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Pecado de Mulher

Forbidden Fire

Heather Graham Pozzessere

Clássicos da Literatura Romântica

SÓ MENTIRAS...

Bela e altiva, Marissa Ayres cresceu em meio à pobreza de uma humilde cidade
mineira, determinada a escapar dessa vida de indigência. Um dia, sonhava, conseguiria
livrar-se da nuvem cinzenta que impregnava sua pele. A oportunidade surgiu e Marissa
não avaliou consequências ao fazer-se passar por uma amiga num casamento de
conveniência. Era sua chance de obter riqueza, nome, de trocar a negra fuligem que
cobria seus sonhos por uma realidade dourada em San Francisco. Bastava mentir, manter
bem secreto seu passado.
Ian Tremayne nada queria de sua jovem esposa inglesa; o casamento resultara de
uma infeliz promessa a um grande amigo. Mas Marissa, com seus silêncios e seus
mistérios, começou a instigá-lo a descobrir a verdade!

Digitalização: Nelma
Revisão: Akeru
CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere

Copyright © 1991 by Heather Graham Pozzessere


Publicado originalmente em 1991 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob
qualquer forma.
Esta edição é publicada por acordo com a Harlequin Enterprises B.V.

Todos os personagens desta obra salvo os históricos são fictícios.


Qualquer outra semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Título original: Forbidden Fire

Tradução: Flora Sellers

Copyright para a língua portuguesa: 1991


EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3º andar
CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372

Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.


Impressão e acabamento no Círculo do Livro S.A.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere

PRÓLOGO

Yorkshire, Inglaterra Março de 1895.


Quando o viu pela primeira vez, Marissa ainda não tinha dez anos. Mas soube, de
imediato, que nunca mais o esqueceria.
Fazia frio naquele dia, como sempre; naquela cidadezinha de mineiros a lenha era
escassa e nunca provia o calor necessário às pequenas casinhas que abrigavam as
famílias dos mineiros. Talvez fosse por causa da falta de vidraça nas janelas. No inverno
elas eram vedadas com jornais ou trapos velhos.
Naquele ano a primavera viera acompanhada de pesadas chuvas, que de nada
serviram para diminuir a negra e viscosa camada de fuligem que parecia ter-se instalado
sobre toda a cidade. O pó de carvão pairava sobre tudo, formando uma nuvem
envolvente, penetrante e sufocante. Nas raras vezes em que conseguia ver o céu azul,
Marissa achava que estava em dia de festa. Para ela, a vida só teria significado quando
conseguisse escapar dessa nuvem escura.
Mas as chuvas simplesmente transformavam o pó em lama, igualmente negra e
pegajosa.
No dia em que viu o estranho pela primeira vez, Marissa havia lavado e passado
um vestido, determinada a deixá-lo tão branco quanto possível. Havia também escovado
e penteado os cabelos, uma massa ruiva e selvagem que lhe chegava quase até a
cintura. Tio Theo costumava dizer que seus cabelos pareciam o pôr-do-sol, mas, quando
ela fora pela primeira vez à escola da aldeia, as outras crianças haviam rido, chamando-a
de cenoura arrepiada. Com o tempo, aprenderam a respeitá-la, mas não gostavam muito
dela, devido a seu ar de princesa, como diziam.
Marissa achava que possuía seus direitos. Afinal, era filha do pastor anglicano, e
seus primeiros anos haviam sido passados de forma bastante diferente. Havia tido um
bom padrão de vida e era assim que pretendia viver quando crescesse. Marissa agarrava-
se a esses sonhos como um náufrago se agarra a uma tábua perdida no meio do oceano.
Naquele dia, ela acabava de voltar da casa de Pete Quayle. A mãe dele estava
adoentada, e tio Theo lhe pedira para levar uma tigela cheia de fumegante e apetitosa
canja para a doente. A sra. Quayle tinha sido carinhosa e agradecida, mas Pete a
aborrecera o tempo todo com gracinhas de mau gosto. Ao deixar a casa. Pete esperava-a
com uma bola de lama na mão, pronto para atirá-la em seu vestido branco. Marissa
pusera-se a correr desabaladamente, tratando de driblar o pestinha.
Fora tudo culpa do estranho, ela tinha certeza. Ele vinha dobrando a esquina, e
Marissa mal teve tempo de relancear os olhos sobre os dele antes de dar-lhe um
tremendo encontrão. Mas no breve instante em que seus olhos se encontraram, Marissa
sentiu algo diferente. O estranho era um rapaz bem mais velho que ela. Talvez até fosse
um homem. Pela altura, até que podia ser. Era alto e magro. Uns dezoito anos, talvez
dezenove. Impecavelmente vestido, de calça clara, camisa azul-celeste e paletó bege.
Marissa corria rápido demais, e não conseguiu deter-se a tempo, mas, antes de
colidir com ele, reparou em seus olhos. Eram incrivelmente azuis, perturbadoramente
azuis, penetrantes e irônicos. E seus cabelos eram mais negros que o carvão.

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— Meu Deus! — exclamou alguém que estava ao lado dele.
Marissa não chegou a ver quem falara, pois havia perdido completamente o
equilíbrio. No segundo seguinte viu-se desabando sobre a lama, da qual vinha fugindo
com tanta aplicação.
— Machucou-se, mocinha? — perguntou o estranho, estendendo-lhe mão para
ajudá-la.
— Olhe só o que você fez! — gritou ela, furiosa e desesperadamente consciente de
toda a imundície a que se reduzira seu vestido branco. — Você me derrubou, seu...
— Em absoluto, mocinha! Você é que me deu uma tremenda trombada!
— Como ousa falar desse modo com este senhor? — atalhou a outra pessoa que
acompanhava o estranho. — Saia da frente, seu ratinho carvoeiro. Queremos passar.
Era o sr. Lacey, gerente das minas. Baixo e truculento, era um homem temível e
cruel, cheio de revoltada frustração pela vida que o fizera odiar tanto os mineiros quanto
os ricos e perfumados acionistas, a quem tinha de bajular e entregar tediosos relatórios.
Os dois não estavam sozinhos. Acompanhava-os um senhor de cabelos brancos,
dono de olhos tão azuis quanto os do estranho.
— Ora esta, Lacey, calma! — interveio este último. — Não há motivo para você ser
grosseiro com a garota.
Parecia um homem bondoso, mas a piedade que Marissa viu em seus olhos
acabou por irritá-la.
— Não sou rato nem carvoeiro, está ouvindo? — replicou ela, ignorando a mão
estendida do estranho.
Ergueu-se sacudindo a saia, ao mesmo tempo em que se certificava de que parte
da lama ia direto de seu vestido para as calças bem vincadas do sr. Lacey. A resposta foi
uma torrente de palavrões.
— Papai — falou o rapaz, dirigindo-se ao mais velho —, acho que Lacey está
usando uma linguagem pouco conveniente com a garota.
— Bolas, ela não passa de uma ratinha carvoeira, mesmo com esses ares de
princesa ofendida! Escute aqui, menina, se arrumar mais encrencas com estes senhores,
vou cuidar eu mesmo para que aquele rato velho de seu tio seja despedido. Está
entendido?
O homem de cabelos brancos então interveio. Falou com frieza:
— Não haverá encrenca nenhuma, Lacey, simplesmente porque desisti de investir
meu capital aqui. Não gosto de pôr meu dinheiro a serviço da miséria humana.
E, dizendo isso, afastou-se.
Lacey olhou para Marissa, com uma raiva impotente, e depois correu atrás do
homem.
— Um minuto, senhor, espere!
Mas o rapaz ficara. Havia piedade em seus olhos, o que aumentou bastante o já
exaltado estado de ânimo de Marissa.
— Tome, compre um vestido novo, mocinha — disse ele, atirando-lhe uma moeda
de ouro.
A quantia poderia alimentar Marissa e o tio por um ano. Ela hesitou, olhando para a
moeda. Mas o rapaz já lhe virara as costas. Dispensara-a, sem mais.

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Afinal de contas, ela era um ratinho carvoeiro, necessitando de esmola!
— Não quero esta droga, palhaço! — gritou Marissa, vermelha como um pimentão.
E, juntando o gesto à palavra, atirou a moeda com força nas costas do espantado
rapaz. Depois virou-se para que ele não tivesse tempo de ver suas lágrimas e correu para
casa.
Nessa noite, quando foi apanhar água no poço, Marissa topou com o irado sr.
Lacey, que já a esperava com uma varinha. Antes que ela pudesse fazer qualquer
movimento, o homenzinho agarrou-a e deu-lhe algumas varadas. Marissa esperneou,
debateu-se como pôde e finalmente conseguiu mordê-lo. Mordeu com tanta vontade que
o sr. Lacey largou-a, gritando.
Orgulhosa como era, Marissa nunca contou o episódio ao tio.
Nem o sr. Lacey, de vergonha.
E Marissa nem chegou a detestar o sr. Lacey mais do que já detestava antes; de
certa maneira, até o compreendia.
Outro ódio se avolumava dentro dela. Um ódio profundo pelo rapaz de olhos azuis.
Odiou-o por sua elegância. Odiou-o por sua beleza quase perfeita. Odiou-o por sua
voz irônica, de sotaque americano.
Odiou-o, acima de tudo, por ele ser uma pessoa limpa, livre da nuvem negra que
cobria sua cidade.

Setembro de 1904
A segunda vez que o viu foi quase dez anos mais tarde.
Reconheceu-o imediatamente, embora ele tivesse mudado bastante. Mas ainda se
passaria um ano antes que ela soubesse seu nome.
E o lugar que ele ocuparia em sua vida.
Ela também havia mudado, é claro. Tinha crescido, e não mais morava no vilarejo
mineiro.
Dessa vez o que ela mais notou no estranho de olhos azuis foi sua incontrolável
impaciência. Antes mesmo de ele entrar na casa, dava para sentir sua impaciência.
Ao sair da biblioteca da mansão onde trabalhava, carregando a bandeja de chá,
Marissa ouviu o ressoar dos cascos de um cavalo que se aproximava a galope. Haviam-
na avisado que um importante americano viria visitar o patrão, mas esperava vê-lo chegar
de carruagem, ou num desses veículos motorizados que estavam agora em moda entre
os ricos.
Curiosa, aproximou-se da janela do grande e silencioso hall, espiando pelos vidros
coloridos do vitral.
E assim viu-o pela segunda vez. Alto, espadaúdo, muito bem vestido, era o que se
convencionou chamar de bonitão. Montava com elegante displicência e, quando o cavalo
se deteve no pátio, desmontou agilmente. Tinha os cabelos revoltos pelo vento e uma
mecha teimava em cair-lhe na testa larga. Ainda com o chicote na mão, acenou
brevemente para o lacaio que veio recebê-lo, entregou-lhe as rédeas e encaminhou-se
com passadas decididas — não, arrogantes — para a grande entrada do castelo. Agitava
impacientemente o chicote, e as grandes passadas que dava eram igualmente
impacientes. Vestia culotes de camurça clara e sua jaqueta combinava admiravelmente

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com as botas altas e reluzentes. Marissa observava todos esses detalhes enquanto ele
subia os degraus de dois em dois, desaparecendo em seguida de sua vista. Logo ouviu
que ele tocava — não, atacava! — a campainha imperiosamente.
Katey, a velha governanta, alta e seca, foi abrir a porta. Marissa deixou-se ficar
meio escondida na penumbra, perto da biblioteca. A pobre Katey foi "varrida" do caminho
quando ele irrompeu pela entrada.
— Sir Thomas está a minha espera — disse ele, com seu sotaque americano.
Marissa não se admirou, pois sir Thomas tinha muitos amigos americanos, e quase
todos costumavam visitá-lo em seu belo castelo. A diferença é que nenhum deles era tão
moço. Até na voz o homem traía sua pouca idade, uma voz cheia, rica. Sobretudo, a voz
de quem se habituara a mandar e a desmandar.
E, de alguma forma, era uma voz que ressoava fundo na alma de quem a
escutava. Marissa sentiu essa voz, quente e masculina, perpassar-lhe o corpo com a
leveza de um toque de dedos.
Sim, sem dúvida era ele, o rapaz do vilarejo mineiro. Transformara-se num homem
maduro, de feições marcantes.
Quando ele passou por Katey, Marissa deu um passo à frente, disposta a levar a
bandeja para a cozinha. Mas, por algum engano fatal, moveu-se na direção errada. No
segundo seguinte, deu um encontrão com o estranho. A bandeja escapou de suas mãos e
espatifou-se com estardalhaço no chão, enquanto Marissa era atirada com força à parede
da biblioteca.
Maldito estranho! Sempre derrubando-a! E a porcelana chinesa, meu Deus, em
pedaços! A preciosa porcelana de sir Thomas!
Em vez de ajudá-la a catar os cacos, o estranho puxou-a firmemente pelo braço,
encarando-a. Sem saber por quê, Marissa pensou que os olhos dele possuíam um tom
mais azul do que se lembrava. Um azul-escuro, profundo como o mar. Olhos penetrantes,
de um brilho incrível, contrastando com a tez morena e com o queixo quadrado. E uma
curiosa cintilação nas pupilas negras, como pequenas faíscas de luz brilhando na noite
escura. Olhos que a percorreram de alto a baixo, perscrutando-a, avaliando-a, como logo
mais avaliariam o prejuízo do aparelho de porcelana.
— Você está bem?
Não houve sinal de que a reconhecera. Afinal, quem se lembraria de um ratinho
carvoeiro, depois de tanto tempo?
E agora não passava de uma simples empregada. Nada mais.
Marissa fez que sim e livrou-se da mão dele, puxando o braço. Sentia-se confusa e
embaraçada. Seu coração começou a bater mais depressa, e a respiração ficou
entrecortada.
Embora ele tivesse sendo cortês, Marissa não estava gostando dessa cortesia;
uma cortesia fria e desdenhosa, no seu entender, pois não era ela uma simples
empregada?
Talvez estivesse odiando o fato de ele se mostrar apenas bem-educado. Ou o fato
de estar usando um avental branco e engomado sobre um vestido sem graça, cinzento.
Ou ainda o fato de seus cabelos, seus lindos cabelos ruivos de pôr-do-sol, estarem
escondidos numa feia touca de babados.
Marissa irritou-se com seu coração que não parava de bater. Irritou-se com o efeito
que a mão quente e masculina havia causado em seu corpo. Não entendia o que se
passava com ela, mas não estava gostando da experiência, e culpava-o por seu

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descontrole. Culpava-o pelo modo irônico com que a fitava. Culpava-o pelo modo como o
olhar a perturbava, tal como sua voz fizera havia pouco.
"Orgulho", pensou, com tristeza. Todo mundo dizia que ela era orgulhosa demais.
Seu pai, seu tio, sir Thomas, e até Mary, que nunca apontava defeito em ninguém.
— Eu estou bem — conseguiu dizer, seca.
Percebeu que o olhar dele estava fixo no seu. O estranho parecia estar, no mínimo,
intrigado com os olhos dela. Ao perceber isso, e para seu desespero, Marissa corou
violentamente. Já lhe haviam elogiado os belos olhos verdes; olhos de gata, diziam. Sabia
que eram grandes, um pouco puxados e sombreados por longas pestanas. Como Mary
lhe havia dito uma vez: "Seus olhos exigem segunda inspeção, menina. Além disso,
cuidado! Eles são atrevidos demais, brilhantes demais para uma empregada. Quer saber
do que mais? São muito... muito sensuais, é isso". O próprio sir Thomas observara certa
vez: "Seus olhos despertam emoções em qualquer homem, minha menina".
Bem, não neste homem, pelo menos. Sim, ele ainda a fitava, mas não havia nada
mais que impaciência em sua expressão. As linhas do rosto permaneciam severas.
Então, por um breve instante, pareceu que alguma coisa diferente perpassou
naqueles olhos. Alguma coisa mais quente que o fogo que brilhava no fundo recesso azul.
Alguma coisa que a deixou sem fôlego, tremendo, e mais brava que nunca.
"Não!", pensou, sem saber exatamente o que estava negando.
Mas isso não importava. O breve instante passou e houve um ligeiro toque de
tristeza, talvez angústia, na expressão do estranho. Ele deu um passo para trás.
Marissa viu então como ele havia mudado. O rapaz que conhecera possuía mais
doçura, mais inocência. Agora estava diante de um homem feito de aço.
Sem saber por quê, perguntou-se a razão dessa mudança.
Ora, precisava preocupar-se consigo mesma!
Brusca, abaixou-se para recolher a louça partida. Para sua surpresa, ele se
ajoelhou a seu lado e também se pôs a recolher os cacos impacientemente. Antes que ela
tivesse recolhido um punhado, o homem já havia empilhado todo o resto na bandeja.
— Vou dizer a sir Thomas que isso aconteceu por culpa minha — disse ele.
Bem, já era alguma coisa. Afinal de contas, a culpa era toda dele. Não estava
gostando nem um pouco daquele ar de condescendência com que ele falara. Assim,
resolveu não agradecer. Em vez disso, respondeu com petulância:
— Acho bom, mesmo.
O homem parou e voltou-se com a mão no trinco da porta, encarando-a como que
a estudá-la. Depois deu uma risada.
— Não sabia que andam criando tigresas aqui na velha Inglaterra. Você devia
morar no meu país, garota.
E, dizendo isso, entrou na biblioteca, fechando a porta atrás de si.
Marissa murmurou uma resposta malcriada entre os dentes, preparando-se para ir
à copa.
Nesse momento, Katey e ela se detiveram. Do outro lado da porta, a voz
impaciente do estranho elevava-se, irritada, para depois baixar de tom novamente. Katey
limpou as mãos no avental, nervosa. Marissa abanou a cabeça, como a condenar o
estranho. Ninguém, mas ninguém mesmo tinha o direito de levantar a voz para sir
Thomas. Não havia homem melhor que ele no mundo.

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A discussão prosseguia acalorada entre os homens, do outro lado.
Súbito, a porta abriu-se de novo.
— Está bem, está bem! — O estranho quase gritava agora. — Faça como quiser!
Se quer assim, assim será!
Dessa vez, além de impaciente, o estranho estava irritado. Passou como uma
ventania pelas duas, sem olhar para os lados. Parou no hall, endireitou-se e aprumou os
ombros; depois voltou rapidamente para a porta aberta da biblioteca e falou da soleira:
— Está bem, sir Thomas, tomo Deus como testemunha de que não quero seu mal.
Mas aviso-o de que o senhor ganhou muito pouco nessa história toda. Muito pouco além
da mágoa e, com certeza, da ira de um homem.
— Ganhei você, meu amigo — replicou sir Thomas. — E isso me basta. Conheço o
homem, não se preocupe. Encontro você no clube antes de sua partida.
O estranho recomeçou a falar acaloradamente, mas deteve-se antes que as duas
entendessem de que assunto conversavam. Fez uma careta e dirigiu-se para a saída,
gritando por cima do ombro.
— Tome cuidado, seu bode velho!
Mas havia só carinho na frase.
Ele abriu a porta e saiu, enquanto Katey e Marissa observavam-no, atônitas. "Bode
velho?!" Ele deixou a porta aberta e montou enquanto apanhava as rédeas que o lacaio
lhe oferecia.
Nesse momento seus olhos encontraram os de Marissa mais uma vez. O estranho
inclinou-se, e um sorriso irônico desenhou-se em seus lábios.
Ela sentiu vontade de gritar, de correr até ele e dizer-lhe que não seria uma
empregada para sempre e que um dia ele não teria mais motivo para ser tão desdenhoso
e condescendente. Ah, não, ela seria um dia uma verdadeira dama, acima dele, de sir
Thomas e de toda aquela corja de grã-finos!
— Marissa, minha querida, venha até aqui, por favor. Eu gostaria que você lesse
um pouco para mim agora. Talvez um conto de Dickens, que acha?
Era sir Thomas a única pessoa que conseguia fazê-la sorrir e engolir seu orgulho.
— Já vou, sire. Um momentinho só.
Mas ainda olhava pela porta entreaberta, enquanto Katey tratava de fechá-la.
Apertou os lábios, determinada. Sim, senhores, ela ainda seria uma dama, podia
jurar. Já havia conseguido bastante, pois não tinha mais as mãos sujas de fuligem. Olhou
para sua roupa imaculadamente limpa. Aquela nuvem de pó negro virara cinza do
passado, assim como tio Theo, o querido tio Theo, que havia gastado a vida tossindo
incessantemente, noite após noite. Agora Marissa vivia num castelo onde as pratas e as
paredes brilhavam. Onde o ar era transparente, límpido.
E ela lia também. Devorava os grandes clássicos, conhecia as árias das melhores
óperas, e sabia recitar poemas com graça e leveza.
— Marissa! Você ainda está aí?
Katey tirou a bandeja das mãos de Marissa:
— Pode ir. Eu cuido disso.
Com um sorriso agradecido, Marissa entrou na biblioteca.

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Tentou relaxar e brincar como sempre fazia, mas o estranho havia deixado um
peso em seu coração. Só conseguia pensar em achar um modo de revidar e vingar-se
daquele que a tratara com tamanha superioridade.
"Juro que serei muito mais importante e rica que ele! E então será a minha vez de
sorrir com desdém para aquele arrogantezinho!"
O castelão, todavia, não mencionou nem uma vez o nome do estranho nem tocou
no assunto da visita que recebera. E quando chegou a hora de se recolher, Marissa ainda
se lembrava do rosto moreno e dos olhos azuis que a fitavam com ironia. Ainda se
lembrava do curioso toque de dor que notou, brevemente, em sua expressão.
"Ele vai ver só com quantos paus se faz uma canoa! Ah, se vai!"
Marissa continuava tão orgulhosa quanto o fora em criança. E igualmente
determinada.
Porém, na manhã seguinte, riu-se de sua criancice. Mostrar o quê, a quem, como?!
Provavelmente nunca mais veria aquele homem outra vez.
Mas estava enganada. O destino iria trazê-lo de volta.
E...
Ela iria mostrar a ele. De fato.

CAPÍTULO I

Londres, novembro de 1905


— Ele vem vindo! — exclamou Mary, aflita.
Largou a pesada cortina de veludo, que escondeu novamente a janela com um
farfalhar suave. Olhou ansiosamente para Marissa com seus olhos castanhos e
assustados, que contrastavam com a palidez do rosto.
"Mary emagreceu muito nestes últimos dias", pensou Marissa, observando a
amiga.
Sir Thomas morrera havia um mês, e os tempos tinham sido duros para a doce e
meiga Mary. As duas tinham passado horas intermináveis à cabeceira do doente,
cuidando incansavelmente para amenizar as dores do velho castelão.
Embora Mary costumasse brigar bastante com o pai, amava-o muito, e agora
estava sofrendo. Marissa também venerava sir Thomas, e sentia sua falta.
"Nós o amávamos tanto", pensou ela, com melancolia. "E agora, ironicamente, cá
estamos as duas decididas a não cumprir sua última vontade."
— Ah, meu Deus! — murmurou Mary, entrelaçando os dedos. — Tem certeza de
que está bem, Marissa?
Não, Marissa não tinha certeza alguma. Sua respiração tornara-se entrecortada, e
ela começava a sentir um friozinho renitente bem na boca do estômago. Mas sabia que

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iria enfrentar tarefas muito mais difíceis ao longo de sua vida. Lembrou-se da mãe, que
havia conseguido ser uma atriz de sucesso em Londres, ainda que por um período muito
curto. Herdara um pouco desse talento, e pretendia agora pô-lo à prova, para o bem de
Mary.
— Estou ótima, Mary. Não se preocupe.
Lançou uma rápida olhada no espelho da elegante suíte do hotel onde estavam
hospedadas.
Tudo daria certo, se dependesse de sua aparência. Estava usando um dos
vestidos mais bonitos de Mary, de seda, guarnecido de botõezinhos de pérolas
nacaradas, que desciam do pescoço à cintura, e dos punhos ao cotovelo. A saia, bem
ajustada na frente, tocava a ponta das delicadas botinhas de couro bege. Os cabelos
ruivos haviam sido cuidadosamente penteados para cima, presos por uma grande fivela
de ouro e pérolas, combinando com o broche que enfeitava a gola alta.
No conjunto, compunha a imagem de uma refinada dama da sociedade, como
haviam planejado.
Marissa pousou a mão no ombro da amiga, conseguindo fingir absoluta
despreocupação. A bandeja de café já se achava sobre a mesinha, a prata reluzindo
sobre a delicada renda da toalha, o que lhe lembrou quando as duas brincavam de chá e
casinha, havia tempos.
Havia muito tempo. Quando o pai de Marissa, reverendo Robert James Ayers,
ainda vivia, Mary e Marissa moravam praticamente juntas, pois o reverendo cuidava da
pequena capela medieval do castelo de Sir Thomas.
Quando menino, Robert Ayers havia sido destinado a trabalhar nas minas, como
seu irmão Theo; contudo, seu notável talento nos estudos levou o velho vigário de
Leominster, a vinte milhas dali, decidir tomá-lo sob sua tutela a fim de educá-lo. Robert
não o desapontara; em pouco tempo conhecia latim e grego, além de ser capaz de
resolver complicados problemas de álgebra. Além disso, acabara tomando gosto pela
religião e, quando seu benfeitor morrera, decidira substituí-lo.
Sendo filha do pároco, Marissa desfrutava de algumas vantagens, entre elas a de
ser recebida, e muito bem, no castelo. No dia em que completou seis anos, foi convidada,
pela primeira vez, para tomar chá. Quando se apresentou toda altiva a Mary como
Katherine Marissa Ayers, da paróquia de Leominster, ficou furiosa quando a outra
começou a rir. Já se preparava para arrancar os cabelos da anfitriã, esquecida de seu
firme propósito de se portar como uma dama, quando Mary, ainda rindo, estendeu-lhe as
mãos.
— Não estou rindo de você, de verdade! É que foi engraçado, desculpe. Eu
também tenho Katherine no nome — chamo-me Katherine Mary Ahearn. Somos quase
xarás, afinal.
— Eu sou Marissa, não Mary.
— Papai me chama de Mary, de modo que não haverá confusão de Katherines.
Venha, não fique aborrecida. Estou contente de você ter vindo. Não tenho amiguinhas e
vivo bastante sozinha.
Marissa passou a ir regularmente ao castelo, onde brincava tardes a fio com Mary.
Quando seu pai morreu, porém, ela não só o perdeu como também a Mary, pois precisou
ir viver com tio Theo, na cidade mineira. Apesar de ter detestado a mudança, afeiçoou-se
muito ao tio, um homem rude e analfabeto, mas cheio de bondade e alegria. Tio Theo
costumava niná-la à noite, contando-lhe histórias bonitas, até que ela finalmente
adormecia enovelada em seus braços fortes de trabalhador.

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A vida era muito mais difícil para as outras crianças da cidade, Marissa logo se
apercebera disso. Especialmente para as órfãs, impiedosamente espancadas pelos
parentes. Marissa conhecera apenas bondade e generosidade.
E pó de carvão.
Queria retribuir ao tio na mesma moeda, e por isso lavava, passava e cozinhava
com aplicação. A casinha onde moravam, de um cômodo só, vivia varrida e limpa, e as
roupas do tio eram remendadas com capricho. Quando seus estudos terminaram, no
entanto, Marissa sabia que teria de trabalhar pelo próprio sustento.
Mas costumava sonhar alto, especialmente depois de ter visto aquele elegante
rapaz de olhos azuis, cuja roupa limpíssima tanto a impressionara.
Sonhava também com o belo castelo de sr. Thomas, onde passara tardes tão
felizes com Mary. Sonhava com as mãos finas, brancas e aristocráticas de Mary. E com a
rica mobília de mogno, que nunca conhecera pó de carvão.
Um domingo tio Theo decidiu gastar suas economias e alugou uma carruagem
para levar Marissa e Leominster, onde ambos assistiriam ao culto na pequena capela.
Lembrava-se ainda do misto de inveja e alegria que sentira ao rever Mary, ajoelhada num
dos bancos de trás. A amiga, alta e elegante num casaco debruado de peles castanhas,
combinando com seus olhos e cabelos. Havia crescido, assim como ela própria; eram
agora duas mulherzinhas, com quase quinze anos, Mas Mary não a vira, e Marissa deu
graças aos céus por isso.
Lembrou-se de que ficara com vergonha de suas mãos, de unhas quebradas e
pele rachada, de tanto lidar com água e sabão. Vergonha de seu vestido simples, de seus
sapatos grosseiros.
Quando a última bênção foi dada, Marissa decidiu que escaparia pela porta lateral,
sem cumprimentar Mary. Agilmente, passou pelos bancos e viu-se livre de bênçãos,
santos e gárgulas. Aspirou com delícia o perfume familiar dos pinheiros e dispôs-se a
esperar o tio, pensando em inventar alguma dor de cabeça, para voltarem para casa.
Nesse momento, alguém lhe tocou no ombro.
— É você, Marissa? Que prazer em vê-la de novo, minha pequena!
Era sir Thomas, com um sorriso carinhoso.
— Isto aqui ficou mais triste sem você e seu pai. E minha Mary sente muito a sua
falta. Como tem passado?
— Muito bem, obrigada, meu senhor — respondeu baixinho, examinando a
possibilidade de fugir dali.
Mas Mary estava logo atrás do pai. Marissa julgou que ela empinaria o nariz ao ver
aquela ratinha carvoeira. Contudo, a amiga abriu-se num sorriso encantador.
— Marissa! Há quanto tempo, minha amiga!
Logo Theo e Marissa foram intimados a tomar chá no castelo, ao que ambos
aquiesceram com alguma ansiedade. Quando chegaram, o tio parecia desconfortável em
meio a tanta riqueza. Suas unhas tingidas de carvão contrastavam com a brancura da
porcelana. Ele não sabia segurar a xícara e deixou a colher cair duas vezes. Nada disso
parecia perturbar sir Thomas, nem Mary, mas Marissa sentiu-se mal pelo tio. Depois
censurou-se por isso; afinal, ela sabia como se comportar porque vivera ali por algum
tempo. Pobre tio Theo, ele não tinha culpa nenhuma. Vendo Mary e o pai, Marissa
aprendeu que classe e elegância não tinham nada que ver com esnobação e grã-finagem.
Ambos eram naturalmente simpáticos e amáveis. Mas isso não mudava a situação, de

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qualquer modo. Marissa continuava uma ratinha carvoeira, e Mary, uma dama
aristocrática.
Três dias depois, sir Thomas foi visitar tio Theo na pequena e miserável casinha do
mineiro. Queria que Marissa fosse morar com ele no castelo. A princípio, Theo recusou,
porque não queria viver de caridade, mas sir Thomas assegurou-lhe que Marissa
trabalharia lá e seria dama de companhia de Mary. Desse modo, ela teria meios de pagar
sua própria educação.
— Eu gosto muito de minha sobrinha, não sei...
— Por isso mesmo, homem de Deus! Ora esta, quer vê-la acabar casada com um
mineiro, que logo começará a cuspir catarro preto? Quer vê-la com uma fieira de crianças
iguais a ela, cansadas e abatidas? Olhe, eu não estou pedindo que me dê Marissa, mas
que dê a ela uma oportunidade, ainda que pequena, de ter um futuro melhor. Digo isso de
coração, embora haja interesse meu nessa história toda, pois minha Mary vive muito só.
Experimente, em nome da memória de seu irmão.
Quando percebeu que Theo estava meio convencido, sir Thomas prosseguiu,
fervorosamente:
— Se eu tivesse alguma autoridade nesta cidade, modificaria uma série de leis por
aqui, e então tudo seria mais fácil para os mineiros. Sinto que nada posso fazer nesse
sentido. Mas, Theo, a sua sobrinha, essa eu posso ajudar. Não tenho poderes para mudar
a mina, mas tenho para mudar a vida da garota. Além do mais, meu castelo fica perto,
são apenas trinta e dois quilômetros; ela virá vê-lo quando puder. A julgar pelo quanto ela
gosta de você, virá muitas e muitas vezes, pode crer.
Theo suspirou e olhou para a sobrinha, que areava algumas panelas, alheia ao que
se passava.
— Marissa, vá dar uma volta. Quero conversar com sir Thomas.
Quando ela voltou, sir Thomas e o tio haviam feito um trato. Nos fins de semana,
Marissa viria para a casa do tio, nos dias úteis ficaria no castelo, estudando e
trabalhando.
Marissa sentiu-se bem desde o início de sua estada no castelo. Não havia nada no
mundo melhor do que seu quartinho, pequenino e apertado, situado no sótão. Mas lhe
pertencia! Durante a semana, trabalhava e estudava com afinco; aos sábados levantava-
se cedo, ia ao ofício da capela e depois rumava para a pequena cidade mineira, onde seu
tio aguardava, sempre carinhoso. Marissa nunca ia para casa de mãos vazias; ora levava
ovos frescos, ora uma galinha nova e gorda, às vezes até presunto. E Theo, orgulhoso da
sobrinha, convidava seus amigos para compartilhar essas iguarias e ouvi-la recitar.
Marissa ensinava as crianças da aldeia a ler e escrever, e ficava satisfeita de ver o tio feliz
com tudo isso.
Havia escapado da nuvem de pó, finalmente.
Viver no castelo em companhia de Mary era fácil, embora ela trabalhasse bastante
e estudasse ainda mais, decidida como estava a tornar-se alguém na vida; na maior parte
do tempo, Marissa era feliz. Muito feliz. Mary era sua patroa, e, ao mesmo tempo, sua
melhor amiga. Ambas gostavam de sonhar juntas. Mary, com o amor; Marissa, com a
riqueza, o suficiente para alimentar toda a aldeia do tio. Aprendeu toda a arte da etiqueta
com Mary, e copiava-lhe o modo de andar e falar. Nas aulas de história, Marissa
conseguia sair-se melhor que Mary, porque adorava a história da Inglaterra, seus
cavaleiros e reis, a bravura com que lutaram pelo seu pedaço de terra. Em matemática
também ia muito bem; aplicava-se nessa matéria a fundo porque achava que um dia
ainda haveria de ter grandes fortunas para administrar.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
A cidade onde ficava o castelo parecia-lhe grande, em comparação à cidadezinha
mineira. Mas quando foi visitar York, com Mary, abriu a boca de espanto. Ficou fascinada
com o muro da era romana, que ainda estava de pé; admirou-se com a belíssima
catedral; sentiu-se pequena diante dos belos e antigos monumentos que enfeitavam a
cidade.
Era como se a nuvem de pó preto tivesse sido uma prisão, que a impedira de
enxergar além do estreito horizonte de fuligem.
Os anos se passaram e, na maior parte do tempo, Marissa sentira-se feliz. E
orgulhosa. A maior parte do tempo...
Marissa franziu o cenho, perguntando-se que lembrança desconfortável havia
emergido dos recantos da memória. Às vezes, em raras ocasiões, ela se lembrava de sua
condição de simples empregada. Mas, na realidade, Marissa já era uma dama. Assistia a
concertos, óperas e peças teatrais; era capaz de manter uma conversa inteligente e
costumava sair-se bem em discussões de filosofia com pessoas mais velhas.
Mas às vezes...
Então ela se lembrou. Olhos azuis examinando-a, tocando-a, perscrutando-a, como
se conhecessem a verdadeira Marissa. Uma empregada cheia de energia e vontade de
subir na vida, que dependia da simpatia dos patrões. Ah, aqueles olhos tinham mesmo
mexido com ela, tinham-na deixado nua e vulnerável. E isso acontecera nas duas vezes
em que topara com eles. Aqueles olhos tinham o estranho dom de deixá-la perturbada e
desamparada, de fazê-la corar e se sentir infeliz. Até ali, naquele momento, eles vinham
se intrometer. Justo quando ela mais precisava de autoconfiança.
— Mary, talvez estejamos cometendo um terrível erro! Talvez esse... esse homem
que esperamos seja bondoso. Não seria melhor dizermos a verdade a ele? Sermos
honestas? Talvez ele não seja tão ambicioso como pensamos, pode ser que ele nem
queira ser seu tutor, afinal. Acho... acho que é melhor você receber esse tal de Tremayne.
Os olhos castanhos de Mary se alargaram, em pânico. Ela pôs-se a andar de cá
para lá, sem se preocupar com os magníficos bibelôs que ornavam a suíte. Quase os
derrubava ao passar por eles com sua saia ampla.
— Tutor é uma palavra fraca. Guardião, é o que ele quer ser! Marissa, eu já estou
com dezenove anos! Como meu pai pôde...?
— Ele gostava demais de você, Mary. Não houve intenção de magoá-la, acredite.
Sua saúde nunca foi muito boa, Mary. Além disso, você é de índole tão dócil que às vezes
dá para confundir sua bondade com ingenuidade. Sir Thomas provavelmente teve medo
de que algum caçador de dotes conseguisse enganá-la. Seria um desastre, você sabe
disso. Seu pai estava enganado, eu sei, mas o que ele fez foi pensando no melhor: Ele
adorava você!
— Se ao menos ele soubesse a verdade!
"De nada teria adiantado." Marissa não ousou pôr em palavras o pensamento.
Mary estava apaixonada, já fazia um ano. O problema é que ela se apaixonara por
um lojista irlandês, Jimmy O’Brien.
Marissa gostara de Jimmy desde a primeira vez, e fora por isso que se dispusera a
ajudar tanto Mary.
Mas, na verdade, às vezes Mary parecia uma boba.
Jimmy era excelente pessoa, batalhador e persistente, como a própria Marissa.
Havia deixado a Irlanda com os bolsos vazios, mas munido de ambição e muito talento
para cálculos, além de estar firmemente decidido a dar uma guinada em sua vida

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miserável de agricultor. Tinha boa intuição para negócios e acabara achando emprego
numa loja, onde conseguira aumentar bastante os lucros do patrão. Trabalhava como
comprador, e sabia distinguir as boas mercadorias das más; com isso, a loja progredira
depressa.
Mary e Jimmy se conheceram na loja, e o namoro logo começou. De nada valeram
os avisos de que sir Thomas jamais aceitaria um pobretão plebeu como genro. Mary
nunca disse uma palavra ao pai, e Marissa acostumou-se a dar-lhe cobertura para suas
"escapadas" durante o dia.
"Mary, você está acostumada a conseguir tudo o que quer, numa bela bandeja de
prata", advertia-lhe Marissa. "Você não sabe o que é viver na pobreza! A vida não será
fácil para você, se resolver fugir para se casar com ele!"
"Você não sabe o que é estar apaixonada, Marissa. Por ele, eu trabalharia,
mendigaria, faria qualquer coisa!"
Tamanho fervor e veemência, vindos da suave Mary, impressionavam. Mas
Marissa insistia:
"Você não tem ideia do que é ver seus filhos morrendo de fome."
As discussões prosseguiam intermináveis. Até que um dia sir Thomas adoeceu, e
os médicos avisaram de que não havia mais esperança.
Na noite em que souberam disso, Mary e Marissa descobriram o quanto a amizade
era preciosa. Choraram juntas e consolaram-se como puderam, uma sentindo o conforto
do calor da outra.
A decisão de Mary de não contar sobre Jimmy para o pai viu-se reforçada. Não
havia razão para deixar o doente aflito. Ela resolveu que, quando estivesse conformada
com a morte de sir Thomas, se casaria com Jimmy e aprenderia a administrar a herança.
Nesse meio tempo, o namoro prosseguia firme. Ao cair da noite, quando a temperatura do
doente se elevava, Marissa ficava a sua cabeceira enquanto Mary desaparecia nos
bosques com o amado, que sabia consolá-la melhor que a amiga.
Sir Thomas morreu numa bela manhã de verão. O sol brilhava alto, e os narcisos
silvestres explodiam em botões coloridos. Mary e Marissa estavam sentadas ao lado da
cama, quando o velho abriu os olhos, aspirou o perfume que vinha da janela, sorriu
docemente e expirou.
Três dias depois, conforme o costume, após os elegantes e concorridos funerais,
sir Thomas foi enterrado no chão da capela, como seus ancestrais. Embora soubessem
que o velho estava com os dias contados, as duas moças choraram um pranto sentido,
mal conseguindo conversar nos dias que se seguiram.
Tio Theo preocupava-se demais com Marissa, pois não sabia que futuro a
aguardava após a morte do velho castelão. Passados dez dias do enterro, ela resolveu ir
visitá-lo na pequenina aldeia onde vivera com ele por tanto tempo. Assim que chegou, fez
como sempre: limpou e varreu, lavou a louça, livrou a casa do pó preto e cozinhou
legumes para o tio. Acabou conseguindo convencê-lo de que Mary daria dinheiro para
ambos, o suficiente para que o tio não precisasse mais trabalhar na mina. A tosse dele
piorara consideravelmente, o que a deixava muito preocupada. Havia acabado de enterrar
sir Thomas, e não tinha a menor intenção de fazer a mesma coisa com o tio. De qualquer
modo, o que dissera ao tio fora a pura verdade. Mary era agora muito rica, e certamente
daria um belo salário para Marissa.
Porém, ao voltar para o castelo naquela noite, encontrara uma Mary pálida e
desfeita, olhando fixamente para o fogo que crepitava na lareira. A amiga estava gelada,

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não obstante o fogo. Marissa forçara-a a engolir um cálice de xerez e envolvera-a num
cobertor. E o diálogo entre as duas fora tenso.
— Oh, Marissa!
— Que foi, Mary? Conte para mim, sou sua amiga.
— Meu Deus, Marissa... Como é que ele foi me fazer isso?
— Quem foi lhe fazer o quê?
— Oh, Marissa!
— Calma, calma, meu bem. Por favor, você precisa se explicar melhor. É Jimmy,
não é? O que ele fez? Ah, se ele a magoou...
— Não, ele jamais faria isso comigo.
— Ótimo, então. Agora, conte-me o que está acontecendo.
— É... é o papai.
— Sir Thomas? Mas...
— Oh, como é que ele foi me fazer isso? Como?
— Em nome de Deus, Mary, diga de uma vez! Estou ficando aflita!
— O testamento, Marissa. Eu ainda não sou maior de idade. Então papai resolveu
nomear um... guardião, tutor, sei lá como se chama, para tomar conta de mim... até eu
completar vinte e cinco anos!
Mary soluçava convulsivamente e as palavras saíam entrecortadas, difíceis de
compreender. Marissa forçou-a a beber mais um gole de xerez.
— Ora, vamos, Mary, isso não me parece tão mau assim.
— Mas há mais... Ouça: esse tal de guardião tomará conta do meu dinheiro todo. E
eu nunca nem ouvi falar nele! Ainda por cima, é americano... Ah, que horror, Marissa!
Agora é que vem o pior... eu... eu... fui prometida a ele! Está me entendendo, Marissa?
Estou noiva de um americano desconhecido! Que é que eu faço agora, meu Deus? E
Jimmy?
— Calma, vamos pensar. Escute, Mary, ninguém pode forçar você a se casar com
quem não quer. Diga que não quer, e pronto!
Mary gemeu baixinho, escondendo o rosto no colo.
— Se eu me recusar a casar, o tal americano terá poder de controlar meu dinheiro
até eu fazer trinta anos!
— Em outras palavras, se é que entendi bem: se você se casar com ele, receberá
a herança toda aos vinte e cinco. Se não, o americano fica administrando todo o seu
dinheiro até você completar trinta, é isso?
Mary fez que sim com a cabeça, fungando.
— Não só dinheiro, Marissa, mas a casa, os empregados... Tudo vai ficar nas
mãos dele!
— E se você não se casar com ele? Vai viver com o quê?
— Papai estipulou uma quantia, que esse tal tutor vai me dar todos os meses, caso
eu permaneça solteira. Caso contrário, perderei todos os meus direitos...
Mary não conseguiu continuar. Agarrou-se soluçando a Marissa.
— Não pode ser, há algum engano nisso tudo!
— É o que está no testamento, preto no branco... Oh, céus!
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— Podemos conversar com os advogados de sir Thomas. Eles darão um jeito
nessa história.
— Não, não farão nada diferente do que papai quer. Além disso, não conheço
nenhum deles. Papai nunca falou em negócios comigo... e eu nunca quis saber de nada
com respeito a nosso dinheiro.
— Então vamos nós duas pensar num modo de tirar você dessa enrascada.
Primeiro, vamos falar com o advogado...
— Já disse que não adianta! Eu não posso pedir nada a eles!
— Mas eu posso. Vou chamá-los e dizer que sou você. Tem o telefone do
advogado principal?
— Tenho... está ali, junto ao telefone.
Marissa ligou e ficou seriamente preocupada com a resposta. O próprio advogado
estava atarantado com a exigência de sir Thomas, da qual só soube quando abriu o
testamento. Todas as palavras de Mary foram confirmadas.
O velho castelão havia arranjado até a licença de casamento, na abadia de
Canterbury. Não haveria necessidade dos proclamas, caso Mary aceitasse casar-se com
seu tutor. O contrato poderia ser celebrado em dois dias, de forma que o americano nem
precisaria se ausentar dos Estados Unidos por mais tempo que isso.
A bem da verdade, nessa noite Jimmy teve o mérito de jurar que não se importava
com o dinheiro de Mary, nem um pouco. Amava Mary pelo que ela era, e iria trabalhar
duro para um dia ter sua própria loja. Viveria com ela em qualquer lugar, e juntos
construiriam uma vida digna.
De mãos dadas, Mary e Jimmy ficaram em frente à lareira, encantados um com o
outro, perdidos em pensamentos românticos. Marissa balançou a cabeça e deixou-os a
sós.
Mas, uma semana mais tarde, Mary caiu de cama, ardendo em febre. Marissa
passava os dias a sua cabeceira, rezando, negociando com Deus, prometendo-lhe
mundos e fundos caso Ele salvasse sua amiga. Jimmy também não arredou pé do quarto.
Mary não só salvara Marissa da nuvem de carvão, como lhe havia hipotecado total
amizade e ternura. Ensinara-lhe a ser uma dama. E, com a ajuda de Mary, Marissa iria
minorar os sofrimentos dos mineiros, tão duramente maltratados. Mary havia lhe dado um
bem precioso demais: a esperança.
Por isso, Marissa faria qualquer sacrifício pela amiga, a quem amava acima de
tudo.
Mary principiou a melhorar, ao cabo de duas longas semanas. Mas o médico
alertou Marissa para seu precário estado de saúde. Mary não era nada forte, e
necessitava de muito cuidado. Não podia trabalhar, nem ter filhos. Devia descansar a
maior parte do dia, pelo resto da vida.
Jimmy e Marissa estavam desolados. Ele gostava de Mary, realmente. O suficiente
para renunciar a seu amor, pois Mary jamais suportaria viver num quartinho abafado, sem
meios para se tratar. Os ideais românticos reduziram-se a pó. Mas quando Jimmy
começou a falar com Marissa, suas resoluções foram por água abaixo.
— Não posso, não posso abandonar Mary! Sei que não posso levá-la comigo, mas
também não consigo deixá-la!
E seu rosto traduzia espanto, dor e angústia.
— Bem, eu posso arrumar um emprego e... — começou Marissa.

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— E sustentar-nos?! Ah, Marissa, você é notável! Forte, inteligente, corajosa!
Gosto de você quase tanto quanto Mary, mas... esqueceu-se de seu tio? Tem de cuidar
dele, minha amiga! Não, a única coisa que posso fazer é esperar por Mary... esperarei até
ela ter trinta, quarenta ou noventa anos! Até o fim de minha vida!
Marissa sorriu. Jimmy era tão dramático às vezes!
— Essa espera não vai ajudar muito, Jimmy. Não, deve haver uma saída, alguma
coisa que possamos fazer!
Não chegaram a conclusão nenhuma, porém. Marissa foi para a cama
perguntando-se, pela milésima vez, como sir Thomas, tão meigo, fora amarrar sua doce
Mary a um estranho americano que ela nem conhecia. Mesmo que esse homem fosse
rico e importante, ainda assim assumiu uma atitude incompreensível.
Foi só no dia seguinte que uma ideia maluca ocorreu a Marissa.
Mary jazia deitada em silêncio melancólico, pálida e encovada. Jimmy estava
atiçando o fogo na lareira e Marissa tinha acabado de deixar seu romance de lado. Num
estalo, quase gritou:
— Mary! Achei um plano!
— O quê?
— Eu vou tomar seu lugar! É isso, Mary!
— Nossa Senhora! — exclamou Mary, compreendendo, mas não querendo
acreditar.
Jimmy encarou as duas.
— Que vem a ser isso agora? Acho que a febre de Mary passou a atacar as duas.
— Será... será que é possível? — hesitou Mary, com o olhar menos apagado.
— Claro que é! Esse homem nunca me viu. É da Califórnia, parece, ou de qualquer
outro lugar da América.
— Mas todos aqui nos conhecem — começou Mary.
— Os advogados já pensam que eu sou você, não é assim? Pois não foi tão difícil,
podemos repetir a dose. Vamos planejar tudo minuciosamente. Iremos para um lugar
onde ninguém nos conheça... Já sei, Londres! Vamos marcar um encontro com ele em
Londres!
— Mas...
— Não tem mas nem meio mas, Mary! Vamos começar agora mesmo. Primeiro,
concordaremos com o testamento, formalmente. Assinaremos tudo aqui, em York. E
depois seguimos para Londres, mas sem advogado nenhum para xeretar.
— E nossos nomes, que são tão parecidos... — juntou Mary, já risonha. — Muito
conveniente!
— Pelo amor de Deus, uma das duas quer me fazer o favor de explicar essa
história? Julgo ter entendido, mas não quero acreditar. Mary?
— É isso mesmo, Jimmy. Marissa tomará meu lugar.
— Não podemos deixá-la casar-se com um velhote americano para salvar nossa
pele, Mary. Estragará a vida dela!
— Mas quem falou em casar? — atalhou Marissa, calmamente. — Eu vou apenas
dizer que não quero me casar com ele, mas que também não me casarei com ninguém. O
caminho fica livre para Mary se casar com você, sem que ninguém saiba. Enquanto isso,

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
vendo que me comporto bem, o americano enviará a mesada de Mary para mim... e eu a
entregarei à dona. Até ela completar vinte... não, trinta anos. Depois vocês estarão ricos e
viverão felizes para sempre. Fim da história da Carochinha.
— Simples, não? — falou Jimmy, aproximando-se de Marissa. — E você? Vai
gastar dez anos de sua vida curtindo sua solidão? Que me diz do amor, Marissa? O que
acontecerá se, nesse tempo, você encontrar o homem de seus sonhos?
— Esse homem não existe, nem nunca existirá, Jimmy — retrucou Marissa, cética.
— Desculpe, mas você ainda não sabe o que é o amor. E quando ele chegar...
— Sei o que é fome e pobreza — atalhou Marissa, com frieza. — Quero cuidar de
tio Theo; isso me basta. E se Mary concordar, podemos até fundar uma escolinha para
aquelas pobres crianças doentes que vivem na minha cidade. Elas terão meios de fugir,
também elas, do inferno de pó negro em que vivem. Pode crer, Jimmy, tudo dará certo.
Jimmy nunca conseguiu se convencer direito. Lutou contra o plano o quanto pôde,
mas as duas já haviam decidido. A ideia foi posta em prática.

Quando receberam a primeira carta do americano, Ian Tremayne, avisando que ele
estava a caminho, as amigas já haviam preparado a resposta. Marissa escreveu, com sua
caligrafia fluente e elegante, que miss Katherine Ahearn compreendia perfeitamente as
condições impostas por seu pai e estava pronta a aceitá-las. Para tanto, aguardava a
chegada de seu guardião.
Os advogados foram informados de que miss Ahearn concordava com todos os
desejos de sir Thomas. Marissa e Mary ficaram aliviadas quando souberam que a
assinatura de Mary não seria necessária. Os advogados precisariam apenas da
assinatura de Ian Tremayne, para liberar os fundos.
Eles também indicaram que teriam muito prazer em estar presentes quando se
desse o primeiro encontro entre miss Ahearn e o sr. Tremayne, uma vez que eles
entendiam muito bem a dificuldade daquela inusitada situação.
E ficaram muito impressionados com a frieza e calma maturidade da jovem,
quando esta lhes respondeu que não seria necessário, muito obrigada.
E assim foi que aconteceu. Agora, estavam as duas num hotel elegante de
Londres, esperando o destino.
Uma batida enérgica na porta despertou as duas amigas de seus devaneios. Mary
olhou para Marissa, sobressaltada, os lábios tremendo. A outra sorriu, demonstrando uma
firmeza que estava longe de sentir.
— Tudo bem, Mary, vamos com isso até o fim. Ora, eu sempre soube como lidar
com velhotes! Lembre-se que nós conseguimos driblar os advogados. Agora é a sua vez;
vá para o quarto.
Mary obedeceu, pálida e silenciosa.
Outra batida enérgica, quase impaciente.
E então, Marissa ouviu a voz. Rica, confiante, o tipo de voz de quem sabia
comandar. Uma voz que jamais conseguiria ignorar.
— Miss Ahearn! Está aí, miss Ahearn?
A primeira farpa de mal-estar acometeu-a nessa hora. Conhecia aquela voz, bem
demais, até! Ela a perseguira até em sonhos, torturara-a por muito tempo, fora uma
intrusa nos seus planos de riqueza.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa não tocou na porta, nem fez nenhum movimento. De repente, a porta se
escancarou de supetão. Ele...
O estranho. De perturbadores olhos azuis, que mexiam com ela tanto quanto a voz.
Os olhos agora varriam-na de alto a baixo, mais uma vez.
Arrogante, voluntarioso, impertinente. Jamais iria conseguir enganar alguém com
tanto vigor na expressão, tanta determinação nos gestos. Marissa começou a se alarmar
com a incontrolável tremedeira que ameaçava apoderar-se de todo o seu corpo.
"Calma, menina", pensou. "A surpresa deixou-a assim, nada mais. Calma, dona
Marissa, senão a senhora põe tudo a perder!"
Mas não era só a surpresa, era o medo também. E se ele a reconhecesse?
— Miss Ahearn? Sou Ian Tremayne.
Seus olhos ficaram cor de cobalto diante do silêncio da moça. Impaciente,
emendou:
— Vim buscá-la, moça. Ei, há alguma coisa errada? Você está bem?
Não, mil vezes não! Ela não estava nada bem. Esse homem não era o velhote
submisso que esperava dobrar a sua vontade.
Esse homem havia lhe atirado negligentemente uma moeda de ouro. Esse homem
havia feito em mil pedaços o belo aparelho de chá de sir Thomas. Esse homem havia rido
dela, dizendo-lhe que devia ir morar na América.
Esse era o homem que tinha penetrado em seus sonhos, lembrando-a que por
baixo de todo aquele verniz existia apenas uma ratinha carvoeira.
E esse estranho, finalmente, ganhava um nome para ela.
Ian.
Ian Tremayne.
E de novo seus argutos olhos azuis varriam-na de alto a baixo. Será que a
reconhecera? Marissa não tinha certeza. Mas não, impossível! Ele não poderia se lembrar
nunca. Porque, da primeira vez, ela era uma criança ainda. E, da segunda, vira-a na
condição de uma anônima empregadinha sem eira nem beira, quase invisível na
semiescuridão do hall do castelo.
"Meu Deus, que ele não me reconheça! Que ele não..."
— Você é Katherine, não é? — perguntou Ian, impaciente.
— Sou. Meu nome é esse — respondeu ela, com uma firmeza que a surpreendeu.
Tentou sorrir, mas não conseguiu. Estendeu a mão, que ele tomou entre as suas e
levou aos lábios, depositando ali um beijo.
Um beijo que lhe queimou os dedos. Marissa sentiu que o beijo era, a um tempo,
fogo e bálsamo. Com sua voz quente e grave, Ian falou:
— Por favor, queira se sentar. Temos muito que discutir sobre o testamento de seu
pai. Vamos tentar resolver da melhor forma possível, mas antes quero que saiba que eu
nada tive com essa história.
Incapaz de se mover, ela continuou de pé, alta e ereta. De repente, as mãos dele
estavam sobre seus ombros, forçando-a delicadamente a se sentar. Depois, a voz de Ian
chegou-lhe perto, tão perto que ela podia sentir seu hálito de tabaco.
— Nada tive com a história, moça, mas dei minha palavra a sir Thomas que
cumpriria sua vontade, fosse ela qual fosse. E pretendo cumpri-la, minha cara. É minha

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obrigação dizer isso agora, neste momento. E garanto-lhe, minha senhora que vou
cumpri-la a qualquer custo.

CAPÍTULO II

Ali estava ele, sentado a seu lado, displicente e relaxado, encarando-a firmemente
com os olhos azuis e impiedosos. Marissa mal continha a tensão, imperceptível sob a
aparência imperturbável. Nunca o deixaria perceber o quanto ele a intimidava. Ergueu o
queixo, lembrando-se de como se comportavam as mais arrogantes amigas de Mary,
tratando de superá-las. Falou com voz macia, mas cortante:
— Meu caro senhor, ninguém ficou mais chocado que eu com esse arranjo de meu
pai, de quem eu era muito amiga. Obviamente, não preciso de guardiões. E não me
parece que esteja muito ansioso por ser um deles. Com um mínimo de esforço mútuo,
creio que podemos chegar a um acordo satisfatório.
As sobrancelhas dele se arquearam e por um breve segundo pareceu que Ian se
divertia. Logo em seguida seu olhar ficou sério e penetrante.
— Nós nunca nos vimos antes?
— Não que eu saiba. Eu não estava em casa, no dia em que o senhor esteve lá.
— Entendo. E como sabe que estive lá?
— Eu... supus que esteve, pois nos últimos anos papai nunca mais deixou o
condado.
— Sei.
Houve um silêncio. Ian levantou-se e virou-lhe as costas, parecendo interessado
numa gravura de pássaros que pendia da parede. Sem se voltar, falou:
— Eu gostaria de voltar para San Francisco o quanto antes. Está de acordo com
isso?
— Com sua volta? Sim, não vejo objeção. Imagino que eu possa ser uma carga um
tanto pesada para alguém como o senhor; portanto, sugiro-lhe que administre meus bens
de longe. Eu poderei ficar em Londres.
Ele deixou de se interessar pela gravura e virou-se, sorrindo. Por um momento sua
expressão ficou menos severa, e as linhas do rosto ganharam um contorno mais suave,
deixando-o quase bonito.
— Realmente, sua guarda é uma responsabilidade pesada, mas não pretendo fugir
dela. Ao contrário, assumo-a com muita seriedade. Jamais deixaria uma moça de sua
idade ficar sozinha e desamparada numa cidade como Londres.
— Não ficarei desamparada. Tenho muitos amigos aqui. Bons amigos.
— Não duvido.
Novo silêncio se fez. Marissa esperava, tensa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Tem certeza de que nunca nos vimos antes?
— Absoluta.
Rangeu os dentes para trancar a amargura que sentia. Não, ele não se lembraria
dela, agora tinha certeza. Nos breves instantes em que cruzara com ele, não teria sido
mais notada do que o seria uma ratinha carvoeira. Ou uma empregadinha qualquer, com
os cabelos metidos numa touca. Dois episódios insignificantes.
Para ele.
Para ela, marcaram toda sua vida.
— Asseguro-lhe que sou uma mulher responsável, independente e apta a tomar
conta de mim mesma. Pode ir para a América, sossegado.
— Não — retrucou ele secamente, os olhos de cobalto endurecendo mais.
Marissa teve vontade de esbofeteá-lo. Que homem insensível, céus! Incapaz de
tolerar o mínimo desvio de sua vontade, mandão e aborrecido!
Bem, Mary, Jimmy e ela já haviam discutido a possibilidade de serem obrigados a
ir para a América, caso ele se mostrasse irredutível. Não haveria muito problema por aí.
— É melhor poupar seu tempo, moça, para poupar o meu também. Não esperava
encontrar uma pessoa teimosa e caprichosa assim. Cuidado comigo, previno-a.
Agora ele a ameaçava?! O tom de voz fora baixo e agradável, mas havia uma
ameaça dura por detrás. Teimoso e caprichoso era ele, isso sim!
Indignada, ergueu o queixo ainda mais. Queria discutir por discutir, só para mostrar
a ele que não estava disposta a obedecer ordens de qualquer ianquezinho.
Mas conseguiu refrear a língua. "Cautela e discrição são dois tesouros da vida",
dizia sir Thomas.
— Pensei que poderíamos facilitar as coisas juntos — replicou ela, com voz macia.
— Mas parece que isso não lhe interessa muito.
— Facilitar como, se essa história ridícula só tem dificuldades? — explodiu ele,
impaciente.
Marissa piscou involuntariamente. Ian respirou fundo, esperou alguns segundos e
acrescentou mais calmo:
— Desculpe, sei que tudo isso tem sido difícil para você. Acaba de perder o pai e
de ser informada que agora tem um tutor. Aquele testamento foi muito severo, admito.
Novamente uma chama de compaixão luziu no fundo dos olhos azuis, para logo se
extinguir. Mais uma vez Marissa se viu intrigada com as bruscas mudanças. Que homem
estranho! Em um minuto passava de terno e gentil para grosseiro e antipático. Por que
tormentos passara ele para agir desse modo?
"Preciso tomar cuidado, muito cuidado. É um homem perigoso", pensou. "E eu
deverei ficar a sua mercê por um bom tempo ainda."
Estudou-o com o canto dos olhos. Era alto, muito alto. Corpo bem proporcionado,
ombros largos e quadris estreitos. Parecia ter instinto nato para escolher roupas elegantes
e bem cortadas. Usava culote de camurça preta, apertado dentro de botas de fino couro,
camisa de seda pregueada, imaculadamente branca, e uma jaqueta curta debruada de
veludo preto. Era um homem forte, porém, o que mais impressionava não eram os
músculos nem o peito largo. Era o rosto. Um rosto moreno, de linhas marcantes e
voluntariosas, marcadas por espessas sobrancelhas e pelo cabelo, basto, preto e rebelde.
Possuía boca cheia e sensual, dentes muito brancos e bem tratados. Mas nos olhos

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residia toda sua força. Pareciam carregar uma eternidade dentro deles. Ora cansados, ora
frios como gelo, às vezes vividos e bem-humorados, outras flamejantes de impaciência,
mas sempre ativos, sempre incrivelmente mutáveis. Pelo corpo e pelas feições, devia ter
uns trinta anos, avaliou Marissa. Mas, pelos olhos, parecia muito, muito mais velho.
— Sim, foi um testamento severo — murmurou Marissa.
— Repito, eu não tive nenhuma influência sobre seu conteúdo.
Ian cruzou as mãos nas costas e pôs-se a passear pela saleta.
— Não posso me demorar muito em Londres. Tenho muitos negócios urgentes
para tratar, e não me foi fácil largá-los agora. Planejo voltar para a América logo que as
coisas se arranjem por aqui. Compreendo que você precise de tempo para fechar o
castelo, despedir-se dos amigos e arrumar sua bagagem para... para mudar-se para o
outro lado do mundo. Mas acredito que, uma vez acostumada, terá muitas surpresas
boas. Minha casa é grande e espaçosa; eu mal tenho tempo de ficar lá, e mesmo quando
fico, gosto de estar sozinho.
Marissa detectou um tom amargo acompanhando a última frase, e viu-se de novo
imaginando o que acontecera com Ian.
— Quanto a seu dinheiro, moça, não há nada que eu possa fazer, sinto muito. Não
verá um tostão, a menos que as condições do testamento sejam cumpridas como seu pai
determinou.
— O quê?! — Marissa pulara como uma mola ao ouvir as últimas explicações.
— Pensei que você tivesse entendido. Sua herança ficará em custódia comigo até
você completar vinte e cinco anos, isso, se se casar comigo. Caso contrário terá de
esperar até completar trinta.
— Sim, eu entendi! Mas pensei que haveria uma mesada, se eu não me casasse!
Ela balançou a cabeça, impaciente.
— A mesada só lhe será entregue se você se casar. Sinto muito, pensei que
tivesse compreendido tudo. Mas sou um homem rico, Katherine, e não pretendo deixá-la
passar fome. Você não vai sofrer comigo.
Ela sorriu, amarga. Viver com Ian já seria um sofrimento eterno. E quando ele
descobrisse a verdade... Sua vida se transformaria num inferno, pois Ian jamais a
perdoaria.
Deixou-se cair na cadeira, subitamente cansada de tudo.
E os planos de entregar a mesada a Jimmy? Marissa estava certa de que ele daria
um ótimo negociante, quem sabe teria sua própria loja. E tio Theo, seu querido tio Theo?
E Mary... Céus, Mary aguentaria esse novo e terrível choque? Ela estava tão
confiante, tão esperançosa!
— Tenho certeza de que há um engano. Eu estive com os advogados e...
— Então é melhor falar com eles de novo — atalhou Ian, irritado —, pois vejo que
compreendeu mal o testamento. Vou tentar explicar o melhor possível. Se concordar com
nosso casamento, sua mesada estará a sua disposição a partir do primeiro dia de casada,
e o resto da herança lhe será entregue no dia em que fizer vinte e cinco anos. Se preferir
não se casar, então sua mesada começa quando você fizer vinte e cinco anos, e o resto
da fortuna, que não é pequena, aliás, você recebe no dia em que fizer trinta anos.
Entendeu agora?
Ela ofegou.

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— Não posso viver sem dinheiro nenhum!
Ele parou para observá-la. Depois levantou uma sobrancelha, com certa
arrogância.
— Terá de viver.
— Mas eu não posso! Tenho minhas despesas pessoais.
— Terá de cortá-las — interrompeu ele, novamente impaciente. — Claro, farei o
que estiver a meu alcance para ajudá-la.
— Não quero sua caridade! — gritou ela, quase cuspindo as palavras. — Oh,
Deus, eu não acredito!
E dizer que ela havia tentado ser gentil com esse homem odioso e imperturbável!
Tanto trabalho para nada!
— Temos de anular esse testamento abominável! — disse ela, lutando para
parecer serena.
— Isso seria impossível, minha cara. Sir Thomas estava em perfeita saúde quando
o redigiu. Aliás, ele morreu lúcido, como você bem sabe.
— Mas por que ele foi fazer isso? — murmurou ela, desesperada.
Ian Tremayne suspirou, e Marissa percebeu que ele tentava engolir sua irritação.
Com duas passadas ele atravessou a saleta e sentou-se ao lado de Marissa. Tomou-lhe a
mão com delicada firmeza, colocando-a entre as suas, quentes e fortes. Tão quentes e
fortes que Marissa quase cedeu à tentação de puxar a sua, livrando-se daquele jugo
estranho e perturbador. Para piorar as coisas, Ian achava-se a centímetros dela. Os
joelhos de ambos se tocavam e o hálito de tabaco envolvia-a suavemente. Os olhos azuis
tornaram-se mais profundos e pareceram cravar-se nela como punhais de fogo. Será que
ele tinha adivinhado tudo?
E se assim fosse, que diferença fazia?
— Acho, Katherine, que seu pai acreditava que você estava enamorada de um
rapaz que ele julgava pouco apropriado para você. Sir Thomas estava muito preocupado
com isso. Sabia que sua saúde não era muito boa e tinha medo que você destruísse sua
vida.
— Então ele sabia! — arquejou baixinho.
Marissa corou violentamente. Ian estava pensando que ela é que tinha um
namorado! Que confusão, meu Deus!
Bem, para começar, ela não tinha namorado nenhum. E, para terminar, Jimmy não
correspondia ao deselegante epíteto de "pouco apropriado". Uma raiva impotente tomou
conta de Marissa. Aquele americano atrevia-se a julgá-la! A condená-la, até!
Ele a soltou e levantou-se.
— Sim, sir Thomas sabia. Esse namoro já terminou?
Novo rubor subiu às faces da moça. "Não é da sua conta", foi seu primeiro
pensamento. Bem, pelo menos dessa vez ela não teria de mentir.
— Não creio que isso seja de sua conta. Nem da sua, nem de ninguém.
— Por enquanto não, é certo. Mas será de minha conta, quando viajarmos para
meu país.
Ela se endireitou vivamente, erguendo o queixo.
— Não acredito que viajemos. Não mais.

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— Desculpe, Katherine, que foi que disse?
— Marissa — corrigiu ela. — Meu segundo nome, o da inicial M, é Marissa.
— Marissa — repetiu Ian.
Marissa admitiu com relutância que gostara da doçura com que ele falara seu
nome, como que arredondando-o nos cantos.
— Não há mais razão para eu acompanhá-lo.
— Mas é claro que há, um monte delas! Sou seu guardião, lembra-se? Exijo que
me obedeça!
Apesar do tom brincalhão, havia uma centelha de ameaça no fundo das palavras.
Mas Marissa não se intimidou. Não dessa vez.
— E como pretende me fazer obedecer? Com algemas? Ou talvez me faça
atravessar o oceano, acorrentada?
— De um modo ou de outro, darei um jeito de você me acompanhar, acredite! — O
tom era zombeteiramente alegre. — Agora, mais do que nunca, estou convencido de que
tenho de fazer jus à confiança que sir Thomas depositou em mim.
— Não, eu não posso ir — teimou ela, desesperada.
— Ora, vamos, não será tão ruim assim. — Agora o tom era gentil. — Como já lhe
disse, raramente estou em casa. Tenho minha vida para tratar; além disso, não sou muito
afeito a companhias. Darei tudo o que for necessário.
— Como foi concordar com esse... esse... trato? — atalhou Marissa, levantando-
se. Não sabia, mas estava linda, com as faces coradas e os olhos reluzindo de raiva.
— Apenas concordei em ser seu guardião. Não sabia das condições do
testamento. Já disse.
— Mas você concordou com o contrato, não é?
— Sim, concordei, porque seu pai estava, ou parecia estar, desesperado. Mas sir
Thomas sabia que eu não tinha nenhuma intenção de me casar pela segunda vez. Talvez
por isso ele incluiu o casamento no acordo, forçando a situação. Achou que você estaria a
salvo comigo até alcançar a maturidade. Mas isso é de menor importância, porque eu
posso lhe dar tudo.
— Não, não pode! — interrompeu ela, com veemência. Depois ficou em silêncio.
Não podia dizer que não aceitava sua caridade num minuto, para logo depois explicar que
o pouco que ele lhe desse não seria suficiente para prover o sustento de mais três
pessoas.
Que ia fazer agora? Marissa sentia-se nadando no seco, bracejando contra o
vento, impotente e inútil. Nada havia dado certo, afinal. Fora derrotada.
— Moça, eu estou começando a me cansar de ouvir suas lamúrias. Já lhe expliquei
todos os fatos, e eles estão aí, quer queira, quer não. Bom Deus, isto poderia ter sido
fácil, mas cá estou eu brigando com uma criancinha chorona!
— Nunca fui chorona, está me ouvindo? — volveu ela, em voz perigosamente
calma, aproximando-se ameaçadora de Ian.
Então, deu-se conta de que estava próxima demais. O calor de Ian começou a
envolvê-la. Marissa notou que as veias dele pulsavam nas têmporas, enquanto seus olhos
falseavam, hipnotizando-a. Quis recuar, mas não ousou dar tamanho sinal de fraqueza.
Preferiu aguentar aquele olhar penetrante, odiando-se por ter levado o diálogo a um ponto
dramático, em vez de manter a fria dignidade que tanto estudara em frente ao espelho.

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— E não sou uma criancinha — acrescentou, contente por ter readquirido a calma,
ainda que aparentemente.
— É o que vamos ver. Espero que esteja com a razão.
— O que quer dizer com isso?
— Que você está me exasperando para além do tolerável, mocinha. Tenho alguns
negócios para ver aqui em Londres, e pretendo cuidar deles agora.
— Esteja à vontade, a porta está aberta.
— É aí que você ainda não me entendeu. Vou levá-la comigo. Meus receios estão
se confirmando, um a um. Creio que sir Thomas sabia o que estava fazendo, afinal.
Deus, ele falava sério! Ian estava certo de que ela correria para os braços do
"namorado", tão logo pudesse. Tratou de acalmar o americano como podia.
— Não precisa se preocupar comigo.
— Não mesmo? Que garantia posso ter de que não vai fugir no minuto em que eu
virar as costas?
— Nenhuma. Mas eu não tenho para onde fugir, lembre-se. — Ian hesitou por um
breve instante. Ela tinha razão, pelo menos nesse ponto. Resolveu que podia deixá-la por
ora, sem risco de que ela tentasse fugir.
— Nada de tornar as coisas difíceis para mim, moça. Se eu não a encontrar aqui
quando voltar, juro que ponho a Scotland Yard todinha no seu encalço. Não tenho tempo
nem vontade de fazer isso, mas, se forçar minha mão, verá que ela pode ser bem pesada!
— Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso.
— Ótimo, então estamos entendidos.
Aliviada, Marissa viu que Ian se dirigia para a porta.
— Voltarei amanhã de tarde para terminar nossos planos.
E saiu, sem se dar ao trabalho de dizer um simples até logo. Segundos depois,
Mary saiu do quarto, desfeita em lágrimas, quase histérica.
— Marissa, minha boa amiga! Que fazer agora? Não temos saída... nenhuma?
Meu Deus, preciso falar com Jimmy! Temos de nos casar imediatamente, antes que ele
descubra tudo! O futuro não me importa, juro! Posso viver em qualquer lugar, posso me
empregar como governanta... É isso, governanta! E vamos alugar um quartinho, sem
escadas para eu subir... Eu vou cuidar de tudo, eu vou...
— Morrer em seguida, e esse será o fim de um bela história de amor — completou
Marissa, com rudeza. — Pare com esses devaneios, Mary. Já se olhou bem num
espelho? Mal saiu da cama, está pálida e tem olheiras. Está falando uma porção de
asneiras, e Jimmy gosta demais de você para permitir que faça isso.
— Ele não saberá de nada! — soluçou Mary. — Eu o amo demais, Marissa! Não
posso viver sem ele!
— Ouça, Mary. Sua saúde...
— Não, Marissa, agora é você quem vai me ouvir!
— Você perdeu o senso da realidade.
— Não, quem perdeu foi você! A vida maltratou você quando era pequena, e agora
não acredita nas coisas boas que ela tem para oferecer... Não sabe o que é amar de
verdade, não conheceu o amor! Eu prefiro ter alguns momentos de felicidade com Jimmy
a passar anos mergulhada em mediocridade e remédios... Mil vezes morrer feliz!

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Os olhos castanhos de Mary, rasos de água, imploravam compreensão. Ela se
sentou perto de Marissa, encarando-a.
— Acredite-me, Marissa, é minha única salvação! Partir com Jimmy, antes que ele
saiba que nosso plano não deu certo! Quando souber, já estaremos casados, e assim
será!
— Mary...
— Perdemos a parada, Marissa, mas não me dou por vencida. Oh, Deus, me
perdoe, mas estou odiando papai!
— Não diga isso. Sir Thomas está morto e...
— Eu também deveria estar!
— Não fale assim, Mary!
— Mas é verdade!
— Não, a morte não é solução para nada. Deve haver uma outra saída, tem de
haver... Calma, amiguinha!
Mary deixava-se embalar pela amiga, enquanto soluçava desconsoladamente.
— Amanhã vamos telefonar para os advogados novamente. Talvez Ian Tremayne
esteja enganado quanto à mesada.
— Papai sabia tudo sobre Jimmy... e não confiava em mim!
— Vamos tomar um xerez, que bem estamos precisando. Amanhã trataremos
desse assunto melhor. Nem tudo está perdido, Mary.
Levou algum tempo para acalmar a amiga, mas finalmente conseguiu levá-la para
a cama. Mas as surpresas daquele dia ainda não haviam acabado, pois mais tarde a
camareira do hotel veio avisá-la de que havia um chamado telefônico para Katherine
Ahearn.
Antes de descer, Marissa foi verificar se Mary dormia em paz. Depois vestiu
rapidamente um roupão e desceu para atender ao chamado, perguntando-se quem
poderia ser àquela hora. A ligação estava ruim, mas finalmente ela reconheceu a voz de
Jimmy.
Sem saber por quê, Marissa mentiu. Disse que o encontro com Ian Tremayne havia
sido um sucesso.
— É um americano gentil e simpático, Jimmy. Acho que tudo vai dar certo. Deixe
comigo, que eu cuido de Mary. As coisas vão indo bem.
— Não se sacrifique demais por nossa causa, Marissa Ayers!
— Quem falou em sacrifício? Lembre-se que tio Theo também depende de mim. E
eu... eu vou ganhar dinheiro com isso, não vou?
— Assim mesmo, é sacrifício. Você tem tanta coragem que eu me sinto um grão de
poeira a seu lado. Mas não vou permitir que você sofra. Sei que Mary também pensa
assim.
— Não vou sofrer, Jimmy.
— Você não nos deve tanto, sabe disso.
— Devo, sim — respondeu ela, num sussurro, para Jimmy não ouvir.
Porque, se ele ouvisse, não teria compreendido. Mary e sir Thomas haviam-na
tirado daquela nuvem de pó negro. Devia tudo aos dois, essa era a verdade.
— Seja paciente, Jimmy. Ligarei para você mais tarde.
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Depois que desligou, Marissa ficou um longo tempo de pé olhando o telefone.
Vagamente, pensou na proeza que Bell fizera ao inventar aquele aparelhinho.
Aos poucos, foi compreendendo o que acabara de fazer. Por que mentira a Jimmy?
Porque não tolerava a ideia de ver Mary sofrer. Não tolerava ouvi-la desfiando seus
planos impossíveis. Pobre Mary! Marissa conhecia a pobreza e a fome. Vivera a
crueldade do mundo, mas Mary não fazia ideia do que era isso.
Suspirou, fechando os olhos. Havia de encontrar uma saída para Mary, custasse o
que custasse.
Momentos depois, com passos resolutos, subiu a escada.
— Sim, havia uma saída. Que Deus a ajudasse agora, porque estava decidida.
Gostava de Mary, gostava de Jimmy.
Iria mostrar-lhes agora o quanto os amava.

