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E
SOCIOLOGIA
por uma síntese
antropológica
R.KALIVODA
uma sociedade
unidimensional?
CRIT CA DAVID HOROWITZ
NOVA
PSICANÁLISE E SOCIOLOGIA
R. Kalivoda
David Horowitz
Nova Crítica
ÍNDICE
Preliminar 9
4. A constante antropológica 34
5. A estrutura psico-social 43
1. A sociedade em equilíbrio 73
2. Estagnação e industrialização 85
3. Capitalismo e industrialização 91
4. Fôrças neutralizantes 95
R. Kalivoda
PRELIMINAR
9
cípio dos anos trinta, morto numa prisão americana, pri
meiro psicanalista que tentou uma síntese séria entre a
psicanálise e o marxismo; o caso do intelectual tcheco
Závis Kalandra (uma das primeiras vítimas das repres
sões estalinistas na Tchecoslováquia) que aplicou a psi
canálise, de modo notável, na interpretação das velhas
lendas tchecas, ou o caso de Bohuslav Brouk, membro
do grupo surrealista tcheco, que se tornou emigrado an
timarxista depois da guerra.
Os surrealistas e os membros da escola filosófica de
10
A CONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM
pologia marxista.
Os surrealistas efetuaram essa restituição por uma
intuição particular sem se entregar, em geral, a um es
tudo histórico detalhado da evolução das idéias de Marx.
11
Karel Teige (1) era, por certo uma exceção. Todavia,
suas conclusões podem constituir, por seu caráter de evi
dência e por seu "anti-intelectualismo de especialistas",
um ponto de partida para a pesquisa mais fácil que o
estudo filosófico e erudito de Erich Fromm sôbre a con
12
como, além do mais, provou que essa categoria é uma
constante em tôda a obra de Marx (2).
13
realizada; assim essa libertação não será mais uma prece moral impotente
como foi até o momento em todos os moralistas, incluindo Stirner. A
organização comunista atua de dois modos sobre os desejos criados no
indivíduo pelas atuais relações; alguns dêsses desejos, aquêles que existem
sob não importa quais relações e que as diferentes relações sociais só
mudam em sua forma e em seu alcance, como dizia, alguns dêsses de
sejos só serão mudados, nessa forma social, na medida em que lhes sejam
dados os meios de se desenvolver, de se afirmar normalmente; em com
14
"Os comunistas não pensaram nem um segundo em afastar essa
fixação (“Fixität") de seus desejos e necessidades como lhes pede Stirner
em seu mundo imaginário; êles lutam por uma organização da produção
e das relações que lhes ofereça a satisfação ("Belfriedigung") normal de
todas as suas necessidades, isto é, limitada apenas por essas necessidades"
(sublinhado por R. K.).
Essa passagem mostra que Marx e Engels caracterizam a sexualidade
e a fome como necessidades e desejos fixos que constituem uma camada
constante da existência humana (numa página antes, pode-se ler na
Ideologia Alemã: "O cristianismo só quis nos libertar do domínio do corpo
e dos "desejos que nos excitam" porque considerava nosso corpo e nossos
desejos como estranhos a nós; queria nos resgatar de nossa determinação
pela natureza ùnicamente por causa da idéia que nossa própria natureza
não nos convém. Se portanto eu mesmo não sou natureza, se minhas
necessidades naturais, se tôda minha natureza própria não me pertence,
como prega o cristianismo, então tôda determinação pela natureza, quer
seja através de minha natureza própria ou através do que se convencionou
chamar de natureza externa, me aparece como uma determinação por
qualquer coisa de estrangeiro, como uma coação opressiva que é exer
cida sôbre mim" (ver op. cit., p. 255). Sobressai igualmente dessa
passagem que Marx e Engels criticam a noção de "fixo" em Stirner ao
rejeitar a fixação stirneriana que é fixação ativa das necessidades naturais
fundamentais do homem sôbre "condições e situações do mundo" (ver
op. cit., p. 256 e 257).
É justamente contra essa relativização das necessidades constantes do
homem, contra a teoria que os faz derivar das "condições" (donde os
têrmos "fix werden", "fixação ativa") que Marx e Engels apresentam
uma fixidez efetiva como tal, isto é, uma permanência, uma continuidade
de caráter constante dessas necessidades naturais fundamentais. Estas
não dependem das condições sociais, não são formadas por elas. As
condições sociais só podem modificá-las. Essas necessidades, tais como
as entende Stirner, isto é, "fixadas por um certo estado de coisas", não
deixam por isso de ter uma existência real mas se alinham no segundo
tipo de móveis, precisamente, o tipo dos móveis que não são fixos.
15
Essa argumentação é de uma importância fundamental para a com
preensão da antropologia de Marx. Ela é na realidade um exemplo
clássico que mostra que essa obra (a obra de Marx), da qual se diz
que ela "dissolveu de maneira histórico-materialista" os fenômenos antro
pológicos constantes do homem nas "condições sociais", pelo contrário
esclarece conceitualmente esses fenômenos antropológicos constantes numa
polêmica contra "sua dissolução histórico-materialista nas condições so
ciais", o que faz Stirner.
16
"NATUREZA HUMANA"
E "NATURAL DO HOMEM"
17
natural ativo; essas forças existem nêle na condição de
dons e faculdades, na condição de instintos; por outro la
do, êsse ser natural, corporal, sensível e objetivo é um
ser que sofre, submetido e limitado assim como o são os
animais e as plantas, o que equivale a dizer que os objetos
de seu instinto existem fora dêle, enquanto objetos inde
pendentes dêle, enquanto êle tem necessidade dêles para
exprimir e afirmar suas fôrças essenciais e não o pode
fazer sem êles. O fato de que o homem é um ser cor
póreo, dotado de fôrças naturais, um ser vivo, real, sen
sível e objetivo, significa que os objetos de seu ser, de
sua manifestação no mundo, são reais, são objetos sen
síveis; por outras palavras, significa que êle não pode
manifestar sua existência a não ser por objetos sensí
veis reais... A fome é uma necessidade natural, e por
tanto o homem tem necessidade da natureza existente fo
ra dêle, de algum objeto fora dêle para o satisfazer...
O homem enquanto ser sensível objetivo é portanto um
ser que sofre (leidend) e, sendo um ser que sente seu
sofrimento, é um ser apaixonado. A paixão (Leidens
chaft) é uma fôrça essencial do homem que deseja ar
dentemente seu objeto (3)".
3. Manuscritos econômico-filosóficos
Logo depois das frases citadas, começa um parágrafo ("Mas o homem
é apenas um ser natural, um ser natural humano...") no qual Marx
faz uma distinção nítida entre o natural humano e o natural original do
homem que êle acaba de definir com precisão um pouco mais acima.
Sobressai indubitàvelmente de uma outra passagem dos Manuscritos que
há uma grande diferença quantitativa entre essas duas categorias de
naturais. Essa passagem é a seguinte: "Pode-se concluir daí (isto é,
da alienação do operário no capitalismo) que o homem (o operário) só
conhece atos livres nas suas funções animais, na alimentação, no beber,
na reprodução, em suma no alojamento, na construção, etc., enquanto que
em todas as suas funções humanas êle não se sente mais do que um
18
animal. O animal torna-se o humano, e o humano torna-se o animal.
19
Essa excelente aplicação de Marx (4) sôbre o natu
ral humano nos leva ao âmago da problemática da teo
ria freudiana da existência humana. E se tivermos em
20
mente o fato que, para Marx, o natural humano comum
só pode ser modificado pela sociedade e pela história e
se conserva nelas por seu caráter constante, não se pode
censurar os surrealistas por terem renovado, atualizado
e enriquecido, nos anos trinta dêste século, essas premis
sas esquecidas da antropologia marxiana (5). O mais
exato, o mais marxiano mas também o mais inovador dê
21
pológica que êle soube aplicar em suas pesquicas teóri
cas (7).
Mas é possível a partir de agora considerar o natu
ral originário constante do homem em Marx enquanto
constante antropológica no sentido amplo da palavra?
Para esclarecer esta questão, devemos agora nos virar na
direção de Sigmund Freud.
22
ESTRUTURA MATERIAL E PSIQUISMO
23
Reconhece-se aí uma interpretação que, no seu es
sencial, é a mesma que a da noção tìpicamente freudiana do
instinto e do princípio freudiano fundamental do ananké
(necessidade ou falta existencial), do conflito determi
nante que Freud descobriu entre o homem e a realidade,
entre o princípio de prazer e o princípio de realidade.
Todavia, Freud concretiza e desenvolve mais adiante
êsse conceito comum. Essa concretização permite, a se
guir, resolver o dilema que encontramos nos Manuscritos.
essa contradição cujos têrmos eram, para o jovem Marx,
um natural humano originário puramente animal e uma
natureza humana, pura nobreza e distinção.
O imenso alcance da teoria freudiana do instinto
24
qual o aparelho nervoso representa o papel de portador
(Schauplatz) dos atos psíquicos; trata-se aí de uma in
terdependência provada pela psicanálise num grande nú
mero de casos onde o ato psíquico influiu exatamente ső
bre o ato neurofisiológico.
