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Agradecimentos 9
1. A morte da utopia 11
5. Missionários armados
219
6. Pós-Apocalipse 275
Notas
315
John Gray
1
A morte da utopia
11
uma nova era não passa da mais recente versão de crenças
apocalípticas que remontam às épocas mais antigas.
Jesus e seus seguidores acreditavam estar vivendo no fim
dos tempos, quando os males do mundo seriam extintos. A
doença e a morte, a fome, a guerra e a opressão deixariam de
existir após a derrota das forças do mal numa luta que aba
laria o mundo. Era esta a fé que inspirava os primeiros cris
tãos, e embora o fim dos tempos viesse a ser interpretado por
cristãos de épocas posteriores como uma metáfora da mudan
ça espiritual, as visões do Apocalipse vêm rondando a vida
ocidental desde essa época remota.
Na Idade Média, a Europa foi sacudida por movimentos
de massa inspirados na crença de que a história estava chegando
ao fim e um novo mundo surgiria. Esses cristãos medievais
acreditavam que só Deus poderia propiciar o surgimento do
novo mundo, mas a crença no fim dos tempos não se dissi
pou quando o cristianismo começou a declinar. Pelo contrá
rio, à medida que o cristianismo perdia força, a esperança de
um iminente fim dos tempos tornou-se mais forte e mais
militante. Modernos revolucionários como os jacobinos fran
12
As ideologias iluministas dos últimos séculos têm sido em
grande medida formas maldisfarçadas de teologia. A histó
ria do último século não fala de avanço secular, como pre
ferem supor os bem-pensantes da direita e da esquerda. As
tomadas do poder pelos bolcheviques e os nazistas foram
tão movidas pela fé quanto a insurreição teocrática do aia
tolá Khomeini no Irã. A própria idéia da revolução como um
acontecimento transformador da história se deve à religião.
Os modernos movimentos revolucionários são uma conti
13
Idade Média, gerando violência semelhante. O terrorismo se
cular dos tempos modernos é uma versão mutante da vio
lência que acompanhou o cristianismo ao longo de sua
história. Ao longo de mais de 200 anos, a primitiva crença
cristã num fim dos tempos promovido por Deus transfor
mou-se na crença de que a Utopia poderia ser alcançada pela
ação humana. Sob aparência científica, os mitos cristãos ori
ginais do Apocalipse deram origem a um novo tipo de vio
lência baseada na fé.
POLÍTICA APOCALÍPTICA
"Um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a pri
meira terra se foram", lemos no Apocalipse. Eliminem o "céu",
mantendo apenas a "nova terra", e terão o segredo e a receita
de todos os sistemas utópicos.
E. M. Cioran¹
14
As raízes religiosas dos modernos movimentos revolucioná
rios foram primeiro analisadas sistematicamente no seminal
estudo The Pursuit of the Millennium,2 de Norman Cohn. Com
freqüência se tem observado que, para seus seguidores, o co
munismo ofereceu muitas das funções de uma religião — o
que se refletia no título de uma famosa coletânea de ensaios
de ex-comunistas desiludidos, The God that Failed, publicada
pouco depois do início da Guerra Fria.³ Cohn mostrou que as
semelhanças iam muito mais longe do que se havia percebido.
15
I
16
tória". Na medida em que encaram a história como um mo
17
As crenças milenaristas são uma coisa, outra são os mo
vimentos milenaristas e outra, ainda, os regimes milenaristas.
Os movimentos milenaristas só se desenvolvem em circuns
18
Os estudos históricos contemporâneos demonstraram
além de qualquer dúvida razoável que Jesus pertencia a
uma corrente heterodoxa do judaísmo carismático.' A pa
lavra "cristão", que veio a ser aplicada aos seus seguido
res, deriva da palavra grega christos, "o ungido", que
também é o significado de "messias" em hebraico e ara
maico. A palavra "messias" raramente é encontrada na
Bíblia hebraica, e quando aparece é um título concedido
ao rei ou a um supremo sacerdote. Com o desenvolvimen
to do cristianismo como religião universal, da época de
Paulo em diante, a expressão “o messias” veio a designar
uma figura divina enviada por Deus para redimir toda a
humanidade.
19
Albert Schweitzer entendeu bem esse dilema ao escrever:
20
definitivamente destruído. Agostinho acreditava que os seres
humanos eram irremediavelmente imperfeitos, e esta dou
trina do pecado original tornou-se o dogma central da orto
doxia cristã. Mas pode ser devida antes a Mani que a Jesus.
Outra importante influência na reformulação da fé cristã
empreendida por Agostinho foi o platonismo. Impressiona
do com a idéia de Platão de que as coisas espirituais perten
cem a um reino eterno, Agostinho propôs que o fim dos
21
qualquer ponto da história. Com a denúncia do milenarismo
pelo Conselho de Éfeso em 431, a Igreja adotava essa visão
agostiniana, o que não impediu o surgimento de movimen
tos quiliastas que resgatavam as crenças que haviam inspi
rado Jesus. E tampouco teve fim o papel do quiliasmo na
própria Igreja. No século XII, Joaquim de Flora (1132–1202)
inverteu a teologia agostiniana. Julgando-se conhecedor de
um significado esotérico das escrituras, Joaquim — um aba
de cisterciense que viajara à Terra Santa, onde teve uma espécie
de revelação espiritual - transformou a doutrina cristã da
Trindade numa filosofia da história em que a humanidade
ascendia através de três estágios. Partindo da Era do Pai e pas
sando pela Era do Filho, ela chegaria à Era do Espírito - uma
época de fraternidade universal que prosseguiria até o Juízo
Final. Cada uma dessas eras tinha um líder, estando Abraão
frente da primeira e Jesus, da segunda. Um derradeiro líder
22
o comunismo global por meio da sociedade de classes expos
ta por Marx e a visão positivista da evolução da humanidade
de etapas religiosas de desenvolvimento para etapas meta
físicas e científicas, na concepção de Auguste Comte, repro
duzem igualmente o esquema das três partes. A habitual
divisão da história em três fases — antiga, medieval e moderna
23
viveu por volta de 1500 e 1200 a.C. quem primeiro for
mulou a idéia da vida humana como uma batalha entre a luz
e as trevas que poderia terminar na vitória da luz. O zoroas
trismo é uma das mais pacíficas religiões da história. Todavia,
por sua influência formadora no judaísmo, no cristianismo
e no islã, Zoroastro pode ser a fonte primordial do tipo de
violência de motivação religiosa que tantas vezes se tem ma
nifestado ao longo da história ocidental.
Muitas tradições vêem a vida humana como uma guerra
entre o bem e o mal, mas presumindo que o conflito persisti
rá eternamente. Encontramos na mitologia egípcia uma inter
minável alternância entre luz e trevas. Houve quem esperasse
que a luta terminasse nas trevas - no século VIII a.C., o poeta
-
24
China, adotando parte da imagística e do simbolismo do bu
dismo. Em meio a essas transformações, os maniqueus pre
servavam a convicção de que o mal jamais seria erradicado.
Neste ponto, a religião de Mani difere radicalmente do zo
roastrismo e dos ensinamentos de Jesus.
25
quarenta anos de uma guerra em que morreram cerca de meio
milhão de pessoas. Mas o gnosticismo não foi destruído. So
breviveu e se reformulou, reaparecendo de muitas formas
inesperadas, inclusive de acordo com Hans Jonas, autor
de um magistral estudo sobre as tradições gnósticas -
na
26
vam túnicas semelhantes às dos sufis, que no século XII pre
gavam convicções heterodoxas semelhantes na Espanha e em
outros países, e o Espírito Livre também se pode ter inspira
do em resquícios das tradições gnósticas, que nunca foram
exclusivamente cristãs. Seja como for, fossem cristãos ou mu
não ape
nas a Igreja, como também a família e a propriedade privada
como obstáculos à liberdade espiritual.
Caberia supor que crenças místicas dessa natureza não
tivessem grande impacto na prática. Na verdade, interagindo
27
mentos do cristianismo primitivo. As seitas de que era cons
tituído esse movimento estimulavam a prática do rebatismo
como símbolo da rejeição, pelo crente, da Igreja e da ordem
social vigente. No início de 1534, depois de converterem gran
de quantidade de pregadores, freiras e leigos, os anabatistas
promoveram sua primeira sublevação armada e tomaram a
prefeitura e o mercado de Münster. A cidade transformou-se
num reduto anabatista, o que provocou a fuga de luteranos
e a afluência de anabatistas de cidades próximas. Anunciou-se
que o resto do planeta seria destruído antes da Páscoa, mas
que Münster seria salva, tornando-se a Nova Jerusalém.
Católicos e luteranos foram expulsos, sendo rebatizados
na praça central os que ficaram. A catedral foi saqueada e seus
livros, queimados. Posteriormente, todos os livros seriam
proibidos, exceto a Bíblia. Foram tomadas as primeiras me
didas no sentido da propriedade comum. Todo o dinheiro, o
ouro e a prata tiveram de ser entregues. As portas das casas
deviam ficar permanentemente abertas. Sob a liderança do
antigo aprendiz de alfaiate Jan Bockelson (também conheci
do como João de Leyden), tais medidas foram levadas ainda
mais longe. A propriedade privada foi proibida, sendo intro
duzida a direção do trabalho, juntamente com pena capital
para toda uma série de delitos. As mulheres que se recusas
sem a obedecer aos maridos podiam ser mortas - assim como
os adúlteros, entre os quais eram incluídos todos aqueles que
se casassem fora da comunidade anabatista. Esse regime pu
ritano não durou. Veio a ser introduzida uma forma de poli
gamia na qual passou a ser considerado crime capital que uma
mulher não se casasse. O que tampouco durou: algumas
mulheres se recusaram a obedecer e foram executadas. Em
seguida, o divórcio foi facilitado, o que levou a uma forma
de amor livre.
28
No outono de 1534, Bockelson proclamou-se rei de Münster.
Ele não se considerava um governante deste mundo, mas um
messias destinado a presidir aos últimos dias do planeta. Ado
tando uma inovação que seria imitada pelos jacobinos, deu
novos nomes às ruas e prédios e instituiu um novo calendá
rio. Dias depois do estabelecimento da nova ordem, tiveram
início as execuções, destacando-se entre as vítimas as mulhe
res. A essa altura, a cidade já estava sitiada por forças leais à
Igreja e a população passava fome. Bockelson promoveu então
espetaculares celebrações para distrair seus súditos esfaima
dos - corridas, danças e representações teatrais. Simultanea
mente, proibia a realização de reuniões sem autorização. A
fome persistia, e em junho de 1535 as defesas da cidade fo
ram vencidas. Bockelson foi capturado. Depois de meses de
humilhação em público, foi torturado até a morte, com fer
ro em brasa, na praça central.
29
quanto qualquer das que mereciam crédito na Idade Média.
Talvez por este motivo terá sido apresentada sempre sob a capa
da ciência. A política moderna tem sido movida pela crença
de que a humanidade pode livrar-se de males imemoriais pela
força do conhecimento. Em suas formas mais radicais, essa
O NASCIMENTO DA UTOPIA
F. Dostoievski¹3
30
T
e até cerca de duzentos anos atrás se imaginava que as socie
31
Embora tivessem um impacto no pensamento radical,
essas comunidades utópicas influenciaram muito pouco as
sociedades em que surgiram. Opondo-se às inclinações hu
manas comuns e contaminadas pelas excentricidades de seus
fundadores, elas fracassaram, em sua maioria, em apenas
uma geração, ou menos. Alguém poderia concluir que o de
saparecimento dessas comunidades pode ser considerado su
ficiente para determinar seu caráter utópico. Mas o que torna
utópico um projeto ou uma comunidade? Muitas tentativas
têm sido feitas de definir o utopismo, e nenhuma formula
ção, sozinha, pode abarcar todas as suas variedades. Escre
veu Isaiah Berlin:
32
Ao contrário do que afirma Berlin, o utopismo nem sem
pre envolve uma alegação de conhecimento objetivo das ne
cessidades humanas. A história da religião contém muitos
exemplos de comunidades que alegavam encarnar um ideal
de perfeição que lhes havia sido apresentado sob a forma de
revelação divina. Essas comunidades baseiam-se antes na fé
do que em qualquer alegação de conhecimento, mas na me
dida em que seu ideal de perfeição vai contra características
humanas básicas, elas continuam sendo utópicas. A cidade
Estado teocrático-comunista criada por João de Leyden era
uma dessas utopias religiosas.
Berlin está com a razão quando afirma que uma das ca
racterísticas centrais de todas as utopias é o sonho de uma
harmonia final. Sejam os fins humanos considerados imu
táveis, como em Platão, ou progressivos, como em Marx, seja
a natureza desses fins conhecida por meio de descobertas ci
entíficas de leis naturais ou aceita como artigo de fé, os confli
tos normais da vida humana são deixados para trás. Conflitos
de interesses entre indivíduos e grupos sociais, antagonismo
entre ideais de vida e no interior deles, escolhas entre diferen
considerados irrelevantes.
33
que qualquer utopia fracassada. Felizmente, as visões de um
mundo ideal nunca se concretizam. Ao mesmo tempo, a pers
pectiva de uma vida sem conflitos exerce um forte apelo. De
fato, é a própria idéia de perfeição atribuída em certas tradições
a Deus. Na religião, a idéia de perfeição atende a uma neces
sidade de salvação individual. Na política, expressa um anseio
semelhante, que, no entanto, logo vai contra outras necessi
dades humanas. As utopias são sonhos de libertação coletiva
que na vigília se revelam pesadelos.
Os projetos utópicos são irrealizáveis pela própria natu
reza. Escrevia Hume: "Qualquer plano de governo que pres
suponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é
com toda evidência imaginário. "15 A formulação parece defi
nitiva, mas cabe objetar que é por demais conservadora. O
que se poderia entender por uma "grande reforma nos hábi
tos da humanidade"? E seria verdade que tais reformas são
"com toda evidência imaginárias"? Não foram promovidas
várias mudanças dessa natureza na história humana? Ainda
que um "plano de governo” seja irrealizável, a própria tenta
tiva de alcançá-lo não tornaria o mundo melhor? Existe uma
escola de pensamento que enfatiza o caráter indispensável da
imaginação utópica. Segundo esse ponto de vista, o pensa
mento utópico descortina panoramas que de outra maneira
permaneceriam ignorados, ampliando o alcance das possibili
dades humanas. Ater-se aos limites do que é considerado viável
é renunciar à esperança e adotar uma atitude de aceitação pas
siva que redunda em cumplicidade com a opressão.
De acordo com muitos dos que aceitam essa visão, as con
seqüências desastrosas dos projetos utópicos-na Rússia so
viética e na China maoísta, por exemplo — não decorrem dos
projetos em si mesmos. As teorias utópicas ocidentais não têm
culpa; o problema está nas tradições russas ou chinesas. No
34
próximo capítulo, examinarei mais detidamente a idéia de que
o comunismo que existiu na prática foi uma deformação da
visão de Marx. No momento, cabe apenas lembrar que o em
prego do terror por parte de Lenin para suscitar um novo
mundo de modo algum constituiu uma novidade. A utiliza
ção de métodos desumanos para alcançar fins impossíveis é
a essência do utopismo revolucionário. A revolução bolche
vique representou a culminância de uma tradição revolucio
nária européia iniciada com os jacobinos e à qual pertencia
Marx, e que aceitava o terror sistemático como meio legíti
mo de transformação da sociedade.
O comunismo real não foi um nobre ideal humanista cor
35
Marx percebeu que o capitalismo é um sistema econômico
que desestabiliza cada aspecto da vida humana. Não só a po
lítica e o governo, como também a cultura e a sociedade são
permanentemente transformadas sob o impacto das energias
anárquicas do mercado. Boa parte da política no fim do sécu
lo XX foi dominada por movimentos empenhados em liberar
o mercado simultaneamente restabelecendo "valores tradicio
nais". Ao mesmo tempo que reorganizavam a sociedade para
atender aos imperativos do mercado, políticos como Thatcher
e Blair queriam reviver as virtudes da vida burguesa. Mas o
fato é que, como percebeu Marx, o efeito concreto do merca
do sem controle vem a ser a derrubada de relações sociais e
formas de vida ética estabelecidas - inclusive as das socie
dades burguesas.
Marx mostrou como eram irreais as idéias de associar o
36
Hoje, como no século XX, os perigos do utopismo são
negados. Como acontecia então, acredita-se agora que nada
pode impedir os seres humanos de se reformar, assim como
ao mundo em que vivem, como bem lhes aprouver. Esta fan
tasia está por trás de muitos aspectos da cultura contempo
rânea, e em tais circunstâncias é de um pensamento distópico
que mais precisamos. Se quisermos entender nossa atual
condição, devemos voltar-nos para o Admirável mundo novo,
de Huxley, ou 1984, de Orwell, para A Ilha do Dr. Moreau, de
Wells, ou Os andróides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip
K. Dick, para Nós, de Zamiatin, ou Bend Sinister, de Nabokov,
Almoço nu, de Burroughs, ou Super-Cannes, de Ballard -vi
sões prescientes da feia realidade resultante da busca de
sonhos irrealizáveis.
37
abolida. No século XX, o trabalho escravo foi utilizado em
ampla escala na Alemanha nazista, na Rússia soviética e na
China maoísta. Os seres humanos não eram os bens comer
ciáveis em que haviam sido transformados na escravidão;
mas constituíam recursos que podiam ser usados e explo
rados até a morte. A escravidão foi reinventada sob novas
38
dade seria complicado, mas não é difícil saber quando ele está
em falta. Para a mente utópica, os problemas de qualquer
sociedade conhecida não são indícios de imperfeições na na
tureza humana. Representam sinais da repressão universal
39
tinua sofrendo muitas aflições, mas elas estão sendo elimi
nadas (...) Desse modo, por estranho que possa parecer à pri
meira vista, o movimento do Apocalipse é, à sua maneira,
progressivo - talvez a primeira expressão da idéia da histó
ria como progresso.¹7
40
atento, de que a história é uma luta entre forças do bem e do
mal. Ambas as visões dão por descontado que a salvação
humana é operada por meio da história - um mito cristão
sem o qual as regiões políticas dos tempos modernos não te
riam surgido.
A crença milenarista estava no cerne da Reforma, quan
do começou a assumir formas mais próximas das encontradas
nos movimentos revolucionários modernos. Não obstante a
41
mento anticromwelliano com algo entre 20.000 e 40.000
homens armados; inspirados no profeta Daniel e no Livro do
Apocalipse, eles acreditavam que a ordem vigente chegaria ao
fim em 1666. Fazendo referência em seu nome ao sonho de
42
À medida que novos movimentos políticos tomavam a fren
te, os velhos tipos de milenarismo não desapareceram. Obser
vou E. P. Thompson, historiador da classe operária inglesa:
43
até que o movimento jacobino inglês foi destruído na onda
de repressão após a Revolução Francesa.
As crenças pós-milenaristas estavam amplamente difun
didas no início do século XIX. Os pensadores cristãos que pro
pagavam essas crenças insistiam em que a humanidade serve
apenas como auxiliar de Deus. Os avanços do conhecimento
científico eram bem-vindos como meios de concretização do
plano divino. Mas a idéia de que a ação humana pode pro
mover uma radical mudança na história já fora infundida na
vida ocidental. Não levaria muito tempo para que o pós-mile
narismo se transfundisse na crença iluminista de que a hu
manidade é uma espécie intrinsecamente em progressão.
Os filósofos do Iluminismo pretendiam suplantar o cris
tianismo, mas só poderiam fazê-lo se se mostrassem capazes
de atender às esperanças por eles geradas. Em conseqüência,
não poderiam admitir que a história humana não tem um
sentido algo que os pensadores pré-cristãos davam por
-
44
Muitos pensadores modernos têm tentado evitar uma vi
são da história como batalha entre o bem e o mal, preferindo
apresentá-la como uma sucessão de etapas. Nessa visão, o
conhecimento humano avança cumulativamente, o mesmo
acontecendo com os aperfeiçoamentos na ética e na política:
o progresso da ciência tem equivalente no progresso da socie
dade, e a história é uma marcha em direção a um mundo
45
Durante boa parte do século XIX, o utopismo assumia a
forma de comunidades voluntárias freqüentemente ridículas,
46
"a piedade é traição”. Uma forma mais elevada de vida hu
mana estava ao alcance da mão - e até mesmo um tipo mais
depurado de ser humano, mas para isso era necessário que
a humanidade fosse purificada pela violência.
Essa fé na violência transmitiu-se para muitas correntes
revolucionárias posteriores. Anarquistas do século XIX como
Netchaiev e Bakunin, os bolcheviques Lenin e Trotski, pensa
dores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao
e Pol Pot, o Grupo Baader-Meinhof, as Brigadas Vermelhas
italianas da década de 1980, os movimentos radicais islâmicos
47
horrorizado com a maneira como sua crença no progresso
humano veio alimentar o terror político. Mas não sur
preendia que o terror fosse utilizado para promover os ideais
do Iluminismo. Era uma decorrência da crença de que a vida
humana pode ser transformada por um ato da vontade hu
mana. Por que recuar ante a violência? Ao longo de toda a
história, ela fora empregada para dar sustentação à tirania.
Nas mãos dos revolucionários, podia ser usada para libertar
a humanidade.
