Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PRIMEIRA PARTE
1
2
3
4
SEGUNDA PARTE
5
6
TERCEIRA PARTE
7
8
9
10
11
12
13
14
QUARTA PARTE
15
16
17
18
19
20
21
SUSAN ELIZABETH PHILLIPS
PRIMEIRA PARTE
O menino do estábulo
Quando a obrigação sussurra, deve a juventude responder, posso.
RALPH Waldo Emerson
“VOLUNTARIES III”
1
O velho vendedor ambulante o captou imediatamente, já que o moço
parecia desambientado entre a multidão de corretores da bolsa e banqueiros
bem vestidos, que lotavam as ruas da sub Manhattan. Uns cachos negros se
sobressaíam por debaixo de um chapéu de feltro amassado. Uma camisa
remendada desabotoada no pescoço, possivelmente em deferência ao calor de
princípios de julho, os ombros estreitos, frágeis, enquanto uns suspensórios de
couro seguravam umas calças enormes e sujas.
O moço usava umas botas negras, que pareciam muito grandes para seu
pequeno tamanho, e levava um vulto retangular em seu braço. O vendedor
ambulante se apoiou em seu carrinho de mão cheio de bandejas de bolos e
observou o moço caminhar entre a multidão, como se fosse conquistar o
inimigo. O ancião viu coisas no moço que outros não viam e lhe chamou a
atenção.
— Oh, ragazzo. Tenho um bolo para tí. Doce como o beijo de um anjo.
Viene qui.
O moço levantou a cabeça, e olhou fixamente com ânsia as bandejas de
bolos caseiros que sua esposa fazia todos os dias, e o vendedor quase pôde
lhe ouvir contar os peniques que guardava no vulto de maneira tão protetora.
— Vem, ragazzo. Isto é um presente para ti — sustentava uma tartaleta de
maçã grande —. O presente de um ancião a um recém-chegado aqui, à cidade
mais importante do mundo.
O moço colocou desafiante o polegar no cinto de sua calça e se aproximou
do carro.
— O que lhe faz pensar que acabo de chegar?
Seu sotaque era tão pesado como o aroma dos jasmins sobre um campo de
algodão da Carolina, e o ancião ocultou um sorriso.
— Talvez seja minha tola imaginação, né?
O moço encolheu os ombros e deu um chute a algo atirado no chão.
— Não sou um forasteiro — assinalou com um imundo dedo o bolo —
Quanto você pede por isso?
— Não disse que é um presente?
O moço pensou, assentiu com a cabeça e estendeu a mão.
— Muito obrigado.
Enquanto agarrava o bolo, dois homens de negócios com levita e chapeus
altos de castor passaram junto ao carro. O olhar fixo do moço varreu com
desprezo as correntes de seus relógios de ouro, os guarda-chuvas enrolados, e
os polidos sapatos negros.
— Malditos porcos ianques — resmungou.
Os homens estavam absortos em sua conversa e não o escutaram, mas assim
que se afastaram, o ancião franziu o cenho.
— Acredito que esta cidade não é um bom lugar para ti, não é? Faz só três
meses que acabou a guerra. Nosso presidente morreu. O ódio é ainda muito
forte.
O moço se sentou no meio-fio para comer o bolo.
— Eu não gostava muito do Sr. Lincoln. Penso que era pueril.
— Pueril? Madre de Dio! O que significa essa palavra?
— Ingênuo como um menino.
— E onde um moço como você aprendeu uma palavra como essa?
O moço estreitou os olhos para protegê-los do sol da tarde e entortou os
olhos ao ancião.
— Me distraio lendo livros. Essa palavra em particular aprendi do senhor
Ralph Waldo Emerson. Admiro muito o senhor Emerson — começou a
mordiscar com delicadeza ao redor da borda do seu bolo —. Eu não sabia que
era um ianque quando comecei a ler seus ensaios. Quando me inteirei me
zanguei muitíssimo. Mas já era muito tarde, porque já era seu discípulo.
— Este senhor Emerson. O que diz ele que é tão especial?
Um pedaço de maçã ficou colado à ponta de seu dedo imundo, e ele o
chupou com a ponta de sua pequena língua rosada.
— Ele fala do caráter e da independência. É a independência o atributo
mais importante que uma pessoa pode ter, verdade?
— A fé em Deus. Isso é mais importante.
— Já não acredito mais em Deus, nem em Jesus. Acreditava, mas vi muita
dor estes últimos anos. Vi os ianques matar todos os nossos animais e queimar
nossos celeiros. Vi como davam um tiro no meu cão, Fergis. Vi à senhora
Lewis Godfrey Forsythe perder a seu marido e seu filho Henry no mesmo dia.
Meus olhos se sentem velhos.
O vendedor ambulante olhou mais atentamente o moço. Tinha um rosto
pequeno, em forma de coração, e um nariz que se inclinava um pouco no final.
Parecia um pecado que fosse um menino, já que logo se embruteceriam
esses traços tão delicados.
— Quantos anos tem, ragazzo? Onze? Doze?
Uma sombra de cautela passou pelos olhos que eram de um surpreendente
violeta.
— Mais velho, suponho.
— E seus pais?
— Minha mãe morreu quando nasci. Meu pai morreu no Shiloh faz três
anos.
— E você, ragazzo? Por que vieste a Nova Iorque?
O moço meteu o último pedaço de tartaleta à boca, colocou o vulto mais
debaixo do braço, e se levantou.
— Tenho que proteger o que é meu. Muito obrigado por este delicioso bolo.
Foi um verdadeiro prazer lhe conhecer — começou a afastar-se, logo vacilou
—. E sabe que… não sou um menino. E meu nome é Kit.
***
Havia quatro cavalos nos estábulos, dois para o carro e dois para montar.
Uma parte da tensão de Kit, aliviou essa manhã quando acariciava o pescoço
de um elegante corcel, enquanto ele lhe acariciava o ombro. Tudo iria bem,
manteria os olhos abertos e esperaria o momento adequado. Baron Cain era
perigoso, mas ela tinha uma vantagem. Ela conhecia seu inimigo.
— Seu nome é Apolo.
— O que?
Deu-se a volta para encontrar um jovem negro de olhos grandes e
expressivos que estava de pé na porta que separava os estábulos do corredor
central do estábulo. Teria em torno de vinte e cinco anos e era alto, com uma
compleição leve, flexível. Um vira-lata branco e negro estava tranquilamente a
seu lado.
— Esse corcel. Seu nome é Apolo. É o cavalo favorito do Major.
— Não me diga — Kit abriu a porta e saiu do estábulo. O vira-lata a
cheirou enquanto o jovem a estudava criticamente.
— Sou Magnus Owen. O Major me disse que te contratou ontem à noite
depois que te pegou farejando fora dos estábulos.
— Eu não estava farejando. Não exatamente. Esse teu Major tem uma
natureza excessivamente receosa, isso é tudo — Olhou ao mestiço – Esse é seu
cão?
— Sim. Chama-se Merlín.
— Comporta-se como um cão que eu amava muito.
A testa alta e lisa de Magnus se franziu com indignação.
— O que quer dizer com isso, moço? Nem sequer conhece meu cão!
— Vi-lhe ontem pela tarde, perto desse muro. Se Merlín fosse um
verdadeiro guardião, teria me descoberto — Kit abaixou e lhe acariciou
distraidamente detrás das orelhas.
— Merlín não estava ontem pela tarde aqui — disse Magnus —. Estava
comigo.
— Oh. Bem, suponho que talvez esteja equivocada. Os ianques mataram
meu cão, Fergis. Era o melhor cão que tive. Ainda o choro.
A expressão de Magnus se adoçou um pouco.
— Como te chama?
Ela pensou um momento, então decidiu que seria mais fácil utilizar seu
próprio nome de batismo. Por cima da cabeça de Magnus viu uma lata de
Azeite Finney para os arnês de couro.
— Meu nome é Kit. Kit Finney.
— Um nome realmente curioso para um menino.
— Meus pais eram admiradores de Kit Carson, o lutador Injún.
Magnus pareceu aceitar sua explicação e logo foram fazer seu trabalho.
Mais tarde entraram na cozinha para o café da manhã, e lhe apresentou a ama
de chaves.
Edith Simmons era uma mulher sólida, com o cabelo escuro salpicado de
branco e voz forte. Era a cozinheira e a ama de chaves do proprietário anterior
e decidiu permanecer na casa quando descobriu que Baron Cain estava
solteiro e não havia nenhuma esposa para lhe dizer como fazer seu trabalho.