O fundamento do materialismo psicanalítico reside no
fato de que a camada fundamental do psiquismo, a cama
da do instinto Freud a explicou repetidas vêzes em
relação à sexualidade não depende de um órgão cor
-
25
Todavia, o homem se distingue do animal a partir da
esfera primária do instinto. É a variabilidade da ener
gia do instinto humano, é seu dinamismo conflitante, é
sua aptidão à metamorfose que distinguem o instinto de
vida humana dos instintos dos animais. A psicanálise, e
acima de tudo sem dúvida o próprio Freud, tiveram o in
comensurável mérito de fazer progredir qualitativamente
o conhecimento do homem pelo próprio fato de ter ana
lisado a variabilidade e a aptidão à transformação da
energia do instinto humano, em particular da sexualida
de natural do homem (9).
A possibilidade de dominar os instintos e de trans
formar sua energia é um traço específico do natural hu
mano. A partir dessa camada primária do psiquismo hu
mano observa-se uma certa linha de demarcação entre o
homem e o animal. Ainda que essa camada seja histò
ricamente a primeira e que ela fundamenta as outras,
característica que ela conserva permanentemente, não se
pode explicá-la nem compreendê-la isoladamente. Para
26
centar que esse "ego" não cai do céu, mas que é causado
pelo conflito entre princípio de prazer e princípio de rea
lidade de que falamos mais acima.
É nessa concepção da situação conflitante do homem
objetivo que verificamos a concordância do pensamento
fundamental entre Marx e Freud. Este último concreti
zou e desenvolveu para adiante a idéia de Marx, encon
trando nessa situação o ponto de partida para a compreen
são do princípio regulador ou princípio do "ego". Só
com o aparecimento dêsse princípio é que se forma o ho
mem no animal e que os instintos animais se trasformam
qualitativamente em instintos humanos. A situação inter
mediária na qual o animal não pode ainda encontrar uma
solução para sua necessidade existencial e não encontra
na natureza objetiva elementos para a saciedade de suas
necessidades naturais, leva ao desaparecimento do ani
mal. O momento, ou mais exatamente a época histórica,
em que êsse mesmo animal, na sua necessidade existen
cial objetiva, desenvolve uma faculdade de adaptação e
encontra um novo meio de saciedade de suas necessida
des existencias, não é o da morte do animal, mas sim o
do aparecimento do homem.
O princípio de variação, ligado ao aparecimento do
"ego", provoca a vinda ao mundo do homem que não
existe ainda no estágio anterior. É necessário completar
nosso raciocínio lembrando aqui um aspecto fundamental
da questão. Vimos que Marx definiu pela fome e pela
sexualidade as necessidades fundamentais do instinto hu
mano. Consideramos que essa delimitação da esfera do
instinto na existência humana é perfeitamente exata.
Ora, Freud interessou-se mais particularmente pelo estu
do da energia sexual, não descobrindo na saciedade da
necessidade de alimentação êsse tipo de variabilidade de
que dispõe a energia sexual e que forma o eixo central da
27
libido humana. Evidente que a necessidade de sacieda
de da fome dificilmente pode ser sublimada. Encontra
mos aí, sem dúvida, um outro tipo de variabilidade que
tem uma importância extrema para a existência do ho
mem e a evolução de sua libido.
Há uma base para supor que essa situação de falta
existencial na qual o homem surgiu era provocada pela
necessidade fundamental de saciedade, e que o homem
fêz variar a maneira animal de matar a fome ao desco
brir o trabalho, isto é, ao descobrir a economia política.
Trata-se apenas dêsse ato “único” da gênese própria do
homem. A fome nunca foi sublimada, nem mesmo a se
28
mana pelas condições materiais e sociais, isto é, econô
micas, procurando no caso o substrato neurofisiológico do
homem. O fio material da existência humana se estabe
lece em ligação com êsses dois pontos. Portanto, utili
za-se aqui dois dados: de um lado, o homem como uma
certa organização da matéria (em sua expressão elevada,
e mesmo, a mais elevada), e por outro lado, a sociedade
e sua economia política. Do problema assim colocado, de
correm a seguir diversas teorias reflexiológicas que en
contram a chave da consciência humana e dos fenômenos
fundamentais da vida humana na ação da sociedade, na
necessidade da natureza exterior do homem e no seu tra
tamento pelo aparelho neurofisiológico e cerebral (10).
Entendia-se por materialismo uma concepção pela
qual, de um lado, o pensamento e a função consciente são
produtos da matéria (do cérebro) e pela qual, por outro
lado, o fator econômico é a força decisiva da determina
ção sócio-humana do homem. Como essa concepção só
reconhecia essas duas unidades (dados), o freudismo foi
taxado de "biologismo", isto é, de idealismo. Nessas con
dições, a opinião segundo a qual a concepção materialis
ta do homem deve considerar certas forças biológicas ele
mentares que se situam nalgum lugar entre o organismo
neurofisiológico e a existência social do homem e que for
mam ao mesmo tempo uma unidade particular e indepen
29
dente, era de uma certa forma inacessível a semelhante
forma de pensamento.
Sem dúvida, sobressai de nossa explicação que essa
forma "a duas dimensões" da teoria materialista do ho
30
No contexto sócio-existencial da vida humana situa
-se uma interação fundamental entre suas dimensões bio
psíquicas e sócio-econômica. Sem dúvida, não se pode
pôr em questão nem por um segundo a importância ca
pital do fator sócio-econômico. Mas, como ressaltamos
na parte anterior, a atividade econômica do homem é, num
certo sentido, "fundamental", sendo uma simples "super
estrutura" em outras ocasiões. Em relação às forças bio
psíquicas do homem, ela é secundária, sendo uma proje
ção social da necessidade do instinto humano.
Para falar a verdade, não se pode considerar a ati
vidade econômica do homem como um fator material de
31
neira ou de outra; dêste modo, em nada se explica as
causas dessas ações (reações).
Só depois de termos compreendido que a energia in
terna do instinto nos obriga a um conflito permanente
com a realidade, depois de termos compreendido que ela
obriga o homem sitiar, a ocupar, a absorver e a reno
var constantemente o modus vivendi existencial e que as
antenas sensoriais do homem são apenas os instrumentos
dessas necessidades vitais internas, é que poderemos en
fim comprender que o homem não é apenas o objeto e o
ponto de encontro de certas influências, mas que, pelo
contrário, êle representa nesse conjunto de influências
o papel de uma unidade motora fundamental.
Nestes últimos tempos, "a filosofia da praxis" lançou
ataques decisivos contra essa concepção reflexológica.
Após um longo período de silêncio, essa filosofia devol
veu à atividade criadora do homem o lugar que ela me
rece, no próprio centro da filosofia marxista. Apesar
disso, essa "filosofia da praxis" sofre ainda frequente
mente de uma abstração grande demais na compreensão
da praxis humana. Ela responde à questão: como com
preender a praxis humana? com a afirmação de que, para
o homem, a atividade criadora prática é a determinação
fundamental, isto é, que o homem é simplesmente pràtica
mente ativo; ela acrescenta que o homem igualmente trans
forma a natureza e que simultâneamente êle também se
transforma; sua argumentação se apóia em diversas con
clusões tiradas das teses de Marx a Feuerbach. Essas
teses são, sem dúvida nenhuma, excelentes mas infelizmen
te não explicam em nada por que o homem é pràticamen
te ativo.
33
A CONSTANTE ANTROPOLÓGICA
34
O trabalho (a economia política) e a organização
social humana que daí decorrem introduzem um nôvo fa
tor na existência humana e isto pràticamente a partir
de sua própria origem, a saber a necessidade de regula
mentar suas necessidades instintivas, e isto não simples
mente em função da natureza mas também em função
social dessa existência humana, de sua organização so
cial, isto é, em relação a si mesma.
Certas formas de civilização, certas formas históri
co-culturais da existência humana aparecem desde a ori
gem do homem; da mesma forma, o “ego”, que até ago
ra só consideramos na sua relação com a esfera material
do homem, torna-se simultâneamente portador e torna
possível a necessidade e a reação culturo-civilizadora que
criam uma esfera secundária da existência sócio-humana.
Assim aparece, ao mesmo tempo que o "ego", um terceiro
fator que Freud define com o têrmo "super-ego". Este
é igualmente um componente da estrutura humana do ho
mem (14).
35
No homem, a esfera do "super-ego" é a que faz va
ler as necessidades da sociedade humana pela regulamen
tação da energia material do instinto. O princípio de rea
lidade que domina o homem não está portanto ùnicamen
te no relacionamento conflitante e dinâmico entre o ho
mem e a sociedade, relação regulamentada pelo "super
-ego" e isto através do "ego". É na descoberta e na es
pecificação dessas duas formas de relações conflitantes,
pelas quais o homem se realiza, que reside grande con
tribuição de Freud para o conhecimento da dialética con
creta da existência humana.
cargo L
pràticamente desde o aparecimento do homem
de sua organização social.
