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Anténor Firmin e a contribuição do Haiti para a antropologia

Carolyn FLUEHR-LOBBAN, Gradhiva [Online], 1, 2005.

*** TRADUÇÃO LIVRE PARA USO DIDÁTICO – SEM REVISÃO ***

A principal obra de Anténor Firmin, A igualdade das raças humanas: Antropologia


positiva, foi publicada em Paris em 1885 e, enquanto um texto fundamental em
antropologia, foi em grande parte ignorado ou rejeitado (Fluehr-Lobban 2000).
Recuperado apenas recentemente, o manuscrito foi traduzido e introduzido na língua
inglesa por Asselin Charles, cento e quinze anos após sua publicação original.1
De 1884 a 1888, durante seus anos na França como emissário haitiano, Firmin foi
um dos três membros haitianos da Sociedade Francesa de Paris,2 e seu nome
permaneceu nesta lista até depois de sua morte em 1911. Embora membro da Société
e de ter participado de muitas de suas reuniões, sua voz foi efetivamente silenciada
pela antropologia física e racialista dominante no tempo e por sua raça.

Nos Mémoires, que fornecem uma transcrição das deliberações da Société, estão
gravadas as duas ocasiões em que Firmin se apresentou. Num dado momento, ele se
manteve firme para desafiar a determinação biológica da raça que permeava a
antropologia física predominante de Broca e outros, quando foi confrontado por
Clémence Royer (uma mulher pioneira da ciência e que traduziu a Origem das Espécies
de Darwin para o francês), que perguntou a Firmin se sua capacidade intelectual e
presença na Société não eram resultado de algum ancestral branco que ele pudesse
possuir. Firmin nos diz em suas próprias palavras no prefácio à Igualdade das raças
humanas que ele queria debater com aqueles que "dividem a espécie humana em
raças superiores e inferiores", mas temia que seu pedido fosse rejeitado. “O senso
comum me disse que eu estava certo em hesitar. Foi então que concebi a ideia de
escrever este livro” (Firmin 2000: LIV). Sabemos agora que uma cópia assinada e
acompanhada de um “Tributo respeitoso à Société d'anthropologie de Paris, A. Firmin”
foi apresentada à Sociedade Antropológica de Paris em 1885, mas não houve nenhuma
revisão ou menção ao livro no Mémoires d'anthropologie, o periódico da Sociedade.

A data de publicação de 1885 do De l'égalité des races humaines o assinala como um


texto pioneiro em antropologia, porque a data se insere na estrutura temporal de
outros textos fundamentais no campo, como a Sociedade Antiga de Lewis H. Morgan
(1877) e Antropologia de Edward B. Tylor (1881). Embora Franz Boas tenha iniciado
seus escritos “geográficos” sobre Cumberland Sound e Baffinland em 1884-1885, ele
não produziu um trabalho sintético de antropologia até The Mind of Primitive Man, em
1911 - sendo esse o ano da morte de Firmin. Paul Topinard, um dos antropólogos
físicos racialistas franceses a quem Firmin dedica uma grande parte de suas críticas,

1
Em 1988, quando eu estava falando sobre o Essai sur l'inégalité des races, de Gobineau, um estudante
haitiano, Jacques R. Georges, prontamente citou De L’egalité des races humaines. Foi assim que
descobri Anténor Firmin.
2
Os outros membros haitianos eram J.B. Dehoux, fundador da Faculdade de Medicina do Haiti, e Louis-
Joseph Janvier, que permaneceu em Paris durante vinte e oito anos e escreveu vários trabalhos,
incluindo um ensaio com um título semelhante, L'Égalité des races, em 1884.
publicou Éléments d'anthropologie générale, em 1885, no mesmo ano que De l'égalité
des races humaines. Nesta obra, Topinard delineia os princípios gerais da antropologia
física francesa - racialista, poligenista e fundamentada em noções biologicamente fixas
de raça “comprovada” pela ciência da antropometria - trazidas à perfeição técnica
pelos médicos-antropólogos franceses. Firmin construiu um argumento positivista e
crítico da antropologia racialista francesa, que foi vigoroso e significativo.

Firmin, antropólogo e positivista

Em mais de 400 páginas, A Igualdade das Raças Humanas: Antropologia Positivista


adota tópicos no que se tornaria o estudo de quatro campos da humanidade, incluindo
antropologia física, arqueologia, linguística e etnologia. Fica claro desde o primeiro
capítulo, dedicado à “Antropologia como Disciplina”, que a visão de Firmin é de um
estudo abrangente da humanidade, com tamanha amplitude que todas as outras
ciências se tornam “tributárias” (Firmin 2000: 3). Firmin revisou e avaliou a tradição
filosófica e científica que moldara a nascente ciência da antropologia, de Immanuel
Kant a Herbert Spencer. Ele definiu a antropologia como "o estudo do homem em suas
dimensões física, intelectual e moral, como ele é encontrado em qualquer uma das
diferentes raças que constituem a espécie humana" (ibid., P. 10). Vislumbrava-se assim
uma ampla ciência integrada, na qual ele distinguiu entre etnografia - a descrição dos
povos - e etnologia - o estudo sistemático desses mesmos povos a partir da
perspectiva da raça. O antropólogo chega assim que o etnógrafo e o etnólogo
concluem seu trabalho. A antropologia é comparativa, separando o homem dos outros
animais, abordando as questões: “Qual é a verdadeira natureza do homem? Até que
ponto e em que condições ele desenvolve seu potencial? Todas as raças humanas são
capazes de ascender ao mesmo nível intelectual e moral?”. A antropologia requer o
esforço das melhores mentes?. “Desnessário será dizer que, para chegar a resultados
válidos, os antropólogos devem fazer mais do que estabelecer uma classificação
arbitrária das raças humanas e suas respectivas aptidões” (Firmin 2000: 12-13). A
antropologia tem sido a disciplina que melhor pode fornecer respostas para o grande
problema da origem e natureza do homem e a questão de seu lugar na natureza (ibid .:
2).

