Você está na página 1de 281

Sumário

PRIMEIRA PARTE
1
2
3
4
SEGUNDA PARTE
5
6
TERCEIRA PARTE
7
8
9
10
11
12
13
14
QUARTA PARTE
15
16
17
18
19
20
21
SUSAN ELIZABETH PHILLIPS
PRIMEIRA PARTE
O menino do estábulo
Quando a obrigação sussurra, deve a juventude responder, posso.
RALPH Waldo Emerson
“VOLUNTARIES III”
1
O velho vendedor ambulante o captou imediatamente, já que o moço
parecia desambientado entre a multidão de corretores da bolsa e banqueiros
bem vestidos, que lotavam as ruas da sub Manhattan. Uns cachos negros se
sobressaíam por debaixo de um chapéu de feltro amassado. Uma camisa
remendada desabotoada no pescoço, possivelmente em deferência ao calor de
princípios de julho, os ombros estreitos, frágeis, enquanto uns suspensórios de
couro seguravam umas calças enormes e sujas.
O moço usava umas botas negras, que pareciam muito grandes para seu
pequeno tamanho, e levava um vulto retangular em seu braço. O vendedor
ambulante se apoiou em seu carrinho de mão cheio de bandejas de bolos e
observou o moço caminhar entre a multidão, como se fosse conquistar o
inimigo. O ancião viu coisas no moço que outros não viam e lhe chamou a
atenção.
— Oh, ragazzo. Tenho um bolo para tí. Doce como o beijo de um anjo.
Viene qui.
O moço levantou a cabeça, e olhou fixamente com ânsia as bandejas de
bolos caseiros que sua esposa fazia todos os dias, e o vendedor quase pôde
lhe ouvir contar os peniques que guardava no vulto de maneira tão protetora.
— Vem, ragazzo. Isto é um presente para ti — sustentava uma tartaleta de
maçã grande —. O presente de um ancião a um recém-chegado aqui, à cidade
mais importante do mundo.
O moço colocou desafiante o polegar no cinto de sua calça e se aproximou
do carro.
— O que lhe faz pensar que acabo de chegar?
Seu sotaque era tão pesado como o aroma dos jasmins sobre um campo de
algodão da Carolina, e o ancião ocultou um sorriso.
— Talvez seja minha tola imaginação, né?
O moço encolheu os ombros e deu um chute a algo atirado no chão.
— Não sou um forasteiro — assinalou com um imundo dedo o bolo —
Quanto você pede por isso?
— Não disse que é um presente?
O moço pensou, assentiu com a cabeça e estendeu a mão.
— Muito obrigado.
Enquanto agarrava o bolo, dois homens de negócios com levita e chapeus
altos de castor passaram junto ao carro. O olhar fixo do moço varreu com
desprezo as correntes de seus relógios de ouro, os guarda-chuvas enrolados, e
os polidos sapatos negros.
— Malditos porcos ianques — resmungou.
Os homens estavam absortos em sua conversa e não o escutaram, mas assim
que se afastaram, o ancião franziu o cenho.
— Acredito que esta cidade não é um bom lugar para ti, não é? Faz só três
meses que acabou a guerra. Nosso presidente morreu. O ódio é ainda muito
forte.
O moço se sentou no meio-fio para comer o bolo.
— Eu não gostava muito do Sr. Lincoln. Penso que era pueril.
— Pueril? Madre de Dio! O que significa essa palavra?
— Ingênuo como um menino.
— E onde um moço como você aprendeu uma palavra como essa?
O moço estreitou os olhos para protegê-los do sol da tarde e entortou os
olhos ao ancião.
— Me distraio lendo livros. Essa palavra em particular aprendi do senhor
Ralph Waldo Emerson. Admiro muito o senhor Emerson — começou a
mordiscar com delicadeza ao redor da borda do seu bolo —. Eu não sabia que
era um ianque quando comecei a ler seus ensaios. Quando me inteirei me
zanguei muitíssimo. Mas já era muito tarde, porque já era seu discípulo.
— Este senhor Emerson. O que diz ele que é tão especial?
Um pedaço de maçã ficou colado à ponta de seu dedo imundo, e ele o
chupou com a ponta de sua pequena língua rosada.
— Ele fala do caráter e da independência. É a independência o atributo
mais importante que uma pessoa pode ter, verdade?
— A fé em Deus. Isso é mais importante.
— Já não acredito mais em Deus, nem em Jesus. Acreditava, mas vi muita
dor estes últimos anos. Vi os ianques matar todos os nossos animais e queimar
nossos celeiros. Vi como davam um tiro no meu cão, Fergis. Vi à senhora
Lewis Godfrey Forsythe perder a seu marido e seu filho Henry no mesmo dia.
Meus olhos se sentem velhos.
O vendedor ambulante olhou mais atentamente o moço. Tinha um rosto
pequeno, em forma de coração, e um nariz que se inclinava um pouco no final.
Parecia um pecado que fosse um menino, já que logo se embruteceriam
esses traços tão delicados.
— Quantos anos tem, ragazzo? Onze? Doze?
Uma sombra de cautela passou pelos olhos que eram de um surpreendente
violeta.
— Mais velho, suponho.
— E seus pais?
— Minha mãe morreu quando nasci. Meu pai morreu no Shiloh faz três
anos.
— E você, ragazzo? Por que vieste a Nova Iorque?
O moço meteu o último pedaço de tartaleta à boca, colocou o vulto mais
debaixo do braço, e se levantou.
— Tenho que proteger o que é meu. Muito obrigado por este delicioso bolo.
Foi um verdadeiro prazer lhe conhecer — começou a afastar-se, logo vacilou
—. E sabe que… não sou um menino. E meu nome é Kit.
***

Enquanto Kit caminhava pela avenida Washington Square segundo as


direções que lhe tinha dado uma mulher na balsa, pensou que tinha sido uma
loucura dizer seu nome ao ancião. Uma pessoa que pensava cometer um
assassinato não deveria deixar rastros. Exceto que isso não seria um
assassinato. Isso seria justiça, embora a corte de ianques não o visse assim se
a pegassem. Ela faria todo o possível para que nunca soubessem que Katharine
Louise Weston da plantação Risen Glory, tinha abandonado Rutherford,
Carolina do Sul, e tinha estado vagando por esta maldita cidade.
Agarrou o vulto mais forte. Levava dentro o Pettingill de seis tiros de seu
pai, um revolver de percussão do exército; um bilhete de trem para voltar para
Charleston; a primeira parte dos Ensaios de Emerson; uma muda de roupa; e o
dinheiro que ia necessitar enquanto estivesse aqui. Lamentava não poder
terminar o trabalho hoje, para poder voltar para casa, mas necessitava tempo
para observar ao bastardo ianque e conhecer sua rotina. Matá-lo era só a
metade do trabalho. A outra metade era que não a pegassem.
Até agora, Charleston era a maior cidade que tinha visto, mas Nova Iorque
não era nada como Charleston. Enquanto caminhava por suas ruidosas e
lotadas ruas, teve que admitir que havia monumentos bonitos.
Formosas Igrejas, hotéis elegantes, edifícios com grandes portais de
mármore. Mas a amargura lhe impedia de desfrutar de seu entorno. A cidade
parecia intacta pela guerra que tinha esmigalhado o Sul. Se havia Deus, ela
esperava que a alma de William T. Sherman queimasse no inferno. Ficou
encantada olhando um realejo em vez de olhar para frente, e se chocou com um
homem que ia andando pela rua.
— Ó, moço! Tome cuidado!
— Tome cuidado, você — grunhiu ela —. E não sou um moço! — Mas o
homem já tinha desaparecido depois da esquina.
É que eram cegos? Desde o dia que tinha saído de Charleston, todo mundo
a confundia com um rapaz. Não gostava, mas certamente era o melhor. Um
moço vagando só, não era tão visível como uma garota. Em sua casa nunca a
confundiriam. Certamente, também todos a conheciam desde pequena, e
sabiam que não tinha paciência para a estupidez das garotas.
Se tudo não tivesse mudado tão rápido. Carolina do Sul. Rutherford. Risen
Glory. Inclusive ela mesma. O ancião acreditava que ela era um menino, mas
não o era. Tinha completado dezoito, e era uma mulher. Algo que sua mente
rechaçava, mas seu corpo não lhe deixava esquecer. O aniversário, seu sexo,
tudo parecia um acidente, e como um cavalo ante uma cerca muito alta, tinha
decidido negar-se a admiti-lo.
Descobriu um policial mais adiante e se escondeu entre um grupo de
trabalhadores que levavam caixas de ferramentas. Apesar do bolo, ainda tinha
fome. Também estava cansada. Oxalá estivesse agora em Risen Glory, subindo
em um dos pessegueiros da horta, ou pescando, ou falando com Sophronia na
cozinha. Para tranquilizar-se, meteu a mão no bolso e apertou o pequeno papel
com a direção de seu destino, embora tivesse as letras impressas na memória.
Antes de encontrar um lugar para passar a noite, tinha que dar uma olhada à
casa. Possivelmente pudesse ver o homem que ameaçava o que mais queria.
Então planejaria o que nenhum soldado dos Estados Confederados da América
tinha sido capaz de fazer. Tiraria sua arma e mataria o Major Baron Nathaniel
Cain.
***

Baron Cain era um homem perigosamente bonito com o cabelo loiro


leonado, um nariz cinzelado e olhos cinzas que davam a seu rosto o aspecto de
um homem temerário que vivia no limite. Também estava aborrecido. Embora
Dora Van Ness fosse formosa e sexualmente aventureira, estava arrependido
de tê-la convidado para jantar. Não estava de humor para escutar seu estúpido
bate-papo. Sabia que estava preparada, mas seguiu bebendo tranquilamente
seu brandy. Estava com as mulheres segundo seus termos, não os delas, e um
brandy não se podia beber depressa.
O anterior proprietário da casa tinha uma excelente adega no porão, cujo
conteúdo junto com a casa tinha conseguido Cain graças a seus nervos de aço
e um par de reis. Agarrou um charuto de um pote de madeira, que a ama de
chaves tinha deixado para ele na mesa, cortou o final e o acendeu. Em poucas
horas, devia estar em um dos exclusivos clubes de Nova Iorque para o que se
augurava uma partida de poquer com apostas elevadas. Antes disso, provaria
os encantos íntimos de Dora.
Enquanto se inclinava para trás em sua cadeira, viu-a olhar
persistentemente a cicatriz que desfigurava o dorso de sua mão direita. Era
uma de tantas que acumulava, e todas e cada uma pareciam encantá-la.
— Não acredito que tenha escutado uma só palavra do que te hei dito esta
noite, Baron — lambeu os lábios e lhe sorriu astutamente.
Cain sabia que as mulheres o achavam atraente, mas não lhe interessava
muito, e tampouco lhe orgulhava. Segundo ele o via, seu rosto era uma
maldição a mais. A herança de um pai de vontade débil e uma mãe que abria
as pernas para qualquer coisa que usasse calças. Tinha quatorze anos a
primeira vez que foi consciente dos olhares das mulheres, e tinha desfrutado
da atenção. Mas agora, doze anos mais tarde, tinha tido muitas mulheres, e já
tinha se cansado.
— Claro que te escutei. Estava me dando as razões pelas quais deveria
trabalhar para seu pai.
— É muito influente.
— Já tenho um trabalho.
— De verdade, Baron isso não é um trabalho. É uma atividade social.
Ele a olhou levemente.
— Não há nada de social nisto. O jogo é a forma em que ganho a vida.
— Mas...
— Gostaria de subir, ou quer que a leve para sua casa? Não quero me
demorar muito aqui.
Ela ficou de pé imediatamente e em um minuto estava em sua cama. Tinha
uns peitos cheios e amadurecidos e ele não pôde entender por que não se
sentia melhor com eles nas mãos.
— Me machuque — sussurrou ela —. Só um pouco.
Ele estava cansado de machucar, cansado da dor que parecia não poder
escapar embora a guerra já havia acabado. Fez uma careta cínica.
— Tudo o que queira senhora.
Mais tarde, quando esteve sozinho e já vestido para a noite, encontrou-se
vagando pela casa que tinha ganhado com um par de reis. E recordou a casa
onde tinha crescido.Tinha dez anos quando sua mãe partiu, deixando seu pai só
em uma mansão deserta da Philadelphia, que estava caindo aos pedaços. Três
anos depois seu pai morreu e um comitê de mulheres o levou a um orfanato.
Escapou essa noite. Não tinha nenhum destino em mente, somente uma direção.
Oeste.
Passou os seguintes dez anos indo à deriva de uma cidade a outra,
guardando ganho, pondo trilhos de ferrovia e molhando-se buscando ouro até
que descobriu as mesas de pôquer. O Oeste era terra virgem que necessitava
homens cultos, mas ele nunca admitiria que não sabia nem ler.
As mulheres caíam rendidas aos pés do bonito menino de traços esculpidos
e frios olhos cinzas que sussurravam mistérios, mas esse frio em seu interior
ninguém pôde derreter. Sua capacidade para sentir amor se congelou em sua
infância. Se seria para sempre, Cain não sabia. Tampouco lhe preocupava.
Quando estourou a guerra, atravessou o rio Mississippi para o oeste pela
primeira vez em doze anos e se alistou, não para ajudar a preservar a União,
mas sim porque era um homem que valorava a liberdade acima de tudo, e não
podia suportar a escravidão. Entrou nos grupos de caráter duro do Grant e
mereceu a atenção do general quando capturaram Fort Henry. Quando
chegaram a Shiloh, já era um membro do pessoal do Grant. Quase o mataram
duas vezes: uma vez em Vicksburg, e quatro meses mais tarde na Chattanooga.
Missionary Ridge foi a batalha que abriu o caminho para a marcha que
Sherman fazia no mar. Os jornais começaram a escrever de Baron Cain, como
o “Herói do Missiony Ridge”, elogiando-o por sua coragem e patriotismo,
depois que Cain fez uma série de bem-sucedidas incursões através das linhas
inimigas, citou-se o General Grant dizendo “Perderia minha mão direita
antes de perder a Baron Cain“.
O que nem Grant nem os periódicos sabiam era que Cain vivia para correr
riscos. O perigo, como o sexo, fazia com que se sentisse vivo e completo.
Possivelmente por isso ganhava a vida jogando pôquer. Um dia poderia
apostar tudo em uma carta.
Mas tudo tinha começado a lhe aborrecer. As cartas, os clubes exclusivos,
as mulheres… nada começava a lhe importar realmente. Havia algo que lhe
escapava, mas não tinha nem idéia do que era.
***
Kit despertou ante o som de uma voz masculina desconhecida. Sentia a
palha contra a bochecha, e por um momento acreditou estar de volta em casa,
no celeiro de Risen Glory. Então recordou que o tinham destruído.
— Por que não parte já, Magnus? Tiveste um dia comprido.
A voz vinha do outro lado da parede do estábulo. Era fria e profunda, sem
alargar as vogais, nem sussurrar as consoantes como falava a gente de sua
terra.
Piscou tratando de despertar. Tudo voltou para sua mente. Doce Jesus!
Dormiu no estabulo de Baron Cain. Incorporou-se lentamente sobre um
cotovelo, lamentando não poder ver mais. As indicações que lhe tinha dado a
mulher da balsa deviam estar equivocadas, porque era já de noite quando
encontrou a casa. Subiu a uma árvore e se aconchegou durante umas horas, mas
não ocorria nada e decidiu saltar o muro que rodeava a casa para ver melhor.
Enquanto caminhava pelo pátio viu uma construção de madeira com uma
janela, e decidiu entrar para investigar. Desgraçadamente o aroma tão familiar
a cavalos e palha fresca tinham sido superiores às suas forças, e dormiu na
parte de trás de um estábulo vazio.
— Planeja tirar Saratoga amanhã?
Esta era uma voz diferente, de tons familiares, o som evocador dos
escravos da plantação.
— É possível. Por quê?
— Não me parece que esteja ainda bem curada da pata. Melhor que lhe dê
um par de dias mais.
— Estupendo. Darei-lhe uma olhada amanhã. Boa noite, Magnus.
— Boa noite, Major.
Major? O coração de Kit deu um tombo. O homem da voz profunda era
Baron Cain! Deslizou-se à janela do estábulo e olhou pelo parapeito só para
vê-lo desaparecer no interior da casa acesa. Muito tarde. Tinha perdido a
oportunidade de conseguir dar uma olhada em sua cara. E tinha passado um dia
inteiro.
Durante um momento um nó traidor lhe prendeu a garganta. Não podia havê-
lo feito pior nem que o tivesse proposto. Era passada a meia-noite e estava em
uma cidade ianque estranha, e quase foi descoberto no primeiro dia. Tragou
intensamente e tratou de levantar seu decaído ânimo arrumando melhor o
chapéu sobre a cabeça. Não era inteligente chorar pelo leite derramado. O que
tinha que fazer agora era sair daqui e procurar um lugar para passar o resto da
noite. Amanhã seguiria com sua vigilância a partir de um lugar mais seguro.
Recolheu suas coisas, deslizou-se para as portas, e escutou. Cain tinha
entrado na casa, mas onde estava o homem chamado Magnus? Cautelosamente
empurrou a porta exterior e olhou.
A luz das janelas que se filtrava depois das cortinas caía sobre o terreno
que havia entre a casa e a quadra. Saiu lentamente e viu que tudo estava
deserto. Sabia que a porta de ferro do muro estaria fechada, de modo que
devia sair pelo mesmo lugar por onde tinha entrado. Os metros que tinha que
atravessar a intimidavam. Uma vez mais olhou para a casa. Então respirou
profundamente e pôs-se a correr.
No momento em que saiu da quadra, soube que algo não ia bem. O ar da
noite já não estava mascarado pelo aroma de cavalos, e levava o aroma débil,
inconfundível da fumaça de um cigarro.
Seu sangue correu depressa. Alcançou o muro e tentou subir, mas o ramo
que lhe ajudou ao descer lhe escorregou das mãos. Tentou desesperadamente
agarrar-se a outra, o pacote lhe caiu, mas ela pôde agarrar-se. Justo quando
alcançava o topo, algo puxou com força abaixo de suas calças. Ficou um
momento no ar, e logo depois de um golpe caiu de cara no chão. Sentiu o peso
de uma bota em cima de suas costas.
— Bem, bem, mas o que temos aqui? — disse o proprietário da bota
opressora.
A queda a tinha deixado um momento sem respiração, mas ainda
reconheceu essa voz profunda. O homem que a tinha cativa era seu inimigo
jurado, o Major Baron Nathaniel Cain.
Sua raiva cintilou e viu tudo vermelho. Apoiou-se com as mãos no chão e
lutou por levantar-se, mas ele não cedeu.
— Tire a bota de cima de mim, seu porco imundo!
— Não acredito que seja o momento ainda — disse ele com calma.
— Me solte! Me solte, agora mesmo!
— É bastante adoentado para ser um ladrão.
— Ladrão! — ultrajada golpeou os punhos contra o chão —. Nunca roubei
nada em minha vida. Se voltar a me chamar disso, eu lhe chamarei maldito
mentiroso.
— Então o que estava fazendo em meu estábulo? Isso a conteve em um. —
Rebuscou em seu cérebro para dizer uma desculpa que soasse convincente.
— Eu… vim olhar … olhar… para procurar trabalho em seu estábulo. Não
havia ninguém quando cheguei, e dormi.
Seu pé não cedeu.
— Quando despertei, já estava escuro. Então ouvi vozes e me assustei de
que alguém me visse e pensasse que estava tratando de fazer mal aos cavalos.
— Acredito que alguém que procura trabalho deveria ter suficiente bom
senso para bater na porta principal.
Isso também parecia a Kit.
— É que sofro de acanhamento — disse ela.
Ele riu entre dentes e levantou pouco a pouco o pé de suas costas.
— Vou permitir que te levante. Mas te arrependerá se sair correndo,
menino.
— Eu não sou um… — felizmente parou a tempo — Eu não vou sair
correndo. — emendou ficando lentamente de pé.
— Não fiz nada errado.
— Salvo entrar sem permissão, verdade?
Só então a lua apareceu entre as nuvens, e seu rosto deixou de ser uma
sombra ameaçadora, a não ser a de um homem de carne e osso. Conteve o
fôlego. Ele era alto, largo de costas e magro. Embora ela não prestasse
normalmente atenção a essas coisas, também era o homem mais bonito que já
tinha visto em sua vida. Levava o laço da gravata solto e as pontas
penduravam do pescoço aberto de sua camisa branca, com uns pequenos
botões de ônix. Usava calças negras e estava tranquilamente de pé, com uma
mão apoiada no quadril, e um charruto aceso ainda entre seus dentes.
— O que leva aí? — assinalou com a cabeça para a parede onde estava
atirado seu pacote.
— Nada que lhe importe!
— Mostre—me.
Kit queria desafiá-lo, mas não sabia se sairia vitoriosa, de modo que
agarrou o pacote de maus modos, colocou-o em cima da erva e o abriu.
— Uma muda de roupa, os Ensaios do senhor Emerson, e o revolver
Pettingill de meu pai de seis disparos — não disse nada do bilhete de trem
para voltar para Charleston que estava no interior do livro —. Nada que possa
lhe interessar.
— O que faz um moço como você lendo os Ensaios de Emerson?
— Sou um discípulo.
Os lábios de Cain tremeram ligeiramente.
— Tem dinheiro?
Ela se agachou para envolver seu pacote.
— Claro que tenho. Acredita que seria tão bobo para vir a uma cidade
estranha sem dinheiro?
— Quanto?
— Dez dólares — disse ela insolentemente.
— Não poderá viver muito em uma cidade como Nova Iorque com isso.
Seria inclusive mais crítico, se soubesse que em realidade só ficavam três
dólares e vinte e oito centavos.
— Hei-lhe dito que estou procurando trabalho.
— Sim, há-o dito.
Se ele não fosse tão grande. Odiou a si mesma enquanto dava um passo
atrás.
— Agora, será melhor que vá. Entrar em propriedade privada vai contra a
lei. Talvez te entregue à polícia.
Kit não gostou de ter que apoiar-se no muro, e levantou o queixo.
— Importa-me um nada o que faça. Não fiz nada errado.
Ele cruzou os braços sobre seu peito.
— De onde é, menino?
— De Michigan.
A princípio ela não entendeu seu estalo de risada, mas logo reconheceu seu
engano.
— Suponho que me descobriu. Realmente sou do Alabama, mas por causa
da guerra não estou ansioso de dizê-lo.
— Então melhor manter a boca fechada — ele riu entre dentes — Não é um
pouco jovem para levar essa pistola?
— Não vejo porquê. Sei como utilizá-la.
— Aposto que sabe — ele a estudou mais atentamente — Por que deixaste
sua casa?
— Ali não há trabalho.
— E seus pais?
Kit lhe repetiu a mesma história que tinha contado ao vendedor ambulante.
Quando terminou, ele levou um tempo pensando. Teve que controlar-se para
não retorcer-se.
— O menino do estábulo se foi a semana passada. Você gostaria de
trabalhar para mim?
— Para você? — murmurou ela fracamente.
— Exato. Deve acatar as ordens de meu homem de confiança, Magnus
Owen. Não tem a pele branca como as açucenas de modo que se isso for
ofender seu orgulho sulino, melhor me dizer isso agora e nos economizamos
tempo.
Como ela não respondeu, ele continuou.
— Pode dormir sobre a quadra e comer na cozinha. O salário é de três
dólares à semana.
Ela chutou o chão com o dedo de sua bota arrastando o pé. Sua mente corria
depressa. Se hoje tinha aprendido algo era que Baron Cain seria difícil de
matar, especialmente agora que tinha visto sua cara. Trabalhar em seu estábulo
a manteria perto dele, mas faria também seu trabalho duas vezes mais
perigoso.
Desde quando o perigo tinha sido um inconveniente? Ela colocou os
polegares na cintura de suas calças.
— Dois dólares mais ianque e terá um novo menino para o estábulo.
***

Seu quarto em cima do estábulo cheirava agradavelmente a cavalos, couro


e pó. Tinha uma cômoda e uma suave cama, uma rede de carvalho e um
descolorido tapete, além de uma pequena mesa com uma bacia que ela
ignorou. O mais importante era a janela que estava orientada para o norte da
casa, de modo que podia calcular as horas.
Esperou até que Cain partiu antes de tirar as botas e subir na cama. Apesar
de sua sesta no estábulo, estava cansada. Inclusive assim lhe custou conciliar o
sono. Em seu lugar se encontrou pensando como teria sido sua vida se seu pai
não tivesse feito essa viagem a Charleston quando ela tinha oito anos, o que
provocou seu segundo matrimônio.
No momento em que Garrett Weston conheceu Rosemary, ficou preso a ela,
embora fosse mais velha que ele e sua beleza estivesse já murchando-se.
Rosemary não tratou de ocultar que não suportava a sua menina, e o dia que
Garrett a levou a sua casa em Risen Glory, convenceu-lhe da necessidade de
ter intimidade , pois eram recém casados e enviou Kit com oito anos para
passar a noite em um barraco perto dos barracões dos escravos. Não permitiu
que Kit voltasse nunca mais para seu quarto.
Se esquecia que não tinha que estar pela casa, Rosemary lhe recordava
agarrando as orelhas ou lhe dando bofetadas, assim Kit se limitava a ir à
cozinha. As lições esporádicas que recebia de um professor, transferiram-se
ao barraco.
Garrett Weston nunca tinha sido um pai atento e não parecia dar-se conta de
que sua própria filha estava recebendo menos cuidados que os filhos de seus
escravos. Estava muito obcecado com sua formosa e sensual esposa.
Os vizinhos estavam escandalizados. Essa menina anda por aí correndo
como uma selvagem! Já seria mau se fosse um menino, mas inclusive um
parvo como Garrett Weston deveria dar-se conta que uma garota não pode
andar comportando-se assim.
Rosemary Weston não tinha nenhum interesse na sociedade local, e
ignorava os conselhos que lhe diziam que Kit necessitava uma governanta ou
roupa interior mais aceitável. Finalmente as mulheres do povoado deram a Kit
vestidos de suas filhas e tratavam de lhe ensinar a comportar-se como uma
senhorita. Kit ignorou os bate-papos e trocou os vestidos por roupas de moço.
Quando completou dez anos, sabia disparar, montar um cavalo em pelo e fumar
um charruto.
De noite, quando se inundava em sua solidão, pensava que seu coração
aventureiro não teria sobrevivido ao tipo de comportamento das garotas. Podia
subir aos pessegueiros da horta sempre que queria e balançar-se das cordas do
celeiro. Os homens da comunidade a ensinaram a montar e pescar, movia-se
furtivamente pela biblioteca, antes que sua madrasta descesse de seu
dormitório pela manhã e levava livros sem nenhuma censura. Se fazia uma
ferida no joelho ou tivesse uma lasca no dedo, sempre podia correr à cozinha
com Sophronia.
A guerra mudou tudo. Os primeiros disparos soaram no Fort Sumter um mês
antes de seu décimo quarto aniversário. Pouco tempo depois, Garrett Weston
pôs nas mãos de Rosemary a administração da plantação e se alistou no
exército Confederado. Posto que a madrasta de Kit nunca se levantava antes
das onze e odiava Risen Glory, a plantação caiu em decadência.
Kit, furiosa, tratou de tomar o lugar de seu pai, mas a guerra tinha acabado
com o mercado do algodão para o Sul, e ela era muito jovem para fazer-se
encarregada.
Os escravos fugiram. Mataram Garrett Weston em Shiloh. Amargamente Kit
recebeu a notícia, que tinha deixado a plantação à sua esposa. Kit só tinha um
fundo fiduciário que sua avó lhe tinha deixado fazia alguns anos, mas isso não
lhe solucionava nada.
Não muito depois os soldados ianques entraram em Rutherford, queimando
tudo em seu caminho. A atração inicial entre Rosemary e um jovem atraente
subtenente de Ohio e seu convite posterior a compartilhar sua cama, manteve
em pé a casa de Risen Glory embora não os arredores. A pouco tempo, Lee se
rendeu em Appomattox, e Rosemary morreu em uma epidemia de gripe.
Kit tinha perdido tudo. Seu pai, sua infância, sua forma de vida.
Somente tinha a terra. Só Risen Glory. E enquanto se aconchegava no fino
colchão em cima do estábulo de Baron Cain, se disse que era o único que
contava. Dormiu imaginando como seria quando Risen Glory fosse finalmente
dela.
***

Havia quatro cavalos nos estábulos, dois para o carro e dois para montar.
Uma parte da tensão de Kit, aliviou essa manhã quando acariciava o pescoço
de um elegante corcel, enquanto ele lhe acariciava o ombro. Tudo iria bem,
manteria os olhos abertos e esperaria o momento adequado. Baron Cain era
perigoso, mas ela tinha uma vantagem. Ela conhecia seu inimigo.
— Seu nome é Apolo.
— O que?
Deu-se a volta para encontrar um jovem negro de olhos grandes e
expressivos que estava de pé na porta que separava os estábulos do corredor
central do estábulo. Teria em torno de vinte e cinco anos e era alto, com uma
compleição leve, flexível. Um vira-lata branco e negro estava tranquilamente a
seu lado.
— Esse corcel. Seu nome é Apolo. É o cavalo favorito do Major.
— Não me diga — Kit abriu a porta e saiu do estábulo. O vira-lata a
cheirou enquanto o jovem a estudava criticamente.
— Sou Magnus Owen. O Major me disse que te contratou ontem à noite
depois que te pegou farejando fora dos estábulos.
— Eu não estava farejando. Não exatamente. Esse teu Major tem uma
natureza excessivamente receosa, isso é tudo — Olhou ao mestiço – Esse é seu
cão?
— Sim. Chama-se Merlín.
— Comporta-se como um cão que eu amava muito.
A testa alta e lisa de Magnus se franziu com indignação.
— O que quer dizer com isso, moço? Nem sequer conhece meu cão!
— Vi-lhe ontem pela tarde, perto desse muro. Se Merlín fosse um
verdadeiro guardião, teria me descoberto — Kit abaixou e lhe acariciou
distraidamente detrás das orelhas.
— Merlín não estava ontem pela tarde aqui — disse Magnus —. Estava
comigo.
— Oh. Bem, suponho que talvez esteja equivocada. Os ianques mataram
meu cão, Fergis. Era o melhor cão que tive. Ainda o choro.
A expressão de Magnus se adoçou um pouco.
— Como te chama?
Ela pensou um momento, então decidiu que seria mais fácil utilizar seu
próprio nome de batismo. Por cima da cabeça de Magnus viu uma lata de
Azeite Finney para os arnês de couro.
— Meu nome é Kit. Kit Finney.
— Um nome realmente curioso para um menino.
— Meus pais eram admiradores de Kit Carson, o lutador Injún.
Magnus pareceu aceitar sua explicação e logo foram fazer seu trabalho.
Mais tarde entraram na cozinha para o café da manhã, e lhe apresentou a ama
de chaves.
Edith Simmons era uma mulher sólida, com o cabelo escuro salpicado de
branco e voz forte. Era a cozinheira e a ama de chaves do proprietário anterior
e decidiu permanecer na casa quando descobriu que Baron Cain estava
solteiro e não havia nenhuma esposa para lhe dizer como fazer seu trabalho.
Edith acreditava na economia, a boa comida e a higiene pessoal. Ela e Kit
eram inimizades naturais.
— Este menino está muito sujo para comer com gente civilizada!
— Não vou discutir isso contigo — respondeu Magnus.
Kit estava muito faminta para discutir por nada tampouco, de modo que
caminhou com passo lento para a despensa e se lavou com água a cara e as
mãos, mas não tocou o sabão. Cheirava a menina e Kit tinha estado
combatendo todo o feminino durante mais tempo do que podia recordar.
Enquanto devorava o suntuoso café da manhã, estudou Magnus Owen. Da
maneira como a senhora Simmons lhe tratava, era evidente que era uma figura
importante na casa, insólito para um homem negro sob qualquer circunstância,
mas especialmente para um tão jovem. Algo despertou na memória de Kit, mas
não foi até que terminaram de comer quando compreendeu que Magnus Owen
recordava a Sophronia, a cozinheira de Risen Glory e a única pessoa a que Kit
amava no mundo. Tanto Magnus como Sophronia atuavam como se soubessem
tudo.
Sobreveio-lhe uma onda de nostalgia, mas a combateu com presteza. Logo
retornaria a Risen Glory, e levantaria a plantação da ruína.
Essa tarde quando terminou seu trabalho, sentou-se à sombra perto da porta
do estábulo, com um braço sobre o lombo de Merlín que havia dormido com o
nariz repousando em sua coxa. O cão não moveu um só músculo quando
Magnus se aproximou.
— Animal inútil — sussurrou ela —. Se viesse um assassino com uma
tocha, já estaria morto.
Magnus riu entre dentes e sentou a seu lado.
— Suponho que tenho que admitir que Merlín não é um grande cão
guardião. Mas ainda é jovem. Era só um cachorrinho quando o Major o
encontrou vagabundeando em um beco detrás da casa.
Kit só tinha visto a Cain uma vez esse dia, quando lhe ordenou bruscamente
selar a Apolo. Tinha sido muito cortante e altivo para saudá-la. Não que ela
quisesse que o fizesse. Simplesmente por cortesia.
Os periódicos ianques lhe chamavam o Herói do Missionary Ridge. Ela
sabia que tinha lutado em Vicksburg e Shiloh. Possivelmente fosse o homem
que tinha matado seu pai. Não parecia justo que ele estivesse vivo quando
tantos valentes soldados Confederados estavam mortos. E ainda era mais
injusto que enquanto seguisse respirando ameaçava a única coisa que lhe havia
ficado no mundo.
— Quanto tempo faz que conhece o Major? — perguntou ela
cautelosamente.
Magnus agarrou um pedaço de capim e começou a mastigá-lo.
— Desde a Chattanooga. Quase perdeu a vida ao salvar a minha. Estamos
juntos desde então.
Uma horrível suspeita começou a crescer no interior de Kit.
— Não lutou a favor dos ianques, não é verdade Magnus?
— Claro que lutei a favor dos ianques!
Ela não sabia por que estava tão desiludida, mas estava e Magnus deixou
de lhe agradar.
— Há-me dito que é da Georgia. Por que não lutou por seu estado natal?
Magnus tirou o capim da boca.
— É o cúmulo, menino. Senta-se aqui junto a um homem negro, e fresco
como uma alface lhe pergunta por que não combateu com a gente que lhe tinha
aprisionado. Tinha doze anos quando me liberaram. Mudei para o norte,
consegui um trabalho e fui à escola. Mas não era ainda livre, e sabe por que,
menino? Porque não havia um só homem negro neste país que se pudesse
considerar livre enquanto suas irmãs e irmãos no Sul seguiam sendo escravos.
— Não se tratava da escravidão — explicou ela pacientemente — Se
tratava do direito de governar sem interferências. A escravidão foi só
secundário.
— Pode ser secundário para ti, menino branco, mas não para mim.
As pessoas negras sim que eram suscetíveis, pensou ela quando ele se
levantou e se foi. Mais tarde enquanto preparava a segunda comida para os
cavalos, ainda estava ruminando sua conversa anterior. Recordou a vários
bate-papos que tinha tido com Sophronia.
Cain chegou com Apolo e desmontou com um movimento insolitamente ágil
para um homem de seu tamanho.
— Atende-o imediatamente, menino. Não quero que o cavalo adoeça –
lançou a Kit a rédea e com grandes pernadas começou a caminhar para a casa.
— Conheço meu trabalho — gritou ela —. Não necessito que nenhum
ianque me diga como atender a um cavalo quente e suarento.
Mal as palavras saíram de sua boca, desejou ter podido morder a língua. Só
era quarta-feira e não podia arriscar-se a que a jogassem ainda.
Já sabia que no domingo era a única noite que a senhora Simmons e Magnus
não dormiam na casa. A senhora Simmons tinha o dia livre e ficava com sua
irmã, e Magnus passava a noite no que a senhora Simmons descrevia como um
modo bêbado e vicioso, inadequado para ouvidos jovens. Kit precisava calar
a boca durante quatro dias. Então quando chegasse no domingo de noite,
entraria para matar o bastardo ianque que tinha girado e a olhava com esses
frios olhos cinzas.
— Se acha que seria mais feliz trabalhando para outra pessoa, posso
encontrar outro menino para os estábulos.
— Não hei dito que queira trabalhar para outra pessoa — murmurou ela.
— Então possivelmente fosse melhor que tentasse calar a boca.
Ela deu um golpe no chão com a ponta poeirenta de sua bota.
— E, Kit ?
— Sim?
— Tome um banho. As pessoas se queixam de como cheira.
— Um banho! — a atrocidade quase estrangulou Kit e apenas pôde manter a
compostura.
Cain parecia estar desfrutando.
— Há algo mais que queira me dizer?
Ela apertou os dentes e pensou no tamanho do buraco de bala que pretendia
deixar em sua cabeça.
— Não, senhor — murmurou ela.
— Então necessitarei o carro na porta dianteira em meia hora.
Enquanto levava Apolo para os estábulos, ia soltando uma grande
quantidade de blasfêmias. Matar a esse ianque ia agradar mais que qualquer
coisa que já tivesse feito em seus dezoito anos. O que importava a ele se
banhava ou não se banhava? Não gostava dos banhos. Todo mundo sabia que
eram a sala de espera da gripe. Além disso para isso tinha que despir-se, e
odiava ver seu corpo desde que lhe tinham crescido uns peitos que não
encaixavam com o que ela queria ser.
Um homem. As garotas eram débeis e suaves, por isso tinha apagado todo
rastro feminino nela para parecer dura e forte como qualquer homem. Sempre
que não esquecesse isso, tudo iria bem.
Ainda se sentia indisposta enquanto estava de pé diante das cabeças dos
dois cavalos cinzas e esperava que Cain saísse da casa. Tinha lavado um
pouco a cara e trocou de roupa, embora também estava suja, portanto não
havia muita diferença.
Quando Cain desceu as escadas da casa, olhou os calções remendados e a
descolorida camisa azul de seu menino de estábulo. Se fosse possível, parecia
que o menino tinha pior aspecto. Estudou o que podia ver do rosto do moço
debaixo desse chapéu rasgado e pensou que o queixo possivelmente estava um
pouco mais limpo. Provavelmente não deveria ter contratado ao vadio, mas o
menino o fazia sorrir mais que qualquer pessoal que recordasse.
Desgraçadamente a atividade vespertina seria menos divertida. Desejou
não haver-se deixado convencer a dar um passeio com Dora pelo Central
Park. Embora os dois conhecessem as regras desde o começo, suspeitava que
ela queria uma relação mais permanente, e trataria de tirar partido da
privacidade que oferecia o passeio para lhe pressionar. A menos que tivessem
companhia...
— Sobe detrás menino. É hora de que veja algo da cidade de Nova York.
— Eu?
Ele sorriu ante o assombro do menino.
— Não vejo por aqui ninguém mais. Necessito que alguém segure os
cavalos para mim — e evite um convite de Dora para ser um membro
permanente da família Van Ness.
Kit olhou fixamente ao ianque de olhos cinzas, olhos de rebelde assassino e
tragou com força. Depois subiu ao assento de couro estofado. Quanto menos o
tivesse em frente, menos probabilidades tinha de criticar.
Enquanto conduzia agilmente através das ruas, Cain ia assinalando as
atrações da cidade e seu prazer pelos novos monumentos começou a superar
sua prudência. Passaram pelo famoso restaurante Delmonico’s e o Teatro
Wallach, onde Charlotte Cushman aparecia no Oliver Twist. Kit observou as
pessoas elegantemente vestidas sair das lojas e os hotéis que rodeavam a
exuberante vegetação da Madison Square, e ao norte admirou as elegantes e
imponentes mansões.
Cain parou o carro diante de uma delas.
— Cuida dos cavalos, menino. Não demorarei muito.
Ao princípio a Kit não incomodou esperar. Estava absorta observando as
majestosas mansões e as estupendas carruagens que passavam com pessoas
bem vestidas em seu interior. Mas então se lembrou de Charleston reduzida a
escombros, e a familiar amargura se renovou dentro dela.
— É um dia perfeito para passear. E tenho uma história divertidíssima que
te contar.
Kit se virou e viu uma elegante mulher de cachos loiros e boca bonita,
fazendo uma careta enquanto descia os degraus da entrada, de braço dado com
Cain. Ia vestida com um vistoso vestido rosa e levava uma sombrinha de renda
branca para proteger sua pálida pele do sol da tarde. Completava o traje um
pequeno chapéu que parecia espuma na parte alta de sua cabeça. Kit a detestou
à primeira vista.
Cain ajudou à mulher a subir ao carro e a acomodar suas saias. A opinião
de Kit sobre ele caiu ainda mais baixo. Se este era o tipo de mulher que ele
gostava, não era tão inteligente como tinha pensado.
Pôs a bota no degrau de ferro e passou para o assento traseiro. A mulher se
virou com assombro.
— Baron, quem é esta criatura asquerosa?
— Quem aqui é asquerosa? — Kit incorporou no assento, com os punhos
em posição de briga.
— Sente-se — disse Cain.
Ela lhe olhou airadamente, mas sua expressão de rebelde assassino não
piscou. A contra gosto, afundou-se de novo no assento, e ficou a olhar
fixamente esse tolo e coquete chapeuzinho branco e rosa.
Cain deslizou suavemente a carruagem pelo tráfego.
— Kit é meu menino de estábulo, Dora. Levo-o para que fique com os
cavalos em caso que queira passear a pé pelo parque.
As fitas do chapeuzinho de Dora dançaram.
— Faz muito calor para caminhar.
Cain encolheu de ombros. Dora ajustou sua sombrinha e permaneceu em um
silêncio que denotava indignação, mas para satisfação de Kit, Cain não prestou
nenhuma atenção.
À diferença de Dora, Kit não era propensa a zangar-se, e desfrutou do
prazer de uma brilhante tarde de verão e dos monumentos que ele seguia lhe
assinalando. Esta era certamente a única oportunidade que teria de ver a
cidade de Nova Iorque, e embora tivesse de guia a seu inimigo jurado,
pensava desfrutá-lo.
— Este é o Central Park.
— Não entendo por que o chamam assim. Qualquer idiota pode ver que está
ao norte da cidade.
— Nova Iorque está crescendo muito depressa — disse Cain — Agora
mesmo não há nada ao redor do parque. Uns barracos, alguma granja. Mas
dentro de poucos anos haverá edifícios por toda parte.
Kit estava a ponto de expressar seu ceticismo quando Dora virou em seu
assento e a olhou com uma luz deslumbradoramente abrasadora. A mensagem
dizia claramente que Kit não devia abrir outra vez a boca.
Com um sorriso afetado em seu rosto, Dora voltou para Cain e tocou seu
antebraço com uma mão enluvada em malha rosa.
— Baron, tenho uma história muito divertida para contar de Sugar Plum.
— Sugar o que?
— Já sabe. Meu querido cachorro de raça pug.
Kit fez uma careta e tornou para trás no assento. Olhou o jogo de luzes
enquanto o carro passava por um caminho rodeado de árvores que corria
através do parque. Outra vez se encontrou observando o chapeuzinho de Dora.
Por que levaria alguém algo tão tolo? E por que não podia separar os olhos
dele?
Um landó negro com duas mulheres sentadas passou em direção contrária, e
Kit observou com que descaramento olhavam a Cain. Parecia que todas as
mulheres se voltavam parvas a seu redor. Ele sabia como dirigir os cavalos,
isso tinha que reconhecê-lo. Embora sem dúvida não era isso o que atraía a
essas mulheres.
Estavam interessadas nele como homem.
Tratou de estudá-lo objetivamente. Era bonito o filho da puta, não havia
dúvida disso. Seu cabelo era da mesma cor do trigo antes da colheita, e se
frisava um pouco no pescoço. Quando virou para fazer um comentário a
Doura, seu perfil ficou definido contra o céu, e ela decidiu que havia algo
pagão nele , como um desenho que tinha visto de um viking… uma sobrancelha
suave, elevada, um nariz reto e uma mandíbula firme.
— ...então Sugar Plum empurrou longe o bombom de framboesa com seu
nariz e em seu lugar escolheu um de limão. Não é a coisa mais doce que já
escutou?
Pugs e bombons de framboesa. A mulher era uma maldita parva. Kit
suspirou em voz alta. Cain se voltou para trás.
— Acontece algo?
Ela tratou de ser cortês.
— Eu não gosto muito dos pugs.
A comissura da boca de Cain tremeu visivelmente.
— E isso por que?
— Quer minha sincera opinião?
— Oh, é obvio.
Kit lançou um olhar de repulsão à costas de Dora.
— Os pugs são uns cães mariquinhas.
Cain riu entre dentes.
— Este menino é um impertinente!
Cain ignorou Dora.
— Prefere os vira latas, Kit ? Observei que passas muito tempo com
Merlin.
— Merlin passa o tempo comigo, não ao contrario. E não me importa o que
diz Magnus: “Este cão é mais inútil que um espartilho em um bordel”.
— Baron!
Cain fez um estranho ruído com a boca antes de recuperar a serenidade.
— Possivelmente deveria te lembrar que há uma dama presente.
— Sim, senhor — murmurou Kit, embora acreditava que não havia dito
nada errado.
— Este menino não conhece seu lugar — disse Dora baixinho — Eu
despediria a qualquer criado que se comportasse de forma tão extravagante.
— Então suponho que é bom que trabalhe para mim.
Ele não tinha elevado a voz, mas a advertência era clara e Dora
avermelhou. Estavam se aproximando do lago, e Cain deteve a carruagem.
— Meu menino de estábulo não é um criado comum. — continuou ele, com
tom ligeiro — É discípulo de Ralph Waldo Emerson.
Kit deixou de olhar ao longe a uma família de cisnes que deslizavam entre
as canoas para ver se ele estava se burlando dela, mas não parecia. Em seu
lugar ele pôs o braço sobre as costas do assento de couro e se virou para olhá-
la.
— O único escritor que conhece é o senhor Emerson, Kit?
A cara indignada de Dora pôs Kit faladora.
— Oh não, leio tudo o que cai em minhas mãos. Ben Franklin certamente,
embora todo mundo o lê. Thoreau, Jonathan Swift, Edgar Allan Poe, quando
estou de humor. Eu não gosto muito de poesia, mas do resto geralmente tenho
um apetite voraz.
— Já vejo. Possivelmente não tem lido aos poetas adequados. Walt
Whitman por exemplo.
— Nunca ouvi falar dele.
— É um nova-iorquino. Trabalhou como enfermeiro durante a guerra.
— Não acredito que possa suportar a um poeta ianque.
Cain levantou uma sobrancelha divertido.
— Decepciona-me. Certamente um intelectual como você não pode permitir
que esses preconceitos interfiram para desfrutar da grande literatura.
Ele estava rindo dela, e sentiu borbulhar sua raiva.
— Estou surpreso que até recorde o nome de um poeta, Major, a verdade é
que não tem muita pinta de leitor. Mas suponho que isso é comum nos homens
tão grandes. Tantos músculos em seus corpos, e não exercitam muito o cérebro.
— Impertinente! — Dora olhou a Cain, que a ignorou e estudou a Kit mais
atentamente. O menino tinha garra, não havia dúvida. Não podia ter mais de
treze anos, a mesma idade que Cain tinha quando escapou. Mas então Cain
quase tinha alcançado já sua altura adulta, enquanto Kit era pequeno, pouco
mais de metro e cinquenta.
Cain fixou em quão delicados eram os olhos do sujo menino: O rosto em
forma de coração, o pequeno nariz com uma decidida inclinação ascendente, e
esses olhos violetas rodeados de espessas pestanas. Eram o tipo de olhos
formosos em uma mulher, mas pareciam desconjurados em um menino e o
seriam inclusive mais quando Kit crescesse e se fizesse um homem.
Kit rechaçou acovardar-se sob seu escrutínio, e Cain reconheceu uma faísca
de admiração. A delicadeza de suas características tinha provavelmente algo
de relação com sua garra. Um menino de aspecto tão delicado haveria tido que
defender-se de muitas pelejas. Todavía era muito jovem para valer-se por si
mesmo, e Cain sabia que deveria levá-lo a um orfanato. Mas inclusive
enquanto considerava a idéia, sabia que não o faria. Havia algo em Kit que
recordava ele na sua idade. Tinha sido firme e tenaz andando pela vida
confrontando-a sem um hesitação. Seria como cortar as asas de um pássaro,
encerrar este menino em um orfanato. Além disso era bom com os cavalos.
A necessidade de Dora de estar sozinha com ele superou finalmente sua
aversão a fazer exercício, e lhe pediu pra passear pelo lago. Ali se
desenvolveu a incômoda e previsível cena que esperava. Era por sua culpa.
Tinha deixado que o sexo superasse a seu bom senso.
Foi um alívio voltar para carruagem onde Kit tinha começado uma conversa
com o homem que alugava as canoas e duas senhoras da noite brilhantemente
maquiadas para um passeio antes de ir trabalhar.
***

Essa noite, depois de jantar, Kit tombou em seu lugar favorito ao lado da
porta do estábulo, com o braço apoiado nas cálidas costas de Merlin.
Encontrou-se recordando algo estranho que lhe havia dito Magnus fazia um
momento enquanto admirava Apolo.
— O Major logo se desprenderá dele.
— Por que? — havia dito ela —. Apolo é incrivelmente formoso.
— É obvio que é. Mas o Major não fica muito com as coisas que gosta.
— O que quer dizer com isso?
— Dá de presente seus cavalos e seus livros antes de poder estar muito
apegado a eles. É sua forma de ser.
Kit não podia imaginá-lo. Eram as coisas que lhe mantinham ancorado à
vida. Mas possivelmente o Major não queria estar ancorado a nada.
Tocou o cabelo sob seu chapéu, e uma imagem do chapeuzinho rosa e
branco de Dora Van Ness lhe chegou à mente. Era tolo. O chapéu não era nada
mais que umas poucas partes de seda e renda. Mas não podia afastar de sua
mente. Continuou imaginando que aspecto teria ela usando essa roupa.
O que estava lhe acontecendo? Tirou o chapéu rasgado e o golpeou
bruscamente contra o chão. Merlin levantou a cabeça e a olhou com surpresa.
— Não acontece nada, Merlin. Todos estes ianques estão colocando idéias
estranhas em minha cabeça. Como se necessitasse a distração de pensar em
chapeuzinhos.
Merlín a olhou com atenção com seus sentimentais olhos castanhos. Não
gostava de admitir, mas lhe ia sentir falta quando fosse para casa. Pensou em
Risen Glory. Dentro de um ano, teria a velha plantação levantada.
Decidindo que a misteriosa crise humana tinha terminado, Merlin voltou a
pôr a cabeça sobre sua coxa. Distraídamente Kit manuseou uma de suas largas
e sedosas orelhas. Odiava esta cidade. Adoeciam-na os ianques e o som do
tráfego, inclusive de noite. Desgostava-a ter que levar esse asqueroso chapeu
e, sobretudo, zangava-a que todos a chamassem “menino”.
Que ironia. Toda sua vida tinha odiado tudo o que tinha a ver com o
feminino, mas agora que todo mundo pensava que era um menino, também o
odiava. Possivelmente era uma espécie de mutante.
Tocou distraidamente as pontas de seu cabelo sujo. Quando o bastardo
ianque a tinha chamado hoje de menino, havia se sentido mais que doente. Ele
era tão arrogante, estava tão seguro de si. Fixou-se nos olhos chorosos de
Dora depois que voltaram de seu passeio pelo lago. A mulher era parva, mas
Kit havia sentido um instante de simpatia por ela. De formas distintas, mas as
duas sofriam por culpa dele.
Acariciou com os dedos o lombo do cão e repassou seu plano. Não era
infalível, mas em geral, estava satisfeita. E decidida. Certamente só teria uma
oportunidade para matar a esse demônio ianque, e não tinha intenção de falhar.
À manhã seguinte Cain lhe atirou uma cópia de Folhas de erva de Walt
Whitman.
— Fique com isto.
2
Hamilton Woodward estava de pé quando Cain passou pelas portas de
mogno de seu escritório privado de advocacia. De modo que este era o famoso
Herói do Missionary Ridge, o homem que estava esvaziando os bolsos dos
financistas mais ricos de Nova Iorque. Não ia vestido muito chamativo, o que
dizia muito a seu favor. Seu colete listrado e a gravata marrom escuro
pareciam caros, mas conservadores e sua levita cinza pérola lhe adaptava à
perfeição. De todas as formas havia algo não exatamente respeitável neste
homem. Era algo mais que sua reputação, embora isso era algo indesculpável.
Possivelmente era a forma como andava, como se fosse o dono do lugar onde
acabava de entrar.
O advogado deu a volta a seu escritório e lhe ofereceu a mão.
— Como está senhor Cain? Sou Hamilton Woodward.
— Senhor Woodward.
Enquanto Cain lhe estreitava a mão, avaliava-o mentalmente. Era um
homem obeso de meia-idade, competente, pomposo. Provavelmente um
jogador de pôquer lamentável.
Woodward indicou uma poltrona de couro diante de seu escritório.
— Lamento lhe haver avisado com tão pouco tempo, mas já se atrasou este
assunto mais do que o normal. E não por minha culpa, tenho de acrescentar.
Apenas me inteirei ontem, e lhe asseguro que ninguém neste despacho é tão
arrogante para ter evitado um assunto tão importante. Especialmente quando
concerne a um homem ao qual todos estamos em dívida. Por sua coragem na
guerra.
— Sua carta dizia somente que queria falar comigo de algo de vital
importância — lhe interrompeu Cain. Desgostava-lhe as pessoas que
elogiavam suas façanhas na guerra, como se o que tinha feito pudesse
escrever-se em uma carta e pendurá-la para que todos pudessem lê-la.
Woodward agarrou uns óculos e colocou os arames detras das orelhas.
— Você é o filho de Rosemary Simpson Cain... ultimamente Rosemary
Weston?
Cain como bom jogador de pôquer tinha aprendido a esconder seus
sentimentos, mas agora foi difícil não demonstrar as feias sensações que lhe
embargaram.
— Não sabia que voltou a casar, mas sim esse é o nome de minha mãe.
— Era seu nome, quer dizer? — Woodward lhe estendeu um papel.
— Ela está morta então? — Cain não sentiu nada. A rechonchuda mandíbula
do advogado tremeu como lamentando-se.
— Sinto muito. Pensava que sabia. Morreu faz quase quatro meses. Me
perdoe por lhe haver dado a notícia tão bruscamente.
— Não se incomode em desculpar-se. Não vi a minha mãe desde que tinha
dez anos. Sua morte não me diz nada.
Woodward removeu os papéis ante ele, parecendo não saber o que
responder a um homem que reagia tão friamente ante a morte de sua mãe.
— Eu, uh, tenho uma carta que me enviou um advogado de Charleston de
nome W. D. Ritter que representava sua mãe — esclareceu a garganta — O
senhor Ritter me informa que contate com você para lhe entregar as últimas
vontades de sua mãe.
— Não tenho interesse.
— Sim, bom, isso já o veremos. Faz dez anos que sua mãe se casou com um
homem chamado Garrett Weston. Ele era o proprietário de Risen Glory, uma
plantação de algodão não longe de Charleston, e quando lhe mataram em
Shiloh, deixou-lhe a plantação a sua mãe. Faz quatro meses ela morreu de
gripe, e parece que lhe deixou a plantação.
Cain não demonstrou sua surpresa.
— Não vi a minha mãe em dezesseis anos. Por que faria algo assim?
— O senhor Ritter incluiu uma carta que lhe escreveu pouco antes de
morrer. Talvez lhe explique os motivos — Woodward tirou uma carta selada
da pasta e a pôs diante dele em cima da mesa. Cain a agarrou e a meteu no
bolso de seu casaco.
— O que sabe da plantação?
— Aparentemente era bastante próspera, mas a guerra a deixou em ruínas.
Com trabalho, poderia levantar. Desgraçadamente não há dinheiro junto a este
legado. E também está o tema da filha de Weston, Katharine Louise.
Agora Cain não se incomodou em esconder sua surpresa.
— Está me dizendo que tenho uma meia—irmã ?
— Não, não. Ela não é sua meia—irmã. Não há relação de sangue. A garota
é a filha de Weston de um matrimônio anterior. Entretanto, lhe concerne.
— Não posso imaginar porquê.
— Sua avó lhe deixou muito dinheiro, felizmente em um banco do Norte.
Quinze mil dólares, para ser exato, mas não poderá fazer uso deles até que
faça vinte e três anos ou se case, o que ocorra primeiro. Você foi renomado
seu administrador e tutor.
— Tutor! — Cain explodiu e se incorporou de repente na poltrona de
couro.
Woodward se encolheu em sua própria cadeira.
— O que podia fazer sua mãe? A garota mal tem dezoito anos. Há uma
substancial soma em dinheiro comprometido e nenhum outro familiar.
Cain se inclinou para frente sobre a reluzente superfície de mogno do
escritório.
— Não vou agarrar a responsabilidade de uma garota de dezoito anos ou
uma plantação de algodão em decadência.
Woodward fez uma careta.
— É sua decisão, certamente, e estou de acordo em que um homem tão...
mundano como você tenha a tutela de uma jovem dama é algo irregular.
Quando for a Charleston para inspecionar a plantação, pode falar com o
senhor Ritter e lhe comunicar a ele sua decisão.
— Não há nenhuma decisão — disse Cain categoricamente — Não pedi
esta herança e não a quero. Escreva a seu colega Ritter e ordene-lhe que
encontre a outro pardal.
***

Cain estava de péssimo humor quando chegou em casa, e não melhorou


quando seu menino de estábulo não foi lhe ajudar com o carro.
— Kit? Onde diabos está? — chamou-lhe duas vezes antes que o menino
aparecesse —. Maldito seja! Se trabalhar para mim, quero que esteja
preparado quando te necessito. Não me deixe esperando nunca mais!
— Saudações também — se queixou Kit.
Saltou do carro ignorando-o e atravessou a pernadas o pátio até a casa.
Uma vez dentro, encerrou-se na biblioteca e jogou uísque em um copo. Só
depois de toma-lo, tirou a carta que Woodward lhe tinha dado e rompeu o selo
de cera vermelho. Dentro havia uma só folha coberta de uma pequena letra
quase indecifrável.

6 De março de 1865
Querido Baron Posso imaginar sua surpresa ao receber minha carta
depois de tantos anos, embora seja uma carta da tumba. Um pensamento
morboso. Não estou preparada para morrer. Mas a febre não remete, e temo
o pior. E enquanto tenho forças, tentarei arrumar os assuntos que
abandonei.
Se esperas de mim uma desculpa, não receberá nenhuma. A vida com seu
pai foi excepcionalmente aborrecida. Eu não sou uma mulher maternal e
você foi um menino muito rebelde. Muito duro para mim. Embora tenha que
reconhecer que segui suas façanhas através dos periódicos com algum
interesse. Eu adorei me inteirar que lhe consideram um homem importante.
Entretanto, não quero te falar disso agora. Queria a meu segundo
marido, Garrett Weston, que me fez a vida muito agradável, e é por ele por
quem te escrevo esta carta. Embora nunca pude suportar a sua andrógina
filha Katharine, suponho que compreendo que necessita alguém que a
proteja até que seja maior de idade. portanto te deixo Risen Glory com a
esperança que seja seu tutor. Possivelmente recuse. Embora a plantação foi
uma vez a mais próspera da rgião, a guerra destruiu tudo.
Independentemente de sua decisão, eu descarreguei minha
responsabilidade.
Sua mãe Rosemary Weston Depois de dezesseis anos, isso era tudo.
***

Kit escutou os sinos do relógio da igreja Metodista do edifício do lado,


enquanto se ajoelhava diante da janela aberta e olhava com atenção para a
escura casa. Baron Cain não viveria para ver o amanhecer.
O ar crepuscular era pesado e metálico, anunciando uma tormenta, e ainda
quando seu quarto estava ainda quente do calor da tarde, Kit tremia. Odiava as
tormentas, sobretudo de noite. Talvez se tivesse tido um pai para refugiar-se
nele quando era menina, seu medo teria passado.
Em troca, havia se aconchegado em seu barraco perto dos barracões dos
escravos, só e aterrorizada, segura que a terra se abriria a qualquer momento e
a tragaria.
Cain tinha chegado finalmente à casa fazia meia hora. A senhora Simmons,
as criadas e Magnus estavam fora durante toda a noite, de modo que estava na
casa só, e logo que dormisse, o momento seria o ideal.
O retumbar distante de um trovão a acovardou. Tratou de convencer-se que
a tormenta faria seu trabalho mais fácil. Esconderia qualquer ruído que ela
pudesse fazer quando entrasse na casa através da janela da despensa que tinha
deixado aberta horas antes. Mas o pensamento não a consolou. Em seu lugar se
imaginou correndo por essas ruas estranhas e escuras com uma tormenta a seu
redor. E que a terra se abriria e a tragaria.
Saltou quando se iluminou o quarto com outro relâmpago. Para distrair-se,
tratou de concentrar-se em seu plano. Tinha limpado e lubrificado o revólver
de seu pai e havia relido “Confiança em si mesmo” do senhor Emerson para
infundir-se coragem. Logo tinha feito uma trouxa com suas posses e a tinha
escondido detrás da casa para poder agarrá-la rapidamente.
Depois que matasse Cain, iria para o cais pela rua Cortlandt onde agarraria
a primeira balsa para Jersey City. Ali pegaria um trem para Charleston,
sabendo que o longo pesadelo que tinha começado quando falou com esse
advogado de Charleston tinha terminado definitivamente. Com Cain morto a
vontade de Rosemary não teria efeito, e Risen Glory seria dela. Tudo o que
devia fazer era pegá-lo em seu dormitório, lhe apontar com a pistola e apertar
o gatilho.
Estremeceu-se. Em realidade, nunca tinha matado um homem, mas não
podia pensar em estrear-se com alguém melhor que Baron Cain.
Deveria estar já dormido. Era o momento. Agarrou o revólver carregado e
desceu com cuidado os degraus, para não perturbar Merlin enquanto deixava o
estábulo. O som de outro trovão a fez encolher-se junto à porta. dissese que
não era uma menina e caminhou pelo pátio para a casa, agachando-se em uns
arbustos ao chegar à janela da despensa.
Colocou o revólver na cintura de suas calças e tratou de abrir a janela. Não
cedeu.
Empurrou outra vez mais forte, mas não ocorreu nada. A janela estava
fechada. Aturdida se apoiou na parede. Sabia que seu plano não era infalível,
mas não esperava fracassar tão cedo. A senhora Simmons devia ter visto o
fecho aberto.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair. Kit quis correr de novo
para seu quarto e esconder-se sob os lençóis até que a tormenta passasse, mas
animou a si mesma, e rodeou a casa para procurar outra entrada. A chuva
começou a cair mais intensamente golpeando-a através da camisa. Os ramos
de um bordo se moviam com o vento. Subindo a uma delas poderia entrar por
uma janela do segundo piso.
Seu coração palpitava. A tormenta rugia em cima dela e seu fôlego se
converteu em ofegos assustados. Forçou-se a agarrar um ramo e impulsionar-
se para cima. Um relâmpago partiu o céu e a árvore tremeu. Ela se agarrou ao
ramo, aterrada pela força da tormenta e amaldiçoando-se por ser tão covarde.
Apertando os dentes, obrigou-se a subir até o mais alto. Finalmente conseguiu
chegar ao ramo que estava mais perto da casa, embora a intensa chuva lhe
impedia de medir a distância.
Choramingou quando outro trovão deixou o aroma de enxofre no ar. Não me
trague! Começou a deslocar-se pouco a pouco pelo ramo. O vento movia o
ramo que estava começando a ceder sob seu peso.
O céu se iluminou com outro relâmpago. Justo então viu que o ramo não
estava o bastante perto para alcançar a janela. O desespero a empapou mais
ainda.
Piscou, limpou o nariz com a manga, e começou a ir para trás no ramo.
Quando chegou ao chão, um trovão se ouviu tão perto que lhe doeram os
ouvidos. Tremendo se apoiou de costas no tronco. A roupa lhe pegava à pele,
e a asa de seu chapéu pendurava como uma folhinha empapada ao redor de sua
cabeça. As lágrimas que estava lutando por conter lhe queimavam nas
pálpebras. Era assim como acabaria tudo? Perderia Risen Glory porque era
muito fraca, muito garotinha para entrar em uma casa?
Saltou quando algo lhe tocou as pernas. Merlin a olhava com atenção, com
a cabeça inclinada para um lado. Ficou de joelhos e enterrou a cara nessa
pelagem úmida e mofada.
— Você vira-lata... — seus braços tremeram quando rodeou com eles o
animal — Sou tão inútil como você.
Ele lambeu sua bochecha úmida com sua áspera língua. Outro relâmpago a
sobressaltou. O cão ladrou e Kit ficou rápido de pé, cheia de determinação.
Risen Glory era dela! Se não podia entrar na casa através de uma janela, o
faria pela porta!
Enlouquecida pela tormenta e seu próprio desespero, correu depressa para
a porta traseira, combatendo o vento e a chuva muito desesperada para prestar
atenção à voz interior que lhe ordenava abandonar e tentar outro dia. Lançou-
se contra a porta, e quando o ferrolho não cedeu, começou a esmurrá-la com
seus punhos.
As lágrimas de ira e frustração a estrangulavam.
— Me deixe entrar! Me deixe entrar, ianque filho da puta!
Nada ocorreu.
Ela continuou a esmurrar, amaldiçoando e dando patadas com o pé. Um
relâmpago voltou a iluminar o céu e moveu o galho que antes lhe protegia. Kit
gritou e se lançou de novo para a porta. Diretamente nos braços de Baron
Cain.
— Que demônios …
O calor de seu peito nu, quente da cama gotejou através de sua camisa fria,
úmida, e durante um momento, tudo o que quis fazer foi ficar onde estava,
contra ele, até que deixasse de tiritar.
— Kit, o que aconteceu? — agarrou-a pelos ombros — Ocorreu algo?
Ela deu um passo atrás. Desgraçadamente Merlin estava detrás dela.
Tropeçou com ele e caiu no duro chão da cozinha. Caín estudou o montão
enredado que havia ante seus pés. Sua boca se torceu.
— Suponho que esta tormenta é muito para ti.
Ela tratou de lhe dizer que podia ir-se diretamente ao inferno, mas seus
dentes tocavam castanholas, tanto que era impossível falar. Cravou—se o
revólver na queda, e sentiu uma dor afiada no quadril.
Cain passou sobre eles para fechar a porta. Desgraçadamente Merlin
escolheu esse momento para separar-se.
— Vira-lata ingrato — Cain agarrou uma toalha de um gancho perto da pia
e começou a passá-la sobre seu peito.
Kit compreendeu que seu revólver seria visível sob suas roupas logo que
ela se levantasse. Enquanto Cain estava preocupado em secar-se ela o tirou
das calças e o escondeu detrás de uma cesta de maçãs perto da porta traseira.
— Não sei qual dos dois está mais assustado. — disse Cain enquanto via
Merlin sair da cozinha e dirigir-se ao corredor que dirigia ao quarto de
Magnus — Mas desejaria que tivesse estado quietinho em sua cama até
amanhã.
— Asseguro-te que não me assusto com essa maldita tormenta — lhe
respondeu Kit.
Nesse momento soou outro trovão e ela ficou rapidamente de pé com uma
mortal palidez em seu rosto.
— Então estava equivocado. — ele falou arrastando as palavras.
— Só porque eu… — calou-se e tragou no momento que pôde vê-lo inteiro.
Estava quase nu, só levava umas calças de cor parda por debaixo dos
quadris, com os dois botões superiores sem fechar por sua pressa por chegar à
porta. Ela estava acostumada a ver homens com pouca roupa trabalhando no
campo ou na serraria, mas agora sentia como se nunca tivesse visto nenhum.
Seu peito era largo e musculoso, ligeiramente peludo. Uma cicatriz de uma
navalhada lhe atravessava um ombro e outra sobressaía sobre o nu abdômen
da cintura aberta de suas calças. Seus quadris eram estreitos e o estômago
plano, bifurcado por uma fina trilha de cabelo ruivo leonado. Seus olhos se
moveram lentamente mais abaixo ao ponto que suas pernas se juntavam. O que
viu ali a fascinou.
— Te seque você mesmo.
Ela levantou a cabeça e o viu olhando-a com atenção, com uma toalha
estendida em sua mão, e uma expressão perplexa. Ela agarrou a toalha e se
secou sob o bordo de seu chapéu dando um ligeiro golpe em suas bochechas.
— Poderia fazê-lo melhor se tirasse esse chapéu.
— Não quero tirar. — ela fez um ruído inquieto por sua reação — Eu gosto
do meu chapéu.
Com um grunhido de exasperação, ele se dirigiu ao vestíbulo, só para
reaparecer com uma manta.
— Tire essa roupa molhada. Pode te envolver com isto.
Ela olhou com atenção à manta e depois a ele.
— Não penso tirar minha roupa!
Cain franziu o cenho.
— Está gelado.
— Não estou gelado!
— Seus dentes estão tocando castanholas.
— Não é certo!
— Maldição, menino, são três da manhã, perdi duzentos dólares no pôquer
esta noite e estou malditamente cansado. Agora tire essa asquerosa roupa de
modo que possamos ir dormir. Pode ficar no quarto de Magnus esta noite, e
não quero saber nada de ti até o meio dia.
— Está surdo, ianque? Já lhe disse. Não penso tirar minha maldita roupa!
Cain não devia estar acostumado a ter alguém lhe fazendo frente, e a severa
linha de sua mandíbula lhe disse que deveria havê-lo matado de forma
imediata. Quando ele deu um passo adiante, ela correu para a cesta das maçãs,
só para parar em seco quando ele a agarrou pelo braço.
— Oh, não, vai!
— Deixa que vá, filho da puta!
Ela começou a retorcer-se, mas Cain a segurava com força pelo braço.
— Ordenei que tire essa roupa molhada, e vais fazer o que te digo, para
poder ir dormir de uma maldita vez!
— Pode apodrecer no inferno, ianque! — ela se retorceu outra vez, e tratou
de lhe golpear, mas sem muito êxito.
— Pare quieto ou vais te machucar — ele a sacudiu como advertência.
— Que se foda!
Seu chapéu começou a cair quando notou que a levantava no ar.
Soou um trovão, Cain sentou em uma cadeira da cozinha, e ela se
surpreendeu ao encontrar-se de repente tombada de barriga para baixo sobre
seus joelhos.
— Vou fazer um favor — sua palma aberta caiu sobre seu traseiro.
— Não!
— Vou ensinar uma lição que deveria te haver ensinado seu pai.
Sua mão baixou outra vez e ela gritou mais de indignação que de dor.
— Basta já, maldito e podre bastardo ianque!
— Nunca amaldiçoe às pessoas que são mais velhos que você...
Lhe deu outro tapa duro, urticante.
— Ou mais forte que você...
Seu traseiro começou a arder.
— E sobretudo...
Os dois tapas seguintes deixaram seu traseiro insensível.
— ...não me amaldiçoe ! — empurrou-a de seu colo —. Agora nos
entendemos ou não?
Ela conteve o fôlego quando aterrissou no chão. A fúria e a dor formaram
redemoinhos como uma neblina a seu redor, nublando sua vista, de modo que
não o viu inclinar-se para ela.
— Vais tirar essa roupa — sua mão agarrou sua camisa úmida. Com um
uivo de raiva, ela ficou de pé. O velho tecido rasgou em suas mãos.
Depois disso, tudo ocorreu muito depressa. O ar frio tocou sua carne. Ela
ouviu o fraco repico dos botões caindo no chão de madeira. Baixou o olhar e
viu seus pequenos peitos expostos a seu olhar.
— O que no...
Um sentimento de horror e humilhação a asfixiou. Ele a liberou devagar e
deu um passo atrás. Ela agarrou as bordas rasgados de sua camisa e tratou de
uni-los. Uns olhos gelados da cor do estanho a olhavam com atenção.
— Bom. Meu menino de estábulo não é um menino depois de tudo.
Ela segurou a camisa e tratou de esconder sua humilhação detrás da ira.
— Que diferença há? Eu necessitava trabalho.
— E conseguiu um te fazendo passar por um menino.
— Foi você quem supôs que eu era um menino. Nunca disse que fosse.
— Tampouco o negou — ele recolheu a manta e a atirou — Te seque um
pouco enquanto consigo algo de beber.
Ele caminhou para a porta do vestíbulo.
— Espero umas respostas para quando voltar e não pense em escapar, isso
seria um engano ainda maior.
Depois que ele desapareceu ela atirou a manta e correu depressa para a
cesta de maçãs para recuperar o revólver. Sentou-se na mesa para escondê-lo
em seu colo. Somente então reuniu as bordas de sua camisa interior e as atou
em um nó torpe a sua cintura.
Cain estava já de volta antes que ela compreendesse a inutilidade do
resultado. Tinha esmigalhado sua camiseta interior junto com a camisa, e um
profundo V chegava até o nó na cintura.
Cain tomou um sorvo de uísque e olhou com atenção à garota. Estava
sentada à mesa, com as mãos escondidas em seu colo, a suave malha de sua
camisa perfilava claramente um par de pequenos peitos. Como não se deu
conta que era uma garota? Esses delicados ossos deveriam haver lhe
advertido, junto com essas pestanas que eram tão grosas que poderiam varrer
o chão.
A sujeira a tinha escondido. A sujeira e sua linguagem, por não mencionar
sua atitude beligerante. Que sirigaita.
Se perguntou que idade teria. Quatorze? Ele sabia bastante sobre mulheres,
mas não sobre moças. Quando começavam a lhe crescer os peitos? Uma coisa
sim estava clara... ela era muito jovem para viver por sua conta. Ele deixou na
mesa seu copo de uísque.
— Onde está sua família?
— Já lhe disse isso. Estão mortos.
— Não tem nenhuma família?
— Não. — Sua serenidade o zangou.
— Olhe, uma garota de sua idade não pode estar vagando só por Nova
Iorque. Não é seguro.
— A única pessoa que me deu algum problema desde que estou aqui foi
você.
Ela tinha razão, mas ele o ignorou.
— De toda maneira, amanhã te levarei para umas pessoas que cuidarão de
ti até que seja maior. Eles encontrarão um lugar para que possa viver.
— Está tratando de dizer que vai me levar a um orfanato, Major?
Irritou-o que ela parecesse divertida.
— Sim, estou falando de um orfanato! Você, é obvio, não vai ficar aqui.
Necessita uma casa para viver até que seja suficientemente maior para cuidar
de ti mesma.
— Não acredito que tenha tido muitos problemas até agora. Além disso não
sou uma menina. Não acredito que um orfanato acolha a uma garota de dezoito
anos.
— Dezoito?
— Acaso está surdo?
Outra vez ela tinha conseguido impressioná-lo. Ele a olhou com atenção por
cima da mesa… a roupa de menino andrajosa, um rosto e um pescoço
imundos, o cabelo curto negro rígido pela sujeira. Em sua experiência as
garotas de dezoito anos eram quase mulheres. Tinham vestidos e se banhavam.
Mas nada nela parecia normal em uma garota de dezoito anos.
— Sinto estragar todos os seus agradáveis projetos para um orfanato,
Major.
Ela teve o descaramento de sorrir satisfeita, e ele de repente se alegrou de
lhe haver dado esses açoites.
— Muito bem, me escute Kit... ou esse nome também é falso?
— Não, esse é meu verdadeiro nome. Bom, a forma como todo mundo me
chama.
Sua diversão evaporou e ele sentiu um formigamento na base das costas, a
mesma sensação que tinha antes de uma batalha. Estranho. Ele olhou sua
mandíbula apertada.
— Só que meu sobrenome não é Finney. — disse ela — É Weston.
Katharine Louise Weston.
Era sua última surpresa. antes que Cain pudesse reagir, ela estava de pé, e
lhe apontava com um velho revolver do exército.
— Filha de uma cadela — murmurou ele.
Sem retirar os olhos dele, ela se separou da borda da mesa. A mão pequena
segurava firme a pistola que apontava a seu coração.
— Não parece muito contente com o giro que deram os acontecimentos —
disse ela.
Ele deu um passo para ela e imediatamente se arrependeu. Uma bala passou
a seu lado lhe roçando a têmpora.
Kit nunca tinha disparado uma pistola dentro de uma casa e seus ouvidos
zumbiram. Notou que lhe tremiam os joelhos, e apertou mais forte o revólver.
— Não mova a menos que eu lhe ordene, ianque — cuspiu ela mais
encorajada do que se sentia —. A próxima bala te arrancará a orelha.
— Talvez seria melhor que me dissesse o que significa tudo isso.
— É evidente.
— Me agrade.
Ela odiou o ar débil de mofa em sua voz.
— É Risen Glory, seu malvado filho da puta! É minha! E não tem nenhum
direito a me tirar isso.
— Isso não é o que diz a lei.
— Não me importa a lei. Não me importam o testamento, os tribunais nem
nada disso. O único que me importa é que Risen Glory é minha e nenhum
ianque vai me tirar isso.
— Se seu pai quisesse que fosse sua, teria deixado a ti em lugar de
Rosemary.
— Essa mulher o voltou cego e surdo além de tolo.
— Isso fez?
Ela odiou o olhar divertido de seus olhos, e quis feri-lo como tinham ferido
a ela.
— De todas as formas, suponho que deveria lhe estar agradecida — se
mofou ela — Se não fosse por quão fácil era Rosemary para os homens, os
ianques teriam queimado a casa além dos campos. Sua mãe era famosa por dar
seus favores a todos os homens que o pediam.
O rosto de Cain estava sem expressão.
— Ela era uma porca.
— Isso é uma verdade de Deus, ianque. E não vou permitir que me tire o
que é meu inclusive da tumba.
— Assim agora vais matar-me.
Ele soou quase farto e suas mãos começaram a suar.
— Contigo fora de meu caminho, Risen Glory será minha, o que tinha que
ter ocorrido desde o começo.
— Acredito que tem razão — se mofou ele devagar — Bem, estou
preparado. Como quer te ocupar disto?
— O que?
— Me matar. Como vais fazer ? Quer que lhe dê as costas de modo que não
me olhe à cara quando apertar o gatilho?
A atrocidade superou sua dor.
— Que tipo de estupidez está dizendo? Acha que poderia me respeitar se
disparo a um homem pelas costas?
— Perdão, era só uma sugestão.
— Uma parva e maldita sugestão — um fio de suor deslizou para baixo por
seu pescoço.
— Estava tentando fazê-lo mais fácil para ti, isso é tudo.
— Não se preocupe comigo, ianque. Preocupa-se por sua própria alma
imortal.
— Bem então. Adiante.
Ela tragou.
— É o destino.
Ela levantou o braço e olhou o tambor de seu revólver. Parecia tão pesado
como um canhão em sua mão.
— Mataste alguma vez a um homem, Kit?
— Cale-se! — os joelhos tremiam tanto que o braço tinha começado a
mover-se. Cain pelo contrário parecia tão tranquilo como se estivesse se
preparando para tirar um cochilo.
— Me dispare bem entre os olhos — disse ele suavemente.
— Cale-se!
— Será rápido e seguro. A tampa de meus miolos sairá voando, mas pode
dirigir essa animação, verdade Kit?
Seu estômago se queixou.
— Cale-se! Só se cale!
— Vamos, Kit. Termina com isto de uma vez.
— Cale-se!
A pistola explodiu. Uma vez, dois, três, quatro, cinco. E depois o som do
tambor vazio.
Cain se atirou ao chão com o primeiro disparo. Quando o silêncio voltou
para a cozinha, levantou a cabeça. Na parede detrás de onde ele estava de pé,
cinco buracos formaram o desenho perfeito da cabeça de um homem.
Kit ficou com os ombros cansados e os braços aos lados com o revólver
pendurando inutilmente de sua mão.
Ele se levantou aliviado e caminhou para a parede que tinha recebido os
tiros que estavam destinados a ele. Enquanto estudava o arco perfeito, sacudiu
devagar a cabeça.
— Tenho que te dizer algo, garota. É um demônio disparando.
Para Kit, o mundo tinha terminado. Tinha perdido Risen Glory e não podia
culpar a ninguém mais que a ela mesma.
— Covarde — sussurrou ela — Sou uma maldita covarde, covarde como
uma garota.
3
Cain fez com que Kit dormisse em uma cama estreita, em um dormitório do
segundo andar em lugar de sua agradável e poeirenta acomodação em cima
dos estábulos. Suas ordens foram precisas. Até que decidisse o que fazer com
ela, não voltaria a trabalhar com os cavalos. E se tentasse escapar, ele a
afastaria de Risen Glory para sempre.
À manhã seguinte fugiu atrás dos estábulos e se aconchegou no canto com
um livro tristemente titulado A vida sibarita de Louis XV, que tinha surrupiado
da biblioteca vários dias antes. Ao cabo de um momento adormeceu sonhando
com tormentas, chapéus, e o rei da França com sua ruidosa amante, Madame
Pompadour através de uns campos de algodão de onde se via Risen Glory.
Quando despertou, sentia-se insegura e desorientada, sentou-se desalentada
dentro do estábulo de Apolo, com os cotovelos repousando nas gordurentas
pernas das suas calças. Em todo seu planejamento, nunca tinha previsto
enfrentar-se cara a cara com um homem desarmado e apertar o gatilho.
A porta do estábulo se abriu permitindo entrar a débil luz de uma tarde
encapotada. Merlin chegou correndo e se jogou sobre Kit, golpeando-a no
chapéu com sua alegria. Magnus lhe seguia com um passo mais lento, e suas
botas apareceram em seu campo de visão. Ela não queria levantar o olhar.
— Não estou de bom humor para uma conversa agora, Magnus.
— Não posso dizer que esteja assombrado. O Major me contou o que
aconteceu ontem à noite. É um truque muito feio, Senhorita Kit.
Era a forma como a chamavam em casa, mas ele fez com que soasse como
um insulto.
— O que ocorreu ontem à noite foi algo entre o Major e eu. Não é teu
assunto.
— Eu não gosto de julgar mal às pessoas, e pelo que a mim diz respeito,
não há nada teu que seja meu assunto — recolheu um balde vazio e abandonou
o local.
Ela lançou o livro ao chão, agarrou uma escova e se dirigiu ao estábulo que
ocupava uma égua ruiva chamada Saratoga. Não lhe importavam as ordens que
Cain lhe tinha dado. Se não permanecia ocupada, voltaria-se louca.
Acabava de colocar as mãos com a escova nas pernas traseiras da Saratoga
quando ouviu abrir-se outra vez a porta, endireitando-se, deu a volta ao cavalo
para ver Cain de pé no centro do corredor, olhando-a com olhos duros como o
granito.
— Minhas ordens foram claras, Kit. Nada de trabalhar nos estábulos.
— O bom Senhor me deu dois fortes braços — replicou ela — Não estou
acostumada a vagabundear.
— Cuidar dos cavalos não é uma atividade apropriada para uma jovem
dama.
Lhe olhou intensa e atentamente tratando de ver se estava tentando burlar-se
dela, mas não pôde ler sua expressão.
— Se houver trabalho que fazer, penso fazê-lo. Não me atrai uma vida
indolente.
— Te afaste daí — lhe disse em tom duro.
Ela abriu a boca para protestar, mas ele era muito rápido para ela.
— Nada de discussões. Lamento que não tenha se lavado, quero ver-te
limpa na biblioteca para falar contigo depois do jantar.
Ele virou e caminhou para a porta do estábulo, com esse modo de andar
poderoso, de pernas longas, muito ágil para alguém de seu tamanho.
***