48
futuro próximo. Num aparente paradoxo, os modernos mo
vimentos revolucionários renovam a mitologia apocalíptica
do cristianismo primitivo.
Com os jacobinos, o utopismo tornou-se um movimen
to revolucionário e a moderna religião secular, uma força po
49
sado, a busca da Utopia passou a fazer parte das correntes
políticas centrais. No futuro, só um tipo de regime seria legí
a for
timo: o capitalismo democrático de estilo americano
ma suprema de governo humano, como foi definida no fugaz
e hoje esquecido clima de arrogância que se seguiu ao colap
so soviético. Liderados pelos Estados Unidos, vários governos
ocidentais se arrogaram o direito de instaurar a democracia
mundo afora um sonho impossível que, em muitos paí
-
telos de areia.
No século XX, parecia que os movimentos utópicos só
podiam chegar ao poder em regimes ditatoriais. Depois do 11
de setembro, contudo, o pensamento utópico passou a deter
minar a política externa da principal democracia do mundo.
Em muitos aspectos, o governo Bush comportava-se como
um regime revolucionário. Promovia ataques preventivos
contra países soberanos para alcançar seus objetivos, ao mes
mo tempo que se mostrava disposto a corroer pela base li
berdades há muito conquistadas pelos americanos. Instalou
em Guantánamo um campo de concentração cujos ocupan
tes estão fora do alcance de qualquer proteção jurídica, ne
gou o direito de habeas corpus a suspeitos de terrorismo,
instalou todo um aparato de vigilância da população e auto
rizou funcionários a praticar atos que em qualquer outro país
seriam considerados como tortura. Com a liderança de Tony
Blair, a Grã-Bretanha passou, de forma mais limitada, por
transformação semelhante.
50
A democracia universal e a "guerra ao terrorismo" reve
laram-se perigosos embustes. Como os regimes utópicos do
passado, os governos não reconhecem que estão tentando o
impossível. Querem livrar-se das limitações criadas ao longo
de muitos séculos para antepor freios ao exercício do poder.
No século XX, o resultado foi o totalitarismo um sistema
-
51
vam a história em termos reducionistas, considerando o de
52
sultado da tentativa de projetar em todo o mundo a demo
53
O comunismo desmoronou, mas o utopismo não desa
pareceu. Ganhou nova vida e chegou ao poder no Estado mais
poderoso do planeta. Como isto aconteceu? Como se dá que
a Utopia outrora encontrada sobretudo na esquerda
—
-
54
entre os pensadores conservadores sem esse tipo de crença.
Fosse religiosa ou não, a direita entendia que as mazelas da
natureza humana não podiam ser transcendidas.
Na última geração, a direita abandonou essa filosofia da
imperfeição e abraçou a busca da Utopia. Em sua militante
fé no progresso, a direita aceitou uma corrente radical do pen
samento iluminista que renovava, sob novas formas, alguns
dos mitos centrais do cristianismo. Como outros movimen
55
ser unificados num superestado federal capaz de rivalizar
como potência com os Estados Unidos mas deixou para
"
56
À medida que se tornava mais militante, a direita utópica
também se tornava menos secular, e em seu apogeu na Amé
rica apresentava muitas das características de um movimento
milenarista. No início da década de 1990, os neoconservadores
uniram forças numa aliança estratégica com os fundamen
talistas cristãos, e após os atentados terroristas de 11 de setem
como pre
núncio do Armagedom, uma batalha final da luta entre a luz
e as trevas. Outros esperam ser poupados dessas provações
num Êxtase em que serão conduzidos ao céu. Em ambos os
casos, o mundo imperfeito em que a humanidade tem vivido
logo chegará ao fim.
A característica específica da visão de mundo que chegou
ao poder no governo Bush não é a obsessão com o mal, mas
57
sim o fato de afinal de contas não acreditar no mal. Referin
58
Os pensadores liberais contemporâneos tendem a consi
derar os movimentos totalitários do século passado como
anomalias na história ocidental, e uma tendência semelhan
59
2
Iluminismo e terror no
século XX
O século XXI vem sendo uma época de terror, sendo fácil per
ceber que, neste sentido, difere do que acaba de terminar. Na
verdade, o terrorismo foi praticado no século passado em es
cala sem equivalente em qualquer outro período da história,
mas, ao contrário do terrorismo mais temido hoje em dia,
era motivado em boa parte por esperanças seculares. Os re
gimes totalitários do século passado encarnavam alguns dos
sonhos mais ousados do Iluminismo. Alguns de seus piores
crimes foram cometidos em nome de ideais progressistas,
enquanto até mesmo regimes que se consideravam inimigos
61
dos valores do Iluminismo tentavam empreender um proje
to de transformação da humanidade recorrendo ao poder da
ciência, cujas origens estão no pensamento iluminista.
O papel do Iluminismo no terror do século XX ainda é um
ponto cego na percepção dos ocidentais. As bibliotecas estão
cheias de livros que insistem em que a repressão em massa
na Rússia stalinista e na China maoísta era um subproduto
de tradições despóticas. A inferência é que a culpa cabe aos
povos dos países submetidos ao domínio comunista, estan
do a ideologia comunista isenta de qualquer responsabilidade
nos crimes cometidos por esses regimes. Uma lição semelhante
foi tirada da catástrofe decorrente do projeto do governo Bush
de mudar o regime no Iraque: ela não foi da responsabilidade
dos que conceberam e concretizaram o projeto, cujas metas e
intenções são irrepreensíveis. A culpa é dos iraquianos, uma
raça inferior que desprezou a liberdade que lhe era oferecida
com tanta magnanimidade.
Não é apenas um certo racismo que encontramos nessa
maneira de pensar. No século passado, a repressão em massa
62
mada numa ditadura totalitária depois da ascensão dos co
munistas. A força da Igreja na Polônia pode ter impedido a
imposição de um totalitarismo sem peias, mas, como qual
quer outro país comunista, ela também sofreu períodos de
intensa repressão. O resultado não teria sido diferente se re
gimes comunistas tivessem sido instaurados na França ou na
Itália, na Grã-Bretanha ou na Escandinávia.
As aparentes semelhanças entre países que sofreram a
imposição de regimes comunistas decorrem antes desse des
tino comum que de suas histórias anteriores. Embora alguns
regimes comunistas tenham feito progressos no bem-estar
social, todos eles tiveram a experiência da repressão em mas
sa, paralelamente a uma corrupção endêmica e à devastação
ambiental. Nesses e em outros países comunistas, o terror era
em certa medida uma reação a esses fracassos e à conseqüen
63
motivos a luta por terras e água. A disputa de recursos com
freqüência tem sido uma das causas de genocídios, assim
como as inimizades nacionais e tribais, além da pura e sim
ples ganância predadora. O genocídio cometido no Congo
Belga por representantes do rei Leopoldo II, que governou o
território como seu feudo pessoal entre 1885 e 1908, causa
ria a morte de algo entre oito e dez milhões de pessoas, por
assassinato, exaustão, fome, doenças e o colapso dos índices
de natalidade. Embora ele justificasse o empreendimento em
termos de disseminação do progresso e do cristianismo, o obje
tivo de Leopoldo não era ideológico: era seu enriquecimento
64
vida. Ainda assim, não houve campos de extermínio na an
tiga União Soviética. Arendt também descreveu os Estados
totalitários como máquinas impessoais nas quais praticamen
te não era contemplada a responsabilidade individual.³ Na ver
dade, a vida nos regimes totalitários era um caos endêmico.
O terror era parte integrante do sistema, mas não acontecia
sem decisões pessoais. Os indivíduos tornavam-se cúmplices
dos crimes nazistas pelos motivos mais mesquinhos - no
caso de Eichmann, o carreirismo. Faria mais sentido falar da
banalidade dos praticantes do mal que da banalidade do mal.
Os crimes que eles cometeram não eram banais e decorriam
de crenças essenciais ao regime em que ocorriam.4
A busca da Utopia não precisa necessariamente levar ao
totalitarismo. Enquanto ficar confinada a comunidades volun
tariamente mobilizadas, ela tende a ser autolimitadora
65
Muitos critérios têm sido usados para distinguir o tota
litarismo de outros tipos de regimes repressivos. Um dos pos
síveis diferenciais é o grau de controle estatal do conjunto da
sociedade, que vem a ser um subproduto da tentativa de refor
mulação da vida humana. O bolchevismo e o nazismo foram
veículos desse tipo de projeto, o que não aconteceu no caso
do fascismo italiano, muito embora a palavra "totalitário"
tenha sido usada pela primeira vez na Itália de Mussolini.
Tampouco o foi não obstante o fato de ter sido às vezes
extremamente violento - o fascismo clerical da Europa cen
tral e oriental entre as duas guerras mundiais. Existem muitos
regimes viciosos que não podem ser considerados totalitários.
As teocracias pré-modernas recorriam ao medo para impor 1
Bertrand Russell5
66
na natureza humana. A mudança que prevê ocorrerá na bi
ologia da espécie humana. No futuro, escreve,
67
irrestritas possibilidades humanas. A visão trotskista do
emprego da ciência para aperfeiçoar a humanidade traduz
uma recorrente fantasia moderna. A crença de que a ciência
pode libertar a humanidade de suas limitações naturais e tal
vez até torná-la imortal prospera hoje em dia em cultos como
a criogênica, o transumanismo e o extropianismo, que reco
nhecem sua dívida em relação ao Iluminismo.7
Desde o início os bolcheviques pretendiam criar um novo
tipo de ser humano. Ao contrário dos nazistas, não encara
vam essa nova humanidade em termos raciais, mas, como
os nazistas, dispunham-se a empregar a ciência e a pseudo
ciência para alcançar seu objetivo. A natureza humana devia
ser modificada para que surgisse o "homem socialista". Seme
lhante projeto era impossível com o conhecimento científico
disponível na época, mas os bolcheviques estavam dispostos
a usar qualquer método, por mais desumano que fosse, e a
adotar qualquer teoria, mesmo a mais duvidosa, desde que
prometesse a transformação com que sonhavam. A partir do
início da década de 1920, o regime soviético perseguiu os ver
dadeiros cientistas. Posteriormente, como aconteceu na Ale
68
ria dos cientistas por sustentar que as características adqui
ridas podem ser transmitidas. A teoria de Lamarck parecia
abrir a possibilidade de que a natureza humana fosse pro
gressivamente aperfeiçoada. Na medida em que aparentemen
te aumentava o poder humano sobre o mundo natural, o
lamarckismo sintonizava com o marxismo, e, com o apoio
de Stalin, Lisenko foi nomeado diretor da Academia Soviética de
69
pena de prisão, que veio a ser comutada, e finalmente exilado
no Cazaquistão, onde morreu em 1931. Mereceu um obituá
rio de exaltação de sua vida e obra pelo psicólogo russo Ivan
Pavlov, que conquistou fama mundial com uma série de expe
riências de aplicação aos cães de métodos de condicionamen
to comportamental.º
As exigências de Stalin em relação ao novo ser humano
eram grosseiramente práticas. Mas fazem parte de um pro
jeto de desenvolvimento de um tipo superior de ser humano
que reiteradamente volta a se manifestar nos pensadores
iluministas. Às vezes se questiona se chegou realmente a haver
10
algo como um "projeto iluminista". ¹º O Iluminismo certa
mente foi um movimento heterogêneo e não raro contradi
tório. Uma vasta gama de crenças pode ser encontrada entre
os pensadores iluministas: ateus e deístas, liberais e antili
berais, comunistas e pró-mercado, igualitários e racistas. Boa
parte da história do Iluminismo é feita de furiosas disputas
entre representantes de doutrinas rivais. Mas não se pode
negar que uma versão radical do pensamento iluminista che
gou ao poder com os bolcheviques, que pretendiam modifi
car radicalmente a vida humana.
Sempre houve na Rússia muita gente empenhada em en
contrar na Europa maneiras de resgatar o país do atraso. Ao se
estabelecer na Rússia, o grande pensador contra-iluminista
Joseph de Maistre afirmou que queria viver entre pessoas que
não tivessem sido "marcadas por filósofos". Decepcionado, en
controu em São Petersburgo uma elite que falava francês, re
verenciava Voltaire e buscava inspiração nos philosophes. Ao
longo do século XIX, os pensadores russos continuaram volta
dos para a Europa. O anarquista Bakunin, o marxista ortodoxo
Plekhanov, o liberal anglófilo Turgueniev todos estavam con
vencidos de que o futuro da Rússia dependia da fusão na civi
70
lização universal que viam surgir na Europa. O mesmo se dava
com os bolcheviques que criaram o Estado soviético. Quando
falavam de transformar a Rússia num Estado moderno, Lenin e
Trotski estavam falando uma língua européia.
Já virou lugar-comum dizer que o problema da Rússia
foi o fato de o Iluminismo nunca ter triunfado no país. Se
gundo essa visão, o regime soviético foi uma versão eslava
do "despotismo oriental", sendo a repressão sem precedentes
por ele promovida um desdobramento da tirania moscovita
tradicional. Na Europa, a Rússia há muito é vista como um
país semi-asiático percepção reforçada pelo famoso diário
em que o marquês de Custine, registrando suas viagens pela
Rússia em 1839, afirmava que os russos eram um povo pre
disposto à servidão.¹1¹ Teorias sobre o despotismo oriental há
muito são desenvolvidas por marxistas empenhados em ex
plicar por que as idéias de Marx tiveram resultados desastro
71
É verdade que a Rússia nunca pertenceu plenamente ao
Ocidente. A ortodoxia oriental se definia em oposição ao cris
tianismo ocidental, e não houve na Rússia nada semelhante
à Reforma ou ao Renascimento. Desde a época da queda de
Constantinopla nas mãos dos otomanos, em 1543, desenvol
veu-se a idéia de que Moscou estava destinada a ser a “tercei
ra Roma", liderando o mundo cristão a partir do leste. No
século XIX, um influente grupo de pensadores eslavófilos ar
gumentava numa linha semelhante, dando a entender que a
diferença da Rússia em relação ao Ocidente era uma virtude.
72
nismo não são mutuamente excludentes uniram forças,
-
73
Ao contrário do que pensa a maioria dos historiadores
ocidentais, são poucos os fatores de continuidade ligando o
czarismo ao bolchevismo. Lenin chegou ao poder em conse
qüência de uma conjunção de acidentes. Se a Rússia tivesse se
retirado da Primeira Guerra Mundial, os alemães não tives
74
Lenin expôs sua visão da sociedade que pretendia promo
ver em seu livro Estado e revolução. Escreveu esse panfleto
utópico em agosto-setembro de 1917, quando estava na clan
destinidade na Finlândia durante o governo provisório russo,
e pretendia publicá-lo sob pseudônimo. A história caminhou
mais rapidamente do que ele esperava e os primeiros exem
plares saíram com seu nome em 1918, publicando-se uma
segunda edição um ano depois. Lenin conferia certa impor
tância a esse livro, dando instruções para que, se fosse mor
to, viesse a ser publicado a qualquer custo. É, ainda hoje, o
melhor roteiro do futuro por ele descortinado.
Estado e revolução assenta raízes profundas no pensamento
de Marx. Citando a idéia da ditadura do proletariado cunhada
por Marx numa carta de 1852, Lenin invoca a Comuna de
75
inimigos. Também aqui, Lenin apenas repetia Marx. Em seu
discurso perante a Liga Comunista em Londres em março de
1850, Marx e Engels deixam claro que o terror seria parte
integrante da revolução:
- sustentasse que
76
tentativa de assassinato a 30 de agosto de 1918, a Cheka -
a
77
do aparato penal e de segurança da Rússia czarista e o do que
foi instaurado pelos bolcheviques. Em 1895, o Okhrana (De
partamento de Polícia) tinha apenas 161 funcionários em tem
po integral. Em outubro de 1916, pode ter chegado a um total
de cerca de 15.000, incluindo funcionários alocados em ou
78
na Grã-Bretanha e outros países europeus. Só depois da to
mada do poder pelos bolcheviques, no entanto, é que os inte
lectuais russos foram submetidos a deportações em massa.
No outono de 1922, dois navios deixaram Petrogrado levan
do alguns dos membros mais criativos da intelligentsia russa
escritores, filósofos, críticos literários, teólogos, historia
dores e outros -, designados por Lenin para a emigração
involuntária. Detidas pela polícia política, a GPU, essas emi
nentes personalidades russas foram deportadas (juntamente
com suas famílias) por não estarem sintonizadas com o novo
regime. O episódio passou praticamente despercebido na época
e mal chegou a ser mencionado durante a Guerra Fria. Os
intelectuais expulsos estabeleceram-se em Paris, Berlim, Pra
ga e outras cidades européias, chegando alguns deles — como
Nikolai Berdiaev - a iniciar uma nova vida, ao passo que
muitos outros mergulhavam na pobreza e na obscuridade.
Lesley Chamberlain, responsável pelo primeiro levantamen
to abrangente das deportações em massa, observa que esse
esquecimento "é tanto mais surpreendente por ter sido o pró
prio Lenin, o líder dos bolcheviques e fundador da União So
viética, que planejou a deportação e escolheu nominalmente
muitas das vítimas". Ela acrescenta: "Embora jamais pudes
sem imaginar-se nessa condição, os intelectuais expulsos em
1922 foram os primeiros dissidentes do totalitarismo sovié
tico."25 Um comentário que bem captura o caráter inovador
do regime leninista.
79
tradicionais, e de que certamente careceram os czares. Já se
observou, de forma procedente, que, "antes do surgimento
de Estado-partido soviético, eram poucos ou inexistentes, na
história, os precedentes de um sistema milenarista centrado
na segurança".26 Chamar o Estado soviético de tirania é aplicar
uma tipologia antiga a um sistema radicalmente moderno.
Tal como os próprios bolcheviques, a opinião pública oci
dental viu no regime soviético uma tentativa de concretizar
os ideais da Revolução Francesa. Não deixa de ser eloqüente
que o comunismo soviético se tenha revelado mais popular
no Ocidente quando o terror estava em seu auge. Depois de
visitar a União Soviética em 1934 - quando cerca de cinco
milhões de pessoas morreram no surto de fome na Ucrânia —,
Harold Laski, intelectual britânico de inclinações trabalhis
tas, declarou: "Nunca na história o homem alcançou o grau
de perfeição atingido no regime soviético." No mesmo espíri
to, o conhecido casal de fabianos Sidney e Beatrice Webb pu
blicou em 1935 um livro intitulado Comunismo soviético: Uma
80
Na maioria dos casos, a opinião pública ocidental via na
União Soviética stalinista uma imagem de suas próprias fan
tasias utópicas, tendo projetado a mesma imagem na China
maoísta, onde o custo humano do comunismo foi ainda
maior. Cerca de 38 milhões de pessoas morreram no Grande
Salto à Frente entre 1958 e 1961. Escreveram Jung Chang e
Jon Halliday: "Foi o maior surto de fome do século XX -
e de toda a história humana registrada. Mao deliberadamente
submeteu à fome e levou à morte esses milhões de pessoas. "28
Tal como acontecera na União Soviética, foram os camponeses
que mais sofreram com uma política. alheia às tradições
-
81
foi durante a Revolução Cultural -
um verdadeiro frenesi de
massa instigado politicamente, com inegável dimensão mile
narista- que o regime alcançou seu maior nível de popula
-
82
final do czarismo apresentava muitos vícios houve, por
exemplo, muitos pogroms —, mas globalmente se compara
favoravelmente com muitos países do mundo hoje em dia e
83
,
sua
Embora
visão
do
Marx tivessecomunismo
érepudiado
utópico
o pensamento
profundamente
utópica
.Como ob
servei no capítulo anterior, ninguém jamais será capaz de pla
.
nejarMas
oo
encaminhamento
caráterutópico
futuro
do ideal
avançada
dede
uma Marx
economia
nãodecor e apenas
das exigências impossíveis com que defronta a capacidade dos
planejadores. Tem a ver com o choque entre o ideal de har
monia e a diversidade dos valores humanos. O planejamento
central envolve enorme concentração de poder, sem a contra
partida como deixou claro Lenin em sua definição "cientí
fica" da ditadura do proletariado de qualquer controle
institucional. Um sistema de governo arbitrário como este
está fadado a encontrar resistência. Os valores do regime cer
tamente não serão compartilhados por todos nem sequer pela
maioria. A maioria dos indivíduos continuará apegada a coi
sas religião, nacionalidade ou família consideradas
-
84
repressão ou derrota. O utopismo não causa o totalitarismo
para que surja um regime totalitário, são necessários mui
tos outros fatores, mas o totalitarismo sempre sobrevém
quando o sonho de uma vida sem conflito é persistentemen
te perseguido mediante o uso do poder de Estado.
Os bolcheviques eram praticantes daquilo que Karl Popper
definia como engenharia social utópica, que tem o objetivo
de reconstruir a sociedade promovendo de uma só vez a mu
85
Destruir uma ordem social vigente em nome de um ideal
86
O norte resistia com todas as suas forças a essa obra do
homem, rejeitando os cadáveres em suas entranhas. Derro
87
que de Khruschev ao "culto da personalidade" stalinista no
congresso do partido em 1956; mas quando foi feita uma ten
tativa sistemática de reformular a União Soviética, no governo
de Mikhail Gorbatchev, ela entrou em colapso. A essa altura,
o sistema soviético era uma casca vazia sustentada pela cor
O NAZISMO E O ILUMINISMO
88
entanto, os nazistas não vieram de uma terra distante. Pros
perando no caos do período entre-guerras, eram movidos por
crenças que circulavam na Europa havia muitos séculos. Os
crimes do nazismo não podem ser explicados (como houve
quem tentasse explicar os crimes do comunismo) como ma
nifestações de atraso. Provinham de algumas das mais caras
tradições da Europa, promovendo algumas de suas idéias mais
avançadas.
