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Álgebra Comutativa em 4 movimentos

Eduardo Tengan
Herivelto Borges

13 de fevereiro de 2014
Prefácio

Estas primeiras páginas foram, naturalmente, as últimas a serem escritas.


Ao revermos o texto a fim de escrever este prefácio, foi quase impossı́vel não
enxergarmos neste manuscrito uma crônica de nossa jornada pessoal pelo as-
sunto, relembrando teoremas, exemplos e aplicações que nos impressionaram,
“truques” e “insights” que passaram a fazer parte de nosso repertório e, acima
de tudo, a coerência e elegância da Álgebra Comutativa como um todo. Este
livro, que é uma introdução ao estudo dos anéis comutativos, foi escrito tendo
em mente justamente leitores que, como nós em tempos passados, estão no
inı́cio da jornada por esta fascinante área da Matemática.
O estudo de anéis, em especial os comutativos, não necessita de maiores
justificativas: anéis são objetos onipresentes em toda a Matemática. Aque-
les que algum dia já estudaram Teoria dos Números, Geometria Algébrica,
Combinatória, Análise Funcional, Análise e Geometria Complexa ou Teoria
de Representações certamente não terão dificuldade em se lembrar das várias
aparições destes curiosos objetos, sob seus diversos “heterônimos” tais como
anel de inteiros de um corpo de números, anel de séries formais, anel de ger-
mes de funções holomorfas, anel de grupo, entre muitos outros. Mais ainda,
anéis se fazem presentes no dia-a-dia não só dos matemáticos, mas também
das pessoas comuns: na Culinária (anéis de cebola), no Transporte (anel ro-
doviário) e até mesmo em Hollywood (“O Senhor dos Anéis”, “Matrix” e
“Corpo Fechado”)!

Álgebra Comutativa posso entender, mas em 4


movimentos?
Todos conhecem a famosa obra de Modest Mussorgsky Quadros de uma Ex-
posição, composta em 1874, cuja melodia descreve uma visita imaginária
a uma exposição de quadros e cujo tema é uma homenagem aos trabalhos
do artista Viktor Hartmann (morto prematuramente em 1873 devido a um
aneurisma). Se a Pintura é fonte de inspiração para a Música, por que a
Música não pode servir de inspiração para a Matemática? A peça escolhida
foi o Concerto para Violino No. 1 em Lá menor, Opus 77, de Dmitri Shos-
takovich, que, na interpretação do grande violinista David Oistrakh, esteve

iii
iv PREFÁCIO

presente em todas as fases da confecção deste manuscrito. Seus 4 movimentos


(Nocturne, Scherzo, Passacaglia, Burlesque) dão os nomes para 4 partes em
que este livro está dividido.
Nocturne, em especial o capı́tulo 2, é uma introdução “semi-formal” à
Álgebra Comutativa; vários dos temas e exemplos ali tratados podem ser
utilizados como ilustração da teoria geral, complementando uma exposição
mais sistemática da teoria, ou mesmo com alunos de graduação, como parte
de projetos de Iniciação Cientı́fica, por exemplo. Os “truques do ofı́cio” são
explorados no Scherzo, que forma o tronco técnico do texto. Na Passacaglia,
o leitor encontrará as aplicações mais importantes de Álgebra Comutativa
em Teoria dos Números e Geometria Algébrica, como a fatoração única em
ideais primos em domı́nios de Dedekind e o Nullstellensatz. Por fim, Bur-
lesque encerra o concerto, quero dizer, o livro, com temas um pouco “menos
introdutórios”, incluindo em particular um breve capı́tulo sobre esquemas.
Alertamos o leitor para o fato de a exposição não seguir um tempo uni-
forme: ela pode variar desde um largo ou andante, nos capı́tulos iniciais, até
um prestı́ssimo em certos trechos do Burlesque. Ainda sim, procuramos man-
ter a exposição a mais clara possı́vel, enfatizando sempre as ideias centrais
das demonstrações em vez de apenas regurgitar uma prova bem conhecida e
formalmente correta. Em particular, heurı́sticas e conexões com a Geometria
estão sempre que possı́vel presentes, mesmo em detrimento da ordem lógica
da apresentação.

Como ler este livro?


Com os olhos abertos, de preferência. Ademais, este livro não foi concebido
para ser lido lineramente, de ponta a ponta, mas sim “navegado” segundo os
interesses e necessidades de cada leitor. Assim, um genuı́no esforço foi feito
para “modularizar” o máximo possı́vel o livro e fornecer o maior número de
ponteiros para facilitar a navegação.
Por exemplo, um leitor interessado em Teoria dos Números pode ler os
exemplos relevantes do capı́tulo 2, ler os capı́tulos sobre primos/espectro, lo-
calização e anéis noetherianos e já em seguida ler os capı́tulos sobre extensões
finitas/integrais, valorizações/domı́nios de Dedekind e ação de grupo. Um ou-
tro leitor mais interessado em Geometria Algébrica pode ler os exemplos do
capı́tulo 2, ler os capı́tulos sobre primos/espectro, localização, produto ten-
sorial e anéis noetherianos, e já em seguida ler os capı́tulos sobre extensões
finitas/integrais, normalização de Noether/Nullstellensatz e esquemas. Um
curso de pós-graduação de um semestre pode cobrir alguns dos exemplos do
capı́tulo 2, o Scherzo e boa parte da Passacaglia e o capı́tulo de dimensão no
Burlesque.
Os pré-requisitos para este livro são poucos: em essência, um bom curso
de Álgebra da graduação cobre bem mais do que o necessário para a leitura
deste livro. Em todo caso, os apêndices apresentam de forma telegráfica tais
v

pré-requisitos e o leitor poderá consultá-los para relembrar este ou aquele


resultado ou mesmo aprendê-lo “on the fly” se este lhe for desconhecido.
Infelizmente, um problema fı́sico (a falta de espaço-tempo e energia) im-
pediu que vários assuntos importantes fossem incluı́dos neste livro. Por
exemplo, não há nenhuma menção aos importantes métodos homológicos;
planaridade é tratada de forma incipiente; não há nada sobre extensões não
ramificadas, étales ou lisas ou sobre o módulo de diferenciais. Estes assun-
tos farão parte da continuação deste livro (afinal, Shostakovich escreveu 2
concertos para violino!), que está sendo escrito enquanto você lê estas linhas,
e que por nossas estimativas deve ficar pronto juntamente com a estréia da
sequência do filme History of the World, Part I de Mel Brooks.

Terminologia Frequente e Notações


Utilizamos a já consagrada notação N, Z, Q, R, C para denotar os conjuntos
dos números naturais (incluindo o zero), inteiros, racionais, reais e complexos.
Denotamos ideais por letras góticas. Além disso, ao longo de todo o livro
utilizaremos a seguinte terminologia:

(i) Claramente: Não estou a fim de escrever todos os passos inter-


mediários.

(ii) Lembre: Não deverı́a ter que dizer isto, mas. . .


(iii) Sem Perda de Generalidade: Farei apenas um caso e deixarei você
adivinhar o resto.
(iv) Verifique: Esta é a parte chata da prova, então você pode fazê-la na
privacidade do seu lar, quando ninguém estiver olhando.
(v) Esboço de Prova: Não consegui verificar todos os detalhes, então
vou quebrar a prova em pedaços que não pude provar.
(vi) Dica: A mais difı́cil dentre as muitas maneiras de se resolver um pro-
blema.
(vii) Analogamente: Pelo menos uma linha da prova acima é igual à prova
deste caso.
(viii) Por um teorema anterior: não me lembro do enunciado (na ver-
dade, nem tenho certeza se provei isto ou não), mas se o enunciado
estiver correto, o resto da prova segue.
(ix) Prova omitida: Acredite, é verdade.
vi PREFÁCIO
Sumário

Prefácio iii

I Nocturne 1

1 Dando nomes aos bois 3


1.1 Notações, definições e convenções . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.2 Domı́nios, anéis reduzidos e anéis indecomponı́veis . . . . . . 5
1.3 Ideais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1.3.1 Ideais próprios e maximais . . . . . . . . . . . . . . . 8
1.3.2 Operações com ideais . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
1.4 Anel quociente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.5 Teorema Chinês dos Restos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.6 Módulos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1.6.1 Sequências exatas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
1.6.2 Operações sobre módulos . . . . . . . . . . . . . . . . 21
1.7 Anéis e módulos graduados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1.8 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

2 Anéis que aparecem na Natureza 31


2.1 Séries Formais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
2.2 Inteiros Algébricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2.3 Variedades Algébricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
2.3.1 Conjuntos algébricos afins . . . . . . . . . . . . . . . . 46
2.3.2 Morfismos e anel de funções regulares . . . . . . . . . 49
2.3.3 Equivalência de Categorias . . . . . . . . . . . . . . . 53
2.3.4 Conjuntos algébricos projetivos . . . . . . . . . . . . . 59
2.4 Inteiros p-ádicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
2.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

vii
viii SUMÁRIO

II Scherzo 79
3 Ideais Primos e Espectro 81
3.1 Ideais primos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
3.2 Dimensão de Krull . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
3.3 Topologia de Zariski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
3.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

4 Localização 97
4.1 Construção e propriedade universal . . . . . . . . . . . . . . . 97
4.2 O funtor localização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
4.3 Como assassinar primos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
4.4 Conexidade e Irredutibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
4.5 Anéis locais e lema de Nakayama . . . . . . . . . . . . . . . . 111
4.6 Bases minimais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
4.7 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

5 Produto Tensorial 119


5.1 Construção e Propriedades Básicas . . . . . . . . . . . . . . . 119
5.2 O funtor mudança de base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
5.3 Produto Tensorial de Álgebras . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
5.4 Fibras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
5.5 Módulos e álgebras planas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
5.6 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

6 Anéis e Módulos Noetherianos 145


6.1 Definições e propriedades básicas . . . . . . . . . . . . . . . . 145
6.2 Teorema da base de Hilbert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
6.3 Álgebras e módulos de presentação finita . . . . . . . . . . . . 151
6.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

7 Anéis e Módulos Artinianos 157


7.1 Definições e Propriedades Básicas . . . . . . . . . . . . . . . . 157
7.2 Comprimento de módulos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
7.3 Estrutura de Anéis Artinianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
7.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168

III Passacaglia 169


8 Extensões Finitas e Integrais 171
8.1 Definições e Propriedades Básicas . . . . . . . . . . . . . . . . 171
8.2 Fibras de Extensões Finitas e Integrais . . . . . . . . . . . . . 175
8.3 Anéis normais e normalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
8.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
SUMÁRIO ix

9 Normalização e Nullstellensatz 185


9.1 Teorema de normalização de Noether . . . . . . . . . . . . . . 185
9.2 Dimensão de domı́nios f.g. sobre corpos . . . . . . . . . . . . 188
9.3 Nullstellensatz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
9.4 NullstellensatZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
9.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196

10 Domı́nios de Dedekind e valorizações 197


10.1 Valorizações discretas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
10.2 Domı́nios de Dedekind . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
10.3 Ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
10.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212

11 Ação de Grupo e Going-down 213


11.1 Grupos agindo sobre um anel . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
11.2 Going-down . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
11.3 Grupos de Decomposição e de Inércia . . . . . . . . . . . . . 217
11.4 Aplicações em Teoria de Galois . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
11.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225

12 Divisores de Zero e Primos Associados 227


12.1 Suporte e anulador de um módulo . . . . . . . . . . . . . . . 227
12.2 Divisores de Zero e Primos Associados . . . . . . . . . . . . . 229
12.3 Critério de normalidade de Serre . . . . . . . . . . . . . . . . 235
12.4 Decomposição Primária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
12.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238

IV Burlesque 239
13 Anéis completos 241
13.1 Topologia a-ádica e o teorema de Artin-Rees . . . . . . . . . 241
13.2 Anéis completos e henselianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244
13.3 Completamento de anéis noetherianos . . . . . . . . . . . . . 248
13.4 Teorema de Preparação de Weierstraß . . . . . . . . . . . . . 253
13.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256

14 Dimensão 259
14.1 Algumas identidades binomiais . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
14.2 Polinômio de Hilbert-Samuel . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262
14.3 Teorema de dimensão de Krull . . . . . . . . . . . . . . . . . 266
14.4 Dimensão de fibras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
14.5 Anéis locais regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
14.6 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
x SUMÁRIO

15 Esquemas 275
15.1 Geometria com categoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
15.1.1 Pré-feixes e Feixes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
15.1.2 Espaços localmente anulares . . . . . . . . . . . . . . . 284
15.2 Esquemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
15.2.1 Feixe estrutural de um anel . . . . . . . . . . . . . . . 289
15.2.2 Esquemas afins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292
15.2.3 Exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
15.2.4 Esquemas Projetivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298
15.3 Funtor de Pontos e Produto Fibrado . . . . . . . . . . . . . . 302
15.3.1 Funtor de pontos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304
15.3.2 Produto Fibrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308
15.4 Propriedades de esquemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310
15.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315

V Apêndices 319
A Fundamentos 321
A.1 Topologia Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
A.1.1 Construindo novas topologias . . . . . . . . . . . . . . 323
A.1.2 Espaços métricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323
A.1.3 Propriedades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326
A.1.4 Grupos topológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327
A.2 Categorias e Funtores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328
A.3 Limites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333
A.4 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338

B Fatoração Única 341


B.1 DE, DIP, DFU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
B.2 Exemplo: Inteiros de Gauß . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
B.3 Lema de Gauß . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
B.4 Módulos f.g. sobre DIPs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
B.5 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354

C Teoria de Corpos 355


C.1 Extensões Finitas e Algébricas de Corpos . . . . . . . . . . . 355
C.2 Extensões simples e fecho algébrico . . . . . . . . . . . . . . . 357
C.3 Extensões quase-Galois e lema fundamental . . . . . . . . . . 360
C.4 Separabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365
C.5 Teoria de Galois . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371
C.6 Teoria de Galois infinita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375
C.7 Traço e Norma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 378
C.8 Discriminante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 380
C.9 Extensões Transcendentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382
C.10 Exercı́cios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383
Parte I

Nocturne

1
Capı́tulo 1

Dando nomes aos bois

Este capı́tulo é uma “coleção de pré-requisitos”, definições e conceitos básicos


que serão frequentemente utilizados em todo o livro. A leitura detalhada e
meticulosa deste capı́tulo é fortemente recomendada a todos aqueles que, em
sua infância, compulsivamente liam os manuais de seus brinquedos de ponta
a ponta ou àqueles que, dentre as descrições a seguir, preferem a primeira à
segunda1 :

1. pequeno mamı́fero carnı́voro domesticado do gênero Felis, com reflexos


rápidos, garras retráteis afiadas e dentes adaptados para matar peque-
nas presas.

2.

A todos os demais, recomendamos apenas uma leitura rápida para se fa-


miliarizar com as notações empregadas, voltando a este capı́tulo conforme
necessário. Você foi avisado!

1.1 Notações, definições e convenções


Neste livro, anel significará sempre anel comutativo com 1, o que não exclui
o anel zero A = 0, que é o anel com um único elemento 0 = 1. Ainda
por decreto, um morfismo de anéis φ : A → B deve sempre satisfazer
φ(1A ) = 1B (além de preservar somas e produtos, é claro!). Denotamos por
Hom(A, B) o conjunto de todos os morfismos de anéis φ : A → B.
1 Ei, não deveria ser um boi? Pois é, mas se livros são como vı́deos, este livro venderá

mais cópias com fotos de gatos em vez de bois. . .

3
4 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Utilizaremos as seguintes já tradicionais notações:

N = conjunto dos números naturais, incluindo 0


Z = anel dos números inteiros
Q = corpo dos números racionais
R = corpo dos números reais
C = corpo dos números complexos
Fq = corpo finito com q (uma potência de primo) elementos
Z/nZ = {0, 1, 2, . . . , n − 1} = anel dos inteiros módulo n
A[x1 , . . . , xn ] = anel dos polinômios nas variáveis x1 , . . . , xn com
coeficientes no anel A

Uma A-álgebra é um morfismo de anéis φ : A → B. Se φ (dito morfismo


base) é claro pelo contexto, referimo-nos ao próprio anel B como sendo uma
A-álgebra. Por exemplo, A[x1 , . . . , xn ] é uma A-álgebra via a inclusão A �→
A[x1 , . . . , xn ]; além disso, qualquer anel A é uma Z-álgebra pelo morfismo
natural Z → A (dado por 1Z �→ 1A ). Embora φ não seja sempre injetor, por
abuso de linguagem denotaremos φ(a) · b simplesmente por a · b (a ∈ A e
b ∈ B). Um morfismo de A-álgebras é um morfismo f : B → C de anéis
compatı́vel com os morfismos base φ : A → B e ψ : A → C, isto é, tal que o
seguinte diagrama comuta (f ◦ φ = ψ):

f
B C

φ ψ
A

Utilizando o abuso de linguagem acima, um morfismo de anéis f : B → C


é um morfismo de A-álgebras se, e somente se, f é A-linear: f (ab) = af (b)
para todo a ∈ A e b ∈ B.
Seja A → B uma A-álgebra e seja Λ ⊆ B um subconjunto qualquer.
Denotamos por A[Λ] a menor A-subálgebra de B contendo Λ. Assim, A[Λ] é
o conjunto de todas as expressões polinomiais f (λ1 , . . . , λr ) com λ1 , . . . , λr ∈
Λ (r ∈ N, f (x1 , . . . , xr ) ∈ A[x1 , . . . , xr ]). Se Λ = {λ1 , . . . , λn } é finito,
escrevemos simplesmente A[λ1 , . . . , λn ] no lugar de A[Λ]. Uma A-álgebra B
é dita de tipo finito ou finitamente gerada se existe um subconjunto
finito {λ1 , . . . , λn } ⊆ B tal que B = A[λ1 , . . . , λn ]. Em outras palavras, B é
de tipo finito se existe uma sobrejeção de A-álgebras

A[x1 , . . . , xn ] � B = A[λ1 , . . . , λn ]
f (x1 , . . . , xn ) �→ f (λ1 , . . . , λn )
1.2. DOMÍNIOS, ANÉIS REDUZIDOS E ANÉIS INDECOMPONÍVEIS 5

1.2 Domı́nios, anéis reduzidos e anéis inde-


componı́veis
Seja A um anel. Um elemento a ∈ A é chamado de

1. unidade se possui inverso multiplicativo em A, ou seja, se existe um


elemento b ∈ A tal que ab = 1.

2. divisor de zero se existe b �= 0 tal que ab = 0.

3. nilpotente se possui alguma potência nula: an = 0 para algum n ∈ N.

4. idempotente se a2 = a (e portanto an = a para todo n ∈ N).

Notamos

A× = grupo de unidades de A
= {u ∈ A | u é unidade em A}

(observe que, de fato, A× , com o produto de A, é um grupo abeliano) e



(0) = nilradical de A
= {a ∈ A | a é nilpotente em A}

Correspondentemente às definições acima, dizemos que um anel A é

1. um corpo se todo elemento não nulo é unidade: A× = A \ {0}.

2. um domı́nio se A �= 0 e 0 é o único divisor de zero em A: dados


a, b ∈ A, temos ab = 0 ⇐⇒ a = 0 ou b = 0.

3. reduzido se não tem nilpotentes além do zero: (0) = {0}.

4. indecomponı́vel se seus únicos idempotentes são 0 e 1 (ditos idempo-


tentes triviais).

O termo indecomponı́vel pode soar estranho à primeira vista2 , mas é bastante


natural, como agora explicamos. Antes, definamos o anel produto: dada
uma coleção de anéis {Bλ }λ∈Λ , o produto cartesiano


λ∈Λ

define um anel, em que a soma e multiplicação são efetuadas coordenada a


coordenada. O elemento neutro deste anel é a tupla constante com todas as
entradas iguais a 0 e a identidade é a tupla constante com todas as entradas
iguais a 1.
2 não que os outros nomes façam sentido. . .
6 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Lema 1.2.1 Um anel A é indecomponı́vel se, e só se, não é isomorfo a um


produto B × C de dois anéis B �= 0 e C �= 0.
Demonstração: Se A = B × C com B �= 0 e C �= 0, então os elementos
e1 = (1, 0) e e2 = (0, 1) são dois idempotentes não triviais de A, i.e., diferentes
de 0A = (0, 0) e 1A = (1, 1).
Reciprocamente, se A é um anel que é decomponı́vel (i.e., não é inde-
componı́vel), existe um idempotente não trivial e1 ∈ A. Defina e2 = 1 − e1 .
Temos que e2 �= 0, 1 e
e22 = 1 − 2e1 + e21 = 1 − 2e1 + e1 = e2
e1 · e2 = e1 − e21 = 0,
ou seja, e2 é outro idempotente não trivial de A, “ortogonal” a e1 . Daı́, é
fácil verificar que
def def
B = A · e1 e C = A · e2
são dois anéis não nulos com 1B = e1 e 1C = e2 e que os mapas

A ✲ B×C

B×C

✲ A
� �
a �−→ a · e1 ; a · e2 (b; c) �−→ b + c
são isomorfismos de anéis, inversos um do outro.

De a · c = b · c ⇐⇒ (a − b) · c = 0, vemos que em um domı́nio vale a “lei


do cancelamento” �
c �= 0
=⇒ a = b
a·c=b·c
e, desta forma, temos imediatamente as seguintes implicações:
A é corpo =⇒ A é domı́nio =⇒ A é reduzido e indecomponı́vel

Cansado de tanta definição? Então, acho que está na hora de um exemplo:


� redu- indecom-
anel A A× (0) corpo? domı́nio?
zido? ponı́vel?
Z {±1} {0} não sim sim sim
Z/4Z {1, 3} {0, 2} não não não sim
Z/5Z Z/5Z \ {0} {0} sim sim sim sim
Z/6Z {1, 5} {0} não não sim não
Z/12Z {1, 5, 7, 11} {0, 6} não não não não
C C \ {0} {0} sim sim sim sim
C[t] C \ {0} {0} não sim sim sim
C×C C× × C× {0} não não sim não
1.3. IDEAIS 7

No item A = Z/6Z, os idempotentes não triviais são e = 3 e 1−e = 4. Assim,


temos a decomposição (ver também o teorema chinês dos restos, teorema 1.5.1
na página 17)

Z/6Z ∼
= Z/6Z · e × Z/6Z · (1 − e) ∼
= Z/2Z × Z/3Z

Analogamente, temos a decomposição Z/12Z ∼


= Z/3Z × Z/4Z dada pelos
idempotentes e = 4 e 1 − e = 9 de Z/12Z.

Seja A um domı́nio. O corpo de frações Frac A de A é o anel obtido


formalmente invertendo-se todos os elementos não nulos de A. Por exemplo,
Frac Z = Q. Mais precisamente, Frac A é o conjunto dos pares ordenados
(a, b) ∈ A×(A\{0}) módulo a relação de equivalência que identifica (a, b) com
(c, d) sempre que ad = bc. Por motivos de sanidade psicológica, denotaremos
a classe de equivalência do par (a, b) na forma de fração a/b, de modo que
�a � �

Frac A = � a, b ∈ A, b �
= 0
b
e
a c
= ⇐⇒ ad = bc
b d
As operações em Frac A são definidas do modo usual:
a c a·d+b·c a c a·c
+ = e · =
b d b·d b d b·d
É fácil verificar que as operações acima não dependem da escolha dos repre-
sentantes de classe envolvidos. Os elementos neutros da adição e da multi-
plicação são 0/1 e 1/1, respectivamente. Claramente Frac A é um corpo: se
a/b é não nulo, temos a �= 0, logo (a/b)−1 = b/a.
Note ainda que A pode ser visto como subanel de Frac A, pois temos um
morfismo injetor natural

A �→ Frac A
a
a �→
1
No capı́tulo 4 na página 97, generalizaremos a construção acima para um
anel qualquer.

1.3 Ideais
Dado um anel A, um ideal deste anel é qualquer subconjunto a ⊆ A que é
fechado por combinações A-lineares:

x, y ∈ a
=⇒ ax + by ∈ a
a, b ∈ A
8 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Por exemplo, dada uma famı́lia arbitrária {bλ }λ∈Λ de elementos de A, o


conjunto de todas as combinações A-lineares (finitas) de elementos nesta
famı́lia � � �
a1 · bλ1 + · · · + ar · bλr � r ∈ N, ai ∈ A, λi ∈ Λ
é um ideal de A, o chamado ideal gerado por {bλ }λ∈Λ , que é o “menor”
ideal de A que contém o conjunto {bλ }λ∈Λ .
Em particular, o ideal gerado por uma quantidade finita de elementos
a1 , . . . , an ∈ A será denotado por uma das seguintes formas:

(a1 , . . . , an ) = A · a1 + · · · + A · an

Ideais da forma (a), isto é, gerados por um único elemento, são chamados de
ideais principais.
Se φ : A → B é um morfismo de anéis, o kernel de φ,
def
ker φ = φ−1 (0) = {a ∈ A | φ(a) = 0}

é um ideal de A. A importância de ker φ é que ele mede a falta de injetividade


de φ:

Lema 1.3.1 Um morfismo de anéis φ : A → B é injetor se, e só se, seu


kernel é trivial, i.e., ker φ = (0).

Demonstração: Se φ é injetor, temos que φ(a) = 0 = φ(0) implica a = 0,


i.e., ker φ = (0). Por outro lado, φ(a) = φ(b) ⇐⇒ φ(a − b) = 0 ⇐⇒ a − b ∈
ker φ, assim se ker φ = (0) temos que φ(a) = φ(b) ⇐⇒ a = b e portanto φ é
injetor.

1.3.1 Ideais próprios e maximais


Ideais generalizam a noção de conjunto de múltiplos de um elemento. Neste
sentido, ideias são a noção “complementar” de unidades, como mostra o
seguinte

Lema 1.3.2 Seja a um ideal do anel A. São equivalentes:

(i) a é próprio (como subconjunto de A);

(ii) 1 ∈
/ a;

(iii) A× ∩ a = ∅.

Demonstração: É claro que (iii) ⇒ (ii) ⇒ (i). E também ¬(iii) ⇒ ¬(i):


se existe u ∈ A× ∩ a , para qualquer a ∈ A temos a = (au−1 ) · u ∈ A · u ⊆ a,
i.e., a = A não é próprio.
1.3. IDEAIS 9

1.3.3 Definição Um elemento maximal no conjunto dos ideais próprios de


A, parcialmente ordenado pela inclusão, é dito um ideal maximal. O con-
junto de todos os ideais maximais de A será denotado por Specm A, o cha-
mado espectro maximal de A.

Em outras palavras, um ideal próprio m � A é maximal se possui a


seguinte propriedade: para qualquer ideal a ⊆ A,

a ⊇ m =⇒ a = m ou a = (1) = A

Um importante fato é que todo anel não nulo possui ideais maximais:

Teorema 1.3.4 Seja A um anel.

1. Seja C uma cadeia de ideais de A com relação à inclusão, i.e., C é um


conjunto de ideais de A totalmente ordenado pela relação de inclusão:

g, h ∈ C =⇒ g ⊆ h ou h ⊆ g

Então �
u= g
g∈C

é um ideal de A. Se todos os ideais em C são próprios, então u também


é próprio.

2. Temos A = 0 ⇐⇒ Specm A = ∅.

Demonstração:

1. Se x, y ∈ u, existem ideais g, h ∈ C tais que x ∈ g e y ∈ h; como C é


uma cadeia, sem perda de generalidade podemos supor que g ⊆ h, logo
x, y ∈ h e portanto ax + by ∈ h ⊆ u para quaisquer a, b ∈ A. Assim, u é
um ideal de A. Além disso, se todos os ideais de C são próprios, então
u é próprio, pois caso contrário 1 ∈ u e assim 1 ∈ g para algum g ∈ C,
um absurdo.

2. Como A = 0 não tem ideais próprios, a implicação ⇒ é clara. Recipro-


camente, mostremos pelo lema de Zorn que A �= 0 =⇒ Specm A �= ∅.
Os elementos de Specm A são os elementos maximais do conjunto P
de todos os ideais próprios de A, parcialmente ordenado pela inclusão.
Como A �= 0, temos que (0) ∈ P =⇒ P �= ∅. Assim, para mostrar
que Specm A �= ∅, basta mostrar que qualquer cadeia C ⊆ P possui um
limitante superior u em P, o que segue do item anterior.
10 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

1.3.2 Operações com ideais


1.3.5 Definição Dados dois ideais a e b de um anel A, definimos os seguintes
ideais:
1. a soma de a e b, o ideal gerado pela união a ∪ b:
def
a + b = {a + b | a ∈ a, b ∈ b}

2. o produto de a e b, o ideal gerado por todos os produtos a · b com


a ∈ a e b ∈ b:
def
a · b = {a1 b1 + · · · + ar br | r ∈ N, a1 , . . . , ar ∈ a, b1 , . . . , br ∈ b}

3. a interseção de a e b:
a∩b
4. o radical de a:
√ def
a = {a ∈ A | an ∈ a para algum n ≥ 1}

Observação 1.3.6 1. Para ideais finitamente gerados, temos


(a1 , . . . , am ) · (b1 , . . . , bn ) = (a1 b1 , a1 b2 , . . . , ai bj , . . . , am bn )
(a1 , . . . , am ) + (b1 , . . . , bn ) = (a1 , . . . , am , b1 , . . . , bn )

2. Observe que sempre temos a inclusão a · b ⊆ a ∩ b.


√ √
3. Note que a é de fato um ideal: se a, b ∈ a, podemos escolher n
grande o suficiente de modo que an e bn estão ambos em a. Então,
para quaisquer x, y ∈ A, temos
� �2n�
2n
(xa + yb) = (xa)i (yb)2n−i ∈ a
i
0≤i≤2n

pois ou i ≥ n, logo√ai ∈ a, ou i ≤ n ⇐⇒ 2n − i ≥ n,
�logo b
2n−i
∈ a.
Assim, xa + yb ∈ a. Em particular, o nilradical (0) de A é um
ideal.
1.3.7 Exemplo Sejam m e n inteiros positivos e seja m = pe11 pe22 . . . perr a
fatoração de m em potências de primos distintos pi . Então, no anel Z,
� �
(m) + (n) = (m, n) = mdc(m, n)
(m) · (n) = (mn)
� �
(m) ∩ (n) = mmc(m, n)

(m) = (p1 p2 · · · pr )
� � � �
As igualdades (m, n) = mdc(m, n) e (m) ∩ (n) = mmc(m, n) seguem do
fato de que Z é um DIP: todo ideal de Z é principal e vale a fatoração única
em primos (teorema B.1.4 na página 344 e lema B.1.6 na página 345).
1.4. ANEL QUOCIENTE 11

1.4 Anel quociente


Dado um ideal a ⊆ A, definimos

a≡b (mod a) ⇐⇒ a − b ∈ a

Em particular, se a = (m) é principal, obtemos a noção usual de congruência


módulo m.
A congruência módulo a define uma relação de equivalência em A, com-
patı́vel com as operações do anel, no seguinte sentido:

� 
a ≡ b (mod a) a + c ≡ b + d (mod a)
=⇒ a − c ≡ b − d (mod a)
c ≡ d (mod a) 

ac ≡ bd (mod a)

Por exemplo, para provar a última propriedade, note que se a − b ∈ a e


c − d ∈ a então ac − bd = c · (a − b) + b · (c − d) ∈ a.
Seja A/a o conjunto das classes de equivalência módulo a; denotaremos a
classe de a ∈ A por uma das maneiras a seguir:

a + a = a mod a = a ∈ A/a

Podemos dar uma estrutura de anel para o conjunto A/a definindo

def def
a+b = a+b e a·b = a·b (a, b ∈ A)

Note que, devido à compatibilidade da relação de congruência módulo a com


as operações do anel A, as operações em A/a dadas acima estão de fato bem
definidas, isto é, não dependem da escolha dos representantes de classe a, b.
O anel A/a é chamado de anel quociente de A por a. É o anel obtido
“igualando-se” os elementos em A que diferem por um elemento em a.
O anel quociente vem equipado de fábrica com um morfismo quociente
ou morfismo projeção, que leva um elemento em sua classe de equivalência:

π : A � A/a
a �→ a

Este morfismo é claramente sobrejetor. Através deste morfismo de projeção,


podemos dar a mais importante caracterização do anel quociente:

Teorema 1.4.1 (Propriedade Universal do Quociente) Seja A um a-


nel e seja a ⊆ A um ideal, com mapa de projeção correspondente π : A � A/a.
Para um anel qualquer B, seja

def
Homa (A, B) = {φ ∈ Hom(A, B) | φ(a) = 0}
12 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Então temos uma bijeção natural

Hom(A/a, B) ✲ Homa (A, B)


ψ �−→ ψ ◦ π
φ ←−� φ

com φ definido por

φ : A/a → B
φ(a) �→ φ(a)

Demonstração: Note que φ está bem definido pois

a = b ⇐⇒ a − b ∈ a =⇒ φ(a − b) = 0 ⇐⇒ φ(a) = φ(b)

Agora, uma verificação direta mostra que φ é um morfismo de anéis e que os


mapas acima entre Homa (A, B) e Hom(A/a, B) são, de fato, inversos um do
outro.

Na prática, o teorema acima é o que nos permite construir morfismos


saindo do anel quociente A/a. Explicitamente, qualquer morfismo φ : A → B
satisfazendo φ(a) = 0 “induz” um único morfismo φ : A/a → B tal que o
seguinte diagrama comuta:

φ
A B
π
∃!φ
A/a

Moralmente falando, isto nada mais é do que uma expressão formal do


princı́pio “zero vai em zero”: para mostrar que um morfismo do anel quoci-
ente A/a para um outro anel B está bem definido, basta verificar que 0 �→ 0.

Corolário 1.4.2 (Teorema do Isomorfismo) Seja φ : A � B um mor-


fismo sobrejetor de anéis. Então φ induz um isomorfismo

φ : A/ ker φ

✲ B
a �−→ φ(a)

Demonstração: A propriedade universal (teorema 1.4.1 na página ante-


rior) mostra a existência de φ. Como φ é sobrejetor, é imediato que φ também
é sobrejetor. Por outro lado, ker φ = (0) implica que φ é injetor (lema 1.3.1
na página 8) também.
1.4. ANEL QUOCIENTE 13

1.4.3 Exemplo Seja A um anel e sejam a1 , . . . , an ∈ A. Pela propriedade


universal (teorema 1.4.1 na página 11), o morfismo A[x1 , . . . , xn ] → A dado
por p(x1 , . . . , xn ) �→ p(a1 , . . . , an ) (avaliação no ponto (a1 , . . . , an ) ∈ An )
define um morfismo
A[x1 , . . . , xn ] ≈
✲ A
α:
(x1 − a1 , . . . , xn − an )
p(x1 , . . . , xn ) �−→ p(a1 , . . . , an )

que é um isomorfismo; o mapa inverso é o mapa natural de A-álgebras


≈ A[x1 , . . . , xn ]
β: A
(x1 − a1 , . . . , xn − an )

que leva a ∈ A na classe do polinômio constante a. De fato, é claro que


α ◦ β = id e para ver que β ◦ α = id, basta notar que

x i ≡ ai (mod (x1 − a1 , . . . , xn − an )) para i = 1, . . . , n


=⇒ p(x1 , . . . , xn ) ≡ p(a1 , . . . , an ) (mod (x1 − a1 , . . . , xn − an ))
A[x1 , . . . , xn ]
⇐⇒ p(x1 , . . . , xn ) = p(a1 , . . . , an ) em
(x1 − a1 , . . . , xn − an )

Intuitivamente, o anel quociente A[x1 , . . . , xn ]/(x1 − a1 , . . . , xn − an ) é obtido


“igualando-se” os elementos do ideal (x1 − a1 , . . . , xn − an ) a zero, ou seja,
fazendo xi = ai para cada i = 1, . . . , n.

O princı́pio “todo ideal contém (0)” se traduz no importante teorema da


correspondência3 .

Teorema 1.4.4 1. Seja φ : A → B um morfismo de anéis. Se b ⊆ B é


um ideal, então sua pré-imagem φ−1 (b) é um ideal de A. Por outro
lado, se φ é sobrejetor e a ⊆ A é um ideal, então φ(a) é um ideal de B.

2. (Teorema da correspondência) Seja A um anel e a ⊆ A um ideal.


O mapa quociente π : A � A/a estabelece uma bijeção entre
� � � �
ideais b ⊆ A tais que b ⊇ a ←→ ideais c ⊆ A/a
b �−→ π(b)
π −1 (c) ←−� c

Esta bijeção preserva a relação de inclusão de ideais; em particular,


temos uma bijeção natural

Specm A/a = {m ∈ Specm A | m ⊇ a}

3 vulgo “teorema do carteiro”


14 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Demonstração:

1. Se x, y ∈ φ−1 (b) e a, b ∈ A, temos

φ(ax + by) = aφ(x) + bφ(y) ∈ b =⇒ ax + by ∈ φ−1 (b)

logo φ−1 (b) é ideal de A. Agora suponha que φ seja sobrejetor. Então
se x, y ∈ φ(a) e b, c ∈ B, digamos x = φ(x� ), y = φ(y � ) com x� , y � ∈ a e
b = φ(b� ), c = φ(c� ) com b� , c� ∈ A, então

bx + cy = φ(b� )φ(x� ) + φ(c� )φ(y � ) = φ(b� x� + c� y � ) ∈ φ(a)

e portanto φ(a) é ideal de B.

2. Pelo item anterior aplicado à projeção π, temos que os mapas do


enunciado estão de fato bem definidos; mostremos que eles são in-
versos um do outro. Temos ππ −1 (c) = c pois π é sobrejetor. Para
mostrar que π −1 π(b) = b, basta provar que π −1 π(b) ⊆ b, já que
a inclusão oposta é trivial. Se b ∈ π −1 π(b), existe b� ∈ b tal que
π(b) = π(b� ) ⇐⇒ b − b� ∈ a. Como a ⊆ b concluı́mos que

b ∈ b� + a ⊆ b + a = b

Uma consequência imediata do teorema acima é o

Corolário 1.4.5 Seja A um anel.

1. Um ideal a ⊂ A é próprio se, e só se, a está contido em um ideal


maximal m.

2. Um elemento u ∈ A é uma unidade se, e só se, não está contido em


nenhum ideal maximal m.

3. Um ideal m ⊂ A é maximal se, e só se, A/m é um corpo.

Demonstração:

1. O ideal a é próprio se, e só se, A/a �= 0 o que, pelo teorema 1.3.4 na
página 9, é equivalente a Specm A/a �= ∅. E, pelo teorema da corres-
pondência (teorema 1.4.4 na página anterior), esta última condição é
equivalente à existência de m ∈ Specm A tal que m ⊇ a.

2. Temos u ∈ A× ⇐⇒ 1 ∈ (u) ⇐⇒ (u) não é próprio (lema 1.3.2 na


página 8), assim basta aplicar o item anterior para o ideal principal
a = (u).
1.4. ANEL QUOCIENTE 15

3. Pelo teorema da correspondência (teorema 1.4.4 na página 13), m é


maximal se, e só se, (0) é o único ideal próprio de B = A/m. Mas (0) é
o único ideal próprio de um anel B se, e só se, B é um corpo. De fato, se
B é um corpo e b ⊆ B é um ideal não nulo, então b∩B × �= ∅, logo b = B
não é próprio (lema 1.3.2 na página 8). Reciprocamente, se (0) é o único
ideal próprio de B, então dado b �= 0 temos (b) = B ⇐⇒ b ∈ B × (ver
item anterior), o que mostra que B é corpo.

1.4.6 Exemplo Seja k um corpo e sejam a1 , . . . , an ∈ k. O corolário 1.4.5


na página oposta mostra que

(x1 − a1 , . . . , xn − an ) ∈ Specm k[x1 , . . . , xn ]

já que, pelo exemplo 1.4.3 na página 13, temos um isomorfismo “avaliação”
de k-álgebras
k[x1 , . . . , xn ] ✲ k

α:
(x1 − a1 , . . . , xn − an )
xi �−→ ai

Mais tarde (teorema 9.3.4 na página 191), veremos que, se k for algebrica-
mente fechado, a recı́proca também é verdadeira, ou seja, todo ideal maximal
de k[x1 , . . . , xn ] é da forma acima.

1.4.7 Exemplo Seja A um anel e seja a ⊆ A[x1 , . . . , xn ] um ideal. Dados


a1 , . . . , an ∈ A, vamos mostrar que

(x1 − a1 , . . . , xn − an ) ⊇ a
⇐⇒ f (a1 , . . . , an ) = 0 para todo f (x1 , . . . , xn ) ∈ a

de modo que (x1 − a1 , . . . , xn − an ) ⊆ A[x1 , . . . , xn ] corresponde a um ideal


de A[x1 , . . . , xn ]/a se, e só se, (a1 , . . . , an ) ∈ An é um ponto do “conjunto de
zeros Z(a) de a”:
def
Z(a) = {(a1 , . . . , an ) ∈ An | f (a1 , . . . , an ) = 0 para todo f (x1 , . . . , xn ) ∈ a}

De fato, sendo α o isomorfismo “avaliação” xi �→ ai de A-álgebras do


exemplo 1.4.3 na página 13, temos

(x1 − a1 , . . . , xn − an ) ⊇ a
A[x1 , . . . , xn ] α

⇐⇒ ∀f (x1 , . . . , xn ) ∈ a, f (x1 , . . . , xn ) = 0 em =A
(x1 − a1 , . . . , xn − an )
� �
⇐⇒ ∀f (x1 , . . . , xn ) ∈ a, α f (x1 , . . . , xn ) = 0 em A
⇐⇒ ∀f (x1 , . . . , xn ) ∈ a, f (a1 , . . . , an ) = 0
1.5. TEOREMA CHINÊS DOS RESTOS 17

Teorema 1.5.1 (Teorema Chinês dos Restos) Seja A um anel e sejam


a1 , . . . , an ideais dois a dois coprimos, isto é, ai + aj = (1) para i �= j (esta
condição é por exemplo satisfeita se os ai ’s são ideais maximais distintos).
Então
1. a1 ∩ · · · ∩ an = a1 · . . . · an
2. O mapa “diagonal”
A A ≈
✲ A × ··· × A
=
a1 · . . . · an a 1 ∩ · · · ∩ an a1 an
a mod a1 ∩ · · · ∩ an �−→ (a mod a1 , . . . , a mod an )
é um isomorfismo de anéis.
Demonstração:
1. Para quaisquer ideais ai , sempre temos a1 ∩ · · · ∩ an ⊇ a1 · . . . · an . Para
mostrar a inclusão oposta, procedemos por indução em n, o caso n = 1
sendo trivial. Para n = 2, como a1 e a2 são coprimos, existem ai ∈ ai
tais que 1 = a1 + a2 . Assim,
c ∈ a1 ∩ a2 =⇒ c = a1 · c + c · a2 ∈ a1 · a2
como desejado. Agora seja n > 2. Basta mostrar que a1 · . . . · an−1 e
an são coprimos, pois com isso teremos, por hipótese de indução (para
n − 1 e 2 ideais),
(a1 ∩ · · · ∩ an−1 ) ∩ an = (a1 · . . . · an−1 ) ∩ an = (a1 · . . . · an−1 ) · an
Como ai e an são coprimos para i < n, existem ai ∈ ai e bi ∈ an tais
que ai + bi = 1 para i = 1, . . . , n − 1. Assim,
1 = (a1 + b1 ) · · · (an−1 + bn−1 ) ∈ a1 . . . an−1 + an
o que mostra que a1 · . . . · an−1 + an = (1).
2. É suficiente mostrar que o mapa “diagonal”
A → A/a1 × · · · × A/an
a �→ (a mod a1 , . . . , a mod an )
é sobrejetor, pois como o kernel deste mapa é a1 ∩ · · · ∩ an , o resultado
seguirá do teorema do isomorfismo (corolário 1.4.2 na página 12).
Por A-linearidade, para mostrar a sobrejetividade do mapa diagonal
é suficiente encontrar, para cada i = 1, . . . , n, pré-imagens para os
vetores da forma (0, . . . , 0, 1, 0, . . . , 0) (com 1 na i-ésima entrada), ou
seja, elementos ei ∈ A tais que

ei ≡ 1 (mod ai )
ei ≡ 0 (mod aj ) para j �= i
18 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

De fato, com isso teremos que a = b1 e1 + · · · + bn en será uma pré-


imagem para um vetor arbitrário (b1 , . . . , bn ). Por simetria, podemos
assumir i = n. Pelo item acima, a1 ∩ · · · ∩ an−1 e an são coprimos,
logo existem elementos en ∈ a1 ∩ · · · ∩ an−1 e b ∈ an com en + b = 1.
Claramente, en satisfaz as condições pedidas.

1.5.2 Exemplo Seja k um corpo. Seja f (x) ∈ k[x] não nulo com fatoração

f (x) = c · p1 (x)e1 · · · pn (x)en (c ∈ k × )

em potências de polinômios mônicos irredutı́veis distintos pi (x). Note que,


para i �= j,

(pi (x)ei ) + (pj (x)ej ) = (pi (x)ei , pj (x)ej ) = (1)

pois k[x] é um DIP e o gerador do ideal principal acima divide simultane-


amente pi (x)ei e pj (x)ej , logo é associado a 1 (lema B.1.6 na página 345).
Assim, pelo Teorema Chinês dos Restos, temos um isomorfismo

k[x] k[x] k[x]


= × ··· ×
(f (x)) (p1 (x)e1 ) (pn (x)en )

Por exemplo, se Fq = {α1 , . . . , αq } é um corpo finito com q elementos (q


uma potência de primo), que são as raı́zes de xq − x, temos um isomorfismo

Fq [x] TCR Fq [x] Fq [x] aval.



= × ··· × = Fq × · · · × Fq = (Fq )q
(xq − x) (x − α1 ) (x − αq )
� � � �
f (x) �→ f (x), . . . , f (x) �→ f (α1 ), . . . , f (αq )

Observação 1.5.3 Cuidado: no DFU k[x, y] (k um corpo), os elementos


x e y não possuem fatores comuns, entretanto os ideais (x) e (y) não são
coprimos pois (x) + (y) = (x, y) é um ideal maximal de k[x, y] (exemplo 1.4.6
na página 15). Assim, o teorema chinês dos restos não se aplica neste caso
e, de fato, veremos mais tarde (exemplo 3.3.8 na página 93) que k[x, y]/(xy)
não é isomorfo a k[x, y]/(x) × k[x, y]/(y)!

1.6 Módulos
Seja A um anel. Um A-módulo M é, moralmente falando, um “espaço
vetorial sobre A.” Explicitamente, M é um grupo abeliano aditivo, acrescido
de uma “multiplicação por escalares”

A×M →M
(a, m) �→ a · m
1.6. MÓDULOS 19

que é bilinear e tal que 1 ∈ A age trivialmente sobre M : para todo a, b ∈ A


e m, n ∈ M ,

(a + b) · m = a · m + b · m
a · (m + n) = a · m + a · n
(ab) · m = a · (b · m)
1·m=m

Um submódulo N ⊆ M é um subconjunto que é fechado por combinações


A-lineares: �
x, y ∈ N
=⇒ ax + by ∈ N
a, b ∈ A

de modo que N também é um A-módulo, com soma e multiplicação escalar


dadas pela restrições das operações em M . Um morfismo de A-módulos
ψ : M → N é uma “transformação A-linear” entre M e N : para todo a1 , a2 ∈
A e m1 , m2 ∈ M ,

ψ(a1 · m1 + a2 · m2 ) = a1 · ψ(m1 ) + a2 · ψ(m2 )

Vejamos exemplos simples:

1. Se k é um corpo, um k-módulo é o mesmo que um k-espaço vetorial.

2. Todo anel A é um A-módulo sobre si mesmo, em que a multiplicação


escalar é dada pelo produto em A. Mais geralmente, toda A-álgebra
é um A-módulo e todo morfismo de A-álgebras é um morfismo de A-
módulos.

3. Dado um ideal a ⊆ A, o anel quociente A/a é um A-módulo, visto


como A-álgebra através do morfismo de projeção π : A � A/a. Em
particular, pelo item anterior este mapa de projeção também é um
morfismo de A-módulos.

4. Um A-submódulo de A é o mesmo que um ideal a ⊆ A. Em parti-


cular, o ideal nulo é um A-módulo, o chamado módulo trivial, que
denotaremos simplesmente por 0.

5. Um grupo abeliano (M, +) é um mesmo que um Z-módulo, em que a


multiplicação escalar dada por
def
a · m = m + m + ··· + m (m ∈ M, a ∈ Z≥0 )
� �� �
a vezes

e a · m = (−a) · (−m) se a ∈ Z≤0 . Um morfismo entre grupos abelianos


é o mesmo que um morfismo de Z-módulos.
20 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Vários resultados sobre anéis e ideias podem ser facilmente generalizados


para módulos; por exemplo, um morfismo de A-módulos φ : M → N é injetor
def
se, e só se, ker φ = φ−1 (0) é trivial. Se N é um A-submódulo de M , podemos
definir o A-módulo quociente M/N de maneira completamente análoga
ao anel quociente, como o conjunto das classes de equivalência módulo N .
Mutatis mutandis, a propriedade universal, o teorema do isomorfismo e o
teorema de correspondência valem também no contexto de módulos.

1.6.1 Sequências exatas


Relações lineares entre módulos são geralmente expressas através de sequên-
cias exatas. Uma sequência de morfismos de A-módulos

··· ✲ Mi+1 ✲ Mi
fi+1
✲ Mi−1
fi
✲ Mi−2
fi−1
✲ ···
fi−2

é um complexo se fi−1 ◦ fi = 0 ⇐⇒ im fi ⊆ ker fi−1 para todo i. Um


complexo é uma sequência exata se im fi = ker fi−1 para todo i.
Em particular,

0 ✲ M ✲ N
f
✲ P
g
✲ 0

é uma sequência exata (dita sequência exata curta) se, e só se,

(i) f é injetora;

(ii) g é sobrejetora;

(iii) ker g = im f , de modo que g induz um isomorfismo

g : N/f (M ) ✲ P

n �−→ g(n)

Em outras palavras: em uma sequência exata curta como acima, podemos


sempre interpretar M como submódulo de N e P como o quociente de N
por M . Desta forma, o módulo do meio N pode ser visto como “composto”
pelos módulos das pontas M e P , que são “mais simples” do que N .

1.6.1 Exemplo (Sequência tautológica) Seja A um anel e a um ideal.


Temos uma sequência exata curta de A-módulos

0 ✲ a ι
✲ A ✲ A/a
π
✲ 0

em que ι é a inclusão e π, a projeção. Mais geralmente, se M é submódulo


de N , então temos uma sequência exata curta

0 ✲ M ✲ N ✲ N/M ✲ 0
1.6. MÓDULOS 21

1.6.2 Exemplo (Aditividade da dimensão) Seja k um corpo e seja

0 ✲ M ✲ N
f
✲ P
g
✲ 0

uma sequência exata curta de k-espaços vetoriais. Então

dimk N = dimk M + dimk P

pois N/f (M ) ∼
= P.

Note que toda sequência exata (M• , f• ) pode ser quebrada em sequências
exatas curtas

0 ✲ im fi+1 ✲ Mi ✲ im fi ✲ 0

de modo que o estudo de sequências exatas gerais pode ser reduzido ao estudo
das sequências exatas curtas.

1.6.2 Operações sobre módulos


Se N e P são dois submódulos de um A-módulo M e a ⊆ A é um ideal,
podemos construir os seguintes submódulos de M :
(i) a soma de N e P ,

N + P = {n + p ∈ M | n ∈ N, p ∈ P },

que é o “menor” submódulo de M que contém N e P ;


(ii) a interseção N ∩ P ;
(iii) o produto com um ideal a:
� � �
def � r ∈ N, a1 , . . . , ar ∈ a,
aM = a1 m1 + · · · + ar mr ∈ M �
� m1 , . . . , m r ∈ M

que é o submódulo das combinações A-lineares de elementos de M com


coeficientes em a.
Note que as operações acima generalizam as operações correspondentes em
ideais: em (i) e (ii), se M = A, temos que N e P são ideais de A e N + P e
N ∩ P coincidem com a soma e interseção de ideais definidas anteriormente.
E em (iii), se M é um ideal de A, então aM coincide com o produto de ideais.
Note ainda que M/aM pode ser visto não só como A-módulo mas também
def
como A/a-módulo: basta definir a · m = am para a ∈ A e m ∈ M ; é fácil
ver que esta operação está bem definida:
M
a = b ∈ A/a ⇐⇒ a − b ∈ a =⇒ (a − b)m ∈ aM ⇐⇒ am = bm ∈
aM
22 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

e, similarmente, mostra-se que m = n =⇒ am = an em M/aM para


quaisquer m, n ∈ M e a, b ∈ A.
Dados dois A-módulos M e N , o conjunto
def
HomA (M, N ) = {φ : M → N | φ é morfismo de A-módulos}
também é um A-módulo (com a soma e o produto por A-escalares induzidos
pelas operações em N ). Note que HomA (N, −) define um funtor covari-
ante5 da categoria de A-módulos para si mesma: para cada A-módulo M ,
associamos o A-módulo HomA (N, M ) e, para cada morfismo f : M1 → M2 ,
associamos o morfismo
HomA (N, f ) : HomA (N, M1 ) → HomA (N, M2 )
φ �→ f ◦ φ

induzido por composição com f . É fácil verificar que HomA (N, −) preserva
identidades e composição de morfismos, o que de fato lhe dá o direito de ser
chamado de funtor. De maneira análoga, define-se o funtor contravariante
HomA (−, N ). Temos uma importante
Proposição 1.6.3 Seja N um A-módulo. Seja

0 ✲ M� ✲ M
f g
✲ M �� ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos. As sequências

0 ✲ HomA (N, M � ) HomA (N,f )


✲ HomA (N, M ) HomA (N,g)
✲ HomA (N, M �� )

0 ✲ HomA (M �� , N ) ✲ HomA (M, N )


HomA (g,N ) HomA (f,N )
✲ HomA (M � , N )

são exatas. Dizemos que HomA (N, −) e HomA (−, N ) são funtores exatos à
esquerda.
Demonstração: Como as duas provas são análogas, vamos apenas mostrar
a tı́tulo de exemplo que a segunda sequência é exata. Primeiro, HomA (g, N )
é injetora (lema 1.3.1 na página 8): se φ ∈ ker HomA (g, N ) ⇐⇒ φ ◦ g =
0, temos φ = 0 pois g é sobrejetora. Por outro lado, im HomA (g, N ) ⊆
ker HomA (f, N ) pois HomA (−, N ) é um funtor e g ◦ f = 0 por hipótese, logo
HomA (f, N ) ◦ HomA (g, N ) = HomA (g ◦ f, N ) = 0
Reciprocamente, dado ψ ∈ ker HomA (f, N ) ⇐⇒ ψ ◦ f = 0, temos ker ψ ⊇
f (M � ) = ker g, logo pela propriedade universal do quociente (teorema 1.4.1
na página 11) temos um morfismo induzido φ ∈ HomA (M �� , N ) dado pela
composição ψ ◦ g −1 :

φ : M �� ✛g M/f (M � ) ✲
ψ
N

m�� = g(m) �−→ m �−→ ψ(m)
Assim, φ ◦ g = ψ ⇐⇒ HomA (g, N )(φ) = ψ.
5 ver apêndice A.2 na página 328 para definições
1.6. MÓDULOS 23

Dada uma famı́lia de A-módulos {Mi }i∈I , podemos construir dois novos
A-módulos:

(i) o produto direto i∈I Mi que, como conjunto, é igual ao produto
cartesiano dos Mi , sendo a soma e o produto por escalares realizada
componente a componente;

(ii) a soma direta i∈I Mi que é o submódulo do produto direto cujos
elementos são as tuplas (mi )i∈I “quase nulas”, i.e., com mi �= 0 apenas
para um número finito de ı́ndices i.
� �
Em particular, se o conjunto de ı́ndices I é finito, então i∈I Mi = i∈I Mi .
Temos as seguintes propriedades universais do produto e soma de módulos,
de verificação imediata:

Proposição 1.6.4 (Propriedades Universais de Produtos) Dada uma


famı́lia de A-módulos {Mi }i∈I , para todo A-módulo T de “teste”, temos iso-
morfismos canônicos
� � � �
HomA (T, Mi ) = HomA T, Mi
i∈I i∈I
� �
(φi )i∈I �→ t �→ (φi (t))i∈I

e
� �� �
HomA (Mi , T ) = HomA Mi , T
i∈I i∈I
� � �
(ψi )i∈I �→ (mi )i∈I �→ ψi (mi )
i∈I


Note que a soma i∈I ψi (mi ) faz sentido uma vez mi = 0 para quase todo
i ∈ I.

1.6.5 Exemplo Para um A-módulo M , temos isomofismos canônicos de A-


módulos
� � �
HomA ( A, M ) = HomA (A, M ) = M
i∈I i∈I i∈I

entre o módulo dos morfismos da soma direta de |I| cópias de A para M e


o produto direto de |I| cópias de M . Aqui, o último isomorfismo é induzido
pelo morfismo canônico

HomA (A, M ) ✲ M

φ �−→ φ(1)
24 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Um subconjunto {ωi }i∈I de um A-módulo M é dito um conjunto de


geradores se todo elemento de M pode ser escrito como combinação A-
linear (finita) de ωi ’s, ou seja, se o morfismo de A-módulos

φ: A�M
i∈I

(ai )i∈I �→ a i ωi
i∈I

da soma direta de |I| cópias de A para M é sobrejetor (φ corresponde, pela


propriedade universal, ao produto dos mapas (a �→ aωi ) ∈ HomA (A, M )).
Quando φ é também um isomorfismo, ou seja, quando o conjunto de geradores
{ωi }i∈I é linearmente independente sobre A (o que equivale a ker φ = 0),
dizemos que M é um módulo livre sobre A e que {ωi }i∈I é uma base de
M.
Se M possui um conjunto finito de geradores ω1 , . . . , ωn , dizemos que M
é finitamente gerado sobre A. Neste caso, escrevemos
M = Aω1 + · · · + Aωn
Ao contrário de espaços vetoriais, módulos nem sempre são livres (tome
por exemplo A = Z e M = Z/2Z). Entretanto, como em Álgebra Linear,
temos
Proposição 1.6.6 Seja A �= 0 um anel e seja M um A-módulo livre. Então
quaisquer duas bases de M possuem a mesma cardinalidade (chamada de
posto de M ).
Demonstração: Seja m um ideal maximal de A (que existe pelo teo-
rema 1.3.4 na página 9) e seja k = A/m, que é um corpo pelo corolário 1.4.5
na página 14. A ideia é reduzir o problema de anéis e módulos para corpos
e espaços vetoriais: vamos mostrar que a cardinalidade de qualquer base de
M é igual à dimensão do k-espaço vetorial M/mM .
Dada uma base {ωi }i∈I de M , considere o isomorfismo correspondente
com a soma direta de |I| cópias de A:

A ✲ M

φ:
i∈I

Para mostrar que |I| = dimk M/mM , basta ver que φ induz um isomorfismo
de A-módulos (e portanto de k-espaços vetoriais)

k ✲ M/mM

φ:
i∈I

(ai )i∈I �−→ ai ω i
i∈I

Uma maneira rápida de ver isto é contemplar o seguinte diagrama comutativo,


cujas linhas são exatas (“sequências tautológicas” do quociente):
1.7. ANÉIS E MÓDULOS GRADUADOS 25

� � �
0 i∈I m i∈I A i∈I k 0

≈ φ ≈ φ φ


0 mM M i∈I M/mM 0
� �
Note que i∈I m=m i∈I A, que é isomorfo a mM via φ, logo
� �
� �
m = ker A ✲ M
φ

✲ M/mM
π

i∈I i∈I

Assim, pelo teorema do isomorfismo (corolário 1.4.2 na página 12) aplicado


a π ◦ φ, temos que φ está bem definido e é um isomorfismo.

Observação 1.6.7 O lema acima é falso para anéis não-comutativos! Por


exemplo, seja k um corpo e denote por k N o k-espaço vetorial de dimensão
contável sobre k. Seja R = Homk (k N , k N ) o anel não comutativo dos en-
domorfismos k-lineares de k N (multiplicação em R é dada por composição).
Então temos um isomorfismo de R-módulos à esquerda R ∼ = R2 (exercı́cio
1.9 na página 30).

1.7 Anéis e módulos graduados


O conceito de grau no anel de polinômios A[x1 , . . . , xn ] pode ser estendido a
outros anéis, os chamados anéis graduados6 .

1.7.1 Definição Seja (G, +) um monóide comutativo7 .

1. Um anel A é dito G-graduado se seu grupo aditivo (A, +) admite uma


decomposição como soma direta de subgrupos abelianos Ag

A= Ag
g∈G

satisfazendo Ag · Ah ⊆ Ag+h para todo g, h ∈ G, i.e.,



a g ∈ Ag
=⇒ ag ah ∈ Ag+h (g, h ∈ G)
a h ∈ Ah
6 ao contrário da crença popular, anéis graduados não são aqueles com um diploma. . . A
origem do nome anel graduado seria mais clara se ele fosse rebatizado “anel grau-duado”,
mas até os matemáticos estão sob a égide das regras ortográficas!
7 lembre que um monóide comutativo é um conjunto com uma operação binária as-

socitiva e comutativa e que possui elemento neutro, ou seja, monóide comutativo +


existência de inverso = grupo abeliano
26 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

Os elementos ag ∈ Ag ⊆ A são ditos homogêneos de grau g. Assim,


elemento a ∈ A pode ser escrito de maneira única como soma
todo �
a = g∈G ag de elementos homogêneos ag ∈ Ag . Chamamos ag a
componente homogênea de grau g do elemento a.
2. Um morfismo φ : A → B entre dois anéis G-graduados é um morfismo
graduado se φ respeita a graduação destes anéis, ou seja, se φ(Ag ) ⊆
Bg para todo g ∈ G.
3. Seja A um anel G-graduado. Um A-módulo M é dito um G-graduado
se (M, +) admite uma decomposição como soma direta de subgrupos
abelianos Mg �
M= Mg
g∈G

compatı́vel com a G-graduação de A no sentido que Ag · Mh ⊆ Mg+h


para todo g, h ∈ G, i.e.,

a g ∈ Ag
=⇒ ag mh ∈ Mg+h (g, h ∈ G)
mh ∈ Mh

Como no caso de anéis, os elementos em Mg são chamados de ho-


mogêneos de grau g ∈ G, todo elemento de M pode ser unicamente
escrito como soma de suas componentes homogêneas e um morfismo de
A-módulos é graduado se respeita a graduação.
4. Suponha que G seja um grupo e sejam A um anel G-graduado e M um
A-módulo G-graduado. Seja d ∈ G. Definimos o A-módulo G-graduado
M (d) como o A-módulo M dotado de nova graduação dada por

M (d)g = Md+g (g ∈ G)

5. Sejam A um anel G-graduado e M um A-módulo G-graduado. Um


submódulo N ⊆ M é G-graduado se N herda a graduação de M , i.e.,
se (N, +) se decompõe como

N= N ∩ Mg
g∈G

Neste caso, temos que o quociente é graduado de maneira natural pois


podemos escrever
M � Mg
=
N N ∩ Mg
g∈G

e temos uma sequência exata de módulos G-graduados (i.e. uma se-


quência exata cujos morfismos são G-graduados)

0 ✲ N ✲ M ✲ M/N ✲ 0
1.7. ANÉIS E MÓDULOS GRADUADOS 27

6. Seja A um anel G-graduado. Um ideal a ⊆ A é dito um ideal ho-


mogêneo se a é um submódulo graduado de A, i.e., (a, +) admite a
decomposição �
a= (a ∩ Ag )
g∈G

Os casos mais importantes são aquele em que G = Z ou G = N. Como


um anel N-graduado pode ser visto como um anel Z-graduado em que as
componentes de grau negativo são nulas, no resto deste livro, a menos de
menção contrária anéis e módulos graduados sempre se referirão a anéis e
módulos Z-graduados.
1.7.2 Exemplo Seja A um anel qualquer. O exemplo canônico de anel gra-
duado é A[x1 , . . . , xn ], que admite a graduação

A[x1 , . . . , xn ] = A[x1 , . . . , xn ]d
d≥0
� �
em que A[x1 , . . . , xn ]d é o A-módulo livre de posto n+d−1 d com base dada
pelos monômios xe11 xe22 . . . xenn de grau d = e1 + · · · + en .

O próximo lema dá uma importante caracterização de ideais homogêneos.


Lema �1.7.3 (Ideais Homogêneos) Seja (G, +) um grupo abeliano. Sejam
A = g∈G Ag um anel G-graduado e a ⊆ A um ideal. Para cada elemento
a ∈ A, denote por ag ∈ Ag a sua componente homogênea de grau g. As
seguintes condições são equivalentes:

(i) o ideal a é homogêneo;


(ii) para todo a ∈ A,

a ∈ a ⇐⇒ ag ∈ a para todo g ∈ G

(iii) o ideal a é gerado por elementos homogêneos (possivelmente de diferen-


tes graus).

Demonstração: Claramente (i) ⇔ (ii) ⇒ (iii). Para mostrar que (iii) ⇒


(ii), suponha que a é gerado por elementos homogêneos ai (i ∈ I) e seja
a ∈ a. Então podemos escrever a�= b1 · ai1 + · · · + bn · ain com bi ∈ A =

g∈G Ag . Expandindo cada bi = g∈G bi,g como soma de suas componentes
homogêneas bi,g ∈ Ag , o termo de grau g em a é

ag = b1,g−deg(ai1 ) · ai1 + · · · + bn,g−deg(ain ) · ain

e assim ag ∈ a.

O lema anterior se generaliza de forma natural para submódulos gradua-


dos. Deixamos a cargo do leitor enunciar e provar esta generalização.
28 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

1.8 Exercı́cios
1.1 Seja A um anel e a ∈ A um elemento nilpotente. Mostre que 1+a ∈ A× .

1.2 Seja U ⊆ C é um aberto conexo não vazio e considere os anéis de funções


(com a soma e produto usuais de funções)

def
C(U ) = {f : U → C | f é contı́nua}
def
H(U ) = {f : U → C | f é holomorfa}
def
M(U ) = {f : U → C | f é meromorfa}

Mostre que

(a) C(U ) é reduzido mas não é um domı́nio.

(b) H(U ) é um domı́nio e M(U ) é um corpo.

(c) Frac H(U ) = M(U ) (dica: utilize o teorema de fatoração de Weierstraß,


veja por exemplo [SS03], theorem V.4.1, p.145).

1.3 Sejam a e b ideais de um anel A.


�√ √ √ √
(a) Prove que a = a e ab = a ∩ b.

(b) Mostre que se a e b são coprimos, então o mesmo vale para am e bn para
todo m, n ≥ 0.

(c) Suponha que√ a é finitamente gerado. Mostre que existe um inteiro n
tal que a ∈ a =⇒ an ∈ a globalmente (i.e., n não depende do a).

(d) Suponha
√ que A é um anel graduado e que a ⊆ A é homogêneo. Prove
que a também é homogêneo.

1.4 Seja A um DFU. Se f ∈ A é um elemento não nulo e

f = u · pe11 . . . perr , u ∈ k×

é a fatoração de f em potências de irredutı́veis p1 , . . . , pr ∈ A dois a dois não


associados, mostre que

(f ) = (p1 . . . pr ) = (p1 ) ∩ · · · ∩ (pr )

1.5 (a) Mostre que R[x]/(x2 + 1) ∼


= C.

(b) Seja θ ∈ R e n um inteiro positivo. Calcule o resto da divisão do po-


linômio (cos θ + x sin θ)n ∈ R[x] por x2 + 1.
1.8. EXERCÍCIOS 29

1.6 Seja A um anel e sejam a ⊇ b ⊇ c ideais de A. Mostre que temos um


isomorfismo natural de anéis
A/c
= A/b
b/c

Aqui b/c é o ideal de A/c correspondente a b segundo o teorema da corres-


pondência.

1.7 (Caracterı́stica de Euler) Seja k um corpo.


(a) Se
0 ✲ Vn ✲ Vn−1 ✲ ··· ✲ V1 ✲ V0 ✲ 0

é uma sequência exata de k-espaços vetoriais, mostre que

dimk V0 − dimk V1 + dimk V2 − · · · + (−1)n dimk Vn = 0

(b) Seja

0 ✲ Vn fn
✲ Vn−1 fn−1
✲ ··· f2
✲ V1 ✲ V0
f1
✲ 0
f0

um complexo de k-espaços vetoriais. Definimos o seu i-ésimo grupo de


homologia como o k-espaço vetorial

def ker fi
hi (V• , f• ) =
im fi+1
Mostre que
� �
(−1)i dimk hi (V• , f• ) = (−1)i dimk Vi
0≤i≤n 0≤i≤n

Esta soma alternada é a chamada caracterı́stica de Euler χ(V• , f• )


do complexo; a igualdade acima é a justificativa algébrica de a fórmula
v − a + f (em que v, a, f denotam respectivamente o número de vértices,
aresta e faces) para um poliedro concordar com a soma alternada dos
números de Betti na homologia simplicial, veja por exemplo [Hat02],
theorem 2.44, p.146.

1.8 (Lema dos 5) Seja R um anel e considere o seguinte diagrama comu-


tativo de R-módulos com linhas exatas:

A B C D E
f ≈ g h ≈ i j

A� B� C� D� E�

Mostre que se
30 CAPÍTULO 1. DANDO NOMES AOS BOIS

(i) g e i são isomorfismos e

(ii) f é sobrejetor e j é injetor


então h é um isomorfismo.

1.9 (Eilenberg swindle) Seja k um corpo e denote por k N o k-espaço


vetorial de dimensão contável sobre k. Seja R = Homk (k N , k N ) o anel não
comutativo dos endomorfismos k-lineares de k N , em que a multiplicação em
R é dada por composição. Mostre que

(a) R é isomorfo ao anel das matrizes com linhas e colunas indexadas por N
e cujas colunas são sequência quase nulas.

= R2 ∼
(b) temos isomorfismos de R-módulos à esquerda R ∼ = R3 ∼
= R4 ∼
= ···.

1.10 (Identidade de Euler) Seja k um corpo. Dado um polinômio ho-


mogêneo f ∈ k[x1 , . . . , xn ] de grau d, mostre que
(a) f (λx1 , . . . , λxn ) = λd f (x1 , . . . , xn ) para todo λ ∈ k.
∂f ∂f
(b) x1 · ∂x1 + · · · + xn · ∂xn =d·f
Capı́tulo 2

Anéis que aparecem na


Natureza

Em recente pesquisa de opinião realizada entre vários alunos de Matemática,


ficou constatado: o anel comutativo mais popular é A. O segundo lugar ficou
com R.
Aparentemente, não parece ser de conhecimento comum (pelo menos en-
tre a maioria dos alunos de Matemática) o fato de que Álgebra Comutativa
não é uma disciplina isolada do resto do Cosmos; muitos de seus métodos e
exemplos foram inspirados em problemas concretos de diversas áreas da Ma-
temática, como Análise, Teoria dos Números, Geometria e Topologia. Este
capı́tulo é uma introdução a alguns destes exemplos, que serão frequente-
mente utilizados para ilustrar a teoria geral a ser sistematicamente desenvol-
vida nos capı́tulos seguintes.

2.1 Séries Formais


Começamos com um exemplo modelado nas séries de potências estudadas
em Análise1 . Seja A um anel. Um polinômio com coeficientes em A é uma
expressão da forma

a 0 + a 1 t + a 2 t2 + · · · + a n tn (ai ∈ A)

Por outro lado, uma série formal com coeficientes em A é algo visivelmente
mais simples:
a 0 + a 1 t + a 2 t2 + · · · (ai ∈ A)
O anel de séries formais A�t� com coeficientes em A consiste no conjunto
de todas as expressões da forma acima. A soma e a multiplicação em A�t�
1 mas com a vantagem de não termos de nos preocupar com as irritantes questões de

convergência. . .

31
32 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

são definidas da maneira usual, como no anel de polinômios (ou seja, você
“soma somando” e “multiplica multiplicando”):

(a0 + a1 t + a2 t2 + · · · ) + (b0 + b1 t + b2 t2 + · · · )
= (a0 + b0 ) + (a1 + b1 )t + (a2 + b2 )t2 + · · ·

(a0 + a1 t + a2 t2 + · · · ) · (b0 + b1 t + b2 t2 + · · · )
= a0 b0 + (a0 b1 + a1 b0 )t + (a0 b2 + a1 b1 + a2 b0 )t2 + · · ·

O anel de séries formais em várias variáveis A�x1 , . . . , xn � é definido induti-


vamente por A�x1 , . . . , xn � = A�x1 , . . . , xn−1 ��xn �.
Por exemplo, em Z�t� temos

(1 − t) · (1 + t + t2 + t3 + · · · ) = 1

de modo que 1 − t e 1 + t + t2 + t3 + · · · são unidades em Z�t� (intuitivamente,


1/(1 − t) é a “soma da PG infinita” 1 + t + t2 + · · · ). Em geral temos

Proposição 2.1.1 Seja A um anel. Então

1. O grupo de unidade de A�t� é

A�t�× = {a0 + a1 t + a2 t2 + · · · ∈ A�t� | a0 ∈ A× }

2. Se A é um domı́nio, então A�t� também é um domı́nio.

3. Temos um isomorfismo natural2

A[t]
A�t� = proj lim n)
n∈N (t
def
� � A[t] �� �
= (fn ) ∈ � f m ≡ fn (mod tm ) para todo n ≥ m
(tn )
n∈N

que leva a0 + a1 t + a2 t2 + · · · nos seus “truncamentos”

(a0 mod t, a0 + a1 t mod t2 , a0 + a1 t + a2 t2 mod t3 , . . .)

2 ver apêndice A.3 na página 333 para limites em geral


2.1. SÉRIES FORMAIS 33

Demonstração:
1. Um elemento a0 + a1 t + a2 t2 + · · · ∈ A�t� é uma unidade se, e só se, a
seguinte “equação nas variáveis” bi ’s

(a0 + a1 t + a2 t2 + · · · )(b0 + b1 t + b2 t2 + · · · ) = 1

admite solução, ou seja, se, e só se, o seguinte “sistema triangular”


possui solução:

a 0 b0 = 1
a 1 b0 + a 0 b1 = 0
a 2 b0 + a 1 b1 + a 0 b2 = 0
..
.

Assim, se a0 + a1 t + a2 t2 + · · · é unidade então a0 b0 = 1 =⇒ a0 ∈ A× .


Reciprocamente, se a0 ∈ A× , podemos recursivamente definir

b0 = a−1
0
bn = −a−1
0 (an b0 + an−1 b1 + · · · + a1 bn−1 ) para n ≥ 1,

que é solução do sistema acima, logo a0 + a1 t + a2 t2 + · · · ∈ A�t�× .


� �
2. Dados elementos não nulos a n tn e bn tn em A�t�, sejam i, j mı́ni-
mos
� tais que�ai �= 0 e bj �= 0. Então o coeficiente de ti+j no produto
( an t ) · ( bn tn ) é ai bj �= 0 (pois A é domı́nio), o que mostra que
n

este produto de séries formais é não nulo.


3. Observe que a inclusão A[t] �→ A�t� induz um isomorfismo de anéis
A[t]/(tn ) = A�t�/(tn ): um conjunto de representantes de classe destes
quocientes é o conjunto de todos os polinômios de grau menor ou igual
a n − 1. Além disso, para n ≥ m temos um diagrama comutativo

A�t�/(tn ) = A[t]/(tn )

A�t�

A�t�/(tm ) = A[t]/(tm )

Assim, pela propriedade universal do limite projetivo (apêndice A.3 na


página 333), temos um morfismo de anéis

τ : A�t� → proj lim A[t]/(tn )


n∈N
34 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Explicitamente, τ é dado pelo produto dos mapas quocientes


� �
A�t� → A�t�/(tn ) = A[t]/(tn )
n∈N n∈N

cuja imagem consiste em “tuplas coerentes” pela comutatividade do


diagrama. Vamos mostrar que τ é um isomorfismo.� Claramente τ
é injetor pois dado um elemento não nulo f (t) = an tn ∈ A�t�,
digamos com ai �= 0, temos que f (t) �≡ 0 (mod ti+1 ). E τ é so-
brejetor também: escrevendo um dado elemento (fn (t) mod tn )n∈N ∈
proj limn∈N A[t]/(tn ) utilizando representantes de classe fn (t) ∈ A[t]
com deg fn (t) < n, temos que, para n ≥ m, fn (t) ≡ fm (t) (mod tm )
implica que fm (t) é obtido a partir de fn (t) omitindo-se os monômios
de graus maiores ou iguais a m. Assim, os polinômios fn (t),� n ∈� N,
podem ser “colados” em uma série formal f (t) ∈ A�t� com τ f (t) =
(fn (t) mod tn )n∈N .

Um caso importante ocorre quando o anel de coeficientes é um corpo.


Neste caso, a aritmética do anel de séries formais é particularmente simples:

Proposição 2.1.2 Seja k um corpo. Então

1. k�t� é um DFU com um único elemento irredutı́vel t a menos de asso-


ciados.

2. O corpo de frações de k�t� é


�� � �
def
k((t)) = Frac k�t� = an tn | n0 ∈ Z, ai ∈ k = tn k�t�,
n≥n0 n∈Z

o chamado corpo das séries de Laurent formais.

3. k�t� é um DIP. Qualquer ideal não nulo é da forma (tn ) para algum
n ∈ N. Em particular, (t) é o único ideal maximal de k�t�3 .

Demonstração:

1. Observe que qualquer elemento não nulo f ∈ k�t� se fatora unicamente


como

f= tn
���� × (an + an+1 t + an+2 t2 + · · · ) , an �= 0
� �� �
potência de t unidade pela proposição 2.1.1 na página 32

o que mostra que t é o único irredutı́vel a menos de associados. A


fatoração acima é a mui complexa “fatoração em primos” de f !
3 ou seja, k�t� é um exemplo de anel local (definição 4.5.1 na página 111)
2.1. SÉRIES FORMAIS 35

2. Segue do item anterior.

3. Dado um ideal não nulo a ⊆ k�t�, seja f ∈ a com n mı́nimo na fatoração


acima. Temos (tn ) = (f ) ⊆ a; vamos mostrar que vale a igualdade.
Para isto, tome g ∈ a não nulo e escreva g = tm · u com u ∈ k�t�× .
Como m ≥ n pela escolha de n, temos que g é múltiplo de tn , o que
mostra que g ∈ (tn ), como desejado.

Séries formais possuem inúmeras aplicações. Como exemplo, vejamos


como utilizá-las para encontrar fórmulas explı́citas para recursões.

2.1.3 Exemplo (Sequência de Fibonacci) A sequência de Fibonacci4 Fn


é a sequência definida recursivamente por

F0 = 0, F1 = 1 e Fn = Fn−1 + Fn−2 para n ≥ 2

Assim, seus primeiros termos são

n 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 ···
Fn 0 1 1 2 3 5 8 13 21 34 55 ···

Para encontrar uma fórmula explı́cita para Fn , considere o elemento


def
S = F0 + F1 t + F2 t2 + F3 t3 + · · · ∈ R�t�

Multiplicando por −t e −t2 (fazendo um “shift para a direita”), obtemos

S = F 0 + F1 t + F 2 t 2 + F3 t3 + F4 t 3 + · · ·
−S · t = − F 0 t − F 1 t 2 − F2 t3 − F3 t 3 − · · ·
−S · t2 = − F 0 t 2 − F1 t3 − F2 t 3 − · · ·

Somando as equações acima e utilizando o fato de que Fn = Fn−1 + Fn−2


para n ≥ 2 obtemos
t
(1 − t − t2 ) · S = F0 + (F1 − F0 )t ⇐⇒ S =
1 − t − t2

Ou seja, obtivemos a “versão comprimida” de S. Agora, vamos reex-


pandir S utilizando “frações parciais” e a fórmula da “soma da progressão
geométrica”. Para isto, sejam
√ √
1+ 5 1− 5
α= e β=
2 2
4 que tem muitas aplicações práticas, como estimar a população de coelhos imortais que

se reproduzem 1 vez por mês


36 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

de modo que 1 − t − t2 = (1 − αt)(1 − βt). Temos


t 1 � 1 1 �
S= = · −
1 − t − t2 α−β 1 − αt 1 − βt
1 �� � � � αn − β n
= · (αt)n − (βt)n = · tn
α−β α−β
n≥0 n≥0 n≥0

Assim, comparando coeficientes, obtemos finalmente


αn − β n
Fn = (n ≥ 0)
α−β
Uma outra aplicação de séries formais é no estudo dos polinômios simé-
tricos. Seja A um anel qualquer e denote por Sn o grupo simétrico das
permutações de 1, 2, . . . , n. Dados σ ∈ Sn e f (x1 , . . . , xn ) ∈ A[x1 , . . . , xn ], σ
define um A-automorfismo de A[x1 , . . . , xn ] via
def
σ · f (x1 , . . . , xn ) = f (xσ(1) , . . . , xσ(n) )

Desta forma, temos uma ação de Sn sobre A[x1 , . . . , xn ].


2.1.4 Definição Seja A um anel. O subanel de A[x1 , . . . , xn ] fixo por Sn
def
A[x1 , . . . , xn ]Sn = {f ∈ A[x1 , . . . , xn ] | σ(f ) = f para todo σ ∈ Sn }

é chamado de anel das funções simétricas nas variáveis x1 , . . . , xn com


coeficientes em A. Um elemento deste anel é chamado de polinômio simé-
trico.

Como exemplo de polinômios simétricos, temos


(i) as funções simétricas elementares

e 1 = x1 + x 2 + · · · + x n ,
e2 = x1 x2 + x1 x3 + · · · + xn−1 xn ,
..
.
e n = x1 x 2 x 3 · · · x n

que satisfazem a relação

(T − x1 )(T − x2 ) . . . (T − xn ) = T n − e1 T n−1 + e2 T n−2 − · · · + (−1)n en

no anel A[x1 , . . . , xn ][T ].


(ii) as somas das k-ésimas potências das variáveis xi :

sk = xk1 + xk2 + · · · + xkn (k ≥ 0)


2.1. SÉRIES FORMAIS 37

Estes dois exemplos formam um conjunto de geradores para todas as funções


simétricas, como mostra o seguinte
Teorema 2.1.5 (Funções simétricas) Seja A um anel. Na notação aci-
ma, temos
1. A[x1 , . . . , xn ]Sn = A[e1 , e2 , . . . , en ].
2. (Identidades de Newton) Defina e0 = 1 e ek = 0 para k > n. Para
k ≥ 1, temos �
kek = (−1)i−1 ek−i si
1≤i≤k

Assim, se k ∈ A× para todo inteiro k �= 0 (por exemplo, se A é um


corpo de caracterı́stica 0), temos

A[e1 , e2 , . . . , en ] = A[s1 , s2 , · · · , sn ]

Demonstração:
1. É claro que A[e1 , e2 , . . . , en ] ⊆ A[x1 , . . . , xn ]Sn . Para mostrar a inclusão
oposta, primeiro definamos uma boa ordem em Nn : escrevemos

(α1 , . . . , αn ) � (β1 , . . . , βn )

se, e só se,


(i) α1 + · · · + αn < β1 + . . . + βn ou
(ii) α1 + · · · + αn = β1 + . . . + βn e (α1 , . . . , αn ) é lexicograficamente
menor ou igual a (β1 , . . . , βn ), i.e., existe um ı́ndice 1 ≤ i ≤ n + 1
tal que α1 = β1 , α2 = β2 , . . . , αi−1 = βi−1 mas αi < βi (i = n + 1
significa que as duas tuplas são iguais).
Quaisquer dois elementos de Nn são comparáveis nesta ordem e todo
subconjunto não vazio S ⊆ Nn possui mı́nimo, a saber, o menor ele-
mento, na ordem lexicográfica, no conjunto finito dos vetores de S com
soma de coordenadas mı́nima.
Temos uma pré-ordem5 induzida em A[x1 , . . . , xn ]: definimos o termo
inicial de

f (x1 , . . . , xn ) = c(α1 ,...,αn ) · xα αn
1 . . . xn ∈ A[x1 , . . . , xn ]
1

(α1 ,...,αn )∈Nn

como sendo o monômio não nulo c(α1 ,...,αn ) · xα αn


1 . . . xn de expoente
1

(α1 , . . . , αn ) ∈ N máximo na ordem acima. Finalmente, escrevemos


n

f (x1 , . . . , xn ) � g(x1 , . . . , xn )
5 uma relação que é reflexiva e transitiva, mas não necessariamente anti-simétrica
2.2. INTEIROS ALGÉBRICOS 39

Comparando os coeficientes de T k nos dois lados da expressão acima,


obtemos as identidades de Newton. Daı́, se k �= 0 é unidade em A,
segue indutivamente que ek ∈ A[s1 , . . . , sn ] para k = 1, . . . , n.

2.2 Inteiros Algébricos


Uma das grandes fontes de inspiração em Álgebra Comutativa, tanto em
métodos e quanto exemplos, é a Teoria Algébrica dos Números. No estudo
dos números inteiros e de equações diofantinas, já Euler havia notado a con-
veniência de se trabalhar em anéis um pouco mais gerais que Z. Gauß e seu
aluno Eisenstein estenderam a aritmética de Z para os anéis Z[i] e Z[e2πi/3 ]
(apêndice B.2 na página 346) e no século XIX, graças aos esforços de Kum-
mer, Kronecker e Dedekind, a Teoria Algébrica dos Números se firmou como
um importante pilar no estudo de questões aritméticas.
O conceito central aqui é o de inteiro algébrico:

2.2.1 Definição Dizemos que um número complexo θ ∈ C é um inteiro


algébrico se θ é raiz de um polinômio mônico p(x) ∈ Z[x].6
√ √
Por exemplo, os números α = 1+2 5 e β = 1−2 5 do exemplo 2.1.3 na
página 35 são inteiros algébricos pois são raı́zes do polinômio mônico com
coeficientes inteiros x2 − x − 1 = 0.
Inteiros algébricos generalizam o conceito de inteiro; uma das motivações
para esta definição é o seguinte lema, que caracteriza os elementos de Z como
sendo exatamente os inteiros algébricos que moram dentro de Q:

Lema 2.2.2 Um racional θ ∈ Q é inteiro algébrico se, e só se, θ ∈ Z.

Demonstração: É claro que todo elemento de Z é inteiro algébrico. Re-


ciprocamente, suponha que θ ∈ Q é raiz de um polinômio

f (x) = xn + cn−1 xn−1 + · · · + c0 (ci ∈ Z)

Escreva θ = a/b com a, b ∈ Z primos entre si. De f (a/b) = 0, limpando


denominadores obtemos

an + cn−1 an−1 b + cn−2 an−2 b2 + · · · + c0 bn = 0

Como b divide todos os termos a partir do segundo, temos que b divide an


também. Mas como a e b são primos entre si temos que a única possibilidade
para que isto ocorra é b = ±1, logo θ = ±a ∈ Z.
6 lembre: um polinômio mônico (�= polinômio cebolı́nico) é aquele cujo coeficiente lı́der

é igual a 1
40 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Se θ é um inteiro algébrico, raiz de um polinômio mônico f (x) = xn +


cn−1 xn−1 + · · · + c0 ∈ Z[x] de grau n, temos que o conjunto
def
Z[θ] = {a0 + a1 θ + · · · + an−1 θn−1 | ai ∈ Z}

é um subanel de C. De fato, este conjunto é fechado por soma e também por


produto, já que aplicando várias vezes a relação

f (θ) = 0 ⇐⇒ θn = −cn−1 θn−1 − · · · − c0


=⇒ θn+i = −cn−1 θn+i−1 − · · · − c0 θi (i ≥ 0)

podemos escrever qualquer potência θj com j ≥ n em termos das potências de


θ de graus menores até obter uma combinação Z-linear de 1, θ, θ2 , . . . , θn−1 .
Note a importância do fato de f (x) ser mônico, o que dispensa a necessidade
de dividir a relação acima pelo coeficiente lı́der de f (x).
Vejamos uma aplicação.
2.2.3 Exemplo Seja Fn o n-ésimo número de Fibonacci. Vamos mostrar
que
m | n =⇒ Fm | Fn
Para isto, vamos utilizar a fórmula explı́cita (exemplo 2.1.3 na página 35)

αn − β n
Fn = (n ≥ 0)
α−β
√ √
em que α = 1+2 5 e β = 1−2 5 são as raı́zes de x2 − x − 1 = 0. Observe que
tanto α como β = 1 − α são elementos do anel Z[α] = {a + bα | a, b ∈ Z}.
Este anel tem uma propriedade muito interessante: todo elemento de Z[α] é
um inteiro algébrico. De fato, como α + β = 1 e αβ = −1, multiplicando pelo
“conjugado” temos que a + bα é raiz do polinômio mônico com coeficientes
inteiros
� � � �
x − (a + bα) · x − (a + bβ) = x2 − (2a + b)x + (a2 + ab − b2 )

Agora suponha que m | n, digamos n = mk com k ∈ Z. Então

Fn Fkm αkm − β km
= = m
Fm Fm α − βm
= (αm )k−1 + (αm )k−2 (β m ) + (αm )k−3 (β m )2 + · · · + (β m )k−1

Desta forma, FFm n


∈ Q ∩ Z[α], logo é um racional que também é um inteiro
algébrico, ou seja, FFm
n
∈ Z (lema 2.2.2 na página anterior), como querı́amos.

Como uma aplicação mais substancial, vejamos uma demonstração do


importante teorema de reciprocidade quadrática de Gauß. Antes de
enunciá-lo, precisamos de alguns conceitos preliminares.
2.2. INTEIROS ALGÉBRICOS 41

2.2.4 Definição Seja p > 2 um número primo e a um inteiro qualquer. O


sı́mbolo de Legendre é definido por

 1 se p � a e a ∈ (Fp ) (i.e., a é quadrado perfeito em Fp )
2
� � 
a
= 0 se p | a
p 

−1 caso contrário

Teorema 2.2.5 Seja p > 2 um primo.

1. (Critério de Euler)
� �
a
≡ a(p−1)/2 (mod p)
p

2. Temos �
� �
−1 p−1 1 p ≡ 1 (mod 4)
= (−1) 2 =
p −1 p ≡ 3 (mod 4)

3. O sı́mbolo de Legendre é multiplicativo: para quaisquer inteiros a, b,


� � � �� �
ab a b
=
p p p

Em outras palavras, o sı́mbolo de Legendre induz um isomorfismo de


grupos abelianos

F× × 2
p /(Fp )
✲ {±1}

� �
a
a �→
p

Demonstração: Considere o polinômio


p−1
f (x) = x 2 − 1 ∈ Fp [x]

Se a ∈ F×
p , pelo teorema de Lagrange (ou pelo pequeno teorema de Fermat),
ap−1 = 1 e portanto

ap−1 − 1 = 0 ⇐⇒ (a(p−1)/2 − 1)(a(p−1)/2 + 1) = 0 ⇐⇒ a(p−1)/2 ∈ {±1}

Assim, para provar o critério de Euler basta mostrarmos que

f (a) = 0 ⇐⇒ a ∈ (F×
p)
2

(⇐) Se a = b2 �= 0 então f (a) = 0 já que bp−1 = 1 por Lagrange/Fermat.


42 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

(⇒) Como f (x) tem no máximo (p − 1)/2 raı́zes em Fp e já sabemos que
todo elemento em (F× 2 × 2
p ) é raiz, basta mostrarmos que (Fp ) tem exatamente
(p − 1)/2 elementos. De fato, como ±1, ±2, . . . , ±(p − 1)/2 é um sistema
completo de representantes de F× × 2
p , temos que os elementos de (Fp ) são
exatamente as classes de
� p − 1 �2
(±1)2 , (±2)2 , . . . , ±
2
e não há repetições nesta listagem, já que se a, b ∈ Fp então

a2 = b2 ⇐⇒ (a − b)(a + b) = 0 ⇐⇒ a = ±b

o que mostra que em F× p há exatamente (p − 1)/2 quadrados perfeitos. Isto


encerra a prova do item (1).
Finalmente, note que se a, b ∈ {0, ±1} então a ≡ b (mod p) =⇒ x = y
já que p > 2. Assim, os itens 2 e 3 seguem diretamente do critério de Euler.

Agora podemos enunciar o importante


Teorema 2.2.6 (Reciprocidade Quadrática) Sejam p e q dois primos
ı́mpares distintos. Então
1. � �� �
p q p−1 q−1
= (−1) 2 · 2
q p

2. �
� �
2 p2 −1 1 se p ≡ ±1 (mod 8)
= (−1) 8 =
p −1 se p ≡ ±3 (mod 8)

Antes de apresentarmos a prova, vejamos um exemplo de como a lei de


reciprocidade quadrática fornece um “algoritmo” prático para decidir rapi-
damente se um inteiro é um quadrado perfeito módulo um primo p (muito
embora este método não permita encontrar sua “raiz quadrada”).
2.2.7 Exemplo
� � � �� �� 2 �� �
−90 −1 2 3 5
=
1019 1019 1019 1019 1019
� �
1019
= (−1) · (−1) · 1 ·
5
� � � 2�
4 2
= = = 1.
5 5
Logo −90 é um quadrado perfeito módulo 1019 (e, de fato, com auxı́lio de
um computador, verificamos que 3012 ≡ −90 (mod 1019)).
2.2. INTEIROS ALGÉBRICOS 43

A demonstração da reciprocidade quadrática apresentada a seguir é ba-


seada na aritmética do chamado anel de inteiros ciclotômicos Z[ζp ], que
tem um papel central na Teoria dos Números. Dado um número primo p,
seja ζp = e2πi/p , uma p-ésima raiz primitiva da unidade. Note que ζp é raiz
do polinômio mônico
xp − 1
f (x) = = xp−1 + xp−2 + · · · + x + 1 ∈ Z[x]
x−1
e portanto é um inteiro algébrico. Considere o subanel de C
def
Z[ζp ] = {a0 + a1 ζp + a2 ζp2 + · · · + ap−2 ζpp−2 | a0 , a1 , . . . , ap−2 ∈ Z}

O seguinte lema escreve explicitamente ±p como um quadrado de um


elemento de Z[ζp ].
Lema 2.2.8 (Soma de Gauß) Seja p um primo e seja ζp = e2πi/p , uma
p-ésima raiz primitiva da unidade. Seja
� �a �
S= ζ a ∈ Z[ζp ]
p p
a∈Fp

Então
S 2 = (−1)(p−1)/2 p

Demonstração: Observe que


� �a � � �b� � �ab�
2 a b
S = ζ · ζ = ζ a+b
p p p p p p
a∈Fp b∈Fp a,b∈Fp

� � a(n − a) �
= ζpn
p
n∈Fp a∈Fp
� � �a2 ��na−1 − 1�
n
= ζp ·
p p
n∈Fp a∈F×
p

� � �na−1 − 1�
n
= ζp · .
×
p
n∈Fp a∈Fp

Para n = 0 temos
� �na−1 − 1� � �−1� � �
−1
= = (p − 1)
×
p ×
p p
a∈Fp a∈Fp

Para n �= 0 fixo, na−1 = nb−1 ⇐⇒ a = b. Assim, quando a percorre


os elementos de F×p , a expressão na
−1
percorre todos os elementos de F×
p e
portanto na − 1 percorre todos os elementos de Fp com exceção de −1.
−1
44 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Mais ainda, como há exatamente o mesmo número (p − 1)/2 de quadrados


perfeitos como de não quadrados perfeitos em F×
p , temos

� �a �
=0
p
a∈Fp

Desta forma, para n �= 0,


� �na−1 − 1� � � �� �
−1 a
� �
−1
=− + =−
×
p p p p
a∈Fp a∈Fp

Portanto, como ζpp−1 + ζpp−2 + ζpp−3 + · · · + 1 = 0, temos


� � � � � � �
2 −1 −1 n −1 p−1
S = (p − 1) − ζp = p = p · (−1) 2
p p ×
p
n∈Fp

Observação 2.2.9 De onde surgiu a expressão acima? Sorte? Mágica?


Inspiração divina? Ou seria do teorema de Kronecker-Weber, que afirma
que toda extensão abeliana de Q está contida numa extensão ciclotômica?
De fato, toda criança7 sabe que o grupo de Galois Gal(Q(ζp )/Q) é cı́clico de
ordem p − 1 e naturalmente isomorfo a F× p:


p

✲ Gal(Q(ζp )/Q)
� �
a �−→ ζp �→ ζpa

Assim, como o grupo Gal(Q(ζp )/Q) é cı́clico, contém um único subgrupo de


ı́ndice 2 (correspondente a (F× 2
p ) segundo o isomorfismo acima) e portanto
Q(ζp ) contém uma única extensão quadrática K de Q, o corpo fixo pelos
automorfismos ζp �→ ζpa com a ∈ (F× 2
p ) . Claramente, a soma de Gauß S
� para o gerador de K sobre Q;
pertence a K e é um “chute” bastante natural
p−1
o lema acima mostra que, de fato, K = Q( p · (−1) 2 ).

Demonstração: (da reciprocidade quadrática)


1. Seja S ∈ Z[ζp ] como no lema anterior. No anel Z[ζp ]/(q), temos pelo
critério de Euler
� p−1 �
p · (−1) 2 p−1 q−1
= (p · (−1) 2 ) 2
q
� �
p p−1 q−1 q−1
⇐⇒ (−1) 2 · 2 = S (2.1)
q
7 que já estudou teoria de Galois na infância!
2.2. INTEIROS ALGÉBRICOS 45

q−1
Assim, basta calcular S . Temos

q � �a�q aq � �a� aq
S = ζp = ζ
p p p
a∈Fp a∈Fp
� ��� � � �
q aq aq q
= ζp = S,
p p p
a∈Fp

já que q é invertı́vel módulo p, logo aq mod p percorre todo Fp quando


a percorre Fp . Como S 2 = ±p e (p, q) = (1) em Z, temos que S é
unidade em Z[ζp ]/(q) e portanto
� � � �
qq q−1 q
S = S ⇐⇒ S =
p p

Substituindo na expressão (2.1), temos


� � � � � �� �
p p−1 q−1
· 2 q p q p−1 q−1
(−1) 2 = ⇐⇒ = (−1) 2 · 2 em Z[ζp ]/(q)
q p q p

e também em Z, pois 1 �≡ −1 (mod q).

2. Seja ζ8 = eπi/4 , que é raiz do polinômio x4 + 1 = 0. Se denotamos por


ω = ζ8 + ζ8−1 , segue que ω 2 = 2. No anel quociente Z[ζ8 ]/(p), temos
pelo critério de Euler
� �
2 (p−1)/2
=2 = ω p−1
p

Assim, precisamos calcular ω p−1 . Temos


� �
p −p ω se p ≡ ±1 (mod 8) 2
p
ω = ζ8 + ζ 8 = = (−1)(p −1)/8 ω
−ω se p ≡ ±3 (mod 8)

Como ω 2 = 2 é unidade em Z[ζ8 ]/(p) (pois p é ı́mpar), ω também é


unidade neste anel e portanto multiplicando a igualdade acima por ω −1
obtemos
2
ω p−1 = (−1)(p −1)/8
Logo
� �
2 2
= (−1)(p −1)/8 em Z[ζ8 ]/(p)
p
e também em Z, pois 1 �≡ −1 (mod p).
46 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

2.3 Variedades Algébricas


Outra grande fonte de inspiração de exemplos e resultados em Álgebra Co-
mutativa é a Geometria Algébrica, que é a combinação entre Geometria e
Álgebra, para juntas combaterem o crime de problemas ficarem sem ser resol-
vidos. Aqui, faremos uma breve introdução utilizando a linguagem clássica8
de conjuntos algébricos e variedades, que serviram de motivação para a fun-
damentação atual à la Grothendieck, em termos de esquemas e cohomologia.
A menos de menção contrária, nesta seção

k denotará um corpo algebricamente fechado


O leitor não perderá muito se supuser k = C, que é o caso mais importante.

2.3.1 Conjuntos algébricos afins


Começamos introduzindo os protagonistas desta seção:
2.3.1 Definição 1. O espaço afim Ank de dimensão n sobre o corpo k é
o conjunto
def
Ank = k n = k × · · · × k
� �� �
n vezes

2. Seja S ⊆ k[x1 , . . . , xn ] um conjunto de polinômios. O conjunto al-


gébrico afim definido por S é o subconjunto Z(S) ⊆ Ank dos zeros
comuns de todos os polinômios em S:
def
Z(S) = {(a1 , . . . , an ) ∈ Ank | f (a1 , . . . , an ) = 0 para todo f ∈ S}

Note que Z(−) reverte inclusões: S ⊆ T =⇒ Z(S) ⊇ Z(T ). Além disso,


se a ⊆ k[x1 , . . . , xn ] é o ideal gerado por S, então Z(S) = Z(a). Assim, não
há perda de generalidade em definir um conjunto algébrico como o conjunto
de zeros de um ideal, o que faremos de agora em diante a menos de menção
contrária. Mais tarde, veremos que todo ideal de k[x1 , . . . , xn ] é finitamente
gerado pelo teorema da base de Hilbert (teorema 6.2.1 na página 149) e
assim todo conjunto algébrico é o conjunto de zeros de um número finito de
polinômios.
2.3.2 Exemplo Exemplos familiares de conjuntos algébricos incluem:
• o espaço afim Ank = Z((0));
• qualquer ponto (a1 , . . . , an ) do espaço afim Ank , que podemos escrever
como Z((x1 − a1 , . . . , xn − an ));
• “retas” e “cı́rculos” no plano afim A2k (como por exemplo Z(x − y) e
Z(x2 + y 2 − 1));
8 em vez da liguagem barroca ou romântica
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 47

• a “curva” {(a, a2 , a3 , . . . , an ) ∈ Ank | a ∈ k}, que pode ser escrita como


Z(x2 − x21 , x3 − x31 , . . . , xn − xn1 );

• o “fibrado tangente” da esfera de dimensão 2:


� � �
6 3 3�
� x21 + x22 + x23 = 1 e
(x1 , x2 , x3 , v1 , v2 , v3 ) ∈ Ak = Ak × Ak �
x1 v 1 + x2 v 2 + x3 v 3 = 0

• o grupo aditivo Mn (k) das matrizes quadradas de ordem n e entradas


2
em k, que pode ser identificado (como conjunto) com Ank ;

• o grupo multiplicativo SLn (k) = {A ∈ Mn (k) | det A = 1}, que pode


2
ser identificado (como conjunto) com Z(det(xij ) − 1) ⊆ Ank (aqui xij ,
i, j = 1, 2, . . . , n denotam variáveis e det(xij ) ∈ k[xij ] é o polinômio
que é o determinante da “matriz genérica” (xij )n×n );

• o conjunto das matrizes A ∈ Mn (k) com posto estritamente menor do


2
que r ∈ N, que pode ser identificado com o conjunto algébrico de Ank
dos zeros de todos os subdeterminantes r × r da matriz (xij )n×n ;

• o produto cartesiano X × Y ⊆ Am+n k de dois conjuntos algébricos


X = Z(S) ⊆ Am k e Y = Z(T ) ⊆ A n
k com S ⊆ k[x1 , . . . , xm ] e
T ⊆ k[y1 , . . . , yn ], que pode ser escrito como X × Y = Z(S ∪ T ) com
S ∪ T ⊆ k[x1 , . . . , xm , y1 , . . . , yn ].

Podemos “topologizar” Ank (e, por conseguinte, qualquer subconjunto de


Ank ,em particular os conjuntos algébricos) de acordo com o seguinte

Lema 2.3.3 (Topologia de Zariski) Temos as seguintes propriedades:

1. Z((0)) = Ank e Z((1)) = ∅.

2. Z(a) ∪ Z(b) = Z(ab)


� �
3. i∈I Z(ai ) = Z( i∈I ai )

Assim, os conjuntos algébricos são os fechados de uma topologia de Ank , a


chamada topologia de Zariski.

Demonstração: Os itens (1) e (3) são óbvios. Temos Z(a) ∪ Z(b) ⊆


Z(ab)
� pois se (a1 , . . . , an ) ∈ Z(a) (por exemplo) então um elemento arbitrário
1≤i≤r fi gi ∈ ab (com fi ∈ a e gi ∈ b) se anula em (a1 , . . . , an ) já que
fi (a1 , . . . , an ) = 0 para todo i = 1, . . . , r. Reciprocamente, se (a1 , . . . , an ) ∈
Z(ab) mas (a1 , . . . , an ) ∈ / Z(b) então existe g ∈ b tal que g(a1 , . . . , an ) �= 0.
Por outro lado, para qualquer f ∈ a, f g ∈ ab e portanto f g se anula em
(a1 , . . . , an ) ∈ Z(ab), donde f (a1 , . . . , an ) = 0. Como f ∈ a é arbitrário,
temos (a1 , . . . , an ) ∈ Z(a), mostrando que Z(ab) ⊆ Z(a) ∪ Z(b).
48 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

2.3.4 Exemplo Os subconjuntos fechados de A1k são o espaço todo e seus


subconjuntos finitos. De fato, como um ponto {a} = Z((x − a)) é fechado
e união finita de fechados é fechado, qualquer subconjunto finito de A1k é
fechado. Reciprocamente, como todo ideal de k[x] é principal (apêndice B.1
na página 342) e Z((f )) é finito para todo f ∈ k[x] não nulo, temos que todo
subconjunto fechado próprio de A1k é finito.

2.3.5 Exemplo Considere a topologia de Zariski da parábola X = Z(y−x2 ),


que é a topologia de subespaço herdada da de A2k . Em outras palavras, os
fechados de X são os da forma X ∩ Z(a) com a ⊆ k[x, y]. Temos
� �
Z(a) ∩ X = Z((f )) ∩ X = Z((f, y − x2 ))
f ∈a f ∈a

= {(a, a2 ) ∈ A2k | f (a, a2 ) = 0}
f ∈a

Como ou f (x, x2 ) é identicamente nulo ou possui um número finito de raı́zes,


temos novamente que os fechados próprios de X são exatamente os seus
subconjuntos finitos.

2.3.6 Exemplo O subconjunto T = {(z, cos z) ∈ A2C | z ∈ C} de A2C não


é algébrico: caso contrário, T ∩ Z(x2 ) seria um fechado próprio de Z(x2 ),
portanto finito (como no exemplo anterior), o que é um absurdo pois cos z = 0
possui infinitas raı́zes.