Kit chegou primeiro à biblioteca essa noite. Obedecendo em algo a Cain,


lavou a cara, mas se sentia muito vulnerável para fazer mais. Precisava sentir-
se forte agora, não como uma garota.
A porta se abriu e Cain entrou na sala. Estava vestido com o uniforme
habitual quando estava em casa, calças cor bege e camisa branca, aberta no
pescoço. Olhou-a atentamente.
— Acreditava que havia dito que te lavasse.
— Lavei a cara, não?
— Vais fazer algo mais que isso. Como pode ir pelo mundo com esse
cheiro tão imundo?
— Eu não gosto muito de banhos.
— Parece que há muitas coisas que você não gosta muito. Mas vai tomar
um banho antes de passar outra noite aqui. Edith Simmons ameaçou partir, e eu
não gostaria de perder a minha ama de chaves por sua culpa. Além disso
cheira muito mal.
— Não é certo!
— Maldita seja, claro que é. Embora seja de forma temporária, sou seu
tutor e agora mesmo deve acatar minhas ordens.
Kit congelou.
— O que está dizendo, ianque? O que quer dizer com meu tutor?
— E eu que pensava que não haveria nada que pudesse te surpreender.
— Fala!
Ela pensou que tinha visto um brilho de simpatia em seus olhos.
Desapareceu enquanto lhe explicava os detalhes da tutela e o fato que
também era o administrador de seu fundo fiduciário.
Kit apenas se lembrava da avó que tinha guardado dinheiro para ela. O
fundo fiduciário tinha sido uma origem constante de ressentimento por parte de
Rosemary, e tinha obrigado em vão a Garrett a consultar um advogado atrás de
outro para rompê-lo. Embora Kit sabia que deveria estar agradecida a sua
avó, o dinheiro era inútil. Ela o necessitava agora, não dentro de cinco anos ou
quando se casasse, algo que não ocorreria nunca.
— A tutela é uma brincadeira de Rosemary da tumba — concluiu Cain.
— Esse maldito advogado não me disse nada sobre um tutor. Não acredito
em você.
— Vi os papéis pessoalmente. Permitiu-lhe você que se explicasse?
Com o coração afundando-se, ela recordou como lhe tinha expulsado da
casa justo depois de lhe falar da herança de Cain, embora ele havia dito que
havia muito mais.
— O que quiseste dizer antes quando falou que seria temporário?
— Não pensará que vou ficar contigo os próximos cinco anos, verdade?
O Herói de Missionery Ridge tremia só ante a idéia.
— Amanhã pela manhã cedo parto para Carolina do Sul para tentar
solucionar esta confusão. A senhora Simmons cuidará de ti até que eu volte.
Não devo demorar mais de três ou quatro semanas.
Ela colocou as mãos unidas detrás das costas de modo que ele não pudesse
ver como lhe tinham começado a tremer.
— Como pensa solucionar as coisas?
— Vou tratar de conseguir outro tutor para ti.
Ela cravou as unhas nas palmas, aterrada pela resposta a sua seguinte
pergunta, embora já a intuía.
— O que vai ocorrer... com Risen Glory?
Ele estudou a ponta de sua bota.
— Vou vender.
Algo parecido com um grunhido saiu da garganta de Kit.
— Não!
Ele levantou a cabeça e a olhou aos olhos.
— Sinto-o Kit. É o melhor.
Kit ouviu a nota de aço em sua voz, e sentiu que os últimos e frágeis restos
do mundo que conhecia se derrubavam. Nem sequer foi consciente quando
Cain abandonou a sala.
***

Cain precisava preparar-se para uma partida com apostas elevadas em um


dos salões privados de Astor House. Em seu lugar olhava absorto pela janela
de seu dormitório. Nem sequer o convite de uma famosa cantora de ópera que
tinha visto a noite passada lhe levantou o ânimo.
Tudo parecia demasiado problemático.
Pensou na sirigaita de olhar violeta que estava sob seu teto. Antes, no
momento que lhe havia dito que ia vender Risen Glory, parecia abatida, como
se lhe tivesse disparado.
Sua reflexão foi interrompida com o som de cristais quebrados e o grito de
sua ama de chaves. Resmungou e saiu ao corredor.
O quarto de banho era uma monstruosa desordem. Os cristais quebrados
estavam perto da tina de cobre, e a roupa estava espalhada por todo o chão.
Um pote de talco se transbordou e tinha manchado de branco o friso escuro
da parede. Só a água da tina parecia ouro tranquilo, pálido à luz dos
acendedores de gás.
Kit se encarava com a senhora Simmons ameaçando-a com um espelho.
Agarrava-o pelo cabo como um sabre. A outra mão segurava uma toalha ao
redor de seu corpo nu enquanto assinalava com a cabeça a porta à
desafortunada ama de chaves.
— Não vou permitir que ninguém me banhe! Já pode sair daqui!
— Que demônios está acontecendo aqui?
A senhora Simmons o agarrou.
— Esta louquinha está tratando de me matar! Atirou-me uma garrafa de
hamamelis! Esteve a ponto de me bater na cabeça.
Abanou o rosto e gemeu.
— Posso sentir vindo um ataque de nevralgia.
— Vá deitar-se, Edith.
Os olhos duros como a pederneira de Cain olharam Kit.
— Eu tomarei seu lugar.
A ama de chaves estava muito alterada para protestar ante a inconveniência
de deixá-lo sozinho com sua parente nua, e fugiu escada abaixo sem deixar de
murmurar palavras como nevralgia e loucuras.
Apesar de toda a ousadia de Kit, podia ver que estava assustada. Ele se
expôs a abrandar-se, mas sabia que então não estaria lhe fazendo nenhum
favor. O mundo era um lugar perigoso para as mulheres, mas era duplamente
traidor para garotas ingênuas que acreditavam que eram tão duras como os
homens. Kit devia aprender como inclinar-se ou se quebraria e agora mesmo
ele parecia ser o único que podia lhe ensinar essa lição.
Devagar ele desabotoou as mangas da camisa e começou a enrolar-lhe.
Kit viu aparecer os musculosos antebraços bronzeados, quando subiu as
mangas. Ela deu um passo para trás, sem retirar os olhos de seus braços.
— O que está está fazendo?
— Ordenei que te banhe.
Com a boca seca, ela retirou os olhos. Custava-lhe enfrentar a Baron Cain
quando estava completamente vestida. Agora com apenas uma toalha envolta
ao redor de seu corpo, deu-se conta que nunca havia se sentido mais
vulnerável. Se não lhe tivesse tirado a pistola, poderia haver disparado agora
sem pensar duas vezes.
Ela passou a língua pelos lábios.
— Você... você, já está partindo.
Seus olhos a paralisaram.
— Ordenei que te banhe, e isso é o que vais fazer.
Ela levantou o espelho de tartaruga marinha.
— Não te aproxime. Advirto-lhe. Quando lancei a garrafa à senhora
Simmons, falhei de propósito. Mas agora não vou falhar!
— É hora de que cresça — disse ele muito suave.
Seu coração palpitava.
— Repito-lhe, ianque! Não se aproxime mais.
— Já tem dezoito anos... o bastante grande para te comportar como uma
mulher. Uma coisa é me atacar, mas atacaste a uma pessoa inocente que nunca
te fez mal.
— Tirou-me a roupa, quando não me dava conta! E... e depois me arrastou
até aqui.
Kit ainda não se explicava como tinha podido fazer isso a senhora
Simmons, mas depois de Cain lhe anunciar que ia vender Risen Glory, havia
se sentido intumescida. Só quando a senhora mais velha estava dizendo que ia
jogar fora toda sua roupa, Kit havia retornado a si.
Ele falou outra vez, utilizando essa voz calma que ela achava mais
espantosa que seu rugido.
— Deveria havê-lo feito você mesma. Mas já que vejo que não é capaz, eu
mesmo te meterei nessa tina.
Ela atirou o espelho contra a parede como distração e se lançou por diante
dele para a porta. Ele a agarrou antes que ela tivesse dado três passos.
— Parece que não aprende, verdade?
— Deixe-me ir!
Os cristais quebrados rangeram sob seus sapatos quando a levantou no ar e
a deixou cair na tina, com toalha e tudo.
— Você, bastardo imundo...
Isso foi quão único pôde dizer antes que ele a agarrasse pelos cabelos e lhe
colocasse a cabeça na água. Ela saiu balbuciando.
— Você sujo...
De novo lhe colocou a cabeça.
— Você...
E outra vez.
Kit não podia acreditar no que estava ocorrendo. Ele não a mantinha sob a
água o suficiente para que se afogasse, mas isso não importava. Era a
humilhação. E se não mantinha a boca fechada, a submergia de novo. Olhou-
lhe com olhos furiosos quando saiu, mas de algum jeito conseguiu ficar calada.
— Tiveste o suficiente? — perguntou ele pacientemente Ela limpou os
olhos e apelou a sua dignidade.
— Seu comportamento é infantil.
Ele começou a rir somente para ficar sério quando a olhou dentro da tina.
Então ela compreendeu que tinha perdido a toalha. Levantou os joelhos para
esconder seu corpo.
— Sai daqui agora mesmo! — a água começou a fazer pequenas ondas que
transbordavam pela borda enquanto ela tratava de recuperar a toalha.
Ele começou a caminhar para a porta, parando quando chegou a ela. Ela
apertou os joelhos contra seu peito e lutou com a toalha empapada. Ele
esclareceu garganta.
— Creio o que, hum... você pode terminar sozinha?
Ela acreditou ver uma espécie de rubor estendendo-se por essas maçãs do
rosto duras.
Assentiu, atirando a pesada toalha.
— Darei-te uma de minhas camisas para que vista. Mas se encontro uma só
partícula de sujeira quando tiver terminado, começaremos de novo outra vez.
Desapareceu sem fechar a porta. Ela apertou os dentes, e imaginou uns
abutres comendo seus globos oculares.
Lavou-se duas vezes tirando a imundície que tinha acumulado nos cantos e
gretas de seu corpo durante algum tempo. Depois lavou o cabelo. Quando se
convenceu que nem a Virgem Maria poderia encontrar nenhuma bolinha de
sujeira nela, arriscou-se a sair para agarrar uma toalha seca, mas viu que ao
redor da tina estavam os cristais dando o aspecto de um fosso ao redor de um
castelo medieval.
Isto era o que dava banhar-se.
Amaldiçoou enquanto se envolvia na toalha empapada ao redor de seu
corpo, e gritava para a porta aberta.
— Me escute ianque! Necessito que me alcance uma toalha seca, mas já
pode fechar os olhos, ou juro que te matarei esta noite enquanto dorme,
cortarei-te em pedacinhos e comerei seu fígado no café da manhã.
— Eu adoro saber que a água e o sabão não estragaram esse seu carater tão
doce.
Ele reapareceu na porta, com os olhos totalmente abertos.
— Estava preocupado com isso.
— Pois melhor preocupar-se por seus órgãos internos.
Ele agarrou uma toalha da estante do quarto de banho, mas em lugar de
passar-lhe como uma pessoa decente, ficou olhando os cristais quebrados do
chão.
— “Em todo mundo, no maravilhoso balanço de beleza e desgosto,
encontram-se coisas más e boas.” Ralph Waldo Emerson, no caso de não
reconhecer a frase.
Só depois que lhe passaou a toalha seca, ela se sentiu forte para lhe
responder.
— O senhor Emerson também escreveu, “Todo herói se aborrece ao final
de sua carreira.” Se não o conhecesse melhor, pensaria que você o
inspiraraste essas palavras.
Cain riu entredentes, de algum modo contente ao ver que ela ainda tinha seu
espírito. Era magra como uma potranca, toda braços ossudos e pernas longas e
fracas. Inclusive o arbusto de pêlo púbico escuro que tinha vislumbrado
quando lhe tinha entregue a toalha na tina parecia de uma menina.
Enquanto se retirava da tina, recordou seus seios jovens, com seus mamilos
como corais em ponta. Não lhe tinham parecido tão inocentes. A imagem lhe
pôs incômodo e falou mais bruscamente do que desejava.
— Secaste-te já?
— Como vou fazer estando você aí?
— Te envolva. Dou-me a volta.
— Isso é o que estou esperando, que te dê a volta para que não possa ver
sua cara feia.
Zangado se aproximou da tina.
— Deveria deixar que saísse e caminhasse por estes cristais com os pés
nus.
— Não poderia ser mais doloroso que aguentar sua presunçosa companhia.
Ele a levantou no ar tirandoa da tina e a colocando de pé no corredor.
— Deixei uma camisa minha em seu quarto. Amanhã a senhora Simmons te
comprará algumas roupas decentes.
— O que considera como roupas decentes? — disse ela olhando-o
desconfiadamente.
Ele sabia o que o esperava, e se preparou.
— Vestidos, Kit.
— Acaso te tornaste louco?
Ela pareceu tão ultrajada que ele quase sorriu, mas não era tolo. Era hora
de lhe apertar as rédeas.
— Já me ouviste. E enquanto eu esteja fora, fará exatamente o que te diga a
senhora Simmons. Se lhe der qualquer problema, darei ordens a Magnus para
que te tranque em seu quarto e jogue fora a chave. E te digo mais Kit. Quando
voltar quero ouvir que te comportaste como um anjo. Descidi te deixar com
seu novo tutor vestida como uma dama respeitável.
As emoções que passavam por sua face foram da indignação à ira passando
por algo que se parecia com o desespero. A água que jorrava pelas pontas de
seu cabelo pareciam lágrimas caindo sobre seus finos ombros e sua voz já não
era seu bramido normal.
— Vais fazer de verdade?
— Certamente que vou buscar outro tutor. Deveria te alegrar disso.
Seus nódulos ficaram brancos enquanto segurava a toalha.
— Isso não é o que quero dizer. Vais realmente vender Risen Glory?
Cain endureceu a si mesmo contra o sofrimento que via nesse pequeno
rosto. Não tinha a menor intenção de carregar uma plantação de algodão
decadente, mas ela não o entenderia.
— Não vou ficar com o dinheiro Kit. Colocarei em seu fundo fiduciário.
— Não me importa o dinheiro! Não pode vender Risen Glory.
— Tenho que fazê-lo. Algum dia entenderá.
Os olhos de Kit se escureceram com um olhar assassino.
— Não te arrancar a cabeça foi meu maior engano.
Sua pequena figura, coberta só por uma toalha era extremamente inquietante
quando se afastou dele e fechou a porta de seu quarto.
4
— Você está me dizendo que não há ninguém nesta comunidade disposto a
me relevar como tutor da senhorita Weston? Nem sequer se eu pagar os
gastos?
Cain estudou ao Reverendo Rawlins Ames Cogdell de Rutherford, Carolina
do Sul, que a sua vez estudava a ele.
— Deve entender, senhor Cain. Nós conhecemos Katharine Louise a muito
tempo mais tempo que você.
Rawlins Cogdell rogou a Deus que lhe perdoasse pela satisfação que sentia
ao ver o dilema do ianque. O Herói do Missionary Ridge, em pessoa! Que
mortificante estar obrigado a receber este homem. Mas o que podia fazer?
Nestes dias com uniformes azuis por toda parte, inclusive ele, um homem de
Deus tinha que tomar cuidado de não ofender.
Sua esposa Mary apareceu na porta com um prato com quatro pequenos
sanduíches, entre as fatias se vislumbrava uma fina camada de geleia de
morango.
— Interrompo?
— Não, não. Entre, querida. Senhor Cain, tem a oportunidade de comer um
autêntico manjar. Minha esposa é famosa por sua geleia de morango.
A geleia era o único que restava do último pote, que sua esposa tinha feito
há duas primaveras, quando ainda tinham açúcar, e o pão eram as únicas fatias
que tinham para toda a semana. Mas Rawlins estava orgulhoso de oferecer-
lhe. Preferia morrer de fome a deixar este ianque ver o quanto eram pobres.
— Para mim não, querida. Guardarei meu apetite para o jantar. Por favor,
senhor Cain, agarre dois.
Cain não era nem de longe tão obtuso como Cogdell acreditava. Sabia o
sacrifício que faziam lhe oferecendo esse prato. Agarrou um sanduíche embora
não gostava e fez os elogios pertinentes. Malditos fossem todos os sulistas.
Seiscentas mil vidas se perderam por seu teimoso orgulho.
Cain acreditava que essa arrogância era produto do doente sistema de
escravidão. Os plantadores tinham vivido como reis em suas isoladas
plantações onde tinham autoridade absoluta ante centenas de escravos. Isso
lhes tinha dado um monstruoso ego. Pensavam que eram onipotentes, e a
derrota na guerra lhes tinha mudado só superficialmente. Uma família do Sul
poderia estar faminta, mas ofereceriam sanduiches e chá a um convidado,
ofendendo-se se não aceitavam.
O Reverendo Cogdell se virou para sua esposa.
— Por favor, sente-se, querida. Possivelmente possa nos ajudar. O senhor
Cain se encontra imerso em um enorme dilema.
Ela fez o que seu marido lhe pedia e escutou enquanto ele perfilava a
conexão de Cain com Rosemary Weston e o fato que ele queria transferir a
tutela de Kit. Quando seu marido terminou, ela negou com a cabeça.
— Sinto muito lhe dizer que isso que você pretende é impossível, senhor
Cain. Um grande número de famílias da zona teriam ficado encantadas de
acolher a Katharine Louise durante seus anos formativos. Mas agora é muito
tarde. Meu Deus, tem dezoito anos já.
— Apenas uma Matusalém — disse Cain secamente.
— As normas de comportamento são distintas na Carolina do Sul do que
são no Norte — falou suavemente, mas com recriminação — As jovens de boa
família aprendem do berço as corteses tradições de uma mulher sulina.
Katharine não só não as aprendeu, mas também sempre se mofou delas. As
boas famílias de nossa comunidade estariam preocupadas da influência que
Katharine teria em suas próprias filhas.
Cain sentiu uma faísca de piedade por Kit. Não teria sido fácil crescendo
com uma madrasta que a odiava, um pai que a ignorava e uma comunidade que
a desaprovava.
— Não há ninguém nesta comunidade que tenha afeto por ela?
As pequenas mãos de Mary revoaram em seu colo.
— Perdoe, senhor Cain, você não compreendeu. Todos a queremos muito.
Katharine Louise é uma pessoa generosa e carinhosa. Sua habilidade para
caçar tem provido de comida a muitas das famílias mais pobres, e sempre está
nos animando. Mas isso não muda o fato que ela se conduz fora dos limites
definidos dentro de um comportamento aceitável.
Cain jogava muito pôquer para saber quando estava derrotado. Willard
Ritter lhe tinha dado quatro cartas a outras tantas famílias de Rutherford, e
todas o tinham rechaçado. Acabou o maldito sanduíche e se despediu deles.
Enquanto se dirigia a Risen Glory montado na ossuda égua que tinha
alugado em um estábulo de Charleston, confrontou a desagradável realidade.
Gostasse ou não, estava preso a Kit.
A casa da plantação apareceu ante sua vista. Era uma formosa construção
de dois pisos, de tijolo coberto de estuque que se assentava ao final de um
caminho de gramado muito crescido. Apesar do aspecto de negligência geral,
da pintura descascada e as janelas, o lugar tinha encanto. A casa era de uma
quente cor creme, com os tijolos visíveis sob o estuque. Grandes carvalhos
davam sombra à casa e ao telhado coberto de telhas. Azaléias, smilax e
acebos cobriam um chão muito alto, enquanto as magnólias espalhavam suas
folhas enceradas até seus joelhos no pátio principal.
Mas não foi a casa o que tinha chamado a atenção de Cain quando chegou
há dois dias. Em seu lugar tinha passado a tarde inspecionando as ruínas dos
arredores, olhando a maquinaria, separando as ferramentas oxidadas e
parando de vez em quando no campo vazio para agarrar um punhado de terra
tão rica. Filtrava-se entre seus dedos como cálida seda. De novo se encontrou
pensando em sua vida em Nova Iorque e como começava a asfixiá-lo.
Cain entregou o cavalo a Eli, o velho e anterior escravo que o tinha
recebido com uma escopeta o dia que Cain tinha chegado a Risen Glory.
— Não se aproxime mais — lhe havia dito — A senhorita Kit me ordenou
que dispare a qualquer um que se aproxime de Risen Glory.
— A senhorita Kit necessita que lhe dêem uns bons açoites — respondeu
Cain sem acrescentar que já se encarregou de fazê-lo.
— É possível que tenha razão nisso. Mas ainda devo lhe disparar se
aproximar mais.
Cain poderia ter desarmado ao velho sem dificuldade, mas queria sua
cooperação de modo que lhe explicou sua relação com Kit e Rosemary
Weston. Quando Eli compreendeu que Cain não era um dos abutres que tinham
estado aproveitando-se do que ficava, baixou a escopeta e lhe deixou passar a
Risen Glory.
O centro da casa se curvava em um arco cheio de graça. Cain caminhou
pelo largo vestíbulo central que tinha sido desenhado para deixar entrar a
brisa. Os salões, uma sala de música e uma biblioteca, tudo em um estado
lamentável e cheio de pó. A formosa mesa de teca da sala de jantar
apresentava cortes recentes. O grupo de Sherman a havia utilizado como
matadouro, para esquartejar os animais que restavam na plantação.
Cain percebeu o aroma de frango frito. Eli não podia cozinhar e pelo que
ele sabia, não havia ninguém mais na casa. Os anteriores escravos tentados
pela promessa de quarenta acres e uma mula, partiram atrás do exercito da
União. Perguntou se a misteriosa Sophronia teria voltado. Eli fazia alguma
referência à cozinheira de Risen Glory, mas Cain ainda não a tinha visto.
— Boas, Major.
Cain parou em seco quando uma figura magra e familiar apareceu ao final
do vestíbulo. Então começou a amaldiçoar. As mãos de Kit se moviam
nervosamente a seus lados. Não pensava aproximar-se até que ele tivesse tido
a possibilidade de adaptar-se à ideia de vê-la ali. Tinha abandonado a casa de
Cain em Nova Iorque da mesma forma como tinha entrado. Saltando o muro
exterior. Tinha pego seu pacote junto com A vida indolente de Louis XV, que
tinha sido sua inspiração para o desesperado plano que tinha concebido no dia
que Cain partiu. Agora compôs um sorriso em sua cara, tão grande e amplo
que lhe doíam as bochechas.
— Espero que esteja faminto, Major. Preparei frango frito e bolachas de
manteiga quentes só para uma pessoa com grande apetite. Inclusive limpei a
mesa da sala de jantar para que possamos comer ali. É obvio, está um pouco
quebrada, mas é uma genuína Sheraton. Ouviste alguma vez falar de Sheraton,
Major? Era inglês e também Baptista se por acaso fosse pouco. Não te parece
estranho? Acreditava que só os sulistas podiam ser Baptistas. Eu...
— Que demônios está fazendo aqui?
Ela sabia que não se alegraria de vê-la, mas esperava que não se zangasse
muito. Embora em certo modo não estava segura sobre isso. Tinha suportado
uma viagem de trem até Charleston, um passeio na carruagem que quase lhe
desloca os ossos e uma caminhada de quase vinte e cinco quilômetros que a
tinha deixado com bolhas nos pés e queimaduras pelo sol. O último que ficava
de dinheiro, tinha utilizado para comprar a comida desta noite. Inclusive tinha
se banhado na cozinha e pôs uma camisa e umas calças limpas, para não
cheirar mal. Estava assombrada, mas tinha descoberto que gostava de estar
limpa. Banhar-se não tinha resultado tão mal depois de tudo, embora
significasse ter que ver seus peitos nus frequentemente. Tentou compor um
sorriso sincero embora isso esteve a ponto de fazê-la vomitar.
— Estou preparando o jantar para ti, Major. Estou fazendo frango.
Ele apertou os dentes.
— Não, o que está é te preparando para morrer. Porque vou matar—te!
Ela não acreditava exatamente, mas não confiava em que não o fizesse
tampouco.
— Não grite! Você em meu lugar teria feito o mesmo!
— Do que está falando?
— Você não teria ficado em Nova Iorque enquanto alguém tratava de
destruir a única coisa que te importa no mundo! Você não teria ficado sentado
nesse fantástico dormitório lendo e vendo feios vestidos enquanto tudo ia ao
caralho. Você teria saído para Carolina do Sul tão rápido como lhe tivessem
levado seus pés. E depois, teria estado disposto a fazer o que fosse preciso
para conservar o que é seu.
— E eu tenho uma ideia bastante clara do que vieste fazer aqui — em duas
largas pernadas, ele chegou até ela.
Antes que ela pudesse mover-se, ele começou a apalpar com suas mãos seu
corpo.
— Basta!
— Não até que te desarme.
Ela respirou com dificuldade quando lhe tocou os peitos. Uma estranha
sensação disparou dentro dela, mas ele não pareceu afetado. Suas mãos
seguiram para sua cintura e seus quadris.
— Basta!
Ele tirou uma faca de sua bota.
— Pretendia utilizá-lo comigo quando estivesse dormindo?
— Se não tive coragem para te matar com uma pistola, menos teria para
fazê-lo com uma faca, não acredita?
— Suponho que leva isto para abrir as latas de comida.
— Tirou-me a pistola. Não podia viajar sem nenhum amparo.
— Já vejo — ele pôs a faca fora de seu alcance — Então, se não pensa me
matar, que é que tem em mente?
Esta não era a forma que Kit tinha esperado. Queria lhe ordenar que
deixasse de intimidá-la com seu tamanho, mas certamente não lhe faria o
menor caso.
— Por que não jantamos primeiro, e depois lhe conto? A comida é difícil
de conseguir. Não tem sentido que a comamos fria e seca.
Ele levou um momento para pensá-lo.
— De acordo, comeremos. Mas mais tarde teremos uma conversa séria.
Ela se encaminhou depressa para a cozinha.
— O jantar estará na mesa em um minuto.
Cain deveria havê-la encarado imediatamente, mas estava faminto, maldita
seja. Não tinha comido uma comida decente desde que tinha abandonado Nova
Iorque. Guardou a faca, e caminhou para o salão de jantar. Kit apareceu com
uma vasilha de frango frito que colocou sobre a mesa, e ele observou
finalmente o que lhe tinha escapado antes. Tudo nela estava limpo. Desde seu
cabelo curto à camisa — que lhe faltava um botão no pescoço — à calça
marrom escura que pendurava sem apertar seus estreitos quadris. Parecia
brilhar tanto como um penique novo. Não podia imaginar que se banhou sem
obrigá-la. Ela obviamente se preparou conscientemente para agradá-lo.
Não é que fosse ter algum êxito. Ainda não podia acreditar que tivesse feito
isto. Mas, por quê não? Ela não entendia o significado da palavra prudência.
— Sente-se e coma, Major. Eu é obvio espero que esteja faminto.
Cain devia admitir que foi uma grande refeição. O frango frito tinha uma
cor torrada e estava rangente e o vapor se elevava das bolachas de manteiga
quando os partia. Inclusive os dentes de leão verdes estavam ricamente
condimentados. Quando terminou de comer e se sentia cheio, reclinou-se na
cadeira.
— Você não cozinhou isto.
— Claro que fui eu. Normalmente Sophronia teria me ajudado, mas ela não
está aqui.
— Sophronia é a cozinheira?
— Também se ocupou de me criar.
— Não fez um grande trabalho nisso.
Seus olhos violetas se estreitaram.
— Eu também poderia dizer algo sobre sua educação.
A comida estava estupenda, possivelmente ela tivesse coisas boas.
— Tudo estava delicioso.
Ela se levantou para trazer uma garrafa de brandy que tinha deixado
preparada no aparador.
— Rosemary a escondeu antes que os ianques viessem. Pensei que você
gostaria de tomar uma taça para celebrar sua chegada a Risen Glory.
— Acredito que minha mãe cuidava melhor do licor que de sua enteada —
ele agarrou a garrafa e começou a tirar a cortiça — Por que isso se chama
Risen Glory? É insólito.
— Ocorreu não muito depois que meu avô construíra a casa — Kit se
apoiou contra o aparador —. Um pregador Baptista veio à porta pedir comida,
e embora minha avó era uma estrita metodista, deu-lhe de comer. Ficaram a
falar, e quando se inteirou que a plantação não tinha um nome ainda, disse que
deveriam chamá-la Risen Glory, já que era quase domingo de ressurreição.
Foi Risen Glory após isso.
— Já vejo — pescou uma parte de cortiça de seu copo de brandy —
Acredito que é o momento que me conte por que está aqui.
Seu estômago deu um tombo. Ela o olhou tomar um sorvo, seus olhos
mirando-a fixamente. A ele nunca lhe escapava nada. Moveu-se para as portas
abertas que conduziam do salão de jantar ao descuidado jardim. Estava escuro
e silencioso fora e ela podia cheirar a madressilva na brisa da noite. Amava
tanto tudo isto. As árvores e riachos, as vistas e aromas. Mais que tudo,
adorava olhar o baile branco dos campos de algodão. Logo, estariam assim
outra vez. Devagar deu a volta para ele. Tudo dependia dos seguintes minutos
e devia fazê-lo bem.
— Vim para te fazer uma proposta, Major.
— Me demiti do exército. Por que não me chama só Baron?
— Se não te importar, seguirei te chamando Major.
— Suponho que isso é melhor que algumas outras coisas que me chamaste.
Ele recostou na cadeira. À diferença de um correto cavalheiro do Sul, não
tinha usado gravata na mesa e levava o pescoço da camisa aberto. Durante um
momento ela se encontrou olhando com atenção os fortes músculos de seu
pescoço. Se obrigou a afastar o olhar.
— Me fale dessa sua proposta.
— Bem... — ela tratou de tomar fôlego — Como seguramente terá
adivinhado, sua parte do trato seria ficar com Risen Glory até que eu a possa
comprar, suponho.
— Suponho.
— Não teria que ficar com ela para sempre — se apressou a acrescentar —
Só durante cinco anos, até que eu possa agarrar o dinheiro de meu fundo
fiduciário.
Ele a estudou. Ela apanhou seu lábio inferior entre os dentes. Esta parecia
ser a parte mais difícil.
— E compreendo que esperará algo em troca.
— Certamente.
Ela odiou a piscada de diversão em seus olhos.
— O que vou oferecer possivelmente te pareça pouco ortodoxo. Mas se
pensar nisso, sei que o considerará educadamente — ela tomou folego.
— Continua.
Fechou os olhos, respirou profundamente e o deixou sair.
— Ofereço-me para ser sua amante.
Ele se engasgou.
Ela conseguiu dizer o resto de forma rápida.
— Sei que foi pego de surpresa, mas tem que admitir que eu sou muito
melhor companhia que essas desculpas lamentáveis de mulher que frequenta
em Nova Iorque. Eu não rio bobamente, nem pestanejo. Não poderia flertar
contigo nem que quisesse, e é obvio nunca escutaria nada sobre filhotes
efeminados. A melhor parte é que não terá que preocupar-se por ir às festas e
jantares e aos lugares mal ventilados que as mulheres gostam. Em seu lugar
poderíamos passar o tempo caçando, pescando e montando a cavalo.
Poderíamos passá-lo realmente bem.
Cain começou a rir. Kit desejou ter uma faca à mão.
— Poderia me dizer o que considera tão engraçado?
Ele conseguiu finalmente controlar-se. Deixou o copo e se levantou da
mesa.
— Kit , sabe por que os homens têm amantes?
— Certamente que sim. Estou lendo A vida indolente de Louis XV.
Ele a olhou interrogativamente.
— Madame Pompadour — explicou ela — Ela era a amante de Louis XV.
Inspirei-me nela para esta ideia.
Não lhe disse que Madame Pompadour também tinha sido a mulher mais
forte da França. Tinha conseguido controlar o rei e ao país somente usando seu
engenho. Kit certamente poderia controlar o destino de Risen Glory se fosse
amante do Major. Além disso não tinha nada mais que ela mesma para
negociar.
Cain começou a dizer algo, mas se calou, sacudiu a cabeça e apurou o que
ficava de brandy. Parecia como se lhe voltasse o aborrecimento de novo.
— Ser a amante de um homem implica mais que caçar e pescar. Tem alguma
ideia do que estou falando?
Kit se sentiu ruborizar. Esta era a parte que não queria falar em
profundidade, a parte do livro que não tinha lido de tudo.
Nascer em uma plantação a tinha exposto aos fatos rudimentares da
reprodução animal, mas isto também a tinha deixado com muitas perguntas que
Sophronia se negava a responder. Kit suspeitava que não tinha todos os
detalhes adequados, mas sabia o suficiente para entender que o processo
inteiro era repugnante. De todos os modos deveria ser parte do trato.
Por alguma razão o acoplamento era importante para os homens, e se
esperava que as mulheres o suportassem, embora ela não podia imaginar à
senhora Cogdell permitindo ao reverendo subir a suas costas para fazer isso.
— Sei tudo sobre isso. E estou preparada para permitir-lhe a meu
companheiro — olhou com olhos furiosos — Embora vá odiá-lo!
Cain riu; então sua expressão se nublou como se estivesse pensando nos
malditos açoites outra vez. Tirou um charuto do bolso e saiu pelas portas do
jardim para acendê-lo. Ela o seguiu e lhe encontrou apoiado em um velho
banco oxidado, olhando fixamente para a horta. Ela esperou que dissesse algo.
Como não o fez, ela falou.
— Bem, e o que?
— É a coisa mais ridícula que escutei.
A luz de seu charuto projetou uma sombra sobre seu rosto, e o pânico fluiu
dentro dela. Esta era sua única oportunidade de manter Risen Glory. Tinha que
convencê-lo.
— Por que é tão ridículo?
— Porque o é.
— Pois me diga porquê!
— Sou seu meio-irmão.
— Que seja meu meio-irmão não quer dizer uma maldita coisa. É
puramente uma relação legal.
— Também sou seu tutor. Não pude encontrar uma só pessoa que esteja
disposta a tirar isso de mim, e a julgar por seu recente comportamento,
suponho que não é nenhuma surpresa.
— Farei o melhor! E sou muito boa disparando. Posso te pôr em cima da
mesa toda a carne que queira.
Isso lhe fez amaldiçoar outra vez.
— Os homens não procuram alguém que lhes possa pôr carne na mesa
quando procuram uma amante, maldição! Querem uma mulher formosa e que
cheire e atue como uma mulher.
— Eu cheiro realmente bem! Olhe. Me cheire! — ela levantou seu braço de
modo que ele pudesse cheirá-la bem, mas ele seguia com seu aborrecimento.
— Querem uma mulher que saiba como sorrir, dizer coisas bonitas e fazer
amor. De modo que isso te exclui!
Kit tragou o último pedaço de seu orgulho.
— Poderia aprender.
— Oh, pelo amor de Deus! — ele olhou o outro lado do caminho coberto
de cascalho — Já me decidi.
— Por favor! Não o faça.
— Não vou vender Risen Glory.
— Não venda... — parecia não poder respirar, e então uma grande onda de
felicidade a arrastou — Oh Major! Isso é... é a coisa mais maravilhosa que já
escutei!
— Te acalme. Há uma condição.
Kit sentiu um espinho afiado de advertência.
— Nada de condições! Nós não necessitamos condições.
Ele deu um passo na mancha âmbar que projetava a luz que saía pelo
comilão.
— Tem que voltar para Nova Iorque e ir à escola.
— À escola! — Kit estava incrédula — Tenho dezoito anos. Sou muito
grande para ir à escola. Além disso sou autodidata.
— Não a esse tipo de escola. Uma escola para te polir. Um lugar onde lhe
ensinem conduta e etiqueta e todos esses outros logros femininos sobre os que
você não tem uma maldita ideia.
— Uma escola para me polir? — estava horrorizada — Isso que é ser tolo
e pueril — viu nuvens de tormenta chegando à sua expressão e trocou de tática
— Deixa que fique aqui. Por favor. Não serei nenhum problema. Juro por
Jesus. Posso estar aqui, e você nem sequer me verá. Além disso posso te ser
útil de muitas formas. Conheço esta plantação melhor que ninguém. Por favor,
deixa que fique.
— Vais fazer o que eu te diga.
— Não, eu...
— Se não cooperar, venderei Risen Glory tão depressa que nem te dará
conta. Então não terá nenhuma possibilidade de recuperá-lo alguma vez.
Ela se sentiu doente. Seu ódio por ele se uniu em uma bola grande e dura.
— Está bem. Quanto tempo deveria ir a essa escola?
— Até que possa te comportar como uma dama, até o ponto que inclusive
eu acredite nisso.
— Poderia me ter ali para sempre.
— Bem. Digamos três anos.
— Isso é muito tempo. Terei vinte e um anos então.
— Ainda ficará muito por aprender. Pega ou deixa.
Ela o olhou amargamente.
— E então que ocorrerá? Poderei comprar Risen Glory com o dinheiro de
meu fundo fiduciário?
— Discutiremos isso quando chegar o momento.
Ele poderia mantê-la longe de Risen Glory durante anos, a exilar de tudo o
que amava. Deu a volta e entrou no salão. Recordou como se humilhou
oferecendo–se para ser sua amante, e seu ódio a estrangulou. Quando acabasse
seu desterro e finalmente recuperasse Risen Glory, ele ia pagar por isso.
— É um sim, Kit? — disse ele detrás dela.
Ela mal pôde deixar sair as palavras.
— Não me dá muita opção, não é verdade, ianque?
— Bom, bom, bom — a voz rouca e sedutora chegou do vestíbulo —
Parece que já retornou o moço que partiu à cidade de Nova Iorque.
— Sophronia! — Kit se lançou através da sala de jaantar aos braços da
mulher que estava de pé na porta — Onde estava?
— Em Rutherford. Jackson Baker está doente.
Cain olhou com surpresa a recém chegada. Assim que esta era a Sophronia
de Kit. Não era nada como a tinha imaginado.
Imaginou alguém muito mais velha, mas parecia que tinha pouco mais de
vinte anos, e era uma das mulheres mais exóticamente formosas que tinha visto
em sua vida. Alta e magra ultrapassava em muito a Kit. Tinha as maças do
rosto altas esculpidas e olhos dourados rasgados que se levantaram devagar
enquanto ele a observava. Seus olhares se encontraram por cima da cabeça de
Kit. Sophronia rompeu o abraço e caminhou para ele, movendo-se com uma
lânguida sensualidade que fazia com que seu simples vestido de algodão azul
parecesse da mais fina seda. Quando chegou frente a ele, parou e lhe ofereceu
sua magra mão.
— Bem-vindo a Risen Glory, Chefe.
Sophronia atuava da odiosa maneira que as pessoas tratavam Cain desde
que tinha chegado do Norte. Tudo era “sim, senhor” e “não, senhor”, sorrindo
e ficando contra Kit.

— Isso é porque ele tem razão — disse Sophronia quando Kit lhe perguntou
sobre o acordo — Já é hora de que comece a te comportar como a mulher que
está destinada a ser.
— E também já é hora que você comece a estar do lado de quem se supõe
que deve estar.
Sophronia e Kit se queriam mais que ninguém no mundo, apesar de serem
negra e branca. O que não significava que não discutissem. E essas brigas se
intensificaram depois de chegar a Nova Iorque. No momento que Magnus pôs
os olhos em Sophronia, começou a andar pelas nuvens e a senhora Simmons
não deixou de elogiar quão maravilhosa era Sophronia. Depois de três dias,
Kit estava até o gorro disso. Então seu mau humor chegou a limites
insuspeitados.
— Pareço com um burro!
O chapéu de feltro cor parda parecia uma molheira esmagada sobre o
cabelo desigual de Kit. O material de sua jaqueta ocre era de boa qualidade,
mas ficava muito grande dos ombros e o feio vestido de sarja marrom lhe
arrastava pelo tapete. Parecia que se disfarçou com a roupa de uma tia
solteirona. Sophronia pôs seus largos dedos em seus quadris.
— E o que esperava? Avisei-te que os vestidos que tinha comprado a
senhora Simmons eram muito grandes, mas não tem importância. E se quer
saber o que penso, acredito que você fez por merecer isso por pensar que sabe
tudo.
— Só porque tem três anos mais que eu e estejamos em Nova Iorque não
significa que possa atuar como alguma espécie de rainha.
Sophronia enrugou seu elegante nariz.
— Acredita que pode me dizer tudo o que te pareça. Pois bem, já não sou
sua escrava, Kit Weston. Entende-me? Já não te pertenço. Não pertenço a
ninguém, salvo a Jesus!
Kit não gostava de ferir os sentimentos de Sophronia, mas às vezes ficava
muito teimosa.
— É só que nunca me mostra o menor agradecimento. Eu te ensinei a somar.
Ensinei-te a ler e escrever, inclusive contra a lei. Escondi-te de Jesse Overturf
na noite que ele queria te encontrar. E agora te põe do lado desse ianque e
contra mim à menor oportunidade que encontra.
— Você tampouco me agradeceste nada. Passei longos anos cuidando que
não pusesse à vista da senhora Weston. E sempre que te pegava e te trancava
no banheiro, era eu quem te tirava. Jogava-me a pele por tí. Assim não quero
ouvir nada de agradecimentos. Você foi uma corda ao redor de meu pescoço,
me asfixiando, me roubando o ar para respirar. Se não fosse porque você…
Bruscamente Sophronia se calou quando ouviu passos que se aproximavam
pelo corredor. A senhora Simmons apareceu para anunciar que Cain estava
abaixo esperando Kit para levá-la à Escola que tinha escolhido. Justo então, as
duas briguentas se abraçaram uma à outra. Kit falou finalmente enquanto
agarrava o feio chapéu em forma de molheira e caminhava para a porta.
— Tomará cuidado, verdade? — disse — Te cuide muito nessa estupenda
escola — respondeu Sophronia.
— Farei-o.
Os olhos de Sophronia nublaram com lágrimas.
— Voltaremo-nos a ver antes que te dê conta.
SEGUNDA PARTE
A Garota Templeton
As maneiras são a maneira feliz de fazer as coisas.
RALPH Waldo Emerson

“CULTURE”
5
A Academia Templeton para Jovens Damas se assentava na Quinta Avenida
como uma grande baleia de pedra cinza. Hamilton Woodward, o advogado de
Cain, a tinha recomendado. Embora a escola não aceitasse normalmente
garotas tão mais velhas como Kit, Elvira Templeton fez uma exceção para o
Herói do Missionary Ridge.
Kit estava vacilante, de pé na soleira da sala do terceiro andar que lhe
tinham atribuído e estudava as cinco garotas que usavam idênticos vestidos
azul marinho, com os pescoços e os punhos brancos. Estavam apinhadas ao
redor da única janela da sala olhando para a rua. Não lhe levou muito tempo
compreender a quem olhavam tão atentamente.
— Oh, Elsbeth, não é o homem mais bonito que já viu?
A garota chamada Elsbeth suspirou. Tinha uns cachos castanhos e um rosto
fresco e bonito.
— Imagine. Esteve aqui mesmo, na Academia, e não nos é permitido descer
para vê-lo. É tão injusto! — e então disse com uma risadinha sufocada —:
Meu pai diz que não é realmente um cavalheiro.
Mais risadinhas sufocadas.
Uma garota formosa, de cabelo loiro que recordou a Kit a Dora Van Ness,
falou.
— Madame Riccardi, a cantora de ópera, ficou muito mal quando lhe
disseram que se mudará à Carolina do Sul. Todo mundo fala disso. Ela é sua
amante, já sabe.
— Lilith Shelton! — As garotas estavam delirantemente horrorizadas e
Lilith olhou-as desdenhosamente.
— Todas somos muito inocentes. Um homem tão sofisticado como Baron
Cain tem dúzias de amantes.
— Lembre-se o que decidimos — disse outra garota —. Embora ela seja
sua parente, é uma Sulista de modo que todas devemos odiá-la.
Kit já tinha escutado suficiente.
— Se isso significar que me liberarei de falar com vocês, cadelas idiotas,
parece-me estupendo.
As garotas se viraram de uma vez e respiraram com dificuldade. Kit sentiu
seus olhos percorrerem seu feio vestido e o horrível chapéu. Um artigo a mais
para acrescentar ao livro gordo de ódio que estava escrevendo contra Cain.
— Saiam todas daqui! Todas vocês. E se as ver alguma outra vez por aqui,
vou dar um chute em suas fracas bundas e as vou mandar direto ao inferno!
As garotas fugiram espavoridas da sala com chiados horrorizados. Todas
menos uma. A garota que chamavam Elsbeth. Parecia sobressaltada e aterrada,
com os olhos abertos como pratos e os bonitos lábios tremendo.
— É surda ou algo assim? Hei dito que vá.
— Eu... eu não posso.
— Por que demônios não?
— Eu... eu vivo aqui.
— Oh — pela primeira vez, Kit observou que o quarto tinha duas camas.
A garota era de aparência doce, uma dessas pessoas propensas a ser boas,
de natureza amável, e Kit não sentia necessidade de ser grosseira com ela. Por
outra parte ela era a inimiga.
— Terá que se mudar.
— A senhora... a senhora Templeton não me permite isso. Eu... eu já
perguntei.
Kit amaldiçoou, subiu as saias, e se afundou na cama.
— Como é que é tão afortunada de ser minha companheira?
— Meu... meu pai. É o advogado do senhor Cain. Eu sou Elisabeth
Woodward.
— Diria que é um prazer conhecê-la, mas as duas saberíamos que estou
mentindo.
— Eu... é melhor sair.
— Sim, vai.
Elsbeth saiu depressa do quarto. Kit se recostou no travesseiro, pensando
como ia sobreviver ali os próximos três anos.
***

A Academia Templeton mantinha um ordenado sistema de demérito. Por


cada dez deméritos que uma garota adquiria, a confinava em seu quarto todo o
sábado. Ao final de seu primeiro dia, Kit tinha acumulado oitenta e três.
(Tomar o nome de Deus em vão eram automaticamente dez.) Ao final de sua
primeira semana, já tinha perdido a conta.
A senhora Templeton chamou Kit a seu escritório e a ameaçou expulsando
se não começava a seguir todas as regras. Kit devia participar das classes.
Tinham-lhe dado dois uniformes e tinha que começar a usá-los. Sua gramática
devia melhorar imediatamente. As damas não diziam “anda que não” ou “eu
me suponho”. As damas se referiam aos objetos como “sem importância”, não
“inúteis como saliva de sapo”. E sobretudo, as damas não amaldiçoavam.
Kit permaneceu estoíca durante a entrevista, mas interiormente estava
assustada. Se a velha arpía a expulsava, Kit teria quebrado seu acordo com
Cain e perderia Risen Glory para sempre.
Jurou controlar seu caráter, mas conforme passavam os dias, tornou-se mais
e mais difícil. Tinha três anos mais que suas companheiras de classe, mas
sabia menos que qualquer uma delas. Burlavam-se de seu corte de cabelo
desigual e riam dissimuladamente quando lhe enredavam as saias na cadeira.
Um dia lhe pegaram as páginas de seu livro de francês. Outro dia sua camisola
apareceu feita nós. Ela tinha vivido sua vida levantando os punhos, e agora seu
futuro dependia de que os mantesse abaixados. Em lugar de vingar-se, reunia
os insultos e os guardava para examiná-los já muito entrada a noite quando
estava deitada na cama. Algum dia faria com que Baron Cain pagasse cada um
desses insultos.
Elsbeth continuou comportando-se como um camundongo assustado sempre
que estava perto de Kit. Embora rechaçasse participar da perseguição de Kit,
era muito tímida para fazer às outras garotas deter-se, mas seu amável coração
não podia suportar as injustiças, especialmente quando os dias lhe
demonstraram que Kit não era tão fera como parecia.
— Estou desesperada — confessou Kit uma noite depois que tropeçou com
a saia do uniforme na classe de baile e derrubou um floreiro chinês de seu
pedestal — Nunca aprenderei a dançar. Falo muito alto, odeio usar saias, o
único instrumento musical que posso tocar é uma harpa de boca e não posso
olhar para Lilith Shelton sem amaldiçoá-la.
Os olhos castanhos de Elsbeth a olharam com preocupação.
— Deve ser mais agradável com ela. Lilith é a garota mais popular da
escola.
— E a mais repugnante.
— Asseguro-te que não é como você diz.
— E eu te asseguro que sim. É tão boa, que não reconhece a maldade em
outra pessoa. Inclusive não parece se assustar comigo, e isso que dizem que
sou malvada.
— Você não é malvada!
— Sim, sou. Mas não tanto como muitas das garotas que estão nesta escola.
Suponho que você é a única pessoa decente aqui.
— Isso não é certo — disse Elsbeth com a maior serenidade — A maior
parte delas são muito agradáveis se só lhes desse a oportunidade. É tão
agressiva que as assusta.
O ânimo de Kit se levantou um pouco.
— Obrigada. A verdade é que não sei como poderia eu assustar alguem.
Faço tudo errado aqui. Não posso imaginar como vou durar três anos.
— Meu pai não me disse que tinha que estar tanto tempo. Então terá vinte e
um. Será muito velha para estar em uma escola.
— Sei, mas não tenho nenhuma escolha — Kit manuseou a colcha de lã
cinza. Normalmente não gostava de revelar confidências, mas se sentia mais
só que nunca — Há algo neste mundo que queira tanto que faria algo por
mantê-lo seguro?
— Oh, sim. Minha irmã pequena Agnes. Ela não é como as outras meninas.
Embora tenha quase dez anos não pode ler nem escrever, mas é muito doce e
nunca deixarei que ninguém a machuque.
— Então me entende.
— Me conte, Kit. Me conte o que passa.
E assim Kit lhe falou de Risen Glory. Descreveu os campos e a casa, falou
da Sophronia e Eli, e tratou de fazer com que Elsbeth visse a forma como as
árvores mudavam de cor segundo o momento do dia. Depois lhe falou de
Baron Cain. Não lhe contou tudo. Elsbeth não entenderia nunca seu disfarçe
como menino de estábulo ou a maneira que tinha estado a ponto de matá-lo, e
muito menos de lhe propor ser sua amante. Mas lhe contou o suficiente.
— Ele é perverso e não posso fazer nada sobre isso. Se me expulsarem,
venderá Risen Glory. E se consigo durar os três anos aqui, ainda deverei
esperar até que tenha vinte e três anos para conseguir controlar o dinheiro de
meu fundo fiduciário e possa comprar dele. Quanto mais tempo passe, mais
difícil vai ser.
— Não há nenhuma outra forma em que possa utilizar seu dinheiro antes
disso?
— Só se me caso. Mas isso não ocorrerá.
Elsbeth era filha de um advogado.
— Se te casar, seu marido controlaria seu dinheiro. É a forma como
funciona a lei. Não poderá gastá-lo sem sua permissão.
Kit encolheu os ombros.
— Essas leis estão caducas. Não há nenhum homem no mundo ao que eu me
prenderia. Além disso, eu certamente não valeria para ser esposa. O único que
sei fazer bem é cozinhar.
Elsbeth era pormenorizada, mas também prática.
— Por isso todas estamos aqui. Para aprendermos a ser esposas perfeitas.
Procuram as garotas da Academia Templeton para fazer os matrimônios mais
seletos de Nova Iorque. Por isso é tão especial ser uma garota Templeton. Os
homens vêm de todas as partes do oeste para assistir ao baile de graduação.
— Não me importa se vierem de Paris, França. Nunca me verão em um
baile.
Mas parecia que a Elsbeth tinha chegado a inspiração, e não estava
prestando atenção.
— Tudo o que tem que fazer é encontrar o marido adequado. Alguém que te
faça feliz. Então tudo será perfeito. Não dependerá do senhor Cain e terá seu
dinheiro.
— É uma garota realmente doce Elsbeth, mas devo te dizer que essa é a
ideia mais ridícula que escutei em minha vida. Me casar significaria que estou
passando a outro homem meu dinheiro.
— Se escolher ao homem adequado, seria o mesmo que o ter você mesma.
Antes de te casar, poderia convencê-lo que te compre Risen Glory como
presente de bodas — aplaudiu enquanto punha um olhar sonhador —. Imagine
que romântico seria. Poderia voltar para sua casa para a lua de mel.
Maridos e luas de mel. Elsbeth poderia ter estado falando em outro idioma.
— Isso é uma evidente estupidez. Que homem vai casar comigo?
— Te levante! — a voz de Elsbeth tinha a mesma nota de ordem que a
própria Elvira Templeton, e Kit se levantou a contra gosto.
Elsbeth passou o dedo por sua bochecha.
— Está terrivelmente magra e seu cabelo é horrível. Certamente —
acrescentou cortesmente — crescerá, e é de uma cor formosa, tão suave e
negro. Inclusive agora, não estaria mal se o igualasse um pouco. Seus olhos
parecem muito grandes para sua cara, mas é por sua extrema magreza —
devagar girou em um circulo ao redor de Kit —. vais ser muito formosa algum
dia, de modo que acredito que devemos nos preocupar só do resto.
Kit franziu o cenho.
— O que é do resto que temos que nos preocupar?
Mas Elsbeth já não se sentia intimidada.
— Todo o resto. Deve aprender a falar e andar, que palavra dizer ou,
inclusive mais importante, qual não dizer. Deverá aprender tudo o que a
Academia te ensina. É afortunada de que o senhor Cain tenha sido tão
generoso com sua atribuição para roupa.
— Não a necessito. O que preciso é um cavalo.
— Os cavalos não lhe ajudarão a conseguir um marido. Mas a Academia
sim.
— Não sei como. Não consegui grande coisa até agora.
— Não, não conseguiste nada. — o sorriso doce de Elsbeth ficou travesso
— Mas então tampouco me tinha em seu bando.
A ideia era parva, mas Kit reconheceu sua primeira faísca de esperança.
Conforme passavam as semanas, Elsbeth foi tão boa como lhe prometeu.
Cortou o cabelo de Kit com tesouras de manicure e lhe deu aulas nas
disciplinas que estava mais atrasada. Finalmente Kit deixou de golpear os
floreiros na classe de baile e descobriu que tinha talento para costurar... não
bordando os modelos de fantasia que detestava, a não ser acrescentando
toques flamejantes a outras roupas, como os uniformes da escola. (Dez de
demérito.) Se dava muito bem no francês, e ao cabo de pouco tempo estava
ajudando com essa disciplina a muitas das garotas que se burlaram dela. Para
Páscoa, o projeto de Elsbeth para que encontrasse marido já não lhe parecia
tão ridículo, e Kit começou a dormir sonhando que Risen Glory seria sua para
sempre. Imagine.
***

Sophronia já não era a cozinheira de Risen Glory, a não ser a ama de


chaves da plantação. Dobrou e guardou a carta de Kit na gaveta da mesa de
mogno onde guardava as faturas do lar e apertou o xale grande mais fortemente
ao redor dos ombros para se proteger do frio de fevereiro. Kit estava na
Academia Templeton há seis meses, e agora parecia começar a adaptar-se.
Sophronia sentia falta de Kit, estava cega em algumas questões, mas
também entendia coisas que as outras pessoas não. Além disso Kit era a única
pessoa no mundo que a queria. De toda maneira, sempre conseguia zangar-se
nas cartas, e esta era a primeira correspondencía que Sophronia recebia de Kit
em um mês.
Sophronia pensou em sentar-se para responder de forma imediata, mas
sabia que o adiaria, especialmente depois da última vez. Suas cartas somente
pareciam zangar a Kit. Poderia pensar que estaria contente de escutar como
Risen Glory estava florescendo agora que Cain estava a mando, mas só
acusava Sophronia de tomar partido do inimigo.
Sophronia contemplou a confortável sala. Observou a nova tapeçaria de
damasco rosa do sofá e a forma como os azulejos de porcelana de Delft ao
redor da chaminé brilhavam com a luz do sol. Tudo brilhava com cera, pintura
fresca e cuidados.
Às vezes odiava a si mesma por trabalhar tão duramente para fazê-la
formosa de novo. Trabalhava todos os dias até quebrar as costas para o
homem, como se nunca houvesse acontecido uma guerra e fosse ainda uma
escrava. Mas agora tinha um pagamento. Um bom salário, o melhor das amas
de chaves do condado. Mas Sophronia ainda não estava satisfeita.
Moveu-se para olhar-se no grande espelho com marco dourado que
pendurava da parede entre as janelas. Nunca se havia visto melhor. Comidas
regulares tinham suavizado os rasgos de sua cara e se arredondaram os afiados
ângulos de seu corpo. Levava o cabelo comprido suavemente enrolado e preso
no alto da cabeça. O estilo sofisticado lhe acrescentava uma altura
considerável, de quase um metro oitenta centímetros, e isso a agradou. Com
seus exóticos olhos dourados e sua pele caramelo pálida, parecia com uma das
Amazonas que tinha visto em um livro da biblioteca.
Franziu o cenho quando olhou o singelo vestido. Ela queria vestidos de
costureira. Queria sedas e perfumes, cristal e champanhe. Mas o que mais
queria era um lugar próprio, uma dessas bonitas casas cor bolo de Charleston,
onde teria uma criada e se sentiria segura e protegida. Também sabia como
conseguí-lo. Tinha que fazer o que mais medo lhe dava. Em lugar de ser ama
de chaves de um homem branco, deveria ser sua amante.
Cada noite quando servia a Cain o jantar, balançava os quadris de forma
sedutora, e apoiava os peitos contra seu braço enquanto lhe punha a comida.
Às vezes esquecia seu medo aos homens brancos para olhar quão arrumado
era, e recordava quão amável tinha sido com ela. Mas ele era muito grande,
muito forte, muito masculino para sentir-se bem com ele. Apesar de tudo,
umedecia-se os lábios e lhe convidava com os olhos, praticando todos os
truques que tinha conseguido aprender.
Uma imagem de Magnus Owen apareceu em sua mente. Maldito seja esse
homem! Odiava a maneira como a olhava com esses olhos escuros, como se
sentisse pena dela. Doce e bendito Jesus, como se não tivesse ele razão.
Magnus Owen que a odiava tanto que não podia suportá-lo, tinha o
descaramento de compadecer-se dela.
Um involuntário calafrio lhe percorreu o corpo quando imaginou uns
membros brancos pálidos envolvendo os seus mais escuros. Afastou a imagem
e seguiu com seu ressentimento.
Pensava realmente Magnus Owen que deixaria que a tocasse? Ele ou
qualquer outro homem negro? Pensava Magnus que tinha estudado tão
duramente escondida nos asseios, escutando às damas brancas de Rutherford
até poder falar exatamente como elas, só para acabar com um homem negro
que não poderia protegê-la? Provavelmente não. Especialmente um homem
negro cujos olhos pareciam brocar nos cantos mais profundos de sua alma.
Encaminhou-se à cozinha. Logo teria tudo o que queria... uma casa, vestidos
de seda, segurança... e pensava ganhar da única maneira que imaginava,
satisfazendo o desejo de um homem branco. Um homem branco que fosse o
bastante forte para protegê-la.
A noite se apresentava chuvosa. Os potentes ventos de fevereiro uivavam
por debaixo da chaminé e agitavam as venezianas quando Sophronia fez uma
pausa fora da biblioteca. Em uma mão segurava uma bandeja de prata levando
uma garrafa de brandy e um único copo. Com sua outra mão desabotoou os
botões superiores do vestido para revelar a inflamação de seus peitos. Era
hora de fazer o seguinte movimento. Respirou profundamente e entrou na
habitação.
Cain levantou a vista do livro de contas.
— Deve ter lido minha mente.
Ele esticou seu corpo grande, patilargo na cadeira de couro, levantou-se e
se esticou. Ela não se permitiu afastar-se quando o viu rodear o escritório,
movendo-se como um grande leão dourado. Tinha estado trabalhando de sol a
sol durante meses, e parecia cansado.
— É uma fria noite — disse ela pondo a bandeja sobre a mesa — Acredito
que vais necessitar algo para te manter quente — abriu com a mão o decote de
seu vestido para que não houvesse engano ao que se referia.
Ele a olhou e ela reconheceu o familiar fio da borda de pânico. Recordou-
se de novo quão amável ele tinha sido, embora por outro lado havia algo
perigoso nele que a intimidava. Seus olhos desceram de sua cara a seus peitos.
— Sophronia...
Ela pensou em vestidos de seda e uma casa cor bolo. Uma casa com um
bom ferrolho.
— Shh... — caminhou para ele e lhe acariciou o peito com os dedos. Então
deixou que seu xale grande se deslizasse por seu braço nu.
Desde fazia sete meses, sua vida tinha estado cheia de muito trabalho e
pouco prazer. Agora deixou cair suas pálpebras e fechou seus largos dedos
sobre seu braço. Sua mão bronzeada pelo sol da Carolina, era mais escura que
seu própria carne. Ele cavou seu queixo.
— Está segura disto?
Ela se obrigou a assentir com a cabeça.
Sua cabeça começou a baixar, mas justo antes que seus lábios se tocassem,
se produziu um ruído detrás deles. Viraram-se de uma vez e viram a Magnus
Owen de pé na porta aberta.
Seus aprazíveis traços se torceram quando a viu ali, pronta para render-se
ao abraço de Cain. Ela escutou um grunhido sair das profundezas de sua
garganta. Entrou na habitação e se lançou no homem ao qual considerava seu
melhor amigo, o homem que lhe tinha salvado uma vez a vida.
A brutalidade do ataque pegou Cain de surpresa. Assombrado tornou para
trás e mal conseguiu guardar o equilíbrio. Então se preparou para combater
Magnus.
Horrorizada ela viu como Magnus lhe arremetia. Lançou-lhe um murro que
Cain esquivou e levantou o braço para rebater outro golpe.
Magnus lançou o punho outra vez. Esta vez encontrou a mandíbula de Cain e
enviou-o ao chão. Cain se levantou, mas não queria brigar.
Gradualmente Magnus recuperou a razão. Quando se deu conta que Cain
não ia brigar, baixou os braços. Cain olhou fixamente nos olhos de Magnus, e
logo dirigiu sua atenção a Sophronia. Pôs de pé uma cadeira que tinha ficado
tombada pelo ataque e disse bruscamente.
— Vai dormir, Magnus. Temos um dia duro manhã — se virou para
Sophronia — Pode ir. Não te necessitarei mais.
A forma deliberada em que enfatizou essas últimas palavras não deixavam
dúvidas de seu significado.
Sophronia saiu depressa da habitação. Estava furiosa com Magnus por
estragar seus planos. Ao mesmo tempo temia por ele. Isto era Carolina do Sul
e ele tinha golpeado a um homem branco, não uma vez, a não ser duas.
Logo que dormiu essa noite temendo que os demônios com lençóis brancos
viessem por ele, mas não ocorreu nada. Ao dia seguinte lhe viu trabalhando
com Cain, limpando a escova um dos campos. O medo que tinha sentido por
ele, transformou-se em ressentimento. Ele não tinha nenhum direito a interferir
em sua vida.
Essa noite Cain lhe ordenou deixar o brandy na mesa de fora da porta da
biblioteca.
6
Flores frescas da primavera enchiam o salão de baile da Academia
Templeton para Jovens Damas. Pirâmides de tulipas brancas ocultavam as
chaminés vazias, enquanto floreiros de cristal esculpido cheios com liláses
contornavam seus suportes. Inclusive nos espelhos tinham sido penduradas
azaléias tão brancas como a neve.
Com o passar do perímetro do salão de baile, os grupos de elegantes
convidados contemplavam o terraço ao final do salão, que estava
encantadoramente enfeitado de rosa. Logo as graduadas mais recentes da
Academia Templeton, a Classe de 1868, passaria por ela.
Além dos pais das debutantes, entre os convidados se incluíam membros
das famílias mais elegantes de Nova Iorque: os Schermerhorns e os
Livingstons, vários Jays e ao menos um Van Rensselaer. Nenhuma mãe
socialmente proeminente permitiria a um filho casadoiro perder algum dos
eventos que rodeavam a graduação da mais recente colheita de garotas
Templeton, e indubitavelmente não perderiam o baile de graduação da
Academia, já que era o melhor lugar em Nova Iorque para encontrar uma nora
adequada.
Os solteiros, estavam reunidos em grupos ao redor do salão. Suas filas se
reduziram devido à guerra, mas ainda havia o suficiente presente para agradar
às mães das debutantes.
Os homens mais jovens estavam descuidadamente seguros de si mesmos,
em seus smokings negros e suas camisas de branco imaculado, apesar do fato
de que algumas de suas mangas penduravam vazias, e de que, embora, mais de
um ainda não tinha celebrado seu vigésimo quinto aniversário, já usava
bengala. Os bolsos dos solteiros mais velhos transbordavam pelas lucros da
economia de uma próspera pós guerra, e mostravam seu êxito com gêmeos de
diamantes e relógios com pesadas correntes de ouro.
Esta noite, era a primeira vez que os cavalheiros de Boston, Philadelphia e
Baltimore teriam o privilégio de ver a última colheita das debutantes mais
desejáveis de Manhattan. A diferença de seus homólogos de Nova Iorque,
estes cavalheiros não tinham podido assistir aos chás e as tranquilas
recepções do domingo pela tarde, que tinham precedido ao baile desta noite.
A formosa Lilith Shelton adornaria a mesa de qualquer homem. E seu pai
estabeleceu um dote de dez mil dólares por ela.
Margaret Stockton tinha os dentes torcidos, mas levaria oito mil dólares a
sua cama de matrimônio, e cantava bem, uma bela qualidade em uma esposa.
Elsbeth Woodward valia cinco mil no máximo, mas tinha uma natureza doce
e era mais que agradável de olhar, a classe de esposa que não daria problemas
a um homem. Era uma clara favorita.
Fanny Jennings estava fora da competição. O menino mais jovem dos
Vandervelt já tinha falado com seu pai. Uma pena, já que valia dezoito mil.
E assim uma garota atrás de outra. Quando a conversação começou a vagar
ao mais recente combate de boxe, um visitante bostoniano interrompeu.
— Não há outra de que ouvi falar? Uma garota do Sul? Mais velha que o
resto? — vinte e um, tinha escutado.
Os homens de Nova Iorque evitaram olhar nos olhos um dos outros.
Finalmente um deles esclareceu garganta.
— Ah, sim. Essa deve ser a senhorita Weston.
Justo então a orquestra começou a tocar uma seleção dos recentemente
populares “Contos de Vienna Woods”, um sinal de que as senhoritas da classe
graduada estavam a ponto de ser anunciadas. Os homens se calaram quando as
debutantes apareceram.
Vestidas com trajes de baile brancos, passaram uma por uma através do
terraço, pausadamente, e se afundaram em uma graciosa reverência. Depois do
pertinente aplauso se deslizaram sobre os degraus com pétalas de rosas para o
salão de baile e agarraram o braço de seu pai ou irmão.
Elsbeth sorriu com tanta graça que o melhor amigo de seu irmão, que até
esse momento a tinha considerado somente um incômodo, começou a mudar de
ideia. Lilith Shelton tropeçou ligeiramente com a prega de sua saia e quis
morrer, mas era uma “Garota Templeton” de modo que não deixou ver sua
vergonha. Margaret Stockton, inclusive com seus dentes torcidos, estava o
suficientemente atrativa para atrair a atenção de um membro do ramo menos
próspero da família Jay.
— Katharine Louise Weston.
Houve um movimento quase imperceptível entre os cavalheiros de Nova
Iorque, uma leve inclinação de cabeças, um vago movimento de posições. Os
cavalheiros de Boston, Philadelphia e Baltimore intuíam que algo especial
estava a ponto de acontecer e fixaram sua atenção mais atentamente.
Chegou para eles das sombras do terraço, e se deteve no alto da escada. Em
seguida viram que não era como as outras. Esta não era nenhuma gatinha
listrada, domesticada para fazer um novelo junto à chaminé de um homem e
manter suas sapatilhas quentes. Esta era uma mulher que agitaria o sangue de
um homem, uma gata selvagem, com um lustroso cabelo negro recolhido para
trás, com pentes de prender cabelos de prata, que logo caíam para seu pescoço
em um alvoroçado matagal de cachos escuros. Era uma gata exótica com
grandes olhos violetas, tão excessivamente rodeados, que o peso de seus
cílios deveria havê-los mantido fechados. Uma gata montesa, com uma boca
muito atrevida para a moda, mas tão amadurecida e úmida que um homem só
podia pensar em beber dela.
Seu vestido era feito de cetim branco com uma torcida renda enganchada
por laços do mesmo tom violeta que seus olhos. O decote em forma de
coração perfilava levemente o contorno de seus peitos e as mangas em forma
de sino terminavam seu traje em umas luvas largas de encaixe do Alençon. O
vestido era formoso e caro, mas ela o levava quase descuidadamente. Um dos
laços lilás se desatou do lado, e as luvas logo seguiriam seu caminho, pois os
havia subido muito sobre seus delicados braços.
O filho mais novo de Hamilton Woodward se ofereceu como seu
acompanhante para o passeio. Os convidados mais exigentes observaram que
sua pernada era larga, não o suficiente larga para criar uma má opinião sobre a
Academia, mas o suficiente para ser notada. O filho de Woodward lhe
sussurrou algo. Ela inclinou sua cabeça e riu, mostrando seus pequenos e
brancos dentes. Todo homem que a olhava desejava que essa risada fosse só
para ele, inclusive quando reconheciam que uma jovenzinha mais delicada
talvez não riria tão descaradamente. Somente o pai de Elsbeth, Hamilton
Woodward, negou-se a olhá-la. Sob o refúgio da música, os cavalheiros de
Boston, Philadelphia, e Baltimore exigiram saber mais sobre esta senhorita
Weston.
Os cavalheiros de Nova Iorque foram vagos ao princípio.
Alguns opinavam que Elvira Templeton não deveria ter deixado entrar uma
sulina na Academia tão logo depois da guerra, mas ela era a pupila do “Herói
de Missionary Ridge”.
Seus comentários se fizeram mais pessoais. Realmente é alguém digna de
olhar. De fato, é difícil afastar os olhos dela. Mas um tipo perigoso de esposa,
não acreditam? Um pouco selvagem. Com certeza ela não aceitaria bem o
matrimônio de maneira nenhuma. E como poderia um homem ter sua mente
posta nos negócios, com uma mulher assim esperando-o em casa? Se o
esperasse.
Gradualmente os cavalheiros de Boston, Philadelphia e Baltimore
conheceram o resto. Nas últimas seis semanas a senhorita Weston tinha
captado o interesse de uma dúzia dos solteiros mais elegíveis de Nova Iorque,
só para rechaçá-los. Eram homens das famílias mais enriquecidas... homens
que governariam algum dia a cidade, inclusive o país... mas a ela parecia não
lhe importar. Quanto aos que ela parecia preferir... Isso era o que mais
irritava.
Escolhia aos homens menos prováveis.
Bertrand Mayhew, por exemplo, vinha de boa família mas era virtualmente
pobre e tinha sido incapaz de tomar uma decisão por sua conta desde que sua
mãe morreu. Logo estava Hobart Cheney, um homem sem dinheiro nem
aparência, só com uma desafortunada gagueira. As preferências da deliciosa
senhorita Weston eram incompreensíveis. Estava desprezando a Van
Rensselaers, Livingstons e Jays por Bertrand Mayhew e Hobart Cheney.
As mães estavam aliviadas. Elas se divertiam muito com a companhia da
senhorita Weston... as fazia rir e se compadecia de suas enfermidades.
Mas não tinha o nível requerido como nora, verdade? Sempre com um
volante esmigalhado ou perdendo uma luva. Seu cabelo nunca estava em seu
lugar, sempre tinha uma mecha solta ao redor de suas orelhas ou curvando-se
nas têmporas. E quanto à maneira audaz que tinha de olhar com esses olhos...
reconfortantes, mas ao mesmo tempo perturbadores. Não, depois de tudo, a
senhorita Weston não poderia ser a classe de esposa adequada para seus
filhos.
Kit era consciente da opinião que tinham dela as matronas da sociedade, e
não as culpava por isso. Como uma “Garota Templeton”, inclusive as
compreendia. Mas isso não impedia que entretivesse a seus casais, com a
típica voz falta de fôlego, sulina, que tinha aperfeiçoado imitando às mulheres
de Rutherford. Agora, entretanto, seu par era o pobre Hobart Cheney, quem
mal era capaz de manter uma conversação sob as melhores circunstâncias,
menos ainda quando estava contando os passos de baile tão vigorosamente sob
sua respiração, de modo que permaneceu em silêncio.
O senhor Cheney tropeçou, mas Elsbeth a tinha treinado bem durante os
últimos três anos, e Kit o conduziu para trás antes que alguém se desse conta.
Também lhe mostrou o sorriso mais brilhante, de maneira que ele não se desse
conta que, em realidade, era ela que o levava.
O pobre senhor Cheney nunca saberia o perto que tinha estado de ser sua
escolha como marido. Se tivese sido um pouquinho menos inteligente, poderia
havê-lo escolhido. De qualquer modo, Bertrand Mayhew constituía a melhor
escolha.
Observou ao senhor Mayhew de pé sozinho, esperando o primeiro dos dois
bailes que lhe tinha prometido. Reconheceu a familiar opressão que sempre
sentia quando o olhava, falava com ele, ou pensava nele.
Ele não era muito mais alto que ela, e sua barriga se sobressaía debaixo do
cinturão de suas calças como o de uma mulher grávida. Aos quarenta, tinha
vivido toda sua vida à sombra de sua mãe, e agora que ela estava morta,
necessitava desesperadamente que outra mulher tomasse seu lugar. Kit tinha
decidido que essa mulher seria ela.
Elsbeth estava desgostada, assinalando que Kit poderia conseguir outro
qualquer entre uma dúzia de homens elegíveis que eram mais ricos que
Bertrand Mayhew e menos desagradáveis. Mas Elsbeth a compreendia. Para
conseguir Risen Glory, Kit em seu matrimônio precisava de poder, não
riqueza, ou um marido que esperasse que se comportasse como uma
apropriada e tola esposa, coisa que ela não faria absolutamente.
Kit sabia que não seria difícil convencer a Bertrand para utilizar o dinheiro
de seu fundo fiduciário para comprar Risen Glory, nem tampouco teria
problemas para o convencer de viver ali permanentemente. Por isso, sufocou a
parte de si mesma que desejava ter encontrado um marido menos repugnante.
Depois do jantar de meia-noite, levaria-o a sala de recepção para ver a nova
coleção de fotos tridimensionais das cataratas do Niágara, e então perguntaria.
Não seria difícil. Tinha resultado ser assombrosamente fácil dirigir aos
homens. Dentro de um mês estaria no caminho para Risen Glory.
Desgraçadamente, estaria casada com Bertrand Mayhew.
Não esbanjou nem um minuto em pensar na carta que tinha recebido ontem
de Baron Cain. Estranha vez tinha notícias dele, e quando tinha era somente
para repreendê-la por causa de um dos informes trimestrais que recebia da
senhora Templeton. Suas cartas eram sempre tão formais e ditatoriais que não
podia arriscar a ler diante de Elsbeth, pois a faziam voltar para seus velhos
hábitos de blasfemar.
Depois de três anos, o livro mental que continha suas queixas contra ele
tinha engordado com inumeráveis páginas. Em sua última carta, lhe ordenava
que ficasse em Nova Iorque até novo aviso, sem nenhuma explicação. Pensava
ignorá-lo. Estava a ponto de tomar as rédeas de sua vida, e não lhe deixaria
interpor-se em seu caminho.
A música acabou com um dramático crescendo, e Bertrand Mayhew
apareceu imediatamente a seu lado.
— Senhorita... senhorita Weston? Eu me perguntava... quer dizer, você
recorda.
— Como não, mas se é o senhor Mayhew — Kit inclinou a cabeça e o
contemplou através de suas pestanas, um gesto que tinha praticado tanto sob a
tutela de Elsbeth, que se havia voltado natural — Meu querido, prezado senhor
Mayhew. Estava assustada — aterrada de fato — de que tivesse me esquecido
e se foi com alguma outra jovem.
— Oh, eu, não! Oh, senhorita Weston, como poderia você acreditar que eu
faria, alguma vez, algo tão pouco cavalheiresco? Oh, senhor, não. Minha
querida mãe nunca teria...
— Estou segura disso — se desculpou com graça frente a Hobart Cheney, e
enlaçou seu braço com o do senhor Mayhew, consciente de que o gesto era
excessivamente familiar — Venha, venha. Nada de caras largas, me ouviu? Só
estava brincando.
— Brincando? — parecia tão perplexo como se lhe estivesse dizendo que
tinha montado nua pela Quinta Avenida.
Kit reprimiu um suspiro. A orquestra começou a tocar uma enérgica peça, e
deixou que a conduzisse ao baile. Ao mesmo tempo tratou de livrar-se de sua
depressão, mas uma olhada ao pai de Elsbeth o fez difícil.
Que parvo tão pomposo! Durante a Páscoa, um dos advogados da empresa
de Hamilton Woodward tinha bebido muito e abordado a Kit na sala de música
dos Woodwards. Um só toque daqueles babosos lábios, e lhe tinha dado um
forte murro no estômago. Aí poderia ter acabado tudo, mas casualmente o
senhor Woodward entrava nesse momento na sala. Mentindo, seu sócio culpou
a Kit de tratar de lhe seduzir. Kit o negou iradamente, mas o senhor Woodward
não acreditou. Após, tinha tratado sem êxito de boicotar sua amizade com
Elsbeth, e toda noite tinha estado olhando-a com expressão mordaz.
Esqueceu-se do senhor Woodward quando viu um novo casal ingressar no
baile. Havia algo familiar no homem que captou sua atenção, e quando o casal
se aproximou da senhora Templeton para apresentar seus respeitos,
reconheceu-o. Oh, meu...
— Senhor Mayhew poderia você me acompanhar até a senhora Templeton?
Está falando com alguém a quem conheço. Alguém a quem não vi durante anos.
Os cavalheiros de Nova Iorque, Boston, Philadelphia, e Baltimore notaram
que a senhorita Weston tinha deixado de dançar e tentaram ver o que tinha
captado sua atenção. Não sem pouca inveja, estudaram ao homem que acabava
de entrar no salão de baile. O que tinha aquele pálido e magro desconhecido
que tinha levado tal atrativo rubor às bochechas da esquiva senhorita Weston?
***

