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O SENADOR: Estamos diante de um abismo para o qual é

melhor não olhar.

O CONDE: Meu amigo, não temos como deixar de olhar.

Joseph de Maistre, Diálogos de São Petersburgo¹

Missa negra: Ritual sacrílego no qual a missa cristã é


rezada de trás para a frente.
Sumário

Agradecimentos 9

1. A morte da utopia 11

2. Iluminismo e terror no século XX 61

3. A utopia adotada nas correntes centrais do


pensamento 115

4. A americanização do Apocalipse 163

5. Missionários armados
219

6. Pós-Apocalipse 275

Notas
315

Índice remissivo 337


Agradecimentos

Muitas pessoas me ajudaram a escrever este livro. Do diálo


go com Norman Cohn extraí enorme proveito, e sem ele não
poderia ter desenvolvido a interpretação da política e da
religião modernas aqui exposta. As conversas com Bryan
Appleyard, Robert Colls, Michael Lind, Adam Phillips e Paul
Schütze foram integradas ao livro de muitas formas. Simon
Winder, meu editor na Penguin, deu-me sugestões inestimá
veis e me estimulou a cada etapa da redação do livro. Tracy

Bohan, da Wylie Agency UK, em Londres, e Eric Chinski, na


Farrar Straus Giroux, em Nova York, assim como Nick Garrison,

anteriormente na Doubleday Canada e hoje diretor de comu


nicação da empresa ambiental Zero Footprint, foram de enor
me ajuda com seus comentários. Sou extremamente grato a
David Rieff por suas idéias penetrantes na última etapa da
redação. A responsabilidade pelo livro é, naturalmente, minha.
Minha maior dívida é com Mieko, que tornou possível este
livro.

John Gray
1

A morte da utopia

A política moderna é um capítulo na história da religião. Os


grandes movimentos revolucionários que tanto influencia
ram a história dos dois últimos séculos foram episódios da
história da fé: momentos do longo processo de dissolução do
cristianismo e ascensão da moderna religião política. O mundo
em que vivemos no início do novo milênio está coberto de
escombros de projetos utópicos, os quais, embora estrutura
dos em termos seculares que negavam a verdade da religião,
constituíam de fato veículos para os mitos religiosos.
O comunismo e o nazismo se diziam baseados na ciência

no caso do comunismo, a pseudociência do materialismo


histórico, e no nazismo, o saco de gatos do "racismo científi
co". Eram pretensões fraudulentas, mas a utilização da pseu
dociência não teve fim com o colapso do totalitarismo que

culminou na dissolução da URSS em dezembro de 1991. Teve


continuidade em teorias neoconservadoras segundo as quais
o mundo avança para uma forma única de governo e siste
ma econômico a democracia universal ou o livre mercado
-

global. Apesar de ser apresentada nas roupagens da ciência


social, esta crença de que a humanidade estaria no limiar de

11
uma nova era não passa da mais recente versão de crenças
apocalípticas que remontam às épocas mais antigas.
Jesus e seus seguidores acreditavam estar vivendo no fim
dos tempos, quando os males do mundo seriam extintos. A
doença e a morte, a fome, a guerra e a opressão deixariam de
existir após a derrota das forças do mal numa luta que aba
laria o mundo. Era esta a fé que inspirava os primeiros cris
tãos, e embora o fim dos tempos viesse a ser interpretado por
cristãos de épocas posteriores como uma metáfora da mudan
ça espiritual, as visões do Apocalipse vêm rondando a vida
ocidental desde essa época remota.
Na Idade Média, a Europa foi sacudida por movimentos
de massa inspirados na crença de que a história estava chegando
ao fim e um novo mundo surgiria. Esses cristãos medievais
acreditavam que só Deus poderia propiciar o surgimento do
novo mundo, mas a crença no fim dos tempos não se dissi
pou quando o cristianismo começou a declinar. Pelo contrá
rio, à medida que o cristianismo perdia força, a esperança de
um iminente fim dos tempos tornou-se mais forte e mais
militante. Modernos revolucionários como os jacobinos fran

ceses e os bolcheviques russos rejeitavam a religião tradicio


nal, mas sua convicção de que os crimes e desvarios do passado
poderiam ser deixados para trás numa abrangente transfor
mação da vida humana vinha a ser uma reencarnação secular
de primitivas crianças cristãs. Esses revolucionários modernos
eram expoentes radicais do pensamento iluminista, que pre
tendia substituir a religião por uma visão científica do mun
do. Mas a crença iluminista radical de que é possível uma
súbita ruptura histórica, após a qual as mazelas da socieda

de humana serão para sempre abolidas, é um subproduto do


cristianismo.

12
As ideologias iluministas dos últimos séculos têm sido em
grande medida formas maldisfarçadas de teologia. A histó
ria do último século não fala de avanço secular, como pre
ferem supor os bem-pensantes da direita e da esquerda. As
tomadas do poder pelos bolcheviques e os nazistas foram
tão movidas pela fé quanto a insurreição teocrática do aia
tolá Khomeini no Irã. A própria idéia da revolução como um
acontecimento transformador da história se deve à religião.
Os modernos movimentos revolucionários são uma conti

nuação da religião por outros meios.


Nem só os revolucionários se têm apegado a versões se
culares de crenças religiosas. O mesmo fazem os humanistas
liberais, encarando o progresso como um lento combate
cumulativo. A convicção de que o mundo está para acabar e

a crença no progresso gradual podem parecer opostas-con


templando, num caso, a destruição do mundo, e, no outro, o
seu aperfeiçoamento —, mas no fundo não são tão diferen
tes. Preguem a mudança gradual ou a transformação revolu

cionária, as teorias do progresso não são hipóteses científicas.


São mitos que atendem à necessidade humana de significado.
Desde a Revolução Francesa, uma sucessão de movimen

tos utópicos vem transformando a vida política. Sociedades


inteiras foram destruídas e o mundo mudou, sem possibili
dade de retorno. A alteração contemplada pelos pensadores
utópicos não se produziu, e na maioria dos casos seus proje
tos levaram a resultados opostos aos pretendidos. O que não
impediu que projetos semelhantes fossem repetidas vezes
empreendidos, até o início do século XXI, quando a nação mais
poderosa do planeta iniciou uma campanha para exportar
democracia para o Oriente Médio e o resto do mundo.

Os projetos utópicos reproduziam mitos religiosos que


haviam inflamado os movimentos de massa dos crentes da

13
Idade Média, gerando violência semelhante. O terrorismo se
cular dos tempos modernos é uma versão mutante da vio
lência que acompanhou o cristianismo ao longo de sua
história. Ao longo de mais de 200 anos, a primitiva crença
cristã num fim dos tempos promovido por Deus transfor
mou-se na crença de que a Utopia poderia ser alcançada pela
ação humana. Sob aparência científica, os mitos cristãos ori
ginais do Apocalipse deram origem a um novo tipo de vio
lência baseada na fé.

Quando o projeto de uma democracia universal terminou


nas ruas ensangüentadas do Iraque, esse padrão começou a
ser revertido. O utopismo sofreu um sério golpe, mas a políti
ca e a guerra não deixaram de ser veículos para o mito. Pelo
contrário, versões primitivas da religião vêm substituindo a fé
secular que foi perdida. A religião apocalíptica determina as
políticas do presidente americano George W. Bush e de seu
antagonista Mahmud Ahmadinejad no Irã. Onde quer que se
manifeste, a revivescência da religião vem de cambulhada com
conflitos políticos, inclusive na crescente luta pelas reservas,
cada vez mais exíguas, de recursos naturais do planeta; mas
não resta dúvida de que a religião voltou a ser um poder de ple
no direito. Com a morte da Utopia, a religião apocalíptica vol
tou a surgir, nua e crua, como uma força na política mundial.

POLÍTICA APOCALÍPTICA

"Um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a pri
meira terra se foram", lemos no Apocalipse. Eliminem o "céu",
mantendo apenas a "nova terra", e terão o segredo e a receita
de todos os sistemas utópicos.

E. M. Cioran¹

14
As raízes religiosas dos modernos movimentos revolucioná
rios foram primeiro analisadas sistematicamente no seminal
estudo The Pursuit of the Millennium,2 de Norman Cohn. Com
freqüência se tem observado que, para seus seguidores, o co
munismo ofereceu muitas das funções de uma religião — o
que se refletia no título de uma famosa coletânea de ensaios
de ex-comunistas desiludidos, The God that Failed, publicada
pouco depois do início da Guerra Fria.³ Cohn mostrou que as
semelhanças iam muito mais longe do que se havia percebido.

Em seu apogeu, o comunismo do século XX reproduzia mui


tas características dos movimentos milenaristas que sacudi

ram a Europa no fim da era medieval. O comunismo soviético


foi uma moderna revolução milenarista, e o mesmo se pode
dizer do nazismo - embora a visão do futuro abraçada por
-

muitos nazistas fosse, sob certos aspectos, mais negativa.


Convém aqui esclarecer certos termos importantes. Às
vezes chamados quiliastas uma quilíade é qualquer coisa
que contenha mil partes, e os milenaristas cristãos acreditam
que Jesus voltará à Terra e nela estará à frente de um novo
reino por mil anos —, os milenaristas abraçam uma visão
apocalíptica da história. Na linguagem comum, "apocalíptico"
denota um acontecimento catastrófico, mas em termos bí
blicos a expressão deriva da palavra grega que designa desven
damento um apocalipse é uma revelação na qual mistérios
escritos no céu são revelados no fim dos tempos, e para os

Eleitos isto não significa catástrofe, mas salvação. A escato


logia é a doutrina das coisas derradeiras e do fim do mundo
(em grego, eschatos significa "último", "mais remoto"). Como
já disse, o cristianismo primitivo era um culto escatológico:
Jesus e seus primeiros discípulos acreditavam que o mundo
estava destinado a uma iminente destruição, para que um
novo mundo, perfeito, pudesse surgir. A escatologia nem

15
I

sempre tem esse caráter positivo: em certas tradições pagãs,


o fim do mundo significa morte dos deuses e calamidade fi
nal. Embora os nazistas adotassem uma demonologia cristã,
sua ideologia continha uma escatologia negativa desse tipo.
Todavia, foi uma versão positiva da crença apocalíptica que
nutriu os movimentos milenaristas medievais e seculares,

contemplando um fim de mundo em que os males deste


mundo desapareceriam para sempre. (O milenarismo é às ve
zes distinguido do milenialismo, acreditando aquele literal
mente na volta do Cristo, enquanto este último contempla a
chegada de um reino sagrado. Mas o emprego dos dois termos
não costuma seguir um padrão coerente, e, exceto quando
indicado, vou utilizá-los indiferentemente.)

Nas formas por meio das quais afetou as sociedades oci


dentais, o milenarismo é uma herança cristã. A maioria das
religiões carece de qualquer concepção da história como uma
estória com princípio e fim. Os hindus e os budistas encaram
a vida humana como um momento num ciclo cósmico; a
salvação é a libertação desse ciclo infindável. Platão e seus
discípulos na Europa pré-cristã encaravam a vida humana
praticamente da mesma forma. O antigo judaísmo nada con
tinha que se parecesse com a idéia de que o mundo estava
para chegar ao fim. Foi o cristianismo que introduziu a cren
ça de que a história humana é um processo teleológico. A
palavra grega telos significa "fim", que, em inglês, significa
tanto conclusão de um processo quanto a meta ou objetivo
a que esse processo pode servir. Ao pensar a história em ter
mos teleológicos, os cristãos acreditavam que ela tinha um
fim em ambos os sentidos: a história tinha um objetivo pre
determinado, e quando ele fosse alcançado, ela chegaria ao
fim. Pensadores seculares com Marx e Fukuyama herdaram
essa teleologia, subjacente em suas teses sobre "o fim da his

16
tória". Na medida em que encaram a história como um mo

vimento, não necessariamente inevitável, mas na direção de


uma meta universal, as teorias do progresso também se es
coram numa visão teleológica. Por trás de todas essas con
cepções está a crença de que a história não deve ser entendida
em termos de causas, mas em termos de sua finalidade, que
vem a ser a salvação da humanidade. Esta idéia só passou a
fazer parte do pensamento ocidental com o cristianismo, e
desde então o vem influenciando.

Os movimentos milenaristas não ocorreram apenas no

Ocidente cristão. Em 1853, Hong Xiuquan, líder de um mo


vimento denominado Exército Celestial de Taiping, que se
acreditava o irmão menor de Jesus, fundou em Nanjing uma
comunidade utópica que durou onze anos, até ser destruída

após um conflito em que morreram mais de vinte milhões de


pessoas. A Rebelião de Taiping é apenas uma dentre as várias
sublevações chinesas movidas por idéias milenaristas, e em
bora essas idéias possam ter sido levadas ao país por missio
nários cristãos, também é possível que já estivessem presentes
concepções semelhantes. Cabe supor que já a partir do tercei
ro século houvesse no país crenças a respeito de uma era de
destruição a ser seguida por outra de paz, sob a liderança de um
salvador celestial.5

Sejam ou não de origem especificamente ocidental, cren


ças dessa natureza tiveram uma influência formadora na vida
do Ocidente. O quiliasmo medieval refletia crenças que re
montam aos primórdios do cristianismo. Religiões políticas
modernas como o jacobinismo, o bolchevismo e o nazismo
reproduziam crenças milenaristas em termos científicos. Se
fosse possível formular uma definição simples da civilização
ocidental, ela teria de ser vazada em termos do papel central
do pensamento milenarista.

17
As crenças milenaristas são uma coisa, outra são os mo
vimentos milenaristas e outra, ainda, os regimes milenaristas.
Os movimentos milenaristas só se desenvolvem em circuns

tâncias históricas específicas. Elas podem configurar-se em


condições de desequilíbrio social em larga escala, como na
Rússia czarista e na Alemanha de Weimar depois da Primeira
Guerra Mundial; ou, então, num único acontecimento trau
mático, como aconteceu nos Estados Unidos no 11 de se
tembro. Movimentos dessa natureza freqüentemente estão
associados a catástrofes. As crenças milenaristas são sinto
mas de um tipo de dissonância cognitiva no qual ruíram os
elos normais entre a percepção e a realidade.6 Na Rússia e na
Alemanha, a guerra e o colapso econômico geraram regimes
milenaristas, com todo o seu aparato, ao passo que na Amé
rica um atentado terrorista de caráter inédito levou a um surto

milenarista do qual fizeram parte uma guerra desnecessária


e uma mudança constitucional. O momento e a maneira de
transformação das crenças milenaristas em forças decisórias
no terreno da política dependem dos acidentes da história.
As crenças apocalípticas remontam às origens do cristia
nismo e ainda mais atrás. A recorrente manifestação dessas

crenças ao longo da história do cristianismo não é uma in


cursão a partir de território exterior à fé, mas o indício de
algo que estava presente desde o início. Os ensinamentos de Je
sus apoiavam-se na crença de que a humanidade estava em
seus últimos dias. A escatologia era um elemento central do
movimento por ele inspirado. Neste sentido, Jesus pertencia
a uma tradição apocalíptica judaica, mas a visão radicalmente
dualista do mundo que vai de par com as crenças apocalípticas
não é encontrada no judaísmo bíblico. O papel central da es
catologia no ensinamento de Jesus reflete a influência de ou
tras tradições.

18
Os estudos históricos contemporâneos demonstraram
além de qualquer dúvida razoável que Jesus pertencia a
uma corrente heterodoxa do judaísmo carismático.' A pa
lavra "cristão", que veio a ser aplicada aos seus seguido
res, deriva da palavra grega christos, "o ungido", que
também é o significado de "messias" em hebraico e ara
maico. A palavra "messias" raramente é encontrada na
Bíblia hebraica, e quando aparece é um título concedido
ao rei ou a um supremo sacerdote. Com o desenvolvimen
to do cristianismo como religião universal, da época de
Paulo em diante, a expressão “o messias” veio a designar
uma figura divina enviada por Deus para redimir toda a
humanidade.

Originalmente uma mensagem dirigida apenas aos ou


tros judeus, os ensinamentos de Jesus diziam que o velho
mundo estava para chegar ao fim e que um novo reino sur
giria. Haveria infinita abundância dos frutos da terra. Os que
vivessem no novo reino — inclusive os justos dentre os mor

tos, que seriam trazidos de volta à vida - estariam livres de


males físicos e mentais. Vivendo num novo mundo sem cor

rupção, eles serão imortais. Jesus foi enviado para anunciar


esse novo reino e nele reinar. Existe muita coisa original e
admirável no ensinamento ético de Jesus. Ele não só defen

dia os fracos e indefesos, como haviam feito outros profetas


judeus, como abriu os braços para os renegados deste mun
do. Mas a crença de que um novo reino se aproximava esta
va no cerne de sua mensagem, e assim foi aceita por seus
discípulos. O novo reino não chegou, e Jesus foi preso e exe
cutado pelos romanos. A história do cristianismo é uma sé
rie de tentativas de chegar a bom termo com essa experiência
fundadora de decepção escatológica.

19
Albert Schweitzer entendeu bem esse dilema ao escrever:

Consciente de que é o filho do homem que se manifestou,


Jesus lança mão da roda do mundo para pô-la em movimento
nessa última revolução que levará toda a história comum
ao seu fim. Ela se recusa a girar, e ele se atira sobre ela. Ao se
pôr em movimento, ela o esmaga; em vez de gerar a condi
ção escatológica, ou seja, a condição de perfeita fé e ausência
de culpa, ele destruiu essas condições.8

Na verdade, a esperança escatológica não foi destruída.


Entre seus seguidores na Igreja primitiva, surgiu a crença de
que Jesus ergueu-se dentre os mortos e subiu ao céu. Não
demorou para que se tentasse interpretar o ensinamento de
Jesus a respeito do fim do mundo como uma metáfora sobre
a mudança interior.
Já em são Paulo encontramos a sugestão de que o reino
do céu é uma alegoria da mudança espiritual. Foi Paulo
um judeu helenizado também chamado de Saulo de Tarso
que contribuiu mais que ninguém para transformar o mo
vimento liderado por Jesus de uma seita judaica dissidente
numa religião universal. Paulo compartilhava a expectativa
dos primeiros discípulos de Jesus de que o mundo estava che
gando ao fim, mas abriu caminho para uma visão do Fim
que se aplicava a toda a humanidade. Uma tentativa mais
sistemática de diluir as expectativas escatológicas que anima
vam Jesus e seus discípulos foi feita por santo Agostinho
(354-430 d.C.). Agostinho começou como seguidor da religião
maniqueísta, que encarava o mal como uma característica
permanente do mundo, e sua teologia mostra sinais evidentes
dessa concepção. Enquanto Mani acreditava que a guerra
entre a luz e as trevas continuaria para sempre, os seguidores
de Jesus esperavam um fim dos tempos no qual o mal seria

20
definitivamente destruído. Agostinho acreditava que os seres
humanos eram irremediavelmente imperfeitos, e esta dou
trina do pecado original tornou-se o dogma central da orto
doxia cristã. Mas pode ser devida antes a Mani que a Jesus.
Outra importante influência na reformulação da fé cristã
empreendida por Agostinho foi o platonismo. Impressiona
do com a idéia de Platão de que as coisas espirituais perten
cem a um reino eterno, Agostinho propôs que o fim dos

tempos fosse entendido em termos espirituais não como


-

um acontecimento que ocorrerá em dado momento do futuro,


mas como uma transformação íntima que pode acontecer a
qualquer momento. Ao mesmo tempo, Agostinho introdu
zia no cristianismo uma distinção categórica entre a cidade
do Homem e a Cidade de Deus. Como a vida humana é mar

cada pelo pecado original, as duas cidades nunca poderão fun


dir-se. O mal vem agindo em cada coração humano desde a
Queda do Homem; não pode ser derrotado neste mundo. Esta

doutrina conferiu ao cristianismo uma disposição antiutópica


que ele nunca perdeu completamente, sendo os cristãos pou
pados da desilusão que se abate sobre todo aquele que espera
mudanças muito profundas nas questões humanas. Em ter
mos agostinianos, a crença de que o mal pode ser destruído,
que inspirava os milenaristas medievais e voltou à tona no
governo Bush, nada tem de ortodoxa. E, no entanto, uma cren
ça dessa natureza era uma das características centrais do cul
to apocalíptico abraçado pelos seguidores de Jesus. Os surtos
de quiliasmo que se manifestam periodicamente na história
ocidental representam regressões heréticas às origens cristãs.

Ao desliteralizar a esperança no Fim, Agostinho preser


vava a escatologia ao mesmo tempo que reduzia seus riscos.
O reino de Deus existia numa esfera fora do tempo, e a trans
formação interior por ele simbolizada podia efetivar-se em

21
qualquer ponto da história. Com a denúncia do milenarismo
pelo Conselho de Éfeso em 431, a Igreja adotava essa visão
agostiniana, o que não impediu o surgimento de movimen
tos quiliastas que resgatavam as crenças que haviam inspi
rado Jesus. E tampouco teve fim o papel do quiliasmo na
própria Igreja. No século XII, Joaquim de Flora (1132–1202)
inverteu a teologia agostiniana. Julgando-se conhecedor de
um significado esotérico das escrituras, Joaquim — um aba
de cisterciense que viajara à Terra Santa, onde teve uma espécie
de revelação espiritual - transformou a doutrina cristã da
Trindade numa filosofia da história em que a humanidade
ascendia através de três estágios. Partindo da Era do Pai e pas
sando pela Era do Filho, ela chegaria à Era do Espírito - uma
época de fraternidade universal que prosseguiria até o Juízo
Final. Cada uma dessas eras tinha um líder, estando Abraão
frente da primeira e Jesus, da segunda. Um derradeiro líder

encarnando a terceira pessoa da divina trindade inauguraria


a Terceira Idade, que, na expectativa de Joaquim, chegaria em
1260. A filosofia trinitária da história enunciada por Joaquim
voltou a infundir fervor escatológico no cristianismo medie
val, aparecendo novas versões de sua esquematização em três
etapas em muitos pensadores cristãos posteriores. Incorpo
rada por uma ala radical da ordem franciscana, a profecia de
Joaquim inspirou movimentos milenaristas no sul da Europa.
Na Alemanha, contribuiu para o surgimento de um culto
messiânico em torno do imperador Frederico II, que, depois
de conquistar a cidade numa cruzada, coroou-se rei de Jerusa
lém e foi denunciado pelo papa Gregório IX como o Anticristo.
A divisão da história humana em três eras teve um pro
fundo impacto no pensamento secular. A visão da evolução
da liberdade humana em três estágios dialéticos enunciada por
Hegel, a teoria do movimento do comunismo primitivo para

22
o comunismo global por meio da sociedade de classes expos
ta por Marx e a visão positivista da evolução da humanidade
de etapas religiosas de desenvolvimento para etapas meta
físicas e científicas, na concepção de Auguste Comte, repro
duzem igualmente o esquema das três partes. A habitual
divisão da história em três fases — antiga, medieval e moderna

- faz eco ao esquema joaquimista. Mais impressionante ain


da, como veremos no próximo capítulo, é o fato de a profecia
de Joaquim sobre uma terceira era ter dado ao Estado nazista
o nome de Terceiro Reich. (Conceitos como os de antigo e
moderno tornaram-se categorias incontornáveis da arte, e have
rei de usá-los mesmo quando criticar o esquema de pensa
mento que expressam.)
Nas versões seculares do Apocalipse, a nova era se mani
festa por meio da ação humana. Para Jesus e seus discípulos,
o novo reino só poderia concretizar-se pela vontade de Deus;
mas a vontade de Deus encontrava resistência no poder do

mal, por eles personificado como Belial, ou Satã. Nesta visão


das coisas, o mundo é dividido entre forças boas e más; che
ga-se inclusive a sugerir que a humanidade pode ser gover
nada por um poder diabólico. Nada parecido será encontrado
na Bíblia hebraica. Satã aparece no Livro de Jó, mas como
emissário de Yahweh, e não como uma personificação do mal.
A visão do mundo como campo de batalha entre forças do
bem e do mal só se desenvolveu em posteriores tradições apo
calípticas judaicas.
Existem muitas semelhanças entre a religião zoroastriana
do zurvanismo e as crenças apocalípticas judaicas como as
que estão registradas nos Manuscritos do Mar Morto, e o pen
samento apocalíptico judaico muito provavelmente reflete a
influência do zoroastrismo. Foi ao que parece Zoroastro
um profeta iraniano também conhecido como Zaratustra, que

23
viveu por volta de 1500 e 1200 a.C. quem primeiro for
mulou a idéia da vida humana como uma batalha entre a luz
e as trevas que poderia terminar na vitória da luz. O zoroas
trismo é uma das mais pacíficas religiões da história. Todavia,
por sua influência formadora no judaísmo, no cristianismo
e no islã, Zoroastro pode ser a fonte primordial do tipo de
violência de motivação religiosa que tantas vezes se tem ma
nifestado ao longo da história ocidental.
Muitas tradições vêem a vida humana como uma guerra
entre o bem e o mal, mas presumindo que o conflito persisti
rá eternamente. Encontramos na mitologia egípcia uma inter
minável alternância entre luz e trevas. Houve quem esperasse
que a luta terminasse nas trevas - no século VIII a.C., o poeta
-

grego Hesíodo apresentava a história humana como um pro

cesso de declínio de uma Era de Ouro primordial para uma


era de ferro em que a humanidade seria destruída. Se existe
alguma coisa parecida com uma sociedade perfeita, está situa
da no passado nunca se concebeu a idéia de que a luta cós
mica pudesse terminar na vitória da luz. Talvez nem mesmo
Zoroastro acreditasse que seu triunfo estivesse predetermi
nado. Em vez de anunciar o fim do mundo, os textos zoroas
trianos convocam os seguidores do profeta para uma luta de
resultado duvidoso. Ainda assim, a crença de que o bem po
deria triunfar representava uma novidade no pensamento
humano, e até onde sabemos, isto veio de Zoroastro.⁹
Essa visão dualista do mundo foi herdada pela religião de
Mani, o profeta iraniano tardio nascido em torno de 216 a.C.

na Babilônia, martirizado por heresia pelas autoridades zo


roastrianas em 277 e cujos ensinamentos tiveram tão pro
funda influência em Agostinho. Mani diferia de Zoroastro por
acreditar que a dualidade entre luz e trevas é uma caracterís
tica permanente do mundo. O maniqueísmo chegou até a

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China, adotando parte da imagística e do simbolismo do bu
dismo. Em meio a essas transformações, os maniqueus pre
servavam a convicção de que o mal jamais seria erradicado.
Neste ponto, a religião de Mani difere radicalmente do zo
roastrismo e dos ensinamentos de Jesus.

O dualismo maniqueísta encontrou guarida no gnos


ticismo, que, mesmo perseguido pelo cristianismo, veio a
ressurgir sob muitas diferentes roupagens até a era moder
na. O gnosticismo é uma tradição de extraordinária comple
xidade, mas seu conceito central de um mundo sombrio
governado por forças demoníacas teve profundo impacto na
história da religião. Nos dois ou três primeiros séculos após a
morte de Jesus, surgiu no interior do cristianismo uma cor
rente gnóstica, que se distinguia das demais por sustentar que
só seriam salvos aqueles que compartilhassem os ensina
mentos secretos transmitidos por Jesus. A palavra gnos
ticismo vem do grego gnosis, que significa "conhecimento",
e no mundo turbulento do cristianismo primitivo, quando

praticamente todos os aspectos da crença cristã eram inten


samente contestados, os gnósticos representavam a crença de

que a salvação está ao alcance daqueles talvez apenas uns


-

poucos- - que detêm um tipo de percepção espiritual esotérica,


-

e não consiste na imortalidade física neste mundo, mas na

libertação em relação ao corpo humano e ao mundo material.


Embora esse conjunto de crenças pouco tivesse em comum
com as de Jesus, sendo condenado pela Igreja primitiva, man
teve-se como parte integrante do cristianismo. Os textos que
chegaram até nós são muito poucos para que possamos es
tar certos, mas uma forma de gnosticismo parece ter-se ma
nifestado novamente entre os cátaros, que surgiram na França
no século XII, até que o papa Inocêncio III lançou uma cru
zada contra eles e quase os apagou da história, depois de

25
quarenta anos de uma guerra em que morreram cerca de meio
milhão de pessoas. Mas o gnosticismo não foi destruído. So
breviveu e se reformulou, reaparecendo de muitas formas
inesperadas, inclusive de acordo com Hans Jonas, autor
de um magistral estudo sobre as tradições gnósticas -
na

filosofia de Martin Heidegger. 10


Mas não foi o gnosticismo que ressurgiu nos repetidos
surtos de milenarismo verificados ao longo da história do cris
tianismo. Foi a crença numa guerra cósmica entre o bem e o
mal, uma crença que movera Jesus e seus discípulos, fazen
do eco à visão de mundo dualista de Zoroastro. Por meio de

sua influência no monoteísmo ocidental — do qual o islã e as

religiões políticas modernas são parte integrante, a visão


de mundo de Zoroastro moldou boa parte do pensamento e
das correntes políticas do Ocidente. Nietzsche podia estar exa
gerando ao afirmar que o bem e o mal são uma invenção de
Zaratustra, mas não estava completamente errado.
O cristianismo introduziu a escatologia no cerne da civi

lização ocidental, e, apesar de Agostinho, ela tem voltado a


se manifestar periodicamente. Entre os séculos XI e XVI, mo
vimentos inspirados pelas crenças milenaristas ganharam ter
reno na Inglaterra e na Boêmia, na França e na Itália, na
Alemanha, na Espanha e em muitas outras partes da Euro
pa. Esses movimentos prosperavam entre grupos pertencen
tes a sociedades que já não reconheciam ou com as quais não
mais se identificavam, fosse por motivos de guerra, pragas
ou dificuldades econômicas. O mais extraordinário deles foi

o dos Irmãos do Espírito Livre, uma rede de adeptos e discí


pulos que se estendeu por amplas regiões da Europa durante
vários séculos.¹1 O Espírito Livre pode não ter sido uma mera
heresia cristã. Os beguinos, ou santos mendigos, como tam
bém ficaram conhecidos os seguidores do Espírito Livre, usa

26
vam túnicas semelhantes às dos sufis, que no século XII pre
gavam convicções heterodoxas semelhantes na Espanha e em
outros países, e o Espírito Livre também se pode ter inspira
do em resquícios das tradições gnósticas, que nunca foram
exclusivamente cristãs. Seja como for, fossem cristãos ou mu

çulmanos, os Irmãos do Espírito Livre eram antes de mais


nada místicos que acreditavam ter acesso a um tipo de expe
riência fora do alcance do entendimento comum. Essa ilumi

nação não era, como julgava a Igreja, um episódio raro na


vida do fiel, concedido por Deus como uma graça. Os que ti
nham acesso a esse estado tornavam-se incapazes de pecar e,
a seus próprios olhos, não mais se distinguiam de Deus. Li
vres dos impedimentos morais a que estavam submetidos os
mortais comuns, podiam agir de acordo com a própria von
tade. Esta noção de privilégio divino manifestava-se numa
condenação de todas as instituições estabelecidas -

não ape
nas a Igreja, como também a família e a propriedade privada
como obstáculos à liberdade espiritual.
Caberia supor que crenças místicas dessa natureza não
tivessem grande impacto na prática. Na verdade, interagindo

com as crenças milenaristas na expectativa da chegada do fim


dos tempos, elas contribuíram para alimentar revoltas cam
ponesas em várias partes da Europa no fim da Idade Média.
Na cidade de Münster, no noroeste alemão, essa explosiva mis
tura deu origem a uma experiência de comunismo. No início
do século XVI, a Reforma que alijou a Igreja católica em cer
tas partes da Europa gerava seitas mais radicais que qualquer
coisa imaginada por Lutero, cuja teologia pregava a obediên
cia ao moderno Estado que surgia, ou por Calvino, que in
sistia na preservação de estritas instituições de governança
eclesiástica. A principal dentre essas seitas era a dos anaba
tistas, movimento empenhado na recuperação dos ensina

27
mentos do cristianismo primitivo. As seitas de que era cons
tituído esse movimento estimulavam a prática do rebatismo
como símbolo da rejeição, pelo crente, da Igreja e da ordem
social vigente. No início de 1534, depois de converterem gran
de quantidade de pregadores, freiras e leigos, os anabatistas
promoveram sua primeira sublevação armada e tomaram a
prefeitura e o mercado de Münster. A cidade transformou-se
num reduto anabatista, o que provocou a fuga de luteranos
e a afluência de anabatistas de cidades próximas. Anunciou-se
que o resto do planeta seria destruído antes da Páscoa, mas
que Münster seria salva, tornando-se a Nova Jerusalém.
Católicos e luteranos foram expulsos, sendo rebatizados
na praça central os que ficaram. A catedral foi saqueada e seus
livros, queimados. Posteriormente, todos os livros seriam
proibidos, exceto a Bíblia. Foram tomadas as primeiras me
didas no sentido da propriedade comum. Todo o dinheiro, o
ouro e a prata tiveram de ser entregues. As portas das casas
deviam ficar permanentemente abertas. Sob a liderança do
antigo aprendiz de alfaiate Jan Bockelson (também conheci
do como João de Leyden), tais medidas foram levadas ainda
mais longe. A propriedade privada foi proibida, sendo intro
duzida a direção do trabalho, juntamente com pena capital
para toda uma série de delitos. As mulheres que se recusas
sem a obedecer aos maridos podiam ser mortas - assim como
os adúlteros, entre os quais eram incluídos todos aqueles que
se casassem fora da comunidade anabatista. Esse regime pu
ritano não durou. Veio a ser introduzida uma forma de poli
gamia na qual passou a ser considerado crime capital que uma
mulher não se casasse. O que tampouco durou: algumas
mulheres se recusaram a obedecer e foram executadas. Em
seguida, o divórcio foi facilitado, o que levou a uma forma
de amor livre.

28
No outono de 1534, Bockelson proclamou-se rei de Münster.
Ele não se considerava um governante deste mundo, mas um
messias destinado a presidir aos últimos dias do planeta. Ado
tando uma inovação que seria imitada pelos jacobinos, deu
novos nomes às ruas e prédios e instituiu um novo calendá
rio. Dias depois do estabelecimento da nova ordem, tiveram
início as execuções, destacando-se entre as vítimas as mulhe
res. A essa altura, a cidade já estava sitiada por forças leais à
Igreja e a população passava fome. Bockelson promoveu então
espetaculares celebrações para distrair seus súditos esfaima
dos - corridas, danças e representações teatrais. Simultanea
mente, proibia a realização de reuniões sem autorização. A
fome persistia, e em junho de 1535 as defesas da cidade fo
ram vencidas. Bockelson foi capturado. Depois de meses de
humilhação em público, foi torturado até a morte, com fer
ro em brasa, na praça central.

O regime teocrático-comunista instaurado por João de


Leyden em Münster apresenta todas as características do mile

narismo. Norman Cohn considera que os movimentos e sei


tas milenaristas abraçam uma idéia de salvação que tem cinco
características principais: ela é coletiva, por estar ao alcance
da comunidade dos fiéis; terrestre, por se concretizar na Terra,
e não no céu ou na vida no além; iminente, pois advirá logo e
repentinamente; total, pois não se limitará a melhorar a vida
na Terra, devendo transformá-la e torná-la perfeita; e mira
culosa, pois seu advento é propiciado ou assistido por inter
venção divina.12
A partir dos jacobinos, os modernos revolucionários com
partilhariam essas crenças, mas enquanto os milenaristas
acreditavam que só Deus poderia refazer o mundo, os revo
lucionários modernos imaginavam que só a humanidade se
ria capaz de transformá-lo. É uma idéia tão improvável

29
quanto qualquer das que mereciam crédito na Idade Média.
Talvez por este motivo terá sido apresentada sempre sob a capa
da ciência. A política moderna tem sido movida pela crença
de que a humanidade pode livrar-se de males imemoriais pela
força do conhecimento. Em suas formas mais radicais, essa

crença escora as experiências de utopismo revolucionário que


definiram os dois últimos séculos.

O NASCIMENTO DA UTOPIA

...surgiram pessoas que começaram a conceber maneiras de


aproximar novamente os homens, para que cada indivíduo,
sem deixar de se valorizar mais que a todos os demais, não se

opusesse aos outros, para que todos vivessem em harmonia.


Guerras foram travadas em nome dessa idéia. Os beligeran
tes acreditavam, ao mesmo tempo, que a ciência, a sabedoria
e o instinto de autopreservação acabariam levando os homens
a se unir numa sociedade racional e harmoniosa, e assim, para
apressar o processo, "os sábios" lutaram com todo empenho
para destruir "os insensatos" e os incapazes de compreender

sua idéia, para que não comprometessem seu triunfo.

F. Dostoievski¹3

A utopia nem sempre foi uma idéia revolucionária nem mes


mo declaradamente política. Em muitas culturas e ao longo
da maior parte da história, a humanidade tem sido assom
brada pela idéia de uma sociedade perfeita, mas a tem inter
pretado como lembrança de um paraíso perdido, e não como
vislumbre de um futuro passível de ser alcançado. Platão si
tuou sua república ideal numa Era de Ouro anterior à história,

30

T
e até cerca de duzentos anos atrás se imaginava que as socie

dades perfeitas estariam num passado para sempre perdido


ou em lugares distantes não registrados em qualquer mapa.
Thomas More, autor de Utopia (1515) — palavra por ele in
ventada, que significa ao mesmo tempo "um bom lugar" e
"lugar nenhum" —, localizou sua comunidade imaginária
numa terra distante. Mesmo ao ser usada como ferramenta

da reforma social, a idéia da utopia nem sempre tem sido re


volucionária. Muitos utopistas não se têm empenhado em
revolucionar a sociedade, mas em criar uma comunidade ideal

que a sociedade pudesse utilizar como modelo. Antes de se


transformar numa tentativa de modificar o mundo pela for
ça, o utopismo foi um movimento de retirada do mundo.
No século XIX, comunidades utópicas foram criadas por
reformistas religiosos e socialistas éticos. John Humphrey
Noyes (1811-86) — um ministro religioso que julgava ter
alcançado uma condição de união sem pecado com Deus -

criou em 1848 a comunidade de Oneida, no estado de Nova

York, para aplicar os princípios do "perfeccionismo cristão",


do "comunismo bíblico", do "casamento complexo". Em 1825,
o industrial e socialista britânico Robert Owen (1771-1858)
comprou a cidade de Harmonie, em Indiana, e fundou New
Harmony, para aplicar a idéia da vida em comunidade. Charles
Fourier (1772-1837) um socialista utópico francês que
-

esperava o surgimento de uma nova espécie, feita de "antileões"


e "antibaleias" que existiriam apenas para servir aos seres
humanos, e que (segundo Nathaniel Hawthorne, em seu li

vro The Blithedale Romance) acreditava que chegaria o mo


mento, no progresso da humanidade, em que o mar passaria
a ter sabor de limonada preconizava a criação de "falans
térios", comunas cujos membros praticariam o amor livre.

31
Embora tivessem um impacto no pensamento radical,
essas comunidades utópicas influenciaram muito pouco as
sociedades em que surgiram. Opondo-se às inclinações hu
manas comuns e contaminadas pelas excentricidades de seus
fundadores, elas fracassaram, em sua maioria, em apenas
uma geração, ou menos. Alguém poderia concluir que o de
saparecimento dessas comunidades pode ser considerado su
ficiente para determinar seu caráter utópico. Mas o que torna
utópico um projeto ou uma comunidade? Muitas tentativas
têm sido feitas de definir o utopismo, e nenhuma formula
ção, sozinha, pode abarcar todas as suas variedades. Escre
veu Isaiah Berlin:

Todas as utopias conhecidas baseiam-se na possibilidade de


manifestação e na harmonia de metas objetivamente verda
deiras, verdadeiras para todos os homens, em qualquer tempo
e lugar. Isto se aplica a toda cidade ideal, da República de Pla
tão, com suas leis, do mundo anarquista de Zenão e da Ci
dade do Sol de Iambulus às Utopias de Thomas More e
Campanella, Bacon, Harrington e Fénelon. As sociedades co
munistas de Mably e Morelly, o capitalismo de estado de
Saint-Simon, os falanstérios de Fourier, as diferentes combi

nações de anarquismo e coletivismo de Owen e Godwin,


Cabet, William Morris e Chernichevski, Bellamy, Hertzka e

outros (que não faltam no século XIX) repousam em três


pilares do otimismo social no Ocidente (...) de que os proble
mas centrais dos homens são afinal os mesmos ao longo da

História; de que são, em princípio, possíveis de resolver; e de


que as soluções formam um todo harmonioso (...) tudo isso
constitui terreno comum das muitas variedades de otimis

mo reformista e revolucionário, de Bacon a Condorcet, do

Manifesto Comunista aos modernos tecnocratas, comunis


tas, anarquistas e idealizadores de sociedades alternativas. 14

32
Ao contrário do que afirma Berlin, o utopismo nem sem
pre envolve uma alegação de conhecimento objetivo das ne
cessidades humanas. A história da religião contém muitos
exemplos de comunidades que alegavam encarnar um ideal
de perfeição que lhes havia sido apresentado sob a forma de
revelação divina. Essas comunidades baseiam-se antes na fé
do que em qualquer alegação de conhecimento, mas na me
dida em que seu ideal de perfeição vai contra características
humanas básicas, elas continuam sendo utópicas. A cidade
Estado teocrático-comunista criada por João de Leyden era
uma dessas utopias religiosas.
Berlin está com a razão quando afirma que uma das ca
racterísticas centrais de todas as utopias é o sonho de uma
harmonia final. Sejam os fins humanos considerados imu
táveis, como em Platão, ou progressivos, como em Marx, seja
a natureza desses fins conhecida por meio de descobertas ci
entíficas de leis naturais ou aceita como artigo de fé, os confli
tos normais da vida humana são deixados para trás. Conflitos
de interesses entre indivíduos e grupos sociais, antagonismo
entre ideais de vida e no interior deles, escolhas entre diferen

tes males tais conflitos, endêmicos em toda sociedade, são


-

considerados irrelevantes.

A busca de uma condição de harmonia define o pen


samento utópico, revelando seu essencial desligamento da
realidade. O conflito é uma característica universal da vida

humana. Parece ser da natureza dos seres humanos desejar


coisas incompatíveis: emoções e vida tranqüila, liberdade e
segurança, verdade e uma imagem do mundo que seja lison
jeira para seu senso da própria importância. Uma vida livre
de conflitos é impossível para os seres humanos, e onde quer
que seja tentada, o resultado é intolerável para eles. Se os so
nhos humanos fossem realizados, o resultado seria pior do

33
que qualquer utopia fracassada. Felizmente, as visões de um
mundo ideal nunca se concretizam. Ao mesmo tempo, a pers
pectiva de uma vida sem conflitos exerce um forte apelo. De
fato, é a própria idéia de perfeição atribuída em certas tradições
a Deus. Na religião, a idéia de perfeição atende a uma neces
sidade de salvação individual. Na política, expressa um anseio
semelhante, que, no entanto, logo vai contra outras necessi
dades humanas. As utopias são sonhos de libertação coletiva
que na vigília se revelam pesadelos.
Os projetos utópicos são irrealizáveis pela própria natu
reza. Escrevia Hume: "Qualquer plano de governo que pres
suponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é
com toda evidência imaginário. "15 A formulação parece defi
nitiva, mas cabe objetar que é por demais conservadora. O
que se poderia entender por uma "grande reforma nos hábi
tos da humanidade"? E seria verdade que tais reformas são
"com toda evidência imaginárias"? Não foram promovidas
várias mudanças dessa natureza na história humana? Ainda
que um "plano de governo” seja irrealizável, a própria tenta
tiva de alcançá-lo não tornaria o mundo melhor? Existe uma
escola de pensamento que enfatiza o caráter indispensável da
imaginação utópica. Segundo esse ponto de vista, o pensa
mento utópico descortina panoramas que de outra maneira
permaneceriam ignorados, ampliando o alcance das possibili
dades humanas. Ater-se aos limites do que é considerado viável
é renunciar à esperança e adotar uma atitude de aceitação pas
siva que redunda em cumplicidade com a opressão.
De acordo com muitos dos que aceitam essa visão, as con
seqüências desastrosas dos projetos utópicos-na Rússia so
viética e na China maoísta, por exemplo — não decorrem dos
projetos em si mesmos. As teorias utópicas ocidentais não têm
culpa; o problema está nas tradições russas ou chinesas. No

34
próximo capítulo, examinarei mais detidamente a idéia de que
o comunismo que existiu na prática foi uma deformação da
visão de Marx. No momento, cabe apenas lembrar que o em
prego do terror por parte de Lenin para suscitar um novo
mundo de modo algum constituiu uma novidade. A utiliza
ção de métodos desumanos para alcançar fins impossíveis é
a essência do utopismo revolucionário. A revolução bolche
vique representou a culminância de uma tradição revolucio
nária européia iniciada com os jacobinos e à qual pertencia
Marx, e que aceitava o terror sistemático como meio legíti
mo de transformação da sociedade.
O comunismo real não foi um nobre ideal humanista cor

rompido pelo contato com povos atrasados. A repressão de


corria do próprio ideal. No Manifesto comunista, Marx e Engels
afirmavam que o comunismo era “o enigma da história re
solvido", mas não tinham a menor dúvida de que a solução
só seria alcançada depois de muito derramamento de sangue.
O terror tem sido uma característica não só dos regimes so
viético e maoísta, mas também de movimentos comunistas
16
mais recentes, como o Sendero Luminoso no Peru, ¹6 que ma
tou dezenas de milhares de pessoas na busca de um mundo
melhor. Esta visão esteve por trás de cada um dos movimen
tos comunistas do século XX, e sua sustentação inevitavel
mente levava à repressão.

Não foi a teoria econômica de Marx que levou a esse re


sultado. Como crítico do capitalismo, Marx tem poucos ri
vais. Foi ele quem primeiro entendeu o avanço da globalização
que tornaria obsoletas as economias nacionais do século XIX,
destruindo a vida burguesa tal como era conhecida no pas
sado. Talvez só o economista austríaco Joseph Schumpeter,
escrevendo no meado do século XX, tenha compreendido com
a mesma clareza o caráter revolucionário do capitalismo.

35
Marx percebeu que o capitalismo é um sistema econômico
que desestabiliza cada aspecto da vida humana. Não só a po
lítica e o governo, como também a cultura e a sociedade são
permanentemente transformadas sob o impacto das energias
anárquicas do mercado. Boa parte da política no fim do sécu
lo XX foi dominada por movimentos empenhados em liberar
o mercado simultaneamente restabelecendo "valores tradicio
nais". Ao mesmo tempo que reorganizavam a sociedade para
atender aos imperativos do mercado, políticos como Thatcher
e Blair queriam reviver as virtudes da vida burguesa. Mas o
fato é que, como percebeu Marx, o efeito concreto do merca
do sem controle vem a ser a derrubada de relações sociais e
formas de vida ética estabelecidas - inclusive as das socie

dades burguesas.
Marx mostrou como eram irreais as idéias de associar o

livre mercado aos valores burgueses. Longe de ser utópica,


sua análise do capitalismo constitui um vital corretivo das
visões utópicas que têm distorcido a política ao longo da úl
tima geração. É a visão de Marx sobre a alternativa ao capi
talismo que pode ser considerada utópica. Embora ele tivesse
entendido melhor o capitalismo que a maioria dos economis
tas de sua época ou da nossa, sua concepção do comunismo
era perigosamente inviável. O planejamento central estava
fadado ao fracasso: ninguém sabe o suficiente para planejar
uma economia moderna e ninguém é bom o suficiente para
ser dotado do poder de governá-la. Pior ainda, Marx acredi
tava que, com o advento do comunismo, os conflitos de va
lores que se haviam manifestado ao longo da História teriam
fim, podendo a sociedade ser organizada em torno de uma
única concepção do bem. Uma crença que teria conseqüências
desastrosas, como veremos ao examinar a experiência sovié
tica no Capítulo 2.

36
Hoje, como no século XX, os perigos do utopismo são
negados. Como acontecia então, acredita-se agora que nada
pode impedir os seres humanos de se reformar, assim como
ao mundo em que vivem, como bem lhes aprouver. Esta fan
tasia está por trás de muitos aspectos da cultura contempo
rânea, e em tais circunstâncias é de um pensamento distópico
que mais precisamos. Se quisermos entender nossa atual
condição, devemos voltar-nos para o Admirável mundo novo,
de Huxley, ou 1984, de Orwell, para A Ilha do Dr. Moreau, de
Wells, ou Os andróides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip
K. Dick, para Nós, de Zamiatin, ou Bend Sinister, de Nabokov,
Almoço nu, de Burroughs, ou Super-Cannes, de Ballard -vi
sões prescientes da feia realidade resultante da busca de
sonhos irrealizáveis.

Resta saber como reconhecer uma utopia. Como saber


quando um projeto é irrealizável. Alguns dos maiores pro
gressos humanos foram algum dia considerados impossíveis.
A campanha pela abolição da escravatura empreendida no
início do século XIX encontrou resistência sob a alegação de
que a escravidão nunca seria eliminada. E, no entanto, feliz
mente, teve êxito: na Grã-Bretanha, a Lei de Abolição da Es
(

cravatura foi aprovada em 1833, tornando-a ilegal em todo


o Império Britânico; a escravidão foi abolida na Rússia czarista
em 1861; e em 1865 a Décima Terceira Emenda tornava a es
cravidão ilegal nos Estados Unidos. Essas iniciativas acaba
ram com uma prática bárbara e expandiram as fronteiras da
liberdade humana. Não fica demonstrada, assim, a utilidade

da imaginação utópica? Creio que não. Tentar pôr fim à es


cravidão não era perseguir uma meta irrealizável. Muitas
sociedades viviam sem escravidão e abolir essa instituição sig
nificava apenas alcançar uma situação que para outros era
natural. Ao mesmo tempo, a condição da servidão não foi

37
abolida. No século XX, o trabalho escravo foi utilizado em
ampla escala na Alemanha nazista, na Rússia soviética e na
China maoísta. Os seres humanos não eram os bens comer
ciáveis em que haviam sido transformados na escravidão;
mas constituíam recursos que podiam ser usados e explo
rados até a morte. A escravidão foi reinventada sob novas

formas, tão terríveis quanto as do passado. No início do sé


culo XXI, uma nova forma de escravidão se manifesta no
tráfico de seres humanos.
Um projeto é utópico se não se verificam circunstâncias
nas quais possa ser realizado. Todos os sonhos de uma socie
dade para sempre livre de todo poder e coação seja marxis
ta ou anarquista, liberal ou tecnocrática são utópicos na
medida em que jamais poderão concretizar-se, pois desmo
ronam frente às persistentes contradições das necessidades
humanas. Um projeto também pode ut pico sem ser irrea
lizável sob quaisquer circunstâncias — basta, para isto, que
seja sabidamente impossível em quaisquer circunstâncias
passíveis de serem geradas ou previstas. O projeto de cons
truir uma economia de mercado de estilo ocidental na Rússia
pós-comunista entrou nessa categoria, assim como o de es
tabelecer uma democracia liberal no Iraque pós-Saddam. Em
ambos os casos, estava claro desde o início que as condições

necessárias para o êxito não estavam presentes nem poderiam


ser criadas por qualquer programa de ação. Bastava um pouco
de percepção da natureza humana e da história para saber
antecipadamente que essas experiências levariam a uma co
nhecida mistura de crime e farsa.

Desastres dessa magnitude não se produzem por ignorân


cia, erro ou desinformação - embora tudo isto sem dúvida
contribuísse. São conseqüência de uma forma de pensar des
vinculada de todo senso de realidade. Definir senso de reali

38
dade seria complicado, mas não é difícil saber quando ele está
em falta. Para a mente utópica, os problemas de qualquer
sociedade conhecida não são indícios de imperfeições na na
tureza humana. Representam sinais da repressão universal

- que, no entanto, logo terá fim. A história é um pesadelo


do qual precisamos acordar, e, quando isto acontecer, per
ceberemos que as possibilidades humanas são ilimitadas.
Considerar os projetos utópicos simplesmente como tenta
tivas imperfeitas de adoção de políticas racionais é ignorar
o principal. Essas aventuras são resultado de uma visão do
mundo - outrora manifesta apenas em cultos religiosos e
-

seitas revolucionárias, mas que, em determinado período,


se estabeleceram firmemente em governos ocidentais se
gundo a qual a ação política pode promover mudanças na
condição humana.
Tal como o concebemos hoje, o utopismo começou a se
desenvolver paralelamente ao recuo da fé cristã. Mas a cren
ça utópica numa condição de futura harmonia é uma herança
cristã, assim como a moderna idéia de progresso. Embora
possa parecer conflitante com a crença de que o mundo é in
corrigivelmente mau e está fadado a encontrar seu fim, uma
idéia de progresso tem estado latente no cristianismo desde
seus primórdios e pode ter sido enunciada pela primeira vez
no último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse de são João.
Observou o historiador americano Ernest Lee Tuveson:

No Apocalipse, assistimos a um grande drama envolvendo


anjos, demônios, vilões monstruosos e o povo de Deus. Nele
é apanhada toda a raça humana, incontornavelmente divi
dida entre os redimidos e os condenados (...) o que contraba

lança essa terrível previsão é a certeza de que o bem passo a


passo vai destruindo o mal. A humanidade tem sofrido e con

39
tinua sofrendo muitas aflições, mas elas estão sendo elimi

nadas (...) Desse modo, por estranho que possa parecer à pri
meira vista, o movimento do Apocalipse é, à sua maneira,
progressivo - talvez a primeira expressão da idéia da histó
ria como progresso.¹7

Uma sugestão da idéia de progresso pode ser encontrada


no Apocalipse, e os primeiros cristãos acreditavam represen
tar algo melhor do que qualquer coisa já encontrada nos an
tigos mundos pagão e judaico. A crença no progresso moral
sempre fez parte do cristianismo, mas se manteve latente até
a Reforma. Os puritanos serviram como veículo para a idéia
- freqüentemente qualificada de pós-milenarista de que
o empenho humano poderia apressar o advento de um novo
mundo perfeito. Em contraste com os pré-milenaristas, que
acreditavam que Jesus iniciaria o Milênio, os puritanos con
sideravam que Jesus viria para dirigir o mundo depois do
advento do Milênio — um Milênio propiciado tanto pelo em
penho humano quanto pela vontade divina. São versões da
crença milenarista.
A idéia de que o mundo logo terá de chegar ao fim e a
idéia de que ele avança para uma condição melhor parecem
opostas afinal, por que se esforçar para melhorá-lo se ele
-

será destruído num futuro próximo? Mas o fato é que ambas


expressam uma visão da história que praticamente não exis
te fora das culturas moldadas pelo monoteísmo ocidental. No
Livro do Apocalipse, a história podia ser encarada como um
movimento progressivo porque se acreditava que ela teria
um ponto final no qual o mal seria superado, e o mesmo se
aplica a teorias como o marxismo. Por outro lado, as teorias

do progresso que afirmam rejeitar qualquer crença num es


tado final de perfeição guardam a convicção, a um exame mais

40
atento, de que a história é uma luta entre forças do bem e do
mal. Ambas as visões dão por descontado que a salvação
humana é operada por meio da história - um mito cristão
sem o qual as regiões políticas dos tempos modernos não te
riam surgido.
A crença milenarista estava no cerne da Reforma, quan
do começou a assumir formas mais próximas das encontradas
nos movimentos revolucionários modernos. Não obstante a

oposição de João Calvino e Martinho Lutero, à frente da re


belião contra a autoridade da Igreja católica, a crença na

aproximação do fim dos tempos era comum entre as seitas


dissidentes mais radicais. Centenas de milhares de trabalha

dores agrícolas e urbanos saquearam mosteiros, exigindo pro


fundas reformas na sociedade. Eram apoiados em sua luta
por teólogos proféticos como Thomas Müntzer, um pastor
protestante que acreditava que suas reivindicações seriam
atendidas no novo mundo que se aproximava. Na verdade, a
Revolta dos Camponeses, por ele liderada, foi esmagada, le

vando à morte do próprio Müntzer e cerca de cem mil pessoas.


Foi na Inglaterra do século XVII que as correntes milena

ristas do fim da Idade Média começaram a se transformar em

modernos movimentos revolucionários. Todos os prota


gonistas da Revolução Inglesa eram versados nas profecias
bíblicas, e personalidades tão diversas quanto o rei Jaime e
Walter Raleigh levavam a sério a idéia de que o mundo ter
minaria num futuro próximo.¹8 Enquanto seitas radicais
como a dos ranters levavam adiante as tradições milenaristas
da Idade Média, 19 os Homens da Quinta Monarquia vieram a
constituir "o primeiro movimento político milenarista organi
zado".20 Na verdade, não existe uma clara linha divisória entre
os dois. Os Homens da Quinta Monarquia eram um movi

41
mento anticromwelliano com algo entre 20.000 e 40.000
homens armados; inspirados no profeta Daniel e no Livro do
Apocalipse, eles acreditavam que a ordem vigente chegaria ao
fim em 1666. Fazendo referência em seu nome ao sonho de

Nabucodonosor sobre o advento de um novo reino divino de

pois dos quatro reinos terrenos dos tempos antigos, os Ho


mens da Quinta Monarquia pretendiam instaurar a lei divina
na Inglaterra. No nível da organização de massa, os grupos
milenaristas ativos da Revolução Inglesa podem ser compa
rados ao Soviete de soldados que desempenhou papel tão de
cisivo nas primeiras etapas da Revolução Russa.²¹ Dando
continuidade a uma tradição quiliasta medieval, esses grupos
iniciaram uma moderna tradição revolucionária de missio

nários armados que também seria corporificada nos jacobinos


e nos bolcheviques.

É comum, nos meios acadêmicos, considerar esses gru


pos milenaristas versões primitivas de posteriores movimen
tos revolucionários. No dizer do historiador britânico Eric

Hobsbawm, o milenarismo é “um fenômeno extremamente

útil, podendo ser utilizado com proveito pelos modernos


movimentos sociais e políticos para aumentar sua influên

cia".22 Em outras palavras, as crenças milenaristas constituem


metáforas das esperanças racionais no horizonte de figuras

como Lenin. A verdade, em minha opinião, é o contrário.


Embora constituíssem reações contra a ordem social vigente,
as esperanças seculares que inspiraram as mais radicais re
voluções modernas não eram apenas, ou sequer sobretudo,
exigências de avanços específicos na sociedade. Eram veícu

los de mitos apocalípticos. Em vez de declinar na era moderna


ou evoluir para formas mais racionais, os movimentos ins

pirados nesses mitos ressurgiram sob novas feições.

42
À medida que novos movimentos políticos tomavam a fren
te, os velhos tipos de milenarismo não desapareceram. Obser
vou E. P. Thompson, historiador da classe operária inglesa:

Os sectários mais rebeldes da Revolução Inglesa -


-
os ranters

e os Homens da Quinta Monarquia nunca foram to

talmente dizimados, com suas interpretações literais do Livro


do Apocalipse e suas previsões da descida de uma Nova Jeru
salém. Os muggletonianos (seguidores de Ludovic Muggleton)
continuavam pregando nos campos e parques de Londres no
fim do século XVIII (...) Qualquer acontecimento dramáti
co, como o terremoto de Lisboa em 1755, gerava expecta

tivas apocalípticas. Havia, com efeito, uma instabilidade


milenarista no cerne do próprio metodismo.23

Movimentos religiosos como o metodismo apresentavam


no fim do século XVIII muitas características milenaristas.

Aldeias inteiras de Yorkshire proclamavam ter sido "salvas".


No início do século XIX, Joanna Southcott liderou um movi

mento de massa no qual dezenas de milhares de pessoas rece


beram dela um selo especial garantindo que estariam entre
os Eleitos depois do Milênio.24
Por volta do fim do século XVIII, os movimentos apoca
lípticos conviviam lado a lado com seitas dissidentes que
abriam caminho para a crença secular no progresso. William
Godwin - o romancista anarquista que defendia a crença na

perfectibilidade humana - nasceu numa família de sandema


nianos, uma pequena seita cristã, enquanto Thomas Paine
que ganhou fama como ideólogo da Revolução Americana
-

começou como quaker. Tradições religiosas dissidentes intera


giam com o jacobinismo inglês — alguns dos seguidores de
Joanna Southcott, por exemplo, haviam sido jacobinos

43
até que o movimento jacobino inglês foi destruído na onda
de repressão após a Revolução Francesa.
As crenças pós-milenaristas estavam amplamente difun
didas no início do século XIX. Os pensadores cristãos que pro
pagavam essas crenças insistiam em que a humanidade serve
apenas como auxiliar de Deus. Os avanços do conhecimento
científico eram bem-vindos como meios de concretização do
plano divino. Mas a idéia de que a ação humana pode pro
mover uma radical mudança na história já fora infundida na
vida ocidental. Não levaria muito tempo para que o pós-mile
narismo se transfundisse na crença iluminista de que a hu
manidade é uma espécie intrinsecamente em progressão.
Os filósofos do Iluminismo pretendiam suplantar o cris
tianismo, mas só poderiam fazê-lo se se mostrassem capazes
de atender às esperanças por eles geradas. Em conseqüência,
não poderiam admitir que a história humana não tem um
sentido algo que os pensadores pré-cristãos davam por
-

descontado. Carl Becker. - o estudioso americano cujo livro


The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philosophers (1932)
mostrou como o cristianismo modelou o Iluminismo-des
crevia o problema por eles enfrentado:

Para derrotar a filosofia cristã, os filósofos deviam enfrentá

la no nível de certas idéias preconcebidas comuns. Jamais po


deriam aniquilar o inimigo negando que a vida humana seja
um drama dotado de significado era uma noção por de
mais disseminada e inconsciente, inclusive entre os próprios
filósofos; entretanto, reconhecendo que a vida humana é um
drama com significado, os filósofos podiam alegar que a ver
são cristã do drama era falsa e perniciosa; e suas mais fun
dadas esperanças de sobrepujar a versão cristã estavam em
sua remodelagem, para atualizá-la.25

44
Muitos pensadores modernos têm tentado evitar uma vi
são da história como batalha entre o bem e o mal, preferindo
apresentá-la como uma sucessão de etapas. Nessa visão, o
conhecimento humano avança cumulativamente, o mesmo
acontecendo com os aperfeiçoamentos na ética e na política:
o progresso da ciência tem equivalente no progresso da socie
dade, e a história é uma marcha em direção a um mundo

melhor. Não há qualquer referência a uma batalha final, mas


se revelou impossível evitar o pensamento apocalíptico. Sus
tentando que os crimes da história são conseqüência do erro,
os filósofos do Iluminismo geram um problema do mal tão
insolúvel quanto qualquer dos enfrentados pelos teólogos cris
tãos. Por que seriam os seres humanos tão dados ao erro? Por
que usar o conhecimento crescente para instaurar novas for
mas de tirania e promover guerras cada vez mais destrutivas?
No empenho de responder a essas perguntas, os pensadores
do Iluminismo não podem eximir-se de cair numa visão da
história como luta entre a luz e as trevas. A luz pode ser a do
conhecimento e a treva, a da ignorância, mas a visão de mun
do é a mesma.

As religiões políticas modernas podem rejeitar o cristia


nismo, mas não dispensam a demonologia. Os jacobinos, os
bolcheviques e os nazistas acreditavam todos ser alvo de am
plas conspirações, exatamente como os radicais islâmicos
atualmente. Nunca são as falhas da natureza humana que se
interpõem no caminho da Utopia, mas as maquinações das
"

forças do mal. Em última análise, essas forças da escuridão


fracassarão, mas somente depois de tentarem impedir o pro
gresso humano por todos os meios mais infames. É a clássi
ca síndrome milenarista, e do ponto de vista das formas em
que moldaram a política moderna a mentalidade milenarista
e a utópica são a mesma coisa.26

45
Durante boa parte do século XIX, o utopismo assumia a
forma de comunidades voluntárias freqüentemente ridículas,

mas em geral inofensivas. Essas comunidades viviam na espe


rança de uma fundamental mudança nas questões humanas,

mas não tentavam promovê-la pela força. Os movimentos


revolucionários do século XX foram moldados por uma tra
dição utópica diferente. Foram os jacobinos que pela primeira
vez recorreram ao terror como instrumento de aperfeiçoa
mento da humanidade. A crença no pecado original não ar
redava pé do caminho. Os milenaristas dispunham-se a
recorrer à força para derrubar o poder da Igreja, mas a ne
nhum deles ocorreu que a violência pudesse promover o ad
vento do Milênio, o que só a Deus caberia. Só com os jacobinos
é que se passou a acreditar que o terror de matriz humana
pudesse gerar um novo mundo.
Os jacobinos começaram como um clube radical, que logo
passou a exercer forte influência no encaminhamento da Revo
lução Francesa. Graças a líderes como Maximilien Robespierre
-
ele próprio vítima do Terror, tendo sido guilhotinado em
1794, depois de fazer, em 1792, uma profética advertência
contra os riscos de tentar exportar a liberdade pela força das
armas eles transformaram o terror em parte integrante
do programa revolucionário. Influenciados pela crença de
Rousseau na inata bondade do homem, os jacobinos acredi
tavam que a sociedade se corrompera em conseqüência da
repressão, mas podia ser transformada pelo emprego metó
dico da força. O Terror era necessário para defender a Revolu
ção perante os inimigos internos e externos; mas também
era uma técnica de educação cívica e um instrumento de en

genharia social. Rejeitar o terror por motivos morais era im


perdoável. No dizer de Robespierre, em discurso pronunciado
na Convenção Nacional em Paris, a 26 de fevereiro de 1794,

46
"a piedade é traição”. Uma forma mais elevada de vida hu
mana estava ao alcance da mão - e até mesmo um tipo mais
depurado de ser humano, mas para isso era necessário que
a humanidade fosse purificada pela violência.
Essa fé na violência transmitiu-se para muitas correntes
revolucionárias posteriores. Anarquistas do século XIX como
Netchaiev e Bakunin, os bolcheviques Lenin e Trotski, pensa
dores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao
e Pol Pot, o Grupo Baader-Meinhof, as Brigadas Vermelhas
italianas da década de 1980, os movimentos radicais islâmicos

e os grupos neoconservadores mesmerizados por fantasias de


destruição criativa - todos esses elementos tão disparatados
estão unidos em sua fé no poder libertador da violência. Nes
te sentido, são todos discípulos dos jacobinos.27
O Terror francês de 1792-4 é o protótipo de toda revolu
ção milenarista subseqüente. Dezenas de milhares perderam
a vida em execuções promovidas por tribunais revolucioná
rios ou apodrecendo nas prisões. Se incluirmos as mortes de
correntes da repressão à insurgência contra-revolucionária na
Vendéia (região do oeste da França onde os contra-revolucio
nários eram mortos até por afogamento em massa), as bai
xas do Terror são muito mais elevadas. Globalmente, até um

terço da população dessa região pode ter sido dizimado


matança comparável à ocorrida no Camboja de Pol Pot.28
Como tantos revolucionários posteriores, os jacobinos intro
duziram um novo calendário para assinalar o início da nova
era por eles promovida. Tinham razão ao considerar que se
tratava de um marco histórico. Tivera início a era dos assas

sinatos políticos em massa.


Um pensador iluminista como o marquês de Condorcet
morto na prisão dias depois de ser detido pelo Comitê de
Salvação Pública chefiado por Robespierre - pode ter ficado

47
horrorizado com a maneira como sua crença no progresso
humano veio alimentar o terror político. Mas não sur
preendia que o terror fosse utilizado para promover os ideais
do Iluminismo. Era uma decorrência da crença de que a vida
humana pode ser transformada por um ato da vontade hu
mana. Por que recuar ante a violência? Ao longo de toda a
história, ela fora empregada para dar sustentação à tirania.
Nas mãos dos revolucionários, podia ser usada para libertar
a humanidade.

Sob determinado aspecto, os jacobinos promoveram uma


decisiva ruptura em relação ao cristianismo. Sob outro, ofe
reciam a promessa cristã de salvação universal de uma for
ma radicalmente diferente. O cristianismo gerou todo um
vasto espectro de esperança moral no mundo antigo. O pa
ganismo distinguia-se por sua extrema modéstia moral: dava
por descontado que só uns poucos chegariam a ter uma boa
vida. Sócrates podia argumentar que a pessoa dotada de sa
bedoria é inatingível; mas o raciocínio do filósofo era alvo de

zombaria na tragédia grega, e de qualquer maneira Sócrates


nunca partiu do pressuposto de que os homens seriam sábios
em sua maioria. Mais uma vez, o judaísmo pode ser conside
rado uma religião histórica; mas não relata a história de toda
a humanidade como uma história única, com um fim apo
calíptico. Só o cristianismo oferecia a perspectiva da salvação
num mundo transfigurado - e a oferecia a todos.
-

Se acendeu a esperança de uma renovação mundial que


não existia no mundo antigo, o cristianismo também desen
cadeou um novo tipo de violência. A promessa cristã de sal
vação universal foi herdada por seus sucessores seculares. Mas
se no cristianismo a salvação era prometida apenas para a vida
no além, as modernas religiões políticas oferecem a perspec
tiva da salvação no futuro - e mesmo, desastrosamente, num

48
futuro próximo. Num aparente paradoxo, os modernos mo
vimentos revolucionários renovam a mitologia apocalíptica
do cristianismo primitivo.
Com os jacobinos, o utopismo tornou-se um movimen
to revolucionário e a moderna religião secular, uma força po

lítica. Os cristãos pós-milenaristas propagaram crenças que


se transformaram na fé secular no progresso; mas enquanto se

acreditou que a história era governada pela providência, não


se verificou qualquer tentativa de dirigi-la pela violência.
Embora o cristianismo se mantivesse incontestado, a Utopia
era um sonho perseguido por cultos marginais. O declínio do
cristianismo e a ascensão do utopismo revolucionário vão de
par. Ao ser rejeitado o cristianismo, suas expectativas esca
tológicas não desapareceram. Foram reprimidas, para acabar
retornando como projetos de emancipação universal.

A DIREITA UTÓPICA COMO MODERNO


MOVIMENTO MILENARISTA

O inimigo tem um rosto. Chama-se Satã. E nós vamos destruí-lo.

Gareth Brandl, tenente-coronel do corpo de fuzileiros

navais americano, ao comandar suas tropas no


ataque à cidade iraquiana de Falluja.2⁹

No último século, o utopismo podia ser encontrado sobretu


do na extrema esquerda. Os nazistas tentaram dar forma a
uma visão utópica que condenava boa parte da humanidade
à escravidão ou ao extermínio, mas em sua maioria as uto

pias que determinaram o curso dos acontecimentos políticos


eram ideais de emancipação humana. Pelo fim do século pas

49
sado, a busca da Utopia passou a fazer parte das correntes
políticas centrais. No futuro, só um tipo de regime seria legí
a for
timo: o capitalismo democrático de estilo americano
ma suprema de governo humano, como foi definida no fugaz
e hoje esquecido clima de arrogância que se seguiu ao colap
so soviético. Liderados pelos Estados Unidos, vários governos
ocidentais se arrogaram o direito de instaurar a democracia
mundo afora um sonho impossível que, em muitos paí
-

ses, só poderia gerar caos. Ao mesmo tempo, lançavam uma


"guerra contra o terrorismo" em que não se tomou o cuidado
de distinguir entre as novas ameaças e os conflitos normais
da história. A direita estava possuída por fantasias, e, como
as visões utópicas do século passado - só que em velocidade
muito maior , seus grandiosos projetos ruíram como cas
-

telos de areia.
No século XX, parecia que os movimentos utópicos só
podiam chegar ao poder em regimes ditatoriais. Depois do 11
de setembro, contudo, o pensamento utópico passou a deter
minar a política externa da principal democracia do mundo.
Em muitos aspectos, o governo Bush comportava-se como
um regime revolucionário. Promovia ataques preventivos
contra países soberanos para alcançar seus objetivos, ao mes
mo tempo que se mostrava disposto a corroer pela base li
berdades há muito conquistadas pelos americanos. Instalou
em Guantánamo um campo de concentração cujos ocupan
tes estão fora do alcance de qualquer proteção jurídica, ne
gou o direito de habeas corpus a suspeitos de terrorismo,
instalou todo um aparato de vigilância da população e auto
rizou funcionários a praticar atos que em qualquer outro país
seriam considerados como tortura. Com a liderança de Tony
Blair, a Grã-Bretanha passou, de forma mais limitada, por
transformação semelhante.