89
momento um todo orgânico e poderia voltar a sê-lo no futuro.
Os pensadores românticos tinham idéias diferentes sobre o
lugar e o momento em que essa sociedade orgânica existira:
90
Se os pensadores iluministas compartilhavam algumas da
piores idéias do contra-iluminismo, o contra-iluminismo con
tinha, por sua vez, muitos elementos que iam de encontro à
ideologia nazista. Veja-se por exemplo o caso de Herder e de
Maistre. Ambos rejeitavam o projeto iluminista, mas nenhum
dos dois poderia ser considerado protonazista. Herder nunca
aceitou qualquer tipo de hierarquia entre as culturas ou ra
ças (como faziam alguns dos mais importantes pensadores
do Iluminismo). Pelo contrário, sustentava que existem mui
tos culturas, cada uma delas à sua maneira única, não po
dendo em seu conjunto ser avaliadas numa única escala de
valores. De Maistre teria ficado horrorizado com o ateísmo
91
Nietzsche nunca se esquivou completamente à visão de mun
do cristã-humanista que atacava. Seu conceito de Super-ho
mem mostra que tentava construir um novo mito redentor
que conferisse sentido à história, da mesma forma como vi
nham tentando fazer outros pensadores iluministas. Como
observou, no entanto, o crítico fin de siècle vienense Karl Kraus,
92
Os positivistas franceses foram dos pensadores iluministas
mais influentes e eram rematados antiliberais.44 Os funda
dores do positivismo, Henri de Saint-Simon e Auguste Comte,
buscavam uma sociedade semelhante à que existia (segundo
imaginavam) na Idade Média, mas antes baseada na ciência
que na religião revelada. Saint-Simon e Comte encaravam a
história como um processo no qual a humanidade passava
por sucessivos estágios, do religioso ao metafísico e em se
guida ao científico ou "positivo". Nesse processo, havia fases
"orgânicas" e "críticas", períodos de existência de sociedades
bem estruturadas e outros em que a sociedade se encontrava
93
mas na convicção de que, à medida que avançava o conheci
mento humano, os conflitos humanos haveriam de desapare
cer. A ciência revelaria os verdadeiros fins da ação humana, que
haveriam de revelar-se harmoniosas embora nunca se ex
plicasse por quê. Era a idéia utópica arquetípica em roupagem
moderna e de enorme influência. No fim do século XIX, ela
-
94
As idéias de uma natural desigualdade entre os homens
não constituem aberrações na tradição ocidental. Uma cren
95
Certos luminares do Iluminismo deixaram bem explícita
sua convicção a respeito da desigualdade natural, chegando
alguns a sustentar que a humanidade continha várias espé
cies diferentes. Voltaire era adepto de uma versão secular da
teoria pré-adamita enunciada por certos teólogos cristãos,
segundo a qual os judeus eram pré-adamitas, remanescentes
de uma espécie mais antiga, anterior à criação de Adão. Foi
Immanuel Kant - a suprema personalidade iluminista depois
de Voltaire, e, ao contrário dele, um grande filósofo -
que
96
decorrente de um atraso cultural (como se supunha no caso
dos asiáticos), o remédio era sempre o mesmo. Todos eles de
viam ser transformados em europeus, se necessário pela força.
Idéias dessa natureza são encontradas em muitos pensa
dores do Iluminismo. Costuma-se argumentar, em seu favor,
que eles eram homens de sua época, o que não chega a ser
uma defesa das mais convincentes. Esses pensadores ilumi
nistas não só davam curso aos preconceitos de sua época -
pelo que poderiam ser perdoados, não alegassem com tanta
freqüência ser mais sábios que seus contemporâneos -, como
-
invocavam a autoridade da razão. Antes do Iluminismo, as
97
ao progresso e uma candidata à eliminação. Ao se perguntar
qual seria o destino do Estado mundial de "magotes de gente
negra, amarela e mulata que não alcança as exigências da efi
ciência", H. G. Wells respondeu: "Bem, o mundo não é uma
98
Vendo que Hitler oferecia-lhes uma oportunidade única de
pôr em prática suas idéias, destacados higienistas raciais co
meçaram a sintonizar suas doutrinas com as dos nazistas,
em terrenos nos quais não havia convergência até então. Uma
99
Os oitenta mil pacientes de hospitais psiquiátricos mor
tos com gases foram assassinados em nome da ciência. Os
100
moderna pseudociência. Ainda assim, não se pode explicar o
Holocausto apenas em termos de ideologia racista. Nenhum
outro grupo foi designado para um extermínio total, ne
nhum outro foi perseguido de forma tão sistemática. Fos
sem médicos ou poetas iídiches, professores universitários ou
hassídicos, cientistas, artistas ou comerciantes, homens,
101
Como os movimentos milenaristas da época medieval, o
nazismo surgiu contra um pano de fundo de desequilíbrios
sociais. O desemprego em massa, a hiperinflação e o impacto
humilhante da Grande Guerra geraram entre os alemães uma
dolorosa sensação de insegurança e perda de identidade.
Michael Burleigh considera que o conflito de 1914-18
102
uma Idade Heróica ou de Ouro, uma época de Comunismo
Primitivo ou resplandecente Virtude varonil. O Futuro é a
Sociedade sem Classes, a Paz Eterna ou a Salvação pela Raça
o Reino do Céu na Terra.58
103
Eu me ergo, eu tenho poder
104
conteúdo. A escatologia dos nazistas pode ter sido menos im
105
seu encontro com Hitler em 1922, desagradou-lhe profun
damente o "primitivismo proletário" do líder nazista. Pos
teriormente, os nazistas repudiariam as idéias de van den
Bruck, mas uma cópia autografada de seu livro foi encon
trada no bunker de Hitler, e por um certo período van den
Bruck contribuiu com um esquema de idéias que combina
106
cristianismo joanino de Fichte, Hegel e Schelling". Assim
resumia ele esses desdobramentos: "O super-homem assi
nala o fim do caminho em que encontramos figuras como
o 'homem divinizado’ dos místicos ingleses da Reforma (...)
107
O TERROR E A TRADIÇÃO OCIDENTAL
Olivier Roy64
108
aiatolá Khomeini como líder dos fundamentalistas iranianos
109
ções apocalípticas do presidente Ahmadinejad, do Irã, são uma
manifestação dessa visão da história.
Nessa maneira de encarar a história, o islã está em sintonia
com o cristianismo e os credos seculares do Ocidente moder
110
quilamento da Casa de Saud. Os movimentos islâmicos bus
cam a destruição de regimes seculares como a Síria e o Iraque
baathistas (sendo que neste último caso o trabalho de des
truição foi assumido pelos invasores liderados pelos ameri
canos). A organização sunita palestina Hamas começou
atacando a Fatah e a OLP, ambas de orientação secular. Na
medida em que os Estados Unidos se envolvem nessas lu
tas, os movimentos islâmicos são arrastados a um conflito
formados a respeito:
bíblico americano.68
111
Se os governos ocidentais sempre foram capazes de usar
os islâmicos como aliados é em parte porque estes não viam
a potência ocidental como seu principal inimigo. Embora desse
acolhida à al-Qaeda, o regime dos talibãs não estava em guerra
contra o Ocidente, mas contra o povo e a cultura do Afeganistão
-proibindo cantos de pássaros e empinar papagaios porque
afastavam a população da observância religiosa e rejeitando
a autoridade das leis tribais. Os talibãs foram uma manifes
tação extrema do "salafismo", a família de movimentos fun
damentalistas que propõe o retorno à pureza original do islã.
Em outros países, como o Iêmen (onde seus seguidores criti
cam os privilégios concedidos aos descendentes do profeta) e
a Arábia Saudita (onde uma outra versão do mesmo movi
mento se configura no poderoso clero wahabita), o salafismo
se tem mostrado fortemente hostil às culturas locais. Onde
quer que se tenha enraizado, o salafismo tenta conter a in
fluência do sufismo, que se mostra mais tolerante com as
práticas autóctones.
Em todas as suas manifestações, o islã radical é um mo
vimento de rejeição das culturas tradicionais, sejam islâmicas
ou "ocidentais". Os islamistas falam da restauração de um
califado, forma islâmica de governo que afirma remontar ao
profeta (embora a sucessão tenha sido contestada praticamen
te desde o início) e cuja última manifestação ocorreu no Im
pério Otomano. Mas os movimentos islâmicos recrutam
alguns de seus membros mais ativos em sociedades altamente
avançadas, particularmente entre muçulmanos desenraizados
da Europa ocidental. O islamismo é um subproduto dos con
flitos que acompanham a aceleração da globalização.6⁹
Ainda pode ocorrer um confronto de civilizações, mas
encarar o islã radical em termos de conflitos culturais con
112
objetivo tradicional o ummah, ou comunidade universal
-
113
rupturas sociais de grande alcance. Os crimes do século XX
não eram inevitáveis. Envolveram as mais variadas formas
de acidentes históricos e decisões individuais. Mais uma vez,
114
3
Reinhold Niebuhr¹
115
tomar as instituições ocidentais como modelo. E, no entan
116
como ordenação divina transformou-se numa ideologia se
cular do progresso universal que no fim do século XX veio a
ser abraçada por instituições internacionais.
A convicção de que a humanidade estava entrando numa
nova era não começou nas camadas mais altas da política
mundial. Tão danosa em seu utopismo quanto qualquer an
117
Thatcher só se tornou neoliberal pelo fim da década de
1980, mas as origens do período neoliberal na Grã-Bretanha
estavam na crise econômica dos anos 1970. O neoliberalismo
118
na Grã-Bretanha. À medida que impelia forças de mercado
em todos os setores da vida britânica, com o objetivo de "fa
zer recuarem as fronteiras do Estado", o Estado tornava-se
cada vez mais forte. Exatamente como a construção do livre
119
recriar esse idílio perdido era incrivelmente paradoxal. A Grã
Bretanha conservadora dos anos 1950 era um subproduto
do coletivismo trabalhista. Thatcher arrasou as bases do país
120
não tivesse convocado eleições para saber quem deveria go
vernar o país, com isto perdendo o apoio de boa parte de seu
partido; se o presidente do partido, o prócer da velha guarda
Willie Whitelaw, não se tivesse mantido leal a Heath, recu
sando-se a assumir a liderança; se o irrequieto parlamentar e
ideólogo de direita Keith Joseph não tivesse dado a entender
publicamente que era favorável a uma política de eugenia para
desestimular os pobres de ter filhos, com isto se desqualifi
cando de uma eventual candidatura à liderança do partido;
se o ex-presidente do partido Edward du Cann não tivesse re
pentinamente retirado sua candidatura; se a campanha de
Thatcher pela liderança não tivesse sido habilmente orques
trada pelo parlamentar Airey Neave, especialista em opera
ções especiais e fugitivo de guerra que viria a ser assassinado
pelo IRA- se qualquer dessas circunstâncias tivesse sido di
ferente, Thatcher muito provavelmente não se teria tornado
líder do Partido Conservador. Por outro lado, se o primeiro
ministro trabalhista James Callaghan não tivesse retardado
a convocação de eleições gerais até 1979, quando o governo
se tornara profundamente impopular, ou se Thatcher não
tivesse sido assessorada em matéria de relações públicas pela
empresa de publicidade dirigida por Charles e Maurice Saatchi,
responsável pelo arrasador lema de campanha “O trabalhismo
não está funcionando". possivelmente ela não teria se tor
nado primeira-ministra.
A chegada de Thatcher ao poder foi um mero acaso. Uma
121
na primavera de 1974, o conturbado inverno em que o go
122
documento, "Stepping Stones", no qual estabelecia os objeti
vos com os quais ela chegaria ao poder.4 Era um diagnóstico
das forças subjacentes ao impasse em que a Grã-Bretanha se
encontrava, recomendando a sujeição do poder sindical, o con
trole da inflação e a promoção de orçamentos equilibrados.
Figura arquetípica do primeiro thatcherismo, Hoskyns osten
tava as características dessa corrente, bem resumidas por
Hugo Young: "Uma visão radicalmente pessimista do passado,
um otimismo milenarista a respeito do futuro e a crença nos
imperativos empresariais como único agente da recuperação
econômica."5 Essas atitudes distinguiam Thatcher das outras
lideranças de seu partido e do resto da classe política britâni
ca na época. Desde o início ela ostentava virtudes missionárias;
mas nos primeiros tempos não pretendia salvar o mundo, só
a Grã-Bretanha.
123
Margaret Thatcher não foi a primeira entre os líderes po
líticos britânicos a reconhecer que o consenso do pós-guerra
deixara de ser viável. Foi Denis Healey, o ministro da Fazenda
no governo trabalhista de James Callaghan, quem instaurou
este fato no centro da política britânica. No meado da década
de 1970, Healey tentou convencer seu partido de que o con
senso do pós-guerra não funcionava mais, mas os fortes vín
culos do trabalhismo com os sindicatos e a oposição da maior
parte de seus membros impediram a mudança de política por
ele pretendida. Thatcher também enfrentou forte oposição.
Sua maior prioridade era modificar o sistema de barganha
salarial coletiva que governava boa parte da indústria britâ
nica. Para isto, deu-se um confronto com os sindicatos, que
124
ela passara a se considerar a encarnação da nação. Ao con
trário do general, lançou-se num amplo ataque às institui
ções nacionais. Desprezava especialmente os governos locais
e, induzida pelos think thanks de direita, adotou um "imposto
de capitação", um tributo individual cobrado pelos municí
pios que se tornou extremamente impopular. O imposto de
capitação lançou sérias dúvidas sobre a liderança de Thatcher
em seu próprio partido e na opinião pública, mas sua hosti
lidade à Europa pode ter sido um fator de maior peso no golpe
que levou à sua queda em 1990. Foi o radicalismo irracional
de sua política européia que levou Geoffrey Howe a renunciar
ao cargo de vice-primeiro-ministro, ocasionando o lançamen
to da candidatura de Michael Heseltine à liderança do parti
do. Foi a hostilidade à posição pró-européia de Heseltine que
levou a ala thatcherista do partido a tentar de todas as for
mas impedir que ele assumisse a liderança, o que resultou
na eleição de John Major. Foi a tentativa de Major de melho
rar as relações com a Europa que o levou a aderir ao Meca
nismo Cambial Europeu numa taxa desfavorável — decisão
que teve efeitos negativos para o país quando a libra esterli
na foi excluída do mecanismo na "Quarta-feira Negra", em
setembro de 1992. O governo de Major nunca se recupera
ria, teve início uma verdadeira guerra civil entre os conser
vadores europeus e o Partido Conservador transformou-se
125
obstáculo para o sucesso eleitoral era o próprio conserva
dorismo. A Grã-Bretanha pós-Thatcher é uma sociedade
menos coesa, mas também mais tolerante despreocupada
de "valores de família", menos maciçamente homofóbica,
menos profundamente racista e (apesar de nitidamente mais
desigual) não tão obcecada com questões de classe. Embora
relegasse Thatcher aos livros de história, Cameron aceitou a
sociedade que ela sem querer ajudara a criar. Ao enterrar
Thatcher ao mesmo tempo que aceitava a Grã-Bretanha
pós-Thatcher, ele tornou seu partido mais uma vez uma al
ternativa viável de poder.
Embora fosse apenas um episódio no microcosmo da po
lítica britânica, o aniquilamento do conservadorismo resul
tante das políticas thatcheristas fazia parte de uma tendência
mais ampla. A aplicação das idéias neoliberais provocou uma
reação em muitos países. Na Polônia e na Hungria pós-co
munistas, o triunfo da nova direita foi seguido de uma ressur
gência da velha direita, a qual, mesmo atacando os excessos
do livre mercado, reanimou alguns dos piores temores do
126
de nível médio cujo trabalho pode ser feito por salários me
nores nas economias emergentes. Identificando-se com esses
grupos, a direita radical tem conseguido orientar a agenda
política em muitos países, mesmo naqueles — como a França
e a Áustria nos quais declinou em termos eleitorais. Em
países sem tradição política de extrema direita, surgiram no
vos tipos de populismo. Na Holanda, o antigo político mar
xista Pim Fortuyn, assassinado por um militante dos direitos
dos animais, encarnava uma mistura de libertarismo em
127
Até então reformista, ela se transformou em uma ideóloga.
128
pós-comunistas emissários levando em suas pastas o mesmo
projeto de constituição. Por mais discrepantes que fossem em
relação as realidades dos países visitados, esses ideólogos neo
liberais tentavam impor a todos o mesmo modelo.
129
mundial. O pensamento realista foi posto fora de combate
pela volta ao poder de uma ideologia que havia sido descar
tada mais de um século antes.
130
tados de 11 de setembro resvalou decisivamente para o neo
conservadorismo.
131
baseada nas trocas de mercado mas tinham uma clara
132
Smith não acreditava muito em esquemas de reforma do
mercado. Suas esperanças de concretização dessa Utopia re
pousavam em suas crenças religiosas.
Smith tinha pouco em comum com evangelistas secula
res do livre mercado como Hayek e Friedman. Considerava o
surgimento da sociedade comercial como obra da divina pro
vidência. Sua concepção da "mão invisível". um sistema de
-
133
Existe uma concepção da providência por trás da idéia de
um sistema natural de liberdade enunciada por Smith, e o pen
samento liberal como um todo é determinado por crenças cris
134
decididamente cristã em suas convicções, Spencer tornou-se
135
fim do século XIX. Sua teoria da evolução social tentava ex
136
política é uma ciência com leis universais, exatamente como
as ciências naturais, enquanto a Escola Austríaca considera
va que os métodos das ciências naturais não podem ser apli
cados à sociedade. Era uma discordância fundamental, que,
no entanto, não comprometia de maneira alguma seu entu
siasmo pelo livre mercado; este era, em seu credo, um pres
suposto que não podia ser questionado. Não importava como
fosse justificado.
137
o filósofo da ciência Michael Polanyi - que visitou a Univer
sidade de Chicago no início da década de 1950, quando Hayek
lá ensinava-, Hayek sustentava que o conhecimento da so
ciedade traduz-se essencialmente nas práticas. O mecanismo
dos preços é uma resposta a esse problema, permitindo-nos
fazer uso de conhecimentos dispersos que não estão integral
mente ao alcance de ninguém. Hayek fechava os olhos às dis
torções a que tendem os mercados livres e exagerava ao
afirmar que o planejamento econômico centralizado é im
possível: a economia britânica direcionada funcionou muito
bem durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Mas
distinguia um obstáculo insuperável ao tipo de planejamen
to econômico preconizado por Marx e tentado no bloco sovi
ético, na China maoísta, em Cuba e outros países comunistas.
Mesmo nos casos em que alguns dos objetivos dos plane
jadores eram alcançados como em determinados setores
do complexo industrial-militar soviético —, era sempre con
-
138
processos de mercado. Os mercados estão sujeitos a ciclos de
expansão e contração e a colapsos recorrentes. Keynes e outros
139
e (embora isto não fosse reconhecido com freqüência) as
corporações monopolísticas. O que só podia ser feito por um
Estado altamente centralizado.
140
Hayek freqüentemente é comparado a Edmund Burke, o
parlamentar de origem irlandesa que no século XVIII fundou
141
uma teocracia popular, a América, uma combinação de
mercados livres com protecionismo e capitalismo clientelista,
a Rússia, uma versão ultramoderna do autoritarismo, a Eu
142
UM NEOCONSERVADOR AMERICANO
EM DOWNING STREET
Tony Blair¹7
143
mercado, Blair privou os conservadores da ameaça que por
sucessivas gerações tivera para eles valor definidor. Em con
seqüência, mergulharam na confusão por quase uma década.
Embora fosse uma decisão estratégica, a adesão de Blair
às políticas econômicas neoliberais logo adquiriria contornos
ideológicos. Mais convencional em suas idéias sobre as ques
tões internas que a maioria dos políticos e dotado de memó
ria histórica ainda mais curta, Blair abraçou sem qualquer
questionamento a crença neoliberal de que apenas um único
sistema econômico pode gerar prosperidade no contexto
moderno tardio. A modernização tornou-se o mantra do blai
rismo, e para Blair significava algo muito preciso: a reorgani
zação da sociedade em torno dos imperativos do livre mercado.
Quando ainda estava na oposição, Blair tentava atrair con
servadores insatisfeitos apresentando-se como um tóri da
Nação Unificada um conservador progressista que acei
tava o papel central do mercado, mas também entendia a im
144
mesmo tempo, era um sinal de que viriam gestos ainda mais
importantes de contestação da herança social-democrata do
trabalhismo. Blair levou adiante o projeto de privatização que,
partindo do programa original de Thatcher, havia chegado a
áreas centrais do Estado, como setores do sistema judiciário e
do carcerário, inserindo mecanismos de mercado no Serviço
145
O maior talento de Blair era a capacidade de usar as téc
nicas de relações públicas e sua sensibilidade às oscilações da
opinião pública. Essas características levaram certos observa
146
vital da coesão social ponto de vista manifestado no apoio
de Blair às escolas ligadas a instituições religiosas.
