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Suplício de Uma Saudade

Isle At The Rainbow’s End

Anne Hampson

Quando Kara foi para a ilha de Bali, participar de uma pesquisa sobre os
costumes daquele povo tão misterioso e sensual, não podia imaginar que lá
reencontraria Charles Millard. Charles, o homem com quem ela sonhava há
anos e cuja lembrança a atormentava de saudade. Mas Charles, tão amado e
desejado, era agora um estranho que a tratava com rudeza e desprezo. Como
era possível um amor tão grande transformar-se em indiferença? Será que ele
ainda estava preso às recordações de Tracy, a esposa morta? Então, era
mesmo verdade que, para ele, Kara era um capítulo do passado que ele tinha
encerrado para sempre?

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
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Cultura: um bem universal.

Doação: Mana
Digitalização: Alê M.
Revisão: Marelizpe

Copyright: ANNE HAMPSON


Título original: "Isle At The Rainbow's End”
Publicado originalmente em 1976 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: MAYRA MOYA
Copyright para a língua portuguesa: 1981 EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São
Paulo Uma empresa do GRUPO ABRIL
Composto e impresso nas oficinas da ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL
Foto da capa: ERIC BACH
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Capítulo I

O olhar de Kara West demonstrava preocupação, enquanto dirigia com

habilidade seu pequeno automóvel através do tráfego intenso de Maidstone, antes

de pegar a estrada para Wateringbury.

Bali! Terra de gente simpática, de olhos amendoados, cuja vida estava

totalmente condicionada a superstições e rituais; ilha mística de bons e maus

espíritos, que ocupavam mais de dez mil templos. Um cenário encantado de

campos férteis e densa selva tropical...

— E eu posso ir para lá, se quiser!

Estacionou o carro na garagem. Neste momento a porta da casa se abriu

dando passagem a uma garota alta, bem-feita de corpo, de cabelos castanho-

avermelhados, muito elegante e que parecia ter mais ou menos vinte e três anos.

— Boa tarde! Você está atrasada, mas com a aparência maravilhosa de

quem acabou de receber boas novas! Foi outro aumento de seu chefe, é?

— Recebi uma oferta para trabalhar em Bali! — Kara respondeu, rindo da

última frase de sua amiga Margareth.

— Bali!? Quero saber tudo a respeito.

— Explicarei o que você quiser enquanto tomamos uma xícara de chá.

Espero que já esteja pronto.

— Quase. A água está fervendo e em alguns minutos poderemos nos

sentar. — Enquanto falava, Margareth apontava para a mesinha junto à lareira,

que já estava preparada para o chá.

Margareth e Kara dividiam o andar térreo de uma elegante casa em estilo

vitoriano, enquanto dois simpáticos rapazes ocupavam o andar superior. No sótão

morava uma senhora de idade, que raramente era vista, pois fazia todas as suas

compras e visitas durante o dia, enquanto o pessoal estava fora.

— Você se lembra de que há algum tempo eu mencionei um amigo do meu

chefe, um que era pesquisador? Ele estava tentando formar um grupo de pessoas
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interessadas em viajar até uma ilha na Indonésia, para estudar a cultura dos

seus habitantes.

— Sim, eu me lembro — Margareth confirmou, enquanto seus olhos verdes

brilhavam, fitando a amiga com interesse. — Você não mencionou o nome da ilha.

— É a ilha de Bali, considerada uma das mais lindas do mundo.

— O povo tem crenças e tradições bem estranhas por lá, não é?

— Muito estranhas. Durante a vida inteira eles são dominados por deuses e

espíritos. Precisam fazer oferendas todos os dias; cada casa tem seu próprio

santuário, e eu acho que a gente vê templos em qualquer direção que olhar.

— Os olhos de Margareth brilhavam de encantamento com a narrativa.

— Conte mais! Como é que você se envolveu nesse negócio de estudar a

cultura desse povo?

— Esse pesquisador, Hugh Nowell, conseguiu finalmente formar o grupo

que queria, mas agora, quase na última hora, a secretária se demitiu e eles não

podem partir sem uma substituta. Parece que ela conheceu um homem muito

interessante e, após um namoro rápido, eles resolveram se casar.

— Você conhece esse Hugh Nowell? Quero dizer, ele está querendo

contratá-la? E seu chefe? Ele sempre diz que jamais conseguiria se arranjar sem

você no escritório!

Kara sorriu, encabulada com esse comentário, e sua amiga a fitou em

silêncio, notando os cabelos louros que caíam como uma cascata sobre os seus

ombros, onde os reflexos dourados se tornavam mais acentuados; notou também

a testa delicada sob os cabelos revoltos e os cílios muito escuros, que

emolduravam olhos de um azul intenso, como o céu em pleno verão.

Margareth nunca tinha visto alguém com uma cor de olhos tão atraente e

original, nem com a linha expressiva dos lábios e o queixo tão perfeitos como os

de Kara. Que ela era um tipo de beleza rara, era inegável, e Margareth sempre se

perguntava por que, durante aqueles três anos em que dividiam o apartamento,

Kara tratava seus muitos admiradores com tanta frieza. Ela podia dar-se ao luxo

de escolher entre eles, mas parecia muito contente com sua vida de solteira.
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— Eu nunca havia encontrado Hugh Nowell, até hoje... — Kara estava

falando naquela voz baixa, musical, que era outro atributo que Margareth

admirava na amiga. — Ele estava com o sr. Rexford quando entrei na sala para

servir o chá. Estava tentando persuadir meu chefe a ceder uma de suas

secretárias para acompanhá-lo a Bali. Desde o princípio simpatizamos muito um

com o outro e não fiquei muito surpresa quando ele perguntou se poderia me

levar.

— O que a deve ter surpreendido foi a boa vontade do sr. Rexford em deixá-

la partir, não é?

Kara fez uma careta de desagrado.

— Meu ego sofreu um pouco, pois o sr. Rexford sempre afirmou que eu era

indispensável.

— Ele não deve gostar nem um pouco da ideia de ficar sem você; mas tão

humano, não iria se opor a esta sua oportunidade de participar de uma aventura

tão entusiasmante. Quanto tempo você vai ficar fora?

— Mais ou menos três meses.

— Você já se decidiu? — Margareth serviu o chá e o entregou a Kara, com

uma expressão de espanto.

— Não, estou tendo dificuldade... — Ela parou e deu um suspiro. — Estou

dividida entre o desejo de tirar vantagem da oferta, e o medo de enfrentar o

desconhecido. Acho que estou ficando velha...

— Que coisa mais tola! Você nunca me disse sua idade, Kara. Pela sua

aparência, não lhe daria mais de vinte e dois anos, embora, pelas confidências

que já me fez, presumo que tenha mais ou menos vinte e seis, não é? — Era uma

pergunta, mas Margareth não olhava para a amiga, apenas tomava o chá com

calma e resignação. Kara podia responder, se quisesse; se não confirmasse,

Margareth não ficaria ofendida.

— Você está certa — respondeu Kara por fim. Ela estava ausente, com os

pensamentos perdidos no passado, naquele tempo feliz, oito anos atrás, quando

era a noiva adorada do simpático Charles Millard.


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— Eu tenho a sensação de que há um mistério envolvendo você. — A voz de

Margareth era muito calma agora, e trouxe Kara de volta das lembranças

dolorosas que iam gradualmente se apagando de sua memória.

Kara levantou os olhos e sorriu.

— Você deve estar se perguntando por que razão eu não tenho um

namorado, certo?

— Por que você não tem um marido, eu diria. Você poderia ter até mesmo

um milionário.

— Quem é que está dizendo tolices agora? — Mas sua mente estava outra

vez com Charles. Ele era o herdeiro de uma grande fortuna, como sobrinho de sir

Rawson Rotherdale, o responsável pela construção de muitas estradas e edifícios

públicos na Inglaterra. Sir Rawson tinha morrido dois anos atrás e Charles era

um milionário agora.

— Acho que é melhor voltar ao assunto de sua viagem a Bali. Se

continuarmos nesta linha de confidências, minha curiosidade vai vencer minha

capacidade de ser discreta.

Kara olhou para a amiga com profunda afeição. Claro, Margareth tinha

curiosidade em saber algo sobre seu passado, mas ela nunca pensara em fazer
qualquer tipo de confidência. E por que não? Relatar a história agora traria um

pouco de sofrimento, mas só um pouquinho. Oito anos já tinham se passado.

Charles tinha se esquecido dela há muito tempo e, para Kara, parte da angústia

dos primeiros meses e da dor dos anos seguintes tinha se apagado com o tempo.

Ela cresceu e se transformou, de uma doce e encantadora garota de dezoito

anos, em uma moça elegante, cheia de charme e confiança, que impressionava

todos os que a conheciam. Porém, embora não sofresse mais com a lembrança,

sua lealdade para com Charles permanecia. Ela havia prometido esperar por ele

e, embora soubesse com certeza que ele não voltaria, não conseguia gostar de

mais ninguém. Charles fora seu ideal, seu primeiro e único amor. Desconfiava

que esse sentimento permaneceria até o fim de sua vida.


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— Talvez eu possa satisfazer sua curiosidade — murmurou Kara

gentilmente.

— Mesmo? — A expressão de espanto e a respiração suspensa de

Margareth divertiram Kara.

— Não seria justo deixar de fazê-lo.

— Você teve um glorioso caso de amor... — De repente ela parou,? —

colocando a mão na boca, e com certo receio exclamou: — Ele... ele morreu?

— Não. Graças a Deus, ele não morreu.

— Então...

— Ele se casou com outra garota.

Um silêncio profundo caiu sobre a sala durante alguns minutos, enquanto

Margareth tomava seu chá e Kara continuava voltada para as lembranças do

passado.

— Você quer dizer... bem, que seu amor não era correspondido?

— Nós estávamos perdidamente apaixonados. Era meu primeiro amor e eu

tinha somente dezoito anos. Ele era um homem maravilhoso, maduro, com vinte

e oito anos, que sabia o que queria e estava realmente apaixonado por mim. Nós

ficamos noivos; o casamento deveria se realizar naquele mês...

— Mas o que aconteceu, então? — Margareth não pôde deixar de perguntar,

enquanto procurava na expressão da amiga um indício de que já não havia

sofrimento pela perda.

Kara fez uma pausa antes de responder à pergunta; estava perdida em

pensamentos e sonhos. Amar... como tinha sido maravilhoso! Para ele, era um

amor possessivo, cheio de paixão, e houve momentos em que ela acreditou que

Charles a possuiria antes mesmo do casamento. Mas ele sempre voltava à razão e

terminava beijando Kara com infinita ternura e carinho, dizendo: "Meu amor,

tente entender minha impaciência. Eu adoro você! Quase não posso esperar para

fazê-la minha!"

— O que aconteceu? — Devagar e mecanicamente Kara repetiu a pergunta

que Margareth tinha feito há alguns segundos. — Charles foi forçado a me deixar
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e se casar com outra garota. — Ela fez uma pausa, esperando que Margareth

fizesse algum comentário, mas tudo o que ela disse foi:

— Por favor, continue.

— Sim... — Sua voz, tão suave, ficou mais baixa, enquanto ela começava a

contar a história exatamente como tinha acontecido oito anos atrás.

A vida era maravilhosa e o futuro um sonho de paixão e encantamento

junto ao seu querido Charles. De repente, um mês antes da data marcada para o

casamento, Charles foi até a casa de Kara. Tão logo viu a expressão aflita de seu

rosto, ela ficou apreensiva.

— Charles, há alguma coisa errada?

Ele fez várias tentativas antes de contar que seu irmão mais novo, Henry,

havia cometido um crime. Ele se associara a um bando de criminosos e, na noite

anterior, tinham assaltado uma grande loja de departamentos, onde deixaram o

guarda-noturno gravemente ferido. Todos conseguiram fugir e Henry estava tão

aterrorizado que fora direto para a casa de Charles, em busca de refúgio.

— Se ele for preso e enviado à prisão, minha mãe não resistirá. Tenho

certeza de que esta notícia iria matá-la.

— Ela já está tão doente... Meu Deus, o que vamos fazer, Charles?

— Você ainda não sabe o pior — ele murmurou com raiva. — Henry casou-

se com dezenove anos e separou-se aos vinte. Não sei por que jamais se

preocupou com o divórcio, mas, para todos os efeitos, continua casado.

— Sim, eu sei. Encontrei Katie uma vez quando estávamos fazendo

compras na cidade, você está lembrado?

— Sim. — Ele estava impaciente; Charles nunca tinha sido indelicado ou

impaciente com ela antes. Imaginou que era por causa da situação. — Bem, ele

estava se encontrando com a filha de sir Sullivan Findsley...

— Tracy! Eu já vi várias fotos dela em revistas. Seu pai é milionário. Como é

que Henry se envolveu com uma garota como ela?

— Não tenho a mínima ideia. — Desta vez não havia dúvidas quanto à

impaciência de Charles. — E, afinal, não importa. O que realmente interessa é...


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— Ele fez uma pausa, depois continuou vagarosamente. — A garota está

esperando um bebê, e Henry é o pai.

— Oh! — Para Kara, criada dentro de padrões muito severos, uma vez que

seus pais já estavam na meia-idade quando ela nasceu, aquilo era terrível. —

Henry não poderá casar com ela até conseguir o divórcio.

Um silêncio incômodo se seguiu antes que Charles, com uma expressão de

desalento total, continuasse:

— Tracy tem apenas mais dois anos de vida; tem um problema sério na

espinha. Ela tem pressionado Henry para casar, mas ele estava adiando, sem

coragem de confessar que já é casado.

— Dois anos de vida? — Kara estava penalizada, pois sabia que Tracy tinha

apenas dezenove anos, um ano a mais do que ela. — Mas que coisa terrível! Isso é

do conhecimento de todos?

— O pai dela sabe. Ela não tem mãe, como você deve ter ouvido falar. Tracy

contou a Henry sobre seu problema; disse também que quer esta criança

desesperadamente, pois lhe daria uma alegria imensa enquanto vivesse. Ela

parece ser muito corajosa.

— É verdade. — Kara não sabia o que dizer, exceto talvez sugerir que

adiassem o casamento.

— Acho que, nestas circunstâncias, você... você não tem condições de casar

comigo em um mês... — Hesitou em continuar, mas Charles moveu-se

rapidamente e abraçou-a com desespero.

— Eu não posso, querida, eu a amo muito!

Kara fez uma pausa em sua história e Margareth, que havia se recostado

um pouco no sofá e mexia automaticamente a colher em sua xícara, falou:

— Já sei, Kara, seu noivo casou-se com Tracy.

— Sim, Charles se casou com Tracy.

— Eu ainda não entendo como é que ele pôde! Ele amava você com

loucura...
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— Vou contar o final da história e então você poderá compreender. Katie, a

esposa de Henry, acabou descobrindo duas coisas importantes. Primeiro, que seu

marido tinha se envolvido com os criminosos naquele assalto, e segundo, que ele

tinha um relacionamento muito íntimo com a filha de sir Sullivan Findsley. O que

ela esperava ganhar com sua atitude é algo que jamais consegui entender.

Entretanto, resolveu fazer uma visita a sir Sullivan e contou tudo a ele. Não só

que Henry estava sendo procurado pela polícia como também detalhes sobre sua

família. Contou que a sra. Millard era viúva e estava sofrendo do coração. Disse

que qualquer choque poderia matá-la e que Charles, o irmão de Henry, era um

arquiteto, estava noivo e preparando-se para casar. Resumindo, sir Sullivan

conseguiu informações vitais e mais do que suficientes para o plano que estava se

formando em sua cabeça. Ele nos chamou e colocou sua proposta, ou, melhor

dizendo, seu ultimato diante de Charles. Ou ele se casava com Tracy ou ele, sir

Sullivan, iria imediatamente à polícia e contaria todo o envolvimento de Henry

naquele assalto. O guarda-noturno ferido no assalto estava morrendo, e ele fez

questão de frisar bem este detalhe. E calmamente completou, dizendo que o

choque de saber que o filho estava sendo perseguido, e sua consequente prisão,

mataria a mãe de Charles.

— Meu Deus! Que situação horrível para você!

— Sim, foi horrível! — Kara estremeceu com a lembrança.

— E daí?

— Nós tentamos tudo para fazer aquele homem mudar de ideia, mas ele

estava totalmente transtornado, sabendo que sua filha só tinha dois anos de vida.

Tracy queria a criança e era dever dele cuidar para que ela não sofresse nenhuma

humilhação por causa deste desejo. Ela precisava de um marido para morrer

feliz, sabendo que seu filho tinha um nome respeitável. Charles levantou a

hipótese de Tracy não querer se casar com ele, mas sir Sullivan já tinha explicado

toda a situação a ela. A atitude de Henry tinha matado todo o amor que ela sentia

por ele e Tracy estava disposta a casar com Charles. De qualquer maneira, ela

disse, seria um casamento por conveniência, pois a doença estava progredindo


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rapidamente. Mesmo que ela tivesse mais dois anos de vida, estaria inválida

dentro de no máximo doze meses. A única coisa que a interessava era o bebê,

mas é claro que também queria um marido.

— Isso pode ser entendido. Se ela era tão conhecida como você disse, devia

estar ansiosa para continuar parecendo respeitável

— Ela frequentava a alta sociedade e era muito respeitada. Nunca houve

uma palavra nas colunas sociais envolvendo-a em qualquer tipo de escândalo. Ela

era muito bonita, também.

Durante alguns instantes nenhuma das duas falou, mas Kara percebeu,

pela expressão de Margareth, que ela estava ansiosa pelo final da história.

— Charles e eu conversamos muito; às vezes eu chorava e ele se recusava a

aceitar a proposta de sir Sullivan em tornar-se o marido de Tracy. Mas

acabávamos voltando à trágica realidade de que a revelação das atividades de

Henry mataria sua mãe. E ainda havia Henry, que parecia compreender a

extensão de sua atitude inesperada, e ficava se lamentando o tempo todo. Sua

esposa, Katie, prometeu não entregá-lo à polícia em troca de um aumento em sua

pensão. Charles, que não estava ganhando um salário muito alto, se ofereceu

para pagar a diferença, pois Henry não podia fazê-lo sem diminuir a pensão que

pagava para a mãe deles. Acho que não mencionei que ele voltou para a casa da

mãe quando se separou da esposa, não? — completou Kara.

— Não, mas imaginei que isto tivesse acontecido. — Margareth acabou de

tomar o chá e colocou a xícara na mesa. — E sir Sullivan deve ter mencionado

que Charles estaria livre em dois anos e poderia então se casar com você, não é?

— Havia muita expectativa na pergunta de Margareth. Ela estava tentando

imaginar o que saíra errado. — A garota, Tracy, ainda está viva?

Kara balançou a cabeça, mas não respondeu diretamente.

— Eu achei que dois anos eram uma eternidade. Ao mesmo tempo, não

podia desejar a morte da garota. Charles estava mais desesperado do que eu, pois

sabia que teria que passar os próximos dois anos com outra pessoa, alguém que
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ele não amava. Eu, por outro lado, estaria sozinha, e naturalmente infeliz, mas ao

menos sem a obrigação de viver com outro homem.

— A decisão deve ter sido uma tortura. Que posição difícil para dois seres

apaixonados! Se eu estivesse em seu lugar, acho que teria contado cada dia

daqueles dois anos.

Kara não disse nada. A decisão tinha sido uma tortura, como Margareth

disse, e a dor da separação era impossível de descrever. No entanto, este

sentimento já estava quase esquecido.

— Quando finalmente tomamos a decisão, Charles falou que não queria

continuar na Inglaterra, tão perto de mim e ao mesmo tempo impossibilitado de

me ver. Ele concordaria em se casar com Tracy apenas se ela aceitasse morar no

exterior. Ela concordou de imediato e eles foram para Cingapura.

— Por que Cingapura?

— Tracy tinha amigos lá. Mais tarde esses amigos retornaram à Inglaterra,

mas Charles e Tracy ficaram lá.

— Se você não mantinha contato com Charles, como soube disso tudo?

— Sir Sullivan costumava me telefonar e parecia arrependido do que fizera.

Uma vez mencionou que estava consciente do meu sacrifício e esperava que eu

pudesse ser feliz com Charles quando nos casássemos. O filho de Tracy morreu

com apenas uma semana de vida, mas, pelos comentários de sir Sullivan, eu tive

a impressão de que ela estava apaixonada por Charles, e mesmo com a trágica

perda ela não parecia tão infeliz como era de se esperar. Sir Sullivan me contou

que Charles cuidava dela com muito carinho e isto era tudo o que ele podia pedir.

Eu sabia que Charles a trataria bem, ele era do tipo gentil e dedicado com

pessoas que estavam em necessidade. Lembro que ele ficou muito abatido com a

ideia de que Tracy estava sofrendo com o que Henry havia feito...

Sua voz mal podia ser ouvida. Ela estava novamente voltada para suas

lembranças, lembranças de Charles e todo o carinho e sensibilidade dele para

seus pequenos desejos. Lembrou-se de seu sorriso, sua figura atraente, toda a

ternura que havia em seus olhos quando a fitava profundamente.


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— Tracy viveu mais do que os médicos aqui na Inglaterra esperavam. Ela

conseguiu sobreviver por mais de quatro anos.

— Quatro anos? Então o tempo se arrastou para vocês dois enquanto

aguardavam o momento do reencontro? Como deve ter sido triste!

— Não foi tão ruim quanto você imagina — foi a resposta surpreendente de

Kara. — Da minha parte, por mais que eu sentisse saudade de Charles, não

podia ficar triste, por causa de Tracy. Ela estava vivendo um tempo extra, um

tempo roubado, como se fosse um prêmio, e eu não podia desejar sua morte,

Margareth, realmente não podia.

Margareth estava concordando agora, com compreensão.

— Sim, posso ver mais claramente agora. Você sabia que no final teria

Charles e, nesse meio tempo, não poderia sequer invejar a felicidade dessa garota.

Kara, você é uma pessoa maravilhosa. Por que vocês não se casaram depois que

Tracy morreu?

Kara estava corada pelo elogio da amiga, e por alguns momentos não

conseguiu responder.

— Eu jamais saberei, Margareth. Mais ou menos um ano antes de Tracy

falecer, sir Sullivan me telefonou dizendo que ele tinha esperanças de que ela

viveria normalmente agora. Os médicos haviam descoberto muito sobre a doença

e havia novos tratamentos. Sua vida estava sendo prolongada e sir Sullivan

sugeriu que eu me esquecesse de Charles e procurasse reconstruir minha vida

sem ele. Sugeriu também a possibilidade de Charles estar apaixonado por Tracy,

pois, além de muito bonita, ela também era uma ótima pessoa. Eu sabia que ela

era uma mulher muito atraente. Concordei com as proposições de sir Sullivan,

mas, claro, tinha intenção de ser fiel a Charles até que ele mesmo me confirmasse

as novidades. Tracy morreu e seu pai me comunicou em seguida. Se eu não

tivesse encontrado ninguém até aquela data, eu deveria entrar em contato com

Charles, foi o que sir Sullivan me disse. Ele não sabia do nosso acordo, de que

Charles é quem entraria em contato comigo...


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— Mas você não ficou esperando, ficou? Se eu estivesse em seu lugar, não

hesitaria em tentar encontrá-lo, mesmo que fosse apenas para saber que ele não

me queria mais.

— Eu esperei um pouco, sempre tendo em mente o que sir Sullivan havia

me dito sobre a possibilidade de Charles ter se apaixonado por Tracy. Achei que,

se isso fosse verdade, ele entraria em contato comigo imediatamente. E, de

qualquer maneira, se fosse verdade, não seria a melhor hora para procurá-lo, pois

ele estaria triste com a perda. Então, decidi esperar uns três ou quatro meses.

Entretanto, quando escrevi para o endereço que sir Sullivan havia me dado,

minha carta retornou. Telefonei para sir Sullivan e ele me informou que Charles

havia deixado Cingapura uma semana após o funeral e, pelo que ele sabia, tinha

vindo para a Inglaterra. Convidou-me então para ir até sua casa e, pelo que pude

perceber, ele estava preocupado por mim e ao mesmo tempo confuso pela atitude

de Charles.

— Eu estava certo de que ele voltaria imediatamente para você. Fiquei

muito desapontado, pois não veio me visitar ou dar qualquer notícia. Achei que

ele estivesse com você, minha querida.

— Eu não o vi desde que se casou com Tracy. Nós decidimos que seria

melhor assim. Foi por essa razão que Charles quis morar no exterior.

— Eu não sabia disso. Mas, onde ele está? Soube que a mãe dele morreu

um ano depois que ele foi para Cingapura, e Henry emigrou para a Austrália. Ele

tem algum outro parente aqui em Londres?

— Não, que eu saiba, nenhum

Sir Sullivan ficou muito pensativo. Suas próximas palavras foram rápidas e

precisas:

— Eu diria então, minha querida, que minha suspeita era correta e Charles

aprendeu a amar a minha pequena Tracy. Você não percebe que somente isso o

teria impedido de vir procurá-la imediatamente?

Kara concordou em silêncio, aceitando o fato de que as deduções de sir

Sullivan estavam corretas.


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— Eu gostaria, no entanto, de falar com ele, de saber sua decisão definitiva

a respeito. Não tenho certeza absoluta de que ele não me queira mais, entende?

Onde ele poderá estar agora? É horrível não saber onde e como está.

— Deve estar ainda em Cingapura, ou talvez em algum lugar nas

vizinhanças. Ele gosta muito daquelas ilhas. Tracy costumava mencionar isso em

suas cartas — disse sir Sullivan.

Margareth se mexeu no sofá, preocupada.

— Mas não pode ser, Kara, deve haver alguma maneira de localizá-lo.

Algum tipo de organização que encontre pessoas desaparecidas...

— Charles não está desaparecido, Margareth. Ele sabe onde me encontrar,


se quiser. Oito anos se passaram, e me parece razoável concluir que ele me

esqueceu completamente.

Mesmo dizendo estas palavras, Kara não podia acreditar nelas. O amor que

sentiam um pelo outro era tão intenso, tão profundo... mas oito anos era um

tempo muito longo. Tantas coisas podem ter acontecido na vida de Charles; ele

tinha se casado com Tracy, uma linda garota; deve ter entrado para um círculo

social onde muitas outras mulheres bonitas e atraentes estavam ao seu alcance.

Podia ser que já tivesse se casado novamente e fosse um marido e pai feliz.

Mais tarde, já deitada em sua cama, Kara rememorou tudo o que havia

contado a Margareth e meditou sobre algo que não tinha dito.

Ela havia escrito duas cartas para Charles enquanto ele estava em

Cingapura. Uma para notificá-lo da morte de seus pais, com apenas três meses

de intervalo entre o pai e a mãe, e a consequente mudança em sua vida. A casa

onde morava e tudo o mais teve que ser vendido, para pagar dívidas que ela

desconhecia. Resolveu então atender a um anúncio para ser dama de companhia

de uma velha senhora e, como iria morar em outra cidade, distante mais de

duzentos quilômetros, achou importante que Charles tivesse conhecimento de seu

novo endereço.
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A velha senhora tinha gostado de Kara desde o primeiro instante e a

relação que desenvolveram acabou por mudar os rumos da sua vida. Com o

passar dos meses a velha resolveu adotá-la e Kara Lincoln se tornou Kara

Fortescue-West. Mas esta informação não estava na carta que Kara escreveu.

Menos de seis meses após a adoção, a sra. Fortescue-West adoeceu e,

apesar dos esforços de Kara e da sua certeza de poder cuidar dela, uma prima

distante resolveu levá-la para viver no campo sob seus cuidados. E assim, em

menos de quinze meses, Kara estava sozinha outra vez e de volta à sua cidade

natal. Devido à generosidade da sra. Fortescue-West, ela não ficou desamparada.

Com o dinheiro do salário acumulado e, mais tarde, o depósito feito em seu nome

antes de a velha senhora partir para o campo, Kara pôde frequentar um curso na

universidade e alugar um pequeno apartamento nas imediações. Resolveu tirar

parte de seu novo nome e a partir de então passou a ser Kara West.

Escreveu então a segunda carta para Charles, explicando tudo. Apesar de

não ter recebido uma resposta da primeira carta, esperava por uma desta vez.

Mas, quando não recebeu nada durante os próximos meses, disse a si mesma que

tinha sido uma tola. Charles provavelmente não queria começar uma

correspondência normal com ela, pois isso seria doloroso para ambos. Apesar

destas conclusões, Kara esperava pelo menos algumas linhas, confirmando o

recebimento daquelas duas cartas.

Entretanto, um pensamento a consolava. A separação forçada seria por

pouco tempo, uma vez que Tracy tinha poucos meses de vida. Ela jamais poderia

imaginar que eles nunca mais se encontrariam.

Capítulo II

Kara estava sentada na frente de Hugh Nowell, do outro lado da mesa,

enquanto ele ditava as informações contidas em várias anotações. Estavam no


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escritório de Hugh, que fazia parte da suíte alugada para ele e seu pessoal no Bali

Praia Hotel, em Sanur, cujas praias permaneciam com sua beleza natural

intocada, uma vez que a região não era explorada para o turismo.

A sala tinha uma vista da praia e, apesar de seu interesse pelo trabalho,

Kara não conseguia se concentrar totalmente. Seus olhos vagavam do caderno em

sua mão para um pequeno barco ancorado perto da areia, para a fila de mulheres

nativas, carregando suas cestas e conversando umas com as outras. Mais

interessante ainda era a garota descontraída que pedalava sua bicicleta pela

calçada, equilibrando um cesto de flores na cabeça.

Um sorriso espontâneo descontraiu o rosto de Kara e seu chefe parou de

ditar para espiar o que havia atraído sua atenção. Ele logo viu a garota e também

começou a rir.

— Contaram-me que as garotas agora usam bicicletas para levar suas

ofertas aos templos.

Kara fitou seu chefe com interesse. Ela tinha chegado há apenas uma

semana à ilha de Bali, mas toda a sua mente já estava voltada para aquele povo,

com sua cultura estranha e fascinante. Ela sempre gostara muito de mitologia

grega; agora, porém, estava começando a aprender muitas coisas sobre a

mitologia hindu. Tinha tido o privilégio de testemunhar Uma cerimônia sem igual

em um templo e vira diversas danças tradicionais que eram oferecidas às muitas

divindades às quais a vida do povo da ilha era vinculada.

— Deve ser um belo espetáculo observar uma longa fila de jovens em suas

bicicletas, com vestidos tão festivos como quando vão assistir às grandes

cerimônias, pedalando pela praia, levando suas oferendas na cabeça.

— Espero testemunhar uma cena assim. — Hugh fez uma pausa e ficou

observando Kara.

Ela estava um pouco preocupada, sabendo que ele, como tantos outros

homens, se sentiam atraídos por ela. Era um pensamento perturbador, Uma vez

que naquele tipo de trabalho ela mal tinha tempo para suas horas de descanso.
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Mas Kara se preocupava principalmente com sua própria atitude com relação aos

homens em geral. Ela não queria se envolver, nem de leve.

— Eu tive muita sorte em conseguir seus serviços, Kara. — A voz dele

estava mais suave agora e sua atenção totalmente voltada para ela e não para o

trabalho que estavam fazendo. — Diga-me, como conseguiu chegar aos vinte e

seis anos ainda solteira?

— Sou uma solteirona convicta. — Kara sorriu.

— De qualquer maneira, não posso acreditar que você seja realmente

solteira. Tenho a impressão de que já foi casada, e que alguma tragédia fez você

se manter fiel a esta memória.

Kara levou um susto. Ele estava muito perto da verdade, apesar de ter

errado quanto ao casamento. Hugh observara sua reação, e ela sentiu que havia

deixado transparecer que ele tinha acertado muita coisa. Mas preferiu não

corrigi-lo. Se ele acreditava que ela fora casada, com certeza não iria tentar

qualquer tipo de aproximação mais íntima.

— Creio que é melhor continuarmos — ela sugeriu, voltando a atenção para

o caderno de anotações. — Você estava falando sobre os costumes referentes à

morte e cremação de corpos.