Edith acreditava na economia, a boa comida e a higiene pessoal. Ela e Kit
eram inimizades naturais.
— Este menino está muito sujo para comer com gente civilizada!
— Não vou discutir isso contigo — respondeu Magnus.
Kit estava muito faminta para discutir por nada tampouco, de modo que
caminhou com passo lento para a despensa e se lavou com água a cara e as
mãos, mas não tocou o sabão. Cheirava a menina e Kit tinha estado
combatendo todo o feminino durante mais tempo do que podia recordar.
Enquanto devorava o suntuoso café da manhã, estudou Magnus Owen. Da
maneira como a senhora Simmons lhe tratava, era evidente que era uma figura
importante na casa, insólito para um homem negro sob qualquer circunstância,
mas especialmente para um tão jovem. Algo despertou na memória de Kit, mas
não foi até que terminaram de comer quando compreendeu que Magnus Owen
recordava a Sophronia, a cozinheira de Risen Glory e a única pessoa a que Kit
amava no mundo. Tanto Magnus como Sophronia atuavam como se soubessem
tudo.
Sobreveio-lhe uma onda de nostalgia, mas a combateu com presteza. Logo
retornaria a Risen Glory, e levantaria a plantação da ruína.
Essa tarde quando terminou seu trabalho, sentou-se à sombra perto da porta
do estábulo, com um braço sobre o lombo de Merlín que havia dormido com o
nariz repousando em sua coxa. O cão não moveu um só músculo quando
Magnus se aproximou.
— Animal inútil — sussurrou ela —. Se viesse um assassino com uma
tocha, já estaria morto.
Magnus riu entre dentes e sentou a seu lado.
— Suponho que tenho que admitir que Merlín não é um grande cão
guardião. Mas ainda é jovem. Era só um cachorrinho quando o Major o
encontrou vagabundeando em um beco detrás da casa.
Kit só tinha visto a Cain uma vez esse dia, quando lhe ordenou bruscamente
selar a Apolo. Tinha sido muito cortante e altivo para saudá-la. Não que ela
quisesse que o fizesse. Simplesmente por cortesia.
Os periódicos ianques lhe chamavam o Herói do Missionary Ridge. Ela
sabia que tinha lutado em Vicksburg e Shiloh. Possivelmente fosse o homem
que tinha matado seu pai. Não parecia justo que ele estivesse vivo quando
tantos valentes soldados Confederados estavam mortos. E ainda era mais
injusto que enquanto seguisse respirando ameaçava a única coisa que lhe havia
ficado no mundo.
— Quanto tempo faz que conhece o Major? — perguntou ela
cautelosamente.
Magnus agarrou um pedaço de capim e começou a mastigá-lo.
— Desde a Chattanooga. Quase perdeu a vida ao salvar a minha. Estamos
juntos desde então.
Uma horrível suspeita começou a crescer no interior de Kit.
— Não lutou a favor dos ianques, não é verdade Magnus?
— Claro que lutei a favor dos ianques!
Ela não sabia por que estava tão desiludida, mas estava e Magnus deixou
de lhe agradar.
— Há-me dito que é da Georgia. Por que não lutou por seu estado natal?
Magnus tirou o capim da boca.
— É o cúmulo, menino. Senta-se aqui junto a um homem negro, e fresco
como uma alface lhe pergunta por que não combateu com a gente que lhe tinha
aprisionado. Tinha doze anos quando me liberaram. Mudei para o norte,
consegui um trabalho e fui à escola. Mas não era ainda livre, e sabe por que,
menino? Porque não havia um só homem negro neste país que se pudesse
considerar livre enquanto suas irmãs e irmãos no Sul seguiam sendo escravos.
— Não se tratava da escravidão — explicou ela pacientemente — Se
tratava do direito de governar sem interferências. A escravidão foi só
secundário.
— Pode ser secundário para ti, menino branco, mas não para mim.
As pessoas negras sim que eram suscetíveis, pensou ela quando ele se
levantou e se foi. Mais tarde enquanto preparava a segunda comida para os
cavalos, ainda estava ruminando sua conversa anterior. Recordou a vários
bate-papos que tinha tido com Sophronia.
Cain chegou com Apolo e desmontou com um movimento insolitamente ágil
para um homem de seu tamanho.
— Atende-o imediatamente, menino. Não quero que o cavalo adoeça –
lançou a Kit a rédea e com grandes pernadas começou a caminhar para a casa.
— Conheço meu trabalho — gritou ela —. Não necessito que nenhum
ianque me diga como atender a um cavalo quente e suarento.
Mal as palavras saíram de sua boca, desejou ter podido morder a língua. Só
era quarta-feira e não podia arriscar-se a que a jogassem ainda.
Já sabia que no domingo era a única noite que a senhora Simmons e Magnus
não dormiam na casa. A senhora Simmons tinha o dia livre e ficava com sua
irmã, e Magnus passava a noite no que a senhora Simmons descrevia como um
modo bêbado e vicioso, inadequado para ouvidos jovens. Kit precisava calar
a boca durante quatro dias. Então quando chegasse no domingo de noite,
entraria para matar o bastardo ianque que tinha girado e a olhava com esses
frios olhos cinzas.
— Se acha que seria mais feliz trabalhando para outra pessoa, posso
encontrar outro menino para os estábulos.
— Não hei dito que queira trabalhar para outra pessoa — murmurou ela.
— Então possivelmente fosse melhor que tentasse calar a boca.
Ela deu um golpe no chão com a ponta poeirenta de sua bota.
— E, Kit ?
— Sim?
— Tome um banho. As pessoas se queixam de como cheira.
— Um banho! — a atrocidade quase estrangulou Kit e apenas pôde manter a
compostura.
Cain parecia estar desfrutando.
— Há algo mais que queira me dizer?
Ela apertou os dentes e pensou no tamanho do buraco de bala que pretendia
deixar em sua cabeça.
— Não, senhor — murmurou ela.
— Então necessitarei o carro na porta dianteira em meia hora.
Enquanto levava Apolo para os estábulos, ia soltando uma grande
quantidade de blasfêmias. Matar a esse ianque ia agradar mais que qualquer
coisa que já tivesse feito em seus dezoito anos. O que importava a ele se
banhava ou não se banhava? Não gostava dos banhos. Todo mundo sabia que
eram a sala de espera da gripe. Além disso para isso tinha que despir-se, e
odiava ver seu corpo desde que lhe tinham crescido uns peitos que não
encaixavam com o que ela queria ser.
Um homem. As garotas eram débeis e suaves, por isso tinha apagado todo
rastro feminino nela para parecer dura e forte como qualquer homem. Sempre
que não esquecesse isso, tudo iria bem.
Ainda se sentia indisposta enquanto estava de pé diante das cabeças dos
dois cavalos cinzas e esperava que Cain saísse da casa. Tinha lavado um
pouco a cara e trocou de roupa, embora também estava suja, portanto não
havia muita diferença.
Quando Cain desceu as escadas da casa, olhou os calções remendados e a
descolorida camisa azul de seu menino de estábulo. Se fosse possível, parecia
que o menino tinha pior aspecto. Estudou o que podia ver do rosto do moço
debaixo desse chapéu rasgado e pensou que o queixo possivelmente estava um
pouco mais limpo. Provavelmente não deveria ter contratado ao vadio, mas o
menino o fazia sorrir mais que qualquer pessoal que recordasse.
Desgraçadamente a atividade vespertina seria menos divertida. Desejou
não haver-se deixado convencer a dar um passeio com Dora pelo Central
Park. Embora os dois conhecessem as regras desde o começo, suspeitava que
ela queria uma relação mais permanente, e trataria de tirar partido da
privacidade que oferecia o passeio para lhe pressionar. A menos que tivessem
companhia...
— Sobe detrás menino. É hora de que veja algo da cidade de Nova York.
— Eu?
Ele sorriu ante o assombro do menino.
— Não vejo por aqui ninguém mais. Necessito que alguém segure os
cavalos para mim — e evite um convite de Dora para ser um membro
permanente da família Van Ness.
Kit olhou fixamente ao ianque de olhos cinzas, olhos de rebelde assassino e
tragou com força. Depois subiu ao assento de couro estofado. Quanto menos o
tivesse em frente, menos probabilidades tinha de criticar.