Brandon Parsell, o ex-oficial de cavalaria na famosa “Legião de Hampton”


da Carolina do Sul, tinha algo de artista no olhar, embora era plantador por
nascimento e não sabia de arte mais à frente que gostava esse tipo que pintava
cavalos. Seu cabelo era castanho e liso, penteado para um lado, sobre uma
testa fina e bem moldada. Tinha um bigode cuidadosamente recortado e umas
conservadoras costeletas.
Não era o tipo de rosto que inspirava fácil camaradagem, com membros de
seu próprio sexo. Pelo contrário, era um rosto que gostava às mulheres,
recordava as novelas sobre cavalaria e evocava sonetos, rouxinóis e urnas
gregas.
A mulher a seu lado era Eleanora Baird, a simples e emperiquitada filha de
seu chefe. Agradeceu sua apresentação à senhora Templeton com uma cortês
reverência e um cumprimento apropriado. Ao escutar seu lento falar sulino,
ninguém teria adivinhado a aversão que sentia contra todos eles: Os brilhantes
convidados, a imponente anfitriã, inclusive à solteira do norte a quem se viu
obrigado a acompanhar essa noite.
E então, sem prévio aviso, sentiu uma aguda pontada de nostalgia, um
anseio pelos murados jardins de Charleston num domingo pela tarde, um
grande desejo pelo silencioso ar noturno no Holly Grove, a antiga casa de sua
família.
Não havia nenhuma razão para a corrente de emoção que apertou seu peito,
nenhuma razão a parte do leve e doce perfume jasmin da Carolina, que
produzia um sussurrante cetim branco.
— Ah Katharine, querida — a senhora Templeton chamou com esse
estridente acento do norte que retumbava os ouvidos de Brandon. — Aqui há
alguém a quem eu gostaria de lhe apresentar. Um patrício seu.
Ele se virou lentamente para o sugestivo perfume de jasmim e tão rápido
como o batimento de um coração, perdeu-se no formoso e obstinado rosto, que
encontrou seu olhar. A jovem sorriu.
— O senhor Parsell e eu já nos conhecemos, embora veja por sua
expressão que não me recorda. Que vergonha, senhor Parsell. Esqueceu a uma
de suas mais fiéis admiradoras.
Embora Brandon Parsell não reconhecia o rosto, reconheceu a voz.
Conhecia essas vogais ligeiramente imprecisas e as suaves consonantes,
melhor que sua própria respiração. Era a voz de sua mãe, suas tias e suas
irmãs. A voz que durante quatro largos anos tinha aliviado a morte, desafiado
aos ianques e enviado os cavalheiros a voltar a brigar. A voz que tinha
enviado com gosto a seus maridos, irmãos, e filhos à “Gloriosa Causa”.
A voz suave de todas as mulheres criadas no Sul.
Esta voz os tinha animado no Bull Run e em Fredericksburg, e os tinha
acalmado naquelas longas semanas nas montanhas de Vicksburg, essa voz que
tinha chorado amargas lágrimas em lenços perfumados de lavanda, e tinha
sussurrado “Não importa” quando perderam Stonewall Jackson em
Chancellorsville.
Esta era a voz que tinha esporeado aos homens do Pickett em seu
desesperado ataque sobre Gettysburg, a voz que tinham escutado quando
estavam estendidos moribundos no barro de Chickamauga, e a voz que eles
não se permitiram escutar naquele Domingo de Ramos da Virginia, quando
tinham rendido seus sonhos no Palácio da Justiça em Appomattox.
Ainda apesar da voz, havia uma diferença entre a mulher que estava de pé
ante ele e as mulheres que esperavam em casa. O vestido de baile de cetim
branco que usava era evidentemente novo. Não tinha colocado nenhum broche
de forma ardilosa para esconder um decote que era quase, mas não de tudo,
invisível. Não havia sinais de que uma saia originalmente desenhada para
levar um aro tivesse sido desfeita e voltada a costurar para mostrar uma
silhueta mais estilizada, e na moda. Também havia outra diferença entre a
mulher que estava de pé ante ele e as que esperavam em casa. Seus olhos
violetas não continham nenhuma secreta recriminação, nunca expressa.
Quando finalmente pôde falar, sua voz pareceu vir de longe.
— Temo-me que tem vantagem sobre mim, senhorita. Custa-me acreditar
que tenha sido capaz de esquecer um rosto tão memorável, mas se você disser
que assim é, não vou discutir, só lhe peço perdão por minha má memória.
Possivelmente você poderia me informar?
Elvira Templeton acostumada à forma de falar dos homens de negócios
ianques, piscou duas vezes ante suas floridas maneiras.
— Senhor Parsell lhe apresento à senhorita Katharine Louise Weston.
Brandon Parsell era muito cavalheiro para deixar ver sua comoção, mas
ainda assim, não foi capaz de encontrar as palavras para responder de forma
adequada. A senhora Templeton continuou com as formalidades, apresentando
à senhorita Baird, e é obvio ao senhor Mayhew. A senhorita Weston parecia
divertida.
A orquestra começou a tocar os acordes da valsa “O Danubio Azul”. O
senhor Parsell saiu de seu estupor e se virou para o senhor Mayhew.
— Você se importaria em trazer uma taça de ponche para a senhorita Baird,
senhor? Acaba de comentar que tem sede. Senhorita Weston, pode um velho
amigo reclamar a honra desta valsa? — era uma anormal falta de etiqueta, mas
Parsell não podia pensar em protocolos.
Kit sorriu e lhe entregou sua mão enluvada. Juntos se dirigiram para a pista
de baile. Finalmente Brandon rompeu o silêncio.
— Mudaste, Kit Weston. Acredito que nem sua própria mãe te
reconheceria.
— Nunca tive mãe, Brandon Parsell, como você bem sabe.
Ele riu em voz alta ante sua fanfarronice. Não tinha se dado conta de quanto
sentia saudades de falar com uma mulher com o espírito intacto.
— Espera que conte a minha mãe e as minhas irmãs que te vi. Ouvimos que
Cain tinha te mandado a uma escola no Norte, mas ninguém de nós fala com
ele, e Sophronia não fala com ninguém.
Kit não queria falar de Cain.
— Como estão sua mãe e suas irmãs?
— Tão bem como se poderia esperar. Perder Holly Grove foi difícil para
elas. Eu estou trabalhando no banco de Rutherford — seu sorriso era humilde
— Um Parsell trabalhando em um banco. Os tempos mudam, não, senhorita
Weston?
Kit se aproximou das linhas delicadas de seu rosto e observou a forma
como seu bigode cuidadosamente recortado acariciava a curva superior de seu
lábio. Não deixou aparentar a sua pena enquanto aspirava o débil aroma de
tabaco e rum que tão suavemente desprendia dele.
Brandon e suas irmãs, tinham sido o centro de um grupo de jovens
despreocupados, cinco ou seis anos mais velhos que ela. Quando começou a
guerra, recordava lhe haver visto da beira do caminho, partir a cavalo a
Charleston. Estava erguido em seu cavalo, como se tivesse nascido sobre uma
cadeira de montar, e levava tão orgulhoso o uniforme cinza e o chapéu com
pluma, que sua garganta se fechou com lágrimas ferozes e orgulhosas.
Para ela, simbolizava o espírito do soldado Confederado, e ela não tinha
desejado nada mais que segui-lo à batalha e lutar a seu lado. Agora Holly
Grove estava em ruínas e Brandon Parsell trabalhava em um banco.
— Que está fazendo em Nova Iorque, senhor Parsell? — perguntou tratando
de acalmar a leve vertigem que fazia tremer seus joelhos.
— Meu chefe me enviou para me ocupar de alguns negócios familiares
deles. Volto amanhã para casa.
— Seu chefe deve ter muita confiança em tí, para lhe confiar seus assuntos
familiares.
Outra vez esse tom humilde, que era quase, mas não exatamente irônico.
— Se ouvir minha mãe, dirá-te que estou dirigindo o “Banco de Cidadãos e
Plantadores”, mas o certo é que não sou mais que o menino de recados.
— Estou segura que isso não é verdade.
— O Sul foi levantado sobre uma farsa. Essa crença que fomos onipotentes
aprendemos do berço. Mas eu, por fim, deixei de me enganar. O Sul não é
invencível, e eu tampouco.
— Isso é tão mau?
Ele a levou até a borda do salão de baile.
— Não estiveste em Rutherford durante anos. Tudo mudou. Os políticos e
os ladinos dirigem o estado. Embora Carolina do Sul está a ponto de ser
readmitida na União, os soldados ianques ainda patrulham as ruas e olham
para o outro lado quando cidadãos respeitáveis são abordados por gentinha. O
estado de direito é uma brincadeira — espetou as últimas palavras como se
fossem venenosas — Como vive aqui, não pode imaginar como é isso.
De algum jeito, sentiu-se culpada por ter abandonado seu dever deixando o
Sul, por um colégio em Nova Iorque. A música acabou, mas não estava
preparada para que o baile terminasse. E possivelmente Brandon tampouco, já
que não fez nenhum movimento para soltá-la.
— Suponho que já terá par para te acompanhar ao jantar.
Ela assentiu com a cabeça, para depois ouvir a si mesma dizer: — Mas
devido a que somos vizinhos e deixa Nova Iorque amanhã, estou segura que o
senhor Mayhew não se oporá a ceder seu lugar.
Ele levantou a mão e lhe acariciou com o dorso os lábios.
— Então é um parvo.
Elsbeth se precipitou para ela assim que pôde e a arrastou à sala de estar,
que tinha sido acondicionada para que as damas pudessem retocar-se.
— Quem é, Kit? Todas as garotas estão falando dele. Parece um poeta. Oh,
não! Seus laços estão desatando, e já tem uma mancha na saia. E seu cabelo.
Sentou Kit frente ao espelho e tirou os pentes de prender cabelos de prata
que lhe tinha dado em seu aniversário no ano anterior.
— Não sei por que não me deixou arrumar seu cabelo esta noite. Assim
parece selvagem.
— Pela mesma razão que não deixei que me apertasse o espartilho. Eu não
gosto que me tire a liberdade.
Elsbeth lhe dirigiu um sorriso travesso.
— É uma mulher. supõe-se que não tem que ter nenhum tipo de liberdade.
Kit riu.
— Oh, Elsbeth. Que teria feito sem ti esses três últimos anos?
— Teriam te expulsado.
Kit se virou e lhe apertou a mão.
— Alguma vez te agradeci?
— Centenas de vezes. E sou eu que lhe deveria agradecer. Se não tivesse
sido por ti, nunca teria aprendido a me valer por mim mesma. Lamento que
meu pai esteja sendo tão detestável. Nunca lhe perdoarei que não tenha
acreditado em ti.
— Não quero me intrometer entre seu pai e você.
— Sei que não quer — Elsbeth reatou seu ataque sobre o cabelo de Kit —
Por que me incomodo em te repreender por ser tão desordenada? Dificilmente
faz algo como se supõe que uma jovenzinha deve fazê-lo, e apesar disso, a
metade dos homens de Nova Iorque estão apaixonados por ti.
Kit fez uma careta frente ao espelho.
— Às vezes eu não gosto da forma como me olham. Como se estivesse nua.
— Seguro que imaginam — Elsbeth terminou de assegurar os pentes de
prender cabelos e pôs as mãos sobre os ombros de Kit — O que passa é que é
tão formosa, que não podem evitar te olhar.
— Parva — Kit riu e ficou de pé de um salto — Seu nome é Brandon
Parsell e me acompanhará no jantar.
— O jantar? Eu acreditava que o senhor Mayhew...
Mas era muito tarde. Kit já tinha saído.
***

O garçom passou com a terceira bandeja de bolinhos. Kit estendeu a mão


para alcançar um, e a retirou bem a tempo. Já tinha pego dois, e tinha comido
tudo o que lhe tinham posto em seu prato. Se Elsbeth se deu conta, como
certamente teria feito, Kit teria recebido outro sermão. As Garotas Templeton
comem com moderação nas reuniões sociais.
Brandon afastou seu prato vazio.
— Confesso que desfruto fumando um cachimbo depois do jantar. Estaria
de acordo em me mostrar o jardim? Sempre e quando não te incomodar o
aroma de tabaco.
Kit sabia que agora deveria estar com Bertrand Mayhew, lhe mostrando as
fotos tridimensionais das cataratas do Niágara e preparando-o para uma
proposta de matrimônio, mas não encontrava vontade para partir.
— Não me incomoda absolutamente. Quando era mais jovem, eu também
fumei tabaco.
Brandon franziu o cenho.
— Pelo que eu recordo, sua infância foi infeliz e seria melhor esquecê-la
— ele a levou para as portas que davam ao jardim.
— É assombroso como conseguiste superar o infortúnio de sua educação,
por não esquecer esta tua capacidade para viver entre os ianques todo este
tempo.
Ela sorriu enquanto ele a levava por um caminho empedrado enfeitado com
lanterninhas de papel. Pensou em Elsbeth, Fanny Jennings, Margaret Stockton e
inclusive na senhora Templeton.
— Nem todos são maus.
— E os cavalheiros ianques? O que opina deles?
— Uns são agradáveis, e outros não.
Ele vacilou.
— Recebeste alguma proposta de matrimônio?
— Nenhuma que tenha aceito.
— Alegra-me ouvir isso.
Ele sorriu e sem saber inteiramente como ocorreu, pararam. Ela sentiu
como o sussurro da brisa desordenava seu cabelo. Pôs as mãos nos ombros e
suavemente a atraiu para ele. Ele ia beija-la. Sabia que o faria, da mesma
maneira que sabia que ela permitiria. Seu primeiro beijo. De repente enrugou
o cenho e a soltou precipitadamente.
— Me perdoe. Quase perco o controle.
— Ia me beijar.
— Envergonha-me admiti-lo, mas é em quão único pude pensar desde que
te vi de novo. Um homem que pressiona uma dama para receber seus cuidados
não é nenhum cavalheiro.
— E se a dama o deseja?
Sua expressão se tornou tenra.
— É inocente. Os beijos levam a maiores liberdades.
Ela pensou na “Vergonha de Eva” e as conversas sobre as relações
matrimoniais que todas as garotas do último curso tiveram que suportar, antes
de graduar-se. A senhora Templeton falou da dor e do dever, da obrigação e a
resistência. Aconselhou-as que deixassem que seus maridos se ocupassem de
tudo, sem importar que espantoso e horrível pudesse parecer.
Sugeriu que recitassem versos da Bíblia ou um pouco de poesia enquanto o
faziam. Mas ninguem lhes disse o que implicava a “Vergonha de Eva”
exatamente.
Deixava-o a suas férteis imaginações.
Lilith Shelton lhes contou que sua mãe tinha uma tia que se tornou louca em
sua noite de núpcias. Margaret disse que tinha ouvido que havia sangue. E Kit
tinha trocado olhadas preocupadas com Fanny Jennings, cujo pai criava puro
sangues em uma granja perto de Saratoga. Só Kit e Fanny tinham visto o tremor
de uma égua relutante quando era coberta por um semental.
Brandon tirou um cachimbo do bolso e uma desgastada cigarreira de tabaco
de couro.
— Não sei como pudeste viver nesta cidade. Não é como Risen Glory,
verdade?
— Às vezes pensava que morreria de nostalgia.
— Pobre Kit. Passaste por momentos duros, não é assim?
— Não tão maus como você. Ao menos Risen Glory segue em pé.
Ele caminhou para o muro do jardim.
— É uma estupenda plantação. Sempre foi. Seu pai não poderia ter muito
juízo quanto a mulheres, mas sabia como cultivar algodão — houve um som
oco quando ele aproximou seu cachimbo. O reacendeu e a olhou fixamente —
Posso te dizer algo que não confiei a ninguém?
Ela sentiu um momento de emoção.
— O que é?
— Estava acostumado a ter um desejo secreto por Risen Glory. Sempre foi
melhor plantação que Holly Grove. É um cruel giro do destino que a melhor
plantação do país esteja nas mãos de um ianque.
Ela notou que seu coração palpitava, e sua mente bulia com novas
possibilidades. Falou devagar.
— Vou recuperá-la.
— Lembre-se do que te falei sobre crescer em uma farsa. Não cometa os
mesmos enganos que outros.
— Não os cometerei. — disse ferozmente — Aprendi algo sobre dinheiro
desde que estou no Norte. É o que nos iguala. Eu o terei. E então, comprarei
Risen Glory de Baron Cain.
— Necessitará muito dinheiro. Cain tem a louca ideia de fiar seu próprio
algodão. Está construindo um moinho, ali mesmo, em Risen Glory. O motor a
vapor acaba de chegar de Cincinnati.
Sophronia já tinha contado, mas Kit não podia concentrar-se nisso agora.
Estava em jogo algo muito importante. Pensou nisso só um momento.
— Terei quinze mil dólares, Brandon.
— Quinze mil! — em uma nação destruída, isso era uma fortuna e durante
um momento a olhou boquiaberto. Então sacudiu a cabeça.
— Não deveria ter me dito isso.
— Por que não?
— Eu... eu gostaria de te visitar quando retornar a Risen Glory, mas o que
me contaste arroja uma sombra sobre minhas intenções.
Kit tinha umas intenções muito mais escuras, e por isso sorriu.
— Não seja bobo. Nunca poderia duvidar de suas intenções. E sim, pode
me visitar em Risen Glory. Planejo voltar logo que possa fazer os acertos.
Exatamente nesse momento, tomou a decisão. Não poderia casar-se com
Bertrand Mayhew, pelo menos, não até que tivesse tempo de ver até onde a
levava esta emocionante e nova possibilidade. Não importava o que Cain lhe
tivesse escrito em sua carta. Ia voltar para casa.
Essa noite quando dormiu, sonhou cruzando os campos de Risen Glory com
Brandon Parsell a seu lado.
Imagine.
TERCEIRA PARTE
Uma Dama Sulina Fervemos a diferentes graus RALPH Waldo Emerson
“ELOQUENCE”
7
A carruagem se inclinava continuamente balançando-se, enquanto percorria
o longo e tortuoso caminho que levava até Risen Glory. Kit se esticou em
antecipação. Depois de três anos, finalmente retornava para casa.
O cascalho fresco escondia os sulcos que a estrada tinha desde que podia
se lembrar. Não havia nem ervas daninhas nem arbustos, fazendo com que a
estrada parecesse mais larga. Só as árvores tinham resistido à mudança. A
variedade familiar de pinheiros, carvalhos, tupelos e sicomoros a receberam.
Em alguns momentos avistaria a casa.
Mas quando a carruagem tomou a última curva, Kit nem sequer lhe lançou
uma olhada. Algo mais importante tinha chamado sua atenção.
Além do declive suave do gramado mais a frente do pomar e as novas
unidades, além da mesma casa, chegando mais do que o permitia seu olhar,
estavam os campos de Risen Glory. Uns campos que se pareciam com os que
tinham sido antes da guerra, em umas intermináveis filas de jovens novelos de
algodão estirando-se como fitas verdes pelo chão, rico e escuro.
Golpeou o teto da carruagem, surpreendendo seu acompanhante, que deixou
cair um raminho de hortelã que ia colocar na boca e caiu entre os vincos de
sua saia.
Dorthea Pinckney Calhoun gritou assustada.
Uma Garota Templeton, ainda que a mais rebelde, não podia viajar de
maneira nenhuma sem acompanhante nem, é obvio, permanecer na mesma casa
que um homem solteiro. Inclusive o fato de serem meio irmãos não fazia
nenhuma diferença. Kit não ia fazer nada que desse a Cain uma desculpa para
mandá-la de volta, e como não a queria ali, sem dúvida encontraria uma razão.
Não tinha sido difícil encontrar uma mulher sulista sem recursos ansiosa
por voltar para sua terra natal, depois de anos longe morando com uma
cunhada viúva no Norte.
Miss Dolly era uma parente distante de Mary Cogdell, e Kit tinha
conseguido seu nome através de uma carta que recebeu da esposa do
reverendo. Com sua estatura pequena e seus cachos loiros descoloridos, Miss
Dolly se parecia com uma antiga boneca de porcelana. Embora já tenha
passado dos cinquenta, se vestia de modo retrô com saias de muitos babados e
nunca usava menos de oito anáguas debaixo.
Kit já tinha descoberto que era uma coquete natural, batendo as pestanas de
suas enrugadas pálpebras a qualquer homem que considerasse um cavalheiro.
E sempre parecia estar se movendo. As mãos nos laços, pairando sobre as
luvas; tocando seus desbotados cachos curtos, suas bandagens de tons pastel
ou franjas que já não se usava. Ela falava de cotillones e remédios para a
tosse e o conjunto de cães de porcelana que tinham desaparecido com sua
infância. Era doce e inofensiva e como logo tinha descoberto Kit, estava quase
louca. Era incapaz de aceitar a derrota da Gloriosa Confederação, e Miss
Dolly tinha decidido tomar o pequeno luxo de voltar atrás, aos primeiros dias
da guerra quando as esperanças eram altas e pensar em uma derrota
inconcebível.
— Os ianques! — exclamou Miss Dolly quando o carro se sacudiu antes de
parar. Estão nos atacando! Oh eu... Oh eu, eu...
No princípio, seu costume de referir-se a acontecimentos que tinham
ocorrido fazia sete anos como se estivessem acontecendo agora, a tinham
desconcertado, mas Kit tinha compreendido rapidamente que a elegante
loucura de Miss Dolly era sua maneira de enfrentar a vida, que lhe tinha sido
impossível controlar.
— Não aconteceu nada, assegurou Kit. A carruagem parou . Quero
caminhar.
— Oh querida, Oh minha querida, não faça isso. Os grupos de saqueadores
estão por toda parte. E sua face...
— Estarei bem, Miss Dolly. Verei-a na casa em alguns minutos.
Antes de que sua acompanhante pudesse protestar ainda mais, Kit saiu e fez
um gesto ao condutor. Quando a carruagem se afastava, subiu uma colina cheia
de grama para ter melhor visão dos campos que rodeavam a casa. Levantou o
véu e se fez sombra com a mão para evitar o sol da tarde.
As plantas teriam aproximadamente seis semanas. Dentro de pouco, os
brotos se abririam nas cremosas flores de quatro pétalas, que dariam lugar às
cápsulas de algodão. Inclusive sob a eficiente direção de seu pai, Risen Glory
nunca tinha parecido tão próspera. As unidades que os ianques tinham
destruído foram reconstruídas, e uma nova cerca se estirava rodeando o prado.
Tudo na plantação tinha o aspecto próspero de estar bem cuidado.
Seu olhar se fixou na casa, da qual tinha sido exilada quando era tão
pequena. A parte frontal ainda tinha o bonito arco, e a cor era a mesma sombra
creme de nata pálida da qual lembrava, pintada agora com a luz rosa
provocada pelo reflexo do sol.
Mas havia diferenças, reparou no telhado de telhas vermelhas perto das
chaminés gemeas, as venezianas e a porta principal mostravam uma mão fresca
de pintura preta brilhante, e até mesmo na distância, os cristais das janelas
brilhavam.
Comparado com a contínua devastação, que tinha visto vindo no trem,
Risen Glory era um oásis de beleza e prosperidade.
As melhoras deveriam te-la alegrado. Em vez disso lhe provocavam uma
mescla de ira e ressentimento. Tudo isto tinha ocorrido sem ela. Deixou cair o
véu sobre o rosto e se dirigiu à casa.
Dolly Calhoun esperava a uns passos da carruagem, sua boca de arco de
Cupido tremendo, por estar sozinha quando tinha chegado a seu destino. Kit
sorriu tranquilizando-a, desceu da colina e se dirigiu ao condutor para lhe
pagar com as últimas moedas que restavam do seu dinheiro. Enquanto a
carruagem já se afastava, agarrou o braço de Miss Dolly, ajudou-a a subir os
degraus da porta principal e bateu com a aldrava de latão.
Uma criada muito jovem abriu a porta, e o ressentimento de Kit cresceu.
Queria ver o rosto querido e familiar de Eli, mas o ancião tinha morrido no
inverno anterior. Cain não lhe tinha permitido voltar para casa para o enterro.
Agora tinha novos ressentimentos para unir aos já velhos e familiares.
A criada as olhou curiosamente e logo aos pacotes e chapeleiras
amontoados na entrada.
— Eu gostaria de ver a Sophronia — disse Kit.
— A senhorita Sophronia não está aqui.
— Quando voltará?
— A curandeira está doente, e a senhorita Sophronia foi ver como se
encontra. Não sei quando retornará.
— O Major Cain está aqui?
— Voltará dos campos a qualquer momento, mas ainda não chegou.
Menos mal, pensou Kit. Com um pouco de sorte, estariam instaladas antes
que chegasse. Pegou levemente no braço de Miss Dolly e a conduziu através
da porta diante da estupefata criada.
— Por favor, que alguém recolha nossa bagagem e as leve para acima. Esta
é Miss Dolly Calhoun. Tenho certeza que gostaria que subissem um copo de
limonada ao seu quarto. Eu esperarei pelo Major Cain no salão.
Kit viu a incerteza da criada mas a garota não tinha a coragem para desafiar
uma visitante tão bem vestida.
— Sim, senhora.
Kit se virou para sua acompanhante, muito preocupada em ver como seria
sua reação ao saber que dormiria sob o mesmo teto que um antigo oficial do
exército da União.
— Por que não se deita um momento antes do jantar, Miss Dolly? Teve um
dia longo.
— Acredito que sim, doce querida — Miss Dolly acariciou o braço de Kit
—. Quero ter meu melhor aspecto esta noite. Só espero que os cavalheiros não
falem de politica durante o jantar. Com o General Beauregard a caminho de
Charleston nenhuma de nós deve preocupar-se com esses assassinos ianques.
Kit deu a Miss Dolly um empurrãozinho amável ante a atônita criada.
— A verei antes do jantar.
Depois que desapareceram escada acima, Kit teve finalmente tempo de
percorrer a casa. O chão de madeira brilhava encerado e sobre a mesa do
vestíbulo tinham colocado um vaso com flores da primavera.
Lembrava como Sophronia odiava o aspecto descuidado da casa com
Rosemary.
Cruzou o vestíbulo e entrou no salão. As paredes tinham sido pintadas
novamente de cor marfim, as molduras de verde e as cortinas amarelas de
tafetá de seda ondulavam com a brisa que entrava pelas janelas abertas. Os
móveis entretanto eram a cômoda mixórdia que Kit recordava, embora as
cadeiras e o sofá tinham sido estofados de novo, e a sala cheirava a oléo de
limão e cera de abelhas em vez de mofo. Os candelabros de prata brilhavam e
o relógio do avô funcionava pela primeira vez desde que Kit recordava.
O suave e rítmico tic-tac, deveria tranquilizá-la, mas não o fazia.
Sophronia fazia muito bem seu trabalho. Kit parecia uma forasteira em sua
própria casa.
***

Cain olhou a Vândalo, seu novo cavalo enquanto o levava àos estábulos.
Era um bom cavalo, mas Magnus ficou possuído pelos demônios por havê-
lo trocado por Apolo. Diferente de Magnus, Cain não se deixava agarrar pelo
apego por um cavalo. Desde menino aprendeu a não ter apego a nada.
Enquanto caminhava do estábulo à casa, encontrou-se pensando em tudo o
que tinha obtido nestes três anos. Apesar dos problemas que lhe causava viver
rodeado de gente que lhe ignorava, nunca tinha se arrependido de vender sua
casa em Nova Iorque e mudar-se para Risen Glory. Tinha um pouco de
experiência com o algodão de sua época no Texas antes da guerra, e Magnus
tinha vindo ao mundo em uma plantação. Com a ajuda de um bom fornecimento
de folhetos agrícolas, os dois tinham conseguido produzir uma melhor colheita
que a do ano passado.
Cain não fingiu reconhecer uma profunda afinidade por esta terra, não
ficava sentimental como com os animais, mas adorava o desafio de restaurar
Risen Glory. Construir o novo moinho no canto nordeste da plantação era o
que mais o orgulhava.
Tinha gasto tudo o que tinha para construir o moinho. Portanto, estava na
mesma situação de quando era mais jovem, mas sempre gostou de assumir
riscos. E nesse momento, estava contente.
Não tinha dado mais que um passo pela porta dianteira quando Lucy, a
criada que Sophronia tinha contratado recentemente, chegou correndo.
— Não foi minha culpa, Major. A senhorita Sophronia não me disse que
esperava visita, quando partiu para ver a curandeira. Esta dama chegou
perguntando por você e disse muito calmamente que o esperaria no salão.
— Está ainda ali?
— Sim. E isso não é tudo. Ela trouxe…
— Maldição!
Tinha recebido a semana passada uma carta lhe anunciando que um membro
da Sociedade Protetora de Viúvas e Órfãos da Confederação chegariam a sua
porta para uma contribuição. Os respeitáveis cidadãos do lugar o ignoravam a
menos que precisassem de dinheiro; então alguma matrona acudia e lhe olhava
com os lábios franzidos e olhos nervosos enquanto tratava de lhe esvaziar os
bolsos. Tinha começado a suspeitar que todos esses assuntos da caridade eram
em realidade uma desculpa para dar uma boa olhada no interior da guarida do
perverso Heroi do Missionary Ridge. Divertia-lhe contemplar essas mesmas
mulheres, desalentar os olhares coquetes que lhe dirigiam suas próprias filhas
quando estava de visita na cidade, mas ele só se relacionava e de forma pouco
frequente com as mulheres mais peritas de Charleston. Dirigiu-se pelo
corredor para o salão. Não lhe preocupava se apresentar com as calças
marrons e camisa branca, sua roupa de trabalho. Seria condenado antes de se
trocar para receber a visita dessas mulheres. Mas o que viu quando entrou na
sala não era o que tinha esperado...
A mulher estava de pé olhando pela janela. Apesar de vê-la só de costas,
viu que estava bem vestida, incomum para as mulheres da comunidade. Sua
saia ondulou quando se virou.
Ele conteve o fôlego.
Era deliciosa. Usava um talhado vestido cor cinza pomba com cós em rosa,
e uma catarata de seda cinza pálido caía de seu pescoço sobre os belos seios
altos e redondos. Tinha um pequeno chapéu do mesmo tom de rosa que o
vestido, colocado sobre seu cabelo negro como o carvão. A ponta da pluma
cinza caía graciosamente sobre sua testa.
O resto dos traços da mulher estavam cobertos por um véu negro leve como
uma teia de aranha. Umas gotas de orvalho brilhantes e diminutas se aderiam a
seu tecido de ninho de abelha, e deixava visível debaixo só uma úmida boca.
Isso e um par de pequenos e brilhantes brincos.
Não a conhecia. Teria se lembrado de tal criatura. Devia ser uma das filhas
de pessoas respeitáveis da comunidade que tinham se mantido afastadas dele.
Ela permaneceu silenciosamente confiada sob seu aberto escrutínio.
Que calamidade teria ocorrido para que enviassem esta preciosidade em
lugar da sua mãe à toca do infame ianque?
Seu olhar caiu nessa boca madura que se via debaixo do véu.
Bonita e sedutora. Seus pais teriam feito melhor em mantê-la trancada com
segurança.
Enquanto Cain estava estudando-a tão atentamente, Kit estava fazendo sua
própria leitura por trás de seu véu de teia de abelha. Tinham passado três
anos. Agora era mais velha, e o estudou com olhos mais amadurecidos. O que
viu não a tranquilizou. Era mais incrivelmente bonito do que lembrava. O sol
tinha bronzeado as linhas de seu rosto e tinha clareado seu cabelo, loiro
leonino. O cabelo mais escuro em suas têmporas dava a seu rosto aparência
forte determinada de um homem que pertencia ao ar livre.
Ainda estava vestido com a roupa de trabalho e a visão desse corpo
musculoso a inquietava. Estava com as mangas da camisa branca enroladas,
revelando uns antebraços bronzeados de tendões duros. As calças marrons se
aderiam a seus quadris e abraçavam os potentes músculos de suas coxas.
A espaçosa sala em que os dois estavam de pé, parecia ter encolhido.
Inclusive sem mover-se, ele emanava uma aura de perigo e poder. De algum
jeito parecia ter se esquecido disso. Que curioso mecanismo de auto amparo
tinha feito para que o colocasse no mesmo nível que os outros homens? Era um
engano que não cometeria outra vez.
Cain era consciente de seu escrutínio. Ela parecia não ter nenhuma intenção
de ser a primeira em falar, e sua serenidade indicava um grau de autoconfiança
que o interessou. Curioso para provar seus limites, rompeu o silêncio com
deliberada brutalidade.
— Você queria me ver?
Ela sentiu um golpe de satisfação. Não a tinha reconhecido. O véu do
chapéu lhe tinha dado esta pequena vantagem. O engano não duraria muito,
mas enquanto isso, teria tempo para medir seu adversário com olhos mais
sábios que os de uma imatura garota de dezoito anos que sabia muito de umas
coisas e de outras nada.
— Esta sala é muito formosa — disse ela descaradamente.
— Tenho uma ama de chaves excelente.
— Você é muito sortudo.
— Sim, eu sou — ele caminhou pela sala, movendo-se de um modo fácil,
demonstrando suas muitas horas a cavalo. — Normalmente é ela que recebe as
visitas como a sua, mas chegou algum tipo de mensagem.
Kit se perguntou a quem se referiria e quem pensava que era ela.
— Foi ver a curandeira.
— A curandeira?
— Joga as cartas e lê o futuro — depois de três anos em Risen Glory, ele
nem sequer conhecia isso. Nada poderia ter deixado mais claro que ele não
pertencia ali.
— Está doente e Sophronia foi a vê-la.
— Você conhece Sophronia?
— Sim.
— De modo que vive perto?
Ela negou com a cabeça, mas não se explicou. Ele indicou uma cadeira.
— Não deu a Lucy seu nome.
— Lucy? Quer dizer à criada?
— Já vejo que há algo que você não sabe.
Ela ignorou a cadeira que ele indicou e andou ate a chaminé, lhe dando
prudentemente as costas. Ele observou que se deslocava com um passo mais
atrevido que a maioria das mulheres. Tampouco tentava ficar em uma postura
para destacar seu vestido. Era como se a roupa fosse algo que se colocava
pela manhã, e uma vez feito, se esqueceria.
Decidiu pressioná-la.
— Seu nome?
— É importante? — sua voz era baixa, rouca e claramente sulina.
— Talvez.
— Pergunto-me por quê.
Cain se sentia cativado tanto por sua maneira provocadora de evitar
responder a sua pergunta como pelo débil aroma de jasmin que chegava dela e
nublava seus sentidos. Desejava que se virasse de novo para poder dar uma
boa olhada a essas encantadoras feições que só podia vislumbrar atrás do véu.
— Uma dama misteriosa, — zombou suavemente. — Na guarida do inimigo
sem uma mãe ciumenta para servir como acompanhante. Não é absolutamente
certo.
— Eu não me comporto sempre corretamente.
Cain sorriu.
— Tampouco eu.
Seu olhar fixo foi do sedoso cabelo negro enrolado sob o tolo chapeuzinho
que descansava sobre a nuca. Como seria solto e caindo sobre esses ombros
brancos nus? A sacudida de excitação lhe indicava que estava muito tempo
sem uma mulher. Embora inclusive se houvesse tido uma dúzia a noite anterior,
sabia que esta mulher lhe excitaria da mesma maneira.
— Devo esperar que um marido ciumento chame a minha porta procurando
a sua caprichosa esposa?
— Não tenho marido.
— Não? — de repente quis provar os limites dessa autoconfiança.
— Por isso você veio? Baixou tanto o nível dos solteiros elegíveis do
condado que as damas sulinas bem educadas têm que explorar a guarida do
ianque?
Ela deu a volta. Através de seu véu ele só pôde ver uns brilhantes olhos e
um pequeno nariz flamejando com delicadeza.
— Asseguro-lhe, Major Cain que não estou aqui para explorar em busca de
um marido. Você tem uma opinião muito elevada de si mesmo.
— Eu? — ele se moveu mais perto. Suas pernas acariciaram sua saia.
Kit quis se retirar, mas se obrigou a permanecer quieta. Ele era um
predador e como todos os predadores, se alimentava da debilidade de suas
vítimas. Ainda a menor retirada seria uma vitória para ele, e não lhe mostraria
nenhuma debilidade. Ao mesmo tempo, sua proximidade fazia com que se
sentisse um pouco enjoada. A sensação deveria ter sido desagradável, mas não
o era.
— Me diga, dama misteriosa. O que faz uma jovem respeitável visitando
um homem sozinha? — Sua voz era profunda e brincalhona e seus olhos cinzas
brilhavam com a luz tênue com uma travessura que fez com que seu sangue
corresse mais depressa. — Ou é possível que a jovem e respeitável dama não
seja tão respeitável como parece?
Kit levantou o queixo e olhou nos olhos.
— Não julgue os outros por seus próprios padrões.
Ela não sabia que seu desafio não expresso só conseguia excitá-lo mais
ainda. Eram azuis os olhos detrás desse véu de teia de aranha ou eram mais
escuros, mais exóticos? Tudo sobre esta mulher o intrigava. Ela não era
nenhuma coquete com sorriso afetado, nenhuma orquídea de estufa. Lembrava
uma rosa selvagem, crescendo rebelde no mais profundo do bosque, uma rosa
com espinhos preparados para espetar a qualquer homem que a tocasse.
A parte selvagem dele reconhecia a mesma qualidade nela. Como seria
retirar esses espinhos e arrancar essa rosa das profundidades do bosque?
Muito antes que ele se movesse, Kit entendeu que algo estava a ponto de
ocorrer. Ela queria escapar, mas suas pernas não respondiam. Enquanto olhava
esse belo rosto, tratou de recordar que era seu inimigo. Controlava tudo o que
ela mais queria: sua casa, seu futuro, sua própria liberdade. Mas ela tinha sido
sempre uma criatura de instinto, e seu sangue tinha começado a rugir tão forte
em sua cabeça que nublava sua razão.
Devagar, Cain levantou sua mão cheia de cicatrizes e a cavou em sua nuca.
Seu toque era extremamente suave e irritante de maneira emocionante,
excitante. Ela sabia que devia se retirar, mas suas pernas, como sua vontade,
se recusavam a obedecer.
Ele levantou o polegar e o deslizou para cima ao longo da curva de sua
mandíbula e sob a borda do véu. Colocou atrás do lóbulo de sua orelha.
Acariciou o sedoso oco, enviando um tremor por todo seu corpo.
Acariciou seus cachos delicadas e as orelhas e os brincos pequenos. Sua
respiração tranquila ondulou a borda inferior de seu véu. Tratou de se afastar,
mas estava paralisada. Então ele baixou seus lábios.
Seu beijo foi amável e persuasivo, absolutamente como o úmido assalto do
amigo de Hamilton Woodward. Suas mãos se levantaram por vontade própria
e lhe tocaram. A sensação de sua carne quente através de sua fina camisa fez
parte do beijo. E se perdeu em um mar de sensações.
Seus lábios se abriram e começaram a se mover sobre os dela, fechados.
Ele curvou a mão ao longo da delicada linha de sua coluna dorsal até a parte
mais estreita de suas costas. O pequeno espaço entre seus corpos desapareceu.
Ele era o chefe quando seu peito pressionou seus seios e os quadris se
encontraram com seu estômago plano. A ponta úmida de sua língua começou
um jogo diabólico, deslizando-se tranquila entre seus lábios.
Essa espantosa intimidade a inflamou. Uma selvagem e quente sensação de
calor se espalhou por todo seu corpo.
E do dele.
Perderam suas identidades. Para Kit, Cain já não tinha um nome. Ele era o
típico homem, feroz e exigente. E para Cain, a misteriosa criatura em seus
braços era tudo o que uma mulher deveria ser... mas nunca era.
Ele ficou impaciente. Sua língua decidida começou a investigar mais
profundamente, para ultrapassar a barreira de seus dentes e ter acesso ao doce
interior de sua boca.
Desacostumada à agressão, levou um tempo para a mente febril de Kit
raciocinar. Algo não estava correto...
Ele acariciou o lado de seu peito, e a realidade voltou fria, condenatória.
Ela fez um som abafado e se virou para trás.
Cain estava mais irritado do que queria admitir. Tinha encontrado os
espinhos da rosa selvagem muito depressa.
Ela estava de pé diante dele, os seios subindo, as mãos colocadas em
punhos. Com uma pessimista certeza de que o resto de seu rosto nunca poderia
cumprir com a promessa de sua boca, estendeu a mão e subiu o véu por cima
do chapéu.
O reconhecimento não chegou imediatamente. Possivelmente porque ele se
fixou em seus traços separados em vez de no conjunto todo. Viu a testa suave,
inteligente, as grosas pestanas curvadas, as sobrancelhas escuras, os olhos de
um incrível violeta, o queixo decidido. Tudo isso junto com essa boca rosa
selvagem da qual ele tinha bebido tão profundamente, falavam de uma intensa
beleza, pouco convencional.
Então ele sentiu uma preocupação, uma sensação persistente de
familiaridade, uma pitada de algo desagradável à espreita do outro lado de sua
memória. Ele olhou as pequenas narinas, como as asas de um beija-flor. Ela
apertou sua mandíbula e levantou o queixo.
Nesse momento a reconheceu.
Kit viu suas íris cinzas converter-se em negras, mas ela também estava
emocionada pelo que tinha acontecido entre eles, por lhe deixar chegar tão
longe.
O que lhe tinha acontecido? Este homem era seu inimigo mortal. Como
pôde esquecê-lo? Sentiu-se doente, zangada e mais confusa do que tinha
estado em sua vida.
Chegou um ruído do vestíbulo... uma série de passos rápidos, como se, se
estivesse derramando um saco de milho seco no chão de madeira. Uma bola de
pele branca e negra entrou lançada à sala, patinando ao parar em seco. Merlín!
O cão moveu a cabeça, estudando-a, mas não levou tanto tempo como Cain,
para descobrir sua identidade. Com três latidos de reconhecimento, lançou-se
depressa a receber a sua velha amiga.
Kit ficou de joelhos. Ignorando o dano que suas poeirentas patas estavam
infligindo a seu vestido de viagem cor cinza pomba, abraçou-lhe e colocou a
cara em sua pelagem. Seu chapéu caiu no tapete, afrouxando o organizado
cabelo, mas não se importou.
A voz de Cain se intrometeu em seu abraço como um vento polar sobre uma
geleira.
— Vejo que a escola não melhorou suas maneiras. Ainda é a pequena
mucosa teimosa que foi faz três anos.
Kit procurou seus olhos e disse a única coisa que lhe veio à mente.
— Está zangado porque o cão foi mais esperto que você.
8
Não muito tempo depois de que Cain saísse do salão, Kit escutou uma voz
familiar.
— Lucy, permitiste a esse cão entrar na casa de novo?
— Entrou sem que eu soubesse, senhorita Sophronia.
— Bem, pois vou jogá-lo!
Kit sorriu quando ouviu aproximar uns passos rápidos e enérgicos.
— Não deixarei que te jogue, — sussurrou Kit abraçando Merlín.
Sophronia entrou na sala, e se deteve de repente.
— Oh, sinto. Lucy não me disse que temos visita.
Kit a olhou e lhe sorriu travessa.
— Kit! — Sophronia levou a mão à boca —. Deus meu! Realmente é você?
Com uma risadinha, Kit ficou de pé e correu depressa para ela.
— Claro que sou eu.
As mulheres se abraçaram enquanto Merlín as rodeava em círculos
ladrando ao redor de suas saias.
— É tão bom ver você. Oh, Sophronia, é inclusive mais bela do que
recordava.
— Eu! Olhe para você. Parece uma imagem saída do Livro da Senhora
Godey.
— Tudo é mérito da Elsbeth — Kit riu outra vez e agarrou a mão de
Sophronia. Sentaram-se no sofá e trataram de ficar em dia com as notícias
depois de três anos de separação.
Kit sabia que era culpa dela que a correspondência entre elas tivesse sido
pouco frequente. Sophronia não gostava de escrever cartas, e as poucas que a
tinha enviado estavam cheias de elogios ao que Cain estava fazendo em Risen
Glory, por isso as respostas de Kit tinham sido mordazes. Sophronia
finalmente tinha deixado de escrever.
Kit recordou sua anterior agitação por todas as melhoras que Sophronia
fazia na casa. Agora lhe parecia tolo, e a elogiou por todo o trabalho que tinha
realizado.
Sophronia assimilou as palavras de Kit. Sabia que a velha casa brilhava
sob seu cuidado, e estava orgulhosa do que tinha obtido. Ao mesmo tempo
começou a sentir a familiar combinação de amor e ressentimento que
povoavam suas relações com Kit.
Durante muito tempo Sophronia tinha sido a única pessoa que cuidava de
Kit.
Agora Kit era uma dama com amizades e experiências que Sophronia não
podia compartilhar. Também era formosa, serena e pertencia a um mundo no
qual Sophronia nunca entraria.
As velhas feridas começaram a abrir-se.
— Não creia que porque retornou pode colocar o nariz em meus assuntos e
me dizer como cuidar da casa.
Kit sorriu entredentes.
— Não se preocupe com isso. Tudo o que me preocupa é a terra. Os
campos. Não posso esperar para ver tudo.
O ressentimento de Sophronia se evaporou e a preocupação tomou seu
lugar. Ter o Major e Kit sob o mesmo teto era convidar problemas.
***

O velho dormitório de Rosemary Weston tinha sido redecorado em tons


rosas e verde-musgo. Kit achou que o interior parecia uma melancia
amadurecida. Alegrou-se que essa bonita acomodação fosse a sua, ainda que
fosse inferior ao dormitório que Caín ocupava. O fato que ambos
compartilhassem uma sala em comum a inquietava, mas ao menos isto lhe
permitiria poder vigiá-lo de algum modo.
Como tinha deixado que a beijasse assim? Perguntava o que lhe rondava
uma e outra vez a mente e lhe produzia uma sensação estranha no estômago.
Certa que o tinha afastado, mas não antes que ele a beijasse a fundo. Se tivesse
sido Brandon Parsell, poderia entendê-lo, mas como podia ter permitido a
Baron Cain fazer uma coisa assim?
Recordou a conversa da senhora Templeton sobre a Vergonha de Eva.
Certamente só uma mulher antinatural se abandonaria assim com seu inimigo
mais inflamado. Possivelmente havia algo de errado nela.
Bobagens. Simplesmente estava cansada da viagem, e o discurso de Miss
Dolly era suficiente para conduzir uma pessoa a fazer algo irracional.
Decidida a não seguir pensando nisso, tirou o vestido e ficou só com a
camisola e a saia diante da bacia. O banho era seu luxo preferido. Não podia
acreditar que uma vez o tivesse odiado tanto. Que garota tão parva tinha sido.
Parva sobre todas as coisas, exceto seu ódio por Cain.
Amaldiçoou suavemente entre dentes, um costume que Elsbeth não tinha
podido lhe tirar. Antes de sair do salão, Cain tinha pedido para vê-la na
biblioteca depois do jantar. Não esperava iludida esse encontro. Mas era o
momento de lhe fazer entender que já não tratava com uma imatura garota de
dezoito anos.
Lucy tinha desempacotado sua bagagem e durante um momento Kit pensou
em colocar um dos vestidos mais velhos e sair para explorar. Mas devia estar
logo abaixo, pronta para brigar de novo. Já teria tempo amanhã.
Escolheu um vestido com uns alegres raminhos de flores azuis, dispersos
sobre um fundo branco. As dobras suaves da saia deixavam ver as anáguas do
mesmo tom azul que as flores. Cain lhe tinha proporcionado uma bonificação
em roupa muito generosa, maldita seja sua imagem, e Kit tinha um formoso
guarda-roupa. A maior parte graças a Elsbeth, já que não confiava no bom
gosto de Kit, e tinha decidido acompanhar-lhe à costureira. A verdade era, que
ao menos Elsbeth fora com ela, Kit se aborrecia tanto que se conformava com
o que as costureiras lhe punham na frente.
Tirou os alfinetes do cabelo com impaciência. Essa manhã recolheu o
cabelo ao estilo espanhol, com tranças no meio e um coque preso na nuca.
Com alguns cachos soltos, era perfeito para seu primeiro encontro com Cain.
Mas não suportava o sofisticado penteado nem um segundo mais. O escovou
até que esteve brilhante e o prendeu com um dos pentes de prender cabelos de
prata que Elsbeth lhe tinha presenteado. O cabelo caiu como uma cascata de
cachos sobre os ombros. Depois de aplicar um ligeiro toque de jasmim em
suas bochechas, estava pronta para recolher Miss Dolly.
Enquanto batia na porta, se perguntou como sua frágil acompanhante
suportaria se sentar à mesa para jantar com um herói de guerra ianque.
Bateu uma segunda vez, e como não houve resposta, empurrou suavemente a
porta.
Miss Dolly estava sentada balançando-se em uma cadeira na penumbra do
quarto. Tinha nas mãos um andrajoso pedaço de tecido que algum dia tinha
sido um lenço azul, e as lágrimas desciam pelas suas enrugadas bochechas.
Kit chegou a seu lado.
— Miss Dolly! O que lhe aconteceu?
A mulher mais velha não pareceu se inteirar. Kit se ajoelhou ante ela.
— Miss Dolly?
— Olá, querida — disse ela vagamente —. Não te ouvi entrar.
— Você estava chorando — Kit pegou as frágeis mãos da mulher — Diga-
me o que se passa.
— Realmente nada. Lembranças tolas. De quando minhas irmãs e eu
fazíamos bonecas de trapo. Costurando sob a pérgola da videira. As
lembranças são parte da velhice.
— Você não é velha, Miss Dolly. Olhe-se com seu bonito vestido branco.
Parece tão fresca como um dia de primavera.
— Trato de me manter bem — admitiu Miss Dolly, se recostando um pouco
na cadeira e dando uns leves tapinhas em suas bochechas úmidas. — É só que
às vezes em dias como hoje, encontro-me pensando em coisas que ocorreram
faz muito tempo, e me deixam triste.
— Que tipo de coisas?
A mão de Miss Dolly se moveu impaciente.
— Vamos. Vamos, querida. Com certeza não quer escutar minha tagarelice.
— Você não tagarela — Kit a assegurou, ainda que só umas horas antes,
esse hábito tinha estado a levando à loucura.
— Tem um coração bom, Katharine Louise. Soube no momento que pus
meus olhos em você. Alegrou-me tanto que me pedisse que a acompanhasse à
Carolina do Sul — seus brincos se mexeram quando sacudiu a cabeça. — Eu
não gosto do Norte. Todo mundo fala em voz tão alta. Eu não gosto dos
ianques, Katharine. Eu não gosto.
— Está chateada por ter que conhecer o Major Cain, não é verdade? — Kit
acariciou o dorso da mão de Miss Dolly —. Não deveria tê-la trazido aqui.
Simplesmente pensava em mim mesma, e não levei em conta seus sentimentos.
— Vamos, vamos. Não vá se sentir mal agora, por conta da necessidade de
uma velha tola, querida.
— Não permitirei que permaneça aqui se for se sentir infeliz.
Os olhos de Miss Dolly se abriram com alarme.
— Mas não tenho outro lugar para onde ir! — Levantou-se da cadeira e
começou a chorar outra vez. — Uma tola boba... é isso que eu sou. Eu... eu vou
me arrumar para o jantar e desceremos juntas . Só demorarei uns minutos. Não
uns... não, um minuto.
Kit se levantou e abraçou os frágeis ombros da mulher.
— Acalme-se, Miss Dolly. Não vou mandá-la a nenhum lugar. Estará
comigo todo o tempo que você quiser. Prometo.
Uma piscada de esperança apareceu nos olhos de sua acompanhante.
— Não me mandará embora?
— Nunca — Kit alisou as mangas enrugadas do vestido branco de Miss
Dolly e lhe deu um beijo na bochecha —. Fique bonita para o jantar.
Miss Dolly lançou um olhar para o corredor vazio que se encontrava mais à
frente no porto seguro de seu quarto.
— Muito... bem, querida.
— Por favor não se preocupe com o Major Cain — Kit sorriu. — Só pense
que é o simpático General Lee.
Depois de mais de dez minutos polindo-se, Miss Dolly decidiu que já
estava preparada e Kit estava tão feliz de ver de novo com ânimo à mulher
mais velha que não lhe importou esperar. Enquanto desciam as escadas, Miss
Dolly começou a mimá-la excessivamente.
— Espera um segundo, querida. A sobrefalda não está posta corretamente
sobre esse bonito vestido — fez uns estalos com a língua enquanto lhe ajustava
a roupa. — Desejaria que tivesse mais cuidado com seu aspecto. Não
pretendo ser crítica, mas nem sempre está tão limpa como deveria estar uma
senhorita.
— Sim senhora, — Kit pôs sua expressão mais dócil, a mesma que nunca
tinha podido enganar a Elvira Templeton mas parecia funcionar com Miss
Dolly. Ao mesmo tempo estava decidida a assassinar Baron Cain com suas
mãos nuas se de algum modo esta noite ameaçasse a Miss Dolly.
Nesse momento ele saía da biblioteca. Estava vestido de maneira informal
com calças negras e camisa branca e o cabelo ainda úmido do banho. Kit
gostou que fosse tão caipira de não se vestir para o jantar, embora soubesse
que haveria damas presente.
Ele se deteve e as observou enquanto desciam. Algo brilhou em seus olhos
que não pôde decifrar.
Seu coração começou a palpitar. Tinha fresco na memória esse louco beijo.
Respirou profundamente. A noite que se avizinhava seria difícil. Devia se
esquecer do ocorrido e guardar seu temperamento. O aspecto de Cain aterraria
Miss Dolly.
Entretanto se tranquilizou quando viu os lábios da mulher mais velha se
curvar em um sorriso coquete. Miss Dolly esticou uma mão coberta com uma
luva de renda e desceu os últimos degraus até o vestíbulo tão elegantemente
como uma debutante.
— Meu querido, querido General. Não posso lhe dizer a honra que
representa para mim, senhor. Não se pode imaginar a quantidade interminável
de horas que passei de joelhos rezando por sua segurança. Nunca nem em
meus sonhos mais selvagens imaginei se alguma vez teria a honra de conhecê-
lo. — empurrou bruscamente sua mão pequenina na enorme de Cain. — Eu sou
a acompanhante de Katharine, Dorthea Pinckney Calhoun, dos Calhouns de
Columbia — e logo lhe fez uma reverência tão cheia de graça que teria podido
fazer qualquer garota Templeton orgulhosa.
Cain olhou aturdido o final de seu chapéu. Era uma mulher baixa. Sua
cabeça apenas lhe chegava ao botão do centro de sua camisa.
— Se houver algo, o que seja, que eu possa fazer para que você se sinta à
vontade enquanto permanecer em Risen Glory, General, só tem que me dizer
isso neste momento. Desde este mesmo momento, me considere sua fiel criada.
Miss Dolly moveu as pálpebras com tal velocidade que Kit temeu que a
deixassem cega.
Cain se virou para Kit com expressão interrogativa, mas Kit também
parecia desconcertada. Pigarreou.
— Acredito... o sinto muito senhora, mas acredito que cometeu um engano.
Não tenho o grau de General. Em realidade não tenho nenhuma ficha militar,
embora muita gente siga me chamando por meu grau de Major.
Miss Dolly riu como uma menina.
— Oh eu, sim! Eu sou uma boba! — Riu contente como um gatinho no leite
e baixou sua voz a um sussurro conspirador. — Me esqueci que está com um
disfarce. E um muito bom, devo dizer. Nenhum espião dos ianques poderia
reconhecê-lo, embora tenha sido uma vergonha que tenha tido que retirar a
barba. Admiro aos homens com barba.
A paciência de Cain chegava ao limite e fulminou Kit com o olhar.
— Do que está falando?
Miss Dolly pressionou os dedos em seu braço.
— Vamos, vamos, não há necessidade de se preocupar. Prometo-lhe que
quando estivermos em público serei muito discreta e dirigirei a você somente
como Major, querido General.
A voz de Cain soou como um aviso.
— Kit...
Miss Dolly estalou a língua.
— Ai, ai General. Não tem que preocupar-se nem um pouco com Katharine
Louise. Não existe uma filha mais leal à Confederação. Ela nunca delataria sua
verdadeira identidade. Não é assim querida?
Kit tratou de responder. Inclusive abriu a boca. Mas não lhe saiu nada.
Miss Dolly levantou o leque de pele que pendurava de seu ossudo pulso e
golpeou Kit no braço.
— Diga ao General imediatamente que é assim, querida. Não podemos
permitir que se preocupe desnecessariamente de que possa traí-lo. O pobre
homem tem bastante em sua cabeça para lhe acrescentar mais. Vamos. Diga-lhe
que pode confiar em você Diga-lhe — Pode confiar em mim — coaxou Kit.
Cain a olhou iradamente.
Miss Dolly sorriu e cheirou o ar.
— Se meu nariz não me enganar, acredito que cheiro guisado de frango. Eu
adoro guisado, sim senhor, eu adoro, sobretudo se tiver um pouquinho de noz
moscada.
Enlaçou seu braço com o de Cain e girou para a cozinha.
— General, você sabe, existe uma grande possibilidade que nós estejamos
ligeiramente aparentados. Segundo minha tia avó, Phoebe Littlefield Calhoun,
a árvore genealógica de nossa família se conecta com a sua pelo matrimônio
de seu pai com Virginia Lee.
Cain parou em seco.
— Voê está você tratando de me dizer, senhora...? Na realidade você crê
que eu sou o General Robert E. Lee?
Miss Dolly abriu sua boca de arco de Cupido para responder, só para
fechá-la com uma risadinha abafada.
— Oh, não, você não vai me pegar com tanta facilidade, General. E é
impertinente de sua parte tentar me testar, especialmente depois que eu disse
que pode confiar em minha discrição. Você é o Major Baron Nathaniel Cain.
Katharine Louise me disse isso muito claramente. — e então lhe dedicou uma
piscadela conspiradora.
***

Cain passou todo o jantar com o cenho franzido, e o apetite habitual de Kit
sumiu. Não só pela conversa que se aproximava, nem pela lembrança do beijo,
mas sim porque sabia que tinha sido ela quem tinha plantado a semente da
última loucura de Miss Dolly. Miss Dolly, entretanto, não tinha nenhuma
dificuldade em encher o tenso silêncio. Conversou sobre estofados,
parentescos longínquos e as qualidades medicinais da camomila, até que a
cara de Cain tomou o aspecto de uma nuvem de tempestade. Na sobremesa,
irritou-se quando ela sugeriu uma informal sessão de poesia no salão.
— Perdoe. Senhorita Calhoun — seu olhar voou para ela através da mesa
—. Katharine Louise trouxe alguns envios secretos de Nova Iorque. Sinto
muito, mas tenho que falar com ela em praticular.
Uma sobrancelha leonina arqueou para cima.
— E imediatamente!
— Mas, certamente, querido General — disse Miss Dolly —. Não precisa
dizer outra palavra. Podem partir. Eu ficarei aqui sentada saboreando este
delicioso bolo de gengibre. Porque eu não tenho...
— Você é uma verdadeira patriota, senhora — se levantou de sua cadeira e
gesticulou para a porta. — À biblioteca, Katharine Louise.
— Eu... uh...
— Agora.
— Se apresse querida. O General é um homem ocupado.
— E a ponto de ficar mais ocupado — disse ele com intenção.
Kit se levantou e passou rapidamente a seu lado. Estupendo. Era hora do
confronto.
A biblioteca de Risen Glory estava quase igual como Kit a recordava.
As confortáveis cadeiras com assentos fundos de couro estavam colocadas
em ângulo ante a velha escrivaninha de mogno. As grandes janelas mantinham
a estância alegre e ensolarada, apesar dos sombrios livros de couro que
povoavam as estantes.
Sempre tinha sido seu local preferido de Risen Glory e a incomodou ver o
objeto estranho em cima do escritório, além do revólver Colt do exército que
repousava em uma caixa de madeira vermelha a seu lado. Mas o que mais a
incomodou foi o retrato de Abraham Lincoln que estava pendurado em cima do
suporte da chaminé, em lugar “d’a decapitação de San Juan Baptista”. Uma
pintura que tinha estado ali desde que podia lembrar.
Cain se sentou se apoiando no encosto da cadeira atrás da mesa do
escritório, apoiou os pés sobre a superfície de mogno, e cruzou os tornozelos.
Sua postura era deliberadamente insolente, mas não o deixou ver que isso a
incomodava. Antes, essa tarde quando estava de véu, tinha-a tratado como uma
mulher. Agora pretendia tratá-la como a seu menino de estábulo. Logo
descobriria que os três anos não tinham passado em vão.
— Lhe ordenei que permanecesse em Nova Iorque — disse ele.
— Sim o fez — ela fingiu estudar o escritório. — Esse retrato do senhor
Lincoln está desconjurado em Risen Glory. Insulta a memória de meu pai.
— Pelo que tenho ouvido, seu pai insultou sua própria memória.
— Isso é certo. Mas de todos os modos era meu pai e morreu
corajosamente.
— Não há nada valente na morte — os traços angulares de seu rosto se
endureceram na débil luz da habitação — Por que desobedeceu minhas ordens
e abandonou Nova Iorque?
— Porque suas ordens não eram razoáveis.
— Não tenho que te dar explicações.
— Isso é o que você pensa. Já cumpri nosso trato.
— O que você fez? Nosso trato era até que você se comportasse
corretamente.
— Completei os três anos na Academia.
— Não são suas atividades na Academia o que me preocupam — disse sem
baixar os pés da mesa, inclinou-se para frente e extraiu uma carta de uma
gaveta. A estendeu por cima da mesa. — Uma leitura interessante embora não
para pessoas facilmente influenciáveis.
Ela a agarrou. Seu coração deu um salto quando viu a assinatura. Hamilton
Woodward.

É meu triste dever informá-lo sobre o que aconteceu na última Páscoa,


sua parente se comportou de um modo terrivel com um convidado na minha
casa, tanto que eu mal posso descrevê-lo. Durante o baile após o jantar
anual da empresa, Katharine tentou seduzir um dos meus sócios. Felizmente
eu a interrompi a tempo. O pobre homem estava atordoado. É um homem
respeitável, casado e com filhos, e é um dos pilares da nossa sociedade. Seu
comportamento obsceno me faz pensar se não pode ter a doença da
ninfomania...