Acima de tudo, os neoconservadores não se dispõem a
contar com a evolução social. Em geral mais inteligentes que
os neoliberais, eles entendem que embora o capitalismo seja
uma força revolucionária capaz de subverter estruturas so
ciais estabelecidas e derrubar regimes, isto não acontece por
si só: é necessário o poder de Estado, e às vezes também a força
militar, para apressar o processo. Em seu entusiasmo pela mu
dança revolucionária, o neoconservadorismo tem mais em
comum com o jacobinismo e o leninismo do que com o neoli
beralismo ou o conservadorismo tradicional. A idéia que
geralmente se tem de Blair como um criptotóri não poderia
ser mais equivocada. Não há nele qualquer traço do ceticis
147
Blair temia as conseqüências de uma oposição à política ame
ricana, refém da fantasia de que, como aliada incondicional
da América, a Grã-Bretanha teria como firmar melhor sua
posição no sistema internacional. A tentativa de Anthony
Eden, em 1956, de derrubar o presidente egípcio Nasser e res
tabelecer o controle britânico no canal de Suez acabou com
148
Que convicções eram essas? Num período de seis anos,
Blair levou a Grã-Bretanha à guerra cinco vezes. Aprovou os
ataques aéreos contra Saddam Hussein em 1998, a guerra
em Kosovo em 1999, a intervenção militar britânica em Ser
149
O discurso de Blair reflete o clima intelectual irrealista da
tros protagonistas.
A idéia de que o Estado soberano estava chegando ao fim
era absurda, mas servia aos interesses de Blair. Para começar,
combinava com sua visão de mundo, que encara o progresso
humano como uma série de etapas, cada uma melhor que
anterior. Trata-se de uma variante de coloração whig da fé na
providência abraçada por Blair no contexto de sua visão de
mundo cristã. Não teria cabimento levar muito a sério a
150
determinada pelo senso comum de sua época. Ele nunca teve
dúvidas de que a globalização estivesse criando uma econo
mia de mercado mundial que no fim das contas teria de ser
complementada por uma democracia global. Quando falava
da necessidade de uma progressiva "reforma econômica". -
151
A idéia de que o sistema internacional se encaminhava
152
preciso lutar por eles e defendê-los. Nesse momento de alvo
recer de uma nova era, chegou a hora de lutar por eles nova
mente."22 Blair voltaria ao assunto em janeiro de 2007, ao
afirmar: "O terrorismo destrói o progresso. O terrorismo não
pode ser derrotado apenas por meios militares. Mas não pode
ser derrotado sem eles. "23
Por trás da visão das relações internacionais sustentada
por Blair está uma visão da América. Assim como seus com
panheiros de neoconservadorismo em Washington, Blair
considera a América o paradigma da sociedade moderna.
Impulsionada pela dinâmica histórica, ela é invencível. Ao
apoiar o governo Bush no Iraque, Blair se convencia de estar
contribuindo para a causa do progresso humano, ao mesmo
tempo que se confortava com a idéia de estar do lado do mais
forte. Sua crença na invencibilidade americana era equivoca
da. A derrota da América pela insurgência iraquiana de modo
algum era inesperada. Os franceses foram expulsos da Argé
lia apesar de moverem uma guerra implacável e contarem com
o apoio de mais de um milhão de colonos franceses. Em
condições mais semelhantes às enfrentadas no Iraque pelas
forças americanas, os soviéticos também foram expulsos do
Afeganistão. A lição da guerra assimétrica na qual os mi
-
153
pela crença de que a história estava do seu lado. Na verdade,
sabia muito pouco de história, e o que sabia, não aceitava,
quando ia contra suas expectativas. A história só tinha valor
e significado como registro do progresso humano. Recorrer a
ela para moderar ambições presentes era impensável, até
mesmo imoral. Como Bush, Blair encarava a história como
mente foi o homem moderno que alegava ser: para ele, basta
a certeza subjetiva para que um ato esteja correto. Se for ne
cessário recorrer à fraude para concretizar os desígnios pro
videnciais, ela não será realmente fraudulenta.
154
mações de inteligência a respeito da capacitação e das inten
ções do Iraque no que dizia respeito às ADM; mas entrava
em contradição com anteriores avaliações de inteligência. Em
março de 2002, um relatório da Comissão Mista de Inteli
gência, que concentra as informações de todos os serviços de
inteligência do Reino Unido, concluía "não haver provas de que
Saddam Hussein representa uma ameaça consideravelmente
maior que em 1991, depois da guerra do golfo Pérsico". Além
disso, embora o dossiê alegasse basear-se em fontes de inteli
gência, 90 por cento de seu conteúdo eram copiados de três
artigos publicados. Num deles, o conteúdo foi alterado para
dar a entender que o Iraque apoiava grupos terroristas islâ
micos como a al-Qaeda — alegação sem fundamento e ainda
155
documento "Opções para o Iraque", apresentado a 8 de março
de 2002 pela Secretaria de Defesa e Ultramar do Gabinete,
analisava os elementos reunidos e concluía inequivocamente:
156
O planejamento secreto da invasão parece ter começado
na América meses ou semanas depois dos atentados terroris
tas de 11 de setembro, no fim de 2001, e para Blair ficou claro
que Bush pretendia entrar em guerra com o Iraque ao visitá
lo em Camp David em abril de 2002. Um memorando do
ministro de Relações Exteriores, Jack Straw, enviado a Blair a
25 de março de 2002, durante os preparativos para a visita,
observava que, embora parecesse claro que Bush já havia se
decidido, as justificativas para uma guerra eram precárias:
Saddam não ameaçava os países vizinhos e a capacitação de
seu regime em matéria de ADM era menor que a da Líbia, da
Coréia do Norte ou do Irã. Apesar disso, Blair ofereceu total
apoio a Bush quando se encontraram em Camp David. Em
reunião realizada na sede do governo britânico, em Downing
Street, às 9 horas da manhã do dia 23 de julho de 2002, cujos
detalhes viriam posteriormente a público no "Memorando de
Downing Street", Blair ouviu de "C" o chefe do Serviço
Secreto de Inteligência M16, Sir Richard Dearlove, que recen
temente mantivera entendimentos em Washington com o di
retor da CIA, George Tenet — que uma iniciativa militar contra
Saddam era "considerada inevitável" e que "os fatos e dados
de inteligência estavam sendo estabelecidos em função da po
lítica a ser adotada".28 Em certa medida para aplacar as rea
ções no Partido Trabalhista, Blair convenceu Bush a solicitar
157
isentar as tropas britânicas de participação na invasão. Blair
rejeitou a oferta, insistindo em que estava totalmente compro
metido.30 Perante a Câmara dos Comuns, contudo, continuou
fingindo que a guerra ainda podia ser evitada, até a crucial
votação de 18 de março (dois dias antes do início da guerra).
A conivência de Blair com a impostura nos preparativos
para a guerra fez com que ganhasse fama de mentiroso, o
que é um equívoco. A questão não é tanto ser ele econômico
com a verdade, mas carecer de um entendimento normal da
verdade. Para ele, verdade é qualquer coisa que sirva à causa,
e ao se envolver em atos normalmente considerados fraudu
158
se afastaram da verdade. O que distinguia Blair era o fato de
considerar a manipulação da opinião pública como objetivo
supremo do governo. O resultado foi que, embora no passa
do a mentira fosse uma característica eventual do governo,
sob sua liderança ela se tornou parte integrante de seu fun
31
cionamento. 3¹ Escrevendo sobre o papel da mentira na políti
ca soviética, o pensador político francês Raymond Aron
observou:
159
de fato, mas como inevitavelmente viria a ser, segundo acre
ditavam. Era um absurdo referir-se à União Soviética como
uma democracia. Não é menos absurdo afirmar que o Iraque
é uma democracia liberal em emergência e referir-se ao país
como o lugar onde a guerra contra o terrorismo global está
sendo vencida. Na realidade concreta, o Iraque é um Estado
fracassado, e se existe nele algo que possa ser considerado uma
democracia, está fazendo de tudo, na verdade, para gerar
uma teocracia de estilo iraniano. Da mesma forma, os fatos
nos dizem que a invasão liderada pelos Estados Unidos trans
formou o país num campo de treinamento de terroristas. Blair
não se limitou a ocultar esses fatos. Ele inventou uma pseudo
realidade com o objetivo de influenciar nossa maneira de pen
sar. Como no caso soviético, a pseudo-realidade não resistiu
ao teste da história. Os pavorosos fatos da vida no Iraque re
futam o dogma pós-moderno de que a verdade é uma cons
trução de poder. Embora ainda não tenham impregnado a
consciência de Blair, já chegaram à dos eleitores americanos,
o que o condena a passar o resto de seus dias como servidor
supérfluo de um governo fracassado.
Os contextos políticos em que Blair e Bush chegaram ao
poder não poderiam ser mais diferentes. Blair não era capaz
de mobilizar em seu apoio a fé religiosa popular arregimen
tada por Bush, e só pelo fim do seu período no governo co
meçou a surgir na Grã-Bretanha um movimento intelectual
neoconservador para dar sustentação a sua política externa
messiânica. Mas havia uma afinidade entre Bush e Blair. A
160
entrado numa era totalmente nova. Como Thatcher no fim
161
4
A americanização do Apocalipse
Thomas Paine¹
163
tanto caracteriza a política americana é uma decorrência dessa
antiga corrente.
O Estado que surgiu da guerra americana de independên
cia adaptou as tradições do governo inglês às condições de
uma luta pela autodeterminação nacional, traduzindo-as na
linguagem dos direitos universais. Os colonos americanos e
os homens que mais tarde transformaram o país numa re
pública independente achavam que era possível criar gover
nos invocando princípios fundamentais. Na realidade, tanto
seus princípios quanto a crença de que a história podia ser
recomeçada eram heranças do passado.
164
mas também advertia quanto ao terrível destino que lhe es
taria reservado se se afastasse da virtude:
165
via como "o Local da Terra que o Deus dos Céus designou"
como capital do reino milenar.4
Os movimentos declaradamente apocalípticos não se ex
tinguiram. Como vimos no Capítulo 1, a Grã-Bretanha do
início do século XIX assistiu ao movimento de massa lidera
do por Joanna Southcott, ao passo que o metodismo canali
zava uma forte corrente milenarista. Pela mesma época, as
idéias milenaristas assumiam formas mais seculares. Pensa
dores radicais como William Godwin e Thomas Paine refor
mularam a crença pós-milenarista de que o mundo podia ser
transfigurado pela ação humana, na forma da confiança
iluminista no progresso. Godwin o escritor anarquista
mencionado no Capítulo 1, que se casou com a feminista
Mary Wollstonecraft encarava a história como uma série
de etapas no desenvolvimento da razão humana, levando
afinal a um mundo que não mais precisaria de governo. Sua
166
Foi basicamente o papel formador da religião apocalíptica
na América que a impediu de estabelecer no Novo Mundo uma
variante da civilização européia. Sempre houve na América
quem a considerasse uma nação renovadora das conquistas
da Europa num nível mais elevado. Em sua biografia de Ben
jamin West, John Galt apresentava o grande pintor america
no do fim do século XVIII como responsável pela revivescência
de uma herança artística européia. A obra de West superava
qualquer realização européia, mas o declínio das artes na Eu
ropa era apenas "o magnífico presságio da glória que have
riam de alcançar em sua passagem para a América".5 Não
encontramos aqui a idéia de um novo começo representado
pela América. Em vez disso, mais ou menos à maneira como
os historiadores clássicos viam a história em termos cíclicos,
considera-se que a civilização européia ganhava nova vida em
terras americanas. Se esta visão tivesse prevalecido, a Améri
ca poderia ter gerado - como os países ao sul da fronteira —
uma nova versão do Velho Mundo. Mas a verdade é que pas
sou a se considerar diferente da Europa, uma nova civiliza
ção baseada em princípios universais.
Entre as idéias abraçadas pelos fundadores da nação ame
ricana estava a teoria política de John Locke, uma teoria do
governo como um contrato social destinado a proteger direi
tos naturais. Ao contrário de praticamente todos os Estados
que existiram, os Estados Unidos foram fundados com base
numa ideologia, e neste fato é que residiria sua novidade. A
teoria política de Locke atendeu bem aos interesses america
nos na guerra de independência. Já se mostrou menos útil ao
ser aplicada à política externa, na qual sustenta a crença de
que a liberdade é uma condição que se manifesta simplesmente
pela abolição da tirania. Não obstante suas pretensões uni
versalistas, o pensamento de Locke é uma destilação de crenças
167
e valores que só fazem sentido em condições históricas espe
cíficas. Sua filosofia política depende sob todos os aspectos
da teologia protestante. Os direitos humanos decorrem de
nossos deveres para com Deus: não podemos dispor de nos
sas vidas, por exemplo, porque Deus nos criou e somos pro
priedade sua. Em Locke, a concepção do estado da natureza
expressa convicções cristãs sobre a criação e a propriedade
divinas do mundo. Seu ideal de governo limitado era uma
abstração derivada dos conflitos da Inglaterra setecentista. A
liberdade não é, como supunha Locke, uma condição huma
na primordial: onde se manifesta, ela é resultado de gerações
seguidas de construção das instituições. Mas na América a
idéia de uma liberdade natural tornou-se a base de uma reli
168
As instituições americanas mudaram menos nos últimos sé
Lieven observou:
169
(que cunhou a expressão), o excepcionalismo americano é
8
170
damente reacionário em questões de segregação racial, e, do
ponto de vista das Américas, as intervenções militares que
apoiou no México, por exemplo eram antes exercícios
-
dial. Nenhum dos dois tinha uma compreensão das forças que
assim liberavam: o nacionalismo étnico no primeiro caso, o
islamismo radical hoje. Persistira a convicção de que o Esta
do-nação americano construído à custa de muito derra
mamento de sangue - é uma receita padrão para a paz e a
liberdade em todo o mundo.
171
Crenças dessa natureza têm orientado as relações inter
nacionais da América tanto em períodos de isolamento quanto
em épocas nas quais o país se envolveu em movimentos de
intervenção em larga escala no exterior. É equivocado consi
derar como opostos esses dois modos, pois na América até o
isolacionismo tem um caráter evangélico. O isolamento e a
intervenção global constituem fases de um envolvimento
americano com o mundo que sempre se baseou em certa medi
da na fé. Essa fé muda de formato, tornando-se às vezes mili
tante e proselitista, e outras se expressando num nacionalismo
ensimesmado que teme envolver-se nas maquinações corruptas
do Velho Mundo. Este último tem prevalecido na maior parte
da história americana. Para muitos americanos, o espírito do
nacionalismo missionário não se traduziu fácil ou automati
172
revolucionária, e no espírito de muitos dos fundadores do país
a guerra revolucionária da América estava ligada à derruba
da do ancien régime. Se a convicção americana sobre uma
missão secular não é excepcional, tampouco o é a certeza de
ser uma nação escolhida por Deus. Crenças semelhantes têm
inspirado os africâneres holandeses da África do Sul, as co
munidades protestantes do Ulster, na Irlanda do Norte, assim
como alguns sionistas. ¹² E o mesmo se aplica a muitos rus
sos. A crença numa missão nacional determinada por Deus
constituía um elemento central do messianismo reacionário
abraçado no século XIX pelos eslavófilos, dos quais falamos
no Capítulo 2. O ponto que distingue a América de outros
países é a persistente vitalidade da crença messiânica e a in
tensidade com que continua a influenciar a cultura pública.
Têm ocorrido longos períodos de inatividade da tradição
apocalíptica. No entre-guerras, ela não chegou a mobilizar
nem mesmo contra o pano de fundo de uma Depressão ca
tastrófica. Tampouco foi revivida quando a América, em um
de seus gestos mais nobres, entrou para a Segunda Guerra
Mundial decisão tomada, no fim das contas, na estóica
admissão de que havia uma penosa missão a ser cumprida, e
não na expectativa de um mundo melhor. E apesar da para
nóia que então grassava, essas crenças também não tinham
força no início da Guerra Fria. Mais uma vez, aqui, o clima
na América era antes de resistir a um perigo manifesto do
que de reformular o mundo. O pensamento apocalíptico vol
tou a se manifestar mais para o fim da Guerra Fria, mas não
era uma força muito poderosa. Embora se referisse à União
Soviética como o "império do mal" e reafirmasse em seu úl
timo discurso a tese da América como uma "cidade numa
colina", exposta por Winthrop, Ronald Reagan não foi muito
influenciado em seu governo pela direita cristã. Até mesmo
173
na queda do Muro de Berlim, George Bush pai reagiu falan
do das dificuldades que viriam pela frente. Só com a chegada
de seu filho à presidência a religião começou a ocupar o cen
tro da política americana, e somente depois do 11 de setem
bro ela passou a determinar todo um amplo leque de políticas.
As referências de George W. Bush a certos países como ele
mentos de um "eixo do mal" talvez não sejam tão abertamente
apocalípticas quanto as afirmações de seu subsecretário de
Defesa, o general William Boykin, segundo quem "o inimigo
é um inimigo espiritual, seu nome é príncipe das trevas. O
inimigo é um sujeito chamado Satã". ¹³ O discurso de Boykin
causou polêmica, mas ele continuou trabalhando em questões
de inteligência no Pentágono, não obstante ter sido um ele
mento capital na transferência de métodos violentos de in
terrogatório de Guantánamo para Abu Ghraib. Não resta
muita dúvida de que ele representa uma visão de mundo com
partilhada por Bush. Encontramos muitos exemplos de ima
gens apocalípticas nos discursos de Bush. Discursando em
outubro de 2001 em resposta aos atentados terroristas de 11
de setembro, Bush fez numerosas citações bíblicas, usando
trechos do Apocalipse e de Isaías. Em discursos posteriores
sobre o aborto e o casamento gay, também havia alusões bí
blicas.¹4 Em 2003, meses depois da invasão americana do
Iraque, Bush disse ao primeiro-ministro palestino Mahmud
Abbas: "Deus me disse que atacasse a al-Qaeda, e foi o que
fiz, e depois me instruiu a atacar Saddam, e eu também o fiz."¹
"15
174
cristã de governo na qual cada aspecto da vida esteja subme
tido à lei divina, essa corrente considera que sua meta é “o
domínio do mundo sob a autoridade de Cristo, uma 'tomada
do mundo', se quiserem (...) Somos os modeladores da his
tória mundial". 16 O movimento do Domínio também acredi
175
tionar a sinceridade das convicções religiosas de Bush, sinto
nizadas com a tradição americana do pós-milenarismo, ou
para duvidar que tenham determinado sua visão da América
176
mudanças verificadas na sociedade ampliaram o poder da re
ligião. O declínio das antigas elites da Costa Leste e a crescen
te ascendência do Sul na política americana; a mobilização
maciça dos cristãos evangélicos, não raro politicamente ina
tivos no passado, em apoio a uma política militante de "va
lores tradicionais"; e o crescente papel da direita cristã como
determinante apoio eleitoral do Partido Republicano: sem es
sas mudanças, que ganharam corpo ao longo dos últimos
trinta anos, a direita cristã não teria alcançado o poder polí
tico que vem exercendo no governo Bush. Bush encarna um
tipo de fé religiosa que remonta aos primeiros colonos puri
tanos, mas sem as mudanças sociais ocorridas nas últimas
décadas não poderia tê-la usado para promover uma política
baseada na fé.
177
versal. A segurança nacional era encarada em função de con
ceitos derivados da demonologia.21
Essa visão demonológica da ameaça terrorista era um
subproduto da aliança entre os neoconservadores e a direita
cristã. As origens dessa aliança estão no fim da Guerra Fria,
que deixou a América sem um inimigo definido. Apesar de
superestimado pelos neoconservadores, o poder soviético re
presentava uma ameaça real, e caberia esperar que seu co
lapso permitisse uma posição menos antagonista da América
perante o mundo. Mas era indispensável um inimigo, que
logo apareceu na figura de Saddam Hussein. Em termos es
tratégicos, a Guerra do Golfo Pérsico de 1990-91 foi um su
cesso: Saddam foi empurrado de volta para dentro do Iraque,
onde já não representava uma ameaça para os vizinhos nem
para o abastecimento global de petróleo. Para os neoconser
vadores, a guerra foi um fracasso por ter deixado Saddam
no poder. Durante a era Clinton, eles se mostraram agressi
vos em seu ponto de vista de que as tropas americanas deve
riam ter marchado sobre Bagdá. Ao entrarem para o governo
de George W. Bush, foi com o Iraque em mente que o fize
ram. Observou Richard A. Clarke, assessor sobre questões de
178
Ao se alinharem com a direita cristã, os neoconservadores
conseguiram mobilizar milhões de americanos em apoio a
uma nova ação militar contra o Iraque. Muitos fundamen
talistas cristãos são influenciados pela teoria da dispensação,
desenvolvida por John Nelson Darby (1800-1882), ministro
da Igreja da Irlanda que se afastou dela para aderir a uma seita
chamada Irmãos, acabando na liderança de um grupo que
fez dissidência na década de 1840 para fundar os Irmãos de
Plymouth. Acreditando que Deus revelou sua vontade numa
sucessão de acontecimentos, ou dispensações, Darby intro
duziu duas das mais importantes idéias do pré-milenarismo
americano: a idéia do Êxtase, quando os fiéis subirão ao céu
ao encontro do Cristo, e a idéia de que a batalha final entre
Cristo e as hostes do Anticristo ocorrerá na planície de
179
vadores não passavam de algumas dezenas de ideólogos, con
centrados essencialmente em think thanks de Washington.