Para o povo balinês, a morte e a cremação eram a passagem desta vida

para a próxima. Era o caminho através do qual a alma passava para sua jornada

para o céu. Para o povo mais pobre, o custo da cremação era tão alto que muitas

vezes tinham que enterrar o corpo temporariamente, até que tivessem dinheiro

suficiente para a cerimônia. As pessoas ricas, por sua vez, costumavam ter uma

poupança que a família usava para estes gastos, após sua morte.

— Eu não tenho mais nada para ditar.

Pelo seu tom de voz Kara percebeu que ele havia aceitado o fato de ela ser

casada. Kara não teria mais problemas com a provável tentativa de Hugh querer

ampliar o relacionamento patrão-empregada.


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Sabrina 132

Na manhã seguinte, ela estava acordada às cinco horas. Após um rápido

desjejum, pegou sua câmara e resolveu passear pela praia. Tirou algumas fotos

dos pescadores jogando suas redes, de outros navegando tranquilamente em seus

barcos ao sabor das ondas, em contraste com o brilho do sol que aparecia no

horizonte. Caminhou pela praia observando tudo, mas várias vezes voltava os

olhos para apreciar cada mudança de cores criada pelo reflexo do sol naquelas

águas tranquilas.

Havia gente por todos os lados. Gente de faces sorridentes e cabelos lisos

de um preto intenso. As garotas tinham cabelos longos caindo pelos ombros

descobertos. Um grupo de mulheres procurava corais, que seriam usados para

decorar os templos da vila ou suas próprias casas.

Cada família tinha seu próprio santuário rodeado por um muro de barro,

pois os balineses acreditavam que assim manteriam afastados os maus espíritos.

Na entrada, que era bem estreita, havia todo o tipo de oferendas, tanto para os

bons como para os maus espíritos. Acreditavam que, se deixassem ofertas para

os maus espíritos também, eles não perturbariam os ocupantes do santuário.

Flores, arroz, frutas e muitos outros produtos eram sempre vistos na entrada dos

templos.

— Selamat pagi!

Kara, ouvindo aquela saudação, voltou-se e, sorrindo com naturalidade,

respondeu:

— Selamat pagi!

O menino olhou surpreso; depois sorriu, mostrando dentes brancos e

perfeitos.

— Eu também falo inglês. Bom dia!

— Bom dia. Você pensou que eu não ia entender, não é?

Ele tinha mais ou menos quatorze anos, ótima aparência, e parecia estar

contente com sua sorte.


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Sabrina 132

— Nós aprendemos inglês na escola — ele respondeu, ignorando sua

pergunta. — Você está no hotel? — Gesticulou mostrando o edifício suntuoso do

Bali Praia Hotel.

— Sim.

— Você está passando férias aqui em Bali?

— Não deixa de ser umas férias — ela respondeu com precaução, pois não

queria dar motivos para novas perguntas, uma vez que não sabia qual seria a

reação daquele povo sobre o seu trabalho.

O rapaz parecia satisfeito com a resposta e em seguida disse em sua

própria língua, repetindo em inglês:

— Sava harus pergi sekarang. Eu preciso ir agora.

Ele acenou e se foi. Kara continuou observando um grupo de mulheres que

tomava banho em um piscina natural formada pelas rochas. Em seguida,

encontrou uma parte da praia totalmente deserta e, após explorá-la por algum

tempo, sentou-se sobre um barco tombado na areia, saboreando a paz e a beleza

tropical do cenário à sua volta.

Pegou uma daquelas estranhas bandejas feitas à mão, nas quais as

mulheres colocavam suas oferendas, e examinou-a com cuidado, tentando

descobrir como era feita. Havia destas pequenas bandejas em todos os lugares, e

sobre elas eram colocados os mais diversos alimentos. Nas estradas, nas

escadarias dos edifícios e em qualquer cruzamento havia um santuário, onde as

ofertas eram colocadas diariamente, para as divindades protegê-los de tudo. Kara

viu oferendas até nos gramados e nos telhados das casas. Depois de usadas, as

bandejas eram jogadas fora e substituídas por outras.

A que Kara tinha nas mãos devia ter vindo com a maré, e ela não podia

sequer avaliar o tempo que uma mulher gastava para tecê-la. Feitas com

folhagens verdes bem estreitas, elas eram tecidas a partir da intersecção dos fios

no centro e terminavam de uma maneira notável, com as pontas cortadas de

muitos jeitos para permitir um efeito decorativo.


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Sabrina 132

Kara parou para apanhar mais uma que estava molhada, mas sem nenhum

dano. Era um tipo de leque, com pequenos anéis em toda a volta.

— É maravilhoso! Como será que eles fazem isto? — exclamou em voz alta.

De repente parou, encabulada, pois havia um homem que caminhava pela praia,

perto o suficiente para ouvi-la. Pela sua aparência, deduziu que fosse inglês, e

rapidamente disse: — Estava falando sozinha... — Ficou calada novamente,

envergonhada de sua atitude tão infantil.

Ele sorriu e no mesmo instante Kara decidiu levar tudo na brincadeira. O

homem devia ter uns quarenta anos, olhos azuis e cabelos grisalhos.

— Falando sozinha, não é? Sempre faço isso, também. Creio que é pelo fato

de estar muito só. — Ele parou e começou a examiná-la com interesse. — Não

que você deva ter passado muito tempo sozinha... uma garota jovem e atraente

como você deve ser muito popular.

Ela não pôde deixar de ruborizar diante da referência à sua aparência. Que

tipo de homem será esse, pensou, para falar assim com uma estranha? Mas, nem

por isso deixou de apreciá-lo, e, quando ele perguntou se podia sentar-se ao seu

lado no barco, ela moveu-se para dar-lhe lugar. Conversaram sobre o nascer do

sol, as pessoas que se encontravam na praia, até que ele perguntou:

— Você está de férias aqui em Bali?

— Não, estou ajudando em uma pesquisa.

— Ah... o pessoal que está no Bali Praia?

— Você já nos conhece? — perguntou, surpresa.

— Visitantes novos se tornam logo conhecidos. De qualquer maneira, não

estou muito longe disso.

— Você mora aqui?

— Tenho um hotel. — Ele indicou, na praia, além do Bali Praia com seus

balcões e palmeiras que balançavam ao sabor da brisa da manhã. — O Kapalan.

Você provavelmente deve tê-lo notado, não?

— Claro. Ninguém poderia deixar de notá-lo enquanto passeia pela praia.

Parece muito atraente e aconchegante.


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Sabrina 132

Ele sorriu quando ela falou a última palavra.

— Tipicamente inglesa! Você prefere comodidade a concreto e vidro.

— O Bali Praia é muito bom.

— E muito caro também. Eu procuro servir aqueles cujas finanças são

mais limitadas.

— Eu não estaria aqui se não fosse pelo meu trabalho — ela respondeu e

ele concordou, entendendo sua posição.

— Gostaria que você nos visitasse uma tarde. Apesar da aparência

aconchegante, o Kapalan pode lhe proporcionar um jantar dançante excepcional.

— Gostaria muito de ir. Vou convidar os outros para irem comigo, mas não

posso prometer nada, pois temos muito trabalho.

Ele se levantou e ficou observando o hotel onde ela estava hospedada.

— Espero que você possa vir. — Ela sabia que ele estava somente sendo

educado, e que não ficaria desapontado se ela não fosse. — Meu nome é Carter,

Gareth Carter.

— O meu é Kara West.

— Prazer em conhecê-la, srta. West — disse ele, sorrindo. — A propósito,

você foi a primeira pessoa que não ficou curiosa a respeito do nome do hotel.

— Bom, acontece que eu sei que há uma árvore chamada "kapalan", usada

pelos nativos para fazer entalhes. Ouvi dizer que sua madeira é ótima.

— Então você já sabe de onde tirei o nome do meu hotel. E, falando em

árvores, sei uma história que poderá ajudá-la em seu trabalho, mas não tenho

tempo agora. Se você puder passar no Kapalan, terei prazer em contar-lhe.

— Farei o possível para ir. — Em seguida, de uma maneira delicada, ela

perguntou: — E poderei também encontrar sua esposa?

— Sou um solteirão convicto. As mulheres sempre me amedrontaram. Pelo

menos, quando se trata de um convívio permanente.

— Então você vive só?

— Somos dois no negócio. Meu sócio é viúvo. Sua esposa faleceu há mais

ou menos quatro anos. Ele não precisava se associar a mim, e na realidade nunca
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Sabrina 132

o considerei um sócio, mas foi quem financiou esse negócio. — Ele fez uma pausa

e Kara teve a impressão que o sócio dele não gostaria de ouvi-lo falar sobre sua

generosidade. — Ele pinta quadros muito bons. Você poderá ver alguns deles se

vier até o hotel.

Ele deu uma olhada no relógio e despediu-se com um rápido bom-dia.

Enquanto o observava afastar-se, Kara ficou imaginando que tipo de história ele

contaria, que pudesse ser útil ao seu trabalho.

Assim que chegou ao hotel, mencionou o fato a Hugh, que sugeriu no

mesmo instante que ela deveria ir ao Kapalan naquela tarde mesmo.

— Deve ser algo relacionado com uma árvore que caiu, uma árvore

sagrada. O efeito sobre os empregados nativos foi, para nós, surpreendente. Eu

ouvi algo de um de nossos garçons, mas quando tentei obter a história ele

simplesmente se recusou a falar a respeito. No entanto, ele deixou escapar que a

árvore caiu nos jardins do Hotel Kapalan.

— É provável que Gareth Carter queira me contar sobre isso, não é?

— Certo. Nós não podemos perder esta oportunidade, e, como não terei

tempo disponível nos próximos dez dias, seria bom se você fosse até lá hoje à

noite. — De repente Hugh parou de falar e sorriu para Kara. Ela notou a

admiração em seus olhos, mas se sentiu segura. Ele havia concluído que ela era

casada e, em vista disso, não se deixaria envolver. Talvez quando retornassem à

Inglaterra ele ia descobrir que ela era solteira, mas já não teria mais importância.

— Você deve aproveitar bem sua noite. Telefone para o sr. Gareth e avise-o de que

está indo. Tenho certeza de que ele vai providenciar um ótimo jantar e você vai

aprender mais do que imagina.

Ela concordou... Mal sabendo o que iria descobrir.

Kara escolheu um vestido longo de renda coral, debruado com fitas de

veludo bem estreitas. Seu cabelo estava sedoso como sempre e sua pele saudável

tinha um brilho especial. Um simples pingente de ouro em uma corrente delicada

combinando com os brincos e braceletes formavam um delicado conjunto. Uma


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Sabrina 132

capa de veludo marrom-escuro completava seu traje. Gareth emitiu um longo

assobio de admiração quando ela desceu do táxi na porta do hotel.

— Você está maravilhosa, vou apreciar cada momento que passarmos

juntos.

— Obrigada, sr. Carter. — Enquanto agradecia, olhava ao redor procurando

algum lugar para deixar sua capa.

— Pode deixá-la na chapelaria, logo após a recepção. E a propósito, meu

nome é Gareth.

— Então você deve me chamar de Kara.

— É um nome bonito. Muito original... — Ele se afastou um pouco,

enquanto ela se dirigia até o lugar indicado para deixar a capa. Depois de

pendurá-la, parou alguns instantes olhando-se no espelho. Charles... Ele era o

único homem cuja opinião importava. Sempre que a admiravam, sua mente trazia

imediatamente a imagem de Charles, e era a voz dele que ela queria ouvir. Sua

voz? Como seria agora? Era tão gentil, grave e sensual, e ao mesmo tempo tão

forte que podia — e sempre acontecia — fazê-la vibrar com um ardor

surpreendente.

Ela percebeu, com grande tristeza, que não podia mais lembrar-se da

tonalidade da voz dele. Com pesar, reconheceu que nos últimos anos sua

memória trabalhava constantemente invocando apenas imagens fragmentadas, e

ela já havia aceitado o fato que, com o tempo, tanto aquela voz tão querida como

seu rosto seriam totalmente apagados de sua memória.

Voltando-se, abriu a porta e sorriu, vendo que Gareth caminhava em sua

direção.

— Nós temos um pequeno canto reservado no terraço do restaurante. Você

gostaria de tomar um drinque antes?

Ela agradeceu e sentou-se no balcão pedindo um sherry seco. Em seguida

ele a conduziu ao terraço para uma mesa isolada, iluminada à luz de velas. O

mar estava calmo, as palmeiras movimentavam-se sob o céu enluarado,

acompanhando a brisa. É uma noite para jovens enamorados, ela pensou,


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Sabrina 132

desejando saber por que todos os seus desejos e anseios estavam constantemente

com Charles. Tão logo os garçons começaram a servir, Gareth iniciou o relato:

— A história começa realmente muito antes do episódio da árvore que caiu

num período em que eu estava sem sorte. Nesta parte tenho que me aprofundar:

quando eu estava pronto para desistir desta ilha maravilhosa e voltar para a

Inglaterra, um homem apareceu em minha vida, um homem que queria fixar

residência aqui na ilha. Nós nos encontramos por acaso, numa mesa de um café

onde estávamos tentando afogar nossas mágoas. Começamos a conversar e

descobri que ele queria comprar um terreno para construir uma casa. Este

homem estava no Bali Praia e prometi que, se soubesse de algo, entraria em

contato imediatamente. Ele queria um terreno na praia, aqui em Sanur, e você

pode entender a razão de sua preferência, naturalmente... — Dizendo isso, ele

indicou o cenário maravilhoso que viam dali.

Kara concordou e, durante alguns momentos, eles aproveitaram aquela

quietude, enquanto saboreavam o jantar. Quando ele finalmente acabou sua

narrativa, Kara soube que, por um golpe de sorte, Gareth descobrira aquele

terreno onde estava o Kapalan.

Mas você disse que esse homem queria um terreno para construir uma

casa própria.

— Sim, queria. Mas, quando lhe contei meus problemas, ele resolveu me

ajudar. Sentiu que eu estava sendo sincero e concordou com a ideia de construir

um hotel onde eu seria o gerente. Bem, fiquei surpreso com sua generosidade,

como você pode imaginar. Mais tarde, ele me transformou em seu sócio e

construiu uma casa magnífica do outro lado do terreno, numa área totalmente

isolada, que termina na praia. Talvez você tenha visto uma ponte além da entrada

do hotel?

— Sim, vi. Fiquei imaginando de quem seria a casa atrás destas lindas

árvores e arbustos. Os proprietários devem ser as pessoas mais felizes do mundo!

— Ela parou, quando notou a expressão sombria de Gareth.


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Sabrina 132

— Ele não é de modo algum um homem feliz, Kara. Não me pergunte nada

sobre ele, pois não sei. Entretanto, construímos o hotel. Então, nossos problemas

começaram. Queríamos inaugurar assim que ficou tudo pronto, para começar a

receber os hóspedes, como era esperado.

— Claro.

— Bem, não foi tão simples por causa das más superstições e crenças do

povo balinês, do qual dependíamos para quase todo o trabalho interno. Os

empregados disseram que não podiam trabalhar e que não devíamos abrir as

portas sem esperar por um dia propício.

— E você esperou?

— Claro! Nenhum deles, homem ou mulher, começaria a trabalhar até que

os espíritos dessem um sinal, indicando o dia.

Kara estava atônita. Ela já havia se surpreendido com os costumes do povo

da ilha, sabendo que mantinham rituais religiosos milenares, mas até agora

nunca tinha ouvido nada parecido.

— Como os espíritos dariam o sinal que eles estavam esperando? — Kara

quis saber, porém Gareth apenas balançou a cabeça, pois ele mesmo não sabia.

— A equipe não estava sendo paga?

— Não, mas isto não os preocupava em nada, considerando quanto os

espíritos ficariam ofendidos.

— Então a situação se prolongou sem previsões de solução?

— Por um tempo incrível. Eu estava quase tendo uma crise, não me

importo de admitir. Entretanto, vivo nestas ilhas há alguns anos e sei como é: se

a equipe do hotel tinha decidido que seria assim, então eu teria de esperar.

— E o que aconteceu, afinal? — Kara estava muito interessada, porque

tudo aquilo era uma excelente iniciação às crenças do povo balinês, e havia muito

mais. Gareth não havia mencionado ainda a história da árvore.

— Entrei em contato com um amigo, um artista que morava aqui naquela

época, casado com uma nativa. Ele me disse para procurar um sacerdote. Isto foi

o começo. — Um sorriso de satisfação repousava em seus lábios. — Vários


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Sabrina 132

sacerdotes chegaram e foram a todos os quartos do hotel, esborrifando água.

Aquele era o dia propício pelo qual todos nós havíamos esperado tanto. O hotel foi

declarado inaugurado, finalmente.

— E se você tivesse insistido em abrir na data que queria...

— Nós não teríamos empregados, nem poderíamos conseguir. Não, Kara,

quando você vive em Bali, tem que se conformar com esta fé fantástica que eles

têm no poder dos bons e maus espíritos. Para todo lugar que você olha, vê

oferendas. Eu mesmo não saio com meu carro sem levar flores, que algum dos

meus empregados prepara para mim todos os dias.

Kara concordou; ela sabia que todos os carros levavam ofertas para os

espíritos. O motorista estaria, desta maneira, a salvo naquele dia.

— Há algo extraordinariamente interessante na maneira como estas

pessoas conduzem suas vidas. Elas realmente acreditam nos espíritos e deuses;

elas têm alguma coisa a que se apegar. — Sua voz estava baixa e um pouco triste.

A presença de Charles continuava nítida em sua mente e por um momento

pensou: "Eu não tenho nada a que me apegar, nem nada que me traga satisfação

e contentamento como os balineses obtêm de sua crença".

— Havia três árvores aqui em Bali. Uma era kapuh. Foi essa a árvore que

caiu. A tristeza dos empregados nativos foi quase inacreditável. Eles acreditavam

que fora obra dos maus espíritos e não havia maneira de se saber como os bons

espíritos reagiriam à perda da árvore sagrada. Outra vez fui obrigado a chamar

um sacerdote, e no final vieram sete. Realizaram rituais no jardim e em seguida

os nativos se acomodaram.

— Que fascinante! Meu patrão vai ficar encantado com tudo o que você me

contou esta noite. — Kara pegou o copo e começou a beber o vinho. — O que seu

sócio acha disso tudo?

— Ele não é um homem muito comunicativo. Está constantemente

sombrio, com uma máscara enigmática nas feições. Ele me parece auto-suficiente

em sua solidão, nunca procurando por companhia. Algumas vezes ele vem

jantar aqui, porém tenho que providenciar aquela mesa lá atrás. — Ele indicou o
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Sabrina 132

lugar, mas Kara só pôde ver algumas plantas. — Atrás das plantas. Ele faz as

refeições e lê os jornais. Quando penso nisso, fico imaginando se realmente

chegamos a conversar no dia em que nos conhecemos no bar. — Ele fez uma

pausa, tentando se lembrar da pergunta que Kara havia feito. — Ah, sim, você

estava querendo saber o que ele achou de toda a emoção que envolveu a queda da

árvore. Bem, ele aceitou tudo filosoficamente, afirmando que, se alguém decide

viver aqui em Bali, tem que respeitar o modo de vida dos nativos e viver conforme

as regras.

— Ele me parece um homem muito tolerante. Você falou que ele é solteiro?

— Não, é viúvo. Eu só disse que ele morava sozinho.

— Sim, me lembro agora. Ele é inglês, como você?

— Sim, mas viveu muito tempo no Oriente, em Cingapura, eu creio. Ele me

disse algo referente ao lugar uma vez. Perdeu a esposa há mais ou menos quatro

anos; foi muito triste, pois ela era muito jovem. Talvez esta perda o tenha

transformado no que ele é... — Gareth parou de repente, observando a expressão

de Kara.

— Algum problema? Você está tão pálida...

Ela engoliu a comida com dificuldade, consciente de que seu coração batia

de uma maneira selvagem. Precisou de alguns instantes para formular a

pergunta que tinha em mente:

— Este homem, seu sócio, qual é o nome dele?

— Seu nome? É Charles Millard, por quê? — Kara nem ouviu, pois sua

atenção se voltou para o homem que entrava naquele instante no restaurante. —

Ele está chegando. Preciso providenciar para que seja preparada sua mesa

preferida.

— Aqui, agora... — Kara virou-se rapidamente, derrubando a faca com seu

gesto. O barulho fez com que todos os olhares se voltassem para a sua mesa,

enquanto ela continuava observando o homem que fora tirado tão tragicamente

de sua vida oito anos atrás.


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Sabrina 132

Capítulo III

Para Kara, pareceu uma eternidade o tempo que eles ficaram olhando um

para o outro, em completo silêncio, os dois despercebidos das outras pessoas ao

redor. Ela deu um suspiro profundo quando encontrou seus olhos, e ao mesmo

tempo se surpreendeu pensando que, se Gareth não tivesse dito que aquele

homem era Charles, ela não o teria reconhecido. Havia uma semelhança, mas

aquele homem parecia tão mais velho, e não havia gentileza em suas feições, nem

piedade em seus olhos ou ternura em sua boca. Finalmente foi ela quem quebrou

o silêncio, dizendo a primeira palavra:

— Charles... — Mas foi tão baixo que Gareth, do outro lado da mesa, não

ouviu e os apresentou. Mas acrescentou com um olhar curioso:

— Vocês já se conhecem, ou estou errado?

Após uma pequena hesitação, Charles disse em tom de voz baixo e

irreconhecível:

— Nós nos conhecemos alguns anos atrás.

Conhecidos... Kara olhou fixamente para ele sem poder acreditar, tentando

achar uma razão para aquela mudança tão drástica na aparência e na atitude

dele.

— Posso perguntar se você pretende ficar para jantar? — Gareth falou

rapidamente, percebendo que várias pessoas chegavam ao restaurante e o novo

garçom poderia levar alguém à mesa preferida de Charles.

— Essa era a minha intenção.

— Então, vou providenciar para que sua mesa esteja preparada. — E, sem

esperar qualquer resposta, Gareth se retirou.

— Você está totalmente surpresa, não é, Kara? — Sua voz soou

acompanhada por um sorriso de desdém e seus lábios finos e cruéis curvaram-se

com desprezo. — Também fiquei. Você está aqui em férias?

— Mais ou menos. — Duas simples palavras, mas com que dificuldade ela

conseguiu dizê-las!
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Sabrina 132

O seu encontro com Charles, esperado há tanto tempo, tinha, na

imaginação de Kara, que ser absolutamente glorioso. Seria o retorno de seu

coração à vida, pois ele pertencia a Charles. Mas agora... Ela sabia que estariam

diferentes na aparência, afinal ambos estavam mais velhos, mas nunca poderia

imaginar uma mudança tão profunda. Parecia impossível que aquele homem à

sua frente, um estranho, magro e com roupas malcuidadas jogadas sobre o corpo

em completo desalinho, fosse o seu querido Charles. O que teria acontecido com

ele? Ela não teria escolhido aquele homem sequer para ser um amigo, quanto

mais para dedicar tanto amor e esperar tornar-se sua esposa.

— Mais ou menos? — Ela ouviu muito longe a repetição de suas palavras.

— Você está aqui com seu... marido?

A última palavra foi dita com tanto ódio que ela abriu a boca para

perguntar o que ele queria saber, mas fechou-a novamente, amedrontada pela

expressão quase selvagem na face do homem que ela amara por tanto tempo, o

homem a quem ela tinha mantido lealdade, sobre uma promessa feita há oito

anos. Este pensamento sombrio e melancólico passou rapidamente por sua

mente enquanto ele esperava uma resposta, sem se mover. Kara tentou

desesperadamente pensar em algo para dizer, mas sua mente parecia bloqueada.

Então resolveu ignorar a pergunta e disse:

— Estou trabalhando em uma pesquisa.

— Que tipo de pesquisa? — Seus olhos se estreitaram, mostrando

desagrado.

Outra vez ela ficou em silêncio, consciente das lágrimas salgadas que não

podia mais conter. Tentou desesperadamente entender o porquê daquela reação e

achar as respostas adequadas para ele. Mas, ao invés disso, só pôde sentir a

tristeza que invadia seu coração e a certeza de que nunca mais encontraria seu

amado Charles.

— Estou trabalhando com o sr. Nowell. — Ela parou e, desta vez, por causa

do olhar frio que parecia atravessá-la, estremeceu e tentou encontrar um pequeno

traço, naquele rosto estranho, que pudesse lembrar a ternura e o carinho que
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Sabrina 132

Charles sempre tivera e que muitas vezes a fizera pensar como tinha tido sorte

em ter sido escolhida por um homem como ele.

— Você está trabalhando com o quê? — O som cortante daquela voz

bloqueou os pensamentos de Kara.

— O sr. Nowell e sua esposa vieram a Bali para estudar a cultura do povo.

Ele pretende escrever um livro a respeito.

— Outro grupo de intrometidos querendo trazer inovações! Diga a ele para

ir embora e deixar o povo da ilha em paz! — Era uma voz selvagem, e suas mãos

apertavam o encosto da cadeira ao lado como se quisesse destruí-la.

Kara estremeceu; uma parte dela queria fugir daquele estranho, enquanto a

outra desejava ficar para fazer todas as perguntas que estavam em sua mente.

Queria dizer, gentilmente, que não deveriam estar se tratando como estranhos, e

sim como amigos. A conclusão de Gareth de que a morte da esposa o havia

transformado em um solitário parecia exata agora. Charles teria se apaixonado

pela garota com quem se casara, como sir Sullivan havia comentado, mas, mesmo

com a morte da esposa, Kara não podia entender por que aquela trágica mudança

em seu caráter. Outra coisa que a estava incomodando era por que ele perguntara

sobre o marido. Ela disse devagar e gentilmente:

— Você mencionou um marido?

— Seu marido! Perguntei se você está aqui com ele, mas não tem im

portância.

Ele fitava Kara de uma maneira diabólica, e quando ela fixou seus olhos

nele, espantou-se com a amargura que havia em seu olhar.

— Eu disse a Gareth que ficaria para o jantar. Quando ele voltar, por favor,

diga-lhe que mudei de ideia. — Os olhos escuros de Charles fixaram-se na figura

adorável de Kara, percorrendo-a da cabeça aos pés, e em seguida, com uma voz

tão dura e seca que a fez empalidecer, disse:

— Espero que tenha uma boa-noite, sra. West.

Pálida e trêmula, Kara observou sua partida. Sra. West...


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Em apenas alguns segundos ela adivinhou o que tinha acontecido. Charles

voltara para a Inglaterra depois que Tracy morreu e, por alguma razão, acreditou

que Kara estivesse casada, por causa da mudança do nome.

— Ele não deve ter recebido as minhas cartas — ela murmurou. Kara

tentou tirar da mente a ideia de que Tracy havia destruído as cartas. — Bem,

creio que é compreensível — ela continuou falando consigo mesma. — Ela por

certo ficou com medo que, a partir de uma simples troca de cartas, pudéssemos

nos encontrar, apesar da grande distância entre Charles e eu. Talvez tivesse medo

de perdê-lo, uma vez que não havia nada para mantê-los juntos depois da morte

do bebê. Mais tarde, Tracy perderia seu medo, uma vez que sabia do amor do

marido, mas seria muito tarde para entregar as cartas. De qualquer maneira, ela

deve ter destruído as duas assim que decidiu não entregá-las a Charles.

Como o engano a respeito de seu estado civil tenha vindo à tona, Kara não

podia imaginar, mas só podia ser por causa da mudança do seu nome. Se Tracy

havia destruído as cartas, Charles jamais poderia saber o que realmente tinha

acontecido, quando retornou à Inglaterra.

Ele deve ter ido ao meu antigo endereço, mas isto aconteceu há mais de

quatro anos...

Kara tentava imaginar como Charles chegara à conclusão de que ela estava

casada. Lembrou-se então de que, numa das visitas feitas a velhos conhecidos

em sua cidade, todos perguntaram se ela se casara. Ela explicou a razão do novo

sobrenome, mas sabendo como a verdade podia ser alterada, principalmente no

tipo de lugar onde vivera, imaginou que ali estava a razão do engano.

Era só levantar-se e ir atrás de Charles para explicar... mas será que era

isso o que ela queria?

Esta pergunta surpreendeu Kara, enquanto procurava uma desculpa para

a sua atitude. Charles, como estava agora, não apresentava a mínima

semelhança com o homem que ela tinha amado no passado, o homem por quem

esperara tanto tempo. Analisando a situação, percebeu que Charles, tendo se

apaixonado pela esposa, deve ter se sentido desorientado e tinha ido atrás de
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Sabrina 132

Kara em busca de amizade, apenas. Naturalmente ia explicar que não queria

mais se casar com ela.

Então, quando estava mais precisando da ajuda de Kara, descobriu que ela

estava casada. Deve ter sido um choque violento para ele e esta era a razão de

estar tão furioso. Afinal, seu casamento era a prova de que ela não cumprira com

a promessa feita. Ele deve ter voltado para Cingapura e mais tarde procurado

outro lugar para viver, onde as recordações não o fizessem sofrer.

E ali estava ele, vivendo quase como um eremita... Como se deixara abater!

Ele sempre fora impecável na maneira de se vestir, com termos alinhados e

camisas imaculadas. Seus cabelos sempre em ordem, e os sapatos polidos. Mas

agora... Cabelos compridos e despenteados, roupas folgadas e amassadas,

sapatos malcuidados. Será que ele não tem empregados, ela pensou com

ressentimento, e no mesmo instante sentiu raiva daqueles que o serviam. Por

que, se ele tinha uma governanta, ela não cuidava dele?

Gareth voltava procurando por Charles. Kara surpreendeu-se com a calma

com que ele recebeu a notícia de que Charles mudara de ideia.

— Muito típico dele. Algumas vezes me pergunto por que ele não se cuida

melhor. Mas venha, vamos terminar nosso jantar. Você poderá me contar como se

conheceram.

Uma hora mais tarde, Kara já estava em seu quarto no hotel, olhando pelo

balcão, com os olhos perdidos no oceano. A luz refletia-se nas ondas calmas e a

brisa suave soprava as águas pacíficas do oceano Índico. Tudo parecia igual aos

outros dias, quando ela vinha ao balcão antes de se deitar. Tudo continuaria igual

se não fosse o desespero no seu coração. Ela estava diferente. Ter encontrado

Charles perturbava sua paz interior. Era tudo tão surpreendente! Será que fora o

acaso que a trouxera àquela ilha encantada?

Tantas perguntas se misturavam em sua mente, e a mais importante era se

devia ou não dizer a Charles que ela jamais quebrara sua promessa, que ela não

estava casada. Se ela contasse, será que ele tentaria recomeçar do ponto onde
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Sabrina 132

haviam parado? Kara balançou a cabeça com tristeza. Nenhum dos dois tinha

desejo de recomeçar. Quatro anos de separação foram horríveis quando ela

esperava que seriam apenas dois. Oito anos era muito tempo. Charles, da

maneira que estava agora, jamais poderia ser seu marido. Não era mais o amante

gentil e amoroso que teria sido naquele tempo.

— E mesmo assim... eu senti aquele calor cheio de saudade, quando o

encontrei nesta noite. Por que devo sentir isso se não o amo mais? — ela

murmurou, tentando entender suas emoções.

Voltou-se com impaciência, dizendo a si mesma que algum tipo de reação

era inevitável. Não havia nenhum desejo agora. Na verdade ela preferia nunca

mais encontrá-lo. Um suspiro escapou de seus lábios enquanto tentava analisar

seus sentimentos e emoções diante da situação atual.

Kara se culpava, pois o intenso amor que sentia por Charles havia se

enfraquecido nos últimos anos, principalmente depois que ela se convenceu de

que ele não a queria mais. Amor não correspondido acaba naturalmente,

costuma-se dizer, e o deles certamente já estava morto. Será mesmo? Não quis

imaginar o que aconteceria se ela lhe contasse a verdade. Talvez ele a quisesse.

Balançou a cabeça, tentando fazer parar a torrente de pensamentos que se

confundiam em sua mente. Charles amara Tracy; ela já aceitara este fato e,

portanto, não havia esperanças para eles agora.

— De qualquer maneira, não o quero mais. Ele não é o homem que amei,

não o meu querido Charles... — Kara repetia para si mesma enquanto lágrimas,

por muito tempo retidas, corriam livremente agora. Kara passou a mão no rosto

num gesto nervoso, envergonhada de sua fraqueza.