Ela amassou a carta e a jogou por cima da mesa do escritório. Não tinha
nem ideia do que era isso da ninfomania, mas soava horrível.
— Essa carta é uma fileira de mentiras. Não pode acreditar.
— Estava reservando minha opinião, até que tivesse possibilidade de
viajar a Nova Iorque, no final do verão e falar com você pessoalmente. Por
isso te ordenei que ficasse lá.
— Tínhamos um acordo. Não pode voltar atrás só porque Hamilton
Woodward é um tonto.
— O é?
— Sim — sentiu o rubor lhe queimar as bochechas.
— Está me dizendo que não tem o costume de oferecer seus favores?
— É obvio que não.
Seus olhos baixaram a sua boca e sem dúvida estava recordando o que
tinha ocorrido entre eles só umas horas antes.
— Se esta carta for mentira — disse ele em tom baixo — Como explica que
tenha se jogado em meus braços tão facilmente esta tarde? É essa sua ideia de
um comportamento correto?
Ela não sabia explicar algo que nem ela mesma entendia, de modo que se
lançou ao ataque.
— Possivelmente é você quem deveria explicar-se. Sempre ataca às jovens
damas que vêm a esta casa?
— Atacar?
— Se considere sortudo que estava exausta da viagem — disse ela tão
arrogante como pôde —. Senão, meu punho teria terminado em sua barriga.
Exatamente igual ao amigo do senhor Woodward.
Ele baixou os pés no tapete.
— Estou vendo — podia ver que não lhe acreditava —. É interessante que
se preocupe tanto com meu comportamento, e entretanto o seu fica impune.
— Não é o mesmo. Você é uma mulher.
— Ah, já sei. E que diferença há?
Ele parecia incômodo.
— Sabe exatamente o que quero dizer.
— Não sei o que quer dizer.
— Digo que vai voltar a Nova Iorque!
— E eu digo que não!
— Não depende do que você diga.
Isso era mais pura verdade do que ela podia suportar, e pensou
rapidamente.
— Quer se livrar de mim rápido, e pôr fim a esta ridícula tutela?
— Mais do que possa imaginar.
— Então me deixe ficar em Risen Glory.
— Perdão, mas não captei a relação.
Ela tratou de falar de forma tranquila.
— Há vários cavalheiros que desejam se casar comigo. Só preciso de umas
poucas semanas para me decidir.
Seu rosto se escureceu.
— Pode se decidir já.
— Como? foram três anos confusos e esta é a decisão mais importante de
minha vida. Devo pensar com cuidado, e preciso ter a minha gente a meu
redor. Senão, não acredito que possa me decidir, e nenhum dos dois quer isso
— a explicação era simples, mas pôs toda a sinceridade nela.
Ele franziu mais o cenho e caminhou até a chaminé.
— Para mim é impossível te imaginar como uma esposa leal.
Ela tampouco podia se imaginar, mas de todos os modos seu comentário a
ofendeu.
— Não sei por que não — recordou a imagem de Lilith Shelton afirmando
sua opinião sobre os homens e o matrimônio. — O matrimônio é o que as
mulheres procuram, não? — Revirou os olhos da mesma maneira que tinha
visto sua antiga companheira de classe fazer tantas vezes. — Um marido para
cuidar de você, comprar bonitos vestidos, e jóias para seu aniversário. Que
mais uma mulher poderia desejar na vida?
Os olhos de Cain se tornaram frios.
— Três anos atrás quando era meu cavalariço, era um incômodo, mas era
forte e valente. Essa Kit Weston não teria se vendido por jóias e vestidos.
— Seu tutor não tinha obrigado a Kit Weston a participar de uma Academia
dedicada a transformá-la em uma esposa.
Ela tinha feito sua observação. Ele reagiu com um encolher de ombros e se
apoiou no suporte.
— Tudo isso é passado.
— Esse passado me moldou no que sou agora — respirou profundamente
—. Decidi me casar, mas não quero me equivocar na escolha. Preciso de
tempo, e eu gostaria de passá-lo aqui.
Ele a observou.
— Esses homens jovens... — sua voz foi baixando até converter-se em um
sussurro perturbador —. Você os beijou como me beijou?
Ela precisou de toda sua determinação para não afastar os olhos.
— Estava cansada da viagem. E eles são muito cavalheiros para me
pressionar do modo que você o fez.
— Então são uns tontos.
Ela se perguntou o que quereria dizer com isso. Ele se afastou da lareira.
— Muito bem. Te dou um mês, mas se nesse tempo não se decidir, voltará a
Nova Iorque, com marido ou sem. E outra — ele assinalou do vestíbulo com a
cabeça —. Essa mulher louca tem que ir. Deixa-a que descanse um dia, e a
leva à ferrovia. Eu me encarrego de compensá-la.
— Não! Não posso.
— Sim, sim pode.
— Prometi.
— Esse é seu problema.
Ele parecia tão inflexível. O que poderia dizer para lhe convencer?
— Não posso ficar aqui sem uma dama de companhia.
— É um pouco tarde para se preocupar com sua reputação.
— Possivelmente para você, mas não para mim.
— Não acredito que seja uma dama de companhia correta. Logo que ela
comece a falar com os vizinhos, compreenderão que está mais louca que uma
cabra.
Kit saiu ardentemente em sua defesa.
— Ela não está louca!
— Pois me enganou completamente.
— Ela é só um pouco... diferente.
— Mais que um pouco — Cain a olhou desconfiadamente. — Por que tem
essa idéia que sou o General Lee?
— Eu... poderia ter mencionado algo por engano.
— Você lhe disse que eu era o General Lee?
— Não, claro que não. Ela tinha medo de te conhecer, e eu simplesmente
estava tratando de lhe levantar o ânimo. Nunca pensei que levasse a sério —
Kit lhe explicou o que tinha acontecido quando foi ào quarto de Miss Dolly.
— E agora espera que eu participe desta charada?
— Não terá que fazer muito — assinalou Kit razoavelmente —. Ela faz a
maior parte da conversa.
— Isso não é suficiente.
— Deverá sê-lo — odiava lhe suplicar, e as palavras quase se agarravam
em sua garganta —. Por favor. Não tem nenhum lugar onde ir.
— Maldição, Kit! Não a quero aqui.
— Tampouco me quer, e entretanto vai permitir que fique. Que diferença faz
uma pessoa a mais?
— Uma grande diferença — sua expressão se voltou ardilosa —. Você me
pede muito, mas não está disposta a dar nada em troca.
— Exercitarei seus cavalos — disse ela rapidamente.
— Eu estava pensando em algo um pouco mais pessoal.
Ela engoliu em seco.
— Costurarei sua roupa.
— Foi mais imaginativa faz três anos. E certamente não era tão... experiente
como agora. Recorda a noite que me propôs ser minha amante?
Ela deslizou a ponta da língua sobre os ressecados lábios.
— Estava desesperada.
— Quão desesperada está agora?
— Esta conversa é inadequada — ela conseguiu responder em um tom tão
altivo como o de Elvira Templeton.
— Tão imprópria como o beijo desta tarde.
Ele se aproximou mais e sua voz foi se convertendo em um sussurro.
Durante um momento pensou que ia beijá-la outra vez. Ao invés disso seus
lábios fizeram uma careta zombadora.
— Miss Dolly pode ficar por agora. Pensarei mais a frente como poderá me
recompensar.
Enquanto ele deixava a sala, ela olhou com atenção a porta e tratou de
decidir se tinha saído ganhando ou perdendo.

Essa noite Cain ficou imóvel na escuridão, com o braço apoiado detrás da
cabeça e olhando atentamente o teto. Que tipo de jogo tinha estado jogando
com ela esta noite? Ou foi ela que tinha estado jogando com ele?
Seu beijo dessa tarde tinha deixado claro que ela não era uma inocente, mas
tampouco parecia tão vulgar como a carta do advogado fazia acreditar. Mas
não estava seguro. Por agora, simplesmente esperaria e a vigiaria.
Em sua mente viu uma boca como uma rosa, com os lábios como pétalas
suaves, e sentiu uma onda espessa e quente de desejo.
Uma coisa sim estava clara. A época em que a considerava uma menina
tinha ficado para a história.
9
Kit estava de pé. Colocou uma calça de montaria cor cáqui que teria
escandalizado a Elsbeth, e uma camisa masculina por cima da regata enfeitada
de babados. Não gostava das mangas largas, mas se não cobrisse os braços
logo ficariam marrons igual a um pão doce de manteiga, se exposto ao sol.
Consolou-se comprovando quão fina era a malha, como a de sua roupa
interior, de modo que não lhe provocaria muito calor.
Colocou as abas da camisa dentro da calça e abotoou a curta fileira de
cômodos botões da parte da frente. Enquanto fitava as botas, desfrutou do
suave tato do couro que se ajustava a seus pés e seus tornozelos. Eram as
melhores botas de montar que tinha tido, e estava impaciente para provar.
Fez-se uma trança longa que deixou cair pelas costas. Umas mechas lhe
frisavam nas têmporas, diante dos diminutos brincos de prata em suas orelhas.
Para se proteger do sol, tinha comprado um chapéu de feltro negro masculino,
com um fino cordão de couro para prender sob o queixo.
Quando terminou de se vestir, virou-se para estudar com o cenho franzido
sua imagem no espelho móvel de corpo inteiro. Apesar de suas roupas
masculinas, ninguém poderia confundi-la com um rapaz. O fino material da
camisa perfilava seus seios com mais precisão do que tinha previsto, e o fino
corte das calças de montar aderia femininamente a seus quadris.
Mas o que importava? Planejava usar essa roupa pouco ortodoxa só quando
cavalgasse por Risen Glory. Quando fosse a outro local, usaria seu novo traje
de montar, não importava quanto o detestasse. Gemeu quando pensou que teria
que montar igual a uma amazona, algo que só tinha feito em suas visitas
ocasionais ao Central Park. Como o odiava. Montar assim lhe roubava a
sensação de poder que ela adorava e, pelo contrário, lhe provocava uma
difícil sensação de desequilíbrio.
Saiu da casa silenciosamente, renunciando ao café da manhã e uma
conversa matutina com Sophronia. Sua velha amiga tinha ido vê-la na noite
anterior. Embora Sophronia escutasse educadamente as histórias que Kit lhe
tinha contado, ela pouco falou de sua própria vida. Quando Kit a pressionou
em busca de detalhes, disse-lhe que poderia perguntar alguma fofoca sobre ela
na vizinhança que não lhe diriam nada. Só quando Kit lhe perguntou por
Magnus Owen apareceu a antiga Sophronia, altiva e arrogante.
Sophronia sempre tinha sido um enigma para ela, agora mais ainda. Não
eram só as mudanças externas, seus bonitos vestidos e seu bom aspecto.
Parecia que sua presença incomodava a Sophronia. Possivelmente o
sentimento tinha estado sempre aí, mas Kit era muito jovem para notá-lo. O
que o fazia inclusive mais enigmática era que debaixo desse ressentimento, Kit
via a força antiga e familiar do amor de Sophronia.
Cheirou com delicadeza o ar, enquanto caminhava pelo pátio de trás da
casa. Cheirava exatamente como lembrava, a terra fértil e esterco fresco. Até
percebeu o débil aroma de mofeta, não totalmente desagradável a certa
distância. Merlín saiu para recebê-la. Acariciou-lhe atrás das orelhas e jogou
um pedaço de madeira para que ele fosse buscar.
Os cavalos ainda não estavam no pasto, de modo que se dirigiu às quadras,
um edifício novo erguido no lugar onde os ianques tinham destruído o anterior.
Os saltos de suas botas ecoavam no chão de pedra, tão limpos como quando
Kit se ocupava de fazê-lo.
Havia dez estábulos, quatro dos quais estavam atualmente ocupados, dois
com cavalos de tiro. Inspecionou os outros cavalos e descartou um
imediatamente, uma velha égua alazã que evidentemente era amável mas não
tinha brio. Seria boa para arreios ou um cavaleiro tímido, o que não era o caso
de Kit.
O outro cavalo entretanto a emocionou. Era um cavalo castrado negro como
a noite, com uma chama branca entre os olhos. Era grande e forte, esbelto, e
seus olhos a olhavam vivos e alertas.
Acariciou-lhe com a mão o pescoço comprido e elegante.
— Como te chama, menino? — o animal relinchou suavemente e moveu sua
potente cabeça.
Kit sorriu.
— Tenho a impressão de que vamos ser bons amigos.
A porta se abriu e se virou para ver entrar um menino de onze ou doze anos.
— É a senhorita Kit?
— Sim. E você quem é?
— Eu sou Samuel. O Major me disse que se a senhorita viesse aos
estábulos hoje, lhe dissese que ele quer que você monte a Lady.
Kit olhou desconfiadamente para a velha égua alazã.
— Lady?
— Sim, senhora.
— Sinto muito, Samuel — acariciou a juba sedosa do cavalo castrado. —
Selaremos este em seu lugar.
— Esse é Tentação, senhora. E o Major foi muito claro nisto. Disse que
deixe Tentação nos estábulos e monte a Lady. E também disse que se deixasse
que saisse dos estábulos com Tentação, me arrancará a pele em tiras, e você
terá que viver com isso sobre sua consciência.
Kit compreendeu a descarada manipulação de Cain. Duvidava que pudesse
levar a cabo essa ameaça de ferir Samuel, mas ainda tinha o escuro coração de
um ianque, e não podia ter certeza de tudo. Olhou ansiosa para Tentação.
Nunca um cavalo tinha tido um nome tão apropriado.
— Sela a Lady — suspirou Kit. — Falarei com o senhor Cain.
Como suspeitava, Lady estava mais interessada em pastar que em galopar.
Kit de imediato deixou que a égua passasse do trote e se dedicou a observar as
mudanças que se produziram ao seu redor.
Demoliu-se tudo salvo uns poucos barracos de escravos. Isso era parte da
antiga Risen Glory que não gostava de relembrar, e se alegrou de que tivessem
desaparecido. Os barracos que tinham deixado em pé tinham sido pintados e
restaurados. Cada um tinha seu próprio jardim, e as flores cresciam ao redor
da entrada. Viu uns meninos brincando na sombra das mesmas árvores que ela
tinha brincado, quando menina.
Quando chegou na beira do primeiro campo plantado, desmontou e se
agachou para inspecioná-lo. As plantas novas de algodão estavam cobertas
por botões apertados. Uma lagartixa deslizou perto de suas botas, e sorriu. As
lagartixas e os sapos, junto com os passarinhos selvagens se alimentavam das
larvas que podiam ser tão destrutivas para os novelos de algodão. Era muito
cedo para dizer, mas parecia que Cain teria uma boa colheita. Sentiu uma
mescla de orgulho e ira. Deveria ser sua colheita, não dele.
Enquanto se endireitava para olhar ao seu redor reconheceu também um
golpe de medo. Era muito mais próspero do que tinha imaginado. E se não
tivesse dinheiro suficiente em seu fundo fiduciário para comprar a plantação?
De algum modo precisava olhar os livros—caixa. Rechaçou a horrível
possibilidade que ele não estivesse disposto a vender.
Com grande rapidez chegou a Lady, que mordiscava uns trevos tenros, e
agarrou rapidamente a brida que não se incomodou em segurar. Subiu a um
toco para montar na cadeira e se dirigiu até o lago onde havia nadado tantos
verões felizes. Estava tal e como recordava, com suas águas cristalinas, sua
terra limpa e o velho salgueiro. Prometeu voltar para tomar um banho quando
tivesse certeza que não seria incomodada.
Dirigiu-se para o pequeno cemitério onde sua mãe e seus avós estavam
enterrados e fez uma pausa diante da grade de ferro. Só faltava o corpo de seu
pai, enterrado em uma fossa comum no cemitério de Hardin County,
Tennessee, não longe da Igreja de Shiloh. Rosemary Weston estava no canto
mais afastado da grade.
Kit girou à égua bruscamente para o sudeste da propriedade, onde estava o
novo moinho têxtil do qual Brandon Parsell lhe tinha falado.
Quando chegou a uma clareira entre as árvores, viu uma égua castanha
amarrada a um lado e pensou que devia ser Vândalo, o cavalo do qual Samuel
lhe havia falado enquanto selava Lady. O cavalo castrado era também um
animal estupendo, mas não tinha comparação com Apolo. Recordou o que
Magnus disse uma vez sobre Cain.
O Major dá de presente seus cavalos e seus livros antes de poder estar
muito apegado a eles. É sua forma de ser.
Rodeou as árvores e ficou surpreendida ante a vista do moinho. O Sul tinha
sido sempre o primeiro fornecedor de algodão da Inglaterra, para ser
processado e tecido. Nos anos posteriores à guerra, tinham aparecido um
punhado de moinhos que recolhiam o algodão e o convertiam em fio. Em
seguida, podiam enviar à Inglaterra carretéis de algodão compactos para ser
tecidos, em lugar das volumosas balas de algodão virgem, proporcionando um
valor mil vezes superior pela mesma tonelagem. Era uma excelente ideia. Kit
só desejou que não tivesse chegado à Risen Glory.
Ontem à noite Kit tinha interrogado a Sophronia sobre o moinho de Cain e
se inteirou que não tinha teares para tecê-lo. Só o convertia em fio. Tomava o
algodão, limpava-o, carpia-o para convertê-lo em fibra, e logo o trançava em
carretéis de linho.
Era um edifício de tijolo retangular com uma altura de dois pisos e muitas
janelas. Um pouco menor que outros moinhos têxteis da Nova Inglaterra que
tinha visto na beira do Rio Merrimack, mas parecia enorme e ameaçador em
Risen Glory. Complicaria muito as coisas.
Chegavam-lhe as marteladas e as vozes dos trabalhadores. Três homens
trabalhavam no telhado, enquanto outro com as costas cheias de cicatrizes
subia pela escada colocada debaixo.
Todos estavam sem camisa. Quando um deles se endireitou, fixou-se nos
músculos que lhe esticavam as costas. Embora ainda estivesse longe, o
reconheceu. aproximou-se mais ao edifício e desmontou.
Um homem corpulento que estava empurrando um carrinho de mão a viu e
deu uma cotovelada ao que estava a seu lado. Os dois ficaram imóveis
olhando-a com atenção. Pouco a pouco, os sons dentro do moinho foram
diminuindo enquanto todos apareciam às janelas a olhar a jovem dama vestida
com roupa de menino.
Cain estava consciente do súbito silêncio e olhou para baixo de seu lugar
no telhado. A princípio viu somente o topo de um chapéu plano, mas não
precisava ver o rosto que havia debaixo para reconhecer seu visitante. Um
olhar ao magro corpo tão claramente feminino dentro dessa camisa branca e
essas calças de montar cáqui que moldavam umas estupendas pernas,
disseram-lhe tudo que precisava saber.
Se levantou e desceu as escadas. Quando chegou abaixo, virou-se para Kit,
a estudando. Deus, como era linda.
Kit notou suas bochechas se ruborizarem de vergonha. Deveria ter colocado
o irritante traje de montar que odiava. Em vez de repreendê-la, como tinha
imaginado, Caín parecia apreciar seu aspecto. Tremia-lhe o canto da boca.
— Pode pôr essas calças, mas é obvio que já não parece um menino de
estábulo.
Seu bom humor a chateou.
— Para.
— O que?
— De sorrir.
— Não me permite sorrir?
— Não de mim. É ridículo. Não sorri a ninguém. Nasceu com a cara
carrancuda.
— Tentarei lembrar isso — ele a agarrou pelo braço e se dirigiu com ela à
porta do moinho —. Vem. Te mostrarei.
Embora o edifício estivesse quase construído, o motor de vapor que
impulsionaria a maquinaria era a única equipe instalada. Cain lhe descreveu o
jogo de eixos e polias, mas ela não podia concentrar-se. Ele deveria ter
vestido a camisa.
Cain a apresentou a um homem ruivo de meia idade chamado Jacob Childs,
vindo de um moinho de Providence, na Nova Inglaterra. Pela primeira vez,
soube que Cain tinha feito várias viagens ao norte nos últimos anos para
visitar os moinhos têxteis. Se irritou que não tivesse tido um momento para ir
visitá-la na Academia, e o disse.
— Eu não pensei — disse ele.
— Você é um tutor horrível.
— Não vou discutir isso com você.
— A senhora Templeton poderia ter estado me maltratando, e você não
saberia.
— Não acredito. Você teria se defendido. Isso não me preocupava.
Ela viu seu orgulho pelo moinho, mas enquanto saíam, não pôde encontrar
palavras de elogio.
— Eu gostaria de falar de Tentação.
Cain parecia distraído. Ela olhou para baixo para ver o que ele olhava, e
compreendeu que suas curvas eram mais evidentes à luz do sol do que tinham
sido dentro do moinho. Isso porque a sombra delineava seu corpo como um
dedo acusatório até Lady que estava arrancando tranquilamente um botão de
ouro.
— Essa égua é quase tão velha como Miss Dolly. Quero montar Tentação.
Cain teve que se obrigar a olhar em seu rosto.
— Pode ser que Lady seja velha, mas é adequada para uma mulher.
— Montei em cavalos como Tentação desde que tinha oito anos.
— Sinto muito Kit, mas esse cavalo é difícil, inclusive para mim.
— Não estamos falando de você, — disse ela despreocupada. — Estamos
falando de alguém que sabe como montar.
Cain parecia mais divertido que zangado.
— Acredita nisso?
— Quer que o prove? Você montando a Vândalo e eu a Tentação. Saímos da
porta junto ao celeiro, rodeamos o lago dos Arces, e voltamos de novo aqui.
— Não vai conseguir me atormentar.
— Oh, não pretendo lhe atormentar — lhe dedicou um sedoso sorriso —.
Estou te desafiando.
— Você gosta de viver perigosamente, não, Katharine Louise?
— É a única maneira.
— De acordo. Vejamos o que pode fazer.
Tinha aceito a corrida. Aplaudiu mentalmente enquanto ele agarrava a
camisa e a colocava. Enquanto a fechava, dava ordens aos trabalhadores que
seguiam de pé, olhando-os embevecidos. Depois pegou um chapéu velho de
aspecto confortável e o pôs.
— Te Vejo nos estábulos — caminhou até a seu cavalo, montou e partiu sem
esperá-la.
Lady estava ansiosa por voltar para a aveia que a esperava, e fizeram o
caminho de volta um pouco mais rápido, mas de toda forma chegaram bem
depois de Cain. Tentação já estava selado, e Cain verificava a correia da
cilha. Kit desmontou e entregou a brida de Lady a Samuel. Assim que se
aproximou de Tentação lhe acariciou o focinho com a mão.
— Preparada? — disse Cain de repente.
— Preparada.
Ele a ajudou a subir e ela se balançou na cadeira. Quando Tentação sentiu
seu peso, começou a fazer cambalhotas esquivas, e necessitou toda sua
habilidade para mantê-lo sob controle. Quando o cavalo finalmente se
tranquilizou, Cain montou em Vândalo.
Enquanto caminhava pelo quintal, Kit se sentiu empolgada pela sensação de
poder debaixo dela, e mal podia resistir a sair em disparada. Deteve-se a
contragosto quando alcançou a porta do celeiro.
— O primeiro que chegar ao moinho, ganha — disse a Cain.
Ele usou o polegar para levantar a aba do chapéu.
— Não acredito que isso seja correto.
— O que quer dizer? — Kit precisava fazer o correto. Queria competir com
ele em algo que o tamanho e a força não lhe fosse vantagem. A cavalo, as
diferenças entre um homem e uma mulher desapareciam.
— Exatamente o que já disse.
— O Herói de Missionary Ridge está assustado por perder para uma
mulher na frente de seus homens?
Cain entrecerrou os olhos ligeiramente diante do sol da manhã.
— Não preciso provar nada, e você não vai me atormentar.
— Por que vieste então, a não ser para fazer uma corrida?
— Você estava blefando. Queria ver se falava a sério.
Ela colocou as mãos no pomo da cela e sorriu.
— Não estava blefando. Falava de fatos.
— Falar é fácil, Katharine Louise. Vejamos o que pode fazer com um
cavalo.
Antes de que ela pudesse lhe responder, ele se pôs a cavalgar. Observou
como punha a Vândalo em um fácil meio galope.
Montava muito bem para um homem tão grande, sensível, como se fosse
uma extensão do cavalo. Reconheceu que era tão bom cavaleiro como ela.
Outro argumento para apontar contra ele.
Ela se apoiou sobre o brilhante pescoço negro de Tentação.
— Bom, menino. Vamos mostrar o que podemos fazer.
Tentação era tudo o que esperava. A princípio, ficou ao lado de Vândalo e
o manteve ao meio galope, mas quando notou que o cavalo podia correr mais,
ficou claramente a frente. Viraram pelos campos plantados e entraram em um
prado aberto. Sua cavalgada se converteu em um feroz galope, e enquanto
sentia a força do animal debaixo dela, todo o resto desapareceu.
Não havia um ontem nem um manhã, nem um homem de olhos frios cinzas e
crueis, nenhum beijo inexplicável. Só havia um magnífico animal que era parte
dela.
Viu uma sebe mais a frente. Com uma pressão de seus joelhos, virou o
cavalo para ele. Quando chegaram mais perto, ela se inclinou mais para a
frente da cela, mantendo os joelhos fixos em seus flancos. Sentiu uma tremenda
onda de poder quando Tentação saltou facilmente a barreira.
A contragosto o levou a uma clareira e o girou. Por agora, já tinha feito
suficiente. Se pressionasse mais o cavalo, era possível que Cain a acusasse de
temerária, e não ia lhe dar uma desculpa para impedir que voltasse a montar
esse cavalo.
Ele a esperava no inicio do prado. Chegou junto dele e limpou o suor do
rosto com a manga da camisa.
A sela dele rangeu um pouco quando se moveu.
— Isso foi uma autêntica demonstração.
Ela permaneceu silenciosa, esperando seu veredicto.
— Montou dessa maneira desde que está em Nova Iorque? — perguntou
ele.
— Isso não chamaria montar.
Com um puxão nas rédeas, ele girou Vândalo para os estábulos.
— Amanhã, vai ter umas dores infernais.
Era isso tudo o que tinha a dizer? Olhou suas costas, apertou os calcanhares
contra os flancos de Tentação e o alcançou.
— E bem?
— E bem o que?
— Vai me deixar montar este cavalo, ou não?
— Não vejo por que não. Enquanto for essa amazona, poderá montá-lo.
Ela sorriu e resistiu ao impulso de virar Tentação de novo para o prado
para outro galope.
Chegou ao pátio antes que Cain desmontasse e deu a Samuel a brida.
— Te esmere em refrescá-lo — disse ao jovem —. E lhe ponha uma manta.
Cavalgou intensamente.
Cain chegou a tempo de ouvir suas ordens.
— Samuel é um menino de estábulo tão bom como você o foi — sorriu e
desmontou — Mas não está nem a metade de atraente que você nessas calças.
***

Durante dois anos e meio, Sophronia tinha estado castigando Magnus Owen
por se interpor entre ela e Baron Cain. A porta do quarto que ele usava como
escritório, balançou ao abrir-se.
— Me disseram que queria me ver — disse ele. — Aconteceu algo?
Os anos que tinha sido capataz dos trabalhos realizados em Risen Glory
tinham produzido mudanças nele. Os músculos que se delineavam por debaixo
de sua camisa bege e a calça marrom escuro parecia forte e resistente, e
provocava uma tensão nervosa do que carecia antes. Seu rosto ainda era
jovem, mas como sempre acontecia quando estava frente de Sophronia, uma
sutil linha de tensão marcava fortemente seus traços.
— Não aconteceu nada, Magnus — respondeu Sophronia, com aquele ar de
superioridade. — Só quero que você vá a cidade mais tarde e traga uns
suprimentos pra mim.
Ela não se levantou da poltrona enquanto lhe entregava a lista. Queria que
ele se aproximasse.
— Me fez vir dos campos para que seja seu menino de recados? — agitou a
lista —. por que não manda o Jim para isto?
— Não pensei nele — respondeu ela, perversamente contente de poder
incomodá-lo — Além disso, Jim está limpando as janelas.
Magnus apertou a mandíbula.
— E suponho que limpar as janelas é mais importante para você que colher
o algodão que sustenta esta plantação.
— Mas bem, tem uma elevada opinião de si mesmo, não é isso, Magnus
Owen? — levantou-se da cadeira. — Crê que esta plantação entrará em
colapso só porque o capataz está fora dos campos durante alguns minutos?
Uma pequena veia começou a pulsar em sua têmpora. Ele colocou a mão
calosa e áspera na cadeira.
— Precisa tomar um pouco de ar, mulher, pois está ficando desagradável.
Alguém vai ter que te apertar os parafusos ou vai se colocar em autênticos
problemas.
— E acredita que esse alguém vai ser você? — levantou o queixo e
começou a caminhar em direção ao corredor.
Magnus geralmente de natureza gentil e tranqüila, estendeu a mão e a
agarrou pelo braço. Ela deu um pequeno grito quando ele a puxou, e fechou a
porta de repente.
— Assim mesmo — ele falou arrastando as palavras, com aquela cadência
doce, de sons líquidos que o levavam à sua infância. — É obvio que estou
disposto a manter o bem-estar entre nós, os negros.
Seus dourados olhos faiscaram com ira por sua brincadeira, sentiu-se
aprisionada contra a porta por seu comprido corpo.
— Me deixa sair! — deu-lhe um empurrão no peito, mas embora os dois
fossem da mesma altura, ele era muito mais forte e era como tentar derrubar
um carvalho com um sopro de brisa.
— Magnus, me deixe sair!
Possivelmente ele não ouviu o tom de pânico em sua súplica, ou
possivelmente o tinha pressionado muito frequentemente. Em lugar de liberá-
la, colou seus ombros à porta. O calor de seu corpo lhe queimava através da
saia.
— A senhorita Sophronia pensa e atua como se fosse branca, acredita que
amanhã vai despertar e vai ser branca. Assim não terá que voltar a falar com
os negros outra vez, exceto para lhes dar ordens.
Ela virou a cabeça e fechou os olhos com força, tratando de isolar-se de
seu desprezo, mas Magnus não tinha acabado com ela. Sua voz se suavizou,
mas as palavras não feriam menos.
— Se a senhorita Sophronia fosse branca, não teria que se preocupar que
nenhum homem negro quisesse casar-se com ela e ter seus filhos. Nem teria
que se preocupar que um homem negro possa sentar-se a seu lado e agarrar a
sua mão quando se sentir sozinha, ou a abrace quando for velha. Não, a
senhorita Sophronia não deveria se preocupar com nada disso. Ela é muito
fina para tudo isso. Ela é muito branca para tudo isso!
— Já basta! — Sophronia tampou os ouvidos com as mãos tentando não
ouvir essas palavras cruéis.
Ele retrocedeu para liberá-la, mas ela não pôde se mover. Estava
congelada, com as costas rígidas e as mãos nos ouvidos. As lágrimas
incontroláveis desciam por suas bochechas.
Com um gemido surdo, Magnus agarrou esse corpo rígido em seus braços e
começou a acariciá-la e a cantarolar em seu ouvido.
— Vamos lá, vamos lá, garota. Está bem. Sinto muito que te fiz chorar. A
última coisa que eu quero é te machucar. Vamos, tudo estará bem.
Gradualmente a tensão foi abandonando seu corpo e durante um momento se
apoiou contra ele. Era tão sólido. Tão seguro.
Seguro? O pensamento era estúpido. Soltou-se e o enfrentou, orgulhosa,
apesar das lágrimas que não podia impedir de cair.
— Não tem nenhum direito de me falar assim. Não me conhece, Magnus
Owen. Só acredita que me conhece.
Mas Magnus tinha seu próprio orgulho.
— Sei que só tem sorrisos para qualquer homem branco que cruza em seu
caminho, mas não esbanja nenhum olhar nos homens negros.
— O que pode me oferecer um homem negro? — disse ela ferozmente —. O
homem negro não conseguiu nenhum poder. À minha mãe, minha avó, e às suas
mães antes delas... os homens negros as amaram. Mas quando o homem branco
batia na porta de noite, nenhum só desses homens negros puderam impedir que
as levassem. Nenhum desses homens negros pôde impedir que vendessem seus
filhos e os levassem para longe. A única coisa que podiam fazer era manter-se
à margem e olhar como amarravam a mulher que amavam ao poste e a
açoitavam até lhes deixar as costas ensanguentadas. Não me fale de homens
negros!
Magnus deu um passo para ela, mas quando ela se afastou, andou até a
janela em seu lugar.
— Tudo é diferente agora — disse suavemente —. A guerra acabou. Nunca
mais será presa. Somos livres. As coisas mudaram. Podemos votar.
— É um tonto, Magnus. Acredita que porque os brancos lhe disseram que
pode votar, as coisas serão diferentes? Isso não quer dizer nada.
— Sim quer dizer algo. Agora é uma cidadã americana, as leis deste país te
protegem.
— Protegem! — as costas de Sophronia se esticaram com desprezo. — Não
há nenhum amparo para uma mulher negra, só o que ela mesma consiga.
— Vendendo seu corpo ao primeiro homem branco rico que aparece? Essa
é sua maneira?
Ela se virou para ele, açoitando-o com sua língua.
— Me diga o que mais pode oferecer a uma mulher negra. Os homens
usaram nossos corpos durante séculos e o único que conseguimos em troca é
uma prole de filhos aos quais não podíamos proteger. Bem, eu quero mais que
isso, e vou conseguir, vou ter uma casa, vestidos e boa comida. Assim estarei
segura!
Ele se estremeceu.
— Não acredita que essa é outra classe de escravidão? Pensa conseguir sua
segurança dessa maneira?
Os olhos da Sophronia não duvidaram.
— Não seria escravidão se eu escolher o senhor e colocar as condições. E
sabe o que mais? Já teria conseguido se não tivesse sido por você.
— Cain não ia te dar o que queria.
— Está errado. Ele teria dado o que eu pedisse se você não o tivesse
batido.
Magnus pôs a mão sobre o respaldo do sofá de damasco rosa.
— Não há nenhum homem no mundo ao que respeite mais que a ele.
Salvou-me a vida, e faria qualquer coisa que me pedisse. É justo, honesto e
todos os que trabalham para ele sabem. Não pede a ninguém que faça o que
pode fazer ele mesmo. Os homens lhe admiram por isso, e eu também. Mas é
um homem duro com as mulheres, Sophronia. Nenhuma lhe chegou dentro.
— Ele me queria, Magnus. Se não nos tivesse interrompido essa noite,
teria-me dado o que lhe houvesse pedido.
Magnus se aproximou dela e tocou seu ombro. Ela retrocedeu
instintivamente embora seu tato fosse estranhamente consolador.
— E o que teria acontecido?— Perguntou Magnus — Teria podido
esconder esse calafrio que percorre seu corpo, cada vez que um homem te toca
o braço? Embora ele seja rico e branco, teria podido esquecer que também é
um homem?
Isso golpeava diretamente em seus pesadelos. Deu a volta e às cegas se
dirigiu até o escritório. Quando estava segura que sua voz não a delataria e
colocando sua expressão mais fria o olhou.
— Tenho trabalho para fazer. Se não puder me trazer estes mantimentos,
enviarei o Jim em seu lugar.
Ela pensou que não lhe responderia, mas finalmente ele encolheu os
ombros.
— Te trarei esses mantimentos — e sem mais, deu a volta e a deixou
sozinha.
Sophronia olhou para ele e por um momento sentiu vontade de segui-lo. A
sensação desapareceu. Magnus Owen podia ser o capataz da plantação, mas
ainda continuava sendo um homem negro e nunca poderia protegê-la.
10
Kit sentia todos os músculos do corpo doloridos, enquanto descia as
escadas na manhã seguinte. Em contraste com as calças do dia anterior, usava
um vestido de musselina de cor Violeta clara, e um delicado xale branco ao
redor dos ombros. Nas mãos, levava um chapéu de palha.
Miss Dolly a esperava pacientemente junto à porta da rua.
— Bom, ainda não está correta. Suba mais essa luva, querida e arrume bem
a saia.
Kit fez o que lhe pedia sem deixar de sorrir.
— Você realmente está bonita.
— Oh, obrigada, querida. Procuro ter um aspecto agradável, mas não é tão
fácil como antes. Já não tenho a juventude a meu favor, já sabe. Mas olhe para
você. Nem um só homem desta congregação será capaz de pensar como um
cavalheiro esta manhã quando te vir com esse aspecto de bolo de açúcar, e
mais, quererão te devorar.
— Sinto-me faminto só olhando-a — disse uma preguiçosa voz a suas
costas.
Kit colocou o chapéu de palha na cabeça, deixando as fitas soltas.
Cain estava apoiado no batente da porta da biblioteca. Estava vestido com
uma gravata cinza pérola, com calças e colete preto. Completava seu traje
elegante um laço bordô com pequenas linhas claras sobre sua camisa branca.
Seus olhos estudaram sua vestimenta tão formal.
— Onde vai?
— À igreja, certamente.
— À igreja! Não lhe convidamos a nos acompanhar!
Miss Dolly ficou com a mão na boca.
— Katharine Louise Weston! Estou escandalizada! Em que está pensando
para falar com o General de forma tão descortês? Eu lhe pedi que nos
acompanhe. Você deverá perdoá-la, General. Ela montou muito a cavalo ontem
e não pôde andar ao levantar-se da cama esta manhã, por isso está zangada.
— Entendo-o perfeitamente — a alegria de seus olhos fazia sua expressão
amigavelmente suspeita.
Kit continuou amarrando as fitas do chapéu.
— Não estou zangada — estava nervosa com seu olhar esmagador e não era
capaz de amarrar as fitas.
— Será melhor que você faça o laço antes que arranque as fitas, Miss
Calhoun.
— É obvio General — Miss Dolly estalou a língua olhando para Kit.
— Vejamos, querida. Erga o queixo e me permita.
Kit mansamente deixou que Miss Dolly ajudasse, enquanto Cain as olhava
divertido. Finalmente fez o laço corretamente e se encaminharam para subir na
carruagem.
Kit esperou que Cain tivesse ajudado Miss Dolly a subir antes de se dirigir
a ele.
— Aposto que é a primeira vez que põe um pé na igreja desde que está
aqui. Por que não fica em casa?
— Esta vez não. Não perderia esta sua reunião com a boa gente de
Rutherford por nada do mundo.
***

Pai Nosso que está nos céus...


A luz do sol entrava pelos sujos cristais das janelas derramando-se sobre
as cabeças das pessoas da congregação. Em Rutherford ainda falavam do
milagre que essas janelas tivessem escapado intactas à destruição semeada
pelo diabo, William Tecumseh Sherman.
Kit parecia incomodada, sentada com seu vestido elegante cor violeta, entre
os descoloridos vestidos e chapéus de antes da guerra das demais mulheres.
Tinha querido demonstrar seu bom aspecto, mas não tinha considerado quão
pobres eram todos ali. Não esqueceria outra vez.
Encontrou-se pensando sem dar-se conta em sua verdadeira igreja, a
estrutura simples de madeira, não longe de Risen Glory que servia como a
casa espiritual dos escravos das plantações dos arredores. Garrett e Rosemary
rechaçavam ir todas as semanas à igreja da comunidade branca de Rutherford,
de modo que Sophronia levava Kit com ela cada domingo.
Apesar de Sophronia ser também apenas uma menina, estava determinada a
que Kit ouvisse a Palavra.
Kit adorava essa igreja, e agora não podia ao menos comparar aquela
alegria com este serviço tão sério e tranquilo. Sophronia estaria ali agora
junto com Magnus e os outros negros.
Seu encontro com Magnus tinha sido comedido. Embora parecesse feliz de
vê-la, não demonstrou sua velha e animada diversão. Agora ela era uma
mulher branca adulta e ele um homem negro.
Uma mosca zumbiu perezosamente diante dela, e olhou de esguelha a Cain.
Tinha sua atenção fixa no púlpito, com a expressão tão inescrutável como
sempre. Estava contente que Miss Dolly estivesse sentada entre eles. Sentar-se
a seu lado teria arruinado a manhã.
Do outro lado da igreja havia um homem que não tinha a vista no púlpito.
Kit sorriu lentamente para Brandon Parsell, e logo inclinou a cabeça para que
a aba de seu chapéu de palha lhe cobrisse parte do rosto. Antes de partir da
igreja, trataria de lhe dar a possibilidade de falar com ela. Só dispunha de um
mês, e não podia desperdiçar o tempo.
O serviço acabou e os membros da reunião não puderam esperar para falar
com ela. Souberam que a escola para jovens damas de Nova Iorque a tinha
mudado, mas queriam ver por si mesmos.
— Mas Kit Weston, apenas olhe para você agora...
— Se converteu em uma verdadeira dama...
— Pelas estrelas, nem seu próprio pai te reconheceria...
Enquanto esperavam para saudá-la, enfrentavam um dilema. Reconhecê-la
queria dizer que também deviam receber a seu tutor ianque, o homem que as
principais famílias de Rutherford tinham evitado tão diligentemente.
Devagar, primeiro uma pessoa e depois outra se dirigiram a ele. Um dos
homens perguntou pela colheita de algodão. Delia Dibbs lhe agradeceu por sua
contribuição à Sociedade da Bíblia. Clement Jakes perguntou se acreditava
que choveria logo. As conversações eram reservadas, mas a mensagem era
clara. Era hora de que as barreiras contra Baron Cain caissem.
Kit sabia que mais tarde se justificariam, dizendo que só tinham falado com
ele por deferência a Kit Weston, mas suspeitava que isso era uma desculpa
para fazê-lo entrar em seu círculo, assim teriam um tema mais fresco para
falar. Não podiam imaginar que Cain não desejasse falar com eles.
De pé, um pouco afastada da igreja, uma mulher com ar sofisticado olhava
o que ocorria com ar divertido. De modo que este era o famoso Baron Cain...
a mulher era uma recém-chegada à comunidade, estava vivendo em Rutherford
há apenas três meses, mas tinha ouvido tudo sobre o novo proprietário de
Risen Glory. Nada do que tinha escutado, entretanto, tinha-a preparado para
sua primeira visão dele. Seus olhos foram desde seus ombros até seus
estreitos quadris. Era magnífico.
Verônica Gamble era sulina por nascimento, mas não por convicção.
Nascida em Charleston, casou-se com o pintor Francis Gamble mal tinha
dezoito anos. Durante os quatorze seguintes, passaram sua vida a cavalo entre
Florência, Paris e Viena, onde Francis cobrava preços astronômicos pelos
atrozes e lisonjeiros quadros às mulheres e meninos aristocratas.
Quando seu marido morreu no inverno passado, deixou Verônica em uma
situação cômoda, mas não rica. Por capricho tinha decidido retornar à
Carolina do Sul, à casa que seu marido tinha herdado de seus pais. Levaria
tempo para valorizar as coisas, e pensar no que fazer com sua vida.
Aos seus trinta e poucos anos, tinha uma excelente aparência. Seu cabelo
castanho acobreado penteado e preso para atrás caíalhe em brilhantes cachos
sobre o pescoço, e seus olhos verdes enviesados da mesma cor que sua
jaqueta Zouave da moda. Em qualquer outra mulher, o lábio inferior carnudo
teria tornado feia sua face, mas nela o resultado era sensual.
Embora considerassem Verônica uma mulher formosa, seu fino nariz era
muito grande, e seus traços muito angulares para ser uma beleza verdadeira.
Nenhum homem entretanto parecia notá-lo. Tinha inteligência e a qualidade
sedutora de olhar a vida de forma divertida, enquanto esperava ver o que lhe
proporcionava.
Caminhou até a porta da igreja, onde o reverendo Cogdell estava recebendo
às pessoas que saíam.
— Ah, senhora Gamble. Que agradável tê-la conosco esta manhã. Acredito
que você não conhece a senhorita Dorthea Calhoun. E este é o senhor Cain de
Risen Glory. Onde foi Katharine Louise? Eu gostaria que a conhecesse
também.
Verônica Gamble não tinha o mínimo interesse na senhorita Dorthea
Calhoun ou alguém chamada Katharine Louise. Mas estava muito interessada
no deslumbrante homem que estava de pé junto ao pastor, e inclinou
elegantemente a cabeça.
— Ouvi falar muito de você, senhor Cain. De algum modo esperava que
tivesse chifres.
Rawlins Cogdell parecia alarmado, mas Cain riu.
— Pois eu não fui tão afortunado de ouvir falar de você.
Verônica colocou a mão enluvada na curva de seu braço.
— O problema é facilmente remediável.
Kit escutou a risada de Cain mas a ignorou para concentrar sua atenção em
Brandon. Suas características regulares eram inclusive mais atraentes do que
se lembrava, e a mecha de cabelo que lhe caía sobre a franja quando falava
era elegante.
Não podia ser mais diferente de Cain. Brandon, era atento onde Cain era
grosseiro. E não devia se preocupar que tirasse sarro dela. Era um cavalheiro
do Sul dos pés à cabeça.
Ela estudou sua boca. O que sentiria ao beijá-lo? Com certeza seria
emocionante. Muito mais agradável que o assalto de Cain no dia que chegou.
Um assalto ao qual ela não tinha colocado nenhum impedimento.
— Pensei muito em você desde que nos vimos em Nova Iorque — disse
Brandon.
— Sinto-me adulada.
— Você gostaria de cavalgar comigo amanhã? O Banco fecha às três.
Poderia estar em Risen Glory em uma hora.
Kit o olhou através de suas pestanas, um efeito que tinha praticado à
perfeição.
— Eu gostaria muito de montar com o Senhor, senhor Parsell.
— Até amanhã então.
Com um sorriso, deu a volta para receber vários homens jovens que tinham
estado esperando pacientemente uma oportunidade para falar com ela.
Enquanto rivalizavam por sua atenção, ela observou Cain envolvido em
uma conversa com uma atraente mulher ruiva. Algo na maneira como a mulher
olhava para Cain a incomodou. Desejou que ele olhasse em sua direção para
vê-la rodeada de todos esses homens. Desgraçadamente não parecia prestar a
menor atenção.
Miss Dolly estava ocupada conversando com o reverendo Cogdell e sua
esposa Mary, que era sua familiar longínqua e quem a tinha recomendado
como dama de companhia. Kit compreendeu que os Cogdells pareciam cada
vez mais desconcertados. Desculpou-se e se dirigiu precipitadamente para
eles.
— Está pronta para ir, Miss Dolly?
— É obvio, querida. Não tinha visto o reverendo Cogdell e a sua querida
esposa Mary em anos. Uma reunião muito agradável, só escurecida pelos
desafortunados acontecimentos de Bull Run. Oh, mas isso é uma conversa de
velhos, querida. Nada que possa interessar a uma jovem como você.
Cain também devia pressentir o iminente desastre.
— Senhorita Calhoun, a carruagem está nos esperando.
— É obvio, General — disse Miss Dolly, e ofegando pressionou os dedos
em sua boca —. Eu... eu queria dizer Major, certamente. Sou uma boba.
Com as fitas revoando a seu redor, se dirigiu para a carruagem.
O reverendo Cogdell e sua esposa ficaram olhando-a afastar-se
boquiabertos de assombro.
— Ela pensa que sou o General Lee que vive disfarçado em Risen Glory —
disse Cain francamente.
Rawlins Cogdell começou a apertar suas finas e pálidas mãos com
agitação.
— Major Cain, Katharine, sinto muito. Quando minha esposa lhes
recomendou à senhorita Calhoun como dama de companhia, não tínhamos a
menor ideia … Oh, Deus querido, não sabíamos…
— É tudo por minha culpa — os pequenos olhos castanhos da Mary
Cogdell estavam repletos de ressentimento. — Tínhamos ouvido que era
totalmente indigente, mas não que tivesse problemas mentais.
Kit abriu a boca para protestar, mas Cain a cortou.
— Não precisa se preocupar com a senhorita Calhoun. Ela está
comodamente instalada.
— Mas Katharine não pode permanecer em Risen Glory com você nestas
circunstâncias — protestou o ministro. — Dolly Calhoun não é uma dama de
companhia correta. Hoje falou com mais de uma dúzia de pessoas aqui. Antes
desta tarde, todo mundo falará dela. Não é correto. Não é absolutamente
correto. As fofocas serão terríveis, senhor Cain. Você é um homem muito
jovem...
— Kit é minha meio-irmã — disse Cain.
— Mas não há nenhum vínculo de sangue entre vocês.
Mary Cogdell apertou mais seu livro de orações.
— Katharine, é uma moça inocente e certamente não compreende as
repercussões que isto terá. Simplesmente não pode permanecer em Risen
Glory.
— Aprecio sua preocupação, — respondeu Kit, — mas estive longe de casa
nos últimos três anos, e não tenho intenção de partir tão cedo.
Mary Cogdell olhou impotente para seu marido.
— Asseguro-lhes que Miss Dolly insiste no decoro — a surpreendeu Cain
dizendo —. Deveriam ter visto como fustigou Kit a vestir-se corretamente esta
manhã.
— Ainda assim...
Cain inclinou a cabeça.
— Se nos perdoarem, reverendo Cogdell, senhora Cogdell. Por favor, não
se preocupem mais por isso — agarrou Kit pelo braço e se dirigiram à
carruagem onde já estava Miss Dolly esperando-os.
Rawlins Cogdell e sua esposa os olharam se afastar.
— Isto vai trazer problemas — disse o ministro —. Posso sentir em meus
ossos.
***

Kit ouviu um rangido no cascalho e soube que Brandon tinha chegado.


Apressou-se a se olhar no espelho e viu uma jovem dama vestida com trages
de montar. Não havia calças de menino hoje, nem tampouco montaria
Tentação. Estava resignada a montar igual uma amazona.
Essa manhã, enquanto o céu tinha ainda o tom pálido rosado da aurora,
tinha cavalgado no lombo de Tentação. Intuía que esse passeio selvagem seria
muito diferente do desta tarde.
Tinha que admitir, no entanto, que adorava o novo traje de equitação,
apesar de não gostar de cavalgar com ele. De tecido vermelho com adornos
negros, a jaqueta se ajustava e acentuava sua cintura fina. A saia ampla caía
em dobras até os tornozelos e a bainha estava decorada com uma fita preta
frisada, formando um desenho.
Se assegurou que não tivesse um fio solto nem nada fora do lugar. As quatro
presilhas negras que fechavam a frente de sua jaqueta estavam bem abotoadas
e o chapéu estava corretamente colocado. Era negro, uma versão feminina dos
chapéus dos homens, porém mais baixo, suave e com uma pluma vermelha na
parte posterior. Arrumou o cômodo coque feito na nuca e poliu ainda mais as
botas.
Satisfeita e consciente de que nunca tinha estado melhor, pegou seu chicote
e saiu do quarto, sem pensar nas luvas de montar pretas que estavam em sua
caixa correspondente. Quando chegava ao vestíbulo, ouviu vozes provenientes
da varanda. Para sua consternação, viu Cain falando com Brandon.
De novo o contraste entre os dois homens foi brutal. Cain era muito mais
alto, mas não só isso os diferenciava. Brandon estava vestido corretamente,
com calças de montaria e uma jaqueta verde garrafa sobre sua camisa. A roupa
era velha e fora de moda, mas estava limpa e lhe caia perfeitamente.
Como ele, Cain estava sem chapéu, mas usava a camisa aberta no pescoço,
as mangas enroladas até os cotovelos e as calças manchadas de barro. Parecia
confortável, com uma mão no bolso e uma bota suja apoiada em um degrau
superior. Tudo em Brandon indicava cultura e educação, enquanto Cain se
parecia com um bárbaro. Seus olhos pousaram nele um momento mais, antes
de apertar o chicote com força e andar para a frente. Lady esperava
pacientemente, com a velha sela de montar de amazona que Kit tinha
encontrado no sotão devidamente preservada.
Kit dirigiu a Cain um olhar frio e a Brandon uma saudação sorridente. A
admiração em seus olhos lhe disse que os esforços que tomou por seu aspecto
não tinham sido em vão. Cain entretanto, parecia desfrutar de uma brincadeira
privada, a suas costas, não tinha dúvidas.
— Tome cuidado hoje, Kit. Lady pode ser realmente perigosa.
Ela apertou os dentes.
— Não se preocupe, estou segura de que poderei controlá-la.
Brandon fez intenção de ajudá-la a subir à sela, mas Cain foi mais rápido.
— Me permita.
Brandon deu a volta com patente indignação e se dirigiu a seu cavalo.
Kit colocou os dedos na mão estendida de Cain. Parecia forte e competente.
Uma vez acomodada na sela, olhou para baixo para vê-lo observar suas
incômodas saias.
— Agora quem é hipócrita? — perguntou ele em um sussurro.
Ela olhou para Brandon e lhe dirigiu um sorriso deslumbrante.
— Bem, senhor Parsell, não vá muito rápido para mim, de acordo? Viver no
Norte fez com que minhas habilidades para montar enferrujassem.
Cain soprou e se afastou, deixando-a com a agradável sensação que ela
havia dito a última palavra.
Brandon sugeriu que se dirigissem para Holly Grove, sua antiga fazenda.
Enquanto trotavam para sair do pátio, Kit o olhou como observava os campos
plantados em ambos os lados do caminho. Esperava que já estivesse fazendo
planos.
Os mesmos soldados que tinham respeitado Risen Glory haviam incendiado
Holly Grove. Depois da guerra, Brandon voltou para uma fazenda em ruínas, e
os campos queimados cobertos de sarças e ervas selvagens. Não tinha podido
pagar os impostos da terra, e tinham confiscado tudo. Agora tudo estava
parado.
Desmontaram perto de uma enegrecida chaminé. Brandon atou os cavalos,
agarrou o braço de Kit e se dirigiram para as ruínas da casa.
Tinham estado conversando agradavelmente durante o caminho, mas agora
ele se calou. O coração do Kit transbordava compaixão.
— Tudo se foi — disse ele finalmente — Tudo no que o Sul acreditava.
Tudo pelo que lutamos.
Ela contemplou a devastação. Se Rosemary Weston não tivesse acolhido a
esse subtenente ianque em sua cama, Risen Glory teria ficado também assim.
— Os ianques riem de nós, já sabe — continuou ele. — Riem de nossas
convicções do cavalheirismo e tomam nossa honra por brincadeira.
Arrebataram-nos nossas terras, e as sobrecarregam com impostos que sabem
que não podemos pagar se quisermos comer. A Reconstrução Radical é uma
maldição do Todo-poderoso contra nós — sacudiu a cabeça. — O que fizemos
para merecer tanta maldade?
Kit olhou com atenção para as chaminés gêmeas que pareciam grandes
dedos espectrais.
— É pela escravidão — disse ela. — Estão nos castigando por termos
seres humanos como escravos.
— Bobagens! Viveste com os ianques muito tempo, Kit. A escravidão é
uma ordem de Deus. Sabe o que diz a Bíblia.
Ela sabia. Desde pequena o tinha escutado na igreja, pregado do púlpito
por ministros brancos que os donos das plantações enviavam para lhes
recordar que Deus aprovava a escravidão. Deus tinha instruções detalhadas
das obrigações de um escravo para seu senhor. Kit lembrava de Sophronia
sentada a seu lado durante esses sermões, pálida e tensa, incapaz de assimilar
o que ouvia com o amoroso Jesus que conhecia.
Brandon a agarrou pelo braço e a levou por um caminho longe da casa.
Suas montarias estavam tranquilamente pastando em uma clareira perto das
chaminés. Kit caminhou até uma árvore caída há muito tempo durante uma
tempestade e se sentou sobre o tronco.
— Foi um erro te trazer aqui. — disse Brandon quando chegou junto a ela.
— Por quê?
— Isto faz as diferenças entre nós ainda mais aparentes, — ele olhou com
atenção as enegrecidas chaminés na distância.
— Faz? Nenhum de nós tem uma casa. Recorda que Risen Glory não é
minha. Ainda não, ao menos.
Dirigiu-lhe um olhar especulativo. Ela arrancou uma lasca com a unha.
— Só tenho um mês antes que Cain me obrigue a voltar para Nova Iorque.
— Não suporto a ideia de que viva na mesma casa com esse homem —
disse ele enquanto se sentava a seu lado no tronco. — Todos os que vieram
hoje ao Banco falavam da mesma coisa. Dizem que a senhorita Calhoun não é
uma dama de companhia adequada. Não fique a sós com ele. Está me
escutando? Não é um cavalheiro. Não gosto. Não gosto nada disso.
O interesse de Brandon a reconfortou.
— Não se preocupe. Tomarei cuidado. — e então deliberadamente inclinou
a cabeça para deixá-la junto à dele, entreabrindo os lábios. Não podia deixar
que terminasse esta excursão sem beijá-lo. Era algo que tinha que fazer para
apagar a marca de Cain de sua boca.
E de seus sentidos, sussurrou uma vozinha em seu interior.
Era certo. O beijo de Cain fazia com que lhe fervesse o sangue, e precisava
provar os lábios de Brandon Parsell para acender a faísca desse mesmo fogo.
Seus olhos ficavam escurecidos parcialmente pela aba de seu chapéu cinza,
mas podia vê-lo olhar sua boca. Esperou que aproximasse a cara, mas ele não
se moveu.
— Quero que me beije — disse ela finalmente.
Ele se escandalizou por seu atrevimento. Notou em seu cenho franzido. Sua
atitude a irritou e decidiu tomar a iniciativa.
Inclinou-se e soltou devagar o chapéu, observando enquanto deixava de
lado uma fina linha vermelha que tinha deixado em sua testa.
— Brandon — disse em um sussurro — tenho somente um mês. Não tenho
tempo para ser tímida.
Inclusive um cavalheiro não poderia ignorar tão atrevido convite. Ele se
inclinou para frente e pressionou a boca na sua.
Kit notou que seus lábios eram mais grossos que os de Cain. Também eram
mais doces, pensou, posto que permaneciam cortesmente fechados. Era um
beijo terno comparado com o que Cain lhe tinha dado. Um beijo agradável.
Seus lábios estavam secos, mas seu bigode parecia um pouco áspero.
Sua mente ia à deriva, e se forçou a voltar para a realidade levantando os
braços e pondo-os com entusiasmo ao redor de seu pescoço. Seus ombros não
eram um pouco estreitos? Devia ser sua imaginação, porque sabia que eram
sólidos. Ele continuou beijando-a pelas bochechas e pela mandíbula.
Seu bigode lhe raspava a pele sensível, e estremeceu.
Ele se retirou instintivamente.
— Sinto muito. Te assustei?
— Não, claro que não — ela tragou sua decepção. O beijo não havia
provado nada. Por que não podia ele deixar seus escrúpulos de lado e beijá-la
a fundo?
Mas um segundo depois de pensar repreendeu a si mesma. Brandon Parsell
era um cavalheiro, não um bárbaro ianque.
Ele baixou a cabeça.
— Kit, deve saber que eu não te faria mal por nada do mundo. Peço-te
desculpa por minha falta de contenção. As mulheres como você necessitam
carinho e estar protegidas dos aspectos mais sórdidos da vida.
Ela sentiu outra pontada de irritação.
— Não sou feita de cristal.
— Sei. Mas quero que saiba que se algo... for ocorrer entre nós, nunca te
degradaria. Incomodar-te-ia o menos possível com minhas próprias
necessidades.
Isso entendeu. Quando a senhora Templeton lhes falou da Vergonha de Eva,
disse que havia maridos que eram mais considerados com suas esposas, e
deviam rezar para casar-se com um deles.
De repente se sentiu contente de que os doces beijos de Brandon não
despertassem nenhum fogo nela. A resposta aos beijos de Cain só havia sido
ocasionada pela estranha emoção de voltar para casa.
Agora estava mais segura que nunca de que queria se casar com Brandon.
Tudo o que uma mulher podia desejar era um marido como ele.
A fez colocar o chapéu para não se queimar e a admoestou suavemente por
haver esquecido as luvas. Mimava-a tanto, que ela sorriu e flertou fazendo à
perfeição o papel de beleza sulina.
Recordou-se que ele estava acostumado a um tipo diferente de mulher, uma
silenciosa e reservada, como sua mãe e suas irmãs e tratou de refrear sua
língua normalmente impulsiva. De todos os modos conseguiu impressioná-lo
com suas opiniões sobre o sufrágio dos negros e a décima quinta emenda.
Quando viu dois pequenos sulcos entre seus olhos, soube que tinha que lhe
fazer entender.
— Brandon, eu sou uma mulher instruída. Tenho ideias e opiniões. Tenho
estado por minha própria conta durante muito tempo. Não posso ser alguém
que não sou.
Seu sorriso não fez desaparecer esses sulcos.
— Sua independência é uma das coisas que mais admiro em você, mas vai
levarei algum tempo para me acostumar a isso. Não é como outras mulheres
que conheci.
— E conheceu muitas mulheres? — brincou.
Sua pergunta o fez rir.
— Kit Weston, você é uma pícara.
Sua conversação no passeio até Risen Glory foi uma feliz combinação de
fofoca e lembranças. Prometeu ir tomar um lanche com ele, e que a
acompanhasse no domingo na igreja. Enquanto estava na varanda lhe dizendo
adeus, decidiu que esse dia tinha sido muito bom.
Desgraçadamente a noite não seria igual.
Miss Dolly a deteve antes do jantar.
— Preciso de seus doces e jovens olhos para revisar minha caixa de
botões. Tenho um de madrepérola em alguma parte e simplesmente devo
encontrá-lo.
Kit fez o que lhe pediu, embora precisasse de alguns minutos de solidão. A
procura foi acompanhada por conversa, gorjeios, e revoada. Kit soube sobre
quais botões tinham sido costurados sobre que vestidos, onde os tinha
costurado e com quem, e como tinha sido esse dia, que horas tinha acontecido,
assim como o que Miss Dolly tinha comido.
No jantar, Miss Dolly exigiu que todas as janelas estivessem fechadas,
mesmo que a noite estivesse quente, porque tinha escutado rumores de uma
erupção de difteria em Charleston. Cain dirigiu bem Miss Dolly e as janelas
permaneceram abertas, mas ignorou Kit até a sobremesa.
— Espero que Lady tenha se comportado bem hoje — lhe disse finalmente.
— A pobre égua parecia aterrada quando a montou com todas essas saias.
Pensei que se assustaria ao ver-se asfixiada.
— Não é tão divertido como acredita. Meu traje de montar é bonito e
elegante.
— E odeia colocá-lo. Não te culpo por isso. Essas coisas deveriam passar
à história.
Exatamente sua opinião.
— Bobagens. São muito cômodos. E uma dama sempre gosta de estar
bonita.
— É só minha imaginação ou seu sotaque fica mais carregado sempre que
trata de me irritar?
— Espero que não, Major. Isso seria uma descortesia de minha parte. Além
disso, está na Carolina do Sul, de modo que é você quem tem acento.
Ele sorriu.
— Um ponto para você. Desfrutou de seu passeio?
— Passei uma tarde maravilhosa. Não há muitos cavalheiros tão agradáveis
como o senhor Parsell.
Seu sorriso se evaporou.
— E onde foram, o senhor Parsell e você?
— A Holly Grove, sua antiga fazenda. Nós gostamos de recordar os velhos
tempos.
— Isso foi tudo o que fizeram? — perguntou ele de forma significativa.
— Sim, isso foi tudo — replicou ela. — Nem todos os homens se
comportam com uma jovem dama como você.
Miss Dolly franziu o cenho ante o tom áspero na voz de Kit.
— Está bricando com a sobremesa, Katharine Louise. Se já terminaste,
vamos a salinha para nos sentar e permitir ao General fumar seu cigarro.
Kit estava gostando muito de irritar Cain para sair.
— Ainda não terminei, Miss Dolly. Por que a senhora não vai? A mim não
incomoda a fumaça do cigarro.
— Bem, se não lhes importar... — Miss Dolly pôs seu guardanapo sobre a
mesa e se levantou, logo agarrou ao encosto da cadeira como se fosse para
criar coragem. — Agora, preste atenção a suas maneiras, querida. Já sei que
não é sua intenção, mas às vezes algo em seu tom parece cortante quando fala
com o General. Não deve permitir que seu espírito natural te impeça de lhe
oferecer o respeito apropriado — com seu dever cumprido, saiu do salão
como se estivesse voando.
Cain ficou olhando-a com um pouco de diversão.
— Devo admitir que Miss Dolly está começando a arraigar em mim.
— É realmente uma pessoa atroz, sabe, não é verdade?
— Admito que não sou nenhum Brandon Parsell.
— É obvio que não o é. Brandon é um cavalheiro.
Ele se apoiou em sua cadeira e a estudou.
— Comportou-se como um cavalheiro hoje com você?
— Claro que sim.
— E você? Se comportou como uma dama?
O prazer em sua graça se desvaneceu. Ele ainda não tinha esquecido aquela
carta horrível de Hamilton Woodward. Não lhe fez ver quanto a incomodava
que questionasse sua virtude.
— Certamente eu não fui uma dama. Que diversão haveria? Tirei a roupa e
lhe ofereci meu corpo. É isso o que quer saber?
Cain empurrou seu prato.
— Converteste-te em uma mulher muito formosa, Kit. Também é temerária.
É uma perigosa combinação.
— O senhor Parsell e eu falamos sobre política. Discutimos as
indignidades que o governo federal está cometendo na Carolina do Sul.
— Posso imaginar sua conversa perfeitamente. Suspirando pelo que os
ianques estão fazendo a seu pobre estado. Gemendo pelas injustiças da
ocupação... nada que o Sul precissasse, certamente. Tenho certeza que falou
sobre tudo isso.
— Como pode ser tão insensível? Pode ver os horrores da reconstrução por
toda parte ao seu redor. As pessoas foram obrigadas a sair de suas casas,
perderam suas economias. O Sul é como uma parte de cristal esmagado
debaixo de uma bota ianque.
— Deixa que te recorde uns poucos feitos dolorosos que parece haver
esquecido — ele agarrou a garrafa de brandy, mas antes de incliná-la para
deitá-la no copo, agarrou-a no pescoço — Não foi a União quem começou esta
guerra. As pistolas do Sul dispararam primeiro no Fort Sumter. Perderam a
guerra, Kit. E perderam mais de seiscentas mil vidas. Agora pretendem que
tudo seja igual a antes — a olhou com repugnância. — Falas dos horrores da
Reconstrução. Conforme eu vejo que o Sul deveria estar agradecido ao
Governo Federal por ter sido tão misericordioso.
— Misericordioso? — Kit ficou de pé de um salto — Atreve a chamar o
que está ocorrendo aqui de misericordioso?
— Tem lido a história. Diga-me isso você — Cain também ficou de pé. —
Nomeia a qualquer outro exército vitorioso que tenha tratado com tão pouca
severidade aos vencidos. Se isto tivesse ocorrido em qualquer outro país que
não fosse os Estados Unidos, teriam se executado milhares de homens por
traição depois do Appomattox, e milhares mais apodreceriam nos cárceres
agora mesmo. Em seu lugar, houve uma anistia geral e agora estão readmitindo
os estados do Sul na União. Meu Deus, a Reconstrução é um simples soco para
o que o Sul tem feito a este país.
Os nós dos dedos estavam brancos, enquanto agarrava o encosto da
cadeira.
— É uma pena que não tenha havido mais derramamento de sangue para te
satisfazer. Que tipo de homem é para desejar ao sul ainda mais miséria?
— Não lhe desejo mais miséria. Inclusive estou de acordo com a
indulgência da política federal. Mas deverá me perdoar por não mostrar uma
sincera indignação porque o povo do Sul tenha perdido suas casas.
— Quer cobrar sua libra de carne.
— Homens morreram em meus braços — disse ele em um sussurro — E
nem todos esses homens usavam uniformes azuis.
Ela soltou o encosto da cadeira e saiu depressa da sala. Quando chegou a
seu quarto, afundou-se na cadeira em frente a sua penteadeira.
Ele não entendia! Via-o tudo da perspectiva do Norte. Mas ainda, quando
enumerava mentalmente todas as razões pelas quais ele estava equivocado,
encontrou dificuldades por seu velho sentido de honradez. Ele parecia tão
triste. A cabeça tinha começado a lhe palpitar, e queria deitar-se, mas havia
um assunto que tinha adiado há muito tempo.
Essa noite, já tarde, quando todos estavam deitados, desceu à biblioteca e
ficou a estudar os livros nos quais Cain anotava todas as contas da plantação.
11
As semanas que se seguiram levaram um fluxo constante de visitantes. Em
outra época as mulheres teriam chegado a Risen Glory em elegantes landós,
vestindo seus melhores ornamentos. Agora, entretanto, chegavam em carretas
puxadas por cavalos de arado, ou sentadas nos assentos frontais de carroças
frágeis. Embelezadas com pobres vestidos e velhos chapéus, mas que usavam
tão orgulhosamente como sempre.
Com vergonha de mostrar o esbanjamento de seu guarda-roupa, Kit se
vestiu modestamente para suas primeiras visitas. Mas logo descobriu que seus
vestidos singelos decepcionavam às mulheres. Não faziam referência
continuamente ao vestido cor lilás que tinha usado para ir a igreja, com um
chapéu e conjunto em tafetá e cetim? Tinham ouvido as intrigas que contavam
sobre seus vestidos da cozinheira à grisalha vendedora ambulante de
caranguejos. Os rumores que o guarda roupa de Kit Weston tinha vestidos de
todas as cores. As mulheres se viam privadas dessa beleza, e estavam
desejosas de vê-la nela.
Uma vez que Kit o entendeu, não teve coragem para as decepcionar.
Diligentemente usou um vestido cada dia e às mais jovens, inclusive as
convidava a seu quarto para que pudessem vê-los com detalhe.
Entristecia-a compreender que seus vestidos agradavam mais a suas
visitantes que a ela mesma. Eram bonitos, mas eram um contínuo incômodo
com seus ganchos, cordões e babados que sempre se enganchavam nos móveis.
Desejava poder dar de presente o de musselina verde à jovem viúva que tinha
perdido seu marido em Gettysburg, e o de seda cor de caramujo, a Prudência
Wade, que tinha o rosto com marcas de varíola. Mas essas mulheres estavam
tão orgulhosas de serem pobres, que sabia que era melhor não lhes oferecer.
Nem todas suas visitas eram mulheres. Uma dúzia de homens de diversas
idades chegavam a sua porta todos os dias. Convidavam-na a passeios em
carruagem e a picnics, rodeavam-na à saída da igreja, e quase provocaram
uma briga para ver quem a acompanhava a uma conferência sobre frenologia
em Chautauqua. Ela conseguiu rechaçá-los sem ferir seus sentimentos lhes
dizendo que já tinha prometido ir com o senhor Parsell e suas irmãs.
Brandon estava cada vez mais atento, mesmo quando ela com frequência o
escandalizava. De qualquer maneira permanecia a seu lado, e com certeza
tinha a intenção de lhe pedir em casamento logo. Já tinha se passado a metade
do mês, e suspeitava que não se demoraria muito mais.
Tinha visto Cain poucas vezes, inclusive nas refeições, desde a noite de sua
inquietante conversa sobre a Reconstrução. A maquinaria para o moinho tinha
chegado e estavam ocupados guardando-a sob lonas no celeiro e abrigo até
que estivessem preparados para instalá-la. Sempre que estava perto, ficava
desconfortavelmente ciente disso. Flertava descaradamente com seus
admiradores masculinos, se sabia que a estava observando. Às vezes parecia
divertido, mas outras vezes uma emoção mais escura piscava através de seus
olhos, que ela achava inquietante.
Kit ficou sabendo através das fofocas que Cain tinha saído várias vezes
com a formosa Verônica Gamble. Verônica era uma fonte constante de mistério
e especulação por parte das mulheres locais. Embora tenha nascido na
Carolina, seu modo de vida exótico após seu matrimônio a convertia em uma
estrangeira. Os rumores eram que seu marido tinha pintado um quadro dela
nua, reclinada em um sofá, e que o tinha pendurado na parede de seu
dormitório, sem nenhum pudor.
Uma noite Kit desceu para o jantar e encontrou Cain no salão lendo um
Jornal. Fazia quase uma semana desde que tinha ido jantar, por isso se
surpreendeu ao vê-lo. Inclusive se surpreendeu mais ao lhe ver vestido tão
formalmente em Preto e branco, já que sabia que nunca se vestia assim para o
jantar.
— Vai sair?
— Lamento te decepcionar, mas jantaremos juntos esta noite — deixou o
Jornal. — Temos uma convidada para o jantar.
— Uma convidada? — Kit olhou com consternação seu vestido sujo e os
dedos manchados de tinta — por que não me avisaste?
— Não tive oportunidade.
O dia tinha sido um desastre. Sophronia tinha se comportado de forma
maníaca pela manhã, e tinham discutido por nada. Depois o reverendo Cogdell
e sua esposa tinham ido de visita. Não tinham parado de falar das fofocas que
circulavam sobre Kit por viver em Risen Glory sem uma dama de companhia
adequada, e lhe recomendaram que fosse viver com eles até que encontrassem
outra mais indicada. Kit estava tentando lhes assegurar que não havia nenhum
problema com Miss Dolly, quando sua acompanhante entrou na sala
assegurando que deveriam mandar uma boa provisão de ataduras para os
feridos do exército Confederado. Quando partiram, Kit ajudou Sophronia a
limpar o papel pintado em chinês da sala com casca de pão.
Depois, enquanto escrevia uma carta a Elsbeth, o tintero caiu, manchando
os dedos de tinta. Mais tarde foi dar um passeio.
Não tinha tido nem um instante para trocar-se para o jantar, e já que
pensava que só estaria em companhia do Miss Dolly, não tinha considerado
necessário colocar outro vestido. Miss Dolly a repreenderia, mas sempre a
repreendia, inclusive quando Kit estava impecavelmente vestida. De novo
olhou as mãos manchadas de tinta e a saia cheia de barro por ajoelhar-se para
liberar uma cria de pardal presa entre as sarças.
— Precisarei me trocar — disse no momento que Lucy aparecia pela porta.
— A senhorita Gamble está aqui.
Verônica Gamble entrou na sala.
— Olá, Baron.
Ele sorriu.
— Verônica, é um prazer voltar a vê-la.
Ela usava um elegante vestido de noite verde jade com um babado de cetim
cor bronze com cós negros. Quão mesmos delineavam o decote, oferecendo
um contraste contra sua pele pálida, opalescente de uma ruiva natural. O
cabelo usava em um sofisticado penteado de cachos e tranças, preso com um
broche em forma de meia lua. A diferença de aspecto entre as duas não podia
ser mais evidente, e Kit inconscientemente alisou a saia, embora não fizesse
nada para melhorá-lo.
Ela compreendeu que Cain estava olhando-a. Havia algo parecido à
satisfação em sua expressão. Quase parecia desfrutar comparando seu aspecto
desalinhado com o impecável de Verônica.
Miss Dolly entrou no salão.
— Não me avisaram que tínhamos companhia esta noite.
Cain fez as apresentações. Verônica respondeu graciosamente mas isso não
aliviou o ressentimento de Kit. Não era só uma mulher elegante e sofisticada,
mas que irradiava uma autoconfiança interior que Kit pensava que nunca
possuiria. A seu lado, Kit parecia inexperiente, torpe e pouco atraente.
Verônica, enquanto isso, estava conversando com Cain sobre o jornal que
tinha lido.
— ...que meu marido e eu fomos grandes partidários de Horace Greeley.
— O abolicionista? — Miss Dolly começou a tremer.
— Abolicionista e Diretor do jornal — respondeu Verônica. — Inclusive
na Europa admiram os editoriais do senhor Greeley apoiando a causa da
União.
— Mas minha querida senhorita Gamble... — Miss Dolly respirava com
dificuldade, como um peixinho. — Certamente eu entendi mal que você nasceu
em Charleston.
— Está certa senhorita Calhoun, mas de algum modo consegui me sobrepor
a isso.
— Oh eu, eu... — Miss Dolly pressionou as pontas dos dedos nas têmporas.
— Parece-me que desenvolvi uma dor de cabeça. Estou certa que não poderei
comer nem um bocado com esta dor. Acho que voltarei para meu quarto,
desculpem.
Kit observou consternada como abandonava a sala. Agora estava sozinha
com eles, por que Sophronia não lhe disse que a senhorita Gamble jantaria,
para ter pedido uma bandeja em seu quarto? Era horrível que Cain esperasse
que encontrasse a sua amante no jantar.
O pensamento lhe provocou uma dor no peito. Disse-se que era por que
estava indignada com sua propriedade.
Verônica se sentou no sofá enquanto Cain se sentava a seu lado em uma
cadeira estofada em verde e marfim. Deveria ter parecido ridículo em um
móvel tão delicado, mas parecia tão cômodo como se estivesse escarranchado
sobre Vândalo, ou no telhado de seu moinho de algodão.
Verônica contou a Cain uma desgraça cômica. Ele jogou a cabeça para trás
e riu mostrando seus dentes lisos e brancos. Os dois poderiam estar sozinhos,
pela atenção que demosntravam.
Começou a retirar-se, reticente a seguir olhando-os juntos.
— Irei ver se o jantar está pronto.
— Um segundo, Kit.
Cain se levantou da cadeira e caminhou para ela. Algo que viu em sua
expressão, a deixou cautelosa.
Seus olhos passearam sobre seu vestido enrugado. Depois subiram até seus
olhos. Ela começou a dar meia volta, mas ele a alcançou e colocou uma mão
em seu cabelo, perto de um de seus pentes de prata. Quando tirou a mão, tinha
entre seus dedos um raminho.
— Outra vez subindo em árvores?
Ela avermelhou. Ele a tratava como se tivesse nove anos e deliberadamente
a deixava em ridículo diante de sua sofisticada convidada.
— Vá e diga a Sophronia que retarde o jantar até que tenha tido tempo de
trocar esse vestido sujo — com um olhar desdenhoso, ele se virou para
Verônica — Deve perdoar a minha meio-irmã. Faz relativamente pouco tempo
que terminou a escola. Acredito que ainda não compreendeu todas as lições.
As bochechas de Kit arderam com mortificação, e palavras zangadas
borbulharam em seu interior. Por que estava fazendo isto? Nunca tinha se
preocupado com seus vestidos sujos ou seu cabelo emaranhado, sabia muito
bem. Ele amava o ar livre tanto como ela e não tinha paciência para as
formalidades.
Ela lutou por manter a compostura.
— Acredito que vai ter que me desculpar no jantar esta noite, senhorita
Gamble. Parece que eu também tenho dor de cabeça.
— Uma verdadeira epidemia — a voz de Verônica era claramente
zombadora.
Cain apertou a mandíbula teimosamente.
— Temos uma convidada. Com dor de cabeça ou não, espero que desça em
dez minutos.
Kit engasgou com sua raiva.
— Então o lamento, mas vai se decepcionar.
— Não trate de me desafiar.
— Não emita ordens que não pode impor — de algum modo conseguiu se
controlar até que saiu, mas uma vez que chegou ao vestíbulo, recolheu as saias
e pôs-se a correr. Quando chegava ao primeiro degrau, acreditou escutar o
som da risada de Verônica Gamble do salão.
Mas Verônica não estava rindo. Em seu lugar, estava estudando Cain com
grande interesse e um pingo de tristeza. De modo que assim eram as coisas.
Ah, bem...
Ela tinha esperado que sua relação se deslocaria além da amizade até a
intimidade. Mas agora via que isso não ocorreria em um futuro próximo.
Deveria ter sabido. Era um homem muito magnífico para ser tão singelo.
Sentiu um brilho de compaixão pela moça. Com toda sua arrasadora beleza,
ainda não sabia controlar sua mente, e menos a dos homens. Kit era muito
inexperiente para entender por que a tinha posto deliberadamente nesse apuro.
Mas Verônica sim sabia. Cain se sentia atraído pela garota, e não gostava.
Estava lutando contra essa atração levando a Verônica ali esta noite,
esperando que ao ver as duas mulheres juntas, se convenceria que gostava
mais de Verônica que de Kit. Mas não era assim.
Cain tinha ganho esse confronto. A jovem mal tinha podido controlar seu
caráter. De todas as formas, Kit Weston não era tola, e Verônica estava certa
que não havia dito sua última palavra.
Deu um toquinho com a unha no braço estofado do sofá, se perguntando se
devia permitir que Cain a utilizasse como um peão na batalha que liberava
contra si mesmo. Era uma pergunta tola, e a fez sorrir. É obvio que o
permitiria.
A vida era horrível ali e não estava em sua natureza ser ciumenta por algo
tão natural como o sexo. Além disso, tudo era incrivelmente divertido.
— Sua meia-irmã tem caráter — disse ela, só para remover o assunto.
— Minha meia-irmã precisa aprender submissão — colocou xerez em um
copo para ela e com uma desculpa a deixou sozinha.
Ela o ouviu subir os degraus de dois em dois. O som a excitou. Recordou-
lhe as gloriosas brigas que Francis e ela tinham, brigas que de vez em quando
acabavam fazendo amor com um feroz frenesi. Se só pudesse ver a cena que
estava a ponto de desenvolver-se acima...
Deu alguns goles em seu xerez, mais que contente de lhes esperar.
***