50
A democracia universal e a "guerra ao terrorismo" reve
laram-se perigosos embustes. Como os regimes utópicos do
passado, os governos não reconhecem que estão tentando o
impossível. Querem livrar-se das limitações criadas ao longo
de muitos séculos para antepor freios ao exercício do poder.
No século XX, o resultado foi o totalitarismo um sistema
-

em que praticamente cada aspecto da vida em sociedade era


controlado pelo governo. Hoje, o resultado é um tipo de demo
cracia iliberal em que as eleições transcorrem contra um pano
de fundo de cerceamento das liberdades. Como aconteceu em
anteriores surtos de utopismo, as conquistas do passado fo
ram pisoteadas na busca de um futuro imaginário.
Embora tenha suas origens em correntes políticas e de
pensamento desenvolvidas anteriormente, o utopismo de di
reita sofreu um impulso maciço com o colapso do comunis
mo. Os regimes comunistas deveriam ser a vanguarda de um
novo tipo de sociedade que substituiria todos os modelos an
teriores. Os Estados ocidentais que saíram vitoriosos da
Guerra Fria embarcaram num projeto semelhante. Com uma
América triunfante na liderança, eles se comprometeram com

a construção de um sistema econômico mundial. Depois de


tornar obsoletos todos os demais sistemas econômicos, o ca

pitalismo global promoveria o fim da história.


Na verdade, como se podia prever, a história retomou seu
caminho, em termos tradicionais. Na esfera intelectual, a
Guerra Fria era uma competição entre duas ideologias, o mar
xismo e o liberalismo, que tinham muita coisa em comum.
Embora se considerassem reciprocamente como inimigos
mortais, os dois diferiam sobretudo na questão de saber qual
sistema econômico seria melhor para alcançar metas iguais
nos dois casos. Eram ambas ideologias iluministas contem
plando uma futura civilização universal. Ambas interpreta

51
vam a história em termos reducionistas, considerando o de

senvolvimento tecnológico e econômico como primordial e a


religião como um fator secundário de relevância cada vez
menor. Tendo em vista essas semelhanças, caberia mesmo es
perar que o colapso do comunismo fosse encarado como uma
vitória do liberalismo ocidental, mas o principal efeito con
creto foi tornar irrelevante o conflito ideológico que domina
ra a política mundial por boa parte da segunda metade do
século XX.

Livre o mundo da anterior divisão nos termos de uma con

trovérsia obsoleta, os países que haviam estado sob domínio


comunista retomaram seus respectivos cursos históricos. Em
sua maioria, os países da Europa oriental tornaram-se Estados
democráticos normais. Na Rússia, surgiu um novo tipo de
autoritarismo, sob a égide de uma elite governante saída das
fileiras dos antigos serviços soviéticos de inteligência, que dá
mostra de maior durabilidade que o regime semiliberal ins

taurado sob auspícios ocidentais imediatamente depois do


colapso soviético. Nos Bálcãs, ressurgiu o nacionalismo, tra
zendo em seu rastro a guerra e a limpeza étnica. A Ásia cen
tral transformou-se em cenário de um novo Grande Jogo,
*

onde as potências mundiais sedentas de energia disputam o


controle do petróleo e do gás natural contra um pano de fundo
de regimes ditatoriais e crescente militância islâmica.
Sejamos claros: isto nada tem a ver com um retorno à

estabilidade. No mundo posterior à Guerra Fria, os padrões


geopolíticos estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial
entravam em colapso, e a derrota americana no Iraque de

sencadeou uma nova reconfiguração da política global. O re

*Expressão consagrada no século XIX para designar a rivalidade então existen


te entre o imperialismo britânico e o russo na Ásia central. (N. do T.)

52
sultado da tentativa de projetar em todo o mundo a demo

cracia de estilo americano tem sido um vertiginoso declínio


do poderio americano. Pela primeira vez desde a década de
1930, regimes não-democráticos são as estrelas em ascensão
no sistema internacional, ao passo que os Estados Unidos dei
xaram de ser o protagonista decisivo em alguns dos mais im
portantes conflitos do sistema. É a China, e não os Estados
Unidos, o elemento central na crise da Coréia do Norte, e sem

o envolvimento do Irã e da Síria não pode haver paz no Iraque.


A América tornou-se uma grande potência como qualquer
outra na história e, como elas, enfrenta dilemas que só po
dem ser resolvidos parcialmente.
A campanha do governo Bush em favor de uma demo
cracia global é considerada em boa parte do mundo uma jus
tificativa para atender aos interesses americanos, e as duas
coisas com toda evidência estão interligadas. Muitos dos epi

sódios de envolvimento militar americano têm sido jogadas


na constante guerra pelos recursos naturais. Um dos objeti
vos da invasão americana do Iraque era assumir o controle
das reservas petrolíferas do país, e um eventual ataque ame
ricano ao Irã teria como uma de suas motivações o controle

dos recursos naturais do golfo Pérsico. Paralelamente a sua

retórica idealista, os Estados Unidos têm promovido estraté


gias geopolíticas para assegurar o controle de fontes de
energia. Mas seria equivocado descartar como mera hipocri
sia o discurso de Bush sobre a democracia universal. Por um

certo período, a potência americana tornou-se um instrumen


to na tentativa de reformular o mundo. O desastre que tem
prosseguimento atualmente no Iraque não resulta do fato de
as políticas serem determinadas por interesses corporativos
ou de alguma conspiração. É um testemunho do poder da fé.

53
O comunismo desmoronou, mas o utopismo não desa
pareceu. Ganhou nova vida e chegou ao poder no Estado mais
poderoso do planeta. Como isto aconteceu? Como se dá que
a Utopia outrora encontrada sobretudo na esquerda

-

tenha chegado ao poder pelas mãos da direita? Foi algo que


assinalou uma mudança fundamental na política, e para
entendê-la teremos de voltar mais atrás que apenas uns pou
cos anos. Sem os atentados do 11 de setembro, os neoconser

vadores do governo Bush não teriam imposto sua ascendência


e a guerra no Iraque não poderia ser iniciada, mas por trás
desses acontecimentos encontram-se mudanças políticas ocor
ridas ao longo dos trinta últimos anos. Nesse período, o con
servadorismo tradicional deixou de existir. Como acontecera

no passado com a extrema esquerda, a direita que ganhou


corpo a partir da década de 1980 assistiu ao avanço da hu
manidade da escuridão para a luz por meio dos fogos da guer
ra e da revolução.

A transformação sofrida pela direita foi profunda. Desde


a Revolução Francesa, ela se tem definido em oposição aos ho

rizontes utópicos. Sua filosofia foi sintetizada pelo maior pin


tor britânico do século XX, Francis Bacon igualmente um
-

perspicaz observador da política e da cultura —, ao observar


que votava na direita porque ela sabia extrair o melhor pos
sível de uma profissão impossível. No passado, a direita de
fendia uma aceitação realista da fragilidade humana e um
conseqüente ceticismo em relação à perspectiva do progres
so. Nem sempre opunha resistência à mudança, mas rejeitava
decididamente qualquer idéia da história como marcha em
direção a horizontes ensolarados. A política era encarada como
uma maneira de enfrentar o fato da imperfeição humana. Não
raro essa visão estava enraizada na doutrina cristã do pecado
original, mas podemos encontrar outra versão da mesma idéia

54
entre os pensadores conservadores sem esse tipo de crença.
Fosse religiosa ou não, a direita entendia que as mazelas da
natureza humana não podiam ser transcendidas.
Na última geração, a direita abandonou essa filosofia da
imperfeição e abraçou a busca da Utopia. Em sua militante
fé no progresso, a direita aceitou uma corrente radical do pen
samento iluminista que renovava, sob novas formas, alguns
dos mitos centrais do cristianismo. Como outros movimen

tos revolucionários modernos, a direita utópica servia de

veículo para crenças que remontam à época medieval e mais


atrás ainda.

O utopismo de direita começou como um movimento se


cular. Os neoliberais que moldaram as políticas ocidentais na
década de 1990 eram em sua maioria economistas bem

pensantes com uma fé ingênua em sua própria versão da ra


zão. O avanço do livre mercado podia precisar de ajuda
por exemplo, com os programas de ajuste estrutural impostos
a muitos países emergentes pelo Fundo Monetário Internacio
nal; mas haveria de se disseminar e ser aceito em decorrência

da crescente prosperidade que propiciasse. Este inocente credo


não se adaptava às duras realidades do mundo posterior à
Guerra Fria, e logo seria substituído pela fé mais militante do
neoconservadorismo. Os neoconservadores entenderam que
os mercados livres não haveriam de se disseminar pelo mundo
num processo pacífico: ele teria de ser assistido por uma apli
cação intensiva da força militar. O mundo posterior à Guerra
Fria seria uma era de sangue e ferro, e não de paz.
Como movimento intelectual, o neoconservadorismo ori

ginou-se na esquerda e, sob certos aspectos, constitui uma


volta a um tipo radical de pensamento iluminista que desa
pareceu na Europa. A Europa não deixa de ter suas ilusões -
como a idéia de que os diferentes países que a compõem podem

55
ser unificados num superestado federal capaz de rivalizar
como potência com os Estados Unidos mas deixou para
"

trás a crença de que a vida humana pode ser reformulada pela


força. Mesmo na França a terra dos jacobinos a fé na
-
-

revolução foi dizimada pela história do século XX, mas ela


não desapareceu do mundo por ter morrido na Europa. Numa
migração que teria deliciado Hegel, ela se transferiu para a
América, estabelecendo-se na comunidade neoconservadora

de direita. Os neoconservadores são conhecidos por seu des

prezo pela Europa, mas um de seus maiores feitos é ter im


plantado uma falecida tradição revolucionária européia no
cerne da vida política americana.30
Na Europa, o conservadorismo surgiu como reação ao
projeto iluminista de reforma da sociedade de acordo com um
modelo ideal uma reação que teve continuidade na ação
-

dos autores americanos de Os federalistas, que consideravam

o governo antes uma forma de fazer frente à imperfeição hu


mana do que um instrumento de recriação da sociedade. Em
contraste, os neoconservadores se distinguem por seu beli

gerante otimismo, que os vincula a uma poderosa corrente


utópica do pensamento iluminista e à convicção fundamen
talista cristã de que mal pode ser derrotado. Nos Estados
Unidos, a direita utópica tem se apoiado ao mesmo tempo
em tradições religiosas que contemplam uma catástrofe imi
nente e em expectativas seculares de contínuo progresso. Um
dos motivos de sua ascensão foi sua capacidade de mobilizar
esses sistemas conflitantes de crenças. Além das mudanças

políticas da última geração e dos acontecimentos traumáti


cos dos últimos anos, a direita utópica alcançou ascendência
graças a uma nova mobilização de alguns dos mitos mais an
tigos e mais perigosos da humanidade.
-

56
À medida que se tornava mais militante, a direita utópica
também se tornava menos secular, e em seu apogeu na Amé
rica apresentava muitas das características de um movimento
milenarista. No início da década de 1990, os neoconservadores
uniram forças numa aliança estratégica com os fundamen
talistas cristãos, e após os atentados terroristas de 11 de setem

bro a política americana assumiu contornos inequivocamente


apocalípticos. Sustentando que os Estados Unidos eram amea
çados pelas forças do mal, Bush lançou uma campanha para
erradicar o terrorismo em todo o mundo. Dois anos depois,
declarou sua intenção de exportar a democracia Americana
para o Oriente Médio e outras regiões do mundo. Ambos os
projetos eram inviáveis. Promovidos em conjunto, transfor
mavam-se em receita certa para o desastre. Isto foi entendido
nos principais setores do governo americano. O Departamento
de Estado, os militares do Pentágono e a CIA resistiram a es
sas políticas ou tentaram temperá-las com uma certa dose
de realismo. Basicamente, não tiveram êxito, e o rolo com

pressor foi em frente.


A crença de que o mal pode ser eliminado da vida humana
assumiu muitas formas, sendo o pós-milenarismo apenas
uma delas. Muitos dos teoconservadores que constituem a
base de poder de George W. Bush esperam um Fim promovi
do por intervenção divina. Encaram os conflitos mundiais -
especialmente os que ocorrem em terras bíblicas -

como pre
núncio do Armagedom, uma batalha final da luta entre a luz
e as trevas. Outros esperam ser poupados dessas provações
num Êxtase em que serão conduzidos ao céu. Em ambos os
casos, o mundo imperfeito em que a humanidade tem vivido
logo chegará ao fim.
A característica específica da visão de mundo que chegou
ao poder no governo Bush não é a obsessão com o mal, mas

57
sim o fato de afinal de contas não acreditar no mal. Referin

do-se aos atentados terroristas do 11 de setembro, o presidente


Bush declarou: "Nossa responsabilidade perante a história é
clara: reagir a esses ataques e livrar o mundo do mal. "3¹ Nos
termos da doutrina cristã consagrada, é uma declaração pro
fundamente heterodoxa. Desde Agostinho, a corrente central
do pensamento cristão rejeita a tentação do absolutismo moral
na política: o reino do céu não é deste mundo; nenhuma ins
tituição humana pode arvorar-se em encarnação do bem.
Já é quase de senso comum que a visão de mundo de Bush
é maniqueísta; mas os seguidores de Mani eram capazes de
sutileza, admitindo que o mal jamais poderia ser eliminado.
A idéia de eliminação do mal é tão pouco maniqueísta quan
to agostiniana. Vem a ser uma expressão do pós-milenarismo
cristão, remontando à crença dos cristãos primitivos de que
as imperfeições da vida humana podem ser varridas numa
catástrofe benigna.
A violência política do Ocidente moderno só pode ser en
tendida como um fenômeno escatológico. A civilização oci
dental abriga muitas tradições que não apontam neste sentido.
No mundo antigo, os filósofos pagãos não queriam converter
a humanidade pela força, como tampouco os profetas he
braicos. Ao longo da história ocidental, céticos como Michel
de Montaigne têm considerado a dúvida como a essência da
civilização. No contexto do Iluminismo, certos pensadores
rejeitaram qualquer idéia de uma transformação permanen
te das questões humanas. Mas essas tendências raramente
tiveram caráter dominante: podem-se contar nos dedos as es
tátuas de Thomas Hobbes e Benedict Spinoza, por exemplo.
As mais influentes tradições ocidentais são as que contem
plaram a transformação da própria natureza da vida huma
na um projeto que sempre foi tendente à violência.

58
Os pensadores liberais contemporâneos tendem a consi
derar os movimentos totalitários do século passado como
anomalias na história ocidental, e uma tendência semelhan

te se verifica, entre os conservadores, no que diz respeito aos


delírios milenaristas da Idade Média. Esses surtos de matan
ças são vistos como exceções na norma pacífica de uma civi
lização boa, saudável e harmoniosa. Nem todos os males do

mundo se originam "no Ocidente", como quer que se defina


esse conceito amorfo. Os seres humanos são uma espécie ex
tremamente violenta; não faltam exemplos de matanças cole
tivas em sociedades não ocidentais. O que distingue o Ocidente
é a utilização da força e do terror para alterar a história e aper
feiçoar a humanidade. As paixões quiliastas que convulsio
naram a Europa no fim da Idade Média e voltaram a se
manifestar no século XX não são aberrações de uma imacu
lada tradição ocidental. Remontam a tempos imemoriais e têm
prosseguimento hoje em dia. No século XX, ganharam cor
po nos regimes seculares que pretendiam reformular a hu

manidade pela força.

59
2

Iluminismo e terror no
século XX

Destruir uma cidade, um Estado e mesmo um império é um

ato essencialmentefinito; mas pretender o total aniquilamento


a eliminação de uma entidade tão onipresente, mas teó
-

rica ou ideologicamente tão definida quanto uma classe soci


al ou uma abstração racial é algo muito diferente, impossível
até de conceber para uma mente não condicionada pelos há
bitos de pensamento ocidentais.
Edmund Stillman e William Pfaff¹

O século XXI vem sendo uma época de terror, sendo fácil per
ceber que, neste sentido, difere do que acaba de terminar. Na
verdade, o terrorismo foi praticado no século passado em es
cala sem equivalente em qualquer outro período da história,
mas, ao contrário do terrorismo mais temido hoje em dia,
era motivado em boa parte por esperanças seculares. Os re
gimes totalitários do século passado encarnavam alguns dos
sonhos mais ousados do Iluminismo. Alguns de seus piores
crimes foram cometidos em nome de ideais progressistas,
enquanto até mesmo regimes que se consideravam inimigos

61
dos valores do Iluminismo tentavam empreender um proje
to de transformação da humanidade recorrendo ao poder da
ciência, cujas origens estão no pensamento iluminista.
O papel do Iluminismo no terror do século XX ainda é um
ponto cego na percepção dos ocidentais. As bibliotecas estão
cheias de livros que insistem em que a repressão em massa
na Rússia stalinista e na China maoísta era um subproduto
de tradições despóticas. A inferência é que a culpa cabe aos
povos dos países submetidos ao domínio comunista, estan
do a ideologia comunista isenta de qualquer responsabilidade
nos crimes cometidos por esses regimes. Uma lição semelhante
foi tirada da catástrofe decorrente do projeto do governo Bush
de mudar o regime no Iraque: ela não foi da responsabilidade
dos que conceberam e concretizaram o projeto, cujas metas e
intenções são irrepreensíveis. A culpa é dos iraquianos, uma
raça inferior que desprezou a liberdade que lhe era oferecida
com tanta magnanimidade.
Não é apenas um certo racismo que encontramos nessa
maneira de pensar. No século passado, a repressão em massa

foi praticada em países com histórias extremamente diferen


tes e tradições que só tinham em comum o fato de estarem

sujeitas a experiências utópicas. A máquina do terror-pro


cessos exemplares, prisões em massa e controle estatal da vida
política e cultural por meio de uma polícia secreta onipresente
existia em todos os regimes comunistas. A Mongólia e a
Alemanha Oriental, Cuba e a Bulgária, a Romênia, a Coréia
do Norte e a Ásia central soviética estiveram submetidas a for

mas semelhantes de repressão. Muito pouca diferença fazia o

tipo de governo democrático ou não


-

que esses países


tinham antes de ser submetidos ao domínio comunista. A

Tchecoslováquia era um modelo de democracia antes da Se


gunda Guerra Mundial, o que não a impediu de ser transfor

62
mada numa ditadura totalitária depois da ascensão dos co
munistas. A força da Igreja na Polônia pode ter impedido a
imposição de um totalitarismo sem peias, mas, como qual
quer outro país comunista, ela também sofreu períodos de
intensa repressão. O resultado não teria sido diferente se re
gimes comunistas tivessem sido instaurados na França ou na
Itália, na Grã-Bretanha ou na Escandinávia.
As aparentes semelhanças entre países que sofreram a
imposição de regimes comunistas decorrem antes desse des
tino comum que de suas histórias anteriores. Embora alguns
regimes comunistas tenham feito progressos no bem-estar
social, todos eles tiveram a experiência da repressão em mas
sa, paralelamente a uma corrupção endêmica e à devastação
ambiental. Nesses e em outros países comunistas, o terror era
em certa medida uma reação a esses fracassos e à conseqüen

te falta de legitimidade popular dos regimes, mas também re


presentava a continuação de uma tradição revolucionária
européia. Os regimes comunistas foram fundados tendo em
vista um ideal utópico cujas origens estão no cerne do Ilu
minismo. Embora já não seja tão amplamente reconhecido,
o fato é que os nazistas também eram de certa maneira filhos
do Iluminismo. Só tinham desprezo pelos ideais iluministas
de liberdade e igualdade entre os homens, mas davam conti
nuidade a uma poderosa corrente iliberal do pensamento
iluminista, recorrendo a uma influente ideologia iluminista
de "racismo científico".

O século passado assistiu a muitas atrocidades que nada


deviam ao pensamento iluminista. Embora fosse até certo
ponto propiciado pela história do colonialismo no país e pe
las políticas adotadas pela França — a principal antiga po
tência colonial —, o genocídio que dizimou um milhão de
vidas em Ruanda em 1994 também teve como um de seus

63
motivos a luta por terras e água. A disputa de recursos com
freqüência tem sido uma das causas de genocídios, assim
como as inimizades nacionais e tribais, além da pura e sim
ples ganância predadora. O genocídio cometido no Congo
Belga por representantes do rei Leopoldo II, que governou o
território como seu feudo pessoal entre 1885 e 1908, causa
ria a morte de algo entre oito e dez milhões de pessoas, por
assassinato, exaustão, fome, doenças e o colapso dos índices
de natalidade. Embora ele justificasse o empreendimento em
termos de disseminação do progresso e do cristianismo, o obje
tivo de Leopoldo não era ideológico: era seu enriquecimento

pessoal e o de seus parceiros de negócios.²


Não é o terror dessa natureza que distingue o século XX
de épocas anteriores. Em suas piores manifestações, o terror
do século XX foi utilizado com o objetivo de transformar a
vida humana. A característica específica do terror do século
XX não é sua escala, por inédita que fosse, mas o fato de ter
como meta o aperfeiçoamento da vida humana, objetivo es
sencial do totalitarismo.

Existe uma escola de pensamento que desconfia do con


ceito de totalitarismo, e é bem verdade que a imagem dele
traçada por pensadores posteriores à Segunda Guerra Mun
dial era por demais simplista. Hannah Arendt dissipou im
portantes diferenças entre o nazismo e o comunismo. O
comunismo era uma versão radical de um ideal de igualdade
do qual toda a humanidade participaria, ao passo que o na
zismo excluía a maior parte da humanidade e condenava à
morte parte dela. O regime stalinista assassinou muito mais
gente que os nazistas. Povos inteiros, como os alemães do
Volga e os tártaros da Criméia, foram submetidos a movi

mentos de deportação que tiveram efeitos genocidas, e havia


seções do Gulag de que era praticamente impossível sair com

64
vida. Ainda assim, não houve campos de extermínio na an
tiga União Soviética. Arendt também descreveu os Estados
totalitários como máquinas impessoais nas quais praticamen
te não era contemplada a responsabilidade individual.³ Na ver
dade, a vida nos regimes totalitários era um caos endêmico.
O terror era parte integrante do sistema, mas não acontecia
sem decisões pessoais. Os indivíduos tornavam-se cúmplices
dos crimes nazistas pelos motivos mais mesquinhos - no
caso de Eichmann, o carreirismo. Faria mais sentido falar da
banalidade dos praticantes do mal que da banalidade do mal.
Os crimes que eles cometeram não eram banais e decorriam
de crenças essenciais ao regime em que ocorriam.4
A busca da Utopia não precisa necessariamente levar ao
totalitarismo. Enquanto ficar confinada a comunidades volun
tariamente mobilizadas, ela tende a ser autolimitadora

embora, ao ser associada a crenças apocalípticas, como no mas


sacre de Jonestown, no qual cerca de mil pessoas se suicida
ram na Guiana, em 1978, o fim possa ser violento. É quando
o poder de Estado é convocado para reformular a sociedade que
tem início o desvio para o totalitarismo. O fato de o projeto
utópico só poder ser promovido pelo desmantelamento das
instituições sociais vigentes conduz a um programa que vai
muito além de qualquer coisa já tentada pelas tiranias tradi
cionais. Se não sobrevém o totalitarismo, é porque o regime
vem a ser derrubado ou entra em colapso, ou então porque o
empenho utópico se dissipa e o sistema resvala para o auto
ritarismo. Quando uma ideologia utópica assume o poder
numa democracia, como aconteceu por certo período no go
verno Bush, ocorre uma perda de liberdade, à medida que o
poder governamental é usado para mascarar os fracassos do
projeto utópico. Se não houver um decisivo empenho de rever
ter a tendência, sobreviverá algum tipo de democracia iliberal.

65
Muitos critérios têm sido usados para distinguir o tota
litarismo de outros tipos de regimes repressivos. Um dos pos
síveis diferenciais é o grau de controle estatal do conjunto da
sociedade, que vem a ser um subproduto da tentativa de refor
mulação da vida humana. O bolchevismo e o nazismo foram
veículos desse tipo de projeto, o que não aconteceu no caso
do fascismo italiano, muito embora a palavra "totalitário"
tenha sido usada pela primeira vez na Itália de Mussolini.
Tampouco o foi não obstante o fato de ter sido às vezes
extremamente violento - o fascismo clerical da Europa cen
tral e oriental entre as duas guerras mundiais. Existem muitos
regimes viciosos que não podem ser considerados totalitários.
As teocracias pré-modernas recorriam ao medo para impor 1

uma ortodoxia religiosa, mas não se mostravam mais empe }

nhadas em remodelar a humanidade que as tiranias tradicio 1

nais. O leninismo e o nazismo almejavam essa transformação.

A apresentação desses regimes como totalitários reflete este fato.

O COMUNISMO SOVIÉTICO: UMA REVOLUÇÃO


MILENARISTA MODERNA

O bolchevismo como fenômeno social deve ser considerado uma


religião, e não um movimento político comum.

Bertrand Russell5

Nas últimas páginas de seu panfleto "Literatura e revolução",


publicado em 1923, Leon Trotski dá uma idéia da transfor
mação da vida humana que considerava factível. Ele não es
creve sobre mudanças na sociedade, mas sobre uma alteração

66
na natureza humana. A mudança que prevê ocorrerá na bi
ologia da espécie humana. No futuro, escreve,

Até a vida puramente fisiológica será objeto de experiências


coletivas. A espécie humana, o Homo sapiens coagulado, mais
uma vez entrará num estado de transformação radical e, em

suas próprias mãos, tornar-se-á objeto dos mais complexos


métodos de seleção artificial e treinamento psicofísico (...) É
difícil prever o grau de autogoverno que poderá alcançar o
homem do futuro ou as culminâncias a que poderá levar sua
técnica. A construção social e a auto-educação psicofísica
tornar-se-ão dois aspectos do mesmo processo. Todas as ar
tes literatura, teatro, pintura, música e arquitetura
conferirão a esse processo uma forma bela. Mais precisamen
te, a concha na qual estarão enfeixadas a construção cultu
ral e a auto-educação do homem comunista haverá de alçar
todos os elementos vitais da arte contemporânea ao nível
mais elevado. O hornem tornar-se-á incomensuravelmente
mais forte, mais sábio e mais refinado; seu corpo será mais
harmônico, seus movimentos, mais rítmicos, sua voz, mais
musical. As formas da vida serão dinamicamente dramáti
cas. O tipo humano médio alcançará as alturas de um
Aristóteles, um Goethe ou um Marx. E sobre essas serras
novos picos se elevarão."

Na visão de Trotski, a história é o processo pelo qual a


humanidade adquire controle de si mesma e do mundo. Assim
como não existem limites para a ampliação do conhecimento

humano, não existe um limite para o progresso humano na


ética e na política. Se existem imperfeições na natureza hu
mana, a ciência pode corrigi-las. É este o verdadeiro signifi
cado da perfectibilidade no pensamento iluminista radical: não
tanto condição de uma perfeição estática, mas uma visão de

67
irrestritas possibilidades humanas. A visão trotskista do
emprego da ciência para aperfeiçoar a humanidade traduz
uma recorrente fantasia moderna. A crença de que a ciência
pode libertar a humanidade de suas limitações naturais e tal
vez até torná-la imortal prospera hoje em dia em cultos como
a criogênica, o transumanismo e o extropianismo, que reco
nhecem sua dívida em relação ao Iluminismo.7
Desde o início os bolcheviques pretendiam criar um novo
tipo de ser humano. Ao contrário dos nazistas, não encara
vam essa nova humanidade em termos raciais, mas, como
os nazistas, dispunham-se a empregar a ciência e a pseudo
ciência para alcançar seu objetivo. A natureza humana devia
ser modificada para que surgisse o "homem socialista". Seme
lhante projeto era impossível com o conhecimento científico
disponível na época, mas os bolcheviques estavam dispostos
a usar qualquer método, por mais desumano que fosse, e a
adotar qualquer teoria, mesmo a mais duvidosa, desde que
prometesse a transformação com que sonhavam. A partir do
início da década de 1920, o regime soviético perseguiu os ver
dadeiros cientistas. Posteriormente, como aconteceu na Ale

manha nazista, a ciência seria pervertida para atender às


necessidades do terror. Pelo fim da década de 1930, cobaias
humanas - prisioneiros de guerra alemães e japoneses, sol
dados e diplomatas, poloneses, coreanos e chineses, prisio
neiros políticos e "nacionalistas" de todos os tipos (inclusive
judeus) eram usados em experiências médicas na prisão
de Lubianka, no centro de Moscou. Não obstante as tentati
vas de opor resistência a esse processo, a ciência tornou-se
parte integrante do Estado totalitário.8
O papel de Trofim Lisenko (1898-1976) é bem conhecido.
Lisenko difundiu uma versão da teoria lamarckiana da evo

lução, que diferia da teoria darwinista então aceita pela maio

68
ria dos cientistas por sustentar que as características adqui
ridas podem ser transmitidas. A teoria de Lamarck parecia
abrir a possibilidade de que a natureza humana fosse pro
gressivamente aperfeiçoada. Na medida em que aparentemen
te aumentava o poder humano sobre o mundo natural, o
lamarckismo sintonizava com o marxismo, e, com o apoio
de Stalin, Lisenko foi nomeado diretor da Academia Soviética de

Ciências Agrícolas. Também recebeu carta branca no trato das


questões agrícolas, dizendo-se capaz de cultivar novas varie
dades de trigo de alto rendimento. As experiências de Lisenko
na agricultura revelaram-se desastrosas, agravando o colap
so da produção de alimentos que acompanhou o processo de
coletivização. Suas idéias rasas e estapafúrdias atrasaram o
desenvolvimento da biologia na União Soviética até bem en
trada a década de 1960 e tiveram uma influência ainda mais
duradoura na China maoísta.

Menos conhecido é o trabalho de Ilia Ivanov, incumbido


por Stalin, no meado da década de 1920, de promover o cruza
mento de macacos com seres humanos. Stalin não estava

interessado em encher o mundo com réplicas de Aristóteles e


Goethe. Queria uma nova raça de soldados "um novo ser
-

humano invencível", altamente resistente à dor, necessitado


de pouca alimentação e pouco sono. Ivanov era um criador de
cavalos que ganhou fama na época czarista como pioneiro
da inseminação artificial de cavalos de corrida, mas, por or
dem de Stalin, voltou sua atenção para a pesquisa de primatas.
Viajou à África ocidental para promover experiências de fe
cundação de chimpanzés e fundou um instituto de pesquisas
na Geórgia, a terra de Stalin, onde seres humanos passaram
a ser fecundados com esperma de macacos. Algumas expe
riências chegaram a ser tentadas, mas, como se poderia es
perar, todas fracassaram. Ivanov foi detido, condenado a uma

69
pena de prisão, que veio a ser comutada, e finalmente exilado
no Cazaquistão, onde morreu em 1931. Mereceu um obituá
rio de exaltação de sua vida e obra pelo psicólogo russo Ivan
Pavlov, que conquistou fama mundial com uma série de expe
riências de aplicação aos cães de métodos de condicionamen
to comportamental.º
As exigências de Stalin em relação ao novo ser humano
eram grosseiramente práticas. Mas fazem parte de um pro
jeto de desenvolvimento de um tipo superior de ser humano
que reiteradamente volta a se manifestar nos pensadores
iluministas. Às vezes se questiona se chegou realmente a haver
10
algo como um "projeto iluminista". ¹º O Iluminismo certa
mente foi um movimento heterogêneo e não raro contradi
tório. Uma vasta gama de crenças pode ser encontrada entre
os pensadores iluministas: ateus e deístas, liberais e antili
berais, comunistas e pró-mercado, igualitários e racistas. Boa
parte da história do Iluminismo é feita de furiosas disputas
entre representantes de doutrinas rivais. Mas não se pode
negar que uma versão radical do pensamento iluminista che
gou ao poder com os bolcheviques, que pretendiam modifi
car radicalmente a vida humana.
Sempre houve na Rússia muita gente empenhada em en
contrar na Europa maneiras de resgatar o país do atraso. Ao se
estabelecer na Rússia, o grande pensador contra-iluminista
Joseph de Maistre afirmou que queria viver entre pessoas que
não tivessem sido "marcadas por filósofos". Decepcionado, en
controu em São Petersburgo uma elite que falava francês, re
verenciava Voltaire e buscava inspiração nos philosophes. Ao
longo do século XIX, os pensadores russos continuaram volta
dos para a Europa. O anarquista Bakunin, o marxista ortodoxo
Plekhanov, o liberal anglófilo Turgueniev todos estavam con
vencidos de que o futuro da Rússia dependia da fusão na civi

70
lização universal que viam surgir na Europa. O mesmo se dava
com os bolcheviques que criaram o Estado soviético. Quando
falavam de transformar a Rússia num Estado moderno, Lenin e
Trotski estavam falando uma língua européia.
Já virou lugar-comum dizer que o problema da Rússia
foi o fato de o Iluminismo nunca ter triunfado no país. Se
gundo essa visão, o regime soviético foi uma versão eslava
do "despotismo oriental", sendo a repressão sem precedentes
por ele promovida um desdobramento da tirania moscovita
tradicional. Na Europa, a Rússia há muito é vista como um
país semi-asiático percepção reforçada pelo famoso diário
em que o marquês de Custine, registrando suas viagens pela
Rússia em 1839, afirmava que os russos eram um povo pre
disposto à servidão.¹1¹ Teorias sobre o despotismo oriental há
muito são desenvolvidas por marxistas empenhados em ex
plicar por que as idéias de Marx tiveram resultados desastro

sos na Rússia e na China. A idéia do despotismo oriental


remonta ao próprio Marx, que postulou a existência de um

"modo de produção asiático". Teóricos marxistas posteriores,


como Karl Wittfogel, aplicaram o conceito à Rússia e à Chi
na, argumentando que o totalitarismo nesses países era pro
12
duto das tradições asiáticas.

Nekrich e Heller sintetizam essa voz corrente:

Os historiadores ocidentais traçam uma linha reta de Ivan


Vassilievitch (Ivan, o Terrível) a Josef Vissarionovitch (Stalin),
ou de Malyuta Skuratov, chefe dos guarda-costas e da polícia
secreta de Ivan, o Terrível, a Iuri Andropov (...) demonstran
do assim que desde a época dos citas a Rússia inexoravelmente

caminhava para a Revolução de Outubro e o poder soviéti


co. Era algo inerente ao caráter nacional do povo russo. Em
nenhum outro lugar, consideram esses estudiosos, semelhan
te coisa seria possível.13

71
É verdade que a Rússia nunca pertenceu plenamente ao
Ocidente. A ortodoxia oriental se definia em oposição ao cris
tianismo ocidental, e não houve na Rússia nada semelhante
à Reforma ou ao Renascimento. Desde a época da queda de
Constantinopla nas mãos dos otomanos, em 1543, desenvol
veu-se a idéia de que Moscou estava destinada a ser a “tercei
ra Roma", liderando o mundo cristão a partir do leste. No
século XIX, um influente grupo de pensadores eslavófilos ar
gumentava numa linha semelhante, dando a entender que a
diferença da Rússia em relação ao Ocidente era uma virtude.

Rejeitando o individualismo ocidental, eles sustentavam que


as tradições populares russas representavam uma forma su
perior de vida. Essa corrente de pensamento antiocidental evo
luiu para uma crença no papel ímpar da Rússia na história
mundial, a qual pode ter contribuído para dar sustentação
ao regime comunista. O filósofo religioso russo Nikolai
Berdiaev considerava que o comunismo russo "é mais tradi

cional do que se costuma pensar, constituindo uma trans


formação e uma deformação da antiga idéia messiânica
russa". 14 Certamente havia elementos de messianismo no

bolchevismo. Anatoli Lunatcharski, um bolchevique expul


so do partido por Lenin por desvio ideológico, mas que viria
a tornar-se ministro soviético da Educação, assinalou essas

afinidades em 1907 num livro sobre Socialismo e religião, re


ferindo-se à maneira como certas idéias cristãs a respeito do
Juízo Final e do reino milenar de Cristo haviam sido repro
duzidas no socialismo. 15 Também é verdade que a revolução

suscitou esperanças apocalípticas na Rússia. Em 1918, o po


eta simbolista Aleksander Blok publicou "Os doze", retratan
do um bando de doze guardas vermelhos que percorrem as
ruas de Petrogrado liderados pela figura de Cristo sob uma
bandeira vermelha. As formas seculares e religiosas de messia

72
nismo não são mutuamente excludentes uniram forças,
-

por exemplo, na direita utópica americana. Por um certo pe


ríodo, pode ter parecido a uns poucos que o novo regime so
viético encarnava uma tradição messiânica russa. Mas o

messianismo reacionário russo não era uma doutrina expan


sionista. Essencialmente, via a Rússia como um reduto de

virtude num mundo decaído. Não foi esse messianismo

antiocidental que chegou ao poder na Rússia com a Revolu


ção de Outubro.

Os bolcheviques queriam superar o Ocidente concretizan


do seus ideais mais radicais. Não pretendiam copiar sociedades
ocidentais concretas (como fez o czarismo tardio com certo

êxito). Lenin queria transplantar para a Rússia as institui


ções fundamentais do capitalismo ocidental, como a disciplina
do trabalho e o sistema fabril. Era um ardoroso propagan
dista de duas das mais avançadas técnicas capitalistas: o tay
lorismo, a técnica americana de "administração científica" e
o "fordismo", a linha de montagem para produção em mas
sa surgida nos Estados Unidos. Assim o líder bolchevique
descreveria seu programa: "Uma combinação do ardor revolu
cionário russo com a eficiência americana é a essência do

leninismo."¹6 De forma semelhante, Trotski exigia “a milita


rização do trabalho" um sistema de trabalho em que a
disciplina da fábrica capitalista seria ainda mais intensifica
da. Mas os objetivos bolcheviques iam muito além da instau
ração da disciplina do trabalho e de técnicas de produção em
massa do capitalismo ocidental. Entre os principais estava a
concretização da utopia iluminista que os jacobinos e a Comu
na de Paris não haviam conseguido realizar. O problema da
Rússia não foi o fato de não ter absorvido o Iluminismo, mas

de ter sido exposta ao Iluminismo em uma de suas formas


mais virulentas.

73
Ao contrário do que pensa a maioria dos historiadores
ocidentais, são poucos os fatores de continuidade ligando o
czarismo ao bolchevismo. Lenin chegou ao poder em conse
qüência de uma conjunção de acidentes. Se a Rússia tivesse se
retirado da Primeira Guerra Mundial, os alemães não tives

sem apoiado Lenin, o governo provisório menchevique de


Kerenski tivesse mostrado maior competência ou não tivesse
fracassado o golpe militar intentado contra os mencheviques
pelo general Kornilov em setembro de 1917, a revolução bol
chevique não teria ocorrido. O terror imposto por Lenin não
pode ser explicado pelas tradições russas, nem pelas condi
ções que prevaleciam na época em que o regime bolchevique
chegou ao poder. A guerra civil e a intervenção militar estran
geira criaram condições nas quais a sobrevivência do novo
regime se viu desde logo ameaçada; mas a força do terror por
ele desencadeado estava diretamente voltada contra a rebe

lião popular. O objetivo não era apenas permanecer no poder,


mas também mudar e reformar irrevogavelmente a Rússia.
A começar pelos jacobinos na França do fim do século XVIII e
depois na Comuna de Paris, o terror tem sido utilizado dessa
maneira sempre que uma ditadura revolucionária busca al
cançar metas utópicas. Os bolcheviques queriam promover
na Rússia um projeto iluminista que havia fracassado na
França. Não fugiam à regra nessa crença de que a Rússia des

via inspirar-se num modelo europeu. Distinguiam-se, isto


sim, na convicção de que para isso seria necessário recorrer
ao terror, e neste sentido mostravam-se discípulos confessos
dos jacobinos. Quaisquer que sejam os outros objetivos a que
tenha servido - tais como a defesa do poder bolchevique fren
te à intervenção estrangeira e à rebelião popular —, o empre
go do terror por parte de Lenin decorria de seu compromisso
com esse projeto revolucionário.

74
Lenin expôs sua visão da sociedade que pretendia promo
ver em seu livro Estado e revolução. Escreveu esse panfleto
utópico em agosto-setembro de 1917, quando estava na clan
destinidade na Finlândia durante o governo provisório russo,
e pretendia publicá-lo sob pseudônimo. A história caminhou
mais rapidamente do que ele esperava e os primeiros exem
plares saíram com seu nome em 1918, publicando-se uma
segunda edição um ano depois. Lenin conferia certa impor
tância a esse livro, dando instruções para que, se fosse mor
to, viesse a ser publicado a qualquer custo. É, ainda hoje, o
melhor roteiro do futuro por ele descortinado.
Estado e revolução assenta raízes profundas no pensamento
de Marx. Citando a idéia da ditadura do proletariado cunhada
por Marx numa carta de 1852, Lenin invoca a Comuna de

Paris (1870-71) como modelo de governo revolucionário para


a Rússia e o mundo. No futuro, não haveria mais Estado, no
sentido moderno. Seriam abolidas as forças militares e poli
ciais permanentes. Todos participariam do governo. Os ser
vidores públicos não teriam privilégios, auferindo a renda de
qualquer trabalhador. Lenin não imaginou que a instaura
ção dessa nova ordem pudesse dar-se sem luta. Uma peque
na minoria resistiria, e a eliminação dessa resistência seria a
principal função do novo Estado. Lenin deixava bem claro que
o novo regime nada teria em comum com a democracia bur
guesa. Em nota publicada em 1920, escreveu: "O conceito
científico de 'ditadura' significa, nada mais nada menos, uma
autoridade livre de quaisquer leis, absolutamente desimpedida
de regras de qualquer natureza e diretamente baseada na força."1
Em Estado e revolução, Lenin afirma que, numa ditadura
do proletariado, não haveria necessidade de coerção das mas
sas, pois o novo regime existiria apenas para servi-las. Ao
mesmo tempo, a ditadura teria de ser implacável com seus

75
inimigos. Também aqui, Lenin apenas repetia Marx. Em seu
discurso perante a Liga Comunista em Londres em março de
1850, Marx e Engels deixam claro que o terror seria parte
integrante da revolução:

Acima de tudo, durante a luta e imediatamente depois, na


medida em que for possível, os operários devem opor-se às
tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a
cumprir suas ameaças terroristas (...) Longe de se opor aos
chamados excessos casos de vingança popular contra in
divíduos odiados ou contra prédios públicos associados a lem
branças odiosas o partido dos trabalhadores deve não só
tolerar essas ações, como conferir-lhes direção.18

Embora Lenin –— seguindo, nisto, Marx -

- sustentasse que

o terror só seria utilizado contra resquícios da velha ordem,


na verdade ele se voltou com maior severidade contra operá
rios e camponeses. Em certa medida, isto pode ser explicado
pelas circunstâncias em que os bolcheviques tomaram o po
der. A Revolução de Outubro foi um subproduto da Primeira
Guerra Mundial e do caos que se seguiu na Rússia. O novo
regime soviético enfrentou vários anos de guerra civil, que
poderia perfeitamente ter levado a uma vitória de seus ad
versários, conhecidos como os brancos. Em tais condições,
talvez fosse mesmo inevitável um governo autoritário. Mas
elas não explicam a escala e a intensidade da repressão bol
chevique, resultado da tentativa de reconstruir a sociedade
com base num modelo inviável.
Desde o início, o Estado soviético envolveu-se em toma

das de reféns, execuções em massa e na criação de campos de


concentração, coisas inexistentes na Rússia czarista. Quando
a socialista revolucionária Fanny Kaplan feriu Lenin numa

76
tentativa de assassinato a 30 de agosto de 1918, a Cheka -
a

Comissão Extraordinária concebida por Lenin logo após a Re


volução de Outubro e criada em dezembro de 1917 - recebeu
ordens de promover um "implacável terror em massa". Cen
tenas de pessoas foram executadas. Estabeleceu-se um siste
ma de tomada de reféns para garantir a obediência de grupos
suspeitos - inovação que seria posteriormente defendida por
Trotski, um dos pioneiros do terrorismo de Estado no século
XX.19 Foi Trotski o responsável pela criação dos campos de
concentração em junho de 1918, inicialmente para a deten
ção de tchecos que lutavam contra o Exército Vermelho, e logo
também para os antigos oficiais czaristas que se recusavam
a se alistar nele. A repressão logo seria estendida também aos
camponeses, obrigados a ceder seus cereais requisitados pelo
regime. Em 1921, a revolta de alguns milhares de marinhei
ros em Kronstadt foi reprimida por cerca de 50.000 homens
do Exército Vermelho (medida de repressão que Trotski
fundador do Exército Vermelho também defendeu).20 A
maioria dos marinheiros acabou em campos de concentra
ção, onde muitos morreram. A partir de 1918, uma onda de
revoltas camponesas espalhou-se por boa parte da Rússia, e
entre 1920 e 1921 a guerra civil transformou-se numa re
volta camponesa. Aldeias inteiras foram deportadas para o
norte da Rússia, e no fim de 1921 cerca de 80 por cento dos
prisioneiros dos campos eram camponeses ou operários.21
Supõe-se em geral que o aparato de segurança soviético
foi herdado do czarismo tardio. Pedro, o Grande certamente
usou o trabalho forçado de condenados, particularmente na
construção de São Petersburgo, este perene símbolo da mo
dernidade russa. Mas às vésperas da revolução, em 1916,
somente 28.600 condenados cumpriam penas de trabalhos
forçados.22 Existe uma enorme disparidade entre o tamanho

77
do aparato penal e de segurança da Rússia czarista e o do que
foi instaurado pelos bolcheviques. Em 1895, o Okhrana (De
partamento de Polícia) tinha apenas 161 funcionários em tem
po integral. Em outubro de 1916, pode ter chegado a um total
de cerca de 15.000, incluindo funcionários alocados em ou

tros departamentos. Em comparação, em 1919 a Cheka ti


nha no mínimo 37.000 funcionários, chegando a mais de um

quarto de milhão em 1921. Disparidade semelhante se verifica


no que diz respeito ao número de execuções. No último perío
do czarista, entre 1866 e 1917, houve aproximadamente
14.000 execuções, enquanto no período soviético inicial, de
1917 a 1923, a Cheka promoveu cerca de 200.000 execuções. 23
As técnicas de repressão utilizadas pelos bolcheviques eram
mais tributárias das práticas ocidentais recentes que do pas
sado czarista. Na instituição dos campos de prisioneiros, eles
seguiam um modelo colonial europeu. Campos de concen
tração foram usados pela Espanha para reprimir insurgentes
em Cuba no fim do século XIX e pelos britânicos na África do
Sul durante a Guerra dos Bôeres. Pela mesma época, seriam
criados também na África do sudoeste de colonização alemã,
quando as autoridades alemãs submeteram a tribo dos hererós
a um genocídio. (O primeiro comissário imperial da África
germanizada do sudoeste foi o pai de Hermann Goering, e
dois dos professores de Joseph Mengele promoveram experiên
cias médicas com populações autóctones). 24
A repressão bolchevique à liberdade intelectual também
foi de natureza diferente de qualquer movimento semelhan
te verificado antes na Rússia. No passado, alguns escritores e
militantes políticos haviam sido mandados para o exílio. O
escritor radical Aleksandr Herzen deixou a Rússia para se es
tabelecer em Paris, Londres e na Itália. Lenin passou algum
tempo na Sibéria e boa parte da vida na Suíça, na Alemanha,

78
na Grã-Bretanha e outros países europeus. Só depois da to
mada do poder pelos bolcheviques, no entanto, é que os inte
lectuais russos foram submetidos a deportações em massa.
No outono de 1922, dois navios deixaram Petrogrado levan
do alguns dos membros mais criativos da intelligentsia russa
escritores, filósofos, críticos literários, teólogos, historia
dores e outros -, designados por Lenin para a emigração
involuntária. Detidas pela polícia política, a GPU, essas emi
nentes personalidades russas foram deportadas (juntamente
com suas famílias) por não estarem sintonizadas com o novo
regime. O episódio passou praticamente despercebido na época
e mal chegou a ser mencionado durante a Guerra Fria. Os
intelectuais expulsos estabeleceram-se em Paris, Berlim, Pra
ga e outras cidades européias, chegando alguns deles — como
Nikolai Berdiaev - a iniciar uma nova vida, ao passo que
muitos outros mergulhavam na pobreza e na obscuridade.
Lesley Chamberlain, responsável pelo primeiro levantamen
to abrangente das deportações em massa, observa que esse
esquecimento "é tanto mais surpreendente por ter sido o pró
prio Lenin, o líder dos bolcheviques e fundador da União So
viética, que planejou a deportação e escolheu nominalmente
muitas das vítimas". Ela acrescenta: "Embora jamais pudes
sem imaginar-se nessa condição, os intelectuais expulsos em
1922 foram os primeiros dissidentes do totalitarismo sovié
tico."25 Um comentário que bem captura o caráter inovador
do regime leninista.

Os métodos de repressão empregados pelos bolcheviques


não eram uma herança do czarismo. Eram métodos novos,
adotados para a consecução de metas utópicas. O papel cen
tral ocupado pelo aparato de segurança no novo Estado so
viético era uma exigência do projeto de reforma da sociedade

uma aspiração que nunca fora alimentada pelas tiranias

79
tradicionais, e de que certamente careceram os czares. Já se
observou, de forma procedente, que, "antes do surgimento
de Estado-partido soviético, eram poucos ou inexistentes, na
história, os precedentes de um sistema milenarista centrado
na segurança".26 Chamar o Estado soviético de tirania é aplicar
uma tipologia antiga a um sistema radicalmente moderno.
Tal como os próprios bolcheviques, a opinião pública oci
dental viu no regime soviético uma tentativa de concretizar
os ideais da Revolução Francesa. Não deixa de ser eloqüente
que o comunismo soviético se tenha revelado mais popular
no Ocidente quando o terror estava em seu auge. Depois de
visitar a União Soviética em 1934 - quando cerca de cinco
milhões de pessoas morreram no surto de fome na Ucrânia —,
Harold Laski, intelectual britânico de inclinações trabalhis
tas, declarou: "Nunca na história o homem alcançou o grau
de perfeição atingido no regime soviético." No mesmo espíri
to, o conhecido casal de fabianos Sidney e Beatrice Webb pu
blicou em 1935 um livro intitulado Comunismo soviético: Uma

nova civilização? (Em edições posteriores, o ponto de interro


gação foi abolido.) Para esses entusiastas ocidentais, o stali
nismo era o ponto mais alto no progresso humano. O crítico
literário americano Edmund Wilson foi ainda mais longe. Na
União Soviética, escreveu, "senti-me como se estivesse num

santuário moral, onde a luz brilha permanentemente".27 Os


intelectuais progressistas ocidentais não tinham a menor
dúvida de que a URSS era um regime dedicado aos ideais ilu
ministas. Teriam ficado horrorizados com a idéia de que o
Estado soviético nada mais era que o despotismo czarista sob
nova roupagem. Só quando ficou claro que o sistema sovié
tico não havia alcançado qualquer de suas metas é que o em
prego do terror por tal sistema veio a ser explicado como uma
herança czarista.

80
Na maioria dos casos, a opinião pública ocidental via na
União Soviética stalinista uma imagem de suas próprias fan
tasias utópicas, tendo projetado a mesma imagem na China
maoísta, onde o custo humano do comunismo foi ainda
maior. Cerca de 38 milhões de pessoas morreram no Grande
Salto à Frente entre 1958 e 1961. Escreveram Jung Chang e
Jon Halliday: "Foi o maior surto de fome do século XX -
e de toda a história humana registrada. Mao deliberadamente
submeteu à fome e levou à morte esses milhões de pessoas. "28
Tal como acontecera na União Soviética, foram os camponeses
que mais sofreram com uma política. alheia às tradições
-

chinesas-voltada para a submissão do ambiente natural às


necessidades humanas. Cerca de cem milhões de pessoas fo
ram obrigadas a trabalhar em projetos de irrigação. Não raro
sem dispor das ferramentas necessárias, elas usavam portas
e tábuas retiradas de suas próprias casas para construir bar
ragens, reservatórios e canais — a maioria dos quais ruiu ou

foi abandonada. Numa espetacular manifestação de espírito


prometéico, decidiu-se que os pardais constituíam uma pra
ga e deviam ser exterminados. Os camponeses foram instruí
dos a agitar varas e vassouras para que os pássaros caíssem
de exaustão e pudessem ser mortos. O resultado foi uma pra
ga de insetos. Uma mensagem secreta teve então de ser envia
da à embaixada soviética em Pequim, solicitando o envio o
mais urgente possível de centenas de milhares de pardais do
extremo oriente soviético.2⁹

O custo cultural do regime maoísta ficou evidente na


Grande Revolução Proletária de 1966-7. Como os bolchevi

ques, Mao via na persistência do passado o principal obstáculo


para a construção de um novo futuro. As velhas tradições da
China precisavam ser varridas da memória. E, com efeito, o
regime maoísta declarou guerra à civilização chinesa. Mas

81
foi durante a Revolução Cultural -

um verdadeiro frenesi de
massa instigado politicamente, com inegável dimensão mile
narista- que o regime alcançou seu maior nível de popula
-

ridade no Ocidente. Como acontecera com o stalinismo, a


opinião pública ocidental via no regime de Mao uma dedica
ção ao ideal iluminista da emancipação universal: o terror
era uma fase necessária na conversão de uma tirania asiática

aos ideais ocidentais de liberdade e progresso. Mais uma vez,


só quando seus resultados catastróficos já não podiam ser
negados o comunismo chinês veio a ser condenado como uma
forma de despotismo oriental. Em vez de serem vistos como
resultado da tentativa de aplicar uma ideologia ocidental
moderna, os crimes do regime maoísta podiam ser tranqüi
lamente encarados como vestígios do barbarismo tradicional.
Ao ser relegado o maoísmo, a opinião ocidental interpretou
sua rejeição como o início de um processo de ocidentalização,
quando, na verdade - tal como no caso do colapso do siste
ma soviético —, era o contrário que acontecia. A China pos
terior a Mao não rejeitava uma ideologia ocidental para adotar
outra, mas sim para abrir um caminho de desenvolvimento
que muito pouco deve a qualquer modelo ocidental. Consi
derando-se os problemas ecológicos cada vez mais graves do
país e a descompensação social que acompanhou o gradativo
abandono da "tigela de arroz de ferro", que garantia empre
go vitalício e um bem-estar essencial para a maioria da po
pulação, os resultados ainda são duvidosos; mas o período
em que a China se esforçava por aplicar uma ideologia oci
dental chegou ao fim.
Em todos os lugares em que chegou ao poder, o comu
nismo significou uma radical ruptura com o passado. Perto
do fim, o czarismo tinha muito mais em comum com a

Prússiafin de siècle do que com o sistema soviético.3⁰ O período

82
final do czarismo apresentava muitos vícios houve, por
exemplo, muitos pogroms —, mas globalmente se compara
favoravelmente com muitos países do mundo hoje em dia e

era incomparavelmente menos repressor que o regime sovié


tico. Ao empregar o terror como instrumento de engenharia
social, os bolcheviques davam continuidade deliberadamente
à tradição jacobina. Assim como os jacobinos haviam liqui
dado os resquícios do velho regime, era necessário eliminar
resíduos da reação que ainda pudessem ser encontrados em
todos os setores da sociedade russa. Escreveram Nekrich e

Heller: "Lenin era obcecado com dois precedentes históricos:


primeiro, os jacobinos, derrotados por não terem guilhoti
nado o bastante; depois, a Comuna de Paris, derrotada por
que seus líderes não fuzilaram o bastante."31
A segurança da revolução exigia medidas ativas contra
vestígios humanos do passado. Um dos primeiros atos anun
ciados pelo regime, em janeiro de 1918, foi a criação de uma
nova categoria de pessoas que poderia ser privada de direitos
civis, inclusive o direito à alimentação. Cerca de cinco milhões

de pessoas foram enquadradas nessa categoria, sendo subme


tidas a um sistema de racionamento classista, criado nesse
mesmo ano. Foi com esse pano de fundo de privação de direi
tos de categorias inteiras da população que sobreveio o Grande
Terror. Escreve Kolakowski, autor do estudo definitivo sobre
a ascensão e queda do marxismo: "O stalinismo foi a conti
nuação natural e óbvia do sistema de governo estabelecido

por Lenin e Trotski."32 Os milhões de mortes suscitados pelas


políticas de coletivização agrícola adotadas por Stalin foram
muito mais que qualquer coisa contemplada por Lenin, mas
não deixam de ser conseqüência das políticas por ele inicia
das. Por sua vez, as políticas de Lenin constituíram autênticas
tentativas de concretizar o comunismo marxista.

83
,
sua
Embora
visão
do
Marx tivessecomunismo
érepudiado
utópico
o pensamento
profundamente
utópica
.Como ob
servei no capítulo anterior, ninguém jamais será capaz de pla
.
nejarMas
oo
encaminhamento
caráterutópico
futuro
do ideal
avançada
dede
uma Marx
economia
nãodecor e apenas
das exigências impossíveis com que defronta a capacidade dos
planejadores. Tem a ver com o choque entre o ideal de har
monia e a diversidade dos valores humanos. O planejamento
central envolve enorme concentração de poder, sem a contra
partida como deixou claro Lenin em sua definição "cientí
fica" da ditadura do proletariado de qualquer controle
institucional. Um sistema de governo arbitrário como este
está fadado a encontrar resistência. Os valores do regime cer
tamente não serão compartilhados por todos nem sequer pela
maioria. A maioria dos indivíduos continuará apegada a coi
sas religião, nacionalidade ou família consideradas
-

atávicas pelo regime. Outros prezarão atividades como a


contemplação estética ou o amor romântico que não con
tribuem para a reconstrução social. Quer resistam ativamente
ao novo regime ou — como o Dr. Jivago, no romance de Boris
Pasternak simplesmente insistam em seguir em paz seu
próprio caminho, o certo é que haverá muitos que não com
partilham a visão do regime a respeito do que é melhor. Embo
ra toda Utopia sustente descortinar o que é melhor para toda
a humanidade, nunca deixa de ser apenas um ideal entre
muitos outros. Uma sociedade sem propriedade privada nem
dinheiro pode parecer idílica para certas pessoas e uma visão
infernal para outras. Para alguns, pode parecer óbvio que um
mundo governado pelo altruísmo seria melhor, ao passo que
para outros seria insuportavelmente insípido. Todas as socie
dades contêm ideais divergentes de vida. Quando um regime
utópico se defronta com este fato, o resultado só pode ser

84
repressão ou derrota. O utopismo não causa o totalitarismo
para que surja um regime totalitário, são necessários mui
tos outros fatores, mas o totalitarismo sempre sobrevém
quando o sonho de uma vida sem conflito é persistentemen
te perseguido mediante o uso do poder de Estado.
Os bolcheviques eram praticantes daquilo que Karl Popper
definia como engenharia social utópica, que tem o objetivo
de reconstruir a sociedade promovendo de uma só vez a mu

dança de toda a sua estrutura. 33 Para o engenheiro social utó


pico, não basta reformar as instituições gradualmente. Tal
como existe no presente, a sociedade está além da redenção.
Precisa ser destruída para que se crie um novo modo de vida.
Uma das dificuldades da engenharia social utópica é que não
dispõe de um método de correção dos erros. A teoria que orien
ta a construção da Utopia é considerada infalível; qualquer
desvio é tratado como erro ou traição. Podem ocorrer recuos
táticos e mudanças de direção — como aconteceu em 1921,

quando Lenin abandonou o comunismo de guerra e adotou


a Nova Política Econômica, permitindo que os camponeses
guardassem a posse de seus cereais mas o modelo utópico
é mantido acima de qualquer crítica. Todavia, considerando-se
a falibilidade humana, o modelo certamente apresenta defei
tos, alguns possivelmente fatais. O resultado da insistência
na tentativa de concretizá-lo só poderá ser uma sociedade

muito diferente da que era contemplada. Não é um processo


confinado à União Soviética e outros países comunistas. Ele
fica evidente no Iraque, onde foi feita uma tentativa não muito

menos ambiciosa de engenharia utópica. Como se poderia


prever, o fracasso do projeto foi atribuído a deficiências de
execução e ao comportamento recalcitrante do povo ira
quiano, e não a quaisquer defeitos do próprio projeto.

85
Destruir uma ordem social vigente em nome de um ideal

é algo irracional, como sustentava Popper. Onde ele se equi


vocava era na suposição de que, demonstrando a irraciona
lidade do utopismo, estaria livre dele. Dissecar os equívocos
da teoria marxista subjacente a Estado e revolução, de Lenin,
pode ser útil, mas a mentalidade utópica não se nutre de teo
rias sociais passíveis de deturpação. Ela se alimenta de mitos,
que não podem ser refutados. Para Lenin e Trotski, o terror
era uma maneira de reformular a sociedade e moldar um novo

tipo de ser humano. O objetivo do novo regime soviético era


um mundo em que a humanidade desabrocharia como nunca
antes. Para alcançar esta meta, ele estava disposto a sacrificar
milhões de vidas humanas. Os bolcheviques acreditavam que
o novo mundo só poderia surgir após a destruição do velho.
A Rússia sob domínio soviético efetivamente viveu uma

espécie de apocalipse. Embora nenhum setor da vida social


deixasse de ser afetado, a mudança foi mais radical no cam
po. Varlam Shalamov, que passou 17 anos trabalhando nas
minas de Kolyma uma seção do Gulag que abarcava no
fim das contas um décimo do território soviético, onde cerca
de um terço dos internos morria anualmente —, descreveu
os acontecimentos que se seguiram à chegada ao campo dos
bulldozers doados no contexto do programa americano co
nhecido como Lei do Empréstimo e Arrendamento. Destina
dos a ajudar na guerra contra o nazismo, os bulldozers foram
usados para dar fim a milhares de corpos congelados que
foram encontrados com a descoberta de fossas comuns aber

tas num período anterior da vida no campo:

Esses túmulos, enormes covas de pedra, estavam cheios de


cadáveres até a beira. Os corpos não haviam entrado em de
composição; eram simplesmente esqueletos cobertos de pele
suja e maltratada, toda mordida por piolhos.

86
O norte resistia com todas as suas forças a essa obra do
homem, rejeitando os cadáveres em suas entranhas. Derro

tada, humilhada, recuando, a pedra prometia nada esque


cer, esperar e guardar seu segredo. Os invernos inclementes,
os verões escaldantes, os ventos, os seis anos de chuva não

haviam arrancado aqueles mortos à pedra. A terra se abriu,

desnudando seus depósitos subterrâneos, pois continham não


só ouro e chumbo, tungstênio e urânio, mas também cor

pos humanos indecompostos.

Esses cadáveres deslizaram pela encosta, tentando, quem


sabe, subir...34

Embora tivesse conseqüências apocalípticas, a revolução


bolchevique não propiciou o advento do Milênio. Dezenas de
milhões morreram por nada. Ainda hoje o número de mor
tes em conseqüência da coletivização forçada não pode ser co
nhecido com certeza, mas Stalin teria dito a Churchill que
chegava a dez milhões. Robert Conquest estimou em mais ou
menos o dobro disto o número de mortes do Grande Terror

- estimativa que deve estar bem próxima da verdade.35 Mas


o custo em vidas destruídas é incalculavelmente maior. A

própria terra guardou as cicatrizes de desertos gerados pelo


homem e lagos e rios mortos ou em processo de desapareci
mento. A União Soviética stalinista tornou-se a terra das
maiores catástrofes ecológicas causadas pelo homem - tal -

vez superadas apenas pelas da China maoísta.36


A União Soviética sobreviveu à Segunda Guerra Mundial,
na qual seu povo deu uma decisiva contribuição para a der
rota do nazismo. No período imediatamente posterior à guer
ra, houve quem previsse um certo degelo no sistema stalinista;
mas, na verdade, milhões de indivíduos que haviam comba
tido heroicamente acabaram no Gulag. Nos anos de Guerra
Fria, houve várias tentativas de liberalização, entre elas o ata

87
que de Khruschev ao "culto da personalidade" stalinista no
congresso do partido em 1956; mas quando foi feita uma ten
tativa sistemática de reformular a União Soviética, no governo
de Mikhail Gorbatchev, ela entrou em colapso. A essa altura,
o sistema soviético era uma casca vazia sustentada pela cor

rupção e a inércia, e embora mantivesse a paz em seus vastos


territórios e proporcionasse a seus cidadãos uma certa segu
rança, que viriam a perder, tinha pouca legitimidade popular.
Nem mesmo a elite soviética demonstrava vontade de defen
der o sistema, e quando a ingênua tentativa reformista de
Gorbatchev provocou seu colapso, um Estado baseado no ter
ror desmoronou sem violência, numa debacle inédita na his

tória. No caos que se seguiu, a nova humanidade que o regime


soviético deveria criar estava longe de ser uma realidade. A
vida humana fora modificada, mas num processo que tinha
mais a ver com as mudanças descritas na Metamorfose de
Kafka do que com qualquer coisa sonhada por Marx, Lenin
ou Trotski.

O NAZISMO E O ILUMINISMO

Hitler e o Terceiro Reich foram a horrenda e absurda consu

mação de uma época que acreditava como nenhuma outra no


progresso e estava certa de que seria alcançado.
Lewis Namier³7

Como o bolchevismo, o nazismo foi um fenômeno europeu.


Isto pode parecer óbvio, mas a necessária inferência desta
constatação. a saber, que as origens do nazismo estão na
-

civilização ocidental ainda encontra resistência. E, no

88
entanto, os nazistas não vieram de uma terra distante. Pros
perando no caos do período entre-guerras, eram movidos por
crenças que circulavam na Europa havia muitos séculos. Os
crimes do nazismo não podem ser explicados (como houve
quem tentasse explicar os crimes do comunismo) como ma
nifestações de atraso. Provinham de algumas das mais caras
tradições da Europa, promovendo algumas de suas idéias mais
avançadas.

O Iluminismo desempenhou um papel indispensável no


desenvolvimento do nazismo. O nazismo muitas vezes é apre

sentado como um movimento que se opunha ao Iluminismo,


e é verdade que muitos nazistas se consideravam seus ini
migos. Diziam ter aprendido com pensadores de um movi
mento a que Isaiah Berlin deu o nome de contra-Iluminismo

um grupo heterogêneo de que faziam parte reacionários


como Joseph de Maistre e românticos como J. G. Herder. 38
Os ideólogos nazistas selecionavam nas idéias desses e outros

pensadores do contra-iluminismo o que lhes convinha — exa


tamente como faziam com os pensadores do Iluminismo. Em
ambos os casos podiam abeberar-se em amplas correntes de
pensamento antiliberal. A tese de certos membros da corren
te neomarxista da Escola de Frankfurt, segundo a qual o na
zismo vinha a ser um desdobramento lógico do pensamento
iluminista, costuma ser superestimada, mas não deixa de ter
um fundo de verdade.39

Existe um clichê acadêmico segundo o qual os nazistas


eram românticos extremados que exaltavam a emoção em
detrimento da razão. Mas a idéia de que o nazismo constituía
uma versão hiperbólica do movimento romântico é, na me
lhor das hipóteses, simplista. O que os nazistas deviam aos
românticos era uma crença compartilhada por muitos pen
sadores iluministas: a idéia de que a sociedade fora em algum

89
momento um todo orgânico e poderia voltar a sê-lo no futuro.
Os pensadores românticos tinham idéias diferentes sobre o
lugar e o momento em que essa sociedade orgânica existira:

alguns se voltavam para o cristianismo medieval, outros, para


a Grécia antiga, outros, ainda, para países distantes de que
nada sabiam. Onde quer que julgassem tê-la encontrado, sua
visão da sociedade era uma quimera. Nenhuma sociedade já
chegou a constituir um todo harmônico, e a idéia de comu

nidade orgânica, pondo sob suspeita o conflito e a diversida


de, sempre é passível de utilização contra minorias. Existe
uma nítida ligação entre o nacionalismo integral desse tipo
romântico e o nazismo. Embora celebrassem o conflito, os

nazistas acreditavam que o Volk o povo era um todo

unitário que só seria corrompido por minorias estranhas. Os


povos do mundo não eram iguais, e a hierarquia que devia
prevalecer entre eles só podia ser assegurada pela força. No
contexto do Volk alemão, contudo, haveria perfeita harmonia.4⁰
A crença de que a sociedade deveria ser um todo orgâni
co, no entanto, está longe de ser uma idéia exclusivamente
romântica. A fantasia da comunidade imaculada caracteriza

tanto o pensamento iluminista quanto o contra-iluminismo.


Como Fichte e outros pensadores alemães da direita naciona
lista, Marx condenava o comércio e desmerecia o individualis

mo. Como os românticos, criticava como desumana a divisão

do trabalho. Como eles, buscava no passado remoto socieda


des nas quais a humanidade não vivesse alienada ou reprimi

da. Encontrou-as num estágio pré-histórico do "comunismo

primitivo", que acreditava ter sido outrora universal (mas do


qual nunca foram encontrados vestígios). Marx não foi me

nos responsável que os pensadores do contra-iluminismo pela


promoção do mito da comunidade orgânica.

90
Se os pensadores iluministas compartilhavam algumas da
piores idéias do contra-iluminismo, o contra-iluminismo con
tinha, por sua vez, muitos elementos que iam de encontro à
ideologia nazista. Veja-se por exemplo o caso de Herder e de
Maistre. Ambos rejeitavam o projeto iluminista, mas nenhum
dos dois poderia ser considerado protonazista. Herder nunca
aceitou qualquer tipo de hierarquia entre as culturas ou ra
ças (como faziam alguns dos mais importantes pensadores
do Iluminismo). Pelo contrário, sustentava que existem mui
tos culturas, cada uma delas à sua maneira única, não po
dendo em seu conjunto ser avaliadas numa única escala de
valores. De Maistre teria ficado horrorizado com o ateísmo

dos nazistas e suas doutrinas de superioridade racial. Em seus


pontos mais importantes, a ideologia nazista e o pensamen
to do contra-iluminismo estão em pólos opostos.
É possível estabelecer um vínculo entre a ideologia nazista
e Nietzsche, mas é com o Nietzsche pensador iluminista. A
genealogia que faz o nazismo remontar a Nietzsche é sus
peita, no mínimo por ter sido proposta por sua irmã nazista,
Elizabeth Forster-Nietzsche (1846-1935), que cuidou de
Nietzsche em seus últimos anos de vida e a cujo funeral Hitler
compareceu. Ainda assim, existem afinidades, precisamente
nas áreas em que Nietzsche está mais próximo do Iluminismo.
A vida inteira, Nietzsche admirou Voltaire -
o festejado

racionalista do Iluminismo - e, como Voltaire, desprezava a


exaltação da emoção em detrimento da razão cara a Rousseau.
Embora tenha no estereótipo popular o perfil de um român
tico, Nietzsche foi, na verdade, um pensador que levou à con
sumação uma versão radical do projeto iluminista.41
Ao contrário de seu ídolo intelectual dos primeiros anos,
Arthur Schopenhauer, que deu as costas ao cristianismo,
enunciando uma crítica devastadora do humanismo moderno,

91
Nietzsche nunca se esquivou completamente à visão de mun
do cristã-humanista que atacava. Seu conceito de Super-ho
mem mostra que tentava construir um novo mito redentor
que conferisse sentido à história, da mesma forma como vi
nham tentando fazer outros pensadores iluministas. Como
observou, no entanto, o crítico fin de siècle vienense Karl Kraus,

"o super-homem é um ideal prematuro, pois pressupõe o ho


mem".42 A idéia do Übermensch é uma versão exagerada do
humanismo moderno, mostrando o que Nietzsche tinha em
comum não só com os nazistas, mas também com Lenin e
Trotski.