Ela estava mais calma agora. Havia se decidido e o caos em sua mente

dissipou-se.

Pretendia deixar Charles acreditando que estava casada. Era a única

maneira de mantê-lo afastado. Um clarão súbito atraiu sua atenção. Era um

pescador que iniciava sua jornada na busca de camarões e lagostas e sua figura

escura contrastava com o brilho da lua. Era uma cena solitária e reconfortante.
35
Sabrina 132

Quando Kara se voltou para entrar, descobriu que estava tranquila, algo

impossível de se imaginar há uma hora atrás.

Na manhã seguinte, às cinco horas, Kara já estava na praia. Desta vez sem

a máquina fotográfica. Queria passear livremente, sem nada para carregar.

O mar estava calmo e a maré baixa deixava corais e conchas por toda a orla

da praia. As mulheres recolhiam as peças mais bonitas para decorar os templos e

santuários. A cena era típica: mulheres se banhando nuas da cintura para cima;

cachorros bem alimentados correndo alegremente junto com as crianças; sorrisos

em toda a parte... tudo isso fazia parte daquele espetáculo matutino.

De repente, viu uma figura alta que se aproximava com passos largos pela

areia. Charles! Toda a segurança de Kara desapareceu no momento em que o viu.

Ela ficou nervosa. Eles eram estranhos agora! Não havia razão para sentir aquele

estremecimento e toda a emoção que ameaçava sua paz interior.

Kara olhava fixamente para Charles sem notar os pescadores que saíam ao

mar ou as mulheres com seus cabelos longos se movimentando na orla da praia.

Só uma pessoa importava... só uma! Charles. Kara percebeu então que o tempo

não havia diminuído a força e o magnetismo dele. Parecia que havia aumentado,

agora que eles estavam irremediavelmente separados.

Ele a viu finalmente e seus olhos se estreitaram, sombrios. Como estivera

caminhando com a cabeça baixa, não tinha notado sua presença e percebia-se

que estava longe dali. Kara notou então sua jaqueta amassada, seus olhos

cansados e sentiu que tudo perdia a importância. Ela só pôde perceber uma

coisa: Charles precisava de alguém para cuidar dele. Naquele instante, sentiu-se

muitos anos mais velha do que ele.

Um sentimento novo, de compaixão, tomou conta de seu coração. Quando

ele finalmente parou ao seu lado, falou gentilmente:

— Bom dia, Charles. Não é um amanhecer maravilhoso? — Um sorriso

trêmulo apareceu em seus lábios. Os olhos de Charles estavam fixos em sua

boca. Não houve resposta, no entanto ela continuou: — Você sempre vem aqui
36
Sabrina 132

para observar o sol nascer? Claro, é muito natural que venha, já que mora aqui.

Senti que viria...

Ela estendeu a mão para completar suas palavras, mas ele não se voltou

para ver o espetáculo impressionante dos raios dourados refletidos na água. O sol

estava colorindo o mar e o céu com reflexos de muitas tonalidades.

— É de perder a respiração! — ela exclamou, falando mais para si mesma

do que para ele. — Como devem ser felizes as pessoas que podem viver aqui para

sempre. — Parou, perplexa com suas próprias palavras.

Charles estava tenso e no seu rosto havia uma expressão de ódio.

— Estou contente que você pense assim — disse ele secamente.

— Sinto muito... — Os pensamentos de Kara voavam em todas as direções e

havia só uma coisa que ela queria saber. — Charles, você poderia me responder

uma coisa?

A expressão dele mudou. Ele estava interessado no que ela tinha para dizer.

— Bem...

— Tracy... Você, no final, se apaixonou por ela?

Um estranho silêncio os envolveu. Kara teve a impressão de que Charles

estava se esforçando para descobrir a razão de tal pergunta. Ele parecia sentir

que ela tinha uma decisão vital a tomar. Kara, por sua vez, tentou captar algum

sentimento em seu semblante, mas falhou. Quando ele respondeu, a decisão de

Kara já estava definida:

— Sim, eu a amava! Eu adorava Tracy! Ela merecia todo o amor que um

homem podia lhe dar... — Ele se voltou repentinamente e Kara ficou preocupada

com a ideia de que ele estivesse chorando e arrependeu-se de ter mencionado o

assunto.

— Sinto muito... — Como eram inadequadas tais palavras quando Charles

estava tão angustiado. Ela tinha feito a pergunta com um propósito: se ele tivesse

afirmado que nunca amara Tracy, contaria que não era casada. Diria que nunca

pensara em se casar com outro homem em todos aqueles anos. Talvez Charles
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Sabrina 132

quisesse a sua amizade. Quem sabe isso o levaria a cuidar-se melhor. Mais tarde,

então, poderiam recomeçar...

Tantas conjecturas e incertezas. Não era como se ela realmente quisesse

casar-se com ele. Ele teria que mudar muito antes que Kara voltasse a considerá-

lo como seu futuro marido. Entretanto, todos estes pensamentos não significavam

nada, uma vez que Charles admitiu seu amor pela esposa. Sendo assim, Kara

estava decidida a não considerar sequer a possibilidade de uma simples amizade

entre eles.

Quando ele finalmente falou, tanto sua voz como seu rosto estavam

indecifráveis.

— Quanto tempo você vai ficar na ilha?

— Mais ou menos três meses.

— Você não se importa de deixar seu marido sozinho por tanto tempo?

Ela ficou confusa e o sangue coloriu suas faces em vista das mentiras que

teria que contar.

— Eu tinha a oportunidade de conhecer Bali e... e ele não quis atrapalhar.

— Perguntei sobre você, e não sobre ele. — Embora sua voz estivesse fria e

seca, havia um certo interesse na pergunta. — Você não se importa com esta

separação?

Ela passou a língua nos lábios. Nunca imaginou que fosse capaz de

inventar um marido imaginário, e ainda mais falar sobre ele para Charles.

— Não era o ideal para nós, mas decidimos que era uma chance boa

demais para ser desperdiçada.

— Um casal moderno, suponho. — Ele virou-se e ficou olhando fixamente

para o mar.

Kara sentiu que ele estava ausente, voltado para seus próprios

pensamentos, provavelmente para a esposa que tanto tinha amado.

O silêncio se prolongou; Kara se sentia uma intrusa e procurava uma

desculpa para deixá-lo. Mas, de alguma maneira, sentiu-se incapaz de quebrar o

silêncio e não se moveu. Ela estava consciente do movimento em volta deles e


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Sabrina 132

também da falta de curiosidade por parte dos nativos que passavam por ali.

Como era natural tudo aquilo!

Os nativos sempre aproveitavam o que a terra e o mar lhes fornecia. Kara

tinha ouvido que, por causa das superstições, o povo tinha medo do mar. Eles

acreditavam que os espíritos maus habitavam os lugares profundos e escuros.

Mas este sentimento não devia ser muito forte agora, pois os balineses usavam o

que o mar e a praia lhes ofereciam.

Charles se moveu para observar algumas mulheres que vinham da praia.

Seus sarongs coloridos, os pés descalços e a inevitável cesta carregada de flores

na cabeça chamavam atenção. Kara teve a impressão de que as cestas eram

pesadas, embora as mulheres caminhassem com desenvoltura, sorrindo e

conversando entre si.

Uma garota bem jovem se aproximou e com um sorriso simpático

cumprimentou Charles:

— Selamat pagi!

Fascinada, Kara observou a reação de Charles. Para sua surpresa, ele

sorriu, e seu coração deu um salto, parecendo por um momento que o ar lhe

faltava. Aquele sorriso era o mesmo que ela amara com loucura no passado.

— Selamat pagi! — ele respondeu. —Apa kabar?

— Bagus!

Outro sorriso e a garota se foi. Kara já entendia muitas sentenças, pois o

dialeto nativo não era difícil. Após a saudação de bom-dia, Charles perguntara

como ela estava e a resposta da moça foi: "Bem!"

Outra vez ficaram em silêncio. Ela achava muito estranho que Charles

ainda permanecesse ali. Ele não estava interessado em sua pessoa, então por que

ficava ali desperdiçando o tempo dos dois? Finalmente Kara quebrou o silêncio,

dizendo gentilmente:

— Como você passa seus dias, Charles? Gareth me disse que você tem uma

casa aqui em Sanur e que pinta quadros. Este passatempo ocupa todas as suas

horas?
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Sabrina 132

Charles voltou-se e fixou aqueles olhos negros impenetráveis em Kara.

— A maneira como passo minhas horas não interessa nem a você nem a

ninguém! — ele respondeu friamente.

O sorriso de Kara apagou-se imediatamente.

— Devo voltar ao hotel. Nós começamos a trabalhar muito cedo — ela falou,

tentando fazer com que sua voz não saísse trêmula.

— Então é melhor você se apressar — foi tudo o que ele disse, depois de um

momento de hesitação.

Ao chegar ao estúdio, tão logo se encontrou com Hugh, Kara lhe disse:

— Posso lhe pedir que a partir de agora passe a me chamar de sra. West, ao

invés de senhorita, como tem me chamado?

Ele levantou os olhos, com uma expressão de espanto.

— Por que esta súbita mudança? — Ele aguardava nervosamente por uma

resposta, enquanto batia com o lápis na mesa.

— Bem, como você já havia desconfiado que eu era casada, parece-me

tolice continuar com pretextos.

— Seu patrão sabe que você é casada?

Ela balançou a cabeça, mas não negativamente, apenas para demonstrar

sua impaciência.

— Hugh, eu não quero falar sobre minha vida particular, e, além do mais,

isso não importa a ninguém. Logo que retornarmos à Inglaterra, provavelmente

não nos veremos mais. Então, por favor, não me faça perguntas, só me chame de

sra. West.

Ele balançou os ombros. Estava mais interessado no trabalho do que nos

problemas particulares das pessoas de sua equipe.

— Tudo bem, farei isso, só acho que para os outros tal mudança será muito

estranha.

— Acredito que sim, porém deixarei a seu encargo fazer com que as Pessoas

não me perguntem por coisas que não tenho intenções de responder.


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Sabrina 132

— Farei o que puder. Felizmente você não fez amizade com ninguém. É

provável que ninguém dê grande atenção ao assunto.

O caso tinha terminado ali. Pareceu a Kara, pois Hugh dera um jeito de

transmitir seu pedido ao pessoal, sem grandes complicações. Ninguém fizera

perguntas ou comentários. E a partir de então, Kara passou a ser chamada de

sra. West. Isso queria dizer que, se alguém eventualmente se dirigisse a ela, na

presença de Charles, ela passaria realmente por uma mulher casada.

Ela não esperava rever Charles e muito menos manter um relacionamento

com seus companheiros de trabalho. Desse modo se sentiria mais segura.

No dia seguinte Hugh avisou Kara de que ela estaria livre durante a tarde.

— Acho que devo dar uma folga a vocês. Jack e Nora, ontem, estavam

reclamando do jeito que estamos trabalhando, porque eles vão voltar à Inglaterra

sem ter ido à praia para um bom mergulho. Quando me entusiasmo com o

trabalho, esqueço-me dos desejos dos meus assistentes — disse ele, sorrindo.

— Todos nós estamos entusiasmados. Entretanto, devo admitir que às

vezes gostaria de ter tempo para fazer o que quero.

— E o que você pretende fazer esta tarde? — ele perguntou, curioso.

— Irei visitar o mercado em Denpasar. — Por alguns momentos ela parou e

pensou. — Vai levar mais de três horas, talvez seja melhor deixar para uma outra

oportunidade.

— Você tem toda a tarde ao seu dispor. Porém, lembre-se de que temos de ir

ao baile hoje à noite. É muito importante. Quero que você assista e depois me dê

sua impressão a respeito de tudo o que se passar.

Kara concordou. Era o baile da Dança de Barong e, como sempre,

relacionava-se com os deuses. A dança representava a eterna briga entre o bem e

o mal. O bem era representado por Barong, uma criatura fantástica, com olhos

salientes, dentes enormes e uma vasta cabeleira que chegava ao chão. Era, para

os balineses, o símbolo da virtude, e na dança ele representava o protetor dos

homens. Quem representava o mal era a figura de Rangda, de cuja boca pendia
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Sabrina 132

uma língua flamejante, significando que ela consumia fogo-. Um colar de vísceras

humanas rodeava seu pescoço e se assentava sobre seu peito enorme.

Imagens e quadros dos dois deuses estavam em todos os lugares. Ambos

eram respeitados e admirados pelos balineses, por causa de suas crenças em

bruxaria e magia negra. Eles faziam muitas ofertas aos espíritos antes de cada

dança, para proteger os dançarinos de qualquer dano.

— Eu não vou me atrasar — prometeu Kara para Hugh. — Muito obrigada

pela tarde livre.

— Não há de quê. Talvez você. traga informações que serão úteis ao nosso

trabalho.

Ela não disse nada, pois pretendia aproveitar ao máximo a sua tarde livre.

Queria visitar o mercado, onde todos os produtos eram vendidos apenas por

mulheres. As passagens entre as barracas não eram pavimentadas e, como havia

água na maioria delas, Kara ficou contente por estar com uma roupa simples e

principalmente pelos sapatos confortáveis. Observou tudo com cuidado. Como

sempre, não havia curiosidade nos olhos daquelas mulheres, que ofereciam seus

produtos. Viviam calmas e felizes apesar de tão pobres...

Os pensamentos de Kara foram interrompidos por uma voz infantil.

Próxima dela estava uma criança adorável, para quem ela não pôde deixar de

sorrir.

— Eu carrego para você — a menina disse num inglês muito bom, com as

mãos estendidas para o grande pacote que Kara carregava. Em seguida a criança

indicou a tira almofadada em sua cabeça. — Posso carregar para você? — A voz

era tão natural e de um tom musical e encantador, que Kara estava quase

entregando o pacote. — Posso carregar?

Os repetidos apelos com voz suave fizeram com que Kara sorrisse. Ela

meneou a cabeça, simplesmente para ouvir mais uma vez aquela voz tão musical.

A criança aparentava uns oito anos de idade, e já ficava no mercado, onde tentava

ganhar uns trocados dos raros turistas que ali passavam. E aquela era uma
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Sabrina 132

oportunidade que ela não poderia perder, uma vez que havia poucos turistas em

Bali. Então outra vez o pedido, e Kara lhe entregou o pacote.

Imediatamente a garota o ajeitou sobre a cabeça. Em seguida caminharam

juntas por todo o mercado. Kara estava maravilhada com aquela menina graciosa

que mais parecia uma princesa do que uma menina comum. E pelo brilho de

seus olhos e pelo seu andar dançante percebia-se o quanto estava feliz. As

mulheres do mercado olhavam e sorriam para as duas, ao passo que as outras

crianças olhavam com inveja. Kara comprou outras coisas, mas, como eram

pesadas, não deixou que a menina carregasse.

— Eu levo para você...

— Não, estas coisas são muito pesadas! Não pode levá-las sozinha. — Kara,

no entanto, sabia que a menina podia, pois estava acostumada àquilo. Quando

terminou as compras, Kara pagou a criança, agradeceu e pegou de volta seu

pacote.

Logo a menina desapareceu no meio do mercado, porém, no mesmo

instante, apareceram outras crianças e se aproximaram de Kara. Ela sorriu,

dividiu todos os trocados que tinha entre elas, e rapidamente saiu dali.

— Então, divertiu-se bastante? — Hugh perguntou assim que ela chegou ao

hotel.

— Passei uma tarde maravilhosa! — ela respondeu, pensando no passeio

que fizera até o mercado. — O povo daqui é maravilhoso. Eu poderia viver nesta

ilha para sempre.

Capítulo IV

Tanta superstição, tanto medo das influências da magia negra!

Enquanto aguardava a Dança de Barong, Kara, sentada num banco

rústico, observava o movimento dos nativos. Meditava na maneira como os rituais

e festivais religiosos guiavam os balineses, desde o nascimento até a morte que os


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Sabrina 132

levava para o outro mundo. O calendário religioso era o padrão para todas as

suas atitudes, e esta fora a razão de esperarem o "dia propício", que tinha

frustrado Gareth, no seu desejo de inaugurar o hotel.

Muitos nativos estavam no templo, e ela encontrava sorrisos em todas as

direções que olhava. Jack e Nora estavam sentados na fileira da frente. Hugh

estava com um outro rapaz, membro do grupo, que também se chamava Hugh.

Para facilitar as coisas, esse último havia concordado em ser chamado de Hugo.

A maioria dos nativos estava em pé, na frente com as crianças, e as avós

atrás, cuidando dos bebês. De repente, a orquestra gamelan começou a tocar e a

dança iniciou-se com a entrada de Barong e seu amigo, o macaco. Kara, sentada

sozinha, pois ninguém ocupara o lugar ao seu lado, começou a se sentir

empolgada pelo mistério e magia daquela atmosfera.

A lua cheia era a única iluminação para a dança. As oferendas dispostas ao

redor da praça, as pessoas observando, fascinadas pelo espetáculo da batalha

entre Barong e Rangda, os sons estranhos e contínuos do gamelan, a sensação de

estar no meio de uma comunidade pagã... Tudo junto atraía Kara profundamente

para aquele lugar onde o frio não existia. Ela estava tão absorta no espetáculo,

que nem moveu a cabeça, quando alguém se sentou ao seu lado, com medo de
perder alguma coisa que estava acontecendo à sua frente.

Quando Barong estava mostrando suas garras para a gamelan, e ao mesmo

tempo balançando o rabo, Kara, esquecendo-se de que não sabia quem era a

pessoa ao seu lado, exclamou:

— A gente até esquece que esta criatura é irreal, não é? Espero que Hugh

consiga descrever em seu livro como é maravilhosa a coordenação destes dois

homens dentro da fantasia... — Sua voz foi se apagando num silêncio

embaraçoso. Todos os nervos de seu corpo estavam afetados pela presença do

homem ao seu lado. — Sinto muito... Eu... — Ela parou novamente e tentou

explicar: — Tinha esquecido que estava sozinha. Eu quis ficar só... — Uma vez

mais sua voz falhou, e Kara ficou contente com a pouca iluminação, pois sentia

as faces ardendo.
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Sabrina 132

Por que estava tão abalada com a presença de Charles? Afinal, esse não era

o homem que tanto amara! Ali estava um completo estranho, um homem

angustiado e de aspecto cruel, tão marcado pelo sofrimento em que vivia como

um eremita. E que apesar de tudo estava ali, naquela noite. Percebeu que Charles

devia estar se sentindo muito só para se aventurar pela vila e passar algumas

horas assistindo à dança.

— Por que você queria estar só? Tem alguma razão especial? — Perguntou

secamente.

— Não, não há razão alguma.

Charles não disse nada; ficou observando a praça. Um profundo silêncio se

seguiu após a Dança de Barong. Viu-se projetada a sombra das longas unhas da

terrível Rangda, por entre as portas do templo. Quase imediatamente sua figura

apareceu, com a língua flamejante e o repugnante colar de vísceras humanas. O

silêncio foi quebrado pelo bramido que saiu de sua boca enquanto, abrindo

caminho, iniciava sua perseguição a Barong, balançando um lenço branco de

onde provinha sua magia negra. Num violento choque de bruxaria, eles colidiram

e outra vez um silêncio profundo caiu sobre os espectadores fascinados. Sua

proteção residia no poder de Barong. Só ele podia proteger a comunidade da

influência maligna de Rangda.

— É... Inacreditável! — As palavras saíram automaticamente dos lábios de

Kara. Não houve resposta do homem sério e carrancudo que estava ao seu lado.

Sim, era inacreditável que aquele povo achasse que uma boa ou má sorte

estava sujeita à vitória de Barong sobre Rangda. Eles já haviam testemunhado

aquela dança muitas vezes; eles sabiam que Barong prevaleceria sobre Rangda;

mas assim mesmo esperavam, sérios e com ansiedade nos olhos, pelo final da

batalha. Dançarinos típicos apareceram em cena, para ajudar Barong quando

sua chance de vitória parecia ameaçada. Rangda foi violentamente atacada, mas

era tão grande o seu poder de transtorná-los, que acabaram dirigindo o ataque a

si próprios. Eles começaram a lançar as lâminas de suas facas em seus próprios

corpos.
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Barong, entretanto, usou seu poder superior; as peles dos dançarinos

foram fortalecidas e eles não conseguiam cortá-las com as facas. Tudo isso

enquanto Rangda manifestava sua fúria selvagem, mostrando os dentes e

movimentando seus braços violentamente.

— Os homens estão realmente tentando cravar as facas em si próprios, não

estão? — Mais uma vez, as palavras de Kara foram automáticas.

— Eles estão em transe. Pensei que você soubesse disso.

Ela franziu o cenho e olhou para ele, sem compreender.

— Eles realmente entram em transe? Quer dizer... Eu nunca acreditei

nessas coisas.

Ele pareceu revelar um pouco de desprezo quando se voltou para

responder:

— Se você morasse em Bali há algum tempo, saberia que estas coisas, e

muitas outras, são possíveis.

Kara não respondeu. Toda a sua atenção voltou-se para os dançarinos que

estavam sendo abençoados com água purificada pelo pemangku, o sacerdote do

templo, que era capaz de ressuscitar. A água estava em contato com a barba de

Barong, feita de cabelos humanos e considerada pelos nativos supersticiosos

como a parte mais sagrada de seu corpo.

Finalmente, uma oferta era feita aos espíritos maus. O sangue de uma

galinha foi derramado na terra. A dança tinha terminado e havia uma

precipitação geral para o portão monumental, o tjandi bentar, que parecia uma

torre cortada em duas partes.

Os nativos passaram pelo grupo de Kara e por um pequeno grupo de

turistas que tinham ido assistir ao espetáculo. Kara não se moveu; ela não tinha

ideia de por que continuava sentada. Só percebia um estranho sentimento de

isolamento, como se estivesse só na penumbra que surgia quando nuvens

escuras encobriam o luar. Sentiu-se separada das pessoas, da vida, das

esperanças... E do amor. Fixou o olhar num ponto de espaço, vagarosamente

consciente de que a praça estava quase vazia e de que sua equipe não sentia sua
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falta. Eles deviam achar que ela estava em algum lugar entre a multidão e a

encontrariam depois no hotel.

Kara voltou-se, vendo seu ex-noivo sério, ausente, e estremeceu. Pensou

que seria melhor viver no inferno do que ser casada com aquele homem. Charles

olhou para ela, e seus olhos pareciam mais cruéis do que nunca. As linhas de seu

rosto pareciam talhadas em granito. Ela ficou assim absorvida com um curioso

sentimento de distância, como se os anos de separação pudessem ser medidos

em tempo. O passado voltou à sua mente e, quase no mesmo instante, ficou

longínquo. Aqueles sonhos não tinham substância. Era como se estivesse

contemplando tudo isso através dos olhos de outra pessoa.

— Você pretende ficar aí? — A pergunta foi feita tão sem cerimônia, que

Kara estremeceu.

— É óbvio que não! Eu devia estar sonhando... — falou devagar e levantou-

se.

— Com o quê? — ele perguntou rápido, mas com tanta expressão, que a

surpreendeu após tanta indiferença.

— Com a dança... começou, ruborizando pela mentira, pois sabia que não

enganaria Charles.

— A dança, é? — falou com ironia. — Você terá muito para discutir com seu

chefe quando voltar ao hotel!

Kara concordou silenciosamente.

— Ele vai querer a opinião de todos. — Sentindo o ambiente um tanto

pesado, ela se moveu, tentando encontrar palavras para se despedir. Não se

lembrou de nada e acabou dizendo: — Você vai ficar mais algum tempo assistindo

o espetáculo? — Desagradava a Kara vê-lo sozinho naquela escuridão, com

esculturas grotescas por todos os lugares; esculturas de bons e maus espíritos e

monstros com dentes pontiagudos, nariz enorme e olhos como balões.

Ele não respondeu e Kara observou seu rosto, detendo-se nas olheiras

profundas tão visíveis. Não pôde deixar de vê-lo como era há oito anos. Pensou na
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sua esperança de reencontro, sua devoção leal, sua recusa a qualquer outro

homem, que fora otimista demais...

E agora, não se casaria com Charles mesmo que ele lhe implorasse.

Ele não fez nenhum esforço para responder à pergunta feita por Kara.

— Acredito que,você queira ficar só, Charles. Boa noite.

Ele pareceu concordar e fixou o olhar num ponto qualquer do chão.

— Boa noite. — Sua voz estava apática.

Kara ficou em êxtase por um longo tempo, incapaz de entender por quê,

mas sabendo que queria que ele olhasse para ela. Ele, porém, não se moveu. Com

os nervos abalados pela emoção, ela começou a descer a plataforma e atravessou

a praça rapidamente, antes de voltar-se. Charles continuava no mesmo lugar.

Passou-se mais de uma semana antes que Kara o visse novamente, mas

Charles estava em seus pensamentos constantemente. Nesses momentos, sentia

uma raiva indescritível contra as pessoas que trabalhavam com ele. No seu

entender era culpa delas a maneira negligente como ele se vestia.

O encontro aconteceu quando Kara, enviada para realizar uma pesquisa,

decidiu visitar a vila de Batubulan. Ali poderia observar os mais lindos templos

de toda a ilha. Ela foi de táxi, e durante o trajeto ficou encantada com as

mulheres que carregavam graciosamente pesados fardos na cabeça. Havia

também as mulheres que trabalhavam nos campos de arroz, com sarongs

brilhantes e chapéus de palha com abas largas, dando colorido àquele cenário de

um verde intenso. Mais tarde viu os patos, em bandos alegres e barulhentos,

mergulhando nas águas em busca de comida.

Finalmente chegaram à vila; Kara pagou o motorista, agradecendo com um

sorriso:

— Terima kasih — ela falou na língua nativa e logo em seguida em inglês: —

Muito obrigada!
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Durante o caminho Kara tinha pensado sobre sua visita à cidade e

principalmente a um dos templos, o "Pura Dalem 1", que despertara sua

curiosidade pelos diversos comentários que tinha ouvido.

— Então, nos encontramos outra vez. Como o destino pode ser tão

caprichoso!

Ela se voltou rapidamente sob o impacto daquelas palavras. Seu rosto

mostrava claramente surpresa e emoção.

— Charles... — falou com dificuldade, encarando-o, perturbada. Franziu a

testa, colocando-se na defensiva, irritada por ele ter-se intrometido em seu

passeio. — O que é que você está fazendo aqui?

— Acontece que tenho amigos na ilha — foi a resposta seca e seus olhos

fitavam-na com arrogância. Depois de uma longa pausa, ele falou: — Eu poderia

fazer a mesma pergunta, Kara, se não soubesse que seu único propósito é

intrometer-se na vida desta gente.

— Não é nada disso! — protestou com raiva, sentindo seu rubor aumentar.

— Estou aqui a pedido do meu chefe, admito, mas apenas para ver o que todos os

turistas visitam. — Os lábios estavam apertados e, se dissesse mais uma palavra,

Kara sabia que começaria a chorar. Nunca o tinha visto com tal expressão. Onde

estava toda aquela gentileza? As maneiras educadas e calmas que ela tanto

amara? A mágoa tinha operado uma mudança radical em Charles. Tanto, que não

havia a menor semelhança deste homem com o jovem a quem ela entregara seu

coração e lealdade durante todos os longos anos de espera.

— Vocês estão aqui, nesta ilha, para bisbilhotar — ele falou sem

contemplação. — Você e seu pessoal são uma ameaça a todos os lugares

maravilhosos deste mundo. Vão escrever um livro, elogiando as vantagens da ilha

como um eterno paraíso tropical. Os hoteleiros virão aos bandos e, antes que

possamos nos dar conta, a beleza da ilha e seu povo serão despojados. — Sua voz

estava indignada e seus olhos ameaçadores.

1
O nome desse templo hindu= Pura Dalem Gede Bongkasa
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Kara podia entender, e de repente percebeu que também não queria ver

mais nenhum hotel na ilha. Ainda assim respondeu com certa ironia:

— Os hoteleiros fariam exatamente o que você fez, não é?

— O Kapalan é pequeno, muito pequeno. Ele foi construído para aqueles

que apreciam a beleza natural. Não é uma atração artificial proporcionada por

embusteiros cujo único deus é o dinheiro! Será que dá para você perceber a

diferença?

Impressionada pela fúria contida naquelas palavras, Kara mudou de

assunto. Reforçou que estava ali para trabalhar e que devia fazer algumas

anotações.

— Só estou descrevendo este maravilhoso templo — ela continuou, pegando

um caderno de anotações dentro da bolsa. — Os entalhes são magníficos. — Sua

voz baixa e musical conseguiu atrair a atenção de Charles e ele esperou que ela

continuasse. — Eu desconhecia, até vir aqui hoje, o excepcional talento dos

escultores de pedra de Batubulan. Soube também que nesta região ia encontrar

templos magníficos.

Charles não falou nada; ele estava apenas observando enquanto ela movia

o lápis desajeitadamente entre os dedos. Havia um sorriso irônico em seus lábios,

e ela soube que ele estava experimentando um certo desprezo pela maneira como

ela estava sendo traída pela emoção.

Desprezo... Franzindo a testa, repetiu a palavra para si mesma. Não havia

razão para Charles a tratar assim. Claro, ele pensava que ela estava casada.

Porém, nunca se preocupara em fazer perguntas a respeito, e era mais do que

certo que não estava nem mesmo interessado no fato.

Só havia uma razão: Charles, agora, não sentia sequer vestígios da afeição

antiga. Saber disso a machucava, embora não quisesse qualquer envolvimento

com ele. Ela jamais se casaria com esse homem! Como tinham sido tolos ao achar

que o amor deles era tão profundo, forte e indestrutível!

Parecia que ele ia embora sem se despedir e, com a voz trêmula, Kara

resolveu iniciar uma conversa formal:


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— Charles... você se importa de me contar algo sobre este templo?

Quero dizer, algo que possa me ajudar com meu trabalho? — O pedido,

reforçado pela súplica em seus olhos, era incompreensível para a própria Kara.

Ela queria que ele a deixasse sozinha... e mesmo assim tentava fazê-lo ficar.

— O que você quer saber? — A pergunta foi feita bruscamente, sem

nenhuma simpatia.

Ela estendeu as mãos, indicando o templo.

— Ele me parece festivo, embora um pouco sombrio. Você poderia me

explicar as cerimônias principais? — Depois da pergunta feita, Kara prendeu a

respiração, na expectativa.

A resposta dele poderia ser tanto seca e rápida, como uma negativa,

seguida de uma partida imediata. Para sua surpresa, ele parecia disposto a falar.

Uma vez mais ela pensou na solidão que o envolvia e sentiu-se estremecer. Seria

compaixão? Como estavam confusos seus sentimentos! Tinha simpatia por sua

tristeza; preocupação pela maneira como ele estava vivendo; e sobretudo aversão

por ele, complementada pela satisfação de saber que aquele homem não era seu

marido.

Ele estava falando sobre o templo e Kara pensava; pensava que o pior de

tudo fora a mudança em sua voz. Ele costumava ser tão amoroso quando falava

com ela; para os outros, era sempre educado, mas no momento parecia tão

grosseiro!

— Você deve saber que existem pelo menos três templos em cada vila, isto

além dos templos que você encontra em cada casa. Existem ainda os templos ao

lado das casas de banho, dedicados aos espíritos das águas. Todos são

considerados, pelos balineses, como lugares onde se pode entrar em contato com

os espíritos, através de orações e oferendas. Como você sabe, as ofertas são feitas

em abundância... — Ele fez uma pausa, concentrado no que falava e não na

garota que o ouvia com atenção. — Os balineses acreditam fielmente nestes

espíritos, e os temem.
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Sabrina 132

— Ouvi falar sobre o profundo e misterioso aspecto da religião. Eles

acreditam em bruxas e duendes, não é?

Ele confirmou silenciosamente.

— Em noites sem lua, você pode ouvir os cachorros uivando e, na manhã

seguinte, todos estarão contando histórias de gigantes com a cabeça raspada

andando pelas estradas escuras, macacos com dentes dourados, monstros com

olhos de fogo... — Charles continuou e sua voz estava mais calma e menos fria.