A dimensão social do homem torna-se assim o princi
pal regulador de suas necessidades existenciais básicas.
E com essa regulação tornando-se uma constante perma
nente da realidade -
diferentemente do animal onde o
37
Para a antropologia científica, a capital importân
cia da teoria freudiana do "super-ego" e de sua teoria
da sublimação reside no fato de que elas contêm implìci
tamente as premissas de uma explicação materialista to
tal dessa esfera da existência humana que é habitualmen
te definida pelo têrmo da "super-estrutura". Para nós,
essa explicação não deve ser identificada com aquela
outra, bastante usual, que faz derivar instituições e va
lores espirituais e sócio-culturais da base econômica da
existência sócio-humana. Esta tese usual não explica su
ficientemente como uma energia material básica que está
no homem pode efetuar uma transformação interna e mu
tar-se em energia ideal, espiritual: de fato, é porque ela
não é indefinidamente reprimível desta maneira Freud
-
38
Ainda que tenhamos reservas de princípio sobre a
concepção global da esfera do "super-ego", convém de
monstrar que Freud mostrou com isso que a necessidade
de conservação pessoal, isto é, uma necessidade material
da existência humana enquanto existência social, é bem
a fonte primeira do aparecimento dêsse fator (o "super
-ego") constante da estrutura humana, fato pelo qual o
homem regulamenta e, numa certa medida, reprime sua
própria vida, cria enfim uma esfera secundária, a esfera
espiritual da existência humana.
Assim, o fator do "super-ego", ainda que necessário,
oriundo da necessidade da conservação pessoal do homem,
é simultâneamente um fator constitutivo, que acaba de
tornar humano o homem e dêle faz uma totalidade estru
39
Chegamos enfim à conclusão de nossas considerações
sôbre "a constante antropológica" do homem: é preciso
considerá-la enquanto totalidade estruturada de fatores
constitutivos constantes entre as quais o "super-ego", es
trato espiritual e cultural da existência humana, ocupa
com as bases materiais do homem um lugar cent
A concepção materialista dessa totalidade estrutura
da é bem diferente dos "biologismos" e "economismos"
correntes que dissolvem o homem na sua existência social.
Os conceitos de "ser" e de "consciência", de "base" (subs
trato) e de "superestrutura" só terão seu verdadeiro sen
tido materialista quando compreendermos que a ativida
de econômica do homem é apenas um fator da existência
material bio-social do homem, que ela é apenas uma de
suas funções. A consciência, a "superestrutura”, não é
um emprêgo do ser ou do "substrato", mas um modo de
sua existência.
40
se relacionamento antagonista dos componentes material
e espiritual do homem que nos faz descobrir a esfera es
piritual da atividade do homem enquanto projeção autên
tica e direta de sua energia material. A atividade espi
ritual do homem, produto da transformação e da subli
mação da necessidade primária de fruição material, apa
rece bem enquanto forma direta da existência das fôrças
materiais do homem: ela tira sua libido dessas fontes
materiais primárias; sem essa mesma libido ela perde seu
sentido humano e, com isso, a "razão de ser" de sua exis
tência. É nisso que reside o fundamento do monismo ma
terialista dessa concepção da totalidade.
Esse monismo materialista também enfatiza nìtida
mente o problema da realidade da idealidade: pode-se
falar aqui de uma função material da idealidade. Com
efeito, a sublimação, isto é, a idealidade é com
-
-
41
explicação precedente mostrou suficientemente como
42
A ESTRUTURA PSICO-SOCIAL
43
de um esquema particular do aparelho conceptual freu
diano que, a nosso ver e a não ser que seja exposto a uma
revisão crítica interna, nos impede de encontrar uma so
lução real e realista para os problemas que Marcuse soube
distinguir. É sem dúvida inútil ressaltar ainda uma vez
que não se trata tanto dêsse aparelho conceptual em si
mesmo quanto da realidade na qual êle se insere.
Já indicamos que se trata do conteúdo concretamen
te dialético dessa realidade, realidade definida pelos con
ceitos essenciais do “Id” e do “Super-ego". A revisão crí
tica dêsses conceitos é solicitada pelos elementos históri
co-sociológicos que Freud estudou quando do estabeleci
mento de sua “metapsicologia”, isto é, de sua filosofia do
homem. Essa revisão crítica não pretende, com isso, re
jeitar pura e simplesmente êsses conceitos, mas reestudá
-los e reelaborá-los de modo crítico; o monismo dialético
de Marx e sua teoria dialética da história oferecem aqui,
a nosso ver, um ponto de partida de capital importân
cia (1).
44
Em relação à esfera do "Id", é preciso antes de mais
nada insistir no seguinte ponto: a concepção muito fre
quente do freudismo enquanto pansexualismo é absoluta
mente errônea e desprovida de qualquer fundamento.
Freud jamais considerou a sexualidade como a única
energia da esfera do instinto. No primeiro estágio de
sua pesquisa, êle distinguia dois grupos de instintos: os
instintos sexuais, dotados da energia da libido, e os ins
tintos de conservação, instintos do Ego. A vida psíqui
ca do homem constituía-se a partir do conflito entre êles.
Esta concepção freudiana do substrato do instinto no ho
mem é no fundo, assim, idêntica à concepção de Marx
que igualmente distinguia duas necessidades instintivas
fundamentais: a sexualidade e a fome (2).
Nota-se, nesse período, que Freud não atribui aos
instintos de conservação seu valor total, pois nega a êles
qualquer caráter libidinal; a libido está ligada apenas à
sexualidade e pràticamente apenas essa esfera decide sô
bre o comportamento e o movimento do psiquismo hu
mano (3).
45
indica uma transformação súbita e explosiva das tendên
cias do instinto pela sua liquidação total. O princípio
básico dêsse momento particular da evolução do pensa
mento freudiano é o princípio do Nirvana, que exprime
uma tendência do organismo humano para o retorno ao
estado anorgânico. Assim, Freud abre caminho para o
seu "instinto de morte" (Tanatos). O outro caminho que
também chegou a êsse resultado foi o estudo do sadismo
e do masoquismo, que lançou luz sôbre os princípios de
agressão e de destruição nas inclinações do instinto no
homem. Ao mesmo tempo se realiza, sem dúvida, a supe
ração da absolutização do princípio do Nirvana.
Assim se constitui sucessivamente a forma ideal da
teoria freudiana do instinto, forma esta que de novo é
dualista, assim como foi sua forma inicial. Mas agora
os instintos sexuais e os instintos de conservação estão
unidos num só todo, o "Eros", dotado de energia libidinal
e que visa à cópula, à união e à fusão; as inclinações
para a agressão e para a destruição são expressas pelo
instinto de destruição, isto é, pelo instinto de morte (Ta
natos), cuja energia, uma vez mais, não tem um caráter
libidinal (4).
Esta evolução de Freud em direção à concepção dua
lista "Eros-Tanatos", que apresenta elementos reais de
uma nova metafísica, não foi seguida longe disso -
46
por todos os psicanalistas; ela provocou, pelo contrário,
uma nítida oposição no seio dêstes. O fato que inúmeros
psicanalistas, orientados na direção das ciências naturais
e da medicina, suportavam com dificuldades o nítido re
fôrço do aspecto psico-social das novas definições dos ins
tintos, representou um papel não negligenciável. O pon
to notável das novas concepções freudianas era com efei
to que "Eros", assim como "Tanatos", deixava-se apreen
der (domesticar) bastante fàcilmente exatamente na es
fera social: o instinto de destruição era certamente de um
interêsse determinante para a concepção freudiana da cul
tura e foi teorizada por Freud sem dúvida por isso. Da
mesma forma, muito fàcilmente "Eros" se vê dotado de
uma dimensão social e se torna o motor da aproximação
social dos homens, aproximação que perde todo caráter
sexual direto. "Eros" se torna verdadeiramente muito
1
"nobre" e Freud, sem que esteja muito consciente disso
e involuntàriamente, realiza uma humanização “não re
pressiva" da libido; em todo caso, a sexualidade torna-se
amor ao se equiparar sentimentalmente, e a libido é cul
tivada.
A maioria dos teóricos marxistas que tentaram uma
integração marxista de Freud recusaram, e êste é um fato
sintomático, sua teorização do instinto de morte; Reich,
Fromm e Brouk o fizeram sem, da mesma forma, insistir
sôbre isso. Herbert Marcuse tem o grande mérito de ter
transformado radicalmente a abordagem marxista do
instinto "metafísico" de morte em Freud e de ter mostra
do, com muita finesse e compreensão, seu fundo racio
nal. A forma cultural da esfera do "Id", estabelecida
nas últimas obras de Freud, parece lhe convir inteira
mente. Ele conseguiu extrair o máximo dela.
O papel manifesto da agressividade e da destruição
no transcorrer dos recentes períodos na vida da socieda
47
de moderna facilitou, para êle, a aceitação, no seu prin
cípio, do instinto freudiano de destruição do qual êle re
lativiza apenas a realidade.