Os elos entre os valores liberais e o Iluminismo que tantos


hoje se apressam a enfatizar são mais tênues do que imagi
nam. Voltaire pode ser o pensador iluminista paradigmático.43
Mas via o Estado liberal como apenas um dos meios de al
cançar o progresso humano; em muitas circunstâncias, acre

ditava, o despotismo esclarecido era mais eficaz. Para Voltaire,


como para tantos outros pensadores iluministas, os valores

liberais são úteis quando promovem o progresso e irrelevantes


ou impeditivos quando não o fazem. Naturalmente, existem
muitas concepções de progresso. Entre os pensadores ilumi
nistas da esquerda, a sociedade liberal era vista como estágio
importante em direção a um patamar mais elevado do desen

volvimento humano, ao passo que, para os pensadores ilu


ministas da direita, era uma situação de caos que na melhor
das hipóteses servia como etapa transitória entre uma ordem
social e outra. No caso de Marx, o progresso era concebido
em termos que se aplicavam à humanidade como um todo,
enquanto para os pensadores iluministas adeptos do "racis
mo científico" deixava de fora a maioria dos indivíduos da

espécie. Em qualquer dos casos, os valores liberais iam parar


na lata do lixo.

92
Os positivistas franceses foram dos pensadores iluministas
mais influentes e eram rematados antiliberais.44 Os funda
dores do positivismo, Henri de Saint-Simon e Auguste Comte,
buscavam uma sociedade semelhante à que existia (segundo
imaginavam) na Idade Média, mas antes baseada na ciência
que na religião revelada. Saint-Simon e Comte encaravam a
história como um processo no qual a humanidade passava
por sucessivos estágios, do religioso ao metafísico e em se
guida ao científico ou "positivo". Nesse processo, havia fases
"orgânicas" e "críticas", períodos de existência de sociedades
bem estruturadas e outros em que a sociedade se encontrava

na desordem e no caos. A era liberal pertencia a esta última


categoria. Saint-Simon e Comte eram profundamente hostis
ao liberalismo, tendo transmitido esse ânimo a gerações de
pensadores radicais da direita e da esquerda. A sociedade do
futuro seria tecnocrática e hierarquizada. Seria mantida coe
sa por uma nova religião, a Religião da Humanidade, na qual
a espécie humana seria cultuada como o Ser Supremo.
Pode ficar parecendo que os positivistas divergiam das cor
rentes centrais do pensamento iluminista por exemplo, na
admiração pela Igreja medieval. 45 Mas o que admiravam
na Igreja não era a fé que nela se manifestava, mas seu poder
unificador na sociedade, que a Religião da Humanidade tentou
(se êxito) emular. Acreditavam que a ampliação do conheci
mento era a força motora do progresso ético e político e cele
bravam a ciência e a tecnologia por expandirem o poder
humano. Rejeitando as religiões tradicionais, fundaram um
culto humanista da razão. Era o ideário dos philosophes oitocen
tistas adaptado ao século XIX. Se os positivistas se distinguiam
de alguma forma, não era em sua atitude em relação à reli
gião muitos eruditos do Iluminismo, inclusive Voltaire,
cultivavam o projeto absurdo de uma "religião racional" -

93
mas na convicção de que, à medida que avançava o conheci
mento humano, os conflitos humanos haveriam de desapare
cer. A ciência revelaria os verdadeiros fins da ação humana, que
haveriam de revelar-se harmoniosas embora nunca se ex
plicasse por quê. Era a idéia utópica arquetípica em roupagem
moderna e de enorme influência. No fim do século XIX, ela
-

determinou, em Marx, a visão de que, sob o comunismo, o


governo dos homens seria substituído pela administração das
coisas. E suscitou, em Herbert Spencer, o sonho de uma futu
ra sociedade baseada no industrialismo de laissez-faire, inspi

rando em Hayek, numa versão posterior, a ilusória visão de


uma ordem social espontânea gerada pelo livre mercado.
No início do século XX, as idéias positivistas foram abra
çadas pela extrema direita. Charles Maurras, o ideólogo anti
semita do regime de Vichy, foi a vida toda um admirador de
Comte. Empenhados no desenvolvimento de uma ciência da

sociedade, os positivistas inventaram a palavra "sociologia";


mas insistiam em que essa ciência devia basear-se na fisiolo
gia humana. Como muitos pensadores iluministas da época,
Comte era um adepto da frenologia — a pseudociência nove
centista supostamente capaz de identificar as faculdades men
tais e morais das pessoas e sua tendência para a criminalidade
analisando a forma do crânio - e acreditava que as caracte
rísticas fisiológicas podem explicar boa parte do comporta
mento humano. Era também o ponto de vista do fundador
da moderna psicologia, Francis Galton, forte adepto da euge
nia positiva. Na criminologia, pontos de vista semelhantes.
foram defendidos por Cesare Lombroso, que desenvolveu uma
pseudociência da "craniometria" baseada nos contornos cra
nianos e faciais para socorrer os tribunais em suas delibera
ções de culpa ou inocência. Aqui, não estamos muito longe
da "ciência racial" nazista.

94
As idéias de uma natural desigualdade entre os homens
não constituem aberrações na tradição ocidental. Uma cren

ça genérica, não necessariamente racista, de que os seres hu


manos dividem-se em grupos distintos dotados de capacidades
inatas desiguais remonta a Aristóteles, que defendia a escra
vidão sob o argumento de que certos homens já nascem es
cravos. Para Aristóteles, a hierarquia na sociedade não era
como sustentavam os antigos sofistas gregos - gerada pelo
poder e pelas convenções. Todo ser vivo tinha um propósito
natural que determinava aquilo de que precisava para desa
brochar. O objetivo natural da humanidade era a investigação
filosófica, mas só uns poucos seres humanos ― proprietários
-

gregos do sexo masculino estavam capacitados para essa


atividade, e o grosso da humanidade mulheres, escravos e
-

bárbaros- haveriam de desabrochar como seus instrumen

tos. O melhor da vida era para a minoria, e os demais eram


apenas "ferramentas vivas”".
Embora remonte à filosofia grega clássica, a crença na ina
ta desigualdade entre os homens foi revivida no Iluminismo,
quando começou a adquirir algumas das características do
racismo. John Locke foi um cristão imbuído da idéia de que
os seres humanos são criados iguais, mas dedicou muita ener

gia intelectual à tentativa de justificar a tomada das terras


dos povos indígenas na América. Escreve Richard Popkin:

Locke, um dos arquitetos da política colonial inglesa (redi


giu, por exemplo, a Constituição das Carolinas), considerava
os indígenas e os africanos incapazes de enriquecer a terra
com seu trabalho. Em conseqüência disto, não tinham direi
to à propriedade. Haviam perdido sua liberdade "por algum
Ato que faz merecer a Morte" (oposição aos europeus) e, por
tanto, podiam ser escravizados.46

95
Certos luminares do Iluminismo deixaram bem explícita
sua convicção a respeito da desigualdade natural, chegando
alguns a sustentar que a humanidade continha várias espé
cies diferentes. Voltaire era adepto de uma versão secular da
teoria pré-adamita enunciada por certos teólogos cristãos,
segundo a qual os judeus eram pré-adamitas, remanescentes
de uma espécie mais antiga, anterior à criação de Adão. Foi
Immanuel Kant - a suprema personalidade iluminista depois
de Voltaire, e, ao contrário dele, um grande filósofo -
que

deu legitimidade intelectual, mais que qualquer outro pen


sador, ao conceito de raça. Kant estava na linha de frente da
ciência da antropologia que então surgia na Europa e susten
tava a existência de diferenças inatas entre as raças. Ao mes
mo tempo que via nos brancos todos os atributos necessários
para avançar em direção à perfeição, considerava os africa
nos predispostos à escravidão e escreveu, em suas Observa

ções sobre o sentimento do belo e do sublime (1764): “Os negros


da África por natureza não têm sentimentos que se elevem
acima do trivial."47 Os asiáticos, por sua vez, eram conside
rados civilizados, mas estáticos - ponto de vista endossado
por John Stuart Mill em Da liberdade (1859), na qual se refe
re à China como uma civilização estagnada, afirmando: “(...)
eles se tornaram estacionários e isto há milhares de anos;
-

e se um dia vierem a progredir, será por intervenção de es


trangeiros."48 Mill fazia eco aqui à visão da Índia enunciada
por seu pai, James Mill, que afirmava em sua História da Ín
dia britânica que os habitantes do subcontinente só poderiam
alcançar o progresso abandonando suas línguas e religiões.
Uma descrição semelhante da Índia foi apresentada por Marx,
que defendia o domínio colonial como forma de superar o
torpor da vida interiorana. Fosse o despreparo de outros po
vos inato (como se acreditava no caso dos africanos) ou

96
decorrente de um atraso cultural (como se supunha no caso
dos asiáticos), o remédio era sempre o mesmo. Todos eles de
viam ser transformados em europeus, se necessário pela força.
Idéias dessa natureza são encontradas em muitos pensa
dores do Iluminismo. Costuma-se argumentar, em seu favor,

que eles eram homens de sua época, o que não chega a ser
uma defesa das mais convincentes. Esses pensadores ilumi
nistas não só davam curso aos preconceitos de sua época -
pelo que poderiam ser perdoados, não alegassem com tanta
freqüência ser mais sábios que seus contemporâneos -, como

-
invocavam a autoridade da razão. Antes do Iluminismo, as

atitudes racistas raramente tinham a veleidade da respeitabi


lidade teórica. Nem mesmo Aristóteles, que defendia a escra
vidão e a subordinação das mulheres como parte da ordem
natural, desenvolveu uma teoria sustentando que a huma
nidade era composta de grupos raciais distintos e desiguais.
O preconceito racial pode ser imemorial, mas o racismo é um
produto do Iluminismo.

Muitos daqueles que compartilhavam a crença na desi


gualdade racial acreditavam que a reforma social poderia com
pensar as desvantagens inatas das raças inferiores. Em última
análise, todos os seres humanos poderiam participar da civi
lização universal do futuro. mas somente abrindo mão de
seu modo de vida e adotando o europeu. Era esta “uma for
ma de racismo liberal, transformando em modelo para todos
o melhor da experiência européia e consistindo a eventual per
feição da humanidade na transformação de todos em europeus
criativos".49 O racismo liberal deixou aberta a possibilidade
de destruição compulsória de outras culturas e mesmo-fra

cassando qualquer outra alternativa de genocídio. Se al


guma cultura resistisse, seria um obstáculo para a vindoura
civilização universal. Nesse caso, seria também um obstáculo

97
ao progresso e uma candidata à eliminação. Ao se perguntar
qual seria o destino do Estado mundial de "magotes de gente
negra, amarela e mulata que não alcança as exigências da efi
ciência", H. G. Wells respondeu: "Bem, o mundo não é uma

instituição de caridade, e tenho para mim que eles terão de


ir-se. Tenho para mim que todo o sentido e significado do
mundo é que eles terão de ir-se."50 Idéias dessa natureza eram

lugar-comum entre os pensadores progressistas da época. O


grande feito do racismo iluminista foi conferir ao genocídio
a bênção da ciência e da civilização. Os assassinatos em massa

podiam ser justificados por idéias supostamente darwinistas


de sobrevivência dos mais aptos, e a eliminação de povos in
teiros era acolhida como fator de progresso da espécie.
As políticas nazistas de extermínio não saíram do nada.

Nutriam-se em poderosas correntes do Iluminismo e utiliza


vam como modelo políticas adotadas em muitos países, en
tre eles a maior democracia liberal do mundo. Estavam em

andamento nos Estados Unidos programas destinados a es


terilizar os inaptos. Hitler admirava esses programas, como
admirava o tratamento genocida dispensado pela América aos
povos indígenas: ele "freqüentemente elogiava em seu círcu

lo mais íntimo a eficiência do extermínio na América - pela


fome e em combates desiguais dos 'selvagens vermelhos'
que não fora possível domesticar no cativeiro".51 Em tais
pontos de vista, o líder nazista não era uma exceção. As idéias
de "higiene racial" de modo algum estavam confinadas à ex

trema direita. A idéia de uma eugenia positiva como uma das


formas de alcançar o progresso tinha ampla aceitação. Escre
via Richard Evans:

98
Vendo que Hitler oferecia-lhes uma oportunidade única de
pôr em prática suas idéias, destacados higienistas raciais co
meçaram a sintonizar suas doutrinas com as dos nazistas,
em terrenos nos quais não havia convergência até então. Uma

considerável maioria, é verdade, estava por demais associada


a idéias e organizações políticas de esquerda para sobreviver
com membros da Sociedade da Higiene Racial (...) Escreven
do a Hitler em abril de 1933, Alfred Ploetz, a alma do movi

mento da eugenia nos últimos quarenta anos, afirmava que,


por já se encontrar na casa dos setenta, estava velho demais
para assumir um papel de liderança na aplicação prática dos
princípios de higiene racial no novo Reich, mas, ainda as

sim, apoiava as políticas do chanceler do Reich.52

Muitos compartilhavam o apreço nazista pela "ciência


racial". Os nazistas destacavam-se sobretudo pelo extremis
mo de suas ambições. Pretendiam uma reformulação da so
ciedade em que os valores tradicionais fossem destruídos. O
que quer que pudessem esperar os grupos conservadores que
apoiaram inicialmente Hitler, o fato é que o nazismo nunca
teve a intenção de restabelecer uma ordem social tradicional.

Os intelectuais europeus derrotistas que o consideravam um


movimento revolucionário - como Pierre Drieu La Rochelle,
o colaboracionista francês que exaltava os nazistas pelo que
tinham em comum com os jacobinos5³ — estavam mais pró
ximos de acertar. Os nazistas queriam uma revolução per
manente, na qual diferentes grupos sociais e setores do
governo competissem numa espécie de paródia da seleção
natural darwinista. Todavia -
como acontecera com os

bolcheviques as metas nazistas iam além de qualquer


/

transformação política, incluindo o uso da ciência para pro


duzir uma mutação da espécie.

99
Os oitenta mil pacientes de hospitais psiquiátricos mor
tos com gases foram assassinados em nome da ciência. Os

milhares de homossexuais masculinos que acabaram em cam


pos de concentração (onde morreu cerca de metade deles54)
eram classificados como degenerados irrecuperáveis. "Biólo
gos criminais" há muito haviam qualificado os 250 mil ci
ganos que morreram no período nazista como um perigoso
tipo racial. A convicção de que os eslavos também pertenciam
a um grupo racial inferior permitiu aos nazistas encarar com
tranqüilidade as enormes perdas em vidas humanas que in
fligiram na Polônia, na União Soviética e na Iugoslávia.
Não resta dúvida de que a "ciência racial" abriu caminho

para o supremo crime dos nazistas. A teoria de que a huma


nidade estava dividida em grupos raciais distintos que não
deviam se misturar deu o imprimátur da razão a fantasias em
torno da idéia de impureza. A idéia de que esses grupos apre
sentavam uma desigualdade inata sancionou a escravização
dos que eram considerados pertencentes aos degraus inferio
res da hierarquia. Sem a construção da raça como categoria
científica, o projeto de aniquilamento dos judeus europeus di
ficilmente poderia ter sido formulado. O anti-semitismo é co

etâneo do surgimento do cristianismo como religião distinta:


os judeus começaram a ser perseguidos na época em que Roma
renegou o paganismo — e o foram por toda a Idade Média
cristã, ao passo que o anti-semitismo medieval seria repro
duzido na Reforma de Lutero. Mas embora o anti-semitismo

tenha antigas raízes cristãs, o projeto de extermínio dos judeus


é moderno. Se o Holocausto precisou da tecnologia moderna
e do moderno Estado para ser promovido, precisou também
da moderna idéia de raça para ser concebido.
A meta hitlerista de extermínio dos judeus não poderia
ter sido formulada sem o recurso a idéias derivadas de uma

100
moderna pseudociência. Ainda assim, não se pode explicar o
Holocausto apenas em termos de ideologia racista. Nenhum
outro grupo foi designado para um extermínio total, ne
nhum outro foi perseguido de forma tão sistemática. Fos
sem médicos ou poetas iídiches, professores universitários ou
hassídicos, cientistas, artistas ou comerciantes, homens,

mulheres ou crianças, os judeus eram ameaçados e estigma


tizados, afastados da vida civil e privados de seus bens, es

pancados e assassinados em atos de violência inspirados pelo


Estado, confinados em campos de concentração e afinal sub
metidos a um destino que nenhuma outra parte da humani
dade teve de suportar.
Se uma comparação histórica pode ser feita, é com a atri
buição de um poder demoníaco aos judeus na Europa medie
val. Como escreveu Norman Cohn, "o impulso de extermínio
dos judeus decorreu de uma superstição quase demono
lógica".55 A crença nos poderes diabólicos dos judeus foi uma
importante característica dos movimentos milenaristas de

massa no fim da Idade Média. Os judeus eram apresentados


em pinturas como demônios com chifres de bode, enquanto
a Igreja tentava obrigá-los a usar chifres nos chapéus. Satã
era pintado com características físicas atribuídas aos judeus
e apresentado como "o pai dos judeus". Acreditava-se que as
sinagogas eram lugares de adoração de Satã, em forma de gato
ou sapo. Os judeus eram considerados agentes do Diabo, tendo
como objetivo a destruição do cristianismo e mesmo do mun
do. Documentos como os Protocolos dos sábios do Sião - uma

contrafação de enorme influência, provavelmente fabricada


pelo ramo internacional do serviço secreto czarista — davam
curso a essas fantasias, transformando-as numa visão para
nóica de suposta conspiração judaica mundial.

101
Como os movimentos milenaristas da época medieval, o
nazismo surgiu contra um pano de fundo de desequilíbrios
sociais. O desemprego em massa, a hiperinflação e o impacto
humilhante da Grande Guerra geraram entre os alemães uma
dolorosa sensação de insegurança e perda de identidade.
Michael Burleigh considera que o conflito de 1914-18

(...) gerou o tipo de efervescência emocional que Emile


Durkheim considerava parte integrante da experiência reli
giosa. A Grande Guerra e o conturbado período que se lhe
seguiu levaram a uma revivescência ainda mais intensa desse
elemento pseudo-religioso na política, que exerceu seu maior
apelo em períodos de crise extrema, assim como os milena
ristas medievais, ou a crença de que estava para chegar o
intervalo de mil anos antes do Juízo Final, haviam prospe
rado em épocas de súbitas mudanças e desequilíbrios sociais.56

As semelhanças entre o nazismo e o milenarismo medie


val foram identificadas na época por alguns observadores. Eva
Klemperer, mulher do filólogo e memorialista Victor Klemperer,
comparou Hitler a João de Leyden, o mesmo tendo feito
Friedrich Reck-Malleczewen, o aristocrata que escreveu um
livro antinazista intitulado History of a Mass Lunacy [Histó

ria de uma loucura de massa], publicado em 1937.57 Pela


mesma época, o correspondente britânico F. A. Voigt identifi
cou o papel central da escatologia no nazismo:

Toda escatologia transcendental proclama o fim deste mun


do. Mas a escatologia secular sempre é apanhada em suas
próprias contradições. Ela projeta no passado uma visão do
que nunca foi, concebe o que é em termos do que não é e o
futuro em termos do que nunca poderá ser. O passado mais
remoto torna-se uma Era da Inocência mística ou mítica,

102
uma Idade Heróica ou de Ouro, uma época de Comunismo
Primitivo ou resplandecente Virtude varonil. O Futuro é a
Sociedade sem Classes, a Paz Eterna ou a Salvação pela Raça
o Reino do Céu na Terra.58

Num estudo lamentavelmente pouco conhecido, James


Rhodes empreendeu um exame sistemático do nazismo como
moderno movimento milenarista. Como os anabatistas e ou

tros milenaristas medievais, os nazistas eram possuídos por


uma visão da catástrofe seguida de um novo mundo. Consi
derando-se vítimas de calamidades, vivenciavam súbitas re

velações que explicavam seus sofrimentos, decorrentes na sua


avaliação da ação das forças do mal. Acreditavam-se chama
dos a combater essas forças, para derrotá-las e livrar o mundo
delas em breves guerras de caráter titânico.59
Essa síndrome milenarista de uma iminente catástrofe

abarcando a ameaça existencial do mal e as breves batalhas

cataclísmicas que antecedem a instauração do paraíso é en


contradas em muitos movimentos políticos modernos (entre
eles a ala armagedonista da direita americana). Ela se adéqua
perfeitamente ao nazismo, evidenciando a insuficiência de
qualquer avaliação do movimento hitlerista que o encare
como mera reação às condições sociais. O nazismo foi uma

religião política moderna e, embora recorresse a uma pseu


dociência, também se nutria fortemente do mito. O Volk não
era apenas a unidade biológica da ideologia racista. Era uma
entidade mística, capaz de conferir imortalidade aos que dela
participassem. Utilizando a expressão kantiana "Ding-an
sich", que significa realidade suprema ou a coisa-em-si,
Goebbels declarou que "a Ding-an-sich é o Volk", escrevendo

um poema no qual ficam evidentes as qualidades semidivinas


atribuídas ao Volk:

103
Eu me ergo, eu tenho poder

De despertar os mortos. Eles despertaram de um sono pro


fundo,

Só uns poucos, inicialmente, mas depois em número cres


cente. As fileiras engrossam, surge uma hoste,
Um Volk, uma comunidade.60

Não fossem as vingativas indenizações de guerra impos


tas pelo Tratado de Versalhes e o caos em que a economía
alemã mergulhou no entre-guerras, os nazistas muito pro
vavelmente teriam permanecido um movimento marginal.
Mantiveram por tanto tempo sua popularidade porque pro
porcionavam vantagens materiais a amplos setores da popu
lação alemã. A eficiência da máquina de guerra de Hitler pode
ter sido exagerada, mas as políticas econômicas nazistas não
eram muito diferentes das preconizadas por Keynes (como
reconheceu o próprio Keynes), tendo propiciado pleno empre
go no período imediatamente anterior à guerra. A populari
dade dos nazistas escorou-se nos primeiros anos da guerra
nos êxitos militares e na orgia de saques que permitiram na
Europa ocupada. A concessão dessas vantagens à população
alemã foi um elemento central da estratégia nazista de con
quista e manutenção do poder.

Simultaneamente, os nazistas mobilizavam todo um po


deroso conjunto de crenças. A ideologia nazista difere das
ideologias da maioria dos outros movimentos utópicos e mile
naristas por ser essencialmente negativa. A escatologia na
zista era uma adulteração de tradições pagãs que reconheciam
a possibilidade de uma catástrofe final sem qualquer perspec
tiva de futura renovação. Essa escatologia negativa estava
ligada a uma espécie de utopismo negativo, mais preocupa
do com os obstáculos ao futuro paraíso do que com seu

104
conteúdo. A escatologia dos nazistas pode ter sido menos im

portante que sua demonologia, que derivava de fontes cris


tãs (entre as quais a tradição luterana não era das menos

importantes). O mundo era ameaçado por forças demonía


cas, encarnadas nos judeus. O momento presente e o passado
recente estavam tão impregnados do mal que seria impossí
vel a redenção. A única esperança estava numa catástrofe: só
depois de um acontecimento que destruísse tudo o Volk ale

mão poderia alçar-se a uma condição de harmonia mística.


O nome do regime nazista era uma derivação de tradi
ções apocalípticas cristãs. A expressão "Terceiro Reich" pro
vém da profecia de Joaquim de Flora sobre uma Terceira Era,
trazida à época moderna pelos cristãos anabatistas e popu
larizada na Alemanha do entre-guerras por Moeller van den
Bruck, em seu livro Das Dritte Reich (O Terceiro Reich, (23).

"Conservador revolucionário" à maneira de Oswald Spengler


(cujo livro A decadência do Ocidente teve enorme impacto na
década de 1920), van den Bruck considerava que os proble
mas da Alemanha do entre-guerras não eram apenas polí
ticos e econômicos, mas também culturais e espirituais. Era
grande admirador de Dostoievski, tendo publicado uma tra
dução alemã dos Irmãos Karamazov, juntamente com o es
critor russo emigrado Dimitri Merejkovski, por sua vez
autor de um livro de especulação apocalíptica.6¹ Ambos es
posavam a fantasia dostoievskiana da Rússia como uma
"terceira Roma" que poderia levar a renovação espiritual à
Europa, tendo van den Bruck visitado a Rússia em 1912.
Com tais convicções, caberia esperar que se mostrasse sim

pático ao emergente movimento nazista. Mas o fato é que


van den Bruck nunca se uniu aos nazistas, provavelmente
por não compartilhar o anti-semitismo do movimento. Em

105
seu encontro com Hitler em 1922, desagradou-lhe profun
damente o "primitivismo proletário" do líder nazista. Pos
teriormente, os nazistas repudiariam as idéias de van den
Bruck, mas uma cópia autografada de seu livro foi encon
trada no bunker de Hitler, e por um certo período van den
Bruck contribuiu com um esquema de idéias que combina

va com as noções nazistas de crise apocalíptica e destino


histórico. Se o Sacro Império Romano foi o primeiro Reich e
o Império Alemão unificado sob o domínio dos Hohenzollern

(1871–1918), o segundo, o terceiro seria o Estado nazista


destinado a durar mil anos.

Não tem cabimento considerar os nazistas como algo


surgido à margem da tradição ocidental. Certos nazistas se
consideravam antiocidentais, ponto de vista adotado por
alguns de seus adversários, como o escritor Aurel Kolnai,

outrora muito lido mas hoje quase esquecido, que encarava


o nazismo como parte de uma "guerra contra o Ocidente".
Convertido ao catolicismo, Kolnai definia “o Ocidente” em

termos cristãos,62 e é verdade que alguns dos mais corajo


sos opositores do nazismo eram cristãos praticantes; por
exemplo, Claus von Stauffenberg, figura central na tentati
va de assassinato de Hitler em julho de 1944, era católico
devoto. Todavia, embora muitos líderes nazistas se mos

trassem hostis ao cristianismo e alguns cristãos, decididos


antinazistas, não é menos verdade que o nazismo deu con

tinuidade a certas tradições cristãs. Eric Voegelin, erudito


alemão que fugiu da Alemanha nazista em 1938 e cuja obra
muito contribuiu para esclarecer a natureza da moderna

religião política, reconheceu que "a profecia milenarista de


Hitler deriva autenticamente da especulação joaquinista,
mediada na Alemanha pela ala anabatista da Reforma e o

106
cristianismo joanino de Fichte, Hegel e Schelling". Assim
resumia ele esses desdobramentos: "O super-homem assi
nala o fim do caminho em que encontramos figuras como
o 'homem divinizado’ dos místicos ingleses da Reforma (...)

Uma linha de transformação gradual liga o gnosticismo


medieval ao contemporâneo."63

Voegelin entendeu que o nazismo, como o comunismo,


representava uma revivescência contemporânea do gnosti
cismo. Não resta dúvida de que as crenças gnósticas tiveram
profunda influência no pensamento ocidental, e também pode
ter havido influências gnósticas nos movimentos milenaristas
medievais, mas são poucas as afinidades entre o gnosticismo
e o milenarismo moderno. Como os maniqueístas, com os
quais tinham muito em comum, os gnósticos tinham um
horizonte de idéias refinado. Não contemplavam um fim dos
tempos no qual os eleitos seriam salvos coletivamente, en

tendendo a salvação como uma conquista individual que antes


libertaria do tempo do que traria o seu fim. Mais uma vez,
foram poucos. se é que os houve- os pensadores gnósticos
-

que descortinavam um mundo no qual a vida humana não


mais estivesse sujeita ao mal. Embora sem dúvida exercesse
certa influência, o impacto do gnosticismo na moderna reli

gião política não teve caráter formador. A influência decisiva


foi a fé no fim dos tempos que desde o início determinou o
caráter do cristianismo. Na expectativa de uma luta final entre

as forças do bem e do mal, os milenaristas medievais inspira


vam-se nessa fé escatológica, tal como os modernos movi
mentos totalitários.

107
O TERROR E A TRADIÇÃO OCIDENTAL

A figura do solitário terrorista metafísico que explodia a si


mesmo junto com a bomba surgiu na Rússia no fim do século
XIX (...) A verdadeira gênese da violência da al-Qaeda tem
mais a ver com a tradição ocidental da revolta individual e
pessimista em nome de um ideal fugidio do que com a concep
ção corânica do martírio.

Olivier Roy64

O nazismo e o comunismo são produtos do Ocidente moder


no. E o mesmo se aplica ao islamismo radical, embora o fato
seja negado por seus seguidores e pela opinião pública oci
dental. O fundador intelectual do islamismo radical é Sayyd
Qutb, intelectual egípcio executado por Nasser em 1966. Seus
escritos evidenciam a influência de muitos pensadores euro
peus, especialmente Nietzsche, e estão cheios de idéias toma
das de empréstimo à tradição bolchevique. Sua concepção de
uma vanguarda revolucionária empenhada na derrubada
de regimes islâmicos corruptos e no estabelecimento de uma
sociedade sem estruturas formais de poder nada deve à teo
logia islâmica e deve muito a Lenin. Sua visão da violência
revolucionária como força purificadora tem mais em comum
com os jacobinos do que com os assassinos do século XII. Os
assassinos matavam governantes que consideravam extra
viados do verdadeiro caminho do islã; mas não consideravam
que o terror fosse um elemento de aperfeiçoamento da hu
manidade, nem viam a autodestruição em atentados suici
das como fator de pureza pessoal. Essas idéias só surgiram
no século XX, quando os pensadores islâmicos passaram a
sofrer influências européias. Ali Shariati -
que antecedeu o

108
aiatolá Khomeini como líder dos fundamentalistas iranianos

exilados durante o reino do xá considerava o martírio um

elemento central do islã, mas sua concepção do martírio como


opção pela morte derivava da moderna filosofia ocidental. A
redefinição fundamentalista do xiismo enunciada por Shariati
invocava a idéia de escolha existencial derivada de Heidegger.65
Os movimentos islâmicos encaram a violência como uma
forma de criar um novo mundo, e neste sentido não se inte

gram ao passado medieval, mas ao moderno Ocidente. As crí


ticas ao "islamo-fascismo" deixam no esquecimento a dívida
mais importante do islamismo em relação ao pensamento
ocidental. Nem só os fascistas acreditavam que a violência
pode dar origem a uma nova sociedade. O mesmo fizeram

Lenin e Bakunin, e o islamismo radical poderia se igualmente


chamado de islamo-leninismo ou islamo-anarquismo. Mas
a principal afinidade é com a teoria iliberal da soberania po
pular exposta por Rousseau e aplicada por Robespierre no
Terror francês, sendo mais adequado falar do islã radical como
um islamo-jacobinismo.
O islã radical é uma ideologia revolucionária moderna,
mas também um movimento milenarista de raízes islâmicas.

Como o cristianismo, o islã sempre conteve um poderoso ele


mento escatológico. Tanto sua corrente sunita quanto a xiita
abrigam uma tradição madista que contempla a futura che
gada de um mestre de inspiração divina que reorganizará o
mundo — tradição explorada por Bin Laden ao projetar sua
própria imagem como profeta-líder.66 Certos estudiosos
questionam a ortodoxia das crenças madistas, mas elas exem
plificam uma concepção nitidamente islâmica da história.
Escreveu um estudioso contemporâneo do islamismo: "O
'acontecimento’ madista (...) é a História como escatologia,
conferindo à história um caráter progressista."67 As convic

109
ções apocalípticas do presidente Ahmadinejad, do Irã, são uma
manifestação dessa visão da história.
Nessa maneira de encarar a história, o islã está em sintonia
com o cristianismo e os credos seculares do Ocidente moder

no. É enganoso sustentar que o islã e "o Ocidente" são civili


zações sem nada em comum. O cristianismo e o islã são partes
integrantes do monoteísmo ocidental, e nesta qualidade com
partilham uma visão da história que os distingue do resto do
mundo. Ambas são fés militantes que buscam converter toda

a humanidade. Outras religiões envolveram-se em atos de


violência no século XX - por exemplo, o culto oficial do xin
toísmo no Japão, durante o período militarista, e o naciona
lismo hindu na Índia contemporânea. Mas só o cristianismo
e o islã geraram movimentos comprometidos com o uso sis
temático da força para alcançar metas universais. Ao mesmo

tempo, a idéia de que o islã está de fora do "Ocidente” ignora


as contribuições positivas do islamismo. Foram as culturas
islâmicas que preservaram a herança de Aristóteles e desen
volveram boa parte das matemáticas e da ciência posterior
mente usadas pela Europa. Nos reinos medievais da Espanha
moura, os governantes islâmicos davam abrigo aos cristãos
e judeus perseguidos no momento em que a Europa cristã
estava mergulhada em conflitos religiosos. Apagar essas con
quistas islâmicas do cânone ocidental é dar uma idéia errada
da história.

A crença de que o islã desenvolveu-se à parte ou contra a


civilização ocidental leva a uma visão equivocada dos movi
mentos islâmicos como supostamente voltados contra "o Oci
dente". Na verdade, o principal objetivo do jihad islâmico é a
derrubada de governos considerados infiéis nos países islâ
micos. O objetivo de Qutb era derrubar Nasser, ao passo que
Osama bin Laden sempre teve como sua maior meta o ani

110
quilamento da Casa de Saud. Os movimentos islâmicos bus
cam a destruição de regimes seculares como a Síria e o Iraque
baathistas (sendo que neste último caso o trabalho de des
truição foi assumido pelos invasores liderados pelos ameri
canos). A organização sunita palestina Hamas começou
atacando a Fatah e a OLP, ambas de orientação secular. Na
medida em que os Estados Unidos se envolvem nessas lu
tas, os movimentos islâmicos são arrastados a um conflito

com os governos ocidentais, mas nem sempre é este o caso.


Ao longo da Guerra Fria, os governos ocidentais encaravam
os movimentos islâmicos como instrumentos na luta con

tra o comunismo. Os mujahedins afegãos eram armados,


treinados e financiados pelo Ocidente, estando a al-Qaeda
entre as organizações assim assistidas. O governo Reagan
manteve estreitos contatos com o Irã do aiatolá Khomeini

para tentar conter a influência soviética no golfo Pérsico, e


a utilização dos movimentos islâmicos como pontas-de-lan
ça ocidentais teve prosseguimento depois de terminada a
Guerra Fria. O regime dos talibãs no Afeganistão mantinha
relações amistosas com os Estados Unidos até o 11 de setem
bro. Observou Ahmed Rashid, um dos autores mais bem in

formados a respeito:

Entre 1994 e em 1996, os Estados Unidos apoiaram politi


camente os talibãs por meio de seus aliados, o Paquistão e a
Arábia Saudita, essencialmente porque Washington os con
siderava antiiranianos, antixiitas e pró-ocidentais (...) [Mui
tos diplomatas americanos] os consideravam messiânicos
bem-intencionados como cristãos renascidos no cinturão

bíblico americano.68

111
Se os governos ocidentais sempre foram capazes de usar
os islâmicos como aliados é em parte porque estes não viam
a potência ocidental como seu principal inimigo. Embora desse
acolhida à al-Qaeda, o regime dos talibãs não estava em guerra
contra o Ocidente, mas contra o povo e a cultura do Afeganistão
-proibindo cantos de pássaros e empinar papagaios porque
afastavam a população da observância religiosa e rejeitando
a autoridade das leis tribais. Os talibãs foram uma manifes
tação extrema do "salafismo", a família de movimentos fun
damentalistas que propõe o retorno à pureza original do islã.
Em outros países, como o Iêmen (onde seus seguidores criti
cam os privilégios concedidos aos descendentes do profeta) e
a Arábia Saudita (onde uma outra versão do mesmo movi
mento se configura no poderoso clero wahabita), o salafismo
se tem mostrado fortemente hostil às culturas locais. Onde
quer que se tenha enraizado, o salafismo tenta conter a in
fluência do sufismo, que se mostra mais tolerante com as
práticas autóctones.
Em todas as suas manifestações, o islã radical é um mo
vimento de rejeição das culturas tradicionais, sejam islâmicas
ou "ocidentais". Os islamistas falam da restauração de um
califado, forma islâmica de governo que afirma remontar ao
profeta (embora a sucessão tenha sido contestada praticamen
te desde o início) e cuja última manifestação ocorreu no Im
pério Otomano. Mas os movimentos islâmicos recrutam
alguns de seus membros mais ativos em sociedades altamente
avançadas, particularmente entre muçulmanos desenraizados
da Europa ocidental. O islamismo é um subproduto dos con
flitos que acompanham a aceleração da globalização.6⁹
Ainda pode ocorrer um confronto de civilizações, mas
encarar o islã radical em termos de conflitos culturais con

funde seu verdadeiro caráter. Se tem como meta alcançar um

112
objetivo tradicional o ummah, ou comunidade universal
-

de muçulmanos ele o faz promovendo uma guerra con


tra as sociedades islâmicas tradicionais. Como outras religiões
políticas modernas, o islã radical é uma mistura de mito

apocalíptico e esperança utópica, e neste sentido é inconfun


divelmente ocidental.

Naturalmente, "o Ocidente" não quer dizer nada com pre


cisão. Suas fronteiras variam de acordo com as mudanças
culturais e os acontecimentos geopolíticos. Há quem consi
dere que o mundo medieval foi uma síntese de toda a civili
zação ocidental, mas encarar "o Ocidente" dessa maneira é

ignorar a herança do politeísmo pagão e do drama trágico, a


filosofia grega e as lamentações de Jó, a herança de Roma e
a ciência islâmica. Durante a Guerra Fria, os países do bloco
soviético eram considerados de fora do Ocidente ou opostos
a ele, muito embora seus governos compartilhassem uma
ideologia européia. Posteriormente, esperava-se que a Rússia
pós-comunista se tornasse parte do "Ocidente" apesar de ter
rejeitado essa ideologia e reassumido uma identidade mais
antiga, da qual o cristianismo ortodoxo antiocidental era parte
importante.
Hoje "o Ocidente" se define em termos de democracia li
beral e direitos humanos.70 A inferência é que os movimentos
totalitários do século passado não faziam parte do Ocidente,
quando, na verdade, esses movimentos renovavam algumas
das mais antigas tradições ocidentais. Se alguma coisa pode
definir "o Ocidente", é a busca da salvação na história. O

que distingue a civilização ocidental de todas as outras é an


tes a teleologia histórica - a crença de que a história tem uma
-

finalidade ou meta intrínseca — do que as tradições de demo


cracia e tolerância. Por si só isto não gera o terrorismo de
massa: para isto, são necessárias outras condições, entre elas

113
rupturas sociais de grande alcance. Os crimes do século XX
não eram inevitáveis. Envolveram as mais variadas formas
de acidentes históricos e decisões individuais. Mais uma vez,

os assassinatos em massa nada têm de especificamente ociden


tal. O que caracteriza o Ocidente moderno é o papel formador
da crença de que a violência pode salvar o mundo. O terroris
mo totalitário do século passado fazia parte de um projeto
ocidental de tomar a história de assalto. O século XXI começou

com mais uma tentativa desse projeto, assumindo a direita o


lugar da esquerda como veículo da mudança revolucionária.

114
3

A utopia adotada nas correntes


centrais do pensamento

A semelhança essencial entre o marxismo e o otimismo bur


guês, não obstante o catastrofismo inicial daquele, é, na ver
dade, a prova mais eloqüente da unidade da cultura moderna.

Reinhold Niebuhr¹

A política dos governos ocidentais começou a ser determina


da no fim da década de 1980 pela crença de que um único
sistema político e econômico estava sendo criado em todo o

mundo. Expressão da mesma convicção iluminista de que a


humanidade caminha para uma civilização universal, con
vicção que condicionou sob outras formas os regimes comu
nistas, ela antes foi fortalecida que debilitada pelo colapso
soviético. Uma confiante expectativa de que a democracia li
beral se disseminava por todo o mundo dominou os anos
1990, e os acontecimentos do 11 de setembro desencadearam

uma tentativa de acelerar o processo em todo o Oriente Mé


dio. Se a debacle no Iraque solapou essas expectativas, a as
censão da Rússia e da China autoritárias lançou por terra a
pressuposição de que os países pós-comunistas teriam de

115
tomar as instituições ocidentais como modelo. E, no entan

to, apesar dessa refutação por parte da história, o mito de que


a humanidade caminha para a adoção dos mesmos valores e
instituições continua engastado na consciência ocidental.
É uma crença defendida em muitas teorias da moderni
zação, mas é instrutivo lembrar que se tem alimentado a ex
pectativa de que essa convergência final assuma muitas
formas incompatíveis. Marx estava convencido de que ela
levaria ao comunismo, Herbert Spencer e F. A. Hayek, de que
sua parada final seria o livre mercado global, Auguste Comte
se pronunciava pela tecnocracia universal e Francis Fukuyama,
pelo "capitalismo democrático global". Nenhuma dessas eta
pas finais foi alcançada, o que, no entanto, não abalou a
convicção de que no fim das contas alguma versão das insti
tuições ocidentais será aceita em toda parte - e, na verdade,
a cada refutação histórica ela é mais categoricamente afir
mada. O colapso comunista foi um categórico desmentido
da teleologia histórica, mas veio a ser seguido por uma ou
tra versão da mesma crença de que a história caminha para
uma civilização abarcando toda a espécie. Da mesma forma,
o desastre no Iraque serviu apenas para reforçar a convicção
de que o mundo enfrenta uma "longa guerra" para derrotar
o terrorismo e estabelecer em toda parte a forma ocidental de
governo. A história continua sendo vista como um processo
com uma meta intrínseca.

As teorias da modernização não são hipóteses científicas,


mas teodicéias narrativas providenciais e redentoras
-

apresentadas no jargão da ciência social. As crenças que do


minaram as duas últimas décadas eram resíduos da fé na pro
vidência que escorava a economia política clássica. Desligada
da religião e ao mesmo tempo expurgada das dúvidas que
assombravam seus expoentes clássicos, a crença no mercado

116
como ordenação divina transformou-se numa ideologia se
cular do progresso universal que no fim do século XX veio a
ser abraçada por instituições internacionais.
A convicção de que a humanidade estava entrando numa
nova era não começou nas camadas mais altas da política
mundial. Tão danosa em seu utopismo quanto qualquer an

terior desígnio grandioso pelo bem da humanidade, essa fé


no livre mercado global surgida no fim do século XX teve ori
gens mais humildes, na luta para substituir o fracassado con
senso do pós-guerra na Grã-Bretanha.

MARGARET THATCHER E A MORTE DO


CONSERVADORISMO

O fim da história? O início do absurdo!

Margaret Thatcher sobre Francis Fukuyama²

Margaret Thatcher não começou como uma revolucionária,


e pouco havia de utópico nos horizontes em que enquadrou
seu primeiro governo. O "thatcherismo" é uma expressão
cunhada pela esquerda que confere a suas políticas contor
nos ideológicos que nem sempre tiveram. Inicialmente, seu
programa de governo era uma rigorosa mas realista agenda
que ela veio a pôr em prática em seus aspectos mais impor
tantes. Julgada em função de seus objetivos iniciais, Thatcher
foi uma bem-sucedida primeira-ministra reformista, uma a
mais numa longa tradição britânica. Começou como um líder
como De Gaulle, centrada em questões nacionais. Ao ser der
rubada, já encarava as políticas que aplicara na Grã-Bretanha
como modelo de um programa global.

117
Thatcher só se tornou neoliberal pelo fim da década de
1980, mas as origens do período neoliberal na Grã-Bretanha
estavam na crise econômica dos anos 1970. O neoliberalismo

é um conjunto de idéias que afirma restabelecer os valores


liberais em sua forma original, a qual, segundo acreditam os
neoliberais, exige um mínimo de governo e um livre merca
do sem peias. Não obstante suas pretensões de racionalidade
científica, o neoliberalismo está enraizado numa interpreta

ção teleológica da história como um processo de destinação


predeterminada, tendo nisto, assim como em outros aspectos,
uma forte afinidade com o marxismo. Assim como os mar

xistas subestimam a importância dos acidentes históricos na


instauração do regime comunista na Rússia, os neoliberais
esquecem o papel do acaso na ascensão de Margaret Thatcher.
Thatcher tornou-se líder do Partido Conservador numa

época em que o consenso britânico do pós-guerra deixava de


ser viável. Sua principal missão foi desmantelá-lo e criar um
novo contexto para a economia britânica. Governos traba
lhistas já o haviam tentado, sem êxito. Thatcher conseguiu
porque enfrentou o desafio com uma vitoriosa mistura de im
placabilidade e cautela. O resultado foi uma profunda mu
dança na vida britânica, gerando uma sociedade diferente de
qualquer coisa que ela tivesse descortinado ou pretendido.
Já é um truísmo, em política, dizer que as políticas ado
tadas pelos governantes freqüentemente têm conseqüências
diferentes das previstas. No caso de Thatcher, a discrepância
foi excepcional. Ela estava empenhada em destruir o socialis
mo na Grã-Bretanha, de tal maneira que nas palavras de
um grosseiro lema muito corrente nos think thanks de direita

na década de 1980 "o trabalhismo nunca volte a gover


nar". Em vez disso, levou o Partido Conservador à beira do

colapso e destruiu o conservadorismo como projeto político

118
na Grã-Bretanha. À medida que impelia forças de mercado
em todos os setores da vida britânica, com o objetivo de "fa
zer recuarem as fronteiras do Estado", o Estado tornava-se
cada vez mais forte. Exatamente como a construção do livre

mercado na primitiva Inglaterra vitoriana exigiu o pleno exer


cício dos poderes de Estado, o mesmo aconteceu com o proje
to de seu parcial restabelecimento pelo fim do século XX. O
laissez-faire vitoriano foi construído por uma série de atos
parlamentares que enfeixavam algo que fora até então terri
tório comum, gerando propriedade privada onde ela não exis
tira um processo que envolveu atos de coação em massa.
-

Foi uma mudança que só poderia ter sido efetuada por um


governo altamente centralizado, e o mesmo se aplica ao pro
grama de Thatcher. O resultado inevitável da tentativa de
reinventar o livre mercado foi um Estado altamente invasivo.³

O preço do sucesso de Thatcher foi uma sociedade sob


muitos aspectos oposta à que pretendia. Seu objetivo de sol
tar as amarras do livre mercado era viável e em certa medida
foi alcançado; mas sua suposição de que poderia liberar os
mercados ao mesmo tempo que fazia encolher o Estado era
utópica, assim como seu objetivo de reafirmar os valores bur
gueses. A utopia é a projeção no futuro de um modelo de so
ciedade que não pode ser concretizado, mas não é necessário
que seja uma sociedade que nunca existiu. Pode ser uma so
ciedade que já existiu - ainda que não exatamente na forma
-

em que é saudosamente lembrada —, mas que desde então


ficou para trás na história. Em entrevista à televisão em ja
neiro de 1983, Thatcher declarou sua admiração pelos valores
vitorianos e sua convicção de que podiam ser restabelecidos.
Na verdade, o país dos sonhos nostálgicos de Thatcher pare
cia-se mais com a Grã-Bretanha da década de 1950, mas a

idéia de que a liberação das forças de mercado seria capaz de

119
recriar esse idílio perdido era incrivelmente paradoxal. A Grã
Bretanha conservadora dos anos 1950 era um subproduto
do coletivismo trabalhista. Thatcher arrasou as bases do país

ao qual sonhava retornar. Já semidefunto quando ela chegou


ao poder em 1979, ele desaparecera na memória quando ela
se foi em 1990. Na tentativa de restabelecer o passado, ela apa
gou seus últimos vestígios.
Thatcher propagou um ethos individualista de responsa
bilidade pessoal, mas no tipo de sociedade necessário para
atender ao livre mercado, as virtudes antiquadas da poupan
ça e do planejamento para o futuro já não fazem sentido. A
incessante mobilidade do capitalismo de hoje requer um esti
lo de vida em constante mutação. O endividamento crônico
passou a ser visto como sinal de prudência, e a disposição de
arriscar parece mais útil que a dedicação diligente ao traba
lho. Embora uma geração anterior de teóricos sociais previs
se que o capitalismo, com seu desenvolvimento, fomentaria
o aburguesamento a disseminação de um ethos de classe
média por toda a sociedade —, foi o contrário que aconteceu.
A maioria da população pertence ao novo proletariado, com
níveis elevados de renda, mas nada parecido com uma carrei
ra com desdobramentos de longo prazo. A deliqüescência da
sociedade burguesa não foi causada pela abolição do capita
lismo, mas pelo seu funcionamento sem peias.
Os neoliberais consideram que o avanço do livre mercado
é um processo histórico irreversível, que não foi promovido
por decisão humana nem poderia ser por ela impedido. Mas
foi Thatcher que o impulsionou na Grã-Bretanha, e só retros
pectivamente sua chegada ao poder parece inevitável. O caráter
acidental de sua ascensão pode ser constatado nas pessoas e
nos acontecimentos, muitos hoje esquecidos, que a tornaram
possível. Se o primeiro-ministro conservador Edward Heath

120
não tivesse convocado eleições para saber quem deveria go
vernar o país, com isto perdendo o apoio de boa parte de seu
partido; se o presidente do partido, o prócer da velha guarda
Willie Whitelaw, não se tivesse mantido leal a Heath, recu
sando-se a assumir a liderança; se o irrequieto parlamentar e
ideólogo de direita Keith Joseph não tivesse dado a entender
publicamente que era favorável a uma política de eugenia para
desestimular os pobres de ter filhos, com isto se desqualifi
cando de uma eventual candidatura à liderança do partido;
se o ex-presidente do partido Edward du Cann não tivesse re
pentinamente retirado sua candidatura; se a campanha de
Thatcher pela liderança não tivesse sido habilmente orques
trada pelo parlamentar Airey Neave, especialista em opera
ções especiais e fugitivo de guerra que viria a ser assassinado
pelo IRA- se qualquer dessas circunstâncias tivesse sido di
ferente, Thatcher muito provavelmente não se teria tornado
líder do Partido Conservador. Por outro lado, se o primeiro
ministro trabalhista James Callaghan não tivesse retardado
a convocação de eleições gerais até 1979, quando o governo
se tornara profundamente impopular, ou se Thatcher não
tivesse sido assessorada em matéria de relações públicas pela
empresa de publicidade dirigida por Charles e Maurice Saatchi,
responsável pelo arrasador lema de campanha “O trabalhismo
não está funcionando". possivelmente ela não teria se tor
nado primeira-ministra.
A chegada de Thatcher ao poder foi um mero acaso. Uma

vez no cargo, seu programa de governo foi imposto pela his


tória. A política britânica era determinada por um histórico
de conflitos trabalhistas e derrotas governamentais. A sema
na de três dias, introduzida pelo primeiro-ministro Edward
Heath em reação à agitação dos operários industriais em de
zembro de 1973, a greve dos mineiros que o apeou do poder

121
na primavera de 1974, o conturbado inverno em que o go

verno trabalhista se viu paralisado em 1978-9, quando a co


leta de lixo, o abastecimento de gasolina e por um certo
período o enterro de cadáveres foram afetados por ações gre
vistas - todos esses acontecimentos, simbolizando ao mesmo
tempo o declínio nacional e a crônica debilidade do governo,
moldaram a feição política de Thatcher e suas primeiras po
líticas de forma mais determinante que qualquer ideologia.
O programa do primeiro governo de Thatcher continha
poucas das políticas que viriam a transformar-se na nova
ortodoxia neoliberal. O manifesto da eleição geral de abril de
1979 não fazia menção a privatizações, palavra que só pas
saria a ser usada na década de 1980. Fora decidida a venda de
uma empresa estatal (a National Freight Company) e assu
mido o compromisso de começar a vender prédios munici
pais, mas não se falava em introduzir mecanismos de mercado
no serviço público. Havia a promessa de acabar com a obri
gação de contratar apenas trabalhadores sindicalizados e res
tringir o direito de greve no setor industrial, que, no entanto,
era acompanhada do compromisso de consultar os sindica
tos sobre reivindicações salariais no setor público. Curiosa
mente, tendo em vista as políticas adotadas posteriormente
por Thatcher, o sistema alemão de cálculo salarial era elogia
do. Considerando a fama de desprezar pelo consenso adquirida
por Thatcher, era um documento estranhamente moderado.
Mas o efeito das primeiras políticas de Thatcher foi enterrar
definitivamente o consenso do pós-guerra e, com ele, a de
mocracia social britânica.

Os programas iniciais do governo de Thatcher foram


grandemente influenciados por John Hoskyns, um empre
sário que em 1978 já se tornara seu principal estrategista.
No outono de 1977, Hoskyns apresentou a Thatcher um

122
documento, "Stepping Stones", no qual estabelecia os objeti
vos com os quais ela chegaria ao poder.4 Era um diagnóstico
das forças subjacentes ao impasse em que a Grã-Bretanha se
encontrava, recomendando a sujeição do poder sindical, o con
trole da inflação e a promoção de orçamentos equilibrados.
Figura arquetípica do primeiro thatcherismo, Hoskyns osten
tava as características dessa corrente, bem resumidas por
Hugo Young: "Uma visão radicalmente pessimista do passado,
um otimismo milenarista a respeito do futuro e a crença nos
imperativos empresariais como único agente da recuperação
econômica."5 Essas atitudes distinguiam Thatcher das outras
lideranças de seu partido e do resto da classe política britâni
ca na época. Desde o início ela ostentava virtudes missionárias;
mas nos primeiros tempos não pretendia salvar o mundo, só
a Grã-Bretanha.

Na Grã-Bretanha do pós-guerra, a política baseava-se na


convicção de que seria possível promover o constante cres
cimento econômico com uma combinação de financiamento
do déficit e política monetária indulgente. Se John Maynard
Keynes endossaria essa mistura, é uma questão em aberto,

mas toda uma geração de políticos, servidores públicos e eco


nomistas via nessa combinação "keynesiana” uma receita
infalível de crescimento econômico. Mas na década de 1970

o crescimento começava a titubear, o desemprego e a infla


ção aumentavam e a indústria se via paralisada por uma
série de conflitos salariais. Nos setores mais radicais da di

reita, temia-se o advento de algo parecido com um Estado


comunista. Não havia o menor risco de que isto aconteces
se: na década de 1970, o risco era de que a Grã-Bretanha se

tornasse mais parecida com a Argentina do que com qual


quer país do bloco soviético. Mas a crise era real. As velhas
soluções já não funcionavam.

123
Margaret Thatcher não foi a primeira entre os líderes po
líticos britânicos a reconhecer que o consenso do pós-guerra
deixara de ser viável. Foi Denis Healey, o ministro da Fazenda
no governo trabalhista de James Callaghan, quem instaurou
este fato no centro da política britânica. No meado da década
de 1970, Healey tentou convencer seu partido de que o con
senso do pós-guerra não funcionava mais, mas os fortes vín
culos do trabalhismo com os sindicatos e a oposição da maior
parte de seus membros impediram a mudança de política por
ele pretendida. Thatcher também enfrentou forte oposição.
Sua maior prioridade era modificar o sistema de barganha
salarial coletiva que governava boa parte da indústria britâ
nica. Para isto, deu-se um confronto com os sindicatos, que

teriam seu poder solapado após a greve dos mineiros de


1984-5. O corporativismo britânico -o triunvirato forma
-

do por governo, sindicatos e empregadores que vinha gerin


do a economia desde a Segunda Guerra Mundial - deixou de
existir. A economia passaria a crescer num contexto de baixa
inflação e flexibilidade do mercado de trabalho. Foram altos
os custos sociais do estabelecimento dessa estrutura, com um

período em que o desemprego aumentou vertiginosamente e


um constante agravamento das desigualdades econômicas,
mas em termos políticos foi um retumbante sucesso. A con
cepção thatcherista do governo e da sociedade que adviriam
quando algo parecido com o livre mercado fosse reinventado
era quimérica e utópica; mas a desregulamentação das forças
de mercado por ela arquitetada constituiu a base de um novo
consenso suficientemente produtivo para ser amplamente
aceito, devendo continuar em vigor até que a história o torne
irrelevante.

O bem-sucedido desafio apresentado por Thatcher ao con


senso britânico não satisfez suas ambições. Como De Gaulle,

124
ela passara a se considerar a encarnação da nação. Ao con
trário do general, lançou-se num amplo ataque às institui
ções nacionais. Desprezava especialmente os governos locais
e, induzida pelos think thanks de direita, adotou um "imposto
de capitação", um tributo individual cobrado pelos municí
pios que se tornou extremamente impopular. O imposto de
capitação lançou sérias dúvidas sobre a liderança de Thatcher
em seu próprio partido e na opinião pública, mas sua hosti
lidade à Europa pode ter sido um fator de maior peso no golpe
que levou à sua queda em 1990. Foi o radicalismo irracional
de sua política européia que levou Geoffrey Howe a renunciar
ao cargo de vice-primeiro-ministro, ocasionando o lançamen
to da candidatura de Michael Heseltine à liderança do parti
do. Foi a hostilidade à posição pró-européia de Heseltine que
levou a ala thatcherista do partido a tentar de todas as for
mas impedir que ele assumisse a liderança, o que resultou
na eleição de John Major. Foi a tentativa de Major de melho
rar as relações com a Europa que o levou a aderir ao Meca
nismo Cambial Europeu numa taxa desfavorável — decisão
que teve efeitos negativos para o país quando a libra esterli
na foi excluída do mecanismo na "Quarta-feira Negra", em
setembro de 1992. O governo de Major nunca se recupera
ria, teve início uma verdadeira guerra civil entre os conser
vadores europeus e o Partido Conservador transformou-se

num barco desgovernado.


Os sucessores de Thatcher lutaram por quase uma déca
da para entender o que tornara inelegível o seu partido. Era
evidente que uma série de decisões e acontecimentos havia con
tribuído para isto, entre eles o golpe que derrubou Thatcher
em 1990. Mas a impopularidade dos conservadores tinha cau
sas mais profundas, e só quando David Cameron assumiu a
liderança é que o partido foi forçado a admitir que o principal

125
obstáculo para o sucesso eleitoral era o próprio conserva
dorismo. A Grã-Bretanha pós-Thatcher é uma sociedade
menos coesa, mas também mais tolerante despreocupada
de "valores de família", menos maciçamente homofóbica,
menos profundamente racista e (apesar de nitidamente mais
desigual) não tão obcecada com questões de classe. Embora
relegasse Thatcher aos livros de história, Cameron aceitou a
sociedade que ela sem querer ajudara a criar. Ao enterrar
Thatcher ao mesmo tempo que aceitava a Grã-Bretanha
pós-Thatcher, ele tornou seu partido mais uma vez uma al
ternativa viável de poder.
Embora fosse apenas um episódio no microcosmo da po
lítica britânica, o aniquilamento do conservadorismo resul
tante das políticas thatcheristas fazia parte de uma tendência
mais ampla. A aplicação das idéias neoliberais provocou uma
reação em muitos países. Na Polônia e na Hungria pós-co
munistas, o triunfo da nova direita foi seguido de uma ressur
gência da velha direita, a qual, mesmo atacando os excessos
do livre mercado, reanimou alguns dos piores temores do

passado. O nacionalismo cultural integralista e o antigo ve


neno do anti-semitismo retornaram em boa parte da Europa
pós-comunista. Na Europa ocidental, a direita encetou um
processo de modernização que lhe permitiu assumir um pa
pel-chave na política democrática. São poucos os partidos
europeus de extrema direita que ainda sustentam programas
protecionistas como os do entre-guerras. No norte da Itália e
na Suíça, estão engajados na promoção de uma economia de
alta tecnologia ligada ao resto do mundo pelo livre-comércio
global, mas isolada dos distúrbios pelo controle da imigra
ção. Fechando as portas à imigração, a extrema direita tem
capitalizado a insatisfação dos prejudicados pela globalização
nos países ricos — trabalhadores não-qualificados e gerentes

126
de nível médio cujo trabalho pode ser feito por salários me
nores nas economias emergentes. Identificando-se com esses
grupos, a direita radical tem conseguido orientar a agenda
política em muitos países, mesmo naqueles — como a França
e a Áustria nos quais declinou em termos eleitorais. Em
países sem tradição política de extrema direita, surgiram no
vos tipos de populismo. Na Holanda, o antigo político mar
xista Pim Fortuyn, assassinado por um militante dos direitos
dos animais, encarnava uma mistura de libertarismo em

questões de moral pessoal e hostilidade xenófoba aos imigran


tes (especialmente muçulmanos). Nos Estados Unidos, a di
reita dividiu-se em ideólogos neoconservadores e nativistas
paleoconservadores. O fator comum entre essas correntes

disparatadas é que o conservadorismo deixou de ser um pro


jeto político coerente. Foram cortados os laços com o passado
de que precisava. Qualquer tentativa de revivê-los só pode ser
atávica, e quando os partidos conservadores resistem à ten

tação da reação, tornam-se veículos de uma agenda progres


sista que facilmente degenera no utopismo.
A carreira de Thatcher ilustra essa tendência. Ela nunca

se convenceu de que a queda do comunismo anunciava uma


era de paz, tendo ridicularizado a afirmação de Francis Fukuyama
de que a história chegara ao fim. Mas em 1989 aceitou o pon
to de vista de Fukuyama de que determinado tipo de gover
no seria o modelo para todos os demais. Acreditando que a
América contemporânea encarnava as virtudes da Grã-Bre
tanha do passado, ela se convenceu de que os Estados Uni
dos poderiam tornar-se, no fim do século XX, o que acreditava
ter sido a Grã-Bretanha no fim do século XIX: a suprema
garantia do progresso em todo o mundo. Para Thatcher, como
para Fukuyama, isto queria dizer que o "capitalismo demo
crático" americano poderia ser reproduzido em toda parte.

127
Até então reformista, ela se transformou em uma ideóloga.

Isso era em parte pura húbris - a autoconfiança excessiva e


arrogante que vem a ser a deformação profissional dos líde
res que alcançaram o sucesso por acaso-, mas também um
reflexo de suas próprias convicções. Thatcher sempre acredi
tou firmemente no progresso humano e se chegou a nutrir
alguma filosofia pessoal, não era tóri, mas whig. No século
XVIII, os whigs consideravam o advento da liberdade na In
glaterra como manifestação da providência. Uma crença ri
dicularizada pelo tóri David Hume em sua História da Inglaterra,
na qual demonstrava o papel crucial do acaso. Um tal ceti
cismo era alheio a Thatcher, que passou a considerar a mistura
de políticas que aplicara para curar doenças especificamente
britânicas como uma panacéia global. Ao ser defenestrada de
Downing Street, o conjunto de atitudes e crenças desarticu
ladas com que começara a carreira havia se enrijecido num
sistema fechado.

A visão de mundo neoliberal aceita por Thatcher no fim


da década de 1980 era uma ideologia sucessora do marxis
mo. O pensamento ideológico tende a encarar a sociedade de
forma genérica, e assim ocorreu no fim da década de 1980,
quando o fim da Guerra Fria deu às idéias neoliberais um
impulso catastrófico. Liderados por Thatcher, os governos
ocidentais comunicaram aos países do antigo bloco soviético
que, se quisessem a prosperidade, teriam de importar o livre
mercado. A idéia de que determinado conjunto de políticas
poderia ter os mesmos resultados benéficos em países tão di
ferentes como os do antigo bloco soviético era absurda, mas
estava em sintonia com as disposições do Fundo Monetário
Internacional, que impunha políticas semelhantes em países
tão diversos quanto a Indonésia, a Nigéria e o Peru. Junta
mente com os burocratas do FMI, eram enviados às terras

128
pós-comunistas emissários levando em suas pastas o mesmo
projeto de constituição. Por mais discrepantes que fossem em
relação as realidades dos países visitados, esses ideólogos neo
liberais tentavam impor a todos o mesmo modelo.

Embora a queda da União Soviética fosse um avariço no


terreno da liberdade, suas repercussões na paz não poderiam
deixar de ser ambivalentes. A transição da ditadura foi acom

panhada em muitos países de guerras e conflitos de limpeza


étnica. Embora o colapso do comunismo propriamente se des
se com muito pouca violência, não havia motivos para pensar
que o mundo pós-comunista mudaria de padrão. A adoção
no Ocidente de políticas mais ponderadas poderia ter dimi
nuído os riscos, mas no clima de triunfalismo da época não
havia lugar para realismo. Em vez disso, os principais parti
dos políticos adotaram ideais utópicos.
O pensamento utópico é perigoso sobretudo quando me
nos reconhecido, o que vem a ser ilustrado pelo surgimento,
na década de 1990, de uma versão centrista do utopismo. Ini
cialmente com políticas econômicas neoliberais na Rússia,
depois com a intervenção militar humanitária nos Bálcãs, os

governos ocidentais tomaram rumos que não tinham quais


quer perspectivas de sucesso. Foram apanhados de surpresa
quando a disseminação da democracia desencadeou uma onda
de nacionalismo étnico na antiga Iugoslávia, manifestações de
separatismo na Chechênia e de islamismo na antiga Ásia cen
tral soviética. Esperava-se que a democracia e o livre merca
do trouxessem em seu lastro a paz, e não o crime e a violência.
Sem se dar conta, os governos ocidentais haviam abraça
do ideais utópicos. Governos de direita e de esquerda conside
ravam que a ressurgência do nacionalismo e os conflitos

étnicos e religiosos eram apenas dificuldades locais e passa


geiras no avanço universal em direção a uma nova ordem

129
mundial. O pensamento realista foi posto fora de combate
pela volta ao poder de uma ideologia que havia sido descar
tada mais de um século antes.

ASCENSÃO E QUEDA DO NEOLIBERALISMO

Os modernos professores de economia política e ética atuam


em disciplinas que foram secularizadas a tal ponto que os

elementos e implicações religiosos que antes eram parte inte


grante delas foram diligentemente eliminados.
Jacob Viner7

Pelo fim da década de 1980, um liberalismo doutrinário toma

ra conta do Partido Conservador. Nos anos 1990, ele esten

deu sua influência até o trabalhismo. Blair aceitou não só o


contexto de políticas imposto por Thatcher no lugar do con
senso do pós-guerra, como também o estilo neoliberal de pen
samento que vicejara a seu redor.
A adesão ao neoliberalismo por parte do Novo Traba
lhismo foi antes de tudo uma reação ao sucesso político de
Thatcher. Quando Blair se tornou líder do Partido Trabalhista
em 1994, o partido estava fora do poder havia uma década
e meia. Ele engoliu a fé thatcherista no mercado como um

elixir capaz de revivificar o partido e levá-lo de volta ao po


der. A infusão aparentemente surtiu o efeito desejado, e Blair
-juntamente com Gordon Brown, ministro da Fazenda tra

balhista e seu rival pela liderança do partido - aceitou a po


lítica econômica neoliberal. Mas Blair sempre se sentiu mais
próximo do pensamento neoconservador, e depois dos aten

130
tados de 11 de setembro resvalou decisivamente para o neo
conservadorismo.

Diferentes versões das idéias neoliberais têm determinado

as políticas públicas na Grã-Bretanha e em muitos outros


países desde o fim da década de 1980. O neoliberalismo abran
ge várias escolas de pensamento, que, no entanto, têm em
comum certas convicções fundamentais. Os neoliberais con

sideram que a principal condição da liberdade individual é o


livre mercado. O alcance da ação governamental deve ser es
tritamente limitado. A democracia pode ser desejável, mas deve
ser limitada, para proteger as liberdades do mercado. O livre
mercado é o sistema econômico mais produtivo e, portanto,
tende a ser copiado em todo o mundo. Os mercados livres são
não apenas a maneira mais eficiente de organizar a econo
mia, como também a mais pacífica. À medida que se expan
dem, são reduzidas as fontes de conflitos. Num mercado livre

global, a guerra e a tirania desaparecerão. A humanidade


poderá progredir em escala inédita.
Com pequenas variações, F. A. Hayek, Milton Friedman e
uma série de outros luminares menos votados compartilha
vam dessas crenças. Eram todos expoentes, nesse fim do sé
culo XX, de uma ideologia iluminista cujos fundamentos se
enraízam na fé religiosa, apesar de serem apresentados como
resultado de investigações científicas. Os neoliberais queriam
recuperar a pureza do liberalismo, antes de ser poluído pelo
pensamento coletivista, e, como todos os fundamentalistas,
acabaram com uma caricatura da tradição que tentavam
reviver. O neoliberalismo era, no fim do século XX, uma pa
ródia da economia política clássica. Os economistas clássicos
do século XVIII consideravam que todas as sociedades pas
sam por estágios definidos para o desenvolvimento que con
duzem a um destino único uma civilização comercial

131
baseada nas trocas de mercado mas tinham uma clara

compreensão dos problemas e carências das sociedades de


mercado. Alheios a essa percepção, os neoliberais transforma
ram a economia política clássica numa ideologia utópica.
Os próprios economistas clássicos tinham sérias dúvidas
a respeito da sociedade comercial que viam ser gerada ao seu
redor. Para Adam Smith, a sociedade comercial era o melhor
tipo de associação humana, mas era altamente imperfeita. Em
certos momentos, ele se refere ao mercado ou o "sistema
-

de liberdade natural", como costuma chamá-lo — como uma


-

Utopia; quer dizer com isto, no entanto, que é o melhor sis


tema possível, e não que esteja isento de graves defeitos. Em
bora ficasse impressionado com a produtividade dos mercados
livres, Adam Smith temia seus riscos morais. Os operários
não precisavam ser educados para desempenhar as simples
tarefas repetitivas de que eram incumbidos nas fábricas que
estavam sendo construídas no norte da Inglaterra, ao passo

que as cidades anônimas que pipocavam ao redor das fábri


cas não estimulavam propriamente a virtude. A longo prazo,
isto gerava um risco para a civilização comercial. As preocu
pações de Smith faziam eco às de pensadores anteriores, numa
tradição cívica republicana, e influenciaram posteriores crí
ticos do capitalismo. Em Marx, a teoria dos efeitos alienantes
do trabalho assalariado deve muito à percepção de Smith so
bre as mazelas das sociedades comerciais. Caricaturado por
ideólogos do século XX como um missionário do mercado,

Smith foi, na verdade, um dos primeiros teóricos das contra


dições culturais do capitalismo. A Utopia de Smith é "(...)
uma utopia imperfeita ou, dizendo de outra forma, uma uto
pia adequada para criaturas imperfeitas". Por imperfeito que
seja, o sistema da liberdade natural não é alcançado com fa
cilidade. Ao contrário dos neoliberais do fim do século XX,

132
Smith não acreditava muito em esquemas de reforma do
mercado. Suas esperanças de concretização dessa Utopia re
pousavam em suas crenças religiosas.
Smith tinha pouco em comum com evangelistas secula
res do livre mercado como Hayek e Friedman. Considerava o
surgimento da sociedade comercial como obra da divina pro
vidência. Sua concepção da "mão invisível". um sistema de
-

ajustes ocultos pelo qual as múltiplas trocas do mercado pro


movem o bem comum era enunciada em termos inequi
-

vocamente teístas. A mão invisível era Deus agindo por


intermédio dos sentimentos humanos, e a razão humana de

sempenhava um papel pequeno nesse processo. O mercado


não se desenvolveu porque os seres humanos tivessem en

tendido suas vantagens; ele surgiu como subproduto de ins


tintos neles incutidos por Deus. Como outros pensadores do
Iluminismo escocês, Smith sabia que o comportamento hu
mano é muito mais determinado pela emoção e pelas conven
ções do que pela razão e, como eles, desconfiava do intelecto
quando deixava de levar em conta os sentimentos. O histo
riador econômico americano Jacob Viner assim resumiu o

ponto de vista de Smith:

Os sentimentos são inatos no homem; ou seja, o homem é


dotado de sentimentos pela providência. Em circunstâncias
normais, os sentimentos são infalíveis. A razão é que é falí
vel. A mais falível de todas é a razão especulativa do filósofo
moral, a menos que o legislador esteja num nível ainda mais
baixo. O homem, todavia, tende a atribuir à razão humana

aquilo que é na realidade a sabedoria do Autor da Natureza,


tal como se reflete nos sentimentos, 10

133
Existe uma concepção da providência por trás da idéia de
um sistema natural de liberdade enunciada por Smith, e o pen
samento liberal como um todo é determinado por crenças cris

tãs. Só no meado do século XIX é que o liberalismo passou a


ser associado ao pensamento secular. Desde então, muitas ten
tativas têm sido feitas de desvinculá-lo de suas origens, mas

o liberalismo continua sendo uma derivação do cristianismo.