Enquanto conduzia agilmente através das ruas, Cain ia assinalando as
atrações da cidade e seu prazer pelos novos monumentos começou a superar
sua prudência. Passaram pelo famoso restaurante Delmonico’s e o Teatro
Wallach, onde Charlotte Cushman aparecia no Oliver Twist. Kit observou as
pessoas elegantemente vestidas sair das lojas e os hotéis que rodeavam a
exuberante vegetação da Madison Square, e ao norte admirou as elegantes e
imponentes mansões.
Cain parou o carro diante de uma delas.
— Cuida dos cavalos, menino. Não demorarei muito.
Ao princípio a Kit não incomodou esperar. Estava absorta observando as
majestosas mansões e as estupendas carruagens que passavam com pessoas
bem vestidas em seu interior. Mas então se lembrou de Charleston reduzida a
escombros, e a familiar amargura se renovou dentro dela.
— É um dia perfeito para passear. E tenho uma história divertidíssima que
te contar.
Kit se virou e viu uma elegante mulher de cachos loiros e boca bonita,
fazendo uma careta enquanto descia os degraus da entrada, de braço dado com
Cain. Ia vestida com um vistoso vestido rosa e levava uma sombrinha de renda
branca para proteger sua pálida pele do sol da tarde. Completava o traje um
pequeno chapéu que parecia espuma na parte alta de sua cabeça. Kit a detestou
à primeira vista.
Cain ajudou à mulher a subir ao carro e a acomodar suas saias. A opinião
de Kit sobre ele caiu ainda mais baixo. Se este era o tipo de mulher que ele
gostava, não era tão inteligente como tinha pensado.
Pôs a bota no degrau de ferro e passou para o assento traseiro. A mulher se
virou com assombro.
— Baron, quem é esta criatura asquerosa?
— Quem aqui é asquerosa? — Kit incorporou no assento, com os punhos
em posição de briga.
— Sente-se — disse Cain.
Ela lhe olhou airadamente, mas sua expressão de rebelde assassino não
piscou. A contra gosto, afundou-se de novo no assento, e ficou a olhar
fixamente esse tolo e coquete chapeuzinho branco e rosa.
Cain deslizou suavemente a carruagem pelo tráfego.
— Kit é meu menino de estábulo, Dora. Levo-o para que fique com os
cavalos em caso que queira passear a pé pelo parque.
As fitas do chapeuzinho de Dora dançaram.
— Faz muito calor para caminhar.
Cain encolheu de ombros. Dora ajustou sua sombrinha e permaneceu em um
silêncio que denotava indignação, mas para satisfação de Kit, Cain não prestou
nenhuma atenção.
À diferença de Dora, Kit não era propensa a zangar-se, e desfrutou do
prazer de uma brilhante tarde de verão e dos monumentos que ele seguia lhe
assinalando. Esta era certamente a única oportunidade que teria de ver a
cidade de Nova Iorque, e embora tivesse de guia a seu inimigo jurado,
pensava desfrutá-lo.
— Este é o Central Park.
— Não entendo por que o chamam assim. Qualquer idiota pode ver que está
ao norte da cidade.
— Nova Iorque está crescendo muito depressa — disse Cain — Agora
mesmo não há nada ao redor do parque. Uns barracos, alguma granja. Mas
dentro de poucos anos haverá edifícios por toda parte.
Kit estava a ponto de expressar seu ceticismo quando Dora virou em seu
assento e a olhou com uma luz deslumbradoramente abrasadora. A mensagem
dizia claramente que Kit não devia abrir outra vez a boca.
Com um sorriso afetado em seu rosto, Dora voltou para Cain e tocou seu
antebraço com uma mão enluvada em malha rosa.
— Baron, tenho uma história muito divertida para contar de Sugar Plum.
— Sugar o que?
— Já sabe. Meu querido cachorro de raça pug.
Kit fez uma careta e tornou para trás no assento. Olhou o jogo de luzes
enquanto o carro passava por um caminho rodeado de árvores que corria
através do parque. Outra vez se encontrou observando o chapeuzinho de Dora.
Por que levaria alguém algo tão tolo? E por que não podia separar os olhos
dele?
Um landó negro com duas mulheres sentadas passou em direção contrária, e
Kit observou com que descaramento olhavam a Cain. Parecia que todas as
mulheres se voltavam parvas a seu redor. Ele sabia como dirigir os cavalos,
isso tinha que reconhecê-lo. Embora sem dúvida não era isso o que atraía a
essas mulheres.
Estavam interessadas nele como homem.
Tratou de estudá-lo objetivamente. Era bonito o filho da puta, não havia
dúvida disso. Seu cabelo era da mesma cor do trigo antes da colheita, e se
frisava um pouco no pescoço. Quando virou para fazer um comentário a
Doura, seu perfil ficou definido contra o céu, e ela decidiu que havia algo
pagão nele , como um desenho que tinha visto de um viking… uma sobrancelha
suave, elevada, um nariz reto e uma mandíbula firme.
— ...então Sugar Plum empurrou longe o bombom de framboesa com seu
nariz e em seu lugar escolheu um de limão. Não é a coisa mais doce que já
escutou?
Pugs e bombons de framboesa. A mulher era uma maldita parva. Kit
suspirou em voz alta. Cain se voltou para trás.
— Acontece algo?
Ela tratou de ser cortês.
— Eu não gosto muito dos pugs.
A comissura da boca de Cain tremeu visivelmente.
— E isso por que?
— Quer minha sincera opinião?
— Oh, é obvio.
Kit lançou um olhar de repulsão à costas de Dora.
— Os pugs são uns cães mariquinhas.
Cain riu entre dentes.
— Este menino é um impertinente!
Cain ignorou Dora.
— Prefere os vira latas, Kit ? Observei que passas muito tempo com
Merlin.
— Merlin passa o tempo comigo, não ao contrario. E não me importa o que
diz Magnus: “Este cão é mais inútil que um espartilho em um bordel”.
— Baron!
Cain fez um estranho ruído com a boca antes de recuperar a serenidade.
— Possivelmente deveria te lembrar que há uma dama presente.
— Sim, senhor — murmurou Kit, embora acreditava que não havia dito
nada errado.
— Este menino não conhece seu lugar — disse Dora baixinho — Eu
despediria a qualquer criado que se comportasse de forma tão extravagante.
— Então suponho que é bom que trabalhe para mim.
Ele não tinha elevado a voz, mas a advertência era clara e Dora
avermelhou. Estavam se aproximando do lago, e Cain deteve a carruagem.
— Meu menino de estábulo não é um criado comum. — continuou ele, com
tom ligeiro — É discípulo de Ralph Waldo Emerson.
Kit deixou de olhar ao longe a uma família de cisnes que deslizavam entre
as canoas para ver se ele estava se burlando dela, mas não parecia. Em seu
lugar ele pôs o braço sobre as costas do assento de couro e se virou para olhá-
la.
— O único escritor que conhece é o senhor Emerson, Kit?
A cara indignada de Dora pôs Kit faladora.
— Oh não, leio tudo o que cai em minhas mãos. Ben Franklin certamente,
embora todo mundo o lê. Thoreau, Jonathan Swift, Edgar Allan Poe, quando
estou de humor. Eu não gosto muito de poesia, mas do resto geralmente tenho
um apetite voraz.
— Já vejo. Possivelmente não tem lido aos poetas adequados. Walt
Whitman por exemplo.
— Nunca ouvi falar dele.
— É um nova-iorquino. Trabalhou como enfermeiro durante a guerra.
— Não acredito que possa suportar a um poeta ianque.
Cain levantou uma sobrancelha divertido.
— Decepciona-me. Certamente um intelectual como você não pode permitir
que esses preconceitos interfiram para desfrutar da grande literatura.
Ele estava rindo dela, e sentiu borbulhar sua raiva.
— Estou surpreso que até recorde o nome de um poeta, Major, a verdade é
que não tem muita pinta de leitor. Mas suponho que isso é comum nos homens
tão grandes. Tantos músculos em seus corpos, e não exercitam muito o cérebro.
— Impertinente! — Dora olhou a Cain, que a ignorou e estudou a Kit mais
atentamente. O menino tinha garra, não havia dúvida. Não podia ter mais de
treze anos, a mesma idade que Cain tinha quando escapou. Mas então Cain
quase tinha alcançado já sua altura adulta, enquanto Kit era pequeno, pouco
mais de metro e cinquenta.
Cain fixou em quão delicados eram os olhos do sujo menino: O rosto em
forma de coração, o pequeno nariz com uma decidida inclinação ascendente, e
esses olhos violetas rodeados de espessas pestanas. Eram o tipo de olhos
formosos em uma mulher, mas pareciam desconjurados em um menino e o
seriam inclusive mais quando Kit crescesse e se fizesse um homem.