Cain sabia que estava se comportando mal, mas não lhe importava. Durante
semanas esteve mantendo-se afastado dela. Pelo que sabia, era o único homem
solteiro da comunidade que não dançava na sua água. Agora era o momento de
ter umas palavras. Não tinha levado Verônica ali para submetê-la a grosseria
de Kit.
Nem à sua própria.
Mas agora não lhe preocupava isso.
— Abre a porta.
Enquanto golpeava a porta com os nódulos, sabia que estava cometendo um
erro, subindo atrás dela. Mas se deixava que lhe desafiasse agora, perderia
qualquer possibilidade de mantê-la sob controle.
Disse-se que era por seu próprio bem. Ela era obstinada e tenaz, um perigo
para si mesma. Gostasse ou não, era seu tutor, o que significava que tinha a
responsabilidade de guiá-la.
Mas não se sentia como um tutor, sentia-se como um homem que está
perdendo um combate consigo mesmo.
— Vá embora!
Ele agarrou a maçaneta e entrou no quarto.
Ela estava apoiada na janela, os últimos raios de sol refletidos em seu
delicioso rosto na sombra. Era uma criatura selvagem, formosa e o tentava
além da razão.
Quando se virou, ele ficou congelado no lugar. Ela tinha desabotoado o
vestido, e as mangas caíam pelos ombros de modo que podia ver os círculos
suaves de seus seios visíveis por cima de sua camisa intima. Sua boca secou.
Ela não tratou de segurar o corpete como uma moça modesta deveria.
Em vez disso deu-lhe um olhar ardente.
— Saia do meu quarto. Não tem nenhum direito de entrar aqui.
Pensou na carta de Hamilton Woodward onde a acusava de ter seduzido um
de seus sócios. Quando Cain a recebeu, não tinha nenhuma razão para não
acreditar, mas agora a conhecia melhor. Tinha certeza que o que Kit lhe havia
dito de que tinha batido no bastardo, era realmente verdade. Só queria ter
certeza de que também evitou as atenções de Parsell.
— Não quero ser desobedecido — a olhou nos olhos.
— Então ladre suas ordens a outra pessoa.
— Tome cuidado, Kit. Já esquentei esse traseiro com umas palmadas uma
vez e não me incomodaria fazê-lo de novo.
Em vez de se afastar dele, ela teve o descaramento de dar um passo à
frente. A mão picava, e se encontrou de repente imaginando exatamente o
aspecto desse traseiro, nu debaixo de sua palma. Então se imaginou deslizando
a mão ao redor dessa curva... sem lhe machucar, desfrutaria com isso.
— Se quer saber o que se sente ao ter uma faca enfiada em sua barriga,
então ianque, faço-o.
Ele quase riu. Ultrapassava-a em mais de quarenta e cinco quilos, e
entretanto o pequeno gato montês tranquilamente o desafiava.
— Esqueceu algo — disse ele — É minha meia-irmã. Eu tomo as decisões
a seu respeito e você me obedece. Entendeu?
— Oh, entendi muito bem, ianque. Entendi que é um maldito asno arrogante!
Agora fora de meu quarto.
Quando apontou com um dedo para a porta, a tira de sua regata deslizou do
ombro oposto. A fina malha ficou enganchada no bico de seu seio, ficou por
um segundos enganchado nesse bico doce durante um momento, e então caiu
expondo inteiro o mamilo vermelho-escuro.
Kit o viu baixar o olhar um momento antes de sentir a corrente de ar frio
sobre sua carne. Olhou para baixo e conteve o fôlego. Agarrou a frente da
camisa e puxou para cima.
Os olhos de Cain estavam pálidos, da cor da fumaça, e sua voz se tornou
rouca.
— Eu gosto mais da outra forma.
À velocidade do raio, a batalha entre eles se transferiu a um novo cenário.
Sentiu os dedos trêmulos com a malha de sua camisa enquanto ele se
aproximava. Todos seus instintos de sobrevivência gritavam que abandonasse
o quarto, mas algo mais forte a impedia de mover-se.
Ele passou a seu lado e ficou detrás dela, lhe acariciando a curva do
pescoço com o polegar.
— É tão condenadamente bela, — sussurrou. — Agarrou as alças de sua
camisa e calmamente as pôs em seu lugar.
A pele picava.
— Não deveria...
— Eu sei.
Ele se inclinou para baixo e lhe jogou o cabelo para trás. Seu fôlego lhe
fazia cócegas na pele da clavícula.
— Não o faça... eu não gosto...
Ele suavemente mordeu a carne de seu pescoço.
— Mentirosa.
Ela fechou os olhos e permitiu que a apertasse contra seu peito. Sentiu o
ponto frio, úmido em seu pescoço onde sua língua havia tocado em sua carne.
Suas mãos subiram por suas costelas e logo, incrivelmente sobre seus
seios. Sua pele se tornou quente e fria ao mesmo tempo. Tremeu enquanto a
acariciava por cima da camisa, estremeceu pelo bem que se sentia e pela
loucura de lhe permitir tal intimidade.
— Desejei fazer isto desde que voltou — sussurrou ele.
Ela fez um som suave, desamparado quando ele colocou as mãos no interior
de seu vestido, no interior de sua camisa... e a tocou.
Não havia sentido nada tão bom em sua vida como essas mãos calosas em
seus seios, arqueou-se contra ele. Lhe acariciou os mamilos e ela gemeu.
Nesse momento bateram à porta.
Ela conteve o fôlego e se separou dele, subindo rapidamente o sutiã.
— Quem é? — ladrou Cain impacientemente.
Abriu a porta quase tirando-a das dobradiças.
Sophronia estava de pé do outro lado, com as maçãs do rosto pálidas em
alarme.
— O que você está fazendo em seu quarto?
A sobrancelha de Cain subiu.
— Isso é entre Kit e eu.
Os olhos ambarinos de Sophronia olharam o estado desalinhado de Kit e
suas mãos se converteram em punhos sobre a saia de seu vestido, mordeu o
lábio inferior tratando de calar todas as palavras que não queria dizer diante
dele.
— O senhor Parsell está em baixo — disse finalmente. A malha de sua saia
rangia entre seus punhos — Traz um livro para te emprestar. Deixei-o no salão
com a senhora Gamble.
Kit tinha os dedos rígidos agarrando firmemente seu sutiã. Devagar os
relaxou e assentiu a Sophronia. Então se dirigiu a Cain com tanta serenidade
como pôde conseguir.
— Pode convidar ao senhor Parsell a unir-se a nós para o jantar? Sophronia
pode me ajudar a terminar de me vestir. Descerei em poucos minutos.
Seus olhos se enfrentaram, os tempestuosos violetas chocando-se com o
cinza invernal. Quem era o ganhador e quem o perdedor na batalha que tinham
começado? Nenhum sabia. Não havia nenhuma solução, nenhuma catarse
curativa. Em seu lugar seu antagonismo fluía inclusive mais poderosamente
que antes.
Cain saiu sem uma palavra, mas sua expressão indicava claramente que não
tinha terminado com ela.
— Não diga uma palavra! — Kit começou a tirar o vestido rasgando uma
costura com sua estupidez. Como tinha podido deixá-lo que a tocasse assim?
Por que não o empurrou para longe? — Necessito o vestido do final do guarda
roupa. Esse de musselina.
Sophronia não se moveu, de modo que Kit o tirou do guarda-roupa e o
jogou sobre a cama.
— O que te ocorreu? — suspirou Sophronia — Kit Weston, te eduquei para
que não convide a seu dormitório um homem que não é seu marido.
Kit se incomodou.
— Eu não o havia convidado!
— E aposto que tampouco lhe ordenou que saisse.
— Equivoca-te. Estava zangado comigo porque queria que descesse para
jantar com ele e a senhora Gamble, e eu me neguei.
Sophronia assinalou com o dedo o vestido sobre a cama.
— Então para que quer isso?
— Brandon está aqui de modo que mudei de opinião.
— Por isso vais pôr esse vestido? Para o senhor Parsell?
A pergunta de Sophronia a pegou despreparada. Para quem queria colocar
esse vestido?
— Certamente é para o Brandon e para a senhora Gamble. Não quero
parecer uma tola diante dela.
Os rígidos principios de Sophronia se adoçaram quase imperceptivelmente.
— Pode mentir para mim, Kit Weston, mas não a ti mesma, se assegure bem
que não está fazendo isto para o Major.
— Não seja ridícula.
— Deixe isso para a senhora Gamble, querida — Sophronia foi até a cama
e agarrou o vestido de musselina. Ao mesmo tempo repetiu as palavras que
Magnus lhe havia dito só umas semanas antes —. Ele é um homem duro com as
mulheres. Há algo frio como o gelo em seu interior. Qualquer mulher que
conseguir derreter esse gelo, terminará com um mau caso de congelamento.
Passou o vestido pela cabeça de Kit.
— Não é necessário que me diga tudo isso.
— Quando um homem como ele vê uma mulher formosa, só vê um corpo
que lhe dará prazer. Se uma mulher o compreender, como espero seja o caso
da senhora Gamble, pode lhe usar para o mesmo fim e não haverá sentimentos
dolorosos mais tarde. Mas se uma mulher é tola o bastante para se apaixonar,
só pode acabar com o coração destroçado.
— Isso não tem nada a ver comigo.
— Não? — Sophronia lhe abotoou o vestido — A razão pela qual brigam
tanto é porque os dois são iguais.
— Eu não sou como ele! Você mais que ninguém sabe quanto o odeio.
Possui o que mais quero nesta vida. Risen Glory. É onde pertenço. Morrerei
antes de permitir que fique, vou casar—me com Brandon Parsell, Sophronia. E
logo que possa, comprarei de novo esta plantação.
Sophronia começou a lhe escovar o cabelo.
— E acredita que o Major tem vontade de vender?
— Oh, ele venderá, com certeza. É só questão de tempo.
Sophronia começou a trançar seu cabelo, mas Kit sacudiu a cabeça. Usaria-
o solto esta noite, com apenas os pentes de prata para prender. Tudo nela
devia ser tão diferente de Verônica Gamble como fosse possível.
— Não pode ter certeza que ele venderá — disse Sophronia.
Kit não lhe confessou suas saídas noturnas a estudar os livros de
contabilidade, nem suas muitas horas somando e subtraindo quantidades. Não
lhe tinha levado muito tempo para descobrir que Cain havia extrapolado com
os gastos. Risen Glory e seu moinho podiam estar por um fio. O menor
contratempo podia fazer com que tudo viesse abaixo.
Kit não sabia muito sobre moinhos, mas sabia sobre algodão. Sabia sobre
inesperadas chuvas de granizo, sobre furacões e secas, sobre insetos que
comiam as cápsulas até não deixar nada. No que ao algodão concernia, o
desastre ia vir mais cedo ou mais tarde, e quando ocorresse, ela estaria
preparada. Então compraria a plantação a um preço justo.
Sophronia estava olhando-a atentamente, sacudindo a cabeça.
— O que acontece?
— Realmente vais usar esse vestido para o jantar?
— Não é maravilhoso?
— É adequado para uma festa, mas não para um jantar em casa.
Kit sorriu.
— Eu sei.
O vestido tinha sido tão extravagantemente caro que Elsbeth tinha
protestado. Tinham discutido, e lhe havia dito que podia comprar vários mais
modestos pelo preço desse. Além disso era muito vistoso, disse-lhe, tão
incrivelmente formoso que ainda a mulher mais recatada — que não era o caso
de Kit — chamaria muitíssimo a atenção, e isso ficava mal visto em uma
jovem dama.
Tais sutilezas não tinham feito Kit mudar de ideia. Ela só sabia que era
glorioso, e queria tê-lo.
A sobressaia do vestido era uma nuvem de organdy drapeada, que ondeava
sobre o cetim branco bordado com fios de prata. Umas contas de cristal
minúsculas cobriam o sutiã, brilhante como a neve da noite sob um céu
estrelado de inverno. Mais contas adornavam a saia até a prega.
O decote era baixo, caindo elegantemente dos ombros. Deu uma olhada
para baixo e viu que os topos de seus seios expostos ainda estavam rosadas
pelas mãos de Cain. Afastou o olhar e fitou o colar que combinava com o
vestido, uma gargantilha de contas de cristal que pareciam bolinhas de gelo
fundindo-se em sua pele.
O ar ao seu redor parecia ranger quando se movia. Calçou sapatilhas de
cetim com salto redondo, que já tinha usado na festa de Templeton. Eram cor
de casca de ovo, em vez do branco brilhante do vestido, mas não lhe importou.
— Não se preocupe Sophronia. Tudo vai ficar bem — lhe deu um beijo
rápido na bochecha e caminhou para abaixo, com o vestido brilhando ao redor
como uma nuvem cristalina de gelo e neve.
***

O rosto liso de Verônica não denunciou seus pensamentos quando Kit entrou
no salão.
De modo que a gatinha tinha decidido brigar. Não lhe surpreendia.
O vestido era extravagantemente inoportuno para a ocasião e incrivelmente
maravilhoso. O branco virginal era um marco perfeito para a intensa beleza da
moça. O senhor Parsell que tão descaradamente tinha aparecido para o jantar,
parecia aturdido pela aparição. Baron parecia uma nuvem de tempestade.
Pobre homem. Teria sido melhor que a tivesse deixado com seu vestido
sujo e enrugado.
Verônica se perguntou o que teria ocorrido entre eles lá em cima no quarto.
O rosto de Kit parecia ruborizado e Verônica observou uma pequena marca
vermelha em seu pescoço. Não tinham feito amor, disso tinha certeza. Cain
ainda tinha o aspecto de uma besta a ponto de saltar.
Verônica se sentou ao lado de Cain durante o jantar, com Kit do outro lado
da mesa e Brandon a seu lado. A comida estava deliciosa: Jambalaya
acompanhada por empada de ostras cobertas de molho curry de pepino,
bolacha de ervilhas verdes condimentadas com hortelã, e de sobremesa, um
delicioso bolo de cereja. Verônica tinha certeza de que foi a única que
desfrutou da comida.
Foi excessivamente atenta com Baron durante todo o jantar. Inclinava-se
para ele e lhe contava histórias divertidas. Colocava a mão ligeiramente sobre
seu braço e o apertava de vez em quando com deliberada intimidade.
Ele dedicou sua total atenção. Se não estivesse a par do que ocorria, teria
pensado que ele não estava consciente das risadas apagadas que chegavam do
outro lado da mesa.
Depois do jantar, Cain sugeriu que tomassem brandy no salão junto às
mulheres em lugar de na mesa. Brandon assentiu com mais impaciência que
cortesia. Como durante todo o jantar.
Cain mal tinha podido esconder seu aborrecimento pela presença de
Brandon, enquanto Brandon não tinha podido evitar ocultar seu desprezo por
Cain.
No salão, Verônica tomou deliberadamente assento no sofá junto a Kit,
embora sabia que a garota lhe havia tomado antipatia. Kit foi amável, e
bastante divertida quando começaram a conversar. Tinha lido muito por ser tão
jovem, e quando Verônica lhe disse que lhe emprestaria um escandaloso livro
de Gustave Flaubert que acabava de ler, Brandon lhe dirigiu um olhar de total
desaprovação.
— Não aprova que Kit leia Madame Bovary, senhor Parsell? Então
possivelmente seja melhor que fique em minha estante no momento.
Cain olhou para Brandon com diversão.
— Vamos, senhor Parsell, com certeza você não tem a mente tão estreita
para se opor que uma jovem e inteligente dama melhore seu intelecto. Ou sim
o é, Parsell?
— Certamente que não o é — disse Kit com muita precipitação — O senhor
Parsell é um dos homens mais progressistas que conheço.
Verônica sorriu. Sem dúvida uma noite realmente divertida.
***

Cain atravessou o vestíbulo e se encaminhou para a biblioteca. Sem


incomodar-se em acender o abajur do escritório, tirou a jaqueta e abriu a
janela. Fazia um tempo que os convidados partiram e Kit se desculpou para
retirar-se imediatamente depois. Cain deveria subir e dormir um pouco, mas
sabia que não poderia dormir. Muitas lembranças antigas apareceram para
assombrá-lo esta noite.
Olhou para a escuridão lá fora, sem ver nada na realidade. Gradualmente o
cantos dos grilos e o grito suave de uma coruja no celeiro, voltaram-se menos
reais que as amargas vozes do passado.
Seu pai Nathaniel Cain, foi o filho único de um rico comerciante da
Philadelphia. Viveu na mesma mansão de pedra cor parda em que nasceu, e foi
um competente e excepcional homem de negócios. Tinha quase trinta e cinco
anos quando se casou com Rosemary Simpson de dezesseis. Ela era muito
jovem, mas seus pais estavam ansiosos por livrar-se de uma filha tão irritante,
especialmente com um solteiro tão rico.
Desde o começo o matrimônio foi um inferno. Ela odiava sua gravidez, e
não teve nenhum interesse no filho que nasceu exatamente nove meses depois
de sua noite de bodas, e seguiu desprezando a seu carinhoso marido.
Durante anos o ridicularizou em público e o humilhou em particular, mas
ele nunca deixou de amá-la.
Ele culpou a si mesmo pela situação. Se não a tivesse deixado grávida tão
cedo, certamente teria sido mais atenciosa. Enquanto passavam os anos,
deixou de culpar a si mesmo por suas infidelidades e centrou toda a ira no
menino.
Levou-lhe quase dez anos a dilapidar sua fortuna. E então o abandonou por
um de seus sócios.
Baron tinha observado tudo, um menino solitário, desconcertado. Nos
meses que seguiram ao abandono de sua mãe, ele se manteve à margem
olhando em vão, seu pai consumir-se por sua obsessão doentia por sua esposa
desleal. Imundo, sem barbear, afogado em álcool, Nathaniel Cain se encerrou
no interior da solitária mansão, decompondo-se e construindo a fantasia de
uma vida com sua esposa que não pôde ter.
Só uma vez o moço se rebelou. Em um ataque de ira, vomitou todo seu
ressentimento contra a mãe que os tinha abandonado. Nathaniel Caín lhe
golpeou até que o deixou com o nariz sangrando e os olhos inchados. Mais
tarde, não pareceu recordar o que tinha acontecido.
A lição que Cain aprendeu de seus pais foi dura e nunca a tinha esquecido.
Tinha aprendido que o amor era uma debilidade que enlouquecia e pervertia.
Tampouco se permitia afeiçoar-se com nada. Dava de presente os livros
uma vez lidos, vendia os cavalos antes de sentir-se muito apegado a eles...
Apoiado na janela da biblioteca de Risen Glory olhando para a noite
quente e tranquila sem ver nada, continuou pensando em seu pai, sua mãe... e
Kit Weston.
Encontrou um pequeno alívio no fato de que grande parte das emoções que
despertava eram de aborrecimento. Mas lhe incomodava que fosse capaz de
lhe fazer sentir algo. Desde aquela tarde que tinha entrado na casa, com aquele
véu, misteriosa e incrivelmente formosa, não tinha podido tirá-la de sua mente.
E hoje quando lhe tinha acariciado os seios, soube sem dúvida nenhuma que
nunca tinha desejado dessa maneira a uma mulher.
Deu uma olhada em seu escritório. Seus papéis estavam igualmente
desordenados esta noite, de modo que ela não tinha estado ali quando ele saiu
ao estábulo para verificar os cavalos. Certamente deveria ter fechado sob
chave os livros de contabilidade e a caderneta de economias depois de
descobrir que ela bisbilhotava em seu escritório, mas havia sentido uma
sensação de perversa satisfação ao testemunhar sua falta de honra.
Seu mês estava a ponto de acabar. Se tomava em conta o curso dessa noite,
logo se casaria com o idiota do Parsell. Antes que isso ocorresse, ele tinha
que encontrar a maneira de liberar-se desse misterioso poder que ela exercia
sobre ele.
Se só soubesse como.
Escutou um som suave chegar do vestíbulo. Ela estava vagabundeando esta
noite outra vez e ele não estava de humor para isso. Caminhou pelo tapete e
agarrou o pomo.
Kit se virou quando a porta da biblioteca se abriu. Cain estava de pé ao
outro lado. Tinha um aspecto áspero, elegante e em certa maneira indômito.
Ela usava somente uma fina camisola. Cobria-a do pescoço até os pés, mas
depois do que tinha ocorrido entre eles em seu dormitório se sentia exposta.
— Insônia? — ele falou alargando a palavra.
Os pés descalços e o cabelo solto a faziam sentir-se muito jovem,
especialmente depois de ver essa noite Verônica Gamble. Desejou pelo menos
ter colocado suas sapatilhas antes de ter descido.
— Eu... não comi quase nada no jantar. Tinha fome, e desci para ver se
tinha sobrado algo do bolo de cerejas.
— Não me importaria comer uma parte. Olharemos juntos.
Embora ele falasse em um tom casual, sentiu que tinha algo calculado em
sua expressão, e desejou poder lhe impedir de lhe acompanhar à cozinha.
Deveria ter ficado em seu quarto, mas tinha comido pouco no jantar, e
esperava poder tomar algo que lhe ajudasse a dormir.
Patsy, a cozinheira, tinha deixado o bolo coberto com um pano em cima da
mesa. Kit cortou um pedaço pequeno para si e passou o prato para Cain. Ele
agarrou um garfo e se aproximou da janela. Quando ela se sentou à mesa, ele
abriu a janela para deixar entrar a brisa da noite, depois se apoiou no batente e
começou a comer.
Depois de comer alguns pedaços, afastou o bolo.
— Por que perde seu tempo com Parsell, Kit? É um tonto.
— Sabia que diria algo desagradável dele — cravou com o garfo na borda
do bolo — Apenas se comportou civilizadamente com ele.
— Enquanto você, com certeza, foi um modelo de amabilidade com a
senhora Gamble.
Kit não queria falar de Verônica Gamble. A mulher a confundia. Kit a
odiava, embora também gostasse. Verônica tinha viajado por toda parte, tinha
lido de tudo e se relacionou com gente fascinante. Kit poderia ter passado
horas falando com ela.
Sentia o mesmo tipo de confusão quando estava com Cain.
Brincou com uma das cerejas.
— Conheço o senhor Parsell desde menina. É um homem estupendo.
— Muito estupendo para ti. E isso é um elogio, assim guarde as garras.
— Deve ser uma espécie de elogio ianque.
Ele se moveu da janela, e as paredes da cozinha pareceram abater-se sobre
ela.
— Pensa de verdade que esse homem te permitiria montar a cavalo com
calças? Ou passear pelos bosques com vestidos velhos? Pensa que te deixará
ficar deitada em um sofá com a cabeça de Sophronia em seu colo, ensinar
Samuel como disparar, ou flertar com cada homem que veja?
— Uma vez que me case com Brandon não flertarei com ninguém.
— Flertar está em sua natureza, Kit. Às vezes nem sequer acredito que
esteja consciente de fazê-lo. Comentaram-me que as mulheres sulinas
adquirem essa característica desde o berço, e não acredito que você seja a
exceção.
— Obrigada.
— Não é um elogio. Precisa encontrar outro homem para se casar.
— É curioso. Não recordo ter pedido sua opinião.
— Não, mas seu futuro marido deverá me pedir permissão... se é que quer
fazer uso de todo seu dinheiro.
O coração de Kit deu um tombo. A obstinação na mandíbula de Cain a
assustou.
— Isso só é uma formalidade. Dará o consentimento ao que eu escolher.
— Acredita nisso?
O bolo se coagulou no estômago de Kit.
— Não brinque com isto. Quando o senhor Parsell lhe pedir permissão para
casar-se comigo, a dará.
— Não cumprirei com minha responsabilidade como seu tutor se estou
convencido que comete um engano.
Ela ficou de pé de um salto.
— Estava pensando em sua responsabilidade de tutor esta noite em meu
dormitório quando... quando me acariciou?
Um chiado de eletricidade correu entre eles.
Ele a olhou, e devagar negou com a cabeça.
— Não, não pensava nisso.
A lembrança de suas mãos em seus seios era muito recente e ela desejou
não havê-lo mencionado. Afastou-se dele.
— Quanto ao Brandon, não se preocupe. Sei o que faço.
— Ele não se importa com você. Nem sequer gosta.
— Está errado — Te deseja, mas não te aprova. É difícil conseguir dinheiro
no Sul. O que lhe interessa de ti é seu fundo fiduciário.
— Isso não é certo — sabia que Cain tinha razão, mas nunca o
reconheceria. Devia assegurar-se de qualquer forma que aprovasse esse
matrimônio.
— Te casar com esse pomposo bastardo seria o maior engano de sua vida
— disse ele finalmente — E eu não vou tomar parte nisso.
— Não diga isso!
Mas enquanto olhava esse rosto implacável, sentiu Risen Glory afastando-
se dela. O terror que tinha estado forjando-se toda a noite chegou finalmente.
Seu plano... seus sonhos. Tudo se desvanecia. Não podia deixar que isso
acontecesse.
— Tem que deixar que me case com ele. Não tem nenhuma opção.
— É obvio que tenho uma maldita opção.
Ela ouviu sua voz vir de longe, quase como se não pertencesse a ela.
— Não queria te contar isto, mas... molhou os lábios ressecados — A
relação entre o senhor Parsell e eu progrediu... muito longe. Tem que haver um
casamento.
Tudo pareceu como em um sonho. Observou o momento em que ele
compreendeu suas palavras. Os traços de seu rosto se tornaram duros e
inexoráveis.
— Deu-lhe sua virgindade.
Kit assentiu com a cabeça, de forma lenta e instável.
Caín ouviu um rugido dentro de sua cabeça. Um grito de ultraje atroz!
Ressonou em seu cérebro, lhe rasgando a pele. Nesse momento, odiou-a.
Odiou-a por não ser o que ele queria que fosse... selvagem e pura. Pura para
ele.
O eco quase esquecido da risada histérica de sua mãe ressonava em sua
cabeça enquanto saía da sufocante cozinha, à tormenta exterior.
12
Magnus conduzia a carruagem da igreja para casa com Sophronia a seu lado
e Samuel, Lucy e Patsy detrás. Quando abandonavam a igreja, tinha tratado de
falar com Sophronia, mas ela tinha sido brusca e ele não quis insistir.
A volta de Kit a incomodava, embora ele não entendia porquê. Havia algo
muito estranho nessa relação.
Magnus a olhou. Estava sentada a seu lado como uma formosa estátua. Já
estava cansado de todos os mistérios que a rodeavam. Cansado de seu amor
por ela, um amor que estava lhe trazendo mais miséria que felicidade. Pensou
em Deborah Williams, a filha de um dos homens que trabalhavam no moinho
de algodão. Deborah lhe tinha deixado claro que gostaria de seus cuidados.
Maldita seja! Ele estava preparado para assentar-se. A guerra tinha
acabado, e tinha um bom trabalho. Estava contente com seu emprego de
capataz em Risen Glory, e de sua pequena e limpa casa ao lado da horta. Seus
dias de bebedeiras e mulheres fáceis tinham acabado. Queria uma esposa e
filhos.
Deborah Watson era bonita. Também tinha um caráter doce, a diferença do
caráter azedo de Sophronia. Sem dúvida seria uma boa esposa. Mas em lugar
de animá-lo, a ideia fazia com que se sentisse inclusive mais infeliz.
Sophronia não lhe sorria frequentemente, mas quando o fazia, era como ver
sair um arco íris. Ela lia periódicos e livros e entendia de coisas que Deborah
jamais poderia. Tampouco tinha ouvido Deborah cantar enquanto trabalhava,
como Sophronia estava acostumada fazê-lo.
Observou uma carruagem carmesim e negra vindo para eles. Era muito nova
para pertencer a algum dos locais. Provavelmente um nortista.
Certamente um aventureiro.
Sophronia se esticou e ele olhou mais fixamente o veículo. Quando se
aproximou reconheceu ao condutor como James Spence, o proprietário da
nova mina de fosfato. Magnus não tinha tido nenhum contato com ele, mas pelo
que tinha escutado, era um bom homem de negócios. Pagava bons salários e
não enganava a seus clientes. Mas Magnus não gostava, provavelmente porque
parecia que Sophronia sim.
O que Magnus via ? Que Spence era um homem de aparência agradável,
usava um chapéu de castor bege, que se levantava nesse momento, revelando
uma cabeça com um cabelo grosso negro partido no meio, e evidentemente
bem cortado.
— Bom dia, Sophronia — disse —. Um dia agradável, não?
Nem sequer olhou aos outros ocupantes.
— Boas, senhor Spence.
Sophronia respondeu com um sorriso aberto que fez Magnus rilhar os
dentes, desejando sacudí-la.
Spence voltou a colocar o chapéu, a calesa continuou seu caminho e
Magnus recordou que esta não era a primeira vez que Spence mostrava
interesse em Sophronia. Tinha visto os dois conversando um dia que foi a
Rutherford fazer compras.
Suas mãos apertaram involuntariamente as rédeas. Era hora de que tivessem
uma conversa.
A oportunidade lhe chegou essa tarde, sentado junto a Merlín na varanda
dianteira da casa, desfrutando de seu dia de feriado escolar. Uma piscada azul
na horta chamou sua atenção. Sophronia com um vestido azul, caminhava entre
as cerejeiras, observando os ramos altos e provavelmente tratando de decidir
se as frutas estavam já amadurecidas ou devia deixar para outro dia.
Levantou-se e caminhou em sua direção. Com as mãos nos bolsos, entrou na
horta.
— Poderia também deixar que os pássaros desfrutem das cerejas — disse
ao chegar a seu lado.
Não lhe tinha ouvido chegar, e se sobressaltou.
— Pode-se saber o que faz, tratando de me assustar assim?
— Não trato de te assustar. Suponho que é meu dom natural de andar
ligeiro.
Mas Sophronia não pensava responder a sua brincadeira.
— Vai embora. Não quero falar contigo.
— Pois sinto muito, porque eu quero falar contigo de toda forma.
Lhe deu as costas e começou a andar para a casa. Com poucos passos
rápidos, plantou-se diante dela.
— Podemos falar aqui na horta — ele manteve sua voz tão agradável como
pôde — ou pegue meu braço, e vamos a minha casa, ali pode te sentar na
cadeira de balanço da varanda e escutar o que tenho a te dizer.
— Me deixe.
— Quer falar aqui? Parece-me bem.
Ele a agarrou pelo braço e a conduziu para o nodoso tronco da macieira
detrás dela, utilizando seu corpo para bloquear qualquer possibilidade que ela
tivesse para escapulir-se dele.
— Está te comportando como um tonto, Magnus Owen — seus olhos
dourados ardiam com um brilhante fogo — A maioria dos homens já teriam
captado a indireta. Eu não gosto de você. Quando vai colocar isso em sua
cabeça dura? Acaso não tem orgulho? Não te incomoda ficar se arrastando
atrás de uma mulher que não quer nada contigo? Não sabe que rio de ti assim
que me dá a costas?
Magnus se estremeceu mas ficou onde estava.
— Pode rir de mim tudo o que quiser, mas meus sentimentos por você são
sinceros, e não me envergonho disso — ele deixou repousar a palma da mão
no tronco perto de sua cabeça — Além disso é você quem deveria
envergonhar-se. Você, que se senta na igreja e canta louvores a Jesus, e depois
assim que sai pela porta, a primeira coisa que faz é olhar com olhos
calculadores a James Spence.
— Não trate de me julgar, Magnus Owen.
— Esse nortista pode ser rico e arrumado, mas não é seu tipo. Quando vai
deixar essas bobagens, e ver realmente o que te convém?
As palavras de Magnus doíam em Sophronia mas não ia deixar que ele
soubesse. Em seu lugar, moveu a cabeça de maneira provocadora e se recostou
no tronco da árvore. Ao mesmo tempo, empurrou seus seios para ele tanto
como pôde.
Chegou-lhe um golpe de vitória quando lhe observou respirar
profundamente e devorá-la com o olhar. Já era hora que lhe castigasse por
tratar de interferir em sua vida, e pensava fazer da maneira que mais doeria.
Chegou-lhe uma sensação de tristeza ao ter que lhe causar dor. A mesma dor
que notava nele, quando esses olhos escuros a olhavam ou falava como agora.
Tratou de combater essa debilidade.
— Está com ciúmes, Magnus? — ela colocou a mão sobre seu braço e
apertou a carne cálida e dura debaixo de seu cotovelo. Tocar um homem
geralmente lhe provocava um sentimento repulsivo, sobre tudo se era um
branco, mas este era Magnus e não lhe assustava especialmente — Quer que
sorria para você no lugar dele? É isso o que te incomoda, capataz?
— O que realmente me incomoda — disse ele com voz rouca — é ver-te
lutar contigo mesma, e não poder fazer nada a respeito.
— Não tenho nenhuma guerra em meu interior.
— Não há nenhum motivo para que minta. Não se dá conta? Mentir a mim é
como mentir a ti mesma.
Suas amáveis palavras racharam a parede de sua autodefesa. Ele o viu,
como via sua vulnerabilidade detrás de sua falsa sedução. Via-o e apesar de
tudo morria por beijá-la. Amaldiçoou-se assim mesmo por ser tão tonto de não
tê-lo feito antes.
Devagar, muito devagar baixou a cabeça, decidido a não assustá-la, mas
também decidido a conseguir o que se propunha.
Viu uma piscada de inquietação quando ela compreendeu suas intenções,
mas também um pingo de desafio.
Ele se aproximou mais, depois fez uma pausa, só para sentir em seus lábios
o calor dos dela. Em lugar de tocá-los, simplesmente os acariciou com seu
quente fôlego, como mantendo a ilusão.
Ela esperou, como desafio ou com resignação, ele não sabia bem.
Lentamente a ilusão se fez realidade. Seus lábios acariciaram os dela Ele a
beijou meigamente, ansioso por curar com sua boca suas feridas ocultas, por
matar seus demônios, domesticá-los e lhe mostrar um mundo cheio de amor e
ternura onde não existia a maldade. Um mundo aonde o amanhã lhes levasse
risadas e esperança e não importasse a cor da pele. Um mundo onde viveriam
sempre felizes com o amor em seus corações pulsando como um só.
Os lábios de Sophronia tremeram sob os seus. Ela parecia um pássaro
apanhado, assustado embora sabia que seu captor não a machucaria. Devagar,
sua magia curativa gotejou através de seus poros, como um quente sol do
verão.
Ele, com cuidado a separou da árvore e a abraçou suavemente. Sua aversão
a que a tocassem os homens que a tinham açoitado tanto tempo, não a afetava
agora. Sua boca era suave. Suave e limpa.
Muito rápido, ele a soltou. Sua boca se sentiu abandonada, sua pele fria,
apesar do calor da tarde de junho. Era um engano olhar nos olhos, mas ela o
fez de todos os modos.
Conteve o fôlego ao ver a profundidade do amor e ternura que viu ali.
— Me deixe — sussurrou ela — Por favor me deixe sozinha.
E então se soltou, fugindo através da horta como se um exército de
demônios lhe seguisse os passos. Mas todos os demônios estavam em seu
interior, e não podia expulsar nenhum só.
***
Kit tinha esquecido o calor que podia fazer na Carolina do Sul, inclusive
em junho. A bruma de calor cintilava no ar por cima dos campos de algodão,
coberto agora de cremosas flores brancas de quatro pétalas. Inclusive Merlín a
tinha abandonado essa tarde, preferindo uma sesta deitado perto da porta de
entrada à cozinha, à sombra das hortênsias que cresciam ao redor.
Kit deveria ter feito o mesmo. Seu dormitório tinha as janelas fechadas,
como o resto da casa, para se resguardar do calor de tarde, mas não tinha
podido descansar ali. Tinham se passado dois dias desde o jantar do sábado, e
seguia tendo em sua mente o encontro com Cain.
Odiava a mentira que lhe havia dito, mas inclusive agora não podia
imaginar que outra coisa lhe tivesse garantido seu consentimento. E quanto a
Brandon... Tinha mandado uma nota convidando a lhe acompanhar à reunião da
igreja na quarta-feira pela tarde, e ela estava razoavelmente segura de que lhe
proporia matrimônio então. O que lhe produzia um estado de humor irregular.
Impulsivamente deteve Tentação entre as árvores, e desmontou.
O pequeno lago brilhava tenuemente como uma jóia no centro do bosque,
um remanso de tranquilidade dentro da plantação. Sempre tinha sido um de
seus lugares favoritos. Inclusive durante os dias mais quentes de agosto, a água
das chuvas primaveris era fria e clara, e a espessura das árvores e a maleza
atuava como uma barreira ao redor. O lugar era privado e silencioso, perfeito
para seus pensamentos secretos.
Levou Tentação à borda, de maneira que pudesse beber e se refrescar, e
passeou ao redor do charco. Os salgueiros dali sempre lhe tinham lembrado
das mulheres que jogavam o cabelo para frente por sobre a cabeça e deixavam
que as pontas tocassem a água. Agarrou um ramo e começou a arrancar as
folhas com os dedos.
O atrativo da água era irresistível. Os trabalhadores nunca se aproximavam
por ali, e Cain e Magnus estavam na cidade, de modo que ninguém poderia
perturbá-la. Jogou o chapéu ao chão, tirou as botas e rapidamente o resto da
roupa. Quando ficou nua, mergulhou limpamente a partir de uma rocha,
entrando na água como um peixinho de prata. Subiu à superfície para respirar
ofegando de frio, riu, e mergulhou outra vez.
Finalmente ficou de costas e deixou a seu cabelo mover-se como um
ventilador ao redor de sua cabeça. Enquanto flutuava, fechou os olhos contra a
bola de cobre brilhante que penetrava através das taças das árvores. Sentia-se
suspensa no tempo, parte da água, do ar, da terra. O sol tocava as colinas de
seu corpo. A água envolvia os vales. Sentiu-se quase contente.
Uma rã coaxou. Se deu a volta e nadou em preguiçosos círculos. Quando
começou a sentir frio, dirigiu-se à zona menos profunda e pôs os pés no chão
arenoso.
Só quando estava a ponto de sair, escutou o suave relincho de Tentação. Do
outro lado do bosque veio o assobio de resposta de outro cavalo. Com uma
maldição, Kit chegou à borda e agarrou sua roupa. Não tinha tempo para vestir
a roupa interior. Agarrou as calças cáquis e as pôs sobre suas pernas
molhadas.
Ouviu o cavalo se aproximar. Tinha os dedos muito rígidos pelo frio para
fechar os botões. Agarrou a camisa e colocou os braços úmidos pelas mangas.
Estava tentando abotoar o botão entre os seios quando o cavalo castrado
castanho apareceu pelo atalho através da linha das árvores, e Baron Cain
invadiu seu mundo privado.
Ele se deteve o lado do monte que formava sua roupa intima. Cruzou as
mãos sobre o pomo da cadeira e a olhou da altura que lhe proporcionava
Vândalo. A asa de seu chapéu cor caramelo lhe tapava os olhos, deixando sua
expressão insondável. Não sorria.
Ela ficou congelada. Sua camisa molhada translúcida revelava cada
polegada da pele que se aderia. Era quase como estar nua.
Lentamente Cain balançou a perna sobre a cadeira e desmontou. Enquanto
ela lutava com os botões de suas calças, pensava como era possível que um
homem tão grande se deslocasse tão silenciosamente.
Usava as botas empoeiradas e umas calças marrons que enfatizavam seus
quadris estreitos. A camisa cor creme estava aberta na garganta. Seus olhos
ficavam obscurecidos sob a asa do chapéu, e não poder ver sua expressão a
pôs inclusive mais nervosa.
Como se estivesse lendo sua mente, deixou cair o chapéu à terra justo em
cima de seu montinho de roupa. Quase desejava que não o tivesse tirado. O
calor abrasador desses olhos cinzas era ameaçador e perigoso.
— Eu... eu acreditava que estava na cidade com Magnus.
— Pensava ir. Até que te vi sair com Tentação.
— Sabia que eu estaria aqui?
— Teria vindo antes, mas queria me assegurar que não nos interrompessem.
— Interrompessem? — o botão das calças se negava a obedecer seus dedos
—. O que quer dizer?
— Não se incomode em fechar — ele disse isso calmamente — vai
voltar a tirar isso Hipnotizada o viu levantar as mãos e, devagar,
desabotoar sua própria camisa.
— Não faça isso — sua voz parecia sem fôlego até mesmo para seus
próprios ouvidos.
Ele tirou a camisa da cintura das calças, a puxou e a atirou ao chão.
Ah, ela sabia o que ele fazia... sabia o que queria fazer, mas...
— Sophronia estará me esperando. Se não retornar logo, enviará alguém
para me buscar.
— Ninguém virá te buscar, Kit. Lhes disse que chegaríamos tarde. Temos
todo o tempo do mundo.
— Não temos tempo para nada. Eu tenho... tenho que partir — mas não se
moveu. Não podia.
Ele se aproximou mais dela, explorando-a com seus olhos. Sentiu como
percorria todas as suas curvas que a roupa úmida pincelava com escrupulosa
exatidão.
— Ainda quer que mude de opinião com respeito a Parsell? — perguntou
ele.
Não!
— Sim. É obvio que quero.
— De acordo — sua voz ficou rouca e sedutora — Mas primeiro temos que
chegar a um acordo.
Ela negou com a cabeça, mas não tratou de partir.
— Isto não é adequado, não é correto — ouviu a si mesma dizer.
— É totalmente incorreto — seu sorriso tinha uma pincelada de brincadeira
—. Mas a nós isso não importa.
— A mim sim importa — disse em um ofego.
— Então por que não monta em Tentação agora mesmo e vai embora?
— De acordo — mas ficou onde estava. Ali de pé, lhe olhando os músculos
do peito nu e brunido pela última luz da tarde.
Seus olhos se encontraram e ele se aproximou ainda mais. Inclusive antes
de tocá-la, ela já percebeu o calor de sua pele.
— Nós dois sabemos que há um assunto inacabado entre nós desde a tarde
que voltou. É o momento de terminá-lo para poder seguir com nossas
respectivas vidas.
Tentação relinchou.
Ele lhe acariciou a bochecha com um dedo e falou suavemente.
— Vou te possuir agora, Kit Weston.
Sua cabeça baixou tão devagar que ele poderia ter estado movendo-se em
um sonho. Seus lábios tocaram suas pálpebras e os fechou com um suave e
calmante beijo. Ela notou seu fôlego na bochecha e depois sua boca aberta,
como uma cova quente pondo-se sobre a sua.
A ponta de sua língua brincou suavemente com seus lábios, deslizou ao
longo deles e tratou de persuadi-la para que os abrisse. Seus seios que
estavam tão frios, esmagavam-se agora contra a calidez de seu peito nu.
Com um gemido abriu a boca e o deixou entrar.
Ele explorou cada canto do aveludado interior que ela tão livremente lhe
dava. Suas línguas se tocaram. Gradualmente, ele a persuadiu para que
tomasse o que lhe oferecia.
Então ela tomou. Entrelaçou os braços ao redor de seu pescoço. Provando.
Invadindo.
Ele fez um som surdo das profundidades de sua garganta. Ela sentiu sua
mão deslizar-se entre seus corpos, afastou-lhe a abertura de suas calças e pôs
a palma sobre seu estômago.
Tal intimidade a inflamou. Ela colocou os dedos em seu grosso cabelo
leonino. Ele subiu a mão por sua camisa e tomou um seio. Acariciou com o
polegar seu pequeno e erguido mamilo, e ela separou a boca com um grito
sufocado. Iria ao inferno por isso? Como podia deixá-lo tocá-la assim... Este
homem não era seu marido, era seu inimigo mais odiado.
Sentiu como caía, e compreendeu que a jogava ao chão. Ele amorteceu com
seu corpo a queda, e depois, colocou—a de costas.
A terra era suave e musgosa debaixo dela. Ele desabotoou o único botão de
sua camisa, afastou a úmida malha e deixou seus seios expostos.
— É tão formosa — disse roucamente, levantando o olhar para olhá-la no
rosto. — Tão perfeita. Selvagem e livre.
Com os olhos fixos nos seus, cobriu os mamilos com seus polegares e
começou a fazer uma série de pequenos círculos.
Ela mordeu os lábios para não gritar. Um torvelinho de frenéticas sensações
se movia dentro dela, cada vez mais quentes e selvagens.
— Vamos — sussurrou ele — Se deixe levar.
O som que fez, chegava do mais profundo de sua alma.
Seu sorriso era pleno e cheio de satisfação. Ele beijou a cavidade de sua
garganta, e depois os mesmos mamilos que tão expertamente tinha torturado
com os dedos.
Uns redemoinhos ardentes se moveram atrás de seus olhos quando o sugou.
Quando ela pensava que não poderia suportá-lo mais, sua boca seguiu para
abaixo por seu corpo, ao suave estômago que deixava exposto a abertura de
suas calças. Ele a beijou ali, e começou a descer-lhe pelos quadris.
Finalmente desceu de tudo, ficando nua salvo por sua camisa branca aberta.
Cada nervo de seu corpo tremeu. Ela estava assustada. Quieta. Ruídos
estranhos enchiam sua cabeça.
— Te abra para mim, doçura.
Sua mão posou ali... tocando... separando... Oh, sim...
Seus dedos a tocavam intimamente, como o tato de uma pluma. Separou-lhe
suavemente as coxas. Estava completamente exposta a seu olhar, e o primeiro
golpe de pudor a golpeou. A Vergonha de Eva. Agora a submeteria a essa
horrível coisa tão transcendental que os homens faziam às mulheres.
Há dor... Há sangue...
Mas não sentia nenhuma dor. Ele acariciava os cachos entre suas coxas, e
era a sensação mais maravilhosa que jamais imaginou sentir.
Sua respiração se tornou difícil, e os músculos de seus ombros tremeram
sob suas mãos. Seu medo voltou. Ele era tão poderoso e ela se sentia indefesa.
Poderia rasgá-la. Estava a sua mercê.
— Espera — sussurrou ela.
Ele levantou a cabeça, com os olhos misteriosamente frágeis.
— Eu deveria... eu necessito...
— O que acontece?
Seu medo tinha desaparecido mas não sua ansiedade. Sabia que tinha que
lhe dizer a verdade.
— Não era certo — disse por fim — O que te disse. Eu não... não estive
nunca com nenhum homem.
Sua testa se enrugou.
— Não acredito em ti. É outro de seus jogos.
— Não.
— Quero a verdade.
— Estou dizendo a verdade.
— Há uma forma de descobri-lo.
Ela não entendeu nem sequer quando sentiu suas mãos entre suas coxas.
Conteve o fôlego quando sentiu um dedo em seu interior.
Cain a sentiu estremecer, ouviu seu ofego de surpresa, e algo em seu
interior se rasgou. A membrana estava ali, tenaz sobrervivente de sua rebelde
e áspera infância. Tensa como a pele de um tambor, forte como ela, protegia-a
ainda, embora nesse momento ele a amaldiçoara.
Ficou de pé de um salto, e lhe gritou.
— É que nada em ti é o que deveria ser? — odiava sentir-se tão vulnerável.
Olhou com atenção desde seu leito de musgo. Ainda tinha as pernas abertas.
Longas e finas, guardavam os segredos que nunca tinha compartilhado com
nenhum homem. Inclusive quando agarrava sua camisa e a punha, estava
desejando-a com uma ferocidade que o fazia tremer, e lhe doía comprovar
como lhe consumia.
Dirigiu-se para o lugar onde estava seu cavalo e, antes de montá-lo, virou-
se para ela tratando de lhe infligir algo de sua própria tortura.
Mas não podia pensar em palavras suficientemente cruéis.
— Isto entre nós segue inacabado.
13
Brandon propôs na reunião da igreja na quarta-feira à noite. Aceitou seu
pedido de casamento, mas, alegando dor de cabeça, recusou o convite para dar
um passeio pelo campo que rodeava a igreja. A beijou na bochecha, levou-a
de volta para Miss Dolly, e disse que iria a Risen Glory no dia seguinte à
tarde para pedir o consentimento de Cain.
Kit não tinha mentido sobre sua dor de cabeça. Ultimamente mal dormia, e
quando o fazia, despertava agitada, recordando a estranha e torturada
expressão que tinha visto no rosto de Cain, quando descobriu que ela ainda era
virgem.
Por que tinha permitido que a tocasse assim? Se tivesse sido Brandon,
podia compreendê-lo. Mas Cain... De novo essa sensação de que havia algo
de errado com ela.
Na tarde seguinte, cavalgou durante um momento em Tentação, depois
colocou um vestido velho e deu um passeio com Merlín. Quando voltou,
encontrou Brandon em frente ao terraço.
Tinha em seu olhar um gesto de desaprovação.
— Espero que ninguém a tenha visto com esse vestido.
Sentiu uma faísca de irritação, embora soubesse que era culpada. Havia-lhe
dito que viria esta tarde, mas não tinha pensado nem um momento em tirar um
tempo para ir se trocar. Realmente estava desarrumada.
— Estava passeando pelo bosque. Falou com Cain?
— Não. Lucy me disse que está no campo. Falarei com ele.
Kit assentiu brevemente com a cabeça e o viu se afastar. Sentiu um nó no
estômago. Tinha que fazer algo ou ficaria louca. Entrou na cozinha,
cumprimentou Patsy, e começou a misturar os ingredientes para fazer uma
fornada das bolachas preferidas de Miss Dolly.
Sophronia entrou enquanto trabalhava e olhou com o cenho franzido como
golpeava ruidosamente a massa com o pedaço de madeira.
— Me alegro de não ser essas bolachas. Para alguém que, como se supõe,
vai se casar logo, não parece muito feliz.
Todos sabiam o que ocorria. Inclusive Lucy tinha encontrado uma desculpa
para entrar na cozinha atrás de Sophronia, que nesse momento se dispunha a
moer em uma máquina de madeira os grãos de café que tinha tirado de um saco
de estopa da despensa.
— É obvio que estou feliz — Kit deu outro golpe na massa — Estou
nervosa, isso é tudo.
— Uma noiva tem direito a estar nervosa — Patsy agarrou uma faca e
começou a cortar pêssegos para preparar um pudim.
Lucy que estava perto da janela, foi quem o viu primeiro.
— Olhem, o senhor Parsell está voltando do campo.
Rapidamente, Kit agarrou um pano para limpar as mãos cheias de massa,
saiu correndo para a porta traseira em direção a Brandon, mas ao ver sua
expressão, seu sorriso se desvaneceu.
— O que aconteceu?
Ele não diminuiu o passo.
— Cain não me deu seu consentimento.
Kit sentiu como se um vendaval a sacudisse.
— Me disse que não fomos feitos um para o outro. É insuportável. Um
Parsell sendo despachado assim por um ianque bruto.
Kit o agarrou pelo braço.
— Não podemos deixar que fique com a última palavra, Brandon. É muito
importante. Tenho que recuperar Risen Glory.
— É seu tutor. Não há nada que possamos fazer. Ele controla seu dinheiro.
Kit notou que nenhum dos dois tinha falado de amor, só da plantação.
Estava muito zangada por ele ter dito não.
— Você pode se dar por vencido, mas eu não.
— Não há nada que possa fazer. Ele não vai mudar sua maneira de pensar.
Simplesmente teremos que aceitar.
Já não o escutava. Nesse momento, virou-se e se dirigiu firme e decidida ao
prado.
Brandon a olhou durante um instante, em seguida se dirigiu para a frente da
casa onde estava seu cavalo. Enquanto montava, perguntava-se se não teria
sido o melhor. Apesar da beleza cativante de Kit e sua plantação fértil, havia
nela algo que o inquietava. Talvez fosse isso que tentavam alertar as vozes de
seus antepassados sussurrando em seus ouvidos.
Ela não é o tipo certo de mulher para um Parsell... mesmo para um
arruinado.
***
Cain estava com o pé apoiado na tábua inferior da cerca esbranquiçada,
enquanto observava os cavalos pastando. Nem sequer se incomodou em virar-
se quando notou a chegada de Kit atrás de si, embora tivesse que ser surdo
para não ouvir seus passos irritados.
— Como pode fazer isto? Por que recusou Brandon?
— Não quero que se case com ele — respondeu, sem incomodar-se em
olhá-la.
— Isto é um castigo pelo que aconteceu ontem no lago?
— Isto não tem nada que ver com o que aconteceu ontem — disse em um
tom tão monótono que ela soube que estava mentindo.
Sentiu como se a raiva a estrangulasse.
— Maldito seja, Baron Cain! Não vai mais controlar minha vida. Ou fala
para Brandon mudar de ideia, ou juro por Deus que vai pagar caro por isso!
Ela era tão pequena e ele tão grande que sua ameaça deveria ter sido
ridícula. Mas falava muito sério, e ambos sabiam.
— Possivelmente já estou pagando — dizendo isto, ele se afastou através
do prado.
Ela correu para a horta, sem saber na realidade onde ia, só sabia que tinha
que ficar sozinha. aquele dia no lago... por que lhe havia dito a verdade?
Porque se não houvesse dito, não teriam parado.
Quis acreditar que possivelmente poderia fazê-lo mudar de opinião, mas no
fundo sabia que seria impossível. Seu ódio da infância por ter nascido mulher
retornava de novo! Odiava com todas as suas forças estar à mercê dos homens.
Deveria pedir agora a Bertrand Mayhew que viesse de Nova Iorque?
Simplesmente pensar em seu corpo redondo, macio e fofo, produzia-lhe
náuseas. Talvez algum homem, dos que tinham estado interessados nela desde
sua volta... Mas Brandon tinha sido o Santo Graal e escolher qualquer outro a
enchia de desespero.
Como Cain pôde fazer isto?
Esta pergunta a atormentou o resto da tarde. Não quis descer para jantar e
ficou em seu quarto. A primeira a bater na porta foi Miss Dolly e depois
Sophronia. Despachou as duas sem a menor cerimônia.
Ao cair da noite, um forte golpe ressoou no quarto ao lado.
— Kit, vem aqui — disse Cain — Quero falar com você.
— A menos que tenha mudado de opinião, não tenho nada mais para falar.
— Você escolhe, ou vem aqui ou vou ao seu quarto. O que decide?
Fechou com força os olhos por um segundo. Não tinha outra opção. Ele as
tinha tirado sem poder fazer nada para evitar. Lentamente se dirigiu para a
porta e soltou o trinco.
Ele estava de pé na outra sala, com o cabelo alvoroçado e uma taça de
brandy na mão.
— Me diga que mudou de opinião — disse ela.
— Sabe que não.
— Pode imaginar o que é outra pessoa controlar sua vida?
— Não. Por isso lutei pela causa da União. E não trato de controlar sua
vida, Kit. Apesar do que pensa, tento ser razoável.
— Não acredito nisso vindo de você.
— Você não o ama.
— Não tenho nada mais para lhe dizer — se virou para voltar para seu
quarto, mas ele a segurou na porta.
— Deixa de ser tão teimosa e use a cabeça! Ele é um fraco, não é o tipo de
homem que pode te fazer feliz. Vive pensando no passado. Nasceu para ser
dono de uma plantação mantida com o trabalho dos escravos. Ele é o passado,
Kit. Você é o futuro.
Sabia que tinha razão, mas nunca admitiria. Cain desconhecia suas razões
para casar-se com Brandon.
— Ele é um homem bom e me sentiria privilegiada em tê-lo por marido.
Ele a olhou de cima abaixo.
— Mas teria feito pulsar seu coração como eu fiz no lago quando estava em
meus braços?
Não, Brandon nunca teria feito seu coração pulsar assim, e se alegrava por
isso. O que aconteceu com Cain a fazia se sentir fraca.
— Era o medo o que fazia meu coração pulsar assim, nada mais.
Ele deu meia volta. Tomou um gole de brandy.
— Isso é uma bobagem.
— Tudo o que tinha que fazer era dizer a palavra sim, e teria se livrado de
mim.
Levantou a taça e a bebeu de um só gole.
— Vou te mandar de volta a Nova Iorque. Irá no sábado.
— O quê?
Cain soube ainda antes de virar e olhar a expressão de seu rosto, que tinha
cravado uma faca no seu coração.
Era uma das mulheres mais inteligentes que conhecia, e entretanto, por que
se mostrava tão estúpida neste assunto? Sabia que não lhe escutaria, estava
tentando convencer uma pessoa extremamente teimosa a raciocinar, e não
havia maneira. Com uma maldição surda, saiu da sala e desceu.
Sentou-se na biblioteca durante um momento, inclinou a cabeça e o músculo
de sua bochecha começou a tremer. Tinha colocado Kit Weston dentro de sua
pele, e sentia um medo mortal. Durante toda sua vida, riu das tolices que os
homens cometiam por uma mulher, e agora estava a ponto de fazer o mesmo.
Era algo mais que sua beleza selvagem o que lhe cativava, mais que sua
sensualidade, da qual ela ainda não era consciente. Havia algo doce e
vulnerável nela que mostrava uns sentimentos em seu interior, que desconhecia
possuir. Sentimentos que o faziam querer rir com ela em vez de grunhir, que o
faziam desejar fazer amor com ela, até que seu rosto se iluminasse de alegria
só para ele.
Apoiou a cabeça no encosto da cadeira. Havia-lhe dito que a mandaria de
volta a Nova Iorque, mas não podia fazer isso. Amanhã diria. E depois ia fazer
todo o possível para começar de novo com ela. Ao menos uma vez em sua
vida, ia deixar seu cinismo de lado e estender a mão a uma mulher.
Este pensamento o fez sentir-se jovem e estupidamente feliz.
***

O relógio marcava meia-noite quando Kit ouviu Cain entrar em seu quarto.
No sábado teria que deixar Risen Glory. Era um golpe tão doloroso, tão
inesperado, e não sabia como resolver. Desta vez não havia nenhum prazo
como seus três anos na Academia. Ele tinha ganhado. Finalmente a tinha
vencido.
A raiva e a impotência superavam com acréscimo sua dor. Desejava
vingança. Queria destruir algo que fosse importante para ele, destruí-lo como
ele acabava de destruí-la.
Mas não havia nada que lhe importasse, nem sequer Risen Glory. Não tinha
deixado Magnus aos cuidados da plantação enquanto ele terminava seu moinho
de algodão?
O moinho... De repente se deteve. O moinho era importante para ele, mais
importante que a plantação, porque era somente dele.
O diabinho da raiva e a dor lhe sussurravam o que tinha que fazer. Tão
simples. Tão perfeito.Tão cruel.
Mas não tanto como o que lhe tinha feito.
Procurou as sapatilhas que tinha usado antes e as segurou para sair do
quarto com os pés descalços. Furtivamente, desceu pelos corredores
superiores, pelas escadas dos fundos e saiu pela parte de trás.
A noite era clara e a lua iluminava suavemente o caminho. Colocou as
sapatilhas, avançando pela linha das árvores que rodeavam o pátio e se dirigiu
para as dependências mais distantes da casa.
Dentro do armazém estava escuro. Colocou a mão no bolso do vestido e
tirou o pedaço de vela e os fósforos que tinha pego na cozinha. Quando
acendeu a vela, viu o que queria e o agarrou.
Inclusive meio cheia, a lata de querosene era pesada. Não podia arriscasse
a selar um cavalo, de maneira que teria que levá-lo a pé mais de três
quilômetros. Enrolou um trapo ao redor da asa para não machucar a palma da
mão e se afastou do abrigo.
A profunda quietude da noite da Carolina amplificava o som do querosene
golpeando contra a lata, seguindo o ritmo de seus passos durante todo o escuro
trajeto que percorreu até chegar ao moinho. As lágrimas lhe escorregavam
pelas bochechas. Ele sabia o que Risen Glory significava para ela.
Quanto devia odiá-la para afastá-la dessa maneira.
Amava só três coisas na vida: Sophronia, Elsbeth, e Risen Glory.
Toda sua vida tinha estado marcada por pessoas que a queriam separar
desta plantação. O que planejava fazer era errado, mas ela era assim.
Por que tantas pessoas a odiavam? Cain, sua madrasta. Inclusive seu pai
não se preocupou o suficiente em defendê-la.
Errado. Errado. Errado. O tamborilar do querosene contra a lata lhe dizia
que parasse. Em vez de escutar, agarrou-se a seu desespero. Olho por olho,
dente por dente. Um sonho por outro sonho.
Não havia nada que roubar dentro do moinho, o edifício estava aberto.
Subiu arrastando a lata até o segundo andar. Com a anágua, pegou a serragem
que havia no chão e o amontoou na base de uma viga de madeira. As paredes
exteriores eram de tijolo, mas um bom fogo destruiria o telhado e as paredes
internas.
Errado. Errado. Errado.
Limpou as lágrimas com a manga do vestido e jogou no chão o querosene.
Com um soluço de agonia, riscou um fósforo, e se afastou.
O fogo iniciou com uma rápida e ruidosa explosão, e começou a propagar-
se. Grandes labaredas já açoitavam a viga de madeira. Esta era a vingança que
a consolaria quando abandonasse Risen Glory.
Mas a destruição que tinha iniciado a horrorizou. Era feio e odioso. Só
demonstrava que ela também podia infligir dor a Cain.
Agarrou um saco de estopa vazio e começou a golpear as chamas, mas o
fogo estava muito intenso. Uma chuva de faíscas caiu sobre ela.
Os pulmões queimavam. Tropeçou descendo as escadas, abrindo a boca
para poder respirar. Assim que desceu, caiu.
Nuvens de fumaça a seguiram. A prega de seu vestido de musselina
começou a arder lentamente. Afogava-se e, engatinhando, se dirigiu à porta
enquanto as brasas queimavam suas mãos.
O grande sino de Risen Glory começou a soar ao mesmo tempo que o ar
limpo golpeava seu rosto, incorporou-se e tropeçou nas árvores.
***