No início do século XIX, o principal argumento em favor
do livre mercado era que as tarifas constituem um obstáculo
aos desígnios divinos. Na formulação mais corrente, Deus dis
seminava recursos pelo mundo para que os povos mais
distantes pudessem estreitar relações por meio do comércio e
assim identificar-se como irmãos. O livre-comércio era um

meio de concretização da fraternidade sob a lei de Deus. Na


década de 1840, Richard Cobden empreendeu na Grã-Bretanha
uma bem-sucedida campanha contra os direitos sobre o
trigo, com o lema "O livre-comércio é a lei internacional de
Deus". Para ele, não se tratava de uma metáfora, mas da

verdade literal. Economistas posteriores tentaram fazer a


defesa do livre-comércio universal em termos seculares de

vantagens comparativas, mas nunca tiveram muito êxito.


Boa parte da teoria econômica consiste em tentativas de
deduzir a necessidade dos mercados livres de axiomas dúbios

de escolha racional. As idéias resultantes são nitidamente mais

dogmáticas que a economia política smithiana baseada na fé.


O livre mercado só se tornou uma religião quando foram
negadas suas bases religiosas.¹¹
A idéia de que o livre mercado tem fundamentos científi

cos é central no pensamento de Herbert Spencer (1820–1903).


Nascido numa família metodista dissidente, de idéias forte

mente anticlericais (com alguns elementos quaker), mas

134
decididamente cristã em suas convicções, Spencer tornou-se

agnóstico e passou a vida tentando reformular o sistema da


liberdade natural de Smith em termos científicos. Personali

dade excêntrica, tendo produzido parte dessa vasta obra du


rante viagens de ida e volta nas barcas que atravessavam o

canal da Mancha, com tampões de ouvido para se proteger


da poluição sonora, Spencer tornou-se um dos pensadores
mais influentes do fim do século XIX, com muitos seguido
res nos Estados Unidos. Sua reputação decorria sobretudo de
sua concepção da evolução social. Na busca de bases científi
cas da ética, Spencer foi muito influenciado por Comte, mas
ao passo que este invocava a ciência para investir contra os
valores liberais, Spencer usava a ciência para defendê-los. Em

ambos os casos, a ciência era espúria.


Spencer foi o mais influente expoente do darwinismo so
cial, sistema de idéias que pouco deve a Charles Darwin -

foi Spencer, e não Darwin, que cunhou a expressão "sobrevi


vência dos mais aptos". Para Spencer, a sociedade evolui, e sua
evolução só pode conduzir a um fim, o livre mercado, ou -

nome que adotou seguindo Comte o industrialismo. As


sociedades "industrializadas" enfrentavam a competição das so
ciedades "militantes" — regimes socialistas e nacionalistas ―

empenhadas na tentativa de organizar a economia com base

no comando. Spencer não tinha dúvida de que o livre merca


do prevaleceria, mas nunca especificou qualquer mecanismo
que pudesse assegurar esse resultado. Seu silêncio não sur

preendia. As sociedades baseadas no mercado podem ser mais


produtivas que as outras. Isto não significa que serão adotadas
em toda parte. Mesmo onde existem, podem ser abandona
das: como observou com desalento o próprio Spencer, um cer
to dirigisme substituíra o laissez-faire na Grã-Bretanha pelo

135
fim do século XIX. Sua teoria da evolução social tentava ex

plicar este fato, que projetava uma grande interrogação sobre


todo o seu sistema de idéias.12

Durante a maior parte da vida, Spencer convenceu-se de


que a história seguia o caminho por ele descrito. Defrontan
do-se pelo fim do século XIX com a ascensão do imperialis
mo e do protecionismo, ele caiu em desespero. Alguns de seus
discípulos não eram tão idealistas. Sidney e Beatrice Webb
compartilhavam sua convicção de que os sistemas econômi
cos mais produtivos levam a melhor sobre os menos produ
tivos. Como ele, não podiam deixar de constatar que o laissez-faire
estava recuando e concluíram que o coletivismo soviético era

mais produtivo que o capitalismo ocidental. A adesão dos


Webb ao stalinismo ilustra um defeito de todas as teorias

evolucionistas da sociedade. Quase sempre se acredita que


a evolução social conduz a um único tipo de sociedade, mas a
história — assim como a seleção natural - não tem uma dire

ção global ou uma forma predeterminada de Estado como


alvo. Na prática, os teóricos da evolução social acabam
apoiando tendências vigentes. O que não está muito longe de
equiparar o que tem força com o que é certo, não raro se re
velando uma aposta equivocada.
Pelo fim do século XX, o coletivismo recuava. Os neoli

berais acreditavam enxergar no horizonte um livre mercado


global; quando ele viesse a triunfar, a paz e a prosperidade
seriam universais. Era esta a mensagem de defensores religio
sos do livre-comércio como Cobden e John Bright. Mas os
neoliberais a apresentavam como um fato estabelecido pela
ciência social - no caso, a ciência putativa da economia po
-

lítica. Várias escolas de teoria econômica estavam represen


tadas no movimento neoliberal. Fortemente influenciada pelo
positivismo, a Escola de Chicago sustentava que a economia

136
política é uma ciência com leis universais, exatamente como
as ciências naturais, enquanto a Escola Austríaca considera
va que os métodos das ciências naturais não podem ser apli
cados à sociedade. Era uma discordância fundamental, que,
no entanto, não comprometia de maneira alguma seu entu
siasmo pelo livre mercado; este era, em seu credo, um pres
suposto que não podia ser questionado. Não importava como
fosse justificado.

O mais ambicioso e influente ideólogo neoliberal foi F. A.

Hayek (1899-1992). Ele cresceu nos últimos anos do império


dos Habsburgo, considerando-o justificadamente, sob certos
aspectos, como um modelo de regime liberal. Detestava o na
cionalismo, vendo nele, com razão, uma força de grande poder
destruidor, mas considerando-o como uma volta ao triba

lismo. Não foi capaz de ver que — como o nazismo, o comu


nismo e o jacobinismo o nacionalismo é um fenômeno
wpawac.ccomm

moderno. Foi um opositor radical do cientificismo, a aplica


ção equivocada de métodos das ciências naturais às questões
humanas. E, no entanto, sua defesa do livre mercado era ela

própria uma forma de cientificismo. Na década de 1930, sus


tentou longa polêmica sobre as origens da Grande Depressão
com J. M. Keynes, vencida sem dificuldades por Keynes, pen
sador mais arguto, além de mais capaz no manuseio da opi
nião pública. Nos anos 1940, trocou a economia política pela
filosofia social, não sem antes formular uma poderosa críti
ca do planejamento central. Os economistas acreditavam em
geral que, nas condições adequadas, o planejamento central
podia ser altamente produtivo. Indo contra esse consenso,
Hayek sustentava que ele era intrinsecamente inviável.
O cerne da argumentação de Hayek estava em que os
planejadores jamais poderiam deter o conhecimento necessá
rio para organizar a vida econômica de maneira eficaz. Como

137
o filósofo da ciência Michael Polanyi - que visitou a Univer
sidade de Chicago no início da década de 1950, quando Hayek
lá ensinava-, Hayek sustentava que o conhecimento da so
ciedade traduz-se essencialmente nas práticas. O mecanismo
dos preços é uma resposta a esse problema, permitindo-nos
fazer uso de conhecimentos dispersos que não estão integral
mente ao alcance de ninguém. Hayek fechava os olhos às dis
torções a que tendem os mercados livres e exagerava ao
afirmar que o planejamento econômico centralizado é im
possível: a economia britânica direcionada funcionou muito
bem durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Mas
distinguia um obstáculo insuperável ao tipo de planejamen
to econômico preconizado por Marx e tentado no bloco sovi
ético, na China maoísta, em Cuba e outros países comunistas.
Mesmo nos casos em que alguns dos objetivos dos plane
jadores eram alcançados como em determinados setores
do complexo industrial-militar soviético —, era sempre con
-

tra o pano de fundo de um colossal desperdício. Numa época


em que a maioria dos economistas estava convencida de que
o planejamento econômico central seria capaz de gerar um
grau de prosperidade comparável ao dos sistemas centrados
no mercado, Hayek mostrou que ele estava fadado a se mos
trar muito menos produtivo. Sua posição seria corroborada
pelo desempenho das economias planificadas, que só se re
velou plenamente após seu colapso, e é como um crítico pres
.
Infelizmente, foi como teórico do livre mercado que Hayek
13
se tornou influente. ¹3 Sua influência nos dirigentes políticos

mais importantes foi pequena, mas ele contribuiu para um


tipo de pensamento danoso: embora lançasse luz sobre a irra
cionalidade do planejamento central, fechou os olhos à dos

138
processos de mercado. Os mercados estão sujeitos a ciclos de
expansão e contração e a colapsos recorrentes. Keynes e outros

sustentavam que a Grande Depressão era uma conseqüência


da crença equivocada de que o livre mercado se estabiliza
automaticamente. Observou o economista Karl Polanyi,
irmão de Michael Polanyi: "A origem da catástrofe está no es
forço utópico do liberalismo econômico de estabelecer um

sistema de mercado auto-regulador."14 Ainda que as políticas


governamentais tenham agravado o colapso econômico na

década de 1930 (como sustentava Hayek), não se segue que


se possa confiar totalmente nos mercados. Nada existe nos

processos de mercado que os torne auto-reguláveis. A gran

de contribuição de Hayek foi mostrar que uma economia


planejada bem-sucedida é uma Utopia. Mas ele não foi capaz
de ver que o mesmo se aplica ao mercado auto-regulável.
Hayek também acreditava que o livre mercado se mani

festa espontaneamente. Surgindo como conseqüência in


voluntária de incontáveis ações humanas, ele não é resultado
de um desígnio humano. No mais completo enunciado de seus
pontos de vista, A constituição da liberdade, ele louva os "filó
sofos britânicos" por terem rejeitado a idéia "francesa" de que
as instituições sociais encarnam uma intenção racional: "Eles

não identificam a origem das instituições", escreve, "na in


tenção ou no propósito, mas na sobrevivência do bem-suce
dido.""15 Como descrição do surgimento do livre mercado,
estamos aqui nos antípodas da verdade. Seria apenas um leve
exagero afirmar que o laissez-faire resultou do planejamento
central. Na Grã-Bretanha do meado do século XIX, o livre

mercado era um produto do poder de Estado. O mesmo no


século XX. Reinventar o mercado significava sujeitar insti
tuições de desenvolvimento espontâneo, como os sindicatos

139
e (embora isto não fosse reconhecido com freqüência) as
corporações monopolísticas. O que só podia ser feito por um
Estado altamente centralizado.

Se os mercados livres geralmente resultam de uma arqui


tetura deliberada, as instituições sociais de desenvolvimento
espontâneo raramente são liberais pelo menos no signifi
cado que Hayek confere ao termo. Um sistema político do
tipo que suscitava a admiração de Hayek desenvolveu-se na
Inglaterra sem que ninguém o planejasse; mas, como demons
trou Hume em sua História da Inglaterra, isto se deu por aca
so, e não pela ação de alguma lei divina ou natural. Da mesma
forma, as sociedades feudais se desenvolveram sem que nin
guém o pretendesse ou entendesse como estava acontecendo,
e ninguém planejou as limitações ao livre mercado impostas
no último período da Grã-Bretanha vitoriana. Se existe algo
parecido com uma evolução social espontânea, são de mui
tos tipos as instituições assim geradas.
O equívoco da convicção manifestada por Hayek de que
os mercados livres se desenvolvem espontaneamente ficou
demonstrado na Rússia durante a era Ieltsin. Os governos

ocidentais acreditavam que, uma vez desmantelado o plane


jamento de Estado, automaticamente se desenvolveria uma
economia de mercado. Efetivamente surgiu uma economia de

mercado, mas dominada pelo crime organizado. No governo


Putin, o anarco-capitalismo russo foi substituído por um no
vo sistema - ainda ligado ao crime, mas aparentemente mais
organizado e com maior legitimidade popular. -que se mos
trou mais eficiente que o planejamento central, mas muito
distante do livre mercado. O resultado da confiança deposi
tada nos processos espontâneos foi um novo tipo de econo
mia centralizada.

140
Hayek freqüentemente é comparado a Edmund Burke, o
parlamentar de origem irlandesa que no século XVIII fundou

o conservadorismo inglês, e os dois efetivamente têm algo em


comum. Como Hayek, Burke acreditava que a tradição traz
em seu bojo a sabedoria de gerações seguidas. Ao contrário
de Hayek, contudo, baseava esta convicção numa fé religiosa:
o movimento invisível da tradição era a providência em ação
na história. Era difícil conciliar essa idéia com o advento da

Revolução Francesa, mas se aceitasse o Terror como uma pu

nição divina da maldade humana, Burke poderia manter sua


fé. Como pensador secular, Hayek não tinha esse recurso.
Apoiava suas convicções, isto sim, na tradição da ciência, e

nisto estava mais próximo de Auguste Comte. Hayek era um


crítico feroz do positivismo e teria ficado horrorizado com a
idéia de que tinha algo em comum com Comte, o ideólogo do
positivismo. E, no entanto, como Comte, ele recorria à ciência

para corroborar uma visão providencialista do desenvolvi


mento humano. Embora divergissem radicalmente quanto à
estrutura que apresentaria, ambos acreditavam que um sis
tema universal seria o ponto final da história.
Hayek e Comte viam a história como uma rua de mão
única, e neste sentido estavam sintonizados com Spencer e
Marx. Todos esses pensadores subestimavam o renitente poder
do nacionalismo e da religião, que, em sua combinação com
novas tecnologias, vêm produzindo uma ampla gama de ar
ranjos econômicos e políticos. Alguns deles podem ser por
demais repressivos e improdutivos para sobreviver por
exemplo, o planejamento central de estilo soviético e o regime
dos talibãs no Afeganistão, mas nesse início do século XXI
existem no mundo vários tipos de regimes. A China adotou
uma mistura de nacionalismo e capitalismo de Estado, o Irã,

141
uma teocracia popular, a América, uma combinação de
mercados livres com protecionismo e capitalismo clientelista,
a Rússia, uma versão ultramoderna do autoritarismo, a Eu

ropa, uma mescla de social-democracia e integração econô


mica neoliberal, e assim por diante. Nenhum desses sistemas
assume uma forma eterna. Todos interagem reciprocamente
e mudam constantemente. Mas se desenvolvem em diferen

tes direções, e não existem motivos para esperar uma con


vergência final.
Sob muitos aspectos, a concepção do livre mercado sus
tentada por Hayek assemelha-se à de Marx. Como Marx,
Hayek considerava o livre mercado não só o sistema econô
mico mais produtivo que já existiu, como também o mais re
volucionário. Uma vez instaurado, o capitalismo não pode
deixar de se disseminar, e exceto em caso de alguma catás
trofe, está fadado a se tornar universal. Entretanto, enquan

to Marx entendia que o avanço do capitalismo poria fim à


vida burguesa, o mesmo não fazia Hayek. Ele acreditava que
as sociedades de mercado se baseavam na tradição, tendo es

crito: "Por paradoxal que possa parecer, provavelmente é ver


dade que toda sociedade livre bem-sucedida será sempre, em
grande medida, uma sociedade voltada para as tradições."16
Ele não foi capaz de perceber que os mercados livres subver
tem as tradições burguesas que no passado estavam por trás
do capitalismo. Sua tentativa de associar a defesa do livre mer
cado a uma espécie de conservadorismo cultural ia contra a
energia transgressora do mercado sem peias. Uma contradi
ção que os neoconservadores entenderam, mostrando-se de
cididos a fazer algo a respeito.

142
UM NEOCONSERVADOR AMERICANO

EM DOWNING STREET

Eu só sei do que acredito.

Tony Blair¹7

O neoconservadorismo não é a versão mais recente do conser

vadorismo. É um novo tipo de política que pode surgir em


qualquer ponto do espectro político. Na Grã-Bretanha, o veí
culo político do neoconservadorismo não foi o Partido Con

servador, mas o novo partido criado por Blair ao assumir a


liderança do trabalhismo.
O fato mais importante na chegada de Blair ao poder foi
o novo consenso de Thatcher. Em termos tanto econômicos

quanto políticos, ele era um fato consumado, mas, embora


fosse uma marca do êxito de Thatcher, era também um pon
to fraco dos conservadores. Thatcher dizia freqüentemente
que seu objetivo era acabar com o socialismo na Grã-Bretanha.
Mas nunca se deu ao trabalho de imaginar quais seriam os
efeitos em seu partido se o conseguisse. Durante a maior parte
do século XX, os conservadores funcionaram como um freio

ao coletivismo. O Partido Conservador existia para se opor


não só ao socialismo, como também - o que era ainda mais
importante. a qualquer novo avanço em direção à social
democracia. Ao desmantelar o consenso trabalhista, Thatcher

acabou com o principal motivo de existência do Partido Con


servador. Sem um inimigo bem definido, ele ficava sem iden
tidade. O Partido Trabalhista nunca foi um partido socialista
doutrinário (como observou o primeiro-ministro trabalhis

ta Harold Wilson, o partido sempre deveu mais ao metodismo


que a Marx), mas ao identificar o Novo Trabalhismo com o

143
mercado, Blair privou os conservadores da ameaça que por
sucessivas gerações tivera para eles valor definidor. Em con
seqüência, mergulharam na confusão por quase uma década.
Embora fosse uma decisão estratégica, a adesão de Blair
às políticas econômicas neoliberais logo adquiriria contornos
ideológicos. Mais convencional em suas idéias sobre as ques
tões internas que a maioria dos políticos e dotado de memó
ria histórica ainda mais curta, Blair abraçou sem qualquer
questionamento a crença neoliberal de que apenas um único
sistema econômico pode gerar prosperidade no contexto
moderno tardio. A modernização tornou-se o mantra do blai
rismo, e para Blair significava algo muito preciso: a reorgani
zação da sociedade em torno dos imperativos do livre mercado.
Quando ainda estava na oposição, Blair tentava atrair con
servadores insatisfeitos apresentando-se como um tóri da
Nação Unificada um conservador progressista que acei
tava o papel central do mercado, mas também entendia a im

portância da coesão social. Uma vez no poder, ficou claro que


Blair não viera para enterrar Thatcher, mas para dar prosse
guimento à sua obra.

O torismo da Nação Unificada proposto por Blair era como


sua célebre Terceira Via, uma ferramenta de marketing polí
tico. A terceira via teve origem na prática da “triangulação”
desenvolvida por Bill Clinton: uma tática inventada no meado
da década de 1990 por seu assessor Dick Morris, para apre
sentar Clinton como uma alternativa mais pragmática aos

dois partidos representados no Congresso. Adotando a mesma


tática, Blair atacava tanto os conservadores quanto seu pró
prio partido. Sua bem-sucedida campanha para revogar o
Artigo Quarto da constituição trabalhista de 1995 (que de
terminava a propriedade comum dos meios de produção) foi
antes um ato simbólico que uma mudança de política. Ao

144
mesmo tempo, era um sinal de que viriam gestos ainda mais
importantes de contestação da herança social-democrata do
trabalhismo. Blair levou adiante o projeto de privatização que,
partindo do programa original de Thatcher, havia chegado a
áreas centrais do Estado, como setores do sistema judiciário e
do carcerário, inserindo mecanismos de mercado no Serviço

Nacional de Saúde e no sistema escolar.

Sob esses aspectos, Blair não se limitou a consolidar o


thatcherismo. Não mudou a sociedade britânica como Thatcher

fizera. Seu maior impacto foi em seu próprio partido. O Novo


Trabalhismo foi construído para enterrar o passado — e no
mínimo nisto teve efetivamente êxito. Começou como um

golpe arquitetado por um grupo de indivíduos - Tony Blair,


Gordon Brown, Peter Mandelson, Alistair Campbell, Philip
Gould e outros empenhados em reconstruir o partido para

conquistar o poder. O Novo Trabalhismo era uma invenção


de finalidade específica com poucos vínculos com a tradição
política que o precedia. Se alguma continuidade havia em
relação ao passado, era com o Partido Social-Democrata que
fizera dissidência no trabalhismo na década de 1980, mas,
ao contrário dos social-democratas, o Novo Trabalhismo en

tendeu que os desafios de estratégia e organização são mais


importantes do que as questões de política governamental.
A maior prioridade do Novo Trabalhismo era reestruturar o

partido como instituição centralizada. Era preciso concentrar


o poder antes de qualquer outra iniciativa. O Novo Traba
lhismo sempre teve um lado leninista, mas era um leninismo
centrado na reformulação da imagem do partido. Se, por um
lado, era "moderno" na adesão ao livre mercado, por outro
era "pós-moderno" em sua convicção de que o poder é exer
cido mudando-se a maneira como a sociedade é entendida.

145
O maior talento de Blair era a capacidade de usar as téc
nicas de relações públicas e sua sensibilidade às oscilações da
opinião pública. Essas características levaram certos observa

dores a concluir que ele era um oportunista sem convicções


profundas. É verdade que nunca houve algo parecido com
uma ideologia blairista, mas isto não quer dizer que Blair não
tenha convicções. Sua carreira política é testemunho do poder
das idéias neoconservadoras, que determinaram suas decisões
mais carregadas de conseqüências. Blair era um neoliberal à
revelia, mas neoconservador por convicção. 18
O neoconservadorismo diverge do neoliberalismo em
questões cruciais, e foram especificamente convicções neocon
servadoras que moldaram a visão de mundo de Blair. Ao
contrário dos neoliberais, os neoconservadores não preconi

zam o retorno a uma era imaginária de governo mínimo. Têm


consciência de que nem todos os efeitos do livre mercado são
benéficos e se voltam para o governo para a promoção das
virtudes negligenciadas pelo mercado. Blair sempre foi um
firme defensor "da lei e da ordem", desfraldando essa bandei

ra no Partido Trabalhista durante a liderança de John Smith.

Até certo ponto, era uma jogada estratégica para conquistar


território aos conservadores, mas também combinava com

seus instintos. Os neoconservadores nem sempre são admira


dores dos valores vitorianos - alguns (como o próprio Blair)
se consideram liberais em questões de moralidade pessoal —,
mas rejeitam o ponto de vista de que o Estado pode ser mo
ralmente neutro. O governo deve agir para promover o bem
geral, o que requer que se aceite a necessidade de disciplina e
punição. Requer também a promoção da religião. Ao contrá
rio dos neoliberais, que geralmente adotam um perfil secu
lar, os neoconservadores consideram a religião um elemento

146
vital da coesão social ponto de vista manifestado no apoio
de Blair às escolas ligadas a instituições religiosas.
Acima de tudo, os neoconservadores não se dispõem a
contar com a evolução social. Em geral mais inteligentes que
os neoliberais, eles entendem que embora o capitalismo seja
uma força revolucionária capaz de subverter estruturas so
ciais estabelecidas e derrubar regimes, isto não acontece por
si só: é necessário o poder de Estado, e às vezes também a força
militar, para apressar o processo. Em seu entusiasmo pela mu
dança revolucionária, o neoconservadorismo tem mais em
comum com o jacobinismo e o leninismo do que com o neoli
beralismo ou o conservadorismo tradicional. A idéia que
geralmente se tem de Blair como um criptotóri não poderia
ser mais equivocada. Não há nele qualquer traço do ceticis

mo em relação ao progresso cultivado por tóris como Disraeli.


E ele tampouco pode ser considerado simplesmente mais um
profeta neoliberal do livre mercado. Blair é um neoconservador

americano e o tem sido ao longo de quase toda a sua vida


pública.

Foi nas relações internacionais que o neoconservadorismo

mais profundamente influenciou Blair. Como quer que pre


tendesse ser lembrado — talvez pela adesão britânica à moe
da única européia ele o será sobretudo por ter levado o
Reino Unido a uma guerra ruinosa. Seu envolvimento na
guerra no Iraque o destruiu como político, um resultado que
não pode ter pretendido. Seria um erro imaginar que estava
tão convicto no início dessa aventura desastrosa quanto vi
ria a se mostrar posteriormente; em todas as etapas, ele come
teu erros de avaliação. Ao mesmo tempo, expressava no apoio
à guerra suas convicções mais profundas.
De um certo ponto de vista, foi um exercício equivocado
de realpolitik. Como outros primeiros-ministros britânicos,

147
Blair temia as conseqüências de uma oposição à política ame
ricana, refém da fantasia de que, como aliada incondicional
da América, a Grã-Bretanha teria como firmar melhor sua
posição no sistema internacional. A tentativa de Anthony
Eden, em 1956, de derrubar o presidente egípcio Nasser e res
tabelecer o controle britânico no canal de Suez acabou com

sua carreira política e deixou claros os riscos da oposição ao

poderio americano por parte de qualquer líder britânico. Ou


tros primeiros-ministros conseguiriam posteriormente dis
notadamente
tanciar-se com êxito da política americana -

Harold Wilson, que sabiamente se eximiu de mandar tropas


para apoiar os americanos no Vietnã mas Blair insistia
em que a Grã-Bretanha devia apoiar totalmente os Estados
Unidos. Ele temia as conseqüências que adviriam para o sis

tema internacional se os Estados Unidos agissem sozinhos,


vendo uma oportunidade para a Grã-Bretanha crescer se fun
cionasse como ponte entre a América e a Europa.

Na verdade, a guerra aprofundou a divisão transatlântica


mais que em qualquer outro período desde a Segunda Guer
ra Mundial, alienando a opinião pública britânica dos Esta
dos Unidos e afastando a Grã-Bretanha da Europa ainda mais
que na época de Thatcher. Mas não foi apenas uma tentativa
equivocada de dar um salto estratégico, e não resta dúvida de
que a decisão de Bush de derrubar Saddam estava em sintonia
com as convicções de Blair. Saddam era um tirano que repre
sentava um estágio da história humana cuja época já passa
ra. Uma nova ordem internacional estava sendo construída,

com a América na liderança, e Blair queria estar na linha de


frente desse projeto. Escreveu John Kampfner: "Blair não foi
arrastado à guerra com o Iraque. Estava perfeitamente à von
tade consigo mesmo e com suas convicções."19

148
Que convicções eram essas? Num período de seis anos,
Blair levou a Grã-Bretanha à guerra cinco vezes. Aprovou os
ataques aéreos contra Saddam Hussein em 1998, a guerra
em Kosovo em 1999, a intervenção militar britânica em Ser

ra Leoa em 2000, a guerra no Afeganistão em 2002 e no


Iraque em 2003. Mandou novos contingentes militares britâ
nicos para o Afeganistão em 2006, quando as tropas america
nas foram reduzidas no país. Existe uma nítida continuidade
em todas essas decisões. Blair acredita na força para garantir
o triunfo do bem. Desse ponto de vista, o ataque ao Iraque
era uma continuação de políticas adotadas nos Bálcãs e no
Afeganistão. Em cada um desses casos, a guerra era justificada
como uma forma de intervenção humanitária, o que podia
fazer algum sentido nos Bálcãs e em Serra Leoa, mas já era
duvidoso no Afeganistão e de má-fé no Iraque.
Blair justificou esses episódios de envolvimento militar em
termos de uma "doutrina da comunidade internacional” por ele
exposta em discurso no Economic Club de Chicago, em 1999.
Sua nova doutrina repousava na convicção de que a soberania
de Estado não tinha mais lugar num mundo interdependente:

Assistimos às primícias de uma nova doutrina da comuni

dade internacional. Refiro-me ao reconhecimento explícito de


que hoje, mais do que nunca, somos reciprocamente depen
dentes, de que o interesse nacional é em grande medida de

terminado pela colaboração internacional e de que precisamos


de um claro e coerente debate quanto às direções em que a
doutrina nos levará em cada terreno da ação internacional.
Exatamente como acontece na política interna, o conceito de
comunidade - a convicção de que a parceria e a cooperação
são essenciais para a promoção dos nossos interesses -
-mos

tra toda a sua importância; precisa, portanto, encontrar eco


internacional.20

149
O discurso de Blair reflete o clima intelectual irrealista da

época. Na década de 1990, era bem-visto afirmar que o mun


do chegara a uma era "pós-westfaliana" referência ao
-

Tratado da Westfália, de 1648, geralmente considerado o mo


mento em que o Estado moderno ganhou foro jurídico. Acre
ditava-se que esse sistema chegara ao fim no período posterior
à Guerra Fria: a soberania de Estado já não estava no centro
do sistema internacional, que era governado por instituições
globais. Na verdade, o Estado continuava com a mesma for
ça, e seu aparente declínio era um subproduto do intervalo
após o fim da Guerra Fria, no qual os Estados Unidos pareciam
agir sem qualquer restrição por parte das outras potências.
Mas o intervalo seria breve. A China e a Índia surgiam como
grandes potências com interesses divergentes em pontos im
portantes, mas unidas na rejeição a qualquer sistema basea
do na hegemonia americana. Na década de 1990, tal como
no passado, várias grandes potências interagiam numa com
binação de rivalidade e cooperação. Sob muitos aspectos, era
uma repetição das condições do fim do século XIX, com ou

tros protagonistas.
A idéia de que o Estado soberano estava chegando ao fim
era absurda, mas servia aos interesses de Blair. Para começar,
combinava com sua visão de mundo, que encara o progresso
humano como uma série de etapas, cada uma melhor que
anterior. Trata-se de uma variante de coloração whig da fé na
providência abraçada por Blair no contexto de sua visão de
mundo cristã. Não teria cabimento levar muito a sério a

afirmação de Blair de que se inspirou no filósofo quaker John


Macmurray (1891-1976) - pensador comunitarista cristão
formado na tradição idealista britânica e que preconizava uma
visão positiva da liberdade como parte do bem comum. Mais
que na maioria dos políticos, a visão de mundo de Blair era

150
determinada pelo senso comum de sua época. Ele nunca teve
dúvidas de que a globalização estivesse criando uma econo
mia de mercado mundial que no fim das contas teria de ser
complementada por uma democracia global. Quando falava
da necessidade de uma progressiva "reforma econômica". -

o que fazia com freqüência ele dava por descontado que


isto significaria mais privatizações e a introdução de meca
nismos de mercado no serviço público. A incessante "moder
nização” que exigia era, na verdade, uma versão ossificada
das idéias do fim da década de 1980. Como Thatcher - com

a qual tem muito pouco mais em comum —, Blair era inca


paz de ceticismo. Para ele, os clichês do momento sempre fo
ram verdades eternas.

Como no caso de George W. Bush, contudo, não temos


motivo para duvidar da fé de Blair. Como Bush, ele concebe

as relações internacionais em termos derivados da teologia.


Naturalmente, não se trata da teologia de Agostinho ou Tomás
de Aquino. Ela não convenceu o papa João Paulo II quando
Blair teve uma audiência com ele no fim de fevereiro de 2003.

Os pensadores cristãos medievais desenvolveram uma rigo


rosa teoria das condições a serem atendidas para que uma
guerra seja considerada justa, e o pontífice com razão consi
derava que elas não estavam dadas. A audiência deve ter sido

difícil para Blair, mas não abalou sua convicção de estar no


caminho certo. E isto era o bastante para ele. O meticuloso
casuísmo dos pensadores medievais a respeito das conse
qüências dos atos humanos não vinha ao caso. O que im
porta são as boas intenções, e no fim elas sempre acabarão
prevalecendo. E, no entanto, essas mesmas "boas intenções"
eram promovidas mediante políticas equivocadas e de bases
ideológicas, cuja distância de qualquer avaliação prudente dos
fatos ele parecia incapaz de perceber.

151
A idéia de que o sistema internacional se encaminhava

para uma governança global ampliava os objetivos tradicio


nais da guerra. A "comunidade internacional" podia recorrer
à ação militar sempre que se sentisse moralmente justificada a
fazê-lo. Podiam tornar-se alvo da força armada não só os
"Estados párias" que ameaçavam o sistema internacional de
senvolvendo armas de destruição em massa, como os Esta
dos que violassem os direitos humanos de seus cidadãos. O

objetivo não era apenas neutralizar as ameaças, mesmo pre


ventivamente, mas fazer progredir a condição humana. A
guerra deixava de ser um último recurso contra os piores
males, tornando-se um instrumento do progresso humano.
Em seu discurso de Chicago, Blair admitia que a ação militar
só devia ser promovida quando a diplomacia fracassasse e,
ainda assim, somente se oferecesse razoável perspectiva de
alcançar seus objetivos. Todavia, rechaçava a visão daqueles
- muitos, inclusive, da própria força militar britânica e ame
ricana que frisavam a necessidade de estabelecer uma es
tratégia de saída antes de se considerar seriamente qualquer
intervenção militar. Para Blair, esse tipo de preocupação chei
rava a derrotismo. "O sucesso é a única estratégia de saída
que considero", declarou.2¹ Alguns de seus discursos posterio
res mostram que Blair reconhecia que a força militar não pode,
sozinha, promover a radical transformação do sistema in
ternacional em que se empenhou. Falando em agosto de 2006
no World Affairs Council, em Los Angeles, Blair afirmou que
a luta contra o terrorismo "é uma questão de valores". Mos
trou-se reticente no momento de especificar quais seriam es
ses valores; mas quaisquer que fossem, ele não tinha a menor
dúvida de que promoviam o progresso humano: "Nossos
valores merecem que lutemos por eles. Representam o pro
gresso da humanidade através das eras, e a cada etapa foi

152
preciso lutar por eles e defendê-los. Nesse momento de alvo
recer de uma nova era, chegou a hora de lutar por eles nova
mente."22 Blair voltaria ao assunto em janeiro de 2007, ao
afirmar: "O terrorismo destrói o progresso. O terrorismo não
pode ser derrotado apenas por meios militares. Mas não pode
ser derrotado sem eles. "23
Por trás da visão das relações internacionais sustentada
por Blair está uma visão da América. Assim como seus com
panheiros de neoconservadorismo em Washington, Blair
considera a América o paradigma da sociedade moderna.
Impulsionada pela dinâmica histórica, ela é invencível. Ao
apoiar o governo Bush no Iraque, Blair se convencia de estar
contribuindo para a causa do progresso humano, ao mesmo
tempo que se confortava com a idéia de estar do lado do mais
forte. Sua crença na invencibilidade americana era equivoca
da. A derrota da América pela insurgência iraquiana de modo
algum era inesperada. Os franceses foram expulsos da Argé
lia apesar de moverem uma guerra implacável e contarem com
o apoio de mais de um milhão de colonos franceses. Em
condições mais semelhantes às enfrentadas no Iraque pelas
forças americanas, os soviéticos também foram expulsos do
Afeganistão. A lição da guerra assimétrica na qual os mi
-

litarmente mais fracos usam táticas não-ortodoxas contra os

que aparentemente contam com poderio esmagador - é que


os fracos levam a melhor.

O fato de Blair não ter aprendido essas lições deve-se em

parte à pura ignorância. Dotado de uma inusitada capacida


de intuitiva de pressentir o estado de ânimo do público britâ
nico, ele carecia do conhecimento necessário para avaliações
bem fundamentadas em contextos internacionais. Seu his

tórico de êxitos na política interna escorava-se na pura e sim


ples eliminação do passado. Ele foi levado à debacle no Iraque

153
pela crença de que a história estava do seu lado. Na verdade,
sabia muito pouco de história, e o que sabia, não aceitava,
quando ia contra suas expectativas. A história só tinha valor
e significado como registro do progresso humano. Recorrer a
ela para moderar ambições presentes era impensável, até
mesmo imoral. Como Bush, Blair encarava a história como

um desdobramento de desígnios providenciais, e uma das ca


racterísticas dessa visão é que esses desígnios são visíveis aos
fiéis. Outros talvez não enxerguem esse padrão de desdobra
mentos, e nesse caso pode ser necessário guiá-los. Em termos
agostinianos, isto é inaceitável, pois só Deus pode ter conhe
cimento do propósito da história. Neste ponto, Blair efetiva

mente foi o homem moderno que alegava ser: para ele, basta
a certeza subjetiva para que um ato esteja correto. Se for ne
cessário recorrer à fraude para concretizar os desígnios pro
videnciais, ela não será realmente fraudulenta.

A fraude tem sido uma parte integrante a cada etapa da


guerra no Iraque. No Capítulo 4, examinarei o processo de pre
paração da guerra na América. Aqui, bastará talvez focar
alguns dos principais episódios de desinformação que permi
tiram o envolvimento britânico no conflito. Nas etapas que
antecederam a invasão, Blair sempre insistia, em público, em
que o objetivo não era mudar o regime algo que ele sabia
ser legalmente inaceitável como justificativa para atacar o
país —, mas a ameaça representada pelas supostas armas de
destruição em massa (ADM) do Iraque. Foi divulgado um do
cumento intitulado O programa de armas de destruição em mas
sa do Iraque: Avaliação do governo britânico (publicado em 24
de setembro de 2002 sob o título As armas de destruição em
massa do Iraque: Avaliação do governo britânico). O documento,

que ficaria conhecido como "dossiê da trapaça", se apresen


tava como uma análise fundamentada, com base em infor

154
mações de inteligência a respeito da capacitação e das inten
ções do Iraque no que dizia respeito às ADM; mas entrava
em contradição com anteriores avaliações de inteligência. Em
março de 2002, um relatório da Comissão Mista de Inteli
gência, que concentra as informações de todos os serviços de
inteligência do Reino Unido, concluía "não haver provas de que
Saddam Hussein representa uma ameaça consideravelmente
maior que em 1991, depois da guerra do golfo Pérsico". Além
disso, embora o dossiê alegasse basear-se em fontes de inteli
gência, 90 por cento de seu conteúdo eram copiados de três
artigos publicados. Num deles, o conteúdo foi alterado para
dar a entender que o Iraque apoiava grupos terroristas islâ
micos como a al-Qaeda — alegação sem fundamento e ainda

por cima tornada altamente implausível pelas claras indica


24
ções de suspeita e inimizade entre os dois.2
Como Bush, Blair tem culpado sobretudo falhas dos servi
ços de inteligência pelas dificuldades surgidas na condução da
guerra. Na verdade, uma das características mais constantes
do conflito tem sido o fato de serem ignoradas ou omitidas
constatações dos serviços de inteligência que contrariam as

alegações feitas para corroborar a decisão de entrar em guer


ra. Em fevereiro de 2003, um documento vazado do Estado

Maior de Inteligência de Defesa do Reino Unido reconhecia que


houve no passado contatos entre a al-Qaeda e o regime ira
quiano, mas ressalvava que o relacionamento acaso desenvol
vido se desfizera por falta de confiança mútua. "Os objetivos
[de Bin Laden] estão em conflito ideológico com o Iraque de
hoje", concluía o relatório.25 O documento negava a alegação
de que Saddam mantinha contato com o grupo que organi
zou os atentados de 11 de setembro alegação fundamental
nos argumentos de Blair para defender o ataque ao Iraque como
parte da "guerra ao terrorismo". Um relatório anterior, o

155
documento "Opções para o Iraque", apresentado a 8 de março
de 2002 pela Secretaria de Defesa e Ultramar do Gabinete,
analisava os elementos reunidos e concluía inequivocamente:

Na avaliação da Comissão, não existem provas recentes de


cumplicidade do Iraque com o terrorismo internacional. Não
há, portanto, justificativa para uma ação contra o Iraque sob
a alegação de autodefesa perante ameaças iminentes de ter
rorismo, como no Afeganistão.26

Este e outros relatórios mostram que as agências de inte


ligência britânicas eram constantemente instruídas a encon
trar provas de ligação entre Saddam e a al-Qaeda. Incapazes
de encontrá-las e não se dispondo a inventá-las, elas infor
mavam que não existiam. O único efeito de seus relatórios
foi levar Blair a mudar a argumentação em favor da guerra
para a questão das armas de destruição em massa, na qual
seria mais fácil manipular os dados de inteligência.
Neste caso, como em outros, o problema não eram as fa
lhas dos serviços de inteligência, mas o fato de terem sido ig
norados quando suas avaliações não corroboravam a tese da

necessidade de entrar em guerra. Blair não queria informa


ções de inteligência baseadas em fatos. Estava interessado ape

nas numa “inteligência baseada na fé", expressão empregada


por um ex-especialista em controle de armas do Birô de Inte
ligência e Pesquisa do Departamento de Estado americano para
se referir à maneira como o governo Bush encara os serviços
de inteligência.27 Um dos principais adeptos da inteligência
baseada na fé no governo chefiava a Agência de Planos Espe
ciais, organismo ad hoc criado para filtrar os dados inconve
nientes de inteligência, que examinaremos no Capítulo 5.

156
O planejamento secreto da invasão parece ter começado
na América meses ou semanas depois dos atentados terroris
tas de 11 de setembro, no fim de 2001, e para Blair ficou claro
que Bush pretendia entrar em guerra com o Iraque ao visitá
lo em Camp David em abril de 2002. Um memorando do
ministro de Relações Exteriores, Jack Straw, enviado a Blair a
25 de março de 2002, durante os preparativos para a visita,
observava que, embora parecesse claro que Bush já havia se
decidido, as justificativas para uma guerra eram precárias:
Saddam não ameaçava os países vizinhos e a capacitação de
seu regime em matéria de ADM era menor que a da Líbia, da
Coréia do Norte ou do Irã. Apesar disso, Blair ofereceu total
apoio a Bush quando se encontraram em Camp David. Em
reunião realizada na sede do governo britânico, em Downing
Street, às 9 horas da manhã do dia 23 de julho de 2002, cujos
detalhes viriam posteriormente a público no "Memorando de
Downing Street", Blair ouviu de "C" o chefe do Serviço
Secreto de Inteligência M16, Sir Richard Dearlove, que recen
temente mantivera entendimentos em Washington com o di
retor da CIA, George Tenet — que uma iniciativa militar contra
Saddam era "considerada inevitável" e que "os fatos e dados
de inteligência estavam sendo estabelecidos em função da po
lítica a ser adotada".28 Em certa medida para aplacar as rea
ções no Partido Trabalhista, Blair convenceu Bush a solicitar

na ONU uma segunda resolução autorizando a ação militar.


Em reunião na Casa Branca a 31 de janeiro de 2003, contudo,
Bush deixou claro para Blair que pretendia entrar em guerra
independentemente da decisão da ONU, e Blair mais uma vez
prometeu-lhe total apoio.29 Também rejeitou uma oferta de
Bush que poderia ter poupado a Grã-Bretanha de um envol
vimento total na guerra. Em março de 2003, temendo que o
governo Blair viesse a cair, Bush ofereceu-lhe a alternativa de

157
isentar as tropas britânicas de participação na invasão. Blair
rejeitou a oferta, insistindo em que estava totalmente compro
metido.30 Perante a Câmara dos Comuns, contudo, continuou
fingindo que a guerra ainda podia ser evitada, até a crucial
votação de 18 de março (dois dias antes do início da guerra).
A conivência de Blair com a impostura nos preparativos
para a guerra fez com que ganhasse fama de mentiroso, o
que é um equívoco. A questão não é tanto ser ele econômico
com a verdade, mas carecer de um entendimento normal da
verdade. Para ele, verdade é qualquer coisa que sirva à causa,
e ao se envolver em atos normalmente considerados fraudu

lentos, ele está apenas preparando terreno para o novo mundo.


Seus silêncios têm o mesmo elevado propósito. Blair mante
ve-se calado a respeito dos abusos cometidos em Abu Ghraib*
e descartou relatos de fontes bem informadas segundo os
quais aviões americanos usaram aeroportos britânicos para
pôr em prática a política de "rendição especial", pela qual sus
peitos de terrorismo são seqüestrados e levados a países onde
podem ser torturados. Pelos padrões habituais, a posição de
Blair nessas questões só pode ser considerada desonesta, mas
é evidente que ele acredita que os padrões habituais não se
aplicam em seu caso. A fraude se justifica quando contribui
para o progresso humano, e neste caso deixa de ser uma frau
de. As inverdades de Blair não são verdadeiramente mentiras.
São lampejos proféticos do futuro encaminhamento da histó
ria, contendo inevitavelmente os ônus desse tipo de revelação.
Durante os dez anos de seu mandato, mudou o caráter
do governo britânico. Todo governo faz o possível para apre
sentar uma auto-imagem positiva, e alguns, nesse empenho,

*Prisão iraquiana onde foram comprovados casos de sevícias e humilhações


contra prisioneiros iraquianos por parte de militares americanos. (N. do T.)

158
se afastaram da verdade. O que distinguia Blair era o fato de
considerar a manipulação da opinião pública como objetivo
supremo do governo. O resultado foi que, embora no passa
do a mentira fosse uma característica eventual do governo,
sob sua liderança ela se tornou parte integrante de seu fun
31
cionamento. 3¹ Escrevendo sobre o papel da mentira na políti
ca soviética, o pensador político francês Raymond Aron
observou:

No sentido exato e estrito da palavra, aquele que consciente


mente diz o oposto da verdade está mentindo: os camaradas
de Lenin mentiam ao confessar crimes que não haviam co

metido e a propaganda soviética mentia quando se extasiava


com a felicidade do povo na época da coletivização (...)
Por outro lado, quando os bolcheviques, os comunistas,
dizem que a União Soviética é socialista, precisamos dizer que
estão mentindo? (...) se reconhecem a diferença entre o que o
socialismo é hoje e o que será quando estiver de acordo com
sua essência, não estão, no sentido estrito, mentindo, e sim

substituindo a realidade por [algo que pode ser considerado]


uma "pseudo-realidade" : o significado que conferem a algu
ma coisa em termos de um futuro que imaginam de acordo
com a ideologia. Apesar de tudo, o sovietismo torna-se um
passo na direção do socialismo e, portanto, um passo na
direção da salvação da humanidade.33 32

Se existe um precedente histórico do metódico descaso pela


verdade ostentado por Blair, vamos encontrá-lo na era sovié
tica, quando uma geração de comunistas ocidentais apresen
tava a URSS como uma etapa no caminho para a democracia
universal. Julgando estar servindo a uma causa irrefreável,
esses "companheiros de estrada" dispunham-se a “mentir em
nome da verdade", pintando o sistema soviético não como era

159
de fato, mas como inevitavelmente viria a ser, segundo acre
ditavam. Era um absurdo referir-se à União Soviética como
uma democracia. Não é menos absurdo afirmar que o Iraque
é uma democracia liberal em emergência e referir-se ao país
como o lugar onde a guerra contra o terrorismo global está
sendo vencida. Na realidade concreta, o Iraque é um Estado
fracassado, e se existe nele algo que possa ser considerado uma
democracia, está fazendo de tudo, na verdade, para gerar
uma teocracia de estilo iraniano. Da mesma forma, os fatos
nos dizem que a invasão liderada pelos Estados Unidos trans
formou o país num campo de treinamento de terroristas. Blair
não se limitou a ocultar esses fatos. Ele inventou uma pseudo
realidade com o objetivo de influenciar nossa maneira de pen
sar. Como no caso soviético, a pseudo-realidade não resistiu
ao teste da história. Os pavorosos fatos da vida no Iraque re
futam o dogma pós-moderno de que a verdade é uma cons
trução de poder. Embora ainda não tenham impregnado a
consciência de Blair, já chegaram à dos eleitores americanos,
o que o condena a passar o resto de seus dias como servidor
supérfluo de um governo fracassado.
Os contextos políticos em que Blair e Bush chegaram ao
poder não poderiam ser mais diferentes. Blair não era capaz
de mobilizar em seu apoio a fé religiosa popular arregimen
tada por Bush, e só pelo fim do seu período no governo co
meçou a surgir na Grã-Bretanha um movimento intelectual
neoconservador para dar sustentação a sua política externa
messiânica. Mas havia uma afinidade entre Bush e Blair. A

mistura de religiosidade rasa mas intensa com uma fé mili


tante no progresso humano que caracteriza a visão de mundo
de Bush também determinava a de Blair. Ambos interpreta
vam a história das duas últimas décadas a única que co
nheciam como demonstração de que a humanidade havia

160
entrado numa era totalmente nova. Como Thatcher no fim

da década de 1980, não interpretavam o colapso do comu


nismo como um revés para o universalismo ocidental O
que efetivamente era —, mas como um sinal de triunfo do
"Ocidente". Carentes de qualquer perspectiva histórica mais
ampla, encaravam os desafios do início do século XXI nos
termos das triunfais ilusões da era posterior à Guerra Fria.
Blair e Bush surgiram no fim de um período de ascensão
do utopismo na política ocidental. Para eles, o progresso hu
mano era axiomático; mas nunca foi entendido apenas nos
termos do pensamento secular. Ambos praticavam um estilo
missionário de política, tendo como meta nada menos que a
salvação da humanidade.

161
4

A americanização do Apocalipse

Está ao nosso alcance recomeçar o mundo. Uma situação como

a do atual momento não ocorria desde a época de Noé. Está


para nascer um novo mundo.

Thomas Paine¹

O assassinato de milhares de civis no dia 11 de setembro de

2001 instaurou o pensamento apocalíptico no centro da po


lítica americana. Ao mesmo tempo, reavivou crenças que fa
zem parte do mito da América. Os puritanos que colonizaram
o país no século XVII consideravam estar criando uma socie
dade livre dos males do Velho Mundo. Baseada em princípios
universais, ela serviria de modelo para toda a humanidade.
Para esses colonos ingleses, a América assinalava um novo
início da história.

Na realidade, esse tipo de coisa não existe, e a idéia de es

tar criando um novo mundo, presente na América da chegada


dos primeiros colonos ingleses até os dias de hoje, não é nova
nem exclusivamente americana. Trata-se de uma corrente da

efervescência milenarista que passou do quiliasmo medieval


para a Revolução Inglesa. O espírito missionário universal que

163
tanto caracteriza a política americana é uma decorrência dessa
antiga corrente.
O Estado que surgiu da guerra americana de independên
cia adaptou as tradições do governo inglês às condições de
uma luta pela autodeterminação nacional, traduzindo-as na
linguagem dos direitos universais. Os colonos americanos e
os homens que mais tarde transformaram o país numa re
pública independente achavam que era possível criar gover
nos invocando princípios fundamentais. Na realidade, tanto
seus princípios quanto a crença de que a história podia ser
recomeçada eram heranças do passado.

DA COLÔNIA PURITANA À NAÇÃO REDENTORA

Nós, americanos, somos o povo especial e escolhido - o Israel


da nossa época; carregamos a arca das liberdades do mundo.
Herman Melville²

Os colonos puritanos que chegaram à Nova Inglaterra traziam


em sua bagagem muitas das crenças proféticas que haviam
alimentado a Guerra Civil Inglesa. Para eles, a colonização do
Novo Mundo era em si mesma um acontecimento apocalíp
tico. O famoso sermão em que John Winthrop, falando em
1630 aos puritanos ingleses que fundaram a colônia de
Massachusetts Bay, referia-se à Nova Inglaterra como uma
"cidade numa colina", representando um novo contrato com
Deus, provavelmente foi feito na Inglaterra, antes da partida
dos colonos, e não a bordo do navio que os conduzia, como

se chegou a pensar. O sermão deixava claro que a colônia que


estava para ser fundada assinalava uma nova era na história;

164
mas também advertia quanto ao terrível destino que lhe es
taria reservado se se afastasse da virtude:

Pois devemos ter em mente que seremos como uma cidade


numa colina. Os olhos de todos estão voltados para nós. De
maneira que, se lidarmos com falsidade com nosso Deus,
nessa tarefa que empreendemos (...) abriremos a boca dos
inimigos para falar mal dos caminhos de Deus (...) Cobrire
mos de vergonha os caminhos de muitos dos valorosos servi

dores de Deus, fazendo com que suas orações se transformem


em maldições contra nós, até sermos expulsos da boa terra

para a qual nos dirigimos.³

Entre os colonizadores, a expectativa de um novo mundo


se associava ao temor da aproximação do fim dos tempos.
John Cotton, ministro da Primeira Igreja de Boston, citou a
seção do Apocalipse sobre a derrota da Besta em seu sermão
por ocasião da execução de Carlos I e profetizou a destruição
do Anticristo em 1655. Crenças assim eram lugar-comum
na Inglaterra do meado do século XVII não só em grupos
como os Homens da Quinta Monarquia, como num vasto
espectro de líderes e seitas religiosos. Como observou o estu
dioso das tradições proféticas americanas Paul Boyer, os líderes
puritanos pediam apoio para o empreendimento colonizador

na América invocando argumentos explicitamente escato


lógicos, chegando John Davenport a descrevê-lo como "um
baluarte contra o Reino do Anticristo". O entusiasmo apoca
líptico arrefeceu na Inglaterra com a Restauração e a coroa
ção de Carlos II em 1660, mas a essa altura já encontrara vida
nova na América. Pelo início do século XVIII, Cotton Mather,
ministro da Primeira Igreja de Boston e autor de uma histó
ria profusamente apocalíptica da Nova Inglaterra, a descre

165
via como "o Local da Terra que o Deus dos Céus designou"
como capital do reino milenar.4
Os movimentos declaradamente apocalípticos não se ex
tinguiram. Como vimos no Capítulo 1, a Grã-Bretanha do
início do século XIX assistiu ao movimento de massa lidera
do por Joanna Southcott, ao passo que o metodismo canali
zava uma forte corrente milenarista. Pela mesma época, as
idéias milenaristas assumiam formas mais seculares. Pensa
dores radicais como William Godwin e Thomas Paine refor
mularam a crença pós-milenarista de que o mundo podia ser
transfigurado pela ação humana, na forma da confiança
iluminista no progresso. Godwin o escritor anarquista
mencionado no Capítulo 1, que se casou com a feminista
Mary Wollstonecraft encarava a história como uma série
de etapas no desenvolvimento da razão humana, levando
afinal a um mundo que não mais precisaria de governo. Sua

visão da história é teleológica e nitidamente caudatária do cris


tianismo, mas não contém a expectativa de alguma trans
formação súbita; está ausente o abrupto advento de um novo
mundo, que está no cerne da esperança milenarista. Em con
traste, Paine- que ficou conhecido como ideólogo da Revo
-

lução Americana, sendo lido com admiração por George


Washington -

dava evidentes sinais de ideário apocalíptico.


A declaração contida no apêndice da edição de 1776 de seu
livro Senso comum, afirmando que a Revolução Americana per
mitia que o mundo fosse refeito, é uma clássica afirmação de
crença apocalíptica. Como muitos de seus amigos da França
revolucionária - onde, como Condorcet, ele foi preso pelos
jacobinos, Paine era um deísta que acreditava que a exis
tência de um ser divino podia ser comprovada pela razão. E,
no entanto, esse fervoroso racionalista considerava a Revo

lução Americana um acontecimento milenarista.

166
Foi basicamente o papel formador da religião apocalíptica
na América que a impediu de estabelecer no Novo Mundo uma
variante da civilização européia. Sempre houve na América
quem a considerasse uma nação renovadora das conquistas
da Europa num nível mais elevado. Em sua biografia de Ben
jamin West, John Galt apresentava o grande pintor america
no do fim do século XVIII como responsável pela revivescência
de uma herança artística européia. A obra de West superava
qualquer realização européia, mas o declínio das artes na Eu
ropa era apenas "o magnífico presságio da glória que have
riam de alcançar em sua passagem para a América".5 Não
encontramos aqui a idéia de um novo começo representado
pela América. Em vez disso, mais ou menos à maneira como
os historiadores clássicos viam a história em termos cíclicos,
considera-se que a civilização européia ganhava nova vida em
terras americanas. Se esta visão tivesse prevalecido, a Améri
ca poderia ter gerado - como os países ao sul da fronteira —
uma nova versão do Velho Mundo. Mas a verdade é que pas
sou a se considerar diferente da Europa, uma nova civiliza
ção baseada em princípios universais.
Entre as idéias abraçadas pelos fundadores da nação ame
ricana estava a teoria política de John Locke, uma teoria do
governo como um contrato social destinado a proteger direi
tos naturais. Ao contrário de praticamente todos os Estados
que existiram, os Estados Unidos foram fundados com base
numa ideologia, e neste fato é que residiria sua novidade. A
teoria política de Locke atendeu bem aos interesses america
nos na guerra de independência. Já se mostrou menos útil ao
ser aplicada à política externa, na qual sustenta a crença de
que a liberdade é uma condição que se manifesta simplesmente
pela abolição da tirania. Não obstante suas pretensões uni
versalistas, o pensamento de Locke é uma destilação de crenças

167
e valores que só fazem sentido em condições históricas espe
cíficas. Sua filosofia política depende sob todos os aspectos
da teologia protestante. Os direitos humanos decorrem de
nossos deveres para com Deus: não podemos dispor de nos
sas vidas, por exemplo, porque Deus nos criou e somos pro
priedade sua. Em Locke, a concepção do estado da natureza
expressa convicções cristãs sobre a criação e a propriedade
divinas do mundo. Seu ideal de governo limitado era uma
abstração derivada dos conflitos da Inglaterra setecentista. A
liberdade não é, como supunha Locke, uma condição huma
na primordial: onde se manifesta, ela é resultado de gerações
seguidas de construção das instituições. Mas na América a
idéia de uma liberdade natural tornou-se a base de uma reli

gião civil que se arrogava autoridade universal.


Nem todos os fundadores da nação americana, é claro,

seguiam essa religião. Os autores de Os federalistas, artigos


publicados em 1787-8, quando se debatia a ratificação da
Constituição americana, encaravam o governo com mais ceti
cismo. Pensadores como James Madison e Alexander Hamil

ton não viam o regime que surgiu como um instrumento pelo


qual a humanidade se elevaria a alturas jamais sonhadas. Se
guindo uma orientação sábia, a América poderia superar ou
tras formas de governo, mas não seria capaz de transcender
as falhas inerentes a toda constituição. Os federalistas per
tencem a uma tradição antiutópica americana que perdurou
em meio a muitas vicissitudes, mas é uma tradição que nun
ca chegou a tomar o lugar da idéia de missão universal com
que foi fundada a colônia americana.

Ao se considerarem baseados numa ideologia universal,


os Estados Unidos se alinham com Estados como a França
pós-revolucionária e a antiga União Soviética, mas, ao con
trário deles, têm-se mostrado extraordinariamente estáveis.

168
As instituições americanas mudaram menos nos últimos sé

culos que as de praticamente qualquer outro país. Numa aná


lise do nacionalismo americano, o estudioso britânico Anatol

Lieven observou:

Considerando-se o estereótipo dos Estados Unidos como um

país novo, jovem e em constante mudança, é importante


notar que a antigüidade das instituições americanas é um
dos motivos pelos quais os americanos se mostram tão leais

a elas (...) Até mesmo o sistema político britânico mudou

muito mais profundamente que o americano nos últimos

duzentos anos (...) Longe de ser um país “novo” ou “jovem”,


a América quase pode considerar-se, assim, o mais antigo
Estado do mundo.7

Em certa medida, é a antigüidade das instituições da Amé


rica que explica a persistente fé americana no papel excepcio
nal desempenhado pelo país no mundo. Em quase todos os
outros países, o regime governante tem mudado reiteradas
vezes. Até na Grã-Bretanha tem ocorrido uma série de expe
riências e ajustes políticos. Nessa falta de vivência de transições
políticas, a América se equipara a muito poucos países, como
a Suíça e a Islândia. De uma forma que está ao alcance de pou
cos outros povos, os americanos podem se identificar como
nação com as instituições pelas quais são governados. Apesar
do hiato da Guerra Civil e da ampliação do governo federal
na era Roosevelt, os Estados Unidos permaneceram visivel
mente como o mesmo regime por mais de duzentos anos.
A mudança ocorrida no governo Bush foi possível graças
à excepcional religiosidade da América, que explica mais que
qualquer outro fator sua diferença em relação à maioria dos
outros países do mundo. Como reconhecia Alexis de Tocqueville

169
(que cunhou a expressão), o excepcionalismo americano é
8

um fenômeno religioso. Do momento em que os primeiros


colonos chegaram da Inglaterra à época em que o país con
quistou sua independência, a América sempre se viu através
das lentes da religião. A maneira como os americanos inter
pretavam sua história e concebiam o futuro foi determinada
tanto pelo pensamento pós-milenarista, que contemplava um
mundo transformado em parte pela ação humana, quanto
por crenças pré-milenaristas mais quiliastas, que previam
conflitos cataclísmicos. Cada uma dessas correntes atribuía
à América um papel sem igual na história, e o resultado dis
to foi a americanização de um mito apocalíptico.
A crença no Destino Manifesto formulada no meado do
século XIX fazia parte desse processo. A idéia de um salvador
messiânico, que estava no cerne do primitivo cristianismo,
tornou-se a idéia de uma Nação Redentora: a crença de que a
América seria a terra de um "povo escolhido", à qual Melville
deu expressão. Só a convicção do papel redentor da América
na história pode explicar a linguagem utilizada por Woodrow
Wilson ao declarar, em 1919, em seu discurso atacando aque
les que se opunham à integração dos Estados Unidos à Liga
das Nações:

Gostaria que eles pudessem sentir o dever moral que repou


sa sobre nós, de não deixar na mão esses rapazes, mas per
sistir na coisa, levá-la até o fim e fazer valer seu ato de
redenção do mundo. Pois não é nem mais nem menos o que
depende dessa decisão, nada mais nada menos que a liberta
ção e a salvação do mundo.

Wilson pode ser uma figura mais complexa do que se cos


tuma admitir. No contexto interno, ele se mostrava decidi

170
damente reacionário em questões de segregação racial, e, do
ponto de vista das Américas, as intervenções militares que
apoiou no México, por exemplo eram antes exercícios
-

clássicos de imperialismo que missões de exportação do esti


lo americano de governo. Fora das Américas, ele reconhecia
que nem sempre a democracia é viável e, como atirador de
Edmund Burke, admitia que seu desenvolvimento não pode
ser forçado. Wilson ainda hoje encarna uma convicção cen
tral do internacionalismo liberal americano-a crença de que
a autodeterminação nacional deve estender-se por todo o
mundo que tem influenciado constantemente a política
-

americana. As políticas do governo Bush no Oriente Médio


eram uma repetição do programa levado a efeito por Wilson
na Europa central e oriental depois da Primeira Guerra Mun

dial. Nenhum dos dois tinha uma compreensão das forças que
assim liberavam: o nacionalismo étnico no primeiro caso, o
islamismo radical hoje. Persistira a convicção de que o Esta
do-nação americano construído à custa de muito derra
mamento de sangue - é uma receita padrão para a paz e a
liberdade em todo o mundo.

Wilson encarna uma versão de uma visão do papel da


América na história que vem sendo renovada até o presente.
Essa visão foi resumida por dois autores americanos:

(...) ao longo da história americana, com muito breves ex


ceções, tem havido um único estilo de diplomacia, desde que
os Estados Unidos voltaram sua atenção do problema da
defesa da República e de sua expansão territorial para pro
blemas distantes, problemas do mundo em geral. Esse estilo
é uma mistura da experiência americana de isolamento com

um fervor moral de origem explicitamente teológica.10

171
Crenças dessa natureza têm orientado as relações inter
nacionais da América tanto em períodos de isolamento quanto
em épocas nas quais o país se envolveu em movimentos de
intervenção em larga escala no exterior. É equivocado consi
derar como opostos esses dois modos, pois na América até o
isolacionismo tem um caráter evangélico. O isolamento e a
intervenção global constituem fases de um envolvimento
americano com o mundo que sempre se baseou em certa medi
da na fé. Essa fé muda de formato, tornando-se às vezes mili
tante e proselitista, e outras se expressando num nacionalismo
ensimesmado que teme envolver-se nas maquinações corruptas
do Velho Mundo. Este último tem prevalecido na maior parte
da história americana. Para muitos americanos, o espírito do
nacionalismo missionário não se traduziu fácil ou automati

camente em apoio ativo a intervenções militares no exterior


- eles tiveram de ser convencidos a entrar nas duas guerras

mundiais, por exemplo —, mas a convicção de uma missão


especial que inspirava os colonizadores puritanos persistiu.
Comentou o estudioso da religião americana Conrad Cherry:

A crença de que a América foi escolhida por Deus para um


destino especial no mundo tem sido o foco de cerimônias sa
gradas americanas, dos discursos de posse de nossos presi
dentes, das sagradas escrituras da religião civil. É um tema
tão disseminado na vida nacional que a palavra "crença" não
capta efetivamente o papel dinâmico que ele tem desempe
nhado para o povo americano.¹1

Atribuindo a si mesma um papel excepcional na história,


a América não foge ao padrão. Muitos países se têm arroga
do um papel redentor de alcance mundial. São patentes os pa
ralelos com a idéia de missão global que inspirou a França

172
revolucionária, e no espírito de muitos dos fundadores do país
a guerra revolucionária da América estava ligada à derruba
da do ancien régime. Se a convicção americana sobre uma
missão secular não é excepcional, tampouco o é a certeza de
ser uma nação escolhida por Deus. Crenças semelhantes têm
inspirado os africâneres holandeses da África do Sul, as co
munidades protestantes do Ulster, na Irlanda do Norte, assim
como alguns sionistas. ¹² E o mesmo se aplica a muitos rus
sos. A crença numa missão nacional determinada por Deus
constituía um elemento central do messianismo reacionário
abraçado no século XIX pelos eslavófilos, dos quais falamos
no Capítulo 2. O ponto que distingue a América de outros
países é a persistente vitalidade da crença messiânica e a in
tensidade com que continua a influenciar a cultura pública.
Têm ocorrido longos períodos de inatividade da tradição
apocalíptica. No entre-guerras, ela não chegou a mobilizar
nem mesmo contra o pano de fundo de uma Depressão ca
tastrófica. Tampouco foi revivida quando a América, em um
de seus gestos mais nobres, entrou para a Segunda Guerra
Mundial decisão tomada, no fim das contas, na estóica
admissão de que havia uma penosa missão a ser cumprida, e
não na expectativa de um mundo melhor. E apesar da para
nóia que então grassava, essas crenças também não tinham
força no início da Guerra Fria. Mais uma vez, aqui, o clima
na América era antes de resistir a um perigo manifesto do
que de reformular o mundo. O pensamento apocalíptico vol
tou a se manifestar mais para o fim da Guerra Fria, mas não
era uma força muito poderosa. Embora se referisse à União
Soviética como o "império do mal" e reafirmasse em seu úl
timo discurso a tese da América como uma "cidade numa
colina", exposta por Winthrop, Ronald Reagan não foi muito
influenciado em seu governo pela direita cristã. Até mesmo

173
na queda do Muro de Berlim, George Bush pai reagiu falan
do das dificuldades que viriam pela frente. Só com a chegada
de seu filho à presidência a religião começou a ocupar o cen
tro da política americana, e somente depois do 11 de setem
bro ela passou a determinar todo um amplo leque de políticas.
As referências de George W. Bush a certos países como ele
mentos de um "eixo do mal" talvez não sejam tão abertamente
apocalípticas quanto as afirmações de seu subsecretário de
Defesa, o general William Boykin, segundo quem "o inimigo
é um inimigo espiritual, seu nome é príncipe das trevas. O
inimigo é um sujeito chamado Satã". ¹³ O discurso de Boykin
causou polêmica, mas ele continuou trabalhando em questões
de inteligência no Pentágono, não obstante ter sido um ele
mento capital na transferência de métodos violentos de in
terrogatório de Guantánamo para Abu Ghraib. Não resta
muita dúvida de que ele representa uma visão de mundo com
partilhada por Bush. Encontramos muitos exemplos de ima
gens apocalípticas nos discursos de Bush. Discursando em
outubro de 2001 em resposta aos atentados terroristas de 11
de setembro, Bush fez numerosas citações bíblicas, usando
trechos do Apocalipse e de Isaías. Em discursos posteriores
sobre o aborto e o casamento gay, também havia alusões bí
blicas.¹4 Em 2003, meses depois da invasão americana do
Iraque, Bush disse ao primeiro-ministro palestino Mahmud
Abbas: "Deus me disse que atacasse a al-Qaeda, e foi o que
fiz, e depois me instruiu a atacar Saddam, e eu também o fiz."¹
"15

A influência determinante do pensamento fundamen


talista em Bush não se limita à política externa. Alguns dos
líderes cristãos aos quais se tem ligado pertencem ao movi
mento conhecido como Reconstrucionismo Cristão, ou Teolo

gia do Domínio. Movimento fundamentalista pós-milenarista


segundo o qual é possível alcançar no presente uma forma

174
cristã de governo na qual cada aspecto da vida esteja subme
tido à lei divina, essa corrente considera que sua meta é “o
domínio do mundo sob a autoridade de Cristo, uma 'tomada
do mundo', se quiserem (...) Somos os modeladores da his
tória mundial". 16 O movimento do Domínio também acredi

ta que, obedecendo ao comando divino, a humanidade deve

"subjugar" a Terra, tarefa da qual fazem parte a exploração


dos recursos naturais do mundo e o controle do clima. A

oposição de Bush ao ambientalismo tem sido explicada pelo


fato de que boa parte da legislação ambiental é impopular na
América. Mas a hostilidade dos eleitores americanos ao am

bientalismo costuma ser exagerada, e o fato de as políticas


ambientalistas entrarem em conflito com as convicções reli
giosas de Bush talvez possa ser considerado um motivo mais
forte. Não há por que se preocupar com o aquecimento glo
bal quando se acredita que o Armagedom está chegando.
Bush teve fortes motivos para se alinhar com as forças
do fundamentalismo. Como ficou patente em relatos de fon

tes de seu círculo interno, há uma certa manipulação cínica


nas relações do governo Bush com a direita cristã. ¹7 Os elei
tores evangélicos foram cruciais na luta pelo controle do Con
gresso, e não resta dúvida de que, para o governo, a direita
cristã representou, até as eleições parlamentares de 2006, um
instrumento de controle político. Mas seria equivocado ima
ginar que Bush considera os fundamentalistas apenas como
aliados. É real a afinidade em termos de visão de mundo. Se

gundo suas próprias palavras, Bush é um cristão renascido


que se salvou do alcoolismo graças à conversão e inicia cada
dia com orações e o estudo da Bíblia; como outros funda

mentalistas, ele considera que a teoria do "desígnio inteligente"


deveria ser ensinada nas escolas, paralelamente à teoria
darwinista da seleção natural.¹8 Não há motivos para ques

175
tionar a sinceridade das convicções religiosas de Bush, sinto
nizadas com a tradição americana do pós-milenarismo, ou
para duvidar que tenham determinado sua visão da América

e do lugar que deve ocupar no mundo. Em conversa com jor


nalistas conservadores em setembro de 2006, Bush disse pres
sentir que já estava em andamento na América um "Terceiro
Despertar" da devoção religiosa. "Primeiro Grande Despertar"
é a expressão geralmente usada para se referir à intensa religio
sidade que tomou conta das colônias por volta de 1730-60, e
se considera que o "Segundo Grande Despertar" teria ocorri
do no período entre 1800 e 1830. Ele acrescentava que, como
"muitas pessoas na América", considerava a “guerra ao ter
19
rorismo" um "confronto entre o bem e o mal". 1⁹

A visão da opinião pública americana sustentada por Bush


não deve ser levada ao pé da letra. De acordo com pesquisa
efetuada em 2002 pela revista Newsweek, 45 por cento dos
americanos consideravam os Estados Unidos uma “nação se

cular", 29 por cento, uma "nação cristã”, e apenas 16 por


cento, uma "nação bíblica, definida pela tradição judaico-cris
ta" 20 Entre os países avançados, todavia, os Estados Unidos
se distinguem por terem uma maioria cristã e uma grande
minoria fundamentalista, e o fato é que nenhum outro líder
ocidental seria capaz de falar nesses termos. Na Grã-Bretanha,
a impopularidade de Blair aumentou quando ele afirmou que
sua decisão de ir à guerra contra o Iraque seria julgada por
Deus, e qualquer alegação de que determinada política tem
sustentação divina redunda em punição eleitoral. Com a par
cial exceção da Polônia, o mesmo se aplica em toda a Europa
e nos demais países anglófonos: qualquer admissão de forte
crença religiosa, e especialmente a alegação de estar em linha
direta com as intenções divinas, é perigosa e danosa para os
políticos. O que não acontece nos Estados Unidos, onde certas

176
mudanças verificadas na sociedade ampliaram o poder da re
ligião. O declínio das antigas elites da Costa Leste e a crescen
te ascendência do Sul na política americana; a mobilização
maciça dos cristãos evangélicos, não raro politicamente ina
tivos no passado, em apoio a uma política militante de "va
lores tradicionais"; e o crescente papel da direita cristã como
determinante apoio eleitoral do Partido Republicano: sem es
sas mudanças, que ganharam corpo ao longo dos últimos
trinta anos, a direita cristã não teria alcançado o poder polí
tico que vem exercendo no governo Bush. Bush encarna um
tipo de fé religiosa que remonta aos primeiros colonos puri
tanos, mas sem as mudanças sociais ocorridas nas últimas
décadas não poderia tê-la usado para promover uma política
baseada na fé.