Convém aprovar Herbert Marcuse quando êle diz que
o fator "destruinte" e destrutor é, sem dúvida, uma fôrça
essencial que age no homem, fôrça que em nada decorre
de uma organização social particular e que, a menos que
introduza o componente da destruição na estrutura do
instinto da existência humana, difìcilmente pode-se expli
car sua tensão conflitante. Freud enriqueceu indiscutì
velmente a antropologia científica pela introdução dessa
força elementar da mesma forma como Marcuse, por sua
vez, abriu justas perspectivas para o caminho marxista
da integração de Freud.
Apesar disso, estamos persuadidos, quanto a nós, que
a dualização freudiana dos dois instintos independentes,
Eros e Tanatos, não é justificável por diversas razões
teóricas e que ela não responde à realidade. Aqui apare
ce nìtidamente uma primeira possibilidade de enriquecer
a concepção de Freud pelo monismo dialético marxista
que, neste caso preciso, é sem dúvida o único que pode
atingir e exprimir teòricamente a totalidade dialética
concreta dessas duas tendências dos instintos que Freud
absolutizou metafisicamente em instinto de vida e instin
to de morte e, simultâneamente, idealizou até lhes dar
uma forma um pouco irreal. Com efeito, as tendências
de destruição e de copulação só são dotadas de sua reali
dade e materialidade efetivas se compreendidas enquanto
totalidade, enquanto instinto vital único.
É muito importante ressaltar que não é o caso de in
troduzir essa concepção na psicanálise pelo "exterior",
pela "especulação filosófica” apenas, mas sim que pes
quisas especializadas e concretas tendem para isso, por
assim dizer, involuntàriamente. Pensamos aqui em par
48
ticular nas análises do especialista em ciências naturais
Konrad Lorenz, expostas especialmente no seu livro "Das
sogennante Bose" (5) e que fazem a teoria psicanalítica
dos instintos dar um novo passo qualitativo, que signifi
ca a superação do dualismo metafísico de Freud por uma
teoria dialética da totalidade concreta.
5. Viena, 1963.
49
bia muito bem por exemplo que a satisfação da paixão
destruidora mais grosseira se deve a um gozo narcísico
excepcionalmente elevado (7). Em seu estudo "Abrégé
de la Psychoanalyse" encontra-se mesmo a seguinte for
mulação: "Nas funções biológicas, esses dois instintos fun
damentais agem um contra o outro ou se combinam entre
si. Assim o ato de comer representa a destruição do obje
to e visa a sua incorporação final, o engolimento (Einver
leibung), enquanto que o ato sexual visa a união mais
estreita. Esta ação comum e êsse confronto (Mit — und
Gegen einauderwirken) dos dois instintos básicos cons
tituem tôda a riqueza (ganze Buntheit) do conteúdo da
vida (8)".
Tudo parece indicar que Freud chegou ao portal da
compreensão da totalidade dialética dêsses dois fenôme
nos. No entanto, êle não o ultrapassou voluntàriamente
e, pelo contrário, teorizou êsses dois instintos como enti
dades independentes, recusando atribuir ao instinto de des
truição qualquer função libidinal. As razões dêsse em
preendimento não são muito claras. Um de seus moti
vos era sem dúvida a concepção freudiana global da cul
tura que exige a introdução de uma fôrça de destruição
fundamental que, enfim, não se assemelhasse com a libi
do. O próprio Freud, em relação a isso, escreve: "Re
conheço que o sadismo e o masoquismo são manifestações
do instinto de destruição dirigidas para o interior e para
o exterior e fortemente penetradas pelo erotismo; em
compensação, não posso compreender que se possa deixar
escapar a onipresença da destruição e da agressão não
8. Idem.
50
eróticas e que não se deva delimitar o lugar que lhes ca
be na explicação da vida (9)."
Não podemos evitar de pensar que Freud se deteve
voluntàriamente diante da idéia da agressividade libidi
nal onipresente, e que êle não se decidiu a fazer dela o
teorema básico de sua concepção. Semelhante teorema
não é muito estimulante e o humanismo clássico, de que
Freud era um grande representante, detesta a idéia de
um "núcleo anti-humano" dos valores humanos. Mas se
a concepção freudiana fundamental da cultura tampouco
é muito encorajadora, pelo menos é mais suportável para
o humanismo clássico explicar o mundo de maneira "ma
niqueísta" -
9. Ibidem.
pôde realizar, pois, com sua concepção de Eros, êle por assim dizer
criou um segundo plano de sua compreensão da sexualidade e da libido,
51
No mundo da cultura, a posição do homem social é
muito ruim, pois o nobre "Eros" tem garantias seguras
do não-desaparecimento do "Bem", que não será inteira
mente desfeito.
52
a poder atingir a dialética concreta das forças do instin
to, fôrças antagonistas, em conflito umas com as outras
mas ao mesmo tempo constituindo-se umas a partir das
outras. Nossa compreensão do instinto de vida único
abrange justamente a utilização das descobertas do Freud
"tardio". Os dois componentes principais da totalidade
dessas forças do instinto humano, a fome e a sexualida
de, possuem como ressaltou o próprio Freud uma
53
Já indicamos antes que se encontra em Freud uma
concepção "mais estreita" da cultura, a qual entende por
cultura uma atividade espiritual, acima de tudo cientí
fica e artística pela qual se realiza essa sublimação da
energia libidinal primária; esta é caracterizada como um
sucedâneo da satisfação material primária. Mas também
se encontra em Freud uma concepção mais ampla da cul
tura, encarada neste caso como um todo da civilização
humana; êste todo é o conjunto das atividades e institui
ções de cultura e de civilização, isto é, da ideologia, da
política, do direito, do estado, da moral e da religião (12).
Todo êsse conteúdo da civilização humana forma en
tão o conteúdo próprio da esfera do "Super-ego". É mui
to importante e de muito valor que Freud tenha conce
bido essa esfera de maneira eminentemente social e que
êle tenha incluído tôda atividade sócio-cultural na cons
tante antrópica do homem.
Mas Freud atribui ao mesmo tempo a êsse "Super
-ego" um caráter acima de tudo repressivo: êle é uma
fôrça que cria um conflito permanente entre os desejos
libidinais elementares, as necessidades e a existência so
cial do homem. Êle reprime as tendências primárias do
ser e as inclinações do homem: é o inimigo principal de
tôdas elas e com isso torna o homem infeliz permanente
mente. Esta situação é mais ou menos fatal e insuperá
vel. É o núcleo da concepção freudiana fundamental da
cultura e da civilização humana, concepção desenvolvida e
explicada no seu famoso livro Malaise dans la Civilisation.
Esta concepção é por natureza inadmissível para o
marxismo, que tende a encontrar um caminho para a li
bertação do homem. Da mesma forma, todos os marxis
tas que tentaram uma integração de Freud no marxismo
12. Acima de tudo, cf. Malaise dans la Civilisation.
54
procuraram um meio de superar crìticamente este artigo
da doutrina freudiana.
Entre os surrealistas, André Breton esforçou-se por
trazer uma modificação à teoria freudiana dos sonhos na
sua obra básica Les Vases Communicants (13).
Verificou-se cada claramente que o pro
vez m
55
como ponto de partida e que o levou a fazer do problema
da “sublimação não repressiva" a questão central de sua
obra Eros e Civilização.
Já tivemos ocasião de observar que a obra de Her
bert Marcuse é incontestàvelmente a mais notável entre
56
ticamente toda a vida do indivíduo e no transcorrer do qual
o prazer está "suspenso". Só quando essa função de auto
conservação do trabalho fôr relegada a um segundo-plano,
numa sociedade emancipada e materialmente rica e quando
a livre criação humana tiver se tornado um objetivo em
si mesmo, um livre jôgo das forças criadoras do homem,
é que o princípio de prazer poderá se afirmar mesmo nessa
esfera da vida humana. E em relação a uma possibilidade
real de sublimação não repressiva na sociedade humana
emancipada, Marcuse encontra um ponto de apôio e uma
base inicial para a sua definição num empreendimento
semelhante ao do Freud "tardio" na elaboração de seu
conceito de Eros (15).
A exatidão do pensamento e o amplo alcance da abor
dagem marcusiana do problema da "sublimação não re
pressiva" são uma contribuição importante para a análise
marxista dessa mesma questão. O caráter universal da
definição do princípio de realidade da sociedade que dará
livre curso à libido humana representa sem dúvida um
grande progresso; todavia, uma problemática básica não
está esclarecida, e por assim dizer seu esclarecimento tor
1
57
nou-se impossível. Com efeito, essa generalidade, em di
reção à qual Marcuse se inclina nìtidamente e que é devida
igualmente a um aspecto abstrato e hegeliano do empre
endimento global de seu pensamento, guarda em si uma
visão geral e abstrata do conflito interno do homem e de
sua cultura que é característica de Freud. Mesmo a di
mensão social do homem que Marcuse, diversamente de
Freud, desenvolve e esclarece, permanece geral demais e
sua dialética interna profunda não é expressa em sua
totalidade. Enfim, o fato de que Marcuse retoma, no seu
conteúdo e na sua dualidade, as categorias freudianas
"Eros-Tanatos" retira da perspectiva de uma sociedade cul
tural “não repressiva" algumas de suas dimensões reais.