Os homens apagaram o fogo antes que tivesse destruído completamente o


moinho, mas o segundo piso e a maior parte do telhado tinham ficado
danificados. Ao amanhecer, Cain ficou quieto descansando, com a cara cheia
de fuligem, a roupa chamuscada e enegrecida pela fumaça. A seus pés a lata de
querosene que possivelmente alguém tinha deixado abandonada.
Magnus ficou a seu lado e silenciosamente inspecionou os danos.
— Tivemos sorte — disse — A chuva de ontem impediu que se estendesse
a todo o prédio.
Cain golpeou a lata com a ponta de sua bota.
— Uma semana mais, e teríamos a máquina instalada. O fogo a teria
queimado também.
Magnus olhou para a lata.
— Quem você acha que fez isso?
— Não sei, mas tenho a intenção de investigar — contemplou o telhado
destruído — Não sou o homem mais popular na cidade, e não deveria me
surpreender se alguém decidiu se vingar de mim. Mas por que esperaram tanto
tempo?
— É difícil saber.
— Não podiam ter encontrado uma maneira melhor de me derrotar.
Infelizmente não tenho o dinheiro para reconstruí-lo.
— Por que não volta para casa e descansa? Talvez as coisas estejam
melhores pela manhã.
— Em um minuto. Quero dar outra olhada. Você pode ir.
Magnus o apertou no ombro e se dirigiu à casa.
Vinte minutos mais tarde Caín descobriu. Inclinou-se sobre um joelho no
fundo da escada queimada e o pegou entre os dedos.
No inicio não reconheceu o pedaço sujo de metal. O calor do fogo tinha
derretido e fundido as pontas, e a delicada filigrana de prata da parte superior
dobrou sobre si mesma. Nesse momento, sentiu um forte nó no estômago,
embora já intuísse, tinha a prova de quem tinha sido.
Um pente de prender cabelo de filigrana prateada. Um do par que via
frequentemente prendendo uma cascata de cabelos negros selvagens.
Por dentro estava em uma lenta agonia. A última vez que a viu, os pentes
estavam prendendo seu cabelo.
Sentiu-se miserável por um torvelinho de dor. Ele, melhor que ninguém,
sabia que não podia baixar a guarda. Olhou fixamente o pedaço de metal
deformado que descansava em sua mão, e um ponto tão frágil como uma
lágrima de cristal se rompeu em seu interior. Só ficava ódio, cinismo e
desprezo por si mesmo.
Que idiota, que tonto, e que estúpido tinha sido.
Levantou-se, colocou o pente de cabelo no bolso, e saiu das ruínas do
moinho com uma careta cruel no rosto e um firme propósito.
Ela tinha tido sua vingança. Agora era sua vez.
14
Era quase meio dia quando a encontrou. Estava de cócoras junto a uma
velha carreta abandonada durante a guerra perto de um rio ao norte da
plantação. Viu as manchas de fuligem em seu rosto, nos braços e as partes
chamuscadas em seu vestido azul. Incrivelmente, estava dormindo. Deu um
toquinho em seu quadril com a ponta da bota.
Abriu os olhos de repente, mas o sol a cegava, de modo que só via uma
ameaçadora silhueta equilibrando-se sobre si. Embora soubesse perfeitamente
quem era. Tratou de ficar de pé, mas ele pisou em sua saia, mantendo-a presa
ao chão.
— Não vai a nenhum lugar.
Algo caiu a seu lado. Olhou atentamente, e viu um de seus pentes prateados
de prender cabelos, chamuscado.
— A próxima vez que quiser incendiar algo, tenha certeza de não deixar seu
cartão de visita.
O estômago revirou.
— Deixa que te explique — disse em um sussurro rouco. Que bobagem,
como podia se explicar?
Ele a entendia muito bem.
Sua cabeça se moveu ligeiramente, cobrindo o sol durante um instante.
Quando olhou em seus olhos, estremeceu. Eram frios, duros e pareciam vazios.
De novo, ele se moveu e o sol a cegou outra vez.
— Parsell te ajudou?
— Não! Brandon, não faria tal coisa — Brandon não, mas ela sim. Passou o
dorso da mão pelos lábios ressecados e tratou de levantar-se, mas ele
continuava sem deixar.
— Sinto muito.
Que palavras tão inadequadas.
— Suponho que o que sente é que o fogo não conseguisse destruir tudo.
— Claro que não... Risen Glory é minha vida — sentia a garganta
ressecada pela fumaça, e precisava beber água, mas antes tinha que se explicar
— Esta plantação é tudo o que eu sempre quis... precisava me casar com
Brandon para ter o controle de meu dinheiro, ia usá-lo para comprar Risen
Glory.
— E como pensava me convencer a vender? Com outro fogo?
— Não, o que fiz ontem à noite... não foi por isso — ela tratou de respirar
— Vi os livros da contabilidade e sabia que tinha investido todo seu dinheiro.
Só precisava que tivesse uma colheita ruim e teria partido. Queria estar
preparada. Não o fiz para te enganar. Teria pago um preço justo pela terra. Eu
não quero o moinho.
— Por isso estava tão determinada a se casar. Imagino que Parsell não era
o único que ia se casar por dinheiro.
— Não só por isso. Nos gostamos. É só... — sua voz decaiu. Qual era o
motivo? Ele tinha razão.
Ele tirou o pé de sua saia e caminhou em direção a Vândalo. Não havia
nada que pudesse fazer pior do que já lhe tinha feito. Enviá-la de novo a Nova
Iorque era como matá-la.
Ele retornou a seu lado e lhe ofereceu um cantil.
— Beba.
Ela o agarrou e o levou aos lábios. A água estava quente e tinha um sabor
metálico, mas bebeu com vontade. Só quando lhe devolveu o cantil viu o que
ele tinha nas mãos.
Uma corda longa e fina.
Antes de que pudesse se mover, agarrou seus pulsos e os atou com a corda.
— Baron! Não faça isto.
Atou as pontas ao eixo da carreta e se dirigiu a seu cavalo sem responder.
— Me desate. O que está fazendo?
Subiu à cela girou o cavalo. Tão rápido como chegou, partiu.
A tarde passou com uma lentidão desesperadora. Não lhe tinha atado os
pulsos tão forte para machucá-la, mas o bastante para não poder se desatar.
Doíam-lhe os ombros pela posição forçada. Os mosquitos zumbiam a seu
redor e o estômago roncava de fome, mas só a idéia de comer a punha doente.
Sentia muito ódio por si mesma.
Ele voltou com o pôr do sol e desmontou com a graça lenta e fácil que já
não a enganava. Usava uma camisa branca limpa e calças bege, em claro
contraste com o aspecto imundo dela. Tirou algo de seus alforjes e caminhou
em direção a ela, com o rosto escondido pela aba de seu chapeu.
Olhou-a fixamente um instante, e se agachou a seu lado. Com agilidade de
movimentos desatou o nó que ela não tinha podido desatar. Quando se viu
livre da corda, se acocorou contra a roda da carroça.
Lançou-lhe o cantil e abriu o pacote que tinha tirado dos alforjes. Levava
um pãozinho tenro, um pedaço de queijo, e uma fatia de presunto frio.
— Coma. — disse sem mais.
Ela negou com a cabeça.
— Não tenho fome.
— De qualquer maneira precisa comer.
Seu corpo tinha uma necessidade mais urgente que a comida.
— Preciso de um pouco de privacidade.
Ele tirou um charuto do bolso e o acendeu. A chama do fósforo lançou uma
sombra vermelha parecida com o sangue sobre seu rosto. Quando a apagou,
ficou só a ponta incandescente do charuto e a linha desumana de sua boca.
Ele assinalou com a cabeça um grupo de árvores há apenas dez metros de
distância.
— Ali mesmo. Não se afaste mais.
Estava muito perto para ter privacidade, mas tinha perdido o luxo da
liberdade quando amontoou serragem perto da viga do segundo andar do
moinho.
Tinha as pernas rígidas, levantou-se tonta e tropeçou nos arbustos. Rogou
para que ele se afastasse um pouco, mas não o fez e acrescentou mais
humilhação a todas as dolorosas sensações que estava sentindo.
Quando terminou, voltou e agarrou à comida que lhe havia trazido. Queria
atrasar-se o máximo possível, e comeu devagar. Ele não fez nenhum
movimento para lhe apressar, e se apoiou contra a carroça como se tivesse
todo o tempo do mundo.
Já estava escuro quando terminou de comer. Tudo o que podia ver era a
ponta vermelha do cigarro e o esboço de sua silhueta.
Ele caminhou para seu cavalo. As nuvens deixaram ver a lua que os banhou
com uma luz prateada. A fivela de cobre de seu cinturão brilhou quando se
voltou para ela.
— Sobe. Você e eu temos um compromisso.
Seu tom terrivelmente seco a assustou.
— Que tipo de compromisso?
— Com um ministro, vamos nos casar.
Seu mundo parou de girar.
— Nos casar! Perdeu o juízo?
— Com certeza.
— Antes me casaria com o diabo.
— É o mesmo. Logo você descobrirá.
A noite estava quente, mas a fria certeza de sua voz lhe gelava o sangue.
— Queimou meu moinho — disse ele. — E agora vai pagar para reconstruí-
lo. Parsell não é o único que se casará contigo por seu dinheiro.
— Está louco. Não o farei.
— Não tem opção. Sobe. Cogdell está nos esperando.
Os joelhos de Kit quase dobraram de alívio. O reverendo Cogdell era seu
amigo. Uma vez que lhe contasse o que Cain tramava, ficaria ao seu lado.
Dirigiu-se a Vândalo e começou a montar.
— Na minha frente. — grunhiu ele — Aprendi da maneira mais difícil a
não virar as costas.
Ele a colocou na frente da cela e depois montou. Não falou até que estavam
em campo aberto.
— Não conseguirá ajuda de Cogdell, se isso for o que espera. Confirmei-
lhe seus piores temores e nada lhe impedirá de nos casar agora.
Seu coração deu um salto.
— De que temores está falando?
— Lhe disse que te deixei grávida.
Ela não podia acreditar no que estava escutando.
— Eu o negarei! Isto não vai dar certo.
— Pode negá-lo o quanto quiser. Já lhe disse que o faria. Expliquei tudo.
Desde que descobriu que está grávida se comporta de forma irracional.
Inclusive trataste de me matar com o incêndio. Por isso não podia deixar que
continuasse assim.
— Não.
— Lhe disse que faz várias semanas que estou te pedindo que nos casemos,
e assim nosso filho não será bastardo, mas você não está de acordo. Disse que
nos casaria esta noite, não importa quanto proteste. Pode brigar o quanto
quiser, Kit, mas no final não te servirá de nada.
— Não vai sair vencedor.
Sua voz se acalmou.
— Tome cuidado, Kit. Vai evitar muito sofrimento se fizer o que te digo.
— Vai para o inferno!
— Estarei ali a sua disposição.
Apesar de quanto o amaldiçoara, estava consciente de que tinha perdido.
Era uma espécie de justiça horrível. Fez algo errado, e agora pagaria por isso.
Ainda fez um último esforço quando viu o reverendo e a sua esposa
esperando-os na velha igreja dos escravos. Saltou do cavalo e correu para
Mary Cogdell.
— Por favor... o que Cain lhes disse não é verdade. Não estou grávida. Nós
nunca...
— Sim, sim, querida. Não se altere. Não se preocupe. — seus olhos
castanhos bondosos estavam com lágrimas enquanto acariciava seu ombro. —
Você precisa se acalmar por causa do bebê.
Nesse momento Kit soube que não poderia escapar ao seu destino.
A cerimônia felizmente foi breve. Depois Mary Cogdell a beijou na
bochecha e o reverendo a aconselhou a obedecer a seu marido em tudo.
Escutou dizer a Cain que Miss Dolly tinha aceitado passar a noite com eles, e
compreendeu que Cain tinha conseguido tirá-la da casa.
Pegou Vândalo e partiram para Risen Glory. Quanto mais se aproximavam,
mais seu pânico aumentava. O que pensaria em fazer com ela quando
estivessem sozinhos?
Chegaram à casa. Cain desmontou e passou as rédeas para Samuel.
Então agarrou a cintura de Kit e a pôs no chão. Durante um momento seus
joelhos ameaçaram dobrar-se e ele a segurou. Ela se recuperou e se soltou.
— Já tem meu dinheiro — disse quando Samuel desapareceu — Agora me
deixe sozinha.
— E me negar o prazer de minha noite de núpcias? Nem pensar.
Seu estômago se contraiu.
— Não haverá noite de núpcias.
— Estamos casados, Kit. E esta noite vou te possuir.
A Vergonha de Eva. Se não estivesse tão esgotada, discutiria com ele, mas
as palavras não saíam.
As luzes da casa de Magnus brilhavam na escuridão no final da horta.
Segurou as saias e pôs-se a correr dali.
— Kit! Volta aqui!
Ela correu mais rápido. Tratando de fugir dele. Tratando de fugir de seu
próprio caráter vingativo.
— Magnus! — gritou ela.
— Kit, para! Está escuro. Vai se machucar!
Correu pela horta, saltando sobre as raízes que se sobressaíam da terra, e
que conhecia tão bem como a palma de sua mão. Atrás dela, ele amaldiçoou
quando tropeçou em uma dessas raizes. Entretanto, continuava se
aproximando.
— Magnus! — gritou ela outra vez.
E logo estava por toda parte. Pela extremidade do olho viu Cain lançar-se
pelo ar. Derrubou-a por atrás.
Ela gritou quando ambos caíram à terra.
Ele a segurou contra seu corpo.
Ela levantou a cabeça e afundou os dentes na musculosa carne de seu
ombro.
— Maldita seja! — separou-a dele com um grunhido.
— O que está acontecendo aqui?
Kit deu um soluço de alívio ao ouvir a voz de Magnus. Se soltou e correu
para ele.
— Magnus! Deixa que fique em sua casa esta noite.
Ele pôs calmamente a mão em seu braço e se virou para Cain.
— O que está fazendo?
— Tratando de impedir que ela se mate. Ou a mim. Agora mesmo, já não
sei qual dos dois corre mais perigo.
Magnus a olhou interrogativamente.
— Agora é minha esposa — disse Cain — Me casei com ela faz uma hora.
— Obrigou-me a fazê-lo! — exclamou Kit — Quero ficar em sua casa esta
noite.
Magnus franziu o cenho.
— Não pode fazer isso. Agora pertence a ele.
— Eu pertenço a mim mesma! Podem ir para o inferno os dois.
Deu a volta para escapar, mas Cain foi muito rápido, antes de poder sair
correndo, agarrou-a e a jogou ao ombro.
O sangue desceu depressa à cabeça. Seus braços lhe apertavam as pernas.
Assim começou a caminhar para a casa.
Golpeou-lhe com os punhos nas costas e só conseguiu uma palmada no
traseiro.
— Deixa de me bater ou te deixarei cair.
Os pés de Magnus entraram em seu campo de visão vindo por trás deles.
— Major, carrega uma mulher delicada aí. Talvez a esteja tratando um
pouco duramente. Possivelmente seria melhor que a soltasse um momento e se
acalmasse.
— Isso levaria o resto de minha vida — Cain girou na esquina da frente da
casa, suas botas rangeram no caminho de cascalho.
As palavras seguintes de Magnus fizeram o estômago de Kit já instável se
revirar.
— Se você a machucar esta noite, vai se arrepender pelo resto de sua vida.
Lembra o que acontece com uma égua que cavalga muito rápido.
Durante um momento, brilharam estrelas detrás de suas pálpebras. Então
ouviu o som bem-vindo de pés descendo com pressa os degraus da frente.
— Kit! Doce Jesus, que aconteceu?
— Sophronia! — Kit se revirava tratando de se soltar. Ao mesmo tempo
Sophronia agarrou o braço de Cain.
— Solte-a!
Cain empurrou Sophronia para Magnus.
— Mantenha-se afastada da casa esta noite — subiu com Kit nas costas
pelas escadas e atravessou a porta.
Sophronia lutou no interior do círculo dos braços de Magnus.
— Me solta! Devo ajudá-la. Não tem nem ideia do que um homem assim
pode fazer a uma mulher. Brancos. Pensam que são donos do mundo. Acredita
que é seu dono.
— E o é. — Magnus a segurou, acariciando-a — Se casaram, carinho.
— Casaram!
Em tom calmo, tranquilo, contou tudo o que tinha escutado.
— Não podemos interferir nos assuntos de um homem e sua esposa. Se
acalme, não lhe fará mal.
Enquanto dizia, esperava que não notasse a dúvida em sua voz. Cain era o
homem mais justo que conhecia, mas esta noite tinha visto algo violento em
seus olhos. Apesar de tudo, continuou consolando-a enquanto a levava através
da horta escura.
Só quando chegavam perto da casa ela estava ciente de seu destino, e
levantou rapidamente a cabeça.
— Onde você acha que está me levando?
— Para casa, comigo — disse ele tranquilamente — Vamos entrar e
preparar algo para comer. Se gostar, sentamos na cozinha e conversamos do
que queiser. Ou se você estiver cansada, pode ir para o quarto dormir. Eu
passarei a noite com um cobertor na varanda, ao lado de Merlin. O Tempo está
bom e eu vou ficar bem.
Sophronia não disse nada. Simplesmente ficou olhando-o. Ele esperou,
deixando-a tomar uma decisão. Finalmente, ela assentiu e entrou na casa.
***
Cain se sentou na poltrona colocada perto da janela aberta de seu
dormitório. Usava a camisa desabotoada para desfrutar da brisa; os pés
descansando sobre uma banqueta diante dele, e tinha uma taça de brandy na
mão, colocada sobre o braço da poltrona.
Gostava deste quarto. Tinha os móveis necessários para ser confortável,
mas não muitos para parecer lotado. A cama era grande o bastante para
acomodar um homem de seu tamanho. A seu lado havia uma bacia, e
completando a decoração uma mesa, um baú e uma biblioteca. No inverno, o
chão de madeira ficava coberto por tapetes grossos para lhe proporcionar
calor, mas agora estava sem, como mais gostava.
Ouviu o salpicar da água na tina de cobre atrás do biombo em um canto do
quarto e apertou os lábios. Não havia dito a Sophronia que o banho que tinha
que preparar era para Kit, não para ele. Kit lhe tinha ordenado que deixasse a
habitação, mas quando tinha visto que não ia, tinha levantado o nariz e se
colocado atrás do biombo. Apesar de que a água certamente já estava fria, não
tinha nenhuma pressa em sair.
Ainda sem vê-la, sabia exatamente que aspecto teria saindo da tina.
Sua pele brilharia à luz dourada do abajur, e seu cabelo cairia sobre os
ombros, contrastando com a brancura de sua pele.
Pensou no fundo fiduciário pelo qual se casou. Sempre tinha desprezado os
homens que se casavam por dinheiro, mas agora não se incomodava.
Perguntou-se por que seria. E então deixou de se questionar, talvez por que
não quisesse conhecer a resposta.
Não queria reconhecer que este matrimônio tinha pouco a ver com dinheiro
nem com a reconstrução do moinho. Era por conta desse único momento de
fragilidade, quando abandonou a prudência de toda uma vida e decidiu abrir
seu coração a uma mulher. Durante um momento, seus pensamentos foram
ternos, tolos e, por último, mais perigosos para ele que todas as batalhas da
guerra.
Ao final não só pagaria com o moinho por esse momento de debilidade.
Esta noite, o antagonismo entre eles ficaria selado para sempre. E esperava
ser capaz de continuar com sua vida, sem se ver atormentado por falsas
esperanças de futuro.
Levou a taça aos lábios, tomou um gole e a deixou no chão. Queria estar
completamente sóbrio para o que estava por chegar.
De trás do biombo, Kit ouviu o ruído de seus passos no chão de madeira, e
soube que estava se impacientando. Agarrou a toalha e enquanto a enrolava no
corpo, desejou que fosse algo maior. Não tinha nem sua própria roupa. Cain
tinha tirado seu vestido queimado.
Levantou a cabeça rapidamente quando ele apareceu por cima do biombo.
Olhava-a tranquilamente enquanto apoiava uma mão no alto.
— Ainda não terminei — ela conseguiu dizer.
— Já teve tempo suficiente.
— Não sei por que me obrigou a me banhar em seu quarto.
— Sim, sabe.
Agarrou a toalha mais forte. Outra vez procurou alguma saída para o que a
esperava, mas tinha a sensação de que era algo inevitável. Agora era seu
marido.
Se tentasse escapar, ele a agarraria. Se lutasse, a derrotaria. Só restava pôr
em prática a disciplina da submissão, disciplina que a senhora Templeton lhes
tinha ensinado fazia pouco mais de um mês. Mas a submissão nunca tinha sido
algo fácil para lidar.
Olhou o fino anel que agora tinha no dedo. Era um pequeno e bonito aro de
ouro com dois pequenos corações delicadamente perfilados em diamante e
lascas de rubis. Disse-lhe que o tinha dado Miss Dolly.
— Não tenho nada para pôr — disse ela.
— Não vai precisar de nada.
— Tenho frio.
Devagar, sem tirar o olhar dela, tirou a camisa e a ofereceu.
— Não quero sua camisa. Se me deixar sair, irei a meu quarto e vestirei
minha bata.
— Prefiro que fique aqui.
Homem obstinado e autoritário! Apertou os dentes e saiu da tina.
Pegou a toalha com uma mão, agarrou sua camisa com a outra. Calmamente
a pôs sobre a toalha. Depois, deu-lhe as costas, deixou cair a toalha e abotoou
rapidamente.
As mangas ficavam muito largas, fazendo o trabalho mais difícil. As abas
se aderiam a suas coxas, fazendo—a consciente da malha fina que cobria sua
nudez. Prendeu as mangas e passou a seu lado.
— Preciso ir ao meu quarto e pegar um pente, senão meu cabelo se
embaraça.
— Usa o meu - ele apontou para a bacia com a cabeça.
Foi ate lá e o pegou. Olhou-se no espelho, parecia pálida e cautelosa, mas
não assustada. E deveria estar, pensou, enquanto passava o pente pelo longo
cabelo úmido. Cain a odiava. Ele era imprevisível e poderoso, mais forte que
ela, e tinha a lei a seu lado. Deveria chorar, implorando piedade. Entretanto, o
que sentia era uma estranha agitação interior.
Através do espelho, o viu caminhar para a poltrona. Sentou-se e cruzou um
tornozelo sobre o joelho. Retirou o olhar e se penteou mais vigorosamente,
salpicando de gotas ao seu redor.
Ouviu um movimento, e seu olhar voltou para espelho. Cain pegava uma
taça do chão e a levava para ela.
— A sua saúde, senhora Cain.
— Não me chame assim.
— É seu nome. Já o esqueceu?
— Não esqueci nada — respirou profundamente — Não esqueci que te fiz
mal. Mas já paguei o preço e não preciso pagar mais.
— Eu julgarei isso. Agora, solta o pente e dá a volta, para que possa te
olhar.
Devagar, fez o que lhe pedia, com uma emoção estranha, entre entusiasmo e
temor. Ficou olhando as cicatrizes de seu peito.
— Onde conseguiu essa cicatriz do ombro?
— Em Missionary Ridge.
— E a da mão?
— Em Petersburg. E a que tenho no ventre, foi por uma malsucedida partida
de pôquer, em um bordel de Laredo. E agora, desabotoe a camisa e venha aqui
para que eu possa dar uma olhada a minha nova propriedade.
— Não sou sua propriedade, Baron Cain.
— Isso não é o que diz a lei, senhora Cain. As mulheres pertencem a seus
maridos.
— Siga pensando assim se te fizer feliz. Mas eu só pertenço a mim mesma.
Ele se levantou e aproximou-se com passos deliberadamente lentos.
— Quero que tenha uma coisa clara, desde o começo. É minha propriedade.
E fará tudo o que eu disser. Se te pedir que engraxe minhas botas, você o fará.
Se te ordenar que limpe o esterco de meus estábulos, você limpará. E se te
quiser em minha cama, espero vê-la deitada e com as pernas abertas antes que
eu tenha tirado o cinturão.
Suas palavras deveriam ter revolvido o estômago de medo, mas havia algo
muito intencionado nelas. Ele deliberadamente tentava assustá-la, mas não lhe
deixaria fazer isso.
— Estou aterrorizada — disse arrastando as palavras.
Não tinha reagido como ele esperava, de modo que se aproximou mais
dela.
— Quando se casou comigo hoje, perdeu seu último instante de liberdade.
Agora posso fazer contigo o que quiser, menos te matar, claro. E embora não
esteja certo disso, inclusive acredito que também posso.
— Senão eu faço primeiro — respondeu ela.
— Não terá oportunidade.
Ela tratou outra vez de raciocinar com ele.
— Fiz uma coisa horrível. Equivoquei-me, mas já tem meu dinheiro. Pega o
triplo do que deveria custar reconstruir o moinho, e acabemos com isto.
— Algumas coisas não têm preço — apoiou um ombro sobre uma das
colunas da cama. — Isso deveria diverti-la...
Ela o olhou com cautela. Estava claro que ela não pensava assim.
— Tinha decidido não te mandar para Nova Iorque, pensava dizer isso pela
manhã.
Kit se sentiu doente. Negou com a cabeça, esperando que não fosse
verdade.
— Irônico, verdade? — disse ele — Não queria te machucar. Mas agora
tudo mudou e já não me preocupo com isso — estendeu a mão e começou a
desabotoar os botões de sua camisa.
Ela parecia perfeitamente tranqüila, mas a faísca de confiança que tinha
antes, evaporou-se.
— Não faça isto.
— É muito tarde — abriu a camisa e contemplou seus seios.
Ela não disse nada, mas não pôde evitar.
— Tenho medo.
— Eu sei.
— Vai doer?
— Sim.
Apertou os olhos com força, tirou-lhe a camisa e ela ficou nua a sua frente.
Esta noite seria a pior, se disse. Quando acabasse, ele teria perdido todo o
poder sobre ela.
Ele a pegou sob os joelhos e a derrubou na cama. Ela virou a cabeça
quando ele começou a se despir. Segundos mais tarde, ele subiu ao mesmo
lado da cama, o colchão cedendo sob o seu peso.
Cain sentiu algo estranho em seu interior ao vê-la retirar a cabeça. Os olhos
fechados... a resignação nesse rosto em forma de coração... quanto lhe teria
custado admitir seu medo? Maldita seja, ele não a queria assim. A queria com
seus insultos e sua luta. Queria vê-la amaldiçoando-o, com esse olhar de
cólera que tão bem conhecia.
Separou-lhe os joelhos para forçar sua reação, mas nem assim lutou. Abriu
um pouco mais as pernas e mudou sua posição para se ajoelhar entre elas.
Então olhou para baixo à parte secreta dela, banhada pela luz do abajur.
Ela continuava imóvel quando ele separou o sedoso pelo escuro com os
dedos. Sua rosa selvagem das profundidades do bosque. Pétalas sob pétalas.
Protetoramente dobradas ao redor de seu coração. O estômago se contraiu ao
olhá-la. Sabia desde a tarde na lagoa o quão pequena era, quão apertada
estava. Sentiu-se inundado por um indiscutível sentimento de ternura.
Pela extremidade do olho viu sua delicada mão formar-se em um punho
sobre a colcha. Esperava que se lançasse sobre ele e lutasse pelo que estava
lhe fazendo. Desejava que o fizesse. Mas ela não se moveu, e essa mesma
impotência o desarmou.
Com um gemido se deitou e a estreitou entre seus braços. Ela estava
tremendo. A sensação de culpa tão poderosa como seu desejo lutavam dentro
de si. Nunca tinha tratado a uma mulher tão cruelmente. Isto era parte da
loucura a que tinha chegado.
Ele a sustentou contra seu peito nu e acariciou as mechas úmidas de seu
cabelo. Enquanto a acalmava, alimentava seu próprio desejo, mas não cedeu
até que finalmente Kit deixou de tremer.
— Sinto muito — sussurrou ele.
O braço de Cain parecia sólido e ironicamente consolador envolvendo-a.
Ouviu sua respiração lenta, mas sabia que não estava dormindo, não mais do
que ela estava. O luar prateado enchia o quarto de quietude, e ela sentiu uma
estranha sensação de calma. Apesar da tranquilidade, pelo inferno que tinham
passado e o inferno que sem dúvida tinham pela frente, se viu obrigada a falar.
— Por que me odeia tanto? Antes inclusive do moinho. Desde o dia que
retornei a Risen Glory.
Ele ficou em silencio durante um momento. Depois respondeu.
— Nunca te odiei.
— Estava destinada a aborrecer a quem herdasse Risen Glory — disse ela.
— Tudo volta sempre para Risen Glory, não? Ama tanto esta plantação?
— Mais que tudo no mundo. Risen Glory é tudo o que sempre tive. Sem ela,
não sou nada.
Ele retirou uma mecha de cabelo que lhe caía sobre a bochecha.
— É uma mulher formosa e além disso tem coragem.
— Como pode dizer isso depois do que fiz?
— Suponho que fazemos o que acreditamos conveniente.
— Como me forçar a casar contigo?
— Como isso — ficou calado um momento — Não sinto, Kit. Não mais que
você.
Sua tensão voltou.
— Por que não seguisse adiante e terminaste o que foste fazer? Não teria te
impedido.
— Porque te quero disposta. Desejosa e tão faminta por mim como eu por
você.
Ela estava muito consciente de sua nudez, e se afastou dele.
— Isso não ocorrerá nunca.
Esperava vê-lo zangado. Em seu lugar, ele se recostou nos travesseiros e a
olhou sem tentar tocá-la.
— Tem uma natureza apaixonada. Sei por seus beijos. Não tema isso.
— Não quero ter uma natureza apaixonada.É errado em uma mulher.
— Quem te disse isso?
— Todo mundo sabe. Quando a senhora Templeton nos falou da Vergonha
de Eva, nos disse isso.
— O que de Eva?
— A Vergonha de Eva. Já sabe.
— Bom Deus — ele se sentou na cama — Kit, sabe exatamente o que
ocorre entre um homem e uma mulher?
— Vi os cavalos.
— Os cavalos não são humanos — pôs as mãos nos ombros e a virou para
ele. — Olha para mim. Embora me odeie, agora estamos casados e não poderá
evitar que te toque. Mas quero que saiba o que ocorre entre nós. Não quero te
assustar outra vez.
Pacientemente, com uma linguagem singela e direta lhe falou de seu próprio
corpo e do dele. E lhe disse como era o momento da penetração.
Depois, levantou-se da cama e caminhou até a mesa, onde pegou sua taça de
brandy. Deu a volta e ficou tranquilamente de pé, deixando-a satisfazer uma
curiosidade que não confessaria a ele.
Os olhos de Kit absorveram seu corpo, tão claramente iluminado pela luz
da lua. Viu uma beleza que nunca antes teria imaginado, uma beleza esbelta e
musculosa, que falava de força, dureza e coisas que não entendia.
Seus olhos foram a seu membro ereto que cresceu com seu olhar, e seu
medo voltou.
Ele deve ter sentido sua reação, porque deixou a taça e voltou para a cama.
Desta vez seus olhos refletiam um desafio, e mesmo quando ela tinha medo,
nunca tinha rechaçado um desafio, não quando provinha dele.
Sua boca estava torcida em uma careta que poderia ter sido um sorriso.
Então baixou a cabeça e acariciou os lábios com os seus. Seu toque com a
boca fechada foi suave e leve como uma pluma. Não havia uma língua
invasora que lhe recordasse o que logo ocorreria.
Uma parte de sua tensão se dissolveu. Seus lábios encontraram um caminho
para a orelha. Beijou o vale por baixo, tomou o lóbulo com seu diminuto
brinco de prata suavemente entre os dentes e depois com os lábios.
Kit fechou os olhos para desfrutar das sensações que despertava nela, e os
abriu de repente quando agarrou seus pulsos e os estendeu por cima de sua
cabeça.
— Não tenha medo — sussurrou ele, lhe acariciando a suave pele exterior
de seus braços — Você gostará. Isso eu prometo.
Ele fez uma pausa ao chegar a seu cotovelo, acariciando-o com o polegar
para frente e para atrás através de sua pele sensível.
Tudo o que tinha acontecido entre eles tinha que tê-la deixado cautelosa,
mas enquanto a acariciava em deliciosos círculos que a faziam estremecer, o
passado se evaporava e as deliciosas sensações do presente a deixaram presa.
Ele deslizou o lençol até sua cintura e contemplou o que revelava.
— Tem seios maravilhosos — sussurrou com voz rouca.
Uma mulher educada certamente teria baixado os braços, mas Kit não tinha
sido educada corretamente, e não conhecia a modéstia. O viu baixar a cabeça,
olhou seus lábios e sentiu o hálito quente em sua pele sensível.
Gemeu quando ele rodeou em círculos o pequeno mamilo com a língua.
Pouco a pouco, foi aumentando a pressão. Ela arqueou o corpo e ele abriu os
lábios para abranger tudo o que lhe oferecia. Carinhosamente a sugou.
Ela se encontrou levantando os braços e pondo as mãos em sua cabeça,
aproximando-o mais. Enquanto com a boca torturava um mamilo, com a mão
calosa se ocupava do outro, apertando-o levemente com o polegar e o
indicador.
Kit não conhecia os homens, e não sabia que ele estava dando rédea solta a
sua própria paixão, enquanto dava prazer a ela. Tudo o que sabia era que a
língua sobre seu seio acendia todas as terminações nervosas de seu corpo.
Ele afastou o lençol e ficou ao seu lado. Outra vez sua boca encontrou a
dela, mas esta vez não teve que a persuadir para abri-la. Seus lábios os
esperavam abertos. De qualquer forma, ele tomou seu tempo, deixando-a se
acostumar a ele.
Enquanto ele tocava com os lábios, as mãos de Kit se tornaram inquietas.
Colocou um de seus polegares sobre o mamilo duro e plano.
Com um gemido ele colocou as mãos no cabelo úmido, emaranhado e
levantou sua cabeça do travesseiro. Mergulhou a língua em sua boca e tomou
posse do interior quente e escorregadio.
O lado selvagem, que tinha sido sempre parte de sua natureza, encontrou
sua paixão. Ela se arqueou debaixo dele, estendendo seus dedos sobre seu
peito.
O último vestígio de seu autocontrole se rompeu. Suas mãos já não se
contentavam só com seus seios, deslocaram-se para baixo por seu corpo até
seu ventre e depois ao sedoso e escuro triângulo.
— Se abra para mim, doçura. — lhe sussurrou roucamente em sua boca —
Me deixe entrar.
Ela se abriu. Seria inconcebível não fazê-lo. Mas o acesso que ela oferecia
não era o suficiente para ele. Acariciou o interior de suas coxas, até que ela
pensou que ficaria louca. Finalmente, suas pernas se abriram o suficiente para
satisfazer seu desejo.
— Por favor — ofegou ela.
Ele tocou então, a sua rosa selvagem, o centro de sua feminilidade. A abriu
com cuidado de modo que não fosse tão difícil, tomando seu tempo, apesar de
a necessitar com loucura, como nunca tinha necessitado uma mulher.
Então subiu por seu corpo, beijando seus seios e sua doce e jovem boca. E
já, incapaz de se conter, colocou-se entre suas pernas e suavemente a penetrou.
Ela ficou tensa. Ele a acalmou com seus beijos e então com um impulso
suave, abriu caminho através do véu de sua virgindade e tirou sua inocência.
Ela caiu para atrás ao sentir uma pequena e aguda dor. Até agora, só tinha
tido prazer. Parecia-lhe uma traição. Suas carícias a tinham enganado. Tinham
prometido algo mágico, mas ao final só tinha sido a promessa do diabo.
Sua mão se enterrou em seu queixo e virou seu rosto. Fulminou-o com o
olhar, muito consciente que estava enterrado profundamente em seu interior.
— Tudo bem, doçura — murmurou ele — A dor já terminou.
Desta vez não acreditou.
— Possivelmente para você. Saia!
Ele sorriu profunda e alegremente. Suas mãos voltaram para seus seios, e
ela sentiu como as sensações recomeçavam outra vez.
Ele começou a mover-se dentro dela, e não quis que se retirasse. Colocou
seus dedos nos firmes músculos de seus ombros e enterrou a boca em seu
pescoço para poder saboreá-lo com sua língua. Sua pele era salgada e limpa, e
quanto mais profundamente se movia dentro dela, perfurava sua matriz e seu
coração, derretendo seus ossos, sua carne, inclusive sua alma.
Ela se esticou, arqueando-se e permitindo—lhe que a montasse, durante o
dia e a noite, por espaço indefinido, agarrando-se a ele, a seu doce corpo
masculino, a seu membro duro, entrando mais e mais profundamente nela,
levando-a mais alto, lançando-a ao brilho ofuscante do sol e da lua, deixando-
a pendurando uma eternidade e logo se rompeu em um milhão de lascas de luz
e escuridão, igualando seu grande grito liberador com o seu próprio.
QUARTA PARTE
Katharine Louise Nada pode te trazer a paz, salvo você mesmo RALPH
Waldo Emerson “Confiança em si mesmo”
15
Estava sozinha na grande cama quando o ruído no corredor a despertou.
Piscou contra a luz do sol e compreendeu onde estava. O movimento
repentino lhe provocou uma careta de dor.
Sophronia entrou precipitadamente sem se incomodar em chamar.
— Kit! Carinho, você está bem? Magnus não me deixou sair antes, se não
teria vindo mais cedo.
Kit não pôde olhar nos olhos de Sophronia.
— Estou bem — retirou os lençóis. Sua bata estava em cima da cama. Cain
devia tê-la deixado ali.
Enquanto a vestia, Sophronia ficou rígida. Kit a viu olhar atentamente a
mancha pálida no lençol.
— Passou a noite com Magnus? — disse rapidamente, tratando de desviar
sua atenção.
Sophronia desviou o olhar da cama.
— O Major não me deu outra opção. Magnus dormiu na varanda.
— Já sei — Kit se foi para seu próprio quarto, como se tudo estivesse
normal — Uma noite agradável para dormir ao ar livre.
Sophronia a seguiu. Kit começou a lavar-se com a água que Lucy tinha
levado. Um pesado silêncio se instalou entre elas.
Foi Sophronia quem o rompeu.
— Ele te machucou? Pode me contar.
— Estou muito bem — repetiu Kit muito rapidamente.
Sophronia se sentou na cama sem desfazer.
— Nunca te falei disto. Não queria fazê-lo, mas agora...
Kit se afastou da bacia.
— O que aconteceu?
— Eu... eu sei o que é... que um homem te faça mal... — retorcia as mãos no
busto.
— Oh Sophronia...
— Eu tinha quatorze anos a primeira vez. Ele... ele era um homem branco.
Depois desejei morrer, me sentia suja. E durante aquele verão, sempre me
encontrava, não importava o quanto eu tentasse me esconder. “Você, garota, me
chamava, vem comigo”.
Os olhos de Kit se encheram de lágrimas. Correu para o lado de sua amiga
e se ajoelhou a seu lado.
— Sinto muito. Nunca soube.
— Não queria que soubesse.
Kit levou a mão de Sophronia à bochecha.
— Não pôde ir a meu pai e lhe contar o que estava acontecendo?
Sophronia inflou as narinas, e retirou a mão.
— Ele sabia o que estava ocorrendo. Os brancos sempre sabiam o que
acontecia com as escravas que possuíam.
Kit se alegrou de não ter tomado o café da manhã ainda, porque teria
vomitado.
Sempre tinha escutado essas histórias, mas tratava de se convencer que
nada disso ocorria em Risen Glory.
— Não estou te contando isto para te fazer chorar — Sophronia pôs o
polegar em uma das lágrimas de Kit.
Kit pensou nos argumentos sobre os Direitos dos Estados que durante anos
sempre tinha argumentado quando alguém lhe dizia que a guerra tinha sido por
causa da escravidão. Agora entendia o porquê desses argumentos serem tão
importantes para ela. Tinham-na impedido de ver uma verdade que não estava
preparada para enfrentar.
— É tão perverso. Tão horrível.
Sophronia se levantou e se afastou.
— Estou fazendo todo o possível para esquecer. Agora, você é única que
me preocupa.
Kit não queria falar de si. Virou-se para a bacia, se comportando como se
seu mundo fosse o mesmo do dia anterior.
— Não, não tem que se preocupar comigo.
— Vi o olhar de seu rosto quando entrou na casa. Não é preciso muita
imaginação para saber que passou um mau momento. Mas me escute, Kit, não
pode guardar tudo isso em seu interior. Deve deixá-lo sair para que não te
afete.
Kit tratou de pensar em algo para lhe dizer, especialmente depois do que
Sophronia tinha lhe contado. Mas como poderia falar de algo que não
compreendia?
— Não importa quão mau fora — disse Sophronia —, pode me falar
claramente. Te compreendo querida, pode me dizer isso.
— Não, você não entende.
— Faço-o. Sei como é. Sei.
— Não, não sabe. — Kit se virou — Não foi tão horrível como o seu. Não
foi mau absolutamente, terminou suavemente.
— Quer dizer que ele não te fez...
Kit tragou saliva e assentiu.
— Sim o fez.
O rosto de Sophronia voltou a empalidecer.
— Eu... eu não deveria ter... — lhe faltavam as palavras. — Tenho que
voltar para a cozinha. Patsy não se encontrava bem ontem.
Suas anáguas fizeram um suave frufrú enquanto saía do quarto.
Kit olhou com atenção a porta, sentindo-se culpada e doente.
Finalmente se forçou a terminar de se vestir. Colocou a mão no armário e
tirou a primeira coisa que tocou, um bombasí de listras rosas e brancas.
Tinha perdido um pente de prender cabelo, de maneira que prendeu os
cachos com uma fita laranja que encontrou na gaveta. Não combinava com o
vestido, mas não notou.
Quando chegava ao vestíbulo, a porta principal se abriu e entraram Cain e
Miss Dolly. Kit imediatamente foi sufocada em um abraço com aroma de
hortelã.
— Oh, minha doce, doce querida! Este é o dia mais feliz de minha vida,
sem dúvida o é. E pensar que você e o Major estavam apaixonados e eu sem
suspeitar de nada.
Era a primeira vez que ouvia Miss Dolly chamar Baron de Major
voluntariamente. Olhou-a mais atentamente, lhe dando uma desculpa para
evitar o olhar de Cain.
— Já repreendi o Major por ter me mantido à margem, e também deveria te
repreender, mas estou muito contente — a velha dama levou as mãos ao
corpete do vestido. — Olhe só, Major, como é bonito o vestido e a fita no
cabelo. Embora poderia ter escolhido outra cor, Katharine Louise. Essa de
cetim rosa talvez não esteja bem engomada. E agora, tenho que ir pedir a Patsy
que prepare um bolo.
Com um beijo rápido na bochecha de Kit, dirigiu-se à cozinha. Quando o
ruído de seus diminutos saltos no chão de madeira se perderam, Kit se forçou
a olhar seu marido.
Poderia estar olhando para um estranho. Seu rosto estava carente de
expressão e seus olhos distantes. A paixão que tinham compartilhado na noite
anterior poderia estar só em sua imaginação.
Procurou algum vestígio de ternura, algum reconhecimento da importância
do que tinha ocorrido entre eles. Percorreu-a um calafrio quando não
encontrou nada. Deveria saber que as coisas seriam assim com ele. Tinha sido
tola ao esperar algo mais. Também se sentiu traída.
— Por que Miss Dolly te chama de Major? — fez essa pergunta, já que não
se atrevia com as outras — O que você lhe disse?
Ele deixou o chapéu na mesa do vestíbulo.
— Lhe disse que nós tínhamos casado. E acrescentei que se continuava
acreditando que sou o General Lee, deveria se resignar ao fato que você
estava vivendo com um bígamo, pois o General está casado há anos.
— Como ela reagiu?
— Aceitou, sobretudo quando lhe recordei que minha cartilha militar não
era para se envergonhar.
— Sua cartilha militar? Como pode assustá-la assim? — Finalmente tinha
um motivo para disfarçar sua dor — Se a intimidaste...
— Não parecia assustada, ficou bastante contente ao escutar como servi
corajosamente às ordens do General Beauregard.
— Beauregard lutou pela Confederação.
— Compromisso, Kit. Possivelmente algum dia aprenderá o valor disso —
ele se dirigiu aos degraus e logo se deteve. — Vou a Charleston dentro de uma
hora. Magnus ficará aqui se por acaso precisar de algo.
— A Charleston? Vai hoje?
Seus olhos riam dela.
— Acaso espera uma lua de mel?
— Não, com certeza não. Mas não acredita que vai parecer um pouco
estranho que vá sozinho um dia depois de... nossas bodas?
— Desde quando se importa com o que as pessoas pensam?
— Não me importa. Só estava pensando em Miss Dolly e seu bolo — sua
ira se inflamou — Vá a Charleston. Pois não me importo, pode ir ao inferno.
Ela passou a sua frente e saiu pela porta da rua. Tinha a esperança que a
seguisse. Queria brigar, se envolver em uma luta furiosa para desabafar sua
tristeza. Mas a porta permaneceu fechada.
Foi ate o carvalho detrás da casa e se apoiou em um dos grandes ramos.
Como sobreviveria, como sua esposa?
***
Durante os seguintes dias, permaneceu longe da casa tanto quanto foi
possível. Ao amanhecer, pegava as calças e montava em Tentação percorrendo
a plantação de lado a lado, evitando a zona do moinho. Falava com as
mulheres sobre seus jardins, com os homens sobre a colheita de algodão, e
caminhava entre as longas filas de novelo até que o sol da tarde a conduzia a
seu refúgio nos bosques ou à beira do lago.
Mas o lago tinha deixado de ser seu santuário. Tinham lhe tirado isso
também. Enquanto se sentava sob os salgueiros, pensava como lhe tinham
tirado tudo: sua casa, seu dinheiro, e finalmente seu corpo. Só que esse tinha
dado livremente.
Às vezes as lembranças a enchiam de raiva. Outras vezes se sentia nervosa
e inquieta. Quando isto ocorria, pegava Tentação e cavalgava até ficar
exausta.
Um dia seguia o outro. Kit nunca tinha sido uma covarde, mas não
encontrava a coragem para confrontar seus visitantes, de modo que os deixava
com Miss Dolly. Embora soubesse que os Cogdell nunca revelariam os
detalhes de seu horrível casamento, o resto era também bastante deprimente,
casou-se com o inimigo com tal pressa que os teria contando nos dedos os
próximos meses. Igualmente embaraçoso era o fato de que seu marido a tinha
abandonado no dia seguinte depois do casamento, e o pior é que não tinha a
mínima ideia de quando retornaria.
Só uma vez tinha aceito receber uma visita, e foi no sábado a tarde quando
Lucy lhe anunciou que o senhor Parsell estava na sala. Brandon sabia o que
pensava de Cain, de modo que devia supor que a tinha forçado a contrair
matrimônio. Possivelmente tinha pensado em uma forma de ajudá-la.
Rapidamente trocou as calças por um vestido que tinha usado no dia
anterior e desceu às pressas ao salão. Ele se levantou do sofá para recebê-la.
— Senhora Cain — lhe fez uma cerimoniosa reverência —, vim desejar
minhas felicidades assim como os melhores desejos, de parte de minha mãe e
minhas irmãs. Espero que o Major Cain e você sejam muito felizes.
Kit sentiu uma vontade histérica de cair na risada crescer em seu interior.
Ele se comportava como se não tivesse havido nada entre eles, como se
fossem uns amigos distantes.
— Obrigado, senhor Parsell — respondeu, tratando de usar o mesmo tom.
Sustentada por seu orgulho, usou impecavelmente o papel para o qual a
Academia Templeton a tinha treinado. Durante os vinte minutos seguintes,
falou das roseiras que cresciam perto da entrada da casa, a saúde do
presidente, do Banco, dos Cidadãos e Plantadores, e a possibilidade de
comprar um novo tapete para a igreja.
Ele respondeu a cada tema e nenhuma só vez tentou se referir a algum dos
acontecimentos que tinham compartilhado menos de uma semana antes.
Quando se despediu, exatamente vinte minutos depois de sua chegada,
perguntou-se por que tinha demorado tanto tempo em admitir que era um
completo idiota.
Passou a tarde enrolada em uma poltrona na sala de estar, com seu velho e
gasto livro dos Ensaios de Emerson no colo. Em frente tinha a mesa de mogno
onde Sophronia trabalhava com as contas da casa.
Cain esperaria que agora ela assumisse o controle, mas Sophronia não
apreciaria sua interferência, e Kit não tinha nenhum interesse em contar
toalhas. Ela não queria administrar a casa. Ela queria administrar as terras.
Quando chegou a noite, Kit se afundou mais profundamente em desespero.
Ele poderia fazer o que quisesse com sua plantação, e não poderia lhe
impedir. Embora ele se preocupasse mais com moinho que com os campos.
Talvez fosse pelos campos para cortar caminho. E além disso era um jogador.
E se esbanjava o dinheiro de seu fideicomisso? E se decidisse vender a terra
para conseguir dinheiro em espécie?
O relógio do vestíbulo bateu meia-noite e seus pensamentos tornaram ainda
mais lúgubres. Cain era um nômade e já tinha vivido ali três anos.
Quanto demoraria para decidir vender Risen Glory e partir para outro
lugar?
Tratou de se convencer que Risen Glory estava segura por enquanto. Cain
estava preocupado por trabalhar no moinho, de modo que não era provável
que fizesse nada drástico de forma imediata. Embora fosse contra sua natureza,
devia ter paciência.
Sim, Risen Glory estava segura, mas e ela? O que acontecia a torrente de
calor que fazia seu sangue ferver quando ele a tocava? Ou a agitação interior
que sentia sempre que o olhava? A história estava se repetindo? O sangue
Weston chamava o sangue Cain como tinha ocorrido já uma vez, na união que
quase tinha destruído Risen Glory?
— Katharine Louise, por que não está na cama? — Miss Dolly estava de pé
na porta, com seu gorro de dormir torcido e um gesto de preocupação na cara.
— Sinto-me inquieta. Lamento havê-la despertado.
— Me deixe te dar um pouco de láudano, querida. Assim poderá dormir.
— Não preciso.
— Claro que sim, Katharine. Não seja teimosa.
— Está bem — acompanhou Miss Dolly acima, mas a mulher mais velha
não a deixou só até que Kit tomou várias colheres de chá de láudano.
Dormiu, só para ser assaltada por grande quantidade de imagens produzidas
pelo ópio. Já estava amanhecendo, quando um grande leão dourado vinha em
sua direção. Sentiu seu cheiro másculo, aroma de selva, mas em vez de sentir
medo, enterrou os dedos em sua juba e o aproximou mais a ela.
Gradualmente, o leão se transformou em seu marido. Ele sussurrou palavras
de amor e começou a acariciá-la. Através do sonho, ela sentiu sua pele. Era
cálida e tão úmida como a sua.
— Vou possuir-te agora — sussurrou seu marido do sonho.
— Sim — murmurou ela.
Ele a penetrou então e seu corpo ardeu em combustão, moveu-se com ele,
subiu com ele, e justo antes que as chamas a consumissem, gritou seu nome.
Ainda sentia os efeitos do sonho provocado pelo laúdano quando despertou
pela manhã. Olhou fixamente a seda rosa e verde do dossel, tratando de
desprender do atordoamento que produzia os efeitos secundários do
medicamento. Pareceu tão real... o leão dourado que se converteu sob suas
mãos em...
Rapidamente se revirou na cama.
Cain estava barbeando-se tranquilamente, diante do espelho pendurado
sobre a bacia. Usava só uma toalha branca lhe cobrindo os quadris.
— Bom dia.
Fulminou-lhe com o olhar.
— Va para seu quarto se barbear.
Ele se virou e olhou com inequívoco prazer seus seios.
— Aqui a paisagem é melhor.
Compreendeu que o lençol lhe tinha caido até a cintura, e rapidamente o
levantou até o queixo. Então viu sua camisola enrugada no chão. Ele riu
quando a viu reter o fôlego. Ela levantou o lençol e se cobriu até a cabeça.
Estava claro. A umidade entre suas coxas não era imaginária.
— Foi uma gata selvagem ontem à noite — disse ele claramente divertido.
E ele tinha sido um leão.
— Estava drogada — replicou ela — Miss Dolly me fez tomar laúdano.
Não me lembro de nada.
— Então suponho que terá que confiar em minha palavra. Foi doce e
submissa, e me deixou fazer tudo o que quiz.
— Quem está sonhando agora?
— Ontem à noite tomei o que me pertence — disse ele em um tom
deliberado. — É bom para você que sua liberdade seja coisa do passado.
Evidentemente precisa de uma mão firme.
— E você, evidentemente, precisa de uma bala no coração.
— Sai da cama e coloca um vestido, esposa. Já se escondeu muito.
— Eu não me escondi.
— Isso não é o que ouvi — ele banhou o rosto e agarrou uma toalha para se
secar. — Ontem vi uma de nossas vizinhas de Charleston. Com evidente prazer
me informou que não está recebendo às visitas.
— Me perdoe se não estou ansiosa por escutar de boca em boca que me
casei com um ianque, que além do mais me abandonou um dia depois do meu
casamento.
— Isso é o que realmente te dói, não? — Deixou a toalha. — Não tive
opção. O moinho deve ser reconstruído para a colheita deste ano, e precisava
encontrar fornecimento de madeira e contratar carpinteiros.
Ele caminhou para a porta.
— Quero que se vista e esteja la embaixo em meia hora. A carruagem
esperará.
Ela o olhou com desconfiança.
— Para que?
— É domingo. O senhor e a senhora Cain vão à igreja.
— À igreja!
— É isso mesmo, Kit. Esta manhã vai confrontar a todos, e deixará de se
comportar como uma covarde.
Kit ficou em pé de um salto levando o lençol consigo.
— Eu nunca fui uma covarde em minha vida!
— Conto com isso. — e desapareceu pela porta.
Nunca admitiria, mas ele tinha razão. Não podia continuar se escondendo
mais. Amaldiçoando entre dentes, jogou o lençol de lado e se lavou.
Decidiu usar o vestido nomeolvides (não me esqueças) em musselina azul e
branco que tinha usado na primeira noite da sua volta a Risen Glory. Depois
de vestida se fez um coque frouxo, complementado com uma fita de cetim bege
e azul sobre a cabeça. De joias, só usava sua odiada aliança de casamento e os
brincos pequenos de labradoritas.

Era uma manhã calma e os paroquianos não tinham entrado na igreja.


Enquanto foram se aproximando na carruagem de Risen Glory, Kit podia ver
todas as cabeças se virar. Só os meninos brincando em animada energia eram
indiferentes à chegada de Baron Cain e sua noiva.
Cain ajudou Miss Dolly a descer, e estendeu o braço para ajudar Kit. Mas
ela se afastou elegantemente, e quando ele já retirava o braço, aproximou-se.
Com o que esperava fosse um sorriso íntimo, deslizou primeiro uma mão e
depois a outra em cima de seu braço e se agarrou a ele em uma pose de mulher
carinhosa e indefesa.
— Vai se comportar, certo? — murmurou ele.
Lhe dirigiu um ardente sorriso e sussurrou entre dentes.
— Só faço meu papel, e você pode ir para o inferno.
A senhora Rebecca Whitmarsh Brown foi a primeira que a alcançou.
— Olá, Katharine Louise. Não esperávamos vê-la esta manhã. Isso para
não falar de seu repentino matrimônio com o Major Cain. Surpreendeu-nos
muitíssimo, não é verdade, Gladys?
Os olhos de sua filha Gladys estavam fixos em Cain, e por sua expressão,
Kit deduziu que ianque ou não, não lhe tinha feito nenhuma graça ser ofuscada
por uma jovenzinha como Kit Weston.
Kit pressionou a bochecha no braço de Cain.
— Olá senhora Brown, Gladys. Sim, acredito que surpreendeu a muitos.
Mas não a todo mundo, pois muita gente adivinhou após minha volta a Risen
Glory o que sentíamos um pelo outro. Embora ele, por ser um homem, foi
capaz de esconder seus verdadeiros sentimentos melhor que eu. Já sabem que
para as mulheres, essas coisas não conseguimos esconder.
Cain fez um som abafado e inclusive Miss Dolly piscou.
Kit suspirou e resmungou.
— Tentei lutar contra nossa atração... o Major era um intruso ianque, e
ainda mais um de nossos inimigos mais perversos. Mas como escreveu
Shakespeare, “o amor conquista todas as coisas”. Não é assim, querido?
— Acredito que quem escreveu isso foi Virgil, querida — respondeu ele.
— Não Shakespeare.
Kit sorriu às mulheres.
— Não acham que é um homem muito inteligente? Nunca pensaram que um
ianque soubesse tanto, verdade? Pois sabemos que eles são cabeças vazias.
Ele apertou seu braço no que parecia um gesto carinhoso, mas que em
realidade era um aviso para que não continuasse.
Ela abanou o rosto.
— Bom, que calor! Baron, querido, será melhor que entremos, que está
mais fresco. Parece que não me senta bem o calor desta manhã.
Nem bem as palavras tinha saído de sua boca e uma dúzia de pares de
olhos se dirigiram para sua cintura.
Desta vez o sorriso malvado de Cain, era inequívoco.
— Certamente, querida. Entremos rapidamente — a conduziu para as
escadas, com o braço ao redor de seus ombros como se levasse uma delicada
flor, e seu fruto precisasse de amparo.
Kit sentiu os olhos dos paroquianos fixos em suas costas e pôde os
imaginar contando mentalmente os meses. Deixa-os contar, disse.
Logo verão que estão equivocados.
Mas então veio um pensamento horrível.
***

A curandeira tinha sempre vivido em um barracão frágil onde tinham estado


as terras dos Parsell durante mais tempo do que alguém poderia se lembrar.
Alguns diziam que o velho Godfrey Parsell, o avô de Brandon, a tinha
comprado em um mercado de escravos em Nova Orleans. Outros diziam que
tinha nascido em Holly Grove e era em parte Cherokee. Ninguém sabia com
exatidão os anos que tinha e se tinha algum nome.
Brancas ou negras, todas as mulheres do condado tinham ido vê-la em
algum momento de suas vidas. Podia curar as verrugas, predizer o futuro, fazer
poções do amor e determinar o sexo dos meninos ainda não nascidos. Kit
sabia que era a única que podia ajudá-la.
— Boa tarde, curandeira. Sou Kit Weston... Katharine Louise Cain agora...
a filha de Garrett Weston. Se lembra?
A porta rangeu ao abrir e apareceu uma cabeça grisalha.
— É a jovem do Garrett Weston. Cresceu — a anciã soltou uma gargalhada
seca, rouca — Sem dúvida seu pai queimará no fogo do inferno.
— Certamente. Posso passar?
A anciã se afastou da porta, e Kit entrou no interior de uma pequena e limpa
cabana, apesar de sua desordem. Os molhos de cebolas, ervas e alhos
pendurados nas vigas, e móveis desiguais enchiam os cantos, e ao lado da
única janela da casa havia uma roda de fiar. Uma parede da cabana estava
cheia de estantes de madeira inclinada no meio pelo peso de várias vasilhas
de barro e outros potes.
A curandeira remexeu o fulmegante conteúdo de uma panela, que estava
pendurada em um gancho de ferro sobre o fogo. Depois, se sentou em uma
cadeira de balanço junto à Lareira. Como se estivesse sozinha, começou a
balançar-se e cantarolar com uma voz tão seca como as folhas caidas.
— Há um bálsamo em Gilead...
Kit se sentou na cadeira mais próxima a ela, era velha e tinha o assento
fundo, e escutou. Desde a reunião na igreja pela manhã, estava pensando o que
faria se tivesse um bebê. Ficaria atada a Cain para o resto de sua vida. Não
podia deixar que isso acontecesse, não enquanto ainda tivesse alguma
possibilidade, algum milagre que lhe devolvesse sua independência e pusesse
tudo em ordem outra vez.
Logo que voltaram da igreja, Cain desapareceu, mas Kit não pôde escapar
até muito tarde, quando Miss Dolly subiu para seu quarto para ler a Bíblia e
fazer a sesta.
A curandeira finalmente deixou de cantar.
— Menina, conta seus problemas a Jesus. Ele te indicará o caminho a
seguir para melhorar sua vida.
— Não acredito que Jesus possa fazer muito por solucionar meu problema.
A senhora elevou a vista ao teto e gargalhou.
— Senhor? Está escutando esta menina? — a risada agitou seu peito
ossudo. — Ela despreza sua ajuda. Acredita que a curandeira pode ajudá-la,
mas não Jesus cristo, seu filho.
Seus olhos começavam a lacrimejar pela risada e os secou com a ponta do
avental.
— Oh, Senhor — gargalhou de novo — esta menina... ela é tão jovem.
Kit se inclinou para a fente e tocou o joelho da anciã.
— Preciso de segurança, curandeira. Agora não posso ter um filho. Por isso
vim vê-la. Pagarei-lhe bem se me ajudar.
A anciã deixou de balançar-se e olhou para o rosto de Kit pela primeira vez
desde que tinha entrado em sua casa.
— Os filhos são uma bênção do Senhor.
— São uma bênção que eu não desejo — o calor na pequena casa era
opressivo e se levantou — Quando era menina, ouvia as escravas falando.
Diziam que às vezes você as ajudava a evitar ter mais filhos, embora punha em
perigo sua vida por isso.
A curandeira estreitou os olhos e a olhou com desprezo.
— Os filhos daquelas escravas eram vendidos e mandados para longe. Você
é branca. Não deve se preocupar de que arranquem seu filho de seus braços e
não volte a vê-lo nunca mais.
— Sei. Mas não posso ter um bebê. Não agora.
De novo a anciã começou a balançar-se e a cantarolar.
— Há um bálsamo em Gilead que cura todos os males. Há um bálsamo
em Gilead...
Kit seguiu para a janela. Estava perdendo tempo. A curandeira não a
ajudaria.
— Esse ianque. Pode levar o demônio consigo, mas também tem bondade.
— Muito de demônio e pouco de bondade, acredito eu.
A velha riu entre dentes.
— Um homem assim, tem uma semente forte. Terei que fazer um remédio
poderoso para combatê-la.
Levantou-se com dificuldade da cadeira de balanço e foi arrastando os pés
em direção as estantes, onde olhou um dos frascos e logo outro. Finalmente
derramou uma generosa quantidade de pó cinzento em um pote de geléia vazio
e o tampou com uma parte de tecido que atou com uma corda.
— Agita-o antes de pôr uma colherinha de chá em um copo de água e beba
isso todas as manhãs, depois de ter passado a noite com ele.
Kit agarrou o pote e lhe deu um abraço rápido e agradecido.
— Obrigada — tirou vários dólares que colocou no bolso e os pôs na mão.
— Faz o que a curandeira te diz, senhorita. Eu sei o que é melhor.
E então soltou outra gargalhada ofegante, e voltou para junto do fogo, rindo
em silêncio de uma brincadeira que só ela conhecia.
16
Estava na biblioteca em cima de uma escada de mão, tentando pegar um
livro, quando ouviu abrir a porta principal. No salão, o relógio do avô tocou
as dez. Só uma pessoa abria a porta assim. Toda a tarde tinha estado nervosa
esperando sua volta.
Essa tarde, quando retornava da casa da curandeira, o tinha visto ao longe.
Como era domingo, estava trabalhando só no moinho, tirou a camisa, e
descarregava material que havia trazido de Charleston.
— Kit!
A luz da biblioteca a tinha denunciado e pelo som de seu grunhido, não
estava de bom humor.
A porta da biblioteca voou sobre suas dobradiças. Sua camisa estava
manchada de suor e a calça suja colocada dentro das botas enlameadas que
certamente tinham deixado manchas no vestíbulo. Sophronia não ficaria feliz
por isso.
— Quando te chamar, quero vê-la imediatamente — grunhiu ele.
— Isso se tivesse asas — disse ela, mas o homem não tinha nenhum senso
de humor.
— Eu não gosto de ter que te buscar por todos os lados quando volto para
casa.
Ele estava sendo tão teimoso que ela quase sorriu.
— Talvez deveria levar uma cascavel. Quer algo?
— É obvio que quero algo. Em primeiro lugar, um banho e roupa limpa.
Depois o jantar. Em meu quarto.
— Chamarei Sophronia — inclusive enquanto o dizia, sabia que ele não o
aprovaria.
— Sophronia não é minha esposa. Ela não é a culpada de que tenha passado
as últimas seis horas descarregando material, algo que não teria ocorrido se
você não tivesse afeição pelos fósforos — ele se apoiou contra o marco da
porta, desafiando-a a discutir. — Você se ocupará de mim.
Ela tentou combater seu mau humor com um sorriso.
— Será um prazer. Prepararei seu banho.
— E o jantar.
— É obvio.
Enquanto passava a seu lado para dirigir-se à cozinha, fantasiou com a
ideia de montar Tentação e partir para longe, para sempre. Mas isso deixaria
Risen Glory nas mãos de seu marido temperamental.
Sophronia não estava em nenhuma parte, de modo que ordenou a Lucy que
se ocupasse do banho para Cain, e foi lhe preparar algo para comer. Pensou
em lhe servir veneno, mas finalmente se decidiu pelo prato que Patsy tinha
deixado coberto com um pano de prato, para mantê-lo quente. Retirou o pano
para que estivesse frio quando o subisse.
Lucy apareceu ofegante na porta.
— O senhor Cain diz que quer vê-la la em cima agora mesmo.
— Obrigada, Lucy.
Enquanto levava o prato de comida para cima, soprou o guisado quente
várias vezes, esperando esfriá-lo um pouco mais. Inclusive tinha pensado em
esvaziar um saleiro, mas não lhe queria tão mal. Ele podia ser o próprio
diabo, mas hoje tinha trabalhado duro. A comida morna, seria seu único
castigo.
Quando entrou no quarto, viu Cain sentado em uma cadeira, ainda
completamente vestido. Parecia tão mal-humorado como um leão com um
espinho na pata.
— Onde demônios estava?
— Me ocupando de seu jantar, queridíssimo.
Ele estreitou os olhos.
— Me ajude com minhas malditas botas.
Embora suas botas estivessem cobertas de lama, ele facilmente poderia te-
las tirado sozinho, mas tinha vontade de chateá-la. Normalmente estaria
encantada em combatê-lo, e já que ele tinha vontade de brigar, decidiu ser
perversa.
— Certamente, meu querido. — passou a seu lado, deu-lhe as costas e se
sentou escarranchada sobre sua perna. Se fizer força, sairá mais facilmente.
A única forma em que poderia fazer força era pondo sua outra bota
lamacenta em seu traseiro. Mas ela suspeitava que isso era muito, inclusive
para ele.
— Não importa, tirarei as malditas botas eu mesmo.
— Tem certeza? Vivo para te servir.
Dirigiu-lhe um olhar estranho, murmurou algo entredentes, e tirou as botas.
Quando se levantou para tirar as roupas, ela se ocupou em organizar um pouco
o quarto.
Escutou o som de sua roupa cair ao chão, e depois o ruído da água quando
entrou na tina.
— Vem aqui e me esfregue as costas.
Sabia que tinha sido muito brusco antes e tratava de compensá-la.
Ela se voltou e o viu sentado na tina, o braço apoiado na borda, e uma
perna molhada pendurada sobre a outra borda.
— Primeiro tire o vestido para que não se molhe.
Desta vez tinha certeza que ela o desafiaria, que lhe daria uma desculpa
para ser ainda mais desagradável. Mas não ia ganhar facilmente,
especialmente quando ela usava debaixo uma simples camisa intima, junto
com várias anáguas. Evitou olhar a água da banheira enquanto desabotoava o
vestido.
— Quanta consideração.
A água devia tê-lo acalmado, porque seus olhos perderam o olhar
penetrante, e brilhavam com malicia.
— Obrigado por perceber. Agora esfrega minhas costas.
Podia agradá-lo. Acalmaria a consciência.
— Ouch!
— Sinto muito — disse inocentemente de sua posição atrás dele.
Pensava que fosse mais resistente.
— Não esqueça meu peito — disse ele de forma vingativa.
Isso seria complicado, e ele sabia. Ela sabiamente se manteve atrás dele, e
seria difícil lhe esfregar o peito nessa posição.
Cautelosamente ficou de frente para dele.
— Não pode fazer isso bem, de onde está — agarrou sua camisa e puxou ao
lado da banheira, molhando no processo a parte frontal da camisa.
Evitando olhar para baixo, pôs a esponja em seu peito e começou a lhe
ensaboar pelo que o cobria. Fez todo o possível para não demorar muito, mas
esses sólidos músculos a tentavam, adorava delineá-los.
Ficou de cocoras e um dos alfinetes do cabelo caiu na tina, fazendo com
que uma mecha de cabelo tocasse a água. Cain o alcançou e o pôs detrás da
orelha. Seus olhos se moviam de seu rosto para seus seios. Ela sabia que sua
camisa molhada ficava transparente.
— Vou pre... vou preparar a mesa para que possa comer depois de se secar.
— Faço-o — disse ele com voz rouca.
Ela se retirou e levou um tempo colocando a comida na mesa junto à
lareira. Podia ouvi-lo se secar. Quando o ruído cessou, virou-se
cautelosamente para ele.
Só havia posto as calças, e o cabelo úmido tinha penteado de qualquer
maneira. Lambeu os lábios nervosamente. O jogo tinha mudado sutilmente.
— Lamento que a comida esteja um pouco fria, mas tenho certeza que estará
deliciosa — se deslocou para a porta.
— Sente-se, Kit. Eu não gosto de comer só.
Sentou-se frente a ele a contragosto. Ele começou a comer e, enquanto o
olhava, a cama de dossel no canto do quarto parecia crescer em sua
imaginação, enchendo todo o quarto. Precisava de distração.
— Certamente agora você espera que assuma as responsabilidades de
Sophronia, mas...
— Por que você quer fazer isso?
— Não disse que queria. Posso cozinhar, mas sou terrível com o resto.
— Então deixa que Sophronia lide com isso.
Ela estava preparada se por acaso ele não o aceitasse, pelo contrário,
mostrava-se totalmente razoável.
— Quero que você cuide só de uma coisa da casa, além de me atender,
claro...
Ela ficou tensa. Ali estava. Algo que sabia que detestaria.
— Uma raposa entrou no galinheiro ontem à noite. Veja se você pode
rastreá-la. Tenho certeza que atira melhor que muitos homens por aqui.
Ela o olhou fixamente.
— E se precisarmos de comida, deverá proporcioná-la você mesma. Agora
mesmo com a reconstrução do moinho, só tenho tempo para isso.
Ela não podia acreditar no que estava escutando e o odiou por entendê-la
tão bem. Nunca teria este tipo de liberdade como esposa de Brandon. Mas
Brandon nunca teria cuidado dela como Cain estava cuidando agora.
A cama parecia maior. Os ombros se esticaram. Estudou os brilhantes
prismas pendurados no globo do abajur sobre a mesa, depois passeou o olhar
sobre os livros que tinha perto da cama.
A cama.
Seus olhos se dirigiram às mãos. De palma larga, com dedos longos. As
mãos que tinham acariciado seu corpo e tocado cada curva. Os dedos que
tinham explorado seu...
— Pão?
Sobressaltou-se. Oferecia-lhe uma parte de pão que não tinha comido.
— Não. Não, obrigada. — ela lutou por manter a calma. — Miss Dolly
estava muito alterada hoje. Agora que não preciso mais de uma dama de
companhia, teme que a envie para longe. — o olhou obstinadamente. — Disse-
lhe que não faria algo assim. E que poderia permanecer aqui enquanto ela
quisesse.
Esperava que protestasse, mas ele simplesmente deu de ombros.
— Suponho que agora queiramos ou não, Miss Dolly nos pertence. Talvez
seja o melhor. Já que a nenhum dos dois nos importamos com os
convencionalismos, ela nos manterá respeitáveis.
Kit se levantou da cadeira como uma mola.
— Deixa de ser tão razoável!
— De acordo, tire a roupa.
— Não. Eu...
— Não pensou que o banho e o jantar eram tudo o que queria, certo?
— Se esperas algo mais, terá que me forçar.
— Seriamente? — Ele se inclinou preguiçosamente na cadeira e a olhou.
— Desabotoe esses cordões. Quero te olhar enquanto tira a roupa.
Ela se escandalizou ao sentir um rubor de emoção, e lutou contra isso.
— Vou me deitar. Sozinha.
Enquanto Cain a via dirigir-se à porta, pôde ver a luta que estava mantendo
consigo mesma. Agora que tinha provado a paixão, desejava-o tanto como ele
a ela, mas lutaria antes de admitir.
Era tão condenadamente formosa, que lhe doía apenas em olhá-la. Esta
debilidade é a que seu pai tinha sentido com sua mãe?
O pensamento o gelou. Tinha querido pressioná-la esta noite para provocar
esse caráter que sempre lhe chateava. Deveria saber que ela era uma
adversária muito forte para moldá-la tão facilmente em suas mãos.
Mas era mais que o desejo de fazê-la perder o controle o que tinha incitado
seu comportamento grosseiro. Queria lhe infligir uma pequena ferida, humilhá-
la, algo que demonstrasse o pouco que lhe preocupavam seus sentimentos.
Uma vez que ela entendesse isso, sentir-se-ia seguro ao agarrá-la em seus
braços e fazer amor.
Ainda tinha intenção de fazer amor. Mas não como queria, com ternura e
delicadeza. Não era tão tolo.
Levantou-se e foi até o quarto dela. Tinha fechado a porta com chave,
certamente. Não esperava menos. Com um pouco de paciência, poderia
derrubar sua resistência, mas não se sentia paciente e abriu a porta com um
único chute.
Ela ainda usava sua roupa íntima, mas tinha afrouxado o cinto da camisola,
e seu cabelo de seda negra caía livremente sobre os ombros de marfim. As
narinas flamejaram.
— Saia! Não me sinto bem.
— Logo se sentirá melhor. — a agarrou nos braços e a levou para sua
cama, onde ela pertencia.
— Não vou fazer!
Ele a atirou na cama. Ela aterrissou em um montão de anáguas e fúria.
— Fará o que eu digo.
— Limparei suas botas, amaldiçoarei e prepararei seu jantar. Mas isso é
tudo.
Ele falou com calma, contra a fúria de seu sangue.
— Com quem está mais zangada? Comigo por lhe fazer isso, ou com você
mesma por querer que faça isso?
— Eu não... eu não quero...
— Sim, quer sim.
Ele se livrou de suas roupas e sua resistência derreteu com o primeiro
toque de suas carícias.
— Por que tem que ser assim? — sussurrou ela.
Ele enterrou a rosto em seu cabelo.
— Porque não podemos evitar.
Foi um encontro de corpos, não de almas. Encontraram satisfação, mas isso
foi tudo. Exatamente como ele queria.
Exceto mais tarde, nunca havia se sentido tão vazio.
Rolou de costas e olhou o teto com atenção. As cenas de sua infância
violenta e infeliz, passaram diante de si. Seu pai tinha perdido algo mais que
seu dinheiro e a sua esposa. Tinha perdido seu orgulho, sua honra e por último,
sua virilidade. E Cain estava obcecado com Kit, tanto como Nathaniel Cain
tinha estado com Rosemary.
A compreensão o aturdiu. Sua luxúria por esta mulher o estava atordoando.
Respirou profundamente, inquieto. Kit podia desejá-lo, mas esse desejo não
era tão forte como sua paixão por Risen Glory. E sob seu desejo, ela o odiava
tanto como antes.
Justo então, compreendeu o que devia fazer, e o conhecimento foi como uma
faca em seu intestino. Desesperado, tentou encontrar outra saída, mas não
havia nenhuma. Não deixaria que uma mulher roubasse sua virilidade, e isso
significava que não poderia tocá-la. Nem amanhã, nem a próxima semana, nem
o próximo mês. Não até que se livrasse de seu feitiço.
E isso poderia ser para sempre.
***

Uma semana deu lugar outra, e caíram em um padrão de convivência


atenciosa, mas distante, como dois vizinhos que se cumprimentam formalmente
junto ao portão, mas raramente se detêm para conversar. Cain contratou mais
homens para trabalhar no moinho, e em pouco mais de um mês, o dano do
incêndio estava reparado. Era hora de instalar a maquinaria.
Os dias de verão ficaram mais longos, e a raiva de Kit deu lugar a
confusão. Ele não a tinha tocado desde aquela noite de domingo, depois de sua
volta de Charleston. Enquanto isso, lhe servia a comida, preparava seu banho,
e levianamente, ao menos, interpretava o papel de esposa respeitosa. Ele a
tratava com cortesia. Mas já não a levava a sua cama.
Caminhava pesadamente pela floresta, com suas calças e botas enlameadas,
com sua escopeta Spencer colocada sob um braço, e no outro um saco de
estopa com codornas ou coelhos. Embora ele quisesse que estivesse em casa
quando chegava, não se preocupava que tivesse um comportamento
inapropriado para uma mulher o resto do tempo. Mas nem sequer nos bosques,
sentia-se feliz. Estava muito nervosa, muito confusa.
Chegou uma carta de Elsbeth:
Minha querida, queridíssima Kit.
Quando recebi sua carta me contando do seu matrimônio com o Major
Cain, gritei tanto, que realmente assustei a minha pobre Mamãe, achando
que eu tivesse passando mal.
É uma pícara!
E pensar como se queixava dele! Sem dúvida é a histoire d’amour mais
romântica que ouvi. E uma solução tão perfeita para todos os seus
problemas. Conseguiu de uma vez Risen Glory e um marido amoroso.
Tem que me contar se sua proposta foi tão romântica como imagino. Em
minha mente, te vejo com um maravilhoso vestido (o mesmo que usou na
festa de graduação) e com o Major Cain ajoelhado a sua frente, com as
mãos no peito de maneira suplicante, justo como nós ensaiávamos. Oh,
minha querida Kit (minha querida Senhora Cain!), me conte logo se minha
imaginação faz justiça ao acontecimento.
Espero que esteja encantada com minhas notícias, embora suspeite que
não serão uma surpresa. Em outubro serei uma noiva como você! Já te
contei em minhas outras cartas que ultimamente passo muito tempo com o
amigo de meu irmão, Edward Matthews. É um pouco mais velho que eu e até
recentemente só me via como a uma menina. Mas te asseguro que já não o
faz!
Minha queridíssima Kit, odeio que estejamos separadas. Como detesto
que não possamos nos reunir e falar com liberdade dos homens que amamos,
seu Baron e meu querido Edward. Agora que é uma mulher casada, poderia
te perguntar coisas que não me atrevo a perguntar nem a minha própria e
querida Mama.
Realmente a Verguenza de Eva é tão horrível como nos disse a senhora
Templeton? Estou começando a suspeitar que não é certo, pois não posso
imaginar nada repulsivo entre meu querido Edward e eu. Oh, querida, não
deveria escrever isto, mesmo para você, mas estou pensando muito nisso
ultimamente. A deixarei agora para não ser mais indiscreta. Quanto sinto
sua falta !
Ta chère, chère amie.
Elsbeth.

Durante uma semana, a carta de Elsbeth olhou a Kit acusadoramente em


cima de sua penteadeira. Sentou-se para respondê-la uma dúzia de vezes, só
para voltar a parar e soltar a caneta. Finalmente não pôde mais adiar. O
resultado, evidentemente não a satisfaria, mas era o melhor que podia fazer.

Querida Elsbeth.
Sua carta me fez sorrir. Estou muito feliz por Você. Seu Edward parece
perfeito, o marido adequado para voê. Sei que será a noiva mais formosa de
Nova Iorque. Oxalá pudesse te ver.
Estou assombrada pelo perto que sua imaginação está da verdade na
proposta de matrimônio do Baron. Foi como imaginou, até no vestido da
formatura.
Perdoe-me pela carta tão curta, mas tenho ainda centenas de coisas que
fazer esta tarde.
Todo meu amor Kit P.D: Não se preocupe pela Verguenza da Eva. A
senhora Templeton mentiu.

