitos sócio-humanos
que está contido na teoria marxiana da história. Trata-se
de compreender a ligação dialética entre, de um lado, a
repressão e a opressão e, por outro lado, o enriquecimento
das esferas primárias e secundárias da existência humana.

58
Em tôda a existência histórica do homem, onde até
o momento prevalece o princípio de dominação e de opres
são, é preciso entender todo ato repressivo na sua totali
dade dialética com o progresso que êle traz e que só pode
aparecer nessa repressão, nessa opressão, nessa organiza
ção conflitante da sociedade.
Convém respeitar e dominar teòricamente na teoria
geral do homem a seguinte realidade fundamental: o apa
recimento da sociedade, que ocorre simultâneamente à des
coberta e à valorização do princípio de dominação e de
opressão sociais, traz para todos os produtos da civilização
e da cultura humana um caráter dialético e de contradição;
o poder concreto existe na sociedade e não o poder abstrato.
O grupo social dominante cria seus instrumentos de
poder, de civilização e de cultura, assim como seus meios
de repressão, não para refrear as necessidades da libido
e os desejos do "homem em geral” mas para criar as
condições de uma satisfação maior ainda de suas próprias
necessidades através da opressão de uma certa parte da
sociedade. A repressão é portanto apenas um primeiro
aspecto de um processo cuja segunda característica é jus
tamente a de criar as possibilidades de uma maior satis
fação das necessidades vitais de uma parte determinada
da sociedade a fim de assim enriquecer a libido do homem
em geral (16).

16. A concepção marxista da dialética das classes e do humano


em geral oferece a única possibilidade de dialética real da ligação entre
as esferas do "id" e do "Super-ego". Interessante observar que à com
preensão freudiana "pura", estreita e linear, da conflitualidade do homem
social, corresponde, de certa forma, uma compreensão simplista dos con
flitos de classe ("simples" opressão e "simples" dominação), muito habi
tual no passado.
Não é menos interessante ressaltar que Freud, em diversas pas
sagens de sua obra, mostra claramente que tem consciência dessa ambiva

59
A atividade destruidora, agressiva e repressiva dos
grupos sociais dominantes nunca tem portanto um caráter
universal e absoluto - é apenas uma forma "a-social"
particular pela qual um grupo social concreto enriquece a
vida humana. No seu modo de realização, civilização e
cultura não são uma repressão da libido primária; uma
análise histórico-sociológica fàcilmente provará que se trata
exatamente do contrário: nesse nível da vida social, a
atividade de cultura e de civilização amplia, acrescenta e
aumenta em grau a esfera na qual se realizam as neces
sidades libidinais primárias. Portanto, não é necessário
inventar "uma sublimação não repressiva". O exame das
formas históricas de opressão nos desvendará essa ativi
dade sob uma forma muito real e realista (17).

lência da opressão social (ver por ex. Malaise dans la Civilisation). Mas
são apenas alusões feitas de passagem e que se apagam diante da con
cepção fundamental da sociedade enquanto "opressor abstrato do homem
em geral". Essas alusões, devidas a uma visão realista das coisas, assim
como à consciência interna que Freud tinha de uma alternativa monista
para a sua concepção dualista dos instintos, indicam muito bem que
Freud conhecia as conseqüências sociais de sua concepção do homem e
da cultura mas que êle não ousou tirar disso todas as decorrências
lógicas e que preferiu conservar, através de sua concepção dos instintos,
um dualismo metafísico assim como uma abstração metafísica em re
lação à sua concepção do "Super-ego".
17. É evidente que, por ocasião do momento da formação dos
valôres de civilização e de cultura, o momento de opressão não se faz
presente apenas nas relações do grupo social oprimido e submetido, mas
também nas relações do grupo dominante. Ele representa sem dúvida
um papel particular em inúmeros casos de deformação da estrutura psí
quica dos criadores diretos dos valores de civilização e de cultura. A
psicanálise da cultura dedicou-se aliás mais especialmente ao estudo dessa
esfera psico-individual. Esta é, sem dúvida, uma abordagem insuficiente.
O funcionamento psicosocial objetivo da cultura e da civilização é de

60
Num sistema social dominado pelo princípio de poder,
a civilização e a cultura não são portanto simplesmente
repressivas; pelo contrário, através dessa repressão se
efetua um enriquecimento permanente e contínuo da libido
humana ainda que isso se realize em formas "a-so
ciais" (18).
O fato de Freud não ter apreendido a dialética real
da opressão e da sublimação não repressiva decorre tam
bém do fato que, pela dualização dos instintos vitais funda
mentais, êle perdeu tôda possibilidade de apreender o
caráter libidinal da agressividade enquanto tal que, na
sociedade humana, assume a forma do poder e da domi
nação sociais.
Seu mérito é ter compreendido a importância do prin
cípio de dominação em relação ao próprio aparecimento
da sociedade humana e de ter atraído a atenção para o
seu papel constitutivo desde a primeira fase da existência
humana (19). Todavia, não pôde ver que o poder social

decisiva importância para a determinação de sua evolução. Nessa mesma


vida social, a civilização e a cultura possuem, num certo contexto, essa
"sublimação não repressiva" que nos esforçamos por definir.
18. Marx apreendeu isso muito bem nos Manuscritos, ainda que
êle se sentisse incomodado pela idéia metafísica de uma natureza e de
uma alienação humanas. Para Marx, com efeito, a propriedade privada,
"alienante" e "inumana" é o terreno sôbre o qual se desenvolvem, as
sumem uma forma e se enriquecem os talentos e necessidades essenciais

do homem. O movimento "da propriedade privada, de sua riqueza e


de sua pobreza riqueza e pobreza materiais e espirituais oferece à
-
-

sociedade que nasce todos os elementos da formação (do homem)....


a história da indústria e sua existência objetiva que acaba de ser criada
são o livro aberto das forças essenciais do homem, da psicologia humana
tal como é possível apreendê-la através dos sentidos..." (Manuscritos).
19. Qualquer que seja o caráter especulativo - particularmente em
Totem e Tabu das considerações de Freud sôbre a evolução da horda

61
de repressão é apenas um meio de obter e de aumentar o
prazer, que êsse poder possui em si mesmo ao contrário -

-
um caráter libidinal, que êle é uma forma fundamental
e determinante da sublimação da agressividade humana.
O poder social, agressividade sublimada, não é "um suce
dâneo ideal da agressividade real"; pelo contrário, êle
eleva de uma maneira original essa mesma agressividade;
a agressão das grandes feras carnívoras é bem mínima se
a compararmos com certas formas de agressão social. Esta
de fato faz do homem o rei das feras. Estamos aqui em
presença de uma outra forma muito real, e pràticamente
a forma mais forte de "sublimação não repressiva" que
existe, e que é uma sobremultiplicação da agressão na sua
passagem de sua forma primária para a sua forma se
cundária.

primitiva, elas têm um núcleo racional pois elas mostram o papel deter
minante da dominação e do poder desde os agrupamentos humanos orga
nizados mais primitivos antes mesmo do aparecimento da propriedade
privada. Essas premissas freudianas, confirmadas aliás pelas pesquisas
atuais sobre as sociedades primitivas (que mostram aliás que mesmo
o matriarcado não representa um estágio obrigatório da evolução hu
mana), são de uma grande importância para a concepção marxista da
sociedade. Disso ressalta cada vez mais claramente que o aparecimento
da propriedade privada não é uma determinação absoluta da dominação
e do poder sociais e que o poder social de opressão é uma variação direta
da agressividade primária do instinto. A hipótese de uma igualdade e de
uma harmonia originais na sociedade clássica antes da introdução da
propriedade privada demonstra ser então uma pura utopia romântica.
O período atual da existência do socialismo, período da abolição da
propriedade privada dos meios de produção, mostrou que a função re
pressiva e "a-social" do poder social não desaparece automàticamente com
a supressão da propriedade privada, que ela se manifesta em todas as
formas de organização social, que sua origem remonta portanto mais
longe e que ela se forma a partir das inclinações biopsíquicas primárias
do homem.

62
A agressão social provoca, sem dúvida, uma reação
e faz nascer uma contra-agressão existencial. Sem dúvida
nenhuma, a agressão revolucionária é a que tem o valor
humanitário e humanizante máximo; ela visa a emanci
pação do homem mas não contém carga libidinal menor
do que a são que é o instrumento da opressão social.
Realçamos o papel dessa dialética do componente
agressivo do instinto vital do homem, de seus modos a
social e socialmente emancipador, para mostrar de que
formas de ordem diferente ainda que bastante reais já
está dotada a "sublimação não repressiva" na existência
histórica do homem. Diremos ainda algumas palavras a
respeito de certos momentos históricos das formas ideoló
gicas da cultura humana e do seu funcionamento na so
ciedade até agora.
A ambivalência, que pudemos verificar na análise do
poder social e da agressão social, pode ser igualmente
percebida pela regulação cultural e espiritual, na ideolo
gia. O caráter universalmente normativo e universalmente
coator da ideologia poderia sem dúvida nos induzir em
êrro. Mas de fato, êsse caráter universalmente coator da
ideologia é apenas uma aparência. Todavia, a superação
da abordagem abstrata da ideologia exige um confronto
da teoria e de seu funcionamento prático.
Com efeito, os grupos sociais dominantes que secretam
a ideologia dominante, universalmente coatora e de ordi
nário limitando os desejos vitais materiais e reais do ho
mem, êles mesmos jamais se conformam inteiramente com
essa mesma ideologia. Esse fenômeno que, mais uma vez,
pode ser fàcilmente provado por uma pesquisa histórico
sociológica, exprime sem dúvida uma lei geral. Essa con
tradição antinômica pode ter formas diversas. O grupo
social no poder cria, por exemplo, uma situação e um meio
de vida tais que êle possa escapar às conseqüências repres

63
sivas de sua própria ideologia sem que seja levado a se
distanciar abertamente dessa ideologia. Donde essa famosa
"hipocrisia" em relação à sua própria ideologia que já con
tém, de maneira latente, o princípio de uma “dupla ver
dade", a saber, uma verdade oficial para os outros e uma
verdade "não oficial" para si mesmo. O exemplo clássico
dêsse duplo funcionamento ou não-funcionamento, da ideo
logia é a vida do cristianismo oficializado na sociedade
feudal.