Observe que na topologia de Zariski os fechados próprios tendem a ter


“medida nula” e portanto os abertos tendem a ser “muito grandes”, o que
torna difı́cil “separar pontos” em conjuntos algébricos. E de fato a topo-
logia de Zariski não é Hausdorff em geral: por exemplo, em A1k quaisquer
dois abertos não vazios têm interseção não vazia. Ainda sim, esta topologia
é bastante útil; antes de darmos um exemplo de uma “aplicação prática”,
precisamos de uma definição.
Lembre que um espaço topológico é dito irredutı́vel (apêndice A.1 na
página 321) se não pode ser escrito como união de dois fechados próprios.
Tomando complementares, isto implica que quaisquer dois abertos não vazios
se interceptam, logo todo aberto não vazio em um espaço irredutı́vel X é
denso.

2.3.7 Definição Uma variedade algébrica é um conjunto algébrico irre-


dutı́vel.

2.3.8 Exemplo A união dos eixos Z(xy) = Z(x) ∪ Z(y) no plano afim A2k
é claramente redutı́vel, logo não é variedade. Por outro lado, Ank é uma
variedade para todo n ≥ 1. De fato, como k é infinito (pois é algebricamente
fechado!), temos que nenhum polinômio não nulo se anula identicamente em
todo Ank (exercı́cio 2.9 na página 74). Assim, Z(a) é próprio se, e só se,
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 49

a �= (0). Logo Ak = Z(a) ∪ Z(b) = Z(ab) é impossı́vel se a �= 0 e b �= 0


(k[x1 , . . . , xn ] é domı́nio), o que mostra que Ank não é união de dois abertos
próprios.

2.3.9 Exemplo Seja k um corpo e sejam A, B ∈ Mn (k) duas matrizes.


Vamos mostrar que os polinômios caracterı́sticos de A e B são iguais. Observe
que substituindo k por seu fecho algébrico podemos supor sem perda de
generalidade que k é algebricamente fechado (em observância à convenção
desta seção!).
2
Fixe B e considere A como um ponto em Ank . Defina
2
V = {A ∈ Ank | det(xI − AB) = det(xI − BA)}
2
(I ∈ Mn (k) denota a matriz identidade). Queremos mostrar que V = Ank .
Para isto, observe inicialmente que V é um conjunto algébrico: considere
a “matriz genérica” M = (yij )n×n cujas entradas são indeterminadas yij ,
1 ≤ i, j ≤ n. Escreva

det(xI − M B) = xn + cn−1 (yij ) · xn−1 + · · · + c0 (yij )


det(xI − BM ) = xn + dn−1 (yij ) · xn−1 + · · · + d0 (yij )

em que cl , dl são polinômios em k[yij ]. Então V = Z(cn−1 −dn−1 , . . . , c0 −d0 ).


2
Por outro lado, V é “grande”, pois contém o aberto não vazio Ank \
Z(det M ) das matrizes inversı́veis: se det A �= 0,

det(xI − AB) = det(A−1 ) det(xI − AB) det(A) = det(xI − BA)

Resumindo: o fechado V contém um aberto não vazio, que é denso pois


2 2
Ank é irredutı́vel. Assim, V = Ank , como querı́amos.

2.3.2 Morfismos e anel de funções regulares


Conjuntos algébrico são seres sociais e também conversam entre si:
2.3.10 Definição Sejam X ⊆ Am k e Y ⊆ Ak dois conjuntos algébricos afins.
n

Um morfismo de conjuntos algébricos f : X → Y é uma função que é


restrição de um mapa polinomial entre Am k e Ak , ou seja, uma função entre
n

X e Y para a qual existem polinômios p1 , . . . , pn ∈ k[x1 , . . . , xm ] tais que


� �
f (a1 , . . . , am ) = p1 (a1 , . . . , am ), . . . , pn (a1 , . . . , am ) ∈ Y

para todo (a1 , . . . , am ) ∈ X.

Como composição de mapas polinomiais é polinomial, a composição de


morfismos de conjuntos algébricos é também um morfismo de conjuntos
algébricos. Assim, temos uma categoria9 Aff cujos objetos são os conjun-
tos algébricos afins e as flechas são os morfismos de conjuntos algébricos.
9 ver apêndice A.2 na página 328 para definições
50 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

2.3.11 Exemplo Identificando SL2 (k) (grupo multiplicativo das matrizes


2 × 2 com determinante 1) com Z(wz − xy − 1) ⊆ A4k e SL2 (k) × SL2 (k) com
Z(wz − xy − 1, w� z � − x� y � − 1) ⊆ A4k × A4k = A8k , temos que tanto a lei de
grupo em SL2 (k)

SL2 (k) × SL2 (k) ✲ SL2 (k)


m

�� � � �� � �
a b e f ae + bg af + bh
; �−→
c d g h ce + dg cf + dh
como a função “inverso”

SL2 (k) ✲ SL2 (k)


i

� � � � � �−1
a b d −b a b
�−→ =
c d −c a c d

são morfismos de conjuntos algébricos. Temos que SL2 (k) é um exemplo de


grupo algébrico, que é moralmente falando a versão algébrica de um grupo
de Lie. Mais precisamente: um grupo algébrico G é um conjunto algébrico
afim juntamente com morfismos de conjuntos algébricos m : G × G → G e
i : G → G (multiplicação e inverso) que fazem de G um grupo no sentido
usual.
Observe que na definição de morfismo dada acima os polinômios pi estão
longe de serem unicamente determinados por f : se X = Z(a), então somando
a cada pi um elemento de a ainda obtemos a mesma função f . Em outras
palavras, os polinômios pi só estão determinados “módulo polinômios que se
anulam sobre todo o X”. Isto nos leva a introduzir a seguinte
2.3.12 Definição Seja X ⊆ Ank um conjunto algébrico. O anel (com a soma
e o produto de funções induzidos pelas respectivas operações em k)
def
k[X] = {f : X → A1k = k | f é morfismo de conjuntos algébricos }
é chamado de anel de funções regulares em X. Temos um morfismo
sobrejetor de k-álgebras
k[x1 , . . . , xn ] � k[X]
que leva um polinômio no morfismo correspondente. O kernel I(X) deste
morfismo, i.e.,
def
I(X) = {f ∈ k[x1 , . . . , xn ] | f (a1 , . . . , an ) = 0 para todo (a1 , . . . , an ) ∈ X}
é chamado de ideal do conjunto algébrico X. Pelo teorema do isomorfismo
(corolário 1.4.2 na página 12) temos
k[x1 , . . . , xn ]
k[X] =
I(X)
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 51

Observação 2.3.13 Seja X = Z(a) ⊆ Ank um conjunto algébrico.


1. O anel de funções regulares k[X] de X é sempre um anel reduzido: se
f ∈ k[X] é nilpotente, digamos f r = 0, temos que para todo P ∈ X
� �r
f (P ) = 0 =⇒ f (P ) = 0

(pois k, um corpo, é reduzido). Assim, f = 0 em k[X].



2. É claro que a ⊆ I(X) e mesmo que a ⊆ I(X): se f r ∈ a, então
r
f = 0 em k[X] = k[x1 , . . . , xn ]/I(X) e portanto pelo item anterior
f = 0 ⇐⇒ f ∈ I(X). Com isso, temos em geral que I(X) � a (por
exemplo, tome X = Z((x2 )) ⊂ A1k √ ). Veremos a seguir que este é o
único empecilho: sempre I(Z(a)) = a.
3. Por outro lado, Z(I(X)) = X: a inclusão ⊇ é clara, enquanto que
I(X) ⊇ a =⇒ Z(I(X)) ⊆ Z(a) = X.

2.3.14 Definição Seja f : X → Y um morfismo entre dois conjuntos algé-


bricos afins X ⊆ Am
k e Y ⊆ Ak . O morfismo de k-álgebras
n

f ∗ : k[Y ] → k[X]
φ �→ φ ◦ f

induzido por composição com f é chamado de pullback de funções regulares


associado a f .

Observação 2.3.15 Na notação da definição acima,


1. Como a k-álgebra k[Y ] é gerada pelas “funções coordenada” y i ∈ k[Y ] =
k[y1 , . . . , yn ]/I(Y ) (que, para um dado ponto P = (b1 , . . . , bn ) ∈ Y ,
“cospe” a sua i-ésima coordenada y i (P ) = bi ), temos que f ∗ é com-
def
pletamente determinado pelos valores ti = f ∗ (y i ) ∈ k[X], que pela
propriedade universal do quociente (teorema 1.4.1 na página 11) de-
vem satisfazer φ(t1 , . . . , tn ) = 0 em k[X] para todo φ ∈ I(Y ).
2. Se temos morfismos de conjuntos algébricos

f g
X Y Z
g◦f

o diagrama correspondente de pullbacks é comutativo:

f∗ g∗
k[X] k[Y ] k[Z]

f ∗ ◦g ∗
52 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Assim, as associações X �→ k[X] e f �→ f ∗ , que levam um conjunto


algébrico afim em seu anel de funções regulares e um morfismo de con-
juntos algébricos em seu pullback, definem um funtor contravariante10
da categoria de conjuntos algébricos afins para a categoria de k-álgebras
finitamente geradas reduzidas. Veremos em seguida que este funtor é
na verdade uma equivalência de categorias!

Lembre que como qualquer funtor preserva morfismos identidade e com-


posições, ele leva isomorfismos em isomorfismos. Vejamos alguns exemplos.

2.3.16 Exemplo Considere a parábola X = Z(y − x2 ) ⊆ A2k .11

f g

Os morfismos de conjuntos algébricos

f : Ak1 → X g : X → A1k
a �→ (a, a2 ) (a, b) �→ a

são claramente inversos um do outro, logo estabelecem um isomorfismo entre


X e A1k .
Observe que I(A1k ) = 0 e k[A1k ] = k[x], já que12 um polinômio que se
anula sobre todo k = A1k é identicamente nulo (exercı́cio 2.9 na página 74).
Os isomorfismos de k-álgebras correspondentes a f e g são

f ∗ : k[x, y]/I(X) → k[x] g ∗ : k[x] → k[x, y]/I(X)


x �→ x x �→ x
y �→ x2

Por exemplo, para calcular a imagem f ∗ (y) = y ◦ f da função “segunda


coordenada” y ∈ k[X], observe que para todo ponto a ∈ A1k temos y ◦ f (a) =
10 ver apêndice A.2 na página 328 para definições
11 a figura não é totalmente realista pois o melhor modelo seria k = C e não R. Pensando
bem, talvez esta figura seja realista demais. . . Em todo caso, figuras como esta nos ajudam
(psicologicamente) a interpretar os resultados. Devemos apenas prestar atenção em casos
como a interseção de y = −1 e y = x2 , que é não vazia (Z(y + 1, y − x2 ) = {(±i, −1)}), ao
contrário do que a figura pode nos induzir a imaginar.
12 k é infinito (sendo algebricamente fechado, não esqueça!)
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 53

y(a, a2 ) = a2 , ou seja, f ∗ (y) é a função regular de A1k dada por a �→ a2 ou,


em termos da “função coordenada” x, f ∗ (y) = x2 .
Podemos também determinar I(X). Como y − x2 ∈ I(X), temos que
k[X] = k[x, y]/I(X) é um quociente de k[x, y]/(y − x2 ). Assim, temos um
diagrama comutativo

k[x, y] k[x, y]
(y − x2 ) I(X)
x�→x f∗

y�→x2 ≈

k[x]

Como os dois morfismos chegando em k[x] são isomorfismos, o morfismo


quociente horizontal também é um isomorfismo, logo olhando para o kernel
deste morfismo, temos I(X) = (y − x2 ) pelo teorema da correspondência
(teorema 1.4.4 na página 13).

2.3.17 Exemplo O automorfismo de k-álgebras correspondente ao automor-


fismo de conjuntos algébricos i : SL2 (k) → SL2 (k) (inverso) é

k[w, x, y, z] ≈ k[w, x, y, z]
i∗ : →
(wz − xy − 1) (wz − xy − 1)
w �→ z
x �→ −x
y �→ −y
z �→ w

2.3.3 Equivalência de Categorias


Diversas propriedades geométricas de um conjunto algébrico X se traduzem
em propriedades algébricas de seu anel de funções regulares k[X] e vice-versa.
Nesta subseção, queremos deixar precisa a filosofia

conjuntos algébricos afins =


k-álgebras reduzidas finitamente geradas

Como um primeiro exemplo, temos a seguinte

Proposição 2.3.18 Um conjunto algébrico X é uma variedade se, e só se,13

k[X] é um domı́nio ⇐⇒ I(X) é um ideal primo


13 ver definição 3.1.1 na página 81 de ideal primo
54 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Demonstração: Suponha que X ⊆ Ank não seja uma variedade, i.e., X é


união de dois fechados próprios:
� � � �
X = X ∩ Z(a) ∪ X ∩ Z(b) ⇐⇒ X ⊆ Z(a) ∪ Z(b) = Z(ab)

(a e b ideais de k[x1 , . . . , xn ]). Como estes fechados são próprios, existem


polinômios F ∈ a e G ∈ b que não se anulam sobre todo X. Por outro lado,
como F G ∈ ab, F G se anula identicamente sobre X. Assim, as imagens
f, g ∈ k[X] = k[x1 , . . . , xn ]/I(X) de F e G são tais que f g = 0 mas f �= 0 e
g �= 0, mostrando que k[X] não é domı́nio.
Reciprocamente, suponha que k[X] não seja domı́nio e sejam f, g ∈ k[X]
tais que f g = 0 com f �= 0 e g �= 0. Se F, G ∈ k[x1 , . . . , xn ] são dois
levantamentos14 de f, g, então F G se anula sobre todo X mas o mesmo não
ocorre nem com F e nem com G. Assim,
� � � �
X ⊆ Z(F ) ∪ Z(G) = Z(F G) ⇐⇒ X = X ∩ Z(F ) ∪ X ∩ Z(G)

mostra que X é união de dois fechados próprios, ou seja, não é variedade.

2.3.19 Exemplo Como o anel k[x1 , . . . , xn ] é um DFU (apêndice B.1 na


página 342), um conjunto algébrico Z(f ) ⊆ Ank é uma variedade se, e só se,
f ∈ k[x1 , . . . , xn ] é um polinômio irredutı́vel.

Seja X ⊆ Ank um conjunto algébrico e seja P = (a1 , . . . , an ) ∈ X um


ponto deste conjunto. Defina
def
mP = I(P ) = {f ∈ k[x1 , . . . , xn ] | f (a1 , . . . , an ) = 0}

Claramente xi −ai ∈ mP para i = 1, . . . , n, assim (x1 −a1 , . . . , xn −an ) ⊆ mP .


Mas (x1 − a1 , . . . , xn − an ) é um ideal maximal já que

k[x1 , . . . , xn ] f �→f (P )

= k
(x1 − a1 , . . . , xn − an )
é um corpo (exemplo 1.4.6 na página 15), logo

mP = (x1 − a1 , . . . , xn − an )

Como mP ⊇ I(X), temos que pelo teorema da correspondência (teorema 1.4.4


na página 13) mP define um ideal maximal de k[X] = k[x1 , . . . , xn ]/I(X),
que ainda denotamos por mP para não carregar a notação. Temos portanto
uma associação X �→ Specm k[X] dada por P �→ mP , que é nitidamente
injetora: se dois pontos P �= Q diferem nas i-ésimas coordenadas ai �= bi ,
então xi − ai ∈ mP \ mQ . Isto permite “enxergar” X dentro do conjunto de
ideais maximais de seu anel de funções regulares k[X]! A situação é ainda
melhor, pois temos
14 i.e., as imagens de F, G em k[X] são f, g
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 55

Teorema 2.3.20 (Nullstellensatz Hilberts) 15


Seja X ⊆ Ank um con-
junto algébrico. Temos uma bijeção natural

X

✲ Specm k[X] = Specm k[x1 , . . . , xn ]
I(X)
I(P )
P = (a1 , . . . , an ) �−→ mP = = (x1 − a1 , . . . , xn − an )
I(X)

Note que só falta mostrarmos que a associação acima é sobrejetora. Basta
mostrar que

Specm k[x1 , . . . , xn ] = {(x1 − a1 , . . . , xn − an ) | ai ∈ k},

pois pelo exemplo 1.4.7 na página 15 e o teorema da correspondência (teo-


rema 1.4.4 na página 13), os ideais maximais de k[x1 , . . . , xn ]/I(X) serão jus-
tamente os da forma (x1 − a1 , . . . , xn − an ) em que (a1 , . . . , an ) ∈ Z(I(X)) =
X.
O caso geral será tratado mais tarde (teorema 9.3.4 na página 191). Aqui
apresentamos uma prova particularmente simples no caso em que k é in-
contável, e.g. k = C. Esta prova é baseada no seguinte
Lema 2.3.21 Seja L ⊇ K uma extensão de corpos. Suponha que K seja
incontável enquanto que dimK L seja contável. Então L ⊇ K é uma extensão
algébrica.

Demonstração: Suponha por absurdo que exista um elemento t ∈ L que


é transcendente16 sobre K. Para chegar em uma contradição, basta mostrar
que o subconjunto de L
� 1 � �

�a∈K ,
t−a
cuja cardinalidade é a mesma de K, é linearmente independente sobre K.
Mas isto é fácil: dada uma relação de dependência linear
c1 c2 cn
+ + ··· + =0 (ai , ci ∈ K)
t − a1 t − a2 t − an
com ai distintos entre si, multiplicando a expressão acima por t − a1 e em
seguida substituindo t por a1 (t é transcendente!) concluı́mos que c1 = 0;
repetindo este procedimento, obtemos ci = 0 para todo i.
15 do alemão: Nullstellensatz significa teorema (Satz) dos zeros (Nullstellen), exata-

mente da mesma forma como Donaudampfschiffahrtsgesellschaftskapitän significa capitão


(Kapitän) da Companhia (Gesellschaft) de barcos a vapor (Dampfschiffahrt) do Danúbio
(Donau) e Beutelrattenlattengitterkotterhottentotterstottertrottelmutterattentäter significa
“assassino da mãe do garoto bobo e gago que estava na jaula de cangurus coberta de tela”,
é claro!
16 ver definição C.1.1 na página 355
56 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

17
Teorema 2.3.22 (Billignullstellensatz) Seja K um corpo algebrica-
mente fechado e incontável. Então

Specm K[x1 , . . . , xn ] = {(x1 − a1 , . . . , xn − an ) | ai ∈ K}

Demonstração: Seja m ∈ Specm K[x1 , . . . , xn ]. Como o K-espaço veto-


rial K[x1 , . . . , xn ] tem dimensão contável, temos que L = K[x1 , . . . , xn ]/m é
um corpo contendo K e tal que dimK L é contável. Pelo lema, L ⊇ K é uma
extensão algébrica, logo L = K já que K é algebricamente fechado. Assim,
existem ai ∈ K tais que

x i ≡ ai (mod m) (i = 1, . . . , n)

Ou seja, m ⊇ (x1 − a1 , . . . , xn − an ) e devemos ter a igualdade já que ambos


são ideais maximais (exemplo 1.4.6 na página 15).

Um “corolário” do teorema acima (em sua versão geral) é o que, popu-


larmente, se conhece como Nullstellensatz:

Teorema 2.3.23 (Nullstellensatz Hilberts) Seja k um corpo algebrica-


mente fechado e a ⊆ k[x1 , . . . , xn ] um ideal. Então

1. Z(a) = ∅ ⇐⇒ a = (1)

2. I(Z(a)) = a

Demonstração:

1. A implicação ⇐ é clara; para mostrar ⇒, suponha que a � k[x1 , . . . , xn ]


seja um ideal próprio, logo contido em algum ideal maximal, que é da
forma (x1 − a1 , . . . , xn − an ) com ai ∈ k pelo teorema anterior18 . Logo
a ⊆ (x1 − a1 , . . . , xn − an ) =⇒ Z(a) ⊇ Z((x1 − a1 , . . . , xn − an )) =
{(a1 , . . . , an )}, isto é, Z(a) �= ∅.

2. É claro que a ⊆ I(Z(a)) (veja observação 2.3.13 na página 51). Para
provar a inclusão oposta, vamos usar o chamado “truque de Rabi-
nowitz”19 . Tome f ∈ I(Z(a)) e seja b = a · k[x1 , . . . , xn , y] o ideal
de k[x1 , . . . , xn , y] gerado por a. Considere o ideal b + (yf − 1) ⊆
k[x1 , . . . , xn , y]. Temos

(a1 , . . . , an , b) ∈ Z(b + (yf − 1)) = Z(b) ∩ Z((yf − 1))


⇐⇒ (a1 , . . . , an ) ∈ Z(a) e b · f (a1 , . . . , an ) = 1
17 “cheap Nullstellensatz”
18 na forma geral que provaremos mais tarde, teorema 9.3.4 na página 191
19 em termos “esquemáticos”, o anel A = k[x , . . . , x , y]/(b + (yf − 1)) é a localização de
1 n
k[x1 , . . . , xn ]/a no elemento f , isto é, corresponde ao aberto D(f ) ⊆ Spec k[x1 , . . . , xn ]/a.
Mas como Specm A = ∅ pela prova acima, temos A √ = 0 e portanto f é nilpotente em
k[x1 , . . . , xn ]/a (lema 4.1.7 na página 101), i.e., f ∈ a.
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 57

Mas como f ∈ I(Z(a)), a primeira das duas condições acima implica


que f (a1 , . . . , an ) = 0, o que contradiz a segunda condição. Resumindo:
Z(b + (yf − 1)) = ∅ e pelo item anterior temos que b + (yf − 1) = (1).
Assim, existem g, gi ∈ k[x1 , . . . , xn , y] e pi ∈ a (i = 1, . . . , r) tais que

1= gi (x1 , . . . , xn , y) · pi (x1 , . . . , xn )
1≤i≤r
� �
+ g(x1 , . . . , xn , y) · yf (x1 , . . . , xn ) − 1

Agora substitua y = 1/f na expressão acima e multiplique por uma


potência f m suficientemente grande para “limpar” os denominadores.

Obtemos uma nova expressão que mostra que f m ∈ a, ou seja, f ∈ a.

Já vimos como identificar um conjunto algébrico X com Specm k[X],


mas e quanto a morfismos de conjuntos algébricos? Utilizando o pullback
f ∗ : k[Y ] → k[X] associado a um morfismo de conjuntos algébricos f : X →
Y , temos uma descrição particularmente simples em termos de pré-imagens
dos ideais maximais associados a pontos do conjunto algébrico:
Teorema 2.3.24 Sejam X ⊆ Am
k e Y ⊆ Ak dois conjuntos algébricos afins
n

e f : X → Y um morfismo.
1. Se φ : k[Y ] → k[X] é um morfismo de k-álgebras, então

m ∈ Specm k[X] =⇒ φ−1 (m) ∈ Specm k[Y ]

2. O seguinte diagrama é comutativo

P �→mP
X ≈ Specm k[X]
f m�→(f ∗ )−1 (m)
Q�→mQ
Y ≈ Specm k[Y ]

o que permite identificar o morfismo f do lado esquerdo com o mapa


m �→ (f ∗ )−1 (m) do lado direito.

Demonstração:
1. Primeiro, como um ideal maximal m de k[X] = k[x1 , . . . , xm ]/I(X) é da
forma (x1 − a1 , . . . , xm − am ) para algum ponto P = (a1 , . . . , am ) ∈ X,
temos um isomorfismo

k[X]/m = k[x1 , . . . , xm ]/(x1 − a1 , . . . , xm − am ) ∼


=k

dado pelo “mapa avaliação” h �→ h(P ) (exemplo 1.4.3 na página 13).


58 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

Segundo, φ : k[Y ] → k[X] induz um morfismo injetor de k-álgebras (c.f.


prova do corolário 1.4.2 na página 12)
k[Y ] k[X] ∼
�→ = k,
φ−1 (m) m
que deve portanto ser um isomorfismo, assim φ−1 (m) ∈ Specm k[Y ].
2. Dado P ∈ X, devemos mostrar que (f ∗ )−1 mP = mf (P ) . É suficiente
mostrar a inclusão (f ∗ )−1 mP ⊇ mf (P ) , já que ambos os lados são ideais
maximais de k[Y ]. Assim, tome ψ ∈ mf (P ) . Como f ∗ (ψ) = ψ ◦ f se
anula em P , temos f ∗ (ψ) ∈ mP , o que encerra a prova.

Agora estamos prontos para mostrar rigorosamente que k-álgebras redu-


zidas finitamente geradas e conjuntos algébricos afins são essencialmente a
mesma coisa:
Teorema 2.3.25 O funtor contravariante
Aff → Red
X �→ k[X]
f �→ f ∗
da categoria de conjuntos algébricos afins para a categoria de k-álgebras re-
duzidas finitamente geradas é uma equivalência de categorias.
Demonstração: Este funtor é essencialmente sobrejetor: dado um objeto
A ∈ Red, como A é finitamente gerado sobre k, A é um quociente de um anel
de polinômios k[x1 , . . . , xm ] (basta mapear os xi nos geradores de A). Seja a
o kernel da projeção k[x1 , . . . , xm ] � A, de modo que√temos um isomorfismo
induzido k[x1 , . . . , xm ]/a ∼
= A. Como A é reduzido, a√= a. Desta forma, o
conjunto algébrico X = Z(a) ⊆ Am k é tal que I(X) = a = a pelo Nullstel-
lensatz (teorema 2.3.20 na página 55), logo k[X] = k[x1 , . . . , xm ]/I(X) ∼
= A,
como desejado.
Agora sejam X ⊆ Am k e Y ⊆ Ak dois objetos em Aff. Devemos mostrar
n

que a função
HomAff (X, Y ) → HomRed (k[Y ], k[X])
f �→ f ∗
é uma bijeção. Pelo teorema 2.3.24 na página anterior, temos que esta função
é injetora, já que um morfismo de k-álgebras φ : k[Y ] → k[X] determina uni-
camente uma função entre espectros maximais, logo uma única função entre
conjuntos algébricos. Para a sobrejetividade, tome φ ∈ HomRed (k[Y ], k[X])
e escolha representantes pi ∈ k[x1 , . . . , xm ] para as imagens das funções co-
ordenadas y i ∈ k[Y ] = k[y1 , . . . , yn ]/I(Y ):
φ(y i ) = pi ∈ k[X] = k[x1 , . . . , xm ]/I(X) (i = 1, . . . , n)
2.3. VARIEDADES ALGÉBRICAS 59

Como φ é um morfismo de k-álgebras, temos


h(y1 , . . . , yn ) ∈ I(Y ) =⇒ 0 = φ(h(y1 , . . . , yn )) = h(φ(y 1 ), . . . , φ(y n )) ∈ k[X]
⇐⇒ 0 = h(p1 , . . . , pn ) ∈ k[X]
⇐⇒ h(p1 , . . . , pn ) ∈ I(X)
Defina f : Am
k → Ak via
n

� �
f (a1 , . . . , am ) = p1 (a1 , . . . , am ), . . . , pn (a1 , . . . , am )
de modo que h ∈ I(Y ) =⇒ h ◦ f ∈ I(X). Assim, se P = (a1 , . . . , am ) ∈ X,
f (P ) ∈ Z(I(Y )) = Y e portanto f se restringe a um morfismo f : X → Y
de conjuntos algébricos. Por construção, a imagem por f ∗ da função i-ésima
coordenada y i é f ∗ (y i ) = y i ◦ f = pi = φ(y i ) e como os y i geram a k-álgebra
k[Y ], concluı́mos que f ∗ = φ. Isto encerra a prova.

2.3.4 Conjuntos algébricos projetivos


Nesta subseção, faremos um breve comentário sobre o caso projetivo. Dado
um corpo k, o espaço projetivo Pnk de dimensão n sobre k é definido como
o conjunto de todas as direções no espaço afim k n+1 de dimensão n + 1. Em
outras palavras, um ponto em Pnk pode ser representado como um vetor não
nulo (a0 , a1 , . . . , an ) ∈ k n+1 ; dois vetores (a0 , a1 , . . . , an ) e (b0 , b1 , . . . , bn )
definem o mesmo ponto se eles são homotéticos, isto é, existe um λ ∈ k não
nulo tal que ai = λbi para i = 0, 1, . . . , n. Representamos o ponto definido
pelo vetor (a0 , a1 , . . . , an ) através da sugestiva notação (a0 : a1 : . . . : an ),
que satisfaz a propriedade
(λa0 : λa1 : . . . : λan ) = (a0 : a1 : . . . : an ) (λ ∈ k × )
Note que o subconjunto
def
Ui = {(a0 : . . . : ai−1 : ai : ai+1 : . . . : an ) ∈ Pnk | ai �= 0}
= {(b0 : . . . : bi−1 : 1 : bi+1 : . . . : bn ) ∈ Pnk | bi ∈ k}
(b0 = a0 /ai , . . . , bn = an /ai ) é uma cópia de Ank dentro de Pnk , de modo que
podemos pensar em Pnk como a “colagem” destes espaços afins, sendo Ui uma
“carta” desta variedade (no sentido topológico/geométrico).
Por exemplo, a reta projetiva é a colagem de duas cópias U0 e U1 da reta
afim A1k , identificadas ao longo do aberto comum
def
U01 = {(a0 : a1 ) ∈ P1k | a0 �= 0 e a1 �= 0}
Como (1 : a1 /a0 ) = (a0 : a1 ) = (a0 /a1 : 1), a identificação de uma cópia com
a outra é feita através da “mudança de carta” z �→ 1/z (aqui z = a1 /a0 ), ou
seja,
k�k
P1k =

60 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

é o quociente da união disjunta de duas cópias de k pela relação de equi-


valência que identifica z �= 0 na primeira cópia com 1/z na segunda. Há
várias redundâncias nesta construção: de fato, com exceção de (0 : 1) e
(1 : 0), todos os demais pontos pertencem às duas cartas U0 e U1 . O com-
plementar da “reta afim” U0 em P1k é o “ponto no infinito” (0 : 1). Sobre C,
P1C pode ser pensada como a esfera de Riemann da Análise Complexa.
Embora não faça sentido falar em “valor” de um polinômio em um ponto
de Pnk , para um polinômio homogêneo f ∈ k[x0 , . . . , xn ] de grau d é possı́vel
definir seus zeros em Pnk : para λ ∈ k × , temos

f (a0 , . . . , an ) = 0 =⇒ f (λa0 , . . . , λan ) = λd f (a0 , . . . , an ) = 0.

de modo que o conjunto


def
Z+ (f ) = {(a0 : . . . : an ) ∈ Pnk | f (a0 , . . . , an ) = 0}

está bem definido. Mais geralmente,


2.3.26 Definição Um conjunto algébrico projetivo é um subconjunto
de Pnk definido por zeros de polinômios homogêneos, ou seja, um subconjunto
da forma
� � �
def � f (a0 , . . . , an ) = 0 para todo
n �
Z+ (a) = (a0 : . . . : an ) ∈ Pk �
elemento homogêneo f ∈ a

com a ⊆ k[x0 , x1 , . . . , xn ] um ideal homogêneo.

2.3.27 Exemplo (Curva elı́ptica) O conjunto algébrico

E = Z+ (y 2 z − x3 + xz 2 ) ⊆ P2k

é a união de uma curva plana afim

E ∩ U2 = {(a : b : c) ∈ P2k | b2 c = a3 − ac2 e c �= 0}


� � �
�a b � �� �
2 � b 2
� a �3 � a �
= : : 1 ∈ Pk � = −
c c c c c
= Z(y 2 − x3 + x) ⊆ A2k

def
e um único “ponto no infinito” O = (0 : 1 : 0) ∈ E ∩ U1 , já que se c = 0 e
b2 c = a3 − ac2 então a = 0 (e b �= 0 pois alguma coordenada é não nula).

De certa forma, o estudo de conjuntos algébricos projetivos se divide em


um “estudo local” (essecialmente o caso afim, que acabamos de ver) e um
“estudo global” da colagem envolvida, que requer métodos homológicos, não
cobertos neste livro. Assim, infelizmente teremos poucas oportunidades de
tratar o caso projetivo, que entretanto desempenha um papel fundamental
em Geometria Algébrica.
2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 61

2.4 Inteiros p-ádicos


Vamos agora introduzir a incarnação aritmética das séries formais. Seja p um
número primo. Em analogia com a proposição 2.1.1 na página 32, definimos
o anel dos inteiros p-ádicos Zp como o limite projetivo (apêndice A.3 na
página 333) dos anéis Z/(pn ):

def Z � � Z �� �
Zp = proj lim = (a n ) ∈ � a m ≡ an (mod pm ) se n ≥ m
n∈N (pn ) (pn )
n∈N

Podemos usar uma árvore 20 para visualizar os inteiros p-ádicos: os vértices


do n-ésimo nı́vel desta árvore são indexados pelos elementos de Z/(pn ); cada
vértice a mod pn ∈ Z/(pn ) é ligado aos p vértices a + kpn mod pn+1 (k =
0, 1, 2, . . . p − 1) do nı́vel seguinte, de modo que as “tuplas coerentes” de Zp
estão em correspondência biunı́voca com os caminhos infinitos a partir da
raiz. A figura a seguir ilustra os nı́veis iniciais desta árvore para o caso
p = 2:

0 1

0 2 3 1

0 4 2 6 7 3 5 1

Agora seja An ∈ Z o único representante de classe de an ∈ Z/(pn ) com


0 ≤ An < pn e escreva-o na base p:

An = a0 + a1 p + a2 p2 + · · · + an−1 pn−1 , ai ∈ {0, 1, 2, . . . , p − 1}

Para m ≤ n devemos ter Am = a0 + a1 p + · · · + am−1 pm−1 , ou seja, Am


é obtido “truncando-se” An . Portanto um inteiro p-ádico pode também ser
simbolicamente representado por sua “expansão infinita em base p”

a 0 + a 1 p + a 2 p2 + · · · (0 ≤ ai < p)

obtida “colando-se” os vários termos An .


Cálculos com esta representação são essencialmente feitos como no anel
de séries formais Fp �t�, mas agora tomando-se o cuidado extra de considerar
20 que ecológico!
62 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

o “vai 1”. Por exemplo, em Z2 tem-se

1 + (1 + 2 + 22 + 23 + · · · ) = 2 + 2 + 22 + 23 + · · ·
= 22 + 22 + 23 + · · ·
= 23 + 23 + · · ·
= ··· = 0

o que, é claro, coincide com a fórmula usual da soma da PG:


1
1 + 2 + 22 + 23 + · · · = = −1
1−2
Se isto parece confuso, vamos retornar à definição de Z2 como limite projetivo:

1 ∈ Z2 significa (1 mod 2, 1 mod 22 , 1 mod 23 , . . .)


1 + 2 + 22 + · · · significa (1 mod 2, 1 + 2 mod 22 , 1 + 2 + 22 mod 23 , . . .)

Portanto a soma destas duas tuplas é de fato

0 ∈ Z2 que significa (0 mod 2, 0 mod 22 , 0 mod 23 , . . .)

Note que o “mapa diagonal”

Z �→ Zp
a �→ (a mod pn )n∈N

é injetor (o único inteiro divisı́vel por potências arbitrariamente grandes de p


é 0). Logo podemos pensar em Z como subanel de Zp , o subanel das “séries
finitas” na expansão em base p acima.
Assim como no caso de séries formais, temos

Proposição 2.4.1 Seja p um primo. Temos

1. O grupo de unidades de Zp é
� � �
Z× 2 �
p = a0 + a1 p + a2 p + · · · ∈ Zp a0 �= 0, 0 ≤ ai < p ,

ou seja, é o subconjunto dos inteiros p-ádicos que não são divisı́veis por
p ou cujos “termos constantes” a0 não são nulos.

2. Zp é um DIP (logo um DFU) com um único irredutı́vel p a menos de


associados. Todo ideal não nulo de Zp é uma potência de (p), logo em
particular (p) é o único ideal maximal de Zp 21 ; temos Zp /(p) = Fp .

Demonstração:
21 que é, portanto, um anel local (definição 4.5.1 na página 111)
2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 63

1. Segue diretamente do fato de que a mod pn é uma unidade em Z/(pn )


se, e somente se, a não é múltiplo de p.

2. Novamente qualquer f ∈ Zp não nulo admite uma fatoração

f= pn × (an + an+1 pn+1 + an+2 pn+2 + · · · )


���� � �� �
potência de p unidade em Zp

(0 ≤ ai < p e an �= 0). Note que escrevendo f = (Ai mod pi )i∈N como


tupla coerente, n é o menor inteiro para o qual An+1 �≡ 0 (mod pn+1 ).
A partir desta representação, é fácil ver que o produto de dois inteiros
p-ádicos não nulos é não nulo, ou seja, Zp é um domı́nio. O resto da
demonstração é completamente análogo ao caso de séries formais e é
um exercı́cio para o leitor.

O corpo de frações de Zp é denotado por Qp . A proposição acima mostra


que todo elemento não nulo f ∈ Qp pode ser escrito unicamente como

f = u · pn (u ∈ Z×
p , n ∈ Z)

Podemos introduzir em Zp uma métrica, o que nos pemitirá interpretar


as somas infinitas acima como séries convergentes nesta métrica.

2.4.2 Definição Seja p um primo e seja ∞ um sı́mbolo sujeito às regras


∞ + a = ∞ e a ≤ ∞ para todo a ∈ N ∪ {∞}.

1. A valorização p-ádica em Z é a função vp : Z → N ∪ {∞} dada por



maior r ∈ N tal que pr | n se n �= 0
vp (n) =
∞ se n = 0

2. A norma p-ádica é a função �−�p : Z → R dada por

�n�p = p−vp (n) (n ∈ Z)

Aqui interpretamos �0�p = p−∞ = 0.

Analogamente, definimos a valorização e a norma p-ádica em Zp (que esten-


dem as correspondentes funções em Z).

Diretamente das definições acima temos as seguintes propriedades: para


quaisquer a, b ∈ Z (ou Zp ),

(i) vp (a) = ∞ ⇐⇒ a = 0 �a�p = 0 ⇐⇒ a = 0


(ii) vp (ab) = vp (a) + vp (b) �ab�p = �a�p · �b�p
(iii) vp (a + b) ≥ min{vp (a), vp (b)} �a + b�p ≤ max{�a�p , �b�p }
64 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

com igualdade em (iii) se vp (a) �= vp (b) ⇐⇒ �a�p �= �b�p . As propriedades


acima justificam o nome norma p-ádica para �−�p , sendo (iii) uma versão
“super vitaminada” da desigualdade triangular, chamada desigualdade ul-
tramétrica. Destas três propriedades, temos que
def
dp (a, b) = �a − b�p

define uma métrica em Z e em Zp , a chamada métrica p-ádica.


Observe que “p-adicamente pequeno” significa divisı́vel por uma potência
grande de p; mais precisamente, na métrica p-ádica temos

lim pn = 0
n→∞

Por exemplo, é assim que um aluno matriculado em Cálculo p-ádico I calcula


derivadas (x ∈ Z ou Zp ):
� � � �
(x + pn )8 − x8 7 8 6 n 8
lim n
= lim 8x + x p + ··· + xp6n + p7n = 8x7
n→∞ p n→∞ 2 7

Dois inteiros p-ádicos f = (an mod pn )n∈N e g = (bn mod pn )n∈N estão
quanto mais próximos quanto a quantidade de dı́gitos iniciais coincidentes na
representação em base p: para r ∈ N, temos

�f − g�p ≤ p−r ⇐⇒ pr | f − g
⇐⇒ ai ≡ bi (mod pi ) para i = 0, 1, 2, . . . , r
⇐⇒ os r primeiros dı́gitos na base p de f e g coincidem

Lembre que, dado um espaço métrico qualquer (X, d), o completamento


ˆ é o espaço métrico cujos elementos são classes de equivalência [(an )]
(X̂, d)
de sequências de Cauchy (an ) em X, em que a relação de equivalência é dada
por
[(an )] = [(bn )] ⇐⇒ lim d(an , bn ) = 0
n→∞

A métrica dˆ: X̂ × X̂ → R≥0 é dada por

ˆ n )], [(bn )]) def


d([(a = lim d(an , bn )
n→∞

ˆ é
Verificações rotineiras mostram que tudo está bem definido e que (X̂, d)
completo (i.e., toda sequência de Cauchy em X̂ converge para um elemento
de X̂), com X ⊆ X̂ via o “mapa diagonal” que leva um elemento x ∈ X na
classe da sequência constante an = x.

Teorema 2.4.3 Nas notações acima,

1. Zp é o completamento de Z com relação à métrica p-ádica.


2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 65

2. (Sonho de todo estudante de cálculo) Seja an ∈ Zp uma sequência. Na


métrica p-ádica, temos

an converge ⇐⇒ lim an = 0
n≥0

3. Zp é compacto.

Demonstração:
1. Denote provisoriamente por C o completamento de Z com relação à
métrica p-ádica. Vamos construir uma bijeção entre Zp e C. Dada uma
tupla coerente (an mod pn )n∈N ∈ Zp , temos que (an ) é uma sequência
de Cauchy em Z, já que

n ≥ m ≥ n0 =⇒ an ≡ am (mod pn0 ) =⇒ �an − am �p ≤ p−n0 → 0

quando n0 → ∞. Observe que se an ≡ bn (mod pn ) para todo n ∈


N, então as sequências de Cauchy (an ) e (bn ) são equivalentes já que
�an − bn �p ≤ p−n → 0, de modo que temos uma função bem definida

f : Zp → C
n
(an mod p )n∈N �→ [(an )]

Reciprocamente, se (an ) é uma sequência de Cauchy em Z, para um r ∈


N fixado a sequência an mod pr eventualmente estabiliza pois existe n0
tal que �an − am �p ≤ p−r para todo n, m ≥ n0 , ou seja, n, m ≥ n0 =⇒
an ≡ am (mod pr ). Denotando por a∞ mod pr este valor estável, note
que como an ≡ am (mod pr ) =⇒ an ≡ am (mod pr−1 ), quando r
varia obtemos uma tupla coerente (a∞ mod pr )r∈N , ou seja, um inteiro
p-ádico. Note ainda que esta tupla coerente define uma sequência de
Cauchy que é uma subsequência de (an ), logo equivalente a esta em
C. Além disso, os valores estáveis não dependem do representante de
classe em C: [(an )] = [(bn )] =⇒ b∞ mod pr = a∞ mod pr já que
lim �an − bn �p = 0 implica

�an − bn �p ≤ p−r ⇐⇒ an ≡ bn (mod pr ) para n � 0

Assim, temos uma outra função

g : C → Zp
[(an )] �→ (a∞ mod pr )r∈N

e é fácil ver que f e g são inversas uma da outra.


2. A implicação ⇒ vale em qualquer espaço métrico; para mostrar ⇐,
é suficiente mostrar que as somas parciais sr = a0 + a1 + · · · + ar
66 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

formam uma sequência de Cauchy, já que Zp é completo. Mas isto


segue diretamente da desigualdade ultramétrica: como por hipótese
lim an = 0, dado � > 0, existe n0 de modo que n ≥ n0 =⇒ �an �p < �,
logo
n ≥ m ≥ n0 =⇒ �sn − sm �p ≤ max {�ai �p } < �
m<i≤n

3. Inicialmente, vamos mostrar que as duas�topologias de Zp coincidem:


a topologia como subespaço do produto n∈N Z/(pn ) (cada fator com
topologia discreta) e a topologia dada pela métrica p-ádica. Em se-
guida, para mostrar Zp é compacto, bastará mostrar que Zp é fechado
neste produto, já que este é compacto
� por Tychonoff (apêndice A.1
na página 321). Denote por πi : n∈N Z/(p n
) → Z/(p i
) a i-ésima
projeção.
As topologias coincidem: Se x0 = (an mod pn )n∈N é uma tupla
coerente em Zp , uma bola aberta de raio p−r e centro x0 na métrica
p-ádica é

{x ∈ Zp | �x − x0 �p < p−r }
= {(bn mod pn )n∈N ∈ Zp | bi ≡ ai (mod pi ) para i = 0, 1, 2, . . . , r + 1}
= {caminhos na árvore com inı́cio ai mod pi , i = 0, 1, 2, . . . , r + 1}
� � �
= πi−1 {ai mod pi } ∩ Zp
0≤i≤r

o que mostra que uma base de abertos de Zp na métrica p-ádica coincide


com
� uma base de abertos na topologia de subespaço dentro do produto
n∈N Z/(p n
).

Zp é fechado em n∈N Z/(pn ): todo ponto do complementar possui
uma vizinhança aberta que não intercepta Zp , pois se (an mod pn )n∈N é
uma tupla “incoerente”, digamos an0 �≡ am0 (mod pm0 ) com m0 ≤ n0 ,
−1
então πm 0
{am0 mod pm0 } ∩ πn−1 0
{an0 mod pn0 } é uma tal vizinhança.

O principal resultado sobre Zp é o seguinte teorema, que permite “levan-


tar” raı́zes módulo p e mostra de certa forma que a aritmética em Zp é quase
tão simples quanto a de um corpo finito Fp :

Teorema 2.4.4 (Lema de Hensel) Seja f (x) ∈ Zp [x] e denote por f (x) ∈
Fp [x] o polinômio obtido por redução módulo p dos coeficientes de f (x). Su-
ponha que a ∈ Zp é tal que a ∈ Fp = Zp /(p) é raiz simples de f (x). Então
existe ã ∈ Zp tal que

f (ã) = 0 e ã ≡ a (mod p)
2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 67

Demonstração: Vamos construir indutivamente uma sequência (an ) em


Z tal que

f (an ) ≡ 0 (mod pn ) e an+1 ≡ an (mod pn )

Tome a1 ∈ Z tal que a1 ≡ a (mod p); por hipótese, temos f (a1 ) ≡ 0 (mod p)
e f (a1 ) �≡ 0 (mod p) já que a1 é raiz simples de f (x). Suponha que os
n primeiros termos já estejam definidos; para definir an+1 satisfazendo as
condições acima, temos que encontrar h ∈ Z tal que an+1 = an + h · pn e

0 ≡ f (an+1 ) ≡ f (an ) + h · pn · f � (an ) (mod pn+1 )

pela expansão de Taylor de f (x). Note que por hipótese de indução pn | f (an )
e f � (an ) ≡ f � (a1 ) �≡ 0 (mod p), ou seja, f � (an ) é uma unidade módulo p e
n
assim podemos tomar h ≡ f (a n )/p
f � (an ) (mod p), ou seja, basta definirmos

f (an )
an+1 ≡ an − (mod pn+1 )
f � (an )
Com isso, ã = (an mod pn )n∈N é o elemento procurado. Note que a sequência
de Cauchy (an ) obtida acima é exatamente a obtida aplicando-se o método
de Newton para aproximações de raı́zes de f (x):

an+1 an

y = f (x)

2.4.5 Exemplo Seja p �= 2 um primo. Dado um elemento não nulo a ∈ Zp ,


escreva-o como a = pn u com u ∈ Z× p e n ∈ N. Então a é um quadrado
perfeito em Zp se, e só se, n é par e u mod p é um quadrado perfeito em Fp .
De fato, esta condição é claramente necessária: se a é o quadrado de vpm
(v ∈ Z×p e m ∈ N), da fatoração única (proposição 2.4.1 na página 62) temos
n = 2m e u = v 2 =⇒ u = v 2 ∈ Fp . Reciprocamente, se n = 2m é par e
u = v02 para algum v0 ∈ Fp , aplicando o lema de Hensel a f (x) = x2 − u,

temos f (v0 ) = 0 e f (v0 ) = 2v0 �= 0 em Fp (pois v02 ≡ u �≡ 0 (mod p) e p �= 2),
logo v0 levanta para uma raiz quadrada v ∈ Zp de u, assim a = (vpm )2 .
Note que isto mostra que o grupo multiplicativo

Q× × 2
p /(Qp ) = {1, u, p, up} / (F× )2
u ∈ Zp tal que u ∈
68 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

é isomorfo a Z/2Z ⊕ Z/2Z (“Klein four group”). Em particular, há somente



3 extensões quadráticas de Qp em seu fecho algébrico! São elas: Qp ( u),
√ √
Qp ( p), Qp ( up). Certamente uma situação muito diferente de Q, que
possui infinitas extensões quadráticas!22
Vejamos uma aplicação a formas quadráticas. Seja k um corpo de carac-
terı́stica diferente de 2. Uma forma quadrática sobre k

f (x1 , . . . , xn ) = aij xi xj (aij ∈ k)
1≤i,j≤n

é dita anisotrópica se a única solução de f (x1 , . . . , xn ) = 0 em k é a solução


trivial (x1 , . . . , xn ) = (0, . . . , 0). Por uma transformação linear de coordena-
das, pode-se mostrar (processo de “ortogonalização de Gram-Schmidt”) que
f pode ser colocado na “forma diagonal”
f (x1 , . . . , xn ) = a1 x21 + a2 x22 + · · · + an x2n (ai ∈ k)
Assim, se por exemplo k = R, f é anisotrópica se, e só se, todos os seus
coeficientes ai têm o mesmo sinal. Por outro lado, se k = Fp , toda forma
quadrática com n ≥ 3 é isotrópica: é suficiente mostrar isto para uma forma
do tipo ax2 + by 2 + z 2 com a, b �= 0; como há exatamente (p − 1)/2 quadrados
em F×p (veja a prova do teorema 2.2.5 na página 41), ambos os subconjuntos
de Fp
{ax2 | x ∈ Fp } e {−by 2 − 1 | y ∈ Fp }
possuem cardinalidade (p + 1)/2, logo têm interseção não vazia, o que nos dá
uma solução não trivial de ax2 + by 2 + z 2 = 0 com z = 1.
2.4.6 Exemplo Seja p �= 2 um primo. Vamos mostrar que qualquer forma
quadrática f (x1 , . . . , xn ) = a1 x21 + · · · + an x2n sobre Qp com n ≥ 5 variáveis
é isotrópica. Se u ∈ Zp é tal que u ∈ / (F× )2 , pelo exemplo anterior temos
Qp /(Qp ) = {1, u, p, up} e assim sem perda de generalidade podemos supor
× × 2

que ai ∈ {1, u, p, up} para i = 1, . . . , n. Assim, podemos escrever f = f1 +p·f2


com f1 e f2 formas quadráticas cujos coeficientes são unidades em Zp . Logo
basta mostrar que uma forma quadrática com pelos menos 3 variáveis e cujos
coeficientes são unidades em Zp é isotrópica. Assim, podemos supor que
f (x, y, z) = ux2 + vy 2 + z 2 com u, v ∈ Z× p.
Já sabemos que f (x, y, z) ≡ 0 (mod p) possui uma solução (x0 , y0 , z0 ) �≡
(0, 0, 0) (mod p). Mas então
� ∂f ∂f ∂f �
(x0 ), (y0 ), (z0 ) = (2x0 , 2y0 , 2z0 ) �≡ (0, 0, 0) (mod p)
∂x ∂y ∂x
e portanto podemos aplicar o lema de Hensel a pelo menos uma das variáveis,
o que mostrar que f (x, y, z) = 0 possui solução não trivial, como querı́amos.
Uma análise mais cuidadosa mostra que o resultado ainda vale para p = 2
(o que é um exercı́cio para o leitor, é claro!).

22 por exemplo, Q( �) para � primo.
2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 69

Inteiros p-ádicos desempenham um papel central em Teoria dos Números,


através do chamado princı́pio local-global ou princı́pio de Haße, que é
a filosofia que procura reduzir a busca de soluções globais sobre Z à busca
de soluções locais sobre os completamentos Zp , que possuem propriedades
aritméticas muito mais simples. Por exemplo, temos o seguinte

Teorema 2.4.7 (Haße-Minkowski) Uma forma quadrática f (x1 , . . . , xn )


sobre Q possui solução não trivial se, e só se, f possui solução não trivial so-
bre R e sobre Qp para todo primo p. Em particular, se n ≥ 5, f é anisotrópica
sobre Q se, e só se, é anisotrópica sobre R.

Para mais sobre formas quadráticas e uma prova do teorema de Haße-


Minkowski, recomendamos o excelente livro [Ser73].
Aqui vamos mostrar uma aplicação simples de como utilizar inteiros p-
ádicos para resolver problemas sobre Q. Para um anel A, denotamos por
GLn (A) o grupo linear sobre A, que é o grupo multiplicativo das matrizes
n × n inversı́veis com entradas em A. Denotamos por �x� o piso de um
número real x, i.e., o único inteiro �x� satisfazendo x − 1 < �x� ≤ x. Seja
ainda ϕ(n) = |(Z/nZ)× | a função ϕ de Euler.

Proposição 2.4.8 (Minkowski) Se G é um subgrupo finito de GLn (Q),


então � �

|G| � �M (n,�)
� primo

em que

def
�� n �
M (n, �) =
ϕ(�i )
i≥1
� � � � � � � �
n n n n
= + + 2 + 3 + ···
�−1 �(� − 1) � (� − 1) � (� − 1)

(observe que esta soma é finita, logo está bem definida)

Um dos pontos chave da demonstração do teorema de Minkowski, que


permite reduzir o problema a corpos finitos, é o seguinte

Lema 2.4.9 Seja p > 2 um primo. O kernel do morfismo de grupos (redução


módulo p)
GLn (Zp ) → GLn (Fp )
é livre de torção (i.e., o único elemento do kernel com ordem finita é a
identidade).

Demonstração: Basta mostrarmos que este kernel não contém nenhum


elemento A de ordem prima �. Suponha por absurdo que este não seja o caso;
70 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

então A� = I (I denota a matriz identidade23 ) e podemos escrever A = I + E


em que E = (eij )n×n é uma matriz não nula com eij ≡ 0 (mod p). Assim,
� � � � � �
� � � � 2 �
A = I ⇐⇒ (I + E) = I ⇐⇒ E+ E + ··· + E� = 0
1 2 �
Temos dois casos: se � � �� �= �p,� �então podemos
��� �−1escrever a expressão acima como
E ·U = 0 com U = 1 I + 2 E +· · ·+ � E , que é uma matriz em GLn (Zp )
pois det U ≡ det(�I) �≡ 0 (mod p), logo det U ∈ Z× p e assim E · U = 0 =⇒
E = 0, uma contradição. Por outro lado, se � = p, seja r = min vp (eij ) > 0,
digamos atingido por ei0 j0 . Na soma acima, vejamos �p � a entrada na i0 -ésima
linha e j0 -ésima coluna: no primeiro termo 1� E � = pE, esta entrada tem
valorização vp (p · ei0 j0 ) = r + 1; para os termos pt E t com 2 ≤ t ≤ p − 1, esta
entrada tem tem valorização ≥ 1 + tr ≥ r + 2; para o último termo E p , a
valorização desta entrada é ≥ pr ≥ r + 2, já que p ≥ 3. Assim, a entrada na
i0 -ésima linha e j0 -ésima coluna da soma tem valorização r + 1 e é portanto
não nula, uma contradição.

Demonstremos o teorema de Minkowski. Para um primo � fixado, deve-


mos mostrar que v� (|G|) ≤ M (n, �). Faremos isto para todo � > 2, enquanto
que para � = 2 obteremos uma cota mais fraca v2 (|G|) ≤ M (n, 2) + �n/2�,
deixando o resultado mais preciso do enunciado como um exercı́cio para o
leitor24 (exercı́cio 2.18 na página 77).
Como há apenas uma quantidade finita de racionais que são entradas de
matrizes em G, se p é um primo maior do que todos os denominadores destas
entradas, estes denominadores serão todos unidades em Zp (proposição 2.4.1
na página 62) e portanto G ⊂ GLn (Zp ) para todo primo p suficientemente
grande. Além disso, pelo lema 2.4.9 na página precedente, temos que a
composição G �→ GLn (Zp ) → GLn (Fp ) é um morfismo injetor de grupos e
portanto pelo teorema de Lagrange temos que


|G| � |GLn (Fp )|

para todo primo p suficientemente grande. Assim, para um primo � fi-


xado, para “otimizar” a estimativa da ordem de G, devemos minimizar
v� (|GLn (Fp )|). Para isto, precisamemos de alguns fatos bem conhecidos que
coletamos no seguinte
Lema 2.4.10 Seja n ∈ N e sejam p e � números primos.
1. Temos
|GLn (Fp )| = (pn − 1)(pn − p)(pn − p2 )(pn − p3 ) . . . (pn − pn−1 )

= pn(n−1)/2 · (pi − 1)
1≤i≤n
23 também conhecida como matriz RG
24 se você leitor é professor, coloque este exercı́cio na prova; se você é aluno, resolva o
exercı́cio antes da prova!
2.4. INTEIROS P -ÁDICOS 71

2. (Dirichlet) Se mdc(a, n) = 1, existem infinitos números primos p tais


que p ≡ a (mod n).

3. Se � > 2 é um primo e r um inteiro positivo, então (Z/�r Z)× é um


grupo cı́clico de ordem ϕ(�r ) = �r − �r−1 . Se a ∈ Z é tal que a é
um gerador de (Z/�2 Z)× , então a é um gerador de (Z/�r Z)× para todo
r ≥ 1.

4. Para r ≥ 3, 5 tem ordem 2r−2 no grupo (Z/2r Z)× .

Faremos um esboço das provas do lema ao final. Voltando à demonstração


do teorema de Minkowski, devemos mostrar a existência de infinitos primos
p > � para os quais
� � �
v� (|GLn (Fp )|) = v� pn(n−1)/2 · (pi − 1)
1≤i≤n

� M (n, �) se � > 2
= v� (pi − 1) =
1≤i≤n
M (n, 2) + �n/2� se � = 2

Suponha inicialmente � > 2. Pelo teorema de Dirichlet, existem infinitos


primos p congruentes módulo �2 a um gerador de (Z/�2 Z)× e, por conseguinte,
infinitos primos p para os quais p é gerador do grupo cı́clico multiplicativo
(Z/�r Z)× para
� todo r ≥ 1. Para estes primos, temos �r | pi −1 ⇐⇒ ϕ(�r ) | i
i
e assim, em 1≤i≤n v� (p − 1), os �n/ϕ(�)� termos com ϕ(�) | i contribuem 1
na soma; dentre estes, os �n/ϕ(�2 )� termos com ϕ(�2 ) | i contribuem mais 1 na
soma; dentre estes, os �n/ϕ(�3 )� termos com ϕ(�3 ) | i ainda contribuem mais
1 na soma, e assim por diante, de modo que a soma total é igual a M (n, �).
O caso � = 2 é completamento análogo, utilizando 2r | pi − 1 ⇐⇒ 2r−2 | i
para r ≥ 3. Isto encerra a prova do teorema de Minkowski. Só falta
Demonstração: (do lema)

1. Segue do princı́pio multiplicativo de contagem: se M é uma matriz em


GLn (Fp ), sua primeira coluna pode ser qualquer um dos pn − 1 vetores
não nulos de Fnp ; a segunda coluna, qualquer um dos pn − p vetores que
não são múltiplos da primeira coluna; a terceira coluna, qualquer um
dos pn −p2 vetores que não são combinações lineares das duas primeiras
colunas (que geram um espaço de dimensão 2 da maneira como foram
escolhidas); e assim por diante.

2. A prova deste teorema é não trivial, veja [Ser73], chapter VI, p.61 por
exemplo.

3. É bem conhecido que F×


� é cı́clico (ver por exemplo [Ser73], theorem 2,
p.4). Suponha por alguns instantes que exista a ∈ Z tal que a gera F× �
e a�−1 = 1 + �u com � � u; vamos mostrar que a gera (Z/�r Z)× para
72 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

r−1
todo r. Para todo r ≥ 1, temos a(�−1)� = 1 + �r u com � � u também,
como segue por indução de
múltiplo de �≥3
� �
� ���� �
r

� r−1 2 � 2r−1 3 �
a(�−1)� r �
= (1 + � u) = 1 + � r+1
· u+ � u + � u + ···
2 3
� �� �
não múltiplo de �

Assim, para r ≥ 2,
r r−1
aϕ(� )
= a(�−1)� ≡ 1 (mod �r ) mas
r−1 r−2
aϕ(� )
= a(�−1)� �≡ 1 (mod �r ) (∗)

Temos que mostrar que a ordem d de a mod �r é ϕ(�r ), o que é claro


para r = 1 por hipótese, logo suponha r ≥ 2. Temos
indução
ad ≡ 1 (mod �r ) =⇒ ad ≡ 1 (mod �r−1 ) =⇒ ϕ(�r−1 ) | d

Como também temos d | ϕ(�r ) por Lagrange e � é primo, só há duas
possibilidades d = ϕ(�r−1 ) ou d = ϕ(�r ), mas (∗) mostra que a primeira
não ocorre, como querı́amos.
Em particular, observe que para r = 2 as condições (∗) dizem exata-
mente que a mod �2 é um gerador de (Z/�2 Z)× . Assim reduzimos todo
o problema a mostrar a existência de um a ∈ Z tal que a gera F× � e
a�−1 = 1 + �u com � � u. Mas se porventura � | u, basta tomar a + � no
lugar de a, pois
� �
�−1 �−1 � − 1 �−2
(a + �) = 1 + � · (a (� − 1) + u + a � + ···)
2
� �� �
não múltiplo de �

r−2
4. Verifique por indução em r ≥ 2 que 52 = 1 + 2r u com u ı́mpar.
2r−2 r−3
Assim, para r ≥ 3, temos 5 ≡ 1 (mod 2 ) mas 52
r
�≡ 1 (mod 2r ),
r r−2
donde 5 mod 2 tem ordem 2 .

Para mais resultados nesta linha, recomendamos o excelente artigo de


J.-P. Serre [Ser07].

2.5 Exercı́cios
2.1 Encontre fórmulas explı́citas para as seguintes recursões:
(a) G0 = 0, G1 = 1 e Gn+2 = 5Gn+1 − 6Gn para n ≥ 0.
2.5. EXERCÍCIOS 73

(b) P0 = P1 = 1, P2 = 0 e Pn+3 = 7Pn+1 − 6Pn para n ≥ 0.

2.2 (Binômio de Newton) Para α ∈ Q e k ∈ N, definimos o coeficiente


binomial generalizado
k termos
� � � �� �
α def α · (α − 1) · . . . (α − k + 1)
=
k k!

Seja k um corpo de caracterı́stica 0, seja n ∈ N e considere o elemento de


k�t�
� �1/n�
f= tk
k
k≥0

Mostre que f n = 1 + t.

2.3 Seja k um corpo e seja A = k�t�. Seja f (x) ∈ A[x] e denote por
f (x) ∈ k[x] o polinômio obtido por redução módulo t dos coeficientes de
f (x). Prove o lema de Hensel para A: se a ∈ A é tal que a ∈ k = A/(t) é
raiz simples de f (x), então existe ã ∈ A tal que

f (ã) = 0 e ã ≡ a (mod t)

2.4 (Fórmula de multisecção) Sejam a, n ∈ N, seja k um corpo cuja


caracterı́stica não divide n e seja ω uma raiz n-ésima
� primitiva da unidade
(em algum fecho algébrico de k). Dado f (t) = j≥0 aj tj ∈ k�t�, mostre que
� 1 � −ia
a j tj = ω f (ω i t)
n
j≡a (mod n) i≥0

√ √
2.5 (a) Mostre que (i 2) é um
√ ideal
√ maximal de Z[i 2] e determine expli-
citamente o quociente Z[i 2]/(i 2).

(b) Determine a cardinalidade de Z[i 2]/(2n ) em função de n ∈ N.

2.6 Seja Fn denota o n-ésimo número de Fibonacci e p �= 5 um número


primo. Neste exercı́cio, mostraremos que

p | Fp−1 se p ≡ ±1 (mod 5)
p | Fp−1 se p ≡ ±2 (mod 5)
√ √
αn −β n 1+ 5 1− 5
Lembre que Fn = α−β onde α = 2 e β = 2 são as raı́zes de
x2 − x − 1 = 0.

(a) Mostre que α, β ∈ Z[α]× .


74 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

(b) Mostre que, no quociente Z[α]/(p),



p α se p ≡ ±1 (mod 5)
α =
β se p ≡ ±2 (mod 5)

Dica: Utilize a reciprocidade quadrática.


(c) Conlcua a demonstração do fato do enunciado.
(d) Mostre que Fp2 −1 é um múltiplo de p.

2.7 Mostre que o polinômio f (x) = x4 − 10x2 + 1 é irredutı́vel em Z[x], mas


sua imagem é redutı́vel em Fp [x] para todo para todo primo p.
Dica: Utilize a reciprocidade quadrática.

2.8 Considere o anel


Q[x, y]
A=
(x2 + y 2 − 1)

(a) Mostre que há uma bijeção entre o conjunto de todos os morfismos de
anéis f : A → Q e pontos racionais (i.e. pontos com ambas as coordena-
das racionais) do cı́rculo de equação x2 + y 2 = 1.
(b) Mostre que há uma bijeção entre o conjunto de todos os morfismos de
anéis f : A → Q(i) e pontos do cı́rculo de equação x2 +y 2 = 1 com ambas
as coordenadas em Q(i).
(c) Determine (geradores
√ para) ker f , onde f : A → C é o morfismo dado por
x̄ �→ i e ȳ �→ 2.

2.9 Seja k um corpo infinito e seja f ∈ k[x1 , . . . , xn ] um polinômio. Mostre


que se f (a1 , . . . , an ) = 0 para todo (a1 , . . . , an ) ∈ k n então f = 0. Encontre
um contra-exemplo no caso em que k é um corpo finito.

2.10 Dado um espaço topológico X, seja


def
HomTop (X, R) = {f : X → R | f é uma função contı́nua}

o anel das funções contı́nuas reais em X, com a soma e o produto usuais de


funções (induzidos pela soma e produto de R). Observe os elementos neutros
da adição e multiplicação são respectivamente as funções constantes 0 e 1.
(a) Determine o grupo das unidades de HomTop (X, R).
(b) Para x ∈ X, mostre que
def
mx = {f ∈ HomTop (X, R) | f (x) = 0}

é um ideal maximal de HomTop (X, R).


2.5. EXERCÍCIOS 75

(c) Mostre que se X é compacto e Hausdorff temos uma bijeção

fX : X

✲ Specm HomTop (X, R)
x �−→ mx

Dica: Utilize o lema de Urysohn para mostrar a injetividade.

2.11 Na notação do exercı́cio anterior, se Y é outro espaço topológico e


φ : X → Y é uma função contı́nua, mostre que

HomTop (φ, R) : HomTop (Y, R) ✲ HomTop (X, R)


g �−→ g ◦ φ

é um morfismo de anéis e que HomTop (−, R) é um funtor contravariante


da categoria de espaços topológicos para a categoria de anéis comutativos.
Mostre ainda que
HomTop (φ, R)−1 (mx ) = mφ(x)
e que se X e Y são Hausdorff compactos então temos um diagrama comutativo

fX
X ≈ Specm HomTop (X, R)
φ m�→HomTop (φ,R)−1 m
fY
Y ≈ Specm HomTop (Y, R)

cujas flechas horizontais são isomorfismos.

2.12 Seja k um corpo algebricamente fechado e sejam V ⊆ Amk e W ⊆ Ak


n

duas variedades. Neste exercı́cio, mostraremos que o produto V × W ⊆


Am+n
k também é uma variedade.

(a) Seja f ∈ k[x1 , . . . , xm , y1 , . . . , yn ]. Considere o subconjunto de Ank dado


por

Zf = {(b1 , . . . , bn ) ∈ Ank | f (x1 , . . . , xm , b1 , . . . , bn ) ∈ I(V )}

onde I(V ) ⊆ k[x1 , . . . , xm ] é o ideal de V . Mostre que Zf é um fechado


de Ank na topologia de Zariski.

(b) Sejam f, g ∈ k[x1 , . . . , xm , y1 , . . . , yn ] tais que f · g ∈ I(V × W ). Mostre


que
W = (Zf ∩ W ) ∪ (Zg ∩ W )

(c) Conclua que o ideal I(V × W ) ⊆ k[x1 , . . . , xm , y1 , . . . , yn ] é primo e por-


tanto que V × W é uma variedade.
76 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA

2.13 Mostre que temos uma bijeção entre a reta projetiva e a circunferência

P1C → Z+ (x2 + y 2 − z 2 )
(a : b) �→ (b2 − a2 : 2ab : a2 + b2 )

Se t = a/b, esta bijeção é dada pela “projeção estereográfica” a partir do


ponto (−1, 0):

P1C
� 1−t2 2t

1+t2 , 1+t 2

(−1, 0) (0, t)

Mostre ainda que esta bijeção se restringe a uma bijeção entre os abertos
afins
A1C \ {±i} e Z(x2 + y 2 − 1) \ {(−1, 0)}

2.14 Seja p �= 2 um primo e seja u ∈ Zp tal que u ∈


/ (F× )2 . Mostre que a
forma quadrática

f (x, y, z, w) = x2 + uy 2 + pz 2 + upw2

é anisotrópica sobre Qp .

2.15 (Lema de Hensel, o retorno) Seja f (x) ∈ Zp [x] e seja f (x) ∈ Fp [x]
o polinômio obtido por redução módulo p dos coeficientes de f (x). Suponha
que a ∈ Zp é tal que

vp (f (a)) > 2vp (f � (a)) ⇐⇒ |f (a)|p < |f � (a)|2p

Mostre que existe ã ∈ Zp tal que



f (ã) = 0 e ã ≡ a (mod pvp (f (a)/f (a))
)

2.16 Mostre
(a) u ∈ Z×
2 é um quadrado perfeito se, e só se, u ≡ 1 (mod 8).

(b) Q× × 2
2 /(Q2 ) = {±1, ±5, ±2, ±10} é um grupo isomorfo a Z/2Z ⊕ Z/2Z ⊕
Z/2Z.
(c) há exatamente 7 extensões quadráticas de Q2 em seu fecho algébrico.
2.5. EXERCÍCIOS 77

(d) toda forma quadrática sobre Q2 com 5 ou mais variáveis é isotrópica.

2.17 (Unidades em Zp ) Considere as séries

def
� zn def
� zn
exp(z) = e log(1 + z) = (−1)n+1
n! n
n≥0 n≥1

e o subgrupo multiplicativo de Z×
p

U (n) = {a ∈ Z×
p |a≡1 (mod pn )}

Mostre que
(a) log(1 + z) converge para todo z ∈ Zp .
(b) exp(z) converge para todo z ∈ Zp com vp (z) ≥ 1 se p �= 2 e com v2 (z) ≥ 2
se p = 2.
(c) log(1 + z) e exp(z) definem isomorfismos de grupos entre U (1) e (p) se
p �= 2 e entre U (2) e (22 ) se p = 2.
(d) Qp contém todo o subgrupo µp−1 das raı́zes (p − 1)-ésimas da unidade.
(e) temos isomorfismos de grupos

Q× ∼ Z ⊕ µp−1 ⊕ Zp se p �= 2
p =
Z ⊕ {±1} ⊕ Zp se p = 2

2.18 (Minkowski) Seja G ⊆ GLn (Q) um subgrupo finito. Vamos mostrar


que v2 (|G|) ≤ M (n, 2) (na notação do teorema de Minkowski).
(a) Mostre que existe uma forma quadrática definida positiva sobre Q que é
invariante por G.
Dica: Seja q qualquer
� forma quadrática definida positiva e considere a
1
“média” v �→ |G| g∈G q(gv).

(b) Mostre que para p primo suficientemente grande G ⊆ On (q)(Zp ) para


a forma quadrática q do item anterior; aqui On (q)(Zp ) denota o grupo
ortogonal (sobre Zp ) correspondente a q. Conclua que neste caso a com-
posição G �→ On (q)(Zp ) → On (q)(Fp ) com a redução módulo p é injetora.
(c) Seja q uma forma quadrática não degenerada qualquer sobre Fnp (p �= 2) e
denote por On (q)(Fp ) o grupo ortogonal correspondente. Seja r = �n/2�.
Mostre que
 r2 � 2i
2p
 1≤i≤r (p − 1) se n é ı́mpar
|On (q)(Fp )| = 2pr(r−1) � 2i

 1≤i≤r (p − 1)
se n é par
pr + �
78 CAPÍTULO 2. ANÉIS QUE APARECEM NA NATUREZA
� �
(−1)r D
em que � = e D é o discriminante de q (o determinante da
p
matriz de q com relação a uma base).
(d) Conclua que v2 (|G|) ≤ M (n, 2).
Parte II

Scherzo

79
Capı́tulo 3

Ideais Primos e Espectro

Para realmente entendermos um anel, precisamos sobretudo conhecer seus


ideais; e dentre estes, os ideais primos têm um papel digamos primordial. . .
Neste capı́tulo, definiremos a dimensão de um anel e introduziremos uma
topologia no conjunto de todos os seus ideais primos, a chamada topologia de
Zariski. Com isto, sinalizamos um dos temas recorrentes deste manuscrito:
que anéis comutativos são, sobretudo, objetos geométricos por natureza.

3.1 Ideais primos


Começamos apresentando os protagonistas deste capı́tulo:
3.1.1 Definição Seja A um anel.
1. Um ideal p ⊂ A é dito primo se satisfaz as seguintes condições equiva-
lentes:
(i) A/p é um domı́nio;
(ii) p é um ideal próprio e, dados a, b ∈ A,
ab ∈ p =⇒ a ∈ p ou b ∈ p

(iii) p é um ideal próprio e, dados ideais a, b ⊆ A,


p ⊇ ab =⇒ p ⊇ a ou p ⊇ b

2. O conjunto de todos os ideais primos de A é chamado de espectro


primo (ou simplesmente espectro) de A e é denotado por Spec A.
3. Se φ : A → B um morfismo de anéis, denotamos por
Spec(φ) : Spec B → Spec A
q �→ φ−1 (q)
o mapa entre espectros induzido por φ : A → B.

81
82 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

Muito bem, que tal verficarmos algumas coisas nesta definição? Note que
em (1), as condições (i)–(iii) são de fato equivalentes: o anel quociente A/p
é um domı́nio se, e só se,
(a) A/p �= 0, i.e., p é um ideal próprio de A e
(b) para quaisquer a, b ∈ A, a · b = 0 ⇐⇒ a = 0 ou b = 0. Ou, em outras
palavras, a · b ∈ p ⇐⇒ a ∈ p ou b ∈ p.
Assim, temos (i) ⇔ (ii).
É também claro que (iii) ⇒ (ii), pois basta tomar a = (a) e b = (b).
Para mostrar que (ii) ⇒ (iii), suponha por absurdo que p ⊇ ab mas p �⊇ a
e p �⊇ b. Neste caso, existem elementos a ∈ a \ p e b ∈ b \ p, logo por (ii)
devemos ter ab �∈ p. Por outro lado, temos ab ∈ ab ⊆ p, uma contradição.
Em (3), precismaos verificar que φ−1 (q) é de fato um ideal primo de B.
Temos que φ−1 (q) ⊆ B é um ideal pelo teorema 1.4.4 na página 13. Este ideal
é primo, pois primeiro φ−1 (q) é próprio, já que 1 ∈ φ−1 (q) ⇐⇒ 1 = φ(1) ∈ q
seria um absurdo (lema 1.3.2 na página 8) e segundo, para quaisquer a, b ∈ B,
temos

ab ∈ φ−1 (q) ⇐⇒ φ(a)φ(b) = φ(ab) ∈ q ⇐⇒ φ(a) ∈ q ou φ(b) ∈ q


⇐⇒ a ∈ φ−1 (q) ou b ∈ φ−1 (q)

O nome primo é emprestado do anel Z.1 Lembrando a máxima “di-


vidir é conquistar”, ops, quero dizer “conter é dividir”2 , temos a seguinte
correspondência:
No mundo inteiro No mundo ideal
1 não é número primo p�A
(ao contrário da crença popular!)
se ab é múltiplo de um primo p ab ∈ p implica
então a ou b é múltiplo de p a ∈ p ou b ∈ p
Já o termo espectro tem sua origem nos espectros de operadores lineares
que vocês estudaram em Análise Funcional! Por exemplo, se T : V → V é um
operador linear agindo sobre um espaço vetorial V de dimensão finita sobre
C, temos (exercı́cio 3.1 na página 95)

Spec C[T ] = {(T − λ) | λ é autovalor de T }

Por sua vez, o nome espectro no contexto da Análise Funcional parece ter
sido cunhado por Hilbert, aparentemente por alguma analogia superficial com
o espectro ótico de moléculas em Fı́sica! Bem, ninguém disse que todos os
nomes precisam fazer sentido. . .
Antes de darmos exemplos, vejamos alguns resultados básicos que seguem
diretamente das definições.
1 Surpresa! Você achou que fosse o filho da tia ideal?
2 pelo menos no mundo ideal, em que (a) ⊇ (b) ⇐⇒ a | b.
3.1. IDEAIS PRIMOS 83

Lema 3.1.2 Seja A um anel.

1. Temos que Specm A ⊆ Spec A, ou seja,

m é ideal maximal =⇒ m é ideal primo

2. Spec A = ∅ ⇐⇒ A = 0

3. Seja a um ideal qualquer do anel A e π : A � A/a o mapa quociente.


Então
Spec(π) : Spec A/a �→ Spec A
é injetor, com imagem dada por
def
V (a) = {p ∈ Spec A | p ⊇ a}

de modo que temos uma identificação natural

Spec A/a = V (a)

Demonstração:

1. Se m ⊂ A é maximal, A/m é um corpo (corolário 1.4.5 na página 14) e


portanto um domı́nio.3 .

2. Segue do item anterior e do fato de que Specm A = ∅ ⇐⇒ A = 0


(teorema 1.3.4 na página 9).

3. Segue diretamente do teorema da correspondência (teorema 1.4.4 na


página 13).

3.1.3 Exemplo (0) ∈ Spec A se, e só se, A é um domı́nio.

3.1.4 Exemplo Se k é um corpo, Spec k = {(0)}.

3.1.5 Exemplo Sejam A e B dois anéis. Como qualquer ideal de A× B é da


forma a × b para dois ideais a ⊆ A e b ⊆ B (verifique!) e (A × B)/(a × b) =
A/a × B/b é um domı́nio se, e só se, um dos fatores é 0 e o outro é um
domı́nio, concluı́mos que os ideais primos de A × B são os da forma p × (0)
e (0) × q com p ∈ Spec A e q ∈ Spec B. Assim, temos uma união disjunta

Spec(A × B) = Spec A � Spec B

em que identificamos p × (0) ∈ Spec(A × B) com p ∈ Spec A e (0) × q ∈


Spec(A × B) com q ∈ Spec B.
3 “Corpo é domı́nio”, o lema da academia de ginástica!
84 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

3.1.6 Exemplo Se A é um DFU4 , um ideal principal (f ) não nulo é primo


se, e só se, f é irredutı́vel: se f é irredutı́vel então (f ) � A e, pela fatoração
única,

ab ∈ (f ) ⇐⇒ f | ab ⇐⇒ f | a ou f | b ⇐⇒ a ∈ (f ) ou b ∈ (f )

logo (f ) é um ideal primo. Reciprocamente, se f �= 0 não é irredutı́vel, ou


f ∈ A× , mas neste caso (f ) = A não é próprio, ou f = ab é redutı́vel com
/ A× , mas neste caso ab ∈ (f ) enquanto que a ∈
a, b ∈ / (f ) e b ∈
/ (f ). Logo (f )
não é ideal primo.
Note entretanto que um DFU em geral possui diversos ideais primos que
não são principais: por exemplo, se k é um corpo, temos que

(x1 ), (x1 , x2 ), ..., (x1 , x2 , . . . , xn ) ∈ Spec k[x1 , . . . , xn ]

já que os anéis quocientes

k[x1 , x2 , . . . , xn ] ∼
= k[xi+1 , xi+2 , . . . , xn ]
(x1 , . . . , xi )

são domı́nios.

3.1.7 Exemplo Se A é um DIP (logo um DFU pelo teorema B.1.4 na


página 344), pelo exemplo anterior temos que

Spec A = {(0)} ∪ {(π) | π ∈ A é irredutı́vel}

Assim, em particular, todo ideal primo não nulo em um DIP A é maximal,


já que para dois irredutı́veis π1 , π2 ∈ A temos

(π1 ) ⊇ (π2 ) ⇐⇒ π1 | π2 ⇐⇒ π1 e π2 são associados ⇐⇒ (π1 ) = (π2 )

Assim, por exemplo,


� � � �
Spec Z = (0) ∪ (p) | p é um número primo
� � � �
Spec C[t] = (0) ∪ (t − a) | a ∈ C
� �
Spec Q�t� = (0), (t) (ver proposição 2.1.2 na página 34)
� �
Spec Zp = (0), (p) (ver proposição 2.4.1 na página 62)
� � � �
Spec Z[i] = (0) ∪ (1 + i)
� �
∪ (p) | p é um número primo com p ≡ 3 (mod 4)
� � �
� p é um número primo com
∪ (a ± bi) ��
p ≡ 1 (mod 4) e a2 + b2 = p
(ver apêndice B.2 na página 346)
4 ver apêndice B.1 na página 342
3.1. IDEAIS PRIMOS 85

3.1.8 Exemplo Pelo exemplo anterior e o lema 3.1.2 na página 83, temos
� � �
Spec Z/(n) = (p) � p é fator primo de n
� � � � �
Spec C[t]/ f (t) = (t − a) � a ∈ C, f (a) = 0

para n ∈ Z e f (t) ∈ C[t] não nulos.

Para anéis graduados, primalidade de ideais homogêneos pode ser testada


olhando-se apenas elementos homogêneos:

Lema 3.1.9 Seja A = d∈Z Ad um anel graduado. Um ideal homogêneo
próprio p � A é primo se, e só, ab ∈ p ⇐⇒ a ∈ p ou b ∈ p com a, b ∈ A
homogêneos.

Demonstração: Uma direção é trivial; para a outra, suponha por absurdo


que ab ∈ p ⇐⇒ a ∈ p ou b ∈ p com a, b ∈ A homogêneos mas que p não
seja primo. Então existem dois elementos a, b ∈ A (não homogêneos) tais que
ab ∈� p mas a ∈ /�p e b ∈
/ p; escreva-os como soma de elementos homogêneos:
a= ad , b = bd com ad , bd ∈ Ad . Como p é homogêneo, existem inteiros
m e n tais que am ∈ / p e bn ∈ / p (lema 1.7.3 na página 27); tome m e n
mı́nimos com estas propriedades. Novamente pela homogeneidade, o termo
de grau m + n em ab pertence a p, logo

· · · + am−2 bn+2 + am−1 bn+1 + am bn + am+1 bn−1 + am+2 bn−2 + · · · ∈ p

Porém cada termo ai bj com i < m ou j < n pertence a p, logo am bn ∈ p,


uma contradição.

Encerramos esta seção com o seguinte interessante resultado (que utiliza-


remos frequentemente mais tarde):
Teorema 3.1.10 (Prime avoidance) Seja A um anel, seja a ⊆ A um ideal
arbitrário e sejam p1 , . . . , pn ideais de A com pi ∈ Spec A para i = 3, 4, . . . , n.
Então �
a⊆ pi ⇐⇒ a ⊆ pi para algum i
1≤i≤n

Demonstração: A prova é por indução em n, o caso n = 1 sendo trivial.


Se n = 2, supondo por absurdo que o resultado é falso, existem ai ∈ a \ pi
para i = 1, 2. Como a ⊆ p1 ∪ p2 , devemos ter a1 ∈ p2 e a2 ∈ p1 . Mas então
a1 + a2 ∈ a não pertence a nenhum dos pi : se por exemplo a1 + a2 ∈ p1 ,
então a1 = (a1 + a2 ) − a2 ∈ p1 , uma contradição.
Agora suponha n > 2, de modo que pn ∈ Spec A. Por indução, podemos
� está contido na união de n − 1 dentre os
supor que a não � ideais p1 , . . . , pn ;
tome ai ∈ a \ j�=i pj para cada i = 1, . . . , n. Como a ⊆ 1≤i≤n pi , devemos
necessariamente ter ai ∈ pi mas ai ∈ / pj se j �= i.
Considere o elemento a = an + a1 a2 . . . an−1 ∈ a. Afirmamos que a não
pertence a nenhum dos ideais pi , o que é uma contradição. De fato: por um
3.2. DIMENSÃO DE KRULL 87

Na tabela acima, k[x1 , x2 , x3 , . . .] denota o anel de polinômios em infinitas


variáveis sobre um corpo k: cada elemento deste anel é um polinômio usual
cujas variáveis estão em um subconjunto finito de {x1 , x2 , x3 , . . .}, ou seja,5

k[x1 , x2 , x3 , . . .] = inj lim k[x1 , . . . , xn ] = k[x1 , . . . , xn ]
n∈N
n∈N

Veremos mais tarde (assim que tivermos um pouco mais ferramentas,


veja o corolário 14.4.2 na página 270) que as duas desigualdades acima são
na verdade igualdades. Para as duas últimas entradas da tabela, veja os
exemplos a seguir.

3.2.2 Exemplo Temos que dim Z[ 5] = 1 com
√ √ √
Spec Z[ 5] = {(0)} ∪ {( 5)} ∪ {( 5 − 1, 2)}
∪ {(p) | p �= 2 primo com p ≡ ±2 (mod 5)}
� � �
√ � p primo com p ≡ ±1 (mod 5) e
∪ ( 5 ± a, p) � �
a ∈ Z com a2 ≡ 5 (mod p)

Para mostrar isto, considere o√mapa de espectros f √: Spec Z[ 5] → Spec Z
induzido pela inclusão Z �→ Z[ 5]. Dado q ∈ Spec Z[ 5], temos dois casos a
considerar:
Caso f (q) = (0) ⇐⇒ q ∩ Z = (0): neste caso, temos √ q = (0). De fato,
vamos mostrar que q �= (0) =⇒ q ∩ Z �= (0). Seja a + b 5 ∈ q um elemento
não nulo.
√ Multiplicando
√ pelo conjugado, obtemos um elemento não nulo
(a + b 5)(a − b 5) = a2 − 5b2 ∈ q ∩ Z.
Caso f (q) = (p) ⇐⇒ q ∩ Z = (p) para algum número primo p: neste
caso, veremos que q é maximal. Como q ⊇ (p), o problema se reduz a
determinar Spec Z[α]/(p). Temos isomorfismos
√ √
Z[ 5] 5←�x
∼ Z[x]/(x2 − 5) Z[x] Fp [x]
= = 2 = 2
(p) (p) (x − 5, p) (x − 5)

Assim temos alguns subcasos, de acordo com a fatoração de x2 − 5 em Fp [x].


Se p �= 2, 5, pela reciprocidade quadrática (teorema 2.2.6 na página 42),
temos que 5 é um quadrado perfeito em Fp exatamente quando
� � � �
p 5
= 1 ⇐⇒ = 1 ⇐⇒ p ≡ ±1 (mod 5)
5 p

Portanto se p ≡ ±2 (mod 5) o polinômio x2 − 5 é irredutı́vel em Fp [x] e


portanto Fp [x]/(x2 − 5) é√
um corpo finito com 52 = 25 elementos; neste caso,
q = (p) é maximal em Z[ 5].
5 ver apêndice A.3 na página 333 para a definição de limite direto
88 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

Por outro lado, se p ≡ ±1 (mod 5), o polinômio x2 − 5 = (x − ā)(x + ā)


se fatora em Fp [x] em dois fatores distintos (já que p =
� 2, 5). Pelo teorema
chinês dos Restos (teorema 1.5.1 na página 17)

(x,0)�→(a,0)
Fp [x] Fp [x] Fp [x] (0,x)�→(0,−a)

= × = F p × Fp
2
(x − 5) (x − ā) (x + ā)

é o produto de dois corpos, de modo que seus ideais primos são os ideais
maximais (0) × Fp e Fp × (0), que correspondem aos ideais√ maximais√(x̄ − ā) e
(x̄+ā)√em Fp [x]/(x −5), ou seja, aos ideais maximais ( 5−a, p) e ( 5+a, p)
2

em Z[ 5] para a ∈ Z √ um levantamento qualquer de ā ∈ Fp . Neste subcaso,


temos portanto q ∈ {( 5 ± a, p)}.
Finalmente, para p = 2, os ideais primos de F2 [x]/(x2 −5) = F2 [x]/(x−1)2
correspondem aos divisores irredutı́veis de (x − 1)√2 em F2 [x], ou seja, apenas
a√(x − 1). O ideal primo correspondente em Z[ 5] é o ideal maximal q =
( 5− √ 1, 2). Analogamente,
√ para o caso p = 5 obtemos o ideal maximal
q = ( 5) ∈ Spec Z[ 5].
Resumimos os casos acima no seguinte diagrama esquemático:

(11, 4 + 5)

(2, 5 − 1) √
(3) ( 5) (7) (13)

(11, 4 − 5)
f

(2) (3) (5) (7) (11) (13)


√ Z e Spec Z[ 5] são representados por curvas√(pois afinal de contas
Aqui, Spec
Z e Z[ 5] têm dimensão 1!), com o mapa f : Spec Z[ 5] → Spec Z √ fazendo
o papel
√ de projeção em um “recobrimento duplo ramificado em (2, 5 − 1)
e ( 5)”; ideais maximais são representados por pontos e os ideais (0) pelas
linhas cheias, “espalhados” por toda a curva.
Se você está achando que os autores neste momento endoidaram de vez,
calma! Esta representação fará mais sentido após o exemplo a seguir e quando
mais tarde introduzirmos a noção de esquema, que permite “visualizar” qual-
quer anel comutativo como um objeto geométrico.

3.2.3 Exemplo Considere a curva plana E = V (y 2 − x3 + x) ⊆ A2C e seja


A = C[x, y]/(y 2 − x3 + x) o seu anel de funções regulares (seção 2.3.2 na
página 49). Temos dim A = 1 com

Spec A = {(0)} ∪ {(x − a, y − b) | b2 = a3 − a}


3.2. DIMENSÃO DE KRULL 89

Para mostrar isto, considere a projeção E → A1C no eixo x e pullback associ-


ado (definição 2.3.14 na página 51), que é o morfismo de C-álgebras
C[x, y]
φ : C[x] �→ A =
(y 2 − x3 + x)
x �→ x
que leva a função “coordenada” x de A1C na respectiva função “primeira
coordenada” x de E. Note que φ é injetor (nenhum polinômio na variável
x pode ser múltiplo de y 2 − x3 + x), de modo que podemos pensar√ em A
como sendo a “extensão quadrática de C[x] obtida adicionando-se x3 − x”:
utilizando a relação y 2 = x3 − x, temos um conjunto de representantes de
classe
C[x, y]
= C[x] + C[x] · y
(y 2 − x3 + x)
formado pelos polinômios p(x)+q(x)y de grau no máximo 1 em y. Isto mostra
que estamos trabalhando em um caso semelhante ao√do exemplo anterior, em
que também tı́nhamos uma extensão quadrática Z[ 5] ⊃ Z. Copiando a de-
monstração, seja f = Spec(φ) : Spec A → Spec C[x] o morfismo de espectros
associado a φ e seja q ∈ Spec A. Novamente, temos dois casos a analisar:

Caso f (q) = (0) ⇐⇒ q ∩ C[x] = (0): neste caso, temos q = (0). Inicial-
mente, observe que y 2 − x3 + x é um polinômio irredutı́vel no DFU C[x, y] e
assim (y 2 − x3 + x) ⊂ C[x, y] é um ideal primo e A = C[x, y]/(y 2 − x3 + x)
é um domı́nio6 . Portanto (0) ∈ Spec A. Para mostrar que este é o único
q ∈ Spec A com f (q) = (0), tome um elemento não nulo a(x) + b(x)y ∈ q e
multiplique-o por seu “conjugado”, obtendo
� � � �
a(x) + b(x)y · a(x) − b(x)y = a(x)2 − b(x)2 (x3 − x) ∈ q ∩ C[x],
que é um elemento não nulo, pois é o produto de dois elementos não nulos
no domı́nio A.

Caso f (q) = (x − a) ⇐⇒ q ∩ C[x] = (x − a) para algum a ∈ C. Como no


exemplo 3.2.2 na página 87, vamos mostrar que q é maximal; aqui, devemos
calcular Spec A/(x − a). Seja b ∈ C tal que b2 = a3 − a, de modo que temos
um isomorfismo
A C[x, y] x�→a
∼ C[y] C[y]
= 2 3 = 2 3
= 2
(x − a) (y − x + x, x − a) (y − a + a) (y − b2 )
Temos alguns subcasos de acordo com a fatoração de y 2 − b2 : primeiro, se
b �= 0, pelo teorema chinês dos restos (teorema 1.5.1 na página 17) temos
(y,0)�→(b,0)
C[y] C[y] C[y] (0,y)�→(0,−b)

= × = C × C,
(y 2 − b2 ) (y − b) (y + b)
6 em particular, E é irredutı́vel (proposição 2.3.18 na página 53)
90 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

que possui dois ideais primos (0) × C e C × (0), ambos maximais, correspon-
dendo aos ideais primos (e maximais) (y − b, x − a) e (y + b, x − a) de A.
Segundo, se b = 0 (isto é, se a3 − a = 0 ⇐⇒ a = 0 ou a = ±1) então só
há um primo (y) em C[y]/(y 2 ), que corresponde ao ideal primo (e maximal)
(y, x − a).
Resumindo: Spec C[x, y]/(y 2 − x3 + x) consiste no ideal (0) e nos ideais
maximais (x − a, y − b), que estão em bijeção com os pontos (a, b) ∈ E (o
que já sabı́amos pelo Nullstellensatz, teorema 2.3.20 na página 55, mas neste
caso particular temos uma prova direta). Pictoriamente (c.f. o diagrama no
exemplo 3.2.2 na página 87):

(x − a, y − b)
f

(x − a)

3.3 Topologia de Zariski


Nesta seção, começamos a explorar o caráter geométrico dos anéis comutati-
vos. Para isto, munimos o espectro de um anel com uma topologia.

3.3.1 Definição Seja A um anel.

1. Dado um ideal qualquer a ⊆ A, definimos


def
V (a) = {p ∈ Spec A | p ⊇ a}

2. Dado um elemento h ∈ A, definimos


def
D(h) = {p ∈ Spec A | p �� h}

O próximo lema, cuja prova é imediata, mostra que os conjuntos da forma


V (a) são os fechados de uma topologia em Spec A, a chamada topologia de
Zariski.

Lema 3.3.2 Seja A um anel. Então

1. V ((0)) = Spec A e V ((1)) = ∅

2. V (a) ∪ V (b) = V (ab)


3.3. TOPOLOGIA DE ZARISKI 91

� �
3. i∈I V (ai ) = V ( i∈I ai )

Aqui i∈I ai denota o ideal gerado pela famı́lia de ideais {ai }i∈I .

Vejamos algumas propriedades da topologia de Zariski.

Teorema 3.3.3 (Topologia de Zariski) Seja A um anel. Temos

1. A famı́lia de subconjuntos {D(h)}h∈A de Spec A é uma base de abertos


da topologia de Zariski.

2. D(gh) = D(g) ∩ D(h).

3. Se φ : A → B é um morfismo de anéis e h ∈ A, temos


� �−1 � � � �
Spec (φ) D(h) = D φ(h)

Em particular, Spec(φ) : Spec B → Spec A é um mapa contı́nuo pelo


item (1).

4. Se p ∈ Spec A, temos {p} = V (p) (fecho topológico). Em particular,

(i) m ∈ Spec A é um ponto fechado se, e só se, m é um ideal maximal;


(ii) se A é um domı́nio, (0) é um ponto denso.

5. Spec A é compacto.

Demonstração:

1. Segue da identidade Spec A \ V (a) = h∈a D(h) (um primo p não
contém a se, e só se, p não contém algum elemento h ∈ a).

2. Segue de gh ∈
/ p ⇐⇒ g ∈
/peh∈
/ p para p ∈ Spec A.

3. Temos
� �−1 � �
q ∈ Spec (φ) D(h) ⇐⇒ Spec (φ)(q) = φ−1 (q) ∈ D(h)
/ φ−1 (q) ⇐⇒ φ(h) ∈
⇐⇒ h ∈ /q
� �
⇐⇒ q ∈ D φ(h)

4. Segue de
� �� �
{p} = V (a) = V a = V (p)
V (a)�p a⊆p
92 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

5. Pelo item (1), é suficiente provar que toda cobertura de Spec A por
uma famı́lia de abertos básicos7 {D(hα )}, hα ∈ A, admite subcobertura
finita. Note que
� �� � �
D(hα ) = Spec A ⇐⇒ V (hα ) = V ((hα )) = ∅
α α α
cor. 1.4.5

⇐⇒ (hα ) = (1)
α

Assim podemos escrever 1 = 1≤i≤n ai hαi como�combinação A-linear
finita de elementos hαi , o que implica Spec A = 1≤i≤n D(hαi ).

Corolário 3.3.4 Seja A um anel e a ⊆ A um ideal qualquer. Temos um


homeomorfismo

Spec(π) : Spec(A/a) ✲ V (a) ⊆ Spec A


induzido pelo mapa quociente π : A � A/a.

Demonstração: Pelo teorema anterior e o lema 3.1.2 na página 83, já


sabemos que Spec(π) : Spec(A/a) �→ Spec A é uma injeção contı́nua com
imagem fechada V (a) ⊆ Spec A, assim basta mostrar que o mapa Spec(π) é
fechado. Mas isto é claro: pelo teorema da correspondência (teorema 1.4.4
� dado �um ideal b/a ⊆ A/a (para um ideal b ⊇ a de A), temos
na página 13),
que Spec(π) V (b/a) = V (b).

3.3.5 Exemplo Seja k um corpo.


• Em Spec(k × k) = {(0) × k, k × (0)}, ambos os ideais são maximais
e portanto fechados, logo todos os subconjuntos de Spec(k × k) são
fechados e a topologia de Zariski neste caso coincide com a discreta.
Note que este espaço é desconexo, logo redutı́vel8 . Pictoriamente

(0) × k k × (0)

• Em Spec k�t� = {(0), (t)} (proposição 2.1.2 na página 34), por outro
lado, temos que (t) é um ponto fechado enquanto (0) é um ponto denso.
Assim, os fechados de Spec k�t� são: ∅, Spec k�t� e {(t)}. Note que
Spec k�t� é irredutı́vel, logo conexo. Esquematicamente:

(0)
(t)
7 não, não, você não precisa considerar os abertos ácidos!
8 veja apêndice A.1 na página 321 para as definições
3.3. TOPOLOGIA DE ZARISKI 93

• Como k[t] é um DIP e, para f ∈ k[t] não nulo,

V ((f )) = {(p) | p é um fator irredutı́vel de f }

vemos que os fechados em Spec k[t] são exatamente os subconjuntos


finitos de Specm k[t] = Spec k[t] \ {(0)} e todo espectro. Note que
Spec k[t] é irredutı́vel e conexo. Para k = R (por exemplo), temos
pictoriamente

(0)
(t + 2) (t2 + t + 1) (t) (t − 1) (t2 + 1)

3.3.6 Exemplo (Conexidade e Indecomponibilidade) Dados os anéis


A �= 0 e B �= 0, podemos escrever Spec(A × B) como uma união disjunta de
dois fechados (logo também abertos) (exemplo 3.1.5 na página 83)

Spec(A × B) = V (A × (0)) � V ((0) × B) = Spec A � Spec B

em que identificamos p × (0) ∈ V (A × (0)) com p ∈ Spec A e (0) × q ∈


V ((0) × B) com q ∈ Spec B. Como A �= 0 e B �= 0, temos que Spec A �= ∅
e Spec B �= ∅ (lema 3.1.2 na página 83), logo a decomposição acima é não
trivial, mostrando que o espectro Spec(A × B) de um anel decomponı́vel é
desconexo (logo redutı́vel).
Veremos mais tarde (teorema 4.4.3 na página 109) que a recı́proca também
é verdadeira, de modo que o espectro de um anel é conexo se, e só se, este
anel é indecomponı́vel.

3.3.7 Exemplo Do exemplo √ 3.2.2 na página


√ 87, temos que qualquer subcon-
junto finito√ de Specm Z[ 5] = Spec Z[ 5] \ {(0)} é fechado. Por outro lado,
se a ⊆ Z[ 5] é um ideal não nulo, temos que existe n ∈ a com n ∈ Z e n �= 0
(basta tomar qualquer elemento não nulo de a e multiplicá-lo por seu conju-
gado, como no caso f (q) = (0) do exemplo). Assim, se p ∈ V (a) ⊆ V ((n)),
temos que p contém um dos fatores primos de n e assim pelo exemplo 3.2.2
na página 87 há apenas um número finito√ de possibilidades para p, i.e., V (a)
é um subconjunto finito de Specm √ Z[ 5]. Portanto, como no item anterior,
temos que os√fechados de Spec Z[ 5] são exatamente os subconjuntos
√ finitos
de Specm Z[ 5] e todo espectro. Note ainda que Spec Z[ 5] é irredutı́vel
e conexo e que (0) é um ponto denso, o que explica nossa escolha de repre-
sentá-lo no desenho do exemplo acima pela linha cheia, “espalhado” por toda
a curva.
De maneira similar, os fechados próprios de Spec C[x, y]/(y 2 − x3 + x) no
exemplo 3.2.3 na página 88 também são dados pelos subconjuntos finitos do
espectro maximal e este espaço também é irredutı́vel e conexo.

3.3.8 Exemplo (Teorema Chinês dos Restos Falsificado) Dado k um


corpo, considere o anel k[x, y]/(xy). Se p ∈ Spec k[x, y]/(xy), temos que
3.4. EXERCÍCIOS 95

Demonstração: Sendo P = (a1 , . . . , an ) ∈ X, temos que o ideal maximal


correspondente é mP = (x1 − a1 , . . . , xn − an ) ⊂ k[X] e portanto

mP ∈ V (a) ⇐⇒ mP ⊇ a em k[X] = k[x1 , . . . , xn ]/I(X)


corresp.
⇐⇒ (x1 − a1 , . . . , xn − an ) ⊇ A em k[x1 , . . . , xn ]
ex.1.4.7
⇐⇒ P = (a1 , . . . , an ) ∈ Z(A)

3.4 Exercı́cios
3.1 Seja V um espaço vetorial de dimensão finita sobre C e seja T : V → V
um operador linear. Mostre que
� �
(a) C[T ] = C[x]/ p(x) onde p(x) ∈ C[x] é o polinômio minimal de T .

(b) Spec C[T ] = {(T − λ) | λ é autovalor de T }

3.2 (a) Mostre que todo anel A �= 0 possui um ideal primo minimal com
relação à inclusão (por exemplo, se A é um domı́nio, então (0) é o único
primo minimal de A).

(b) Quais são os primos minimais de C[x, y]/(x2 −y 2 )? Dê uma interpretação
geométrica.

3.3 Seja A um anel graduado e a um ideal homogêneo de A.



(a) Mostre que a é um ideal homogêneo.

(b) Seja p ∈ Spec A um primo minimal contendo a. Mostre que p é ho-


mogêneo.

3.4 Para cada um dos anéis A a seguir, determinar

(i) Spec A e Specm A (o mais explicitamente possı́vel);

(ii) os abertos e fechados de Spec A;

(iii) dim A;

(iv) se Spec A é irredutı́vel ou conexo.

Dê também descrições geométricas destes anéis (por exemplo, faça um de-
senho) no maior número de casos que você conseguir. Aqui, p denota um
número primo.
96 CAPÍTULO 3. IDEAIS PRIMOS E ESPECTRO

(a) Fp (b) Q × Q
(c) Z × Z (d) Q[z]
(e) Q�z� (f) Q[z]/(z 2014 )
(g) Zp /(p2014 ) (h) C�z�/(z 2014 )
(i) C[x, y]/(x2014 , y 2014 ) (j) C[x, y]/(xy)2014
(k) Q[x, y]/(x2 − y 2 ) (l) R[z]/(z 2 + 1)
(m) C[z]/(z 2 + 1) (n) F5 [z]/(z 2 − 2)
(o) F5 [z]/(z 5 − 2) (p) Z[x]/(3x − 1)

3.5 Idem.

(a) C[x, y]/(y 2 − x3 ) (b) C�x, y�/(y 2 − x3 )


(c) C[x, y]/(y 2 − x2 (x + 1)) (d) C�x, y�/(y 2 − x2 (x + 1))
(e) C[x, y]/(y 2 − x3 + 1) (f) R[x, y]/(y 2 − x3 + 1)

(g) C[x, y, z]/(y − xz, z 2 − x − 1) (h) Z[ 2]
√ √
(i) Z[ 3 2] (j) Z[ 3 2]/(2013)
(k) Z[ζ5 ] em que ζ5 = e2πi/5 (l) Zp [x]/(x3 − p2 )
Capı́tulo 4

Localização

O corpo de frações Frac A de um domı́nio A é construı́do invertendo-se for-


malmente os elementos não nulos de A. Da mesma forma, dado um anel
qualquer A e um subconjunto multiplicativo S ⊆ A, a localização S −1 A é o
anel obtido invertendo-se formalmente os elementos de S.
Como os elementos de S passam a ser unidades em S −1 A, um efeito colate-
ral deste aumento de unidades é a redução na quantidade de primos: veremos
que Spec S −1 A identifica-se com o subconjunto de Spec A dos primos que não
interceptam S (daı́ a origem do nome localização). Esta “simplificação” do
anel A dada pela localização é, sem dúvidas, a principal ferramenta técnica
no estudo de anéis comutativos.

4.1 Construção e propriedade universal


4.1.1 Definição Seja A um anel. Um conjunto multiplicativo S ⊆ A é
um subconjunto que é fechado por produto (i.e., s, t ∈ S =⇒ st ∈ S) e tal
que 1 ∈ S.

