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O Sangue e Ossos da Bruxaria

Tradicional

Com a primeira faísca da forja sagrada – a primeira


gnose, palavra da mesma raiz que gnoscere, ou
“conhecer”, o homo sapiens tornou-se capaz de
maravilhar-se com toda a criação ao seu redor,
assim como se tornou capaz de questionar as razões
de tudo o que acontecia com ele. Podemos dizer que
esta “faísca” caiu em um corpo que sentia medo,
fome, frio, sono e o desejo de procriar, como
qualquer outro animal. O homem muito
provavelmente ainda nos tempos de “bicho”
percebeu que um grupo era mais forte que um
indivíduo solitário, assim como os lobos e os
macacos, e portanto, é muito provável que ele já
tivesse uma idéia do que era uma família, um clã ou
tribo. A idéia de lar foi desenvolvida pelas mulheres,
que também foram as inventoras da agricultura e
muito provavelmente da pecuária, o que possibilitou
os assentamentos humanos em regiões específicas.

Com o lar, toda a idéia das conexões entre a terra


com o mundo invisível chegou à estrutura de culto –
que interessantemente possui a mesma raiz
etimológica que a palavra “cultivar”. Os primeiros
cultos, de acordo com os resquícios mais antigos
deixados pelas lendas do continente africano, foram
os das divindades responsáveis em favorecer a vida
na região em que se vivia e o culto aos ancestrais.
Todos podiam remontar sua ancestralidade a uma
divindade, o que lhes dava um ideal mítico como
modelo para suas vidas. Cada ser humano era uma
divindade na terra, em uma jornada humana, e este
ainda é o sentido da iniciação em um culto ancestral.
Nos velhos tempos, os mortos eram enterrados em
locais no mínimo significativos, naqueles
considerados sagrados, e não raro, próximos ou
dentro da própria moradia dos vivos, em porões ou
sob o fogo que processava os alimentos. Tomando
por base as culturas africanas e bascas, onde os
mortos eram e muitos ainda são guardados sob o
piso dos vivos, o culto aos mortos teria sido criado
também pelas mulheres, que ficavam responsáveis
em “cultivar” o fogo dos vivos (processando os
alimentos) e o fogo dos mortos (mantendo suas
memórias vivas). Algumas tradições de Bruxaria (isto
é, Bruxaria Tradicional), mantêm este
reconhecimento à mulher como um ser que já nasce
com seus poderes completos, enquanto o homem
nasceria somente com o poder do fogo,
necessitando da mulher como a pedra fundamental
de um clã, como aquela que doma o fogo. Nos mitos
ancestrais da Nigéria, este período de poder
matriarcal é relatado, e é possível observar como
este período foi marcado pela tirania. O poder
espiritual absoluto das mulheres foi tomado pelos
homens quando eles astutamente tomaram os ossos
dos mortos e dominaram o culto dos ancestrais,
trazendo uma era de equilíbrio entre os gêneros,
mas não sem algum conflito. O mito nos relata que
os homens, ao tomarem os ossos e as vestimentas
sagradas irritaram as mulheres profundamente, ao
ponto do caos, e a única forma de resolver o conflito
foi a de apaziguá-las com presentes, comidas,
confortos e canções, gerando uma coexistência
pacífica. A sociedade de Iyami, por exemplo, é sem
dúvida a mais temida e poderosa, pois convencer
estas “mulheres-pássaros” de uma decisão
comunitária sempre dependerá do senso de justiça
feminina e muito apaziguamento.
Quando a Igreja tomou o poder de enterrar os
mortos, ela “tomou os ossos” dos nossos ancestrais,
e da mesma forma, tomou para si o culto aos mortos.
Nossos mortos não mais eram enterrados em seus
locais favoritos ou sagrados para serem lembrados
por qualquer um que ali passasse, e assim fomos
convencidos que nem suas presenças eram bem
vindas perto de nós. Fomos roubados de nossos
ancestrais, e a memória foi roubada deles. Nossos
cemitérios são meros depósitos de ossos
esquecidos, e nossos mortos são enterrados em um
piscar de olhos. Já não são mais velados,
enaltecidos e relembrados, e eles já não encontram
mais seus lugares em nossas vidas e memórias.
Roubaram-nos a nossa memória, e se não
conhecemos de onde viemos como saberíamos para
onde vamos?
Bruxaria e Paganismo
Pessoalmente, eu concordaria com uma “bruxaria”
ligada ao paganismo se as correntes ancestrais –
que dão contexto mitológico às bruxas – não
estivessem rompidas. E é por esta mesma razão que
a iniciação nos cultos pagãos ainda se perpetua e se
faz necessária: quando entramos em um culto
ancestral, recebemos não só os ensinamentos
acumulados do culto, mas o vínculo espiritual com os
ancestrais deste culto, que é sem dúvida o ponto
central de onde toda a sabedoria parte. E é aqui que
reside a diferença entre conhecimento e sabedoria,
pois esta última só pode ser obtida com experiência
e memória. O neopaganismo, por exemplo, tem uma
enorme desvantagem neste quesito, desde que tenta
reconstituir o vínculo espiritual muito frequentemente
sem terem a noção precisa de quem foram estes
ancestrais, e muitas vezes tateando através da
história e antropologia para reconstituir fatos, e
assim, limitando-se ao “conhecimento” enquanto
desbrava-se o caminho rumo à “sabedoria”. Eu diria