Da mesma forma, fica difícil imaginar como Bush pode


ria ter mobilizado a opinião pública americana em torno da
guerra no Iraque sem os traumáticos acontecimentos do 11
de setembro. Antes dos atentados terroristas, a política ex
terna de Bush refletia certo número de influências. Os Esta

dos Unidos já começavam a se eximir do cumprimento dos


tratados internacionais considerados limitadores de sua ca

pacidade de ação unilateral, mas Bush ainda não assumia um


tom agressivo. Embora ocupassem posições importantes no
governo, os neoconservadores não davam as cartas. Mas esta
situação mudou depois do 11 de setembro. Mitos apocalípticos
que estavam adormecidos voltaram à tona, e não foi difícil
para os neoconservadores no governo associar a "guerra ao
terrorismo" a seus objetivos geopolíticos. Em 2004, um Docu
mento de Previsão do Planejamento de Segurança Interna
afirmava que a ameaça terrorista com que se defrontavam
os Estados Unidos era representada por um Adversário Uni

177
versal. A segurança nacional era encarada em função de con
ceitos derivados da demonologia.21
Essa visão demonológica da ameaça terrorista era um
subproduto da aliança entre os neoconservadores e a direita
cristã. As origens dessa aliança estão no fim da Guerra Fria,
que deixou a América sem um inimigo definido. Apesar de
superestimado pelos neoconservadores, o poder soviético re
presentava uma ameaça real, e caberia esperar que seu co
lapso permitisse uma posição menos antagonista da América
perante o mundo. Mas era indispensável um inimigo, que
logo apareceu na figura de Saddam Hussein. Em termos es
tratégicos, a Guerra do Golfo Pérsico de 1990-91 foi um su
cesso: Saddam foi empurrado de volta para dentro do Iraque,
onde já não representava uma ameaça para os vizinhos nem
para o abastecimento global de petróleo. Para os neoconser
vadores, a guerra foi um fracasso por ter deixado Saddam
no poder. Durante a era Clinton, eles se mostraram agressi
vos em seu ponto de vista de que as tropas americanas deve
riam ter marchado sobre Bagdá. Ao entrarem para o governo
de George W. Bush, foi com o Iraque em mente que o fize
ram. Observou Richard A. Clarke, assessor sobre questões de

terrorismo de quatro presidentes americanos:

O governo do segundo George Bush efetivamente começou


com o Iraque em seu programa. Estavam de volta muitos
dos que haviam tomado as decisões na primeira guerra do
Iraque: Cheney, Powell, Wolfowitz. Alguns haviam deixado
claro, em discursos e escritos, que os Estados Unidos deviam

derrubar Saddam, concluindo o que haviam deixado de fa

zer da primeira vez. Nos debates sobre o terrorismo no novo


governo, Paul Wolfowitz preconizava que se concentrassem
esforços no terrorismo patrocinado pelo Iraque contra os
Estados Unidos, embora isto não existisse na realidade.22

178
Ao se alinharem com a direita cristã, os neoconservadores
conseguiram mobilizar milhões de americanos em apoio a
uma nova ação militar contra o Iraque. Muitos fundamen
talistas cristãos são influenciados pela teoria da dispensação,
desenvolvida por John Nelson Darby (1800-1882), ministro
da Igreja da Irlanda que se afastou dela para aderir a uma seita
chamada Irmãos, acabando na liderança de um grupo que
fez dissidência na década de 1840 para fundar os Irmãos de
Plymouth. Acreditando que Deus revelou sua vontade numa
sucessão de acontecimentos, ou dispensações, Darby intro
duziu duas das mais importantes idéias do pré-milenarismo
americano: a idéia do Êxtase, quando os fiéis subirão ao céu
ao encontro do Cristo, e a idéia de que a batalha final entre
Cristo e as hostes do Anticristo ocorrerá na planície de

Armagedom, na moderna Israel. Esta última é uma crença


de muitos dos que hoje em dia são chamados de sionistas

cristãos: ardorosos adeptos de Israel que acreditam que sua


destruição é bem-vinda, como sinal do milênio. Os funda

mentalistas que aceitavam as profecias de Darby estavam


longe de ser um grupo marginal. Escreveu Michael Lind: "Era
um equívoco descartar esses americanos como membros de
um grupo marginal de lunáticos. Eles constituíam a base
política do governo Bush e do contemporâneo Partido Repu
blicano de obediência sulista."23

A aliança com a direita cristã tem apresentado muitas


vantagens para os neoconservadores. Alavancou sua influên
cia no Partido Republicano — no qual a direita cristã ganha
va crescente importância, como fonte de financiamento e de
votos e lhes permitiu transmitir suas idéias a um público
-

muito amplo. Juntamente com a Fox News de Rupert Murdoch,


deu aos neoconservadores, na política nacional, uma voz que
não podia ser ignorada. Na década de 1980, os neoconser

179
vadores não passavam de algumas dezenas de ideólogos, con
centrados essencialmente em think thanks de Washington.
Tinham certa influência no terreno da defesa nacional e vários

deles entraram para o governo Reagan, mas nem de longe se


pareciam com uma força dominante. Ao se aliarem ao funda
mentalismo sulista, se associavam ao eleitorado mais impor
tante da política americana. Somente cerca de um quarto dos
eleitores americanos é de cristãos renascidos, mas em 2004

Bush recebeu os votos de mais de três quartos deles. Embo


ra Bush tenha vencido por margem ínfima, foi a direita cris
tã que assegurou sua vitória.
Embora reflita mudanças recentes na sociedade america
na, a ascendência política da direita cristã também confirma
a religiosidade sem equivalente da América. Os Estados Uni
dos são um regime secular, mas, ao contrário de praticamente
todas as outras democracias antigas, a América carece de uma

tradição política secular. Embora a separação entre a Igreja e


o Estado seja um dos pilares da Constituição, isto não impe
diu que a religião exercesse enorme poder na vida política
americana. Como alguns outros países europeus, a Grã-Bre
tanha tem uma Igreja estabelecida; mas a religião organizada
tem no país muito menos influência política que nos Estados
Unidos, um Estado supostamente secular. O contraste não se
dá apenas com os países pós-cristãos da Europa, mas também
com certos países muçulmanos. Sob praticamente qualquer
critério, os Estados Unidos são um país menos secular que a
Turquia. Em nenhum outro país industrial avançado se en
contra uma crença popular tão generalizada em Satã ou num
poderoso movimento de contestação da teoria darwinista. Em
nenhum outro lugar um segmento tão amplo da população
acredita que os acontecimentos do 11 de setembro estavam
previstos na Bíblia, como aconteceu com um quarto dos

180
americanos consultados em 2002.24 Sobre nenhum outro país
avançado se poderia dizer que uma disputa teológica entre
cristãos pré-milenaristas e pós-milenaristas tenha tido "pro
fundas conseqüências na política [americana]".25
Com a "sulização" da política americana, a direita cristã

ganhou força. Em seu primeiro dia na presidência, George W.


Bush restabeleceu um veto a qualquer ajuda a organizações
internacionais de assistência ao aborto, e a suspensão das ver
bas federais para a pesquisa sobre células-tronco, assim como
para programas americanos envolvendo controle de natali
dade e a utilização de camisinhas como forma mais eficaz de

combater a disseminação da Aids, são indicações do poder da


direita cristã.26 Não é um poder incontrastado, e na política
interna existem limites para a aplicação de um programa
fundamentalista por parte de qualquer governo. Apesar das
tentativas de modificá-la, a legislação americana sobre o abor
to e os direitos dos homossexuais continua sendo semelhante
às de outras democracias. A América não se transformou
numa teocracia nem haverá de se transformar, e cabe supor
que a estratégia republicana de cortejar o voto fundamen

talista se torne contraproducente se acabar confinando o par


tido em políticas como o favorecimento de restrições à
-

imigração dos países hispânicos, por exemplo - que alienem


outras partes importantes do eleitorado.
Seja como for, a direita neoconservadora continua sendo
uma força que não pode ser ignorada por nenhum governo,
e sua influência na sociedade americana pode aumentar. O
golpe sofrido pela América no Iraque é profundo, e as conse
qüências para os fundamentalistas podem ser um estado de
espírito semelhante ao descrito pelo sociólogo Karl Mannheim,
ao escrever no início do século XX:

181
Os surtos revolucionários sempre foram acompanhados pelo
quiliasmo, que lhes infundia seu espírito. Quando esse es
pírito recua, abandonando esses movimentos, ficam para
trás, no mundo, um frenesi de massa estéril e uma fúria de
sespiritualizada.27

Se a América pode ser considerada excepcional, é no poder


da religião. No último capítulo, examinarei o que isto nos diz a
respeito do princípio iluminista de que existe uma ligação in
trínseca entre a modernização e a secularização. Por enquanto,

pode ser interessante frisar o caráter paradoxal da modernidade


americana. Ao longo da maior parte de sua história, a América
se tem considerado o protótipo de uma nova civilização que um
dia será universal. Mas o fato é que suas origens sem equiva
lente e sua singular religiosidade impedem que o modo de vida
americano seja reproduzido em qualquer outro país.
Essas contradições se manifestam no neoconservadoris

mo. De acordo com o pensamento neoconservador, a América


é o supremo regime moderno, que todos os demais estão fa
dados a emular. Ele é único e sem equivalente. O neoconser
vadorismo é um movimento que só poderia ter surgido na
América, mobilizando convicções conflitantes que se têm
manifestado ao longo da história do país.

AS ORIGENS DO NEOCONSERVADORISMO

Quando esquecemos ou decidimos ignorar o caráter intratável


do comportamento humano, a complexidade das instituições hu
manas e a probabilidade de conseqüências imprevistas, estamos
correndo grande risco, não raro com enormes custos humanos.

Jeane Kirkpatrick28

182
Os Estados Unidos são o último regime iluminista militante
e o único país avançado que ainda é inabalavelmente cristão.
Os dois fatos não deixam de estar ligados, contribuindo para
explicar as qualidades peculiares do neoconservadorismo e sua
chegada ao poder na América. Apesar do nome, o neoconser
vadorismo é uma ideologia originada na esquerda. Pôde che
gar ao poder na América ao se aliar à direita cristã e a setores

da opinião liberal. Aliando-se ao mesmo tempo a uma reli


gião apocalíptica e a uma crença secular no progresso huma
no, o movimento neoconservador mobilizou duas poderosas
tradições americanas.
Como tantas outras etiquetas políticas, a expressão "neo
conservador" foi cunhada com valor depreciativo. Parece ter
sido empregada pela primeira vez na década de 1970 pelo
socialista americano Michael Harrington para designar - e
condenar um pequeno grupo de antigos esquerdistas que
-

adotavam em política externa posições até então abraçadas


apenas pela direita. Escreveu o escritor neoconservador e teó
logo católico Michael Novak:

Cabe lembrar que os primeiros chamados neoconservadores

eram um grupo minúsculo, com efeito, em geral rapidamente


identificados como Irving Kristol e Gertrude Himmelfarb, os
dois Daniel, Bell e Moynihan, Norman Podhoretz e Midge
Decter, e muito poucos de seus outros amigos intelectuais.
Praticamente todos tinham um histórico como homens e

mulheres de esquerda, na verdade à esquerda do Partido De


mocrata, talvez entre os dois ou três por cento de america
nos mais esquerdistas, em certos casos socialistas em matéria

econômica, em outros, social-democratas em política.29

183
As origens do neoconservadorismo na esquerda explicam
algumas de suas características mais constantes. Muitos
membros da geração mais antiga de neoconservadores come
çaram na extrema esquerda anti-stalinista - Irving Kristol,
o padrinho político do movimento, escreveu um ensaio au
tobiográfico intitulado "Memórias de um trotskista"30 e I

o estilo intelectual desse meio sectário tem marcado o movi

mento neoconservador ao longo de sua história. As figuras


mais decisivas no delineamento do movimento neoconser

vador como Irving Kristol, o sociólogo Daniel Bell, de


Harvard, o editor da revista Encounter, Melvin Lasky, o escri
tor Nathan Glazer, editor de Public Interest, o cientista político
Seymour Martin Lipset e o político democrata Patrick Moynihan
-
não beberam da fonte de pensadores conservadores. É du
vidoso que tenham lido muito Edmund Burke, o parlamentar
que primeiro articulou o conservadorismo inglês no século XVIII,
ou Benjamin Disraeli, o primeiro-ministro britânico cujos ro
mances contêm uma elegante visão de mundo conservado
ra. Se a atual geração de neoconservadores lê Russell Kirk ou
Michael Oakeshott- pensadores conservadores do século XX
que, o primeiro americano, o segundo britânico, se empenha
vam em esvaziar a ideologia em benefício da prática —, será
provavelmente com aversão. Todos esses pensadores con
servadores consideravam que a política de caráter ideológico
surgida com a Revolução Francesa constituía uma força
destruidora que fizera muitos estragos no século XX. Opon
do-se a esse ponto de vista, os neoconservadores acreditam
que a política é uma forma de guerra na qual a ideologia re
presenta uma arma essencial.
Foi essa concepção da política, e não quaisquer doutrinas

específicas, que os neoconservadores trouxeram de sua expe


riência na esquerda. Poucos dentre os principais intelectuais

184
neoconservadores foram trotskistas em algum momento, e
a principal lição política que muitos deles extraíram de Trotski
foi o caráter profundamente repressor do regime soviético.
Nesse ponto, os neoconservadores apenas refletiam os rumos
tomados pela esquerda no pós-guerra. Marxistas como Sidney
Hook e trotskistas como Max Shachtman acabaram se tor

nando social-democratas anticomunistas não muito diferen

tes dos ex-comunistas que se revelaram alguns dos mais


denodados combatentes da guerra fria na Europa da década
de 1950. Como tantos outros, esses pensadores da esquerda
rejeitaram o marxismo durante a Guerra Fria. Seria simplista
considerar que os neoconservadores limitavam-se a refor
mular teorias trotskistas em termos direitistas, mas o fato é

que os hábitos mentais da extrema esquerda tiveram uma


influência formadora. O que veio a ser reproduzido não foi o
conteúdo da teoria leninista, mas seu estilo de pensamento.
A teoria trotskista da revolução permanente considera que
as instituições vigentes devem ser abolidas para a criação de
um mundo livre de opressão. Um certo otimismo catastrófico
que anima boa parte do pensamento de Trotski está subja
cente na política neoconservadora de exportação da demo
cracia. Em ambos os casos, é endossado o uso da violência

como condição do progresso, insistindo-se em que a revolu


ção deve ser global.
Ao abandonar o trotskismo, os neoconservadores se apro
ximaram das correntes centrais da vida política americana,
mas ao mesmo tempo perderam as amplas perspectivas dos
acontecimentos mundiais descortinadas por Trotski. Os ideó
logos inexperientes e provincianos que seqüestraram a polí
tica externa americana careciam do conhecimento da história

que Trotski tinha, podendo apenas imitar seu utopismo e o


caráter implacável de suas políticas. A ilusão, em Trotski, de

185
que a classe operária européia desejava uma revolução so
cialista no entre-guerras encontra equivalente na fantasia
neoconservadora de que o mundo árabe anseia por uma de
mocracia de estilo americano. Seu desprezo pelo "blablablá
quaker-vegetariano" dos que condenavam métodos bolche
viques como a tomada de reféns na guerra civil russa tem
eco no desdém dos neoconservadores pelos que criticam o
emprego da tortura na "guerra ao terrorismo".
O pensamento neoconservador é uma mistura de realis
mo alucinado e delírio quiliasta. As concepções cambiantes
de Francis Fukuyama são ilustrativas das dificuldades que se
manifestam quando essa mistura se transforma em alicerce
de uma política externa. Uma das principais influências nas
idéias de Fukuyama foi a obra de Alexandre Kojeve, filósofo
russo emigrado que se estabeleceu em Paris. Kojeve analisou
em sua dissertação de doutoramento as idéias do filósofo re
ligioso russo Vladimir Soloviev (1853-1900), que publicou
em 1899 um livro intitulado Guerra, progresso e o fim da his

tória, no qual apresentava Nietzsche como precursor do


Anticristo. Uma nova versão da idéia do fim da história enun

ciada por Soloviev é encontrada na obra de Kojeve, reaparecen


do no livro O fim da história e o último homem, de Fukuyama.
Kojeve apresentava o fim da história em termos derivados de
Hegel, ponderando que o ponto final não seria o comunismo
como imaginara Marx-, mas um sistema capitalista glo
bal. Kojeve reconhecia que o comunismo soviético era mais
uma tentativa de concretizar o projeto utópico perseguido pela
França revolucionária no Grande Terror, considerando que não
seria capaz de se impor frente ao irresistível dinamismo do
capitalismo. O modelo do mundo pós-histórico que se criava
eram os Estados Unidos, e não a União Soviética.

186
Essa concepção da América foi abraçada por Fukuyama,
introduzido às idéias de Kojeve por Alan Bloom. Juntamente
com o especialista em defesa Albert Wohlstetter, Bloom dis -

cípulo de Leo Strauss que popularizou uma interpretação de


suas idéias em seu livro The Closing of the American Mind
(1987) e é o principal personagem do romance Ravelstein, de
Saul Bellow (2000) - forjou a rede neoconservadora, dotan
do-a das idéias levadas ao governo por seus membros. Amigo
da vida inteira e admirador de Kojeve, Strauss durante mui
tos anos enviou alguns de seus alunos mais destacados para
estudar com ele. Bloom foi um deles, tendo levado adiante a
tradição straussiana ao transmitir a Fukuyama seu apreço
pela obra de Kojeve.
Mais ainda que Strauss, Kojeve influenciou as idéias de
Fukuyama e dos neoconservadores de maneira geral. Apoiado
em Soloviev e Hegel, Kojeve dava por descontada uma visão
escatológica da história. O mesmo faz Fukuyama, que con
tinua acreditando que a América é a primeira sociedade pós
histórica. Fukuyama nega ter afirmado que a história tivesse
literalmente chegado ao fim. É verdade que não abraçou a idéia
de que todas as causas de conflitos históricos em grande es
cala estivessem desaparecendo - uma idéia ridícula, embora
muitas vezes ele próprio chegasse perto de endossá-la. Mas
efetivamente afirmou que cessara todo conflito quanto à for
ma mais legítima de governo. No verão de 1989, escreveu:

Estamos assistindo não apenas ao fim da Guerra Fria, ou à


passagem de um período específico da história do pós-guer
ra, mas ao fim da história como tal, ou seja, o ponto final da
evolução ideológica da humanidade e a universalização da
democracia liberal ocidental como forma final do governo
humano.31

187
Este pronunciamento contém dois elementos: a alegação
de que a história chegou a uma consumação final e uma pro
posta mais específica segundo a qual a democracia liberal é
hoje a única forma legítima de governo. A idéia de que a his
tória caminha para um fim é um mito que não pode ser corro
borado ou refutado com argumentos racionais. Em contraste,
a alegação de que a democracia liberal é hoje a única forma
legítima de governo tem o mérito de poder ter demonstrada
sua falsidade.

A tese de que a “democracia liberal ocidental” é “o ponto


final da evolução ideológica da humanidade” é uma confis
são de fé escatológica. É curioso que este fato tenha passado
despercebido. Era de se esperar que conflitos há muito recal
cados voltassem à tona após o colapso soviético. Em outras
palavras, a história devia mesmo recomeçar, mas, numa
curiosa inversão de linguagem, aqueles que observaram o fato
foram acusados de pessimismo fatalista. A idéia verdadeira
mente apocalíptica de que a história chegara ao fim era con
siderada realista.32

Nos últimos anos, Fukuyama tem atacado a política ex


terna do governo Bush, criticando a tentativa de impor a de
mocracia no Iraque e em outros países, com o argumento de
que significa forçar a conclusão prematura de tendências de
longo prazo. Tachou essa política de leninista, mas é um jul
gamento injusto com Lenin. Os objetivos de Lenin certamente
eram utópicos, mas ele era absolutamente realista na refor
mulação de suas políticas. Suspendeu o regime do comunis
mo de guerra quando ficou evidente que levava à fome e
assinou um tratado humilhante com os alemães em Brest

Litovsk, em 1918, para que a Rússia pudesse retirar-se da Pri

meira Guerra Mundial. Lenin evidenciava uma capacidade de


aprender com a experiência que nunca pôde ser constatada

188
entre os neoconservadores, que só criticavam o comporta
mento do governo Bush no Iraque por motivos de incompe
tência (e só mesmo, quase sempre, quando ficou claro que os
eleitores estavam a ponto de repudiar a guerra).33
Embora tenha criticado a tentativa de disseminar a de
mocracia pela força, Fukuyama não abandonou a idéia neo
conservadora de que o governo de estilo americano é o modelo
para o mundo. Seu pensamento foi descrito por um estudioso
como uma "teleologia social 'marxista' passiva" - descrição
por ele próprio endossada.34 Ele ainda sustenta uma visão da

história segundo a qual ela tem um objetivo global, e esse


objetivo não mudou. O ponto final da história continua a ser
a América, que em sua opinião encarna o único tipo de go
verno que pode ser legítimo nas condições contemporâneas.
Na verdade, a legitimidade de um governo depende de
muitas coisas que freqüentemente não podem ser obtidas ao
mesmo tempo, e nenhum tipo de regime pode ser considera
do o melhor em qualquer parte. Segurança contra a anar
quia e a conquista por outros Estados; um nível aceitável de
subsistência para a maioria e a perspectiva de crescente pros
peridade; instituições que respeitem e reflitam as identidades

dos governados: tais condições são necessárias nos tempos


modernos para que qualquer governo seja considerado legí
timo. É freqüente que a democracia liberal atenda a essas con
dições melhor que outras alternativas, mas não existe uma
regra universal. Quando não são capazes de assegurar pa
drões de vida toleráveis para a maioria, os regimes democrá
ticos liberais podem ser rejeitados como aconteceu quando
os eleitores russos repudiaram Ieltsin em favor de Putin. Mais
uma vez, quando vão decididamente de encontro às convic
ções religiosas da maioria, as democracias liberais tendem a

189
se transformar num tipo de teocracia popular como vem

acontecendo em boa parte do Iraque. A democracia liberal está


longe de ser universalmente aceita como o único regime pos
sível ou o mais legítimo. As questões humanas são por de
mais complexas e difíceis para que alguma forma de governo
seja universalmente viável ou desejável.
Uma geração anterior de pensadores neoconservadores
entendeu essa verdade. Em seu livro Dictatorships and Double
Standards: Rationalism and Reason in Politics [Ditaduras, dois
pesos e duas medidas: racionalismo e razão na política]
(1982), Jeane Kirkpatrick — nomeada embaixadora dos Es
tados Unidos na ONU pelo governo Reagan e que até morrer
em 2006 era membro do American Enterprise Institute, de
tendência neoconservadora identificou com grande clare

za as conseqüências de uma mudança forçada de regime. Em


sua análise, a promoção global da democracia mistura racio
nalismo com utopismo:

O racionalismo nos quer fazer crer que qualquer coisa que


possa ser concebida pode ser concretizada. A perversão
racionalista na política moderna consiste no firme propósi
to de entender e moldar pessoas e sociedades com base em
teorias inadequadas e simplistas do comportamento huma
no (...) Não só o racionalismo estimula o utopismo, como
um utopismo é uma forma de racionalismo.

Kirkpatrick passa então a identificar as qualidades da


mente racionalista em termos que se aplicariam hoje aos
neoconservadores. Referindo-se ao "espírito racionalista da
época", ela o analisa como

190
aquele espírito que parte do princípio de que no futuro a na
tureza humana pode ser qualitativamente diferente do que

era no passado, que encara fatores não racionais, como os


sentimentos, o hábito e os costumes, como obstáculos que
podem e devem ser superados, o espírito que considera cada
situação como uma tabula rasa sobre a qual pode ser im
posto um plano e que, portanto, não vê relevância na expe
riência de outras épocas e lugares (...) O espírito racionalista
não leva em conta o fato de que as instituições são configu
rações do comportamento humano que existem e funcionam
por meio das pessoas de uma sociedade, e que mudar radi
calmente as instituições significa mudar radicalmente a vida
das pessoas, que talvez não queiram vê-la mudada. Por pre
sumir que o homem e a sociedade podem ser conformados a
um plano ideal, a orientação racionalista tende fortemente a
considerar que tudo é possível e que as perspectivas de pro
gresso são ilimitadas.35

Embora ela não o mencione, a crítica de Kirkpatrick tem


muita coisa em comum com a de Michael Oakeshott. Para

ele, o equívoco fundamental do racionalismo na política é a


crença em princípios de governo que podem ser expressos
numa ideologia e aplicados em toda parte. Oakeshott consi
derava, com razão, que tais princípios constituem sínteses de
experiências históricas específicas, sem valor universal. Sua
concepção da tradição não leva suficientemente em conta a
pluralidade de valores nas sociedades modernas, e sua visão
da política é muito tipicamente inglesa para ter aplicação ge
ral. Sua concepção básica de que a liberdade não é um ideal
que pode ser exportado, mas uma prática que se manifesta
em circunstâncias históricas específicas parece correta. É um
ponto de vista fatal para a política missionária, seja neocon
servadora ou liberal.36

191
Kirkpatrick direcionou sua crítica do racionalismo polí
tico contra os liberais americanos que condenavam os Esta
dos Unidos na década de 1980 por cultivar relações próximas
com ditaduras latino-americanas ao mesmo tempo que
favoreciam a détente com a União Soviética. Em suas mãos,

ela atendia às necessidades neoconservadoras, no empenho

de solapar as políticas adotadas pelo governo Carter. A iro


nia é que essa crítica volta-se hoje contra os neoconservadores.
As políticas empenhadas na mudança de regimes constitu
em a forma mais primitiva de nacionalismo político. Partem
do princípio de que a liberdade é uma condição que pode ser
alcançada em qualquer parte, até mesmo contra a vontade
dos povos que nesse processo vêem sua vida virada de cabeça
para baixo. Seria difícil imaginar um exemplo mais claro da
perversão racionalista da política moderna como a pró
-

pria Kirkpatrick reconheceria ao questionar, em seu livro pós


tumo Making War to Keep Peace, a decisão de invadir o Iraque,
argumentando que o resultado fora o caos no país.
Os neoconservadores nunca duvidaram que determinado
tipo de regime é o melhor: a democracia liberal que até bem
recentemente vigorava nos Estados Unidos. Nos últimos anos,
têm sustentado que diferentes versões desse regime podem ser
exportadas para todo o mundo. Um dos paradoxos do movi
mento neoconservador é que essas convicções não eram com
partilhadas por seu principal antepassado intelectual. Leo
Strauss nunca considerou que a democracia liberal fosse o
melhor regime ou que oferecesse garantias contra a tirania.
Teria encarado com incredulidade, se não com desprezo, a idéia
de que a democracia liberal pode tornar-se universal.
O perfil político de Strauss foi formado na Alemanha de
Weimar, um regime de legitimidade contestada desde o iní
cio. Em tais circunstâncias, os pensadores políticos tendem a

192
assumir uma posição antiliberal, e Strauss não foi exceção.
O primeiro de seus mentores foi o jurista alemão Carl Schmitt,
pensador que ainda hoje exerce influência em intelectuais ra
dicais, embora atualmente seus admiradores possam ser en
contrados sobretudo na esquerda. Schmitt contribuiu para
que fosse concedida pelos Rockefeller a ajuda que permitiu a
Strauss deixar a Alemanha rumo a Paris em 1932. Depois da
chegada dos nazistas ao poder, Strauss de ascendência
-

judaica ortodoxa e membro da Academia de Pesquisa Judaica


de Berlim cortou relações com Schmitt, mas a concepção

da democracia liberal sustentada por ele marcou por muito


tempo o seu pensamento.
Católico devoto, Schmitt escreveu livros sobre política,
religião e a crise da democracia parlamentar antes da chegada
dos nazistas ao poder. Entrou para o partido nazista em 1933,
tornando-se presidente do Sindicato dos Juristas Nacional
Socialistas e defendendo os assassinatos políticos da Noite dos
Longos Punhais, em 1934, como uma forma de justiça admi

nistrativa. Em 1936, já participava ativamente da campanha


nazista de perseguição aos judeus, propondo que as publica
ções de cientistas judeus alemães fossem identificadas com
uma marca especial. Não obstante sua ativa cumplicidade, os
nazistas não confiavam em Schmitt, suspeitando que agisse
por oportunismo. Ele perdeu a posição de principal jurista do
nazismo, mas continuou ensinando direito em Berlim. Em

1945, foi capturado pelas tropas americanas e mantido pri


sioneiro por algum tempo. Seu passado nazista não pre
judicou sua reputação depois da guerra. Muitos destacados
intelectuais europeus:foram visitá-lo durante seu longo reti
ro (ele morreu em 1985, aos 96 anos), entre eles Alexandre
Kojeve, que declarou: "Schmitt é o único homem na Alema
nha com quem vale a pena conversar."37

193
A concepção de governo de Schmitt tem muito em comum
com a de Hobbes. O direito é uma criação do Estado; os dis
positivos constitucionais não podem garantir a sobrevivên
cia da democracia liberal, pois as constituições são criadas e
destruídas por decisões políticas. Na visão de Strauss, Schmitt,
o jurista autoritário que se tornou funcionário nazista, evi
denciava a inutilidade do liberalismo. Pode parecer parado
xal, mas só se esquecermos que, para Strauss, Hobbes era o
pai do liberalismo. "Se chamarmos de liberalismo a doutrina
política que contempla os direitos do homem, como opostos
aos seus deveres, e que identifica a função do Estado com a
proteção ou a salvaguarda desses direitos", escreve ele em seu
livro Direito natural e história, "temos de reconhecer que o fun

dador do liberalismo foi Hobbes."38 Para Strauss, o liberalis


mo significava a afirmação da liberdade sobre a virtude, uma
doutrina moderna do direito natural que transforma a polí
tica num conflito de vontades no qual tudo tem valor, desde
que seja desejado por alguém. O resultado final do liberalis
mo é o niilismo, que solapa o próprio liberalismo.
Ao associar o liberalismo ao niilismo, Strauss seguia um
caminho muito percorrido na Alemanha. Nietzsche e Heidegger
consideravam o niilismo a doença definidora da modernidade,

infectando tanto a política liberal quanto a cultura. Nietzsche


encarava o niilismo como um efeito secundário do cristianis
mo, o qual (em parte sob a influência de Platão) desvaloriza
va o mundo em favor de um reino espiritual inexistente, ao
passo que Heidegger interpretava o niilismo como uma ten
tativa de entender o "Ser" de uma forma que ocultava sua
verdadeira natureza. Como quer que fosse exposta, a idéia de
que o niilismo é a doença moderna essencial exerceu enorme
apelo na Alemanha do entre-guerras. Abraçada por Oswald
Spengler e Moeller van den Bruck, o memorialista e roman

194
cista Ernest Jünger e o poeta expressionista Gottfried Benn,
ela promovia a perigosa crença de que a superação do niilismo
significava deixar para trás os valores liberais.
A convicção, em Strauss, de que o regime liberal de Weimar
foi destruído pelo niilismo remete a uma visão corrente mas
simplista e sob certos aspectos equivocada do nazismo, como
também, por inferência, do líder nazista. Como autodidata
boêmio, um tipo comum na Europa central no início do sé
culo XX, Hitler imbuiu-se de uma visão de mundo popular
que misturava fragmentos de darwinismo social com uma
versão vulgarizada do pensamento de Nietzsche. Nesse hori
zonte de idéias, a sobrevivência e o poder eram os únicos
valores uma posição que poderia perfeitamente ser consi
derada niilista. As atitudes de Hitler parecem pressupor uma
visão diferente, mais próxima da escatologia negativa de cer
tas tradições pagãs, como observamos no Capítulo 2. Em
1944-5, quando ficou evidente que os Aliados haviam venci
do, ele deu prosseguimento a uma guerra sem qualquer es
perança e antes se dispunha a sacrificar a Alemanha do que
a se render. Hitler decidiu espalhar o máximo de destruição
pelo mundo, mesmo ao custo de sua própria vida e do ani
quilamento de seu país. Foi sua indiferença ao patriotismo
que levou alguns de seus adeptos conservadores dos primeiros
tempos, que inicialmente se voltaram para ele para proteger
a Alemanha da ameaça do comunismo, a vê-lo como um nii
lista que representava uma ameaça mortal para o país (ponto
de vista que parece ter determinado, em julho de 1944, a cons
piração para matá-lo organizada por Claus von Stauffenberg,
Adam von Trott e outros nacionalistas conservadores). Como
outros nazistas, Hitler esposava as idéias correntes na Euro

pa do entre-guerras, entre elas a convicção, compartilhada


por muitos na esquerda, de que o avanço do conhecimento

195
permitiria o desenvolvimento artificial de uma espécie huma
na aperfeiçoada. Era esse tipo de pseudociência, juntamente
com crenças apocalípticas de origens em parte pagãs e em
parte cristãs (no caso da demonologia anti-semita de Hitler),
que constituíam a visão de mundo nazista. Por mais repelen
te que fosse, a mistura era por demais incoerente para ser con
siderada decididamente niilista.

Se a análise do nazismo feita por Strauss era capenga, sua


avaliação da democracia liberal em geral também é implau
sível. Nenhum regime democrático liberal - nem mesmo o
mais poderoso ou duradouro — está livre das tentações da
tirania, mas nos casos em que vêm a ser subvertidos, rara
mente será por excesso de ceticismo. A democracia liberal tem
vigorado por longos períodos em países destituídos de qual
quer consenso em torno de crenças metafísicas. Na Suíça,
prospera há séculos contra um pano de fundo de diversidade
religiosa, enquanto na Grã-Bretanha avançou à medida que
recuava a fé religiosa. Os países do norte da Europa estão entre
as mais bem-sucedidas democracias liberais do mundo e são

pós-cristãos. A análise da democracia feita por Strauss é emi


nentemente um diagnóstico da Alemanha de Weimar, mas o
desemprego em massa, a hiperinflação, as indenizações de
guerra e a humilhaçao nacional acabaram com qualquer le
gitimidade que o regime de Weimar acaso tivesse em algum
momento. Como vimos, os nazistas fizeram uso de tradições
milenaristas cristãs e da demonologia cristã anti-semita, mas
foi a inerente falta de legitimidade do regime de Weimar, e não
um niilismo de massa essencialmente imaginário, que lhes
permitiu chegar ao poder.

Embora se baseasse em acontecimentos sem paralelo nos


Estados Unidos, as análises de Strauss encontraram ouvidos
receptivos entre os conservadores americanos. Perante os

196
protestos de massa contra a guerra no Vietnã, eles encontra
vam alento no argumento de que a democracia liberal preci
sa de sólidos alicerces metafísicos. Na época, a democracia
americana não corria perigo, mas as mudanças culturais
sobrevindas na década de 1960 causaram uma falsa sensa
ção de crise. Sob certos aspectos, as idéias de Strauss pareci
am feitas sob medida para os americanos. Sua tese de que a
ordem política repousa na aceitação de limitações morais
alheias à esfera humana ia ao encontro do caráter doutriná

rio da vida pública americana. A América sempre se mostrou


afeita à crença de que seus valores foram transmitidos por
Deus, e Strauss, desde que não fosse lido muito atentamen
te, podia ser considerado um adepto da idéia de que os Esta
dos Unidos eram o melhor regime.
Strauss dava a entender que, para garantir o futuro da
América, seria necessário reviver a concepção do direito na
tural corporificada na filosofia clássica. No pensamento an
tigo e medieval, o direito natural continha recomendações
sobre o bem geral, o que significava a promoção das virtudes

adequadas à natureza de cada um. Os primeiros pensadores


modernos, como Hobbes, romperam com essa concepção ao
identificar a lei natural com a autopreservação e a busca do
poder. Mais tarde, os filósofos do Iluminismo abraçaram um
tipo de humanismo no qual se supunha que a ciência e a tec
nologia permitiriam à humanidade refazer o mundo. Para
Strauss, o ponto final dessa tradição era o culto da vontade
em Nietzsche, que não era tanto um remédio para o moder
no niilismo, mas sua mais pura expressão.
O único verdadeiro remédio seria recuperar a concepção
clássica do direito natural, formulada em caráter definitivo
por Tomás de Aquino. Nele, a visão de mundo de Aristóteles
era reproduzida num contexto cristão; a filosofia clássica da

197
natureza era associada à teologia cristã. Justificadamente,
Strauss sempre se mostrou profundamente cético quanto a
esta síntese. Escreveu ele: "A suprema conseqüência da visão
tomista do direito natural é torná-lo praticamente inseparável
não só de uma teologia natural que na verdade se baseia na
revelação bíblica, mas até mesmo da teologia revelada."3⁹
Temos aqui uma característica crucial do pensamento de
Strauss: a insistência num abismo intransponível entre a ra
zão e a revelação. A visão de mundo clássica reafirmada por

Tomás de Aquino repousava no pressuposto de que a razão e


a revelação podiam ser levadas a apontar na mesma direção.
Ao rejeitar esse pressuposto, Strauss apontava uma ruptura
na tradição ocidental. Como fariam muitos outros poste
riormente, Tomás de Aquino tentava demonstrar que a fé e a
razão eram complementares. Strauss entendeu que todas es
sas tentativas estão fadadas ao fracasso: o cosmo racional da

filosofia grega e a visão bíblica da criação divina - Atenas e


-

Jerusalém são irreconciliáveis. Nesse ponto, Strauss dava


-

as mãos a outros fideístas judeus do início do século XX


pensadores como Martin Buber, Franz Rosenzweig e Lev
Shestov, para os quais as primeiras e derradeiras questões
só podem ser respondidas por um ato de fé. Não temos como
conhecer as convicções religiosas do próprio Strauss (chegou
se a dizer que ele era na verdade ateu). O que parece evidente
é que ele não achava que a razão podia ser um remédio para
o niilismo.

O problema com a convicção de Strauss de que é possível


curar o niilismo retomando uma visão clássica das coisas é

que ele nunca fornece, neste sentido, qualquer fundamento,


à parte a necessidade de escapar ao niilismo. A visão clássica
do mundo é que ele consiste numa ordem racional, mas
Strauss propunha que aceitássemos esse ponto de vista por

198
um ato de vontade. É uma posição contraditória, que serve
apenas para demonstrar como é difícil superar o "projeto
moderno". Por mais que quisesse ver-se de outra forma,
Strauss no fim das contas era ele próprio um pensador mo
derno, que tinha mais em comum com Nietzsche do que com
qualquer pensador antigo ou medieval. Aristóteles e Tomás
de Aquino sustentavam uma visão teleológica do mundo tor
nada obsoleta pela ciência moderna. Ambos viam o cosmo
como um sistema no qual tudo tem um propósito. Desde
Darwin, esta visão do mundo natural perdeu o sentido. A
natureza é governada pelo acaso e a necessidade, por leis e
constantes naturais, e não por receitas sobre o bem geral. Se
existe um reino do valor além do mundo físico, ele não pode
ser alcançado pela razão humana.
O que pode significar para a política a visão dos limites
da razão sustentada por Strauss? Ele negava que a democra
cia liberal pudesse ser dissociada de crenças metafísicas: sem
a crença numa ordem moral que não tenha sido criada pela
vontade humana, a política moderna tornava-se vulnerável

ao niilismo. Mas ao negar que essas crenças possam ser de


fendidas do ponto de vista racional, ele deixava a democracia
liberal sem qualquer justificação acessível a todos. A solução
para esta dificuldade apresentada por Strauss pode ser uma
variação moderna da mentira caridosa de Platão: embora pos
sam conhecer a verdade, os filósofos também sabem que a
verdade é mortal para o grosso da humanidade. Pode ser que
o próprio Strauss sofresse de niilismo, ao mesmo tempo que
acreditava que as massas podiam ser protegidas dele por mitos
consoladores - na América contemporânea, mitos lockeanos
sobre o direito natural —, mas ele não chega a preconizar
explicitamente qualquer deles. A idéia de que ele seria favo
rável à impostura só poderia ser sustentada recorrendo-se a

199
sua própria técnica de interpretação, altamente subjetiva. Se
chega a escrever em favor da mentira caridosa, ele o faz enig
maticamente, ocultando suas verdadeiras intenções - tal

como faziam no passado muitos filósofos, segundo acredita


va. Como se sabe, Strauss considerava que muitos dos gran
des pensadores tinham uma filosofia secreta muito diferente
da que se revela abertamente em seus escritos. Isto tem levado
certos críticos de Strauss a atacá-lo como um teórico cujos

ensinamentos estão por trás das políticas de desinformação


patrocinadas por neoconservadores no governo Bush.4⁰
A idéia de que a obra de Strauss contém uma aprovação
da impostura é questionável. Dizer que grandes filósofos es
crevem em código é uma coisa, sustentar que em política a
impostura é essencial, bem outra. Strauss sempre insistiu em
que havia uma grande diferença entre a filosofia e a prática,
escrevendo que "o filósofo deixa de ser um filósofo quando a
certeza de uma solução se torna mais forte que sua consciência
do caráter problemático da solução".4¹ No espírito dessa má
xima, ele escreveu muito pouco sobre a política contemporâ
nea, e seria difícil imaginá-lo endossando qualquer projeto
político moderno. Seus presságios sobre o futuro da demo
cracia liberal não se conciliam com o programa neocon
servador de exportação da democracia para todo o mundo,

ao passo que a ardente crença neoconservadora no progresso


vai de encontro a sua desconfiança em relação às expectativas
iluministas. Embora seja considerado um defensor do atual

regime americano, Strauss seria mais apropriadamente des


crito como um de seus críticos mais implacáveis. Tal como
Schmitt, ele era um antiliberal. Na linguagem corrente da
política americana, os neoconservadores são inimigos do li
beralismo sob todas as suas formas. Mas o próprio neocon
servadorismo é uma versão fundamentalista do liberalismo,

200
e como demonstra sua apreciação de Hobbes e Schmitt
Strauss considerava o liberalismo um sintoma do fracasso do

"projeto moderno". Sua obra não configura apoio a qualquer


postura política muito específica, estando em sintonia com
uma série de posições políticas diferentes.42 Mas se existe um

movimento da política contemporânea que esse pensador


profundamente cético teria repudiado e condenado, é o neo
conservadorismo.

Embora Strauss não possa ser responsabilizado pelo com


portamento de um movimento político que invoca sua au
toridade, isto não significa que seu pensamento não o tenha
influenciado. Sua alegação de que os escritos filosóficos fre
qüentemente contêm um significado oculto, diferente de seu
sentido manifesto ou a ele oposto, é uma licença para o pen
samento indisciplinado. Ele não deixou qualquer método de
interpretação pelo qual a alegação de ter identificado um sig
nificado oculto pudesse ser testada, e, do ponto de vista dos
padrões aceitos de erudição, alguns de seus pressupostos são
altamente implausíveis. Por exemplo, Strauss não considera
Platão um pensador utópico, mas um crítico do utopismo
empenhado em demonstrar que é possível um Estado ideal.
Todavia, como demonstraram certos estudiosos clássicos, esta
interpretação não é corroborada pelos textos.43
O problema da teoria de Strauss é que permite pratica
mente qualquer interpretação. Existe aqui um paralelo com
a alegação da escola desconstrucionista de que os textos não
têm um significado intrínseco. Em ambos os casos, a inves
tigação racional é substituída pelo julgamento arbitrário, e
por mais que ele imaginasse estar recuperando uma forma
clássica de pensar, o fato é que o método de Strauss tem mais
a ver com o pensamento pós-moderno. Na prática, Strauss
interpretava os textos recorrendo a intuições subjetivas cuja

201
autoridade aparentemente depende da invocação de algum
insight especial. Trata-se de uma alegação de acesso privilegia
do à verdade que tem conduzido alguns de seus seguidores a
erros calamitosos. Na esfera governamental, ela contribuiu
para levar à guerra no Iraque.

OS POSSUÍDOS

Começando pela liberdade ilimitada, cheguei ao despotismo


ilimitado.

Shigaliov, em Os demônios, de Dostoievski44

O neoconservadorismo é uma postura das políticas públicas


americanas, mas também um conjunto de idéias. Suas origens
como movimento político estão nos conflitos em torno das
políticas americanas de defesa nas décadas de 1970 e 1980. A
rede neoconservadora que exerceu tão profunda influência em
George W. Bush é um subproduto da Guerra Fria. Muitos de
seus erros decorrem da aplicação de hábitos mentais adquiri
dos naquela época às condições diferentes que hoje prevalecem.
Primícias do neoconservadorismo podem ser encontradas
no alarme manifestado por personalidades como Patrick
Moynihan e Norman Podhoretz durante a guerra do Vietnã.
Preocupados com a falta de patriotismo que julgavam dis
tinguir nos manifestantes contrários à guerra, eles objetavam
à idéia de que os Estados Unidos representassem o mal. Com
defeitos, certamente, mas, ainda assim, a melhor sociedade
que já existiu. A idéia de que a América é o melhor regime da
história, e talvez o único verdadeiramente legítimo, continua

202
sendo um pilar do pensamento neoconservador. Mas o neo
conservadorismo como força política identificável surgiu
posteriormente, numa tentativa de alterar as políticas ame
ricanas de defesa.

A figura-chave nesse projeto foi Albert Wohlstetter, pro


fessor, como Leo Strauss, na Universidade de Chicago, e muito
mais importante que ele na gênese do neoconservadorismo.
Matemático, tendo trabalhado como analista de defesa da
RAND Corporation, Wohlstetter foi o ponta-de-lança de um
poderoso desafio às políticas de controle de armamento e
détente promovidas pelo governo Nixon. Ele apontou a im
portância das armas de precisão que se tornavam viáveis gra
ças às novas tecnologias, criticou as teorias vigentes de
dissuasão e apoiou ativamente a corrida armamentista que
se acelerou durante a era Reagan.
Wohlstetter foi uma figura fundamental na rede neocon
servadora que se desenvolveu a partir da década de 1970. Entre
seus protegidos estão Paul Wolfowitz e Richard Perle (que
dedicou a Wohlstetter um livro de que é co-autor, An End to
Evil). Wohlstetter apresentou Perle ao senador "Scoop" Jackson,
democrata profundamente anticomunista que foi co-respon
sável, em 1974, por uma lei impedindo relações comerciais
normais com países que restringissem a liberdade de emigra
ção (como fazia a União Soviética em relação aos judeus in
teressados em emigrar para Israel). Com a ajuda de Perle,
Jackson também fez forte pressão contra o tratado SALT II
de controle de armas. No meado da década de 1970, Wohlstetter

posicionou um de seus alunos, Zalmay Khalilzad, num think


thank que criara para assessorar o governo americano, e este
último, assistido por ele, logo faria contatos muito úteis em
Washington.45 Em 1984, Khalilzad trabalhava para Paul
Wolfowitz no Departamento de Estado, e no início da década

203
de 1990 lá ocupava uma alta posição ao lado de Donald
Rumsfeld. Khalilzad havia muito argumentava que se os Es
tados Unidos apoiassem os mujahedin, as tropas soviéticas po
deriam ser derrotadas no Afeganistão, e após a retirada
soviética estava entre os formadores de políticas que consi
deravam o regime talibã próximo dos interesses americanos.
Mudou de opinião depois dos atentados de 11 de setembro,
quando foi nomeado embaixador americano no país, passan
do depois a embaixador no Iraque. Em 1985, Wohlstetter
apresentou Perle (então subsecretário de Segurança Interna
cional do governo Reagan) a Ahmed Chalabi, membro de uma
rica família de banqueiros iraquianos xiitas, que estudara
matemática com Wohlstetter em Chicago. Chalabi foi figu
ra-chave nos preparativos para a guerra no Iraque, como líder
do Congresso Nacional Iraquiano (CNI) apoiado pelos Esta
dos Unidos, tendo sido designado pelos neoconservadores
como possível dirigente do Iraque depois de Saddam e usado
como fonte de avaliações de inteligência que entravam em
conflito com as produzidas pela CIA e outras agências ame
ricanas de espionagem.
A rede que se formou ao redor de Wohlstetter persiste ain
da hoje. Muitos de seus membros foram fundadores do Pro
jeto por um Novo Século Americano (PNAC), um think thank
criado em Washington em 1997 para promover a crença de
que a América precisa agir para preservar sua primazia global.
Com seu presidente William Kristol, filho de Irving Kristol e
editor do Weekly Standard, de propriedade de Rupert Murdoch,
e seu principal executivo, Gary Smitt, formado em Chicago e
ex-colaborador de Patrick Moynihan, o órgão preconizava
forte aumento nos gastos americanos de defesa para manter
uma incontrastada preeminência militar do país. Vários in
tegrantes do PNAC serviram ao governo Bush, entre eles Dick

204
Cheney, Zalmay Khalilzad, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz
e I. Lewis "Scooter" Libby (ex-chefe de gabinete de Cheney,
condenado em março de 2007 por uma série de delitos relacio
nados à identificação pública ilegal de uma agente secreta da
CIA, Valerie Plame, cujo marido criticara o governo Bush). A
tese central do PNAC, apresentada em seu relatório sobre a Re
construção das defesas da América, publicado em 2000, não
era nova. A idéia de que a América deve manter sua supre
macia global estava presente em documentos anteriores, en
tre eles alguns publicados pelo então secretário de Defesa Dick
Cheney no início da década de 1990, e dava continuidade a
teorias sobre a segurança nacional americana desenvolvidas
por Wohlstteter no início dos anos 1970.

O fato crucial a respeito dos intelectuais ligados a ques


tões de defesa que formaram a rede de políticas neoconser
vadoras a partir da década de 1970 era que se opunham às
doutrinas militares da época. Se havia alguém que encarnava
tudo que eles rejeitavam na política externa americana, era
Henry Kissinger, cuja realpolitik abominavam. Kissinger sus
tentava que, apesar de suas origens ideológicas, a União So
viética se transformara em algo parecido com um Estado
normal, com interesses que nem sempre se opunham neces
sariamente aos dos Estados Unidos. Contrariando esta tese,

OS eoconservadores insistiam em que, dada sua estrutura


totalitária, a URSS sempre manteria uma atitude hostil.
Na visão dos neoconservadores, em sua tese de que os EUA
poderiam trabalhar com os soviéticos Kissinger confundia
seus desejos com a realidade, equívoco que não era exclusi
vamente seu. Segundo Wohlstetter, a CIA tinha uma tendên
cia crônica para interpretar erroneamente o regime soviético.
Em artigo publicado em 1974, Wohlstetter acusava a CIA de
subestimar sistematicamente o arsenal de mísseis soviético,

205
com isto permitindo que a União Soviética alcançasse supe
rioridade militar.46 O artigo desencadeou um ataque em regra
da direita contra a CIA, levando, em 1976, à criação daquela

que viria a ser conhecida como Equipe B. Criada como uma


fonte rival de dados de inteligência para o governo americano
(a CIA era a Equipe A), a Equipe B atuava na esfera dos asses
sores diretos do presidente em Int ència Externa e era cons
tituída de três seções, tratando da defesa aérea soviética de
baixa altitude, dos mísseis balísticos intercontinentais sovié
ticos e da estratégia soviética. A criação da Equipe B encon
trou resistência por parte de William Colby, diretor da CIA,
mas quando George Bush pai se tornou diretor da CIA em
1976, a equipe foi lançada, com apoio do presidente Gerald
Ford. A Equipe B era formada por adversários de linha-dura
da détente e do controle de armamento. Entre seus principais
membros estavam Paul Wolfowitz, Richard Pipes, historia
dor da Rússia em Harvard, e Edward Teller, o físico nuclear
às vezes chamado de "pai da bomba H" por seu envolvimento
no Projeto Manhattan, no qual foram desenvolvidas as pri
meiras armas nucleares, que viria a tornar-se forte defen
sor da Iniciativa de Defesa Estratégica apelidada de “Guerra
nas Estrelas" (e que se acredita ter sido o inspirador do Dr.
Strangelove, personagem do filme de Stanley Kubrick).
A Equipe B revelou alguns traços característicos do pensa
mento neoconservador. Ele desconfiava da pesquisa empíri
ca, rejeitando análises apresentadas pela CIA e outras agências
americanas de inteligência sob a alegação de que as provas
arroladas fossem obtidas em fontes declaradas ou secre

tamente - podiam constituir material de desinformação, não


podendo ser usadas como referência confiável quanto às
capacitações ou intenções soviéticas. Em certa medida, isto
fazia eco à visão de mundo paranóica associada a James Jesus

206
Angleton, que a certa altura foi chefe da contra-inteligência
na CIA. Por influência do ex-agente do KGB Anatoli Golitsin,
que se passou para o Ocidente, Angleton passou a acreditar
que a União Soviética estava havia muitos anos empenhada
numa campanha estratégica de projeção de uma falsa ima
gem de fraqueza. Para Angleton - personalidade complexa
que havia editado em Yale uma revista literária que publica
va textos de T. S. Eliot e outros poetas contemporâneos -, os
serviços de inteligência eram um ramo da teoria do conheci
mento. O objetivo era descobrir a verdade sobre a situação da

URSS, mas, considerando-se a tradição soviética de desinfor


mação, era necessário descartar os métodos habituais de busca

de provas. Qualquer tentativa de avaliar o comportamento


soviético mediante métodos empíricos normais só podia le
var a uma "profusão de espelhos" (expressão tomada de em
préstimo do poema Gerontion, de Eliot).47 Nesse terreno, não

havia como acreditar ou confiar, pois até mesmo fatos concre


tos podiam ser plantados. Partindo desta convicção, Angleton
instigou um desmoralizante processo de caça às bruxas na

CIA, fazendo acusações absurdas contra vários dirigentes


ocidentais (entre eles o primeiro-ministro britânico Harold
Wilson, alvo de uma conspiração por parte do "caçador de
espiões" Peter Wricht, da inteligência britânica, baseado nas
alegações de Angleton). Desacreditado na própria CIA, Angleton
afastou-se em dezembro de 1974.

Rejeitando as investigações empíricas, a Equipe B não ti


nha como verificar a procedência de suas avaliações e por isso
cometia erros. A Dra. Anne Cahn, que trabalhou na Agência
de Controle de Armas e Desarmamento do governo america
no entre 1977 e 1980, e, depois de examinar as avaliações da
Equipe B, considerou-as "completamente erradas", relatou
que seus integrantes, não tendo conseguido detectar o sistema

207
anti-submarino não-acústico dos soviéticos, viram nisto uma

indicação de que este sistema efetivamente poderia existir. Em


outras palavras, a Equipe considerava a ausência de provas
como uma prova que corroborava seu ponto de vista. Seme
lhante metodologia não poderia mesmo detectar procedimen
tos de desinformação. Neste sentido, a Equipe B mostrava-se
vulnerável, e sua convicção de uma superioridade militar so
viética resultava em parte do fato de estar sendo enganada
pela propaganda da CIA. Existia efetivamente um gigantesco
complexo industrial-militar soviético, que, no entanto, esta
va em grande medida corroído por dentro, como o resto da
economia soviética. A realidade que se revelou depois do co
lapso da União Soviética estava mais próxima das estimativas
da CIA do que das alegações por ela fabricadas para consumo
do público. Entre os que se deixaram enganar estavam os
próprios teóricos do logro estratégico na Equipe B.48
O desinteresse pelas evidências concretas demonstrado pela
Equipe B refletia uma rejeição sistemática do empirismo, e aqui
encontramos um elo com Strauss. Abram Shulsky e Gary
Schmitt criticaram sistematicamente as agências de inteligên
cia americanas, considerando o método de interpretação her
mética praticado por Leo Strauss uma alternativa preferível
aos procedimentos empíricos. Shulsky foi aluno de Strauss,
tendo afirmado, em dissertação co-escrita com Schmitt so
bre "Leo Strauss e o mundo da inteligência (o que não é uma
referência a nous)",4⁹ que sua doutrina do significado oculto
dos textos "nos chama a atenção para a possibilidade de que
a vida política esteja estreitamente ligada à impostura. Na
verdade, ela parece indicar que a impostura é a norma". Os
autores sustentam que Strauss "se parece, ainda que de lon
ge, com o George Smiley dos romances de John Le Carré, em
sua brandura, seu jeito de se concentrar nos detalhes, sua

208
conseqüente capacidade de enxergar por baixo da superfície e
ler nas entrelinhas e seu aparente desapego das coisas mun
danas". Mesmo ressalvando que ele nunca escreveu sobre
questões de inteligência, os dois sustentam que sua capaci
dade de perceber as maneiras como os diferentes sistemas
políticos funcionam demonstra a utilidade limitada das ciên
cias sociais nas ações de inteligência. Strauss recusava a idéia
de que a política pode ser entendida mediante "um método
empírico que observe os comportamentos, classifique-os,
calcule as correlações entre atos e características específicos

do contexto em que se manifestam, e assim por diante", sob


o argumento de que "o regime determina as ações políticas e
humanas de maneira tão fundamental que até mesmo as al
mas se revelam diferentes". Schmitt e Shulsky afirmam ain
da que foi a incapacidade de entender isto que prejudicou a
política americana na Guerra Fria, quando “os analistas ame

ricanos de inteligência geralmente relutavam em acreditar que


a União Soviética ou algum outro país comunista pudesse
enganá-los em qualquer questão crítica. A história demons
trou que era uma visão extremamente ingênua". Desse pon
to de vista, só mesmo um método que permita aos analistas
perscrutar as almas pode servir de orientação segura para a
eficácia das políticas a serem adotadas.50
Ao rejeitarem a investigação empírica, Schmitt e Shulsky
estavam confundindo uma crítica do cientificismo com a pura
e simples rejeição de provas. A crítica de Strauss à crença de
que o estudo da sociedade pode ser feito por métodos das
ciências naturais tinha fundamento. As diferenças entre as
culturas, a existência de processos históricos sem equivalen
te e a mistura de fatos e valores farão sempre com que o es
tudo da sociedade seja diferente de qualquer ciência natural.
Mas isto não quer dizer que possamos abrir mão dos fatos.

209
A história não é uma ciência, mas entre a boa história e a má
existe uma diferença que reflete a maneira como são usadas
as provas concretas. Também existe uma diferença entre for
mas de pensamento baseadas no conhecimento histórico e as
que se mostram carentes de qualquer senso histórico. O pen
samento neoconservador se enquadra nesta última catego
ria, e muitos dos mais crassos erros cometidos nas políticas
adotadas por inspiração neoconservadora resultam dessa de
liberada ignorância do passado.
No início de sua dissertação sobre Strauss e as ações de
inteligência, os autores reconhecem que o tema "pode pare
cer inicialmente muito estranho”, não sendo propriamente
evidente a relação entre "o mundo agitado da espionagem e
da parafernália de vigilância, por um lado, e, por outro, a vida
tranqüila da erudição e da imersão em textos antigos". Cer
tamente parece improvável que um excêntrico método de in
terpretação de textos possa ser útil na coleta de informações
de inteligência, mas algo parecido com esse método foi em
pregado nos mais altos escalões do governo americano. O as
sessor de Bush que zombava dessa "comunidade dependente
da realidade", convencida de que "as soluções surgem da aná
lisejudiciosa da realidade perceptível", gabando-se de que "não
é mais assim que o mundo funciona na realidade. Hoje nós
somos um império, criamos nossa própria realidade ao agir",
talvez estivesse apenas dando curso ao estúpido triunfalismo
corrente entre os neoconservadores a certa altura.51 Mas tam
bém revelava uma visão da verdade que determinou algumas
das políticas mais equivocadas do governo, uma visão com
partilhada por Schmitt e Shulsky.
Não seria possível fazer um relato completo da desin
formação que cerca a guerra no Iraque. É possível que a coi
sa toda não venha a ser conhecida por muitos anos, e mesmo

210
nunca. 52 O que se pode fazer é dar exemplos da atitude em
relação à verdade ao mesmo tempo hierática e instrumen
talizada que determinou alguns dos mais decisivos epi
sódios de impostura. Os arquitetos da guerra no Iraque
acreditavam ter conhecimento da verdade e que, enganando
os outros, a estavam apenas promovendo. Mas sua crença de
que podiam decifrar o significado oculto dos acontecimentos
era uma ilusão, e no fim das contas eles podem perfeitamen
te ter enganado a si mesmos.
Podemos acompanhar o funcionamento desse processo
nas operações de um organismo criado sob a direção de Abram

Shulsky para fornecer dados de inteligência que corroboras


sem a decisão de entrar em guerra contra o Iraque. Shulsky
integrara no início da década de 1980 a Comissão de Inteli

gência do Senado e durante o governo Reagan trabalhara com


Richard Perle no Pentágono. Em 2002, foi nomeado diretor
da Agência de Planos Especiais (OSP), unidade criada no Pen
tágono por Paul Wolfowitz e Donald Rumsfeld e subordina
da ao subsecretário de Defesa de Bush, Douglas Feith, um
protegido de Richard Pipes e Richard Perle. Muito do que se
fez na Agência de Planos Especiais não veio ao conhecimento
público. Escreveu George Packer, autor de um relato exausti
vo sobre as maquinações que levaram à guerra: “Para a Agên
cia de Planos Especiais, o segredo não era apenas conveniente.
Quase poderíamos dizer que era metafisicamente necessá
rio."53 De acordo com os métodos herméticos favorecidos por
Shulsky, a OSP rejeitava os procedimentos habituais de ava
liação dos dados de inteligência e “cozinhava" sua própria
versão dos fatos diretamente para a Casa Branca. Como a
Equipe B, a OSP tinha sua agenda independente, contemplan
do a rejeição e o descrédito das informações de inteligência
fornecidas pela CIA e pela Agência de Inteligência de Defesa

211
(DIA). A OSP tornou-se a principal fonte de alegações sobre
as armas de destruição em massa de Saddam e suas supostas
ligações com a al-Qaeda utilizadas por Bush para justificar o
ataque ao Iraque. Em parte por causa das críticas ao papel
por ela desempenhado na guerra, a unidade foi rebatizada em
julho de 2003, quando voltou a adotar seu nome original, de
agência de Questões do Golfo Norte. (A OSP parece ter ganhado
vida nova. Em meados de 2006, foi criada no Pentágono uma
"Diretoria Iraniana" constituída por veteranos da OSP, entre
eles seu ex-diretor, Abram Shulsky. Pela mesma época, a "se
cretaria do Irã” no Departamento de Estado, subordinada à
filha do vice-presidente, Elizabeth Cheney, ganhou status de
força-tarefa.)54
As principais características da OSP eram uma visão do
mundo desinteressada de qualquer investigação empírica, a
forte dependência de informações fornecidas pelo CNI de
Chalabi e sua estreita ligação com o vice-presidente, Dick
Cheney. 55 O principal resultado foi tornar a política america
na fortemente dependente de informações de inteligência
fornecidas por fontes do Congresso Nacional Iraquiano e ca
rentes de verificação. O CNI arregimentava dissidentes ira
quianos que faziam graves acusações sobre a existência de
armas de destruição em massa no Iraque de Saddam. Essas
alegações eram contestadas pela CIA, indo contra as provas
obtidas nas inspeções de armas realizadas pela ONU; mas
eram reiteradamente usadas por Cheney e pelo presidente
Bush para justificar o início de uma guerra, até que se tor
nou impossível negar a ausência de armas de destruição em
massa no Iraque.

É voz corrente que Cheney e Bush escolhiam a dedo os


dados de inteligência disponíveis, utilizando os que iam ao
encontro de suas convicções e descartando os que não eram

212
úteis. Para insinuar uma ligação entre o Iraque e os atenta
dos de 11 de setembro, Cheney mencionou uma reunião
ocorrida em Praga entre Mohamed Atta (um dos principais
seqüestradores do 11 de setembro) e os serviços iraquianos
de inteligência. Afirmava também que "fontes da inteligência"
advertiam que Saddam tentara comprar tubos de alumínio
para a produção de armas nucleares. Ao fazer essas alega
ções, Cheney não estava escolhendo determinados dados da
inteligência e omitindo o resto. Observou a escritora ameri

cana Joan Didion:

A Casa Branca fora informada pela CIA de que jamais tivera


lugar um encontro em Praga entre Mohamed Atta e os servi
ços iraquianos de inteligência. A Agência Internacional de
Energia Atômica e o Departamento de Energia dos Estados

Unidos haviam declarado que os tubos de alumínio em ques


tão “não eram adequados" para o enriquecimento de urânio
(...) O que o vice-presidente fazia, então, não era escolher a
dedo as informações de inteligência, mas rejeitá-las, substitu

indo-as pelos boatos que melhor serviam aos seus interesses.56

Juntamente com Bush, o vice-presidente descartava fa


tos conhecidos porque não corroboravam uma decisão de
entrar em guerra que já havia sido tomada. Ao rejeitar os
dados de inteligência que entravam em conflito com a tese da
necessidade da guerra, Bush e Cheney não estavam omitindo
a verdade a seus próprios olhos ou aos de seus assessores na
OSP. Assim como Blair, na Grã-Bretanha, argumentava em
favor da guerra com base na desinformação, também eles
estavam promovendo uma verdade que consideravam mais
importante. Em seu livro Silent War, Schmitt e Shulsky dei
xam claro que "a verdade não é o objetivo" das operações de

213
inteligência, e sim "a vitória".57 Na realidade, para esses viden
tes a vitória era a mesma coisa que a verdade não uma
-

verdade comum, naturalmente, mas a verdade esotérica que


se esconde por trás do enganoso espelho dos fatos.
O problema com essa metodologia estava em deixar seus
adeptos expostos às mesmas imposturas contra as quais
advertiam. Os responsáveis pela Agência de Planos Especiais
baseavam sua convicção da existência de armas de destruição
em massa no Iraque em alegações de dissidentes iraquianos,
mas com isto ignoravam a possibilidade de que esses dissi
dentes tivessem sido despachados precisamente para promo
ver a crença (que alguns deles podiam considerar verdadeira)
de que Saddam estava ativamente empenhado num progra
ma de armas, quando, na verdade, não estava. Na medida em
que projetava uma imagem de maior poderio no Iraque e em
todo o mundo árabe, essa crença servia aos interesses de
Saddam. Ao mesmo tempo, o regime iraniano tinha interes
se estratégico na derrubada do ditador iraquiano. Não só
houve uma guerra de incrível ferocidade entre os dois países,
como os iranianos sabiam que, com a derrubada de Saddam,
os xiitas tomariam o poder no que restasse do Iraque. O fim
do regime de Saddam poderia fazer do Irã a potência domi
nante na região. Nesse contexto, teria sido prudente preca
ver-se contra o risco de que o CNI fosse usado como canal de
desinformação não só iraquiana, como também iraniana.58
A CIA havia muito vinha advertindo sobre os riscos de confiar
em fontes da dissidência iraquiana. Os teóricos que estavam
à frente da OSP ignoravam essas advertências. Confiantes em
sua capacidade de pressentir a verdade, eles se sentiam em con
dições de dispensar qualquer verificação empírica. No que lhes
dizia respeito, os dissidentes apenas confirmavam aquilo que
já se verificara verdadeiro por seus próprios métodos. Com

214
sua metodologia baseada na fé, a OSP se eximia dos compli
cados procedimentos adotados pelas agências oficiais america
nas de inteligência. E também se tornava alvo privilegiado de
atos de impostura estratégica.
A idéia de que alguma percepção oculta de um regime ou
de uma pessoa elimine a necessidade de investigação factual é
um ponto de partida arriscado para qualquer ação. O presi
dente Bush pode ter-se convencido de haver "entendido a
alma" de Vladimir Putin ao encontrá-lo em junho de 2001.5⁹
Sua impressão aparentemente foi modificada por aconteci
mentos posteriores, e caberia esperar que os desdobramentos
ocorridos no Iraque depois da queda de Saddam Hussein com
prometessem a confiança nos serviços de inteligência basea
dos na fé, mas isto está longe de ter acontecido. Em fevereiro
de 2004, o colunista neoconservador David Brooks reiterou

nas páginas do New York Times o ataque aos métodos dos ser
viços americanos de inteligência, escrevendo: "Durante déca

das, a comunidade americana de inteligência tem propagado


o mito de que detém métodos analíticos que precisam ser
mantidos absolutamente à parte do turvo mundo da políti
ca." Em vez de confiar num "bando de teóricos de brinquedo
ou funcionários especializados em avaliação de riscos", pros
seguia Brooks, "na hora de entender os capangas e as ameaças
deste mundo (...) eu daria ouvidos a qualquer um que tives
se lido um romance de Dostoievski nos cinco últimos anos".60

Mais uma vez, uma percepção esotérica da alma do regime é


apresentada como alternativa superior à trabalhosa análise
dos fatos.

A idéia neoconservadora de que é possível entender a vio


lência terrorista lendo os romances de Dostoievski é curiosa

mente irônica, já que o objeto da descrição do romancista é


precisamente a mentalidade dos próprios neoconservadores.

215
Estes consideram que a maior parte do que existe no mundo,
tal como se apresenta hoje, é incorrigivelmente ruim. Como
escreveu o analista neoconservador Michael Ledeen pouco
depois dos atentados de 11 de setembro, a "guerra ao terro
rismo" e a "revolução democrática global" se confundem:

Não devemos alimentar dúvidas quanto à nossa capacidade


de destruir as tiranias. É o que sabemos fazer melhor. É um
talento natural, pois somos o único país verdadeiramente
revolucionário do mundo, e o temos sido há mais de 200

anos. A destruição criativa é para nós uma segunda nature


za (...) Em outras palavras, chegou mais uma vez a hora de
exportar a revolução democrática. Aos que afirmam que isto
é impossível, cabe apenas lembrar a década de 1980, quando
tomamos a frente de uma revolução democrática global que
derrubou tiranos de Moscou a Johannesburgo.61

Temos aqui a reafirmação em termos neoconservadores


de uma frase célebre pronunciada no século XIX pelo anar
quista russo Bakunin: "A paixão pela destruição é uma pai
xão criativa." Um discípulo de Bakunin, o estudioso de
teologia Serguei Netchaiev, aplicou esta máxima em seu "Ca
tecismo de um revolucionário" (1868), no qual sustentava
que, em nome da revolução, os fins justificam os meios
inclusive a chantagem e o assassinato. Um ano depois, Netchaiev
assassinou um de seus camaradas por descumprir ordens.
Bakunin cortou relações com ele depois deste episódio, mas
Netchaiev revelara a lógica do projeto de Bakunin. O terror
era uma decorrência da meta da revolução total.
O projeto de democracia imposta militarmente exposto
por Ledeen tem uma lógica semelhante. Netchaiev nunca teve
a menor dúvida de que sua causa era a causa do povo, e Ledeen

216
dá por descontado que os países aos quais seja imposta uma
mudança de regime haverão de comemorar a derrubada de
seus governos. Caso não o façam, terão de ser expurgados
dos elementos retrógrados. Só então se poderá ter como cer
to que a democratização forçada será aceita pelo que é: a li
bertação da tirania. A tortura e o terror são aceitáveis se

contribuem para a guerra global contra o mal.