Dado um anel A e um subconjunto multiplicativo S ⊆ A, a localização


de A com respeito a S é o anel S −1 A obtido “invertendo-se” os elementos
de S (que se tornam unidades em S −1 A); formalmente, S −1 A é construı́do
quocientando-se A × S pela seguinte relação de equivalência: escrevendo1 a
classe de equivalência de (a, s) ∈ A × S na forma de “fração” a/s, temos
a1 a2
= em S −1 A ⇐⇒ existe t ∈ S tal que t · (s2 a1 − s1 a2 ) = 0 em A
s1 s2

Soma e produto em S −1 A são definidos da maneira usual:


a1 a2 s 2 a1 + s1 a2 a1 a2 a1 a2
+ = · =
s1 s2 s1 s2 s1 s2 s1 s2
1 por motivos de sanidade psicológica

97
98 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

Uma verificação chata e rotineira mostra que estas operações estão bem defi-
nidas, isto é, não dependem dos representantes de classe utilizados. Para que
você não fique resmungando “os autores estão é na verdade com preguiça de
escrever os detalhes”, vamos excepcionalmente mostrar, a tı́tulo de exemplo,
que a soma está bem definida. Se

a1 b1 a2 b2
= e = (a1 , a2 , b1 , b2 ∈ A e s1 , s2 , t1 , t2 ∈ S)
s1 t1 s2 t2

então existem u, v ∈ S tais que u(t1 a1 − s1 b1 ) = v(t2 a2 − s2 b2 ) = 0. Como

s 2 a1 + s 1 a2 t 2 b 1 + t1 b 2
= em S −1 A
s1 s2 t1 t2
� �
⇐⇒ ∃w ∈ S tal que w t1 t2 (s2 a1 + s1 a2 ) − s1 s2 (t2 b1 + t1 b2 ) = 0 em A
� �
⇐⇒ ∃w ∈ S tal que w s2 t2 (t1 a1 − s1 b1 ) + s1 t1 (t2 a2 − s2 b2 ) = 0 em A

basta tomar w = uv ∈ S. Com isto provamos que a verificação é chata e


rotineira, ops, quero dizer, que a soma está bem definida.
Com as operações acima, S −1 A é um anel comutativo com zero 0/1 e
unidade 1/1. Este anel vem equipado de fábrica com um morfismo de anéis

ρ : A → S −1 A
a
a �→
1
chamado de mapa de localização que, como veremos, é muito útil na
prática, aparecendo até em lugares inusitados, veja:

Observação 4.1.2 Quando A é domı́nio e 0 ∈ / S, nenhum elemento de S é


divisor de zero e assim as = bt ⇐⇒ ta = sb (a, b ∈ A e s, t ∈ S). Em outras
palavras, S −1 A pode ser visto como subanel do corpo de frações Frac A de A
e neste caso o mapa de localização nada mais é do que a inclusão A ⊆ S −1 A.
Entretanto, para anéis gerais, o mapa de localização nem sempre é injetivo.

Podemos também localizar módulos (em particular, ideais) e álgebras:


dado um A-módulo (ou A-álgebra) M , a localização S −1 M de M com
relação a S é o S −1 A-módulo (ou S −1 A-álgebra) cujos elementos são as
frações m/s com m ∈ M e s ∈ S, sujeitas à identificação
m1 m2
= em S −1 M ⇐⇒ ∃t ∈ S tal que t · (s2 m1 − s1 m2 ) = 0 em M
s1 s2
4.1. CONSTRUÇÃO E PROPRIEDADE UNIVERSAL 99

As operações de soma e multiplicação escalar são dadas por


m1 m2 s2 m1 + s1 m2 a m am
+ = · =
s1 s2 s1 s2 t s ts

para todo a ∈ A, s, t ∈ S e m, m1 , m2 ∈ M . Novamente, verificações tediosas2


mostram que tudo funciona como deveria funcionar.
Na prática, dois são os conjuntos multiplicativos mais utilizados:
4.1.3 Definição Seja A um anel e M um A-módulo. Denotamos por
(i) Ah = A[ h1 ] e Mh as localizações de A e M com relação ao conjunto
multiplicativo S = { hn | n ≥ 0 } das potências de um elemento h ∈ A;
(ii) Ap e Mp as localizações de A e M com relação ao conjunto multiplicativo
S = A \ p para um primo p ∈ Spec A.

Por fim, a propriedade mais importante da localização (e que de fato a


caracteriza) é a seguinte propriedade universal. Moralmente, ela afirma que
dar um morfismo ψ : S −1 A → B é o mesmo que dar um morfismo φ : A → B
que leva S em unidades de B.3
Teorema 4.1.4 (Propriedade universal da localização) Seja A um a-
nel, seja S ⊆ A um conjunto multiplicativo e seja ρ : A → S −1 A o mapa de
localização. Para um anel B, denote por
def
HomS (A, B) = {φ ∈ Hom(A, B) | φ(S) ⊆ B × }

Temos uma bijeção natural

Hom(S −1 A, B)

✲ HomS (A, B)
ψ �−→ ψ ◦ ρ

cujo inverso leva φ ∈ HomS (A, B) em ψ ∈ Hom(S −1 A, B) definido por


�a�
ψ = φ(s)−1 · φ(a) (a ∈ A, s ∈ S)
s
Assim, para todo φ ∈ HomS (A, B), existe um único ψ ∈ Hom(S −1 A, B)
fazendo o seguinte diagrama comutar:
φ
A B
ρ
∃!ψ

S −1 A
2 acrediteem mim, dá certo!
3 c.f.
a propriedade universal do quociente (teorema 1.4.1 na página 11), que afirma que
dar um morfismo A/a → B é o mesmo que dar um morfismo A → B que anula a.
100 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

a b
Demonstração: Note que ψ está bem definido: se s = t ∈ S −1 A (a, b ∈ A
e s, t ∈ S), então existe u ∈ S tal que

uta = usb =⇒ φ(uta) = φ(usb) ⇐⇒ φ(u)φ(t)φ(a) = φ(u)φ(s)φ(b)


⇐⇒ φ(s)−1 φ(a) = φ(t)−1 φ(b)

pois φ(u), φ(t), φ(s) ∈ B × . Agora uma verificação rotineira4 mostra que a
associação φ �→ ψ é a inversa de ψ �→ ψ ◦ρ, provando a propriedade universal.

4.1.5 Exemplo Seja A = Z/(12) e considere o primo (2) ∈ Spec A, vamos


“calcular” A(2) . Seja ρ : A → A(2) o mapa de localização; como 3 ∈
/ (2) se
transformará em unidade em A(2) , teremos

0 = ρ(12) = ρ(3)ρ(4) =⇒ ρ(4) = 0 ∈ A(2)

e como qualquer ı́mpar já é invertı́vel módulo 4, é intuitivamente razoável


esperar que A(2) = Z/(4). Para mostrar que isto de fato acontece, utilizamos
a propriedade universal: como o mapa de projeção

φ : Z/(12) ✲ Z/(4)
a mod 12 �−→ a mod 4

leva S em (Z/(4))× = {1, 3}, temos um mapa induzido

ψ : A(2) ✲ Z/(4)
a mod 12
�−→ (s mod 4)−1 · (a mod 4)
s mod 12
Para construirmos um inverso para ψ, note que como ρ(4) = 0, pela propri-
ρ
edade universal do quociente, a composição Z � A = Z/(12) → A(2) define
um morfismo de anéis

τ : Z/(4) ✲ A
(2)
a mod 12
a mod 4 �−→
1 mod 12
Agora é imediato ver que as composições

A(2) ✲
ψ
Z/(4) ✲ S −1 A
τ

� �−1 � �
a mod 12
s mod 12 � → (s mod 4)−1 · (a mod 4) �−→ 1s mod
− 12
mod 12 · a mod 12
1 mod 12

4 uma daquelas coisas que é melhor você fazer escondido na privacidade do seu lar,

quando ninguém estiver olhando


4.2. O FUNTOR LOCALIZAÇÃO 101

e
Z/(4) ✲
τ
A(2)
ψ
✲ Z/(4)
a mod 12
a mod 4 �−→ 1 mod 12 �−→ (1 mod 4)−1 · (a mod 4)
são as identidades em A(2) e Z/(4), respectivamente.
Note que em particular que neste exemplo o mapa de localização ρ : A →
A(2) não é injetor, ao contrário do caso de domı́nios.
4.1.6 Exemplo Seja A um anel qualquer e h ∈ A. Vamos mostrar que
A[x] �1�
Ah = (daı́ intuitivamente = A )
(1 − hx) h
De fato, o morfismo natural A → A[x]/(1 − hx) leva h em uma unidade já
que x · h = 1 em A[x]/(1 − hx), logo pela propriedade universal da localização
temos um morfismo induzido φ : Ah → A[x]/(1−hx), dado explicitamente por
φ(a/hn ) = a·xn . É fácil construir o inverso deste morfismo: pela propriedade
universal do quociente, temos um morfismo de A-álgebras
A[x] ✲ Ah
ψ:
(1 − xh)
1
x �−→
h
e uma verificação imediata mostra que ψ◦φ = id e φ◦ψ = id, como querı́amos.
Terminamos esta seção com um lema, que trata de um caso “patológico”,
mas com aplicações úteis na prática.
Lema 4.1.7 Seja A um anel e seja S ⊆ A um conjunto multiplicativo. Então
S −1 A = 0 ⇐⇒ 0 ∈ S
Demonstração: Temos que S −1 A = 0 se, e só se, 0/1 = 1/1 em S −1 A,
ou seja, se e só se, existe s ∈ S tal que s · (1 · 0 − 1 · 1) = 0 em A, i.e., se, e
só se, s = 0 ∈ S.

4.2 O funtor localização


Localização é na verdade um funtor5 da categoria de A-módulos para a cate-
goria de S −1 A-módulos. Já sabemos associar a cada A-módulo M um S −1 A-
módulo S −1 M . E dado um morfismo de A-módulos φ : M → N , temos um
morfismo induzido de S −1 A-módulos
S −1 φ : S −1 M → S −1 N
m φ(m)
�→ (m ∈ M e s ∈ S)
s s
5 ver apêndice A.2 na página 328 para a definição
102 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

estando tudo bem definido como é fácil (e tedioso) verificar. Um fato notável
é que este funtor é exato.

Teorema 4.2.1 (Localização preserva exatidão) Seja A um anel, S um


conjunto multiplicativo e

M
φ
✲ N ✲ P
ψ

uma sequência exata de A-módulos. Então

S −1 φ S −1 ψ
S −1 M ✲ S −1 N ✲ S −1 P

é uma sequência exata de S −1 A-módulos.

Demonstração: Note que im S −1 φ ⊆ ker S −1 ψ já que S −1 ψ ◦ S −1 φ =


S −1 (ψ ◦ φ) = 0. Para mostrar a inclusão oposta, sejam n ∈ N e s ∈ S tais
que

n ψ(n) 0
∈ ker S −1 ψ ⇐⇒ = em S −1 P
s s 1
⇐⇒ ∃t ∈ S tal que t · ψ(n) = 0 em P

Assim, ψ(t · n) = 0 ⇐⇒ tn ∈ ker ψ = im φ, logo existe m ∈ M tal que


φ(m) = tn. Portanto
�m� φ(m) tn n n
(S −1 φ) = = = =⇒ ∈ im S −1 φ
ts ts ts s s

Sequências exatas podem ser utilizadas para codificar diversas relações


“lineares” entre módulos. Por exemplo, o teorema anterior possui as seguintes
consequências úteis.

Corolário 4.2.2 Seja A um anel, S um conjunto multiplicativo e φ : M → N


um morfismo de A-módulos.

1. Se φ é injetor (respectivamente sobrejetor, bijetor) então o mesmo vale


para S −1 φ.

2. Localização comuta com kernels, cokernels e imagens: temos isomor-


fismos

ker S −1 φ = S −1 ker φ
coker S −1 φ = S −1 coker φ
im S −1 φ = S −1 im φ
4.2. O FUNTOR LOCALIZAÇÃO 103

3. Localização comuta com quocientes: se M é um submódulo de N então


temos um isomorfismo
S −1 N/S −1 M = S −1 (N/M )
n n mod M
mod S −1 M �→ (n ∈ N, s ∈ S)
s s
Demonstração: Note que (1) ⇒ (2). O item (2) por sua vez pode ser
mostrado localizando sequências exatas adequadas. Por exemplo, localizando
a sequência exata de A-módulos

0 ✲ ker φ ✲ M φ
✲ N

obtemos a sequência exata de S −1 A-módulos


S −1 φ
0 ✲ S −1 ker φ ✲ S −1 M ✲ S −1 N

o que mostra que ker S −1 φ = S −1 ker φ. As provas para coker φ e im φ são


análogas. Finalmente, (3) segue da mesma forma da localização da sequência
exata
0 ✲ M ✲ N ✲ N/M ✲ 0

Temos ainda uma importante recı́proca para o teorema anterior:


Teorema 4.2.3 (Um princı́pio “local-global”) Seja A um anel.
1. Seja M um A-módulo. Então
M = 0 ⇐⇒ Mm = 0 para todos m ∈ Specm A

2. O complexo de A-módulos

M
φ
✲ N ψ
✲ P

é exato se, e só se, suas localizações

Mm ✲ Nm
φm ψm
✲ Pm

são exatas para todo m ∈ Specm A. Em particular, um morfismo de


A-módulos é injetor (respectivamente sobrejetor, bijetor) se, e só se,
todas as localizações com relação aos ideais maximais possuem a mesma
propriedade.
3. Suponha que A seja um domı́nio. Temos

A= Am
m∈Spec A

(igualdade vista dentro de Frac A).


104 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

Demonstração:

1. A implicação ⇒ é clara. Para mostrar ⇐, seja m ∈ M e considere o


seu anulador (um ideal de A):
def
ann(m) = {a ∈ A | a · m = 0}

Queremos mostrar que ann(m) = A e para isto basta provar que


ann(m) �⊆ m para todo m ∈ Specm A (ver corolário 1.4.5 na página 14).
Mas isto segue de Mm = 0: de m/1 = 0/1, existe s ∈ A \ m tal que
sm = 0 ⇐⇒ s ∈ ann(m) e portanto ann(m) �⊆ m.

2. Segue do item anterior: basta considerar o A-módulo ker ψ/ im φ e uti-


lizar os isomorfismos (ver corolário anterior)

(ker ψ/ im φ)m = (ker ψ)m /(im φ)m = ker ψm / im φm



3. A inclusão ⊆ é clara; reciprocamente, seja r ∈ m∈Spec A Am e considere
o ideal de A (o ideal dos “denominadores” de r)
def
a = {a ∈ A | ar ∈ A}

Queremos mostrar que a = A e para isto, como em (1), basta mostrar


que a não está contido em nenhum ideal maximal m ∈ Specm A, o que
é claro: como r ∈ Am , podemos escrever r = a/s para algum a ∈ A e
s ∈ A \ m, logo s ∈ a =⇒ a �⊂ m.

4.3 Como assassinar primos


Como diz o velho ditado, “nada como uma boa dose de unidade para acabar
com ideais”. Assim, a localização “simplifica” um anel, o que facilita nossa
vida: afinal de contas, indivı́duos com menos ideais são sempre mais fáceis
de serem manipulados. . .

Teorema 4.3.1 (Localização e Ideais) Sejam A um anel e S ⊆ A um


conjunto multiplicativo. Denote por ρ : A → S −1 A o mapa de localização.

1. Se a ⊆ A é um ideal de A, então S −1 a ⊆ S −1 A é um ideal de S −1 A.


Reciprocamente, todo ideal b ⊆ S −1 A é da forma S −1 a para algum ideal
a ⊆ A; podemos tomar a = ρ−1 b.

2. O mapa de espectros

Spec(ρ) : Spec S −1 A �→ Spec A


4.3. COMO ASSASSINAR PRIMOS 105

é injetor e tem como imagem o conjunto


def
DS = {p ∈ Spec A | p ∩ S = ∅}

dos primos p que não interceptam S. A pré-imagem de p ∈ DS é dada


por S −1 p.

Demonstração:

1. Como localização é um funtor exato, preserva injetividade, assim se


a ⊆ A é um ideal de A, então S −1 a ⊆ S −1 A é um ideal de S −1 A.
Reciprocamente, dado um ideal b ⊆ S −1 A, temos que a = ρ−1 b é um
ideal de A (teorema 1.4.4 na página 13). Afirmamos que S −1 a = b:

(⊆) se a/s ∈ S −1 a (a ∈ a, s ∈ S) então a/s = (1/s) · ρ(a) ∈ b.


(⊇) se b/s ∈ b (b ∈ A, s ∈ S) então ρ(b) = (s/1) · (b/s) ∈ b, ou seja,
b ∈ a e portanto b/s ∈ S −1 a.

2. Inicialmente, observe que para p ∈ DS , a ∈ A e s ∈ S temos


a
∈ S −1 p ⇐⇒ a ∈ p (∗)
s
A implicação ⇐ é óbvia. Por outro lado, se a/s ∈ S −1 p, existem p ∈ p
e t ∈ S tais que
a p
= em S −1 A ⇐⇒ ∃r ∈ S tal que r(at − ps) = 0 em A
s t
=⇒ rt · a = rsp ∈ p com rt ∈ S

Como p ∈ DS , rt ∈
/ p e portanto a ∈ p, o que prova a implicação ⇒.

A imagem de Spec(ρ) está contida em DS : se p = Spec(ρ)(q) ⇐⇒


p = ρ−1 q e existe s ∈ S ∩ p então ρ(s) ∈ q, o que é absurdo, pois
ρ(s) ∈ (S −1 A)× .

Temos p ∈ DS =⇒ S −1 p ∈ Spec S −1 A: note que S −1 p é um ideal


próprio de S −1 A pois caso contrário 1/1 ∈ S −1 p =⇒ 1 ∈ p por (∗),
um absurdo. E dados a, a� ∈ A e s, s� ∈ S, temos

a a� aa� (∗)
· � ∈ S −1 p ⇐⇒ ∈ S −1 p ⇐⇒ aa� ∈ p
s s ss�
⇐⇒ a ∈ p ou a� ∈ p
(∗) a a�
⇐⇒ ∈ S −1 p ou � ∈ S −1 p
s s
o que mostra que S −1 p é um ideal primo de S −1 A.
106 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

O mapa Spec(ρ) : Spec S −1 A → DS é uma bijeção, com inversa


p �→ S −1 p: A composição

DS ✲ Spec S −1 A ✲ DS
p � →
− S −1 p � →
− Spec(ρ)(S −1 p)

é a identidade em DS , já que (ρ)−1 (S −1 p) = p por (∗). Da mesma


forma, a composição

Spec S −1 A ✲ DS ✲ Spec S −1 A
q � →
− ρ−1 q � →
− S −1 (ρ−1 q)

é a identidade pois q = S −1 (ρ−1 q) pelo item (1).

Corolário 4.3.2 Seja A um anel.

1. Se p ∈ Spec A, temos uma bijeção

{q ∈ Spec A | q ⊆ p}

✲ Spec Ap
q �−→ qAp

2. Se h ∈ A, temos um homeomorfismo (na topologia de Zariski)

D(h) ✲ Spec Ah

p �−→ ph = pAh

Demonstração: O item (1) segue diretamente do teorema. No item (2)


temos que o mapa de localização ρ : A → Ah induz uma função contı́nua in-
jetora Spec(ρ) : Spec Ah �→ Spec A com imagem aberta D(h) (teorema 3.3.3
na página 91), assim basta mostrar que Spec(ρ) é um mapa aberto, o que
pode ser testado em abertos básicos D(g/hn ) ⊆ Spec Ah (g ∈ A, n ∈ N).
� p ∈ D(h)
Por (∗) na demonstração do teorema, dado � ⊆ Spec A temos que
pAh ∈ D(g/hn ) ⇐⇒ g ∈ / p, logo Spec(ρ) D(g/hn ) = D(g) ∩ D(h) é aberto,
como querı́amos.

Note os efeitos complementares da localização e do quociente (lema 3.1.2


na página 83): dado p ∈ Spec A, temos identificações

Spec A/p = {q ∈ Spec A | q ⊇ p}


Spec Ap = {q ∈ Spec A | q ⊆ p}

e assim, combinando adequadamente localização e quociente, podemos “fil-


trar” qualquer conjunto de primos que desejamos estudar.
4.3. COMO ASSASSINAR PRIMOS 107

4.3.3 Exemplo Dada a composição

A ✲
✲ A/p �→ Frac A/p

o mapa associado f : Spec(Frac A/p) �→ Spec A tem como imagem exata-


mente o primo p pois f é a composição

Spec(Frac A/p) �→ Spec A/p �→ Spec A

e a imagem do primeiro mapa é o ideal (0), que é levado em p pelo segundo


mapa. Em outras palavras, o quociente e a localização “filtram” os primos
que contêm e que estão contidos em p e o que sobra é apenas o primo p.

Olhando para as cadeias de primos em A contidas e que contém p, obtemos


também o importante
Corolário 4.3.4 Seja A um anel e p ∈ Spec A. Então

dim A ≥ dim Ap + dim A/p

É fácil construir exemplos em que a desigualdade acima é estrita (ver


exercı́cio 4.6 na página 118). Veremos entretanto mais tarde (teorema 9.2.1
na página 189) que, para domı́nios finitamente gerados sobre um corpo, vale
sempre a igualdade.
Terminamos esta seção com duas definições (que provavelmente deveriam
ter aparecido antes, mas não encontramos um lugar melhor para pô-las).
4.3.5 Definição A altura ht p de um primo p ∈ Spec A é definida como

ht p = dim Ap

Ou seja, n = ht p é o comprimento da maior cadeia de ideais primos em A


contidos em p:
p 0 � p1 � p2 � p3 � · · · � p n = p

Assim, poderı́amos ter escrito a desigualdade do corolário acima como


dim A ≥ ht p + dim A/p.
4.3.6 Definição Um anel A é chamado de catenário6 se para qualquer par
de ideais primos p ⊆ q � A, todas as cadeias saturadas de primos (ou seja,
não é possı́vel interpolar primos nesta cadeia)

p = p 0 � p1 � · · · � p n = q

tem um mesmo comprimento finito (igual a n = dim Aq /pAq ).

A vasta maioria dos anéis utilizados em Teoria dos Números e Geometria


Algébrica são catenários. É particularmente difı́cil dar exemplos de anéis não
catenários: veja [Nag62], example 2, p.203.
6o nome vem de catena, cadeia em Latim. Álgebra Comutativa também é cultura!
108 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

4.4 Conexidade e Irredutibilidade


Nesta seção, veremos algumas aplicações no estudo da topologia de Zariski.
Começamos com um teorema radical!

Teorema 4.4.1 Seja A um anel.

1. Temos � �
(0) = p
p∈Spec A

2. Para qualquer ideal a ⊆ A,


√ �
a= p
p∈V (a)

Demonstração:

1. (⊆) Se a ∈ (0), temos an = 0 para algum n ∈ N e portanto, para
qualquer p ∈ Spec A temos an ∈ p =⇒ a ∈ p.

(⊇) Vamos mostrar que dado h ∈ / (0) existe p ∈ Spec A tal que p não
contém h, ou seja, que D(h) �= ∅. Pelo corolário 4.3.2 na página 106,
isto é equivalente a mostrar que Spec Ah �= ∅, ou seja, que Ah �= 0
(lema 3.1.2 na página 83). Mas pelo lema 4.1.7 na página 101, Ah =
0 ⇐⇒ h é nilpotente e o resultado segue.

Como h é nilpotente em A/a se, e só se, h ∈ a, o nilradical de A/a é
2. √
a/a. Pela identificação Spec A/a = V (a) (lema 3.1.2 na página 83),
o resultado segue do item (1) aplicado ao anel A/a e o teorema da
correspondência (teorema 1.4.4 na página 13).

Naturalmente, nas intersecções acima, basta tomar os primos minimais.


Assim, o teorema acima pode ser utilizado para determinar o nilradical de
anéis, como nos seguintes exemplos:

anel nilradical

Z/(120) (0) = (2) ∩ (3) ∩ (5) = (30)

C[t]/(t2014
) (0) = (t)

C[x, y]/(x2 − y 2 ) (0) = (x − y) ∩ (x + y) = (0)

C[x, y]/(x10 y 13 ) (0) = (x) ∩ (y) = (xy)

O teorema acima ainda nos permite identificar os subconjuntos fechados



de Spec A com os ideais radicais, i.e., ideais a ⊆ A tais que a = a (c.f.
teorema 2.3.23 na página 56):
4.4. CONEXIDADE E IRREDUTIBILIDADE 109

Corolário 4.4.2 Seja A um anel, sejam a e b ideais e g, h ∈ A.



1. Temos um homeomorfismo Spec A = Spec A/ (0).

2. V (a) ⊆ V (b) ⇐⇒ a ⊇ b.

3. D(h) ⊆ D(g) ⇐⇒ h ∈ (g).
√ √
Em particular,
� � temos V (a) = V (b) ⇐⇒ a = b, D(h) ⊆ D(g) ⇐⇒
(h) = (g) e a �→ V (a) estabelece uma bijeção entre ideais radicais de A
e subconjuntos fechados de Spec A.

Demonstração:

1. Segue diretamente do fato que
� a projeção
� A � A/ (0) induz um ho-
meomorfismo entre Spec A/ (0) e V ( (0)) = Spec A (corolário 3.3.4
na página 92).
√ � � √
2. Temos V (a) ⊆ V (b) =⇒ a = p∈V (a) p ⊇ p∈V (b) p = b ⊇ b e,
√ √
reciprocamente, a ⊇ b =⇒ V (a) = V ( a) ⊆ V (b).
3. Basta aplicar o item anterior com a = (g) e b = (h) e tomar comple-
mentares.

Diversas propriedades algébricas de um anel A se traduzem em proprie-


dades topológicas de seu espectro Spec A. Agora estamos prontos para dar
uma caracterização puramente algébrica de conexidade e irredutibilidade:
Teorema 4.4.3 Seja A um anel. Então

1. Spec A é irredutı́vel se, e só se, (0) é um ideal primo.
2. Spec A é conexo se, e só se, A é indecomponı́vel.

Demonstração:
1. Pelo corolário
� anterior, podemos supor sem perda de generalidade que
A = A/ (0) é reduzido e nesta situação devemos mostrar que Spec A
é irredutı́vel se, e só se, A é domı́nio.
Se A não é domı́nio, então Spec A é redutı́vel: se g, h ∈ A são
elementos não nulos tais que gh = 0, temos que Spec A = V ((g)) ∪
V ((g)) e esta decomposição �
é não trivial:
� se (por exemplo) V ((g)) =
Spec A = V ((0)) terı́amos (g) = (0) = (0) ⇐⇒ g = 0, um
absurdo.
Se A é domı́nio, então Spec A é�irredut √ ı́vel: se Spec A = V (a) ∪
V (b), então V ((0)) = V (ab) ⇐⇒ (0) = ab ⇐⇒ a = b = 0 já que
A não possui divisores de zero. Logo V (a) = V (b) = Spec A e portanto
Spec A é irredutı́vel.
110 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

2. Já vimos que se A seja decomponı́vel então Spec A é desconexo (exem-


plo 3.3.6 na página 93). Reciprocamente, se Spec A é desconexo, di-
gamos Spec A = V (a) � V (b) com V (a) = Spec A/a �= ∅ e V (b) =
Spec A/b �= ∅, temos que a e b são ideais próprios (lema 3.1.2 na
página 83) e, pelo corolário anterior,
� � � �
V (a) ∩ V (b) = ∅ V (a + b) = V (1) = ∅
⇐⇒ � �
V (a) ∪ V (b) = Spec A V (ab) = V (0) = Spec A

a + b = (1)
⇐⇒ �
ab ⊆ (0)

¡ Assim, pelo teorema chinês dos restos (teorema 1.5.1 na página 17)
temos um isomorfismo
A A A A
= = ×
ab a∩b a b
Como a e b são próprios, os anéis A/a e A/b são não nulos e assim
A/ab é decomponı́vel. Pelo próximo lema, temos portanto que A é
decomponı́vel.


Lema 4.4.4 Seja A um anel e seja a um ideal tal que a ⊆ (0). Então

A/a é decomponı́vel ⇐⇒ A é decomponı́vel

Demonstração: Lembre que A é decomponı́vel se, e só se, possui um idem-


potente não trivial e �= 0, 1 (c.f. demonstração do lema 1.2.1 na página 6).
(⇐) Seja e ∈ A um idempotente não trivial. Então sua imagem e ∈�A/a
também é um idempotente. Temos que e �= 0, caso contrário e ∈ a ⊆ (0)
e portanto en = 0 ⇐⇒ e = 0 para algum n, uma contradição. O mesmo
raciocı́nio aplicado ao idempotente 1 − e mostra que e �= 1 também.
(⇒) Seja e1 ∈ A/a um idempotente não trivial e seja e1 ∈ A um � levantamento
de e1 . Defina e2 = 1 − e1 . Como e1 e2 = 0, temos e1 e2 ∈ a ⊆ (0) e portanto
(e1 e2 )n = 0 para algum n. Da expansão de (e1 + e2 )2n , definimos dois novos
elementos
� � � � � �
� def 2n 2n 2n−1 2n 2n−2 2 2n
e1 = e1 + e1 e2 + e1 e2 + · · · + en+1 en−1
1 2 n−1 1 2
� � � � � �
� def 2n 2n 2n−1 2n 2 2n−2 2n
e2 = e2 + e1 e2 + e e + ··· + en−1 en+1
2n − 1 2n − 2 1 2 n+1 1 2

de modo que
� �
2n n n
e�1 + e�2 = e�1 + e�2 + e e = (e1 + e2 )2n = 1
n 1 2
112 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

• O anel dos inteiros p-ádicos Zp é local com ideal maximal (p) e corpo
residual Fp = Zp /(p) (proposição 2.4.1 na página 62).

• O morfismo de inclusão Zp �→ Qp não é local.

• Seja k um corpo. Então k�t� é um anel local com ideal maximal (t)
e corpo residual k. Mais geralmente, temos que k�x1 , . . . , xn � é local,
com ideal maximal (x1 , . . . , xn ), que é o complementar de (ver pro-
posição 2.1.1 na página 32)
� � � �

k�x1 , . . . , xn �× = ai1 ,...,in xi11 . . . xinn � a0,...,0 �= 0
i1 ,...,in ∈N

O corpo residual de k�x1 , . . . , xn � é k�x1 , . . . , xn �/(x1 , . . . , xn ) = k.

• Se A é um anel qualquer e p ∈ Spec A, temos que Ap é local com ideal


maximal pAp e corpo residual (S = A \ p)

def
κ(p) = Ap /pAp = S −1 A/S −1 p = S −1 (A/p) = Frac(A/p)

uma vez que que localização comuta com quocientes (corolário 4.2.2 na
página 102) e a imagem de S em A/p (visto como A-álgebra) consiste
justamente nos elementos não nulos de A/p.

Um dos principais resultados sobre anéis locais é o aparentemente inócuo

Teorema 4.5.5 (Lema de Nakayama) Seja (A, m, k) um anel local, seja


a � A um ideal próprio e seja M um A-módulo finitamente gerado.

1. Se aM = M então M = 0.

2. Se N é um submódulo de M tal que M = N + aM então M = N .

3. Seja φ : N → M é um morfismo de A-módulos. Então o morfismo


induzido φ : N/aN → M/aM é sobrejetor se, e só se, φ é sobrejetor.

Demonstração:

1. Utilizaremos o famoso truque do determinante. Sejam ω1 , . . . , ωn


geradores de M . Por hipótese, existem aij ∈ a ⊆ m tais que

ω1 = a11 ω1 + a12 ω2 + · · · + a1n ωn


ω2 = a21 ω1 + a22 ω2 + · · · + a2n ωn
..
.
ωn = an1 ω1 + a2n ω2 + · · · + ann ωn
4.6. BASES MINIMAIS 113

Considere a matriz T = (aij )1≤i,j≤n ∈ Mn (A). Denote por I ∈ Mn (A)


a matriz identidade. Em notação matricial, podemos reescrever o “sis-
tema linear” acima como
   
ω1 0
 ω2  0
   
(I − T ) ·  .  =  . 
 ..   .. 
ωn 0
Multiplicando pela matriz adjunta de I − T , obtemos det(I − T ) · ωi = 0
para i = 1, . . . , n. Porém
aij ∈ m =⇒ det(I − T ) ≡ det I = 1 (mod m) =⇒ det(I − T ) ∈ A×
e assim ωi = 0 para todo i, mostrando que M = 0.
2. Segue diretamente do item (1) aplicado ao A-módulo M/N .
3. Segue diretamente do item (2) e do fato de que dizer que φ é sobrejetor
é o mesmo que dizer que M = φ(N ) + aM .

Observação 4.5.6 1. Na demonstração do item (1) do teorema acima,


poderı́amos equivalentemente ter resolvido o “sistema linear” isolando
“uma variável por vez”: temos
ω1 = a11 ω1 +a12 ω2 +· · ·+a1n ωn ⇐⇒ (1−a11 )ω1 = a12 ω2 +· · ·+a1n ωn
Como a11 ∈ m, temos que 1 − a11 ∈ / m ⇐⇒ 1 − a11 ∈ A× . Assim,
dividindo por 1 − a11 obtemos ω1 ∈ Aω2 + · · · + Aωn , ou seja, M pode
ser gerado por n − 1 geradores. Repetindo o processo, eventualmente
obtemos M = 0.
2. No próximo capı́tulo, reformularemos o lema de Nakayama em termos
do produto tensorial M ⊗A k e aı́ poderemos interpretar intuitivamente
este resultado como um resultado de “continuidade”: se a “fibra” do
ponto fechado m ∈ Spec A é trivial, então M é trivial em torno de m,
o que, para anéis locais, significa M = 0.

4.6 Bases minimais


Como aplicação do lema de Nakayama, vamos mostrar que, embora um
módulo finitamente gerado sobre um anel local não necessariamente pos-
sua uma base (ou seja, não é necessariamente livre), o número de elementos
em um conjunto minimal de geradores (com relação à inclusão) é sempre o
mesmo, independentemente do conjunto escolhido. Denominaremos qualquer
destes conjuntos de base minimal (muito embora ele não seja uma base no
sentido estrito!).
114 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

Corolário 4.6.1 (Bases Minimais) Seja (A, m, k) um anel local e M um


A-módulo finitamente gerado. Sejam ω1 , . . . , ωn ∈ M . Então

M
M = Aω1 + · · · + Aωn ⇐⇒ = kω 1 + · · · + kω n
mM
Em particular, qualquer conjunto minimal de geradores de M possui exata-
mente dimk M/mM elementos.

Demonstração: Observe que M = Aω1 +· · ·+Aωn se, e só se, o morfismo


de A-módulos

φ : An ✲ M
(a1 , . . . , an ) �−→ a1 ω1 + · · · + an ωn

é sobrejetor, o que, pelo lema de Nakayama (teorema 4.5.5 na página 112),


ocorre se, e só se, o morfismo induzido

φ : kn ✲ M/mM
(a1 , . . . , an ) �−→ a1 ω1 + · · · + an ωn

é sobrejetor. Mas isto ocorre se, e só se, M/mM = kω 1 + · · · + kω n .

Uma aplicação frequente do resultado acima é no cálculo do número


mı́nimo de geradores do ideal maximal de um anel local. Antes de dar-
mos um exemplo, provemos o seguinte lema, que nos ajudará a simplificar
algumas contas.

Lema 4.6.2 Seja A um anel qualquer e seja m um ideal maximal de A.


Então o corpo residual da localização Am é k = A/m e temos um isomorfismo
de k-espaços vetoriais
m mAm
2
=
m (mAm )2

Demonstração: Como m é maximal, o corpo residual de Am é Frac A/m =


A/m = k. Agora seja S = A \ m. Como quocientes comutam com localização
(corolário 4.2.2 na página 102) temos um isomorfismo de A-módulos (e por-
tanto de k-espaços vetoriais)

mAm S −1 m � �
−1 m m
= = S = 2
(mAm )2 S −1 m2 m2 m

onde o último isomorfismo segue do fato de que a imagem de S em k = A/m


é k = k \ {0}, que são justamente as unidades de k, logo localização com
relação a este conjunto multiplicativo não altera o módulo.
4.6. BASES MINIMAIS 115

Agora podemos dar uma aplicação geométrica:


Proposição 4.6.3 Seja k um corpo algebricamente fechado e seja f (x, y) ∈
k[x, y] um polinômio irredutı́vel. Considere

k[x, y]
A= � �
f (x, y)

o anel de funções da curva plana afim C de equação f (x, y) = 0. Seja


(a, b) ∈ C e seja m = (x − a, y − b) ⊂ A o ideal maximal correspondente.
Então �
mAm 2 se ∂f ∂f
∂x (a, b) = ∂y (a, b) = 0
dimk =
(mAm )2 1 caso contrário
Em outras palavras, mAm é um ideal principal se, e só se, (a, b) é um ponto
não singular da curva C.

Demonstração: Inicialmente, observe que A/m = k[x, y]/(x−a, y−b) ∼ = k,


logo o corpo residual de Am é de fato k. Agora, como x−a e y−b são geradores
de mAm , temos que dimk mAm /(mAm )2 ≤ 2 e como mAm �= 0, a questão é
decidir se esta dimensão é 1 ou 2. Para isto, considere a expansão (finita) de
Taylor do polinômio f (x, y) (lembre-se de que f (a, b) = 0 por hipótese)

∂f ∂f 1 ∂2f
f (x, y) = (a, b) · (x − a) + (a, b) · (y − b) + (a, b) · (x − a)2
∂x ∂y 2 ∂x2
∂2f 1 ∂2f
+ (a, b) · (x − a)(y − b) + (a, b) · (y − b)2 + · · ·
∂x∂y 2 ∂y 2
Temos dois casos:
∂f
O ponto (a, b) ∈ C é não singular: Se, digamos ∂x (a, b) �= 0, então a
imagem da igualdade acima em A fornece
� ∂f 1 ∂2f �
0 = (x − a) · (a, b) + (a, b) · (x − a) + · · · + múltiplo de (y − b)
� ∂x 2 ∂x2 �� �
unidade em Am

Note que o termo que multiplica (x − a) é uma soma de um elemento em


k × com um múltiplo de x − a ∈ m, logo não pertence a m e portanto é
uma unidade em Am . Logo, em Am , x − a é um múltiplo de y − b, ou seja,
mAm = (y − b) é principal e dimk mAm /(mAm )2 = 1 neste caso.
O ponto (a, b) ∈ C é singular: Neste caso, de ∂f ∂f
∂x (a, b) = ∂y (a, b) = 0 e
da expansão de Taylor acima, temos que f (x, y) ∈ (x − a, y − b)2 . Pelo lema
anterior, temos um isomorfismo de k-espaços vetoriais
� �
mAm m (x − a, y − b)/ f (x, y) (x − a, y − b)
2
= 2 = � �=
(mAm ) m (x − a, y − b)2 / f (x, y) (x − a, y − b)2
116 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

Mas para α, β ∈ k,
� �
α(x − a) + β(y − b) ∈ (x − a, y − b)2 = (x − a)2 , (x − a)(y − b), (y − b)2
se, e só se, α = β = 0 de modo que dimk mAm /(mAm )2 = 2 e {x − a, y − b}
é uma base minimal do ideal mAm neste caso.

4.6.4 Exemplo Considere o anel de funções


C[x, y]
A=
(y 2 − x2 (x + 1))
da curva afim plana C de equação y 2 = x2 (x + 1), cujo único ponto singular
é a origem (0, 0), como um cálculo simples mostra.

Pelo Nullstellensatz (teorema 2.3.20 na página 55), sabemos que os ideais


maximais de A são todos da forma m = (x − a, y − b) com (a, b) ∈ C e pela
proposição acima temos

mAm 1 se (a, b) �= (0, 0)
dimC 2
=
(mAm ) 2 se (a, b) = (0, 0)
Qual o significado geométrico deste cálculo? Sendo a dimensão de C igual a 1
(que é a dimensão de Krull de A), intuitivamente espera-se que, localmente,
um ponto seja determinado pelos zeros de um único elemento de A, como
ocorre com o ponto regular (−1, 0), que é definido localmente por y = 0.
Entretanto, sendo o ponto (0, 0) singular, precisamos de mais do que um
elemento para defini-lo localmente. Por exemplo, tanto a equação y = 0
como a equação x = 0 definem retas que cortam dois “ramos” de C e portanto
definem um “ponto duplo” (0, 0) pois o “anéis de funções” correspondentes
A(x,y) /(x) ∼
= C[y]/(y 2 ) e A(x,y) /(y) ∼
= C[x]/(x2 ) não são exatamente C, mas
álgebras de dimensão 2 sobre C.
4.6.5 Exemplo Seja A = Z[x]/(x2 − 18) e seja m = (3, x). Vamos mostrar
que o ideal mAm não pode ser gerado por menos do que 2 elementos. O corpo
residual de Am é A/m = Z[x]/(3, x) = F3 . Pelo lema, temos isomorfismos de
F3 -espaços vetoriais
mAm m (3, x)
2
= 2 = ,
(mAm ) m (9, 3x, x2 )
4.7. EXERCÍCIOS 117

que tem dimensão 2 sobre F3 : para mostrar que 3 e x são, módulo (3, x)2 ,
linearmente independentes sobre F3 , sejam α, β ∈ Z e f, g, h ∈ Z[x] tais que

α3 + βx = 9f (x) + 3xg(x) + x2 h(x)

Substituindo x = 0, obtemos 3 | α, logo α = 0 ∈ F3 e portanto podemos


supor sem perda de generalidade que α = 0. Daı́ x | f (x) e dividindo a
equação acima por x e em seguida substituindo x = 0, obtemos 3 | β, o que
encerra a prova.

4.7 Exercı́cios
4.1 Mostre que
(a) Zp [ p1 ] = Qp (p primo)

(b) k�t�[ 1t ] = k((t)) (k corpo)


(c) Frac Z�t� �= Q((t))

4.2 Sejam p1 , . . . , pn ∈ Spec A. Mostre que



(a) S = A \ 1≤i≤n pi é um conjunto multiplicativo de A.

(b) o anel S −1 A é semi-local com ideais maximais S −1 pi (i = 1, . . . , n).


Dica: utilize o “prime avoidance” (teorema 3.1.10 na página 85).
O anel S −1 A é chamado de semi-localização de A com relação ao ideais
primos p1 , . . . , pn .

4.3 Seja A um anel e seja



A→ Ap
p∈Spec A

o produto dos mapas de localização. Prove que este mapa é injetor.

4.4 Considere o anel A = C[x, y](x,y) /(xy). Determine Spec A, seus abertos
e fechados e calcule explicitamente a localização Ax . Dê uma interpretação
geométrica.

4.5 Prove que os anéis

C[x, y, x+1
1
]
e C[t, t21+1 ]
(x2 + y 2 − 1)
são isomorfos. Dê uma interpretação geométrica em termos da bijeção no
exercı́cio 2.13 na página 76.
118 CAPÍTULO 4. LOCALIZAÇÃO

4.6 Mostre que o anel A = C[x, y, z]/(xz, yz) possui duas cadeias de ideais
primos saturadas (ou seja, não é possı́vel interpolar primos nestas cadeias) de
comprimentos diferentes. Em particular, mostre que existe p ∈ Spec A tal que
dim A > ht p + dim A/p. Explique geometricamente o que está acontecendo.

4.7 Seja (A, m, k) um anel local e seja F um A-módulo livre de posto n.


Mostre que

e1 , . . . , en ∈ F é uma A-base ⇐⇒ e1 , . . . , en ∈ F/mF é uma k-base

4.8 (Cayley-Hamilton) Seja k um corpo. Seja M uma matriz em Mn (k)


e seja p(x) ∈ k[x] seu polinômio caracterı́stico. Mostre que p(M ) = 0 em
Mn (K).
Dica: Considere V = k n como um k[x]-módulo via
def
f (x) · v = f (M )v (f (x) ∈ k[x], v ∈ k n )

e use o “truque do determinante”.

4.9 Encontre geradores minimais para o ideal maximal de A = Bm em que


(a) B = C[x, y]/(y 2 − x3 ) e m = (x, y).
(b) B = C[x, y, z]/(y − xz, z 2 − x − 1) e m = (x, y, z − 1)
(c) B = Z[x] e m = (3, x)
(d) B = Z[x]/(x2 − 45) e m = (3, x).
Dê interpretações geométricas.

4.10 Seja (A, m, k) um anel local e sejam f (x), g(x) ∈ A[x] polinômios môni-
cos. Denote por f (x), g(x) ∈ k[x] as imagens de f (x) e g(x) em A[x]/mA[x] =
k[x], respectivamente. Mostre que se (f (x), g(x)) = (1), então
A[x] ∼ A[x] × A[x]
=
(f (x)g(x)) (f (x)) (g(x))
4.11 Seja A o anel de todas as funções contı́nuas f : [0, 1] → R. Mostre que
existe um primo p ∈ Spec A que não é da forma

IP = {f ∈ A | f (P ) = 0}

com P ∈ [0, 1].


Dica: Localize.

4.12 (Morfismo Dominante) Seja ι : A �→ B uma inclusão de domı́nios.


Mostre que o mapa Spec ι : Spec B → Spec A é dominante, i.e., sua imagem
é densa.
Capı́tulo 5

Produto Tensorial

O produto tensorial é uma construção geral que formaliza a noção de mudança


de base: por exemplo, se l ⊇ k é uma extensão de corpos e V um k-espaço
vetorial, o produto tensorial V ⊗k l é o l-espaço vetorial obtido a partir de
V “substituindo-se as entradas em k por l”. Da mesma forma, temos que
k[x] ⊗k l = l[x]: basta “trocar os coeficientes de k para l”.
Sendo uma construção geral, o produto tensorial é expressivo o sufi-
ciente para incluir as noções familiares de localização e quociente. Uma
das aplicações mais importantes1 do produto tensorial é, como veremos, no
cálculo de fibras de mapas de espectros. Esta técnica nos permitirá calcular
espectros de anéis mais complicados do que os que vimos até agora.

5.1 Construção e Propriedades Básicas


Começamos relembrando a seguinte
5.1.1 Definição Seja A um anel e sejam M , N e T A-módulos. Um mapa
bilinear é uma função
φ: M × N → T
que é A-linear em cada entrada separadamente, ou seja,
(i) φ(a1 m1 + a2 m2 , n) = a1 φ(m1 , n) + a2 φ(m2 , n)
(ii) φ(m, a1 n1 + a2 n2 ) = a1 φ(m, n1 ) + a2 φ(m, n2 )
para todo m, mi ∈ M , n, ni ∈ N e ai ∈ A. O conjunto de todos os mapas
bilineares entre M × N e T será denotado por BilA (M × N, T ).
A partir de dois A-módulos M e N , vamos agora construir um novo
A-módulo M ⊗A N , chamado produto tensorial de M e N sobre A, jun-
tamente com uma aplicação bilinear
⊗: M × N ✲ M ⊗A N
1 e, segundo os médicos, mais saudáveis!

119
120 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

que, em termos categóricos, representam o funtor BilA (M ×N, −). Queremos


que M ⊗A N satisfaça a seguinte propriedade universal: para qualquer
A-módulo T de “teste”, o mapa

HomA (M ⊗A N, T )

✲ BilA (M × N, T )
f �−→ f ◦ ⊗

é uma bijeção. Em outras palavras, queremos que dado um mapa bilinear


φ ∈ BilA (M × N, T ), exista um único morfismo de A-módulos f : M ⊗A N →
T fazendo o seguinte diagrama comutar:
φ
M ×N T

∃!f

M ⊗N

A construção de M ⊗A N é simples: considere o A-módulo livre com base


{em,n | (m, n) ∈ M × N }

A · em,n
(m,n)∈M ×N

e seja R o submódulo gerado pelos elementos da forma


(i) eam,n − a · em,n , em,an − a · em,n
(ii) em1 +m2 ,n − em1 ,n − em2 ,n
(iii) em,n1 +n2 − em,n1 − em,n2
em que m, mi ∈ M , n, ni ∈ N e a ∈ A. Definimos

def (m,n)∈M ×N A · em,n
M ⊗A N =
R
Denotamos a imagem de em,n em M ⊗A N por m ⊗ n, que chamaremos
de tensor elementar. Assim, os tensores elementares geram M ⊗A N e
satisfazem as relações
(i) (am) ⊗ n = a(m ⊗ n) = m ⊗ (an)
(ii) (m1 + m2 ) ⊗ n = m1 ⊗ n + m2 ⊗ n
(iii) m ⊗ (n1 + n2 ) = m ⊗ n1 + m ⊗ n2
para todo m, mi ∈ M , n, ni ∈ N e a ∈ A, de modo que temos um mapa
bilinear

⊗: M × N ✲ M ⊗A N
(m, n) �−→ m ⊗ n
5.1. CONSTRUÇÃO E PROPRIEDADES BÁSICAS 121

Por construção, temos que o par (M ⊗A N, ⊗) satisfaz a propriedade universal


acima: dado um mapa bilinear φ : M ×N → T , temos um mapa de A-módulos
correspondente

A · em,n ✲ T
(m,n)∈M ×N
� �
ai emi ,ni �−→ ai φ(mi , ni )
i i

e como φ é bilinear, temos que o submódulo R está contido no kernel deste


mapa. Assim, pela propriedade universal do quociente, temos um mapa
induzido de A-módulos

f : M ⊗A N ✲ T
� �
ai mi ⊗ ni �−→ ai φ(mi , ni )
i i

que claramente é o único mapa tal que f ◦ ⊗ = φ.


Como no caso do quociente e da localização, a propriedade universal do
produto tensorial permite facilmente construir morfismos saindo de M ⊗A N :
basta construir uma aplicação bilinear saindo de M × N . Observe ainda que
todo elemento de M ⊗A N é uma soma de tensores elementares, logo para
definir um morfismo saindo de M ⊗A N é suficiente defini-lo para tensores
elementares.
Como ilustração deste princı́pio, vejamos a seguinte seguinte lista de “iso-
morfismos básicos” que são frequentemente utilizados na prática:

Teorema 5.1.2 (Isomorfismos Básicos) Seja A um anel. Temos os se-


guintes isomofismos canônicos:

(i) (associatividade)

(M ⊗A N ) ⊗A P

✲ M ⊗A (N ⊗A P )
(m ⊗ n) ⊗ p �−→ m ⊗ (n ⊗ p)

(ii) (elemento neutro)

A ⊗A M ✲ M

a ⊗ m �−→ am

(iii) (comutatividade)

M ⊗A N

✲ N ⊗A M
m ⊗ n �−→ n ⊗ m
122 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

(iv) (distributividade com relação à soma direta)


�� � ≈ �
M ⊗A Ni ✲ (M ⊗A Ni )
i∈I i∈I
m ⊗ (ni )i∈I �−→ (m ⊗ ni )i∈I

(v) (quociente) Para qualquer ideal a ⊆ A,

M ⊗A (A/a) ✲ M/aM

m ⊗ a �−→ am

(vi) (localização) Para qualquer conjunto multiplicativo S ⊆ A, temos

(S −1 A) ⊗A M

✲ S −1 M
a am
⊗ m �−→
s s

(vii) (adjunção ou “Hom sweet Hom”)

HomA (M ⊗A N, P )

✲ HomA (M, HomA (N, P ))
� �
f �−→ n �→ f (m ⊗ n)

(viii) (comutatividade com limite direto) Se (Mi )i∈I é um sistema direto de


A-módulos e N é um A-módulo qualquer, temos

(inj lim Mi ) ⊗A N ✲ inj lim(Mi ⊗A N )


i∈I i∈I
[mi ] ⊗ n �−→ [mi ⊗ n]

em que [mi ] e [mi ⊗ n] denotam as imagens de mi ∈ Mi e mi ⊗ n ∈


Mi ⊗A N em inj limi∈I Mi e inj limi∈I (Mi ⊗A N ), respectivamente.

Demonstração: As provas são simples, consistindo em verificar que os


mapas acima estão bem definidos utilizando a propriedade universal e em
construir morfismos inversos explı́citos para estes mapas. A tı́tulo de exem-
plo, provemos (v). Observe que o mapa

φ : M × (A/a) ✲ M/aM
(m, a) �−→ am

está bem definido, i.e., o elemento am não depende da escolha do represen-


tante de classe de a. Como φ é bilinear, pela propriedade universal ele induz
um mapa de A-módulos

f : M ⊗A (A/a) ✲ M/aM
m ⊗ a �−→ am
5.1. CONSTRUÇÃO E PROPRIEDADES BÁSICAS 123

Para mostrar que f é um isomorfismo, vamos construir o seu inverso. Con-


sidere o morfismo

γ: M ✲ M ⊗A (A/a)
m �−→ m ⊗ 1

cujo kernel contém aM : se ai ∈ a e mi ∈ M , temos


�� � � �
γ a i mi = ai mi ⊗ 1 = mi ⊗ a i = 0
i i i

Assim, temos um morfismo de A-módulos induzido

g : M/aM ✲ M ⊗A (A/a)
m �−→ m ⊗ 1

Agora basta checar que f e g são inversos um do outro, o que é fácil:

f ◦ g(m) = f (m ⊗ 1̄) = m

para todo m ∈ M , logo f ◦ g = id, e

g ◦ f (m ⊗ a) = g(am) = am ⊗ 1̄ = m ⊗ a

para todo tensor elementar m ⊗ a com m ∈ M e a ∈ A. Como os tensores


elementares geram M ⊗A (A/a), temos que g ◦ f = id.

5.1.3 Exemplo Seja k um corpo e sejam V e W dois espaços vetoriais de


dimensão finita sobre k. Sejam ω1 , . . . , ωm e τ1 , . . . , τn bases de V e W
respectivamente. Usando a distributividade, temos um isomorfismo
� � � � � � �
V ⊗k W = k · ωi ⊗k k · τj = k · ω i ⊗ τj
1≤i≤m 1≤j≤n 1≤i≤m
1≤j≤n

Logo V ⊗k W é um espaço vetorial com base {ωi ⊗ τj | 1 ≤ i ≤ m, 1 ≤ j ≤ n}


e portanto
dimk (V ⊗k W ) = (dimk V ) · (dimk W )

5.1.4 Exemplo Sejam m, n ∈ Z e d = mdc(m, n). Temos um isomorfismo

Z Z Z/(m) Z/(m) Z Z
⊗Z = =� � = =
(m) (n) (n) · (Z/(m)) (m) + (n) /(m) (m, n) (d)
124 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

5.2 O funtor mudança de base


Dados morfismos de A-módulos f : M → M � e g : N → N � , o mapa

f × g: M × N ✲ M � ⊗A N �
(m, n) �−→ f (m) ⊗ g(n)

é bilinear, logo define um mapa de A-módulos

f ⊗ g : M ⊗A N ✲ M � ⊗A N �
m ⊗ n �→ f (m) ⊗ g(n)

Em particular, fixado um A-módulo T , temos um funtor − ⊗A T da categoria


de A-módulos para ela mesma, que associa a cada A-módulo M o A-módulo
M ⊗A T e leva a flecha f : M → M � na flecha f ⊗ id : M ⊗A T → M � ⊗A T .
Uma das propriedades mais importantes deste funtor é que ele é exato à
direita:

Teorema 5.2.1 (Exatidão à direita) Seja T um A-módulo qualquer. O


funtor − ⊗A T é exato à direita, i.e., se

M
f
✲ N g
✲ P ✲ 0

é uma sequência exata de A-módulos, então o mesmo vale para

M ⊗T ✲ N ⊗T
f ⊗id g⊗id
✲ P ⊗T ✲ 0

Demonstração: Temos que g sobrejetor implica g⊗id sobrejetor:


dados p ∈ P e t ∈ T , temos que o tensor elementar p ⊗ t ∈ P ⊗A T é imagem
de n ⊗ t ∈ N ⊗A T por g ⊗ id, em que n ∈ N é tal que g(n) = p. Como os
tensores elementares geram P ⊗A T , concluı́mos que g ⊗ id é sobrejetor.
Temos que im(f ⊗ id) ⊆ ker(g ⊗ id), logo g ⊗ id induz um morfismo
sobrejetor
N ⊗T ✲
✲ P ⊗T
G:
im(f ⊗ id)
De fato, como (g ⊗ id) ◦ (f ⊗ id) = (g ◦ f ) ⊗ id = 0, temos que im(f ⊗ id) ⊆
ker(g ⊗ id) e G é definido pela propriedade universal do quociente.
Temos que G é um isomorfismo, logo im(f ⊗ id) = ker(g ⊗ id): note que
a igualdade entre o kernel e a imagem segue do teorema da correspondência
uma vez que mostrarmos que G é um isomorfismo. E para mostrar isto,
construiremos explicitamente o mapa inverso. Considere o mapa

φ: P × T ✲ (N ⊗ T )/ im(f ⊗ id)
p ⊗ t �−→ n ⊗ t (p ∈ P, t ∈ T )
5.2. O FUNTOR MUDANÇA DE BASE 125

em que n ∈ N é qualquer elemento tal que g(n) = p. Note que n ⊗ t não


depende da escolha de n: se n� ∈ N é outro elemento tal que g(n� ) = p então
n� − n ∈ ker g e pela exatidão existe m ∈ M tal que

n� − n = f (m) =⇒ n� ⊗ t = n ⊗ t + (f ⊗ id)(m ⊗ t) =⇒ n� ⊗ t = n ⊗ t

Claramente φ é bilinear, logo define um morfismo de A-módulos F : P ⊗ T →


(N ⊗ T )/ im(f ⊗ id). Uma verificação imediata mostra que F ◦ G = id e
G ◦ F = id, o que completa a demonstração.

5.2.2 Exemplo Produtos tensoriais podem destruir a injetividade: consi-


dere a sequência exata de Z-módulos

0 ✲ Z 2
✲ Z ✲ Z/(2) ✲ 0

em que Z
2
✲ Z denota a multiplicação por 2. Tensorizando por Z/(2)
e utilizando os isomorfismos canônicos, obtemos um diagrama comutativo
cujas flechas verticais são isomorfismos:
2⊗id
0 Z ⊗Z Z/(2) Z ⊗Z Z/(2) Z/(2) ⊗Z Z/(2) 0
≈ a⊗b�→ab ≈ a⊗b�→ab ≈ a⊗b�→ab

0 id
0 Z/(2) Z/(2) Z/(2) 0

Como a linha de baixo não é exata à esquerda, o mesmo ocorre com a linha
de cima.

Um caso particularmente importante ocorre quando temos uma A-álgebra


B. Neste caso, dado um A-módulo M , o produto tensorial M ⊗A B pode ser
também visto como um B-módulo: para cada b0 ∈ B fixado, a multiplicação
por b0
B ✲ B
b0

define um morfismo de A-módulos

M ⊗A B ✲ M ⊗A B
id⊗b0

m ⊗ b �−→ m ⊗ b0 b

Assim, podemos dar uma estrutura de B-módulo a M ⊗A B via multiplicação


na segunda coordenada. E se f : M → M � é um morfismo de A-módulos,
temos que f ⊗ id : M ⊗A B → M � ⊗A B é um morfismo de B-módulos com a
estrutura acima. Em outras palavras, temos um funtor −⊗A B da categoria de
A-módulos para a categoria de B-módulos, o chamado funtor mudança de
base. Intuitivamente, a operação −⊗A B consiste em “trocar os coeficientes”
de A para B. Às vezes, denotamos o B-módulo M ⊗A B simplesmente por
MB e o morfismo f ⊗ id por fB .
126 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

5.2.3 Exemplo Seja K ⊆ L é uma extensão de corpos e V um K-espaço


vetorial de dimensão n. Se ω1 , . . . , ωn é uma base de V sobre K então
� � � � �
VL = V ⊗ K L = Kωi ⊗K L = (Kωi ⊗K L) = L · (ωi ⊗ 1)
1≤i≤n 1≤i≤n 1≤i≤n

é um L-espaço vetorial de dimensão n, sendo ω1 ⊗ 1, . . . , ωn ⊗ 1 uma base


sobre L. Assim, temos

dimL VL = dimL (V ⊗K L) = dimK V

O próximo teorema resume algumas propriedades úteis da mudança de


base. Deixamos a prova como exercı́cio para o leitor.
Teorema 5.2.4 (Mudança de base) Seja A um anel e seja B uma A-
álgebra.
1. (Produto tensorial comuta com mudança de base) Dados dois A-módu-
los M e N , temos um isomorfismo de B-módulos

(M ⊗A B) ⊗B (N ⊗A B) ✲ (M ⊗A N ) ⊗A B

(m ⊗ b) ⊗ (n ⊗ b ) �−→ (m ⊗ n) ⊗ bb�

Ou, em notação mais compacta, MB ⊗B NB = (M ⊗A N )B .


2. (Transitividade) Se M é um A-módulo e P é um B-módulo, temos um
isomorfismo de B-módulos

(M ⊗A B) ⊗B P ✲ M ⊗A P

(m ⊗ b) ⊗ p �−→ m ⊗ bp

Aqui M ⊗A P é visto como B-módulo via multiplicação na segunda coor-


denada. Em particular, se C é uma B-álgebra, temos um isomorfismo
de C-módulos

(M ⊗A B) ⊗B C ✲ M ⊗A C

(m ⊗ b) ⊗ c �−→ m ⊗ (bc)

Ou seja, (MB )C = MC . Pictoriamente,

MC = (MB )C C

MB B

M A
5.3. PRODUTO TENSORIAL DE ÁLGEBRAS 127

Utilizando a linguagem de mudança de base, podemos reescrever o lema


de Nakayama na seguinte forma mais natural:
Teorema 5.2.5 (Lema de Nakayama, versão II) Seja M um módulo fi-
nitamente gerado sobre um anel local (A, m, k).
1. M ⊗A k = 0 ⇐⇒ M = 0
2. Seja φ : N → M um morfismo de A-álgebras. Então φ é sobrejetor se,
e só se, o mapa k-linear φ ⊗ id : N ⊗A k → M ⊗A k é sobrejetor.
Demonstração: Temos um isomorfismo canônico
M ⊗A k = M ⊗A (A/m) = M/mM
e assim os items acima se reduzem ao lema de Nakayama original (teo-
rema 4.5.5 na página 112). Podemos também dar uma nova prova do item (2)
da seguinte maneira: considere a sequência exata

N ✲ M
φ
✲ coker φ ✲ 0

Como a mudança de base − ⊗A k é exata à direita, temos uma sequência


exata
N ⊗A k ✲ M ⊗A k ✲ (coker φ) ⊗A k ✲ 0
φ⊗id

Como M é finitamente gerado sobre A, o mesmo vale para coker φ = M/ im φ


e, pelo item (1), (coker φ) ⊗A k = 0 ⇐⇒ coker φ = 0, ou seja, φ ⊗ id é
sobrejetor se, e só se, φ é sobrejetor.

5.3 Produto Tensorial de Álgebras


Dadas duas A-álgebras B e C, o produto tensorial B ⊗A C admite uma
estrutura de A-álgebra: como o mapa
B×C ×B×C ✲ B ⊗A C
(b, c, b� , c� ) �−→ (bb� ) ⊗ (cc� )
é A-multilinear, define um morfismo de A-módulos
(B ⊗A C) ⊗A (B ⊗A C) ✲ B ⊗A C
b ⊗ c ⊗ b� ⊗ c� �−→ (bb� ) ⊗ (cc� )
ou seja, uma operação de produto em B ⊗A C, fazendo deste um anel cuja
unidade é 1 ⊗ 1. Este anel é uma A-álgebra: multiplicação por a ∈ A é dada
por a(b ⊗ c) = (ab) ⊗ c = b ⊗ (ac).
Agora que temos uma estrutura algébrica mais rica em B ⊗A C (que de
reles A-módulo passou a ser uma A-álgebra), que tal obtermos uma “versão
turbinada” da propriedade universal do produto tensorial? Tal propriedade
expressa o fato de que o produto tensorial é o coproduto na categoria de
A-álgebras.
128 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

Teorema 5.3.1 (Coproduto) Sejam B, C duas A-álgebras e considere os


morfismo de anéis
p: B ✲ B ⊗A C q: C ✲ B ⊗A C
b �−→ b ⊗ 1 c �−→ 1 ⊗ c
Seja D uma A-álgebra qualquer. Temos uma bijeção

HomA-alg (B, D) × HomA-alg (C, D) ✲ HomA-alg (B ⊗A C, D)


(φ, ψ) �−→ f
em que f é definido por f (b ⊗ c) = φ(b) · ψ(c). A inversa desta bijeção é

HomA-alg (B ⊗A C, D)

✲ HomA-alg (B, D) × HomA-alg (C, D)
f �−→ (f ◦ p, f ◦ q)
Em outras palavras, dados morfismos de A-álgebras φ : B → D e ψ : C →
D, existe um único morfismo de A-álgebras f : B ⊗A C → D fazendo o
seguinte diagrama comutar:

B ⊗A C
p q
∃!f
φ ψ
B D C

Demonstração: Dados morfismos de A-álgebras φ : B → D e ψ : C → D,


temos que o mapa
B×C ✲ D
(b, c) �→ φ(b) · ψ(c)
é A-bilinear, logo define um mapa f : B⊗A C → D de A-módulos, que também
é um morfismo de A-álgebras pois
f (b ⊗ c) · f (b� ⊗ c� ) = φ(b)ψ(c)φ(b� )ψ(c� ) = φ(bb� )ψ(cc� ) = f (bb� ⊗ cc� )
� �
= f (b ⊗ c) · (b� ⊗ c� )
para todo b, b� ∈ B e c, c� ∈ C. Assim, o mapa (φ, ψ) �→ f acima está bem
definido. E claramente f ◦ p = φ e f ◦ q = ψ. Isto mostra que a composição
(φ, ψ) �→ f �→ (f ◦ p, f ◦ q) é a identidade.
Reciprocamente, se f : B ⊗A C → D é um morfismo de A-álgebras e
φ = f ◦ p e ψ = f ◦ q, então
� �
f (b ⊗ c) = f (b ⊗ 1) · (1 ⊗ c) = f (b ⊗ 1) · f (1 ⊗ c) = φ(b) · ψ(c)
para todo b ∈ B e c ∈ C, o que mostra que f é o morfismo associado ao par
(φ, ψ).
5.3. PRODUTO TENSORIAL DE ÁLGEBRAS 129

Novamente uma das interpretações mais úteis é a de mudança de base:


dada uma A-álgebra A� , temos um funtor − ⊗A A� da categoria de A-álgebras
para a categoria de A� -álgebras que leva uma A-álgebra B em B � = B ⊗A
A� , visto como A� -álgebra por multiplicação na segunda coordenada. Temos
assim um diagrama comutativo
b�→b⊗1
B B � = B ⊗ A A�
φ φ⊗id

A A � = A ⊗ A A�

Um diagrama isomorfo ao diagrama de mudança de base acima é dito carte-


siano. Como no caso de módulos, a mudança de base de álgebras formaliza
a noção de “troca de coeficientes”, como mostram os seguintes exemplos.

5.3.2 Exemplo Para qualquer A-álgebra B, temos um isomorfismo de B-


álgebras

A[x] ⊗A B ✲ B[x]

p(x) ⊗ b �−→ b · p(x)

De fato, este mapa é o associado pela propriedade universal aos morfismos


naturais de A-álgebras A[x] → B[x] e B → B[x]. Para mostrar que este
morfismo de B-álgebras é um isomorfismo, basta mostrar que ele é um iso-
morfismo de A-módulos, o que é claro pois
�� � � �
A[x] ⊗A B = Axn ⊗A B = (Axn ⊗A B) = Bxn
n≥0 n≥0 n≥0

Em particular, obtemos que A[x] ⊗A A[y] = A[x, y].

5.3.3 Exemplo Seja B um A-módulo e seja f (x) ∈ A[x]. Então temos um


isomorfismo de B-álgebras

A[x] ≈
✲ �B[x]�
φ: � � ⊗A B
f (x) f (x)
p(x) ⊗ b �−→ b · p(x)

De fato, considere a sequência exata

A[x] ✲ A[x]
f (x)
✲ � A[x] � ✲ 0
f (x)

em que o mapa da esquerda é a multiplicação por f (x). Utilizando o fato de


que − ⊗A B é exato à direita, temos um diagrama comutativo, cujas flechas
verticais são induzidas pelo produto:
130 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

f (x)⊗id A[x]
A[x] ⊗A B A[x] ⊗A B (f (x)) ⊗A B 0

≈ ≈ φ

f (x) B[x]
B[x] B[x] (f (x)) 0

Como as duas flechas verticais da esquerda são isomorfismos pelo exemplo


anterior, o mesmo vale para φ e o resultado segue.

5.3.4 Exemplo Seja L ⊇ K uma extensão Galois finita com grupo de Galois
G = Gal(L/K). Então temos um isomorfismo de L-álgebras

L ⊗K L

✲ Maps(G, L)
a ⊗ b �−→ (a · σ(b))σ∈G

Aqui, L ⊗k L é visto como L-álgebra via multiplicação pela esquerda e


Maps(G, L) ∼ = L|G| é o L-espaço vetorial de todas as funções de G em L, ou
seja, o L-espaço vetorial de todas as tuplas indexadas por elementos σ ∈ G e
entradas em L.
Para mostrar este isomorfismo, seja θ ∈ L tal que L = K[θ], que existe
pelo teorema do elemento primitivo (teorema C.4.8 na página 371). Seja
p(x) ∈ K[x] o polinômio minimal de θ sobre K, de modo que

p(x) = (x − σ(θ))
σ∈G

Como p(x) é separável, pelo exemplo anterior e pelo teorema Chinês dos
restos (teorema 1.5.1 na página 17) temos um isomorfismo

K[x] 5.3.3 L[x] TCR � L[x]


L ⊗ K L = L ⊗K � � = � � = = Maps(G, L)
p(x) p(x) (x − σ(θ))
σ∈G

É fácil descrever explicitamente este isomorfismo. Sejam a, b ∈ L e escreva


b = f (θ) para algum polinômio f (x) ∈ K[x]. Seguindo a cadeia de isomorfis-
mos acima, temos
5.3.3 TCR
a ⊗ b �−→ a ⊗ f (x) �−→ a · f (x) �−→ (a · f (x) mod (x − σ(θ)))σ∈G
� �
�−→ (a · f (σ(θ)))σ∈G = (a · σ f (θ) )σ∈G = (a · σ(b))σ∈G

5.4 Fibras
Dada uma função f : X → Y qualquer, a fibra f −1 (y) de um ponto y ∈ Y é
somente um nome pomposo para denotar a pré-imagem de y. A origem deste
nome fabril pode ser visualizada por exemplo no caso em que f : R2 → R
5.4. FIBRAS 131

denota a projeção na primeira coordenada. Observe que em geral as fibras


de f particionam o domı́nio X.
Nesta seção, estamos interessados no cálculo explı́cito das fibras de mapas
entre espectros. Note primeiro que dado um morfismo de anéis φ : A → B e
uma A-álgebra A� qualquer, associado ao diagrama cartesiano (mudança de
base por A� )
b�→b⊗1
B B ⊗ A A�
φ a� �→1⊗a�

A A�

temos um diagrama comutativo de espectros

Spec B ⊗A A� Spec B
Spec φ

Spec A� Spec A

que denominaremos diagrama fibrado associado à mudança de base − ⊗A A� .


Eeste nome aparentemente estranho tem sua razão de ser pelo seguinte
Lema 5.4.1 Seja φ : A → B um morfismo de anéis e considere o mapa de
espectros f = Spec(φ) : Spec B → Spec A associado.
1. Seja a ⊆ A um ideal. No diagrama fibrado associado à mudança de
base − ⊗A A/a

Spec B ⊗A A/a Spec B


f =Spec φ

Spec A/a Spec A

� �
o mapa horizontal de cima é injetor com imagem f −1 V (a) . Assim,
temos uma identificação natural
� �
f −1 V (a) = Spec B ⊗A A/a

2. Seja S ⊆ A um subconjunto multiplicativo e considere o diagrama fi-


brado associado à mudança de base − ⊗A S −1 A:

Spec B ⊗A S −1 A Spec B
f =Spec φ

Spec S −1 A Spec A
132 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

Seja DS = {p ∈ Spec A� | p �∩ S = ∅}. O mapa horizontal de cima é


injetor com imagem f −1 DS . Assim, temos uma identificação natural
� �
f −1 DS = Spec B ⊗A A/a

Logo, em ambos os itens, a flecha vertical da esquerda é a restrição de f à


fibra da imagem da flecha horizontal inferior.

Demonstração: Dos isomorfismos básicos (teorema 5.1.2 na página 121),


temos que os mapas naturais

B → B ⊗A A/a B → B ⊗A S −1 A
b �→ b ⊗ 1 b �→ b ⊗ 1

se identificam com os mapas de projeção e localização

B → B/φ(a)B B → φ(S)−1 B
b �→ b b �→ b/1

Assim, no primeiro item, Spec B ⊗A A/a �→ Spec B é injetor com imagem


(lema 3.1.2 na página 83)
� �
{q ∈ Spec B | q ⊇ φ(a)B} = {q ∈ Spec B | φ−1 (q) ⊇ a} = f −1 V (a)

e, no segundo item, Spec B ⊗A S −1 A �→ Spec B é injetor com imagem (teo-


rema 4.3.1 na página 104)
� �
{q ∈ Spec B | q ∩ φ(S) = ∅} = {q ∈ Spec B | φ−1 (q) ∩ S = ∅} = f −1 DS

Combinando os itens acima, obtemos o principal resultado desta seção:

Teorema 5.4.2 (Fibras) Seja φ : A → B um morfismo de anéis. Seja p ∈


Spec A e seja κ(p) = Frac A/p o corpo residual de Ap . No diagrama fibrado
(associado a − ⊗A κ(p))

Spec B ⊗A κ(p) Spec B


f =Spec φ

Spec κ(p) Spec A

a flecha horizontal de cima estabelece uma bijeção natural

Spec B ⊗A κ(p) = f −1 (p)


5.4. FIBRAS 133

Demonstração: Basta notar que o mapa natural A → κ(p) se fatora


como uma composição A → Ap → κ(p) do mapa de localização e do mapa
quociente, e assim temos diagramas cartesianos

B B ⊗ A Ap B ⊗A κ(p) (B ⊗A Ap ) ⊗Ap κ(p)


φ

A Ap κ(p)

para os quais podemos aplicar o lema, obtendo que a imagem da composição


Spec B ⊗A κ(p) �→ Spec B ⊗A κ(p) �→ Spec B é a fibra de p, que é o único
primo na imagem de Spec κ(p) �→ Spec A.

Observação 5.4.3 Pela demonstração acima, temos um isomorfismo canô-


nico B ⊗A κ(p) = φ(S)−1 (B/φ(p)B). Note que enquanto o quociente “filtra”
os primos contendo φ(p), a localização mata os primos cuja imagem por
Spec(φ) não esteja contida em p. O que sobra é a fibra de p.

Podemos utilizar o teorema acima no cálculo de espectros de alguns anéis.


Proposição 5.4.4 Seja D um DIP. Então
� �
Spec D[x] = {(0)} ∪ { f (x) | f (x) ∈ D[x] é irredutı́vel }
�� � �� π é irredutı́vel em D e f (x)�
∪ f (x), π � � �
é irredutı́vel em D/(π) [x]

e portanto dim D[x] = 2.

Demonstração: Considere a inclusão φ : D �→ D[x]. Vamos calcular as


fibras de Spec φ. Seja K = Frac D. Como um primo p ∈ Spec D é (0) ou é
da forma (π) com π ∈ D irredutı́vel, temos dois casos:
(i) Fibra de p = (0). Neste caso, κ(p) = K. Assim, D[x] ⊗D κ(p) = K[x] e
o morfismo D[x] → D[x] ⊗D κ(p) é identificado com a inclusão D[x] �→
K[x]. Como K[x] é um DIP, temos
� �
Spec K[x] = {(0)} ∪ { f (x) | f (x) ∈ K[x] é irredutı́vel }

Multiplicando por um elemento não nulo em D ⊂ (K[x])× , podemos


supor que f (x) ∈ D[x] e que ele é primitivo. Desta forma, pelo lema
de Gauß (teorema B.3.4 na página 351), temos que f (x) é irredutı́vel
em D[x] e, reciprocamente, qualquer elemento irredutı́vel f (x) ∈ D[x]
não �constante
� também é irredutı́vel em K[x]. Assim, a imagem de
q = f (x) ∈ Spec K[x] por Spec K[x] → Spec D[x] é
� �
q ∩ D[x] = f (x) ∈ Spec D[x]
134 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

novamente pelo teorema B.3.4 na página 351. Por outro lado, como
D[x] �→ K[x] é injetor, a imagem de (0) ∈ Spec K[x] é (0) ∈� Spec�D[x].
Assim, a fibra de p consiste nos primos da froma (0) e f (x) com
f (x) ∈ D[x] \ D irredutı́vel.
(ii) Fibra
� de� p = (π). Neste caso, κ(p) = D/(π). Portanto D[x] ⊗D κ(p) =
D/(π) [x] e o mapa
� D[x] � → D[x] ⊗D κ(p) pode ser identificado com a
projeção D[x] � D/(π) [x]. Assim, como
� � � � � �
Spec D/(π) [x] = {(0)} ∪ { f (x) | f (x) ∈ D/(π) [x] é irredutı́vel }
� �
a fibra de p consiste
� nos
� primos da forma (π) e π, f (x) com f (x)
irredutı́vel em D/(π) [x].
Note que com isso temos dim D[x] = 2, sendo� uma �cadeia de comprimento 2
dada por (0) � (π) � (π, f (x)) com f (x) ∈ D/(π) [x] irredutı́vel.

Note que em particular obtemos


� �
Spec C[x, y] = {(0)} ∪ { f (x, y) | f (x, y) ∈ C[x, y] é irredutı́vel }
∪ {(x − a, y − b) | (a, b) ∈ C2 }

Ou seja, há 3 tipos de primos, que estão em bijeção com as variedades de A2C
(c.f. proposição 2.3.18 na página 53):
(i) (x − a, y − b), que corresponde ao ponto (a, b) ∈ A2C ;
(ii) (f ) com f irredutı́vel, que corresponde à curva Z(f ) (já que o fecho de
(f ) em Spec C[x, y] consiste em (f ) e nos ideais maximais (x − a, y − b)
com f (a, b) = 0);
(iii) (0), que correspondende a todo A2C (já que (0) é um primo denso em
Spec C[x, y]).
Da mesma forma, temos
� �
Spec Z[x] = {(0)} ∪ { f (x) | f (x) ∈ Z[x] é irredutı́vel }
�� � �� p ∈ Z é um número primo e�
∪ f (x), p �
f (x) é irredutı́vel em Fp [x]
e por analogia podemos pensar em Spec Z[x] como um “plano aritmético”,
com “pontos fechados” da forma (p, f (x)), “curvas” correspondendo aos fe-
chos dos primos da forma (p) e (f ), e todo o “plano”, que é o fecho de (0).
Por exemplo, representando Spec Z como uma reta horizontal e conside-
rando a projeção Spec Z[x] → Spec Z dada pela inclusão Z �→ Z[x] (que foi o
mapa utilizado na prova da proposição), temos que a “curva” correspondente
ao primo (x2 + 5) ∈ Spec Z[x] intercepta a “reta vertical” dada por um primo
(p) em 1 ou 2 pontos, dependendo se x2 + 5 ∈ Fp [x] é irredutı́vel ou não: esta
é justamente a figura do exemplo 3.2.2 na página 87! Legal, não?
5.4. FIBRAS 135

5.4.5 Exemplo (Fibras do Blow-up) Considere o morfismo de C[x, y]-


álgebras dado por

φ : C[x, y] ⊂ ✲ C[x, y, z]
(y − xz)
f (x, y) �−→ f (x, y)
que é o pullback associado ao morfismo de conjuntos algébricos
Z(y − xz) ⊆ A3C ✲
✲ A2C
(a, b, c) �−→ (a, b)
(projeção da superfı́cie de equação y = xz no plano A2C ). Note que a superfı́cie
Z(y − xz), o chamado blow-up ou explosão do plano na origem2 , é a união
de retas da forma
def
Lm = {(λ, λm, m) ∈ A3C | λ ∈ C}
uma para cada “altura” m, cuja projeção no plano A2C é uma reta de coefici-
ente angular m, como mostra a figura a seguir:

Observe ainda na figura que cada ponto (a, b) ∈ A2C do plano com a �= 0 tem
uma única pré-imagem (a, b, b/a) na superfı́cie, à exceção da origem, cuja
pré-imagem é uma reta (o chamado “divisor excepcional”).
Vamos calcular a fibra de um ideal maximal da forma m = (x − a, y − b) ∈
Spec C[x, y]. Na verdade, tendo em vista que o mapa de espectros Spec φ
coincide com o mapa de conjuntos algébricos quanto restrito a ideais maxi-
mais via a identificação do Nullstellensatz (proposição 3.3.9 na página 94), é
fácil encontrar a resposta geometricamente; o que estamos fazendo é apenas
uma checagem para ver se tudo está funcionando como deveria.
Devemos calcular o morfismo de espectros associado ao mapa natural
C[x, y, z] C[x, y, z]
→ ⊗C[x,y] κ(m)
(y − xz) (y − xz)
2 ou quase; na verdade, é apenas uma carta afim do “verdadeiro” blow-up, que é o
conjunto {(x, y; z : w) ∈ A2C × P1C | yw = xz}. Assim, o blow-up é a superfı́cie obtida
a partir do plano trocando-se a origem por uma reta projetiva (o “verdadeiro” divisor
excepcional), representando as possı́veis direções no plano pela origem.
5.5. MÓDULOS E ÁLGEBRAS PLANAS 137

Por fim, queremos dizer que a interpretação “fibrada” do produto tensorial


se estende a módulos também: podemos pensar em um A-módulo M como
uma “famı́lia” de espaços vetoriais M ⊗A κ(p) (as “fibras” de M ), um sobre
cada “ponto” p ∈ Spec A. Nakayama pode então ser entendido como um
resultado de “continuidade”: se M “é trivial” sobre um “ponto” p, então
M se anula em uma vizinhaça de p. De fato, se M = Aω1 + · · · + Aωn é
finitamente gerado, como
NAK
0 = M ⊗A κ(p) = (M ⊗A Ap ) ⊗Ap κ(p) = Mp ⊗Ap κ(p) =⇒ Mp = 0
temos que existem si ∈ A \ p tais que si ωi = 0 em M e portanto h = s1 . . . sn
anula M . Desta forma, Mq = 0 para todo q na vizinhaça aberta D(h) de p.

5.5 Módulos e álgebras planas


Vamos agora estudar módulos e álgebras que “preservam relações lineares”:
5.5.1 Definição Um A-módulo M é dito plano se o funtor −⊗A M é exato.
Uma A-álgebra B é plana se B é plana como A-módulo.
Note que como o produto tensorial é exato à direita, M é plano sobre
A se, e só se, o funtor − ⊗A M preserva injeções, ou seja, N �→ N � injetor
implica N ⊗A M �→ N � ⊗A M injetor.
5.5.2 Exemplo (Localização) Para qualquer subconjunto multiplicativo
S ⊆ A, S −1 A é uma álgebra A-plana, pois S −1 A ⊗A − é isomorfo ao funtor
de localização S −1 −, que é exato.
5.5.3 �
Exemplo (Módulos livres) Módulos livres são sempre planos: se
M = e∈E Ae, para qualquer morfismo de A-módulos f : N → N � , o mapa
�� � f ⊗id �� �
N ⊗A Ae ✲ N � ⊗A Ae
e∈E e∈E

é isomorfo à soma direta de |E| cópias de f :


� �
f �
Ne ✲ N �e
e∈E e∈E
138 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL


Assim, se f é injetor, f também é injetor, mostrando que M é A-plano.

5.5.4 Exemplo Se B é uma A-álgebra que é livre como A-módulo então B


é A-plano sobre A. Por exemplo, B = A[x] é A-plano para qualquer anel A;
e toda k-álgebra é plana sobre um corpo k.

5.5.5 Exemplo Se a é um ideal de A, então B = A/a é A-plano se, e só


se, a = 0; afinal de contas, nada melhor do que quocientes para estragar
injetividade! De fato, dado um morfismo de A-módulos f : N → M , temos
um diagrama comutativo
f ⊗id
N ⊗A A/a M ⊗A A/a

f
N/aN M/aM

em que f é o mapa induzido por f nos quocientes. Assim, se a ∈ a é um


elemento não nulo, tomando N = (a), M = A e f : (a) �→ A o mapa de
inclusão, temos que f = 0, o que mostra que A/a não pode ser A-plano se
a �= 0.

Geometricamente, planaridade se traduz em “continuidade das fibras”. O


exemplo seguinte é um tı́pico caso em que as fibras dão “saltos”, o que se
expressa algebricamente em termos da falta de planaridade.
5.5.6 Exemplo (Blow-up não é plano) Seja A = C[x, y] e considere a A-
álgebra B = C[x, y, z]/(y − xz), que é o anel de funções regulares do blow-up
do plano na origem (exemplo 5.4.5 na página 135). Considere a seguinte
sequência exata de A-álgebras

0 ✲ A ✲ A×A
ϕ
✲ A
ψ
✲ A/(x, y) ✲ 0

em que

ϕ: A → A × A ψ: A × A → A
1 �→ (y, −x) (f, g) �→ xf + yg

Aplicando o funtor − ⊗A B à sequência acima, obtemos uma nova sequência

0 ✲ B ✲ B×B
ϕB ψB
✲ B ✲ B/(x, y) ✲ 0

com ϕB e ψB definidos por mudança de base. Esta última sequência não é


exata pois agora ψB (−z, 1) = −z · x + y = 0, ou seja, (−z, 1) ∈ ker ψB , que
é um elemento que claramente não está na imagem de ϕB , que consiste nos
múltiplos do vetor (y, −x). Isto mostra que B não é plano sobre A.

O próximo lema coleta algumas propriedades básicas sobre planaridade.


5.5. MÓDULOS E ÁLGEBRAS PLANAS 139

Lema 5.5.7 Sejam φ : A → B e ψ : B → C duas álgebras e M um A-módulo.

1. (Estabilidade por composição) Se φ e ψ são planas, ψ ◦ φ é plana:

C
plana ψ

B ψ◦φ plana

plana φ

2. (Estabilidade por mudança de base)

M é A-plano =⇒ M ⊗A B é B-plano

Em particular, se S ⊆ A é um conjunto multiplicativo, se M é A-plano


então S −1 M é S −1 A-plano.

3. (Natureza local)

M é A-plano ⇐⇒ Mm é Am -plano para todo m ∈ Specm A

4. (Natureza local forte) Seja N um B-módulo.

N é A-plano ⇐⇒ Nn é Aφ−1 (n) -plano para todo n ∈ Specm B

Em particular, B é uma A-álgebra plana se, e só se, Bn é Aφ−1 (n) -plano
para todo ideal maximal n de B.

Demonstração:

1. Como M ⊗A C = (M ⊗A B) ⊗B C, o funtor − ⊗A C é a composição


dos funtores exatos − ⊗A B e − ⊗B C, sendo portanto também exato.

2. Segue como (1) do isomorfismo de funtores − ⊗B (M ⊗A B) = − ⊗A M .

3. A implicação ⇒ segue de (2). Reciprocamente, pelo princı́pio local-


global (teorema 4.2.3 na página 103), mostrar que − ⊗A M é exato é
equivalente a mostrar que o funtor F (N ) = (N ⊗A M )m é exato para
todo m ∈ Specm A. Como

Nm ⊗Am Mm = (N ⊗A Am ) ⊗Am (M ⊗A Am ) = (N ⊗A M ) ⊗A Am
= (N ⊗A M )m ,

segue que F é exato, sendo a composição dos funtores exatos localização


e − ⊗ Am M m .
140 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

4. Seja n ∈ Specm B e seja P um Aφ−1 (n) -módulo. Como P , visto como


A-módulo, é igual a sua localização com relação a φ−1 (n) ∈ Spec A,
temos
P ⊗Aφ−1 (n) Nn = (P ⊗A Aφ−1 (n) ) ⊗Aφ−1 (n) Nn = P ⊗A Nn = (P ⊗A N )n
Assim ⇒ segue do fato de que − ⊗Aφ−1 (n) Nn é exato, sendo a com-
posição dos funtores exatos − ⊗A N e localização. Reciprocamente,
pelo princı́pio local-global, para mostrar ⇐ basta mostrar que F (M ) =
(M ⊗A N )n é exato para todo n ∈ Spec B. Como acima, temos
Mφ−1 (n) ⊗Aφ−1 (n) Nn = M ⊗A Nn = (M ⊗A N )n

e o resultado segue já que localização por φ−1 (n) e − ⊗Aφ−1 (n) Nn são
funtores exatos.

Agora vamos definir álgebras e módulos com relação aos quais a mudança
de base é “reversı́vel”.
5.5.8 Definição Um A-módulo M é fielmente plano se o funtor − ⊗A M
é exato e fiel, ou seja, se M é plano sobre A (exatidão) e o mapa natural
HomA (P, Q) �→ HomA (P ⊗A M, Q ⊗A M )
φ �→ φ ⊗ id
é injetor para quaisquer A-módulos P e Q (fidelidade). Uma A-álgebra B é
fielmente plana sobre A se ela é fielmente plana como A-módulo.
5.5.9 Exemplo (c.f. exemplo 5.5.3 na página 137) Qualquer A-álgebra livre
B é fielmente plana sobre A. Em particular, qualquer álgebra sobre um corpo
é fielmente plana.
Lema 5.5.10 São equivalentes:
(a) M é fielmente plano sobre A;
(b) M é A-plano e satisfaz a seguinte “propriedade de cancelamento”: para
qualquer A-módulo T ,
T ⊗A M = 0 =⇒ T = 0

(c) Dada qualquer sequência de A-módulos

N ✲ P
f
✲ Q
g
(∗)
e sua tensorização por M

N ⊗A M ✲ P ⊗A M
f ⊗id
✲ Q ⊗A M
g⊗id
(∗) ⊗A M
temos que
(∗) é exata ⇐⇒ (∗) ⊗A M é exata
5.5. MÓDULOS E ÁLGEBRAS PLANAS 141

(d) M é A-plano e a fibra


M ⊗A (A/m) �= 0

para todo ideal maximal m de A.

Demonstração: (a) ⇒ (b): Suponha que T �= 0; devemos mostar que


T ⊗A M �= 0. Como 0 �= id ∈ HomA (T, T ) e por hipótese HomA (T, T ) �→
HomB (T ⊗A M, T ⊗A M ) é injetor, temos que HomB (T ⊗A M, T ⊗A M ) �= 0,
assim T ⊗A M �= 0.
(b) ⇒ (c): Se (∗) é exata, então (∗) ⊗A M é exata pois M é A-plano. Reci-
procamente, suponha que (∗) ⊗A M é exata. Como M é A-plano, temos que
o funtor − ⊗ M comuta com kernels, imagens e quocientes. Assim, de

(g ◦ f ) ⊗ id = (g ⊗ id) ◦ (f ⊗ id) = 0

temos
� � � � (b)
im(g ◦ f ) ⊗ M = im (g ◦ f ) ⊗ id = 0 =⇒ im(g ◦ f ) = 0

de modo que (∗) é um complexo. Se H = ker g/ im f denota a homologia de


(∗), temos novamente pela exatidão de − ⊗A M que a homologia de (∗) ⊗A M
é ker(g ⊗ id)/ im(f ⊗ id) = (ker g/ im f ) ⊗ M = H ⊗ M . Assim, de (b),
H ⊗ M = 0 =⇒ H = 0 e portanto (∗) é exata.
(c) ⇒ (a): De (c), temos claramente que M é A-plano. Agora, suponha
que φ ∈ HomA (P, Q) é tal que φ ⊗ id = 0; devemos mostrar que φ = 0. A
sequência
0 ✲ P ⊗M ✲ P ⊗ M φ⊗id✲ Q⊗M
id⊗id

é exata, mas por hipótese podemos “cancelar o M ” obtendo uma sequência


exata
0 ✲ P ✲ P φ✲ Q
id

de modo que φ = 0, como querı́amos mostrar.


(b) ⇒ (d): Basta tomar T = A/m �= 0.
(d) ⇒ (b): Dado um A-módulo T �= 0, temos que mostrar que M ⊗A T �= 0.
Seja t ∈ T um elemento não nulo e considere o submódulo A · t ∼
= A/ ann(t)
gerado por t. Como M é A-plano, temos que M ⊗A A/ ann(t) �→ M ⊗A T é
injetor, assim basta mostrar que

M ⊗A A/ ann(t) = M/ ann(t)M �= 0 ⇐⇒ ann(t)M �= M

Mas isto é fácil: como t �= 0, ann(t) �= A e existe um ideal maximal m tal


que m ⊇ ann(t); por outro lado, M ⊗ A/m = M/mM �= 0 por hipótese, logo
ann(t)M ⊆ mM � M .
142 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

Observação 5.5.11 Uma álgebra φ : A → B fielmente plana é sempre in-


jetora, de modo que podemos considerar A como subanel de B. De fato,
mostremos que a = ker φ é trivial. Da planaridade e da sequência exata
0 ✲ a ✲ A ✲ A/a ✲ 0

obtemos outra sequência exata


0 ✲ a ⊗A B ✲ A ⊗A B ✲ (A/a) ⊗A B ✲ 0

Porém o mapa A ⊗A B → (A/a) ⊗A B é equivalente ao mapa quociente


B → B/φ(a)B = B, que é um isomorfismo. Portanto a⊗A B = 0 =⇒ a = 0
pelo critério (b) do lema.
Do critério (d) acima, obtemos imediatamente
Corolário 5.5.12 Sejam A e B anéis locais e A → B uma álgebra local
(ou seja, a imagem do ideal maximal de A está contida no ideal maximal de
B). Então B é A-plano se, e só se, B é fielmente A-plano.
A “reversibilidade” da mudança de base fielmente plana possui uma ex-
pressão geométrica:
Teorema 5.5.13 Seja A → B uma álgebra. Então

A → B é plano e
A → B é fielmente plano ⇐⇒
Spec B � Spec A é sobrejetor

Demonstração: Temos as equivalências


Spec B � Spec A é sobrejetor
� �
⇐⇒ a fibra de p Spec B ⊗A κ(p) �= ∅ para todo p ∈ Spec A
⇐⇒ B ⊗A κ(p) �= 0 para todo p ∈ Spec A
Em particular, Spec B � Spec A sobrejetor implica B⊗A A/m �= 0 para todos
os ideais maximais m de A, logo A → B é fielmente plano pelo critério (d) do
lema anterior. Reciprocamente, se A → B é fielmente plano, pelo critério (b)
do lema temos B ⊗A κ(p) �= 0 para todo p ∈ Spec A e portanto Spec B �
Spec A é sobrejetor.

Ujma importante consequência do teorema anterior é o seguinte


Teorema 5.5.14 (Going-down plano) Seja φ : A → B uma álgebra pla-
na. Sejam p � p� primos em Spec A. Se P� ∈ Spec B tem imagem p� por
Spec φ então existe P ∈ Spec B com imagem p tal que P � P� .
∃P � P� � B
| | |
p � p� � A
5.6. EXERCÍCIOS 143

Demonstração: Pela natureza local forte da planaridade (lema 5.5.7 na


página 139), temos que Ap� → BP� é uma álgebra plana local, logo fielmente
plana pelo corolário anterior. Assim, Spec BP� � Spec Ap� é sobrejetor pelo
teorema anterior e o resultado segue.

Álgebras fielmente planas são muito úteis na prática devido a seguinte


filosofia: para verificar uma certa propriedade, é em geral mais fácil tra-
balhar após uma mudança de base conveniente e depois tentar “descer” a
propriedade ao anel original. Como ilustração, vejamos um exemplo simples.
5.5.15 Exemplo Seja B uma A-álgebra fielmente plana e M um A-módulo.
Vamos mostrar que

M é A-plano ⇐⇒ M ⊗A B é B-plano

Já vimos que a implicação ⇒ é válida para qualquer álgebra B. Reciproca-


mente, para mostrar ⇐, seja

N � → N → N �� (∗)

uma sequência exata de A-módulos. Como B é fielmente plano sobre A, a


sequência
N � ⊗A M → N ⊗A M → N �� ⊗A M
será exata se, e só se,

(N � ⊗A M ) ⊗A B → (N ⊗A M ) ⊗A B → (N ⊗A M ) ⊗A B

é exata. Mas esta sequência é isomorfa a

(N � ⊗A B)⊗B (M ⊗A B) → (N ⊗A B)⊗A (M ⊗A B) → (N �� ⊗A B)⊗B (M ⊗A B),

que é exata pois é obtida a partir da sequência original (∗) aplicando-se


primeiro o funtor exato −⊗A B e, em seguida, o funtor exato −⊗B (M ⊗A B).

5.6 Exercı́cios
5.1 Seja (A, m, k) um anel local e sejam M , N dois A-módulos finitamente
gerados. Mostre que

M ⊗A N = 0 ⇐⇒ M = 0 ou N = 0

5.2 Sejam A → B e A → C duas álgebras. Verdadeiro ou falso?


(a) Se A, B e C são domı́nios então B ⊗A C é um domı́nio.
(b) Se A é um domı́nio e B e C são reduzidos então B ⊗A C é reduzido.
(c) Se A e B são corpos e B e C é um domı́nio então B ⊗A C é reduzido.
144 CAPÍTULO 5. PRODUTO TENSORIAL

5.3 Seja φ : C[x, y] → C[x, y, z]/(y − xz) o morfismo de C-álgebras dado


por φ(x) = x̄ e φ(y) = ȳ. Seja f = Spec(φ) : Spec C[x, y, z]/(y − xz) →
Spec C[x, y] o morfismo de espectros associado a φ.
(a) Calcule as fibras f −1 (pa,b ) e f −1 (0) onde pa,b = (ax + by) ∈ Spec C[x, y]
denota o ideal primo associado ao ponto genérico das retas em A2C .

(b) Calcule a fibra de (y 2 − x3 ) ∈ Spec C[x, y].

5.4 Considere o mapa entre superfı́cies

A2C → Z(y 2 − xy − x3 ) ⊆ A3C


(a, b) �→ (a(a − 1), a2 (a − 1), b)

(a) Mostre que o pullback associado é a inclusão de anéis

ι : C[x(x − 1), x2 (x − 1), y] �→ C[x, y]

(b) Calcule as fibras dos ideais primos (x(x − 1), x2 (x − 1), y) e (x(x − 1)y −
x2 (x − 1)) de Spec C[x(x − 1), x2 (x − 1), y] por Spec ι. Interprete geome-
tricamente.
Capı́tulo 6

Anéis e Módulos
Noetherianos

A avassaladora maioria dos anéis comutativos encontrados no nosso cotidiano


(por exemplo em Geometria Algébrica ou em Teoria dos Números) satisfazem
certas condições de finitude que, de certa forma, funcionam como um substi-
tuto para o princı́pio de indução finita. Anéis que satisfazem tais condições
são chamados de noetherianos, assim batizados em homenagem à matemática
alemã Emmy Noether, que foi a pioneira no estudo de tais condições de fini-
tude, encarnadas nas chamadas condições de cadeia para ideais e módulos1
Veremos ainda que a classe de anéis noetherianos é fechada por quocientes
e localizações e que álgebras finitamente geradas sobre anéis noetherianos são
também noetherianas, o que certamente ajuda a explicar a ubiquidade de tais
anéis na Natureza.

6.1 Definições e propriedades básicas


Começamos, é claro, com uma
6.1.1 Definição Seja A um anel.
1. Um A-módulo M é dito noetheriano se satisfaz as condições equiva-
lentes:
(i) todo submódulo N ⊆ M é finitamente gerado.
(ii) toda cadeia ascendente de submódulos estabiliza, isto é, se
N1 ⊆ N2 ⊆ N2 ⊆ · · ·
é uma cadeia de submódulos de M , então existe i0 ≥ 1 tal que
Ni = Ni0 para todo i ≥ i0 .
1 inaugurando assim a Álgebra Comutativa penal.

145
146 CAPÍTULO 6. ANÉIS E MÓDULOS NOETHERIANOS

(iii) todo subconjunto S �= ∅ de submódulos de M tem um elemento


maximal em S com relação a inclusão.
2. Um anel A é dito noetheriano se A é noetheriano como A-módulo.
Explicitamente, A é noetheriano se satisfaz qualquer uma das seguintes
propriedades equivalentes:
(i) todo ideal a de A é finitamente gerado;
(ii) toda cadeia ascendente de ideais estabiliza, isto é, dada uma ca-
deia de ideais
a 0 ⊆ a1 ⊆ a2 ⊂ a3 ⊆ · · ·
então ai = ai+1 para i � 0 suficientemente grande;
(iii) todo conjunto não vazio I de ideais possui um ideal que é maximal
em I com relação à inclusão.

Vamos verificar que as condições (i)–(iii) acima são de fato equivalentes:

• (i) ⇒ (ii): � Dada uma cadeia N1 ⊆ N2 ⊆ · · · de submódulos de M ,


defina N = Ni . É fácil ver que N é submódulo de M (c.f. demons-
tração do teorema 1.3.4 na página 9). Por hipótese, N é finitamente
gerado, digamos N = An1 + · · · + Ank . Agora basta tomar i0 grande o
suficiente para que n1 , . . . , nk ∈ Ni0 , de modo que N = Ni0 e portanto
Ni = Ni0 para todo i ≥ i0 .
• (ii) ⇒ (iii): Seja N1 ∈ S. Se N1 é maximal em S, acabou. Caso
contrário, existe N2 ∈ S tal que N1 � N2 . Se N2 é maximal em S,
acabou. Caso contrário, repita o processo. Eventualmente, este pro-
cesso termina, já que caso contrário obterı́amos uma cadeia ascendente
N1 � N2 � N3 � · · · estrita, o que contraria a hipótese. Portanto S
tem um elemento maximal.
• (iii) ⇒ (ii): Dada uma cadeia ascendente de submódulos N1 ⊆ N2 ⊆
N2 ⊆ · · · , considere S = {Ni | i ≥ 1}. Se Ni0 é um elemento maximal
de S então Ni = Ni0 para todo i ≥ i0 .
• (iii) ⇒ (i): Sejam N um submódulo de M e S o conjunto dos submó-
dulos de N que são finitamente gerados. Como 0 ∈ S temos S �= ∅,
logo por hipótese S possui um elemento maximal N � . Afirmamos que
N = N � . Já sabemos que N � ⊆ N . Suponha que exista x ∈ N \ N � ,
assim terı́amos N � + Ax ∈ S e N � � N � + Ax, o que contradiz o fato de
N � ser maximal. Portanto N = N � .

6.1.2 Exemplo Seja k um corpo. Então um k-módulo V 2 é noetheriano se,


e só se, dimk V < ∞: basta utilizar a condição (i) da definição e o fato de que
um k-espaço vetorial é finitamente gerado se, e só se, é de dimensão finita.
2 vulgo k-espaço vetorial
6.1. DEFINIÇÕES E PROPRIEDADES BÁSICAS 147

6.1.3 Exemplo Corpos e DIPs (tais como Z, Z[i], C[x], Q�x� ou Zp ) são
noetherianos pois todos seus ideais são finitamente gerados (por um único
elemento).
6.1.4 Exemplo O exemplo clássico3 de anel não noetheriano é o anel de
polinômios nas variáveis x1 , x2 , . . .:

k[x1 , x2 , . . .] = inj lim k[x1 , . . . , xn ] = k[x1 , . . . , xn ]
n∈N
n∈N

De fato, neste anel temos a cadeia ascendente estrita de ideias


(x1 ) � (x1 , x2 ) � (x1 , x2 , x3 ) � · · ·
Como comentado na introdução deste capı́tulo, os axiomas acima podem
ser interpretados como substitutos para o “princı́pio de indução finita” ou
para o “princı́pio da boa ordem” em N. A “ordem trocada” se deve ao
fato de que no mundo ideal “conter é dividir”: em Z, a não existência de
cadeias estritamente crescentes de ideais (d1 ) � (d2 ) � (d3 ) � · · · equivale
a não existência de uma “cadeia estritamente descrescente de divisibilidade”
· · · | d 3 | d2 | d1 .
Como exemplo de aplicação de “indução noetheriana”, vejamos o
Teorema 6.1.5 Seja A um anel noetheriano.
1. Todo ideal a ⊆ A contém um produto finito de ideais primos.
2. A possui apenas um número finito de ideais primos minimais.
Demonstração:
1. Suponha que o enunciado seja falso e seja I o conjunto de ideais que não
contêm produtos finitos de ideais primos. Seja b um elemento maximal
em I. Em particular, b não é primo, logo existem a, b ∈ / b tais que
ab ∈ b. Como (a) + b � b e (b) + b � b, pela maximalidade de b temos
que existem pi , qj ∈ Spec A tais que
(a) + b ⊇ p1 p2 . . . pm e (b) + b ⊇ q1 q2 . . . qn
Mas como ab ∈ b, temos
� � � �
b ⊃ (a) + b · (b) + b ⊇ p1 p2 . . . pm q1 q2 . . . qn
uma contradição.
2. Pelo item anterior, (0) ⊇ p1 · · · pn para certos pi ∈ Spec A. Logo,
para qualquer q ∈ Spec A, q ⊇ p1 · · · pn e portanto q ⊇ pi para algum
i. Assim, os primos minimais de A formam um subconjunto dos pi ’s
acima.

3 isto é, visto em classe


148 CAPÍTULO 6. ANÉIS E MÓDULOS NOETHERIANOS

O teorema a seguir dá condições suficientes para que um módulo seja


noetheriano.
Teorema 6.1.6 Seja A um anel.
1. Seja
0 ✲ M� ✲ M ✲ M �� ✲ 0
uma sequência exata de A-módulos. Então M é noetheriano se, e só
se, M � e M �� são noetherianos. Em particular, quocientes e submódulos
de módulos noetherianos são noetherianos.
2. Seja M um A-módulo finitamente gerado. Se A é noetheriano, então
M é noetheriano.

Demonstração:
1. Sem perda de generalidade, podemos supor que M � é submódulo de M
e que M �� = M/M � .

(⇒) Suponha M noetheriano. Todo submódulo de M é finitamente ge-


rado, logo M � herda esta propriedade e portanto é noetheriano também.
E pelo teorema de correspondência, toda cadeia ascendente de submó-
dulos de M �� corresponde a uma cadeia ascendente de submódulos de M
(contendo M � ), que é estacionária, o que mostra que M �� é noetheriano.

(⇐) Suponha que M � e M �� são noetherianos. Dada uma cadeia ascen-


dente de submódulos de M

M1 ⊆ M2 ⊆ M3 ⊆ · · ·

temos por hipótese que as cadeias de submódulos

M1 ∩ M � ⊆ M2 ∩ M � ⊆ M3 ∩ M � ⊆ · · · ⊆ M � e
� � �
M1 + M M2 + M M3 + M M
⊆ ⊆ ⊆ · · · ⊆ � = M ��
M� M� M� M
estabilizam para i � 0. Assim, basta provar que

Mi ∩ M � = Mi+1 ∩ M �
=⇒ Mi = Mi+1
Mi + M � = Mi+1 + M �

Como Mi ⊆ Mi+1 , basta mostrar a inclusão oposta. Tome

mi+1 ∈ Mi+1 ⊆ Mi+1 + M � = Mi + M �

Assim, existem mi ∈ Mi e m� ∈ M � tais que mi+1 = mi + m� . Como

m� = mi+1 − mi ∈ Mi+1 ∩ M � = Mi ∩ M � =⇒ m� ∈ Mi

temos mi+1 = mi + m� ∈ Mi , o que mostra que Mi+1 ⊆ Mi .