que isto é uma desvantagem, e não uma diminuição
de valor, desde que a meta é a mesma.
Em especial por conta das ocorrências da Idade
Média – no período que foi nomeado como a “Era
das Fogueiras” – muitas pessoas ganharam o direito
de clamar para si a herança “bruxa”. Pagãos, judeus,
pervertidos, criminosos, alcoviteiras e feiticeiras
foram os indiscutíveis bodes expiatórios que
queimaram como “bruxos”. No Brasil,
especificamente, ondas de novos convertidos ou
degradados (ou seja, expulsos de seus países pela
Santa Inquisição), mesclaram suas crenças – unidas
por uma espantosa similaridade – às dos indígenas e
negros escravos, dando origem a híbridos singulares
e interessantes. As benzedeiras não devem em nada
daquelas que foram julgadas nos tribunais
inquisitórios, e apesar do freqüente rigor cristão da
maioria delas, elas continuam marginalizadas pelo
cristianismo moderno. Para elas, nada mudou. É
bom ainda ressaltar que a Inquisição foi um processo
de limpeza interna da igreja para livrá-la das
heresias. Este processo que saiu fora do controle, e
acabou perseguindo muitos que se consideravam
“bons cristãos”, mesmo que mantivessem certos
costumes remanescentes do paganismo através do
velho catolicismo em uma Europa protestante. O
próprio termo “auld faith”, ou como se traduziu
“Antiga Religião” era uma alusão ao catolicismo
anterior ao protestantismo, que considerava o culto
aos santos – uma derivação pagã – uma grande
heresia. Lutero, por exemplo, apontou a Igreja
Católica como a “Sinagoga de Satã” por este motivo
entre outros muitos. E isto, aliás, é um dos motivos
pelos quais não é absurda a cristandade para uma
bruxa, apesar da histeria que isto causa entre os
bruxos modernos. É lógico que a própria Igreja
Católica possui todo um capítulo negro em sua
história, mas nem por isso deve ser descartada,
desde que manteve uma herança viva dos antigos
cultos – disfarçados e distorcidos ou nem tanto.
O Bruxo e a Tradição
A diferença que se faz de um “bruxo” para um “bruxo
tradicional” é que o primeiro pode não estar
necessariamente ligado a uma ancestralidade mítica
conhecida, e assim, alguns buscam o híbrido
“pagão-bruxo” da Wicca exatamente para recompor
uma ancestralidade mítica perdida. Outros
permanecem manifestando seus dons ancorados
nas religiões exotéricas, como o catolicismo, ou
dentro do misticismo new age, buscando fortalecer
os laços com seus espíritos guias solitariamente. Um
“bruxo tradicional” é um ser já consciente de sua
ancestralidade mítica (ou ainda, de suas plurais
ancestralidades míticas), que podem ser passadas
através da família (blood in) ou da adoção como
novo parente (blood out).
Não podemos deixar de discutir um outro subgrupo
que deve ser apresentado dentro do contexto
tradicional da bruxaria, que remonta de sociedades
similares à Maçonaria, e que operam como “guildas
de ofício”. Uma guilda de ofício é basicamente um
grupo que possui uma determinada especialidade.
Antigamente, todas as guildas de ofício possuíam
não só um caráter social – mas um espiritual, já que
possuíam suas próprias mitologias ligadas à
profissão. Aqueles cuja profissão era a de ferreiro,
por exemplo, prestavam cultos a deidades “ferreiras”,
como Hefestos, Tubelo, Ogum, etc. Com o
surgimento destas confrarias, grupos que giravam
em torno de deuses ctônicos, obscuros e
marginalizados pela religião oficial também surgiram.
O fato é que estas guildas se formaram através de
pessoas que possuíam uma linhagem ancestral em
um determinado culto, e que possibilitavam a adoção
de novos “parentes” ligados ao ofício.
Bruxaria e o Ofício
Para falarmos do caráter “ofício” da bruxaria, temos
necessariamente que trazer à memória o arquétipo
primordial do que é uma Bruxa. Aliás, se esta figura
sobreviveu aos tempos, é graças à sua imagem
arquetípica.
Particularmente, gosto sempre de relembrar as
figuras de Circe e Medeia, mas outros “personagens”
imortalizados nos contos de fadas, no folclore e nas
tradições da terra contam um pouco sobre esta
figura assombrosa, magnífica e incompreendida
quando colocada dentro esta sociedade destituída
da Tradição Perene. Ela reina absoluta no papel da
resistência necessária que o herói deve enfrentar
para que floresça e se torne imortalizado. Ela é a
sábia que perscruta o destino dos homens, que
alimenta o fogo dos vivos com seus remédios
fervendo no caldeirão, assim como alimenta o fogo
dos mortos ao jamais esquecê-los. Como podemos
observar nas inquebradas tradições ancestrais da
terra, estas mulheres são as nigromantes,
curandeiras, feiticeiras e conselheiras… megeras
que são donas de seus narizes e que jamais tiveram
ou terão rédeas. A única forma de domá-las é
através da rendição completa, é o dar-se para ter.
Sem esta doação, pode-se até brincar de ser bruxo,
e manter a esperança de coerência, mas em última
instância, é bom torcer que esta força indomada da
natureza, representada por deusas cujos mistérios
são relegados a poucos, nunca preste atenção em
você.

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