Kit rechaçou acovardar-se sob seu escrutínio, e Cain reconheceu uma faísca
de admiração. A delicadeza de suas características tinha provavelmente algo
de relação com sua garra. Um menino de aspecto tão delicado haveria tido que
defender-se de muitas pelejas. Todavía era muito jovem para valer-se por si
mesmo, e Cain sabia que deveria levá-lo a um orfanato. Mas inclusive
enquanto considerava a idéia, sabia que não o faria. Havia algo em Kit que
recordava ele na sua idade. Tinha sido firme e tenaz andando pela vida
confrontando-a sem um hesitação. Seria como cortar as asas de um pássaro,
encerrar este menino em um orfanato. Além disso era bom com os cavalos.
A necessidade de Dora de estar sozinha com ele superou finalmente sua
aversão a fazer exercício, e lhe pediu pra passear pelo lago. Ali se
desenvolveu a incômoda e previsível cena que esperava. Era por sua culpa.
Tinha deixado que o sexo superasse a seu bom senso.
Foi um alívio voltar para carruagem onde Kit tinha começado uma conversa
com o homem que alugava as canoas e duas senhoras da noite brilhantemente
maquiadas para um passeio antes de ir trabalhar.
***
Essa noite, depois de jantar, Kit tombou em seu lugar favorito ao lado da
porta do estábulo, com o braço apoiado nas cálidas costas de Merlin.
Encontrou-se recordando algo estranho que lhe havia dito Magnus fazia um
momento enquanto admirava Apolo.
— O Major logo se desprenderá dele.
— Por que? — havia dito ela —. Apolo é incrivelmente formoso.
— É obvio que é. Mas o Major não fica muito com as coisas que gosta.
— O que quer dizer com isso?
— Dá de presente seus cavalos e seus livros antes de poder estar muito
apegado a eles. É sua forma de ser.
Kit não podia imaginá-lo. Eram as coisas que lhe mantinham ancorado à
vida. Mas possivelmente o Major não queria estar ancorado a nada.
Tocou o cabelo sob seu chapéu, e uma imagem do chapeuzinho rosa e
branco de Dora Van Ness lhe chegou à mente. Era tolo. O chapéu não era nada
mais que umas poucas partes de seda e renda. Mas não podia afastar de sua
mente. Continuou imaginando que aspecto teria ela usando essa roupa.
O que estava lhe acontecendo? Tirou o chapéu rasgado e o golpeou
bruscamente contra o chão. Merlin levantou a cabeça e a olhou com surpresa.
— Não acontece nada, Merlin. Todos estes ianques estão colocando idéias
estranhas em minha cabeça. Como se necessitasse a distração de pensar em
chapeuzinhos.
Merlín a olhou com atenção com seus sentimentais olhos castanhos. Não
gostava de admitir, mas lhe ia sentir falta quando fosse para casa. Pensou em
Risen Glory. Dentro de um ano, teria a velha plantação levantada.
Decidindo que a misteriosa crise humana tinha terminado, Merlin voltou a
pôr a cabeça sobre sua coxa. Distraídamente Kit manuseou uma de suas largas
e sedosas orelhas. Odiava esta cidade. Adoeciam-na os ianques e o som do
tráfego, inclusive de noite. Desgostava-a ter que levar esse asqueroso chapeu
e, sobretudo, zangava-a que todos a chamassem “menino”.
Que ironia. Toda sua vida tinha odiado tudo o que tinha a ver com o
feminino, mas agora que todo mundo pensava que era um menino, também o
odiava. Possivelmente era uma espécie de mutante.
Tocou distraidamente as pontas de seu cabelo sujo. Quando o bastardo
ianque a tinha chamado hoje de menino, havia se sentido mais que doente. Ele
era tão arrogante, estava tão seguro de si. Fixou-se nos olhos chorosos de
Dora depois que voltaram de seu passeio pelo lago. A mulher era parva, mas
Kit havia sentido um instante de simpatia por ela. De formas distintas, mas as
duas sofriam por culpa dele.
Acariciou com os dedos o lombo do cão e repassou seu plano. Não era
infalível, mas em geral, estava satisfeita. E decidida. Certamente só teria uma
oportunidade para matar a esse demônio ianque, e não tinha intenção de falhar.
À manhã seguinte Cain lhe atirou uma cópia de Folhas de erva de Walt
Whitman.
— Fique com isto.
2
Hamilton Woodward estava de pé quando Cain passou pelas portas de
mogno de seu escritório privado de advocacia. De modo que este era o famoso
Herói do Missionary Ridge, o homem que estava esvaziando os bolsos dos
financistas mais ricos de Nova Iorque. Não ia vestido muito chamativo, o que
dizia muito a seu favor. Seu colete listrado e a gravata marrom escuro
pareciam caros, mas conservadores e sua levita cinza pérola lhe adaptava à
perfeição. De todas as formas havia algo não exatamente respeitável neste
homem. Era algo mais que sua reputação, embora isso era algo indesculpável.
Possivelmente era a forma como andava, como se fosse o dono do lugar onde
acabava de entrar.
O advogado deu a volta a seu escritório e lhe ofereceu a mão.
— Como está senhor Cain? Sou Hamilton Woodward.
— Senhor Woodward.
Enquanto Cain lhe estreitava a mão, avaliava-o mentalmente. Era um
homem obeso de meia-idade, competente, pomposo. Provavelmente um
jogador de pôquer lamentável.
Woodward indicou uma poltrona de couro diante de seu escritório.
— Lamento lhe haver avisado com tão pouco tempo, mas já se atrasou este
assunto mais do que o normal. E não por minha culpa, tenho de acrescentar.
Apenas me inteirei ontem, e lhe asseguro que ninguém neste despacho é tão
arrogante para ter evitado um assunto tão importante. Especialmente quando
concerne a um homem ao qual todos estamos em dívida. Por sua coragem na
guerra.
— Sua carta dizia somente que queria falar comigo de algo de vital
importância — lhe interrompeu Cain. Desgostava-lhe as pessoas que
elogiavam suas façanhas na guerra, como se o que tinha feito pudesse
escrever-se em uma carta e pendurá-la para que todos pudessem lê-la.
Woodward agarrou uns óculos e colocou os arames detras das orelhas.
— Você é o filho de Rosemary Simpson Cain... ultimamente Rosemary
Weston?
Cain como bom jogador de pôquer tinha aprendido a esconder seus
sentimentos, mas agora foi difícil não demonstrar as feias sensações que lhe
embargaram.
— Não sabia que voltou a casar, mas sim esse é o nome de minha mãe.
— Era seu nome, quer dizer? — Woodward lhe estendeu um papel.
— Ela está morta então? — Cain não sentiu nada. A rechonchuda mandíbula
do advogado tremeu como lamentando-se.
— Sinto muito. Pensava que sabia. Morreu faz quase quatro meses. Me
perdoe por lhe haver dado a notícia tão bruscamente.
— Não se incomode em desculpar-se. Não vi a minha mãe desde que tinha
dez anos. Sua morte não me diz nada.
Woodward removeu os papéis ante ele, parecendo não saber o que
responder a um homem que reagia tão friamente ante a morte de sua mãe.
— Eu, uh, tenho uma carta que me enviou um advogado de Charleston de
nome W. D. Ritter que representava sua mãe — esclareceu a garganta — O
senhor Ritter me informa que contate com você para lhe entregar as últimas
vontades de sua mãe.
— Não tenho interesse.
— Sim, bom, isso já o veremos. Faz dez anos que sua mãe se casou com um
homem chamado Garrett Weston. Ele era o proprietário de Risen Glory, uma
plantação de algodão não longe de Charleston, e quando lhe mataram em
Shiloh, deixou-lhe a plantação a sua mãe. Faz quatro meses ela morreu de
gripe, e parece que lhe deixou a plantação.
Cain não demonstrou sua surpresa.
— Não vi a minha mãe em dezesseis anos. Por que faria algo assim?
— O senhor Ritter incluiu uma carta que lhe escreveu pouco antes de
morrer. Talvez lhe explique os motivos — Woodward tirou uma carta selada
da pasta e a pôs diante dele em cima da mesa. Cain a agarrou e a meteu no
bolso de seu casaco.
— O que sabe da plantação?
— Aparentemente era bastante próspera, mas a guerra a deixou em ruínas.
Com trabalho, poderia levantar. Desgraçadamente não há dinheiro junto a este
legado. E também está o tema da filha de Weston, Katharine Louise.