Assim como observamos que Freud conseguiu atingir
o conflito fundamental da estrutura humana, é preciso ver
agora que seu esquema dêsse conflito é abstratamente dia
lético. Sua teoria dos instintos marca mesmo a vitória de
um dualismo anti-dialético. Em relação às esferas do "Id"
e do "Super-ego", o conflito entre elas é indicado de ma
neira extremamente linear; Freud não apreende a comple
xidade, a diversidade e a variabilidade das relações dialé
ticas do "Super-ego” e, também, da ligação entre essas duas
esferas. Ele não vê que a civilização e a cultura, que o
homem cria na época da supremacia do princípio de domi
nação e de opressão, têm um caráter ambivalente e duplo
e que esse princípio de dominação e de opressão também
possui êsse mesmo caráter.
Essas relações e conflitos freudianos, abstratamente
dialéticos, podem ser esclarecidos pela concepção concreta
mente dialética do dinamismo dos conflitos sócio-humanos
que está contido na teoria marxiana da história. Trata-se
de compreender a ligação dialética entre, de um lado, a
repressão e a opressão e, por outro lado, o enriquecimento
das esferas primárias e secundárias da existência humana.
58
Em tôda a existência histórica do homem, onde até
o momento prevalece o princípio de dominação e de opres
são, é preciso entender todo ato repressivo na sua totali
dade dialética com o progresso que êle traz e que só pode
aparecer nessa repressão, nessa opressão, nessa organiza
ção conflitante da sociedade.
Convém respeitar e dominar teòricamente na teoria
geral do homem a seguinte realidade fundamental: o apa
recimento da sociedade, que ocorre simultâneamente à des
coberta e à valorização do princípio de dominação e de
opressão sociais, traz para todos os produtos da civilização
e da cultura humana um caráter dialético e de contradição;
o poder concreto existe na sociedade e não o poder abstrato.
O grupo social dominante cria seus instrumentos de
poder, de civilização e de cultura, assim como seus meios
de repressão, não para refrear as necessidades da libido
e os desejos do "homem em geral” mas para criar as
condições de uma satisfação maior ainda de suas próprias
necessidades através da opressão de uma certa parte da
sociedade. A repressão é portanto apenas um primeiro
aspecto de um processo cuja segunda característica é jus
tamente a de criar as possibilidades de uma maior satis
fação das necessidades vitais de uma parte determinada
da sociedade a fim de assim enriquecer a libido do homem
em geral (16).
59
A atividade destruidora, agressiva e repressiva dos
grupos sociais dominantes nunca tem portanto um caráter
universal e absoluto - é apenas uma forma "a-social"
particular pela qual um grupo social concreto enriquece a
vida humana. No seu modo de realização, civilização e
cultura não são uma repressão da libido primária; uma
análise histórico-sociológica fàcilmente provará que se trata
exatamente do contrário: nesse nível da vida social, a
atividade de cultura e de civilização amplia, acrescenta e
aumenta em grau a esfera na qual se realizam as neces
sidades libidinais primárias. Portanto, não é necessário
inventar "uma sublimação não repressiva". O exame das
formas históricas de opressão nos desvendará essa ativi
dade sob uma forma muito real e realista (17).
lência da opressão social (ver por ex. Malaise dans la Civilisation). Mas
são apenas alusões feitas de passagem e que se apagam diante da con
cepção fundamental da sociedade enquanto "opressor abstrato do homem
em geral". Essas alusões, devidas a uma visão realista das coisas, assim
como à consciência interna que Freud tinha de uma alternativa monista
para a sua concepção dualista dos instintos, indicam muito bem que
Freud conhecia as conseqüências sociais de sua concepção do homem e
da cultura mas que êle não ousou tirar disso todas as decorrências
lógicas e que preferiu conservar, através de sua concepção dos instintos,
um dualismo metafísico assim como uma abstração metafísica em re
lação à sua concepção do "Super-ego".
17. É evidente que, por ocasião do momento da formação dos
valôres de civilização e de cultura, o momento de opressão não se faz
presente apenas nas relações do grupo social oprimido e submetido, mas
também nas relações do grupo dominante. Ele representa sem dúvida
um papel particular em inúmeros casos de deformação da estrutura psí
quica dos criadores diretos dos valores de civilização e de cultura. A
psicanálise da cultura dedicou-se aliás mais especialmente ao estudo dessa
esfera psico-individual. Esta é, sem dúvida, uma abordagem insuficiente.
O funcionamento psicosocial objetivo da cultura e da civilização é de
60
Num sistema social dominado pelo princípio de poder,
a civilização e a cultura não são portanto simplesmente
repressivas; pelo contrário, através dessa repressão se
efetua um enriquecimento permanente e contínuo da libido
humana ainda que isso se realize em formas "a-so
ciais" (18).
O fato de Freud não ter apreendido a dialética real
da opressão e da sublimação não repressiva decorre tam
bém do fato que, pela dualização dos instintos vitais funda
mentais, êle perdeu tôda possibilidade de apreender o
caráter libidinal da agressividade enquanto tal que, na
sociedade humana, assume a forma do poder e da domi
nação sociais.
Seu mérito é ter compreendido a importância do prin
cípio de dominação em relação ao próprio aparecimento
da sociedade humana e de ter atraído a atenção para o
seu papel constitutivo desde a primeira fase da existência
humana (19). Todavia, não pôde ver que o poder social
61
de repressão é apenas um meio de obter e de aumentar o
prazer, que êsse poder possui em si mesmo ao contrário -
-
um caráter libidinal, que êle é uma forma fundamental
e determinante da sublimação da agressividade humana.
O poder social, agressividade sublimada, não é "um suce
dâneo ideal da agressividade real"; pelo contrário, êle
eleva de uma maneira original essa mesma agressividade;
a agressão das grandes feras carnívoras é bem mínima se
a compararmos com certas formas de agressão social. Esta
de fato faz do homem o rei das feras. Estamos aqui em
presença de uma outra forma muito real, e pràticamente
a forma mais forte de "sublimação não repressiva" que
existe, e que é uma sobremultiplicação da agressão na sua
passagem de sua forma primária para a sua forma se
cundária.
primitiva, elas têm um núcleo racional pois elas mostram o papel deter
minante da dominação e do poder desde os agrupamentos humanos orga
nizados mais primitivos antes mesmo do aparecimento da propriedade
privada. Essas premissas freudianas, confirmadas aliás pelas pesquisas
atuais sobre as sociedades primitivas (que mostram aliás que mesmo
o matriarcado não representa um estágio obrigatório da evolução hu
mana), são de uma grande importância para a concepção marxista da
sociedade. Disso ressalta cada vez mais claramente que o aparecimento
da propriedade privada não é uma determinação absoluta da dominação
e do poder sociais e que o poder social de opressão é uma variação direta
da agressividade primária do instinto. A hipótese de uma igualdade e de
uma harmonia originais na sociedade clássica antes da introdução da
propriedade privada demonstra ser então uma pura utopia romântica.
O período atual da existência do socialismo, período da abolição da
propriedade privada dos meios de produção, mostrou que a função re
pressiva e "a-social" do poder social não desaparece automàticamente com
a supressão da propriedade privada, que ela se manifesta em todas as
formas de organização social, que sua origem remonta portanto mais
longe e que ela se forma a partir das inclinações biopsíquicas primárias
do homem.
62
A agressão social provoca, sem dúvida, uma reação
e faz nascer uma contra-agressão existencial. Sem dúvida
nenhuma, a agressão revolucionária é a que tem o valor
humanitário e humanizante máximo; ela visa a emanci
pação do homem mas não contém carga libidinal menor
do que a são que é o instrumento da opressão social.
Realçamos o papel dessa dialética do componente
agressivo do instinto vital do homem, de seus modos a
social e socialmente emancipador, para mostrar de que
formas de ordem diferente ainda que bastante reais já
está dotada a "sublimação não repressiva" na existência
histórica do homem. Diremos ainda algumas palavras a
respeito de certos momentos históricos das formas ideoló
gicas da cultura humana e do seu funcionamento na so
ciedade até agora.
A ambivalência, que pudemos verificar na análise do
poder social e da agressão social, pode ser igualmente
percebida pela regulação cultural e espiritual, na ideolo
gia. O caráter universalmente normativo e universalmente
coator da ideologia poderia sem dúvida nos induzir em
êrro. Mas de fato, êsse caráter universalmente coator da
ideologia é apenas uma aparência. Todavia, a superação
da abordagem abstrata da ideologia exige um confronto
da teoria e de seu funcionamento prático.