Embora Marvin Harris (1968: 464) credite a Émile Durkheim a fundação de uma escola
de antropologia, que levou as ciências sociais francesas, racialistas e biologicamente
reducionistas, à moderna "sociologia" do homem, pode-se muito bem dizer que o
crédito pertence, em parte, a Anténor Firmin.

Firmin fundamentou seu estudo científico da humanidade e seu argumento anti-


biológico para a igualdade dos seres humanos no positivismo de Comte. Seu livro tem
como subtítulo a antropologia positivista, porque ele argumenta, usando as ideias de
Augusto Comte, que a defesa da igualdade racial deve ser feita usando fatos
científicos, não pressupostos a priori sobre diferenças raciais ou afirmações filosóficas
de diferenças raciais.

Augusto Comte é identificado como um fundador ou “O” fundador da sociologia cujos


escritos nas décadas de 1830 e 1840 inspiraram vários cientistas sociais, incluindo
antropólogos (além de Firmin) de John Stewart Mill a Lévy-Bruhl, Marcel Mauss e
Émile Durkheim. Ele afirmava que a humanidade é parte do mundo natural e deve ser
estudada como tal, uma perspectiva que quase todos os cientistas sociais do século XIX
compartilhavam (Adams, 1998, p. 171). O uso de "fato", "teoria", "lei" por Comte - um
claro empirismo - é provavelmente o que mais atraiu Firmin. “Fatos” correspondiam
ao que hoje chamamos de “dados”, no entanto, “teoria” para Comte englobava
modelos, classificações, generalizações - qualquer estrutura na qual os fatos pudessem
ser ajustados. Ele enfatizou que o método comparativo deve ser aplicado a uma base
de dados etnográfica em escala mundial (ibid .: 45). O "positivismo", assim entendido,
é mais uma metodologia do que uma filosofia, mas Comte conferir essa metodologia à
ciência social, estabelecendo-a como parte da ciência natural que rompeu com a
tradição que antes havia sido associada à filosofia moral (ibid.: 341-342). Foi essa
metodologia empírica e a colocação da antropologia como uma nova ciência social nas
ciências naturais que mostrou-se útil para Firmin.

O estudo de Durkheim sobre o homem deveria se associar mais com a sociologia por
causa da educação científica conservadora francesa, que continuava a ver a
"antropologia" apenas como antropologia física, relegando-a a um tratamento estreito
e biológico dos seres humanos. Embora Durkheim tenha escrito muito sobre
etnografia, e suas publicações marcantes, como As Regras do Método Sociológico, A
Divisão do Trabalho na Sociedade, As Formas Elementares da Vida Religiosa,
contribuíram para a teoria antropológica e formaram a base para a antropologia social
e o funcionalismo estrutural britânico; o positivismo foi mais influente para a
sociologia do que para a antropologia. Tallcott Parsons (1949: 307) escreveu que:
“Durkheim é o herdeiro espiritual de Comte, e todos os principais elementos de seu
pensamento anterior devem ser encontrados prefigurados nos escritos de Comte”.

Firmin coloca Comte em uma linha de grandes codificadores científicos de Aristóteles a


Bacon, Bentham, Ampère e Herbert Spencer. Ele traça o interesse antropológico entre
os filósofos de Kant a Hegel, Buffon e Cuvier, Lineu ao francês Geoffroy Saint-Hilaire e
Bory de Saint-Vincent. Seguindo Comte e a escola positivista, Firmin (2000: 11)
encorajou o estudo completo da humanidade a partir das perspectivas cosmológica,
biológica, sociológica e filosófica. Ao longo de seu livro, Firmin pratica a ciência
positivista, examina tabelas de dados craniométricos comparativos, notando suas
irregularidades e os meios pelos quais Broca e Morton, e outros cientistas racialistas
manipulam os números: por medições de crânio em cubos, esses antropólogos físicos
foram capazes de desenhar as suas intenções pretendidas. Depois de analisar os dados
de vários acadêmicos sobre o índice cefálico, medindo graus de dolicocefalia superior
e braquicefalia inferior, ele conclui que esse índice fornece aos antropólogos um
terreno insuficiente para dividir as raças em grupos distintos (ibid .: 100). O índice
facial de Broca, segundo o qual a raça negra mais primitiva pode estar próxima
numericamente ao parisiense, também está sujeito a um escrutínio crítico! Ele
submete o índice nasal, o índice vertical, o índice orbital a um escrutínio similar,
observando que uma classificação racional é impossível quando os dados usados para
gerá-los são “não apenas errôneos e irregulares, mas também frequentemente
contraditórios” (ibid .: 109). Os gráficos craniológicos confusos e muitas vezes
conflitantes são interessantes para Firmin, que normalmente os dispensaria se não
fossem levados tão a sério pelos antropólogos. E prevendo uma composição diferente
da comunidade científica no século XX, ele comenta:

“Os antropólogos podem continuar a registrar esses números sem modificar as teorias
tão assertivas que eles ergueram? Sua ciência enfrentará certo descrédito quando, no
século XX, for submetida à crítica de cientistas negros e brancos, amarelos e pardos,
que possam escrever tão bem e manipular tão habilmente os instrumentos fabricados
pela Companhia Mathieu [produtores de instrumentos antropométricos],
instrumentos que trazem resultados tão eloquentes, mesmo nas mãos de cientistas
que duvidam de sua eficácia” (ibid .: 102).

“Motivado por uma insaciável sede de verdade e pela obrigação de contribuir, não
importa quão modestamente, para a reabilitação científica da raça negra cujo sangue
puro e revigorante flui em minhas veias, sinto imenso prazer em navegar por essas
colunas de figuras dispostas com tal limpeza para a edificação do intelecto” (ibid.).