6.2. TEOREMA DA BASE DE HILBERT 149

2. Note primeiro que um módulo livre An de posto n é noetheriano: o re-


sultado vale se n = 1 pois A é noetheriano como A-módulo por hipótese
e se n > 1 temos uma sequência exata

0 ✲ An−1 ✲ An ✲ A ✲ 0

Por hipótese de indução, An−1 é noetheriano, logo An é noetheriano


pelo item anterior.
Agora um módulo M finitamente gerado sobre A é um quociente de
um módulo livre de posto finito: se M = Aω1 + · · · + Aωn , temos uma
sobrejeção

An � M
(a1 , . . . , an ) �→ a1 ω1 + · · · + an ωn

e novamente pelo item anterior M é noetheriano.

6.2 Teorema da base de Hilbert


Nesta seção, provaremos o principal resultado deste capı́tulo, o teorema da
base de Hilbert. Como corolário imediato, concluiremos que toda álgebra
finitamente gerada sobre Z ou sobre um corpo k é automaticamente noethe-
riana. Em particular, finalmente temos a prova de que conjuntos algébricos
podem ser sempre definidos por um número finito de polinômios.

Teorema 6.2.1 Seja A um anel noetheriano. Então

1. A/a é noetheriano para todo ideal a;

2. se S é um conjunto multiplicativo, então S −1 A é noetheriano;

3. (Base de Hilbert) A[x] e A�x� são noetherianos;

4. qualquer A-álgebra finitamente gerada B é noetheriana.

Demonstração:

1. Segue diretamente do teorema 6.1.6 na página oposta já que um A-


submódulo de A/a nada mais é do que um ideal de A/a.

2. Do teorema 4.3.1 na página 104, um ideal de S −1 A é da forma S −1 a


para algum ideal a de A. Se a é finitamente gerado, digamos a =
(a1 , . . . , an ), então S −1 a = (a1 /1, . . . , an /1) também é finitamente ge-
rado. Assim A noetheriano implica S −1 A noetheriano.
6.3. ÁLGEBRAS E MÓDULOS DE PRESENTAÇÃO FINITA 151

de modo que o “termo inicial” an �= 0 com n mı́nimo passa a fazer o


papel de “coeficiente lı́der”. Assim, dado um ideal a ⊆ A�x�, para cada
d ≥ 0 consideramos agora os ideais de A

cd = {a ∈ A | existe axd + ad+1 xd+1 + ad+2 xd+2 + · · · ∈ a} ∪ {0}

que formam uma cadeia ascendente de ideais finitamente gerados, es-


tacionária para d ≥ D. Novamente tomando Sd um subconjunto finito
de séries em a da forma axd + ad+1 x�d+1 + ad+2 xd+2 + · · · cujos ter-
mos iniciais a geram cd e sendo S = 0≤d≤D Sd = {p1 (x), . . . , pn (x)},
temos que S gera a. Para mostrar isto, dado f (x) ∈ a, construı́mos
g1 (x), . . . , gn (x) ∈ A�x� = proj limr∈N A[x]/(xr ) tais que

f (x) = g1 (x)p1 (x) + · · · + gn (x)pn (x)

definindo gi (x) mod xr indutivamente em r. Detalhes são deixados


como exercı́cio para o leitor.

4. Por indução, temos que o teorema da base de Hilbert implica que


A[x1 , . . . , xn ] é noetheriano. O resultado agora segue pelo item (1)
já que B é quociente de A[x1 , . . . , xn ]: se B é gerado sobre A por
ω1 , . . . , ωn , temos uma sobrejeção de A-álgebras

A[x1 , . . . , xn ] � B
xi �→ ωi

Sendo a o kernel desta sobrejeção, temos B ∼


= A[x1 , . . . , xn ]/a.

Observação 6.2.2 O produto tensorial de álgebras noetherianas sobre um


anel noetheriano nem sempre é noetheriano.

6.3 Álgebras e módulos de presentação finita


Nesta seção, apresentamos a noção “relativa” de anel noetheriano.

6.3.1 Definição Seja A um anel.

1. Um A-módulo M é de presentação finita se ele se escreve como quo-


ciente de um A-módulo livre de posto finito por um submódulo fini-
tamente gerado, ou seja, se existem inteiros positivos m e n e uma
sequência exata de A-módulos

Am ✲ An ✲ M ✲ 0
152 CAPÍTULO 6. ANÉIS E MÓDULOS NOETHERIANOS

2. Uma A-álgebra B é de presentação finita se ela se escreve como um


quociente de um anel de polinômios por um ideal finitamente gerado:
A[x1 , . . . , xn ]
B∼
= (fi ∈ A[x1 , . . . , xn ])
(f1 , . . . , fm )

Se A é um anel noetheriano, então todo A-módulo M finitamente gerado


é de presentação finita: se M = Aω1 + · · · + Aωn , temos uma mapa sobrejetor

φ : An � M
(a1 , . . . , an ) �→ a1 ω1 + · · · + an ωn

cujo kernel ker φ também é finitamente gerado, já que An é noetheriano


(teorema 6.1.6 na página 148). Se ker φ = Aτ1 + · · · + Aτm , temos um mapa
sobrejetor

ψ : Am � ker φ ⊆ An
(a1 , . . . , am ) �→ a1 τ1 + · · · + an τm

e assim uma sequência exata

Am
ψ
✲ An φ
✲ M ✲ 0

Da mesma forma, toda álgebra finitamente gerada B sobre um anel no-


etheriano A é de presentação finita: como na demonstração do item (4)
do teorema 6.2.1 na página 149, B = A[x1 , . . . , xn ]/a para algum ideal
a ⊆ A[x1 , . . . , xn ], que é finitamente gerado pelo teorema da base de Hil-
bert.
Em suma, “ser de presentação finita” é uma espécie de “noetherianidade
relativa”, já que na definição acima A não é necessariamente noetheriano.
O próximo resultado coleta algumas propriedades básicas sobre álgebras de
presentação finita.
Teorema 6.3.2 1. (Estabilidade por composição) Se A → B e B → C
são álgebras de presentação finita, o mesmo vale para a composição
A → C.
2. (Estabilidade sob mudança de base arbitrária) Seja B uma A-álgebra
de presentação finita e A� uma A-álgebra arbitrária. Então B ⊗A A� é
de presentação finita sobre A� .
3. A localização Ah de um anel A em um elemento h ∈ A é de presentação
finita sobre A, a saber Ah ∼= A[x]/(xh − 1).
4. Se φ : B � C é um morfismo sobrejetor de A-álgebras de presentação
finita então ker φ é um ideal finitamente gerado de B.

Demonstração: Os itens (1)–(3) são deixados como exercı́cios para o


leitor; aqui provaremos apenas o item (4).
6.3. ÁLGEBRAS E MÓDULOS DE PRESENTAÇÃO FINITA 153

É suficiente provar o teorema para B = A[x1 , . . . , xn ]: Por definição,


B∼ = A[x1 , . . . , xn ]/a para algum ideal finitamente gerado a, logo compondo o
morfismo φ com a projeção π : A[x1 , . . . , xn ] � B, obtemos um mapa sobre-
jetor φ ◦ π : A[x1 , . . . , xn ] � C. Se ker(φ ◦ π) é um
� ideal finitamente
� gerado
de A[x1 , . . . , xn ], o mesmo valerá para ker(φ) = π ker(φ ◦ π) .
Podemos supor A = B, pois φ é um morfismo de B-álgebras de presentação
finita: escreva C ∼
= A[y1 , . . . , ym ]/a em que a é um ideal finitamente gerado.
Assim,
A[y1 , . . . , ym , x1 , . . . , xn ] B[y1 , . . . , ym ]
C∼= =
a + (x1 , . . . , xn ) a + (x1 , . . . , xn )
é de presentação finita sobre B = A[x1 , . . . , xn ].
Temos agora um morfismo sobrejetor de A-álgebras

φ: A = B � C ∼
= A[y1 , . . . , ym ]/a

com a finitamente gerado, digamos

a = (f1 , . . . , fn ) (fi (y1 , . . . , ym ) ∈ A[y1 , . . . , ym ])

Sejam ai ∈ A tais que φ(ai ) = y i . Como φ é morfismo de A-álgebras, temos


que ai = y i em C, ou seja, yi − ai ∈ a para todo i = 1, . . . , m. Assim,
� �
a = f1 (y1 , . . . , ym ), . . . , fn (y1 , . . . , ym ), y1 − a1 , . . . , ym − am
� �
= f1 (a1 , . . . , am ), . . . , fn (a1 , . . . , am ), y1 − a1 , . . . , ym − am

Portanto temos um isomorfismo de A-álgebras

A[y1 , . . . , ym ] y i �→ai A
C∼
= ∼
= �
a f1 (a1 , . . . , am ), . . . , fn (a1 , . . . , am ))

o que mostra que ker φ = f1 (a1 , . . . , am ), . . . , fn (a1 , . . . , am )) é finitamente
gerado.

Resultados que são válidos para módulos livres de posto finito em geral
podem ser estendidos para módulos de presentação finita via a importante
técnica de “devissagé” (desmantelamento). Com exemplo, provaremos o
Teorema 6.3.3 (Devissagé) Seja B uma A-álgebra plana e seja M um A-
módulo de presentação finita. Seja N um A-módulo qualquer. Denote por
µb : B → B a multiplicação por um elemento b ∈ B fixado. Então o mapa
canônico

HomA (M, N ) ⊗A B → HomB (M ⊗A B, N ⊗A B)


φ ⊗ b �→ φ ⊗ µb

é um isomorfismo de B-módulos.
154 CAPÍTULO 6. ANÉIS E MÓDULOS NOETHERIANOS

Demonstração: O funtor HomA (−, N ) ⊗A B é exato à esquerda, pois é


a composição do funtor exato à esquerda HomA (−, N ) (proposição 1.6.3 na
página 22) e o funtor exato −⊗A B. Da mesma forma, HomB (−⊗A B, N ⊗A B)
também é exato à esquerda. Note que o mapa natural

HomA (T, N ) ⊗A B → HomB (T ⊗A B, N ⊗A B)


φ ⊗ b �→ φ ⊗ µb

é um isomorfismo quando T = An é livre de posto finito n, já que neste caso


o mapa acima se transforma no isomorfismo (exemplo 1.6.5 na página 23 e
teorema 5.1.2 na página 121)

HomA (An , N ) ⊗A B = N n ⊗A B = (N ⊗A B)n


= HomB (B n , N ⊗A B) = HomB (An ⊗A B, N ⊗A B)

Como M é de presentação finita, temos uma sequência exata

Am ✲ An ✲ M ✲ 0

e aplicando os dois funtores exatos à esquerda acima obtemos o seguinte


diagrama comutativo com linhas horizontais exatas:
0 HomA (M, N ) ⊗A B HomA (An , N ) ⊗A B HomA (An , N ) ⊗A B

≈ ≈

0 HomB (M ⊗A B, N ⊗A B) HomA (B n , N ⊗A B) HomB (B n , N ⊗A B)

As duas flechas verticais da direita são isomorfismos, logo a flecha vertical da


esquerda também, por um “easy diagram chase” ou aplicação do “lema dos
5” (exercı́cio 1.8 na página 29, complete o diagrama com zeros).

O seguinte resultado explicita a relação entre álgebras de presentação


finita e anéis noetherianos. Este teorema (e seus companheiros) são frequen-
temente utilizados para reduzir demonstrações que envolvam álgebras gerais
de presentação finita ao caso noetheriano. Como não utilizaremos este teo-
rema, omitimos sua prova (que é um pouco longa, mas não é particularmente
difı́cil), referindo o leitor ao EGAIVc ([Gro66], §8.9.1, p. 34).

Teorema 6.3.4 (“Redução Noetheriana”) Seja A um anel e B uma A-


álgebra de presentação finita. Então existe um anel noetheriano A0 , um mapa
A0 → A e uma A0 -álgebra B0 finitamente gerada tal que B = B0 ⊗A0 A.

A ideia central da prova é escrever A como união (limite direto) de suas


subálgebras finitamente geradas sobre Z e utilizar o fato de que há apenas
uma quantidade finita de relações que definem B sobre A, que já podem ser
expressas em termos de elementos de algum destes subanéis (basta tomar um
subanel grande o suficiente contendo os “coeficientes” desta quantidade finita
de relações).
6.4. EXERCÍCIOS 155

6.4 Exercı́cios

6.1 Seja A um anel noetheriano e seja a = (0) seu nilradical. Mostre que
o ideal a é nilpotente: existe n ≥ 1 tal que an = (0).

6.2 Seja f = n≥0 an tn ∈ A�t�. Mostre:
(a) Se f é nilpotente em A�t� então cada um de seus coeficientes an é nilpo-
tente em A.
(b) Suponha adicionalmente que A seja noetheriano. Mostre que se os coe-
ficientes de f são nilpotentes em A, então f é nilpotente em A�t�.
6.3 Seja A um anel noetheriano e φ : A � A um morfismo sobrejetor. Mos-
tre que φ é um isomorfismo.
6.4 Prove que se todos os elementos de Spec A são finitamente gerados então
o anel A é noetheriano.
6.5 Prove: um domı́nio noetheriano A é um DIP se, e só se, todos os seus
ideais primos são principais.
6.6 (Chomp, o jogo) Há um chocolate em cada ponto (m, n) de Z2≥0 , com
exceção do ponto (0, 0), no qual há um morango envenenado. Dois jogadores
se alternam: cada movimento deste jogo consiste em escolher um chocolate
em um ponto (m, n) e papar todos os chocolates acima e à direita de (m, n),
ou seja, todos os chocolates nos pontos (x, y) com x ≥ m e y ≥ n (sim,
cada jogador é um tremendo glutão capaz fagocitar infinitos chocolates em
um só movimento!) O jogo acaba quando um deles morre (os jogadores são
highlanders, somente o morango envenenado é capaz de lhes subtrair a vida).
Mostre que o jogo acaba após um número finito de movimentos.
Dica: Utilize o teorema da base de Hilbert.
6.7 Prove ou dê um contra-exemplo:
(a) Subanéis de anéis noetherianos são noetherianos.
(b) Se Ap é noetheriano para todo p ∈ Spec A então A é noetheriano.
6.8 Considere o anel das funções holomorfas em C
A = {f : C → C | f é holomorfa }
e os elementos
sen(πz)
fn (z) = ∈A
z(z − 1)(z − 2) . . . (z − n)
para n ≥ 0. Mostre que temos uma cadeia estrita ascendente de ideais em A
� � � � � � � �
f0 (z) � f1 (z) � f2 (z) � f3 (z) � · · ·
Portanto A não é noetheriano.
156 CAPÍTULO 6. ANÉIS E MÓDULOS NOETHERIANOS

6.9 (Smearing) Seja A um anel noetheriano e M um A-módulo finita-


mente gerado.
(a) Suponha que Mp = 0 para algum p ∈ Spec A. Mostre que existe uma
vizinhança aberta básica D(h) de p para a qual Mh = 0.
(b) Seja N outro A-módulo finitamente gerado e φ : M → N um morfismo
de A-módulos. Se a localização φp : Mp → Np é um isomorfismo para
algum p ∈ Spec A, mostre que existe uma vizinhança aberta básica D(h)
de p para a qual φh : Mh → Nh é um isomorfismo.
Capı́tulo 7

Anéis e Módulos
Artinianos

Invertendo-se a “direção” das cadeias nas definições de anel e módulo noethe-


riano, obtemos a noção de anel e módulo artiniano.1 Intuitivamente, anéis
artinianos são “anéis muito pequenos”; por exemplo, veremos que a dimensão
de um anel artiniano é sempre 0 e que seu espectro é sempre finito e discreto.
Definiremos ainda a importante noção de comprimento de um módulo, que
generaliza a noção de dimensão de um espaço vetorial, e veremos que os
módulos que são simultaneamente artinianos e noetherianos são exatamente
os de comprimento finito.

7.1 Definições e Propriedades Básicas


7.1.1 Definição Seja A um anel. Um A-módulo M é artiniano se satisfaz
as seguintes condições equivalentes:

(i) toda cadeia descendente de submódulos estabiliza, isto é, dada uma
cadeia de submódulos de M

N 0 ⊇ N1 ⊇ N2 ⊇ N3 ⊇ · · ·

então Ni = Ni+1 para i � 0 suficientemente grande;

(ii) todo conjunto N �= ∅ de submódulos de M possui um elemento que é


minimal em N com relação à inclusão.

Um anel é dito artiniano se, visto como módulo sobre si mesmo, é artiniano.
1 não, não é onairehteon! E muito menos noetheriano. . . O nome artiniano é uma
homenagem ao matemático austrı́aco Emil Artin.

157
158 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

As demonstrações do teorema seguinte e da equivalência das condições


acima são completamente análogas às demonstrações para anéis noetherianos
e assim as omitimos.

Teorema 7.1.2 Seja A um anel.

1. Seja
0 ✲ M� ✲ M ✲ M �� ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos. Então M é artiniano se, e só se,


M � e M �� são artinianos.

2. Seja M um A-módulo finitamente gerado. Se A é artiniano, então M


é artiniano.

Intuitivamente, anéis e módulos artinianos são objetos “pequenos”. Por


exemplo, anéis e módulos com um número finito de elementos são clara-
mente artinianos. Se k é um corpo, então um k-módulo V 2 é artiniano se,
e somente se, dimk V < ∞. Em particular, uma k-álgebra de dimensão fi-
nita também é artiniana, pois uma cadeia descendente de ideais é também
uma cadeia descendente de k-espaços vetoriais. Por outro lado, note que
Z não é artiniano, pois temos a cadeia estritamente decrescente de ideais
(2) � (22 ) � (23 ) � · · · . A tabela a seguir mostra mais alguns exemplos;
aqui n denota um inteiro positivo e f (t), um polinômio não nulo.

anel noetheriano? artiniano?


Z sim não
Z/nZ sim sim
C sim sim
Q×Q sim sim
Zp sim não
C[t] sim não
C�t� sim não
C[t]/(f (t)) sim sim
C[x1 , x2 , . . .] não não

Note que na tabela acima todo anel artiniano é também noetheriano. Isto é
um fato geral que será demonstrado mais tarde (teorema 7.3.3 na página 166).

7.2 Comprimento de módulos


A noção de comprimento de um módulo estende a noção de dimensão de
espaços vetoriais. Começamos com algumas definições.
2 mais conhecido por seu nome artı́stico, k-espaço vetorial
7.2. COMPRIMENTO DE MÓDULOS 159

7.2.1 Definição Seja A um anel e seja M um A-módulo.

1. M é dito simples ou irredutı́vel se M �= 0 e seu únicos submódulos


são 0 e M .

2. uma série de composição de M de tamanho n é uma sequência de


submódulos

M = Mn � Mn−1 � Mn−2 � · · · � M1 � M0 = 0

tais que os quocientes consecutivos Mi+1 /Mi são todos simples.

3. o comprimento de M sobre A, denotado lenA M , é o mı́nimo entre


todos os tamanhos das séries de composição de M ou ∞ se M não
admite série de composição.

7.2.2 Exemplo Seja k um corpo. Um k-espaço vetorial é irredutı́vel se, e só


se, tem dimensão 1. Assim, uma série de composição para um espaço vetorial
V é uma sequência

V = Vn � Vn−1 � Vn−2 � · · · V1 � V0 = 0

onde dimk Vi = i. Assim, lenk V = n = dimk V .

Uma importante caracterização de irredutibilidade é dada pelo

Lema 7.2.3 Um A-módulo M é simples se, e só se, M ∼


= A/m para algum
ideal maximal m ⊂ A.

Demonstração: Se m é um ideal maximal de A, então M = A/m é


irredutı́vel pelo teorema da correspondência. Reciprocamente, se M é simples
e m ∈ M é qualquer elemento não nulo, então devemos ter M = Am. Seja
def
ann(m) = {a ∈ A | am = 0} = ker(A ✲
✲ M)
a�→am

o anulador de m. O mapa a �→ am induz um isomorfismo de A-módulos


A/ ann(m) ∼
= M e, novamente pelo teorema de correspondência de ideais,
ann(m) deve ser maximal para que M seja simples.

O seguinte teorema é um caso especial do teorema de Jordan-Hölder, para


o qual é fácil dar uma demonstração direta.

Teorema 7.2.4 Seja M um A-módulo.

1. lenA M < ∞ se, e só se, M é artiniano e noetheriano.

2. Se lenA M < ∞, então todas as séries de composição de M têm mesmo


tamanho (igual a lenA M ).
160 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

3. (Aditividade em Sequências Exatas) Seja

0 ✲ M� ✲ M ✲ M �� ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos. Então

lenA M < ∞ ⇐⇒ lenA M � < ∞ e lenA M �� < ∞

Neste caso,
lenA M = lenA M � + lenA M ��

Demonstração:

1. (⇐) Suponha M artiniano e noetheriano. Podemos construir uma série


de composição da seguinte maneira: utilizando o fato de que M é artini-
ano, tome um submódulo minimal M1 dentre os submódulos não nulos
de M ; temos que M1 é necessariamente simples. Dentre os submódulos
de M que contêm M1 propriamente, tome M2 minimal; deste modo
M2 /M1 será simples também pelo teorema da correspondência. Proce-
dendo desta forma, teremos uma cadeia ascendente estrita

0 � M1 � M2 � · · ·

que eventualmente terminará em M pois este é noetheriano.


(⇒) Faremos uma indução sobre lenA M < ∞. Se lenA M = 0 então
M = 0 e se lenA M = 1 então M é simples; em ambos os casos, M
é artiniano e noetheriano. Se n = lenA M > 1, existe uma série de
composição

M = Mn � Mn−1 � Mn−2 � · · · � M1 � M0 = 0

Da sequência exata curta,

0 ✲ M1 ✲ M ✲ M/M1 ✲ 0

temos que mostrar que M1 e M/M1 são artinianos e noetherianos (teo-


rema 6.1.6 na página 148 e teorema 7.1.2 na página 158). Pela hipótese
de indução, basta verificar que lenA (M1 ) < lenA (M ) e lenA (M/M1 ) <
lenA (M ). A primeira desigualdada é clara pois M1 é simples, enquanto
que a segunda segue da série de composição de M/M1 dada por

M/M1 = Md /M1 � Md−1 /M1 � · · · � M1 /M1 = 0

Note que, de fato, o quociente entre dois termos consecutivos é um


módulo simples pois temos o isomofismo MMi−1
i /M1
/M1 = Mi /Mi−1 .
7.2. COMPRIMENTO DE MÓDULOS 161

2. Novamente faremos uma indução em d = lenA M . Se d = 0, então


M = 0 e o resultado é claro. Agora seja d > 0 e seja

M = Md � Md−1 � Md−2 � · · · � M1 � M0 = 0

uma série de composição de tamanho d para M ; como na demonstração


acima, temos lenA M/M1 ≤ d − 1. Por hipótese de indução, temos que
todas as séries de composição de M/M1 têm tamanho lenA M/M1 =
d − 1. Vamos mostrar que se

M = Me� � Me−1
� �
� Me−2 � · · · � M1� � M0� = 0

é uma segunda série de composição de M , então temos uma série de


composição para M/M1� de tamanho e−1, daı́ e−1 = d−1 ⇐⇒ d = e,
como querı́amos.
Como M1 é simples, temos que Mi� ∩ M1 = 0 ou Mi� ∩ M1 = M1 . Seja r
o menor ı́ndice para o qual Mr� ∩ M1 = M1 ⇐⇒ Mr� ⊇ M1 (que existe
pois Me� ∩ M1 = M1 ). Então afirmamos que
M M� M� M� M � + M1
= e � e−1 � · · · � r = r−1
M1 M1 M1 M1 M1

M + M1 M � + M1
� r−2 � ··· � 0 =0
M1 M1
é uma série de composição de M/M1 de tamanho e − 1. Observe inici-
almente que Mr� = Mr−1�
+ M1 já que, pela definição de r, temos

Mr� ⊇ Mr−1
� �
+ M1 � Mr−1

e Mr� /Mr−1

é simples, logo não há submódulos de M estritamente entre
Mr−1 e Mr� . Por outro lado, temos que os quocientes entre termos

consecutivos da série acima são simples pois


Mi� + M1 M�
= � i = Mi� para i = 0, 1, . . . , r − 1
M1 Mi ∩ M1
e
Mi� /M1 Mi�
� /M = � para i = r + 1, r + 2, . . . , e
Mi−1 1 Mi−1

3. Sem perda de generalidade podemos supor que M � ⊆ M e que M �� =


M/M � . Temos que M é artiniano (respectivamente noetheriano) se,
e só se, M � e M �� são artinianos (respectivamente noetherianos) (teo-
rema 6.1.6 na página 148 e teorema 7.1.2 na página 158). Assim, pelo
item (1), M possui comprimento finito se, e só se, M � e M �� possuem
comprimento finito. Neste caso, pelo item (2), para mostrar a aditivi-
dade dos comprimentos, dadas duas séries de composição

M � = Md� � Md−1
� �
� Md−2 � · · · � M1� � M0� = 0
162 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

e
M �� = Me�� � Me−1
�� ��
� Me−2 � · · · � M1�� � M0�� = 0
de M � e M �� , basta combiná-las em uma série de composição de M de
tamanho d + e: se M ��� ⊇ M � denota o submódulo de M correspondente
i
ao submódulo Mi de M �� = M/M � , então
��

M =M �e−1
�e�� � M �� �0�� = M � = Md� � Md−1
� ··· � M �
� · · · � M0� = 0

��� /M
é uma série de composição de M pois M ��� = M �� /M �� .
i+1 i i+1 i

O próximo lema é muito útil no cálculo do comprimento pois reduz tudo


ao caso local. Por exemplo, se m ⊂ A é um ideal maximal com corpo residual
k = A/m e M é um A-módulo tal que mM = 0, então lenA M nada mais é
do que a dimensão de M visto como k-espaço vetorial.
Lema 7.2.5 Seja A um anel e M um A-módulo.
1. Se a ⊆ A é um ideal tal que aM = 0 então

lenA M = lenA/a M

2. (Localização) �
lenA M = lenAm Mm
m∈Specm A

3. (Mudança de base) Suponha que (A, m, k) seja local e que (B, n, l) é


uma A-álgebra local. Se N é um B-módulo, então

lenA N = [l : k] · lenB N

Demonstração:
1. Como aM = 0, M e seus submódulos são naturalmente (A/a)-módulos.
Assim, uma série de composição de M visto como A-módulo é o mesmo
que uma série de composição de M visto como (A/a)-módulo, logo
lenA M = lenA/a M .
2. Considere uma série de composição de M sobre A

M = Mn � Mn−1 � Mn−2 � · · · � M1 � M0 = 0

com Mi+1 /Mi ∼ = A/mi , mi ⊂ A maximal. Para m ∈ Specm A, vamos


mostrar que lenAm Mm é igual à quantidade de ı́ndices i = 0, 1, . . . , n−1
para os quais m = mi . Em particular, teremos que lenAm Mm = 0 para
quase todo m ∈ Specm A, de modo que a soma da fórmula acima está
bem definida e é igual a n = lenA M .
7.2. COMPRIMENTO DE MÓDULOS 163

Para p ∈ Spec A, temos



Ami /mi Ami = A/mi se p = mi
(A/mi )p =
0 caso contrário

Assim, localizando a série acima em p, obtemos uma série de composição


para Mp sobre Ap

Mp = (Mn )p ⊇ (Mn−1 )p ⊇ (Mn−2 )p ⊇ · · · ⊇ (M1 )p ⊇ (M0 )p = 0

uma vez que omitirmos os fatores repetidos, isto é, aqueles para os quais
(Mi+1 )p = (Mi )p ⇐⇒ (Mi+1 /Mi )p = 0 ⇐⇒ mi �= p, o que prova a
afirmação acima.
3. Como ambos os lados da equação são aditivos em sequências exatas
curtas, basta provar a equação no caso em que N é um B-módulo
simples, i.e., lenB N = 1. Mas neste caso, N ∼
= B/n = l. Como B é
uma A-álgebra local, temos que a imagem de m está contida em n, logo
mN = 0 e pelo item (1) segue que lenA N = dimk l = [l : k].

7.2.6 Exemplo Seja A um anel noetheriano e seja m ⊂ A um ideal maximal.


Então, para todo n ≥ 0, o anel A/mn é artiniano.
Pelo teorema 7.2.4 na página 159, basta mostrarmos que lenA (A/mn ) <
∞, o que faremos por indução em n. O caso n = 0 é trivial; agora suponha
n > 0 e considere a sequência exata
n−1
0 ✲ m ✲ A ✲ A ✲ 0
mn mn mn−1
de modo que, pelo lema acima, temos
A A mn−1 A mn−1
lenA = len A + len A = len A + dim A/m
mn mn−1 mn mn−1 mn
Assim, por hipótese de indução, basta mostrarmos que mn−1 /mn tem di-
mensão finita sobre o corpo A/m. Mas isto é claro, já que, sendo A noethe-
riano, mn−1 é finitamente gerado.

7.2.7 Exemplo Utilizando a recursão obtida no exemplo anterior, é fácil


mostrar por indução que
� �
C[x1 , . . . , xd ] n+d−1
lenC[x1 ,...,xd ] =
(x1 , . . . , xd )n d
De fato, temos que
� �
(x1 , . . . , xd )n−1 n+d−2
dimC =
(x1 , . . . , xd )n d−1
164 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

já que o conjunto das classes dos monômios de grau n − 1

{xe11 . . . xedd | e1 + · · · + ed = n − 1}

forma uma base deste espaço vetorial sobre C.

7.2.8 Exemplo Vamos mostrar por indução em n que

C[x, y]
lenC[x,y] = mn
(xn , y m )

o que é claro se n = 0. Suponha que n > 0. Temos uma sequência exata

✲ C[x, y] C[x, y]
n−1 m
0 ✲ (x ,y ) ✲ ✲ 0
(xn , y m ) (xn , y m ) (xn−1 , y m )

Além disso, temos um isomorfismo de C[x, y]-módulos induzido pela multi-


plicação por xn−1 :
C[x, y] xn−1
✲ (x
n−1 m
,y )
m
(x, y ) ≈ (xn , y m )
Como estes módulos são anulados por x, temos

(xn−1 , y m ) C[x, y] C[y]


lenC[x,y] = lenC[x,y] = lenC[y] m
(xn , y m ) (x, y m ) (y )

Pela aditividade do comprimento em sequências exatas, utilizando a hipótese


de indução e o exemplo anterior, temos finalmente

C[x, y] C[x, y] C[y]


lenC[x,y] n m
= lenC[x,y] n−1 m + lenC[y] m
(x , y ) (x ,y ) (y )
= m(n − 1) + m = mn

Observação 7.2.9 1. Sejam f, g ∈ C[x, y] dois polinômios e suponha que


f, g ∈ (x−a, y−b), ou seja, que f (a, b) = g(a, b) = 0. Geometricamente,
o comprimento
C[x, y](x−a,y−b)
lenC[x,y]
(f, g)
representa a multiplicidade de intersecção das curvas planas de
equações f = 0 e g = 0 no ponto (a, b) ∈ C2 . No exemplo anterior,
temos que o anel C[x, y]/(xn , y m ) já é local, com ideal maximal (x, y)
correpondendo à origem (0, 0) ∈ C2 . Neste exemplo, mn corresponde à
intersecção na origem das curvas xn = 0 (a reta x = 0 com “multipli-
cidade” n) e y m = 0 (a reta y = 0 com “multiplicidade” m), o que é
intuitivamente correto, já que “perturbando” ligeiramente estas curvas,
obtemos respectivamente n e m retas distintas, que se interceptam em
mn pontos distintos.
7.3. ESTRUTURA DE ANÉIS ARTINIANOS 165

2. Nos exemplos anteriores, temos que o comprimento de um módulo M


sobre C[x1 , . . . , xn ] coincidiu com sua dimensão como C-espaço veto-
rial. Veremos mais adiante (teorema 12.2.8 na página 234) que isto
não é uma coincidência, mas sim um resultado geral. Note que aqui
é importante C ser algebricamente fechado. Por exemplo, no caso de
A = Q[x] temos um contra-exemplo

Q[x] Q[x]
lenQ[x] = 1 �= 2 = dimQ 2
(x2 + 1) (x + 1)

7.3 Estrutura de Anéis Artinianos


Nesta seção, vamos caracterizar anéis artinianos.
Teorema 7.3.1 (Espectro de anéis artinianos) Seja A um anel artini-
ano. Então
1. Specm A é finito.
2. O ideal (o chamado radical de Jacobson de A)

j= m
m∈Specm A

é nilpotente.
3. Todo ideal primo de A é maximal. Assim, dim A = 0 e Spec A é finito
e discreto na topologia de Zariski.

Demonstração:
1. Suponha por absurdo que haja infinitos ideais maximais m1 , m2 , . . ..
Neste caso, terı́amos uma cadeia estritamente descendente de ideais

m1 � m1 m2 � m1 m2 m3 � · · ·

De fato, se m1 . . . mn+1 = m1 . . . mn , então mn+1 ⊇ m1 . . . mn+1 =


m1 . . . mn =⇒ mn+1 ⊇ mi para algum i ≤ n. Mas então mn+1 = mi já
que ambos os ideais são maximais, uma contradição.
2. Como A é artiniano e as potências de j formam uma cadeia descendente
de ideais, jm = jm+1 para algum m ∈ N. Provemos que jm = (0).
Suponha por absurdo que não e seja

S = {a ⊆ A | a é ideal e a · jm �= (0)}

Por hipótese, (1) ∈ S, logo S �= ∅ e assim existe um ideal minimal


amin ∈ S.
166 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

O ideal amin = (a) é principal: como amin · jm �= (0), existe a ∈ amin


tal que a · jm �= 0. Pela minimalidade de amin temos que amin = (a).

Temos amin = amin · jm : de fato, como jm = jm+1 , temos

(amin · jm ) · jm = amin · j2m = amin · jm �= (0) =⇒ amin · jm ∈ S

Pela minimalidade, amin = amin · jm .

Temos uma contradição a = 0: Já vimos que (a) = (a) · jm , assim


existe j ∈ jm tal que a = aj ⇐⇒ (1 − j)a = 0 ⇐⇒ a = 0 pois
j ∈ j =⇒ 1 − j ∈ A× (basta observar que 1 − j não pertence a nenhum
ideal maximal de A, ver corolário 1.4.5 na página 14).
3. Como jm = 0 para algum m ∈ N, se p ∈ Spec A temos p ⊇ jm =⇒
p ⊇ m para algum m ∈ Specm A. Mas como m é maximal, devemos
ter p = m. Em outras palavras, Spec A = Specm A e já mostramos que
este último é finito. As demais implicações são triviais.

Teorema 7.3.2 (Estrutura de Anéis Artinianos) Seja A um anel arti-


niano e sejam m1 , . . . , mn seus ideais primos. Então o mapa natural

A

✲ Am1 × · · · × Amn

é um isomorfismo. Cada fator Ami é um anel artiniano local.

Demonstração: Para mostrar que o produto dos mapas de localização

A ✲ Am1 × · · · × Amn

é um isomorfismo, basta mostrar que todas as suas localizações com relação


aos ideais maximais de A são isomorfismos pelo princı́pio local-global (teo-
rema 4.2.3 na página 103). Mas isto é claro. Além disso, cada fator Ami é
artiniano pois uma cadeia de primos neste anel corresponde a uma cadeia de
primos em A, todos contidos em mi (teorema 4.3.1 na página 104).

Mais tarde, teremos uma melhor caracterização de álgebras artinianas


finitamente geradas sobre um corpo (ver corolário 9.3.5 na página 192). No
caso geral, uma outra caracterização é dada pelo seguinte
Teorema 7.3.3 Seja A um anel. As seguintes condições são equivalentes:
(i) A é artiniano.
(ii) A tem comprimento finito sobre si mesmo.
(iii) A é noetheriano e todo ideal primo de A é maximal.
7.3. ESTRUTURA DE ANÉIS ARTINIANOS 167

(iv) A é noetheriano e dim A = 0.


(v) A é noetheriano e Spec A é discreto na topologia de Zariski.

Demonstração: Já sabemos que lenA A < ∞ se, e só se, A é artiniano
e noetheriano (teorema 7.2.4 na página 159) e é claro que dim A = 0 ⇐⇒
Spec A = Specm A ⇐⇒ Spec A é discreto, condições estas que são satisfeitas
se A é artiniano pelo teorema 7.3.1 na página 165. Assim, falta mostrar que
Se A é artiniano então lenA A < ∞: como (lema 7.2.5 na página 162)

lenA A = lenAm Am
m∈Spec A

basta tratarmos o caso em que (A, m, k) é artiniano local. Pelo teorema


anterior, sabemos que mm = 0 para algum m ∈ N e das sequências exatas
n−1
0 ✲ m ✲ A ✲ A ✲ 0
mn mn mn−1
para n = 1, 2, . . . , m, pela aditividade do comprimento basta provar que os
comprimentos
mn−1 mn−1
lenA = dim k
mn mn
são finitos. Mas isto é claro, pois sendo A artiniano, o mesmo vale para os
k-espaços vetoriais mn−1 /mn , que devem portanto ser de dimensão finita.
Se A é noetheriano e Spec A = Specm A então lenA A < ∞: observe
que, neste caso, todo primo de A é minimal e pelo teorema 6.1.5 na página 147
temos que Spec A é finito. Assim, como acima basta tratar o caso � em que
(A, m, k) é noetheriano local. Como m é o único primo de A, temos (0) = m,
que é nilpotente já que m é finitamente gerado. Assim, existe m ∈ N tal
que mm = 0 e, como acima, basta agora provar que os k-espaços vetoriais
mn−1 /mn têm dimensão finita. Mas isto segue diretamente do fato de que
mn−1 é finitamente gerado.

7.3.4 Exemplo Temos um isomorfismo de C-álgebras


C[x, y] ✲ C×C×C×C

(x2 + y 2 − 1, xy)
� �
f (x, y) �→ f (0, 1), f (0, −1), f (1, 0), f (−1, 0)

De fato, note primeiro que se p ∈ Spec C[x, y] é tal que p ⊇ (x2 + y 2 − 1, xy)
então

p ⊇ (x2 + y 2 − 1, x) = (x, y 2 − 1) ou p ⊇ (x2 + y 2 − 1, y) = (y, x2 − 1)


⇐⇒ p ⊇ (x, y − 1) ou p ⊇ (x, y + 1) ou p ⊇ (x − 1, y) ou p ⊇ (x + 1, y)
168 CAPÍTULO 7. ANÉIS E MÓDULOS ARTINIANOS

Ou seja, p é um dos 4 ideais maximais (x, y ± 1), (x ± 1, y) correspondentes


aos pontos (0, ±1) e (±1, 0) do conjunto algébrico Z(x2 + y 2 − 1, xy).
Assim, o anel A = C[x, y]/(x2 +y 2 −1, xy) é noetheriano e Spec A consiste
apenas em ideais maximais, logo A é artiniano. Por outro lado temos um
isomorfismo
y é
C[x, y](x,y−1) unidade C[x, y](x,y−1) C[x, y](x,y−1)
A(x,y−1) = = =
(x2 + y 2 − 1, xy) (x2 + y 2 − 1, x) (y 2 − 1, x)
y+1 é
unidade C[x, y](x,y−1) x�→0

y�→ 1
= C
(y − 1, x) ≈

e analogamente para as outras localizações, de modo que o produto dos mapas


de localização A ✲ C × C × C × C coincide com o produto dos mapas de

“avaliação” nos pontos de Z(x2 + y 2 − 1, xy), como indicado acima.

7.4 Exercı́cios
7.1 Seja A um anel artiniano e φ : A → A um morfismo de anéis. Mostre
que se φ é injetor então φ é um isomorfismo.

7.2 Seja

0 ✲ Mr ✲ Mr−1 ✲ ··· ✲ M0 ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos de comprimento finito. Mostre que



(−1)i lenA Mi = 0
0≤i≤r

7.3 Calcule o comprimento do A-módulo M onde


(a) A = Z e M = A/(pn ) com n ∈ N e p primo.

(b) A = C[x, y]/(y 2 − x3 + 1) e M = A/(x̄, ȳ)n com n ∈ N.


(c) A = C[x, y]/(y 2 − x3 ) e M = A/(x̄, ȳ)n com n ∈ N.

7.4 Seja A = C[x, y](x,y) . Calcule o comprimento do A-módulo

A
(x3 + x2 y 2 + y 100 , y 3 − x999 )

7.5 Mostre que se A é um anel local artiniano reduzido, então A é um corpo.


Parte III

Passacaglia

169
Capı́tulo 8

Extensões Finitas e
Integrais

Extensões finitas e integrais de anéis generalizam os conceitos de extensões


finitas e algébricas de corpos, possuindo diversas aplicações em Geometria
Algébrica e Teoria dos Números. Tais extensões são em muitos aspectos
“bem comportadas” quanto a fibras de espectros: por exemplo, veremos que
se B ⊇ A é finita, então dim A = dim B e que o mapa Spec B � Spec A é
sobrejetor com fibras finitas, de modo que podemos interpretar Spec B como
um “recobrimento finito” de Spec A (c.f. as figuras do exemplo 3.2.2 na
página 87 e do exemplo 3.2.3 na página 88).

8.1 Definições e Propriedades Básicas


Começamos com duas definições:
8.1.1 Definição Uma A-álgebra φ : A → B é dita finita se B, visto como
A-módulo, é finitamente gerado.

8.1.2 Definição Seja B ⊇ A uma extensão de anéis. Um elemento b ∈ B é


integral sobre A se b é raiz de um polinômio mônico em A[x]:

bn + an−1 · bn−1 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A)

Dizemos que a extensão B ⊇ A é integral se todo elemento de B é integral


sobre A.

8.1.3 Exemplo Uma extensão integral de corpos é o mesmo que uma ex-
tensão algébrica e uma extensão de corpos L ⊇ K é finita se, e só se,
[L : K] = dimK L < ∞. Desta forma, as definições acima generalizam
para anéis os conceitos familiares de elemento algébrico e extensões finitas e
algébricas de corpos.

171
172 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

Diretamente das definições obtemos


Lema 8.1.4 1. (Quocientes são finitos) Seja a um ideal de A. O quoci-
ente A/a é uma A-álgebra finita.
2. (Finito sobre finito é finito) Se φ : A → B e ψ : B → C são álgebras
finitas, então ψ ◦ φ : A → C é finita.

C
finito ψ

B ∴ ψ◦φ finito

finito φ

3. (Finito é estável por mudança de base) Se φ : A → B uma álgebra é


finita e A → A� é uma álgebra qualquer então a álgebra obtida por
mudança de base
φ� = φ ⊗ id : A ⊗A A� = A� → B ⊗A A�
a� �→ 1 ⊗ a�
é finita.

b�→b⊗1
B B ⊗ A A�
finito φ ∴ φ� finito

A A�

Em particular, se S ⊆ A é um conjunto multiplicativo, a localização


S −1 φ : S −1 A → S −1 B é uma álgebra finita.
Demonstração:
1. Claramente A/a é gerado por 1 sobre A.
2. Se B é um A-módulo finitamente gerado e C é um B-módulo finitamente
gerado, digamos B = Aω1 + · · · + Aωm e C = Bτ1 + · · · + Bτn , então

C= Aωi τj
1≤i≤m
1≤j≤n

é um A-módulo finitamente gerado.


3. Se B é um A-módulo finitamente gerado, digamos B = Aω1 +· · ·+Aωm ,
então B⊗A A� = A� (ω1 ⊗1)+· · ·+A� (ωm ⊗1) é um A� -módulo finitamente
gerado.
8.1. DEFINIÇÕES E PROPRIEDADES BÁSICAS 173

O teorema seguinte é uma generalização do seguinte fato conhecido (teo-


rema C.1.4 na página 356): um elemento θ é algébrico sobre um corpo K se,
e somente se, [K(θ) : K] < ∞.

Teorema 8.1.5 (Critério de Integralidade) Seja A ⊆ B uma extensão


de anéis e seja b ∈ B. As seguintes condições são equivalentes:

(i) b é integral sobre A;

(ii) A[b] é uma A-álgebra finita;

(iii) A[b] ⊆ C para alguma A-subálgebra finita C de B.

Demonstração: (i) ⇒ (ii): seja

bn + an−1 bn−1 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A)

uma relação integral de b sobre A. Então, para i ≥ 0, temos

bn = −an−1 bn−1 − · · · − a0 =⇒ bn+i = −an−1 bn−1+i − · · · − a0 bi

o que nos permite recursivamente expressar qualquer potência bj com j ≥ n


em termos de combinações A-lineares de 1, b, . . . , bn−1 . Assim,

A[b] = A + Ab + · · · + Abn−1

é uma A-álgebra finita.


(ii) ⇒ (iii) é óbvio: basta tomar C = A[b].
(iii) ⇒ (i): aqui usamos o nosso velho conhecido, o truque do determinante
(c.f. lema de Nakayama, teorema 4.5.5 na página 112): se ω1 , . . . , ωn são
geradores de C sobre A, como b · ωi ∈ C para todo i, temos o seguinte
“sistema linear” nas “variáveis” ωi e “coeficientes” aij ∈ A:

b · ω1 = a11 ω1 + · · · + a1n ωn
..
.
b · ωn = an1 ω1 + · · · + ann ωn

Assim, b é raiz do polinômio caracterı́stico da matriz (aij )n×n , que é mônico


e possui coeficientes em A.

Note em particular que o critério acima mostra que toda extensão integral
é um limite direto de extensões finitas, exatamente como no caso de corpos.
O corolário seguinte generaliza o fato de que toda extensão finita de corpos
é algébrica e que “algébrico sobre algébrico é algébrico” (teorema C.1.4 na
página 356).
174 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

Corolário 8.1.6 Sejam A ⊆ B ⊆ C extensões de anéis.


1. (Finito ⇒ Integral) Toda extensão finita é integral. Reciprocamente,
se B ⊇ A é integral e B é finitamente gerado como A-álgebra, então
B ⊇ A é uma extensão finita. Resumindo:
integral + finitamente gerado com álgebra = finito

2. (Integral sobre integral é integral1 ) Se C ⊇ B e B ⊇ A são extensões


integrais, então C ⊇ A é uma extensão integral.

C
integral

B ∴ integral

integral

Demonstração:
1. O fato de toda extensão finita ser integral é consequência imediata do
teorema 8.1.5 na página anterior. Reciprocamente, se B ⊇ A é integral
e B é finitamente gerado como A-álgebra, digamos B = A[ω1 , . . . , ωn ],
então cada gerador ωi é integral sobre A, logo pelo teorema 8.1.5 na
página precedente, A[ω1 ] ⊇ A é uma extensão finita. Como ω2 é integral
sobre A, também é integral sobre A[ω1 ], de modo que A[ω1 , ω2 ] ⊇ A[ω1 ]
é uma extensão finita e, por transitividade (lema 8.1.4 na página 172),
A[ω1 , ω2 ] ⊇ A também é uma extensão finita. Procedendo desta forma,
concluı́mos que B = A[ω1 , . . . , ωn ] é uma extensão finita de A.
2. Dado c ∈ C, devemos mostrar que c é integral sobre A. Por hipótese, c
satisfaz uma relação integral sobre B
cn + bn−1 cn−1 + · · · + b0 = 0 (bi ∈ B)
Por outro lado, cada bi é integral sobre A. Assim, como na demons-
tração do item anterior, concluı́mos que
A[b0 , b1 , . . . , bn−1 ] ⊇ A
é uma extensão finita. Mas agora c é integral sobre A[b0 , b1 , . . . , bn−1 ]
e como acima temos que
A[b0 , b1 , . . . , bn−1 , c] ⊇ A
é uma extensão finita. Assim, novamente pelo teorema 8.1.5 na página
precedente, concluı́mos que c é integral sobre A, como desejado.

1 em
� � �
sı́mbolos: / =
8.2. FIBRAS DE EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS 175

8.2 Fibras de Extensões Finitas e Integrais


Nesta seção, estudaremos as fibras do mapa Spec B → Spec A induzido por
uma extensão integral de anéis B ⊇ A:

P Spec B

p=P∩A Spec A

Nesta situação, diremos que o primo P ∈ Spec B está sobre o primo p =


P ∩ A ∈ Spec A. O seguinte lema permitirá reduzir o estudo das fibras de
mapas integrais ao caso em que A é um domı́nio local ou até mesmo um
corpo.
Lema 8.2.1 Seja B ⊇ A uma extensão integral de anéis. Seja S ⊆ A um
conjunto multiplicativo e sejam P ∈ Spec B e p = P ∩ A ∈ Spec A.
1. A/p �→ B/P é uma extensão integral de domı́nios.
2. S −1 B ⊇ S −1 A é uma extensão integral. Em particular, se S = A \ p,
temos que S −1 B ⊇ S −1 A = Ap é uma extensão integral com relação a
qual S −1 P está sobre S −1 p = pAp .

Demonstração: Observe inicialmente que os mapas acima são de fato


injetores: a composição A �→ B � B/P tem kernel precisamente p e portanto
induz uma injeção A/p �→ B/P; por outro lado, localização é um funtor
exato, logo preserva injetividade, de modo que S −1 B ⊇ S −1 A.
Agora, dado b ∈ B, se

bn + an−1 · bn−1 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A)

é uma relação integral de b ∈ B sobre A, então


n n−1
b + an−1 · b + · · · + a0 = 0 e
� b �n a � b �n−1 a0
n−1
+ · + ··· + n = 0
s s s s
são relações integrais de b ∈ B/P sobre A/p e de b/s ∈ S −1 B (s ∈ S) sobre
S −1 A.

O resultado técnico que “explica” o teorema a seguir é o aparentemente


inócuo “lema do elevador” (corpos sobem e descem):
Lema 8.2.2 (“Elevador”) Seja B ⊇ A uma extensão integral.
1. Se B (e portanto A) é um domı́nio, temos

A é corpo ⇐⇒ B é corpo
176 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

2. Seja P ∈ Spec B um primo sobre p ∈ Spec A. Então

p é maximal ⇐⇒ P é maximal

Demonstração:

1. (⇒) Dado b ∈ B não nulo, devemos mostrar que b ∈ B × . Por hipótese,


b satisfaz uma relação integral

bn + an−1 bn−1 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A)

Podemos supor n mı́nimo; neste caso a0 �= 0, pois caso contrário, como


B é domı́nio, podemos cancelar b e obter uma relação de grau menor.
Assim, como A é corpo, a0 ∈ A× e de

b · (bn−1 + an−1 bn−2 + · · · + a1 ) = −a0 ∈ A× ⊆ B ×

temos que b ∈ B × , como desejado.


(⇐) Dado a ∈ A não nulo, como B é corpo, a possui inverso a−1 ∈ B
e devemos mostrar que a−1 ∈ A. Como a−1 é integral sobre A, temos
uma relação

(a−1 )n + an−1 · (a−1 )n−1 + an−2 · (a−1 )n−2 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A)

Assim, multiplicando por an−1 , obtemos

a−1 = −an−1 − an−2 · a · · · − a0 · an−1 ∈ A

como querı́amos.

2. Segue do item anterior aplicado a A/p �→ B/P.

O próximo teorema caracteriza as fibras de extensões integrais.

Teorema 8.2.3 (Fibras integrais) Seja B ⊇ A uma extensão integral de


anéis.

1. (Recobrimento) Spec B � Spec A é sobrejetor, i.e., a fibra de qualquer


p ∈ Spec A é não vazia.

2. (Incomparabilidade) Os primos de uma fibra de Spec B � Spec A são


dois a dois incomparáveis com relação à inclusão, i.e., se P1 , P2 ∈
Spec B então

P1 ∩ A = P2 ∩ A
=⇒ P1 = P2
P1 ⊆ P2
8.2. FIBRAS DE EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS 177

3. (Finitude) Se B é finito sobre A então as fibras de Spec B � Spec A


são conjuntos finitos.

Demonstração: Seja p ∈ Spec A e seja S = A \ p. Temos uma extensão


integral S −1 B ⊇ S −1 A, que é finita se B ⊇ A é finita. E como um primo P ∈
Spec B na fibra de p ∈ Spec A corresponde a um primo S −1 P ∈ Spec S −1 P
na fibra de S −1 p = pAp ∈ Spec Ap , substituindo A por S −1 A = Ap e B por
S −1 B, podemos supor que A é local com ideal maximal p.

1. Tome qualquer ideal maximal P ∈ Spec B. Pelo lema anterior, P ∩ A


é maximal em A, logo P ∩ A = p.

2. Pelo lema anterior, quaisquer dois primos na fibra de p são maximais


em B, logo incomparáveis.

3. Seja k = A/p o corpo residual de A. A fibra de p é Spec(B ⊗A k) =


Spec B/pB (teorema 5.4.2 na página 132). Como B ⊇ A é uma ex-
tensão finita, temos que dimk (B ⊗A k) < ∞, logo B ⊗A k é artiniano
e portanto Spec(B ⊗A k) é um conjunto finito pelo teorema 7.3.1 na
página 165.

Corolário 8.2.4 Seja (A, m, k) um anel local e seja B uma A-álgebra finita.
Então B é semi-local e Specm B é precisamente a fibra do maximal m ∈
Spec A.

Demonstração: Substituindo A por sua imagem na álgebra A → B,


podemos supor sem perda de generalidade que A ⊆ B. Pelo “elevador”,
Specm B é justamente a fibra de m, que é finita pelo item (3) do teorema
anterior.

Um outro corolário imediato do teorema anterior é o importante

Teorema 8.2.5 (“Going-up”) Seja B ⊇ A uma extensão integral e sejam


p � p� ideais primos de A. Se P ∈ Spec B é um ideal primo sobre p existe
P� ∈ Spec B sobre p� e tal que P � P� .

P � ∃P� � B
| | |
p � p� � A

Demonstração: Basta aplicar o teorema anterior (recobrimento) para a


extensão integral de domı́nios A/p �→ B/P: o primo P� será o correspondente
a qualquer primo P� /P ∈ Spec B/P na fibra de p� /p ∈ Spec A/p.
178 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

Corolário 8.2.6 Seja A ⊆ B uma extensão integral de anéis. Então

dim A = dim B

Demonstração: Dada uma cadeia de ideais primos em A

p 0 � p1 � · · · � p n � A (∗)

então pelo going-up existe uma cadeia de ideais primos em B

P0 � P1 � · · · � Pn � B (∗∗)

com Pi ∩ A = pi e portanto dim B ≥ dim A.


def
Reciprocamente, dada uma cadeia como (∗∗), temos que os primos pi =
Pi ∩ A são todos distintos pela incomparabilidade dos primos em uma fibra,
logo definem uma cadeia como em (∗), o que mostra dim A ≥ dim B.

8.3 Anéis normais e normalização


A noção de fecho algébrico para extensões de corpos (teorema C.1.4 na
página 356) tem uma versão anelı́dea: o fecho integral.

Lema 8.3.1 Seja B ⊇ A uma extensão de anéis e seja

à = {b ∈ B | b é integral sobre A}

Então à é um subanel de B contendo A.

Demonstração: Claramente à ⊇ A. Dados b1 , b2 ∈ Ã, devemos mostrar


que b1 ± b2 e b1 b2 também estão em Ã, ou seja, são integrais sobre A. Como
b1 , b2 são integrais sobre A, assim como na demonstração do corolário 8.1.6 na
página 174, temos que a extensão A[b1 , b2 ] ⊇ A é finita. Como b1 ± b2 , b1 b2 ∈
A[b1 , b2 ], pelo teorema 8.1.5 na página 173, temos que estes elementos são
integrais sobre A.

8.3.2 Definição Seja B ⊇ A uma extensão de anéis. O subanel à ⊆ B


acima, dos elementos integrais sobre A, é chamado de fecho integral ou
normalização de A em B.

8.3.3 Definição Um domı́nio A é normal ou integralmente fechado se


A coincide com sua normalização em seu corpo de frações Frac A.

Teorema 8.3.4 DFUs são normais.


8.3. ANÉIS NORMAIS E NORMALIZAÇÃO 179

Demonstração: Seja A um DFU e seja θ ∈ Frac A um elemento integral


sobre A, digamos raiz do polinômio mônico f (x) = xn +cn−1 xn−1 +· · ·+c0 ∈
A[x]. Podemos escrever θ = a/b com a, b ∈ A primos entre si. Limpando os
denominadores em f (θ) = 0 obtemos

an + cn−1 an−1 b + cn−2 an−2 b2 + · · · + c0 bn = 0

Como b divide todos os termos a partir do segundo, temos que b divide an


também. Mas como a e b são primos entre si temos que a única possibilidade
para que isto ocorra é b ∈ A× , logo θ ∈ A.

8.3.5 Exemplo O domı́nio A = C[x, y]/(y 2 − x3 ) não é normal, pois y/x ∈


Frac A é raiz do polinômio mônico T 2 − x ∈ A[T ] mas y/x ∈/ A: de fato,
como A = C[x] + C[x]y, se y/x ∈ A existiriam f, g ∈ C[x] tais que
� �
y ≡ x · f (x) + g(x)y (mod (y 2 − x3 )) ⇐⇒ xf (x) = 0 e xg(x) = 1

o que é impossı́vel. Da mesma forma, o anel B = C[x, y]/(y 2 − x2 (x + 1))


também não é normal, pois y/x ∈ Frac B é integral sobre B, mas y/x ∈ / B.
Nos dois exemplos acima, as curvas planas y 2 = x3 e y 2 = x2 (x + 1) são
ambas singulares na origem (0, 0) ∈ A2C . Veremos que isto não é um acaso:
se f ∈ C[x, y] é irredutı́vel, o anel de funções da curva plana Z(f ) ⊆ A2C é
normal se, e só se, Z(f ) é não singular (exemplo 10.1.9 na página 202).

Vejamos como o fecho integral se comporta com relação a localizações:


Teorema 8.3.6 Seja A um anel.
1. Seja B ⊇ A uma extensão de anéis e seja S ⊆ A um conjunto multi-
plicativo. Se à é o fecho integral de A em B, então S −1 à é o fecho
integral de S −1 A em S −1 B.
2. Suponha que A seja um domı́nio. Então

A normal ⇐⇒ Am normal para todo m ∈ Specm A

Demonstração:
1. Como à é integral sobre A, temos que S −1 à é integral sobre S −1 A
(lema 8.2.1 na página 175). Reciprocamente, seja b/s ∈ S −1 B (b ∈ B,
s ∈ S) um elemento integral sobre S −1 A e seja
� b �n a � �n−1 a1 � b � a0
n−1 b
+ + ··· + + =0 (ai ∈ A, s ∈ S)
s s s s s s
uma relação de integralidade; note que podemos representar os coefici-
entes desta relação e o elemento b/s por meio de um único um denomi-
nador comum s. Existe portanto t ∈ S tal que

t · (bn + an−1 bn−1 + · · · + sn−2 a1 b + sn−1 a0 ) = 0 em A


180 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

Multiplicando por tn−1 , obtemos

(tb)n + an−1 t · (tb)n−1 + · · · + sn−2 a1 tn−1 · (tb) + sn−1 a0 tn = 0

Assim, tb ∈ Ã e portanto b/s = (tb)/(ts) ∈ S −1 Ã, como querı́amos.

2. A implicação ⇒ segue do item anterior. Reciprocamente, suponha que


Am é normal para todo m ∈ Specm A e seja b ∈ Frac A um elemento
integral sobre A. Como A ⊆ Am ⊆ Frac A, temos que b é integral sobre
cada Am e portanto �
b∈ Am = A
m∈Spec A

pelo princı́pio local-global (teorema 4.2.3 na página 103), o que mostra


que A é normal.

Em seguida, estudamos o fecho integral com relação a extensões algébricas


de corpos.

Lema 8.3.7 (“Limpando denominadores”) Sejam A um domı́nio, K =


Frac A e L ⊇ K uma extensão algébrica de corpos. Para todo θ ∈ L, existe
d ∈ A não nulo tal que dθ é integral sobre A.

Demonstração: Suponha que

an θn + an−1 θn−1 + · · · + a0 = 0 (ai ∈ A, an �= 0)

Multiplicando por an−1


n obtemos

(an θ)n + an−1 (an θ)n−1 + · · · + an−1


n a0 = 0

logo an θ é integral sobre A e assim podemos tomar d = an .

Teorema 8.3.8 Seja A um domı́nio normal com corpo de frações K =


Frac A. Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos e seja B o fecho integral
de A em L.

1. Um elemento β ∈ L pertence a B se, e só se, seu polinômio minimal


f (x) sobre K pertence a A[x].

2. (Lema de Gauß) Seja f (x) ∈ A[x] um polinômio mônico. Então f (x)


é irredutı́vel em K[x] se, e só se, f (x) é irredutı́vel em A[x].

3. O traço TrL/K (β) e a norma NL/K (β)2 pertencem a A para todo β ∈ B.


2 veja o apêndice C.7 na página 378 para a norma e traço de extensões finitas de corpos
8.3. ANÉIS NORMAIS E NORMALIZAÇÃO 181

4. Se L ⊇ K é uma extensão separável e A é noetheriano então B é finito


sobre A. Se adicionalmente A é um DIP, então B é um módulo livre
de posto [L : K] sobre A.

Demonstração:
1. Se o polinômio minimal (que é mônico por definição) de β ∈ L pertence
a A[x] então claramente β ∈ B. Reciprocamente, dado β ∈ B, seus
conjugados (i.e. as raı́zes de f (x) no fecho algébrico de K) são todos
integrais sobre A. De fato, se f (β) = f (γ) = 0, considere o isomorfismo
de K-álgebras σ que leva β em γ, dado pela composição

σ : K[β] ✲ �K[x]�
β�→x
✲ K[γ]
x�→γ
≈ f (x) ≈

Se p(x) ∈ A[x] é um polinômio mônico tal que p(β) = 0 então p(γ) =


p(σ(β)) = σ(p(β)) = 0 e portanto γ também é integral sobre A.
Assim, como os coeficientes de f (x) são polinômios simétricos elemen-
tares em suas raı́zes, pelo lema 8.3.1 na página 178 temos que os co-
eficientes de f (x) são integrais sobre A e pertencem a K. Como A é
normal, isto implica que f (x) ∈ A[x].
2. Se f é irredutı́vel em K[x], em qualquer qualquer fatoração f = gh
em A[x] um dos fatores deve ser uma constante; e como f é mônico,
esta constante deve pertencer a A× , mostrando que f é irredutı́vel em
A[x]. Reciprocamente, suponha por absurdo que f (x) é irredutı́vel em
A[x] mas que f = gh com g, h ∈ K[x] não constantes. Sem perda de
generalidade, podemos supor g, h mônicos com g irredutı́vel em K[x].
Seja β uma raiz de g em algum fecho algébrico de K. Como f (β) = 0, β
é integral sobre A e pelo item anterior g ∈ A[x], já que g é o polinômio
minimal de β. Mas daı́ pelo algoritmo da divisão temos h ∈ A[x]
também e assim f = gh seria redutı́vel em A[x], uma contradição.
3. Pelo item (1), o polinômio minimal f (x) = xn + an−1 xn−1 + · · · + an
de β sobre K pertence a A[x]. Como TrL/K (β) é um múltiplo inteiro
de an−1 (apêndice C.7 na página 378), temos que TrL/K (β) ∈ A. Da
mesma forma, NL/K (β) é, a menos de sinal, uma potência de an , logo
NL/K (β) ∈ A também.
4. Como A é noetheriano, basta mostrar que B está contido em algum A-
submódulo finitamente gerado de L (ver teorema 6.1.6 na página 148).
Seja ω1 , . . . , ωn uma base de L sobre K. Como os ωi são algébricos
sobre K, “limpando denominadores” (ver lema anterior) podemos supor
que sem perda de generalidade que ωi ∈ B para i = 1, . . . , n. Vamos
mostrar a existência de um D ∈ A não nulo tal que
ω1 ωn
B ⊆A· + ··· + A ·
D D
182 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

Tome β ∈ B. Como os ωi formam uma base de L sobre K, podemos


escrever β = a1 ω1 + · · · + an ωn com ai ∈ K. Vamos aplicar o “truque
do determinante”3 : multiplicando a relação anterior por ωj e tomando
traços, obtemos o “sistema linear” nos ai ’s:

TrL/K (βω1 ) = a1 TrL/K (ω1 ω1 ) + · · · + an TrL/K (ωn ω1 )


TrL/K (βω2 ) = a1 TrL/K (ω1 ω2 ) + · · · + an TrL/K (ωn ω2 )
..
.
TrL/K (βωn ) = a1 TrL/K (ω1 ωn ) + · · · + an TrL/K (ωn ωn )

Note que como βωi e ωi ωj são todos integrais sobre o anel normal
A, D = det(TrL/k (ωi ωj )), o discriminante4 da base ωi , pertence a A.
Como L ⊇ K é separável, temos que D �= 0. Pela regra de Cramer
temos que ai ∈ A · D−1 , o que mostra que β ∈ A · ωD1 + · · · + A · ωDn ,
como desejado.
Finalmente, se A é um DIP, então o resultado segue do teorema de
estrutura de módulos finitamente gerados sobre um DIP (teorema B.4.1
na página 353), já que B, sendo um domı́nio, é livre de torção como
A-módulo. O posto deste módulo é igual a dimK B ⊗A K. Note que
B ⊗A K é a localização de B com relação ao conjunto multiplicativo
S = A \ {0}, logo L ⊇ B ⊗A K ⊇ B e a extensão B ⊗A K ⊇ K é finita;
pelo “lema do elevador” (lema 8.2.2 na página 175) B ⊗A K é um corpo,
que só pode ser igual a L. Assim o posto de B é dimK L = [L : K].

8.3.9 Exemplo Seja d um inteiro livre de quadrados (i.e. nenhum


√ quadrado
de primo divide d). Então o fecho integral de Z em Q( d) é dado por
Z[ω] = Z + Zω, onde
�√
d se d ≡ 2, 3 (mod 4)
ω = 1+√d
2 se d ≡ 1 (mod 4)

É fácil ver que em ambos os casos ω é integral sobre Z e assim pelo lema 8.3.1
na página 178 √ o anel Z[ω]
√ está contido no fecho integral. Reciprocamente,
seja β = x + y d ∈ Q( d) (x, y ∈ Q) um elemento integral sobre Z. Pelo
teorema anterior,

Tr(β) = 2x ∈ Z e
=⇒ d · (2y)2 = (Tr(β))2 − 4N (β) ∈ Z
N (β) = x − dy ∈ Z
2 2

Olhando para a fatoração em primos do denominador de 2y, como d é livre


de quadrados, concluı́mos que 2y ∈ Z. Logo x = a/2 e y = b/2 para a, b ∈ Z.
3 de novo, de novo!
4 ver apêndice C.8 na página 380 para a definição e propriedades do discriminante
8.3. ANÉIS NORMAIS E NORMALIZAÇÃO 183

√ mostrar que β ∈ Z[ω], subtraindo de β um elemento conveniente em


Para
Z[ d] (que está contido no fecho integral), podemos supor sem perda de
generalidade que a, b ∈ {0, 1}. Testando as 4 possibilidades em cada caso,
vemos que a, b devem ser pares quando d ≡ 2, 3 (mod 4) e que a, b devem ter
mesma paridade quando d ≡ 1 (mod 4), logo β ∈ Z[ω], como desejado.

Encerramos esta seção com um importante


Teorema 8.3.10 Se A é um domı́nio normal, o mesmo vale para A[x].
� �
Demonstração: Seja K = Frac A e seja f (x) ∈ Frac A[x] um elemento
integral sobre A[x]. Então f (x) é integral sobre K[x]. Mas como K[x] é um
DE, logo um DFU, pelo teorema 8.3.4 na página 178 K[x] é um domı́nio
normal e portanto f (x) ∈ K[x]. Escreva

f (x) = αn xn + · · · + α0 (αi ∈ K)

Mostraremos que f (x) ∈ A[x] por indução no grau n de f (x). É suficiente


mostrar que αn ∈ A, já que neste caso teremos que f (x) − αn xn também é
integral sobre A[x] e, aplicando a hipótese de indução, que f (x)−αn xn ∈ A[x]
e assim f (x) ∈ A[x]. E como A é normal, basta verificar que αn é integral
sobre A
A ideia é utilizar a filosofia de “redução noetheriana” (c.f. teorema 6.3.4
na página 154). Vamos construir um subanel noetheriano subanel A0 ⊆ A
e um A0 -módulo finitamente gerado M0 ⊆ K tal que A0 [αn ] ⊆ M0 . Pelo
teorema 6.1.6 na página 148, M0 será noetheriano e assim A0 [αn ] será uma
A0 -álgebra finita contendo αn . Pelo teorema 8.1.5 na página 173, αn será
integral sobre A0 e portanto sobre A também.
Agora vamos construir A0 e M0 . Seja

F (T ) = T d + cd−1 (x) · T d−1 + · · · + c0 (x) (ci (x) ∈ A[x])


� �
um polinômio mônico em (A[x])[T ] tal que F f (x) = 0. Seja A0 ⊆ A o
subanel gerado sobre Z por todos os coeficientes dos ci (x)’s. Pelo teorema
da base de Hilbert (teorema 6.2.1 na página 149), A0 é noetheriano. Agora
sejam ω1 , . . . , ωr ∈ K todos os coeficientes dos polinômios
� �2 � �d−1
1, f (x), f (x) , · · · , f (x)
� �
Defina M0 = A0 · ω1 + · · · A0 · ωr . Observe que como F (T ) ∈ A0 [x] [T ] todas
� �i
as potências f (x) de f (x) podem ser escritas como A0 [x]-combinações line-
� �i
ares das primeiras d potências acima. Logo todos os coeficientes de f (x)
pertencem a M0 , em particular αni ∈ M0 para todo i ∈ N já que αni é o
� �i
coeficiente lı́der de f (x) . Isto mostra que A0 [αn ] ⊆ M0 , o que encerra a
prova.

Observação 8.3.11 Em geral, A normal não implica A�x� normal.


184 CAPÍTULO 8. EXTENSÕES FINITAS E INTEGRAIS

8.4 Exercı́cios
8.1 Dizemos que uma extensão de anéis B ⊃ A satisfaz o going-up (respec-
tivamente going-down) se as conclusões dos respectivos teoremas valem para
todo par de ideais primos p � p� em A. Para cada extensão B ⊂ A, decidir
se o going-up/going-down é satisfeito. Dê interpretações geométricas.
(a) A = Z, B = Z[ 17 ].
(b) A = C[x, y], B = C[x, y, z]/(z 2 − x).

(c) A = C[x], B = C[x, y].


(d) A = Z, B = Z[i, 2+i
1
].

(e) A = Z, B = Z[i, 14+7i


1
].

(f) A = C[x], B = C[x, y, xy−1


1
]/(y 2 − y).

8.2 Seja θ ∈ C um número algébrico sobre Q e seja K = Q(θ). Suponha


que TrK/Q (θn ) ∈ Z para todo n natural. Mostre que θ é um inteiro algébrico
(i.e., é integral sobre Z).
Capı́tulo 9

Normalização de Noether
e Nullstellensatz

O teorema de normalização de Noether é sem dúvida a ferramenta técnica


mais importante no estudo de domı́nios finitamente gerados sobre corpos,
permitindo escrever tais domı́nios como extensões finitas de álgebras polino-
miais. Tal ferramenta nos permitirá concluir a demonstração do Nullstellen-
satz para um corpo algebricamente fechado qualquer, removendo a restrição
que tı́nhamos sobre a cardinalidade destes corpos (c.f. teorema 2.3.22 na
página 56).
Dada uma variedade algébrica X, a normalização de Noether, aplicada
ao seu anel de funções regulares k[X], nada mais faz do que encontrar uma
projeção X � Ark sobre um espaço afim com fibras finitas. Em particular,
temos que X e Ark têm mesma dimensão, o que algebricamente se traduz na
igualdade de dimensões de Krull dim k[X] = dim k[x1 , . . . , xr ] = r. Além de
aplicações no estudo da dimensão de domı́nios finitamente gerados sobre cor-
pos, vamos provar uma versão do Nullstellensatz para domı́nios finitamente
gerados sobre Z e utilizá-la para exemplificar como resultados sobre varieda-
des definidas sobre corpos finitos podem servir para mostrar resultados sobre
variedades definidas sobre C!

9.1 Teorema de normalização de Noether


Sem mais delongas, ei-lo:

Teorema 9.1.1 (Normalização de Noether) Seja A um domı́nio finita-


mente gerado sobre um corpo k e seja r = tdk Frac A. Então existe uma base
de transcendência1 x1 , . . . , xr ∈ A de Frac A sobre k tal que A é finito sobre
o subanel k[x1 , . . . , xr ]. Ou seja, a extensão k ⊆ A se fatora como
1 ver apêndice C.9 na página 382 para extensões transcendentes

185
186 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

A
finito

k[x1 , . . . , xr ]
puramente transcendente

Demonstração: Sejam t1 , . . . , tn geradores de A sobre k, de modo que A =


k[t1 , . . . , tn ]. A prova é por indução em n, sendo o caso n = 0 trivialmente
verdadeiro. Agora suponha que n > 0. Se t1 , . . . , tn são algebricamente
independentes sobre k, não há o que fazer. Caso contrário, os geradores
satisfazem uma relação de dependência algébrica não trivial

αe1 ,...,en · te11 te22 . . . tenn = 0 (αe1 ,...,en ∈ k × ) (∗)
(e1 ,...,en )∈E

para algum conjunto finito E ⊆ Nn de ı́ndices. Renumerando os geradores,


podemos supor sem perda de generalidade que e1 ≥ 1 para algum termo em
(∗), ou seja, que t1 realmente aparece na expressão (∗). A ideia é reescre-
ver (∗) por meio de uma “mudança de coordenadas” de modo a obter um
polinômio mônico em t1 .
Para algum N ∈ N a ser definido mais tarde, sejam
def i−1
s i = t i − tN
1 (i = 2, . . . , n)
Como
� � e2 � n−1 �en
te11 te22 . . . ttnn = te11 s2 + tN
1 . . . s n + tN
1
n−1
= te11 +e2 N +···+en N + termos de grau mais baixo em t1 ,
escolhendo N grande o suficiente podemos fazer com que todos os expo-
entes e1 + e2 N + · · · + en N n−1 “escritos na base N ” sejam distintos para
(e1 , . . . , en ) ∈ E. Desta maneira, o termo com expoente máximo e1 + e2 N +
· · · + en N n−1 em t1 não será “acidentalmente cancelado” e, dividindo pelo
coeficiente αe1 ,...,en ∈ k × deste termo, obtemos a partir de (∗) um polinômio
mônico em t1 com coeficientes no subanel B = k[s2 , . . . , sn ] ⊆ A.
Assim, A ⊇ B será uma extensão integral: t1 é integral sobre B por
construção e como si ∈ B temos também que todos os demais ti = si +
i−1
tN1 também serão integrais sobre B (ver lema 8.3.1 na página 178). Como
B é gerado sobre k por n − 1 geradores, por hipótese de indução existe
uma base de transcendência x1 , . . . , xr ∈ B de Frac B tal que B é integral
sobre k[x1 , . . . , xr ]. Por transitividade (corolário 8.1.6 na página 174), a
extensão A ⊇ k[x1 , . . . , xr ] é integral. Desta forma, todo elemento de A será
algébrico sobre k(x1 , . . . , xr ) e portanto Frac A ⊇ k(x1 , . . . , xr ) será uma
extensão algébrica de corpos, ou seja, x1 , . . . , xr é base de transcendência de
Frac A sobre k também.
9.1. TEOREMA DE NORMALIZAÇÃO DE NOETHER 187

Observação 9.1.2 A prova acima é devida a Nagata ([Nag62]) e funciona


para todo corpo k. Se k é um corpo infinito, é possı́vel fazer a substituição
linear si = ti − ai t1 para alguma escolha de ai ∈ k (na verdade, a prova
funciona para a “maioria” das escolhas dos ai ∈ k). Veja o exercı́cio 9.1 na
página 196.
Como dissemos, geometricamente a normalização de Noether corresponde
à existência de uma projeção Spec A � Spec k[x1 , . . . , xr ] com fibras finitas
de uma variedade qualquer sobre o espaço afim Ark .
9.1.3 Exemplo Considere a C-álgebra A = C[x, y]/(xy − 1). Temos que
Frac A = Frac C[x, x1 ] = C(x) tem grau de transcendência 1 sobre C e x ∈ A
é uma base de transcendência. Porém, C[x] ⊂ A não é uma extensão finita,
pois Spec A → Spec C[x] (projeção no eixo x) é visivelmente não sobrejetor
(teorema 8.2.3 na página 176): basta calcular a fibra de (x) ∈ Spec C[x], que
é o espectro de A ⊗C[x] C[x]/(x) = C[x, y]/(xy − 1, x) = 0.
Uma mudança de coordenadas linear resolve o problema: faça z = x+y 2
e w = x−y 2 , de modo que podemos reescrever A = C[w, z]/(z − w − 1) e
2 2

considerar a extensão finita A ⊃ C[w] (que corresponde à projeção no eixo


w). Pictoriamente:

xy = 1 z 2 − w2 = 1

Como uma primeira aplicação do teorema de normalização de Noether, ve-


jamos como remover as hipóteses de separabilidade e normalidade do item (4)
do teorema 8.3.8 na página 180 no caso de domı́nios finitamente gerados sobre
corpos.
Teorema 9.1.4 Seja A um domı́nio finitamente gerado sobre um corpo k e
denote por K = Frac A. Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos. Seja B
o fecho integral de A em L. Então B ⊇ A é uma extensão finita.
Demonstração: Faremos uma série de reduções:
Podemos supor A = k[x1 , . . . , xr ]: basta aplicar a normalização de Noether
e escrever A como extensão finita de k[x1 , . . . , xr ]; por transitividade da inte-
gralidade (corolário 8.1.6 na página 174), B é a normalização de k[x1 , . . . , xr ]
em L. Assim, se B for um k[x1 , . . . , xr ]-módulo finito, então (com mais razão
ainda!) B será finito sobre A também.
188 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

Podemos substituir L por qualquer extensão finita M ⊇ L: seja


C o fecho integral de A em M ; como A é um anel noetheriano (teorema da
base de Hilbert, teorema 6.2.1 na página 149), se C é um A-módulo finito, o
mesmo valerá para a subálgebra B ⊆ C (teorema 6.1.6 na página 148).
Podemos supor que L ⊇ K é puramente inseparável: estendendo
L, podemos supor L ⊇ K quase-Galois2 ; seja M ⊆ L o subcorpo fixo por
Aut(L/K) como no diagrama. Seja C ⊆ M o fecho integral de A em M , que
é um anel normal (corolário 8.1.6 na página 174).

B L
Galois (em particular separável)

C M = LAut(L/K)
puramente inseparável

A K

Se C ⊇ A é uma extensão finita, então o mesmo vale para B ⊇ C pelo


teorema 8.3.8 na página 180, logo B ⊇ A será finita também.
Assim, temos que provar o teorema para o caso especial em que

A = k[x1 , . . . , xr ] e L ⊇ K = k(x1 , . . . , xr ) é puramente inseparável

Se char K = 0 não há mais nada a fazer, assim suponha p = char K > 0
e escreva L = K(β1 , . . . , βn ); seja q uma potência de p suficientemente
grande para a qual βiq ∈ K = k(x1 , . . . , xr ) para todo i = 1, . . . , n. Sejam
c1 , . . . , cm ∈ K todos os coeficientes das funções racionais βiq (i = 1, . . . , n).
1/q 1/q 1/q 1/q
Estendendo L, podemos supor que L = k(c1 , . . . , cm )(x1 , . . . , xr ) e
1/q 1/q 1/q 1/q
agora B = k(c1 , . . . , cm )[x1 , . . . , xr ]: este último anel é isomorfo a
1/q 1/q
um anel de polinômios sobre o corpo k(c1 , . . . , cm ), logo é normal (teo-
rema 8.3.4 na página 178), além de ser claramente finito sobre A. Mas agora
B é um módulo livre de posto finito sobre A.

9.2 Dimensão de domı́nios finitamente gera-


dos sobre corpos
Aqui, veremos como usar o teorema de normalização de Noether no estudo da
dimensão de domı́nios finitamente gerados sobre corpos. Queremos mostrar
o importante
2 veja apêndice C.5 na página 371 para a definção e propriedades básicas
9.2. DIMENSÃO DE DOMÍNIOS F.G. SOBRE CORPOS 189

Teorema 9.2.1 Seja A um domı́nio finitamente gerado sobre um corpo k.


Então

1. dim A = tdk Frac A

2. Qualquer cadeia de primos saturada em A (ou seja, não é possı́vel in-


terpolar primos nesta cadeia) tem comprimento dim A.

3. dim A = dim Ap + dim A/p para todo p ∈ Spec A

Em particular, temos dim k[x1 , . . . , xr ] = r.

Para a prova, precisaremos de alguns lemas.

Lema 9.2.2 Seja B ⊇ A uma extensão finita de domı́nios com A normal.


Seja K = Frac A e L = Frac B.

1. Seja b ∈ B. Então NL/K (b) ∈ A e NL/K (b) ∈ (b) em B.


� �� �
2. Seja b ∈ B tal que p = (b) ∈ Spec B. Então p ∩ A = NL/K (b) .3

Demonstração:

1. Já vimos (teorema 8.3.8 na página 180) que o polinômio minimal f (x) =
xn + an−1 xn−1 + · · · + a0 de b sobre K pertence a A[x] e que NL/K (b)
é, a menos de sinal, uma potência de a0 , logo NL/K (b) ∈ A. E de

f (b) = 0 ⇐⇒ (bn−1 + an−1 bn−2 + · · · + a1 ) · b = −a0

temos que a0 ∈ (b), logo NL/K (b) ∈ (b) também.


�� �
2. Pelo item anterior, NL/K (b) ∈ (b) ⊆ p =⇒ NL/K (b) ⊆ p ∩ A.
Reciprocamente, se a ∈ p ∩ A então a ∈ p =⇒ an = bc para algum
n ∈ N e c ∈ B. Tomando normas, obtemos
� �
NL/K (a)n = NL/K (b) · NL/K (c) =⇒ an[L:K] ∈ NL/K (b)
�� �
já que NL/K (c) ∈ A pelo item anterior. Assim, a ∈ NL/K (b) e
�� �
portanto p ∩ A ⊆ NL/K (b) também.

3 uma interpretação geométrica deste fato é em termos de “push-forward” de ciclos:


p ∩ A é o “suporte” do push-forward do divisor de Cartier “b = 0” em Spec B; o radical
aqui é usado para “matar multiplicidades”. C.f. o teorema do ideal principal de Krull
(corolário 14.3.3 na página 268) também.
190 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

O lema a seguir é o principal resultado que nos permitirá provar o teo-


rema 9.2.1 na página precedente.
Lema 9.2.3 Seja A um domı́nio finitamente gerado sobre um corpo k e seja
p ∈ Spec A de altura 1. Então
tdk Frac A/p = tdk Frac A − 1
Demonstração: Seja f ∈ p um elemento não nulo qualquer; no anel
noetheriano A, há uma quantidade finita de primos minimais contendo f ,
digamos p1 = p, p2 , . . . , pn (aplique o teorema 6.1.5 na página 147 ao anel
A/(f )). Existe ainda um elemento h ∈ p2 ∩ · · · ∩ pn \ p1 : caso contrário,
p1 ⊇ p2 ∩ · · · ∩ pn e assim p1 ⊇ p2 · . . . · pn =⇒ p1 ⊇ pi para algum
i = 2, . . . , n, logo pela minimalidade deverı́amos ter p1 = pi , um absurdo.
Agora como Frac Ah = Frac A e Frac(Ah /pAh ) = Frac A/p, substituindo A
por Ah podemos supor sem perda � de generalidade que p é o único primo
minimal contendo f e que portanto (f ) = p.
Pelo teorema de normalização de Noether, A é finito sobre um anel po-
linomial k[x1 , . . . , xr ] com r = tdk Frac A. Pelo lema anterior, o ideal primo
p ∩ k[x1 , . . . , xr ] = (p) é principal com p ∈ k[x1 , . . . , xn ] não nulo. Como a
extensão de domı́nios
k[x1 , . . . , xr ] k[x1 , . . . , xr ] A
= �→
(p) p ∩ k[x1 , . . . , xr ] p
é finita, Frac A/p ⊇ Frac k[x1 , . . . , xr ]/(p) é uma extensão algébrica de corpos.
Além disso, como p fornece uma relação de dependência algébrica entre os
elementos x1 , . . . , xr de k[x1 , . . . , xr ]/(p), temos
tdk Frac A/p = tdk Frac k[x1 , . . . , xr ]/(p) = r − 1 = tdk Frac A − 1
como querı́amos.

Demonstração: (do teorema 9.2.1 na página precedente) Todos os


itens do teorema estarão provados uma vez que mostrarmos que toda cadeia
saturada de primos em A tem comprimento tdk Frac A, o que faremos por
indução neste grau de transcendência. Pela normalização de Noether, A é
finito sobre um anel de polinômios k[x1 , . . . , xr ] com r = tdk Frac A. Se r = 0,
pelo “lema do elevador” (lema 8.2.2 na página 175) A é um corpo e assim o
resultado é válido neste caso. Agora suponha r > 0 e seja
(0) = p0 � p1 � · · · � pd � A
uma cadeia saturada de primos em A. Assim,
p1 /p1 � p2 /p1 � · · · � pd /p1 � A/p1
é uma cadeia saturada de primos em A/p1 . Pelo lema anterior, temos que
tdk Frac A/p1 = tdk Frac A − 1 < r e assim, por hipótese de indução, a última
cadeia tem comprimento d − 1 = tdk Frac A/p1 , donde d = tdk Frac A, como
desejado.
9.3. NULLSTELLENSATZ 191

9.3 Nullstellensatz
A versão geral do Nullstellensatz, válida sobre qualquer corpo (não necessa-
riamente algebricamente fechado) é dada pelo seguinte

Teorema 9.3.1 (Nullstellensatz Hilberts) Seja k um corpo e seja A um


domı́nio finitamente gerado sobre k. Seja m ∈ Spec A. Então

m ⊂ A é um ideal maximal ⇐⇒ dimk A/m < ∞

Demonstração: (⇐) Se dimk A/m < ∞ temos que A/m é um domı́nio


finito sobre um corpo k. Pelo “lema do elevador” (lema 8.2.2 na página 175),
A/m é um corpo e portanto m é um ideal maximal.
(⇒) Suponha m ∈ Specm A. Como A é finitamente gerado sobre k, A/m
é um corpo que é finitamente gerado sobre k como k-álgebra. Assim, pelo
teorema de normalização de Noether, A/m é finito sobre uma álgebra poli-
nomial k[x1 , . . . , xr ]. Mas novamente pelo lema do elevador, isto implica que
k[x1 , . . . , xr ] é um corpo, o que só ocorre se r = 0. Logo A/m é finito sobre
k, como querı́amos.

Corolário 9.3.2 Seja φ : A → B um morfismo de k-álgebras finitamente


geradas. Então Spec(φ) : Spec B → Spec A se restringe a um mapa entre os
espectros maximais de B e A.

Demonstração: Seja q ∈ Specm B e p = φ−1 (q) ∈ Spec A. O mor-


fismo φ induz uma injeção de k-álgebras A/p �→ B/q e pelo Nullstellensatz
dimk B/q < ∞, logo dimk A/p < ∞, o que, novamente pelo Nullstellensatz,
implica que p ∈ Specm A.

Observação 9.3.3 Em geral, o mapa entre espectros não preserva ideais


maximais. É fácil achar contra-exemplos: o mapa Spec Q → Spec Z associado
à inclusão Z �→ Q leva o ideal maximal (0) de Q no ideal primo não maximal
(0) de Z.

Note que quando k é algebricamente fechado, a condição dimk A/m < ∞


se transforma simplesmente em A/m = k. De posse deste fato, é fácil ver que
as provas dadas anteriormente (teorema 2.3.20 na página 55 e teorema 2.3.23
na página 56) continuam válidas, de modo que temos finalmente o caso geral
do “Nullstellensatz clássico”:

Teorema 9.3.4 (Nullstellensatz, versão clássica) Seja k um corpo al-


gebricamente fechado e seja a ⊆ k[x1 , . . . , xn ] um ideal.
192 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

1. Os ideais maximais de k[x1 , . . . , xn ]/a são precisamente os da forma


(x1 − a1 , . . . , xn − an ) com (a1 , . . . , an ) ∈ Z(a).

2. Z(a) = ∅ ⇐⇒ a = (1)

3. I(Z(a)) = a

Uma outra aplicação do “Nullstellensatz geral” é a seguinte caracterização


de álgebras artinianas finitamente geradas sobre um corpo:

Corolário 9.3.5 (Anéis artinianos revisitados) Seja k um corpo e seja


A uma k-álgebra finitamente gerada. As seguintes condições são equivalen-
tes:

(i) dimk A < ∞;

(ii) A é artiniano;

(iii) dim A = 0;

(iv) Spec A é discreto;

(v) Spec A é um conjunto finito.

Demonstração: Claramente (i) ⇒ (ii) e como A é noetheriano (pelo


teorema da base de Hilbert), (ii) ⇔ (iii) ⇔ (iv) pelo teorema 7.3.3 na
página 166. Além disso, (ii) ⇒ (v) pelo teorema 7.3.1 na página 165.
(v) ⇒ (iii): seja p ∈ Spec A um primo minimal tal que dim A = dim A/p.
Pela normalização de Noether, A/p é finito sobre k[x1 , . . . , xr ] para algum
r ∈ N; como Spec A/p � Spec k[x1 , . . . , xr ] é sobrejetor (teorema 8.2.3 na
página 176) e Spec k[x1 , . . . , xr ] é um conjunto infinito se r > 0 (verifique!),
devemos ter r = 0 e assim dim A = 0 (corolário 8.2.6 na página 178).
(ii) ⇒ (i): note inicialmente que se A é artiniano e m ∈ Spec A então Am é
ainda uma k-álgebra finitamente gerada: de fato, como há apenas um número
finito de ideais maximais, pelo teorema chinês dos restos existe um elemento
h �∈ m mas que pertence a qualquer outro ideal maximal. Daı́, o mapa natural
A[ h1 ] → Am é um isomorfismo pelo princı́pio local-global (teorema 4.2.3 na
página 103), já que é um isomorfismo localizado em qualquer ideal maximal
de A, e A[ h1 ] é claramente finitamente gerado como k-álgebra. Assim, pelo
teorema de estrutura de anéis artinianos (teorema 7.3.2 na página 166), é
suficiente considerar o caso em que (A, m, �) é artiniano
� local.
Como m é o único ideal primo de A, temos (0) = m, que é um ideal
nilpotente pois A é noetheriano. Assim, das seguintes sequências exatas para
n = 1, 2, 3, . . .,
n−1
0 ✲ m ✲ A ✲ A ✲ 0
mn mn mn−1
9.4. NULLSTELLENSATZ 193

temos que para mostrar que dimk A < ∞ basta mostrar que dimk mn−1 /mn <
∞, o que é fácil: primeiro, dim� mn−1 /mn < ∞ pois os ideais mn−1 são
finitamente gerados; além disso, � = A/m é finito sobre k pelo Nullstellensatz
(teorema 9.3.1 na página 191), assim mn−1 /mn têm dimensão finita sobre k
também, como desejado.

Geometricamente, uma álgebra artiniana finitamente gerada sobre um


corpo corresponde a um conjunto finito de pontos, alguns dos quais podem
ser “pontos gordos” (ou seja, aqueles para os quais o anel local Am corres-
pondente não é um corpo).

9.3.6 Exemplo Considere a C-álgebra de dimensão finita (logo artiniana


pelo teorema precedente)

C[x, y] x�→1 C[y]



A= =
(x2 + y 2 − 1, x − 1) (y 2 )

correspondente à interseção do cı́rculo x2 + y 2 = 1 com a reta tangente x = 1.


Temos que Spec A = {(x − 1, y)}, que corresponde ao ponto (1, 0). Note
entretano que A �∼ = C mas que A é um anel artiniano local não reduzido;
geometricamente, a existência de nilpotentes indica que este é um “ponto
duplo” ou um “ponto gordo”.

9.4 NullstellensatZ
O Nullstellensatz possui uma variante para domı́nios finitamente gerados
sobre Z:

Teorema 9.4.1 (NullstellensatZ) Seja A um domı́nio finitamente gerado


sobre Z e seja m ∈ Spec A. Então

m ⊂ A é um ideal maximal ⇐⇒ A/m é um corpo finito

Demonstração: A implicação ⇐ é trivial. Para mostrar ⇒, ou seja,


que o corpo A/m é finito, considere o ideal m ∩ Z ∈ Spec Z: temos duas
possibilidades:
m ∩ Z = (p) para algum número primo p: neste caso, a inclusão Z ⊆ A
induz um morfismo Fp �→ A/m, fazendo de A/m um corpo que é finita-
mente gerado como Fp -álgebra; assim, pelo Nullstellensatz (teorema 9.3.1 na
página 191), temos que A/m é uma extensão finita de Fp , logo é um corpo
finito.
m ∩ Z = (0): vamos mostrar que este caso não ocorre. Caso contrário, a
inclusão Z ⊆ A induziria um morfismo Q �→ A/m e novamente pelo Nulls-
tellensatz terı́amos que A/m seria uma extensão finita de Q. Vamos agora
utilizar a técnica de “redução noetheriana” (c.f. teorema 6.3.4 na página 154).
194 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

Sejam ω1 , . . . , ωn geradores de A/m sobre Q e sejam p1 (x), . . . , pn (x) ∈ Q[x]


polinômios mônicos não nulos tais que pi (ωi ) = 0 (i = 1, . . . , n). Seja h ∈ Z
o produto de todos os denominadores dos pi ’s; temos que pi ∈ Z[ h1 ][x] para
todo i = 1, . . . , n e portanto A/m já é integral sobre Z[ h1 ]. Além disso, como
A/m é finitamente gerado como Z-álgebra (logo com mais razão ainda como
Z[ h1 ]-álgebra), concluı́mos A/m é finito sobre Z[ h1 ], logo pelo lema do elevador
Z[ h1 ] deveria ser um corpo, o que é um absurdo.

Como aplicação deste NullstellensatZ, vamos mostrar uma técnica que


permite utilizar corpos finitos para provar resultados acerca de variedades
sobre C! Parece bruxaria, mas funciona! Para ilustrar esta técnica, vamos
provar o
Teorema 9.4.2 (Ax-Grothendieck) Seja k um corpo algebricamente fe-
chado e seja X ⊆ Ank uma variedade algébrica. Se um morfismo f : X �→ X
é injetor, então é f é uma bijeção.

A ideia básica da prova é utilizar o argumento de “redução noetheriana”


(c.f. teorema 6.3.4 na página 154) a fim de reformular o problema para
uma álgebra finitamente gerada sobre Z e em seguida fazer uma redução
módulo um ideal maximal conveniente; em vários aspectos, tal técnica é
semelhante a que já usamos anteriormente na prova do teorema de Minkowski
(proposição 2.4.8 na página 69).
Começamos provando o caso particular em que k é o fecho algébrico de um
corpo finito, que é particularmente simples: a ideia é que “tudo está definido
sobre um corpo finito suficientemente grande” e que “se Y é um conjunto
finito, uma função g : Y → Y é injetora se, e só se, é bijetora.” Vamos aos
detalhes:
Lema 9.4.3 O teorema de Ax-Grothendieck é verdadeiro se k é o fecho
algébrico de Fp (p primo).

Demonstração: Seguindo a notação do enunciado do teorema, escreva


f = (f1 , . . . , fn ) com fi ∈ k[x1 , . . . , xn ] (i = 1, . . . , n). Pelo teorema da
base de Hilbert (teorema 6.2.1 na página 149), o ideal I(X) ⊆ k[x1 , . . . , xn ]
é gerado por um número finito de polinômios g1 , . . . , gm . Agora suponha
por absurdo f que não seja sobrejetor e seja b ∈ X um ponto que não está
na imagem de f . Podemos escolher uma extensão finita � de Fp grande o
suficiente tal que � contenha
(i) todos os coeficientes dos geradores gi ’s (i = 1, . . . , m) de I(X);
(ii) todos os coeficientes dos fi ’s (i = 1, . . . , n);
(iii) todas as coordenadas de b.
Agora, denote o “conjunto dos pontos de X com coordenadas em �” por
def
X(�) = {(a1 , . . . , an ) ∈ �n | gi (a1 , . . . , an ) = 0 para todo i = 1, . . . , m}
9.4. NULLSTELLENSATZ 195

Note que X(�) é finito, que b ∈ X(�) e que f se restringe a uma injeção
f : X(�) �→ X(�). Mas isto é um absurdo, pois neste caso f : X(�) �→ X(�) é
também uma bijeção e b não pertence à imagem de f por hipótese.

Para reduzir o caso geral ao caso particular acima, vejamos que “f ser
injetor” e “f ser sobrejetor” podem ser “codificados” por relações polinomiais:
Lema 9.4.4 Na notação do enunciado do teorema de Ax-Grothendieck,
1. se b = (b1 , . . . , bn ) ∈ Ank , existe um conjunto finito S de polinômios tal
que b está na imagem de f se, e só se Z(S) �= ∅.
2. existe um conjunto finito T de polinômios tal que f é injetor se, e só
se Z(T ) = ∅.
Demonstração: Escreva f = (f1 , . . . , fn ) com fi ∈ k[x1 , . . . , xn ] e denote
por x = (x1 , . . . , xn ), etc.
1. Temos que b ∈ im f se, e só se,

X∩ Z(fi (x) − bi ) �= ∅
1≤i≤n

e podemos tomar T ⊆ k[x] como qualquer conjunto finito de polinômios


definindo o conjunto algébrico acima.
2. Temos que f é injetor se, e só se,
� �
(x, y) ∈ X × X | f (x) = f (y) e x �= y = ∅
� � �
� f i (x) = f i (y) para todo

⇐⇒ (x, y, z) ∈ X × X × Ank � i = 1, . . . , n e existe =∅
� j = 1, . . . , n tal que (x − y ) · z = 1
j j j

ou seja, se e só se, o conjunto algébrico


� �
(X × X × Ank ) ∩ Z(fi (x) − fi (y)) ∩ Z((xj − yj ) · zj − 1)
1≤i≤n 1≤i≤n

é vazio, logo podemos tomar S ⊆ k[x, y, z] como qualquer conjunto


finito de polinômios definindo este conjunto algébrico.

Agora é só escolher uma álgebra A finitamente gerada sobre Z grande o


suficiente para que “tudo esteja definido sobre A” e reduzir módulo qualquer
ideal maximal para cairmos no caso finito. Veja:
Demonstração: (do teorema de Ax-Grothendieck:) Escreva f =
(f1 , . . . , fn ) com fi ∈ k[x1 , . . . , xn ] e sejam g1 , . . . , gm geradores de I(X).
Suponha por absurdo que exista b ∈ X que não pertence à imagem de f
e sejam S e T os conjuntos de polinômios do lema anterior, de modo que
Z(S) = ∅ e Z(T ) = ∅. Pelo Nullstellensatz (teorema 9.3.4 na página 191),
existem combinações lineares G e H dos polinômios em S e T tais que G = 1
e H = 1. Seja A o anel gerado sobre Z por
196 CAPÍTULO 9. NORMALIZAÇÃO E NULLSTELLENSATZ

(i) todos os coeficientes dos geradores gi ’s (i = 1, . . . , m) de I(X);

(ii) todos os coeficientes dos fi ’s (i = 1, . . . , n);


(iii) todas as coordenadas bi de b = (b1 , . . . , bn );
(iv) todos os coeficientes de G e H.

Por fim seja m um ideal maximal qualquer de A; pelo NullstellensatZ, � =


A/m é um corpo finito. Denote por uma barra a redução módulo m. Sejam
def def
X = Z(g 1 , . . . , g m ) ⊆ An�alg e f = (f 1 , . . . , f n )

Note que as relações G = 1 e H = 1 mostram que Z(S) = ∅ e Z(T ) = ∅, ou


seja, que
def
f : X �→ X é injetor e b = (b1 , . . . , bn ) ∈
/ im f

Mas isto contradiz o caso especial já provado!

Se você gostou da técnica acima, saiba que ela tem diversas outras aplica-
ções; recomendamos a leitura do excelente artigo [Ser09] de J.-P. Serre para
mais diversão!

9.5 Exercı́cios
9.1 Seja k um corpo. Suponha que k seja infinito e seja f (x1 , . . . , xn ) ∈
k[x1 , . . . , xn ] um polinômio de grau d que não pertence a k[x2 , . . . , xn ], ou
seja, a variável x1 realmente aparece em f (x1 , . . . , xn ). Mostre que existem
infinitas (n−1)-uplas (a2 , . . . , an ) ∈ k n−1 para as quais xd1 é o único monômio
de grau d em

f (x1 , x2 + a2 x1 , x3 + a3 x1 , . . . , xn + an x1 )

Utilize este fato para dar uma outra demonstração do teorema de norma-
lização de Noether no caso em que k é infinito.

9.2 Seja k um corpo e seja A uma k-álgebra finitamente gerada.

(a) Mostre que o conjunto de todos os ideais maximais é denso em Spec A.


(b) Seja a um ideal de A. Mostre que
√ �
a= m
m∈V (a)
m maximal
Capı́tulo 10

Domı́nios de Dedekind e
valorizações discretas

Domı́nios de Dedekind (assim batizados em homenagem ao matemático ale-


mão Richard Dedekind, o mesmo dos cortes de Dedekind1 ) são anéis em que
vale a fatoração única, não necessariamente para elementos, mas para ideais:
todo ideal pode ser fatorado como produto de ideais primos de maneira única
a menos da ordem dos fatores. √
Um exemplo de domı́nio de Dedekind é o anel Z[i 5], que não é um DFU,
pois temos √ √
21 = 3 · 7 = (1 − 2i 5)(1 + 2i 5)

com 3, 7, 1 ± 2i 5 irredutı́veis neste anel. A explicação para a falha da fa-
toração única é simples: os elementos√irredutı́veis ainda não são os “blocos
atômicos” finais. Note√que 3 e 1 + 2i 5 não são “primos entre si” pois não
existe combinação
√ Z[i 5]-linear destes elementos que√ é igual a 1: o ideal
(3, 1 +√2i 5) (que faz o papel de “mdc” de 3 e 1 + 2i 5) é um ideal maximal
de Z[i 5]. Mas tudo magicamente funciona se considerarmos a fatoração em
ideais em vez de elementos: os ideais (3) e (7) agora podem ser fatorados em
ideais primos “menores”
√ √
(3) = (3, 1 + 2i 5)(3, 1 − 2i 5)
√ √
(7) = (7, 1 + 2i 5)(7, 1 − 2i 5)
e a falta de unicidade da fatoração do 21 advém do “rearranjo” destes ideais
primos:
√ √ √ √
(3) · (7) = (3, 1 + 2i 5)(3, 1 − 2i 5) · (7, 1 + 2i 5)(7, 1 − 2i 5)
√ √ √ √
= (3, 1 + 2i 5)(7, 1 + 2i 5) · (3, 1 − 2i 5)(7, 1 − 2i 5)
√ √
= (1 + 2i 5) · (1 − 2i 5)
1 muito em voga nos cı́rculos de alta costura em Paris!

197
198 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

Historicamente, esta é a origem do nome ideal : (3, 1+2i 5) é um fator primo
“ideal” de 3, que não existe como elemento, mas sim como, bem. . . , ideal!
Localmente, domı́nios de Dedekind são o que chamamos de domı́nios de
valorização discreta, que são os DFU’s mais simples do universo (depois de
corpos) pois possuem um único elemento irredutı́vel a menos de associados.
São por eles que começamos nosso estudo.

10.1 Valorizações discretas


Na definição seguinte, ∞ denota um sı́mbolo sujeito às condições a + ∞ = ∞
e min{a, ∞} = a para todo a ∈ Z ∪ {∞}. Compare com a definição 2.4.2 na
página 63.

10.1.1 Definição Seja K um corpo. Uma valorização discreta (norma-


lizada) de K é uma função sobrejetora v : K � Z ∪ {∞} que satisfaz os
seguintes axiomas: para todo a, b ∈ K,

(i) v(a) = ∞ ⇐⇒ a = 0;

(ii) v(ab) = v(a) + v(b) (isto é, v : K × → Z é um morfismo de grupos);

(iii) v(a + b) ≥ min{v(a), v(b)}.

O próximo lema coleta propriedades que seguem facilmente da definição.

Lema 10.1.2 Seja v : K → Z ∪ {∞} uma valorização discreta. Então

1. v(±1) = 0 e v(−a) = v(a) para todo a ∈ K.

2. v(a/b) = v(a) − v(b) e v(b−1 ) = −v(b) para todo a, b ∈ K com b �= 0.

3. v(a + b) = v(b) se v(a) > v(b).

4. se a1 +· · ·+an = 0 com n ≥ 2 então existem i �= j tais que v(ai ) = v(aj ).

Demonstração:

1. Segue de v(1 · 1) = v(1) + v(1), v(1) = v((−1) · (−1)) = v(−1) + v(−1)


e v((−1) · a) = v(−1) + v(a).

2. Segue de v(b) + v(b−1 ) = v(b · b−1 ) = v(1) e v(a/b) = v(a) + v(b−1 ).

3. Temos v(a + b) ≥ min{v(a), v(b)} = v(b). Para mostrar a desigualdade


oposta, observe que

v(b) = v((a + b) + (−a)) ≥ min{v(a + b), v(−a)}

Como v(−a) = v(a) > v(b), obrigatoriamente min{v(a + b), v(−a)} =


v(a + b), logo v(b) ≥ v(a + b) também.
10.1. VALORIZAÇÕES DISCRETAS 199

4. Segue do item anterior, já que se v(ai ) �= v(aj ) para todo i �= j (em
particular, haveria no máximo um termo ai = 0), terı́amos que a va-
lorização do lado esquerdo da igualdade seria min{v(ai )} ∈ Z (pois há
algum termo não nulo) enquanto que a valorização do lado direito seria
∞.

10.1.3 Definição Seja K um corpo e seja v : K → Z ∪ {∞} uma valorização


discreta. O domı́nio de valorização discreta associado a v é o anel local
def
Ov = {a ∈ K | v(a) ≥ 0}

com ideal maximal


def
mv = {a ∈ K | v(a) > 0}

Note que de fato Ov é um subanel de K já que v(a) ≥ 0 e v(b) ≥ 0


implica v(a + b) ≥ min{v(a), v(b)} ≥ 0 e v(ab) = v(a) + v(b) ≥ 0. Além disso,
v(a) ≥ 0 e v(a−1 ) ≥ 0 implica v(a) = 0, ou seja,

Ov× = {a ∈ K | v(a) = 0} = Ov \ mv

o que mostra que (Ov , mv ) é um anel local.