Apesar disso, a própria evolução do cristianismo, ge


ralmente considerado como o instrumento clássico da opres
são cultural e espiritual do natural humano, criou a versão
clássica do segundo modo de vida fundamental dessa ambi
valência da ideologia dominante na qual a dupla verdade
latente da ideologia pretensamente “monista" torna-se
teoria oficial da “dupla verdade”. É o caso do catolicismo
do Renascimento.

Sabe-se que todo o Renascimento está ligado à evo


lução de um certo modêlo de catolicismo. Chega-se, nessa
época, a uma libertação e um enriquecimento excepcionais
das esferas libidinais primária e secundária do homem,
representado naturalmente pelo homem que dispõe da ri
queza material e do poder social. Nessa situação, o catoli
cismo confirma bem o caráter repressivo de sua dogmática
oficial mas, pela aplicação dêsse princípio nominalista da
dupla verdade, êle oferece a si mesmo, pela primeira vez
na história da sociedade européia, a possibilidade de ex
primir mesmo no plano teórico o desenvolvimento prático
universal do princípio de prazer que marcou a época do
Renascimento.

Não deixa de ter interêsse observar que foi exata


mente o secretário do Papa, Lorenzo Valla, quem no co
mêço do século XV e pela primeira vez na história da
Europa, elaborou a teoria hedonista de viver que existe

64
com menor ou maior intensidade em particular simbiose
com a dogmática oficial "anti-libidinal" enquanto filosofia
da elite social (20). Sem dúvida, se êsse hedonismo renas
cente não expõe o ideal de liberdade humana universal, é
porque se trata justamente de uma filosofia da elite social
que compreende a liberdade universal enquanto universali
dade de sua liberdade, enquanto liberdade de seu gozo
universal e se baseia na sua dominação e na sua opressão
sociais.

Convém notar que uma característica bastante notável


da dialética interna da ideologia, a saber o fato que o ideal
de liberdade humana universal, surgido nas camadas ple
béias antes e durante a Reforma e que faz prevalecer as
reivindicações de liberdade para todos os membros da socie
dade humana, ao introduzir o princípio de igualdade social,
permanece todavia livre de qualquer libido direta e é na
verdade ascético e no seu próprio programa entra em luta
contra o princípio de prazer (21). O exemplo clássico do
caráter "anti-libidinal" do programa de emancipação do
homem é sua realização prática pela seita dos "Vaudois",
assim como o seu teórico em Chelcicky.
Como é que se pode explicar essa característica par
ticular? Ùltimamente pela oposição total do homem sub
20. A grandeza do catolicismo do Renascimento reside na clareza
transparente e na pureza dessas duas formas de ideologia, na teorização
corajosa do princípio de dupla verdade. Em seguida, enquanto ideologia
dominante, êle perdeu sua coragem, na maioria dos casos, e reduziu
êsse princípio de dupla verdade à sua forma latente dando sua prefe
rência para o "monismo" ideológico.
21. Sem dúvida, há exceções: o não conformismo plebeu vê se
afirmar em seu seio o "naturismo"; os libertinos e outros "espíritos fortes",
os "adamitas", Sade e enfim o anarco-comunismo fazem prevalecer o
princípio de prazer. Todavia, êsses fenômenos não predominam e conti
nuam marginais em relação à corrente principal do pensamento plebeu.

65
metido e oprimido contra o estilo de vida do sustentador
do poder social. Este último, com efeito, utiliza-se das
diversas formas de agressão e penetra no ideal de emanci
pação do objeto dessa mesma agressão através de sua
negação total de qualquer agressão e através de sua pró
pria contra-agressão. O objeto da agressão visa sua
própria situação de vida e o eleva a um ideal existencial
absoluto. O princípio de amor fraternal, desexualizado e
livre de tôda agressão, predomina nesse sistema ideológico.
Assim aparece o modêlo histórico efetivo da nobre
platonização do "Eros" freudiano, libertado da agressivi
dade e dotado de um programa de união fraterna de ho
mens iguais e que se auxiliam reciprocamente. Ele difere
do "Eros" freudiano, por seu caráter desexualizado, aquilo
que é ao mesmo tempo uma crítica histórica real dêsse
"Eros": com efeito, desembaraçado da agressividade se
xual, o "Eros" material é substituído por um "Eros" efe
tivamente platônico.
Mas ao mesmo tempo é um “Eros" verdadeiro, não
sem libido, libido proveniente de uma nova e particular
sublimação "não repressiva" da libido material.
A libido material é, de fato, reprimida ao extremo, o
que não é devido no entanto a uma pressão repressiva
proveniente do "Super-ego"; o "ego" não realiza aqui ne
nhuma autorregulação repressiva: a aceitação do ideal anti
libidinal não depende da consciência (escrúpulos, remor
sos) ou da culpabilidade mas é uma manifestação de um
narcisismo existencial que faz com que o homem aceite
voluntàriamente e proclame sua situação de vida como
sendo seu próprio ideal existencial. Esse modo de reação
existencial manifesta-se em outros contextos menos clás
sicos. Este caso de opressão da libido material pessoal
não é, a bem dizer, um fenômeno de repressão, nem de
auto-repressão, mas de sublimação da libido material numa

66
nova energia, não material e desexualizada. A libido nar
císica fixa-se num valor ideal e elimina ao extremo o ego
tismo natural do homem.

Chegam a seu fim nossas considerações sobre as for


mas repressivas e sobretudo não repressivas de sublimação
da libido. O resultado é que a esfera do "Super-ego" aparece
como sendo bem mais rica e encerra funções bem mais
complexas do que permitia supor a definição (delimitação)
freudiana dessa categoria.
Percebe-se também que o caminho histórico da liberta
ção do homem caracteriza-se pela tendência para uma con
tradição bastante notável, mas, definitivamente, bastante
compreensível. De um lado, a liberdade social universal do
homem, libertada da libido real, abre seu caminho para a
frente, enquanto que, por outro lado, assiste-se à luta pela
libertação e por uma afirmação cada vez maior dessa mes
ma libido real que ignora a libertação social universal do
homem. Encarada sob o ângulo do ideal máximo de de
senvolvimento harmonioso do homem, o caminho de liber
tação histórica do homem parece tortuoso e deformado.
Mas é nisso que reside a real dialética da libertação do
homem; é assim que surge a dialética real da evolução
histórica da constante antropológica do homem. Teige
tinha muita razão de falar de um "homem eterno, mode
lado, culto e ao mesmo tempo deformado e truncado pelo
desenvolvimento histórico da sociedade".
O esfôrço marxista de realização de uma sociedade
livre e harmoniosa deve ter sempre presente em mente a
complexidade do caminho pelo qual o homem, através do
tempo, abre passagem para a libertação. É preciso ter
consciência da dificuldade de harmonizar a liberdade so
cial do homem com uma inteira emancipação de suas ne

67
cessidades libidinais e ter consciência do caráter relativo
dessa harmonização. É preciso ter consciência da pro
pensão para a contradição e para o conflito interno das
fôrças fundamentais dos instintos humanos.
Não é conveniente extrair de uma especulação da
"razão pura" o ideal do homem libertado, nem outorgar
êsse ideal à sociedade à maneira do "filósofo esclarecido";
é por uma análise concreta da evolução da sociedade hu
mana que se deverá achar o caminho para essa dialética
real que produziu certas orientações e tendências pelas
quais o homem chegou à presente situação; a compreensão
dessa orientações e tendências facilitará, sem dúvida, a
resolução das questões centrais da "socialização do homem".
Evidentemente, há três grupos de problemas vitais. No
plano geral, mas não na sua realização, o problema mais
claro é o da transformação do trabalho, libertado da libido,
numa atividade criadora libidinal; a gradação da economia
política sem dúvida é a condição primeira dessa trans
formação. Os outros dois grupos de problemas são muitos
menos nítidos e, de fato, seu estudo nem mesmo foi come
çado. Trata-se, de um lado, do problema central da trans
formação da sexualidade em "Eros"; êste é o caso, bem
entendido, do desenvolvimento da sexualidade real em
"Eros" natural: o "Eros" de Chelcicky ou de Freud, toda
via, não perde de modo nenhum seu campo de ação mesmo
na sociedade libertada. A isto está naturalmente ligado
o estudo das formas de sublimação não repressiva no con
texto socialista, em condições fundamentalmente diferentes
daquelas nas quais ela se realizava antes do aparecimento
do socialismo. Por outro lado, trata-se do problema da
agressividade na sociedade socialista. Parece que a agres
são social, tendência de opressão e de dominação sociais,
irá se manifestar no futuro mesmo numa sociedade basea
da na propriedade socialista.

68
Sob o regime socialista, o melhor seria, sem nenhuma
contestação, transpor ao máximo a agressividade para
uma contra-agressão permanente e emancipatória que es
taria capacitada a neutralizar as inclinações agressivas
que tendem para uma opressão social em formas socia
listas.

Uma análise baseada, quanto ao método, numa "sín


tese" crítica de Marx e de Freud poderia sem dúvida con
tribuir para a procura de uma solução para êsses pro
blemas.