Assim, Firmin buscou o estudo de todas aquelas “doutrinas antropológicas que


assumiram o manto do augusto nome da ciência enquanto usurpavam seu lugar”
(ibid.: 108). Para ele, não apenas as medidas craniológicas fracassam no teste da
ciência positivista, mas todos os outros dispositivos antropométricos e classificações
raciais - como os que tratam da pigmentação do cabelo e da pele - também são
tratados como arbitrários e subjetivos (por exemplo, a arbitrariedade de distinguir
entre cabelo lanoso inferior e cabelos lisos superiores) e, finalmente, como não
científica. Firmin está entre os primeiros a identificar a cor da pele com a substância
melanina, constituída por “grânulos finos sob a epiderme”, dando à pele etíope sua
tonalidade preta (ibid .: 118).

Toda essa "ciência" equivale ao "Ranking Artificial das Raças Humanas", título do
capítulo seis do livro de Firmin. De fato, Firmin dedica quase metade de seu trabalho a
uma análise crítica da antropometria racialista e das classificações racistas, apoiando a
doutrina da desigualdade das raças humanas. Em vez de usar os termos “racista” e
“racialista” que empreguei, o texto de Firmin assinala o “bizarro”, o “curioso”, a noção
“ilógica” de desigualdade das raças.

A tradição comte-durkheimiana divergiu do caminho do particularismo histórico-


antropológico americano liderado por Franz Boas. As tradições mainstream francesas e
americanas divergiram da dialética e do evolucionismo de Marx, Morgan e Spencer.
Para Comte, o positivismo deveria traçar um curso entre o materialismo de Hegel,
Marx e a ideia de revolução, e o idealismo da contrarrevolução mais associado aos
franceses (Harris 1968: 473).

Quase quatro décadas antes de Franz Boas fazer uma observação semelhante em
Raça, Linguagem e Cultura (1940), Firmin já havia dedicado um esforço considerável
para separar a língua da raça, observando que esta é uma base não confiável para a
classificação da raça (Firmin 2000: 120-135).

Inspiração para estudiosos do Caribe


Anténor Firmin é um fundador esquecido da antropologia, cuja contribuição para a
antropologia francesa poderia ter sido frutífera, mas foi ignorada. Parece que os
membros da Sociedade Antropológica de Paris nunca abriram o De l'égalité des races
humaines, e não puderam receber sua mensagem. O volume de Firmin foi perdido
para a antropologia francófona e só foi lembrado no Haiti e entre os estudiosos pan-
africanistas e acadêmicos negros. Seu sinal e contribuições pioneiras para uma
antropologia empírica e crítica, especialmente no que diz respeito à raça, foram
perdidos para o desenvolvimento dominante dessa disciplina na Europa e na América
do Norte, nos anos de formação do século XIX e, portanto, nas décadas de
consolidação e crescimento da antropologia no século XX.

No entanto, Firmin nunca foi esquecido no Haiti, seja como político e diplomata, seja
como acadêmico. Anténor Firmin e outros estudiosos do século XIX, como Louis-
Joseph Janvier e Hannibal Price, ainda são lembrados e reverenciados no Haiti de hoje.
E seu exemplo foi inspirador para Jean Price-Mars, fundador da etnologia e estudos
folclóricos no Haiti.

De acordo com Magdaline Shannon (1996: 163), Price-Mars “havia desenvolvido cedo
metas baseadas nas ideias de líderes como Anténor Firmin e Hannibal Price”.3 Algumas
das conferências públicas mais antigas de Price-Mars concentraram-se na igualdade
das raças humanas, soando tanto como Firmin que o Presidente Nord Alexis acusou
Price-Mars de ser um “Firminista” e que sua fala era “sediciosa” (ibid .: 21). Isso
aconteceu por volta de 1906, enquanto Firmin ainda se opunha ativamente ao
governo de Alexis desde seu exílio em Saint Thomas.

A influência de Firmin em Price-Mars é reconhecida em muitos de seus escritos.


Ambos eram acadêmicos-políticos no modo haitiano e que não dividiam o mundo das
ideias do mundo da política. Eles foram separados apenas por uma geração. Firmin
nasceu em 1850 e tinha 61 anos quando morreu em 1911, enquanto Price-Mars
nasceu em 1875 e morreu aos 91 anos de idade em 1964. Price-Mars ensinou no Lycée
Petion onde Firmin fora estudante. Uma vez que ambos eram intelectuais e políticos,
eles foram nomeados ministros em Paris - Firmin em 1884, Price-Mars em 1915 - como
é usual na remoção de indivíduos problemáticos. Sendo eruditos, ambos
comprometidos em provar que as raças eram iguais, Firmin desafiando a antropologia
física francesa racista, que ele encontrou durante seus anos em Paris, e era
simbolizada por Paul Broca, e Price-Mars respondendo a Gustave Le Bon, que
formulou uma psicologia social racista, enfatizando a inferioridade do homem negro.
Price-Mars leu Le Bon quando era estudante de medicina em Paris. Mais tarde, ele o
conheceu e desafiou. Le Bon respondeu perguntando por que, se ele acreditava tão
fortemente na igualdade de raças, ele não escrevia sobre seu país (Shannon, 1996:
233). Enquanto viajava como médico pelo campo, Price-Mars ficou interessado em
estudar o campesinato haitiano e pôde observar o vodu, que o impressionou pelo

3
Lyle Shannon assumiu o considerável manto de responsabilidade de manter contato com acadêmicos
interessados no trabalho vitalício nos estudos haitianos de sua esposa Magdaline Shannon, que não é
mais capaz de fazê-lo. Além de sua tradução de Ainsi parla l'Oncle, ela é autora de um livro sobre Jean
Price-Mars (1996).
sincretismo religioso entre o animismo africano e o catolicismo francês e, além disso,
cujo estudo etnológico ele validou, um assunto que Firmin não abordou.