Hora para um exemplo?

10.1.4 Exemplo • Seja p um número primo. Definimos a valorização


p-ádica vp em Q da seguinte forma: vp (z) é o expoente da maior
potência de p que divide z, isto é, vp (0) = ∞ e se z �= 0 então vp (z) é o
único inteiro n tal que
a
z = pn · com a, b ∈ Z e p�a e p�b
b
O domı́nio de valorização discreta associado a vp é o anel Z(p) .

• Seja k um corpo e considere o corpo das séries de Laurent formais com


coeficientes em k (ver proposição 2.1.2 na página 34):
�� �
k((t)) = Frac k�t� = an tn | n0 ∈ Z, ai ∈ k
n≥n0

Definindo
� v(f ) como o menor n ∈ Z para o qual an �= 0 em f =
an tn ∈ k((t))× (e v(f ) = ∞ se f = 0), temos que v : k((t)) → Z ∪ {∞}
é uma valorização discreta com Ov = k�t�.

• Considere o corpo das funções meromorfas em C:

M = {f : C → C | f é meromorfa}
200 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

Para cada z0 ∈ C, temos uma valorização discreta de M dada pela


ordem em z0 :
 
 menor� n ∈ Z tal que an �= 0 na expansão em série 
def
vz0 (f ) = f (z) = an (z − z0 )n de f em uma vizinhança de z0
 
n∈Z

 ∞ se f = 0


 n se z é zero de ordem n de f
0
=

 0 se f é holomorfa em z0 e f (z0 ) �= 0


−n se z0 é polo de ordem n de f

Como na valorização p-ádica, para todo f ∈ M não identicamente nulo


temos uma fatoração

f (z) = (z −z0 )vz0 (f ) ·u(z) com u ∈ M holomorfa em z0 e u(z0 ) �= 0

Pelos exemplos acima, você já deve ter percebido que uma valorização
discreta nada mais é do que o “expoente de um irredutı́vel fixado” na fa-
toração de um elemento de um DFU. O próximo teorema, que é um dos
resultados centrais deste capı́tulo, mostra que a sua intuição está correta.
Antes, provemos um
Lema 10.1.5 Seja A um domı́nio noetheriano normal com K = Frac A e
seja a ⊆ A um ideal. Se b ∈ K é tal que b · a ⊆ a, então b ∈ A.

Demonstração: Apliquemos o “truque do determinante” (c.f. prova do


teorema 4.5.5 na página 112). Como A é noetheriano, a = (ω1 , . . . , ωn ) é
finitamente gerado e de b · a ⊆ a, obtemos o “sistema linear nas variáveis ωi ”
(i = 1, . . . , n) �
bωi = aij ωj (aij ∈ A)
1≤j≤n

Assim, b é raiz do polinômio (mônico) caracterı́stico p(x) ∈ A[x] da matriz


(aij )n×n , logo b é integral sobre A, ou seja, b ∈ A pois A é normal.

Teorema 10.1.6 (Domı́nios de valorização discreta) Seja (A,m, k) um


domı́nio local com K = Frac A. As seguintes condições são equivalentes:
(i) A = Ov para alguma valorização discreta v : K → Z ∪ {∞};
(ii) A é um DIP que não é um corpo;
(iii) A é noetheriano e o ideal maximal m = (π) de A é principal e não nulo;
(iv) A é um DFU com um único elemento irredutı́vel π a menos de associ-
ados (π é chamado de uniformizador de A);
(v) A é um domı́nio noetheriano, normal e dim A = 1.
10.1. VALORIZAÇÕES DISCRETAS 201

Demonstração: (i ⇒ ii) Como v é sobrejetor, existe π ∈ A com v(π) = 1


de modo que π ∈ mv = m =⇒ m �= 0 e portanto A não é corpo. Agora
tome a ⊆ A um ideal não nulo; vamos mostrar que a = (t) é principal com
t ∈ a um elemento de valorização mı́nima dentre os elementos de a (note que
t existe pois a �= 0 e v(a) ⊆ N ∪ {∞}). Obviamente a ⊇ (t); para mostrar a
inclusão oposta, tome a ∈ a: temos que v(a) ≥ v(t) pela escolha de t, logo
v(a/t) = v(a) − v(t) ≥ 0, ou seja, a/t ∈ A = Ov e portanto a ∈ (t).
(ii ⇒ iii) Claro.
(iii ⇒ iv) Devemos mostrar que qualquer a ∈ A, a �= 0, se fatora unicamente
como
a = u · πn (n ∈ N, u ∈ A× )
A unicidade é clara: se uπ m = wπ n com u, w ∈ A× , então m = n (logo u = w)
pois se por exemplo m < n terı́amos u = wπ n−m ∈ (π), uma contradição.
Para mostrar a existência da fatoração, é suficiente mostrar que
� �
mn = (π n ) = (0) (∗)
n≥0 n≥0

pois neste caso dado a �= 0 existe n ≥ 0 tal que a ∈ (π n ) \ (π n+1 ), ou seja,


u = a/π n ∈ A \ (π) = A× .
Como A é um domı́nio noetheriano, veremos que (∗) é verdadeiro pelo
teorema de intersecção de Krull (teorema 13.1.2 na
� página 243). Mas aqui
é fácil dar um argumento direto: se existisse a ∈ n≥0 (π n ) não nulo, então
terı́amos uma cadeia estritamente ascendente de ideais em A

(a) � (a/π) � (a/π 2 ) � (a/π 3 ) � · · ·

pois se por acaso (a/π i+1 ) = (a/π i ) =⇒ a/π i+1 = ab/π i (b ∈ A) então
bπ = 1, um absurdo. Mas a cadeia acima não pode existir já que A é
noetheriano.
(iv ⇒ i) Todo elemento a ∈ K × pode ser unicamente escrito na forma
a = uπ n com u ∈ A× e n ∈ Z. Basta definir v(a) = n e é fácil verificar que v
define uma valorização discreta com Ov = A.
(ii ⇒ v) Um DIP é noetheriano e é um DFU, logo é normal também (teo-
rema 8.3.4 na página 178). E se não for corpo, sua dimensão é 1.
(v ⇒ iii) Temos que mostrar que m é principal. A ideia é construir um
elemento f ∈ K tal que f · m = A, o que implica m = (f −1 ). De fato, de
f · m = A, existe π ∈ m tal que f π = 1, ou seja, f −1 = π ∈ m e assim
(f −1 ) ⊆ m; reciprocamente, dado a ∈ m, f a ∈ A ⇐⇒ a ∈ (f −1 ), logo
m ⊆ (f −1 ).
Para construir f , tome um a ∈ m� não nulo. Como dim A = 1, m é o único
ideal primo de A contendo a, logo (a) = m =⇒ mn ⊆ (a) para algum
n ≥ 1 pois A é noetheriano. Escolhendo n mı́nimo, ou seja, tal que

mn ⊆ (a) ⊆ m mas mn−1 �⊆ (a),


202 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

temos que, para qualquer b ∈ mn−1 \ (a), b · m ⊆ (a) mas b ∈


/ (a), ou seja,
definindo2 f = b/a ∈ K temos

f ·m⊆A mas f∈
/A

Por fim, para mostrar que f · m = A, note que se por acaso f · m ⊆ m então
f ∈ A pelo lema lema 10.1.5 na página 200, o que seria um absurdo.

10.1.7 Definição Um domı́nio local satisfazendo as condições equivalentes


do teorema anterior é chamado de domı́nio de valorização discreta, abre-
viado DVD.

Um corolário imediato, mas extremamente útil, do teorema anterior e do


princı́pio local-global (teorema 8.3.6 na página 179) é o
Corolário 10.1.8 Seja A um domı́nio noetheriano qualquer (não necessari-
amente local).
1. Suponha que A é normal e que p ∈ Spec A tem altura 1. Então Ap é
um DVD.
2. Suponha que dim A = 1. Então A é normal se, e só se, mAm é principal
para todo m ∈ Specm A.

10.1.9 Exemplo Seja k um corpo algebricamente fechado e seja f (x, y) ∈


k[x, y] um polinômio irredutı́vel. Então o anel de funções
k[x, y]
A= � �
f (x, y)

da curva plana Z(f ) ⊆ A2k é normal se, e só se, a curva é não singular, i.e.,
se, e só se, não existe (a, b) ∈ k 2 tal que
∂f ∂f
f (a, b) = (a, b) = (a, b) = 0
∂x ∂y
Temos que A é noetheriano pois é finitamente gerado sobre k e que dim A =
tdk Frac A = 1 (teorema 9.2.1 na página 189). Logo pelo corolário temos que
o resultado segue da proposição 4.6.3 na página 115.
Por exemplo, se k = C e f (x, y) = y 2 − x3 + x, temos que o sistema

 2 3
∂f ∂f b = a − a
f (a, b) = (a, b) = (a, b) = 0 ⇐⇒ 3a2 − 1 = 0
∂x ∂x 

2b = 0

não tem solução, assim C[x, y]/(y 2 − x3 + x) é normal.


2 Observe que pelas escolhas de n e b “secretamente” sabemos que a possui valorização

n enquanto b possui valorização n − 1, portanto f −1 terá valorização 1, como esperado.


10.2. DOMÍNIOS DE DEDEKIND 203

Por fim, observamos que uma valorização induz uma topologia no corpo.

10.1.10 Definição Seja K um corpo e seja v : K → Z∪{∞} uma valorização


discreta. A norma associada a v é a função �−�v : K → R dada por

�a�v = e−v(a) (a ∈ K)

Obviamente, aqui definimos e−∞ = 0.

Note que a norma satisfaz

(i) �a�v = 0 ⇐⇒ a = 0;

(ii) �ab�v = �a�v · �b�v

(iii) �a + b�v ≤ max{�a�v , �b|v } (desigualdade ultramétrica)

e portanto define uma topologia em K através da métrica

d(a, b) = �a − b�v (a, b ∈ K)

O número e na definição poderia ser trocado por qualquer outro número real
r > 1 sem alterar a topologia de K. Assim como na norma p-ádica (de-
finição 2.4.2 na página 63), a intuição é que dois elementos estão “próximos”
se a diferença deles é “divisı́vel por potências grandes do uniformizador”. É
fácil mostrar que na topologia acima, as operações de K são contı́nuas.

10.2 Domı́nios de Dedekind


Vamos definir agora a versão “global” de um domı́nio de valorização discreta.

10.2.1 Definição Um domı́nio A é um domı́nio de Dedekind se satisfaz


as seguintes condições equivalentes;

(i) A é noetheriano, dim A = 1 e A é normal;

(ii) A é noetheriano e Am é um DVD para todo m ∈ Specm A;

(iii) A é noetheriano, dim A = 1 e mAm é principal para todo m ∈ Spec A.

A equivalência das condições acima segue do teorema 10.1.6 na página 200 e


do princı́pio local-global (teorema 8.3.6 na página 179). Note que todo DIP
é um domı́nio de Dedekind, mas em geral um DFU não é Dedekind: por
exemplo, k[x1 , . . . , xn ] (k corpo) não é um domı́nio de Dedekind se n > 1
pois dim k[x1 , . . . , xn ] = n.
Como dissemos na introdução deste capı́tulo, a “raison d’être” de domı́-
nios de Dedekind é o seguinte
204 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

Teorema 10.2.2 (Fatoração Única em Ideias Primos) Seja A um do-


mı́nio de Dedekind. Todo ideal não nulo de A se escreve como produto de
ideais primos (= maximais). Esta fatoração é única a menos da ordem dos
fatores.

Demonstração: Seja K = Frac A e, para cada m ∈ Specm A, denote por


vm : K → Z ∪ {∞} a valorização discreta associada ao DVD Am . Se a ⊆ A é
um ideal, defina ainda

vm (a) = min{vm (a) | a ∈ a}

Assim, vm ((a)) = vm (a) para ideais principais (a) ⊆ A e vm (a) > 0 ⇐⇒


m ⊇ a (“conter é dividir”). Agora seja a ⊆ A um ideal não nulo.
Temos vm (a) = 0 para quase todo m ∈ Specm A: como A é um domı́nio
com dim A = 1, temos que dim A/a = 0, logo A/a é artiniano e Spec A/a é
finito (teorema 7.3.3 na página 166). Assim, há apenas um número finito de
ideais m ∈ Specm A contendo a, ou seja, tais que vm (a) > 0.
Temos aAm = (mAm )vm (a) : seja π um uniformizador do DVD Am ; o ideal
principal aAm da esquerda é gerado por um elemento de valorização mı́nima
(ver a demonstração de i ⇒ ii do teorema 10.1.6 na página 200), ou seja, por
um elemento associado a π vm (a) , que também é gerador do ideal principal
(mAm )vm (a) da direita.
Agora, se temos uma fatoração

a= mem (em ∈ N)
m∈Specm A

com em quase todos nulos, como produto de ideais comuta com localizações
(verifique!), obtemos

aAm = mem Am =⇒ vm (a) = em (m ∈ Specm A)

de modo que, se existir, a fatoração de a em ideais primos é única. Para


mostrar a existência, basta definir o ideal de A

b= mvm (a)
m∈Specm A

(que faz sentido pois vm (a) = 0 para quase todo m ∈ Specm A). Este ideal
tem a propriedade

bAm = (mAm )vm (a) = aAm (m ∈ Specm A)

Mas agora a = b pelo princı́pio local-global (teorema 4.2.3 na página 103


aplicado às inclusões a ⊆ a + b e b ⊆ a + b), assim a admite fatoração como
produto de ideais primos.
10.2. DOMÍNIOS DE DEDEKIND 205

10.2.3 Exemplo Seja f (x, y) = y 2 − x3 + x − 1 ∈ C[x, y]. Uma verificação


rápida mostra que a curva plana complexa Z(f ) ⊆ A2C é não singular e
portanto pelo exemplo 10.1.9 na página 202 temos que
C[x, y]
D=
(y 2 − x3 + x − 1)
é um domı́nio de Dedekind. Vamos encontrar a fatoração em ideais primos
do ideal principal (y − x) em D. Os primos que efetivamente aparecem na
fatoração de (y − x) são os que contêm este ideal, que correspondem aos
primos em
D C[x, y] y�→x
∼ C[x]
= 2 3 =
(y − x) (y − x + x − 1, y − x) (x − x3 + x − 1)
2

TCR C[x] C[x]


= 2
×
(x − 1) (x + 1)
Ou seja, apenas os primos (x − 1, y − 1) e (x + 1, y − 1) correspondentes aos
pontos (1, 1) e (−1, −1) contêm o ideal (y − x). A fatoração procurada é
portanto
(y − x) = (x − 1, y − 1)2 · (x + 1, y + 1)
pois ambos os ideais da esquerda e da direita correspondem ao mesmo ideal
0 em D/(y − x) pelos isomorfismos acima.
Geometricamente, a fatoração acima diz que a função y − x tem um zero
duplo em (1, 1) e um zero simples em (−1, −1), como ilustra a figura a seguir:

(1, 1)

(−1, −1)

y=x
y 2 = x3 − x + 1

Uma outra maneira de encontrar a fatoração acima é utilizando as valo-


rizações correspondentes a ideais maximais de D ou pontos de Z(f ). Seja
(a, b) ∈ Z(f ). Note que pela prova da proposição 4.6.3 na página 115

(x − a)D(x−a,y−b) se ∂f∂y (a, b) �= 0
(x − a, y − b)D(x−a,y−b) =
(y − a)D(x−a,y−b) se ∂f∂x (a, b) �= 0
206 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

isto é, x − a é um uniformizador quando b �= 0 e y − b é um uniformizador


quando 3a2 − 1 �= 0. Assim, por exemplo, para calcular a valorização de y − x
no DVD correspondente ao ponto (1, 1), podemos usar o uniformizador x − 1:
em D(x−1,y−1) temos
x2 + x
y 2 = x3 − x + 1 ⇐⇒ y − 1 = (x − 1) ·
y+1
� �� �
unidade

e portanto
x2 + x x2 + x − y − 1
y − x = (x − 1) · − (x − 1) = (x − 1) ·
y+1 y+1
� �� �
f

Observe que f (1, 1) = 0, logo f ainda é múltiplo do uniformizador x − 1. De


fato, temos
2
x2 + x − y − 1 x2 + x − 2 − (y − 1) x + 2 − xy+1
+x
f= = = (x − 1) ·
y+1 y+1 y+1
� �� �
unidade

Assim, a valorização de y − x neste ponto é 2, o que concorda com o cálculo


anterior. Analogamente, calcula-se que a valorização em (−1, −1) é 1. Nos
demais pontos, a valorização é 0 pois y − x não se anula neles.
O próximo critério pode ser visto como uma “versão aritmética” dos exem-
plos de domı́nios de Dedekind dados por curvas não singulares acima.
Teorema 10.2.4 Seja A um DIP, seja f (x) ∈ A[x] um polinômio mônico
irredutı́vel e considere o domı́nio
A[x]
B=� �,
f (x)
que é uma extensão finita de A. Seja π ∈ A um elemento irredutı́vel com
corpo residual k = A/(π) e denote por uma barra a redução módulo π. Seja
f (x) = q 1 (x)e1 · q 2 (x)e2 · . . . · q g (x)eg

a fatoração de f (x) ∈ k[x] em potências de polinômios mônicos irredutı́veis


q i (x) ∈ k[x] com qi (x) ∈ A[x] representantes de classe mônicos.
1. Os ideais primos de B sobre π são exatamente
(q1 (x), π) (q2 (x), π) (qg (x), π)
q1 = , q2 = , ..., qg =
(f ) (f ) (f )
Todos eles são maximais e o corpo residual de qi é B/qi = k[x]/(q i (x)).
Além disso, temos
(π) = Bπ = qe11 qe22 . . . qegg
10.2. DOMÍNIOS DE DEDEKIND 207

2. Seja ri (x) ∈ A[x] o resto da divisão de f (x) pelo polinômio mônico


qi (x). Então

qi Bqi é principal ⇐⇒ ei = 1 ou π 2 � ri (x) em A[x]

Em particular, B é um domı́nio de Dedekind se, e só se, as condições


acima são satisfeitas para todo i = 1, . . . , g e, neste caso, a fatoração
do item anterior é a fatoração do ideal principal (π) em ideais primos.

Demonstração:

1. Os ideais primos de B sobre π estão em bijeção como os de

B A[x] k[x] TCR � k[x]


B ⊗A k = = = = ,
(π) (f (x), π) (f (x)) (q i (x)ei )
1≤i≤g

ou seja, com (q i (x))/(q i (x)ei ) ⊆ k[x]/(q i (x)ei ) para i = 1, 2, . . . , g, que


correspondem exatamente aos primos qi = (qi (x), π)/(f ) de B segundo
e
o isomorfismo acima. Além disso, os ideais (π) = πB e qe11 . . . qgg são
iguais, pois ambos correspondem ao ideal (0) = (q 1 (x)) · . . . · (q g (x))eg
e1

em k[x]/(f (x)). E temos também isomorfismos de corpos residuais

B A[x] k[x]
= =
qi (qi (x), π) (q i (x))

2. (⇐) Suponha por exemplo que e1 = 1. Da fatoração de f (x), existe


um polinômio m(x) ∈ A[x] tal que

f (x) = q1 (x) · q2 (x)e2 · . . . · qg (x)eg + π · m(x)

Para i �= 1, qi (x) mod f (x) ∈


/ q1 (caso contrário, qi ⊆ q1 =⇒ qi = q1
pois ambos são ideais maximais). Portanto

q1 (x) · q2 (x)e2 · . . . · qg (x)eg + π · m(x) ≡ 0 (mod f (x))


π · m(x) mod f (x)
=⇒ q1 (x) mod f (x) = − ∈ π · Bq 1
q2 (x)e2· . . . · qg (x)eg mod f (x)

o que mostra que q1 Bq1 = (π) é principal.


Agora, suponha que π 2 � r1 (x). Como q 1 (x) | f (x) em k[x], sabemos
que π | r1 (x) em A[x], logo r1 (x) = π · s(x) para algum polinômio
s(x) ∈ A[x] com imagem s(x) ∈ k[x] não nula. Assim,

f (x) = a(x) · q1 (x) + π · s(x) (a(x) ∈ A[x], deg s(x) < deg q1 (x))

e portanto, como deg s(x) < deg q1 (x) =⇒ deg s(x) < deg q 1 (x) em
k[x] (lembre que q1 (x) é mônico), temos que s(x) �= 0 tem imagem
208 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

não nula em k[x]/(q 1 (x)) = B/q1 , i.e., que s(x) mod f (x) ∈
/ q1 em B.
Portanto
a(x) · q1 (x) + π · s(x) ≡ 0 (mod f (x))
a(x) · q1 (x) mod f (x)
=⇒ π = − ∈ q1 (x) · Bq1
s(x) mod f (x)
e novamente q1 Bq1 = (q1 (x) mod f (x)) é principal.
(⇒) Suponha que e1 ≥ 2 e π 2 | r1 (x). Primeiro, observamos que estas
condições implicam que f (x) ∈ (q1 (x), π)2 em A[x]. De fato, escrevendo
f (x) = a(x)·q1 (x)+r1 (x) com a(x) ∈ A[x], já temos r1 (x) ∈ (q1 (x), π)2
por hipótese, logo basta mostrar que a(x) ∈ (q1 (x), π), i.e., que a(x)
tem imagem trivial em A[x]/(q1 (x), π) = k[x]/(q 1 (x)), o que segue do
fato de e1 ≥ 2 ⇐⇒ q 1 (x)2 | f (x) ⇐⇒ q 1 (x) | a(x).
Seja � = Bq1 /q1 Bq1 = B/q1 = k[x]/(q 1 (x)) o corpo residual de q1 ;
queremos mostrar que o �-espaço vetorial
q1 Bq1 4.6.2 q1 (q1 (x), π) (q1 (x), π)
2 = 2 = 2
=
q1 B q 1 q1 (q1 (x), π) + (f (x)) (q1 (x), π)2
tem dimensão ≥ 2 (corolário 4.6.1 na página 114). Considere uma
relação de dependência linear entre as imagens de q1 (x) e π neste quo-
ciente, ou seja,
a(x) · π + b(x) · q1 (x) = α(x) · π 2 + β(x) · π · q1 (x) + γ(x) · q1 (x)2
com a(x), b(x), α(x), β(x), γ(x) ∈ A[x]. Módulo π, da relação acima te-
mos que q 1 (x) | b(x), logo b(x) tem imagem trivial em � = k[x]/(q 1 (x)),
de modo que podemos supor b(x) = 0. Assim, π | γ(x) · q1 (x)2 . Como π
é primo no DFU A[x] (teorema B.3.4 na página 351) e π � q1 (x) (q1 (x)
é mônico), π | γ(x). Dividindo a expressão acima por π, obtemos
a(x) ∈ (q1 (x), π), i.e., a(x) tem imagem trivial em � também.

10.2.5 Exemplo Seja � um número primo e n ≥ 1 um inteiro. Seja ζ uma


�n -ésima raiz primitiva de 1, cujo polinômio minimal sobre Q é
n
x� − 1 �n−1 (�−1) �n−1 (�−2) �n−1 (�−3)
f (x) = n−1 = x + x + x + · · · + 1 ∈ Z[x]
x� −1
pelo critério de Eisenstein (exercı́cio B.1 na página 354 aplicado a f (x + 1)).
Então Z[ζ] é um domı́nio de Dedekind (logo, como é integral sobre Z, coincide
com o fecho integral de Z em Q(ζ)).
Basta aplicar o critério acima: para um primo p �= �, o critério da derivada
n
mostra que x� − 1, e portanto f (x), são separáveis em Fp [x]. Para p = �,
n n n n−1
temos x� − 1 = (x − 1)� e portanto f (x) = (x − 1)� −� em F� [x], assim
escolhendo o levantamento mônico q(x) = x − 1 de q(x) = x − 1, obtemos
resto r(x) = f (1) = �, que não é divisı́vel por �2 .
10.2. DOMÍNIOS DE DEDEKIND 209

Para encerrar esta seção, o próximo teorema mostra que é relativamente


fácil “gerar” novos domı́nios de Dedekind.
Teorema 10.2.6 (Extensão de Domı́nio de Dedekind) Seja A um do-
mı́nio de Dedekind com K = Frac A. Seja L ⊇ K uma extensão de corpos
finita e separável de grau n = [L : K] e seja B o fecho integral de A em L.
Então
1. B também é um domı́nio de Dedekind.
2. Seja p ∈ Specm A e seja
pB = Pe11 Pe22 . . . Pegg
a fatoração de pB em potências de ideais primos distintos de B. Sejam
ainda fi = [B/Pi : A/pi ] os graus das extensões de corpos residuais.
Então
e1 f1 + · · · + eg fg = n

Demonstração:
1. Pela transitividade da integralidade (corolário 8.1.6 na página 174) te-
mos que B é normal. Pelo teorema 8.3.8 na página 180, B também
é noetheriano. Finalmente, como a extensão B ⊇ A é integral, temos
dim B = dim A = 1 pelo corolário 8.2.6 na página 178.
2. Localizando A e B com relação a S = A \ p, podemos podemos supor
sem perda de generalidade que (A, p, k) é um DVD (em particular, um
DIP) e que B é semi-local com ideais maximais P1 , . . . , Pg . Assim,
pelo teorema 8.3.8 na página 180, B é um A-módulo livre de posto
n = [L : K] e portanto dimk B ⊗A k = n. Agora calculamos esta
dimensão de outra maneira utilizando a fatoração de pB: como
B TCR B B � B
B ⊗A k = = ×· · ·× =⇒ dim k B ⊗ A k = dimk ei
pB Pe1 Peg Pi
1≤i≤g

basta mostrar que dimk B/Pei i = ei fi . E das sequências exatas de


k-espaços vetoriais
0 → Pe−1
i /Pei → B/Pei → B/Pe−1
i →0
por indução em e é suficiente mostrar que dimk Pe−1
i /Pei = fi .
Seja πi ∈ B um elemento tal que πi ∈ Pi \ P2i (como B é Dedekind,
não podemos ter Pi = P2i sob pena de violação da fatoração única!).
Assim, πi é um uniformizador de BPi e portanto multiplicação por πie−1
induz um morfismo de B-módulos
πie−1
B/Pi ✲ Pe−1 /Pei
i

b �−→ bπie−1
210 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

que é um isomorfismo, como verifica-se imediatamente localizando-se


nos ideais maximais de B. Como dimk B/Pi = fi por definição, isto
encerra a prova.

10.3 Ordem
Na vida real, normalidade é um luxo de que nem sempre dispomos. Ainda
sim, em tais situações “anormais” é possı́vel definir um substituto para valo-
rizações discretas:
10.3.1 Definição Seja (A, m, k) um domı́nio local noetheriano de dimen-
são 1. A ordem de anulamento com respeito a A é definida por
def A
ordA (a) = lenA (a ∈ A)
(a)
O próximo lema resume alguns fatos importantes sobre a ordem.
Lema 10.3.2 (Ordem) Seja (A, m, k) um domı́nio local noetheriano de di-
mensão 1.
1. (Finitude) Temos
ordA (a) < ∞ ⇐⇒ a �= 0

2. (Aditividade) Para a, b ∈ A não nulos, temos

ordA (ab) = ordA (a) + ordA (b)

Demonstração:
1. Se a = 0, temos que lenA A = ∞ pois A não é artiniano (teorema 7.2.4
na página 159): de fato, por Nakayama (teorema 4.5.5 na página 112)
temos mi �= mi+1 e assim obtemos a cadeia estritamente decrescente

m � m2 � m3 � · · ·

Por outro lado, se a �= 0, como A é um domı́nio com dim A = 1, temos


que dim A/(a) = 0, assim temos que o anel noetheriano A/(a) também
é artiniano (teorema 7.3.3 na página 166) e portanto de comprimento
finito sobre A.
2. Segue da aditividade do comprimento, uma vez que mostrarmos que a
sequência
A ✲ A ✲ A
0 ✲ ✲ 0
a
(b) (ab) (a)

é exata, em que A/(b)


a
✲ A/(ab) denota a multiplicação por a.
10.3. ORDEM 211

O kernel da projeção A/(ab) � A/(a) é (a)/(ab); queremos mostrar que


ele é isomorfo a A/(b). Temos um morfismo sobrejetor de A-módulos

φ: A ✲ ✲ (a)
a
(ab)
x �−→ ax

Mas como A é domı́nio e a �= 0, temos que

ax = 0 ⇐⇒ ∃r ∈ A tal que ax = abr ⇐⇒ x = br para algum r ∈ A

Ou seja, ker φ = (b), logo φ induz um isomorfismo A/(b) ∼


= (a)/(ab),
como querı́amos.

Note que se na definição acima A é normal, i.e., A é um DVD com valo-


rização associada v, então ordA (a) = v(a), já que ambos os lados são aditivos
e ordA (π) = lenA A/(π) = lenA k = 1 para um uniformizador � de A. Mais
geralmente, temos a seguinte “generalização” da fórmula ei fi = n do teo-
rema 10.2.6 na página 209:
Teorema 10.3.3 Seja (A, m, k) um domı́nio local noetheriano de dimensão 1
com K = Frac A e seja B a normalização de A em K. Suponha que B seja
finito sobre A, de modo que B é semi-local. Sejam m1 , . . . , mg os ideais ma-
ximais de B e denote por vi : K → Z ∪ {∞} a valorização discreta associada
ao DVD Bmi (i = 1, . . . , g). Então

ordA (a) = [B/mi : k] · vi (a) (a ∈ A)
1≤i≤g

Demonstração: Vamos mostrar que lenA A/(a) = lenB B/(a) para todo
a ∈ A não nulo. Daı́ a fórmula acima seguirá imediatamente do lema 7.2.5
na página 162, utilizando o fato de a ordem com relação a Bmi coincidir com
a valorização vi .
Primeiro, observe que lenA B/A < ∞: claramente B/A é um A-módulo
noetheriano pois B é finito sobre A por hipótese; além disso, como para todo
b ∈ B ⊆ K, existe a ∈ A não nulo tal que ab ∈ A e B é finito sobre A,
B/A é anulado por algum elemento t ∈ A com t �= 0, assim, B/A é um
módulo finitamente gerado sobre o anel artiniano A/(t) (pois dim A/(t) =
0, teorema 7.3.3 na página 166) e portanto B/A é um A-módulo artiniano
(teorema 7.1.2 na página 158) também.
Agora considere as sequências exatas

0 ✲ A ∩ aB ✲ A/(a) ✲ B/(a) ✲ B/(aB + A) ✲ 0

e
0 ✲ M ✲ B/A ✲ B/A
a
✲ B/(aB + A) ✲ 0
212 CAPÍTULO 10. DOMÍNIOS DE DEDEKIND E VALORIZAÇÕES

a
em que A/(a) → B/(b) e B/A → B/A são respectivamente induzidas pela
inclusão e multiplicação por a e M = {b ∈ B | ab ∈ A}. Observe que
a multiplicação por a induz um isomorfismo M

✲ A ∩ aB. Assim,
lenA A/(a) = lenB B/(a) segue da aditividade do comprimento aplicada às
sequências acima.

10.4 Exercı́cios
10.1 Seja v : K → Z ∪ {∞} uma valorização discreta. Mostre que, na
métrica associada, todo triângulo em K é isósceles, i.e., dados três pontos
a, b, c ∈ K, dois dos números
�a − b�v , �b − c�v , �a − c�v
são iguais.
10.2 Seja A um domı́nio de Dedekind com K = Frac A. Seja m um ideal
maximal de A. Seja
def
m−1 = {b ∈ K | b · m ⊆ A}
Mostre que m−1 é um A-submódulo de K finitamente gerado contendo pro-
priamente A e que
m · m−1 = A
10.3 Mostre que um domı́nio de Dedekind com um número finito de primos
é um PID.
10.4 Seja A um domı́nio de Dedekind. Dados ideais a e b de A, mostre que
“conter é dividir”, ou seja que
a ⊇ b ⇐⇒ existe um ideal c de A tal que b = ac
10.5 Mostre que qualquer ideal em um domı́nio de Dedekind pode ser ge-
rado por dois elementos.
10.6 Seja k um corpo com char k �= 2, 3 e seja A = k[x, y]/(y 2 − x3 − 10).
Mostre que A é um domı́nio de Dedekind e encontre a fatoração em ideais
primos de x − 2y + 7. Interprete geometricamente o resultado.

10.7 Seja � um número primo. Mostre que Z[ 3 �] é um domı́nio de Dedekind
se, e só se, � �≡ ±1 (mod 9).
10.8 Seja θ uma raiz do polinômio irredutı́vel f (x) = x3 −x2 −2x−8 ∈ Q[x]
e seja K = Q[θ]. Mostre que
(a) ν = (θ2 + θ)/2 é um inteiro algébrico.
(b) o fecho integral de Z em K é Z + Zθ + Zν.
Capı́tulo 11

Ação de Grupo e
Going-down

Este livro precisa de mais ação! Com isto, queremos dizer ação de grupos1 , é
claro! O estudo de simetrias de objetos é uma das mais importantes técnicas
em Álgebra em geral e não poderia ser diferente com anéis.
Aqui veremos como utilizar o grupo de automorfismos de um anel para
provar o importante going-down, que complementa o going-up (teorema 8.2.5
na página 177). Além disso, olhando para ação induzida de um grupo G
sobre as fibras do mapa entre espectros de um anel B e de seu subanel de
invariantes B G , introduziremos os grupo de decomposição e de inércia de
um ideal primo P ∈ Spec B, que em certo sentido formalizam a noção de
“redução de G módulo P”. Tais grupos têm papel central em Teoria dos
Números, com diversas aplicações, por exemplo no cálculo do grupo de Galois
de um polinômio sobre Q.

11.1 Grupos agindo sobre um anel


Neste capı́tulo, G denotará um grupo finito agindo (por automorfismos) sobre
um anel B. Denotaremos por

def
B G = {b ∈ B | σ(b) = b para todo σ ∈ G}

o subanel de B fixo por G.


Note que dado σ ∈ G, temos um diagrama comutativo

1 que, além de ser emocionante, é uma dos mais lucrativos investimentos em toda a

Matemática!

213
214 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Spec(σ)
Spec B Spec B

Spec B G

de modo que G age sobre as fibras de Spec B → Spec B G .


A situação mais importante é a seguinte: seja A um domı́nio normal
com K = Frac A e seja L ⊇ K uma extensão Galois finita com grupo de
Galois G = Gal(L/K). Seja B o fecho integral de A em L. Observe que um
elemento σ ∈ G se restringe a um A-automorfismo de B: se b ∈ B é raiz de
um polinômio mônico p(x) ∈ A[x] então p(σ(b)) = σ(p(b)) = 0, o que mostra
que σ(b) ∈ B. Além disso, B G = A já que

B G = LG ∩ B = K ∩ B = A

em que a última igualdade segue do fato de A ser normal.


Começamos com algumas propriedades básicas:

Teorema 11.1.1 (Ação de grupo) Seja B um anel e seja G um grupo


finito agindo sobre B. Seja A = B G o subanel de invariantes de B.

1. A extensão de anéis B ⊇ A é integral.

2. (Mudança de base plana) Seja A� uma A-álgebra plana e denote por

B � = B ⊗ A A� e G� = {σ ⊗ id : B � → B � | σ ∈ G}

as mudanças de base de B e G, respectivamente. Então



A� = (B � )G
−1
Em particular, (S −1 B)S G
= S −1 A para todo conjunto multiplicativo
S ⊆ A.

3. (Ação transitiva) G age transitivamente nas fibras de Spec B � Spec A.

Demonstração:

1. Todo b ∈ B é raiz do polinômio mônico


�� �
p(x) = x − σ(b) ∈ A[x]
σ∈G

cujos coeficientes são expressões simétricas elementares em σ(b), σ ∈ G,


e portanto são fixos por G.
11.1. GRUPOS AGINDO SOBRE UM ANEL 215

G�
2. É claro que A� ⊆ B � . Para mostrar a inclusão oposta, considere a
sequência exata de A-módulos

0 ✲ A ✲ B ✲
f
B
σ∈G
b �−→ (σ(b) − b)σ∈G
(note que f é de fato A-linear pois G fixa os elementos de A). Aplicando
o funtor exato − ⊗A A� , obtemos uma sequência exata de A� -módulos
f ⊗id �
0 ✲ A� ✲ B ⊗ A A� ✲ B ⊗ A A�
σ∈G

donde A� = (B � )G .
3. Sejam P, P� ∈ Spec B dois primos da fibra de p ∈ Spec A e suponha
por absurdo que P, P� possuam órbitas disjuntas:
{σ(P) | σ ∈ G} ∩ {σ(P� ) | σ ∈ G} = ∅
Se S = A \ p, pelo item anterior podemos substituir A, B e G por
suas localizações S −1 A, S −1 B e S −1 G e assim supor sem perda de
generalidade que p ∈ Spec A e P, P� ∈ Spec B são todos maximais pelo
“lema do elevador” (lema 8.2.2 na página 175). Assim, podemos aplicar
o teorema chinês dos restos (teorema 1.5.1 na página 17) para obter um
elemento b ∈ B tal que
� �
b ≡ 0 (mod σ −1 (P)) σ(b) ≡ 0 (mod P)
−1 �
⇐⇒ ∀σ ∈ G
b ≡ 1 (mod σ (P )) σ(b) ≡ 1 (mod P� )

Da primeira congruência, temos que a “norma” de b é tal que


def

NG (b) = σ(b) ∈ P ∩ A = p
σ∈G

Porém, como NG (b) ∈ p ⊆ P também, terı́amos σ(b) ∈ P� para algum


σ ∈ G, o que contradiz a segunda congruência e termina a prova.

Embora enunciemos todos os resultados deste capı́tulo para um grupo G


finito, a maioria deles se estende com ligeiras modificações para grupos pro-
finitos (i.e. limites projetivos de grupos finitos), tais como o grupo de Galois
de uma extensão Galois arbitrária. Como ilustração da técnica, vejamos o
seguinte
Corolário 11.1.2 Seja A um domı́nio normal com K = Frac A. Seja L ⊇ K
uma extensão de corpos quase-Galois2 e seja B o fecho integral de A em L.
Então G = Aut(L/K) age transitivamente nas fibras de Spec B � Spec A.
2 ver apêndice C.5 na página 371
216 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Demonstração: Se L ⊇ K é uma extensão Galois finita, o resultado segue


do teorema anterior. Para extensões Galois arbitrárias, reduzimos o problema
ao caso finito por uma “casa dos pombos infinita”, i.e., por um argumento
de compacidade.
Sejam P, P� ∈ Spec B em uma mesma fibra sobre Spec A e seja F o
conjunto das subextensões M de L ⊇ K com M ⊇ K Galois finita; note que
F é um conjunto direcionado (ordenado por inclusão) e que Gal(L/K) =
proj limM ∈F Gal(M/K). Defina
F (M ) = {σ ∈ G | σ(P ∩ M ) = P� ∩ M }
Temos que F (M ) �= ∅ para todo M ∈ F pelo já demonstrado. Além disso,
cada F (M ) é claramente fechado no conjunto compacto G (na topologia de
Krull), logo é compacto. E como F é direcionado, a famı́lia F (M ) (M ∈ M)
satisfaz a propriedade de interseção finita, logo

F (M ) �= ∅
M ∈F

e qualquer elemento nesta intersecção define um automorfismo σ ∈ Gal(L/K)


tal que σ(P) = P� , como desejado.
Agora, para L ⊇ K qualquer, seja M = LG de modo que L ⊇ M é Ga-
lois enquanto que M ⊇ K é puramente inseparável com Aut(M/K) trivial.
Como já sabemos que o teorema é válido para L ⊇ M , basta mostrar que há
exatamente um primo no fecho integral de A em M que está sobre um dado
p ∈ Spec A (há pelo menos um primo pelo teorema 8.2.3 na página 176).
Assim, sem perda de generalidade podemos supor L ⊇ K puramente inse-
parável com p = char K > 0. Como para qualquer b ∈ B existe um natural
n
n > 0 tal que bp ∈ K ∩ B = A (lembre que A é normal), se P ∈ Spec B está
na fibra de p então
def n
P ⊆ Q = {b ∈ B | bp ∈ p para algum n > 0}
n
Mas como bp ∈ p ⊆ P =⇒ b ∈ P, temos P = Q, que é portanto o único
primo sobre p.

11.2 Going-down
Agora estamos prontos para demonstrar o going-down (c.f. teorema 5.5.14
na página 142).
Teorema 11.2.1 (“Going-down”) Seja B ⊇ A uma extensão integral de
domı́nios com A normal. Sejam p � p� ideais primos de A. Se P� ∈ Spec B
está sobre p� então existe P ∈ Spec B sobre p tal que P � P� .
∃P � P� � B
| | |
p � p� � A
11.3. GRUPOS DE DECOMPOSIÇÃO E DE INÉRCIA 217

Demonstração: Primeiro, observe que se o teorema é válido para B ⊇ A,


então também vale para C ⊇ A com B ⊇ C ⊇ A. De fato, dado Q� ∈ Spec C
sobre p� ∈ Spec A, como a extensão B ⊇ C é integral, existe P� ∈ Spec B
sobre Q� (teorema 8.2.3 na página 176) e se P ∈ Spec B é tal que P � P� e
P ∩ A = p então Q = P ∩ C está sobre p e Q � Q� .
Sejam K = Frac A e L = Frac B; estendendo L se necessário, podemos
supor sem perda de generalidade que L ⊇ K é um extensão quase-Galois.
Pelo going-up (teorema 8.2.5 na página 177), existem primos Q � Q� de B
tais que Q ∩ A = p e Q� ∩ A = p� . Infelizmente, Q� �= P� a não ser que
sejamos sortudos, mas isto não é problema pois pela transitividade da ação
na fibra de p� (corolário 11.1.2 na página 215), existe σ ∈ Aut(L/K) tal que
σ(Q� ) = P� . Basta agora tomar P = σ(Q).

Corolário 11.2.2 Seja B ⊇ A uma extensão integral de domı́nios com A


normal. Seja P ∈ Spec B e seja p = P ∩ A ∈ Spec A. Então

dim BP = dim Ap

Demonstração: Como na prova do corolário 8.2.6 na página 178, temos


que uma cadeia estrita de primos em B

P0 � P1 � · · · � Pn = P � B (∗)

determina uma cadeia estrita de primos em A

p 0 � p1 � · · · � p n = p � A (∗∗)

com Pi ∩ A = pi , logo dim Ap = ht p ≥ dim BP = ht P. Reciprocamente,


pelo going-down, dada uma cadeia estrita de primos em A como em (∗∗)
obtemos uma cadeia de primos em B como em (∗), logo dim BP = ht P ≥
dim Ap = ht p também.

11.3 Grupos de Decomposição e de Inércia


Continuamos com G um grupo finito agindo sobre um anel B. Este grupo
induz uma ação em Spec B; para P ∈ Spec B, denote o estabilizador deste
primo por
def
DP = {σ ∈ G | σ −1 (P) = P} = {σ ∈ G | σ(P) = P}

Note que um automorfismo σ ∈ DP induz um automorfismo σ ∈ Aut(B/P)


do corpo residual dado por
def
σ(b) = σ(b) (b ∈ B)
218 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Assim, temos um morfismo de grupos

DP → Aut(B/P)
σ �→ σ

11.3.1 Definição Seja B um anel e seja G um grupo finito agindo sobre


B. Seja P ∈ Spec B. O estabilizador DP de P é chamado de grupo de
decomposição deste primo. O kernel IP de DP → Aut(B/P) é chamado
de grupo de inércia de P.

Note que diretamente das definições temos as seguintes “fórmulas de mu-


dança de referencial”

DσP = σDP σ −1 e IσP = σIP σ −1

para todo σ ∈ G.
Sejam A = B G e p = P ∩ A ∈ Spec A. É fácil ver que se S ⊆ A é um
conjunto multiplicativo tal que S ∩ p = ∅ então

DS −1 P = S −1 DP e IS −1 P = S −1 IP

Com isso, no estudo dos grupos de decomposição e inércia, podemos livre-


mente localizar os anéis A e B com relação a S = A \ p, de modo a supor
A local com ideal maximal p e Specm B dado pela fibra de p (“lema do
elevador”, lema 8.2.2 na página 175). Além disso, pelo teorema 11.1.1 na
página 214, Specm B é a órbita de P, que é finita pois G é finito, logo B é
semi-local; se �
G= σi D P
1≤i≤g

é uma partição de G em classes laterais à esquerda de DP , temos

Specm B = {σ1 (P), . . . , σg (P)}

11.3.2 Exemplo Seja B = C[x] e G o grupo de “rotações”

G = {id, ρ, ρ2 , . . . , ρn−1 }

em que ρ denota o automorfismo de C-álgebras

ρ: B → B
x �→ x · e2πi/n

Temos A = B G = C[xn ] =∼ C[y]. Se a ∈ C é não nulo, temos que a órbita de


(x − a) consiste em n primos distintos:

{(x − a · e2πik/n ) ∈ Spec B | k = 0, 1, . . . , n − 1}

de modo que I(x−a) = D(x−a) = {id}. Por outro lado, temos que D(x) = G
e, como ρ = id ∈ Aut(C), que I(x) = G.
11.3. GRUPOS DE DECOMPOSIÇÃO E DE INÉRCIA 219

De agora em diante, adotaremos a seguinte


Convenção 11.3.3 Sejam B um anel, G um grupo finito agindo sobre B e
A = B G . Sejam P ∈ Spec B e p = P ∩ A ∈ Spec A e sejam k e l os corpos
residuais de p e P respectivamente. Defina

B � = B DP B �� = B IP
P� = P ∩ B � ∈ Spec B � P�� = P ∩ B �� ∈ Spec B ��

Denote ainda por l� e l�� os corpos residuais de P� e P�� respectivamente.


Resumindo:

P B l

P�� B �� = B IP l��

P� B � = B DP l�

p A = BG k

Começamos analisando o anel fixo pelo grupo de decomposição. Vamos


provar antes um pequeno
Lema 11.3.4 Na convenção 11.3.3, sejam σ1 , . . . , σg representantes de clas-
ses laterais à esquerda de DP em G com σ1 = id. Para b� ∈ B � , defina a
“norma” �
def
N (b� ) = σi (b� )
1≤i≤g

Então N (b ) ∈ A. Além disso, N (b ) é um múltiplo de b� em B � .


� �

Demonstração: Temos
� �
N (b� ) ∈ A = B G ⇐⇒ σσi (b� ) = σi (b� ) para todo σ ∈ G
1≤i≤g 1≤i≤g

Assim, como DP fixa b� , basta mostrar que multiplicação à esquerda por


um σ ∈ G fixado permuta as classes laterais de DP . Mas isto é claro: se
σσi DP = σσj DP então, para algum τ ∈ DP ,

σσi = σσj τ =⇒ σi = σj τ =⇒ σi DP = σj DP =⇒ i = j

Em particular, multiplicação à esquerda por σ�∈ DP fixa a classe de σ1 = id


e permuta as demais entre si e portanto c = 2≤i≤g σi (b� ) ∈ B é fixado por
DP , ou seja, c ∈ B � . Com isso, N (b� ) = b� c é um múltiplo de b� em B � .
220 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Teorema 11.3.5 (Anel de decomposição) Mantendo a notação da con-


venção 11.3.3 na página precedente e sendo σ1 , . . . , σg como no lema, temos

1. P é o único primo de B sobre P� .

2. A inclusão k �→ l� de corpos residuais é um isomorfismo.


� � �
3. pBP � = P B P� .

Demonstração: Sejam σ1 , . . . , σg como no lema. Podemos localizar com


relação a S = A \ p e portanto supor sem perda de generalidade que (A, p, k)
é local e que B é semi-local com

Specm B = {σ1 (P) = P, σ2 (P), . . . , σg (P)}

Pelo “elevador” (lema 8.2.2 na página 175), B � também será semi-local e seus
ideais maximais serão da forma σi (P) ∩ B � ; denote-os (sem repetição) por

Specm B � = {P�1 = P� , P�2 , . . . , P�s }

Note que esta também é a fibra de p em Spec B � .

1. Pelo teorema 11.1.1 na página 214, DP age transitivamente sobre a


fibra de P� , mas DP estabiliza P e assim o resultado segue.

2. Dado b� ∈ B � , devemos mostrar que b� ≡ a (mod P) para algum a ∈ A.


Pelo item anterior, σi−1 (P) ∩ B � �= P� para i �= 1 já que σi−1 ∈
/ DP =⇒
−1
σi (P) �= P. Logo pelo teorema chinês dos restos existe x ∈ B � tal que

x ≡ b� (mod P� )
x ≡ 1 (mod (σi−1 P) ∩ B � ) para i �= 1

σ1 (x) ≡ b� (mod P)
=⇒
σi (x) ≡ 1 (mod P) para i �= 1
=⇒ N (x) ≡ b� (mod P)

o que termina a prova pois N (x) ∈ A pelo lema.

3. Como p ⊆ P� , basta mostrar que P� ⊆ pBP


� � �
� . Seja x ∈ P = P1 .

Caso especial em que x ∈ P�1 \ (P�2 ∪ · · · ∪ P�s ): mutatis mutandis,



a mesma prova do item anterior mostra que x ∈ pBP � . De fato,

(1) / �j
x∈P
i �= 1 =⇒ σi−1 (P) �= P =⇒ σi−1 (P) ∩ B � �= P� =⇒ σi (x) ∈
/P
� �� �
=P�j com j�=1
11.3. GRUPOS DE DECOMPOSIÇÃO E DE INÉRCIA 221


Assim3 , 2≤i≤g / P ∩ B � = P� e como x ∈ P� temos
σi (x) ∈

N (x) = x · σi (x) ∈ P� ∩ A = p =⇒ x ∈ pBP�
2≤i≤g

Caso geral: como Specm B � = Spec(B � /pB � ) é um conjunto finito, a


k-álgebra B � /pB � é um anel artiniano (corolário 9.3.5 na página 192).
Portanto temos um isomorfismo (teorema 7.3.2 na página 166)
� �
B� BP � BP �


= �
1
× · · · × �
s

pB pBP� pBP�s
1

� � �
Para provar que pBP � = P BP� precisamos mostrar que o ideal maximal

P1 BP� /pBP� do primeiro fator é 0. Seja t ∈ P�1 BP


� � � � �
� /pBP� e seja
1 1 1 1
x ∈ B � uma pré-imagem do elemento (t, 1, . . . , 1) no produto acima.
Então x ∈ P�1 \ (P�2 ∪ · · · ∪ P�s ) e pelo que já provamos x ∈ pBP� . Mas
isto implica t = 0, como desejado.

O teorema anterior explica o nome grupo de decomposição. No caso “si-


métrico” em que DP é um subgrupo normal em G, todos os primos σP
(σ ∈ G) possuem mesmo grupo de decomposição σDP σ −1 = DσP e portanto
um anel de decomposição B � comum. Assim, pelo teorema anterior, p “se
decompõe” completamente em B � e Spec B → Spec B � fornece uma bijeção
entre os primos nas fibras de p em Spec B e Spec B � :

P1 P2 P3 ... Pg B

P�1 P�2 P�3 ... P�g B�

p A

Em seguida, vamos estudar o anel fixo pelo grupo de decomposição. Pre-


cisamos de um lema sobre extensões de corpos.
Lema 11.3.6 Seja l ⊇ k uma extensão de corpos finita.
1. Suponha que l ⊇ k é separável e que todo elemento de l tem grau no
máximo n. Então [l : k] ≤ n.
2. Suponha que l ⊇ k é quase-Galois com G = Aut(l/k) e que todo ele-
mento de l tem grau no máximo |G|. Então l ⊇ k é Galois.
3 Tome cuidado! Até aplicarmos a norma, a conta deve ser feita em B pois em geral, σ
i
não se restringe a um automorfismo de B � , a não ser no caso especial em que DP � G.
222 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Demonstração:
1. Pelo teorema do elemento primitivo (teorema C.4.8 na página 371),
temos l = k(θ) para algum θ, que tem grau no máximo n sobre k por
hipótese. Logo [l : k] = [k(θ) : k] ≤ n.
2. Podemos supor que os corpos têm caracterı́stica positiva p > 0. Seja
k0 = lG . Temos que l ⊇ k0 é uma extensão Galois de grau |G| e que
k0 ⊇ k é puramente inseparável. Pelo teorema do elemento primitivo,
podemos escrever l = k0 (θ) para algum θ ∈ l. Temos que θ é separável
sobre k: como θ possui |G| conjugados distintos, temos

[k(θ) : k]sep ≥ |G| ≥ [k(θ) : k] ≥ [k(θ) : k]sep

e assim temos igualdade em todos os lugares, o que mostra que k(θ) ⊇ k


é uma extensão separável de grau |G|.

k(θ) l = k0 (θ)
separável de grau |G| Galois de grau |G|

pur. insep.
k k0 = l G

Para concluir que l ⊇ k é separável, basta mostrar que k0 ⊆ k(θ), pois


assim k0 ⊇ k será separável e puramente inseparável ao mesmo tempo
e portanto k0 = k.
Seja λ ∈ k0 ; vamos mostrar que k(λ + θ) = k(θ) e portanto λ =
n
(λ + θ) − θ ∈ k(θ). Existe n ∈ N tal que λp ∈ k, logo
n n n n
(λ + θ)p = λp + θp =⇒ k(θp ) ⊆ k(λ + θ)
n
Mas como θ é separável sobre k, k(θp ) = k(θ) e assim k(θ) ⊆ k(λ + θ).
Finalmente, pela hipótese do enunciado, [k(λ + θ) : k] ≤ |G| = [k(θ) : k]
e portanto devemos ter k(θ) = k(λ + θ).

Teorema 11.3.7 (Anel de Inércia) Na notação do convenção 11.3.3 na


página 219, temos
1. P�� é o único primo de B �� sobre P� .
2. l ⊇ k é uma extensão quase-Galois.
3. O morfismo de grupos DP � Aut(l/k) é sobrejetor, de modo que temos
um isomorfismo DP /IP = Aut(l/k).
4. l�� ⊇ k é a máxima subextensão separável de l ⊇ k, de modo que
Aut(l/k) = Aut(l�� /k).
11.4. APLICAÇÕES EM TEORIA DE GALOIS 223

Demonstração: Pelo teorema anterior, p e P� têm mesmo corpo resi-


dual k = l� e pBP � � � �
� = P BP� . Portanto, substituindo A por BP� e B pela
� �
localização com relação a S = B \ P , podemos supor que DP = G, que
P ∈ Spec B é o único ideal na fibra de p e que todos os anéis A, B e B �� são
locais.
Note ainda que como todo b ∈ B é raiz do polinômio mônico

def

mb (x) = (x − σ(b)) ∈ A[x]
σ∈G

todo elemento b ∈ l = B/P é raiz de um polinômio mônico mb (x) ∈ k[x] de


grau menor ou igual a |G| que se fatora completamente em l[x].

1. Trivial pela redução acima.

2. Seja f (x) ∈ k[x] um polinômio mônico irredutı́vel que admite uma raiz
b ∈ l (b ∈ B). Como f (x) é o polinômio minimal de b sobre k e
mb (b) = 0, temos que f | mb . E como mb se fatora completamente em
l[x], o mesmo ocorre para f . Assim l ⊇ k é quase-Galois.

3. Seja ks ⊇ k a máxima subextensão separável de l ⊇ k. Pelo lema,


[ks : k] ≤ |G| é finito e podemos escrever ks = k(b) para algum b ∈ B.
Assim, para mostrar que G � Aut(l/k) é sobrejetor, devemos mostrar
que, dado um automorfismo φ ∈ Aut(l/k) = Gal(ks /k), existe σ ∈ G tal
que φ(b) = σ(b). Ou seja, temos que mostrar que qualquer conjugado
de b sobre k é da forma σ(b), o que é fácil: se f (x) ∈ k[x] é o polinômio
minimal de b sobre k, então f | mb , de modo que as raı́zes de f são de
fato todas da forma σ(b) = σ(b).

4. Observe que aplicando os itens anteriores a B �� no lugar de A temos que


l ⊇ l�� é uma extensão normal de corpos com Aut(l/l�� ) é trivial (pois
IP � Aut(l/l�� ) é sobrejetor). Logo l ⊇ l�� é puramente inseparável
e portanto ks ⊆ l�� (na notação do item anterior). Queremos mostrar
que ks = l�� . Para isto, substituindo B por B �� , l por l�� e G = DP
por DP /IP , podemos supor que IP é trivial e que G = Aut(l/k). Mas
agora o resultado segue diretamente do lema.

11.4 Aplicações em Teoria de Galois


Nesta seção, especializamos os teoremas anteriores para o caso mais impor-
tante: o de domı́nios normais cujos corpos de frações definem uma extensão
Galois finita.
224 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN

Teorema 11.4.1 Seja A um domı́nio normal com K = Frac A. Seja f (x) ∈


A[x] um polinômio mônico irredutı́vel separável, seja L o seu corpo de raı́zes
e seja B o fecho integral de A em L. Seja p ∈ Spec A um primo com corpo
residual k e seja P ∈ Spec B um primo sobre p com corpo residual l; denote
por uma barra a redução módulo P. Suponha que f (x) ∈ k[x] seja separável
também. Então l contém o corpo de raı́zes de f e o mapa natural DP →
Gal(l/K) é um isomorfismo.

Demonstração: Sejam b1 , . . . , bn ∈ B as raı́zes de f (x); suas imagens


b1 , . . . , bn ∈ l são as raı́zes de f (x), todas distintas por hipótese. Temos em
particular que l contém o corpo de raı́zes de f .
Pelo teorema 11.3.7 na página 222, já sabemos que DP � Gal(l/k) é
sobrejetor. É injetor também: se σ ∈ DP é tal que σ = id em Gal(l/k),
então, para todo i = 1, . . . , n, σ(bi ) e bi são duas raı́zes de f (x) com mesma
imagem em l, logo são iguais pela hipótese de que b1 , . . . , bn ∈ l são distintas.
Assim, σ(bi ) = bi para todo i = 1, . . . , n e como estes elementos geram L
sobre K, temos σ = id.

11.4.2 Exemplo Considere o polinômio f (x) = x5 − x + 1 ∈ Z[x], que é


irredutı́vel em F3 [x] e se fatora como (x2 +x+1)(x3 +x2 +1) em F2 [x]. Então
O grupo de Galois de f contém um ciclo de tamanho 5 e uma permutação
(12)(456) e é fácil ver que estes dois elementos geram todo S5 , que é o grupo
de Galois de f sobre Q.

Teorema 11.4.3 Seja A um domı́nio de Dedekind com K = Frac A e seja


L ⊇ K uma extensão Galois finita. Seja B o fecho integral de A em L (que
também é um domı́nio de Dedekind pelo teorema 10.2.6 na página 209). Seja
p ∈ Specm A. Então temos uma fatoração em ideais primos em B

pB = (P1 · . . . · Pg )e

com Pi ∈ Spec B e todos os corpos residuais B/Pi isomorfos entre si. Sendo
f o grau de um destes corpos sobre A/p, temos

ef g = [L : K] |DPi | = ef (i = 1, . . . , g)

Se a extensão de corpos residuais é separável, então temos também

|IPi | = e (i = 1, . . . , g)

Demonstração: Pelo teorema 11.1.1 na página 214, Gal(L/K) age transi-


tivamente sobre os fatores Pi ’s, que são os primos da fibra de p sobre Spec B.
Assim, se σ(Pi ) = Pj (σ ∈ Gal(L/K)), como σ(pB) = pB, pela fatoração
única em ideais primos, Pi e Pi devem ter mesmo expoente e; além disso,
temos um isomorfismo induzido em corpos residuais

B/Pi
σ
✲ B/σ(Pi ) = B/Pj
11.5. EXERCÍCIOS 225

A fórmula ef g = [L : K] agora é um caso especial de teorema 10.2.6 na


página 209. Por outro lado, como a órbita de um primo Pi está em bijeção
com as classes laterais à esquerda de DPi , temos que g = [Gal(L/K) : DPi ] =
ef g/|DPi |, donde |DPi | = ef . Finalmente, do teorema 11.3.7 na página 222
temos que DPi /IPi é isomorfo ao grupo de Galois da extensão de corpos
residuais, assim de ef /|IPi | = f temo |IPi | = e.

11.5 Exercı́cios
11.1 Seja B = C[x, y] e considere G = {id, σ} onde σ : B → B é o automor-
fismo de C-álgebras definido por σ(x) = −x e σ(y) = −y.

(a) Mostre A = B G = C[x2 , xy, y 2 ].


(b) Descreva explicitamente a ação de G sobre as fibras de Spec B → Spec A
sobre os ideais maximais de A.
(c) Determine os grupos de decomposição e inércia para cada P ∈ Spec B.

11.2 Na notação da convenção 11.3.3 na página 219, mostre que se |IP | é


primo com char k então l ⊇ k é Galois.
226 CAPÍTULO 11. AÇÃO DE GRUPO E GOING-DOWN
Capı́tulo 12

Divisores de Zero e Primos


Associados

Neste capı́tulo, veremos como os conceitos de anulador e suporte de um


módulo permitem obter o seu “anel de definição” e estudar os seus divisores
de zero. Neste estudo, módulos da forma A/p (p ∈ Spec A) têm papel par-
ticularmente importante e dão origem aos conceitos de primo associado e de
cadeia primária (que de certa forma é o análogo de uma série de composição
para módulos de comprimento não necessariamente finito).
Como aplicação, veremos uma importante caracterização de normalidade,
o famoso “critério R1 e S2 ” de Serre, além de uma generalização fraca da fa-
toração em ideais primos em domı́nios de Dedekind, a chamada decomposição
primária, que não obstante tem a vantagem de ser válida em um anel noe-
theriano arbitrário.

12.1 Suporte e anulador de um módulo


12.1.1 Definição Seja M um A-módulo.

1. Um elemento a ∈ A é dito um divisor de zero de M se existe m ∈ M ,


m �= 0, tal que am = 0.

2. O anulador de um elemento m ∈ M é o ideal


def
ann(m) = {a ∈ A | a · m = 0}

3. O anulador do módulo M é o ideal


def

ann M = ann(m) = {a ∈ A | a · m = 0 para todo m ∈ M }
m∈M

227
228 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

4. O suporte de M é definido como o conjunto de primos


def
supp M = {p ∈ Spec A | Mp �= 0}

O próximo lema mostra a relação entre as definições acima.


Lema 12.1.2 (Anulador e Suporte) Seja M um A-módulo.
1. Dados m ∈ M , p ∈ Spec A e s ∈ A \ p, temos
m 0 � �
�= em Mp ⇐⇒ p ∈ V ann(m)
s 1

2. Temos
supp M ⊆ V (ann M )
com igualdade se M é finitamente gerado sobre A.

Demonstração:
1. Temos
m 0
= em Mp ⇐⇒ ∃t ∈ A \ p tal que t · m = 0 em M
s 1
⇐⇒ ann(m) �⊆ p

2. Se p ∈ supp M ⇐⇒ Mp �= 0, pelo item anterior existe m ∈ M tal


que p ⊇ ann(m) ⊇ ann M , logo p ∈ V (ann M ). Reciprocamente, se M
é finitamente gerado�sobre A, digamos M = Aω1 + · · · + Aωn , então
temos que ann M = 1≤i≤n ann(ωi ). Assim, temos
� �
p ∈ V (ann M ) =⇒ p ⊇ ann(ωi ) ⊇ ann(ωi )
1≤i≤n 1≤i≤n

=⇒ p ⊇ ann(ωi ) para algum i

Logo, pelo item anterior, ωi /1 �= 0/1 em Mp , o que mostra que p ∈


supp M .

O anulador dá origem ao “anel de definição” A/(ann M ) de um módulo


M , já que a multiplicação de um elemento de A está definida módulo ann M :
dados a ∈ A, r ∈ ann M e m ∈ M , temos (a + r) · m = a · m. Assim, M pode
ser visto como A/(ann M )-módulo via
def
a·m = a·m (a ∈ A, m ∈ M)

12.1.3 Exemplo Seja a um ideal qualquer do anel A e seja M = A/a, um


módulo finitamente gerado sobre A (por 1). Então ann M = a e supp M =
V (a).
12.2. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS 229

Lema 12.1.4 Seja A um anel.


1. (Aditividade em sequências exatas) Seja

0 ✲ M� ✲ M ✲ M �� ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos. Então

supp(M ) = supp(M � ) ∪ supp(M �� )

2. Sejam M e N dois A-módulos finitamente gerados. Então

supp(M ⊗A N ) = supp(M ) ∩ supp(N )

Demonstração:
1. Seja p ∈ Spec A. Como localização preserva exatidão, temos uma
sequência exata de Ap -módulos

0 ✲ Mp� ✲ Mp ✲ Mp�� ✲ 0

e agora é claro que Mp �= 0 se, e só se, Mp� �= 0 ou Mp�� �= 0.


2. Seja p ∈ Spec A. Como

(M ⊗A N )p = (M ⊗A N ) ⊗A Ap = (M ⊗A Ap ) ⊗Ap (N ⊗A Ap )
= Mp ⊗Ap Np

basta mostrar que, dado um anel local (A, m, k) e dois A-módulos fini-
tamente gerados M e N , vale

M ⊗A N �= 0 ⇐⇒ M �= 0 e N �= 0

Como acima, temos

(M ⊗A N ) ⊗A k = (M ⊗A k) ⊗k (N ⊗A k)

e por Nakayama (lema de teorema 4.5.5 na página 112) podemos reduzir


a questão acima para o caso em que M e N são espaços vetoriais de
dimensão finita sobre um corpo k, caso que é óbvio.

12.2 Divisores de Zero e Primos Associados


No estudo dos divisores de zero, A-módulos da forma M = A/p (p ∈ Spec A)
são particularmente simples: temos ann M = p, supp M = V (p) e os divisores
de zero de M são exatamente os elementos de p. Nesta seção, veremos como
230 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

reduzir o caso geral para este caso particular quando o módulo é finitamente
gerado sobre um anel noetheriano A.
Note que se m ∈ M tem anulador a = ann(m), o mapa de A-módulos

A ✲ M
a �−→ am

tem kernel a e portanto induz um morfismo injetor de A-módulos A/a �→


M . Reciprocamente, se a é um ideal qualquer de A e temos uma injeção
φ : A/a �→ M de A-módulos, sendo m = φ(1) temos a = ann(m). Isto nos
leva à seguinte

12.2.1 Definição Seja M um A-módulo. Um ideal primo p de A é dito


associado a M se satisfaz as seguintes condições equivalentes:

(i) M contém um submódulo isomorfo a A/p;

(ii) p = ann(m) para algum elemento m ∈ M .

O conjunto de todos os primos associados a M é denotado1 . por Ass M .

Teorema 12.2.2 (Primos associados e divisores de zero) Seja M um


módulo sobre um anel noetheriano A.

1.
Ass(M ) �= ∅ ⇐⇒ M �= 0
Em particular, se m ∈ M é um elemento não nulo então existe p ∈
Ass M tal que p ⊇ ann(m).

2. O conjunto dos divisores de zero de M é a união dos primos em Ass M .

3. O produto dos mapas de localização



M �→ Mp
p∈Ass(M )

é injetor.

4. (Subaditividade em sequências exatas) Seja

0 ✲ M� ✲ M ✲ M �� ✲ 0

uma sequência exata de A-módulos. Então

Ass M � ⊆ Ass M ⊆ Ass M � ∪ Ass M ��

Demonstração:
1I know it sounds ugly, but this is the official notation :-(
12.2. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS 231

1. É claro que M = 0 =⇒ Ass M = ∅. Para mostrar a recı́proca, faremos


uma indução noetheriana (c.f. teorema 6.1.5 na página 147). Suponha
que M �= 0. Então a famı́lia de ideais

F = {ann(m) | m ∈ M, m �= 0}

é não vazia e, como A é noetheriano, existe um elemento maximal


ann(m0 ) ∈ F. Assim, para concluir que Ass M �= ∅, basta mostramos
que ann(m0 ) é um ideal primo. Suponha que ab ∈ ann(m0 ) mas a ∈ /
ann(m0 ). Então am0 �= 0 e portanto ann(am0 ) ∈ F. Mas ann(am0 ) ⊇
ann(m0 ), logo devemos ter ann(am0 ) = ann(m0 ) pela maximalidade
de ann(m0 ). Assim, b ∈ ann(am0 ) = ann(m0 ), mostrando que o ideal
ann(m0 ) é de fato primo.
Finalmente, dado m �= 0, basta aplicar o resultado acima para o submó-
dulo Am ⊆ M : temos Ass(Am) �= ∅ e qualquer p ∈ Ass(Am) ⊆ Ass M
é da forma p = ann(am) com a ∈ A e portanto satisfaz p ⊇ ann(m).

2. Claramente p∈Ass M p consiste em divisores de zero de M . Reci-
procamente, dado um divisor de zero a de M , existe m ∈ M com
m �= 0 e am = 0. Assim, pelo item anterior, existe p ∈ Ass M tal que
p ⊇ ann(m) � a.
3. Temos que mostrar que o kernel do mapa acima é trivial, ou seja, que
dado m ∈ M não nulo existe p ∈ Ass M tal que m/1 �= 0/1 em Mp ou,
equivalentemente, tal que p ⊇ ann(m) (ver lema 12.1.2 na página 228).
Logo o resultado segue do item (1).
4. Sem perda de generalidade podemos supor que M � ⊆ M e M �� =
M/M � . A inclusão Ass M � ⊆ Ass M é clara. Para mostrar a outra
inclusão, tome p ∈ Ass M , digamos p = ann(m), m ∈ M , de modo que
def
N = Am ⊆ M é um submódulo isomorfo a A/p. Temos dois casos
para analisar.
Caso N ∩ M � = 0: p ∈ Ass M �� , pois

M �� = M/M � ⊇ (N + M � )/M � = N ∼
= A/p

Caso N ∩ M � �= 0: seja am ∈ N ∩ M � com am �= 0 (a ∈ A). Temos


p ∈ Ass M � pois p = ann(am): claramente ann(am) ⊇ ann(m) = p e,
reciprocamente, se b ∈ ann(am) temos ab ∈ ann(m) = p e portanto
b ∈ p pois por hipótese p é primo e a ∈
/ p = ann(m) ⇐⇒ am �= 0.

12.2.3 Exemplo Considere o Z-módulo Z/(n). É fácil ver diretamente da


definição de primo associado que

Ass Z/(n) = {(p) ∈ Spec Z | p é fator primo de n}


232 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

E, de fato, um elemento a ∈ Z é um divisor de zero de Z/(n) se mdc(a, n) �= 1,


ou seja, se a é múltiplo de algum fator primo p de n.
Nosso próximo passo será mostrar que Ass M é um conjunto finito para
módulos M finitamente gerados sobre anéis noetherianos.
Teorema 12.2.4 Seja A um anel noetheriano e seja M um A-módulo fini-
tamente gerado.
1. (Cadeia Primária) M admite uma cadeia de submódulos
0 = M0 � M1 � · · · � Mn = M
tal que Mi+1 /Mi ∼
= A/pi com pi ∈ Spec A.
2. (Finitude) Ass M é um conjunto finito, mais precisamente, um subcon-
junto dos primos pi em uma cadeia primária de M .
Demonstração:
1. O resultado é verdadeiro para M = 0. Se M �= 0 então pelo teorema an-
terior Ass M �= ∅ e portanto M contém um submódulo M1 ∼ = A/p1 com
p1 ∈ Spec A. Se M1 �= M , podemos repetir o procedimento com M/M1
no lugar de M , obtendo um submódulo M2 de M tal que M2 � M1 e
M2 /M1 ∼= A/p2 com p2 ∈ Spec A. Este processo eventualmente termina
pois M é noetheriano (ver teorema 6.1.6 na página 148), fornecendo a
decomposição pedida.
2. Faremos uma indução no comprimento n da cadeia acima. Se M =
0 então Ass M = ∅ enquanto que se M = A/p, p ∈ Spec A, então
Ass M = {p}. Se n > 1, temos uma sequência exata
0 ✲ M1 ✲ M ✲ M/M1 ✲ 0

e M/M1 admite uma cadeia de comprimento n−1. Assim, por hipótese


de indução, Ass M1 e Ass M/M1 são finitos, logo Ass M ⊆ Ass M1 ∪
Ass M/M1 (teorema 12.2.2 na página 230) é finito também.

12.2.5 Exemplo Seja k um corpo. Seja A = k[x, y] e considere o A-módulo


M = k[x, y]/(x2 , xy). Então Ass M = {(x, y), (x)}. De fato, temos uma
sequência exata de A-módulos

0 ✲ k[x, y] x
✲ k[x, y] ✲ k[x, y] ✲ 0
(x, y) (x2 , xy) (x)
em que o mapa x denota multiplicação por este elemento. Assim, pelo teo-
rema 12.2.2 na página 230, temos
A A
Ass M ⊆ Ass ∪ Ass = {(x, y), (x)}
(x, y) (x)
12.2. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS 233

Por outro lado, é fácil ver que estes 2 primos pertencem a Ass M , uma vez
que (x, y) = ann(x) e (x) = ann(y).

O próximo teorema, juntamente com o fato de que supp M = V (ann M )


para módulos finitamente gerados (ver lema 12.1.2 na página 228), mostra
que intuitivamente os primos associados podem ser pensados como os fatores
primos de ann M .

Teorema 12.2.6 (Suporte e Primos Associados) Seja A um anel no-


etheriano, p ∈ Spec A e seja M um A-módulo finitamente gerado. Então

1.
AssAp Mp = {qAp | q ∈ AssA M, q ⊆ p}

2. �
supp M = V (q)
q∈Ass M

Em particular, Ass M ⊆ supp M e estes dois conjuntos possuem os


mesmos primos minimais.

Demonstração:

1. Se q ∈ AssA M e q ⊆ p, então M contém um submódulo isomorfo a A/q.


Como localização é um funtor exato, preserva injetividade, logo Mp
contém um submódulo isomorfo a Ap /qAp , portanto qAp ∈ AssAp Mp .
Reciprocamente, um primo em AssAp Mp é da forma qAp para algum
ideal primo q ⊆ p. Temos qAp = ann(m/s) para algum m ∈ M e
s ∈ A \ p. Como A é noetheriano, q é finitamente gerado, digamos
q = (a1 , . . . , an ). Assim,
ai �m� ai m 0
∈ qAp = ann ⇐⇒ · = em Mp
1 s 1 s 1
⇐⇒ ∃ti ∈ A \ p tal que ti ai m = 0 em M

Assim, t = t1 . . . tn ∈ A \ p é tal que tqm = 0 em M para todo q ∈ q.


Afirmamos que q = ann(tm), de modo que q ∈ AssA (M ). Claramente
q ⊆ ann(tm). Reciprocamente, se a ∈ ann(tm), então em Ap temos
a/1 ∈ ann(tm/1) = ann(m/s) = qAp pois s/1 e t/1 são unidades em
Ap . Desta forma, a ∈ q e portanto ann(tm) ⊆ q.

2. Pelo teorema 12.2.2 na página 230 e pelo item anterior, temos

p ∈ supp M ⇐⇒ Mp �= 0 ⇐⇒ AssAp Mp �= ∅
⇐⇒ p ⊇ q para algum q ∈ Ass M

o que prova a igualdade acima.


234 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

Observação 12.2.7 Um primo p ∈ Ass M que não é minimal em supp M ,


ou seja, um primo p ∈ Ass M que contém propriamente outro primo em
Ass M , é chamado de primo imerso. Em geral, ninguém gosta deles.
Um caso particular importante ocorre quando o módulo é artiniano e
noetheriano, isto é, tem comprimento finito.
Teorema 12.2.8 Seja A um anel qualquer e M um A-módulo.
1. Se A é noetheriano e M é finitamente gerado, então
len M < ∞ ⇐⇒ todo m ∈ Ass M é maximal
⇐⇒ todo m ∈ supp M é maximal

2. Se A = k[x1 , . . . , xn ] com k um corpo algebricamente fechado então


lenA M = dimk M
Em particular, M é artiniano se, e só se, é de dimensão finita sobre k.
Demonstração:
1. Pelo teorema teorema anterior, se todo primo em Ass M é maximal ou
se todo primo em supp M é maximal, então Ass M = supp M . Assim,
basta mostrar que len M < ∞ se, e só se, supp M consiste apenas em
ideais maximais.
Suponha inicialmente que m = len M < ∞ e seja
M = Mm � Mm � Mm−1 � · · · � M0 = 0
uma série de composição de M . Temos Mi+1 /Mi ∼ = A/mi com mi ma-
ximal (lema 7.2.3 na página 159). Logo, como supp Mi+1 /Mi = {mi },
pela aditividade em sequências exatas (lema 12.1.4 na página 229), te-
mos que
supp M = {m0 , . . . , mm−1 }
consiste em ideais maximais apenas. Reciprocamente, da cadeia primá-
ria do teorema 12.2.4 na página 232, temos novamente pela aditividade
em sequências exatas que
� �
supp M = supp A/pi = V (pi )
0≤i<n 0≤i<n

Logo, se todo primo em supp M é maximal, então todo pi é maximal


e a cadeia primária do teorema 12.2.4 na página 232 é uma série de
composição de M .
2. Como ambos os lados da equação são aditivos em sequências exatas
curtas, é suficiente provar a fórmula quando M é simples, ou seja,
lenA M = 1. Mas neste caso, temos M = A/m com m ∈ Specm A
e como k é algebricamente fechado, pelo Nullstellensatz (teorema 9.3.4
na página 191), temos que M ∼= k e portanto dimk M = 1 também.
12.3. CRITÉRIO DE NORMALIDADE DE SERRE 235

12.3 Critério de normalidade de Serre


Nesta seção, estudaremos duas importantes condições relacionadas à norma-
lidade.
12.3.1 Definição Seja A um domı́nio noetheriano. Dizemos que
(i) A satisfaz a condição R1 (regular em codimensão 1) se Ap é um DVD
para todo p ∈ Spec A com ht p = 1;
(ii) A satisfaz a condição S2 (condição 2 de Serre) se para todo a ∈ A
não nulo o A-módulo A/(a) não possui primos imersos, i.e., Ass A/(a)
consiste exatamente nos primos minimais contendo (a).

Note que do teorema do ideal principal de Krull (corolário 14.3.3 na


página 268), a condição S2 também é equivalente a

p ∈ Ass A/(a) =⇒ ht p = 1

para todo a ∈ A não nulo. Além disso, todo domı́nio noetheriano normal A
satisfaz R1 pelo corolário 10.1.8 na página 202.
O próximo lema fornece uma “versão melhorada” do princı́pio local-global
(teorema 4.2.3 na página 103).
Lema 12.3.2 Seja A um domı́nio noetheriano. Se a, b ∈ A, b �= 0, são tais
que a/b ∈ Ap para todo primo p ∈ Ass A/(b) então a/b ∈ A.

Demonstração: Como a ∈ bAp para todo primo p ∈ Ass A/(b), temos


que a ∈ A/(b) tem imagem 0 pelo mapa natural
A � �A� � Ap
�→ =
(b) (b) p (b)
p∈Ass A/(b) p∈Ass A/(b)

que é injetor pelo teorema 12.2.2 na página 230. Assim, a = 0 em A/(b), i.e.,
a/b ∈ A, como querı́amos.

Teorema 12.3.3 Seja A um domı́nio noetheriano.


1. Se A é normal, então �
A= Ap
ht p=1

2. (Serre) A é normal se, e só se, satisfaz R1 e S2 .

Demonstração: Se A é normal, então A satisfaz R1 e S2 . Já


vimos que A satisfaz R1 (corolário 10.1.8 na página 202). Para mostrar
que A satisfaz S2 , note que pelo teorema 12.2.6 na página 233, dado p ∈
Ass A/(a), temos p ∈ supp A/(a) = V ((a)) e pAp ∈ Ass Ap /(a), assim para
236 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

mostrar que ht p = 1 podemos supor que A é local com ideal maximal p.


Pelo teorema 10.1.6 na página 200, devemos mostrar que p é principal; vamos
copiar a demonstração de v ⇒ iii deste teorema.
Como p ∈ Ass A/(a), existe b ∈ A tal que p = ann(b). Como b · p ⊆ (a),
temos que ab · p ⊆ A é um ideal de A. Se ab · p ⊆ p, então pelo lema 10.1.5
na página 200 terı́amos b/a ∈ A =⇒ b = 0 em A/(a), um absurdo. Logo
b
a · p = A, o que implica p = (a/b), como querı́amos.

Se A satisfaz R1 então o fecho integral de A em Frac A é ht p=1 Ap .
Se f ∈ Frac A é integral sobre A, com mais razão ainda f é integral sobre
Ap para todo p ∈ Spec A com ht p = 1. Como A satisfaz� R1 e todo DVD é
normal (teorema 10.1.6 na página 200), temos f ∈ ht p=1 Ap .

Se A satisfaz S2 então A = ht p=1 Ap . A inclusão�⊆ é óbvia. Recipro-
camente, sejam a, b ∈ A, b �= 0, são tais que a/b ∈ ht p=1 Ap . Como A
satisfaz S2 , todo p ∈ Ass A/(b) tem altura 1, logo a/b ∈ Ap para todo primo
p ∈ Ass A/(b) e portanto a/b ∈ A pelo lema.

12.4 Decomposição Primária


A decomposição primária é uma versão fraca da fatoração em primos.
12.4.1 Definição Seja M um A-módulo e seja p ∈ Spec A. Dizemos que um
submódulo P � M é p-primário se Ass M/P = {p}.
O caso mais importante do teorema acima ocorre quando A é noetheriano,
M = A e N = a é um ideal qualquer. Dado p ∈ Spec A, um ideal q � A
é p-primário se Ass A/q = {p}. Neste caso, como A é noetheriano, temos
(teorema 12.2.6 na página 233 e corolário 4.4.2 na página 109)

V (q) = V (p) ⇐⇒ q = p =⇒ pn ⊆ q ⊆ p
para algum n ≥ 1. A intuição é que um ideal p-primário q “só possui o
fator primo p”. A decomposição primária permitirá escrever qualquer módulo
como interseção de submódulos primários.
12.4.2 Exemplo Seja A = Z e p um número primo. Um ideal (p)-primário
é da forma (pn ) para n ≥ 1.
Se a ∈ Z e a = ±pe11 pe22 . . . perr é a fatoração de a em potências de primos
distintos, temos que
(a) = (pe11 ) ∩ (pe22 ) ∩ · · · ∩ (perr )
é uma decomposição primária de (a), que neste caso particular coincide com
a fatoração de (a) em potências de ideais primos distintos.
Na notação do exemplo anterior, se no próximo lema A = Z e M = Z/(a)
então E((pi )) = Z/(pei i ).
12.4. DECOMPOSIÇÃO PRIMÁRIA 237

Lema 12.4.3 (Teorema Chinês dos Restos Primário) Seja A um anel


noetheriano e M um A-módulo finitamente gerado. Existem A-módulos E(p)
com Ass E(p) = {p} e uma injeção de A-módulos

M �→ E(p)
p∈Ass M

Demonstração: Como M é noetheriano (teorema 6.1.6 na página 148),


para cada p ∈ Ass M podemos escolher um submódulo Q(p) maximal com
a propriedade de que p ∈ / Ass Q(p). Defina E(p) = M/Q(p). Note que
E(p) �= 0 ⇐⇒ M �= Q(p) pois p ∈ Ass M mas p ∈ / Ass Q(p).
Temos Ass E(p) = {p}. De fato, se q �= p é um outro primo, então
q∈/ Ass E(p): caso contrário, E(p) conteria um submódulo M � /Q(p) ∼
= A/q
e da sequência exata
0 ✲ Q(p) ✲ M� ✲ M � /Q(p) ∼
= A/q ✲ 0

terı́amos Ass(M � ) ⊆ Ass Q(p) ∪ {q} (ver teorema 12.2.4 na página 232),
logo p ∈/ Ass(M � ), o que contradiria a maximalidade de Q(p). Assim, como
E(p) �= 0 implica Ass E(p) �= ∅ (teorema 12.2.2 na página 230), devemos ter
Ass E(p) = {p}. �
Finalmente, para mostrar que o mapa natural M �→ p∈Ass M E(p) é inje-
def �
tor, temos que mostrar que N = p∈Ass M Q(p) é trivial. Mas como Ass N ⊆
Ass M e Ass N ⊆ Ass Q(p) (p ∈ Ass M ) (teorema 12.2.2 na página 230)
e p ∈ / Ass Q(p) por construção, temos que Ass N = ∅, logo N = 0, como
querı́amos.

Teorema 12.4.4 (Decomposição primária) Seja A um anel noetheriano


e M um A-módulo finitamente gerado. Então todo submódulo N ⊆ M pode
ser escrito como uma intersecção

N= Q(p)
p∈Ass M/N

em que cada Q(p) ⊆ M é um submódulo p-primário de M .


Demonstração: Pelo lema, temos uma injeção de A-módulos

M/N �→ E(p)
p∈Ass M/N

em que Ass E(p) = {p}. Defina Q(p) como o kernel da composição M →


M/N → E(p). Claramente N será a interseção dos Q(p)’s. Note que Q(p) �=
M , pois caso contrário M/N seria isomorfo a um submódulo do produto
acima com� um fator a menos, o que significaria Ass M/N estaria contido
na união Ass E(p) (teorema 12.2.4 na página 232) com um fator a menos,
um absurdo. Temos ainda um morfismo injetor induzido M/Q(p) �→ E(p) e
assim Ass M/Q(p) ⊆ {p}. Como M/Q(p) �= 0, temos Ass M/Q(p) = {p}, ou
seja, Q(p) é p-primário.
238 CAPÍTULO 12. DIVISORES DE ZERO E PRIMOS ASSOCIADOS

Observação 12.4.5 A decomposição acima não é necessariamente única.

12.5 Exercı́cios
12.1 Seja A um anel qualquer e seja M um A-módulo noetheriano. Mostre
que A/ ann(M ) é um anel noetheriano.

12.2 Seja M um A-módulo finitamente gerado. Prove:


(a) Se a é um ideal de A, então

supp(M/aM ) = supp M ∩ V (a)

(b) Se P e Q são submódulos de M , então

M M M
supp = supp ∪ supp
P ∩Q P Q

12.3 Seja A um anel reduzido. Mostre que Ass A consiste nos primos mi-
nimais de A e portanto os divisores de zero de A são exatamente aqueles
contidos em algum primo minimal de A.

12.4 Seja A = C[x, y] e M = C[x, y]/(x3 y 4 ), visto como A-módulo. Deter-


mine Ass(M ) e escreva sua cadeia primária.
Parte IV

Burlesque

239
Capı́tulo 13

Anéis completos

Se você acha que Análise é coisa só para doido, engana-se! Neste capı́tulo,
vamos empregar ideais analı́ticas no estudo de anéis comutativos. Definire-
mos a chamada topologia a-ádica, que generaliza para um anel qualquer a
topologia p-ádica nos inteiros (definição 2.4.2 na página 63). Muito embora
neste caso mais geral não dispomos de uma métrica como no caso p-ádico,
veremos que ainda sim é possı́vel definir o conceito de sequências de Cauchy,
de anel completo bem como a operação de completamento com respeito à
topologia a-ádica. Geometricamente, o completamento corresponde a uma
“super-localização”, algo similar à noção de vizinhança tubular em topologia
diferencial.
Para anéis completos, generalizaremos ainda o lema de Hensel e veremos
o importante teorema de preparação de Weierstraß, que é uma das principais
ferramentas no estudo do anel de séries formais. Como aplicação, mostrare-
mos que o anel k�x1 , . . . , xn � é um DFU para k um corpo qualquer.

13.1 Topologia a-ádica e o teorema de Artin-


Rees
Seja A um anel e a ⊆ um ideal. Vamos definir uma topologia sobre A na qual
dois elementos x, y ∈ A estão “próximos” se x − y ∈ an para n ∈ N “grande”.
Para isto, considere as classes laterais das potências de a:
x + an (x ∈ A, n ∈ N)
Note que se x, y ∈ A e m ≥ n então

∅ ou
(x + am ) ∩ (y + an ) =
x + am

pois se z ∈ (x+am )∩(y +an ) então x+am = z +am ⊆ z +an = y +an . Assim,
os conjuntos acima formam uma base de abertos para uma topologia de A,

241
242 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

a chamada topologia a-ádica. É fácil mostrar que as operações de soma e


produto são contı́nuas com relação a esta topologia utilizando as relações

(x + an ) + (y + an ) = x + y + an e (x + an ) · (y + an ) ⊆ x · y + an

para x, y ∈ A e n ∈ N. �
Temos que A será Hausdorff se, e somente se, �n≥0 an = (0): a neces-
sidade é clara já que dois elementos distintos de n≥0 an não podem ser
separados por vizinhanças abertas básicas disjuntas; para a suficiência, se
x �= y são dois elementos de A e n ∈ N é tal que x − y ∈ / an então x + an e
n
y + a são vizinhanças abertas disjuntas de x e y, respectivamente.
Da mesma forma, dado um A-módulo M , os conjuntos da forma x + an M
(x ∈ M , n ∈ N) definem a topologia a-ádica de M . Novamente é fácil ver
que a soma e multiplicação por�A-escalar são contı́nuas nesta topologia e que
M será Hausdorff se, e só se, n≥0 an M = 0.
O próximo importante teorema diz que, no caso noetheriano, a topologia
a-ádica de um submódulo N ⊆ M coincide com a topologia induzida pela
topologia a-ádica de M .
Teorema 13.1.1 (Artin-Rees) Sejam A um anel noetheriano, a ⊆ A um
ideal e M um A-módulo finitamente gerado. Seja N um submódulo de M .
Então existe um r ∈ N tal que para todo n ≥ r
� �
(an M ) ∩ N = an−r · (ar M ) ∩ N

Em particular, para todo n grande o suficiente,

an N ⊆ (an M ) ∩ N ⊆ an−r N,

logo a topologia a-ádica em N é a mesma que a induzida pela topologia a-ádica


de M .

Demonstração: Considere o anel graduado Ba (A)


def

Ba (A) = an = A ⊕ a ⊕ a 2 ⊕ · · ·
n≥0

Este anel é chamado de álgebra do blow-up ou álgebra de Rees de a.


Temos também o Ba (A)-módulo graduado Ba (M )
def

Ba (M ) = an M = M ⊕ aM ⊕ a2 M ⊕ · · ·
n≥0

Afirmamos que o anel Ba (A) é noetheriano e o módulo Ba (M ) é finitamente


gerado sobre Ba (A). De fato, sejam a1 , . . . , an geradores de a. Temos um
morfismo sobrejetor de A-álgebras graduadas

φ : A[x1 , . . . , xn ] � Ba (A)
xi �→ (0, ai , 0, 0, . . .)
13.1. TOPOLOGIA A-ÁDICA E O TEOREMA DE ARTIN-REES 243

Logo Ba (A) é finitamente gerada sobre A e portanto é noetheriana também.


Por outro lado, se M = Am1 +· · ·+Amd , então Ba (M ) é gerada sobre Ba (A)
pelos elementos (mi , 0, 0, . . .), 1 ≤ i ≤ d. Desta forma, Ba (M ) é um módulo
noetheriano. � �
A inclusão (an M ) ∩ N ⊇ an−r · (ar M ) ∩ N é clara. Para mostrar a
inclusão oposta, considere o submódulo de Ba (M )

def

P = (an M ) ∩ N
n≥0

Como Ba (M ) é noetheriano, P é finitamente gerado sobre Ba (A). Fixe um


conjunto de geradores homogêneos e seja r o grau máximo de um elemento
deste conjunto. Então, para n ≥ r,

Pn = Ba (A)n−i · Pi =⇒
0≤i≤r
� � � � �
(an M ) ∩ N = an−i · (ai M ) ∩ N ⊆ an−r · (ar M ) ∩ N
0≤i≤r

Um importante corolário é o

Teorema 13.1.2 (Intersecção de Krull) Seja A um anel noetheriano e


a � A um ideal próprio. Se A é local ou se A é um domı́nio, então

an = (0)
n≥0


Demonstração: Seja b = n≥0 an . Pelo teorema de Artin-Rees, existe c
tal que, para n � 0, b = b ∩ an+c ⊆ ban , isto é, b = ban .
Se A é local, então b = ban =⇒ b = 0 pelo lema de Nakayama (teo-
rema 4.5.5 na página 112). Por outro lado, se A é um domı́nio, localizando
em um ideal maximal m ⊇ a, obtemos bm = 0 em Am e, como A é domı́nio,
o mapa de localização é injetor e portanto de b ⊆ bm temos b = 0.

Note que nestes dois casos, a topologia a-ádica é Hausdorff.

Observação 13.1.3 Geometricamente, o esquema1 Proj Ba (A) é o blow-up


de Spec A com centro no subesquema fechado Spec A/a, daı́ o nome de álgebra
de blow-up. Por exemplo, se A = C[x, y] e a = (x, y), o ideal correspon-
dendo à “origem” de C2 , temos um isomorfismo de C[x, y]-álgebras graduadas
1 veja o último capı́tulo para ficar dentro do esquema!
244 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

(exercı́cio!)

C[x, y, w, z] ≈✲
B(x,y) (C[x, y])
(yw − xz)
w �→ (0, x, 0, 0, . . .)
z �→ (0, y, 0, 0, . . .)

e a variedade definida por yw − xz = 0 é o blow-up usual do plano C2 na


origem.

13.2 Anéis completos e henselianos


Par dar sequência ao assunto, vamos generalizar as noções usuais de limite e
sequência de Cauchy para a topologia a-ádica.

13.2.1 Definição Seja A um anel e a ⊆ A um ideal qualquer.

1. Uma sequência (an )n∈N em A converge para um elemento a ∈ A na


topologia a-ádica se

∀d ∈ N, ∃n0 ∈ N tal que n ≥ n0 =⇒ an − a ∈ ad

(Em geral, uma sequência pode convergir para mais de um elemento se


a topologia for não Hausdorff).

2. Uma sequência (an )n∈N em A é uma sequência de Cauchy na topo-


logia a-ádica se

∀d ∈ N, ∃n0 ∈ N tal que m, n ≥ n0 =⇒ am − an ∈ ad

3. Um anel A é completo com relação à topologia a-ádica se toda a


sequência de Cauchy em A converge na topologia a-ádica.

O caso mais importante para nós será o de um anel local (A, m, k) que é
completo com relação à topologia m-ádica. Neste caso, diremos simplesmente
que (A, m, k) é um anel local completo.

13.2.2 Exemplo Zp é um anel local completo, sendo o completamento de


Z com relação à norma p-ádica (teorema 2.4.3 na página 64).

13.2.3 Exemplo Qualquer anel local (A, m, k) artiniano é completo: de


fato, como neste caso m é nilpotente (teorema 7.3.1 na página 165), uma
sequência é de Cauchy se, e só se, é eventualmente constante e sequências
eventualmente constantes são obviamente convergentes. Em particular, cor-
pos são exemplos de anéis locais completos.
13.2. ANÉIS COMPLETOS E HENSELIANOS 245

13.2.4 Exemplo Se (A, m, k) é um anel local completo então o mesmo vale


para (A�x�, mA�x� + (x), k). De fato, por indução, é fácil ver que
� �n � � � �

mA�x� + (x) = ai xi ∈ A�x� � ai ∈ mn−i para i = 0, 1, . . . , n − 1
i≥0

� (n)
Assim, dada uma sequência (fn (x))n∈N com fn (x) = i≥0 ai xi ∈ A�x�,
ela será de Cauchy em A�x� se, e só se, para cada i ∈ N fixado, a sequência
(n)
(ai )n∈N é de Cauchy em A. Se este é o caso, como A é completo existe
(∞) (n)
ai ∈ A para a qual (ai )n∈N converge, daı́ é fácil ver que (fn (x))n∈N
def � (∞)
converge para f∞ (x) = i≥0 ai ti .
Em particular, por indução em n temos que o anel A�x1 , . . . , xn � é um
anel local completo se A for artiniano ou A = Zp .

Queremos generalizar o lema de Hensel (teorema 2.4.4 na página 66) para


um anel completo qualquer. É interessante neste ponto introduzir uma classe
um pouco maior de anéis.

Teorema 13.2.5 (Anéis henselianos) Seja (A, m, k) um anel local e de-


note redução módulo m por uma barra. As seguintes condições sobre A são
equivalentes:

(i) (Levantamento de fatorações separáveis) Se f ∈ A[x] é um polinômio


mônico cuja redução módulo m se fatora como f = gh com g, h ∈ k[x]
mônicos e primos entre si, então existem levantamentos mônicos g, h ∈
A[x] de g e h tais que f = gh.

(ii) (Levantamento de fibras) Qualquer A-álgebra finita B é um produto de


anéis locais.

Antes da prova, alguns comentários. Seja B uma álgebra finita sobre um


anel local (A, m, k) qualquer (não precisamos da completude ainda). Então
B é semi-local com Specm B = Spec(B ⊗A k) (corolário 8.2.4 na página 177);
além disso, se B = B1 ×B2 é decomponı́vel (Bi �= 0 para i = 1, 2), então cada
fator Bi é finito sobre A (já que Bi é um quociente de B) e assim todo ideal
maximal em Bi está sobre m; com isto, a decomposição Spec B = Spec B1 �
Spec B2 se restringe a uma decomposição Specm B = Specm B1 � Specm B2 .
Desta forma, na condição (ii) do teorema acima, o morfismo natural

B

✲ Bn
n∈Specm B

é um isomorfismo (que é um “levantamento” da decomposição correspon-


dente do anel artiniano B ⊗A k, c.f. teorema 7.3.2 na página 166), de modo
que temos uma bijeção natural entre os primos da fibra de m e os fatores
indecomponı́veis de B; geometricamente, este isomorfismo se traduz em uma
246 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

bijeção entre as componentes conexas de Spec B e seus pontos fechados (teo-


rema 4.4.3 na página 109). Note ainda que como cada fator Bn é finito sobre
A, qualquer anel finito sobre Bn é finito sobre A, logo estes fatores também
satisfazem as condições equivalentes do teorema.

Demonstração:
(i) ⇒ (ii): por indução no número de ideais maximais, basta mostrarmos
que se qualquer A-álgebra finita B tem a seguinte propriedade:
| Specm B| > 1 =⇒ B é decomponı́vel (∗)
Geometricamente: se há mais de um ponto fechado então Spec B é desconexo
(teorema 4.4.3 na página 109). � �
Inicialmente, tratemos o caso especial B = A[x]/ f (x) com f (x) ∈ A[x]
� �
mônico. Se B não é local, o mesmo ocorre para B ⊗A k = k[x]/ f (x) , ou
seja, existem pelo menos dois fatores irredutı́veis não associados que dividem
f (x) e assim podemos escrever uma fatoração não trivial f = gh com g, h ∈
k[x] mônicos e primos entre si; por hipótese, existem levantamentos mônicos
g, h ∈ A[x] tais que f = gh, de modo que A[x]/(g, h) é finito sobre A. Por
Nakayama (teorema 5.2.5 na página 127),
A[x] k[x] NAK
⊗A k = = 0 =⇒ (g, h) = A[x]
(g, h) (g, h)
e assim pelo teorema chinês dos restos temos a decomposição não trivial
A[x] A[x] A[x] A[x]
B= = = ×
(f ) (gh) (g) (h)
Para o caso geral, note primeiro que se B tem a propriedade (∗), o mesmo
vale para qualquer quociente de B. Assim, para qualquer b ∈ B, a subálgebra
A[b] ⊆ B satisfaz (∗), já que b é raiz de um polinômio mônico f (x) ∈ A[x] (te-
orema� 8.1.5� na página 173) e portanto temos uma sobrejeção de A-álgebras
A[x]/ f (x) � A[b] (dada por x �→ b). Agora, sendo n1 �= n2 dois ideais
maximais de B, basta escolher b ∈ B tal que b ∈ n1 \ n2 pois neste caso
n1 ∩ A[b] �= n2 ∩ A[b] (b pertence a exatamente um destes ideais) e portanto
| Specm A[b]| > 1; assim, A[b] será decomponı́vel, isto é, haverá um idempo-
tente não trivial e ∈ A[b], que também será um idempotente não trivial em
B (geometricamente: Spec A[b] é desconexo, logo o mesmo vale para Spec B
já que B ⊇ A[b] é uma extensão finita e portanto Spec B � Spec A[b] é
sobrejetor pelo teorema 8.2.3 na página 176).
� �
(ii) ⇒ (i): Considere a A-álgebra B = A[x]/ f , que é finita sobre A pois f
é mônico por hipótese. Assim, B é igual ao produto de suas localizações com
relação aos seus ideais maximais. Se f = g · h é uma fatoração não trivial em
k[x] com g e h primos entre si, a decomposição
k[x] TCR k[x] k[x]
B ⊗A k = = ×
(f ) (g) (h)
13.2. ANÉIS COMPLETOS E HENSELIANOS 247

dá origem a uma decomposição B = B1 × B2 com B1 ⊗A k = k[x]/(g)


e B2 ⊗A k = k[x]/(h), em que B1 (respectivamente B2 ) é o produto das
localizações de B com relação aos ideais maximais da fibra Spec(B ⊗A k) que
dividem g (respectivamente h).
Seja m = deg g. Como B1 é finito sobre A, pelo lema de Nakayama
(teorema 5.2.5 na página 127), as imagens de 1, x, x2 , . . . , xm−1 geram B1
sobre A, já que o mesmo vale para B1 ⊗A k = k[x]/(g). Assim, escrevendo
xm como combinação A-linear de potências menores de x ∈ B1 , temos que
existe g(x) ∈ A[x] mônico com deg g = m = deg g tal que g(x) = 0 em B1 .
Em particular, g tem imagem nula em B1 ⊗A k = k[x]/(g) e como g ∈ A[x]
e g ∈ k[x] são mônicos de mesmo grau, temos que g é um levantamento de
g. Da mesma forma, existe um levantamento mônico h ∈ A[x] de h ∈ k[x]
de mesmo grau com imagem trivial em B2 . Como gh tem imagem 0 em
B1 × B2 = B = A[x]/(f ), temos f | gh, logo f = gh pois ambos os lados são
mônicos e têm mesmo grau.

13.2.6 Definição Um anel local (A, m, k) é dito henseliano se satisfaz as


condições equivalentes do teorema anterior.

Teorema 13.2.7 (Hensel) Todo anel local completo (A, m, k) é henseliano.

Demonstração: Denote por uma barra a redução módulo m. Seja f ∈


A[x] mônico e seja f = g 1 · h1 uma fatoração em k[x] com g 1 , h1 mônicos
e primos entre si. Escolha levantamentos g1 , h1 ∈ A[x] também mônicos
com deg g1 = deg g 1 e deg h1 = deg h1 . Sendo A um anel m-adicamente
completo, para mostrar que f = gh em A[x] com g ≡ g1 (mod mA[x]) e
h ≡ h1 (mod mA[x]), basta encontrar uma sequência de polinômios mônicos
gn , hn ∈ A[x] com deg gn = deg g 1 e deg hn = deg h1 tais que

f (x) ≡ gn (x) · hn (x) (mod mn A[x]) (n ∈ N)


n
gn (x) ≡ gm (x) (mod m A[x]) (m ≥ n)
n
hn (x) ≡ hm (x) (mod m A[x]) (m ≥ n)

o que faremos por indução. Se os n-ésimos termos já estão definidos, queremos
encontrar δn (x), �n (x) ∈ mn A[x] com deg δn (x) < deg g 1 e deg �n (x) < deg h1
a fim de definir

gn+1 (x) = gn (x) + δn (x) hn+1 (x) = hn (x) + �n (x)

def
Seja tn (x) = f (x) − gn (x)hn (x) ∈ mn A[x], um polinômio de grau estrita-
mente menor do que deg f . A condição f (x) ≡ gn (x) · hn (x) (mod mn A[x])
se escreve

�n (x) · gn (x) + δn (x) · hn (x) ≡ f (x) − gn (x) · hn (x) (mod mn+1 A[x])
� �� �
tn (x)
248 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

Para encontrar δn e �n satisfazendo a condição acima, note que como


(g n , hn ) = (g 1 , h1 ) = (1) em k[x], existem a, b ∈ A[x] tais que

a(x) · gn (x) + b(x) · hn (x) ≡ 1 (mod mA[x])

e portanto
� � � �
a(x)tn (x) · gn (x) + b(x)tn (x) · hn (x) ≡ tn (x) (mod mn+1 A[x])

Gostarı́amos de definir �n = atn e δn = btn , mas ainda precisamos acertar os


graus. Sendo q, r ∈ A[x] o quociente e resto da divisão de atn por hn (que é
mônico, não esqueça!) temos
� �
r(x) · gn (x) + b(x)tn (x) + q(x)gn (x) · hn (x) ≡ tn (x) (mod mn+1 A[x])

Como deg tn < deg f e deg rgn < deg hn +deg gn = deg f , o grau do polinômio
btn +qgn mod mn+1 A[x] é estritamente menor do que deg gn = deg g 1 . Assim,
basta tomar �n = r e δn ≡ btn + qgn (mod mn+1 A[x]) com deg δn < deg g 1 .

Observação 13.2.8 Pode-se demonstrar que ser henseliano é ainda equiva-


lente a quaisquer das seguintes condições:
(iii) (Levantamento de raı́zes simples) Se f (x) ∈ A[x] é um polinômio mô-
nico tal que f (x) ∈ k[x] possui uma raiz simples α ∈ k (i.e. f (α) = 0

e f (α) �= 0) então f (x) possui uma raiz a ∈ A tal que a = α.
(iv) (Levantamento de pontos não singulares) Sejam m ≤ n e f1 , . . . , fm ∈
A[x1 , . . . , xn ]. Se a = (α1 , . . . , αn ) ∈ k n é tal que (a é um ponto não
singular do conjunto algébrico definido pelos f i ’s)
(a) f i (a) = 0 para todo i = 1, . . . , m e
� ¯ �
∂ fi
(b) m = rankk ∂x j
(a) 1≤i≤m
1≤j≤n

então a pode ser levantado para um ponto ã = (a1 , . . . , an ) ∈ An com


αj = aj (1 ≤ j ≤ n) e fi (ã) = 0 para todo 1 ≤ i ≤ m.
As provas das equivalências utilizam o teorema principal de Zariski, cuja
demonstração não é coberta neste livro. Veja [Mil80], theorem I.4.2, p.32
para maiores detalhes.