Com efeito, os grupos sociais dominantes que secretam
a ideologia dominante, universalmente coatora e de ordi
nário limitando os desejos vitais materiais e reais do ho
mem, êles mesmos jamais se conformam inteiramente com
essa mesma ideologia. Esse fenômeno que, mais uma vez,
pode ser fàcilmente provado por uma pesquisa histórico
sociológica, exprime sem dúvida uma lei geral. Essa con
tradição antinômica pode ter formas diversas. O grupo
social no poder cria, por exemplo, uma situação e um meio
de vida tais que êle possa escapar às conseqüências repres
63
sivas de sua própria ideologia sem que seja levado a se
distanciar abertamente dessa ideologia. Donde essa famosa
"hipocrisia" em relação à sua própria ideologia que já con
tém, de maneira latente, o princípio de uma “dupla ver
dade", a saber, uma verdade oficial para os outros e uma
verdade "não oficial" para si mesmo. O exemplo clássico
dêsse duplo funcionamento ou não-funcionamento, da ideo
logia é a vida do cristianismo oficializado na sociedade
feudal.
64
com menor ou maior intensidade em particular simbiose
com a dogmática oficial "anti-libidinal" enquanto filosofia
da elite social (20). Sem dúvida, se êsse hedonismo renas
cente não expõe o ideal de liberdade humana universal, é
porque se trata justamente de uma filosofia da elite social
que compreende a liberdade universal enquanto universali
dade de sua liberdade, enquanto liberdade de seu gozo
universal e se baseia na sua dominação e na sua opressão
sociais.
65
metido e oprimido contra o estilo de vida do sustentador
do poder social. Este último, com efeito, utiliza-se das
diversas formas de agressão e penetra no ideal de emanci
pação do objeto dessa mesma agressão através de sua
negação total de qualquer agressão e através de sua pró
pria contra-agressão. O objeto da agressão visa sua
própria situação de vida e o eleva a um ideal existencial
absoluto. O princípio de amor fraternal, desexualizado e
livre de tôda agressão, predomina nesse sistema ideológico.
Assim aparece o modêlo histórico efetivo da nobre
platonização do "Eros" freudiano, libertado da agressivi
dade e dotado de um programa de união fraterna de ho
mens iguais e que se auxiliam reciprocamente. Ele difere
do "Eros" freudiano, por seu caráter desexualizado, aquilo
que é ao mesmo tempo uma crítica histórica real dêsse
"Eros": com efeito, desembaraçado da agressividade se
xual, o "Eros" material é substituído por um "Eros" efe
tivamente platônico.
Mas ao mesmo tempo é um “Eros" verdadeiro, não
sem libido, libido proveniente de uma nova e particular
sublimação "não repressiva" da libido material.
A libido material é, de fato, reprimida ao extremo, o
que não é devido no entanto a uma pressão repressiva
proveniente do "Super-ego"; o "ego" não realiza aqui ne
nhuma autorregulação repressiva: a aceitação do ideal anti
libidinal não depende da consciência (escrúpulos, remor
sos) ou da culpabilidade mas é uma manifestação de um
narcisismo existencial que faz com que o homem aceite
voluntàriamente e proclame sua situação de vida como
sendo seu próprio ideal existencial. Esse modo de reação
existencial manifesta-se em outros contextos menos clás
sicos. Este caso de opressão da libido material pessoal
não é, a bem dizer, um fenômeno de repressão, nem de
auto-repressão, mas de sublimação da libido material numa
66
nova energia, não material e desexualizada. A libido nar
císica fixa-se num valor ideal e elimina ao extremo o ego
tismo natural do homem.
67
cessidades libidinais e ter consciência do caráter relativo
dessa harmonização. É preciso ter consciência da pro
pensão para a contradição e para o conflito interno das
fôrças fundamentais dos instintos humanos.
Não é conveniente extrair de uma especulação da
"razão pura" o ideal do homem libertado, nem outorgar
êsse ideal à sociedade à maneira do "filósofo esclarecido";
é por uma análise concreta da evolução da sociedade hu
mana que se deverá achar o caminho para essa dialética
real que produziu certas orientações e tendências pelas
quais o homem chegou à presente situação; a compreensão
dessa orientações e tendências facilitará, sem dúvida, a
resolução das questões centrais da "socialização do homem".
Evidentemente, há três grupos de problemas vitais. No
plano geral, mas não na sua realização, o problema mais
claro é o da transformação do trabalho, libertado da libido,
numa atividade criadora libidinal; a gradação da economia
política sem dúvida é a condição primeira dessa trans
formação. Os outros dois grupos de problemas são muitos
menos nítidos e, de fato, seu estudo nem mesmo foi come
çado. Trata-se, de um lado, do problema central da trans
formação da sexualidade em "Eros"; êste é o caso, bem
entendido, do desenvolvimento da sexualidade real em
"Eros" natural: o "Eros" de Chelcicky ou de Freud, toda
via, não perde de modo nenhum seu campo de ação mesmo
na sociedade libertada. A isto está naturalmente ligado
o estudo das formas de sublimação não repressiva no con
texto socialista, em condições fundamentalmente diferentes
daquelas nas quais ela se realizava antes do aparecimento
do socialismo. Por outro lado, trata-se do problema da
agressividade na sociedade socialista. Parece que a agres
são social, tendência de opressão e de dominação sociais,
irá se manifestar no futuro mesmo numa sociedade basea
da na propriedade socialista.
68
Sob o regime socialista, o melhor seria, sem nenhuma
contestação, transpor ao máximo a agressividade para
uma contra-agressão permanente e emancipatória que es
taria capacitada a neutralizar as inclinações agressivas
que tendem para uma opressão social em formas socia
listas.
69
UMA SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL?
David Horowitz
A SOCIEDADE EM EQUILÍBRIO
73
mais do que mudar a aparência das formas de dominação
e de dependência. A dependência pessoal do escravo ao
seu senhor, do servo ao senhor feudal, é substituída pela
"dependência da 'ordem objetiva das coisas' (leis econó
micas, mercado, etc.). A bem dizer, a 'ordem objetiva
das coisas' é ela mesma o resultado de uma dominação,
mas é indubitável que esta dominação traz consigo uma
racionalidade mais forte a de uma sociedade que forta
lece sua estrutura hierárquica ao explorar da maneira mais
eficaz possível os recursos naturais e mentais e ao distri
buir de um modo mais amplo os benefícios dessa explo
ração".
Portanto, se bem que a sociedade industrial adiantada
seja irracional em seu conjunto, para aqueles que se en
contram no interior do sistema sua extrema irracionali
74
oferecidas por uma sociedade opulenta. Trata-se, com
efeito, da "repressão da transformação social", que Marcuse
considera como a característica mais saliente do sistema.
75
nimidade aparente, o aparente fim da ideologia, a harmonia
aparente dos interêsses básicos (a maior racionalidade de
um sistema que "distribui bens"), a aparente ausência de
conflitos sociais fundamentais e portanto a aparente re
pressão de tôda transformação social radical. Com efeito,
êsses escritores celebravam o assim chamado estabeleci
mento de um equilíbrio no qual o equilíbrio das forças exige
que cada grupo forneça pelo menos o mínimo que garanta
assim, nessas sociedades, "o progresso" de todos (e a
conservação do conjunto) que é a condição do "progresso"
de cada um.
Quando Marcuse denuncia o caráter unidimensional de
cada uma dessas noções de "progresso" universal no am
biente cultural dessas sociedades, só podemos estar de
acordo com êle; e quando êle qualifica êsse equilíbrio, que
os outros celebram tão entusiàsticamente ("a verdadeira
'sociedade boa' em ação") de desastroso porque deteve o de
senvolvimento da sociedade numa etapa de barbarismo
("embrutecido" e "desumanizado"), no portal das possibi
lidades de criação de uma ordem social humana também
aqui temos de lhe dar razão.
As coisas mudam quando Marcuse apoia a tese do equi
líbrio em si mesma. Com efeito, que evidência tangível
pode justificar a conclusão não histórica segundo a qual,
na "sociedade industrial adiantada", a humanidade num
76
e os anos '60 mostram indícios de movimentos em novas
77
tados ao período do após-guerra, com suas condições polí
ticas e econômicas excepcionais. Com efeito, êsses anos se
caracterizaram pela violenta ascensão (boom) da recons
trução, pelo boom dos investimentos (precipitado pela revo
lução teconológica) e pelo boom da guerra fria, que se reu
niram para criar um impressionante período de rosperi
dade capitalista (apesar do caráter restrito e parcial dessa
prosperidade). Além do mais, o confronto militar e ideo
lógico das duas super-potências ajudaram a impedir a
explosão de um conflito no interior de cada um dêsses dois
países, e provisòriamente desviaram a atenção dos proble
mas internos importantes. Mas mesmo que êsses fatores
continuassem a agir com a mesma intensidade, seria no mí
nimo apressado concluir, de uma análise com um campo de
visão tão limitado assim, que a situação possa continuar
"como normal" sem acabar em sérias desordens sociais e
78
ridade" que parecem inacessíveis (e que de fato o foram
durante a existência do capitalismo keynesiano) por outros
meios. Mas o verdadeiro efeito das despesas militares,
mesmo no capitalismo, não é enriquecer e melhorar a so
ciedade não importa em que sentido real; a economia de
defesa é parasitária do crescimento do poder produtivo
real da sociedade e solapa o potencial material e cul
tural dessa sociedade. Naturalmente, êsse é um fato
79
A produção de armas, que acarreta uma perda insubs
tituível em recursos humanos qualificados ("dois têrços
dos pesquisadores técnicos dos Estados Unidos no momento
trabalham para o Exército") (2) também tem um efeito
pernicioso sobre a reserva civil em capital. Seymour Mel
man escreve (3):
80
ficava de modo nenhum um estado de "depressão econômica
permanente":
81
tem sua raiz na maneira pela qual os recursos sociais são
repartidos (isto é, mal repartidos) na sociedade capita
lista e na maneira pela qual o poder social, que poderia
contribuir para resolver êsses problemas, está colocado
entre as mãos daqueles que têm todo o interêsse em manter
o status quo.