Negritude e pan-africanismo

Firmin foi reconhecido como um antigo pan-africanista mais do que como um


antropólogo. G.R. Couthard (1962: 117) observa que: “Escritores como Anténor Firmin,
Hannibal Price, Claude McKay, George Padmore e Jean Price-Mars estavam na
vanguarda da reavaliação da cultura africana muito antes do despertar nacionalista na
África e antes do conceito de “negritude” ser desenvolvido no Caribe”.

Embora Jean Price-Mars seja geralmente reconhecido como o fundador do


“indigenismo” e mais tarde Léopold Senghor o saudou como o “Pai da Negritude”
(Fouchard 1990: v), é provável que Firmin e outras mentes ilustres da intelectualidade
do século XIX no Haiti tenham estabelecido a base principal para o que se tornaria o
“movimento da negritude”. Pelo menos quatro capítulos (de vinte) em A Igualdade das
Raças Humanas falam diretamente sobre o papel primordial desempenhado pela raça
negra na história e civilização mundial. Uma leitura superficial, não apenas destes
capítulos, mas de todo o volume revela Firmin como um dos primeiros proponentes da
negritude, sem arrogância ou desculpas. Além de suas ideias claramente enunciadas
em 1885, Firmin participou do Primeiro Congresso Pan-Africano em Londres em 1900,
que também foi assistido por W.E.B. DuBois. Se ele não estivesse preocupado com a
política haitiana e com a tentativa de se tornar presidente do movimento firminista,
terminando no exílio em St. Thomas, ordenado pelo presidente Nord Alexis, Firmin
poderia ter continuado a se envolver em nível internacional com o nascente
Movimento Africanista. Em um discurso na Universidade de Gana em setembro de
1964, Kwame Nkrumah reconheceu Firmin como um pioneiro do Novo Mundo no pan-
africanismo:

“E não nos esqueçamos das importantes contribuições de outros no Novo Mundo, por
exemplo, os filhos da África no Haiti, como Anténor Firmin e Dr. Jean Price-Mars, e
outros nos Estados Unidos, como Alexander Crummell, Carter G. Woodson e nosso
próprio Dr. DuBois”.

Lyle Shannon, o marido de Magdaline Shannon, a tradutora do trabalho clássico de


Jean Price-Mars, Ainsi parla l’oncle, escreveu para mim quando soube da tradução de
De l'egalité des races humaines:

“Firmin foi um dos patriotas mais ilustres do Haiti. Suas ideias levaram ao conceito de
“Negritude”. Embora as pessoas na época não pensassem dessa maneira e, apesar da
apreciação de Jean Price-Mars, que pregava seu próprio trabalho sobre o de Firmin,
ele permaneceu relativamente desconhecido, exceto no Haiti.”

Muitos intelectuais brancos e negros veem Price-Mars como o maior dos intelectuais
haitianos, e consideram-no como “Pai da Negritude”. Ele nunca reconheceu essa
afirmação, embora tenha vivido até o século XX e testemunhado o fim do colonialismo
europeu na África e a ascensão pós-colonial da negritude ideológica e política. Outros
podem reivindicar este título; em 1934, Aimé Césaire, da Martinica, o guianês francês
Léon Damas e o senegalês Léopold Senghor lançaram o “L'etudiant noir” (O estudante
negro), um movimento de consciência universal que Césaire chamou de «negritude».
Apesar desta autoavaliação, Price-Mars foi eleito por unanimidade como Presidente
do Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em Paris em 1956, e
aos 90, os presidentes Ahmed Touré da Guiné e Léopold Senghor em Conakry
proclamaram-lhe “o mestre incomparável”.

Embora Price-Mars fundamentasse o estudo da etnologia, da religião e do folclore


haitiano dentro do continente africano, ele ainda imaginava os haitianos como parte
da humanidade sem a necessidade do "noirismo" (neologismo sobre a condição de
negro). Essa visão é semelhante a de Firmin, cuja afirmação positivista de que as raças
são biologicamente iguais foi acompanhada por um imperativo moral de que tanto a
mente quanto o espírito, bem como a humanidade, é unitária, baseando-se em uma
herança comum. Ele escreve em sua Conclusão para A igualdade das raças humanas
(2000: 450):

“Voltando à verdade, eles perceberão que os seres humanos em todos os lugares são
dotados das mesmas qualidades e defeitos sem distinção baseada na cor ou na forma
anatômica. As raças são iguais; todos eles são capazes de elevar-se às mais nobres
virtudes, de alcançar o mais alto desenvolvimento intelectual; eles são igualmente
capazes de cair em um estado de degeneração total. Ao longo de todas as lutas que
afligiram e ainda afligem a existência de toda a espécie, um misterioso fato nos chama
a atenção. É o fato de que uma corrente invisível liga todos os membros da
humanidade em um círculo comum. Parece que, para prosperar e crescer, os seres
humanos devem se interessar pelo progresso e felicidade uns dos outros e cultivar os
sentimentos altruístas que são a maior conquista do coração e da mente humana.”

Tanto Anténor Firmin quanto Jean Price-Mars são dois gigantes da ciência e
pensamento haitianos, Firmin no final do século 19 e Price-Mars por mais da metade
do século XX. Com Firmin como seu antecedente intelectual, Price-Mars reconhece seu
trabalho pioneiro e a contribuição para a antropologia, e se curva profundamente a
Firmin como erudito, diplomata, patriota e político. Em nenhum lugar isso é mais óbvio
do que na biografia de Joseph Anténor Firmin, que foi publicada postumamente em
1978. Neste trabalho, Price-Mars pesquisa e comenta a carreira política e diplomática
de Firmin no Haiti, na França, e seu sucesso impedindo a cessão do Môle de St. Nicolas
pelos Estados Unidos, enquanto Frederick Douglass era o cônsul americano do Haiti.

