Você está na página 1de 6

SEGREDOS, FOFOCA E DIVINDADES

Paul Christopher Johnson, Secrets, Gossip and Gods, Oxford, Oxford


University Press, 2002.

Este primeiro livro de Paul Johnson intercâmbio entre duas pessoas, mas
foi baseado na sua tese de doutora- esse intercâmbio só é possibilitado
do, completada na Universidade de e valorizado pela presença verdadei-
Chicago em 1997, relativa a uma ra ou imaginada de uma terceira
pesquisa realizada num terreiro de pessoa, que poderia ser um indiví-
candomblé da nação Ketu, no Rio duo, um grupo ou a sociedade em si
de Janeiro, na década de 1990.1 No que presencia, mas não faz parte da
seu primeiro capítulo, Johnson apre- transação (assim como no entendi-
senta a tese central do seu livro so- mento de Marshall Sahlins do hau
bre o segredo ritual: os segredos só da dádiva de Marcel Mauss).2 No seu
têm valor e poder porque podem ser trabalho sobre sociedades secretas,
revelados, e esse valor é aniquilado Simmel argumenta que o segredo é
no momento da revelação. um fenômeno social cujo valor deri-
Essa é uma aproximação ao segredo va da sua circulação restrita dentro
oriunda do trabalho do filósofo ale- de comunidades delimitadas, como
mão Georg Simmel. Na sua “Filo- as hierarquias rituais do candomblé.
sofia do Dinheiro”, Simmel argu- O poder do segredo é garantido pela
menta que o dinheiro só realiza o sociedade mais ampla que não tem
seu valor no momento em que é gas- acesso a essa sabedoria, e pelo pro-
to. O dinheiro tem valor na medida cesso longo e complexo da inicia-
em que ele resiste à nossa apropria- ção que, no decurso do tempo, dá
ção. A revelação de segredos, assim acesso aos segredos do candomblé.
como a transação de dinheiro, é um No segundo capítulo Johnson faz o
elo entre o segredo e a construção
1
Paul Christopher Johnson, “The Nation and do “axé”. Para Johnson, “axé” tem
the ‘Nations’: religious identity and
ritualizing space in Brazilian Candomble”,
2
(Tese de doutorado, Universidade de Chi- Marshall Sahlins, Stone Age Economics,
cago, 2002). Chicago, Aldine, 1972.

Afro-Ásia,32 (2005), 315-320 315


um duplo sentido: é o poder de trans- iniciado. O corpo fechado, pela vir-
formar o mundo cotidiano e a vida tude das suas posturas e atitudes nos
das pessoas, mas também é a processos rituais, sinaliza a existên-
genealogia ritual de um terreiro e sua cia de poderes ocultos, adquiridos
mãe-de-santo. “Axé” é uma forma pelas substâncias inseridas nos cor-
de carisma (no sentido de Weber)3 tes feitos no corpo do iniciado du-
que depende da tradição e das qua- rante a sua feitura de “iyawô”. A
lidades individuais do líder religio- composição e o conteúdo dessas
so, atributos que dependem do segre- substâncias nunca são revelados,
do. Líderes religiosos reivindicam mas a presença do “axé” no inicia-
sua autoridade com a suposta sabe- do aparece para quem a sabe reco-
doria de “fundamentos”, segredos ri- nhecer.
tuais aprendidos dos antepassados Johnson sugere que há uma progres-
numa corrente que liga o Rio de Ja- são lógica e cronológica que vai dos
neiro contemporâneo com a Bahia segredos ao segredismo, ou seja, o
antiga e a África de outrora. Para discurso sobre os segredos. No tem-
Johnson, esses fundamentos são a po da escravidão, as religiões de pro-
moeda que mede o valor de um ter- cedência africana tinham de ser pra-
reiro, e essa moeda é gasta quando ticadas em segredo pois os escravos
os fundamentos são revelados. corriam perigo de punição física.
No entendimento de Johnson, o se- Além disso, os escravos iorubás che-
gredo ritual não tem conteúdo, é um garam no Brasil já com os preceitos
recipiente, um “container”, um vaso de iwo jinlé, a sabedoria profunda,
vazio. É como um biquíni que mos- que era uma orientação religiosa
tra a forma mas não deixa ver o prin- fundamental. Segundo Andrew
cipal. O “segredismo” aponta para Apter, o conteúdo de iwo jinlé está
a forma que a sabedoria toma, mas sujeito a mudanças, mas as reivin-
nunca revela em que ela consiste. É dicações legitimas da possessão de
uma reivindicação de poder e pres- iwo jinlé, baseadas em genealogias
tígio que atrai clientes e filhos espi- religiosas, garantem o poder e a au-
rituais para os sacerdotes do can- toridade dos sacerdotes dos orixás.4
domblé. Essa sabedoria profunda que cons-
O ícone do segredo contemporâneo tituirá os fundamentos do candom-
do candomblé é o corpo fechado do blé manteve-se em segredo durante