69
UMA SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL?

David Horowitz
A SOCIEDADE EM EQUILÍBRIO

O livro do professor Marcuse, One dimensional Man*,


é uma obra difícil porém interessante, uma das raras aná
lises dêsse gênero realmente importantes surgidas no após
guerra. Esses "estudos sobre a ideologia da sociedade indus
trial adiantada" constituem a síntese dos temas que
Marcuse explorou durante tôda sua vida e que, acredito,
sem dúvida exercerão uma forte influência sôbre tôda
análise séria a ser feita num futuro imediato. Antes

de mais nada quero deixar bem claro minha estima


por essa obra, sendo o que se segue uma crítica não da
quilo que interessa especialmente a Marcuse a ideologia
mas sim da estrutura social à qual êle se refere e sobre
a qual repousa a análise da ideologia.
Marcuse descreve a ordem social predominante nos
Estados Unidos como sendo a de uma "sociedade industrial
adiantada" e condena-a por ser irracional. O que constitui
a irracionalidade dessa sociedade é o fato de que "sua pro
dutividade tende a destruir o livre desenvolvimento das
faculdades e necessidades humanas, que sua paz só é man
tida através das constantes ameaças de guerra, que seu
crescimento se baseia na repressão das possibilidades reais
de tornar pacífica a luta pela existência." A natureza
repressiva do conjunto transforma os meios tecnológicos
(que poderiam ser meios de libertação humana) em ins
trumentos de dominação. A revolução tecnológica não faz

73
mais do que mudar a aparência das formas de dominação
e de dependência. A dependência pessoal do escravo ao
seu senhor, do servo ao senhor feudal, é substituída pela
"dependência da 'ordem objetiva das coisas' (leis econó
micas, mercado, etc.). A bem dizer, a 'ordem objetiva
das coisas' é ela mesma o resultado de uma dominação,
mas é indubitável que esta dominação traz consigo uma
racionalidade mais forte a de uma sociedade que forta
lece sua estrutura hierárquica ao explorar da maneira mais
eficaz possível os recursos naturais e mentais e ao distri
buir de um modo mais amplo os benefícios dessa explo
ração".
Portanto, se bem que a sociedade industrial adiantada
seja irracional em seu conjunto, para aqueles que se en
contram no interior do sistema sua extrema irracionali

dade parece ser racional: a acumulação de amplos recursos


destruidores produz riqueza e emprêgo, a proliferação das
despesas, dos gastos e mesmo do desperdício produz o
bem-estar, as necessidades artificiais artificialmente cria
das são satisfeitas e esta satisfação liga as pessoas ao sis
tema.

A represão ou recalque (containment) é total. A li


beração significaria a “catástrofe" do sistema, mas não
existe fôrça social capaz de provocar essa "catástrofe"
diante do dispositivo de contrôles sociais. A sociedade
industrial adiantada é, ela mesma, unidimensional, conse
guindo com isso integrar suas forças sociais críticas in
ternas, isto é, seu potencial revolucionário. Para êsses
grupos, a produção e a distribuição de uma quantidade
cada vez maior de bens e de serviços faz da conformidade
uma atitude tecnológica racional". Dessa maneira, o prole
tariado marxiano, essa personificação social da dialética
negativa (uma consciência revolucionária que nega o con
junto irracional), é comprado pelas vantagens que lhe são

74
oferecidas por uma sociedade opulenta. Trata-se, com
efeito, da "repressão da transformação social", que Marcuse
considera como a característica mais saliente do sistema.

"Sob sua superfície evidentemente dinâmica, esta


sociedade é um sistema de vida totalmente estático:
automotor na sua opressora produtividade e na sua
lucrativa coordenação."

Temos aqui uma noção chave, de conseqüências pro


fundas e de um grando alcance e uma daquelas a que êste
artigo é dedicado. Com efeito, se o sistema está "contido",
inamovìvelmente arrolhado contra qualquer possibilidade
de liberação, a crítica do conjunto está condenada à impo
tência. Tal é, com efeito, a conclusão desesperada do
próprio Marcuse: "Quer nos coloquemos de um ponto de
vista empírico ou teórico, o conceito dialético pronuncia seu
próprio desespêro". One-Dimensional Man termina com
estas palavras de Walter Benjamin, escritas o que não
deixa de ter seu sentido próprio -

"no começo da era


fascista":

"Sòmente através dos desesperados nos é dada es


perança."

Nesta concepção de um equilíbrio social mais ou menos


permanente, o requisitório acerbo de Marcuse contra a
sociedade americana une-se, irônicamente, a um dos postu
lados básicos das "análises" que C. W. Wright Mills batizou
de "A Grande Celebração Americana". Como análises dês
se gênero estruturaram seus modêlos referindo-se à polí
tica de após-guerra das sociedades adiantadas do Ocidente,
ou de suas economias pós-keynesianas "mistas", as caracte
rísticas mais salientes caminham no mesmo sentido: a una

75
nimidade aparente, o aparente fim da ideologia, a harmonia
aparente dos interêsses básicos (a maior racionalidade de
um sistema que "distribui bens"), a aparente ausência de
conflitos sociais fundamentais e portanto a aparente re
pressão de tôda transformação social radical. Com efeito,
êsses escritores celebravam o assim chamado estabeleci
mento de um equilíbrio no qual o equilíbrio das forças exige
que cada grupo forneça pelo menos o mínimo que garanta
assim, nessas sociedades, "o progresso" de todos (e a
conservação do conjunto) que é a condição do "progresso"
de cada um.
Quando Marcuse denuncia o caráter unidimensional de
cada uma dessas noções de "progresso" universal no am
biente cultural dessas sociedades, só podemos estar de
acordo com êle; e quando êle qualifica êsse equilíbrio, que
os outros celebram tão entusiàsticamente ("a verdadeira
'sociedade boa' em ação") de desastroso porque deteve o de
senvolvimento da sociedade numa etapa de barbarismo
("embrutecido" e "desumanizado"), no portal das possibi
lidades de criação de uma ordem social humana também
aqui temos de lhe dar razão.
As coisas mudam quando Marcuse apoia a tese do equi
líbrio em si mesma. Com efeito, que evidência tangível
pode justificar a conclusão não histórica segundo a qual,
na "sociedade industrial adiantada", a humanidade num

certo sentido finalmente alcançou o lendário reino mile


-

nar (ainda que, irônicamente, como ao final de uma cor


rida)? Durante todos estes anos de após-guerra, os fenô
menos de repressão tornaram-se, sem dúvida, bastante fa
miliares; mas trata-se de um período muito curto na histó
ria das formações sociais, em todo caso curto demais para
permitir afirmar que a estrutura escondida sob a superfí
cie das coisas está tão harmoniosamente ordenada quanto
esta. Os anos '30 não foram tão "unidimensionais" assim,

76
e os anos '60 mostram indícios de movimentos em novas

direções. Será inverossímil que a aparência de equilíbrio


dêstes últimos anos tenha obscurecido o desenvolvimento
de um desequilíbrio mais profundo e mais fundamental na
estrutura social?

O ponto que contestamos não é a afirmação de que


as sociedades ocidentais estão passando por um período de
equilíbrio do desenvolvimento social, mas sim a afirmação
de que elas chegaram a um equilíbrio que se desloca no
tempo, isto é, que pode ser considerado como definitivo.
Êste problema é crucial, não apenas para a teoria e a crí
tica da sociedade contemporânea, como também para a
prática que decorre dessa crítica, para a perspectiva atra
vés da qual renovam-se os esforços que visam modificar
esta sociedade.

Encarando este problema, começaremos por fazer o


levantamento de algumas das fraquezas que aparecem nas
análises que aceitam a tese da repressão (containment).
Em primeiro lugar, todos êsses autores isolam no espaço
suas sociedades industriais, opulentas ou adiantadas. Por
exemplo, aquêles que tomam os Estados Unidos como exem
plo fazem abstração dos contextos econômicos, políticos e
militares mundiais do capitalismo americano, contextos que
têm uma profunda ressonância sobre sua atual estabilidade
interna, e cuja sorte influirá profundamente no curso de
seu futuro desenvolvimento. O capitalismo dos Estados
Unidos é um sistema global, e basta dar uma olhada para
além das fronteiras nacionais, para o lado do hemisfério
sul — parte muito importante do sistema para pôr em
-

dúvida a permanência do status quo.


Depois de terem isolado no espaço o assunto de suas
análises, êsses autores os isolam no tempo. Como já obser
vamos, seus prognósticos são feitos na base de análises
que incidem sôbre períodos muito curtos, notadamente limi

77
tados ao período do após-guerra, com suas condições polí
ticas e econômicas excepcionais. Com efeito, êsses anos se
caracterizaram pela violenta ascensão (boom) da recons
trução, pelo boom dos investimentos (precipitado pela revo
lução teconológica) e pelo boom da guerra fria, que se reu
niram para criar um impressionante período de rosperi
dade capitalista (apesar do caráter restrito e parcial dessa
prosperidade). Além do mais, o confronto militar e ideo
lógico das duas super-potências ajudaram a impedir a
explosão de um conflito no interior de cada um dêsses dois
países, e provisòriamente desviaram a atenção dos proble
mas internos importantes. Mas mesmo que êsses fatores
continuassem a agir com a mesma intensidade, seria no mí
nimo apressado concluir, de uma análise com um campo de
visão tão limitado assim, que a situação possa continuar
"como normal" sem acabar em sérias desordens sociais e

no caos. Pois semelhante conclusão pressuporia a ignorân


cia dos efeitos cumulativos dos problemas cuja existência
é reconhecida porém negligenciada.
Consideremos, por exemplo, os gastos em armamentos,
que foram o verdadeiro ponto de apoio da "prosperidade
capitalista" durante tôda a sua existência. Marcuse se
declara particularmente consternado por êsse fato, porque
nêle vê a realização completa da irracionalidade do capita
lismo adiantado: esta sociedade

"se enriquece, cresce e melhora na medida em


que perpetua o perigo. A estrutura da defesa faci
lita a vida de um maior número de pessoas e amplia
o domínio do homem sôbre a natureza".