Kara não ousou mostrar seu contentamento; ela não tinha dúvidas de que

Charles simpatizava demais com o povo da ilha e sua incrível religião. Ele era

muito tolerante e totalmente compreensível. Eles pareciam-se com crianças, em

seu charme inocente e aceitação ingênua, sem questionar tudo o que havia sido

transmitido de geração a geração.

Charles falou sobre os leyaks, espíritos de pessoas vivas que praticavam a

arte da bruxaria. Esses leyaks eram como vampiros, sugando o sangue de

pessoas adormecidas, ou raptando criancinhas para fazer uma refeição saborosa.

— Os leyaks são pacificados por ofertas de flores, frutas ou arroz —

Charles continuou como se falasse para si mesmo. Ele estava sorrindo agora,

embora não fosse o sorriso que ela conhecia. Na realidade, era apenas uma

sombra do sorriso que tantas vezes fizera seu coração disparar de amor por ele.

— Não preciso dizer que esses leyaks nunca foram vistos por ninguém, a não ser

pelos balineses.

— E você, Charles? Como considera estas estranhas superstições?

— Não me preocupo com elas, eu as aceito, como qualquer pessoa deve

aceitar os costumes daqueles com quem decide viver.

Kara desviou o olhar, sentindo-se repelida e estranhamente machucada por

aquela resposta.

— Não devo mais atrapalhar você — ela falou num tom baixo e seco. —

Você disse que estava aqui para visitar seus amigos, não é?

Ele concordou e começou a se afastar.

— Adeus, Charles, e obrigada pela ajuda.


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Sabrina 132

Ele continuou andando, sem sequer mover a cabeça. Kara permaneceu na

praça, como uma estátua, observando-o até que ele se perdeu numa daquelas

ruelas. Onde estaria indo? Será que seus amigos eram ricos? Ou talvez

camponeses, que supriam suas necessidades com os escassos recursos dos

campos de arroz? Ele era tão estranho! Quieto e introvertido, e no entanto tão

expansivo quando falava sobre o templo. Kara ficou imaginando se ele queria

mesmo companhia ou só estava sendo educado, respondendo à pergunta.

— Por que você mudou tanto? — murmurou. — Você não é Charles Millard,

mas... um estranho que eu encontrei recentemente, pela primeira vez. — Com

tristeza ela começou a andar, tentando tirá-lo do pensamento. Tinha muito

trabalho para fazer: anotações, observações para memorizar e poder tomar parte

nas discussões que estavam programadas para aquela noite.

Foi com dificuldade que Kara conseguiu se concentrar no trabalho, fazendo

observações sobre as estranhas esculturas na pedra, sempre cobertas com

musgo e ervas e adornadas com flores de cores delicadas. As flores estavam

sempre arrumadas em pequenos cestos, feitos de folhas de palmeiras.

Dando a volta no pátio, sombreado por árvores e pela alta torre cilíndrica,

Kara passou para o outro pátio interno, cujo portão era guardado por dois

gigantes. O velho sacerdote estava colocando pequenas oferendas nos santuários

das divindades. Ele levantou a cabeça e sorriu, antes de limpar as folhas caídas e

retirar as bandejas das ofertas feitas anteriormente. Kara alegrou-se vendo os

passarinhos que pegavam os grãos de arroz nas bandejas.

— Selamat siang, pak — ela falou com um sorriso. — Boa tarde. Pai!

Ele inclinou a cabeça e Kara notou o bronzeado curtido de seu rosto, as

rugas e a aparência cansada de suas mãos. Como era dura a vida para todos ali!

Eles eram tão zelosos nas cerimônias, que gastavam quase um quarto de seus

salários com ofertas, cremações, festivais e banquetes.

O sacerdote retribuiu a saudação, e fez uma pausa antes de perguntar de

onde ela era.

— Saya tinggal di Sanur — ela respondeu, dizendo que estava em Sanur.


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Sabrina 132

— No Hotel Bali Praia? Você está passando férias em Bali? — Desta vez as

perguntas foram em inglês.

Ela achou melhor dizer que sim e depois, sem poder se controlar,

perguntou:

— Você naturalmente conhece Sanur e o Bali Praia. Você também conhece

o... Kapalan?

O velho sacerdote se levantou e a fitou com intensidade antes de responder:

— Eu conheço o hotel... e seus donos também. Sei que um é inglês, Charles

Millard; ele gosta muito da filha de um dos meus amigos. — De repente ele parou,

franzindo a testa, zangado por sua indiscrição.


Kara não pôde conter sua curiosidade e então disse:

— Eu conheço Charles, nós éramos amigos há muito tempo, na Inglaterra.

Eu... eu não ouvi falar sobre esta jovem, na qual ele está interessado. Ela é

balinesa? — Kara estava com a respiração suspensa.

O sacerdote hesitou, mas só por alguns instantes.

— Seu nome é Ni Made, e ela é muito bonita. Ela é muito jovem também,

tem somente dezoito anos. Jovem demais para o homem inglês.

Dezoito anos... as lembranças voltaram subitamente. Ela tinha exatamente


dezoito anos quando ficara noiva de Charles.

— Você acha que ele vai se casar com ela? — Não havia emoções agora,

nem em sua voz e nem em seu coração. Ela achava que seria bom para Charles.

Kara lembrou-se de como ele era apaixonado e de seus beijos ardentes; ela já

admitia que naquela época ele seria um amante maravilhoso. E ele estava só há

muito tempo. Lembrou-se de Tracy, sua linda esposa apenas no nome. Para um

homem como Charles, deve ter sido uma tortura, especialmente depois que se

apaixonou por ela. Sim, para Charles, seria bom um novo casamento.

— Ela está apaixonada por ele. Seu pai não vai impedir o casamento, se é o

que Ni Made deseja.

Logo depois, Kara se despediu e voltou para o hotel. Seus pensamentos

ainda estavam presos ao que o sacerdote lhe contara. Charles e uma linda jovem
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Sabrina 132

balinesa de 18 anos... Franzindo a testa, balançou a cabeça. Como ele trataria

esta criança? Manifestaria sua aparente crueldade para ela?

De repente, Kara pareceu acordar de um sonho. O que tudo isso tinha a ver

com ela? Estava em Bali com a finalidade específica de ajudar Hugh em suas

pesquisas. Fez então um firme propósito de se concentrar no trabalho e esquecer-

se de todo o resto.

Capítulo V

No dia seguinte, Hugo foi a Denpasar, para tirar algumas fotos. Jack e Nora

tinham a tarefa de investigar alguns costumes da ilha. Hugh e Kara foram juntos

visitar o templo de Ulu Watu, que ficava no topo de um penhasco a quase cem

metros acima do mar da Indonésia, capaz de dar vertigens em qualquer pessoa.

— Que diferença na vegetação daqui! — exclamou Kara, enquanto ela e

Hugh atravessavam o caminho acidentado, sujo e tortuoso, que ia desde os áridos

arbustos até o templo. Cactos imensos cresciam na terra seca, e Kara pensou que

as raízes deviam tocar as rochas. Havia apenas uma fina camada de terra

cobrindo as pedras. — É um terreno hostil, comparado com o verde viçoso das

fazendas da ilha.

— Sim, é verdade. Um contraste admirável! — Hugh carregava uma grande

fumadora e mais duas máquinas fotográficas, uma para fotos e outra para slides.

— Imagine você, a altura acima do nível do mar. no topo do precipício, é de mais

de trezentos metros. Aqui não há irrigação.

Ela concordou, pensando no verde dos campos de arroz e na fertilidade das

terras centrais de Bali. Ali, rios de águas claras serpenteavam trazendo água

pura e cristalina das montanhas. Kara podia observar isso do alto do precipício.

Chegaram ao templo, finalmente. A primeira coisa que chamou a atenção

de Kara não foi o templo em si, nem as grotescas esculturas que adornavam sua

entrada, mas sim a figura de uma macaca, com um olhar nostálgico, sentada no

muro e alimentando seu filhote.


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Sabrina 132

— Veja! — Ela apontou. A macaca olhou, mas não fez nenhum movimento

para fugir. Logo apareceram um macaco maior e outros que, pelo jeito, também

deviam ser fêmeas. — Não é uma cena comovente?

Voltando-se, Hugh olhou para Kara com curiosidade.

— Que pessoa mais encantadora, você é!

— Vamos, não me faça corar!

— Só porque você está sendo verdadeira?

Os olhos de Kara voltaram-se para os macacos, porém seus pensamentos

estavam em Charles.

— Já lhe avisei que não vou responder a nenhuma pergunta a respeito da

minha vida particular, Hugh.

— Sim, eu sei, mas há algum mistério envolvendo a sua vida. Aqui e agora

você está livre, por assim dizer. Mas a ideia que tenho sobre você é a de uma

adorável esposa de um marido maravilhoso, que lhe deu duas crianças lindas e

inteligentes.

Kara ficou realmente encabulada com aquelas palavras e virou-se para que

Hugh não notasse sua emoção. Naquele momento ela se lembrava de como havia

se sentido feliz naquela tarde encantadora, quando seu amado Charles, com toda

delicadeza, emoção e profundo amor, tocou sua mão e colocou em seu dedo um

solitário, um diamante maravilhoso. "Eu tenho dezoito anos, e quero, quando

tiver vinte e dois, já ter um menino e uma menina", ela tinha dito.

Agora ela estava ali em Bali, com vinte e seis anos, solteira e sem vontade

nenhuma de se casar e formar uma família.

— Não seria melhor iniciarmos o trabalho? — ela sugeriu, indicando a

câmera que estava em cima de uma pedra. — Posso tirar as fotos, se você me

disser o que vai querer!

— Dos macacos, é lógico! Você acha que pode tirar uma da mamãe-macaca

com o filhote?

— Vou tentar... — Ela lembrou-se da visita que fizera à Floresta da Chuva,

no segundo dia que estava em Bali. Os macacos estavam felizes saboreando as


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Sabrina 132

castanhas que Kara jogava para eles, mas quando elas se acabaram eles ficaram

furiosos! Dois deles, machos, rasgaram sua capa e um outro pulou sobre seus

ombros. Hugh viera socorrê-la, mas ela estava tão assustada que precisou ficar

um bom tempo sentada, numa daquelas barracas de souvenirs, para se refazer do

susto que levara.

— Não se aproxime muito! Estes macacos são diferentes daqueles outros.

Eles não estão acostumados a receber alimentos. Não acredito que haja perigo,

mas tome cuidado.

— Dá muito bem para fotografar as fêmeas. — Kara fez uma pausa,

ajustando a câmera. Os machos desapareceram. — Vou me aproximar e ver o que

consigo.

Para sua satisfação conseguiu chegar perto do muro onde a fêmea estava

amamentando o seu filhotinho.

— Esta será uma foto maravilhosa! Você conseguiu chegar a quase um

metro de distância do animalzinho.

— Ela nem se moveu. Veja, continua totalmente alheia ao que está

sucedendo ao seu redor.

— É só dar uma olhada de vez em quando.

Kara tirou outras fotos antes de fazer as anotações. Ela já sabia que Ulu

Watu era um dos seis templos mais reverenciados em Bali. Ele fora construído em

honra ao espírito protetor dos mares. Espetacular e solitário, era tão sombrio

quanto bonito. Cada pequena saliência era adornada com ofertas delicadas,

colocadas cuidadosamente naquelas lindas bandejas, feitas de folhas de

palmeiras.

— Como são gentis e adoráveis estes nativos... — Kara falou

sonhadoramente, sentindo que estava vivendo de algum modo irreal. Ali não

havia pecado, maus pensamentos e a inveja nunca teria lugar. — Que fé...

Colocar essas ofertas aos espíritos, que eles sabem que nunca vão ver... — Ela

olhou para Hugh, que a observava com uma expressão intrigada. — Por que eu
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Sabrina 132

sinto vontade de chorar, ao contemplar tudo isso? — perguntou, enxugando as

primeiras lágrimas que começavam a surgir em seus olhos.

— É fácil de explicar — foi a resposta surpreendente de Hugh. — Você é

uma inglesa que vive o lado prático das coisas. Recebe o pagamento uma vez por

mês, e calcula exatamente no que poderá gastar seu dinheiro, quanto poderá

comprar e por quanto tempo terá esse dinheiro; e agora fica emocionada com essa

gente, porque eles são bastante pobres e mesmo assim gastam tudo o que têm

com suas oferendas.

— É um dinheiro que eles não podem gastar, é verdade, mas não consigo

vê-los vivendo de outro modo.

— Você sabe que estas ofertas que eles fazem são inúteis. Por você, eles,

com este dinheiro, deviam comprar sapatos para as crianças e outras coisas que

achamos de primeira necessidade.

— E óbvio, eu sei, mas... — Ela balançou a cabeça.

— Mas não é assim. — Estas crianças gostam de andar descalças, livres, de

qualquer maneira. Nós precisamos entrar numa comunidade dessas. Só assim

poderemos avaliar como eles vivem.

— Como você pretende fazer isso? — Kara perguntou.

— Bem, eu estive pensando e acho que você poderia ajudar, porque conhece

aquele homem, Gareth, que vive na ilha há alguns anos. Pelo que ele lhe contou,

tem amigos entre os nativos. Você não acha que ele poderia nos arranjar uma

visita numa dessas comunidades?

— Eu poderia pedir a ele que me fizesse esse favor.

— Então, faça isso, Kara. — Hugh colocou sua câmera na maleta e pegou

as outras duas que estavam sobre a pedra ao lado de Kara. — Isso quer dizer que

você vai precisar de uma ou duas horas durante a tarde, para ir até o Kapalan.

— Quando você quer que eu vá?

— O mais breve possível. Que tal amanhã?

— Muito bem, amanhã irei até lá.


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Sabrina 132

Ela guardou seu caderno de anotações na bolsa. Pensando em Gareth,

Charles lhe veio à lembrança. Será que ela iria encontrá-lo? Desejava muito revê-

lo e poder falar com ele. Não sabia bem por quê, mas queria, queria muito

encontrá-lo novamente.

Lembrou-se dos últimos encontros que tiveram. Uma parte dela queria

afastar-se dele, daquele estranho amargurado, e nunca mais vê-lo em seu

caminho, enquanto a outra parte desejava permanecer ao seu lado, falar com ele,

fazer perguntas e saber tudo sobre sua vida, seu passado, seu presente, seus

anseios e sentimentos... Mas ela não se atreveria, não depois do desastroso

resultado de sua pergunta a respeito do amor dele por Tracy.

Talvez fosse apenas piedade que lhe dava vontade de ficar ao lado dele.

Sabia que o fato de Charles estar tão solitário e triste pesava em seu coração;

gostaria de fazer algo para iluminar a vida dele, mas o quê? Não tinha poder para

tirá-lo da profunda depressão em que se encontrava. Quem sabe a garota

balinesa, Ni Made, poderia fazer tal transformação, fazê-lo esquecer tanta

amargura.

Na manhã seguinte, Kara combinou um encontro com Gareth para logo

após o almoço. Ele concordara em ajudá-la no que fosse possível.

Quando Kara chegou ao Kapalan, Gareth estava na recepção discutindo

sobre negócios com o gerente. Ao vê-la, sorriu e aproximou-se:

— Olá! Você está maravilhosa! O ar de Bali lhe faz bem.

— E a tranquilidade também. Já disse a Hugh que poderia viver aqui para

sempre, com esse povo gentil, maravilhoso!

Ele concordou, enquanto caminhavam até um pequeno salão ocupado

apenas por um casal idoso.

— Vamos nos sentar aqui — disse, indicando uma das mesas, junto à

janela.

Dali se podia ver a linda paisagem de Sanur e as águas calmas do estreito

de Badung. Algumas pessoas tomavam sol, outras nadavam, e quase todas elas
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Sabrina 132

eram balinesas. Algumas mulheres procuravam corais. Os homens consertavam

as redes feitas em seus próprios barcos, para a pesca noturna. As palmeiras

balançavam ao sabor da brisa marítima, e um perfume suave, vindo dos

admiráveis jardins exóticos, penetrava no salão. As janelas ocupavam quase todo

o espaço da parede e se abriam para as varandas ornamentadas com flores

tropicais.

— Agora, o que você quer de mim exatamente?

Ela explicou que Hugh queria visitar uma casa bem pobre da ilha.

— Você conhece alguma? — ela perguntou, mas foi interrompida pela

expressão negativa de Gareth.

— Devo admitir que eu mesmo nunca entrei numa destas casas. Sempre

me pareceu como uma invasão, e assim não tive ainda a preocupação em visitá-

las.

— Essas comunidades são sempre rodeadas por muros de barro. Ninguém

pode ver o seu interior.

— Como você já deve saber, esses nativos não gostam que sua intimidade

seja invadida. Eles se sentem seguros atrás dos muros.

— Protegidos dos maus espíritos... — Kara falou, completando com um

sorriso.

— É isso mesmo. Mas, espere um minuto! Onde é que eu estava com a

cabeça para esquecer? Charles é muito amigo de algumas dessas pessoas. Você

pode consultá-lo para arranjar uma dessas visitas.

Ela franziu a testa, negando.

— Acho que não devemos perturbá-lo, Gareth. Ele gosta de ficar sozinho.

Não, não devemos pedir a Charles — Kara falou, de modo decisivo. Ela estava

pálida, e isto não passou despercebido a Gareth.

Ele falou com curiosidade:

— Kara, foi tudo muito vago o que você disse a respeito de Charles, naquela

tarde. Lembra-se de que lhe perguntei como vocês se conheceram? — Ele fez uma

pausa, observando a reação dela. — Depois de alguns dias fiz a mesma pergunta
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Sabrina 132

a Charles. De uma maneira muito rápida, ele se colocou atrás de uma parede

invisível de reserva, e não pude satisfazer minha curiosidade. Se eu não soubesse

que ele tinha sido casado, e que ficou desolado com a perda da esposa, ia pensar

que vocês foram mais do que simples conhecidos. Charles deixou transparecer

isso quando vocês se encontraram inesperadamente naquela noite. Você se

lembra?

— Gareth, não sei o que você está querendo dizer.

— Chamei você de srta. West. Mas, quando falei com Charles, ele disse:

"Não tenho nada a falar sobre a sra. West, exceto que somos conhecidos".

— Sra. West, Kara. E, quando fui ao Bali Hai Supper Club para encontrar

um amigo, ouvi seus companheiros conversando. Seu nome foi mencionado, sra.

West. Parece estranho, mas porque você não me corrigiu na primeira vez, quando

nós nos conhecemos?

Kara ignorou a pergunta. Voltou ao assunto das comunidades.

— Você deve conhecer outra pessoa que possa nos ajudar, Gareth.

— Vou perguntar — ele prometeu, assumindo uma atitude indiferente

depois da pequena humilhação contida no silêncio de sua visitante. — É tudo o

que posso fazer?

— Conheci um sacerdote... — Kara falou, lembrando-se do templo em

Batabulan e do velho sacerdote que lhe falara sobre Charles e a linda jovem

nativa, Ni Made.

— É, esse sacerdote talvez possa ajudá-la. Onde você o conheceu?

Kara contou a ele, mas não mencionou as informações obtidas.

— Nós conversamos um pouco e agora estava imaginando a possibilidade

de encontrá-lo novamente, se for ao templo. Haveria algum problema em pedir a

ajuda dele?

— Não, não vejo problema.

— Imagino que ele consiga arranjar uma visita numa dessas casas. Será

que devemos pagar aos nativos? Estou perguntando para não fazer nada errado, e
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Sabrina 132

como você conhece o costume desse povo, acho que é a pessoa indicada para me

dizer.

— Alguns trocados para as crianças não ofenderão ninguém. As crianças

são muito importantes em Bali, são sempre bem-cuidadas pelos pais.

— Tenho visto crianças pequenas cuidando das menores, dos bebês.

— Isso é normal aqui. A responsabilidade de cuidar dos irmãos menores é

ensinada às crianças desde pequenas, pois isso as ajuda a amadurecer. — Ele

observou Kara por alguns momentos. — Há muito para se aprender aqui em Bali.

Acho que você precisará de mais de três meses.

— É o tempo que temos e tem que ser suficiente. Bem, Gareth. acho que

não devo mais ocupar o seu tempo. Muito obrigada por receber-me e por

colaborar comigo nesse trabalho.

— Não há nada para agradecer. Afinal, nem cheguei a ajudá-la. — Ele

olhou diretamente em seus olhos antes de completar: — Exceto por sugerir que

você procurasse Charles.

— Agora preciso ir. Talvez eu o veja passeando pela praia, qualquer dia.

— Você ainda acha interessante passear pela praia?

— Acho fascinante e muito bonito. As coisas simples da vida sempre me

seduziram.

— E este é um dos poucos lugares no mundo onde você pode encontrar

isso. Bali é única; tem surpreendido o mundo por décadas, por sua estranha e

fascinante cultura, seus costumes radicais, seus rituais estranhos e sua crença

no poder dos espíritos bons e maus. Você ainda não assistiu a uma cerimônia de

cremação?

— Não, ainda não.

— Pois deve assistir. Tem que ver para acreditar.

Kara ia assistir a uma cerimônia na semana seguinte. Hugh, numa

conversa com um garçom, ficou sabendo que o avô dele fora enterrado há quatro
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anos; na época a família não tinha dinheiro para a cerimônia de cremação, então

iam realizá-la nos próximos dias.

— Vamos todos — Hugh falou com decisão. — Lembre-se de anotar tudo e

também gravar.

— Podemos tirar fotos? — Kara quis saber, pois tinha sua câmera e já havia

tirado uma coleção de fotos. Quando voltasse ao escritório causaria inveja às

suas companheiras; pelo menos Hugh garantira isso.

— Espero que sim, mas precisamos ter certeza. Seria desastroso irritarmos

essas pessoas numa ocasião triste como esta.

Porém, para surpresa de Kara, havia total ausência de tristeza entre os

amigos e familiares. Ao contrário, via-se logo que a cerimônia de cremação era

um acontecimento feliz. Para um nativo, esta era a única maneira pela qual a

alma podia livrar-se do corpo.

— Veja — disse o jovem garçom para Hugh, enquanto os nativos se

preparavam para a grande cerimônia. — Nós acreditamos que o corpo é apenas

uma casa onde nossas almas vivem. Ser enterrado não liberta a alma. Somente a

cremação o faz. — Ele era um jovem inteligente, que trabalhava como garçom nos

intervalos de seus estudos, que só eram possíveis quando os professores vinham

de Java para Bali.

— Você acredita nisso?

— Mas é claro que sim! É a verdade. A alma do meu avô vai se libertar hoje

e alcançar uma existência bem melhor do que a anterior.

— Seria como renascer? — Kara tentou entender e o jovem nativo

concordou imediatamente.

— Você fala um inglês excelente — Hugh interrompeu. — Aprendeu na

escola?

— Sim, claro. Devo ir agora. Por favor, me desculpem.

Ele correu para alcançar um grupo de nativos que entrava na casa do

morto
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Tinha início a cerimônia: o corpo foi tirado da sepultura e, com reverência,

colocado sobre uma plataforma. Ao redor dela, havia ofertas de todas as garotas e

mulheres da vila. Um banquete se seguiu e, ao terminar, a cerimônia começou.

Os homens apareceram, trazendo bem acima de suas cabeças o corpo do morto,

enrolado num lençol branco.

O acompanhamento era feito ao som do gamelan.

— O que eles estão fazendo? — Kara perguntou, intrigada pela maneira

como o corpo era levado para todos os lados.

— Isto é feito para confundir a alma. Assim, ela não encontrará o caminho

de volta para sua casa — foi a explicação de Hugh.

— É incrível!

— Esses rituais são mantidos há séculos, Kara. E, até agora, nada mudou.

Ela olhou para a torre de cremação. Era uma estrutura de bambu,

ricamente ornamentada com papéis coloridos, pequenos espelhos e tecidos

brilhantes contrastante com o azul do céu. Tinha cinco patamares; poderia ter

até onze, dependendo da classe social da pessoa em questão. Como o homem era

de uma classe social mais pobre, a torre tinha poucos patamares.

O corpo foi levado para a torre e cuidadosamente colocado numa

plataforma.

— Aquele é o espaço entre a terra e o céu. O corpo não é mais da terra e

nem ainda do céu.

Kara concordou, com toda a atenção voltada para aquela cerimônia

espetacular e incrível. A multidão, formada por nativos que viveram perto daquele

homem e por parentes de toda a ilha, estava de pé ao redor da torre, todos de

costas para a torre.

A base da torre tinha o formato de uma tartaruga, envolvida por duas

cobras coroadas. Isto simbolizava a fundação do mundo. Ao fundo, Bhoma, o filho

da terra, olhava as coroas com olhos ofuscantes. Essas coroas ficavam colocadas

numa cabeça gigantesca, com enormes asas abertas.


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O próximo ato daquele drama espantoso era levar a torre para o local onde

seria queimada. Era próximo de "Pura Dalem", o Templo da Morte.

— Deve ter cinquenta ou sessenta homens carregando a torre. — Kara

levantou a voz para quebrar o silêncio. Ela estava totalmente envolvida pelo

ritual. A torre era precedida por uma fila única de mulheres em seus sarongs

típicos, carregando as ofertas e a água pura. Quando chegasse no local da

queima, o corpo receberia a água pura do sacerdote, que murmurava preces o

tempo todo. A torre foi acesa e as chamas se elevaram em direção ao céu, ao som

do crepitar dos bambus.

— Que espetáculo! — Hugh exclamou. Depois, em silêncio, ficou

observando a torre se quebrar ao meio e o topo cair no chão, espalhando lascas

flamejantes por todos os lados.

— Bem... foi uma cerimônia incrível! — exclamou Kara, extasiada pela cena

mais empolgante que já tinha testemunhado.

— As cinzas serão colocadas no Templo da Morte? — perguntou Nora a

Hugh.

— Agora vai haver uma procissão, que marchará até o mar.

— As cinzas serão jogadas no mar?

— Normalmente são. Se o mar fica muito longe da vila, as cinzas são

jogadas num rio.

— Elas devem ir para a água, então? — foi a pergunta que Kara fez, pois

estava anotando tudo o que via.

— Sim, a purificação final é feita com água. Não se esqueça de que a

trilogia hindu é fogo, vento e água.

— Coisas naturais.

— Os balineses vivem próximos da natureza.

Muito perto da natureza, pensou Kara que, ainda atordoada com o que

vira, continuava a mentalizar a cena.

— Esta ilha me fascina — falou suavemente, quase para si mesma. Kara

jamais acreditou que seria tão profundamente envolvida como agora.


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Sabrina 132

Hugh, guardando sua câmera, falou com ironia:

— Espero não deixá-la por aqui quando partirmos.

— Não há nenhuma chance de isso acontecer.

— Me parece que você gostaria de ficar aqui.

— É mesmo? — Seus pensamentos voaram para Charles, cujo lar era ali,

naquela ilha paradisíaca. Como era estranho o destino! Se seus caminhos

seguissem a rota planejada, nenhum dos dois estaria em Bali agora. Charles,

como arquiteto, não tinha muito dinheiro; a família que haviam planejado

ocuparia quase todo o seu tempo. É verdade que Charles, mais tarde, herdaria a

fortuna da tia; mas naquela época ela não tinha ideia de quando isso ia

acontecer. Talvez, algum dia, ela e Charles viessem a Bali em férias, mas não

acreditava nisso. Com crianças pequenas, o tipo de férias mais normal seria onde

as próprias crianças escolhessem.

— Você está muito calada, Kara. — Hugh e Kara estavam sozinhos no

carro. As outras pessoas foram num outro carro. — Você me parece preocupada.

Será que foi a cerimônia que lhe causou isso?

— Isso... e outras coisas.

— Que outras coisas?

— Coisas... que tinham que acontecer.

— De alguma maneira, Kara, insisto que há algum mistério envolvendo

você. Seu chefe me deu uma ótima referência. Você era eficiente, prática, digna de

confiança. Ele falou como se você nunca tivesse revelado qualquer emoção.

— Ninguém o faz no trabalho.

— Você está trabalhando agora.

— Ah, isto é diferente! Sei que estou trabalhando, mas também me sinto

parte de uma grande aventura.

— Você mudou de assunto com muita astúcia.

— Não gosto de falar sobre minha pessoa. Você já deveria saber disso.

— Eu sei. Não vou provocá-la outra vez.


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Ele dirigiu em silêncio. Kara continuava absorvida pelo espetáculo. Quando

estavam chegando, uma mulher toda vestida de branco chamou sua atenção. Ela

andava em direção à vila, e estava logo à frente deles.

— Você por acaso sabe por que aquela mulher está vestida de branco? —

Kara perguntou quando a ultrapassaram.

— Ela está a caminho da casa de alguém que morreu. Ela vai preparar o

corpo para o funeral.

— Então ela tem que estar de branco?

— Sim. É um costume.

Costumes tão estranhos e ao mesmo tempo tão fascinantes!

Chegaram à vila. Como sempre, havia três templos: "Pura Puseh", que era o

Templo da Origem, significando que fora construído na fundação da vila. Ali os

fundadores da vila eram reverenciados e presenteados com bonitas ofertas. O

Templo da Cidade, ou "Pura Desa", que era usado somente para grandes

cerimônias, nas quais a vila toda estava envolvida. Depois, naturalmente, o

Templo da Morte, onde as divindades da morte e da cremação eram honradas e

presenteadas.

As ofertas eram de frutas e flores e, como sempre, grãos de arroz eram

colocados naqueles pequenos cestos, feitos de folhas de palmeiras. As pessoas se

movimentavam, mas tudo era muito lento. Alguns olhavam para o carro, mas era

com um interesse casual, assim como o sorriso e o aceno de mão, caso Kara

quisesse cumprimentá-los.

Crianças corriam descalças por todos os lados.

A vila foi deixada para trás e estavam novamente viajando pelos campos.

Denpasar finalmente foi vista. Uma cidade repleta de lojas e mercados de

bicicletas e um pequeno número de velhos carros. No princípio da Djalan Veteran,

a via principal da cidade, ficava uma estátua enorme. Era o guardião das

estradas. Ali, nunca haveria acidentes. Os balineses acreditavam nisso, uma vez

que o guardião estava lá para impedir a entrada dos maus espíritos.


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Adornos maravilhosos enfeitavam a estátua. Lá estavam as inevitáveis

ofertas de frutas, flores e grãos de arroz.

Quando chegaram, Hugh voltou-se para sua secretária e disse:

— Espero que você tenha feito muitas anotações.

— Receio que não sejam tantas assim. Foi o acontecimento que me deixou

mais empolgada desde que cheguei. Mas fiz algumas observações, e está tudo de

maneira bem explícita em minha mente. Posso descrever qualquer detalhe da

cerimônia, com toda a precisão.

— Ótimo! Então acho melhor fazer isso agora. Nós nos veremos durante o

jantar.

Kara passou as duas horas seguintes em seu escritório. Quantas

informações ela já tinha daquela ilha maravilhosa! Sentiu que devia manter um

caderno de anotações para si. Assim, poderia de vez em quando lê-lo e reviver

este período tão dramático de sua vida.

Kara e Hugh estavam sozinhos para o jantar. As demais pessoas do grupo

tinham ido assistir a uma cerimônia numa outra vila.

— Estive pensando sobre sua recente visita ao Kapalan. Você falou que

Gareth Carter ia fazer algumas averiguações para você.

— Sim. — Ela não mencionou a possibilidade de Charles ajudá-la; na

verdade, ela apenas comentara que Gareth tinha um sócio, e que vivia numa casa

na mesma propriedade do Kapalan.

— Seria intromissão da minha parte se eu fosse visitar Gareth?

— Intromissão?

— Bem, ele é um homem de negócios, e seria natural que não encontrasse

tempo para estranhos. Especialmente aqueles que querem algo dele.

— Sim, ele é um homem ocupado. — Ela tentava tirar esta ideia da cabeça

de Hugh, pois não queria que ele encontrasse Gareth. De maneira alguma ele

poderia ficar sabendo que Charles e ela se conheciam há muito tempo. — Mas

talvez eu pudesse tentar falar com Gareth novamente!


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— Gostaria que você tentasse, Kara. Estive pensando que Oka, nosso

garçom, poderia conseguir alguma coisa. Mas não gosto de pedir tantas coisas a

ele. Oka tem sido muito útil e não seria justo ficar dependendo tanto dele.