Tinham certa influência no terreno da defesa nacional e vários
180
americanos consultados em 2002.24 Sobre nenhum outro país
avançado se poderia dizer que uma disputa teológica entre
cristãos pré-milenaristas e pós-milenaristas tenha tido "pro
fundas conseqüências na política [americana]".25
Com a "sulização" da política americana, a direita cristã
181
Os surtos revolucionários sempre foram acompanhados pelo
quiliasmo, que lhes infundia seu espírito. Quando esse es
pírito recua, abandonando esses movimentos, ficam para
trás, no mundo, um frenesi de massa estéril e uma fúria de
sespiritualizada.27
AS ORIGENS DO NEOCONSERVADORISMO
Jeane Kirkpatrick28
182
Os Estados Unidos são o último regime iluminista militante
e o único país avançado que ainda é inabalavelmente cristão.
Os dois fatos não deixam de estar ligados, contribuindo para
explicar as qualidades peculiares do neoconservadorismo e sua
chegada ao poder na América. Apesar do nome, o neoconser
vadorismo é uma ideologia originada na esquerda. Pôde che
gar ao poder na América ao se aliar à direita cristã e a setores
183
As origens do neoconservadorismo na esquerda explicam
algumas de suas características mais constantes. Muitos
membros da geração mais antiga de neoconservadores come
çaram na extrema esquerda anti-stalinista - Irving Kristol,
o padrinho político do movimento, escreveu um ensaio au
tobiográfico intitulado "Memórias de um trotskista"30 e I
184
neoconservadores foram trotskistas em algum momento, e
a principal lição política que muitos deles extraíram de Trotski
foi o caráter profundamente repressor do regime soviético.
Nesse ponto, os neoconservadores apenas refletiam os rumos
tomados pela esquerda no pós-guerra. Marxistas como Sidney
Hook e trotskistas como Max Shachtman acabaram se tor
185
que a classe operária européia desejava uma revolução so
cialista no entre-guerras encontra equivalente na fantasia
neoconservadora de que o mundo árabe anseia por uma de
mocracia de estilo americano. Seu desprezo pelo "blablablá
quaker-vegetariano" dos que condenavam métodos bolche
viques como a tomada de reféns na guerra civil russa tem
eco no desdém dos neoconservadores pelos que criticam o
emprego da tortura na "guerra ao terrorismo".
O pensamento neoconservador é uma mistura de realis
mo alucinado e delírio quiliasta. As concepções cambiantes
de Francis Fukuyama são ilustrativas das dificuldades que se
manifestam quando essa mistura se transforma em alicerce
de uma política externa. Uma das principais influências nas
idéias de Fukuyama foi a obra de Alexandre Kojeve, filósofo
russo emigrado que se estabeleceu em Paris. Kojeve analisou
em sua dissertação de doutoramento as idéias do filósofo re
ligioso russo Vladimir Soloviev (1853-1900), que publicou
em 1899 um livro intitulado Guerra, progresso e o fim da his
186
Essa concepção da América foi abraçada por Fukuyama,
introduzido às idéias de Kojeve por Alan Bloom. Juntamente
com o especialista em defesa Albert Wohlstetter, Bloom dis -
187
Este pronunciamento contém dois elementos: a alegação
de que a história chegou a uma consumação final e uma pro
posta mais específica segundo a qual a democracia liberal é
hoje a única forma legítima de governo. A idéia de que a his
tória caminha para um fim é um mito que não pode ser corro
borado ou refutado com argumentos racionais. Em contraste,
a alegação de que a democracia liberal é hoje a única forma
legítima de governo tem o mérito de poder ter demonstrada
sua falsidade.
188
entre os neoconservadores, que só criticavam o comporta
mento do governo Bush no Iraque por motivos de incompe
tência (e só mesmo, quase sempre, quando ficou claro que os
eleitores estavam a ponto de repudiar a guerra).33
Embora tenha criticado a tentativa de disseminar a de
mocracia pela força, Fukuyama não abandonou a idéia neo
conservadora de que o governo de estilo americano é o modelo
para o mundo. Seu pensamento foi descrito por um estudioso
como uma "teleologia social 'marxista' passiva" - descrição
por ele próprio endossada.34 Ele ainda sustenta uma visão da
189
se transformar num tipo de teocracia popular como vem
190
aquele espírito que parte do princípio de que no futuro a na
tureza humana pode ser qualitativamente diferente do que
191
Kirkpatrick direcionou sua crítica do racionalismo polí
tico contra os liberais americanos que condenavam os Esta
dos Unidos na década de 1980 por cultivar relações próximas
com ditaduras latino-americanas ao mesmo tempo que
favoreciam a détente com a União Soviética. Em suas mãos,
192
assumir uma posição antiliberal, e Strauss não foi exceção.
O primeiro de seus mentores foi o jurista alemão Carl Schmitt,
pensador que ainda hoje exerce influência em intelectuais ra
dicais, embora atualmente seus admiradores possam ser en
contrados sobretudo na esquerda. Schmitt contribuiu para
que fosse concedida pelos Rockefeller a ajuda que permitiu a
Strauss deixar a Alemanha rumo a Paris em 1932. Depois da
chegada dos nazistas ao poder, Strauss de ascendência
-
193
A concepção de governo de Schmitt tem muito em comum
com a de Hobbes. O direito é uma criação do Estado; os dis
positivos constitucionais não podem garantir a sobrevivên
cia da democracia liberal, pois as constituições são criadas e
destruídas por decisões políticas. Na visão de Strauss, Schmitt,
o jurista autoritário que se tornou funcionário nazista, evi
denciava a inutilidade do liberalismo. Pode parecer parado
xal, mas só se esquecermos que, para Strauss, Hobbes era o
pai do liberalismo. "Se chamarmos de liberalismo a doutrina
política que contempla os direitos do homem, como opostos
aos seus deveres, e que identifica a função do Estado com a
proteção ou a salvaguarda desses direitos", escreve ele em seu
livro Direito natural e história, "temos de reconhecer que o fun
194
cista Ernest Jünger e o poeta expressionista Gottfried Benn,
ela promovia a perigosa crença de que a superação do niilismo
significava deixar para trás os valores liberais.
A convicção, em Strauss, de que o regime liberal de Weimar
foi destruído pelo niilismo remete a uma visão corrente mas
simplista e sob certos aspectos equivocada do nazismo, como
também, por inferência, do líder nazista. Como autodidata
boêmio, um tipo comum na Europa central no início do sé
culo XX, Hitler imbuiu-se de uma visão de mundo popular
que misturava fragmentos de darwinismo social com uma
versão vulgarizada do pensamento de Nietzsche. Nesse hori
zonte de idéias, a sobrevivência e o poder eram os únicos
valores uma posição que poderia perfeitamente ser consi
derada niilista. As atitudes de Hitler parecem pressupor uma
visão diferente, mais próxima da escatologia negativa de cer
tas tradições pagãs, como observamos no Capítulo 2. Em
1944-5, quando ficou evidente que os Aliados haviam venci
do, ele deu prosseguimento a uma guerra sem qualquer es
perança e antes se dispunha a sacrificar a Alemanha do que
a se render. Hitler decidiu espalhar o máximo de destruição
pelo mundo, mesmo ao custo de sua própria vida e do ani
quilamento de seu país. Foi sua indiferença ao patriotismo
que levou alguns de seus adeptos conservadores dos primeiros
tempos, que inicialmente se voltaram para ele para proteger
a Alemanha da ameaça do comunismo, a vê-lo como um nii
lista que representava uma ameaça mortal para o país (ponto
de vista que parece ter determinado, em julho de 1944, a cons
piração para matá-lo organizada por Claus von Stauffenberg,
Adam von Trott e outros nacionalistas conservadores). Como
outros nazistas, Hitler esposava as idéias correntes na Euro
195
permitiria o desenvolvimento artificial de uma espécie huma
na aperfeiçoada. Era esse tipo de pseudociência, juntamente
com crenças apocalípticas de origens em parte pagãs e em
parte cristãs (no caso da demonologia anti-semita de Hitler),
que constituíam a visão de mundo nazista. Por mais repelen
te que fosse, a mistura era por demais incoerente para ser con
siderada decididamente niilista.
196
protestos de massa contra a guerra no Vietnã, eles encontra
vam alento no argumento de que a democracia liberal preci
sa de sólidos alicerces metafísicos. Na época, a democracia
americana não corria perigo, mas as mudanças culturais
sobrevindas na década de 1960 causaram uma falsa sensa
ção de crise. Sob certos aspectos, as idéias de Strauss pareci
am feitas sob medida para os americanos. Sua tese de que a
ordem política repousa na aceitação de limitações morais
alheias à esfera humana ia ao encontro do caráter doutriná
197
natureza era associada à teologia cristã. Justificadamente,
Strauss sempre se mostrou profundamente cético quanto a
esta síntese. Escreveu ele: "A suprema conseqüência da visão
tomista do direito natural é torná-lo praticamente inseparável
não só de uma teologia natural que na verdade se baseia na
revelação bíblica, mas até mesmo da teologia revelada."3⁹
Temos aqui uma característica crucial do pensamento de
Strauss: a insistência num abismo intransponível entre a ra
zão e a revelação. A visão de mundo clássica reafirmada por
198
um ato de vontade. É uma posição contraditória, que serve
apenas para demonstrar como é difícil superar o "projeto
moderno". Por mais que quisesse ver-se de outra forma,
Strauss no fim das contas era ele próprio um pensador mo
derno, que tinha mais em comum com Nietzsche do que com
qualquer pensador antigo ou medieval. Aristóteles e Tomás
de Aquino sustentavam uma visão teleológica do mundo tor
nada obsoleta pela ciência moderna. Ambos viam o cosmo
como um sistema no qual tudo tem um propósito. Desde
Darwin, esta visão do mundo natural perdeu o sentido. A
natureza é governada pelo acaso e a necessidade, por leis e
constantes naturais, e não por receitas sobre o bem geral. Se
existe um reino do valor além do mundo físico, ele não pode
ser alcançado pela razão humana.
O que pode significar para a política a visão dos limites
da razão sustentada por Strauss? Ele negava que a democra
cia liberal pudesse ser dissociada de crenças metafísicas: sem
a crença numa ordem moral que não tenha sido criada pela
vontade humana, a política moderna tornava-se vulnerável
199
sua própria técnica de interpretação, altamente subjetiva. Se
chega a escrever em favor da mentira caridosa, ele o faz enig
maticamente, ocultando suas verdadeiras intenções - tal
200
e como demonstra sua apreciação de Hobbes e Schmitt
Strauss considerava o liberalismo um sintoma do fracasso do
201
autoridade aparentemente depende da invocação de algum
insight especial. Trata-se de uma alegação de acesso privilegia
do à verdade que tem conduzido alguns de seus seguidores a
erros calamitosos. Na esfera governamental, ela contribuiu
para levar à guerra no Iraque.
OS POSSUÍDOS
202
sendo um pilar do pensamento neoconservador. Mas o neo
conservadorismo como força política identificável surgiu
posteriormente, numa tentativa de alterar as políticas ame
ricanas de defesa.
203
de 1990 lá ocupava uma alta posição ao lado de Donald
Rumsfeld. Khalilzad havia muito argumentava que se os Es
tados Unidos apoiassem os mujahedin, as tropas soviéticas po
deriam ser derrotadas no Afeganistão, e após a retirada
soviética estava entre os formadores de políticas que consi
deravam o regime talibã próximo dos interesses americanos.
Mudou de opinião depois dos atentados de 11 de setembro,
quando foi nomeado embaixador americano no país, passan
do depois a embaixador no Iraque. Em 1985, Wohlstetter
apresentou Perle (então subsecretário de Segurança Interna
cional do governo Reagan) a Ahmed Chalabi, membro de uma
rica família de banqueiros iraquianos xiitas, que estudara
matemática com Wohlstetter em Chicago. Chalabi foi figu
ra-chave nos preparativos para a guerra no Iraque, como líder
do Congresso Nacional Iraquiano (CNI) apoiado pelos Esta
dos Unidos, tendo sido designado pelos neoconservadores
como possível dirigente do Iraque depois de Saddam e usado
como fonte de avaliações de inteligência que entravam em
conflito com as produzidas pela CIA e outras agências ame
ricanas de espionagem.
A rede que se formou ao redor de Wohlstetter persiste ain
da hoje. Muitos de seus membros foram fundadores do Pro
jeto por um Novo Século Americano (PNAC), um think thank
criado em Washington em 1997 para promover a crença de
que a América precisa agir para preservar sua primazia global.
Com seu presidente William Kristol, filho de Irving Kristol e
editor do Weekly Standard, de propriedade de Rupert Murdoch,
e seu principal executivo, Gary Smitt, formado em Chicago e
ex-colaborador de Patrick Moynihan, o órgão preconizava
forte aumento nos gastos americanos de defesa para manter
uma incontrastada preeminência militar do país. Vários in
tegrantes do PNAC serviram ao governo Bush, entre eles Dick
204
Cheney, Zalmay Khalilzad, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz
e I. Lewis "Scooter" Libby (ex-chefe de gabinete de Cheney,
condenado em março de 2007 por uma série de delitos relacio
nados à identificação pública ilegal de uma agente secreta da
CIA, Valerie Plame, cujo marido criticara o governo Bush). A
tese central do PNAC, apresentada em seu relatório sobre a Re
construção das defesas da América, publicado em 2000, não
era nova. A idéia de que a América deve manter sua supre
macia global estava presente em documentos anteriores, en
tre eles alguns publicados pelo então secretário de Defesa Dick
Cheney no início da década de 1990, e dava continuidade a
teorias sobre a segurança nacional americana desenvolvidas
por Wohlstteter no início dos anos 1970.
205
com isto permitindo que a União Soviética alcançasse supe
rioridade militar.46 O artigo desencadeou um ataque em regra
da direita contra a CIA, levando, em 1976, à criação daquela
206
Angleton, que a certa altura foi chefe da contra-inteligência
na CIA. Por influência do ex-agente do KGB Anatoli Golitsin,
que se passou para o Ocidente, Angleton passou a acreditar
que a União Soviética estava havia muitos anos empenhada
numa campanha estratégica de projeção de uma falsa ima
gem de fraqueza. Para Angleton - personalidade complexa
que havia editado em Yale uma revista literária que publica
va textos de T. S. Eliot e outros poetas contemporâneos -, os
serviços de inteligência eram um ramo da teoria do conheci
mento. O objetivo era descobrir a verdade sobre a situação da
207
anti-submarino não-acústico dos soviéticos, viram nisto uma
208
conseqüente capacidade de enxergar por baixo da superfície e
ler nas entrelinhas e seu aparente desapego das coisas mun
danas". Mesmo ressalvando que ele nunca escreveu sobre
questões de inteligência, os dois sustentam que sua capaci
dade de perceber as maneiras como os diferentes sistemas
políticos funcionam demonstra a utilidade limitada das ciên
cias sociais nas ações de inteligência. Strauss recusava a idéia
de que a política pode ser entendida mediante "um método
empírico que observe os comportamentos, classifique-os,
calcule as correlações entre atos e características específicos
209
A história não é uma ciência, mas entre a boa história e a má
existe uma diferença que reflete a maneira como são usadas
as provas concretas. Também existe uma diferença entre for
mas de pensamento baseadas no conhecimento histórico e as
que se mostram carentes de qualquer senso histórico. O pen
samento neoconservador se enquadra nesta última catego
ria, e muitos dos mais crassos erros cometidos nas políticas
adotadas por inspiração neoconservadora resultam dessa de
liberada ignorância do passado.
No início de sua dissertação sobre Strauss e as ações de
inteligência, os autores reconhecem que o tema "pode pare
cer inicialmente muito estranho”, não sendo propriamente
evidente a relação entre "o mundo agitado da espionagem e
da parafernália de vigilância, por um lado, e, por outro, a vida
tranqüila da erudição e da imersão em textos antigos". Cer
tamente parece improvável que um excêntrico método de in
terpretação de textos possa ser útil na coleta de informações
de inteligência, mas algo parecido com esse método foi em
pregado nos mais altos escalões do governo americano. O as
sessor de Bush que zombava dessa "comunidade dependente
da realidade", convencida de que "as soluções surgem da aná
lisejudiciosa da realidade perceptível", gabando-se de que "não
é mais assim que o mundo funciona na realidade. Hoje nós
somos um império, criamos nossa própria realidade ao agir",
talvez estivesse apenas dando curso ao estúpido triunfalismo
corrente entre os neoconservadores a certa altura.51 Mas tam
bém revelava uma visão da verdade que determinou algumas
das políticas mais equivocadas do governo, uma visão com
partilhada por Schmitt e Shulsky.
Não seria possível fazer um relato completo da desin
formação que cerca a guerra no Iraque. É possível que a coi
sa toda não venha a ser conhecida por muitos anos, e mesmo
210
nunca. 52 O que se pode fazer é dar exemplos da atitude em
relação à verdade ao mesmo tempo hierática e instrumen
talizada que determinou alguns dos mais decisivos epi
sódios de impostura. Os arquitetos da guerra no Iraque
acreditavam ter conhecimento da verdade e que, enganando
os outros, a estavam apenas promovendo. Mas sua crença de
que podiam decifrar o significado oculto dos acontecimentos
era uma ilusão, e no fim das contas eles podem perfeitamen
te ter enganado a si mesmos.
Podemos acompanhar o funcionamento desse processo
nas operações de um organismo criado sob a direção de Abram
211
(DIA). A OSP tornou-se a principal fonte de alegações sobre
as armas de destruição em massa de Saddam e suas supostas
ligações com a al-Qaeda utilizadas por Bush para justificar o
ataque ao Iraque. Em parte por causa das críticas ao papel
por ela desempenhado na guerra, a unidade foi rebatizada em
julho de 2003, quando voltou a adotar seu nome original, de
agência de Questões do Golfo Norte. (A OSP parece ter ganhado
vida nova. Em meados de 2006, foi criada no Pentágono uma
"Diretoria Iraniana" constituída por veteranos da OSP, entre
eles seu ex-diretor, Abram Shulsky. Pela mesma época, a "se
cretaria do Irã” no Departamento de Estado, subordinada à
filha do vice-presidente, Elizabeth Cheney, ganhou status de
força-tarefa.)54
As principais características da OSP eram uma visão do
mundo desinteressada de qualquer investigação empírica, a
forte dependência de informações fornecidas pelo CNI de
Chalabi e sua estreita ligação com o vice-presidente, Dick
Cheney. 55 O principal resultado foi tornar a política america
na fortemente dependente de informações de inteligência
fornecidas por fontes do Congresso Nacional Iraquiano e ca
rentes de verificação. O CNI arregimentava dissidentes ira
quianos que faziam graves acusações sobre a existência de
armas de destruição em massa no Iraque de Saddam. Essas
alegações eram contestadas pela CIA, indo contra as provas
obtidas nas inspeções de armas realizadas pela ONU; mas
eram reiteradamente usadas por Cheney e pelo presidente
Bush para justificar o início de uma guerra, até que se tor
nou impossível negar a ausência de armas de destruição em
massa no Iraque.
212
úteis. Para insinuar uma ligação entre o Iraque e os atenta
dos de 11 de setembro, Cheney mencionou uma reunião
ocorrida em Praga entre Mohamed Atta (um dos principais
seqüestradores do 11 de setembro) e os serviços iraquianos
de inteligência. Afirmava também que "fontes da inteligência"
advertiam que Saddam tentara comprar tubos de alumínio
para a produção de armas nucleares. Ao fazer essas alega
ções, Cheney não estava escolhendo determinados dados da
inteligência e omitindo o resto. Observou a escritora ameri
213
inteligência, e sim "a vitória".57 Na realidade, para esses viden
tes a vitória era a mesma coisa que a verdade não uma
-
214
sua metodologia baseada na fé, a OSP se eximia dos compli
cados procedimentos adotados pelas agências oficiais america
nas de inteligência. E também se tornava alvo privilegiado de
atos de impostura estratégica.
A idéia de que alguma percepção oculta de um regime ou
de uma pessoa elimine a necessidade de investigação factual é
um ponto de partida arriscado para qualquer ação. O presi
dente Bush pode ter-se convencido de haver "entendido a
alma" de Vladimir Putin ao encontrá-lo em junho de 2001.5⁹
Sua impressão aparentemente foi modificada por aconteci
mentos posteriores, e caberia esperar que os desdobramentos
ocorridos no Iraque depois da queda de Saddam Hussein com
prometessem a confiança nos serviços de inteligência basea
dos na fé, mas isto está longe de ter acontecido. Em fevereiro
de 2004, o colunista neoconservador David Brooks reiterou
nas páginas do New York Times o ataque aos métodos dos ser
viços americanos de inteligência, escrevendo: "Durante déca
215
Estes consideram que a maior parte do que existe no mundo,
tal como se apresenta hoje, é incorrigivelmente ruim. Como
escreveu o analista neoconservador Michael Ledeen pouco
depois dos atentados de 11 de setembro, a "guerra ao terro
rismo" e a "revolução democrática global" se confundem:
216
dá por descontado que os países aos quais seja imposta uma
mudança de regime haverão de comemorar a derrubada de
seus governos. Caso não o façam, terão de ser expurgados
dos elementos retrógrados. Só então se poderá ter como cer
to que a democratização forçada será aceita pelo que é: a li
bertação da tirania. A tortura e o terror são aceitáveis se
217
pior espécie. E, no entanto, por ser ele próprio um milenarista,
Dostoievski entendia os riscos dos movimentos revolucioná
rios inspirados por crenças milenaristas.