É talvez verdadeiro que, na realidade imediata, os


gastos feitos com sua defesa pelas sociedades capitalistas
possam parecer racionais: criam empregos e uma "prospe

78
ridade" que parecem inacessíveis (e que de fato o foram
durante a existência do capitalismo keynesiano) por outros
meios. Mas o verdadeiro efeito das despesas militares,
mesmo no capitalismo, não é enriquecer e melhorar a so
ciedade não importa em que sentido real; a economia de
defesa é parasitária do crescimento do poder produtivo
real da sociedade e solapa o potencial material e cul
tural dessa sociedade. Naturalmente, êsse é um fato

que Marcusse reconhece; é um dos aspectos daquilo que


êle chama de "irracionalidade do sistema". Infelizmente,

Marcuse não leva sua perspicácia até sua conclusão lógica.


Pois se a riqueza real da sociedade não é aumentada pela
produção de instrumentos de destruição, segue-se que seme
lhante emprego do tempo de trabalho social deve dimi
nuir a verdadeira riqueza da sociedade. Na verdade, essa
necessidade pode muito bem não se manifestar de imediato.
Com efeito, durante um certo tempo, a riqueza e a estabi
lidade da parte da sociedade que se ocupa com a produção
de guerra pode muito bem dar a impressão de ter bases
profundas como parece a Marcuse. Mas, com o tempo,
essa aparência surge como superficial e permite à verda
deira estrutura do edifício social apresentar-se de maneira
cada vez mais nítida. Os indícios de semelhante desen
volvimento já são visíveis nos Estados Unidos e foram
ressaltados por um expert (1).

1. Seymour Melman, Our Depleted Society, Holt, Rinehart and


Winston, New York, 1965, p. 11. Trata-se de um livro rico em infor
mações; entretanto, como a maioria das críticas do após-guerra que fazem
abstração das relações fundamentais entre produção e distribuição nos
países capitalistas, toma simples sintomas como se fossem causas subja
centes. Assim, em sua discussão sobre os "Lucros sem produtividade",
Melman faz abstração do fato que o entrave monopolista sobre a concor
rência é uma das características fundamentais de toda a economia ame

79
A produção de armas, que acarreta uma perda insubs
tituível em recursos humanos qualificados ("dois têrços
dos pesquisadores técnicos dos Estados Unidos no momento
trabalham para o Exército") (2) também tem um efeito
pernicioso sobre a reserva civil em capital. Seymour Mel
man escreve (3):

A concentração nacional sobre a produção de


armamentos, que atribui prioritàriamente todos os
talentos e capitais à esfera militar, provocou em inú
meras indústrias uma deterioração tão grave que elas
se encontram virtualmente numa condição final em
têrmos de competência econômica e técnica.

É preferível abordar indiretamente uma boa parte das


características das análises de Marcuse e dos outros autores

adeptos do equilíbrio. Há alguns anos atrás, os editores


da Monthly Review, constatando que a crise é "endêmica
ao capitalismo" e que "ela se torna inevitàvelmente mais
profunda e mais contínua à medida em que o sistema ama
durece", ressaltaram cuidadosamente que isso não signi

ricana; êle considera implicitamente a não concorrência do mercado


governamental de bens militares como a causa única dêsse fenômeno.
Na realidade, o orçamento militar é, êle mesmo, o produto da etapa
monopolista do desenvolvimento capitalista (cf. a discussão mais abaixo).
Os gráficos de Melman (p. 51) provam que o esgotamento dos recursos
é endêmico a esta etapa do desenvolvimento capitalista, e apenas em
virtude de seu fracasso em considerar os gastos militares como “a saída”
salvadora para o impasse que o capitalismo monopolista criou para si
próprio, é apenas em virtude disso que ele pode encarar a diminuição
dêsses gastos como uma possibilidade do sistema capitalista.
2. Id. p. 4.
3. Id. P. 11.

80
ficava de modo nenhum um estado de "depressão econômica
permanente":

A característica do marxismo vulgar em nossa


época e sua maior fraqueza é pretender que a
única forma possível (ou significativa) de crise no
capitalismo é depressão econômica.

Mas foi exatamente para reagir contra essa espécie


de marxismo vulgar que Marcuse e os outros autores for
mularam suas análises. O que impressiona sobretudo a
êsses autores é que o capitalismo pós-keynesiano, segundo
êles, tem o poder de manejar os instrumentos da política
fiscal e monetária para prevenir a recorrência das catás
trofes do período entre as duas guerras mundiais. Por
tanto, podemos dizer, sem trocadilho (pois êste é um ponto
importante), que a característica do anti-marxismo vulgar
em nossa época é também considerar a depressão econômica
como a única forma de crise capitalista grave e, por conse
guinte, considerar sua solução (supondo-se que haja uma)
como o remédio para uma insuficiência verdadeiramente
crítica e potencialmente des-estabilizante do capitalismo.
De maneira definitiva, por razões ideológicas e ou
tras, repugna aos teóricos em geral analisar as sociedades
em questão enquanto sociedades capitalistas, e assim geral
mente consideram tôda crise cuja existência êles reconhe
cem como o produto de fôrças completamente indepen
dentes do sistema, ou pelo menos de seus elementos mais
salientes, e que não se refletem sôbre sua estabilidade
fundamental. Isto se aplica, por exemplo, aos crescentes
índices de criminalidade e ao problema demográfico: êstes
são, na realidade, expressões de crises progressivas no urba
nismo, nos empregos, na educação e no nível cultural geral,
que é pavorosamente baixo. Cada um dêsses elementos

81
tem sua raiz na maneira pela qual os recursos sociais são
repartidos (isto é, mal repartidos) na sociedade capita
lista e na maneira pela qual o poder social, que poderia
contribuir para resolver êsses problemas, está colocado
entre as mãos daqueles que têm todo o interêsse em manter
o status quo.
A tipologia própria a Marcuse ("sociedade industrial
adiantada") implica (o que o texto às vêzes contradiz) no
fato que a origem da irracionalidade e da dominação na
sociedade contemporânea deve ser procurada essencial
mente na extensão do emprêgo da máquina como método
de produção. Mas, como o próprio Marcuse reconhece, "o
poder da máquina não é mais do que o poder acumulado
e projetado do homem". De resto, "à medida em que o
mundo é imaginado como uma máquina, e por conseguinte
mecanizado, êle se torna a base em potencial de uma nova
liberdade para a humanidade". Desta forma, o problema
passa a ser o que existe na organização de uma sociedade
industrial adiantada que permite libertar êsse potencial ou,
pelo contrário, que possa impedir sua realização?
Pelo fim de seu livro, Marcuse nos diz que a mudança
qualitativa da sociedade, a marcha na direção da libertação,
está "na reconstrução da base (tecnológica), isto é, no
seu desenvolvimento baseado em finalidades diferentes".
Mas o que leva a sociedade a determinar as finalidades
visadas pela tecnologia, em vista das quais ela se desen
volve? Marcuse não se preocupa com êsse problema; só
o menciona quando se refere à redefinição das "causas
finais" que acarretam "a construção, o desenvolvimento e
a utilização dos recursos (...) livres de todos os interêsses
particulares que impedem a satisfação das necessidades
humanas e a evolução das faculdades humanas". Mas
Marcuse não descreve êsses "interêsses particulares" -

82
coisa que se pode esperar de uma análise que descreve
uma formação social referindo-se à sua base tecnológica.

Entretanto, se examinarmos a irracionalidade par


ticular que caracteriza a sociedade industrial de Marcuse,
uma linha alternativa de análise se apresenta por si só.
Pois esta irracionalidade não é um simples epifenômeno
geral do progresso técnico, mas sim a irracionalidade de
um sistema industrial no qual "nem a soma total de tra
balho realizado, nem a produção realizada são determi
nadas pelo nível de produtividade existente, e tampouco
pelos desejos e necessidades da sociedade"; isto é, trata-se
de um sistema no qual essas variáveis fundamentais e
críticas não são influenciadas por "nenhuma graduação
social de preferências no que concerne o trabalho e os la
zeres" (4).
No capitalismo, é o esquema de posse dos meios de
produção que determina em grande parte o esquema de
distribuição das rendas, e portanto o esquema geral da
procura de bens de consumo e da poupança. Por conse
guinte, o poder de decidir o uso do tempo de trabalho, o
poder de prolongar ou de "pacificar" a luta quotidiana,
de decidir se a sociedade deve comandar ou ser coman
dada por suas forças produtivas êste poder não é de
tido pela sociedade (5). Pelo contrário, êste conjunto de
decisões sociais de crucial importância é determinado
-

pelo política de lucro realizada pelas sociedades monopo

4. Paul Baran e Paul Sweezy, Economics of two world in On Poli


tical Economy and Econometrics, Essays in Honor of Oskar Lange, Per
gamon, 1965.
5. Isto é, não está nas mãos do grupo que, em todo caso, é res
ponsável perante o eleitorado afetado pela decisão e que é capaz de
tomar decisões de um ponto de vista social. (A respeito dêste último
ponto, cf. Lange, Political Economy, vol. I, cap. 5).