Já era bem tarde quando Ian Tremayne finalmente conseguiu chegar ao hotel onde
estava hospedado. As ruas de Hyde Park estavam desertas e silenciosas; as carruagens
já tinham se recolhido, e ele não vira nenhum carro a motor.
Os carros motorizados não haviam chegado a Londres com a mesma rapidez que
na América, onde as ruas fervilhavam de veículos modernos e luzidios. Acidentes
ocorriam frequentemente, porque os motoristas ainda não tinham controle perfeito da
direção. Pouco antes de partir, Ian presenciara uma colisão de um carro com uma carroça
de leite, daquelas puxadas a burro. Em seguida o carro batera noutra carruagem, que por
sua vez derrubara outra, que estava estacionada perto. De repente, a confusão tornara-se
geral; gente gritando, buzinando, gesticulando. Uma carroça cheia de gelo havia tombado,
e a água fazia os outros carros patinhar. Na verdade, fora um espetáculo até divertido, já
que ninguém havia se machucado. Ian sorriu com a lembrança. Diana teria gostado de
ver aquela bagunça!
Mas o sorriso logo se dissipou. Desmontou da égua que alugara e levou-a ao
estábulo, perto do lampião de gás que brilhava fracamente. Era uma noite tipicamente
londrina; o nevoeiro tornava tudo difuso e enfumaçado. De alguma forma, aquela neblina
espessa despertou-lhe lembranças tristes.
Fora numa noite assim que Diana morrera. O nevoeiro rolava espesso sobre a
baía. Ela estava sentada em seu colo, e ambos admiravam o espetáculo místico e
misterioso da noite cheia de brumas pela janela. Diana gostava de San Francisco tanto
quanto ele, e os dois, irmanados, contemplavam em silêncio as ondas de neblina. Ela ria,
mostrando como as estrelas sumiam a cada lufada. E ele repetia que se sentia feliz como
nunca ali, ao lado de sua querida. Diana descansara a cabeça em seu ombro e suspirara
docemente. Muitos minutos haviam se escoado antes que ele percebesse que aquele fora
o último suspiro de Diana. Diana, tão etérea e frágil, de olhos cinzentos e fugidios. Diana,
que o apoiara quando tivera sérios reveses financeiros. Diana, meiga, suave, mas tão
forte. Companheira.
Não mais a seu lado. Ela se fora havia já dois anos. Dois longos e penosos anos
de sofrimentos e doces lembranças. Sabia que nunca a esqueceria, que nunca deixaria
de amá-la, mas sabia também que precisava parar de sonhar com ela. Diana estava
sempre com ele, de dia e de noite. E com ela vinha uma dor quase insuportável.
Mas naquele dia fora diferente.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Bem, ele tinha de admitir que a filha de sir Thomas fizera-o esquecer sua tristeza,
pelo menos durante algum tempo. A danada da moça era tão voluntariosa, rápida nas
respostas, que ele realmente passara uma tarde interessante. Pelo menos nesse dia.
Ian tirou as rédeas da égua e levou-a para dentro do estábulo. Distraidamente
verificou se havia feno e água para o animal, acariciou-lhe o focinho e depois saiu outra
vez. Mal enxergava o parque do outro lado da rua. A névoa se adensava, espessa e
misteriosa.
Andando com cuidado para não despertar os outros hóspedes, entrou na
aconchegante saleta do hotel, apanhou a chave e subiu para o quarto. Fechou a porta
devagarinho e tirou o casaco. Afrouxou a gravata e deixou-se cair na poltrona, em frente à
escrivaninha de mogno. Serviu-se de uma generosa dose de uísque e deixou o
pensamento vaguear à solta.
De fato, a garota deixara-o intrigado.
Aqueles olhos...
Interessante, era capaz de jurar que já os havia visto antes. Olhos verdes como o
jade, grandes e expressivos, cheios de vivacidade. Olhos de fogo. Fogo verde.
Descansou a cabeça no espaldar, exausto.
Era uma menina bonita, muito bonita. Apesar de ter se impacientado com ela um
par de vezes, Ian não gostara dos termos do testamento; definitivamente não tinha jeito
para babá, mas mesmo assim ainda achava que a tarde valera a pena. Mas aqueles
olhos verdes estavam muito assustados com alguma coisa. Devia ser com ele próprio.
Pois não seria agora seu guardião? Gostaria de ver os olhos verdes sem aquela sombra
de susto e insegurança. Bem que tentara ser cortês, gentil e paciente, mas ela não
permitira nenhum tipo de aproximação amigável. Era orgulhosa, a garota!
Ian ainda sentia certa raiva do modo como sir Thomas havia conseguido arrancar
sua promessa de cuidar da filha. O velhote invocara até a grande amizade que tivera com
o pai de Ian.
— "Você me deve uma mostra de gratidão, Ian. Se não fosse por mim, não seria o
grande arquiteto que é. Seu pai queria que você fosse médico, lembra-se?"
Assim falara sir Thomas, o bode velho. Cobrava-lhe assim uma dívida antiga. E,
como estocada final, o velho contara que estava às portas da morte.
A bem da verdade, Ian não acreditara muito nisso, porque sir Thomas parecia
cheio de saúde na época. Tentara argumentar, por sua vez, lembrando-lhe que havia
enviuvado há pouco, que era americano e possuía cultura e costumes muito diferentes.
Que a viuvez deixara marcas profundas, tornando-o amargo e frio. Que seria um péssimo
tutor, afinal.
Mas nada demovera o inglês, que se limitara a sorrir e a repetir: "Você vai me
ajudar, eu sei".
Por fim, Ian capitulara.
E agora estava em Londres, pronto a assumir o papel de babá.
Vir a Londres até que fora bom; as lojas da cadeia bem que precisavam renovar os
estoques. Mas o interesse de Ian ia além das lojas.
A dinastia Tremayne havia sido fundada pelo avô, um escocês astuto, cujo primeiro
nome se escrevia à moda antiga: Iain. A fortuna chegara-lhe às mãos através da corrida
do ouro. Depois de garimpar o suficiente, Ian abrira seu primeiro empório, que logo se

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desdobrou em outros. Seu filho James mostrara-se um herdeiro à altura do escocês, e
logo havia lojas Tremayne espalhadas por toda a região.
James fizera o que pudera para seu filho Ian seguir a mesma trilha. Mas outro fogo
se acendera em Ian, o fogo de construir, Ian amava sua cidade, a baía, as brumas
misteriosas, a paisagem. E só pensava em embelezá-la.
De fato, fora sir Thomas que escrevera ao amigo James, havia mais de quinze
anos, dizendo-lhe que deixasse de ser teimoso e permitisse a Ian formar-se em
arquitetura. O menino tinha talento de sobra para administrar as lojas e, ao mesmo tempo,
construir seus edifícios.
Assim era que Ian contraíra uma bela dívida de gratidão com sir Thomas. E com o
pai, por que não? James sucumbira à pneumonia havia cinco anos, mas vivera o
suficiente para conhecer e admirar o trabalho do filho. Vivera o bastante para conhecer e
admirar Diana, e acalentar sonhos de ver um neto tomar as rédeas da dinastia.
"Não houve netos, papai", pensou Ian, com amargura. "Perdi Diana, e com ela as
esperanças de ganhar um herdeiro. Diana, primeira e única. Ninguém vai substituí-la em
meu coração, nunca."
Claro, conhecera muitas mulheres. Aproximara-se de algumas, para logo repeli-las
com enfado. Mas San Francisco era uma cidade moderna e progressista; Ian continuava
a abordar as mulheres, apenas como passatempo e válvula de escape.
Elas estavam sempre ali, ao alcance, bonitas e disponíveis. Ian tomava cuidado
para não deixar escapar uma só palavra de amor ou de promessas que, sabia-o bem,
jamais cumpriria. Mergulhara de corpo e alma no trabalho, tratando de esquecer Diana e
o filho que ambos tanto quiseram ter e nunca veio.
Ian vira-se construindo furiosamente, como se quisesse ver San Francisco nascer
de novo.
Olhou para o copo vazio e empurrou-o. Apanhou a garrafa e sorveu um grande
gole no gargalo, recostando-se depois. Os pensamentos iam e vinham, emaranhados.
Maldita garota de olhos de gata. Era a personificação de encrenca. Havia-se
decidido a deixá-la viver em Londres, se fosse uma menina dócil e sem sal, como, aliás,
acreditava que fosse a maioria das mulheres inglesas.
Mas agora mudara de ideia. Sir Thomas tinha razão; a garota tinha, obviamente,
um namorado, talvez até amante. E parecia decidida a qualquer coisa para ficar com ele,
mesmo jogar a herança pela janela.
Ian tomou outro trago, devagar. Sentiu a bebida descer, quente e reconfortante.
Fechou os olhos.
Não tornou a abri-los naquela noite. Esticou as pernas sobre a escrivaninha,
desabotoou a camisa e adormeceu assim, exausto da longa viagem.

Acordou com tímidas batidas na porta e aborreceu-se. Havia avisado o pessoal do


hotel que não queria ser perturbado naquela manhã. Abriu os olhos, irritado, decidido a
não atender. Diabos, bem que merecia descansar!
Mas, para sua surpresa, a porta se abriu.
Já se preparava para dar dois berros com o intrometido, quando a surpresa
aumentou. Tinha a sua frente nada menos que a moça de olhos de gata.
Ela estava elegante, mais bonita do que parecera na noite anterior.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Trajava um simples vestido verde-claro, que combinava admiravelmente com os
olhos, ajustado na cintura, de saia enfeitada com uma petulante anquinha. Nas mãos
enluvadas trazia uma sombrinha debruada de renda. O corpete de brocado, também
verde, muito justo, tinha um pequeno decote em V, deixando entrever a brancura da pele.
Os cabelos, uma assombrosa massa ruiva e brilhante, estavam soltos,
deliciosamente livres sobre os ombros, caindo-lhe pelas costas. Eram os cabelos mais
fascinantes que Ian já vira.
Ao vê-lo daquele modo, de camisa aberta até a cintura, uma garrafa diante de si e
as pernas estiradas sobre a escrivaninha, Marissa hesitou, embaraçada.
Ian não fez o menor movimento.
— Ora, ora, veja só quem está aqui! — fez ele, irônico. — A que devo essa honra
inesperada?
— Preciso falar com você.
— É, estou vendo.
Ela também não se mexia, como que paralisada. Ian perguntou-se se a admirava
ou se a detestava.
Não, não a detestava, definitivamente. Mas não gostava da maneira como ela
estava atrapalhando sua vida. Queria que ela fosse uma moça obediente, dócil e passiva,
de modo a não lhe dar trabalho nenhum.
Cuidaria dela, porque era seu dever; cuidaria muito bem. Mas que isso não
interferisse em sua vida, principalmente.
Antes de viajar, Ian imaginara encontrar uma senhorita inglesa, não muito bonita,
submissa e obediente. Imaginara levá-la para casa e tratar bem dela, nas horas em que
isso fosse conveniente. Imaginara dispensar-lhe a atenção devida, mas não mais que
isso. Pretendera ser um guardião cortês e dedicado, e ela se portaria tão bem que ele
poderia esquecê-la, para se dedicar a seu trabalho.
Tudo isso, via agora, seria quase impossível. Em vez do animalzinho de estimação
que imaginara, via-se diante de uma jovem voluntariosa, de palavras ferinas e rápidas.
Ainda por cima, apaixonada e pronta a estragar a própria vida por um amor impossível.
Em honra à memória de sir Thomas, Ian não podia deixar que essa história fosse adiante.
Mas que olhos tinha essa moça...
Eram cheios de argúcia e malícia, inquietos e provocantes, Ian ficou chocado ao
perceber que Marissa aborrecera-o na véspera, e aborrecia-o ainda, porque bastava-lhe
encará-lo com aqueles olhos verdes para que ele sentisse o sangue pulsar mais rápido,
despertando-lhe o desejo. Irritado, forçou-se a respirar fundo antes de falar, mas sua voz
saiu mais brusca do que esperava.
— Muito bem, você já está aqui. Entrou sem pedir licença, até. Vá falando.
Os olhos verdes chisparam, furiosos. Ian achou que Marissa daria meia-volta e
deixaria o quarto, naquele instante, mas notou que ela lutava consigo mesma, apertando
os punhos. A fúria do olhar mudou para frio desdém, examinando-o de alto a baixo, como
a reprovar sua aparência. Depois, os olhos verdes fixaram-se firmemente nos de Ian, com
audácia e decisão. Ela levantou o queixo, altiva.
— Vim para dizer-lhe que pretendo aceitar todas as condições do testamento, Ian
Tremayne. Vim para informá-lo que... que quero me casar com você.

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CAPÍTULO III

— Como é que é?!


Ian endireitou o corpo, baixando os pés. Estava surpreso, mas não sabia se de
irritação ou de alívio.
Por uns instantes, Marissa pensou em fugir dali. De pé, Ian parecia enorme,
poderoso e temível. Mas ele fizera uma promessa a sir Thomas, não fizera? Prometera
que cuidaria da filha dele, e Marissa sabia por intuição que Ian tentaria cumprir seu dever,
houvesse o que houvesse. Não tinha o que temer, portanto. Não seria espancada nem
trancafiada.
Mas saberia ele ser um cavalheiro? Pela aparência, levava jeito. Mas, naquela
hora, de cavalheiro não havia nem sombra. Antes, parecia um vagabundo mal vestido,
com a camisa aberta ao peito peludo e moreno, onde repousava uma medalha de São
Lucas. A vasta cabeleira negra estava revolta, uma mecha caindo-lhe sobre a testa. E, a
julgar pela garrafa vazia, Marissa poderia jurar que ele passara a noite bebendo. Além
disso, a barba estava crescida.
Marissa tentava se convencer de que ele, apesar da lamentável aparência, podia
ser um cavalheiro, se quisesse. Afinal de contas, sir Thomas confiara-lhe o futuro da filha!
Ainda assim...
Bem lá no fundo, Marissa começou a tremer de medo pela decisão que tomara.
Para sua angústia, descobriu que não era só por isso que tremia. Havia alguma coisa de
sedutor no jeito displicente, algo que a impelia a tocá-lo, aproximar-se...
Tratou de se controlar, cerrando os dentes.
Não, não queria tocar em nada dele. Tinha de deixar isso bem claro, muito claro,
com gestos e palavras. Mas o simples pensamento causou-lhe desconforto.
Ele também não queria se casar; dissera isso com todas as letras na véspera.
Aliás, casar-se pela segunda vez, dissera ele. Obviamente já fora casado. Bem, sua
tarefa agora consistia em convencê-lo de que eles poderiam se casar e viver separados.
— Disse que quero me casar com você — conseguiu repetir.
— Por quê?
— Isso é óbvio, não lhe parece?
— Nem tanto.
— Quero receber minha mesada, ora essa.
— Mas eu vou cuidar de você. Não precisa de mesada.
— Não, obrigada, não gosto de viver da caridade alheia. Quero o que é meu.
— Não quer minha caridade, mas concorda em se casar comigo, um estranho,
para receber uma pequena quantia todo mês?! Desculpe, mas sua lógica carece de
fundamento. Afinal, casar-se comigo deveria ser menos atraente para você do que aceitar
minha... caridade, como diz.
A nota de sarcasmo era propositalmente indisfarçada nesse discurso, e Marissa
não gostou nem um pouco disso. Ele não a levara a sério.

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— Isso é muito importante para mim — disse ela, baixinho. — Trata-se do meu
futuro.
— E do meu também, não acha? Para mim também é importante. Casamento
implica contrato, união, companhia.
— Sim, eu sei.
— Mas não é só isso. Implica algo muito, muito maior.
— Não precisaria implicar, se entrássemos em entendimento — replicou ela,
odiando-se por tremer tanto.
— Não entendi. Pode se explicar melhor?
Ah, céus! O homem estava fazendo o impossível para provocá-la, para embaraçá-
la! Fazia de propósito, como se quisesse machucá-la.
Marissa obrigou-se a finalmente dar alguns passos. Mas deteve-se quando Ian se
pôs de pé e cruzou os braços, esperando. Esperando o quê?
Marissa torturava o cabo da sombrinha, sem saber o que fazer, Ian sorriu e sentou-
se novamente.
— Repito a pergunta. Pode se explicar melhor? Preciso de suas luzes, para
entender o que quer dizer.
Preciso de suas luzes! Mas que sujeito atrevido!
Marissa teve ganas de esmurrar aquele sorriso zombeteiro.
Mas isso seria bobagem agora. Tinha de agir com diplomacia, para conseguir de
Ian o que pretendia.
Engoliu a raiva e tratou de encontrar firmeza para falar. Escolheu as palavras com
cuidado.
— O testamento de meu pai vai tornar muita gente infeliz. Há certos... certos
auxílios que dou, por caridade... com os quais estou comprometida, e não posso abrir
mão deles. Tinha a ideia de utilizar minha herança para cumprir com essas obrigações,
mas agora sei que isso será impossível. Você... você disse ontem que não tinha intenção
de se casar pela segunda vez, se entendi bem. Ora, minha proposta é simples: casando-
se comigo, você não terá de se casar com ninguém.
Ele pareceu atônito.
— Obviamente, uma vez que estarei casado com você.
— Mas não de verdade.
— Não poderá receber sua herança com um casamento de mentirinha.
— Não, mas não é de mentirinha... Oh, meu Deus, eu não consigo me explicar! É
um casamento real, mas...
— E quem lhe disse que eu quero me casar?
Marissa estava exasperada. Soltou uma exclamação de impaciência, para
divertimento de Ian, cujas sobrancelhas se ergueram.
— Você é um homem forte e saudável. Imagino que procure a companhia de... de
certas mulheres, quando... quando sente necessidade. Vagabundas e prostitutas, Ian
Tremayne, já que não consigo me fazer entender com delicadezas.
— E dançarinas de cabaré. Temos ótimos cabarés em San Francisco.
— Desculpe-me o esquecimento. E dançarinas. Estou certa de que elas sabem
divertir bem.
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— Oh, mais do que isso, moça, garanto-lhe.
— Muito bem, isso é irrelevante. Mas o que dizer das noites em que você quiser
receber sócios e executivos? E das vezes em que quiser receber gente importante? Estou
falando dos dias em que você quiser brincar de cavalheiro, sr. Tremayne. Suponho que
isso aconteça de quando em quando, ainda que raramente!
— Sim, raramente. Ao passo que você é uma verdadeira dama todos os dias do
ano. É isso que está tentando me passar, com essa ironia de botequim?
— E a sua ironia de cavalariça? — revidou ela, erguendo a voz. — Pode se gabar
de ser um mestre em grosserias.
Ele suspirou. Estranho, ficara mais calmo com a explosão de Marissa.
— Marissa...
O nome soou doce e melodioso, quase como uma caricia.
— Marissa, eu sinto muito, de verdade. Desculpe. Nunca tive intenção de ser mau
ou grosseiro. Ao contrário, queria resolver essa história da maneira mais simples, pode
crer.
— Como você mesmo disse — volveu ela, baixinho —, não há meios de facilitar o
que já é difícil.
— Céus, sabe o que está me pedindo? Ora, eu estava certo de que você iria
aceitar minha ajuda e esperar tranquilamente chegar aos trinta anos. É o mais sensato.
Por Deus, repito, sabe o que está me pedindo?
— Sei muito bem.
— Não quero ficar amarrado a uma mulher!
— Permita-me corrigi-lo. Você não quer se amarrar a uma mulher a quem deva dar
afeição e carinho. Nem de longe penso em exigir isso de você.
Marissa sentiu que ganhava terreno, e decidiu tirar proveito disso.
— Por isso meu plano é perfeito — continuou com fervor, aproximando-se dele.
De novo sentiu o hálito de tabaco envolvendo-a. Mas não recuou, encarando-o
direto nos olhos, quase implorando. Ian ainda sorria.
— Bem — terminou ela, com voz cansada. — Percebo que não me entendeu.
— Peço-lhe humildes desculpas. Mas sua lógica é muito, muito estranha.
— Estou querendo dizer que você... você não precisa agir comigo como um... um
marido de verdade.
— Ah. E como é que age um marido de verdade?
Marissa começou a percorrer o quarto com passinhos miúdos e nervosos. De
repente, notou que estava diante da cama, e virou-se depressa, enrubescendo. Aquele
maldito ianque a estava provocando de novo. Sabia muito bem o que ela queria dizer e
fingia-se de bobo!
— Sr. Ian, nós poderíamos ter um casamento de conveniência, como se diz. Eu
receberia minha herança, e em troca...
Marissa hesitou, sem saber como continuar. Mas Ian foi implacável.
— Ora, você parou na parte mais empolgante! O que tem para me oferecer em
troca?
— Eu poderia dar-lhe proteção.

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— Você?! Proteção contra o quê?
— Contra caçadoras de maridos.
Ele deu uma gargalhada sincera e gostosa. Toda a severidade de sua expressão
abandonou-o, dando lugar a uma alegria divertida. Bem, ao menos isso ela conseguira:
melhorar seu humor.
— O senhor não está sendo gentil, rindo desse modo.
— Desculpe, Marissa. É que a coisa está mesmo ficando engraçada. Acontece
que, às vezes, essas caçadoras de marido, como você disse, permitem certos... avanços.
E isso não me é de todo desagradável, como bem pode imaginar.
Sabendo que corara de novo, Marissa tentou esconder a raiva, a frustração e a
vergonha que sentia no momento. Fez o melhor que pôde para sustentar aquele olhar
brincalhão, assumindo um ar desdenhoso e superior. E respondeu, com voz suave:
— Pois eu trataria com muito gosto e discrição esse seu tipo de diversão. O senhor
pode avançar o quanto quiser, com as amigas que bem escolher. É esse o ponto central
de meu plano, não vê? Pode dar suas escapadelas à vontade, pode fazer o que bem
entender, que ninguém vai exigir que se case, uma vez que já estará casado comigo.
Você terá uma mulher a quem não deve nada, que nunca irá se intrometer em sua vida,
e... devo acrescentar, que fará de tudo para tornar sua vida mais confortável.
— Hum. E como você conseguiria essa proeza?
— Eu... eu aprendi a receber e a entreter convidados. Sei ser uma boa dona de
casa.
— Ah, tenho certeza de que sim.
Fez-se um silêncio embaraçoso, que começou a dar nos nervos de Marissa.
— E então? — perguntou ela, irritada por ter de dar o primeiro passo.
— Então o quê?
— Já tem sua resposta?
— Estou pensando.
— Bem, acho que não precisa de tanto tempo assim. Você já sabia desse
testamento antes de vir para cá.
— Sim, mas não sabia que sairia da experiência com uma esposa a tiracolo. Bem,
já que estou prestes a ganhar uma mulher maravilhosa, que sabe receber e entreter
convidados, e além disso servir de escudo contra zelosas mamães que queiram laçar um
genro rico, acho-me no direito de exigir uma coisa mais.
— Se estiver ao meu alcance.
— Quero que essa mulher seja o que fingirá ser: um modelo de virtude.
Marissa arquejou, indignada:
— Tanto quanto você é um modelo de virtude, Ian Tremayne.
— Nada de comparações, desculpe. Estamos ainda numa época em que as
mulheres, e só elas, têm o dever de serem virtuosas, honestas e puras.
Marissa girou nos calcanhares e encaminhou-se para a porta, sem que Ian
tentasse impedi-la. Ela pousou a mão no trinco, mas não abriu a porta.
Houve um silêncio pesado e prolongado. Finalmente ela se virou de novo,
desesperada. Ian tinha todos os trunfos; a cartada era dele, pois não se interessava em
se casar.

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— O que quer de mim, afinal? — perguntou Marissa.
— A verdade.
— Por quê?
— Você quer se casar comigo. Se é assim, preciso saber algumas coisas sobre
minha futura noiva.
— Tais como?
— Que me diz de seu jovem amante, o seu Romeu de araque? Não quero saber
de nenhum homem correndo atrás de você, seja aqui, seja durante a viagem, seja no meu
país. Nem vou tolerar que minha mulher me plante chifres no meio da testa; não é minha
intenção dar meu sobrenome a quem não saiba fazer jus a ele. Nada de joguinhos sujos,
minha cara.
Marissa percebeu que ele falava sério. E estava bravo, muito bravo. Pela camisa
aberta, podia ver a veia do pescoço pulsando, enquanto os músculos fortes dos braços
pareciam tensos, avolumando-se sob a roupa.
Marissa apoiou-se na porta, umedecendo os lábios secos. Ensaiou uma resposta
ferina, mas desistiu. Preferiu ser direta e seca.
— Nunca tive um amante.
— Ora, vamos, pensa que nasci ontem? Você não negou nada quando
conversamos sobre isso ontem à noite.
— Admiti apenas que conhecia um homem, é tudo. Mas...
— Mas o quê?
Marissa sorriu. Forçara o homem a olhá-la nos olhos e conseguira seu intento.
Pobre vitória, aquela! Mas queria que ele visse que, pelo menos nisso, não haveria
mentiras.
— Mas ele nunca foi meu amante. Nem namorado.
Ian atravessou o aposento em sua direção. "É agora", pensou ela, trêmula. "É
agora que abro essa porta e fujo escada abaixo!"
Mas esperou, arrepiada e paralisada. Ele espalmou as mãos na porta, seus braços
ladeando-a, prendendo-a como duas barras de ferro.
— Não sei se você está falando a verdade. Não sei se você é capaz de falar
alguma verdade, afinal.
— Mas que diferença faz isso? — gritou ela, exaltada. — Não estou pedindo um
casamento de amor. Podemos até assinar um contrato, se quiser, colocando tudo por
escrito. Eu assino.
— Não! — trovejou ele, deixando explodir a irritação contida havia muito. — Você
não me escutou antes? Não quero meu nome enlameado, e isso é definitivo! Nem quero
saber de contratos, eles são facilmente burlados. E, fique sabendo, não vou aceitar
nenhuma maldita condição para esse casamento, se é que ele vai existir. Essa é boa,
agora! Troca-se uma anfitriã perfeita por uma mesada! Ha!
— É a minha mesada!
— Não será, se eu não quiser.
Marissa mal se aguentava nas pernas. Achava que não ia suportar por muito
tempo aqueles incríveis olhos azuis perscrutando-a, devassando-a sem cessar. As
bruscas mudanças de humor desse homem enervavam-na.

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— Eu disse a verdade, juro! — gritou. — Não há homem nenhum, nunca houve!
Não pretendo brincar com você, só quero viver com alguma dignidade.
— E o que acontece se você resolver se apaixonar por outro homem qualquer que
aparecer na sua frente?
— Isso não vai acontecer.
— Ah, quanta certeza tem a jovem! — caçoou ele, dando uma risada amarga. — É
de admirar, tanta certeza na sua idade!
— Você também tem certeza de que não quer outra mulher, não tem? E não está
tão decrépito assim!
— Ah, mas eu sei o que é o amor, minha cara, essa é a diferença!
O tom de Ian, de repente, tornara-se mais sofrido.
— Por favor...
— Que raio de auxílios são esses de que me falou? A quem pretende ajudar com
toda a sua caridade, afinal?
— Isso é assunto meu. É particular.
— Talvez haja algum homem metido nisso?
— Não, não há!
Ele largou a porta e atravessou a sala. Puxou a cadeira e sentou-se.
— Sabe de uma coisa, Marissa? É estranho, mas não consigo imaginá-la sendo
tão filantrópica.
— Já disse...
— Quero saber do que se trata. Se não, nada feito!
— Eu... tenho uma empregada. Na realidade, tinha até papai morrer. Ela quer se
casar; é mocinha ainda, e muito pobre. Tem a saúde muito precária, e eu gostaria que ela
e o noivo me acompanhassem na viagem. Ela... ele sempre foi uma amiga muito querida.
Há também uma cidadezinha pequena, de mineiros, para onde eu gostaria de mandar
algum dinheiro.
— E há um mineiro em particular, sem dúvida! Um mineiro moço e bonitão...
— Minhas intenções são boas, repito!
— Serão mesmo? Eu me pergunto, serão mesmo?
Os dedos de Ian tamborilavam impacientemente sobre a escrivaninha. Ele a
estudava, mais calmo.
— Você não queria nem sequer um guardião, agora quer até um marido...
Estranho, muito estranho.
— Já lhe expliquei.
— Ah, sim, muito bem. Pois agora eu é que vou explicar algumas coisinhas.
Ele se inclinou para frente, os olhos parecendo duas chamas impiedosas. À
medida que falava, o tom ia aumentando, num crescendo impaciente:
— Preste atenção, Marissa. Não sou um homem de temperamento fácil.
— Você disse que está quase sempre fora de casa...
— Mas quando estou presente, costumo ser um tirano. Sou exigente e
perfeccionista, e tenho um gênio terrível.

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— É mesmo? — fez ela, deixando gotejar sarcasmo das palavras. — Puxa, que
choque!
— Quem me pediu em casamento foi você, lembre-se.
— Sim, desculpe. Continue.
— Nunca se esqueça de uma coisa: eu não quero me casar.
— Já fui informada disso antes.
— Saiba que pretendo viver minha vida como sempre vivi, sem interferências.
— Nada me dará mais prazer.
Ele esticou o dedo, largo e benfeito, na sua direção.
— Enquanto você, minha cara, será aquele modelo de virtude e honestidade de
que lhe falei. Ficará a minha disposição para receber hóspedes e amigos, quando eu
quiser.
O coração de Marissa batia descompassado. Era um trato com o diabo, assinado
no próprio inferno. Mas viera preparada para aceitá-lo, fosse a que preço fosse.
Aliás, começava a pagar caro, pois a mentira em que se via atolada era, por si, um
purgatório.
— Você faz com que tudo pareça uma tortura — murmurou, escondendo os olhos
sob os longos cílios.
— Ao contrário, não costumo bater em mulheres nem torturá-las.
Sua voz perdera o tom rude e brusco. Marissa ganhou alento e ergueu os olhos,
para encontrar os dele.
— Só quis preveni-la, Marissa, para o que você vai enfrentar.
— Quando vim para cá, já sabia o que me esperava. Eu estava decidida.
— Vai haver momentos em que vai achar que eu lhe tenho ódio. Ou que estou
arrependido de me ter casado.
— Não entendi.
— Bem, não importa. Um dia, talvez, compreenda.
Ele se ergueu mais uma vez.
— Por último, não faço promessas nem aceito condições de ninguém. Está
entendido?
Marissa não sabia o que ele queria dizer com isso, mas aquiesceu em silencio.
Desejava acabar logo com esse cansativo diálogo.
Ian examinou-a longamente, a expressão severa. Depois exclamou, com rudeza:
— Maldita seja, inglesinha!
Apanhando o casaco, alcançou a porta, empurrando Marissa para um lado, a fim
de poder passar.
— Aonde você vai? — gaguejou ela.
Ian mirou-a, os olhos azuis novamente devassando-a.
— Vou procurar um escrivão. Já que vamos adiante com essa loucura toda, é
melhor fazê-lo já, e com todos os efes e erres. A licença do casamento já foi
providenciada por sir Thomas. Só falta registrar no escrivão.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
A porta bateu com estrondo atrás dele. Marissa sentiu os joelhos dobrarem e
agarrou-se ao espaldar da cadeira. Estava feito.
Ele havia concordado. Depressa demais, até. Estava a caminho do cartório, e ela
teria de... Casar com ele.
Um friozinho desagradável correu-lhe a espinha. Fechou os olhos, estremecendo.
"Ajudai-me, meu Deus! Ajudai-me!"
Mas Deus certamente não daria ouvidos a uma mentirosa como ela.
Desempenhara seu papel como excelente atriz, só que não vivia uma representação
teatral. Jogava com sua vida. E Deus certamente não aprovara seu gesto.
"Não havia outra saída", tentava se convencer. Nenhuma outra, tinha certeza.
Ganhara a parada; Marissa viera para obter uma coisa que, finalmente, tinha em mãos.
Logo mais Ian voltaria com o escrivão. Os dois ficariam em pé, diante do
homenzinho, e jurariam fidelidade eterna um ao outro. Ela seria a sra. Ian Tremayne.
Casada, irremediavelmente atada a um homem que mal conhecia.
Recomeçou a tremer incontrolavelmente. Não queria pensar mais nisso, mas não
conseguia parar. Que aconteceria se a verdade fosse descoberta? O nó apertava-lhe a
garganta, cada vez mais.
Talvez Ian voltasse atrás, talvez ele tivesse saído apenas para assustá-la. Voltaria
com uma bandeja de chá, e os dois ririam do plano maluco. Sim, talvez Ian só tivesse
querido dar-lhe tempo para pensar.
Se Marissa e Mary fossem apanhadas nessa farsa, teriam de enfrentar um
desastre de incalculáveis proporções.
E Ian acabara de lhe dar uma chance de escapar dessa situação sinistra.
Sim, ela fugiria dali agora!
Precipitou-se para a porta, abriu-a e...
Lá estava Ian. Acompanhado de um senhor baixo e barrigudo, de longas barbas
grisalhas, e de duas simpáticas velhotas, ambas de avental. Deviam ser camareiras do
hotel.
Marissa pensou vagamente que Ian não se ausentara mais do que meio minuto.
Como era possível?
Ou talvez ela tivesse perdido muito tempo, pensando.
Mas agora não tinha mais volta. Ali estava Ian, seu noivo, de camisa aberta e
barba por fazer.
— Minha querida, este é o sr. Blackstone. Apresento-lhe Meg e Lucy, que vão ser
nossas testemunhas.
Ian pensara em tudo, e agora divertia-se em apertar o cerco inexoravelmente.
Marissa tentou sorrir. Devia mostrar-se simpática e estender a mão para as duas
sorridentes camareiras, o que ela conseguiu com muito esforço. Mas não conseguiu emitir
nem um som. Seus grandes olhos verdes assustados fitavam Ian, pedindo-lhe socorro.
Mas Ian encarava-a impiedosamente. Marissa sabia o que ele estava pensando:
"Você começou tudo isso; agora, sou eu que quero ir até o fim. Obteve o que queria,
minha cara. Dance agora de acordo com a música".
— Isto não vai levar mais que alguns minutos — disse o sr. Blackstone, pousando
a maleta sobre a escrivaninha. — Sr. Tremayne, queira me entregar a licença do
casamento.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ian adiantou-se e tirou da gaveta o documento, passando-o ao escrivão.
— Oh, como tudo isso é romântico! — exclamou Meg, encantada.
— Muito — replicou Ian, com uma careta.
— O senhor não vai querer... ahn, arrumar-se um pouco? — perguntou o sr.
Blackstone.
Ian passou as mãos pelo cabelo e deu um sorriso a Marissa. Mas seus olhos
estavam escuros como a noite.
— Não, sr. Blackstone. A moça aqui vai ver este ianque despenteado e
desarrumado todos os dias, de hoje em diante. Ela não se importa, não é, querida?
Marissa devolveu-lhe um sorriso apagado e sem vida. Mas conseguiu aproximar-se
de Ian e tocar-lhe o rosto barbudo, enquanto dizia:
— Nem um pouco. Sr. Blackstone nem imagina o quanto eu não me importo.
— Ela me adora! — disse Ian para Blackstone.
Meg suspirou; Lucy deu um risinho nervoso. O escrivão ajeitou a gravata, meio
sem graça.
Ian pegou Marissa pela mão e puxou-a, forçando-a a ficar bem junto dele.
— Podemos começar então? — perguntou.
— Claro, claro. Os papéis estão todos aqui. Vejamos...
Blackstone começou a recitar as frases que sabia de cor. Devagar, parecendo ter
prazer em repetir as palavras pela milionésima vez. Marissa mal ouvia; só conseguia
sentir a mão quente e poderosa de Ian apossando-se da sua, pequena e frágil dentro da
dele.
Estava levantando um muro de prisão a sua volta, sabia disso. Teria de atravessar
o oceano com Ian. Morar na casa dele. Ficar à disposição e à mercê dele.
— Você, Ian Robert, aceita esta mulher como sua legítima esposa, para amá-la e
respeitá-la de hoje em diante, e por toda a sua vida, até que a morte os separe?
Marissa mal ousava respirar. Ele ia dizer que não agora, tinha certeza. Gritaria que
era tudo uma farsa, que não tinha a menor intenção de se casar com ela.
— Aceito — disse ele, com firmeza.
— E você... — Blackstone parou, procurando nos papéis. — Katherine Marissa —
ajudou Ian, com secura.
— Sim, é claro. E você, Katherine Marissa, aceita este homem como seu legítimo
esposo, para amá-lo e honrá-lo de hoje em diante, e por toda a sua vida, até que a morte
os separe?
"Morte?" pensou, aérea. Parecia tão drástico! Ian não havia interrompido a
cerimônia; cabia a ela interromper a farsa.
Quase deu um grito quando a mão de Ian apertou-se sobre a dela, como garras de
aço, machucando-a.
— Aceito — disse, num fio de voz.
O sr. Blackstone iniciou um pequeno discurso, do qual ela não ouviu uma só
palavra. Momentos depois sentiu que Ian colocava um aro frio e largo em seu dedo.
— Eu os declaro marido e mulher. O noivo pode beijar a noiva agora.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Beijar minha noiva... — repetiu Ian, num tom de pungente melancolia, que
atingiu fundo o coração de Marissa.
Por um momento, achou que ele a empurraria em vez de abraçá-la. Mas em vez
disso, Ian enlaçou-a com firmeza, pressionando-lhe as costas. Marissa abriu a boca para
protestar, ao ver qual era a intenção de Ian.
Mas antes que ela emitisse um som, a boca de Ian estava sobre a sua.
Marissa fechou os olhos, preparando-se para sentir um beijo rude e pouco
carinhoso. Mas não foi assim.
A boca de Ian era quente, delicada, exigente sim, mas suavemente exigente. Nada
mais. Com certeza essa suavidade resultava de muita prática com outras mulheres.
Fosse como fosse, Marissa não conseguiu mais pensar, tão logo a boca de Ian
pousou sobre a sua. Sentiu a aspereza da barba crescida, sentiu intensamente seus
braços quentes e fortes. E sentiu-se atraída por aquele aroma de tabaco. Atraída e
seduzida. Com delicada firmeza, Ian forçou-a a abrir mais os lábios, e o calor paralisante,
úmido e inebriante de sua língua encheu-lhe a boca provando, explorando. Os dedos dele
enterraram-se nos cabelos de Marissa, acariciando-os, enquanto a busca prosseguia. A
outra mão, pressionando-lhe as costas, mantinha-a junto ao seu corpo, tão próximo que
ela sentiu a tensão e o pulsar do corpo de Ian, a dureza de seus músculos e o calor de
sua pele, um calor que a queimava, deixando-a mole e largada.
A ponta da língua tocou-lhe de leve os lábios, para depois penetrar novamente,
fundo, muito fundo. Marissa agarrou-se a Ian, pois se ele a largasse cairia como um saco
vazio. Todo o fogo de Ian parecia tê-la contagiado.
E uma série de sensações novas tomou conta de Marissa, deixando-a quente e
fria, furiosa e...
E fascinada.
Ela devia protestar... Mas não podia.
Como vindo de muito longe, ouviu o pigarro discreto do sr. Blackstone
acompanhado dos suspiros de Meg e Lucy.
Finalmente, depois de muito tempo, Ian afastou-se um pouco. Seus olhos azuis
fixaram-se nos dela, e Marissa não conseguia afastar-se deles, hipnotizada. Não sabia
que emoções traíam aqueles olhos azuis, impenetráveis. Pensou que talvez ele ainda
estivesse bravo por ela ter forçado a situação para se casarem. Mas Ian tomara as rédeas
no final, e fora buscar o escrivão. Teria sido num impulso passageiro? Marissa achava
que sim, pois já pressentia certo retraimento da parte dele. Finalmente, Ian virou-se para
o sr. Blackstone.
— Bem, vamos aos papéis — disse ele, como se nada tivesse acontecido. —
Gostaria de terminar com tudo logo.
— Sim, senhor, com certeza. Basta o senhor assinar aqui na licença.
Ian abaixou-se e assinou. Sua letra era quase ilegível. Depois passou a pena para
Marissa, que olhou para ele. Mas a impaciência tinha voltado aos olhos azuis.
— Assine, querida.
Marissa continuou parada com a pena na mão, olhando para ele, aparvalhada.
— Pelo amor de Deus, Marissa, assine logo esse papel, ande!
Ela hesitou um segundo ainda. Como deveria assinar? Com o nome de Mary?
Ficaria tudo legalizado assim? Talvez não, pois seria uma assinatura falsa. Então, o

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
melhor seria falsificar mesmo, porque, uma vez descoberta a farsa, o casamento seria
declarado ilegal!
— Marissa!
Dessa vez a voz soou perigosamente irritada. Ela assinou, com os dedos
tremendo, mal conseguindo garatujar algumas letras.
Fitou o documento com os olhos esgazeados. Sua assinatura também, como a de
Ian, estava quase ilegível. Mas sabia que escrevera Katherine Marissa Ayers. No último
momento, nem sabia por quê, resolvera assinar seu próprio nome. Ian não notaria, era
impossível. Ahearn parecia-se com Ayers, principalmente quando escrito com dedos
trêmulos.
Meg e Lucy assinaram também, seguidas do sr. Blackstone, que depois passou
meticulosamente o mata-borrão no documento.
— Vou buscar o champanhe agora, sr. Tremayne?
— Champanhe? — repetiu Ian, enquanto Marissa mordia o lábio. — Claro, onde já
se viu casamento sem brinde?
— É o que sempre digo! — exclamou o sr. Blackstone, esfregando as mãos.
Meg saiu, enquanto o sr. Blackstone terminava de arranjar os documentos, sentado
à escrivaninha. Marissa e Ian ficaram em silêncio, esperando.
Logo Meg voltou e colocou o champanhe sobre uma mesinha. Ian foi examinar o
rótulo com olho crítico; depois deu de ombros e começou a desatar os arames que
prendiam a rolha. Dentro de segundos o champanhe borbulhava nas taças de fino cristal.
Ian entregou a primeira a Marissa, que agradeceu timidamente. Ele curvou a boca,
num simulacro de sorriso:
— Até que a morte nos separe!
O sr. Blackstone recebeu a outra taça e exclamou:
— A muitos anos de bênçãos e alegrias!
— Muitos, muitos anos — repetiu Ian, soturno.
— À família que começa hoje! — esganiçou-se Meg, fungando comovida. — Que
tenham muitos filhos, fortes e sadios como vocês!
Ninguém percebeu, exceto Marissa. Um lampejo de dor e melancolia no rosto de
Ian, logo encoberto por um sorriso.
Em silêncio, ela provou a bebida, mal tocando a taça com os lábios. Depois, como
que tomando uma decisão, bebeu todo o seu conteúdo de uma vez, atirando a cabeça
para trás.
Ian tudo vira, e correu com mais uma dose, que despejou na taça vazia de Marissa.
— Bem, nós temos de ir. Desejo o melhor para o novo casal. Muitos anos de
felicidade, são os meus votos para o senhor. E para a sra. Tremayne, é claro.
Marissa levantou a cabeça vivamente, ao ouvir seu novo nome. Blackstone fechou
a maleta e ergueu-a da escrivaninha, satisfeito. Ian acompanhou-o à porta, e Meg
aproveitou para se despedir também. Com uma pequena reverência, desejou:
— Felicidades, sra. Tremayne!
Lucy, mais discreta, apenas sorriu antes de sair.
Ian fechou a porta atrás deles e o murmúrio de vozes foi se diluindo no corredor.
Ele se recostou na parede, olhando para Marissa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Mais uma vez o sorriso irônico brilhou nos olhos azuis.
— Por que essa cara espantada? É agora a sra. Tremayne. Do jeitinho que você
queria.
Num átimo, ele atravessou o quarto e agarrou-a pelos pulsos, forçando-a a colar
seu corpo ao dele.
— Sim, minha querida, conseguiu exatamente o que queria. Casamento. Está
feliz?
Marissa tentou se libertar em vão. Estava assustada com a expressão sombria e
hostil de Ian.
— Sr. Tremayne...
— Quanta formalidade, meu Deus! Até há pouco eu era Ian para você. Que houve?
— Saiu sem querer, desculpe.
— Também não precisa pedir desculpas. Afinal, somos marido e mulher, não é?
— Não, nós não...
— É aí que você se engana, moça. Você é minha mulher, Marissa. Minha mulher!
— repetiu ele, com voz rouca.
Depois largou-a e encaminhou-se para a porta, detendo-se ao abri-la. Um sorriso
estranho iluminou seu rosto, um sorriso torturado.
— Tenho uma mulher, uma esposa. Meu Deus, que foi que me aconteceu? Que o
céu nos ajude, menina! — E, sem mais explicações, saiu, batendo a porta.

CAPÍTULO IV

— Você fez o quê!


O grito assustado de Mary ainda ressoava nas paredes.
Marissa ensaiou um sorriso indiferente. Acabara de dizer, com perfeita
naturalidade, que havia ido adiante com os planos e casara-se com Ian Tremayne.
Achava-se na elegante suíte de hotel onde Mary e ela haviam se hospedado. Fazia o
impossível para não demonstrar à amiga todo o pânico que se instalara em seu coração
desde a fatídica cerimônia.
Ian não voltara, embora tivesse deixado suas coisas ali. Marissa esperara por mais
de meia hora, caminhando de lá para cá, tentando não tocar nos objetos pessoais dele;
espiara pela janela inúmeras vezes, retocara o penteado outro tanto, mas seu nervosismo
fora aumentando de maneira insuportável. Aquele quarto, impregnado da presença de
Ian, deixava-a inquieta. A escrivaninha estava atulhada de papéis, inclusive de envelopes
perfumados, sobrescritos em caligrafia evidentemente feminina. A cama, os objetos
pessoais, as roupas atiradas a esmo sobre os móveis, o aparelho de barba, tudo isso fora
enervando-a.

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Até que não pôde mais ficar ali nem um segundo. Nem mesmo sabia se Ian queria
que ela o esperasse. Saíra de forma tão inesperada e brusca, batendo a porta daquele
jeito! Decidida, Marissa deixara o pequeno hotel, pegara uma carruagem e viera ter com
Mary.
Encontrara-a aflita e preocupada, sem saber o que pensar da ausência prolongada
de Marissa.
— Casei-me com ele — repetiu ela, afundando nas almofadas de seda do pequeno
sofá. — Talvez fosse mais correto dizer que nós duas nos casamos com ele... não sei.
Assinei meu nome, de modo que acho... acho que tudo está dentro da lei. O casamento,
pelo menos.
— Oh, Marissa!
Mary correu para ela e abraçou-a com força.
— Por que foi fazer uma coisa dessas, minha amiga? Não deveria, Marissa! Nós
teríamos dado outro jeito, teríamos achado outra saída.
— Na realidade, a situação não está muito diferente, Mary.
— Como não? Ah, Marissa, não sabe o que as pessoas casadas costumam fazer?
Realmente, às vezes Mary era terrivelmente maçante!
— Claro que sei. Não acredito na cegonha há muito tempo. Mas meu casamento
não será desse tipo, sossegue.
Mary assoou o nariz com vigor.
— Qualquer casamento é desse tipo. Se bem que ele é muito bonito.
— Como sabe disso?
— Fiquei olhando pelo buraco da fechadura ontem à noite. É um pedaço de
homem, menina!
— Ontem você teve medo dele.
— Claro, até tive um começo de ataque histérico... Mas eu não o conhecia, não
sabia como ele era. Por isso não tive coragem de enfrentá-lo, de puro pavor. Ele tem uma
personalidade muito forte, pelo que vi. Mas creio que é bastante charmoso.
— Charmoso... sim, é essa a palavra adequada para Ian.
Mary encarou-a, magoada.
— Eu só quis dizer...
— Ele é charmoso, Mary — mentiu Marissa. — Muito charmoso.
Pensando bem, estava dizendo meia verdade. Afinal de contas, Ian podia ser
charmoso, mesmo. Quando queria. Quando não estava rosnando ou mordendo.
— Mary, o que fiz foi simplesmente assinar um contrato, nada mais. Já que estava
espionando ontem, deve ter entendido isso. Ian foi casado antes e não queria repetir a
dose. Eu vou ser apenas uma hóspede na casa dele, uma hóspede muito conveniente,
aliás. Porque uma vez que, para todos os efeitos, Ian estará casado comigo, nenhuma
mulher vai pensar em se casar com ele. Entendeu?
— Ian compreendeu bem essa ideia toda? Você lhe explicou bem?
— Claro que sim, Mary. Tudo vai correr bem, garanto.
— Não tenho tanta certeza assim... Ainda não me conformo com o fato de você ter
saído daqui na surdina hoje cedo, sem me avisar, para depois voltar casada com Ian

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Tremayne! Você não se deu tempo para pensar melhor, para avaliar os prós e contras,
Marissa! Agora temos de pensar numa forma de sair dessa enrascada!
— Sair como?
— Não sei. Daremos um jeito.
— Quando fui falar com Ian, estava certa de que ele não aceitaria minha ideia. Fui
arquitetando os argumentos no caminho, tratando de dourar a pílula para ele engolir.
Imaginei que, se ele aceitasse, nós poderíamos deixar tudo assentado para, digamos,
daqui a alguns meses, dois ou três. Quando me dei conta, Ian estava diante de mim com
escrivão, testemunha e tudo. Ele me pegou de surpresa, realmente.
— Oh, Marissa!
Mary apertou-a mais uma vez contra o peito. Depois olhou-a com expressão tão
desamparada que Marissa precisou consolá-la. Bateu de leve na mão dela e levantou-se,
decidida a afastar os próprios temores, para que a amiga nada percebesse.
— Meu maior interesse nisso tudo, Mary, é cuidar de meu tio. E isso parece que
consegui. Em breve estarei enviando dinheiro a ele. Na verdade, esse casamento vai me
proporcionar tudo o que sempre quis, não vê? A casa de Ian, segundo ele me disse, é
grande e chique. Irei a óperas, balés, teatros. Receberei muita gente importante, darei
bailes e banquetes... Vai ser a glória!
Mary fitou-a com tristeza, o que enervou ainda mais Marissa.
— Uma casa, nem que seja um palácio, não é tudo, Marissa. De que vale um
monte de tijolos e cimento? Interessa que você entregou seu destino a esse homem!
— Nossos destinos, Mary, o seu e o meu. Pelo menos, ficaremos juntas na
América.
— Nós trocamos os papéis, lembra-se? Eu serei uma simples e pobre imigrante.
Ian não deixará que sejamos amigas.
— Não se preocupe com isso. Os Estados Unidos são um país moderno, cheio de
oportunidades. Jimmy há de enriquecer por lá.
— Isso poderá levar muito, muito tempo...
— Ian não vai regular minha vida tanto assim como pensa, não se preocupe. Não
vê, Mary, que o plano é perfeito? Ele não quer uma mulher de verdade, mas um bibelô,
um enfeite para a grande casa que tem. Apenas terei de entreter alguns convidados, de
vez e quando. As outras horas serão nossas, muito nossas! Você e Jimmy vão alugar
uma bela casinha por perto. Jimmy arranjará um bom emprego e eu vou visitá-la sempre,
durante o dia. Tem de dar certo, Mary! Será exatamente como planejamos antes, na
realidade. Esse casamento não passou de um insignificante detalhe. Ele não é
importante, e não está me incomodando nem um pouco.
De repente, Marissa interrompeu o convincente discurso para dar um soluço
sonoro.
— Champanhe — disse, à guisa de explicação. — Nós comemoramos, depois do
casamento.
— Comemoraram!?
— Por que não? Lembre-se, Mary, Ian é um cavalheiro cheio de charme e
gentilezas. — Marissa sorriu. E acrescentou, entre os dentes: — Como um lobo.
— Como?
— Nada, nada.

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Houve uma batida leve à porta.
— Deixe que eu atendo, Marissa. Você deve tomar água, para ver se os soluços
param.
Quando Mary abriu a porta, soltou um gritinho assustado. Jimmy O’Brien estava na
soleira, sorridente.
— Jimmy! — murmurou ela.
— Alô, meu amor.
— Nós tínhamos combinado que você não viria para cá até...
— Aí é que está, não aguentei esperar mais, minha Mary — interrompeu ele,
tomando-lhe a mão e entrando sem maiores cerimônias.
Cumprimentou Marissa com efusão, para depois continuar:
— A bem da verdade, não confio inteiramente nessas duas cabecinhas de vento...
Tive medo de que fizessem alguma bobagem. Afinal, quem é que usa calças aqui?
Resolvi que eu é que vou tomar conta de você e de Marissa. Vou arranjar um belo
trabalho, vocês vão ver só. Falo sério, meninas.
A boca de Marissa curvou-se num sorriso silencioso. O veemente e apaixonado
discurso era bem típico de Jimmy! Mal conseguia prover o próprio sustento, e já falava em
cuidar não só de Mary, como dela também. Pobre e sonhador Jimmy!
— É tarde, Jimmy. Marissa já se casou com o ianque — falou Mary, subitamente
tímida.
— O quê...? Não acredito!
Marissa suspirou. Agora tinha de convencer a Jimmy também.
— Está tudo bem, Jimmy.
— Você se amarrou àquele velho?!
— Ele não é velho, calma.
— Mas é um ianque! Um... um estrangeiro!
— Já está feito, Jimmy. O casamento foi hoje.
— Pois vamos anulá-lo.
Marissa encarou os dois com fria decisão.
— Não vamos fazer nada disso. Mal consegui obter o que queria, e vocês já estão
querendo tirar tudo de mim? Nós vamos tirar proveito da situação, isso sim! Vamos...
Batidas impacientes na porta interromperam-na, provocando-lhe um calafrio. Tinha
certeza de que era Ian. Jimmy adiantou-se para atender.
— Espere, Jimmy! — falou Marissa, nervosa, cheia de maus pressentimentos.
Mas era tarde. A porta foi aberta e a silhueta poderosa de Ian recortou-se na
soleira. Marissa recuou, assustada.
Ele havia tomado banho e trocado de roupa. Estava barbeado com esmero. Os
cabelos, ainda úmidos, teimavam em cair na testa. Trajava um terno claro, que combinava
às maravilhas com sua tez morena.
Mas a expressão sombria denunciava seu estado de espírito. Ian mirou Jimmy de
alto a baixo, os lábios apertados, os olhos azul-escuros emitindo faíscas. Ainda assim, ele
sabia como se controlar. Limitou-se a examinar Jimmy com frio calculismo.

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Logo seu olhar desviou-se para Marissa com tanta reprovação que ela teve de
agarrar-se ao espaldar da cadeira para não denunciar que começava a sentir.
"Será possível que toda vez que vejo esse homem eu comece a tremer como
geleia?" pensou, furiosa. "Não posso tolerar que ele me intimide desse modo! Maldito
seja, Ian Tremayne!"
— Que diabos está acontecendo aqui? — perguntou ele, com voz
ameaçadoramente baixa.
Jimmy recuou, dando-lhe passagem. Marissa mordeu o lábio, receando que Ian
julgasse que Jimmy estava com medo. Tremayne era pelo menos uns dez anos mais
velho que Jimmy, maior e mais forte, mas Jimmy não recuara por temor; fora por simples
deferência. Jimmy estava acostumado a dar passagem para os ricos, a demonstrar
respeito para as pessoas importantes. E as roupas, a confiança de Ian haviam-no
convencido de que estava diante de um homem muito importante e rico.
De repente, Marissa sentiu uma onda de raiva. Raiva pela submissão de Jimmy, e
pelo fato de que Ian estava pensando que Jimmy era o tal amante que ela negara ter.
— Nada está acontecendo aqui — respondeu ela, de queixo erguido. — Estou
apenas conversando com meus amigos.
— Escute aqui, moça — começou ele, avançando.
— Um momento, Ian — interrompeu-o Marissa, com inacreditável presença de
espírito.
Diante da firmeza de Marissa, ele estancou. Ela começou a falar, sem pensar no
que estava dizendo. Sua voz saiu clara e limpa, sem sombra de tremor.
— Você demorou tanto que resolvi sair um pouco. Por favor, entre. Quero que
conheça meu bom amigo, Jimmy O'Brien, e sua mulher, Mary.
O olhar de Ian saltou de Marissa para Mary. E depois para Jimmy, que parecia
congelado no tempo e no espaço. Ele fitou novamente Mary, e sua expressão se suavizou
imediatamente.
Marissa notou a mudança e perguntou-se por que ela teria ocorrido. Devia ser por
causa da doçura do rosto de Mary. Sentiu-se, todavia, algo desconfortável com o efeito
que a amiga produzia sobre Ian. Sabia que Mary era bonita, quase perfeita, com seu rosto
de madona, sempre iluminado pela bondade e generosidade inatas nela. Mary tinha um
sorriso doce e suave.
Mas Mary já se adiantava, estendendo as mãos para Ian.
— Muito prazer em conhecê-lo, meu senhor.
Ian retribuiu o sorriso com sinceridade, inclinando-se cavalheirescamente para
beijar-lhe a mão.
— Perdoe-me o mau jeito, Mrs. O'Brien. Foi a viagem que me deixou cansado.
Creio que não estou num de meus melhores dias.
— De modo algum, sr. Tremayne. Não temos o que desculpar.
"Temos sim, e muito!", Marissa teve vontade de gritar. Mas Ian já se virava para
Jimmy, que tirara o boné e girava-o nas mãos timidamente.
Marissa notou que o pobre moço queria falar, mas não encontrava as palavras.
— Jimmy querido, este é o sr. Tremayne, de quem Marissa falava há pouco —
disse Mary, com graça.

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Jimmy adiantou-se e apertou a mão de Ian. Marissa notou que Tremayne
examinava-o com atenção, parecendo satisfeito após a breve avaliação.
— Sr. O'Brien, sra. O'Brien — disse ele, com delicadeza. — O prazer é todo meu.
Depois falou para Marissa:
— Desculpe-me a demora, minha querida. Eu tinha alguns negócios urgentes a
tratar, e eles me tomaram mais tempo do que imaginei. Então, estes são os amigos de
que me falou hoje?
— Sim. Amigos muito queridos, como já lhe disse. Eles... eles querem ir para a
América, também.
Ian olhou para Mary. Marissa percebeu que ele avaliava as condições de saúde da
amiga. Tinha certeza que Ian notara a palidez e as olheiras de Mary.
— É uma viagem longa — disse Ian.
— Eu sei — replicou Mary.
— E você, Jimmy, trabalha no quê? — perguntou Ian.
Mary pigarreou, lançando um olhar significativo para Marissa.
— Marissa, você devia oferecer uma bebida para seu marido. Ele nem foi
convidado a se sentar! Que bela recepção estamos dando a ele, hein?
— Tem razão, Mary. Acho que foi a surpresa de ver Ian chegar.
Havia falado com tanto orgulho de seus dotes de dona de casa, e agora estava se
portando de modo tão desajeitado quanto Jimmy. Ian parecia calmo e satisfeito, e agia
como um cavalheiro. Uma vez convencido de que Jimmy não era o namorado de Marissa,
passara a demonstrar interesse genuíno nos amigos dela.
— Sr. Tremayne, sente-se, por favor — murmurou Marissa. — Aceita um brandy?!
Ou um uísque?
Mary cutucou-a disfarçadamente, cochichando:
— Você está casada com o homem, menina. Que formalidade é essa?
Ian apreciava complacente a cena das duas confabulando.
Marissa sentiu-se a mais boba de todas as mulheres do mundo. E a ironia dos
olhos de Ian não a ajudava nem um pouco a sentir-se melhor.
— Para mim, brandy está ótimo — respondeu ele, acomodando-se na poltrona. —
Jimmy, venha sentar-se também. Conte-me de seus negócios.
Jimmy ainda rodava o boné nas mãos. Atravessou a sala e sentou-se,
empertigado, na ponta do sofá. Mas o sorriso amigável de Ian deixou-o mais à vontade.
— Sou imigrante, sr. Tremayne. Não faz muito tempo que estou em Londres. Sou
irlandês — arrematou, como se o nome e o sotaque não traíssem de imediato sua origem.
O sorriso de Ian abriu-se mais.
— Há muitos irlandeses em San Francisco, Jimmy. O que você faz?
— Eu era agricultor, mas... batatas não trazem muito dinheiro. Além disso, todos os
meus vizinhos também eram agricultores, de modo que a competição era brava. Sempre
tive vontade de ser comerciante, tomar conta de uma loja, vender boas mercadorias.
Meus vizinhos eram analfabetos, mas eu sabia ler, escrever e contar. Aprendi com o
vigário da aldeia, um velho que achava que eu tinha talento. Ele vivia dizendo que só com
muito estudo a gente poderia se livrar da canga dos ingleses. Ele...

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Jimmy corou e parou, lembrando-se de que estava na Inglaterra. Mas Ian soltou
uma risada gostosa.
— Tudo bem, eu também penso assim. Continue, Jimmy. Você queria ser
comerciante.
— Correto.
— Mas faltava-lhe capital.
— Correto. Falta-me ainda, para ser franco.
— Bem, se você e sua mulher tiverem força de vontade e determinação de ganhar
dinheiro no meu país, creio que posso ajudá-los.
— Não estou pedindo dinheiro — começou Jimmy, rodando de novo o boné.
— Nem eu estou pensando em dá-lo a você.
Ian pegou o copo que Marissa lhe oferecia, sem olhá-la. Isso deu a ela a estranha
sensação de que era de novo a empregada de sir Thomas, metida dentro de um feio
avental cinzento.
— Acontece, Jimmy — prosseguiu Ian —, que meu avô e meu pai fundaram uma
cadeia de lojas. Precisaram de anos e anos para vê-la crescer e prosperar. Minha família
possui agora muitas lojas no centro de San Francisco. Eu, infelizmente, não tenho tempo
suficiente para cuidar delas como deveria; para ser bem franco com você, não tenho
muita queda para esse tipo de negócio. Gosto mesmo é de construir. Mas se você estiver
disposto a aprender comigo os segredos do comércio americano, com garra, dedicação e
paciência, poderei colocá-lo numa das lojas, ganhando um salário que lhe permitirá
estabelecer-se por contra própria, depois de algum tempo.
Mary soltou um suspiro de intenso prazer e olhou para Ian com os olhos brilhantes
de gratidão. Por sua vez, Jimmy fitou o visitante como se este tivesse atirado em seu colo
uma bolsa cheia de moedas de ouro.
— Então, Jimmy, que me diz de minha oferta?
— Eu... mas é claro que aceito, céus! Vou trabalhar duro, sr. Tremayne, juro!
— Sei que vai.
— E não me importo de começar de baixo!
— É exatamente como vai começar, Jimmy. Pelo porão, onde fica o almoxarifado.
É por aí que vamos dar início aos nossos trabalhos. Minha filosofia da boa economia
inclui fazer com que todos os empregados conheçam a fundo nosso estoque de
mercadorias.
— Pode crer, sr. Tremayne, não vai se arrepender. Pretendo dar tudo de mim e
mergulhar de cabeça nesse serviço!
Ian achou graça no entusiasmo contagiante do moço.
— Pois então está fechado.
Seu olhar desviou-se para Mary, que estava atrás de Jimmy, com as mãos
pousadas sobre os ombros dele. A voz de Ian tornou-se mais branda.
— Acho que vai gostar de San Francisco, Mary. É um dos lugares mais bonitos do
mundo. Não sentirá muita saudade de seu país, vai ver.
— Meu país será onde Jimmy estiver, sr. Tremayne. E, para melhorar tudo,
ficaremos perto de Marissa. Essa será minha verdadeira pátria.

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Ian levantou-se, estudando-a atentamente. Marissa mordeu o lábio, sentindo na
pele o quanto ele a admirava. Talvez teria sido melhor para todos se não o tivessem
enganado.
Mas agora era tarde. Os dados já haviam sido jogados.
Ela havia mentido e trapaceado.
E casara-se com ele.
— Marissa?
Cerrou os dentes ao ouvi-lo. Ian dirigia-se a ela como a uma criancinha. Ou como
se ela fosse ainda a camareira de sir Thomas. Mas tratava Mary com gentileza e atenção.
Virou-se para ele, esperando polidamente.
— Gostaria de falar com você a sós.
— Jimmy, meu amor — interveio Mary —, acho que devemos deixá-los. Vamos
indo? Os dois têm muito o que conversar.
Jimmy piscou, desconcertado.
— Vamos, Jimmy, despeça-se do sr. Tremayne.
— Mas...
— Farei os arranjos para sua viagem assim que puder, Jimmy — falou Ian,
apertando-lhe a mão. — E mandarei avisá-lo em seguida.
Depois inclinou-se cortesmente diante de Mary, tomando-lhe a mão.
— Até breve, Mary. Foi um prazer.
— Para mim também, sr. Tremayne. E muito, muito obrigada por tudo!
— Chame-me de Ian, por favor. Somos amigos agora, não é?
O sorriso de madona abriu-se, encantador.
— Claro, Ian. Amigos!
Delicadamente, Mary puxou a mão, pois Ian parecia tê-la esquecido dentro das
suas, e chamou:
— Vamos, querido.
Marissa acompanhou-os, observando a determinação de Mary e a confusão de
Jimmy. Assim que a porta se fechou, uma dorzinha aguda atacou de imediato a boca de
seu estômago. Estava sozinha com Ian, novamente. O homem com quem se casara
nessa manhã.
— Creio que devemos partir dentro de poucos dias e...
— Não, ainda não! — interrompeu Marissa, torcendo as mãos. Uma coisa era
brincar de dama ali em Londres. Outra, assumir, definitivamente, o papel da sra.
Tremayne do outro lado do mundo. Além disso, tinha de se despedir de tio Theo. Teria de
convencê-lo de que se apaixonara perdidamente, que se casara com um homem rico, que
era a mulher mais feliz do mundo, que lhe mandaria um cheque todos os meses.
Planejava persuadi-lo a ir também para a América, mas isso podia ser adiado. Talvez ela
viesse buscá-lo um dia. Imaginou-se chegando na aldeia de mineiros, ricamente vestida,
distribuindo generosidades àquela gente miserável, fundando escolas e creches...
Tudo isso ela imaginava fazer, no futuro. Mas teria de começar a pagar adiantado.
A partir de agora.

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— Minha cara, posso até concordar em esperar. Na verdade, se você tivesse me
pedido isso hoje de manhã, minha resposta teria sido um redondo não.
— Mas agora...?
— Mas agora conheci seus amigos. Gostei deles, sabe? Admito que julguei mal
você.
Uma onda de ressentimento tomou conta de Marissa, mas ela manteve os olhos
baixos, decidida a não discutir.
— Então podemos adiar um pouco a viagem?
— Você pode, se quiser. O navio Lorena parte de Londres dentro de dez dias.
Você tomará esse navio juntamente com Jimmy e Mary. Mas eu irei antes disso.
— Dez dias! — repetiu ela, desapontada.
— Que mais queria, menininha? Ora esta, já é estranho que recém-casados
passem sua lua de mel separados! Dez dias é o máximo que lhe concedo. O Lorena
aportará em Nova York. De lá, vocês irão de trem para a Califórnia e San Francisco. É
uma viagem bastante longa e cansativa, previno-a. Vocês ficarão uma semana no mar e
outro tanto no trem. Creio que você ganharia tempo se fosse em minha companhia.
Não! Ela estava imensamente contente por não ter de viajar com Ian. Queria adiar
o máximo possível seu relacionamento com ele, que teria de acontecer mais dias, menos
dias.
Marissa ergueu os olhos a fim de encará-lo.
— Sei que tem pouca confiança em mim, mas sou uma mulher de ação. Saberei
cuidar de mim e de meus amigos, mesmo nessa viagem tão longa. Imagino que haverá
baldeações e imprevistos, mas darei conta do recado.
— Não duvido disso. Coragem não lhe falta, mocinha. Para alguém de sua idade,
educada com mimos e cuidados, é realmente extraordinária sua determinação.
Marissa não sabia se ele estava caçoando ou falando sério. Tentou ler nos olhos
de Ian, mas ele abaixara-se para examinar um bibelô.
— Devo-lhe desculpas pelos meus maus modos esta manhã. Você me pegou de
surpresa, se é que isso serve de explicação. Afinal de contas, você primeiro queria ficar
em Londres; logo depois estava insistindo em se casar. Foi uma mudança e tanto!
— É, foi — respondeu ela, inquieta com o jeito de Ian.
Ele estava em perpétua mutação, indecifrável. Seus olhos variavam do azul-
cobalto para o azul-noite em questão de segundos. Acusava-a de mudar, mas ele próprio
saltava de um polo a outro constantemente.
— Bem, isso não é importante agora. O que está feito, está feito. Admito que a
situação toda era bastante original, por isso fiquei mais nervoso que o habitual. Quando
saí, fiquei vagando pela cidade, perguntando-me como é que você havia conseguido me
enlear a ponto de achar-me casado de repente.
— Então agora a culpa é minha?!
— Culpa? Não. Ainda acho que você mesma não sabia o que queria, realmente.
Se alguém tem culpa, ela é minha, acho. Repito, o que está feito, está feito. Contudo,
creio ser meu dever dizer-lhe certas coisas.
Marissa postou-se atrás do sofá, utilizando-o como barreira. Ainda não se refizera
do beijo daquela manhã, que ainda a queimava como estigma. O que mais a enervava
era o turbilhão de sentimentos contraditórios que esse beijo provocara nela.

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O pior, naquele momento, foi flagrar-se observando a boca de Ian, imaginando o
que ele sentira ao beijá-la. Mal o conhecia, mas estava aprendendo depressa a conhecê-
lo. Depressa demais, achava. Se fechasse os olhos, seria capaz de rever cada linha do
rosto moreno. O irrequieto sorriso, ora irônico, ora gentil. As mãos grandes, poderosas,
que tinham-na enlaçado como se fossem donas de seu corpo.
Um calor percorreu suas veias. Receava que ele a tocasse de novo, mas de algum
modo também receava que ele não a tocasse. Ocorreu-lhe, de repente, que ele não tinha
aceitado nenhuma condição quanto ao casamento.
— Você me disse "certas coisas" antes — lembrou-lhe ela, com frieza. — Estou
informada de que não quer uma esposa, de que acha divertido e engraçado eu falar em
protegê-lo. Já sei que gosta de certos avanços femininos, principalmente quando vai
buscar companhia nos braços de — a palavra prostitutas estava na ponta de sua língua,
mas conseguiu substituí-la rapidamente — de dançarinas de cabaré. Estou informada
também que em San Francisco há muitas delas, as melhores do mundo.
Os lábios dele se curvaram num sorriso. Mas os olhos azuis estavam frios e
escuros.
— Tem uma língua ferina, Marissa.
— Repito apenas o que ouvi.
— De qualquer modo, não vim aqui para discutir — disse ele, aproximando-se um
pouco.
— Então, veio para quê? — perguntou ela, recuando para manter a distância. Mas
Ian rodeou o sofá e chegou bem perto.
— Nada de ruim. Apenas dar-lhe uma bela surra.
— Você... certamente não está falando sério!
— Quem sabe?
Esticou o braço e agarrou-a pelo pulso, torcendo-o para trás, forçando-a a colar
seu corpo ao dele. Seus olhos agora falseavam, cheios de inesperada irritação.
— Tome cuidado, Marissa, não sabe com quem está lidando. Às vezes nem eu me
conheço bem. Veja esta manhã, por exemplo. Nem sonhava em me casar, nem pensava
nisso. Deixei-me levar por um belo discurso, e aqui estou eu, amarrado a você, uma
garotinha ainda cheirando a cueiro.
— Você mesmo disse...
— Que a culpa era minha? Disse e repito. Nenhum homem pode ser enredado
desse jeito, a menos que ele permita. Mas você não me enredará mais, garanto-lhe!
— Por favor — implorou ela, tentando soltar o pulso. Não tolerava ficar tão perto
dele; descobrira isso pela manhã.
O calor de Ian transferia-se diretamente para seu sangue, dando-lhe uma moleza
estranha e desconhecida. Além disso, Marissa tinha aguda consciência do corpo de Ian,
viril, cheio de desejo. Um rio de fogo a invadia, insinuando-se em suas veias, insidioso,
deixando-a fraca. Os joelhos começaram a ceder, incapazes de sustentá-la.
— Eu só queria lhe dizer, Marissa, que San Francisco é uma cidade bonita, e
minha casa é gostosa, fácil de administrar. Você pode tomar o Lorena, como
combinamos. Mas não quero que se sinta infeliz com isso. Creio que sua vida vai ser boa
lá. Basta deixar-me em paz comigo mesmo. Lembre-se de que me orgulho muito de meu
nome. Eu seria capaz de me vingar com muita violência de quem o subestimasse.
Lembre-se disso, e não teremos nenhum problema.

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A cabeça de Marissa tombou para trás e ela cessou de se debater. Sentia-se presa
daquele olhar azul e profundo, e sabia que não teria mais como lutar. Nem falar.
Ian também se calou. Fitava-a intensamente, sem soltá-la.
Ficaram assim um longo minuto, ofegantes, silenciosos.
De repente, ele a soltou e virou-lhe as costas.
— Antes de partir virei visitá-la. Meu navio é o Princesa dos Mares, que sai depois
de amanhã daqui. Deixarei tudo preparado para que você chegue em San Francisco sem
maiores problemas. Com seus dois amigos, é claro.
Ainda sem fala, Marissa apenas conseguiu assentir com a cabeça, Ian mudara de
novo; agora estava brusco e frio, falando como se estivesse tratando de negócios com o
gerente de sua loja.
Ele encaminhou-se para a porta.
— Sr. Tremayne! — chamou ela, a voz incerta. Depois corrigiu-se imediatamente:
— Ian.
Só então ele se virou.
— Eu... eu não lhe agradeci.
— Pelo quê?
— Pelo que fez por Mary e Jimmy. Por tê-los tratado bem. E por ter dado um
emprego a ele.
Ian deu de ombros.
— Jimmy me pareceu um bom rapaz. E casou-se com uma verdadeira dama. Além
disso, quero que você não se sinta muito só. Acredite, mocinha, não sou um bicho-papão.
Virou-se e pousou a mão na maçaneta.
— Ian!
Marissa ficou literalmente estarrecida por tê-lo chamado de novo. O que estava
acontecendo com ela?
Um tanto impaciente, Ian esperou.
— Eu... eu também não quero que você seja infeliz.
Ela julgou ter visto a sombra de um leve sorriso curvando-lhe a boca.
— Muito obrigado. Boa noite.
Desta vez ele saiu.
Marissa encostou-se à parede e fechou os olhos. Que dia!
Estava casada com Ian. Para sempre. Lembrou-se do beijo e levou os dedos aos
lábios, sentindo um frêmito de suave calor. Tentou afastar a lembrança, em vão. Ele era
muito gentil às vezes...
Mas tinha um temperamento difícil e cortante. E ela mentira para ele. Mais que
isso, enganara-o de maneira vil. Se um dia ele descobrisse a farsa...
Seu pensamento não ousava ir mais adiante. Lentamente, encaminhou-se para a
mesinha de carvalho, ricamente torneada, e serviu-se de licor. Depois sentou-se,
imaginando como seria seu encontro com o tio. Diria a ele que nunca mais precisaria pôr
os pés numa mina.

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Seu coração se consolou com essa ideia. Tudo valeria a pena, então. Poderia fazer
muita coisa pelo tio, e tinha toda a intenção de fazê-lo. O plano dera certo, afinal. Todos
seriam felizes.
Mas por que sua memória teimava em trazer-lhe de volta aquele beijo?
Por que a lembrança dos olhos azuis voltava com tanta insistência?
E por que ela tremia com essas lembranças?

CAPÍTULO V

O fog londrino estava incomumente denso e pesado, mas Ian não se importava.
Estava acostumado a nevoeiros como aquele; na verdade, gostava deles. Em Londres,
muitas paisagens eram-lhe familiares: a grande ponte, o ar gelado da noite, os mistérios
das brumas.
Havia jantado com um mercador de lã escocês, velho conhecido seu, com quem
acabara de fechar um rendoso negócio. Resolvera voltar para o pequeno e aconchegante
hotel a pé, aproveitando a beleza da noite fria. Vinha satisfeito, cantarolando, as mãos
metidas nos bolsos. Havia qualquer coisa de cativante na aparente tranquilidade da velha
Londres. Parou em frente de uma construção, examinando-a com olho crítico. Sim,
senhor, dali sairia uma bela casa, sem dúvida.
Pensou nas inúmeras reuniões e decisões que postergara para vir a Londres e
franziu o cenho, aborrecido. Pouco antes da morte de sir Thomas, ganhara uma
concorrência importante. Iria projetar e construir um edifício perto da área das marinas,
mas o terreno ainda estava para ser escolhido. Ian tivera um trabalhão para convencer os
proprietários a escolher uma área muito mais barata, mais longe das marinas; perto delas
o terreno era alagadiço demais, e seria necessário reforçar muito as fundações. Isso
encareceria o projeto. O edifício teria de suportar fortes oscilações, pois a cidade sofria
frequentes tremores de terra. Desde garotinho Ian observara como os altos edifícios eram
erguidos, tendo cada vez mais certeza de que sua vocação era construir. E passara a
detestar a cadeia de lojas, que se interpunha entre ele e sua vocação.
Mas tudo isso havia passado. Agora ele conseguia equilibrar os dois trabalhos.
Um sino bateu, e ele se deu conta de que era tarde. Tirou o relógio do bolso, e
parou sob um lampião para ver as horas. Nesse momento, notou que seu anel de sinete
não estava mais no dedo; em seu lugar havia uma tênue marca esbranquiçada. Onde
diabos deixara o anel?
De repente, lembrou-se. Tirara-o e enfiara-o às pressas no fino dedo de Marissa, a
guisa de aliança.
Um grilhão de gelo pareceu apertá-lo. Estava casado, irremediavelmente casado.
Pela milionésima vez, perguntou-se raivosamente por que havia cometido tal loucura.
Por que fizera essa asneira, em nome de Deus?!
Encostou-se ao poste frio do lampião, amaldiçoando-se baixinho. Todo o seu
entusiasmo esfriara como que por encanto.

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No dia em que vira o caixão de Diana baixar à sepultura, havia jurado a si mesmo
que não se casaria novamente. Amara Diana mais que a própria vida, e sabia que ela
também o amara com igual intensidade.
Ian levara muito tempo para conseguir chegar perto de outra mulher, e ainda
assim, a primeira vez lhe fora penosamente difícil. Gradualmente, acostumara-se a buscar
consolo, ainda que fugaz, nos braços de outras. Era um homem saudável e viril; precisava
de uma válvula de escape de vez em quando. Achava correto encontrar-se com mulheres
divertidas e alegres; achava correto até mesmo manter certo relacionamento com uma ou
outra, desde que elas fossem mantidas a uma distância adequada. Desde que não se
casasse e não se visse obrigado a oferecer um amor que se sentia incapaz de dar.
E estava se dando muito bem com esse modo de vida...
Até que aparecera uma sirigaita inglesa, que o levara no bico direitinho. Ian
aceitara de bom grado prestar um favor a sir Thomas, mas não esperava semelhante
desfecho.
Ian comprimiu os lábios, furioso. Devia gostar muito de dinheiro, essa pequena.
Vendera-se tanto quanto uma cortesã londrina. Tanto quanto a mais desgastada mulher
de rua, tal como conhecera muitas em sua cidade. Ela usara de todo o poder de
persuasão, ameaçara, fizera belos discursos, demonstrara melancolia, enfim, fizera-o de
bobo, essa era a verdade. Conseguira, Ian ainda não sabia como, provocar-lhe uma
estranha e perigosa emoção. Bem que ele tentara negar. Mas de repente vira-se na rua,
descabelado e barbudo, procurando um escrivão.
Em minutos depois estava enfiando seu anel no dedo da sirigaita.
O que fizera ela para provocar tantas sensações diferentes? Ian nunca tivera
nenhuma intenção de magoá-la. Por Deus, era a filha de sir Thomas!
Planejara, antes, que não seria muito severo com a filha do amigo. Tencionara
levá-la para seu país apenas em caso absolutamente necessário; cuidaria para que ela
fosse bem tratada, porque era seu dever. E só.
Mas ele perdera a cabeça e acabara se casando.
Louco da vida, dirigiu-se para o hotel a largas passadas. Não mais achava graça
em Londres, nem no maldito fog que o envolvia.
Detestava aquela moça que lhe tirara o sossego da agradável rotina.
Parou, ofegando ruidosamente. Não, tinha de ser honesto consigo mesmo. Não
detestava Marissa, mas sim o estranho sentimento que nutria por ela. Não gostava da
intensa curiosidade que ela lhe despertava a cada vez que via seus olhos verdes, grandes
e inquisidores. Às vezes parecia tão desamparada! Como se estivesse desesperada para
alcançar coisas que nunca tinha possuído.
Como se ela tivesse vivido num pesadelo a vida toda.
Bem, isso era impossível. Uma moça rica, cercada de mimos e cuidados, não
podia viver em pesadelo. Verdade que havia acabado de perder o pai, mas Ian tinha
quase certeza de que não era só por isso que ela parecia infeliz. Marissa assemelhava-se
a uma rainha às vezes, serena e altiva; mas em mais de uma ocasião Ian notara
insegurança e até medo em seu olhar. Olhar de gata, orgulhoso e enganador.
Essa era sua mulher.
Um gosto amargo subiu a sua boca.

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Pelo menos, era uma bela mulher. Talvez isso lhe servisse para alguma coisa;
seria bom exibi-la aos amigos. Ela parecia ter jeito para receber e entreter com classe.
Imaginou-a no meio dos convidados, sorridente, elegante, sedutora.
Talvez não tivesse feito um mau negócio, afinal.
Além disso, ela o apresentara a Jimmy O’Brien, o jovem e impetuoso irlandês. Ian
ficara realmente impressionado com o rapaz. Era meio verde ainda, mas tinha o olhar
honesto. Queria ganhar dinheiro, era ambicioso e acreditava nos Estados Unidos, o que
encantava Ian. Nada de reis, rainhas e realeza; apenas um pedaço de terra bonito e
generoso, onde o sonho de riqueza poderia ser realizado. Jimmy daria um excelente
empregado, estava certo disso.
Com Jimmy cuidando das lojas, Ian poderia dedicar mais tempo à construção.
Durante algum tempo, Ian acalentara a ideia de vender sua empresa, mas não tivera
coragem. Ela havia sido a razão de viver de seu pai e de seu avô.
Diana também contribuíra nessa decisão. Dissuadira-o da venda, dizendo-lhe que,
se tivessem um filho, talvez ele quisesse seguir as pegadas do avô.
Só que o filho não viera, e Ian sentira-se livre para vender a empresa, mas não o
fizera. Em memória de todos os seus queridos mortos.
Silenciosamente dirigiu-se para seu quarto, subindo com cuidado para não fazer
barulho.
Ao tirar a chave do bolso, em frente à porta, ouviu um som abafado embaixo.
Curioso, espiou pela balaustrada e viu uma mulher alta, de cabelos loiros. Trajava um
vestido de seda vermelho, da mesma cor do chapéu de plumas. Ian reconheceu Molly, a
cantora que alegrava as noites do Frades Menores, curioso nome para uma boate de
reputação algo duvidosa. Molly sabia ser atraente e discreta, e por isso Ian já tomara
alguns drinques em sua companhia em outras vezes que viera a Londres.
Ele ficou tentado a chamá-la, mas algo travou-lhe a garganta. Um par de olhos
verdes e desdenhosos flamejou em sua lembrança. Marissa. "Pode ter as mulheres que
quiser, Ian Tremayne, prostitutas, dançarinas de cabaré. Tenho certeza de que se dá
muito bem com elas." Assim dissera ela, a sirigaita.
Um misto de desejo e fúria assaltou-o. Mas quando se resolveu, finalmente, a
chamar a loira, só sentiu cansaço.
— Boa noite, Molly — disse ele, depois de pigarrear.
— Sr. Tremayne! Que prazer!
Ian sabia que ela esperava ser chamada. Mas limitou-se a dizer, antes de entrar no
quarto:
— O prazer é meu. Boa noite.
Maquinalmente, repetiu os mesmos gestos da véspera. Estava resolvido a se
encharcar de brandy novamente, até conseguir espantar o espectro daqueles olhos cor de
esmeralda.
Os olhos de sua mulher.
Soltou uma praga e tomou um grande gole.