Começando com objetivos limitados, os revolucionários
acabam muitas vezes aceitando a violência como instrumento
de expurgo do mal. Esta patologia é exemplificada pelos ideó
logos que têm formulado a política externa do governo Bush.
Tal como os iludidos visionários de Dostoievski, os neocon
servadores adotaram o recurso à força como meio de alcan
çar a Utopia.
218
5
Missionários armados
Maximilien Robespierre,
discurso no Clube Jacobino, Paris, 1792¹
219
regime no Iraque atenderia aos interesses americanos, ao mes
mo tempo contendo o terrorismo e promovendo a democracia
na região; mas não se trata de aspectos de um mesmo pro
grama que possam ser concretizados simultaneamente. São
objetivos disparatados e conflitantes, e ao agir na suposição
de que eram um só o governo Bush revelava seu distancia
mento da realidade.
220
versões islâmicas da democracia iliberal. Sob certos aspectos,
poderão ser regimes mais legítimos que os que vierem a ser
substituídos, e será necessário aceitá-los como tal se se qui
ser que tenham alguma perspectiva de dissolver parte das
forças que estão por trás do terrorismo. Com o tempo, al
guns dos países poderão evoluir na direção de algo mais pa
recido com as democracias pluralistas da Europa (das quais
uma variante parecia estar ressurgindo no Líbano, até que o
processo veio a ser descarrilado pela guerra). Mas esses paí
ses não serão clones de algum sistema político ocidental, e não
passa de fantasia a idéia de que desponta no horizonte um
"novo Oriente Médio" que aceitará os Estados Unidos como
modelo de governo.
A crença de que o terrorismo pode ser erradicado tam
221
Rússia, o terrorismo se agravou desde a democratização, en
quanto na China permanece sob controle. Os processos políti
cos podem ajudar a enfrentar o terrorismo, mas a democracia
não é uma panacéia. Nas condições que prevalecem na maior
parte do Oriente Médio, as organizações terroristas não são
facções isoladas carentes de apoio popular: no Líbano, após o
mais recente conflito com Israel, o Hezbollah fala pela maio
ria da população, enquanto na Palestina o Hamas formou um
governo eleito. Em toda a região, o terrorismo é um subpro
duto de conflitos não resolvidos e talvez, em certos casos, sem
solução.
222
A instauração de uma democracia liberal e a eliminação
do terrorismo são objetivos distintos, e nenhum dos dois pode
ser alcançado na maior parte do Oriente Médio. Qualquer
avanço em direção a uma maior estabilidade na região é difi
cultado quando esses objetivos são confundidos e mistura
dos aos interesses geopolíticos americanos. No Iraque, esta
confusão teve resultados previsivelmente catastróficos.
David Rieff²
223
desenvolvido, a questão podia ser tratada sem guerra, mediante
procedimentos agressivos de inspeção e outros métodos. Se
Saddam já dispunha de armas biológicas ou químicas, não
havia por que imaginar que representassem um perigo para
os Estados Unidos: como concluíam análises divulgadas pela
CIA, ele provavelmente só as utilizaria contra os Estados Uni
dos no contexto de uma invasão americana. Uma conseqüên
cia previsível da guerra foi deixar claro para outros "Estados
párias" que melhor seria disporem das armas de destruição
em massa de que Saddam carecia - caso contrário, como o
Iraque, estariam vulneráveis a um ataque americano. Em vez
de contribuir para diminuí-la, a guerra acelerou a prolifera
ção das armas de destruição em massa. Na verdade, não ha
via um argumento convincente em favor da guerra em
termos de segurança americana ou global.
Os objetivos da guerra eram outros. Entre as finalidades
geopolíticas enumeradas pelos neoconservadores estava a ne
cessidade de que os Estados Unidos se dissociassem da Arábia
224
curda, onde não há tropas americanas, está em paz - seria
impossível retomar os níveis anteriores de produção. Com o
tempo, a produção cairá ainda mais, em virtude do declínio
dos investimentos e dos custos de proteção das instalações.
Em conseqüência da guerra no Iraque, o abastecimento de pe
tróleo dos Estados Unidos está mais incerto que antes. E de
qualquer maneira a suposição de que, depois de Saddam, o
Iraque aceitaria a transferência de suas reservas de petróleo
para mãos americanas era ilusória. Por que haveria um Iraque
democrático se isto fosse possível - de aceitar a expropria
ção de seu principal recurso natural? Até mesmo como exer
cício de realpolitik, a guerra era um empreendimento utópico.
A mudança de regime no Iraque fazia parte de uma guer
ra global por recursos que teve início logo depois do colapso
soviético. A chamada primeira guerra do Golfo denomi
-
225
sada tentativa britânica de se apropriar do canal de Suez em
1956. Promovida pelos britânicos e pelos americanos, a derru
bada do presidente secularista iraniano Mohamad Mussadeq
em 1953, na chamada "Operação Ajax", executada pela CIA,
tinha o objetivo declarado de impedir que o Irã caísse cada
vez mais na órbita de influência soviética. O objetivo princi
226
de ser a intensificação da rivalidade pelo controle das rema
nescentes reservas mundiais. A geopolítica do pico do petró
leo está determinando as políticas das grandes potências.4
O papel do petróleo como suprema riqueza foi reconhecido
pelo mais poderoso estrategista do governo Bush. Em discurso
pronunciado no Institute of Petroleum em 1999, quando era
o principal executivo da Haliburton, Dick Cheney observou:
227
guerra no Iraque. Os Estados Unidos trataram de instaurar
um regime que garantisse seu abastecimento de petróleo e
deixasse clara sua determinação de controlar as reservas do
golfo Pérsico como um todo.
A aventura foi por terra pela impossibilidade de estabele
cer um Estado eficiente no lugar do que foi demolido. Já é de
senso comum considerar que o desastre poderia ter sido evi
tado se fosse planejada a reconstrução no pós-guerra. Esta
visão é corroborada pelo fato de que se chegou a fazer algum
planejamento por exemplo, no documento produzido pelo
Departamento de Estado americano, em 2002, sobre o futu
ro do Iraque —, mas foi ignorada por Bush e Rumsfeld.6 Mas 1
228
mulher a exercer funções políticas no serviço colonial britâ
nico foi nomeada secretária do alto comissário britânico,
Percy Cox, e deu início ao trabalho de construção de um novo
Estado. Em 1920, Bell encontrou-se com Seyyd Hasan al-Sadr,
a personalidade de maior relevo entre os xiitas iraquianos e
bisavô de Moqtada al-Sadr, comandante do Exército Mahdi,
229
política britânica no país. Em 1926, ignorada pelo serviço
colonial e já sem influência nos acontecimentos, ela tomou
uma overdose de soníferos em Bagdá, onde foi enterrada no
cemitério britânico."
Bell sabia que o Estado por ela criado jamais seria demo
crático. Nas regiões xiitas, a democracia significaria a instau
ração de uma teocracia, nas áreas sunitas, conflitos sectários,
230
emancipar esses grupos, deixando o Estado iraquiano sem
poder nem legitimidade. A democracia era impossível, pois
exigia, entre as comunidades constituintes da sociedade, um
mínimo de confiança, o que não era o caso. As minorias pre
cisam estar convencidas de que não serão as eternas perde
doras, caso contrário, fazem secessão para criar um Estado
próprio. Cabia esperar que os curdos seguissem esse cami
nho, e os cinco milhões de sunitas certamente resistiriam ao
231
designação de um governador de caráter militar, segundo o
modelo do Japão no pós-guerra, e a promoção de uma tran
sição imediata para a democracia. Donald Rumsfeld antes
um burocrata militar e um nacionalista americano que pro
priamente um neoconservador nunca tivera qualquer in
teresse em levar a democracia ao Iraque, mas também jamais
232
tica, a incompetência do procônsul de Bush em Bagdá, Paul
Bremer, foi tão arrasadora que logo se passou a considerar
que uma súbita evolução do Iraque para a democracia seria a
única maneira de o governo americano pretender um míni
mo de legitimidade.
Em seus primeiros comunicados, em maio de 2003, Bremer
dissolveu o exército iraquiano e afastou funcionários públi
cos baathistas, entre eles professores universitários e primá
rios, enfermeiras e médicos. O correspondente do Washington Post
no Pentágono, Thomas E. Ricks, assim dava conta da decisão
de Bremer:
233
xou esses decretos aconselhado por Ahmed Chalabi, que pre
tendia instalar aliados nos cargos deixados vagos.
Os decretos de Bremer tiveram como conseqüência des
mantelar o Estado iraquiano. A polícia e as forças de segu
rança deixaram de ser instituições nacionais, caindo nas mãos
de milícias sectárias, que passaram a usá-las para seqüestrar,
torturar e matar. Fora da Zona Verde a área de alta segu
rança do centro de Bagdá onde estão localizados o governo
iraquiano apoiado pela coalizão e as embaixadas americana e
britânica —, o país transformou-se numa grande anarquia.
No fim de 2006, cerca de cem pessoas eram mortas diaria
mente e, segundo uma estimativa da ONU, a tortura era pior
234
cia dos contingentes. O plano de guerra traçado por Donald
Rumsfeld certamente falhou redondamente ao não prever a
insurgência que se seguiu ao colapso das forças de Saddam.
Rumsfeld- que em seu período no governo preconizava en
faticamente uma "revolução nas questões militares", com alto
nível de dependência de tecnologias e emprego limitado de
forças terrestres era detestado pelos militares por impor
uma estratégia impraticável na guerra, tendo sido o primei
ro a ser sacrificado quando ela foi rejeitada pelos eleitores ame
ricanos. Mas a mobilização de contingentes maiores teria feito
pouca diferença. Apesar de ter mobilizado no país mais de
400.000 homens depois da Primeira Guerra Mundial, a Grã
Bretanha não conseguiu impor sua vontade pela força mili
tar; quando alguma ordem veio a ser estabelecida, foi por
meios políticos. Em 1914, os britânicos invadiram a Meso
potâmia em parte para assegurar o abastecimento de petró
leo bruto para seus navios de guerra, cujo abastecimento
havia sido mudado do carvão para motores movidos a óleo,
mais eficientes, quando Winston Churchill exercia as funções
de primeiro lorde do Almirantado. A ocupação não foi nada
tranqüila: entre dezembro de 1915 e abril de 1916, a Força
Expedicionária Britânica da Mesopotâmia sofreu mais de
20.000 baixas nas mãos das tropas otomanas em Kut-al
Amara, recorrendo posteriormente à destruição de aldeias com
bombardeios aéreos (tática que os britânicos também utili
zaram no Afeganistão na década de 1920).
235
mais de 20.000, feridos, em nome de objetivos que, se al
gum dia chegaram a ser formulados de forma coerente, eram
inalcançáveis. As tropas americanas cometeram erros e al
guns crimes; mas a culpa pela derrota americana não pode
recair sobre os militares incumbidos de uma missão impos
237
As autoridades militares americanas condenaram os abu
238
pode ter sido desativada porque a CIA-descrente da eficácia
da tortura e temendo que os oficiais que a praticam venham
a ser processados recusou-se a dar prosseguimento aos
-
239
digna de crédito. Os próprios neoconservadores que orques
traram a campanha tinham a visão toldada por ilusões, al
gumas inerentes à sua forma de pensar. Julgavam que os
métodos necessários para promover a liberdade eram os mes
mos em toda parte: as políticas a serem promovidas no Iraque
não diferiam das que haviam sido usadas para disseminar a
liberdade em antigos países comunistas. Mas o que é factível
às margens do Danúbio pode não ser possível no Eufrates -
mesmo supondo que houvesse paz no Iraque, como aconte
cia na maioria dos países da Europa pós-comunista e essa
240
•
corroborada a advertência de Robespierre aos camaradas
jacobinos quanto aos riscos do projeto napoleônico de expor
tar a revolução para toda a Europa pela força das armas.
O Iraque é apenas o exemplo mais extravagante de uma
LIBERALISMO MISSIONÁRIO,
IMPERIALISMO LIBERAL
George Santayana¹⁹
241
um certo "imperialismo liberal" baseado nos direitos huma
nos. Os neoconservadores conseguiram apoio para a mudança
de regime no Iraque e possivelmente em outros países do
Oriente Médio porque o movimento podia ser considerado
uma aplicação de ideais liberais de autodeterminação e demo
cracia. Os liberais insistem em que a legitimidade de um go
verno depende do respeito que manifesta pelos direitos dos
cidadãos. Quando não dá provas concretas neste sentido, ele
pode ser combatido e derrubado pela própria cidadania ou
-
242
venção nos anais da ciência política, uma versão light do im
243
popular, ao passo que os regimes islâmicos -embora sejam
-
244
enorme crueldade, uma forma de despotismo iluminista em
certas regiões do país era por demais incômoda para ser
-
245
a derrota das tropas soviéticas no Afeganistão são apenas al
guns exemplos da impotência dos ocupantes ocidentais em
terras não ocidentais, reiteradamente demonstrada ao longo
do século passado. A derrota americana no Iraque é apenas o
mais recente exemplo dessa impotência.
Além da impossibilidade de qualquer projeto imperial oci
dental em larga escala na atual conjuntura histórica, a idéia
de que a América poderia ser o agente de um projeto dessa
natureza era altamente implausível. Os Estados Unidos têm
poucos dos atributos de um regime imperial. Dispõem de um
amplo leque de países sobre os quais exercem graus variados
de influência - eventualmente pela ameaça da força, mais
freqüentemente com uma mistura de sanções econômicas e
incentivos. As relações da América com muitos desses países
evidenciam um padrão imperialista no qual os recursos são
extraídos pela ação de governos em certo grau controlados
pelos Estados Unidos. Na América Latina, há muito os EUA
agem de forma imperialista para proteger seus interesses eco
nômicos e estratégicos. No momento, sustentam uma maci
246
envolvimento militar americano no exterior se torna por de
mais oneroso, financeiramente ou em baixas humanas, ten
247
A América carece da maioria dos pré-requisitos de um
império e não haverá de adquiri-los num futuro previsível.
Como poderia haver imperialismo-liberal ou de qualquer
outra natureza se não há imperialistas? Os Estados Uni
dos têm alguns dos encargos de um império, inclusive seus
custos financeiros, muito mais comprometedores que na era
do colonialismo europeu. Ao contrário da Grã-Bretanha do
século XIX, que era o maior exportador mundial de capitais,
os Estados Unidos são os maiores devedores do mundo. As
zeiro, esse subsídio equivale a US$ 1,4 bilhão por dia (em
abril de 2003). Se seu comportamento continuar causando
23
problemas, a América é que deveria temer um embargo.2
248
potências que pareciam em declínio irreversível. A China e a
Rússia podem ser capazes de conviver em coexistência pací
fica com os Estados Unidos, mas jamais aceitarão uma tute
la moral americana; a idéia de que possam ser arregimentadas
para uma campanha de conversão do mundo ao estilo ame
ricano de democracia é risível. O "novo século americano"
249
}
250
Primeira Guerra Mundial, a internação forçada de indivíduos
de ascendência japonesa durante a Segunda Guerra Mundial,
todas essas medidas ampliaram consideravelmente o poder
executivo. Em nenhum dos casos os danos à liberdade tive
251
cionar, suas decisões podem ser ignoradas. A defesa das liber
dades constitucionais cabe então aos legisladores, que podem
-
como aconteceu em setembro de 2006 temer as conse
sou por essa mudança por ter sido corroído pelo relativismo
como Strauss acreditava ter acontecido na Alemanha de
252
e a Alemanha, depois de duas guerras mundiais e da Guerra
Fria. Na África e nos Bálcãs, a luta pela afirmação política da
nacionalidade tem sido acompanhada de campanhas de lim
peza étnica, enquanto a modelagem da China como nação,
que está em andamento hoje, envolve a repressão de minorias
muçulmanas e algo que, no Tibete, não está muito longe do
genocídio.
Os teóricos liberais tendem a estabelecer uma distinção
entre o nacionalismo étnico, que consideram nocivo, e as va
riantes cívicas, que têm como positivas. Mas a repressão não
é uma característica apenas do nacionalismo étnico. As na
253
Os Estados-nação não são apenas o principal veículo
institucional da liberdade moderna, mas também, quase uni
254
se aplica à Rússia. Grande parte da humanidade provavel
mente nunca viverá em Estados-nação. No futuro, como no
passado, o mundo será governado por muitos tipos de regimes.
A objeção a ser feita à democracia universal não é que
255
listas bem conhecidos, numa versão alterada para se adaptar
256
niais de épocas anteriores. Nem é de se estranhar o capitalis
mo de compadrio que permitiu às empresas com entradas em
Washington dividir o espólio de guerra. Embora no caso do
Iraque ocupado pelos americanos a escala possa ser maior e
o estilo, mais clamoroso, o fato é que a ganância predatória
é uma característica universal da conquista imperial.
Mas este ainda não é o imperialismo no sentido clássico.
Não é apenas que a potência ocupante careça da capacidade
de governar. Abrindo mão de muitas das funções de Estado,
os ocupantes americanos do Iraque institucionalizaram uma
anarquia por eles mesmos criada ao desmantelar o Estado.
As estruturas do regime apoiado pelos Estados Unidos não
são instituições de governo, mas alvos a serem capturados
por organizações sectárias e milícias irregulares, que as
utilizam para a partilha de recursos e a neutralização de
oponentes. Em tais condições, seria impossível impor um
homem forte ao estilo de Saddam Hussein para estabelecer a
ordem no caos, como chegaram a propor certos "realistas"
257
nítida e bem definida. A minoria sunita tem tudo a perder e
lutará até a morte. Com apenas 60 por cento de xiitas em
sua população, o Iraque tem pela frente décadas de limpeza
étnica e massacres sectários.
258
transformando em cenário de uma guerra pela hegemonia
na região. A escalada para um conflito mais amplo tem sido
a lógica dos acontecimentos desde a invasão americana. A des
259
POR QUE A "GUERRA AO TERRORISMO"
NÃO PODE SER VENCIDA
260
o terrorismo exige a derrota de uma "insurgência global", que
vem a ser apenas uma maneira mais sofisticada de falar da ne
261
é uma religião, e não uma cultura, e a maioria dos que vivem
no "mundo islâmico" não é de árabes. O terrorismo na Indo
nésia não pode ser explicado pela atribuição de determinadas
atitudes aos árabes, num estilo de pensamento que justifi
cadamente seria considerado racista se aplicado a outros gru
pos. O terrorismo suicida não é uma patologia específica a
determinada cultura nem tem qualquer relação mais próxi
ma com a religião.
Muitas manifestações do terrorismo são comparáveis a
outras formas de guerra. Quase sempre, as guerras são tra
vadas no interior de fronteiras culturais ou passando por cima
delas. As duas primeiras guerras mundiais começaram como
conflitos intra-europeus, a guerra sino-japonesa foi travada
entre países pertencentes ao universo cultural confuciano, ao
passo que a guerra entre o Irã e o Iraque foi um conflito intra
islâmico. Na década de 1990, a guerra dos Bálcãs tinha fun
do étnico-nacional, e não religioso-cultural, apresentando-se
cristãos e muçulmanos freqüentemente como aliados. A idéia
de que as guerras são conflitos entre civilizações que sur
262
distas, como a Fração do Exército Vermelho. O primeiro aten
tado suicida em Israel foi cometido em 1972 por um inte
grante japonês da Facção do Exército Vermelho.
O atentado suicida é uma técnica adotada por povos de
várias culturas e crenças para alcançar objetivos políticos. Em
seu pioneiro estudo empírico sobre o tema, Dying to Win: The
Strategic Logic of Suicide Terrorism,36 Robert Pape analisou to
dos os casos conhecidos entre 1980 e 2004, constatando que
263
O terrorismo nem sempre serve a uma estratégia racio
nal, como vimos. As crenças apocalípticas desempenharam
um papel central no terror de Estado dos jacobinos aos bolche
viques e aos nazistas. Os movimentos terroristas autóctones
264
uma reação às ações militares ocidentais. Embora a derruba
265
1
266
medidas de segurança e o constante compromisso político
são as únicas estratégias que até hoje se mostraram capazes
de manter o terrorismo sob controle.
267
Estados não será mais refletir os valores de seus cidadãos.
Serão eles "Estados-mercados" servindo à economia global.
O estabelecimento desse novo sistema suscitará uma série de
268
ferem uma nova dimensão a esses conflitos. Em termos opera
cionais, a obsolescência da soberania de Estado se traduz na
soberania ilimitada de um único Estado. os Estados Unidos,
-
que nos últimos anos vêm agindo como se suas leis tivessem
jurisdição universal, mas as condições em que os EUA
poderiam exercer essa autoridade já não existem (se é que um
dia existiram). Acelerado pela guerra no Iraque, o declínio do
poderio americano que vem a ser parte integrante da globali
zação deixou o país fortemente dependente de outras nações.