83
listas, política esta modificada, numa medida bem restrita,
por essas forças sociais contrabalançantes engendradas
pela corrente predominante do momento.
Uma vez que se reconheceu a influência determinante
das relações capitalistas de produção sôbre a divisão dos
recursos sociais, a irracionalidade superficial da "sociedade
industrial adiantada" encontra uma explicação racional,
bem como a proliferação dos gastos, o amontoamento dos
meios de destruição como estimulante da produção, a cria
ção de necessidades artificiais e a manutenção do trabalho
inútil. De resto, é o reconhecimento dêsse fato que per
mite estabelecer a estabilidade do sistema de uma maneira

que evita tôda confusão entre aparência e realidade, de


um lado, e fenômenos puramente superficiais e estruturas
profundas do outro.

84
ESTAGNAÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO

Examinemos, inicialmente, uma economia industrial


numa perspectiva histórica. Uma economia dêsse gênero
vê-se, por um longo período, comprometida num processo
de industrialização isto é, o período de transição entre
a economia que utiliza métodos de produção sem o emprêgo
de capitais e a que compreende a utilização de capitais.
Durante esse período, a economia é levada a se desenvolver
essencialmente pela procura, proveniente do setor dos bens
de capitais, sobretudo dos bens de capitais. Na prática,
essa procura supera a procura proveniente do setor dos
bens de consumo.
À medida em que os podêres produtivos da economia
aumentam e que o período de industrialização chega a seu
fim, a produção de expansão ulterior tende naturalmente
a diminuir.

No setor dos bens de consumo, o aumento da capaci


dade de produção e de oferta tende a satisfazer e em se
guida a superar a procura real. No setor dos capitais, a
partir do momento em que surgem os sistemas de comu
nicação e as indústrias fundamentais, o aparelho de pro
dução torna-se aos poucos capaz de satisfazer a expansão
e as substituições exigidas pelas indústrias produtoras de
bens de consumo, enquanto tende a desaparecer sua pró
pria exigência de expansão. Em suma, uma capacidade

85
de expansão no conjunto da economia significa, a longo
prazo, uma diminuição das exigências de expansão ulterior.
A partir do instante em que se atinge a plena industria
lização, a sociedade entra numa era em que ela pode dedicar
uma parte cada vez maior de seu tempo e de suas forças
de trabalho a finalidades culturais (e aqui por "cultura"
deve-se entender, no sentido mais amplo, tôda a esfera
das atividades produtivas não materiais, incluindo a edu
cação, as artes e a política).
Esta sociedade, tal como Keynes a via, seria "uma
comunidade quase estacionária na qual as transformações
e o progresso resultariam antes de mudanças na técnica,
nas preferências, na população e nas instituições” do que
dos investimentos líquidos (6). Por outras palavras, ainda
haveria um progresso no sentido de melhoramentos nas

técnicas, na qualidade dos produtos e de aumento da pro


dutividade mas êsse progresso seria antes o resultado
da substituição das máquinas já existentes do que o pro
duto de um aumento líquido do capital (investimentos lí
quidos). Quando êsse equilíbrio quase estacionário fôsse
alcançado, o índice de lucro sôbre o capital em formação
e o índice de juros cairiam a zero (7). Isto significa dizer
que passaríamos da poupança, com vistas a um investi
mento futuro, ao consumo (em tôdas as suas formas, in
cluindo a educação, a cultura e os lazeres) concentrado
no momento presente. O aumento da capacidade de pro
dução, necessária à satisfação do aumento das necessidades
que resultam do aumento da população, etc., seria o resul
tado da substituição do instrumental antigo (que voltaria
a entrar no consumo) por instrumentos mais modernos que
aumentariam a produtividade. Dessa forma, nenhuma ex

6. The general theory, p. 220-221.


7. Keynes, id., p. 221.

86
pansão superaria o contexto existente da produção, com
êste contexto não sofrendo aumento algum.
Ora, o declínio da formação de capital líquido (en
quanto porcentagem da produção) numa fase de industria
lização adiantada é um dos dados empíricos aceitos no que
diz respeito à economia capitalista mais adiantada, a dos
Estados Unidos (8). Por conseguinte, pode-se considerar
uma linha, um horizonte, para além do qual a formação
líquida de capital terá um fim (ou mostrará uma forte
tendência para acabar) e isso diz respeito não apenas às
especulações sobre uma possível "pacificação da existên
cia" num determinado momento no futuro de uma socie

dade industrializada como também diz respeito ao seu


desenvolvimento atual.

Para se compreender como êsse fenômeno está rela


cionado com o desenvolvimento do sistema, é necessário
examinar o que aconteceria a uma economia industrial
adiantada que já estivesse perto da saturação do ponto de
vista do capital mas que também fôsse estruturalmente
incapaz de realizar um equilíbrio que levaria ao ponto zero
a poupança líquida e os lucros. Se, por uma razão qualquer,
o índice da poupança, numa economia adiantada que esti
vesse alcançando a plena industrialização, não pudesse ser
reduzido, o que teríamos seria a perspectiva de uma estag
nação crônica e de uma depressão. Para evitar essa pers
pectiva, com a poupança continuando rígida, seria neces
sário continuar com novos investimentos (portanto, com

8. Simon Kuznets, Capital in the American Economy, 1961. De

resto, é bem significativo que durante o período 1946-55 o índice de cresci


mento da produtividade foi quase o dôbro do índice de não importa
que outro período anterior, enquanto que o índice de crescimento em
capital por operário foi mais baixo do que em qualquer outro período
anterior a 1926. Charles L. Schultze, National Income Analysis, p. 120.

87
uma industrialização cada vez maior), como se a indus
trialização precedente não existisse. Mas então o sistema
se veria prêsa de uma contradição, pois não haveria mais
incentivo e mesmo incitação ao investimento. Graças à
capacidade de produção já formada, as exigências do con
sumo seriam satisfeitas pelos meios disponíveis e não ha
veria procura, ou na melhor das hipóteses haveria uma
procura descendente (expressa na forma de lucros poten
ciais descendentes), por uma expansão ulterior da capaci
dade no setor dos bens de capital. Por outro lado, um
aumento da procura no setor dos bens de consumo tal que
pudesse contrabalançar a baixa nos investimentos se tor
naria impossível, dada a rigidez da poupança que impe
diria que novos fundos fôssem postos disponíveis para o
consumo.

Por outras palavras, uma rigidez na poupança signi


fica que quando a economia atinge a plena industrialização
ainda é possível dispor de excedente econômico para inves
timentos ulteriores, enquanto que a procura dêsses investi
mentos diminui. Se não se der uma saída, se não se provi
denciar um lugar onde aplicar êsse excedente, se a so
ciedade, independentemente de suas necessidades reais não
consegue utilizar êsse excedente de maneira a fazê-lo vol
tar para o mercado como uma procura de aumento da
capacidade de produção, e portanto de aumento dos bens
de consumo, então a renda total baixa e o desemprego
aumenta até o momento em que a poupança cai ao nível dos
investimentos.

Além do mais, graças ao aumento da fôrça de trabalho


e da produtividade do trabalho (que fazem com que a
mesma produção possa ser obtida com um número menor
de trabalhadores), o nível da produção e da renda (que
pode permitir um pleno emprêgo) aumenta. Se se deseja
evitar o aumento do desemprêgo, é preciso portanto que

88
a procura aumente proporcionalmente ao índice de au
mento da produtividade do trabalho mais o índice de
aumento da força de trabalho. Este aumento na procura
não governamental é evidentemente muito pouco provável,
dado que a capacidade existente já é inteiramente sufi
ciente. Enquanto houver canais suficientes para receber
novos investimentos, o sistema mantém sua tendência à
expansão. Quando a acumulação a longo prazo da capa
cidade de produção atinge o momento em que a procura
começa a baixar e em que não há mais perspectivas de
expansão, então o sistema entra numa fase de crise con
tínua e cada vez mais grave. Portanto, pode-se concluir
que, numa economia industrializada adiantada, caracteri
zada por um rígido índice de poupança, existe uma tendên
cia cada vez maior para a instabilidade, para a estagnação
e para a depressão na medida em que o processo de indus
trialização chega aos seus pontos máximos.

89
CAPITALISMO E INDUSTRIALIZAÇÃO

É possível perguntar-se assim se uma economia capi


talista se caracteriza por índice rígido ou flexível da pou
pança. Isso, com efeito, é o mesmo que perguntar se numa
economia capitalista há mecanismos que podem contra
balançar a baixa na procura de um aumento líquido e
contínuo com capital existente.

Teòricamente, a resposta é que, quando a procura co


meça a baixar, os preços caem, o que leva a uma baixa do
índice dos lucros (ou de juros). A parte da renda pessoal
despendida em salários e ordenados aumenta às custas da
despendida em lucros, ao mesmo tempo em que caem os
incentivos ao investimento. Estas duas tendências acabam
por produzir uma redução da parte da renda que passa
à poupança.

Mas na prática, o sistema dos preços no capitalismo


adiantado não funciona dessa maneira. A concentração
monopolista e oligopolista do capital faz com que os preços
sejam mais rígidos. O poder econômico, social e político
do capital conseguiu manter (notàvelmente) constante a
divisão da renda desde fins do século passado e apesar
das pressões no sentido de uma redistribuição. Parece que
não há mecanismo no setor privado da economia que seja
capaz de mudar o equilíbrio entre a poupança e o consumo,
de reduzir o índice de aumento da oferta total e de contra

91
balançar a baixa na procura total; em suma, capaz de
satisfazer as novas necessidades de uma economia plena
mente industrializada.

O capitalismo "padece assim do destino de Midas".