Ele também dedica um capítulo a Firmin como um “homem de ciência”, no qual exalta
a importância e o valor das contribuições feitas com o De L'egalité des races humaines.
Referindo-se a Firmin como um prodígio, ele se maravilha com a notável conquista de
escrever um livro de tal alcance em apenas dezoito meses, durante sua primeira
estadia em Paris, entre 1883 e 1888, observando que este é o tipo de trabalho que
levaria outras pessoas a dedicar muitos anos de pesquisa e reflexão para realizar. No
entanto, sabendo que a antropologia é uma falsa ciência, ele ainda assim abraçou o
seu potencial e é assim que veio “à sua vocação como antropólogo” (Price-Mars 1978:
148). Price-Mars observa especialmente a crítica de Firmin à antropometria e à
craniometria, destacando que, se o mundo tivesse ouvido suas ideias, a tragédia do
"hitlerismo" ou do nazismo poderia ter sido evitada. Ele aponta para o
reconhecimento de Firmin do Egito como uma civilização africana, incluindo a Núbia e
muitas vezes referenciando Meroë (Etiópia) em seu louvor da África antiga. Seus
argumentos teriam provocado um "escândalo" na Europa, pois representavam uma
ruptura com as ideias predominantes de seu tempo. Ele sugere uma estreita ligação
com as ideias de Cheikh Anta Diop em Nações negras e cultura e reconhece o trabalho
de Basil Davidson Africa Before the Europeans, popular nos anos 60, quando sua
homenagem a Firmin foi publicada. Reconhecendo o papel “pioneiro” desempenhado
tanto pelo De L'égalité des races humaines como pelo próprio Firmin entre os eruditos
haitianos, Price-Mars também menciona outros nessa constelação de grandes
eruditos, incluindo Beauvais Lespinasse, Histoire des affranchis de Saint-Domingue, e
Hannibal Price, que escreveu De la réhabilitation de la race noire de la République
d'Haïti (1900).

Sobre a raça

Comparando o pensamento de Firmin e Price-Mars, eles podem ser considerados


paralelos e complementares. Ambos foram dedicados igualitaristas em matéria de
raça; e ambos eram comprometidos “reivindicadores” e “reabilitadores”,
reconhecendo que a ideologia da inferioridade da raça negra praticamente não mudou
entre os séculos XIX e XX, ou, ainda, desde suas origens na idade das trevas do século
XVIII, “Iluminismo”.

Price-Mars considerava o conceito de raça como um mito, como seus antecessores


intelectuais Firmin e Hannibal Price. E, como Firmin, ele reconheceu a fundamental
"mestiçagem" (herança de raça mista), não só das populações do Novo Mundo, mas da
própria humanidade. No contexto da apreciação de Price-Mars por sua ascendência
africana no Haiti, ele aproveita a oportunidade para comentar sobre essa herança
diversa (Price-Mars 1967: 6).

“Bem, nossa única chance de sermos nós mesmos é não repudiar nenhuma parte de
nossa herança ancestral. E, quanto a essa herança, oito décimos dela é um presente da
África. Além disso, neste pequeno planeta que é apenas um ponto infinitesimal no
espaço, os homens se misturam há milênios a ponto de não haver mais um único sábio
autêntico, nem mesmo nos Estados Unidos da América, que apoie seriamente a teoria
das raças puras. E se eu aceitar a posição científica de Sir Harry Johnston, não há um
único negro, por mais negro que ele seja, no centro da África que não tenha um pouco
de sangue caucasoide em suas veias, e talvez nem um único branco no Reino Unido da
Inglaterra, França, Espanha e em outros lugares entre os mais altivos, que não têm
algumas gotas de sangue negro ou amarelo em suas veias. Então, é verdade de acordo
com o verso do poeta: "Todos os homens são homens".

Fiquei impressionado com a última frase de Price-Mars porque repete as últimas


palavras de Anténor Firmin em A Igualdade das Raças Humanas, citando Victor Hugo
"Todos os homens são homens", completando seu pensamento com a "instrução
divina" para "amar uns aos outros" (Firmin 2000: 451).
Sobre África e os africanos

O conhecimento dos dois estudiosos da África e dos africanos pode ser contrastado.
Firmin ignorava em grande parte o continente africano contemporâneo de sua época,
lembrando que grande parte do interior africano ainda não havia sido totalmente
explorado e mapeado na época da redação do De l'égalité des races humaines, em
1885. O Congresso de Berlim, que estava dividindo o continente entre as grandes
potências europeias, ocorrera no ano anterior, em 1884. Mito, povos inferiorizados e
histórias de monstruosidade caracterizavam a visão europeia da África. Faltando
conhecimento preciso do presente e aderindo aos ditames da ciência, Firmin declarou
(2000: 401): "Eu quero me limitar a campos geralmente conhecidos onde discussões
sérias podem ser conduzidas com evidência e verificação." Assim, ele se voltou para o
passado glorioso da África em apoio à sua teoria antirracista. Ele dedicou muita
atenção ao antigo Vale do Nilo, reconhecendo a conquista da Núbia (Etiópia), bem
como do Egito mais conhecido, compreendendo bem à frente de seu tempo a
rivalidade entre as duas civilizações separadas, ainda que fraternas.

Em contraste, mais de quatro décadas depois, Price-Mars usou o folclore haitiano


como chave para os laços do passado e do presente na África no Haiti. A referência de
Price-Mars à África era “o Congo, o Sudão, o Dahomey”, enquanto Firmin conjurava o
antigo Nilo, Egito, Etiópia - de "Memphis a Meroë" - em apoio à contribuição da África
à civilização da raça negra. Price-Mars rejeitou a caracterização “Dark Continent”,
confiando em trabalhos de Joseph Deniker, W.E.B. DuBois e Maurice Delafosse. Ele
encontrou o coração da cultura haitiana através de seu folclore e religião em Ainsi
parla l'oncle (1928), uma obra clássica de antropologia e etnologia que “desmitologiza”
o vodu, estabelecendo seu estudo como um ramo legítimo da religião comparativa que
só pode ser entendido examinando-se o catolicismo francês e as crenças e práticas
animistas da África Ocidental.