Os Estados Unidos dependem de outros países para o acesso
a recursos naturais, o financiamento de sua crescente dívida
269
baixadas americanas na África, por exemplo, tinham pro
porções maiores e eram obra de uma rede de ação de alcance
global inédito. Apesar dessas diferenças, o 11 de setembro foi
mais um desdobramento de anteriores formas não-conven
270
radas forças fundamentalistas esse risco talvez já esteja
1
271
Aparentemente, existe nos Estados Unidos quem consi
dere que um ataque ao Irã seria uma maneira de impedir a
proliferação, mas o fato é que, como no caso do Iraque, o efeito
seria, na realidade, agravá-la. Uma vasta zona do Oriente Mé
dio e da Ásia, atualmente abrigando três teatros de guerra -
seria transfor
no Iraque, na Palestina e no Afeganistão -
1
272
a tecnologia nuclear fuja ao controle dos Estados. A chama
da Destruição Mútua Assegurada (MAD) evitou por mais de
meio século a utilização de armas nucleares. Esse tipo de dis
suasão talvez não ofereça completa segurança contra um
Estado nuclear chefiado por um profeta apocalíptico, mas fa
culta certo grau de proteção, pois no mínimo certos mem
bros de sua liderança desejarão continuar vivendo. Quando o
inimigo é uma rede que foge a qualquer controle, com rami
ficações em qualquer parte do mundo, a dissuasão se esboroa
completamente. Agentes de destruição em massa não podem
ser ameaçados de aniquilação se sua identidade é desconheci
da. Escreveu o especialista americano em controle de armas
Fred Ikle: "A história militar não ensina aos países como en
273
iminente não era uma artimanha cínica acrescida a políticas
adotadas por outros motivos por dirigentes que não acredi
tavam nela. Bush e Blair efetivamente acreditavam que essa
mudança era iminente ou poderia ser promovida, assim como
os intervencionistas neoconservadores e liberais que os apoi
de sangue.
274
6
Pós-Apocalipse
275
guerra de religião multifacetada, misturada a uma guerra pelo
controle de recursos naturais.
DEPOIS DO SECULARISMO
Leo Strauss²
276
de conter a violência da fé é um elemento central nos escri
tos de Thomas Hobbes e Benedict Spinoza, pensadores do pri
meiro Iluminismo que nos falam mais claramente da natureza
dos atuais conflitos do que a maioria dos que vieram depois.
O tema central do pensamento de Hobbes é a condição da
humanidade num estado natural, em que não há governo.
Como escreveu no famoso décimo terceiro capítulo do Leviatã,
no estado natural não há "vida cômoda" - não existem "ar
277
Ainda hoje tem profunda ressonância sua compreensão
dos riscos da anarquia. Os pensadores liberais ainda conside
ram o poder incontrastado do Estado como a maior ameaça
à liberdade humana. Hobbes não se iludia: o pior inimigo da
liberdade é a anarquia, que se mostra mais destrutiva quan
do serve de campo de batalha para fés rivais. Os esquadrões
da morte sectários que percorrem Bagdá mostram que o pró
prio fundamentalismo é uma forma de anarquia em que cada
profeta se arroga autoridade divina para governar. Nas socie
dades bem governadas, o poder da fé é mantido sob controle.
O Estado e as Igrejas moderam as teses da revelação e impõem
a paz. Onde isto não se revela possível, a tirania é melhor que
ser governado por profetas em guerra. Hobbes descortina o
presente com mais nitidez que os pensadores liberais que se
seguiram. Mas sua visão dos seres humanos era demasiado
simples, além de excessivamente racionalista. Partindo do
princípio de que os seres humanos temem mais que tudo a
morte violenta, ele deixou de lado as causas mais persisten
278
tiva, tendo perfeita consciência de que a liberdade de praticá
la vem depois das necessidades da paz; mas entendia melhor
que Hobbes o papel da religião na vida humana. As religiões
não são verdadeiras num sentido literal, como acreditam seus
279
gião fundamentalista e o crime organizado, as lealdades étni
co-nacionais e as forças de mercado são igualmente capazes
de fugir ao controle do governo e, às vezes, de derrubá-lo ou
tomá-lo. Os Estados encontram-se tão à mercê dos aconteci
280
nem por isto os seres humanos se tornam mais civilizados.
Continuam passíveis de todo tipo de barbárie, e embora a am
pliação do conhecimento lhes permita melhorar suas condi
ções materiais, também agrava a selvageria de seus conflitos.
Se as religiões políticas do século passado renovaram as
crenças cristãs, o humanismo secular hoje não é diferente.
Pensadores darwinistas como Richard Dawkins e Daniel
Dennett são adversários militantes do cristianismo.5 Mas seu
ateísmo e seu humanismo são variantes de conceitos cristãos.
Como defensor do darwinismo, Dawkins considera que os
seres humanos são como as outras espécies animais, “má
quinas de genes" governadas pelas leis da seleção natural. Sus
tenta, no entanto, que só os seres humanos são capazes de
desafiar essas leis naturais: "Só nós, no planeta, podemos nos
rebelar contra a tirania dos reprodutores egoístas." Ao afir
mar assim a singularidade humana, Dawkins se refere a uma
visão de mundo cristã. O mesmo se aplica a Dennett, que de
281
nos e os outros animais, esses racionalistas deixam claro que
sua visão de mundo foi determinada pela fé. A comédia da
descrença militante está no fato de que o credo humanista
nela encarnado vem a ser um subproduto do cristianismo.
Evidenciar as origens cristãs das crenças humanistas não
prova que estejam equivocadas, mas não são apenas as crenças
humanistas que derivam do cristianismo. É todo o arcabouço
do pensamento, e quando a alegação de que os seres huma
nos são radicalmente diferentes dos outros animais é separa
da de suas raízes teológicas, torna-se não apenas indefensável,
mas praticamente incompreensível. Os humanistas moder
nos se consideram naturalistas que encaram todas as formas
de vida inclusive o animal humano - como parte do uni
verso material; mas uma filosofia autenticamente naturalis
ta não partiria do princípio de que os seres humanos têm
atributos diferentes dos outros animais. Seu pressuposto se
282
que a religião é uma ilusão seria suficiente para fazê-la desa
parecer. É o pressuposto de que a mente humana é um órgão
sintonizado com a verdade, concepção quase platônica mais
próxima da religião que da ciência e incompatível com o
darwinismo. Mas parece ser mesmo esta a visão dos descren
tes contemporâneos.
283
lado a lado com filosofias místicas, exatamente como as duas
correntes coexistiam na Europa pré-cristã, e entre os asiáti
cos não se verificou o confronto entre ciência e religião que
polarizou as sociedades ocidentais. Não é por acaso que o
darwinismo não desencadeou nenhuma guerra cultural na
China ou no Japão.
Tal como visto por muitos de seus adeptos contemporâ
neos, o secularismo é menos uma visão de mundo que uma
doutrina política. Neste sentido, um Estado secular é aquele
que bane a religião da vida pública, ao mesmo tempo reco
nhecendo a liberdade de cada um acreditar no que quiser. Esse
284
dos liberais tendem a ver a violência por eles próprios infligi
da como moralmente digna de admiração. Tzvetan Todorov,
o historiador francês que cresceu na Bulgária stalinista e em
seus escritos lançou luz sobre os campos de concentração
nazistas e soviéticos, observou esta tendência no contexto
to. Não estavam errados, pois assim que seus crimes foram
revelados, passaram a ser tratados como símbolos do mal
absoluto. As coisas são muito diferentes no caso das bom
285
perpetrados por regimes despóticos, são condenados como
prova de barbárie: chegam a ponto de considerá-los heróicos.
É possível que esses ataques contra populações civis sejam
justificáveis quando contribuem para abreviar a guerra e der
rubar regimes detestáveis. Os historiadores divergem quanto
a seus efeitos; a questão continua em aberto. Mas se um ata
que dessa natureza pode ser defendido, será apenas como uma
terrível necessidade, e não como triunfal demonstração de
uma grande virtude.
O liberalismo costuma ser considerado uma doutrina cé
tica, o que, no entanto, não faz justiça ao fervor missionário
com que tem sido promovido. O liberalismo é um descendente
direto do cristianismo, evidenciando o mesmo caráter mili
tante de sua fé de origem. A ferocidade com que as sociedades
liberais tratam seus inimigos não pode ser explicada exclusi
vamente em termos de necessidade de autodefesa. As socie
dades liberais merecem ser defendidas, pois encarnam um tipo
de vida civilizada no qual convicções opostas podem coexis
tir em paz. Quando se transformam em regimes missionários,
essa conquista é posta em risco. Entrando em guerra para
promover seus valores, as sociedades liberais são corrompi
das. Foi o que aconteceu quando a tortura, cuja proibição re
sultava de uma campanha iluminista iniciada no século XVIII,
veio a ser empregada no início do século XXI como arma
numa cruzada iluminista pela democracia universal. Preser
var os controles e restrições arduamente conquistados pela
civilização é menos excitante que descartá-los para alcançar
sonhos impossíveis. A barbárie tem um certo encanto, espe
cialmente quando vem trajada de virtude.
286
VIVER NUM MUNDO INTRATÁVEL:
Hedley Bull
287
circunstâncias, e mesmo em sua própria época as teorias rea
listas das últimas gerações apresentavam sérias falhas. Mas
é com o realismo, mais que com qualquer outra escola, que
podemos aprender a pensar os conflitos atuais.
O realismo é a única maneira de pensar as questões da
tirania e da liberdade, da guerra e da paz que efetivamente
pode considerar-se baseada na fé e, não obstante sua fama de
amoralidade, a única eticamente séria. É por isto, sem dúvida,
que é vista com suspeita. O realismo requer uma disciplina
mental que pode parecer por demais austera para uma cul
tura que valoriza o conforto psicológico acima de tudo, e
caberia perguntar se as sociedades liberais ocidentais são ca
pazes do esforço moral necessário para deixar de lado expec
tativas de transformação do mundo. As culturas que não se
formaram no cristianismo e em seus sucedâneos seculares
288
sentido de enfrentar dificuldades que jamais poderão ser su
peradas. Mas nem sempre foi assim, e há apenas duas gera
ções o pensamento realista permitiu aos governos ocidentais
levar a melhor em conflitos muito mais perigosos do que
quaisquer dos que tenham enfrentado até o momento neste
século.
289
O pensamento realista não está isento de erros. Existem
muitos exemplos de políticas realistas que fracassam em seus
objetivos ou causam imensos sofrimentos sem nada conse
guir: um exemplo óbvio deste último caso é o bombardeio do
Camboja no período em que Henry Kissinger era o secretário
de Estado americano. Uma abordagem realista das questões
internacionais não é garantia de êxito, e existe um tipo de
realpolitik doidivanas que é extremamente irrealista. O pano
rama da União Soviética pintado por Albert Wohlstteter es
tava muito distante das condições reais, assim como a visão
do Iraque apresentada por seu discípulo Paul Wolfowitz. Os
cálculos estratégicos de Wohlstteter podem parecer a um
mundo de distância do ilusório programa de Wolfowitz para
a instauração da democracia liberal no Iraque. Mas a idéia de
que decisões sobre guerra e paz podem ser reduzidas a um
cálculo matemático de probabilidades e conveniências é uma
simbiose entre racionalismo e magia - em outras palavras,
uma superstição.
Os realistas não aceitam que as relações internacionais,
290
dos interesses, supostamente definidos em termos rigorosa
mente factuais. Partia-se do princípio de que os Estados eram
entidades empenhadas em maximizar o próprio poder, e suas
relações recíprocas eram teorizadas em termos tomados de
empréstimo à ciência natural. O desenvolvimento de uma dis
ciplina dessa natureza é uma forma de cientificismo - a
equivocada aplicação de um método científico a setores da
experiência em que não existem leis universais -, tendo con
tribuído para desacreditar o pensamento realista. Existe no
comportamento dos Estados um considerável grau de regu
laridade que pode ser identificado pelo estudo da história, mas
essas regularidades não podem ser formuladas como leis uni
versais. Mais uma vez, aqui, as idéias que usamos para en
291
petição e a cooperação. Mas essas convenções e práticas são
frágeis, e a longo prazo a guerra é tão comum quanto a paz.
Os realistas deveriam rejeitar os enfoques teleológicos da
história. A suposição de que a humanidade caminha para uma
condição na qual não mais haverá conflito quanto à nature
za do governo é não só ilusória, como perigosa. Basear as polí
ticas públicas na pressuposição de que um misterioso processo
evolutivo conduz a humanidade à terra prometida acaba le
vando a um estado de espírito de despreparo frente aos con
flitos mais intratáveis. Nos casos mais extremos, a teleologia
292
racterística constante nas relações entre Estados. Muitas
filosofias morais dão por descontado que as exigências da
moralidade, ou pelo menos de parte dela, como no caso dos impe
rativos de justiça, devem todas ser compatíveis. Pelo menos
em princípio, presume-se que nenhum imperativo da mora
lidade pode entrar em conflito com outro. Essa crença é
subjacente a todas as variedades de utopismo, e uma de suas
manifestações está por trás das teorias dos direitos huma
nos que têm sido usadas para justificar as guerras preven
tivas. Como observou Isaiah Berlin, essa crença na harmonia
293
na que decorre de raízes teológicas mais antigas, da crença
de que, a menos que todas as virtudes positivas estejam em
harmonia recíproca, ou pelo menos não sejam incompatí
veis, o conceito de Entidade Perfeita tenha o nome de na
-
294
nome de ideais incipientes que jamais serão alcançados. Um
Estado que trate de impedir a tortura em suas próprias insti
tuições é mais civilizado que outros que a pratiquem em nome
dos direitos humanos universais, tendo também mais pro
babilidade de êxito em suas metas.
295
louvável, que, no entanto, ignora o fato de que os compo
nentes desse mínimo muitas vezes estão em conflito uns com
296
sociedades e modos de vida, recorrente na história, tornou
se hoje a regra. A nostalgia da suposta unidade orgânica de
sociedades anteriores, uma tendência freqüente entre os con
servadores, é uma forma de utopismo. E o realismo tampouco
tem alguma coisa a ver com o fundamentalismo moral que
enche a boca com o "direito à vida", os "valores tradicionais"
297
os objetivos razoáveis são compatíveis, e as escolhas racio
nais podem levar a conflitos terrivelmente destrutivos. É o
que freqüentemente acontece na guerra assimétrica. Embora
os insurgentes geralmente vençam, as potências ocupantes
também têm interesses que as impelem ao combate. Os dois
lados podem ter motivos para se envolver num conflito da
noso para ambos.
Acima de tudo, os seres humanos têm necessidades que
não podem ser atendidas por meios racionais. O culto Aum,
que tentou conseguir o vírus ebola, tinha muito poucos ob
jetivos alcançáveis. Era movido, em suas atividades, por fan
tasias quiliastas clássicas: o fim do mundo, seguido de um
paraíso pós-apocalíptico. Certas manifestações da violência
terrorista da al-Qaeda seguem um padrão semelhante. Não
adianta buscar as causas desse tipo de terrorismo em confli
tos políticos não resolvidos. Essa manifestação de desequilíbrio
é um transtorno da necessidade de significado comparável ao
298
conflito armado entre forças controladas por Estados. Infli
giu baixas terríveis no século XX, quando passou a abranger
o bombardeio de populações civis. Embora muitos conside
rem que esse tipo de guerra ficou para trás, ainda podem ocor
rer conflitos armados entre grandes potências. A guerra
clássica continua sendo um mal terrível, mas mesmo nos ca
sos em que é total, ela pode ser encerrada por um acordo: os
diplomatas podem encontrar-se, negociar um acerto e firmar
a paz. Um acordo dessa natureza não pode ser alcançado com
redes terroristas globais, que podem estar internamente di
vididas e carecer de objetivos negociáveis. Hoje em dia, os con
flitos armados envolvem grupos muito dispersos e até mesmo
sociedades inteiras, agindo fora do controle de qualquer go
verno. Para ser produtivo, o pensamento realista deve enten
der que a guerra deixou ser prerrogativa dos Estados para se
tornar privilégio do homem comum.
O pensamento realista não pode esquivar-se às ameaças
apresentadas pela crise ambiental. As reservas petrolíferas
chegando ao pico e o aquecimento global constituem a outra
face da globalização: a disseminação planetária do modo in
dustrial de produção baseado em combustíveis fósseis, que
permitiu o crescimento econômico e populacional dos dois
últimos séculos. Esse processo não está longe de chegar a seus
limites, não tanto políticos, mas ecológicos. A expansão in
dustrial ocasionou mudanças climáticas globais que são de
maior alcance, mais rápidas e irreversíveis que jamais se che
gara a imaginar, ao passo que os combustíveis não-renováveis
que alimentam a indústria vão se tornando mais escassos à
medida que aumenta sua demanda. ¹2 Esses fatos têm conse
299
tão continua sendo um tabu. Em outubro de 2003, quando
um grupo do Pentágono divulgou um relatório intitulado
"Uma hipótese de mudança abrupta do clima e suas conse
qüências para a segurança nacional americana", suas análi
ses e propostas eram incompatíveis com os planos do governo
Bush - e foram arquivadas.
O relatório examinava as conseqüências geopolíticas de
uma súbita mudança climática, entre elas a escassez de ali
mentos, decorrente de diminuição da produção agrícola glo
bal, a menor disponibilidade e a pior qualidade da água em
regiões-chave e os problemas de acesso a fontes de energia. O
resultado global dessas mudanças seria "uma considerável
queda na capacidade de sustentação humana do meio am
biente da Terra" - em outras palavras, a diminuição da po
pulação humana passível de ser sustentada pelo planeta.
Prosseguia o relatório:
300
humana. Sua avaliação das formas de conflito que podem
seguir-se é plausível, embora talvez tenha subestimado sua
intensidade. A análise partia do princípio de que seriam con
flitos estratégico-racionais sem envolvimento religioso, mas
o fato é que boa parte das reservas planetárias de petróleo
restantes estão em terras muçulmanas, e o conflito em tor
a ser duas vezes mais rápido nos Estados Unidos que na Chi
na, por exemplo, mas é por demais elevado globalmente
para que seja viável uma mudança para tecnologias alterna
301
tivas em escala planetária. Uma combinação de energia solar,
energia eólica e agricultura orgânica não seria capaz de sus
tentar de seis a nove bilhões de pessoas.
Se existe uma saída pelo gargalo, terá de envolver a má
xima utilização de soluções de alta tecnologia. As melhores
perspectivas podem encontrar-se nas tecnologias às quais os
ambientalistas se mostram mais hostis, como a energia nu
clear e as colheitas GM, que, apesar dos riscos envolvidos, não
14
acarretam mais destruição da biosfera. ¹4 A alternativa não é
uma Utopia de baixo nível tecnológico, como gostam de pen
sar muitos verdes. Como escreveu James Lovelock, seria "um
302
Diamond está certo ao afirmar que o mundo tornou-se
mais interdependente, o que não é motivo para considerar que
se tornará mais cooperativo. O relatório do Pentágono apon
ta numa direção mais provável. Os Estados que se mantive
rem fortes e eficazes tratarão de garantir os recursos que têm
sob controle. Nos que se mostrarem fracos ou entrarem em
colapso, a luta será transferida a outros grupos. O resultado
geral será antes a intensificação dos conflitos que uma coo
peração global. O Protocolo de Quioto ilustra essa dificulda
de. Ele pode ser intrinsecamente falho por não serem aplicáveis
aos países emergentes as metas nele estabelecidas, mas seu
principal defeito era não prever mecanismos de imposição de
seus dispositivos. Os países podiam assiná-lo ou não, e os
Estados Unidos e alguns outros se recusaram a fazê-lo. Não
há como contornar essa dificuldade. Num mundo anárquico,
303
Não vai demorar muito até que se tornem viáveis dispositivos
genéticos seletivos capazes de funcionar como ferramentas de
genocídio, e quando isto acontecer, talvez não haja como im
pedir que se disseminem pelo mundo. As futuras ameaças à
segurança talvez não partam sobretudo do terrorismo, como
se costuma supor, podendo vir em surtos de doenças de ori
gem desconhecida. O paradigma do terror futuro pode ser um
inexplicável colapso das estruturas da vida quotidiana.
A ampliação do conhecimento incrementa o poder huma
no ao mesmo tempo que gera dilemas insolúveis. Precisamos
entender que os mais graves distúrbios humanos não podem
ser remediados, mas apenas enfrentados no dia-a-dia. Mas
será que podemos conviver com este fato? Descartar os mi
tos da teleologia histórica e da harmonia final é altamente
O FIM, DE NOVO
Frank Kermode¹7
304
só pode ser feliz se puder encarar o mundo como uma estó
ria. Nos dois últimos séculos, a estória dominante tem sido a
do progresso humano, abrangendo também, no entanto, a fá
bula de um mundo assediado por forças obscuras e fadado à
destruição. Os dois enredos se enredam, como acontecia quan
do Marx e seus seguidores acreditavam que a humanidade
avançava por meio de uma série de revoluções catastróficas e
os nazistas, que forças demoníacas conspiravam contra o Volk
e sua ascensão a um estado de harmonia imortal semidivina.