13.3 Completamento de anéis noetherianos


Dado um anel A e um ideal a ⊆ A, gostarı́amos de associar a A o “menor”
� no qual A é, de certa forma, denso. A maneira
anel a-dicamente completo A

usual é tomar A como o conjunto de sequências de Cauchy em A módulo
13.3. COMPLETAMENTO DE ANÉIS NOETHERIANOS 249

a relação de equivalência que identifica (an )n∈N e (bn )n∈N se para qualquer
d ∈ N existe n0 ∈ N tal que n ≥ n0 =⇒ an − bn ∈ ad . Nossa experiência
anterior com Zp (teorema 2.4.3 na página 64) sugere também a construção
de A� via o limite projetivo

� def A
A = proj lim n
n∈N a
� � � �

= (an mod an )n∈N ∈ A/an � an ≡ am (mod am ) para todo n ≥ m
n∈N

De fato, mutatis mutandis2 a mesma prova que vimos para o anel Zp no teo-
rema 2.4.3 na página 64 mostra que as duas construções acima estão natural-
mente em bijeção: um elemento (an mod an )n∈N ∈ proj limn∈N A/an define a
sequência de Cauchy (an )n∈N em A e, reciprocamente, dada uma sequência
de Cauchy (an )n∈N em A, temos que para cada d ∈ N fixado a sequência
(an mod ad )n∈N é eventualmente constante; denotando por a∞ mod ad este
valor constante, obtemos uma tupla coerente quando variamos d, isto é, um
elemento (a∞ mod ad )d∈N ∈ proj limd∈N A/ad . Deixamos a cargo do leitor
mostrar que os mapas acima não dependem de representantes de classes e
são inversos um do outro. Daqui para frente, a definição oficial que utiliza-
remos do completamento, aquela estabelecida pelo Comitê Internacional de
Pesos e Medidas3 , será a do limite projetivo.
13.3.1 Definição Sejam A um anel e a ⊆ A um ideal e seja M um A-
módulo. Definimos o completamento a-ádico de A como o anel

� = proj lim A
A
n∈N an

O completo a-ádico de M é o A-módulo

� = proj lim M
M
n∈N an M

Observe que A � é naturalmente uma A-álgebra via o morfismo “diagonal”



A → A, que leva um elemento a ∈ A na “tupla constante” (a mod an )n∈N .
Note ainda que, pelas propriedades funtoriais do limite projetivo, completa-

mento é um funtor da categoria de A-módulos para a categoria de A-módulos.
� = A�x� pela
13.3.2 Exemplo O completamento (x)-ádico de A[x] é A[x]
proposição 2.1.1 na página 32.
De agora em diante, trataremos apenas o caso noetheriano, que além de
ser o mais bem comportado é o mais importante. Por exemplo, assim como
a localização, temos
2 ocus pocus, abracadabra!
3 que 1
também estabeleceu a definição do segundo como 180 do tempo necessário para
o cozimento a 1 atmosfera e 100◦ C do miojo oficial guardado em sua sede em Sèvres,
Hauts-de-Seine, França.
250 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

Teorema 13.3.3 (Completamento é funtor exato) Seja A um anel no-


etheriano e seja a ⊆ A um ideal. Se

0 ✲ M ✲ N ✲ P ✲ 0

é uma sequência exata de A-módulos finitamente gerados, então a sequência

0 ✲ M
� ✲ N
� ✲ P� ✲ 0

dos completamentos a-ádicos também é exata. Em particular, se M ⊆ N são


módulos finitamente gerados, M � pode ser visto como A-submódulo
� � e
de N
�) = N
(N/M � /M
�.

Demonstração: Podemos supor que M ⊆ N e que P = N/M , de modo


que temos sequências exatas (n ∈ N)

✲ M an N + M ✲ N ✲ N P ✲ 0
0 = = n
M ∩ an N an N an N an N + M a P
que determinam uma sequência de limites projetivos

✲ proj lim M ✲ N
� ✲ P� ✲ 0
0 (∗)
n∈N M ∩ an M

Assim, basta mostrar que


A sequência (∗) é exata: a sequência é claramente exata à esquerda,
� → P� é sobrejetora. Para isto, dado um
assim falta apenas mostrar que N
elemento (yn mod a N + M )n∈N ∈ P� (yn ∈ N ), definiremos indutivamente
n

uma sequência xn ∈ N tal que

xn ≡ xn−1 (mod an−1 N ) e y n ≡ xn (mod an N + M ) (n ≥ 1)

Tome x0 = y0 e suponha que já tenhamos definido o n-ésimo termo da


sequência satisfazendo as condições acima; como

yn+1 − xn = (yn+1 − yn ) − (xn − yn ) ∈ an N + M

temos que existe m ∈ M tal que yn+1 − xn + m ∈ an N , logo basta definir


xn+1 = yn+1 + m.
O mapa natural

� = proj lim M
π: M

✲ proj lim M
n∈N an M n∈N M ∩ an N

é um isomorfismo: por Artin-Rees (teorema 13.1.1 na página 242), existe


uma constante r tal que

M ∩ an N ⊆ an−r M (n ≥ r)
13.3. COMPLETAMENTO DE ANÉIS NOETHERIANOS 251

Assim, se (xn mod an M )n∈N ∈ ker π (xn ∈ M ), então xn ∈ M ∩ an N =⇒


xn ∈ an−r M para todo n ≥ r, o que implica xn ≡ xn+r ≡ 0 (mod an M )
para todo n ∈ N, logo ker π é trivial e π é injetor.
Agora seja (yn mod M ∩an N )n∈N ∈ proj limn∈N M/(M ∩an N ) (yn ∈ M ).
Novamente pelo teorema de Artin-Rees

yn+r+1 ≡ yn+r (mod an M ) e yn+r ≡ yn (mod M ∩ an N ) (n ∈ N)

de modo que (yn+r mod an M )n∈N é uma pré-imagem do elemento dado, mos-
trando que π é sobrejetor também.

Teorema 13.3.4 Sejam A um anel noetheriano, a ⊆ A um ideal e M um A-


�eM
módulo finitamente gerado. Denote por A � os completamentos a-ádicos
de A e M , respectivamente. Então

1. O mapa natural

M ⊗A A

✲ M

é um isomorfismo.
� é plano sobre A.
2. A

3. � � para todo ideal b ⊆ A.


b = bA

4. se a = (a1 , . . . , ar ) então

�∼ A�x1 , . . . , xr �
A =
(x1 − a1 , . . . , xr − ar )

� também é noetheriano.
e portanto A

Demonstração:

1. Vamos usar a técnica de “devissagé” (teorema 6.3.3 na página 153). O


resultado é claro se M é livre de posto finito já que A �
�m = (A m ). Como

M é um módulo finitamente gerado sobre um anel noetheriano A, é de


presentação finita sobre A; seja Am → An → M → 0 uma sequência
exata e considere o seguinte diagrama comutativo


Am ⊗ A A �
An ⊗A A �
M ⊗A A 0
≈ ≈


A m �n
A �
M 0
252 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

A linha de cima é exata pois − ⊗A A � é um funtor exato à direita,


enquanto a linha inferior é exata pelo teorema anterior. Como as duas
flechas verticais da esquerda são isomorfismos, o mesmo ocorre para a
flecha vertical da direita.

2. Segue do item anterior e do teorema anterior.

� ≈✲ bA
3. Pelo item anterior, o mapa natural b ⊗A A � é um isomorfismo.
� �
Mas pelo item (1), temos b ⊗A A = b e o resulado segue.

4. Seja b = (x1 − a1 , . . . , xr − ar ) ⊆ A[x1 , . . . , xr ]. Temos uma sequência


exata de A[x1 , . . . , xr ]-módulos

0 → b → A[x1 , . . . , xr ] → A → 0

em que xi age sobre a ∈ A via xi · a = ai · a. Seja c = (x1 , . . . , xr ) ⊆


A[x1 , . . . , xr ]. Denotando por um chapéu o completamento c-ádico, pelo
teorema anterior temos uma sequência exata

0→� �→0
b → A�x1 , . . . , xr � → A

e, além disso, � b = (x1 − a1 , . . . , xr − ar ) ⊆ A�x1 , . . . , xr � pelo item


anterior. Como A/(cn A) = A/an , o completamento c-ádico de A visto
como A[x1 , . . . , xr ]-módulo coincide com o completamento a-ádico de
A e assim temos o isomorfismo pedido.
Por fim, como A é noetheriano, A�x1 , . . . , xr � é noetheriano pelo teo-
rema da base de Hilbert (teorema 6.2.1 na página 149) e portanto A � é
noetheriano também.

Corolário 13.3.5 Sejam A um anel noetheriano e a ⊆ A um ideal. Denote


� o completamento a-ádico de A. Então A
por A � é �
a-adicamente completo.

Demonstração: O ponto importante a ser notado é que, pelo teorema


anterior, para todo d ∈ N temos �
a d = ad A �
� = (a d ) e portanto

� �
ad = (a d ) = {(a mod an )
n
� i
n∈N ∈ A | ai ≡ 0 (mod a ) para i = 0, 1, . . . , d}

Assim, uma sequência (b̂n )n∈N ∈ A � com b̂n = (a(n) mod ai )i∈N é de Cauchy
i
a-ádica se, e só se, para cada d ∈ N existe n0 ∈ N tal que
na topologia �
(m) (n)
m, n ≥ n0 =⇒ ad ≡ ad (mod ad ) de modo que existe um valor estável
(∞)
ad mod ad . Variando d, obtemos uma tupla coerente, i.e., um elemento de
� que é um limite da sequência (b̂n )n∈N .
A,
13.4. TEOREMA DE PREPARAÇÃO DE WEIERSTRASS 253

Geometricamente, o completamento funciona como uma “super-localiza-


ção”, capaz de desmembrar “ramos distintos” passando por um ponto.
13.3.6 Exemplo Seja k um corpo com char k �= 2. Então o completamento
de A = k[x, y]/(y 2 − x2 (x + 1)) com relação ao ideal maximal m = (x, y) é

�= k�x, y�
A
(y 2 − x2 (x + 1))

Note que embora A seja um domı́nio (i.e., a curva y 2 = x2 (x + 1) é irre-


� possui dois ideais primos minimais: de fato, pelo lema de Hensel,
dutı́vel) A
o polinômio T 2 − (x + 1) ∈ k�x�[T ] possui duas raı́zes ±u(x) ∈ k�x�, de modo
que

y 2 − x2 (x + 1) = (y − x · u(x)) · (y + x · u(x)) em k�x, y�

Estes dois fatores correspondem aos dois “ramos” de y 2 = x2 (x + 1) passando


pela origem (0, 0).

13.4 Teorema de Preparação de Weierstraß


Nesta seção, veremos o importante teorema de preparação de Weierstraß, que
permite reduzir questões de séries formais para polinômios. Começamos com
uma versão do lema de Nakayama para anéis completos, em que não temos
a hipótese de o módulo ser finitamente gerado.
Lema 13.4.1 (Nakayama Completo) Seja A um anel a-dicamente � com-
pleto (a ⊆ A um ideal) e seja M um A-módulo a-separado, i.e., n≥0 an M =
0. Sejam ω1 , . . . , ωr ∈ M tais que suas imagens ω 1 , . . . , ω r geram M/aM so-
bre A/a. Então
M = Aω1 + · · · + Aωr

Demonstração: Por hipótese, temos

M = Aω1 + · · · + Aωr + aM (∗)

Seja x ∈ M qualquer. Por (∗), podemos escrever

x = a01 ω1 + · · · + a0r ωr + y1 (y1 ∈ aM, a0j ∈ A)

Como y1 é uma combinação linear de elementos de M com coeficientes em a,


novamente por (∗) temos

y1 = a11 ω1 + · · · + a1r ωr + y2 (y2 ∈ a2 M, a1j ∈ a)

Indutivamente, obtemos

yi = ai1 ω1 + · · · + air ωr + yi+1 (yi+1 ∈ ai+1 M, aij ∈ ai )


254 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

e portanto, para todo n ∈ N,


� � � � � �
x= ai1 · ω1 + · · · + ar1 · ωr + yn+1
0≤i≤n 0≤i≤n

Para cada j = 1, . . . , r fixado, as somas parciais 0≤i≤n aij formam uma
sequência de Cauchy na topologia a-ádica; como A é completo, existe âj ∈ A
para o qual estas somas convergem. Vamos mostrar que

x = â1 ω1 + · · · + âr ωr

Suponha por absurdo que não. Como M é a-separado, existe d ∈ N tal que

/ ad M
(â1 ω1 + · · · + âr ωr ) − x ∈

Escolha n ≥ d suficientemente grande tal que



âj − aij ∈ ad para todo j = 1, . . . , r
0≤i≤n

Assim, como n ≥ d temos yn+1 ∈ an+1 M ⊆ ad M e portanto

(â1 ω1 + · · · + âr ωr ) − x
� � � � � �
= â1 − ai1 · ω1 + · · · + âr − ar1 · ωr − yn+1 ∈ ad M
0≤i≤n 0≤i≤n

o que é um absurdo.

Teorema 13.4.2 (Preparação de Weierstraß) Sejam (A, m, k) um anel


local noetheriano completo e

f (x) = an xn ∈ A�x� \ mA�x� (an ∈ A)
n≥0
� �
Seja r ∈ N mı́nimo tal que ar ∈/ m. Então A�x�/ f (x) é livre de posto r
sobre A; uma A-base é dada por

1 mod f (x), x mod f (x), x2 mod f (x), . . . , xr−1 mod f (x)


� �
Demonstração: Seja M = A�x�/ f (x) . Temos

M k�x� k�x�
= M ⊗A k = � � = r = k ⊕ kx ⊕ kx2 ⊕ · · · ⊕ kxr−1
mM f (x) (x )

�é finita sobre �k.� Como


� M é um anel local noetheriano com ideal maximal
mA�x� + (x) / f (x) , que contém mM , temos que M é m-separado pelo
teorema de interseção de Krull (teorema 13.1.2 na página 243). Logo, pelo
13.4. TEOREMA DE PREPARAÇÃO DE WEIERSTRASS 255

Nakayama completo, temos que as imagens de 1, x, . . . , xr−1 geram M sobre


A. Para mostrar que estes elementos são linearmente independentes sobre A,
suponha que haja uma relação

c0 + c1 x + · · · + cr−1 xr−1 = f (x)g(x) (ci ∈ A, g ∈ A[x])


� j
Escreva g(x) = j≥0 bj x (bj ∈ A). Analisando a relação acima módulo
m, obtemos que ci ∈ m para todo i = 0, . . . , r − 1 e bj ∈ m para todo
j ≥ 0. Analisando a relação módulo m2 temos agora que ci ∈ m2 para todo
i = 0, . . . , r − 1 e bj ∈ m2 para todo j ≥ 0. Procedendo desta forma, temos
que � 13.1.2
ci ∈ mn = (0) (i = 0, . . . , r − 1)
n≥0

o que mostra que as imagens de 1, x, . . . , xr−1 em M formam uma A-base


deste módulo.

Corolário 13.4.3 Na notação do teorema anterior, f (x) ∈


/ mA�x� é associ-
ado no anel A�x� a um único polinômio mônico em x. Este polinômio tem a
forma
g(x) = xr + br−1 xr−1 + · · · + b0 (bi ∈ m)
e é chamado de polinômio de Weierstraß associado a f (x).

Demonstração: Se g(x) ∈ A[x] é um polinômio mônico associado a f (x)


em A�x�, ou seja, se g(x) = f (x) · u(x) para algum u(x) ∈ A�x�× , analisando
esta última igualdade módulo mA�x�, obtemos que deg g = r e que, com
exceção do coeficiente lı́der, todos os� coeficientes
� de g estão em m. Temos
que g tem imagem trivial em A�x�/ f (x) e como a imagem xr se escreve
r−1
de maneira
� �única como combinação A-linear das imagens de 1, . . . , x em
A�x�/ f (x) , logo g é unicamente determinado por esta combinação linear.
Reciprocamente, é fácil reverter os passos acima para mostrar � que� qualquer
g ∈ A[x] mônico de grau r com imagem trivial em A�x�/ f (x) é associ-
ado a f (x) neste anel e tal g é obtido escrevendo-se a imagem de xr como
combinação A-linear das imagens de 1, . . . , xr−1 .

Como uma aplicação do teorema de preparação de Weierstrass, vamos


provar o seguinte “lema de Gauß formal”:
Corolário 13.4.4 Seja k um corpo. Então k�x1 , . . . , xn � é um DFU.

Demonstração: Indução em n. Os casos n = 0 e n = 1 são triviais,


assim suponha n > 1. Como k�x1 , . . . , xn � é noetheriano (teorema 6.2.1 na
página 149), basta mostrar que todo elemento irredutı́vel neste anel é primo
(lema B.1.3 na página 343).
Seja A = k�x1 , . . . , xn−1 � e m = (x1 , . . . , xn−1 ), de modo que o anel local
completo (A, m, k) é um DFU por hipótese de indução. Pelo lema de Gauß
256 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

(teorema B.3.4 na página 351) A[xn ] também é um DFU. Seja f (xn ) ∈ A�xn �
um elemento irredutı́vel e suponha que f (xn ) | g(xn ) · h(xn ) em A�xn �, i.e.,

g(xn ) · h(xn ) = f (xn ) · p(xn ) (g, h, p ∈ A�xn �)

Suponha inicialmente que g(xn ) · h(xn ) ∈/ mA�xn �, i.e., g(xn ) · h(xn ) não
tem imagem trivial no domı́nio k�xn �. Então o mesmo vale para f, g, h, p.
Assim, pelo corolário anterior, podemos substituir estes elementos por seus
polinômios de Weierstraß e pela unicidade, temos uma igualdade

g(xn ) · h(xn ) = f (xn ) · p(xn )

com f, g, h, p ∈ A[xn ] polinômios de Weierstraß. Mas agora f | gh no DFU


A[xn ]; como f é irredutı́vel em A�xn �, é claro que f é irredutı́vel em A[xn ],
logo f | g ou f | h em A[xn ] e portanto em A�xn � também, ou seja, f é primo
neste último anel.
Para reduzir o caso geral ao provado acima, basta mostrarmos que dado
qualquer elemento não nulo t ∈ k�x1 , . . . , xn �, existe um k-automorfismo τ
de k�x1 , . . . , xn � tal que τ (t) ∈
/ mA�xn �. Vamos usar o mesmo truque da
prova do teorema de normalização de Noether (teorema 9.1.1 na página 185).
Defina

τ : k�x1 , . . . , xn � �→ k�x1 , . . . , xn �
2 n−1
t(x1 , x2 , . . . , xn−1 , xn ) �→ t(x1 + xen , x2 + xen , . . . , xn−1 + xen , xn )

para um e � 0 suficientemente grande a ser determinado a seguir. Para um


t ∈ k�x1 , . . . , xn � fixado, queremos
� � 2 n−1
τ t(x1 , . . . , xn ) ∈/ mA�xn � ⇐⇒ t(xen , xen , . . . , xen , xn ) �= 0

Mas agora basta escolher e grande o suficiente para que os expoentes αn +


2 n−1
α1 e + α2 e2 + · · · + αn−1 en−1 de xn em t(xen , xen , . . . , xen , xn ) sejam todos
distintos quando varremos os monômios cα1 ,...,αn xα αn
1 . . . xn de t com “grau”
1

α1 + · · · + αn mı́nimo (que são finitos).

Observação 13.4.5 Se (A, m, k) é um anel local completo que é um DFU,


não é verdade que A�t� é necessariamente um DFU.

13.5 Exercı́cios
13.1 Seja A um anel noetheriano e sejam a e b ideais de A. Seja M um A-
módulo finitamente gerado. Denote por um chapéu o completamento a-ádico.
Mostre que
�) = �
(bM �
bM
13.5. EXERCÍCIOS 257

13.2 Mostre que

(a) um anel local completo satisfaz a condição (iv) da observação 13.2.8 na


página 248.

(b) a condição (iv) da observação 13.2.8 na página 248 implica a condição


(i) do teorema 13.2.5 na página 245.
Dica: Escreva f (x) = xn + an−1 xn−1 + · · · + a0 , g(x) = xr + br−1 xr−1 +
· · · + b0 e h(x) = xs + cs−1 xs−1 + · · · + c0 em que r = deg g and s = deg h
e considere o sistema de equações nas “indeterminadas” bi , ci obtido ao
expandir f (x) = g(x)h(x).

Para os próximos exercı́cios, utilizamos a seguinte notação:

• O(U ) = anel das funções holomorfas f : U → C (U ⊆ C aberto).

• On = anel de germes de funções holomorfas na origem:


def
On = inj lim O(U )
U �(0,...,0)

Explicitamente, os elementos de On são classes de equivalência [f, U ]


de pares (f, U ) em que U ⊆ C é uma vizinhança aberta de (0, . . . , 0),
sendo a relação de equivalência dada por [f, U ] = [g, V ] ⇔ ∃W aberto
com (0, . . . , 0) ∈ W e W ⊆ U ∩ V tal que f |W = g|W .

• mn = ideal maximal do anel local On , que consiste nas classes das


funções que se anulam em (0, . . . , 0) ∈ Cn .

13.3 (Teorema de Preparação de Weierstraß analı́tico) Seja f uma


função holomorfa representando um elemento de mn com f (0, . . . , 0, zn ) não
identicamente nula. Neste exercı́cio, mostraremos que em On temos a fa-
toração
f =u·p
×
em que p(zn ) ∈ On−1 [zn ] e u ∈ On−1 .

(a) Para δ, � > 0, defina

Δ(δ, �) = {(z1 , . . . , zn ) ∈ Cn | |z1 | < δ, . . . , |zn−1 | < δ, |zn | < �}

Mostre que existem δ, � > 0 tais que Δ(2δ, 2�) ⊆ U ,



f (0, . . . , 0, zn ) = 0
=⇒ zn = 0 e
|zn | ≤ �

|z1 | < δ, . . . , |zn−1 | < δ
=⇒ f (z1 , . . . , zn−1 , zn ) �= 0
|zn | = �
258 CAPÍTULO 13. ANÉIS COMPLETOS

(b) Para cada w = (z1 , . . . , zn−1 ) ∈ Cn−1 fixo com |zi | < δ (i = 1, . . . , n − 1),
sejam r1 (w), r2 (w), . . . , rn (w) as raı́zes de z �→ f (w, z), listadas com
multiplicidade. Mostre que
� ∂f
d d 1 ∂z (w, z)
r1 (w) + · · · + rn (w) = zd · dz
2πi |z|=� f (w, z)

e que esta integral é uma função holomorfa em w. Conclua que o número


de raı́zes (contadas com multiplicidade) de z �→ f (w, z) é localmente
constante em w e que os coeficientes do polinômio

p(w, z) = (z − r1 (w)) · . . . · (z − rn (w))

são funções holomorfas em w.


Dica: Utilize as identidades de Newton (teorema 2.1.5 na página 37)
(c) Mostre que podemos estender

def f (z1 , . . . , zn )
u(z1 , . . . , zn ) =
p(z1 , . . . , zn )

a uma função holomorfa no aberto Δ(δ, �) com u(0, . . . , 0) �= 0. Deduza


assim o teorema de preparação de Weierstraß analı́tico.

13.4 Utilizando o teorema de preparação de Weierstraß analı́tico, mostre:


(a) On é um DFU.

(b) On é um anel noetheriano.


Capı́tulo 14

Dimensão

Estamos prontos para levar o estudo de Álgebra Comutativa para uma outra
dimensão! Dimensão não é um assunto novo para nós: por exemplo, vi-
mos que, para um domı́nio A finitamente gerado sobre um corpo k, dim A =
tdk Frac A (teorema 9.2.1 na página 189), de modo que neste caso a dimensão
pode ser interpretada como uma medida do número de “parâmetros indepen-
dentes” contidos neste anel.
Neste capı́tulo, apresentaremos um importante resultado válido para um
anel noetheriano local (A, m, k) qualquer, o teorema de Krull, que afirma
que dim A é sempre finito e coincide com outras duas medidas do número
de “parâmetros independentes” em A: primeiro, a cardinalidade mı́nima δ
� um sistema de parâmetros a1 , . . . , aδ ∈ A, que são elementos tais que
de
(a1 , . . . , aδ ) = m (intuitivamente, a menor quantidade de “equações” para
definir a “variedade” Spec k); e segundo, o grau do polinômio de Hilbert-
Samuel λ(n) = lenA A/mn (para n � 0 natural), que é uma generalização
do polinômio que calcula a dimensão do k-subespaço vetorial de k[x1 , . . . , xr ]
formado pelos polinômios de graus menores ou iguais a n.
Por fim, com o auxı́lio dos resultados obtidos para a dimensão de um anel
noetheriano local, daremos sentido algébrico preciso à noção de “não singula-
ridade”: definiremos os chamados anéis regulares, que desempenham um pa-
pel central especialmente em Geometria Algébrica. Por exemplo, domı́nios de
Dedekind são exatamente os domı́nios regulares noetherianos de dimensão 1.

14.1 Algumas identidades binomiais


Esta seção é de caráter puramente técnico: coletamos aqui alguns resultados
sobre coeficientes binomiais, que serão utilizados em seguida para definir
os polinômios de Hilbert e de Hilbert-Samuel. Recomendamos uma leitura
rápida, já que os resultados são apenas exercı́cios simples de indução finita.

259
260 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

14.1.1 Definição Um polinômio binomial é um polinômio em Q[x] da


forma (para algum d ∈ Z)
 d fatores
� �  � �� �
x def  x(x − 1)(x − 2) . . . (x − d + 1)
= se d ≥ 0
d 
 d!
0 se d < 0
�x �
Note que se d ∈ N então d é um polinômio de grau d.

14.1.2 Definição Seja f : N → C uma função qualquer. Definimos a deri-


vada discreta de f por
def
Δf (n) = f (n + 1) − f (n)

Lema 14.1.3 (Coeficientes binomais) 1. Para n ≥ d naturais, temos


� �
n n!
=
d d!(n − d)!
= número de subconjuntos S ⊆ {1, . . . , n} com |S| = d

2. Para todo d ∈ Z, temos


� � � � � � � � � �
x+1 x x x x
= + , ou seja, Δ =
d d d−1 d d−1

Demonstração: O primeiro item é claro, bem como o segundo quando


d < 0, assim suponha d ≥ 0. Para x = n natural,
� � � � � �
n+1 n n
= +
d d d−1

pois ambos os lados contam o�número


� de subconjuntos S ⊆ {1, 2, . . . , n + 1}
n
com |S| =�d: do� lado direito, d enumera tais subconjuntos com n + 1 ∈ / S,
n
enquanto d−1 conta tais subconjuntos com n + 1 ∈ S.
� � �x � � x �
Assim, x+1d − d − d−1 é um polinômio em Q[x] que se anula para um
número infinito de valores, logo deve ser identicamente nulo.

Lema 14.1.4 1. Seja p(x) ∈ Q[x] um polinômio de grau d. Então p(n) ∈


Z para todo inteiro n � 0 se, e só se, p(x) é uma combinação Z-linear
de polinômios binomiais:
� � � � � �
x x x
p(x) = ad + ad−1 + · · · + a0 (ai ∈ Z, ad �= 0)
d d−1 0
14.1. ALGUMAS IDENTIDADES BINOMIAIS 261

2. Seja f : N → N uma função. Suponha que exista um polinômio q(x) ∈


Q[x] de grau d−1 tal que Δf (n) = q(n) para todo inteiro n � 0. Então
existe um polinômio p(x) ∈ Q[x] de grau d tal que f (n) = p(n) para
todo inteiro n � 0.

Demonstração:

1. É claro que qualquer combinação Z-linear de polinômios binomiais as-


sume valores inteiros para x ∈ N. Para mostrar a �recı́proca,
� faremos
x
uma indução em d, sendo o caso�d �= 0 claro. Como i tem grau i para
i ∈ N, os polinômios binomiais xi formam uma base de Q[x] sobre Q
e assim podemos escrever
� � � � � � � �
x x x x
p(x) = ad + ad−1 + · · · + a1 + a0 (ai ∈ Q)
d d−1 1 0

Temos que mostrar que ai ∈ Z e para isto considere


� � � � � �
x x x
Δp(x) = ad + ad−1 + · · · + a1
d−1 d−2 0

Como Δp(n) = p(n + 1) − p(n) ∈ Z para todo inteiro n � 0, por


hipótese de indução temos que a1 , . . . , ad ∈ Z. Mas então
� � � � � �
x x x
a0 = p(x) − ad − ad−1 − · · · − a1
d d−1 1

é um polinômio constante que assume valores inteiros, logo a0 ∈ Z


também.

2. Pelo item anterior, podemos escrever


� � � � � �
x x x
q(x) = ad + ad−1 + · · · + a1 (ai ∈ Z)
d−1 d−2 0

Seja r(x) a “integral discreta” de q(x), i.e.,


� � � � � �
x x x
r(x) = ad + ad−1 + · · · + a1
d d−1 1

de modo que Δr(x) = q(x). Temos que Δ(f − r)(n) = 0 para todo
inteiro n � 0. Em outras palavras, f (n) − r(n) é constante e inteiro
para n � 0, digamos a0 = f (n) − r(n), assim f (n) = r(n) + a0 para
n � 0 e o resultado segue.
262 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

14.2 Polinômio de Hilbert-Samuel



Seja k um corpo e seja A = d≥0 Ad um anel graduado que é um quociente
de k[x1 , . . . , xr ] por um ideal homogêneo. Em particular, observe que

(i) A0 = k é um corpo e dimk A1 ≤ r < ∞.

(ii) A é finitamente gerado como k-álgebra pelos elementos x1 , . . . , xr de


grau 1.

(iii) A é noetheriano.

Seja M = n∈Z Mn um A-módulo graduado finitamente gerado. Definimos
a sua função de Hilbert de por

χM (n) = dimk Mn

14.2.1 Exemplo Seja k corpo e A = k[x1 , . . . , xr ]. Então uma k-base de


An é formada pelos monômios de grau n em x1 , . . . , xr , logo
� �
n+r−1
χA (n) = dimk An = ,
r−1

que é uma função polinomial de grau r − 1.

14.2.2 Exemplo Seja (A, m, k) um anel local noetheriano e considere a k-


álgebra graduada

def
� mn m m2
B = = k ⊕ ⊕ ⊕ ···
mn+1 m2 m3
n≥0

Se m = (ω1 , . . . , ωr ), temos um morfismo sobrejetor graduado de k-álgebras

k[x1 , . . . , xr ] ✲
✲ B
xi �−→ ωi mod m2

Assim, B é �um quociente


� de k[x1 , . . . , xr ] por um ideal homogêneo e χB (n) =
dimk Bn ≤ n+r−1
r−1 pelo exemplo anterior.

Um fato surpreendente é que a função de Hilbert é essencialmente um


polinômio:

Teorema 14.2.3 (Hilbert) Seja k um corpo e seja A um quociente de


k[x1 , . . . , xr ] por um ideal homogêneo. Para todo A-módulo graduado M fi-
nitamente gerado, existe um polinômio p(x) ∈ Q[x] de grau menor ou igual
a r − 1 tal que χM (n) = p(n) para todo inteiro n � 0.
14.2. POLINÔMIO DE HILBERT-SAMUEL 263

Demonstração: Faremos uma indução em r, o número de geradores de


grau 1 da k-álgebra A. Se r = 0, temos que A = k e M é um k-espaço vetorial
de dimensão finita, logo χM (n) = 0 para todo n maior do que os graus dos
elementos de uma k-base de M .
Agora seja r > 0. Temos uma sequência exata de A-módulos graduados

0 ✲ N ✲ M ✲ M [1]
xr
✲ P ✲ 0

em que N e P são respectivamente o kernel e o cokernel da multiplicação por


xr ∈ A e M [1] denota o módulo M com graduação “deslocada em 1 para a
esquerda”, ou seja, M [1]d = Md+1 . Note que N e P são finitamente gerados
sobre A, já que M é noetheriano (teorema 6.1.6 na página 148).
Olhando para a dimensão da parte de grau n obtemos

dimk Nn − dimk Mn + dimk Mn+1 − dimk Pn = 0


⇐⇒ ΔχM (n) = χP (n) − χN (n)

Temos que A/(xr ) é quociente de k[x1 , . . . , xr−1 ] por um ideal homogêneo e


como xr anula P e N podemos vê-los como A/(xr )-módulos finitamente gera-
dos. Assim, por hipótese de indução, χP (n) e χN (n) são funções polinomiais
de graus menores ou iguais a r − 2 para n � 0, logo χM (n) é uma função
polinomial de grau menor ou igual a r − 1 pelo lema 14.1.4 na página 260.

Note que para M = A o grau do polinômio associado à função de Hilbert


χA é em essência uma medida do número de “parâmetros independentes”
dentre os geradores de grau 1 da k-álgebra A.
Queremos utilizar o resultado acima no estudo da dimensão de anéis locais
noetherianos. Para isto, é conveniente “integrar” a função de Hilbert da k-
álgebra B do exemplo 14.2.2 na página oposta:

14.2.4 Definição A função de Hilbert-Samuel λA (n) de um anel local


noetheriano (A, m, k) é definida como

def A
λA (n) = lenA
mn
Como a integral de um polinômio é um polinômio, não é difı́cil perceber
que, assim como a função de Hilbert, a função de Hilbert-Samuel também
será polinomial:

Teorema 14.2.5 Seja (A, m, k) um anel local noetheriano.

1. Para todo n ≥ 0, temos

mn
ΔλA (n) = dimk
mn+1
264 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

2. Existe um polinômio p(x) ∈ Q[x] tal que λA (n) = p(n) para n � 0.


Este polinômio é chamado de polinômio de Hilbert-Samuel.

Demonstração:
1. Segue da sequência exata

✲ mn ✲ A ✲ A ✲ 0
0
mn+1 mn+1 mn
e do fato de que lenA mn /mn+1 = dimk mn /mn+1 já que mn /mn+1 é
anulado por m, logo pode ser visto como um módulo sobre k = A/m.
2. Pelo item anterior, ΔλA (n) = χ�B (n) é exatamente a função de Hil-
bert da k-álgebra graduada B = n≥0 mn /mn+1 do exemplo 14.2.2 na
página 262. Logo, pelo teorema anterior, ΔλA (n) é uma função poli-
nomial para n � 0, assim o mesmo vale para λA (n) pelo lema 14.1.4
na página 260.

14.2.6 Exemplo Seja k um corpo e seja A = k[x1 , . . . , xd ](x1 ,...,xd ) . O po-


linômio de Hilbert-Samuel de A é o polinômio de grau d
� �
n+d−1
λA (n) = ,
d
De fato, pelo teorema anterior
� �
(x1 , . . . , xd )n n+d−1
ΔλA (n) = dimk =
(x1 , . . . , xd )n+1 d−1

(uma base de (x1 , . . . , xd )n /(x1 , . . . , xd )n+1 é formada pelas imagens dos


monômios de grau n). Agora, basta “integrar” a função acima; para n ∈ N,
temos uma soma telescópica
� � �i + d − 1 � � �
i+d−1

ΔλA (i) = = Δ
d−1 d
0≤i≤n−1 0≤i≤n−1 0≤i≤n−1
� � � �
n+d−1 d−1
⇐⇒ λA (n) − λA (0) = −
d d
�d−1�
e o resultado segue pois λA (0) = d = 0.

14.2.7 Exemplo Seja


C[x, y](x,y)
A=
(y 2 − x3 )
O polinômio de Hilbert-Samuel de A tem grau 1 e é dado por

λA (n) = 2n − 1
14.2. POLINÔMIO DE HILBERT-SAMUEL 265

De fato, ΔλA (n) é a dimensão do C-espaço vetorial


(x, y)n (x, y)n
=
(x, y)n+1 (x, y)n+1 + (y 2 − x3 )
Note que o espaço vetorial acima é gerado pelas imagens dos monômios xi y j
de grau i + j = n. Se n ≥ 1 e j ≥ 2 temos
xi y j ≡ xi+3 y j−2 ≡ 0 (mod (x, y)n+1 + (y 2 − x3 ))
Logo é suficiente tomar apenas as imagens de xn e xn−1 y, que são linearmente
independentes sobre C, pois se existisse f ∈ C[x, y] tal que
axn + bxn−1 y + (y 2 − x3 ) · f (x, y) ∈ (x, y)n+1 (a, b ∈ C)
então fazendo a substituição x ← t2 e y ← t3 terı́amos at2n +bt2n+1 ∈ (t2n+2 )
em C[t], logo a = b = 0. Assim,

(x, y)n 1 se n = 0
ΔλA (n) = dimC n+1
=
(x, y) 2 se n ≥ 1
e o resultado segue por integração.
Uma outra medida da quantidade de “parâmetros independentes” de um
anel local é dada pela seguinte
14.2.8 Definição Seja (A, m, k) um anel local noetheriano. Um conjunto
{a1 , . . . , an } ⊆ m é chamado de sistema de parâmteros de A se
� � �
V (a1 , . . . , an ) = {m}, ou seja, (a1 , . . . , an ) = m
Denotaremos por δA o tamanho mı́nimo de um sistema de parâmetros de A.
Intuitivamente, δA é o número mı́nimo de “equações” necessárias para
definir a “variedade” Spec k = Spec A/m.
Observação 14.2.9 Note que qualquer conjunto de geradores de m é um
sistema de parâmetros de A. Assim, pelo corolário 4.6.1 na página 114,
mn
δA ≤ dimk
mn+1
14.2.10 Exemplo Um sistema de parâmetros de A = C[x, y](x,y) /(y 2 − x3 )

é {x}, já que y ∈ (x). Assim,� δA ≤ 1. Por outro lado, δA = 0 só ocorre
quando o ideal maximal m = (0) de A é nilpotente, o que não é o caso pois
já vimos que λA não é constante. Assim, δA = 1.
Observe que
C[x, y] C[x, y]
dim 2 3
= tdC Frac 2 =1
(y − x ) (y − x3 )
e portanto dim A = 1 já que (x, y) é um ideal maximal de C[x, y]/(y 2 − x3 )
(teorema 9.2.1 na página 189). Assim, temos deg λA = δA = dim A = 1.
266 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

No exemplo acima, obtivemos a igualdade das três medidas deg λA =


δA = dim A do “número de parâmetros independentes” de A. Veremos que
isto não é uma coincidência, mas sim um fato geral: este é o enunciado do
teorema de Krull.

14.3 Teorema de dimensão de Krull


Muito bem, estamos prontos para enunciar e provar este tão falado teorema
de Krull! A prova se baseia no seguinte
Lema 14.3.1 (Lema principal) Seja (A, m, k) um anel local noetheriano.
Seja a ∈ m e escreva B = A/(a). Denote por λA e λB os polinômios de
Hilbert-Samuel de A e B, respectivamente. Então
1. deg λB ≥ deg λA − 1.
2. se a ∈ A não é divisor de zero, então deg λB = deg λA − 1.
Demonstração: Denote por m a imagem de m em B. O anel B é um anel
local noetheriano com ideal maximal m e corpo residual B/m = A/m = k.
Temos isomorfismos
B A (a) + mn (a)
= e =
mn (a) + mn mn (a) ∩ mn
e portanto uma sequência exata

✲ (a) ✲ A ✲ B ✲ 0
0
(a) ∩ mn mn mn
de modo que
� A � �B � � (a) �
lenA = len A n + len A
mn m (a) ∩ mn
� (a) �
⇐⇒ λA (n) = λB (n) + lenA (∗)
(a) ∩ mn
(note que lenA B/mn = lenB B/mn ).
Vamos estimar o último termo em (∗). Provaremos que
(i) Para todo n ≥ 1, temos
� (a) � � A �
lenA ≤ len A = λA (n − 1)
(a) ∩ mn mn−1

(ii) se a ∈ A não é divisor de zero, existe uma constante c > 0 tal que, para
todo n � 0, temos
� (a) � � A �
lenA ≥ len A = λA (n − c)
(a) ∩ mn mn−c
14.3. TEOREMA DE DIMENSÃO DE KRULL 267

De fato, (i) é consequência do seguinte mapa sobrejetor, induzido pela mul-


tiplicação por a ∈ m:
A ✲✲
a (a)
mn−1 (a) ∩ mn
Para mostrar (ii), note que pelo teorema de Artin-Rees (teorema 13.1.1 na
página 242) existe uma constante c > 0 para a qual (a) ∩ mn ⊆ (a) · mn−c
para todo n � 0. Assim, temos um mapa sobrejetor
(a) ✲
✲ (a) ✛a A
(a) ∩ mn (a) · mn−c ≈ mn−c
em que o mapa induzido pela multiplicação por a é um isomorfismo já que
a ∈ A não é divisor de zero.
Assim, para n � 0, de (∗) e (i) temos

λB (n) ≥ λA (n) − λA (n − 1) =⇒ deg λB ≥ deg λA − 1

enquanto que de (∗) e (ii) obtemos

λB (n) ≤ λA (n) − λA (n − c) =⇒ deg λB ≤ deg λA − 1

Teorema 14.3.2 (Krull) Seja (A, m, k) um anel local noetheriano. Então


dim A é finito. Além disso,

dim A = deg λA = δA

Demonstração: Vamos mostrar uma sequência de desigualdades

dim A ≤ deg λA ≤ δA ≤ dim A

Observe que a primeira desigualdade mostra que dim A é finita.


Passo 1: dim A ≤ deg λA . Vamos mostrar, por indução em deg λA , que se
p0 � p1 � · · · � pr é uma cadeia de ideais primos em A de tamanho r, então
r ≤ deg λA . Note que se o resultado é válido para domı́nios, então é válido em
geral: como A/p0 é um domı́nio contendo uma cadeia de primos de tamanho
r e λA/p0 (n) ≤ λA (n) para todo n, teremos r ≤ deg λA/p0 ≤ deg λA . Assim,
substituindo A por A/p0 , podemos supor que p0 = (0) e que A é um domı́nio
local noetheriano.
Se deg λA = 0, então λA (n) = lenA A/mn é constante para n � 0, i.e.
dimk mn /mn+1 = ΔλA (n) = 0 para n � 0. Pelo lema de Nakayama (teo-
rema 4.5.5 na página 112), mn = (0) para n � 0 e portanto m = (0) = p0 ,
logo r = 0 e dim A = 0.
Agora suponha deg λA > 0. Seja a ∈ p1 um elemento não nulo e seja
B = A/(a). Pelo lema principal, temos que deg λB = deg λA − 1. Por outro
268 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

lado, as imagens de p1 , . . . , pr em B formam uma cadeia de tamanho r − 1,


assim por hipótese de indução temos

r − 1 ≤ deg λB = deg λA − 1 =⇒ r ≤ deg λA

Passo 2: deg λA ≤ δA . Faremos uma indução em δA . Se δA = 0, então m =



(0) =⇒ mr = (0) para algum r ∈ N já que m é finitamente gerado. Logo
λA (n) = lenA A/mn = lenA A é constante para n ≥ r e assim deg λA = 0.
Agora seja δA > 0. Tome a ∈ A pertencente a um sistema de parâmetros
de cardinalidade δA e seja B = A/(a). Então δB ≤ δA − 1 e por hipótese de
indução deg λB ≤ δB . Assim, pelo lema principal,

deg λA − 1 ≤ deg λB ≤ δB ≤ δA − 1 =⇒ deg λA ≤ δA

Passo 3: δA ≤ dim A. Vamos usar indução em dim A (que já � sabemos ser
finito pelo passo 1). Se dim A = 0, então Spec A = {m}, logo (0) = m e
portanto δA = 0.
Agora suponha que dim A > 0. Como A é noetheriano, A possui apenas
um número finito de ideais primos minimais (teorema 6.1.5 na página 147).
Assim, pelo “prime avoidance” (teorema 3.1.10 na página 85), podemos esco-
lher a ∈ m que não pertence a nenhum primo minimal. Assim, se B = A/(a),
temos dim B ≤ dim A − 1 e por hipótese de indução δB ≤ dim B. Note ainda
que se a1 , . . . , as ∈ A são elementos cujas imagens em B formam um sistema
de parâmetros de B, então a, a1 , . . . , as formam um sistema de parâmetros
de A, logo δA ≤ δB + 1. Assim,

δA − 1 ≤ δB ≤ dim B ≤ dim A − 1 =⇒ δA ≤ dim A

Um importante corolário do teorema de Krull é o seguinte resultado, que


intuitivamente afirma que uma “hiperfı́cie de equação a = 0” tem codimensão
no máxmo 1:

Corolário 14.3.3 (Teorema do Ideal Principal de Krull) Sejam A um


anel noetheriano e (a1 , . . . , an ) � A um ideal próprio. Existe p ∈ Spec A tal
que
(a1 , . . . , an ) ⊆ p e ht p ≤ n
Em particular, se A é um domı́nio e a ∈ A é um elemento não nulo, então
qualquer primo minimal contendo (a) tem altura 1.

Demonstração: Seja p ∈ Spec A que é minimal dentre os primos contendo


(a1 , . . . , an ). Neste caso, o ideal maximal de Ap /(a1 ,�
. . . , an ) é seu único
primo, logo é igual ao seu nilradical. Assim, pAp = (a1 , . . . , an ) e pelo
teorema de Krull temos ht p = dim Ap = δAp ≤ n.
14.4. DIMENSÃO DE FIBRAS 269

14.4 Dimensão de fibras


Dado um mapa entre dois anéis, qual a relação entre a dimensão destes anéis
e as dimensões das fibras? O próximo teorema esclarece a situação no caso
local:
Teorema 14.4.1 (Dimensão das Fibras) Sejam (A, m, k) e (B, n, l) dois
anéis locais noetherianos e seja φ : A → B um morfismo local1 . Então

� �� B� ≤ �dim
dim �� A� + �dim B ⊗ k
�� A �
topo base fibra

com igualdade se B é (fielmente) plano sobre A.


Demonstração: Sejam m = dim A e n = dim B ⊗A k. Pelo teorema
de Krull, existem sistemas de parâmetros de A e B ⊗A k = B/φ(m)B de
tamanhos m e n, respectivamente:

(a1 , . . . , am ) = m (ai ∈ A)

(b1 , . . . , bn ) = n/φ(m)B (bj ∈ B)
Assim, para mostrar dim B = δB ≤ m + n, basta mostrar

n = (b1 , . . . , bn , φ(a1 ), . . . , φ(am ))
Tome b ∈ n. Seja r ∈ N tal que
r
b ∈ (b1 , . . . , bn ) ⇐⇒ br ∈ (b1 , . . . , bn ) + φ(m)B
Como ms ⊆ (a1 , . . . , am ) para algum s ∈ N, temos
� �s
brs ∈ (b1 , . . . , bn ) + φ(m)B ⊆ (b1 , . . . , bn ) + φ(ms )B
⊆ (b1 , . . . , bn , φ(a1 ), . . . , φ(am ))
como desejado.
Agora suponha que B seja plano sobre A, de modo que o going-down
(teorema 5.5.14 na página 142) vale. Escolha uma cadeia de primos em A de
tamanho m = dim A:
p 0 � p1 � · · · � p m = m
Escolha ainda uma cadeia de primos em B contendo φ(m) de tamanho n =
dim B ⊗A k, correspondente a uma cadeia em B ⊗A k = B/φ(m)B:
φ(m) ⊆ qm � qm+1 � · · · � qm+n = n
Pelo going-down, podemos estender a cadeia anterior para uma cadeia de
primos em B
q0 � · · · � qm−1 � qm � · · · � qm+n = n
com qi sobre pi para i = 0, 1, . . . , m. Assim, dim B ≥ m + n também.
1 lembre que isto significa φ−1 (n) = m
270 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

Um importante corolário é

Corolário 14.4.2 Seja A um anel noetheriano. Então

dim A[x1 , . . . , xn ] = dim A + n

Demonstração: É claro que por indução basta mostrar que dim A[x] =
dim A + 1. Dada uma cadeia de ideais primos de A

p 0 � p1 � · · · � p n

note que A[x]/(pi A[x]) = (A/pi )[x] e A[x]/(pn A[x] + (x)) ∼


= (A/pn ) são
domı́nios, de modo que temos uma cadeia de ideais primos em A[x]

p0 · A[x] � p1 · A[x] � · · · � pn · A[x] � pn A[x] + (x)

Assim, dim A[x] ≥ dim A + 1.


Para mostrar a desigualdade oposta, seja q � A[x] um ideal maximal de
altura dim A[x]. Seja p = q ∩ A ∈ Spec A e seja k = κ(p) = Frac(A/p) seu
corpo residual. Como A[x] é plano sobre A, temos que A[x]q é plano sobre
Ap (lema 5.5.7 na página 139). Sendo q ∈ Spec k[x] = A[x] ⊗A k a imagem
de q ∈ Spec A[x], pelo teorema anterior temos

dim A[x] = dim A[x]q = dim Ap + dim A[x]q ⊗A k


= dim Ap + dim k[x]q ≤ dim A + 1

Os teoremas acima são expressão do fato que, intuitivamente, uma álgebra


plana é aquela em que as fibras “variam continuamente”, de modo que a
dimensão das fibras é a dimensão esperada, “sem saltos”. Podemos utilizar
estes resultados para rapidamente identificar álgebras não planas, como no
seguinte

14.4.3 Exemplo (Blow-up não é plano) Seja A = C[x, y] e considere a


A-álgebra B = C[x, y, z]/(y − xz), o anel de funções do blow-up do plano na
origem (exemplo 5.4.5 na página 135); geometricamente, como as dimensões
das fibras de Spec B → Spec A têm “saltos” (a fibra de um ponto fechado é ou
vazia, ou um ponto fechado ou uma reta em Spec B), desconfiamos que B não
é A-plano e, de fato, basta considerar o ideal maximal m = (x, y) ∈ Specm A
correspondente à origem e n = (x, y, z) ∈ Specm B, que é um primo na fibra
de m: como dim Am = dim A = tdC A = 2 e dim Bn = dim B = tdC B = 2,
se B fosse A-plano, Bn seria Am -plano e a dimensão da fibra deveria ser 0
pelo teorema acima. Porém Bn ⊗Am κ(m) ∼ = C[z](z) tem dimensão 1, uma
contradição.
14.5. ANÉIS LOCAIS REGULARES 271

14.5 Anéis locais regulares


Como δA é menor ou igual ao número mı́nimo de geradores do ideal maxi-
mal m, diretamente do teorema de Krull e do corolário 4.6.1 na página 114
obtemos
Corolário 14.5.1 Seja (A, m, k) um anel local noetheriano. Então
m
dimk ≥ dim A
m2
O caso da igualdade é especialmente importante e merece uma
14.5.2 Definição Um anel local noetheriano (A, m, k) é regular se m pode
ser gerado por dim A elementos. Um anel noetheriano B qualquer é dito
regular se Bn é regular para todo n ∈ Specm B.
Como já comentamos no inı́cio do capı́tulo, regularidade é a versão al-
gébrica de não-singularidade. O próximo exemplo ilustra este princı́pio em
dimensão 1.
14.5.3 Exemplo Um domı́nio noetheriano A de dimensão 1 é regular se, e
só se, mAm é principal para todo m ∈ Specm A, i.e., se, e só se, Am é um
DVD para todo m ∈ Specm A (teorema 10.1.6 na página 200) ou, em outras
palavras, se, e só se, A é um domı́nio de Dedekind. Em particular, o anel de
funções de uma curva algébrica plana é regular se, e só se, esta curva for não
singular (exemplo 10.1.9 na página 202).
Os próximos exemplos ilustram anéis aritméticos que correspondem a um
“plano” (regular) e a uma “cúspide” (singular):
14.5.4 Exemplo Seja A = Z[x] e seja m = (3, x). Então dim Am = 2 e Am
é regular. De fato, da cadeia de ideais primos (0) � (x) � (3, x), concluı́mos
que dim Am ≥ 2. Por outro lado, como mAm pode ser gerado por dois
elementos, dim Am = δAm ≤ 2. Assim, Am é regular de dimensão 2.
14.5.5 Exemplo (“Cúspide aritmética”) Seja A = Z[x]/(x2 − 53 ) e seja
m = (5, x). Então dim Am = 1 e Am não é regular. De fato, da cadeia de
�primos (0) � (5, x), concluı́mos que dim Am ≥ 1. Por outro lado, como
ideais
x ∈ (5), temos que {5} é um sistema de parâmetros e portanto δAm ≤ 1.
Logo dim Am = δAm = 1. Por outro lado, temos isomorfismos de F5 -espaços
vetoriais
mAm m (5, x) (5, x) (5, x)
2
= 2 = 2 = 2 2 2 3
= 2
(mAm ) m 2
(5 , 5x, x ) (5 , 5x, x ) + (x − 5 ) (5 , 5x, x2 )
que tem dimensão 2 sobre F5 , portanto o número mı́nimo de geradores de
mAm é 2. Assim, Am não é regular.
Compare este exemplo com uma “verdadeira” cúspide Z(x2 − y 3 ) ⊆ A2C .
Isto nos faz pensar: Aritmética e Geometria são realmente tão diferentes
assim?
272 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

Anéis regulares possuem diversas boas propriedades; a tı́tulo de exemplo,


vamos provar a seguinte

Proposição 14.5.6 Seja (A, m, k) um anel local noetheriano regular. Então


A é um domı́nio.

Demonstração: Faremos uma indução em n = dim A. Se n = 0, m = (0)


e portanto A é um corpo.
Agora suponha n > 0. Observe inicialmente que se a1 , . . . , an é uma
k-base de m/m2 , i.e., se a1 , . . . , an são geradores de m, então B = A/(a1 )
é um anel noetheriano local cujo ideal maximal pode ser gerado por n − 1
elementos, portanto dim B = δB ≤ n − 1 pelo teorema de Krull. Por outro
lado, pelo lema fundamental temos também

dim B = deg λB ≥ deg λA − 1 = dim A − 1 = n − 1

e assim dim B = n − 1, ou seja, B é regular e portanto um domı́nio por


hipótese de indução. Assim, (a1 ) é um ideal primo de A.
Como A é noetheriano, A possui apenas um número finito de ideais primos
minimais (teorema 6.1.5 na página 147), digamos p1 , . . . , pr ∈ Spec A. Pelo
prime avoidance (teorema 3.1.10 na página 85), existe x ∈ m tal que x ∈ /
2 2
m ∪ p1 ∪ · · · ∪ pr . Note que x ∈ m/m é não nulo e portanto faz parte de uma
k-base deste espaço, logo (x) é primo pelo argumento acima. Tome um dos
primos minimais contidos em (x), digamos p1 ⊆ (x). Então todo elemento
y ∈ p1 é da forma y = ax e como x ∈ / p1 temos a ∈ p1 , de modo que p1 = xp1 .
Mas agora Nakayama implica que p1 = (0) e portanto A é um domı́nio.

Encerramos esta seção mencionando dois importantı́ssimos teoremas, cu-


jas provas omitimos pois utilizam técnicas homológicas para as quais infeliz-
mente não temos espaço para tratar neste livro.

Teorema 14.5.7 (Serre) Seja A um anel noetheriano regular. Então Ap é


regular para todo p ∈ Spec A.

Teorema 14.5.8 (Auslander-Buchsbaum) Seja A um anel noetheriano


local regular. Então A é um DFU.

Combinando o teorema de Auslander-Buchsbaum com o teorema 8.3.4 na


página 178 e o teorema 8.3.6 na página 179, obtemos um importante

Corolário 14.5.9 Um domı́nio noetheriano regular é normal.

Para uma prova dos dois teoremas acima, veja por exemplo o capı́tulo IV
de [Ser73].
14.6. EXERCÍCIOS 273

14.6 Exercı́cios
14.1 �(Série de Hilbert) Seja k um corpo e seja A = k[x1 , . . . , xn ]. Seja
M = d∈Z Md um A-módulo graduado finitamente gerado com Md = 0 para
d < 0. A série de Hilbert de M é definida como

HM (t) = (dimk Md ) · td ∈ Z�t�
d≥0

Mostre que
p(t)
HM (t) =
(1 − t)n
para algum polinômio p(t) ∈ Z[t].
Dica: Copie a demonstração do teorema 14.2.3 na página 262.

14.2 Para cada um dos anéis locais noetherianos a seguir, determine:

(i) um sistema de parâmetros minimal;

(ii) o polinômio de Hilbert-Samuel;

(iii) a dimensão de Krull.

Diga ainda se cada um destes anéis é regular ou não.

(a) um corpo K

(b) Z(p) , p primo

(c) Q[t](t)

(d) Q[t](t2 +1)

(e) C[x, y](x,y)

(f) C[x, y, z](x,y,z)

(g) Z[x](3,x)

(h) C[x, y](y2 −x3 )

(i) Am onde A = C[x, y]/(y 2 − x2 (x + 1)) e m = (x + 1, y)

(j) Am onde A = C[x, y]/(y 2 − x2 (x + 1)) e m = (x, y)

(k) Am onde A = Z[x]/(x2 − 15) e m = (3, x)

(l) Am onde A = Z[x]/(x2 − 45) e m = (3, x)


274 CAPÍTULO 14. DIMENSÃO

14.3 (Critério de Eisenstein) Seja A um anel e seja

f (x) = xn + an−1 xn−1 + · · · + a0 ∈ A[x]

um polinômio mônico. Suponha que exista p ∈ Spec A tal que a0 , . . . , an−1 ∈


p mas a0 ∈/ p2 .

(a) Mostre que f (x) é irredutı́vel em A[x].


(b) Suponha que A seja um domı́nio normal. Mostre que o ideal (f ) é primo
em A[x].
(c) Suponha que A seja um anel local regular noetheriano (em particular, A
é um domı́nio normal pelo corolário 14.5.9 na página 272). Mostre que
B = A[x]/(f ) é um domı́nio local regular.
Capı́tulo 15

Esquemas

Neste derradeiro capı́tulo, formalizaremos a filosofia que implicitamente esti-


vemos utilizando ao longo de todo o livro: a de que anéis são por natureza
objetos geométricos. Veremos o importante conceito de esquema, introdu-
zido e elaborado por Alexander Grothendieck e sua escola, como o “bloco
fundamental” em Geometria Algébrica, em substituição ao conceito clássico
de conjunto algébrico.
Esquemas rapidamente se tornaram lı́ngua franca da área devido a sua
grande expressividade e poder técnico, permitindo dar nova interpretação
a velhos teoremas bem como criando toda uma nova gama de resultados,
muitos dos quais seria difı́cil até enunciar e compreender sem esta nova lin-
guagem. Embora aqui só tenhamos espaço (e fôlego) para dar apenas uma
breve introdução ao assunto, não há dúvidas de que a influência das ideias
“grothendieckianas” se estenderam para muito além das fronteiras da Ge-
ometria Algébrica, mudando para sempre a face da Matemática como um
todo. Então muito cuidado: após ler este capı́tulo, você pode se tornar uma
nova mulher ou um novo homem! Isto não é uma ameaça. . .
O ponto de partida do conceito de esquema é a equação

objeto geométrico = espaço topológico + anel de funções admissı́veis

Por exemplo, uma variedade diferenciável nada mais é do que o seu espaço
topológico subjacente juntamente com o anel das suas funções diferenciáveis;
uma superfı́cie de Riemann é o mesmo que seu espaço topológico e o anel
de suas funções holomorfas (definidas em abertos do espaço); e um conjunto
algébrico afim consite em seu conjunto de pontos, munido da topologia de
Zariski, juntamente com o seu anel de funções regulares.
Em geral, é necessário considerar não só funções admissı́veis definidas em
todo o espaço X mas também aquelas cujos domı́nios são abertos U ⊆ X, sob
pena de não termos funções em quantidade suficiente: por exemplo, as únicas
funções globalmente holomorfas em uma superfı́cie de Riemann compacta são
as constantes (pelo princı́pio do máximo). Para cada aberto U ⊆ X, denote

275
276 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

por OX (U ) o anel das funções admissı́veis com domı́nio U ; a coleção de todos


estes anéis é o que chamamos de feixe; assim, um objeto geométrico nada
mais é do que um par (X, OX ) em que X é um espaço topológico e OX é
um feixe de anéis sobre X. Tal par (X, OX ) é o que denominaremos espaço
localmente anular.
Dado um anel A qualquer, construiremos um feixe de anéis OA sobre
Spec A (com a topologia de Zariski) com a propriedade de que OA (D(h)) ∼ =
Ah para todo h ∈ A. O espaço localmente anular (Spec A, OA ) é o que
chamamos de esquema afim associado ao anel A. É neste sentido que todo
anel pode ser visto como objeto geométrico. E assim como uma variedade
diferenciável é obtida “colando-se” cópias do espaço afim Rn , um esquema
nada mais é do que a “cola” de esquemas afins.
Um fato que distingue esquemas de outros objetos geométricos que você
já conhece é a existência de “funções admissı́veis nilpotentes”. Por exem-
plo, se A = Q[x]/(x2 ), o esquema afim associado (Spec A, OA ) contém uma
“função nilpotente” x �= 0 em OA (Spec A) = OA (D(1)) ∼ = A. Isto o torna
distinto do esquema (Spec Q, OQ ), muito embora o mapa quociente A � Q
induza um homeomorfismo Spec Q ✲ Spec A entre os espaços topológicos

subjacentes destes esquemas. Veremos que (Spec Q, OQ ) é um subesquema


fechado de (Spec A, OA ): intuitivamente, (Spec Q, OQ ) faz o papel do “con-
junto algébrico x = 0”, enquanto (Spec A, OA ) é o conjunto um pouco maior
“x2 = 0” em que fizemos “x quase igual a 0”, mas ainda diferente de 0, só x2
é de fato 0 neste esquema! Assim, você pode pensar em (Spec A, OA ) como
um “ponto gordo1 ”.
Isto pode parecer inútil à primeira vista, mas “funções nilpotentes” apa-
recem sempre que temos situações geométricas “degeneradas”, o que ocorre
com muita frequência. Por exemplo, se a ∈ C, o esquema afim associado
ao anel A = C[x, y]/(x2 + y 2 − 1, x − a) representa a intersecção do cı́rculo
x2 + y 2 = 1 e a reta x = a. Em geral, esta interseção consiste em 2 pontos
distintos e correspondentemente temos A ∼ = C × C de modo que o esquema
(Spec A, OA ) é a união de dois “pontos magros” (Spec C, OC ); entretanto,
para a = ±1, A ∼ = C[y]/(y 2 ) e para cada um destes casos o esquema afim
correspondente é um “ponto gordo”, refletindo a situação de tangência entre
a reta e a circunferência. Neste caso, os espaços topológicos são insufici-
entes para distinguir estas situações especiais e cabe ao feixe “lembrar” a
informação extra.
Outra particularidade de esquemas é que eles podem ser vistos como
“funtores de pontos”, o que permite fazer Geometria Algébrica sobre corpos
não necessariamente algebricamente fechados e até mesmo sobre anéis como
Z. Por exemplo, o esquema afim associado a A = Q[x, y]/(x2 + y 2 + 1)
define um funtor covariante hA da categoria de Q-álgebras para a categoria

1 diferente daqueles que você desenhava com régua e compasso no colégio para fazerem

as três medianas de um triângulo se encontrarem no baricentro.


15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 277

de conjuntos dado por

hA (B) = {(α, β) ∈ B × B | α2 + β 2 + 1 = 0}

Assim, embora a curva de equação x2 +y 2 +1 = 0 não tenha pontos racionais,


i.e., hA (Q) = ∅, o esquema associado a A e o funtor hA são longe de serem
triviais e permitem precisar a noção de “curva sobre Q”, para a qual uma
definição conjuntista “naive” seria inadequada.
Muito bem, hora de parar, esta introdução já está deveras longa. “We
want deeds, not words!” Queremos ver este tão bem bolado esquema!

15.1 Geometria com categoria


15.1.1 Pré-feixes e Feixes
Seguindo o famoso ditado popular

1 exemplo > 103 palavras

vejamos o principal exemplo de um feixe, que servirá de modelo para a de-


finição “abstrata2 .”

15.1.1 Exemplo Seja X um espaço topológico qualquer e, para cada aberto


U ⊆ X, defina o anel das funções contı́nuas reais em U :

F(U ) = {f : U → R | f é contı́nua}

Se U ⊇ V é uma inclusão de abertos, temos um morfismo de restrição

resU V : F(U ) → F(V )


f �→ f |V

Estes morfismos de restrição satisfazem a seguinte propriedade de “cola”:


dado um aberto U , uma cobertura aberta {Ui }i∈I de U e funções fi ∈ F(Ui )
(i ∈ I) concordando nas intersecções, i.e.,

fi |Ui ∩Uj = resUi ,Ui ∩Uj (fi ) = resUj ,Ui ∩Uj (fj ) = fj |Ui ∩Uj (para todo i, j ∈ I)

existe uma única função f ∈ F(U ) tal que f |Ui = resU Ui (f ) = fi para
cada i ∈ I. De fato, se x ∈ U pertence a Ui , basta definir f (x) = fi (x),
o que independe da escolha do aberto Ui que contém x pelo fato de os fi ’s
concordarem nas intersecções.
2 lembre-se de que só existe um tipo de Matemática abstrata: aquela que você não

entendeu direito.
278 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Lembre que um espaço topológico X define uma categoria O(X) dos seus
abertos: os objetos desta categoria são todos os abertos de X e as flechas são
dadas pelas inclusões:

def {U → V } se U ⊆ V
HomO(X) (U, V ) =
∅ caso contrário

Por conveniência (destes autores, é claro!), daremos todas as definições e


resultados para feixes de grupos abelianos, deixando para o leitor fazer as
modificações necessárias para outras categorias.

15.1.2 Definição Seja X um espaço topológico.

1. Um pré-feixe de grupos abelianos sobre X é um funtor contravariante


F : O(X)◦ → Ab. Explicitamente, temos

(i) para cada aberto U de X, um grupo abeliano F(U );


(ii) para cada inclusão de abertos U ⊇ V , um morfismo de grupos
abelianos resU V : F(U ) → F(V ), chamado de restrição;

tais que resU U = idF (U ) para todo aberto U e resV W ◦ resU V = resU W
para todas as inclusões de abertos U ⊇ V ⊇ W . Se não houver con-
fusão, denotaremos resU V (f ) ∈ F(V ) simplesmente por f |V . Os ele-
mentos de F(V ) são chamados de seções3 de F sobre V .

2. Um pré-feixe F : O(X)◦ → Ab é um feixe se satisfaz o “axioma de


cola”: para cada aberto U ⊆ X e qualquer cobertura aberta {Ui }i∈I
de U , dados seções fi ∈ F(Ui ) “concordando nas intersecções”, i.e.,

resUi ,Ui ∩Uj (fi ) = resUj ,Ui ∩Uj (fj ) (para todo i, j ∈ I)

existe uma única seção f ∈ F(U ) tal que resU Ui (f ) = fi para cada
i ∈ I.

3. Se F, G : O(X)◦ → Ab são dois pré-feixes, um morfismo de pré-


feixes φ : F → G é um morfismo de funtores entre F e G. Expli-
citamente, para cada aberto U ⊆ X temos um morfismo de grupos
φU : F(U ) → G(U ) de modo que se U ⊇ V é uma inclusão de abertos,
o diagrama

φU
F(U ) G(U )
resF
UV resG
UV

φV
F(V ) G(V )

3 esta terminologia tem origem nos feixes de seções de fibrados vetoriais


15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 279

comuta. Um morfismo entre feixes é simplesmente um morfismo entre


os pré-feixes subjacentes, ou seja, apenas um morfismo de funtores.
4. Denotamos por PSh(X) (respectivamente Sh(X)) a categoria de pré-
feixes (respectivamente feixes) de grupos abelianos sobre X.

Observação 15.1.3 Seja F : O(X)◦ → Ab um pré-feixe de grupos abelia-


nos. Para cada aberto U ⊆ X e cada cobertura aberta {Ui }i∈I de U , considere
a sequência
� d0 �
0 ✲ F(U ) �
✲ F(Ui ) ✲ F(Ui ∩ Uj )
i∈I i,j∈I

em que � e d0 são definidos pelos produtos dos mapas de restrição:


� �
�(f ) = (f |Ui )i∈I e d0 (fi )i∈I = fi |Ui ∩Uj − fj |Ui ∩Uj i,j∈I

Então dizer que F é um feixe é o mesmo que dizer que as sequências acima
são exatas para todo aberto U ⊆ X e toda cobertura aberta {Ui }i∈I de U :
a injetividade de � expressa a unicidade da cola, enquanto ker d0 = im �
expressa a existência da mesma.
Em particular, se U = ∅, temos que U admite uma cobertura vazia (i.e.,
com I = ∅) e portanto temos que F(∅) = 0 já que o produto vazio é o grupo
trivial. Aqueles que acharem este tipo de raciocı́nio deveras bizarro estão
convidados a simplesmente incluir a condição F(∅) = 0 na definição acima.

15.1.4 Exemplo (Feixe constante) Seja X um espaço topológico qual-


quer e A um grupo abeliano, munido da topologia discreta. Para cada aberto
U , defina
A(U ) = {f : U → A | f é contı́nua} = Aπ0 (U )
com os mapas de restrição usuais. Aqui π0 (U ) denota o conjunto das com-
ponentes conexas de U . Temos que A é um feixe, chamado feixe constante
com valores em A.
Note que não bastaria definir A(U ) = A para todo aberto U , pois o
axioma de cola não seria satisfeito: por exemplo, se U = U0 � U1 possui duas
componentes conexas U0 e U1 , devemos ter F(U ) = F(U0 ) ⊕ F(U1 ) para
qualquer feixe F (pois F(U0 ∩ U1 ) = F(∅) = 0).

15.1.5 Exemplo O exemplo do feixe de funções contı́nuas reais pode ser


facilmente generalizado. Por exemplo, seja X = C e considere, para cada
aberto U ⊆ C,
def
H(U ) = {f : U → C | f é holomorfo}
com os mapas de restrição usuais. Temos que H define um feixe de anéis sobre
X = C, o feixe de funções holomorfas. Tomando o grupo de unidades,
temos que U �→ H(U )× (funções holomorfas que não se anulam em nenhum
ponto de U ) define um feixe de grupos abelianos (com os mapas de restrição
280 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

usuais) que denotamos por H× . Note ainda que a função exponencial define
um morfismo de feixes de grupos abelianos em X = C:
expU : H(U ) → H× (U )
f �→ ef
15.1.6 Exemplo (Feixe kernel) Seja φ : F → G um morfismo de feixes de
grupos abelianos. Para cada U , defina

K(U ) = ker(F (U )
φU
✲ G(U ))

em que os mapas de restrição são induzidos pelos de F:


φU
0 K(U ) F(U ) G(U )
resK
UV resF
UV resG
UV

0 K(U ) F(V )φV G(V )

O axioma de cola de K é “herdado” do de F, como é fácil verificar. O feixe K


é chamado de feixe kernel4 de φ e é simplesmente denotado por ker φ. Por
exemplo, o kernel da função exponencial exp : H → H× do exemplo acima é
o feixe constante 2πiZ, associado ao grupo dos múltiplos inteiros de 2πi.
Mas cuidado! Os funtores U �→ im φU e U �→ coker φU (com mapas de
restrição induzidos pelos de G) são apenas pré-feixes, mas não feixes em geral.
Por exemplo, im(exp) não satisfaz o axioma de cola: se U = C \ {0} com
cobertura aberta dada por U0 = C \ R≤0 e U1 = C \ R≥0 , temos que as
funções identidade em U0 e U1 pertencem à imagem de exp (basta tomar o
ramo do logaritmo adequado), mas a identidade em U = U0 ∪ U1 não está na
imagem: de fato, se existisse f ∈ H(U ) tal que ef (z) = z para todo z ∈ U ,
então derivando terı́amos f � (z) · ef (z) = 1 ⇐⇒ f � (z) = 1/z e portanto
� �
dz
2πi = = f � (z) dz = 0
z
|z|=1 |z|=1

uma contradição.
15.1.7 Exemplo (Feixe estrutural de um domı́nio) Seja A um domı́-
nio com corpo de frações K = Frac A. Vamos construir o chamado feixe
estrutural de A, que é o feixe de anéis sobre Spec A (com a topologia de
Zariski) caracterizado pela propriedade
� �
OA D(h) = Ah (h ∈ A)
Basta definirmos para todo aberto não vazio U ⊆ Spec A
def

OA (U ) = Ap ⊆ K
p∈U
4 como diz o ditado popular, “kernel de feixe, feixinho é”.
15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 281

Se U ⊇ V então OA (U ) ⊆ OA (V ) e definimos resU V : OA (U ) �→ OA (V ) como


sendo o mapa de inclusão. Como neste caso os mapas de restrição são todos
injetores, dois elementos f ∈ OA (U ) e g ∈ OA (V ) concordam na intersecção
U ∩ V se, e só se, f = g em K, daı́ é fácil verificar que com estas definições
OA satisfaz o axioma de cola.
Para checar que OA (D(h)) = Ah , vejamos primeiro o caso h = 1, que se
reduz ao princı́pio local-global (teorema 4.2.3 na página 103):

OA (Spec A) = A ⇐⇒ Ap = A
p∈Spec A

Como o que acabamos de provar vale para qualquer domı́nio, em particular


para Ah , o resultado no caso geral segue da bijeção p �→ ph entre D(h) e
Spec Ah e da igualdade (Ah )ph = Ap :
� �
OA (D(h)) = Ap = (Ah )ph = OAh (Spec Ah ) = Ah
p��h ph ∈Spec Ah

A ideia do feixe estrutural de A é interpretar um elemento f ∈ A como


uma “função holomorfa” sobre Spec A com zeros exatamente nos primos p
tais que p � f , enquanto um elemento a/hn ∈ OA (D(h)) = Ah deve ser
visto como uma “função meromorfa” sobre Spec A cujos polos estão contidos
em V ((h)), que é o conjunto dos zeros da “função holomorfa” h. Esta é a
heurı́stica por trás das notações V (a) (“variedade cortada por a”) e D(h)
(“domı́nio de definição de 1/h”).

Pelo axioma de cola, é suficiente saber os valores de um feixe em uma


base para conhecê-lo completamente.5

15.1.8 Exemplo Sejam φ, ψ : F → G dois morfismos de feixes de grupos


abelianos sobre um espaço topológico X. Suponha que, para uma base B de
X, φV = ψV para todo V ∈ B.� Então φ = ψ. De fato, se U ⊆ X é um
aberto arbitrário, escreva U = λ∈Λ Vλ com Vλ ∈ B. Temos um diagrama
comutativo com linhas exatas (ver observação 15.1.3 na página 279)

�F � d0F �
0 F(U ) λ∈Λ F(Vλ ) λ,µ∈Λ F(Vλ ∩ Vµ )
� �
φU λ∈Λ φ Vλ λ,µ∈Λ φVλ ∩Vµ

�G � d0F �
0 G(U ) λ∈Λ G(Vλ ) λ,µ∈Λ G(Vλ ∩ Vµ )

Assim, a flecha vertical da esquerda φU está completamente determinada


pelas duas flechas verticais da direita. Como temos um diagram similar para
ψU com flechas verticais da direita coincidindo com as do diagram acima,
segue que φU = ψU .
5 “diga-me seus valores nos abertos básicos e te direi quem tu és”.
282 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.1.9 Exemplo Seja A um domı́nio. � Como � os conjuntos D(h) formam


uma base de Spec A, a propriedade OA D(h) = Ah do exemplo 15.1.7 na
página 280 completamente determina o feixe estrutural de A.
Por exemplo, se A = C[x, y] e U = Spec A \ {(x, y)} (o complemento da
“origem” do “plano” Spec A), para calcular OA (U ), observe inicialmente que
U = D(x) ∪ D(y) de modo que temos uma sequência exata
� � � � d0 � �
0 ✲ OA (U ) �
✲ OA D(x) ⊕ OA D(y) ✲ OA D(x) ∩ D(y)

que é isomorfa à sequência exata (lembre que D(x) ∩ D(y) = D(xy) é um


aberto básico também)
� � � � d0 � �
0 ✲ OA (U ) ✲ C x, y, 1 ⊕ C x, y, 1

✲ C x, y, 1
x y xy

em que �(f ) = (f, f ) e d0 (f, g) = f − g. Assim,


� � �

OA (U ) = (f, g) ∈ C[x, y, x1 ] × C[x, y, y1 ] � f = g em C[x, y, xy
1
]
� � �

= (f, f ) ∈ C[x, y, x1 ] × C[x, y, y1 ] � f ∈ C[x, y]
= C[x, y]

o que coincide com a intuição: uma função meromorfa em C2 tem polos em


conjuntos de codimensão 1 e como um ponto tem codimensão 2, um elemento
de OA (U ) deve necessariamente ser uma função holomorfa.

15.1.10 Definição Seja F : O(X)◦ → Ab um pré-feixe de grupos abelianos


sobre um espaço topológico X. Seja x ∈ X. Considere o conjunto direcio-
nado6 formado por todas as vizinhaças abertas de x, ordenado pela relação
U � V ⇐⇒ U ⊇ V . O talo Fx de F em x é o grupo abeliano
def
Fx = inj lim F(U )
U �x

Explicitamente, elementos de Fx são classes de equivalência [(U, f )] de


pares (U, f ) com U uma vizinhaça aberta de x e f ∈ F(U ), sendo que a
relação de equivalência identifica seções que concordam em alguma vizinhaça
de x:
existe um aberto W � x tal que
[(U, f )] = [(V, g)] ⇐⇒
W ⊆ U ∩ V e f |W = g|W
A soma de duas classes [(U, f )] e [(V, g)] é definida restringindo-se f e g a
uma vizinhaça comum de x, por exemplo W = U ∩ V : [(U, f )] + [(V, g)] =
[(W, f |W + g|W )].
Intuitivamente, Fx é o grupo de “todas as seções definidas em alguma
vizinhaça aberta de x”, como ilustra os próximos exemplos.
6 ver apêndice A.3 na página 333
15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 283

15.1.11 Exemplo Se H é o feixe de funções holomorfas em X = C, temos


que o talo H0 na origem 0 ∈ X é isomorfo ao anel C{{z}} das séries de
potência convergentes (em alguma vizinhança aberta de 0). Note que este
anel é local, com ideal maximal (z), correspondente às classes das funções
holomorfas que se anulam na origem.
15.1.12 Exemplo Se C é o feixe das funções contı́nuas f : R → R, para
qualquer ponto P ∈ R temos que o talo CP é um anel local com ideal maximal
mP , o ideal das classes [(U, f )] com f (P ) = 0. De fato, se [(U, f )] ∈
/ mP ⇐⇒
f (P ) �= 0, por continuidade existe uma vizinhaça V ⊆ U de P para a qual
f não se anula em nenhum ponto de V e portanto 1/(f |V ) ∈ C(V ), logo
[(U, f )] = [(V, f )] ∈ CP× , i.e., temos CP× = CP \ mP e portanto CP é local.
15.1.13 Exemplo Seja A um domı́nio e OA seu feixe estrutural. O talo de
OA em p ∈ Spec A é dado por
OA,p = inj lim OA (U ) = inj lim OA (D(h)) = inj lim Ah = Ap
U �p D(h)�p h∈p
/

já que os conjuntos D(h) formam uma base de Spec A. Novamente temos
que o talo é um anel local, em que o ideal maximal corresponde às “funções
que se anulam em p” (i.e., pertencem ao ideal gerado por p).
15.1.14 Exemplo Seja F : O(X)◦ → Ab um feixe de grupos abelianos so-
bre um espaço X. Dado um aberto U ⊆ X e uma seção f ∈ F(U ), denotamos
por fx = [(U, f )] ∈ Fx a imagem de f no talo em x ∈ U . Então o mapa

F(U ) �→ Fx
x∈U
f �→ (fx )x∈U
é injetor.7
De fato, se fx = 0 então existe uma vizinhaça aberta Ux ⊆ U de x para
a qual f |Ux = 0. Assim, se f pertence ao kernel do mapa acima, existe
uma cobertura aberta de U na qual f se restringe a 0 em cada aberto desta
cobertura. Pela unicidade no axioma de cola, temos f = 0, mostrando que o
mapa acima é injetor.
15.1.15 Exemplo Seja φ : F → G é um morfismo de pré-feixes de grupos
abelianos em X. Denotamos por φx o morfismo de grupos abelianos entre
talos induzido por φ:
φx : Fx → Gx
[(U, f )] �→ [(U, φU (f ))]
Em particular, observe que se P é um pré-feixe e temos dois morfismos de
pré-feixes φ, ψ : P → F tais que φx = ψx para todo x ∈ X então φ = ψ
pelo exemplo anterior. Assim, um morfismo de um pré-feixe para um feixe é
completamente determinado por seus valores nos talos.
7 ilustando o fato agricultural que um feixe é uma coleção de talos!
284 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.1.2 Espaços localmente anulares


Hora de interromper o estudo geral de feixes pois já temos o suficiente para
definir nossos “objetos geométricos”. Precisamos antes relacionar feixes sobre
espaços topológicos distintos:
15.1.16 Definição Seja f : X → Y uma função contı́nua entre dois espaços
topológicos e seja F um pré-feixe de grupos abelianos sobre X. A imagem
direta f∗ F de F é o pré-feixe sobre Y dado por

(f∗ F)(V ) = F(f −1 (V )) (V ⊆ Y aberto)

sendo os mapas de restrição os de F.

É fácil verificar que se F é um feixe sobre X, sua imagem direta f∗ F


também é um feixe sobre Y . Além disso, se φ : F → G é um morfismo de
feixes sobre X então temos um morfismo de feixes sobre Y

f ∗ φ : f ∗ F → f∗ G

dado por (f∗ φ)V = φf −1 V : F(f −1 (V )) → G(f −1 (V )) para V ⊆ Y aberto.


Em outras palavras, temos um funtor

f∗ : Sh(X) → Sh(Y )

da categoria de feixes sobre X para a categoria de feixes sobre Y .


15.1.17 Definição 1. Um espaço localmente anular é um par orde-
nado (X, OX ) formado por um espaço topológico X e um feixe de anéis
OX sobre X tal que, para todo x ∈ X, o talo OX,x é um anel local.
Denotaremos o ideal maximal de OX,x por mX,x .
2. Um morfismo de espaço localmente anulares é um par ordenado
(f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) em que f : X → Y é uma função contı́nua
e f # : OY → f∗ OX é um morfismo de feixes sobre Y tal que, para todo
ponto x ∈ X, o morfismo induzido nos talos

fx# : OY,f (x) → OX,x


[(V, f )] �→ [(f −1 (V ), fV# (f ))]

é um morfismo local, i.e., fx# (mY,f (x) ) ⊆ mX,x .

Intuitivamente, o ideal maximal mX,x é o ideal das funções que se anu-


lam no ponto x, como vimos nos exemplos logo após a definição de talo
(definição 15.1.10 na página 282). Além disso, exigência sobre fx ser um
morfismo local se traduz em uma condição natural de preservação de funções
que se anulam em um ponto, como veremos em exemplos abaixo.
Morfismos de espaços localmente anulares podem ser compostos: dados

(f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) e (g, g # ) : (Y, OY ) → (Z, OZ )


15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 285

sua composição é dada por

(g ◦ f, (g∗ f # ) ◦ g # ) : (X, OX ) → (Z, OZ ),

em que (g∗ f # ) ◦ g # é a composição de mapas de feixes em Z

g# g∗ f #
OZ ✲ g ∗ OY ✲ g∗ f∗ OX = (g ◦ f )∗ OX

Espaços localmente anulares definem assim uma categoria que denotaremos


por LRS (do inglês locally ringed spaces).

15.1.18 Exemplo (Variedades) Seja X uma variedade diferenciável e seja


OX o feixe de funções reais diferenciáveis sobre X:
def
OX (U ) = {φ : U → R | φ é diferenciável} (U ⊆ X aberto)

Então (X, OX ) é um espaço localmente anular: para cada x ∈ X, o talo OX,x


é um anel local com ideal ideal maximal mX,x dado pelas classes de funções
que se anulam em x (c.f. exemplo 15.1.12 na página 283).
Se f : X → Y é um morfismo de variedades diferenciáveis, então temos
um morfismo correspondente (f, f # ) em LRS em que f # é induzido por
composição com f (c.f. definição de pullback para conjuntos algébricos8 ,
definição 2.3.14 na página 51): para V ⊆ Y aberto,

fV# : OY (V ) → (f∗ OX )(V )


φ �→ φ ◦ f

Naturalmente fV# leva funções que se anulam em f (x) em funções que se


anulam em x, logo fx# (mY,f (x) ) ⊆ mX,x .
Assim, podemos ver a categoria das variedades diferenciáveis como uma
“subcategoria” de LRS. Trocando o adjetivo diferenciável por analı́tico,
temos que também a categoria das variedades analı́ticas “está contida” em
LRS.

15.1.19 Exemplo (Esquemas afins integrais) Seja A um domı́nio. Pelo


exemplo 15.1.13 na página 283, (Spec A, OA ) é um espaço localmente anular,
chamado de esquema afim integral9 associado a A.
Seja φ : A → B um morfismo entre domı́nios. Já sabemos associar a φ uma
função contı́nua f = Spec φ : Spec B → Spec A (teorema 3.3.3 na página 91)
e agora veremos como φ determina um morfismo de feixes f # : OA → f∗ OB
sobre Spec A, caracterizado pela propriedade básica de que
# � � � � � �
fD(h) : OA D(h) → (f∗ OB ) D(h) = OB D(φ(h))
8a principal diferença, claro, é que f # está meio tom acima.
9o nome integral vem de domı́nio de integridade
286 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

coincide com a localização de φ com respeito a h:

φh : Ah → Bφ(h)

Para isto, dado


a �
α= ∈ OA (U ) = Ap ⊆ Frac A (a, s ∈ A)
s
p∈U

basta definirmos
φ(a) �
fU# (α) = ∈ (f∗ OB )(U ) = OB (f −1 U ) = Bq ⊆ Frac B
φ(s)
q∈f −1 U

def
o que de fato faz sentido: dado q ∈ f −1 (U ), temos que p = f (q) = φ−1 q ∈ U ,
logo α = a/s ∈ Ap e assim podemos supor10 que s ∈ / p ⇐⇒ φ(s) ∈ / q,
de modo que φ(a)/φ(s) ∈ Bq como querı́amos. Note em particular que o
morfismo induzido em talos

fq# : OA,f (q) → OB,q (q ∈ Spec B)

nada mais é do que a localização de φ com relação a q:

φq : Aφ−1 q → Bq

Portanto (f, f # ) : (Spec B, OB ) → (Spec A, OA ) é um morfismo de espaços


localmente anulares. Assim, podemos ver a categoria de domı́nios como uma
“subcategoria” de LRS.

Os exemplos acima mostram que a categoria LRS é “grande o suficiente”


para incluir não só todas as categorias de objetos geométricos do dia-a-dia,
como também a categoria dos domı́nios; na próxima seção, veremos que LRS
“contém” até mesmo a categoria de todos os anéis comutativos! Isto nos
permitirá realizar operações com anéis que são usuais em Geometria, tais
como a operação de “colagem11 ”.
Antes de mostrarmos como colar na categoria LRS, precisamos definir
precisamente a noção de “restrição a um aberto” de um morfismo de espaços
localmente anulares.
15.1.20 Definição Seja (X, OX ) um espaço localmente anular e seja U ⊆ X
um aberto.
10 observe que pode não existir um “denominador global” s para α com s ∈ / p para todo
p ∈ U , mas que φ(a)/φ(s), visto como elemento de Frac(B), não depende da escolha da
fração representando α desde que, lógico, φ(s) �= 0, e a prova acima em particular mostra
que é possı́vel escolher tal s (considere q = (0), que pertence a todo aberto não vazio de
Spec B).
11 também comuns nas artes plásticas e, para pessoas desonestas, em várias outras

matérias.
15.1. GEOMETRIA COM CATEGORIA 287

1. A imersão aberta associada a U é o morfismo em LRS

(j, j # ) : (U, OX |U ) �→ (X, OX )

em que j : U �→ X é a inclusão, OX |U é a restrição do feixe OX a U ,


i.e., é o feixe sobre U dado por OX |U (V ) = OX (V ) para todo aberto
V ⊆ U , e j # : OX → OX |U é dado pelo mapa de restrição (V ⊆ X
aberto)

jV# = resV,V ∩U : OX (V ) → j∗ (OX |U )(V ) = OX (V ∩ U )

2. Se (f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) é um morfismo de espaços localmente


anulares, a restrição de (f, f # ) a U é o morfismo em LRS dado pela
composição com a imersão aberta associada a U :
def
(f, f # )|U = (f, f # ) ◦ (j, j # )

Temos também o conceito de “restrição do contra-domı́nio”, que será


utilizado frequentemente mais tarde.
Lema 15.1.21 (Fatoração Aberta) Seja (f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) um
morfismo de espaços localmente anulares. Suponha que a imagem de f esteja
contida em um aberto V ⊆ Y . Então (f, f # ) se fatora unicamente como uma
composição
(g,g # ) #
(X, OX ) ✲ (V, OX |V ) ⊂ (j,j ✲) (Y, OY )
em que (j, j # ) denota a imersão aberta associada a V .

Demonstração: Temos que o mapa de espaços topológicos g : X → V é


unicamente obtido restringindo-se f a V . Por outro lado, o mapa de feixes
f # : OY → f∗ OX em Y se restringe a um mapa de feixes g # : OY |V → g∗ OX
em V e é claro que f # = (j∗ g # ) ◦ j # .

Hora de colar! O próximo lema é simples, não se deixe intimidar com os


ı́ndices (desenhe os “diagramas de Venn” para o caso particular I = {1, 2, 3}).
Lema 15.1.22 (Colando objetos em LRS) Seja {(Xi , OXi )}i∈I uma co-
leção de espaços localmente anulares. Suponha que para cada par (i, j) ∈ I ×I
são dados abertos Uij ⊆ Xi e isomorfismos
#
(fij , fij ) : (Uij , OXi |Uij ) ✲ (Uji , OXj |Uji )

tais que fij (Uij ∩ Uik ) = Uji ∩ Ujk e satisfazendo as seguintes condições de
cociclo:
(i) (fii , fii# ) = id e (fij , fij
# # −1
) = (fji , fji ) ;
# # #
(ii) (fik , fik )|Uij ∩Uik = (fjk , fjk )|Uij ∩Uik ◦ (fij , fij )|Uij ∩Uik
288 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Então existe um espaço localmente anular (X, OX ) juntamente com morfis-


mos (ψi , ψi# ) : (Xi , OXi ) �→ (X, OX ) (“imersões abertas”) tais que

X= ψi (Xi )
i∈I
ψi (Uij ) = ψi (Xi ) ∩ ψj (Xj )
(ψi , ψi# )|Uij = (ψj , ψj# )|Uij ◦ (fij , fij
#
)|Uij
O espaço localmente anular (X, OX ) é unicamente determinado a menos de
isomorfismo por estas condições.

Demonstração: Considere a seguinte relação ∼ na união disjunta i Xi :
x i ∼ xj (xi ∈ Xi , xj ∈ Xj ) ⇐⇒ xi ∈ Uij , xj ∈ Uji e fij (xi ) = xj
As condições
� de cociclo asseguram que esta relação é de equivalência. Defina
X = i Xi / ∼ com a topologia quociente e sejam ψi : Xi → X os mapas de
projeção. Vamos agora construir um feixe em X. Para U ⊆ X aberto, uma
seção de OX (U ) é uma tupla de seções “concordando nas intersecções”:
� � �
� � ∀i, j ∈ I si |Uij ∩ψ−1 (U ) =
def �
OXi (ψi−1 U ) �
i
OX (U ) = (si ) ∈ #
� fij Uji ∩ψ−1 (U ) (sj |Uji ∩ψj−1 (U ) )
i∈I j

Os mapas de restrição são induzidos pelos dos feixes OXi . Temos ainda um
mapa ψi# : OX → ψi∗ OXi de feixes em X dado pela projeção na i-ésima coor-
denada. Com estas definições, uma verificação rotineira mostra que (X, OX )
é um espaço localmente anular e que todas as demais condições do lema são
satisfeitas.

Temos o seguinte “lema companheiro”, cuja prova fica como exercı́cio


para o leitor:
Lema 15.1.23 (Colando morfismos de � LRS) Sejam (X, OX ) e (Y, OY )
dois espaços localmente anulares. Seja i∈I Ui = X uma cobertura aberta
de X e suponha que são dados morfismos de espaços localmente anulares
(fi , fi# ) : (Ui , OX |Ui ) → (Y, OY ) concordando nas intersecções, ou seja,

(fi , fi# )|Ui ∩Uj = (fj , fj# )|Ui ∩Uj para todo i, j ∈ I
Então podemos “colar” estes morfismos: existe um único morfismo em LRS
(f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) tal que (fi , fi# ) = (f, f # )|Ui para todo i ∈ I.

15.2 Esquemas
Assim como uma variedade diferenciável é obtida “colando-se” cópias do Rn ,
um esquema geral será uma “colagem” de esquemas afins, que são os espaços
localmente anulares associados a anéis comutativos. No final, obteremos o
seguinte “dicionário”:
15.2. ESQUEMAS 289

Anéis Esquemas
ideal primo p ∈ Spec A ponto x ∈ X = Spec A
h∈p h ∈ OX (X)�se anula� em x
Ah O
� X� D(h) � �
localização Ah → Agh res : OA D(h) → OA D(gh)
Ap talo OX,x
morfismo φ : A → B (f, f # ) : (Spec B, OB ) → (Spec A, OA )

15.2.1 Feixe estrutural de um anel


O primeiro passo a fim de definir um esquema afim12 é construir um feixe OA
de anéis sobre Spec A generalizando o exemplo 15.1.7 na página 280. Note
que (corolário 4.4.2 na página 109)

D(h) ⊆ D(g) ⇐⇒ h ∈ (g)

e neste caso o mapa natural A → Ah leva g em uma unidade de Ah , logo


pela propriedade universal da localização temos um morfismo canônico

ρg,h : Ag → Ah

Explicitamente, se hn = gf então ρg,h (a/g m ) = af m /hmn (a ∈ A). Se


D(i) ⊆ D(h) ⊆ D(g) então temos um diagrama comutativo
ρg,h ρh,i
Ag Ah Ai
ρg,i

Teorema 15.2.1 (Feixe estrutural) Seja A um anel. Existe um feixe OA


de anéis sobre Spec A e isomorfismos
� �
ξ h : Ah ✲ OA D(h)

(h ∈ A)

tal que se D(h) ⊆ D(g) temos um diagrama comutativo

ξg � �
Ag OA D(g)
ρg,h res

ξh � �
Ah OA D(h)

Além disso, para todo p ∈ Spec A, os mapas ξh induzem um isomorfismo


� �
OA,p = inj lim OA D(h) ∼ = inj lim Ah = Ap
h∈p
/ h∈p
/

12 esta é a melhor frase para lembrar a diferença entre “a fim” e “afim”.


290 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Demonstração: Para um domı́nio D, todas as localizações vivem dentro


de Frac D e assim pudemos construir o feixe como subfeixe do feixe constante
associado a este corpo de frações. Para um anel geral A, construiremos OA
de tal forma que para qualquer U ⊆ Spec A aberto, OA (U ) mora dentro
do produto de todas as localizações de A; definimos OA (U ) como o “limite
projetivo”
� � � �
def �
OA (U ) = (sh ) ∈ Ah � ρg,h (sg ) = sh sempre que D(h) ⊆ D(g)
h∈A
D(h)⊆U

com mapas de restrição dados pelas projeções. Com isto, temos um pré-feixe
sobre Spec A e, para todo g ∈ A, isomorfismos
� �
ξ g : Ag ✲ OA D(g)

� �
s �−→ ρg,h (s) h∈A, D(h)⊆D(g)

que fazem o diagrama do enunciado comutar e assim, para terminar a prova,


só falta mostrar que OA satisfaz o axioma de cola. Antes faremos uma série
de reduções até chegarmos ao “verdadeiro” problema.
Seja U ⊆ Spec A um aberto e seja {Ui }i∈I uma cobertura aberta de U .
Dadas seções fi ∈ OA (Ui ) concordando nas intersecções, devemos mostrar
a existência de uma única f ∈ OA (U ) tal que f |Ui = fi para todo i ∈ I.
Refinando a cobertura e substituindo as fi por suas restrições, podemos supor
sem perda de generalidade que Ui = D(hi ) (hi ∈ A) é um aberto básico.
Além disso, é suficiente provar o caso em que U também é um aberto básico,
pois se o resultado vale neste caso especial, para um aberto�U qualquer � e
abertos
� básicos
� D(h) ⊆ D(g) ⊆ U , haverá elementos α g ∈ O A D(g) e α h ∈
OA D(h) , unicamente determinados pelas condições αg |Ui ∩D(g) = fi |Ui ∩D(g)
e αh |Ui ∩D(h) = fi |Ui ∩D(h) para todo i ∈ I; assim, como αg |D(h) satisfaz as
mesmas condições que αh , teremos αg |D(h) = αh . Sendo sg ∈ Ag e sh ∈ Ah
os únicos elementos tais que ξg (sg ) = αg e ξh (sh ) = αh , pela comutatividade
do diagrama teremos ρg,h (sg ) = sh . Assim, a tupla f = (sg )D(g)⊆U ∈ OA (U )
definirá a cola única dos fi ’s.
Agora que U = D(h) e Ui = D(hi ) têm pH > 7 (são básicos), como o
mapa de localização A → Ah induz um homeomorfismo Spec Ah = D(h) e
isomorfismos canônicos Ahi = Ah [ hi1/1 ], substituindo A por Ah e D(hi ) por
suas correspondentes pré-imagens em Spec Ah , podemos supor sem perda
de generalidade que U = Spec A e que os abertos básicos D(hi ) (i ∈ I)
formam uma cobertura aberta de Spec A (c.f. a mesma redução na prova
do exemplo 15.1.19 na página 285). Mais ainda, como Spec A é compacto
(teorema 3.3.3 na página 91), podemos supor que I é finito. E utilizando
os isomorfismos ξh , finalmente chegamos à essência da questão: temos uma
cobertura aberta �
D(hi ) = Spec A
1≤i≤r
15.2. ESQUEMAS 291

e elementos si ∈ Ahi (1 ≤ i ≤ r) “concordando nas interseções” D(hi ) ∩


D(hj ) = D(hi hj ), i.e.,

ρhi ,hi hj (si ) = ρhj ,hi hj (sj ) ∈ Ahi hj (1 ≤ i, j ≤ r)

e queremos mostrar a existência de um único a ∈ A tal que


a
si = ∈ Ahi para todo i (1 ≤ i ≤ r)
1
Unicidade: considere a sequência exata de A-módulos

0 ✲ K ✲ A ✲

Ah i
1≤i≤r

em que � é o produto dos mapas de localização e K = ker � (c.f. a sequência


da observação 15.1.3 na página 279). Queremos mostrar que K = 0 e pelo
princı́pio local-global (teorema 4.2.3 na página 103) basta, dado um p ∈
Spec A qualquer, verificar que Kp = 0. Existe um aberto básico que contém
este primo, digamos p ∈ D(hi ). Temos (Ahi )p = Ap e a localização de
A → Ahi com respeito a p é a identidade em Ap , logo localizando a sequência
acima obtemos que �p é injetor e assim Kp = 0.
Existência: escreva si = ai /hN i (ai ∈ A e N ∈ N um expoente comum,
utilizando o fato de haver uma quantidade finita de elementos). O fato dos
si ’s “concordarem nas intersecções” pode ser reescrito como
M N +M
(hi hj )M (ai hN N
j − aj hi ) = 0 ⇐⇒ ai hi hj = a j hN
i
+M M
hj em A (∗)

para um M ∈ N suficientemente grande (novamente utilizando a finitude dos


pares (i, j) com 1 ≤ i, j ≤ r). Além disso, temos (ver a demonstração de
teorema 3.3.3 na página 91)
� � �
D(hN j
+M
)= D(hj ) = Spec A =⇒ hNj
+M
· tj = 1 (∗∗)
1≤j≤r 1≤j≤r 1≤j≤r

∈ A, o que fornece uma “partição algébrica da unidade”.


para certos tj �
N +M
Portanto a = 1≤j≤n (ahj ) · tj para qualquer a ∈ A; como estamos
N +M
procurando a ∈ A tal que a/1 = aj /hN M
j = aj hj /hj em Ahj para todo j,
um bom candidato é �
def
a = a j hM
j tj
1≤j≤r

Mostremos que isto funciona. Para um i fixado, temos


� (∗) �
ahN
i
+M
= a j hN
i
+M M
h j tj = a i hM N +M
i hj tj
1≤j≤r 1≤j≤r
� (∗∗)
= ai hM
i hN
j
+M
tj = a i hM
i
1≤j≤r
292 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Assim,
a ai
hM N
i · (ahi − ai ) = 0 =⇒ = N = si em Ahi
1 hi
como desejado.

Observação 15.2.2 Se A é um domı́nio, as duas construções de OA , a do


teorema acima e a do exemplo 15.1.19 na página 285, dão origem a feixes
isomorfos: como uma tupla coerente é “diagonal”, i.e., todos as suas entradas
são iguais quando vistas dentro de Frac A, temos um mapa

Ah → Frac A
D(h)⊆U

que induz um morfismo entre os dois feixes estruturais, que é um isomorfismo


nos abertos básicos. Assim, este morfismo de feixes é um isomorfismo (c.f.
exemplo 15.1.8 na página 281).

15.2.2 Esquemas afins


Agora podemos associar um objeto geométrico a todo anel.

15.2.3 Definição O esquema afim associado ao anel A é o espaço local-


mente anular (Spec A, OA ). Por abuso de linguagem, muitas vezes nos referi-
mos ao próprio Spec A como o esquema afim associado a A, deixando o feixe
OA subentendido.

E após a introdução de todo este formalismo, podemos finalmente dar


a definição geral de esquemas como objetos geométricos obtidos a partir da
“colagem de anéis”:

15.2.4 Definição Um esquema (X, OX ) é um espaço localmente anular


para o qual existe uma cobertura aberta {Uλ }λ∈Λ de X e anéis Aλ (λ ∈ Λ)
de modo que
(Uλ , OX |Uλ ) ∼
= (Spec Aλ , OAλ )(λ ∈ Λ)
(isomorfismo na a categoria LRS).
Um morfismo de esquemas é somente um morfismo em LRS. Assim,
a categoria de esquemas Sch é uma subcategoria plena de LRS. Por abuso
de linguagem, vamos nos referir ao esquema (X, OX ) simplesmente por X
e ao morfismo de esquemas (f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY ) simplesmente por
f: X →Y.

Vamos agora mostrar como associar a cada morfismo of anéis φ : A → B


um morfismo de esquemas

(f, f # ) : (Spec B, OB ) → (Spec A, OA )


15.2. ESQUEMAS 293

Para isto, definimos f = Spec(φ), que é uma função contı́nua (teorema 3.3.3
na página 91). Para definir f # : OA → f∗ OB , observe inicialmente que, para
todo h ∈ A, φ induz um morfismo

φh : Ah → Bφ(h)
a φ(a)
n
�→ (a ∈ A)
h φ(h)n
e que, para um aberto U ⊆ Spec A, temos

D(h) ⊆ U =⇒ D(φ(h)) = f −1 D(h) ⊆ f −1 U

Além disso, se D(h) ⊆ D(g) ⊆ U , então D(φ(h)) ⊆ D(φ(g)) ⊆ f −1 U e temos


um diagrama comutativo
φg
Ag Bφ(g)
ρg,h ρφ(g),φ(h)

φh
Ah Bφ(h)

Portanto podemos definir (U ⊆ Spec A aberto)

f # : OA (U ) → (f∗ OB )(U )
(sg )D(g)⊆U �→ (φg (sg ))D(φ(g))⊆f −1 U

Note que como os abertos básicos D(g) cobrem U , os abertos f −1 D(g) =


D(φ(g)) também formam uma cobertura aberta de f −1 U . Além disso, o dia-
grama comutativo acima garante que tuplas coerentes são levadas em tuplas,
de modo que tudo funciona como deve funcionar. Desta forma, construi-
mos um morfismo de feixes f # : OA → f∗ OB , caracterizado pelo seguinte
diagrama comutativo (h ∈ A)
#
� � fD(h) � � � �
OA D(h) (f∗ OB ) D(h) OB D(φ(h))
ξh ≈ ≈ ξφ(h)
φh
Ah Bφ(h)

Tomando limites, vemos que o morfismo induzido em talos por f # é local e


senta em um diagrama comutativo (q ∈ Spec B)
fq#
OA,φ−1 q OB,q
≈ ≈
φφ−1 q
Aφ−1 q Bq
294 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Assim, (f, f # ) é um legı́timo morfismo de espaços localmente anulares. Desta


forma, temos um funtor contravariante Rings◦ → LRS que associa a um anel
A o esquema afim (Spec A, OA ) e a um morfismo de anéis φ : A → B o mor-
fismo de espaços localmente anulares (f, f # ) : (Spec B, OB ) → (Spec A, OA )
como construı́do acima. O próximo teorema mostra que este funtor “geome-
trização” é fielmente pleno, ou seja, podemos ver a categoria de anéis como
uma subcategoria plena da categoria dos espaços localmente anulares.

Teorema 15.2.5 (Rings é subcategoria plena de LRS) O funtor con-


travariante Rings◦ → LRS acima construı́do é plenamente fiel: para todo
A, B ∈ Rings, existe uma bijeção natural
� �
HomRings (A, B) = HomLRS (Spec B, OB ), (Spec A, OA )

Em outras palavras: dar um morfismo de esquemas afins é o mesmo que dar


um morfismo de anéis.