Naquele fim de tarde, Marissa foi madrinha de casamento de Jimmy e Mary.


Os namorados haviam voltado ao hotel na noite anterior, parecendo duas crianças
coradas e felizes, um verdadeiro par de pombinhos. Anunciaram que iriam se casar e que

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os proclamas já haviam corrido. Jimmy cuidara de tudo, assim que pusera os pés em
Londres.
Marissa ficou magoada por eles terem guardado segredo, mas compreendeu que
Mary agira com bons propósitos, não querendo aumentar sua aflição.
Os dois abraçaram-na carinhosamente e declararam que Marissa só poderia ser
feliz ao lado de um homem como Ian.
Ela concordara polidamente, para não despejar água fria no fervoroso entusiasmo
dos amigos.
Gostava de Jimmy e Mary, e consolava-se com a ideia de que era por sua causa
que eles estavam tão felizes. Mas, observando-os, sentira uma pontada de amargura ao
se dar conta, pela primeira vez, de tudo a que estava desistindo.
Os dois estavam no sofá, muito juntos e apaixonados, mãos nas mãos. Havia
tamanha adoração no brilho de seus olhos que Marissa sentira-se uma intrusa. Levantara-
se bruscamente e retirara-se para o quarto, deixando-os a sós.
Na cama, fitando o teto sem ver, Marissa repassara cada minuto do tempestuoso
casamento e pensara muito em Ian. Ele não era do tipo de se sentar a seu lado, fitando-a
amorosamente, como fizera Jimmy.
Ainda assim, não pudera deixar de pensar no contato das mãos de Ian, naquele
beijo que deixara um rio de fogo em seu ventre. E quanto mais se lembrava, mais mole
ficava, num misto de fúria e...
E excitamento.

Naquela manhã, Mary parecera mais bela que nunca. Seus olhos de madona
cintilavam, e não havia mais sinal de olheiras ou palidez.
Escolhera para o grande dia um sóbrio costume de seda marfim realçado por uma
mantilha espanhola de reflexos dourados, herança de sua mãe. Mostrara entusiasmo tão
contagiante que Marissa não resistira e também se alegrara, feliz de ver a amiga tão
mudada. Com risinhos marotos e cúmplices, pediram ao gerente que lhes trouxesse uma
garrafa de champanhe juntamente com o café da manhã; assim, quando Jimmy chegara,
encontrara-as rindo e falando alto.
— Quer dizer, Katherine Mary Ahearn, que você precisou se embebedar para ter
coragem de se casar comigo! — brincara Jimmy, juntando sua alegria à delas.
Mary sorrira e, desinibida, enlaçara Jimmy pelo pescoço, dando-lhe um beijo tão
longo e apaixonado que Marissa precisara pigarrear uma ou duas vezes, a fim de lembrá-
los de que não estavam sós.
Ao cair do dia, altos e felizes, os três haviam rumado para a igreja, onde tudo se
encontrava preparado. A mulher do ministro, uma senhora rosada e sorridente, havia
enfeitado a nave com flores-do-campo e longas velas brancas.
Agora, a cerimônia estava começando. Era uma cerimônia simples, como fora o
próprio casamento de Marissa.
Mas diferente. Tão diferente!
Marissa nunca vira tanto amor, tanto carinho como o que transbordava agora dos
olhos de Jimmy e Mary. Ambos estavam quase beatíficos, envoltos numa luz íntima e
intensa.
Pronunciaram as palavras de praxe baixinho, cheios de fervor e esperança no
futuro. Quando o juiz finalmente disse a Jimmy que beijasse sua mulher, um nó formou-se

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na garganta de Marissa. Ela não sabia por quê; estava acostumada a casamentos e
nunca se emocionara antes. Mas acabou compreendendo que, naquele momento,
testemunhava algo que pensava ser um conto de fadas, algo que julgava não ser possível
existir. E que estava muito, muito longe de seu alcance.
De repente, um pressentimento impeliu-a a olhar para trás.
E um frio percorreu-lhe a espinha de alto a baixo.
Ian Tremayne estava nos fundos da igreja, encostado ao grande pilar de pedra.
Marissa seria capaz de jurar que ele assistira à cerimônia toda.
O sangue fugiu-lhe do rosto. Que estava Ian fazendo ali? Como os encontrara?
Ela havia mentido, uma vez que lhe apresentara Jimmy e Mary como marido e
mulher. Que estaria ele pensando?
Ian achava-se protegido pela fresca penumbra, e Marissa não conseguia ver sua
expressão.
Mas sabia que ele a olhava. Essa certeza gelou-a a ponto de não poder se mover,
quase hipnotizada.
— Sra. Tremayne? — chamou o ministro. — Por favor, queira assinar aqui.
Foi o bastante para a mente de Marissa voltar a funcionar velozmente. O nome de
Mary estava no documento; Ian não poderia vê-lo!
Num piscar de olhos, Marissa atravessou a nave e rabiscou no papel: K. Marissa
Tremayne. Com o canto do olho, percebeu que Ian vinha em sua direção.
Mary entendeu num átimo a aflição da amiga. Ian não podia ver o documento!
Agilmente, correu para recebê-lo, bloqueando-lhe o caminho.
— Sr. Tremayne! — exclamou, com seu melhor sorriso de camafeu. — Que prazer!
— Foi um lindo casamento, Mary — disse ele. — Meus parabéns.
— Obrigada. Se soubéssemos que planejava vir, nós...
— Bem, na realidade eu não planejei nada. A bem da verdade, eu pensei que
vocês já fossem casados.
Mary corou até a raiz dos cabelos.
— Isso foi coisa de Marissa. Ela tentou nos proteger.
— Proteger? De quê?
— Bem, o senhor... você, quero dizer... podia pensar que nós dois... Marissa não
queria que pensasse mal de nós.
— Isso nem me passou pela cabeça, Mary — respondeu Ian, lançando um olhar
enviesado para Marissa. — Nunca iria pensar mal de vocês dois, pode estar certa.
Jimmy estava dobrando atabalhoadamente os papéis, tratando de enfiá-los no
bolso, enquanto pagava o ministro com a outra mão.
Marissa permaneceu silenciosa, de olhos baixos.
Ian cumprimentou Jimmy, que murmurou uma fieira de agradecimentos
desajeitados, terminando por pedir desculpas pelo "mal-entendido".
— Ora, Jimmy, foi um prazer ter assistido à cerimônia. Pena não ter chegado
antes.
— Como nos achou? — perguntou Mary, curiosa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Fui ao hotel para ver Marissa e entregar os papéis para a viagem. Como não
encontrei ninguém, perguntei ao gerente, que me deu o endereço daqui. Já que os
passaportes estão em nome do Sr. Jim O’Brien e senhora, fico contente de ver que os
dois estão casados de verdade.
Ian passou pelos dois e foi ao encontro de Marissa. Não disse nada, mas encarou-
a fixamente, deixando-a perceber sua reprovação.
Marissa sabia que Ian não estava zangado com Mary e Jimmy, e sim com ela, que
havia mentido descaradamente.
Tomou-a pelo braço, em silêncio. Ao toque dele, Marissa teve de se conter para
não lhe dar um tapa.
— Então é o Sr. Tremayne! — exclamou o ministro, jovialmente. — Elizabeth,
minha cara, se soubéssemos que ele viria, poderíamos ter-lhe pedido que fosse
testemunha, em vez de você. Uma pena, mesmo!
Marissa tremeu, imaginando a enrascada em que estaria se Ian tivesse de
testemunhar o casamento de James O'Brien com Katherine Mary Ahearn.
— Eu nem sabia desse casamento, ministro. Minha mulher não me convidou —
retrucou Ian, com uma secura apenas perceptível para Marissa.
— Oh! — fez o ministro, sem saber o que responder.
— Mas foi uma bonita cerimônia, ministro. Estou contente por não tê-la perdido.
Tenha um bom dia.
E, assim dizendo, Ian puxou Marissa, que se deixou levar mecanicamente, odiando
a firmeza com que ele a empurrava para fora.
Jimmy e Mary seguiram os dois.
— Precisamos comemorar, não acham? — perguntou Ian. — O jovem casal
aceitaria um convite para jantar comigo? Afinal, o noivo agora é meu mais novo
contratado!
A boca de Jimmy moveu-se, sem que dela saísse um único som. Mary veio em seu
socorro:
— É muita gentileza sua, Ian. Mas já abusamos demais de sua boa vontade.
— Bobagem! Nada mais natural que um belo jantar de comemoração. Afinal, você
não se casa todo dia, Mary. Vamos, que a noite ainda é uma criança, como dizia o poeta.
Nem eu nem Marissa pretendemos monopolizar vocês por muito tempo, num dia tão
especial. Mas também não queremos que não celebrem condignamente. Não é verdade,
Marissa?
Ela não respondeu. Não sabia se Ian falava sério ou se a provocava com sua
eterna ironia. Os olhos dele continuavam friamente irritados, e seus dedos agrilhoavam-na
como garras de ferro.
— Não é verdade, Marissa? — insistiu ele, impaciente.
— Claro, claro — murmurou ela.
Maldito Ian, sempre dono absoluto da situação, sempre arrogante. Acostumado a
mandar e a desmandar.
Ian fez parar uma caleça e ordenou ao cocheiro que os levasse ao clube Exclusive
que, como o nome indicava, era frequentado por poucos privilegiados, por membros da
família real e tido como o reduto da nata londrina. Esse clube, pequeno e sofisticado,
orgulhava-se de possuir o melhor restaurante da cidade. E o mais caro também,

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Jimmy não conhecia o Exclusive, mas Mary, sim.
— Não, Ian, não é preciso.
— Por favor, Mary — interrompeu-a Ian. — Permita-me prestar a vocês dois essa
pequena homenagem.
Tão logo chegaram, o porteiro acorreu risonho, cumprimentando Ian efusivamente.
O maître não se mostrou menos alegre, sabendo que receberia uma gorda gorjeta do
elegante americano. Cheio de mesuras, conduziu-os a uma saleta privativa, onde a mesa
parecia esperá-los, convidativa, posta para quatro pessoas. O serviço, de porcelana
indiana, brilhava tanto quanto as velas que tremulavam nos candelabros de vermeil assim
como os ricos talheres de prata. Imponentes lambris de carvalho, cuja severidade era
amenizada por vasos de plantas tropicais e orquídeas, ladeavam uma lareira onde o fogo
crepitava.
Ian ofereceu uma cadeira para Marissa, no que foi logo imitado, meio
desajeitadamente, por Jimmy.
— O de sempre, sr. Tremayne? — perguntou o maître.
— Não, Walter, hoje é um dia especial. Creio que vou pedir faisão com uvas e
cerejas frescas. E traga uma garrafa de champanhe, para começar.
Quando a bebida chegou, Ian ergueu a taça para Jimmy e Mary.
— A uma vida de saúde e felicidade!
— Obrigado, meu novo amigo — exclamou Jimmy, pondo-se de pé. — E também
para você e Marissa, uma vida de...
Engasgou, sem saber como continuar o inadequado brinde. A boca de Ian curvou-
se num sorriso lento e mordaz. Ele se virou para Marissa, de taça erguida.
— A uma vida de riquezas. Muita riqueza — fez ele, provocativo. E depois
acrescentou, com displicência: — E naturalmente, saúde e felicidade também.
— Naturalmente — repetiu Marissa com frieza.
Ele se voltou para Jimmy, tirando um envelope do bolso.
— Devo partir amanhã. Tome, aqui estão as passagens, os bilhetes de baldeação
e meu endereço e telefone em San Francisco. Espero que não falte nada. Planejo esperá-
los na estação quando chegarem, mas, caso isso não me seja possível, um carro estará à
espera de vocês, com certeza.
Jimmy agradeceu gravemente.
— Proponho outro brinde, amigos — disse Ian, levantando outra vez a taça. — Ao
sucesso de nossos negócios!
— Tim-tim, tim-tim! — gritou Mary, feliz e corada.
Ian encheu outra vez as taças. Marissa deixou-o encher a sua até a borda, sem
protestar. Estava começando a gostar de champanhe; ele descia suave e quente,
diminuindo sua sensação de desconforto e mal-estar.
E de medo também. Por pouco Ian não vira o nome de Mary naquele malfadado
documento!
Bem, na verdade ele de nada desconfiara. Por isso nem tentara ler o papel. Ian
mencionara uma ou duas vezes que julgava já ter visto Marissa, mas isso era tudo. Nem
lhe passava pela cabeça que ela era o ratinho carvoeiro com quem trombara na rua. Nem
a criada de confiança de sir Thomas. Contudo, nessa noite, seus olhos azuis estavam
permanentemente condenando-a, reprovando-a. Pela menor das mentiras. Que ironia!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Esvaziou a taça sem sentir. Ian encheu-a mais uma vez, com fria polidez. Marissa
baixou os olhos, estudando o fino cristal, girando-o entre os dedos.
O faisão estava delicioso, e a conversa passou a fluir com mais facilidade. Marissa
permaneceu calada a maior parte do tempo, pois Ian ficou trocando ideias com Jimmy a
respeito da Irlanda e do comércio de lã, coisa que Jimmy conhecia muito bem. Tremayne
abordou o tema de San Francisco e contou como era a vida lá; comentou como sua
cidade era parecida com Londres às vezes e falou dos mistérios do fog.
Marissa começou a se afligir. Não queria deixar a Inglaterra, sua terra, para ir para
outra, desconhecida. Sentiu um nó na garganta.
Ian observava-a atentamente, o que a deixava mais desconfortável que nunca.
Começou a brincar com a sobremesa, sem vontade de prová-la.
Finalmente, Ian pagou e todos saíram para a noite fria.
— Vou chamar um coche para você e Mary — disse Ian para Jimmy. — E depois
vou acompanhar Marissa.
Marissa estancou. Só agora se dava conta de que Mary e Jimmy eram marido e
mulher; naturalmente, Ian pensava que os dois passariam a noite juntos. Mas ficou
aterrada com a ideia de se ver a sós com Ian Tremayne.
— Mas ainda é tão cedo! — protestou ela, depressa. — Talvez Jimmy e Mary
queiram ir até minha suíte no hotel, para conversarem mais um pouco, não é, Mary?
— Está querendo beber mais champanhe, Marissa? — perguntou Ian
placidamente.
Marissa não sabia quanto champanhe tinha tomado, mas sabia que a quantidade
não fora suficiente. Sentia-se meio tonta e imaginou que teria dor de cabeça mais tarde,
mas esse era um preço bem pequeno. O champanhe ajudava-a a lidar com Ian.
— Por que não? Champanhe, licor, uma boa conversa — respondeu ela, altiva.
— Eles são recém-casados, minha cara. E não é de mentirinha — acrescentou ele,
acentuando a última palavra.
E, sem mais esperar, chamou um cocheiro. Marissa não teve resposta. Abraçou-se
a Mary, quase chorando, não querendo deixá-la. Ian puxou-a com firmeza, enquanto dizia
a Jimmy:
— Até lá, então. Na América!
— Claro, Ian. Até lá! — gritou Jimmy, já acenando do coche.
— Vamos, Marissa. Temos outra carruagem nos esperando.
— Eu posso ir sozinha, obrigada.
— Não, não pode. Mal consegue andar direito — retrucou ele, impassível. — Além
disso, eu não poderia deixar minha querida mulher sozinha de noite nas ruas de Londres.
Ainda que não lhe pareça, minha cara, sou um cavalheiro.
Ajudou-a subir e depois sentou-se a seu lado, dando o endereço ao cocheiro.
Durante o trajeto não se falaram, mas Marissa estava intensamente consciente da
presença de Ian, sentindo toda a tensão que emanava do marido desde o encontro na
igreja. Embora ele se desdobrasse em atenções e gentilezas, sabia que tudo não passava
de mera polidez.
Assim que chegaram, Marissa preparou-se para se despedir ali mesmo, na soleira
da suíte. Mas foi detida pela firme pressão de Ian, que a obrigou a dar-lhe caminho para
entrar.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ela tirou nervosamente a bela capa de peles, jogando-a sobre o sofá, enquanto
sentia mais que via o olhar penetrante de Ian.
Tentou lutar contra a tontura do champanhe, porque sabia que precisava de toda a
sua percepção para conversar com ele.
Simulou um bocejo e sorriu fracamente.
— Desculpe, já é tarde.
— Ainda há pouco você disse que era cedo.
— Sim, mas mudei de opinião. Estou exausta, realmente.
— Exausta ou não, madame Tremayne, a senhora me deve uma explicação.
— Devo?
— Sobre seus amiguinhos.
— Ora, não há o que...
— Você mentiu para mim a respeito deles.
— Bem, pareceu-me melhor apresentá-los como casados. Sabia que iriam se
casar no dia seguinte. Por que está tão preocupado com eles, afinal?
— Engana-se. Não estou preocupado com eles nem um pouco.
— Então, não vejo razão para discutirmos esse assunto.
Ele se moveu vagarosamente em direção a Marissa. "Como o predador se
aproxima da caça", pensou ela, começando a recuar, tremendo. Um misto de emoções
conflitantes ameaçava apoderar-se dela.
Sentiu que Ian iria encurralá-la, tocá-la e, mais uma vez, deixá-la inteiramente
hipnotizada, a sua mercê. E não sabia se não gostava do que lia em seus olhos azuis...
Ou se esperava por isso mesmo.
Ele veio se aproximando, impassível, enquanto ela recuava até se encostar na
parede. Ian espalmou as mãos na parede, aprisionando-a, sem tocá-la. Mas seus olhos
transpassavam-na.
— Quero saber, minha cara, que outras mentiras anda me contando.
— Mas que bobagem! Não há nada...
— Quero a verdade, Marissa. E vou arrancá-la de você hoje. Agora.

CAPÍTULO VI

— Eu não contei nenhuma mentira para você, Ian! — protestou Marissa,


esquivando-se e postando-se prudentemente longe.
Virou-se de costas e despejou um pouco de licor num cálice de filetes dourados.
Lutando para permanecer serena, perguntou:

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— Quer um uísque?
— Não, quero outra coisa.
— O quê?
— A verdade.
Marissa levou a bebida aos lábios, estudando-o por sobre a borda do cálice.
— Esses seus modos americanos são decididamente abomináveis, Ian Tremayne.
Ele deu dois passos e arrancou-lhe o copo da mão, com brutalidade.
— Será que me casei com uma bêbada, além de mentirosa?
— Bêbada, eu!
— Moça, embebedou-se de champanhe, não percebeu?
— Ora, seu ianquezinho vulgar!
— Isso mesmo, ianque é o que sou. Vocês ingleses esnobes nos chamam assim
desde que ganhamos aquela guerra de 1812.
Ela tentou se afastar, mas Ian agarrou-a pelo braço. Segurou-a com firmeza, sem
machucá-la. Marissa percebeu que desta vez ele estava friamente decidido. Não havia
como escapar mais.
— Vamos conversar como pessoas civilizadas, está bem? — disse ele, forçando-a
a sentar-se no sofá.
Em seguida, sentou-se ao lado. "Perto demais de mim", pensou ela, nervosa. O
olhar de Ian chispava, implacável.
— Vamos logo com essa história, menina. Comece.
Ela levantou os olhos, encontrando os dele, tão voluntariosos e decididos que
Marissa teve vontade de cuspir toda a verdade de uma vez.
Mas não! Não se deixaria intimidar. A verdade agora de nada serviria. Só magoaria
a todos, inclusive a ele próprio.
Jimmy e Mary estavam agora legalmente casados.
E ela estava casada com o homem que tinha a sua frente.
Sacudiu a cabeça, fechando os olhos. Por que tomara aquele licor? Sentia-se
enjoada e tonta. O champanhe já havia feito um belo serviço, e o licor embrulhava-lhe o
estômago agora. E ela precisava desesperadamente ter o controle da situação.
Especialmente naquele momento. Havia uma febre estranha em Ian naquele dia,
ela o sentia. Seus olhos azuis ora espelhavam chamas, ora gelo. Marissa já o vira gentil,
terno, divertido e zangado, todas as emoções misturando-se num mesmo caldeirão
mágico. Mas nunca o vira assim tenso, esticado como corda de violino.
E tudo isso porque ela pregara uma pequena mentira sem importância.
Mal sabia ele que Marissa estava vivendo uma grande, imensa mentira, da qual
não havia escapatória. Ela nada podia fazer, a não ser representar seu papel — o de uma
criança rica e mimada pelo pai.
Encarou-o com firmeza, erguendo o queixo.
— O que eu fiz foi simplesmente mudar a data e a hora do casamento de meus
amigos. Se você dá tanta importância a uma insignificância como essa, o problema é seu.
— Mentiras nunca são insignificantes, Marissa.

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— Mas essa era. Eu sabia que eles iriam se casar, e queria que você... os
aceitasse como marido e mulher. Porque eu não poderia ir para a América sem eles,
entende?
— Pelo visto a vida de vocês três é bastante entrelaçada. Estou curioso com isso.
Ah, os olhos de Ian eram de enlouquecer! Tão escuros, tão azuis, tão exigentes.
Marissa sentia-se imobilizada, sem ação. Desesperada. E não gostava do que sentia. O
calor de Ian passava diretamente para seu corpo; ele tinha um cheiro mesclado de
sabonete e tabaco que a envolvia suavemente. De repente, sentiu vontade de rir e tocar
naquele rosto viril. Como seria a pele? Áspera, macia?
"Foi o champanhe, meu Deus", pensou ela. "Cuidado para não tocar, senão ele
morde." Fechou os olhos e pousou a cabeça no espaldar do sofá.
— Fale-me mais sobre esses seus dois amigos, Marissa.
— Desculpe, mas não posso. Estou muito cansada e gostaria que você fosse
embora. Algum dia eu lhe contarei muitas coisas, tudo o que quiser saber.
— Será mesmo?
— Claro.
— Pois eu não acredito.
Dizendo isso, levantou-se e puxou-a para cima, obrigando-a a ficar de pé.
— Como eu disse antes, Ian, seus modos são abomináveis! — exclamou,
enervada. — Se ao menos você fosse um inglês!
— Sinto muito, não sou. Nem um pouco, aliás. Sou um ianque, lembra-se? E o
mais engraçado, moça, é que me orgulho muito disso.
— Está bem, desisto! Desisto! — gritou ela, num soluço. Por um momento, Marissa
viu tudo preto e cambaleou.
Apoiou-se numa cadeira, ofegando e transpirando muito. Tomou alento e falou:
— O pai de Mary era o vigário de nossa paróquia. Quando crianças, fomos muito
amigas. E logo depois que vigário morreu, ela veio morar conosco. É uma história muito
simples e banal, Ian Tremayne!
A última frase veio carregada de desprezo.
— E Jimmy?
— E Jimmy nada, meu senhor. Mary conheceu-o e se apaixonou, eis tudo. Não há
mistério, sinto desapontá-lo.
— Pois eu acho que há, sim, um grande mistério em sua vida, madame Tremayne
— insistiu ele calmamente.
— Sinto muito, não posso inventar um mistério em minha vida só para satisfazê-lo.
— Quero saber que outras mentiras você andou me contando.
— Eu já disse.
— E eu já avisei — cortou ele, cheio de fúria.
Marissa ergueu o queixo e passou por Ian, resolvida a deixá-lo ali plantado. Mas a
tontura voltou, e o chão fugiu-lhe dos pés.
No instante seguinte estava caindo sobre Ian.
Desavisado, ele perdeu o equilíbrio e ambos foram cair no sofá, enquanto ela
tentava salvar a situação firmando-se no pescoço de Ian. Quando percebeu, estava meio

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sentada no colo dele... enlaçando-o. Paralisada de pânico, encarou os olhos azuis,
incapaz de dizer qualquer coisa. Queria se levantar, desvencilhar-se daquele abraço
inesperado, mas não podia. Parecia estar envolvida pela estranha mistura de aromas que
emanava de Ian, parecia estar mergulhada num mar azul-escuro que a hipnotizava e a
levava para longe, muito longe. O contato de Ian queimava-a por dentro. Um tremor doce
percorreu-lhe as entranhas. Tentou dizer alguma coisa, mas não conseguia mover os
lábios.
De repente, teve a impressão de que Ian também queria falar. Mas ele nada disse.
O que ele fez foi dar um gemido rouco, enquanto inclinava a cabeça em direção a ela.
"Ele vai me beijar de novo!", pensou ela, aterrorizada. "Preciso me levantar, preciso sair
daqui!"
Mas ela esperou o toque da boca masculina. As sensações desencontradas, suas
mais recentes amigas, vieram todas de roldão, envolvendo-a em doce torpor. Já sentira o
beijo de Ian antes. E iria senti-lo novamente, agora. Ia ser bom, ela sabia.
Foi o champanhe. Ou o licor? Ela mal conseguia pensar.
Ou talvez...
Talvez fosse apenas Ian.
E os lábios dele tocaram sua boca, primeiro com brandura. Depois o desejo
imperioso cresceu, exigente. E a boca de Ian, quente, úmida, sorveu o beijo com
voluptuosa delícia, invadindo, explorando, provocando novas e desconhecidas sensações
em Marissa. Ela sentiu necessidade de tocá-lo, como acontecera antes; mas desta vez
não lutou contra sua vontade. Abriu os botões da camisa de Ian e acariciou-lhe o peito,
sentindo a firmeza dos músculos. Pressionou o corpo contra o dele, respondendo
instintivamente à avassaladora sensualidade de Ian. Uma vozinha avisava-a de que ela
estava se entregando ao próprio inimigo. Mas a lucidez desaparecera. Só conseguia
sentir a língua de Ian, a boca de Ian sobre a sua, a pressão quente de suas mãos.
Os lábios dele se afastaram.
— Então, minha senhora, que mentiras me contou?
— Nenhuma! — explodiu ela, desvencilhando-se furiosa.
A cabeça continuava a rodar incessantemente. Marissa tentou se levantar, sem
muito sucesso.
— Nenhuma, estou dizendo! Estou cansada, exausta! E você fica me dizendo que
nós podemos viver como amigos na mesma casa... Por favor! Estou cansada demais.
— Está bêbada demais.
— Como se champanhe fosse água para você!
— Não é. Mas eu não bebo quando tenho medo.
— Medo? — escarneceu ela. — Não tenho medo de você!
— Tem medo de alguma coisa, eu sei. Portanto, tem medo de mim, sim, senhora.
Finalmente Marissa conseguiu ficar de pé. Apontou para a porta, quase histérica:
— Falaremos disso outro dia, Tremayne! Agora suma daqui!
— Não, nós vamos conversar agora. E, cuidado, moça, para nunca mais me
mostrar a porta!
Novamente, Marissa sentiu a tontura ameaçadora. Deixou-se pender molemente
no ombro de Ian, sem forças para lutar.
— Por favor, não estou aguentando mais.
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— Vai aguentar. Isso não passa de um truquezinho barato.
— Não — murmurou ela. — Não é truque.
Ele a fez sentar-se mais uma vez. Debruçou-se sobre ela para falar, mas Marissa
percebeu que, pela primeira vez, ele estava preocupado. Ela dissera a verdade; sentia-se
realmente tonta e fraca, não podendo manter-se em pé. Mas pensou que talvez esse
fosse o melhor jogo agora.
Fitaram-se por um longo momento, sem nada dizer. A mão esquerda de Ian
enlaçava-a pela cintura, enquanto a direita repousava em seu ombro. O rosto dele, grave
e tenso, estava perto. Marissa aspirou o aroma de tabaco e sabonete, sem poder tirar os
olhos dos dele. Uma torrente de emoções tomou conta dela novamente, aquecendo-a. Os
olhos azul-escuros fitavam-na com intensidade.
— Ian, eu... — começou ela.
Mas os lábios dele já desciam em direção aos seus. Desta vez o beijo não foi
delicado. Não, nem um pouco delicado.
Foi um beijo desesperado, duro e ardente. Ainda assim...
Ainda assim havia um quê de doçura e sedução, misturado a um toque de raiva.
Ele a segurou pelos cabelos, apertando-a contra si, enquanto a boca buscava, forçava a
entrada. O coração de Marissa começou a bater furiosamente. Não sabia se o fogo que
sentia provinha do champanhe ou do beijo de Ian; só sabia que havia um fogo em seu
sangue, envolvendo-a no mesmo misto de doçura e raiva.
E paixão.
Ela queria protestar, livrar-se daquela prisão dourada; em vez disso, apartou os
lábios, dando livre entrada à língua de Ian, sentindo-a penetrar, explorar, despertando-lhe
uma forte excitação. Quando percebeu, sua própria língua buscava a dele, numa dança
sensual. O desejo chegava em ondas, unindo-os no mesmo frêmito de paixão.
Marissa sentiu o peito dele palpitar sob suas mãos. Devia empurrá-lo, mandá-lo
embora... Mas apertou-o contra si, arrebatada por um redemoinho vertiginoso.
Finalmente, Ian se afastou um pouco, fitando-a. Lá estava aquele olhar de volta, misto de
raiva e frieza, sem nenhum traço de ternura ou piedade. Furiosa, Marissa conseguiu
empurrá-lo, como havia planejado minutos atrás.
— É hora de o senhor dar o fora daqui, Tremayne! — conseguiu pronunciar,
limpando os lábios com as costas da mão, como se quisesse lavá-los com soda.
Ele não se moveu.
— Ainda não tenho a resposta que quero. Ou será que tenho?
— Não sei do que está falando. Por favor, retire-se.
— Você é uma mentirosinha vulgar.
Ela ergueu os braços, em desespero.
— O que quer agora, Ian?
— Esse beijo foi longe de ser inocente.
— Não fui eu que comecei.
— Sim, mas você correspondeu. E como!
— Eu só estava querendo ser gentil.
— O quê...?!
Ian deu uma sonora gargalhada.

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— Gentil! — imitou ele, com uma careta. — Ha! Essa é boa, mas eu nem consigo
achar graça. Por falar nisso, com quantos homens você demonstrou toda essa... essa...
gentileza?
— Você é insuportável.
— Não, sou apenas um americano.
— Pensei que fosse a mesma coisa.
— Oh, oh! — fez ele, pondo a mão no coração num gesto dramático. — Agora,
milady, conseguiu ferir meu coração!
— Não, Ian. É você que consegue ferir os outros. E bem fundo.
— Quero a verdade, minha cara, só isso.
A voz de Ian permanecera jovial, mas havia um toque sombrio de perigo. Marissa
voltou-se, cerrando os punhos.
— Eu não menti! Bom Deus, ajudai-me! Estou-lhe dizendo.
Interrompeu-se ao ver que ele vinha de novo em sua direção.
Aterrada, esperou.
— Eu... eu não menti para você! — repetiu com voz rouca.
Ele colocou as mãos fortes sobre seus ombros. Era demais!
Iriam começar tudo de novo? Marissa encontrou forças para golpear o peito de Ian
com os punhos fechados.
— Vá para o inferno, Ian Tremayne! Deixe-me em paz! Você quer sua vida, não é?
Pois bem, eu quero meu sossego!
Mesmo enquanto falava, Marissa sentia a boca queimando ainda dos beijos; sentia
o frêmito da intimidade que haviam partilhado. Ela o odiava, e mesmo assim queria tocar-
lhe o rosto. Queria sentir os contornos daquele queixo forte e bem delineado. Queria
suavizar os vincos de sua testa, para vê-lo de novo sorridente e terno.
— Terá seu sossego — rugiu ele, fazendo tremer os cristais — quando tiver
respondido a minha pergunta! E, antes que eu me esqueça, vá para o inferno você!
— Você vai embora agora!
Mas Marissa não estava bem, realmente. Começou a surgir um zumbido no ouvido,
e novamente ela teve a sensação de estar desmaiando. Valente, tentou ficar de pé
sozinha, mas em vão. Foi o tempo de Ian agarrá-la com um braço firme.
— Ian, por favor — disse ela, com voz incerta.
— Sim, minha querida, eu sei, vai desmaiar de novo. Pobre inocentinha! É o
champanhe, não é? Sei, sei, você só quer ficar sozinha para estar nova em folha na
mesma hora. Longe das garras de seu cruel tutor... e marido.
Ela precisou se agarrar firme ao ombro dele para não cair.
— É verdade, é o champanhe. Eu não devia ter bebido tanto.
— O champanhe não tem nada a ver com isso. Não está tão bêbada a ponto de
não poder desempenhar o papel que quiser comigo. Eu quero a verdade! A verdade!
— Mas que verdade? — soluçou ela.
Estava de novo nos braços dele. Ian examinava-a com olhos argutos,
perscrutando-a. Fascinada, ela também o encarou, observando avidamente cada curva

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
de seu rosto. O tremor voltou, percorrendo-a toda. Era-lhe difícil admitir, mas estava
querendo que ele a beijasse de novo.
— Ian — murmurou, sem completar a frase.
De repente ele sorriu. Um pouco de raiva esvaiu-se de sua expressão.
— Talvez seja melhor eu descobrir essa verdade sozinho, afinal.
"A verdade sobre você, Marissa", pensou ele. "Você é a inocente que finge ser? É
virgem?"
Havia um jeito de saber se ela já tivera um amante. O sangue fervia-lhe nas veias,
latejando. Ian subitamente descobriu que saber a verdade sobre Marissa era uma
necessidade imperiosa. Saber se ela já tivera um amante. Nunca desejara tanto uma
mulher como agora.
— Não consigo arrancar uma só palavra de você, mulher, portanto... — "Portanto,
meu Deus, eu vou arrancar outra coisa. Aquilo que todo marido recebe de sua mulher."
Iria aproveitar o fato de que o achava abominável, e portar-se como um. E, uma vez que
ela culpava o champanhe, ele poderia muito bem culpar o uísque. Estava farto, exausto
dessa brincadeira!
Suspendeu Marissa no colo com rudeza, ignorando seus esperneios, Carregou-a
como um sonâmbulo para o quarto, sem se incomodar em acender a luz. Marissa sabia o
que estava para acontecer. Era insano! Tinha de gritar, debater-se o mais que pudesse,
tinha de gritar... Mas não fez nada disso. Insano também era o arrepio de excitação que
lhe percorria o corpo, o desejo avassalador que a possuía.
E a ele.
— Por favor, solte-me!
— É exatamente o que tenciono fazer, moça.
Com a mesma rudeza determinada, atirou-a na cama. Depois sentou-se a seu
lado, arquejando. Mas não de cansaço. Raios de luar brincavam no quarto escuro, mal
iluminando o rosto tenso de Ian.
Ele olhava os cabelos ruivos, espalhados desordenadamente sobre as cobertas.
Muito devagar, Ian tirou os últimos grampos que ainda prendiam parte deles. Quando as
mechas cascatearam livres, ele segurou a cabeça de Marissa com as duas mãos,
enterrando os dedos naquela massa sedosa.
— Terra e fogo — murmurou ele, rouco. — Paixão, tensão, vida. Que Deus me
perdoe, porque eu nunca me perdoarei!
Essas estranhas palavras suscitaram um mal-estar em Marissa, mas o beijo já
varria qualquer vestígio de lucidez de sua cabeça. A boca de Ian, sequiosa, apoderava-se
da boca de Marissa, com sofreguidão. A língua dele ora explorava os contornos dos
lábios vermelhos, ora mergulhava fundo.
Ian começou a soltar, um a um, os pequeninos botões de pérola da elegante blusa.
E Marissa mal percebeu um leve ruído de seda quando Ian atirou a blusa no chão.
Beijos suaves, pequenos e molhados começaram a descer por seu pescoço
acendendo a chama de um doce desejo. Doce fogo proibido.
Era isso que as mulheres loucamente apaixonadas sentiam, então. Perdiam o
senso e a razão, entregando-se à fúria do desejo. Mas Marissa não estava loucamente
apaixonada, tinha certeza disso. Estava alerta.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Não, ela não estava apaixonada. Fascinada, sim, como sempre ficava em
presença de Ian Tremayne. Fascinada e zangada. Desconfiada, cautelosa e fascinada.
Como um passarinho diante da cobra.
Provocada, seduzida, fascinada.
Tomada pelo feitiço daqueles olhos azuis, pelo toque quente e macio de suas
mãos. O aroma sutil e masculino penetrava-lhe as narinas, despertando fogo e fome em
sua alma. Estava entregue e abandonada ao carinho daquelas mãos poderosas, à força
suave dos dedos que não cessavam de tocá-la no rosto, no pescoço. Sentia-se compelida
a mergulhar as mãos nos cabelos pretos, a ajeitar aquela mecha teimosa que brincava
sobre a testa de Ian. Estava consciente do que fazia, de onde estava, e para onde essa
nova intimidade a levaria. Estava errado fazer isso.
Mas estava certo também. Alguma coisa despertara em seu corpo. Alguma coisa
secreta e bela, talvez parte dos sonhos românticos que Mary lhe revelara um dia, sonhos
em que nunca acreditara. Nas sombras do quarto pairava algo instigador e excitante, que
crescia e se avolumava, que não podia ser negado ou ignorado. Ela queria abraçar
aquele homem, apertá-lo nos braços, fazer de conta que ele a amava. Experimentar um
pouco dos sonhos que Mary lhe contara.
Mas não era um sonho. Lutou para manter essa ideia na cabeça, mas sentia-se
drogada, embriagada de desejo. Sabia que caminhava para um abismo, mas parecia-lhe
impossível resistir à onda de fogo que a tomava. Precisava detê-lo, dizer-lhe que aquele
casamento não era como os outros, lembrá-lo de que...
Que Ian não gostava dela.
Arquejou levemente quando os dedos de Ian começaram a soltar os colchetes do
espartilho. Em segundos, seus seios, estavam livres e enrijecidos pelo desejo. E quando
Ian mergulhou a cabeça entre eles, Marissa suspirou. Tinha deixado a coisa ir longe
demais. Não, não tinha deixado; para ser honesta, tinha provocado e encorajado essa
situação. Precisava deter Ian agora.
Ele percebeu um primeiro sinal de protesto na reação de Marissa, mas acreditou
ser mais uma provocação dela, mais um lance do jogo. Não entendia a essência de sua
súbita raiva, mas sabia que Marissa o havia logrado de alguma maneira que não
conseguia alcançar.
Um amante, talvez? Sim, talvez fosse isso. Ela tinha um amante. Casara-se com
Ian para receber o dinheiro, e na certa planejava até levar o amante para a América.
"E daí?", perguntava-se ele. Não deveria ficar tão aborrecido; antes, seria mais
lógico mostrar-se compreensivo. Não amava Marissa, não podia dar-lhe ternura ou
carinho; nem mesmo queria ficar ao seu lado.
Mas havia alguma coisa a mais. Pelo menos naquela noite. Havia aquele eterno
desafio nos olhos verdes e enganadores; havia as chamas vermelhas que brincavam nos
cabelos. Havia o atrevimento da voz, sua tremenda presença de espírito, seu riso, sua
irritação. A covinha no queixo. E agora... a maciez da pele, o doce gosto de champanhe
nos lábios, o sutil perfume de seu corpo. Sim, o perfume.
Gemeu alto, tomando um seio em cada mão, sentindo a maciez de cetim sob a
palma. Suavemente cobriu com a boca o bico rosado do seio, contornando-o com a
língua. Depois passou para o outro seio, enquanto suas mãos não cessavam de acariciar
o colo, os quadris. Mais uma vez ouviu um começo de protesto escapar dos lábios dela,
num murmúrio abafado. Mesmo protestando, dela emanava um fogo de desejo que o
excitava e provocava. E os lábios dele buscaram os dela, ávidos.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Levou os dedos para mais baixo, sobre a fina seda das meias, acariciando-a
enquanto continuava a beijá-la. Depois, suavemente, foi levando a mão para cima, até
achar a pele nua e macia das coxas. Novamente um protesto subiu aos lábios de Marissa,
mas ele a silenciou com beijos quentes. Experiente como era com roupas femininas, logo
conseguiu desatar os laços que prendiam as meias. E, finalmente, a calcinha rendada,
leve e transparente.
Excitado, Ian livrou-se das próprias roupas e debruçou-se nu sobre aquele corpo
ardente, fremente de expectativa. Marissa cessara de protestar, mas tremia toda sob suas
mãos. Sentiu a veia da garganta dela pulsando forte sob sua língua, quando a beijou. E
quando ele se ergueu um pouco, a fim de fitá-la, os olhos dela eram duas esmeraldas,
dois mares onde ele teve vontade de mergulhar para não mais voltar. Os lábios dela,
entreabertos e molhados de beijos, esperavam. E os cabelos! Majestosos, flamejantes,
circundando os olhos assustados e desamparados.
De repente Marissa pareceu tomar consciência dele, de seu olhar carregado de
desejo.
— Ian, eu não tinha a intenção...
Ele não sabia qual era a intenção de Marissa, mas a dele era clara: não deixá-la
falar. Havia algo de místico no ar, que Ian não queria quebrar.
Mergulhou os dedos nos cabelos vermelhos e longos, forçando-a a calar-se com
outro beijo.
E quando sua língua invadiu a boca de Marissa, Ian mergulhou fundo no corpo
dela, impelido por todo o seu desejo. De repente ele parou, atônito.
Nem mesmo seu beijo pôde conter o grito de dor de Marissa. Lágrimas afloraram a
seus olhos, mais assustados que nunca, Ian sentiu-se gelar.
Para Marissa, a magia da noite esvaíra-se juntamente com as sombras místicas do
quarto. Os sonhos de Mary já não existiam, Ian estava sobre ela, rígido e estático. Mas
não era sonho, era um homem de carne e osso. Um tinha sido levado pelo
arrebatamento, tanto quanto o outro. Nada mais.
A mão de Ian aproximou-se do rosto de Marissa e acariciou-o de leve, limpando as
grossas lágrimas que caíam.
— Marissa!
Mas ela não queria piedade nem compaixão. Não agora.
— Por Deus, pare, Ian! Não aguento mais!
Ele ficou limpando as lágrimas dela, com doçura inesperada e desconhecida,
passando os dedos de leve em seu rosto. Depois seus lábios vieram, gentis e ternos,
beijar suas pálpebras. Marissa pensou em gritar, em empurrá-lo.
Mas Ian não abandonou seu corpo. Beijou-a sem pressa, devagar e docemente.
No rosto, no pescoço, nos lábios, na orelha, novamente nos lábios.
E recomeçou a se mover.
Devagar. Tão devagar que ela mal percebia suas arremetidas.
Apreensiva a princípio, Marissa foi relaxando, e a dor foi se evaporando aos
poucos. E também aos poucos a magia começou a emergir.
E cresceu, avassaladora. Marissa afogou-se num remoinho de sensações, à
medida que seu excitamento aumentava. Estranho excitamento que a deixava lânguida e
abandonada, e ao mesmo tempo fazia um vulcão explodir em seu ventre. Era lava

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
candente que a percorria em ondas o corpo todo. Instintivamente, sem perceber, Marissa
pôs-se a gemer e a mover-se também, seguindo o ritmo de Ian.
E a lentidão do ritmo cedeu lugar a movimentos frenéticos, rápidos e exigentes.
Marissa chorava, soltando gemidos, não mais de protesto, mas doces e meigos, perdida
que estava naquele turbilhão de sensações deliciosamente proibidas.
Ian a fez erguer um pouco os quadris, ao que ela cedeu docilmente, ajustando-se
ao corpo dele. Os movimentos foram crescendo mais, ondulantes, numa busca contínua.
Numa busca que os levou à exaltação dos sentidos.
Ela percebeu que Ian estremecia e acompanhou-o nesse momento em que reinou
apenas o prazer indescritível, avassalador.
Quando ele se afastou, Marissa deu-se conta do quanto fazia frio. Tentou se cobrir,
mas Ian fitava-a com expressão estranha, a cabeça apoiada num braço.
A penumbra do quarto não foi suficiente para esconder o brilho dos olhos
penetrantes e sérios.
Subitamente cônscia de sua nudez, Marissa virou-se para puxar uma coberta
qualquer. Sua mente era castigada por uma tempestade de emoções. Queria odiar aquele
homem, mas não conseguia. Amarga, pensou no que acabara de fazer e sentiu o coração
dilacerado.
— Por que você não me disse?
Marissa estremeceu com a voz de Ian, áspera e severa. Ele estava zangado. Era
demais!
— Dizer o quê? — replicou ela, sem se virar.
— Eu pensei...
— Pensou!
Ele acariciou seu ombro. Marissa queria ter coragem de se virar e encará-lo, mas
estava tensa.
— Desculpe, Marissa.
— Não há do que se desculpar.
Ian deixou escapar uma exclamação de impaciência.
— Eu não a forcei, Marissa. Eu...
— Não! — gritou ela, chutando os lençóis para se levantar. — Você não me forçou.
Marissa tentava se desvencilhar do emaranhado de roupas que tinha a seus pés
quando percebeu que Ian se levantara e vinha em sua direção. Rapidamente puxou o
lençol da cama e enrolou-se nele, recuando, ainda sem olhá-lo. Tentou passar, mas Ian
não deixou, segurando-a pelo braço.
— Aonde pensa que vai?
— Eu vou embora.
— Sou bobinha. Este quarto é seu.
Marissa puxou o braço, com um repelão violento. Ian soltou-a imediatamente, para
surpresa dela. Desavisada, Marissa perdeu o equilíbrio e começou a cair. Ian acudiu a
tempo e... lá estava ela de novo nos braços dele. E os olhos azuis mergulharam nos dela.
— Sei, sei. É o champanhe, não é? — perguntou ele, brandamente.
— Oh, deixe-me me paz!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Vou deixar.
Carregou-a para a cama, onde a colocou com cuidado.
— Durma bem — disse ele.
— Dormir? Como posso dormir agora?
— Você queria ficar sozinha desde o começo. Aproveite a solidão, minha querida.
E trate de dormir.
Dizendo isso, começou a se vestir.
— E você tem de ir embora. Agora.
— Não só agora, como depois também. Meu navio sai daqui a pouco, assim que
amanhecer. Lembra-se?
— Se eu tiver sorte — sibilou ela —, esse navio vai afundar com Ian Tremayne a
bordo.
Houve um silêncio breve. Ian apertou o nó da gravata e sorriu.
— Ah, mas a sorte não parece estar do seu lado já há algum tempo. Não é
mesmo?
E sem esperar resposta, girou nos calcanhares e saiu.
O silêncio caiu pesado sobre Marissa. E sobre sua solidão.
Sem que ela o percebesse, as lembranças voltaram-lhe à mente, vividas e nítidas.
Fechou os olhos, revivendo o toque mágico de Ian. O beijo ardente de Ian.
Arrepiou-se de prazer ao se lembrar da sensação de êxtase que alcançara.
Lembrou-se de seus gemidos, do modo como seus corpos se enlaçaram, perfeitamente
ajustados. Mas Marissa não se conformava de ter se entregado daquela maneira.
— Eu tentei protestar! Tentei fugir!
Mas sabia que na realidade não fora bem assim. Talvez não conseguisse mesmo
expulsá-lo da suíte, mas certamente teria conseguido detê-lo na hora de irem para a
cama.
Então foi o champanhe!
Não, essa era uma desculpa frágil demais. Podia servir para os outros, não para
ela.
Marissa sentiu vontade de gritar, de agredir aquele americano. Ah, como gostaria
de odiar Ian Tremayne! Escondeu o rosto entre as mãos e deu vazão ao pranto.
Chorava porque sabia que não odiava Ian.
Porque almejava coisas que nunca imaginara querer antes.
Um lar. Um marido de verdade. Felicidade.
E mais.
Ela queria amor.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
CAPÍTULO VII

Sozinho na sala, Ian serviu-se de uma dose generosa de brandy antes de ir para
seu hotel. A bebida, desta vez, não o confortou. Tomou outro gole, deixando que ele
queimasse a garganta e descesse, quente. Sentia-se perdido e solitário. Afundou na
poltrona, praguejando.
Que demônio se apossara dele, afinal?
"Ora, muito simples. Você queria saber se ela estava mentindo", censurou-se ele.
"Queria saber a verdade sobre o que sir Thomas havia contado. Sobre um suposto
amante da filha, que poderia arruinar-lhe a vida."
E mesmo que Marissa tivesse lhe contado uma porção de mentiras, definitivamente
não mentira a esse respeito. Nunca dormira com o namorado, se é que tivera um. Nem
com qualquer outro.
"Então, Ian Tremayne, agora tem a resposta. Está satisfeito?"
Não, não estava. Porque havia descoberto, tocado e degustado algo que jurara a si
próprio que nunca mais experimentaria. Entrara em reinos proibidos, e não estava nada
satisfeito. A culpa era da sirigaita inglesa. Ela o enganara direitinho, levara-o no bico de
novo. Dane-se ela! Danem-se todas as inglesas do mundo!
Seus dedos fecharam-se com tanta força em volta do copo que este se desfez em
pedaços. Maquinalmente começou a recolher os cacos, sem perceber que estava
sangrando.
Jogou os pedaços de vidro no cesto e então viu o sangue. Praguejou de novo, com
raiva, enquanto a dor funda continuava a atormentá-lo. Dor no coração.
Havia traído Diana e a si mesmo.
Para o inferno com aquela sirigaita. Ela praticamente o forçara!
Mas, no fundo, sabia que a culpa não era de Marissa. Ian fechou os olhos, lutando
contra a violenta dor de cabeça que o atacara subitamente.
Não seria justo jogar a culpa nela.
Ian aspirara o delicado perfume de Marissa; havia provado a maciez de sua pele. E
caíra de quatro por um belo par de olhos de fogo verde. Se alguém tinha a culpa, era ele,
de novo. Porque desejara possuir Marissa a qualquer preço. Essa era a verdade.
De nada adiantava dizer para si mesmo que ela era sua mulher, perante Deus e
perante a lei.
Mas Marissa lhe dera algo que ele buscava incessantemente: o esquecimento. Isso
era algo raro para Ian Tremayne. Os momentos que havia passado com Marissa tinham
agido como bálsamo em suas velhas feridas, que nunca cicatrizavam. E ele sentira um
prazer intenso, delicioso, que pensava ter perdido para sempre. Sentia-se bem, mais
relaxado do que nunca. Há quanto tempo não se sentia assim? Ele e Marissa haviam feito
amor em meio a uma tempestade de emoções.
Talvez até conseguissem viver bem, em paz e...
Ian soltou um palavrão grosseiro, passando as mãos nos cabelos.
"Nada disso, Tremayne. Você não vai viver bem e em paz com ninguém."

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O fio de seu pensamento foi interrompido quando ouviu um farfalhar de tecidos.
Marissa saíra do quarto, completamente vestida, fresca como uma rosa.
Ela havia trocado de roupa; usava um traje branco, muito singelo, bordado com
delicadas flores azuis. Sua silhueta elegante ajustava-se admiravelmente na saia longa e
estreita. Puxara os cabelos para trás, de modo e realçar a gola alta, chinesa. Parecia
bem-disposta, mais bonita que nunca. Ian mal conteve um sorriso ao notar que o
petulante queixinho estava mais erguido que de costume. Sim, estava diante de uma
rainha altiva, que não se deixava abater com o que quer que lhe acontecesse. Um misto
de admiração e ciúme se insinuou em Ian. Ciúme, sim. Qualquer homem ficaria tonto com
tanta beleza e sensualidade.
Mas sua sensualidade não era proposital, agora ele o sabia com certeza.
Marissa abriu a boca para falar, mas seus olhos baixaram assim que ele a fitou.
— Meu Deus! Sua mão... O que houve? — perguntou ela, parecendo ter se
esquecido do que ia dizer.
Grossos pingos de sangue caíam da mão de Ian, tingindo o elegante tapete persa
da suíte. Ele ergueu o braço, sorrindo com descuido.
— Oh, isto. Não é nada, Marissa.
Ela porém se adiantou e pegou-lhe a mão para examinar. O toque de Marissa era
eletrizante, quente, e Ian teve vontade de sair correndo.
Por que diabos ela não estava brava? Minutos atrás não o expulsara do quarto,
cheia de irritação?
Agora estava ali, tocando-o suavemente. Mulheres!
De repente, ele entendeu. Marissa viera vê-lo porque estava, efetivamente,
zangada. Furiosa. Mas sua raiva se dissipara ao ver a mão machucada. Que criatura
complexa e inesperada! Fria como gelo, dura como pedra, quando estava determinada a
abrir seu caminho. Suave e terna em outras ocasiões.
Embora Ian soubesse de sua inocência em relação a certas coisas, não tinha tanta
certeza quanto a outras. Ainda estava convencido de que ela escondia algum segredo.
Muitas e muitas vezes surpreendera-a baixando os olhos, como que com medo de revelar
seus mistérios.
Mas naquele momento o olhar de Marissa não tinha mistério nenhum. Não havia
raiva nele, nem medo. E, pela primeira vez, também não havia desafio.
— Meu Deus, foi um corte e tanto!
— Não é nada, já disse.
Ela pareceu não ouvir. Dirigiu-se para o quarto, de onde voltou com uma tira de
gaze e uma garrafinha.
— Acho que vou ter de dar uns pontinhos no ferimento — disse, preocupada. —
Por favor, quer me dar sua mão?
— Mas eu já disse que não!
— Vai doer, mas não muito. Uma ferroada de abelha, mais ou menos. Vamos, Ian,
deixe de ser criança, deixe-me ver sua mão. Ou prefere ganhar uma infecção? Febre?
Ficar de cama um tempão?
Ian acedeu, rangendo os dentes. Maldita inglesa, agora queria tratar dele. Que
outros truques usaria?

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— Se estava tão ansiosa para me ver afundado no meio do mar, por que não troca
isso por uma infecção? Vai se livrar de mim do mesmo jeito.
— Seria um processo muito lento. E de pouca dramaticidade — completou
Marissa, inclinando-se sobre o ferimento e tocando-o de leve.
— Nem tanto. Eu poderia morrer aos poucos e, no último momento, você poderia
acorrer ao meu leito de agonia, segurar minha mão até o fim. E todos veriam que mulher
virtuosa e generosa eu tenho.
— É... mas eu teria de ir até os Estados Unidos para isso. Se você desaparecer no
mar, poderei ficar por aqui mesmo.
— E o dinheiro iria todo para seu rico bolsinho.
Marissa ergueu os olhos, subitamente alerta.
— Se você... se você viesse a... a falecer... minha herança viria para mim?
Ele sorriu.
— Está planejando meu assassinato agora?
— Talvez — replicou ela, passando mais iodo do que realmente era necessário.
Desprevenido, Ian deixou escapar um gemido acompanhado de uma praga.
— Ora, ora, Ian Tremayne. Passa-se iodo em ferimentos de crianças todos os dias
e nenhuma faz esse estardalhaço!
— Acho que você está querendo me matar.
— Hã... morte por intoxicação com solução de iodo. Pode ser interessante.
Marissa enfaixou a mão de Ian e prendeu a gaze com destreza. Ele examinou o
curativo, algo surpreso com a habilidade e rapidez de Marissa. Como ela aprendera a
fazer isso no castelo de sir Thomas? Tratar de feridos era o tipo de ensinamento que
mocinhas mimadas e ricas não recebiam. Ian fitou-a, notando que ela enrubescia. Afinal,
havia poucos minutos eles tinham desfrutado a maior intimidade que pode haver entre
dois seres.
Marissa virou-se para arrumar a desordem que havia feito. Mas Ian percebeu que o
pensamento de ambos tinha seguido o mesmo caminho. E percebeu também, com
desgosto, que uma onda de calor o envolvia quando se lembrava do prazer que sentira ao
possuir Marissa. Pensamentos importunos começaram a atormentá-lo. Pensamentos
doces, perturbadores. Lembranças do etéreo gozo que tivera com ela. Da maneira como
ela correspondera a seus beijos, embora não fosse uma mulher experiente nisso. Quando
ela ganhasse experiência... daria uma mulher e tanto.
Bonita, elegante, inteligente. Talvez, com o tempo...
Lá estava ele de novo fantasiando. Não, censurou-se, não haveria uma nova
chance para ele.
Apertando os lábios, contrariado, Ian se levantou. Marissa recuou instintivamente,
e depois sorriu, embaraçada. Ian gostou disso; melhor ficarem bem separados agora. As
coisas estavam ficando perigosamente fáceis entre os dois. O riso viera com naturalidade,
as brincadeiras também. E quando ela fizera o curativo, um laço se formara entre eles.
Um laço indesejável para Ian. Era preciso desatá-lo, e depressa.
— Marissa, peço-lhe desculpas pelo que se passou esta noite. Meus modos foram
abomináveis. Mas você não precisa ter medo, garanto. O que aconteceu hoje nunca mais
se repetirá.

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Embora ele tivesse piscado, sua expressão não se alterou. Era como se não
tivesse ouvido Ian.
— Marissa, você me escutou? Eu lhe pedi desculpas.
— Ouvi.
— E então?
— Que diferença faz? O mal já está feito.
— Mas eu disse que...
— Não me interessa o que você disse. E não tem importância. Mas, afinal, você
não vai embora?
— Eu já fui, minha cara. Deixei-a sozinha em seu quarto, lembra-se? Você se
arrumou toda e me seguiu até a sala.
— Bem, eu queria saber se você tinha partido.
— Agora já sabe que não.
Ian não conseguia compreender. Ele estava ansioso para ir embora dali, minutos
atrás. E agora... agora não queria mais. A danada da inglesinha parecia enfeitiçá-lo.
— É quase manhãzinha, Marissa. Acho que vou ficar e esperar o dia clarear.
Londres pode ser perigosa de madrugada.
— Mas... não pode ficar aqui!
Ele arqueou as sobrancelhas, desafiadoramente. Os olhos de Marissa se
estreitaram de raiva. Ambos sabiam que ela não teria forças para expulsá-lo dali.
Houve um silêncio tenso, enquanto ela andava de cá para lá, o vestido farfalhando
suavemente.
— Diga-me uma coisa, Ian...
— Pois não?
— É verdade mesmo que, se você morrer afogado... ou por infecção... é verdade
que eu recebo a herança? Toda ela?
Ele sorriu com ironia.
— Assim parece.
Súbito, agarrou Marissa pelo pulso.
— Gostaria de acrescentar um assassinato a seus outros pecados, minha querida?
Ela tirou a mão, irritada.
— Com certeza não, meu senhor! Se bem que você não me conheça direito...
— Conheço-a o suficiente — interrompeu Ian, prazerosamente, vendo-se
recompensado com a vermelhidão que subiu imediatamente às faces de Marissa.
— Falo de assassinatos — disse ela, altiva. — Você terá de adivinhar se pretendo
matá-lo ou não.
— Estarei sempre de olho em minha mulher — respondeu ele galantemente.
— Isso será desnecessário, pode crer. Porque planejo um assassinato diferente.
Pedirei a Deus que faça justiça e mate você.
— Puxa vida, agora eu fiquei curioso. Acha que Deus vai ouvi-la, depois do que
você fez ali naquele quarto? Comigo?
Marissa não quis continuar o jogo.

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— Talvez seja melhor nós dois agradecermos a Deus por ficarmos separados
durante um bom tempo ainda.
E, majestosamente, sem esperar réplica, atravessou a sala em direção do quarto.
Ainda bem!, pensou Ian aliviado, sentindo que sua tensão diminuía. Mulherzinha
difícil de lidar, essa. Não, ela não era uma mulherzinha. Era uma dama. Que sabia lutar
com ele, de igual para igual.
Talvez até com superioridade. Ian esperava lágrimas e recriminações, como faria
qualquer mulher recém desvirginada. Preparara-se para declarar-lhe que a culpa tinha
sido tanto dela quanto dele.
Mas ela se portara com dignidade, a danada. Admitira implicitamente que ambos
haviam criado juntos aquela situação. Ian não sabia como tratar mulheres superiores, e
isso o irritava profundamente.
Antes que ela alcançasse a porta, Ian elevou a voz:
— Não pense, Marissa, em modificar quaisquer planos que fiz. Você vai viajar no
navio que escolhi, e no dia que determinei.
Ela estancou, surpresa. Respondeu sem se virar:
— Nem pensei nisso, Tremayne. Seguirei para a América do jeito que me ordenou.
— Ah, sim. É claro que irá. Por causa de sua mesada.
Marissa se virou para encará-lo com altivez.
— Precisamente.
— Mas que pena! Quanto sacrifício por dinheiro, não?
Ela não se dignou a responder, o que acendeu ainda mais a irritação de Ian. Havia
desafio nos olhos verdes, tão vivos quanto o fogo que parecia tingir seus cabelos.
— Eu quase tinha me convencido de que você não era tão abominável assim. Vejo
que me enganei.
Ian deu dois largos passos e alcançou-a. Segurou-a pelos ombros, preparado para
sacudi-la. Súbito, percebeu que queria fazer mais que isso. Queria tomá-la nos braços,
cobri-la de beijos, provar novamente os lábios vermelhos, possuí-la outra vez.
Lutou contra o desejo insano, cerrando os dentes. Também não a sacudiu. Apenas
fitou-a, os olhos azuis mais escuros que nunca.
— Não se engane outra vez, minha cara. Posso ser rude, cruel e violento. Não
espere outra coisa de mim!
Marissa não vacilou nem piscou. Apenas continuou a encará-lo serenamente,
erguendo mais a cabeça. Como sempre, Ian julgou ver seus olhos mais brilhantes que de
costume e pensou, triunfante, que ela iria chorar.
Mas não. Não houve choro nem reclamação.
Exasperado, Ian soltou-a, sentindo uma necessidade imperiosa de se afastar dela.
Girando nos calcanhares, ganhou a porta segundos depois. E, sem olhá-la, falou por cima
do ombro:
— Estarei na estação esperando pelo seu trem. Cuide para chegar nele.
Abriu a porta com violência e saiu.
Andou um bom tempo pelas ruas ainda desertas e nevoentas, tratando de se
acalmar. Diabo de inglesinha, que tecia sua teia à volta dele, envolvendo-o mais e mais.
Embrenhou-se no fog, aspirando o ar com força.
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Pouco depois estava em seu quarto, no pequeno hotel. Exausto, deixou-se cair na
cama, sem se preocupar em tirar a roupa.
Queria aproveitar o que restava da noite para descansar. Mas os sonhos vieram
atormentá-lo.
Primeiro, sonhou com Diana. Depois, o rosto de Diana foi se esfumando,
transformando-se gradualmente no rosto de Marissa. E Ian tomava-a nos braços, tocava-
lhe o corpo, fazia amor com ela. Ouvia-a murmurar palavras doces, ternas, mas as
palavras não faziam sentido.
Virou-se na cama, enquanto a voz de Marissa continuava a murmurar coisas de
amor. Baixinho, tão baixinho, que ele não conseguia ouvir.
Não, ele nunca mais se apaixonaria.
Nunca mais a tocaria.
Havia jurado para ela e para si mesmo.
Ian sentou-se na cama, suando. Bateu na cama com raiva e imediatamente o corte
em sua mão produziu uma dor fina e aguda, que o acordou de vez.
Já chegara a manhã, ora graças. Logo mais estaria num navio, rumo a seu país.
Deixando para trás todos os tormentos de Londres.
Incluindo Marissa.
Por Deus, ele iria esquecer essa inglesa e a noite que haviam passado juntos. Ou
não se chamava Ian Tremayne.

— Puxa, Marissa, como você está bonita! — exclamou o tio, sorrindo de orgulho.
Ele acabara de lhe dar um longo e terno abraço, e agora examinava-a de alto a
baixo com admiração.
— Bonita demais, mesmo. E elegante, também! Estou tão contente de você ter
vindo me visitar!
Marissa sorriu para o tio com ternura. O vento soprava forte e brincava com as
mechas de seus cabelos, mas era um belo dia ensolarado, de um azul radiante. Era
domingo, dia calmo e sem o ensurdecedor ruído das explosões de dinamite, tão comuns
na pequena cidadezinha mineira. O mundo parecia descansar na paz do horizonte tingido
de malva e rosa. Ovelhas e bois pastavam tranquilos, indiferentes à miséria das
casinholas quase em ruínas que pontilhavam as colinas.
Marissa olhou em volta, detendo a vista em cada moradia. Pobres, construídas
com caixotes e tábuas velhas, de um cômodo só. Uma e outra janela ostentava flores
coloridas, numa busca patética da dignidade perdida.
Bonita e elegante, dissera o tio.
Bem, pelo menos naquele lugar ela se sentia assim.
Gastara um bom dinheiro com seu novo guarda-roupa, pois Mary a persuadira de
que não poderia ir a San Francisco sem trajes apropriados. Não seria mais possível a
Marissa compartilhar as roupas de Mary, pois Ian era muito observador e logo
desconfiaria de algo.
— Além do que, Marissa — dissera Mary —, você sacrificou sua alma por dinheiro.
E por nós, é claro! Pois trate de tirar proveito desse sacrifício.
Mary nunca adivinharia toda a extensão desse sacrifício. Marissa nunca se
queixara, mesmo sendo Mary sua melhor amiga. Permitira-se então sair com ela e
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comprar belos vestidos nas melhores lojas de Londres. Tomara cuidado para não gastar
muito e usara com inteligência sua parte da mesada; ficara de olho mais no preço que na
qualidade. Mas como tinha bom gosto, as novas peças do vestuário pareciam muito mais
caras do que realmente eram. Nessa tarde, para visitar Theo, Marissa escolhera um
vestido simples de algodão, de gola de crochê e colete de veludo. Na cabeça, colocara
um pequeno chapéu com uma pluma.
Bonita e elegante? Talvez fosse porque não havia mais a fuligem negra
impregnando tudo que vestia.
Mas não devia ter vergonha daquele pó de carvão. Ele simbolizava o trabalho de
homens de grande valor.
Muito melhores que ela. Se os mineiros soubessem que sua aparência não
passava de uma fraude... se soubessem que ela vivia de mentiras... a maioria iria
reprová-la duramente.
Mas não podia pensar nisso agora. Apoiou-se no braço do tio e armou seu melhor
sorriso.
— Vamos voltar para casa, tio. Precisamos conversar. Sabe, eu vou para os
Estados Unidos com Mary.
— Para a América! — exclamou Theo, detendo-se subitamente. — Marissa, minha
querida, a América fica longe demais! Eu nunca mais vou ver minha linda sobrinha...
— Não diga isso, titio!
Ela fitou os olhos do tio, confrangida. Ele parecia mais acabado, mais cansado.
Contudo, sua alegria de viver permanecia a mesma.
— Arranjarei as coisas para você ir me encontrar lá, assim que puder. Vai adorar
conhecer a América!
Era outra mentira. Marissa sabia que o tio não poderia morar com ela. Pelo menos
durante os próximos anos.
A menos que Ian Tremayne fosse parar no fundo do mar. Mas nem isso ela queria
realmente; apesar de tudo, não desejava a morte de Ian.
Só de pensar nele, um tremor percorreu-lhe o corpo e suas faces avermelharam.
— Está na hora de se aposentar, titio, e estou decidida a ajudá-lo nisso. Mary me
ofereceu um salário e tanto, portanto estou preparada para lhe dar uma boa ajuda.
— Não é você que deve tomar conta de mim, é o contrário, minha pequena —
declarou ele carinhosamente, enquanto lutava com a porta emperrada.
Marissa lembrou-se de que também havia lutado com a mesma porta durante
anos. Tanto tempo atrás!
Pouco depois ambos se achavam sentados em frente à tosca mesa junto ao fogão.
O fogo crepitava sob uma caçarola e uma chaleira, cuja tampa saltava anunciando que a
água fervia.
Não havia água corrente; tio Theo tinha um poço junto a casa, que ficava
congelado no inverno e infestado de mosquitos no verão.
Os olhos de Marissa ficaram úmidos. Nada ali era elegante, nada era nem
medianamente fino. Mas o tio a amava, e o que podia haver de mais elegante e fino que
esse amor desinteressado e sincero?
Ela tirou as luvas, sorrindo com ternura. Gostava demais desse tio. Refletiu que
talvez fosse por egoísmo que queria mantê-lo em boa saúde. Para não perdê-lo, como

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
perdera quase tudo o que tivera de bom na vida. Mas Theo tinha uma expressão
estranha, preocupada. Será que ela tinha mudado tanto assim? E se ele soubesse, de
alguma forma, o que havia acontecido com ela? Mas não, isso era impossível.
— Titio, seja razoável. Você não pode continuar trabalhando nas minas.
— Marissa...
— Gosta de mim, titio?
— Sabe que sim!
— Então fique vivo. Por mim.
Ele fez um gesto de impaciência e começou a tossir. Dobrou-se sobre os joelhos,
tossindo e ofegando ruidosamente.
Marissa correu à moringa e encheu um copo de água, entregando-o ao tio.
Gentilmente, acarinhou a testa suada do velho, ajeitando os poucos fios grisalhos.
Quando o acesso melhorou, Marissa o fez sentar-se e tomou-lhe as mãos calosas.
— Titio, ouça com atenção. Pretendo fundar uma escolinha aqui. Já falei com o
vigário, e ele me garantiu que a quantia que doei é mais que suficiente para chamar um
bom professor. Sabe aquele armazém velho, logo atrás da igreja? O vigário me disse que
pode mandar reformá-lo e deixá-lo em ordem para servir de escola e morada do
professor. Mas, titio, esse professor não conhece ninguém aqui. Não conhece a cidade,
nossos costumes, nosso meio de vida. Ele vai precisar de ajuda. E para isso eu conto
com você, titio. Você será meu representante na escola, pois eu estarei longe daqui. É o
único em quem posso confiar.
O peito do velho ainda chiava. Levou algum tempo para ele poder falar, ainda que
com dificuldade.
— Então você vai se mudar para a América...
— Mas você também irá, titio, logo!
Ele não respondeu. Consternada, Marissa descobriu que o tio não queria ir para a
América. Esta era sua casa, a sua cidade, a despeito da pobreza e da fuligem. Seus
amigos moravam e trabalhavam ali. E ali morriam.
Bem, ela não o deixaria morrer.
— Você vai me encontrar lá — insistiu ela.
Theo assentiu em silêncio. Marissa relaxou, mais aliviada. Um dia acharia um jeito
de voltar para o tio.
— Há muita gente protestando e reclamando dos acionistas, Marissa. Nossa gente
está querendo melhores condições de vida.
— Deviam ter feito isso há mais tempo, titio. Mas você está fora dessa história
agora. Greves e paralisações são coisas para jovens.
— Os acionistas não vão gostar dessa história de escola aqui. É abrir num dia, que
eles fecham no outro.
— Não, o vigário não deixará que isso aconteça — rebateu Marissa, rezando para
estar dizendo a verdade.
Nem o temível sr. Lacey ousaria desafiar o severo vigário, um homem alto e
corajoso, que fizera um tremendo estardalhaço no ano anterior, quando dez homens
haviam sido soterrados na mina. Sim, o vigário cuidaria da escola.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Fique de olho no sr. Lacey, titio. E avise o vigário imediatamente, caso ele
venha com história de fechar a escola.
Tio Theo endireitou os ombros, estudando-a por alguns instantes, parecendo lutar
consigo mesmo. Pouco depois deu um sorriso cansado.
— Muito bem, criança. Estou fora das minas a partir de hoje. E passo a viver de
sua caridade.
— Não é caridade! O que é meu é seu!
— Ah, mas você trabalha para ganhar.
— Meu trabalho é facílimo. E Mary é ótima patroa.
— É. Uma dama, é o que digo. Estou contente por você, criança. Está em boas
mãos, ora se está... Dona Mary nunca lhe pedirá coisas ruins de fazer, e isso me deixa
descansado. É uma moça de classe, sim senhora, é o que sempre digo. Posso estar
descansado, é o que digo.
Marissa entrelaçou as mãos no colo, olhando-as fixamente. Sim, Mary era uma fina
dama. E não, Mary nunca lhe pediria para fazer nada errado ou difícil demais.
As mentiras e os erros corriam por sua conta. Como na noite em que ela perdera
seu orgulho e sua inocência. Pusera tudo nas mãos de um estranho. Um estranho com
quem se casara, baseada em mentiras.
Um estranho que a odiava. Mesmo depois daquela noite de paixão e ternura.
— Marissa? Marissa? O que tem, minha criança? Está tão branca!
— Não, titio, eu... eu estou bem. É que... que estou com uma fome dos demônios,
sabe? E aquela panela está com um cheirinho tão apetitoso! Você sempre soube preparar
pratos deliciosos. Oh, e por falar nisso, preciso pedir ao cocheiro que descarregue as
coisas que trouxe para você.
— Que coisas? Andou depenando a despensa de dona Mary de novo, não é? Ah,
minha criança!
— Lembre-se, titio, nós vamos viajar. A cozinha estava atulhada de coisas que
iriam se estragar. Agora fique quietinho enquanto eu sirvo o cozido.
— Marissa!
— Nada de reclamações. O que está fazendo aí de pé? Sente-se, que o cozido vai
esfriar. Vamos, titio, eu vou ficar longe por meses e meses... Seja bonzinho! Além disso,
estou louca para saber as últimas novidades da cidade.
Vencido, Theo se sentou e começou a contar histórias dos mineiros e seus filhos,
enquanto Marissa servia o cozido e preparava o chá. Ele contou sobre o dia em que os
mineiros conseguiram despejar "acidentalmente" um balde de pó de carvão na cabeça de
sr. Lacey.
— Menina, ele ficou uma fera! Não, uma vespa, é o que lhe digo. Mas a coisa foi
benfeita, então ele não conseguiu pôr a culpa em ninguém. Foi um grande dia, aquele. A
gente se divertiu, é o que digo.
— Pena que eu não estava aqui! — comentou Marissa, rindo. — Bem que gostaria
de ver aquelas bochechas gordas pintadas de preto...
Ao final da refeição, Marissa conseguiu convencer o tio a aceitar um maço de
notas.
— Criança, isso é mais do que eu ganho num ano inteiro! Tome, fique com metade,
não preciso de tanto...

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Não, tio. Isso é para você consertar o telhado e ir ao médico, como me
prometeu.
— Deus a abençoe, Marissa. Você é uma moça direita, é o que digo a todo mundo.
É o meu orgulho.
Essas palavras bastaram para convencer Marissa de que ela estava fazendo a
coisa certa. Valia a pena ver essa luz de felicidade nos olhos de tio Theo!
Mas haveria mais. A escola, onde as crianças aprenderiam que existe um mundo
melhor lá fora. A escola, que iria tirar as crianças daquela vida miserável. Como Mary
fizera com ela.
Por mais triste e humilhante que fosse sua vida, valia o esforço.
Ian se fora, estava em algum ponto do Atlântico. E ela ainda tinha alguns dias de
liberdade para aproveitar.
Mas havia tantos pensamentos que não conseguia afastar! Tantas lembranças que
em vão tentava arrancar da mente! Ali mesmo, na pequena cabana do tio, Marissa tinha a
sensação de estar perto de Ian. Revia seus olhos vivos e transparentes, cheios de desejo,
na hora em que haviam se unido.
Forçou-se a pensar em outra coisa. O dia estava tão bonito, tão azul...
Como os olhos de Ian. "Não se engane comigo, moça. Posso ser cruel e violento..."
Estava casada com esse homem. Tinha dormido com ele. Por quê? Por dinheiro?
Ou havia outra razão que ela mesma desconhecia?
Sentiu-se enjoada e cansada. Não conseguia pensar em outra coisa, meu Deus!
— Marissa, você está pálida de novo. Vai ver está doente. Se estiver, não pode
viajar!
— Não, não estou doente, titio. Vou escrever sempre, prometo! Toda semana. Ah,
tio Theo, eu gosto tanto de você!
Atirou-se no colo dele, como fazia quando pequena, sentindo a aspereza da
camisa grosseira. Fizera o que devia ter feito, e não tinha do que se arrepender.
— Eu também, minha criança, gosto muito de você. Muito mais do que pode
imaginar!
As mãos calejadas acariciaram-na docemente, alisando-lhe os cabelos. Marissa
fechou os olhos, pensando que talvez fosse melhor não ter conhecido outra vida. Teria
ficado ali para sempre, protegida pelo carinho e pelos braços do tio.
Tentou fazer de conta que nunca tinha ido a Londres, que nunca tinha conhecido
Ian. Que não estava casada. Que nunca havia sido tocada por ele.
Mas não conseguiu. O jogo estava feito, e não havia escapatória. E se ela
resolvesse não ir mais para a América? Seria pior ainda. Ian não gostava dela, mas viria à
Inglaterra para buscá-la e obrigá-la a cumprir sua parte do trato. E sua vida seria um
duplo inferno, então.
Além disso, havia Mary, Jimmy e tio Theo. Todos eles dependiam de sua partida.
— O que foi, minha pequena? Há alguma coisa errada. Desde que chegou está
aérea, distante.
— Saudades, titio. Só isso. Queria ficar assim o resto da vida.
— Então fique.
— Não posso. Mas vou fazer de conta, está bem?

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ele riu.
— Titio?
— Hum.
— Conte-me mais historias da cidade. Gosto tanto de ouvir!
Ele ficou contando durante horas, até que a noite caiu. E Marissa não saiu de seu
colo o tempo todo.
Quando chegou a hora de ir embora, Marissa mandou o cocheiro colocar na
despensa tudo o que trouxera: presuntos, queijos, compotas, frutas. Tio Theo ia de um
lado para o outro, encantado. Como uma criança, desembrulhando cada pacote.
Finalmente, despediram-se carinhosamente. E Marissa viu-se sozinha na
carruagem, acenando com o lenço até que a silhueta do tio perdeu-se na bruma cerrada.
A cidadezinha também foi sumindo, até tornar-se um pequeno ponto no horizonte.
Como um grãozinho de pó. De carvão.
E Marissa deu livre vazão às lágrimas que desde manhãzinha queriam descer.
Chorou pelo tio, pela cidade e por ela mesma. Lembrou-se da primeira vez em que vira
Ian Tremayne ali, naquela cidadezinha de carvão.
Lembrou-se do vestido branco sujo, de sua raiva.
E de seu propósito, formulado naquela hora.
Ela havia de ser uma dama. E iria mostrar àquele arrogante o que era ser rico.
Enxugou as lágrimas e aprumou-se, ereta.
Quando encontrou Jimmy e Mary no velho castelo de sir Thomas, não trazia mais
nenhum traço de tristeza no rosto.
Sim, mostraria a Ian Tremayne quem era ela. E nunca mais derrubaria uma só
lágrima por causa dele.

Uma semana mais tarde, na hora marcada, os três achavam-se a bordo do grande
transatlântico.
E dessa vez foi Londres que foi ficando pequenininha no horizonte, até sumir de
vista.
Mary chorava desconsoladamente. Mas Marissa guardou sua tristeza para si.
Atravessou o deque e foi olhar do outro lado do navio. Contemplou o mar sem fim,
selvagem e desconhecido. Era para lá que ia.
Para uma vida selvagem e desconhecida.