— Também acho. Foi por intermédio dele que tomamos conhecimento da

cerimônia de cremação.

Ele concordou, servindo-se da deliciosa comida nativa. Estava saboreando

o nasi goreng, uma mistura de camarões e legumes com arroz frito.

— Se você telefonar para Gareth e conseguir um encontro, eu lhe darei a

tarde livre para você fazer a visita.

Kara ficou em silêncio pensando em Gareth e se ele gostaria de vê-la outra


vez.

— Parece que, apesar de tudo, terei que falar com Charles. — Kara estava

no terraço, falando consigo mesma, enquanto observava o mar tranquilo e as

estrelas brilhantes.

Ele não ajudaria. Ela até podia prever sua reação.

Mais uma vez, seu pensamento levou-a muito tempo atrás, quando Charles

estava apaixonado por ela. Eles acreditavam que nada poderia mudar o futuro

que haviam planejado. Eles tinham sido tão unidos, o amor entre eles era tão

forte, que Kara sempre soube que, quando um deles morresse, o outro não

sobreviveria sozinho.

"E se eu tiver que viver sem você?", ela perguntou uma vez para Charles.

"Você nunca viverá sem mim, querida. Estaremos juntos para sempre", ele tinha

afirmado...

Kara suspirou, parando diante de uma imagem de Barong. Era uma

imagem bastante colorida, que ficava na entrada de seu quarto. No princípio

queria guardá-la em alguma gaveta, mas já se acostumara a ela.

Levando as mãos para tocá-la, Kara fez uma prece:

— Esse povo estranho, mas adorável, acredita que você é o protetor da

espécie humana, símbolo espiritual de tudo o que é- bom e puro na vida. Você me
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Sabrina 132

protegeria? De quê? — Ela balançou a cabeça. — Não sei... Mas aqui, dentro de

mim, sinto uma apreensão estranha e inquietante... como se eu estivesse

caminhando cegamente para um precipício...

Capítulo VI

Kara acordou cedo, como sempre. Olhando para Barong, disse, sorrindo:

— Bom dia! Hoje me sinto bem melhor do que ontem. Será que devo isso a

você? — Repentinamente lhe veio um pensamento tolo sobre estar falando

sozinha. Ela pulou da cama, supondo que a razão de estar se sentindo melhor era

que já decidira fazer uma segunda visita ao templo de Batubulan antes de

telefonar para Gareth. Se ela pudesse falar com o sacerdote, poderia persuadi-lo a

arranjar a visita. Só de pensar nisso ela se sentia melhor.

Sem querer contar a Hugh sua relutância em falar com Gareth, apenas lhe

cobrou a tarde livre.

— Gostaria de visitar Batubulan outra vez.

— Alguma razão especial?

— É uma vila fascinante.

— Você pode tirar a tarde toda. Fui convidado pelo gerente do Hotel Bali

Iate. Ele se ofereceu para contar-me algumas histórias que conhece.

— Obrigada. Vejo você no café, amanhã cedo, certo?

— Sim. Por favor, não se esqueça de entrar em contato com seu amigo

Gareth!

Ela alugou um táxi, e logo descobriu que o motorista era primo de Oka. Ele

estudava Direito, como Oka, e trabalhava nos períodos em que não tinha aula.

Falava um ótimo inglês e também era guia turístico.

— Estou com sorte. Você poderá me contar muito sobre os lugares pelos

quais vamos passar, no caminho para Batubulan. — Ela pensou em pedir sua

ajuda para visitar uma daquelas comunidades, mas desistiu. Hugh poderia não

aprovar.
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— Claro que sim. Ficarei feliz em poder explicar o que quiser. — Pediu-lhe

que o chamasse de Tommy, pois seu nome era muito difícil para os estrangeiros

pronunciarem.

Kara fez algumas perguntas, mas ficou calada a maior parte do tempo,

durante a viagem. Pensava na visita que ia fazer agora, e lembrava de sua

primeira visita, quando encontrara Charles. A possibilidade de encontrá-lo

novamente, no mesmo lugar, era muito remota. Charles quase não saía; não

havia a menor chance.

Agora, entretanto, não podia deixar de pensar na estranha coincidência do

encontro em Bali, depois de tantos anos. Era uma chance num milhão, e

acontecera. Se a secretária de Hugh não tivesse se demitido, ela nunca estaria ali.

O encontro no Kapalan também nunca teria acontecido se ela não tivesse

encontrado Gareth na praia.

— Foi tudo coincidência, desde o princípio — ela murmurou para si

mesma. — Parece que tinha que ser... — Mas seus pensamentos foram

interrompidos pela lembrança de Ni Made, a garota nativa. E, de repente, ela

queria conhecê-la, saber como era.

No entanto, uma voz interior lhe dizia: Não é problema meu. Charles e eu

não significamos nada um para o outro; ele é um estranho, tanto quanto Gareth;

então seu compromisso com essa garota não deve me preocupar.

Seus pensamentos estavam cada vez mais confusos, e a voz de Tommy foi

uma interrupção bem-vinda. Ele estava mostrando uma série de estátuas

entalhadas, todas enfileiradas na estrada.

— São para vender. Serão compradas por pessoas que querem um

santuário familiar, ou uma figura protetora para seus portões.

— Elas são feitas aqui mesmo?

— Sim. Batubulan é famosa por seus maravilhosos entalhes. Aqui moram

os melhores artistas da ilha.

— Então é por isso que os templos aqui são os mais bonitos?

— Certo. Você quer ir ao "Pura Dalém"?


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— Sim, por favor.

Na porta do templo, ele parou para Kara descer.

— Quanto tempo você pretende ficar aqui? Se for por mais de uma hora,

terei tempo para visitar minha avó, que mora aqui na vila.

— Ficarei mais de uma hora, Tommy. Pode ir, espero por você aqui mesmo.

— Estarei de volta em uma hora.

Ela ficou na porta do templo, observando os entalhes de todas as

divindades. Depois, passou através de uma porta que tinha a ver com as coisas

da vida e do mundo. Uma porta interior levava para o mundo espiritual, além da

morte. Outra vez ela parou imóvel, com as estátuas ao seu redor, estranhas e

grotescas, com ofertas que pareciam murchas. Ficou imaginando se o sacerdote

apareceria para trocar as ofertas murchas por novas.

Os espíritos não gostavam de frutas velhas, nem de flores desfolhadas. Que

paz, pensou. O silêncio profundo reinava no pátio... O Templo da Morte.

Um movimento chamou sua atenção e ela ficou imaginando se era o

sacerdote.

Engoliu secamente e deu uma olhada ligeira. Tinha certeza de que era

Charles.

Como no outro dia, ela saudou o sacerdote respeitosamente.

— Selamat siang, pak.

Antes de levantar a cabeça, ele retribuiu a saudação tanto em inglês como

no idioma nativo.

— Você voltou logo! Haverá alguma atração para você no Templo da Morte?

— É tão... calmo — ela respondeu, procurando as palavras para fazer seu

pedido.

— Há muitos lugares em nossa ilha que são calmos e atraentes. — O

sacerdote voltou-se e continuou recolhendo as ofertas.

Sem perceber, Kara pegou uma daquelas lindas cestas, nas quais fora

colocado arroz. Havia apenas alguns grãos, visto que os pássaros que por ali

passavam haviam levado quase tudo.


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— Como elas conseguem fazer estas cestas tão lindas?

— Com paciência. Os espíritos não gostam de nada que não seja feito com

paciência e reverência.

— Quanto tempo uma mulher leva para fazer uma cesta como esta?

— Apenas alguns minutos. Como a maioria das coisas, é fácil quando se

tem bastante prática. — Ele se voltou novamente para recolher as ofertas.

Por fim ela falou, sabendo que a timidez ou a indecisão não iriam ajudá-la

de modo algum.

— Seria possível fazer uma visita a uma dessas comunidades? Eu gostaria

de visitar uma dessas casas bem pobres.

O sacerdote levantou-se, surpreso, e olhou intensamente para Kara.

— Por que você fez este pedido? Você disse que está passando férias no Bali

Praia Hotel. Os turistas geralmente não se interessam pelas pessoas pobres da

ilha. Eles preferem as praias mais bonitas e os melhores divertimentos da noite.

— Estou interessada em tudo o que diz respeito à ilha. E pode ter certeza

de que eu apreciaria muito visitar uma dessas casas pobres.

Ele ficou pensativo e por alguns instantes Kara temeu por uma resposta

negativa.

— Posso ver isso para você — disse por fim. — Tenho um amigo e creio que

provavelmente permitirá que você entre em sua casa.

— Poderia... poderia trazer mais alguém comigo? — Ela estava pensando

em Hugh. Ele havia dado a ideia e não ia gostar de ser esquecido.

O sacerdote franziu a testa com uma expressão interrogativa nos olhos.

— Não creio que meus amigos vão apreciar receber dois intrusos ao mesmo

tempo.

Kara passou a língua sobre os lábios num gesto nervoso e se desculpou:

— Eu não devia ter pedido. Serei grata se puder conseguir uma visita ao

seu amigo e família só para mim.

— Vou tentar. Creio que serei bem-sucedido.

— Como vou saber quando poderei vir? Você me encontrará aqui?


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— Vou fazer o pedido hoje à noite. Se ele concordar, direi que você estará

aqui dentro de uma semana. Está bem assim?

— Claro! — foi a resposta rápida de Kara. — E muito obrigada por tudo.

Ele parecia ansioso para terminar seu trabalho e Kara resolveu esperar por

Tommy no outro pátio.

— Você já vai? — perguntou, quando ela colocou os óculos escuros.

— Sim, não devo atrapalhá-lo mais. Selamat siang, pak. Terimi kasih.

Ele respondeu com um sorriso enigmático.

— Não me agradeça ainda. Não fiz nada.

Ela voltou-se e saiu lentamente do pátio, passando pelo portão que

separava o mundo espiritual do material.

Tommy voltou e a levou para o hotel. Ela resolveu dar uma volta pela praia

e aproveitar o entardecer, que era sempre um espetáculo maravilhoso! Seus olhos,

no entanto, estavam fixos no ponto onde ela acreditava ser a casa de Charles. O

portão, alto e decorado, abria-se diretamente para a praia dourada. As

árvores e arbustos eram cuidadosamente colocados ao lado do portão,

escondendo a casa.

Kara ficou imaginando um caminho sinuoso até a entrada da casa. A

imagem era muito vaga e ela sentiu vontade de ver além do portão, só para saber

em que tipo de lugar Charles vivia. Quem sabe, um dia, ela teria coragem de

atravessar aquele portão e entrar no jardim, mesmo que só por um pouco.

O sol estava desaparecendo no horizonte e ela decidiu que era hora de

voltar ao hotel. No entanto, os raios dourados refletidos no mar atraíram sua

atenção e ela se sentou novamente. A cada momento uma nova nuança de cor

surgia no horizonte. E, à medida que o sol declinava, seus raios dourados

refletiam as cores, que iam desde o rosa-pálido até o púrpura. A noite se

aproximava.

Sozinha na praia rodeada de palmeiras, ela se sentia como numa ilha

deserta. Estava só, com os deuses e espíritos bons e maus, que flutuavam à sua

volta, invisíveis e misteriosos como o anoitecer. Uma vela triangular atravessou o


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mar, invadindo a sua intimidade. Um barco apareceu e, dentro de instantes, o

horizonte ficou repleto de barcos navegando ao sabor da brisa, cada um deles

com a figura legendária do peixe elefante esculpida na proa. Seus donos

procuravam por tartarugas, um manjar que somente pessoas muito ricas podiam

saborear.

Depois de algum tempo Kara levantou-se. Em vez de ir para o hotel, seus

passos a levaram pela praia até o portão da casa de Charles. Quando finalmente

o alcançou, ficou indecisa. Com as mãos trêmulas abriu o portão e o empurrou

silenciosamente. Tudo estava calmo e tranquilo. Por que ela quis ir até a casa ou

como encontrou coragem para fazê-lo, Kara jamais conseguiu descobrir. Ela mal

conseguia lembrar de seus passos conduzindo-a pelo caminho cheio de curvas.

De repente parou espantada, pois estava quase dentro de uma sala

iluminada apenas pelo luar. Como se tivesse levado um choque, voltou-se com a

intenção de fugir imediatamente, mas, por alguns instantes, não conseguiu se

mover. Quando o fez, sentiu que não estava só. Vergonha e culpa refletiam-se em

seus olhos quando ela viu o rosto selvagem do homem que tanto amara.

— O que você está fazendo aqui? — ele perguntou com raiva, enquanto ela

se encostava na parede, amedrontada pelo seu tom de voz. Dirigiu-se a ela como

a um intruso que viera profanar a sua propriedade. — Como você se atreve a vir

aqui para espionar-me?

Ela balançou a cabeça negando, pois não conseguia dizer uma só palavra.

— Eu não o estava espionando, Charles — conseguiu dizer, afinal. Suas

mãos se estenderam para ele, suplicantes. — Nem sei por que entrei no seu

jardim... — Fez uma pausa, agradecendo à penumbra, que escondia seu rosto

rubro de vergonha e humilhação. Os olhos dele estavam frios e penetrantes

quando finalmente a encarou.

— Saia da minha propriedade! — ele gritou. — Saia de uma vez!

— Sim... sinto muito, Charles. Não pretendia perturbar sua paz, sua

intimidade — ela murmurou, como a um estranho, ou no máximo a alguém que

mal conhecia. — Foi só um impulso, Charles. Eu estava sentada na praia, quando


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a lembrança de sua casa surgiu em minha mente. Então vim caminhando

automaticamente. Abri o portão e... — Ela parou e franziu a testa. — Realmente

não posso explicar. Mas, creia-me, sinto muito. Estou errada e só posso lhe pedir

desculpas e mais uma vez dizer que sinto muito.

Bastante envergonhada e com as faces em chamas, voltou-se e começou a

correr. Agora estava escuro, e as sombras das árvores tornavam o caminho mais

sombrio. Kara corria mais por instinto do que pelo senso de direção, tentando

encontrar o portão. Ela podia ver o metal trabalhado, que enfeitava a parte

superior, delineado contra o céu escuro. Estava quase alcançando a saída quando

tropeçou numa raiz que atravessava o caminho e caiu, batendo a cabeça. Um

grito de dor e desespero escapou de seus lábios. Quando tentou se levantar,

sentiu que todo o seu corpo doía.

— O que aconteceu? — Era Charles que estava ao seu lado. Suas mãos a

tocaram e no mesmo instante se afastaram, como se ela fosse algo repelente. O

orgulho fez com que Kara, apesar da dor, se sentasse. Mas ele, ajudando-a

novamente a se levantar, sem qualquer aviso tomou-a nos braços e começou a

andar em direção à casa.

Os dois estavam envolvidos em seus próprios pensamentos. Ele, tentando

imaginar o que ela estava pensando. Ela, preocupada pela falta de emoção

naquele contato físico com o homem que, no passado, podia levá-la às alturas

com um simples toque em seu corpo.

Entraram por uma porta lateral e Charles deixou-a no sofá.

— Sinto muito por todo este trabalho. Acho que posso dar um jeito de voltar

ao hotel — Kara falou, embora seu corpo todo ainda estivesse dolorido. A dor de

cabeça parecia aumentar a cada pulsação, e ela tinha vontade de fechar os olhos.

— Você está machucada? — Não havia mais aquele tom frio em sua voz,

mas ela continuava impessoal.

— Minha cabeça está doendo. Acho que, ao cair, bati na calçada.

Ele estava ao seu lado, olhando-a com uma estranha expressão. De repente

ela ficou com medo, como se pressentisse um grande perigo.


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— Vou preparar uma bebida para você.

Kara se levantou assim que ele saiu da sala, observando seus movimentos.

Havia um ar de distinção e até de arrogância nas maneiras dele. Charles Millard,

o homem que ela conhecera, sempre atraía a atenção de todos. Em qualquer

lugar que estivessem, as mulheres costumavam olhar com inveja para a garota

que o acompanhava e os próprios homens o invejavam.

Ele voltou e ela ficou pensando em por que ainda estava ali. Tinha pensado

em fugir quando Charles saíra da sala, mas não o fez e agora ele voltava trazendo

um copo sobre uma pequena bandeja de prata.

— Isso vai curar sua dor de cabeça.

Kara olhou para o copo com uma súbita e inexplicável suspeita.

Mas, afinal, o que estava errado com ela? Charles iria lhe dar uma dose de

veneno?

Agradecendo, levou o copo aos lábios e bebeu até a última gota.

— Acho que estou bem, agora — Kara assegurou, tentando sorrir. Mas não

conseguiu. Seus lábios tremeram e ela inclinou a cabeça, tentando superar a dor

que sentia. — Sinto muito. Se você me mostrar o caminho... — ela falou

envergonhada, procurando a saída. Assim que descobriu a porta, começou a

caminhar em sua direção. Conseguia visualizar alguns objetos na sala,

começando pela beleza da mobília, que era totalmente entalhada. Era, sem

dúvida, um trabalho nativo.

Notou as cortinas até o chão, os ornamentos chineses que, sem dúvida,

tinham vindo de sua casa em Cingapura. Da casa onde tinha vivido com a

mulher, tão profundamente amada que a sua perda tinha lhe tirado a vontade de

viver. Chega a ser irônico, Kara pensou, que ele tenha odiado a ideia de se casar

com Tracy... Kara decidiu cortar estes pensamentos; não trariam nenhum

resultado, pois o passado já se fora... assim como o amor que existira entre eles.

— É melhor você ficar aqui mais um pouco. A praia está muito escura

agora. A maré deve ter deixado muitos corais na areia, e pode ser perigoso. Você
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poderia tropeçar outra vez e cair. — Não havia ansiedade em sua voz; era um

convite impessoal, feito com educação e sem qualquer outro motivo especial.

Kara hesitou. Parte dela queria ir embora, mas a outra metade desejava

ficar. Sim, o tempo e a distância não haviam roubado o magnetismo de Charles.

Apesar de sua aparência malcuidada, ele ainda possuía algo que a atraía.

— Sinto que devo ir, já lhe dei muito trabalho. — Seu rosto estava pálido e

seus lábios tremiam. A dor de cabeça não passara.

— Sente-se, Kara — ele falou com delicadeza, mas ela entendeu que era

uma ordem. Kara olhou primeiro para seu rosto cansado, depois para o sofá ao

seu lado. — Eu disse... sente-se.

Ela obedeceu, percebendo que seu coração batia mais rápido.

— Eu não quero ficar!

— Mas vai ficar. — Seus lábios formavam uma linha estreita e cruel, e seus

olhos estavam quase fechados.

Fascinada, ela não podia desviar o olhar do rosto dele. Seus cabelos já

mostravam alguns fios prateados e havia algumas rugas em volta do olhos, sob o

bronzeado uniforme que adquirira após tantos anos na ilha. Sem perceber, Kara

balançou a cabeça, tentando fugir daquela atração que ele exercia sobre ela.

Charles aproximou-se e tomou suas mãos, fazendo-as estremecerem.

— O tempo fez várias mudanças em mim, você está notando e não gosta do

que vê! — Seus lábios sorriam de um modo detestável. — Você estremeceu só de

olhar para mim, mas não costumava ser assim, não é? — A voz dele estava mais

suave e ela sentiu que ele não conseguia manter aquele tom cruel. — Lembro-me

que, quando você não podia ver-me com frequência, costumava dizer que o seu

maior desejo era que eu não precisasse trabalhar quando nos casássemos, assim

poderíamos ficar juntos o tempo todo. E hoje você estremece e quer fugir. — Ele

parou por um momento.

Kara sentiu que a pressão dos dedos dele aumentava, e estava machucando

seu pulso, mas não fez qualquer movimento para libertar-se.


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— O tempo mudou você também, Kara, e para melhor. Você está mais linda

do que nunca. — Uma das mãos dele tocou seus cabelos, seu rosto, acariciando-a

com ternura antes de se mover para seu pescoço, onde se fechou vagarosamente.

O medo tomou conta dela e, num gesto repentino, levantou a mão e a

colocou sobre a dele. Kara sentiu que Charles estremecia e, antes que ela pudesse

perceber o que estava acontecendo, ele a envolveu em seus braços. Seus lábios

passaram rapidamente do rosto para a boca, num beijo apaixonado e brutal...

sem nenhum traço de amor ou ternura.

Ela lutou para se libertar, esquecendo-se da dor de cabeça e da agonia que

sentia. A boca de Charles, ainda cruel, continuava pressionando a sua, num beijo

interminável. Kara sentiu que ia desfalecer se ele não a soltasse imediatamente.

Finalmente ele a deixou e, por um momento, ela ficou paralisada pela

atitude selvagem que o dominara. Em seguida, a aparência dele mudou, assim

como seus modos. Kara viu o momento em que ele passou a mão nos olhos, como

se estivesse atordoado e quisesse focalizar as coisas novamente.

— Sinto muito. Não sei o que aconteceu comigo — ele falou num tom

impessoal.

Kara respondeu e em sua expressão havia compreensão e delicadeza:

— Há muito tempo que você está sofrendo, Charles. — Novamente, ela se

sentiu mais velha do que ele. — Você não pode viver se lamentando para sempre

— acrescentou gentilmente, ao sentir o silêncio e a ausência da resposta.

— Para sempre... — Ele fechou os olhos, como se a dor fosse insuportável.

— Quanto tempo é para sempre? — Ele não estava mais ali; Kara tinha certeza de

que estava com Tracy, sua adorável esposa... e estas lembranças o crucificavam.

Kara levantou-se e saiu silenciosamente da sala. Ele ainda estava perdido

em seus pensamentos quando ela se voltou, antes de desaparecer no jardim. Kara

ficou imaginando se ele notara sua saída. Como o caminho estava bastante

escuro, Kara preocupou-se tão-somente em chegar ao hotel o mais rápido possível

e sem nenhum contratempo.


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Por sorte, não houve nada mais grave, e no dia seguinte Kara estava

totalmente recuperada das dores no corpo e na cabeça.

Hugh e os outros já estavam comendo quando ela entrou no restaurante.

Kara tomou café com torradas e participou da conversa. Sua mente, no entanto,

estava ocupada, refletindo sobre os acontecimentos da noite anterior. Ela gostaria

de saber se Charles estava se sentindo melhor naquela manhã. Esperava que não

estivesse com muito remorso por aquele momento de fraqueza. Pensou em Ni

Made, a jovem e bonita garota nativa, e desejou que se casassem. A vida de

celibato não era para um homem como Charles.

Os pensamentos de Kara foram interrompidos por seus companheiros que

pediam sua opinião no assunto que discutiam. No entanto, sua mente continuava

voltada para Charles e seu momento de fraqueza... Então ela sentiu que tinha

estado muito próxima do perigo...

O sangue coloriu suas faces e ela continuou a imaginar o que poderia ter

acontecido se Charles não tivesse parado a tempo. Ele ainda tinha um controle

excepcional; e ela não teria sido uma boa companhia, especialmente quando ele

estava tão desesperado.

Hugh estava falando com ela e Kara procurou prestar atenção às atividades

que iam se realizar naquele dia. Eles deveriam visitar uma fonte sagrada em

Tampaksiring, onde, de acordo com a lenda, Indra, o deus das águas, ferira a

terra para criar a fonte, que por causa disso tinha poderes mágicos. Os balineses

de toda a ilha vinham para a cerimônia de purificação. Numa noite de lua cheia,

uma pedra seria levada da vila de Manukaya para ser limpa pelas águas da fonte.

— Apenas para provar como um costume pode ser mantido através dos

séculos, os balineses têm visitado esta fonte por mais de mil anos, se bem que a

pedra usada nas cerimônias foi descoberta muito recentemente.

Os olhos de Kara brilharam de espanto e curiosidade.

— Qual a data da pedra? Acredito que havia uma data, não?

— Sim, ela está datada do ano 962 a.C. E este povo tem mantido a tradição

desta cerimônia verbalmente por mais de mil anos.


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— É inacreditável! — disse Kara. — Todos os dias aprendemos algo

fantástico sobre o povo desta ilha.

O dia seguinte foi passado na capital, Denpasar, onde diversos templos e

santuários foram visitados.

No outro dia Kara foi com Hugh à sinistra caverna dos morcegos e depois

ao vulcão sagrado, Gunung Agung.

E assim se passou a semana. Não houve tempo sequer para meditações.

Kara teve alguns poucos momentos livres, até chegar o dia de seu compromisso

com o sacerdote, no templo em Batubulan.

Chegou na hora combinada e encontrou o sacerdote esperando-a. No

mesmo instante começou a desculpar-se, pensando que estava atrasada, mas ele

a interrompeu com um gesto.

— Não se preocupe. Estou aqui desde hoje cedo. Tenho muito trabalho para

fazer.

Ela percebeu que ele estava limpando algumas estátuas e pensou que era

perda de tempo, uma vez que logo estariam cobertas de limo outra vez.

— Já combinei com meu amigo. Podemos ir agora mesmo.

— Ótimo. Fico muito agradecida.

— Procure dar só algumas moedas para as crianças. Os turistas não devem

dar muito dinheiro aos nossos jovens, senão eles passarão a esperar sempre por

isso, como acontece nas outras ilhas.

— Farei como diz — ela prometeu e ficou contente por ter trazido bastante

dinheiro trocado na bolsa.

— Você talvez sinta vontade de ajudar esta gente, mas, lembre-se, eles não

vão gostar de perceber sua compaixão. Eles comem arroz três vezes por dia e se

sentem satisfeitos com isso.

Ela franziu a testa inconscientemente e repetiu:

— Três vezes por dia? Todos os dias do ano, você quer dizer?
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— Exceto nos dias de festa. Mas lembre-se de que temos muitas festas por

aqui.

— E verdade.

— Nossas crianças são alegres e felizes. Você já viu alguma que lhe pareça

subnutrida?

— Não, realmente não vi Pelo contrário, elas me parecem muito bem

alimentadas e saudáveis.

— E são felizes, também- — Dizendo isto, o sacerdote deu por terminada a

limpeza das estátuas e, pedindo a Kara que o acompanhasse, dirigiu-se para o

portão de saída.

As crianças olhavam com curiosidade para ela enquanto caminhava pelas

ruas da vila com o velho sacerdote. Kara notou, divertida, aqueles grandes olhos

escuros nas faces morenas e sorridentes. Um estranho sentimento de paz e

contentamento tomou conta de si, enquanto caminhava sob aquele sol

maravilhoso.

O sacerdote parou junto a um pequeno portão num muro de barro.

Abrindo-o, ele entrou e Kara o seguiu imediatamente, com os sapatos afundando

no mesmo barro que cobria a casa.

Procurou esconder sua surpresa ao verificar a pobreza do lugar e sorriu. O

sacerdote falou com a família reunida à sua frente. Eles estavam imóveis, o pai, a

mãe e três crianças, todos vestidos com roupas bastante velhas e sem nada nos

pés. O homem era alto e vestia apenas um calção. A mulher tinha uma saia longa

e escura e estava nua da cintura para cima. O garoto sorriu alegremente quando

Kara tirou sua câmera da bolsa. Ele vestia um calção, como seu pai; suas duas

irmãs usavam vestidos velhos e desajeitados, que não pareciam delas.

O sacerdote continuava falando com a família, que não tinha se movido,

desejando ser fotografada

— Eles a convidam para uma visita pela casa — disse o sacerdote depois

que Kara tirou as fotos. — Venha, este é o santuário da família; você pode ver as

ofertas, não são lindas?


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— Sim. — Kara lembrou-se de ter visto aquele tipo de oferta sendo feito no

mercado em Denpasar e perguntou ao sacerdote se as pessoas daquela casa

compravam as suas ofertas ou elas mesmas as preparavam.

— Elas compram.

Kara não pôde deixar de sentir pena. O dinheiro poderia ser usado para

coisas mais necessárias.

Olhou para o santuário mais de perto, quando o sacerdote falou que ali

ficaria o corpo de qualquer um que morresse na família.

— Mas não por muito tempo, certo?

— Algumas vezes o corpo não é enterrado enquanto espera pela cerimônia

de cremação, mas fica aqui. As pessoas normalmente gostam de ter os entes

queridos em suas comunidades.

Chocada, Kara pensou na cerimônia em si e disse:

— Mas, neste calor, o cheiro seria insuportável!

— No começo, sim — ele concordou. — Porém, depois de dois ou três

meses, não cheira mais.

— Dois ou três meses? — Kara não pôde evitar uma expressão de espanto e

repulsa.

— Algumas vezes, se eles podem, compram essências para jogar sobre o

corpo.

Ela tirou mais fotos, da cozinha e de outras dependências. A casa era

totalmente rodeada por muros cobertos de barro.

— Creio que já vimos tudo. Posso dar o dinheiro para as crianças agora?

Ele assentiu e chamou um deles, falando em voz baixa. Ninguém dirigiu a

palavra a Kara e ela pensou que naturalmente não sabiam inglês. Entregou-lhes

as moedas, notando a hesitação e a timidez com que as crianças recebiam o

presente. Lembrou-se de umas férias que passara na Tunísia, e das crianças

pedindo dinheiro o tempo todo e gritando quando não eram atendidas.


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— Terima kasih — disseram os três ao mesmo tempo. Depois, com mais

bravura que os outros dois, a garota menor se aproximou com os olhos fixos na

bolsa de Kara, que estava aberta, e perguntou timidamente:

— Boleh saya lihat?

Kara olhou para o sacerdote, esperando que ele repetisse o pedido em

inglês.

— Ela está perguntando se pode dar uma olhada em sua bolsa.

— Claro que sim! — Abriu a bolsa, observando os olhos fascinados da

criança, enquanto fitava todos aqueles objetos.

Kara pegou uma caneta bastante decorativa e deu a ela. A outra garota

recebeu um pequeno espelho totalmente trabalhado numa casca de tartaruga. O

garoto olhava, sem inveja ou desconsolo.

— O que poderei dar a ele? — ela murmurou. — Ah, isto deve agradá-lo! —

Retirou um pequeno livro de notas com uma caneta presa por um cordão de seda.

Era um presente de Natal de um colega de trabalho e Kara jamais o usara

Os olhos do garoto iluminaram-se quando ela entregou o presente.

— Terima kasih! Bagus!

O sacerdote despediu-se pelos dois e saíram. No entanto, antes que

chegassem ao portão, encontraram uma jovem excepcionalmente bonita, que

caminhava em sua direção, sorrindo. Seu sarong colorido parecia um raio de sol

em contraste com a penumbra do local.

— Selamat siang, pak!

— Ah, minha criança — ele respondeu em inglês — venha conhecer,uma

pessoa que conhece seu amigo inglês Charles Millard. Sra. West, esta é Ni Made,

de quem já lhe falei outro dia.

Capítulo VII
84
Sabrina 132

Ni Made... Kara repetiu o nome mentalmente, fascinada com a estranha

beleza da garota, a perfeição de suas formas e o maravilhoso cabelo escuro e

longo. Seus ombros, assim como seus pés, estavam desnudos.

— Como vai você? — Kara disse suavemente, com os pensamentos voltados

para Charles, que um dia teria esta adorável criatura como esposa. Mas esta não

era uma noiva para um homem como Charles, marcado por tanta amargura; um

homem duas vezes mais velho do que ela e cujo ressentimento pela morte da

esposa era tão forte quanto há quatro anos.

— Você conhece Charles? — a garota falou num ótimo inglês, com um

sotaque encantador. — Ele é meu melhor amigo. Direi a ele que a conheci. — Ela

estendeu a mão e Kara a cumprimentou.

Gostaria de pedir à garota para não mencionar esse encontro casual, mas

não teve jeito para isso. Bem, se Charles descobrisse que ela conhecera a garota

com quem pretendia se casar, o que poderia dizer? De qualquer maneira, Kara

tinha um estranho pressentimento de que não se encontrariam outra vez. Eles só

tinham mais seis semanas ali e Hugh já havia advertido a equipe de que estavam

atrasados com a programação original e teriam que colocar seu trabalho em dia.

Entretanto, Kara e Charles acabariam se encontrando novamente dentro de

poucos dias. Hugh não estava totalmente satisfeito com a visita dela e decidira

que ele mesmo precisava conhecer uma daquelas casas.