Esse catecismo neoconservador é a mais recente encar

nação do espírito revolucionário dissecado por Dostoievski há


um século e meio. Em seu romance Os demônios, ele traça um
perfil dos revolucionários russos da sua época e de seus com
panheiros de estrada na esquerda intelectual. Seu retrato de
Stepan Trofimovich Verkhovensky, o aristocrata radical bem
instalado que mata o tempo brincando de revolução, é uma
obra-prima de crueldade. Na busca de um novo mundo, os
revolucionários acabam como criminosos (como aconteceu
no caso de Netchaiev, cujo envolvimento num episódio de as
sassinato inspirou uma das tramas do romance). O sonho da
Utopia acaba no mais sórdido horror.
Dostoievski criticava em seu romance os revolucionários
de esquerda da Rússia do meado do século XIX. Como descri

ção dos movimentos radicais do período, o traço pode ser pe


sado, mas no relato da psicologia do espírito revolucionário,
o romance ainda hoje faz sentido. Observou o poeta e escri
tor polonês Czeslaw Milosz: "A Revolução Russa foi prevista
em Os demônios, como reconhecia abertamente Lunatcharski.”

Milosz passa então a criticar Dostoiévski, "o milenarista


messiânico russo",62 e não resta dúvida de que, sempre que
Dostoievski enveredava pela política de sua época, os resul
tados eram ridículos, quando não repulsivos. Sua convicção
de que a revivescência da espiritualidade russa seria capaz de
salvar o mundo era um tipo de pensamento messiânico da

217
pior espécie. E, no entanto, por ser ele próprio um milenarista,
Dostoievski entendia os riscos dos movimentos revolucioná
rios inspirados por crenças milenaristas.
Começando com objetivos limitados, os revolucionários
acabam muitas vezes aceitando a violência como instrumento
de expurgo do mal. Esta patologia é exemplificada pelos ideó
logos que têm formulado a política externa do governo Bush.
Tal como os iludidos visionários de Dostoievski, os neocon
servadores adotaram o recurso à força como meio de alcan
çar a Utopia.

218
5

Missionários armados

A idéia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um


pensador político é acreditar que basta a um povo entrar,
munido de armas, na terra de um povo estrangeiro para que
suas leis e sua constituição sejam adotadas. É da natureza
das coisas que o progresso da razão seja lento, e ninguém
gosta de missionários armados; a primeira lição da nature
za e da prudência consiste em rechaçá-los como inimigos. É
possível encorajar a liberdade, mas nunca gerá-la com uma
força invasora.

Maximilien Robespierre,
discurso no Clube Jacobino, Paris, 1792¹

Até certo ponto, as origens da guerra no Iraque sempre serão


obscuras. O motivo não é ela ter resultado de uma conspira
ção, como chegaram a acreditar alguns. Muitos objetivos
estratégicos foram apresentados para justificá-la, alguns apa
rentemente racionais. Mas quando vier a ser escrita a histó
ria da guerra, ficará evidente que nenhum dos grupos que a
apoiaram tinha metas viáveis. Se o governo Bush tinha al
guma estratégia, partia do princípio de que a mudança de

219
regime no Iraque atenderia aos interesses americanos, ao mes
mo tempo contendo o terrorismo e promovendo a democracia
na região; mas não se trata de aspectos de um mesmo pro
grama que possam ser concretizados simultaneamente. São
objetivos disparatados e conflitantes, e ao agir na suposição
de que eram um só o governo Bush revelava seu distancia
mento da realidade.

Não é possível instaurar a democracia liberal na maioria


dos países do Oriente Médio. Na maior parte da região, a alter
nativa é entre despotismo secular e domínio islâmico. Ao in
tentar a democratização forçada do Oriente Médio, o governo
Bush partia do princípio de que o resultado seriam regimes
como os Estados Unidos. Ignorou a probabilidade de que fos
sem democracias iliberais. Uma democracia iliberal repousa

na crença de que o bem comum fala por si mesmo. Qualquer


um que não seja corrupto nem esteja iludido apoiará as mes
mas políticas, de tal modo que não haverá necessidade de
proteger as liberdades individuais ou os direitos das minorias.
Basta que a vontade popular, identificada com o bem comum,
possa expressar-se plenamente. Na prática, o povo precisa de
orientação, que, na teoria de Rousseau, cabe ao legislador —
uma figura ambígua que o incita dos bastidores. O legisla
dor de Rousseau tem algo em comum com o grande aiatolá,
que modela o Irã teocrático com suas intervenções obscuras.
O regime que vigora nesse país é uma versão islâmica do
sonho iliberal de Rousseau, e é provável que esse tipo de
democracia venha a tomar o lugar dos regimes autoritários
restantes no Oriente Médio quando forem derrubados. O pro
cesso já está em andamento em boa parte do Iraque, onde vem
surgindo aos poucos uma teocracia popular dominada pelos
xiitas, nos moldes iranianos. Daqui a vinte anos, tudo indica
que a maior parte do Oriente Médio será governada por

220
versões islâmicas da democracia iliberal. Sob certos aspectos,
poderão ser regimes mais legítimos que os que vierem a ser
substituídos, e será necessário aceitá-los como tal se se qui
ser que tenham alguma perspectiva de dissolver parte das
forças que estão por trás do terrorismo. Com o tempo, al
guns dos países poderão evoluir na direção de algo mais pa
recido com as democracias pluralistas da Europa (das quais
uma variante parecia estar ressurgindo no Líbano, até que o
processo veio a ser descarrilado pela guerra). Mas esses paí
ses não serão clones de algum sistema político ocidental, e não
passa de fantasia a idéia de que desponta no horizonte um
"novo Oriente Médio" que aceitará os Estados Unidos como
modelo de governo.
A crença de que o terrorismo pode ser erradicado tam

bém é ilusória. Os Estados Unidos e outros países tentam con


vencer os países islâmicos da necessidade de se “modernizar",

ou seja, repetir o padrão de desenvolvimento dos países oci


dentais. Mas ignoram o fato de que sempre que houve tenta
tivas de impor um modelo ocidental de desenvolvimento em
países não ocidentais, estavam envolvidos atos de terror

em massa, ao passo que a própria Europa foi cenário no sé


culo XX de episódios sem precedente de assassinato de Estado.
O terror é parte integrante do moderno Ocidente. No caso do
Oriente Médio, todos os Estados modernos que acaso tenham
surgido como o Iraque de Saddam, que antes de ser des
truído por 13 anos de sanções econômicas e o subseqüente
ataque americano era um dos países árabes mais desenvolvi

dos também praticaram o terror. Ainda que pudesse ser


instaurada, a democracia liberal não seria capaz de pôr fim à
violência terrorista. Muitas democracias liberais o Reino

Unido, a Espanha, a Itália, a Alemanha, o Japão e os Esta


dos Unidos, por exemplo enfrentaram graves ameaças. Na

221
Rússia, o terrorismo se agravou desde a democratização, en
quanto na China permanece sob controle. Os processos políti
cos podem ajudar a enfrentar o terrorismo, mas a democracia
não é uma panacéia. Nas condições que prevalecem na maior
parte do Oriente Médio, as organizações terroristas não são
facções isoladas carentes de apoio popular: no Líbano, após o
mais recente conflito com Israel, o Hezbollah fala pela maio
ria da população, enquanto na Palestina o Hamas formou um
governo eleito. Em toda a região, o terrorismo é um subpro
duto de conflitos não resolvidos e talvez, em certos casos, sem
solução.

Entre esses conflitos regionais, o que opõe a Palestina a


Israel pode ser o mais intratável, mas também existe a amea
ça de sérios confrontos entre países islâmicos. A Arábia Saudita
rivali
e o Irã competem pela hegemonia no golfo Pérsico
dade que pode adquirir contornos perigosos se, como parece
provável, ambos os países se tornarem potências nucleares
em mais ou menos uma década e o redespertar xiita que
se seguiu ao aniquilamento de Saddam enfrentará séria re
sistência por parte dos regimes sunitas. Em muitos países, a
instabilidade política será acentuada pelo rápido crescimento
populacional. A população do golfo Pérsico dobrará em cerca
de vinte anos, o que deixará no desemprego muitos milhões de
jovens do sexo masculino de mentalidade moldada pelos
ensinamentos fundamentalistas. Em tais condições, a paz é
inatingível. Talvez seja possível obter períodos de trégua me
diante uma paciente diplomacia e o estabelecimento de canais
de comunicação com os regimes islâmicos com alguma in
fluência sobre as milícias irregulares comprometidas com a
violência terrorista. Mas a estabilidade é uma perspectiva re
mota, e embora seja possível reduzi-la, a violência terrorista
parece ter características crônicas.

222
A instauração de uma democracia liberal e a eliminação
do terrorismo são objetivos distintos, e nenhum dos dois pode
ser alcançado na maior parte do Oriente Médio. Qualquer
avanço em direção a uma maior estabilidade na região é difi
cultado quando esses objetivos são confundidos e mistura
dos aos interesses geopolíticos americanos. No Iraque, esta
confusão teve resultados previsivelmente catastróficos.

IRAQUE: UMA EXPERIÊNCIA UTÓPICA NO


SÉCULO XXI

Com a doutrina da guerra preventiva, o governo Bush foi muito


além dos credos utópicos dos fundadores da América, e mes
mo de Wilson, Roosevelt e Reagan. Trata-se, essencialmente,
de uma doutrina da guerra infinita.

David Rieff²

Muitos impulsos levaram à guerra no Iraque, nem todos


conscientes ou racionais. O objetivo da invasão era garantir
o abastecimento energético americano; ao mesmo tempo, pre
tendia-se transformar o Iraque num modelo de democracia
liberal para o resto da região. O primeiro desses objetivos ficou
comprometido pela guerra, ao passo que o segundo era inviá
vel. Um terceiro - desmantelar o programa de armas de des
truição em massa de Saddam Hussein serviu de pretexto.
-

Numa tentativa de legitimar um ato de agressão, o go


verno Bush, com apoio do governo Blair, apresentou o ata
que ao Iraque como reação a uma ameaça representada pelo
desenvolvimento de um programa de armas, mas o argumen
to era incoerente. Se um programa de armas estava sendo

223
desenvolvido, a questão podia ser tratada sem guerra, mediante
procedimentos agressivos de inspeção e outros métodos. Se
Saddam já dispunha de armas biológicas ou químicas, não
havia por que imaginar que representassem um perigo para
os Estados Unidos: como concluíam análises divulgadas pela
CIA, ele provavelmente só as utilizaria contra os Estados Uni
dos no contexto de uma invasão americana. Uma conseqüên
cia previsível da guerra foi deixar claro para outros "Estados
párias" que melhor seria disporem das armas de destruição
em massa de que Saddam carecia - caso contrário, como o
Iraque, estariam vulneráveis a um ataque americano. Em vez
de contribuir para diminuí-la, a guerra acelerou a prolifera
ção das armas de destruição em massa. Na verdade, não ha
via um argumento convincente em favor da guerra em
termos de segurança americana ou global.
Os objetivos da guerra eram outros. Entre as finalidades
geopolíticas enumeradas pelos neoconservadores estava a ne
cessidade de que os Estados Unidos se dissociassem da Arábia

Saudita, considerada cúmplice do terrorismo pelo governo


americano. Para isto, Washington precisava de outra fonte
segura de petróleo no golfo Pérsico, além de uma outra pla
taforma para suas bases militares. O Iraque parecia preen
cher esses requisitos. Controlando uma porção crucial das
reservas petrolíferas do golfo, os Estados Unidos poderiam
desvincular-se de um aliado em que não mais confiavam. Ao
mesmo tempo, se asseguravam de continuar sendo a potência
dominante na região, capaz de limitar as incursões da China,

da Índia e de outros países necessitados de fontes de energia.


Eram projeções desde logo inverossímeis. A produção de
petróleo no Iraque nunca chegou, desde a guerra, aos níveis
que alcançara sob Saddam, e os preços aumentaram muito.
Na anarquia que prevalece na maior parte do país - a região

224
curda, onde não há tropas americanas, está em paz - seria
impossível retomar os níveis anteriores de produção. Com o
tempo, a produção cairá ainda mais, em virtude do declínio
dos investimentos e dos custos de proteção das instalações.
Em conseqüência da guerra no Iraque, o abastecimento de pe
tróleo dos Estados Unidos está mais incerto que antes. E de
qualquer maneira a suposição de que, depois de Saddam, o
Iraque aceitaria a transferência de suas reservas de petróleo
para mãos americanas era ilusória. Por que haveria um Iraque
democrático se isto fosse possível - de aceitar a expropria
ção de seu principal recurso natural? Até mesmo como exer
cício de realpolitik, a guerra era um empreendimento utópico.
A mudança de regime no Iraque fazia parte de uma guer
ra global por recursos que teve início logo depois do colapso
soviético. A chamada primeira guerra do Golfo denomi
-

nação que passa por cima do bárbaro conflito que opôs o


Iraque ao Irã alguns anos antes — nada mais era que uma
guerra de disputa de recursos. Nenhuma das partes envolvidas
alegava que tivesse algo a ver com a disseminação da de
mocracia ou o combate ao terrorismo. O objetivo era exclu

sivamente garantir o abastecimento de petróleo. Ao longo da


década de 1990, era este um dos principais objetivos da polí
tica americana, subjacente ao estabelecimento de bases mili
tares na Ásia central e determinante da aproximação nas
relações com a Rússia.

Ao longo do século XX, a geopolítica a luta pelo con


-

trole dos recursos naturais - foi um dos mais poderosos fato


-

res determinantes dos conflitos entre Estados. A preocupação


de garantir o abastecimento de petróleo foi uma das princi
pais questões na Segunda Guerra Mundial, contribuindo para
levar Hitler a invadir a União Soviética e os japoneses a ata
car Pearl Harbor. A mesma questão estava por trás da fracas

225
sada tentativa britânica de se apropriar do canal de Suez em
1956. Promovida pelos britânicos e pelos americanos, a derru
bada do presidente secularista iraniano Mohamad Mussadeq
em 1953, na chamada "Operação Ajax", executada pela CIA,
tinha o objetivo declarado de impedir que o Irã caísse cada
vez mais na órbita de influência soviética. O objetivo princi

pal era reafirmar o controle ocidental do petróleo iraniano.


As rivalidades do período posterior à Guerra Fria se de
senvolveram contra um pano de fundo diferente. Os equilí
brios de poder entre produtores e consumidores de energia
estão mudando, mostrando-se os países produtores de petró
leo em condições de ditar os termos em que negociam com o
resto do mundo. A Rússia se vale de sua condição de fornece
dora de petróleo e gás natural para assumir posição mais fir
me na política global, enquanto o Irã se tem revelado um
candidato à hegemonia no Golfo. Por trás dessas mudanças
está o fato de que as reservas globais de petróleo vêm escas
seando, enquanto a demanda aumenta. O petróleo não está
acabando, pura e simplesmente; mas a teoria do "pico de pe
tróleo" dá a entender que a produção mundial pode estar pró
xima do máximo. A teoria é levada a sério pelos governos.

Divulgado em fevereiro de 2005, um relatório do Departa


mento de Energia americano, intitulado Produção mundial de
petróleo no pico: impacto, atenuação e gestão de risco, conclui:
"O mundo nunca enfrentou um problema como este. Sem um
maciço esforço de atenuação mais de uma década antes de se
chegar ao pico, o problema será generalizado, e não apenas
temporário. As anteriores transições energéticas (madeira para
carvão e carvão para petróleo) foram graduais e evolutivas;
o pico do petróleo será abrupto e revolucionário."3 Quando a
crescente escassez de petróleo vem associada a uma industria
lização cada vez mais acelerada, o resultado não pode deixar

226
de ser a intensificação da rivalidade pelo controle das rema
nescentes reservas mundiais. A geopolítica do pico do petró
leo está determinando as políticas das grandes potências.4
O papel do petróleo como suprema riqueza foi reconhecido
pelo mais poderoso estrategista do governo Bush. Em discurso
pronunciado no Institute of Petroleum em 1999, quando era
o principal executivo da Haliburton, Dick Cheney observou:

A produção de petróleo é naturalmente uma atividade que


tende a se exaurir. Anualmente, é necessário encontrar e de
senvolver reservas equivalentes à produção simplesmente
para permanecer no mesmo lugar, simplesmente para man
ter o equilíbrio. Isto se aplica às empresas, no sentido mais
amplo, assim como ao mundo (...) De onde virá, então, o

petróleo? O petróleo se distingue por seu caráter determinan


temente estratégico. Não estamos falando de flocos de mi
lho nem de roupas esportivas. A energia é absolutamente
fundamental para a economia mundial. A guerra do Golfo
foi um reflexo dessa realidade. O grau de envolvimento dos

governos torna o petróleo um produto sem equivalente (…..)


Os governos e as empresas nacionais de petróleo com toda
evidência controlam cerca de 90 por cento das reservas. O
petróleo continua sendo basicamente um negócio dos go
vernos. Embora muitas outras regiões ofereçam excelentes
oportunidades nesse terreno, o Oriente Médio, com dois ter

ços do petróleo mundial e os custos mais baixos, ainda é a


mais cobiçada.5

As observações de Cheney evidenciam um claro entendi


mento da questão do pico do petróleo, que se refletiu na de
cisão do primeiro governo Bush de subordinar a política
energética à segurança nacional. Não resta muita dúvida de
que o petróleo foi um fator fundamental na decisão de ir à

227
guerra no Iraque. Os Estados Unidos trataram de instaurar
um regime que garantisse seu abastecimento de petróleo e
deixasse clara sua determinação de controlar as reservas do
golfo Pérsico como um todo.
A aventura foi por terra pela impossibilidade de estabele
cer um Estado eficiente no lugar do que foi demolido. Já é de
senso comum considerar que o desastre poderia ter sido evi
tado se fosse planejada a reconstrução no pós-guerra. Esta
visão é corroborada pelo fato de que se chegou a fazer algum
planejamento por exemplo, no documento produzido pelo
Departamento de Estado americano, em 2002, sobre o futu
ro do Iraque —, mas foi ignorada por Bush e Rumsfeld.6 Mas 1

a crença de que o caos que se seguiu à invasão americana po


deria ter sido evitado não tem fundamento. Ela parte do prin
cípio de que os objetivos da guerra eram viáveis, quando, na
verdade, não eram. Se existisse então algo parecido com uma
preocupação realista de antecipar os acontecimentos, a guer
ra não teria sido iniciada. Instaurar no país uma democracia
liberal era impossível, ao passo que a derrubada do regime
significava a destruição do Estado.
Nada disso pôde ser visto apenas a posteriori. A insurgência
que se seguiu aos êxitos militares iniciais era amplamente es
perada,7 e a história do Iraque já demonstrou que os riscos
de um governo da maioria no país já foram compreendidos
há gerações. Conhecido inicialmente como Mesopotâmia, o
Estado do Iraque é em grande medida obra da diplomata bri
tânica Gertrude Bell, que — juntamente com T. E. Lawrence
(Lawrence da Arábia) e o funcionário colonial britânico Harry
St. John Philby, pai do espião soviético Kim Philby — cons
truiu-o a partir de três províncias do extinto Império Oto
mano, estabelecendo-o em 1921 como um reino hachemita.
Com a queda dos otomanos em 1919, Bell a primeira

228
mulher a exercer funções políticas no serviço colonial britâ
nico foi nomeada secretária do alto comissário britânico,
Percy Cox, e deu início ao trabalho de construção de um novo
Estado. Em 1920, Bell encontrou-se com Seyyd Hasan al-Sadr,
a personalidade de maior relevo entre os xiitas iraquianos e
bisavô de Moqtada al-Sadr, comandante do Exército Mahdi,

que se rebelou contra a ocupação americana em 2004. Ela


sabia que a instauração de um governo democrático signifi
caria um regime teocrático: "Não tenho nem sombra de dú
vida de que a autoridade final deverá ficar nas mãos dos

sunitas, não obstante sua inferioridade numérica, pois de


outra maneira teremos um Estado teocrático, o que é o pró
prio demônio." Um de seus principais objetivos era "impedir
que os religiosos xiitas assumam o controle das questões pú
blicas", o que exigia que o domínio fosse exercido pela elite
sunita. Os britânicos tinham interesse estratégico em man
ter o controle dos campos de petróleo do norte do país. Esses
dois objetivos podiam ser alcançados simultaneamente pela
criação de um reino em que os xiitas fossem mantidos longe
do poder e aos curdos fosse negado um Estado independente.
Um dos motivos pelos quais Bell pôde erigir o novo reino
foi o fato de ser profundamente versada na cultura da região.
Fluente nos idiomas árabe e persa, ela traduziu para o inglês
a poesia do místico-libertino sufi Hafiz. Fundou o Museu
Arqueológico de Bagdá, mais tarde transformado no Mu
seu Nacional de Antigüidades, o qual, depois de quase oitenta
anos de conservação dos tesouros do país, veio a ser saquea
do após a invasão americana. O saque - ocorrido quando só
o Ministério do Petróleo, entre as instituições governamen
tais, estava sob controle americano mereceu de Donald

Rumsfeld o seguinte comentário: "Essas coisas acontecem."8


A partir do início da década de 1920, Bell se desvinculou da

229
política britânica no país. Em 1926, ignorada pelo serviço
colonial e já sem influência nos acontecimentos, ela tomou
uma overdose de soníferos em Bagdá, onde foi enterrada no
cemitério britânico."

Bell sabia que o Estado por ela criado jamais seria demo
crático. Nas regiões xiitas, a democracia significaria a instau
ração de uma teocracia, nas áreas sunitas, conflitos sectários,

e separatismo no norte curdo. O reino criado por Bell perdu


rou até que oficiais nasseristas assassinaram a família reai

em 1958, dois anos depois do colapso do poderio britânico


na região, causado pela malfadada tentativa franco-britâni
ca de assumir o controle do canal de Suez. O despotismo de
Saddam Hussein baseava-se nas mesmas realidades de divi

são sectária e domínio sunita que haviam escorado o reino


inventado por Bell. A derrubada do regime significava o ani
quilamento do Estado que lhe dava sustentação e a criação
da teocracia contra a qual Bell advertira. Embora nunca che
gasse a apresentar o mesmo grau de totalitarismo, o Iraque
de Saddam era um regime iluminista nos moldes da Rússia
soviética. Era decididamente secular, o único Estado do golfo
Pérsico que não era governado pela charia islâmica, mas sim
por um código jurídico de estilo ocidental, além de se mos
trar implacavelmente hostil ao islamismo fato reconhecido
-

pelos Estados Unidos na década de 1980, quando forneceram


a Saddam armas e informações de inteligência na guerra
contra o Irã.

O Iraque sempre foi um Estado heterogêneo, com pro


fundas divisões internas. Apesar de mais repressivo, o regi
me de Saddam se assentava nas mesmas bases que o reino de
Bell. Saddam conseguiu manter o Iraque coeso, ao mesmo
tempo que reprimia a maioria xiita, os curdos e outros seto

res da população. A derrubada de seu regime serviu para

230
emancipar esses grupos, deixando o Estado iraquiano sem
poder nem legitimidade. A democracia era impossível, pois
exigia, entre as comunidades constituintes da sociedade, um
mínimo de confiança, o que não era o caso. As minorias pre
cisam estar convencidas de que não serão as eternas perde
doras, caso contrário, fazem secessão para criar um Estado
próprio. Cabia esperar que os curdos seguissem esse cami
nho, e os cinco milhões de sunitas certamente resistiriam ao

domínio da maioria xiita. O fosso entre esses grupos era por


demais profundo para que as vacilantes estruturas do Iraque
pudessem sobreviver. Quase sempre, os Estados que subita
mente se tornam democráticos tendem a se esboroar, como

aconteceu na URSS e na antiga Iugoslávia. Não havia qual


quer razão para imaginar que no Iraque fosse diferente, e no
momento da sórdida e caótica execução de Saddam Hussein
em dezembro de 2006, o Estado iraquiano já deixara de existir.
Embora em todas as suas etapas tenha sido associado a

uma forma enlouquecida de realpolitik, o projeto neocon


servador de mudança de regime no Iraque é um exemplo clás
sico de espírito utópico em ação. Para os neoconservadores
que conceberam a guerra, a democracia simplesmente bro
taria da derrubada da tirania. Em caso de dificuldades na tran

sição, seria possível resolvê-las pela aplicação de princípios


universais vale dizer, americanos. Donde a construção, que
se seguiu, de uma estrutura federalista imaginária. O siste
ma concebido para o Iraque manifestava uma confiança em
constituições escritas que não se coaduna com a história dos
Estados Unidos, que só alcançou a unidade nacional por meio
da guerra civil.
Na prática, o governo Bush não sabia para onde se vol
tar. Semanas antes da invasão, não tinha a menor idéia de

como o país seria governado. As opiniões oscilavam entre a

231
designação de um governador de caráter militar, segundo o
modelo do Japão no pós-guerra, e a promoção de uma tran
sição imediata para a democracia. Donald Rumsfeld antes
um burocrata militar e um nacionalista americano que pro
priamente um neoconservador nunca tivera qualquer in
teresse em levar a democracia ao Iraque, mas também jamais

propusera qualquer estratégia para o governo do país após a


derrubada do regime de Saddam. A substituição de Saddam
por um governador militar — como chegaram a sugerir cer
tos funcionários britânicos - não era uma alternativa rea

lista, pois significava o estabelecimento, na realidade, de uma


administração colonial de viabilidade altamente improvável
a longo prazo e que, de qualquer maneira, os Estados Unidos
não se dispunham a aceitar. Para uma corrente muito forte
no governo Bush, a guerra fora desde o início uma maneira
de impor ao país a democracia de estilo americano. Era parti
cularmente o caso de Paul Wolfowitz. James Mann, autor de

um estudo sobre os autoproclamados "Vulcões" o círculo


de estrategistas de defesa que formavam o gabinete de guer
ra de George W. Bush —, escreveu que Wolfowitz
-

tornou-se o funcionário governamental mais estreitamente

ligado à invasão do Iraque. Em plena invasão, os america


nos que trabalhavam na zona de guerra passaram a cha
mar o subsecretário de Defesa de Wolfowitz da Arábia; a

designação dá idéia da intensidade, paixão e até mesmo, ao


que parecia às vezes, do fervor romântico com que ele per
seguia os objetivos de derrubada de Saddam Hussein e pro
moção da democracia no Oriente Médio. 10

Para Wolfowitz, principal arquiteto da guerra, a invasão


seria o prelúdio da democratização de toda a região. Na prá

232
tica, a incompetência do procônsul de Bush em Bagdá, Paul
Bremer, foi tão arrasadora que logo se passou a considerar
que uma súbita evolução do Iraque para a democracia seria a
única maneira de o governo americano pretender um míni
mo de legitimidade.
Em seus primeiros comunicados, em maio de 2003, Bremer
dissolveu o exército iraquiano e afastou funcionários públi
cos baathistas, entre eles professores universitários e primá
rios, enfermeiras e médicos. O correspondente do Washington Post
no Pentágono, Thomas E. Ricks, assim dava conta da decisão
de Bremer:

(...) no dia 23 de maio, Bremer baixou o Decreto nº 2 da APC

(Autoridade Provisória da Coalizão), Dissolução de Institui


ções Iraquianas, eliminando formalmente vários grupos: as
forças armadas iraquianas, que contavam 385.000 pessoas;
a equipe do Ministério do Interior, que chegava à surpreen
dente quantidade de 285.000 pessoas, pois abrangia a polícia
e as forças internas de segurança; e as unidades da seguran
ça presidencial, que somavam cerca de 50.000 homens (…..)
Muitos desses homens estavam armados.11

O desmantelamento das forças iraquianas foi promovido


depois do Decreto nº 1 baixado por Bremer Desbaathi
-

ficação da Sociedade Iraquiana, proibindo que dirigentes


do Partido Baathista ocupassem cargos públicos. Juntos, os
dois decretos que, segundo Ricks, enfrentaram forte opo
-

sição do chefe da CIA em Bagdá deixaram mais de meio


milhão de pessoas desempregadas. Num país em que as famí
lias contam em média seis pessoas, isto significava que mais
de dois milhões e meio - cerca de um décimo da população
- perdiam sua fonte de renda. Bremer aparentemente bai

233
xou esses decretos aconselhado por Ahmed Chalabi, que pre
tendia instalar aliados nos cargos deixados vagos.
Os decretos de Bremer tiveram como conseqüência des
mantelar o Estado iraquiano. A polícia e as forças de segu
rança deixaram de ser instituições nacionais, caindo nas mãos
de milícias sectárias, que passaram a usá-las para seqüestrar,
torturar e matar. Fora da Zona Verde a área de alta segu
rança do centro de Bagdá onde estão localizados o governo
iraquiano apoiado pela coalizão e as embaixadas americana e
britânica —, o país transformou-se numa grande anarquia.
No fim de 2006, cerca de cem pessoas eram mortas diaria
mente e, segundo uma estimativa da ONU, a tortura era pior

que na época de Saddam.¹2


A noção, favorecida pelo governo Bush, de que o Iraque
dispõe de um novo governo que está reconstruindo o país não
tem fundamento na realidade. O governo apoiado pelos Es
tados Unidos é um verdadeiro campo de batalha de forças
sectárias, ao passo que o Estado iraquiano desapareceu no bu
raco da história. Se Saddam tivesse sido assassinado ou mor

rido de causas naturais, o regime muito provavelmente teria


sobrevivido. Ao impor uma mudança de regime, o governo
Bush gerou um Estado inviável, com um governo frágil e for
temente dependente das milícias xiitas fato que é ignorado
-

nas críticas histriônicas do próprio Bush às políticas por ele


adotadas. O caos daí resultante deixou o objetivo declarado
da invasão encontrar e destruir as supostas armas de des
truição em massa de Saddam - fora de qualquer alcance. Se

Saddam dispunha de armas químicas ou biológicas - o que


certamente foi o caso na década de 1990, elas desaparece
ram juntamente com o Estado iraquiano.
Há quem considere que o fato de as tropas americanas não
terem sido capazes de pacificar o Iraque se deve à insuficiên

234
cia dos contingentes. O plano de guerra traçado por Donald
Rumsfeld certamente falhou redondamente ao não prever a
insurgência que se seguiu ao colapso das forças de Saddam.
Rumsfeld- que em seu período no governo preconizava en
faticamente uma "revolução nas questões militares", com alto
nível de dependência de tecnologias e emprego limitado de
forças terrestres era detestado pelos militares por impor
uma estratégia impraticável na guerra, tendo sido o primei
ro a ser sacrificado quando ela foi rejeitada pelos eleitores ame
ricanos. Mas a mobilização de contingentes maiores teria feito
pouca diferença. Apesar de ter mobilizado no país mais de
400.000 homens depois da Primeira Guerra Mundial, a Grã
Bretanha não conseguiu impor sua vontade pela força mili
tar; quando alguma ordem veio a ser estabelecida, foi por
meios políticos. Em 1914, os britânicos invadiram a Meso
potâmia em parte para assegurar o abastecimento de petró
leo bruto para seus navios de guerra, cujo abastecimento
havia sido mudado do carvão para motores movidos a óleo,
mais eficientes, quando Winston Churchill exercia as funções
de primeiro lorde do Almirantado. A ocupação não foi nada
tranqüila: entre dezembro de 1915 e abril de 1916, a Força
Expedicionária Britânica da Mesopotâmia sofreu mais de
20.000 baixas nas mãos das tropas otomanas em Kut-al
Amara, recorrendo posteriormente à destruição de aldeias com
bombardeios aéreos (tática que os britânicos também utili
zaram no Afeganistão na década de 1920).

O Estado do Iraque foi constituído para se conseguir uma


paz que não podia ser alcançada pelo emprego da força mili
tar. Em contraste, as operações militares americanas no Iraque
não têm sido lastreadas em objetivos políticos viáveis. No iní
cio de 2007, mais de 3.000 americanos haviam sido mortos

número maior que o das vítimas do 11 de setembro - e

235
mais de 20.000, feridos, em nome de objetivos que, se al
gum dia chegaram a ser formulados de forma coerente, eram
inalcançáveis. As tropas americanas cometeram erros e al
guns crimes; mas a culpa pela derrota americana não pode
recair sobre os militares incumbidos de uma missão impos

sível. A responsabilidade é dos dirigentes políticos que con


ceberam a missão e ordenaram sua execução.
É verdade que as tropas americanas não estavam prepa
radas para enfrentar uma guerra de contra-insurgência como
a que teve início depois da ocupação de Bagdá. Depois das hu
milhantes derrotas no Vietnã e na Somália, a doutrina mili

tar americana tem se preocupado com a "proteção das tropas"


e "com as missões de shock and awe ("choque e pavor"). Na

prática, isto significa matar qualquer habitante do país ocu


pado que possa representar uma ameaça às tropas americanas
e submeter o inimigo pelo uso de um poder de fogo esma
gador. Eficazes nas primeiras etapas da guerra, quando o
inimigo eram as tropas de Saddam, essas estratégias se
mostram contraproducentes quando o inimigo vem a ser a
maioria da população, como é o caso atualmente. O presente
conflito é do tipo chamado de "guerra no meio do povo" pelo
general Rupert Smith, que comandou a 1ª Divisão Blindada
britânica na guerra do Golfo, as tropas de manutenção da paz
da ONU em Sarajevo e o exército britânico na Irlanda do Norte
entre 1996 e 1998.13 Num conflito dessa natureza, contingen
tes maiores não fazem muita diferença e o emprego de poder
maciço é inútil ou contraproducente. A simpatia que certos
setores da população acaso tivessem inicialmente pelas tro
pas americanas de ocupação evaporou-se depois da destrui
ção da cidade de Fallujah no início de 2004. Envolvendo a

utilização de bombas de fragmentação e armas químicas (um


tipo de fósforo branco, ou "napalm aperfeiçoado")¹4 em ope
236
rações de shake and bake ("agitar e assar") contra a popula
ção da cidade, foi um ato comparável à destruição da capital
chechena, Grozni, por tropas russas. Em termos militares,
foi um fracasso dias depois, os insurgentes capturaram
uma cidade maior, Mosul, onde se apoderaram de grandes
quantidades de armas -, demonstrando um desrespeito pela
vida dos iraquianos que contribuiu para alimentar a insur
gência. Falando em abril de 2004 com a condição de não ser
identificado, um alto oficial britânico comentou: "Minha
opinião, e também da cadeia britânica de comando, é de que
a violência empregada pelos americanos é desproporcional à
ameaça enfrentada. Eles não vêem o povo iraquiano da mes
ma maneira que nós. Consideram que são Untermenschen."15
O recurso à tortura em Abu Ghraib seguia um padrão bem
conhecido. No ano que se seguiu à queda de Saddam, qual
quer um podia acabar sendo vítima. Milhares de pessoas fo
ram capturadas nas ruas e submetidas a abusos sistemáticos.
Agindo desta maneira, as tropas americanas seguiam um ca
minho já muito percorrido. A tortura foi amplamente usada
pelos russos na Chechênia, os franceses na Argélia e os britâ
nicos no Quênia, na década de 1950. Ao contrário desses pre
cursores, que usavam métodos de tortura física extremamente

dolorosa, os interrogadores americanos davam preferência à


pressão psicológica, especialmente à humilhação sexual. Os
métodos de tortura utilizados no Iraque focavam a cultura
das vítimas, agredidas não só como seres humanos, mas tam
bém como árabes e muçulmanos. Recorrendo a essas técni
cas, os Estados Unidos imprimiam na população uma imagem
indelével da perversidade americana, garantindo que nenhum
regime apoiado pelos americanos possa um dia ter alguma
legitimidade no Iraque.

237
As autoridades militares americanas condenaram os abu

sos cometidos em Abu Ghraib. Mas o fato é que, embora apa


rentemente tenha enfrentado resistência por parte de setores
do exército, a tortura não se deu por acidente ou indisciplina.
Desde o início da "guerra ao terrorismo", o governo Bush
decidiu ignorar as leis internacionais sobre o tratamento de
prisioneiros. Sustentava que os integrantes de organizações
terroristas eram combatentes ilegais sem direito à proteção
da Convenção de Genebra. Os detidos no campo de concen

tração de Guantánamo se enquadram nessa categoria, o mes


mo se aplicando aos talibãs e aos suspeitos da al-Qaeda
capturados no Afeganistão. Fora do alcance do direito inter
nacional, eles ficavam sujeitos à tortura. No Iraque, o gover
no Bush esquivou-se às leis internacionais de outra forma. A

aplicação de medidas de segurança em Abu Ghraib e outras


instalações americanas de detenção era confiada a empresas
privadas isentas das leis militares ou da Convenção de Gene
bra. Na verdade, o governo Bush gerou um espaço à margem
da lei no qual os abusos podiam ser cometidos impunemente.
A tortura em Abu Ghraib não resultava de desmandos de al

guns poucos oficiais. Era conseqüência de decisões tomadas


no mais alto nível da liderança americana.

Desde os episódios de Abu Ghraib, o governo Bush tem


persistido na defesa do emprego da tortura, embora os juízes
militares, a CIA e os militares americanos continuem a se opor
a ela. Em fevereiro de 2006, o principal responsável pelo com
bate ao terrorismo na CIA, Robert Grenier, foi afastado por se
opor à tortura e às "rendições especiais". 16 Informou-se que
a rede de cárceres secretos criada pelo governo para abrigar
prisioneiros a eles enviados no contexto do programa de ren
dição especial (no qual os suspeitos são sequestrados e leva
dos para países onde possam ser torturados sem problemas)

238
pode ter sido desativada porque a CIA-descrente da eficácia
da tortura e temendo que os oficiais que a praticam venham
a ser processados recusou-se a dar prosseguimento aos
-

interrogatórios. Importantes juízes militares se recusaram a

assinar uma declaração de apoio às práticas de "interrogatório


coercitivo" adotadas por Bush.¹7 Como no caso dos dados de
inteligência usados pela administração federal sem verifica
ção, a decisão de recorrer à tortura enfrentou resistência em

todas as principais instituições do governo americano, e, como


acontecera antes, a presidência foi em frente com suas políticas.
O desastre no Iraque foi apressado pela disposição de usar
métodos desumanos e contraproducentes. Alguns desses er
ros talvez fossem evitáveis, mas já se instaurara no governo
Bush um padrão de incompetência arrogante. Ele fechava os
olhos às recomendações de setores do governo tecnicamente
capacitados, como os militares, a CIA e o Departamento de
Estado. Preferia dar ouvidos aos elementos da própria admi
nistração com pontos de vista caudatários do programa
neoconservador, entre eles a Agência de Planos Especiais. Mas
a imagem do Iraque do pós-guerra pintada pelos neoconser
vadores era uma trama de desinformação e auto-engano, ao
passo que a disposição de recorrer a meios inaceitáveis para
alcançar fins impossíveis evidenciava o que pode haver de mais
ilusório em matéria de espírito utópico.
A facilidade com que uma avaliação absurdamente irreal
das condições no Iraque veio a ser aceita na América tinha

várias explicações. A opinião pública só aceitou a guerra de


pois de uma campanha de desinformação. Foi convencida da

existência de uma ligação entre Saddam Hussein e a al-Qaeda,


quando se sabia que ela não existia, e informada de que o re
gime de Saddam estava ativamente empenhado num progra
ma de armamentos, sobre o qual não havia qualquer prova

239
digna de crédito. Os próprios neoconservadores que orques
traram a campanha tinham a visão toldada por ilusões, al
gumas inerentes à sua forma de pensar. Julgavam que os
métodos necessários para promover a liberdade eram os mes
mos em toda parte: as políticas a serem promovidas no Iraque
não diferiam das que haviam sido usadas para disseminar a
liberdade em antigos países comunistas. Mas o que é factível
às margens do Danúbio pode não ser possível no Eufrates -
mesmo supondo que houvesse paz no Iraque, como aconte
cia na maioria dos países da Europa pós-comunista e essa

ardente crença neoconservadora num modelo universal vi


nha acompanhada de profunda indiferença pela história do
país. Se as outras culturas não passam de etapas no caminho
para uma civilização global que já existe nos Estados Unidos,
não é preciso entendê-las, já que logo farão parte da Améri
ca. A conseqüência desse obstinado universalismo é o estabe
lecimento, entre a América e o resto da humanidade, de uma
barreira intransponível que impede qualquer envolvimento
mais sério num processo de construção nacional. 18
No Iraque, esse desprezo pelo fator cultural chegou a ex
tremos surrealistas. Na segurança da Zona Verde, beneficiários
de períodos sabáticos de Washington - alguns provenientes de
institutos acadêmicos neoconservadores planejavam o
futuro do Iraque completamente alheios a qualquer noção do
caráter absurdo de seus planos. Se os objetivos do governo
americano fossem de todo viáveis, seria apenas depois de mui
tas décadas de ocupação. Pelo contrário, o impossível foi
conseguido em questão de poucos meses. Os missionários ar

mados que mandaram tropas americanas para o Iraque es


peravam uma conversão instantânea da população, mas
assistiram apenas à rejeição das tropas como inimigos. Dois
séculos depois, em pleno Oriente Médio, era mais uma vez

240


corroborada a advertência de Robespierre aos camaradas
jacobinos quanto aos riscos do projeto napoleônico de expor
tar a revolução para toda a Europa pela força das armas.
O Iraque é apenas o exemplo mais extravagante de uma

tendência na política externa voltada para o restabelecimento,


sob disfarce liberal, de algo semelhante aos impérios europeus
do passado. Desse ponto de vista, a derrubada da tirania no
Iraque não era apenas uma tentativa americana de assegu
rar a hegemonia no Oriente Médio. Era o início de um novo
tipo de imperialismo pautado por uma concepção liberal dos
direitos humanos.

LIBERALISMO MISSIONÁRIO,
IMPERIALISMO LIBERAL

O humanitário, como o missionário, é freqüentemente um ini


migo irredutível do povo que pretende amparar, pois não tem
suficiente imaginação para se solidarizar com suas reais ne

cessidades nem bastante humildade para respeitá-las como


se fossem suas. Arrogância, fanatismo, intrusão e imperia
lismo podem então fantasiar-se de filantropia.

George Santayana¹⁹

A configuração de idéias e movimentos que levou ao ruinoso


envolvimento da América no Iraque não abrangia apenas uma
mistura dos utopistas neoconservadores, fundamentalistas
armagedonistas e videntes straussianos até aqui examinados.
Esse coquetel exótico e altamente tóxico de crenças, nenhuma
delas assentada em qualquer realidade verificável ou mesmo
plausível, tinha um outro ingrediente não menos perigoso:

241
um certo "imperialismo liberal" baseado nos direitos huma
nos. Os neoconservadores conseguiram apoio para a mudança
de regime no Iraque e possivelmente em outros países do
Oriente Médio porque o movimento podia ser considerado
uma aplicação de ideais liberais de autodeterminação e demo
cracia. Os liberais insistem em que a legitimidade de um go
verno depende do respeito que manifesta pelos direitos dos
cidadãos. Quando não dá provas concretas neste sentido, ele
pode ser combatido e derrubado pela própria cidadania ou
-

por uma força externa. Os direitos humanos se sobrepõem à


soberania dos Estados, e quando sofrem grave violação, ou
tros Estados - agindo em nome de uma "comunidade inter
nacional", na terminologia criada por Blair em seu discurso
de 1999 em Chicago - têm o direito e mesmo o dever de in
tervir para protegê-los.
Este ponto de vista parecia corroborado pelas intervenções
humanitárias na década de 1990, as quais, embora não
chegassem a impedir algumas das piores atrocidades, conse
guiram impor a paz na antiga Iugoslávia, ainda que preca
riamente. A guerra nos Bálcãs levou muitos liberais a apoiar
o ataque ao Iraque, como uma forma de criar uma nova or
dem mundial. Ainda hoje, alguns continuam acreditando que
os desastrosos resultados não comprometem o acerto das
intervenções militares para derrubar uma tirania. Esse tipo
de intervenção representa uma versão liberal do imperialis
mo, como tem sido reconhecido por alguns de seus mais in
fluentes adeptos. Escrevendo no New York Times três meses
antes da invasão do Iraque, Michael Ignatieff advertia:

O império da América não é como os impérios do passado,


assentados na conquista, nas colônias e no domínio do ho
mem branco (...) O império do século XXI é uma nova in

242
venção nos anais da ciência política, uma versão light do im

pério, uma hegemonia global que tem como ornamentos o


mercado livre, os direitos humanos e a democracia, impos
tos pelo poderio mais impressionante que o mundo já co
nheceu (...) A mudança de regimes é uma tarefa imperial por

excelência, pois parte do princípio de que os interesses do


império justificam passar por cima da soberania de um Es
tado. O governo Bush perguntaria: Que autoridade moral
pode ter um soberano que assassina e promove a limpeza
étnica em seu próprio país, invadiu duas vezes países vizi
nhos e usurpa a riqueza do seu povo para construir palácios
e armas letais?20

Ignatieff mostra os atrativos que o novo imperialismo


apresentava para os liberais. Quem teria coragem de negar
que a tirania é um mal ou de questionar o ideal de um mun
do baseado nos direitos humanos? O liberalismo não foi sem

pre um credo universalista? Afinal, a idéia de que seus valores


são válidos para toda a humanidade constitui um princípio
cardeal da filosofia liberal. Não se segue, então, que os Esta
dos liberais têm o direito e mesmo a obrigação - de im
por seus valores em todo o mundo, ainda que para isto seja
necessário o emprego da força? Para muitos liberais, a “guer
ra ao terrorismo" veio tomar o lugar da Guerra Fria — um

combate em que a democracia prevaleceu sobre o totalitaris


mo. Mas as diferenças são consideráveis. A Guerra Fria era
um conflito entre Estados, ao passo que a "guerra ao terro
rismo" opõe Estados e um conjunto de forças muito mais
amorfo. Na Guerra Fria, enfrentavam-se Estados comprome
tidos com ideologias iluministas rivais, enquanto a "guerra
ao terrorismo" é travada contra forças islâmicas que afirmam
rejeitar o Iluminismo. Além disso, o inimigo na Guerra Fria
era um sistema comunista que nunca teve legitimidade

243
popular, ao passo que os regimes islâmicos -embora sejam
-

muito fracos em comparação com a antiga União Soviética


-vêm conquistando apoio de massa. Na verdade, pratica
mente não existe nada em comum entre os dois conflitos.
Como a Guerra Fria, no entanto, a "guerra ao terrorismo"
poderia ser encarada como uma cruzada universal, um vasto
empreendimento progressista capaz de abarcar praticamente
todas as boas causas debaixo do sol, uma nova força

dedicada a uma política de direitos humanos e especialmen


te dos direitos da mulher, em todo o mundo muçulmano;
uma política contra o racismo e o anti-semitismo, por mais
inconveniente que isto pudesse parecer aos meios de comu
nicação egípcios e à Casa de Saud; uma política contra as ma
nias da ultradireita em Israel, também, por mais que isso

pudesse irritar o Likud e seus seguidores; uma política de


educação secular, pluralismo e império da lei em todo o
mundo muçulmano; uma política contra o obscurantismo
e a superstição; uma política para bater os islamistas e os
baathistas em seu flanco esquerdo; uma política de luta con
tra a pobreza e a opressão; uma política de autêntica solida
riedade com o mundo muçulmano, no lugar da demagogia
do ódio cósmico. Numa palavra, uma política de liberalis
mo, um "renascimento da liberdade" -

o tipo de coisa que


podia ser vislumbrado, em suas primeiras etapas, na liber
tação de Cabul.21

Paul Berman deu curso a essa sublime visão em 2003. Ela


não continha qualquer indicação de que o resultado da der
rubada do despotismo secular no Iraque seria uma mistura
de anarquia e teocracia. A impossibilidade do liberalismo no
Afeganistão que só teve alguma vez algo parecido com um
Estado moderno quando as tropas soviéticas impuseram, com

244
enorme crueldade, uma forma de despotismo iluminista em
certas regiões do país era por demais incômoda para ser
-

contemplada. Todas as causas liberais embrulhadas no paco


te da "guerra ao terrorismo" eram intrinsecamente desejá
veis e, portanto parecia seguir-se —, realizáveis na prática.
Em suas atitudes no que diz respeito às mudanças de regime,
os neoconservadores se têm mostrado sintonizados com os

liberais. A mudança de regime era um instrumento do pro


gresso, e na maioria dos casos os liberais não se têm mostra
do mais inclinados que os neoconservadores a encarar seus
custos humanos e seu fragoroso fracasso. A oposição políti
ca à guerra que chegou a se manifestar nos Estados Unidos
tem partido de elementos da direita paleoconservadora e de
setores da velha esquerda. Na mídia liberal, só o New York
Review of Books não se deixou afetar pela febre guerreira, en
quanto publicações como The Nation e The American Conser
vative expressavam as críticas da esquerda e da direita. A
resistência à guerra manifestada pelos eleitores nas eleições
parlamentares de 2006 não teve muito eco entre os liberais.

Em sua maioria, eles se mantiveram calados, na convicção


de que a guerra mostrava o poder americano agindo como
fiador supremo da liberdade no mundo.

Mas o imperialismo liberal era um programa de ação


inviável. A história do século XX foi dominada pela resistên
cia aos impérios ocidentais desde a destruição da esquadra
imperial russa pelo Japão em 1905 - uma derrota do poder
europeu que inspirou movimentos anticolonialistas em toda
a Ásia e que seria considerada por Jawaharlal Nehru, o pri
meiro primeiro-ministro da Índia, como um dos acontecimen
tos mais decisivos de sua vida. A fracassada tentativa britânica

de impor controle sobre o canal de Suez, a retirada da França


da Argélia, a humilhação da França e da América no Vietnã e

245
a derrota das tropas soviéticas no Afeganistão são apenas al
guns exemplos da impotência dos ocupantes ocidentais em
terras não ocidentais, reiteradamente demonstrada ao longo
do século passado. A derrota americana no Iraque é apenas o
mais recente exemplo dessa impotência.
Além da impossibilidade de qualquer projeto imperial oci
dental em larga escala na atual conjuntura histórica, a idéia
de que a América poderia ser o agente de um projeto dessa
natureza era altamente implausível. Os Estados Unidos têm
poucos dos atributos de um regime imperial. Dispõem de um
amplo leque de países sobre os quais exercem graus variados
de influência - eventualmente pela ameaça da força, mais
freqüentemente com uma mistura de sanções econômicas e
incentivos. As relações da América com muitos desses países
evidenciam um padrão imperialista no qual os recursos são
extraídos pela ação de governos em certo grau controlados
pelos Estados Unidos. Na América Latina, há muito os EUA
agem de forma imperialista para proteger seus interesses eco
nômicos e estratégicos. No momento, sustentam uma maci

ça presença militar e naval no golfo Pérsico, ao mesmo tempo


que expandem suas bases na Ásia central e se estabelecem na
África ocidental. Mas os EUA não governam qualquer dessas
regiões, e suas tropas têm um contato mínimo com as popu
lações. Suas bases são bolhas de vida americana hermetica
mente fechadas e suas embaixadas, estruturas assemelhadas
a fortalezas, defendidas contra qualquer incursão das socie
dades onde operam. Os impérios têm diferentes formas e ta
manhos; nem todos se organizaram em função da aquisição
de territórios. O que chama a atenção nas relações imperiais
americanas é o fato de contemplarem poucos compromissos
estratégicos de longo prazo que tenham chances de sobrevi
ver às vicissitudes da política americana. Sempre que um

246
envolvimento militar americano no exterior se torna por de
mais oneroso, financeiramente ou em baixas humanas, ten

de a ser abruptamente suspenso. Em conseqüência deste fato,


que é considerado axiomático em Washington e nos países
envolvidos, são raras as alianças de longo prazo com elites
governantes locais, como as que prolongaram por séculos a
vida dos impérios. A maioria das que existem hoje em dia,
como na Grã-Bretanha, na Alemanha e no Japão, são res
quícios da Segunda Guerra Mundial.
Um sistema imperial duradouro repousa na crença de que
corporifica um compromisso de longo prazo. Os impérios
costumam ser estabelecidos por meios que incluem o uso da
força, mas se têm mostrado duradouros como nos casos
dos romanos, dos otomanos e dos Habsburgo, por exemplo
- quando a força serve a metas políticas de longo alcance.
As potências coloniais européias geralmente usavam a força
nesse sentido, e ficava claro que sua presença nos países ocu
pados pretendia ser permanente. A criação do Raj envolveu
conflitos bárbaros, e no meado do século XIX o Motim India
no representou uma séria ameaça ao domínio britânico. Ainda

assim, na maior parte do período colonial, alguns milhares


de funcionários britânicos bastaram para governar o subcon
tinente sem conflitos em larga escala. Para isto, fizeram alian
ças com os governantes dos países envolvidos: em 1919, havia
cerca de 500 Estados principescos dotados de governos locais,
mas integrados à monarquia britânica. Em contraste, as for
ças americanas se consideram e são vistas pelos outros como
transitórias "turistas armados", na formulação de um
guarda nacional afegão²² . e raramente estabelecem víncu
los mais duradouros com as elites ou o povo. Em conseqüên
cia, se vêem obrigadas a recorrer ao uso intensivo do poder
de fogo, que não pode alcançar metas de longo prazo.

247
A América carece da maioria dos pré-requisitos de um
império e não haverá de adquiri-los num futuro previsível.
Como poderia haver imperialismo-liberal ou de qualquer
outra natureza se não há imperialistas? Os Estados Uni
dos têm alguns dos encargos de um império, inclusive seus
custos financeiros, muito mais comprometedores que na era
do colonialismo europeu. Ao contrário da Grã-Bretanha do
século XIX, que era o maior exportador mundial de capitais,
os Estados Unidos são os maiores devedores do mundo. As

aventuras militares da América são financiadas com dinhei

ro emprestado, sobretudo pela China, cujo financiamento dos


débitos governamentais americanos é crucial para a susten
tação da economia dos EUA. Esta dependência em relação à
China não se coaduna com a idéia de que a América tem capa
cidade para agir como executor global dos valores liberais. São
os credores estrangeiros da América que financiam esse pa
pel e se eles passam a considerar a política externa americana
ameaçadora ou irracional, têm o poder de vetá-la. Observou
Emmanuel Todd, o autor francês que previu em 1975 o co
lapso soviético:

Os Estados Unidos não são capazes de viver de sua própria


atividade econômica e precisam ser subsidiados para susten
tar seu atual nível de consumo - na atual velocidade de cru

zeiro, esse subsídio equivale a US$ 1,4 bilhão por dia (em
abril de 2003). Se seu comportamento continuar causando
23
problemas, a América é que deveria temer um embargo.2

Os Estados Unidos estão perdendo sua primazia econô


mica, e o mesmo deverá acontecer com sua condição de "últi

ma superpotência". O avanço da globalização gera novas


grandes potências e acarreta o inesperado ressurgimento de

248
potências que pareciam em declínio irreversível. A China e a
Rússia podem ser capazes de conviver em coexistência pací
fica com os Estados Unidos, mas jamais aceitarão uma tute
la moral americana; a idéia de que possam ser arregimentadas
para uma campanha de conversão do mundo ao estilo ame
ricano de democracia é risível. O "novo século americano"

descortinado pelos neoconservadores durou menos de uma


década. Num episódio que os adeptos da idéia hegeliana da
astúcia da razão saberão apreciar, os neoconservadores -

agindo como involuntários servidores da história trans


-

formaram os Estados Unidos numa grande potência normal,


uma apenas, entre várias outras, e sem qualquer autoridade
especial. De maneira geral, o poder também vem escapando
das mãos dos Estados liberais que aparentemente saíram vi
toriosos da Guerra Fria, e, pela primeira vez desde a década
de 1930, as potências em ascensão no sistema internacional
são Estados autoritários.

O imperialismo liberal também levou a um recuo dos va


lores liberais nos Estados Unidos. O governo continua insis
tindo em que o presidente tem liberdade para determinar o
que deve ou não ser considerado tortura. O vice-presidente
Dick Cheney, perguntado num programa de rádio se era a
favor de "dar um caldo" em terroristas detidos, respondeu que
sim, acrescentando que a questão não chegava a lhe tirar o
sono.24 Técnicas de "afogamento” - um tipo de tortura usa
-

do pelo Khmer Vermelho no Camboja e cuja utilização con


tra militares americanos durante a Segunda Guerra Mundial
levou à condenação de um oficial japonês a 15 anos de traba
lhos forçados25 não são proibidas e podem ser praticadas
rotineiramente pelos Estados Unidos. O mesmo quanto à pri
vação de sono, método de tortura usado em Guantánamo e

que também era empregado pelo NKVD na União Soviética

249
}

stalinista para a obtenção de confissões nos julgamentos


exemplares da década de 1930.26 Técnicas de tortura envol
vendo a privação de sentidos, aplicadas pelos chineses em pri
sioneiros americanos na guerra da Coréia, também foram
usadas em José Padilla, cidadão americano detido como com

batente inimigo e encarcerado sem acusação formal numa


prisão naval da Carolina do Sul entre meados de 2002 e ja
neiro de 2006.27

Pelos padrões internacionalmente aceitos de definição de


atos de tortura, verifica-se que o principal regime liberal do
mundo incorporou-a como elemento de sua política nacional.
Além disso, foram deixadas de lado tradições constitucionais

que no passado limitavam a ação do governo americano. Na


votação em que o Senado, a 28 de setembro de 2006, confe
riu ao presidente autoridade para determinar o que deve ser
considerado tortura, também foi suspenso o direito de habeas
corpus de pessoas detidas como suspeitas de terrorismo, que
não são, assim, informadas do crime de que são acusadas nem
podem acionar a justiça para recorrer. Desse modo, qualquer
pessoa acusada de envolvimento em atos de terrorismo e
não só estrangeiros, mas também cidadãos americanos
pode ser detida sem acusação formal por período indeter
minado. Na prática, o executivo se posiciona assim, acima
da lei, ao mesmo tempo que dela exclui a cidadania. Conside
rando ainda os Patriot Acts, legislação criada para permitir a
vigilância de toda a população americana, os Estados Unidos
sofreram, em termos de liberdades públicas, um recuo sem
paralelo em qualquer outra democracia madura.
Não é a primeira vez que o governo americano usurpa as
liberdades de seus cidadãos. A Lei de Estrangeiros e Sedição
promulgada no fim do século XVIII, a Lei de Espionagem e
Sedição de 1917-18 e o "Alerta Vermelho" que se seguiu à

250
Primeira Guerra Mundial, a internação forçada de indivíduos
de ascendência japonesa durante a Segunda Guerra Mundial,
todas essas medidas ampliaram consideravelmente o poder
executivo. Em nenhum dos casos os danos à liberdade tive

ram caráter permanente: essas leis foram promulgadas em


tempo de guerra, sendo posteriormente revogadas ou caindo
em desuso. A ampliação do poder executivo por parte do go
verno Bush tem muito maior alcance e, como a “guerra ao
terrorismo" nunca poderá ser vencida, não terá um ponto
final. Como demonstraram as eleições parlamentares de 2006,
os Estados Unidos continuam sendo funcionalmente uma

democracia, e é possível que as leis autorizando a tortura e


suspendendo o direito de habeas corpus venham a ser revo
gadas em futuros governos. Mas permanece o fato de que os
EUA deixaram de ser um regime em que o poder do governo
é limitado pelo império da lei. O sistema de checks and balances
entre os três poderes embutido na constituição não foi capaz
de impedir uma inédita expansão do poder discricionário.
A mudança ilustra o caráter ilusório do liberalismo con

temporâneo. As teorias liberais que têm predominado na úl


tima geração buscam uma escapatória dos riscos da política
nas supostas certezas da lei. O legalismo liberal americano
uma escola de pensamento de que fazem parte John Rawls,
Ronald Dworkin, Bruce Ackerman e muitos outros pre -

tenderia substituir as negociações turvas da política pela


transparente aplicação da lei.28 Dessa maneira, presume-se,
poderiam ser neutralizadas quaisquer ameaças aos direitos.
Na América, a consecução desse importante objetivo cabe à

Suprema Corte. Entretanto, como tem demonstrado o gover


no Bush, esse tipo de liberalismo legalista constitui mais uma
Utopia. A Suprema Corte pode ser politizada, manipulando
se o processo de seleção dos juízes, e se ainda assim não fun

251
cionar, suas decisões podem ser ignoradas. A defesa das liber
dades constitucionais cabe então aos legisladores, que podem
-
como aconteceu em setembro de 2006 temer as conse

qüências eleitorais de um enfrentamento com o executivo. É


o momento em que a política se sobrepõe à lei, como aconte
ce em outros países.
Os liberais chegaram à conclusão de que a liberdade hu

mana pode ser assegurada por garantias constitucionais. Pas


sou-lhes despercebida a verdade hobbesiana, aplicada por Leo
Strauss no caso da República de Weimar, de que as constitui
ções mudam com os regimes. Ocorreu uma mudança de re
gime nos Estados Unidos, que hoje oscilam entre o Estado
pautado pelo direito que foram durante a maior parte de sua
história e uma espécie de democracia iliberal. O país não pas

sou por essa mudança por ter sido corroído pelo relativismo
como Strauss acreditava ter acontecido na Alemanha de

Weimar, mas porque o governo foi seqüestrado pelo fun


damentalismo. Se o regime americano deixar de existir da

maneira como era conhecido no passado, será uma conse


qüência do poder da fé.
Os liberais contemporâneos consideram os direitos como
atributos humanos universais que podem ser respeitados em
qualquer latitude, mas nisto demonstram um típico descaso
pela história. As atuais concepções dos direitos humanos de
senvolveram-se paralelamente ao moderno Estado-nação. Foi
o Estado-nação que emancipou os indivíduos dos laços co
munitários da época medieval, dando origem à liberdade tal
como veio a ser conhecida no mundo moderno. Isto não se

deu sem graves conflitos e pesados custos. A violência em larga


escala era parte integrante do processo. Se os Estados Unidos
só se tornaram uma nação moderna depois de uma guerra
civil, a França só o conseguiu depois das guerras napoleônicas

252
e a Alemanha, depois de duas guerras mundiais e da Guerra
Fria. Na África e nos Bálcãs, a luta pela afirmação política da
nacionalidade tem sido acompanhada de campanhas de lim
peza étnica, enquanto a modelagem da China como nação,
que está em andamento hoje, envolve a repressão de minorias
muçulmanas e algo que, no Tibete, não está muito longe do
genocídio.
Os teóricos liberais tendem a estabelecer uma distinção
entre o nacionalismo étnico, que consideram nocivo, e as va
riantes cívicas, que têm como positivas. Mas a repressão não
é uma característica apenas do nacionalismo étnico. As na

ções são criadas pelo exercício do poder de Estado num pro


cesso que geralmente envolve a integração forçada ou a
exclusão de grupos considerados estranhos. Da construção
de regimes cívicos na França e nos Estados Unidos fez parte a
adoção de sistemas educacionais como instrumentos de
integração, ao passo que a guerra e a conscrição eram usadas
para forjar a solidariedade perante os inimigos. A ortodoxia
liberal dá por descontado que os Estados-nação independen
tes são mais livres que os impérios, mas os impérios freqüen
temente se têm mostrado mais amistosos com as minorias

- basta lembrar a tolerância dos otomanos quando a Euro


pa estava mergulhada em guerras de religião, os ódios étni
cos liberados pela queda dos cosmopolitas Habsburgo e a
destruição da antiga cidade multicultural de Alexandria pelo
nacionalista egípcio Nasser. A autodeterminação nacional ca
minha de mãos dadas com a limpeza étnica e a erradicação
de sociedades ecléticas nas quais diferentes modos de vida con
viviam há muito em paz. A promoção universal da autode
terminação, como os neoconservadores e os intervencionistas

liberais gostariam, significa a reprodução desses males em


escala mundial.

253
Os Estados-nação não são apenas o principal veículo
institucional da liberdade moderna, mas também, quase uni

versalmente, da democracia liberal. Em 1959, o cientista


político americano Seymour Martin Lipset constatava o "fato
absurdo" de que todas as democracias antigas e estáveis eram
monarquias, com exceção dos Estados Unidos, da Suíça e (na
época) do Uruguai.29 O fato só é surpreendente se acreditarmos
-
-absurdamente- que a democracia é autolegitimadora. As
poucas democracias incontestavelmente multinacionais que
prosperam neste início do século XXI - como o Reino Uni
do, a Espanha e o Canadá - são monarquias e relíquias impe
riais. A Índia é uma florescente democracia multicultural; mas

não é multinacional e só alcançou sua atual estabilidade de


pois da brutal partição com o Paquistão, enquanto a Caxemira
continua sendo ferozmente disputada. Exceto nos asos em
que escoram sua legitimidade na monarquia, as democracias
liberais quase sempre são Estados-nação. A tentativa de proje
tar a democracia além do nível nacional. ·na União Européia,
por exemplo fracassou. O ideal moderno da democracia
cosmopolita parece dar melhores resultados em países com
.

Com poucas exceções, a democracia liberal enraizou-se


apenas nos Estados-nação. Mas os Estados-nação raramente
são constituídos sem matanças, e em muitas partes do mundo
talvez não sejam possíveis. Poucos países da África pós-colo
nial desenvolveram uma identidade nacional coesa, e o Oriente

Médio continua a ser governado por Estados concebidos no


crepúsculo dos impérios. Estados abortados ou semi-aborta
dos podem ser encontrados nos Bálcãs e no Cáucaso. O Ja
pão é um Estado-nação, mas a China, embora esteja decidida
a vir a sê-lo também, continua sendo um império, e o mesmo

254
se aplica à Rússia. Grande parte da humanidade provavel
mente nunca viverá em Estados-nação. No futuro, como no
passado, o mundo será governado por muitos tipos de regimes.
A objeção a ser feita à democracia universal não é que

certas pessoas não estejam preparadas para ela. Governos


democráticos têm sido instaurados em países com culturas
muito diferentes, e nada impede que a democracia aparen
temente mais firme resvale para a tirania. Qualquer país
pode alcançar a democracia e qualquer país pode perdê-la.
A humanidade não se divide entre "o Ocidente" -que, ape
sar de ter gerado o totalitarismo, ainda se identifica com a

liberdade e o resto. A democracia tem muitas vantagens,


especialmente por permitir a troca de governo sem o recur
so à força, mas raramente é alcançada sem um preço de vio
lência e nem sempre significa que a liberdade estará mais
assegurada no final.
Nos casos em que o sentimento popular é iliberal, as mi
norias podem enfrentar mais problemas sob regimes demo
cráticos do que em certos tipos de despotismo. Até as maiorias
podem ver limitadas suas liberdades como no caso da
teocracia popular que vem surgindo na maior parte do Iraque,
onde as mulheres têm perdido a liberdade de que desfrutavam
sob Saddam. Derrubar uma tirania pode trazer a democracia
sem promover a liberdade. Da mesma forma, a democracia pode
permitir a derrubada de limites há muito antepostos ao go
verno, como no caso do governo Bush. Nenhuma constitui
ção é capaz de impor a liberdade onde não é desejada ou de
preservá-la onde deixou de ser valorizada.

Embora o tipo de imperialismo liberal que prevalecia no


período de preparação da guerra fosse um programa impos
sível, a aventura iraquiana evidenciou certos traços imperia

255
listas bem conhecidos, numa versão alterada para se adaptar

a um projeto intrinsecamente absurdo. O objetivo geopolítico


da empreitada era assumir o controle das reservas petrolífe
ras do país, e embora não tenha permitido o aumento de pro
dução que se esperava, o controle efetivamente foi assumido.
Além desse ato de apropriação, o Iraque tem sido cenário de
uma fraude monumental, com o desaparecimento de bilhões
de dólares nos bolsos de corporações americanas e lobistas de
Washington. A corrupção que se seguiu à invasão america
na adquiriu proporções que deixam no chinelo os escândalos
em torno do programa de troca de petróleo por alimentos du
rante o regime de Saddam. Os contratos para a reconstrução
do Iraque são concedidos preferencialmente a empresas ame
ricanas, cabendo a parte do leão às que têm ligações com o
Partido Republicano, o governo Bush e a USAID- a United
States Agency for International Development, que super
visiona a distribuição de contratos. Muitas atividades go
vernamentais foram terceirizadas, além de muitas funções
tradicionais dos militares. Serviços como os de policiamento
de prédios, ruas e poços de petróleo, manutenção de siste
mas de armas e guarda de comboios de suprimento são presta
dos por corporações. Informou-se que empresas de segurança
privada do Reino Unido teriam cerca de 48.000 empregados
no país, superando o número de militares britânicos numa
razão de seis para um.30 O governo foi privatizado, numa ope
ração que gerou muitas novas fontes de lucro.
Uma ganância como a que se manifestou no Iraque des
de a invasão é normal. O imperialismo é sempre uma ques
tão de lucro, antes de mais nada, e o exército de escroques e
vigaristas que surgiu no rastro das tropas americanas não
difere muito dos que se arrastavam atrás dos exércitos colo

256
niais de épocas anteriores. Nem é de se estranhar o capitalis
mo de compadrio que permitiu às empresas com entradas em
Washington dividir o espólio de guerra. Embora no caso do
Iraque ocupado pelos americanos a escala possa ser maior e
o estilo, mais clamoroso, o fato é que a ganância predatória
é uma característica universal da conquista imperial.
Mas este ainda não é o imperialismo no sentido clássico.
Não é apenas que a potência ocupante careça da capacidade
de governar. Abrindo mão de muitas das funções de Estado,
os ocupantes americanos do Iraque institucionalizaram uma
anarquia por eles mesmos criada ao desmantelar o Estado.
As estruturas do regime apoiado pelos Estados Unidos não
são instituições de governo, mas alvos a serem capturados
por organizações sectárias e milícias irregulares, que as
utilizam para a partilha de recursos e a neutralização de
oponentes. Em tais condições, seria impossível impor um
homem forte ao estilo de Saddam Hussein para estabelecer a
ordem no caos, como chegaram a propor certos "realistas"

em Washington. Um homem forte desse tipo pressuporia um


tipo de nacionalismo árabe secular, militar e burocrático
que não existe propriamente hoje em dia. Além disso, não
resta no Iraque um Estado por meio do qual pudesse atuar
um ditador desse tipo. A tirania secular que foi destruída não
pode ser reinventada.
Os observadores americanos que percebem esses fatos su
gerem às vezes uma tríplice partilha como solução. Mas o
Iraque não pode ser dividido em três Estados, pois já foi que
brado em dois, estando um Estado curdo estabelecido no norte,

enquanto o resto do país é brutalmente disputado. Divididas


não só por suas crenças, mas também, o que é mais impor
tante, na disputa do poder e dos recursos, as comunidades
sunita e xiita não poderiam ser separadas numa partição

257
nítida e bem definida. A minoria sunita tem tudo a perder e
lutará até a morte. Com apenas 60 por cento de xiitas em
sua população, o Iraque tem pela frente décadas de limpeza
étnica e massacres sectários.

Os Estados Unidos são impotentes diante da anarquia ge


rada pela invasão do país. A solução poderia encontrar-se
numa retirada gradual das tropas americanas, e algo neste
sentido foi recomendado pelo Grupo de Estudos do Iraque,
criado pelo Congresso em março de 2006, tendo apresentado
seu relatório em dezembro do mesmo ano. O grupo era co

presidido por James Baker III, secretário de Estado no gover


no de George Bush pai e velho freqüentador dos corredores
de Washington. Confesso realista nas questões internacionais,
Baker reconheceu que nenhuma política poderia hoje assegu
rar a estabilidade no país. Mas o grupo tangenciou uma
verdade mais contundente: a situação criada pela invasão ame

ricana do Iraque é da ordem de problemas que só podem ser


resolvidos por forças que ninguém é capaz de controlar -
muito menos os Estados Unidos. A anarquia estabelecida no

país aponta na direção de uma retirada americana ao estilo


da que se deu no Vietnã. O Vietnã tinha, no norte, um go
verno capaz de administrar o país, ao passo que o Iraque não
tem efetivamente um governo, e enquanto no Sudeste Asiáti
co não chegou a se materializar um "efeito dominó", a frag
mentação do Estado iraquiano pode efetivamente conduzir
nesta direção na região do golfo Pérsico. Embora possa ser
mascarada em Washington, a derrota americana é patente em
toda a região. A Arábia Saudita, a Síria, o Irã e outros países
estão ampliando a mobilização de forças sob seu controle no
país - sendo as forças americanas alvo, hoje, de milícias sunitas
armadas por aliados dos Estados Unidos, e o Iraque se vem

258
transformando em cenário de uma guerra pela hegemonia
na região. A escalada para um conflito mais amplo tem sido
a lógica dos acontecimentos desde a invasão americana. A des

truição do Iraque entrará para a história como o episódio ini


cial de uma Guerra dos Trinta Anos cujo desfecho é ainda uma
incógnita, mas que certamente envolverá um movimento re

volucionário em todo o golfo Pérsico, com repercussões em


boa parte do mundo.