305
que vem a ser uma ameaça pior. A paranóia muitas vezes é
um protesto contra a insignificância, e os delírios coletivos
de perseguição servem para melhorar uma imagem fragili
zada da própria importância. O problema é que esse benefício
cobra um preço alto, pago em vidas de seres humanos que
são forçados a desempenhar um papel num script que não
leram e muito menos escreveram. Aqueles que são esmaga
dos ou aniquilados para a criação de uma humanidade me
lhor, que são mortos ou mutilados em atos espetaculares de
terrorismo ou arrasados em guerras pela liberdade universal
podem conceber para si mesmos um lugar no mundo com
pletamente diferente do que lhes é atribuído nos dramas que
estão sendo montados. Se as narrativas universais criam sig
nificado para aqueles que vivem de acordo com elas, também
servem para acabar com ele na vida de outros.
A sensação de estar participando desse tipo de narrativa,
naturalmente, é ilusória. João de Leyden acreditava que Deus
307
mim, seus desastres, inócuos, sua brevidade, ilusória, agindo
da mesma forma que o amor, enchendo-me de uma preciosa
essência: ou antes, essa essência não estava em mim, ela era
18
eu. Eu deixara de sentir-me medíocre, contingente, mortal". ¹8
Proust voltava-se para o passado para tentar sair do tempo.
Uma busca que só podia ter êxito parcialmente, pois as lem
branças contendo prenúncios da imortalidade não podem ser
mobilizadas a qualquer momento.
A necessidade de narrativa pode ser um estorvo, e se qui
sermos livrar-nos dela devemos buscar a companhia dos
místicos, poetas e amantes do prazer, e não dos sonhadores
utópicos. Embora contemplem o futuro, esses sonhadores quase
sempre relembram um período idealizado de inocência: o co
munismo primitivo de Marx ou o mundo perdido da virtude
burguesa acalentado pelos neoconservadores. Escreveu o es
critor e psicanalista Adam Phillips: “Com toda evidência, o
pensamento apocalíptico é o que pode haver de pior em maté
ria de nostalgia."¹9 Buscar refúgio numa imaginária harmo
nia futura é atar-nos aos conflitos do passado.
Os mitos não podem ser considerados verdadeiros ou fal
308
pensamento secular, a ciência veio a ser encarada como um
309
vão ficando mais livres ou pacíficas à medida que se tornam
mais modernas. Esses credos seculares são mais irracionais
310
valor do ambiente natural. Em vez de tender para uma mo
nocultura secular, o período moderno tardio é incontor
311
sidade do mito. As Utopias dos dois últimos séculos eram
variantes deformadas dos mitos que negavam, e se a derra
deira delas sucumbiu nos desertos do Iraque, não haverá de
ser pranteada. A esperança da Utopia derramou tanto san
gue que os credos tradicionais não teriam como competir, e o
312
é normal. É provável que seja realidade demais para a capa
cidade de absorção da maioria das pessoas, e à medida que a
mudança climática evoluir podemos esperar erupções de cul
tos em que ela venha a ser interpretada como uma narrativa
humana de catástrofe e redenção. Afinal, o apocalipse é um
mito antropocêntrico.
Felizmente, a humanidade tem outros mitos, que podem
ajudá-la a enxergar com mais clareza. Na estória do Gênesis,
o homem foi expulso do paraíso depois de provar da Árvore
do Conhecimento, sendo obrigado a prover para sempre o seu
sustento com o próprio trabalho. Não há, aqui, qualquer pro
313
caso do cristianismo foram geradas manifestações selvagens
de violência, mas no que tem de melhor a religião costuma
ser uma tentativa de lidar com o mistério mais do que uma
esperança de que o mistério seja revelado. No confronto dos
fundamentalismos, essa percepção civilizatória se perdeu.
Guerras tão brutais quanto as das primícias da modernidade
estão sendo travadas contra um pano de fundo de crescente
conhecimento e poder. Interagindo com a luta pelos recursos
naturais, a violência da fé parece fadada a determinar o rumo
do século que começa.
314
Notas
Epígrafe
1 A morte da utopia
Pp. 3-4.
3. R. H. Crossman (org.), The God that Failed, Nova York e Chichester,
Sussex, Columbia University Press, 2001; publicado inicialmente
por Hamish Hamilton, Londres, 1950. O livro continha ensaios
de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, André Gide,
Louis Fischer e Stephen Spender.
4. Ver o excelente estudo de Jonathan Spence, God's Chinese Son: The
Taiping Heavenly Kingdom of Hong Xiuquan, Londres, HarperCollins,
1996, P. xix.
5. Ibid., p. xxi.
315
6. Ver Michael Barkun, Disaster and Millennium, New Haven, Yale
316
13. F. Dostoievski, "The Dream of a Ridiculous Man", em A Gentle
Creature and Other Stories, trad. Alan Myers, Oxford, Oxford Uni
317
27. S. N. Eisenstadt, em seu Fundamentalism, Sectarianism and Revolution:
The Jacobin Dimension of Modernity, Cambridge, Cambridge Uni
versity Press, 2000, oferece uma esclarecedora interpretação da
política moderna em que o jacobinismo tem papel central.
28. Michael Burleigh, Earthly Powers: Religion and Politics in Europe from
the French Revolution to the Great War, HarperCollins, Londres, 2005,
p. 101.
29. Ver Paul Wood, "Hunting 'Satan' in Falluja hell", BBC News, 23
de novembro de 2004.
318
8. Para um relato fundamentado dos ataques à ciência na URSS e das
11. Ver Journey of Our Time: The Journal of the Marquis de Custine,
Londres, Weidenfeld and Nicolson, 2001.
12. Ver Karl Wittfogel, Oriental Despotism: A Comparative Study of To
tal Power, Nova York, Random House, 1981.
trotsky/works/1938
20. L. Trotski, Hue and Cry Over Kronstadt, www.marxists.org/archive/
trostsky/works/1938/1938-kronstadt.htm
21. Ver George Leggett, The Cheka: Lenin's Political Police, Oxford,
Oxford University Press, 1981, p. 178.
319
22. Ver Anne Applebaum, Gulag: A History of the Soviet Camps, Londres
e Nova York, Allen Lane, 2003, p. 17.
23. Sobre as dimensões do aparato de segurança czarista e do soviéti
co, ver John J. Dziak, Chekisty: A History of the KGB, Nova York,
Ivy Books, 1988, pp. 35-6. Sobre o número de execuções no fim
da era czarista e no começo da soviética, ver ibid., pp. 191-3.
24. Sobre as ligações entre a África alemã do sudoeste e os nazistas,
ver Applebaum, Gulag, pp. 18-20.
25. Lesley Chamberlain, The Philosophy Steamer: Lenin and the Exile of
the Intelligentsia, Londres, Atlantic Books, 2006, pp. 1-2, 4.
26. Dziak, Chekisty, p. 3.
27. Harold Laski e Edmund Wilson são citados em Nekrich e Heller,
Utopia in Power, p. 257.
28. Sobre os custos humanos do Grande Salto à Frente, ver Jung Chang
320
37. Lewis Namier, Vanished Supremacies, Londres, Hamish Hamilton,
1958.
321
52. Richard J. Evans, The Third Reich in Power, Londres e Nova York,
62. Aurel Kolnai, The War Against the West, Londres, Victor Gollancz,
1938.
63. Eric Voegelin, The New Science of Politics, Chicago e Londres, Uni
versity of Chicago Press, 1952, pp. 113, 125-6.
64. Olivier Roy, Globalised Islam: The Search for a New Ummah, Londres,
Hurst, 2004, p. 44.
322
67. Kaveh L. Afrasiabi, "Shiism as Mahdism: Reflections on a Doctrine
of Hope", www.payvand.com/news/03/nov/1126.html
68. Ahmed Rashid, Taliban: Militant Islam, Oil, and Fundamentalism in
Central Asia, New Haven, Yale University Press, 2000, pp. 176-7.
O comentário de Rashid é citado por Robert Dreyfuss em seu
excelente livro Devil's Game: How the United States Helped Unleash
Fundamentalist Islam, Nova York, Metropolitan Books, 2005, p. 326.
69. Analiso o caráter moderno do islã radical e suas relações com a
globalização em meu livro Al Qaeda and What it Means to be Modern.
70. Ian Buruma e Avishai Margalit sustentam que a democracia libe
ral é "uma idéia do Ocidente", em Occidentalism: A Short History of
Anti-Westernism, Londres, Atlantic Books, 2004.
323
and the Virtues ofEnlightenment, Cambridge, Cambridge University
Press, 1999, e Emma Rothschild, Economic Sentiments: Adam Smith,
Condorcet and the Enlightenment. Cambridge MA, Harvard Uni
versity Press, 2001.
9. Griswold Jr, Adam Smith and the Virtues of Enlightenment, p. 302.
10. Viner, The Role of Providence in the Social Order, pp. 78-9.
11. Para uma análise do papel da economia política como moderna
religião, ver Robert H. Nelson, Economics as Religion: From Samuelson
to Chicago and Beyond, University Park PA, Pennsylvania State
University Press, 2001.
p. 140.
15. F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, Londres, Routledge, 1960,
p. 57.
16. Ibid., p. 61.
17. A declaração de Blair foi feita na conferência do Partido Trabalhis
ta em setembro de 2004, em defesa de seu envolvimento na guer
ra no Iraque. Ver Guardian, 29 de setembro de 2004.
18. Para exemplos de pensamento neoconservador, ver Irwin Stelzer
(org.), Neoconservatism, Londres, Atlantic Books, 2005, contendo
uma contribuição de Tony Blair; e Irving Kristol, Neoconservatism:
The Autobiography of an Idea, Nova York, Free Press, 1995.
19. John Kampfner, Blair's Wars, Londres e Nova York, Free Press,
2004, p. 173.
20. Tony Blair, discursos do primeiro-ministro, http://www.number
10.gov.uk/output/Page1297.asp
21. Ibid.
324
24. Ver Dilip Hiro, Secrets and Lies: The True Story of the Iraq War,
Londres, Politico's, 2005, pp. 62-6, 131-3. Ver também Brian
Jones, "What they didn't tell US about WMD", New Statesman,
11 de dezembro de 2006.
4 A americanização do Apocalipse
325
3. Ver http://history.hanover.edu/texts/winthmod.html
4. Ver Paul Boyer, When Time Shall Be No More: Prophecy and Belief in
Modern American Culture, Cambridge MA, Harvard University
Press, 1992, pp. 68-70.
5. John Galt, The Life and Studies of Benjamin West, Londres, 1819, p.
92; citado por Ernest Lee Tuveson, Redeemer Nation: The Idea of
America's Millennial Role, Chicago e Londres, University of Chi
cago Press, 1968, pp. 95-6.
6. Sobre o contexto e o conteúdo teológicos das idéias de Locke, ver o
pioneiro livro de John Dunn The Political Thought of John Locke,
Cambridge, Cambridge University Press, 1969 e 1982.
7. Anatol Lieven, America Right or Wrong: An Anatomy of American
Nationalism, Londres, HarperCollins, 2004, p. 51.
8. Para uma análise das idéias de Tocqueville sobre o excepcionalismo
americano, ver a biografia definitiva escrita por Hugh Brogan,
Alexis de Tocqueville, Londres, Profile, 2006, p. 270.
9. Woodrow Wilson falando em Pueblo, 25 de setembro de 1919,
www.americanrhetoric.com/speeches/wilsonleagueofnations.htm
10. Edmund Stillman e William Pfaff, Power and Impotence: The Futility
326
14. A utilização de frases bíblicas nos discursos de Bush foi analisada
pelo teólogo americano Bruce Lincoln em Holy Terrors: Thinking
about Religion After 9/11, Chicago, University of Chicago Press,
2006.
20. Para mais detalhes sobre a pesquisa da Newsweek, ver Michael Lind,
Made in Texas: George W. Bush and the Southern Takeover of American
Politics, Nova York, Basic Books, 2003, p. 108.
21. O documento sobre a Segurança Interna pode ser encontrado em
www.global security.org/security/library/report/2004.hsc
planning-scenarios-jul2004-intro.htm
22. Richard A. Clarke, Against All Enemies: Inside America's War on Terror,
Nova York e Londres, Free Press/Simon and Schuster, 2004, p. 264.
23. Lind, Made in Texas, p. 144.
24. Pesquisa Time/CNN, Time, julho de 2002. Citado em Phillips,
American Theocracy, p. 96.
25. Lind, Made in Texas, p. 112.
26. Para um relato do alcance da pressão de Bush por um governo
baseado na fé, ver Gary Wills, "A country ruled by faith", New
York Review of Books, vol. 53, n° 16, novembro de 2006.
27. Karl Mannheim, Ideology and Utopia, Londres, Routledge, 1960,
p. 192.
28. Jeane J. Kirkpatrick, Dictatorships and Double Standards: Ratio
nalism and Reason in Politics, Nova York, American Enterprise In
stitute/Simon and Schuster, 1982, p. 18.
29. Michael Novak, "Neocon: some memories", www.michaelnovak.net.
30. Ver Irving Kristol, "Memoirs of a Trotskyist", New York Times
Magazine, 23 de janeiro de 1977, reproduzido em Irving Kristol,
Reflections of a Neoconservative: Looking Back, Looking Forward, Nova
York, Basic Books, 1986.
327
31. Francis Fukuyama, "The End of History?", National Interest, verão
de 1989. Fukuyama desenvolveu os pontos de vista expostos nesse
artigo em The End of History and the Last Man, Nova York, Free
Press, 1992.
38. Leo Strauss, Natural Right and History, Chicago e Londres, Uni
versity of Chicago Press, 1953, pp. 181-2
328
39. Ibid., P. 164.
40. Sobre a alegação de que as idéias de Strauss justificariam a im
rior: James Jesus Angleton, the CIA's Master Spy Hunter, Londres e
Nova York, Simon and Schuster, 1991.
48. Para uma análise fundamentada dos métodos e erros da Equipe B,
ver Anne H. Cahn, Killing Détente: The Right Attacks the CIA, Uni
versity Park PA, Pennsylvania State University Press, 1998. Ver
410 et seq.
50. Schmitt e Shulsky desenvolveram sua análise dos métodos de inteli
gência de maneira mais sistematizada em Silent Warfare: Understanding
the World of Intelligence, 3ª ed., Washington DC, Brassey's, 2002.
51. Sobre os comentários do assessor de Bush, ver Ron Suskind,
"Without a doubt", New York Times, 17 de outubro de 2004.
329
52. Bob Woodward faz um relato das imposturas e delírios que cerca
ram a questão da guerra na Casa Branca em seu brilhante livro
State ofDenial: Bush at War, Part III, Nova York, Simon and Schuster,
2006.
53. George Packer, The Assassins' Gate: America in Iraq, Nova York,
5 Missionários armados
330
3. Robert L. Hirsch et al., Peaking of World Oil Production: Impacts,
Mitigation and Risk Management, p. 64. O relatório se encontra em
http://www.projectcensored.org/newsflash The_Hirsch_Report_
Proj_Cens.pdf
4. Está em constante expansão a literatura sobre a geopolítica do pe
tróleo. O melhor estudo de que tenho conhecimento é Michael T.
Klare, Blood and Oil: The Dangers and Consequences of America's
Growing Petroleum Dependency, Londres, Penguin, 2004.
5. O texto completo do discurso de Cheney se encontra no Energy
Bulletin em http://www.energybulletin.net/559.html
6. Para um relato sobre o documento do Departamento de Estado e
seu destino, ver M. W. Shervington, "Lessons of Iraq: Invasion and
Occupation", Small Wars Journal, vol. 5, julho de 2006, pp. 15
29. Ojornal pode ser encontrado em www.smallwarsjournal.com
7. Dez dias antes da invasão liderada pelos EUA, eu escrevi que "a
visão [do governo Bush] sobre o pós-guerra é extremamente con
fusa (...) Existe o risco de que o Estado iraquiano, uma estrutura
vacilante improvisada por funcionários britânicos de partida, se
frature e fragmente à maneira da Iugoslávia e mesmo da Chechênia”.
Ver "America is no longer invincible", New Statesman, 10 de mar
ço de 2003, reproduzido com o título "On the Eve of War: American
Power and Impotence", em John Gray, Heresies: Against Progress
and Other Illusions, Londres, Granta Books, 2004, p. 140.
8. Sobre o comentário de Rumsfeld, ver The Nation, 14 de abril de 2003.
9. Para um relato fundamentado da vida e carreira de Bell, ver
Georgina Howell, Daughter of the Desert: The Remarkable Life of
Gertrude Bell, Londres, Macmillan, 2006.
10. James Mann, Rise of the Vulcans: The History of Bush's War Cabinet,
Nova York, Viking, 2004, p. 367.
11. Thomas E. Ricks, Fiasco: The American Military Adventure in Iraq,
Londres, Penguin, 2006, p. 162.
12. A análise de Lancet é resumida em "655,000 Iraqis killed since
invasion", Guardian, 11 de outubro de 2006. Um resumo mais
331
Para detalhes do relatório da ONU sobre tortura no Iraque depois
da derrubada de Saddam Hussein, ver "New terror stalks Iraq's
18. Para uma análise dos aspectos culturais da política externa ame
ricana, ver George Walden, God Won't Save America: Psychosis of a
Nation, Londres, Gibson Square, 2006.
19. George Santayana, The Birth of Reason and Other Essays, Nova York,
Columbia University Press, 1968, p. 87.
20. Michael Ignatieff, "The burden", New York Times Magazine, 5 de
janeiro de 2003.
21. Paul Berman, Terror and Liberalism, Nova York e Londres, Norton,
2004, pp. 189-90.
22. A observação é citada por Robert Kaplan em Imperial Grunts: The
American Military on the Ground, Nova York, Random House, 2005,
p. 205.
23. Emmanuel Todd, After the Empire: The Breakdown of the American
332
26. Sobre a privação de sono na Rússia stalinista e em Guantánamo,
ver Vladimir Bukovsky, "Torture's long shadow", Washington Post,
18 de dezembro de 2005. Como relata o artigo, o próprio Bukovsky
foi torturado como dissidente soviético. Sobre a privação de sono
em Guantánamo, ver também "The real victims of sleep depri
vation", BBC News, 8 de janeiro de 2004.
27. Ver Deborah Sontag, “A videotape offers a window into a terror
suspect's isolation", New York Times, 4 de dezembro de 2006.
31. Martin van Creveld, The Changing Face of War: Lessons of Combat,
from the Marne to Iraq, Nova York, Ballantine Books, 2006, p. 229.
32. Ver "Campaign in Iraq has increased terror threat, says American
intelligence report", Guardian, 25 de setembro de 2006.
33. Sobre a concepção da Guerra Longa sustentada por Donald Rumsfeld,
ver "Rumsfeld offers strategy for current war: Pentagon to release
20-year plan today", Washington Post, 3 de fevereiro de 2006. O
Counter-insurgency Field Manual do Exército e do Corpo de Fuzileiros
Navais dos EUA, publicado em dezembro de 2006, contém uma
análise mais sofisticada. Ver www.military.com, 16 de dezembro
de 2006, "New counter-insurgency manual".
34. Ver, por exemplo, David Frum e Richard Perle, An End to Evil: How
to Win the War on Terror, Nova York, Random House, 2003.
pp. 149-63.
36. Robert A. Pape, Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism,
Nova York, Random House, 2005.
333
38. Para uma esplêndida narrativa analítica do desenvolvimento da
al-Qaeda, ver Lawrence Wright, The Looming Tower: Al-Qaeda and
the Road to 9/11, Nova York, Knopf, 2006.
39. Olivier Roy, Globalised Islam: The Search for a New Ummah, Londres,
Hurst, 2004, p. 44.
40. Martin van Creveld faz um apanhado da estratégia britânica na
Irlanda do Norte in The Changing Face of War, pp. 229-36.
41. Ver Philip Bobbitt, The Shield of Achilles: War, Peace and the Course
of History, Londres, Allen Lane, 2002.
6 Pós-Apocalipse
334
2006. Para uma esclarecedora interpretação recente da filosofia de
Spinoza, ver Stuart Hampshire, Spinoza and Spinozism, Oxford,
Clarendon Press, 2005.
7. Tzvetan Todorov, Hope and Memory: Lessons from the Twentieth Cen
tury, Princeton NJ, Princeton University Press, 2003, pp. 236-7.
8 Hedley Bull, The Control of the Arms Race, Londres, Weidenfeld and
Nicolson, 1961, p. 212.
workshops/primarysources/coldwar/docs/tele.html
11. Isaiah Berlin, Political Ideas in the Romantic Age, Princeton NJ,
Nature Will Take Her Revenge for Climate Change, Londres, Trans
world Publishers, 2006; e Jim Hansen, “The threat to the planet",
New York Review of Books, vol. 53, n° 12, 13 de julho de 2006. Uma
335
13. O relatório, redigido por Peter Schwartz e Doug Randall, pode ser
baixado em http://www.environmentaldefense.org/documents/
3566_AbruptClimateChange.pdf
14. Para uma argumentação em favor dos combustíveis fósseis total
mente isentos de emissões como alternativa sustentável, ver Mark
336