Agora Cain não se incomodou em esconder sua surpresa.
— Está me dizendo que tenho uma meia—irmã ?
— Não, não. Ela não é sua meia—irmã. Não há relação de sangue. A garota
é a filha de Weston de um matrimônio anterior. Entretanto, lhe concerne.
— Não posso imaginar porquê.
— Sua avó lhe deixou muito dinheiro, felizmente em um banco do Norte.
Quinze mil dólares, para ser exato, mas não poderá fazer uso deles até que
faça vinte e três anos ou se case, o que ocorra primeiro. Você foi renomado
seu administrador e tutor.
— Tutor! — Cain explodiu e se incorporou de repente na poltrona de
couro.
Woodward se encolheu em sua própria cadeira.
— O que podia fazer sua mãe? A garota mal tem dezoito anos. Há uma
substancial soma em dinheiro comprometido e nenhum outro familiar.
Cain se inclinou para frente sobre a reluzente superfície de mogno do
escritório.
— Não vou agarrar a responsabilidade de uma garota de dezoito anos ou
uma plantação de algodão em decadência.
Woodward fez uma careta.
— É sua decisão, certamente, e estou de acordo em que um homem tão...
mundano como você tenha a tutela de uma jovem dama é algo irregular.
Quando for a Charleston para inspecionar a plantação, pode falar com o
senhor Ritter e lhe comunicar a ele sua decisão.
— Não há nenhuma decisão — disse Cain categoricamente — Não pedi
esta herança e não a quero. Escreva a seu colega Ritter e ordene-lhe que
encontre a outro pardal.
***
6 De março de 1865
Querido Baron Posso imaginar sua surpresa ao receber minha carta
depois de tantos anos, embora seja uma carta da tumba. Um pensamento
morboso. Não estou preparada para morrer. Mas a febre não remete, e temo
o pior. E enquanto tenho forças, tentarei arrumar os assuntos que
abandonei.
Se esperas de mim uma desculpa, não receberá nenhuma. A vida com seu
pai foi excepcionalmente aborrecida. Eu não sou uma mulher maternal e
você foi um menino muito rebelde. Muito duro para mim. Embora tenha que
reconhecer que segui suas façanhas através dos periódicos com algum
interesse. Eu adorei me inteirar que lhe consideram um homem importante.
Entretanto, não quero te falar disso agora. Queria a meu segundo
marido, Garrett Weston, que me fez a vida muito agradável, e é por ele por
quem te escrevo esta carta. Embora nunca pude suportar a sua andrógina
filha Katharine, suponho que compreendo que necessita alguém que a
proteja até que seja maior de idade. portanto te deixo Risen Glory com a
esperança que seja seu tutor. Possivelmente recuse. Embora a plantação foi
uma vez a mais próspera da rgião, a guerra destruiu tudo.
Independentemente de sua decisão, eu descarreguei minha
responsabilidade.
Sua mãe Rosemary Weston Depois de dezesseis anos, isso era tudo.
***
— Isso é porque ele tem razão — disse Sophronia quando Kit lhe perguntou
sobre o acordo — Já é hora de que comece a te comportar como a mulher que
está destinada a ser.
— E também já é hora que você comece a estar do lado de quem se supõe
que deve estar.
Sophronia e Kit se queriam mais que ninguém no mundo, apesar de serem
negra e branca. O que não significava que não discutissem. E essas brigas se
intensificaram depois de chegar a Nova Iorque. No momento que Magnus pôs
os olhos em Sophronia, começou a andar pelas nuvens e a senhora Simmons
não deixou de elogiar quão maravilhosa era Sophronia. Depois de três dias,
Kit estava até o gorro disso. Então seu mau humor chegou a limites
insuspeitados.
— Pareço com um burro!
O chapéu de feltro cor parda parecia uma molheira esmagada sobre o
cabelo desigual de Kit. O material de sua jaqueta ocre era de boa qualidade,
mas ficava muito grande dos ombros e o feio vestido de sarja marrom lhe
arrastava pelo tapete. Parecia que se disfarçou com a roupa de uma tia
solteirona. Sophronia pôs seus largos dedos em seus quadris.
— E o que esperava? Avisei-te que os vestidos que tinha comprado a
senhora Simmons eram muito grandes, mas não tem importância. E se quer
saber o que penso, acredito que você fez por merecer isso por pensar que sabe
tudo.
— Só porque tem três anos mais que eu e estejamos em Nova Iorque não
significa que possa atuar como alguma espécie de rainha.
Sophronia enrugou seu elegante nariz.
— Acredita que pode me dizer tudo o que te pareça. Pois bem, já não sou
sua escrava, Kit Weston. Entende-me? Já não te pertenço. Não pertenço a
ninguém, salvo a Jesus!
Kit não gostava de ferir os sentimentos de Sophronia, mas às vezes ficava
muito teimosa.
— É só que nunca me mostra o menor agradecimento. Eu te ensinei a somar.
Ensinei-te a ler e escrever, inclusive contra a lei. Escondi-te de Jesse Overturf
na noite que ele queria te encontrar. E agora te põe do lado desse ianque e
contra mim à menor oportunidade que encontra.
— Você tampouco me agradeceste nada. Passei longos anos cuidando que
não pusesse à vista da senhora Weston. E sempre que te pegava e te trancava
no banheiro, era eu quem te tirava. Jogava-me a pele por tí. Assim não quero
ouvir nada de agradecimentos. Você foi uma corda ao redor de meu pescoço,
me asfixiando, me roubando o ar para respirar. Se não fosse porque você…
Bruscamente Sophronia se calou quando ouviu passos que se aproximavam
pelo corredor. A senhora Simmons apareceu para anunciar que Cain estava
abaixo esperando Kit para levá-la à Escola que tinha escolhido. Justo então, as
duas briguentas se abraçaram uma à outra. Kit falou finalmente enquanto
agarrava o feio chapéu em forma de molheira e caminhava para a porta.
— Tomará cuidado, verdade? — disse — Te cuide muito nessa estupenda
escola — respondeu Sophronia.
— Farei-o.
Os olhos de Sophronia nublaram com lágrimas.
— Voltaremo-nos a ver antes que te dê conta.
SEGUNDA PARTE
A Garota Templeton
As maneiras são a maneira feliz de fazer as coisas.
RALPH Waldo Emerson
“CULTURE”
5
A Academia Templeton para Jovens Damas se assentava na Quinta Avenida
como uma grande baleia de pedra cinza. Hamilton Woodward, o advogado de
Cain, a tinha recomendado. Embora a escola não aceitasse normalmente
garotas tão mais velhas como Kit, Elvira Templeton fez uma exceção para o
Herói do Missionary Ridge.
Kit estava vacilante, de pé na soleira da sala do terceiro andar que lhe
tinham atribuído e estudava as cinco garotas que usavam idênticos vestidos
azul marinho, com os pescoços e os punhos brancos. Estavam apinhadas ao
redor da única janela da sala olhando para a rua. Não lhe levou muito tempo
compreender a quem olhavam tão atentamente.
— Oh, Elsbeth, não é o homem mais bonito que já viu?
A garota chamada Elsbeth suspirou. Tinha uns cachos castanhos e um rosto
fresco e bonito.
— Imagine. Esteve aqui mesmo, na Academia, e não nos é permitido descer
para vê-lo. É tão injusto! — e então disse com uma risadinha sufocada —:
Meu pai diz que não é realmente um cavalheiro.
Mais risadinhas sufocadas.
Uma garota formosa, de cabelo loiro que recordou a Kit a Dora Van Ness,
falou.
— Madame Riccardi, a cantora de ópera, ficou muito mal quando lhe
disseram que se mudará à Carolina do Sul. Todo mundo fala disso. Ela é sua
amante, já sabe.
— Lilith Shelton! — As garotas estavam delirantemente horrorizadas e
Lilith olhou-as desdenhosamente.
— Todas somos muito inocentes. Um homem tão sofisticado como Baron
Cain tem dúzias de amantes.
— Lembre-se o que decidimos — disse outra garota —. Embora ela seja
sua parente, é uma Sulista de modo que todas devemos odiá-la.
Kit já tinha escutado suficiente.
— Se isso significar que me liberarei de falar com vocês, cadelas idiotas,
parece-me estupendo.
As garotas se viraram de uma vez e respiraram com dificuldade. Kit sentiu
seus olhos percorrerem seu feio vestido e o horrível chapéu. Um artigo a mais
para acrescentar ao livro gordo de ódio que estava escrevendo contra Cain.
