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QUANDO A CRIANÇA “É” O SINTOMA:

As perturbações da criança produzidas


por uma estrutura familiar sintomática
Frequentemente sou indagada por pais e/ou mães preocupados(a) com alguns “comportamentos”
dos filhos que eles julgam sintomáticos, tais como: “Meu filho está muito rebelde e está dando muito
trabalho na escola”, ou “Ele voltou a fazer xixi na calça, à noite”, ou “Ele faz pirraça para conseguir o que
quer”, ou mesmo “Ele só fica dizendo que quer morrer”...
De fato, onde há fumaça, há fogo! E a criança tende a manifestar sua angústia de forma mais
concreta mesmo, uma vez que ainda não detém a capacidade de identificar ou metaforizar determinados
sentimentos que a incomodam. Tanto que é muito comum, por exemplo, crianças dizerem sentir dores
em determinada parte do corpo para aludirem a uma angústia que ainda não conseguem localizar.
Realizar um atendimento psicológico com essa criança, a fim de verificar se procede essa queixa,
pode se mostrar uma atitude bastante razoável e eficaz. Entretanto, em alguns casos, logo no início do
tratamento percebemos que a queixa inicial dos pais nem sempre se configura em demanda, ou seja, é
muito comum percebermos que a criança não detém necessariamente um sintoma físico ou psíquico, mas
está respondendo, com seu próprio corpo, a uma situação problemática, sintomática, portanto.
Mais claramente: as perturbações das crianças, nesses casos, são muitas vezes “respostas” a uma
constituição familiar desestruturada, da qual ela não consegue se desvencilhar e, por conseguinte,
descarrega sua angústia na produção do sintoma, que os pais (ou outro responsável) levam ao analista
sob a forma de queixa. O sintoma da criança vem funcionar, assim, como o solucionador de seu conflito
entre o desejo interno que não pôde ser satisfeito e a realidade externa 1.
O sintoma, nesse caso, é uma língua amordaçada, e a criança responde, assim, ao que há de
sintomático no discurso da família e corresponde de modo singular, com seu corpo, a esse enunciado
familiar2. Tratar, pois, dessa criança é, antes de tudo, tratar dessa família sintomática, adoecida.
A prática analítica com crianças, nesse sentido, é muito mais exposta do que a que é realizada com
adultos, uma vez que ela se desenvolve implicando terceiros, que podem intervir juntamente com o
analista3. Talvez resida aí a maior dificuldade em se tratar de crianças: muitas vezes seus familiares não se
movimentam na direção do tratamento analítico ou, ao contrário, se movimentam contra, no sentido de
manter o status quo, ou seja, deixar as coisas como estão.
Isso acontece por diversos motivos, e um exemplo bastante comum é o caso em que a criança
possui pais divorciados e, nessa relação esfacelada, é útil aos genitores valer-se dela como “moeda de
troca”.
Assim, a criança é utilizada, por exemplo, para se requerer pensão alimentícia e demais benefícios
financeiros, para burlar um encontro amoroso do(a) ex companheiro(a), ou mesmo como apelo
sentimental, dentre outros.
Nesse sentido, torna-se difícil ao analista uma intervenção, uma vez que é preciso haver uma
condição mínima na qual este estará apto a atuar e, mesmo assim, isso só acontecerá a partir do
momento em que os pais autorizarem a intervenção 3, e quando se dispuserem a ser, também, passíveis
de intervenções.
Se não há a autorização e colaboração dos pais/responsáveis, não há atendimento que vingue!
A criança por si só, e até mesmo por sua idade, não consegue sustentar seu atendimento, que acaba
por fenecer, em decorrência das burlas (muitas vezes até inconscientes) de seus pais, que faltam ou
atrasam às sessões, que intensificam a relação desestruturada em casa, ou simplesmente retiram a criança
do tratamento.
O sintoma da criança vem sempre cifrado e só será possível ao analista decifrá-lo a partir do
momento em que construir com os pais uma relação de confiança que permita com que eles “baixem a
guarda”, ou seja, que possam de fato confiar no analista a ponto de optarem por colaborar durante o
longo e muitas vezes “doloroso” percurso de terapia da criança 4.
As intervenções do analista sobre o ajustamento dos pais à neurose da criança são tão importantes,
ou até mais, do que suas intervenções diretas sobre o sintoma em si3. Se houver essa legítima autorização,
o analista, a partir do atendimento à criança, auxiliará a família em sua reestruturação, de maneira que a
condição sintomática familiar que originou o sintoma da criança possa se reduzir ou até mesmo findar.
Num primeiro momento, a família acredita que o analista detém a capacidade de saber o que o seu
filho traz escondido. No entanto, o trabalho do analista é, na verdade, o de construir uma ponte entre a
criança e a família, por onde muitas vezes esses impasses serão resolvidos3.
Depois, ele devolve a quem é de direito, ou seja, aos pais, esse lugar de saber sobre o filho, de onde
poderão organizar sua estrutura familiar no intuito de dissolver o que propiciou a formação desse sintoma
que deu origem à queixa.
Em suma: muitas vezes, tratar a criança sintomática só é possível após tratar o sintoma da família!
Pense nisso! Proponha-se à reflexão: Essa família na qual a criança está se desenvolvendo está saudável?

1 FREUD, S. (1969 *1926+b) “Inibição, sintoma e ansiedade”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. V. 20.
2 FERREIRA, T. A. (2000) A escrita da Clínica: Psicanálise com crianças. Belo Horizonte: Autêntica.
3 PORGE, E. (1998) “A transferência para os bastidores”. In Littoral: A criança e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud.
4 VORCARO, A. M. R. (2004) A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

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