Demonstração: Seja (f, f # ) : (Spec B, OB ) → (Spec A, OA ) um morfismo


em LRS. Utilizando os isomorfismos A = OA (Spec A) e B = OB (Spec B),
#
obtemos a partir de (f, f # ) um morfismo de anéis fSpec A : A → B. Vamos
# #
agora mostrar que a associação (f, f ) �→ fSpec A é inversa da associação
φ �→ (f, f # ) dada pelo funtor Rings◦ → LRS.
Claramente temos que começando com φ : A → B e aplicando as duas
operações acima em sequência obtemos o morfismo original φ de volta. Por
def #
outro lado, começando com (f, f # ), defina φ = fSpec #
A . Seja (g, g ) o mor-
# #
fismo em LRS associado a φ. Vamos mostrar que (f, f ) = (g, g ).
def
Seja q ∈ Spec B e p = f (q) ∈ Spec A. Temos um diagrama comutativo
#
ξ φ=fSpec A ξ
A OA (Spec A) OB (Spec B) B
loc res res loc
ξ fq# ξ
Ap OA,p OB,q Bq

em que as flechas verticais são induzidas pelos mapas de restrição/localização


(c.f. o morfismo no exemplo 15.1.14 na página 283). Como fq# é local por
hipótese, (fq# )−1 (qBq ) = pAp . Agora tomamos a pré-imagem de qBq ⊆ Bq
em A por dois caminhos: pelo caminho A → Ap → Bq , esta pré-imagem é p;
pelo caminho A → B → Bq , esta pré-imagem é φ−1 (q). Assim, f (q) = p =
φ−1 (q) e portanto f = g = Spec(φ).
Temos agora que f # e g # são dois mapas entre os feixes OA e f∗ OB =
g∗ OB em Spec A. Assim, para mostrar que f # = g # basta mostrar (exem-
plo 15.1.8 na página 281) que estes dois mapas concordam nos abertos básicos
D(h) (h ∈ A). Temos o diagrama comutativo
15.2. ESQUEMAS 295

#
ξ φ=fSpec A ξ
A OA (Spec A) OB (Spec B) B
loc res res loc
#
ξ fD(h) ξ
Ah OA (D(h)) OB (D(φ(h))) Bφ(h)

#
de modo que fD(h) : OA (D(h)) → OB (D(φ(h))) pode ser identificado com a
#
localização φh : Ah → Bφ(h) de φ. O mesmo vale para gD(h) : OA (D(h)) →
# #
OB (D(φ(h))), de modo que fD(h) = gD(h) , como desejado.

15.2.3 Exemplos
Que tal vermos alguns esquemas de verdade?

15.2.6 Exemplo Sejam K e L dois corpos. Os espaços topológicos Spec K


e Spec L são homeomorfos pois consistem apenas de um ponto cada. Porém,
pelo teorema anterior,

HomLRS ((Spec L, OL ); (Spec K, OK )) = HomRings (K, L)

de modo que não há morfismos entre estes dois esquemas afins a não ser
que K seja isomorfo a um subcorpo de L e, neste caso, há tantos morfismos
quanto imersões de K em L! Isto ilustra uma caracterı́stica muito importante:
morfismos de esquemas requerem certa compatibilidade das “funções” dos
dois espaços.

15.2.7 Exemplo (“Retas obesas”) Considere os esquemas afins13

X = Spec Q[x, y]/(x2 ) e Y = Spec Q[x, y]/(x)

Note que embora os dois espaços topológicos sejam homeomorfos, estes dois
esquemas não são isomorfos como espaços localmente anulares: OX contém
elementos nilpotentes enquanto que OY não. Geometricamente, imaginamos
Y como a “reta” x = 0 enquanto que X deve ser pensado como uma “reta
gorda” obtida a partir do plano fazendo-se “x quase igual a 0” (mas só x2 é
realmente 0 em X) e que tem um “tecido adiposo” ou “material infinitesimal”
espalhando-se na direção normal a Y . Observe que temos um morfismo de
“inclusão” f : Y �→ X da reta magra na gorda correspondente ao morfismo
de Q-álgebras Q[x, y]/(x2 ) � Q[x, y]/(x), que leva a “função nilpotente” não
nula x ∈ OX (X) na função zero em OY (Y ) (ou seja, x ∈ OX (X) é uma
“função14 ” não nula se restringe a 0 em Y ).
13 Aqui começamos a utilizar o abuso de linguagem e omitir os feixes na notação.
14 quantas “aspas” neste exemplo, “sacou”?
296 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

O último examplo ilustra uma das caracterı́sticas únicas de esquemas den-


tre os diversos objetos geométricos encontrados em Matemática: a presença
de “funções nilpotentes”. Esta é a razão pela qual em um morfismo de esque-
mas o mapa entre feixes não é automaticamente determinado pelo mapa de
espaços topológicos e precisa ser dado explicitamente, ao contrário do caso
de variedades diferenciáveis, por exemplo.
Como primeiro exemplo de esquema não afim, comece com um esquema
afim (por enquanto os únicos que conhecemos) X = Spec A e seja U ⊆ X
um aberto qualquer. O espaço localmente anular (U, OA |U ) é um esquema
(em geral, não afim): isto segue do seguinte lema e do fato que os abertos
principais D(h) formarem uma base para a topologia de Zariski.
Lema 15.2.8 (Subesquema Aberto Principal) Seja A um anel e h ∈ A.
Temos um isomorfismo de espaços localmente anulares

(Spec Ah , OAh ) ∼
= (D(h), OA |D(h) )

induzido pelo mapa de localização ρ : A → Ah .

Demonstração: Denote por (f, f # ) : (Spec Ah , OAh ) → (Spec A, OA ) o


morfismo de espaços localmente anulares correspondente ao morfismo de lo-
calização ρ : A → Ah . Temos que f induz um homeomorfismo entre Spec Ah
e D(h) ⊆ Spec A. Portanto restringido f e f # : OA → f∗ OAh a D(h)
obtemos um morfismo de espaços localmente anulares (Spec Ah , OAh ) →
(D(h), OA |D(h) ). Falta apenas mostrar que o morfismo de feixes é um iso-
morfismo e para isto basta olharmos para abertos básicos: se D(g) ⊆ D(h), o
#
mapa fD(g) : OA (D(g)) → (f∗ OAh )(D(g)) = OAh (D(ρ(g))) é um isomorfismo

pois Ag = (Ah )ρ(g) .

Corolário 15.2.9 Os abertos afins U de um esquema (X, OX ) (i.e. abertos


U ⊆ X tais que (U, OX |U ) ∼
= (Spec A, OA ) para algum anel A) formam uma
base de X.

Note que, como consequência do corolário (ou do lema), temos mais ge-
ralmente que para todo esquema (X, OX ) e todo aberto U ⊆ X o espaço lo-
calmente anular (U, OX |U ) também é um esquema, o subesquema aberto
determinado por U .
15.2.10 Exemplo Seja X = Spec C[x, y] e seja U = X \ {(x, y)}. Como
U = D(x) ∪ D(y), o esquema (U, OX |U ) pode ser coberto com duas “cartas
afins”
def def
U0 = Spec C[x, y, x1 ] e U1 = Spec C[x, y, y1 ]
Sejam f0 : U0 → X e f1 : U1 → X os morfismos de esquemas induzidos pelos
mapas de localização C[x, y] → C[x, y, x1 ] e C[x, y] → C[x, y, y1 ], respectiva-
mente. As restrições de f0 e f1 fornecem isomorfismos de espaços localmente
anulares (U0 , OU0 ) ∼
= (D(x), OX |D(x) ) e (U1 , OU1 ) ∼
= (D(y), OX |D(y) ).
15.2. ESQUEMAS 297

Restringindo os esquemas U0 e U1 a D(x) ∩ D(y) = D(xy), ambos se


tornam isomorfos ao esquema Spec C[x, y, xy 1
], de modo que podemos pen-
sar em U como a “colagem” (no sentido do lema 15.1.22 na página 287) de
Spec C[x, y, x1 ] e Spec C[x, y, y1 ] ao longo do subesquema Spec C[x, y, xy
1
], ex-
plorando o fato de C[x, y, xy ] ser uma localização comum dos anéis C[x, y, x1 ]
1

e C[x, y, y1 ].

Observação 15.2.11 Se (X, OX ) é um esquema e Y ⊆ X é um subconjunto


fechado, devido a possibilidade de existência de “funções nilpotentes”, existem
em geral diversas maneiras de vermos Y como “subesquema fechado” de X,
ou seja, existem diversos feixes OY “compatı́veis” com OX . Por exemplo, se
X = Spec C[t], temos que Y1 = Spec C[t]/(t) e Y2 = Spec C[t]/(t2 ) são dois
esquemas não isomorfos com o mesmo espaço topológico subjacente {(t)}.

15.2.12 Exemplo (Reta Projetiva) Podemos utilizar a técnica de cola-


gem de espaços localmente anulares do lema 15.1.22 na página 287 para
construir esquemas. Construiremos a versão esquemática da reta projetiva
sobre um anel A. Considere os esquemas afins

X0 = Spec A[x] X1 = Spec A[y]


∪ ∪
U0 = D(x) U1 = D(y)

Seja φ : U0

✲ U1 o isomorfismo de A-esquemas dado pelo isomorfismo de
A-álgebras

A[y]y

✲ A[x]x
y �→ 1/x

O A-esquema obtido colando-se X0 e X1 ao longo de φ é chamado reta


projetiva sobre A, denotado por P1A .
Por exemplo, se A = C o isomorfismo φ identifica os “pontos genéricos” (0)
de X0 = Spec C[x] e X1 = Spec C[y]; além disso, o ponto fechado (x−a) ∈ X0
(a ∈ C \ {0}) é identificado com ponto fechado (y − 1/a) ∈ X1 . Portanto P1C
possui um único ponto genérico e seus pontos fechados são os mesmos de X0
acrescido e um ponto extra “no infinito”, que corresponde ao ideal maximal
(y) ∈ X1 , assim como no caso “clássico” da reta projetiva complexa ou da
esfera de Riemann, que consiste em uma cópia de C acrescida de um “ponto
no infinito”.
No caso clássico, como a esfera de Riemann é compacta, pelo princı́pio do
máximo não há funções holomorfas globalmente definidas além das constan-
tes. Vejamos que o mesmo ocorre em “nossa” reta projetiva. Por construção,
298 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

temos que

OP1C (P1C ) = {(s0 , s1 ) ∈ OX0 (X0 ) × OX1 (X1 ) | φ#


U1 (s1 |U1 ) = s0 |U0 }

= {(s0 (x), s1 (y)) ∈ C[x] × C[y] | s1 (1/x) = s0 (x) em C[x]x }


= {(a, a) ∈ C[x] × C[y] | a ∈ C}
=C

Em particular, como P1C �= Spec OP1C (P1C ) (P1C possui infinitos pontos enquanto
Spec C só possui um), temos que P1C não é afim.

Observação 15.2.13 O espaço projetivo n-dimensional PnA sobre A pode ser


definido de maneira análoga: seja
(i) (i)
X (i) = Spec A[x0 , . . . , x(i)
n ] com a entrada xi omitida
(i) (i)
e Uj = D(xj ) ⊆ X (i) para i, j = 0, 1, . . . , n. Definimos isomorfismos de
(i) (j)
esquemas φij : Uj → Ui correspondentes aos isomorfismos de A-álgebras

(j) (i)
A[x0 , . . . , x(j) (i)
n ]x(j) → A[x0 , . . . , xn ]x(i)
i j

(i)
(j) xk
xk �→ (i)
xj

O espaço projetivo PnA é definido pela colagem associada ao pacote acima.


Na próxima seção, veremos uma maneira mais prática de definir PnA , em que
tudo já vem “colado de fábrica”.

15.2.4 Esquemas Projetivos


Anéis graduados são uma grande fonte de esquemas, os chamados esquemas
projetivos, que são os esquemas correspondentes aos conjuntos algébricos
projetivos.

15.2.14 Definição Seja A = d≥0 Ad um anel graduado.

1. O ideal homogêneo de A
def

A+ = Ad
d>0

é chamado de ideal irrelevante.

2. Definimos
def
Proj A = {p ∈ Spec A | p é homogêneo e p �⊇ A+ }
15.2. ESQUEMAS 299

3. Para todo ideal homogêneo a ⊆ A, definimos

def
V+ (a) = V (a) ∩ Proj A = {p ∈ Proj R | p ⊇ a}

4. Para todo elemento homogêneo h ∈ A, definimos15

def
D+ (h) = D(h) ∩ Proj A = {p ∈ Proj R | p �� h}

É fácil verificar que

(i) V+ ((0)) = Proj R e V+ ((1)) = V+ (A+ ) = ∅.

(ii) V+ (a) ∪ V+ (b) = V+ (ab)


� �
(iii) λ∈Λ V+ (aλ ) = V+ ( λ∈Λ aλ )

Assim, os conjuntos da forma V+ (a) definem os fechados de uma topologia


em Proj A, chamada de topologia de Zariski. Note que se p ∈ V+ (a) existe
um elemento homogêneo x ∈ A+ \ p de modo que se a ∈ a então ax ∈ a ∩ A+
e a ∈ p ⇐⇒ ax ∈ p. Portanto V+ (a) = V+ (a ∩ A+ ) e

Proj A \ V+ (a) = D+ (h)
h∈a∩A+
h homogêneo

Assim, os conjuntos D+ (h) com h ∈ A+ homogêneo formam uma base de


abertos de Proj A.
Seja S ⊆ A um conjunto multiplicativo cujos elementos são todos ho-
mogêneos. Então S −1 A é também é um anel graduado: basta definirmos
deg(a/s) = deg(a) − deg(s) para a ∈ A e s ∈ S elementos homogêneos. Para
um elemento homogêneo h ∈ A, definimos o anel

def
A(h) = {f ∈ Ah | deg(f ) = 0}

Por exemplo, se A = C[x1 , x2 , . . . , xn ] e h = x1 então A(h) = C[ xx21 , . . . , xxn1 ].


Queremos definir uma estrutura de esquema sobre Proj A. O ponto de
partida é o seguinte

Lema 15.2.15 Seja h ∈ A+ um elemento homogêneo. Temos um homeo-


morfismo

ψh : D+ (h) ✲ Spec A(h)


p �−→ ph ∩ A(h)
15 esta definição é literalmente demais!
300 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Demonstração: Seja ρ : A → Ah o mapa de localização. Note que ψh é


dado pela composição

D+ (h) ⊂ ✲ D(h) ✛
Spec ρ
Spec Ah ✲ Spec A(h) (∗)

de modo ψh está bem definido e é contı́nuo.


√ Mostremos que ψh é sobrejetor. Dado q ∈ Spec A(h) , afirmamos que
qAh ∈ Spec Ah , correspondente a um primo p ∈ D+ (h) via Spec ρ, e que
ψh (p) = q.

O ideal qAh é homogêneo: como qAh é um ideal homogêneo de Ah ,
gerado por elementos de grau 0, basta mostrarmos o seguinte
� fato geral:
√ se
b é um ideal homogêneo de um anel graduado B = B então b é
� √ � dN
d∈Z
homogêneo. De fato, se bd ∈ b (bd ∈ Bd ), então ( bd ) ∈ b para
algum N ; se d0 é o menor ı́ndice para o qual bd0 �= 0, temos que bN d0 é a
� N N
componente de grau d0 N em ( bd ) , logo bd0 ∈ b pois b é homogêneo por
√ �
hipótese. Assim, bd0 ∈ b. Subtraindo bd0 de√ bd e repetindo o argumento,
eventualmente concluı́remos que cada bd ∈ b.

O ideal qAh é primo em Ah e q = (qAh ) ∩ A(h) : o ideal (qAh ) ∩ A(h)
consiste nos elementos de grau 0 do ideal homogêneo qAh , ou seja, em somas
de termos da forma aq, a ∈ Ah homogêneo e q ∈ q, com deg(a) = 0 ⇐⇒
√ modo que aq ∈ q, provando a igualdade q = (qAh ) ∩ A(h) .
a ∈ A(h) , de
Se√1 ∈ qAh ⇐⇒ 1 ∈ qAh , terı́amos 1 ∈ q = (qAh ) ∩ A(h) , um absurdo,
logo qAh é um ideal próprio. Agora
√ se x = a/hn√e y = b/hm , com a, b ∈ A
homogêneos, são tais que xy ∈ qAh ⇐⇒ ab ∈ qAh ⇐⇒ (ab)N ∈ qAh
para algum N ∈ N, dividindo por uma potência conveniente de h ∈ A× h , no
anel A(h) obtemos
� �N
adeg(h) bdeg(h) adeg(h) bdeg(h)
· ∈ q = (qAh ) ∩ A(h) =⇒ ∈q ou ∈q
hdeg(a) hdeg(b) hdeg(a) hdeg(b)

Se por exemplo
√ adeg(h) /hdeg(a) ∈ q então adeg(h) /1 ∈ qAh =⇒ x ∈ qAh .
Assim, qAh é primo (lema 3.1.9 na página 85).
def √
O ideal p = Spec(ρ)( qAh ) est � á em D+ (h)�e portanto √ ψh (p) = q:
Primeiro,
√ p ⊆ A é homogêneo: se a
√d ∈ p ⇐⇒ ρ(a d ) ∈ qA h (ad ∈ Ad ),
como qAh é homogêneo, ρ(a √ d ) ∈ qA h ⇐⇒ a d ∈ p para todo d. E√ não
podemos ter p ⊇ A+ ⇐⇒ qAh ⊇ ρ(A+ ) pois √ caso contrário ρ(h) ∈ qAh
já que h ∈ A+ por hipótese, mas ρ(h) ∈ A× h e qAh ∈ Spec Ah , um absurdo.
Assim, p ∈ Proj A ∩ D(h) = D+ (h). Finalmente ψh (p) = q é claro seguindo
a composição (∗). Isto completa a prova de que ψh é sobrejetor.
ψh é injetor e um mapa fechado: estenda a definição de ψh para ideias
homogêneos arbitrários: ψh (a) = ah ∩ A(h) . Vamos mostrar que para ideais
homogêneos a, p com p primo temos

ψh (p) ⊇ ψh (a) ⇐⇒ p ⊇ a
15.2. ESQUEMAS 301

Se provarmos a equivalência acima, mostraremos que ψh : D+ (h) → Spec A(h)


é injetor e que é um mapa fechado, o que completará a prova de que ψh é
um homeomorfismo. A implicação ⇐ é trivial. Suponha que ψh (p) ⊇ ψh (a)
e seja a ∈ a um elemento homogêneo. Então adeg(h) /hdeg(a) ∈ ψh (a) ⊆ ψh (p)
e isto implica que a ∈ p, como querı́amos.

Agora sejam g, h ∈ A+ dois elementos homogêneos. Temos um diagrama


comutativo

D+ (g) D+ (gh) D+ (h)


ψg ψf g ψh

Spec A(g) Spec A(gh) Spec A(h)

em que as flechas horizontais da linha superior são inclusões enquanto as


da linha inferior são induzidas pelos mapas A(g) → A(gh) e A(h) → A(gh) ,
restrições de Ag → Agh e Ag → Agh (de fato, note que se a/g n (a ∈ A) tem
grau 0, então ahn /(gh)n tem grau 0 também). Como os conjuntos D+ (h)
formam uma base de Proj A, podemos transportar a estrutura de esquema
dos Spec A(h) para Proj A: o diagrama acima assegura a compatibilidade nas
intersecções de modo que os vários feixes OA(h) “colam” e definem um feixe
OProj A sobre Proj A (c.f. lema 15.1.22 na página 287). Assim, obtemos um
esquema (Proj A, OProj A ), denominado o esquema projetivo associado ao
anel graduado A.
15.2.16 Exemplo Considere o anel graduado
Z[x, y, z]
A=
(y 2 z − x3 + xz 2 )
Temos que o esquema projetivo Proj A pode ser coberto com duas “cartas
� Z[x, y, z] é um� primo homogêneo
afins” D+ (y) e D+ (z): de fato, se p ∈ Spec
correspondente a um primo em Proj A \ D+ (y) ∪ D+ (z) , então
p ⊇ (y, z, y 2 z − x3 + xz 2 ) = (x3 , y, z) =⇒ p ⊇ (x, y, z) = Z[x, y, z]+
o que seria um absurdo. Logo Proj A é a colagem dos esquemas afins
Z[ xy , yz ]
Spec A(y) = Spec � �
( yz ) − ( xy )3 + ( xy ) · ( yz )2
Z[ xz , yz ]
Spec A(z) = Spec � �
( yz )2 − ( xz )3 + ( xz )

ao longo dos subesquemas abertos correspondentes à localização comum


Z[ xy , yz , yz ] Z[ xz , yz , yz ]
A(zy) = � �=� �
( yz ) − ( xy )3 + ( xy ) · ( yz )2 ( yz )2 − ( xz )3 + ( xz )
302 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.3 Funtor de Pontos e Produto Fibrado


Até o momento, vimos esquemas como uma colagem de anéis. Outro ponto
de vista muito importante, talvez o mais natural sob a ótica geométrica, é o
chamado funtor de pontos associado a um esquema, que permite vê-lo como
um objeto geométrico “estratificado” segundo os “domı́nios de definição” de
seus pontos.
Os conceitos funcionam em qualquer categoria, então vamos trabalhar
neste ambiente mais geral por alguns instantes.
15.3.1 Definição Seja C uma categoria e seja S ∈ C um objeto.
1. Um S-objeto é simplesmente um morfismo X → S; um morfismo de
S-objetos entre φ : X → S e ψ : Y → S é um morfismo f : X → Y
que é “compatı́vel com os morfismos base”, ou seja, tal que o seguinte
diagrama comuta:

f
X Y

φ ψ
S

O conjunto de todos os S-morfismos entre φ e ψ será denotado por


HomS (X, T ). Os S-objetos definem uma subcategoria plena de C que
denotamos por C/S.
2. O funtor de pontos associado a X é o funtor contravariante repre-
sentado por X, ou seja, dado em objetos por

X : C/S → Sets
T �→ HomS (X, T )

e em morfismos por composição: dado um S-morfismo f : T � → T ,


temos

X(f ) : X(T ) → X(T � )


α �→ α ◦ f

Neste contexto, um elemento de X(T ) = HomS (T, X) será chamado de


T -ponto.

Note que um morfismo de S-objetos f : X → Y define, por composição,


um morfismo entre os funtores de pontos associados, que ainda denotamos
por f : para um S-objeto T ,

f : X(T ) = HomS (T, X) → Y (T ) = HomS (T, Y )


φ �→ f ◦ φ
15.3. FUNTOR DE PONTOS E PRODUTO FIBRADO 303

15.3.2 Definição Dados dois S-objetos φ : X → S e ψ : Y → S, dizemos


que um objeto X ×S Y ∈ C é um produto fibrado de X e Y sobre S
se X ×S Y representa o produto cartesiano dos funtores de pontos de X e
Y . Explicitamente: X ×S Y vem equipado de fábrica com dois S-morfismos
projeção p : X ×S Y → X e q : X ×S Y → Y de modo que temos uma bijeção
natural

X ×S Y (T ) = X(T ) × Y (T )
t �→ (p ◦ t, q ◦ t)

Em outras palavras, é fácil construir morfismos chegando em um produto


fibrado: dados dois S-morfismos f : T → X e g : T → Y , existe um único
S-morfismo (f, g) : T → X ×S Y para o qual o seguinte diagrama comuta:

∃!(f,g) X ×S Y
p q

f
T X Y
g
φ ψ
τ

15.3.3 Exemplo Na categoria de conjuntos ou espaços topológicos, o pro-


duto fibrado de dois S-objetos φ : X → S e ψ : Y → S sempre existe e é dado
por
X ×S Y = {(x, y) ∈ X × Y | φ(x) = ψ(y)}
com os mapas de projeção p : X ×S Y → X e q : X ×S Y → X usuais:
p(x, y) = x e q(x, y) = y.
O produto fibrado possui interpretações interessantes para vários casos
particulares. Por exemplo, na categoria de espaços topológicos, se X é um
subespaço de S e φ : X �→ S é o morfismo de inclusão, então X ×S Y é
homeomorfo a ψ −1 X, a projeção q : X ×S Y �→ Y é dada pela inclusão
ψ −1 X �→ Y enquanto que a projeção p : X ×S Y → X é dada pela restrição
de ψ a ψ −1 X:
q
ψ −1 X X ×S Y Y
ψ|ψ−1 X p ψ
φ
X X S

Em geral, podemos pensar na flecha da esquerda como uma “mudança de


base” da flecha da direita; a restrição é apenas um caso particular desta
operação.
304 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.3.1 Funtor de pontos


Agora vamos especializar a discussão para a categoria de esquemas Sch. Para
S ∈ Sch, um S-objeto será chamado de S-esquema ou esquema sobre S;
é o conceito análogo de uma A-álgebra. Dado um S-esquema p : X → S, por
abuso de linguagem, vamos nos referir ao próprio X como o S-esquema se
p é claro pelo contexto. Um morfismo de S-esquemas entre p : X → S
e q : Y → S é um morfismo de esquemas f : X → Y tal que q ◦ f = p. A
categoria de S-esquemas é denotada por Sch/S. Note que como todo anel é
uma Z-álgebra, todo esquema é um (Spec Z)-esquema.
Por simplicidade, denotaremos o funtor de pontos associado a X pelo
mesmo sı́mbolo. Assim,
def
X(T ) = HomSch/S (T, X) (T ∈ Sch/S)

Se T = Spec A, abreviaremos X(Spec A) por X(A) e referiremo-nos aos ele-


mentos de X(A) como pontos com valores em A. Segue imediatamente de
lema 15.1.23 na página 288 que o funtor� de pontos se comporta como um
“feixe na categoria Sch/S”: se T = α Tα é uma cobertura aberta de T ,
temos que
� � � �

X(T ) = (tα ) ∈ X(Tα ) � tα |Tα ∩Tβ = tβ |Tα ∩Tβ para todo par (α, β)
α

15.3.4 Exemplo (Conjuntos Algébricos Afins) Seja k um corpo e con-


sidere a k-álgebra
k[x1 , . . . , xn ]
A= (fi ∈ k[x1 , . . . , xn ])
(f1 , . . . , fm )
Considere o k-esquema afim associado X = Spec A. Seja l ⊇ k uma extensão
de corpos. Temos que os pontos com valores em l de X são dados por

X(l) = HomSch/k (Spec l, X) = Homk-alg (A, l)

Mas dar um morfismo de k-álgebras φ : A → l é o mesmo que dar uma n-


upla (a1 , . . . , an ) ∈ ln tal que fi (a1 , . . . , an ) = 0 para todo i = 1, . . . , m, já
que neste caso podemos definir φ(x̄i ) = ai . Em outras palavras, φ corres-
ponde a um ponto com coordenadas em l do conjunto algébrico definido pelos
polinômios fi : temos uma bijeção natural

X(l) = {(a1 , . . . , an ) ∈ ln | fi (a1 , . . . , an ) = 0 para todo i = 1, . . . , m}

Ou seja, um ponto com valores em l de X é realmente um ponto com va-


lores em l! Podemos assim pensar em um k-esquema X como um “con-
junto algébrico definido sobre k”, mesmo quando k não é algebricamente
fechado. Por exemplo, para o R-esquema X = Spec R[x, y]/(x2 + y 2 + 1) te-
mos X(R) = ∅ enquanto que X(C) é o “cı́rculo complexo de raio i”. Supimpa,
né?
15.3. FUNTOR DE PONTOS E PRODUTO FIBRADO 305

Podemos generalizar o exemplo anterior:

Lema 15.3.5 Seja X um esquema. Para x ∈ X, denote por κ(x) o corpo


residual do anel local OX,x . Para todo corpo �, temos uma bijeção natural
� � �
X(�) = (x, φ) � x ∈ X e φ ∈ HomRings (κ(x), �)

Demonstração: Seja η = (0) o único ponto de Spec �. A cada elemento


(f, f # ) : (Spec �, O� ) → (X, OX ) de X(�), associamos o ponto x = f (η) ∈ X e
o morfismo φ : κ(x) → � induzido pelo morfismo de talos fη# : OX,x → O�,η =
� (note que como este morfismo é local por definição, o ideal maximal mx
de OX,x pertence ao kernel de fη# , logo podemos definir φ(a) = fη# (a) para
a ∈ OX,x ).
Reciprocamente, dado um par (x, φ) como acima, podemos definir um
morfismo (f, f # ) : (Spec �, O� ) → (X, OX ) decretando f (η) = x, de modo
que o feixe16 f∗ O� é agora “concentrado sobre um único ponto x”:

� se x ∈ U
(f∗ O� )(U ) = (U ⊆ X aberto)
0 caso contrário

Assim, para especificar f # : OX → f∗ O� , basta considerar os abertos U que


contém x, para os quais definimos fU# : OX (U ) → f∗ O� (U ) = � como a
composição
OX (U ) ✲ OX,x ✲ ✲ κ(x) φ✲ �

É fácil verificar que, com estas definições, (f, f # ) é um morfismo de esquemas


e que as duas associações acima descritas são inversas uma da outra.

15.3.6 Exemplo (Reta Projetiva) Seja k um corpo e considere o Spec k-


def
esquema P1k = Proj k[x0 , x1 ]. Se l ⊇ k uma extensão de corpos, temos uma
bijeção natural

P1k (l) = {(a0 : a1 ) | (a0 , a1 ) ∈ l2 \ {(0, 0)}}

em que (a0 : a1 ) denota a classe de equivalência de pares em l2 \ {(0, 0)}


em que identificamos dois vetores se um deles é múltiplo l-escalar do outro,
ou seja, temos um ponto da reta projetiva clássica! De fato, considere a
cobertura aberta afim

P1k = Spec k[ xx10 ] ∪ Spec k[ xx01 ]

Dado f ∈ P1k (l) = HomSpec k (Spec l, P1k ), a imagem de f pertence a uma


das duas cartas acima, digamos a primeira, de modo que temos um mor-
fismo de esquemas afins Spec l → Spec k[x1 /x0 ] sobre Spec k (lema 15.1.21
16 às vezes denominado “feixe arranha-céu” sobre x
306 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

na página 287), i.e., um morfismo de k-álgebras k[x1 /x0 ] → l, que é definido


pela imagem a ∈ l de x1 /x0 . Associe o par (1 : a) a este f . Da mesma
forma, se a imagem de f está contida em Spec k[x0 /x1 ], seja b ∈ l a imagem
de x0 /x1 pelo morfismo de k-álgebras correspondente e associe o par (b : 1) a
f . Uma verificação imediata mostra que se a imagem de f pertence às duas
cartas, então os pares associados são iguais. Como este processo é reversı́vel,
obtemos a bijeção procurada.
15.3.7 Exemplo (Anel de Números Duais) Sejam k, A e X = Spec A
como no exemplo anterior. Considere a k-álgebra B = k[t]/(t2 ), chamada de
anel números duais. Seguindo a tradição, denotaremos por � a imagem de t
em B (notação esta remonta à pré-história; em algumas pinturas paleolı́ticas,
vê-se o desenho de um homem matando um bisão e, ao lado, o anel de números
duais B = k[�]).
Como são os elementos de
X(k[�]) = HomSch/k (Spec k[�], A) = Homk−alg (A, k[�])?
Dar um morfismo de k-álgebras φ : A → k[�] agora corresponde a dar uma
n-upla (a1 + b1 �, . . . , an + bn �) ∈ k[�]n (aj , bj ∈ k) tal que fi (a1 + b1 �, . . . , an +
bn �) = 0 em k[�] para todo i = 1, . . . , m. Como �2 = 0, aplicando a fórmula
de Taylor, obtemos
� ∂fi
fi (a1 + b1 �, . . . , an + bn �) = fi (a1 , . . . , an ) + (a1 , . . . , an ) · bj �
∂xj
1≤j≤n

que é 0 em k[�] para todo i se, e só se, (a1 , . . . , an ) é um ponto com coordena-
das em k do conjunto algébrico definido por fi (x1 , . . . , xn ) = 0, i = 1, . . . , m, e
(b1 , . . . , bn ) é um “vetor tangente” ao conjunto algébrico neste ponto, também
com coordenadas em k.
Por exemplo, para o R-esquema X = R[x, y]/(x2 − y) (uma “parábola”),
temos que um R[�]-ponto de X é um par consistindo de um ponto real da
parábola (a, a2 ), a ∈ R, e um vetor tangente real b · (1, 2a), b ∈ R. Geometri-
camente, temos a seguinte “explicação”: Spec R[�] é um “ponto gordo” obtido
a partir da “reta real” Spec R[x] “quase” fazendo-se x = 0, de modo que há
certo “material infinitesimal extra” transbordando para os lados, nas direções
normais ao “ponto” Spec R[x]/(x). Assim, para especificar um morfismo
Spec R[�] → X precisamos dizer não só a imagem do “ponto” Spec R[x]/(x)
mas também a imagem da “parte infinitesimal”, que corresponde ao vetor
tangente.
O funtor de pontos tem uma descrição particularmente simples para es-
quemas afins.
Teorema 15.3.8 (Morfismos para um esquema afim) Seja X um es-
quema e seja A um anel. Temos uma bijeção natural
HomSch (X, Spec A) = HomRings (A, OX (X))
#
(f, f # ) �→ fSpec A
15.3. FUNTOR DE PONTOS E PRODUTO FIBRADO 307


Demonstração: Seja X = α Uα uma cobertura afim de X. Dado
φ : A → OX (X), construı́mos um morfismo f : X → Spec A da seguinte
maneira: seja φα = resXUα ◦φ : A → OX (Uα ) e seja fα : Uα → Spec A o
morfismo correspondente de esquemas afins. Vamos mostrar que os fα ’s
concordam nas intersecções e assim podem ser colados pelo lema 15.1.22 na
página 287.

Seja γ Vγ = Uα ∩ Uβ uma cobertura afim de Uα ∩ Uβ . Temos dois
morfismos entre os esquemas afins Vγ e Spec A: fα |Vγ e fβ |Vγ . Porém ambos
correspondem ao mesmo morfismo de anéis resXVγ ◦φ. Portanto fα |Vγ =
fβ |Vγ para todo k e assim fα |Uα ∩Uβ = fβ |Uα ∩Uβ , como desejado.
#
Reciprocamente, dado f : X → Spec(A), definindo φ = fSpec A e repetindo
a construção acima, obtemos um morfismo f : X → Spec(A) tal que f � |Uα =

f |Uα para todo α, portanto f � = f .

def
15.3.9 Exemplo Seja Gm = Spec Z[x, x1 ]. Dado um esquema T , temos
bijeções naturais

Gm (T ) = HomRings (Z[x, x1 ], OT (T )) = OT (T )×

em que a última bijeção é dada por φ �→ φ(x), utilizando a propriedade


universal da localização.

Às vezes, é mais fácil descrever um mapa entre funtores de pontos expli-
citamente; neste caso, o próximo resultado, que na verdade vale em qualquer
categoria, permite-nos recuperar o morfismo entre esquemas.

Teorema 15.3.10 (Princı́pio de Yoneda) Seja S um esquema e sejam X


e Y dois S-esquemas. Dar um S-morfismo f : X → Y é o mesmo que dar
um morfismo entre seus funtores de pontos fT : X(T ) → Y (T ) (T um S-
esquema).

Demonstração: Já vimos que um morfismo de esquemas determina um


morfismo entre os funtores de pontos. Reciprocamente, suponha dado um
morfismo F : X → Y , seja f : X → Y a imagem da identidade idX : X → X
por FX : X(X) → Y (X). Então f induz o morfismo de funtores F dado: se
t : T → X é um T -ponto de X, então do diagrama comutativo

FX
X(X) Y (X)
X(t) Y (t)
FT
X(T ) Y (T )

obtemos FT (t) = f ◦ t seguindo a imagem de idX ∈ X(X).


308 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.3.11 Exemplo Seja Gm = Spec Z[x, x1 ] o esquema do exemplo 15.3.9 na


página precedente. Temos um morfismo de funtores de pontos
Gm (T ) = OT (T )× → Gm (T ) = OT (T )×
a �→ a−1
que determina unicamente um morfismo de esquemas i : Gm → Gm . Para
encontrá-lo explicitamente, pela prova do teorema acima, basta tomar a
imagem de idGm por iGm : Gm (Gm ) → Gm (Gm ); como idGm corresponde
a x ∈ Z[x, x1 ]× , temos que i é o mapa que corresponde a x−1 ∈ Z[x, x1 ]× , ou
seja, o mapa induzido pelo automorfismo de Z[x, x1 ] dado por x �→ x−1 .

15.3.2 Produto Fibrado


Queremos mostrar que o produto fibrado sempre existe na categoria de es-
quemas. Começamos com um simples
Lema 15.3.12 Sejam A e B duas C-álgebras. Então
Spec A ×Spec C Spec B = Spec(A ⊗C B)
em que os morfismos de projeção
p : Spec(A ⊗C B) → Spec A e q : Spec(A ⊗C B) → Spec B
são induzidos pelos morfismos naturais de C-álgebras
α : A → A ⊗C B β : B → A ⊗C B
a �→ a ⊗ 1 b �→ 1 ⊗ b
Demonstração: Segue diretamente de teorema 15.3.8 na página 306 e
da propriedade universal do produto tensorial de álgebras (teorema 5.3.1 na
página 128).

Lema 15.3.13 Sejam U ⊆ X e V ⊆ Y dois subesquemas abertos dos S-


esquemas X e Y . Se X ×S Y existe, então
U ×S V = p−1 (U ) ∩ q −1 (V ) ⊆ X ×S Y
em que p e q são as projeções de X ×S Y para X e Y , respectivamente.
Demonstração: Seja W = p−1 (U ) ∩ q −1 (V ). Temos as seguintes bijeções
naturais (lema 15.1.21 na página 287):
HomS (T, W )
= {τ ∈ HomS (T, X ×S Y ) | τ (T ) ⊆ W }
= {(f, g) ∈ HomS (T, X) × HomS (T, Y ) | f (T ) ⊆ U e g(T ) ⊆ V }
= HomS (T, U ) × HomS (T, V )
15.3. FUNTOR DE PONTOS E PRODUTO FIBRADO 309

Agora podemos finalmente mostrar que


Teorema 15.3.14 Sejam X e Y dois S-esquemas. Então X ×S Y existe na
categoria de S-esquemas.

Demonstração: A ideia da demonstração é “colar” os diversos produtos


fibrados de subesquemas abertos de X e Y a fim de obter X ×S Y . A condição
de cociclo (ver lema 15.1.22 na página 287) é automaticamente verificada pela
propriedade universal da definição de produto�fibrado.
Vamos primeiramente mostrar que se X = α Xα é uma cobertura aberta
de X e cada produto fibrado (Xα ×S Y, pα , qα ) existe então X ×S Y também
existe. Defina, para cada par (α, β),
def
Uαβ = p−1
α (Xα ∩ Xβ ) ⊆ Xα ×S Y

Pelo lema anterior, temos que ambos Uαβ e Uβα são produtos fibrados de Xα ∩
Xβ e Y sobre S, portanto há um único S-isomorfismo φαβ : Uαβ

✲ Uβα
compatı́vel com os morfismos de projeção. Em particular, da unicidade temos
φαα = id e φαβ = φ−1 βα . Além disso, para cada tripla (α, β, γ),

def
Uαβγ = Uαβ ∩ Uαγ = p−1
α (Xα ∩ Xβ ∩ Xγ ) ⊆ Xα ×S Y
def
Uγαβ = Uγα ∩ Uγβ = p−1
γ (Xα ∩ Xβ ∩ Xγ ) ⊆ Xγ ×S Y

são todos produtos fibrados de Xα ∩Xβ ∩Xγ e Y sobre S. Como as restrições


de φαγ e φβγ ◦φαβ fornecem isomorfismos entre Uαβγ e Uγαβ compatı́veis com
os mapas de projeção, novamente pela unicidade da propriedade universal
temos que φαγ = φβγ ◦ φαβ . Assim, as condições de cociclo se verificam
e podemos colar os esquemas Xα ×S Y de modo a obter um S-esquema
X ×S Y , bem como colar os mapas de projeção pα , qα de modo a obter
mapas p : X ×S Y → X e q : X ×S Y → Y . Para mostrar que (X ×S Y, p, q)
é realmente o produto fibrado de X e Y sobre S, identificamos inicialmente
Xα ×S Y com os subesquemas abertos de X ×S Y correspondentes. Agora,
dado um S-esquema T e dois pontos f ∈ X(T ) e g ∈ Y (T ), sendo Tα =
f −1 (Xα ×S Y ) e fα = f |Tα , temos que para cada α existe um único ponto
tα ∈ Xα ×S Y (Tα ) tal que p ◦ tα = fα e q ◦ tα = g. Novamente pela unicidade
da propriedade universal, temos que tα |Tα ∩Tβ = tβ |Tα ∩Tβ , de modo que temos
um único ponto t ∈ X ×S Y (T ) tal que p ◦ t = f e q ◦ t = g, como desejado.
Agora suponha que S é afim. Se Y é afim, como o produto fibrados de dois
S-esquemas afins existe, pela construção acima X ×S Y existe. Aplicando
novamente o argumento acima com X e Y trocados concluı́mos que o produto
fibrado X ×S Y existe para X e Y arbitrários.
Para um S esquema qualquer, seja Sα uma cobertura afim de S. Denote
por f : X → S e g : Y → S os morfismos base e sejam Xα = f −1 (Sα ) e
Yα = g −1 (Sα ). Já sabemos que Xα ×Sα Yα existem. Note que temos um
isomorfismo Xα ×Sα Yα = Xα ×S Y . Finalmente, aplicando o argumento
inicial mais uma vez, obtemos que X ×S Y existe no caso geral.
310 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

15.3.15 Exemplo Seja B uma A-álgebra. Da construção acima, temos ime-


diatamente P1A ×Spec A Spec B = P1B .

15.3.16 Exemplo Seja Gm = Spec Z[x, x1 ] o esquema do exemplo 15.3.9 na


página 307. Como Gm (T ) = OT× , temos um morfismo de funtores

(Gm ×Spec Z Gm )(T ) = Gm (T ) × Gm (T ) → Gm (T )


(g, h) �→ gh

que determina unicamente um morfismo de esquemas

m : Gm ×Spec Z Gm → Gm

pelo lema de Yoneda (teorema 15.3.10 na página 307). Explicitamente, temos

Gm ×Spec Z Gm = Spec Z[x, x1 ] ⊗Z Z[x, x1 ] = Spec Z[x, x1 , y, y1 ]

e m é o morfismo correspondente ao morfismo de anéis

Z[x, x1 ] → Z[x, x1 , y, y1 ]
x �→ xy

Encerramos com uma definição, que “globaliza” o cálculo de fibras que


vimos no teorema 5.4.2 na página 132.
15.3.17 Definição Seja f : X → Y um morfismo de esquemas. Seja y ∈ Y .
A fibra de y com relação a f é o κ(y)-esquema X ×Y Spec κ(y).

15.4 Propriedades de esquemas


Nesta seção, vamos listar alguns adjetivos que você pode usar para adornar
seus esquemas. Começamos com propriedades que só dependem do espaço
topológico subjacente.
15.4.1 Definição (Propriedades topológicas) Um esquema (X, OX )
(i) é irredutı́vel se o espaço topológico X é irredutı́vel;
(ii) é conexo se o espaço topológico X é conexo;
(iii) tem dimensão n se n é o maior inteiro para o qual existe uma cadeia
de fechados irredutı́veis

X � Zn � Zn−1 � · · · � Z1 � Z0 �= ∅

Como um esquema é essencialmente uma colagem de anéis, qualquer pro-


priedade de anéis estável por localização se estende naturalmente a esquemas.
Assim, temos
15.4. PROPRIEDADES DE ESQUEMAS 311

15.4.2 Definição (Propriedades locais de esquemas) Dizemos que um


esquema (X, OX ) é

(i) reduzido se OX,x é um anel reduzido para todo x;

(ii) integral se X é reduzido e irredutı́vel;

(iii) normal se OX,x é um domı́nio normal para todo x ∈ X;

(iv) regular se OX,x é um anel regular para todo x ∈ X;



(v) localmente noetheriano se possui uma cobertura aberta X = i∈I Ui
em que cada Ui ∼
= Spec Ai é afim com Ai noetheriano; se além disso
podemos tomar I finito, dizemos que o esquema é noetheriano.

Como você já deve ter percebido, as definições acima não são indepen-
dentes entre si: por exemplo, temos

+localmente noetheriano
normal regular
(corolário 14.5.9)
+irredutı́vel

integral irredutı́vel conexo

reduzido

Para Y -esquemas, temos as seguintes “versões relativas”:

15.4.3 Definição Um morfismo de esquemas (f, f # ) : (X, OX ) → (Y, OY )


é dito

(i) uma imersão aberta se f se restringe a um homeomorfismo entre X


e um aberto de Y e, para todo x ∈ X, o mapa fx# : OY,f (x) → OX,x é
um isomorfismo;

(ii) uma imersão fechada se f se restringe a um homeomorfismo entre X e


um fechado de Y e, para todo x ∈ X, fx# : OY,f (x) → OX,x é sobrejetor;

(iii) dominante se f (X) é um conjunto denso em Y ;

(iv) quase-compacto se para qualquer aberto afim V ⊆ Y , sua pré-imagem


f −1 V é um conjunto compacto;

(v) afim se f −1 (V ) é um aberto afim de X para todo aberto afim V ⊆ Y ;

(vi) plano se fx# : OY,f (x) → OX,x é plano para todo x ∈ X;

(vii) fielmente plano se é plano e f é sobrejetor;


312 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

(viii) localmente de tipo finito se existem coberturas abertas


� �
Y = Vi e f −1 Vi = Uij (i ∈ I)
i∈I j∈Ji

com Vi ∼ = Spec Ai e Uij ∼ = Spec Bij afins tais que, para todo i ∈ I e
j ∈ Ji , Bij é uma Ai -álgebra finitamente gerada via o morfismo de anéis
induzido por f # :
fV#
Ai ∼
= OY (Vi ) ✲
i
OX (f −1 Vi ) ✲ OY (Uij ) ∼
res
= Bij
Se além disso (f, f # ) é quase-compacto, então dizemos que este mor-
fismo é de tipo finito;
(ix) finito (respectivamente integral) se é afim e se existe uma cobertura

Y = i∈I Vi com Vi afins tais que, para todo i ∈ I, fV#i : OY (Vi ) →
OX (f −1 Vi ) é um morfismo finito (respectivamente integral) de anéis;
def
(x) quase-finito se para todo y ∈ Y , a fibra Xy = X ×Y Spec κ(y) é um
conjunto finito e se OXy ,x é finito sobre κ(y) (via o morfismo de feixes
correspondente à projeção Xy → Spec κ(y)) para todo x ∈ Xy .

Nos exemplos a seguir, todos os morfismos são quase-compactos e, com


exceção do último, afins.

morfismo qualidades
Spec Ah �→ Spec A imersão aberta, tipo finito, plano
Spec A/a �→ Spec A imersão fechada, finito

Spec Z[ 2] � Spec Z finito, dominante, fielmente plano

Spec Z[ 2, 13 ] → Spec Z tipo finito, quase-finito, dominante, plano
Spec A[x] � Spec A tipo finito, dominante, fielmente plano
PnA → Spec A tipo finito, dominante, fielmente plano
As definições acima não são independentes entre si: por exemplo, temos

quase-finito imersão aberta plano

imersão fechada finito tipo finito

afim quase-compacto

As seguintes propriedades não são generalizações de propriedades de


anéis, mas se referem a “propriedades topológicas globais” relativas à co-
lagem em si:
15.4. PROPRIEDADES DE ESQUEMAS 313

15.4.4 Definição Um morfismo f : X → Y de esquemas é dito

(i) separado (respectivamente quase-separado) se o morfismo diagonal


(id, id) : X → X ×Y X é uma imersão fechada (respectivamente quase-
compacto);

(ii) próprio se é separado e universalmente fechado, i.e., para todo Y -


esquema Z, a mudança de base X ×Y Z → Z é fechada (como mapa de
espaços topológicos).

Morfismos separados correspondem à noção de espaços Hausdorff, en-


quanto que morfismos próprios são aqueles “relativamente compactos”. Na
prática, todo morfismo encontrado na natureza é separado e os dois exem-
plos mais importantes de morfismos próprios são os finitos e os projetivos,
e.g., PnA → Spec A. Por serem propriedades globais, não vamos falar muito
sobre eles, embora eles desempenhem um importante papel em Geometria
Algébrica.
As propriedades derivadas de propriedades de anéis são, em geral, pro-
priedades locais, i.e., não dependem da particular escolha das coberturas
afins utilizadas nas suas definições. Vamos exemplificar o método de prova,
que se baseia no simples

Lema 15.4.5 (Mudança de Carta) Seja X um esquema e sejam U e V


dois abertos afins de X com isomorfismos de esquemas

i: U ✲ Spec A

e j: V

✲ Spec B

Então para todo x ∈ U ∩ V existe uma vizinhaça aberta W ⊆ U ∩ V de x que


é simultaneamente um aberto principal tanto em Spec A como em Spec B,
ou seja, existem h ∈ A, g ∈ B tais que as restrições de i e j induzem
isomorfismos de esquemas

i|W : W

✲ D(h) = Spec Ah e j|W : W ✲ D(g) = Spec Bg

Demonstração: Escolha h� ∈ A tal que i(x) ∈ D(h� ) e D(h��) ⊆ i(U ∩ V �);


em seguida, escolha �g ∈ B
� tal que j(x) ∈ D(g) e D(g) ⊆ j i−1 (D(h� )) .
Definamos W = j −1 D(g) ; basta agora mostrarmos que i(W ) é um aberto
principal em Spec A. Temos um morfismo de esquemas afins dado pela com-
posição
i−1
Spec Ah� = D(h� ) ✲ U ∩ V ✲ Spec B
j

Seja φ : B �→ Ah�� o morfismo de anéis correspondente. Temos que i(W ) =


Spec(φ)−1 D(g) = D(φ(g)) ⊆ Spec Ah� é um aberto principal quando visto
n
como subesquema de Spec Ah� . Se φ(g) = h/h� (h ∈ A) temos portanto que
i(W ) = D(hh� ) = D(h) ∩ D(h� ) ⊆ Spec A também é principal quando visto
como subesquema de Spec A.
314 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

Como esquemas afins são compactos, obtemos o seguinte



Corolário 15.4.6 Seja X um esquema e seja i∈I Ui = X uma cobertura
aberta de X com Ui ∼
= Spec Ai afim. Seja U ∼ = Spec B um aberto afim de X.
Então U possui uma cobertura aberta finita da forma

U = Vi1 ∪ · · · ∪ Vin com Vik ∼


= Spec(Aik )hik ∼
= Spec Bgi

com hik ∈ Aik e gi ∈ B.

Agora podemos provar que “localmente noetheriano” e “localmente de


tipo finito” são propriedades locais:
Teorema 15.4.7 Um esquema X é localmente noetheriano se, e só se, para
qualquer aberto afim U ∼
= Spec B de X, B é um anel noetheriano.

Demonstraç
� ão: Suponha que X é noetheriano com cobertura aberta afim
X = i∈I Ui com Ui ∼ = Spec Ai , Ai noetheriano. Como a localização dos Ai ’s
são noetherianos, pelo corolário 15.4.6 podemos
� assumir que Spec B admite
uma cobertura aberta finita Spec B = 1≤i≤m D(gi ) com gi ∈ B e tal que
cada Bgi é noetheriano. Agora considere uma cadeia ascendente de ideais
b1 ⊆ b2 ⊆ · · · de B. Como os Bgi ’s são noetherianos e há um número finito
de tais anéis, existe n0 tal que n ≥ n0 implica (bn )gi = (bn+1 )gi para todo
i = 1, . . . , m. Como os abertos principais D(gi ) cobrem Spec B, isto implica
que se n ≥ n0 então (bn )p = (bn+1 )p para todo p ∈ Spec A. Pelo princı́pio
local-global (teorema 4.2.3 na página 103), temos portanto que bn = bn+1
para todo n ≥ n0 .

Teorema 15.4.8 Um morfismo f : X → Y de esquemas é localmente de


tipo finito se, e só se, para qualquer aberto afim V ∼
= Spec A de Y e qualquer
∼ −1
aberto afim U = Spec B de f (V ), temos que B é uma A-álgebra finitamente
gerada (via o morfismo de anéis A → B induzido por f # ).

Demonstração: Suponha que f é localmente de tipo finito com coberturas


abertas � �
Y = Vi e f −1 Vi = Uij (i ∈ I)
i∈I j∈Ji

com Vi ∼= Spec Ai e Uij ∼ = Spec Bij afins tais que, para todo i ∈ I e j ∈ Ji ,
Bij é uma Ai -álgebra finitamente gerada. Como a localização (Bij )hi de
Bij com relação a um elemento hi ∈ Ai é uma
� (Ai )hi -álgebra finitamente
gerada, podemos refinar a cobertura Y = i∈I Vi por abertos básicos de
modo que uma subcoleção dos Vi ’s passem a cobrir o aberto afim V , de
modo que a restrição f −1 V → V de f também é localmente de tipo finito.
Assim, substituindo Y por V podemos supor sem perda de generalidade que
Y = Spec A.
Aplicando o corolário 15.4.6, podemos ainda assumir que Y = Spec A
é coberto por um número finito de abertos principais D(hi ) e que Ai =
15.5. EXERCÍCIOS 315

Ahi (hi ∈ A). Observando ainda que os mapas de localização A → Ahi


e Bij → (Bij )gij são álgebras finitamente geradas, mais uma aplicação do
corolário mostra que podemos até mesmo supor que Spec B admite uma
cobertura finita por abertos principais D(gj ) (gj ∈ B) com Bgj uma A-
álgebra finitamente gerada.
Assim, reduzimos tudo ao caso em que temos um morfismo de esquemas
afins
� Spec B → Spec A para a qual existe uma cobertura finita Spec B =
1≤j≤r D(gj ) com Bgj uma A-álgebra finitamente gerada e queremos mos-
trar que B é finitamente gerado sobre�A. Note que da cobertura obtemos
uma “partição algébrica da unidade” 1≤j≤r bj gj = 1 (bj ∈ B) e que, para
qualquer n, elevando esta expressão a uma potência � suficientemente grande
(r(n − 1) + 1 basta), obtemos uma expressão 1≤j≤r Tj (bj , gj ) · gjn = 1 com
Tj (bj , gj ) um polinômio em bj e gj com coeficientes em A.
n
Agora escolha uma quantidade finita de geradores ωjk /gj jk de Bgj sobre
A (ωjk ∈ B). Afirmamos que os elementos bj , gj , ωjk geram a A-álgebra B.
De fato, dado b ∈ B, como cada Bgj é finitamente gerado sobre A, existe
um n (que funciona para todo j pois há apenas r de tais ı́ndices) tal que
gjn b = Pj (ωjk , gj ) em B para algum polinômio Pj (ωjk , gj ) em ωjk e gj com
coeficientes em A. Portanto
� �
b= Tj (bj , gj ) · gjn b = Tj (bj , gj ) · Pj (ωjk , gj )
1≤j≤r 1≤j≤r

pertence à A-álgebra gerada por ωjk , bj , gj , como afirmamos.

15.5 Exercı́cios
15.1 Seja D o feixe das funções diferenciáveis sobre Rn .

(a) Seja (X, OX ) um espaço localmente anular que é localmente isomorfo a


(Rn , D) em LRS. Mostre que X é uma variedade diferenciável.

(b) Mostre que a categoria das variedades diferenciáveis é uma subcategoria


plena de LRS.

15.2 Seja φ : F → G um morfismo de feixes de grupos abelianos sobre um


espaço X. Mostre que φ é um isomorfismo se, e só se. os morfismos induzidos
nos talos φx : Fx → Gx são isomorfismos para todo x ∈ X.

Para os próximos exercı́cios, utilizaremos a seguinte

15.5.1 Definição Uma sequência de morfismos de feixes de grupos abelianos


sobre um espaço X
φi−1 φi φi+1
··· ✲ F i−1 ✲ Fi ✲ F i+1 ✲ ···
316 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS

é exata se, e só se, as sequências de talos


φi−1 φix φi+1
··· ✲ Fxi−1 x✲ Fxi ✲ Fxi+1 x✲ ···

são exatas para todo x ∈ X.

15.3 (Funtor seções globais) Seja X um espaço topológico. Mostre que


o funtor “seções globais” Γ : Sh(X) → Ab dado por F �→ F(X) é exato à
esquerda: dada uma sequência exata em Sh(X)

0 ✲ F φ
✲ G ψ
✲ H ✲ 0

a sequência em Ab

0 ✲ Γ(X, F) φX
✲ Γ(X, G) ✲ Γ(X, H)
ψX

é exata.
Dica: Para mostrar que ker ψ = im φ use o lema de Zorn.

15.4 (Sequência exponencial) Considere a sequência de feixes de grupos


abelianos sobre X = C:

0 ✲ Z ✲ H
2πi exp
✲ H× ✲ 0

(a) Mostre que a sequência acima é exata.

(b) Mostre que a sequência

0 ✲ Z(X) ✲ H(X)
2πi
✲ H× (X)
exp
✲ 0

é exata.

(c) Seja U = C \ {0}. Mostre que a sequência

0 ✲ Z(U ) 2πi
✲ H(U ) ✲ H× (U )
exp
✲ Z
δ

é exata, em que δ é dada por



1 f � (z)
δ(f ) = dz
2πi |z|=1 f (z)

15.5 Seja k um corpo e seja � �


a b
c d
15.5. EXERCÍCIOS 317

uma matriz inversı́vel com entradas em k. Mostre que o morfismo de k-


álgebras

k[x, y] → k[x, y]
x �→ ax + by
y �→ cx + dy

é um automorfismo e que este automorfismo induz um automorfismo do es-


quema P1k . Descreva a ação deste automorfismo no funtor de pontos de P1k .

15.6 Mostre que P1A ×Spec A P1A = Proj A[x, y, z, w]/(yw − xz).

15.7 Seja (Y, OY ) um espaço localmente anular qualquer.



(a) Seja OYred o pré-feixe sobre Y dado por OYred (U ) = OY (U )/ (0) (U ⊆ Y
aberto). Mostre que OYred é um feixe e que (Y, OYred ) é um espaço local-
mente anular com um morfismo canônico (i, i# ) : (Y, OYred ) → (Y, OY ).
(b) Mostre que se (Y, OY ) é um esquema, então (Y, OYred ) é um esquema
reduzido e (i, i# ) é uma imersão fechada.
(c) Nas condições do item anterior, mostre a seguinte propriedade universal:
se (X, OX ) é um esquema reduzido, um morfismo (f, f # ) : (X, OX ) →
(Y, OY ) se fatora unicamente por (i, i# ).

15.8 Seja S um esquema noetheriano. Sejam X e Y dois S-esquemas de


tipo finito. Seja x ∈ X e y ∈ Y dois pontos com mesma imagem s ∈ S.
Sejam f : X → Y e g : X → Y dois morfismos tais que f (x) = g(x) = y e os
morfismos OS,s -álgebras fx# : OY,y → OX,x e gx# : OY,y → OX,x são iguais.
Prove que existe uma vizinhança aberta U de x tal que f |U = g|U .
318 CAPÍTULO 15. ESQUEMAS
Parte V

Apêndices

319
322 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

(respectivamente fechada) se a imagem de todo aberto (respectivamente


fechado) de X é um aberto (respectivamente fechado) de Y . Assim, uma
bijeção contı́nua f : X → Y é um homeomorfismo se, e só se, f é um mapa
aberto (ou fechado).
Os conceitos acima generalizam os vistos em Cálculo, com a vantagem de
fornecer as “provas corretas” dos teoremas: por exemplo, tente mostrar que
a composição de duas funções contı́nuas é contı́nua com a definição acima (já
acabou?) e compare com a demonstração utilizando a arcaica1 definição com
�’s e δ’s.
Seja X um espaço topológico e seja x ∈ X um ponto deste espaço. Uma
vizinhança aberta ou simplesmente vizinhança de x é qualquer conjunto
aberto contendo x. Temos a seguinte observação boba, mas extremamente
útil na prática: mostrar que um subconjunto U ⊆ X é aberto é equivalente a
mostrar que todo x ∈ U possui uma vizinhança aberta contida em U .
Para qualquer subconjunto S ⊆ X, definimos o seu fecho S como sendo
o menor conjunto fechado que contém S, i.e.,
� � � �
def � toda vizinhança de x tem in-
S = F = x∈X �
terseção não vazia com S
F ⊇S
F fechado

(utilize a observação boba para mostrar a igualdade acima). Em outras


palavras, S é o conjunto de pontos x que estão “arbitrariamente próximos”
de S. Se S = X, dizemos que S é denso em X.
Em vez de prescrever todos os conjuntos abertos (ou fechados) de X, uma
outra maneira de descrever a topologia de X é por meio de uma base B, isto
é, uma coleção de subconjuntos abertos de X tal que qualquer aberto de X
pode ser escrito como uma união de elementos de B. Por exemplo, a coleção
de todas bolas abertas formam uma base para a topologia usual do Rn . Uma
base B de X satisfaz as seguintes propriedades:

(i) U ∈B U = X (todo ponto de X possui uma vizinhança em B);

(ii) para quaisquer U, U � ∈ B, a interseção U ∩ U � pode ser escrita como


união de elementos em B.

Reciprocamente, dado um conjunto X qualquer e uma famı́lia B de subcon-


juntos de satisfazendo os dois axiomas acima, podemos definir uma topologia
em X, bastando para isto declarar um subconjunto U ⊆ X aberto se ele se
escreve como união de elementos de B. Trabalhar com bases em geral sim-
plifica algumas tarefas. Por exemplo, para verificar que um mapa f : X → Y
é contı́nuo, é suficiente verificar que as pré-imagens f −1 (V ) de abertos V de
uma base de Y são abertos em X.
1 isto se refere logicamente ao perı́odo do Arcadismo, época em que a definição clássica

(literalmente!) de função contı́nua foi inventada.


A.1. TOPOLOGIA GERAL 323

A.1.1 Construindo novas topologias


Seja X um espaço topológico. Dado um subconjunto arbitrário Y ⊆ X, Y
também é um espaço topológico com a chamada topologia induzida ou
topologia de subespaço: os abertos de Y são os subconjuntos da forma
U ∩ Y com U aberto em X. Qualquer topologia de Y que torna o mapa
da inclusão Y �→ X contı́nuo contém a topologia induzida (que é portanto
a topologia mais grossa com tal propriedade). Se Y ⊆ X é um subconjunto
arbitrário, dizemos que Y é compacto, irredutı́vel e assim por diante, se Y
tem a propriedade correspondente com relação à topologia induzida de X.
Se ∼ é um relação de equivalência em X, podemos definir uma topologia
no conjunto X/∼ das classes de equivalência de X, a chamada de topologia
quociente, da seguinte forma: um conjunto de classes de equivalência U em
X/∼ é aberto se, e somente se, a sua união é um aberto em X. Qualquer
topologia de X/∼ que faz o mapa de projeção X � X/∼ contı́nuo está
contida na topologia quociente (ou seja, a topologia quociente é a mais fina
topologia de X/∼ para a qual a projeção é contı́nua). �
Seja {Xi }i∈I uma coleção de espaços topológicos e seja X = i∈I Xi com
mapas de projeção pi : X → Xi . Definimos a topologia produto em X
como a gerada pela base formada pelos conjuntos dos forma

p−1
i (Ui ) (I0 ⊆ I um subconjunto finito e Ui ⊆ Xi abertos)
i∈I0

Qualquer topologia de X que torna todos os mapas de projeção pi : X → Xi


contı́nuos contém a topologia produto (que é portanto a topologia mais grossa
com tal propriedade).

A.1.2 Espaços métricos


Seja X um conjunto. Uma métrica em X é uma função d : X × X → R≥0
satisfazendo os seguintes axiomas: para x, y, z ∈ X,
(i) d(x, y) = 0 ⇐⇒ x = y;
(ii) d(x, y) = d(y, x);
(iii) d(x, z) ≤ d(x, y) + d(y, z) (desigualdade triangular).
Um espaço métrico é um conjunto munido de uma métrica. Todo espaço
métrico é naturalmente um espaço topológico, com base dada pela bolas
abertas:
def
Br (a) = {x ∈ X | d(x, a) < r} (a ∈ X, r ∈ R>0 )

Dado um espaço métrico (X, d), dizemos que uma sequência (xn )n∈N em
X converge para um elemento a ∈ X, em sı́mbolos lim xn = a, se

∀� ∈ R>0 ∃n0 ∈ N tal que n ≥ n0 =⇒ d(xn , a) < �


324 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

ou seja, se lim d(xn , a) = 0 (limite em R). Dizemos que (xn )n∈N é uma
sequência de Cauchy se

∀� ∈ R>0 ∃n0 ∈ N tal que m, n ≥ n0 =⇒ d(xm , xn ) < �

Como em Cálculo, é fácil provar que se lim xn existe, ele é único e (xn )n∈N é
de Cauchy. Se toda sequência de Cauchy em X é convergente, dizemos que
X é completo.
Seja (X, d) um espaço métrico qualquer e defina X � como o conjunto das
sequências de Cauchy em X módulo a relação de equivalência

(xn ) ∼ (yn ) ⇐⇒ lim d(xn , yn ) = 0

(note que o limite é em R). Além disso, da desigualdade triangular temos

d(xn , yn ) ≤ d(xn , xm ) + d(xm , ym ) + d(ym , yn )

e por simetria obtemos

|d(xn , yn ) − d(xm , ym )| ≤ d(xn , xm ) + d(ym , yn )

de modo que se (xn )n∈N e (yn )n∈N são sequências de Cauchy em X, a


sequência das distâncias (d(xn , yn ))n∈N é de Cauchy em R, logo convergente.
Assim, podemos definir

d�: X � ×X � → R≥0
� �
[(xn )], [(yn )] �→ lim d(xn , yn )

e uma daquelas verificações chatas e rotineiras mostra que a definição acima


é independente dos representantes de classe e que d� é uma métrica em X.

� é completo.
� d)
Teorema A.1.1 (X,

Demonstração: Seja (� � Para cada


xn )n∈N uma sequência de Cauchy em X.
(n) (n)
n ∈ N, escolha um representante de classe (x• ) (xm ∈ X).
(0) (0) (0) (0) (0)
�0
x → x0 x1 x2 x3 x4 ...
(1) (1) (1) (1) (1)
�1
x → x0 x1 x2 x3 x4 ...
(2) (2) (2) (2) (2)
�2
x → x0 x1 x2 x3 x4 ...
.. .. .. ..
. . . .

(0) (0)
Escolha t0 ∈ N de modo que m, n ≥ t0 =⇒ d(xm , xn ) < 1, ou seja, a
distância entre quaisquer dois termos na primeira linha a partir da coluna
t0 é menor do que 1. Em seguida, escolha t1 > t0 tal que m, n ≥ t1 =⇒
(1) (1)
d(xm , xn ) < 1/2 e assim por diante, de modo que temos uma sequência
A.1. TOPOLOGIA GERAL 325

(i) (i)
crescente ti com a propriedade de que m, n ≥ ti =⇒ d(xm , xn ) < 1/(1 + i).
Agora, em estilo “diagonal Cantoriano2 ”, defina a sequência em X
(i)
y i = xt i (i ∈ N)

Afirmamos que (yn )n∈N é de Cauchy em X e que lim x �n = [(yn )]. De fato,
xn )n∈N é Cauchy, dado � ∈ R>0 , existe N ∈ N tal que N > 3/� e
como (�

� xi , x
i, j ≥ N =⇒ d(� �j ) = lim d(x(i) (j)
n , xn ) < �/3
n→∞

(ou seja, a partir da N -ésima, quaisquer duas linhas acima ficam “�/3-
próximas” quando caminhamos para a direita). Mostremos que i, j ≥ N =⇒
d(yi , yj ) < �. Para j ≥ i ≥ N fixados, escolha n grande o suficiente de modo
(i) (j) (i) (i)
que n > tj ≥ ti e d(xn , xn ) < �/3. Como d(xti , xn ) < 1/(i + 1) < 1/N <
(j) (j)
�/3 e analogamente d(xtj , xn ) < �/3, temos da desigualdade triangular3
que d(yi , yj ) < �:

(i)
(i) d(xt ,x(i)
n )<�/3 (i)
i
y i = xt i xn
d(x(i) (j)
n ,xn )<�/3
(j)
d(xt ,x(j)
n )<�/3
(j) j (j)
y j = xt j xn

(i)
Assim, (yn )n∈N é de Cauchy. Finalmente, como (xt• ) é uma subsequência de
(i)
(x• ), estas duas sequências são equivalentes e portanto para i > N fixado
temos

� (i) )j∈N ], [(x(j) )j∈N ]) = lim d(x(i) , x(j) ) < �


� xi , [(yj )j∈N ]) = d([(x
d(� tj tj tj tj
j→∞

Logo, como � > 0 é arbitrário,

� xi , [(yj )j∈N ]) = 0 ⇐⇒ lim x


lim d(� �i = [(yj )j∈N ]
i→∞

� é chamado de completamento de (X, d). Note que


� d)
O espaço (X,
podemos ver X como um subespaço de X � via a aplicação que leva x ∈ X
na classe da sequência constante correspondente. Uma verificação simples
� X , de modo que a inclusão X �→ X
mostra que d = d| � é contı́nua, e que X é
denso em X.�
2 ou Arzelà-Ascoliano. . .
3 que, neste caso, é uma “desigualdade trapezoidal.”
326 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

A.1.3 Propriedades
Dizemos que um espaço topológico X é:
(i) Hausdorff se para cada par de pontos distintos x, x� ∈ X existem dois
conjuntos abertos disjuntos U e U � tais que x ∈ U e x� ∈ U � ;

(ii) compacto4 se toda cobertura aberta X = λ∈Λ Uλ admite uma sub-
cobertura finita X = Uλ1 ∪ · · · ∪ Uλn . Equivalentemente, X é compacto
se possui a seguinte propriedade: se F é uma famı́lia � de fechados em X
tal que F1 , . . . , Fn ∈ F =⇒ F1 ∩ · · · ∩ Fn �= ∅ então F ∈F F �= ∅;
(iii) desconexo se ele é a união de dois fechados disjuntos não vazios (que,
portanto, também são abertos). Caso contrário, X é dito conexo;
(iv) redutı́vel5 se ele é a união de dois conjuntos fechados próprios. Caso
contrário, X é chamado (adivinhe!) de irredutı́vel. Equivalentemente,
X é irredutı́vel se quaisquer dois abertos não vazios têm intersecção não
vazia.
Observe que todo espaço métrico é Hausdorff e que todo espaço irredutı́vel
é conexo. Diretamente das definições, é fácil mostrar o seguinte
Lema A.1.2 Seja f : X → Y uma função contı́nua entre dois espaços topo-
logicos. Então
1. Se X é compacto (respectivamente conexo, irredutı́vel) então f (X) é
compacto (respectivamente conexo, irredutı́vel).
2. Se X é compacto e F ⊆ X é um subconjunto fechado, então F é com-
pacto (na topologia de subespaço).
3. Se S ⊆ X é um subconjunto conexo (respectivamente irredutı́vel) então
o seu fecho S também é conexo (respectivamente irredutı́vel).
4. Se {Xi }i∈I é uma famı́lia�de subespaços conexos de X com Xi ∩ Xj �= ∅
para todo i, j ∈ I, então i∈I Xi é conexo.

A.1.3 Exemplo Lembrando que os conjuntos compactos de Rn são os fecha-


dos e limitados e que os subconjuntos conexos de R são os intervalos, temos
que o lema anterior fornece provas rápidas para os teoremas de Cálculo: por
exemplo, seja f : Rn → R uma função contı́nua e seja K ⊆ Rn um compacto,
então como f (K) é um subconjunto fechado e limitado de R temos que f
atinge máximo e mı́nimo em K; por outro lado, se C ⊆ Rn é um conjunto
conexo então f (C) é um intervalo e assim se f (c1 ) < f (c2 ) para dois elemen-
tos c1 , c2 ∈ C, então para todo r ∈ R tal que f (c1 ) < r < f (c2 ) existe c ∈ C
tal que f (c) = r, provando o teorema do valor intermediário.
4 alguns autores chamam tal espaço de quase-compacto, reservando o termo compacto

para espaços quase-compactos e Hausdorff. Não seguiremos tal convenção.


5 este conceito só é interessante para espaços não Hausdorff.
A.1. TOPOLOGIA GERAL 327

O seguinte resultado é equivalente ao axioma da escolha.6

Teorema A.1.4 (Tychonoff ) O produto de espaços compactos é compacto.

Já que mencionamos o axioma da escolha, convém também relembrar


uma de suas formas equivalentes mais úteis, o chamado lema de Zorn. Seja
(P, ≤) um conjunto parcialmente ordenado. Uma cadeia C é um subconjunto
de P no qual quaisquer dois elementos x, y são comparáveis, isto é, se x, y ∈ C
então ou x ≤ y ou y ≤ x. Um limitante superior de C é um elemento u ∈ P
tal que x ≤ u para todo x ∈ C (observe que u não pertence necessariamente
a C). Um elemento maximal m de P é um elemento para o qual m ≤ x
implica x = m. Analogamente definimos limitante inferior e elemento
minimal.

Teorema A.1.5 (Lema de Zorn) Seja (P, ≤) um conjunto parcialmente


ordenado em que toda cadeia possui um limitante superior. Então (P, ≤)
possui um elemento maximal.

Temos um resultado análogo trocando limitante superior por inferior e


elemento maximal por minimal. Na maioria das aplicações, P é uma famı́lia
de subconjuntos de um conjunto fixado e ≤ é a inclusão de conjuntos ⊆.
No exercı́cio A.3 na página 338, mostramos que o lema de Zorn implica o
teorema de Tychonoff.
Dado um espaço topológico X qualquer, os subconjuntos conexos (res-
pectivamente irredutı́veis) maximais com relação à inclusão são chamados
de componentes conexas (respectivamente componentes irredutı́veis)
de X. Pelo item (4) do lema, a união de todos os subconjuntos conexos que
contêm um elemento x ∈ X é uma componente conexa de X e as componentes
conexas formam uma partição de X. Pelo item (3), cada componente conexa
é um fechado de X, que portanto também é aberto se há um número finito
de componentes conexas. Da mesma forma, as componentes irredutı́veis de
X também são fechadas e pelo lema de Zorn todo elemento de X pertence
a alguma componente irredutı́vel, de modo que X é união (em geral não
disjunta) de suas componentes irredutı́veis.

A.1.4 Grupos topológicos


Um grupo topológico G é um grupo munido de uma topologia tal que as
operações

G×G→G G→G
(g, h) �→ g · h g �→ g −1

são contı́nuas.
6e não somos um daqueles hereges que não acreditam no axioma da escolha!
328 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

Lema A.1.6 Seja G um grupo topológico. Todo subgrupo aberto H ≤ G é


automaticamente fechado. Reciprocamente, se H ≤ G é um subgrupo fechado
de ı́ndice finito, então H é aberto.

Demonstração: Escrevendo G = gH como união disjunta das classes
laterais à esquerda de H, temos que X \ H é uma união de abertos gH
(note gH é homeomorfo a H via multiplicação por g), logo H é fechado. Da
mesma forma, se H ≤ G é um subgrupo fechado de ı́ndice finito, então H é
o complementar de uma união finita de fechados gH, logo H é aberto.

Lema A.1.7 Seja G um grupo e seja B uma coleção de subgrupos normais


de G fechada por interseção:
H1 , H2 ∈ B =⇒ H1 ∩ H2 ∈ B
Então as classes laterais gH com g ∈ G e H ∈ B formam a base de uma
topologia em G, que faz deste um grupo topológico.
Demonstração: É claro que as classes laterais gH com g ∈ G e H ∈ B
cobrem G e se g ∈ g1 H1 ∩g2 H2 com gi ∈ G e Hi ∈ B, então podemos escrever
g = g1 h1 = g2 h2 com hi ∈ Hi e assim
g ·(H1 ∩H2 ) ⊆ (gi hi )·Hi = gi Hi (i = 1, 2) =⇒ g ·(H1 ∩H2 ) ⊆ g1 H1 ∩g2 H2
Logo g1 H1 ∩g2 H2 é união de classes laterais de subgrupos em B. Desta forma,
temos uma base para uma topologia em G e falta mostrar que o produto e o
inverso são contı́nuos nesta topologia, o que é fácil: dado um aberto básico
gH (g ∈ G e H ∈ B) e um elemento (g1 , g2 ) ∈ G × G com g1 g2 ∈ gH, como
H é normal em G, temos que g1 H × g2 H ⊆ G × G é uma vizinhança aberta
de (g1 , g2 ) contida na pré-imagem de gH pelo produto; e g −1 H = Hg −1 é a
pré-imagem de gH pelo inverso.

A.2 Categorias e Funtores


Uma categoria C consiste em
(i) um conjunto Obj(C), cujos elementos são chamados de objetos de C;
(ii) para cada par de objetos X, Y ∈ Obj(C), um conjunto HomC (X, Y ),
cujos elementos são chamados de morfismos ou flechas de X em Y ;
(iii) para cada terna de objetos X, Y, Z ∈ Obj(C), uma lei de composição
de morfismos
HomC (X, Y ) × HomC (Y, Z) → HomC (X, Z)
(f, g) �→ g ◦ f
satisfazendo os seguintes axiomas:
A.2. CATEGORIAS E FUNTORES 329

(a) (identidade) para cada objeto X ∈ Obj(C), existe um morfismo


idX ∈ HomC (X, X), chamado de morfismo identidade de X,
tal que
f ◦ idX = f e idX ◦ g = g
para todo f ∈ HomC (X, Y ) e g ∈ HomC (Z, X).
(b) (associatividade) para todo f ∈ HomC (W, X), g ∈ HomC (X, Y ) e
h ∈ HomC (Y, Z),

h ◦ (g ◦ f ) = (h ◦ g) ◦ f

Por abuso de linguagem, costumamos escrever X ∈ C se X é um objeto de C.


Dizemos que f ∈ HomC (X, Y ) é um isomorfismo se existe g ∈ HomC (Y, X)
tal que g ◦ f = idX e f ◦ g = idY . Escrevemos X ∼ = Y se há um isomorfismo
entre X e Y .
Se C é uma categoria denotamos por C◦ a chamada dual ou oposta, ob-
tida invertendo-se o sentido de todas as flechas de C (ou seja, HomC◦ (X, Y ) =
HomC (Y, X)).
Uma maneira prática de se pensar em um categoria é em termos de seu
grafo subjacente (na verdade, um multigrafo dirigido), cujo vértices são os ob-
jetos da categoria e cujas arestas são os morfismos da categoria. Cada vértice
tem um laço distinto, a flecha identidade, e temos uma regra de composição
de arestas satisfazendo os axiomas usuais.

A.2.1 Exemplo Seja X um conjunto e seja 2X o conjunto das partes de X.


Temos uma categoria C com Obj(C) = 2X e cujas flechas são os mapas de
inclusão: �
def {S → T } se S ⊆ T
HomC (S, T ) =
∅ caso contrário
Por exemplo, se X = {a, b}, C tem o seguinte grafo associado:

{a, b}

{a} {b}

Um universo de Grothendieck U �= ∅ é um conjunto muito grande no


qual podemos realizar as operações usuais da teoria dos conjuntos sem jamais
sair de U . Precisamente, U satisfaz os seguintes axiomas:

(i) se x ∈ U e y ∈ x então y ∈ U;
330 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

(ii) se x, y ∈ U então {x, y} ∈ U;

(iii) se x ∈ U então 2x ∈ U ;

(iv) se I ∈ U e (xi )i∈I é uma famı́lia de elementos de U então i∈I xi ∈ U.

O axioma de universo garante que, dado qualquer conjunto x, existe um


universo U tal que x ∈ U . Adotamos esta axioma, que é independente dos
outros axiomas da teoria dos conjuntos. Com isto, evitaremos certas dificul-
dades lógicas do tipo “conjuntos de todos os conjuntos” no que segue.

A.2.2 Exemplo Fixado um universo de Grothendieck U, podemos consi-


derar a categoria dos conjuntos Set, cujos objetos são todos os conjuntos
que pertencem a U e HomSet (X, Y ) é simplesmente o conjunto de todas as
funções f : X → Y ; a lei de composição de morfismos nada mais é do que a
composição usual de funções. Outro exemplo é a categoria dos grupos abe-
lianos Ab, cujos objetos são todos os grupos abelianos que pertencem a U
e HomAb (X, Y ) é simplesmente o conjunto de todos os morfismos de grupos
f : X → Y ; a lei de composição é a usual. Temos ainda a categoria Top
de todos os espaços topológicos em U e cujos morfismos são as aplicações
contı́nuas. No que segue, frequentemente omitiremos referência explı́cita ao
universo U fixado, referindo-nos às categorias de “todos” os conjuntos, grupos
abelianos, espaços topológicos, etc.

Sejam C e D duas categorias. Um funtor covariante ou simplesmente


funtor F : C → D de C em D é uma regra que associa

(i) um objeto F (X) ∈ D para cada objeto X ∈ C;

(ii) um morfismo F (φ) ∈ HomD (F (X), F (Y )) para cada morfismo φ ∈


HomC (X, Y ), respeitando morfismos identidade bem como as leis de
composição:

F (idX ) = idF (X) e F (φ ◦ ψ) = F (φ) ◦ F (ψ)

para todo X ∈ C e todos os morfismos φ e ψ de C que podem ser


compostos.

Em termos dos grafos subjacentes, um funtor nada mais é do que um


morfismo de grafos que respeitam os laços identidade e as leis de composição
das arestas. Um funtor F : C◦ → D é às vezes chamado de funtor contra-
variante de C para D, uma vez que ele inverte os sentidos das flechas.

A.2.3 Exemplo Exemplos clássicos de funtores são:

• o funtor inclusão F : Ab �→ Set, também chamado funtor esqueci-


mento (basta “esquecer” as estruturas de grupo abeliano, tanto para
objetos como para morfismos);
A.2. CATEGORIAS E FUNTORES 331

• se PTop denota a categoria dos espaços topológicos pontuados (cujos


objetos são pares (X, x0 ) em que X é um espaço topológico e x0 ∈ X
é um “ponto base” e cujos morfismos f : (X, x0 ) → (Y, y0 ) são mapas
contı́nuos f : X → Y preservando pontos base, i.e., f (x0 ) = y0 ), temos
o funtor π1 : PTop → Group dado pelo grupo fundamental, que
associa a cada espaço topológico pontuado (X, x0 ) o grupo π1 (X, x0 ),
dos laços γ : [0, 1] → X com inı́cio e fim γ(0) = γ(1) = x0 módulo ho-
motopia, e a cada morfismo f : (X, x0 ) → (Y, y0 ) em PTop o morfismo
de grupos [γ] �→ [f ◦ γ].

Dados dois funtores F, G : C → D, um morfismo de funtores ou trans-


formação natural φ : F → G entre F e G é uma coleção de morfismos
φX ∈ HomD (F (X), G(X)), um para cada objeto X ∈ C, tal que

φX
F (X) G(X)
F (f ) G(f )
φY
F (Y ) G(Y )

comuta para todos X, Y ∈ C e todos f ∈ HomC (X, Y ). Se todos os mor-


fismos φX são isomorfismos em D, dizemos que φ é um isomorfismo de
funtores. O conjunto de todos os morfismos (em algum universo) entre F e
G será denotado Hom(F, G).
Um funtor F : C → D dá origem a um mapa

FX,Y : HomC (X, Y ) → HomD (F (X), F (Y ))

para cada par de objetos X, Y ∈ C. Dizemos que F é pleno (respectivamente


fiel, plenamente fiel) se FX,Y é sobrejetora (respectivamente injetora, bije-
tora) para todo X, Y ∈ C. Um funtor fiel F não precisa ser injetor em objetos
ou morfismos: podemos ter f : X → Y e f � : X � → Y � com F (X) = F (X � ),
F (Y ) = F (Y � ) e F (f ) = F (f � ); a injetividade só é garantida para morfismos
entre um par fixo de objetos. Da mesma forma um funtor pleno não precisa
ser sobrejetor em objetos ou morfismos.
Uma subcategoria C� de C é uma categoria cujos objetos e morfismos
são subconjuntos dos de C e cuja regra de composição de flechas é a mesma
de C; um subcategoria C� de C é dita plena se o funtor inclusão C� �→
C é plenamente fiel. Em termos dos grafos subjacentes, uma subcategoria
corresponde a um subgrafo e uma subcategoria plena, a um subgrafo induzido,
ou seja, um subgrafo obtido escolhendo vértices de um grafo e incluindo todas
as arestas entre eles.
Dizemos que duas categorias C e D são equivalentes se houver funtores
F : C → D e G : D → C e isomorfismos de funtores

G◦F ∼
= idC e F ◦G∼
= idD
332 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

em que id denota o funtor identidade. Um funtor F : C → D dá uma equi-


valência das categorias se, e somente se, ele é plenamente fiel e essencial-
mente sobrejetor: cada objeto de D é isomorfo a F (X) para algum X ∈ D.
Em particular, uma equivalência de categorias não precisa ser uma bijeção.
Por exemplo, as categorias dadas pelos seguintes grafos são equivalentes:

e • •

Um funtor plenamente fiel F : C → D estabelece uma equivalência entre C


e sua imagem, uma subcategoria plena de D.
Para cada objeto X ∈ C, temos um funtor covariante X : C → Sets dado
em objetos por X(−) = HomC (X, −) e em flechas por composição: para
f : S → T,

X(f ) : X(S) → X(T )


φ �→ f ◦ φ

Dizemos que um funtor F : C → Sets é representável por um objeto


X ∈ C se existe um isomorfismo F ∼ = X. Dualmente, um objeto Y ∈ C
define um funtor contravariante Y : C → Sets◦ dado em objetos por Y (−) =
HomC (−, Y ) e um funtor contravariante G : C → Sets◦ é dito representável
por Y se G ∼
=Y.
Uma consequência direta, mas útil, das definições acima é o
Teorema A.2.4 (Lema de Yoneda) Para qualquer funtor F : C → Sets
e para cada X ∈ C existe uma bijeção natural

Hom(X, F ) ✲ F (X)

φ �−→ φX (idX )

que é funtorial em X, ou seja, quando fazemos X percorrer os objetos


de C as bijeções acima produzem um isomorfismo entre os funtores X �→
Hom(X, F ) e F .

Em particular, temos uma bijeção natural Hom(X, Y ) = HomC (X, Y )


para cada X, Y ∈ C, mostrando que um objeto que representa um funtor é
único a menos de isomorfismo único7 .
Sejam F : C → D e G : D → C funtores. Dizemos que F é um adjunto
à esquerda de G e que (surpresa!) G é um adjunto à direita de F se, para
cada X ∈ C e Y ∈ D, existe uma bijeção natural

HomD (F (X), Y ) ✲ HomC (X, G(Y ))


7 a palavra único não está repetida por acidente: por exemplo, dados dois fechos

algébricos de um mesmo corpo K, eles são isomorfos, mas em geral há vários isomorfismos
entre eles (tantos quanto elementos do grupo de Galois absoluto GK )
A.3. LIMITES 333

funtorial em ambas as entradas X e Y : para X fixo, conforme Y percorre


os objetos de D, as bijeções acima dão origem a um isomorfismo entre os
funtores HomD (F (X), −) e HomC (X, G(−)), e analogamente para Y fixo.

A.3 Limites
Limites diretos e inversos são exemplos de funtores representáveis em muitas
categorias que aparecem “na prática”.
Sejam I e C duas categorias. Aqui, pensamos em I como uma “categoria
de ı́ndices”. Para cada objeto X ∈ C, seja cX : I → C o funtor constante
que leva todo i ∈ I em X e toda flecha em idX . Agora, dado um funtor
F : I → C, definimos o colimite, limite injetivo ou limite direto de F ,
em sı́mbolos
inj lim F (i),
i∈I

como qualquer objeto (caso exista) representando o funtor X �→ Hom(F, cX ).


Dualmente, o limite inverso ou limite projetivo ou ainda simplesmente
limite de F , em sı́mbolos,
proj lim F (i),
i∈I

é um objeto em C que representa o funtor X �→ HomC (cX , F ). Vejamos


explicitamete o que isto significa.
Por definição de representabilidade, temos uma bijeção natural

Hom(F, cX ) = HomC (inj lim F (i), X) (∗)


i∈I

Observe inicialmente que dar um morfismo de funtores F → cX é o mesmo


que dar uma “famı́lia compatı́vel” de morfismos fi : F (i) → X (i ∈ I), ou
seja, para qualquer flecha i → j em I, temos um diagrama comutativo
fj
F (j) X

fi

F (i)

Assim, o limite direto é caracterizado pela seguinte propriedade universal: dar


um morfismo f : inj limi∈I F → X é o mesmo que dar uma famı́lia compatı́vel
de morfismos fi : F (i) → X. O lema de Yoneda (teorema A.2.4 na página
anterior) deixa isto mais preciso: seja

φi : F (i) ✲ inj lim F (i) (i ∈ I)


i∈I

a famı́lia compatı́vel (elemento de Hom(F, cinj limi∈I F (i) )) correspondente a


id ∈ HomC (inj limi∈I F (i), inj limi∈I F (i)) na bijeção natural (∗). Dado um
morfismo f : inj limi∈I F (i) → X, temos um diagrama comutativo
334 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

HomC (inj limi∈I F (i), inj limi∈I F (i)) Hom(F, cinj limi∈I F (i) )
f f

HomC (inj limi∈I F (i), X) Hom(F, cX )

cujas flechas verticais são induzidas por composição com f . Assim, olhando
para a imagem de id ∈ HomC (inj limi∈I F (i), inj limi∈I F (i)), obtemos que a
bijeção (∗) é dada explicitamete por

HomC (inj lim F (i), X)



✲ Hom(F, cX )
i∈I
f �−→ {f ◦ φi }i∈I

e a propriedade universal agora pode ser melhor precisada da seguinte forma:


dada qualquer famı́lia compatı́vel de morfismos fi : F (i) → X (i ∈ I), existe
um único morfismo f : inj limi∈I F (i) → X fazendo o seguinte diagrama co-
mutar: para qualquer flecha i → j em I,
fj
F (j)
φj

∃!f
inj limi∈I F (i) X

φi
F (i) fi


Intuitivamente, é útil pensar em inj limi∈I F (i) “=” i∈I F (i), com os mor-
fismos φi : F (i) → inj limi∈I F (i) fazendo o papel das “inclusões”.
Da mesma forma, um morfismo de funtores cX → F é o mesmo que dar
uma “famı́lia co-compatı́vel” de morfismos fi : X → F (i) (i ∈ I), ou seja,
para qualquer flecha i → j em I, temos um diagrama comutativo
fi
X F (i)

fj

F (j)

Desta forma, o limite projetivo vem equipado de fábrica com uma famı́lia
co-compatı́vel de “mapas de projeção”

πi : proj lim F (i) ✲ F (i) (i ∈ I)


i∈I

satisfazendo a seguinte propriedade universal: dada qualquer famı́lia co-


compatı́vel de morfismos fi : X → F (i) (i ∈ I), existe um único morfismo
A.3. LIMITES 335

f : X → proj limi∈I F (i) fazendo o seguinte diagrama comutar: para qual-


quer flecha i → j em I,

fi
F (i)
πi

∃!f
X proj limi∈I

πj
fj
F (j)

Antes de darmos exemplos, faremos algumas observações sobre a “cate-


goria de ı́ndices” I.

A.3.1 Definição Uma relação � em um conjunto I é uma pré-ordem se


satisfaz os seguintes dois axiomas:

(i) (Reflexividade) i � i para todo i ∈ I.

(ii) (Transitividade) se i � j e j � k então i � k.

Um conjunto pré-ordenado (I, �) é chamado de direcionado se, para quais-


quer i, j ∈ I, existe k ∈ I tal que i � k e j � k (ou seja, existe k “majorando”
dois elementos i e j quaisquer).

A.3.2 Exemplo Conjuntos direcionados que aparecem na Natureza são, por


exemplo,

(i) o conjunto 2X das partes de um conjunto X (i.e., o conjunto de todos


os subconjuntos de X), pré-ordenados pela inclusão ⊆. Dados dois
subconjuntos A e B de X, temos que A ∪ B majora A e B.

(ii) os conjuntos de submódulos finitamente gerados de um módulo M , pré-


ordenados pela inclusão. Dados dois submódulos N e P , temos que
N + P é finitamente gerado e majora N e P .

(iii) os elementos de um conjunto multiplicativo S de um anel, pré-ordenados


pela relação de divisibilidade | em S (i.e., s � t ⇐⇒ s | t ⇐⇒ existe
u ∈ S tal que t = su). Dados dois elementos t, s ∈ S, temos que o
produto st majora s e t.

Note que nos dois primeiros exemplos, a relação de pré-ordem é uma relação
de ordem (i.e., vale a propriedade anti-simétrica), mas não no último exemplo:
se S é o conjunto multiplicativo de Z formado por todos os elementos não
nulos, temos que 2 | −2 e −2 | 2 mas 2 �= −2.
336 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

Um conjunto direcionado (I, �) pode ser visto como uma categoria da


seguinte forma: os objetos desta categoria são os elementos de I e as flechas
são dadas por �
def {i → j} se i � j
Hom(i, j) =
∅ caso contrário
para quaisquer i, j ∈ I. Esta categoria é o exemplo mais importante de uma
categoria filtrante, como na seguinte

A.3.3 Definição Uma categoria I é dita filtrante se satisfaz os seguintes


axiomas:

(i) Dadas duas flechas

elas “eventualmente convergem”: existem j → l e k → l tais que o


seguinte diagrama comuta:

i l

(ii) Dadas duas flechas


i⇒j
elas podem ser “equalizadas”: existe j → k tal que as composições

i⇒j→k

de i para k são iguais.

(iii) I é conexa vista como um grafo não direcionado, i.e., quaisquer dois
objetos i e j de I podem ser conectados por um caminho de flechas,
ignorando as suas orientações:

i ← x1 → x2 ← x3 → · · · ← xn−1 → xn ← j

Dizemos que a categoria I é cofiltrante se a categoria oposta I◦ é filtrante.


A.3. LIMITES 337

A.3.4 Exemplo (União como limite direto) Seja X um conjunto qual-


quer e seja I a categoria filtrante associada ao conjunto das partes de X, com
elementos ordenados por inclusão. Considere o funtor de “inclusão”
F : I → Set
S �→ S
Temos que inj lim F = X com os mapas de inclusão usuais S �→ X. De fato,
basta verificar que a propriedade universal é satisfeita, o que é claro: dar um
morfismo (vulgo função) f : X → T em Set é o mesmo que dar uma famı́lia
de funções fS : S → T compatı́veis no sentido que fS = fS � |S sempre que
S ⊆ S�.
Da mesma forma, seja A um anel e M um A-módulo qualquer. Se I é
a categoria filtrante associada ao conjunto de submódulos de M finitamente
gerados e F : I → A-Mod é o funtor de inclusão, temos que inj lim F = M :
definir um morfismo de A-módulos f : M → T é o mesmo que definir uma
famı́lia compatı́vel de morfismos fN : N → T (N ∈ I), já que todo elemento
m ∈ M pertence a um submódulo finitamente gerado (por exemplo, N =
Am).
Os próximos dois exemplos são os mais importantes, pois ilustram o
método de construção que se aplica a outras categorias além de Ab.
A.3.5 Exemplo (Limite Direto de Grupos Abelianos) Seja I uma ca-
tegoria filtrante e F : I → Ab um funtor. Vamos mostrar que o limite direto
de F sempre existe. Defina

def i∈I F (i)
inj lim F =
H
em que H é o seguinte subgrupo: identificando um elemento g ∈ F (i) com o
vetor na soma direta cuja i-ésima componente é g e cujas demais componentes
são nulas, temos que H é gerado pelas diferenças
xi − xj , xi ∈ F (i), xj ∈ F (j)
tais que existam flechas f : i → k, g : j → k em I com
F (f )(xi ) = F (g)(xj )
Em outras palavras, identificamos dois elementos na “união” dos F (i)’s desde
que eles “eventualmente concordem”.
A.3.6 Exemplo (Limite Projetivo de Grupos Abelianos) Seja I uma
categoria qualquer e seja Ab a categoria dos grupos abelianos. Então dado
um funtor F : I → Ab, o limite projetivo existe e é dado pelo subgrupo do
produto das “tuplas coerentes”:

proj lim F = {(xi ) ∈ F (i) | F (f )(xi ) = xj para toda flecha f : i → j}
i∈I
338 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS

A.4 Exercı́cios
A.1 (Furstenberg) Para a, b ∈ Z, seja Ua,b = {a + nb | n ∈ Z}.
(a) Mostre que os conjuntos Ua,b formam uma base de uma topologia de Z.
Observe que nesta topologia qualquer aberto não vazio é infinito e Ua,b
é simultaneamente aberto e fechado.

(b) Mostre que Z \ {−1, 1} = p U0,p , em que p percorre os primos. Utilize
este fato para mostrar que há infinitos primos.
A.2 Mostre que um espaço topológico X é Hausdorff se, e só se, a diagonal
Δ(X) = {(x, x) ∈ X × X | x ∈ X} é um conjunto fechado em X × X.
A.3 (Zorn e Tychonoff ) Seja X um conjunto. Dizemos que uma famı́lia
F de subconjuntos de X é um filtro sobre X se
1. ∅ ∈
/F
2. A, B ∈ F =⇒ A ∩ B ∈ F
3. A ∈ F e B ⊇ A =⇒ B ∈ F
Um ultrafiltro sobre X é um filtro que é maximal com relação à inclusão.
(a) Mostre que uma famı́lia F de subconjuntos de X é um ultrafiltro se, e
só se, tem a seguinte propriedade: S ⊆ X =⇒ S ∈ F ou X \ S ∈ F.
(b) Seja G uma famı́lia de subconjuntos de X que tem a seguinte propriedade
de interseção finita: se F1 , . . . , Fn ∈ G então F1 ∩· · ·∩Fn �= ∅. Utilizando
o lema de Zorn, mostre que existe um ultrafiltro F que contém G.
(c) Suponha que X é um espaço topológico e seja x ∈ X. Defina
F = {S ⊆ X | S contém uma vizinhança aberta de x}
Mostre que F é um filtro.
(d) Suponha que X é um espaço topológico e seja F um filtro sobre X. Di-
zemos que F converge para um ponto x ∈ X se, para todo subconjunto
S ⊆ X contendo uma vizinhança aberta de x, S ∈ F. Mostre que as
seguintes condições são equivalentes:
(i) X é compacto.
(ii) todo ultrafiltro sobre X converge para algum ponto de X.

� {Xi }i∈I uma famı́lia de espaços topológicos compactos e seja X =


(e) Seja
i∈I Xi . Sejam pi : X → Xi os mapas de projeção e seja F um ultrafiltro
sobre X. Mostre que
Fi = {pi (S) | S ∈ F}
é um ultrafiltro sobre Xi . Se Fi converge para xi ∈ Xi , mostre que F
converge para (xi )i∈I ∈ X e conclua que X é compacto.
A.4. EXERCÍCIOS 339

A.4 Seja {Uλ }λ∈Λ uma cobertura aberta de um espaço topológico X. Mos-
tre que um subconjunto F ⊆ X é fechado em X se, e só se, F ∩ Uλ é fechado
em Uλ (com a topologia de subespaço) para todo λ ∈ Λ.

A.5 Dada uma sequência exata de funtores (ou seja, temos uma sequência
exata para cada i ∈ I)

0 ✲ M � (i) ✲ M (i) ✲ M �� (i) ✲ 0

de uma categoria filtrante I para Ab, mostre que a sequência

0 ✲ inj lim M � (i) ✲ inj lim M (i) ✲ inj lim M �� (i) ✲ 0


i∈I i∈I i∈I

também é exata.
340 APÊNDICE A. FUNDAMENTOS
Apêndice B

Fatoração Única

Vamos estudar propriedades de anéis que estendem a fatoração única em Z.

B.0.1 Definição Seja D um domı́nio e sejam a, b ∈ D.

1. Escrevemos a | b (lê-se a divide b ou b é múltiplo de a) se existe


c ∈ D tal que b = ac. Em outras palavras,

a | b ⇐⇒ (a) ⊇ (b)

(no mundo ideal, “conter é dividir”)

2. Dizemos que a e b são associados se (a) = (b). Equivalentemente, a e


b são associados se existe u ∈ A× tal que a = bu, i.e., se a e b diferem
multiplicativamente por uma unidade.

Note que, de fato, se a = b · u com u ∈ A× então (a) = (b). Recipro-


camente, se (a) = (b) então existem u, v ∈ A tais que a = b · u e b = a · v,
logo a = a · vu. Como D é domı́nio, temos ou a = 0, e portanto b = 0, ou
vu = 1 =⇒ u, v ∈ A× . Em ambos os casos a e b diferem multiplicativamente
por uma unidade.
Do ponto de vista de divisibilidade e fatoração, elementos associados de-
vem ser interpretados como essencialmente os “mesmos”. Por exemplo, se a
e b são associados, então a | c ⇐⇒ b | c.

/ D× .
B.0.2 Definição Seja D um domı́nio e seja π ∈ D com π �= 0 e π ∈

1. Dizemos que π é irredutı́vel se, para a, b ∈ D,

π = ab =⇒ a ∈ D× ou b ∈ D×

Ou seja, π é irredutı́vel em D se só possui fatorações triviais em D:


todo divisor de π é associado ou a 1 ou a π.

341
342 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

2. Dizemos que π é primo se (π) é um ideal primo, i.e., se


π | ab =⇒ π | a ou π | b

No anel Z, as noções de irredutı́vel e primo se confundem, mas elas em


geral são distintas para um domı́nio qualquer. Entretanto, temos o seguinte
/ D× . Então
Lema B.0.3 Seja D um domı́nio e seja π ∈ D com π �= 0 e π ∈
π é primo =⇒ π é irredutı́vel

Demonstração: Se (π) é um ideal primo e se π = ab, então ab ∈ (π) =⇒


a ∈ (π) ou b ∈ (π), digamos a ∈ (π). Então a = uπ para algum u ∈ D, assim
π = uπb. Como D é domı́nio e π �= 0, temos 1 = ub, ou seja, u, b ∈ D× , o
que mostra que π é irredutı́vel.

B.1 Domı́nios Euclidianos, Domı́nios de Ideais


Principais e Domı́nios de Fatoração Única
B.1.1 Definição Um domı́nio D é dito
1. domı́nio euclidiano (DE) se existe uma função “tamanho euclidiano”
ϕ : D \ {0} → N tal que D possui “divisão euclidiana” com respeito a
ϕ: dados a, b ∈ D com b �= 0, existem q, r ∈ D (quociente e resto,
respectivamente) satisfazendo
a = bq + r com r = 0 ou ϕ(r) < ϕ(b)

2. domı́nio de ideais principais (DIP) se todo ideal de D é principal


(i.e., gerado por um único elemento).
3. domı́nio de fatoração única (DFU) ou domı́nio fatorial se todo
elemento não nulo d ∈ D pode ser escrito como produto de irredutı́veis
de maneira única a menos da ordem dos fatores e de associados, ou
seja,
(i) (Existência da fatoração) d = π1 π2 . . . πm com πi irredutı́veis;
(ii) (Unicidade da fatoração) Se d = ρ1 ρ2 . . . ρn é outra fatoração em
irredutı́veis ρi , então a quantidade de fatores m = n é igual e
existe uma permutação σ : {1, 2, . . . , m} → {1, 2, . . . , m} tal que
πi é associado a ρσ(i) , i = 1, 2, . . . , m = n.
B.1.2 Exemplo Seja k um corpo. Então k[x] é um domı́nio euclidiano com
a função tamanho euclidiano dada pelo grau de um polinômio. Temos que Z
também é euclidiano com a função tamanho euclidiano ϕ(a) = |a|. Veremos
a seguir que estes dois anéis também são domı́nios de ideais principais e de
fatoração única.
B.1. DE, DIP, DFU 343

O próximo lema de certa forma caracteriza DFUs como sendo aqueles


anéis em que os conceitos de irredutı́vel e primo coincidem.
Lema B.1.3 Seja D um domı́nio.
/ D× , então
1. Se D é um DFU e π ∈ D com π �= 0 e π ∈
π é irredutı́vel ⇐⇒ π é primo

2. Suponha que
(i) todo ideal de D é finitamente gerado (i.e. D é noetheriano, veja
o capı́tulo 6 na página 145);
(ii) todo irredutı́vel é primo.
Então D é um DFU.
Demonstração:
1. Já vimos ⇐; para mostrar ⇒, seja π um irredutı́vel. Se π | ab, então
existe c ∈ D tal que πc = ab e pela unicidade da fatoração em irre-
dutı́veis, π é associado a um dos fatores irredutı́veis na fatoração de a
ou b, i.e., π | a ou π | b. Logo π é primo.
2. Existência da fatoração: Vamos utilizar a técnica de indução no-
etheriana, estudada em detalhes no capı́tulo 6 na página 145, que aqui
apresentamos de forma independente, adaptada para a nossa situação
particular.
Dado d0 ∈ D, d0 �= 0 e d0 ∈ / D× , vamos mostrar que d0 é produto de
irredutı́veis. Suponha por absurdo que não. Então d0 não é irredutı́vel,
logo d0 = ab com a, b ∈ / D× . Pelo menos um dos dois fatores, a ou
b, não é produto de irredutı́veis, caso contrário d0 seria produto de
irredutı́veis. Assim, existe d1 ∈ {a, b} que não é produto de irredutı́veis
e tal que (d1 ) � (d0 ); observe que a inclusão é estrita pois a e b não
são unidades e portanto nem a nem b é associado a d0 . Como d1 ∈ D,
d1 �= 0 e d1 ∈ / D× , não é produto de irredutı́veis, podemos repetir
o procedimento, obtendo uma uma cadeia estritamente crescente de
ideais
(d0 ) � (d1 ) � (d2 ) � · · ·
Tome o ideal (c.f. a prova do teorema 1.3.4 na página 9)
def

d = (dn ) = (d0 , d1 , d2 , . . .)
n≥0

Por hipótese, d é finitamente gerado, digamos d = (ω1 , . . . , ωr ). Assim,


como ωi ∈ d para i = 1, . . . , r, existe n suficientemente grande tal que
ωi ∈ (dn ) para todo i = 1, . . . , r. Porém, isto significa que
(dn+1 ) ⊆ d = (ω1 , . . . , ωr ) ⊆ (dn )
344 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

Portanto (dn+1 ) = (dn ), o que contradiz o fato de a inclusão (dn ) �


(dn+1 ) ser estrita.

Unicidade da fatoração: faremos uma indução no número mı́nimo


m de fatores irredutı́veis de um elemento d ∈ D não nulo. Se m = 0,
ou seja, d ∈ D× (por convenção), não há o que fazer. Suponha agora
que m > 0 e sejam

d = π1 π2 . . . πm = ρ1 ρ2 . . . ρn

duas fatorações em irredutı́veis/primos πi , ρj . Como π1 é primo, re-


ordenando os fatores, podemos supor que π1 | ρ1 . Mas como π1 e ρ1
são ambos irredutı́veis, isto implica que eles são associados, digamos
π1 = ρ1 u com u ∈ D× . Assim, obtemos

π2 . . . πm = uρ2 . . . ρn

e por hipótese de indução concluı́mos que m − 1 = n − 1 =⇒ m = n


e, após reordenar os fatores, que π2 é associado a uρ2 , logo a ρ2 , e que
πi e ρi são associados para i = 3, . . . , n = m também.