CAPÍTULO VIII

San Francisco Janeiro de 1906

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa terminava de espetar o grande alfinete de pérola no chapéu quando ouviu
as temidas batidas na porta.
— San Francisco, madame! Próxima parada em San Francisco! Dentro de cinco
minutos, madame!
A voz entusiasmada do camareiro deixou-a ainda mais abatida. Cinco minutos.
Tinha meros cinco minutos antes de começar sua vida de escrava. Atravessara o oceano
num transatlântico de primeira classe, tomara um trem de luxo e durante todo o tempo
tentara esconder-se da verdade. Agora não tinha mais onde se esconder.
— Mas seu orgulho iria ajudá-la a enfrentar o que a esperava. Era uma questão de
não se deixar abater.
Tentou distrair-se com a paisagem. Marissa era inglesa até os ossos, mas este
país começava a fasciná-la. Havia tanto contraste para ser visto e analisado, tanta beleza
natural, tanta gente! Do trem, tivera oportunidade de observar um sem-número de
paisagens diferentes, cada qual encerrando seu próprio mistério e encanto. Havia tapetes
verdes de florestas sem fim, campos cultivados formando tabuleiros de xadrez, desertos
em tons de laranja e ouro, cidades em burburinho, chaminés de fábricas.
E uma quantidade inacreditável de gente. Parecia que o mundo se transportara
para este continente. Alemães, holandeses, escandinavos. Pretos, vermelhos, amarelos,
brancos, Londres era uma grande metrópole, mas isto...
Marissa fora aos poucos se interessando pelo país, à medida que ia conhecendo
os Estados Unidos. Passara a gostar de ficar à janela do trem, olhando, observando. A
cada dia que passava, mais gostava de estar ali.
Até aquele momento.
Em cinco minutos o encantamento se acabaria. Mary e Jimmy montariam uma
linda vida de bênçãos e felicidade, enquanto ela...
Trancara-se numa prisão, por vontade própria. Amarrara-se a um homem
arrogante, pretensioso e... E fascinante.
Fechou os olhos, buscando paz dentro de si.
Assegurara a Mary que nada mais fizera além de garantir para si uma vida de
fausto, luxo e segurança. Que não acreditava no amor e não tinha paciência para
sentimentos melosos. Que conseguira tudo o que queria. Tio Theo estava bem, a escola
estava a caminho da vila; ela tinha as mais elegantes roupas de Londres e fizera uma
viagem deliciosa. Tudo isso dissera a Mary.
Mas ali sozinha, naquele luxuoso compartimento do trem, sabia que as barras da
prisão fechavam-se sobre ela, duras e intransponíveis. Quase podia senti-las sobre o
peito oprimido.
Cinco minutos.
Ia começar a pagar seu preço.

A casa noturna de madame Lilli era a melhor e mais concorrida entre todas as que
pululavam na periferia da cidade.
Construída durante a corrida do ouro, o casarão havia sofrido sucessivas reformas,
tendo ganhado um delicioso toque vitoriano, que lhe suavizava as linhas coloniais. A
exuberância de Lilli espelhava-se nas cores da fachada, pontilhada de frisos brancos e
dourados.

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Sentada em sua sala preferida, Lilli abanava-se languidamente com um leque de
plumas. Fora, a tarde descia calma, em nuances de lilás e rosa. Ela olhou o homem e
ajeitou as penas de boá que enfeitavam seu elegante vestido, fazendo um muxoxo.
— É a terceira vez que olha as horas, Ian. E você não está prestando a mínima
atenção ao que estou dizendo.
Ele guardou o relógio maquinalmente.
— Você sempre me disse que entre nós as palavras eram inúteis.
A frase saiu ríspida, mais do que pretendia. Intimamente, Ian amaldiçoou outra vez
a inglesinha que vinha chegando para atrapalhar e tumultuar sua vida pacata.
E era bom que ela chegasse mesmo! Não toleraria ser desobedecido. Ah, se ela
não viesse naquele trem... O que ele faria? Teria de seguir para a Inglaterra, trazê-la
pelas orelhas.
— Nunca exigi nada de você, Ian. Não faço questão de ir ao teatro com você, nem
me importo com sua amante de Nob Hill. Mas gostaria de, pelo menos, ter um pouco da
sua atenção.
— Desculpe. Estou um pouco tenso, é tudo.
Lilli assentiu, com um sorriso magoado. Ian colocou a mão sobre as dela, com
certo sentimento de culpa. Na verdade, Lilli era ótima pessoa, e de fato nunca se mostrara
exigente. Era dona dali e sabia dirigir seus negócios com energia. Também sabia escolher
a dedo seus amantes; e sabia retribuir-lhes os carinhos com talento e generosidade.
Lilli não substituía Diana, de nenhum modo. Não tinha nada que ver com ela; na
verdade, com seus cabelos oxigenados e os seios fartos e exuberantes, era o oposto da
etérea Diana. Foi justamente essa diferença, aliada à extrema sinceridade de Lilli, que
atraíra Ian para seus braços. Além do fato de que Lilli nunca exigia nada.
— Puxou o relógio de novo? — perguntou ela, com delicadeza. — Claro, não é da
minha conta, mas estou curiosa.
Ele deu um beijo estalado na testa de Lilli e levantou-se.
— Minha mulher está chegando hoje.
— Sua mulher! — gritou Lilli, saltando como uma mola. — Mulher?!
Desatou numa risada gostosa e pôs as mãos na cintura.
— Você está esperando sua mulher chegar... e vem me ver aqui? Vem fazer amor
comigo? Essa é demais!
— Ela não é minha mulher, realmente. É... ela... eu sou o tutor dela. Ou guardião,
como dizem na Inglaterra.
— E você se casou com a pimpolha? Coisa mais estranha... Não pode ser por
dinheiro, que isso não lhe falta. Devo confessar, Ian, que não estou compreendendo
nada.
— Nem eu — retrucou ele, sombrio.
— Não que eu me importe muito. Mas aquela viuvinha bonita, Grace Leroux, vai
ficar furiosa. Pensando bem, acho que vou me divertir com a raiva dela. Hum... tutor,
hein? Guardião. Só inglês, mesmo. Mas me conte, como é ela? Imagino uma garotinha
sardenta com rabo-de-cavalo. E aparelho nos dentes.
— Não é bem assim, Lilli. Na verdade, é uma mulher belíssima.
— Como? E você veio aqui, deixando esse monumento de lado? Cada vez
entendo menos...
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
A pergunta fez com que Ian refletisse. Por que viera, afinal? Justamente porque
Marissa ia chegar, descobriu. Porque estava decidido a não se desviar nem um milímetro
da vida a que estava acostumado. Fora uma espécie de defesa inconsciente.
— Eu já disse, Lilli, esse casamento não passa de um arranjo, um contrato. Um
negócio, como outro qualquer. Sabe o que penso sobre casamentos.
— E como! — riu Lilli. — Em todo caso, Ian Tremayne, nunca esperei casar-me
com você um dia. Mas Grace Leroux, essa vai subir pelas paredes. Ela nunca acreditou
nessa história de você não querer se casar de novo. E pelo visto tinha razão, você se
casou mesmo. O problema é que não foi com ela!
— Nunca dei esperanças a Grace.
— Você puxou o relógio de novo, meu bem.
Irritado, Ian enfiou o relógio de volta no bolso. Por que demônios estava tão
ansioso?
— Comigo, tudo bem querido. Pode ir, se quiser.
— Que o diabo me leve se quero ir a qualquer lugar. Vou ficar aqui.
— Vai se atrasar.
— Que seja.
A inglesinha que esperasse. Pretendia passar ainda um bom tempo nos braços
generosos de Lilli, em busca de consolo e esquecimentos.
Mas Ian sabia que tinha vindo não para esquecer, mas para não pensar numa
coisa que vinha atormentando sua cabeça. Nos momentos deliciosos que passara nos
braços da gata de olhos verdes. Jurara que nunca mais se deixaria enfeitiçar por aqueles
olhos, por aqueles cabelos cor de fogo. Havia outras mulheres que podiam lhe dar
momentos tão bons quanto aqueles. Lilli, por exemplo.
— Diga uma coisa, Ian Tremayne. A sua inglesinha também vai buscar consolo
fora do lar, como você faz?
Ian enrijeceu imediatamente.
— Que quer dizer com isso?
— Ora, eu estava brincando.
Mas Ian já se levantara, alisando as costeletas com as mãos. Mudara de ideia
quanto a ficar ali; sentia-se subitamente ansioso para sair o quanto antes.
— Querida, acho que não vou ficar mesmo. Volto outro dia — disse, inclinando-se
para beijá-la.
— Escute, sábado estreia nosso novo show. Você virá, não é? Quando você vem,
arrasta um monte de gente junto e a casa enche. Por favor?
— Se é para ajudar você, claro que sim.
E, depois de uma pausa, acrescentou:
— Não. Eu torceria aquele pescocinho branco.
— Quê? — perguntou Lilli, sem entender.
— A pergunta que você me fez. A resposta é não, ela não vai buscar consolo com
ninguém. Ou eu torço o pescoço dela.
Lilli riu alto.

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Mas quando a porta se fechou, seu riso transformou-se num esgar dolorido. Nunca
se enganara a respeito de Ian; sabia que jamais poderia tornar-se a sra. Tremayne, por
mais que o desejasse. Mas ele, Ian, enganava a si mesmo, isso estava claro como cristal.
Aquele casamento significava muito mais para Ian do que ele estava pronto a
admitir. Muito mais.
Percebera claramente o quanto ele estava nervoso e irritadiço. Obviamente, por
causa da inglesa. A indiferença de Ian era apenas aparente.
Uma dorzinha aguda alfinetou-lhe o peito.
Suspirando, ergueu-se e foi à janela. A névoa densa esfumava os contornos da
rua.
Continuaria amiga de Ian, consolou-se ela.
Então sorriu. Seria divertido ver a cara de Grace Leroux quando soubesse do
inesperado casamento de Ian Tremayne. Gostaria de presenciar o encontro dela com a
inglesa.
De repente, Lilli teve uma ideia. Resoluta, puxou o cordão da campainha. Queria
conhecer a recém-chegada de qualquer maneira, nem que fosse de longe. Talvez até
falasse com ela, quem sabe?
Na certa, a moça não gostaria de ser apresentada a uma das muitas mulheres de
Ian. Sem razão, aliás, porque Lilli não representava nenhum perigo. Contudo, se a inglesa
aceitasse sua amizade, Lilli poderia ajudá-la a enfrentar o verdadeiro dragão. Grace
Leroux.

Marissa respirou fundo, alisando a roupa nervosamente. O trem já entrava na


estação, chiando e resfolegando.
Mary irrompeu no compartimento da amiga, cheia de excitação.
— Chegamos, finalmente! Nem acredito! Estamos na América e vamos ficar aqui!
Não é maravilhoso?
Olharam-se com carinho por alguns instantes. Depois Mary abraçou-a com fervor.
— Fez tanto por nós, minha amiga! Eu...
— Deixe de bobagem, Mary. Eu fiquei com a melhor parte, não foi? Da riqueza,
quero dizer. Mas tenho um pouco de receio. Se Ian um dia souber...
— Agora sou eu que digo: deixe de bobagem, Marissa. Estamos muito longe de
casa, nada nos acontecerá.
Jimmy passou pela estreita porta, não sem antes dar-lhe uma trombada.
— Meninas, está na hora de descer. A bagagem já está esperando!
Pegou a frasqueira de Mary e a maleta de mão de Marissa, e correu os olhos pelo
compartimento, verificando se nada ficara para trás. Dando-se por satisfeito, saiu afobado
atrás do chefe do trem. Mary acompanhou-o pelo corredor, alegre como um passarinho,
enquanto Marissa os observava. Jimmy parecia muito mais senhor de si. Ele e Mary
haviam mudado bastante durante a longa viagem. O amor trouxera-lhes confiança no
futuro.
Ao passo que ela perdia a sua, a cada minuto.
Endireitou o corpo, aprumando os ombros. Temia a hora em que se encontrasse
frente a frente com Ian Tremayne, mas ao mesmo tempo sentia uma curiosa compulsão

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para que essa hora chegasse depressa. Ian dissera que estaria a sua espera na estação,
mas não tinha muita certeza. Talvez ele tivesse se esquecido.
Por fim, Marissa resolveu sair da letargia e correu para alcançar Jimmy e Mary.
Estava pronta para enfrentar o que viesse. Prometera a si mesma que mostraria a Ian
Tremayne o que era uma verdadeira dama. E mostraria, com a ajuda de Deus.
Parou hesitante nos degraus do trem, olhando em volta. A cidade estava imersa no
nevoeiro da tarde que caía. Os lampiões de gás ofereciam uma luz difusa, dificultando a
visão. Mas à medida que seus olhos se acostumavam à tênue claridade, começou a
divisar vultos de transeuntes apressados. Todos pareciam apressados. Menos um, alto e
poderoso parado com a mão no bolso, Ian.
Marissa mais sentiu que viu, mas teve dúvida. Um gosto acre subiu-lhe à boca,
enquanto reconhecia a silhueta elegante, os ombros largos, o modo displicente.
Então ele não se esquecera.
Irritada, sentiu o coração bater freneticamente, e seus pés recusaram-se a andar.
Ian também devia tê-la visto, pois caminhava em sua direção. Trazia um chapéu
claro, da mesma cor do terno; a gravata escura contrastava com a camisa, também clara.
Um casal de chineses vinha atrás, em atitude respeitosa. O chinês era alto e
esguio, enquanto a mulher pareceu-lhe belíssima, de pele muito alva e cabelos pretos,
lisos e brilhantes. Os dois trajavam roupas de cetim, à moda chinesa.
Os olhos de Marissa encontraram os de Ian. Havia neles o mesmo brilho
determinado e exigente daquela última noite em que haviam estado juntos. Da noite em
que ele a possuíra. Marissa queria odiá-lo ainda; esforçava-se para isso. Mas seu coração
dizia-lhe o contrário, todo seu corpo, aliás. Uma tontura envolveu-a, amolecendo-a toda.
"Meu Deus, ajudai-me. Não posso demonstrar fraqueza agora, ajudai-me."
E conseguiu erguer o queixo, aparentando frieza.
— Ian? — perguntou, fingindo não tê-lo reconhecido de imediato.
— O próprio — respondeu ele, seco.
Não houve um gesto carinhoso, um aceno de boas-vindas. Nem mesmo um sorriso
polido.
— Fez boa viagem?
— Muito boa, obrigada — respondeu ela, descendo os degraus e estendendo-lhe a
mão enluvada.
— Então você veio, afinal.
Marissa ergueu os olhos desafiadores.
— E você também.
— Claro. Eu havia dito que viria.
— Eu também.
— Eu tinha razões para acreditar que você não cumpriria sua promessa.
— Eu também — revidou ela, cortante.
Ficaram ali, como dois galos de briga, fitando-se em desafio. Marissa sentiu que o
pequeno espaço que os separava estava cheio de tensão quase palpável. Ao mesmo
tempo, notou que Jimmy, Mary, o casal chinês e o carregador os observavam entre
pasmos e assustados, sem entender aquela troca de farpas. Ian devia ter notado a
mesma coisa, pois abriu um sorriso cativante.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Seja bem-vinda a San Francisco. Estou contente de saber que sua viagem foi
boa.
— Maravilhosa.
Ian virou-se para os chineses, chamando-os.
— Estes são meus empregados. Eles cuidam de minha casa. John e Lee, esta é
minha... minha mulher Marissa. E estes são Jimmy e Mary O'Brien. Jimmy vai trabalhar
comigo nas lojas.
O chinês inclinou-se diante de Marissa e falou, com sotaque não muito carregado:
— Eu também desejo boas-vindas à senhora. Esta cidade é uma das mais bonitas
do mundo, e espero que goste dela.
A voz da chinesa era melodiosa e sem nenhum sotaque.
— Bem-vinda, senhora. Estamos felizes com sua chegada e estou a sua
disposição para ajudá-la no que precisar.
Mas Marissa podia jurar que os olhos da chinesa eram frios e hostis, ao contrário
de seu amável discurso.
— Obrigada, Lee, é muito gentil.
— Vou buscar as malas — disse John, adiantando-se. — Quais são elas?
— Aquelas que estão ali atrás — acudiu Jimmy, pressuroso.
E apontou para a numerosa bagagem, sorrindo embaraçado.
— São muitas, acho. Sabe como é, mulheres...
— Creio que é melhor nós dois darmos uma mãozinha a John, Jimmy — interveio
Ian. — Vamos lá?
Marissa observou como Mary olhava para Ian com afeto e admiração. Realmente,
quando ele queria, podia ser charmoso e atraente. E, pelo jeito, Lee Kwan pensava do
mesmo modo, a julgar pelo modo como acompanhava o patrão com os olhos.
Sim, Ian era um belo homem, de charme discreto. Havia descoberto isso logo de
início. Eram seus modos, seus olhos, até mesmo quando ficava zangado. Ela sabia disso
muito bem; não caíra presa dele em questão de horas?
Mas não cairia de novo, prometeu-se, estudando a formosa chinesinha com o
canto do olho. Então, Ian tinha uma criada nova e bonita. Muito bem, ele que fizesse bom
proveito!
Rangeu os dentes, agarrando-se à velha ideia de que havia conseguido tudo o que
queria. Mas sentia as barras de ferro cada vez mais apertadas. Talvez sua prisão fosse
uma câmara de horrores... Mas não. Não queria pensar assim.
— A carruagem está a nossa espera — falou Lee, com sua voz doce. — Vamos,
eu mostro onde ela está.
Marissa e Mary seguiram-na pela estação, que no momento apinhara-se de gente
despejada por outro trem. Quando chegaram à rua, Marissa parou para respirar. O ar
estava agradável, não muito frio, e o nevoeiro continuava espesso, naquele final de tarde
já iluminado pelos lampiões de gás. A cidade toda pareceu acolhê-la num abraço de
boas-vindas.
Podia ainda entrever as altas montanhas delineadas no horizonte, circundando
casas à volta da grande baía. Havia casas pequeninas e graciosas, outras imponentes e
severas. O estilo vitoriano imperava ali, conferindo elegância e sobriedade à cidade. A luz
amarela dos lampiões emprestava uma luminosidade impressionista à paisagem.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa estava maravilhada. Era uma linda cidade, mais bonita que Nova York ou
Chicago, que conhecera durante o longo percurso. Essas duas cidades haviam-na
impressionado, mas em San Francisco havia algo de familiar e aconchegante. Havia
harmonia e um toque de mistério, como em Londres. Seria por causa da névoa?
Sorveu o ar em grandes golfadas, sentindo-se bem pela primeira vez.
— É linda! — murmurou.
— Sim, é uma bela cidade — respondeu uma voz atrás dela.
Marissa virou-se surpresa. Ian sorria, uma mala em cada mão.
Seu olhar estava menos duro, mas continuava provocante.
— Deve estar cansada, Marissa. A viagem foi longa. Hoje você vai para casa
repousar, e amanhã terá todo o tempo que quiser para conhecer melhor a cidade.
Ela aquiesceu de bom grado e encaminhou-se para a carruagem, um veículo de
linhas elegantes, puxado por dois cavalos pretos.
Uma buzina estridente feriu os ares e logo um automóvel reluzente surgiu na
esquina, assustando um cavalo que puxava pacificamente uma carroça de verduras. O
cocheiro berrou palavrões para o automóvel, enquanto manobrava com perícia sua
carroça, conseguindo manter em precário equilíbrio repolhos, nabos e cenouras. Tal,
porém, não foi a sorte de outra carroça de maçãs, cujo conteúdo espalhou-se no
calçamento, provocando um começo de pânico entre os transeuntes, que começaram a
escorregar nas frutas.
— É o progresso! — riu Ian, divertido com a cena.
— Eu acredito no progresso, e gosto muito desses carros a motor. São bonitos. —
Marissa apoiou-se no estribo da carruagem.
Ian fitou-a com curiosidade.
— Não esperava isso de você. Em Londres ainda há poucos automóveis como
esse — disse, depositando as malas no bagageiro.
E sem que Marissa tivesse tempo de protestar, suspendeu-a pela cintura e
colocou-a na carruagem, onde Mary e Jimmy já haviam se aboletado. Minutos depois, ele
também subiu e sentou-se a seu lado, tirando o chapéu.
O perfume familiar de tabaco, couro e sabonete trouxeram à tona muitas
lembranças. Memórias que Marissa queria ignorar e não conseguia. Forçou-se a olhar
para outro lado, determinada a não sentir o calor de Ian, o contato de sua coxa com a
dela.
— Que cidade magnífica, Ian! — exclamou Mary, encantada. — Para que lado
vamos?
— Para Nob Hill. Sim, eu também gosto de San Francisco. Vocês terão muito o
que fazer aqui, garanto!
— Nob Hill. Que nome interessante! — murmurou Mary.
— Há gente maldosa que diz que vem da palavra esnobe. Mas na realidade a
origem da palavra é indiana. Vem de nabob. Além do que, Nob Hill nada tem de esnobe.
— Oh, mas garanto que é um lugar muito chique! — comentou Mary.
— Há quem confunda chique com esnobe, Mary — revidou Ian.
Marissa empertigou-se. Estaria Ian se referindo a ela? Estudou-o de soslaio,
tentando decifrar o sorriso dele.

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— Estou certa de que vou gostar muito de Nob Hill — falou, esforçando-se para
usar um tom neutro.
— Será, minha querida? Bem, esperemos que sim.
Nesse momento Marissa notou, em meio à multidão, alguém que a observava
detidamente. Julgou que estivesse imaginando coisas e franziu a testa, firmando a vista
para enxergar no lusco-fusco da tarde nevoenta. Não havia dúvida; alguém espreitava a
carruagem de longe.
Era uma mulher. Alta, bonita, de cabelos exageradamente oxigenados, metida num
costume que, à distância, parecia elegante e bem cortado. A mulher olhou para Marissa,
algo embaraçada. Depois sorriu-lhe de uma forma tão acolhedora e simpática que ela
resolveu retribuir, embora estivesse intrigada. Quem seria?
— Lilli! — exclamou a voz de Ian, ligeiramente irritada. — Que diabos está ela
fazendo aqui?
— É uma de suas amigas? — perguntou Marissa, simulando inocência.
Sim, que dúvida! Uma das inúmeras que encontraria pelo resto da vida. Ora, por
que iria se importar com as amiguinhas de Ian? Ele que fosse para o inferno com todas!
Mas, então, por que se sentia tão insultada?
Porque uma das amantes de Ian tivera a ousadia de vir à estação, a fim de vê-la.
Quisera ver como era "a inglesa".
Sentiu que corava de vergonha e raiva. E amargura. Não entendia a razão de estar
tão aborrecida; afinal, Ian tinha sua vida e iria continuar a vivê-la como antes. Marissa não
queria nada dele, exceto a chance de dar uma nova vida a Jimmy e Mary. E isso ela já
conseguira.
Mas Ian havia entrado em sua vida como veneno insidioso. Infiltrava-se em seus
sonhos, em seus pensamentos. Havia dormido com ela, havia gemido em seus braços. E
agora estava ali, um bloco de gelo ao seu lado. Marissa nada significava para ele!
Assaltou-a, de repente, uma vontade insana de arrancar os cabelos de Ian, fio por
fio, até deixá-lo careca e feio.
— É sua amiga? — insistiu, adocicando a voz.
— É — replicou ele com dureza.
Marissa teve uma inspiração. Pôs o corpo para fora e acenou alegremente:
— Oi, Lilli! Tudo bem?
— Mas o que pensa que está fazendo? — Ian cochichou em seu ouvido.
— Ora, vou convidar sua amiga para me visitar. Ela me pareceu tão simpática!
A expressão de Marissa não poderia ser mais inocente. Esquecendo-se dos outros,
Ian soltou um palavrão.
— Você não vai convidar ninguém para ir a minha casa, está entendendo? Nem
sabe com quem está lidando, ora esta!
— Sei sim. Ela deve dançar numa dessas casas noturnas, não é? E o que importa
isso? Não estamos na América? Como você disse, é uma terra de oportunidades e
igualdade.
Deleitada, Marissa notou que atingira seu objetivo. Ian batucava furiosamente no
assento estofado da carruagem, obviamente contendo-se para não estrangulá-la.
— Deixe que eu convide quem eu quiser para minha casa, madame — sibilou ele.

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Mas Marissa continuou o jogo, entre divertida e amedrontada.
— Por favor, desculpe-me. Eu só queria mostrar a sua... amiga que não quero mal
a ela.
E, abaixando a voz, de forma a ninguém mais ouvi-la, completou:
— Geralmente as amantes não gostam de presenciar a chegada de...
— Esposas — arrematou Ian, igualmente baixo. — Acontece que você não é,
realmente, minha esposa. Só no papel, minha cara. E quero que continuemos assim,
madame.
"Madame é sua avó!", pensou ela. O breve momento de alegria dera lugar à raiva.
Mas controlou-se, ao dar com o olhar aflito de Mary, que não entendia o que se passava.
— Vai continuar assim, meu senhor. Garanto!
Ian praguejou outra vez e gritou para John:
— Vamos depressa com isso! Livre-se dessa confusão de gente e siga em frente.
Rápido!
John estalou o chicote e a carruagem arrancou.
— Direto para casa, John!
Marissa fechou os olhos. Para casa. A casa de Ian. Que era a casa dela também.
Não, só dele. Para onde Ian podia convidar quem quisesse e quando quisesse.
Não, essa casa jamais seria seu lar. Ele deixara tudo muito claro.
As barras de ferro apertaram-se um pouco mais, ferindo-a profundamente.
Estava numa bela prisão, apesar de tudo. A cidade era bonita e já a conquistara.
Mas...
Mesmo que fosse uma gaiola de ouro, ainda assim era uma gaiola. Passaria o
resto da vida acorrentada a Ian Tremayne. Estava furiosa.
E enciumada.
"Não!", censurou-se. "Não tenho ciúme nenhum!"
Abriu os olhos, assustada. Ian fitava-a, os olhos azuis brilhando contra a escuridão.
Duros e frios.
Carcereiro. Essa era a melhor palavra para descrever Ian Tremayne.
Seu carcereiro...
Sentiu um arrepio gelado e desagradável.
Num desafio deliberado, virou-se para acenar mais uma vez à esguia silhueta da
mulher de cabelos oxigenados.
Quando Ian lhe contara que tinha quantas mulheres quisesse à disposição, mal se
importara.
Mas isso fora antes de passar uma noite com ele.
Agora não sabia mais o que pensar. Ah, como queria estar longe dali! Mal passara
uma hora com Ian, e já a noite prenunciava sombrias tempestades. E dor. Estava
emaranhada num novelo de intrigas e mentiras, que ela própria criara. E, quanto mais
tentava se desvencilhar, mais se enredava.
Nada mais podia fazer, a não ser tentar sobreviver.
Era hora de começar a viver sua mentira.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere

CAPÍTULO IX

A casa era magnífica.


Jimmy e Mary haviam sido instalados num pequenino chalé, nos fundos do imenso
quintal. Esse chalé fora outrora morada dos antigos caseiros, e agora havia sido
inteiramente remodelado para receber os jovens recém-casados até que eles
escolhessem outro lugar para morar. John e Lee Kwan haviam desaparecido
silenciosamente tão logo todos chegaram, e assim Marissa achava-se sozinha com Ian
em frente à imponente entrada, cujos degraus de mármore eram encimados por colunas
de estilo vitoriano. Sem comentários, ele abriu a porta e deu-lhe passagem. Marissa
correu os olhos pelo grande hall, enquanto tirava as luvas. Era enorme, de linhas sóbrias,
iluminado por um grande e cintilante lustre de cristal. À frente, a impressionante escadaria
de madeira lavrada, atapetada de vermelho, ostentava figuras entalhadas no corrimão. O
chão era todo de mármore branco, cuja leveza neutralizava a severidade das grandes
portas escuras.
Marissa percebeu que Ian a observava.
— Que tal, acha que é bonita o bastante para você?
Ela o encarou, sem saber o que responder. Afinal, o que Ian queria? Talvez ela
tivesse forçado um pouco a situação para se casar com ele, mas não tinha a menor
intenção de passar o resto da vida agradecendo-lhe por isso.
Além do mais, depois de ter visto aquela mulher na estação, o sentimento que
menos tinha era o de gratidão.
Ian parecia muito orgulhoso da propriedade, e com razão; a casa era elegante,
luxuosa e surpreendentemente acolhedora. Não havia sido construída por ele, uma vez
que era de construção antiga; mas provavelmente Ian tinha mandado reformá-la, dando-
lhe um toque realmente especial.
Se Marissa não tivesse visto a dama da estação, agora estaria se desfazendo em
elogios, dizendo-lhe o quanto a casa lhe agradava. Mas ela vira a mulher.
Adiantou-se um pouco, examinando com mais atenção o hall, tratando de ganhar
tempo. Havia caído presa de Ian uma vez, e não tencionava cair de novo. Não sabia bem
o que esperara de Ian, mas com certeza não imaginava tanta frieza e distância. Surpresa,
deu-se conta de que a indiferença magoava-a muito. De novo sentiu-se tomada de uma
raiva surda pela noite que passara com ele. Ah, se ao menos Ian não a tivesse tocado!
— Sim, Ian — disse, por fim. — É bonita o bastante para mim.
— Fico contente.
Marissa virou-se para tentar ler na fisionomia do marido se ele brincava ou falava
sério. Em vão, porém; o olhar azul-escuro era indecifrável.
— A viagem foi estafante e longa. Não quer me mostrar meu quarto?
Ian arqueou uma sobrancelha interrogativamente.
— Seu quarto? Por que "seu" quarto?
92
CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Permita-me lembrá-lo — falou Marissa, num tom deliberadamente formal — que
você foi bastante insistente quanto a que sua vida privada não fosse perturbada por causa
deste casamento.
— Verdade. Mas — imitou ele — permita-me lembrá-la, minha senhora, que a
senhora foi bastante insistente quanto à realização desse mesmo casamento.
— Fui, não nego. E você foi... foi generoso, acedendo a ele. Contudo, se bem me
recordo, você tomou todas as precauções quanto a me avisar que teria uma vida
independente da minha. Aliás, há poucos instantes teve a gentileza de me demonstrar
esse fato de maneira cabal. Assim sendo, eu me sentiria muito feliz de poder retribuir
suas inesgotáveis gentilezas, não interferindo de modo nenhum em sua rotina, seja ela
diurna ou ... ou noturna.
— Que belo discurso! — comentou ele, seco. — Então vamos ao "seu" quarto.
E com um gesto indicou-lhe que o precedesse nas escadas, ao que ela obedeceu,
arregaçando a saia com altivez.
À luz do gás e das velas Marissa pôde divisar um patamar entre dois lances da
escada, logo acima. Havia uma porta de vidro, por onde viu de relance belas tapeçarias e
um unicórnio branco, aparentemente de mármore. Ian tocou-a de leve, indicando-lhe que
virasse à direita, onde o patamar se dividia em dois. Ele se adiantou e parou diante de
uma grande porta dupla, de carvalho finamente entalhado, abrindo uma das folhas.
— Um momento, vou acender o lampião.
Quando o aposento se iluminou, Marissa mal conteve uma exclamação. Era muito
amplo, agradável e decorado com extrema elegância. Ao fundo, uma cama imensa
ostentava rico dossel trabalhado, acompanhando os arabescos do teto. As paredes,
cobertas de papel acetinado e de cores suaves, combinavam com os tons do grande
tapete persa. Um dos cantos do quarto era hexagonal, com graciosas gelosias, formando
um nicho irresistivelmente aconchegante, onde havia uma escrivaninha vitoriana e
poltronas estofadas em veludo verde-escuro. Do outro lado ficava a lareira com console
de mármore e ladeada por imponentes armários também vitorianos. Além da porta da
entrada havia outras duas, uma de cada lado da cama.
Diante de tanto luxo e riqueza, sentiu lágrimas assomar a seus olhos. Lembrou-se
da humilde morada do tio, que caberia facilmente dentro daquele aposento. Só a cama
valia mais que uma vida de trabalho duro nas minas.
Ian apontou para uma das portas:
— Ali fica o quarto de vestir e um banheiro exclusivo. E mais adiante há um
pequeno estúdio, onde poderá bordar, ler, pintar, enfim, fazer o que quiser. Tudo isso é
privativo seu, minha cara. Entretanto, você me disse algo que me deixou curioso. O que
foi que eu demonstrei a você "de maneira cabal" há poucos minutos?
Marissa, que estava abrindo a maleta de mão, parou, surpreendida. Ian parecera
não ter prestado a mínima atenção ao que ela dissera lá embaixo. E agora vinha com
essa pergunta à queima-roupa! Embora antes tivesse sido fácil colocar farpas na
conversa, agora, naquele quarto, tudo lhe parecia penoso.
— Como já disse, a viagem foi estafante.
— Portanto, sugiro que responda depressa — cortou ele, com fria polidez.
Mas havia um brilho de advertência em seus olhos. Para ganhar tempo, Marissa
encaminhou-se para o armário, estudando a própria imagem no grande espelho de cristal.
Depois tirou o chapéu, depositando-o sobre uma cômoda. Notou, aborrecida, que seus
cabelos estavam se soltando dos grampos, teimando em se ver livres do incômodo

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penteado. Uma grande mecha cascateou sobre seus ombros, apesar dos esforços que
ela fazia para prendê-los. Pelo espelho, percebeu que Ian a observava, exigindo resposta.
Ele também tirou o chapéu, jogando-o sobre a cama.
— Tenho toda a noite para esperar sua resposta.
— Ian — falou ela, olhando-o pelo espelho —, poderia fazer a gentileza de...
— Não sou gentil. Falamos sobre isso antes. Sou um mero americano e não sei o
que é cavalheirismo. Vamos acabar logo com essa história.
Ela se virou, pondo de lado toda a pose. Os olhos verdes pareciam chamas e seu
rosto ficara vermelho como um tomate.
— Muito bem, como queira. Pobre queridinho! Pensa constantemente na sua
querida e insubstituível mulher, que o deixou viúvo e só no mundo. E, claro, quer
liberdade completa para se consolar de suas tristezas nos braços de prostitutas e
vagabundas. Nós dois acertamos esse lado, não foi? Mas creio que foi um gesto muito
grosseiro seu levar uma delas para a estação, a fim de me conhecer. E logo no primeiro
dia!
Marissa deteve-se, ofegante, meio assustada com a reação de Ian. Nunca o vira
daquele jeito, lívido como a morte, os olhos escuros quase saltando das órbitas. Ele deu
um passo, erguendo a mão, como que para esbofeteá-la. Marissa recuou com um
pequeno grito, subitamente cônscia de que dessa vez fora longe demais. Quisera feri-lo e
conseguira. Com astucia, habilidade e precisão.
— Não! — disse, empalidecendo.
Ele se deteve. A mão baixou vagarosamente, fechando-se num punho ameaçador.
Ela tentou passar por ele, mas foi agarrada brutalmente pelos cabelos. Ian forçou-a a
encará-lo bem de perto, os dedos apertando sua cabeça, puxando-lhe os cabelos
impiedosamente.
A dor foi tão grande que Marissa teve de se conter para não chorar. Apanhada de
surpresa, viu-se pedindo clemência sem o perceber de imediato:
— Desculpe! Desculpe! Eu não pretendia...
— Nunca mais fale sobre meu passado! Nunca mais!
— Está me machucando! Eu não queria mencionar seu passado! É o seu presente
que eu considero ofensivo!
Ele afrouxou um pouco os dedos, só para apertá-los de novo à volta do fino
pescoço.
— Sua bruxa! Eu lhe disse, desde o começo...
— Me largue! — gritou ela, socando-lhe o peito.
Marissa podia sentir seu calor, as batidas de seu coração. Tudo começava a
lembrar-lhe outra situação, muito semelhante, Não queria estar tão perto dele, não queria
pensar naquilo. Mas a proximidade de Ian atordoava-a.
— Eu lhe disse...
Ela atirou a cabeça para trás, desafiando-o novamente.
— Quem você pensa que é? Acha que é a única pessoa sofrida neste mundo?
Sinto muito por sua mulher. Sinto muito, sim! Mas você, com sua grande casa, seu
dinheiro desprezível, sua empresa e suas construções faraônicas... nem tem capacidade
para começar a entender o que significa verdadeira infelicidade. Não sabe...
Ela se deteve, apavorada com o que acabara de dizer.

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— Mas do que está falando? — rugiu ele, sacudindo-a. — Que espécie de
infelicidade conheceu alguma vez na vida? Mimada e paparicada num mundo encantado,
viu-se obrigada a se casar comigo para não perder o que mais gosta na vida, dinheiro!
Portanto, não me venha com essa!
— Não vou passar o resto de meus dias pisando em ovos!
— Mas que besteira é essa que está dizendo?
— Sou infeliz porque perdi meu pai! — gritou ela, quase soluçando. — E eu...
Interrompeu-se, não porque ele a estivesse machucando de novo, mas porque o
olhar de Ian era provocante e evocativo. Subitamente sentia-se sufocar naquele quarto
imenso e luxuoso. Apertada contra o corpo de Ian, sentia as batidas de seu coração
contra o dela. Mal conseguia respirar, querendo se desvencilhar a qualquer custo. Os
olhos de Ian, porém, perscrutavam-na implacavelmente, como se pudessem enxergar
através dela até atingir seu pensamento. Teria ele percebido tudo? Marissa sentia-se
irremediavelmente transparente.
— Quero saber! — trovejou ele. — Com que direito você se mete a me julgar? E
que historia é essa de ser infeliz, logo você?
Ian não a acusava mais de ter um amante; a verdade fora descoberta por ele
mesmo naquela noite. Mas Marissa, em meio à raiva, deixara escapar palavras que de
alguma forma a incriminavam.
— É que... que eu vi como foi a vida de Mary. Vi os mineiros da cidade dela. Vi
como tossiam e se esvaíam em catarro negro de fuligem. Conheci as criancinhas daquela
cidade, esfarrapadas, famintas, um monte de pele e ossos, de olhos grandes e tristes. E
sujas, meu Deus, tão sujas que ficam irreconhecíveis debaixo daquela camada preta de
pó!
"Meu Deus, ajudai-me!", rezava ela, desesperadamente. "Que ele não me
reconheça agora, que ele não se lembre daquela menina de vestido branco!"
Mas isso seria impossível. Quem associaria aquele ratinho carvoeiro com a
elegante dama em que se transformara?
— Não, Ian Tremayne, você não é a única pessoa que sofreu neste mundo —
repetiu, tremendo ainda.
Ele não se moveu, mas continuou a fitá-la. Finalmente a soltou, mas quando tentou
baixar a mão, seus dedos estavam tão emaranhados nos cabelos dela que Marissa soltou
um grito de dor. Para seu espanto, Ian dessa vez não foi grosseiro. Com cuidado, livrou-
se dos fios dourados, atentando para não machucá-la mais. Depois encaminhou-se para
a porta em frente à do quarto de vestir, dizendo com voz neutra e calma:
— Vou mandar John subir com sua bagagem. Lee vai trazer alguma coisa para
você comer. Há água quente no banheiro, caso deseje tomar um banho. Qualquer coisa
que precise, basta falar com John ou Lee. Durante o dia tenho outros empregados, mas à
noite só podemos contar com os dois. Eles moram no terceiro andar, caso seja de seu
interesse.
— Geralmente posso cuidar de mim, muito obrigada.
Ele abriu a porta, sem olhá-la. Marissa pôde vislumbrar um quarto tão grande
quanto o seu, mas de decoração totalmente diferente. Havia uma cama grande, tapetes
orientais, alguns objetos de latão e uma escrivaninha cheia de papéis sob a janela.
— É seu quarto! — exclamou ela, involuntariamente.
— É — respondeu ele, com a mão no trinco.

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— Essa porta tem fechadura, espero.
O riso irônico voltou a brincar nos lábios, até então severos, de Ian.
— Minha cara esposa, pensei que estivesse aborrecida por causa de minhas... hã
amigas. Mesmo assim, parece aflita para manter-se a salvo de visitas indesejáveis.
Interessante, se não incorro em erro, você mesma quis convidar uma delas para vir nos
visitar.
— Não me interessam suas amigas.
— Então qual é o problema? Por que ficou tão zangada?
— Porque você... — começou ela, fazendo uma pausa para respirar. — Não gostei
de você ter chamado sua amiga para ir à estação.
— Não chamei ninguém. Este um país livre e moderno, lembra-se?
— Quer fazer o favor de sair, para eu poder trancar a porta?
Ele riu.
— Pois não, pois não! Tranque quanto quiser! Mas lembre-se, Marissa, que você
parece gostar de atacar a mim e a minha maneira de viver. Diz que é o meu presente que
a perturba, mas faz comentários sobre meu passado. Tenha uma coisa em mente: esta é
minha casa. Esta é minha porta, e esta é minha fechadura. E, se me der vontade,
arrombo qualquer porta dentro desta casa.
— Mas nós combinamos...
— Não! — cortou Ian com veemência, o sorriso se evaporando. — Não combinei
coisíssima nenhuma com a senhora. Nem fiz promessas. Lembre-se bem disso! Se quiser
sua preciosa privacidade, advirto-a que se mantenha bem longe de mim e guarde suas
opiniões para si.
A porta bateu com estrondo, e Marissa viu-se sozinha.
Ela ficou olhando a porta, meio aparvalhada, sentindo as lágrimas correrem
incontroláveis.
Este era um novo mundo, o seu mundo. Já gostava da cidade e sabia que teria o
respeito de todos, pois estava casada com um homem que, definitivamente, não era um
joão-ninguém. Tinha muito que aproveitar e viver ali.
E não iria deixar que Ian Tremayne estragasse o que tinha conseguido com tanto
esforço.
Engoliu o choro, com raiva. Prometera que nunca mais choraria por causa de Ian, e
pretendia cumprir a promessa. Talvez um bom banho atenuasse sua tensão. Pensando
assim, encaminhou-se para o banheiro, não sem antes reparar no quarto de vestir, tão
elegante e luxuoso quanto o quarto. O banheiro, espaçoso e confortável, tinha uma bela
banheira de porcelana com pés. Toalhas brancas e macias empilhavam-se sobre
prateleiras de mármore; as paredes eram forradas com delicados azulejos holandeses.
Num pequeno armário encontrou sabonetes, cremes, loções e um frasco de banho de
espuma francês. Já ia começar a tirar a roupa, quando se lembrou de que teria de esperar
até que John subisse com a bagagem.
Enquanto esperava, resolveu explorar o outro aposento, pegado ao banheiro.
Aquele que Ian batizara de estúdio, onde ela poderia ler, escrever para o tio, ou fazer o
que bem entendesse.
Ficou pasma com o que viu.

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"Minha Nossa Senhora! Posso hospedar metade dos mineiros só nestes três
aposentos! Se ao menos Mary estivesse comigo, as coisas seriam mais fáceis!"
Mas Mary estava no encantador chalezinho, longe do mundo, aninhada nos braços
de Jimmy. E, o que era pior, ambos se mudariam logo dali, deixando-a totalmente
sozinha.
Sozinha com Ian. Que, por sua vez, estava muito perto e muito longe ao mesmo
tempo. Bem, havia John e Lee, a chinesa que a olhara com hostilidade e frieza.
Ciúme, certamente. A exótica moça devia oferecer ao patrão mais que simples
trabalho caseiro.
Pensando assim, Marissa sentiu as faces arderem e sacudiu a cabeça. Não queria
pensar nisso. Nem lhe interessava saber.
"Seja honesta, Marissa. Você quer saber tudo sobre Ian."
Era a pura verdade. Tinha uma fascinação obsessiva por tudo que se referisse a
Ian. Quer saber detalhes sobre ele, ainda que pudessem magoá-la.
Impaciente, examinou melhor o estúdio. Assemelhava-se a uma biblioteca, com
estantes cheias de livros até o teto. Uma encantadora lareira ladeada por um divã e duas
pequenas poltronas de couro completavam com sobriedade o ambiente. As grandes
janelas deviam proporcionar ótima claridade durante o dia. Seria perfeito enovelar-se ali
para ler; e se chovesse ou fizesse muito frio, sempre haveria a lareira para aquecê-la.
Curiosa para saber os títulos dos livros que tinha à disposição, Marissa puxou um
volume e abriu-o. Nesse instante, pressentiu a presença desagradável de alguém atrás
dela. Virou-se lentamente, sentindo cada fio de cabelo e do corpo se eriçando. Lee Kwan
estava de pé, fitando-a com olhar inexpressivo.
— Vejo que a assustei, senhora. Desculpe-me.
— Você podia ter batido antes de entrar, Lee.
— As porta estavam abertas. Eu só queria avisá-la que John já trouxe suas coisas,
e sua bandeja está no quarto. Devo desfazer suas malas?
Os modos ligeiramente desdenhosos da moça enervaram Marissa, que sentiu
vontade de despachá-la naquele instante. Mas não queria fazer inimizade com Lee Kwan,
pelo menos enquanto não conhecesse os hábitos da casa.
— Não, Lee, muito obrigada. É muito gentil, mas prefiro desfazer as malas eu
mesma.
Lee inclinou-se levemente, mantendo a mesma expressão impenetrável.
— Como queira, senhora.
— Muito obrigada pela bandeja, Lee — falou Marissa, tentando ser amável.
A chinesa inclinou-se de novo, sem nada responder.
— Você e seu marido trabalham há muito tempo aqui?
— Meu marido?
— Sim, John.
— Oh, ele não é meu marido, é meu irmão. Deseja mais alguma coisa de mim,
senhora? Gostaria que eu lhe preparasse um banho?
— Não, muito obrigada. Creio que eu mesma cuidarei disso mais tarde.
Marissa estava ansiosa por um banho, mas preferia ver Lee pelas costas.
— Foi uma viagem longa, senhora. Deve estar cansada.
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— É verdade, estou mesmo.
Lee baixou os olhos e saiu, com passos leves e graciosos.
Marissa esperou um pouco, e depois foi trancar a porta do quarto. Não gostara da
intromissão inesperada da Lee e não queria mais ter surpresas nessa noite, que
provavelmente seria longa e tediosa. Achava que não conseguiria dormir naquela casa
enorme, por mais cansada que estivesse. A casa dele.
Estirou-se na cama, correndo a mão nos lençóis de fino cetim.
Era uma bela mansão, linda mesmo. Mas faltava-lhe vida e alegria.
Fechou os olhos, imaginando como teria sido a primeira mulher de Ian. Talvez
loira, delicada, de mãos finas e olhos azuis. Uma bonita e simpática mulher, certamente;
uma dama digna do nome que carregara. Ela e Ian deviam ter formado um belo casal,
alegre e amoroso. Nessa época a casa devia ter sido cheia de vida.
Marissa suspirou com melancolia. Jimmy e Mary iriam se dar muito bem na cidade,
tinha certeza. Ele se aplicaria ao trabalho e iria sair-se otimamente, pois era vivo e
esperto. Acima de tudo, amava Mary e faria tudo para dar-lhe uma vida boa. Sim, Mary
seria feliz ali.
Mas a vida de Marissa... essa seria vazia e insossa.
A menos que ela lutasse contra isso, por que não? Poderia sair, travar amizades,
assistir a espetáculos. Escrevia longas cartas para o tio, para o vigário. E se consolaria
com notícias da escola, das melhorias feitas naquela cidadezinha que ficara para trás.
Tio Theo, a escola, os mineiros... Tudo ficava além do oceano, do outro lado do
mundo. E seu coração ficara lá, com eles.
Estava exausta. Certamente era por isso que sentia continuamente um nó
apertando-lhe a garganta. Era o cansaço que lhe dava aquela sensação do completo
abandono e tristeza. Mas ela lutaria contra esse cansaço traiçoeiro. O melhor seria
começar pelo banho, quente, cheio de espuma e óleos perfumados. Depois começaria a
arrumar seus pertences, suas lindas roupas novas. Dali a pouco começaria a sentir-se
muito melhor.

Mas naquela noite Marissa não tomou banho, não tocou na bandeja que Lee
trouxera, nem sequer arrumou um lenço na gaveta. Adormeceu instantaneamente, tal
como estava, inteiramente vestida.
Afinal, dormir naquela casa grande e desconhecida não fora tão difícil assim.
Nenhum sonho veio perturbar seu sono. E Marissa nem percebeu quando a porta
que ligava seu quarto ao de Ian se abriu de mansinho. A mesma porta que ela tanto
quisera trancar.
Silencioso, Ian entrou e fitou-a por um longo tempo. Depois lhe tirou os sapatos e
ajeitou um travesseiro sob os cabelos dourados. Devagar, começou então a desabotoar-
lhe a blusa, a fim de deixá-la mais confortável.
Mas aquele gesto transportou-o a uma outra noite. Sem conseguir lutar contra as
lembranças, acariciou o rosto de Marissa. Ela parecia tão inocente e indefesa, assim
adormecida. Linda, de pele macia, o rosto sereno. Tão diferente da gata selvagem que
deixara há poucas horas! Finalmente, Ian diminuiu a luz do lampião, deixando o quarto
quase em sombras, e voltou para o seu sem fazer ruído.

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Pela janela, contemplou a cidade que também começava a adormecer. Luzes
piscavam fracamente, competindo com as estrelas que cintilavam no céu. As brumas já
envolviam as ruas em espirais preguiçosas.
Marissa tinha razão, afinal. Ele nunca conhecera a infelicidade, não sabia o que
significava lutar pela sobrevivência. Claro, sempre fora um lutador, um batalhador. Abrira
seu caminho, fizera nome, empenhara-se a fundo na profissão que havia escolhido desde
pequeno. Até se alistara na Marinha, contra a vontade do pai; lutara em defesa do país,
sempre pensando em sua Diana. Nunca fora mimado.
Mas, graças ao avô e ao pai, encontrara uma estrada já aberta e pavimentada,
mais fácil de trilhar. Sim, Marissa estava certa, Ian não conhecera a pobreza, nem a fome.
Não do jeito como ela escrevera, em cores tão vivas que Ian tivera a sensação de que ela
havia passado por experiências tão difíceis. Contudo, ela também era rica, mimada e
privilegiada. Como pudera descrever o sofrimento como se o partilhasse?
E por que tudo o que ela dizia lhe parecia tão importante?
Ian observou as luzes distantes. Não era tarde, os cabarés deviam estar
fervilhando ainda. Melhor seria vestir o paletó e buscar a ilusão da noite, longe daquela
casa. Longe de Marissa.
Mas não se moveu. Continuou observando a cidade, que parecia mágica envolta
num manto branco. Finalmente, vencido também pelo cansaço, livrou-se da roupa e
deitou-se, deixando os pensamentos vagarem livremente.
De nada adiantava se enganar; sonhar em ter Marissa nos braços naquela noite,
ansiara por isso. Com as mãos cruzadas sob a nuca, Ian contemplava o jogo de luzes que
a lua fazia no teto, enquanto procedia a um minucioso exame de consciência. O desejo
ardente e sensual que sentira naquela noite em Londres ainda perdurava, devido à beleza
de Marissa, mas perdera sua crueza e se transformara em algo mais profundo.
Por outro lado, pela primeira vez em anos ele tivera suas ideias sacudidas,
espanadas e postas a nu. Desde a morte de Diana, passara a se julgar uma pessoa só,
infeliz e perdida no mundo. Em seu egoísmo, perdera-se na contemplação do próprio
umbigo, alheio à miséria e a desgraça que existia a sua volta. Acabava de acordar da
letargia em que se refugiara, e isso devia a Marissa. De fato, ele não era o único a sofrer
com a perda de um ente querido. Pelo tom angustiado dela, adivinhara que ela também
sofria, e muito.
Marissa perdera o pai recentemente.
Mas sua dor parecia ir além da perda do pai. Como se de fato ela tivesse vivido o
que descrevera.
Ian também vira aquela cidadezinha de mineiros — como era mesmo o nome da
cidade? Fazia tanto tempo! E não gostara do espetáculo que tivera ocasião de presenciar.
Fora com o pai conhecer a cidade, por intermédio de sir Thomas, pois havia uma
possibilidade de investir dinheiro graúdo nas minas. O negócio não fora fechado, mas Ian
tivera oportunidade de ver como era miserável a vida naquele canto perdido do mundo. A
vida era dura para o trabalhador comum, sem dúvida. Aprendera isso de novo, e fora uma
bela lição de vida.
Lembrou-se das feias casinhas enegrecidas pela fuligem, das crianças magras e
famélicas que o rodeavam pedindo chocolate. Mas recordava-se de ter visto, no meio de
tanta feiura, uma garotinha bonita. E orgulhosa! Usava um vestido branco e engomado,
que contrastava com o negrume das paredes e calçadas. Tão diferente das outras
meninas, sujas, maltrapilhas e abjetamente humildes. Aquela garota nada tinha de
humilde. Bem ao contrário, ficara furiosa quando trombara com Ian e caíra no chão

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enlameado. Ian sorriu. Estranho! Os olhos da menina eram verdes e vivos, iguais aos de
Marissa. Ou sua memória o traía agora? Talvez ele estivesse recriando a cor dos olhos da
garota, porque ela e Marissa o haviam enfrentado com igual determinação.
Sim, aquela cidade retratava a miséria do mundo. Nas poucas horas que lá
passara, tivera a sensação de morte, sofrimento e luta selvagem pela sobrevivência.
Marissa devia gostar muito de Mary, para se sentir tão próxima do problema.
E nessa noite Ian desejara consolar Marissa. Desejara acariciá-la, transmitir-lhe
segurança.
Diabos, ele não sabia o que desejara.
Virou-se de bruços, socando o travesseiro. Estava cansado e precisava dormir,
pois teria uma reunião no escritório no dia seguinte, para decidir sobre as casas que
pretendia construir nas marinas. Além disso, teria de mostrar a cidade aos recém-
chegados, apresentar Jimmy ao pessoal da empresa. Precisava dormir, demônios.
Mas não conseguia.
Em vez de Marissa, era ele que havia de ficar acordado a maior parte da noite.
Uma vozinha incômoda murmurava em seu ouvido que Marissa estava ali, do outro
lado da porta.
A porta que ela se esquecera de trancar, apesar de ter feito todo um estardalhaço.
Alguma coisa acontecera com ele naquela noite em Londres, alguma coisa que
fizera o presente ser mais importante que o passado. O que fora? Talvez os olhos de
Marissa, que o haviam desafiado, despertando-o para a vida. Talvez seu espanto ao
descobrir que ela era virgem.
Por que Marissa não trancara a porta?
Estava tão perto! Bastaria dar alguns passos para tê-la de novo nos braços. Afinal,
a casa era sua, não era? E ele não fizera promessas nem acordos. Prevenira-a bem
quanto a isso. Só alguns passos.
Revirou-se, impaciente, fechando os olhos com força. Essa inglesa nunca
substituiria Diana, nunca! Ele não queria mais se envolver com ninguém a sério. Esse
casamento nascera falso e assim permaneceria. E se seu corpo clamasse por mulheres,
saberia onde buscar alívio. Aliás, por isso fora visitar Lilli.
Mas Lilli, mesmo tendo um rosto de boneca, não chegava aos pés de Marissa.
Aquele queixinho petulante, aquela chama nos olhos, aquela cascata de cabelos cor de
fogo... E como ficava linda quando estava zangada, céus!
E como se mostrava dócil e submissa em seus braços! Nunca mais poderia
esquecer seu perfume, o contato sedoso dos cabelos acobreados.
Sim, desejava-a como nunca. Era natural, pois Marissa era estonteante, e ele era
jovem. Mas hoje...
Hoje ela gritara com ele, ouriçara-se com uma gata. E depois fizera ironias e o
magoara.
Contudo, muito do que dissera calara fundo e acordara nele mais do que simples
desejo carnal. Ian nunca tivera a intenção de cultivar tanto a auto piedade. Simplesmente
sentia falta de Diana.
Havia se casado com Marissa e não fizera nenhuma promessa. Droga, bastava
pular da cama, abrir a porta e tomar a mulher nos braços. Sua mulher. Não forçaria nada;

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mas seria gentil e os protestos dela morreriam aos poucos, exatamente como acontecera
na primeira noite. E poderia descansar um pouco o corpo tenso, depois.
Levantou-se, nu em pelo, começando a sentir uma ereção. Deu dois passos
incertos em direção à porta, depois parou.
Sim, a tensão e o desejo poderiam ser atenuados, mas mais tarde seu coração
estaria imerso em remorsos. Se fizesse de Marissa sua verdadeira mulher, seria como
trair Diana. Além disso, não queria que Marissa compartilhasse sua vida em nada e por
nada.
Por irônico que fosse, casara-se com Marissa, mas não podia fazer dela sua
mulher.
O nevoeiro espalhava seu manto diáfano sobre a cidade, e a lua, muito acima,
criava uma luz macia e irreal.
Ian ficou ali de pé, os músculos latejando, a cabeça atirada para trás.
Minutos longos e solitários se passaram. Começou a respirar profundamente,
tratando de prestar atenção na paisagem mágica que se estendia a seus pés.
O apito surdo e triste de um navio cortou os ares.
Marissa acabara de chegar e estava ali, ao alcance de suas mãos. Quando ela
estava em Londres, do outro lado do mundo, Ian nunca imaginara que, tendo-a perto,
ficaria em tal estado de perturbação e desassossego.
Marissa dormiria pesadamente. De exaustão. Um sono inocente e solto como o de
uma criança.
Não, ele não a despertaria. Não perturbaria esse sono por nada no mundo. Outro
dia, quem sabe...
Resolvido, voltou para a cama. Sentiu um cansaço gostoso envolvê-lo. Agora sabia
que iria dormir, ainda que por pouco tempo.
Uma claridade tênue começava a se insinuar por entre a névoa. Ian passara a
noite em claro.

CAPÍTULO X

Marissa acordou desorientada. Ao abrir os olhos, viu-se sobre macios lençóis de


cetim, cercada por um ambiente estranho, mas agradável. A luz da manhã permeava
pelos vidros da janela, espalhando-se suavemente pelo quarto.
Quando se situou, seus lábios desenharam um sorriso travesso. O longo sono
restaurara-lhe as forças, e ela se sentia muito bem, quase contente. Aquele quarto de
sonho lhe pertencia, assim como o banheiro e o estúdio. Estava em seus domínios,
belíssimos domínios!

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Atirando de lado os lençóis, levantou-se e franziu o cenho, tentando lembrar-se de
como tirara os sapatos e desabotoara a blusa. Deu de ombros, desinteressada. Estava
tão cansada na véspera que nem se lembrava como havia adormecido.
As malas achavam-se no chão, perto da cama. Abriu uma delas, em busca da
pasta de dentes e da escova, e encaminhou-se para o banheiro. Lavou o rosto, escovou
os dentes e sorriu para o espelho.
"Bem, estou numa gaiola de ouro. Talvez não seja tão ruim assim."
Estava pronta para digladiar-se com Ian novamente. Sentia-se revigorada, disposta
a ir à forra naquele mesmo dia.
Abriu as torneiras douradas da banheira, deixando a água jorrar generosamente,
enquanto pensava nos banhos de sua infância. Enquanto nesta casa havia de tudo, e da
melhor qualidade, no pequeno casebre do tio tomar um banho era uma verdadeira
batalha. Era preciso aquecer potes e potes de água, carregar a pesada tina de madeira
até o quarto, enchê-la, depois esvaziá-la, secá-la, carregá-la de novo até o celeiro... Dava
preguiça, só de pensar. E isso Marissa fizera diariamente, entrava ano, saía ano. Mesmo
no confortável castelo de sir Thomas não havia água corrente em seu quartinho do sótão.
Sim, sir Thomas dispunha de uma sala privativa de banho, mas nem de longe se
comparava com este banheiro. Seu banheiro!
Pegou o frasco de espuma e despejou metade do conteúdo na água, antecipando
o prazer de enfiar-se sob a nuvem cheirosa que se formava na superfície da água.
Quando a espuma começou a transbordar, irresistivelmente convidativa, despiu-se e
mergulhou, deliciando-se em ficar alguns momentos inteiramente submersa. Melhor que
imaginara. Marissa sentia-se num sonho. Sentou-se, encostando a cabeça nos azulejos, e
fechou os olhos.
"Nada má, esta prisão!", pensou, sorrindo consigo mesma.
E levantou um dedo, apontando acusadoramente para o vazio:
— Ian Tremayne, previno-o de que saberei fazê-lo comportar-se comigo! Juro que
vou colocá-lo direitinho em seu lugar!
— É um juramento perigoso, esse — respondeu uma voz calma e zombeteira.
Tamanho foi o susto que Marissa espadanou água por todos os lados, salpicando
de espuma os azulejos. Virou-se desastrada, para deparar com os olhos azuis fitando-a.
Ian estava encostado na soleira, pernas cruzadas e mãos no bolso. Vestia um terno caqui
impecável, camisa de seda e colete escuro. A mecha rebelde parecia dançar alegremente
sobre sua testa. No conjunto, era mesmo um homem bonito. O coração de Marissa
disparou, deixando-a irritada. Parecia reflexo condicionado; era ver Ian e sentir o coração
saltar no peito. E isso não devia acontecer, pois dava-lhe um sentimento de inferioridade
intolerável. Precisava estar sempre pronta para discutir em pé de igualdade com aquele
arrogante. O pior era o ar de confiança e a energia que deixavam Ian ainda mais atraente.
Havia firmeza e decisão em seus olhos, o que o tornava a um tempo desejável e
perigoso.
Finalmente, Marissa conseguiu reunir coragem e orgulho.
— Que está fazendo aqui?
— Nada de importante. Apenas ouvindo como você poderá me colocar em meu
devido lugar.
— Não perde por esperar, Ian Tremayne. De qualquer modo, estes são os meus
aposentos, como você mesmo disse, e não gosto que entrem sem bater.
— Eu bati, mocinha, mas não ouvi resposta.

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— Consequentemente também não ouviu permissão para entrar.
— Minha cara, o silencio era assustador. Fiquei com medo que estivesse se
afogando e entrei. Na verdade, cheguei a levar um susto. Você estava inteirinha debaixo
dessa espuma.
— Bem, não me afoguei, estou perfeitamente viva, e você não tinha nada que
entrar aqui.
— Esta casa é minha.
— Mas você me deu estes quartos!
— Não, não dei — respondeu ele, aproximando-se e ajoelhando-se ao lado da
banheira. — Apenas emprestei.
Marissa juntou espuma sobre o corpo, mas esta estava se desfazendo a um ritmo
alarmante.
— Fora! — ordenou.
— Não entendo esse embaraço todo — comentou ele, divertido. — Somos adultos,
homem e mulher, casados, vacinados... Que pudores de virgem ameaçada são esses?
Cresça, Marissa. Já vi você nua, sem essa espuma cor-de-rosa.
— Isso aconteceu há séculos, a quilômetros daqui, à noite, e, acima de tudo, foi um
terrível engano. Pelo qual você mesmo se desculpou, aliás.
A inquietação de Marissa crescia a cada segundo, Ian estava perto demais. O leão
aproximava-se perigosamente da caça... e ela não estava gostando das próprias reações.
Ian estendeu a mão, tocando-lhe de leve o pescoço e percorrendo-o com os dedos.
— A noite não estava tão escura assim, porque pude ver tudo. Nem foi há séculos.
E o fato de eu ter pedido desculpas não me impede de lembrar cada minuto que
passamos juntos. Ora, ora, quem diria, essa espuma está se acabando mais depressa do
que você supunha, hein?
A ironia exasperou-a. De fato, sobravam alguns flocos de espuma esparsos, que
não mais escondiam seu corpo nu. Rápida, Marissa deu um tapa na superfície da água,
mandando um chuveiro de espuma para o rosto de Ian. Foi recompensada com uma
praga.
— Sua bruxa, espere só...
Ela decidiu que seria melhor fugir dali, mesmo nua em pelo. Ergueu-se agilmente,
aproveitando-se da confusão de Ian.
Foi alcançada no quarto, mas ele não conseguiu segurar o corpo escorregadio,
cheio de sabão.
— Não! — gritou ela, sem saber se entrava em pânico ou se explodia em riso, pois
a situação era realmente cômica.
— Você destruiu meu terno novo! — trovejou ele, indignado.
— E você destruiu meu banho, minha solidão e minha paz! — retorquiu Marissa,
recuando para perto da cama.
Queria apanhar um lençol e enrolar-se nele, mas Ian foi mais rápido. Agarrou-a
com força, para que ela não escorregasse de novo. E com tal ímpeto que os dois caíram
sobre a cama, afundando na maciez do colchão de penas. Ian sentiu a pele acetinada e
cheirosa de Marissa, que estremeceu sob seu corpo.
— Saia daqui! — gritou ela, debatendo-se. — Seu bandido!

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— Eu avisei para não se meter comigo, não avisei?
— Eu estava no banho, muito longe de você!
— E me provocou com espuma nos olhos.
— Só tentei me defender! Saia daqui!
Mas já a língua de Ian começava a passear impaciente sobre seu pescoço, quente,
macia, gostosa. Havia uma luz nos olhos de Ian, que parecia atingir direto o coração de
Marissa. Não, ela não podia permitir que aquilo acontecesse de novo!
Sabia que faltava pouco para se apaixonar por Ian. Gostava daqueles cabelos
fartos e negros, do queixo quadrado, do sorriso ora enigmático, ora atrevido.
Desesperada, tentou lembrar-se das outras mulheres de Ian e ficar com raiva dele.
Em vão. Os beijos de Ian iam aquecendo seu corpo à medida que se tornavam
mais ardentes. A boca dele começou a descer, pela curva do pescoço. As mãos
buscaram as de Marissa e os dedos entrelaçaram-se delicadamente, enquanto os beijos
prosseguiam para baixo, vagarosos, macios. A ponta da língua chegou nos mamilos
firmes e intumescidos, rodeando-os devagarinho.
— Você... você não me quer — tentou lembrá-lo Marissa, enrolando as palavras.
Ian mergulhou o rosto entre os seios dela, depositando um beijo ardente no vale
macio, molhando-o com a língua. Subitamente, ela se viu desejando mais. Queria que ele
a beijasse na boca, que se livrasse da roupa e se estirasse nu sobre ela. Queria
mergulhar os dedos nos cabelos pretos, puxar Ian para cima, para perto de seu rosto.
Engoliu em seco e repetiu:
— Você não me quer aqui, não quer ter uma esposa, já me disse isso. Ian, me
largue!
Torceu-se, buscando escapar, mas nada podia contra o corpo volumoso e forte
que a prendia. Quanto mais se mexia, mais se ajeitava de encontro a Ian, mais junto dele
ficava. Os lábios de Ian continuavam a deslizar suavemente sobre seus seios, fazendo-a
arder num desejo incontrolável.
— Ai... Ian, por favor! — suplicou baixinho.
Ele parou por um breve instante. Depois respondeu, com voz rouca:
— Engana-se, Marissa. Eu quero você.
— Me largue!
— É o que quer, mesmo? Tem certeza disso?
Ele ergueu a cabeça, fitando-a sem sorrir, os olhos muito escuros e sérios.
— Ian...
— E quanto a você, Marissa? Não me quer também?
Ela conteve um soluço, incapaz de articular qualquer palavra. O olhar azul-escuro
continuava sobre ela inquisidoramente. Desta vez não havia batalhas nem jogos de ironia;
apesar disso, Marissa sentia medo de responder. Não podia explicar com palavras o que
sentia, embora compreendesse bem o que se passava com ela.
"Faça amor comigo, Ian", era o que queria dizer. "Porque estou irremediavelmente
apaixonada por você. Pouco me importa que você não me ame. Pouco importa que não
me queira como sua verdadeira mulher. Gosto de seus modos arrogantes, gosto de seu
sorriso, gosto de seus cabelos, seus olhos... Eu te amo, Ian. Perdidamente. Você queria
sua presa? Pois aqui estou. Faça amor comigo agora."

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Muitos pensamentos, surpreendentes até para si mesma, não ousou pôr em
palavras. Ian não a amava; estava apaixonada por um fantasma. E costumava fazer amor
com um sem-número de mulheres fáceis, sem rosto e sem identidade.
Além disso, não podia declarar seu amor, uma vez que vivia uma mentira. Marissa
não era a mulher que Ian julgava ser.
Mesmo assim, ansiava por fazer um carinho no rosto sério de Ian.
E foi o que fez. Estendeu a mão e deixou que seus dedos percorressem a curva do
queixo, tocassem de leve as pequenas rugas que circulavam os olhos azuis.
Depois, assustada com os próprios sentimentos, soltou um gemido angustiado.
Quase esquecera seu orgulho!
— Não! — forçou-se a dizer, contorcendo-se de novo. Desta vez, Ian não ofereceu
resistência e deixou-a levantar-se.
Marissa sentou-se dando-lhe as costas. Manteve a cabeça baixa, porém.
— Não! — repetiu.
Mas a voz saiu embargada e triste.
"Não quero me entregar a quem vive na companhia de um fantasma!", pensou.
Também não queria ser mais um rosto sem identidade.
Mas não podia expressar seus sentimentos.
— E eu pretendia atormentar você... — disse ele, com um sorriso amargo.
— Como disse?
— Nada de importante — foi a resposta seca, antes de levantar-se de um salto.
Para espanto dela, Ian puxou o lençol e cobriu-a com delicadeza.
— O café será servido daqui a pouco. Teremos de compartilhar a sala de jantar,
porque não há duas nesta casa. Mas preciso que ande depressa, pois tenho muitos
negócios a tratar. Por favor, desça assim que puder.
Marissa ficou de pé, segurando o lençol com ar incerto. Ele fez uma careta,
aproximou-se e encarou-a por algum tempo. Por fim, plantou-lhe uma sonora palmada no
traseiro.
— Trate de melhorar a aparência, moça, e depressa. Sou um americano novo-rico,
não um nobre inglês, portanto tenho de trabalhar para alimentar minhas contas bancárias.
Sem esperar resposta, passou para o quarto dele, fechando a porta de mansinho.
Marissa acompanhou-o, a fim de trancar a porta. Mas hesitou e acabou não tocando na
chave.

Dez minutos depois estava diante de Ian, na sala de jantar.


Ao descer as escadas, vira-se diante do imponente hall e instintivamente dobrara à
esquerda. Encontrara-se numa grande sala de estar, com enormes janelas que davam
para o gramado. Atravessando-a, chegou à sala de jantar, onde Ian a esperava, sentado
à cabeceira da grande mesa retangular. Quando a viu, largou o jornal e levantou-se com
polidez. Havia trocado de roupa, como era de esperar; trajava um paletó azul-marinho,
tipo marinheiro, com botões dourados, e calça de flanela bege. Marissa sorriu ao notar
que a mecha rebelde fora cuidadosamente escovada e penteada para trás.
— Há torradas, ovos e queijo no aparador — disse ele, cruzando a sala e
oferecendo-lhe uma cadeira na outra ponta da mesa.

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Pegou um bule fumegante e serviu café, entregando-lhe a xícara.
— Gosta de café ou prefere chá? Sendo inglesa, talvez prefira chá.
— Não, café está ótimo, obrigada.
— Precisa comer bem, pois vamos ficar fora a maior parte do dia.
— Estou sem fome.
— Mas vai comer assim mesmo. Lee, por favor, prepare um prato para a senhora.
Marissa virou-se, surpreendida. A silenciosa Lee estava parada num canto, em
atitude submissa. Ao ouvir a ordem, a chinesa adiantou-se para o bufê, mas Marissa
deteve-a, decidida a não aceitar serviços daquela mulher.
— Obrigada, Lee, eu mesma faço o prato.
Os olhos negros e exóticos fitaram-na com franca hostilidade, para logo depois
baixar.
— Como queira, madame.
Marissa foi ao bufê e serviu-se de ovos, bacon e torradas, voltando em seguida
para se sentar. Havia planejado trocar algumas palavras com Ian a respeito do que
ocorrera. Tencionara discutir os assuntos com maturidade e de forma a criar um
relacionamento aceitável entre os dois, mas agora via que isso seria impossível; a
presença de Lee inibia-a terrivelmente.
Bebericou o café e começou a comer sem vontade.
— Vamos conhecer a cidade hoje, Marissa. Jimmy e Mary também irão — falou
Ian, correndo os olhos pelo jornal. — Mas depois do almoço preciso levar Jimmy à loja;
além disso, tenho uma reunião que não posso adiar. John ficará a sua disposição para
levá-la aonde quiser.
Lee pigarreou discretamente, como que pedindo permissão para falar. Ian olhou-a
com curiosidade.
— Talvez a senhora e dona Mary queiram explorar a cidade sozinhas. Os táxis são
velozes e bons, como o senhor sabe.
— É verdade, Lee, mas creio que no primeiro dia seja melhor que John as
acompanhe. Embora San Francisco seja uma bonita cidade, ela pode ser perigosa para
quem não a conhece bem.
Marissa sorriu enquanto passava manteiga numa torrada. Não gostara da
intervenção de Lee.
— Perigosa? — repetiu. — Sim, já ouvi falar na Costa Brava, aquela que fica no fim
da baía. Parece que lá há toda sorte de divertimentos, jogos, bares, cabarés e... e motéis.
— Isso foi no passado, minha cara. Os motéis pululavam como moscas num
estábulo.
— Quer dizer que eles não existem mais? — perguntou ela, com ar inocente.
— Absolutamente não. Mas não é isso que pretendo lhe mostrar, e sim a parte
mais refinada e sofisticada da cidade.
Alguns momentos depois, Ian pousou a xícara no pires.
— Está pronta, Marissa?
Na verdade, ela mal provara os ovos, mas sabia que Ian estava decidido a sair
naquela hora, pois já se erguera para ajudá-la a se levantar.

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— Lee, diga a John que nos encontre na loja às duas da tarde. Ele ficará cuidando
de Marissa e de Mary.
Lee assentiu respeitosamente.
— O senhor vem jantar em casa?
— Sim, todos viremos, obrigado. Vamos, Marissa.
Ele a puxou pela mão, conduzindo-a para a entrada. Mas logo deteve-se,
examinando a roupa de Marissa.
— Você vai precisar de um abrigo qualquer. O tempo aqui muda muito depressa.
Suba e escolha um, mas não demore.
Marissa correu para o quarto e vasculhou as malas até encontrar uma elegante
capa verde, que, embora leve, poderia aquecê-la caso fizesse frio. Andara o mais
depressa que pudera, mas ao descer encontrou Ian andando impacientemente no hall.
— Espere aqui na entrada. Eu vou buscar o carro.
— Carro? Daqueles de motor? — repetiu ela, espantada. Na véspera, Ian fora
buscá-la de carruagem. Marissa nunca entrara num carro e agora estava ansiosa para
conhecer um.
Ian sorriu da ingenuidade.
— Tem medo de automóveis, Marissa?
— Não, de modo nenhum.
Seguiu-o correndo, e quase o atropelou pelas costas quando ele parou.
— Eu disse que viria apanhá-la aqui, Marissa.
— Sei, mas estou curiosa para ver o automóvel.
— Não é "o" automóvel, minha cara. São "os" automóveis.
Ele diminuiu um pouco o passo para que ela não precisasse correr, e deu a volta
na casa. À esquerda havia uma grande garagem, cujas portas estavam abertas. De um
lado ficavam os estábulos, onde soberbos cavalos comiam tranquilos. Entre eles, Marissa
reconheceu o belo e imponente par de cavalos pretos que a haviam trazido da estação.
Do outro lado viu inúmeras carruagens, alinhadas por detrás de três reluzentes carros a
motor.
Marissa estacou, admirando as linhas elegantes dos três veículos, cuja lataria
reluzia ao sol da manhã.
— Nunca viu um automóvel antes?
— Claro que sim, mas não de perto.
Ian puxou-a pela mão, levando-a para um deles, de cor cinza-escura, cujas formas
lembravam as de uma carruagem.
— Este é francês e chama-se Levassor-Panhard. Tem um motor Daimler, bastante
potente.
Marissa parou para examinar melhor o veículo, mas Ian já se dirigia para o
segundo.
— Este também é francês; chama-se Renault. E aquele ali em frente é americano,
um Oldsmobile 1901.
E unindo o gesto à palavra, abriu a porta e ajudou-a a subir. Marissa quase bateu
palmas quando sentou no macio estofamento aveludado. Ian percebeu sua alegria infantil
e soltou uma risada.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Se eu soubesse que gostava tanto de carros a motor eu a teria convencido a vir
para cá mais depressa. Eles seriam meu melhor argumento!
Ian deu a partida e Marissa tremeu de excitação quando o carro começou a sair da
garagem, rumo aos fundos do jardim, onde ficava o chalé de Mary.
— É maravilhoso, Ian! Mas que estranho, eu pensei que cavalos fossem a sua
grande paixão. Você estava montado num belo garanhão, naquele dia em que o vi...
Deteve-se, levando a mão à boca. Rezou fervorosamente para que Ian não se
lembrasse daquele dia em que fora visitar sir Thomas, um ano antes da morte do
castelão. Tentou desesperadamente lembrar-se de outra vez em que vira Ian a cavalo,
mas sua mente se transformara numa parede branca.
— Montado, eu? — questionou ele.
— Oh, não tenho certeza. Talvez eu tenha me enganado.
— De qualquer modo, você acertou. Gosto demais de cavalos e tenho alguns
magníficos.
— É, eu vi. Os pretos são muito bonitos.
— Eles são de tração, mas tenho alguns de montaria também. Como disse, adoro
cavalos, mas acredito que estamos na era do motor. Algum dia haverá mais carros a
motor do que cavalos, pelo menos nas grandes cidades.
Detiveram-se diante do gracioso chalé, onde Mary já os aguardava. Quando os viu,
acenou e entrou para logo voltar acompanhada de Jimmy. Ambos admiraram o
Oldsmobile, soltando exclamações à medida que descobriam detalhes novos. Jimmy
crivou Ian de perguntas quanto ao combustível, à quilometragem, à velocidade... Depois o
casal sentou-se no banco de trás, enquanto Ian informava:
— Ainda temos o resto da manhã para passear um pouco. Vou tentar mostrar-lhes
uma pequena parte de San Francisco.
E, tagarelando animadamente, os quatro visitaram as avenidas principais e as ruas
mais importantes, no coração da cidade. Deram um giro por Chinatown e margearam
vagarosamente a grande baía. Depois Ian parou no alto de um morro, de onde se
avistava a cidade toda.
— É um espetáculo lindíssimo! — exclamou Marissa.
— Também acho. Vamos descer para apreciar melhor! — propôs Mary, animada.
Desceram e postaram-se no pico da montanha, impressionados com a suave
beleza da cidade. A certa altura, Marissa sentiu a mão de Ian no ombro.
— Repare como o nevoeiro chega de mansinho e começa a levantar-se da baía
para cobrir a cidade. É algo que nunca me canso de ver. Desde pequeno gosto de ver
San Francisco assim envolta em brumas; é como se ela se vestisse de noiva.
Marissa sentiu o coração aquecido. Aquela manhã se passara sem que ela tivesse
percebido; sentira-se bem tratada e feliz. Ian gostara do entusiasmo que ela demonstrara
pelos automóveis, e conversara o tempo todo com ela como se fossem amigos. Mas
Marissa sabia que essa trégua não duraria muito. A vida pregressa de Ian assustava-a;
havia muita coisa que ela não sabia ainda, e temia saber. Por outro lado, havia muita
coisa na vida dela que Ian desconhecia... Isso era o pior.
— Realmente, Ian, eu estou apaixonada por San Francisco — falou Mary,
abraçando Jimmy carinhosamente.
— Isso é bom — respondeu Ian. — E você, Jimmy, acha que vai se dar bem aqui?