— Não é que esteja reclamando de seu trabalho. Suas anotações são

excelentes — Hugh falou, quase se desculpando. — Simplesmente acho que,

como chefe da expedição, devo visitar uma dessas casas pessoalmente. Além

disso, gostaria de filmar, se nos permitissem.

— Sim, eu compreendo. Eu também não fiquei muito contente quando o

sacerdote não concordou em levar mais alguém. No entanto, aceitei, como já

expliquei, porque me pareceu que devíamos ter ao menos algumas fotos.

— E foi um excelente trabalho, Kara. Mas, como já disse, devo ver com

meus próprios olhos. — Ele fez uma pausa, observando-a. — Pedi-lhe para falar
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Sabrina 132

com Gareth novamente, más parece que você não gostou muito da ideia. Acho que

vou entrar em contato com ele pessoalmente.

Kara não gostou da ideia, mas procurou falar com indiferença:

— Se é isso ó que você deseja, por que não?

Nada mais foi dito a este respeito até o final da tarde. Depois de passar

mais de três horas no escritório, discutindo vários assuntos e tomando ditados,

Kara foi informada de que Hugh tinha sido convidado para um jantar dançante

no Kapalan Hotel, e que Gareth havia sugerido que à levasse.

Sua primeira reação foi de recusa. Lembrando-se, no entanto, de que

estava realizando um trabalho muito importante, mudou de ideia. Além do mais,

Hugh poderia ordenar que o acompanhasse para tomar notas, ou por qualquer

outra razão. Ela sabia que Hugh não hesitaria em fazer algo assim, se ela se

recusasse.

A sala onde seria realizado o jantar tinha uma vista maravilhosa da praia

dos corais e do mar. Palmeiras e outras árvores formavam um jardim logo após as

janelas e o perfume penetrava na sala suavemente.

Gareth cumprimentou Kara e Hugh com um sorriso de boas-vindas.

Conduziu os dois para um aperitivo antes do jantar e em seguida para a mesa

onde foi servida uma comida típica da Indonésia: lagostas à Taj Mahal.

Logo após, Hugh e Kara foram dançar.

Foi durante o segundo prato que Gareth falou:

— Não consegui nada até agora, mas gostaria de apresentá-lo ao meu

sócio. Ele tem muita amizade com várias famílias daqui, tanto ricas como pobres,

e... — Gareth falava com Hugh mas observava Kara discretamente. — Talvez ele

não goste de saber que eu mencionei isso, mas ele costuma ajudar o pessoal mais

pobre. Charles não costuma ser muito social e pode não querer nos ajudar. Mas,

como já disse a Kara. se você quiser podemos tentar.

— Você já mencionou isso a Kara? — Hugh virou-se para ela com um olhar

surpreso e interrogativo.
86
Sabrina 132

Kara sentiu-se corar mas ficou calma. Afinal, ela já esperava que isso fosse

acontecer.

— Não queria pedir ao Charles...

— Charles? — Hugh interrompeu, levantando as sobrancelhas. — Você o

conhece, então?

Ela engoliu com dificuldade, tentando encontrar as palavras adequadas

para responder.

— Sim, nós nos conhecemos há alguns anos, na Inglaterra.

— Entendo... — Hugh bebeu seu vinho, pensativo, observando-a com

interesse. — É óbvio que você e Charles não estão nos melhores termos de

amizade.

— Não é bem assim. Gareth já disse que ele é quase um eremita. Falei com

ele quando nos encontramos aqui no hotel, por acaso. Depois o encontrei na

praia, e nas duas ocasiões percebi que não iria nos ajudar. Ele é da opinião que

viemos aqui para espionar os nativos e acha que gente como nós trará uma

mudança radical nos costumes simples e na vida dos nativos.

Ficaram em silêncio alguns momentos, antes de Gareth dizer:

— Eu estava sabendo disso, do medo de uma mudança. Ele acha que o

turismo vai trazer um efeito negativo ao povo da ilha.

Kara pegou seu copo de vinho, mas ficou apenas girando-o nas mãos,

brincando com o brilho das velas sobre o líquido. Estava pensando num outro

país, a Tunísia, onde ela estivera. E teve certeza de que aquelas crianças

atrevidas, não muito tempo antes, eram tão agradáveis como as de Bali. O

turismo as havia transformado em pedintes mercenários. Elas procuravam as

coisas boas da vida, só que de maneira errada.

— Há uma grande preocupação com respeito a esse problema. — A voz de

Hugh trouxe Kara de volta de suas recordações. — Os amantes de Bali em todo

mundo estão ansiosos para que a ilha permaneça exatamente como é.


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Sabrina 132

— Principalmente porque está entre os poucos lugares do mundo onde a

influência ocidental não se infiltrou ainda — complementou Kara e os dois

homens concordaram.

— Não viemos aqui para espionar. Sou primeiro um antropólogo e por

último um escritor.

— Mas você pretende escrever um livro sobre Bali, não é?

— Sim, tenho que admitir.

— As pessoas que lerem seu livro vão desejar vir até aqui, sr. Nowell. A

demanda só será satisfeita com a construção de muitos hotéis. Sim, eu sei que

temos alguns, mas nada parecido com as ilhas do Mediterrâneo; não temos uma

infra-estrutura para turismo... ainda não!

Hugh balançou os ombros. Kara o observava, imaginando se ele se

preocupava realmente com o problema. O seu livro, ele esperava, daria muito

lucro, e talvez esta fosse sua única preocupação. Provavelmente ele nunca mais

voltaria a Bali. Sendo assim, não faria a menor diferença se a cultura da ilha

fosse seriamente prejudicada.

— Você gostaria que eu o apresentasse a Charles Millard? — Gareth

perguntou a Hugh.

— Sim, gostaria muito. Ele poderá recusar o pedido, mas acho que vale a

pena tentar.

— Ele deverá chegar às nove horas, temos tempo para terminar o jantar.

— Claro.

A conversa se tornou mais generalizada depois disso e Hugh e Gareth

falavam entre si. Kara estava perdida em seus pensamentos. Seu único desejo era

fugir. Será que Charles estaria envergonhado? Se estivesse, não demonstraria

nada. E ela? Ficaria envergonhada? Afinal, tinha invadido sua propriedade, sem

nenhuma razão. Bem, o mais provável é que os dois acabassem se encontrando

sem grandes embaraços.


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Sabrina 132

Uma hora e meia mais tarde, Kara estava sentada numa poltrona na

mesma sala que Charles a levara na semana anterior. Ele enviara um recado a

Gareth, convidando os dois para subir até sua casa, pois não estava disposto

para sair naquela noite.

O pedido preocupou Kara e mais uma vez ela teve vontade de fugir. Mas

tinha de enfrentar o encontro e, para sua surpresa, estava totalmente relaxada

agora. Meditava sobre tudo isso recostada na poltrona. Seu cabelo, solto e

brilhante, caía como ondas delicadas sobre seus ombros. O único adorno que

usava era uma flor branca, cujo perfume discreto podia ser sentido todas as vezes

em que movia a cabeça.

Charles olhou longa e duramente para ela quando chegaram, mas agora só

lançava de quando em quando um rápido olhar, enquanto conversava com Gareth

e Hugh. Ele serviu bebidas para os visitantes, embora não estivesse bebendo

nada. Isto era algo que não mudara nele. Charles nunca fora de beber, com

exceção de vinho durante o jantar ou um aperitivo antes. Kara tinha na mão um

cálice que mal tocara. Sua atenção estava totalmente voltada para a conversa.

— Quando as escolas e o conhecimento invadirem esta nova geração, eles

se modificarão automaticamente. Não é o turismo que vai transformar Bali, mas a

educação. Creio que vocês já têm algo parecido com os professores de Java. Eles

vêm a Bali periodicamente, mas não será assim para sempre. Veja nosso garçom;

ele estuda Direito. Será que vai se contentar em morar numa dessas

comunidades?

— Você poderá argumentar tanto quanto queira, mas minha opinião é de

que o turismo vai destruir a beleza da ilha — foi a resposta franca de Charles.

Havia certeza em suas palavras e Kara viu por alguns momentos o Charles

de antigamente. Ela sempre soube que ele seria o chefe da casa quando se

casassem.

— Então, você não pretende me ajudar?

— De maneira alguma, sr. Nowell.


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Sabrina 132

Hugh não gostou da resposta e Kara percebeu que ele se controlava com

dificuldade.

— Sinto muito, foi apenas uma ideia — foi o comentário de Gareth.

— Bem, podemos conseguir alguém para nos ajudar. — Hugh olhou para

Kara. — Temos as informações que você já conseguiu. Creio que será o suficiente

e poderemos enriquecê-las com mais detalhes.

Suspeitando de que era mais para Charles que ele falava, pois estava com

raiva, Kara não disse nada. Pelo jeito, Charles não tinha visto Ni Made desde a

visita dela a Batubulan.

— Você já conseguiu alguma informação? — Charles perguntou, surpreso.

— Sim, visitei uma dessas casas.

— Onde?

— Será que importa saber? — ela perguntou, percebendo a troca de olhares

entre Hugh e Gareth.

— Não. Só estava imaginando como você conseguiu entrar numa dessas

comunidades. Eles são muito reservados com estranhos.

— Kara conheceu um sacerdote — Hugh falou novamente, satisfeito em

poder atacar Charles, mesmo que só por palavras. — Foi ele quem a apresentou a
uma família muito pobre.

Os olhos de Charles fixaram-se em Kara com interesse.

— Como você conheceu um sacerdote? — Havia aquele tom duro e familiar

em sua voz, mas também curiosidade. — Como é que você conseguiu conhecer

um sacerdote?

Ela hesitou e Hugh respondeu por ela:

— Foi num templo em Batubulan. Ela explicou o caso e ele se ofereceu para

ajudar.

Outro choque para Charles, pensou Kara. Dando uma rápida olhada para

Hugh, percebeu de imediato sua satisfação. Isso já fora muito longe. Este tipo de

conversa não levava a nada. Será que Charles havia percebido? É claro que sim.

Ele era inteligente e já devia ter notado a raiva de Hugh e o desejo de irritá-lo.
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Sabrina 132

— Um sacerdote em Batubulan... — Charles murmurou para si mesmo.

Não tocou mais no assunto e a conversa passou a ser informal.

Na manhã seguinte, no entanto, Charles estava esperando por Kara na

praia. Assim que chegou, ele se aproximou e perguntou se ela sabia qual a família

que havia visitado. Kara percebeu imediatamente que ele estava ansioso por

informações e, sem dificuldades, relatou sua visita e o encontro com Ni Made.

— Soube pelo sacerdote que a garota é sobrinha do casal que visitamos.

— Por que você mencionou Ni Made?

— Bem, na minha primeira visita ao templo, conversei com o sacerdote e

ele me falou de sua afeição pela filha de um amigo dele. Creio que eram esses

amigos que você ia visitar quando me deixou, não?

— Sim — ele concordou depois de alguns instantes.

— Acredito que a família de Ni Made está em melhores condições

financeiras que seus tios.

— Sim, o pai dela é professor.

— Talvez você considere uma impertinência minha, Charles, mas posso

perguntar se o que o sacerdote disse é verdade?

Os olhos dele estavam ausentes, embora olhando para ela. Havia um misto

de ternura e surpresa quando respondeu:

— Que sou muito amigo de Ni Made, é isso o que você quer dizer?

— Sim.

— Sem dúvida alguma. Sou muito amigo dela.

— Ni Made é uma linda garota — Kara disse.

Outra vez o olhar dele foi intenso. Charles parecia estar analisando cada

detalhe do rosto dela. Seus olhos brilhantes, sua pele dourada, seu rosto tão

feminino. Os olhos dele pousaram então em seu cabelo, que balançava ao sabor

da brisa e refletia os raios do sol.

— Muito bonita.
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Sabrina 132

— O sacerdote parece pensar que você e Ni Made vão se casar — ela falou,

olhando para ele, mas não notou qualquer emoção.

— É possível.

— Será bom para você, Charles. — Sua voz era gentil, mas ele continuava

impenetrável. Kara mordeu o lábio até sentir que machucava. Como ele está

sofrendo! Kara gostaria de encontrar uma maneira de ajudá-lo. — A solidão é

péssima companheira — ela continuou, de maneira gentil. — Ni Made é uma

garota muito agradável. Creio que poderá ser uma excelente esposa. — Mas que

tipo de marido seria Charles? Pensando nisso e naquela criança tão sensível,

Kara se sentiu culpada. Tentava convencer Charles a se casar com ela, mesmo

sabendo que faria Ni Made infeliz em pouco tempo. Ele estava tão mergulhado em

seu sofrimento, tão sem sentimentos para com os outros... Não, ele nunca deveria

se casar. Mas o que seria de sua vida se continuasse assim?

Porque devo me preocupar assim?, Kara perguntava a si mesma, mais

tarde, enquanto terminava algumas anotações. Ele sempre se arranjou sozinho

antes e poderá continuar, depois que eu partir.

Mesmo assim, não pôde deixar de pensar cada vez mais em Charles. Sua

curiosidade a respeito da casa dele e de como vivia aumentava a cada dia.

— Será que posso tirar uma hora de folga? — pediu a Hugh uma semana

após sua visita ao Kapalan. Estava decidida a ter uma conversa séria com

Gareth. Não podia entender as razões que a levavam a se preocupar com Charles.

Mas sentia uma grande ansiedade e parecia lógico querer ajudá-lo. — Tenho um

problema para resolver — ela completou, quando percebeu que Hugh ia recusar.

— Problemas?

— Sim, é algo pessoal, Hugh.

— Tudo bem. Mas não se esqueça de que preciso de você à noite. Temos que

assistir a uma dança típica em outra vila.

— Sim, eu sei. Não vou demorar mais do que uma hora. No máximo uma

hora e meia.
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Sabrina 132

Ela não sabia se poderia encontrar Gareth àquela hora, mas para sua

satisfação ele se encontrava no hotel. Gareth a recebeu com um sorriso e

mostrou-se disposto a ajudá-la no que fosse preciso.

— Gostaria de lhe falar a respeito de Charles. Acho que ele está muito

malcuidado.

Gareth olhou surpreso para ela, não compreendendo o porquê da

observação.

— Por que esta súbita preocupação com Charles? — ele quis saber. Eles

estavam na entrada do hotel e ele indicou a varanda acima.

— Ele está muito negligenciado. Deve ter empregados, não? — perguntou,

assim que eles se acomodaram num canto da varanda.

Gareth não fez nenhum comentário de imediato. Seus olhos a observavam

e, quando ele finalmente falou, havia curiosidade em sua voz.

— Há uma série de atitudes controversas em você, Kara.

— Não sei o que você quer dizer com isso.

— Sabe, sim, Kara. — Gareth hesitou, mas só por alguns instantes. —

Algumas vezes sinto que não a conheço o suficiente para fazer perguntas; outras

vezes parece que a conheço muito bem. Mas tenho certeza de que há algum

mistério entre você e Charles. — Outra pausa e Kara lembrou que Hugh também

mencionara que devia haver algum mistério em sua vida. — Como já lhe falei

antes, se não fosse o fato de saber sobre a morte da esposa de Charles, e a

tristeza que o acompanha desde então, suspeitaria que vocês foram algo mais do

que simples amigos.

Outro silêncio antes que ela respondesse com voz baixa e grave:

— Será que podemos voltar ao motivo que me trouxe até aqui, Gareth?

Perguntei-lhe sobre os empregados de Charles.

— Está claro que o Charles que você vê agora é muito diferente do homem

que conheceu na Inglaterra, muitos anos atrás. — Gareth não considerou a

pergunta feita pela segunda vez. — Ele se vestia muito bem e andava com

elegância. Seu rosto era jovem e não apresentava as rugas de agora. Sua boca
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Sabrina 132

sorria com frequência; seus cabelos eram escuros e atraentes e não tinham

tantos fios prateados como agora. — Ele parou vendo como Kara empalidecera.

— Como você sabe disso? Deu-me uma descrição perfeita de Charles, como

ele era alguns anos atrás.

Gareth sorriu. Ele estava pensativo e deixou passar alguns momentos antes

de responder:

— Nada de especial, Kara. Acontece que vi uma fotografia que ele deixou à

vista por acaso.

— Uma fotografia? Quando você a viu? E como aconteceu isso? — Charles,

ela lembrava muito bem, detestava tirar fotos. Na verdade, não tinha nenhuma

para lhe dar quando ela pediu-lhe uma, para colocar sobre sua cômoda. Porém,

uma ou duas vezes, ela conseguiu convencê-lo a tirar alguns instantâneos. No

entanto, não se lembrava de ter dado algum deles para Charles. Ele normalmente

dava uma olhada nas fotos e devolvia para ela guardar. No entanto, sempre

guardava as fotos de Kara. Todas as suas fotos eram cuidadosamente guardadas

em um álbum com capa de couro, que sua mãe lhe dera como presente de

aniversário.

— É que um dia fui até sua casa sem avisar. Como ele não estava, entrei na

sala e vi a foto na mesa. Tenho a impressão de que caiu de algum álbum e ele não

se preocupou em guardar em seguida. Ouvi seus movimentos na sala que usa

como estúdio, saí imediatamente e fui para a varanda. Sei que ele detesta que

entrem em sua casa sem que ele convide. Fui até a porta da frente e toquei a

campainha. Charles abriu a porta e convidou-me para entrar, mas a foto não

estava mais na mesa quando cheguei na sala.

Devia ser alguma foto que ela mesma tinha tirado. Kara tinha certeza disso.

— Ele estava só?

Gareth inclinou a cabeça. Foi um gesto natural, mas tinha tal intensidade

que Kara percebeu e baixou os olhos.

— Sim, ele estava só. Se você está interessada, posso lhe adiantar que a

foto foi tirada na frente de um castelo.


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Sabrina 132

Kara sentiu o rosto em chamas depois da última frase.

— Sei que você está intrigado, Gareth...

— Sim, admito, Kara. Mas você não precisa me contar nada.

— Obrigada — ela murmurou com os pensamentos voltados para a foto que

Gareth tinha mencionado. É claro que ela se lembrava daquele castelo. Era em

Beaumaris, na ilha de Anglesey, onde ela e Charles tinham ido passar alguns dias

com amigos. Foram dias maravilhosos, com o céu azul e o sol brilhando para

combinar com a felicidade de seus corações. Por que as lembranças estavam tão

apagadas? Será que tinham sido esquecidas? Se assim fosse, por que voltavam

agora à sua mente?

"As lembranças são acontecimentos que sua mente armazena em pequenas

prateleiras. Elas poderão ser requisitadas sempre que você queira e vividas com

tanto prazer ou dor como quando não eram lembranças, mas sim realidade."

Alguém lhe tinha dito isso, quem sabe algum professor na escola.

Era verdade, e Kara concordava, pois sempre recorria às lembranças

quando se sentia muito só. Sim, muitas vezes, porque era só isso que ela tinha

para ajudá-la através dos longos anos à espera de seu amado Charles.

Mas, neste momento, o castelo de Beaumaris era bem real, assim como o

homem simpático e atraente ao lado de uma das colunas. Ela podia ainda ouvir

sua voz:

— O quê? Outra foto? Meu amor, logo você vai ter centenas de fotos. Diga-

me, o que pretende fazer com elas?

— Emoldurá-las e colocar em meu quarto!

— Não depois que estivermos casados, meu bem!

— É claro que não. Não vou precisar de fotos suas, então...

Tudo isso e muito mais. Um suspiro escapou de seus lábios e um sombra

de nostalgia invadiu seu olhar.

— Você estava querendo saber sobre os empregados de Charles? — A voz de

Gareth interrompeu seus sonhos... e as lembranças voltaram às suas prateleiras.

— Ele só tem uma criada, Kara.


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Sabrina 132

— Só uma? Naquela casa enorme?

— Metade da casa está fechada.

— E para que ele construiu uma casa tão grande?

— Tenho uma ideia do que aconteceu. Charles pediu a um arquiteto de

Cingapura para fazer a planta da casa. No entanto, não estava aqui quando

iniciaram a construção, e por alguma razão foram construídos três cômodos

extras. São muito bonitos, mas Charles queria que derrubassem tudo. Eu e outro

amigo conseguimos persuadi-lo a deixar a casa como estava. Charles concordou,

mas nunca mobiliou aqueles cômodos, ele simplesmente fechou as portas e

esqueceu-se deles.

— Esse empregado, é homem ou mulher?

— É uma senhora. Ela vai todos os dias, das oito da manhã às oito da

noite. -

— Entendo. Ela não mora lá. Mas, mesmo assim, ela poderia verificar se

Charles tem pelo menos uma camisa limpa e passada todos os dias!

— Minha querida Kara — Gareth adotou um tratamento mais íntimo —, se

você conhece algo sobre Charles, não poderá negar que ele sempre faz o que quer,

e não o que qualquer outra pessoa diga para ele fazer.

— Então ele faz questão de parecer abandonado e com essa aparência

horrível?

Gareth fez uma pausa, meditando no que ia dizer em seguida.

— Há rumores sobre uma garota nativa, Ni Made, mas talvez você não

tenha ouvido falar sobre ela. Não, você não deve saber, sendo uma turista aqui —

ele concluiu.

— Você está enganado, Gareth. Na verdade, ouvi a respeito dela e a conheci

também.

— Você a conheceu?

— Sim. É uma garota adorável e muito jovem.

— A maioria das garotas nativas são adoráveis e lindas quando jovens. Elas

mudam com o passar dos anos. A velhice chega muito mais rápido para elas do
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Sabrina 132

que para as inglesas. — Ele olhou para Kara, apreciando cada detalhe de seu

rosto. Ela encontrou seu olhar e esperou que continuasse. — Não creio que esse

casamento seja bom para Charles. Ela é tão feliz e descontraída, enquanto ele é

triste e mergulhado em amargura. Charles e Ni Made jamais seriam felizes. Para

ele seria apenas um casamento de conveniência, e ela é muito jovem para

compreender isso.

— Você tem visto Ni Made?

— Ela veio até a casa de Charles algumas vezes. Eu a vi no jardim,

colhendo flores.

— Devo admitir que também tenho dúvidas quanto ao sucesso desse

casamento — Kara falou, pensativa, dando um suspiro antes de continuar: — Por

outro lado, Charles precisa de uma esposa, Gareth. Isso não é vida para um

homem jovem como ele!

— Jovem? Quanto anos ele tem?

— Trinta e seis.

— Parece ter quarenta e seis — Gareth concluiu e depois, olhando

diretamente nos olhos dela, disse: — Então você sabe a idade dele, é?

— Sim, eu sei a idade dele...

Depois de um momento, no qual cada um ficou imerso em seus próprios

pensamentos, Gareth falou:

— Se você, algum dia, precisar de um ombro amigo para reclinar a cabeça e

um bom ouvinte, estarei sempre à sua disposição. E, além disso, pode ter certeza

de que sou o tipo de homem que sabe guardar segredos.

— Obrigada, Gareth. Não me esquecerei disso.

— Vou acompanhá-la até a saída — ele se ofereceu, quando notou que ela

se levantava para ir embora. — E, Kara...

— Sim?

— Venha sempre que quiser. Sou um homem ocupado, mas não a ponto de

não poder parar um pouco e tomar um aperitivo com você.

Ela sorriu, sentindo-se mais tranquila agora.


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— Você está sendo muito atencioso — ela comentou, sorrindo. — Não sei

por quê, mas só agora pude notar toda sua simpatia.

— Já lhe disse, tenho medo das mulheres.

— Muito obrigada! E eu, o que sou afinal?

— Uma adorável jovem senhora que tenho o prazer de ter como amiga.

Capítulo VIII

Nos dias que se seguiram, Kara teve muito pouco tempo para pensar em

Charles. Pela primeira vez, ela aceitou que não tinham mais nada em comum.

Não depois que ele confirmara seu amor pela esposa.

Mas, apesar disso, ela se preocupava com ele, com o futuro dele, ameaçado

por tanta tristeza e amargura.

— Kara, você não está anotando nada do que estou dizendo! — Hugh falou

com aspereza.

— Sinto muito. — Ela nem sequer levantou os olhos do caderno,

começando a anotar rapidamente. No entanto, estava consciente da impaciência e

aspereza contidas na voz de Hugh.

— Você está preocupada com alguma coisa — Hugh afirmou, quando

fizeram uma pausa para tomar o café costumeiro do meio da manhã. Ele a olhava

fixamente, aguardando uma resposta.

Surpreendida pela pergunta, ela não pôde deixar de revelar seus

sentimentos quando levantou os olhos para fitá-lo.

— Não sei o que você quer dizer com isso — respondeu, pegando sua xícara

de café.

— Você está querendo me dizer para cuidar dos meus próprios problemas,

certo?

Kara não respondeu, decidida a não dar qualquer oportunidade para novas

perguntas.
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No entanto, as palavras de Hugh alertaram Kara. Ela estava demonstrando

demais sua ansiedade e preocupação. Precisava redobrar os esforços para manter

as emoções bem escondidas.

— Vamos assistir a um festival num templo amanhã à noite. É a festa de

odalan. Você sabe que é o aniversário do templo, não?

— Sim, já ouvi falar desses festivais. Eles acontecem em cada vila da ilha,

para celebrar a consagração do templo. Em que vila iremos?

— Kapal, a oeste de Denpasar.

— Deve ser muito interessante. Será muito bom para nós. — Hugh recolheu

todos os papéis que estavam espalhados sobre a mesa, guardando-os no arquivo.


— Vamos ao templo "Pura Sada", que é o mais importante dessas redondezas. É o

santuário do fundador da vila, Ida Sanghyang Djajebrat.

Ela concordou, tentando se lembrar de tudo o que lera a respeito. De

acordo com a lenda, a vila de Kepal estava coberta pelo oceano. Ida, um nobre da

ilha de Java, era o capitão de um navio que naufragou nos recifes e ele e seus

homens se estabeleceram ali. Templos, monumentos e santuários foram

levantados mais tarde em sua homenagem. O templo "Pura Sada" era em

memória do espírito deste fundador.

— Esse festival será à noite, como já mencionei. Gostaria que amanhã cedo

você fosse até Gunung Kawi. Tire algumas fotos e anote tudo o que julgar

importante sobre o lugar.

Kara agradeceu a oportunidade de estar só. Ela não entendia por quê, mas

cada vez mais gostava de ficar sozinha. Em casa, apreciava a solidão, no fim da

tarde, depois de um dia atarefado no escritório, o que era bastante compreensível.

Ali, entretanto, parecia se irritar com qualquer companhia. Mesmo com Hugh,

que era seu patrão, e a quem devia a oportunidade de ter conhecido aquela ilha

maravilhosa.

Estou inquieta, mas não posso encontrar uma razão lógica para isso!, Kara

pensou.
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Da estrada, totalmente pavimentada com pedras, deu uma olhada para o

outro lado do vale. Tudo estava silencioso. Caminhou até um lugar onde podia ver

todo o vale e sentou-se extasiada com tanto encantamento. Contemplava tudo

com alegria e surpresa. Aquelas habitações misteriosas pareciam lembrar as

aparições de fantasmas. Este lugar místico era Gunung Kawi...

Subitamente sentiu-se tensa e, por alguns segundos, ficou imóvel. Virou a

cabeça, temerosa, pensando nos espíritos e demônios e no terror da magia negra.

— Oh! — Alívio e surpresa se misturaram em sua voz. Seu pulso se

acelerou e, sem perceber, ela colocou a mão no coração. Imaginava quanto o

destino ia brincar com ela e Charles.

A voz de Charles quebrou o silêncio:

— Outro encontro... tão inesperado! — Os olhos negros estavam frios, mas

Kara sentiu que ele também estava maravilhado com tantos encontros

inesperados. — Não preciso perguntar o que você está fazendo aqui. Já anotou

tudo o que queria?

Ela olhou para ele, sentindo muita pena. Começou falando com doçura,

depois do longo silêncio que os envolveu naquele vale mágico. Era um lugar cheio

de mistérios, com torres muito antigas construídas sobre a rocha sólida.

— Posso perguntar por que você está aqui, Charles? — Seu rosto, voltado

para o sol, tinha um bronzeado uniforme, contrastando com a luminosidade de

seus olhos e a beleza dos cabelos dourados.

— Venho aqui frequentemente — foi a resposta rápida e seca. Em seguida,

ele voltou-se para o vale e ficou imerso em seus pensamentos.

— Frequentemente... — ela repetiu para si mesma. — Você gosta da solidão

deste lugar?

— Sempre dou boas-vindas à solidão. — Uma vez mais, a resposta foi breve

e ele nem sequer se voltou para responder. Olhava para o vale mas não via as

torres ou o verde luminoso daquele imenso campo fértil.

Kara começou a falar com carinho e perseverança.

— Charles... diga-me algo sobre este lugar.


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Sabrina 132

Ele virou a cabeça em sua direção e Kara sentiu-se muito pequena. Do

lugar onde se encontrava ele tinha que inclinar a cabeça para olhá-la. Por um

momento não pareceu disposto a considerar seu pedido. Mas, para satisfação e

surpresa de Kara, ele se sentou numa pedra do lado oposto onde ela estava e

disse:

— O que você quer saber, Kara? — Sua voz estava mais suave e não havia

aquele brilho cruel em seus olhos. Se ao menos ela pudesse ajudá-lo, oferecer

conforto e simpatia... Tudo o que ele tinha precisado quando a esposa morreu.

Charles tinha ido para a Inglaterra, para a única pessoa que podia lhe oferecer

ajuda, e não a encontrara.

— Sobre as lendas, o folclore, ou qualquer outra informação que possa ser

útil para nós. — Ela parou, alerta para o fato de que Charles não estaria muito

disposto a ajudar Hugh em suas investigações. Entretanto, ele disse:

— Qualquer coisa que possa ser útil para o livro do seu chefe, não é?

— Sim. Se você pudesse me ajudar...

— Você não tem medo? — Seus olhos se encontraram com intensidade.

— Do quê?

— De mim.

— Ainda não entendo.

— É muito solitário aqui, apenas nós dois ocupando o domínio dos

espíritos. — Ele estendeu as mãos, indicando todo o vale. — Eu poderia molestar

você. — As palavras eram casuais, apesar do tom ousado.

Mas a expressão dele era de expectativa e Kara teve a incrível sensação de

que Charles a estava convidando para aceitar seu amor, naquele lugar e naquele

momento. Seus próprios pensamentos, mais do que as palavras dele, a fizeram

corar. Os olhos de Charles se estreitaram, como se ele estivesse relembrando algo.

Ela mesma estava perturbada com as lembranças dos momentos em que

estiveram juntos no passado. Kara podia sentir a sensação dos braços dele

envolvendo seu corpo com paixão, possuindo-a a cada beijo. Sim, sabia que faria

tudo o que Charles pedisse.


101
Sabrina 132

Será que agora ela poderia confortá-lo fisicamente? Um sentimento de pena

a invadiu. Talvez pudesse confortar Charles espiritualmente. Pensando assim,

respondeu com tranquilidade:

— Não acho que você vá me molestar, Charles. Você não é esse tipo de

homem. — Pensou que ele podia, mencionar aquela tarde, quando ela invadiu a

casa dele, mas Charles não disse nada. Em vez disso, perguntou o que ela queria

saber a respeito daquele lugar fantástico, onde eles eram as únicas pessoas

presentes, no momento.

— O que são exatamente aquelas torres?

— Por algumas inscrições encontradas pelos arqueólogos, concluiu-se que

as torres foram construídas em memória do rei Udayana e de toda a sua família.

Os olhos de Kara demonstravam claramente seu interesse pela narrativa.

— Os nomes dessas pessoas estão gravados nas pedras?

— Sim, estão.

— Você sabe quais são esses nomes?

— Alguns deles. — Ele fez uma pausa; ela aproveitou para examinar sua

fisionomia, procurando desesperadamente por um sinal de paz interior. Algo que

pudesse dizer a ela que conseguira amenizar seu sofrimento, mesmo que só um

pouquinho. — O nome do rei está gravado, naturalmente. E o da rainha,

Gunapriya. Creio que em seguida vem o nome de sua concubina principal e de

seus dois filhos, que governaram após o pai. — Ele parou de falar e ambos

ficaram em silêncio por alguns instantes, observando a brisa movimentar a

vegetação.