3 4
Max Weber, Economy and Society: An Andrew Apter, Black Critics and Kings: the
Outline of Interpretive Sociology, Hermeneutics of Power in Yoruba Society,
Berkeley, University of California Press, Chicago, University of Chicago Press,
1978. 1992.

316 Afro-Ásia,32 (2005), 315-320


a escravidão, e continuou em segre- africanas, ou que têm cadernos de
do depois da abolição, até o Segun- fundamento dos seus antepassados
do Congresso Afro-Brasileiro em africanos. Quando um segredo novo
1937. A participação nos cultos de é revelado, o discurso de segredismo
candomblé tinha de ser secreta por- retrocede às profundezas escuras das
que os integrantes arriscavam-se a reivindicações da sabedoria arcana.
ser perseguidos pela polícia, de acor- A academia, com sua curiosidade
do com as leis de saúde pública. Até mórbida por segredos ainda não re-
esse momento, afirma Johnson, re- velados, é antitética por natureza à
almente existiam segredos religio- manutenção de segredos rituais. Lí-
sos no candomblé. deres religiosos reconheceram mui-
Mas, a partir da década de 1930, to cedo que, para aumentar seu pres-
com o crescimento da participação tígio e manter sua viabilidade na es-
de intelectuais, políticos e ícones da fera pública, era necessário cooptar
cultura popular no candomblé, es- esses acadêmicos, revelando, aos
ses segredos foram sendo revelados. poucos, seus segredos a eles. Agora,
Em 1940 o Código Penal foi muda- diz Johnson, não existem mais se-
do, legalizando a prática de religiões gredos. Uma pessoa poderia reali-
de procedência africana. O Estado zar tudo, da feitura de um “iyawô”
aliou-se a intelectuais como Gilber- até o “axexé” (rito funerário), só com
to Freyre, proclamando uma identi- a instrução de livros acadêmicos e
dade nacional baseada na mestiça- da imprensa popular.
gem e a democracia racial. Nesse Johnson afirma que a época do
processo, o candomblé foi elevado, segredismo está acabando, devido à
na estima oficial, de um tumor no entrada do candomblé na esfera pú-
corpo social a um troféu da identi- blica. O candomblé entra no espaço
dade nacional. E os antropólogos dos público de várias maneiras: na apres-
anos de 1930 foram agentes impor- sada e perigosa entrega do “ebó” nas
tantes dessa transformação. encruzilhadas, matas e cachoeiras do
Para Johnson, Nina Rodrigues, Ed- Rio de Janeiro; nas Águas de Oxa-
son Carneiro e Ruth Landes descre- lá, quando os filhos-de-santo fazem
veram rituais secretos, e legiões de uma procissão bonita e orgulhosa,
antropólogos seguiram seus passos. mas sem espectadores por se cum-
Isso levou ao discurso do segredis- prir ao amanhecer do dia; mas tam-
mo, pelo qual os sacerdotes dão a en- bém na enorme e comercializada
tender que sabem coisas que ainda festa de Iemanjá nas praias e praças
não foram reveladas, fundamentos do Rio, nas propagandas da Varig
mais profundos, práticas antigas e que exortam os consumidores a