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— Sem dúvida! É um lugar maravilhoso. Com razão tem orgulho de sua cidade,
Ian.
— Tenho mesmo. San Francisco é minha vida.
— Um paraíso — arrematou Marissa.
— Sim, exceto...
Ian interrompeu-se, franzindo a testa. Ia dizendo "exceto pelos tremores de terra
que há de vez em quando", mas preferiu calar-se, sem saber exatamente por quê.
Exceto, também, pela reunião que teria de aguentar naquela tarde. Os proprietários
insistiam em construir próximo às marinas, e Ian pressentia que a reunião não seria fácil.
— Exceto o quê? — perguntou Marissa.
— Não há exceções.
— Mas você disse...
— Está ficando tarde — interrompeu-a Ian, com certa impaciência. — Precisamos
ainda almoçar, antes de ir conhecer a loja.
Marissa calou-se. Ian não falou durante todo o percurso de volta, alheio à conversa
animada de Mary e Jimmy. De volta à cidade, Marissa viu pela primeira vez um ônibus
elétrico, veículo que não havia em Londres. Carros a motor disputavam caminho com
veículos puxados a burro, buzinas soavam estridentes e camelôs apregoavam as virtudes
de seus produtos, num burburinho alegre sob a luz do meio-dia. Finalmente, Ian
enveredou por uma rua mais estreita e parou o carro. Não foi preciso mostrar sua loja a
ninguém; todos a viram ao mesmo tempo.
Era um edifício maciço, de três andares, em cuja fachada de tijolos lia-se
"Tremayne's" em grandes letras negras. Mas Ian puxou-a pelo braço, conduzindo-a para o
outro lado da rua.
— Vamos primeiro almoçar ali, no Antoine.
O restaurante ficava num edifício em frente à loja, apertado entre um telégrafo e
um banco. Sóbrio e simples, tinha mesas com toalhas imaculadamente brancas,
adornadas por pequenos castiçais de cristal e bronze. Apesar da simplicidade do lugar, as
mesas estavam cheias de gente elegantemente vestida, evidenciando que aquele
restaurante devia estar na moda. Ao lado esquerdo alguém tirava alegres acordes de um
piano.
O maître logo veio receber Ian, oferecendo-lhe uma mesa perto do piano.
— E esta senhora deve ser madame Tremayne, je pense, monsieur!
— Sim, Jacques, esta é minha mulher. Marissa, este é Jacques. Jimmy e Mary
O’Brien, meus amigos de Londres.
O francês curvou-se com deferência, risonho.
— Se vocês estiverem por perto daqui na hora do almoço, não hesitem. Este é o
melhor restaurante das redondezas. E o mais rápido, também. Jacques irá tratá-los muito
bem, garanto!
— Mais oui, mais oui! — assentiu Jacques, fazendo sinal para o garçom vir servi-
los. — É sempre um prazer receber sua visita, sr. Tremayne. E sua esposa é muito jovem,
encantadora. Vraiement charmante!
Marissa corou levemente, sentindo o olhar de Ian, que a examinava como se
verificando se o francês tinha razão.
— É — respondeu ele por fim. — Ela é jovem.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa gostaria que Jimmy acorresse em sua defesa, ou pelo menos dissesse
algo mais galante; mas ele estava ocupado com outros pensamentos. Mary estudava o
cardápio.
— Jacques, que se passa com você hoje? — perguntou Ian, irritado com o ar
apalermado do maître, que não tirava os olhos de Marissa. — Mexa-se, homem! Estamos
com pressa!
— Imediatamente, senhor — respondeu o homem, meio sem graça. — Vou
mandar Raoul atendê-los já. E o sommelier também já vem.
Segundos depois, Raoul estava ao lado da mesa, tão aparvalhado com Marissa
quanto Jacques. Ela se sentia vagamente lisonjeada, mas não entendia por que causava
tamanho rebuliço. Talvez por ser inglesa, e mulher de Ian Tremayne, o todo poderoso
dono da loja em frente?
— Posso fazer o pedido? Confiem em mim, que vão comer bem — disse Ian, com
polidez.
Marissa percebeu que ele estava impaciente. Devia estar com pressa de retomar o
trabalho, depois de ter desperdiçado a manhã mostrando a cidade a ela e aos novos
amigos.
— É claro que confio. De minha parte, pode pedir por mim — disse Marissa.
— E da nossa também — interveio Jimmy, feliz de não ter que se embaraçar com
os difíceis nomes franceses do cardápio.
O sommelier despejou um pouco de vinho na taça de Ian, que, depois de provar,
assentiu com a cabeça. Marissa notou que Jimmy estudava cada movimento de Ian,
ansioso para aprender a agir, também ele, como um cavalheiro. Depois de fazer o pedido,
Ian começou a falar sobre o parque Golden Gate, ao qual eles não tinham ido ainda.
— Uma casa de chá japonesa foi erguida lá durante a exposição de 1894. É um
lugar extremamente agradável, e eu recomendo às senhoras irem visitá-lo.
Ele se interrompeu, olhando para a porta. Marissa voltou-se e logo descobriu por
quê.
Uma mulher vinha em sua direção. Era alta e magra, de feições delicadas e olhos
castanhos muito grandes. Os cabelos, elegantemente atados no alto da cabeça, eram
castanhos também, escuros e lustrosos como pelo de zibelina. Vinha sorridente, exibindo
com displicência um vestido lilás de decote generoso. Movia-se com sensualidade felina,
e era óbvio que conhecia Ian muito bem.
Era igualmente óbvio que não se tratava de uma dançarina de cabaré.
Ian levantou-se sem demonstrar nenhum aborrecimento, e Marissa sentiu-se corar.
Ian não lhe fizera promessas, e ela devia lembrar-se disso.
— Alô, Grace.
— Ian, querido! — disse a mulher, pondo-se na ponta dos pés para beijá-lo
levemente no rosto.
Depois virou-se para Marissa, e o belo sorriso modificou-se sutilmente. Houve um
brilho de disfarçado espanto e aborrecimento nos grandes olhos escuros, logo disfarçado
com habilidade.
— Você deve ser... a sra. Tremayne, não é? Que mocinha encantadora, Ian. Meus
sinceros parabéns! Oh, mas Ian tem modos insuportáveis, não acha, minha cara? Nem
me apresentou ainda. Bem, talvez você ainda não o conheça tão bem como eu, portanto

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
eu mesma vou me apresentar. Meu nome é Grace Leroux. Somos velhos amigos, seu
marido e eu.
A mulher que Marissa vira na estação causou-lhe um choque. Esta deixou-a
arrasada. Houvera um tempo em que a vida de Ian não lhe interessava a mínima, mas
agora ela se sentia ultrajada. Não gostara dos modos daquela esnobe, que a tratava
como um bebê recém-saído dos cueiros e a chamava condescendentemente de
"mocinha".
Levantou-se, oferecendo a ponta dos dedos a Grace Leroux, com um sorriso
sereno e altivo.
— Muito amigos, realmente, pelo que vejo. E, de fato, às vezes meu marido tem
modos atrozes — acrescentou, atirando para Ian o olhar mais adorável e cúmplice que
conseguiu.
Ian olhou-a surpreso, a testa franzida. Depois seus lábios se curvaram num sorriso
divertido. Encorajada, Marissa continuou:
— Sra. Leroux... ou é senhorita ainda?
— Senhora — sibilou Grace, não conseguindo esconder seu aborrecimento com a
pergunta sutil.
— Sra. Leroux, estes são meus amigos, Mary e Jimmy O’Brien. Meus queridos,
esta é Grace Leroux, velha amiga de Ian.
A palavra "velha" saiu ligeiramente acentuada, exatamente como Marissa queria.
Não demais, nem de menos. Mas o efeito foi fulminante.
Jimmy já se erguera, meio atrapalhado com a cadeira, enquanto Mary sorria
angelicalmente para a recém-chegada.
— Grace, fica conosco? — interveio Ian, levemente incomodado com a tensão que
se formara no ar. — Quer que peça uma cadeira para você?
— Que ideia encantadora, Ian! Aceito de bom grado.
Ian fez um sinal para o garçom, e instantes depois, Grace estava sentada com os
quatro, parecendo ter recuperado o comando da situação.
— Ian, o piquenique em benefício do nosso orfanato será na semana que vem, não
se esqueça! Os executivos mais importantes de San Francisco estarão lá, por isso não
falte! Podemos contar com você, não é? — Virou-se para Marissa, a quem deixara
deliberadamente fora da conversa: — Minha querida, é um piquenique praticamente só
para homens, infelizmente. Então, Ian, você vai?
— Eu dou inteiro apoio ao orfanato, Grace — respondeu Ian, com um suspiro
impaciente. — É claro que irei.
— Por que as esposas não podem ir? — perguntou Marissa com inocência.
— Bem, faz parte da tradição, entende? A menos que esteja envolvida na
instituição, como eu. Além disso, é mais uma reunião de negócios, que acontece todo
mês. Terrivelmente maçante e cansativa. Ian sempre me acompanha, é um dos mais
importantes doadores. Espero que não se importe de eu roubar seu marido.
— Oh, mas você não vai roubar ninguém de mim, não há o menor perigo —
revidou Marissa. A menos que eu deixe, é claro.
Depois sorriu para Mary, cruzando as mãos sobre a mesa:

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Mary e eu estávamos planejando conhecer o parque. Creio que seria uma boa
ideia irmos lá no dia desse maçante piquenique de negócios. Desse modo, não há por
que se sentir culpada por causa de meu marido. E sua tradição será preservada.
Grace ainda sorria, mas com visível esforço. Houve alguns instantes de silêncio.
— Bem, veremos — disse ela, por fim, levantando-se. — Ian, querido, agora me
lembrei que não posso ficar mais com você. Ficaremos em contato, não é?
Ela fixou os olhos escuros em Marissa.
— Realmente, conhecer você foi uma... surpresa. Até breve para todos.
Cumprimentou Jimmy e Mary, com quem mal trocara duas palavras, e deixou a
mesa. Marissa notou que, antes de sair pela porta, Grace lançava um olhar raivoso para
Ian. Mas este, entretido com a comida que acabava de chegar, nada percebeu.
Marissa absteve-se de falar muito durante a refeição, até que o assunto do
piquenique veio novamente à baila.
— Ian, que orfanato é esse? — perguntou Mary.
— Oh, é uma das muitas instituições que ajudo. Nada de muito importante.
— Devo ir com Mary ao parque nesse dia? — perguntou-lhe Marissa.
Ele deu de ombros.
— Se preferir. Não sei que raio de tradição é essa de que Grace falou; não há
razão para vocês duas não irem ao piquenique. Quanto a Jimmy, prefiro que ele fique
cuidando da loja nesse dia.
Marissa baixou os olhos. Não queria que Ian percebesse o quanto gostara de ouvir
aquelas palavras.
Contudo, quando saíram do restaurante, Marissa aproveitou-se do fato de Jimmy e
Mary estarem meio afastados e dardejou:
— Tive a ligeira impressão de que Grace Leroux não sabia de minha existência,
pelo modo como me tratou no começo. Ela foi esperta, e logo adivinhou. Fingiu que já
sabia que eu era sua mulher, mas não me enganou nem por um minuto. Aliás, pareceu-
me que ela veio ao restaurante para encontrar-se com você.
— Talvez. Ela costuma vir almoçar aqui. Quanto a sua existência, não havia razão
nenhuma para eu informá-la.
— Por que não me defendeu quando ela me chamou de mocinha?
Ian lançou-lhe um olhar desdenhoso.
— Você soube se defender sozinha, e muito bem. Vejo que me casei com uma
gata que sabe usar as unhas.
— Ela é sua amante, não é?
— Marissa, eu tenho uma reunião...
— E nem se deu ao trabalho de avisá-la de que tinha se casado?
— Não acho que isso seja de sua conta.
— Claro que é da minha conta. Quero saber onde piso e a quantas ando.
— Grace é uma amiga, é tudo. Velha amiga, como você bem frisou.
Marissa corou, sentindo a raiva crescer.
— Não gosto de almoçar com suas... velhas amigas!
— Eu não a convidei. Agora, por favor, vamos embora.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa não se mexeu, fitando-o desafiadoramente. Ele agarrou-a pelo braço,
irritado.
— Vamos.
Não havia como resistir; Ian já a arrastava rua abaixo. Marissa tentou discutir, mas
ele soltou uma praga e quase gritou:
— Marissa, você é insuportável! Está preocupada com minhas amigas, mas foi
você que insistiu para termos quartos separados, lembra-se? Seus... aposentos
privativos, para falar como um inglês esnobe.
— Que você invadiu, sem minha permissão!
— Pois então me dê sua permissão. É uma saída honrosa que lhe dou. Porque eu
entro no seu quarto quando e como quiser, com permissão ou não. Não acha mais
civilizado e simples me convidar para entrar em seu quarto?
Os dois se entreolharam em desafio.
— Eu a avisei, minha cara. Desejo você, quero seu corpo. Foi duro de admitir, mas
essa é a pura e maldita verdade.
— Isso não basta! — gritou ela, tentando soltar o braço.
— Que quer dizer?
— Eu quero... quero mais do que ser desejada! — explodiu Marissa. — Não sou
uma prostituta!
O espanto de Ian foi tão grande que seus dedos afrouxaram. Foi o quanto bastou
para Marissa se libertar com um safanão e correr atrás de Jimmy e Mary, que esperavam
um pouco mais adiante.
Ian ficou parado, olhando para a silhueta esbelta de Marissa. Um sorriso começou
a se formar em seus lábios. E o sorriso cresceu até se transformar numa risada sonora.

CAPÍTULO XI

Nessa noite Marissa sentou-se à mesa sozinha. Mal tocou no requintado pato com
laranja que lhe foi servido, perguntando-se se Ian de fato estava detido no escritório.
Depois do almoço ele se despedira apressadamente; afinal, apresentara Marissa e
Mary a uma auxiliar do escritório, uma garota sardenta chamada Sandy O’Halloran, que
foi incumbida de cuidar das duas senhoras, atendendo-as pelo tempo necessário. Só
então Ian desaparecera com Jimmy. Sandy era muito alegre e demonstrara genuína
alegria em conhecer a "mulher do patrão". Marissa pusera-se imediatamente à vontade
com ela.
E não se desapontara; Sandy gostava do seu trabalho, era entusiasmada e gentil.
A loja de Ian era, na verdade, um grande centro de compras, onde havia de tudo. Sandy
arrastara as duas de departamento em departamento, exibindo cada peça com o orgulho
de uma feliz proprietária. A loja tinha uma quantidade inimaginável de artigos, de móveis a

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ferramentas de jardim, de biscoitos a mesas de bilhar. Havia bicicletas, cristais, roupas,
espadas, livros, quase tudo o que existia no mundo.
No subsolo ficava o imenso refeitório onde os funcionários almoçavam e
lanchavam. Embora tivessem almoçado bem, Mary e Marissa aceitaram tomar chá com
Sandy. Conversaram animadamente, enquanto os funcionários mantinham-se em
constante vaivém, conversando e confraternizando. Pareciam felizes e bem-humorados.
Marissa percebeu que era o alvo da conversa de muitos, mas sentiu que o interesse era
motivado por pura e cordial curiosidade.
— Então, está gostando? — perguntou Sandy.
— Muito. O pessoal é bastante ativo!
— Isso não é nada. Aos domingos isto fica um pandemônio!
— Por quê?
— As crianças de St. Kevin vêm tomar café aqui depois da missa.
— St. Kevin? — repetiu Mary, curiosa.
— É a igreja católica do bairro. Ela mantém um orfanato.
— Você trabalha aos domingos?
— Oh, eu não chamaria isso exatamente de trabalho. É um serviço só para
voluntários, e eu adoro crianças. São mais de cinquenta diabinhos que vêm bagunçar
tudo, e na verdade eu gosto de cuidar delas. Sabe, eu tenho onze irmãos, todos mais
novos que eu. Eles ficaram na Irlanda, com meus pais. Vir aqui aos domingos foi uma
forma que achei para matar a saudade deles. O sr. Tremayne não faz economia com os
órfãos, de modo que é uma festa para os olhos da gente ver como eles devoram pilhas de
panquecas, salsichas, bolo de chocolate. Nós batizamos essa merenda de domingueira.
— Isso tem alguma relação com o orfanato de Grace Leroux? — perguntou
Marissa.
Sandy fez um muxoxo de desprezo.
— Não. O sr. Tremayne oferece a domingueira há anos. Sua Majestade Leroux só
começou a ter rompantes de generosidade com os órfãos quando soube das
domingueiras, daí...
Sandy interrompeu-se, aflita, e começou a gaguejar uma desculpa. Ficara
nervosíssima ao compreender que estava fazendo fofoca sobre a amante do patrão...
para a mulher dele.
— Tudo bem, Sandy — disse Marissa amigavelmente. — Estou curiosa para
presenciar uma dessas domingueiras. Quando houver ocasião, falarei com você para
virmos juntas.
Pouco depois disso, Mary começara a dar sinais de cansaço e então John Kwan as
trouxera de volta, informando-lhes que Jimmy ficara no escritório e Ian fora a tal reunião.
Marissa levou Mary ao chalé e certificou-se de que a amiga estava bem. Depois,
resolveu que não queria ficar em casa; preferia conhecer melhor a cidade, nem que fosse
sozinha.
Assim, mandou chamar John e pediu-lhe que a levasse de volta ao centro.
— Você me deixa lá e não precisa se preocupar mais comigo. Tomarei um táxi
para voltar.
John coçou a cabeça, embaraçado.

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— Por que não vamos conhecer o bairro residencial, madame? Vai anoitecer daqui
a pouco e a senhora não poderá apreciar direito o centro. Amanhã durante o dia será
melhor.
— Você recebeu ordens para não me deixar sozinha, não é? — perguntou Marissa,
sem esperar resposta. — Está bem, vamos conhecer o bairro residencial.
O bairro era elegante e refinado, rodeado de jardins bem cuidados. John levou-a
para conhecer o majestoso Hotel Fairmont, ainda em construção, no sopé de Nob Hill. No
fim, Marissa estava agradavelmente surpresa por ter gostado não só do passeio como da
companhia de John.
Mas ao voltar para casa soubera que Ian havia deixado um recado, avisando que
não poderia chegar em tempo para jantar. Assim, Marissa vira-se sozinha na imensa sala
de jantar, tendo por companhia a silenciosa Lee Kwan.
Havia uma antipatia mútua entre as duas, o que tornou a noite mais penosa ainda.
Marissa vagueou pelas salas o quanto pôde, mas Ian não voltou. Finalmente,
quando o senhorial carrilhão deu onze horas, ela capitulou e subiu para o quarto. Ian não
voltara.
Ele tampouco a procurou pela manhã. Marissa acordou tarde, e quando desceu
para o café descobriu que Ian havia saído duas horas antes.
Ela e Mary passaram a tarde passeando e explorando San Francisco num coche
alugado, sem capota, para poderem apreciar melhor a paisagem. Subiram e desceram as
tortuosas ladeiras, admirando a cidade que já as conquistara.
Na manhã de domingo, ao acordar, Marissa viu-se de novo sozinha com Lee na
bela mansão de Nob Hill. Mais magoada do que queria admitir, resolveu sair. Não se deu
ao trabalho de avisar Lee nem John; pretendia apenas dar uma volta e retornar logo.
Havia andado um bocado e tinha chegado perto do bonito Hotel Fairmont quando
ouviu o som de cascos de cavalo pateando no cascalho, muito próximo.
— Onde demônios pensa que vai? — ouviu ela, surpresa ao reconhecer a voz de
Ian.
— Vim passear — respondeu, o coração batendo descompassado. — E não fale
comigo dessa maneira.
— Ah, a gata está dando uma de onça! Para seu governo, falo com você do modo
que me der na telha. Droga, você me pregou um susto e tanto.
— Eu lhe preguei um susto, eu?! Sugiro-lhe que pense duas vezes antes de falar,
Ian Tremayne! Quem me assustou foi você, com esse galope!
— Primeiro, eu não galopo, e sim o cavalo. Segundo, Jinx não estava galopando, e
sim trotando.
— Pois pegue seu belo Jinx e trotem daqui.
E, dizendo isso, Marissa suspendeu a saia desdenhosamente e continuou a andar,
girando a sombrinha.
Mas não ouviu nenhum trote. Ian pulou da sela e deteve-a, segurando-a pela
cintura.
— Por que não avisou ao pessoal de casa aonde ia?
— Porque acho que não tenho de dar satisfação de tudo que faço — revidou ela,
desafiando-o com os olhos de esmeralda. —-Não estou num orfanato, que eu saiba. Além

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disso, olho por olho, dente por dente. Você se atreveria a me assaltar. Ou mesmo a me
raptar.
Marissa começou a se inquietar com as batidas do coração, que se aceleravam de
modo alarmante. Tudo porque Ian estava ali perto, fitando-a com aqueles dois pedacinhos
de céu. Baixou a cabeça, receando que ele visse sua perturbação.
— Bem, agradeço-lhe a preocupação. Agora que sabe que estou dando um
simples e inocente passeio, quer por favor deixar-me continuar?
— Não, não quero, madame. Não conhece esta cidade. Julga-se muito superior e
sabida, e nem imagina os perigos em que pode se meter.
— Perigos! — repetiu ela, com desdém. — Aqui? Em Nob Hill? Não, nem imagino.
Certamente estou rodeada de esfaqueadores e assaltantes... Ha!
Mas o riso de Marissa morreu assim que deparou com o olhar glacial de Ian. Ela
gelou. Pouco faltava para ter seu pescoço torcido. Livrou-se das mãos dele e recuou um
pouco, fechando a sombrinha.
— Ian, eu...
— Venha cá, Marissa.
— Não vou.
— Vem, sim — falou ele, dando um passo.
— Não vou!
Ian continuou se aproximando. Ela deu outro passo para trás, apavorada e
fascinada a um tempo só.
— Você passou dois dias inteiros sem me dar o ar de sua graça, ora esta! E agora
vem atrás de sua preciosa caça? Não vou tolerar esses seus modos, aviso-lhe já!
— Você devia ter falado com Lee.
— Nem Lee nem meia Lee! Eu só queria tomar ar! Não devo nada àquela chinesa,
ela não tem nada que ver com minha vida!
— Mas eu tenho.
— Não tem coisa nenhuma. Não...
Ela se interrompeu para deixar escapar um gritinho. Ian agarrara-a como a uma
pena e socara-a sobre a sela com tamanho ímpeto que ela se viu escorregando para o
outro lado do cavalo, que relinchou. Mas antes que isso acontecesse, Ian saltou agilmente
para a sela, postando-se por trás de Marissa e segurando-a com o braço esquerdo,
enquanto a mão direita manejava com destreza as rédeas. Marissa tentou manter o corpo
afastado do de Ian, mas logo viu que isso lhe custaria um tombo.
Ian incitou Jinx, que saiu num trote leve.
— Aonde pensa que vai me levar? — gritou ela, forçando-se inutilmente a manter a
dignidade e o equilíbrio ao mesmo tempo.
Ele se inclinou, quase encostando a cabeça na de Marissa.
— Você disse que queria tomar ar!
E foi exatamente o que ela ganhou, às toneladas. Marissa não poderia, em sã
consciência, acusá-lo de descuidado, pois Ian era um excelente cavaleiro. Mas Jinx,
incitado habilmente, saiu como um raio pelas campinas; conforme o comando do dono,
galopava, corcoveava, escoiceava, andava de banda. E logo retomava o galope
vertiginoso e selvagem. O vento assobiava entre os cabelos de Marissa, sem nenhum

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vestígio do cuidadoso penteado em coque, feito pela manhã; as rajadas frias cortavam
seu rosto numa caricia rude. Mas o corpo de Ian mantinha-a numa redoma quente e
confortável. Pequenas chamas de fogo subiam-lhe pela espinha, irradiando-se por seu
corpo todo.
Marissa nunca soube por que caminhos andou assim; e pouco se importou com
isso. Fechou os olhos e deixou-se imergir no prazer de sentir apenas a graça do animal e
a força do homem. Finalmente, Jinx diminuiu a velocidade e começou a andar em passo
cadenciado.
Ela se aconchegou mais ao peito de Ian, não querendo que esse passeio acabasse
nunca. E perguntou baixinho:
— Aonde vamos agora?
— Em busca de ar — respondeu ele, sorrindo.
Finalmente Jinx parou e ela se endireitou, com pesar. Estavam numa rua
movimentada, onde carros buzinavam e carruagens rangiam nas pedras.
— Hotel Palace — disse Ian, apontando um belo edifício. — Aqui se hospedou
muita gente famosa, como o presidente Grant. Caruso virá em turnê brevemente, e ficará
aqui também.
Saltou do cavalo e ajudou-a a apear, envolvendo-a pela cintura fina.
— É uma beleza de construção, não acha?
Marissa olhou-o, espantada. Era a primeira vez que Ian lhe falava de algo ligado
diretamente a sua profissão. Sem protestar, deixou-se levar pela mão enquanto ele
explicava:
— As fundações são pilares enormes, de quase quatro metros, enterradas no solo.
Os pilares foram todos reforçados com aço. Há um imenso reservatório de água no
subsolo, mais sete caixas de água acima do telhado. São quase seiscentos mil litros de
água, que podem ser distribuídos em mais de dez mil metros de encanamento, tudo isso
para prevenir incêndios. O hotel tem oitocentos quartos, e em cada um foi colocado um
alarme, que soa assim que começa qualquer fogo. Além disso, há patrulhamento
permanente em todos os andares. Já houve alguns incêndios pequenos no hotel, e eles
foram prontamente apagados.
Marissa, com os dedos entrelaçados nos dele, ergueu os olhos para a imponente
construção. Nada entendia de engenharia ou arquitetura, mas, de repente, aquilo tudo lhe
pareceu muito importante.
— Como sabe de tudo isso?
— Faz parte de meu negócio — respondeu Ian, conduzindo-a pela rua. — Estou
terrivelmente frustrado, Marissa. É desse modo que tudo deveria ser construído nesta
cidade. E aqueles imbecis que me pediram para projetar casas e edifícios de escritório
perto das marinas não querem saber desses... desses detalhes, como dizem. Não se
importam de pagar um arquiteto, não se importam de pagar mármores e vidros de cristal,
mas quando eu começo a falar em fundações reforçadas, mangueiras e reservatórios,
botam a boca no trombone e dizem que estão com o orçamento apertado.
Fez-se um pequeno silêncio.
— E como vai resolver esse problema? Seu projeto ficará comprometido, se não
fizer como julga certo.
Ele parou e olhou-a com aquele sorriso preguiçoso que tanto a atraía.

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— Não, Marissa. Não vou deixar que isso aconteça. Meu trabalho não ficará
comprometido, como diz.
Havia uma nota curiosamente terna em sua voz.
— Não construirei nada para eles, a menos que concordem com todas as minhas
condições.
Súbito, sem dizer nada, fez meia-volta e voltou pelo mesmo caminho, sem largar-
lhe a mão. Havia uma repentina e enérgica decisão em seus passos, que obrigavam
Marissa a correr para acompanhá-lo. Ian desamarrou o cavalo, colocou Marissa na sela e
montou com rapidez. Trotaram pela rua, no meio do tráfego, até alcançar a base calma e
verdejante de Nob Hill. Ali ele deu livre freio a Jinx, que passou a galopar tão rápido como
na vinda.
Marissa fechou os olhos e aconchegou-se. Quando Jinx finalmente parou, ela
olhou em volta, espantada.
Não estavam longe de casa, mas Ian detivera o cavalo em frente a outra. Também
era grande e bonita, com janelas nórdicas, duas pequenas e graciosas torres e telhados
pontudos.
— Um de meus trabalhos — disse ele, com simplicidade.
— Construída por você?
— Exato. Gosta dela?.
— É linda!
— Obrigado — disse ele, esporeando o cavalo.
Dentro de pouco tempo transpunham o grande portão de ferro. Marissa sentia-se
maravilhosamente bem, contente e em paz com a vida. Suas veias continuavam a latejar
quando Ian a tocava, mas era tão confortável, tão gostoso ficar entre aqueles braços
fortes!
Contudo, sua alegria pouco durou. John esperava-os na porta, com expressão
ansiosa.
— Que foi, John? — perguntou Ian, sem desmontar.
— Um pequeno incidente de... de logística, senhor — respondeu o chinês, olhando
para Marissa, ainda montada. — Madame Leroux mandou dizer que está havendo um
problema urgente no orfanato de St. Kevin. Precisam do senhor lá imediatamente.
Marissa sentiu-se enregelar. Grace Leroux. Desvencilhando-se dos braços de Ian,
deixou-se escorregar para o chão.
Para seu profundo aborrecimento, a saia enganchou-se no santo-antônio,
deixando-a presa. Irritada, Marissa puxou a saia com força.
— Calma, senão seu belo vestido rasga — disse Ian, desprendendo a saia
delicadamente do selim. — Pronto, está livre. Marissa?
Ela, porém, já ia longe, pisando duro. E a irritação cresceu mais um ponto quando
a sonora gargalhada de Ian a alcançou.

Nessa tarde, enquanto tomava seu banho de espuma, Marissa ficou pensando em
como desprezava Grace Leroux, a mulher da estação, Lee Kwan... e ela mesma. Houve
um tempo bem recente em que era fácil desprezar Ian também. Mas agora não
encontrava mais válvulas de escape para os nervos. Tinha vontade de sacudi-lo, magoá-
lo... e fazer com que ele a notasse. Queria compartilhar as coisas com Ian, como

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acontecera pela manhã. Ian também tinha seus sonhos. Talvez tivesse enterrado sua
capacidade de amar juntamente com Diana, mas não enterrara seus sonhos. Nem seu
amor pela profissão, isso estava claro.
Ficou alerta quando ouviu uma porta bater. Raciocinou rapidamente; estava certa
de que havia trancado a porta de seu quarto. Não queria mais saber de surpresas com a
silenciosa Lee Kwan.
Mas não trancara a porta de comunicação entre seu quarto e o de Ian. E percebeu,
por uma fresta, que ele vinha entrando, ainda com roupa de montaria.
Um calor, que nada tinha que ver com a água quente do banho, subiu pelo seu
corpo até queimar-lhe o rosto. Marissa começou a agitar a água com frenético desespero,
tratando de fazer mais espuma. Queria fazer amor com ele, sim. Estava se apaixonando
por ele, sim. Mas não deixaria que ele percebesse.
Teve uma vontade imensa de chorar. Podia sentir as lágrimas se avolumando,
prestes a rolar.
Não deixaria que ele percebesse, nunca! A menos que ele também se apaixonasse
por ela. A menos que esvaziasse sua vida de Graces Leroux e dançarinas e Lees
Kwans...
Ian entrou no banheiro carregando uma bandeja de prata, onde se equilibrava um
belíssimo samovar de prata e duas xícaras.
Marissa olhou-o com ar apalermado.
— Que está fazendo?
— Trazendo chá para minha querida mulherzinha, que é inglesa e gosta de
preservar as tradições. Cinco da tarde, não é assim?
Ela não gostou do tom irônico. Nem do olhar, que qualificou de satírico.
Sim, era isso. Ele a avaliava com olhos de sátiro. Cobriu-se com espuma o melhor
que pôde.
— Não quero chá.
— É claro que quer.
Ian depositou a bandeja sobre um banquinho de vime, despejou a bebida
fumegante numa xícara e ofereceu-a a Marissa. Ela se abraçou à indefesa espuma.
— Não quero.
— Está bem, como queira — respondeu ele, ficando com a xícara. — Hum, está
ótimo. É inglês.
— Quer fazer o favor de sair daqui?
— Mas que coisa feia! Vim bancar o cavalheiro e é essa a minha recompensa!
Marissa relaxou um pouco e permitiu-se encostar a cabeça. Depois fez um
sorrisinho doce.
— Como vai Grace?
— Aha! Então chegamos lá. Está com ciúme!
Marissa pensou que seria muito mais fácil se ele se mostrasse grosseiro e mal-
educado. Mas assim, com aquele olhar de garoto, seus sentimentos belicosos esvaíam-se
em fumaça. Tinha mais vontade de saltar da água e aconchegar-se em seus braços.
— Não estou com ciúme, seu convencido.
A espuma diminuía rapidamente.
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— Não está? — riu Ian.
A mecha rebelde parecia uma bandeira cantando vitória. A autoconfiança dele era
realmente invejável.
Marissa resolveu que era hora de testar a sua. Estirou uma perna para fora e
começou a passar a esponja com gestos vagarosos e languidos.
— Nem um pouquinho. Por que estaria? Este casamento é só fachada, não é?
— Pelo menos você me disse que queria assim.
Marissa baixou a perna devagar. Depois encarou-o.
— E você me disse que não queria uma mulher de verdade.
Ele pousou a xícara e aproximou-se da banheira.
— Talvez eu tenha mudado de ideia.
Ela sorriu, esticando a outra perna para cima. Começou a ensaboá-la.
— Oh, eu não acredito nisso.
— Por que não? — perguntou Ian, dobrando os joelhos e abaixando-se até ficar da
mesma altura de Marissa.
Seus olhos azuis ainda sorriam. Ele colocou dois dedos na água e deixou-os
brincar na superfície.
Marissa começou a se inquietar. Aqueles dedos estavam perigosamente perto de
sua perna.
— Mal recebeu o recado de Grace Leroux e já estava abanando o rabinho,
babando por causa daquele morcego velho.
A gargalhada de Ian reverberou no aposento. Seus olhos se iluminaram.
— Realmente, você não está com ciúme!
— Eu simplesmente dou nome aos bois.
O riso de Ian ainda ecoou e foi morrendo aos poucos.
— Sabe, eu não deixei minha mulher plantada para correr para o morcego velho.
Ela é que me deixou plantado na entrada da casa, sem me dar nenhuma chance de
defesa. Ela me deixou sem alternativa.
Com delicada firmeza, Marissa empurrou a mão de Ian para o outro lado da
banheira.
— Assim, seu único recurso foi correr para o morcego velho.
— Bem, na verdade eu estive mesmo com Grace... hã, com o morcego velho. Mas
minha conversa foi com um velhote baixinho e sovina. Ele havia prometido fazer uma
doação para o orfanato, e na última hora queria tirar o corpo fora. É nisso que dá fazer
promessas quando se toma umas taças a mais. Depois é preciso cumpri-las. E foi o que
eu convenci o velhote a fazer. Mas isso também me custou uma bela soma, porque tive
de me comprometer a construir a nova ala de graça. Eu entro com a construção, ele entra
com o dinheiro. O homenzinho ainda tentou espernear, mas acabou cedendo.
Marissa sorriu.
— Bonita história.
— É a verdade, juro.
— A mulher então é só sua amiga? Nada mais?
Ele puxou o queixo de Marissa, forçando-a a olhá-lo de frente.
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— Nem sempre. Eu seria um mentiroso se dissesse que não houve nada entre
nós. Em Londres tentei ser sincero com você, e não pretendo agir de forma diferente aqui.
Mas devo admitir, Marissa: o morcego velho perde de mil para a jovem raposinha...
Ela começou a sorrir, mas logo parou. Ian erguia-a com delicadeza, pedindo-lhe
sem palavras que ficasse de pé.
E quando ela obedeceu, submissa, Tremayne fitou durante alguns instantes aquele
corpo maravilhoso, fremente e jovem, coberto de espuma, escorrendo água. E ali mesmo
onde ela estava, ainda dentro da banheira, Ian envolveu-a com os braços e beijou-a
sofregamente. Eram beijos curtos, quentes, cheios de desejo, que foram se aprofundando
e alongando, até terminarem num só, longo e inebriante.
As mãos de Ian passeavam nas costas de Marissa, percorrendo-as em caricias
que acendiam fagulhas em seu corpo. Os lábios dele se apartaram dos dela e buscaram a
curva do pescoço, sugando, pedindo, gemendo. E de novo voltaram a colar-se aos de
Marissa.
Hesitantes, Marissa começou a acariciar o rosto de Ian. Ela sentiu a textura da
pele, levemente rude e bem escanhoada, e afastou-se um pouco para fitá-lo. Olharam-se
em silêncio, intensamente. Depois ela se pôs na ponta dos pés e beijou-o no canto dos
lábios, docemente. Os aromas de tabaco e de colônia eram deliciosos. Arrebatada,
Marissa achegou-se mais, beijando-o repetidamente, provando o gosto daquela boca,
querendo mais e mais. Como se tivesse entendido, Ian começou a beijar-lhe o pescoço,
os ombros, os seios, levando-a a um estado de paixão e desejo irresistível. A língua dele
percorria seu corpo, fazendo o desejo crescer em ondas impetuosas, devastadoras.
Ele se ajoelhou e continuou a tocá-la apaixonadamente, enquanto a fazia virar de
costas. Marissa mal conteve um suspiro quando sentiu a língua quente e macia na base
da espinha, subindo levemente, descendo de novo, até que a excitação ameaçava levá-la
ao êxtase.
Ian virou-a de frente novamente, e agora sua boca buscava o ventre macio, os
pelos brilhantes e sedosos do púbis. E a língua de Ian descia, queimava seu corpo todo,
da maneira mais íntima possível, atordoando-a, carregando-a numa correnteza sem fim,
avassaladora. Presa de choque e excitação, Marissa arquejou, agarrando-se nos ombros
de Ian. Ela ia sucumbir. Mas não podia, não podia! Sensações novas, maravilhosas e
desencontradas sucediam-se num turbilhão a um tempo atemorizante e fascinante. Era
tão bom, tão doce, tão quente, tão intoleravelmente delicioso que ela achou que morreria
ali, naquele instante.
Precisava protestar! E ela gritou, gritou alto. Mas não um protesto.
E depois veio a consciência do que estava acontecendo. E a surpresa. Rápida,
magnífica, ardente e enlouquecedora, a lava candente explodiu dentro de seu corpo.
Marissa gritou de novo, atordoada, trêmula, arquejante.
Ian tomou-a nos braços e beijou-a docemente, mas ela mal correspondeu, tomada
pela tontura que ainda sentia. Mal se apercebeu de que ele a carregava para o quarto e
depositava-a na cama. Mal se apercebeu que o aguardava com ansiedade.
E então ele se deitou sobre ela. Nu, desta vez. A boca de Ian, sôfrega, colou-se à
dela. E Marissa viu-se novamente mergulhada em outro remoinho de sensações, viu-se
novamente querendo mais. Seus olhos encontraram os dele, que sorriam. Ela fechou os
seus, e Ian beijou as pálpebras. E beijou-lhe os lábios. Marissa envolveu-o nos braços.
Enquanto ele a beijava, começou a acariciar o dorso tenso do marido, explorando
aquele corpo ainda desconhecido. Suas mãos percorriam-lhe as costas, os braços, o
ventre liso. E continuaram a exploração, tocando-o de leve, muito de leve. Ian começou a

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gemer baixinho. E Marissa continuou a tocá-lo, consciente de que estava despertando
nele o mesmo prazer que sentira havia pouco.
Tremeu, seu corpo novamente desperto, quando sentiu a ereção de Ian, firme,
exigente. Enterrou o rosto naqueles ombros fortes, enquanto as caricias que ele lhe fazia
criavam nova onda de desejo embriagador. Com gentileza, Ian guiou-lhe a mão para
baixo, ensinando-a a acariciá-lo com intimidade, ensinando-a a conhecer o desejo, a
compreendê-lo e a retribuir. Marissa acreditava estar ora no céu, no meio de estrelas, ora
no centro de uma tempestade. Gemeu agoniada de prazer quando ele se firmou entre
suas coxas e penetrou-a fundo, numa sensual e lenta arremetida.
O ritmo do mundo tomou asas, voou na eternidade. Nos braços de Ian, Marissa
elevou-se e enlevou-se. Sentiu a plenitude da virilidade dentro do ventre, e extasiou-se.
Saboreava cada instante, bêbada de felicidade. Sentia a textura da pele de Ian, as
caricias de suas mãos, o hálito morno quando ele murmurava palavras suaves...
E a caricia final, mágica, derramando-se como lava em seu corpo, espalhando-se
calidamente em suas entranhas. Ela gritou e Ian também gritou, ambos imersos na paixão
avassaladora.
Uma paz indescritível tomou conta do aposento, envolvendo-os num manto de
silêncio cúmplice.
— Marissa!
Ela abriu os olhos, e Ian dirigiu-lhe um sorriso. Os dois corpos unidos ainda
estavam quentes e úmidos, impregnados de eternidade. Uma eternidade que sempre
morria para renascer, sempre. E que ela provava, em sua plenitude, pela primeira vez.
— Acabo de aprender uma coisa, Marissa. Que eu quero uma mulher. Uma mulher
de verdade, minha Marissa. Como jamais quis outra coisa na vida.
O coração dela saltou no peito.
Quis responder, mas Ian silenciou-a com um novo beijo, terno, profundo.
E com esse beijo, Marissa capitulou, entregando-se de corpo e alma a Ian.

CAPÍTULO XII

Marissa nunca pôde se lembrar com exatidão daquela tarde memorável. Mas
nunca se esqueceu das sensações, que ficaram gravadas em sua mente para sempre. Do
sentimento de paz e conforto que os envolveu quando o êxtase deu lugar à quietude. Da
tranquilidade dos corpos enlaçados em descanso.
Conversaram durante longo tempo, os cabelos dela espalhando-se em cascatas
brilhantes sobre o peito de Ian. Nenhuma vez ele declarou que a amava, mas Marissa não
esperava por isso. Não importava; tinha alcançado muito mais do que ousara esperar, Ian
acenava-lhe com um futuro a dois, e isso lhe bastava. Ele falou que iriam à ópera, ao
balé, ao teatro. Falou-lhe sobre as marinas. Sobre auroras e poentes na baía, sobre viajar
ao longo da costa e conhecer novas paisagens.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Depois os dois corpos descansados conheceram novamente o desejo e
enroscaram-se em paixão redobrada. Nessa segunda vaga de fogo, Marissa aprendeu a
explorar o próprio corpo. Incentivada e guiada por Ian, iniciou-se nos segredos da
autoexcitação; conheceu e descobriu como era manter o desejo pulsando, latente, sem
entregar-se em demasia, para melhor sentir depois o prazer. Passou a ousar novas
incursões no corpo de Ian. Que prazer sentia em tocá-lo, acariciá-lo nas profundezas mais
íntimas de seu corpo!
Ficou assombrada com a facilidade com que conversavam, riam, brincavam, para
logo caírem em silêncio cúmplice. Soube que nascera predestinada. Ian era seu homem,
seu amante, o primeiro e único. Uma a uma, aprendeu a pôr de lado todas as inibições.
E quando a noite desceu, trazendo sua magia envolta em brumas, Marissa também
soube que jamais haveria dia igual àquele. Deixou-se envolver pelos mistérios do poente
que os abraçava, cobrindo-os com seu manto místico. E quando a noite os abraçou,
enovelou-se em Ian dentro desse abraço, perdendo-se nos olhos azuis e mágicos como a
própria noite.
Sensualmente, ergueu-se sobre o corpo dele e começou a acariciá-lo com os
cabelos sedosos, acompanhando cada movimento com um beijo longo, quente e úmido. E
foi descendo os beijos, preguiçosa e languidamente, deleitada ao sentir o corpo dele
tremer sob o seu, fremente de expectativa. Até que ele arquejou em agonia e excitação,
enrijecendo-se aos poucos sob os beijos ardentes, sob a carícia daqueles cabelos cor de
fogo. Soltando um gemido rouco, Ian suspendeu-a sobre si, fazendo-a cavalgar sobre sua
ereção.
A névoa suave temperou os murmúrios de desejo, cobrindo-os com seu manto
diáfano, até que os dois corpos nus tombaram novamente exaustos e saciados.
Finalmente Marissa mergulhou num sono calmo, ao lado de Ian, os cabelos ainda
espalhados sobre o peito dele. Pouco depois, acordou com um som rascante e abafado,
vindo do outro quarto.
— Que foi? — perguntou, estremunhada.
— É Lee, na porta do meu quarto. Vou ver o que é.
Ian levantou-se e começou a vestir as calças, encaminhando-se para a porta de
conexão.
O som rascante fez-se ouvir de novo, desta vez na porta de Marissa. Pareciam
unhas de gato arranhando levemente a madeira.
Na semi-obscuridade do aposento, Ian sorriu e piscou-lhe um olho matreiro,
cúmplice e brincalhão. Depois aprumou-se e abriu a porta.
Lee estava ali. Marissa ouviu que trocavam rápidas palavras, mas não conseguiu
entender, mergulhada ainda em sonolência.
Ian fechou a porta e foi para perto da cama, onde ficou parado. O cabelo negro
emaranhado dava-lhe um ar de garoto. Marissa sorriu levemente e fechou os olhos de
novo, ajeitando-se para dormir.
— Nada disso! — falou ele, rindo e puxando os lençóis. Uma rajada de ar frio a fez
tiritar e terminou de despertá-la.
Espreguiçou-se longamente e sorriu para o marido.
— Temos visita, minha querida.
Ela pulou da cama, assustada.
— Visita! Mas eu estou um lixo!

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— Isso nunca — riu ele. — Mas tem tempo para se vestir, pelo menos cinco
minutos. Eu tinha me esquecido de que havia convidado Sullivan e Funston para jantar.
— Quem?
— Dennis Sullivan, chefe do Corpo de Bombeiros. E Frederick Funston, que é
brigadeiro, comandante do corpo de militar de San Francisco. O brigadeiro e sua mulher,
Eda, têm uma casa e tanto aqui em Nob Hill. Droga, esqueci-me completamente deles por
sua causa, sua danadinha. Mas Lee com certeza saberá recebê-los por ora.
— E você nessa calma, parado aí!
Ele riu e foi para o outro quarto, falando por cima do ombro:
— Em cinco minutos estarei novo em folha.
— Não, eu não posso me vestir em cinco minutos! Ian, você tem de esperar mais.
Mas ele já havia ido embora. Atarantada, Marissa correu ao banheiro, meteu-se
numa ducha fria que a gelou até os ossos e secou-se freneticamente. Correu para o
armário, revirando as gavetas e os cabides febrilmente, até encontrar o que julgou mais
apropriado. Enquanto se vestia ia ao mesmo tempo escovando os cabelos, furiosa com os
colchetes e botões que teimavam em se soltar.
Finalmente olhou-se no espelho com olho crítico. Podia estar muito melhor, mas
não estava de todo mal. Mais calma, escolheu um par de botinhas de pelica e começou a
calçá-las quando ouviu um assobio baixo e aprovativo. Ian voltara, moreno, bonito, metido
num jaquetão de veludo negro. Ele a examinou de alto a baixo. Marissa escolhera uma
blusa de seda branca, de colarinho alto orlado de renda, e uma saia verde-água, cuja
tonalidade suave contrastava com o tom dos olhos e com o broche de jade que enfeitava
a gola. Para completar, escolhera um colete justo de seda verde-escuro, com botões de
ônix.
— Será que estou bem assim? — perguntou, ansiosa.
— Bem demais, até. Está... virginal.
Ela corou.
— Por que essa preocupação? Dennis e Freddie são dois bons amigos, muito
simples. Aliás, Eda também veio, para seu governo. Ora, vamos, Marissa! Eles não são
da realeza britânica, são meros americanos. Como eu.
Ela virou-se para não deixar transparecer a súbita melancolia que a assaltara.
Apaixonara-se por Ian e fizera-se sua mulher, mas isso não mudava os fatos. Ainda vivia
numa mentira monstruosa, Ian continuava a pensar que ela era uma jovem rica,
acostumada a viver entre nobres, na camada mais alta da sociedade britânica.
Mas agora tinha de cumprir seu papel até o fim. Era uma boa atriz e aprendera a
representar bem. Sem se voltar, perguntou-lhe docemente:
— São seus amigos, não são?
— Claro.
— Então são muito importantes para mim.
Em duas passadas ele atravessou o quarto. Virou-a, ergueu-lhe o queixo e fitou-a
nos olhos, estudando-a. Depois sorriu devagar.
— Minha querida, você é um enigma encantador. Às vezes é orgulhosa e
determinada, uma verdadeira guerreira. Noutras, mais raras, seu orgulho se evapora
como fumaça, e então parece que posso ver seu coração a nu. É um belo coração, o seu.
— Não! — protestou ela, num grito estrangulado.

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— Não?
— Meu coração... não é bonito — respondeu ela, recuando um pouco. — O seu
sim, é belíssimo.
Seus lábios tremeram, como que segurando um choro sentido. Depois ela correu a
aninhar-se nos braços do marido.
— Ian, eu... nós começamos da forma errada. Eu forcei tudo isso, mas agora vou
tentar fazer com que as coisas deem certo. Eu quero tanto ser o que espera de mim, eu...
— Shh! — sussurrou ele, ligeiramente espantado, afagando-lhe os cabelos. —
Marissa, se eu não quisesse mesmo ter me casado com você, se eu estivesse decidido,
creia-me, não haveria força no mundo capaz de demover-me. Mas, desde o dia em que a
conheci, tive muitas surpresas agradáveis, uma atrás da outra. Você tem muita coisa para
me dar, muita.
Ela corou, baixando os olhos.
— Modéstia? — riu ele baixinho, acariciando-lhe o rosto com o dorso da mão. —
No outro dia você me fez ver que eu havia criado um inferno particular e vivia dentro dele,
com pena de mim mesmo. Sim, Marissa, você tem muita coisa para me dar.
Ficaram os dois abraçados por um tempo, no meio do caos que ela criara na
pressa de se vestir. De repente ele a largou, com os olhos brilhando, e deu-lhe um
beliscão no nariz.
— A turma está nos esperando lá embaixo! Vamos!
Apanhou-a pela mão e conduziu-a escada abaixo, rumo à sala de estar.
Um homenzinho atarracado, de cabelo vermelho cortado à escovinha, achava-se
ao lado de uma mulher igualmente gorda, de olhos vivos e azuis. Perto do bar um senhor
magro, de olhar assustado, bebericava gim.
— Eda, Frederick, Dennis, sejam bem-vindos. Esta é minha mulher, Marissa.
Marissa, apresento-lhe a fina flor de Nob Hill, o pessoal mais simpático da cidade, Eda
Funston e o marido, Freddie. E aquele magricela ali é Dennis Sullivan.
Os homens saudaram Marissa com deferência, obviamente admirados com a
beleza da nova conhecida. O rosto de Eda se iluminou.
— Então esta é a mais recente matéria de diz-que-diz-que da cidade! — falou ela,
risonha e efusiva. — Bem-vinda, minha querida. Bem que faltava uma mulher nesta casa!
E você combina admiravelmente com ela, devo acrescentar. Sabe que senti uma
atmosfera diferente assim que entrei? A casa ganhou nova vida com você. Deus a
abençoe por isso, Marissa.
— É muito gentil, obrigada — respondeu Marissa, aceitando os elogios com
simplicidade.
Gostou de Eda instantaneamente e sentiu-se bem acolhida pelos amigos de Ian.
Lee surgiu dos fundos, em gracioso silêncio. Esperou que Ian a notasse, para
então anunciar que o jantar estava servido.
Marissa examinou a mesa posta e ficou satisfeita. A chinesa fizera um bom
trabalho. Lee serviu a sopa enquanto Ian despejava vinho nas taças, e a conversa
começou logo a fluir animada. A certa altura, Dennis Sullivan perguntou de chofre:
— Ian, seus clientes receberam permissão da City Hall para construir os novos
edifícios?
Ian não respondeu de imediato. Estudou o copo por uns instantes e depois disse:

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— Sim, a permissão foi dada.
O chefe de bombeiros deu um murro na mesa, fazendo os cristais estremecerem.
Depois de pedir desculpas, continuou com veemência:
— Eu insisto, há corrupção da grossa nisso tudo! Esses códigos são malucos, para
não dizer o pior. O prefeito Schmitz e aquela marionete dele, o Reuf, andam recebendo
propina por debaixo da mesa e ninguém faz nada! Exatamente como a Costa Brava, a um
passo daqui! Reuf engorda os bolsos a cada vez que dá licença para abrir um restaurante
francês. Isso me põe louco!
Marissa piscava muito, tentando entender o que se passava. Eda Funston interveio
com gentileza:
— Cavalheiros, estamos jantando!
— Sim, Eda, tem razão — falou Ian, sorrindo para Marissa. — É melhor
aproveitarmos a ocasião e não perdermos tempo com esse tipo de assunto.
E, depois, voltando-se para o amigo:
— Dennis, eu rejeitei o projeto. Eles terão de encontrar outro construtor.
Eda ajudou-o habilmente a desviar a conversa para outros tópicos, falando sobre a
iminente chegada de Enrico Caruso e sobre seu lendário temperamento explosivo.
Discutiu-se sobre ópera, com acesas controvérsias acerca da modernidade das músicas
de Verdi.
Quando a refeição terminou, os homens dirigiram-se ao pequeno fumoir, a fim de
darem suas cachimbadas e falarem sobre negócios. Eda e Marissa dirigiram-se para a
sala de estar, onde se acomodaram confortavelmente.
— Eda, explique melhor o incidente que houve. Sobre o que estavam discutindo na
hora da sopa?
— Corrupção, minha querida. Esta cidade está nadando nela, ao que parece. Meu
Freddie, Dennis e Ian estão muito desgostosos com isso.
— Mas o quê, precisamente, está ocorrendo?
— O problema é que não há provas, pelo menos concludentes. Sabemos que
licenças e permissões podem ter sido vendidas, a julgar por relatórios que eles receberam
dos seguradores. É espantoso como a cidade inteira ainda não foi destruída por
incêndios. Isso não aconteceu até hoje graças ao Corpo de Bombeiros, que ainda é muito
eficiente. Dennis queria treinar os homens a usar explosivos para lutar contra o fogo; ele
também acha que um sistema de água do mar seria altamente recomendável. O
Departamento de Guerra de Washington iria mandar pessoal qualificado a nossa
guarnição militar, a fim de ajudar nessa tarefa de combate ao fogo, mas exigiram que se
construísse um porão reforçado, para estocar os explosivos. O prefeito Schmitz conseguiu
abortar esses planos.
— Mas se a cidade precisa disso, então...
— O Conselho não pode forçar nada; ele só recomenda.
— E o que há de errado com restaurantes franceses?
— Oh, minha querida! — riu Eda, os olhos claros e sinceros fixos em Marissa. —
Esses restaurantes existem e são perfeitamente legais. No andar de baixo. Mas há o
andar de cima... Bem, eles terminam por se tornar a fachada de... de bordéis. Hã... Casas
de má reputação, entende?
— Perfeitamente — respondeu Marissa, disfarçando um sorriso diante do
embaraço de Eda.

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Lembrou-se do que Ian lhe dissera a respeito de dançarinas de cabaré. Agora
sabia que isso não passava de eufemismo. Pensou um pouco e depois perguntou:
— E os códigos de construção? Certamente há códigos em San Francisco!
— É o que eu disse no começo: licenças para construção podem ser vendidas aos
montes. Mas Ian nunca se deixou enganar pelo prefeito Schmitz. Ian é brilhante e muito
consciencioso com seu trabalho; nunca concordaria em trabalhar sob outras condições
que não as dele mesmo.
Eda sorriu orgulhosamente para Marissa, como se Ian fosse sua propriedade. E
acrescentou:
— De qualquer modo, é uma vergonha para nós. Sempre há de aparecer um
construtor menos escrupuloso, doido para botar as mãos em dinheiro fácil. Esse usará
qualquer licença dada por debaixo do pano. E Deus nos ajude se isso acontecer
realmente.
Marissa estremeceu, tomada de um estranho e mau pressentimento. Afastou-o,
sacudindo a cabeça. Acontecesse o que acontecesse, Ian não estaria envolvido em
coisas desonestas. E isso era o que interessava.
— Bem, vamos mudar de assunto, que esse está muito tenebroso. Conte-me de
sua vida na Inglaterra, Marissa. Sabe que tem um sotaque delicioso? Já sei que seu pai
era um nobre, que você vivia num castelo no campo... e só. Então, isso faz de você uma
lady! Devo chamá-la de lady Tremayne? Espero que não, porque não estou acostumada
a esse tipo de tratamento!
E Eda caiu numa risada alegre.
Marissa ergueu a cabeça vivamente, sentindo-se culpada.
— Não, eu sou apenas a mulher de Ian. Meu sobrenome agora é Tremayne, e
tenho muito orgulho dele.
Isso, pelo menos, era verdade.
— Ah, gostei de ouvir isso. Uma verdadeira lady responderia exatamente assim.
Agora, conte-me sobre a Inglaterra.
Marissa descreveu o castelo com minúcias, tratando de evitar perguntas mais
embaraçosas.
Eda possuía uma alegria contagiante, e a conversa transcorreu muito bem, mesmo
quando os homens vieram juntar-se a elas mais tarde.
Marissa sabia que havia se saído às mil maravilhas. A noite podia ter sido um
triunfo, exceto...
Exceto que sempre haveria perguntas. Exceto que ela teria de mentir cada vez
mais, enredando-se numa trama sem fim de intrigas. Cada vez que houvesse convidados,
Marissa teria de se equilibrar na corda bamba, oscilando de uma mentira a outra,
cuidando para não desabar, para não cair em contradição.
Esse pensamento martirizava-a.
Em dado momento, percebeu que Ian a observava como se tentasse penetrar em
seus pensamentos. Inquieta, perguntou-se se havia deixado transparecer sua confusão
interior. Ele agora a conhecia muito bem...
Desviou depressa o olhar, empalidecendo. Seu coração começou a disparar.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Sim, Marissa se sentia cada vez mais culpada e atolada no remorso. Mas o que
podia fazer? Com o canto dos olhos, notou que Ian ainda a examinava, com o mesmo ar
preocupado.
Mesmo depois, em meio à conversação, Marissa ainda sentia aquele olhar
penetrante e acusador pousar sobre ela com insistência, Ian lera qualquer coisa nos seus
olhos, isso estava fora de dúvida.
E mais tarde iria exigir um ajuste de contas. Foi o que aconteceu, efetivamente.
Muito mais cedo do que ela esperava.
Quando os convidados se despediram, Marissa acompanhou-os até a porta,
detendo-se ali para trocar as últimas palavras com Eda. Ao voltar para a sala, esquecida
do que se passara, cantarolava contente. Seu coração estava aquecido, apesar do frio
que fazia naquela noite. Tivera uma tarde maravilhosa ao lado de Ian, e até ousara
acreditar que um dia seria querida por ele. E depois viera a recepção, onde se portara
como uma verdadeira dama. A verdadeira sra. Tremayne. Tinha tomado parte da vida de
Ian.
Mas tão logo chegou à sala e viu o olhar de Ian, seu coração disparou loucamente.
Ele a esperava com evidente impaciência, os cotovelos apoiados na cornija da lareira, os
olhos fitando-a com expressão séria.
Mais que nunca Marissa sentiu-se consciente de que vivia uma mentira, e fez suas
pernas amolecerem.
Teve vontade de correr para cima, trancar-se no quarto e enfiar a cabeça sob as
cobertas. "Como fazem os avestruzes", pensou, amarga. De que adiantaria? Lutou para
se controlar.
Talvez fosse melhor bancar a covarde e fugir dali nesse instante mesmo, afinal.
Como a vida era estranha! Havia pouco tempo, temia a proximidade de Ian. Agora
desejava-a desesperadamente. Um beijo terno e apaixonado poderia acender de novo a
chama daquela magia que tomara conta deles à tarde. Poderia fazê-lo esquecer as
perguntas com que certamente iria bombardeá-la.
O olhar azul varria-a de alto a baixo. Marissa abriu a boca para falar, mas não
encontrou o que dizer. Controlando o melhor que pôde o nervosismo, começou a ajeitar
as almofadas, afofando-as. Finalmente conseguiu dizer, com voz inexpressiva:
— Seus amigos são encantadores. Gostei muito deles.
Ele não respondeu.
— Soube de seus problemas com City Hall. É uma pena que eles existam numa
cidade tão linda como esta.
De novo o silêncio.
O nervosismo de Marissa atingiu o extremo suportável e ela largou a última
almofada de qualquer maneira.
— Bem, está tarde. Acho que vou me deitar agora.
— Acho que não — interrompeu-a Ian, com calma. Mas o olhar nada tinha de
calmo.
Marissa endireitou os ombros, erguendo o queixo. Resolvera que a melhor coisa a
fazer seria demonstrar indignação, talvez com alguns toques de ternura.
— Realmente, Ian. Depois de tudo, não pode me acusar de...
— Não estou acusando ninguém — retorquiu ele secamente. — Mas posso ver que
você está na defensiva por alguma razão. Por quê?

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Ora, não sei de que está falando.
Ele deu um sorriso estranho e começou a andar em sua direção.
— Eu vou me deitar agora — falou Marissa, voltando-lhe as costas.
Mas era tarde, ela sabia muito bem. Ian nunca lhe permitiria safar-se facilmente.
Ele a agarrou pelos ombros e obrigou-a a encará-lo. Os olhos azuis estavam quase
negros.
— Ian, por favor!
— Por favor digo eu, minha cara. O que você esconde de mim com tanto cuidado?
Sua voz estava dois tons mais baixa, quase ameaçadora. As mãos de Marissa
começaram a tremer, e ela teve de fechar os punhos para que ele não as visse.
— Eu não escondo nada! Não há nada a esconder!
— Não há?
— Não! Que inferno, meu Deus!
— Então diga, por que leio medo em seus lindos olhos verdes? Medo de quê? Já
não pode ser de mim, estou certo disso.
— De você? Ha! Nunca tive medo de você!
— Então de que tem medo?
— De nada! — gritou, quase histérica.
Os olhos de Ian estavam frios e hostis.
Ele não podia ter mudado tanto! Não era possível, devia desejá-la ainda. Esses
sentimentos não acabam assim depressa! Se ela ainda o desejava!
Se ao menos ele a abraçasse, beijasse, deixasse tudo como estava... Marissa
queria gritar, correr a aninhar-se no peito do marido, pedir-lhe que a salvasse daquele
emaranhado de mentiras. Por um momento, acalentou a ideia de contar tudo a Ian de
uma vez.
Mas sabia que não podia. Não agora. Talvez num outro dia, quando tivesse certeza
de que não o perderia para sempre.
— Marissa?
— Não há nada, eu lhe digo! — repetiu ela, tremendo. Desvencilhou-se e
conseguiu dar dois passos, certa de que ele viria atrás. Daí ela o abraçaria, o beijaria. E
ambos esqueceriam esse pesadelo de perguntas.
Mas Ian não mais insistiu. Simplesmente apanhou sua capa preta do cabideiro,
colocou a cartola na cabeça e escolheu uma bengala de castão de marfim.
— Discutiremos isso quando eu voltar. Trate de ter uma boa resposta preparada.
E num gesto irônico cumprimentou-a com a cartola. Depois dirigiu-se para o hall.
Marissa esqueceu-se do orgulho e correu atrás dele, ansiosa.
— Aonde vai?
— Vou sair.
Unindo o gesto à palavra, Ian abriu a porta e saiu, encaminhando-se para a
garagem. Nem se deu o trabalho de fechar a porta.
Marissa enrubesceu de raiva, vergonha e frustração. Não acreditava no que sentia,
uma mistura de dor e ciúme intolerável. Depois de tudo o que havia acontecido, depois do
abandono com que se haviam entregado, ele a deixava como um papel usado!
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Iria para a Costa Brava, certamente. Ou para um daqueles restaurantes franceses.
Sem pensar no que fazia, Marissa disparou para a soleira da entrada e gritou,
cheia de indignação e ira:
— Ian Tremayne!
Ele parou e voltou-se devagar, impaciente.
— Nem pense em me fazer perguntas iguais às que me fez agora, está me
ouvindo? — Os olhos de Marissa eram duas chamas fulgurantes de fúria mal contida. —
Não ouse mais me submeter a esse tipo de interrogatório! E não precisa voltar para casa!
E, sem esperar resposta, bateu a porta com violência, encostando-se nela depois.
Seu peito arquejava. Não podia acreditar no que Ian fizera. Eram intoleráveis aqueles
modos pretensiosos e superiores! Marissa estava a ponto de soluçar histericamente.
Havia se entregado de corpo e alma, dera-se toda àquele arrogante. E agora ele a
recompensava dessa forma!
O ruído de cascos de cavalo ressoaram na noite e em seu cérebro. Ian se fora.
Marissa viu Lee Kwan deslizando silenciosamente pela sala. Não sabia o quanto
ela vira ou ouvira, mas sentiu-se tomada de aborrecimento e vergonha.
Abriu a porta novamente e saiu na noite fria, sem saber bem porque fazia isso.
Talvez fosse bom ir ao chalé de Mary, visitar a ela e Jimmy.
Mas logo se deu conta de que não era esse seu objetivo. Além do mais, não queria
que a amiga a visse naquele estado de excitação nervosa.
Vagueou um pouco pelo jardim, tentando acalmar-se sob as rajadas frias. Súbito,
ouviu que a porta se abria suavemente para fechar-se em seguida. Virou-se, assustada.
Lee Kwan seguira-a!
Aqueles olhos rasgados, permanentemente baixos, irritaram Marissa ainda mais.
— Senhora, por favor!
— Por favor o quê? — volveu ela, seca.
— É tarde. Às vezes há homens, homens bêbados, a senhora sabe, andando por
aqui. Eles costumam subir Nob Hill depois das noitadas. O sr. Funston acha que nós
estamos muito perto das boates de Costa Brava, e talvez ele tenha razão. Por favor, volte
para casa!
Marissa deu um sorriso que mais parecia uma careta.
— Aonde ele foi, Lee?
Os longos cílios de Lee encobriram seus olhos exóticos.
— Foi dar um passeio.
— Está mentindo. Por que se empenha em defender Ian? Eu poderia jurar que
você me detesta.
A chinesa levantou o olhar, espantada. Depois sorriu.
— Sim, no começo.
— No começo? E agora não mais?
— Não. Agora não detesto a senhora.
— Bem, pelo menos foi honesta. Agora me diga com franqueza: sabe aonde foi
Ian, não sabe? E eu não sei. Isso não é justo, Lee.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa não sabia por que travava esse estranho diálogo com a criada. Apenas
seguira uma intuição que não compreendia.
— É verdade, senhora. Eu sei aonde ele foi.
— Visitar aquela mulher que estava na estação, não é?
— Ele não fará nada que magoe a senhora.
Marissa levantou as mãos para o céu, sem saber se ria ou chorava. Queria fazer
os dois ao mesmo tempo.
— Como pode saber o que me magoa ou não?
Lee ergueu a cabeça, pela primeira vez.
— Conheço seu marido melhor que a senhora.
— Claro — respondeu Marissa, não escondendo o sarcasmo. — Pelo menos, há
muito mais tempo.
Mas Lee não se deu por achada. Sacudiu a cabeça, dizendo:
— Está enganada, senhora. O sr. Tremayne nunca quis me tomar como concubina,
embora isso pudesse me dar grande prazer. Ele sempre foi um bom amigo, e trata muito
bem de mim e de John, mesmo com todo o falatório que há na cidade contra os chineses.
Os moradores daqui acham que os chineses invadiram e estragaram San Francisco.
Quando chegamos aqui, estávamos magros, doentes e sem um tostão no bolso.
Passamos dias procurando trabalho inutilmente, até que um dia o sr. Tremayne nos viu
em Chinatown e nos convidou para cuidar de sua bela casa. Deu-nos conforto, comida e
amizade. Portanto, minha resposta é sim, eu gosto do sr. Tremayne, mas não como a
senhora pensa. Eu detestei a madame porque pensei que só queria o dinheiro do patrão.
Agora, se não estou errada, madame se apaixonou por ele. Então, a senhora não vai lhe
fazer mal nenhum. Portanto, agora gosto da senhora.
Marissa fitou a chinesa por um longo momento, boquiaberta. Lee não mais se
dirigia a ela como uma serva submissa e respeitosa.
Mas ela preferia que fosse assim. A moça lembrava-a de um tempo não muito
distante em que ela própria fora também uma criada. Ambas tinham o mesmo orgulho,
concluiu. Lee continuava esperando, a blusa de cetim turquesa enfunada pelo vento. Os
cabelos, fabulosamente fartos e negros, brincavam com as rajadas fortes, emoldurando-
lhe o rosto de marfim.
— A senhora tem o direito de me despedir agora.
— Por que faria isso? — retorquiu Marissa, começando a rir. — Não tenho a menor
intenção de despedi-la, Lee. Mesmo que o fizesse, Ian não toleraria semelhante
intromissão de minha parte.
Depois, seguindo um impulso, aproximou-se da criada e ofereceu-lhe a mão. Lee
hesitou um pouco, mas em seguida apertou-a, sorrindo.
— Obrigada, Lee. Fez-me um grande bem.
A criada curvou-se, retomando a habitual atitude reservada.
— Mas, afinal, aonde foi ele? Ver aquela mulher da estação, não é?
— Hoje vai haver um espetáculo de estreia lá. Ele foi só para ajudar, nada mais.
— Como sabe disso?
— Eu sei — respondeu a chinesa com simplicidade. — Ele se preocupa com a
senhora agora. Acho que ele foi porque sabe que sua presença vai ajudar nos negócios
daquela moça. Mas só por isso, e não pela razão que a senhora pensa.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— E por que ele não me contou?
Lee sorriu. Os dentes brancos brilharam na noite.
— Dê-lhe tempo, senhora. Os homens gostam de pensar que são donos de si
mesmos.
Mais uma vez Marissa seguiu seu impulso e abraçou Lee, rindo. A chinesa ficou
rígida a princípio, mas logo devolveu o abraço.
— Obrigada outra vez, Lee. Vamos entrar agora.
Momentos depois, Marissa estava em seu quarto. Era bem tarde. Vestiu uma
camisola e escovou os cabelos com vigor, deixando-os cascatear sobre os ombros.
Depois, num último vestígio da raiva que sentira antes, deu duas voltas na chave da porta
que a separava de Ian.
Não tinha sono, porém. Pegou um livro e tentou ler, em vão. Sentou-se na beira da
cama, depois estirou-se. Notou que Lee havia arrumado o quarto e trocado os lençóis.
Teria razão a chinesa? Talvez Ian se preocupasse um pouco com ela. Nem que
fosse um pouquinho só. Sorriu, começando a sonhar outra vez com sua vida de casada.
De repente a porta que havia trancado cuidadosamente desabou com estrondo,
fazendo um barulho ensurdecedor.
Ian estava de pé, ofegante pelo esforço, um brilho de vitória nos olhos.
Marissa saltou da cama e fitou-o, aparvalhada. Depois fitou a porta, cuja fechadura
simplesmente fora pelos ares. Em seguida fitou-o de novo, incapaz de emitir um som.
Ian deu-lhe um sorriso desafiador.
— Esta é minha casa, minha porta, minha fechadura. Eu bem que avisei!
Ela o enfrentou, desta vez sem medo:
— É sua casa, é sua porta e é sua fechadura. Mas a paz é minha!
Ele tirou a capa e a cartola, jogando-as de lado, e veio em sua direção. Marissa
conhecia muito bem aquele olhar e deixou escapar um grito, tratando de fugir para o outro
quarto. Mas Ian foi mais rápido. Seus dedos aferraram-se no braço de Marissa, que
começou a se debater. Contudo, no íntimo, ela estava feliz, Ian voltara!
— Como ousa! — sibilou, lutando por se desvencilhar. — É muito audacioso de
sua parte, Ian Tremayne! Ir a um motel ordinário e depois invadir meu quarto!
Ele tomou-a nos braços, rindo.
— Não fui a motel nenhum, sua bobona — disse, enquanto a atirava sobre a cama.
Ela tentou se erguer, mas foi inútil. Ian deitara-se com todo o peso sobre Marissa,
prendendo-a sob o corpo. E seu olhar azul estava cheio de fogo e gelo.
— Não, Ian, não!
— Como ousa, madame? — falou ele, provocante, prendendo-lhe os pulsos sobre
o lençol.
— Ouso o quê? — gritou ela, indignada, dando-lhe pontapés.
Mas só conseguia acertar o ar. Dentro em pouco começou a sentir um calor
insidioso espalhando-se pelo sangue. E o calor de Ian. A força de Ian. E a ereção de Ian.
Através da fina cambraia da camisola, Marissa podia sentir o desejo do marido crescendo,
exigindo, excitando.
— Mentir para mim — respondeu ele baixinho.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Não fui eu que fugi para outros braços!
— Nem eu.
A boca dele buscou avidamente a de Marissa. Ela tentou ainda protestar, pois
queria deixar bem claro que Ian não podia correr dos braços de outras diretamente para
os seus. Retorceu-se e revirou-se sob o corpo de Ian, mas logo notou que seus
movimentos só serviam para excitá-lo mais.
— Ian, eu não permito...
— Por Deus, menina, pare de lutar comigo!
Ele a fitou com os olhos muito azuis. Olhos dançarinos, que a levavam numa valsa
para longe, além das nuvens.
— Não é com você que estou lutando, é com ela.
— Ela quem?
— Aquela mulher.
— Minha senhora, não existe ninguém — jurou ele, em tom solenemente
brincalhão.
Marissa acreditou. Porque queria acreditar.
— E...
— Por Deus, ainda há mais? Que foi agora?
— E as perguntas que queria me fazer?
Ele suspirou profundamente, atirando a cabeça para trás.
— As perguntas que se danem, por ora. Quero fazer amor com você.
Ela gemeu, deliciada.
Passou os braços à volta de Ian e ofereceu os lábios entreabertos.

CAPÍTULO XIII

Nos dias maravilhosamente calmos que se seguiram, Marissa nunca mencionou


aquela "escapada" de Ian, em que ele fora visitar a mulher da estação. E ele não a
perturbou com perguntas.
Foi um tempo bom para ambos, um tempo de descobertas e novos encantos, em
que eles procuraram apenas saborear as alegrias de se conhecer melhor. Marissa nunca
sonhara que poderia amar com tanta violência e abandono, mesmo em suas fantasias
mais delirantes. Havia horas tempestuosas e selvagens na cama, seguidas por outras de
risos e brincadeiras, como no dia em que Ian engatinhou sorrateiramente para a banheira
onde ela estava, de smoking, botas e cartola. Acima de tudo, havia as horas docemente
quietas, impregnadas de calma, quando ambos conversavam embalados pela paz que a
natureza lhes oferecia.

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Por vezes, saíam a passeio, onde Ian mostrava a Marissa pedaços desconhecidos
da cidade. Noutras vezes, ele a levava à loja onde Jimmy trabalhava. Marissa se
encantava com os progressos do amigo e incentivava-o, orgulhosa. Ela e Mary gostavam
de passear com Sandy, a alegre e sardenta auxiliar de Ian. Marissa ficara especialmente
atraída pelos órfãos das domingueiras; aqueles pequeninos traquinas, em sua pobre
humildade, lembravam-lhe a própria infância.
Quanto mais conhecia o marido, mais orgulhosa ficava. Ian vivia num dos bairros
mais ricos e elegantes de San Francisco; era benquisto e admirado pelas camadas mais
altas da elegante sociedade. Mas era homem de hábitos simples e severos; sabia
selecionar as amizades com firmeza. Nelas se incluíam construtores, policiais, executivos
e gente simples. Abominava os políticos de City Hall, de quem fugia sempre que podia,
apesar de ser constantemente assediado por eles. Chamava-os desdenhosamente de
"politiqueiros", e nunca aceitava os inúmeros convites que recebia para faustosas
recepções.
Mostrava-se atencioso e amável tanto ao tomar chá na casinha de Mary e Jimmy
quanto ao frequentar os ambientes mais sofisticados.
Por mais que gostasse de San Francisco, contudo, Ian tinha plena consciência de
que a cidade escondia perigos. Certa noite os dois selaram os cavalos para passear, e ele
levou-a para o alto de uma colina, mostrando-lhe o quanto Nob Hill poderia ser vulnerável,
tendo a Costa Brava tão próxima.
— A selvageria de Costa Brava fica a poucos metros da quietude de Nob Hill,
Marissa. Todo o cuidado é pouco. Veja como Costa Brava fervilha à noite.
— Mas é uma vista tão bonita, daqui do alto! Tantas luzes, tantos carros
passando...
— Sim, é linda a vista. Mas de longe. Assassinatos podem ser negociados com
uma garrafa de uísque barato. A polícia agora dispõe de uma frota de carros, e a situação
melhorou um pouco com a posse do novo delegado. Mas muita coisa acontece por detrás
dessas luzinhas de presépio. Xangaísmo, por exemplo.
— Xangaísmo? — repetiu ela, espantada.
Ele riu.
— Tem razão, você não poderia conhecer essa palavra. É uma gíria, significando
rapto, mas especificamente de gente moça. Rapazes e garotas são raptados e levados de
navio para o Oriente, onde se veem forçados a trabalhar principalmente em casas de
prostituição. É por isso que você deve evitar passear por perto da Costa Brava; lá é o
principal reduto do xangaísmo. Imagino a fortuna que você valeria para um chinês velho e
pançudo, com esses cabelos de fogo e esses olhos verdes
— Quer dizer que eu valho uma fortuna só para chineses velhos e pançudos? Ora,
muito obrigada!
Ian soltou uma risada e fez seu cavalo aproximar-se do de Marissa.
— Não foi isso que quis dizer, sabe bem disso. Na verdade, nem posso imaginar o
quanto você vale para mim. E mesmo que pudesse, não seria bobo de lhe dizer, porque
você teria uma informação bastante perigosa nas mãos. E ela poderia subir-lhe à cabeça.
Marissa sorriu, satisfeita com a resposta. Seu casamento ainda era frágil, mas por
ora era o quanto lhe bastava.
— Então você também deve manter-se longe da Costa Brava — disse, provocante.
— Há bons atrativos lá para os homens, minha querida.