A tipologia própria a Marcuse ("sociedade industrial
adiantada") implica (o que o texto às vêzes contradiz) no
fato que a origem da irracionalidade e da dominação na
sociedade contemporânea deve ser procurada essencial
mente na extensão do emprêgo da máquina como método
de produção. Mas, como o próprio Marcuse reconhece, "o
poder da máquina não é mais do que o poder acumulado
e projetado do homem". De resto, "à medida em que o
mundo é imaginado como uma máquina, e por conseguinte
mecanizado, êle se torna a base em potencial de uma nova
liberdade para a humanidade". Desta forma, o problema
passa a ser o que existe na organização de uma sociedade
industrial adiantada que permite libertar êsse potencial ou,
pelo contrário, que possa impedir sua realização?
Pelo fim de seu livro, Marcuse nos diz que a mudança
qualitativa da sociedade, a marcha na direção da libertação,
está "na reconstrução da base (tecnológica), isto é, no
seu desenvolvimento baseado em finalidades diferentes".
Mas o que leva a sociedade a determinar as finalidades
visadas pela tecnologia, em vista das quais ela se desen
volve? Marcuse não se preocupa com êsse problema; só
o menciona quando se refere à redefinição das "causas
finais" que acarretam "a construção, o desenvolvimento e
a utilização dos recursos (...) livres de todos os interêsses
particulares que impedem a satisfação das necessidades
humanas e a evolução das faculdades humanas". Mas
Marcuse não descreve êsses "interêsses particulares" -
82
coisa que se pode esperar de uma análise que descreve
uma formação social referindo-se à sua base tecnológica.
83
listas, política esta modificada, numa medida bem restrita,
por essas forças sociais contrabalançantes engendradas
pela corrente predominante do momento.
Uma vez que se reconheceu a influência determinante
das relações capitalistas de produção sôbre a divisão dos
recursos sociais, a irracionalidade superficial da "sociedade
industrial adiantada" encontra uma explicação racional,
bem como a proliferação dos gastos, o amontoamento dos
meios de destruição como estimulante da produção, a cria
ção de necessidades artificiais e a manutenção do trabalho
inútil. De resto, é o reconhecimento dêsse fato que per
mite estabelecer a estabilidade do sistema de uma maneira
84
ESTAGNAÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO
85
de expansão no conjunto da economia significa, a longo
prazo, uma diminuição das exigências de expansão ulterior.
A partir do instante em que se atinge a plena industria
lização, a sociedade entra numa era em que ela pode dedicar
uma parte cada vez maior de seu tempo e de suas forças
de trabalho a finalidades culturais (e aqui por "cultura"
deve-se entender, no sentido mais amplo, tôda a esfera
das atividades produtivas não materiais, incluindo a edu
cação, as artes e a política).
Esta sociedade, tal como Keynes a via, seria "uma
comunidade quase estacionária na qual as transformações
e o progresso resultariam antes de mudanças na técnica,
nas preferências, na população e nas instituições” do que
dos investimentos líquidos (6). Por outras palavras, ainda
haveria um progresso no sentido de melhoramentos nas
86
pansão superaria o contexto existente da produção, com
êste contexto não sofrendo aumento algum.
Ora, o declínio da formação de capital líquido (en
quanto porcentagem da produção) numa fase de industria
lização adiantada é um dos dados empíricos aceitos no que
diz respeito à economia capitalista mais adiantada, a dos
Estados Unidos (8). Por conseguinte, pode-se considerar
uma linha, um horizonte, para além do qual a formação
líquida de capital terá um fim (ou mostrará uma forte
tendência para acabar) e isso diz respeito não apenas às
especulações sobre uma possível "pacificação da existên
cia" num determinado momento no futuro de uma socie
87
uma industrialização cada vez maior), como se a indus
trialização precedente não existisse. Mas então o sistema
se veria prêsa de uma contradição, pois não haveria mais
incentivo e mesmo incitação ao investimento. Graças à
capacidade de produção já formada, as exigências do con
sumo seriam satisfeitas pelos meios disponíveis e não ha
veria procura, ou na melhor das hipóteses haveria uma
procura descendente (expressa na forma de lucros poten
ciais descendentes), por uma expansão ulterior da capaci
dade no setor dos bens de capital. Por outro lado, um
aumento da procura no setor dos bens de consumo tal que
pudesse contrabalançar a baixa nos investimentos se tor
naria impossível, dada a rigidez da poupança que impe
diria que novos fundos fôssem postos disponíveis para o
consumo.
88
a procura aumente proporcionalmente ao índice de au
mento da produtividade do trabalho mais o índice de
aumento da força de trabalho. Este aumento na procura
não governamental é evidentemente muito pouco provável,
dado que a capacidade existente já é inteiramente sufi
ciente. Enquanto houver canais suficientes para receber
novos investimentos, o sistema mantém sua tendência à
expansão. Quando a acumulação a longo prazo da capa
cidade de produção atinge o momento em que a procura
começa a baixar e em que não há mais perspectivas de
expansão, então o sistema entra numa fase de crise con
tínua e cada vez mais grave. Portanto, pode-se concluir
que, numa economia industrializada adiantada, caracteri
zada por um rígido índice de poupança, existe uma tendên
cia cada vez maior para a instabilidade, para a estagnação
e para a depressão na medida em que o processo de indus
trialização chega aos seus pontos máximos.
89
CAPITALISMO E INDUSTRIALIZAÇÃO
91
balançar a baixa na procura total; em suma, capaz de
satisfazer as novas necessidades de uma economia plena
mente industrializada.
92
manutenção de um lucro elevado essas duas coisas não
estão realmente separadas na cabeça de um capitalista
é de longe o interêsse mais poderoso e o mais defendido na
sociedade capitalista. Tôdas as espécies de apoios e pro
teção econômica, institucional, legal e ideológica - são
fornecidos para a defesa do lucro (10). O lucro é quase
a razão de ser, alfa e ômega da sociedade capitalista. Segue
se que quando o funcionamento econômico do capitalismo
impõe uma redução drástica e contínua do lucro e/ou utili
zação do lucro que vai ao encontro da vontade do capita
lista, o sistema vê-se prêsa de uma contradição" (11). O
fato de que o lucro é, para os proprietários dos meios de
produção, o incentivo para se efetuar investimentos e fazer
andar a economia constitui um obstáculo insuperável a um
equilíbrio no pleno emprêgo e assim a perspectiva para
o sistema é a da instabilidade e da estagnação (12). Tal
93
seria, na realidade, a perspectiva que se imporia se não
houvesse no sistema fôrças que se opõem a essas tendências.
Com efeito, há fôrças anti-estagnação que podem ser divi
didas entre as que emanam da economia unificada e as
que emanam do Estado capitalista.
94
FORÇAS NEUTRALIZANTES
95
mente pródigo, mas também econômicamente insuficiente e
torna necessário que o govêrno intervenha para se ocupar
com a "crise da abundância". O govêrno dispõe de várias
opções em relação a êsse assunto. Pode, por exemplo,
deslocar o poder de compra adicional para as camadas da
população que dispõem de rendas inferiores, por meio de
taxas e outros meios fiscais; êste método tornaria efetivas
as reivindicações bastante legítimas porém impotentes dos
pobres, que constituem os dois quintos da população do
país. Mas comumente se admite que na realidade a estru
tura fiscal é regressiva, e nunca aconteceu de a renda ser
redistribuída em seguida a uma decisão política do governo.
Não é muito difícil perceber a razão disso: a redistribuição
significa o deslocamento de uma parte da riqueza de uma
classe que detém o poder político para outras classes que
virtualmente não detêm poder algum.