— Saiam todas daqui! Todas vocês. E se as ver alguma outra vez por aqui,
vou dar um chute em suas fracas bundas e as vou mandar direto ao inferno!
As garotas fugiram espavoridas da sala com chiados horrorizados. Todas
menos uma. A garota que chamavam Elsbeth. Parecia sobressaltada e aterrada,
com os olhos abertos como pratos e os bonitos lábios tremendo.
— É surda ou algo assim? Hei dito que vá.
— Eu... eu não posso.
— Por que demônios não?
— Eu... eu vivo aqui.
— Oh — pela primeira vez, Kit observou que o quarto tinha duas camas.
A garota era de aparência doce, uma dessas pessoas propensas a ser boas,
de natureza amável, e Kit não sentia necessidade de ser grosseira com ela. Por
outra parte ela era a inimiga.
— Terá que se mudar.
— A senhora... a senhora Templeton não me permite isso. Eu... eu já
perguntei.
Kit amaldiçoou, subiu as saias, e se afundou na cama.
— Como é que é tão afortunada de ser minha companheira?
— Meu... meu pai. É o advogado do senhor Cain. Eu sou Elisabeth
Woodward.
— Diria que é um prazer conhecê-la, mas as duas saberíamos que estou
mentindo.
— Eu... é melhor sair.
— Sim, vai.
Elsbeth saiu depressa do quarto. Kit se recostou no travesseiro, pensando
como ia sobreviver ali os próximos três anos.
***
Cain olhou a Vândalo, seu novo cavalo enquanto o levava àos estábulos.
Era um bom cavalo, mas Magnus ficou possuído pelos demônios por havê-
lo trocado por Apolo. Diferente de Magnus, Cain não se deixava agarrar pelo
apego por um cavalo. Desde menino aprendeu a não ter apego a nada.
Enquanto caminhava do estábulo à casa, encontrou-se pensando em tudo o
que tinha obtido nestes três anos. Apesar dos problemas que lhe causava viver
rodeado de gente que lhe ignorava, nunca tinha se arrependido de vender sua
casa em Nova Iorque e mudar-se para Risen Glory. Tinha um pouco de
experiência com o algodão de sua época no Texas antes da guerra, e Magnus
tinha vindo ao mundo em uma plantação. Com a ajuda de um bom fornecimento
de folhetos agrícolas, os dois tinham conseguido produzir uma melhor colheita
que a do ano passado.
Cain não fingiu reconhecer uma profunda afinidade por esta terra, não
ficava sentimental como com os animais, mas adorava o desafio de restaurar
Risen Glory. Construir o novo moinho no canto nordeste da plantação era o
que mais o orgulhava.
Tinha gasto tudo o que tinha para construir o moinho. Portanto, estava na
mesma situação de quando era mais jovem, mas sempre gostou de assumir
riscos. E nesse momento, estava contente.
Não tinha dado mais que um passo pela porta dianteira quando Lucy, a
criada que Sophronia tinha contratado recentemente, chegou correndo.
— Não foi minha culpa, Major. A senhorita Sophronia não me disse que
esperava visita, quando partiu para ver a curandeira. Esta dama chegou
perguntando por você e disse muito calmamente que o esperaria no salão.
— Está ainda ali?
— Sim. E isso não é tudo. Ela trouxe…
— Maldição!
Tinha recebido a semana passada uma carta lhe anunciando que um membro
da Sociedade Protetora de Viúvas e Órfãos da Confederação chegariam a sua
porta para uma contribuição. Os respeitáveis cidadãos do lugar o ignoravam a
menos que precisassem de dinheiro; então alguma matrona acudia e lhe olhava
com os lábios franzidos e olhos nervosos enquanto tratava de lhe esvaziar os
bolsos. Tinha começado a suspeitar que todos esses assuntos da caridade eram
em realidade uma desculpa para dar uma boa olhada no interior da guarida do
perverso Heroi do Missionary Ridge. Divertia-lhe contemplar essas mesmas
mulheres, desalentar os olhares coquetes que lhe dirigiam suas próprias filhas
quando estava de visita na cidade, mas ele só se relacionava e de forma pouco
frequente com as mulheres mais peritas de Charleston. Dirigiu-se pelo
corredor para o salão. Não lhe preocupava se apresentar com as calças
marrons e camisa branca, sua roupa de trabalho. Seria condenado antes de se
trocar para receber a visita dessas mulheres. Mas o que viu quando entrou na
sala não era o que tinha esperado...
A mulher estava de pé olhando pela janela. Apesar de vê-la só de costas,
viu que estava bem vestida, incomum para as mulheres da comunidade. Sua
saia ondulou quando se virou.
Ele conteve o fôlego.
Era deliciosa. Usava um talhado vestido cor cinza pomba com cós em rosa,
e uma catarata de seda cinza pálido caía de seu pescoço sobre os belos seios
altos e redondos. Tinha um pequeno chapéu do mesmo tom de rosa que o
vestido, colocado sobre seu cabelo negro como o carvão. A ponta da pluma
cinza caía graciosamente sobre sua testa.
O resto dos traços da mulher estavam cobertos por um véu negro leve como
uma teia de aranha. Umas gotas de orvalho brilhantes e diminutas se aderiam a
seu tecido de ninho de abelha, e deixava visível debaixo só uma úmida boca.
Isso e um par de pequenos e brilhantes brincos.
Não a conhecia. Teria se lembrado de tal criatura. Devia ser uma das filhas
de pessoas respeitáveis da comunidade que tinham se mantido afastadas dele.
Ela permaneceu silenciosamente confiada sob seu aberto escrutínio.
Que calamidade teria ocorrido para que enviassem esta preciosidade em
lugar da sua mãe à toca do infame ianque?
Seu olhar caiu nessa boca madura que se via debaixo do véu.
Bonita e sedutora. Seus pais teriam feito melhor em mantê-la trancada com
segurança.
Enquanto Cain estava estudando-a tão atentamente, Kit estava fazendo sua
própria leitura por trás de seu véu de teia de abelha. Tinham passado três
anos. Agora era mais velha, e o estudou com olhos mais amadurecidos. O que
viu não a tranquilizou. Era mais incrivelmente bonito do que lembrava. O sol
tinha bronzeado as linhas de seu rosto e tinha clareado seu cabelo, loiro
leonino. O cabelo mais escuro em suas têmporas dava a seu rosto aparência
forte determinada de um homem que pertencia ao ar livre.
Ainda estava vestido com a roupa de trabalho e a visão desse corpo
musculoso a inquietava. Estava com as mangas da camisa branca enroladas,
revelando uns antebraços bronzeados de tendões duros. As calças marrons se
aderiam a seus quadris e abraçavam os potentes músculos de suas coxas.
A espaçosa sala em que os dois estavam de pé, parecia ter encolhido.
Inclusive sem mover-se, ele emanava uma aura de perigo e poder. De algum
jeito parecia ter se esquecido disso. Que curioso mecanismo de auto amparo
tinha feito para que o colocasse no mesmo nível que os outros homens? Era um
engano que não cometeria outra vez.
Cain era consciente de seu escrutínio. Ela parecia não ter nenhuma intenção
de ser a primeira em falar, e sua serenidade indicava um grau de autoconfiança
que o interessou. Curioso para provar seus limites, rompeu o silêncio com
deliberada brutalidade.
— Você queria me ver?
Ela sentiu um golpe de satisfação. Não a tinha reconhecido. O véu do
chapéu lhe tinha dado esta pequena vantagem. O engano não duraria muito,
mas enquanto isso, teria tempo para medir seu adversário com olhos mais
sábios que os de uma imatura garota de dezoito anos que sabia muito de umas
coisas e de outras nada.
— Esta sala é muito formosa — disse ela descaradamente.
— Tenho uma ama de chaves excelente.
— Você é muito sortudo.
— Sim, eu sou — ele caminhou pela sala, movendo-se de um modo fácil,
demonstrando suas muitas horas a cavalo. — Normalmente é ela que recebe as
visitas como a sua, mas chegou algum tipo de mensagem.
Kit se perguntou a quem se referiria e quem pensava que era ela.
— Foi ver a curandeira.
— A curandeira?
— Joga as cartas e lê o futuro — depois de três anos em Risen Glory, ele
nem sequer conhecia isso. Nada poderia ter deixado mais claro que ele não
pertencia ali.
— Está doente e Sophronia foi a vê-la.
— Você conhece Sophronia?
— Sim.
— De modo que vive perto?
Ela negou com a cabeça, mas não se explicou. Ele indicou uma cadeira.