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— Ah, mas você me despertou a curiosidade. Se não posso ir sozinha, vou
conhecer esses atrativos com você, da próxima vez que resolver descer.
— De modo algum! Como esposa e dama que é, você tem de conhecer seu lugar.
— E você também, como cavalheiro.
— Ianque — corrigiu Ian, com um sorriso zombeteiro.
Marissa calou-se por uns momentos, fitando-o com doçura. Depois arriscou
timidamente:
— Então está resignado a assumir um segundo casamento, Ian?
Mal pronunciou a pergunta, arrependeu-se de imediato. Sombras perpassaram o
olhar de Ian.
— Desculpe, eu não tinha nenhuma intenção de magoá-lo. A pergunta escapou,
desculpe!
Manobrando as rédeas, Marissa fez o cavalo virar-se e retomar o caminho de volta,
afastando-se num trote leve. Segundos depois Ian fez seu cavalo emparelhar-se com o
dela e tomou-lhe as rédeas das mãos.
— Resignado, Marissa? Muito mais que isso. Estou grato a você, que me fez ver
um par de coisas nos últimos dias. Você me mostrou como era fácil sair da caverna
escura de autopiedade. E me trouxe para um caminho cheio de sol.
Surpreendida e enternecida, Marissa ergueu os olhos para ele, sem nada dizer.
— Estou encantado com minha nova mulher, pode crer. E vou lhe mostrar o
quanto, assim que chegarmos em casa. Vamos!
Felizes, esporearam os animais. Ian sorriu, pensando no quanto havia mudado por
causa dela.
Na verdade, desde a primeira vez que a vira ficara profundamente sensibilizado. E,
aos poucos, Marissa fora se insinuando em sua vida, dela se apossando por completo.
Marissa, com sua vivacidade e inteligência. Com seus encantos misteriosos e sempre
renovados.
Ian amava outra vez. Às vezes esse amor lhe era doloroso, considerava-o uma
traição a Diana. Mas ele não cessara de amar a memória de Diana; não a traía. Marissa
havia lhe mostrado novos caminhos, havia-o arrancado de seu marasmo voluntário.
Marissa enchera sua vida de alegria.
Observando-a cavalgar com galante perícia, Ian começou a ficar excitado.
Decididamente casara-se com uma mulher notável! Um pouco feiticeira, um pouco
raposa, um pouco inocente, pois corava toda vez que ele lhe demonstrava seu desejo.
Nunca se sentira tão saciado e desejoso ao mesmo tempo. A excitação começou a
crescer quando pensou nos lábios úmidos e macios da mulher.
Incitou a montaria, gritando:
— Vamos apostar corrida!
Ela acedeu, de bom grado. Em segundos galopavam freneticamente, rindo e
instigando os cavalos.
Ao chegarem perto das cavalariças, Ian gritou por John. Contudo, a casa parecia
mergulhada em silêncio.
— Demônios! — exclamou ele, batendo com a mão na testa. — Acabo de me
lembrar que dei folga aos dois esta noite. Bem, o que não tem remédio remediado está.
Vamos lá, temos de recolher os animais.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Pulou da sela e ajudou Marissa a apear.
Ela o seguiu até o estábulo, para onde os dois cavalos, suados e cansados, foram
conduzidos. Uma luz fraca iluminava os cochos cheios de palha fresca. O forte aroma de
feno impregnava o ar.
Marissa tirou o elegante chapéu de pluma branca, sacudindo os cabelos. A massa
acobreada e brilhante caiu até a cintura. Ela estava com uma roupa bastante comportada,
muito elegante, mas seu olhar nada tinha de comportado. Nem seu sorriso provocante.
Ela ficou de pé a alguns metros de distância, olhando-o, esperando-o. Ian
encostou-se à porta do estábulo, percorrendo com os olhos o corpo da mulher.
— Já fez amor na palha? — perguntou ele.
— Não — respondeu ela, subitamente alarmada.
— Então está na hora de corrigirmos isso.
— Não, nada disso! Vamos ficar cheios de palha grudada na roupa, nos cabelos.
Todo mundo vai perceber.
— Que todo mundo? — perguntou ele, avançando.
— John e Lee podem voltar.
Mas ele já a pressionava entre os braços, mal contendo a ânsia de possuí-la. Os
dois corpos se uniram apaixonadamente, uma boca buscou a outra com sofreguidão. Ian
mergulhou os dedos nos cabelos de Marissa, afagando-os, deliciado.
Então ergueu-a nos braços e levou-a para um canto, onde havia um monte de feno
fresco, depositando-a suavemente no chão. Tirou a capa e estendeu-a sobre o feno,
esticando-a o melhor que pôde. Depois lançou-se sobre a cama improvisada, imaginando
que teria ainda algum trabalho para persuadir Marissa a acompanhá-lo.
Mas enganara-se. Nesse meio tempo ela já havia tirado o colete e a saia; estava
apenas com a roupa de baixo, imaculadamente branca.
Marissa caminhou até Ian, fitando-o sorridente. Ele se ajoelhou e enlaçou-a pela
cintura, aspirando seu perfume de lavanda e rosas. Descansou o rosto no ventre dela,
fechando os olhos. Depois começou a beijar a cintura fina, sobre a tênue camada de seda
que a cobria. Puxou-a para baixo e mordiscou levemente o mamilo que se enrijecia e
crescia sob a fazenda macia, sugando, molhando, aquecendo. Ouviu Marissa gemer
baixinho e sentiu que despertava nela o mesmo desejo. Os olhos dela estavam fechados.
Ian beijou as pálpebras, enquanto abria os colchetes da fina camisa transparente. Com
cuidado, Ian buscou os laços da calcinha, desamarrou-os e, devagar, desnudou-a por
completo. Fitou aquele corpo adorável, feminino, perfeito em sua brancura etérea. O
corpo que dali a instantes seria seu. Todo seu.
Ian inclinou-se e passou a beijá-la com lentidão, sem pressa, Marissa ardia sob
suas mãos, desperta em sua maturidade plena de mulher. Movia-se sensualmente sob
ele, suspirando a cada toque da língua. Estonteado, Ian ergueu a cabeça para contemplá-
la. Fitou longamente o rosto delicado, emoldurado pelo feno, pelos cabelos de pôr do sol.
Observou seus lábios carnudos e desejáveis. Observou o ritmo de seus quadris que
denunciavam crescente impaciência e desejo.
— Marissa, abra os olhos, por favor.
E quando ela obedeceu docilmente, ele passou a acariciar e beijar seu sexo, com
toques delicados e suaves. Ela gemia e sussurrava palavras incoerentes, entregando-se,
abrindo-se mais. A cada grito ou gemido, Ian sentia seu desejo ir se tornando cada vez
mais intolerável, crescendo, exigindo. Ela implorou-lhe que a tomasse, que a possuísse,

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mas Ian não a atendeu de imediato. Adorava vê-la desejosa, sequiosa e fremente.
Continuou a acariciar, a lamber, a excitar, até que o corpo dela arqueou-se, tenso, até que
a ouviu gritar em êxtase e agonia. Só então levantou-se e livrou-se das próprias roupas.
Marissa pusera-se de joelhos, esperando-o. Queria retribuir cada beijo, cada caricia, com
a mesma delicada dedicação que ele demonstrara. E puxou-o para si, fez com que se
deitasse de costas e começou a beijar-lhe o corpo docemente a princípio, selvagemente
depois. Ele atirou a cabeça para trás enquanto sentia as mãos de Marissa, os beijos de
Marissa, o perfume de Marissa. A língua dela, quente e úmida, explorava-o em ondas de
mel candente, enquanto seus dedos buscavam, exigentes. Ela deslizava corpo e língua
para baixo, até que Ian não pôde mais suportar a espera. Com um grito estrangulado,
puxou-a e rolou sobre ela. Depois penetrou-a suavemente, gozando cada momento
daquela posse completa.
Ela o rodeou com as pernas e os braços. O feno envolveu-os numa nuvem de
seda, e assim enovelados rolaram, voaram, pairaram no espaço. Maravilhado, Ian viu-a
entregar-se por completo, subir e descer sob seu corpo, dançar com ele, encontrar-se
com ele, unir-se a ele. Marissa aceitava e retribuía todas as carícias, murmurando
palavras ternas. Finalmente Ian deixou-se levar pelo turbilhão do clímax e mergulhou
gritando numa arremetida final, arrebatada.
Quando a noite fresca ficou repentinamente calma e companheira, Ian
compreendeu, finalmente, que amava Marissa. Sentiu vontade de declarar seu amor ali
mesmo, mas conteve-se. Deixaria para outra ocasião. No momento contentava-se em tê-
la assim em seus braços, em doce abandono.
— Ian? — sussurrou ela.
— Sim, Marissa.
— Eu...
— O quê?
Que ia dizendo ela? E por que se interrompera? Ian deitou-se sobre ela outra vez,
apoiando-se nas mãos.
— Que foi, Marissa?
Ela baixou os olhos.
— Eu... gostei de fazer amor no feno — disse por fim.
Ele sorriu, ligeiramente desapontado. Não era isso o que Marissa queria dizer,
tinha certeza. Talvez quisesse falar de amor. Mas esse assunto era tabu entre eles.
Não, era outra coisa. Talvez ela quisesse se abrir e desvendar-lhe todos os
segredos que tinha na alma. Segredos que ele pressentia, mas não podia alcançar. Que
ele surpreendia constantemente em seus olhos, quando desprevenida.
Continuou fitando-a, mas não insistiu. De nada serviria pressioná-la. Quando ela
estivesse pronta, contaria tudo espontaneamente.
E depois diria que o amava.

Na tarde seguinte, sentada no extenso gramado do parque de Golden Gate, à


margem de uma encantadora lagoa, Marissa observava a elegante e seleta multidão que
passeava e conversava a distância. Ian estava no parque, mas saíra de seu campo de
visão. Mary achava-se a seu lado, alimentando os patos com milho. Jimmy preferira
esticar-se na relva e aproveitar os mornos raios de sol.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Já haviam cumprimentado muitas pessoas, a quem Ian os fora apresentando.
Entre elas, o prefeito Eugene Schmitz, de quem Marissa ouvira referências poucos
elogiosas no jantar em que conhecera Eda. O prefeito mostrara-se amável e galanteador,
simpático, mas Marissa achara que seu riso era um pouco fácil demais.
Grace Leroux também estava lá; minutos atrás descobrira os quatro ao lado da
lagoa e dera um jeito de se afastar com Ian.
Marissa não se importou, a princípio. Mas à medida que o tempo ia passando, sua
inquietação crescia.
— Onde Grace está, nascem problemas — comentou, irritada.
— Shh, minha querida — admoestou-a Mary. — Ninguém deve saber que ela a
aborrece.
Marissa não contara a Mary como seu casamento havia mudado. Não lhe confiara
os momentos de felicidade que compartilhara com Ian. Mas não fora preciso; a amiga era
perspicaz e podia ler seus pensamentos.
— Por que não? Minha vontade é arrancar todos os fios daquele cabelo eriçado e
tingido.
Jimmy, que se largara preguiçosamente ao sol, soltou uma gargalhada e interveio:
— Porque o objetivo de Grace é aborrecer você, Marissa. Ainda não percebeu?
Aborrecendo-se, você passará o recibo que ela quer, assinado, datado e carimbado!
— Bolas, ela dá em cima de Ian descaradamente!
— Concordo. Mas lembre-se, Marissa, Grace nada conseguirá de Ian, a menos
que ele deixe que ela consiga. Certo ou errado?
Marissa não teve remédio senão concordar.
— O pior é que ela não deve ser a única — comentou, num tom amargo. — Parece
que há mais de cem mulheres neste parque, todas com o mesmo objetivo na cabeça.
Meu marido.
Jimmy riu e voltou a deitar-se, mastigando um talo de grama.
Disfarçadamente, Marissa circunvagou o olhar em busca de Ian. Um dia ele a
deixara para ir patrocinar o show daquela mulher da estação. Como era o nome dela? Ah,
Lilli. Lee Kwan falara-lhe de Lilli com afeto e admiração. Mas confessara a Marissa que
odiava Grace Leroux, com todas as forças de seu leal coração.
Mary fungou.
— Céus, Marissa, por que os homens se deixam enganar com tanta facilidade? Na
minha opinião, são uns perfeitos pavões, prontos a acreditar nos elogios de qualquer
interesseira.
Súbito, seu rosto de camafeu fez-se escarlate.
— Ora, ora, quem diria! — disse uma voz que fez Marissa suspirar de prazer. — A
nossa doce Mary não tem opinião muito elevada dos homens!
Ian sorria para os três, enquanto arranjava um lugar entre Mary e Marissa.
— Acontece, minhas queridas — acrescentou ele, acomodando-se
confortavelmente —, que nós não acreditamos em qualquer elogio. Fingimos acreditar,
quando sentimos que daquele mato pode sair algum coelho. Estou certo, Jimmy?
— Claro que está! É exatamente o que fazemos.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa ergueu os olhos para Ian. Os raios de sol deixavam-nos mais claros que
de costume, mais brilhantes.
— Pois eu gostaria de saber que espécie de coelho Grace Leroux tem na cartola.
Ou nas saias, nunca se sabe.
Todos caíram na risada.
— Oh, ela tem seus encantos — disse Ian.
— Sim, iguaizinhos aos de uma aranha viúva-negra.
E Marissa abriu os dedos em garra, fazendo uma careta acompanhada de um
ruído rouco. As risadas aumentaram.
— Acho melhor mudar de assunto — falou Ian, afagando-lhe o ombro. — Veja lá,
minha querida, aquele homem ali é Phineas van Kellen.
— E quem é ele?
— Um homem tão inteligente quanto rico. Acabo de fechar negócio com ele. Vou
construir uma casa para ele, nos arredores de San Francisco. E Phineas concordou com
todas as minhas condições.
— Oh, Ian, como estou contente! Meus parabéns!
Fitaram-se intensamente, e por alguns momentos só havia os dois no mundo.
Se ao menos ela pudesse contar a verdade, que alívio sentiria! Quase o fizera, no
estábulo. Mas não era apenas a sua vida que estava emaranhada em mentiras. Arrastara
consigo a vida de Jimmy e Mary. E nada faria que pudesse prejudicar seus melhores
amigos. Ian poderia ficar furioso com eles também, por serem coniventes com Marissa.
— Viu só, Marissa?
Ian dissera qualquer coisa que ela não ouvira.
— Assim, olhe.
Ele havia se ajoelhado na grama, sem ligar para o elegante terno. Mary fizera o
mesmo, apesar de estar de branco. E Jimmy agora os imitava, embora usasse calças
claras de linho. Marissa juntou-se a eles, rindo encantada. Ian, com dedos ágeis, acabava
de montar uma pequena estrutura com talos de grama.
— Façam de conta que isto é um edifício — disse ele. — Quando há perigo de
terremoto, não só é preciso reforçar as fundações, como é necessário dar alguma
flexibilidade a elas. Assim elas poderão acompanhar os movimentos do solo sem ruir,
entendem?
Marissa sorriu de orgulho. Ian era tão entusiasmado com a profissão!
— Há terremotos sérios aqui? — perguntou ela, interessada.
Ian não pôde responder, porque Grace Leroux acabara de chegar, felinamente
risonha.
— Ian e minha querida... querida... Oh, desculpe. Seu nome é Myrthe, não é?
Ian erguera-se e acabava de ajudar Marissa a pôr-se de pé.
— O nome de minha mulher é Marissa, Grace. E estes são Jimmy e Mary; creio
que se lembra deles.
— Oh, mas é claro que me lembro!
Marissa tinha certeza de que ela se lembrava, e fingia o contrário. Só para fazer
charme. Só para deixar bem claro que nenhum deles ocupara seu pensamento... Para o
inferno com ela.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Forçou-se a sorrir quando Grace falou com Ian sobre uma pessoa qualquer.
— Você precisa falar com ele, querido! — ela adocicou a voz.
Alguém chamou Ian de longe. Ele se desculpou e afastou-se, não sem antes
apontar-lhes o elegante quiosque onde o chá seria servido.
Mary e Jimmy resolveram ir para lá e começaram a andar distraídos, deixando
Marissa momentaneamente sozinha com Grace.
— Pensa que ganhou, não é? — perguntou Grace.
Marissa voltou-se, espantada. A voz da meiga viúva endurecera-se e seus olhos
agora soltavam farpas. Nada havia de inocente em sua expressão contorcida.
— Pode estar certa, mocinha. Ainda nem sequer recebeu as cartas para jogar. E
vai ser jogo duro.
Havia tanto veneno na voz da outra que Marissa sentiu-se nauseada. Mas não fora
à toa que aprendera a lidar com as enfatuadas damas de Londres.
Sorrindo docemente, respondeu:
— Grace, caso se esqueça de meu nome de batismo outra vez, dou-lhe liberdade
para me chamar de sra. Tremayne.
Sem dar tempo à outra para achar uma resposta, correu para alcançar Mary e
Jimmy. Seu sorriso crescia à medida que corria.
"Dessa vez você errou, Grace. Quem ganhou a parada fui eu. E ganhei porque Ian
quis que eu ganhasse."

Mas naquela mesma noite, na solidão do quarto, Marissa refletiu melhor. Sim, ela
tinha ganhado. Por enquanto. Porém, o que lhe aconteceria se Ian descobrisse o atoleiro
de mentiras em que vivia?
Essas mentiras eram agora a única sombra em sua vida. Uma vida que poderia
tornar-se perfeitamente feliz, caso essa sombra não existisse.
A cada semana, Ian assinava um documento com sua mesada. Cedo ou tarde ele
começaria a se indagar sobre o que Marissa fazia com esse dinheiro. Ela quase não saía,
a não ser para passear com Mary. Vivia na casa dele e não gastava um tostão com
víveres. Ian sabia que ela continuava a ajudar Mary e John, mas não tinha a menor ideia
do quanto ela mandava para casa. Nem lera uma só das longas cartas que ela costumava
escrever às escondidas para o tio Theo.
Ian sabia também que ela dava uma contribuição para o orfanato da igreja, embora
não tivesse conhecimento de que Marissa discutira o assunto longamente com Mary.
Havia um garotinho travesso e encantador, a quem Marissa votava especial dedicação.
Chamava-se Darrin Mciver. Ela o conhecera numa das domingueiras e gostou dele de
imediato.
Tinha dez anos, a maior parte dos quais, vivida e sobrevivida nas ruas, à custa de
pequenos furtos. Seus olhos, muito grandes, pareciam guardar os segredos de uma vida
precocemente adulta. Era um bonito menino, porém, o padre Gurney contara a Marissa
que a mãe dele fora um "anjo perdido na Costa Brava". Morrera moça, deixando Darrin ao
deus-dará. O menino conhecia todos os vícios da cidade, jogava pôquer como gente
grande e blasfemava como um marinheiro. No dia em que o conheceu, Marissa foi
surpreendida por uma torrente de palavrões insolentes e grosserias. Apesar de ter sido
exaustivamente treinada para se portar como uma dama, Marissa respondera-lhe da
mesma forma, tal como havia aprendido nas ruas de sua cidade, longe dos olhos do tio. O

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
garoto se aquietara e ficara emburrado num canto até o fim da refeição. Chegada a hora
de ir embora, ele se aproximara de Marissa, os bolsos cheios de chocolate.
— A senhora é uma dona pra lá de legal.
Na semana seguinte Marissa gastara uma boa soma com roupas para ele: calças,
camisas, camisetas, meias, sapatos. Tudo muito simples, mas adequado. Quando ele
recebeu os pacotes, seus olhos brilharam, mas logo ficaram tristes. Disse, empurrando-
lhe as caixas:
— Não é preciso, dona. Não quero essas roupas não.
— Mas precisa de roupas novas, Darrin. Olhe só sua camisa, sua calça. Está tudo
cheio de buracos! E seu sapato, meu jovem, está descosturado.
— Eu me viro com o que o velho me dá.
— Padre Gurney?
— É. O velho.
— Padre Gurney, Darrin.
— Não sou católico.
— Bem, nós ingleses, na maioria, também não somos católicos. Mas eu repito
esse... velho, como diz. Para mim ele é padre Gurney.
— Está bem, padre Gurney — acedeu o menino, depois de hesitar um pouco. —
Mas num quero caridade.
Se havia alguém que precisava de caridade era Darrin. Mas Marissa o entendia
melhor que ninguém. Era o orgulho, inato em Darrin e nela própria, que tanto a atraía para
o garoto.
— Sabe, Darrin — disse ela, pondo-se de cócoras —, eu tenho um monte de cartas
para pôr no correio, mas não tenho tempo para fazer isso. Vamos fazer o seguinte: você
cuida de minha correspondência, e eu pago com esses presentes. Encontre-me terça-
feira, naquela esquina ali, vê? Logo perto da loja. Eu lhe entregarei as cartas. Às dez
horas da manhã, está bem?
O garoto estava relutante.
— Vamos, Darrin. Você vai trabalhar e ganhar. É o que meu marido faz também.
— Seu Ian? — perguntou o garoto, com os olhos brilhando.
— Sim, "seu" Ian. Então, que tal?
— Combinado, assim eu aceito — falou ele. E saiu correndo para brincar.
Marissa pôs-se de pé, sorrindo. Ian veio em sua direção.
— Gostou do garoto, hein?
— Muito. E você, também gosta do jeito dele?
— Claro que sim, tem olhos iguais aos seus. Ele me lembra você.
— Ora, essa! Os olhos dele são grandes, redondos e castanhos. Os meus são
verdes!
— Verdade. Mas às vezes há uma sombra neles. Como acontece com o garoto.
Ela riu, pensando que Ian brincava. Mas ele se pusera sério e se afastara em
direção ao padre.
Marissa ficou pensativa. Ian nunca mais a atormentara com perguntas. Mas
acabara de lembrá-la que não se esquecera delas. E que gostaria de obter respostas.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Nessa noite, durante o jantar, Marissa tivera de lutar contra o nervosismo e a
inquietação. E quando ele viera ao seu quarto, como de costume, sentira-se ansiosa e
aflita.
Mas ele nada perguntara. Simplesmente tomara-a nos braços e levara-a para a
cama.
E a noite tornou-se mágica.

Conforme o combinado, na terça-feira pela manhã Marissa foi com Mary encontrar
Darrin.
Ele já a esperava, metido orgulhosamente na roupa nova. Marissa então entregou-
lhe uma carta endereçada ao tio.
O garoto olhou para a carta, desapontado.
— Só isso? A senhora disse que era um monte. Essa daí a senhora bota no
correio. É fácil.
— Pode ser. Mas esta é uma carta especial, Darrin. Prefiro que você vá ao correio
para mim. Depois haverá mais cartas. Por favor?
Ele deu de ombros.
— Tudo bem, eu vou. Epa!
Marissa olhou-o, espantada. Darrin assumira uma expressão de hostilidade e raiva
profunda, olhando por cima dos ombros dela.
— Epa, epa! — repetiu ele. — É aquela bruxa!
Admiradas, as duas se viraram a tempo de reconhecer o rosto de Grace Leroux no
meio dos transeuntes. Ela também as viu e deteve-se, surpresa.
— Darrin! — exclamou Marissa, em tom severo.
— Detesto essa mulher. Ela não presta.
— Darrin, ela só veio fazer compras na loja. Não deve falar assim.
Virou-se novamente para encarar Grace. Esta observava com curiosidade as duas
mulheres conversando com um garoto mal vestido. Depois ela sorriu, e Marissa sentiu um
frio na espinha.
Darrin tinha razão. Era um sorriso de bruxa.
Mas, de qualquer modo, era um sorriso. Grace gostava dos jogos sociais. Pois
bem, retribuiria na mesma moeda. Sorriu também, acenando-lhe. Grace entrou na loja e
sumiu de vista.
— Bruxa maldita!
— Darrin, não deve falar assim. Grace Leroux é uma pessoa caridosa, contribui
para o orfanato.
— Ah... sim! Só pra impressionar os trouxas. Bem, eu vou indo. Tchau!
Quando ele se foi, Marissa convidou Mary para almoçar.
— Vamos experimentar o Delmonico. Ian sempre me fala desse restaurante.
Era um lugar agradável e ensolarado, decorado com orquídeas em profusão.
Marissa pediu champanhe. Enquanto bebericavam, as duas admiravam a elegância
discreta das mulheres, os ternos impecáveis dos homens.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Marissa, sabe que até agora ainda me belisco para saber se é verdade que
estamos aqui? É tudo tão maravilhoso!
— Também acho, minha amiga.
— Nunca vi você tão feliz. Bem, na verdade eu nunca tinha visto você apaixonada.
Pensava que isso nunca iria acontecer!
Marissa corou, para grande divertimento de Mary.
— Está bem, admito. Estou feliz, sim! Como nunca, Mary. Mas às vezes tenho
medo. E a felicidade some nessas horas.
Mary pousou a taça.
— Diga a verdade a ele.
— Não posso! Não tenho coragem!
— Mas é preciso.
Marissa sacudiu a cabeça.
— Há horas em que quase me abro com Ian. Quase conto tudo, tintim por tintim.
Mas sempre me calo na hora "H", porque tenho de pensar em você, em Jimmy, no titio. Já
imaginou o que pode acontecer, se ele se sentir ofendido e humilhado com nossa
mentira?
— Ele compreenderá. Porque gosta de você.
— Ian nunca me disse que me amava.
— Nem precisa, menina. Ele te adora, sua boba! Está tudo escrito nos olhos dele,
no modo como a trata, no modo como a olha! Céus, Marissa, Ian demonstrou que é um
cavalheiro e tanto! É honesto, sincero... e muito bonito, devo acrescentar. Tem uma
presença de espírito fora do comum. Tem confiança nele mesmo, coisa que falta um
pouco ao meu Jimmy.
Marissa sorriu. Ian tinha confiança em si e muita. Só ela sabia o quanto isso era
verdade. Às vezes ficava cheia de ciúme, fazia cenas bobas. Ele ria, tomava-a nos braços
e terminava tudo com um beijo. Ian jamais mentia para ela.
Mas ela mentira todo esse tempo.
Suspirou e pegou o cardápio.
— Vamos fazer o pedido?
— Não mude de assunto. Pense, Marissa. E se ele descobrir sozinho a verdade,
sem você lhe ter contado antes? Seria mil vezes pior, acredite!
— Também acho, Mary. Estou apenas esperando que surja o momento apropriado.
Mary sorriu e piscou-lhe, marota. Suas faces estavam afogueadas.
— Marissa, eu... eu vou ganhar um nenê! Um filho, Marissa!
— Oh, Mary! — exclamou, encantada, segurando a mão da amiga. — Você já foi
ao médico? Acha que pode ter esse filho?
— Sim, estou ótima, graças a Deus. De qualquer modo, eu nem pensaria em tirar o
bebê, nem que me custasse a vida... Por favor, Marissa, quero que fique feliz com a
notícia! Compartilhe nossa alegria!
— Mas é claro, minha amiga. Estou realmente feliz por vocês, acredite!
Apertou a mão de Mary com ardor e depois ergueu a taça.
— Ao jovem O’Brien! E a vocês dois!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Mas quando baixou a cabeça para estudar o cardápio, as letras embaralharam-se
diante dela. Agora, mais que nunca, não poderia contar a verdade ao marido. Tinha de
proteger aquele segredo com unhas e dentes, pois dele dependia o bebê de Mary.

Apesar de Mary ter dito que estava bem, na manhã seguinte, quando Marissa foi
convidá-la para passear, encontrou-a pálida e desfeita, ainda de camisola.
— É aquele enjoo matinal, nada mais — assegurou-lhe Mary, com voz fraca. —
Você e Jimmy me assustam, com todo esse cuidado.
Marissa estava preocupada, mas tinha marcado um encontro com Darrin.
Lee também, por sua vez, preocupou-se com Marissa.
— A senhora não deve ir sozinha. John pode levá-la.
— Lee, eu conheço aquela região muito bem agora. Não há perigo nenhum. Além
disso, gosto de passear sozinha.
A última coisa que queria era ter John Kwan a seu lado, na hora em que
entregasse as cartas para Darrin.
A chinesa não insistiu, mas parecia bastante preocupada. Marissa enterneceu-se,
pensando com prazer na amizade que florescia entre ela e Lee. O relacionamento entre
ambas havia começado mal, mas agora era de franca sinceridade.
Pediu para John selar seu cavalo favorito. Jet, que adotara como seu. Era negro,
de pelos lustrosos e crina grande, pois Marissa não deixava que John a tosasse.
Em menos de uma hora estava diante da loja. Deixou Jet na estrebaria e entrou na
loja. Logo soube que Ian saíra para visitar uma construção, mas era esperado mais tarde.
Passou então pela sala de Jimmy. Ficou alegremente surpresa ao vê-lo dirigir os
funcionários de modo gentil mas firme. As coisas pareciam correr bem sobre os trilhos.
Finalmente foi em busca de Sandy, com quem conversou durante um bom tempo. Soube,
com vibrante entusiasmo, que havia planos a caminho para ampliar as domingueiras.
Aquele café da manhã iria ser servido também nos dias da semana, bem cedinho.
— Isso é uma maravilha, Sandy!
— É mesmo. As crianças bem que merecem ter sua refeição todos os dias, e não
só aos domingos. Mas há um problema que me deixa triste.
— O que é? — perguntou Marissa, alarmada.
Sandy ficou quieta, brincando com o lápis que tinha na mão. Finalmente levantou a
cabeça, olhando-a com tristeza mal fingida.
— Não podemos mais chamar as domingueiras de domingueiras...
As duas explodiram numa gargalhada gostosa.
Já eram quase dez horas. Darrin devia estar esperando. Marissa deu um beijo em
Sandy e apressou-se para a esquina, olhando para os lados nervosamente. Não queria
que Ian a achasse ali. Logo avistou Darrin correndo em sua direção.
— Hoje a senhora está sozinha?
— Mary não estava se sentindo muito bem.
O pequeno franziu a testa, fazendo Marissa sorrir.
— Darrin, você também?
— Eu sou grande, sabia? Sei cuidar de mim. Não há problema em andar sozinha.
— É — respondeu ele, dando de ombros. — Eu fui no correio e pus a carta lá.
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— Ao correio, Darrin. Precisa aprender a falar direito.
— Eu sei falar direito. É que tenho preguiça.
— Então vamos fazer um trato. Eu lhe dou uma moedinha toda vez que você falar
corretamente. Que tal?
Ele pensou um pouco.
— Não, não é preciso. Viu, eu não falei errado. Eu vou tentar falar direito o tempo
todo, e a senhora não precisa me dar nada.
— Assim é que gosto, Darrin. Tome, esta é outra carta.
Ele pegou o envelope.
— Tem bastante gente na Inglaterra que a senhora conhece?
— Eu... sim, tenho parentes lá.
— Deve ser bom ter parentes — disse ele, coçando a cabeça. Mas refletiu um
pouco e continuou: — Não, acho que não. Parentes mentem pra gente, depois fogem e
deixam a gente sozinho no mundo. Bem, eu já vou no... ao correio. A senhora precisa
tomar cuidado, viu? A Costa Brava fica perto daqui. É um lugar perigoso.
Marissa esperou que ele dobrasse a esquina para seguir caminho. Seu coração
estava apertado com o que dissera. Talvez Ian arranjasse qualquer emprego para o
pobrezinho; era um garoto vivo e esperto. Sim, Ian o ajudaria. Quem sabe até arrumasse
uma colocação na casa, ao lado de Lee e John. Dessa forma, Marissa poderia cuidar dele
sem ofender-lhe o orgulho.
Mergulhada em seus pensamentos, não se deu conta de que deixara a rua
principal e enveredara por um beco calmo e pouco povoado. Estava tão preocupada com
Darrin que nem ligou para o barulho de passos que se aproximavam.
De repente, viu-se cercada. Rapidamente correu os olhos para a direita e para a
esquerda. De um lado havia um homem alto e bigodudo, com um boné sombreando-lhe o
rosto. Do outro viu um loiro que a encarava com um sorriso maléfico. Marissa sentiu-se
arrepiar. Despertara dos devaneios tarde demais.
Abriu a boca para gritar, mas antes que pudesse emitir um som o homem de
bigode agarrou-a e tapou-lhe a boca com um lenço, comprimindo-o fortemente sobre o
nariz. Um cheiro adocicado e enjoativo invadiu-lhe as narinas. O mundo pareceu rodar a
sua volta.
Lutou com quantas forças ainda lhe restavam, tentando não respirar. Sempre
lutara, a vida toda. Talvez agora conseguisse escapar! Mas os sentidos escapavam-lhe.
Não lograva coordenar os movimentos; seu corpo parecia feito de chumbo. Nem gritar
conseguia.
A rua começou a girar vertiginosamente e Marissa sentiu que a consciência
começava a lhe faltar. Mal percebeu que alguém a amparava, impedindo-a de desabar
como um fardo na calçada.
Estranho, lutara tanto a vida toda para conseguir a felicidade... E agora que a
conseguira... Era obrigada a parar de lutar.
Seu último pensamento foi que ninguém a vira dobrar o beco. Desapareceria sem
deixar um único rastro, pois viera passear sozinha.
E a escuridão toldou-lhe a mente por completo.

Mas Marissa não estava sozinha.

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Darrin MacIver, o experiente garoto de rua, não se afastara completamente.
Ao deixar Marissa, Darrin lembrara-se de que não tinha agradecido a roupa nova e
bonita que ela lhe dera. Não que fosse sua obrigação agradecer; afinal, estava
trabalhando para ganhá-la.
Mas aquela moça bonita e perfumada atraía-o. Além disso, não devia ser muito
mais velha que ele, embora tivesse modos de adulta, daquelas madames ricas que ele via
só de longe, e muito raramente. Aquela tal de Grace Leroux, essa não contava. Benjie
achava que Grace era muito, muito bonita e vivia dizendo que um dia ainda iria dar um
beijo no pescoço dela. Mas ele, Darrin, não concordava com Benjie. Só dona Marissa era
bonita. E gostava dele, tinha certeza.
E por causa dela, "seu" Ian havia mudado também. Não que ele fosse um homem
mau; pelo contrário, Darrin o admirava. Mas parecia que "seu" Ian não gostava de ficar
muito tempo no meio dos órfãos. Padre Gurney explicou que era por causa do filho. "Seu"
Ian havia perdido o filho quando a mulher dele morrera, parece. A vida era estranha
mesmo! Um homem rico como aquele, perder a mulher e o filho. E prostitutas tinham
filhos em penca, e não queriam ficar com eles. Jogavam os filhos em latas de lixo assim
que nasciam.
Daí chegara dona Marissa, com aquele jeitinho, e de repente "seu" Ian ficara mais
alegre.
Mas dona Marissa também sabia falar como ele, Darrin. Ele bem que ouvira,
naquele primeiro dia. Vai ver até palavrão bem feio e cabeludo ela também sabia.
Provavelmente dona Marissa parecia saber uma porção de coisas. Parecia até entender o
que ia no coração de Darrin. A danada adivinhava o que ele pensava! E era tão bonita,
com aqueles cabelos brilhantes, aqueles olhos lindos. Darrin decidiu que gostava de dona
Marissa. Ela tinha mudado sua vida. Para melhor.
Nesse ponto, o garoto decidira que voltaria para dizer qualquer coisa para Marissa.
Não tinha muita certeza do que falaria; seria capaz até de agradecer. Embora seu orgulho
fosse duro de vencer, era bem capaz de dizer um breve "obrigado".
Mas Marissa dobrava a esquina, parecendo preocupada com alguma coisa. Darrin
correu atrás, ansioso. Não podia perdê-la de vista agora!
Chegou exatamente na hora em que os dois homens carregavam Marissa para
uma carruagem preta, estacionada mais adiante.
Paralisado de pânico, Darrin ficou olhando de boca aberta e carruagem se afastar
lentamente. Súbito, ganhou coragem e correu, gritando desesperadamente:
— Ei! Ei, larguem dona Marissa! Ei, vocês dois!
A carruagem prosseguia e Darrin desabalou atrás, agitando os braços
freneticamente, mas logo percebeu que não conseguiria alcançá-la. Parou, ofegante, sem
saber o que fazer.
Foi quando viu as grandes letras pretas: Tremayne. Rápido com um raio, correu
para a loja. "Seu" Ian devia estar lá. Tinha de estar lá, meu Deus...
Mas no meio do caminho estacou, hesitando. A bruxa Leroux estava ali na calçada.
Darrin não sabia por que parara. Só queria entender o que ela fazia ali, perto do beco.
Vinha andando, calçando as luvas. E sorria, a bruxa. Passou correndo por ela, gritando
dali mesmo:
— Seu Tremayne! Seu Tremayne!
E correu loja adentro, dando encontrões e cotoveladas.

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CAPÍTULO XIV

Ian acabara de se instalar confortavelmente em sua poltrona giratória, preparando-


se para assinar a pilha de papéis que encontrara sobre a mesa. Sentia-se contente por ter
contratado Jimmy O'Brien; mais uma vez sua intuição não falhara. O irlandês estava se
saindo admiravelmente e demonstrava excelente disposição para o trabalho que lhe fora
confiado. A continuar assim, Ian poderia transferir-lhe outras tarefas, e assim dedicar-se
por mais tempo ao que mais o interessava: construção e arquitetura.
E poderia também dedicar-se mais a Marissa e a sua vida pessoal, que
subitamente passara a ocupar importante lugar em sua existência.
De repente, franziu o cenho, levemente aborrecido. Seu silencioso e eficiente
secretário, Arthur Mount, elevara a voz e estava discutindo do outro lado da porta. Ian
achou estranho aquilo; Arthur era um modelo de discrição e sempre soubera manter o
escritório em silêncio. Pela porta de vidro fosco, pôde perceber que algo de inusitado se
passava. Parecia que Arthur tentava agarrar alguém muito menor que ele. Uma criança,
talvez. A curiosidade de Ian cresceu.
— Não, já disse que é impossível, meu jovem! O sr. Tremayne tem muito o que
fazer!
Houve um ruído abafado de luta e os dois saíram da visão, para logo reaparecerem
engalfinhados.
— Me largue, seu grandalhão! Estou dizendo que é urgente, não ouviu? Você é
burro!
Mount soltou um brado de dor, largando o menino. E no instante seguinte a porta
se abriu para deixar passar um furacãozinho magro e miúdo, que ofegava. Ian logo
reconheceu o órfão com quem Marissa conversava nas domingueiras. Como era mesmo
o nome do garoto? Darrin. Este enterrou o boné raivosamente até as orelhas.
— Depressa, seu Ian, não podemos perder tempo...
— Desculpe, sr. Tremayne, tentei deter esse pestinha, tentei mesmo! — clamou
Arthur, enxugando a testa com um lenço. — Ah, moleque, vou...
— Não, Arthur, não faz mal — interveio Ian.
A cena divertia-o imensamente. De um lado, Darrin, fuzilando Arthur Mount com
olhos beligerantes; do outro, o indignado secretário, que perdera toda a pomposidade e
coxeava, certamente devido a um pontapé certeiro.
— Estou certo de que Darrin tem uma boa razão para vir até aqui — continuou,
abaixando-se para cumprimentar o menino. — O que foi, meu rapaz? Algum problema?
— Eles pegaram ela! — gritou Darrin, fremente de excitação.
O menino deixou de lado os bons modos e começou a dançar de aflição no meio
da sala. Nem se preocupou em falar corretamente, do jeito que dona Marissa queria.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Pegaram a dona Marissa, roubaram ela. Dois pilantras. Naquele beco aqui
atrás. Nós nos encontramos como o combinado, a gente falou um pouco, depois eu fui
embora. Daí vieram os malandros. Botaram ela numa carruagem.
Ian fitou o garoto com olhos esgazeados, sem poder assimilar o que ele dizia. Sem
querer compreender. Deu dois passos e agarrou Darrin pelos ombros.
— Quê?!
A palavra explodiu, trepidando pela sala.
— Dois homens...
— Pelo amor de Deus, Darrin, desembuche de uma vez!
— Um era alto, com bigodes grandes. Moreno. De terno listrado. O outro era loiro.
Sem barba, sem bigode: Mais novo que o morenão. Sem chapéu. Botaram dona Marissa
numa carruagem preta, velha e feia. Com um cavalo só, daqueles bem pangarés. Foram
naquela direção.
— Costa Brava — murmurou Arthur, empalidecendo.
— Chinatown — corrigiu Darrin, olhando com solene gravidade para Ian.
Ian correu para a porta.
— Chame a polícia imediatamente, Arthur. Mande alguém ao local. Já!
Desceu para a rua sem paletó, sem esperar pelo elevador, sem pensar. Ao dobrar
a esquina que dava para o beco fatídico, encontrou-o mergulhado no silêncio calmo do
meio-dia. Não havia sinal de gente ali. Nenhum vestígio de luta, nada. Vasculhou a área
freneticamente, sentindo que duas garras de gelo apertavam-lhe o coração. Talvez o
garoto tivesse inventado tudo. Mas Ian sabia que não. Ele parecia adorar Marissa.
Virou-se ao ouvir passos miúdos e rápidos. Darrin arquejava a seu lado, extenuado
pelo esforço para alcançá-lo. Seus grandes olhos castanhos imploravam esperança.
— Foi aqui, Darrin?
— Aqui mesmo, "seu" Ian.
— Bem, Darrin, ouça com atenção. Pegue meu cavalo na estrebaria da loja e
traga-o para cá. Depois volte e espere a polícia; conte a eles exatamente o que me
contou. Se se lembrar de mais detalhes, tanto melhor.
Orgulhoso do inesperado e importante papel que Ian lhe confiara, Darrin correu
pela rua. Ian começou a examinar a área com mais calma. Havia muitos sinais e trilhas de
pés; era-lhe impossível distinguir quais as mais recentes. Se bem que isso não era de
todo indispensável; ele sabia muito bem qual o destino da carruagem. Chinatown, sem
sombra de dúvida. Marissa seria entregue a um dos inúmeros prostíbulos, onde seria
obrigada a tomar ópio e divertir os fregueses. O sangue de Ian fervilhava.
Darrin apontou na esquina, trazendo o cavalo exatamente como fora instruído. O
pequeno olhou-o sem dizer nada, mas ambos sabiam que pensavam a mesma coisa.
Marissa tinha de ser encontrada logo, caso contrário desapareceria para sempre.
Era assim que funcionava a prática do xangaísmo.
Ian fitou o menino e deu-lhe instruções detalhadas.
— Depois de contar tudo para a polícia, procure Jimmy O'Brien na loja. Diga-lhe
que vá procurar John e Lee Kwan.
Darrin ouviu atentamente e repetiu:
— John e Lee Kwan. Não posso me esquecer desses nomes, não é?

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Sei que não esquecerá, Darrin. E Jimmy O'Brien.
— Esse eu sei quem é. É o marido da dona Mary.
— Muito bem. Jimmy deverá contar tudo a John e Lee. E os dois saberão o que
fazer. Diga a Jimmy que, se tiverem alguma notícia, estarei em Chinatown. Lee e John
saberão como me encontrar. Entendeu tudo?
— Entendi, "seu" Ian. Pode ir sossegado... quero dizer, pode ir.

Como rastilho de pólvora, a notícia se alastrou rapidamente por toda a cidade.


Marissa era casada com um dos homens mais proeminentes e respeitados de San
Francisco. Além disso, era muito popular entre as mulheres, pois enquanto estivera viúvo
tornara-se o objeto de cobiça de muitas mães, que sonhavam em tê-lo como genro. Sem
falar, é claro, nas virtuosas senhoras casadas, que de vez em quando davam suas
furtivas escapadelas para passar uma noite nos braços de Jan. Mesmo entre os mais
pobres Ian era benquisto, pois se portava com simplicidade. Em uma palavra, Ian
Tremayne era amado e admirado em toda parte.
Em sua luxuosa mansão de Nob Hill, Grace Leroux soube da novidade através de
um vizinho, e recebeu-a com evidente consternação.
Porém, quando o vizinho se foi, seus lábios se curvaram num sorriso.
Perto da baía, na Costa Brava, Lilli Reynolds recebeu a notícia quando conversava
com algumas amigas. Com o coração confrangido, deixou que seu pensamento voasse
para Ian. Poucas pessoas poderiam aquilatar o quanto ele já sofrera. Certamente, esse
rapto seria uma nova chaga aberta em seu coração.
Lilli desculpou-se e foi para o quarto, chamando seu melhor empregado para
acompanhá-la.
Era um homem alto e forte; no lado esquerdo do rosto ostentava uma enorme
cicatriz.
Ninguém conhecia tão bem as espeluncas da Costa Brava como ele. Chamava-se
Jake Breed e nascera e fora criado naquela região. Não trabalhava para Lilli por dinheiro,
mas porque a idolatrava.
— Jake, a mulher de Ian Tremayne foi raptada. A polícia acredita que ela esteja em
alguma parte de Chinatown. Pelo que ouvi, dois homens a pegaram perto da loja do
marido.
Lilli repetiu para Jake a minuciosa descrição que Darrin fizera à polícia, e que já
corria de boca em boca.
— Descubra o que puder, Jake. Tenho um maldito pressentimento de que isso não
foi um trabalho de rotina, mas algo mais planejado.
— Deixe comigo, Lilli. Não voltarei de mãos vazias.
Ela lhe ofereceu um sorriso quente.
— Tenho certeza disso, Jake.

Marissa acordou aos poucos, ainda com a mente enevoada pelos vapores da
droga. Primeiro sentiu um cheiro estranho e doce no ar. Depois, mesmo de olhos
fechados, pôde perceber que estava deitada sobre seda. Macia, da melhor qualidade. A
seda deu-lhe, por alguns momentos, uma sensação ilusória de conforto.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Foi difícil abrir os olhos. Quando finalmente o conseguiu, viu aturdida que um
homem imensamente gordo a fitava com olhinhos brilhantes e cobiçosos. O homem
parecia muito longe, a quilômetros de sua cama. Contudo, seu olhar estava próximo.
Como podia ser isso?, indagou-se ela, aereamente.
O homem tinha cabelos pretos e lisos, iguais à barbicha que pendia do queixo
papudo. O bigode longo descia até o peito, terminando em farpelas esgarçadas. Trajava
um blusão solto, à moda chinesa, e calças pretas largas. Seus olhos vivos espreitavam
Marissa por entre as fendas das pálpebras empapuçadas.
— Ah, olhos verdes! — exclamou ele.
E virou-se para trás, dirigindo-se a alguém que Marissa não podia focalizar.
— Tem razão, essa vale muito dinheiro. Mas você se mostra ganancioso demais,
meu amigo. Vamos discutir melhor o preço. Convido-o para uma boa cachimbada agora.
Assim conversaremos melhor. Estou certo de que fecharemos negócio! Esperem aqui um
momento, voltarei logo.
Preço. Estavam falando dela! Marissa queria pular da cama e arrancar a barbicha
do homenzinho de uma vez só. Mas mal podia se mover. Mal podia manter os olhos
abertos.
Fechou-os novamente, lutando contra a náusea e o pânico. Ouviu vozes que
sussurravam.
— O preço não nos interessa! Já recebemos pelo nosso serviço, não foi?
— Já, por isso mesmo! Qualquer coisa que ganhemos agora será puro lucro, não
vê? Deixe de ser imbecil, homem!
O que falara primeiro tinha voz grave e rouca. Marissa tinha certeza de que era a
voz daquele bigodudo. A outra voz devia ser do mais moço. O loiro de riso sinistro.
O chinês gordo voltou. Ele deu algumas ordens secas e logo em seguida Marissa
ouviu o barulho de xícaras e de líquido sendo despejado. Sentiu novamente um cheiro
doce, enjoativo, e perguntou-se se seria ópio.
O chinês finalmente mencionou uma quantia para os dois raptores, que se
mostraram chocados e zangados.
— Está doido, homem? A mulher não só tem olhos verdes, como cabelos
vermelhos. É linda e jovem, tem pele branca como marfim. E os seios, então...
— E todo mundo sabe quem é ela, meus caros — interpôs o chinês com voz
macia. — A polícia está no encalço de vocês dois.
— Problema nosso.
— E no encalço dela também.
— E daí? Você tem dinheiro suficiente para embarcá-la daqui a uma hora,
espertinho. E uma vez embarcada...
A conversa continuou nesse tom, o chinês regateando e os dois rebatendo os
argumentos.
Marissa entreabriu os olhos, tentando olhar à volta sem que eles percebessem.
Achava-se no canto de um aposento muito amplo, mas só havia duas janelas, bem
atrás do trio macabro. Os homens estavam em volta de uma mesinha baixa, redonda. Do
outro lado, quase em frente, encontrava-se uma mulher de cabeça baixa, em atitude de
total submissão. Era linda, um verdadeiro bibelô chinês. Devia estar ali para servir o chá
ou para acender os cachimbos de ópio.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Essa não seria difícil de enganar.
Mas os homens estavam lá, logo sob as janelas. Se tentasse levantar-se e fugir,
eles a subjugariam em questão de segundos. Cuidadosamente, muito devagar, Marissa
começou a flexionar os dedos das mãos e dos pés para ganhar força. Começava a
recobrar a consciência, mas não queria que eles percebessem. Esticou um braço, depois
outro. Relaxou um pouco, sempre atenta. Depois fez o mesmo com as pernas. E tratou de
calcular a distância que a separava das janelas. Se esse quarto não fosse muito alto,
talvez pudesse pular. E se fosse alto...
Pelo menos poderia gritar. Tinha de fazer alguma coisa!
As negociações pareciam ter chegado a termo. Os três homens se levantaram.
— Ela será levada para o navio daqui a pouco. Vocês terão de esperar até que ele
saia. Só então receberão o pagamento.
Era agora ou nunca. Os três vinham em sua direção e poderiam drogá-la
novamente. Não podia perder essa oportunidade única.
Reunindo as fracas forças, Marissa pulou da cama e correu para a janela.
O loiro gritou e correu para agarrá-la, mas Marissa deu-lhe um pontapé com toda a
força que possuía. Ele se curvou, praguejando. Foi o suficiente para Marissa chegar à
cortina e corrê-la , rapidamente.
Com um baque no coração, calculou que estava no terceiro andar. Era alto, muito
alto. Se pulasse, não escaparia da morte.
Mas havia muita gente na rua. Viu riquixá, homens de chapéu cônico, mulheres
tagarelando.
Alguns seriam certamente criminosos.
Mas havia gente boa.
Marissa sentiu uma mão pesada no ombro.
Inclinou-se na janela, quase caindo, e gritou desesperadamente.
— Socorro! Socorro! Por Deus, venham me ajudar!
Foi puxada para dentro com tamanha violência que se estatelou no chão. Mas não
parou de gritar; melhor dizendo, agora urrava como fera acuada.
— Creio que temos de negociar mais um pouco — disse o chinês. — Vocês não
me avisaram que essa mulher, além de bonita, é um saco de problemas.

Ian percorrera as ruas uma a uma, parando para fazer indagações, cada vez mais
aflito e decidido a encontrar Marissa a qualquer custo. Ao passar por um mercado de
reputação duvidosa, viu um rosto conhecido. Era Charlie Caolho, notório criminoso, cujo
retrato fora afixado em inúmeros cartazes da polícia. Charlie traficava haxixe e mulheres,
ao que diziam. Já havia sido preso várias vezes, mas sempre conseguira se safar por
falta de provas. Estas desapareciam metodicamente, junto com as testemunhas. E o
tráfico de mulheres brancas prosseguia descaradamente.
Vendo-o, Ian bradou seu nome por cima do burburinho da rua. Charlie olhou-o
desconfiado com seu único olho, para logo em seguida sair correndo, enfiando-se
agilmente pelas ruelas estreitas, mergulhando na multidão. Ian gritou de novo, saltou do
cavalo e embrenhou-se no meio do povo, tentando seguir a mesma direção tomada pelo
marginal.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Sem saber como, conseguiu alcançá-lo e acuá-lo numa viela sem saída, onde
roupas velhas pendiam de varais, disputando lugar com carcaças malcheirosas de
animais, as quais curtiam ao tempo e ao vento. Tomando impulso, arremessou-se sobre
Charlie, subjugando-o com facilidade, pois era muito mais forte que o adversário.
Sacudiu-o até que o olho de Charlie pareceu querer saltar da órbita. Depois apertou-lhe o
pescoço, estrangulando-o aos poucos. Charlie debateu-se, depois seu corpo tombou
mole, inteiramente à mercê da fúria de Ian.
— Onde está ela? Onde está minha mulher, Charlie? Se ela sumir, por Deus, você
será um homem morto! Juro por minha honra! Trate de ir desembuchando, senão eu
acabo de estrangular você aqui mesmo, agora!
E apertou mais os dedos, que pareciam de ferro.
Charlie desandou a falar uma torrente de frases chinesas, cuspindo e tossindo. Ian
apertou-o mais. O rosto de Charlie ficou azul.
— Nãos sei, juro! Não sei de que está falando...
— Falo de minha mulher, porco imundo! A cidade inteira não fala de outra coisa, e
você agora me vem com essa Conversa fiada!
— Juro que ela não está comigo, não foi trama minha, mas eu a encontrarei para
você! Ponha-me no chão, eu juro que vou achar sua mulher. Há poucos lugares aqui onde
ela pode estar, e eu conheço todos. Juro que...
— Ian!
Ao ouvir seu nome, Ian se virou, ainda com Charlie suspenso no ar, debatendo-se
desesperadamente. Era Lee Kwan vindo apressada em sua direção.
— Meu senhor, temos uma pista. Largue Charlie. Temos uma pista, estou-lhe
dizendo!
Ian olhou para Charlie com desprezo e largou-o. O marginal caiu como um fardo,
mas ergueu-se com rapidez e espanou as calças, espiando Ian com o olho sorrateiro.
Ao ver que não seria mais atacado, girou nos calcanhares e disparou como coelho
assustado. E covarde.
— Fale logo, Lee. Estou com os nervos em frangalhos!
— Lilli chamou. Ela disse que mandou amigos procurarem e conseguiu um
endereço. Mas pediu para avisar que pode ser muito perigoso.
— O endereço, Lee. Quero o endereço. Já!
— Eu chamei a polícia...
— Eles podem chegar tarde demais. O endereço!

Ela arranhara, mordera e esperneara, distribuindo pontapés para todos os lados.


Certamente tinha conseguido impedir o nascimento de muitos chinesinhos com seus
pontapés bem direcionados. Mas, no fim, tudo isso de pouco lhe valera.
Marissa fora cuidadosa e fortemente enrolada num tapete. Sentia-se uma múmia,
envelopada daquele jeito. Mal podia respirar e temia perder a consciência, da qual
necessitava desesperadamente no momento.
Estava nos ombros de um chinês, cujo rosto sangrava de um fundo arranhão
provocado por ela mesma. Não podia ver nada, sequer lograva se mexer. Seus braços
achavam-se atrás do corpo, presos pelo tapete. Tentava respirar como podia, mas tinha
receio de que o ar lhe faltasse em breve. Contudo, ouvia com clareza.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Depois do escândalo que aprontara à janela, o bigodudo e o loiro se rasparam
prudentemente, e ela se vira à mercê do gordo chinês, que logo chamara alguns
auxiliares. Nada entendeu do que falaram, mas sabia que seu destino estava sendo
selado. Pelos movimentos de seu carregador, percebeu que iam deixar aquele prédio de
Chinatown. O homem arranhado não tinha a menor intenção de carregá-la com cuidado, e
as coisas pioraram quando ele começou a descer as escadas. O rosto de Marissa,
apertado contra os pelos ásperos do tapete, batia contra as costas do homem, a cada
degrau descido. E não havia como proteger-se dessas dolorosas pancadas, pois seus
braços estavam presos nas costas.
Ouviu algumas ordens gritadas em chinês quando o homem deixou o prédio.
Percebeu que outros homens vieram escoltar seu carregador, talvez uns três. Pelas
vozes, pareciam os mesmos que haviam lutado com ela minutos antes. Eram homens que
sabiam manejar a faca com perícia. Marissa lutara o quanto podia, mas desistira quando
um deles agarrara-a pelos cabelos e encostara uma faca em seu pescoço. O chinês
gordo dissera, com voz suave e aveludada:
— Seu valor não vai diminuir muito, se as cicatrizes ficarem em lugares
especialmente estratégicos. Quer experimentar?
Desse modo, deixara-se enrolar no tapete sem lutar mais.
Era-lhe agora impossível adivinhar o que estava para vir, exceto infelicidade e
miséria. Bem que Lee avisara, bem que Ian avisara, bem que Darrin avisara. Mas não
lhes dera atenção, certa de que estava imune à esse tipo de crime. E agora estava ali,
caminhando para sua própria desgraça. Só Deus sabia aonde iria parar.
Perderia tudo o que tinha conseguido com sacrifício e paciência. Theo, Mary,
Jimmy... Ian. Amor...
Toda a vida passara buscando um amor. Mesmo quando não acreditava que o
encontraria. E agora achara não só o amor, mas uma vida de paz e alegrias. Deus lhe
dera muito mais do que camisolas bonitas e objetos caros. Ele lhe dera Ian. Ele lhe dera
amor.
Seria isso a justiça divina? Talvez tivesse ganhado muito. Talvez, como Ícaro, ela
tivesse tentado voar alto demais. E Deus providenciara para que suas asas se
derretessem.
Não! Não podia aceitar sua derrota assim tão facilmente!
Lágrimas quentes e silenciosas começaram a subir-lhe aos olhos.
Começou a balançar o corpo com força, para frente, para trás. Para frente, para
trás. Alguém veria seus movimentos. Algum passante poderia ficar curioso. Afinal, tapetes
não costumam balançar sozinhos.
— Pare! — ordenou-lhe o carrasco, batendo em seu corpo com brutalidade.
Marissa redobrou os movimentos, forçando o homem a parar. "Pareço uma
minhoca debaixo da terra", pensou. Gostou da ideia, e começou a se retorcer sob o
tapete. Mas nada acontecia. Ninguém vinha. Marissa começou a perder as esperanças.
— Ei! Vocês aí, parem!
Poderia jurar que era a voz de Ian. Não, certamente estava delirando. Contudo,
seu coração começou a bater com violência, e os movimentos tornaram-se mais fortes.
Deus a ajudasse! Que fosse vista por qualquer pessoa, qualquer um!
O chinês que a carregava parou. Marissa percebeu que ele se virava devagar. E de
repente viu-se jogada ao chão sem a menor cerimônia. Tremendo, percebeu que o tapete
se desenrolava devagarinho. Ficou quieta, atenta aos ruídos. Houve uma troca de

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palavras ásperas, e logo após o barulho de passos firmes e decididos. Alguém se
aproximava do chinês. Era sua chance!
Com muito esforço, Marissa conseguiu desvencilhar-se do sufocante invólucro.
Engatinhou para fora e logrou pôr-se de pé, cambaleando.
Lá estava Ian, sozinho, no meio daqueles homens. Todos portavam uma faca na
mão. A tarde ia morrendo lentamente.
O chinês arranhado rugiu como um leão e investiu contra Ian, bufando. Marissa
gritou histericamente, mas Ian não lhe deu atenção, ocupado em avaliar a força do
adversário. Esperou o chinês, de mãos na cintura. No instante em que este caiu sobre
ele, desviou agilmente o corpo e deu-lhe um pontapé na virilha. O chinês grunhiu,
abaixando-se. Ian desferiu-lhe duas potentes pancadas com ambos os punhos, na nuca.
O chinês desabou a seus pés, sem emitir um som.
Mas agora os outros três o rodeavam. A névoa começara a baixar sobre a cidade,
como que querendo tomar parte do espetáculo. A luz trêmula dos lampiões começou a
brilhar, tênue, iluminando as lâminas sinistras. Fascinada, Marissa percebia que elas
falseavam e giravam nas mãos experientes dos assassinos.
Um deles deu um grito e pulou para frente, a faca no ar, pronta para o bote.
Marissa gritou de novo. Talvez seu grito tivesse ajudado, talvez Ian estivesse esperando.
Ele agarrou o braço do homem em tempo, mas perdeu o equilíbrio. Os dois rolaram no
chão, engalfinhados, enquanto os outros dois acorriam para ajudar o companheiro.
Marissa suspendeu a saia, que estava em frangalhos, levantou-se também. No nevoeiro
só conseguia divisar os dois homens enovelados, lutando.
E então um deles se levantou.
— Ian! — gritou ela, desesperada.
— Saia daqui, Marissa! Por Deus, fuja!
Mas Marissa não conseguia despregar os olhos dele. Nem dos outros dois, que
vinham juntos para atacar. Ian recuou, vigiando as duas facas mortíferas. Um deles
atacou, seguido pelo outro.
— Não! — gritou Marissa.
Correu e atracou-se com um deles pelas costas, arranhando-o, cegando-o com as
mãos em garra. Ouviu que o homem grunhia e virava-se para agarrá-la. Mas ela
suspendeu as pernas e enroscou-se nas dele, sem largá-lo.
A faca rolou e tiniu contra o cascalho. O corpo do homem estava por demais
escorregadio de suor, Marissa escorregou para o chão e viu o olhar assassino do homem.
Recuou, apavorada, sem conseguir se pôr de pé. Mas o homem a chutou brutalmente e
virou-se para Ian.
Um apito longo soou na noite. Marissa levantou-se penosamente e cambaleou até
a parede, onde se encostou, arfando ruidosamente. Ouviu um gemido de dor e o som de
aço rasgando a carne. Soltou um grito agudo, dobrando-se sobre si mesma.
Ian!
Depois percebeu passos apressados vindos de todos os lados. A polícia havia
chegado.
De repente, dois braços quentes e macios suspenderam-na suavemente. Ela abriu
os olhos, mal acreditando. Ian carregava-a no colo, o rosto encardido, as roupas
rasgadas, um filete de sangue correndo da sobrancelha.
— Bom Deus! — sussurrou baixinho, num soluço. — Pensei que fosse você...

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— Não — respondeu ele com doçura. — Não olhe para trás.
Marissa não conseguiu obedecê-lo e olhou por sobre o ombro do marido. Um
homem jazia em posição grotesca; os olhos arregalados, a própria faca enterrada no
peito. Foi tudo o que ela viu, pois homens da polícia cercaram o lugar e cobriam os
corpos.
— Sr. Tremayne? Com licença, temos algumas perguntas...
— Agora não, meu bom homem. Amanhã. Vou levar minha mulher para casa.
Marissa sorriu e deitou a cabeça no ombro de Ian, as mãos à volta de seu pescoço.
Ele a levou até a carruagem onde Lee e John Kwan os esperavam. Lee acorreu para
ajudá-lo, sacudindo a cabeça, os olhos rasos de água.
— Como conseguiu me encontrar? — perguntou Marissa.
— O garoto Darrin viu quando aqueles dois homens a pegaram. Mas devo admitir
que, se não fosse por Lilli, talvez não conseguisse encontrá-la.
— Então preciso agradecer a ela — respondeu, com simplicidade.
O resto do caminho foi percorrido em silêncio. Palavras não eram necessárias;
Marissa sentia-se bem e feliz, apesar de machucada. Estava nos braços de Ian. Ele a
amava. E Lee e John também.
Olhou para o marido com ternura. Ele tinha lutado por ela, tinha arriscado a vida.
Tinha matado, até. Nunca mais se preocuparia com o passado de Ian. Apenas o futuro
interessava.
Darrin e Lilli esperavam na entrada da casa. Marissa apeou e abraçou o garoto,
comovida. Depois olhou para a mulher. A mulher que tanto temera. A mulher da estação.
— Eu só queria ter certeza de que tudo terminou bem — falou Lilli, um pouco sem
jeito diante da mulher de Ian.
Trajava um vestido simples e sóbrio, sem ostentação. Não usava nenhuma
maquiagem, e seus cabelos estavam puxados num coque severo. Marissa percebeu seu
embaraço e abriu um sorriso acolhedor.
— Lilli, não pode imaginar o quanto lhe sou grata. Por favor, entre. Vamos
conversar.
Ian manteve-se em silêncio. Lilli olhou-o, pedindo socorro, mas ele manteve a
expressão neutra.
— Não posso aceitar seu convite — respondeu Lilli, nervosa. — Não ficaria bem...
— Você sempre será bem-vinda em minha casa — interrompeu Marissa. — Estou
certa de que Ian concorda comigo.
Ela virou-se para Darrin:
— Você também, Darrin. Venha conhecer minha casa.
O menino acedeu, radiante.
Marissa contou tudo o que vira, descreveu a casa em que acordara depois do
rapto, a aparência dos homens, Ian explicou-lhe que no dia seguinte ela teria de prestar
depoimento à polícia. Lee serviu salada, presunto e ovos. De bebida, limonada fresca.
Ian insistiu com Darrin para que ele ficasse aquela noite para dormir. Depois de
alguma relutância, o menino concordou, desde que "seu" Ian avisasse padre Gurney, no
que foi prontamente atendido. Finalmente, Lilli preparou-se para ir embora.
Marissa fez questão de acompanhá-la até a porta. E murmurou baixinho:

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— Obrigada mais uma vez, Lilli.
A moça tocou de leve o rosto de Marissa.
— Não, sou eu que agradeço. Saiba, minha querida, que nunca fui sua inimiga. Eu
nunca poderia competir com você. Escute, nunca mais voltarei aqui, porque os falatórios
poderiam ser desastrosos para sua vida. Mas quero que saiba que sou sua amiga. Se
precisar de mim, seja para o que for, conte comigo.
— Obrigada. Nós ainda nos veremos muitas vezes, tenho certeza.
Marissa fechou a porta suavemente. Lee estava esperando, com um copo de leite
achocolatado. E não sossegou enquanto não viu Marissa esticada na banheira, imersa na
espuma. Só então retirou-se, com uma pequena reverência.
Ainda estava no banho quando Ian entrou, elegantemente trajado em busca de
seus carinhos.
Pela primeira vez, então, ele a carregou para o próprio quarto, e ali, na cama em
que fora tão feliz com Diana, fez amor com ela. Foi um amor suave, carinhoso, calmo;
depois, Marissa ficou quieta, deliciando-se com o calor dos braços de Ian. Estava saciada,
feliz, sentindo-se amada e querida. Abençoada por Deus.
Ele fechou os braços, aprisionando-a mais uma vez. Seus lábios tocaram-lhe a
testa de leve. Suspirando de felicidade, Marissa enroscou as pernas nas dele,
murmurando baixinho:
— Obrigada, meu Deus. Muito obrigada.
E soube que era chegada a hora de contar a Ian toda a verdade.
— Ian? — chamou, baixinho.
Mas Ian não respondeu. Vencido pelo cansaço, adormecera repentina e
profundamente. O rosto dele, no repouso do sono bem merecido, estava suave e
relaxado. Em paz com a vida.
Marissa mordeu o lábio. Talvez surgisse outra ocasião. Agora sentia-se mais
segura; tinha quase certeza de que conseguiria fazê-lo compreender. Diria que o amava
demais para continuar a mentir.
E se ele não compreendesse?
Não, ele compreenderia. Marissa queria acreditar nisso, tinha de acreditar nisso.
Senão, não teria forças para contar tudo.
Acariciou os cabelos rebeldes, com ternura. Não iria acordá-lo. Haveria outra
ocasião, talvez melhor que essa. Era no que acreditava quando adormeceu, serena e
feliz. Mas o destino iria traí-la mais uma vez.

CAPÍTULO XV

Três dias depois Ian examinava com atenção os relatórios policiais. O traficante de
escravas brancas, Lawang, fora preso, juntamente com dois de seus comparsas. O
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terceiro homem morrera durante a luta. Contudo, os raptores de Marissa ainda não
haviam sido encontrados. Ian recostou-se na cadeira giratória, de cenho franzido.
Conjeturava que qualquer coisa não se encaixava bem na história, algo que Marissa
ouvira assim que voltara a si naquele quarto de Chinatown.
— Eles disseram que já haviam sido pagos, Ian. Que qualquer coisa que
recebessem do chinês gordo seria lucro. Eu estava dopada ainda, mas entendi muito bem
o que conversaram.
Lilli não conseguira apurar mais fatos; seu homem só lograra encontrar onde
estava Marissa. Mas prometera que Jake continuaria investigando até achar os dois
raptores. Para Ian, eles tinham a chave do mistério.
Por outro lado, Ian mandara espalhar a notícia de que pagaria com generosa
recompensa qualquer informação sobre os dois facínoras, mas agora começava a se
arrepender desse gesto. A todo instante seu escritório era invadido por malandros que se
diziam portadores de informações importantes, e no fim acabavam caindo em contradição
e confessando que nada sabiam. Por isso, quando Arthur Mount veio anunciar que havia
uma pessoa para "tratar de assunto particular", Ian suspirou com ar cético, certo de se
tratar de alguém com esperança de ganhar algum dinheiro fácil.
— Muito bem, Arthur, vamos lá ouvir mais uma história mirabolante e inverossímil.
Deixe-o entrar.
Contudo, o homem que o cumprimentou em seguida despertou-lhe a atenção, pois
não tinha aparência de malandro; ao contrário, trajava-se com decência e portava
chapéu-coco.
— Sr. Tremayne, presumo? — disse o homem, com forte sotaque inglês.
Só ingleses falavam "presumo" desse modo, Ian pensou. Provocaria Marissa mais
tarde, imitando esse inglês.
— Eu mesmo. Sente-se, por favor. Em que posso ajudá-lo?
O homem aceitou a cadeira que Ian lhe oferecia e sentou-se, pigarreando.
— Na verdade, o assunto deveria ser tratado com sua mulher. Bem que tentei, mas
topei com uma senhorita chinesa, aliás lindíssima, que guarda a casa como uma leoa.
Não consegui passar por ela.
Ian sorriu, satisfeito. Lee até que se parecia com uma leoa, pelo modo como
cuidava da casa e de Marissa. Ultimamente vinha percebendo que a chinesa dispensava
muito mais cuidados a Marissa do que a ele. Isso, longe de aborrecê-lo, causava-lhe
intensa satisfação.
— Sim, peço-lhe desculpas em nome de nossa governanta, Lee Kwan. Tivemos
alguns problemas nos últimos dias, e ela anda muito nervosa. Espero que compreenda.
— Claro, claro. Mas é imperativo que eu me encontre logo com sua mulher, pelo
bem do tio dela.
— Tio dela? — repetiu Ian, espantado.
— Theodore Ayers.
Ian sacudiu a cabeça.
— Desculpe, mas não faço ideia do que está falando.
O homem pareceu tão confuso quanto Ian.
— Bem, primeiramente devo me apresentar. Sou Lawrence Whalen, cura da
paróquia de St. Giles.

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— Muito prazer, sr. Whalen.
— Eu... não posso compreender como o senhor não conhece o tio de Marissa, pelo
menos de nome. Ela é devotadíssima ao sr. Ayers, e também à cidade onde foi criada.
Como deve saber, ela anda enviando donativos à nossa paróquia.
— Não sei de nada disso — interrompeu-o Ian, estranhamente calmo.
Um alerta surgiu em sua mente. Pressentia que aquele homem de chapéu-coco,
com seus modos bem-educados, estava para jogar-lhe um balde de água fria na cabeça.
— Bem, estou certo de que há uma ótima explicação para isso. De qualquer modo,
Theo está em apuros, e eu creio que Marissa deve ir vê-lo imediatamente. O tio meteu-se
numa greve e foi detido pela polícia.
Ian ainda não sabia quem era esse Theo, mas aventurou-se a perguntar:
— Detido ou preso? Há uma diferença, como sabe.
— Acontece que houve mortes durante os distúrbios. Os donos da mina tencionam
processar Theo, acusando-o de assassinato, a menos que Marissa o tome sob sua
custódia.
O homem calou-se por uns instantes, enquanto Ian digeria o que ouvia. E
arrematou:
— Marissa também terá de prometer aos proprietários que tirará Theodore da
Inglaterra. Em resumo, eles querem ver Theo banido da mina, da cidade e do país. Tudo
de uma vez.
Ian ouviu o relato com expressão ausente.
— Tem certeza do que está falando? Minha mulher, ao que eu saiba, não tem
parentes vivos.
Isso era algo de que tinha certeza. Por isso sir Thomas lhe pedira socorro. Porque
Marissa era só no mundo. Foi a vez de Whalen ficar espantado.
— Bem, na verdade é um só, mas bem vivo. Theo é o único tio de Marissa Ayers.
— Ayers? O sobrenome de minha mulher é Ahearn.
— Não, meu senhor! Ahearn é o sobrenome de sir Thomas.
Ian pensou que o homem estava louco. Ou seria ele?
— Exatamente. A filha de sir Thomas, Marissa, é minha mulher.
— Não, não! A filha de sir Thomas se chama Mary. Katherine Mary Ahearn. Tive
um bom trabalho para ligar as duas ao senhor, sr. Tremayne. Por alguma razão, Marissa
não comunicou a Theo que havia se casado; apenas informou que viria para a América
com Mary Ahearn. Isso nos deu uma dor de cabeça danada, mas como a vida de Theo
dependia de encontrarmos Marissa, pus mãos à obra e acabei batendo aqui. Vim
incomodá-lo porque pude perceber, pelos generosos donativos de Marissa, que ela
realmente se preocupa com o tio. O vigário estava muito aflito para localizá-la. Mas vejo
que cheguei em hora inoportuna, pelo que peço muitas desculpas.
— Não, sr. Whalen, está tudo bem.
O lápis que Ian segurava partiu-se com um estalido seco, o que fez Lawrence
erguer-se bruscamente da cadeira.
— Se o tio de... de minha mulher está em apuros, então temos de tomar alguma
providência. Proponho-lhe, sr. Whalen, que me acompanhe até minha casa agora. A bela
chinesa que o interceptou é também uma excelente cozinheira.

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— Bem, eu aceito com prazer. É muito gentil de sua parte.
— Com licença, vou dar algumas instruções ao pessoal.
Ian saiu, os pés pesando-lhe como chumbo. Mal pôde murmurar algumas ordens
apressadas a Arthur.
— Hoje não voltarei mais, Arthur. Providencie tudo o que lhe disse e anote os
recados mais importantes. E arranje um cavalo para este visitante. Ele irá comigo para
casa.
Os dois saíram minutos depois. Ian surpreendeu-se com a facilidade com que
conseguia mostrar alguns pontos pitorescos da cidade ao inglês. Por fora, demonstrava
firmeza e serenidade, mas por dentro ardia como fogueira. Seus dedos, normalmente
calmos, tremiam. Uma raiva imensa, dominadora, apossara-se de sua mente tumultuada.
Como ainda conseguia manter o domínio da situação?
Bem que ele desconfiara desde o primeiro momento em que a vira. Até minutos
atrás, ainda desconfiava que ela mentia, mas acreditava que fosse alguma coisa de
menor importância. Nunca imaginara que pudesse ser algo de tamanho vulto e
ignominioso; nunca imaginara a extensão daquela hipocrisia sem nome. Marissa fizera-o
de bobo, de palhaço, todo esse tempo. Nada mais parecia importar agora; sua vida
desfizera-se em fumaça e pó. Fora um louco em confiar nela. Um louco em deixá-la
insinuar-se em sua vida.
Um louco em se apaixonar.

Quando chegaram a casa, John Kwan, como sempre, pareceu ter adivinhado
antecipadamente sua chegada, pois já os esperava na estrebaria. Acorreu para cuidar
dos cavalos e dar-lhes as boas-vindas.
Ian subiu as escadas como quem sobe para o patíbulo. Sabia que, dentro em
pouco, teria sua vida arruinada. Impotente, veria a efêmera felicidade que sentira nos
últimos dias esvair-se entre os dedos.
Lee abriu a porta e olhou para Whalen, desconfiada.
— Está tudo bem, Lee. Este é o sr. Whalen, que veio para tratar de negócios de
família. Por favor, peça a Marissa que desça assim que puder. Sr. Whalen, meu estúdio
fica à esquerda. Posso oferecer-lhe uma bebida? Brandy, talvez?
Lawrence Whalen agradeceu e aceitou.
Pouco depois, enquanto despejava a bebida numa pequena taça, Ian murmurou:
— Acho que brandy de nada vai me adiantar. Vou tomar uma dose de uísque.
Pensando bem, vou ficar com a garrafa toda.
E deu uma risada estranha.
Foi quando Marissa entrou. Toda de branco, linda, etérea. Seus cabelos brilhavam,
contidos num penteado comportado, presos na nuca por um laço de cetim rosa. Os olhos,
ah, os olhos! Duas chamas verdes que o fitavam sorridentes. Grandes, atenciosos,
inocentes. Tão malditamente inocentes! Os olhos de sua mulher.
Mas, seria ela sua mulher, afinal? Nem certeza disso tinha mais. O que era legal ou
ilegal no meio dessa farsa descomunal?
Não sabia, nem queria saber. O que importava eram suas mãos, que ainda
tremiam. Seu corpo todo estava em brasa, dolorido e machucado. A bruxa. Entrando em
sua vida como uma serpente. Ele sonhara com ela. Conversara com ela. Deixara-se
enganar pela raposa manhosa. E ela dando linha, dando linha, até fisgá-lo. Tornara-se

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mãe dos órfãos. Cativara todo o pessoal do escritório, que a idolatrava mais do que a
Diana. Roubara seu coração e fizera-o acreditar que ele renascera das cinzas.
Teria sido melhor se tivesse ficado com as prostitutas.
Ian deu um sorriso malévolo.
— Alô, querida.
— Ian, o que...
Observou-a quando ela reconheceu Lawrence Whalen. Era evidente que Marissa
percebera que o brilho dos olhos de Ian era de fúria. Houve um silêncio pesado, mas
curto. Foi com calma que ela estendeu a mão para o inglês.
— Lawrence Whalen. A que... a que devemos o prazer de sua visita? Fez uma
viagem longa para vir nos ver.
— É seu tio, Marissa. Já expliquei tudo a seu marido.
— Oh, meu Deus! — murmurou ela, empalidecendo.
Bem, se alguma coisa podia ser dito a favor de sua mulher, era o amor ao tio.
— Pelo amor de Deus, Lawrence, o que ele tem? Aconteceu alguma coisa? Bom
Deus...
— Não, nada com a saúde dele, sossegue, srta. Ayers. Hã, desculpe, sra.
Tremayne. Marissa.
Lawrence pusera-se de pé e dava pancadinhas amistosas no ombro de Marissa.
Esta empalidecera até a lividez.
"Que atriz notável!", pensou Ian, uma raiva surda latejando-lhe nas têmporas.
Ele empurrou uma cadeira com o pé.
— Sente-se, minha cara. O sr. Whalen explicará tudo.
Ela o encarou, e Ian soube que ela conhecia o desprezo que havia por detrás
dessas palavras. Mesmo que Lawrence nada percebesse, Marissa conhecia bem o
marido. A esta altura, o que ele faria, agora que sua mentira fora descoberta.
Ian não piscou. Queria que Marissa sofresse.
Naquele momento, porém, Ian não fazia a menor ideia do que iria fazer. Só sabia
que nunca estivera tão furioso em toda a sua vida.
E magoado.
Diabos, demônios! Por que ela não lhe contara?
Porque tudo o que se passara entre os dois fora uma mentira, do começo até o
amargo fim.
Ele estava terrivelmente zangado porque se sentia magoado. Teve vontade de
agarrá-la pelos lindos cabelos e sacudi-la. Queria ouvi-la gritar, chorar, sofrer.
Marissa desviou os olhos do marido e passou a dar atenção ao visitante.
— Por favor, Lawrence, conte-me o que aconteceu. Tio Theo não devia estar
trabalhando! Deixei para ele uma quantia suficiente...
— Estou certo de que sim — interveio Ian glacialmente.
Notou que Marissa corava, mas evitava olhá-lo agora.
— O problema foi mais com os amigos. Eles entraram em greve, pedindo um sem-
número de melhorias de condições de trabalho. Theo juntou-se aos amigos. Você o

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
conhece bem, não é? Ele é e sempre será um líder, mesmo sem trabalhar. Lembra-se do
sr. Lacey?
— Lógico.
— Pois é, o homenzinho está ficando pior à medida que envelhece. Chegou
mesmo a diminuir os salários, acredita nisso? E você sabe o quanto os homens ganham.
Uma vergonha!
— Sim, mas e titio? O que ele fez?
Marissa parecia uma criança desamparada, aos olhos de Ian. Ou melhor, agia
como tal. Por isso angariava a simpatia do mundo inteiro, a bruxa. Até a dele!
Sentiu uma fisgada na boca do estômago. Marissa angariara mais do que a
simples simpatia dele.
— Bem, Marissa, para encurtar a história, o sr. Lacey mandou alguns homens
deterem a greve. Houve briga feia, e alguns morreram. Agora ele quer culpar Theodore de
assassinato. E... e chegou a exigir que Theo fosse condenado à morte.
— Não! — gritou Marissa, deixando escapar um soluço.
Ian quase correu para ela. Quase.
— O vigário foi falar com Lacey. Depois de muita negociação, o vigário conseguiu
que Lacey retirasse as acusações, desde que você, Marissa, vá buscá-lo. E desde que
prometa que Theo nunca mais volte à Inglaterra.
— Mas por quê, em nome de Deus? Ele não tem culpa nenhuma, eu sei! Tio Theo
não é um assassino!
— Marissa — falou Lawrence, com delicadeza. — Faz algum tempo que nos
deixou, mas tenho certeza de que não se esqueceu da força e do poder de Lacey. Esse
homem pode conseguir que uma formiga seja acusada e condenada.
Ela torceu as mãos nervosamente. Depois deixou-as tombar ao lado do corpo e
ergueu o queixo voluntarioso:
— Muito bem, farei o que esse Lacey quer. Vou buscar meu tio imediatamente.
— Não — falou finalmente Ian, encostando-se na estante e pondo uma mão no
bolso, com ar negligente. — Você não vai a parte nenhuma.
Ela olhou-o, petrificada, os olhos desmesuradamente abertos, Ian deleitou-se com
o desespero que crescia nela.
— Ian, eu faço qualquer coisa. Eu... eu faço qualquer coisa.
Ele sorriu, seu deleite crescendo. Devia ser difícil para ela, falar na frente de
Lawrence.
"Dance, minha boneca, dance! Eu já dancei que chegue, agora é sua vez."
— Tio Theo precisa de mim, por favor!
— Repito, minha cara. Você não vai a parte alguma.
— Ian, em nome de Deus!
— Bem, bem! — interveio Lawrence, pigarreando. — Vejo que vocês precisam
conversar um pouco. Sr. Tremayne, vou deixá-los agora.
— O senhor foi convidado para jantar e não deve sair agora. Contudo, aceito sua
sugestão. Minha mulher e eu precisamos conversar sozinhos. Se nos der licença...?
— Mas é claro, estejam à vontade!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ian olhou para Marissa, sem pronunciar uma palavra. Com um gesto, apontou-lhe a
porta. Ela encarou-o, os olhos esgazeados, recusando-se a acompanhá-lo. Era evidente
que estava tomada pelo pânico e não queria confrontar-se com o marido naquele,
momento.
— Ian, eu...
— Suba, Marissa, por favor.
Não era um simples pedido, mas uma ordem, dada com raiva. Ela engoliu em
seco, ergueu mais o queixo e murmurou uma desculpa qualquer para Lawrence. Ian
sorriu afavelmente para o visitante:
— Sinta-se como se estivesse em sua casa, meu caro. Sirva-se de outro drinque.
Há jornais ali, naquele canto. Talvez nos demoremos um pouco.
Depois seguiu Marissa, que se encaminhava com passos hesitantes para a
escada.
— Saiu-se muito bem, Marissa.
— Por que diz isso?
— O modo como se portou com Whalen. Está começando a acreditar que nasceu
uma verdadeira lady, não está?
Ela se virou, furiosa, a mão erguida. Mas Ian susteve seu braço no ar, apertando-o.
— Ora, ora! Não está mais preocupada com seu querido tio?
Marissa corou violentamente e livrou-se dele com um safanão.
Voltou-se e subiu correndo a escada, parando no alto, ofegante. Ian abriu-lhe a
porta do quarto.
— Damas primeiro — disse, zombeteiro.
Ela não se moveu. Impaciente, Ian empurrou-a sem cerimônia. Marissa tropeçou,
mas conseguiu se aprumar depressa. Sem olhar para trás, sentou-se na beira da cama,
olhando para o infinito.
Ele fechou a porta e encostou-se, encarando-a com fúria mal contida.
— Por Deus! Não vai me dizer nada! Não vai se explicar?
— Não, não vou! De que adiantaria? Você nunca acreditaria em mim! Nunca
entenderia o que fiz, ou por que o fiz!
— Experimente.
Ela pulou da cama, os olhos chamejando.
— Mas não vê? Eu não tinha escolha. Tivemos de mentir para você, Mary e eu! Foi
aquele maldito testamento de sir Thomas! Não havia outra saída!
— Porque vocês queriam o dinheiro.
— Exatamente! Meu Deus, como pode ficar tão furioso assim? Você sempre soube
que eu me casei com você pelo dinheiro. Sempre jogou isso na minha cara!
— Sim, é verdade — retorquiu ele, com voz desdenhosamente macia. — Mas
antes era o seu dinheiro.
— O dinheiro é de Mary!
— Não, não é! — explodiu ele, os olhos falseando. — Você me fez tomar parte de
uma fraude imunda! Mary está casada com Jimmy O'Brien, e eu com você. Inferno! Nem
sei se estamos legalmente casados ou não!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa baixou a cabeça e foi até a janela, olhando para fora. O sol se punha,
oferecendo um belo espetáculo de cores no horizonte.
— É legal — murmurou, baixinho.
— Quê?
A voz de Ian era tonitruante.
— Nosso casamento. É legal — repetiu, voltando-se para ele. — Sir Thomas havia
providenciado uma licença para você, mas sem preenchê-la. Eu assinei meu nome
verdadeiro.
Ian esmurrou a porta, praguejando.
— Ora, muito obrigado! Com isso, estou enterrado até o pescoço nessa farsa
indecente! Por que diabos não me contou antes?
— Porque você não teria se casado comigo.
Súbito Ian parou, como que atingido por um raio.
— Você é a criada... Aquela com a bandeja de chá, na casa de sir Thomas! Mas
como, em nome de Deus, eu não percebi logo?
Marissa cerrou os punhos e começou a andar na direção de Ian.
— Porque eu era uma criada! Uma simples e pobre criadinha! Eu não significava
nada aos olhos do rico e maravilhoso americano Ian Tremayne!
Ele começou a rir. Uma risada seca, sem humor. Ian ria de si mesmo, de sua
imbecilidade total.
— E não é só isso, pelo que vejo agora! Ah, não! Se eu tivesse tido olhos para
enxergar um palmo adiante do nariz, logo veria que você também era aquela menininha
de branco que caiu na lama da rua. Os olhos da garotinha... não há outros iguais! Você
me deu as pistas, mas o bobalhão aqui não notou nada! Claro que você sabe o que é
fome e miséria!
— Exato! E agora o ratinho carvoeiro transformou-se em sua mulher! Que ironia,
Ian Tremayne! E que baque para você, não é?
Ele parou de rir.
— O prejuízo, minha cara, é seu, não meu. Pouco me importa de onde veio minha
mulher, nunca liguei para isso. Saiba que fuligem e lama podem sair facilmente com água
e sabão. Mas mentira e decepção, não.
Marissa mal ouvira o que Ian dissera. Limitou-se a repetir com voz fraca:
— Eu não tinha escolha!
Ian continuou a encará-la, sua fúria estampada nos olhos azuis.
— Então você me conhecia todo esse tempo. E sabia por que eu achava seu rosto
vagamente familiar... Sabia de tudo, o tempo todo! E nunca me disse uma palavra!
— Eu não podia...
— Podia, com mil demônios, podia, sim, senhora! Teve um milhão de chances para
me contar tudo!
— Não! Você não compreenderia!
Ian atravessou o quarto, exasperado, e agarrou-a pelo pulso, torcendo-a para trás.
A beleza de Marissa enfurecia-o ainda mais, pois tornava-o vulnerável. E Ian odiava ser
vulnerável. Os olhos dela encontraram os seus. Fulgurantes, estonteantes, verdes e
convidativos, mesmo ali. Ian queria ter forças para atirá-la longe.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Sua mentirosa vulgar! Por Deus, como você me usou!
Marissa debateu-se, tentando se livrar.
— Não! Me largue, Ian! Eu não...
Finalmente Ian empurrou-a. Com força e brutalidade, atirou-a sobre a cama, onde
ela caiu deitada, os olhos cheios de surpresa, medo e lágrimas; mas não chorava. Isso o
irritou mais ainda, embora não soubesse explicar por quê. Tremendo, rangendo os
dentes, Ian encaminhou-se para a porta. Tinha de sair dali, e depressa. Antes que a
tomasse nos braços.
— Ian! — gritou ela, erguendo-se penosamente. — Ian, eu sei que você me odeia.
Sei que não me quer mais aqui e sei que lhe devo uma fortuna. Mas, por favor, eu lhe
imploro...
Ele parou e voltou-se, impaciente.
— Implorar, você?! Essa é boa!
— Eu... eu tenho de ir buscar meu tio! Ele não tem culpa do que eu fiz, Ian. Por
favor, deixe-me ir...
— Não.
— Ian! — gritou ela de novo, alcançando-o na porta.
Ele pegou-a pelo pulso novamente, torcendo-o para trás, obrigando-a a arquear o
corpo sob o dele.
— Ian, por favor! Eu faço qualquer coisa, o que quiser, mas deixe que eu...
— Qualquer coisa? Você se vende barato, hein?
— Bastardo! — murmurou Marissa, as lágrimas quase saltando de seus olhos.
Ian chegou a ouvi-la ranger os dentes.
— Qualquer coisa! — disse ela.
A enorme tensão que os separava evaporou-se. Ian nunca soube em que momento
a fúria e o ódio se transformaram em desejo alucinado. Naquele instante Ian venderia sua
alma ao diabo. E Marissa repetiu:
— Qualquer coisa...
Ian colou o corpo no dela, desesperado. Sua mão enterrou-se avidamente nos
cabelos sedosos, macios, puxando-os para baixo, quase com brutalidade. E sua boca
uniu-se a dela, com violência, machucando-a.
Assustada com esse ímpeto, para ela ainda desconhecido, Marissa tentou
protestar, mas ele afastou a boca apenas o suficiente para encará-la e dizer, entre os
dentes:
— Qualquer coisa, Marissa!
Ela inspirou o hálito de Ian, fechando os olhos. Depois afastou-se dele, fitando-o
intensamente. E deliberadamente, vagarosamente, começou a desabotoar a blusa do
vestido. Um a um, os pequeninos botões de pérola foram abertos. Os olhos dela não o
deixavam, hipnotizando, convidando, chamando. O fogo verde atraía-o, fascinava-o. Ela
deixou o vestido cair a seus pés, farfalhando suavemente. Devagarinho, Marissa foi se
livrando das delicadas peças de baixo, uma a uma. E o tempo todo continuava a fitá-lo.
Quando se desnudou por completo, ela tirou os grampos que ainda prendiam parte de
seus cabelos, sacudindo-os depois. A massa vermelha emoldurou o rosto suave. Era uma
deusa que o chamava naquele instante, os olhos de esmeralda, a pele alva e suave.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Qualquer coisa — disse ela, num sopro.
A boca dele curvou-se num sorriso amargo. Tirou o casaco, arrancou a gravata e
puxou a camisa, rasgando-a de alto a baixo. Num instante, calças, sapatos e meias
voaram pelo quarto, Ian plantou-se nu diante de Marissa, as mãos na cintura. Ela piscou
uma única vez.
— Qualquer coisa — concordou ele, dando uma risada rouca. E atordoado atirou-
se sobre aquele corpo, beijando-a quase com desespero e fúria...
Ainda tentou controlar o intenso tumulto que crescia em seu íntimo, o calor que lhe
intumescia as virilhas, mas de repente percebeu que não havia necessidade disso.
Marissa entregava-se com igual fúria e paixão. Os dedos dela também mergulhavam em
seus cabelos, atraindo-o para si. E depois percorriam-lhe as costas, acariciando-as com
delicadeza. Desciam, suaves até a base da espinha, para depois subir novamente,
sempre provocantes. Ele deixou os lábios de Marissa e começou a beijar o pescoço, os
ombros, os seios. Ela arqueou o corpo e fez de seu colo um berço, onde aninhou a
cabeça de Ian. Devagarinho, empurrou-a para baixo, sentindo a língua quente e úmida
percorrer-lhe o ventre, as coxas, os pelos sedosos do púbis.
Ian não mais teve dúvida então. Amava aquela mulher como a própria vida, talvez
mais. Não podia varrer a raiva que ainda sentia, mas continuava a amá-la. Amava a
beleza de seu corpo jovem, a fragrância suave. Amava o espírito e a alma de Marissa,
amava seus beijos. Amava o modo como ela sabia se entregar.
E amava seus olhos, que se mantinham abertos enquanto faziam amor. Claros,
límpidos, desafiadores e inocentes.
Ele moveu-se mais para baixo, apartando-lhe as coxas suavemente. E tocou-a com
sofreguidão.
Marissa gemeu, puxando-o para cima, tocando-o por sua vez, fechando os dedos à
volta do membro rijo. Finalmente, seus corpos se fundiram num só, quentes, trêmulos.
Entregaram-se um ao outro em fúria selvagem.
O gozo veio em ondas, terminando num tremor, explodindo em raiva, amor, ódio e
ternura. Ian sentiu seu corpo vibrar de prazer quando despejou, numa última golfada, seu
sêmen dentro do ventre de Marissa. E sentiu o corpo dela vibrar também, subjugado e
saciado.
Deixou-se ficar sobre ela, ofegante, exausto. E aliviado fisicamente, embora
soubesse que nada poderia aliviá-lo do peso que tinha no coração.'
Havia uma enorme distância agora entre os dois. Não existiria ponte capaz de uni-
los novamente. Nunca mais.
Finalmente ergueu-se e foi até a janela. O nevoeiro denso esmaecia a paisagem
noturna. Sua mente também parecia imersa numa nuvem sombria, incapaz de pensar.
Ainda amava Marissa. E ainda estava furioso. Seus músculos achavam-se tensos.
Observando-o, Marissa mordeu o lábio, louca para ir ter com ele. Mas não ousava.
Queria dizer-lhe que o amava com loucura. Mas tinha a certeza de que era tarde demais
para isso. Cobriu-se com o lençol, lutando contra as lágrimas. Ian estava tão enraivecido
que ela podia sentir sua fúria. Mesmo durante os tempestuosos minutos em que rolaram
na cama, mesmo ali os beijos de Ian haviam transmitido raiva. E mesmo assim ela ficara
contente. Tivera-o entre os braços, ainda que por pouco tempo.
Ian endireitou os ombros, para logo em seguida deixá-los cair novamente.
— Bem — disse ele, olhando distraidamente pela janela —, creio que é hora de me
desculpar outra vez pelos meus modos.