Podemos agora demonstrar o importante

Teorema B.1.4 Seja D um domı́nio. Então

D é DE =⇒ D é DIP =⇒ D é DFU

Demonstração: (DE ⇒ DIP) Suponha que D seja um DE. Como o ideal


nulo é principal, basta mostrar que todo ideal d �= (0) de D é principal. Seja
d ∈ d tal que ϕ(d) seja mı́nimo dentre os elementos não nulos de d. Vamos
mostrar que d = (d). A inclusão ⊇ é clara já que d ∈ d. Por outro lado,
tome a ∈ d. Dividindo a por d podemos escrever a = dq + r com r = 0 ou
ϕ(r) < ϕ(d). Mas como r = a − dq ∈ d, pela minimalidade de ϕ(d) temos
r = 0, ou seja, a = dq ∈ (d), como querı́amos.
(DIP ⇒ DFU) Pelo lema anterior, basta mostrar que todo irredutı́vel π ∈ D
é primo. Suponha que π | ab mas π � a; queremos mostrar que π | b. Basta
mostrar que (π, a) = (1), ou seja, que existem x, y ∈ D tais que

1 = xπ + ya

De fato, multiplicando esta igualdade por b e observando que π | ab, obtemos

b = xb · π + y · ab é múltiplo de π

como desejado.
B.1. DE, DIP, DFU 345

Temos que o ideal (π, a) é principal por hipótese, gerado por d ∈ D,


digamos. Logo
� �
d | π π irredutı́vel d é associado a 1 ou π
(π, a) = (d) =⇒ =⇒
d|a d|a

Mas d e π não são associados pois d | a e π � a. Assim, d ∈ D× , logo


(π, a) = (1), como querı́amos.

Para DFUs, podemos generalizar os conceitos de mdc e mmc de inteiros.

B.1.5 Definição Seja D um DFU e sejam d1 , . . . , dn ∈ D \ {0}.

1. Um máximo divisor comum (mdc) de d1 , . . . , dn é um divisor comum


d de d1 , . . . , dn com a propriedade de que se a é também um divisor
comum de d1 , . . . , dn então a | d.

2. Um mı́nimo múltiplo comum (mmc) de d1 , . . . , dn é um múltiplo


comum m de d1 , . . . , dn com a propriedade de que se a é também um
múltiplo comum de d1 , . . . , dn então m | a.

Observe que quaisquer dois mdc’s d e d� de d1 , . . . , dn são associados já que


d | d� e d� | d. Analogamente, quaisquer dois mmc’s são associados. Assim,
por abuso de linguagem denotaremos por mdc(d1 , . . . , dn ) e mmc(d1 , . . . , dn )
qualquer mdc e qualquer mmc de d1 , . . . , dn , lembrando que estes elementos
apenas estão definidos a menos de associados. O próximo lema mostra que
mdc’s e mmc’s sempre existem em DFU.

Lema B.1.6 Seja D um DFU e sejam d1 , . . . , dn ∈ D \ {0}.

1. Se � e
dj = uj πi ji (uj ∈ D× , eji ∈ N)
1≤i≤r

são as fatorações dos dj ’s em irredutı́veis πi , dois a dois não associados


(note que eji = 0 se πi � dj ), temos
� min{e1i ,...,eni }
mdc(d1 , . . . , dn ) = πi
1≤i≤r
� max{e1i ,...,eni }
mmc(d1 , . . . , dn ) = πi
1≤i≤r

2. Se D for um DIP, então também


� �
mdc(d1 , . . . , dn ) = (d1 ) + · · · + (dn ) = (d1 , . . . , dn )
346 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

Demonstração: O item (1) segue diretamente da fatoração única. Para


mostrar o item (2), seja d um gerador do ideal principal (d1 , . . . , dn ). Temos
(d) = (d1 , . . . , dn ) =⇒ d | d1 . . . . , d | dn
e portanto d é um divisor comum de d1 , . . . , dn . Se a é outro divisor comum,
temos
a | d1 , . . . , a | dn =⇒ (a) ⊇ (d1 , . . . , dn ) = (d) =⇒ a | d
o que mostra que d é um mdc de d1 , . . . , dn .

B.2 Exemplo: Inteiros de Gauß


O anel dos inteiros de Gauß é o subanel de C dado por
def
Z[i] = Z + Z · i = {a + bi ∈ C | a, b ∈ Z}
Definimos ainda a função norma por
N : Z[i] → N
z = a + bi �→ |z|2 = zz = a2 + b2
que é uma função multiplicativa, ou seja,
N (wz) = N (w)N (z) para todo w, z ∈ Z[i]
já que o mesmo vale para o valor absoluto em C.
Teorema B.2.1 Z[i] é domı́nio euclidiano.
Demonstração: Vamos verificar que Z[i] é DE com a função tamanho
euclidiano dada pela norma. Sejam α, β ∈ Z[i] com β �= 0. Queremos
encontrar q, r ∈ Z[i] tais que
α = βq + r com N (r) < N (β)
(o caso r = 0 corresponde a 0 = N (r) < N (β)) Escreva α β = x + yi com
x, y ∈ Q. Agora sejam m, n ∈ Z os inteiros mais próximos de x e y, ou seja,
sejam m e n tais que |x−m| ≤ 12 e |y −n| ≤ 12 . Agora basta tomar q = m+ni
e r = α − βq, pois temos
�α �2 1 1
� �
� − q � = |(x − m) + (y − n)i|2 = (x − m)2 + (y − n)2 ≤ + < 1
β 4 4
e assim, multiplicando por |β|2 , obtemos
N (r) = |α − βq|2 < |β|2 = N (β)
B.2. EXEMPLO: INTEIROS DE GAUSS 347

Desta forma, temos que Z[i] é um DFU. Nosso próximo passo será carac-
terizar todos os irredutı́veis de Z[i]. Antes precisamos de um pequeno

Lema B.2.2 Seja p um primo com p ≡ 1 (mod 4). Então existe x ∈ Fp tal
que x2 = −1.

Demonstração: Segue do critério de Euler (teorema 2.2.5 na página 41),


já que se p ≡ 1 (mod 4) então (p − 1)/2 é par e portanto
� �
−1
= (−1)(p−1)/2 = 1
p

Uma prova alternativa direta utiliza a seguinte observação: se a �= 0 é um


elemento do corpo Fp então

a = a−1 ⇐⇒ a2 = 1 ⇐⇒ (a − 1)(a + 1) = 0 ⇐⇒ a ∈ {±1}

Assim, pareando em F× / {±1} com seu inverso a−1 , que é


p cada elemento a ∈
distinto de a, obtemos (teorema de Wilson)

(p − 1)! ≡ 1 · (−1) ≡ −1 (mod p)

Por outro lado, pareando a com −a e lembrando que (p − 1)/2 é par, obtemos
� �p − 1� �
2
(p − 1)! ≡ (−12 ) · (−22 ) · (−32 ) · . . . · − (mod p)
2
�� p − 1 � � 2
⇐⇒ − 1 ≡ ! (mod p)
2
� �
Assim, podemos tomar x = (p − 1)/2 ! mod p.

Teorema B.2.3 1. Z[i]× = {±1, ±i}.

2. Os elementos irredutı́veis de Z[i] são, a menos de associados,

• números primos p ∈ Z tais que p ≡ 3 (mod 4);


• elementos π ∈ Z[i] tais que p = N (π) é um número primo com
p = 2 ou p ≡ 1 (mod 4).

Demonstração:

1. É claro que ±1, ±i ∈ Z[i]× . Reciprocamente, se u, v ∈ Z[i] são tais que


uv = 1, então N (u)N (v) = 1 em N, logo N (u) = N (v) = 1. Escrevendo
u = a + bi com a, b ∈ Z, temos que N (u) = 1 ⇐⇒ a2 + b2 = 1 ⇐⇒
(a, b) = (±1, 0) ou (a, b) = (0, ±1), ou seja, u ∈ {±1, ±i}.
348 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

2. Mostremos que os elementos da lista acima são irredutı́veis. Seja p ≡ 3


(mod 4). Se p pode ser fatorado como p = αβ com α, β ∈ Z[i] \ Z[i]× ,
temos p2 = N (p) = N (α)N (β). Como α e β não são unidades, N (α) �=
1 e N (β) �= 1, logo N (α) = N (β) = p. Porém, escrevendo α = a + bi
com a, b ∈ Z, temos que a2 + b2 = p ≡ 3 (mod 4), o que é impossı́vel,
visto que um quadrado perfeito é congruente a 0 ou a 1 módulo 4, logo
a2 + b2 é congruente a 0, 1 ou 2 módulo 4, mas nunca a 3 módulo 4.
Agora suponha que N (π) seja primo. Se π = αβ com α, β ∈ Z[i] então
N (π) = N (α)N (β). Como N (π) é primo, ou N (α) = 1 ou N (β) = 1,
ou seja, ou α ou β é uma unidade e portanto π é irredutı́vel.
Finalmente, verifiquemos que não há outros elementos irredutı́veis. Se
π ∈ Z[i] é irredutı́vel, temos que π | N (π) = ππ, logo, como π é um
elemento primo, π divide algum fator primo p de N (π). Se p ≡ 3
(mod 4), então sendo p irredutı́vel em Z[i] devemos ter π associado a
p. Se p = 2 = i(1 − i)2 , temos que π é associado a 1 − i.
Por fim, se p ≡ 1 (mod 4), então p redutı́vel em Z[i]. Caso contrário,
se x ∈ Z é tal que x2 ≡ −1 (mod p) (ver lema anterior), de p | x2 + 1 =
(x + i)(x − i), terı́amos que p | x + i ou p | x − i. Mas isto é impossı́vel:
um múltiplo de p em Z[i] é da forma p(a + bi) = pa + pbi com a, b ∈ Z,
isto é, possui parte real e imaginária múltiplos de p, o que não é o caso
para x ± i.
Assim, existem α, β ∈ Z[i] \ Z[i]× tais que p = αβ. Tomando normas,
temos p2 = N (α)N (β) =⇒ N (α) = N (β) = p já que α, β ∈ / Z[i]× e
assim têm norma maior do que 1. Como α e β têm norma prima, são
irredutı́veis pelo que já provamos. Assim, π deve ser associado a α ou
a β.

B.2.4 Exemplo Vamos encontrar a fatoração em irredutı́veis de 6 + 7i em


Z[i]. Se π é um fator irredutı́vel de 6 + 7i, temos que N (π) | N (6 + 7i) =
85 = 5 · 17. Como 5 = (2 + i)(2 − i) e 17 = (4 + i)(4 − i) são as fatorações em
irredutı́veis de 5 e 17 em Z[i] e como π | N (π), temos que π | 85 =⇒ π ∈
{2 ± i, 4 ± i}. Testando as possibilidades, obtemos que 2 − i e 4 − i dividem
6 + 7i, de modo que 6 + 7i = i(2 − i)(4 − i) é a fatoração procurada.
Vejamos uma aplicação na resolução de problemas sobre Z.
B.2.5 Exemplo Resolva a equação diofantina y 3 = x2 + 4.
Solução: Vamos mostrar que a fatoração y 3 = (x + 2i)(x − 2i) em Z[i]
implica que x + 2i e x − 2i são cubos perfeitos em Z[i]. De fato, temos que
mdc(x + 2i, x − 2i) | (x + 2i) − (x − 2i) = 4i = −i(1 − i)4
Assim, se π é um irredutı́vel não associado a 1 − i com π | x + 2i, então
π � x − 2i, logo se f ∈ N é máximo com π f | x + 2i, pela fatoração única, f
B.3. LEMA DE GAUSS 349

é igual ao expoente da maior potência de π que divide y 3 e portanto 3 | f .


Assim, existem α ∈ Z[i] com 1 − i � α e u ∈ Z[i]× = {±1, ±i} tais que

x + 2i = u(1 − i)e α3

para algum e ∈ N. Tomando normas, obtemos

y 3 = x2 + 4 = N (x + 2i) = 2e N (α)3

com N (α) ı́mpar já que 1 − i � α. Assim, e é o expoente da maior potência de


2 que divide y 3 e portanto 3 | e também. Como toda unidade u é um cubo
perfeito em Z[i], temos que x + 2i também é um cubo perfeito.
Agora escrevendo x + 2i = (a + bi)3 com a, b ∈ Z e expandindo, obtemos
x = a3 − 3ab2 e 2 = 3a2 b − b3 . Da última equação, temos b | 2 e testando
as possibilidades obtemos as soluções (a, b) = (±1, −2) e (a, b) = (±1, 1), ou
seja, (x, y) = (±11, 5) ou (x, y) = (±2, 2).

B.3 Lema de Gauß


Nesta seção, mostraremos que se D é um DFU, o mesmo ocorre para D[x],
um resultado devido a Gauß. Para isto, dado um elemento f (x) ∈ D[x],
precisaremos estudar a relação entre irredutibilidade de f (x) visto tanto como
elemento de D[x] como de K[x], sendo K = Frac D.
B.3.1 Definição Seja D um DFU. Um polinômio não nulo f (x) ∈ D[x] é
dito primitivo se o mdc de seus coeficientes não nulos é (associado a) 1, ou
seja, se não existe um primo π ∈ D que divide todos os seus coeficientes.

Para provar o lema de Gauß, precisamos de dois resultados simples.


Lema B.3.2 Seja D um DFU e K = Frac D. Então
1. Sejam a, b ∈ D e f (x), g(x) ∈ D[x].

a · f (x) = b · g(x)
=⇒ b | a
f (x) é primitivo

Em particular, se f (x) e g(x) são ambos primitivos, então a · f (x) =


b · g(x) implica que a e b são associados.
2. Seja f (x) ∈ K[x] um polinômio não nulo. Então f (x) é associado em
K[x] a um polinônio primitivo em D[x], ou seja, existem α ∈ K × =
(K[x])× e um polinômio primitivo f0 (x) ∈ D[x] tais que

f (x) = α · f0 (x)

Além disso, se f (x) ∈ D[x], então α ∈ D \ {0}.


350 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

Demonstração:

1. Dado um irredutı́vel π ∈ D, devemos mostrar que a maior potência de


π que divide b é menor ou igual à maior potência de π que divide a.
Como f (x) é primitivo, existe um monômio ci xi de f (x) tal que π � ci .
Assim, da igualdade a · f (x) = b · g(x), temos que b | aci e assim a maior
potência de π que divide b é a menor ou igual à maior potência de π
que divide a, como querı́amos.

2. Seja b ∈ D, b �= 0, um denominador comum para os coeficientes de


f (x), de modo que b · f (x) ∈ D[x]. Seja a um mdc dos coeficientes não
nulos de b · f (x). Temos que

def b
f0 (x) = · f (x) ∈ D[x]
a
é primitivo. Assim, basta tomar α = a/b; se f (x) ∈ D[x], podemos
tomar b = 1 de modo que α = a ∈ D.

Lema B.3.3 1. Seja A um domı́nio. Então A[x] é domı́nio.

2. Seja A um anel qualquer. Seja p um ideal de A e seja


def
p[x] = p · A[x] = {an xn + an−1 xn−1 + · · · + a0 ∈ A[x] | ai ∈ p}

que é um ideal de A[x]. Temos um isomorfismo A[x]/p[x] = (A/p)[x] e

p ∈ Spec A =⇒ p[x] ∈ Spec A[x]

Demonstração:

1. Sejam f, g ∈ A[x] polinômios não nulos e sejam a, b ∈ A seus coeficientes


lı́deres. Então f g �= 0, pois o coeficiente lı́der de f g é ab, que é não
nulo pois a, b �= 0 e A é domı́nio.

2. Para qualquer ideal p de A, o morfismo natural

A[x] � (A/p)[x]
n n−1
an x + an−1 x + · · · + a0 �→ an xn + an−1 xn−1 + · · · + a0

é claramente sobrejetor e seu kernel é p[x], logo induz um isomor-


fismo A[x]/p[x] = (A/p)[x]. Assim, se p ∈ Spec A, temos que A/p
é domı́nio e pelo item anterior A[x]/p[x] = (A/p)[x] é domı́nio, logo
p[x] ∈ Spec A[x].
B.3. LEMA DE GAUSS 351

Teorema B.3.4 (Gauß) Seja D um DFU e seja K = Frac D.


1. Sejam f (x), g(x) ∈ D[x] dois polinômios primitivos. Então f (x)g(x) é
primitivo também.
2. Seja f (x) ∈ D[x] um polinômio primitivo e g(x) ∈ D[x] qualquer.
Então
f (x) | g(x) em K[x] =⇒ f (x) | g(x) em D[x]

3. Seja f (x) ∈ D[x] um polinômio primitivo. Então

f (x) irredutı́vel em K[x] ⇐⇒ f (x) irredutı́vel em D[x]

4. Temos

D é um DFU =⇒ D[x] é um DFU

Demonstração:
1. Seja π ∈ D um primo e p = (π) ∈ Spec D. Como f (x) e g(x) são
primitivos, seus coeficientes não são todos múltiplos de π, logo

f (x) �= 0 e g(x) �= 0 em A[x]/p[x] = (A/p)[x]

Como (A/p)[x] é domı́nio pelo segundo lema acima, temos que neste
anel
f (x) · g(x) = f (x) · g(x) �= 0
Ou seja, π não divide todos os coeficientes de f (x) · g(x). Como π é um
irredutı́vel arbitrário, concluı́mos que f (x) · g(x) é primitivo.
2. Como f (x) | g(x) em K[x], pelo primeiro lema acima, podemos escrever
a
g(x) = · h(x)f (x) (∗)
b
com a, b ∈ D e h(x) ∈ D[x] primitivo. Pelo item anterior, h(x)f (x) é
primitivo, logo, ainda pelo mesmo lema, temos

b · g(x) = a · h(x)f (x) =⇒ b | a

e portanto a/b ∈ D. Assim, (∗) mostra que f (x) | g(x) em D[x].


� �×
3. (⇐) Suponha que f (x) seja redutı́vel em K[x]. Como K[x] consiste
nos polinômios constantes não nulos, temos uma fatoração não trivial
f (x) = g(x)h(x) com g(x), h(x) ∈ K[x] e deg g(x), deg h(x) > 0; substi-
tuindo estes fatores por associados, pelo primeiro lema acima podemos
supor sem perda de generalidade que g(x) está em D[x] e é primitivo.
Mas então g(x) | f (x) em D[x] também pelo item anterior, ou seja,
352 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

h(x) ∈ D[x] e temos assim que f (x) = g(x)h(x) é uma fatoração não
trivial em D[x]. Logo f (x) é redutı́vel em D[x].
(⇒) A recı́proca é bem mais fácil e não utiliza os resultados anteriores.
Suponha que f (x) seja redutı́vel em D[x] e seja f (x) = g(x)h(x) uma
� �×
fatoração não trivial com g(x), h(x) ∈/ D[x] = D× . Não podemos
ter deg g(x) = 0 ou deg h(x) = 0, i.e., g(x) ∈ D ou h(x) ∈ D, pois caso
contrário f (x) não seria primitivo. Logo deg g(x), deg h(x) > 0 e assim
f (x) = g(x)h(x) é uma fatoração não trivial em K[x], de modo que
f (x) é redutı́vel em K[x].
4. A ideia é tentar reduzir o problema para K[x], pois já sabemos que
K[x] é um DFU (pois é DE).
Inicialmente, vamos provar que todo irredutı́vel p(x) ∈ D[x] é primo.
Se deg p(x) = 0, então p(x) deve ser um elemento irredutı́vel em D, que
é primo pois D é DFU por hipótese. Agora suponha que deg p(x) > 0;
em particular, temos que p(x) é primitivo, pois caso contrário o mdc
de seus coeficientes não nulos seria um fator não trivial de p(x). Além
disso, pelo item (3), p(x) é irredutı́vel em K[x] também, logo p(x) é
primo no DFU K[x]. Assim, se g(x), h(x) ∈ D[x],

p(x) | g(x)h(x) em D[x]


=⇒ p(x) | g(x)h(x) em K[x]
=⇒ p(x) | g(x) ou p(x) | h(x) em K[x]
(2)
=⇒ p(x) | g(x) ou p(x) | h(x) em D[x]

o que mostra que p(x) é primo em D[x].


Para encerrar, pelo lema B.1.3 na página 343, bastaria mostrar que todo
ideal de D[x] é finitamente gerado, o que segue do teorema da base de
Hilbert (teorema 6.2.1 na página 149). Uma outra maneira é mostrar
diretamente a existência da fatoração, já que a prova da unicidade da
fatoração no lema B.1.3 na página 343 só utiliza a hipótese de todo
irredutı́vel ser primo. É o que faremos agora.
Dado qualquer f (x) ∈ D[x] não nulo, podemos fatorá-lo em K[x] como

f (x) = α · p1 (x) · . . . · pr (x) (α ∈ K × )

com pi (x) irredutı́veis em K[x]. Pelo primeiro lema acima, podemos


supor sem perda de generalidade que os pi (x)’s estão em D[x] e são
primitivos, logo são irredutı́veis em D[x] pelo item (3). O produto
p1 (x) · . . . · pr (x) é primitivo pelo item (1), logo por (2) temos que este
produto divide f (x) em D[x], ou seja, temos α ∈ D. Fatorando α em
irredutı́veis em D, obtemos uma fatoração em irredutı́veis de f (x) em
D[x], como desejado.
B.4. MÓDULOS F.G. SOBRE DIPS 353

Como Z e corpos são DFUs, indutivamente obtemos

Corolário B.3.5 Seja k um corpo. Então k[x1 , . . . , xn ] e Z[x1 , . . . , xn ] são


DFUs.

B.4 Módulos finitamente gerados sobre domı́-


nios de ideais principais
Nesta seção, queremos provar um caso especial do teorema de estrutura para
módulos finitamente gerados sobre DIPs. Lembre que um A-módulo M é
livre de torção se

am = 0 =⇒ a = 0 ou m = 0 (a ∈ A, m ∈ M )

Teorema B.4.1 (Módulos sobre um PID) Seja A um DIP.

1. Seja M um A-módulo livre de posto finito. Então qualquer submódulo


N ⊆ M é também livre de posto finito.

2. Todo A-módulo M finitamente gerado livre de torção é livre.

Demonstração:

1. Faremos uma indução no posto n = rankA M , o caso n = 0 sendo


trivial. Suponha então n > 0 e seja e1 , . . . , en uma base de M . Seja
π1 : M → A a “primeira coordenada” com relação a esta base, i.e, o
morfismo de A-módulos definido por π1 (e1 ) = 1 e π1 (ei ) = 0 para i �= 1.
Como A é um DIP, o ideal π1 (N ) é principal, gerado por um t1 ∈ A.
Podemos supor que t1 �= 0, caso contrário N estaria contido no módulo
livre Ae2 ⊕ · · · ⊕ Aen de posto n − 1 e por hipótese de indução N já
seria livre. Escolha v1 ∈ N tal que π1 (v1 ) = t1 e considere o submódulo
de N
N0 = {v ∈ N | π1 (v) = 0}
Como N0 ⊆ Ae2 ⊕ · · · ⊕ Aen , por hipótese de indução N0 é livre. Logo
o problema acaba se mostrarmos que

N = Av1 ⊕ N0

Primeiro, N = Av1 + N0 : dado v ∈ N qualquer, π1 (v) ∈ π1 (N ) = (t1 ),


logo existe a ∈ A tal que

π1 (v) = at1 =⇒ π1 (v − av1 ) = 0 =⇒ v − av1 ∈ N0

e portanto v ∈ Av1 + N0 . Segundo, Av1 ∩ N0 = 0, pois se av1 ∈ N0


(a ∈ A) então π1 (av1 ) = 0 ⇐⇒ at1 = 0 ⇐⇒ a = 0 já que t1 �= 0.
354 APÊNDICE B. FATORAÇÃO ÚNICA

2. Sejam e1 , . . . , em geradores de M ; podemos supor que e1 , . . . , en são


linearmente independentes (n ≤ m) e que n é máximo com esta pro-
priedade. Então, para 1 ≤ i ≤ m − n, existe ai ∈ A não nulo tal que
ai en+i =�ai1 e1 + · · · + ain en (aij ∈ A). Seja a = a1 . . . am−n �= 0. Como
aM ⊆ 1≤i≤n Aei , aM é livre pelo item anterior. Mas M é livre de
torção, logo multiplicação por a é injetivo e portanto M é livre também.

B.5 Exercı́cios
B.1 (Critério de Eisenstein) Seja D um DFU e f (x) = an xn + · · · +
a1 x + a0 ∈ D[x] um polinômio primitivo não constante. Suponha que exista
um primo π ∈ D tal que π � an , π | aj para todo 0 ≤ j < n e π 2 � a0 . Mostre
que f (x) é irredutı́vel em D[x].

B.2 Seja A um DIP e seja ϕ : M → N um morfismo entre A-módulos livres


de postos finitos m = rankA M e n = rankA N . Mostre que existem bases de
M e N para as quais ϕ tem matriz associada da forma
 
d1 0 0 . . . 0
 0 d 2 0 . . . 0
 
 
ϕ =  0 0 d3 . . . 0
 .. .. 
. .
0 0 0 . . . 0 m×n

com d1 | d2 | d3 | · · · .
Apêndice C

Teoria de Corpos

Sejam K e L dois corpos. Lembre que todo morfismo de anéis σ : K �→ L


é injetor: como σ(1) = 1, ker σ é um ideal próprio de K e portanto ker σ =
(0). Assim, muitas vezes utilizaremos o termo imersão como sinônimo para
morfismo entre corpos. Se F é um corpo e os corpos K e L são F -álgebras,
um morfismo de F -álgebras σ : K �→ L será chamado de F -imersão; diremos
que um automorfismo σ : K ✲ K de F -álgebras é um F -automorfismo.

Denotamos o grupo de todos os F -automorfismos de K por Aut(K/F ) (a


operação do grupo é a composição de funções).
Seja L ⊇ K uma extensão de corpos e seja Λ ⊆ L um subconjunto qual-
quer. Denotamos por K[Λ] o menor subanel de L contendo K ∪Λ e por K(Λ)
o menor subcorpo de L que contém K ∪ Λ. Assim, K[Λ] é o domı́nio formado
por todas as expressões polinomiais f (λ1 , . . . , λr ) com λ1 , . . . , λr ∈ Λ (r ∈ N,
f (x1 , . . . , xr ) ∈ K[x1 , . . . , xr ]) enquanto que K(Λ) = Frac K[Λ]. Se Λ =
{λ1 , . . . , λn } é finito, escrevemos simplesmente K[λ1 , . . . , λn ] e K(λ1 , . . . , λn )
no lugar de K[Λ] e K(Λ).

C.1 Extensões Finitas e Algébricas de Corpos


C.1.1 Definição Seja L ⊇ K uma extensão de corpos.
1. Um elemento α ∈ L é dito transcendente sobre K se o morfismo
avaliação
evalα : K[x] → L
f (x) �→ f (α)
é injetor. Caso contrário, se existe um polinômio f (x) ∈ K[x] não nulo
tal que f (α) = 0, dizemos que α é algébrico sobre K.
2. A extensão L ⊇ K é dita algébrica se todo elemento de L é algébrico
sobre K. Caso contrário, dizemos que a extensão L ⊇ K é transcen-
dente.

355
356 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

C.1.2 Definição Seja L ⊇ K uma extensão de corpos.


1. O grau [L : K] da extensão L ⊇ K é a dimensão de L visto como
K-espaço vetorial.
2. A extensão L ⊇ K é finita se [L : K] < ∞.
Lema C.1.3 (Lema de Graus) Se M ⊇ L ⊇ K são extensões finitas de
corpos, então [M : K] = [M : L] · [L : K].

M
[M :L]

L [M :K]=[M :L]·[L:K]

[L:K]

Demonstração: Se
L = Kω1 ⊕ · · · ⊕ Kωm (m = [L : K])
M = Lτ1 ⊕ · · · ⊕ Lτn (n = [M : L])
então é fácil verificar que

M= Kωi τj ,
1≤i≤m
1≤j≤n

e portanto [M : K] = mn.

Teorema C.1.4 Seja L ⊇ K uma extensão de corpos.


1. Um elemento α ∈ L é algébrico sobre K se, e só se, [K(α) : K] < ∞.
2. Toda extensão finita de corpos é algébrica.
3. (“Algébrico sobre algébrico é algébrico”) Se M ⊇ L e L ⊇ K são ex-
tensões algébricas de corpos, então M ⊇ K também é algébrica.
4. O subconjunto de L formado por todos os elementos algébricos sobre K
é um subcorpo de L (o chamado fecho algébrico de K em L).
Demonstração: As provas são casos particulares das provas para anéis
(teorema 8.1.5 na página 173, corolário 8.1.6 na página 174 e lema 8.3.1 na
página 178). Para o item (1), é fácil dar uma prova direita para a volta,
sem utilizar o truque do determinante: se [K(α) : K] < ∞, as potências
αi ∈ K(α) (i = 0, 1, 2, . . .) são linearmente dependentes sobre K, logo existe
um polinômio p(x) ∈ K[x] não nulo tal que p(α) = 0.
C.2. EXTENSÕES SIMPLES E FECHO ALGÉBRICO 357

C.2 Extensões simples e fecho algébrico


Seja L ⊇ K uma extensão de corpos e seja α ∈ L um elemento algébrico
sobre K. Como K[x] é um DE, logo um DIP (teorema B.1.4 na página 344),
o kernel do “morfismo avaliação”

evalα : K[x] → L
f (x) �→ f (α)

é gerado por um polinômio mα (x) �= 0, que podemos sem perda de generali-


dade supor mônico.

C.2.1 Definição Na notação acima, o gerador mônico mα (x) ∈ K[x] de


ker(evalα ) é chamado de polinômio minimal de α sobre K.
� �
Note que, diretamente de ker(evalα ) = mα (x) , temos que

f (x) ∈ K[x]
=⇒ mα (x) | f (x)
f (α) = 0

e assim mα (x) ∈ K[x] é o polinômio mônico de menor grau que admite α


como raiz (daı́ o nome polinômio minimal 1 ). Em particular, temos que mα (x)
é irredutı́vel em K[x] e, reciprocamente, um polinômio mônico irredutı́vel em
K[x] que admite α como raiz é o polinômio minimal de α.

Teorema C.2.2 Seja L ⊇ K uma extensão de corpos e seja α ∈ L um


elemento algébrico sobre K com polinômio minimal mα (x) ∈ K[x].

1. Temos um isomorfismo de K-álgebras

K[x] x�→ α
� � ∼
= K[α]
mα (x)

2. K[α] é um subcorpo de L, ou seja, K(α) = K[α]. Além disso,

[K(α) : K] = deg mα (x)

Demonstração: O item (1) segue diretamente do teorema � do


� isomorfismo
(corolário 1.4.2 na página 12). Para mostrar que K[x]/ mα (x) é um corpo,
devemos mostrar
� �que todo elemento não nulo f (x) mod mα (x) é unidade
em K[x]/ mα (x) , o que é fácil:� mdc(f (x),�mα (x)) = 1 já que mα (x) é
irredutı́vel, logo o ideal principal f (x), mα (x) deve ser igual a (1) e existem
a(x), b(x) ∈ K[x] tais que

a(x)f (x) + b(x)mα (x) = 1 =⇒ a(x)f (x) ≡ 1 (mod mα (x))


1 que não é um polinômio pequeno e malvado, como diria nosso amigo Carlos Y. Shine.
358 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS
� �
Uma prova alternativa mais rápida é a seguinte: como K[x]/ mα (x) ∼
=
� �
K[α]�⊆ L é �um domı́nio, mα (x) é um ideal primo não nulo do DIP K[x],
logo mα (x) é maximal (exemplo 3.1.7 na página 84).
Por fim, seja n = deg mα (x). Como os polinômios de graus menores ou
iguais a n�− 1 formam
� um conjunto de representantes de classe dos elementos
de K[x]/ mα (x) , uma base de K(α) = K[α] sobre K é 1, α, α2 , . . . , αn−1 .
Logo [K(α) : K] = n.

C.2.3 Definição Uma extensão algébrica de corpos L ⊇ K é dita simples


se existe α ∈ L tal que L = K(α).

Note que toda extensão finita L ⊇ K pode ser escrita como uma torre de
extensões simples

L = Kn ⊇ Kn−1 ⊇ Kn−2 ⊇ · · · ⊇ K0 = K

com Ki+1 = Ki (αi+1 ) para algum αi+1 ∈ Ki+1 . De fato, basta tomar α1 ∈
L \ K0 , α2 ∈ L \ K1 , etc.; este processo para já que [Ki+1 : K] > [Ki : K] e
[L : K] < ∞. Como uma primeira aplicação deste fato, temos o seguinte

Corolário C.2.4 Seja K um corpo e f (x) ∈ K[x] um polinômio de grau


n ≥ 1. Existe uma extensão L ⊇ K de corpos com [L : K] ≤ n! tal que
em L[x] o polinômio f (x) se fatora completamente em n fatores lineares
(equivalentemente, todas as raı́zes de f (x) estão em L).

Demonstração: Por indução em n, o caso n = 1 sendo trivial. Suponha


n > 1 e seja p(x) ∈ K[x] um fator irredutı́vel de f (x). Considere o corpo
K1 = K[x]/(p(x)); como α = x é uma raiz de p(x) em K1 , temos uma
fatoração f (x) = (x − α) · g(x) em K1 [x]. Por hipótese de indução aplicado
a g(x) ∈ K1 [x], existe uma extensão L ⊇ K1 de grau no máximo (n − 1)!
tal que g(x), e portanto f (x), se fatora completamente em L[x]. O resultado
segue já que

[L : K] = [L : K1 ] · [K1 : K] = [L : K1 ] · deg p(x) ≤ (n − 1)! · n = n!

C.2.5 Definição Um corpo K é dito algebricamente fechado se satisfaz


as seguintes condições equivalentes:

(i) todo polinômio f (x) ∈ K[x] se fatora completamente como um produto


de polinômios de grau 1;

(ii) todo polinômio f (x) ∈ K[x] não constante possui uma raiz α ∈ K;

(iii) um polinômio p(x) ∈ K[x] é irredutı́vel se, e só se, p(x) tem grau 1;
C.2. EXTENSÕES SIMPLES E FECHO ALGÉBRICO 359

(iv) toda extensão algébrica de K é trivial.

É claro que (i) ⇒ (ii) ⇒ (iii). Para ver que (iii) ⇒ (iv), basta notar que
o polinômio minimal de qualquer elemento α algébrico sobre K tem grau 1 e
assim α ∈ K. Por fim, (iv) ⇒ (i) segue do corolário acima.

Teorema C.2.6 Para todo corpo K, existe uma extensão algébrica K alg ⊇
K com K alg algebricamente fechado. Dizemos que o corpo K alg é um fecho
algébrico de K.

Demonstração: Basta encontrar uma extensão Ω ⊇ K de corpos tal que


todo polinômio em K[x] se fatora completamente em Ω[x]. De fato, pelo te-
orema C.1.4 na página 356 o subconjunto K alg ⊆ Ω de todos os elementos de
Ω que são algébricos sobre K é um corpo. Além disso, K alg é algebricamente
fechado: dado um polinômio irredutı́vel f (x) ∈ K alg [x] não constante, pelo
corolário anterior f (x) possui uma raiz α em alguma extensão finita de K alg ;
temos que α é portanto algébrico sobre K (teorema C.1.4 na página 356) e
por hipótese seu polinômio minimal mα (x) ∈ K[x] sobre K se fatora comple-
tamente em Ω[x], logo mα (x) é um produto de fatores lineares em K alg [x] e
o mesmo vale para f (x) já que f (x) é o polinômio minimal de α sobre K alg
e portanto f (x) | mα (x) em K alg [x], provando que K alg é algebricamente
fechado. �
Dado um conjunto {Ai }i∈I de K-álgebras,
� defina2 i∈I Ai como o quo-
ciente do K-espaço vetorial com base i∈I Ai pelo subespaço gerado por
vetores da forma

(i) (zi )i∈I − (xi )i∈I − (yi )i∈I com zj = xj + yj para exatamente um j ∈ I
e zi = xi = yi para os demais i ∈ I \ {j};

(ii) (xi )i∈I − a(yi )i∈I , a ∈ K, com xj = ayj para exatamente um j ∈ I e


xi = yi para os demais i ∈ I \ {j}.
� �
Denote por � i∈I xi a imagem de (xi )i∈I em i∈I Ai , de modo que qualquer
elemento
� de i∈I A i é uma �combinação K-linear (finita) de elementos da
forma i∈I x i . Temos que i∈I A i é uma K-álgebra de maneira natural,
com o produto dos “tensores elementares” efetuado “componente a compo-
nente”:
�� � �� � �
xi · yi = (xi yi )
i∈I i∈I i∈I
� �
Além disso, temos um mapa natural Af → i∈I Ai (dado por a �→ i∈I xi
em que xf = a e xi = 1 se i �=�
� f ) e se Ai �= 0 para todo i ∈ I então
i∈I A i �
= 0, de modo que Specm i∈I Ai �= ∅.
Agora seja I = K[x] e para cada f ∈ I seja Af ⊇ K uma extensão
finita de corpos em que f se fatora completamente (que existe pelo corolário
2 tensorialmente familiar?
360 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

� �
anterior). Seja m ∈ Specm f ∈I Af e considere o corpo Ω = ( f ∈I Af )/m.
Temos que cada Af pode ser visto como subcorpo de Ω via a composição
� �
Af �→ Af � Ω = ( Af )/m
f ∈I f ∈I

que é injetora, como todo bom morfismo de corpos. Em particular, Ω ⊇ K e


qualquer polinômio f ∈ I se fatora completamente em Ω[x], como querı́amos.

C.3 Extensões quase-Galois e lema fundamen-


tal
Extensões simples desempenham um papel importante no estudo de extensões
algébricas de corpos. Um dos principais resultados é o seguinte

Lema C.3.1 (Lema fundamental) Sejam σ : K ✲ K � um isomorfismo


de corpos, K(α) ⊇ K uma extensão simples e L� ⊇ K � uma extensão de cor-


pos qualquer. Seja f (x) ∈ K[x] o polinômio minimal de α sobre K. Denote
por pσ (x) ∈ K � [x] o polinômio obtido a partir de p(x) ∈ K[x] aplicando-se σ
aos seus coeficientes.

σ̃
K(α) L�


K σ K�

Temos uma bijeção natural

{imersões σ̃ : K(α) �→ L� com σ̃|K = σ} ↔ {raı́zes de f σ em L� }


σ̃ �→ σ̃(α)

Demonstração: Se σ̃ : K(α) �→ L� é uma imersão com σ̃|K = σ então


f (α) = 0 =⇒ f σ (σ̃(α)) = 0, logo σ̃(α) é uma raiz de f σ ∈ K � [x] em L� e o
mapa acima está bem definido.
Para cada raiz α� ∈ L� de f σ , há exatamente uma imersão σ̃ : K(α) �→ L�
satisfazendo σ̃|K = σ e σ̃(α) = α� : de fato, como α gera K[α] = K(α) sobre
K, há no máximo um tal σ̃; a existência segue tomando σ̃ como a composição
� �
α ←� x K[x] ✲ � K [x] � x �→ α
σ
σ̃ : K[α] ✛ � � ✲ K � [α� ] ⊂ ✲ L�
≈ f (x) ≈ f σ (x) ≈

em que a “flecha σ” denota o isomorfismo p(x) mod f (x) �→ pσ (x) mod f σ (x)
induzido por σ.
C.3. EXTENSÕES QUASE-GALOIS E LEMA FUNDAMENTAL 361

Embora em princı́pio o lema fundamental trate apenas de extensões sim-


ples, utilizando uma indução no grau no caso de extensões finitas e o lema
de Zorn para extensões algébricas arbitrárias, facilmente obtemos resultados
mais gerais.

Corolário C.3.2 Sejam σ : K ✲ K � um isomorfismo de corpos, L ⊇ K


� �
uma extensão finita e L ⊇ K uma extensão de corpos qualquer. Então há
no máximo [L : K] imersões σ̃ : L �→ L� com σ̃|K = σ. Em particular,

| Aut(L/K)| ≤ [L : K]

Demonstração: Faremos uma indução em [L : K]. Se L = K(α) é uma


extensão simples de K e f (x) ∈ K[x] denota o polinômio minimal de α sobre
K, pelo lema fundamental há no máximo deg f σ (x) = deg f (x) = [L : K]
imersões σ̃ : L �→ L� com σ̃|K = σ e o resultado segue neste caso. Agora dada
uma extensão finita arbitrária L ⊇ K, tome α ∈ L \ K e considere a torre

L ⊇ K(α) � K

Pelo caso particular acima, σ se estende a no máximo [K(α) : K] imersões


σ � : K(α) �→ L� . Como [L : K(α)] < [L : K], por hipótese de indução
cada uma destas imersões σ � se estende a no máximo [L : K(α)] imersões
σ̃ : L �→ L� , logo há no máximo [L : K(α)] · [K(α) : K] = [L : K] tais σ̃, como
desejado. Por fim, | Aut(L/K)| ≤ [L : K] segue aplicando o resultado para
K = K � , L = L� e σ = id.

Corolário C.3.3 Seja L ⊇ K uma extensão algébrica de corpos. Seja Ω um


corpo algebricamente fechado e seja σ : K �→ Ω uma imersão. Então existe
uma imersão σ̃ : L �→ Ω tal que σ̃|K = σ.

Demonstração: Seja S o conjunto de todos os pares (E, τ ) em que E é


um corpo com L ⊇ E ⊇ K e τ : E �→ Ω é uma imersão estendendo σ. Ordene
S via a relação

(E1 , τ1 ) � (E2 , τ2 ) ⇐⇒ E1 ⊆ E2 e τ1 = τ2 |E1

Vamos aplicar o lema de Zorn. Note que (K, σ) ∈ S, logo S �= ∅. � E qualquer


cadeia {(Ei , τi ) | i ∈ I} em S é limitada superiormente pelo par ( i∈I Ei , τ ),
em que τ é obtido “colando-se” os τi ’s. Assim, existe um elemento maximal
(Emax , τmax ) ∈ S.
Suponha por absurdo que Emax � L. Tome α ∈ L \ Emax ; como Ω é
algebricamente fechado, pelo lema fundamental, existe τ : Emax (α) �→ Ω tal
que τ |Emax = τmax , o que contradiz a maximalidade de (Emax , τmax ). Logo
Emax = L e τmax : L �→ Ω é a extensão de σ procurada.
362 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Observação C.3.4 Se no corolário anterior a extensão L ⊇ K é finita, na


prova podemos utilizar uma indução no grau da extensão no lugar do lema
de Zorn, considerando (Emax , τmax ) ∈ S com [Emax : K] máximo.

Corolário C.3.5 Quaisquer dois fechos algébricos de um corpo K são K-


isomorfos.

Demonstração: Sejam Ω1 e Ω2 dois fechos algébricos de K. Pelo corolário


anterior, existe uma K-imersão σ : Ω1 �→ Ω2 , logo só falta mostrar que σ é
sobrejetor para obtermos um K-isomorfismo. Mas isto é fácil: como Ω2 é
algébrico sobre K, com mais razão ainda Ω2 é algébrico sobre o subcorpo
σ(Ω1 ), que é algebricamente fechado pois é isomorfo a Ω1 , logo σ(Ω1 ) = Ω2 .

Observação C.3.6 Em geral o K-isomorfismo entre dois fechos algébricos


de K não é único.

Queremos aplicar o lema fundamental no estudo de automorfismos de cor-


pos. Para isto, é conveniente termos “raı́zes em quantidade suficiente”, assim
como nos foi útil nos corolários acima trabalhar com corpos algebricamente
fechados. Isto nos leva à seguinte
C.3.7 Definição Seja L ⊇ K uma extensão algébrica de corpos e seja K alg
um fecho algébrico3 de K contendo L.
1. Seja α ∈ L e seja mα (x) ∈ K[x] seu polinômio minimal. As raı́zes de
mα (x) em K alg são chamadas de conjugados de α.
2. Se S ⊆ K[x], chamamos de corpo de raı́zes de S o subcorpo K(Λ) ⊆
K alg gerado sobre K pelo conjunto

Λ = {α ∈ K alg | f (α) = 0 para algum f (x) ∈ S}

3. A extensão L ⊇ K é dita normal4 ou quase-Galois se, para todo


α ∈ L, todos os seus conjugados pertencem a L (equivalentemente,
todo polinômio irredutı́vel f (x) ∈ K[x] que possui uma raiz em L se
fatora completamente em L[x]).

Dada uma torre de corpos M ⊇ L ⊇ K com M ⊇ K quase-Galois, a ex-


tensão do topo M ⊇ L também é quase-Galois: basta observar que, dado um
elemento α ∈ M , seu polinômio minimal sobre L divide seu polinômio mini-
mal sobre K, assim qualquer conjugado de α sobre L é também conjugado
de α sobre K e portanto pertence a M .
3 por exemplo, podemos tomar K alg como algum fecho algébrico de L.
4 embora mais tradicional, evitaremos usar este termo devido à possibilidade de confusão
com normalidade para domı́nios (no sentido de integralmente fechado em seu corpo de
frações).
C.3. EXTENSÕES QUASE-GALOIS E LEMA FUNDAMENTAL 363

Seja L ⊇ K uma extensão algébrica e seja σ : L → L um K-automorfismo.


Um fato simples, mas importante, é que σ preserva raı́zes conjugadas:

� �
σ =

Dado α ∈ L com polinômio minimal m(x) ∈ K[x] sobre K, como σ fixa K,


temos
m(α) = 0 ⇐⇒ σ(m(α)) = 0 ⇐⇒ m(σ(α)) = 0
de modo que σ(α) é um conjugado de α.
Com isso, podemos interpretar extensões quase-Galois como “extensões
simétricas” no seguinte sentido: dadas extensões de corpos M ⊇ L ⊇ K
com L ⊇ K quase-Galois, todo K-automorfismo σ : M → M se restringe a
um K-automorfismo σ : L → L, já que qualquer conjugado de um elemento
α ∈ L pertence a L, em particular σ(α) ∈ L. Esta situação é similar ao
que ocorre com simetrias do R2 que fixam (0, 0) (i.e., rotações com centro na
origem ou reflexões por um eixo passando pela origem): qualquer uma destas
simetrias se restringe a uma simetria de um cı́rculo com centro na origem,
mas o mesmo não ocorre com um quadrado centrado em (0, 0). O cı́rculo
seria “quase-Galois”, mas o quadrado, não. Observe ainda a analogia com
a definição de subgrupo normal N � G de um grupo G: N é um subgrupo
de G tal que todo automorfismo interno σ(x) = gxg −1 (g ∈ G) se restringe
a um automorfismo de N . Esta é a origem do termo extensão normal neste
contexto.
O próximo lema dá uma caracterização “prática” para identificar ex-
tensões quase-Galois em termos de corpos de raı́zes.
Lema C.3.8 Seja L ⊇ K uma extensão algébrica. As seguintes condições
são equivalentes:
(i) L ⊇ K é quase-Galois;
(ii) L é o corpo de raı́zes de uma famı́lia de polinômios S ⊆ K[x];
(iii) toda K-imersão σ : L �→ Lalg se restringe a um K-automorfismo de L.

Demonstração: (i) ⇒ (ii): basta tomar S como o conjunto dos po-


linômios minimais sobre K de todos os elementos de L.
(ii) ⇒ (iii): já vimos que σ permuta o conjunto de raı́zes dos polinômios em
S, que geram L sobre K, logo σ(L) = L.
(iii) ⇒ (i): seja α ∈ L e seja β ∈ Lalg um conjugado de α sobre K. Pelo lema
fundamental (lema C.3.1 na página 360), existe uma K-imersão σ : K(α) �→
Lalg tal que σ(α) = β, que pode ser estendida a uma K-imersão σ̃ : L �→ Lalg
pelo corolário C.3.3 na página 361. Como σ̃(L) = L por hipótese, temos
β = σ̃(α) ∈ L, portanto L ⊇ K é quase-Galois.
364 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

O próximo teorema é a “versão simétrica” do lema fundamental;


Teorema C.3.9 Seja L ⊇ K uma extensão quase-Galois finita de corpos e
seja τ : E1 ✲ E2 um K-isomorfismo, em que E1 e E2 são dois corpos com

L ⊇ Ei ⊇ K (i = 1, 2). Então existe um K-automorfismo τ̃ : L



✲ L tal
que τ̃ |E1 = τ .

τ̃
L L

τ
E1 ≈ E2

Demonstração: Note que é suficiente construir uma K-imersão τ̃ : L �→ L


estendendo τ , já que esta imersão será automaticamente sobrejetora: como
[τ̃ (L) : K] = [L : K] e τ̃ (L) ⊆ L, necessariamente τ̃ (L) = L. Construiremos
τ̃ por indução em n = [L : E1 ] = [L : τ (E1 )] = [L : E2 ], o caso n = 1 sendo
trivial.
Suponha n > 1 e seja γ ∈ L \ E1 . Sejam f (x) ∈ E1 [x] e m(x) ∈ K[x] os
polinômios minimais de γ sobre E1 e K respectivamente. Temos f (x) | m(x)
em E1 [x], logo aplicando τ obtemos f τ (x) | m(x) em E2 [x]. Como L ⊇ K é
quase-Galois, m(x) se fatora completamente em L[x], assim o mesmo ocorre
com f τ (x), de modo que podemos aplicar o lema fundamental (lema C.3.1
na página 360) e estender τ para uma K-imersão τ̂ : E1 (γ) �→ L. Como
[L : E1 (γ)] < n = [L : E1 ], por hipótese de indução podemos estender τ̂ a um
K-automorfismo τ̃ : L ✲ L, que será também uma extensão de τ .

Corolário C.3.10 Seja L ⊇ K uma extensão quase-Galois finita de corpos.


1. (Ação transitiva sobre conjugados) Se α, β ∈ L são conjugados sobre
K, então existe um K-automorfismo σ : L → L tal que σ(α) = β.
2. Seja M um corpo tal que L ⊇ M ⊇ K com M ⊇ K quase-Galois.
Então todo K-automorfismo de L se restringe a um K-automorfismo
de M e temos um morfismo sobrejetor de grupos

Aut(L/K) � Aut(M/K)
σ �→ σ|M

Assim, temos um isomorfismo induzido

Aut(L/K) ✲ Aut(M/K)

Aut(L/M )
C.4. SEPARABILIDADE 365

Demonstração: Para o item (1), basta aplicar o lema fundamental para


obter um K-isomorfismo τ : K(α) ✲ K(β) e em seguida aplicar o teorema

anterior. O item (2) segue diretamente do teorema anterior e do teorema do


isomorfismo, observando que o kernel de Aut(L/K) � Aut(M/K) é precisa-
mente Aut(L/M ).

C.4 Separabilidade
Nesta seção, queremos estudar o número de imersões e para isto precisamos
analisar o problema de raı́zes múltiplas de um polinômio.
C.4.1 Definição Seja K um corpo e seja K alg um fecho algébrico de K.
1. Um polinômio f (x) ∈ K[x] é dito separável se ele não possui raı́zes
múltiplas em K alg . Caso contrário, dizemos que (surpresa!) f (x) é
inseparável.
2. Um elemento α algébrico sobre K é dito separável sobre K se é raiz
de um polinômio separável em K[x].
3. Uma extensão algébrica de corpos L ⊇ K é dita separável se todo
elemento de L é separável sobre K. Caso contrário, ela é dita inse-
parável.
4. Seja L ⊇ K uma extensão de corpos de caracterı́stica p > 0. Dizemos
que L ⊇ K é puramente inseparável se para todo α ∈ L existe um
n
n ∈ N (que depende de α) tal que αp ∈ K.
5. Dizemos que K é um corpo perfeito5 se char K = 0 ou p = char K > 0
e o morfismo de corpos

Φ: K → K
α �→ αp

é sobrejetor (i.e., todo elemento de K é uma p-ésima potência).

Note que na definição acima, para testar se um elemento α é separável


sobre K, basta verificar se seu polinômio minimal mα (x) ∈ K[x] é separável,
já que qualquer outro polinômio f (x) ∈ K[x] que tem α como raiz é múltiplo
de mα (x). Observe ainda que, dada uma torre de corpos M ⊇ L ⊇ K com
M ⊇ K separável, ambas subextensões M ⊇ L e L ⊇ K são separáveis: isto
é claro para a segunda, enquanto que para a primeira, basta ver que, dado
um elemento α ∈ M , seu polinômio minimal sobre L divide seu polinômio
minimal sobre K.
5 cantada nerd: seu corpo é como Fp , perfeito!
366 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Lema C.4.2 Seja K um corpo e seja f (x) ∈ K[x].

1. (Critério
� da derivada)
� O polinômio f (x) é separável se, e somente se,
mdc f (x), f � (x) = 1.

2. Se f (x) é irredutı́vel em K[x], então f (x) é separável se, e só se,


f � (x) �= 0.
n
3. Se char K = p > 0, um polinômio da forma xp − a ∈ K[x] (n ∈ N)
possui uma única raiz de multiplicidade pn em K alg .

4. Se char K = p > 0 então f (x) é inseparável se, e só se, existe g(x) ∈
K[x] tal que f (x) = g(xp ). Em particular, qualquer polinômio não
n
constante f (x) ∈ K[x] pode ser escrito como f (x) = g(xp ) para algum
n ∈ N e algum polinômio separável g(x) ∈ K[x].

5. Se K é perfeito (e.g. char K = 0 ou K um corpo finito) então todo


polinômio irredutı́vel em K[x] é separável.

Demonstração:

1. Escreva f (x) = (x − α)e g(x) em K alg [x] com g(α) �= 0. Temos

f � (x) = e(x − α)e−1 g(x) + (x − α)e g � (x)


= (x − α)e−1 (eg(x) + (x − α)g � (α))

Logo e = 1 =⇒ f � (α) �= 0 enquanto e > 1 =⇒ f � (α) = 0. Portanto


f (x) é inseparável se, e só se, f (x) e f � (x) possuem uma raiz comum
α ∈ K alg , o que� ocorre se, �e só se, o polinômio minimal de α sobre
K divide
� o mdc� f (x), f � (x) . Ou seja, f (x) é inseparável se, e só se,
mdc f (x), f � (x) �= 1.

2. Pelo item anterior, f (x) é inseparável se, e só se


� �
mdc f (x), f � (x) �= 1 ⇐⇒ f (x) | f � (x)

já que f (x) é irredutı́vel. Mas f � (x) = 0 ou deg f � (x) < deg f (x).
Assim, f (x) | f � (x) ⇐⇒ f � (x) = 0.
n
3. Seja α ∈ K alg uma raiz de f (x) = xp − a ∈ K[x]. Então em K alg [x]
n n n
temos a fatoração f (x) = xp − αp = (x − α)p e assim α é raiz única
de multiplicidade pn .

4. Se f � (x) = 0, todo monômio axn de f (x) com p � n é nulo, já que


caso contrário anxn−1 seria um monômio não nulo em f � (x). Logo
f � (x) = 0 implica que f (x) é da forma g(xp ) e, reciprocamente, qual-
quer polinômio desta forma tem derivada g � (xp ) · pxp−1 = 0. Assim, o
resultado segue do item (2).
C.4. SEPARABILIDADE 367

5. Se char K = 0 então o resultado segue imediatamente do item (2).


Se char K = p > 0 e f (x) é irredutı́vel da forma g(xp ) para algum
g(x) = an xn + · · · + a0 (ai ∈ K), sendo bi ∈ K tais que bpi = ai temos
f (x) = g(xp ) = (bn xn + · · · + b0 )p
logo f (x) é redutı́vel em K[x], uma contradição. Portanto f (x) é se-
parável pelo item (4).

C.4.3 Exemplo Seja p um número primo.


• O polinômio f (x) = xp −t ∈ K[x] com coeficientes no corpo K = Fp (t) é
inseparável e a extensão simples K(t1/p ) ⊇ K é puramente inseparável.
• Seja K um corpo e seja n primo com char K. Então o polinômio f (x) =
xn − 1 é separável sobre K. Em particular, há exatamente n raı́zes da
unidade em K alg . Por outro lado, se char K = p > 0, 1 é a única raiz
p-ésima da unidade em K alg .
• (Polinômio de Artin-Schreier) Se char K = p > 0 então o polinômio
f (x) = xp − x + a (a ∈ K)
em K[x] é separável.
C.4.4 Definição Seja L ⊇ K uma extensão de corpos e seja K alg um fecho
algébrico de K. Definimos o grau de separabilidade [L : K]sep de L ⊇ K
como o número de K-imersões L �→ K alg .
Se L ⊇ K é uma extensão finita, do corolário C.3.2 na página 361 temos
[L : K]sep ≤ [L : K], de modo que os graus de separabilidade de extensões
finitas são finitos.
O nome grau de separabilidade se justifica devido ao seguinte fato: dado
um elemento α algébrico sobre K,
α é separável sobre K ⇐⇒ [K(α) : K]sep = [K(α) : K]
De fato, pelo lema fundamental, [K(α) : K]sep é igual ao número de raı́zes
distintas do polinômio minimal mα (x) ∈ K[x] de α sobre K, enquanto que
[K(α) : K] = deg mα (x). Mais geralmente, temos
Lema C.4.5 (Grau de Separabilidade) Sejam M ⊇ L ⊇ K são exten-
sões finitas de corpos.
1. [M : K]sep = [M : L]sep · [L : K]sep .
2. [L : K]sep ≤ [L : K], com igualdade se, e só se, L ⊇ K é separável.
3. L ⊇ K é puramente inseparável se, e só se, [L : K]sep = 1. Se este é o
caso, então [L : K] é uma potência de p = char K > 0.
368 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Demonstração:

1. Um fecho algébrico de L é também um fecho algébrico de K, de modo


que podemos supor K alg = Lalg . Agora seja τ : L �→ Lalg uma K-
imersão; vamos mostrar que existem exatamente [M : L]sep imersões de
M em Lalg estendendo τ . Desta forma, como toda K-imersão σ : M �→
Lalg se restringe a uma K-imersão τ = σ|L : L �→ Lalg , obteremos
[M : K]sep = [M : L]sep · [L : K]sep .
Pelo corolário C.3.3 na página 361 (c.f. prova do corolário C.3.5 na
página 362), existe um K-automorfismo τ̃ : Lalg → Lalg estendendo τ .
Assim, o mapa σ �→ τ̃ ◦ σ estabelece uma bijeção entre o conjunto das
[M : L]sep L-imersões de M em Lalg e o conjunto das imersões de M
em Lalg estendendo τ .

2. Faremos uma indução em [L : K]. Seja α ∈ L \ K, de modo que


[L : K(α)] < [L : K], e seja mα (x) ∈ K[x] o polinômio minimal de
α sobre K. Se L ⊇ K é separável, então L ⊇ K(α) e K(α) ⊇ K
são separáveis, logo por hipótese de indução e pelo caso particular de
extensões simples visto acima, temos

[L : K] = [L : K(α)] · [K(α) : K] = [L : K(α)] · deg mα (x)


= [L : K(α)]sep · [K(α) : K]sep = [L : K]sep

Reciprocamente, se L ⊇ K é inseparável, tomando um elemento α ∈ L


inseparável sobre K, temos [K(α) : K]sep < deg mα (x) e

[L : K] = [L : K(α)] · [K(α) : K] ≥ [L : K(α)]sep · deg mα (x)


> [L : K(α)]sep · [K(α) : K]sep = [L : K]sep

3. Suponha primeiro que L ⊇ K é puramente inseparável e seja σ : L �→


K alg = Lalg uma K-imersão. Observe que α ∈ L satisfaz um polinômio
n
da forma xp − a ∈ K[x], logo σ(α) é raiz do mesmo polinômio, cuja
única raiz é α, logo σ(α) = α. Assim σ = id e [L : K]sep = 1.
Reciprocamente, se L ⊇ K não é puramente inseparável, existe α ∈ L
n
cujo polinômio minimal f (x) ∈ K[x] sobre K é da forma f (x) = g(xp )
para algum n ∈ N e g(x) ∈ K[x] separável com deg g(x) > 1 (lema C.4.2
n
na página 366). Substituindo α por αp podemos supor que α ∈ L \ K
é separável sobre K, logo

[L : K]sep = [L : K(α)]sep · [K(α) : K]sep ≥ [K(α) : K] > 1

Agora suponha que L ⊇ K é puramente inseparável. Podemos escrever


esta extensão como uma torre de extensões simples, todas puramente
inseparáveis, assim para mostrar que [L : K] é uma potência de p basta
considerar o caso L = K(α). O polinômio minimal f (x) ∈ K[x] de
C.4. SEPARABILIDADE 369

n
α sobre K é da forma f (x) = g(xp ) para algum n ∈ N e g(x) ∈
K[x] separável. Necessariamente deg g(x) = 1, caso contrário terı́amos
[L : K]sep > 1 como acima, uma contradição. Portanto [L : K] =
deg f (x) = pn .

Teorema C.4.6 Sejam M ⊇ L ⊇ K extensões algébricas de corpos.


1. (“Separável sobre separável é separável”)

M ⊇ K é separável ⇐⇒ M ⊇ L e L ⊇ K são separáveis

2. O subconjunto K̃ ⊆ L dos elementos separáveis sobre K é um subcorpo


de L e a subextensão L ⊇ K̃ é puramente inseparável:

L
puramente inseparável


separável

O corpo K̃ é chamado de fecho separável de K em L. Além disso,


se L ⊇ K é finita, então [K̃ : K] = [L : K]sep

Demonstração:
1. Já vimos a implicação ⇒. Reciprocamente, suponha que M ⊇ L e
L ⊇ K sejam extensões separáveis finitas. Pelo lema anterior, M ⊇ K
é separável pois

[M : K]sep = [M : L]sep · [L : K]sep = [M : L] · [L : K] = [M : K]

Para o caso geral, observe que uma extensão simples K(α) ⊇ K é se-
parável se, e só se, α é separável sobre K, já que esta última condição
é equivalente a [K(α) : K]sep = [K(α) : K], que por sua vez é equi-
valente a K(α) ⊇ K ser separável pelo lema anterior. Assim, uma
extensão K(α1 , . . . , αn ) ⊇ K gerada por elementos separáveis αi sobre
K é separável, já que basta decompô-la como uma torre de extensões
simples

K(α1 , . . . , αn ) ⊇ K(α1 , . . . , αn−1 ) ⊇ · · · ⊇ K(α1 ) ⊇ K

e aplicar o caso especial acima provado (note que o polinômio minimal


de αi sobre K(α1 , . . . , αi−1 ) divide o polinômio minimal de αi sobre K
e portanto αi é separável sobre K(α1 , . . . , αi−1 ) também).
370 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Agora sendo M ⊇ L e L ⊇ K extensões separáveis arbitrárias, dado


α ∈ M , considere o subcorpo L0 ⊆ L gerado sobre K pelos coeficientes
do polinômio minimal de α sobre L. Pela discussão anterior L0 (α) ⊇ L0
e L0 ⊇ K são extensões separáveis finitas e portanto L0 (α) ⊇ K é
separável pelo caso especial já provado, i.e., α é separável sobre K.
Assim, M ⊇ K é separável.

2. Sejam α, β ∈ K̃ com β �= 0; para mostrar que K̃ é um corpo, devemos


mostrar que α±β, αβ, α/β ∈ K̃ e para isto basta mostrar que K(α, β) ⊆
K̃, isto é, que K(α, β) ⊇ K é separável, o que segue do item anterior.
Se char K = 0 então K̃ = L. Suponha char K = p > 0; para mostrar
que L ⊇ K̃ é puramente inseparável, seja γ ∈ L; seu polinômio minimal
n
f (x) ∈ K̃[x] sobre K̃ é da forma f (x) = g(xp ) para algum n ∈ N e
n
g(x) ∈ K̃[x] separável (lema C.4.2 na página 366). Assim, γ p é raiz de
g(x), logo é separável sobre K̃ e portanto sobre K pelo item anterior.
n
Logo γ p ∈ K̃, como desejado.
Finalmente, se L ⊇ K é finita, pelo lema anterior temos [L : K̃]sep = 1
e portanto

[L : K]sep = [L : K̃]sep · [K̃ : K]sep = [K̃ : K]sep

Corolário C.4.7 Seja L ⊇ K uma extensão algébrica de corpos e seja K̃ o


fecho separável de K em L. Todo K-automorfismo de L se restringe a um
K-automorfismo de K̃ e o morfismo de grupos

Aut(L/K) �→ Aut(K̃/K)
σ �→ σ|K̃

é injetor. Se L ⊇ K é quase-Galois, então K̃ ⊇ K é quase-Galois. Se L ⊇ K


é quase-Galois e finito, o mapa acima é um isomorfismo.

Demonstração: Podemos supor char K = p > 0. Seja σ ∈ Aut(L/K)


e seja α ∈ K̃. Os conjugados de α são separáveis pois são raı́zes de um
mesmo polinômio minimal separável sobre K, assim σ(α) ∈ K̃ e portanto
σ se restringe a um automorfismo de K̃. Como L ⊇ K̃ é puramente inse-
parável (teorema C.4.6 na página precedente) e como um polinômio da forma
n
xp − a ∈ K̃[x] só possui no máximo uma raiz em L, pelo lema fundamental
(lema C.3.1 na página 360) todo K-automorfismo σ : K̃ → K̃ se estende a no
máximo um K-automorfismo σ̃ : L → L, logo σ �→ σ|K̃ é injetor.
Se L ⊇ K é quase-Galois, o mesmo vale para K̃ ⊇ K pois os conjugados
de α ∈ K̃ também pertencem a K̃. No caso em que L ⊇ K é quase-Galois
e finito, o isomorfismo Aut(L/K) = Aut(K̃/K) segue do corolário C.3.10 na
página 364.
C.5. TEORIA DE GALOIS 371

O próximo teorema mostra a simplicidade de extensões separáveis.

Teorema C.4.8 (Elemento Primitivo) Seja L ⊇ K uma extensão se-


parável finita. Então L = K(θ) para algum θ ∈ L.

Demonstração: Por indução no grau, é suficiente tratar o caso em que


L = K(α, β) com α e β separáveis sobre K. Suponha primeiro K infinito.
Seja n = [K(α, β) : K] = [K(α, β) : K]sep e sejam σ1 , . . . , σn as K-imersões
de K(α, β) em K alg . É suficiente mostrar a existência de um elemento “se-
parante” c ∈ K tal que

i �= j =⇒ σi (α + cβ) �= σj (α + cβ)

De fato, neste caso teremos

[K(α + cβ) : K] ≥ [K(α + cβ) : K]sep ≥ n = [K(α, β) : K]

e como K(α+cβ) ⊆ K(α, β), não há outra opção senão K(α+cβ) = K(α, β).
Para encontrar c, basta observar que há apenas um número finito de pos-
sibilidades para σi (α) e σi (β), a saber, os conjugados α1 , . . . , αm e β1 , . . . , βn
de α e β sobre K. Como K é infinito, é possı́vel escolher c evitando o conjunto
finito formado pelos elementos
αi − αj
(1 ≤ i, j ≤ m, 1 ≤ r, s ≤ n, r �= s)
βr − βs
e assim
� �
σi (α + cβ) = σj (α + cβ) ⇐⇒ σi (α) − σj (α) = c · σj (β) − σi (β)
⇐⇒ σi (α) = σj (α) e σi (β) = σj (β)
⇐⇒ σi = σj ⇐⇒ i = j

Por fim, se L é um corpo finito, então L× é um grupo cı́clico. Em parti-


cular, se L ⊇ K é uma extensão finita de corpos finitos, então ela é simples.

C.5 Teoria de Galois


A teoria de Galois é o estudo da simetria de extensões de corpos.

C.5.1 Definição Seja L ⊇ K uma extensão algébrica.

1. A extensão L ⊇ K é Galois se é quase-Galois e separável.

2. Diremos que um corpo M tal que L ⊇ M ⊇ K é um subcorpo inter-


mediário da extensão L ⊇ K.
372 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

3. Se G é um grupo agindo por K-automorfismos sobre L, denotaremos o


subcorpo intermediário de L ⊇ K fixo por G através de
def
LG = {α ∈ L | σ(α) = α para todo σ ∈ G}

4. Se L ⊇ K é Galois, denotamos o grupo de todos os K-automorfismos


de L por
def
Gal(L/K) = Aut(L/K) = {σ : L → L | σ é automorfismo e σ|K = id}

o chamdo grupo de Galois da extensão L ⊇ K.

Note que dada uma torre de corpos M ⊇ L ⊇ K com M ⊇ K Galois, a


extensão do topo M ⊇ L também é Galois, pois o mesmo vale para separável e
quase-Galois. Em particular, podemos escrever Gal(M/L), que é o subgrupo
dos automorfismos em Gal(M/K) que agem trivialmente sobre L.
Começamos com uma “receita” para produzir extensões Galois; ela mostra
em particular que uma extensão Galois L ⊇ K é a “mais simétrica de todas”,
em que o tamanho do grupo de automorfismos Gal(L/K) atinge o valor
máximo [L : K].
Teorema C.5.2 Seja L uma corpo e seja G um grupo finito de automor-
fismos de L. Seja K = LG . Então L ⊇ K é uma extensão Galois de grau
[L : K] = |G|.

Demonstração: Seja α ∈ L e seja D ⊆ G o estabilizador de α:


def
D = {σ ∈ G | σ(α) = α}

Considere a decomposição de G em classes laterais à esquerda de D:



G= σi D (σi ∈ G)
1≤i≤n

Temos que O = {σ1 (α), . . . , σn (α)} é a órbita de α pela ação de G e que


qualquer elemento σ ∈ G permuta os elementos de O, já que multiplicação
por σ induz uma permutação nas classes laterais à esquerda de D: de fato,
se σσi D = σσj D então, para algum τ ∈ D,

σσi = σσj τ =⇒ σi = σj τ =⇒ σi D = σj D =⇒ i = j

Assim, o polinômio � � �
f (x) = x − σi (α)
1≤i≤n

pertence a K[x] pois todos os seus coeficientes são expressões simétricas nos
elementos de O. Portanto α é raiz de um polinômio separável f (x) ∈ K[x]
C.5. TEORIA DE GALOIS 373

cujas raı́zes pertencem todas a L. Isto mostra simultaneamente que L ⊇ K


é quase-Galois e separável, i.e., que L ⊇ K é Galois.
Provamos que L ⊇ K é uma extensão separável em que todo elemento α é
raiz um polinômio em K[x] de grau menor ou igual a |G|. Mostremos que isto
implica [L : K] ≤ |G|. Seja K(θ) um subcorpo de L com [K(θ) : K] (≤ |G|)
máximo. Então L = K(θ), pois caso contrário existiria α ∈ L \ K(θ) e pelo
teorema do elemento primitivo (teorema C.4.8 na página 371) K(θ, α) ⊇ K
seria uma extensão simples de grau estritamente maior do que [K(θ) : K],
um absurdo. Mas então [L : K] = [K(θ) : K] ≤ |G|.
Por outro lado, já vimos que [L : K] ≥ |G| (corolário C.3.2 na página 361)
e assim [L : K] = |G|, como querı́amos.

Em geral, dada uma extensão finita L ⊇ K, podemos escrevê-la como


uma torre L ⊇ K̃ ⊇ K com a base K̃ ⊇ K separável e o topo L ⊇ K̃
puramente inseparável. Para extensões quase-Galois, é possı́vel “inverter” a
ordem nesta torre:
Corolário C.5.3 Seja L ⊇ K uma extensão quase-Galois finita e seja G =
Aut(L/K) o grupo de todos os K-automorfismos de L. Então LG ⊇ K é
puramente inseparável e assim temos uma torre de corpos

L
Galois de grau |G|

LG
puramente inseparável

Em particular, se L ⊇ K é Galois então LG = K.


Demonstração: Se LG ⊇ K não é puramente inseparável, [LG : K]sep > 1
e portanto existe um elemento γ ∈ LG \ K separável sobre K (lema C.4.5 na
página 367 e teorema C.4.6 na página 369), que possui um conjugado γ � �= γ
em L. Mas como G fixa γ, isto contradiz corolário C.3.10 na página 364.
Por fim, se L ⊇ K é Galois, então LG ⊇ K é simultaneamente separável e
puramente inseparável, logo [LG : K] = [LG : K]sep = 1 e LG = K.

Agora estamos prontos para provar o principal resultado desta seção:


Teorema C.5.4 (Teorema Fundamental da Teoria de Galois) Dada
uma extensão Galois finita de corpos L ⊇ K, temos | Gal(L/K)| = [L : K] e
uma bijeção natural
{subgrupos H de Gal(L/K)} ←→ {subcorpos intermediários M de L ⊆ K}
H �−→ LH
Gal(L/M ) ←−� M
374 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Além disso, se M é um subcorpo intermediário, temos


M ⊇ K é Galois ⇐⇒ Gal(L/M ) � Gal(L/K)
e, neste caso, temos um isomorfismo natural induzido pela restrição:
Gal(L/K) ≈✲
Gal(M/K)
Gal(L/M )
σ �→ σ|M
Demonstração: Devemos provar que as composições M �→ Gal(L/M ) �→
LGal(L/M ) e H �→ LH �→ Gal(L/LH ) são os mapas identidade, ou seja, que
LGal(L/M ) = M e Gal(L/LH ) = H.
A igualdade LGal(L/M ) = M , bem como | Gal(L/M )| = [L : M ] (em parti-
cular | Gal(L/K)| = [L : K]), segue do corolário C.5.3 na página precedente,
já que L ⊇ K Galois implica L ⊇ M Galois. E é claro que Gal(L/LH ) ⊇ H;
como | Gal(L/LH )| ≤ [L : LH ] = |H| (corolário C.3.2 na página 361 e teo-
rema C.5.2 na página 372), devemos ter Gal(L/LH ) = H.
Se M é um corpo intermediário que é Galois sobre K, do corolário C.3.10
na página 364 temos uma sobrejeção
Gal(L/K) � Gal(M/K)
σ �→ σ|M
cujo kernel é Gal(L/M ), que portanto é um subgrupo normal de Gal(L/K).
Pelo teorema do isomorfismo, esta sobrejeção induz um isomorfismo de grupos
Gal(M/K) = Gal(L/K)/ Gal(L/M ).
Reciprocamente, suponha que H �Gal(L/K). Como LH ⊇ K é separável,
basta mostrar que esta extensão é quase-Galois. Seja α ∈ LH . Como os
conjugados de α são exatamente os elementos da órbita de α pela ação de
Gal(L/K) (corolário C.3.10 na página 364), para mostrar que estes conju-
gados pertencem a LH basta mostrar que se g ∈ Gal(L/K) e h ∈ H então
hg(α) = g(α) ⇐⇒ g −1 hg(α) = α, o que é claro já que g −1 hg ∈ H e α ∈ LH .

Observação C.5.5 O grupo de Galois de um polinômio separável f (x) ∈


K[x] é por definição Gal(L/K) em que L é seu corpo de raı́zes. Como as
raı́zes α1 , . . . , αn ∈ K alg de f (x) geram L sobre K, temos um morfismo
injetor de grupos
Gal(L/K) �→ Sn
� �
α1 α2 ... αn
σ �→
σ(α1 ) σ(α2 ) ... σ(αn )
de modo que podemos identificar o grupo de Galois de um polinômio de grau
n como um subgrupo do grupo simétrico Sn . Observe que o grupo de Ga-
lois de um polinômio irredutı́vel age transitivamente sobre suas raı́zes pelo
corolário C.3.10 na página 364, mas isto é falso se o polinômio for redutı́vel.
C.6. TEORIA DE GALOIS INFINITA 375

C.6 Teoria de Galois infinita


Seja K um corpo e denote por K sep o fecho separável de K em K alg . Então
K sep ⊇ K é uma extensão Galois (corolário C.4.7 na página 370) e podemos
definir o grupo de Galois absoluto de K
def
GK = Gal(K sep /K)

como o grupo dos K-automorfismos de K sep . Em geral, K sep ⊇ K é uma


extensão infinita e GK é um grupo infinito. Essencialmente a mesma prova
do caso finito fornece o

Lema C.6.1 Na notação acima,

1. se M é um subcorpo intermediário K sep ⊇ K tal que M ⊇ K é Galois,


então todo elemento de GK se restringe a um K-automorfismo de M e
o mapa

GK � Gal(M/K)
σ �→ σ|M

é sobrejetor com kernel GM = Gal(K sep /M ).

2. (K sep )GK = K

Demonstração: Como σ ∈ GK permuta raı́zes conjugadas e M ⊇ K é


normal, σ se restringe a um K-automorfismo de M . Reciprocamente, dado
um τ ∈ Gal(M/K), pelo corolário C.3.3 na página 361 e a prova do co-
rolário C.3.5 na página 362, τ se estende a um K-automorfismo τ̃ de K alg ,
que por sua vez define um K-automorfismo τ̃ |K sep ∈ GK (corolário C.4.7 na
página 370). Assim, GK � Gal(M/K) é de fato sobrejetor e é claro que o
kernel deste mapa é Gal(K sep /M ).
Por fim, para mostrar o item (2), note que se α ∈ (K sep )GK , então α ∈ M
para algum subcorpo intermediário M de K sep ⊇ K com M ⊇ K uma
extensão Galois finita (por exemplo, tome M como sendo o subcorpo gerados
pelos conjugados de α), logo pelo item (1) e a correspondência de Galois
finita, temos α ∈ M Gal(M/K) = K.

Poderı́amos nos perguntar se a correspondência de Galois ainda vale neste


contexto; a resposta é não: em geral, há mais subgrupos do que subcorpos e
dois subgrupos distintos podem fixar o mesmo subcorpo intermediário.
Há entretanto uma maneira simples de corrigir este problema. Podemos
“topologizar” GK definindo como uma base de abertos da identidade os sub-
grupos da forma

GM = Gal(K sep /M ) (M ⊇ K extensão intermediária Galois finita)


376 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

Note que um tal subgrupo é o kernel do mapa de restrição GK � Gal(M/K),


de modo que Gal(K sep /M ) é normal de indı́ce finito em GK . Além disso, se
M1 ⊇ K e M2 ⊇ K são extensões Galois finitas, então

Gal(K sep /M1 ) ∩ Gal(K sep /M2 ) = Gal(K sep /M1 M2 )

Aqui, M1 M2 denota o subcorpo de K sep gerado por M1 e M2 (o chamado


compósito de M1 e M2 em K sep ). Observe que M1 M2 ⊇ K é uma extensão
Galois finita: se Mi é o corpo de raı́zes de Λi ∈ K[x] (i = 1, 2), então M1 M2
é o corpo de raı́zes de Λ1 ∪ Λ2 (lema C.3.8 na página 363). Assim, pelo
lema A.1.7 na página 328, as classes laterais

σGM (σ ∈ GK , M ⊇ K extensão intermediária Galois finita)

definem uma topologia em GK , a chamada topologia de Krull. E agora


temos
Teorema C.6.2 (Teorema mais Fundamental da Teoria de Galois)
Seja K um corpo e seja GK o seu grupo de Galois absoluto, munido da
topologia de Krull.
1. Para todo subcorpo intermediário L, GL = Gal(K sep /L) é um subgrupo
fechado de GK .
2. Temos uma bijeção entre subcorpos intermediários e subgrupos fecha-
dos de GK via M �→ GM = Gal(K sep /M ) e H �→ (K sep )H e M ⊇ K
é uma extensão Galois (respectivamente finita) se, e só se, GM � GK
(respectivamente GM tem ı́ndice finito em GK ).
3. Temos um isomorfismo (algébrico e topológico)

GK = proj lim Gal(M/K)


M ⊇K Galois finito
K⊆M ⊆K sep

em que cada grupo finito Gal(M/K) é munido da topologia discreta.


4. GK é compacto.

Demonstração:
1. Se σ ∈/ Gal(K sep /L), devemos encontrar uma extensão Galois finita
M ⊇ K tal que σ Gal(K sep /M ) ∩ Gal(K sep /L) = ∅. Se x ∈ L é tal
que σ(x) �= x, basta tomar M como o corpo gerado sobre K pelos
conjugados de x.
2. Dado um corpo intermediário L de K sep ⊇ K, como K sep ⊇ L é Galois,
sep
temos que L = (K sep )Gal(K /L) pelo lema acima. Reciprocamente,
seja H ⊆ GK um subgrupo qualquer; então Gal(K sep /(K sep )H ) é igual
ao fecho de H em GK . De fato, claramente Gal(K sep /(K sep )H ) ⊇ H e
C.6. TEORIA DE GALOIS INFINITA 377

assim, pelo item anterior, Gal(K sep /(K sep )H ) contém o fecho de H em
GK . Para terminar, falta provar que, dados σ ∈ Gal(K sep /(K sep )H ) e
uma extensão Galois finita M ⊇ K, σ Gal(K sep /M ) ∩ H �= ∅.
Pelo lema anterior, GK � Gal(M/K) é sobrejetor com kernel GM .
Sejam σ e H as imagens de σ e H em Gal(M/K). Observe que
σ Gal(K sep /M ) ∩ H �= ∅ ⇐⇒ σ ∈ H e esta última condição segue
da correspondência de Galois finita:

σ ∈ Gal(M/M ∩ (K sep )H ) = Gal(M/M H ) = H

3. Se M ⊇ L ⊇ K são extensões Galois finitas temos um diagrama comu-


tativo

GK Gal(M/K)

Gal(L/K)

Note que estes mapas de restrição são contı́nuos pela definição da to-
pologia de Krull. Logo, pela propriedade universal do limite projetivo,
temos um morfismo de grupos topológicos

GK → proj lim Gal(M/K)


M ⊇K Galois finito
K⊆M ⊆K sep

que é um isomorfismo: como todo elemento de K sep pertence a uma


extensão Galois finita de K, dar um elemento σ ∈ GK é o mesmo que
dar uma coleção de elementos σM ∈ Gal(M/K) compatı́veis entre si,
ou seja, tais que σM |L = σL sempre que M ⊇ L.
4. Pelo item anterior, temos um isomorfismo natural
� � � �

GK = (σM ) ∈ Gal(M/K) � σM |L = σL se M ⊇ L
M ⊇K
Galois finita

Como cada fator Gal(M/K)


� é finito, logo compacto, por Tychonoff
temos que o produto M Gal(M/K) é compacto, logo basta mostrar
que GK é um subconjunto fechado deste produto. Mas se (σM ) ∈

M Gal(M/K) \ GK , existem extensões finitas M � ⊇ L ⊇ K com M
e L Galois sobre K tais σM |L �= σL . Sendo πF : M Gal(M/K) →
Gal(F/K) a F -ésima projeção, temos que
−1 −1
πM (σM ) ∩ πL (σL )

é uma vizinhança aberta de (σM ) disjunta de GK .


378 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

C.6.3 Exemplo (Corpos finitos) Temos um isomorfismo canônico (um


milagre!)

Z/nZ → Gal(Fpn /Fp )


1 �→ Φ

em que Φ(x) = xp é o automorfismo de Frobenius. Assim,


� = proj lim Z/nZ
G Fp = Z
n∈N>0
� � �
= (an ) ∈ Z/nZ | an ≡ am (mod m) para todo m | n
n≥1

Com esta descrição explı́cita, é fácil ver que Z (visto como o subgrupo das
tuplas constantes) possui corpo fixo Fp . Isto mostra que a correspondência de
Galois “ingênua” falha para extensões infinitas, pois dois subgrupos distintos
� fixam o mesmo subcorpo. Mas a explicação é simples: Z
Z e Z � é o fecho

de Z, ou seja, Z é denso em Z, logo é intuitivamente claro que eles fixem a
mesma coisa!

C.7 Traço e Norma


C.7.1 Definição Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos. Dado um
elemento β ∈ L, denote por mβ a aplicação K-linear dada pela multiplicação
por β:

mβ : L → L
x �→ βx

A norma e o traço de β são definidos respectivamente como o determinante


e traço de mβ :

NL/K (β) = det(mβ ) e TrL/K (β) = Tr(mβ )

Lema C.7.2 Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos de grau n = [L : K].


1. Para todo β1 , β2 ∈ L

TrL/K (β1 + β2 ) = TrL/K (β1 ) + TrL/K (β2 ) e


NL/K (β1 · β2 ) = NL/K (β1 ) · NL/K (β2 )

Em particular, se α ∈ K então

TrL/K (α) = nα e NL/K (α) = αn

2. (Transitividade) Sejam M ⊇ L ⊇ K extensões finitas de corpos. Temos

TrM/K = TrL/K ◦ TrM/L e NM/K = NL/K ◦ NM/L


C.7. TRAÇO E NORMA 379

3. Suponha que L ⊇ K seja separável e sejam σ1 , σ2 , . . . , σn as K-imersões


de L em um fecho algébrico K alg de K. Para todo β ∈ L temos
� �
TrL/K (β) = σi (β) e NL/K (β) = σi (β)
1≤i≤n 1≤i≤n

Demonstração:
1. Segue de Tr(mβ1 +β2 ) = Tr(mβ1 + mβ2 ) = Tr(mβ1 ) + Tr(mβ2 ) e de
det(mβ1 ·β2 ) = det(mβ1 ◦ mβ2 ) = det(mβ1 ) · det(mβ2 ).
2. Sejam n = [L : K] e m = [M : L] e escolha bases

L = Kω1 ⊕ · · · ⊕ Kωn
M = Lτ1 ⊕ · · · ⊕ Lτm

M= Kωi τj
1≤i≤n
1≤j≤m

Faremos a prova para a norma, já que a prova para o traço é análoga
(e mais simples). Seja β ∈ M .
Caso β ∈ L: Seja A ∈ Mn (K) a matriz de mβ : L → L com relação à
base de L sobre K acima. Então a matriz de mβ : M → M relativa à
base de M sobre K acima tem formato “blocos em diagonal”
 
A 0 ··· 0
0 A · · · 0
 
 .. .. 
. . 
0 0 ··· A

Logo, pelo item anterior, temos

NM/K (β) = (det A)m = (NL/K (β))m = NL/K (β m )


= NL/K (NM/L (β))

Caso M = L(β): Podemos supor que τi = β i−1 para i = 1, 2, . . . , m.


Seja p(x) = xm + am−1 xm−1 + · · · + a0 ∈ L[x] o polinômio minimal de
β sobre L. A matriz de mβ : M → M com relação à base de M sobre
L acima é a “matriz companheira” de p(x):
 
0 0 ··· 0 −a0
1 0 · · · 0 −a1 
 
0 1 · · · 0 −a2 
 
 .. 
 . 
0 0 ··· 1 −an−1
380 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

cujo determinante é (−1)m a0 . Analogamente, a matriz de mβ : M → M


com relação à base de M sobre K acima é
 
0 0 ··· 0 −A0
I 0 · · · 0 −A1 
 
0 I · · · 0 −A2 
 
 .. 
 . 
0 0 · · · I −An−1
em que I ∈ Mm (K) denota a matriz identidade e Ai ∈ Mm (K) é a
matriz de mai : L → L com relação à base de L sobre K acima. Assim,
NM/K (β) = (−1)mn det A0 = NL/K ((−1)m a0 )
= NL/K ◦ NM/L (β)

Caso geral: Pelos casos provados acima temos


NM/K (β) = NL(β)/K ◦ NM/L(β) (β) = NL/K ◦ NL(β)/L ◦ NM/L(β) (β)
= NL/K ◦ NM/L (β)

3. Faremos a prova para o traço, já que a prova para a norma é análoga.
Se m = [L : K(β)], pelo item anterior,
TrL/K (β) = TrK(β)/K ◦ TrL/K(β) (β) = m TrK(β)/K (β)

e como cada K-imersão τj : K(β) �→ K alg (1 ≤ j ≤ n/m = [K(β) : K])


se estende para exatamente m K-imersões de L em K alg , temos
� �
σi (β) = m · τj (β)
1≤i≤n 1≤j≤m

de modo que basta provar a fórmula no caso L = K(β).


Seja p(x) = xn + an−1 xn−1 + · · · + a0 ∈ K[x] o polinômio minimal
de β sobre K. Utilizando a base 1, β, . . . , β n−1 de L = K(β) sobre
K, temos que TrL/K (β) é o traço da matriz companheira de p(x), i.e,
TrL/K (β) = −an−1 . Mas
� −an−1 é a soma das raı́zes βi = σi (β) de
p(x), logo TrL/K (β) = 1≤i≤n σi (β), como desejado.

C.8 Discriminante
C.8.1 Definição Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos de grau n =
[L : K] e seja ω1 , . . . , ωn uma base de L sobre K. O discriminante desta
base é o elemento de K
Δ(ω1 , . . . , ωn ) = det(TrL/K (ωi ωj ))1≤i,j≤n
C.8. DISCRIMINANTE 381

Lema C.8.2 Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos de grau n = [L : K].

1. Sejam ω1 , . . . , ωn e τ1 , . . . , τn duas bases de L sobre K e seja C =


(cij )n×n a matriz de mudança de base:
    
ω1 c11 ... c1n τ1
 ..   .. ..   .. 
 . = . .  . 
ωn cn1 ... cnn τn

Então
Δ(ω1 , . . . , ωn ) = Δ(τ1 , . . . , τn ) · (det C)2

2. Se a extensão L ⊇ K é separável então o discriminante de qualquer


base é diferente de 0.

Demonstração:

1. Basta observar que o discriminante é a matriz de Gram da forma bili-


near T : L × L → K dada por (u, v) �→ TrL/K (uv).

2. Pelo item anterior, como det C �= 0, é suficiente mostrar que o dis-


criminante de uma base especı́fica é diferente de 0. Seja K alg um fe-
cho algébrico de K. Como L ⊇ K é separável, existem exatamente
n K-imersões de L em K alg , σi : L �→ K alg (i = 1, . . . , n). Para
uma base ω1 , . . . , ωn desta extensão, considere a matriz (σj (ωi ))n×n
e�denote por δ(ω1 , . . . , ωn ) o seu determinante. Como TrL/K (ωi ωj ) =
1≤k≤n σk (ωi )σk (ωj ), multiplicando pela transposta obtemos

� �
(σj (ωi ))n×n · (σj (ωi ))Tn×n = TrL/K (ωi ωj )
n×n
� �2
=⇒ δ(ω1 , . . . , ωn ) = Δ(ω1 , . . . , ωn )

Logo basta mostrar que δ(ω1 , . . . , ωn ) �= 0 para alguma base ω1 , . . . , ωn .


Pelo teorema do elemento primitivo (teorema C.4.8 na página 371), po-
demos escrever L = K(θ) para algum θ ∈ L; vamos utilizar a base
1, θ, . . . , θn−1 . Sendo θi = σi (θ) os conjugados de θ, temos o determi-
nante de Vandermonde

δ(1, θ, θ2 , . . . , θn−1 ) = det(θji−1 )n×n = (θi − θj )
1≤i<j≤n

é não nulo, pois os conjugados θi são dois a dois distintos já que L ⊇ K
é separável.
382 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

C.9 Extensões Transcendentes


Seja L ⊇ K uma extensão de corpos. Um subconjunto Ω ⊆ L é dito algebri-
camente independente sobre K se toda relação polinomial entre elemen-
tos de Ω é trivial, ou seja, se ω1 , . . . , ωn ∈ Ω e f (x1 , . . . , xn ) ∈ K[x1 , . . . , xn ]
então
f (ω1 , . . . , ωn ) = 0 =⇒ f (x1 , . . . , xn ) = 0
Em outras palavras, Ω é algebricamente independente sobre K se a K-
subálgebra K[Ω] ⊆ L é isomorfa a um anel de polinômios nas “variáveis”
ω ∈ Ω.
Dentre os subconjuntos Ω ⊆ L algebricamente independentes sobre K,
um subconjunto maximal (com relação à inclusão) é chamado de base de
transcendência de L sobre K.
Lema C.9.1 Seja L ⊇ K uma extensão de corpos. Um subconjunto Ω ⊆ L
é uma base de transcendência de L sobre K se, e só se, Ω é algebricamente
independente e L ⊇ K(Ω) é uma extensão algébrica.
Demonstração: É claro que se Ω é algebricamente independente e L ⊇
K(Ω) é uma extensão algébrica então Ω é uma base de transcendência. Re-
ciprocamente, se Ω é uma base de transcendência, pela maximalidade de Ω,
dado α ∈ L existe uma relação polinomial não trivial p(α, ω1 , . . . , ωn ) = 0
(ωi ∈ Ω), que de fato envolve α já que ω1 , . . . , ωn são algebricamente inde-
pendentes sobre K. Assim, α é algébrico sobre K(Ω).

Como em Álgebra Linear, queremos mostrar que quaisquer duas bases de


transcendência de L sobre K possuem mesma cardinalidade, que é chamada
de grau de transcendência de L sobre K e é denotada por tdK L.
Lema C.9.2 (Axioma de troca de Steinitz) Sejam Ω e Ω� duas bases de
transcendência de L sobre K. Dado qualquer ω ∈ Ω, existe ω � ∈ Ω� tal que
(Ω \ {ω}) ∪ {ω � } é uma base de transcendência.
Demonstração: Sejam Ω = {ω1 , . . . , ωr } e Ω� = {ω1� , . . . , ωs� } com ω = ω1 .
Como cada ωi� é algébrico sobre K(Ω), temos relações polinomiais não triviais
pi (ωi� , ω1 , . . . , ωr ) = 0 (i = 1, . . . , s)
e pelo menos um dos pi ’s deve envolver de fato ω1 , caso contrário todos
os elementos de Ω� , e portanto de L, seriam algébricos sobre K(ω2 , . . . , ωr )
(teorema C.1.4 na página 356); em particular, ω1 ∈ L seria algébrico sobre
K(ω2 , . . . , ωr ), um absurdo.
Sem perda de generalidade, seja p1 (ω1� , ω1 , . . . , ωr ) = 0 tal relação envol-
vendo ω = ω1 , de modo que ω1 é algébrico sobre K(ω1� , ω2 , . . . , ωr ). Afirma-
mos que (Ω \ {ω}) ∪ {ω1� } = {ω1� , ω2 , . . . , ωr } é uma base de transcendência
de L sobre K. De fato, temos extensões algébricas
L ⊇ K(ω1� , ω1 , . . . , ωr ) ⊇ K(ω1� , ω2 , . . . , ωr )
C.10. EXERCÍCIOS 383

Por outro lado, como {ω2 , . . . , ωr } é algebricamente independente, se por


absurdo {ω1� , ω2 , . . . , ωr } não fosse algebricamente independente, ω1� seria
algébrico sobre K(ω2 , . . . , ωr ). Mas como L ⊇ K(ω1� , ω2 , . . . , ωr ) é uma ex-
tensão algébrica, o mesmo valeria para L ⊇ K(ω2 , . . . , ωr ) e ω1 ∈ L seria
algébrico sobre K(ω2 , . . . , ωr ), um absurdo. Isto completa a prova.

Teorema C.9.3 Seja L ⊇ K uma extensão de corpos. Quaisquer duas bases


de transcendência de L sobre K possuem mesma cardinalidade.
Demonstração: Sejam Ω e Ω� duas bases de transcendência de L sobre K.
Se |Ω| < ∞, aplicando Steinitz um número finito de vezes, podemos trans-
formar Ω em uma base contida e portanto igual a Ω� e vice-versa, mostrando
que |Ω| = |Ω� |.
Para o caso geral, note que cada ω ∈ Ω é algébrico sobre um subcorpo de L
gerado sobre K por um subconjunto finito�Fω ⊆ Ω� . Como L é algébrico sobre
K(Ω) e cada ω ∈ Ω é algébrico sobre K( ω∈Ω Fω ), temos que �L é algébrico
sobre este último corpo (teorema C.1.4 na página 356), logo ω∈Ω Fω = Ω� .
Assim, �� �
� �
|Ω| ≥ � Fω � = |Ω� |
ω∈Ω
e por simetria temos a desigualdade oposta também.

C.9.4 Exemplo Seja K um corpo e seja


def
L = K(x1 , . . . , xn ) = Frac K[x1 , . . . , xn ]
Então {x1 , . . . , xn } e {x21 − x2 , x2 , . . . , xn } são duas bases de transcendência
de L sobre K e temos tdK L = n.

C.10 Exercı́cios
C.1 Seja L ⊇ K uma extensão finita de corpos. Suponha que Aut(L/K)
tenha [L : K] elementos. Mostre que L ⊇ K é Galois.
C.2 Verdadeiro ou falso?
(a) Se M ⊇ L e L ⊇ K são extensões quase-Galois então M ⊇ K também é
quase-Galois.
(b) Se L1 ⊇ K e L2 ⊇ K são duas extensões Galois então o compósito L1 L2
(o subcorpo gerado por L1 e L2 em K alg ) é Galois sobre K.
C.3 Seja M ⊇ K uma extensão separável. Mostre que existe um corpo
L ⊇ M tal que L ⊇ K é Galois. Se [M : K] < ∞, então existe L com tal
propriedade e com [L : K] < ∞. O menor L com tal propriedade (i.e. a
intersecção de todos os corpos com esta propriedade) é chamado de fecho
Galois de M .
384 APÊNDICE C. TEORIA DE CORPOS

C.4 (Transporte Paralelo Galois) Sejam L1 e L2 duas extensões Galois


finitas de K e seja L1 L2 o compósito (em K alg ) destes corpos. Suponha ainda
que L1 ∩ L2 = K. Mostre que o mapa natural

Gal(L1 L2 /K)

✲ Gal(L1 /K) × Gal(L2 /K)
σ �→ (σ|L1 , σ|L2 )

é um isomorfismo. Em particular, temos

[L1 L2 : K] = [L1 : K] · [L2 : K]

C.5 Seja L ⊇ K uma extensão finita inseparável de corpos. Mostre que,


para todo β ∈ L, TrL/K (β) = 0.

C.6 Seja p um número primo e seja ζ uma raiz p-ésima primitiva da unidade.
Prove:
(a) TrQ(ζ)/Q (ζ k ) = p − 1 se k = 0 e TrQ(ζ)/Q (ζ k ) = 0 se k = 1, . . . , p − 1.
p−1
(b) Δ(1, ζ, . . . , ζ p−2 ) = (−1) 2 pp−2 .
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385
Índice Remissivo

álgebra, 4 de cola, 278


de Rees, 242 da escolha, 327
de tipo finito, 4 de universo, 330
do blow-up, 242
fielmente plana, 140 base
finita, 171 de transcendência, 382
finitamente gerada, 4 de um módulo livre, 24
minimal, 114
altura, 107 topológica, 322
anel, 3 bola aberta, 323
catenário, 107
de séries formais, 31 cadeia, 327
quociente, 11 categoria, 328
zero, 3 filtrante, 336
de inteiros ciclotômicos, 43 oposta, 329
artiniano, 157 cofiltrante, 336
completo, 244 conexa, 336
de funções simétricas, 36 dual, 329
de funções regulares, 50 categorias
de germes, 257 equivalência de, 331
de números duais, 306 colimite, 333
decomponı́vel, 6 compósito, 376
dos inteiros p-ádicos, 61 completamento
graduado, 26 de um anel, 249
indecomponı́vel, 5 de espaço métrico, 64
local, 111 de um espaço métrico, 325
noetheriano, 146 complexo, 20
produto, 5 componente
reduzido, 5 irredutı́vel, 327
regular, 271 conexa, 327
semi-local, 111 comprimento, 159
anel local condições de cociclo, 287
completo, 244 conjunto
henseliano, 247 algébrico afim, 46
anulador, 104, 227 multiplicativo, 97
axioma aberto, 321

386
ÍNDICE REMISSIVO 387

algébrico projetivo, 60 elementos


algebricamente independente, 382 associados, 341
denso, 322 conjugados, 362
direcionado, 335 espaço
fechado, 321 irredutı́vel, 48
corpo, 5 afim, 46
das séries de Laurent formais, 34 compacto, 326
perfeito, 365 conexo, 326
algebricamente fechado, 358 desconexo, 326
de frações, 7 Hausdorff, 326
de raı́zes, 362 irredutı́vel, 326
residual, 111 localmente anular, 284
critério métrico, 323
de Eisenstein, 354 métrico completo, 324
projetivo, 59
desigualdade ultramétrica, 64 quase-compacto, 326
devissagé, 153 redutı́vel, 326
diagrama cartesiano, 129 topológico, 321
dimensão espectro
de esquemas, 310 maximal, 9
de Krull, 86 primo, 81
discriminante, 380 esquema, 275, 292
divisor de zero, 5 afim, 276, 292
domı́nio, 5 conexo, 310
fatorial, 342 integral, 285, 311
de Dedekind, 203 irredutı́vel, 310
de fatoração única (DFU), 342 localmente noetheriano, 311
de ideais principais (DIP), 342 noetheriano, 311
de valorização discreta (DVD), normal, 311
199, 202 projetivo, 298
euclidiano (DE), 342 reduzido, 311
integralmente fechado, 178 regular, 311
normal, 178 sobre S, 304
extensão
elemento integral, 171
irredutı́vel, 341 extensão de corpos
homogêneo, 26 normal, 362
idempotente, 5 quase-Galois, 362
integral, 171 extensão de corpos
maximal, 327 finita, 356
minimal, 327 Galois, 371
nilpotente, 5 extensão de corpos
primo, 342 algébrica, 355
separável, 365 puramente inseparável, 365
transcendente, 355 separável, 365
388 ÍNDICE REMISSIVO

simples, 358 de transcendência, 382


transcendente, 355 de extensão de corpos, 356
de separabilidade, 367
fecho grupo
separável, 369 de decomposição, 218
algébrico, 359 algébrico, 50
algébrico, 356 de automorfismos, 355
integral, 178 de Galois, 372
topológico, 322 de Galois absoluto, 375
feixe de inércia, 218
constante, 279 de unidades, 5
de funções holomorfas, 279 fundamental, 331
estrutural, 280 linear, 69
imagem direta de, 284 simétrico, 36
kernel, 280
fibra, 131 homeomorfismo, 321
filtro, 338
ideais
convergência de, 338
coprimos, 17
flecha, 328
interseção de, 10
forma quadrática
produto de, 10
anisotrópica, 68
soma de, 10
função
ideal, 7
simétrica elementar, 36
primo, 81
aberta, 321
de um conjunto algébrico, 50
contı́nua, 321
homogêneo, 27
de Hilbert, 262
irrelevante, 298
de Hilbert-Samuel, 263
maximal, 9
fechada, 322
principal, 8
piso, 69
identidades
funtor, 330
de Newton, 37
contravariante, 330
imersão, 355
essencialmente sobrejetor, 332
aberta de espaços localmente
plenamente fiel, 331 anulares, 287
adjunto à direita, 332 aberta de esquemas, 311
adjunto à esquerda, 332 fechada de esquemas, 311
constante, 333 inteiro
covariante, 330 algébrico, 39
de pontos, 302 de Gauß, 346
esquecimento, 330 isomorfismo, 329
exato à esquerda, 22 de funtores, 331
fiel, 331
pleno, 331 kernel, 8
representável, 332
lema
grau de Nakayama, 112
ÍNDICE REMISSIVO 389

de Yoneda, 332 de álgebras, 4


de Zorn, 327 de anéis, 3
limitante de conjuntos algébricos afins, 49
inferior, 327 de espaço localmente anulares,
superior, 327 284
limite, 333 de esquemas, 292
inverso, 333 de funtores, 331
direto, 333 de localização, 98
injetivo, 333 de módulos, 19
projetivo, 333 de pré-feixes, 278
localização, 97, 98 de restrição, 278
de tipo finito de esquemas, 312
mı́nimo múltiplo comum (mmc), 345 dominante de esquemas, 311
máximo divisor comum (mdc), 345 fielmente de esquemas, 311
métrica, 323 finito de esquemas, 312
p-ádica, 64 identidade, 329
módulo, 19 integral de esquemas, 312
noetheriano, 145 localmente de tipo finito de es-
presentação finita, 151 quemas, 312
finitamente gerado, 24 plano de esquemas, 311
artiniano, 157 próprio de esquemas, 313
fielmente plano, 140 projeção, 11
graduado, 26 quase-compacto de esquemas,
irredutı́vel, 159 311
livre, 24 quase-finito de esquemas, 312
livre de torção, 353 quociente, 11
plano, 137 separado de esquemas, 313
produto com ideal, 21
nilradical, 5, 10
quociente, 20
norma, 203, 346, 378
simples, 159
p-ádica, 63
trivial, 19
normalização, 178
módulo livre
posto de, 24 objeto, 328
módulos ordem, 210
interseção de, 21
produto direto de, 23 polinômio
soma de, 21 binomial, 260
soma direta de, 23 de Weierstraß, 255
mapa bilinear, 119 de Hilbert-Samuel, 264
morfismo, 328 minimal, 357
graduado, 26 primitivo, 349
quase-separado de esquemas, 313 separável, 365
local, 111 simétrico, 36
afim de esquemas, 311 pré-feixe, 278
de S-esquemas, 304 pré-ordem, 335
390 ÍNDICE REMISSIVO

princı́pio suporte, 228


local-global ou de Haße, 69
produto fibrado, 303 talo, 282
produto tensorial teorema
de álgebras, 127 de reciprocidade quadrática, 40
de módulos, 119 Kronecker-Weber, 44
propriedade chinês dos restos, 17
local de esquemas, 313 da correspondência, 13
propriedade universal das funções simétricas, 37
do limite inverso, 334 de Artin-Rees, 242
propriedade universal de reciprocidade quadrática, 42
da localização, 99 do isomorfismo, 12
do limite direto, 334 topologia
do produto tensorial, 120 induzida, 323
do quociente, 11 produto, 323
pullback, 51 a-ádica, 242
de Zariski, 47
radical, 10 de Krull, 376
de Jacobson, 165 de subespaço, 323
restrição de Zariski, 90, 299
de morfismos de espaços local- discreta, 321
mente anulares, 287 quociente, 323
reta traço, 378
projetiva, 297 transformação natural, 331
truque do determinante, 112
sı́mbolo de Legendre, 41 ultrafiltro, 338
série unidade, 5
de composição, 159 uniformizador, 200
de Hilbert, 273 universo de Grothendieck, 329
seção, 278
semi-localização, 117 valorização
sequência p-ádica, 63, 199
de Cauchy, 324 discreta, 198
de Cauchy, 244 variedade algébrica, 48
de Fibonacci, 35 vizinhança, 322
exata, 20
exata curta, 20
exata de feixes, 316
sistema de parâmteros, 265
subcategoria, 331
plena, 331
subesquema
aberto, 296
submódulo, 19
graduado, 27

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