— Não deu a Lucy seu nome.
— Lucy? Quer dizer à criada?
— Já vejo que há algo que você não sabe.
Ela ignorou a cadeira que ele indicou e andou ate a chaminé, lhe dando
prudentemente as costas. Ele observou que se deslocava com um passo mais
atrevido que a maioria das mulheres. Tampouco tentava ficar em uma postura
para destacar seu vestido. Era como se a roupa fosse algo que se colocava
pela manhã, e uma vez feito, se esqueceria.
Decidiu pressioná-la.
— Seu nome?
— É importante? — sua voz era baixa, rouca e claramente sulina.
— Talvez.
— Pergunto-me por quê.
Cain se sentia cativado tanto por sua maneira provocadora de evitar
responder a sua pergunta como pelo débil aroma de jasmin que chegava dela e
nublava seus sentidos. Desejava que se virasse de novo para poder dar uma
boa olhada a essas encantadoras feições que só podia vislumbrar atrás do véu.
— Uma dama misteriosa, — zombou suavemente. — Na guarida do inimigo
sem uma mãe ciumenta para servir como acompanhante. Não é absolutamente
certo.
— Eu não me comporto sempre corretamente.
Cain sorriu.
— Tampouco eu.
Seu olhar fixo foi do sedoso cabelo negro enrolado sob o tolo chapeuzinho
que descansava sobre a nuca. Como seria solto e caindo sobre esses ombros
brancos nus? A sacudida de excitação lhe indicava que estava muito tempo
sem uma mulher. Embora inclusive se houvesse tido uma dúzia a noite anterior,
sabia que esta mulher lhe excitaria da mesma maneira.
— Devo esperar que um marido ciumento chame a minha porta procurando
a sua caprichosa esposa?
— Não tenho marido.
— Não? — de repente quis provar os limites dessa autoconfiança.
— Por isso você veio? Baixou tanto o nível dos solteiros elegíveis do
condado que as damas sulinas bem educadas têm que explorar a guarida do
ianque?
Ela deu a volta. Através de seu véu ele só pôde ver uns brilhantes olhos e
um pequeno nariz flamejando com delicadeza.
— Asseguro-lhe, Major Cain que não estou aqui para explorar em busca de
um marido. Você tem uma opinião muito elevada de si mesmo.
— Eu? — ele se moveu mais perto. Suas pernas acariciaram sua saia.
Kit quis se retirar, mas se obrigou a permanecer quieta. Ele era um
predador e como todos os predadores, se alimentava da debilidade de suas
vítimas. Ainda a menor retirada seria uma vitória para ele, e não lhe mostraria
nenhuma debilidade. Ao mesmo tempo, sua proximidade fazia com que se
sentisse um pouco enjoada. A sensação deveria ter sido desagradável, mas não
o era.
— Me diga, dama misteriosa. O que faz uma jovem respeitável visitando
um homem sozinha? — Sua voz era profunda e brincalhona e seus olhos cinzas
brilhavam com a luz tênue com uma travessura que fez com que seu sangue
corresse mais depressa. — Ou é possível que a jovem e respeitável dama não
seja tão respeitável como parece?
Kit levantou o queixo e olhou nos olhos.
— Não julgue os outros por seus próprios padrões.
Ela não sabia que seu desafio não expresso só conseguia excitá-lo mais
ainda. Eram azuis os olhos detrás desse véu de teia de aranha ou eram mais
escuros, mais exóticos? Tudo sobre esta mulher o intrigava. Ela não era
nenhuma coquete com sorriso afetado, nenhuma orquídea de estufa. Lembrava
uma rosa selvagem, crescendo rebelde no mais profundo do bosque, uma rosa
com espinhos preparados para espetar a qualquer homem que a tocasse.
A parte selvagem dele reconhecia a mesma qualidade nela. Como seria
retirar esses espinhos e arrancar essa rosa das profundidades do bosque?
Muito antes que ele se movesse, Kit entendeu que algo estava a ponto de
ocorrer. Ela queria escapar, mas suas pernas não respondiam. Enquanto olhava
esse belo rosto, tratou de recordar que era seu inimigo. Controlava tudo o que
ela mais queria: sua casa, seu futuro, sua própria liberdade. Mas ela tinha sido
sempre uma criatura de instinto, e seu sangue tinha começado a rugir tão forte
em sua cabeça que nublava sua razão.
Devagar, Cain levantou sua mão cheia de cicatrizes e a cavou em sua nuca.
Seu toque era extremamente suave e irritante de maneira emocionante,
excitante. Ela sabia que devia se retirar, mas suas pernas, como sua vontade,
se recusavam a obedecer.
Ele levantou o polegar e o deslizou para cima ao longo da curva de sua
mandíbula e sob a borda do véu. Colocou atrás do lóbulo de sua orelha.
Acariciou o sedoso oco, enviando um tremor por todo seu corpo.
Acariciou seus cachos delicadas e as orelhas e os brincos pequenos. Sua
respiração tranquila ondulou a borda inferior de seu véu. Tratou de se afastar,
mas estava paralisada. Então ele baixou seus lábios.
Seu beijo foi amável e persuasivo, absolutamente como o úmido assalto do
amigo de Hamilton Woodward. Suas mãos se levantaram por vontade própria
e lhe tocaram. A sensação de sua carne quente através de sua fina camisa fez
parte do beijo. E se perdeu em um mar de sensações.
Seus lábios se abriram e começaram a se mover sobre os dela, fechados.
Ele curvou a mão ao longo da delicada linha de sua coluna dorsal até a parte
mais estreita de suas costas. O pequeno espaço entre seus corpos desapareceu.
Ele era o chefe quando seu peito pressionou seus seios e os quadris se
encontraram com seu estômago plano. A ponta úmida de sua língua começou
um jogo diabólico, deslizando-se tranquila entre seus lábios.
Essa espantosa intimidade a inflamou. Uma selvagem e quente sensação de
calor se espalhou por todo seu corpo.
E do dele.
Perderam suas identidades. Para Kit, Cain já não tinha um nome. Ele era o
típico homem, feroz e exigente. E para Cain, a misteriosa criatura em seus
braços era tudo o que uma mulher deveria ser... mas nunca era.
Ele ficou impaciente. Sua língua decidida começou a investigar mais
profundamente, para ultrapassar a barreira de seus dentes e ter acesso ao doce
interior de sua boca.
Desacostumada à agressão, levou um tempo para a mente febril de Kit
raciocinar. Algo não estava correto...
Ele acariciou o lado de seu peito, e a realidade voltou fria, condenatória.
Ela fez um som abafado e se virou para trás.
Cain estava mais irritado do que queria admitir. Tinha encontrado os
espinhos da rosa selvagem muito depressa.
Ela estava de pé diante dele, os seios subindo, as mãos colocadas em
punhos. Com uma pessimista certeza de que o resto de seu rosto nunca poderia
cumprir com a promessa de sua boca, estendeu a mão e subiu o véu por cima
do chapéu.
O reconhecimento não chegou imediatamente. Possivelmente porque ele se
fixou em seus traços separados em vez de no conjunto todo. Viu a testa suave,
inteligente, as grosas pestanas curvadas, as sobrancelhas escuras, os olhos de
um incrível violeta, o queixo decidido. Tudo isso junto com essa boca rosa
selvagem da qual ele tinha bebido tão profundamente, falavam de uma intensa
beleza, pouco convencional.
Então ele sentiu uma preocupação, uma sensação persistente de
familiaridade, uma pitada de algo desagradável à espreita do outro lado de sua
memória. Ele olhou as pequenas narinas, como as asas de um beija-flor. Ela
apertou sua mandíbula e levantou o queixo.
Nesse momento a reconheceu.
Kit viu suas íris cinzas converter-se em negras, mas ela também estava
emocionada pelo que tinha acontecido entre eles, por lhe deixar chegar tão
longe.
O que lhe tinha acontecido? Este homem era seu inimigo mortal. Como
pôde esquecê-lo? Sentiu-se doente, zangada e mais confusa do que tinha
estado em sua vida.
Chegou um ruído do vestíbulo... uma série de passos rápidos, como se, se
estivesse derramando um saco de milho seco no chão de madeira. Uma bola de
pele branca e negra entrou lançada à sala, patinando ao parar em seco. Merlín!
O cão moveu a cabeça, estudando-a, mas não levou tanto tempo como Cain,
para descobrir sua identidade. Com três latidos de reconhecimento, lançou-se
depressa a receber a sua velha amiga.