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As palavras secas magoaram-na. Ela já havia ouvido isso uma vez. Na primeira
vez em que fizeram amor. Muito tempo havia se passado desde então.
— Não tem de se desculpar — murmurou baixinho.
— Acho que tenho.
— Ian, seu maldito! — gritou ela, à beira das lágrimas, para em seguida juntar, num
sussurro: — Eu... eu te amo!
Ele se virou, subitamente ameaçador em sua fúria:
— Nem uma palavra mais! Não precisa inventar mais essa mentira patética. Você
não é capaz de sentir amor por ninguém.
Foi como se Ian a tivesse agredido fisicamente.
— Seu... ianque cretino! — sibilou entre os dentes. Sentiu que ia chorar. Tinha
acabado de pôr seu coração a nu, e isso nada significara para ele. Precisava pensar em
outra coisa, precisava se agarrar a qualquer pretexto para não desatar no choro. Não
agora.
— É assim que fala comigo, quando ainda precisa de mim? — perguntou ele, em
tom cortante.
Marissa jogou a cabeça para trás. Naquele momento, odiava Ian Tremayne com
todas as forças de seu coração ferido.
— Vou à Inglaterra por causa de meu tio. Mesmo que tenha de mendigar nas ruas
ou roubar, eu vou!
— Não vai!
— Mas eles vão matá-lo! Não acredito que você seja tão insensível!
Ian não podia estar falando sério. Acabaria por concordar com sua ida.
— Ninguém vai matar ninguém.
— Você não entendeu ainda? Eu tenho de ir!
— Você não vai sair daqui. Eu irei buscar seu tio.
— Mas seu trabalho...
— Não insista, Marissa, você não sai daqui. Só Deus sabe o que poderia lhe
acontecer, e para todos os efeitos é ainda minha mulher. Se quiser ajudar seu tio, trate de
ouvir o que tenho a dizer-lhe neste minuto. Primeiro: não saia desta casa sozinha. Nunca.
Só com Lee ou John. Segundo: só pode ir a minha loja, à estrebaria e, se for preciso,
numa ou noutra recepção onde sua presença seja indispensável, para me representar.
Está entendido?
Ian iria buscar Theo. Era a única coisa que importava. Mas a voz dele era tão fria,
tão rude, que sentiu uma agonia imensa.
Lágrimas quentes queimaram-lhe os olhos. Ainda queria gritar que o amava, mas
sabia que ele não acreditaria. Nada do que dissesse poderia ajudá-la.
— Está entendido, Ian — falou devagar, sem olhá-lo.
— Então vista-se. Whalen já deve ter criado raízes lá embaixo. Tenciono partir com
ele, no trem noturno. Quero acabar de vez com essa história.
— Hoje? Vai viajar hoje mesmo?
— Exato. Talvez a viagem atenue a vontade que tenho de estrangular você, pelo
menos durante os próximos dias.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ela corou, baixando a cabeça novamente.
— Pode dar início ao divórcio, Ian. Assim se ocupará menos de mim. Mas quero
que saiba de uma coisa: Mary nada teve a ver com isso. A ideia foi minha, inteiramente
minha. Ela... ela vai ter um bebê. Você não...
— Não, Marissa, eu não vou atirá-la na rua.
— Vai despedir Jimmy?
— Minha cara, Jimmy já demonstrou que é eficiente e bom empregado. Ele provou
que me é útil.
— E eu não. É isso que está tentando me dizer?
— Você também provou que pode ser bastante útil. Porém, outras mulheres
também provaram a mesma coisa.
Marissa esqueceu-se na mesma hora do tio e de que se achava totalmente à
mercê de Ian. Saltou da cama como uma leoa, investindo contra o marido, os punhos
erguidos. Ian soltou uma risada e prendeu-lhe os braços com uma única mão. Ela teve
uma vontade louca de abraçá-lo, de ser amada.
Levantou a cabeça e fitou os olhos azuis, cortantes como duas lascas de gelo.
Ian nunca mais a amaria. Se é que a amara alguma vez.
— Lembre-se de seu tio, minha cara. Você é mesmo bonita. Deus estava com
mania de grandeza quando a fez.
O sorriso voltou, amargo e quase angustiado. Depois ele a soltou e encaminhou-se
para a porta de conexão.
— Ian!
Ele se virou.
— Que vai ser de nós dois? Como... como vamos viver daqui para frente?
— Não sei, Marissa. Simplesmente, não sei.
Ela se virou para que ele não visse seus olhos rasos de água.
— Vista-se. Já fizemos um belo fiasco demorando aqui em cima. Temos de
encarar esse jantar logo, para eu poder dar o fora o quanto antes.
Ian nem olhou para a roupa que jogara no chão. Pisou-a sem se importar e saiu,
batendo a porta.
Sozinha e infeliz, Marissa afundou na cama macia, brigando desesperadamente
com as lágrimas. Jurara que não choraria mais por Ian. Não choraria. Mas o que iria
acontecer agora? O que seria dos dois?

CAPÍTULO XVI

— Telegrama para você, Marissa!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa estava no ensolarado terraço do pequeno chalé de Mary, regando as
flores, depois de tê-las adubado e podado. Ao ouvir o chamado, largou o regador e saiu
correndo, atravessando a cozinha e a encantadora saleta onde antes passara a tarde,
entretida em conversa com a amiga. Um telegrama! Mary estava à porta, atendendo um
empertigado e solene rapaz de uniforme cinza. Assim que viu Marissa, o moço tocou no
boné, com deferência.
— Bom dia, sra. Tremayne. Fui levar o telegrama a sua casa, mas me informaram
que a senhora estava aqui. Resolvi vir trazê-lo, pois pode ser importante.
— Muito gentil, obrigada — disse Marissa, fitando o envelope ansiosamente.
Haviam se passado seis semanas desde que Ian se fora. Durante todo esse
tempo, recebera apenas uma curta mensagem, que pouco a elucidara. Dizia: "Theo está
bem, sob minha custódia. Volto breve. Ian."
O rapazinho entregou-lhe o telegrama, despedindo-se com um floreio que fez Mary
sorrir. Mas Marissa mal lhe deu atenção, os olhos fixos no pedaço de papel.
Seus dedos tremiam quando rasgou o envelope. O texto dizia: "Chegando San
Francisco pelo noturno dezesseis abril. Envie John estação. Ian".
— Que diz o telegrama, Marissa?
Ela leu o seco recado em voz alta e voltou para a saleta, onde deixou-se cair numa
cadeira.
— Hoje é dia quinze... Meu Deus, Mary! Ian vai chegar amanhã à noite!
A amiga ajoelhou-se a seu lado, cobrindo-lhe as mãos com as suas.
— Isso é maravilhoso, querida!
Marissa nada disse, deixando um silêncio mortal invadir a sala.
— Marissa, que foi? Por que ficou assim abatida? Tudo vai dar certo, tenho
certeza!
"Não, nunca mais as coisas voltarão a ser o que eram", pensou Marissa,
angustiada.
Ainda se lembrava da noite em que Ian se fora. Durante o jantar ambos mal tinham
se olhado, travando conversas triviais com Lawrence Whalen.
Depois da refeição, ela tentara falar com o marido. Tentara dizer-lhe que estava
grata por ele fazer aquela viagem só para ir buscar o tio. Mas Ian mantivera-se frio e
inacessível. Marissa lembrava-se de sua expressão hostil e distante, lembrava-se da
agonia que sentia ao vê-lo preparar-se para a viagem. Ian mal lhe dirigira um único olhar,
parecendo distante e sombrio. Ora sentia que ele queria estrangulá-la, ora que sua
presença o aborrecia, Ian dera clara mostra de que não queria ouvir nem a voz de
Marissa.
Essa distância, naquele momento, parecera-lhe intransponível. Aqueles olhos
azuis, antes tão ternos, fitaram-na com dureza inclemente na hora da partida.
Durante a ausência de Ian, Marissa apegara-se desesperadamente aos pequenos
sinais de atenção que julgava enxergar em cada ato de Ian. A princípio sentira-se quase
ultrajada pelo fato de ele ter ordenado a John Kwan que a seguisse aonde quer que
fosse. Pensara que essa ordem fora uma demonstração de desconfiança. Mas certo dia,
depois de tentar convencer John de que ele não precisava acompanhá-la, o fiel
empregado respondera-lhe com solene ar de importância:
— Ninguém sabe ainda o que aconteceu direito naquele dia em que a senhora foi
raptada. Dei minha palavra de honra ao patrão que nada lhe acontecerá enquanto ele

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
estiver fora, e tenciono cumprir minha promessa. O sr. Tremayne tem muito cuidado com
a senhora!
Marissa ficara agradavelmente surpresa com essa resposta. Ian preocupava-se
com ela, afinal. Pelo menos com seu bem-estar físico.
Se não, poderia deixá-la solta para ser raptada novamente e Ian se livraria dela de
uma vez.
De qualquer modo, os dois telegramas denunciavam frieza e tensão. Pelo visto, os
sentimentos do marido não haviam mudado nem um pouco, mesmo com a longa
separação. E isso machucava Marissa.
Não que ela tivesse sofrido noites de tormento e aflição durante a ausência de Ian.
A sociedade havia descoberto Marissa Tremayne; quase todas as tardes ela recebia
convites para jantares, chás e inaugurações. No começo, Marissa portara-se com
cautelosa desconfiança, mas logo se convencera de que o interesse por ela era genuíno.
Gradualmente fora tomando gosto pelas novas amizades e passara a aceitar um ou outro
convite. Tudo teria corrido bem, não fora a presença de Grace Leroux em quase todos os
lugares aonde se permitira ir.
Por outro lado, ela não se sentia muito à vontade, mesmo entre as senhoras mais
gentis e amáveis. A cada minuto, lembrava-se de que seu casamento não passava de
uma farsa. Fora Mary que a convencera de que ela devia representar Ian com dignidade e
manter-se à altura do nome que carregava.
Numa das vezes em que se encontrava com Grace Leroux, Marissa se lembrara
das palavras que ambas haviam trocado no parque. Nesse dia, Marissa julgara com
confiante alegria que tinha ganhado a partida. Pois bem, o jogo mudara. Tal como Grace
havia predito.
Em todo caso, parecia que os trunfos não tinham ido todos parar nas mãos dela.
Ainda.
Ian deixara algumas instruções antes de partir, entre elas a de que Jimmy tomasse
seu lugar interinamente. Por intermédio de Mary, ela ficara sabendo que o marido estava
constantemente em contato com Jimmy, enviando telegramas e cabogramas quase todo
dia. Marissa passara a ocupar-se intensamente dos órfãos, não perdendo nenhuma
domingueira. Ela e Darrin haviam formado uma dupla inseparável e alegre; foram
inúmeras as tardes que passaram juntos. Marissa tentara convencer o garoto que se
mudasse para Nob Hill, onde ganharia um quarto no sótão, só para ele. Mas Darrin
mostrara-se teimosamente irredutível nesse ponto; não aceitaria o convite antes que "seu"
Ian voltasse. O menino tinha fibra e orgulho.
Marissa engolira em seco e concordara. Afinal, nem sabia se Ian ficaria com ela
própria; que dizer de um convidado seu? Certamente esse tipo de decisão teria de partir
do dono da casa, e não dela.
Às vezes tentava mascarar de raiva seu temor e tristeza. Ian não a queria mais
porque havia descoberto o fato humilhante de que se casara com uma criada. Uma
empregadinha. Um ratinho carvoeiro. Tentava se convencer de que Ian era um esnobe
presunçoso, metido a americano aristocrata. Tentava se convencer de que o odiava, de
que detestava seus modos grosseiros de ianque prepotente.
Mas Ian não era grosseiro. Prepotente e arrogante, sim. Contudo, a prepotência e
a arrogância faziam parte de sua irresistível personalidade. Pela qual Marissa havia se
apaixonado.
Era-lhe difícil, se não impossível, detestar Ian. Especialmente à noite, quando,
sozinha em seu quarto, sonhava com ele, imaginando-o entre seus braços.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Mais especialmente ainda quando começara a ter certeza de que a última vez em
que estivera em seus braços trouxera-lhe uma novidade. Ainda não dissera nada a
ninguém, nem mesmo a Mary. Tratava de se convencer que ainda não tinha certeza; mas
a verdade é que tinha, sim. Absoluta. Viu-se pensando um milhão de vezes no assunto, e
sempre rodava em vazio. O que Ian pensaria disso? Que significado teria para ele essa
novidade? Marissa não sabia. Não sabia nem mesmo o que ela própria sentia, um misto
de encantamento e temor. De uma coisa estava certa: nada contaria a Ian. Pelo menos,
até que ambos chegassem a um acordo sobre o futuro. Se ele quisesse o divórcio, que
assim fosse. Marissa jamais pensaria em prendê-lo por estar esperando um filho.
Assustava-a também o fato de que Diana morrera durante a gravidez. Marissa
estava forte e saudável; o bebê em nada interferira em sua saúde. Ian, porém, poderia
fazer comparações entre sua amada Diana... e a empregada inglesa que o havia
enganado com mentiras e trapaças.
Ian poderia até imaginar que ela engravidara de propósito, com o fito de não perdê-
lo! Só de pensar nisso, Marissa ficava desesperada.
Por isso resolvera nada dizer a Ian, por enquanto.
— Marissa, não pode se preocupar desse jeito, minha amiga! Está tão branca!
Espere aqui, vou trazer-lhe uma bebida.
Mary desapareceu na cozinha e voltou com um cálice de licor. Marissa agradeceu
e tomou de um gole só.
— Desculpe, Mary.
— Não desculpo nada, a menos que fique menos nervosa. Escute, pode ser que
Ian não nos dê a minha... hã, a nossa mesada mais, mas o salário de Jimmy é mais do
que o suficiente por enquanto. E...
Um calafrio percorreu a espinha de Marissa.
— Mary, será que ainda não entendeu o tamanho da coisa? Nós todos enganamos
Ian! E se ele resolver despedir Jimmy?
— Marissa! Se ele quisesse despedir Jimmy, já o teria feito. Além disso, não o teria
nomeado seu representante na firma!
Marissa sorriu diante da serena resposta. Mary talvez tivesse razão nesse ponto.
— E lembre-se de que Ian mandou que Arthur reservasse quatro lugares para a
estreia de Caruso. Os melhores lugares, disse ele no telegrama.
— Sim, para quatro, mas quem? Talvez queira levar Grace. Ou outros amigos.
— Nada disso, ele vai conosco. Até mandou avisar Jimmy!
— Você e Jimmy, pode ser. Mas o quarto lugar talvez seja para Grace.
— Marissa, você às vezes me espanta. Deixe de bobagens, menina! Ian não vai
pedir divórcio, tenho certeza. Ele jamais faria isso.
— Sim, por causa do falatório. E de sua posição social.
— Céus, Marissa! — riu Mary. — Desde quando Ian liga para isso?
— Mary, mesmo que ele não peça o divórcio, a situação não se modifica. Nosso
casamento pode virar um verdadeiro inferno, não vê?
Nervosa, Marissa se levantou e pôs-se a andar de um lado para o outro, torcendo
as mãos.
— Antes eu achava que iria viver bem com Ian, ele na dele e eu na minha. Mas
agora não suporto mais a ideia, Mary! Não aguentaria viver com ele só de fachada, e vê-
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lo indo à Costa Brava, ao teatro ou à ópera, levando pelo braço aquela sócia detestável
dele, Grace Leroux.
Mary suspirou.
— Você está sendo pessimista. Não a reconheço mais, Marissa! Você, a guerreira
que sempre conheci e admirei... que lutou com unhas e dentes pela minha felicidade, que
topou entrar numa verdadeira guerra por minha causa!
— Foi fácil lutar naquela hora. Mas agora...
— Claro, eu sei. Foi fácil porque não estava apaixonada. Só que seu raciocínio
está todo errado, Marissa. Se está realmente apaixonada, agora é que deve lutar mesmo,
com todas as armas. E com o coração.
Marissa deteve-se, refletindo nas palavras de Mary. Depois começou a sorrir. Seus
olhos brilharam, desafiadores.
— Tem razão, Mary. Eu estou apaixonada por Ian, e vou lutar por ele. Lutar com
ele, se for necessário!
Mary devolveu-lhe o sorriso, feliz.
— Então tudo dará certo. Tenha fé.
— Vou tentar. Obrigada, Mary!
Marissa beijou a amiga e correu para casa. A primeira coisa que fez foi chamar
John e avisá-lo de que Ian chegaria no dia seguinte, recomendando-lhe que estivesse
pronto para levá-la à estação meia hora antes. Acabava de dar essas instruções quando
Lee entrou para anunciar que havia uma visita na sala: Eda Funston.
Na verdade, Marissa não tinha certeza se queria ter visitas naquele momento. Mas
Eda era simpática e, amável. Talvez fosse melhor não ficar sozinha com seus temores.
— Lee, faça-a vir até aqui. É mais confortável.
Minutos depois, Lee introduzia a visitante.
— Eda, que prazer! — disse ela, abrindo os braços para receber a amiga. — Posso
lhe oferecer alguma coisa? Chá, limonada?
— Não, obrigada, Marissa — respondeu Eda, olhando para a bela chinesa, que
esperava discretamente.
Marissa fez um sinal para Lee, que logo entendeu. Baixou a cabeça e saiu,
fechando a porta de mansinho.
— O que foi, Eda?
Eda Funston não era do tipo de meias palavras. Foi direto ao ponto, sem pensar
em anestesia.
— Marissa, você se tornou o alvo de falatórios da cidade.
Ela riu, divertida.
— Mais do que o prefeito Schmitz? Mais do que a estreia de Enrico Caruso?
— Acho que sim, minha querida. Tenho uma ideia de como esses boatos
começaram, e asseguro-lhe que acho tudo isso abominável. Contudo, eles estão aí, na
boca de todos. Achei que devia vir avisá-la.
— Eda, você me assusta! Que boatos são esses?
— Que a mulher de Ian Tremayne não é filha de nenhum sir Thomas. Que ela não
passa de uma criada, que enganou Ian e trapaceou até conseguir fisgá-lo.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa sentiu-se petrificada e gelada. No silêncio que se seguiu, ouvia-se o tique-
taque do relógio do outro lado da sala.
Por fim, Marissa entrelaçou as mãos no colo, fitando-as.
— Eu era uma empregada, Eda.
Foi tudo o que conseguiu dizer. Não ousava admitir que o resto também era
verdade.
Mas, para sua surpresa, Eda abanou a mão, num gesto impaciente.
— Ora, estamos na América. Em San Francisco, para ser mais precisa. Não há
nada de errado em ter sido uma empregada, Marissa. Ora esta, metade dos moradores
deste elegantíssimo Nob Hill vem de berço muito mais humilde! Não deixe que essa
história a aborreça, Marissa, nem se sinta humilhada por isso.
Eda sorriu-lhe com simpatia. Depois fungou, fechando a cara.
— Sei muito bem quem começou a espalhar essa fofoca.
Marissa nem teve tempo de perguntar. Com um muxoxo desdenhoso, Eda
prosseguiu:
— Grace Leroux, aquela insuportável intrometida. Ela vivia fazendo perguntas
sobre você. Certamente contratou detetives para investigar seu passado!
Eda teria razão? Ou teria sido o próprio Ian quem confiara tudo a Grace?
— Encoste o queixo no nariz, minha querida — disse-lhe Eda, risonha. — Eu não
tinha nenhuma intenção de deixá-la aborrecida, e espero que isso não tenha acontecido.
Mas acreditei que era meu dever vir conversar francamente com você.
Marissa sorriu.
— Obrigada, Eda. Você se mostrou uma verdadeira amiga. Por favor, não quer
ficar para jantar comigo?
— Não, não posso. Freddie está a minha espera. Mas muito obrigada, de qualquer
modo. E trate de se cuidar. Ian vem vindo aí, não é?
— Amanhã à noite.
— Ótimo, ele porá um fim nessa história. Empregada ou não, Marissa, agora você
é a mulher dele.
Dizendo isso, Eda abraçou-a e olhou para o relógio.
— Minha mãe, tenho de correr. Adeus, Marissa. Dê minhas lembranças a Ian.
Marissa acompanhou-a até a porta e observou-a atravessar a rua com seu
passinho apressado.
Fechou a porta e ficou pensativa, remoendo o que ouvira. Pouco depois, percebeu
que não estava só. Um pouco afastada, a fiel Lee esperava ser notada.
— Bem, parece que andam falando a meu respeito, Lee.
— Eu sei.
Marissa não se surpreendeu. San Francisco era grande, mas as notícias corriam
em qualquer cidade.
— Bem, é verdade o que dizem. Eu não sou nenhuma lady.
Lee soltou um risinho travesso, tapando a boca com a mão fina e longa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— A senhora fala comigo e com John do mesmo jeito com que fala com os amigos.
A senhora cuida das crianças órfãs, gosta delas. Eu acho que a senhora é uma
verdadeira lady.
E dizendo isso, fez uma pequena reverência e saiu. Marissa refletiu no que Lee
dissera com tanta simplicidade, e sorriu melancolicamente.
Lee, pelo menos, gostava muito dela.
Cansada, subiu as escadas e foi buscar refúgio no estúdio. Leria um pouco,
bordaria e esperaria. Por Ian.
Já ia se sentar diante do bastidor quando Lee bateu na porta e pediu licença para
entrar. Trazia um envelope na mão.
— Um garoto veio entregar este bilhete para a senhora. Pergunta se deve esperar
resposta.
Marissa abriu o envelope, curiosa.
Logo nas primeiras linhas começou a sorrir. Quando terminou de ler, ria com gosto.
A nota era de Lilli, avisando-a de que havia uma "campanha maliciosa" contra ela
correndo a cidade. Lilli exortava-a a não ligar para os falatórios e manter o queixo
levantado, exatamente como Eda fizera pela manhã. A nota terminava dizendo o
seguinte:

Acredite, Marissa, tem muita gente torcendo por você. Soube que, dia desses,
alguns tomates maduros (e certeiros, ora graças!) foram atirados em Grace Leroux na
hora em que ela saía da costureira, enfeitada como um pavão. Achei que você gostaria de
saber dessa história...
Um beijo de sua amiga devotada e fiel,
Lilli
PS — Talvez você goste de saber de outra coisa. O diabinho que jogou os tomates
não foi apanhado.

— A senhora quer mandar alguma resposta? — perguntou Lee, sem entender a


causa de tanto riso.
— Quero! — exclamou Marissa, divertida. — Diga ao menino que espere um
pouco.
Rabiscou rapidamente uma nota de agradecimento, dobrou e mandou entregar ao
mensageiro, junto com uma moeda de prata.
Pela janela, viu que o pequeno pulou de alegria ao receber a gorda recompensa e
saiu como uma flecha rua abaixo. Marissa recostou a testa no vidro, admirando a cidade
que começava a luzir lá embaixo. A cidade que aprendera a amar e admirar abrigava
amigos, bons amigos.
Era a cidade de Ian.
Sim, Mary tinha razão. Ela era uma lutadora, sempre o fora. E pretendia continuar
assim. Iria lutar por Ian. Seu Ian.

No dia seguinte, ao cair da tarde, Marissa estava na plataforma da estação,


aguardando a chegada de Ian.

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O trem se atrasara, e, para apaziguar os nervos, Marissa comprara um jornal.
Havia tumultos na Rússia, como vinha acontecendo com frequência alarmante. Uma
pesquisa feita pelo jornal mostrava que a grande maioria dos leitores acreditava que o
automóvel jamais substituiria os veículos puxados por animais. Na festa da embaixada da
Suécia estavam presentes os senhores...
Marissa baixou o jornal, impaciente. Não conseguia se interessar por nenhuma
notícia. E seus nervos continuavam tão tensos quanto antes.
A estação fervilhava de gente. No meio de um grupinho, Marissa reconheceu
algumas senhoras que moravam em Nob Hill, não muito longe de sua casa; entre elas
achava-se Nancy Masterson. Vagamente, lembrou-se de ter ouvido que o filho de Nancy,
estudante de uma faculdade no norte, viria passar as férias em San Francisco e era
esperado por esses dias. A certa altura, o olhar de Nancy encontrou-se com o dela.
Marissa sorriu e a cumprimentou; mas, para seu espanto, Nancy franziu o cenho e
desviou os olhos, fingindo não conhecê-la.
Atônita e consternada, Marissa baixou a vista para o jornal. Como devia agir
agora? Precisava ter calma. Já esperava ter de enfrentar algo parecido; na verdade,
pensara muito naquela história de boatos e sabia que estava sentenciada a viver a
margem da sociedade, pelo menos de parte da sociedade. Teria de conviver com muitas
Nancys de agora em diante; e a melhor maneira de enfrentá-las era... erguer o queixo e
não ligar.
Se bem o disse, melhor o fez. Serena, ergueu a cabeça bem alto, aprumando o
corpo com graça e elegância. Nancy que se lixasse, ela e sua turma!
O apito do trem cortou os ares, fazendo-a estremecer. Deu dois passos para frente,
um frio percorrendo-lhe o estômago. Pouco depois o trem entrou na estação, chiando e
resfolegando. Nuvens de vapor desprenderam-se da locomotiva, que parou com um
suspiro estridente.
No mesmo instante, avistou Ian de pé numa das plataformas, pronto para
desembarcar. Atrás vinha Theo, parecendo mais magro, mas esperto e vivo como
sempre. O frio acentuou-se em sua barriga. Que aconteceria agora?
"Por favor, Ian, por favor!", pensou, com desespero. "Não me ignore na frente de
Nancy Masterson, por favor..."
Mas Marissa pouco se importava com Nancy Masterson, ou com qualquer outra
das matronas que a observavam. Na realidade, o que mais temia era ser ignorada por
Ian.
Deu um passo, hesitante. Devia correr até o marido ou esperá-lo ali? Não sabia o
que fazer. Deu-se conta de que, mesmo que se decidisse a correr, não poderia. Seus pés
pareciam pregados no chão.
— Marissa!
Era a voz do tio, com seu acento peculiar e áspero. Marissa sorriu feliz para ele,
que vinha em sua direção, os braços abertos e o sorriso familiar enrugando-lhe o rosto.
No instante seguinte Theo estreitava-a nos braços, rindo comovido. Marissa abraçou-se a
ele com força, deixando que as lágrimas corressem. De agora em diante, acontecesse o
que acontecesse, ela passaria a ser grata a Ian. Para o resto da vida. Theo era a única
pessoa que possuía na vida, e Ian fora buscá-lo. Contemplou o rosto querido do velho,
sorrindo entre as lágrimas, e gostou do que viu. Theo tinha os olhos brilhantes e
comovidos, mas estava alegre. Não demonstrava tristeza nem melancolia por ter deixado
a Inglaterra.

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— Marissa, minha pequena Marissa, como é bom ver você de novo! Mil vezes
obrigado por ter enviado Ian Tremayne para cuidar de meus problemas. Devo minha vida
a ele e a você, é o que digo!
E abraçaram-se de novo, deixando-se ficar um nos braços do outro por longo
tempo.
— Você está aqui, titio, são e salvo. É tudo que conta!
Por cima do ombro de Theo, Marissa viu que Ian se aproximava. E viu também que
a vida do tio, embora importante, não se resumia a tudo o que contava.
À medida que andava, Ian ia recebendo cumprimentos de inúmeras pessoas. Alto,
elegante, simpático, chamava a atenção de todos. Ian respondia, mas tinha os olhos fixos
em Marissa.
De repente ele parou, parecendo agastado. Franziu a testa, aborrecido. Ela
percebeu, horrorizada, que Nancy comentava com alguém sobre o casamento dos dois.
Em voz bem alta, aparentemente de propósito.
— Ela não passa de uma criadinha, é o que dizem por aí. Empregada de um lorde,
não sei bem. Fez o que pôde para enganar Tremayne, mentiu e trapaceou, para
conseguir o que queria.
— Não diga! — respondeu uma voz fininha.
Involuntariamente, Marissa olhou para a senhora jovem ainda, de seios enormes e
pincenê, examinando-a de alto a baixo. Tinha cara de solteirona.
A mulher lançou um olhar de desprezo para Marissa e empinou o nariz, virando o
rosto.
— Ian era tão bom partido!
— Ora, mas ele vai achar um jeito de se livrar dela, pode acreditar — respondeu
Nancy com firmeza, num cochicho que podia ser ouvido da outra ponta da estação.
Apesar de estar resolvida a ignorar esse tipo de comentário, Marissa sentiu, em
pânico, que enrubescia até ficar escarlate. Rezou para que Theo não percebesse o que
se passava e olhou-o disfarçadamente. Acalmou-se um pouco; se ele havia percebido,
fingira que não.
Ian pusera-se a andar de novo e desviara os passos, dirigindo-se para as duas
senhoras. Seu sorriso parecia definitivamente devastador, de tão charmoso.
— Nancy, que surpresa encontrar você aqui! Ah, mas é claro, estamos em época
de férias! Suponho que veio esperar seu querido Edgar, que volta do colégio... Acertei!
Nancy desmanchou-se com a atenção que o importante Ian Tremayne lhe
dispensara. Olhou em volta, triunfante.
— Oh, Ian, você é tão... amável!
— Edgar é um garoto e tanto. Gosto dele. E você, minha cara Edith, como tem
passado? Melhorou daquela enxaqueca terrível, espero. Bem, senhoras, com sua licença,
estou com um pouco de pressa. Uma ótima noite para vocês!
Ian se afastou alguns passos, para logo em seguida deter-se e virar-se, sempre
sorridente.
— Oh, ia-me esquecendo de dizer uma coisa às duas — disse ele, em tom alto o
suficiente para San Francisco inteira ouvi-lo. — Eu não fui enganado nem trapaceado por
Marissa. Basta dar uma olhada em minha mulher para perceber de imediato por que

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razão eu me decidi casar com ela. Aliás, senhoras, essa decisão foi tomada no minuto em
que a vi pela primeira vez. Boa noite.
As duas esbugalharam os olhos, boquiabertas, incapazes de responder. O pincenê
de Edith caiu de seu nariz e foi buscar pouso airosamente no generoso seio, o que
provocou algumas risadinhas abafadas.
Somente quando Ian chegou bem perto é que Marissa foi perceber duas chamas
iradas brilhando no fundo dos olhos azuis. Olhos que a miravam com hostilidade, na hora
mesmo em que ela pretendia expressar sua gratidão e alegria por ver o tio de volta. Na
verdade, Marissa havia decidido que abraçaria ternamente o marido, na frente de todo
mundo, a fim de mostrar-lhe como estava feliz.
Ao deparar com o olhar cortante e duro, porém, refreou-se.
— Como está, minha querida? — falou Ian, bem alto. E plantou-lhe um beijo em
cada face.
— Bem-vindo, Ian.
— Não precisava ter vindo me buscar. De qualquer forma, foi muita gentileza sua.
"Está brincando de marido e mulher comigo por causa daquelas duas. E das outras
pessoas", pensou ela, com melancolia.
Lembrava-se dos momentos de felicidade completa que experimentara em
companhia do marido. Daria tudo para revivê-los. Ansiava por atirar-se em seus braços,
mergulhar os dedos nos cabelos pretos, eternamente rebeldes. Bem, em sociedade as
aparências são importantes. Ele estava representando; por que não fazer o mesmo?
Armou seu sorriso mais cativante e correu a mão pela elegante lapela de Ian,
ajeitando-lhe a gravata.
— Oh, eu nem sonharia em ficar em casa, Ian. Estava doida para ver você.
— E seu tio, é claro.
— Claro que sim, meu tio também!
Deu um braço para Theo e enfiou o outro sob o de Ian, falando em tom doce, mas
alto, a fim de ser ouvida por Nancy e Edith:
— Vamos logo para casa, sim? Há um belo jantar à nossa espera, do jeito que
você gosta. Deve estar exausto, querido. Precisa descansar um pouco.
— É, estou. Vamos para casa, querida.
Mas sua voz soou artificial para quem o conhecia como Marissa.
Ao deixarem a estação, ela engoliu em seco. Havia escapado de Nancy e Edith,
mas Theo era uma pessoa sensível e intuitiva. Certamente detectara no ar as farpas
trocadas entre ela e Ian; que pensaria de tudo isso?
Não importava. O que os outros pensavam não lhe interessava.
Só Ian interessava.
E ele tinha voltado para casa.

Theodore estacou na entrada, absolutamente pasmo com a enorme escadaria, o


lustre cintilante, o chão de mármore tão polido quanto um espelho. Marissa sentiu-se algo
embaraçada com o ar embasbacado do tio; sua origem pobre e humilde parecia saltar à
vista mais que nunca. Olhou para Ian, meio envergonhada com a própria vergonha. Afinal,

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ian conhecia bem sua origem; fora buscar Theo e vira como ele vivia. Vira aquela nuvem
negra de fuligem. Vira a casa do tio. A casa onde ela fora criada.
— Vamos, titio — disse, ansiosa.
Subitamente, sentiu raiva de Ian. Era ele que a fazia envergonhar-se do tio, de sua
casa, de sua pobreza. Ian fazia-a sentir-se miserável...
Mas Ian parecia totalmente alheio aos pensamentos de Marissa. Assim que
chegara, dera algumas ordens a Lee e agora tirava o chapéu e o casaco.
— Theodore, não quer tirar seu casaco? — perguntou ele.
— Quê? — fez o velho, ainda de boca aberta. — Ah, sim, obrigado.
Ian ajudou-o a tirar o sobretudo. Era um sobretudo novo, notou Marissa;
Certamente presente de Ian, que devia tê-lo comprado pouco antes de saírem de
Londres. Mas quando ela examinou melhor o tio, quase soltou uma exclamação de susto.
Aqueles dois deviam ter gasto muito dinheiro antes de viajar, porque Theo estava
reluzente dentro de um terno novo em folha. Aliás, tudo que ele estava usando era novo.
E de ótima qualidade. As botas rudes e remendadas haviam sido substituídas por finos
sapatos de cromo. E colete! Tio Theo de colete de camurça! Era quase inacreditável.
De repente, Marissa notou como o tio era bonito. Nunca havia pensado nisso. Os
cabelos brancos conferiam-lhe uma dignidade que muito a impressionou naquele
momento.
— Mas... isto aqui... esta é sua casa? — perguntou Theo.
Ian sorriu de leve.
— É, Theodore. Pode não parecer muito confortável, mas tenho certeza de que vai
se acostumar com o tempo. John vai levar sua bagagem para cima, e depois do jantar
dou-lhe o tempo que quiser para se instalar e descansar.
Theo pegou na mão de Ian, sacudindo-a efusivamente.
— Obrigado, sr. Tremayne, muito obrigado.
— Ian, Theo, Ian. Por favor.
— Está bem... Ian.
Ele se virou para Marissa e abraçou-a com ternura. Sem largá-la, falou com voz
comovida para o dono da casa:
— Bom Deus, Ian, mal posso acreditar no que está acontecendo. Não sabe como
lhe sou grato, em nome de minha Marissa. Por tudo o que tem dado a ela. Pela vida
maravilhosa que ela tem agora! Ah, minha Marissa bem merece!
— Verdade — retorquiu Ian com secura. — Merece.
Ela se sentiu enrijecer, sem saber o que dizer, mas Lee veio salvá-la do embaraço,
avisando que o jantar estava servido.
Foi a refeição mais difícil e penosa da vida de Marissa. Ela tentava puxar assuntos
banais, conseguindo respostas meramente polidas de Ian. Theo limitava-se a comer e a
olhar um e outro, repetidamente.
Enfim, o pesadelo terminou. Ian sugeriu que Lee mostrasse a Theo o quarto que
havia sido preparado para ele. Mas Marissa, que esperara quase com desespero pela
volta do marido, sentiu-se subitamente em pânico com a ideia de se ver a sós com ele.
— Não, Ian, prefiro ir eu mesma mostrar o quarto a titio, se não se importa.
— Claro que não. Pode ir.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Quando Theo viu o quarto que seria só dele, abraçou-se à sobrinha, murmurando:
— Que maravilha, Marissa! Você é uma garota de sorte, é o que eu digo. Seu
marido é um verdadeiro cavalheiro, um homem muito distinto. E esta casa, então! Deus
sorriu para nós, Marissa. Abençoado seja seu nome, porque você merece isto tudo e
muito mais!
Marissa riu e retribuiu carinhosamente o abraço, disfarçando a tristeza e a
melancolia. Tio Theo se enganava; Deus estava sendo apenas irônico, pois nada dali era
realmente seu. Nem o marido. Mas o tio teria uma ótima e agradável noite, pelo menos no
primeiro dia. Fosse qual fosse a decisão de Ian, Theo seria poupado em sua primeira
noite em San Francisco.
— Bem, titio, eu acho que já vou me recolher. Um beijo de boa-noite!
— Espere, Marissa.
— Que foi?
O velho aproximou-se, grave.
— Não sei qual é o problema, mas, seja qual for, você poderá resolvê-lo. Sabe
disso, não é?
— Problema, titio? Mas não há nenhum problema!
— Sempre a mesma, não é, minha garotinha? Orgulhosa como quê... Esquece-se
de que eu sei ler em seus olhos? Mas não se aflija, pequena. Não se aborreça com coisas
menores. Ele adora você, é o que digo.
— Ian... lhe disse isso?
Theodore sacudiu a cabeça.
— Não exatamente, não com essas palavras. Mas eu passei um bom tempo com o
homem, vi como ele é. Foi me ver na cadeia...
— Então você chegou a ser preso mesmo! — falou ela, com horror.
— Ora se cheguei! E daí ele veio e me disse na lata que era seu marido. Oh,
Marissa, podia ter me contado, naquele dia em que foi me visitar!
— Desculpe, titio. Na hora eu estava muito confusa. Pensei que estava agindo
certo, mas agora vejo que errei. Boa noite, então, titio. Durma bem. Eu gosto muito de
você. E estou muito contente de vê-lo aqui.
— Marissa, eu lhe digo e repito: nós vamos nos sair bem. Foi sempre assim, não
foi?
— Foi, titio, sempre — falou Marissa, com voz embargada. Abraçaram-se uma
última vez e depois ela o deixou às voltas com as malas.
Chegando ao quarto, ela se sentou na beira da cama e esperou, ansiosa. Ian logo
apareceria. E eles teriam uma longa e penosa conversa. Que lhe diria ele?
Mas Ian não aparecia. Marissa se levantou e começou a passear pelo quarto.
Sentou-se na poltrona, levantou-se. Arrumou alguns objetos, sentou-se na cadeira. Foi ao
quarto de vestir e voltou. Estirou-se na cama, incapaz de conter sua aflição. Talvez
devesse ir ter com ele. Mas, e se ele não quisesse vê-la?
Fechou os olhos por uns instantes, deixando os sentidos bem alertas. Tão alertas
que, quando os abriu de novo, estranhou o silêncio que se abatera sobre a casa. Devia
ter cochilado mais do que esperava! Quando olhou o relógio, não queria acreditar no que
via. Eram quatro e meia da manhã!

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ergueu-se com dificuldade e arrastou-se até a penteadeira, para tirar os grampos
do cabelo. Escovou-os com raiva, frustração e tristeza, lutando contra as lágrimas. Ian
não quisera nem mesmo vê-la. Não se dera ao trabalho de vir desejar-lhe boa-noite.
Nem sequer viera para brigar. Nada! Na última noite que passaram juntos, Ian
fizera amor com raiva. Mas havia paixão em seus olhos. E agora ele a ignorava
solenemente.
Olhou-se no espelho e surpreendeu-se com a própria palidez. Seus olhos estavam
muito grandes, a pele muito fina, contrastando com os cabelos.
Súbito, ficou alerta. Ian e John Kwan estavam no corredor, conversando em voz
baixa.
— Não sei o que aconteceu com eles hoje! — dizia Ian.
— Nem eu. Nunca vi os cavalos tão inquietos assim. Mas o senhor conseguiu
dominar Jet, e agora ele está mais calmo. Muito obrigado, e desculpe-me por tê-lo
incomodado. Eu não consegui dominar Jet, nem com um balde de açúcar, por isso vim
chamá-lo. Justo em sua primeira noite aqui!
— Uma noite estranha, John. Notei que os cães também estão inquietos; ouça
como latem! Mesmo ao longe se pode ouvi-los. Deve ser por causa da lua. Ou das
estrelas, eu não entendo essas coisas. Tente dormir, John. É tarde.
— Sim, senhor. Boa noite.
No silêncio que se seguiu, Marissa continuou alerta à espera, prendendo a
respiração. Mas Ian entrou em seu quarto pela porta contígua. Marissa ouviu-o tirar o
casaco e esperou mais, sentindo a língua seca. Dez minutos depois, incapaz de se
controlar, correu para a porta de conexão e, abrindo-a com violência, irrompeu no quarto
do marido.
Ian não tirara a calça nem a camisa; apenas afrouxara o colarinho. Achava-se
sentado diante da janela, contemplando a noite. Ou a manhã que se avizinhava. Logo
mais o horizonte se tingiria de vermelho e a cidade acordaria, espreguiçando-se.
— Marissa — falou ele, sorrindo levemente. — Que hora estranha para uma visita!
O pior é que seu tio já está aqui, e eu não tenho mais o que negociar com minha mulher...
Ela se adiantou, cerrando os punhos.
— Como se atreve, seu... seu... nem sei o quê! Só vim aqui para lhe agradecer o
que fez por meu tio, nada mais! Eu lhe prometo, Ian Tremayne, jamais virei aqui por outra
razão, está entendendo? Nunca mais tocarei em você, nunca!
Ele agarrou-a pelos pulsos, interrompendo-lhe o discurso. Puxou-a para si.
— Mas você é minha mulher, Marissa. E está exatamente onde queria estar.
Ela sentia amargura e tensão no ar. Não era isso que queria, não era isso que
buscava. Queria ser acariciada com ternura, queria ouvir palavras sussurradas de
carinho. Nada mais lhe interessava.
Mas não ia conseguir o que buscava com tanta ansiedade.
— Ian, você sempre deixou bem claro que se casaria comigo, desde que eu não
fosse sua mulher. De repente, você mudou de ideia e me assumiu. Até descobrir que
estava casado com uma empregada. Alguém que não tinha suficiente berço para morar
em Nob Hill!
— Ora, sua bruxa! — exclamou ele, fitando-a profundamente. — Você mentiu para
mim! Dei-lhe todas as chances e você continuou mentindo e mentindo e mentindo. Casou
comigo para subir mais depressa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Não!
— Casou-se por dinheiro, não negue. Ambos sabíamos disso muito bem. O
problema é que eu pensava que esse maldito dinheiro era seu.
— Então vamos sair dessa situação juntos, você e eu. Eu não quero seu dinheiro,
nunca o quis. Só quero sair de sua vida agora. Assim não terá de se preocupar com o que
os outros dizem ou pensam ou...
— Não ligo para fofocas.
— Pois, então, que está esperando para pedir o divórcio?
— Não haverá divórcio.
— Mas acabou de dizer que não liga para falatórios. Ai! Está me machucando, Ian!
As mãos dele apertaram-lhe os pulsos um pouco mais. E os olhos de Ian, escuros
na penumbra do quarto, pareciam penetrá-la como dois pequenos e agudos punhais.
— Já disse que não haverá divórcio! E isso não tem nada a ver com falatórios, tem
a ver com um voto que fiz. Até que a morte nos separe, lembra-se?
— Então... vamos viver nessa agonia? Para sempre?
— Se depender de mim, até no inferno.
Os dois se encararam em silêncio, os rostos muito próximos. De repente ela deu
um grito:
— Não posso! Não posso viver sabendo que você...
— Mas vai viver. E como minha mulher!
Ela tremeu de raiva, fúria e excitação; tremeu de amor e esperança. Pelo menos
ainda conseguia despertar a ira de Ian, ainda conseguia exasperá-lo. Com uma estranha
sensação de vitória, Marissa percebeu que poderia fazer amor com Ian naquele momento.
Bastava querer.
Não.
— Não! Não posso viver assim porque não suportaria o tormento, Ian! Eu te amo!
— Mentirosa! — rugiu ele.
Mas a frase de Marissa apanhara-o de surpresa. Sem querer, Ian afrouxou as
mãos, e ela se livrou imediatamente, erguendo-se ao mesmo tempo em que ele.
Encararam-se num silêncio doloroso. Depois ela fugiu do quarto.
— Marissa!
Ela não lhe deu ouvidos e desceu correndo para a escada. Ganhou a porta e a rua,
os cabelos dançando no vento da aurora.
Sabia que Ian viria atrás, mas dessa vez ela não queria que ele viesse. Havia
declarado seu amor mais uma vez, e Ian não lhe dera atenção. Era muita humilhação.
Marissa não suportaria outra carga de ironia agora.
Correu para a estrebaria, em busca de seu baio negro. O animal pateava
nervosamente, relinchando.
— Por favor, fique quietinho! — murmurou ela, enquanto afagava a crina longa e
sedosa. — Shh!
Que estava acontecendo com os cavalos? Estavam todos nervosos e inquietos!
Marissa conseguiu acalmar o baio, à custa de muita conversa e carinho. Depois
passou-lhe a rédea no focinho, sem se preocupar em selá-lo. Puxou-o para fora e montou

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
em pelo, guiando-o para a rua, depois para o extenso gramado que circundava as casas
vizinhas de Nob Hill.
Os primeiros raios da manhã começavam a surgir no horizonte.
— Marissa!
Ian a vira! Ela incitou o baio, apressando-o. Sabia que ele a seguiria dentro em
pouco, mas não queria vê-lo, não mais nessa noite. Aonde iria agora? Marissa raciocinou
depressa, tentando coordenar os pensamentos. À loja, decidiu, Sandy e as amigas
deviam chegar lá brevemente, a fim de preparar a domingueira. Sim, era uma boa ideia.
Iria à loja e brincaria com Darrin. Talvez conseguisse esquecer o que se passara.
Galopou sem descanso pelas ruas desertas, percebendo que a cidade ia
despertando aos poucos. A maioria das pessoas ainda estava sob as cobertas, mas já
havia comerciantes abrindo as pesadas portas; alguns varriam a rua, outros
espreguiçavam-se e bocejavam. Os jornaleiros iniciavam a entrega dos diários.
Meia hora depois chegava à loja. Desmontou e fez uns agrados no suado animal.
Depois espiou a rua deserta, e logo avistou um ponto preto que se aproximava em
disparada. Era Ian, atrás dela.
Rapidamente, Marissa deu meia-volta e abriu a porta dos fundos, onde um guarda
sonolento tentou protestar, para logo bater respeitosa continência. Afinal, ela ainda era a
mulher do patrão.
Ela deu-lhe um sorriso apressado e dirigiu-se à escada que dava para o porão.
Estava ansiosa para juntar-se aos amigos, ocupar-se e esquecer o que acontecera.
Do outro lado do grande salão, avistou Darrin, que ergueu-se ao vê-la, o rosto
sardento numa expressão de surpresa. A surpresa logo se transformou em preocupação,
e Marissa sabia por quê. Tinha os cabelos em desalinho, sua roupa estava amarrotada.
Era natural que Darrin se preocupasse.
Não podia se esconder atrás das crianças. Se Ian estivesse bravo como ela
julgava, ele a arrancaria dali e faria um escândalo. E agora, o que fazer?
— Dona Marissa! — gritou Darrin, correndo em sua direção. De repente ela ouviu
um ronco terrível sob os pés.
— O quê...?
Alguém começou a berrar a seu lado.
— Terremoto! — gritou Darrin. — Terremoto! Cuidado!
O ronco transformou-se em cacofonia, e pareceu-lhe que o mundo se esfarelava.

CAPÍTULO XVII

Para Ian, o que mais o impressionou naquele dia foi ver o terremoto. Uma enorme
fenda rasgou a terra e subiu pela rua, devorando o que encontrava pelo caminho.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
E ouviu, vindo das profundezas da terra, um ronco ensurdecedor de fera
subitamente livre dos grilhões.
Jet empinou, relinchando, quase derrubando o dono, que saltou imediatamente
para o chão, tentando acalmar o animal.
Os prédios, aparentemente tão sólidos e indestrutíveis, ondulavam em dança
macabra. E a enorme fenda, negra e ameaçadora, abria seu caminho inexorável, subindo
a rua, varrendo, empurrando, derrubando, vindo em sua direção. Canos e fios surgiam do
ventre da terra dilacerado, como entranhas saindo de uma barriga descomunal. Madeira,
cimento, concreto, metal, tudo voava pelos ares num grito estridente de agonia.
Jet empinou novamente, agitando as patas dianteiras no ar, como que pedindo
socorro a Deus. Ian nada pôde fazer por ele; largou as rédeas e voou em direção à loja,
saltando e pulando sobre os obstáculos, sem saber que berrava desesperadamente o
tempo todo.
Minutos depois estacou, exausto e ofegante, ao lado da loja. Enxugou a testa com
a manga do casaco, ainda não querendo acreditar que aquele espetáculo podia ser real.
Correu os olhos em volta, num misto de incredulidade e desespero. Fachadas,
cartazes, postes, tudo ruía como se fossem feitos de areia. Encostou-se à parede,
tremendo e arquejando. Súbito, Ian gelou. Marissa! Ela estava na loja...
Mas a loja não cairia, não o seu prédio, construído pelo avô com tanto cuidado e
precaução. Todas as medidas para prevenir tremores de terra haviam sido tomadas
então. E, no correr dos anos, Ian procedia pessoalmente a inspeções periódicas das
fundações.
Do outro lado da rua, uma parede ondeou e entortou grotescamente por alguns
instantes, para depois desabar fragorosamente, cuspindo cimento e tijolos com raiva. Ian
mal teve tempo de jogar-se ao chão, protegendo a cabeça com os braços. Ripas de
madeira arrebentavam-se e voavam, sibilando sobre ele.
E a rua continuava a tremer, os prédios prosseguiam em sua dança sinistra.
Gritos lancinantes cortavam o ar, num lamento de morte.
E súbito tudo ficou calmo, terrivelmente calmo.
Jet havia galopado até a loja, mas agora jazia no chão, imóvel. Os gritos
aumentavam, num clamor de impotente desespero, mas Ian mal se apercebia do
espetáculo destruidor. Levantando-se, correu como flecha para a entrada.
Mas uma coisa o fez deter-se.
Um chiado esquisito, como silvo de cobra, insinuando-se preguiçosamente do seio
da terra.
Num instante, Ian soube de que se tratava. Gás. Os canos, jacentes sob a rua,
haviam sido arrebentados. A qualquer momento começariam as explosões.
Marissa!
Irrompeu na loja, encontrando o guarda de segurança no chão. Abaixou-se para
examinar o crachá entortado e amassado que se encontrava ao lado. Era Bobby Harrison,
um jovem irlandês que trabalhava na loja desde os dezesseis anos.
Havia sido atingido na cabeça, provavelmente pelos caríssimos vasos franceses
que enfeitavam a entrada da loja, e que agora não passavam de um amontoado de cacos.
Ian amparou-lhe a cabeça, murmurando palavras de conforto. O homem piscou, já
refeito. Parecia bem, exceto por um corte no supercílio, de onde escorria um filete de
sangue. Ian enxugou o ferimento com um lenço.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Sr. Tremayne... Desculpe. Foi um terremoto. Ah! — gemeu. — Sorte eu estar
inteiro. O senhor precisa saber, a vitrine se espatifou e eu...
— Sim, Bobby, foi um terremoto. E dos grandes. Minha mulher entrou aqui, você a
viu? Sabe para que lado ela foi? Quem mais está na loja, e onde?
— Só o pessoal do plantão, e estão todos no porão. Ninguém tomou o elevador.
Também não há ninguém aqui no térreo. Mas lá embaixo tem gente, os cozinheiros e...
e... Meu Deus, as crianças. Já haviam chegado umas dez quando a coisa começou.
Também o padre e Sandy.
Bobby parou para respirar, e sentou-se sem muita dificuldade. Olhou para Ian e
sorriu.
— Não se preocupe, sr. Tremayne, nosso prédio é dos bons. Ele não vai cair.
Perdemos alguma mercadoria, acho, mas não passa disso. O construtor era muito bom!
— Como você está, Bobby? Acha que consegue se levantar?
— Ora, eu estou novo. Foi só um corte na testa.
— Então não temos tempo a perder. Os canos de gás arrebentaram. Temos um
sistema de alarme, mas se os tubos tiverem sido danificados...
Bobby entendeu imediatamente. Levantou-se devagar, com cautela, apalpando-se.
— É, estou inteirinho. Pronto para outra! — riu.
Ian já se achava no corredor, apertando impacientemente os botões dos
elevadores, pulando de um para outro. Súbito, lembrou-se que certamente os elevadores
não estariam funcionando. Virou-se e ganhou as escadas, descendo os degraus de três
em três, seguido por Bobby.
— O senhor precisa dar um jeito logo nesse ombro, sr. Tremayne.
— Ombro? — repetiu Ian, parando para examinar-se. Não sabia como aquilo
acontecera. O sangue empapava-lhe a camisa do lado esquerdo; havia um feio ferimento
no ombro.
— Bem, por enquanto não está doendo. Não creio que seja nada grave. Vamos,
Bobby.
Em segundos estavam diante da porta do refeitório. Ian tentou inutilmente abri-la.
— Que é que há com essa maldita porta? Me ajude aqui, Bobby, temos de
arrombá-la.
Os dois investiram com todo o peso sobre a porta, em vão. Pegaram uma tora de
madeira e improvisaram um aríete. Com um rugido, transpirando pelo esforço, fizeram a
tora abater-se em ponta contra a porta. Que continuou no mesmo lugar.
— Mas que diabos!
— Ian!
Era a voz de Marissa, indistinta e fraca.
— Marissa! — gritou ele, esmurrando a porta.
— Não adianta, Ian, está bloqueada! Caiu uma viga do teto!
A voz dela soou calma. Não parecia que estava ferida.
— Fique firme aí, ouviu bem? Vou buscar ajuda. Está todo mundo bem? Algum
ferido?
— Corra, Ian. Sandy feriu-se e está sangrando muito. E há outros feridos.

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— E você, e você? — gritou ele, impaciente.
Houve uma breve hesitação. Em seguida Marissa respondeu:
— Eu estou bem.
Ian não se convenceu muito. Temia que Marissa estivesse apenas mostrando-se
corajosa, como sempre fizera.
Não se preocupou muito com os outros; sabia que Marissa cuidaria deles.
Imaginou-a tratando dos feridos, dirigindo-lhes palavras carinhosas. Sim, Marissa poderia
acalmar qualquer um. Tinha uma personalidade rara. Uma coragem invejável. A bela e
orgulhosa empregada, que viera de uma mísera cidadezinha do interior da Inglaterra,
aprendera a lidar com a vida dura. E aprendera a ter coragem.
— Ian, por favor, apresse-se!
Ele percebeu que Marissa tentava a todo a custo se controlar. As coisas deviam
estar bem piores do que ela deixara entrever.
Muito piores. E o cheiro de gás começava a se espalhar, insidioso e lento.
— Mantenha a calma, Marissa. Estou indo.

Terremoto, dissera Darrin. Não devia ter durado mais que meio minuto, mas
transformara o mundo nesse pequeno lapso de tempo.
Ian estava vivo, bem perto dela, e logo viria tirá-los dali. Esses fatos simples
significavam tudo para ela no momento. Tanto que o outro terremoto, aquele que sentira
no próprio corpo, havia passado como que por encanto, assim que ouvira a voz do
marido. Mas Marissa nunca ficara tão apavorada em toda a vida.
No porão, o inferno instalara-se no minuto em que a terra começara a tremer.
Mesas e cadeiras saltavam e voavam no ar, como que levadas por alguma força interna.
Prateleiras inteiras, cheias de louças e cristais, espatifaram-se ruidosamente de encontro
às paredes. O teto se esboroara, despejando uma nuvem fina de cimento sobre o salão,
enfumaçando-o. Lascas de madeira zuniram sobre suas cabeças, e uma grande viga
despencara do teto, bem a seu lado. A certa altura, Marissa tivera certeza de que o
edifício inteiro desabaria sobre sua cabeça, tal era o barulho. Mas não; as paredes
tremeram, rangeram e chiaram, mas permaneceram firmes. Gritos e gemidos se
sucediam interminavelmente.
E de repente a terra se acalmara, saciada. Mas os gritos continuavam, assustados
e lamentosos.
Trêmula e arquejante, Marissa arrastara-se do ponto em que cairá, perto da grande
viga. Nessa hora lembrara-se de Ian, e julgara que ia morrer. Tivera vontade de gritar alto,
misturar seu desespero ao dos outros. Ian podia estar morto! Fora nisso que ocupara
seus pensamentos daquele momento em diante. Muito pálida, ficou totalmente alheia ao
que se passava a sua volta. Meu Deus, como quisera gritar, gritar, gritar...
Mas sabia que não podia. Os mais pequeninos berravam e choravam a plenos
pulmões, assustados e desorientados. Com esforço, Marissa pusera-se de pé e tratara de
acalmá-los, ora com caricias, ora com palavras doces. A eletricidade havia muito se fora,
e a escuridão fizera-se quase completa.
— Shh, crianças, meus amores, está tudo bem! Acabou, calma agora!
Dissera e repetira essas palavras milhares de vezes, mas sem acreditar nelas. O
sentimento de culpa avolumara-se nela. Se tivesse ficado em casa, quieta, ouvindo Ian,
agora não estaria ali, tomada de pânico e tristeza. Estaria com ele.

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— Tem sangue na minha mão!
— Eu quebrei o pé! Tá doendo!
— Marissa, eu estou sangrando muito! Estou com medo! — falara Sandy com
dificuldade.
— Temos uma lanterna ali naquele canto, dona Marissa — dissera um dos
cozinheiros, que se chamava Ralph.
— Ótimo, vamos usá-la.
Detivera-se, porém. O cheiro de gás já tomava conta do salão.
— Não, Ralph — determinara. — Sente o cheiro de gás?
— Sim, tem razão.
Nessa hora, Marissa decidira que não poderia dar-se ao luxo de ficar pensando na
própria desgraça. Tinha de afastar da mente àquele sentimento de culpa que começava a
enlouquecê-la. Havia muita gente ali que dependia dela.
— Shh, meu amor, não chore mais. Venha, quer vir para meu colo?
Tímidos raios de luz começaram a infiltrar-se entre as grades que separavam o
porão da rua. As grades ficavam no alto, quase grudadas no teto. Mas aquela claridade
ajudava um pouco.
Tremendo, sentindo um verdadeiro terremoto dentro de si, Marissa fora examinar
as crianças, uma por uma. Nessa hora, ouvira uma voz rouca:
— Sra. Tremayne!
— Padre Gurney? O senhor está bem? Pode vir me ajudar com os pequenos?
— Desculpe, acho que não. Estou prensado por uma mesa e parece que minha
perna está esmagada. Não posso sair, estou entalado debaixo da mesa. E como ela
pesa!
O padre falara com calma, sem trair a dor que devia estar sentindo. Intimamente,
Marissa felicitara-o pela coragem.
— Tudo bem, deixe comigo, padre. Cuidarei deles sozinha.
— Nós vamos morrer aqui! — falara uma vozinha cheia de medo.
Marissa repreendera o garoto mansamente.
— Tiny! Não diga uma coisa dessas, não deve falar assim. Não vê que assusta os
coleguinhas? Eu lhe garanto, ninguém vai morrer. Vamos todos sair daqui logo, logo.
Involuntariamente, Marissa levara os braços ao ventre. Não poderia morrer agora!
Ia ter aquele bebê, acontecesse o que acontecesse. Era o filho de Ian, a continuação dele
através de si.
— Venha cá, Tiny, fique perto de mim. E todos os outros, venham para perto de
mim! Venham, eu vou lhes contar uma história e...
— Dona Marissa, eu ajudo a senhora — falara Darrin, calmo. — Também sei
contar histórias.
— Ótimo, Darrin. Sempre achei que você era valente. Mas, antes, temos de
verificar quem está ferido.
Um a um, os meninos foram se aproximando timidamente. Marissa examinara-os
com cuidado, separando os que estavam feridos. Um deles, o menorzinho, parecia ter
luxado o pé. Marissa ocupara-se desse em primeiro lugar; limpara o local e improvisara

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ataduras com tiras rasgadas das toalhas de mesa. Mas não fora nada sério; logo depois o
menininho já se esquecera da dor no pé.
Sandy era a que mais lhe inspirava cuidados. Um carrinho de serviço prensara-a
violentamente contra a parede, e agora o sangue jorrava de sua perna aos borbotões,
empapando sua saia. Rilhando os dentes, Marissa rasgara a blusa de Sandy e com as
tiras fizera um torniquete logo acima do ferimento, no meio da coxa. A hemorragia
diminuíra bastante, mas não de todo. Teddy Nichols, ajudante de Ralph, aproximara-se
das duas com uma garrafa de licor. Ambos encorajaram Sandy a beber um pouco.
Fora nessa hora que Marissa ouvira a voz de Ian, do outro lado da parede. Nos
segundos seguintes, simplesmente não pudera responder. Apenas conseguira murmurar
atabalhoadamente preces de agradecimento. Ian estava vivo! Não só isso, como viria tirá-
los dali. Era muito mais do que ela ousara esperar.
Quando terminara a rápida conversa através da porta, virara-se alegremente para
todos.
— Viram só? Dentro de pouco tempo estaremos lá fora, livres e salvos. Ânimo,
pessoal!
Mas, apesar de aliviada, Marissa não estava de todo segura do que dizia. O cheiro
de gás acentuava-se a cada momento. Minutos depois, ela sentiu cheiro de fumaça.