No “Discurso dado na Primavera” oito anos antes, em 1922, ele discutiu a vida
camponesa mostrando “sobreviventes da terra da África” - derivada de vestígios,
reminiscências de antigos costumes, crenças, através de um processo de recuperação
após a civilização africana ter passado pela “peneira” francesa. Além disso, ele contou
a história em crioulo através das palavras e sentimentos das massas haitianas. Ambos,
Price-Mars e Firmin, enfatizaram a importância do crioulo como transição para a
educação haitiana na França, e ambos viram na abordagem americana de Tuskegee da
autodeterminação dos negros por meio da educação e do empreendimento
econômico um exemplo para o desenvolvimento haitiano.

Como Firmin, Price-Mars aceitou a forte influência do meio ambiente sobre o


desenvolvimento cultural africano. Como Jacques Antoine observou (1981: 140): “o
negro dos EUA e os nativos negros da África não são mais seus irmãos; eles se
tornaram seu próprio eu. Esta é a transformação que ocorre em Ainsi parla l’oncle,
também observada na tradução de M. Shannon (Assim falou o tio, 1990: 66-69)”.
Price-Mars usou uma herança africana compartilhada para tentar fundir uma
consciência nacional, embora ele entenda muito bem que muitos intelectuais haitianos
criticavam seu livro Ainsi... como muito africano, ou, como afirmou o antropólogo
haitiano Rémy Bastien, o livro idealizava demais o camponês. Price-Mars estava
consciente de que ele estava entrando em um terreno racialmente contestado,
evocando o presente africano em Ainsi ..., assim como Firmin em sua afirmação de que
o antigo Egito é "totalmente africano" em De l'égalité des races humaines.

“Devemos voltar juntos àqueles tempos para comparar o estabelecimento de uma


família em algum lugar no Congo, no Sudão e no Daomé? Ah! Compreendo muito bem
a repugnância com a qual sou confrontado ao ousar falar de África e coisas africanas. O
assunto parece vulgar para você e totalmente desprovido de interesse, não estou
certo? Cuidado, meus amigos, tais sentimentos não repousam numa escandalosa
ignorância? Subsistimos em ideias [...] nas quais glorificamos os gauleses, nossos
ancestrais” (Price-Mars 1990: 204).

Ao fazê-lo, tanto o acadêmico haitiano em Ainsi parla l'oncle em 1928, como o De


L'égalité des races humaines em 1885 legitimaram o estudo da África por direito
próprio, e esforçaram-se por reabilitar a cultura haitiana para si e para o mundo,
valorizando não apenas os intelectuais e o folclore haitianos, mas também a grandeza
passada e presente da África. Price-Mars era menos cético do que Firmin em sua época
de que a cultura africana contemporânea era uma fonte tão grande de orgulho na
África quanto seu passado glorioso.

Sobre a escravidão

Ambos os estudiosos condenaram o comércio da humanidade africana pelas perdas


incalculáveis que o continente africano sofreu e pela destruição da mente, alma e
espírito que resultaram dos séculos de abuso de pessoas inocentes. Anténor Firmin
estava bem familiarizado com Narrativa da Vida de um Escravo Americano, de
Frederick Douglas, publicado em 1845, quarenta anos antes de De l'égalité des races
humaines, que ele cita por extenso. Ao invés de citar trechos de espancamentos e
torturas e a brutalidade geral forjada sobre os escravos, ele se concentra nos
momentos transformadores de resistência contra o açoitador de escravos Covey
(Firmin 2000: 332-333). Firmin vê Douglass como um dos "mulatos" mais ilustres da
América, julgando-o não como "negro" usando a regra da América, mas pelo relato de
seu próprio nascimento de sua mãe negra escravizada e de um pai branco de
identidade indeterminada; provavelmente o mestre de sua mãe. Este conhecimento
prévio e simpatia com Douglass faz com que o encontro entre os dois homens sobre o
Môle de St. Nicolas - Douglass como Cônsul Geral dos Estados Unidos no Haiti e Firmin
como Ministro das Relações Exteriores - seja ainda mais interessante e dramático.

Firmin escreveu vigorosamente contra a escravidão à medida que a instituição se


relacionava com a doutrina da desigualdade das raças. Ele comparou as ideias
"acanhadas" dos pró-escravistas das nações não-escravocratas da Europa com a
defesa sem remorsos da escravidão nos Estados Unidos, e notou que sentimentos pró-
escravos poderiam ser encontrados entre antropólogos que se consideravam
monogenistas e poligenistas.

“A doutrina anti-filosófica e anticientífica da desigualdade das raças repousa em nada


mais do que a noção de exploração do homem pelo homem. Somente a escola
americana demonstrou honestidade e coerência em seu apoio à doutrina, pois seus
inquilinos nunca esconderam o interesse que tiveram em sua promoção. Embora
aceitem a ideia da pluralidade de espécies e sua desigualdade comparativa, os
cientistas europeus protestarão contra a escravidão em magníficas tiradas. Broca, por
exemplo, que não hesita em dizer o que pensa do negro etíope, indignado, levanta a
voz contra a escravidão ”(Firmin 2000: 140).

A preocupação de Firmin com a condição de escravidão é profunda, discutindo mitos


raciais de docilidade, indolência ou ignorância fingida em face do domínio brutal do
senhor de escravos sobre o escravo. Ele exaltou especialmente as realizações dos
mestiços do Haiti triunfando sobre seus sofrimentos como "mulatos". Seu foco na
fecundidade e no vigor biológico das pessoas mestiças do Novo Mundo foi criado para
desafiar a visão “científica” de muitos antropólogos e outros cientistas sobre a
infertilidade da descendência de negros e brancos. Ele apontou para as vigorosas e
híbridas populações das sociedades do Novo Mundo, incluindo as crescentes
populações do Haiti e da República Dominicana como exemplos que pessoas
racialmente mistas se reproduzem como qualquer outra. Respondendo ao postulado
feito por Quatrefages (estudioso e naturalista francês) de que os negros suam menos
que os brancos, ele fala com autoridade sobre o assunto:

“Sou negro e nada me distingue anatomicamente do mais puro sudanês. No entanto,


eu transpiro abundantemente o suficiente para ter alguma ideia dos fatos. Meus
congêneres não estão além das leis da natureza. Não me preocuparei em discutir a
questão do suposto odor sui generis que é supostamente uma característica particular
da raça negra. A ideia é mais cômica do que científica” (Firmin 2000: 61-63).