Afro-Ásia,32 (2005), 315-320 317


“voar com axé”, e em uma mãe-de- lá na cabeça de Johnson, mas o orixá
santo apresentando o grupo de rock nunca se incorporou nele. Durante
inglês “The Rolling Stones” alegan- sua feitura e o tempo que passou no
do que a música “Sympathy for the terreiro, Johnson notou um ar de
Devil” (Simpatia pelo Diabo) tam- segredismo nas conversas das
bém tem fundamento. “ebomis” (iniciadas mais velhas),
Atualmente, o movimento do can- mas não descobriu nenhum proces-
domblé em direção à esfera pública so ritual que ele já não conhecesse
no Rio de Janeiro, assim como as através dos seus estudos bibliográfi-
proclamações de Mãe Stella de cos, e notou a falta de muitas ceri-
Oxóssi com seu séquito de antropó- mônias descritas nas obras clássicas
logos, estão acabando com o discur- da antropologia afro-brasileira.
so do segredismo. Os adeptos do Esse fato parece incomodá-lo. Sua
candomblé não precisam mais guar- tese sobre o segredismo parece, de
dar seus segredos porque o candom- algum modo, uma tentativa de ex-
blé já virou o troféu da herança afri- plicar porque, durante a sua feitura,
cana na identidade nacional brasi- ele não descobriu nenhum novo se-
leira. Sacerdotes e estudiosos podem gredo para revelar. Mas não é todo
discutir as práticas rituais em reu- “iyawô” que aprende os fundamen-
niões abertas, e publicar os resulta- tos da sua casa. Num certo sentido,
dos em jornais e revistas. a feitura de Johnson foi um fracasso
Johnson diz que o candomblé está para a sua mãe-de-santo. Os búzios
entrando numa fase protestante na chamaram-no para ser feito. Ela o
qual a participação no culto não de- preparou para rodar com Oxalá, mas
pende da iniciação, nem do sacrifí- Oxalá não desceu. Ele se declarou
cio de animais, nem da afiliação a ateu, descrente de Deus e dos orixás.
algum terreiro. Para ele, o candom- Disse que “minha [feitura] foi a ver-
blé está virando um culto individu- são gringo, abreviada porque naque-
al baseado na leitura privada de fon- la visita só tinha algumas semanas,
tes publicadas em livros, revistas e não meses à minha disposição…” (p
na internet, e disseminadas pela te- 12). Se o terreiro tinha algum segre-
levisão e pelo rádio. O culto vai se do além dos já conhecidos pelos an-
tornando doméstico, interiorizado e tropólogos, talvez Johnson não fos-
literário. se um candidato ideal para a apren-
O trabalho de campo de Johnson foi dizagem do fundamento.
feito no Rio de Janeiro, numa casa A idéia de que a feitura do “iyawô”
anônima duma dita filha-de-santo de é um processo de transmissão da sa-
Menininha do Gantois. Ela fez Oxa- bedoria secreta é persistente no ima-