Cada vez mais rico, vê-se impedido de tocar nos verda
deiros frutos de sua riqueza, que são desperdiçados com
o desemprego (ou, como veremos, num emprêgo destrui
dor) e com a capacidade de produção sub-utilizada.
As razões dessa incapacidade do capitalismo em se
adaptar de uma maneira racional à investida da abundância
estão na própria raiz da natureza do sistema. Residem
no fato de que a finalidade da produção, para o capita
lismo, não é a satisfação das necessidades humanas (pois
neste caso não se colocaria o problema de reduzir a pro
dução quando a oferta fôr suficiente), mas sim a expansão
do capital privado. De uma maneira específica, essas
razões se encontram no papel que o lucro representa num
sistema econômico no qual os meios de produção são pri
vados e não sociais.

A propriedade privada dá ao lucro privado, enquanto


incentivo e razão de produção, um caráter particular que
impede que o lucro caia e portanto que a economia capita
lista se ajuste à abundância. No sistema capitalista, como
diz Paul Sweezy num artigo extremamente importante po
rém freqüentemente esquecido (9), “o lucro é a forma pela
qual a classe econômicamente dominante obtém sua renda.
É, por assim dizer, o fundamento econômico da própria
existência dessa classe. O interêsse que essa classe tem
pela manutenção do lucro enquanto tal, bem como pela

9. "A crucial difference between capitalism and socialism, The


present as History, p. 341 e seg. Nossos argumentos se baseiam ampla
mente neste artigo.

92
manutenção de um lucro elevado essas duas coisas não
estão realmente separadas na cabeça de um capitalista
é de longe o interêsse mais poderoso e o mais defendido na
sociedade capitalista. Tôdas as espécies de apoios e pro
teção econômica, institucional, legal e ideológica - são
fornecidos para a defesa do lucro (10). O lucro é quase
a razão de ser, alfa e ômega da sociedade capitalista. Segue
se que quando o funcionamento econômico do capitalismo
impõe uma redução drástica e contínua do lucro e/ou utili
zação do lucro que vai ao encontro da vontade do capita
lista, o sistema vê-se prêsa de uma contradição" (11). O
fato de que o lucro é, para os proprietários dos meios de
produção, o incentivo para se efetuar investimentos e fazer
andar a economia constitui um obstáculo insuperável a um
equilíbrio no pleno emprêgo e assim a perspectiva para
o sistema é a da instabilidade e da estagnação (12). Tal

10. "Aquilo que freqüentemente é chamado de grau de monopoli


zação (na economia em seu conjunto) é pouco mais do que o reflexo
do sucesso obtido pelos capitalistas em construir barreiras econômicas,
institucionais e legais ao redor de seus lucros. Os apoios ideológicos são
extremamente variados, indo da glorificação da emprêsa privada ao ostra
cismo dos radicais, passando pelo insulto aos promotores de vendas a baixos
preços". Id.

11. "A razão pela qual os economistas geralmente recusam reco


nhecer a contradição que discutimos é simplesmente porque compreen
deram mal ou ignoraram o papel do lucro na sociedade capitalista em
seu conjunto. Por exemplo, não haveria outro meio de explicar a famosa
passagem de Keynes a respeito da "eutanásia do capitalista" (General
Theory, p. 375-6, id.

12. Sob um sistema socialista, pelo contrário, o lucro é um meio


para medir a utilização econômica dos recursos, mas não deve ser um
estimulante para aqueles que controlam os meios de produção: com
efeito, o investimento é feito de acordo com o plano social. Por conse
guinte, não é necessário ter "um interêsse pela sua manutenção enquanto

93
seria, na realidade, a perspectiva que se imporia se não
houvesse no sistema fôrças que se opõem a essas tendências.
Com efeito, há fôrças anti-estagnação que podem ser divi
didas entre as que emanam da economia unificada e as
que emanam do Estado capitalista.

categoria econômica". O sistema utiliza o lucro se êste puder ser-lhe


útil. Sweezy, id, cf. Michael Kalecki, Theory of Economic Dynamics,
1954, p. 62-63.

94
FORÇAS NEUTRALIZANTES

O capital privado tenta neutralizar a tendência para


a estagnação, considerada como uma ameaça para as mar
gens de lucro, ampliando seus mercados internos e exter
nos. Paradoxalmente, a caça aos canais onde a poupança
pode ser aplicada traz uma solução necessária às socie
dades tomadas individualmente, mas também tem por resul
tado um acréscimo de capital líquido na economia metro
politana, e com isso complica o problema para o sistema
em seu conjunto (13). Quanto à expansão do mercado
interno, a distribuição da renda, desigual e rígida, impede
que a base de consumo interna se amplie e, pelo contrário,
impõe a necessidade de levar aquêles que já têm os meios
de adquirir o que desejam a desejar mais ainda e a con
sumir o que já compraram. Esse é o papel muito impor
tante dos esforços de venda. Com efeito, se levarmos em
conta os esforços de vendas, incluindo por exemplo o custo
das mudanças anuais de estilo na indústria automobilística
e outras semelhantes, é possível constatar que se gasta mais
dinheiro para fazer dos americanos "consumidores vorazes,
esbanjadores desenfreados" do que é dispendido com tôda
a sua educação, inclusive em níveis universitários.
O esforço fornecido pelo capital privado para ampliar
artificialmente seu mercado interno não é apenas social

13. Cf. Baran e Sweezy, Monopoly Capital, 1966.

95
mente pródigo, mas também econômicamente insuficiente e
torna necessário que o govêrno intervenha para se ocupar
com a "crise da abundância". O govêrno dispõe de várias
opções em relação a êsse assunto. Pode, por exemplo,
deslocar o poder de compra adicional para as camadas da
população que dispõem de rendas inferiores, por meio de
taxas e outros meios fiscais; êste método tornaria efetivas
as reivindicações bastante legítimas porém impotentes dos
pobres, que constituem os dois quintos da população do
país. Mas comumente se admite que na realidade a estru
tura fiscal é regressiva, e nunca aconteceu de a renda ser
redistribuída em seguida a uma decisão política do governo.
Não é muito difícil perceber a razão disso: a redistribuição
significa o deslocamento de uma parte da riqueza de uma
classe que detém o poder político para outras classes que
virtualmente não detêm poder algum.
De resto, a própria mola do sistema econômico, e por
tanto a prosperidade de que depende a sobrevivência dos
governos, é o investimento privado. Portanto, qualquer
fardo imposto aos negócios, através do reforço das medidas
fiscais redistributivas por exemplo, teria um efeito nega
tivo sobre a situação econômica. Por outras palavras, cada
assalto aos santuários do capital privado provoca inevità
velmente represálias através de um declínio dos investi
mentos em curso, uma diminuição geral da procura e uma
queda correspondente na renda nacional. Daí resulta que
os governos nem mesmo tentam tomar essas medidas, salvo
em caso de crise nacional particularmente grave.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado a tôda a série
de aquisição de produtos privados que o govêrno pode fazer
para suprir as necessidades na educação, saúde, habitação,
cultura e lazeres. Uma importante proporção das somas
destinadas a êsses bens e serviços deve provir da taxação
dos ricos aos quais êstes já têm acesso e deve repre
- -

96
sentar assim uma verdadeira redistribuição da renda na
cional. Em suma, tôda vez que o govêrno tenta preencher
a insuficiência da procura que resulta das desigualdades
das relações de produção capitalista, deve êle levar em conta
que essas desigualdades têm sua origem numa desigualdade
de poder que invade tôda a sociedade capitalista e que não
pode ser modificada por nenhum grupo de instituições (a
arma política, por exemplo).
Esta análise é confirmada de maneira contundente
pela experiência do estado de bem-estar na Inglaterra
dos anos após-guerra: a renda não foi redistribuída de
maneira significativa pela ampliação dos "serviços de bem
estar":

"a publicação governamental Economic Trends


avaliou o efeito líquido dos impostos e dos diversos
serviços sociais para cada nível de renda (ano 1962);
dêsse estudo resulta claramente que a grande massa
da classe trabalhadora e da população em seu con
junto não recebe mais em serviços do que paga em
impostos" (14).

Nos Estados Unidos, a resistência aos "gastos com


o bem-estar" foi tão forte e os interêsses das sociedades

foram tão poderosos que os welfare programs dramàtica


mente declinaram em sua proporção depois do New Deal.
Em 1939, 42,5% dos gastos federais eram destinados à
educação, à saúde, ao trabalho, ao bem-estar, à habitação,

14. Este estudo sugere que o aspecto mais importante da redis


tribuição proveniente do estado de bem-estar é uma redistribuição no
interior das classes e não entre as classes. Existe, em particular, uma
notável redistribuição dos solteiros e casais sem filhos e de famílias nume
rosas, e também uma distinção que vai das pessoas que trabalham às
idosas". Robin Glackburn, cit.

97
ao desenvolvimento da coletividade; em 1965, êsse quo
ciente era reduzido a 7%.
No entanto, há uma categoria dos gastos governamen
tais que preenche a mesma função econômica dos gastos
com o consumo (que suportam assim a procura total) sem
encontrar a resistência dos interêsses das sociedades, que
pelo contrário os encorajam: são os gastos militares,
que têm a dupla vantagem de fornecer um mercado pràti
camente ilimitado para a produção privada e de prestar
às sociedades um serviço necessário que elas mesmas não
seriam capazes de se proporcionar. A rêde de alianças e
de bases militares americanas constitui um amparo para
a "livre emprêsa", condição necessária da expansão e da
preservação dos mercados para os capitais privados ame
ricanos. De resto, é o enorme orçamento reservado aos
armamentos que constitui a diferença vital entre a situação
econômica da América depois dos anos 50 e a estagnação
e depressão dos anos '30. (É, de fato, a diferença vital
para todo o sistema capitalista) (15).