Para Price-Mars, a escravidão era a instituição que trazia a cultura africana para as
sociedades do Novo Mundo e fornecia as condições sob as quais as línguas e os traços
culturais eram transmitidos, destruídos, modificados e criados de novo. E para Firmin,
Price-Mars e virtualmente todos os intelectuais, bem como para as massas haitianas,
foi a escravidão que forneceu o contexto essencial para a gloriosa Revolução Haitiana,
que havia sido o evento decisivo para o Haiti e para a emancipação negra.

“Sim, durante quatrocentos anos a raça branca sem piedade ou misericórdia, acendeu
a guerra interna na África, tornando negro contra negro, perseguindo-o como jogo
sem trégua ou misericórdia para satisfazer seu indescritível tráfico de carne humana,
destruindo toda a civilização nativa e sua cultura. Por dois séculos, além disso, incitou
seus barcos carregados com gado humano para as margens desta ilha já
ensanguentada pelo extermínio do índio, e durante dois séculos de ultrajante
promiscuidade, de corrupção e de degeneração, sujou a antiga castidade da mulher
negra impondo-lhe o papel brutal do concubinato. E assim, o status da família negra
foi atacado, destruído, aniquilado pela abominação mais miserável que já maculou a
face da terra, tão verdadeiramente que, pouco depois de 1804, nossos antepassados
se comprometeram com o mais formidável experimento que foi tentado. entre
homens” (Price-Mars 1990:217)

Firmin diz tudo isso sobre a escravidão e seus efeitos sobre a mente, corpo e alma dos
negros; e mais, quando olha para um futuro em que o "etíope" instruído irá ler o
passado da história humana e passar seu próprio julgamento sobre o que foi feito a ele
e o que ele fez para os outros.

"Em vez de abrigar o ódio em seu coração, ele generosamente espalhará o amor
inesgotável pelo qual é naturalmente dotado, tanto que aqueles que não conhecem as
qualidades ricas e variadas de seu temperamento lerão nele uma característica
feminina, mesmo quando contemplem-no em seu comportamento mais masculino.
Enfrentando as outras raças, ele se lembrará de seus dias de humilhação sob o jugo da
escravidão, quando foi forçado a pagar com seu suor pelo modo luxuoso de vida do
colonizador. Ao reler o passado, ele lembrará que houve um tempo em que o
selvagem Tamahov e o humilde Amov, os filhos de Sete e Jafé, estavam sob o domínio
severo de seus ancestrais negros. Os monumentos gigantescos que são a glória do
Egito foram construídos com o trabalho dos brancos do Oriente e do Ocidente. A
humanidade é uma no tempo como no espaço; as injustiças dos séculos passados
ecoam as dos séculos atuais” (Firmin 2000: 447).

Essa passagem revela o humanismo essencial e o positivismo científico que


fundamenta A Igualdade das Raças Humanas, de Firmin, e por que seu trabalho
antropológico inspirou não apenas Jean Price-Mars, mas gerações subsequentes de
antropólogos que agora podem seu trabalho, que por tanto tempo fora silenciado.

Os laços de Firmin com a antropologia americana

Podemos agora traçar uma linha desde Anténor Firmin até Jean Price-Mars; desde
Jean Price-Mars até Melville Herskovits; de Melville Herskovits para Franz Boas; e
assim de Anténor Firmin ao mainstream da antropologia americana. Pode muito bem
haver conexões comparáveis entre a etnologia haitiana e a antropologia francesa,
porém estas ainda precisam ser retraídas da história submersa da ciência e da vida
intelectual entre os povos e nações escravizadas e colonizadas.

A admiração de Firmin por Jean Price-Mars é evidente. Que ele seja o mais óbvio
descendente intelectual do século 20 da antropologia de Firmin e o fundador de
estudos etnológicos no Haiti também não se discute. No entanto, a contribuição de
Firmin para a antropologia americana veio indiretamente através de sua profunda
influência sobre Jean Price-Mars, o decano da etnologia haitiana do século 20 que
estava intimamente associado com Melville Herskovits, um estudante de Franz Boas e
fundador dos Estudos Africanos na América e da Antropologia Afro-americana.

A correspondência entre Melville Herskovits e Jean Price-Mars, de 1928 a 1955, revela


uma relação profissional calorosa e afetuosa entre o sábio mais velho Price-Mars e o
jovem Herskovits. Isso começou quando o antropólogo americano desenvolveu um
interesse pelos negros caribenhos e sul-americanos, depois de seus estudos originais
sobre o negro americano, e depois planejou um período de pesquisa no Haiti. Price-
Mars atendeu generosamente aos pedidos de Herskovits, respondeu às suas perguntas
sobre a etnologia haitiana e até encorajou o jovem estudioso americano.