A aventura americana no Iraque tem muito pouco em


comum com os impérios do passado. As potências coloniais
tinham o objetivo de explorar a longo prazo os recursos dos
países conquistados. A Companhia da Índia Oriental e a Com
panhia da Baía de Hudson constituíam efetivamente governos,
que perduraram durante séculos, tornando-se parte integran
te das administrações coloniais. Ao partirem, os colonialistas

deixaram um legado não só de exploração, mas também de


instituições. Quaisquer que fossem seus defeitos, o Estado
de Iraque era uma dessas instituições.

A guerra no Iraque atendeu aos interesses de um siste

ma econômico que descarta compromissos de longo pra


zo. No capitalismo de cassino que prevalece nesse início do
século XXI, o investimento deu lugar ao jogo, e certamen
te não levará muito tempo para que a guerra seja simples
mente descartada com mais uma aposta errada. Até mesmo
a riqueza extraída na ocupação tem um caráter fantasma
górico. Se existe um símbolo capaz de sintetizar a situa
ção da América no Iraque, não são as instituições coloniais

de outros tempos, mas a Enron, que desapareceu sem dei


xar nada para trás.

259
POR QUE A "GUERRA AO TERRORISMO"
NÃO PODE SER VENCIDA

Inaugurada no máximo na década de 1950, a literatura so


bre a contra-insurgência é tão grande que, se fosse instalada
a bordo do Titanic, teria afundado o navio sem precisar de
ajuda do iceberg. Mas o que mais chama a atenção é o fato
de ter sido quase toda escrita pelos derrotados.
Martin van Creveld³1

Em setembro de 2006, vazou um relatório secreto reunindo


informações de 16 agências dos serviços de inteligência ame
ricanos, sendo publicados trechos indicativos do “caráter
central" da invasão americana do Iraque no fomento do terro
rismo islâmico em todo o mundo. 32 A avaliação não surpreen
deu os observadores, que já haviam previsto esse resultado
muito antes do início da guerra. Eles antecipavam que a in
vasão contribuiria para o recrutamento de terroristas, for
necendo-lhes um campo de treinamento; alguns previam
também que seria impossível derrotar uma insurgência
iraquiana contra a ocupação americana. Se a guerra teve iní
cio apesar dessas advertências, foi porque os políticos por trás
dela convenceram a opinião pública de que era necessária à
"guerra ao terrorismo". O ataque contra o Iraque foi descri
to por setores do Pentágono como um movimento de uma
"longa guerra" um conflito de muitas gerações no qual
ataques preventivos e mudanças de regime são empregados
para derrotar o terrorismo em todo o mundo. O pensamento
estratégico americano mais recente tem chamado a atenção
para o papel crucial das estratégias não-militares no combate
ao terrorismo. Mas persiste a convicção de que a luta contra

260
o terrorismo exige a derrota de uma "insurgência global", que
vem a ser apenas uma maneira mais sofisticada de falar da ne

cessidade de empreender uma "guerra global ao terrorismo". 33


A própria idéia de uma guerra dessa natureza é ques
tionável. Terrorismo é uma palavra guarda-chuva que cobre
muitas variedades de guerra não-convencional, com diferentes
causas e soluções. Embrulhá-las numa única e mesma ame
aça global mostra falta de visão. Mais uma vez, fica o terro

rismo sujeito a julgamentos morais sem fundamento. Para


aqueles que consideram o contraterrorismo uma cruzada para
"acabar com o mal",34 parece ultrajante analisar o terror sem
condená-lo. Mas o tipo de análise amoral que costuma ser
feito pelos estrategistas militares pode ser mais útil e, no fim
das contas, também mais moral.

Nos casos em que é utilizada com propriedade, a expres


são "terrorismo global" refere-se a uma parte pequena, ain
da que crescente, da guerra não-convencional que está sempre
ocorrendo em qualquer parte do mundo. Boa parte do que
hoje é considerado terrorismo era visto no passado como in
surreição ou conflito civil, no contexto de lutas de natureza

local. Técnicas como a explosão de prédios governamentais e


o assassinato de funcionários são moeda corrente nas lutas
de libertação nacional, tendo sido utilizadas em contextos tão

diferentes quanto a Palestina e a Malásia sob domínio britâ


nico, a Argélia francesa e o Vietnã durante a ocupação ame
ricana. As técnicas terroristas são usadas por serem baratas
e altamente eficazes. Só costumam ser empregadas em larga
escala por períodos prolongados em circunstâncias de grave
conflito, após o fracasso de outros métodos. Em outras pala
vras, o terrorismo quase sempre é uma estratégia racional.
Já faz parte do discurso ocidental ligar o terrorismo à
cultura árabe e ao culto islâmico do martírio. Todavia, o islã

261
é uma religião, e não uma cultura, e a maioria dos que vivem
no "mundo islâmico" não é de árabes. O terrorismo na Indo
nésia não pode ser explicado pela atribuição de determinadas
atitudes aos árabes, num estilo de pensamento que justifi
cadamente seria considerado racista se aplicado a outros gru
pos. O terrorismo suicida não é uma patologia específica a
determinada cultura nem tem qualquer relação mais próxi
ma com a religião.
Muitas manifestações do terrorismo são comparáveis a
outras formas de guerra. Quase sempre, as guerras são tra
vadas no interior de fronteiras culturais ou passando por cima
delas. As duas primeiras guerras mundiais começaram como
conflitos intra-europeus, a guerra sino-japonesa foi travada
entre países pertencentes ao universo cultural confuciano, ao
passo que a guerra entre o Irã e o Iraque foi um conflito intra
islâmico. Na década de 1990, a guerra dos Bálcãs tinha fun
do étnico-nacional, e não religioso-cultural, apresentando-se
cristãos e muçulmanos freqüentemente como aliados. A idéia
de que as guerras são conflitos entre civilizações que sur

giu numa polêmica americana sobre o multiculturalismo, e


não como uma tentativa de entender as relações internacio
nais — não tem amparo nos fatos.35

No caso das guerras não-convencionais, falar de choque


de civilizações não tem sentido. Foram os Tigres do Tâmil,
organização marxista-leninista que atuava no Sri Lanka num
contexto cultural hindu, que inauguraram a técnica do ho
mem-bomba (já utilizando o colete que viria a ser adotado
também pelos palestinos), e até a guerra no Iraque os Tigres
cometeram mais atentados desse tipo que qualquer outro
movimento. O seqüestro de aviões foi primeiro praticado pela
Organização para a Libertação da Palestina, um organismo
de caráter secular, com a ajuda de organizações ultraesquer

262
distas, como a Fração do Exército Vermelho. O primeiro aten
tado suicida em Israel foi cometido em 1972 por um inte
grante japonês da Facção do Exército Vermelho.
O atentado suicida é uma técnica adotada por povos de
várias culturas e crenças para alcançar objetivos políticos. Em
seu pioneiro estudo empírico sobre o tema, Dying to Win: The
Strategic Logic of Suicide Terrorism,36 Robert Pape analisou to
dos os casos conhecidos entre 1980 e 2004, constatando que

mais de 95 por cento tinham claros objetivos políticos. Fosse


na Chechênia ou no Sri Lanka, na Caxemira ou em Gaza, o

objetivo era expulsar as forças ocupantes. A extração étnica e


religiosa dos que cometiam os atentados era a mais diversa.
No Líbano, o Hezbollah empreendeu entre 1982 e 1986 uma
campanha contra alvos franceses, americanos e israelenses
que contabilizou 41 atentados suicidas (entre eles o que ma
tou em 1983 mais de uma centena de fuzileiros navais ame

ricanos, levando à súbita retirada das tropas americanas pelo


presidente Reagan). Deste total, apenas oito foram cometidos
por fundamentalistas islâmicos, 27 por membros de orga
nizações políticas seculares de esquerda, como o Partido Co
munista Libanês, e três por cristãos. Todos os indivíduos
envolvidos haviam nascido no Líbano, mas, à parte isto, eram
muito diferentes. Esses homens-bomba do Hezbollah não se

encaixavam em nenhum perfil consagrado de marginalidade


social (um dos cristãos, por exemplo, era uma professora de
nível secundário com formação universitária). O único fator

que podia ser considerado comum eram determinadas metas


políticas. As condições decisivas para o estabelecimento de
uma violência terrorista de longo prazo em larga escala não
são culturais ou religiosas, mas políticas. Onde existem tais
condições, qualquer um pode tornar-se um terrorista.

263
O terrorismo nem sempre serve a uma estratégia racio
nal, como vimos. As crenças apocalípticas desempenharam
um papel central no terror de Estado dos jacobinos aos bolche
viques e aos nazistas. Os movimentos terroristas autóctones

da América inspiram-se em mitos semelhantes: as milícias


de direita das quais saiu Timothy McVeigh, responsável pelo
atentado de Oklahoma, bebiam na fonte de uma ideologia

neonazista que previa fenômenos catastróficos e de violenta


renovação nos Estados Unidos, enquanto o Exército de Deus,
grupo terrorista fundamentalista cristão que assassina mé
dicos que praticam o aborto, considera que o Estado ameri
cano é satânico. No Japão, o movimento Aum, que lançou
gás sarin no metrô de Tóquio e tentou obter amostras do vírus
ebola para outros atentados, também adotava uma visão de
mundo apocalíptica embora recrutasse seus elementos
entre profissionais (especialmente cientistas), e não nos gru
pos marginais que costumam aderir às milícias direitistas

americanas. Esses terroristas mais parecem membros de cul


tos do que soldados e estrategistas do Hezbollah ou dos Ti
gres do Tâmil.
O terrorismo da al-Qaeda tem dimensões ao mesmo tempo
estratégicas e políticas.37 Depois de assumir novas formas
desde os atentados do 11 de setembro, ele se configura mais,
hoje, como uma teia de grupos afins do que como uma rede
globalmente organizada. O controle operacional foi transfe
rido do centro para centros de comando regionais e locais, ao
mesmo tempo que as redes se tornavam cada vez mais de
pendentes da internet. Criada no fim da Guerra Fria durante
o conflito soviético-afegão, no qual foi usada como ponta
de-lança ocidental, a al-Qaeda tornou-se uma entidade des
centralizada e eminentemente virtual com objetivos menos
claramente definidos que no passado. O que em parte constitui

264
uma reação às ações militares ocidentais. Embora a derruba

da do regime talibã tenha levado ao desmantelamento da


maioria das unidades então existentes, outras surgiram des
de a invasão do Iraque. Os objetivos iniciais da al-Qaeda eram
claros - a retirada das tropas americanas da Arábia Saudita
e a derrubada da Casa de Saud -, mas o movimento trans

formou-se num veículo de manifestação de ódio impotente.


Esta nova fase manifestou-se no violento jihad que gerou
atentados terroristas no Reino Unido, na Espanha e na Holanda,

os quais representavam uma rejeição não só das políticas oci


dentais, mas também das sociedades ocidentais.38
A al-Qaeda é a única rede terrorista de alcance global, sen
do este mais um dos aspectos em que se revela um subproduto
da globalização. O islã radical costuma ser considerado uma
reação à modernidade, mas chama atenção a maneira como
as vidas dos seqüestradores do 11 de setembro se encaixavam
num certo estereótipo da moderna anomia. Levando uma vida
seminômade, eles não pertenciam a qualquer comunidade,
sendo difícil resistir à impressão de que se voltaram para o
terrorismo mais para dar sentido à própria vida do que para
promover algum objetivo concreto. Abraçando o terror, dei
xaram de estar à deriva para se tornar guerreiros. Em sua
maioria, os seqüestradores não eram praticantes antigos do
islã, tornando-se muçulmanos renascidos na Europa. O islã
que representam não existe nas culturas tradicionais. É uma
manifestação do fundamentalismo que só poderia ter-se de
senvolvido em contato com o Ocidente. É a globalização que
vamos encontrar por trás da visão utópica de uma comuni
dade mundial de crentes. Como observou Olivier Roy, o estu

dioso francês responsável por uma rigorosa análise sociológica


do islã global, é "a crescente desterritorialização do islã que
leva à reformulação política de um ummah imaginário".39

265
1

A al-Qaeda tem sido comparada aos terroristas anarquis


tas do fim do século XIX, e efetivamente existem semelhan
ças. Desde a derrubada do regime talibã, a al-Qaeda funciona
sem patrocínio de Estado, mais empenhada em destruir Es
tados do que em criar novos. Em parte, a organização difere
do terrorismo anarquista na crueldade de seus métodos
enquanto os anarquistas visavam sobretudo funcionários de
Estado, a al-Qaeda se especializa em atacar civis - e também
pelo fato de que vem formando uma base de massa. Enquanto
o terrorismo anarquista era obra de uma seita minúscula que
nunca desfrutou de apoio popular, a al-Qaeda lança mão de
grande número de muçulmanos descontentes, muitos vivendo
em países ocidentais. Em tais circunstâncias, não será fácil
prevenir ataques como os que ocorreram em Nova York e
Washington, Bali, Madri, Ancara, Londres e outras cidades.
O perigo do terrorismo islâmico é real, mas declarar guer
ra ao mundo não é a melhor maneira de enfrentá-lo. À par
te os casos de alguns poucos países - como a Arábia Saudita,
Israel e o Iraque, os terroristas antes representam um pro
blema de segurança que uma ameaça estratégica. Não há
um inimigo claro contra o qual mover uma guerra nem um
momento preciso em que a vitória possa ser proclamada.
Como já se observou muitas vezes, a neutralização de ter
roristas é uma tarefa policial que requer o apoio das comu
nidades onde eles se encontram. Ela não será facilitada por
guerras inúteis em terras islâmicas nem por políticas discri
minatórias contra muçulmanos em países ocidentais. Em
bora ações militares concentradas às vezes possam surtir
efeito como na destruição das bases de treinamento no
-

Afeganistão-, as operações militares convencionais geral


mente se mostram contraproducentes. A intensificação das

266
medidas de segurança e o constante compromisso político
são as únicas estratégias que até hoje se mostraram capazes
de manter o terrorismo sob controle.

Uma estratégia desse tipo deu certo na Irlanda do Nor


te.40 Embora o IRA e os grupelhos ao seu redor estivessem
mobilizados num movimento de insurgência, os atos de ter
rorismo que cometiam não eram tratados como atos de
guerra. Eles eram considerados criminosos comuns, e depois
de um período inicial em que foram cometidos alguns erros
- entre eles o encarceramento em massa de suspeitos de ter
rorismo, o principal objetivo das políticas públicas adotadas
perante a questão passou a ser desvincular os terroristas das
comunidades de que provinham e direcionar seus líderes para
canais políticos de ação. A estratégia foi mantida em meio a
graves atentados entre eles o assassinato de várias impor
tantes personalidades públicas britânicas e uma tentativa de
decapitar o governo britânico com um atentado a bomba no
prédio em que se realizava a conferência do Partido Conser
vador em Brighton, em 1984 e funcionou. Hoje em dia, a
violência terrorista está muito reduzida na Irlanda do Norte

e no território britânico em geral.


Um obstáculo no combate à ameaça terrorista é precisa
mente a crença de que ele em nada se assemelha a qualquer
outra manifestação do passado. A al-Qaeda difere de anteriores
movimentos terroristas pelo fato de atuar em todo o mun
do, mas o surgimento do terrorismo global não significa, nas

relações internacionais, um salto qualitativo como o que é


postulado por certos teóricos americanos. Philip Bobbitt con
sidera que o terrorismo global reflete o declínio do sistema
westfaliano, que vem sendo substituído por uma ordem co
mandada pelos Estados Unidos na qual já não existe a sobe
rania de Estado. Nesse novo sistema, a principal tarefa dos

267
Estados não será mais refletir os valores de seus cidadãos.
Serão eles "Estados-mercados" servindo à economia global.
O estabelecimento desse novo sistema suscitará uma série de

conflitos que marcarão época, entre os quais várias "guerras


contra o terrorismo". Durante esse período, os Estados Unidos
que supostamente encarnam o novo tipo de Estado que o
resto do mundo luta por alcançar — enfrentarão a necessidade
de empreender ataques "preventivos" contra regimes párias
que se recusam a aceitar os termos da nova ordem global.41
Apesar de desenvolvida com mais vigor, a análise de Bobbitt
tem muito em comum com a de Fukuyama. Ambos conside
ram que está em andamento um processo histórico pelo qual
se espraia pela maior parte do mundo uma adaptação do sis
tema de governo americano. Ao contrário de Fukuyama, se
gundo quem o fim da história seria pacífico, Bobbitt considera
que será um período de guerras em grande escala; mas, como
Fukuyama, ele também está convencido de que se vem ope
rando uma grande mudança nas questões humanas. Escreveu
o escritor francês Bernard-Henri Lévy: "Nós subestimamos a
importância e o caráter central da forma de pensar de Fukuyama
na ideologia americana contemporânea."42
Com poucas exceções, os observadores americanos têm

interpretado as grandes alterações ocorridas nas relações in


ternacionais nas últimas décadas como indícios de que estaria
chegando ao fim o velho mundo das divisões étnicas e reli

giosas e dos conflitos entre grandes potências. Esta crença


reflete a sobrevivência de hábitos de pensamento baseados na
fé, no lugar de uma visão clara dos fatos. A verdadeira mu
dança que vem ocorrendo é no sentido inverso: todos os an
tigos conflitos voltaram, mas com novos protagonistas e os
Estados Unidos num papel mais acanhado. A única mudan
ça digna de nota se encontra nas novas tecnologias que con

268
ferem uma nova dimensão a esses conflitos. Em termos opera
cionais, a obsolescência da soberania de Estado se traduz na
soberania ilimitada de um único Estado. os Estados Unidos,
-

que nos últimos anos vêm agindo como se suas leis tivessem
jurisdição universal, mas as condições em que os EUA
poderiam exercer essa autoridade já não existem (se é que um
dia existiram). Acelerado pela guerra no Iraque, o declínio do
poderio americano que vem a ser parte integrante da globali
zação deixou o país fortemente dependente de outras nações.
Os Estados Unidos dependem de outros países para o acesso
a recursos naturais, o financiamento de sua crescente dívida

e a ajuda diplomática para enfrentar crises internacionais. O


único poder unilateral que preserva é o poder de bombardear,
cujos limites ficaram demonstrados no Iraque.
Em vez de seguirem os EUA na transformação em Esta
dos-mercado, outros países os estão emulando na afirmação
da própria soberania. Os Estados Unidos nunca foram um
Estado-mercado: os imperativos do mercado quase sempre
ficaram em segundo plano, frente aos da segurança nacional
e da identidade nacional. Hoje, a China, Índia e a Rússia com
portam-se como os EUA costumavam fazer, na utilização dos

mercados globais para ampliar seu poderio no mundo, num


momento em que o poder americano declina vertiginosamen
te. O resultado disto é um mundo que se torna cada vez mais
pluralista, embora não necessariamente mais seguro. O sis
tema de Estados soberanos entrou numa outra fase, na qual
novas potências desafiam o status quo e competem umas com
as outras, processo que já aconteceu muitas vezes antes.43
Tampouco se pode dizer com uma exceção crucial
que a ameaça terrorista assinale uma mudança de patamar
na história. Embora os atentados do 11 de setembro não ti

vessem caráter inédito houve atentados anteriores a em

269
baixadas americanas na África, por exemplo, tinham pro
porções maiores e eram obra de uma rede de ação de alcance
global inédito. Apesar dessas diferenças, o 11 de setembro foi
mais um desdobramento de anteriores formas não-conven

cionais de guerra, mais que uma mudança qualitativa na na


tureza do conflito. Com a ajuda da internet, que permite a
jihadistas violentos que não se conhecem formar células vir
tuais, a al-Qaeda vem ampliando seu alcance e sua influên
cia. Ao mesmo tempo, os aperfeiçoamentos na fabricação de
armas vêm potencializando os arsenais disponíveis a grupos
como o Hamas e o Hezbollah. Mas o terrorismo islâmico não
aplica uma estratégia coerente nem dispõe dos recursos de
uma grande potência. Está longe de ser algo parecido com
uma ameaça mortal à vida civilizada como as que tiveram
de ser enfrentadas e derrotadas no século XX.

Esta situação mudará se os grupos terroristas tiverem


acesso aos meios de destruição em massa. Não só a al-Qaeda,
mas também cultos como o Aum têm demonstrado interesse

na guerra biológica. A tecnologia da informação permite for


mas de ciberguerra que podem comprometer a infra-estru
tura das sociedades modernas ― usinas de força e aeroportos,
por exemplo, podendo provocar baixas em grande escala.
O risco mais catastrófico proviria do terrorismo nuclear.
Utilizando "malas-bomba" ou "bombas sujas" (explosivos
convencionais misturados a lixo radioativo), os terroristas po
deriam matar centenas de milhares de pessoas e paralisar a
vida social e econômica. Não resta dúvida de que as substân
cias necessárias para construir tais dispositivos são mantidas
sob forte guarda, mas se algum Estado nuclear viesse a ser
desestabilizado, seria grande o risco de que esses materiais
caíssem nas mãos de terroristas. No Paquistão - um Estado
semidisfuncional no qual se encontram fortemente entrinchei

270
radas forças fundamentalistas esse risco talvez já esteja
1

presente. O assassinato de Alexander Litvinenko, um ex-ofi

cial dos serviços russos de inteligência que morreu em Londres


em novembro de 2006, semanas depois de receber uma dose
letal de radiação, parece indicar que o terrorismo nuclear já
pode ser uma realidade.
O risco de proliferação foi acelerado pelas políticas ameri
canas. A Coréia do Norte adquiriu capacitação nuclear em
virtude de uma transferência de tecnologia do Paquistão, país

que, em virtude de seu papel na "guerra ao terrorismo", fi


cou isentado de pressões efetivas para impedir esse tipo de
transferência. Os riscos foram agravados pelo fato de o go
verno Bush ter se retirado dos acordos de controle de arma
mentos e por uma mudança na doutrina militar americana
que justifica o uso preventivo de armas nucleares contra paí
ses considerados detentores de programas de armas de des
truição em massa.44 Acima de tudo, depois do Iraque, todo
mundo sabe que a única maneira de se garantir contra um
ataque americano é estar na posse da capacidade de que
Saddam carecia em matéria de ADMs. Segundo anúncio feito
em novembro de 2006 pela Agência Internacional de Energia
Atômica, seis países islâmicos manifestaram o desejo de adqui
rir tecnologia nuclear. Todos eles Argélia, Egito, Marro
-

cos, Tunísia, Emirados Árabes Unidos e Turquia — garantem


que a buscam para finalidades pacíficas, mas já pode ter co
meçado uma corrida armamentista nuclear. Entre os outros

países que podem estar interessados encontram-se a Nigéria


e a Jordânia. Não está fora do âmbito das possibilidades rea
listas que o Estado do Iraque-se ainda existir venha em
algum momento a adquirir exatamente o tipo de capacidade
nuclear que as ações militares preventivas dos Estados Uni
dos pretendiam impedir.

271
Aparentemente, existe nos Estados Unidos quem consi
dere que um ataque ao Irã seria uma maneira de impedir a
proliferação, mas o fato é que, como no caso do Iraque, o efeito
seria, na realidade, agravá-la. Uma vasta zona do Oriente Mé
dio e da Ásia, atualmente abrigando três teatros de guerra -
seria transfor
no Iraque, na Palestina e no Afeganistão -
1

mada numa zona de conflito armado,45 ao passo que a lição


do Iraque de que a única maneira de se garantir contra
um ataque americano é dotar-se de armas nucleares - seria
reforçada. Ao mesmo tempo, é perfeitamente possível que um
ataque não lograsse pôr fim ao programa nuclear iraniano.
Apesar de etnicamente diversificado, o Irã se distingue da
maioria dos outros países da região por dispor de um Estado
razoavelmente coeso. Berço de uma antiga e rica civilização
persa, ele pratica atualmente um tipo de democracia - na
verdade, uma variante mais estável do sistema que se vem

desenvolvendo no Iraque - que confere certo grau de legiti


midade a sua atual liderança. Um ataque aéreo americano
poderia ampliar a legitimidade dessa liderança, cuja popula
ridade já aumentou em virtude do programa nuclear. Ainda
que se desenvolvesse uma forma mais liberal de democracia,
não há garantias de que o Irã viria a renunciar a suas ambi

ções nucleares. Pior, uma campanha de bombardeios, além


de não destruir o programa nuclear, poderia debilitar de tal
maneira o governo que ele não teria mais condições de con
trolar as instalações nucleares que efetivamente existam no

país. Pior ainda, um ataque americano poderia desencadear


sublevações em muitos Estados islâmicos, inclusive o Paquistão,

que já é uma potência nuclear e facilmente poderia transfor


mar-se em mais um Estado disfuncional.
De uma perspectiva da segurança global, poucas coisas
podem ser consideradas mais importantes do que impedir que

272
a tecnologia nuclear fuja ao controle dos Estados. A chama
da Destruição Mútua Assegurada (MAD) evitou por mais de
meio século a utilização de armas nucleares. Esse tipo de dis
suasão talvez não ofereça completa segurança contra um
Estado nuclear chefiado por um profeta apocalíptico, mas fa
culta certo grau de proteção, pois no mínimo certos mem
bros de sua liderança desejarão continuar vivendo. Quando o
inimigo é uma rede que foge a qualquer controle, com rami
ficações em qualquer parte do mundo, a dissuasão se esboroa
completamente. Agentes de destruição em massa não podem
ser ameaçados de aniquilação se sua identidade é desconheci
da. Escreveu o especialista americano em controle de armas
Fred Ikle: "A história militar não ensina aos países como en

frentar uma constante dispersão global dos meios cataclís


micos de destruição."46 Um elemento crucial dessa tarefa
consiste em impedir o colapso dos Estados. Não faltam na
história exemplos de Estados que fracassaram: basta lembrar
os séculos de anarquia que se seguiram à queda do Império
Romano ou a era dos Estados Guerreiros na China antiga.
Nem sempre será possível impedir que futuramente certos
Estados se tornem disfuncionais. Estimular que se decompo
nham é loucura, especialmente numa época em que desen
volvimento da tecnologia torna a anarquia mais ameaçadora
que nunca. E, no entanto, é isto que significa, na prática, der
rubar governos sem a capacidade de substituí-los.
A "guerra ao terrorismo" é um sintoma de uma menta
lidade que espera uma mudança inédita na história huma
na: o fim da história, a morte do Estado soberano, a aceitação
universal da democracia e a derrota do mal. Este é o mito

central da religião apocalíptica vazado em termos políticos e


também o fator comum por trás dos fracassados projetos utó
picos da década passada. A promessa de uma transformação

273
iminente não era uma artimanha cínica acrescida a políticas
adotadas por outros motivos por dirigentes que não acredi
tavam nela. Bush e Blair efetivamente acreditavam que essa
mudança era iminente ou poderia ser promovida, assim como
os intervencionistas neoconservadores e liberais que os apoi

aram no Iraque. O apocalipse não se materializou, e a histó


ria seguiu seu rumo como sempre, mas com novas marcas

de sangue.

274
6

Pós-Apocalipse

o privilégio do Absurdo, ao qual não está sujeita nenhuma


criatura, senão o homem.

Thomas Hobbes, Leviatã¹

A fé na Utopia, que levou à morte de tantos nos séculos que


se seguiram à Revolução Francesa, está morta. Como outras

fés, ela pode voltar a se manifestar, em circunstâncias impre


visíveis; mas é improvável que venha a nos inquietar muito

mais nas próximas décadas. O ciclo em que a política mundial


era dominada por formas seculares do mito apocalíptico che
gou ao fim, e, numa inversão histórica, a religião dos velhos
tempos ressurgiu no cerne do conflito global.
O Iraque foi a primeira experiência utópica do novo sé
culo e pode ser a última. A carnificina interminável que se
verifica no país continua a ser descrita na linguagem secular
da era pós-iluminista; os países ocidentais falam de defesa dos >

direitos humanos e os islâmicos usam muitas idéias do pen

samento radical ocidental. Mas o fato é que ela deixou de ser

uma disputa opondo ideologias seculares, para se tornar uma

275
guerra de religião multifacetada, misturada a uma guerra pelo
controle de recursos naturais.

As ideologias políticas dos últimos duzentos anos foram


veículos para um mito da salvação na história que vem a ser
o mais ambíguo legado do cristianismo à humanidade. A
violência baseada na fé à qual esse mito deu origem é um dis
túrbio ocidental congênito. A primitiva crença cristã num fim
dos tempos que propiciaria um novo tipo de vida humana
foi transmitida pelos milenaristas medievais, transforman
do-se no utopismo secular e, em mais outra encarnação, na
crença no progresso. A era das utopias terminou em Fallujah,
uma cidade arrasada por fundamentalistas rivais. A era se
cular não está no futuro, como acreditam os humanistas li

berais. Está no passado, que ainda precisamos entender.

DEPOIS DO SECULARISMO

O que se apresenta como a "secularização" dos conceitos teo


lógicos terá de ser entendido, em última análise, como uma
adaptação da teologia tradicional ao clima intelectual gera
do pela modernafilosofia ou pela ciência tanto natural quanto
política.

Leo Strauss²

O mundo moderno começou com guerras de religião. Na


Guerra dos Trinta Anos, a Europa foi devastada por uma luta
armada entre católicos e protestantes, o que em certas regiões
da Alemanha levou à morte cerca de um terço da população.

Boa parte das primeiras manifestações do pensamento mo


derno constitui uma resposta a esses conflitos. A necessidade

276
de conter a violência da fé é um elemento central nos escri
tos de Thomas Hobbes e Benedict Spinoza, pensadores do pri
meiro Iluminismo que nos falam mais claramente da natureza
dos atuais conflitos do que a maioria dos que vieram depois.
O tema central do pensamento de Hobbes é a condição da
humanidade num estado natural, em que não há governo.
Como escreveu no famoso décimo terceiro capítulo do Leviatã,
no estado natural não há "vida cômoda" - não existem "ar

tes; nem letras; nem sociedade; e, o que é pior, prevalece o


medo permanentemente, e o perigo de morte violenta". Sem
o poder do governo, os seres humanos são compelidos a tra
var uma "guerra de todos contra todos", na qual cada um é
inimigo de todos. Em Hobbes, a percepção das realidades da
vida quando o governo fracassa é claríssima. Sua visão da ma
neira como a humanidade poderia escapar a essa condição é
que é fantasiosa. Hobbes estava muito preocupado em con
ter o fanatismo, que identificava como o inimigo mortal da
civilização, mas detestava demais a fé fanática para poder en
tendê-la, de modo que não foi capaz de identificar suas raízes

na necessidade de significado. Embora reconhecesse a força


das paixões, ele acreditava que a razão poderia capacitar a hu

manidade a escapar ao estado natural - não para sempre,


-

mas pelo menos por algum tempo. Acreditando ter entendi


do as causas do conflito humano, Hobbes imaginava que, se
seus escritos caíssem nas mãos de um governante inteligen
te, poderia ser estabelecida uma nova forma de governo em
penhada exclusivamente em manter a paz. Submetendo-se a
um governo dessa natureza, a humanidade poderia libertar
se de sua condição natural. Embora seja considerado um ultra
realista, Hobbes, na verdade, buscava na política uma espécie
de salvação.

277
Ainda hoje tem profunda ressonância sua compreensão
dos riscos da anarquia. Os pensadores liberais ainda conside
ram o poder incontrastado do Estado como a maior ameaça
à liberdade humana. Hobbes não se iludia: o pior inimigo da
liberdade é a anarquia, que se mostra mais destrutiva quan
do serve de campo de batalha para fés rivais. Os esquadrões
da morte sectários que percorrem Bagdá mostram que o pró
prio fundamentalismo é uma forma de anarquia em que cada
profeta se arroga autoridade divina para governar. Nas socie
dades bem governadas, o poder da fé é mantido sob controle.
O Estado e as Igrejas moderam as teses da revelação e impõem
a paz. Onde isto não se revela possível, a tirania é melhor que
ser governado por profetas em guerra. Hobbes descortina o
presente com mais nitidez que os pensadores liberais que se
seguiram. Mas sua visão dos seres humanos era demasiado
simples, além de excessivamente racionalista. Partindo do
princípio de que os seres humanos temem mais que tudo a
morte violenta, ele deixou de lado as causas mais persisten

tes de conflito. Nem sempre é porque os seres humanos agem


irracionalmente que não conseguem alcançar a paz. Às vezes,
isto acontece porque não querem a paz. Podem desejar a vi
tória da Única Fé Verdadeira, seja uma religião tradicional ou
um sucedâneo secular como o comunismo, a democracia ou

os direitos humanos universais. Ou então como os jovens


que aderiam aos grupos terroristas de extrema esquerda na
década de 1970 ou que hoje, em outra geração, juntam-se às
redes islâmicas — encontram na guerra um sentido de que
carecem na paz. Nada é mais humano que a disposição de
matar e morrer para dar sentido à vida.
Uma compreensão mais aprofundada dos distúrbios da
fé pode ser encontrada no pensamento de Benedict Spinoza.³
Como Hobbes, Spinoza sabia que a religião pode ser destru

278
tiva, tendo perfeita consciência de que a liberdade de praticá
la vem depois das necessidades da paz; mas entendia melhor
que Hobbes o papel da religião na vida humana. As religiões
não são verdadeiras num sentido literal, como acreditam seus

seguidores. Constituem mitos que preservam em forma sim


bólica ou metafórica verdades que de outras maneira pode
riam perder-se, e o conjunto da humanidade jamais será capaz
de viver sem elas. A palavra mito vem do grego mythos, que
significa história, e os mitos ocidentais dominantes sempre
foram narrativas nas quais a história se transforma numa
estória de pecado e redenção. Spinoza é dos poucos pensado
res ocidentais que rejeitam essa visão da salvação como fato
histórico. Apesar de aparentemente ter sido ateu a maior parte
da vida, Hobbes nunca questionou a crença cristã de que os
seres humanos podem transcender sua condição natural. Na
verdade, é esta crença que está por trás de sua fé no governo.
Em contraste, Spinoza, embora se sentisse atraído por uma
forma mística de racionalismo, entendia que os seres huma

nos são parte integrante do mundo natural, de modo que


nunca se voltou para o Estado em busca da salvação. A anar
quia seria superada à medida que o desenvolvimento das
formas de cooperação social se cristalizasse em instituições
civis; mas a resultante ordem social periodicamente seria rom
pida, e quando isto acontecesse, nenhum contrato social se
ria capaz de restabelecer a ordem. Spinoza tinha uma visão
da salvação um ideal neo-estóico no qual uns poucos in
divíduos seriam capazes de entender e aceitar seu lugar na
ordem das coisas ―, mas ela nada tinha a ver com a política.
Embora seja de longe preferível à anarquia, o governo não
tem como pôr fim aos males da condição humana. O Estado
é apenas uma das forças que determinam o comportamento
humano, e seu poder nunca é absoluto. Atualmente, a reli

279
gião fundamentalista e o crime organizado, as lealdades étni
co-nacionais e as forças de mercado são igualmente capazes
de fugir ao controle do governo e, às vezes, de derrubá-lo ou
tomá-lo. Os Estados encontram-se tão à mercê dos aconteci

mentos quanto qualquer outra instituição humana, e ao lon


go da história todos eles acabam fracassando. Como sabia
Spinoza, não há motivos para supor que o ciclo da ordem e
da anarquia algum dia chegue ao fim.4
Os pensadores seculares consideram desalentadora essa
visão da realidade humana e a maioria deles recuou para al

guma forma de visão cristã, entendendo a história como uma


narrativa de redenção. As mais usuais dessas narrativas são
as teorias do progresso, nas quais a ampliação do conheci
mento capacita a humanidade a progredir e melhorar sua con
dição. Na verdade, a humanidade não pode avançar ou recuar,
pois não é capaz de agir: não existe uma entidade coletiva
dotada de propósitos e intenções, mas apenas efêmeros ani
mais em luta, cada um deles com suas próprias paixões e ilu

sões. O aprofundamento do conhecimento científico não pode


alterar este fato. Aqueles que acreditam no progresso se
jam social-democratas ou neoconservadores, marxistas,
anarquistas ou positivistas tecnocráticos — vêem a ética e a po
-

lítica como a ciência na qual cada passo à frente permite novos


avanços no futuro. Consideram que o aperfeiçoamento da
sociedade é cumulativo, de modo que a eliminação de um mal
pode ser seguida da remoção de outros, num processo per
manentemente aberto. Mas não existem indícios dessa tendên
cia cumulativa nas questões humanas: o que conquistado

sempre pode ser perdido, às vezes num piscar de olhos, como


no caso da volta da tortura como técnica aceita na guerra e

no governo. O conhecimento humano tende a se ampliar, mas

280
nem por isto os seres humanos se tornam mais civilizados.
Continuam passíveis de todo tipo de barbárie, e embora a am
pliação do conhecimento lhes permita melhorar suas condi
ções materiais, também agrava a selvageria de seus conflitos.
Se as religiões políticas do século passado renovaram as
crenças cristãs, o humanismo secular hoje não é diferente.
Pensadores darwinistas como Richard Dawkins e Daniel
Dennett são adversários militantes do cristianismo.5 Mas seu
ateísmo e seu humanismo são variantes de conceitos cristãos.
Como defensor do darwinismo, Dawkins considera que os
seres humanos são como as outras espécies animais, “má
quinas de genes" governadas pelas leis da seleção natural. Sus
tenta, no entanto, que só os seres humanos são capazes de
desafiar essas leis naturais: "Só nós, no planeta, podemos nos
rebelar contra a tirania dos reprodutores egoístas." Ao afir
mar assim a singularidade humana, Dawkins se refere a uma
visão de mundo cristã. O mesmo se aplica a Dennett, que de

dicou boa parte de sua carreira a tentar demonstrar que o


materialismo científico pode ser reconciliado com uma for
ma de livre-arbítrio — idéia que dificilmente ocorreria a al
guém de uma cultura alheia ao cristianismo.
Filósofos pré-cristãos como os epicuristas já especulavam
sobre o livre-arbítrio. Mas ele só se tornou uma questão cen

tral na filosofia ocidental com o advento do cristianismo e

nunca teve um papel proeminente nas filosofias não-ociden


tais que não distinguem os seres humanos tão radicalmente
dos outros animais. Quando examinam a questão do livre

arbítrio e da consciência, os pensadores seculares quase sem


pre se limitam aos seres humanos, mas por que presumir que
esses atributos sejam exclusivamente humanos? Ao dar por
descontada uma diferença de categoria entre os seres huma

281
nos e os outros animais, esses racionalistas deixam claro que
sua visão de mundo foi determinada pela fé. A comédia da
descrença militante está no fato de que o credo humanista
nela encarnado vem a ser um subproduto do cristianismo.
Evidenciar as origens cristãs das crenças humanistas não
prova que estejam equivocadas, mas não são apenas as crenças
humanistas que derivam do cristianismo. É todo o arcabouço
do pensamento, e quando a alegação de que os seres huma
nos são radicalmente diferentes dos outros animais é separa
da de suas raízes teológicas, torna-se não apenas indefensável,
mas praticamente incompreensível. Os humanistas moder
nos se consideram naturalistas que encaram todas as formas
de vida inclusive o animal humano - como parte do uni
verso material; mas uma filosofia autenticamente naturalis
ta não partiria do princípio de que os seres humanos têm
atributos diferentes dos outros animais. Seu pressuposto se

ria que as leis de evolução que governam os outros animais


também governam os seres humanos. À parte a religião re
velada, que bases haveria para pensar de outra forma?
O ateísmo contemporâneo é uma heresia cristã que difere
de anteriores formas de heresia sobretudo em sua crueza in

telectual. É o que fica claro, particularmente, em sua visão


da própria religião. Marx tinha uma visão reducionista na
qual a religião não passava de um subproduto da opressão,
mas deixava claro que ela expressava as mais profundas as
pirações humanas: não era apenas o ópio das massas, mas
também "o coração de um mundo sem coração". Os positi

vistas franceses queriam substituir o cristianismo por uma


ridícula Religião da Humanidade, mas entendiam que a reli
gião atendia a uma necessidade humana universal. Só mes
mo um filósofo muito crédulo pensaria que o fato de mostrar

282
que a religião é uma ilusão seria suficiente para fazê-la desa
parecer. É o pressuposto de que a mente humana é um órgão
sintonizado com a verdade, concepção quase platônica mais
próxima da religião que da ciência e incompatível com o
darwinismo. Mas parece ser mesmo esta a visão dos descren
tes contemporâneos.

O principal significado do ateísmo evangélico está em


demonstrar a irrealidade da secularização. Faz sentido falar

de secularismo quando ele se refere à fraqueza das crenças re


ligiosas tradicionais ou à falta de poder das Igrejas e outros
organismos religiosos. É o que se pretende dizer quando se
afirma que a Grã-Bretanha é um país mais secular que os
Estados Unidos, e neste sentido o secularismo é uma condi

ção realizável. Mas quando se refere a um tipo de sociedade


no qual esteja ausente a religião, o secularismo é uma con

tradição, por se definir por aquilo que exclui. As sociedades


seculares pós-cristãs são formadas pelas crenças que rejeitam,
ao passo que uma sociedade que efetivamente tivesse deixa
do o cristianismo para trás estaria isenta dos conceitos que
modelaram o pensamento secular.
Como qualquer outra idéia, o secularismo tem uma his
tória. A Europa pré-cristã não fazia distinção entre o secular
e o sagrado, exatamente como outras culturas politeístas. O

próprio mundo era sagrado, e não se pensava em confinar a


religião a uma esfera privada sequer se aventava a idéia
-

da religião como conjunto de práticas distintas do resto da


vida. Um domínio apartado do sagrado só seria reconhecido
quando Agostinho estabeleceu uma distinção entre a cidade

do Homem e a Cidade de Deus. Neste sentido, o pensamento


secular é um legado do cristianismo e só tem significado num
contexto monoteísta. Na Ásia oriental, o politeísmo convive

283
lado a lado com filosofias místicas, exatamente como as duas
correntes coexistiam na Europa pré-cristã, e entre os asiáti
cos não se verificou o confronto entre ciência e religião que
polarizou as sociedades ocidentais. Não é por acaso que o
darwinismo não desencadeou nenhuma guerra cultural na
China ou no Japão.
Tal como visto por muitos de seus adeptos contemporâ
neos, o secularismo é menos uma visão de mundo que uma
doutrina política. Neste sentido, um Estado secular é aquele
que bane a religião da vida pública, ao mesmo tempo reco
nhecendo a liberdade de cada um acreditar no que quiser. Esse

tipo de secularismo é compatível com a fé religiosa, mas hoje


em dia é defendido sobretudo por racionalistas que lastimam
a renovada força da religião na política. Eles parecem ter es
quecido as religiões políticas do século XX e certamente não
refletiram no fato de que nos Estados Unidos, um modelo de

regime secular, religião e política estão mais estreitamente


interligadas que em qualquer outro país avançado. O irrea
lismo dessa posição secularista não decorre apenas de uma
ignorância da história. Aqueles que exigem que a religião seja
exorcizada da política acham que isto pode ser conseguido ex
cluindo-se as fés tradicionais das instituições públicas; mas
os credos seculares se baseiam em conceitos religiosos, e su
primir a religião não significa que ela deixe de controlar o
pensamento e os comportamentos. Como o desejo sexual
reprimido, a fé acaba voltando, freqüentemente em forma
grotesca, para governar a vida daqueles que a negam.
Seria reconfortante pensar que a perversão da política
pela religião reprimida ocorre apenas em regimes totalitá
rios. Mas as democracias têm mostrado tendências muito

semelhantes. Mais ainda que os regimes despóticos, os Esta

284
dos liberais tendem a ver a violência por eles próprios infligi
da como moralmente digna de admiração. Tzvetan Todorov,
o historiador francês que cresceu na Bulgária stalinista e em
seus escritos lançou luz sobre os campos de concentração
nazistas e soviéticos, observou esta tendência no contexto

do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki:

As bombas atômicas mataram menos gente que a fome


na Ucrânia, menos que as vítimas dos massacres nazistas na
Ucrânia e na Polônia. Mas o que as bombas e os massacres
têm em comum é o fato de que seus responsáveis achavam
que representavam um meio de alcançar um bem. As bom
bas, entretanto, apresentam uma outra característica: são
motivo de orgulho para os que as construíram e lançaram

(...) ao passo que os crimes totalitários, mesmo sendo consi


derados atos políticos úteis e até dignos de elogio por seus
responsáveis, eram mantidos em segredo (...) Tanto os diri
gentes soviéticos quanto os nazistas sabiam que cairiam em

desgraça se o mundo soubesse exatamente o que haviam fei

to. Não estavam errados, pois assim que seus crimes foram
revelados, passaram a ser tratados como símbolos do mal
absoluto. As coisas são muito diferentes no caso das bom

bas atômicas, e exatamente por este motivo, mesmo que o


crime seja menos grave, o erro moral daqueles que mata
ram em nome da democracia é maior.7

A perda de vidas humanas em Hiroshima e Nagasaki não


foi a maior da Segunda Guerra Mundial morreram mais

civis no bombardeio de Tóquio, por exemplo, do que em qual


quer das duas cidades onde foram lançadas bombas atômi
cas, mas ilustra o ponto de vista de Todorov. As democracias
liberais não se dispõem apenas a cometer atos que, quando

285
perpetrados por regimes despóticos, são condenados como
prova de barbárie: chegam a ponto de considerá-los heróicos.
É possível que esses ataques contra populações civis sejam
justificáveis quando contribuem para abreviar a guerra e der
rubar regimes detestáveis. Os historiadores divergem quanto
a seus efeitos; a questão continua em aberto. Mas se um ata
que dessa natureza pode ser defendido, será apenas como uma
terrível necessidade, e não como triunfal demonstração de
uma grande virtude.
O liberalismo costuma ser considerado uma doutrina cé
tica, o que, no entanto, não faz justiça ao fervor missionário
com que tem sido promovido. O liberalismo é um descendente
direto do cristianismo, evidenciando o mesmo caráter mili
tante de sua fé de origem. A ferocidade com que as sociedades
liberais tratam seus inimigos não pode ser explicada exclusi
vamente em termos de necessidade de autodefesa. As socie
dades liberais merecem ser defendidas, pois encarnam um tipo
de vida civilizada no qual convicções opostas podem coexis
tir em paz. Quando se transformam em regimes missionários,
essa conquista é posta em risco. Entrando em guerra para
promover seus valores, as sociedades liberais são corrompi
das. Foi o que aconteceu quando a tortura, cuja proibição re
sultava de uma campanha iluminista iniciada no século XVIII,
veio a ser empregada no início do século XXI como arma
numa cruzada iluminista pela democracia universal. Preser
var os controles e restrições arduamente conquistados pela
civilização é menos excitante que descartá-los para alcançar
sonhos impossíveis. A barbárie tem um certo encanto, espe
cialmente quando vem trajada de virtude.

286
VIVER NUM MUNDO INTRATÁVEL:

A TRADIÇÃO PERDIDA DO REALISMO

A melhor forma de nos comportar de maneira a evitar os mai


ores perigos desse ambiente consistirá numa constante aplica
ção de paliativos. Não será o caso de, de um só gesto dramático,
descartar todas as dificuldades, mas de estar constantemente
superando novas crises e enfrentando novas dificuldades.

Hedley Bull

Ao longo dos vinte últimos anos, os governos ocidentais, li


derados pela América, vêm tentando exportar para todo o
mundo uma versão dos valores liberais. Essas políticas se dis
tinguiram pela nebulosa grandiosidade de suas metas, mas o
objetivo global era uma mutação na natureza da guerra e do
poder, que sobreviria em conseqüência da adoção universal
da democracia. A tentativa de reformular o sistema interna
cional tem surtido efeitos semelhantes aos das anteriores Uto

pias. O desastre em andamento no Iraque resulta de toda uma


maneira de pensar, e é ela que precisa ser descartada.
São necessárias novas idéias, mas elas precisam renovar

uma antiga tradição. A busca da Utopia deve ser substituída


por uma tentativa de enfrentar a realidade. Não podemos vol
tar aos escritos dos pensadores realistas do passado na espe
rança de que resolvam todos os nossos dilemas. O alicerce
do pensamento realista é a percepção de Maquiavel de que os
governos existem e devem alcançar suas metas num mundo
de constantes conflitos que nunca está longe do estado de
guerra. Apesar da distância entre a Itália do Renascimento e
o presente, isto continua a ser verdadeiro; mas as implica
ções dessa percepção de Maquiavel mudam de acordo com as

287
circunstâncias, e mesmo em sua própria época as teorias rea
listas das últimas gerações apresentavam sérias falhas. Mas
é com o realismo, mais que com qualquer outra escola, que
podemos aprender a pensar os conflitos atuais.
O realismo é a única maneira de pensar as questões da
tirania e da liberdade, da guerra e da paz que efetivamente
pode considerar-se baseada na fé e, não obstante sua fama de
amoralidade, a única eticamente séria. É por isto, sem dúvida,
que é vista com suspeita. O realismo requer uma disciplina
mental que pode parecer por demais austera para uma cul
tura que valoriza o conforto psicológico acima de tudo, e
caberia perguntar se as sociedades liberais ocidentais são ca
pazes do esforço moral necessário para deixar de lado expec
tativas de transformação do mundo. As culturas que não se
formaram no cristianismo e em seus sucedâneos seculares

sempre nutriram uma tradição de pensamento realista, que


provavelmente se mostrará tão forte no futuro quanto no
passado. Na China, A arte da guerra, de Sun Tzu, é uma bíblia
de estratégia realista, e as filosofias taoísta e legalista abri
gam fortes correntes de pensamento realista, ao passo que
na Índia os escritos de Kautilya sobre a guerra e a diplomacia
ocupam um lugar equivalente. Os escritos de Maquiavel
causaram escândalo porque subvertiam os postulados da
moralidade cristã. Não tiveram a mesma força explosiva em
culturas não-cristãs, nas quais o pensamento realista é mais
natural. Nas democracias liberais pós-cristãs, as elites políti
cas e intelectuais, mais que a maioria dos eleitores, é que têm
buscado a guerra como instrumento de aperfeiçoamento do
mundo; mas a opinião pública ainda se mostra avessa ao
pensamento realista. Será que a missão de exorcizar males
perenes poderá satisfazer uma geração acostumada a sonhos
irrealizáveis? Talvez ela prefira o romance da tentativa sem

288
sentido de enfrentar dificuldades que jamais poderão ser su
peradas. Mas nem sempre foi assim, e há apenas duas gera
ções o pensamento realista permitiu aos governos ocidentais
levar a melhor em conflitos muito mais perigosos do que
quaisquer dos que tenham enfrentado até o momento neste
século.

Foi o realismo, e não a fé secular, que permitiu às demo


cracias liberais derrotar o nazismo e conter o comunismo. O

longo telegrama secreto enviado por George F. Kennan a


Washington em 1946, determinando a política que impediu
um desastre nuclear durante a Guerra Fria ao mesmo tempo

que prevenia a expansão do poderio soviético, não estava pre


ocupado em desencadear um frenesi de retidão. Exortava a
que o sistema soviético fosse estudado "com a mesma cora
gem, distanciamento, objetividade e a mesma determinação
de não se deixar provocar ou desestabilizar emocionalmente"
com que um médico avalia um paciente rebelde ou irracio
nal. Ele não dava por descontado que as elites soviéticas éram
pautadas por uma ideologia ou sempre razoáveis. Pelo con
trário, advertia para o risco de se deixar contaminar por sua
irracionalidade: "O maior perigo que nos pode acometer (...)
é que nos tornemos como aqueles com quem estamos lidan
do."10 Embora os riscos sejam diferentes, o modo de pensar
de Kennan se faz urgentemente necessário hoje em dia. En

frentar o terrorismo e a proliferação não é tarefa para missio


nários ou cruzados. A obstinada certeza da fé, que encara cada
crise como uma oportunidade divina de salvar a humanida
de, não serve para enfrentar perigos que não podem ser dis
sipados. Em tempos de perigo, a determinação estóica e o
distanciamento intelectual são qualidades mais úteis, e em
seus melhores momentos o realismo lhes servia de veículo.

289
O pensamento realista não está isento de erros. Existem
muitos exemplos de políticas realistas que fracassam em seus
objetivos ou causam imensos sofrimentos sem nada conse
guir: um exemplo óbvio deste último caso é o bombardeio do
Camboja no período em que Henry Kissinger era o secretário
de Estado americano. Uma abordagem realista das questões
internacionais não é garantia de êxito, e existe um tipo de
realpolitik doidivanas que é extremamente irrealista. O pano
rama da União Soviética pintado por Albert Wohlstteter es
tava muito distante das condições reais, assim como a visão
do Iraque apresentada por seu discípulo Paul Wolfowitz. Os
cálculos estratégicos de Wohlstteter podem parecer a um
mundo de distância do ilusório programa de Wolfowitz para
a instauração da democracia liberal no Iraque. Mas a idéia de
que decisões sobre guerra e paz podem ser reduzidas a um
cálculo matemático de probabilidades e conveniências é uma
simbiose entre racionalismo e magia - em outras palavras,
uma superstição.
Os realistas não aceitam que as relações internacionais,

como a vida humana em geral, consistam em problemas so


lúveis. Existem situações em que qualquer medida adotada
terá um elemento de erro por exemplo, a situação criada
pela intervenção americana no Iraque. Certamente é possível
evitar a multiplicação dessas situações: pode ser necessário
enfrentar mortes em massa para derrotar Hitler, mas não pre
cisamos nadar em sangue para democratizar o mundo. O
realismo é uma navalha de Occam que serve para minimizar
as alternativas radicais entre os diferentes males. Mas não pode
eximir-nos de enfrentar essas alternativas, pois elas são ine
rentes ao ser humano.

No passado, os pensadores realistas queriam substituir as


exortações à moralidade na política pela análise do poder e

290
dos interesses, supostamente definidos em termos rigorosa
mente factuais. Partia-se do princípio de que os Estados eram
entidades empenhadas em maximizar o próprio poder, e suas
relações recíprocas eram teorizadas em termos tomados de
empréstimo à ciência natural. O desenvolvimento de uma dis
ciplina dessa natureza é uma forma de cientificismo - a
equivocada aplicação de um método científico a setores da
experiência em que não existem leis universais -, tendo con
tribuído para desacreditar o pensamento realista. Existe no
comportamento dos Estados um considerável grau de regu
laridade que pode ser identificado pelo estudo da história, mas
essas regularidades não podem ser formuladas como leis uni
versais. Mais uma vez, aqui, as idéias que usamos para en

tender a política — tais como legitimidade, tirania e o conceito


de violência contêm valores como uma parte essencial de
seu significado. Pensar as relações internacionais não pode
deixar de ser um empreendimento moral.
Os realistas dão por descontados certos fatos a respeito
do funcionamento do mundo. Por ociosa que possa ser toda
a conversa sobre o fim da era westfaliana, o fato é que os Es

tados soberanos continuam sendo os principais protagonis


tas nas relações internacionais. Instituições transnacionais
como a ONU constituem dispositivos para a moderação das
rivalidades entre potências soberanas, e não formas embrio
nárias de governança global. Neste sentido, o mundo dos Esta
dos é um mundo de anarquia e sempre o será. Naturalmente,
os Estados podem aceitar muitas limitações, inclusive as que

são impostas por tratados internacionais, como a Convenção


de Genebra, que estabelecem normas de convívio civilizado, e
em certa medida o comércio mutuamente benéfico e as tradi
ções civis podem substituir os conflitos destrutivos pela com

291
petição e a cooperação. Mas essas convenções e práticas são
frágeis, e a longo prazo a guerra é tão comum quanto a paz.
Os realistas deveriam rejeitar os enfoques teleológicos da
história. A suposição de que a humanidade caminha para uma
condição na qual não mais haverá conflito quanto à nature
za do governo é não só ilusória, como perigosa. Basear as polí
ticas públicas na pressuposição de que um misterioso processo
evolutivo conduz a humanidade à terra prometida acaba le
vando a um estado de espírito de despreparo frente aos con
flitos mais intratáveis. Nos casos mais extremos, a teleologia

histórica se corporifica em programas empenhados na acele


ração desse processo evolutivo, como a "revolução democrá
tica global" neoconservadora que por certo período deformou
a política externa americana. Mas a "teleologia passiva" que
rejeita qualquer tentativa de forçar o ritmo da evolução
tampouco é uma base segura para a adoção de políticas. Não
existe, no processo de modernização, nada que aponte na di
reção de uma época futura em que todos ou quase todos os
Estados venham a ser variantes de um mesmo tipo. Os Esta

dos modernos apresentam grande variedade: bons e ruins,


intoleráveis e indiferentes. A Alemanha de Hitler não era me

nos moderna que a Suécia social-democrata, e a teocracia

popular que governa o Irã é um sistema de governo tão mo


derno quanto o da Suíça contemporânea. O mundo não fica
mais uniforme à medida que se vai tornando mais moderno.
Os Estados modernos usam o poder do conhecimento para
atender a seus diferentes fins e estão tão sujeitos aos confli
tos quanto os outros.
Se os realistas rejeitam a crença numa convergência final
na história, um dos motivos é que resistem à tentação da
harmonia na ética. Os conflitos morais, às vezes de tal natu

reza que não podem ser totalmente resolvidos, são uma ca

292
racterística constante nas relações entre Estados. Muitas
filosofias morais dão por descontado que as exigências da
moralidade, ou pelo menos de parte dela, como no caso dos impe
rativos de justiça, devem todas ser compatíveis. Pelo menos
em princípio, presume-se que nenhum imperativo da mora
lidade pode entrar em conflito com outro. Essa crença é
subjacente a todas as variedades de utopismo, e uma de suas
manifestações está por trás das teorias dos direitos huma
nos que têm sido usadas para justificar as guerras preven
tivas. Como observou Isaiah Berlin, essa crença na harmonia

moral não é corroborada pela experiência; quando é aceita


por pensadores iluministas, expressa uma idéia de perfeição
caudatária da religião. Entre os pensadores iluministas, es
creve Berlin,

encontramos a mesma pressuposição: de que as respostas a


todas as grandes perguntas haverão necessariamente de har
monizar-se umas com as outras, pois devem corresponder à
realidade, e a realidade é um todo harmônico. Se assim não
fosse, estaria instaurado o caos no cerne das coisas, o que é

impensável. Liberdade, igualdade, prosperidade, conhecimen


to, segurança, senso prático, retidão de caráter, sinceridade,
bondade, auto-estima racional, todos esses ideais (...) não
podem (se forem realmente desejáveis) estar em conflito uns
como os outros; se parecem estar, haverá de ser por uma
compreensão equivocada de suas propriedades. Nada que seja
realmente bom pode ser afinal incompatível com outra coisa
que também o seja; na verdade, uma praticamente acarreta
a outra: os homens só podem ser sábios se forem livres, e só
podem ser livres se forem justos, felizes, e assim por diante.
Nesse ponto, com toda evidência deixamos para trás a
voz da experiência que registra conflitos muito patentes
entre ideais supremos para ir ao encontro de uma doutri

293
na que decorre de raízes teológicas mais antigas, da crença
de que, a menos que todas as virtudes positivas estejam em
harmonia recíproca, ou pelo menos não sejam incompatí
veis, o conceito de Entidade Perfeita tenha o nome de na
-

tureza, Deus ou Realidade Suprema é inconcebível.11

O liberalismo se tem mostrado tão utópico quanto outras


filosofias na postulação de uma forma de harmonia final como
meta atingível. O ideal de um mundo no qual os direitos hu
manos sejam universalmente respeitados está na mesma cate
goria que o conceito dos “antileões” e “antibaleias" que existem
apenas para servir aos seres humanos, tal como exposto por
Fourier. É um sonho acordado, que obscurece os conflitos en
tre os direitos e as muitas causas da violência humana.

Os realistas reconhecem que os Estados estão fadados a


situar aqueles que consideram ser seus interesses vitais aci
ma de considerações mais universais. Não podem eximir-se
da tendência a se apresentar como instituições legítimas. Nesse
processo, será dada prioridade a seus cidadãos, protegendo
os da insegurança e das conquistas, garantindo-lhes um ra
zoável grau de subsistência e encarnando seus valores e
identidades. Como devem servir antes de tudo aos interesses

daqueles que governam, os Estados não são capazes de ado


tar uma perspectiva imparcial, como a que costuma ser con
siderada essencial à moralidade; mas isto não quer dizer que
as políticas que praticam não possam ser julgadas do ponto
de vista moral. Sob o aspecto ético, uma política externa rea
lista pode ser aquela que tem por objetivo manter em xeque
os piores males. Tirania e anarquia, guerra e guerra civil são
as ameaças àquilo que Hobbes chamava de vida cômoda. Ja
mais haverá poder algum capaz de livrar o mundo desses
males; mas os Estados podem eximir-se de ampliá-los em

294
nome de ideais incipientes que jamais serão alcançados. Um
Estado que trate de impedir a tortura em suas próprias insti
tuições é mais civilizado que outros que a pratiquem em nome
dos direitos humanos universais, tendo também mais pro
babilidade de êxito em suas metas.

O compromisso com uma cautela civilizada no emprego


da força é um elemento necessário do realismo. Ao contrário

do que pensam os pós-modernistas, para os quais todos os


valores humanos são construções culturais e que rejeitam a
idéia da natureza humana, existem certos valores que refle
tem necessidades humanas universais. Mas essas necessida

des são muitas e conflitantes, e os valores universais podem


traduzir-se de diferentes formas. Se diferentes formas de go

verno têm sido consideradas legítimas, não é porque a hu


manidade ainda não abraçou as lealdades específicas da
democracia atlântica, mas porque não existe uma só manei
ra certa de resolver os conflitos entre os valores universais. A

prevenção dos grandes males pode implicar dilemas racional


mente insolúveis, como na divergência entre pessoas de bom
senso a respeito do bombardeio aéreo de populações civis na
luta pela defesa da civilização frente ao nazismo. Os filósofos
racionalistas perguntarão pelo significado da civilização, como
se, na ausência de uma definição, ela não pudesse ser defen
dida, ao passo que os humanistas liberais dirão que os direi
tos humanos se encarregarão de impor os limites necessários.
Mas o problema não está no fato de não concordarmos nas

questões morais ou deixarmos de fazer valer os direitos hu


manos: está em que existem dilemas morais, alguns deles
bastante freqüentes, para os quais não existe solução. Os pen
sadores liberais consideram que os direitos humanos represen
tam uma espécie de mínimo moral universal a ser assegurado
antes da busca de qualquer outra meta. Um ponto de vista

295
louvável, que, no entanto, ignora o fato de que os compo
nentes desse mínimo muitas vezes estão em conflito uns com

os outros. A derrubada de um tirano pode resultar em anar


quia, mas o apoio a uma tirania pode agravar o abuso de
poder. A liberdade religiosa é desejável, mas pode ser autodes
trutiva se levar a lutas sectárias. Proteger da intrusão a esfe
ra privada individual é uma necessidade da vida civilizada,
mas certas incursões na privacidade podem ser inevitáveis
para assegurar outras liberdades. Mais vale aceitar esses con
flitos e enfrentá-los do que negá-los, como fazem os liberais
quando recorrem às teorias dos direitos humanos para re
solver dilemas de guerra e segurança.
A necessidade fundamental é alterar a visão predominante
dos seres humanos, que os considera criaturas intrinsecamen
te boas, inexplicavelmente envolvidas numa história de vio
lência e opressão. Chegamos aqui ao cerne do realismo e a
seu principal ponto de resistência para a maioria: a afirma
ção dos defeitos inatos dos seres humanos. Quase todos os

pensadores pré-modernos davam como certo que a natureza


humana era imutável e defeituosa, e neste como em outros

sentidos chegavam perto do cerne da questão. Nenhuma te


oria política merece crédito se partir do princípio de que os
impulsos humanos são naturalmente benignos, pacíficos ou
sensatos. Como reconheceu Jonathan Swift ao situar no rei

no dos cavalos a única Utopia que podia imaginar, a busca


da harmonia pressupõe um tipo de vida que os seres huma
nos não são capazes de viver.
O realismo não precisa ser uma posição conservadora. O
desenvolvimento lento das instituições, preconizado por Burke
e outros pensadores conservadores, muitas vezes é imprati
cável. Nem sempre será possível impedir a revolução, que pode
não ser indesejável. Seja como for, o súbito aniquilamento de

296
sociedades e modos de vida, recorrente na história, tornou
se hoje a regra. A nostalgia da suposta unidade orgânica de
sociedades anteriores, uma tendência freqüente entre os con
servadores, é uma forma de utopismo. E o realismo tampouco
tem alguma coisa a ver com o fundamentalismo moral que
enche a boca com o "direito à vida", os "valores tradicionais"

e bobagens desse quilate. Mas é verdade que os realistas com


partilham com as antigas filosofias conservadoras a idéia de
que nenhuma mudança nas instituições humanas é capaz de
resolver as contradições das necessidades humanas. Os seres
humanos efetivamente desejam a liberdade, mas em geral so
mente quando outras necessidades foram atendidas, e, mesmo
assim, nem sempre. Os tiranos não são apenas temidos,
muitas vezes são amados. Os Estados não cuidam apenas de
proteger seus próprios interesses; também são veículo de mi
tos, fantasias e psicoses de massa. Os internacionalistas
neoconservadores e liberais gostam de dizer que a liberdade é
contagiosa, mas a tirania também pode ser contagiosa. Dita
dores foram adorados durante boa parte do século passado.
Só mesmo um profeta muito ousado seria capaz de prever
que isto jamais voltará a acontecer.
Embora os realistas reconheçam que o mundo dos Esta
dos continuará sendo uma arena de conflitos, a maioria tran

sita por escolas de ciências sociais baseadas em princípios de


escolha racional. Essa tradição iluminista ajuda a explicar
comportamentos como o dos homens-bomba, mas tem li
mites muito claros. As teorias da escolha racional partem do
pressuposto de que os seres humanos têm metas sensatas: se
as pessoas aparentemente se comportam de forma irracional,
é por estarem frustradas. O que está implícito nessa análise
de benigno reducionismo é que, se as causas da frustração
fossem eliminadas, prevaleceria a harmonia. Mas nem todos

297
os objetivos razoáveis são compatíveis, e as escolhas racio
nais podem levar a conflitos terrivelmente destrutivos. É o
que freqüentemente acontece na guerra assimétrica. Embora
os insurgentes geralmente vençam, as potências ocupantes
também têm interesses que as impelem ao combate. Os dois
lados podem ter motivos para se envolver num conflito da
noso para ambos.
Acima de tudo, os seres humanos têm necessidades que
não podem ser atendidas por meios racionais. O culto Aum,
que tentou conseguir o vírus ebola, tinha muito poucos ob
jetivos alcançáveis. Era movido, em suas atividades, por fan
tasias quiliastas clássicas: o fim do mundo, seguido de um
paraíso pós-apocalíptico. Certas manifestações da violência
terrorista da al-Qaeda seguem um padrão semelhante. Não
adianta buscar as causas desse tipo de terrorismo em confli
tos políticos não resolvidos. Essa manifestação de desequilíbrio
é um transtorno da necessidade de significado comparável ao

que mobilizou movimentos milenaristas e regimes totalitá


rios. É uma doença que pode afetar mais os grupos marginais
que os outros, mas também pode ser endêmica nas socieda
des modernas tardias. À medida que os meios de destruição
em massa se tornam mais acessíveis a pequenos grupos e in
divíduos, o terrorismo anômico pode vir a representar uma
ameaça maior que o emprego de técnicas terroristas em guer
ras assimétricas.