Foi final de agosto, quando Kit pôde se aproximar e visitar o moinho, e só


porque sabia que Cain não estaria ali. Era tempo de colheita e ele estava nos
campos com Magnus, da alvorada até o anoitecer, deixando Jim Childs
encarregado do moinho.
Embora Kit não tinha ido ao moinho depois da horrível noite que tentou
destrui-lo, sempre o tinha em mente. O moinho a ameaçava. Ela não podia
imaginar que Cain estava disposto a deixá-lo desse tamanho, e qualquer
expansão seria em detrimento da plantação. Ao mesmo tempo a fascinava.
Ela era uma sulina nascida com o algodão. Poderiam as máquinas
instaladas no moinho realizar o milagre com o algodão como uma Cotton Gim?
Ou em troca, seria uma maldição?
Como todos as crianças do Sul, conhecia a história do algodão melhor que
a palma de sua mão. A história não entendia de credos ou cores. Aprendiam-
no igual os ricos e os pobres, os homens livres e os escravos. Como o Sul foi
salvo em só dez dias. Enquanto cavalgava até o moinho, relembrou...
Foi no final do século XVIII, e as sementes do diabo estavam matando o
sul. Oh, poder-se-ia falar sem parar sobre o valor do algodão de Sea Island,
fibras sedosas e suaves sementes que se debulhavam tão facilmente como o
fruto de uma cereja madura. Mas se não tinha o chão arenoso da costa, podia
esquecer também plantar esse algodão de Sea Island, porque não cresceria em
qualquer outro lugar.
Plantavam tabaco, mas sugava a fertilidade do chão em poucos anos,
deixando a terra erma para outros cultivos.
Arroz? Índigo? Milho? Eram boas colheitas, mas não fariam um homem
rico. Não fariam um país rico. E isso era o que o Sul necessitava. Uma
colheita de dinheiro. Uma colheita que fizesse todo mundo chamar à sua porta.
Foram as sementes do diabo. O Sul cultivou a semente verde do algodão
por toda parte. Indiscriminadamente. Não só em chão arenoso com brisa
marinha. A semente verde de algodão cresceu como uma erva daninha. A pena
foi, sobre tudo, que essas sementes do diabo se aderiam como ouriços às
fibras no momento das debulha, como se o próprio diabo a tivesse colocado
para rir dos homens tolos que cuidavam de as separar.
Um homem tinha que trabalhar dez horas para separar quilo e meio de
sementes, uns quinhentos gramas de fibra de algodão. Mil e quinhentos gramas
de sementes para conseguir menos de quinhentos gramas de fibra. Dez horas
de trabalho. O diabo tinha que rir à mandíbula solta de todos eles.
De onde viria essa rica colheita? Onde estava essa colheita que salvaria o
sul?
Deixaram de comprar escravos e prometeram a liberdade aos que tinham.
Muitas bocas que alimentar. Nenhuma rica colheita. As sementes do diabo.
E então chegou um professor de escola a Savannah. Um moço de
Massachusetts com uma mente que funcionava de forma distinta a dos outros
homens. Sonhava com máquinas. Falaram-lhe das sementes do diabo e aquelas
fibras curtas, duras. Foi ao abrigo de limpeza e olhou como tratavam de
arrancar com força as sementes.
Quilo e meio de semente para quinhentos gramas de fibra de algodão. Dez
horas.
O professor da escola começou a trabalhar. Levou-lhe dez dias. Dez dias
que salvaram o sul. Quando terminou, tinha fabricado uma caixa de madeira
com alguns rolos e ganchos de ferro. Tinha um prato metálico com ranhuras, e
uma manivela no lado que girava de forma mágica. Os dentes enganchavam o
algodão e o tiravam pelos rolos, as sementes do diabo ficavam na caixa. Um
homem. Um dia. Cinco quilos de fibra de algodão.
Fez-se o milagre. Uma colheita rica. O Sul era a Rainha, e o Rei Algodão
estava no trono. Os plantadores compraram mais escravos. Agora todos
estavam ávidos. Centenas de milhares de acres de terra deviam ser plantados
com algodão de semente verde, e precisavam de costas fortes para isso.
Esqueceram-se as promessas de liberdade. Eli Whitney, o professor de escola
de Massachusetts, tinha-lhes dado a máquina para debulhar o algodão, a
Cotton Gim. Fez-se o milagre.
O milagre e a maldição.
Quando Kit atava Tentação ao trilho e caminhava para o edifício de tijolo,
pensava como Cotton Gim tinha salvado o sul, mas também o tinha condenado.
Sem essa debulhadora, a escravidão teria desaparecido porque se não tivesse
sido rentável não haveria uma guerra. Teria a Cotton Gim instalada no moinho
o mesmo efeito desastroso?
Cain não era o único que pensava que era fundamental para o Sul ter seus
próprios moinhos têxteis em lugar de envíar o algodão bruto ao nordeste da
Inglaterra. E lhe seguiriam mais homens. Então o Sul controlaria o algodão
desde o começo até o final... o cultivaria, debulharia e finalmente o teceria. Os
moinhos têxteis poderiam devolver a prosperidade que a guerra levou. Mas
como a debulhadora, os moinhos também trariam mudanças, sobre tudo a
plantações como Risen Glory.
Jim Childs lhe mostrou o moinho, e se tinha curiosidade por que a esposa
de seu patrão aparecia de repente depois de dois meses, não mostrou nenhum
sinal. Pelo que Kit sabia, Cain não havia dito a ninguém que fora ela que tinha
incendiado o moinho. Só Magnus e Sophronia pareciam ter adivinhado a
verdade. Enquanto caminhava, Kit compreendeu que uma parte dela estava
ansiosa por ver as enormes máquinas trabalhar quando o moinho finalmente
abrisse em outubro.
A caminho de casa, viu Cain de pé ao lado de um carro cheio de algodão.
Não usava camisa, e seu peito brilhava com o suor. Enquanto o olhava, ele
agarrou um saco de estopa cheio dos ombros de um dos trabalhadores e o
esvaziou no carro. Então tirou o chapéu e passou o antebraço pela testa.
Os tensos tendões, robustos, ondulavam-se através de sua pele como o
vento sobre a água. Sempre tinha sido magro e de músculos duros, mas o
trabalho intenso na plantação tinha definido cada músculo e tendão. Kit
reconheceu uma aguda e repentina debilitação em suas vísceras, como se
estivesse vendo essa força nua apertada sobre ela. Sacudiu a cabeça para
livrar-se da imagem.
Depois de voltar para Risen Glory, teve o capricho de cozinhar, apesar de
o calor durante estes últimos dias de agosto ser opressivo e a cozinha como
um forno. No final do dia, tinha cozinhado um guisado de tartaruga, espigas de
milho e um bolo de geléia, mas não tinha podido se livrar de sua inquietação.
Decidiu montar até o lago e tomar um banho antes do jantar.
Quando atravessava o pátio montada em Tentação, recordou que Cain
trabalharia em um campo que tinha que cruzar para ir ali. Ele saberia
exatamente onde se dirigia. Em lugar de incomodá-la, o pensamento a excitou.
Deu um toque com seus tendões nos flancos de Tentação e saiu.
Cain a viu passar. Levantou a mão em uma pequena e zombadora saudação.
Mas não se aproximou do lago. Ela nadou nas frias águas, nua e sozinha.
Despertou à manhã seguinte com seu ciclo menstrual. A tarde, seu alívio
por não estar grávida tinha ficado deslocado pela tremenda dor. Raras vezes
as cólicas incomodavam sua menstruação e nunca sentia tanta dor.
No inicio tratou de aliviar a dor andando, mas pouco depois, parou, e
tirando o vestido e as anáguas se meteu na cama. Sophronia lhe deu um
medicamento e Miss Dolly leu O segredo da vida cristã feliz, mas a dor não
diminuiu. Finalmente lhes pediu que saíssem do quarto para poder sofrer em
paz.
Mas não a deixaram sozinha muito tempo. Perto da hora do jantar, a porta
se abriu e Cain entrou vestido ainda com a roupa de trabalho.
— O que aconteceu? Miss Dolly me disse que estava doente, mas quando
lhe perguntei o que te passava, começou a balbuciar e saiu correndo como um
coelho do quarto.
Kit estava deitada de lado, abraçando os joelhos com o peito.
— Saia — Não até que me diga que está acontecendo.
— Não é nada — se queixou ela — Estarei bem amanhã. E agora saia.
— Maldita seja, vais me dizer agora. A casa está tão silenciosa como o
salão de um velório, minha esposa trancada em seu quarto e ninguém me diz
nada.
— É meu ciclo menstrual — murmurou Kit, muito doente para se sentir
inibida — Nunca doeu tanto.
Cain se virou e abandonou o quarto.
Bruto insensível!
Agarrou-se a barriga, e gemeu.
Menos de meia hora mais tarde, surpreendeu-se ao sentir que alguém se
sentava a seu lado na cama.
— Beba isto. Fará com que se sinta melhor. — Cain a segurou pelos
ombros e levou a xícara a seus lábios.
Ela engoliu e depois ofegou.
— O que é isto?
— Chá morno com uma forte dose de rum. Tirar-te-á a dor.
Sabia que era asqueroso, mas era mais fácil bebê-lo que montar um
alvoroço.
Quando suavemente a pôs de novo na cama, sua cabeça começou a flutuar
agradavelmente. Estava fracamente consciente do aroma de sabão e
compreendeu que ele tomou banho antes de voltar a ficar com ela. O gesto a
emocionou.
Ele a cobriu com o lençol. Por baixo ela só estava vestindo uma camisola
de algodão de seus dias na Academia e uns delicados pololos. A roupa não
combinava, como era habitual.
— Fecha os olhos e deixa que o rum faça seu trabalho — sussurrou ele.
Em efeito, sentiu as pálpebras de repente tão pesadas que lhe custava
mantê-las abertas. Quando começaram a se fechar, ele tocou a parte mais
estreita de suas costas e começou a massageá-la. Suas mãos subiam
suavemente ao longo de sua coluna, e desciam outra vez. Logo ficou
consciente quando ele levantou sua camisola e tocou diretamente sua pele.
Enquanto chegava o sono, só pensava que seu tato parecia ter aliviado sua
horrível dor.
À manhã seguinte, encontrou em sua penteadeira um grande ramalhete de
margaridas silvestres em um vaso de cristal.
17
O verão estava terminando e um ar de tensa expectativa pairava sobre a
casa e seus habitantes. A colheita estava no ponto e o moinho logo funcionaria.
Sophronia estava em pé de guerra esses dias, cada vez mais irritável e
difícil de agradar. Só o fato de Kit não compartilhar a cama de Cain lhe trazia
um pouco de conforto. Não que quisesse Cain para ela... felizmente tinha
abandonado essa ideia fazia tempo. Mas sentia que enquanto Kit permanecesse
longe de Cain, Sophronia não teria que confrontar a horrível possibilidade que
uma mulher decente como Kit, ou como ela, pudesse encontrar prazer
deitando-se com um homem. Porque se isso era possível, todas as suas ideias
enraizadas do que era importante e o que não, ficariam sem sentido.
Sophronia sabia que estava ficando sem tempo. James Spence estava
pressionando-a para que se decidisse a ser sua amante, dar-lhe-ia dinheiro e
amparo na casinha de campo que tinha encontrado para ela em Charleston,
longe das línguas fofoqueiras de Rutherford. Nunca tinha sido preguiçosa, mas
agora Sophronia se surpreendia passando longos momentos junto à janela,
olhando a casa do capataz.
Magnus também esperava. Sentia que Sophronia estava passando por uma
espécie de crise e se fortalecia assim mesmo para confrontá-la. Quanto tempo
mais, se perguntava, seria capaz de esperar? E como ia ser capaz de viver, se
ela partisse com James Spence em sua fantástica carruagem vermelha, com sua
mina de fosfato e sua pele, tão branca como a barriga de um peixe?
Os problemas de Cain eram diferentes, mas, no fundo, parecidos. Com a
colheita encerrada e a maquinaria instalada, já não havia razão para trabalhar
tão intensamente. Mas precisava da exaustão e do esgotamento daqueles
longos dias de trabalho, para impedir que seu corpo protestasse pela situação
que estava suportando. Desde que era adolescente, nunca tinha ficado tanto
tempo sem uma mulher.
A maioria das noites voltava para a casa para o jantar, e não poderia ter
certeza se ela tratava deliberadamente de deixá-lo louco, ou o fazia de forma
involuntária. Cada noite aparecia na mesa cheirando a jasmim, penteada de
modo que refletia seu humor. Às vezes o usava de forma travessa, no alto da
cabeça com suaves mechas soltas delineando seu rosto, como plumas de seda
negra. Outras, penteado no severo estilo espanhol, que em tão poucas mulheres
favorecia, partido ao meio e com um coque na nuca, deixava seus dedos
gritando para desfazê-lo. De qualquer forma, devia lutar para tirar os olhos
dela. Que ironia. Nunca tinha sido fiel a uma mulher, e agora estava sendo com
uma com quem não podia se deitar, não até que pudesse colocá-la no lugar
apropriado em sua vida.

Kit era tão infeliz como Cain. Seu corpo uma vez despertado, não queria
voltar a dormir. Eróticas e estranhas fantasias a incomodavam. Encontrou o
livro de Walt Whitman Folhas de erva, que Cain lhe tinha dado fazia muito
tempo.
Naquele momento os poemas a tinham confundido. Agora a deixavam nua.
Nunca tinha lido uma poesia assim, com esses versos cheios de imagens que
deixavam seu corpo ardendo: Pensamentos amorosos, suco de amor, aroma
de amor, amor complacente, trepadeiras amorosas, e seiva de trepadeira.
Braços e mãos amorosos, lábios de amor, fálica porção do amor, seios do
amor, ventres espremidos e aderidos uns com outros pelo amor…
Morria de vontade que a tocasse. Se encontrava assim todas as tardes
subindo a seu dormitório com tempo, para tomar banhos úmidos e vestir-se
para o jantar com seus vestidos mais atrativos. Sua roupa começou a lhe
parecer muito chata. Cortou uma dúzia de diminutos botões de prata do sutiã
de seu vestido de seda em tom canela, de modo que o decote ficasse aberto no
meio dos seus seios. Depois pôs um colar de contas de cristal. Substituiu o
cinto de um vestido de manhã amarelo pálido por uma larga sianinha de tafetá
vermelho e azul. Calçava sapatilhas em rosa brilhante com um vestido de cor
tangerina, e era incapaz de resistir e colocar umas fitas brancas nas mangas.
Estava embaraçosamente encantadora. Sophronia dizia que se comportava
como um pavão estendendo sua cauda para atrair a seu companheiro.
Mas Cain não parecia se dar conta.
***
Verônica Gamble chegou de visita uma chuvosa segunda-feira à tarde,
quase três meses depois do casamento. Kit tinha se oferecido para procurar no
sotão empoeirado um conjunto de porcelana que ninguém encontrava, e de
novo seu aspecto deixava muito a desejar.
Além de trocar algumas palavras educadas quando se encontravam na
igreja ou na cidade, Kit não tinha estado com Verônica desde aquele
desastroso jantar. Tinha-lhe enviado uma atenta nota de agradecimento pelo
formoso livro, Madame Bovary, que tinha sido seu presente de casamento…
um presente do mais inoportuno, tinha descoberto Kit, depois de devorar cada
palavra. Verônica a fascinava, mas também se sentia ameaçada pela fria
beleza e a confiança em si mesma da mulher madura.
Enquanto Lucy servia dois copos de limonada gelados e um prato de
sanduíches de pepino, Kit comparou melancolicamente o traje de corte
elegante cor bolacha de Verônica com seu próprio vestido de algodão, sujo e
enrugado.
Não era lógico que seu marido mostrasse um evidente prazer na companhia
de Verônica? Não era a primeira vez, que se encontrou questionando se todas
suas reuniões se desenvolviam em público. A ideia de que pudessem estar se
vendo em particular, doía-lhe.
— E como se encontra a vida de casada? — perguntou Verônica, depois de
trocar cumprimentos e de que Kit comeu quatro sanduíches de pepino, por um
da outra mulher.
— Comparado com o quê?
A risada de Verônica tilintou pela sala como campainhas de cristal.
— É sem dúvida a mulher mais refrescante deste condado, decididamente
tedioso.
— Se é tão tedioso, por que continua aqui?
Verônica tocou o camafeu preso ao pescoço.
— Vim aqui para curar meu espírito. Suponho que soa algo melodramático
para alguém tão jovem como você, mas amei muito meu marido, e sua morte
não foi fácil de aceitar. No entanto, eu estou achando que o tédio é um inimigo
tão poderoso como a dor. Quando se está acostumada à companhia de um
homem fascinante, não é fácil estar sozinha.
Kit não tinha certeza de como responder, especialmente porque via algo
calculado por trás de suas palavras, uma impressão que Verônica rapidamente
constatou.
— Mas basta! Tenho certeza de que não te interessa passar a tarde
escutando as sensíveis reflexões de uma viúva solitária, sobretudo quando sua
vida é tão jovem e romântica.
— Estou me adaptando, como qualquer outra recém-casada, — respondeu
Kit com cuidado.
— Que resposta tão convencional e correta. Você me decepciona. Eu teria
esperado que você me dissesse com sua franqueza habitual, para me meter
com a minha vida, mas com certeza você vai me dizer antes de eu sair. Porque
eu vim com o único propósito de me intrometer nas intimidades desse seu
casamento tão interessante.
—Sinceramente, senhora Gamble — disse Kit fracamente. — Não posso
imaginar porque iria você fazer isso.
— Porque os mistérios humanos tornam a vida mais divertida. E agora,
encontro um diante do meu nariz — Verônica se deu um toquinho na bochecha
com uma unha ovalada — Por que, pergunto-me, o casal mais atraente da
Carolina do Sul, parece estar em conflito?
— Senhora Gamble, eu...
— Por que raramente se olham nos olhos em público? Por que raramente se
tocam de forma casual, como os amantes o fazem?
— Realmente, não acredito...
— Certamente, essa é a pergunta mais interessante, pois faz com que me
pergunte se realmente são amantes.
Kit tratou de dizer algo, mas Verônica, parou-a no ato com um preguiçoso
movimento com a mão.
— Economize qualquer dramatismo até que tenha ouvido atentamente tudo o
que tenho que te dizer. Provavelmente descubra que estou te fazendo um favor.
Kit liberava uma pequena e silenciosa batalha interior, a prudência de uma
parte, a curiosidade de outra.
— Continue — disse ela, tão descaradamente como pôde.
Verônica continuou — Há algo que não está bem com este casal. O marido
tem um aspecto faminto, que um homem satisfeito não deveria ter. Enquanto a
esposa... Ah, a esposa! É inclusive mais interessante que o marido. O olha
quando ele não se dá conta, observando seu corpo da maneira mais
escandalosa, lhe acariciando com o olhar. É o mais desconcertante. O homem
é viril, a esposa sensual e entretanto, juraria que não dormen juntos.
Dito isto, Verônica esperou satisfeita a resposta. Kit sentiu como se a
tivesse deixado nua. Era humilhante. Mas...
— Você veio aqui com um propósito, senhora Gamble. Eu gostaria de saber
qual é.
Verônica parecia assombrada.
— Mas, não é evidente? Não pode ser tão ingênua para não saber que estou
interessada em seu marido — inclinou a cabeça. — Estou aqui para te dar um
ultimato. Se não fizer uso dele, é obvio que o farei eu.
Kit se encontrou quase tranquila.
— Veio aqui para me prevenir que planeja se deitar com meu marido?
— Só se você não o quiser, querida — Verônica agarrou sua limonada e
deu um delicado gole. — Apesar do que possa pensar, tenho um tremendo
carinho por você desde que te conheci. Você me lembra muito a mim na sua
idade, embora eu soubesse esconder melhor meus sentimentos. De todas as
formas, esse carinho pode chegar até aqui, e no final será melhor para seu
matrimônio que eu compartilhe a cama de seu marido, em lugar de alguma
pícara intrigante que tratará de se interpor permanentemente entre os dois.
Até esse momento, ela tinha estado falando em tom leve, mas agora seus
olhos verdes a olhavam de forma inflexível, como pequenas esmeraldas
polidas.
— Me acredite quando te digo isto, querida. Por alguma razão que não
consigo entender, abandonou seu marido maduro para a coleta, e é só questão
de tempo antes que alguém decida pegá-lo. E essa, pretendo ser eu.
Kit sabia que teria que se levantar e sair indignada do salão, mas havia algo
na franqueza de Verônica Gamble que ativava a parte dela que não tinha
paciência com as dissimulações. Esta mulher conhecia as respostas a quão
segredos Kit só podia vislumbrar.
Conseguiu manter o rosto inexpressivo.
— Para seguir com a conversa, suponha que o que disse é certo. Suponha...
que eu não tenho... não tenho interesse em meu marido. Ou suponha, outra vez
para seguir com a conversa, que é meu marido quem não tem nenhum interesse
em mim... — suas bochechas avermelharam, mas estava determinada a seguir
— Como me sugere que eu consiga... consiga interessá-lo?
— Seduzindo-o, certamente.
Houve um silêncio longo e doloroso.
— E como — perguntou Kit friamente — poderia fazer isso?
Verônica o pensou durante um instante.
— Uma mulher seduz a um homem seguindo seus instintos, sem pensar em
nenhum momento se o que faz está bem ou mau. Um vestido sedutor, gestos
sedutores, uma boa vontade para lhe atormentar com promessas por vir. É uma
mulher inteligente, Kit. Tenho certeza que se lhe propuser isso, encontrará uma
maneira. Só lembre disto. O orgulho não tem vez no quarto. É um lugar só para
dar, não para brigar. Compreende-me?
Kit assentiu rigidamente.
Após ter conseguido o objetivo de sua visita, Verônica recolheu suas luvas
e a bolsa, e ficou de pé.
— Agora você pode se aplicar rapidamente a suas lições, pois não te darei
muito mais tempo. Já teve o suficiente.
E saiu da sala.
Um momento mais tarde, quando estava já dentro de seu landó, Verônica
sorriu para si mesma. Como Francis teria apreciado esta tarde. Não muito
frequentemente a vida te dá a oportunidade para se fazer de Fada Madrinha, e
tinha que admitir que o tinha feito de forma impecável.
Enquanto se recostava no assento forrado de couro, levantou ligeiramente
uma sobrancelha. Agora devia decidir se cumpria ou não sua ameaça.
***

Kit finalmente teve a desculpa para fazer o que estava há muito tempo
querendo fazer. O jantar foi uma tortura, pior pelo fato de que Cain parecia
estar determinado a prolongá-lo. Falou do moinho e lhe perguntou sua opinião
sobre o que o mercado de algodão podia lhes proporcionar este ano. Como
sempre quando falavam desse tema, ele a escutava atentamente.
Homem horrível. Era tão condenadamente bonito, que tinha problemas para
tirar os olhos dele, e por que tinha que se mostrar tão encantado com Miss
Dolly?
Fugiu para seu quarto logo que foi possível. Durante uns minutos caminhou
inquieta de um lado para outro. Finalmente se despiu, colocou uma camisola
de algodão desbotado e se sentou à penteadeira para se pentear diante do
espelho. Estava penteando em uma suave nuvem de cabelos tão escuros quanto
a meia-noite, quando escutou Cain subir para seu quarto.
Seu reflexo lhe mostrava um rosto pálido, pouco natural, beliscou as
bochechas, tirou os brincos de labradorita e colocou outros de pérolas.
Depois, aplicou-se um leve toque de jasmim no pescoço.
Quando se sentiu satisfeita, tirou a camisola desbotada e colocou outra de
seda preta, presente de casamento de Elsbeth, deslizou como carícia por seu
corpo nu. A camisola era elegantemente singela, com manga curta solta, e o
sutiã cruzado ficava tão baixo, que mal cobria os seios destacando os
mamilos. A saia se aderia a seu corpo em compridas e suaves dobras, que
marcavam perfeitamente a curva de seus quadris e das pernas quando se
movia. Sobre a camisola, o robe, feito inteiramente de seda negra transparente.
Com dedos trêmulos, fechou o único pequeno botão à altura do pescoço.
Através da seda, sua pele brilhava como a luz da lua no inverno, e quando
andava, o robe se abria, algo que tinha certeza, Elsbeth não tinha se dado conta
quando lhe comprou o presente. A camisola mais curta, agarrava-se a seu
corpo como uma segunda pele, destacando seus seios, aderindo-se ao delicado
contorno de seu umbigo, e de forma mais sedutora, ao pequeno montículo mais
abaixo.
Saiu de seu quarto, com os pés descalços andando silenciosamente através
da sala que comunicava entre seus quartos. Quando chegou à porta de seu
dormitório, quase perdeu a coragem. Antes que mudasse de ideia, bateu com
os nós dos dedos na porta.
— Entre.
Ele estava com as mangas da camisa dobrada, sentado na cadeira junto à
janela, olhando um monte de papeis. Levantou o olhar e quando observou
como estava vestida, seus olhos se escureceram para um cinza profundo. Ela
caminhou devagar até ele, com a cabeça e os ombros erguidos, e o coração
martelando no peito.
— O que quer?
Não havia nem sinal do homem agradável do jantar. Parecia cansado,
receoso e hostil. Outra vez se perguntou por que teria perdido o interesse nela.
Porque já não lhe atraía? Se isso era assim, estava a ponto de sofrer uma
terrível humilhação.
Poderia ter inventado uma desculpa... um corte em um dedo que deveria ser
analisado, lhe pedir um livro emprestado... mas ele certamente já conheceria
essas ciladas. Levantou o queixo e o olhou nos olhos.
— Quero fazer amor contigo.
Ela olhou como sua boca se curvava de maneira estranha em uma pequena e
zombeteira careta.
— Minha bela esposa. Tão direta — seus olhos olharam seu corpo, tão
claramente definido contra a seda. — Deixa que eu seja igualmente franco. Por
quê?
Esta não era a forma que ela o tinha imaginado. Ela tinha esperado que lhe
abrisse os braços e pegasse...
— Estamos... estamos casados. Não é justo que durmamos separados.
— Eu sei — assinalou com a cabeça a cama. — É só um convencionalismo
social, não é isso?
— Não exatamente.
— Então o quê?
Um ligeiro brilho de transpiração se reuniu no meio de suas costas.
— Eu só quero... — muito tarde compreendeu que não podia fazê-lo —
Esqueça-o.
Virou-se para a porta.
— Esquece o que acabo de dizer. Era uma idéia estúpida — estendeu a mão
para agarrar maçaneta da porta, só para sentir a mão dele sobre a sua.
— Você desiste facilmente?
Ela desejou nunca ter começado isto e nem sequer poderia culpar Verônica
Gamble pelo seu comportamento. Queria prová-lo, tocá-lo, experimentar o
mistério do ato do amor outra vez. Verônica lhe tinha dado somente a
desculpa.
Compreendeu que ele se afastava, e se virou para vê-lo apoiar-se no
suporte da chaminé.
— Vamos — disse ele. — Espero que comece.
— Comece o que?
— Um homem não pode funcionar quando o ordenam. Sinto muito, mas
deverá despertar meu interesse.
Se ela tivesse baixado o olhar, teria comprovado que já tinha despertado
seu interesse, mas estava muito ocupada tratando de reprimir a estranha
confusão de sensações que sentia em seu interior.
— Não sei como fazê-lo.
Ele apoiou os ombros contra o suporte e cruzou os tornozelos de forma
preguiçosa.
— Experimenta. Sou todo teu.
Ela não podia suportar sua brincadeira.Com um nó na garganta, saiu da
porta.
—Mudei que ideia.
— Covarde — disse ele suavemente.
Deu a volta a tempo de ver a brincadeira desaparecer de sua expressão e
algo mais tomar seu lugar, uma mescla de sedução e desafio.
— Te desafio, Kit Weston.
Uma batida selvagem repercutiu profundamente dentro dela. Siga seus
instintos, tinha-lhe aconselhado Verônica. Mas como saberia o que fazer?
Ele levantou uma sobrancelha, em silencioso reconhecimento de seu dilema
e a invadiu uma sensação de coragem que desafiava toda lógica. Devagar, ela
levou os dedos ao único botão que mantinha o robe fechado. O robe deslizou
ao chão em uma cascata de seda negra.
Seus olhos absorveram seu corpo.
— Você nunca foi capaz de recusar um desafio, verdade? — disse ele com
voz rouca.
Sua boca se curvou em um sorriso. Caminhou até ele devagar, sentindo uma
súbita onda de autoconfiança. Enquanto se movia, balançava mais os quadris
de maneira que a fina saia da camisola se tornasse mais reveladora, parou
diante dele e olhou com atenção dentro das fumegantes profundidades de seus
olhos. Sem baixar o olhar, levantou as mãos e lhe tocou ligeiramente os
ombros.
Ela sentiu sua tensão debaixo dos dedos, e lhe deu uma sensação de poder
que nunca tinha imaginado ter em sua presença, ficou nas pontas dos pés e
pressionou seus lábios contra o pulsar na base de sua garganta.
Ele gemeu suavemente e enterrou a cara em seu cabelo, mas mantinha os
braços caídos. O entusiasmo ante sua desacostumada passividade, a fez
estremecer-se. Ela separou seus lábios e tocou esse lugar com a ponta da
língua, até que sentiu seu pulsar mais e mais rápido.
Ávida por obter mais dele, desabotoou-lhe os botões da camisa. Uma vez
aberta, empurrou o tecido para os lados, passando seus dedos sobre o pelo de
seu peito e beijando um plano e duro mamilo, que tinha ficado exposto.
Com um som estrangulado ele a agarrou em seus braços e apertou seu corpo
contra ele. Mas agora o jogo era seu, e ela o faria jogar segundo suas regras.
Com uma suave risada, de mulher má, afastou-se docemente de seu lado e
caminhou para trás, através do quarto.
Levantando os olhos para ele, umedeceu os lábios com a ponta da língua.
Então, deslizou as palmas de suas mãos sobre suas costelas, cintura e a curva
de seus quadris em uma ação provocante e deliberada.
As narinas flamejaram. Ela escutou seu fôlego acelerado.
Devagar, seguiu deslizando suas mãos acima e abaixo pela parte da frente
de seu corpo. As coxas... as costelas... Uma mulher seduz a um homem
seguindo seus instintos, sem pensar em nenhum momento se o que faz está
certo ou errado. Pegou os seios nas mãos.
Uma surda exclamação saiu dos lábios de Cain. A palavra era
impronunciável, mas ele a disse de uma maneira tão aduladora que a fez
parecer um elogio.
Agora confiante de seu poder, deslocou-se para que a cama ficasse entre
eles. Levantou a camisola e subiu ao colchão. Com um movimento de cabeça,
seu cabelo caiu para frente sobre seu ombro. Ela sorriu, com um sorriso que
tinha sido transmitido por Eva e deixou que sua manga caísse para baixo sobre
seu braço. Debaixo do véu de cabelo, encontrava-se exposto um seio nu.
Cain sentiu todo seu autocontrole posto a prova, para não se precipitar à
cama e devorá-la como ela queria ser devorada.
Jurou-se a si mesmo que isto não ocorreria, mas agora era incapaz de
conter-se. Ela era dele.
Mas ela não tinha terminado ainda. De joelhos na cama, a saia de sua
camisola se enrugava em seus joelhos, e jogou com seu cabelo, de modo que
as sedosas mechas negras como o azeviche pareciam aproximar-se e afastar-se
sobre seu seio, como um erótico jogo de esconde-esconde.
O último fio que segurava seu autocontrole se rompeu. Devia tocá-la ou
morreria. Chegou a beira da cama, estendeu sua mão cheia de cicatrizes, e
empurrou a escura cortina de cabelo detrás de seu ombro. Contemplou
fixamente o seio perfeitamente formado, com seu mamilo rígido.
— Aprende rápido — disse com a voz rouca.
Tentou tocar-lhe, mas outra vez ela o evitou, deslizou-se para trás apoiando
nos travesseiros, descansando sobre um cotovelo, com a saia de seda negra de
sua camisola solta através de suas coxas.
— Está com muita roupa — sussurrou ela.
Seu lábio inferior tremeu. Com movimentos ágeis, desabotoou as mangas de
sua camisa e tirou a roupa. O olhou se despir. Seu coração esmurrando com
um ritmo selvagem, selvagem.
Finalmente, estava a sua frente, ferozmente nu.
— Agora, quem está com muita roupa? — murmurou ele.
Ele se ajoelhou na cama e colocou a mão sobre seu joelho, sob a prega de
sua camisola. Mas ela sentia que a camisola o excitava, e não se surpreendeu
quando não a tirou. Em troca, deslizou a mão sob o suave tecido e a moveu ao
longo da parte interna da coxa, até que encontrou o que andava procurando.
Tocou-a levemente uma vez, e depois outra, e outra, entrando mais.
Agora foi ela quem gemeu. Quando arqueou as costas, a seda negra se
moveu, deixando livre o outro seio. Ele baixou a cabeça para reclamar com a
boca um deles, e depois o outro. Redobrou as carícias em seus seios e sob sua
camisola, eram mais do que pôde suportar. Com um gemido que chegava das
profundidades de sua alma, desfez-se sob suas carícias.
Poderiam ter passado segundos ou horas. Antes que voltasse a si, ele estava
deitado a seu lado, olhando-a atentamente. Quando ela abriu os olhos, ele
aproximou o rosto e beijou seus lábios.
— Fogo e mel — sussurrou ele.
Ela o olhou de maneira inquisidora, mas ele só riu e a beijou outra vez. Ela
devolvia sua paixão com as mãos.
Sua boca viajou a seus seios. Finalmente ele levantou a camisola por cima
de sua cintura e seguiu adiante por seu estômago.
Ela percebeu o que ia ocorrer antes de sentir a carícia de seus lábios na
suave pele do interior de sua coxa. No inicio, pensou que devia estar
equivocada. A ideia era muito espantosa. Certamente tinha se confundido. Não
podia ser... Ele não podia...
Mas o fez. E ela pensou que morreria do prazer que lhe dava.
Quando acabou, sentiu-se como se não pudesse voltar a ser a mesma outra
vez. Ele a abraçou, e acariciou seu cabelo, envolvendo preguiçosamente os
cachos ao redor de seu dedo, dando tempo para se recuperar. Finalmente,
quando já não pôde esperar mais, apertou-se contra ela.
Ela colocou as palmas das mãos em seu peito e o empurrou.
Agora a pergunta estava em seus olhos quando ele se recostou contra os
travesseiros, e ela ficou de joelhos a seu lado. Ele a olhou cruzar os braços
timidamente, agarrar a prega da camisola e tirá-la por cima da cabeça.
Ele olhou sua beleza nua só um segundo antes que ela ficasse sobre ele. A
cortina de seu cabelo caiu entre eles quando tomou sua cabeça entre suas
pequenas e fortes mãos.
Explorou sua boca vigorosamente. Era audaciosamente feminina utilizando
a língua, tomando e saqueando, para ter prazer e devolvê-lo em abundância.
Então acariciou o resto, beijando cicatrizes e músculos; sua dura
masculinidade, até criar entre eles uma sensação única. Estavam juntos,
elevavam-se juntos... e depois se dissolviam juntos.
Ao longo da noite, despertaram várias vezes para fazer amor, dormindo
depois com seus corpos ainda unidos. Às vezes falavam do prazer de seus
corpos, mas nunca, nenhuma só vez, mencionaram os assuntos que os
separavam. Inclusive na intimidade, estabeleciam limites que não se podiam
cruzar.
Pode me tocar aqui... pode me tocar lá... Oh, sim, Oh, sim e ali... Mas não
espere mais. Não espere que a luz do dia traga uma mudança em mim. Não
haverá nenhuma mudança. Só poderia me fazer dano... Tome-me... Me
Destrua... Te darei meu corpo, mas não me atreverei a entregar mais, a pedir
mais.
Pela manhã, Cain grunhiu quando ela amassou o periódico que queria ler. E
Kit lhe repreendeu por pôr uma cadeira em seu caminho.
As barreiras do dia estavam erguidas.
18
Sophronia se decidiu antes do Natal. James Spence a acompanhou pelo
caminho que levava a Rutherford e lhe mostrou a escritura de uma casa em
Charleston em seu nome.
— É uma casinha de estuque grafite pintada em cor rosa, senhorita
Sophronia, com uma figueira na parte frontal e uma grade coberta, e na parte
de trás tem glicínias.
Ela agarrou a escritura, estudou-a com cuidado e lhe disse que iria com ele.
Enquanto contemplava fixamente pela janela da cozinha os campos inativos
de Risen Glory esse triste e úmido dia de inverno, recordou-se que já tinha
vinte e quatro anos. Não teria uma outra oportunidade assim, talvez nunca.
James Spence poderia lhe dar tudo o que sempre tinha querido. Ele a tratava
bem e era bonito para um branco. Cuidaria bem dela, e em troca, ela se
encarregaria dele. Não seria tão diferente do que fazia agora... exceto que teria
que dormir com ele.
Sentiu um calafrio e se perguntou que diferencia havia. Já não era uma
virgem. A casa de Charleston seria sua, era o que importava, e finalmente
estaria segura. Além disso, era hora de deixar Risen Glory. Entre o Magnus,
Kit, e o Major, a deixariam louca se tivesse que permanecer muito mais tempo
ali.
Magnus a olhava com esses suaves olhos castanhos. Odiava a compaixão
que via neles, mas às vezes se encontrava sonhando acordada com aquela
tarde de domingo, quando a beijou na horta. Queria esquecer esse beijo, mas
não podia. Não tinha tratado de tocá-la outra vez, nem sequer na noite que Kit
e o Major se casaram e ela tinha dormido em sua casa. Por que não
desaparecia e a deixava em paz?
Desejava que todos desaparecessem, inclusive Kit. Desde que tinha voltado
para a cama do Major, havia algo frenético nela. Precipitava-se de uma coisa
a outra, sem tempo para pensar. Pela manhã quando Sophronia ia ao galinheiro
recolher os ovos, via-a à distancia, montando Tentação como se a vida
dependesse disso, saltando sobre obstáculos muito altos, levando o cavalo ao
limite. Inclusive montava no frio ou chuva. Era como se temesse que a terra
desaparecesse durante a noite, enquanto o Major e ela estavam no quarto
grande no andar de cima.
Durante o dia, o ar entre eles cintilava com tensão. Sophronia não tinha
ouvido Kit falar uma só palavra com ele em semanas, e quando o Major se
dirigia a ela, o fazia com uma voz fria como o gelo. De qualquer modo, ela ao
menos parecia tentá-lo. Ele tinha proposto fazer um caminho para o moinho
pela zona oeste, onde só havia ervas daninhas, todo mundo menos Kit podia
ver que era uma zona estéril e o caminho economizaria vários quilômetros
para chegar ao moinho.
Essa manhã, Sophronia tinha temido que se atacassem a golpes. Durante
semanas o Major tinha pedido a Kit que deixasse de montar Tentação dessa
maneira tão temerária. Finalmente ele se irritou, e a tinha proibido de montar
Tentação de qualquer maneira. Kit tinha partido chamando—o de tudo e
ameaçando-o com coisas que nenhuma mulher deveria saber, menos ainda
dizer. Ele tinha ficado quieto como uma estátua, sem dizer uma palavra,
simplesmente olhando-a com essa expressão gelada que enviava calafrios à
coluna vertebral de Sophronia.
Mas não importava como as coisas fossem entre eles durante o dia, quando
chegava a noite, a porta do grande dormitório se fechava e não se abria até a
manhã seguinte.
Pela janela, Sophronia viu Kit vestida com essas vergonhosas calças para
caminhada. Os músculos do estômago se esticaram com temor. Não podia
prorrogar mais. Tinha a mala preparada e o senhor Spence estaria esperando-a
no cruzamento do caminho em menos de uma hora.
Não tinha contado a ninguém os seus planos, embora acreditasse que
Magnus suspeitava de algo. Tinha-a olhado de forma estranha enquanto tomava
o café da manhã na cozinha essa manhã. Às vezes tinha a sensação de que
podia ler a mente.
Estava feliz que ele tinha ido pra Rutherford para que não estivesse ali
quando partisse. Embora uma parte de si quisesse voltar a ver esse rosto
formoso e amável pela última vez.
Deixou o avental no gancho junto à pia, onde tinha pendurado seus aventais
desde menina. Depois passeou pela casa, despedindo-se dela.
Uma rajada de ar frio acompanhou Kit quando entrou pela porta.
— Este vento gela os ossos. Vou fazer sopa de peixe para jantar esta noite.
Sophronia esqueceu que isso já não seria sua responsabilidade.
— São quase cinco — a repreendeu. — Se queria sopa de peixe, deveria
ter dito isso antes. Patsy já fez uma boa fritada de abobrinhas.
Kit tirou a jaqueta de lã e a deixou com irritação no cabide junto à porta.
— Tenho certeza que não se importará que acrescente sopa de peixe ao
menu — começou a subir as escadas em largas passadas.
— As pessoas desta casa agradeceriam que sorrisse de vez em quando.
Kit fez uma pausa e olhou para Sophronia.
— O que você que quer dizer?
— Quero dizer que faz um tempo que você está mal-humorada, e parece que
está contagiando. Inclusive conseguiu discutir com Patsy.
Não era a primeira vez que Sophronia repreendia Kit por seu
comportamento, mas hoje Kit não podia reunir energia para rebatê-la.
Ultimamente se sentia nervosa e apática, não exatamente doente, mas tampouco
bem. Suspirou com cansaço.
— Se Patsy não quiser sopa de peixe no menu desta noite, eu farei amanhã.
— Você mesma deveria lhe dizer isso.
— Por quê?
— Porque eu não estarei aqui.
— Oh? E aonde vai?
Sophronia duvidou. Kit tinha perguntado com inocência.
— Vamos ao salão por um momento para que possamos falar.
Kit a olhou com curiosidade e a seguiu para o salão. Lá dentro, sentou-se
no sofá.
— Aconteceu algo?
Sophronia permaneceu de pé.
— Eu... eu vou a Charleston.
— Podia havê-lo dito antes. Preciso comprar umas coisas. Poderia te
acompanhar.
— Não, não é uma viagem para fazer compras. — Sophronia colocou as
mãos na frente de sua saia de lã marrom. — Eu... vou partir para sempre. Não
voltarei mais para Risen Glory.
Kit a olhou de forma perplexa.
— Não voltará? Claro que voltará. Vive aqui.
— James Spence comprou uma casa pra mim.
Kit enrugou a testa.
— Por que ele faria isso? Vai ser sua ama de chaves? Sophronia, como
pode pensar em nos abandonar assim?
Sophronia negou com a cabeça.
— Não vou ser sua ama de chaves, vou ser sua amante.
Kit agarrou o braço do sofá.
— Não acredito. Você nunca faria algo tão horrível.
Sophronia levantou o queixo rapidamente.
— Não te atreva a me julgar!
— Mas é que não está certo! O que está dizendo é simplesmente horrível.
Como pode sequer considerar algo assim?
— Farei o que tiver que fazer — disse teimosamente Sophronia.
— Não deve fazer!
— Para você é fácil dizer. Mas alguma vez pensou que eu gostaria de ter as
coisas que você tem... uma casa, bonitos vestidos, poder despertar pela manhã
sabendo que ninguém pode me fazer mal?
— Mas aqui ninguém pode te fazer mal. Faz mais de três anos que terminou
a guerra, e após isso ninguém te incomodou.
— Isso é porque todo mundo supunha que estava compartilhando a cama de
seu marido. — ao ver o olhar afiado de Kit, acrescentou — Não o fiz. Mas só
Magnus sabe. — As linhas esculpidas de seu rosto se tornaram amargas. —
Agora que está casada, tudo é diferente. É só questão de tempo que alguém
fale que estou livre para me perseguir. É a maneira como uma mulher negra
vive se não tem um homem branco protegendo-a. Não posso seguir vivendo
assim.
— Mas, e Magnus? — discutiu Kit. — É um bom homem. Qualquer um com
olhos pode ver que te ama. E não importa quanto negue, sei que você também
sente algo por ele. Como pode lhe fazer isto?
Sophronia esticou os lábios em uma linha fina.
— Tenho que pensar só em mim.
Kit se levantou de um salto do sofá.
— Não vejo onde está a maravilha de ter um homem branco te cuidando.
Quando foi escrava, meu pai que cuidava de você, e olhe o que te aconteceu.
Provavelmente o senhor Spence tampouco possa te proteger, como aconteceu
com meu pai. Ao melhor, olhará para outro lado, como ele fez. Pensou nisso,
Sophronia? Pensou?
— Seu pai não me protegeu! — gritou Sophronia. — Não o fez, entende?
Não só não o fez, como também me entregava de noite a seus amigos.
Kit sentiu uma dor aguda nas paredes do estômago.
Agora que a verdade foi dita, Sophronia não pôde se deter.
— Às vezes deixava que jogassem o jogo de dados. Outras vezes, uma
corrida de cavalos. Eu era o prêmio pelo qual competiam.
Kit correu até Sophronia e a agarrou em seus braços.
— Sinto muito. Oh, sinto-o tanto, tanto.
Sophronia tornou-se rígida sob suas mãos. Kit a acariciou, conteve suas
lágrimas, murmurou desculpas por algo que não tinha culpa, e tratou de
encontrar a coragem para convencer Sophronia de que não abandonasse a
única casa em que sempre tinha vivido.
— Não deixe que o que ocorreu arruíne o resto de sua vida. Foi horrível,
mas ocorreu faz já muito tempo. É jovem. Muitas escravas...
— Não me fale de escravas! — Sophronia se soltou dela com uma
expressão feroz. — Faz o favor de não me falar de escravas! Você não sabe
nada disso! — Inspirou profundamente. — Ele também era meu pai!
Kit ficou gelada. Lentamente, moveu de um lado a outro a cabeça.
— Não, não é verdade. Está mentindo. Inclusive ele não entregaria assim a
sua própria filha. Maldita seja! Maldita seja por mentir!
Sophronia não se acovardou.
— Sou sua filha, igual a você. Deitou-se com minha mãe quando não era
mais que uma moça. Esteve com ela até que se inteirou de que estava grávida.
Então a atirou aos barracões dos escravos, como se fosse lixo. A princípio,
quando seus amigos vinham atrás de mim, eu pensava que talvez tinha
esquecido que era sua filha. Mas não o tinha esquecido. Simplesmente não lhe
importava. O sangue não tinha nenhum significado para ele, porque eu não era
humana. Era só mais uma escrava de sua propriedade.
O rosto de Kit ficou cinzento. Não podia se mover. Não podia falar.
Agora que já tinha contado seu segredo, Sophronia finalmente se acalmou.
— Estou feliz que minha mãe morreu antes que isso começasse. Era uma
mulher forte, mas ver o que estava me acontecendo a teria destroçado. —
Sophronia estendeu a mão e tocou a bochecha imóvel de Kit. — Somos irmãs,
Kit. — disse suavemente. — Alguma vez se deu conta? Nunca sentiu esse laço
que nos une tão forte que não podíamos ficar separadas? Desde o começo,
sempre foi assim. Sua mãe morreu quando você nasceu e se supunha que minha
mãe tinha que te criar, mas não gostava de te tocar, pelo que lhe tinha
acontecido. Assim, eu que cuidei de você. Uma menina criando outra menina.
Lembra de dormir em meu colo quando eu tinha quatro ou cinco anos.
Colocava você a meu lado na cozinha quando trabalhava e brincava de
bonecas com você à noite. E então, minha mãe morreu e você tornou-se tudo o
que eu tinha na vida. Por isso nunca saí de Risen Glory, nem sequer quando foi
a Nova Iorque. Tinha que me assegurar de que estava bem. Mas quando voltou,
havia se transformado em uma pessoa diferente, era parte de um mundo ao
qual eu nunca pertencerei. Estava ciumenta, e também assustada. Tem que me
perdoar pelo que vou fazer, Kit, mas você tem um lugar no mundo, e já é hora
que eu trate de procurar o meu.
Deu um abraço rápido em Kit e partiu.
Não muito tempo depois, Cain encontrou Kit ali. Ela estava ainda de pé no
centro do salão. Tinha os músculos rígidos e as mãos apertadas em punhos.
— Onde diabos está todo o... Kit? O que aconteceu?
Em um instante estava a seu lado. Ela se sentiu como se a tivessem tirado
de um transe. Apoiou-se contra ele, afogando-se com um soluço. Ele a agarrou
em seus braços e a levou ao sofá.
— Me diga o que aconteceu.
Sentia-se bem com os braços ao seu redor. Nunca a tinha abraçado assim...
protetoramente, sem vestígio de paixão. Começou a chorar.
— Sophronia partiu, vai para Charleston para ser... para ser a amante de
James Spence.
Cain jurou suavemente.
— Magnus sabe?
— Eu... eu acredito que não. — Tentou tomar fôlego. — Também me disse
que... Sophronia é minha irmã.
— Sua irmã?
— É filha de Garrett Weston, como eu.
Ele acariciou seu queixo com o polegar.
— Viveste no Sul toda sua vida. A pele de Sophronia é clara.
— Não entende. — Apertou a mandíbula e tratou de cuspir as palavras
através de suas lágrimas. — Meu pai a entregava a seus amigos durante a
noite. Ele sabia que era sua filha, sua própria carne e seu próprio sangue, mas
a entregava igual... Oh, por amor de Deus...
Cain ficou pálido. Ele chegou mais perto e descansou sua bochecha contra
o topo de sua cabeça enquanto ela chorava. Aos poucos, ela lhe disse os
detalhes da história. Quando ele terminou, apertou-a mais e deixou repousar
sua bochecha contra o cocuruto dela enquanto chorava. Gradualmente, lhe
contou os detalhes da história. Quando terminou, Cain falou brutalmente.
— Espero que esteja queimando no inferno.
Agora que tinha contado tudo, Kit compreendeu o que devia fazer, soltou-se
e ficou de pé de um salto.
— Tenho que detê-la. Não posso permitir que passe por isso.
— Sophronia é uma mulher livre. — Ele a lembrou suavemente. — Se ela
quiser ir com Spence, não há nada que você possa fazer.
— É minha irmã! A amo, e não vou permitir que faça isto!
Antes que Cain pudesse detê-la, saiu do salão apressadamente.
Cain suspirou enquanto se levantava do sofá. Kit estava ferida, e como ele
sabia muito bem, isso poderia levar ao desastre.
Fora, Kit se escondeu entre as árvores perto da entrada da casa. Seus
dentes batiam castanholas enquanto se acocorava nas sombras frias e úmidas,
esperando que Cain saísse. Logo apareceu, como ela sabia que faria. O viu
descer os degraus olhando para o caminho. Ao não vê-la, amaldiçoou, e se
virou para os estábulos.
Logo que o perdeu de vista, Kit correu até a casa indo para o armário de
armas na biblioteca. Não esperava muitos problemas de James Spence, mas
como não tinha a menor intenção de deixar que Sophronia se fosse com ele,
precisava de uma arma para adicionar peso aos seus argumentos.
***

A vários quilômetros dali, a calesa vermelha e negra de James Spence


passou ao lado da carreta que Magnus conduzia. Spence ia como se o diabo o
perseguisse, com pressa, pensou Magnus enquanto o via desaparecer por uma
curva. Dali não havia muito até o cruzamento do caminho que levava a Risen
Glory e ao moinho de algodão. Spence devia ter negócios com o moinho.
Era uma conclusão lógica, mas de algum modo não o satisfez. Girou os
cavalos, e se dirigiu depressa para Risen Glory, enquanto repassava o que
sabia de Spence.
As fofocas locais diziam que tinha administrado uma pedreira de cascalho
em Illinois, tinha vendido sua parte por trezentos dólares, e após o término da
guerra partiu para o sul, com uma mala cheia de dólares. Agora possuía uma
próspera mina de fosfato e desejava Sophronia.
A calesa de Spence estava parada no final do caminho quando Magnus
chegou ali. O homem de negócios estava vestido com uma casaca e chapéu
negro, com uma bengala na mão enluvada. Magnus apenas o olhou um
momento. Toda sua atenção estava em Sophronia.
Ela estava de pé ao lado do caminho, com seu xale grande de lã envolvendo
os ombros e uma pequena mala a seus pés.
— Sophronia! — parou a carreta e saltou.
Ela levantou o olhar para ele. Por um momento acreditou ver uma faísca de
esperança em seus olhos, mas depois se nublaram e ela apertou mais forte o
xale grande.
— Saia daqui, Magnus Owen. Isto não tem nada que ver contigo.
Spence se afastou um passo da porta da calesa e olhou para Magnus.
— Quer algo, menino?
Magnus colocou um polegar em seu cinturão e o fulminou com o olhar.
— A senhora mudou de opinião.
Os olhos de Spence se estreitaram sob a aba de seu chapéu.
— Se está falando comigo, menino, sugiro que me chame senhor.
Enquanto Sophronia via a confrontação, uma sensação de temor percorreu
suas costas. Magnus virou-se para ela, mas em lugar do homem amável de voz
suave que ela conhecia, viu um desconhecido olhando-a com dureza.
— Volte para casa.
Spence deu outro passo.
— Bem, de acordo. Não sei quem acredita ser, mas...
— Vá embora, Magnus — Sophronia podia escutar o tremor de sua voz. —
Tomei uma decisão, e não pode me deter.
— Claro que posso te deter — disse ele em tom frio — E isso é
precisamente o que vou fazer.
Spence se aproximou de Magnus, segurando com firmeza a bengala com
punho dourado na mão.
— Acredito que seria melhor para todos que voltasse por onde veio.
Sophronia, vamos.
Mas quando tentou agarrá-la, Magnus foi mais rápido e a afastou dele.
— Nem pense em tocá-la. — grunhiu Magnus empurrando-a com firmeza
atrás de si.
Então levantou os punhos e foi ao encontro do outro homem.
Homem negro contra homem branco. Todos os pesadelos de Sophronia se
tornavam realidade. O medo se enroscou em seu interior.
— Não! — segurou Magnus pela camisa. — Não o toque! Se tocas um
homem branco, será enforcado com uma corda ao amanhecer.
— Me solte, Sophronia.
— Os brancos têm todo o poder, Magnus. Esqueça disto agora mesmo!
Ele a afastou para um lado, em claro gesto de proteção. Spence aproveitou
que lhe dava as costas e quando Magnus se virou, levantou a bengala e o
golpeou no peito.
— Se afaste das coisas que não lhe dizem respeito, menino — grunhiu
Spence.
Em um movimento rápido, Magnus agarrou a bengala e a partiu em duas
com o joelho.
Sophronia gritou.
Magnus atirou a bengala ao chão e deu um forte murro na mandíbula de
Spence, que derrubou o proprietário da mina diretamente no caminho de terra.
Kit chegou justo nesse momento, saindo das árvores. Levantou sua escopeta
e apontou ao homem no chão.
— Parta daqui, senhor Spence. Não lhe queremos.
Sophronia nunca tinha estado tão contente de ver alguém, mas o rosto de
Magnus ficou tenso. Spence se levantou devagar, olhando Kit de forma hostil.
Nesse momento se ouviu uma voz profunda.
— O que está ocorrendo aqui?
Quatro pares de olhos giraram e viram Cain desmontando de Vândalo.
Caminhou para Kit com esse andar lento e seguro que era tão característico
nele e estendeu a mão.
— Me dê a escopeta, Kit — falou com a mesma calma como se lhe pedisse
o pão na mesa.
Lhe dar a arma era exatamente o que Kit queria fazer. Como já tinha
descoberto uma vez, não tinha guelra para disparar em ninguém. Cain ficaria
do lado de Magnus e tranquilamente, lhe entregou.
Para seu assombro, ele não apontou a Spence. Pelo contrário, agarrou-a
pelo braço e a levou sem nenhum olhar até seu cavalo.
— Aceite minhas desculpas, senhor Spence. Minha esposa tem um
temperamento um pouco exaltado — e colocou a escopeta na capa que estava
pendurada na sela.
Os olhos de Spence tornaram-se astutos. O moinho de algodão tinha tornado
Cain um homem importante na comunidade, e ela pôde ver como tratava de
procurar uma forma de não se antagonizar com ele.
— Não mencione isso, senhor Cain — disse limpando o barro de suas
calças. — Suponho que nenhum de nós pode predizer o comportamento de
nossas pequenas esposas.
— Nunca palavras tão certas foram ditas — respondeu Cain, passando por
cima o olhar furioso de Kit.
Spence recolheu seu chapéu negro e apontou para Magnus com a cabeça.
— Dá valor a este menino, Major?
— Por que a pergunta?
Ele dirigiu a Cain um sorriso de homem a homem.
— Se você me disser que o valoriza, suponho que não se sentiria feliz de
vê-lo pendurando em uma corda. E já que ambos somos homem de negócios,
estaria mais que disposto a esquecer o que ocorreu aqui hoje.
O alívio fez os joelhos de Kit tremer. Os olhos de Cain se dirigiram para
Magnus.
Ficaram olhando-se durante tensos e longos segundos antes que Cain
afastasse o olhar e desse de ombros.
— Que Magnus cuide de seus assuntos. Não tem nada que ver comigo, de
maneira nenhuma.
Kit deu um assobio de ira quando ele a subiu no lombo de Vândalo, montou,
e esporeou o cavalo para voltar pelo caminho.
Sophronia os viu partir, com a bílis subindo pela garganta.
Supunha que o Major era amigo de Magnus, mas parecia que não. Os
brancos se uniam sempre contra os negros. Sempre tinha sido assim e sempre
seria.
O desespero a afligiu. Levantou o olhar para Magnus para ver como reagiu
à traição de Cain, mas não parecia se incomodar. Estava de pé com as pernas
ligeiramente separadas, com uma mão no quadril, e uma estranha luz brilhando
em seus olhos.
O amor que tinha se recusado a admitir explodiu livre dentro de si,
rompendo todas as invisíveis correntes do passado, as arrastando em uma
avalanche purificadora. Como teria podido negar esses sentimentos por tanto
tempo? Ele era tudo o que um homem tinha que ser... forte, bom, amável. Era
um homem tenro e orgulhoso. Mas agora, por sua culpa, tinha-o posto em
perigo.
Só havia uma coisa que pudesse fazer. Deu as costas a Magnus e se obrigou
a caminhar para James Spence.
— Senhor Spence, é minha culpa o que aconteceu hoje aqui — foi
impossível lhe tocar o braço. — estive flertando com Magnus, fazendo com
que acreditasse que estava interessada. Por favor, esqueça tudo isto. Irei com
você, mas me prometa que não tomará represálias contra ele. É um bom
homem e tudo isto é minha culpa.
Atrás lhe chegou a voz de Magnus, grossa e suave como um antigo hino.
— É inútil, Sophronia. Não vou deixar que vá com ele — ficou junto a ela.
— Senhor Spence, Sophronia vai ser minha esposa. Se tentar aproximar-se
dela, o matarei. Hoje, amanhã, dentro de um ano, dá no mesmo. O matarei.
Os dedos de Sophronia se tornaram gelados.
Spence lambeu os lábios e olhou nervosamente por onde Cain tinha
desaparecido. Magnus era um homem grande, mais alto e musculoso, e Spence
tinha tudo a perder em uma luta física. Mas Spence não precisava desse tipo
de luta para ganhar.
Com uma sensação de temor, Sophronia olhou as emoções que passavam
por seu rosto. Nenhum homem negro sairia ileso se batesse em um homem
branco na Carolina do Sul. Se Spence não conseguia que o xerife fizesse algo,
iria ao Ku Klux Klan, esses monstros que estavam atemorizando o estado fazia
dois anos. Quando Spence se dirigiu com toda confiança à sua calesa e subiu
despreocupadamente no assento, imagens de açoitamentos e linchamentos
voltaram à sua mente.
Ele recolheu as rédeas e se dirigiu a Magnus.
— Cometeste um grave engano, menino — então olhou a Sophronia com
uma hostilidade que não tentou esconder. — Voltarei amanhã para te ver.
— Só um minuto, senhor Spence. — Magnus se agachou para recolher os
pedaços quebrados da bengala. Caminhou até a calesa com uma segurança que
não tinha direito de sentir. — Me considero um homem justo, de modo que
creio ser necessário lhe advertir do tipo de risco que cometeria se decidisse
vir atrás de mim. Ou se decidisse enviar a seus conhecidos com lençóis aqui.
Mas isso não seria uma boa idéia, senhor Spence. De fato, seria muito má
ideia.
— O que é que isso quer dizer? — zombou Spence.
— Quero dizer que tenho uma espécie de talento, do que eu gostaria de lhe
falar, senhor Spence. E tenho três ou quatro amigos com o mesmo talento. São
homem negros, como eu, e possivelmente acredite que por ser negros não vale
a pena levar em conta, senhor Spence. Mas cometeria um grave engano.
— Do que está falando?
— Estou falando da dinamite, senhor Spence. Material nojento, mas
realmente útil. Aprendi a utilizá-lo quando tivemos que voar algumas rochas
para construir o moinho. A maioria das pessoas não sabe muito sobre
dinamite, uma vez que é um produto tão novo, mas você me parece alguém
com ideias inovadoras, e suponho que a conhece. Saberia, por exemplo,
quanto dano pode causar uma pequena carga de dinamite se alguém a puser no
lugar equivocado de uma mina de fosfato.
Spence olhou para Magnus com incredulidade.
— Está me ameaçando?
— Suponho que poderia se dizer que estou tratando de fazer um ponto,
senhor Spence. Tenho bons amigos. Realmente bons. E se me acontecesse algo,
não ficariam muito contentes. Ficariam tão infelizes que poderiam detonar uma
carga de dinamite no lugar incorreto. E nós não queremos que isso aconteça,
verdade senhor Spence?
— Maldito seja!
Magnus pôs um pé no degrau da calesa e bateu levemente com as partes
quebradas da bengala nos joelhos.
— Todo homem merece sua felicidade, senhor Spence e a minha é
Sophronia. Eu pretendo ter uma vida boa, muito tempo para apreciá-la, e eu
estou disposto a fazer o que for preciso para conseguir. Quando nos
encontramos na cidade, eu vou tocar o chapéu e dizer com cuidado, Como vai
você, Sr. Spence? E enquanto escutar isso, saberá que sou um homem feliz que
deseja a você e a sua mina de fosfato o melhor. — Sem deixar de lhe olhar nos
olhos, atirou-lhe a bengala quebrada.
Rígido de ira, Spence recolheu e agarrou as rédeas.
Sophronia não podia acreditar. O que tinha visto ia contra todas as suas
crenças, mas tinha ocorrido. Tinha visto magnus enfrentar um homem branco, e
ganhar. Tinha lutado por ela. Tinha-a protegido... Inclusive dela mesma.
Correu atraves da fria e úmida grama curta que os separava e se jogou em
seus braços, repetindo seu nome uma e outra vez, igualando o ritmo com os
batimentos de seu coração.
— Põe-me a prova continuamente, mulher — disse calmamente, apoiando
as mãos em seus ombros.
Ela levantou o olhar e viu firmeza e sinceridade, e olhos que prometiam
tanto bondade como proteção. Ele levantou a mão e passou o dedo sobre seus
lábios, como se fosse um cego marcando um território que estava a ponto de
reclamar. Então baixou a cabeça e a beijou.
Ela aceitou seus lábios timidamente, como se fosse uma mocinha. Ele a fez
se sentir pura e inocente de novo.
A aproximou mais e o beijo cresceu em exigência, mas em vez de assustá-
la, comoveu-a seu poder. Este homem, este homem bom, seria dela. Ele era
mais importante que uma casa em Charleston, mais importante que vestidos de
seda, mais importante que qualquer coisa.
Quando começaram a se afastar, Sophronia viu seus olhos brilhar. Este
homem duro e forte, que tinha ameaçado descaradamente detonar uma mina de
fosfato, era amável e suave como um cordeiro.
— Só me causa problemas, mulher — disse ele bruscamente — Quando
estivermos casados, não aguentarei mais bobagens.
— Vamos nos casar, Magnus? — Perguntou ela descaradamente, passando
seus elegantes e longos dedos aos lados de sua cabeça, para lhe dar outro
longo e profundo beijo.
— Oh sim, meu amor — respondeu ele, quando finalmente pôde respirar.
— Vamos nos casar o quanto antes, sem dúvida nenhuma.
19
— Acreditava que fosse muitas coisas, Baron Cain, mas nunca acreditei
que fosse um covarde! — Kit entrou como uma tempestade no estábulo
pisando nos calcanhares de Cain. — Magnus vai ser um homem morto, e isso
cairá sobre sua consciência. Tudo o que teria que ter feito era assentir com a
cabeça, só assentir com a cabeça e Spence teria esquecido que Magnus o
golpeou. Me devolva esse rifle agora mesmo! Se não é homem o bastante para
defender a seu melhor amigo, farei-o eu mesma.
Cain se virou, com a escopeta apoiada ao peito.
— Como tenho a remota ideia de que você vai voltar lá. Vou te trancar e
jogar a chave fora.
— É odioso, sabia?
— Diz-me isso continuamente. Ocorreu-te me perguntar por que eu fiz isso,
em vez de me lançar todo tipo de acusações?
— O que fez é obvio.
— É?
De repente Kit se sentiu insegura. Cain não era nenhum covarde e ele nunca
fazia nada sem uma razão. As arestas de sua raiva esfriaram, mas não as de
sua preocupação.
— Muito bem, me diga o que tinha em mente quando deixou Magnus com
um homem que quer vê-lo linchado.
— Irritou-me o suficiente, vou deixar que o descubra sozinha.
Começou a andar para a casa, mas Kit saltou a sua frente.
— Oh, não, você não vai fugir assim tão facilmente.
Ele mudou a escopeta de seu ombro.
— Magnus odiaria sua interferência e teria odiado também a minha. Há
algumas coisas que um homem deve fazer por si só.
— Também poderia ter assinado sua sentença de morte.
— Digamos que tenho mais fé nele que você.
— Isto é a Carolina do Sul, não Nova Iorque.
— Não me diga que finalmente está admitindo que seu querido estado não é
perfeito?
— Estou falando do Ku Klux Klan — disse ela — a última vez que fui a
Charleston, tratou de conseguir com que os funcionários federais tomassem
medidas contra eles. Agora atua como se o Ku Klux Klan não existisse.
— Magnus é um homem. Não precisa que ninguém lute suas batalhas. Se
você soubesse a metade do que acredito que sabe, compreenderia isso.
Do ponto de vista de Magnus, Cain tinha razão, mas ela não tinha paciência
com essa classe de orgulho masculino. Só levava à morte.
Quando Cain se afastou, ela pensou na guerra que tão gloriosa tinha
parecido uma vez.
Bufou e deu voltas com passo firme durante a maior parte do tempo até que
Samuel apareceu, com um sorriso aberto em seu rosto e uma nota de Sophronia
na mão.

Querida Kit Deixa de preocupar-se. Spence se foi, Magnus está bem e


vamos nos casar.
Com amor, Sophronia.

Kit olhou fixamente com uma mescla de alegria e atordoamento. Cain tinha
razão. Mas só porque tinha razão nisto não significava que tivesse razão em
tudo.
Tinham ocorrido muitas coisas e seus sentimentos por Sophronia, por Risen
Glory e por Cain giravam dentro de si. Saiu para pegar Tentação no estábulo,
mas lembrou que Cain lhe tinha ordenado que não montasse o cavalo. Uma
pequena voz lhe disse que só podia culpar a si mesma pela imprudência, mas
se negou a escutá-la. Tinha que resolver isto com ele.
Caminhou com passo majestoso de volta à casa e encontrou Lucy cortando
batatas.
— Onde está o senhor Cain?
— Ouvi-o subir faz alguns minutos.
Kit saiu apressada para o vestíbulo e subiu as escadas. Abriu de um puxão
a porta do dormitório.
Cain estava junto à mesa recolhendo alguns papéis que tinha deixado ali na
noite anterior. Virou-se para ela com expressão zombadora. Viu o quão agitada
estava e levantou uma sobrancelha.
— E bem?
Sabia o que estava lhe perguntando. Romperia a regra não escrita entre
eles? A regra que dizia que este dormitório era o único lugar onde não
discutiam, o único lugar que estava destinado para outras coisas, algo tão
importante para ambos como o ar que respiravam.
Ela não podia romper essa regra. Somente aqui se desvanecia sua
inquietação. Somente aqui se sentia... não feliz... mas de algum modo
adequada.
— Venha aqui — disse ele.
Dirigiu-se para ele, mas não se esqueceu de seu ressentimento por
Tentação. Não se esqueceu de seu medo de que ele ainda colocasse um
caminho para o moinho através de suas terras. Não se esqueceu de sua
prepotência e de sua obstinação. Ela deixava tudo isso ferver em seu interior
enquanto se entregava a relações sexuais que estavam se tornando cada dia
menos satisfatórias e mais necessárias.
Na manhã seguinte, nem sequer a felicidade de Sophronia e Magnus pôde
impedir que Cain e Kit se falassem furiosamente. Converteu-se em uma rotina,
quanto mais apaixonada era a noite, pior se tratavam no dia seguinte.
Não espere que a luz do dia cause uma mudança em mim... te darei meu
corpo, mas não, não se atreva a pedir mais.
Enquanto Kit observava Magnus e Sophronia movendo-se em um ditoso
atordoamento durante a semana seguinte preparando suas bodas, encontrou-se
desejando que Cain e ela pudessem ter também um final feliz. Mas o único
final feliz que poderia imaginar para eles consistia em que Cain partisse logo,
deixando-a só em Risen Glory. E isso não parecia correto absolutamente.
***

No domingo à tarde, Sophronia e Magnus fizeram seus votos na velha igreja


dos escravos com Kit e Cain junto a eles. Depois dos abraços, das lágrimas e
de cortar o bolo de casamento feito por Miss Dolly, ficaram finalmente
sozinhos na casa de Magnus que estava junto à horta.
— Não vou te pressionar. — disse enquanto a noite de dezembro caía
intensa e tranquila ao outro lado das janelas. — Pode demorar um pouco.
Sophronia sorriu e seus olhos brilharam com a visão da bela pele marrom.
— Já demoramos muito tempo — seus dedos deslizaram pelos botões
superiores do belo vestido de seda que Kit lhe tinha dado.
— Amame, Magnus. Só me ame.
Ele o fez. Tenra e completamente. Mandando embora toda a feiura do
passado. Sophronia nunca tinha se sentido tão segura e amada. Nunca
esqueceria o que lhe tinha acontecido, mas os pesadelos de seu passado já não
a controlavam. Finalmente entendeu o que significava ser livre.
***

Enquanto dezembro dava lugar a janeiro, as relações sexuais entre Cain e


Kit se desenvolviam em um fio primitivo e violento que os assustava. Kit
deixou um machucado no ombro de Cain. Cain deixou uma marca em seu peito,
só para se amaldiçoar mais tarde.
Apenas uma vez trataram de falar.
— Não podemos continuar deste modo — disse ele.
— Sei — virou a cabeça no travesseiro e fingiu dormir.
A sua parte traiçoeira e mais feminina desejava deixar de lutar e abrir seu
coração antes que este explodisse com sentimentos que não podia nomear. Mas
este era um homem que abandonava seus livros e cavalos antes que pudessem
significar muito para ele. E os demônios de seu próprio passado também eram
fortes.
Risen Glory era tudo o que tinha... tudo o que alguma vez tinha tido... a
única parte de sua vida que era segura. As pessoas desapareciam, mas Risen
Glory era eterna e nunca ia permitir que seus tumultuados e secretos
sentimentos por Baron Cain ameaçassem isso. Cain com seus frios olhos
cinzas e seu moinho têxtil, Cain com sua descontrolada ambição que podia
devorar seus campos, para logo cuspi-los igual a tantas descartadas sementes
de algodão, até que não ficasse nada mais que uma casca sem valor.
***

— Já lhe disse, não quero ir — Kit jogou violentamente a escova e olhou


Cain fixamente através do espelho. Ele jogou a camisa de lado.
— Eu sim.
Todas as brigas terminavam na porta do quarto. Mas esta não o faria. Que
diferencia havia? Sua forma de fazer amor já tinha transformado seu
dormitório em outra zona de guerra.
— Você odeia as festas. — recordou ela.
— Esta não. Quero me manter longe do moinho durante alguns dias.
O moinho, observou ela, não Risen Glory.
— E sinto falta de ver verônica — acrescentou.
O estômago de Kit deu um salto de dor e de ciúmes. A verdade era que ela
também sentia falta de Verônica, mas não queria que Cain sentisse.
Verônica tinha deixado Rutherford seis semanas antes, pouco antes do dia
de Ação de graças. Instalou-se em uma mansão de três andares em Charleston
e Kit se inteirou de que já se estava convertendo em uma referência de moda e
cultura. Artistas e políticos iam a sua porta. Havia um desconhecido escultor
de Ohio, um famoso ator de Nova Iorque. Agora Verônica planejava inaugurar
sua nova casa com um baile de inverno.
Em sua carta a Kit, havia-lhe dito que tinha convidado a todas as pessoas
divertidas de Charleston, além da alguns velhos conhecidos de Rutherford.
No estilo tipicamente perverso de Verônica, isso incluía Brandon Parsell e
sua nova prometida, Eleanora Baird cujo pai tinha assumido a presidência do
banco depois da guerra.
Normalmente Kit teria se encantado por assistir a tal festa, mas agora
mesmo não tinha coração para isso. A nova felicidade de Sophronia a fazia
consciente de sua própria miséria, e por mais que Verônica a fascinasse,
também fazia com que Kit se sentisse torpe e estúpida.
— Vá você sozinho — disse, embora odiasse a idéia.
— Vamos juntos. — a voz de Cain soou cansada. — Não tem nenhuma
escolha neste tema.
Como se alguma vez tivesse tido. Seu ressentimento cresceu, e essa noite
não fizeram amor. Nem na seguinte. Nem a seguinte depois dessa. Isso estava
bem, dissese a si mesma. Sentia-se doente há várias semanas. Cedo ou tarde
teria que deixar de resistir e ver o médico. Ainda assim, esperou até a manhã
antes de partir para a festa de Verônica para fazer a viagem. Quando chegaram
a Charleston, Kit estava pálida e esgotada. Cain partiu para ocupar-se de
algum negócio, enquanto mostravam a Kit o quarto que compartilhariam
durante as próximas noites. Era claro e ventilado, com um estreito balcão com
vista para um belo pátio de tijolos, incluso no inverno com seu gramado verde
vindo de Sea Island, e com o perfume doce das oliveiras.
Verônica mandou uma criada para ajudá-la a desembalar as roupas e lhe
preparar um banho. Mais tarde Kit caiu sobre a cama e fechou os olhos, muito
esgotados de emoção, inclusive para chorar. Despertou várias horas mais tarde
e desajeitadamente vestiu sua camisola de algodão. Enquanto fechava o cinto,
caminhou em direção às janelas e afastou as cortinas. Fora estava já escuro.
Teria que se vestir logo. Como superaria essa noite? Encostou a bochecha
contra o vidro frio da janela.
Ia ter um bebê. Não parecia possível, inclusive agora, que uma pequena
partícula de vida crescia dentro dela. O bebê de Baron Cain. Um bebê que a
ataria a ele pelo resto de sua vida. Um menino a quem desesperadamente
queria, embora tudo ficasse muito mais difícil.
Obrigou-se a se sentar em frente à penteadeira. Ao procurar sua escova,
notou o pote azul de cerâmica que estava junto a seus outros artigos de
penteadeira. Lucy também o tinha levado. Que irônico. O pote continha o pó
cinzento que tinha conseguido da curandeira para evitar engravidar. Tinha-o
tomado uma vez e depois nunca mais. No início, tinha havido várias semanas
nas quais Cain e ela tinham dormido separados, e logo depois da noite de sua
reconciliação, ficou relutante a utilizar o pó. O conteúdo desse pote azul lhe
tinha parecido quase malévolo, até que finalmente a tinha feito rilhar os
dentes.
Quando escutou várias mulheres falar sobre quão difícil tinha sido para
elas engravidarem, ela tinha justificado seu descuido decidindo que o risco de
gravidez não era tão grande como tinha temido. Então Sophronia descobriu o
pote e disse a Kit que os pós eram inúteis. A curandeira não gostava das
mulheres brancas e tinha estado lhes vendendo pós de prevenção inúteis
durante anos. Kit passou o dedo pela tampa do pote, perguntando-se se isso
seria verdade.
A porta se abriu tão bruscamente que a sobressaltou e derrubou o pote.
Desceu de um salto do tamborete.
— Não poderia entrar ao menos uma vez em um quarto sem arrancar a porta
de suas dobradiças?
— Sempre estou muito impaciente por ver minha fiel esposa — Cain atirou
suas luvas de couro sobre uma cadeira, então descobriu a desordem sobre a
penteadeira. O que é isso?
— Nada! — agarrou uma toalha e tratou de limpá-lo.
Ele se aproximou por detrás dela e depositou sua mão sobre a dela. Com
sua outra mão, recolheu o pote derrubado e estudou o pó que ficava dentro.
— O que é isto?
Ela tentou puxar a mão, mas ele a segurou forte. Colocou o pote e seu olhar
fixo lhe disse que não a deixaria ir até que lhe dissesse a verdade. Começou a
dizer que era um pó para a dor de cabeça mas estava muito cansada para
dissimular, e que importava de qualquer forma?
— É algo que consegui da curandeira. Lucy o empacotou por engano. — e,
porque agora já não tinha nenhuma diferencia —: Eu... eu não queria ter um
bebê.
Um olhar de amargura relampejou através de seu rosto. Soltou sua mão e se
virou.
— Já vejo. Talvez deveríamos ter falado disso.
Ela não pôde esconder totalmente a tristeza de sua voz.
— Não parece que tenhamos um matrimônio desse tipo, não é verdade?
— Não. Não, suponho que não temos. — dando-lhe as costas, tirou o
casaco cinza pérola e jogou a gravata.
Quando ele finalmente se deu a volta, seus olhos eram tão distantes como a
estrela do norte.
— Fico feliz por você ser tão sensata. Duas pessoas que se detestam não
seriam os melhores pais. Não posso imaginar nada pior que trazer um pirralho
não desejado para esta sórdida confusão que chamamos matrimônio, ou, sim?
Kit sentiu como seu coração se partia em um milhão de pedaços.
— Não. — conseguiu dizer. — Não, eu tampouco.
***