— Você conhece muitas coisas sobre essa ilha, não é, Charles? —

Aproveitando a forma mais amigável com que Charles a estava tratando agora,

Kara queria forçá-lo a falar. Sentia que ele precisava de ajuda, depois de tantos

anos de solidão, e estava resolvida a ajudá-lo. Lamentou apenas que só tinha

algumas semanas para ajudá-lo.

— Estou aqui há mais de três anos — ele falou sem sorrir, mas com um

tom gentil.
102
Sabrina 132

— Gareth me contou sobre a construção de sua casa.

— Acredito que ele também tenha falado do erro que foi cometido com

respeito ao tamanho.

— Sim. Um erro como esse jamais teria acontecido na Inglaterra, não é?

— Acho que não. Mas aqui, tudo pode acontecer. — Seu olhar parecia

distante, fixo no cenário maravilhoso do vale, onde se destacavam quatro torres

tjandis. — Aquelas foram as quatro concubinas de um dos filhos do rei Udayana.

Kara continuava anotando, com a cabeça inclinada sobre o caderno em seu

colo, e não ousava levantar a cabeça. Queria olhar para ele e encontrar aquela

velha amizade... mas tinha medo de só encontrar aquele olhar duro e frio, agora
tão familiar.

— Há algum aspecto lendário sobre esse lugar, Charles?

— Claro, sempre há esse aspecto aqui em Bali. — Ele fez uma pausa,

esperando que Kara levantasse a cabeça. Seus olhos se encontraram durante um

longo momento. Quando Charles continuou a explicação, sua voz tinha um tom

mais baixo e amável: — De acordo com a mitologia balinesa, o gigante Kbo Iwa,

usando apenas as unhas, esculpiu todos estes monumentos em uma noite.

Pela primeira vez ela percebeu um pouco de alegria em Charles, e anotou

mentalmente a primeira vitória em sua campanha para aliviar a tristeza dele.

— Eles realmente acreditam nisso, não? — ela falou, com uma risada

descontraída. — Adoro esse povo, Charles.

— De verdade?

— Mas é claro! Por que não?

— Existe muita gente que olharia para eles com desprezo.

— É. Mas será que a opinião desse tipo de gente realmente importa?

— Em algumas coisas — ele murmurou, e ela sabia que ele falava apenas

para si mesmo — você não mudou nem um pouquinho.

— Em muitas coisas — Kara descobriu-se murmurando.

— Você prometeu... que comédia foi tudo aquilo! — Toda a frieza voltou à

sua voz.
103
Sabrina 132

Isso tocou Kara profundamente e ela sentiu vontade de chorar e gritar bem

alto para ele: "Eu mantive a promessa! Sim, por todos esses anos fui fiel. Foi você

que falhou. Esqueceu-me quando se apaixonou por ela. Deixou-me esperando por

você, sabendo que nunca voltaria!"

Mas, naturalmente, não falou nada; não tinha intenções de revelar a

verdade agora. Charles não era para ela, Kara já tinha decidido isso quando ele

confessou seu amor pela esposa. Não que ela o condenasse por ter amado a

esposa; sabia que algum tipo de afeição seria inevitável. Mas a afeição viera

acompanhada por um amor tão profundo que até hoje ele não havia se

recuperado da perda.

Kara ainda se lembrava das informações dadas por sir Sullivan: Tracy

deverá ter uma vida normal, graças às novas descobertas a respeito da doença,

ele afirmara. Charles também deve ter ouvido essas informações e esperava ter a

esposa com ele por muitos anos. Sua morte deve ter sido um choque, e não algo

esperado, como no princípio.

— No que você está pensando, Kara? — Ele parecia amistoso outra vez. Era

como se quisesse colocar toda a mágoa e frustração de lado. — Seu olhar está

distante, pensativo...

Ela sorriu, um sorriso trêmulo e tímido, antes de responder com aquela voz

musical que todos admiravam:

— Por favor, não me pergunte, Charles. Conte-me mais sobre este lugar.

— O filho de Udayana, que mencionei, e que tinha quatro concubinas,

deixou o trono para levar uma vida de consagração. E terminou seus dias em um

mosteiro. — Charles indicou um lugar à direita, mas Kara não pôde ver a

construção a que ele se referia. Devia estar escondida pelas árvores.

— Foi uma das visitas mais interessantes que já fiz desde que estou em

Bali. Muito obrigada, Charles, por ter me ajudado.

— Hugh vai ficar contente com tudo o que você está levando. Faço questão

de ler esse livro quando for publicado.


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Sabrina 132

— Ainda vai levar um bom tempo. O primeiro trabalho de Hugh, quando

voltarmos para a Inglaterra, será compilar todos os costumes, tradições e cultura

deste povo.

— Depois disso é que ele vai escrever o tal livro?

— Sim. Será um livro sobre viagens.

— O que você vai fazer em seguida? — ele perguntou, quando levantavam

para ir embora.

Kara olhou com relutância para o relógio. Tinha sido tão bom estar ali com

Charles, que por ela ficaria indefinidamente, se fosse possível.

— Hoje à noite vamos assistir ao festival do templo em Kapal.

— Você vai? Também pretendo ir. Que coincidência!

Kara olhou, surpresa, e procurou falar sem dar a impressão do que estava

imaginando. Será que ele tomara essa decisão por sua causa?

— É mesmo? Você costuma sair à noite?

— Não muito. Mas hoje à noite estarei em Kapal.

— Talvez o encontre lá, então? — ela sugeriu, imaginando por que seu

coração estava batendo tão rápido e a respiração suspensa, aguardando a

resposta.

— Espero que sim. Por que não marcamos um lugar e hora para nos

encontrarmos? Creio que no portão do templo, às... — Ele fez uma pausa,

perguntando a que horas ela esperava chegar lá. — Então às sete horas, certo?

Você vai gostar. E um espetáculo interessante e inesquecível.

Caminharam juntos pelo caminho estreito, para alcançar a estrada. Kara

viera de táxi. Charles estava de carro e ela esperava, sem perceber sua indecisão,

que ele lhe oferecesse uma carona.

Quando chegaram ao fim do caminho e avistaram o carro, ele se voltou e

disse suavemente:

— Se você vai direto para o Bali Praia, posso lhe dar uma carona.

A alegria tomou conta de Kara e ela deu um sorriso feliz enquanto

respondia:
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Sabrina 132

— Sim, vou direto. Muito obrigada, Charles.

Quando chegou em seu quarto, jogou a bolsa na cama e voltou-se para o

espelho. Estava radiante, agora que tinha certeza de que poderia fazer algo por

Charles. Infelizmente não tinha muito tempo. Mas se pudesse progredir tão

rápido como hoje, então algo muito bom poderia ser feito no tempo que restava.

Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida na porta. Ela abriu

e recebeu um envelope de um mensageiro do hotel.

— Obrigada... — foi um agradecimento automático, acompanhado de um

sorriso fraco. Aquela letra era por demais conhecida para ela se enganar.

Kara sabia, antes de abrir o envelope, que Charles mudara de ideia e não

iria mais encontrar-se com ela naquela noite.

— Não poderei ir... — Ela fechou os olhos, não querendo ver as outras

palavras. Ele estava arrependido de seu impulso amigável, e talvez até das horas

que passaram juntos em Gunung Kawi.

Kara sentiu-se desfalecer. Falhara justamente quando estava tão certa do

sucesso. Mais uma vez Charles se recolhera à sua solidão e ela não tinha meios

para chegar até ele.

Apesar de todo o grupo ter ido junto para Kapal, Hugh pediu para que se

separassem, a fim de que cada um pudesse ter sua própria impressão da festa.

— Acho que, ficando juntos, a tendência é discutirmos só entre nós e

perderemos o mais importante do festival. Se cada um for para uma direção,

poderemos nos reunir amanhã e o resultado será notável.

Tinha lógica e todos concordaram. Assim que chegaram a Kapal,

separaram-se imediatamente. Misturaram-se com a multidão de nativos e,

surpresos, perceberam que não estavam atraindo muita atenção.

Kara, caminhando na escuridão, sentiu-se perdida e rejeitada. Algo havia

acontecido com sua alegria interior, algo que não podia definir. Estava certa de

que não era apenas por causa de sua derrota no que dizia respeito a Charles. Era

algo além, uma agonia que envolvia todo o seu ser.


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Sabrina 132

Ela tinha que tirar isso da mente, havia muito trabalho a fazer. Tinha que

observar e anotar o máximo possível em seu caderno, para estar bem informada e

poder participar ativamente da reunião do dia seguinte.

Assim que entrou no pátio, Kara ficou paralisada. Charles, você veio,

afinal!, ela pensou.

Os inevitáveis santuários se espalhavam por todos os lados, repletos de

ofertas, e ela se escondeu atrás de um deles. Podia, no entanto, observar I

Charles pelo espaço abaixo da estátua. Ele parecia estar procurando alguém.

Percebeu Hugh e, na mesma hora, Charles escondeu-se atrás de outra estátua,

certamente para fugir de Hugh.

Como era estranho... e ao mesmo tempo engraçado, pois ambos estavam

escondidos atrás de estátuas. Ele saiu antes dela e continuou olhando ao redor,

procurando algo. Algo ou alguém?

Kara saiu de onde estava e começou a andar na direção dele, pensando

vagamente se algum de seus companheiros estava por perto. Mas a multidão era

tão compacta que ninguém parecia se preocupar em observar os outros.

Ele a viu e parou; ela teve certeza de que seus instintos estavam certos.

Então Charles tinha reconsiderado sua decisão e mudara de ideia. Kara não

pretendia perguntar nada. Sentiu que devia ser cautelosa se quisesse ajudá-lo.

Ele deu alguns passos para chegar até ela; Kara sorriu e recebeu um sorriso

apagado em troca.

— Consegui resolver tudo e decidi vir até aqui — ele falou, adotando uma

expressão casual que não enganou Kara, que apenas fingiu aceitar a explicação.

— Que bom! Fico contente. — Ela deu uma olhada ao redor. — Que

multidão, hein?

Estranhamente, toda a tristeza e solidão se foram e em seu coração havia

uma alegria que ela não experimentava há muito tempo. Será que o sentimento

de solidão era resultado de ter falhado em seus propósitos de ajudar Charles?

Será que havia alguma outra razão para o que estava sentindo?
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Sabrina 132

— Parece uma feira de interior, não é? — Ela voltou seus olhos luminosos e

sorridentes para ele. — É sempre assim nessas festas?

— Nem sempre, é claro. Acontece algumas vezes. Os balineses podem estar

muito envolvidos com sua religião pagã, mas sabem como se divertir com tudo

isso.

— Sim... — Kara respondeu, distraída, pois sua atenção estava totalmente

voltada para as roupas dele. Até agora eles tinham estado nas sombras

projetadas por duas grandes estátuas, mas quando deram alguns passos ficaram

sob algumas lanternas penduradas em uma árvore. Então ela pôde ver como ele

estava vestido: com um temo muito bem passado e uma camisa nova...

Desviou os olhos, para que ele não percebesse como estavam brilhando de

alegria. Não fez qualquer comentário nem revelou a imensa satisfação que sentia

ao vê-lo interessar-se por sua aparência novamente. Podia ser só fogo de palha,

mas Kara sempre fora otimista. Duvidou que no próximo encontro, se houvesse,

ele estaria parecendo um vagabundo.

— Esse espetáculo está durando o dia todo — Charles falou. — Você sabe

disso, não?

— Hugh mencionou isso. Jack e Nora vieram logo cedo para fazer

anotações e tirar fotos, enquanto fui até Gunung Kawi.

— Divisão de trabalho?

— Planejamos assim, pois de outra maneira não conseguiríamos realizar

todo o trabalho planejado.

— Mas todos vocês vieram esta noite, certo? — Vi seu chefe e um outro

rapaz que trabalha no grupo.

— Hugo. Sim, ele está aqui, assim como todos os outros.

— Então por que você está separada do grupo?

— Nós todos estamos separados.

Charles não respondeu. Em vez disso, sugeriu que fossem ao templo para

ver o que estava acontecendo.


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Sabrina 132

Capítulo IX

O interior do templo tinha uma aparência mística, exatamente como Kara

esperava. Havia fumaça de incenso subindo dos santuários, na frente dos quais

os sacerdotes e sacerdotisas entoavam seus cânticos e orações.

— O sacerdote do templo é chamado pemangku. Ele é sempre ajudado por

familiares nestes serviços.

— Quem são as mulheres? — Kara murmurou, quando um grupo de jovens

se levantou.

— Dançarinas.

— Mas elas não estão com trajes típicos!

— Não, elas não são profissionais, apenas um grupo da vila que dança o

pendei. É uma dança ritual, como você pode ver, com as mulheres carregando as

ofertas na mão direita. — Os olhos de Charles estavam fixos no caderno que ela

levava. Sem saber por quê, Kara colocou o caderno de volta na bolsa. Num

impulso, decidiu que podia guardar tudo na memória e escrever quando voltasse

ao hotel.

As mulheres dançavam suavemente, com movimentos delicados e precisos,

indo de um sacerdote a outro e deixando junto a cada um sua oferta de arroz,

flores ou doces.

— Elas dançam muito bem, para um grupo de amadoras. Olhe só o

movimento quando colocam as ofertas nos santuários.

— Elas provavelmente estão fazendo isso desde hoje cedo.

— Você quer dizer... entram e saem a cada seção?

— Sim; o festival dura o dia todo e essa dança é feita o tempo todo, mesmo

durante a noite.

Gente estranha, sempre tão gentil e inocente!

As mulheres pararam afinal e saíram do templo. Houve uma agitação e

Charles, pegando-a pelo braço, começou a guiá-la para a saída, pedindo que
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Sabrina 132

ficasse perto dele para não se perder. O sacerdote estava em transe e todos

observavam.

— Ele está realmente em transe? — ela perguntou, pois não estava

acreditando. O homem estava tremendo e gritando, fazendo estranhos ruídos. Um

outro sacerdote correu até ele e imediatamente ofertas foram colocadas à sua

frente.

— Ele está em transe verdadeiro. Acredita-se que alguma divindade entrou

em seu corpo, por isso fazem as ofertas.

— O outro sacerdote parece tê-lo acalmado — Kara falou quase

sussurrando, pois tais coisas estavam além da sua compreensão. Olhou à sua

volta e notou como todos estavam absorvidos. Um silêncio profundo tomou conta

do lugar, agora que o sacerdote em transe fora acalmado.

Kara olhou para Charles e percebeu que ele também estava totalmente

absorvido pelo espetáculo. De repente tudo pareceu tão irreal! A fisionomia de

Charles ficara tão diferente com o passar dos anos que, se ela quisesse lembrar-se

de como era, tinha que olhar as fotos. Charles agora era parte dessa realidade,

assim como os sacerdotes, as danças rituais e os santuários com suas ofertas.

Monumentos com corpos gigantescos e rostos aterrorizantes, mas decorados com

as mais belas flores. Tudo o que a rodeava era estranho.

Será que ela era real ali, dentro daquele templo misterioso, um dos dez mil

templos dessa ilha fantástica? Parecia um sonho e Kara tinha medo de acordar,

pois a única realidade era a mão de Charles, que ainda segurava seu braço

suavemente.

— O que o sacerdote está perguntando?

— Todo o tipo de coisas. Se ele está satisfeito com a cerimônia, as ofertas,

as pessoas...

— Ele está perguntando tudo isso ao espírito? É inacreditável!

— Apenas porque você não está acostumada com isso, Kara. Se você

vivesse aqui, não pensaria assim. Aceitaria o fato simplesmente como a maneira

natural de eles viverem.


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— É, acho que seria assim. O primeiro sacerdote é quase um médium, não

é?

— Acho que sim. Ouça! O sacerdote em transe está falando. Isso quer dizer

que as ofertas foram aceitas e suas preces serão respondidas.

Mais uma vez ela olhou à sua volta: todos estavam felizes. As ofertas

tinham sido aceitas e o espírito os recompensaria generosamente.

Charles ouvia com atenção, e em seguida traduzia tudo para Kara.

— Pediram ao espírito um grande favor para a vila. Sinto, mas não entendi

o que foi. O espírito respondeu através do médium e concedeu o favor.

Todos ficaram em silêncio outra vez, enquanto água santa era derramada

sobre o sacerdote em transe. Ele voltou a si, um pouco atordoado.

— Ele vai conseguir se lembrar de tudo o que aconteceu? — Kara queria

saber quando saiu do templo com Charles.

— É muito pouco provável.

— Nem mesmo as palavras que falou?

— Nem mesmo isso. — Charles deu um sorriso tímido. — Tudo isso deve

ser fascinante para você. Antes de vir para cá, você tinha alguma ideia do que iria

assistir?

— Nesse templo, você quer dizer?

— Não, na ilha.

Ela respondeu que não, explicando que substituíra a secretária de Hugh,

que se demitira às vésperas da partida, por isso não tivera tempo de se

familiarizar com o trabalho que ia executar, nem com o lugar aonde iam

pesquisar.

— Hugh é muito amigo do meu chefe — ela continuou, enquanto

caminhavam para o pátio que estava lotado de nativos. — Ele pediu emprestada

uma secretária e eu sou o empréstimo.

— Você teve muita sorte.

— Sim, muita mesmo. Não é fácil ter uma oportunidade como essa: um

trabalho bem remunerado que é também as mais lindas férias que já tive.
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Sabrina 132

Charles a observava e, depois de uma pausa, perguntou:

— Então você trabalha fora?

— Claro! — Por um momento ela se esqueceu de que, para ele, era casada.

Recuperando-se, acrescentou rapidamente: — Muitas mulheres trabalham fora

hoje em dia.

Ele ficou em silêncio; não a segurava mais, mas Kara ainda sentia o calor

que ficara em seu braço. Fora agradável, e uma sensação de paz tomava conta de

todo o seu ser.

O que será que Charles estava pensando enquanto caminhava

silenciosamente ao seu lado? Provavelmente queria ir embora, agora que a

cerimônia tinha terminado. Num impulso, ela sugeriu que dessem uma olhada

nos arredores. Ele concordou e atravessaram o portão para logo em seguida

encontrar barracas contendo comidas típicas, bebidas, doces, brinquedos, jogos e

balões coloridos. As garotas tomavam conta das crianças menores e as avós,

felizes, carregavam os bebês sadios no colo.

— Veja só — disse Kara, tocando um bebê sorridente que passava ao lado,

confortavelmente instalado no colo de sua avó. — Ele não é adorável?

Charles continuava calado e pensativo e demorou alguns instantes antes de

responder com outra pergunta:

— Você não tem filhos?

— Não, não tenho.

Ele deu um longo suspiro. Kara não podia dizer se era de aborrecimento ou

impaciência. Não acreditava, entretanto, que fosse por sua causa, ou mesmo pela

resposta que dera.

— Você gostaria de tomar algo? — Charles perguntou após algum tempo.

Eles estavam passando por algumas barracas de comida e Charles perguntou se

ela sabia do costume nativo referente a essas warongs, como eram chamadas

pelos balineses.

— Não, nunca ouvi nada a respeito. Qual é o costume?


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— Todas as garotas em idade de casar ficam encarregadas de uma barraca.

Isso faz com que os jovens que estão procurando esposas tenham sua atenção

voltada para elas.

— Puxa, que ideia engraçada!

— Não tanto quanto o namoro e o casamento em si.

— Fale-me mais sobre isso — ela pediu, feliz com o jeito como as coisas

estavam correndo entre eles. Nem lembrava mais que deveria estar trabalhando,

absorta pela sensação de que estava ajudando Charles.

— Você vai querer tomar algo, mesmo?

— Sim, por favor. Quero algo efervescente.

— Você sempre gostou de bebidas assim — ele falou delicadamente.

Será que Tracy também gostava? Talvez ele esteja pensando nas

preferências de sua esposa, e não nas minhas, Kara pensou.

Charles trouxe as bebidas; caminharam até um banco sob as árvores e ele

começou a contar tudo relacionado aos costumes de Bali com respeito a

casamento. Havia dois procedimentos, um mais romântico e outro mais

respeitável. Os dois eram aceitos por todos.

— O mais romântico é fugir. O homem pega a moça e a leva para a casa de

um amigo, onde fica com ela, tendo a lua-de-mel antes do casamento. — Havia

um tom divertido em sua voz e ela lembrou-se de quando eram noivos e ele vivia

sempre bem-humorado. Como tinha mudado! Mesmo assim, parecia mais

animado agora. — No entanto, a verdade é que o casal concorda com a fuga e os

pais são informados com antecedência.

— A garota concorda em ser raptada?

— Sim. O casal normalmente já está se encontrando há algum tempo. São

namorados, como diríamos.

— Por que ela quer ser raptada? — Kara olhou tão surpresa, que ele

começou a rir. Seu coração deu um salto, lembrando-se de quando eram noivos e

Charles costumava rir assim.


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— Ela considera um desafio de seu amado, raptá-la como um herói de

ficção. Os pais da garota finmgem estar chocados e organizam uma busca. Ou,

como eu chamo, uma festa de procura. Mas é claro que é tudo uma brincadeira e

termina de uma maneira feliz. — Ele fez uma pausa e sua expressão endureceu.

Kara ficou pensando se ele não estava se lembrando de seu próprio

casamento e do final infeliz.

— E como é que fica a situação deles depois?

— Na realidade, uma pequena cerimônia é realizada na primeira noite da

fuga; isso dá um aspecto legal, de acordo com o costume local. Quando o

casamento é realizado, depois que o casal retoma, a vila toda participa. É um

acontecimento muito alegre, apesar do aspecto profundamente religioso da

cerimônia.

Kara tomou sua bebida, pensativa, observando as atividades nas barracas.

Todos estavam felizes. A alegria tomava conta do lugar.

— Devem fazer muitas ofertas — disse, voltando ao assunto do casamento.

— É claro! Preces para os ancestrais, ofertas para as divindades... Depois

do casamento, a garota acompanha a família do noivo e passa a pertencer àquela

classe social.

A festa durou até o amanhecer. Kara não se preocupou em analisar seus

sentimentos enquanto as horas passavam. Charles parecia querer ficar com ela e

não dizia as palavras que ela estava com medo de ouvir. Até que falou:

— Acho que é hora de irmos embora.

Hugh e o resto do pessoal tinham ido embora há muito tempo. Kara tinha

encontrado com eles algumas vezes, o que era inevitável enquanto davam voltas

pelo pátio. Eles pareciam surpresos e olhavam Charles com curiosidade. Quando

estavam de saída e Hugh perguntou a Kara se ia voltar com eles para o hotel, ela

olhou para Charles, querendo fazer apenas o que ele quisesse. Charles ficou

contente com o gesto e ela sentiu que estava cada vez mais perto de conseguir o

que queria.
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— Se você quiser ir, tudo bem — Charles falou com simplicidade, mas

completou rapidamente: — Se preferir ficar, posso dar uma carona em meu carro

mais tarde.

Ela decidiu ficar e os dois participaram de todas as atividades, como se

fizessem parte da comunidade. Muitos nativos conheciam Charles e o saudaram

com carinho e respeito. Ela lembrou que Charles sempre fora humano e caridoso.

Quando ele era seu adorado noivo, costumava dar até seu último centavo a um

pedinte, se tivesse certeza de que era realmente um necessitado.

O amanhecer já se anunciava quando Charles decidiu que era hora de

voltarem.

— Não vai durar muito, de qualquer maneira — ele falou, mostrando a Kara

que os nativos que ainda permaneciam nas redondezas se preparavam para voltar

para suas casas.

Quando já estavam no carro, perguntou se ela gostaria de ver uma enorme

árvore banyan, que havia do outro lado do rio.

— Há um templo construído entre seus galhos.

Eles pararam para vê-la; o sol, com toda a sua glória, invadia o céu. Kara

estava tão emocionada que mal conseguia respirar. Ficou parada, ao lado do

homem que um dia amara com loucura, e juntos contemplaram os raios

incandescentes infiltrando-se através dos galhos daquela árvore singular. As

palavras não eram necessárias e nenhum dos dois fez comentários. Kara, no

entanto, sentia a presença de Charles tão próxima, como se estivesse abraçada a

ele, como antigamente. O sol seguia sua trajetória e a cada instante havia um

novo colorido no profundo silêncio daquele amanhecer.

Fascinada por tanta beleza, Kara se sentia feliz por ter aceitado o convite.

Esse espetáculo era o mais impressionante que já vira desde que chegara a Bali.

Charles, que à estivera observando por alguns momentos, falou com voz

baixa e suave:

— Você deve estar cansada. — A maneira como disse essas palavras a


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surpreendeu e Kara acreditou que fosse apenas imaginação. Aquele parecia

o seu Charles, tratando-a como nos velhos tempos. — Venha, temos que ir. — Ele

não esperou resposta, apenas tocou seu braço, indicando o caminho a seguir.

Charles também estava cansado, mas nem mesmo as olheiras profundas

apagavam o brilho de seus olhos negros. Kara sabia que sua aparência também

devia ser de cansaço, mas nada importava além do sorriso de Charles.

— Faz muito tempo que não passo horas tão agradáveis, Kara. Muito

obrigado.

Logo chegaram até o carro e iniciaram o caminho de volta até o hotel.

Estavam em silêncio, cada um perdido em seus próprios pensamentos. Assim que

chegaram, Kara desceu e ficou olhando para ele, não querendo se despedir.

Charles também parecia querer prolongar aquele momento, mas finalmente disse:

— Quanto tempo você ainda vai ficar em Bali?

— Mais ou menos cinco semanas.

— Entendo... — Ele sorriu, mas ela percebeu que foi com grande esforço.

Por que ela não tinha mais tempo? Mais dois meses e sabia que poderia

tirá-lo do abismo em que se encontrava. Kara tinha certeza de que poderia ajudá-

lo na busca de um caminho para a felicidade. Pensou em Ni Made, como sempre,

e franziu a testa. Se ao menos houvesse outra pessoa, alguém do seu nível, com

os mesmos costumes e tradições. Sim, seria bem mais fácil se houvesse alguma

garota inglesa na ilha.

— Bem, acho melhor lhe dizer bom-dia, Kara. E durma bem.

Ela apenas inclinou a cabeça e ficou olhando o carro desaparecer na saída

do hotel.

Ele não tinha mencionado nada sobre um novo encontro, mas agora Kara

estava confiante de que ele a receberia bem em sua casa. Tinha certeza de que

não havia mais animosidade e poderia visitá-lo, sem medo.

Entretanto, isso não foi necessário. Charles mandou um convite para ela no

dia seguinte.
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"Você gostaria de visitar a minha casa?", ele escrevera no convite. "Ficarei

muito contente se você vier para o jantar, amanhã."

Kara mencionou o convite a Hugh. Ele franziu a testa, mas não disse se

concordava ou não.

— Nós estamos muito ocupados... — ele começou, mas Kara o interrompeu.

Claro que o trabalho era o mais importante para todos, no momento. Ela o

ajudava bastante, e se sentia bem com isso, mas não podia ignorar seus próprios

sentimentos.

— Quando aceitei o trabalho, Hugh, não esperava trabalhar dezesseis horas

por dia. Achei que sempre teria algum tempo para mim. Acho que depois das sete

horas da noite, posso cuidar de meus próprios interesses. Como sempre começo

às oito, estarei trabalhando muito mais do que faço normalmente na Inglaterra.

Os olhos dele brilhavam de uma maneira nada amigável, mas ela não se

100 importava. Nada podia ser mais urgente do que este seu compromisso

pessoal, e a ideia de não cumpri-lo estava fora de questão.

— Você mudou muito. No princípio, parecia bastante grata por estar aqui.

Ela corou um pouco, mas sua determinação era mais forte do que sua

timidez.

— Ainda sou grata pela chance que você me deu. Sempre vou me lembrar

da sorte que me coube. Mas, apesar de tudo, você também teve sorte com todos

nós, porque estamos felizes por trabalhar aqui e temos nos esforçado ao máximo.

— Concordo que todos têm trabalhado muito, você especialmente. Sei que

deu tudo de si neste trabalho, muito mais do que o normal. Mas, Kara, esse não é

um trabalho comum. Você já sabia quando o aceitou, que trabalharíamos muitas

horas extras. E concordou.

— É claro que sim. — Ela estava se sentindo terrivelmente frustrada à

medida que o assunto se prolongava. — Trabalharei quando voltar. Poderei

terminar a datilografia à noite.

— Certo. Isso resolve o problema. — Ele fez uma pausa e Kara pensou que

não tocaria mais no assunto. Mas Hugh, que estivera absorto, perguntou:
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— Há alguma razão especial para você se encontrar com Charles Millard?

— Ele a observava com franca curiosidade.

— Sim, há.

— Posso perguntar qual?

Ela balançou a cabeça e tentou responder da maneira mais delicada

possível:

— Eu não gostaria de falar sobre isso, Hugh.

— Há algum mistério no seu passado...

— Quem é que não tem? — ela respondeu, com um sorriso forçado.

— Jovens bonitas como você normalmente não têm grandes problemas na

vida.

— Acho que algumas têm.

Hugh deu uma olhada nos papéis sobre a mesa; estava pensativo e ela

sabia, por intuição, que ele estava com ciúme de sua amizade com Charles. Sabia

disso antes mesmo que ele dissesse, com um pouco de ironia na voz:

— Espero que você não tenha se esquecido de que é casada. — Deu uma

olhada rápida para a sua mão esquerda antes de acrescentar: — Você não usa

aliança?

— A maioria das mulheres não usa aliança hoje em dia. — Ela estava

pensando em Charles e na maneira como ele também olhara para a sua mão

esquerda. Na hora, percebeu que precisava dar alguma explicação, pois ele sabia

que ela era do tipo de garota que usaria uma aliança. Tentou explicar de uma

maneira casual que a aliança estava apertada e que ela mandara alargar um

pouco.

— Igualdade de sexos, certo? Por que ter uma aliança se você não está

pretendendo usá-la?

Ela estava começando a ficar nervosa com aquele jogo de palavras.

— Podemos continuar com nosso trabalho? Você estava falando sobre o

costume que o povo daqui tem de não deixar os bebês tocarem a terra até que

tenham três meses de idade.


118
Sabrina 132

Ele concordou, pegou algumas notas e recomeçou o ditado.

Mais tarde, em seu quarto, Kara datilografou tudo o que ele ditara e

colocou no arquivo apropriado. Mas percebeu que não era fácil se concentrar e

seus dedos pareciam cegos para o teclado. Deu uma olhada no relógio, um

pequeno relógio de viagem que Charles lhe dera há muito tempo, numa data

especial.

"Faz um mês que nos encontramos, e aqui está o seu primeiro presente" —

ele tinha dito carinhosamente.

Eram cinco e meia. Kara parou de datilografar e dirigiu-se ao telefone.

— Por favor, enviem um café completo para o quarto cinquenta e oito. Com

bastante leite, sim.

Desligou e ficou parada em frente à estátua de Barong. Seus olhos eram

enormes e Kara sentiu vontade de dançar, sorrir e brincar com todo mundo.

— Sei que posso comprar centenas de Barongs iguais a você — ela falou,

acariciando a estátua. — Pois todas as lojas em Denpasar vendem esse tipo de

souvenir. Mas é você mesmo que eu quero. Você acha que o gerente vai perceber

se eu comprar um outro e colocar em seu lugar? Você gostaria de viver na

Inglaterra, tão longe de casa? — Ela ficou corada com a ideia de que alguém

pudesse ouvi-la conversando com a estátua, apesar de saber que não havia mais

ninguém no quarto.

Enquanto pensava em Charles teve a vaga sensação de que, talvez nem

mesmo ela, pudesse dar um novo rumo à vida dele. Um suspiro escapou de seus

lábios. Resolveu tomar um banho e, quando voltou ao quarto, começou a escovar

os cabelos, enquanto meditava sobre tudo o que acontecera. O rosto suave de Ni

Made e o de Charles misturavam-se em seu pensamento. Hugh e os outros

também se intrometiam e uma estranha opressão tomou conta de Kara. Esses

companheiros começavam a se tomar indesejáveis e ela gostaria de nunca mais

voltar a vê-los.
119
Sabrina 132

Mas o que estava acontecendo com ela? Fazia apenas dois dias e meio 102

que Charles a deixara na porta do hotel e, de repente, sentiu que era justamente

a falta dele, durante esse tempo todo, que a estava incomodando. Ela o veria esta

noite, jantaria em sua casa... mas isso não era suficiente. Precisava vê-lo muito

mais! O tempo parecia voar e Kara se desesperava por não estar cumprindo sua

tarefa de ajudá-lo a ser feliz.