O complexo fenômeno do terrorismo requer que o pen


samento realista deixe focar exclusivamente a questão do Es
tado. Os Estados continuam sendo um dado essencial, mas já
não são a única e nem sempre a mais importante arena da

guerra. A guerra clássica — às vezes chamada de guerra clau


sewitziana, do nome do estrategista militar prussiano Carl
von Clausewitz, que viveu no início do século XIX - era o

298
conflito armado entre forças controladas por Estados. Infli
giu baixas terríveis no século XX, quando passou a abranger
o bombardeio de populações civis. Embora muitos conside
rem que esse tipo de guerra ficou para trás, ainda podem ocor
rer conflitos armados entre grandes potências. A guerra
clássica continua sendo um mal terrível, mas mesmo nos ca
sos em que é total, ela pode ser encerrada por um acordo: os
diplomatas podem encontrar-se, negociar um acerto e firmar
a paz. Um acordo dessa natureza não pode ser alcançado com
redes terroristas globais, que podem estar internamente di
vididas e carecer de objetivos negociáveis. Hoje em dia, os con
flitos armados envolvem grupos muito dispersos e até mesmo
sociedades inteiras, agindo fora do controle de qualquer go
verno. Para ser produtivo, o pensamento realista deve enten
der que a guerra deixou ser prerrogativa dos Estados para se
tornar privilégio do homem comum.
O pensamento realista não pode esquivar-se às ameaças
apresentadas pela crise ambiental. As reservas petrolíferas
chegando ao pico e o aquecimento global constituem a outra
face da globalização: a disseminação planetária do modo in
dustrial de produção baseado em combustíveis fósseis, que
permitiu o crescimento econômico e populacional dos dois
últimos séculos. Esse processo não está longe de chegar a seus
limites, não tanto políticos, mas ecológicos. A expansão in
dustrial ocasionou mudanças climáticas globais que são de
maior alcance, mais rápidas e irreversíveis que jamais se che
gara a imaginar, ao passo que os combustíveis não-renováveis
que alimentam a indústria vão se tornando mais escassos à
medida que aumenta sua demanda. ¹2 Esses fatos têm conse

qüências para a guerra e a paz, de algumas das quais tratei


em capítulos anteriores. Mas as implicações estratégico-mi
litares da crise ecológica raramente são examinadas, e a ques

299
tão continua sendo um tabu. Em outubro de 2003, quando
um grupo do Pentágono divulgou um relatório intitulado
"Uma hipótese de mudança abrupta do clima e suas conse
qüências para a segurança nacional americana", suas análi
ses e propostas eram incompatíveis com os planos do governo
Bush - e foram arquivadas.
O relatório examinava as conseqüências geopolíticas de
uma súbita mudança climática, entre elas a escassez de ali
mentos, decorrente de diminuição da produção agrícola glo
bal, a menor disponibilidade e a pior qualidade da água em
regiões-chave e os problemas de acesso a fontes de energia. O
resultado global dessas mudanças seria "uma considerável
queda na capacidade de sustentação humana do meio am
biente da Terra" - em outras palavras, a diminuição da po
pulação humana passível de ser sustentada pelo planeta.
Prosseguia o relatório:

À medida que se reduzem as capacidades locais e globais de


sustentação, podem agravar-se as tensões em todo o mun
do, levando a duas estratégias fundamentais: defensiva e
ofensiva. Os países com recursos suficientes podem construir
virtuais fortalezas ao seu redor, preservando seus próprios

recursos. Os países menos aquinhoados, especialmente quan


do envolvidos em velhas inimizades com vizinhos, podem
empreender lutas para ter acesso a alimentos, água ou ener
gia. Alianças improváveis poderiam formar-se, com a mu
dança das prioridades de defesa e das metas, que passarão a
ser os recursos necessários para a sobrevivência, e não mais
religião, ideologia ou honra nacional. 13

O relatório do Pentágono era pioneiro no reconhecimento

do fato de que uma mudança climática abrupta pode levar à


diminuição da capacidade planetária de sustentar a vida

300
humana. Sua avaliação das formas de conflito que podem
seguir-se é plausível, embora talvez tenha subestimado sua
intensidade. A análise partia do princípio de que seriam con
flitos estratégico-racionais sem envolvimento religioso, mas
o fato é que boa parte das reservas planetárias de petróleo
restantes estão em terras muçulmanas, e o conflito em tor

no da disputa de recursos poderia ser agravado por antago


nismos ligados à "guerra ao terrorismo". O risco é de que a
guerra pelos recursos venha de cambulhada com guerras de
religião, e a teoria do choque de civilizações, que de outra
forma poderia ser considerada fantasiosa, acabe se cumprindo.
A menos que encontrem alternativas para o petróleo, os
Estados industriais não poderão escapar aos conflitos num
futuro previsível. O processo de diversificação para diminuir
a dependência em relação ao petróleo será muito mais árduo
do que supõe a maioria dos ambientalistas. Se a produção
mundial de petróleo está próxima do pico — como parece pro
vável a mudança para outras formas de energia é uma
necessidade urgente; mas talvez não existam alternativas fa
cilmente disponíveis que sejam capazes de sustentar a atual
população humana do planeta. Já é de senso comum que o
principal problema ambiental não está no tamanho da po
pulação, mas no uso per capita dos recursos em outras
palavras, na maneira como vivem os seres humanos. Na

verdade, a humanidade provavelmente já ultrapassou a


capacidade de sustentação do planeta. A atual população hu
mana depende de uma agricultura baseada no petróleo, que
acelera o aquecimento global. O crescimento populacional
nem sempre é maior nos países em desenvolvimento - vem

a ser duas vezes mais rápido nos Estados Unidos que na Chi
na, por exemplo, mas é por demais elevado globalmente
para que seja viável uma mudança para tecnologias alterna

301
tivas em escala planetária. Uma combinação de energia solar,
energia eólica e agricultura orgânica não seria capaz de sus
tentar de seis a nove bilhões de pessoas.
Se existe uma saída pelo gargalo, terá de envolver a má
xima utilização de soluções de alta tecnologia. As melhores
perspectivas podem encontrar-se nas tecnologias às quais os
ambientalistas se mostram mais hostis, como a energia nu
clear e as colheitas GM, que, apesar dos riscos envolvidos, não
14
acarretam mais destruição da biosfera. ¹4 A alternativa não é
uma Utopia de baixo nível tecnológico, como gostam de pen
sar muitos verdes. Como escreveu James Lovelock, seria "um

declínio global para um mundo caótico governado por senho


res de guerra brutais numa Terra devastada”. 15
Muitos dos que se dão conta do alcance da crise continuam
a acreditar que ela pode ser superada mediante mudanças no
comportamento humano. Jared Diamond sustenta de ma
neira convincente a tese de que as sociedades contemporâneas
podem caminhar para a autodestruição se continuarem ig
norando os limites ambientais. Ele considera que a catástrofe

pode ser evitada mediante maior cooperação, mencionando


o sistema holandês de pôlders - terrenos conquistados ao mar
na Holanda como modelo a ser adotado em todo o mun

do. Escreve Diamond:

O mundo inteiro transformou-se num pôlder (...) Quando a


distante Somália entrou em colapso, chegaram as tropas
americanas; quando a antiga Iugoslávia e a União Soviética
entraram em colapso, expulsaram ondas de refugiados para
toda a Europa e o resto do mundo; e quando novas condi
ções sociais, de povoamento e estilo de vida espalharam novas
doenças na África e na Ásia, essas doenças se disseminaram
pelo planeta. Hoje, o mundo inteiro é uma unidade isolada e
auto-suficiente.16

302
Diamond está certo ao afirmar que o mundo tornou-se
mais interdependente, o que não é motivo para considerar que
se tornará mais cooperativo. O relatório do Pentágono apon
ta numa direção mais provável. Os Estados que se mantive
rem fortes e eficazes tratarão de garantir os recursos que têm
sob controle. Nos que se mostrarem fracos ou entrarem em
colapso, a luta será transferida a outros grupos. O resultado
geral será antes a intensificação dos conflitos que uma coo
peração global. O Protocolo de Quioto ilustra essa dificulda
de. Ele pode ser intrinsecamente falho por não serem aplicáveis
aos países emergentes as metas nele estabelecidas, mas seu
principal defeito era não prever mecanismos de imposição de
seus dispositivos. Os países podiam assiná-lo ou não, e os
Estados Unidos e alguns outros se recusaram a fazê-lo. Não
há como contornar essa dificuldade. Num mundo anárquico,

os problemas ambientais globais são politicamente insolúveis.


A crise ambiental é uma fatalidade que o homem pode ten
tar contornar, mas não superar. Sua origem está no poder de
gerar formas de conhecimento que estabelecem distinção en
tre os seres humanos e os outros animais. O progresso do co
nhecimento permitiu ao homem multiplicar-se, aumentar sua

expectativa de vida e criar riqueza numa escala inédita. Mas o


aquecimento global e a escassez de energia surgiram como
conseqüência do avanço do industrialismo, que também é um
subproduto do progresso científico. A proliferação de meios de
destruição em massa, não só em poder de Estados, mas tam
bém de forças que eles não são capazes de controlar, é outro de
seus efeitos. Hoje, a preocupação é que materiais nucleares
caiam em mãos de terroristas, mas amanhã o receio pode ser

que o mesmo aconteça com armas biológicas. A ciência gené


tica permite que o homem interfira na criação de vida, mas
certamente também será utilizada para gerar mortes em massa.

303
Não vai demorar muito até que se tornem viáveis dispositivos
genéticos seletivos capazes de funcionar como ferramentas de
genocídio, e quando isto acontecer, talvez não haja como im
pedir que se disseminem pelo mundo. As futuras ameaças à
segurança talvez não partam sobretudo do terrorismo, como
se costuma supor, podendo vir em surtos de doenças de ori
gem desconhecida. O paradigma do terror futuro pode ser um
inexplicável colapso das estruturas da vida quotidiana.
A ampliação do conhecimento incrementa o poder huma
no ao mesmo tempo que gera dilemas insolúveis. Precisamos
entender que os mais graves distúrbios humanos não podem
ser remediados, mas apenas enfrentados no dia-a-dia. Mas
será que podemos conviver com este fato? Descartar os mi
tos da teleologia histórica e da harmonia final é altamente

desejável, mas também extremamente difícil. A crença oci


dental na salvação através da história se tem renovado sempre
e sempre. A migração do utopismo da esquerda para a direi
ta dá testemunho dessa vitalidade. Está inscrita na vida con
temporânea uma fé irracional no futuro, e a mudança para
o realismo pode ser um ideal utópico.

O FIM, DE NOVO

O Apocalipse faz parte do moderno Absurdo.

Frank Kermode¹7

Os mitos ocidentais dominantes sempre foram narrativas his

tóricas, e passou a ser de bom-tom considerar que a narrati


va é uma necessidade humana fundamental. Chegamos à
conclusão de que o homem é um contador de histórias que

304
só pode ser feliz se puder encarar o mundo como uma estó
ria. Nos dois últimos séculos, a estória dominante tem sido a
do progresso humano, abrangendo também, no entanto, a fá
bula de um mundo assediado por forças obscuras e fadado à
destruição. Os dois enredos se enredam, como acontecia quan
do Marx e seus seguidores acreditavam que a humanidade
avançava por meio de uma série de revoluções catastróficas e
os nazistas, que forças demoníacas conspiravam contra o Volk
e sua ascensão a um estado de harmonia imortal semidivina.

Numa linguagem diferente, os humanistas liberais falam do


avanço da humanidade, palmo a palmo, num gradual pro
cesso de aperfeiçoamento. Em todos esses relatos, a história é
contada como narrativa coerente, e nada parece mais amea
çador que a idéia de que não passa de um fluxo sinuoso sem
propósito nem direção.

A crença de que a história tem um enredo subjacente é


um elemento central dos movimentos milenaristas, secula

res e religiosos, examinados neste livro. Os adeptos desses mo


vimentos acreditam que agem de acordo com um script já
parcialmente escrito. Nas variantes declaradamente religio
sas da crença apocalíptica, o autor do script é Deus, vindo o
diabo e outros demônios entrar com sua contribuição, mas
afinal se submetendo à autoridade do narrador divino. Na

apocalíptica secular, o autor é uma figura não menos ina


preensível, a humanidade, combatendo as forças da ignorância
e da superstição. Em qualquer dos casos, a necessidade de sig
nificado é atendida por narrativas em que cada vida indivi
dual se integra a uma estória abrangente.
Os riscos dessa necessidade de uma narrativa humana glo
bal são evidentes. Sentir-se alvo de uma conspiração global,
como faziam os nazistas, pode não parecer um estado de es
pírito positivo, mas elimina o problema da falta de significado,

305
que vem a ser uma ameaça pior. A paranóia muitas vezes é
um protesto contra a insignificância, e os delírios coletivos
de perseguição servem para melhorar uma imagem fragili
zada da própria importância. O problema é que esse benefício
cobra um preço alto, pago em vidas de seres humanos que
são forçados a desempenhar um papel num script que não
leram e muito menos escreveram. Aqueles que são esmaga
dos ou aniquilados para a criação de uma humanidade me
lhor, que são mortos ou mutilados em atos espetaculares de
terrorismo ou arrasados em guerras pela liberdade universal
podem conceber para si mesmos um lugar no mundo com
pletamente diferente do que lhes é atribuído nos dramas que
estão sendo montados. Se as narrativas universais criam sig
nificado para aqueles que vivem de acordo com elas, também
servem para acabar com ele na vida de outros.
A sensação de estar participando desse tipo de narrativa,
naturalmente, é ilusória. João de Leyden acreditava que Deus

o chamara a governar a Nova Jerusalém. Lenin estava certo


de estar abrindo caminho para o cumprimento das leis da his
tória. Hitler tinha certeza de que o mundo corrupto da de
mocracia liberal estava condenado. Os verdadeiros fiéis do livre

mercado interpretaram o colapso do comunismo como indício


de uma tendência inexorável, e os neoconservadores sauda

ram os poucos anos de supremacia americana que aparente


mente se seguiram como uma nova era histórica. Todos esses

profetas julgavam ter apreendido o sentido da história, acre


ditando que completavam um padrão preestabelecido. Na
verdade, sua ascensão ao poder era acidental, e só a não-che
gada do Milênio estava predeterminada. Os movimentos
milenaristas resultam de uma combinação de acontecimen
tos aleatórios, e quando caem em desgraça é em conseqüên
cia de características humanas cuja permanência negam. A
306
história desses movimentos não é propriamente trágica, pois
seus adeptos raramente se dão conta das fatais contingências
que governam suas vidas. São atores de um teatro do absur
do cujo texto é fornecido pelo acaso.
Considerar que a própria vida é um episódio numa nar
rativa universal é uma fantasia, e embora ela se escore em

fortes tradições ocidentais, nem sempre foi considerada uma


boa coisa. Muitos místicos têm procurado alcançar um estado
de contemplação do qual esteja ausente a associação de acon
tecimentos a partir dos quais construímos a história de nos
sa vida. Platão e seus discípulos davam mais valor a uma
eternidade isenta de acontecimentos que a qualquer processo
de mudança, e nisto estavam próximos dos pensadores hindus
e budistas. Numa outra tradição, os taoístas consideravam
que a liberdade consiste em libertar-se das narrativas pessoais,
identificando-se com processos cósmicos de morte e renova
ção. No cristianismo, a tentação de construir uma narrativa
a partir dos acidentes da história tem sido extremamente forte.
Mas na ortodoxia criada por Agostinho essa tentação veio a
ser amainada pela idéia de que o significado pode ser encon
trado num reino atemporal, cujos prenúncios podem se ma
nifestar a qualquer momento.
A liberdade em relação à narrativa não é uma condição

com que sonhem apenas os místicos. Os poetas e os epicuristas


cultivam um estado de espontaneidade no qual possam des
frutar de cada momento por si mesmo. Passar a vida con
templando o futuro significa viver num mundo moldado pela
memória. Mas a memória também tem sido usada para se
libertar da narrativa. Escrevendo sobre a sensação experimen
tada ao tomar chá com pedaços de madeleines, os bolinhos
que ganhava da mãe, Marcel Proust diz que ela "instantane
amente tornou as vicissitudes da vida sem importância para

307
mim, seus desastres, inócuos, sua brevidade, ilusória, agindo
da mesma forma que o amor, enchendo-me de uma preciosa
essência: ou antes, essa essência não estava em mim, ela era
18
eu. Eu deixara de sentir-me medíocre, contingente, mortal". ¹8
Proust voltava-se para o passado para tentar sair do tempo.
Uma busca que só podia ter êxito parcialmente, pois as lem
branças contendo prenúncios da imortalidade não podem ser
mobilizadas a qualquer momento.
A necessidade de narrativa pode ser um estorvo, e se qui
sermos livrar-nos dela devemos buscar a companhia dos
místicos, poetas e amantes do prazer, e não dos sonhadores
utópicos. Embora contemplem o futuro, esses sonhadores quase
sempre relembram um período idealizado de inocência: o co
munismo primitivo de Marx ou o mundo perdido da virtude
burguesa acalentado pelos neoconservadores. Escreveu o es
critor e psicanalista Adam Phillips: “Com toda evidência, o
pensamento apocalíptico é o que pode haver de pior em maté
ria de nostalgia."¹9 Buscar refúgio numa imaginária harmo
nia futura é atar-nos aos conflitos do passado.
Os mitos não podem ser considerados verdadeiros ou fal

sos como acontece com as teorias científicas, mas podem ser


mais ou menos verdadeiros no refletir as realidades perma
nentes da vida humana. Os mitos com os quais o homem tem
vivido não eram em sua maioria narrativas históricas como

a que embasa as culturas cristãs e pós-cristãs. Em Platão e


nas religiões orientais, a promessa de libertação do tempo tam
bém é um mito, que, no entanto, dissipa a expectativa de um
triunfo final do bem, como a que tem evidenciado efeitos tão
nocivos no Ocidente moderno.

Os mitos seculares reproduzem a forma narrativa da apo


calíptica cristã, e se existe uma maneira de moderar a violência
da fé, ela deve começar pelo questionamento desses mitos. No

308
pensamento secular, a ciência veio a ser encarada como um

veículo da revelação, um repositório da verdade, e não como


um sistema de símbolos que atende à necessidade humana de
entender e controlar. As filosofias pós-modernas que vêem a
ciência apenas como um sistema de crenças entre muitos
outros são por demais absurdas para merecer contestação
mais detida: a utilidade do conhecimento científico é um fato

concreto demonstrado no aumento do poder do homem. A


ciência é um instrumento para a constituição de crenças só
lidas a respeito do mundo. As religiões também são instru
mentos humanos, mas têm outras metas. O objetivo ideal da
investigação científica pode ser um ponto final no qual as
crenças humanas espelhem o mundo numa teoria abrangente,
e na ciência esse ideal pode ser útil (embora também seja en
ganoso). Mas por que deveriam as religiões buscar o consen
so? Embora as crenças verdadeiras possam ser úteis em nossa
vida cotidiana, as dúvidas vêm mais ao caso na vida do espí
rito. As religiões não são afirmações de conhecimento, mas
formas de conviver com o que não pode ser conhecido.
A oposição entre ciência e religião decorre da idéia equi
vocada de que ambas têm a ver com crenças. Só em algumas
correntes do cristianismo e do islamismo a crença foi insta

lada no centro da religião. Em outras tradições, a religião tem


a ver com a aceitação do mistério, e não com catecismos ou
credos. Ciência e religião atendem a necessidades diferentes,
igualmente humanas, embora apontem em direções diferen
tes. No mundo contemporâneo, a ciência exerce autoridade
por causa do poder que confere. Por isto é que os fundamen
talistas macaqueiam sua pretensão à verdade literal, como
no caso da caricatura científica do criacionismo. Mas o criacio

nismo não é necessariamente mais ridículo que o darwinismo


social, o materialismo dialético ou a teoria de que as sociedades

309
vão ficando mais livres ou pacíficas à medida que se tornam
mais modernas. Esses credos seculares são mais irracionais

que qualquer fé tradicional, no mínimo por se mostrarem


mais pretensiosos na ostentação de um suposto racionalismo.
O mais importante no momento é aceitar a realidade
irredutível da religião. Nas filosofias iluministas que mode
laram os dois últimos séculos, a religião era um aspecto se
cundário ou derivativo da vida humana, fadado a desaparecer
ou a deixar de ser importante quando suas causas fossem eli
minadas. Uma vez erradicada a pobreza e universalizada a
educação, sendo superadas as desigualdades sociais e ficando
para trás a repressão política, a religião terá a mesma impor
tância que um hobby pessoal. Por trás desse artigo de fé ilu
minista está a negação do fato de que a necessidade de religião
é genérica na espécie humana. É verdade que as religiões são
infinitamente variadas e exercem muitas funções sociais
sobretudo, é claro, como instituições de beneficência. Even
tualmente, também têm servido às necessidades do poder.
Além desses objetivos sociopolíticos, contudo, as religiões ex
pressam necessidades humanas que nenhuma mudança social
haverá de eliminar: por exemplo, a necessidade de aceitar o
que não tem remédio e conferir significado aos acasos da vida.
Assim como não podem deixar de ser sexuais, lúdicos ou vio
lentos, os seres humanos nunca deixarão de ser religiosos.
Se é uma necessidade humana primordial, a religião não
deve ser suprimida ou relegada ao limbo da vida privada. Pre
cisa ser plenamente integrada à esfera pública, o que não sig
nifica que se deva instaurar uma religião específica como
doutrina pública. As sociedades modernas tardias abrigam
uma grande diversidade de visões de mundo. Não há muita
concordância quanto ao valor da vida humana, os usos da
sexualidade, as necessidades dos animais não humanos ou o

310
valor do ambiente natural. Em vez de tender para uma mo
nocultura secular, o período moderno tardio é incontor

navelmente híbrido e plural. Não há perspectiva de uma


sociedade moralmente homogênea, e menos ainda de um mun
do homogeneizado. No futuro, como no passado, haverá Es
tados autoritários e repúblicas liberais, democracias teocráticas
e tiranias seculares, impérios, cidades-Estado e muitos regimes
mistos. Nenhuma forma específica de governo ou de econo
mia será aceita em toda parte, nem poderá uma única vertente
da civilização ser abraçada por toda a humanidade.
Está na hora de aceitar a diversidade das religiões e aban
donar a tentativa de construir um monólito secular. Acei
tar que entramos numa era pós-secular não significa que
as religiões possam ser eximidas das limitações necessárias
a uma coexistência civilizada. Uma das tarefas principais do
governo é estabelecer e fazer valer um contexto em que elas
possam conviver. Esse contexto não pode ser o mesmo em
todas as sociedades, nem fixado em caráter inamovível. Tra
duz uma expressão de tolerância cujo objetivo não é a ver
dade, mas a paz. Quando o objetivo da tolerância é a verdade,
temos uma estratégia que visa a harmonia. Seria melhor
aceitar que a harmonia nunca será alcançada. Melhor ain
da, abrir mão da exigência de harmonia e acolher a variedade
das experiências humanas. O modus vivendi entre as religiões
que floresceu de maneira intermitente no passado poderia
então ser restabelecido.20

O principal obstáculo intelectual à coexistência entre as


religiões não é a falta de entendimento mútuo, mas de au
toconhecimento. O outrora famoso Dover Beach (1867) de

Matthew Arnold fala do "melancólico, longo, evanescente


fragor" do cristianismo, como se ele significasse o fim da re
ligião. O poeta vitoriano subestimava a premência da neces

311
sidade do mito. As Utopias dos dois últimos séculos eram
variantes deformadas dos mitos que negavam, e se a derra
deira delas sucumbiu nos desertos do Iraque, não haverá de
ser pranteada. A esperança da Utopia derramou tanto san
gue que os credos tradicionais não teriam como competir, e o

mundo só tem a ganhar livrando-se dela.


O perigo que acompanha a morte da esperança secular é
o renascimento de algo parecido com as guerras de religião
de um passado mais antigo. Estamos assistindo a uma reto
mada das crenças apocalípticas, que não deverá ficar confinada
às variantes conhecidas do fundamentalismo. Paralelamente

à revivescência evangélica, tudo indica que teremos uma pro


fusão de religiões sob medida, misturando ciência e ficção

científica, venda de proteção e blablablá psi, espraiando-se


como um vírus da internet. A maioria será inofensiva, mas

os cultos do Juízo Final, como os que levaram ao suicídio em

massa em Jonestown e aos atentados no metrô de Tóquio,


podem proliferar à medida que se aprofundar a crise ecológica.
Se o atual consenso científico merece crédito, a Terra logo
poderá ser diferente do que tem sido há milhões de anos, pelo
menos desde o surgimento do homem. Em certo sentido, é
esta uma perspectiva autenticamente apocalíptica: embora
seja improvável que o ser humano venha a ser extinto, o mun

do em que ele evoluiu está desaparecendo. Sob outro ângulo,


a perspectiva não é em absoluto apocalíptica. Ao destruir o
ambiente planetário, os seres humanos estão apenas fazendo
o que tantas vezes fizeram antes em nível local. O aqueci
mento global a que assistimos hoje é mais uma das várias
febres de que a Terra foi acometida em sua história, sobrevi
vendo. Embora este episódio tenha sido desencadeado pelos
homens, eles não têm o poder de detê-lo. Pode significar o
desastre para eles e outras espécies, mas em termos planetários

312
é normal. É provável que seja realidade demais para a capa
cidade de absorção da maioria das pessoas, e à medida que a
mudança climática evoluir podemos esperar erupções de cul
tos em que ela venha a ser interpretada como uma narrativa
humana de catástrofe e redenção. Afinal, o apocalipse é um
mito antropocêntrico.
Felizmente, a humanidade tem outros mitos, que podem
ajudá-la a enxergar com mais clareza. Na estória do Gênesis,
o homem foi expulso do paraíso depois de provar da Árvore
do Conhecimento, sendo obrigado a prover para sempre o seu
sustento com o próprio trabalho. Não há, aqui, qualquer pro

messa de uma volta a um estado de inocência primordial. Uma


vez comido o fruto, não há como voltar atrás. A mesma ver
dade está contida na estória grega de Prometeu e em muitas
outras tradições. Essas lendas antigas constituem bússolas
mais claras do presente que os modernos mitos de progresso
e Utopia.
O mito do Fim causou sofrimento incalculável e conti
nua perigoso como sempre. Tornando-se plataforma de pro
jetos de transformação do mundo, a vida política virou um
campo de batalha. As religiões seculares dos dois últimos
séculos, imaginando que o ciclo da anarquia e da tirania po
dia ser encerrado, conseguiram apenas torná-lo mais violento.
No que tem de melhor, a política não é um veículo de proje
tos universais, mas a arte de reagir ao fluxo das circunstân
cias. O que não requer nenhuma visão grandiosa do progresso
humano, apenas a coragem de enfrentar os males que estão
sempre aí. O sombrio estado de guerra em que estamos
empacados é apenas um desses males.
A era moderna não tem sido menos uma época de supers
tição do que o período medieval, e sob certos aspectos mais
ainda. As religiões transcendentais têm muitos defeitos, e no

313
caso do cristianismo foram geradas manifestações selvagens
de violência, mas no que tem de melhor a religião costuma
ser uma tentativa de lidar com o mistério mais do que uma
esperança de que o mistério seja revelado. No confronto dos
fundamentalismos, essa percepção civilizatória se perdeu.
Guerras tão brutais quanto as das primícias da modernidade
estão sendo travadas contra um pano de fundo de crescente
conhecimento e poder. Interagindo com a luta pelos recursos
naturais, a violência da fé parece fadada a determinar o rumo
do século que começa.

314
Notas

Epígrafe

1. Joseph de Maistre, St Petersburg Dialogues, or Conversations on the


Temporal Government of Providence, trad. de Richard A. Lebrun,
Montreal e Kingston, Londres e Buffalo, McGill-Queen's Univer
sity Press, 1993, p. 145.

1 A morte da utopia

1. E. M. Cioran, History and Utopia, Londres, Quartet Books, 1996,


p. 81.
2. Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Mille
narians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, Londres, Secker
and Warburg, 1957; edição revista, Londres, Paladin, 1970. A
interpretação do milenarismo medieval por Cohn foi criticada por
David Nirenberg, Communities of Violence: Persecution of Minorities
in the Middle Ages, Princeton NJ, Princeton University Press, 1996,

Pp. 3-4.
3. R. H. Crossman (org.), The God that Failed, Nova York e Chichester,
Sussex, Columbia University Press, 2001; publicado inicialmente
por Hamish Hamilton, Londres, 1950. O livro continha ensaios
de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, André Gide,
Louis Fischer e Stephen Spender.
4. Ver o excelente estudo de Jonathan Spence, God's Chinese Son: The
Taiping Heavenly Kingdom of Hong Xiuquan, Londres, HarperCollins,
1996, P. xix.
5. Ibid., p. xxi.

315
6. Ver Michael Barkun, Disaster and Millennium, New Haven, Yale

University Press, 1974, com uma análise dos movimentos mile


naristas como reação a uma ruptura nos padrões normais de
percepção.
7. A literatura sobre as origens do cristianismo é vasta e muito polê
mica. Mas uma descrição solidamente fundamentada e erudita de
Jesus como professor judeu carismático pode ser encontrada em
Geza Vermes, Jesus the Jew: A Historian's Reading of the Gospels,
Londres, William Collins, 1973, reeditado por Fortress Press, Fila
délfia, 1981. Para uma análise do nascimento de Jesus, ver Ver

mes, The Nativity: History and Legend, Londres, Penguin, 2006. A.


N. Wilson oferece uma visão de Jesus semelhante à de Vermes em

seu excelente livro Jesus, Londres, Pimlico, 2003. O papel central


das crenças escatológicas nos ensinamentos de Jesus é demons
trado em Norman Cohn, Cosmos, Chaos and World to Come: The

Ancient Roots ofApocalyptic Faith, 2ª ed, New Haven e Londres, Yale


University Press, 1995, Capítulo 11.
8. Albert Schweitzer, The Quest for the Historical Jesus, Nova York,

Dover, 2006, p. 369. Este trecho de Schweitzer é citado por Philip


Rieff em seu brilhante livro, publicado postumamente, Charisma:
The Gift of Grace, and How it Has Been Taken Away from Us, Nova
York, Pantheon Books, 2007, p. 69.

9. Sobre a possibilidade de que Zoroastro considerasse incerto o re


sultado da luta entre a luz e as trevas, ver R. C. Zaehner, The

Teachings of the Magi, Oxford, Oxford University Press, 1976.


10. Hans Jonas, The Gnostic Religion, 2ª ed, Boston, Beacon Press, 1963,
Capítulo 13, pp. 320-40. Para outras análises fundamentadas do

gnosticismo, ver Kurt Rudolph, Gnosis: The Nature and History of


Gnosticism, San Francisco, HarperCollins, 1987; e Elaine Pagels,
The Gnostic Gospels, Nova York, Random House, 1989.
11. Para um exame global da heresia do Espírito Livre, ver Cohn, The
Pursuit of the Millennium, especialmente Capítulos 8 e 9. A visão
de Cohn sobre o Espírito Livre é criticada em Robert E. Lerner, The
Heresy of the Free Spirit in the Later Middle Ages, Notre Dame,
University of Notre Dame Press, 1991.
12. Cohn, The Pursuit of the Millennium, p. 13.

316
13. F. Dostoievski, "The Dream of a Ridiculous Man", em A Gentle
Creature and Other Stories, trad. Alan Myers, Oxford, Oxford Uni

versity Press World's Classics, 1995, p. 125.


14. I. Berlin, "The Apotheosis of the Romantic Will", em The Crooked
Timber of Humanity: Chapters in the History of Ideas, Londres, John
Murray, 1990, pp. 211-12.
15. David Hume, "The Idea of a Perfect Commonwealth", em Henry
D. Aitken (org.), Hume's Moral and Political Philosophy, Londres e

Nova York, Macmillan, 1948, p. 374.


16. Ver Gustavo Goritti, The Shining Path: A History ofthe Millenarian War
in Peru, Chapel Hill NC, University of North Carolina Press, 1999.
17. Ernest Lee Tuveson, Redeemer Nation: The Idea ofAmerica's Millennial

Role, Chicago e Londres, University of Chicago Press, 1968, pp. 6-7.


18. Christopher Hill, The World Turned Upside Down, Londres, Temple
Smith, 1972, p. 77.

19. Cohn, The Pursuit of the Millennium, p. 150.

20. David S. Katz e Richard H. Popkin, Messianic Revolution: Radical


Religious Politics to the End of the Second Millennium, Londres, Allen

Lane, 1999, p. 71.


21. Para uma análise profunda da Revolução Russa como continua
ção de uma tradição ocidental de revolta religiosa que incluía a

Guerra Civil Inglesa, ver Martin Malia, History's Locomotives:


Revolution and the Making of the Modern World, org. de Terence
Emmons, Nova Jersey, Yale University Press, 2006, especialmen
te Capítulos 6 e 11.
22. E. J. Hobsbawm, Primitive Rebels: Studies in Archaic Forms of Social
Movement in the 19th and 20th Centuries, Manchester, Manchester

University Press, 1959.


23. E. P. Thompson, The Making of the English Working Class, ed. rev.,
Londres, Penguin, 1968, p. 52.

24. Ibid., pp. 419, 423-4.


25. Carl L. Becker, The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philoso
phers, New Haven e Londres, Yale University Press, 1932, p. 123.
26. Para uma exploração sistemática do milenarismo e do utopismo,
ver Ernest Lee Tuveson, Millennium and Utopia, Nova York, Harper
and Row, 1964

317
27. S. N. Eisenstadt, em seu Fundamentalism, Sectarianism and Revolution:
The Jacobin Dimension of Modernity, Cambridge, Cambridge Uni
versity Press, 2000, oferece uma esclarecedora interpretação da
política moderna em que o jacobinismo tem papel central.
28. Michael Burleigh, Earthly Powers: Religion and Politics in Europe from
the French Revolution to the Great War, HarperCollins, Londres, 2005,
p. 101.
29. Ver Paul Wood, "Hunting 'Satan' in Falluja hell", BBC News, 23
de novembro de 2004.

30. Claes G. Ryn investiga as afinidades do neoconservadorismo com


o jacobinismo in America the Virtuous: The Crisis of Democracy and
the Quest for Empire, Somerset NJ, Transaction Publishers, 2003.
31. George W. Bush, discurso na National Cathedral, 14 de setembro
de 2002.

2 Iluminismo e terror no século XX

1. Edmund Stillman e William Pfaff, The Politics of Hysteria: The Sources


ofTwentieth-Century Conflict, Londres, Victor Gollancz, 1964, p. 29.
2. Sobre o genocídio no Congo Belga, ver Adam Hochschild, King
Leopold's Ghost, Nova York, Houghton Mifflin, 1998.
3. Para a análise de Arendt sobre o totalitarismo, ver seu livro The

Origins of Totalitarianism (1951), nova edição publicada por


Harcourt, Nova York, 1973. Sua visão sobre Eichmann encontra

se em Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, Nova


York, Penguin, 1963.
4. Sobre o papel de Eichmann no Holocausto, ver David Cesarani,
Adolf Eichmann: His Life and Crimes, Londres, Heinemann, 2004.
5. Bertrand Russell, The Practice and Theory of Bolshevism, Londres,
Unwin Books, 1920, p. 55.
6. Leon Trotski, "Literature and Revolution", http://www.marxists.org/
archive/trotsky/works/1924/lit_revo/cho8
7. Para uma análise do pensamento iluminista no transumanismo
contemporâneo, ver Bryan Appleyard, How to Live Forever or Die
Trying: On the New Immortality, Londres e Nova York, Simon and
Schuster, 2007, Capítulo 8.

318
8. Para um relato fundamentado dos ataques à ciência na URSS e das

experiências soviéticas com seres humanos, ver Vadim J. Birstein,


The Perversion of Knowledge: The True Story of Soviet Science, Cam
bridge MA, Westview Press, 2001, pp. 127-31.
9. Para uma análise do papel de Ivanov, ver Kirill Rossiianov, "Beyond
Species: Ilya Ivanov and his Experiments on Cross-Breeding Hu
mans with Anthropoid Apes", Science in Context, Cambridge, Cam
bridge University Press, 2002, Número 15, pp. 277-316.
10. Não tenho certeza sobre quem cunhou a expressão "projeto ilu
minista", mas ela passou a ter uso geral com o seminal estudo de
Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory, Londres,
Duckworth, 1981, onde é definida e discutida nos Capítulos 4-6.

11. Ver Journey of Our Time: The Journal of the Marquis de Custine,
Londres, Weidenfeld and Nicolson, 2001.
12. Ver Karl Wittfogel, Oriental Despotism: A Comparative Study of To
tal Power, Nova York, Random House, 1981.

13. A. Nekrich e M. Heller, Utopia in Power: A History of the Soviet Union


from 1917 to the Present, Londres, Hutchison, 1986, p. 10.
14. N. Berdiaev, The Origin of Communism, Londres, Geoffrey Bles: The
Centenary Press, 1937, p. 22.8.
15. Sobre Lunatcharski e a tradição messiânica russa, ver David G.

Rowley, "Redeemer Empire: Russian Millenarianism", The Ameri


can Historical Review, vol. 104, n° 5, 1999.

16. A declaração de Lenin é citada por Thomas P. Hughes, American


Genesis: A Study of Invention and Technological Enthusiasm 1870
1970, Chicago, Chicago University Press, 2004, p. 251.
17. V. I. Lenin, A Contribution to the History of the Question of Dictator
ship, www.marxists.org/archive/lenin/works/1920
18. Karl Marx e Friedrich Engels, Address of the Central Committee to
the Communist League, www.marxists.org/marx/works/commu
nist-league/ 1850/
19. L. Trotski, Their Morals and Ours, www.marxists.org/archive/

trotsky/works/1938
20. L. Trotski, Hue and Cry Over Kronstadt, www.marxists.org/archive/
trostsky/works/1938/1938-kronstadt.htm
21. Ver George Leggett, The Cheka: Lenin's Political Police, Oxford,
Oxford University Press, 1981, p. 178.

319
22. Ver Anne Applebaum, Gulag: A History of the Soviet Camps, Londres
e Nova York, Allen Lane, 2003, p. 17.
23. Sobre as dimensões do aparato de segurança czarista e do soviéti
co, ver John J. Dziak, Chekisty: A History of the KGB, Nova York,
Ivy Books, 1988, pp. 35-6. Sobre o número de execuções no fim
da era czarista e no começo da soviética, ver ibid., pp. 191-3.
24. Sobre as ligações entre a África alemã do sudoeste e os nazistas,
ver Applebaum, Gulag, pp. 18-20.
25. Lesley Chamberlain, The Philosophy Steamer: Lenin and the Exile of
the Intelligentsia, Londres, Atlantic Books, 2006, pp. 1-2, 4.
26. Dziak, Chekisty, p. 3.
27. Harold Laski e Edmund Wilson são citados em Nekrich e Heller,
Utopia in Power, p. 257.
28. Sobre os custos humanos do Grande Salto à Frente, ver Jung Chang

e Jon Halliday, Mao: The Unknown Story, Londres, Jonathan Cape,


2005, Capítulo 40, especialmente pp. 456-7. Ver também Jasper
Becker, Hungry Ghosts: China's Secret Famine, Londres, John Murray,
1996, pp. 266-74.
29. Sobre a campanha de Mao contra os pardais, ver Chang e Halliday,
Mao, p. 449.
30. Christopher Clark, Iron Kingdom: The Rise and Downfall of Prussia,
1600-1947, Londres, Allen Lane, 2006, apresenta uma história
abrangente do Estado prussiano.
31. Nekrich e Heller, Utopia in Power, p. 661.
32. Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism, Londres e Nova York,
W. W. Norton, 2005, p. 962.
33. K. R. Popper, The Open Society and Its Enemies, Londres, Routledge
and Kegan Paul, 1945, Volume 1, Capítulo 9.
34. Varlam Shalamov, “Lend-Lease", em Kolyma Tales, trad. John Glad,
Londres e Nova York, Penguin, 1994, pp. 281-2. Para um relato
exaustivo sobre Kolyma, ver Robert Conquest, Kolyma: The Arctic
Death Camps, Oxford e Nova York, Oxford University, Press, 1979.
35. Robert Conquest, The Great Terror: A Reassessment, Oxford e Nova
York, Oxford University Press, 1990.
36. Para um relato do desastre ecológico soviético, ver Murray Fesbach
e Alfred Friendly Jr, Ecocide in the USSR: Health and Nature Under
Siege, Londres, Aurum Press, 1992.

320
37. Lewis Namier, Vanished Supremacies, Londres, Hamish Hamilton,
1958.

38. Ver Isaiah Berlin, "The Counter-Enlightenment", em Henry Hardy


e Roger Hausheer (orgs.), The Proper Study of Mankind, Londres,
Chatto and Windus, 1997, pp. 243-68.
39. Ver Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectic of Enlightenment,

trad. John Cumming, Londres, Verso, 1979.


40. Analiso os riscos políticos do romantismo em meu livro Two Faces
of Liberalism, Cambridge e Nova York, Polity Press e New Press,

2000, pp. 119-22.


41. Para uma análise mais ampla da crítica do Iluminismo por Nietzsche,
ver meu livro Enlightenment's Wake: Politics and Culture at the Close
of the Modern Age, Londres, Routledge Classics, 2007, pp. 161-6.
42. Karl Kraus, Half-Truths & One-and-a-Half Truths, org. de Harry
Zohn, Montreal, Engendra Press, 1976, p. 107.
43. Para uma análise do relativismo político de Voltaire, ver meu livro
Voltaire and Enlightenment, Londres, Phoenix, 1998, pp. 36-47.
44. Analisei mais detidamente o positivismo em Al Qaeda and What it
Means to be Modern, 2ª ed., Londres, Faber and Faber, 2007, Capí
tulo 3.

45. Ver Michael Burleigh, Earthly Powers: Religion and Politics in Eu


rope from the French Revolution to the Great War, Londres,
HarperCollins, 2005, pp. 226-7.
46. Richard Popkin, "The Philosophical Bases of Modern Racism", em
Richard A. Wilson e James E. Force (orgs.), The High Road to

Pyrrhonism, Indianápolis e Cambridge, Hackett Publishing Com


pany, 1980, p. 85.
47. Immanuel Kant, "Of National Characteristics, So Far as They De
pend upon the Distinct Feeling of the Beautiful and Sublime", http:/
/www.public.asu.edu/~jacquies/kant-observations.htm
48. Ver John Stuart Mill, On Liberty and Other Essays, org. de John
Gray, Oxford e Nova York, Oxford University Press, 1998, p. 80.
49. Popkin, "Philosophical Bases of Modern Racism", p. 89.
50. Ver Michael Coren, The Invisible Man: The Life and Liberties of H. G.
Wells, Londres, Bloomsbury, 1993, p. 66, de onde foi extraída esta

citação de Anticipations (1901), de Wells.


51. John Toland, Adolf Hitler, Nova York, Doubleday, 1976, p. 702.

321
52. Richard J. Evans, The Third Reich in Power, Londres e Nova York,

Allen Lane, 2005, pp. 506-7.


53. Ver Pierre Drieu La Rochelle, Chronique Politique, 1934-1942, Paris,
Gallimard, 1943.

54. Evans, The Third Reich in Power, p. 534.


55. Norman Cohn, Warrant for Genocide: The Myth of the Jewish World
Conspiracy and the Protocols of the Elders ofZion, Londres, Serif, 1996,
p. xii. Para um relato da demonização cristã medieval de feiticeiras
e heréticos, ver Cohn, Europe's Inner Demons: The Demonization of
Christians in Medieval Christendom, Londres, Pimlico, 2005.
56. Michael Burleigh, The Third Reich: A New History, Londres, Pan
Books, 2000, p. 7.
57. Sobre as comparações entre Hitler e João de Leyden feitas por Klemperer
e Reck-Malleczewen, ver Burleigh, The Third Reich, pp. 4-5.
58. F. A. Voigt, Unto Caesar, Londres, Constable, 1938, pp. 49-50.
Tomei conhecimento da obra de Voigt em uma conversa com
Norman Cohn.

59. Ver James R. Rhodes, The Hitler Movement: A Modern Millenarian


Revolution, Stanford, Hoover Institution Press, 1980, pp. 29-30.
60. Joseph Goebbels, Michael: Ein deutsches Schicksal in Tagebuch
blättern, 6ª ed., Munique, Franz Eher Nachf, 1935, pp. 96-7. O
trecho é citado em Rhodes, The Hitler Movement, P 115.
61. Dmitri Merezhkovsky, The Secret of the West, trad. John Cournos,
Londres, Jonathan Cape, 1931.

62. Aurel Kolnai, The War Against the West, Londres, Victor Gollancz,
1938.

63. Eric Voegelin, The New Science of Politics, Chicago e Londres, Uni
versity of Chicago Press, 1952, pp. 113, 125-6.

64. Olivier Roy, Globalised Islam: The Search for a New Ummah, Londres,
Hurst, 2004, p. 44.

65. Sobre o papel de Shariati e a influência de Heidegger em suas idéias,


ver Janet Afary e Kevin B. Anderson, Foucault and the Iranian Revo
lution: Gender and the Seductions of Islamism, Chicago, Chicago
University Press, 2005.
66. Sobre a al-Qaeda e o mahdismo, ver Timothy R. Furnish, "Bin
Ladin: The Man who would be Mandi", The Middle East Review,
vol. IX, nº 2, primavera de 2002.

322
67. Kaveh L. Afrasiabi, "Shiism as Mahdism: Reflections on a Doctrine

of Hope", www.payvand.com/news/03/nov/1126.html
68. Ahmed Rashid, Taliban: Militant Islam, Oil, and Fundamentalism in

Central Asia, New Haven, Yale University Press, 2000, pp. 176-7.
O comentário de Rashid é citado por Robert Dreyfuss em seu
excelente livro Devil's Game: How the United States Helped Unleash
Fundamentalist Islam, Nova York, Metropolitan Books, 2005, p. 326.
69. Analiso o caráter moderno do islã radical e suas relações com a
globalização em meu livro Al Qaeda and What it Means to be Modern.
70. Ian Buruma e Avishai Margalit sustentam que a democracia libe
ral é "uma idéia do Ocidente", em Occidentalism: A Short History of
Anti-Westernism, Londres, Atlantic Books, 2004.

3 A utopia adotada nas correntes centrais do pensamento

1. Reinhold Niebuhr, Faith and History, Nova York, Scribner's, 1949.


Citado em Edmund Stillman e William Pfaff, The Politics of Hyste
ria, Londres, Victor Gollancz, 1964, p. 10.
2. O comentário de Thatcher é citado por Jason Burke em "The history
man: a profile of Francis Fukuyama", Observer, 27 de junho de 2004.
3. Para um relato da maneira como o laissez-faire foi arquitetado nos
primórdios da Inglaterra vitoriana, ver meu livro False Dawn: The
Delusions of Global Capitalism, Londres e Nova York, Granta Books,
1999, pp. 7-17.
4. A dissertação de Hoskyns foi apresentada num jantar privado no
fim de 1977. Que eu saiba, não foi publicada. Encontra-se arqui
vada na Margaret Thatcher Foundation.
5. Hugo Young, One of Us: A Biography ofMargaret Thatcher, Londres,
Pan Books, 1993, p. 113.
6. Para uma análise arguta da ascensão e domínio do thatcherismo,
ver Simon Jenkins, Thatcher and Sons: A Revolution in Three Acts,
Londres, Allen Lane, 2006.
7. Jacob Viner, The Role of Providence in the Social Order: An Essay in
Intellectual History, Filadélfia, American Philosophical Society,
1972, p. 81.
8. As idéias de Smith recentemente têm sido objeto de alguns estu
dos valiosos. Ver especialmente Charles L. Griswold Jr, Adam Smith

323
and the Virtues ofEnlightenment, Cambridge, Cambridge University
Press, 1999, e Emma Rothschild, Economic Sentiments: Adam Smith,
Condorcet and the Enlightenment. Cambridge MA, Harvard Uni
versity Press, 2001.
9. Griswold Jr, Adam Smith and the Virtues of Enlightenment, p. 302.

10. Viner, The Role of Providence in the Social Order, pp. 78-9.
11. Para uma análise do papel da economia política como moderna
religião, ver Robert H. Nelson, Economics as Religion: From Samuelson
to Chicago and Beyond, University Park PA, Pennsylvania State
University Press, 2001.

12. Analiso certas interpretações equivocadas das idéias de Spencer em


Liberalisms: Essays in Political Philosophy, Londres e Nova York,
Routledge, 1989, Capítulo 6, pp. 89-102.
13. Fiz uma avaliação crítica de Hayek como teórico liberal em meu
livro Hayek on Liberty, 3ª ed., Londres e Nova York, Routledge, 1998,
pp. 146-61.
14. Karl Polanyi, The Great Transformation, Boston, Beacon Press, 1944,

p. 140.
15. F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, Londres, Routledge, 1960,
p. 57.
16. Ibid., p. 61.
17. A declaração de Blair foi feita na conferência do Partido Trabalhis
ta em setembro de 2004, em defesa de seu envolvimento na guer
ra no Iraque. Ver Guardian, 29 de setembro de 2004.
18. Para exemplos de pensamento neoconservador, ver Irwin Stelzer
(org.), Neoconservatism, Londres, Atlantic Books, 2005, contendo
uma contribuição de Tony Blair; e Irving Kristol, Neoconservatism:
The Autobiography of an Idea, Nova York, Free Press, 1995.
19. John Kampfner, Blair's Wars, Londres e Nova York, Free Press,
2004, p. 173.
20. Tony Blair, discursos do primeiro-ministro, http://www.number
10.gov.uk/output/Page1297.asp
21. Ibid.

22. Tony Blair, discurso no World Affairs Council em Los Angeles, 1⁰


de agosto de 2006.
23. Tony Blair, "Defence - Our Nation's Future", 12 de janeiro de 2007,
http://www.pm.gov.uk/output/Page 10735.asp

324
24. Ver Dilip Hiro, Secrets and Lies: The True Story of the Iraq War,
Londres, Politico's, 2005, pp. 62-6, 131-3. Ver também Brian
Jones, "What they didn't tell US about WMD", New Statesman,
11 de dezembro de 2006.

25. BBC News World Edition, 5 de fevereiro de 2003, "Leaked report


rejects Iraqi al-Qaeda link", http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/
2727471.stm

26. A citação do documento "Iraq Options" é reproduzida por Henry


Porter, "It's clear. The case for war was cooked up", Observer, 5 de
novembro de 2006.

27. Gary Leupp, "Faith-based intelligence", Counterpunch, 26 de julho


de 2003.

28. Uma versão integral do memorando e outros documentos vaza


dos (entre eles o memorando de Jack Straw a Blair em 25 de mar
ço de 2002) são encontrados em www.downingstreetmemo.com
29. Para um relato do encontro em que Bush e Blair resolveram ir à
guerra qualquer que fosse a decisão da ONU, ver Philippe Sands,
Lawless World: Making and Breaking Global Rules, 2ª ed., Londr
Penguin, 2006.
30. A oferta de Bush a Blair é detalhada em Bob Woodward, Plan of
Attack, Nova York, Simon and Schuster, 2004. A conversa entre

Bush e Blair consta de trecho do livro de Woodward reproduzido


em www.washington post.com a 24 de abril de 2004, sob o título
"Blair steady in support".
31. Para um impressionante relato da prática da mentira política na
era Blair, ver Peter Oborne, The Rise of Political Lying, Londres e
Nova York, Free Press, 2005.

32. Raymond Aron, Prefácio a Alain Besançon, The Soviet Syndrome,


trad. Patricia Ranum, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich,
1978, pp. xvii-xviii.

4 A americanização do Apocalipse

1. Thomas Paine, Common Sense, Apêndice à Terceira Edição,


www.ushistory.org/paine/commonsense/sense6.htm
2. Herman Melville, White Jacket, Londres e Nova York, Oxford Uni
versity Press World's Classics, 1924, p. 142.

325
3. Ver http://history.hanover.edu/texts/winthmod.html
4. Ver Paul Boyer, When Time Shall Be No More: Prophecy and Belief in
Modern American Culture, Cambridge MA, Harvard University
Press, 1992, pp. 68-70.

5. John Galt, The Life and Studies of Benjamin West, Londres, 1819, p.
92; citado por Ernest Lee Tuveson, Redeemer Nation: The Idea of
America's Millennial Role, Chicago e Londres, University of Chi
cago Press, 1968, pp. 95-6.
6. Sobre o contexto e o conteúdo teológicos das idéias de Locke, ver o
pioneiro livro de John Dunn The Political Thought of John Locke,
Cambridge, Cambridge University Press, 1969 e 1982.
7. Anatol Lieven, America Right or Wrong: An Anatomy of American
Nationalism, Londres, HarperCollins, 2004, p. 51.
8. Para uma análise das idéias de Tocqueville sobre o excepcionalismo
americano, ver a biografia definitiva escrita por Hugh Brogan,
Alexis de Tocqueville, Londres, Profile, 2006, p. 270.
9. Woodrow Wilson falando em Pueblo, 25 de setembro de 1919,

www.americanrhetoric.com/speeches/wilsonleagueofnations.htm
10. Edmund Stillman e William Pfaff, Power and Impotence: The Futility

of American Foreign Policy, Londres, Victor Gollancz, 1966, p. 15.


11. Conrad Cherry (org.), God's New Israel: Religious Interpretations of
American Destiny, Chapel Hill NC, University of North Carolina
Press, 1998, p. 11. A declaração de Cherry foi extraída da p. 129
de Kevin Phillips, American Theocracy: The Peril and Politics of Radi
cal Religion, Oil and Borrowed Money in the 21st Century, Nova York,
Viking, 2006.
12. Para uma análise do papel das idéias sobre um pacto divino no
nacionalismo moderno, ver Anthony Smith, Chosen Peoples: Sacred
Sources ofNational Identity, Oxford e Nova York, Oxford University
Press, 2002.
13. Ver Lisa Myers e equipe da NBC, "Top Terrorist Hunter's Divisive
Views", NBC Nightly News, 15 de outubro de 2003. Para uma
análise do papel de Boykin no governo Bush e do apoio funda
mentalista à guerra, ver Paul Vallely, "The fifth crusade: George
Bush and the Christianisation of the war in Iraq", em Re-Imagining
Security, Londres, British Council, 2004, pp. 42-68.

326
14. A utilização de frases bíblicas nos discursos de Bush foi analisada
pelo teólogo americano Bruce Lincoln em Holy Terrors: Thinking
about Religion After 9/11, Chicago, University of Chicago Press,
2006.

15. Haaretz, 26 de junho de 2003.


16. Declaração citada em Boyer, When Time Shall Be No More, p. 305.
17. Ver David Kuo, Tempted by Faith: An Insider Story of Political Seduc
tion, Nova York, Free Press, 2006.

18. "Bush: Intelligent Design should be taught", SF Gate, 2 de agosto


de 2005.

19. "Bush tells group he sees a "Third Awakening"", Washington Post,


13 de setembro de 2006.

20. Para mais detalhes sobre a pesquisa da Newsweek, ver Michael Lind,
Made in Texas: George W. Bush and the Southern Takeover of American
Politics, Nova York, Basic Books, 2003, p. 108.
21. O documento sobre a Segurança Interna pode ser encontrado em
www.global security.org/security/library/report/2004.hsc
planning-scenarios-jul2004-intro.htm
22. Richard A. Clarke, Against All Enemies: Inside America's War on Terror,
Nova York e Londres, Free Press/Simon and Schuster, 2004, p. 264.
23. Lind, Made in Texas, p. 144.
24. Pesquisa Time/CNN, Time, julho de 2002. Citado em Phillips,
American Theocracy, p. 96.
25. Lind, Made in Texas, p. 112.
26. Para um relato do alcance da pressão de Bush por um governo
baseado na fé, ver Gary Wills, "A country ruled by faith", New
York Review of Books, vol. 53, n° 16, novembro de 2006.
27. Karl Mannheim, Ideology and Utopia, Londres, Routledge, 1960,
p. 192.
28. Jeane J. Kirkpatrick, Dictatorships and Double Standards: Ratio
nalism and Reason in Politics, Nova York, American Enterprise In
stitute/Simon and Schuster, 1982, p. 18.
29. Michael Novak, "Neocon: some memories", www.michaelnovak.net.
30. Ver Irving Kristol, "Memoirs of a Trotskyist", New York Times
Magazine, 23 de janeiro de 1977, reproduzido em Irving Kristol,
Reflections of a Neoconservative: Looking Back, Looking Forward, Nova
York, Basic Books, 1986.

327
31. Francis Fukuyama, "The End of History?", National Interest, verão
de 1989. Fukuyama desenvolveu os pontos de vista expostos nesse
artigo em The End of History and the Last Man, Nova York, Free
Press, 1992.

32. Criticando o artigo original de Fukuyama em outubro de 1989, eu


escrevi: "Vivemos numa era em que a ideologia política, seja liberal
ou marxista, vê arrefecer sua influência nos acontecimentos, e na
qual competem umas com as outras forças mais antigas, mais
primordiais, nacionalistas e religiosas, fundamentalistas e logo, tal
vez, maltusianas (...) Se a União Soviética efetivamente entrar em
colapso, essa benéfica catástrofe não inaugurará uma nova era de
harmonia pós-histórica, assinalando, isto sim, um retorno ao terre

no clássico da história, um terreno de rivalidades entre as grandes


potências, diplomacias secretas e reivindicações e guerras irre
dentistas." Ver John Gray, "The End of History - or of Liberalism?",
National Review, 27 de outubro de 1989, pp. 33-5. Este artigo é re
produzido em meu livro Post-Liberalism: Studies in Political Thought,
Londres e Nova York, Routledge, 1993, pp. 245-50.
33. Ver "Neo-cons turn on Bush for incompetence over Iraq war",
Guardian, 4 de novembro de 2006, e David Rose, "Neo Culpa",
Vanity Fair, 3 de novembro de 2006.
34. Ver Francis Fukuyama, After the Neocons: America at the Crossroads,
Londres, Profile, 2006, p. 55. O estudioso que identificou a "te
leologia social 'marxista' passiva” de Fukuyama é Ken Jowitt, autor
do interessante estudo New World Disorder: The Leninist Extinction,

Berkeley e Oxford, University of California Press, 1992.


35. Kirkpatrick, Dictatorships and Double Standards, pp. 11, 17-18.
36. Ver M. Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, org. de
Tim Fuller, Indianápolis, Liberty Press, 1991. Critiquei a filosofia
de Oakeshott em "Reply to Critics", em John Horton e Glen Newey

(orgs.), The Political Theory of John Gray, Londres, Routledge, 2006.


37. Para uma análise de Kojeve e Schmitt, ver Mark Lilla, The Reckless

Mind: Intellectuals in Politics, Nova York, New York Review of Books,


2003.

38. Leo Strauss, Natural Right and History, Chicago e Londres, Uni
versity of Chicago Press, 1953, pp. 181-2

328
39. Ibid., P. 164.
40. Sobre a alegação de que as idéias de Strauss justificariam a im

postura em política, ver Shadia B. Drury, Leo Strauss and the


American Right, Londres, Palgrave Macmillan, 1999.
41. Leo Strauss, What is Political Philosophy?, Nova York, Free Press,

1959, pp. 115-16.


42. Para uma minuciosa análise de Strauss e do neoconservadorismo,
ver Stephen B. Smith, Reading Leo Strauss: Politics, Philosophy, Ju
daism, Chicago, University of Chicago Press, 2006.
43. Ver, por exemplo, M. F. Burnyeat, "Sphinx without a secret", New
York Review of Books, 30 de maio de 1985.
44. F. Dostoievski, The Devils, Londres, Penguin, 2004, p. 404.

45. Para um relato do período estudantil de Khalilzad em Chicago, ver


o excelente livro de Anne Norton, Leo Strauss and the Politics of

American Empire, New Haven e Londres, Yale University Press,


2004, pp. 185-6.
46. Albert Wohlstetter, "Is there a strategic arms race?", Foreign Policy,

nº 15, verão de 1974, pp. 3-20.


47. Sobre a vida e carreira de Angleton, ver Tom Mangold, Cold War

rior: James Jesus Angleton, the CIA's Master Spy Hunter, Londres e
Nova York, Simon and Schuster, 1991.
48. Para uma análise fundamentada dos métodos e erros da Equipe B,

ver Anne H. Cahn, Killing Détente: The Right Attacks the CIA, Uni
versity Park PA, Pennsylvania State University Press, 1998. Ver

também seu artigo "Team B: the trillion dollar experiment", Bul


letin of Atomic Scientists, vol. 49, nº 3, abril de 1993.
49. Gary Schmitt e Abram Shulsky, "Leo Strauss and the World of
Intelligence (By Which We Do Not Mean Nous)", em Kenneth L.
Deutsch e John A. Murley (orgs.), Leo Strauss, the Straussians and
the American Regime, Nova York, Rowman and Littlefield, 1999, p.

410 et seq.
50. Schmitt e Shulsky desenvolveram sua análise dos métodos de inteli
gência de maneira mais sistematizada em Silent Warfare: Understanding
the World of Intelligence, 3ª ed., Washington DC, Brassey's, 2002.
51. Sobre os comentários do assessor de Bush, ver Ron Suskind,
"Without a doubt", New York Times, 17 de outubro de 2004.

329
52. Bob Woodward faz um relato das imposturas e delírios que cerca
ram a questão da guerra na Casa Branca em seu brilhante livro
State ofDenial: Bush at War, Part III, Nova York, Simon and Schuster,
2006.

53. George Packer, The Assassins' Gate: America in Iraq, Nova York,

Farrar, Straus and Giroux, 2005, p. 105.


54. Para informações sobre a "Diretoria Iraniana", ver Laura Rozen,

"US moves to weaken Iran", Los Angeles Times, 19 de maio de 2006.


55. Para um bem fundamentado relato da formação e das operações
do DPE, ver Seymour M. Hersh, Chain of Command, Londres e Nova
York, Allen Lane and HarperCollins, 2004, pp. 207-24.
56. Joan Didion, “Cheney: the fatal touch", New York Review of Books,
5 de outubro de 2006, p. 54.
57. Schmitt e Shulsky, Silent Warfare, p. 176.
58. Para uma reportagem indicando que analistas de inteligência te
miam que as alegações de exilados iraquianos sobre armas de
destruição em massa fossem parte de uma campanha de desin
formação, ver Bob Drogin, "US suspects it received false arms tips”,
Los Angeles Times, 28 de agosto de 2003.
59. "Bush and Putin: best of friends", BBC News, 16 de junho de 2001.
60. David Brooks, "The CIA: method or madness?", New York Times, 3
de fevereiro de 2004.

61. Michael Ledeen, "Creative destruction", National Review Online, 20


de setembro de 2001.

62. Czeslaw Milosz, "Dostoyevsky", em To Begin Where I Am: Selected


Essays, Nova York, Farrar, Straus and Giroux, 2002, PP. 281-2.

5 Missionários armados

1. O discurso de Robespierre pode ser encontrado em http://


faculty.washington.edu/jonas/Text/ParisRomeProgram/Readings
Para um magnífico relato sobre Robespierre e sua participação no
Terror, ver Ruth Scurr, Fatal Purity: Robespierre and the French
Revolution, Londres, Chatto and Windus, 2006.
2. David Rieff, At the Point of a Gun: Democratic Dreams and Armed
Intervention, Londres e Nova York, Simon and Schuster, 2005, p.
180.

330
3. Robert L. Hirsch et al., Peaking of World Oil Production: Impacts,
Mitigation and Risk Management, p. 64. O relatório se encontra em

http://www.projectcensored.org/newsflash The_Hirsch_Report_
Proj_Cens.pdf
4. Está em constante expansão a literatura sobre a geopolítica do pe
tróleo. O melhor estudo de que tenho conhecimento é Michael T.
Klare, Blood and Oil: The Dangers and Consequences of America's
Growing Petroleum Dependency, Londres, Penguin, 2004.
5. O texto completo do discurso de Cheney se encontra no Energy
Bulletin em http://www.energybulletin.net/559.html
6. Para um relato sobre o documento do Departamento de Estado e
seu destino, ver M. W. Shervington, "Lessons of Iraq: Invasion and
Occupation", Small Wars Journal, vol. 5, julho de 2006, pp. 15
29. Ojornal pode ser encontrado em www.smallwarsjournal.com
7. Dez dias antes da invasão liderada pelos EUA, eu escrevi que "a
visão [do governo Bush] sobre o pós-guerra é extremamente con
fusa (...) Existe o risco de que o Estado iraquiano, uma estrutura
vacilante improvisada por funcionários britânicos de partida, se
frature e fragmente à maneira da Iugoslávia e mesmo da Chechênia”.
Ver "America is no longer invincible", New Statesman, 10 de mar
ço de 2003, reproduzido com o título "On the Eve of War: American
Power and Impotence", em John Gray, Heresies: Against Progress
and Other Illusions, Londres, Granta Books, 2004, p. 140.
8. Sobre o comentário de Rumsfeld, ver The Nation, 14 de abril de 2003.
9. Para um relato fundamentado da vida e carreira de Bell, ver
Georgina Howell, Daughter of the Desert: The Remarkable Life of
Gertrude Bell, Londres, Macmillan, 2006.

10. James Mann, Rise of the Vulcans: The History of Bush's War Cabinet,
Nova York, Viking, 2004, p. 367.
11. Thomas E. Ricks, Fiasco: The American Military Adventure in Iraq,
Londres, Penguin, 2006, p. 162.
12. A análise de Lancet é resumida em "655,000 Iraqis killed since
invasion", Guardian, 11 de outubro de 2006. Um resumo mais

detalhado pode ser encontrado no site da Johns Hopkins Bloomberg


School of Public Health, que promoveu o levantamento, em http:/
/www.jhsph.edu/publichealthnews/press_releases/2006/
burnham_iraq2006.html

331
Para detalhes do relatório da ONU sobre tortura no Iraque depois
da derrubada de Saddam Hussein, ver "New terror stalks Iraq's

republic of fear', Independent, 24 de setembro de 2006.


13. Ver Rupert Smith, The Utility of Force: The Art ofWar in the Modern
World, Londres, Allen Lane, 2005.

14. O emprego de armas químicas pelos americanos em Fallujah foi


confirmado na Field Artillery Magazine, do Exército americano,
março/abril de 2005. Ver "US Army article on Fallujah white
phosphorus use", Scoop, 11 de novembro de 2005, http://
www.scoop.co.nz/stories/HLO511/S00173.htm
15. "US tactics condemned by British officers", Daily Telegraph, 10 de
abril de 2004.

16. "CIA chief sacked for opposing torture”, Sunday Times, 12 de


fevereiro de 2006.

17. Para um relato analítico da oposição de juízes militares america


nos à autorização da tortura por parte do governo Bush, ver Sidney
Blumenthal, “The torture battle royal", Guardian, 21 de setembro
de 2006.

18. Para uma análise dos aspectos culturais da política externa ame
ricana, ver George Walden, God Won't Save America: Psychosis of a
Nation, Londres, Gibson Square, 2006.
19. George Santayana, The Birth of Reason and Other Essays, Nova York,
Columbia University Press, 1968, p. 87.
20. Michael Ignatieff, "The burden", New York Times Magazine, 5 de
janeiro de 2003.

21. Paul Berman, Terror and Liberalism, Nova York e Londres, Norton,
2004, pp. 189-90.
22. A observação é citada por Robert Kaplan em Imperial Grunts: The
American Military on the Ground, Nova York, Random House, 2005,
p. 205.
23. Emmanuel Todd, After the Empire: The Breakdown of the American

Order, Londres, Constable, 2003, p. 197.


24. "Cheney condemned for backing water torture", Guardian, 28 de
outubro de 2006.

25. Ver Walter Pincus, "Waterboarding historically controversial",


Washington Post, 5 de outubro de 2006.

332
26. Sobre a privação de sono na Rússia stalinista e em Guantánamo,
ver Vladimir Bukovsky, "Torture's long shadow", Washington Post,
18 de dezembro de 2005. Como relata o artigo, o próprio Bukovsky
foi torturado como dissidente soviético. Sobre a privação de sono
em Guantánamo, ver também "The real victims of sleep depri
vation", BBC News, 8 de janeiro de 2004.
27. Ver Deborah Sontag, “A videotape offers a window into a terror
suspect's isolation", New York Times, 4 de dezembro de 2006.

28. Analisei mais detidamente o legalismo liberal em Two Faces of


Liberalism, Cambridge, Polity Press, 2000.
29. Ver S. M. Lipset e J. M. Lakin, The Democratic Century, Norman
OK, University of Oklahoma Press, 2004.
30. "Security firms abusing Iraqis", BBC World News, 30 de outubro
de 2006.

31. Martin van Creveld, The Changing Face of War: Lessons of Combat,
from the Marne to Iraq, Nova York, Ballantine Books, 2006, p. 229.
32. Ver "Campaign in Iraq has increased terror threat, says American
intelligence report", Guardian, 25 de setembro de 2006.
33. Sobre a concepção da Guerra Longa sustentada por Donald Rumsfeld,
ver "Rumsfeld offers strategy for current war: Pentagon to release
20-year plan today", Washington Post, 3 de fevereiro de 2006. O
Counter-insurgency Field Manual do Exército e do Corpo de Fuzileiros
Navais dos EUA, publicado em dezembro de 2006, contém uma
análise mais sofisticada. Ver www.military.com, 16 de dezembro
de 2006, "New counter-insurgency manual".
34. Ver, por exemplo, David Frum e Richard Perle, An End to Evil: How
to Win the War on Terror, Nova York, Random House, 2003.

35. Samuel P. Huntington expôs a teoria do "choque de civilizações”


em seu livro The Clash of Civilizations and the Remaking of World
Order, Nova York e Londres, Simon and Schuster, 1996. Pude

analisá-la mais detidamente em "Global utopias and clashing


civilisations", International Affairs, vol. 74, nº 1, janeiro de 1998,

pp. 149-63.
36. Robert A. Pape, Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism,
Nova York, Random House, 2005.

37. Examino a evolução da al-Qaeda na nova Introdução ao meu livro Al


Qaeda and What it Means to be Modern, 2ª ed., Londres, Faber, 2007.

333
38. Para uma esplêndida narrativa analítica do desenvolvimento da
al-Qaeda, ver Lawrence Wright, The Looming Tower: Al-Qaeda and
the Road to 9/11, Nova York, Knopf, 2006.
39. Olivier Roy, Globalised Islam: The Search for a New Ummah, Londres,
Hurst, 2004, p. 44.
40. Martin van Creveld faz um apanhado da estratégia britânica na
Irlanda do Norte in The Changing Face of War, pp. 229-36.
41. Ver Philip Bobbitt, The Shield of Achilles: War, Peace and the Course
of History, Londres, Allen Lane, 2002.

42. Bernard-Henri Lévy, American Vertigo: On the Road from Newport


to Guantanamo (in the Footsteps of Alexis de Tocqueville), Londres,
Gibson Square, 2006, p. 328.
43. Para uma avaliação realista do sistema internacional, ver o bri
lhante livrinho do falecido Paul Hirst, War and Power in the 21st

Century, Cambridge, Polity Press, 2001.


44. Para um relato das mudanças na doutrina nuclear americana, ver
William Arkin, "Notjust a last resort", Washington Post, 15 de maio
de 2005.

45. Ver Paul Rogers, "Iran: Consequences of a War", relatório de

informação, Oxford Research Group, 2006, http://www.oxford


researchgroup.org.uk/publications/briefings/IranConse
quences.htm
46. Fred Charles Ikle, Annihilation from Within: The Ultimate Threat to
Nations, Nova York, Columbia University Press, 2006, p. xiii.

6 Pós-Apocalipse

1. Thomas Hobbes, Leviathan, Londres, J. M. Dent, 1914, Capítulo


5, p. 20.
2. Leo Strauss, Natural Right and History, Chicago e Londres, Uni
versity of Chicago Press, 1953, p. 317.
3. Para uma análise de Spinoza como pensador fulcral do primeiro
Iluminismo moderno, ver Jonathan I. Israel, Radical Enlightenment:
Philosophy and the Making of Modernity, 1650-1750, Oxford, Ox
ford University Press, 2001.
4. Analiso Spinoza em "Reply to Critics", em John Horton e Glen
Newey (orgs.), The Political Theory ofJohn Gray, Londres, Routledge,

334
2006. Para uma esclarecedora interpretação recente da filosofia de
Spinoza, ver Stuart Hampshire, Spinoza and Spinozism, Oxford,
Clarendon Press, 2005.

5. Ver Richard Dawkins, The God Delusion, Londres, Bantam, 2006, e

Daniel C. Dennett, Breaking the Spell: Religion as a Natural Pheno

menon, Londres, Allen Lane, 2006.


6. Deixo de lado o ateísmo nas culturas islâmicas, embora se aplique
a mesma análise.

7. Tzvetan Todorov, Hope and Memory: Lessons from the Twentieth Cen
tury, Princeton NJ, Princeton University Press, 2003, pp. 236-7.
8 Hedley Bull, The Control of the Arms Race, Londres, Weidenfeld and
Nicolson, 1961, p. 212.

9. Para enunciados canônicos da posição realista, ver Hans J.


Morgenthau, Scientific Man versus Power Politics, Chicago, Univer
sity of Chicago Press, 1974; Reinhold Niebuhr, Moral Man and
Immoral Society, Londres, Continuum, 2005; Hedley Bull, The An
archical Society: A Study of Order in World Politics, Londres, Palgrave
Macmillan, 2002; e Martin Wright, Power Politics, Londres, Con
tinuum, 1995.

10. O texto do telegrama de Kennan em que se estabelecia a política de


contenção encontra-se em http://www.learner.org/channel/

workshops/primarysources/coldwar/docs/tele.html
11. Isaiah Berlin, Political Ideas in the Romantic Age, Princeton NJ,

Princeton University Press, 2006, pp. 54-5.


12. Para análises fundamentadas do alcance e da velocidade das

mudanças climáticas, ver James Lovelock, The Revenge of Gaia,


Londres, Allen Lane, 2006; Fred Pearce, The Last Generation: How

Nature Will Take Her Revenge for Climate Change, Londres, Trans
world Publishers, 2006; e Jim Hansen, “The threat to the planet",
New York Review of Books, vol. 53, n° 12, 13 de julho de 2006. Uma

análise seminal da questão do pico das reservas de petróleo é


encontrada em C. J. Campbell, The Coming Oil Crisis, Brentwood,
Essex, Multi-Science Publishing Company, 1997. Uma análise

fundamentada do pico das reservas na Arábia Saudita encontra


se em Matthew R. Simmons, Twilight in the Desert: The Coming Saudi
Oil Shock and the Global Economy, Londres, Wiley, 2005.

335
13. O relatório, redigido por Peter Schwartz e Doug Randall, pode ser
baixado em http://www.environmentaldefense.org/documents/
3566_AbruptClimateChange.pdf
14. Para uma argumentação em favor dos combustíveis fósseis total
mente isentos de emissões como alternativa sustentável, ver Mark

Jaccard, Sustainable Fossil Fuels: The Unusual Suspect in the Search


for Clean and Enduring Energy, Cambridge, Cambridge University
Press, 2005.

15. Ver Lovelock, The Revenge of Gaia, p. 154.


16. Jared Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Survive,
Londres, Allen Lane, 2005, p. 521.
17. Frank Kermode, The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fic
tion, Nova York e Oxford, Oxford University Press, 1967, p. 123.
18. Marcel Proust, The Way by Swann's, Londres, Allen Lane, 2002,
P. 47.
19. Adam Phillips, Side Effects, Londres, Hamish Hamilton, 2006,
P. 99.
20. Desenvolvo mais a idéia do modus vivendi em Two Faces of Liberalism,
Cambridge, Polity Press, 2000, Capítulo 4.

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