Herskovits conduziu vários meses de trabalho de campo no Haiti em 1934, com Price-
Mars organizando a visita e hospedando Herskovits e sua esposa, selecionando a
localização de campo de Mirebalais, ajudando com moradia e apresentações, e
fornecendo conselhos com o etnólogo e recursos acadêmicos. Isso resultou na
publicação do clássico Life in a Haitian Valley (1937) de Melville Herskovits, no qual ele
atribui a Price-Mars e seu colega J. C. Dorsainvil a assistência decisiva ao seu trabalho:

“A ajuda e a inspiração derivaram de muitas conversas amistosas com dois excelentes


estudantes da vida popular haitiana, o Dr. Price-Mars e o Dr. J. C. Dorsainvil. A minha
dívida com os trabalhos que publicaram sobre o assunto é mostrada pelas referências
às suas publicações no final deste volume, pois suas pesquisas devem ser vistas como
básicas por qualquer investigador sério dos costumes haitianos. Seu cordial conselho a
um colega estudante constitui uma das lembranças mais agradáveis desse trabalho de
campo” (ibid .: X)

Este reconhecimento público de Price-Mars é corroborado em sua correspondência


privada: 23 de setembro de 1936, Melville Herskovits para Jean Price-Mars,

“Consegui terminar o meu livro sobre Mirebalais - verá que estou a restringir-me à
vida no vale onde estudei e a não tentar escrever sobre todo o Haiti - e, ao mesmo
tempo, precisava descansar no campo onde morávamos. O livro deve aparecer
durante o inverno e, desnecessário dizer, cuidarei para que uma cópia seja enviada a
você. Você descobrirá que fiz bom uso de seu trabalho, que achei de grande valor.
Aguardo com expectativa os seus comentários sobre o meu relatório”.

26 de setembro de 1934 Melville Herskovits para Jean Price-Mars,

“Quero escrever e dizer-lhe o quanto gostei do tempo que passei contigo enquanto
estive no Haiti e também de transmitir-lhe o meu apreço pela ajuda material que me
ofereceu e que tornou possível a nossa pesquisa em Mirebalais. Assim como não teria
sido possível sem a sua ajuda ter conseguido passar os meus filmes através da
alfândega, o nosso trabalho teria sido menos produtivo sem a ajuda que o General
Cantave me deu como resultado de ter sido apresentado a ele por meio do seu cartão
de recomendação, que eu levei (melhores desejos em suas campanhas senatoriais e
presidenciais)”.
Price-Mars manteve seu interesse pelo trabalho de Herskovits, sugerindo mais tarde
que fosse realizada uma tradução de Life in a Haitian Valley, e em troca, em 1933,
Melville Herskovits se ofereceu para indicar Jean Price-Mars como membro da
American Anthropological Association.

Em 1920, Price-Mars realizou uma conferência histórica sobre o “Folclore Haitiano” no


Cercle Port au Princien, na qual introduziu o estudo rigoroso do vodu, ganhando
respeito pelos intelectuais haitianos e franceses. A abertura de sua obra clássica Ainsi
parla l’oncle (1928) – “O que é o Folclore?” – constitui uma questão eminentemente
antropológica à qual Boas e muitos de seus famosos alunos frequentemente se
voltavam. A essa pergunta ele respondeu: “O folclore é composto de lendas, costumes,
observâncias que formam as tradições orais de um povo. E para o povo haitiano, são
as crenças fundamentais sobre as quais foram enxertadas ou sobrepostas outras
crenças adquiridas mais recentemente” (ibid .: 13). O tio Bouqui é o protótipo do
contador de histórias haitiano, "Cric?", pergunta o contador de histórias "Crac!",
Responde o público (ibid .: 17). Isso se tornou o título de um premiado livro de
literatura nos EUA: Krik? Krak !, histórias escritas pelo romancista haitiano
contemporâneo Edwige Dandicat (1991).

Price-Mars recebeu outros estudantes americanos de antropologia, além de


Herskovits, incluindo Katherine Dunham, em 1935, a quem ajudou com seu trabalho
sobre dança afro-caribenha - um novo assunto de pesquisa em antropologia - e
também George E. Simpson (1990).

Jean Price-Mars escreveu vários livros antropológicos e etnológicos. Ele teve uma
longa e produtiva carreira como acadêmico e político. Além de ser um dos fundadores
da Société d'histoire et de géographie d'Haïti, também concorreu à presidência do Haiti
em 1940, e na década de 1950 foi nomeado chefe da delegação haitiana para as
Nações Unidas. Durante sua longa carreira, obteve reconhecimento internacional que
a vida relativamente mais curta de Firmin não o permitiu ter. Louis Mars, filho de Jean
Price-Mars, tornou-se um reconhecido estudioso por seu próprio cargo de diretor do
Instituto de Etnologia na década de 1950.

Ao avaliarmos as contribuições de grandes figuras da antropologia americana, como


Franz Boas e Melville Herskovits, uma rede mais ampla deveria ser lançada para
assegurar que os estudiosos de fora da América do Norte que eles influenciaram e que
os influenciaram, também sejam considerados. Dois gigantes haitianos, Anténor Firmin
e Jean Price-Mars, deveriam ganhar acesso à corrente principal da antropologia
mundial e ser avaliados não apenas por direito próprio, mas por suas contribuições
importantes para a etnologia e a antropologia. Até agora, o fator de raça tem sido o
principal obstáculo ao seu reconhecimento.

Firmin morreu em 1911 aos 61 anos, no exílio em St. Thomas, enquanto Price-Mars
viveu suas nove décadas, principalmente no Haiti, onde os membros de sua família
ainda residem. Magdaline Shannon explica em sua tradução de Ainsi... que a América
só se interessou por Price-Mars no final dos anos 1970, enquanto no mundo
acadêmico fora do Haiti só agora está sendo introduzido (ou no caso da França,
reintroduzido) Anténor Firmin. Como observou Leon Damas, quando Price-Mars foi
homenageado pela Académie française, “não apenas como escritor, mas também
como homem, especialmente por sua coragem, seu valor e por aquela honestidade
intelectual que ele nunca deixou de exibir no interesse do triunfo de ideias não há
muito tempo consideradas subversivas”. As ideias de Firmin talvez também fossem
consideradas subversivas no final do século 19, o que representou um poderoso
argumento para a igualdade de raças. Isso também atrasou o desenvolvimento de uma
visão inicial crítica e progressista da antropologia que desafiava o conceito de raça.

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