— Entendi que é seu esse novo moinho de algodão passando Rutherford,


senhor Cain.
— É sim. — Cain estava ao final do vestíbulo junto a John Hughes, um
jovem e forte nortista que tinha chamado sua atenção justo quando estava a
ponto de subir para ver o que Kit estava segurando.
— Ouvi que está fazendo um bom negócio ali. Mais poder para você, já
sabe. Arriscado, entretanto, não crê, com o... — deixou de falar e assobiou
suavemente quando olhou fixamente mais à frente do ombro de Cain, para as
escadas. — Wou, Wou! Pode ver isso? Há uma mulher que não me importaria
levar para casa comigo.
Cain não precisou dar meia volta para saber quem era. Podia senti-la
através dos poros de sua pele. Ainda assim, tinha que olhar.
Usava seu vestido branco prateado com as contas de cristal. Mas o vestido
tinha sido arrumado da última vez que o tinha visto, da mesma maneira que
recentemente tinha trocado muitas de suas roupas. Tinha moldado o sutiã de
cetim branco justo por baixo de seus seios e fixado uma fina capa de organdi
prateado. Esta se elevava sobre suas curvas suaves até sua garganta onde
estava uma brilhante fita para recolhê-la em uma elevada e delicada roda.
O organdi era transparente e não usava nada embaixo. Somente as contas de
cristal que ela tinha tirado da saia e tinha colocado em grupos estratégicos
sobre a malha transparente que protegia sua modéstia. Lentejoulas de cristal
sobre a carne arredondada.
O vestido era incrivelmente bonito e Cain nunca tinha visto nada que
odiasse mais. Um por um, os homens ao seu redor se viraram para ela, e seus
olhos devoraram cobiçosamente a carne que deveria ter sido vista unicamente
por ele.
Era uma donzela de gelo presa em chamas.
E então esqueceu seus ciúmes e simplesmente desfrutou da visão. Era
grosseiramente formosa, sua rosa selvagem das profundidades do bosque, tão
indômita como o dia em que a conheceu, preparada para cravar a carne de um
homem com seus espinhos ao mesmo tempo que o tentava com seu espírito.
Observou a profunda cor que manchava suas delicadas maçãs do rosto e as
estranhas e brilhantes luzes que cintilavam nas intensas profundidades de seus
olhos violetas. Sentiu um primeiro pico de inquietação. Havia algo quase
frenético que se ocultava dentro dela essa noite. Palpitando desde seu corpo
como um rufo, esforçando-se por escapar e correr livre e selvagem. Deu um
rápido passo para ela e logo outro.
Seus olhos se entrelaçaram com os dele e logo se afastaram
deliberadamente. Sem uma palavra, ela percorreu o vestíbulo para outro
vizinho de Rutherford que tinha sido convidado.
— Brandon! Sou eu, Oh, está muito arrumado esta noite. E esta deve ser sua
doce prometida, Eleanora. Espero que me deixe lhe roubar ao Brandon de vez
em quando. Fomos amigos durante tanto tempo... como irmão e irmã, você
entende. É possível que não possa cedê-lo inteiramente, mas sim um
pouquinho.
Eleanora tratou de sorrir, mas seus lábios não puderam esconder sua
desaprovação nem a sensação que tinha de ser pouco elegante ao lado da
beleza exótica de Kit. Brandon, por outro lado, contemplava Kit com seu
estranho vestido como se fosse a única mulher do mundo.
Apareceu Cain.
— Parsell. Senhorita Baird. Se vocês nos desculparem...
Seus dedos se afundaram no braço de organdi drapeado de Kit, mas antes
que ele pudesse arrastá-la através do vestíbulo para as escadas e obrigá-la a
trocar de vestido, Verônica apareceu diante eles com um traje de noite negro
azeviche. Houve uma ligeira ascensão de sua testa quando compreendeu que o
pequeno drama estava acabado antes de sua chegada.
— Baron, Katharine, justo os dois que estava procurando. Chego tarde
como de costume, e em minha própria festa. Cook está preparado para servir o
jantar. Baron, seja um cavalheiro e me acompanhe no jantar. E Katharine,
quero que conheça Sérgio. Um homem fascinante e o melhor barítono que a
cidade de Nova Iorque escutou em uma década. Ele será seu par no jantar.
Cain rilhou os dentes pela frustração. Agora não havia nenhuma forma de
que pudesse afastar Kit. Observou um italiano muito atraente avançar com
impaciência e beijar a mão de Kit. Depois, com uma expressão comovedora,
girou sua mão e pressionou intimamente seus lábios na palma.
Cain se moveu rapidamente, mas Verônica foi inclusive mais rápida.
— Meu querido Baron. — cantarolou suavemente enquanto lhe cravava os
dedos no braço — está se comportando como o tipo de marido possessivo. Me
acompanhe à sala de jantar, antes que faça algo que só vai fazer com que você
pareça estúpido.
Verônica tinha razão. Entretanto, teve que usar toda sua força de vontade
para virar-se e dar as costas à sua esposa e ao italiano.
O jantar durou quase três horas e ao menos uma dúzia de vezes, a risada de
Kit ressoou enquanto dividia sua atenção entre Sérgio e os outros homens que
se sentavam perto dela. Todos a adulavam exageradamente e a enchiam de
cuidados. Sérgio parecia estar lhe ensinando italiano. Quando ela derramou
uma gota de vinho, ele molhou seu dedo indicador na mancha e logo o levo até
seus lábios. Somente o forte apertão de Verônica impediu Cain de saltar do
outro lado da mesa.
Kit estava lutando uma batalha consigo mesma. Tinha pedido perversamente
a Lucy que empacotasse o vestido de contas prateado depois que Cain lhe
havia dito que não gostava. Mas realmente não havia planejado levá-lo. Ainda
quando tinha tido tempo de colocar um vestido mais apropriado de veludo
verde jade, as palavras de Cain a tinham açoitado.
Não posso imaginar nada pior que trazer um pirralho não desejado a
esta sórdida confusão que chamamos casamento...
Escutou a risada de Cain ressoar na outra ponta da mesa e observou atenta a
maneira como ele escutava Verônica.
As damas abandonaram os cavalheiros com seus cigarros e seus brandys.
Depois foi hora de que começasse o baile.
Brandon entregou Eleanora a seu pai e pediu a Kit o primeiro baile. Kit
olhou fixamente seu bonito e débil rosto. Brandon, que falava de honra, estava
disposto a vender-se ao melhor lance. Primeiro ela por uma plantação, e agora
Eleanora Baird por um banco. Cain nunca se venderia por nada, nem sequer
por seu moinho de algodão. Seu casamento tinha sido um justo castigo, nada
mais.
Quando Brandon e ela entraram na pista de baile, viu Eleanora na lateral do
salão com expressão aflita, e se arrependeu de seus flertes anteriores. Tinha
bebido Champanhe suficiente para saldar as dívidas de todas as mulheres
desventuradas.
— Senti sua falta. — sussurrou quando a música começou.
— Eu também senti sua falta, Kit. Oh, Senhor, é tão bonita. Quase me matou
pensar em você com Cain.
Aproximou-se mais dele e sussurrou com malícia: —: Querido Brandon,
escapa comigo esta noite. Deixemos tudo, Risen Glory e o Banco. Seremos
somente nós dois. Não teremos dinheiro ou uma casa, mas teremos nosso amor.
Ocultou sua diversão quando o sentiu se esticar sob o tecido de sua jaqueta.
— Realmente Kit, eu... eu não acredito que isso fosse... fosse sensato.
— Mas por que não? Está preocupado por meu marido? Ele virá atrás de
nós, mas tenho certeza de que poderá lidar com ele.
Brandon tropeçou.
— Deixar não é... quer dizer, penso que possivelmente... é muita pressa...
Não queria deixá-lo livrar-se tão facilmente, mas uma gargalhada de
arrependimento escapou.
— Está rindo de mim — disse rigidamente.
— Merece isso, Brandon. É um homem comprometido e deveria ter pedido
a Eleanora o primeiro baile.
Parecia perplexo e um pouco patético quando tratou de recuperar sua
dignidade.
— Não entendo nada.
— Isso é porque realmente você não gosta de mim, e certamente não me
aprova. Seria mais fácil para você se pudesse admitir que tudo o que sente por
mim é uma luxúria pouco cavalheiresca.
— Kit! — tal honestidade sem rodeios era mais do que podia aceitar. —
Peço perdão se te ofendi.
Seus olhos se fixaram nos enfeites de lentejoulas de cristal do sutiã do
vestido de Kit. Com grande esforço, desviou seu olhar fixo, e fervendo de
humilhação, foi procurar a sua noiva.
Com a saída de Brandon, Kit foi reivindicada rapidamente por Sérgio.
Enquanto tomava sua mão, lançou uma olhada ao final do salão, onde seu
marido e Verônica tinham estado parados um momento atrás. Agora somente
Verônica estava ali.
A indiferença de seu marido levou Kit para o limite do que inclusive ela
considerava um comportamento aceitável. Dava voltas de um casal a outro,
dançando com rebeldes e ianques igualmente, elogiando-os cada um
exageradamente e permitindo que a abraçassem estreitamente. Não a
preocupava o que pensassem. Deixa que falem! Bebeu champanhe, dançou
cada música e riu com sua embriagadora risada. Só Verônica Gamble detectou
o fio de desespero por trás.
Algumas das mulheres estavam secretamente invejosas do atrevido
comportamento de Kit, mas a maior parte estavam escandalizadas. Procuravam
com inquietação o perigoso senhor Cain, mas ele não estava à vista. Alguém
sussurrou que estava jogando pôquer na biblioteca e perdendo muitíssimo
dinheiro.
Havia uma especulação sobre o estado do casamento de Cain. O casal não
tinha dançado nenhuma vez juntos. Tinha havido rumores de que era um
matrimônio inevitável, mas a cintura de Katharine Cain era tão magra como
sempre, de modo que isso não podia ser.
A partida de pôquer terminou pouco antes das duas. Cain tinha perdido
várias centenas de dólares, mas seu humor negro pouco tinha que ver com o
dinheiro. Estava de pé na porta do salão de baile, olhando a sua esposa flutuar
através do parque nos braços do italiano. Parte de seu cabelo se soltou de seus
alfinetes e caía desordenadamente ao redor de seus ombros. As maçãs do rosto
ainda mantinham a cor acentuada e seus lábios eram manchas rosadas, como se
alguém acabasse de beijá-la. O barítono não podia afastar o olhar dela.
Um músculo se contraiu na mandíbula de Cain. Avançou empurrando o
casal que estava a sua frente e estava prestes a entrar em passos largos na
pista de baile quando John tratou de lhe agarrar o braço.
— Senhor Cain, Will Bonnett ali afirma que não há nenhum casaca azul em
todo o exército da União que pudesse disparar melhor que um rebelde. O que
o senhor pensa disso? Alguma vez conheceu algum rebelde ao qual não pôde
eliminar embora tentasse?
Era uma conversa perigosa. Cain separou os olhos de sua esposa e centrou
sua atenção em Hughes. Embora tenha se passado quase quatro anos desde
Appomattox, a interação social entre nortistas e sulistas ainda era débil, e a
conversa sobre a guerra era evitada deliberadamente quando se viam forçados
a estar juntos.
Observou que esse grupo de sete ou oito homens estava formado tanto por
ex-soldados da União como por veteranos confederados. Era evidente que
todos tinham bebido mais que suficiente, e inclusive de onde ele estava de pé,
podia ouvir que sua discussão tinha ido de um educado desacordo a um aberto
antagonismo.
Com uma última olhada para Kit e o italiano, caminhou com Hughes em
direção aos homens.
— A guerra terminou, senhores. O que me dizem se formos provar um
pouco do fino uísque da senhora Gamble? — mas a discussão tinha chegado
muito longe. Will Bonnett, um ex-plantador de arroz que tinha servido no
mesmo regimento que Brandon Parsell, dirigiu violentamente seu dedo
indicador na direção de um dos homens que trabalhara para o Escritório de
Freedmen. — Nenhum soldado no mundo inteiro lutou alguma vez como um
soldado Confederado, e você sabe.
As vozes furiosas estavam começando a captar a atenção de outros
convidados, e quando a discussão ficou mais forte, as pessoas deixaram de
dançar para ver o que provocava o tumulto.
Will Bonnett descobriu Brandon Parsell de pé com sua prometida e os pais
dela.
— Brandon, diga-lhe você. Viu alguma vez alguém que pudesse disparar
como nossos moços de cinza? Venha aqui. Diga a estes casacas azuis como
foi.
Parsell se deslocou para frente a contragosto. Cain franziu o cenho quando
viu que Kit também se adiantou em vez de ficar atrás com as demais mulheres
Mas o que tinha esperado?
Nesse momento a voz de Will Bonnett tinha alcançado os músicos, que
gradualmente deixaram seus instrumentos para assim poder desfrutar da briga.
— Excederam-nos em número — declarou Bonnett — mas vocês os
ianques nunca nos deixaram fora de combate nem sequer durante um minuto de
guerra.
Um dos nortistas avançou.
— Parece que tem memória ruim, Bonnett. Tão certo como o inferno que
estiveram fora de combate em Gettysburg.
— Não estivemos fora de combate! — exclamou um ancião que estava de
pé junto a Will Bonnett. — Foi sorte. Porque nós tínhamos meninos de doze
anos que poderiam disparar melhor que todos seus oficiais juntos.
— Demônios, nossas mulheres poderiam disparar melhor que seus oficiais!
Houve uma grande gargalhada por esta ocorrência, e o homem que havia
falado foi golpeado com vontade nas costas por sua ingenuidade. De todos os
sulinos presentes, Brandon era o único que não tinha vontade de rir.
Olhou primeiro Kit e depois Cain. A injustiça de seu casamento era como
uma lasca sob sua pele. No inicio tinha ficado aliviado de não estar casado
com uma mulher que não se comportava como uma dama devia fazer, embora
isso representasse a perda de Risen Glory. Mas quando as semanas e os meses
tinham passado, observou como os campos de Risen Glory haviam estourado
em cápsulas brancas e tinha visto as carretas carregadas de algodão já tratado
ir para o moinho de Cain. Inclusive depois que se comprometeu com Eleanora,
quem o levaria ao Banco de Cidadãos e Plantadores, não podia apagar de sua
memória um par de perversos olhos violetas. Essa noite ela tinha tido a
audácia de rir dele.
Tudo em sua vida se deteriorou. Ele era um Parsell e entretanto não tinha
nada, enquanto que eles tinham tudo... um ianque de má fama e uma mulher que
não conhecia qual era seu lugar.
Impulsivamente se adiantou.
— Acredito que tem razão sobre nossas mulheres. Porque uma vez vi nossa
própria senhora Cain lançar um abacaxi a uma árvore a setenta metros, embora
nesse momento não deveria ter mais de dez ou onze anos. Ainda se comenta
desse dia que é a melhor lançadora do condado.
Várias exclamações concordarem com esta informação, e outra vez Kit se
encontrou sendo o centro dos admirados olhares masculinos. Mas Parsell não
tinha terminado. Não era fácil para um cavalheiro saldar dividas com uma
dama e ficar como um cavalheiro, mas isso era exatamente o que planejava
fazer. E as saldaria com seu marido ao mesmo tempo. Não só seria impossível
para Cain sair vitorioso com o que Brandon estava a ponto de propor, mas sim
também, o ianque pareceria um covarde quando se negasse.
Brandon tocou a aba de sua lapela.
— Ouvi que o Major Cain é um bom atirador. Suponho, que todos
escutamos mais que suficiente sobre o herói de Missionary Ridge. Mas se eu
fosse um homem aficionado ao jogo, apostaria meu dinheiro pela senhora
Cain. Daria qualquer coisa para enviar Will ao outro lado da rua por seu jogo
de pistolas, colocar uma fila de garrafas sobre o muro do jardim da senhora
Gamble, e ver simplesmente quão bom é um oficial ianque disparando contra
uma mulher do Sul, embora por casualidade esta seja sua esposa. Certamente,
acredito que o Major Cain não permitiria que sua esposa tomasse parte em um
concurso de tiro, especialmente quando sabe que tem muitas possibilidades de
sair perdedor.
Houve fortes risadas dos sulistas. Parsell tinha posto esse ianque em seu
lugar! Embora nenhum deles acreditasse seriamente que uma mulher, inclusive
do Sul, poderia disparar melhor que um homem, apesar de tudo desfrutariam
do combate. E como era somente uma mulher, não haveria nenhuma honra
perdida para o Sul quando o ianque a vencesse.
As mulheres que se reuniram perto estavam profundamente escandalizadas
pela proposta de Brandon. No que estava pensando? Nenhuma dama podia dar
tal espetáculo público, não em Charleston. Se a senhora Cain seguisse adiante
com isso, se converteria em uma pária social. Olharam furiosas a seus
maridos, que estavam apoiando o duelo, e juraram reduzir seus consumos de
álcool pelo resto da noite.
Os nortistas insistiram que Cain aceitasse o desafio.
— Vamos, Major. Não nos abandone.
— Não pode voltar atrás agora!
Kit sentiu os olhos de Cain sobre ela. Queimavam-na como o fogo.
— Não posso permitir que minha esposa participe de um concurso público
de tiro.
Falava tão friamente, como se não lhe preocupasse absolutamente. Poderia
estar falando sobre uma de suas éguas em vez de sua esposa. Simplesmente era
outra parte de sua propriedade.
E Cain se desfazia de suas propriedades antes que pudesse se afeiçoar.
Foi a ela uma sensação selvagem e se adiantou, provocando brilhos nas
contas de seu vestido.
— Me desafiaram, Baron. Isto é a Carolina do Sul, não Nova Iorque.
Embora seja meu marido, não pode interferir em um assunto de honra. Traga
suas pistolas, senhor Bonnett. Cavalheiros, me encontrarei cara a cara com
meu marido — lançou-lhe um desafio. — Se ele recusar, enfrentarei qualquer
outro ianque a quem não se importe competir contra mim.
Os gritos escandalizados das mulheres foram ignorados sob os gritos
triunfantes dos homens. Somente Brandon não participou da jovialidade.
Queria envergonhá-los, mas não tinha a intenção de arruiná-la. Apesar de tudo,
ainda era um cavalheiro.
— Kit... Major Cain... eu... eu acredito que fui um pouco precipitado.
Certamente você não pode...
— Deixe-o, Parsell — grunhiu Cain, seu próprio humor era tão imprudente
como o de sua esposa. Estava cansado de ser o conciliador, cansado de perder
as batalhas que ela parecia resolvida a empurrá-los. Estava cansado de sua
desconfiança, cansado de sua risada, cansado inclusive da expressão de
preocupação que vislumbrava muito frequentemente em seus olhos quando ele
chegava exausto do moinho. Sobretudo, estava cansado de preocupar-se tanto
por ela.
— Coloque as garrafas — disse bruscamente. — E leve tantas velas quanto
possa encontrar ao jardim.
Sem parar de rir, os homens se afastaram, nortistas e sulinos repentinamente
unidos enquanto calculavam as possibilidades do duelo. As mulheres
palpitavam com a emoção de ser testemunhas de tal escândalo. Ao mesmo
tempo não queriam ficar muito perto de Kit, assim se moveram para longe
empurradas pela corrente, deixando marido e mulher de pé a sós.
— Conseguiu seu combate — disse sem piedade — da mesma maneira que
conseguiu tudo o que queria.
Quando ela tinha conseguido algo que queria?
— Esta preocupado que possa ganhar ? — se endireitou para perguntar.
Ele encolheu os ombros.
— Suponho que há uma grande possibilidade de que isso ocorra. Eu sou um
bom atirador, mas você é melhor. Soube-o na noite em que tentou me matar
quando tinha dezoito anos.
— Sabia como reagiria quando me proibiu de disparar, verdade?
— Possivelmente. Ou talvez pensei que esse champanhe que esteve
bebendo tivesse inclinado as possibilidades a meu favor.
— Eu não contaria muito com o champanhe — era um falsa ousadia.
Embora não o admitiria, tinha bebido muito.
Verônica desceu até eles, sua diversão habitual tinha desaparecido.
— Por que está fazendo isto? Se isto fosse Viena, seria diferente mas, é
Charleston. Kit, sabe que a condenarão ao ostracismo.
— Não me importa.
Verônica se virou para Cain.
— E você... como pode tomar parte nisto?
Suas palavras caíram em ouvidos surdos. Will Bonnett tinha reaparecido
com sua caixa de pistolas, e Kit e Cain foram arrastados até o jardim pela
porta traseira.
20
Apesar de ser uma noite sem lua, o jardim brilhava tão intensamente como
se fosse de dia. Acenderam-se novas velas sobre os suportes de ferro, e as
lamparinas de querosene tinham sido retiradas do exterior. Uma dúzia de
garrafas de champanhe foram colocadas ao longo da parede de tijolo. Verônica
observou que somente metade estavam vazias e deu ordens apressadamente ao
mordomo para trocar as cheias. A honra poderia estar em jogo, mas não ia ver
como desperdiçavam um bom champanhe.
Os sulistas gemeram quando viram as pistolas gêmeas que Bonnett tinha
levado. Eram a versão confederada do revólver Colt, liso e útil, com os cabos
de nogueira e com uma estrutura de latão em vez da estrutura de aço mais cara
da Colt. Mas eram pesadas, desenhadas para ser usadas por um homem em
época de guerra. Não era pistola para uma mulher.
Kit, entretanto, estava acostumada ao peso e apenas o notou quando tirou a
arma mais próxima de sua caixa. Inseriu seis cartuchos que Will lhe dera no
cilindro vazio da câmara puxou a alavanca de armar introduzindo no lugar. Em
seguida ajustou as seis cápsulas de cobre no outro extremo do cilindro. Seus
dedos eram menores que os de Cain, e terminou primeiro.
Marcou-se a distância. Manteriam-se a vinte e cinco passos de seus alvos.
Cada um efetuaria seis disparos. Primeiro as damas.
Kit caminhou até a imprecisa linha que tinha sido gravada no cascalho.
Sob circunstâncias normais, as garrafas teriam suposto um pequeno desafio
para ela, mas sua cabeça dava voltas por causa das muitas taças de
champanhe.
Virou-se de lado para o alvo e levantou o braço. Assim que observou
através da mira, forçou-se a esquecer de tudo exceto do que devia fazer.
Apertou o gatilho, e a garrafa estalou.
Houve exclamações surpreendidas que provinham dos homens.
Ela se deslocou para a garrafa seguinte, mas seu êxito a tinha feito
descuidada e se esqueceu de levar em conta essas taças a mais de champanhe.
Disparou muito rápido e falhou o segundo alvo.
Cain olhou de lado como eliminava as quatro garrafas seguintes. Sua ira
passou a admiração. Cinco de seis e nem sequer estava sóbria. Maldição, era
uma mulher diabólica. Havia algo primitivo e maravilhoso na forma como se
mantinha erguida se destacando contra as chamas das velas com o braço
estendido, e o mortal revólver contrastando com sua beleza. Se pudesse dirigi-
la melhor. Se pudesse...
Ela baixou o revólver e se virou para ele, suas escuras sobrancelhas se
elevaram com expressão de triunfo. Parecia tão contente que ele não pôde
reprimir um sorriso.
— Muito bem, senhora Cain. Embora acredite que deixou uma.
— Isso é certo, senhor Cain — disse ela com um sorriso por resposta. —
Assegure-se de não deixar mais de uma.
Ele inclinou a cabeça e se virou para o alvo.
O silêncio tinha caído sobre a multidão quando os homens se deram conta
com inquietação de que Cain sabia desde o começo. Tinham um sério combate
entre as mãos.
Cain levantou o revólver. Sentia-o familiar em sua mão, da mesma forma
que o Colt que o tinha acompanhado durante a guerra. Eliminou a primeira
garrafa e logo a segunda. Um disparo seguiu a outro. Quando baixou
finalmente o braço, todas e cada uma das seis garrafas tinham desaparecido.
Kit não pôde evitar. Sorriu abertamente. Era um atirador estupendo, com
bom olho e braço firme.
Um nó de orgulho contraiu sua garganta enquanto lhe olhava com seu formal
traje de noite preto e branco, com as acobreadas luzes das velas
resplandecendo sobre seu impecável e louro cabelo curto. Esqueceu seu
embaraço, esqueceu sua ira, esqueceu-se de tudo em um êxtase de sentimento
por este difícil e magnífico homem.
Ele deu a volta com a cabeça inclinada.
— Bom trabalho, meu amor — disse ela suavemente.
Ela viu a surpresa em seu rosto, mas era muito tarde para tratar de
recuperar suas palavras. A carinhosa palavra era uma expressão do quarto,
parte de um pequeno dicionário de palavras de amor que constituíam o
vocabulário privado de sua paixão, palavras que nunca deveriam ser faladas
em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento, e isso era o que ela tinha
feito. Agora se sentia nua e indefesa. Para esconder suas emoções, levantou o
queixo e se virou para os espectadores.
— Desde que meu marido é um cavalheiro, tenho certeza que me dará uma
segunda chance. Alguém poderia procurar um baralho de cartas e tirar o ás de
espadas?
— Kit... — a voz de Cain tinha uma brusca nota de advertência.
Ela se virou para enfrentá-lo e limpar de uma vez seu momento de
vulnerabilidade.
— Disparará? Sim ou não?
Poderiam ter estado de pé a sós em lugar de frente a uma dúzia de pessoas.
Os presentes não se deram conta, mas Cain e Kit sabiam que o propósito da
competição tinha mudado. A guerra que se desencadeou durante tanto tempo
entre eles tinha encontrado um novo campo de batalha.
— Dispararei contra você.
Havia uma tranquilidade mortal enquanto o ás de espadas era colocado
sobre o muro.
— Três disparos cada um? — perguntou Kit enquanto recarregava sua
pistola.
Ele assentiu gravemente com a cabeça.
Ela levantou o braço e olhou a lança negra no centro exato do naipe. Sentiu
lhe tremer a mão, e baixou o revólver até que se sentiu mais firme.
Logo o levantou outra vez, divisou o pequeno alvo e disparou.
Deu-lhe o canto superior direita da carta. Era um disparo excelente e houve
murmúrios, tanto dos homens como das mulheres que se reuniram para
observar. Algumas sentiram um orgulho secreto, ao ver alguém de seu próprio
sexo se destacando em semelhante esporte masculino.
Kit engatilhou a arma e se concentrou em sua pontaria. Desta vez seu
disparo foi muito baixo e atingiu à parede de tijolo, debaixo da parte inferior
da carta. Mas também era um disparo admirável e a multidão o reconheceu.
Sua cabeça girava, mas se forçou a concentrar-se na pequena forma negra
no centro do naipe. Fez este disparo várias vezes.
Tudo o que precisava era concentração. Suavemente, apertou o gatilho.
Foi quase um disparo perfeito e tirou a ponta da lança. Houve um vestígio
de inquietação nas tênues felicitações dos sulistas. Nenhum deles nunca tinha
visto uma mulher disparar assim. De algum modo, não parecia correto. As
mulheres deviam ser protegidas. Mas esta mulher poderia se proteger sozinha.
Cain levantou sua própria arma. Outra vez a multidão ficou em silêncio, e
só a brisa que movia as doces oliveiras alterava a tranquilidade da noite no
jardim.
O revolver disparou. Atingiu o muro de tijolo justo à esquerda da carta.
Cain corrigiu sua pontaria e disparou outra vez. Esta atingiu a aborda
superior.
Kit conteve a respiração, rogando que falhasse seu terceiro disparo,
rogando que acertasse, desejando muito tarde não ter forçado esta competição
entre eles.
Cain disparou. Houve uma nuvem de fumaça, e a única lança do centro do
naipe desapareceu. Seu último disparo a tinha perfurado. Os presentes se
voltaram selvagens. Inclusive os sulistas esqueceram temporariamente sua
animosidade, aliviados pelo fato de que a lei da superioridade masculina se
mantinha firme. Rodearam Cain para felicitá-lo.
— Estupendo disparo, senhor Cain.
— Foi um privilégio vê-lo.
— Certamente, só competia contra uma mulher.
As felicitações dos homens lhe contraiam os ouvidos. Quando o golpearam
nas costas, olhou sobre suas cabeças para Kit, que se mantinha à margem, com
o revólver acomodado nas suaves dobras de sua saia.
Um dos nortistas deixou um cigarro em sua mão.
— Essa sua mulher é bastante boa, mas afinal de contas, disparar é ainda
coisa de homens.
— Aí está certo — disse outro —Nunca houve muitas dúvidas que um
homem venceria uma mulher.
Cain sentiu somente desdém pela maneira informal com que desprezavam a
habilidade de Kit, jogou o cigarro no chão e os olhou furioso.
— São todos idiotas. Se ela não tivesse bebido tanto champanhe, eu não
teria nenhuma oportunidade. E, por Deus, nenhum de vocês a teria tido
tampouco.
Girando nos calcanhares, saiu com passo majestoso do jardim, deixando
aos homens atrás dele, boquiabertos e assombrados.
Kit estava aturdida por sua defesa. Estendeu bruscamente o revólver a
Verônica, recolheu suas saias e correu atrás dele.
Ele estava já em seu dormitório quando o alcançou. Sua breve felicidade se
desvaneceu quando o viu lançar sua roupa em uma mala aberta sobre a cama.
— Que está fazendo? — perguntou ofegante.
Ele não se incomodou em olhá-la.
— Voltando para Risen Glory.
— Mas, por quê?
— Enviarei a carruagem depois de amanhã — disse, sem responder a sua
pergunta — Até lá já terei ido.
— O que quer dizer? Aonde vai?
Não a olhava enquanto jogava uma camisa na mala. Ele falou devagar.
— Estou-te abandonando.
Ela fez um som amortecido de protesto.
— Vou agora enquanto ainda posso te olhar nos olhos. Mas não se
preocupe. Verei um advogado antes e me assegurarei de que seu nome esteja
na escritura de Risen Glory. Nunca terá que ter medo de que lhe tirem sua
preciosa plantação de novo.
O coração de Kit estava golpeando em seu peito como as asas de um
pássaro preso.
— Não acredito. Não pode ir sem mais. O que acontece com o moinho de
algodão?
— Childs pode dirigí-lo agora. Possivelmente o venda. Já me fizeram uma
oferta — agarrou um conjunto de escovas da parte superior da cômoda e os
jogou no interior junto ao resto. — Deixo de brigar contigo, Kit. Agora tem o
campo livre.
— Mas não quero que vá! — as palavras surgiram de seus lábios
espontaneamente. Eram certas e não as queria recuperar.
Ele finalmente a olhou, sua boca se torceu em uma careta risonha.
— Surpreende-me. Se esforçou muito tentando se desfazer de mim de
várias formas desde que tinha dezoito anos.
— Isso era diferente. Era por Risen Glory...
Ele golpeou com a mão aberta um pilar da cama, fazendo vibrar o pesado
eixo de madeira.
— Não quero mais ouvir falar de Risen Glory! Não quero escutar nunca
mais esse nome. Maldita seja, Kit, é só uma plantação de algodão. Não é um
santuário.
— Não entende! Nunca o entendeste. Risen Glory é tudo o que tenho.
— Já me disso isso — disse em voz baixa — Provavelmente deveria te
perguntar por que é assim.
— O que quer dizer? — ela se agarrou ao suporte da cama quando ele se
aproximou.
— Quero dizer que você não dá nada. É como minha mãe. Toma tudo de um
homem, até que lhe tira o sangue deixando-o seco. Bem, maldito seja se acabar
como meu pai. E essa é a razão pela qual vou.
— Não sou como Rosemary! Simplesmente não pode aceitar o fato que não
deixarei que me domine.
— Nunca quis te dominar — disse em voz baixa — Tampouco quis te
possuir, não importa quantas vezes o dissesse. Se eu tivesse querido a uma
esposa a que pudesse manter sob minha bota, poderia me haver casado faz
anos. Nunca quis que te arrastasse diante de mim, Kit. Mas, maldição, eu
tampouco me arrastarei diante de você.
Fechou a mala e começou a atar as cordas de couro.
— Quando nos casamos... depois dessa primeira noite... eu tinha a ideia de
que possivelmente de algum modo tudo poderia ir bem entre nós. Depois tudo
foi mal muito rápido, e decidi que tinha sido um tolo. Mas quando veio ao meu
quarto com essa camisola negra, e estava tão assustada e tão decidida,
esqueci-me de tudo sobre ser um tolo e deixei que te deslizasse outra vez sob
minha pele.
Soltou a bolsa e se endireitou. Durante um momento a contemplou, e logo
fechou a pequena distância entre eles. Seus olhos estavam cheios de dor que a
atravessou como se fosse a sua própria. Uma dor que era dele.
Ele tocou sua bochecha.
— Quando fazíamos amor — disse roucamente — era como se
deixássemos de ser duas pessoas distintas. Nunca se continha. Dava-me sua
valentia, sua suavidade, sua doçura. Mas não havia alicerces debaixo das
relações sexuais... nenhuma confiança ou conhecimento... e por isso se tornou
ácido.
Ele esfregou suavemente o polegar sobre seus lábios secos, sua voz era
apenas um sussurro.
— Às vezes quando estava dentro de ti, queria usar meu corpo para te
castigar. Odiava-me por isso — deixou cair sua mão — Ultimamente estive
despertando com um suor frio, assustado de que algum dia pudesse realmente
te ferir. Esta noite quando te vi com esse vestido e te observei com outros
homens, compreendi finalmente que devia ir. O nosso casamento não está bem.
Começamos mal, e nunca tivemos uma oportunidade.
Kit o agarrou pelo braço e o olhou fixamente através da névoa de suas
próprias lágrimas.
— Não vá. Não é muito tarde. Se o tentássemos mais intensamente...
Ele sacudiu a cabeça.
— Não tenho nada dentro de mim. Estou ferido, Kit. Estou gravemente
ferido.
Ao agachar-se, deu-lhe um suave beijo na testa, recolheu a mala e saiu do
quarto.
***
Suas palavras eram certas, Cain tinha partido quando ela retornou a Risen
Glory e durante o mês seguinte Kit se deslocou como uma sonâmbula pela
casa. Perdia a noção do tempo, esquecia de comer, e se trancava no grande
dormitório principal que antes tinha compartilhado com ele. Um jovem
advogado apareceu com um montão de documentos e uma atitude agradável e
atenta. Mostrou-lhe os papeis que lhe davam o título de propriedade de Risen
Glory, assim como o controle sobre seu fundo fiduciário. Tinha tudo o que
sempre tinha querido, mas nunca tinha se sentido mais triste.
Ele se desfaz de seus livros e seus cavalos antes que possa se apegar
muito a eles...
O advogado lhe explicou que o dinheiro que Cain tinha pego de seu fundo
fiduciário para reconstruir o moinho de algodão lhe tinha sido devolvido
integralmente. Escutou tudo o que lhe disse, mas não dava a mínima
importância.
Magnus foi receber instruções, e ela o expulsou. Sophronia a repreendeu
para que comesse, mas Kit a ignorava. Inclusive ignorava à preocupação de
Miss Dolly.
Uma triste tarde no fim de fevereiro, enquanto estava sentada no quarto
fingindo ler, apareceu Lucy para anunciar que Verônica Gamble a estava
esperando no salão.
— Lhe diga que não me sinto bem.
Verônica, entretanto, não era tão fácil de dissuadir. Roçando à criada ao
passar, subiu as escadas e depois de chamar, entrou no dormitório. Observou o
cabelo despenteado e a tez amarelada de Kit.
— Como isso conseguiu encantar Lorde Byron — disse mordazmente. — A
donzela que murcha como uma rosa moribunda, crescendo mais fraca cada dia.
Se nega a comer e se esconde. Que diabos pensa que está fazendo?
— Simplesmente quero ficar sozinha.
Verônica tirou a elegante capa de veludo cor topázio e a atirou sobre a
cama.
— Se não se preocupar com você mesma, poderia pensar na criança que
está dentro de você.
Kit levantou a cabeça rapidamente.
— Como sabe?
— Encontrei Sophronia na cidade a semana passada. Ela me contou isso e
decidi vir vê-la eu mesma.
— Sophronia não sabe. Ninguém sabe.
— Não acredita que algo tão importante passaria despercebido a
Sophronia?
— Não deveria ter dito nada.
— Não falou com o Baron sobre a criança, verdade?
Kit tentou continuar serena.
— Se for ao salão, chamarei para que nos tragam o chá.
Mas Verônica não ia se distrair.
— É obvio que não disse. É muito orgulhosa para isso.
Todo seu brio a abandonou e Kit se afundou na cadeira.
— Não foi orgulho. Não pensei nisso. Não é estranho? Estava tão aturdida
porque ele estava me abandonando que esqueci de lhe dizer.
Verônica passou junto à janela, puxou a cortina e olhou atentamente para
fora.
— Eu acho que você se tornou mulher da maneira mais difícil. Mas bom,
suponho que é difícil para todas. Crescer parece mais fácil para os homens,
possivelmente porque seus ritos de transição são mais claros. Realizam atos
de valentia no campo de batalha, ou demonstram que são homens através do
trabalho físico, ou fazendo dinheiro. Para as mulheres é mais confuso. Não
temos nenhum rito de transição, nos tornamos mulher a primeira vez que
fazemos amor? Se for assim por que nos referimos a isso como a perda da
virgindade? Não implica a palavra ‘perda’ que estávamos melhor antes?
Abomino a idéia de que nos tornamos mulheres através do ato físico de um
homem. Não, eu acredito que nos tornamos mulheres quando nos damos conta
do que é importante em nossas vidas, quando aprendemos a dar e tomar com
um coração carinhoso.
Cada palavra que Verônica pronunciava impregnava no coração de Kit.
— Querida — disse Verônica em voz baixa enquanto se aproximava da
cama e recolhia sua capa — é hora de dar o último passo para se tornar
mulher. Algumas coisas na vida são temporárias e outras são eternas. Nunca
estará contente até que digas qual é qual.
Partiu tão rapidamente como chegou, deixando apenas o resto de suas
palavras. Kit escutou a carruagem partindo, agarrou a jaqueta que fazia parte
de seu traje de montar e a pôs sobre seu enrugado vestido de lã. Escapou para
fora da casa e se apressou para a velha igreja dos escravos.
O interior era escuro e frio, sentou-se sobre um dos incômodos bancos de
madeira e pensou intensamente no que Verônica havia dito.
Um camundongo apareceu no canto. Um galho bateu na janela. Lembrou a
dor que tinha visto no rosto de Cain antes de partir, e nesse momento a porta
atrás da qual tinha fechado seu coração se abriu.
Não importa quanto tivesse tentado negar, não importa quão intensamente
tinha lutado contra isso, estava apaixonada por ele. Seu amor tinha sido escrito
nas estrelas muito antes daquela noite de julho, quando vestindo calças a tinha
descido do muro. Toda sua vida, desde seu nascimento, tinha se preparado
para ele, como ele tinha sido preparado para ela. Era a outra metade de si
mesma.
Apaixonou-se por ele, por suas batalhas e brigas, por sua obstinação e
arrogância, por esses surpreendentes e repentinos momentos nos quais sabiam
que estavam vendo o mundo da mesma maneira. E tinha se apaixonado por ele,
nas secretas e profundas horas da noite, quando tinham criado a maravilhosa
nova vida que crescia dentro de si.
Desejava poder fazê-lo de novo. Oxalá tivesse demonstrado sua própria
doçura, nesses momentos que ele era carinhoso com ela. Agora tinha ido, e
nunca tinha falado de seu amor. Mas, ele tampouco o tinha feito. Possivelmente
porque seus sentimentos não eram tão profundos como os dela.
Queria correr atrás dele, para começar tudo de novo, sem esconder nada
desta vez. Mas não podia fazê-lo. Ela era a responsável pela dor que tinha
visto em seus olhos. E ele nunca tinha fingido que queria uma esposa, menos
uma esposa como ela.
Amargas lágrimas correram por suas bochechas, abraçou-se a si mesma e
aceitou a verdade. Cain estava contente de haver-se libertado dela.
Mas havia outra verdade que precisava aceitar. A hora de tomar as rédeas
de sua vida tinha chegado. Tinha estado presa na autocompaixão durante muito
tempo. Poderia chorar na privacidade de seu quarto a noite, mas durante o dia
precisava manter os olhos secos e a cabeça limpa. Havia trabalho a fazer e
gente que dependia dela.
Havia um bebê que precisava dela.
***

O bebê nasceu em Julho, quase quatro anos depois daquela tarde quente em
que Kit chegou a Nova Iorque para matar Baron Cain. O bebê era uma menina,
com cabelo loiro como o de seu pai e surpreendentes olhos violetas, rodeados
por diminutas e negras sobrancelhas. Kit lhe colocou o nome de Elizabeth e a
chamava Beth.
O parto foi longo, mas o nascimento foi sem qualquer complicações.
Sophronia permaneceu a seu lado até o final, enquanto Miss Dolly revoava
pela casa, afastando todo mundo de seu caminho e transformando três de seus
lenços em tiras. Mais tarde os primeiros visitantes de Kit foram os Rawlins e
Mary Cogdell, que pareciam pateticamente aliviados, ao ver que o matrimônio
com Cain tinha produzido finalmente um bebê, embora tivesse demorado doze
meses em chegar.
Kit passou o resto do verão recuperando as forças e profundamente
apaixonada por sua filha. Beth era uma menina doce e tranquila, mais feliz
quando estava nos braços de sua mãe. De noite, quando despertava para que a
alimentassem, Kit podia agasalhá-la perto dela na cama, onde as duas
dormiam até o amanhecer... Beth contente com o doce e leitoso peito de sua
mãe e Kit cheia de amor por este precioso bebê, que era um presente que Deus
tinha entregue quando mais o necessitava.
Verônica lhe escrevia cartas regularmente e de vez em quando ia de visita
desde Charleston. Um profundo carinho cresceu entre as duas mulheres.
Verônica ainda falava de forma escandalosa sobre seu desejo de fazer amor
com Cain, mas Kit agora reconhecia suas declarações como um intento pouco
sutil, de estimular os ciúmes de Kit e manter vivo os sentimentos por seu
marido. Como se necessitasse algo mais para lhe recordar o amor que sentia
por seu marido.
Com os segredos do passado varridos, a relação de Kit com Sophronia
ficou mais profunda. As duas ainda brigavam como sempre, mas agora
Sophronia falava livremente e Kit estava mais à vontade em sua presença. As
vezes, no entanto, Kit sentia o coração doer quando via o rosto de Sophronia
suavizar-se com um amor profundo e constante ao notar o olhar de Magnus.
Sua força e bondade tinham colocado os últimos restos dos fantasmas de
Sophronia no passado.
Magnus compreendia a necessidade de Kit em falar de Cain, e pelas noites
enquanto se sentavam na varanda, ele lhe contava tudo o que sabia sobre o
passado de seu marido: Sua infância, os anos de vagar, sua valentia durante a
guerra. Ela absorvia tudo.
No inicio de Setembro se encontrou com energias renovadas e um
conhecimento mais profundo de si mesma. Verônica lhe havia dito uma vez que
devia determinar que coisas na vida eram temporárias e quais eternas.
Enquanto montava pelos campos de Risen Glory, por fim entendeu o que
Verônica queria dizer. Já era hora de procurar seu marido.
Desgraçadamente, comprovou que era mas fácil na teoria que na prática. O
advogado que dirigia os assuntos de Cain sabia que tinha estado em Natchez,
mas após isso não tinha tido notícias dele. Kit ficou sabendo que os lucros da
venda do moinho de algodão tinham permanecido intactos em um banco de
Charleston. Por alguma razão, tinha partido praticamente pobre.
Perguntou ao longo de todo o Mississipi. As pessoas lembravam dele, mas
ninguém parecia saber onde tinha ido.
Na metade de outubro, quando Verônica chegou de Charleston para lhe
fazer uma visita, Kit estava desesperada.
— Perguntei por toda parte, mas ninguém sabe onde está.
— Está no Texas, Kit. Em uma cidade chamada San Carlos.
— Sabia onde estava todo este tempo e não me disse nada? Como pôde
fazer isso?
Verônica ignorou o humor de Kit e tomou um gole de chá.
— Na realidade, querida, nunca me perguntou.
— Não acreditei que tivesse que fazê-lo!
— Irrita-se que tenha me escrito e não a você.
Kit queria esbofeteá-la, mas como de costume, Verônica tinha razão.
—Tenho certeza que esteve escrevendo todo tipo de mensagens sedutoras.
Verônica sorriu.
— Desgraçadamente não. Era sua maneira de manter-se em contato contigo.
Sabia que se algo acontecesse eu o diria.
Kit se sentiu doente.
— Ele sabe sobre Beth, mas nem sequer assim voltará.
Verônica suspirou.
— Não, Kit, ele não sabe sobre ela, e não estou certa de ter feito o correto
ao não lhe contar, mas decidi que não era eu que tinha que dar a notícia, que
não devia compartilhar. Não suportaria vê-los mais feridos do que já estão.
Sua ira estava esquecida e Kit pressionou Verônica.
— Por favor, me diga tudo o que sabe.
— Os primeiros meses se deslocava em embarcações fluviais e vivia do
que ganhava nas mesas de pôquer. Logo partiu ao Texas e trabalhou como
guarda armado em uma das linhas de diligências. Um trabalho detestável, em
minha opinião. Durante algum tempo ganhou. E agora está dirigindo um
palácio de jogo em San Carlos.
Kit sentia uma forte dor enquanto escutava. Os velhos padrões de conduta
da vida de Cain estavam se repetindo.
Estava indo à deriva.
21
Kit chegou ao Texas na segunda semana de novembro. Foi uma viagem
longa, que se tornou ainda mais árdua pelo fato de que não viajava sozinha.
O deserto do Texas foi uma surpresa para ela. Era tão diferente da Carolina
do Sul... pastagens planas do interior leste do Texas e cidades mais inóspitas e
longínquas, onde as sinuosas árvores cresciam em rochas irregulares e as
árvores copadas corriam de um lado a outro através do áspero e montanhoso
terreno. Disseram-lhe que os rios transbordavam quando chovia, levando-se
às vezes rebanhos inteiros de gado, e que no verão, o sol aquecia a terra até
ficar endurecida e rachada. Ainda assim, havia algo nessa terra que era
atraente. Possivelmente o desafio proposto.
Quanto mais se aproximava de San Carlos, mais insegura se sentia do que
tinha feito. Agora tinha responsabilidades preciosas, e entretanto, tinha
abandonado seu conforto familiar para procurar um homem que nunca havia
dito que a amava.
Quando subia os degraus de madeira que levavam ao palácio do jogo “A
Rosa Amarela”, seu estômago se embrulhou em nós apertados e dolorosos.
Apenas tinha podido comer durante dias, e esta manhã, nem os apetitosos
aromas que subiam da cozinha próxima do Hotel Ranchers tinham sido
capazes de tentá-la. Tinha perdido tempo enquanto se vestia, arrumando o
cabelo de uma forma, e depois de outra, mudando de vestido várias vezes e
procurando botões ou ganchos desabotoados que pudessem ter sido
negligenciados.
Finalmente, tinha decidido usar o vestido cinzento com renda rosa. Era o
mesmo vestido que tinha usado em sua volta a Risen Glory.
Tinha colocado o chapéu que fazia conjunto e cobria o rosto com um véu.
Reconfortou-a um pouco a ilusão de que estava recomeçando de novo. Mas o
vestido agora se ajustava de forma diferente, mais ajustado no busto, como
aviso de que tudo tinha mudado.
Sua mão enluvada tremia ligeiramente quando alcançou a porta que
conduzia ao bar. Parou um momento, puxou e entrou.
Tinha ouvido que a Rosa Amarela era o melhor e mais caro dos salões de
San Carlos. Tinha papel pintado em vermelho e ouro, e um abajur de aranha. A
barra de mogno, com acabamento de forma florida, percorria a longitude da
sala, e atrás estava pendurado um retrato de uma mulher deitada nua, com
cachos dourados e uma rosa amarela presa entre os dentes. Tinham-na pintado
contra um mapa do Texas, de modo que o alto de sua cabeça descansava perto
da Texarkana e os pés se ondulavam com o passar do Rio Grande. O retrato
deu a Kit um renovado golpe de coragem. A mulher lhe lembrava Verônica.
Ainda não era meio-dia, e havia poucos homens sentados. Um por um,
deixaram de falar e se viraram para estudá-la. Embora não pudessem ver suas
feições claramente, seu vestido e seu comportamento indicavam que não era
uma mulher que pertencesse ao salão, embora este fosse o elegante Rosa
Amarela.
O barman pigarreou nervosamente.
— Posso ajudá-la, Senhora?
— Eu gostaria de ver Baron Cain.
Ele jogou uma vacilante olhada para as escadas da parte superior e logo ao
copo que estava limpando.
— Não há ninguém aqui com esse nome.
Kit passou a sua frente e começou a subir as escadas.
O homem correu ao seu redor.
— Não! Você não pode subir aí!
— Olhe para mim — Kit não diminui o passo — E se não quiser que eu
invada o quarto errado, talvez deva me dizer exatamente onde posso encontrar
o senhor Cain.
O barman era um homem gigante, com um peito de barril e braços como
dois presuntos. Estava acostumado a tratar com vaqueiros bêbados e bandidos
armados que procuravam fazer uma reputação, mas estava indefeso ante uma
mulher que, evidentemente, era uma dama.
— Último quarto à esquerda. — murmurou — Vou ter sérios problemas.
— Obrigada.
Kit subiu as escadas como uma rainha, com os ombros para atrás e a cabeça
erguida. Esperava que nenhum dos homens que a olhavam pudesse adivinhar
quão assustada estava.
***

Chamava-se Ernestine Agnes Jones, mas para os homens em A Rosa


Amarela, era simplesmente Red River Ruby. Como a maioria das pessoas que
vinham ao oeste, Ruby tinha enterrado seu passado junto com seu nome e
nunca voltou a olhar para trás.
Apesar dos pós, das natas e dos lábios cuidadosamente coloridos, Ruby
parecia mais velha que seus vinte e oito anos. Tinha tido uma vida dura e isso
se notava. Ainda era atraente com um belo cabelo castanho e peitos como
travesseiros. Até recentemente, poucas coisas tinham sido fáceis para ela, mas
tudo isso tinha mudado com a conveniente morte de seu último amante. Agora
era a proprietária de A Rosa Amarela e a mulher mais cobiçada de San
Carlos... quer dizer, pretendida por cada homem exceto o que ela queria.
Fez uma careta quando o olhou através do quarto. Ele estava enfiando uma
camisa de linho nas calças de pano preto, que lhe ajustavam o suficiente na
virilha para renovar sua determinação.
— Mas disse que me levaria a dar um passeio em minha nova calesa. Por
que não hoje?
— Tenho coisas que fazer, Ruby — disse bruscamente.
Ela se inclinou um pouco para frente de modo que a gola da sua camisola
vermelha e enrugada caísse abrindo-se mais, mas ele parecia não se dar conta.
— Alguém poderia pensar que aqui o chefe é você, não eu. O que tem que
fazer que é tão importante que não pode esperar?
Quando não lhe respondeu, decidiu não pressioná-lo. Tinha-o feito uma vez,
e não cometeria esse engano de novo. Em seu lugar, enquanto caminhava ao
redor da cama para ele, desejou poder romper a regra não escrita do oeste e
interrogá-lo sobre seu passado.
Suspeitava que havia um preço por sua cabeça. Isso explicaria o ar de
perigo que formava parte dele, tanto como o conjunto de sua mandíbula. Era
tão bom com os punhos como com o revólver, e a expressão firme e vazia de
seus olhos lhe dava um arrepio sempre que o olhava. Entretanto, sabia ler e
isso não encaixava com ser um fugitivo.
Uma coisa era certa, não era um mulherengo. Parecia não se dar conta que
não havia uma só mulher em San Carlos que não levantaria suas anáguas para
ele, se tivesse a oportunidade. Ruby tinha tratado de se meter em sua cama
desde que o tinha contratado para lhe ajudar a dirigir A Rosa Amarela. Até
agora não tinha tido êxito, mas ele era o homem mais atraente que tinha visto, e
ainda não ia desistir.
Parou diante dele e pôs uma mão sobre o seu cinto e outra sobre seu peito.
Ignorou a chamada na porta, e deslizou os dedos pelo interior de sua camisa.
— Poderia ser realmente bom pra você se me der a oportunidade.
Não estava consciente de que a porta se abriu até que ele levantou a cabeça
e olhou por cima dela. De maneira impaciente, deu a volta para ver quem os
tinha interrompido.
A dor golpeou Kit como uma avalanche. Viu a cena ante ela em fragmentos
separados... um vestido vermelho e enrugada, seios grandes e brancos, uma
boca intensamente pintada, aberta em indignação. E depois, não viu nada mais
que seu marido.
Parecia mais velho do que lembrava. Seus traços eram mais finos e duros,
com profundas rugas nos cantos dos olhos e perto da boca. Usava o cabelo
mais comprido, cobrindo totalmente a parte posterior do pescoço. Parecia um
fora da lei. Teria esse aspecto durante a guerra? Atento e cauteloso, como uma
corda desgastada tão esticada que estava a ponto de se partir?
Uma expressão dura se refletiu em seu rosto e depois seu rosto se fechou
como uma porta trancada à chave.
A mulher a encarou.
— Quem diabos você pensa que é para interromper deste modo? Se está
procurando trabalho, pode arrastar seu traseiro para baixo e esperar até que eu
chegue.
Kit deu boas vinda à cólera que enchia seu corpo. Puxou o véu de seu
chapéu com uma mão e com a outra empurrou a porta de volta a suas
dobradiças.
— Você que tem que sair. Tenho assuntos privados com o Sr. Cain.
Os olhos de rubi se estreitaram.
— Conheço as de seu tipo. A menina de classe alta que vem ao oeste e
pensa que o mundo lhe deve a vida. Bem, este é meu lugar e aqui nenhuma
senhoritazinha vai me dizer o que fazer. Pode pôr esses ares quando retornar a
Virginia, Kentucky ou de onde quer que venha, mas n’A Rosa Amarela, mando
eu.
— Fora daqui — disse Kit, em voz baixa.
Ruby ajustou o cinto do vestido e avançou de modo ameaçador.
— Farei-te um favor irmã, vou te ensinar que as coisas são diferentes aqui
no Texas.
Cain falou discretamente do outro lado do quarto.
— Meu melhor conselho, Ruby... não te meta com ela.
Ruby deu um bufo desdenhoso, deu outro passo para frente e se encontrou
com o cilindro de uma pistola de canhão curto.
— Fora daqui. — disse Kit suavemente — E fecha a porta quando sair.
Ruby olhou boquiaberta a pistola e depois para Cain.
Ele encolheu os ombros.
— Sai.
Com um último olhar especulativo à dama da pistola, Ruby saiu depressa
do quarto e fechou de repente a porta.
Agora que estavam definitivamente sozinhos, Kit não podia recordar
nenhuma palavra do discurso que tão cuidadosamente tinha ensaiado. Deu-se
conta de que ainda segurava a pistola e que estava apontando para Cain.
Rapidamente a devolveu a sua bolsa.
— Não estava carregada.
— Graças a Deus pelos pequenos favores.
Ela tinha imaginado seu reencontro centenas de vezes, mas nunca tinha
imaginado este desconhecido de olhos frios, recém-saído dos braços de outra
mulher.
— Que estás fazendo aqui? — perguntou ele finalmente.
— Vim te procurar.
— Já vi. Bem, me encontrou. O que quer?
Oxalá tivesse mudado, possivelmente assim poderia encontrar as palavras
que precisava dizer, mas ele permanecia de pé rigidamente, como se sua
simples presença o incomodasse.
De repente tudo foi muito... a extenuante viagem, a horrível incerteza e
agora isto... encontrá-lo com outra mulher. Mexeu desajeitadamente no interior
de sua bolsa e tirou um envelope grosso.
— Queria te trazer isto — o pôs sobre a mesa junto à porta, deu-se a volta,
e saiu.
O corredor parecia não acabar nunca, e também as escadas. Tropeçou na
metade e logo conseguiu se agarrar para não cair. Os homens sentados nos
cantos estiraram os pescoços para olhá-la. Ruby estava de pé ao final da
escada, ainda usando seu vestido vermelho. Kit passou ao seu lado ao descer e
se apressou para abrir as portas do bar.
Quase as tinha alcançado quando o ouviu atrás de si. As mãos agarraram
seus ombros e a fizeram girar. Seus pés deixaram o chão quando Cain a
agarrou entre os braços. Apertando-a contra seu peito, levou-a à parte
posterior através do bar.
Subiu as escadas de dois em dois. Quando chegou a seu quarto, chutou a
porta com o pé e a fechou do mesmo jeito.
No inicio não parecia saber o que fazer com ela; logo a deixou sobre a
cama. Durante um momento a olhou fixamente, com expressão ainda
inescrutável. Então atravessou o quarto e pegou o envelope que ela tinha
levado.
Ela estava estendida silenciosamente enquanto lia.
Ele deu uma olhada às páginas uma vez, rapidamente, e logo voltou para o
início e as leu mais cuidadosamente. Finalmente a olhou por cima das folhas,
sacudindo a cabeça.
— Não posso acreditar no que fez. Por que Kit?
— Tive que fazê-lo.
Ele a olhou bruscamente.
— Te forçaram?
— Ninguém poderia me forçar a fazê-lo.
— Então por quê?
Ela se inclinou na beira da cama.
— Era o único caminho que tinha.
— O que quer dizer? O único caminho para quê?
Quando não lhe respondeu imediatamente, atirou os papéis ao chão e foi
para ela.
— Kit! Por que vendeste Risen Glory?
Ela olhou atentamente as mãos, trêmula demais para falar.
Ele passou bruscamente os dedos pelo cabelo, parecia falar mais a si
mesmo que a ela.
— Não posso acreditar que vendesse essa plantação. Risen Glory significa
tudo para você. E por dez dólares o acre. Isso é somente uma fração do que
realmente vale.
— Queria me desfazer dela rapidamente, e encontrei o comprador
adequado. Depositei o dinheiro em sua conta em Charleston.
Cain estava aturdido.
— Minha conta?
— Era sua plantação. Seu dinheiro colocou Risen Glory outra vez em pé.
Ele não disse nada. O silêncio se estendeu entre eles até que pensou que
gritaria se não fosse preenchido.
— Você gostará do homem que o comprou — disse finalmente — Por que
Kit? Me diga por quê?
Estava imaginando-o, ou podia detectar um ligeiro insulto em sua voz? Ela
pensou em Ruby se apertando contra ele. Quantas outras mulheres tinha tido
assim desde que a tinha abandonado? Com certeza muito mais do que gostaria.
Pareceria boba quando explicasse, mas já não lhe importava seu orgulho. Ali
não haveria mais mentiras de sua parte, expressas ou não expressas, somente a
verdade.
Levantou a cabeça, lutando contra o nó que se formava em sua garganta. Ele
permanecia de pé nas sombras do quarto. Estava contente de não ter que ver
seu rosto enquanto falava.
— Quando me deixou — disse devagar —, pensei que minha vida tinha
acabado. No início te culpei, e depois a mim mesma. Até que fosse embora,
não me dei conta do quanto te amava. Amava fazia muito tempo, mas não ia
admitir, de modo que o escondi sob outros sentimentos. Quis vir te buscar em
seguida, mas isso não era... não era prático. Além disso, agi impulsivamente
muitas vezes, e precisava ter certeza do que estava fazendo. E queria me
assegurar que quando te encontrasse, quando te dissesse que te amo,
acreditaria.
— Assim decidiu vender Risen Glory — sua voz soava rouca.
Os olhos de Kit se encheram de lágrimas.
— Ia ser a prova de meu amor, ia agitar sob seu nariz como um estandarte.
Olhe o que fiz por você! Mas quando finalmente o vendi, descobri que Risen
Glory era somente um pedaço de terra. Não era um homem para abraçar, falar
contigo e fazer uma vida juntos — sua voz se entrecortou e se levantou para
tratar de cobrir sua debilidade —. Então fiz algo muito tolo. Quando planeja
coisas com a imaginação, às vezes resultam melhor que na vida real.
— O quê?
— Dei a Sophronia meu fundo fiduciário.
Houve uma suave e sobressaltada exclamação nas sombras do quarto, mas
ela apenas a escutou. Suas palavras saíam em frases curtas e bruscas.
— Queria me desfazer de tudo, de modo que se sentisse responsável por
mim. Era uma apólice de seguro no caso de você não me querer. Poderia te
olhar e te dizer que se me quisesse ou não, teria que me levar com você, pois
não tenho outro lugar para ir. Mas não estou tão desamparada. Nunca ficaria
contigo por que se sentisse responsável por mim. Isso seria pior que estar
separados.
— E foi tão horrível estar separados?
Ela levantou a cabeça ante a inconfundível ternura de sua voz.
Ele saiu das sombras, e os anos pareceriam ter desaparecido de seu rosto.
Os olhos cinzas que sempre lhe tinham parecido tão frios, agora estavam
transbordantes de emoção.
— Sim — sussurrou ela.
Ele já estava junto a ela, abraçando-a, levantando-a.
— Minha doce, doce Kit — gemeu, enterrando o rosto em seu cabelo —
Deus querido, como senti sua falta. Como eu te quero. Desde que te deixei,
sonhei estar contigo.
Estava em seus braços outra vez. Tentou respirar fundo, mas se transformou
em um soluço, quando aspirou seu aroma familiar de limpeza. Sentir seu corpo
contra ela depois de tantos meses era mais do que podia suportar.
Ele era sua outra metade, a parte que lhe tinha faltado durante tanto tempo.
E ela era a outra metade dele.
— Quero te beijar e fazer amor mais do que já quis alguma coisa.
— Então, por que não faz?
Ele contemplou o rosto erguido para si, e o assombro se refletiu em sua
expressão.
— Deixar-me-ia fazer amor contigo depois de me encontrar com outra
mulher?
A dor era uma punhalada afiada, mas superou.
— Suponho que em parte sou a responsável. Mas será melhor que não volte
a ocorrer.
— Não — seu sorriso era suave e terno. — Ama da mesma maneira que faz
todo o resto, verdade? Sem condições. Levou menos tempo do que eu para
descobrir como fazê-lo direito.
Ele deu um passo atrás.
— Vou te soltar agora mesmo. Não será fácil, mas há algumas coisas que
devo te dizer, e não posso pensar corretamente quando estou te abraçando
assim.
Soltou-a com uma agonizante lentidão e se afastou só o suficiente para não
tocá-la.
— Muito antes de te deixar sabia que te amava, mas não fui tão inteligente
como você. Apressei-me em te amarrar e impor condições. Não tive coragem
para te dizer como me sentia, da mesma forma que você acaba de fazer. Em
vez disso, saí correndo. Assim como tenho feito toda minha vida, quando
sentia algo ou alguém ficar muito próximo de mim. Bem, estou cansado de
correr, Kit. Não tenho nenhuma forma de lhe provar isso, não tenho um
estandarte para agitá-lo sob seu nariz. Mas te amo e estava para te recuperar.
Já tinha decidido. De fato, justamente ia dizer a Ruby que eu estava saindo
quando você irrompeu por essa porta.
Apesar da inconfundível mensagem de amor que estava escutando, Kit não
pôde evitar uma careta de dor ante a menção do nome da dona do salão.
— Apaga esse fogo de seus olhos, Kit. Tenho que falar de Ruby.
Mas Kit não queria escutá-lo. Sacudiu a cabeça e tratou de lutar contra a
traição que supunha que ele tinha feito.
— Quero que me escute — insistiu ele. — Nada mais de segredos, embora
esta parte não seja fácil para mim — respirou profundamente. — Eu... eu não
fui o melhor amante do mundo desde que te deixei. Não fui... não fui nenhum
tipo de amante absolutamente. Durante muito tempo me mantive longe das
mulheres, de modo que não pensava nisso. Logo vim trabalhar no Rosa
Amarela, e Ruby estava bastante determinada, mas o que viu hoje foi
totalmente unilateral por sua parte. Nunca a toquei.
O ânimo de Kit renasceu.
Ele enfiou a mão no bolso e se afastou ligeiramente. Uma parte de sua
tensão anterior voltou.
— Sei o que supõe. Ruby não é muito bela, mas isso é indiferente para um
homem. Tanto tempo sem uma mulher, e ela se insinuava continuamente...
vindo a meu quarto vestida como a viu hoje, me deixando ver claramente suas
intenções. Mas não senti nada por ela!
Deixou de falar e a olhou como se esperasse algo. Kit estava começando a
desconcertar-se. Parecia mais um homem que confessa uma infidelidade, que
um que confessa sua fidelidade. Haveria algo mais?
Sua confusão era notável.
— Você não entende Kit? Ela se oferecia em qualquer lugar e não me
excitava!
Agora Kit entendeu e a felicidade explodiu dentro dela como se o mundo
inteiro tivesse sido criado de novo.
— Está preocupado por sua virilidade? Oh, querido! — Com uma grande
gargalhada, lançou-se pelo quarto para seus braços. Agarrou sua cabeça
trazendo, a boca para a sua. Ela falava, ria e o beijava, tudo ao mesmo tempo
— Oh, querido, meu amor querido e grande tolo. Como te amo!
Foi um som rouco e firme, do mais profundo de sua garganta, e então ele a
apanhou em seus braços. Sua boca se tornou insaciável.
O beijo foi intenso e doce, cheio de amor do que por fim tinham falado, da
dor que finalmente tinham compartilhado.
Mas tinham estado separados durante muito tempo, e seus corpos não se
contentavam só com os beijos. Cain, que só uns momentos antes tinha
duvidado de sua virilidade, agora se encontrava dolorido pelo desejo. Kit o
sentiu, desejou-o, e no último instante antes de perder a razão, recordou que
não tinha contado tudo.
Com seu último pingo de vontade, retirou-se e disse com voz entrecortada.
— Não vim sozinha.
Seus olhos estavam frágeis pela paixão, e passou um momento antes que ele
entendesse.
— Não?
— Não, eu... Miss Dolly veio comigo.
— Miss Dolly! — Cain riu, um som alegre que começava em suas botas e
que crescia mais forte para cima — Trouxeste Miss Dolly para o Texas?
— Tive que fazê-lo. Não me deixava partir sem ela. E você mesmo disse
que éramos obrigados a carregá-la. É nossa família. Além disso, preciso dela.
— Oh, é doce... Deus meu, como te amo. — se aproximou outra vez, mas
ela retrocedeu rapidamente.
— Quero que venha ao hotel.
— Agora?
— Sim. Tenho algo que te mostrar.
— Tenho que vê-lo agora mesmo?
— Oh, sim. Definitivamente agora mesmo.
***

Cain apontou alguns dos lugares mais interessantes de San Carlos enquanto
andavam pela calçada desigual de madeira. Mantinha sua mão apertando a
dela colocada em seu cotovelo, mas suas respostas distraídas logo deixaram
evidente que seus pensamentos estavam em outro lugar. Contente com o
simples feito de tê-la junto a si, calou-se.
Miss Dolly estava esperando no quarto que Kit tinha alugado. Riu como
uma colegial quando Cain a agarrou e a abraçou. Depois, com um rápido e
preocupado olhar a Kit, partiu para visitar a loja geral ao outro lado da rua e
fazer algumas compras para seus queridos e grisalhos meninos.
Quando a porta se fechou atrás dela, Kit se virou para Cain. Estava pálida e
nervosa.
— Que acontece? — perguntou ele.
— Tenho uma... uma espécie de presente para você.
— Um presente? Mas eu não tenho nada para você.
— Isso não é... exatamente verdade. — disse ela com indecisão.
Perplexo, a observou escapulir por uma segunda porta que levava a um
quarto contíguo. Quando voltou, trazia um pequeno vulto branco nos braços.
Aproximou-se dele devagar, com uma expressão tão cheia de súplica que
quase lhe rompeu o coração. E então o vulto se moveu.
— Tem uma filha. — disse em voz baixa. — Seu nome é Elizabeth, mas eu a
chamo Beth. Beth Cain.
Ele olhou para baixo, a um diminuto rosto em forma de coração. Tudo nela
era delicado e estava perfeitamente formado. Tinha um penugem de cabelo
loiro claro, pequenas sobrancelhas escuras, e um nariz minúsculo. Sentiu uma
pontada aguda no intestino. Tinha ajudado a criar algo tão perfeito? E então o
coração bocejou e agitou suas pálpebras rosadas até abrí-las, e em um
segundo perdeu seu coração por um par de olhos violetas.
Kit viu como isto ocorria entre eles de forma imediata e sentiu que nada em
sua vida poderia ser alguma vez tão doce como este momento. Afastou a manta
de modo que ele pudesse ver o resto dela. Então lhe ofereceu a menina.
Cain a contemplou com ar vacilante.
— Vamos. — sorriu meigamente. — Pegue-a.
Ele tomou o bebê em seu peito, suas grandes mãos quase abrangiam o
pequeno corpo. Beth se moveu e virou a cabeça para olhar o novo estranho
que a estava segurando.
— Olá, Coração — disse em um sussurro.
***

Cain e Kit passaram o resto da tarde brincando com sua filha. Kit a despiu
para que assim seu pai pudesse lhe contar os dedos das mãos e dos pés.
Beth realizou todos os seus truques como uma campeã: Sorrindo com os
ruídos graciosos que lhe dirigiam, tratando de agarrar os grandes dedos que
estavam a seu alcance, e fazendo sons de bebê feliz quando seu pai soprava
em sua barriga.
Miss Dolly lhes fez uma breve visita, e quando viu que tudo ia bem,
desapareceu no outro quarto e se deitou para tirar sua própria sesta. A vida era
peculiar, pensou, quando estava a ponto de dormir, mas também era
interessante. Agora tinha à pequena e doce Elizabeth em quem pensar. Era
indubitavelmente sua responsabilidade. Depois de tudo, apenas podia contar
com Katharine Louise para assegurar-se que a menina recebesse a instrução
necessária para ser uma grande dama. Havia tanto que fazer. Sua cabeça
começou a dar voltas como um pião. Era uma tragédia, certamente, o que
estava ocorrendo na Câmara do Tribunal de Appomattox, mas provavelmente
fosse o melhor para todos.
Agora estava muito ocupada para se preocupar com o resultado da guerra...
No outro quarto, Beth começou finalmente a inquietar-se. Quando franziu a
boca e deu um grito de protesto para sua mãe, Cain pareceu alarmado.
— O que aconteceu?
— Está faminta. Me esqueci de alimentá-la.
Agarrou Beth da cama onde tinha estado deitada, e a levou a uma cadeira
perto da janela. Quando se sentou, Beth virou a cabeça e começou a acariciar
a malha cinzenta que cobria o seio de sua mãe. Quando não ocorreu nada de
forma imediata, ficou mais frenética.
Kit a contemplou, entendendo sua necessidade, mas, de repente, se sentiu
tímida por realizar este ato tão íntimo frente a seu marido.
Cain estava deitado no outro lado da cama, as olhando. Viu a angústia de
sua filha e intuía a timidez de Kit. Lentamente ficou de pé e se aproximou
delas. Estendeu a mão e tocou Kit na bochecha. Logo desceu para a fileira de
botões cinza de sua garganta. Calmamente a afrouxou com os dedos para expor
uma fila de botões rosa pérola que havia por baixo. Desabotoou-os e afastou o
vestido.
A fita azul de sua camisa íntima se soltou com um único puxão. Ele viu os
filetes de lágrimas nas bochechas e se inclinou para beijá-las. Em seguida
abriu a camisa de modo que sua filha pudesse se alimentar.
Beth se agarrou ferozmente com sua diminuta boca. Cain riu e beijou as
gordinhas dobras de seu pescoço. Logo virou a cabeça e seus lábios tocaram o
seio doce e cheio que a alimentava. Quando os dedos de Kit se enrolaram em
seu cabelo, ele soube finalmente que tinha um lar e que nada sobre a terra o
faria abandoná-lo.
***

Ainda havia promessas que deviam ser seladas entre eles. Essa noite, com
Beth agasalhada segura na cama onde Miss Dolly poderia cuidar dela, saíram
a cavalo para uma caminhada ao norte da cidade.
Enquanto montavam, falaram dos meses perdidos entre si, no inicío somente
dos acontecimentos e logo depois de seus sentimentos.
Falavam em voz baixa, às vezes na metade de uma frase, terminavam
frequentemente os pensamentos um do outro. Cain falou de sua culpa por
abandoná-la, afligido agora que sabia que estava grávida. Kit falou da forma
como tinha utilizado Risen Glory como uma brecha para mantê-los
separados.Compartilhar sua culpabilidade deveria ter sido difícil, mas não
foi.
Nem tampouco o foi o perdão mútuo.
Hesitante no começo e logo com mais entusiasmo, Cain lhe falou de um
pedaço de terra que tinha visto ao Leste, perto de Dallas.
— Como se sentiria se construísse outro moinho de algodão? O algodão vai
se converter em um grande cultivo no Texas, maior que em qualquer outro
estado do Sul. E Dallas parece um bom lugar para criar uma família. — a
olhou fixamente. — Ou talvez queira voltar para a Carolina do Sul e construir
ali outro moinho. Também estará bem para mim.
Kit sorriu.
— Eu gosto do Texas. Parece o lugar adequado para nós. Uma terra nova e
uma vida nova.
Durante algum tempo montaram silenciosamente satisfeitos. Finalmente,
Cain falou.
— Não me disse quem comprou Risen Glory. Dez dólares o acre. Ainda
não posso acreditar que o vendesse por isso.
— É um homem especial — o olhou maliciosamente. — Pode ser que se
lembre. Magnus Owen.
Cain jogou a cabeça para atrás e riu.
— Magnus tem Risen Glory e Sophronia tem seu fundo fiduciário.
— Simplesmente parecia o certo.
— Muito certo.
As sombras profundas e frias da noite, os envolveram quando entraram no
pequeno e deserto cânion. Cain amarrou os cavalos a um salgueiro negro, tirou
seu saco de dormir de trás da sela, e agarrou a mão de Kit. Levou-a à beira de
um pequeno rio que serpenteava através do chão do cânion. A lua os olhava,
uma redonda e brilhante esfera que logo os banharia com sua luz prateada.
Olhou para ela. Levava um chapéu de aba plana e uma de suas camisas de
flanela sobre as calças de montar cor bege.
— Não parece muito distinta de quando te fiz descer de meu muro. Exceto
que agora ninguém poderia te confundir com um menino.
Seus olhos se deslocaram para seus seios, visíveis inclusive sob sua
enorme camisa e ela o deleitou com seu rubor. Alisou o saco de dormir, tirou-
lhe o chapéu e depois tirou o seu, e deixou ambos na beira do rio.
Tocou os pequenos brincos de prata que ela tinha nos lóbulos das orelhas e
depois seu cabelo, enrolado em um grosso coque à altura da nuca.
— Quero soltar seu cabelo.
Seus lábios se curvaram lhe dando permissão docemente.
Tirou os grampos um a um e os pôs cuidadosamente no interior de seu
próprio chapéu. Quando a brilhante nuvem de cabelo caiu finalmente livre, ele
o agarrou em suas mãos e o levou suavemente aos lábios.
— Deus querido, como senti sua falta.
Ela pôs os braços ao seu redor e ergueu a vista para olhá-lo fixamente.
— Isto não vai ser um matrimônio de conto de fadas, verdade, querido?
Ele sorriu suavemente.
— Não vejo como. Somos tão irascíveis como teimosos. Vamos discutir.
— Te importará muito?
— Não o quereria de outra maneira.
Ela pressionou a bochecha em seu peito.
— Os príncipes dos contos de fadas sempre me pareceram aborrecidos.
— Minha rosa selvagem das profundezas do bosque. Nossa vida em comum
nunca será rotina.
— Do que me chamou?
— Nada — silenciou a pergunta com seus lábios — Nada absolutamente.
O beijo que começou calmamente, cresceu até que ambos ardessem em
chamas. Cain colocou os dedos em seu cabelo e sustentou sua cabeça entre as
mãos.
— Se dispa para mim, fará isso, querida? — gemeu suavemente — Sonhei
com isto durante muito tempo.
Ela soube em seguida como devia fazer para lhe dar maior prazer.
Lançando-lhe um sorriso aberto brincalhão, tirou as botas e as meias,
depois as calças. Ele gemeu quando a longa aba da camisa de flanela caiu,
recatadamente por cima de seus quadris. Ela estendeu a mão para ele, tirou
seus calções brancos, e os deixou cair junto a ela.
— Não tenho nada debaixo desta camisa.
Mal podia se controlar para não saltar em cima dela e abraçá-la.
— É uma mulher perversa, senhora Cain.
Sua mão se deslocou ao botão superior da camisa.
— Está a ponto de descobrir quão perversa sou, senhor Cain.
Nunca se desabotoaram uns botões tão lentamente. Era como se cada um
deles só pudesse ser desabotoado com o mais lento dos movimentos. Inclusive
quando a camisa estava finalmente desabotoada, o tecido pesado a mantinha
colada na frente.
— Vou contar até dez — disse com voz rouca.
— Conta tudo o que precisar, ianque. Isso não deixará as coisas mais fáceis
— com um sorriso diabólico, tirou a camisa lentamente, milímetro por
milímetro, até que finalmente ficou nua em sua frente.
— Não me lembrava muito — ele murmurou com força — Como você é
linda. Vem aqui meu amor.
Ela correu para ele através do solo gelado. Só quando o alcançou se
perguntou se ainda seria capaz de agradá-lo. E se ter tido um bebê a tivesse
mudado?
Ele agarrou sua mão e a puxou para ele, calmamente, tocou seus seios mais
cheios entre as mãos.
— Seu corpo está diferente — ela assentiu com a cabeça.
— Estou um pouco assustada.
— Está, meu amor? — Levantou seu queixo e roçou a boca com a sua. —
Prefiro morrer antes de te machucar.
Seus lábios eram suaves.
— Não é isso. Eu tenho medo... de não ser capaz de te agradar.
— Talvez eu não seja capaz de te agradar, — sussurrou ele calmamente.
— Tolo — murmurou ela.
— Tola — sussurrou ele como resposta.
Sorriram e se beijaram até que não suportaram a barreira da roupa entre
eles. Tiraram um ao outro o que ficava, e quando os beijos se tornaram mais
profundos, caíram sobre o saco de dormir.
Um farrapo de nuvem deslizou sobre a lua, enchendo de sombras móveis as
antigas paredes do cânion, mas os amantes não se deram conta. Nuvens, luas,
cânions, um bebê com rosto de coração, uma anciã com aroma de hortelã...
Tudo deixou de existir. Nesse momento, seu mundo era pequeno, formado
unicamente por um homem e uma mulher, juntos por fim.

FIM

Você também pode gostar