É possível sem dúvida objetar que os gastos militares


dos países capitalistas adiantados são essencialmente o
resultado de fatôres externos por exemplo, a resposta
a uma ameaça militar real, e que, se tais fatores não exis
tissem, o Estado investiria em categorias não militares.
Mas mesmo tomado ao pé da letra, êste argumento é insus
tentável. Com efeito, os gastos militares feitos pelas po
tências ocidentais com a guerra fria em particular pelos
-

Estados Unidos não foram de modo algum proporcionais


-

15. "A procura efetiva no mundo capitalista em seu conjunto está


intimamente ligada ao comércio e às finanças, e quando ela está em
baixa num dos principais países, todos os demais sofrem com isso da
mesma forma. Os Estados Unidos são mais do que um país importante,
êles constituem mais ou menos a metade do todo".

98
às exigências de uma "defesa" contra uma ameaça militar
objetiva, mas foram feitos com o objetivo de superar
de dobrar os gastos militares do "inimigo".
Mas ainda que a história real dos últimos vinte anos
estivesse mais próxima de sua versão oficial, seria pos
sível supor com justa razão que os gastos militares dos
Estados capitalistas seriam em todo caso exigidos como
resultado de fatôres oriundos do próprio regime, exterior
mente mesmo à necessidade de manter e de ampliar o sis
tema das sociedades "multinacionais".
Keynes mostrou que o capitalismo tem uma tendência
natural para a estagnação crônica, com desemprêgo per
manente, e que o capitalismo é, por natureza, fortemente
instável. A fim de evitar que o capital privado fracasse
em manter seu nível de investimentos, Keynes pretende
que os govêrnos devem fazer gastos compensatórios. Mas
se essas despesas governamentais forem sobretudo despesas
úteis à sociedade, existe o perigo de ver diminuídos certos
investimentos da emprêsa privada. Portanto, o govêrno
faz melhor em desperdiçar do que em fazer despesas úteis,
do ponto de vista dos financistas privados. "Duas pirâ
mides, duas missas pelos mortos é duas vêzes melhor do
que uma; mas isso não é verdade em relação a duas estra
das de ferro ligando Londres a York." Este fato expli
ca a pressa dos governos capitalistas em fazer despesas
militares. Com efeito, como já observou Joan Robinson,

se não houvesse necessidade de armamentos, o


governo deveria fazer investimentos úteis, e invadiria
assim o poder e a liberdade de ação dos capitalistas.
É por isso que os capitalistas preferem uma situação
na qual o armamento apareça como necessário. Êste
remédio é ainda pior que a doença -
a maioria de
nós admite isso de bom grado e baseando-se no
-

99
raciocínio de Keynes é possível demonstrar que o
capitalismo não escapará por nenhum outro meio à
tendência do desemprêgo (16).

Por conseguinte, no capitalismo adiantado, o quociente


das despesas militares, e com elas a militarização da vida
nacional, têm uma forte tendência para aumentar mes

mo sem a existência de ameaças exteriores ao sistema, ou


mesmo sem a existência da necessidade de manter seus
organismos de além-mar. Dada a relativa saturação dos
mercados aproveitáveis e a vontade da classe dominante
de manter seu poder, o Estado deve esbanjar recursos numa
escala ainda maior a fim de absorver o excedente econô

mico (as poupanças) e manter um alto nível de produção


e de emprêgo. Sem dúvida, um poderoso movimento de
esquerda poderia levar o govêrno a desviar uma parte dos
fundos públicos para setores úteis à sociedade, mas se

a história passada pode servir de indicação êsse desvio

seria apenas marginal aos têrmos do próprio problema, e


com isso seria apenas temporário. A rêde de poder e de
interêsses que determina o desenvolvimento normal do
capitalismo exerce assim uma influência sobre as tentativas
feitas pelo Estado para alterar êsse desenvolvimento. Como
o próprio Estado é uma instituição social, e não uma
instituição acima da sociedade, as relações de poder engen
dradas pela estrutura social existente podem ser modifi
cadas mas não sem uma verdadeira revolução
-
social
- fundamentalmente alteradas pelo Estado.

16. Joan Robinson, "Marx, Marshall and Keynes", in Collected Eco


nomic Papers.

100
A CRISE ATUAL E SUAS PERSPECTIVAS

Objetivando estabelecer as implicações desta análise


em relação à teoria da sociedade unidimensional, seria útil
estabelecer uma distinção entre componentes qualitativos
e quantitativos do desenvolvimento social. Naturalmente
não é possível distinguir claramente entre rapidez e forma
do desenvolvimento social, mas no contexto da sociedade

capitalista, onde o índice de poupança é fixado mais ou


menos rìgidamente, o quociente de crescimento, o aumento
quantitativo da produção material está integralmente ligado
ao desemprego ou à ocupação gerais, e com isso incide de
maneira independente sobre a estabilidade geral do sis
tema.

Contràriamente à sociedade socialista, em que a soma


total de trabalho social pode ser ajustada a um declínio
da procura para uma expansão maior da produção através
de uma abreviação planificada da semana de trabalho, na
sociedade capitalista êste ajustamento é feito automàtica
mente pelo aumento do volume de desemprego. De modo
que o aumento da produtividade do trabalho e a expansão
da produção total que resulta do progresso técnico, que
deveriam ser considerados como uma esperança para o tra
balhador, são na realidade considerados como uma verda

deira ameaça. Quando esta ameaça se concretiza, a popula


ção ameaçada tende a se organizar em fôrça social, o que

101
constitui um desafio latente à ordem estabelecida. É por
isso que uma economia que encontra sua posição de equilí
brio num nível nìtidamente inferior ao nível do pleno em
prêgo não pode evidentemente ser qualificada de "estática",
política e socialmente. O sucesso mais comentado do capita
lismo pós-keynesiano, pelo hos nos Estados Unidos, foi
de modificar o desenvolvimento quantitativo do capitalismo
amortecendo suas tendências para a instabilidade econô
mica e mantendo um nível de atividade econômica e de
emprêgo tolerável (ainda que longe de ser pleno).
Entretanto, êsse "sucesso" quantitativo é pago pela
sociedade a um alto prêço qualitativo, prêço que, ainda que
difícil de ser avaliado com precisão, tem profundas impli
cações para o sistema e seu desenvolvimento. Com efeito,
êle pressupõe que o exército se torne uma instituição na
cional, que um centro de poder militar-industrial seja cria
do, fato êste que não apenas falseia o crescimento econô
mico como também proporciona um ponto de sustentação
para as forças políticas de direta, esgotando a sociedade
civil de todas as maneiras, deixando que se acumulem os
problemas sociais os mais críticos. Resolver o problema da
instabilidade capitalista através de gastos militares é, no
final das contas, não resolvê-lo de modo algum: essa ati
tude não faz mais do que apresentar o mesmo problema
por outras maneiras. Pois as despesas militares, por opo
sição às despesas com o "bem-estar" (que redistribuiriam
a renda nacional e dividiriam mais justamente os recursos
sociais) não suprimem as contradições que levam o capita
lismo à estagnação quantitativa e ao caos social qualita
tivo: a contradição entre as relações e os modos de pro
dução, entre o índice rígido da poupança e a saturação
relativa dos canais lucrativos, entre o aumento da procura
e o aumento da produção potencial, entre a procura efetiva
e a necessidade social real.

102
O período de após-guerra nos Estados Unidos foi
caracterizado por uma estagnação progressiva (apesar dos
gastos militares extraordinários e da grande onda de ino
vações tecnológicas), pela crescente militarização da vida
nacional política e econômica, pelo crescimento do imperia
lismo, do desemprêgo, da pobreza e da criminalidade, pelo
crescimento proporcionalmente menor dos serviços médicos
e de bem-estar, bem como da educação, pela deterioração
rápida e ameaçadora das cidades paralelamente a uma
urbanização maciça, ascensão das lutas e violências raciais
-
e, como conseqüência a essa situação, pelo enfraqueci
mento das forças sociais críticas de esquerda e pelo forta
lecimento de um movimento totalitário de direta.

O desenvolvimento da crise interna não podia, pelo


menos em alguns de seus aspectos, passar indefinidamente
despercebido da elite política, mas a crise foi sem dúvida
reconhecida muito tardiamente e de maneira parcial. É
revelador examinar a estrutura da resposta a essa crise
pela Administração Kennedy (continuada na sua parte es
sencial pela Administração Johnson), pois ela constitui
um tipo de tentativa de reforma que se pode esperar de
semelhante sistema.
O govêrno Kennedy, devendo enfrentar ao mesmo tem
po a situação econômica pouco brilhante do após-guerra e,
de maneira mais imediata, a recessão de 1961, embarcou
num programa de expansão em dois pontos: o aumento das
despesas governamentais e a redução das taxas enfati
zando o segundo ponto. O secretário do Tesouro Dillon (17)
resumiu o raciocínio que comandou essa escolha política:

Um aumento nas despesas governamentais, com


a condição de ser bem programado pelo tempo, poderia

17. Citado em "The Kennedy-Johnson Boom", Monthly Review,


fev. 1965.

103
favorecer a procura e, com isso, reduzir o desemprego.
Mas, a menos que tais despesas possam ser clara
mente justificadas por seus próprios méritos, sua
contribuição à produtividade e ao investimento seria,
no fim das contas, e na melhor das hipóteses, 'incerta'.
Essas despesas pareciam apresentar menos vantagens
do que o caminho que escolhemos: a redução dos im
postos.