Ian correu para a caixa de equipamentos de emergência e, como esperava,


encontrou tudo em ordem. Abençoando-se intimamente pelo meticuloso cuidado com que
inspecionava cada andar todo mês, apanhou uma machadinha e voltou depressa para a
porta. Bobby seguia-o de perto, ajudando no que podia. A primeira pancada vibrou,
estilhaçando a madeira frágil. A porta cedeu facilmente, mas Ian logo viu que teria mais
trabalho pela frente. Fragmentos de mesas e armários, misturados a uma considerável
quantidade de tijolos e blocos de cimento obstruíam o caminho. Era como se nova parede
tivesse sido erguida atrás da porta. E parecia bem grossa.
Bobby soltou um assobio consternado.
— Minha mãe! Precisamos cavar um túnel nesse troço!
— Espere aqui, Vou tentar buscar auxílio. Volto logo!
Mas ninguém se dispôs a ajudá-lo. Uma curiosa mistura de pânico e desânimo
tomara conta das pessoas. Ian encontrou gente de terno, de camisola, de ceroulas,
vagando com ar ausente, parecendo zumbis. Ninguém parecia se interessar por sua
aflição.
Ouvia ainda gritos e lamentos ecoando pela rua.
Alguém berrava ordens secas, talvez um policial mais ativo, tentando arrebanhar
pessoas para remover os escombros de uma casa totalmente destruída, onde parecia
haver gente ferida. O policial conseguiu juntar alguns poucos voluntários, que atendiam as
ordens mecanicamente. Estavam todos em estado de choque.
Um magote de bombeiros apareceu, gritando e avisando que evacuassem a área.
Ian percebeu, desanimado, que não conseguiria nenhum auxílio; havia outros casos de
soterramento, muito mais desesperadores.
No final do quarteirão, bastante próximo, Ian avistou labaredas que lambiam
vagarosamente uma construção de madeira. Logo aquele incêndio se alastraria e
transformaria a rua num inferno.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Correu os olhos em volta, com uma sensação de impotência e tristeza. Súbito, uma
alegria veio aliviá-lo.
Jet estava de pé. Seu valente e fiel cavalo não sucumbira, como ele havia
pensado; apenas sangrava um pouco logo acima da pata dianteira. Apesar de todo o
ruído. Jet não fugira. O baio de Marissa sumira, mas Jet ficara. Talvez porque a pata lhe
doesse. Ou talvez porque quisesse ficar junto do dono.
— Olá, meu velho! — murmurou Ian, afagando-lhe o pescoço. — Trate de ficar por
aqui, está bem? Acho que vou precisar de você.
Voltou ao porão, onde Bobby o aguardava.
— Não achei ninguém, Bobby. Temos de nos virar sozinhos, ainda não sei como.
Por enquanto, tudo o que interessa é cavar. Vamos lá, companheiro!
Bobby arregalou os olhos.
— Não haverá tempo...
Depois, caindo em si, viu que Ian não tinha outra alternativa. Era preciso tentar.
— Sim, senhor! — falou, com energia. — Vamos cavar com vontade!
— Assim é que se fala. Vá buscar uma picareta; há uma na caixa de emergência. E
traga uma pá também.
Os dois puseram mãos à obra, um incentivando o outro. Após algum tempo, Ian
gritou:
— Estamos chegando, Marissa. Está tudo bem aí?
"Não, meu amor, nada está bem", pensou ela.
Sandy jazia inconsciente, e o padre parecia ter piorado bastante. Quanto às
crianças, Marissa e Darrin haviam contado histórias e organizado brincadeiras, mas elas
continuavam inquietas.
— Estamos nos virando, Ian. Não se preocupe.
Mas o ar viciado pelo gás começava a atacar olhos, nariz e garganta de todo o
mundo. Darrin tossia sem parar, bem como os outros. Ralph queixava-se de falta de ar.
— Estamos quase conseguindo, Marissa! Mantenha a calma!
Marissa mordeu o lábio. Podia ouvi-lo trabalhando incansavelmente, lutando contra
o entulho que os separava. A porta cedera e, pelas frestas livres, Marissa podia ver a
silhueta dos dois homens cavando.
Mas o tempo passava, inclemente, inexorável. E eles não logravam alcançá-los.
Quando os bombeiros gritaram na rua para evacuarem a área, Marissa sentira um
frio na boca do estômago. Nervosamente, tentara abafar os gritos que vinham da rua com
novas canções e histórias.
— Marissa! — chamou Ian. — Cavamos uma espécie de túnel, mas é pequeno.
Vou precisar de ajuda de uma criança, está ouvindo?
Marissa olhou para Darrin. Mas o menino sacudiu a cabeça, os olhos
avermelhados e irritados pelo gás. Seu peito chiava fortemente.
— Não, dona Marissa. Só saio daqui depois que a senhora sair.
— Eu vou — falou um garoto loirinho e esperto, chamado Peter.
— Ótimo, meu pequeno. Você é um menino valente. Me dê sua mão.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ele obedeceu, e Marissa sentiu que a mãozinha tremia um pouco. Ela o conduziu
até o monte de entulhos e avisou:
— Estou com um voluntário aqui, Ian.
— Muito bom. Quem é?
— Peter.
— Ouça então com atenção, Peter. Você deve engatinhar sobre a viga, aquela
grande que está na sua frente, perto do teto. Consegue subir por ela?
O menino estudou a viga, que se achava um pouco acima da cabeça de Marissa.
— Consigo.
— Então comece. Agarre-se com força para não cair.
Ninguém despregou os olhos do garotinho, que começou a galgar os escombros,
escorregando aqui, firmando-se ali. Finalmente ele se pôs de pé sobre a viga e começou
a avançar. A viga não era muito estreita; dava para um adulto caminhar sobre ela com
relativa facilidade. E parecia sólida o suficiente para suportar um bom peso. Contudo,
sempre havia o perigo de um passo em falso e de uma queda.
Quando os braços de Ian apareceram na pequena abertura que fizera, todos
prenderam a respiração. Logo depois Peter era puxado para fora. Um suspiro de alívio
ergueu-se da pequena e ansiosa plateia.
— Bravo, meu filho! — gritou padre Gurney, com voz rouca.
O coração de Marissa se apertou. Como o padre sairia dali?
E Sandy, que continuava inconsciente?
— Billy! Billy Martin, agora é sua vez! — falou ela, com voz animada.
Billy se adiantou, tremendo um pouco. Marissa ajudou-o a galgar o entulho,
improvisando degraus com cacos de tijolos. Depois foi outro, e mais outro. À medida que
o tempo passava, as crianças foram ganhando coragem.
Enquanto o último deles, exceto Darrin, que se obstinara em ficar com os adultos,
começava a subir, Marissa aproximou-se de Ralph e Teddy.
— Temos de libertar o padre — disse, em voz baixa. — Talvez os meninos ajudem
Ian a alargar o túnel, mas isso de nada adiantará, se padre Gurney continuar preso sob a
mesa. Acham que conseguem tirá-lo de lá? O padre está fraco demais.
Os dois se entreolharam. Ian começou a gritar do outro lado, perguntando o que
estava acontecendo, pois todos os garotos haviam passado. Faltavam os adultos. Marissa
foi colocar-se numa posição onde o marido pudesse vê-la e ouvi-la melhor. Tentaria
explicar a situação sem causar mais alarme.
— Temos de demorar um pouco mais por causa de padre Gurney, Ian. Não se
preocupe, Darrin está comigo. Eu fico para ajudar Ralph e Teddy.
Ian curvou os ombros. Queria que Marissa fosse a próxima. Mas sabia que não
poderia exigir isso dela. Ele olhou para a turminha que acabara de salvar.
— Então, vocês estão sãos e salvos aqui, mas têm de ajudar os que ficaram.
Escolham paus grandes e comecem a ajudar. Você, Peter, pegue aquela pá e trate de
cavar com vontade, meu rapaz!
— Sim, senhor, eu sou bom nisso. Meu pai era pedreiro.
Marissa foi ter com padre Gurney. Ralph e Teddy suavam e bufavam, tentando
erguer a enorme mesa de carvalho maciço que prensara o padre e ainda o prendia contra

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
a parede. Num relance, ela compreendeu o dilema dos dois leais cozinheiros. Se
fizessem um único movimento em falso, a mesa esmagaria o tórax do padre.
— Dona Marissa, a senhora pode ir para baixo da mesa?
— Posso, Teddy. Onde?
— Perto do padre. Quando nós gritarmos, a senhora empurra a mesa para cima
com toda a força que tiver, para nos ajudar a erguê-la. Depois, enquanto a mesa estiver
erguida, a senhora puxa o padre. Tem de ser rápido, senão não aguentamos o peso da
mesa.
Darrin aproximou-se coxeando levemente devido a um pequeno ferimento.
— Eu vou ajudar a puxar o padre. Seguro num ombro dele, a senhora segura no
outro. A gente consegue puxar ele daí.
— Não, Darrin, é perigoso. Você pode ficar entalado também.
O garotinho olhou para o padre.
— O padre cuida de mim. Faz tempo que eu estou acostumado com ele. Acho que
se ele morrer eu não vou ter mais com quem brincar. Por favor, dona Marissa!
Ela olhou para o velho, cujo rosto estava exangue. Os dedos magros seguravam a
cruz do rosário. O padre abriu os olhos aguados e fitou o menino com ternura. Depois
falou:
— Darrin, você tem toda uma vida pela frente. Não diga bobagens, vai haver muita
gente para brincar com você. Agora, vocês dois podem me ajudar, mas com muito
cuidado, que não quero brigas com o criador lá em cima. E, se acontecer alguma coisa
com vocês, eu armo a maior briga com Ele. Bem, mas por que estou preocupado? Ele
gosta de mim, e eu gosto Dele. Se for para eu partir hoje para o Céu, talvez seja o melhor.
Mas vocês ficam aqui, estão me ouvindo? Dispenso acompanhantes.
— Ih, mas quanta bobagem! — exclamou Marissa, forçando-se a rir. — Vamos tirá-
lo daí, padre Gurney. E com facilidade.
Darrin aferrou-se ao ombro direito do padre, fungando concentradamente. Marissa
ocupou-se do outro ombro com uma mão. Espalmou a outra contra a enorme mesa e
esperou.
— Agora! — gritou Ralph.
Marissa empurrou com força a mesa, que se ergueu com um rangido.
Rapidamente largou-a, enquanto os dois cozinheiros bufavam com o esforço de mantê-la
no ar.
— Puxe, Darrin, puxe com força! — gritou ela, forçando a mão sob a axila do
padre.
As pernas do velho foram libertadas uma fração de segundo antes que a mesa
desabasse de novo com estrondo.
Do outro lado da parede, os meninos soltaram vivas agudos em honra de padre
Gurney. Mas quando Ralph tentou ajudá-lo a se pôr de pé, o padre dobrou-se com um
gemido dolorido.
— Não adianta, Marissa. Minha pobre perna está quebrada.
— Então não tente mais, padre. Teddy, traga um pouco daquela bebida para ele.
Enquanto isso, vou ver como está Sandy.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Sandy achava-se ainda inconsciente, deitada sobre uma toalha que Marissa
estendera no chão. Nervosa, Marissa auscultou-a. A moça respirava com dificuldade, e
seu pulso estava bastante acelerado.
— Coragem, amiga — falou Marissa ao ouvido de Sandy. — Vamos tirá-la daqui
logo.
Não sabia se Sandy podia ouvi-la, mas isso a fez sentir-se melhor.
— Dona Marissa, chegou a hora de irmos nós também. Que devemos fazer? O
padre e a moça não conseguem subir até lá. E, mesmo que conseguissem, não podem
andar. Nem se arrastar pelo túnel, que está ainda muito estreito. Qual é sua ideia?
— Não sei, Teddy, preciso pensar — respondeu, correndo os olhos ao redor.
Com a ajuda dos garotos, o túnel se alargava rapidamente. Daria para ela, Ralph e
Teddy passarem facilmente. Mas e o padre? E Sandy? Como chegariam lá em cima?
Como se arrastariam pelo túnel?
De repente, teve uma ideia.
— Vamos enrolar Sandy numa toalha, daquelas grandes ali. Fazemos um pacote
bem firme com ela, como se fosse uma... um presunto, acho. Depois você e Ralph põem
o pacote sobre o tampo de uma mesa, a mais estreita que tiver aqui, como se fosse uma
maca, entendem? É preciso prendê-la bem firme na mesa. Vocês levam essa maca
improvisada no ombro. Agora é que vem a parte difícil, mas eu confio em vocês dois. É
preciso que caminhem pela viga com a carga nos ombros. Será que conseguem?
Ralph coçou a cabeça, meio descrente.
— Não sei, não... É perigoso demais. E se derrubarmos o pacote... quer dizer, a
moça?
— Não vão derrubar, que Deus é grande. Tenham fé, por favor! Não há outro meio
possível, por causa do pouco tempo que temos!
— Tudo bem, digamos que dê certo. E depois?
— Vocês empurram Sandy pelo túnel, com maca e tudo, para Ian conseguir puxá-
la para fora.
— O túnel ainda está muito estreito. O tampo da mesa é largo, dona Marissa.
— Então vamos esperar até que fique largo o suficiente.
Correu para a abertura do túnel, onde divisou a silhueta de Ian recortada contra a
claridade do dia. Que horas seriam? O terremoto durara apenas alguns segundos, mas
parecia-lhe que estava presa naquele salão havia anos. Sentia-se cansada, com sede;
sua garganta ressequida dava-lhe a impressão de estar cheia de areia quente. A fumaça
se adensava perigosamente por toda a sala.
— Ian!
— Estou aqui, Marissa. Pode vir agora?
— Não, ainda não. Temos de improvisar alguma coisa para tirar o padre e Sandy
daqui, mas precisamos que esse túnel fique um pouco mais largo. Será que dá?
Houve um silêncio pesado e longo. Longo demais. A aflição de Marissa aumentou.
Não queria morrer agora. Passou a mão no ventre, com ternura. Aquela vida que
se formava dentro dela não seria abortada daquele modo. Nunca!
O bebê era parte dela, parte de Ian. Seria um garoto, tinha quase certeza. De
cabelos pretos e rebeldes, olhos azuis. E sorriso preguiçoso. As coleguinhas de escola
ficariam doidas por ele...
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Está bem, Marissa, vamos cavar mais — falou Ian, sem muito ânimo.
Ela o viu virar-se para falar com os garotos que o rodeavam, tagarelando.
— Ei, seus diabinhos, parem com essa algazarra. Escutem, vocês não precisam
mais ficar por aqui. Billy, encarregue-se de seus colegas e leve-os para a delegacia mais
próxima; qualquer pessoa pode indicar onde é. Procure um policial e explique o que se
passou. Fiquem sempre juntos e não se separem para nada. Vamos, sumam daqui!
— Sim, senhor — falou Billy, com ar importante.
Num segundo, Marissa viu os meninos se afastarem comportados em fila indiana.
— A senhora pode ir embora também, dona Marissa — falou Darrin. — Eu fico
para ajudar Ralph e Teddy.
— Não, Darrin, não posso. Quero ver todos fora daqui.
Marissa voltou para onde Sandy se achava.
— Ralph, ajude-me a enrolar Sandy. Aquela toalha mais grossa me parece boa
para o que pretendemos. Vamos levá-la para o hospital desse jeito mesmo, e todo
cuidado é pouco. Ela tem de ficar muito bem amarrada.
Os dois ergueram Sandy sem dificuldade. Marissa estendeu a toalha sobre a mesa
e ordenou-lhes que depositassem ali o corpo da vítima. Com mãos ágeis e destras,
enrolou-a na toalha. Depois rasgou outra toalha menor em tiras, prendendo firmemente o
estranho "pacote" ao tampo da mesa. Este já tinha sido desatarraxado dos pés e achava-
se solto, pronto para servir de maca.
— Dona Marissa?
— Sim?
— Como é que a senhora sabe tanta coisa?
— Já conheço esse tipo de problema, Ralph. Há uma mina de carvão na minha
cidade, onde eu tive de ajudar muitas vezes quando ocorriam soterramentos.
Logo a maca improvisada foi colocada com todo o cuidado sobre os ombros de
Ralph e Teddy, que começaram a subir cautelosamente, parando a cada momento para
estudar onde firmariam o pé. Marissa dava instruções sobre qual a melhor direção que
deviam tomar. A certa altura, a maca oscilou um pouco, mas os dois conseguiram
endireitá-la a tempo. Finalmente, conseguiram chegar à boca do túnel.
— A largura é suficiente? — perguntou Ian.
— Sim, acho que sim. Lá vamos nós, sr. Tremayne.
Os dois homens deitaram-se de bruços e começaram a empurrar a maca. Vez ou
outra encontravam um obstáculo e eram obrigados a parar para removê-lo. Marissa
observava, prendendo a respiração a cada movimento mais vigoroso.
De repente Ian gritou:
— Consegui pegá-la! Agora deixem conosco! Corram para buscar o padre,
depressa!
Foi nesse momento que os sprinklers, ativados pela densa fumaça entraram em
funcionamento. A água começou a jorrar numa chuva compacta.
Apanhada de surpresa, Marissa deixou escapar um grito.
— Marissa! — gritou Ian.
— Está... está tudo bem, Ian! Foi mais o susto!
A água deu-lhe um alívio momentâneo. Mas Marissa sabia que tinha pouco tempo.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Depressa, vamos cuidar do padre!
Ela, Ralph, Teddy e Darrin puseram-se a trabalhar febrilmente, enrolando e atando
o padre ao tampo da segunda mesa, exatamente como haviam feito com Sandy. Os
dedos molhados e nervosos escorregavam pela batina surrada do padre Gurney, que a
essa altura estava ensopado até os ossos.
Finalmente, começaram a arrastá-lo para o túnel. O padre gemeu fracamente.
— Parem! — gritou Marissa. — Ele está sentindo muita dor. Tenho de improvisar
uma tala primeiro.
— Não, não há tempo! — gritou o padre em meio ao guincho estridente dos
sprinklers. — Podem me levar assim mesmo, ou eu amaldiçoo os três agora! Que o
demônio me leve, perdão. Senhor, se vocês pararem! Diabos! Perdão, Senhor, de novo!
A despeito da gravidade da situação, Darrin soltou uma risada.
— Ora, quem diria! Padre Gurney blasfemando?!
Os dois repetiram a manobra, empurrando o padre vagarosamente pelo túnel.
— Já consegui, Marissa! — gritou Ian, com a voz beirando o desespero. — Ralph e
Teddy já vêm vindo atrás. É a vez de vocês!
— Dona Marissa, a senhora primeiro — falou Darrin.
— Não, Darrin, não insista. Eu vou atrás.
Darrin não se atreveu a discutir. Num instante escalou a viga e desapareceu no
túnel.
— Pode vir, dona Marissa!
— Estou indo, Darrin!
Mas ela não conseguiu subir. Novo tremor de terra abalou os alicerces do prédio,
fazendo-a perder o equilíbrio e cair no chão.
Ouviu-se um estalido seco de madeira partida, e um pedaço da viga começou a
desabar, diretamente sobre ela.
— Marissa!
Ao ver a grande tora caindo, Marissa rolou para o lado. Mas não conseguiu ser
suficientemente rápida; a ponta angulosa da tora bateu na base de seu crânio. Uma dor
lancinante percorreu-a de alto a baixo.
— Marissa!
Alguém a chamava de muito, muito longe. Devia ser Ian! Queria responder, mas
não podia. Fechou os olhos, lutando para não desmaiar, para não sucumbir ao abismo
negro que se abria diante dela.
— Marissa!
Braços fortes envolveram-na. Ela abriu os olhos, tentando entender, Ian havia
transposto o túnel para vir buscá-la! Quis sorrir, tocar o rosto querido mais uma vez, dizer-
lhe que o amava.
Mas nada pôde dizer.
Fora, as chamas erguiam-se por entre os escombros, iluminando o horizonte,
tingindo-o de aterrorizante esplendor vermelho. Mas, para ela, o mundo estava envolto na
mais negra escuridão.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere

CAPÍTULO XVIII

Ian não perdeu tempo em verificar as condições físicas de Marissa; apesar de


preocupado, não se atrevia a demorar mais.
Seu avô fizera da loja uma sólida fortaleza, mas nem uma de aço blindado poderia
resistir a explosões de gás. E uma explosão, sabia, estava a caminho.
Não havia tempo para cuidados e desvelos; a única coisa a fazer era carregar o
precioso fardo pelo túnel o mais depressa possível. Foi o que fez, arrastando-se penosa e
lentamente. Seu ombro ferido latejava e seus pulmões clamavam por ar puro. Quando
chegou na boca do túnel, teve uma surpresa agradável: Bobby alargara-o um pouco mais,
de forma a facilitar a passagem dos dois. Mesmo assim, foi um trabalho árduo, pois
Marissa estava inconsciente, e seu corpo mole dificultava o transporte. Quando finalmente
Darrin e Bobby puxaram Marissa para fora, Ian mal se permitiu descansar alguns
instantes. Ralph e Teddy esperavam-no com um copo de água fresca, a única coisa que
haviam conseguido encontrar para aliviá-lo um pouco.
Sentindo-se revigorado, Ian tomou Marissa nos braços e pediu aos outros que
cuidassem de Sandy e do padre, ao mesmo tempo em que se apressava a sair dali.
O dia parecia noite, tal a quantidade de fumaça que encobria a cidade.
Marissa suspirou e entreabriu os olhos, sorrindo fracamente para o marido. Logo
em seguida suas pálpebras fecharam-se de novo e ela deslizou de volta para a semi-
inconsciência. Ian tomou-lhe o pulso e encontrou-o firme. Inclinou a cabeça para sentir
sua respiração e achou-a fraca, mas regular.
— Sr. Tremayne! — chamou Ralph, que vinha com o padre nos braços.
— Diga, Ralph.
— Como está dona Marissa?
— Vai sobreviver, obrigado.
Darrin aproximou-se, ansioso. Seus coleguinhas já tinham saído dali havia muito,
mas ele ficara. E Ian sabia que nada no mundo o convenceria a deixar sua querida dona
Marissa.
— Como vamos fazer agora, "seu" Ian? — perguntou o garoto, timidamente. — Eu
posso ajudar a carregar dona Marissa, se quiser.
— Não é preciso, Darrin, obrigado. Ela é leve.
Muito leve, na verdade. Subitamente, Ian viu-se pensando que Marissa jamais fora
uma carga pesada em sua vida.
Mas agora não era hora de pensar nisso, e sim de tirá-la dali o quanto antes. Olhou
em torno, tentando coordenar os pensamentos. A rua estava cheia de gente que se
atropelava e se acotovelava, fugindo do fogo, que se encorpava e avançava lentamente.
Pessoas vestidas sucediam-se a outras semidespidas; algumas carregavam pertences,
para logo adiante desistir e largá-los no meio do caminho. Ouviam-se palavrões, choros e
lamentos.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Sr. Tremayne! — gritou alguém.
Ian virou-se, esperançoso. Era um dos auxiliares de Dennis Sullivan, dentro de um
carro da brigada de bombeiros.
— Matthew! — exclamou, com alívio. — Por aqui, depressa!
O veículo, puxado por quatro cavalos, estacionou a seu lado.
— Sr. Tremayne, estávamos a sua procura. Precisamos do senhor, com urgência,
para verificar um telhado que desabou em cima de uma porção de gente. Não sabemos
como fazer para erguer a estrutura sem causar maiores danos ao pessoal que ficou
soterrado. São mais de vinte pessoas, e soubemos que também há algumas crianças.
O homem hesitou, quando percebeu quem Ian carregava.
— Será que o senhor pode vir ajudar?
— Minha mulher precisa ser socorrida logo, Matthew — falou Ian, angustiado.
Olhou para Marissa, que pendia inerte em seu colo, o rosto pálido e desfeito. Suas
roupas estavam irreconhecíveis, cobertas de sangue e fuligem. Apesar da palidez e das
manchas de sujeira no rosto e no pescoço, Marissa pareceu-lhe mais bela e vulnerável
como nunca.
— Nós a levaremos ao hospital e cuidaremos que ela seja muito bem tratada. Tem
minha palavra!
— Não quero deixá-la agora.
Darrin puxou-o pela manga.
— Vá, "seu" Ian. Eu fico com ela. O tempo todo. Eu cuido dela, prometo.
Bobby aproximou-se e disse, em voz baixa:
— Creio que o senhor deve ir. Eu o acompanho se quiser.
Ian ainda hesitava. Era uma injustiça! Tinha ido até o inferno em busca de Marissa,
e agora teria de abandoná-la.
Mas Marissa seria bem cuidada, sabia disso. E havia muitas pessoas dependendo
de alguém que entendesse de engenharia; pessoas que, se não fossem libertadas logo,
fatalmente sucumbiriam ao fogo, ao gás, à falta de ar. Não podia se furtar a ajudá-las;
seria um preço demasiado alto para suportar no futuro.
— Está bem, Matthew, eu vou.
— Ótimo! Ponha sua mulher no carro, junto com os outros feridos.
— É preciso levar o padre também. E minha auxiliar de escritório, Sandy.
Darrin pulou para o carro e Ian seguiu-o, acomodando Marissa o melhor que podia
entre os outros feridos. Com carinho, colocou a cabeça dela no colo de Darrin, e
relanceou os olhos em torno. Havia muitos feridos, alguns gemendo, outros rezando. O
cheiro acre de sangue e vômito era nauseante.
Depois de ajudar o embarque de Sandy e do padre, Ian perguntou:
— Onde está o brigadeiro Sullivan? Quais são os planos dele para combater o
fogo?
— Dos planos ainda não sei, desculpe. Quanto ao chefe, está no hospital. Feriu-se
ao tentar salvar a mulher, foi o que me disseram. Eu... Estão dizendo que ele não vai
aguentar, sr. Tremayne. A coisa foi feia.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Ian sentiu-se mal. Dennis Sullivan era o único homem capaz de combater o fogo
com eficiência, porque conhecia muito bem os pontos fracos e fortes da cidade. Para ele,
San Francisco era uma espécie de filha querida. O valente e honesto Sullivan.
— Precisamos ir, sr. Tremayne — disse Matthew, com indisfarçado nervosismo. —
O fogo está crescendo!
Ian recuou um pouco e acenou para Darrin, que o olhava pela janela.
— Cuide bem da turma, Matthew — gritou, enquanto o carro se afastava.
Ian acompanhou-o com os olhos. Medo e tristeza oprimiam seu peito.
Talvez nunca mais visse Marissa. Teria de enfrentar o inimigo que mais temia
agora: o fogo.
Precisava tornar a vê-la, por Deus! Os dois haviam conseguido sobreviver até
agora; não seria justo se separarem desse modo brusco.
Marissa jamais o entendera. Tentara dizer-lhe milhões de vezes, inutilmente, que
não ligava a mínima para sua origem humilde. Pouco lhe importava que ela fosse
empregada, carvoeira ou lixeira. Pouco lhe importava se ela fosse filha de reis, mendigos,
santos ou demônios. Apaixonara-se por ela, e não houve distância ou tempo capaz de
mudar seus sentimentos. Zangara-se com Marissa porque ela mentira. Mesmo quando a
tivera entre os braços, mesmo quando compartilhavam juntos os sonhos para o futuro,
Marissa não confiara nele.
E nunca lhe dissera que o amava, a não ser quando precisara desesperadamente
de sua ajuda. Isso o deixara mais aborrecido ainda, porque parecera-lhe que ela mentia
mais uma vez, a fim de obter dele o que necessitava. Ian teria ido até o inferno para
buscar Theo, fosse qual fosse o sentimento que ela nutrisse pelo marido, amor ou ódio.
Mas Marissa não o compreendera.
E hoje, pela manhãzinha, Marissa repetira que o amava.
E depois fugira dele.
Fugira dele...
Para cair na boca do inferno. Direto para o fogo.
— Vamos, sr. Tremayne — disse Bobby, tocando-lhe o ombro. — Estou pronto
para acompanhá-lo.
— Não, Bobby — respondeu Ian, olhando-o com gratidão.
Bobby era jovem e tinha uma família para cuidar. Ian encontraria no local muito
gente como ele, disposta a ajudá-lo na difícil tarefa que tinha pela frente. Não havia
necessidade de colocar em risco mais uma vida; bastava a sua.
— Vê aquele cavalo preto ali adiante, Bobby? É meu favorito, e asseguro-lhe que
não há outro mais valente que ele em toda a cidade. Monte nele e siga o carro de
bombeiros. Verifique que minha mulher e os outros sejam muito bem cuidados. Faça o
que puder, e não poupe despesas. Espere-me no hospital.
— Mas...
— Nada de mas, Bobby. Vá depressa, para eu poder ir sossegado aonde precisam
de mim.
Bobby perfilou-se obedientemente e correu para Jet.
Ian embrenhou-se no contrafluxo da multidão, andando o mais depressa que podia.
Pessoas esbarravam nele, gritavam, choravam. Gente humilde, rica, remediada, todos
corriam como baratas tontas, tratando de escapar a qualquer custo. Havia os que se

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aferravam aos trastes que haviam conseguido arrebanhar, havia os que vagavam de
mãos vazias. Alguns exibiam feridas negras, outros tinham ataduras sanguinolentas. E
outros levavam a morte no olhar. Por toda parte, a tristeza, a desolação.
Mais adiante, avistou o telhado desabado, em volta do qual uma meia dúzia de
policiais e civis trabalhavam. Um guarda reconheceu Ian e pediu aos outros que lhe
dessem passagem. Tremayne examinou o estrago e começou a dar ordens curtas.
Estudou as possibilidades que o velho guindaste, trazido às pressas, oferecia e explicou
aos homens por onde eles deviam começar a elevar a estrutura. Todos puseram
imediatamente mãos à obra, animados com a eficiência e serenidade do recém-chegado.
Surpreso, Ian notou que por detrás das labaredas, na linha do horizonte, o sol já se
punha. O dia se passara sem que ele percebesse. Ainda não tocara em alimento nenhum.
O fogo caminhava em sua direção, terrível em sua fúria destruidora. E na frente,
vinham filas intermináveis de gente, numa torrente impossível de deter.
Alguém comentou que San Francisco estava agora sob o poder militar. Funston
havia tomado posse à tarde.
Ian ouviu notícias de arrepiar os cabelos. Ladrões que amputavam dedos de
mortos para roubar anéis, motoristas que cobravam verdadeiras fortunas para transportar
as pessoas. Padeiros que exigiam joias em troca de pão.
Funston mandara afixar avisos de alerta, informando que os saqueadores seriam
punidos exemplarmente, mas isso adiantara muito pouco. Os saques e roubos
continuavam, em meio à confusão.
E o fogo avançava.
Pouco antes de cair a noite, o telhado foi retirado com êxito sob os aplausos
daquele punhado de bravos que ficara trabalhando, alheios ao perigo que corriam. Os
trabalhos de salvamento tiveram início logo depois; conseguiram tirar, com vida, três
mulheres, seis crianças e sete homens. Três homens pereceram soterrados, e uma
mulher morreu, abatida por uma trave. Aparentemente, os quatro haviam morrido
instantaneamente, sem sofrimentos, o que fez Ian respirar conformado. Durante os
trabalhos de salvamento, ele ouvira histórias sinistras sobre outros casos de
soterramento, cujos desenlaces foram os mais infelizes. Os relatos dos que conseguiram
escapar eram aterrorizantes.
Ian permaneceu no local até todos os feridos serem transportados ao hospital. A
noite veio, trazendo no bojo o fogo, feroz e irreprimível.
Estava fora de controle, Ian sabia. Não era preciso ser entendido para perceber: A
cidade toda estava em risco.

Ela estivera nos braços dele, tinha certeza. Ian carregara, fizera-lhe carinhos.
Marissa vira seus olhos azuis mudarem de cor, tornarem-se quase cinzentos, cheios de
angústia e preocupação. Ela se lembrava! Lembrava-se de que sentira uma sensação boa
de conforto e bem-estar...
Mas agora não o via mais.
Tudo a sua volta era branco, muito branco. Marissa piscou várias vezes, forçando-
se a focalizar melhor a vista. Viu Darrin sentado a seu lado.
— Dona Marissa! Que bom que acordou! O médico disse que está tudo bem, ele
me prometeu que a senhora iria ficar boa, mas eu não acreditei, eu estava com tanto
medo! Bem, quero dizer, não é medo de verdade, daqueles de maricas...

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— Eu sei, Darrin — falou ela, sorrindo com dificuldade. Tentou se erguer, e uma
dor aguda atravessou-lhe a cabeça.
Fechou os olhos, respirando com força. A dor melhorou, e ela fez nova tentativa,
dessa vez com êxito.
— Não pode se sentar, dona Marissa.
— Pare com isso, Darrin! Estou inteira, não vê? Tenho um galo na cabeça e um
pouco de enxaqueca, mas é só. O médico tinha toda a razão, eu estou ótima. Vaso ruim
não quebra, sabia?
O garoto não entendeu a analogia.
— Pois a senhora nos passou um susto daqueles. Ficou desmaiada um tempão.
— E agora estou acordada, não é ótimo? — disse ela, lutando contra a dor de
cabeça. — Como está o padre Gurney? E Sandy?
— Fizeram um curativo duro na perna do padre e mandaram ele para casa. A
Sandy não está lá essas coisas, eles disseram que ela perdeu um monte de sangue. Mas
costuraram ela toda e disseram que era pra mim rezar.
Marissa sorriu, divertida com a descrição.
— Para eu rezar, Darrin. Mim não faz nada, quantas vezes já ensinei?
— É, para eu rezar. Eu vou chamar o médico agora. Ele disse para eu chamar
assim que a senhora acordasse.
— Espere! O que... o que aconteceu com Ian?
— Mandaram chamar ele, parece que havia um problema de telhado caído, não
entendi direito. "Seu" Ian ficou lá.
Marissa deixou escapar um grito.
— Não! Meu Deus, por favor, não!
— Eu acho que não tem perigo, dona Marissa. Ele é forte, sabe se cuidar.
— Como foi? Conte para mim, Darrin!
— Um bombeiro falou que precisava dele, porque só ele entendia do assunto.
"Seu" Ian teve de ir, mas antes eu prometi que ficaria com a senhora o tempo todo.
Marissa baixou a cabeça. Ian a salvara, mas depois a deixara. Certamente sonhara
com aquele olhar triste e preocupado. Ian viera salvá-la porque era um cavalheiro. Não
porque a amasse.
Darrin retornou logo, mas não com o médico. Atrás dele entrou uma freira
enfermeira, simpática e sorridente, em seu severo hábito negro.
— Olá, sra. Tremayne, bem-vinda de volta ao mundo! O doutor disse que tudo
correrá bem com a senhora, desde que coopere conosco e mantenha a calma. Só que...
que não vai ser tão fácil como ele pensou. Infelizmente, soubemos agora que temos de
evacuar o hospital.
— O quê?! — Marissa ficou alarmada.
— O incêndio vem vindo para cá.
— Mas estamos tão longe do local onde ele começou!
— É, mas os bombeiros não conseguiram debelar o fogo. Estamos sob lei marcial
agora, e os policiais vieram nos avisar que deixássemos o hospital.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Tem alguma notícia de meu marido, irmã? — perguntou Marissa, descendo da
cama e pondo-se à cata da roupa.
— Espere! Aonde vai agora?
— Vou procurar meu marido.
— Procurar onde, e como? Ele está trabalhando duro, salvando os que ficaram
soterrados. É um homem valente, seu marido. A senhora deve ter muito orgulho dele,
não? Mas fique tranquila, que ele encontrará a senhora.
— Não, eu vou procurá-lo, irmã.
— Não vê que é impossível? Nem sabe de que lado da cidade ele está, e ainda por
cima há gente saqueando e roubando nas ruas! Tem havido tiroteios, a cidade está um
caos, sra. Tremayne. Nem as crianças estão sendo poupadas, o mundo todo está de
pernas para o ar! A senhora é uma mulher, está fraca ainda. Ouça as palavras de alguém
mais experiente e fique conosco, por favor!
— Mas a senhora acabou de me dizer que o hospital vai ser evacuado...
— Sim, mas os doentes não serão abandonados, ora essa! Estamos indo para o
parque, que é grande. A mudança está sendo providenciada, sossegue. Seu marido nos
achará lá. Por favor, volte para a cama e espere eu vir chamá-la.
— Não, irmã. Para a cama eu não volto. Concordo que é perigoso ir procurar meu
marido, ficarei com vocês, mas não estou doente. Quero ajudar. E meu amiguinho aqui
também, não é, Darrin?
— Claro, dona Marissa! — respondeu ele, com o rostinho iluminado de prazer.
— Mas... — começou a freira.
— Tenho certeza de que vou ser útil, irmã. Tenho algum conhecimento de
enfermagem.
A irmã refletiu um pouco e sorriu.
— Pois acho ótima a sua ideia! Venha, já que deseja ser útil. Vamos começar pelos
feridos que não podem andar e precisam ser transportados ao parque. Esses são os que
mais precisam de ajuda.

Ian não se lembrava de ter tido um dia tão longo quanto aquele. Depois de ter
libertado o grupo soterrado, teve de atender mais três casos de edifícios desabados. Mais
tarde, foi solicitado para resolver problemas de deslizamento perto da baía e chamaram-
no também para verificar uma estrada bloqueada. De vez em quando, Ian ia se pondo a
par do que ocorria nos outros lugares. As notícias chegavam-lhe através de estafetas,
conhecidos e gente que encontrava nas ruas.
No centro da cidade, o prefeito Schmitz convocava reuniões sobre reuniões,
chamando as pessoas mais importantes para decidir sobre como e o que fazer. O povo
começava a murmurar que Freddie Funston não tinha o direito de colocar a cidade sob lei
marcial.
Para aumentar a confusão, surgiram justiceiros que matavam saqueadores e
ladrões por conta própria, sem esperar pela justiça. Linchamentos sucediam-se de
maneira alarmante. Muitos cadáveres foram encontrados com cartazes onde se lia: "Morte
aos Saqueadores! Abaixo os Ladrões!".
Ouviam-se histórias tenebrosas sobre atos de covardia e baixeza praticados por
todo o tipo de pessoas, dos mais humildes aos mais ricos.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Mas havia também os que trabalhavam incansavelmente, os heróis anônimos, que
tentavam atenuar a desgraça alheia.
Ian, anestesiado de exaustão, continuava a trabalhar. De picareta no ombro, e com
o auxílio de Bobby, que viera ter com ele a bordo de um carro de bombeiros, ia de um
ponto a outro da cidade, aonde quer que o chamassem. Bobby, depois de ter deixado
Marissa entregue aos cuidados do hospital, dirigira-se a Nob Hill, onde se avistara com
todo o pessoal: Theo, John, Lee, Jimmy e Mary. Todos estavam bem; a casa resistira ao
terremoto. Nenhum animal sofrera ferimentos sérios.
Darrin estava com Marissa. Ian recebera um recado de um certo dr. Spencer,
dizendo que ela estava bem. Aparentemente sofrera apenas uma contusão na base do
crânio, sem maiores consequências.
Finalmente, Bobby capitulou, extenuado, Ian ordenou-lhe que fosse para casa
descansar. E continuou em sua luta solitária.
Seu pensamento voltava-se incessantemente para Marissa. Queria vê-la, tocá-la,
senti-la em seus braços. Mas tinha deveres a cumprir.
No segundo dia, o fogo não havia sido debelado ainda. A Marinha fora convocada,
e agora as ruas estavam coalhadas de marinheiros misturados a policiais e militares.
Ian achava-se no departamento da brigada de bombeiros e preparava-se para,
pela primeira vez, tirar umas horas de sono, quando alguém lhe disse que o fogo se
aproximava do hospital. Sem pensar duas vezes, correu para a rua, rumo ao hospital.
Deus o ajudasse agora! Precisava ver Marissa de qualquer maneira, precisava encontrá-
la. Se o hospital pegasse fogo, seria o fim de seus sonhos.
Tinha medo de perdê-la para sempre.
Bom Deus, daria tudo por um cavalo agora. Por que pedira a Bobby que levasse
Jet? Ian corria, lutando contra o mau pressentimento que o dominava. Achava que não
chegaria em tempo.
Quando avistou o hospital, a última ambulância saía pelos fundos, carregada de
feridos. Levadas pelo vento, chamas brilhantes já alcançavam o telhado do hospital,
enegrecendo-o.
Ian correu de encontro a um homem que acabava de sair pela mesma porta de
onde partira a ambulância.
— Por favor, pode me informar para onde os pacientes foram levados?
O homem parou, com os olhos esgazeados e fixos no infinito. Parecia tão
extenuado quanto Ian.
— Foram-se todos. Todos...
— Eu sei, eu sei, mas, pelo amor de Deus, para onde?
— Parque Golden Gate. Todos do hospital foram para lá... Há uma porção de
barracas para hospedar os que perderam a casa e não têm onde ficar. Eu trabalhei no
parque o tempo todo... Não aguento mais. Que miséria, meu Deus...
Finalmente, o homem pareceu despertar um pouco. Olhou para Ian com
comiseração e pena.
— Puxa, o senhor está pior que eu. Está procurando alguém do hospital, não é?
Espero que dê sorte.
— Obrigado, amigo.
Exausto, Ian obrigou-se novamente a correr. Queria ver Marissa.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere

O hospital achava-se praticamente vazio quando Marissa encontrou o dr. Spencer


num dos corredores.
— Olá, sra. Tremayne. Ouvi falar que a senhora andou ajudando um bocado as
irmãs. Venha até aqui, perto da lâmpada. Quero examinar seus olhos.
Marissa obedeceu e deixou-o examinar-lhe os olhos e a garganta.
— Bem, está nova para outra, ao que parece. Sente alguma coisa? Tontura,
enjoo?
— Não, nada.
Ele suspirou, tirando os óculos.
— Ainda bem, porque eu pouco poderia fazer pela senhora. Estamos quase sem
medicamentos. Muitos ossos quebrados, muitas queimaduras, feridos em excesso. De
qualquer modo, aconselho-a a manter um ritmo mais lento nos próximos dias.
— Eu... eu estou bem, doutor. E espero que o senhor me dê mais serviço.
Ele fitou-a com admiração.
— Muito bem, então. Há uma senhora de tornozelo quebrado na ala de baixo. Uma
dondoca da sociedade, ao que parece, e não disponho de nenhum auxiliar para cuidar
dela. O tornozelo já foi entalado. A madame terá de manquitolar pelo resto da vida, creio.
Enfim, preciso que ela seja posta na ambulância o mais depressa possível. Não temos
mais muletas, nem ninguém para improvisar uma agora. Pode descer e ir ajudá-la?
— Claro, deixe comigo.
— Então, boa sorte. Primeira porta à esquerda.
Marissa fez uma careta brincalhona para Darrin, que se tornara sua sombra e
esperava a distância.
— Vamos, meu ajudante. Temos serviço!
Os dois desceram, em busca da paciente.
A mulher estava recostada na cama, inteiramente vestida, a saia erguida e presa
com alfinetes para facilitar o trabalho de entalamento.
Quando Marissa entrou, ambas ficaram petrificadas, olhando-se.
— Você! — sibilou Grace Leroux.
Alguém no corredor soltou um grito de terror.
— Fogo! Meu Deus, começou a pegar fogo lá em cima, no telhado!
— Depressa! Daqui a pouco ele chega aqui!
O barulho de passos apressados chegou até elas. Marissa viu o medo instalar-se
nos olhos da outra e se aproximou com serenidade, com Darrin grudado em sua saia.
— Temos de tirá-la daqui, Grace. Venha.
Mas, para seu espanto, Grace começou a rir. Um riso histérico.
— Você cuidando de mim? Não acredito! Não sabe que este maldito hospital pode
virar cinza dentro de minutos?
— Sei. Por isso mesmo temos de correr.
— Oh, que belo anjinho você me saiu! Ha, ha!
— Grace, vamos — falou Marissa com firmeza.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
De repente a mulher se aquietou.
— Então você vai mesmo me ajudar? Depois de... de tudo?
— Tudo o quê? Você apenas espalhou boatos a meu respeito. Boatos que não me
atingiram, aliás.
A outra ficou em silêncio, olhando-a fixamente. Foi Darrin que falou, com vozinha
aguda:
— A senhora ainda não percebeu, dona Marissa? Essa daí armou toda a trama do
rapto. Foi ela que pagou aqueles dois homens. Ela queria que a senhora fosse levada
para bem longe, não vê?
Marissa encarou Grace por um momento. O olhar da outra indicou-lhe que Darrin
dizia a verdade.
— Então, anjinho? — perguntou a outra, com um esgar. — Ainda quer me salvar?
Marissa adiantou-se e ajudou-a a levantar-se.
— Quero, porque odeio o cheiro de carne assada. Agora, quer fazer o favor de nos
acompanhar?
A mulher, entre assustada e admirada, deixou-se levar, apoiada por Darrin e
Marissa. Os três avançavam bem devagar, pois o tornozelo devia doer bastante. Em
volta, havia o lufa-lufa nervoso dos últimos preparativos para a evacuação total do
hospital. Alguns minutos depois, que para Marissa duraram uma eternidade, Grace
Leroux estava instalada na ambulância.
O dr. Spencer chegou apressado, montado numa égua, e ordenou:
— Fique lá atrás com os pacientes, sra. Tremayne.
— Não creio que haja lugar, doutor.
— A senhora ainda é minha paciente, lembra-se? — gritou ele fazendo a égua
aproximar-se de Marissa. — Entre lá. Isto é uma ordem de médico!
— Eu estou bem, posso ir a pé.
— Sra. Tremayne, é corajosa e eu a admiro bastante. Mas não concordo com o
que está fazendo com o bebê que carrega no ventre. Quer arriscar a vida dessa criança?
Marissa ficou vermelha como um pimentão. Darrin ouvira o médico! Talvez outros
tivessem ouvido também; contudo, não sabia mais se isso importava tanto agora. O
mundo estava completamente diferente; transformara-se em dois dias. Quem se
importaria, em meio àquela desgraça toda, com essa notícia? E quem se daria ao
trabalho de ir fofocar no ouvido de Ian sobre o filho que estava a caminho?
Sem discutir mais, subiu no veículo. Darrin seguiu-a.

Quando chegaram ao parque, Marissa teve de esquecer suas aflições. O povo


afluía em torrentes, vindo de todas as partes da cidade. Mesas quilométricas, cheias de
pães e biscoitos, haviam sido colocadas sobre o gramado ressequido, para esperar a
multidão faminta. E havia poucas mãos para alimentar. Por outro lado, crianças choravam
desconsoladamente, privadas subitamente do conforto do lar. E feridos, aos milhares,
gemiam estendidos em macas e cobertores.
Por um dos voluntários, Marissa soube que em breve chegaria auxílio por trem. Um
punhado de médicos e enfermeiros estava a caminho de San Francisco, e o comboio não
deveria tardar.
Mas, naquele momento, a ajuda de Marissa se fazia necessária.
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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Até Nob Hill estava ameaçado. Algumas mansões haviam pegado fogo, segundo o
que corria à boca pequena. Marissa viu-se tomada de temor, pensando no tio e em Mary.
Como estariam eles?
— Ei, a senhora aí! — gritou-lhe uma gorda matrona, que parecia a encarregada
da distribuição de alimentos. — Se puder ajudar, será bem-vinda! Cuide das crianças, por
favor!
Marissa começou a reunir as crianças que encontrava, aliviada de ter algo mais em
que pensar. Acabava de entregar um pacote de biscoitos a uma garotinha, quando deu
com o rosto amigo e risonho de Bobby.
— Achei seu tio, dona Marissa. E também os chineses e seus amigos. Está tudo na
mais santa ordem, graças a Deus. Os cavalos também estão bem, só que foram
confiscados pela cidade, sabe? Todos os cavalos foram confiscados para ajudar nos
salvamentos. Antes isso que coisa pior, não acha? De qualquer modo, trouxe uma
surpresa para a senhora.
Ele se afastou para dar passagem a Theo. Marissa correu para atirar-se em seus
braços, beijando-o emocionada.
O tio estava o mesmo, alegre e risonho, pronto para outra.
— Minha Marissa, eu senti um medo danado de não ver mais você. Mas o seu
amigo Bobby logo foi nos dar notícias suas, e nós ficamos muito felizes quando soubemos
que estava bem. Vá ver Mary, ela está ali adiante, naquela barraca.
Quando viu a amiga, Marissa sentiu o coração apertado.
Mary, já de barriguinha bem pronunciada, estava deitada num catre, muito pálida.
Mas o rosto de camafeu continuava belo e doce.
Ao vê-la, Mary abriu um sorriso e tentou levantar-se, mas Marissa não deixou.
Sentou-se a seu lado, acariciando-lhe as mãos finas.
— Minha amiga, não sabe como estou contente de vê-la assim. Você está linda!
— Qual, Marissa, não vê como estou inchada? — brincou Mary, apontando para a
barriga. — Você está bem, não é? Bobby nos contou que precisou ir ao hospital...
— Não foi nada, agora estou bem. Sobrevivemos todos, minha amiga... E
continuaremos sobrevivendo.
— Ah, Marissa, você é tão forte! Sempre foi! Não sei o que teria sido feito de mim,
não fosse você.
— Não diga bobagens, Mary. Se quer saber, foi seu otimismo que me ajudou a
vida toda. Devo-lhe muito, amiga!
— É, seu sei — falou Mary, com voz fraca. — Mas agora olhe para mim. Virei um
traste inútil!
— Mary! Nem uma palavra mais, está ouvindo? Traste inútil, você? Esqueceu-se
de seu bebê? Ouça, minha querida, força e coragem não se medem pelo que se pode ou
não fazer. Está tudo aqui, dentro do coração! E você tem a força de um tigre!
Mary baixou os olhos, sorrindo, sem vontade de discutir com Marissa.
— Precisa dormir, Mary. Descanse bastante, que seu bebê merece. Eu vou
retomar meu trabalho.
Quando voltou para as crianças, notou que seu pessoalzinho havia aumentado.
Alguém depositara um bebê no colo de Darrin, que o ninava desajeitadamente. A seu
lado, perto de trinta crianças brincavam, choraram e engatinhavam, numa confusão geral

202
CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
e alegre. Desse modo, Marissa foi promovida a babá do acampamento. Passou a cuidar
de todos com desvelo, inclusive de uma doce menina-moça de quinze anos, que fazia o
que podia para auxiliá-la.
Jimmy e Bobby, que se achavam por perto, dispuseram-se a distrair as crianças,
enquanto Marissa ia e vinha, preocupada em alimentá-las.
Logo Theo juntou-se ao grupo. Com seus modos mansos e carinhosos, conseguiu
aquietar a turminha e pôr as crianças para dormir um pouco, embora ainda fosse dia. Os
quatro respiraram aliviados. Era imprescindível afastar aquelas cabecinhas dos terríveis
desastres que haviam presenciado.
A tarde caía quando Marissa, ocupada em contar uma história a uma menininha
que não conseguia dormir, divisou um vulto alto, encostado na entrada da barraca.
Esfregou os olhos, sentindo o coração bater como louco. Seria possível...?
Sim, era Ian.
Ela levou a mão à boca, sufocando um soluço. Ian estava vivo!
Seria capaz de jurar que ele a observava havia algum tempo.
Ergueu-se e fitou-o, hesitante. Queria jogar-se em seus braços e cobri-lo de beijos,
mas sentiu medo. Não tinha certeza dos sentimentos de Ian. E se ele não gostasse de vê-
la ali, no meio daqueles infelizes, ela própria tão amarrotada e desalinhada com os
outros?
Mas ele estava vivo. Era tudo o que importava.
Ian não se mexia, e Marissa ficou parada, ansiosa, o coração ainda batendo
furiosamente.
— Você não vai acabar a história? — perguntou uma vozinha triste.
Ela se virou e sorriu para a menina, sentando-se novamente. Com voz
entrecortada pela emoção, sem tirar os olhos de Ian, Marissa conseguiu terminar a
historinha, brindando-a com um final inesperado, sem pé nem cabeça.
Finalmente, conseguiu acomodar a pequenina no meio dos outros. Ajeitou as
cobertas e levantou-se.
Tio Theo aproximou-se.
— Seu marido está aí, Marissa. Deixe que eu termino esse trabalho. Ainda há
alguns que não conseguiram adormecer, mas Darrin e eu daremos conta do recado.
Menino valente, não? Depois eu o forçarei a dormir um pouco. Muita emoção para um
garoto daquela idade, é o que digo.
— Obrigada, titio.
Ele ainda estava lá, na mesma posição. Marissa passou a mão pelos cabelos
desordenados e alisou a blusa nervosamente. Meu Deus, devia estar medonha! Depois
zombou de sua preocupação, Ian estava com aparência ainda pior que a dela. Sua
camisa, sempre imaculada, estava rasgada e manchada de graxa. Uma perna da calça
deixara de existir. Os cabelos tinham-se rebelado definitivamente e caíam sobre a testa,
cheios de cinza grudados de suor. O rosto tinha grandes manchas de fuligem.
Devagar, Ian começou a vir em sua direção. Os olhos azuis brilhavam contra o
rosto enegrecido e cansado.
— Ian — sussurrou ela. — É bom ver você de novo!

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De repente, Marissa sentiu-se perdida, sem saber o que dizer. Pôs-se a falar
depressa, quase na defensiva, gaguejando e arrumando incessantemente a saia
amarrotada.
— Eu... acho que não devia estar aqui, não é? Quero dizer, se eu fosse uma lady,
não estaria nesta desordem toda. Acho que devia ter ficado em casa, eu... eu sinto muito,
mas fiquei preocupada. E também...
— Ian! — gritou Jimmy, entrando na barraca. — Por favor, venha nos ajudar
depressa. Estamos com um problema!

CAPÍTULO XIX

Um comboio de dez veículos acabara de chegar e, no momento, despejava no


acampamento uma enorme quantidade de feridos e desabrigados. Não havia mãos a
medir para atender tanta gente.
Médicos e enfermeiras haviam sido trazidos de trem, finalmente; remédios e
alimentos tinham acabado de chegar de Oakland e das cidades vizinhas.
Ian fora chamado para organizar a distribuição dos feridos recém-chegados e
também para ajudar no transporte de crianças, mulheres e velhos. Acabava de entregar
uma garotinha desmaiada a um dos médicos quando, no meio da incrível confusão que se
instalara no acampamento, viu um rosto conhecido curvado sobre o corpo de uma mulher.
Por um momento ficou confuso, não conseguindo localizar na memória aquele
rosto deformado por feia cicatriz. De onde conhecia aquele homem? Ah, sim, era Jake, o
empregado de Lilli, um homem de reputação duvidosa, mas eternamente fiel à patroa.
Com um mau pressentimento, Ian abriu caminho entre macas e doentes
estendidos.
Como temia, viu que Jake curvava-se sobre Lilli, com expressão solícita e
preocupada.
O homem sorriu aliviado ao reconhecer Ian, levantando-se e fazendo-lhe um sinal
para que se sentasse ao lado de Lilli. Ian hesitou, mas o homem insistiu:
— Por favor. Acho que isso vai alegrá-la bastante.
Tremayne ajoelhou-se ao lado do catre, pegando afetuosamente a mão crestada
de Lilli, que abriu os olhos. Foi difícil para Ian esconder sua dolorosa surpresa ao deparar
com aquele rosto, antes tão bonito e vivo.
Metade da face esquerda achava-se descarnada, terrivelmente queimada e
retorcida.
— Ian, meu amigo! — murmurou ela, virando a cabeça para esconder a
desfiguração.
— Lilli, Lilli! Calma, os médicos que chegaram são ótimos especialistas.
Ian ergueu os olhos para Jake.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Alguém cuidou dela? Deram-lhe algum sedativo? Ouvi dizer que os
medicamentos estavam rareando, mas posso arranjar alguma coisa, se for necessário.
— Não, eu já cuidei disso. Ela tomou morfina.
Ian fechou os olhos, aliviado. Pelo menos Lilli não estava sofrendo. Mas a angústia
de Jake era visível; percebia-se que ele não acreditava que Lilli escapasse da morte.
— Ian... — chamou ela, com dificuldade. — Eu... não queria que você me visse
assim. Eu era... tão bonita. Queria que se lembrasse de mim como eu era...
— Você é linda, Lilli, por fora e por dentro. Tem um coração de ouro, mais bonito
ainda que seu rosto. Mas não terei de me lembrar de ninguém, querida. Porque você vai
ficar boa, tenho certeza. Confie em mim e ouça o que lhe digo: você vai ficar boa. Vamos
passear na baía, à noite, como sempre fizemos, de braço dado. Vamos ver as barcas
chegando no meio do nevoeiro, e elas vão apitar daquele jeito que você gosta de ouvir.
Vamos comer camarão na barra e tomar chá no jardim. Está me ouvindo, Lilli?
Ela conseguiu apertar-lhe a mão levemente.
— Você é um sujeito fora de série. Sempre te amei muito, sabia disso? Mas ela
também te ama, Ian. Eu sei.
— Será? Ela me disse isso, mas... Como saber se é verdade?
— Está escrito nos olhos dela. Você vai dar longos passeios nas marinas, sim. Mas
com sua mulher, não comigo.
— Então iremos os três.
Não houve resposta. A mão de Lilli afrouxou suavemente, e Ian inclinou-se
ansioso, para ouvir sua respiração. Estava regular.
— Vocês têm mais morfina? — perguntou para Jake.
— Temos. Não se preocupe com isso.
— Se houver mudança no estado de Lilli, vá falar comigo.
— Pode deixar, senhor.
Ian suspirou e levantou-se. Ia saindo cabisbaixo e pensativo, quando quase colidiu
com um médico.
— Você é Ian Tremayne, não é? Reconheci-o logo. Sua foto vive saindo em jornais
e revistas.
O doutor fez uma pausa, examinando as roupas sujas e encardidas de Ian. E
continuou, em tom jovial:
— Não que haja muita semelhança agora com as fotos... Mas acho que você tinha
razão quando deu aquela declaração sobre o terremoto. Não foi o tremor de terra que
destruiu San Francisco, e sim o fogo.
Ian retomou o passo, impaciente para voltar ao trabalho, mas não queria ser
indelicado. O médico começou a andar a seu lado.
— É o que parece, doutor... hã, desculpe, não sei seu nome.
— Spencer, Adam Spencer. Estive com sua mulher esta manhã. E examinei-a
também.
Ian interessou-se imediatamente.
— Disseram-me que ela estava bem. Há alguma coisa que eu não saiba?
Spencer sorriu.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Isso depende.
— Como assim? Soube que a pancada que ela recebeu na cabeça não foi muito
séria. Por que então...
— Calma, por favor! Aquela pancada só causou um belo galo. E nem um batalhão
de soldados conseguiria manter sua mulher no leito. Ela é muito valente... e teimosa. Mas
creio que é preciso cuidar da saúde dela.
— Ora esta, por quê?
— Porque, meu caro senhor, a menos que eu esteja enganado, ela está grávida de
dois meses.
Ian tropeçou, completamente aturdido.
— Ei, cuidado, amigo! — disse o médico, amparando-o pelo braço. — Vejo que
não sabia de nada, e penitencio-me por isso. Certamente ela queria fazer-lhe uma
surpresa, mas de certo modo estou contente por tê-la estragado. Sabe por quê? Porque
ela é incansável e não se preocupa consigo mesma. Garanto que ainda está de pé,
cuidando daquelas crianças. Aliás você também, Tremayne, devia dormir um pouco. Vá
para junto de sua mulher agora, e descansem os dois. Ambos merecem.
Incapaz de falar, Ian assentiu com a cabeça. Estava atônito, entorpecido, tudo de
uma vez. E assustado. Um filho. Ia ser pai, bom Deus.
— Bem, vou voltar à luta — disse Spencer. — Até a vista. E meus parabéns!
Ian não respondeu. Mergulhado em sentimentos desencontrados, caminhava como
bêbado entre as barracas que pareciam brotar como cogumelos no outrora verde e florido
parque. Queria ver Marissa.
Perdeu-se por duas vezes, errando entre as filas intermináveis de tendas e camas
de campanha. Deu-se conta de que estava à beira de um colapso; não dormia havia mais
de dois dias. Mas continuou andando.
Marissa. Mais uma vez, Marissa escondera-lhe um segredo. Por quê, em nome de
Deus? Desta vez tinha ido longe demais. Gostaria de estrangulá-la, sacudi-la.
E de abraçá-la também. Queria tê-la nos braços, vibrante e amorosa, para sempre.
Estava cansado demais para estrangular ou beijar quem quer que fosse. Mas
queria encontrá-la agora. Onde diabos estava ela?
— Ian!
Ele se virou, sabendo que desta vez havia tomado a direção correta. Theo surgiu
diante dele.
— Onde andou, meu rapaz? Estava à sua procura. Consegui um par extra de
cobertores, e, maravilha das maravilhas, consegui também uma cama dobrável! Armei
tudo no fundo de nossa barraca, onde vocês dois podem se refugiar. Improvisei um
quarto, com lonas, para ficarem mais à vontade. Acho que estão precisando de um bom
descanso.
Theo examinou-o de alto a baixo, balançando a cabeça.
— Menino, você está com uma aparência medonha!
— Obrigado, é muito gentil — respondeu Ian, sorrindo. — E você? Onde pretende
dormir?
— Ora, isso é o de menos. Por aqui mesmo, cuidando dos demoninhos. Darrin está
na barraca com eles, e eu vou me juntar ao grupo. A gente se vira com os cobertores que
temos. Darrin e eu estamos acostumados com a falta de conforto, como sabe.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Theo, você não é mais nenhum garotinho! Pretende dormir no chão?
— Também não sou nenhum velhinho alquebrado! Quando tudo isto acabar, sei
que vai me instalar de novo em meu belo quarto. Por enquanto, basta-me um cobertor
bem esticado no chão. Agora, a minha sobrinha é diferente. Essa merece uma cama de
plumas; já que esse artigo não existe no momento, quero que ela durma sossegada,
numa cama só dela. Ian, meu velho, entenda uma coisa: só você será capaz de
convencê-la a deitar-se nessa bela caminha agora. A teimosa diz que não é justo, que as
crianças têm de ficar no chão, que ela é grande e forte... Ande, vá logo!
Ian sorriu e deu-lhe uma palmada amistosa nas costas.
— Ela está lá dentro?
— Claro. Não foi o que acabei de dizer?
Ian levantou a lona da entrada e penetrou na barraca. Marissa acabava de ajeitar
um bebê dentro de um caixote, que forrara com pedaços de panos velhos. Estava de
costas e não o viu. Ele se aproximou e tocou-lhe o ombro.
— Ian!
— Já fez demais pelas crianças hoje, Marissa. Elas vão necessitar de você
amanhã bem cedinho, por isso precisa descansar. Venha, por favor.
— Mas eu...
— Você cuidou desses bebês até agora. É hora de cuidar do nosso, não acha?
Ela abriu os olhos, espantada. E Ian não parecia disposto a dar-lhe nenhuma
explicação.
— Vamos, Marissa. Ambos estamos exaustos.
Puxou-a com firmeza e levou-a para a cama que Theo havia preparado, instalada
atrás de uma lona esticada, a guisa de parede.
Não se despiram, nem se lavaram, para poupar a preciosa água; apenas tiraram os
sapatos enlameados.
Marissa desprendeu o coque, e dessa vez seus gloriosos cabelos estavam pretos
de fuligem e graxa.
Ian carregou-a e depositou-a na cama, sem dizer nada. Depois estirou-se ao lado,
puxando-a para bem perto, fazendo-a repousar a cabeça em seu peito. Abraçou-a com
força e ambos adormeceram instantaneamente.

Quando Marissa despertou, achou-se sozinha. Era muito cedo ainda; a aurora
apenas despontava no horizonte. Deviam ser umas cinco horas. Três dias haviam se
passado desde o terrível terremoto.
A sua volta já havia movimento; as crianças, despertas de um sono reparador,
brincavam e arrulhavam. Darrin cuidava do bebezinho, e Theo e Bobby tinham buscado
grandes fatias de pão com manteiga, que iam distribuindo entre risos e festas. Mas Ian
não estava à vista.
— Procurando pelo maridinho, hein? — caçoou Theo, curvando-se para apanhar
um balde de leite. — Ele saiu cedinho para consertar o encanamento. E o danado
conseguiu, porque já temos um pouco de água corrente. Racionada, mas já é um ótimo
começo, não acha?
A última frase foi abafada por uma explosão ao longe.
— Continuam a usar dinamite? — perguntou ela. — Será que adianta?
207
CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Em teoria, sim. Com dinamite, pode-se conseguir uma barreira vazia, sem nada
para aumentar as chamas. Só que os bombeiros de San Francisco não sabem dosar bem
a quantidade de bananas. O resultado não tem sido bom, infelizmente.
— Então seria melhor desistirem. A dinamite anda causando mais estragos que
bem à cidade.
— Parece que agora chegou pessoal mais entendido. Enfim, todos estão
preocupados com as docas. Se elas pegarem fogo... não quero nem pensar. Precisamos
torcer para que consigam formar a tal barreira vazia, Marissa.
— Três dias de destruição — murmurou ela. — Vai sobrar pouca coisa, meu Deus!
— Sim, mas esta cidade é valente. Como você, minha sobrinha. Vamos, os
pequenos estão famintos. Precisam estar bem alimentados para enfrentar a viagem até
Oakland. Vão de balsa daqui a pouco, ora graças!
— É mesmo. Se ficassem aqui, em pouco tempo estariam doentes. Sem água,
sem remédio, sem eletricidade... que criança pode resistir?
Enquanto o alimento era distribuído, Bobby fez um breve relato da péssima
situação a Marissa. Ruas inteiras achavam-se destruídas. O belo Palace Hotel, cartão-
postal da cidade, virara cinza e pó, apesar de ter sido construído dentro das mais
modernas técnicas contra incêndio. Em Nob Hill, inúmeras mansões haviam virado
fogueira.
Queimara-se a famosa e temível Costa Brava, com seus cabarés e prostíbulos.
E havia o medo de ratos. Os médicos alertavam continuamente as autoridades
sobre o perigo da peste bubônica. Mas, no momento, o grande e pior inimigo era um só: o
fogo.
Uma hora depois, à exceção do bebê, as crianças foram embarcadas numa grande
balsa, rumo a Oakland. Marissa decidira ficar com o nenenzinho, pois não tinha coragem
de entregá-lo aos cuidados de mais ninguém. Era uma criança bonitinha, tão pequenina!
A menina parecia conhecer Marissa, e sorria-lhe sempre que esta se aproximava para
fazer-lhe um carinho. Com a ajuda do dr. Spencer, Marissa arranjara leite e fraldas para
cuidar da pequenina, a quem decidira batizar provisoriamente de Francesca.
Muitos partos se realizavam no acampamento, dentro das apertadas barracas e
mesmo a céu aberto. Os recém-nascidos ganhavam nomes que lembravam as
circunstâncias em que haviam chegado ao mundo: Golden Gate, Francisco, Fênix.
Francesca, forma italiana do feminino do patrono da cidade, pareceu a Marissa
oportuno e adequado.
Darrin continuava grudado a ela, acompanhando-a aonde quer que fosse. Isso a
alegrava e enternecia, pois afeiçoara-se enormemente ao valente rapazinho. Tinha
esperanças de que Ian a deixasse levá-lo para casa definitivamente. Lá, Darrin seria
amado e bem tratado.
Levá-lo para casa... se existisse casa depois de tudo aquilo. Se ela não fosse
destruída. Ou saqueada. Darrin entrou na barraca, trazendo biscoitos, café e açúcar.
— Dona Marissa, tem...
— Darrin, eu já disse mil vezes. Chame-me de Marissa. Afinal, somos amigos ou
não?
— Está bem, é que eu esqueço. Tem uma moça que pediu para a senhora... você
ir falar com ela. É aquela dona da... hã, da Costa Brava, aquela que ajudou quando você
foi raptada. Puxa vida, ela está toda machucada de um lado.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Lilli? Ela está aqui no acampamento? Onde?
— Me dê a Francesca, eu fico com ela. É ali, naquela tenda menor, com uma cruz
vermelha na entrada.
Marissa correu, aflita, com um mau pressentimento. Havia vários doentes na
barraca, mas de Lilli, nem sinal. Ansiosa, indagou a uma enfermeira onde ficava o leito de
Lilli.
— É lá nos fundos, à direita, perto do balão de oxigênio.
Mas o leito estava vazio, ainda desarrumado. Marissa gelou, caindo de joelhos.
— Oh, meu Deus... Não!
Lilli estava morta. A única mulher de San Francisco que realmente se mostrara
amiga e desinteressada.
Alguém tocou-lhe o ombro. Era um homem feio e deformado, mas com olhos
surpreendentemente suaves.
— A senhora é a sra. Tremayne?
— Sou, sim. Eu estava... procurando Lilli.
— Ela está como médico, terminando de trocar as ataduras.
— Graças a Deus! Meu Deus, pensei que iria perdê-la! Como está ela? O que
aconteceu?
Nesse momento, uma enfermeira entrou, amparando uma mulher com a cabeça
quase que totalmente coberta por ataduras. Marissa acorreu, fazendo um sinal para a
enfermeira se afastar.
— Lilli, sou eu, Marissa Tremayne. Venha comigo, minha amiga.
Levou-a até o leito, onde a acomodou com ternura. Lilli tateou no ar, em busca de
alguma coisa. O homem feio deu-lhe a mão, que ela apertou contra o peito. Então falou,
com voz quase irreconhecível:
— É, parece que vou sobreviver, não sei como. Mas ficarei com cicatrizes
horríveis!
Deu uma risada gutural.
— E, na minha profissão... Oh, desculpe. Não quis ofendê-la.
— Não me ofendeu, Lilli. Mesmo assim, estou triste. Porque acho que você
merecia... coisa melhor.
— Talvez, não sei. De qualquer modo, estou aprendendo a me conformar. Foi
preciso acontecer essa tragédia para eu descobrir que Jake, esse homem feio e bom
aqui, me ama de verdade. Imagine que ele guardou todos os salários que lhe paguei, sem
tocar num tostão. Confessou que tinha esperança de um dia me pedir em casamento...
Meu Deus, essa vida é engraçada, não? Quem diria que um dia eu iria me casar e
constituir família? Pois é isso aí, Marissa. Vou me transformar numa comportada dona de
casa, acredita?
— Mas que excelente notícia, Lilli! Estou feliz por você... e por ele também.
— Claro, sei que nunca serei respeitável, porque em San Francisco todo mundo
tem memória longa. Ninguém nunca me convidará, nem me visitará... Mas vamos ficar por
aqui, assim mesmo. Jake e eu temos San Francisco no coração. Não conseguiríamos
viver em nenhum outro lugar.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Engana-se, Lilli. Eu serei sua amiga; vamos tomar chá todo dia, uma vez em
sua casa, outra vez na minha. E iremos passear sempre.
Marissa não sabia se Lilli sorria, mas a voz dela ficou vibrante e risonha.
— É um lindo plano, Marissa! E eu aceito seu convite desde já... Obrigada! Escute,
sabe de alguma notícia sobre as docas?
— Não ouvi nada, exceto que há perigo de o fogo chegar perto.
— Enquanto o médico me enrolava como múmia, ouvi gente batendo palmas e
gritando de alegria. Acho que conseguiram domar o fogo, Marissa.
— Então, essa é a segunda boa notícia do dia.
— Qual foi a primeira?
— Que você está boa.
Lilli fungou.
— Sabe que não posso ter emoções fortes, Marissa. E estou com uma vontade
doida de chorar.
— Para quê, sua bobona? Você está bem, feliz, e vai se casar!
— É verdade... Escute, Marissa, Ian vai voltar para você. Eu sei.
Marissa ficou em silêncio. Depois perguntou timidamente:
— Por que diz isso? Esteve com ele ultimamente?
— Claro. Ontem de noite e hoje de manhãzinha. Nem se atreva a ficar com ciúme,
bons céus! O homem adora você! Mas é um cavalheiro, e não costuma se esquecer dos
velhos amigos, mesmo os mais queimados e horrorosos...
Marissa levantou-se e deu um beijo suave nos cabelos de Lilli.
— Você nunca será horrorosa, Lilli. Agora eu tenho de ir. Meus parabéns aos dois,
novamente! Amanhã virei visitá-los outra vez.
Fora, havia um frêmito de excitamento inusitado. Todos riam, dançavam,
choravam. Um desconhecido apanhou-a pela cintura e rodopiou-a no ar, gritando:
— Conseguiram, eles conseguiram! Acabou-se o fogo, viva San Francisco!
Marissa, de início surpresa com aquele impulso arrebatado, logo começou a rir.
— Como foi isso?
— Setenta e cinco homens. Setenta e cinco formiguinhas mataram o gigante! É ou
não é para comemorar, dona?
O homem largou-a e saiu pulando, agitando os braços:
— Davi derrubou Golias!
Marissa correu para a barraca.
E, como pressentira, encontrou Ian.
Tinha o rosto negro, tão negro quanto a calça que usava, mas conversava
animadamente com Theodore Ayers. Seus olhos azuis estavam claros e brilhantes.
Então, virou-se. Os dois fitaram-se longamente.
Era verdade, o fogo fora debelado! Marissa esqueceu-se de toda a inibição e soltou
um grito de alegria, jogando-se em seus braços.
Por um momento, Ian ficou quieto, sem se mexer. Marissa teve medo. Medo de
que ele não retribuísse seu carinho. Bom Deus, por que correra daquele jeito para Ian?

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Mas, de repente, dois braços fortes e quentes envolveram-na, suspendendo-a do
chão. Ficaram assim, parados no ar e no tempo, donos do paraíso, donos do mundo.
Depois ele a deixou deslizar devagarinho para o chão, sem largá-la.
— O fogo... terminou?
— Terminou, Marissa.
Jimmy e Mary entraram, acompanhados de Theo. Darrin se aproximou, segurando
Francesca no colo.
— Pessoal, vamos dar o fora daqui — falou Mary, rindo. — Esses dois precisam
conversar.
— Não, não, esperem um pouco! — exclamou Ian, ainda abraçado a Marissa. —
Acho que está na hora de termos uma bela conversinha, nós todos.
Jimmy pigarreou e adiantou-se, embaraçado.
— Nós também temos culpa, Ian. Tanto quanto Marissa, talvez até mais. Acredite,
ela nunca teria feito o que fez, não fosse porque gosta demais de minha Mary.
— É, vocês dois são culpados — respondeu Ian, sem rodeios. — E os outros
também. Com isso, fizeram de mim culpado de fraude, pois levaram uma bela quantia de
dinheiro indevidamente.
Marissa sentiu um arrepio gelado. Lutou contra o medo que se apossava dela,
tentando se convencer de que Ian ainda a amava. Lilli havia dito que sim, e Lilli conhecia
Ian muito bem. Além disso, ele se preocupara com ela, cuidara dela, salvara-a... Na
véspera, fizera-a dormir abraçada a ele.
E falara do bebê que ia nascer.
Ian viera atrás dela naquela manhã fatal, quando começara o terremoto. E salvara-
lhe a vida, mesmo arriscando a sua. E, agora, abraçava-a com tanto carinho!
Recusara-se a falar em divórcio, mas isso não bastava a Marissa. O casamento de
nada valia, sem o amor de Ian.
— Portanto, meus caros, eis o que pretendo fazer. Todo o dinheiro que foi tirado, a
título de mesada, vai ser devolvido ao banco, até o último tostão. Não digo que sejamos
processados, mas é uma questão de honra e honestidade, uma vez que praticamos uma
fraude. Reembolsando o fundo de sir Thomas, eu me sentirei muito melhor, e acho que
vocês concordam comigo nesse ponto.
— Mas, Ian! — interveio Mary, os olhos grandes e castanhos cheios de apreensão.
— Você vai ficar sem nada! Sua loja está destruída, Nob Hill virou cinzas...
— Estava tudo no seguro, Mary. Não há problema por esse lado, garanto-lhe. E
acabo de receber uma boa notícia: Nova York, Chicago, Boston, todas as cidades da
América estão mandando empréstimos para reconstruir San Francisco. Teremos nossa
bela cidade de volta, estalando de nova!
Ian fez uma pausa, correndo os olhos pela pequena e atenta assistência.
— E, como San Francisco, pretendo também reconstruir minha vida. Jimmy, você
vai ganhar o suficiente para sustentar Mary, até que ela atinja a idade legal para receber a
herança. Theodore Ayers, você é um dos homens mais admiráveis que conheci. Se quiser
ficar comigo, em minha casa, considerarei isso uma honra. Se não me engano, é o único
inocente nessa história toda, não é assim?
— Tão inocente quanto um bebê — brincou Theo.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Marissa teve vontade de beliscá-lo. Tio Theo bem que podia se mostrar menos
imparcial!
— Mas há um senão nessa história toda — falou Ian, em tom severo.
— Oh, Ian! — exclamou Mary. — Você está sendo generoso demais conosco.
Concordamos com o que quiser!
— Primeiro, ouçam-me com atenção. Podem pensar quanto tempo quiserem, dois
dias, três semanas, porque o assunto é para ser estudado com cuidado. É o seguinte: eu
não vou sair daqui. San Francisco é meu lar, minha vida. Vai haver muitos problemas
durante a reconstrução da cidade; acredito mesmo que a cidade se tornará um belo
problema para quem ficar aqui. Vai haver saques, roubos. Vai faltar água, luz, gás. Mas
eu pretendo ficar e ajudar na reconstrução da cidade. Vocês acabam de superar um
terremoto e um incêndio, e só Deus sabe qual dos dois foi pior. Têm certeza de que
querem permanecer aqui? Lembrem-se, esta é a minha terra. Não a de vocês.
— É nossa agora, Ian Tremayne — falou Theo, calmamente. — Lar é onde a gente
constrói, onde se tem esperança, onde se pode sonhar. Não deixamos nada nem
ninguém para trás. Aqui estamos, e aqui pretendemos construir, viver e sonhar.
— Apoiado! — disse Mary. — Ficamos, Ian.
— Então, não querem pensar melhor?
— Não, Ian — interveio Jimmy, com decisão e firmeza. — Temos certeza de que
seremos felizes aqui.
— Então está resolvido. Assunto encerrado.
Marissa correu para Mary e abraçou-a, comovida.
— Mary, minha amiga!
Mas Ian puxou-a de volta.
— O assunto está encerrado com os outros, Marissa. Não com você.
Petrificada, Marissa fitou o marido. Buscou conforto em seu olhar, mas só
encontrou indiferença.
— Por favor, podem nos dar licença? — perguntou ele aos outros. — Marissa,
vamos conversar lá fora. Darrin, você pode cuidar de Francesca enquanto isso?
— Vá sossegado, "seu" Ian... quero dizer, Ian.
Marissa pensou ter visto Ian piscar para Darrin, mas viu-se puxada para fora da
barraca. Tremayne conduziu-a a passos ligeiros, obrigando-a a correr. Atravessaram o
mar de barracas em silêncio, e em silêncio atingiram uma pequena colina, a cujos pés
uma lagoa refletia as cores suaves da tarde. Só então Ian falou.
— E você, Marissa?
— Eu... eu o quê?
— Já sei que você fez o que fez por causa de Mary. E seu tio Theo. Já sei tudo a
respeito daquela escolinha na Inglaterra. Mas sei também que estava em busca de uma
vida melhor. Você sonhava em ser uma dama, em ter uma bela casa, uma vida de rica.
Bem, minha cara, não há mais loja. E pode ser que não haja mais casa nenhuma. É aí
que entra minha pergunta: e você?
Marissa ficou furiosa com a pergunta. Ian ainda a julgava uma oportunista!
— Ian Tremayne, não gostei da pergunta. Estou mesmo muito ofendida e...

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Marissa, não há nada de errado em querer subir na vida. Aliás, uma das razões
de eu te amar tanto é sua incrível determinação e ambição.
— Casei-me com você por causa do dinheiro, não nego, mas eu...
Marissa interrompeu-se, atônita. Abriu muito os olhos e perguntou baixinho, tão
baixinho que ele mal a ouviu:
— Quê...?
— Eu disse que Uma das razões de eu te amar tanto...
— Você... me ama?
Ele sorriu. Um sorriso lento, preguiçoso. O mesmo sorriso que a seduzira com
tanta facilidade.
— Sim, Marissa Ayers Tremayne. Eu te amo! Na verdade, isso aconteceu desde o
comecinho. Amei-a, Marissa, pelos seus olhos verdes, que me deixam louco. Pelo seu
espírito simples e determinado. Pelo mistério de seu corpo. Apaixonei-me perdidamente,
tanto que não conseguia me conformar com o fato de não confiar em mim. Marissa, minha
bobinha! Nunca dei a mínima para sua origem humilde. Na verdade, eu adorei saber
como foi sua infância. E adoro saber que não pode ver uma criança infeliz sem colocá-la
debaixo de suas asas... Adoro sua saúde, sua vitalidade. Você, minha Marissa, é tudo o
que sempre quis na vida.
— Ian! — sussurrou ela, emocionada, contemplando-o com paixão.
Nos olhos azuis leu que ele dizia a verdade. A maravilhosa, inebriante verdade. E
quando ele sorriu de novo, Marissa pensou, tonta de felicidade, que Ian Tremayne era o
homem mais bonito sobre a face da Terra. Mesmo sujo e cheio de fuligem. Nele havia
firmeza, força, elegância e amor.
Incapaz de se conter mais, Marissa abraçou-o com força, pondo-se na ponta dos
pés para beijá-lo.
— Então? — perguntou ele.
Marissa sorriu, deliciada. Apesar de sujo e negro de fuligem, Ian continuava com a
mesma autoconfiança, a mesma arrogância de sempre.
— Então o quê? — provocou ela.
— Você ainda não me respondeu.
— Ian Tremayne, eu te amo. Não o mereço, porque menti e enganei para me casar
com você. Cheguei a odiá-lo, porque você parecia enxergar através de mim, como se eu
fosse transparente. Mas, para meu desespero, quanto mais eu o odiava, mais o queria
perto de mim. Depois, aos poucos, fui vendo como era bom para Mary e Jimmy. No dia
que cheguei a San Francisco, senti uma mistura engraçada de raiva e ciúme. Fiquei muito
confusa, sem saber o que pensar. Tentei me zangar com você, tentei odiá-lo... para não
sentir aquele ciúme doentio das Graces e das Lillis...
— Depois que conheci você, Marissa, não houve mais nenhuma outra.
Ela deu-lhe um sorriso agradecido.
— Obrigada, gostei de saber disso. Mas houve, sim. Diana.
— Essa sempre terá um lugar no meu coração, querida. Mesmo assim, minha
Marissa, você me ajudou a espantar a angústia que eu sentia pela morte dela. Pode
entender isso, meu amor?
— Posso, Ian.

213
CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
Duas lágrimas brilharam em seus olhos. Marissa perguntou-se se seria justo sentir
tamanha felicidade, no meio de uma cidade em escombros. Mas sabia que Deus a
compreenderia.
— Ian, eu te amo tanto!
— Eu também, Marissa.
Houve um certo silêncio cheio de luz e paz. Depois ela se lembrou:
— Querido, eu estive com Lilli e...
— E ela vai se casar com Jake e os dois viverão felizes para todo o sempre.
— Sim. Não é maravilhoso?
— Então você não tem mais ciúme dela?
— Não, de jeito nenhum. Pretendo ir visitá-la de vez em quando. Foi o que
combinamos.
— É bem típico de você, minha querida. E eu aprovo inteiramente.
— Mas Grace...
— Grace vai levar a perna quebrada para longe daqui — cortou ele, com dureza.
Marissa espantou-se com a veemência do marido e perscrutou-lhe os olhos. Ele
sabia o que Grace havia feito!
— Mas, como soube...?
— Darrin me contou sobre o encontro de vocês duas. Hoje, pela manhã, fui ajustar
umas contas com ela. E depois de nossa conversa, bem, ela resolveu que seria melhor
mudar-se de San Francisco. De uma vez por todas.
Marissa riu com gosto.
— Meu amor, como eu te amo! — disse, enlaçando-o pelo pescoço e cobrindo-lhe
o rosto de beijos. — Hum... Você está com um gostinho de fumaça gostoso!
Foi a vez de ele rir.
— Então você fica?
— Sou sua mulher, Ian. Claro que fico. Como tio Theo disse, esta é a minha terra.
É aqui que vou sonhar e construir minha vida. É aqui que vou viver com você... Oh, Ian! É
o primeiro lar de verdade que tenho! Só queria mais uma coisa. É sobre Darrin. Será que
você...
Ele voltou a rir, apertando-a docemente contra si.
— Eu sei, meu amor. Sei que você quer levar Darrin conosco. E estou começando
a desconfiar que levaremos a reboque uma linda garotinha chamada Francesca...
— Ela é tão pequenininha, tão frágil! Ficaremos com ela até os pais a encontrarem,
se você estiver de acordo, é claro.
— É claro. E logo teremos o nosso filhinho, não é?
— Você... você não se importa?
— Eu, me importar? Querida, estou encantado, apaixonado pela ideia de ser pai!
Há menos de um ano, eu era um homem solitário e amargo. E agora me vejo cercado de
amor e lealdade. Tudo por sua causa, minha Marissa!
E, devagarinho, Ian inclinou-se para colher um beijo dos lábios de Marissa. Foi um
beijo quente, terno. Um beijo cheio de paixão, promessas e desejo arrebatador. E, acima
de tudo, cheio de amor.

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CLR – Pecado de Mulher (Forbidden Fire) Heather Graham Pozzessere
— Sr. Tremayne! Sr. Tremayne!
Vagamente, Marissa percebeu que alguém chamava de muito longe, de outro
mundo.
Relutantes, os dois se separaram, ainda perdidos nos olhos um do outro.
Bobby aproximava-se, montado em Jet. Seu uniforme estava roto, queimado e
cheio de cinza. Mas ele sorria.
— Sua casa, sr. Tremayne! Ela aguentou firme! Mais da metade de Nob Hill está
destruída, mas a casa está lá, inteirinha!
Ian olhou-o, incrédulo.
— Não pode ser!
Bobby deu uma risada e desmontou, entregando-lhe as rédeas.
— Por que não vai ver pessoalmente? Aqui sua presença já não é tão necessária,
pois o senhor já deixou tudo mais ou menos organizado. Não quer ir?
— Ora, se quero! — exclamou Ian, cheio de alegria. — Vamos, minha Marissa! Sua
casa está a sua espera!
E, unindo o gesto à palavra, ergueu-a e colocou-a na sela, montando logo em
seguida.
Enquanto ainda estavam no parque, Ian manteve a rédea curta; mas, assim que
ganharam a estrada, deixou que Jet desse livre curso à impaciência de voltar para casa.
Liberto dos freios, o cavalo voou pela estrada.
Quando chegaram no alto de Nob Hill, Ian soltou uma exclamação de júbilo. Lá
estava ela, a casa que julgara perdida! Seu lar, dele e de Marissa!
Apearam e deram-se as mãos, olhando-a extasiados. O gramado estava crestado,
as flores haviam desaparecido, e as paredes achavam-se enegrecidas. Mas foram os
únicos danos que a casa sofrera.
— Bem, meu amor, parece que a "grande família" vai ter um belo lugar para ficar,
afinal!
Marissa riu, encantada.
De repente, Ian ergueu-a nos braços. Beijou-a, a princípio com doce ternura, que
logo se transformou em paixão. E com ela no colo, subiu os degraus da escada.
— Ian, temos de buscar o pessoal!
— Bobby irá.
Ele parou no último degrau.
— Tenho tudo o que quero agora. Que mais Deus poderia me dar?
Beijou-a de novo. E então, subitamente, viu que Deus poderia dar-lhe algo mais. A
chuva começou a cair.
Uma chuva suave, persistente. E criadora. Os dois se fitaram amorosamente, e
começaram a rir.
A chuva recrudesceu, trazendo consigo a promessa de vida e esperança. E molhou
o rosto de Ian e de Marissa, molhou seus cabelos, misturou-se aos beijos, confundiu-se
com as lágrimas de agradecimento e felicidade.
Eles entraram.
Saíam do fogo, entravam na vida.

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Fim

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Próximo lançamento
Clássicos da Literatura Romântica

AMOR PAGÃO
Mary Daheim

Uma aguda e bem-humorada critica aos costumes da Inglaterra na


conflituosa época do puritanismo.
A longa capa negra e a máscara evocavam mais perigo que a arma que o
salteador trazia nas mãos. Sobressaltada, Honor viu-o aproximar-se, os olhos fitando-a
com uma intensidade que a desconcertou. "Perdoe-me, milady, mas preciso de suas
joias e dinheiro." De nada adiantaram os protestos. Honor foi roubada de tudo que restara
de sua fortuna e que pretendera transferir para Londres.
Ela quis agredi-lo, desafiar tanta ousadia, porém, antes de partir com seus
comparsas, o mascarado ainda a tomou nos braços e a beijou, saboreando os lábios de
Honor como a uma exótica iguaria. "Não vou perdê-la de vista", prometeu à estarrecida
Honor Dale, sem saber que acabara de atacar a sobrinha de Oliver Cromwell, o líder
puritano da Inglaterra!

Apresentam a próxima história


LÍRIO SILVESTRE
Caryn Cameron

Em busca do amor Lily se perde num labirinto de paixões desenfreadas...


A adolescência livre e sem malícia num vilarejo entre os bosques da Virgínia não
preparou Lily Wilde para a vida de perigosas intrigas na capital de um país às portas da
guerra civil.
Em Washington ela descobre que a luta por um ideal significa espionagem, e que o
amor romântico pode se reduzir a uma paixão sensual. Impulsiva e ingênua, Lily se
entrega a um homem que jurara nunca mais amar, perde a liberdade por causa de falsos
amigos e sente o gosto amargo da traição.
Com a audácia própria de quem não se deixa abater, Lily vai perseguir seus
sonhos à procura da felicidade!

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