O café chegou finalmente; Kara sentou-se na varanda para apreciar o

movimento na praia enquanto saboreava com prazer sua xícara de café. Isso não

é nada, pensou, comparado ao amanhecer, quando todas as mulheres estão

procurando corais, lavando roupas ou carregando suas inevitáveis cestas de

frutas e legumes na cabeça. Isso tudo faz parte do ritmo calmo que caracteriza

suas vidas felizes.

Tinha o convite de Charles nas mãos e tentava se concentrar na leitura

dele. Mas o costume de não se colocar crianças antes de completar três meses no

chão a fascinava, e sua mente estava outra vez pensando no que Hugh lhe

contara. As crianças de Bali eram carinhosamente tratadas por seus pais, avós e

parentes, e isso fazia delas as mais privilegiadas do mundo, no seu entender.

De acordo com a religião, quanto mais jovem era o bebê, mais perto do céu

estava sua alma. Isso porque ele havia chegado recentemente desse lugar. Eles

eram carregados para todos os lados, principalmente por irmãos e irmãs, e seus

pés não podiam tocar o chão. Com a idade de três meses, as crianças eram

abençoadas pelo sacerdote, ofertas eram feitas aos espíritos em sua honra e,

naturalmente, havia uma festa. Nunca um pai balinês levantava a mão para seu

filho, pois isso mancharia o seu espírito manso.

Kara leu mais uma vez o convite, enquanto terminava seu café.

Estava impaciente, levantava-se de uma cadeira e ia sentar-se em outro

lugar. Ela que sempre apreciara sua solidão, agora não sabia como usá-la. Não

quis, no entanto, descer até o restaurante do hotel, onde sabia que todos os seus

companheiros tomavam o chá da tarde reunidos. Além disso, tinha muito

trabalho para fazer. Precisava datilografar muitas anotações que Hugh lhe dera e
120
Sabrina 132

algumas que ela mesma tinha feito. Parecia que tinha um peso sobre si e não

sabia como livrar-se dele.

Mas, no momento, a única coisa importante era sua visita à casa de

Charles. Começou então a preparar-se com entusiasmo.

Capítulo X

Mais uma semana e ela estaria voltando,para a Inglaterra. Kara foi até a

varanda e ficou observando o cenário familiar. O sol estava nascendo além das

águas tranquilas, mostrando toda a sua glória num gigantesco leque de cores

incandescentes que se misturavam às nuvens. Os praos, como eram chamados os

barcos nativos, com suas velas coloridas, navegavam suavemente sob esse

esplendor.

Uma semana... Seu sucesso fora muito além do que imaginara... Mas a que

preço? Não podia mais negar que se apaixonara por Charles novamente... ou será

que nunca deixara de amá-lo?

A mudança operada nele tinha sido um pequeno milagre. Ele passou a

interessar-se por si mesmo de uma maneira que Kara jamais podia imaginar.

Estava sempre bem-humorado, mesmo quando ela ia até sua casa sem avisar, o

que não era muito frequente, pois eles costumavam se despedir invariavelmente

muito tarde, todas as noites. Ele tinha engordado um pouco e não apresentava

mais aquelas olheiras profundas que tanto o envelheciam.

Para Kara, que se preocupava tanto, parecia que ele estava mais alto, como

se durante todos esses anos tivesse carregado um peso, e só agora tivesse se

livrado dele.

Charles sorria constantemente agora, e, embora não como antigamente, já

era uma grande vitória para Kara.

A cada dia, ele se assemelhava mais ao homem que ela tinha amado com

tanta devoção, a ponto de nunca encorajar qualquer outro pretendente.


121
Sabrina 132

Kara não podia determinar com exatidão o momento em que percebera

estar apaixonada por ele. Nem queria saber. A única coisa que importava é que o

amava muito, talvez mais do que antes.

Eles haviam se encontrado muitas vezes nessas últimas semanas, e não

apenas durante as noites, quando jantavam na casa maravilhosa de Charles ou

no Kapalan. Sempre que Hugh lhe dava algum trabalho externo, ela telefonava

para Charles e ele a acompanhava, dizendo sempre que era seu motorista e guia.

Kara havia descoberto tantas coisas novas sobre a ilha que até Hugh ficara

impressionado. Isso ajudara muito, principalmente por causa da pequena

discussão que tiveram quando Kara pediu algum tempo livre para ela.

Ela voltou para dentro do quarto, pensando na jovem nativa Ni Made.

Charles tinha dito que talvez se casassem, mas nunca mais mencionara o nome

dela. Kara nunca tinha visto Ni Made na casa de Charles, mas naturalmente isso

não queria dizer que ela não o visitasse. Gareth disse uma vez que a vira no

jardim, mas isso antes que Kara resolvesse ajudar Charles.. Por outro lado, era

possível que Charles nunca tivesse pensado em se casar com Ni Made, que tudo

não tivesse passado de um mal-entendido. Quando ela perguntou, ele podia ter

confirmado só porque estava indiferente a tudo, ou por impaciência, uma vez que

naquela época não era amigável com ninguém.

Devo dizer a ele que não sou casada? A pergunta estava constantemente em

sua mente e ela tentava imaginar que tipo de reação Charles teria com tal

confissão. Ela o ajudara tanto, que ele certamente receberia com alegria a notícia.

E isso queria dizer que, se ela contasse a verdade, ele a pediria em

casamento.

Mas o problema é que ele ainda amava sua esposa, ou, para ser mais exata,

as lembranças dela o acompanhavam. Kara seria sempre a segunda, e ela não

queria ser a segunda; não gostaria que ele pudesse pensar em Tracy, quando

estivessem se amando.

E por causa de tudo isso, tinha permitido que ele acreditasse até agora que

ela estava casada. Fizera o possível para que ele se recuperasse, não de sua
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Sabrina 132

tristeza, pois isso seria impossível, mas de sua letargia que o deixava tão ausente

do mundo maravilhoso que o rodeava.

Mas, em sua generosidade e disposição para ajudá-lo a recuperar o respeito

próprio e o desejo de realizar algo na sua vida, ela estivera cega para o que podia

acontecer em seu próprio coração. E só foi perceber isso quando já era tarde

demais...

Agora ela podia ver como tudo tinha acontecido. Na verdade, podia

descrever passo a passo todo o seu envolvimento. Começara no dia em que se

sentaram juntos no alto do vale, olhando os palácios e torres dos reis de Gunung

Kawi, e ela decidiu ajudá-lo. Depois aconteceu o festival do templo. Já naquele dia

Charles começou a se parecer com o homem que ela conhecera. A dureza que o

caracterizava no princípio, criando uma animosidade natural, se fora. E, sabia

agora, nunca mais voltaria. Assim, pouco a pouco, Charles emergia do homem

que estivera profundamente mergulhado em desespero e amargura desde a morte

da esposa. E isso era mérito de Kara.

Ela deu uma olhada no relógio e percebeu que já era tarde. Rapidamente

tomou banho e vestiu-se com uma camisa de algodão e jeans. Quando chegou ao

restaurante, o pessoal já estava esperando por ela. Mais tarde, quando estava no

escritório com Hugh, soube que seu próximo trabalho seria ir até Bedulu, tirar

fotos e fazer algumas anotações sobre a caverna do Elefante, lá situada.

— Tire quantas fotos achar necessário. Pode ir de táxi e debitar em minha

conta.

— Há alguma coisa especial por lá, Hugh?

— Não sei o que há, por isso estou mandando você.

Ruborizada com a resposta irônica e fria, ela voltou-se e saiu sem se

despedir. Hugh estava se tomando intratável ultimamente e ela sabia que era por

ciúme, porque Kara saía com Charles todas as noites e voltava muito tarde. Na

maioria das vezes, chegava ao hotel de madrugada. O que ele não havia

descoberto é que ela também costumava ficar com Charles durante o dia. Sempre

que havia algum trabalho a fazer, ele a acompanhava.


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Sabrina 132

Algumas vezes, Kara se preocupava com o futuro. Ficava imaginando como

seria quando voltasse para a Inglaterra, sabendo que Hugh e seu chefe eram

amigos e poderiam comentar sua atitude. Apesar de não acreditar que Hugh

poderia falar sobre a animosidade que algumas vezes surgia entre eles, não tinha

muita certeza. Sendo de natureza amigável, Kara não gostava de discussões e

havia momentos em que Hugh ficava cansativo, especialmente quando agia como

nessa manhã, frio e sarcástico.

Kara pegou sua bolsa, o caderno de anotações, colocou a câmera no ombro

e deixou o hotel. Seus pés pareciam ter asas enquanto caminhava rapidamente

pela praia em direção ao portão de ferro, que também ficava na praia, mas dentro

da propriedade de Charles. Era branco, com arcos cobertos por plantas tropicais

e árvores à volta, dando-lhe sombra e um aspecto encantador. Depois havia o

caminho, com diferentes tipos de plantas, tão bonitas quanto exóticas, com

nomes fascinantes.

O sol brilhava através dos galhos, dando aos seus cabelos um colorido

especial enquanto Kara passava ao lado de uma orquídea magnífica. O quadro

formado por sua figura maravilhosa naquele cenário encantador fez com que o

homem que observava sua aproximação exclamasse:

— Meu Deus! Ela está mais bonita do que nunca!

Seus lábios abriram-se num sorriso encantador quando percebeu que

Charles já a vira. Parou no meio dos arcos formados pela vegetação e seu cabelo

ficou balançando ao sabor da brisa que vinha do oceano, brilhando sob os raios

daquele sol matutino.

— Isto aqui parece um paraíso! — ela falou sorrindo, enquanto tirava os

cabelos do rosto. — A beleza natural, as cores, o perfume e... você. — A última

palavra não foi dita com voz suficientemente alta para ele ouvir, mas a sentença

inacabada fez com que Charles perguntasse, curioso:

— O que você ia acrescentar, Kara?

Ela balançou a cabeça, notando a figura simpática de Charles e a mudança

em sua expressão. Sua roupa era esportiva mas elegante.


124
Sabrina 132

— Nada demais.

— Mentirosa — disse ele, de uma maneira gentil. — Venha tomar alguma

coisa. O que há na agenda do seu chefe hoje?

— Tenho que ir até a caverna do Elefante. Você conhece? — Kara passou à

sua frente e entrou na casa.

— "Goa Gadja", é assim que a chamam os balineses — ele explicou e,

notando seu olhar interrogativo, completou: — Sim, é claro que conheço.

— É interessante?

— Mais ou menos. — Ele estava bem perto dela enquanto caminhavam

para a sala de estar e, sem qualquer aviso, segurou sua mão. — Kara...

Ela olhou para ele, com o coração disparando.

— Sim?

— Posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal?

— Sim, pode. Só não prometo responder.

— Entendo... — Ele mantinha a mão dela entre as suas e, olhando-a nos

olhos, disse: — Farei assim mesmo. — Depois de um tempo que pareceu uma

eternidade, continuou: — Você consideraria a ideia de fazer de Bali sua residência

permanente?

O coração de Kara deu um salto e ela quase não conseguia respirar, de

tanta emoção.

— O que... o que você está realmente me pedindo, Charles? — Será que

esta era mesmo sua voz?

— Responda à minha pergunta, querida. — Sua voz era baixa e clara, e

seus olhos negros estavam fixos e ansiosos. Não se podia dizer exatamente que

havia ansiedade em sua voz, mas havia uma certa urgência.

— Como posso responder a isso? Você está me pedindo para... para deixar

meu marido?

Ele desviou o olhar, mordendo o lábio. Deu um suspiro e ela sentiu seu

esforço para dizer o que sentia, apesar do medo de machucá-la ou talvez fazê-la

sofrer.
125
Sabrina 132

— Seu marido... e você? As pessoas quando estão apaixonadas, Kara, não

se separam por três meses tão facilmente.

Kara não respondeu. Ela não sabia o que dizer, pois tinha entendido

perfeitamente.

— Você está apaixonada por seu marido?

— Já falei, quando você me perguntou pela primeira vez, que nós realmente

não gostamos da ideia de eu vir para cá, mas era uma chance boa demais para

eu perder.

Ele soltou a mão de Kara e ficou pensativo.

— Você não viria morar aqui, então?

— É impossível, Charles, você sabe disso.

— Você gostou destas semanas em que estivemos juntos, pelo menos?

— Imensamente. Foram dias maravilhosos...

— Então...

Mais uma vez ela balançou a cabeça, consciente das batidas de seu coração

e da emoção que estava sentindo. Ela só precisava dizer uma palavra e poderia

ficar com seu amado Charles... para sempre. Mas seria sempre a segunda em sua

vida.

— Não posso, por favor, não me peça outra vez. — As lágrimas escorriam de

seus olhos. Lembrando-se da primeira despedida, Kara sentiu que não

aguentaria outra. Seria demais e, no entanto, chegaria em menos de uma

semana o dia que ela teria que dizer adeus pela segunda vez, e definitivamente.

Como poderia segurar o impulso de dizer a ele que não era casada? Que estava

livre para ficar em Bali? Que voltaria, logo que pudesse pegar seus pertences e

desfazer-se dos compromissos na Inglaterra?

Charles inclinou a cabeça e pareceu a Kara que ele estava com dificuldade

para falar. Não havia dúvidas de que queria que ela ficasse ali, vivendo com ele.

Sentia-se feliz por tê-lo feito acreditar que era casada. Se tivesse dito a

verdade, ele naturalmente ia esperar que ela aceitasse sua proposta. Teria então
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Sabrina 132

que lhe dizer que não pretendia ocupar o segundo lugar em seus pensamentos e

principalmente em seus sentimentos.

Sim, essa era a melhor maneira, deixá-lo acreditar que ela era casada.

Ele ainda estava silencioso, com a cabeça inclinada, mergulhado em

pensamentos. Mas ela o chamou baixinho, e isso fez com que ele sorrisse.

— Entendo, querida. Venha, vou preparar alguma coisa para bebermos e

sairemos em seguida para você conhecer a caverna do Elefante.

Charles dirigia devagar, como se estivesse preocupado com outras coisas.

Mas finalmente chegaram à caverna. A entrada era na boca monstruosa do deus

Pasupati que, segundo a mitologia nativa, tinha quebrado a montanha em duas

partes e colocado ambas na ilha de Bali.

— Antigamente era um templo budista — Charles falou quando entraram

na caverna. Era escuro e escorregadio e ela não gostou do lugar. Charles, que a

observava, desculpou-se:

— Devia ter me lembrado. Você nunca gostou de lugares escuros e úmidos.

— Não há muito material para nós aqui. Receio que Hugh não vai ficar

muito satisfeito com o meu trabalho de hoje. — Ela não percebeu que sua voz

estava alterada e ficou surpresa quando Charles comentou:

— Você não me parece muito contente com seu trabalho, especialmente

quando fala a respeito de seu chefe, como agora.

Kara hesitou, mas acabou contando sobre o pequeno desentendimento que

tinham tido naquela manhã.

— Ele pergunta demais, e não vou me preocupar com essa falha de hoje.

— Vamos voltar para minha casa — ele sugeriu. — Você não precisa ir

imediatamente para o hotel e se apresentar ao chefe, certo?

— Não... mas ele sabe que não vou levar o dia inteiro para visitar a caverna

do Elefante.

Entraram no carro, mas Charles não foi diretamente para Sanur. Em vez

disso, levou-a para um lugar onde se reuniam os melhores escultores de madeira


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Sabrina 132

da ilha. Os homens trabalhavam nas mais estranhas figuras, cenas e todos os

tipos de mobília.

— Gostaria de comprar algo para você — Charles falou depois de

apresentá-la ao proprietário daquele centro de artistas, que também era um

grande amigo seu. — O que você gostaria de levar, querida?

Querida... seu coração se descontrolava ouvindo aquela palavra tão

familiar, dita de uma maneira tão gentil, como quando estavam noivos. Mas ela

sabia que, se ele pudesse escolher, teria ficado com a esposa. Procurou tirar esses

pensamentos da cabeça e, com expressão serena, olhou para ele.

— Não vou recusar um presente seu, Charles. Podemos dar uma olhada em

tudo primeiro? Parece haver tantas coisas bonitas, e eu não gostaria de escolher

imediatamente.

— Claro! O que você vai querer? Uma figura?

— Talvez. Acho que vai ficar bem na minha sala de estar, no aparador. Não

tenho muita coisa para colocar nele. — Ela parou de repente quando percebeu

um olhar estranho de Charles.

— Você fala como se a sala fosse só sua — ele falou, de uma maneira que

mais parecia uma acusação, e ela prendeu a respiração quando percebeu seu

deslize.

— É apenas um modo de dizer — falou rapidamente, voltando-se para as

figuras e procurando dar o máximo de atenção a todas elas. — Puxa, querido,

simplesmente não sei como escolher. São todas maravilhosas!

No entanto, após uns dez minutos, encontrou algo de que gostou.

Enquanto Charles se encarregava de levar para embrulhar e pagar, ela tentou

memorizar aquele lugar, pois sabia que dentro em breve estaria tudo acabado.

Charles levou o pacote para o carro; ela ficou imaginando aquela figura em

seu aparador... uma lembrança constante dele...


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Sabrina 132

Os dias passaram-se rapidamente e, a cada entardecer, Kara repetia para si

mesma: "Mais quatro dias... mais três dias... só mais dois dias..." até que a última

noite chegou.

Às dez horas da manhã seguinte ela estaria no avião, junto com o resto do

grupo, deixando para sempre aquela ilha maravilhosa... e seu adorado Charles.

— Eu não posso chorar quando nos despedirmos... não posso deixá-lo

perceber meu amor — ela repetia para si mesma enquanto se aprontava, com

mais cuidado do que nunca, pois era o seu último encontro com Charles.

Seria um jantar íntimo, na casa dele, com o melhor vinho e a comida típica

vinda especialmente para eles do Kapalan. Charles não dissera nada a respeito

daquela noite, mas Kara sentia que era isso o que ia acontecer. Essa seria a

lembrança maior de todas, aquela que ela guardaria em seu coração para sempre.

As lágrimas começaram a descer lentamente... ela gostaria de mergulhar

naqueles travesseiros e chorar até a última gota.

Como posso deixá-lo?, pensava. Talvez seja melhor ser a segunda em sua

vida do que não ser nada, afinal!

Não! Ela já fora a primeira uma vez e jamais poderia ser uma substituta,

apenas uma mulher para lhe dar conforto e amizade. Não com todo o amor que

sentia por ele.

Quando finalmente estava pronta, deu uma olhada no espelho e sabia, sem

ser vaidosa, que estava maravilhosa. Seria, sem dúvida, uma noite inesquecível.

O carro de Charles estava na porta do hotel. Deu um sorriso tímido quando

encontrou seu olhar, no momento em que ele fechava a porta para ela.

— Hum... — Ele voltou-se, sorrindo. — Perfume francês? Você comprou

aqui?

— Não, no avião. O preço estava muito bom. Não costumo tratar a mim

mesma com perfumes tão luxuosos e caros assim.

— Seu marido não compra perfumes para você? — ele perguntou de um

modo estranho.
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Sabrina 132

Outro deslize! Afinal, o que estava acontecendo com ela? Não podia deixar

que ele suspeitasse da verdade.

— Algumas vezes — respondeu vagamente.

— Vou exigir uma promessa de você esta noite — ele disse mais tarde,

quando o jantar já tinha terminado, e eles estavam sentados na varanda,

apreciando aquela noite maravilhosa, feita especialmente para os enamorados. —

Quero que você me prometa que vai me procurar se algo acontecer ao seu

casamento.

Ela não sabia o que dizer. Durante alguns instantes ficou paralisada diante

daquele olhar carinhoso, que ela conhecia tão bem.

— O que o faz pensar que meu casamento pode terminar? — Kara não

conseguia entender como conseguia ficar tão calma, quando seu coração parecia

saltar do peito, sabendo que não tinha mais do que duas ou três horas para estar

junto de seu amado Charles. Ele queria ir até o aeroporto, mas ela não pretendia

correr o risco de perder o controle no último instante e na frente dos

companheiros.

— Casamentos costumam terminar, Kara.

Ela concordou, mas não conseguiu dizer nada. Seus olhos ardiam e sabia

que, se tentasse dizer uma só palavra, começaria a chorar. Aguardou alguns

minutos antes de continuar a conversa:

— Acho que este é nosso adeus, Charles. Não era para acontecer. Não era

para nós nos casarmos. Vamos ficar contentes com o que temos! — Voltou o rosto

para o mar e tentou parecer alegre. — Vamos tomar outro licor? Acho que

também vou querer mais desse café delicioso. Posso? Está uma noite

maravilhosa. Muito obrigada, Charles, por ter me convidado para vir aqui na

minha última noite em Bali... — Kara falava sem parar e sem fitá-lo. Sentia que

não resistiria se encontrasse aqueles olhos tão queridos, fitando-a com tanto

carinho.
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Sabrina 132

Ele a observava com uma expressão estranha, como se estivesse

confundido com sua maneira de agir e falar. Kara percebeu como ele engolia o

licor com dificuldade e movia as mãos sobre o copo vazio, que segurava sem

perceber.

Foi um momento de tensão, cheio de desejos inconfessáveis. Da parte dela,

o desejo puro e simples de amar e ser amada. Ficou imaginando como seria bom

sentir aquelas mãos acariciando-a, como antigamente, despertando sensações

que nunca mais sentira. Não conseguia pensar em mais nada, só naquele êxtase,

que toda ela ansiava por tornar a sentir. Mas, quanto a Charles, pensava, só

havia o desejo da paixão, do contato físico com seu corpo, pois o seu amor ainda

pertencia a Tracy. Subitamente, tomou uma decisão.

— Charles, por favor, traga aquela garrafa de licor. Eu gostaria de tomar

mais um pouco.

Ele franziu a testa e, sem uma palavra, entrou na casa para atender ao seu

pedido.

Assim que ele saiu, Kara levantou-se e pegou a estola que estava na cadeira

ao lado. Sua bolsa estava dentro da casa; teria que deixá-la ali mesmo. Com uma

última olhada para ver se ele ainda estava dentro da casa, ela se voltou e

começou a correr pelo caminho que levava à praia. Ele não sabia que direção

havia tomado, e assim ela tinha tempo suficiente para chegar ao hotel.

Se ficasse mais alguns instantes junto dele, não resistiria à tentação de

dizer a verdade, ainda que fosse só para tê-lo nessa noite e satisfazer o desejo

incontrolável que a dominava.

Seu coração parecia que ia parar a qualquer momento. As lágrimas corriam

livremente enquanto tentava levantar a barra do vestido que, a essa altura, já

estava totalmente estragada e dificultava seu andar. O caminho entre as árvores

era o mais curto, mas ela teria que ir pela calçada para chegar até o portão.

Quando estava quase alcançando seu objetivo, parou e, olhando para trás,

com a voz cortada pelos soluços, disse o último adeus:


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Sabrina 132

— Querido Charles... adeus... Por favor, tome conta de você. Eu o amo...

para sempre... — As lágrimas a cegavam e, por alguns instantes, não conseguiu

se mover.

Quando a voz de Charles, chamando seu nome com desespero, chegou até

ela, voltou-se imediatamente e correu para o portão, sem lembrar-se da raiz

exposta na qual já tinha tropeçado uma vez. Um grito de dor escapou de seus

lábios quando ela caiu e sentiu que batia com a cabeça em algo duro.

Quando abriu os olhos, havia centenas de pequenas luzes coloridas

piscando à sua frente. Tentou virar a cabeça e soltou um gemido, pois a dor era

muito forte.

— Kara... meu amor... — Era uma voz tão meiga.

Ela sorriu e se lembrou. Seu adorado Charles. Eles iriam casar dentro de

um mês.

— Minha querida, como você está se sentindo agora?

Kara piscou; seus olhos deviam estar muito mal, pois esse não era o seu

Charles. Talvez alguém parecido, mas não o seu Charles. Esse homem tinha fios

grisalhos nas têmporas e uma expressão de agonia nos olhos negros. Por quê?

Eles iam se casar dentro de um mês, se amavam com loucura...

— Ela já está voltando a si. Não precisa mais se preocupar, ela está bem

agora. O perigo já passou.

Havia mais alguém no quarto. Quem seria? Sobre o que estavam falando?

Ela não podia compreender, só percebeu que se despediram.

— Kara, minha querida. — A mesma voz.

Ela olhou para o rosto de Charles e gradualmente começou a voltar a si.

— Eu caí — ela tentou explicar. — Eu queria ir embora, Charles, achei que

seria melhor assim.

— Meu amor, não tem importância agora. Você está aqui, querida, e este é o

lugar onde vai ficar para sempre. — Ele mantinha suas mãos presas entre as dele

e acariciava seus dedos com infinita ternura.


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Sabrina 132

— O que você estava dizendo? Machuquei a cabeça, não? Foi o médico

quem falou com você há pouco? — ela perguntou, quase sem dar tempo a ele de

responder.

— Sim, querida. Ele disse que você está bem agora.

— Ele já foi embora?

— Sim, acabou de sair.

Kara se deitou novamente e colocou a mão sobre a cabeça. Havia uma

bandagem e ela calculou que devia ser um ferimento profundo.

— Onde estou? — Seus olhos passearam pelo quarto tão estranho. — Em

sua casa? — Ela queria entender o que estava acontecendo. Será que Charles

realmente a chamara de meu amor?

— Sim, querida, em minha casa. — Sua voz era baixa, mas havia muita

alegria.

— Quanto tempo faz que estou aqui?

— Algumas horas. Você teve febre e delirou. — O médico esteve aqui três

vezes.

— Algumas horas? E que horas são agora?

— Quase duas da tarde.

— Meu Deus! Então, perdi o avião! Nós íamos sair às dez da manhã. —

Seus pensamentos estavam mais coerentes agora, mas ela se sentia muito

cansada. — Cortei muito a cabeça?

— Não. Foi um pequeno corte na testa, mas o médico disse que logo estará

bem. Se sentir dor, pode tomar um desses comprimidos que ele deixou.

— Estava doendo quando acordei, mas já passou. Hugh sabe o que

aconteceu?

— Claro. Já foi tudo providenciado, querida. Não se preocupe com nada. —

Ele hesitou um pouco e depois falou: — Você me ouviu dizer que delirou?

— Sim. Falei muita coisa sem sentido?

— Já sei de tudo, Kara, apesar de ter sido difícil juntar os pedaços. Sei que

você não é casada, que esperou por mim durante todos esses anos e que ainda
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Sabrina 132

me ama. E sei também a razão pela qual você não me disse tudo isso antes. —

Ele sorriu. — Eu nunca amei Tracy; só disse aquilo porque estava com raiva e

amargurado porque pensei que você tivesse quebrado a promessa. Foi pela

mesma razão que fingi estar interessado em Ni Made.

— Você nunca amou Tracy? É mesmo verdade? — Ela sabia que sim. Agora

ele era o seu Charles, que vivera todos aqueles anos amargurado, não por causa

das lembranças de Tracy, mas por ela, Kara. Por seu amor não correspondido.

Um amor que ele julgava perdido para sempre. Quantos desentendimentos! Eles

tinham sido vítimas da fatalidade, não havia dúvida alguma.

— Kara... — sua voz vibrava de alegria — sempre foi você. Desde o primeiro

momento em que a vi. Quando voltei para a Inglaterra e descobri que você estava

casada... — sua voz falhou pela emoção — eu não tinha mais nenhuma razão

para viver.

A voz de Charles estava cheia de amor, compreensão e ternura, e Kara

queria desesperadamente falar, mas estava muito cansada.

— Charles, estou tão cansada que não consigo pensar...

— Durma, meu amor. Vou ficar aqui, ao seu lado, tomando conta de você.

Um sorriso brilhou em seu rosto pálido e ela ainda conseguiu forças para

falar, antes de adormecer:

— Para manter os maus espíritos longe? Creio que meu Barong poderá

fazer isso por mim.

— Minha querida! Você está delirando outra vez?

— Não, não estou. Ele está no meu quarto no hotel. Pensei em roubá-lo...

não... não exatamente roubar... — Sua voz foi ficando cada vez mais baixa, até

que ela adormeceu novamente.

Kara só acordou no final da tarde, quando o sol estava desaparecendo e

lançava seus últimos raios no oceano.

Charles a olhou, apreensivo, mas sorriu quando a ouviu falar claramente:

— Sinto-me bem melhor, Charles. Posso me levantar?


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— Não, meu amor. O médico dirá quando poderá sair da cama. Kara, é

verdade? Você está aqui comigo, finalmente?

— É verdade. — Ela estava emocionada, mas seus olhos falavam por ela.

Levantou a cabeça, oferecendo os lábios sedentos de amor. Os dois corpos

fundiram-se num abraço langoroso e apaixonado.

Como sempre eles estavam na varanda, tomando um aperitivo, enquanto

esperavam que o jantar fosse servido na nova sala de jantar, que estivera tanto

tempo fechada, mas que os dois mobiliaram juntos antes do casamento. Kara já

estava quase boa e, como lembrança daquele tombo, só havia um pequeno sinal

em sua testa, que o médico garantira que ia desaparecer breve.

Durante as duas últimas semanas, eles tinham conversado muito, e Kara

pôde explicar tudo o que tinha acontecido com ela naquele tempo. Ele contou

como a odiara, acreditando que ela o havia esquecido e se casado com outro

homem, quando ele contava as horas até que pudesse estar com ela. Foi essa a

razão de sua atitude tão brusca quando se encontraram pela primeira vez em

Bali.

Mas, depois de vários encontros, ele admitiu que ela não tinha mudado,

que ainda era a garota por quem ele se apaixonara.

Com essa troca de confidência ficou tudo claro, mas havia ainda um

assunto em que não haviam tocado e Kara precisava saber. Falou, um pouco

hesitante:

— Charles, podemos falar sobre Tracy, só mais uma vez? Depois prometo

nunca mais tocar no assunto.

— Claro. O que você quer saber?

— Como ela era? Senti muito por ela e desejei que fosse um pouco feliz.

— Ela foi feliz. Eu era atencioso para com ela, pois Tracy merecia ser

tratada assim; era uma garota muito agradável. Mas era muito difícil, quase
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impossível, esconder dela o fato de que era você, sempre você, que ocupava meus

pensamentos.

— A tensão que existia entre vocês era horrível, então?

— Sim, era. Eu sofria muito por você também. Imaginava você sozinha, tão

longe, esperando por mim. Da minha parte era um inferno, especialmente quando

as coisas foram se modificando e achamos então que Tracy teria longos anos de

vida. Apesar de tudo, nunca pude desejar sua morte.

— Nem eu. Cada dia era um tempo roubado, e eu jamais poderia invejá-la.

— Nós não temos nada de que nos arrepender, Kara. Estou feliz, pois agora

nada poderá nos separar. Quatro longos anos de espera e, quando finalmente

todo o peso daquela carga se foi, corri para você, apenas para descobrir que já

estava casada. Meu Deus! Não gosto nem de lembrar. Eu queria morrer quando

soube... — Ele parou quando sentiu a carícia das mãos de Kara em seus lábios.

— Meu querido, não se torture mais. Nós estamos juntos agora, e ainda

somos jovens. Nada mais importa.

Eles se levantaram juntos e Kara deitou a cabeça no ombro de Charles.

— Adoro cada pôr-do-sol em Bali. Veja todas essas cores.

— O entardecer sempre traz boas lembranças, é o que se costuma dizer.

Vou lembrar-me sempre dessas tardes, o entardecer é sempre mais lindo junto a

você.

Kara sorriu e se inclinou para frente a fim de beijar-lhe os lábios macios.

Sentiu as mãos de Charles acariciando suas costas, deixando claro seu

desejo. Kara se apertou mais ainda a ele. Podia sentir as batidas do coração dele

contra seu seio.

Quando finalmente ele a libertou, ela só podia pensar que finalmente estava

em casa, com seu adorado Charles. Enquanto caminhavam sonhadores em

direção ao quarto, murmuravam palavras de amor e nem naquela ilha

maravilhosa no fim do arco-íris.


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