Como a verdadeira origem da crise geral tal como

reconheceram a maioria dos economistas do assessoramento


de Kennedy (incluindo J. K. Galbraith) era a insuficiência
das despesas governamentais em trabalhos públicos (habi
tação, educação, desenvolvimento das cidades) que "pode
riam claramente se justificar por seus próprios méritos",
as observações do secretário Dillon só podem ter uma única
significação. A menos que essas despesas possam se justi
ficar aos olhos das grandes sociedades de que depende o
investimento privado, o efeito a longo prazo da expansão
dos gastos governamentais seria o de abalar a segurança
do ritmo dos negócios e baixar o índice futuro do investi
mento privado, em detrimento da situação econômica
global.
Por conseguinte, o aumento dos gastos governamentais
que tinha sido exigido como estimulante imediato durante
a deliberação do Congresso a respeito da estrutura do re
gime fiscal, limitou-se essencialmente a um aumento do
orçamento militar em 16% (incluindo-se aqui a decupli
cação das forças americanas no Vietnam). Com efeito,
segundo Dillon, o índice de aumento das despesas governa
mentais em armas, para a conquista do espaço e em juros
sôbre a dívida nacional (por exemplo, os pagamentos pelas
guerras passadas) foi duplicado durante o primeiro man
dato da Administração Kennedy-Johnson em relação ao

104
do segundo mandato da Administração Eisenhower. Por
outro lado, o aumento para todas as outras despesas foi
"inferior em um têrço ao aumento comparável durante o
período de 4 anos anterior". De resto, a Administração se
comprometeu a reduzir as despesas federais logo que a
redução fiscal começasse a ser efetiva.
As reduções dos impostos tiveram o efeito de redis
tribuir a renda entre grupos que já gozavam de rendas
superiores. As "tax bonanzas" para as corporações se ele
varam a uma redução do índice fiscal que ia de 52% a 34
ou 29% e a liberalização substancial das deduções admis
síveis para a amortização anual.
Após um período de quatro anos de expansão ininter
rupta (antes da escalada da guerra do Vietnam), a dimi
nuição do ritmo da economia se fêz sentir novamente
mau agouro para o futuro. Com efeito, como a força de
trabalho aumentava 50% mais rápidamente que no de
correr da década anterior paralelamente ao aumento da
produtividade do trabalho, qualquer parada que houvesse
no boom de investimento poderia engendrar altos níveis
de desemprego.

Assim, não é surpreendente que o presidente Ken


nedy (que em todo caso não era insensível à amplidão dos
problemas que se apresentavam) se mostrasse cada vez
mais desencorajado pelo fim de sua vida. A 25 de outubro
de 1963, James Reston contava que o presidente tinha
chegado ao ponto de perceber que aquilo que êle considerara
desejável ou mesmo essencial era "polìticamente impos
sível". Reston escrevia:

É por isso que, enquanto continua a falar em


público sobre o progresso alcançado, êle começa, em
particular, a exprimir suas dúvidas sobre a possibi
lidade de se encontrar um remédio para os males de

105
que se queixa a sociedade americana, dada a atual
forma desta e a balança do poder político.

Nada, depois da morte de Kennedy e do advento de


Johnson, permite modificar essa apreciação. Longe disso.
Já a incapacidade da Administração Johnson em começar
a enfrentar a mais grave crise social que o país conheceu
nos últimos trinta anos (e talvez mesmo desde a guerra
civil) enquanto que somas incríveis são destinadas ao
-

massacre de uma nação camponesa na Ásia Sudeste, e isto


"em tempos de paz" é um testemunho do caráter pro
-

fundamente reacionário do sistema social atual e da neces


sidade de substituí-lo.

A incapacidade da economia capitalista em repartir


os recursos de maneira socialmente racional, e a incapa
cidade do Estado capitalista em compensar eficazmente
essa irracionalidade, em planificar investimentos sociais
demonstram a bancarrota histórica do sistema e o cres
cente perigo engendrado por sua preservação. Pois o

capitalismo industrial, por sua própria natureza, revolucio


na constantemente os meios de produção e, com isso, a
própria base da vida social. Ao longo de tôda a sua
história, o desenvolvimento capitalista consistiu na pertur
bação constante e anárquica do meio social, na deslocação
contínua dos esquemas e formas da vida comum o que
não deixou de influir sobre o aumento dos movimentos ir
racionais e violentos das massas nos tempos modernos.

De resto, como o capitalismo é por natureza um sis


tema de exploração, e como a fôrça motriz de seu desen
volvimento não é prover às necessidades sociais mas sim
desenvolver os lucros, e em virtude do fato de que êsse
desenvolvimento só pode ser feito às custas de grandes
massas da população, às custas da sensibilidade e dos dons

106
humanos, às custas do próprio meio a tarefa de en
-

frentar a catástrofe social, cada vez maior, oriunda do


progresso capitalista é inevitàvelmente um trabalho de
gigante. Com efeito, da mesma forma como a mais re
cente reação do capitalismo às pressões revolucionárias
(engendradas por sua exploração das populações) é, no
estrangeiro, a violência militar, assim também, dentro do
país, sua resposta fundamental, sua resposta mais consis
tente ao caos social que êle produz é a extensão do meca
nismo de contrôle autoritário.

O capitalismo não é e não pode ser um sistema unidi


mensional, independente e estático. Esse sistema, ao mesmo
tempo revolucionante e retrógrado, democrático e oligár
quico, criador e explorador, opulento e pobre, é um sistema
eternamente em crise, assediado por extremos que só cir
cunstâncias históricas e sociais extraodinárias podem fazer
parecer coerentes. Tais circunstâncias se realizaram du
rante um pouco menos dos vinte anos que se seguiram
imediatamente à guerra, mas a dissolução da "unanimida
de", agora evidente aos olhos de todos, não pode ser apar
tada indefinidamente.

O que é preciso ressaltar é que essa dissolução ocorreu


no decorrer da parte ascendente da curva do mais longo
boom de tôda a história americana em tempos de paz. Os
booms são essencialmente fenômenos de mistificação capi
talista porque escondem o caráter real e o modo de operação
do sistema e podem de fato dar, aos crédulos, ilusões de
harmonia social. Marcuse sem dúvida tem razão de pôr
em relêvo a função central da produtividade do sistema
enquanto instrumento de contrôle (ainda que superestime
os efeitos des-estabilizantes de seu impacto qualitativo).
Mas êsse produtivismo está construído sôbre uma areia
movediça que a primeira onda refluente da curva des
cendente pode fàcilmente levar embora. Será então que

107
o sistema revelará seu verdadeiro caráter: suas desigual
dades gritantes, as exigências de auto-preservação do ca
pital muito além dos destinos e das necessidades dos sêres
humanos, etc.

Mas êsse período de "revelação" traz em si sua pró


pria ameaça. Com efeito, um poderoso movimento de
direita é já foi inevitàvelmente engendrado pelo
-

deslocamento da vida social e pelo solapamento dos con


trôles sociais; e a base dêsse movimento só poderia enco
rajar a deslocação. Esse movimento, feito com "mi
núsculos indivíduos" pertencentes sobretudo às classes
médias que experimentam a ameaça da desintegração e
da revolta social da maneira mais direta possível, e que
procuram se refugiar e se identificar na vontade totali
tária da coletividade e na sua promessa de reinstituir a
ordem e o contrôle, não era desconhecido dos períodos
mais antigos de desordens e de declínio capitalistas. No
passado, entretanto, êsses movimentos só atingiram o poder
real com o consentimento e a ajuda daqueles que o deti
nham, e portanto apenas em presença de um significativo
desafio da esquerda à ordem das sociedades. Mas desta
vez a resposta capitalista à direita americana mostra, pelo
menos até aqui, que êsse desafio não existe. No entanto,
isso não significa que êsse desafio não se concretizará, e
mesmo que não o faça num futuro próximo; com efeito,
não se deve esquecer que com exceção da revolta dos
negros que é justamente um desafio às classes médias -

o essencial do desafio da esquerda vem de fora do sistema


americano, isto é, da revolução do mundo neo- colonial, no
qual a esquerda aparece como uma quinta coluna. Esta é
uma distinção fundamental, freqüentemente desprezada,
entre a ascensão do fascismo na América de após-guerra e
a do fascismo da Alemanha no império de Weimar. A
sociedade opulenta de hoje poderia muito bem encontrar,

108
oculta atrás do ângulo de seu boom, a sombria perspectiva
de uma oferta de poder totalitário interno.
Com efeito, o crescimento de um movimento de direita,
potencialmente fascista, na abundância do sistema ame
ricano é talvez o último requisitório de um sistema que
perverte as possibilidades de libertação e que transforma
suas promessas em ameaças catastróficas. Dêste ponto de
vista particular, sem dúvida nenhuma Marcuse tem ra
zão por um lado, a liberação seria uma catástrofe para
o sistema capitalista; por outro lado, a catástrofe do sis
tema sua abolição e sua transcendência - é a condição
necessária da liberação humana.

109
PSICANÁLISE E SOCIOLOGIA

Até bem recentemente, a psicanálise vinha sendo marginalizada pelas demais


ciências humanas e em particular pela sociologia. No entanto, como mostra R.
Kalivoda, a psicanálise é mais do que um simples método terapêutico; é, sim, uma
antropologia filosófica que necessita de uma interpretação filosófica totalizadora que
só pode ser realizada a partir da interpenetração dos campos da psicanálise e da
sociologia.

A partir desse ponto, R. Kalivoda visa em seu estudo a integração crítica da


psicanálise na sociologia e aborda os caminhos do desenvolvimento de sua rica e
complexa problemática, passando pela análise das posições de Erich Fromm e Herbert
Marcuse.

David Horowitz aborda em particular as condições materiais da sociedade indus


trial que levaram o professor Marcuse a efetuar sua interpretação filosófica da obra
de Freud.

No conjunto, este volume é uma análise, uma crítica e uma extensão do pensa
mento de Herbert Marcuse conforme exposto em suas duas obras capitais (Ideologia
de sociedade industrial e Eros e Civilização) e constitui-se num valioso meio de
penetração na difícil teoria elaborada pelo mais discutido dos pensadores contempo
râneos.

NOVA
CRITICA

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