318 Afro-Ásia,32 (2005), 315-320


ginário popular e antropológico do mas isso não é o trabalho que sus-
candomblé, apesar dos argumentos tenta um terreiro. No trabalho de
convincentes de Pierre Verger de que cura e feitiço, a sabedoria secreta
a feitura constrói uma nova perso- opera sem ser transmitida nem ani-
nalidade que se manifesta através da quilada. Esses segredos até agora
incorporação do orixá no corpo do receberam pouca atenção antropoló-
iniciado. 5 No “roncor” (quarto de gica. O valor monetário e social do
iniciação) a “iyawô” aprende músi- segredo se realiza na cura ou no fei-
cas e danças, um pouco do vocabu- tiço, e no pagamento do cliente ao
lário ritual do candomblé e como sacerdote pelos seus serviços rituais.
mostrar o devido respeito aos supe- O cliente não fica ciente da sabedo-
riores na hierarquia religiosa. Mas ria secreta mobilizada para o traba-
nada disso é segredo. Um observa- lho. Se os outros oficiantes do ritual
dor atencioso poderia aprendê-lo no aprendem alguma coisa com sua par-
salão, em ocasiões públicas. O ini- ticipação, isso é uma transmissão
ciado só aprende os segredos que legítima dentro da hierarquia reli-
possibilitam o trabalho ritual atra- giosa e não representa ameaça ao va-
vés de uma longa convivência no lor do segredo.
terreiro e da participação na inicia- É verdade que a antropologia tem
ção de outros filhos-de-santo. Mui- um apetite voraz pelos segredos de
tos não se interessam por esses tra- candomblé, mas a ameaça apresen-
balhos e se contentam com uma par- tada a esses segredos pela discipli-
ticipação mais superficial. na é exagerada nessa obra. Ninguém
A noção de Johnson de que o poder aprende a “tirar ebó” nem a fazer
do segredo se extingue no momento “iyawô” com os livros de Rodrigues,
da sua revelação vem da preocupa- Carneiro, Landes ou mesmo Johnson.
ção antropológica com a iniciação Carneiro se preocupa mais com os
no candomblé, e da relativa ausên- detalhes das cerimônias públicas, e
cia de estudos sobre o trabalho ritu- Landes indica certos rituais que são
al, ou seja, sobre as curas e os feiti- segredos, mas não descreve concre-
ços realizados por líderes religiosos tamente como são feitos. Outras obras
para clientes que não são seus filhos- que supostamente revelam segredos
de-santo. Inumeráveis etnografias de rituais não são citadas por Johnson.
candomblé descrevem as cerimôni- As preocupações metafísicas da an-
as púbicas e o processo de iniciação, tropologia brasileira e brasilianista
estão bem distantes do trabalho co-
5
Pierre Fatumbi Verger, Orixás: Deuses tidiano do candomblé. É certo que
Africanos no Novo Mundo, Salvador, Cor- determinados líderes religiosos co-
rupio, 1981.

Afro-Ásia,32 (2005), 315-320 319


optaram os antropólogos com os seus referindo-se a ela como “Mãe B.” ao
discursos de segredismo, e que os longo de todo o texto. A sua
antropólogos perpetuam esses dis- etnografia da iniciação, no quinto
cursos através de descrições obscu- capítulo, não é uma descrição da sua
ras e pouco práticas de processos ri- feitura (a qual ele passou acordado),
tuais. mas uma resenha generalizada da
Existe de fato uma certa ameaça na feitura ideal, escrita na terceira pes-
imprensa popular. Livros de simpa- soa e no “presente etnográfico”. Se
tias e feitiços, guias de como jogar o segredo ritual não existe e o can-
búzios, tirar “ebós” e fazer “iyawôs” domblé já entrou na esfera pública,
são facilmente encontráveis em lo- por que ele escondeu esses detalhes?
jas de umbanda no Brasil todo. Es- O segredo é produtivo para o poder,
ses livros possibilitam a qualquer um mas não exatamente da maneira
fazer os trabalhos de candomblé sem como Johnson descreve. Os segre-
se envolver nas suas hierarquias ri- dos são dádivas que se continuam
gorosas. Existe também a ameaça do dando. Não são como o dinheiro, que
dito “fura-roncor”, aquele que visi- só realiza o seu valor no momento
ta a casa dos outros colhendo conhe- em que é gasto. São como o capital.
cimento ritual para seu uso particu- Os segredos produzem valores, di-
lar. Mas a transmissão de sabedoria nheiro e utilidades para quem sabe
religiosa através da convivência co- usá-los. Produzem corpos saudáveis
tidiana de um iniciado no terreiro ou doentes através dos trabalhos re-
de candomblé é legítima e não ex- alizados com sabedoria secreta. Pro-
tingue o valor do segredo. duzem filhas e filhos-de-santo atra-
Existem certos segredos interessan- vés da iniciação, os quais, ao longo
tes na obra de Johnson. Ele nunca do tempo, reproduzem as hierarqui-
revela o nome da sua mãe-de-santo, as rituais do candomblé.

Brian Brazeal
Doutourando
Departamento de Antropologia
Universidade de Chicago.

320 Afro-Ásia,32 (2005), 315-320

Você também pode gostar