De resto, a própria mola do sistema econômico, e por
tanto a prosperidade de que depende a sobrevivência dos
governos, é o investimento privado. Portanto, qualquer
fardo imposto aos negócios, através do reforço das medidas
fiscais redistributivas por exemplo, teria um efeito nega
tivo sobre a situação econômica. Por outras palavras, cada
assalto aos santuários do capital privado provoca inevità
velmente represálias através de um declínio dos investi
mentos em curso, uma diminuição geral da procura e uma
queda correspondente na renda nacional. Daí resulta que
os governos nem mesmo tentam tomar essas medidas, salvo
em caso de crise nacional particularmente grave.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado a tôda a série
de aquisição de produtos privados que o govêrno pode fazer
para suprir as necessidades na educação, saúde, habitação,
cultura e lazeres. Uma importante proporção das somas
destinadas a êsses bens e serviços deve provir da taxação
dos ricos aos quais êstes já têm acesso e deve repre
- -
96
sentar assim uma verdadeira redistribuição da renda na
cional. Em suma, tôda vez que o govêrno tenta preencher
a insuficiência da procura que resulta das desigualdades
das relações de produção capitalista, deve êle levar em conta
que essas desigualdades têm sua origem numa desigualdade
de poder que invade tôda a sociedade capitalista e que não
pode ser modificada por nenhum grupo de instituições (a
arma política, por exemplo).
Esta análise é confirmada de maneira contundente
pela experiência do estado de bem-estar na Inglaterra
dos anos após-guerra: a renda não foi redistribuída de
maneira significativa pela ampliação dos "serviços de bem
estar":
97
ao desenvolvimento da coletividade; em 1965, êsse quo
ciente era reduzido a 7%.
No entanto, há uma categoria dos gastos governamen
tais que preenche a mesma função econômica dos gastos
com o consumo (que suportam assim a procura total) sem
encontrar a resistência dos interêsses das sociedades, que
pelo contrário os encorajam: são os gastos militares,
que têm a dupla vantagem de fornecer um mercado pràti
camente ilimitado para a produção privada e de prestar
às sociedades um serviço necessário que elas mesmas não
seriam capazes de se proporcionar. A rêde de alianças e
de bases militares americanas constitui um amparo para
a "livre emprêsa", condição necessária da expansão e da
preservação dos mercados para os capitais privados ame
ricanos. De resto, é o enorme orçamento reservado aos
armamentos que constitui a diferença vital entre a situação
econômica da América depois dos anos 50 e a estagnação
e depressão dos anos '30. (É, de fato, a diferença vital
para todo o sistema capitalista) (15).
98
às exigências de uma "defesa" contra uma ameaça militar
objetiva, mas foram feitos com o objetivo de superar
de dobrar os gastos militares do "inimigo".
Mas ainda que a história real dos últimos vinte anos
estivesse mais próxima de sua versão oficial, seria pos
sível supor com justa razão que os gastos militares dos
Estados capitalistas seriam em todo caso exigidos como
resultado de fatôres oriundos do próprio regime, exterior
mente mesmo à necessidade de manter e de ampliar o sis
tema das sociedades "multinacionais".
Keynes mostrou que o capitalismo tem uma tendência
natural para a estagnação crônica, com desemprêgo per
manente, e que o capitalismo é, por natureza, fortemente
instável. A fim de evitar que o capital privado fracasse
em manter seu nível de investimentos, Keynes pretende
que os govêrnos devem fazer gastos compensatórios. Mas
se essas despesas governamentais forem sobretudo despesas
úteis à sociedade, existe o perigo de ver diminuídos certos
investimentos da emprêsa privada. Portanto, o govêrno
faz melhor em desperdiçar do que em fazer despesas úteis,
do ponto de vista dos financistas privados. "Duas pirâ
mides, duas missas pelos mortos é duas vêzes melhor do
que uma; mas isso não é verdade em relação a duas estra
das de ferro ligando Londres a York." Este fato expli
ca a pressa dos governos capitalistas em fazer despesas
militares. Com efeito, como já observou Joan Robinson,
99
raciocínio de Keynes é possível demonstrar que o
capitalismo não escapará por nenhum outro meio à
tendência do desemprêgo (16).
100
A CRISE ATUAL E SUAS PERSPECTIVAS
101
constitui um desafio latente à ordem estabelecida. É por
isso que uma economia que encontra sua posição de equilí
brio num nível nìtidamente inferior ao nível do pleno em
prêgo não pode evidentemente ser qualificada de "estática",
política e socialmente. O sucesso mais comentado do capita
lismo pós-keynesiano, pelo hos nos Estados Unidos, foi
de modificar o desenvolvimento quantitativo do capitalismo
amortecendo suas tendências para a instabilidade econô
mica e mantendo um nível de atividade econômica e de
emprêgo tolerável (ainda que longe de ser pleno).
Entretanto, êsse "sucesso" quantitativo é pago pela
sociedade a um alto prêço qualitativo, prêço que, ainda que
difícil de ser avaliado com precisão, tem profundas impli
cações para o sistema e seu desenvolvimento. Com efeito,
êle pressupõe que o exército se torne uma instituição na
cional, que um centro de poder militar-industrial seja cria
do, fato êste que não apenas falseia o crescimento econô
mico como também proporciona um ponto de sustentação
para as forças políticas de direta, esgotando a sociedade
civil de todas as maneiras, deixando que se acumulem os
problemas sociais os mais críticos. Resolver o problema da
instabilidade capitalista através de gastos militares é, no
final das contas, não resolvê-lo de modo algum: essa ati
tude não faz mais do que apresentar o mesmo problema
por outras maneiras. Pois as despesas militares, por opo
sição às despesas com o "bem-estar" (que redistribuiriam
a renda nacional e dividiriam mais justamente os recursos
sociais) não suprimem as contradições que levam o capita
lismo à estagnação quantitativa e ao caos social qualita
tivo: a contradição entre as relações e os modos de pro
dução, entre o índice rígido da poupança e a saturação
relativa dos canais lucrativos, entre o aumento da procura
e o aumento da produção potencial, entre a procura efetiva
e a necessidade social real.
102
O período de após-guerra nos Estados Unidos foi
caracterizado por uma estagnação progressiva (apesar dos
gastos militares extraordinários e da grande onda de ino
vações tecnológicas), pela crescente militarização da vida
nacional política e econômica, pelo crescimento do imperia
lismo, do desemprêgo, da pobreza e da criminalidade, pelo
crescimento proporcionalmente menor dos serviços médicos
e de bem-estar, bem como da educação, pela deterioração
rápida e ameaçadora das cidades paralelamente a uma
urbanização maciça, ascensão das lutas e violências raciais
-
e, como conseqüência a essa situação, pelo enfraqueci
mento das forças sociais críticas de esquerda e pelo forta
lecimento de um movimento totalitário de direta.
103
favorecer a procura e, com isso, reduzir o desemprego.
Mas, a menos que tais despesas possam ser clara
mente justificadas por seus próprios méritos, sua
contribuição à produtividade e ao investimento seria,
no fim das contas, e na melhor das hipóteses, 'incerta'.
Essas despesas pareciam apresentar menos vantagens
do que o caminho que escolhemos: a redução dos im
postos.
104
do segundo mandato da Administração Eisenhower. Por
outro lado, o aumento para todas as outras despesas foi
"inferior em um têrço ao aumento comparável durante o
período de 4 anos anterior". De resto, a Administração se
comprometeu a reduzir as despesas federais logo que a
redução fiscal começasse a ser efetiva.
As reduções dos impostos tiveram o efeito de redis
tribuir a renda entre grupos que já gozavam de rendas
superiores. As "tax bonanzas" para as corporações se ele
varam a uma redução do índice fiscal que ia de 52% a 34
ou 29% e a liberalização substancial das deduções admis
síveis para a amortização anual.
Após um período de quatro anos de expansão ininter
rupta (antes da escalada da guerra do Vietnam), a dimi
nuição do ritmo da economia se fêz sentir novamente
mau agouro para o futuro. Com efeito, como a força de
trabalho aumentava 50% mais rápidamente que no de
correr da década anterior paralelamente ao aumento da
produtividade do trabalho, qualquer parada que houvesse
no boom de investimento poderia engendrar altos níveis
de desemprego.
105
que se queixa a sociedade americana, dada a atual
forma desta e a balança do poder político.
106
humanos, às custas do próprio meio a tarefa de en
-
107
o sistema revelará seu verdadeiro caráter: suas desigual
dades gritantes, as exigências de auto-preservação do ca
pital muito além dos destinos e das necessidades dos sêres
humanos, etc.
108
oculta atrás do ângulo de seu boom, a sombria perspectiva
de uma oferta de poder totalitário interno.
Com efeito, o crescimento de um movimento de direita,
potencialmente fascista, na abundância do sistema ame
ricano é talvez o último requisitório de um sistema que
perverte as possibilidades de libertação e que transforma
suas promessas em ameaças catastróficas. Dêste ponto de
vista particular, sem dúvida nenhuma Marcuse tem ra
zão por um lado, a liberação seria uma catástrofe para
o sistema capitalista; por outro lado, a catástrofe do sis
tema sua abolição e sua transcendência - é a condição
necessária da liberação humana.
109
PSICANÁLISE E SOCIOLOGIA
No conjunto, este volume é uma análise, uma crítica e uma extensão do pensa
mento de Herbert Marcuse conforme exposto em suas duas obras capitais (Ideologia
de sociedade industrial e Eros e Civilização) e constitui-se num valioso meio de
penetração na difícil teoria elaborada pelo mais discutido dos pensadores contempo
râneos.
NOVA
CRITICA