Kit ficou de joelhos. Ignorando o dano que suas poeirentas patas estavam
infligindo a seu vestido de viagem cor cinza pomba, abraçou-lhe e colocou a
cara em sua pelagem. Seu chapéu caiu no tapete, afrouxando o organizado
cabelo, mas não se importou.
A voz de Cain se intrometeu em seu abraço como um vento polar sobre uma
geleira.
— Vejo que a escola não melhorou suas maneiras. Ainda é a pequena
mucosa teimosa que foi faz três anos.
Kit procurou seus olhos e disse a única coisa que lhe veio à mente.
— Está zangado porque o cão foi mais esperto que você.
8
Não muito tempo depois de que Cain saísse do salão, Kit escutou uma voz
familiar.
— Lucy, permitiste a esse cão entrar na casa de novo?
— Entrou sem que eu soubesse, senhorita Sophronia.
— Bem, pois vou jogá-lo!
Kit sorriu quando ouviu aproximar uns passos rápidos e enérgicos.
— Não deixarei que te jogue, — sussurrou Kit abraçando Merlín.
Sophronia entrou na sala, e se deteve de repente.
— Oh, sinto. Lucy não me disse que temos visita.
Kit a olhou e lhe sorriu travessa.
— Kit! — Sophronia levou a mão à boca —. Deus meu! Realmente é você?
Com uma risadinha, Kit ficou de pé e correu depressa para ela.
— Claro que sou eu.
As mulheres se abraçaram enquanto Merlín as rodeava em círculos
ladrando ao redor de suas saias.
— É tão bom ver você. Oh, Sophronia, é inclusive mais bela do que
recordava.
— Eu! Olhe para você. Parece uma imagem saída do Livro da Senhora
Godey.
— Tudo é mérito da Elsbeth — Kit riu outra vez e agarrou a mão de
Sophronia. Sentaram-se no sofá e trataram de ficar em dia com as notícias
depois de três anos de separação.
Kit sabia que era culpa dela que a correspondência entre elas tivesse sido
pouco frequente. Sophronia não gostava de escrever cartas, e as poucas que a
tinha enviado estavam cheias de elogios ao que Cain estava fazendo em Risen
Glory, por isso as respostas de Kit tinham sido mordazes. Sophronia
finalmente tinha deixado de escrever.
Kit recordou sua anterior agitação por todas as melhoras que Sophronia
fazia na casa. Agora lhe parecia tolo, e a elogiou por todo o trabalho que tinha
realizado.
Sophronia assimilou as palavras de Kit. Sabia que a velha casa brilhava
sob seu cuidado, e estava orgulhosa do que tinha obtido. Ao mesmo tempo
começou a sentir a familiar combinação de amor e ressentimento que
povoavam suas relações com Kit.
Durante muito tempo Sophronia tinha sido a única pessoa que cuidava de
Kit.
Agora Kit era uma dama com amizades e experiências que Sophronia não
podia compartilhar. Também era formosa, serena e pertencia a um mundo no
qual Sophronia nunca entraria.
As velhas feridas começaram a abrir-se.
— Não creia que porque retornou pode colocar o nariz em meus assuntos e
me dizer como cuidar da casa.
Kit sorriu entredentes.
— Não se preocupe com isso. Tudo o que me preocupa é a terra. Os
campos. Não posso esperar para ver tudo.
O ressentimento de Sophronia se evaporou e a preocupação tomou seu
lugar. Ter o Major e Kit sob o mesmo teto era convidar problemas.
***
Cain passou todo o jantar com o cenho franzido, e o apetite habitual de Kit
sumiu. Não só pela conversa que se aproximava, nem pela lembrança do beijo,
mas sim porque sabia que tinha sido ela quem tinha plantado a semente da
última loucura de Miss Dolly. Miss Dolly, entretanto, não tinha nenhuma
dificuldade em encher o tenso silêncio. Conversou sobre estofados,
parentescos longínquos e as qualidades medicinais da camomila, até que a
cara de Cain tomou o aspecto de uma nuvem de tempestade. Na sobremesa,
irritou-se quando ela sugeriu uma informal sessão de poesia no salão.
— Perdoe. Senhorita Calhoun — seu olhar voou para ela através da mesa
—. Katharine Louise trouxe alguns envios secretos de Nova Iorque. Sinto
muito, mas tenho que falar com ela em praticular.
Uma sobrancelha leonina arqueou para cima.
— E imediatamente!
— Mas, certamente, querido General — disse Miss Dolly —. Não precisa
dizer outra palavra. Podem partir. Eu ficarei aqui sentada saboreando este
delicioso bolo de gengibre. Porque eu não tenho...
— Você é uma verdadeira patriota, senhora — se levantou de sua cadeira e
gesticulou para a porta. — À biblioteca, Katharine Louise.
— Eu... uh...
— Agora.
— Se apresse querida. O General é um homem ocupado.
— E a ponto de ficar mais ocupado — disse ele com intenção.
Kit se levantou e passou rapidamente a seu lado. Estupendo. Era hora do
confronto.
A biblioteca de Risen Glory estava quase igual como Kit a recordava.
As confortáveis cadeiras com assentos fundos de couro estavam colocadas
em ângulo ante a velha escrivaninha de mogno. As grandes janelas mantinham
a estância alegre e ensolarada, apesar dos sombrios livros de couro que
povoavam as estantes.
Sempre tinha sido seu local preferido de Risen Glory e a incomodou ver o
objeto estranho em cima do escritório, além do revólver Colt do exército que
repousava em uma caixa de madeira vermelha a seu lado. Mas o que mais a
incomodou foi o retrato de Abraham Lincoln que estava pendurado em cima do
suporte da chaminé, em lugar “d’a decapitação de San Juan Baptista”. Uma
pintura que tinha estado ali desde que podia lembrar.
Cain se sentou se apoiando no encosto da cadeira atrás da mesa do
escritório, apoiou os pés sobre a superfície de mogno, e cruzou os tornozelos.
Sua postura era deliberadamente insolente, mas não o deixou ver que isso a
incomodava. Antes, essa tarde quando estava de véu, tinha-a tratado como uma
mulher. Agora pretendia tratá-la como a seu menino de estábulo. Logo
descobriria que os três anos não tinham passado em vão.
— Lhe ordenei que permanecesse em Nova Iorque — disse ele.
— Sim o fez — ela fingiu estudar o escritório. — Esse retrato do senhor
Lincoln está desconjurado em Risen Glory. Insulta a memória de meu pai.
— Pelo que tenho ouvido, seu pai insultou sua própria memória.
— Isso é certo. Mas de todos os modos era meu pai e morreu
corajosamente.
— Não há nada valente na morte — os traços angulares de seu rosto se
endureceram na débil luz da habitação — Por que desobedeceu minhas ordens
e abandonou Nova Iorque?
— Porque suas ordens não eram razoáveis.
— Não tenho que te dar explicações.
— Isso é o que você pensa. Já cumpri nosso trato.
— O que você fez? Nosso trato era até que você se comportasse
corretamente.
— Completei os três anos na Academia.
— Não são suas atividades na Academia o que me preocupam — disse sem
baixar os pés da mesa, inclinou-se para frente e extraiu uma carta de uma
gaveta. A estendeu por cima da mesa. — Uma leitura interessante embora não
para pessoas facilmente influenciáveis.
Ela a agarrou. Seu coração deu um salto quando viu a assinatura. Hamilton
Woodward.
Ela amassou a carta e a jogou por cima da mesa do escritório. Não tinha
nem ideia do que era isso da ninfomania, mas soava horrível.
— Essa carta é uma fileira de mentiras. Não pode acreditar.
— Estava reservando minha opinião, até que tivesse possibilidade de
viajar a Nova Iorque, no final do verão e falar com você pessoalmente. Por
isso te ordenei que ficasse lá.
— Tínhamos um acordo. Não pode voltar atrás só porque Hamilton
Woodward é um tonto.
— O é?
— Sim — sentiu o rubor lhe queimar as bochechas.
— Está me dizendo que não tem o costume de oferecer seus favores?
— É obvio que não.
Seus olhos baixaram a sua boca e sem dúvida estava recordando o que
tinha ocorrido entre eles só umas horas antes.
— Se esta carta for mentira — disse ele em tom baixo — Como explica que
tenha se jogado em meus braços tão facilmente esta tarde? É essa sua ideia de
um comportamento correto?
Ela não sabia explicar algo que nem ela mesma entendia, de modo que se
lançou ao ataque.
— Possivelmente é você quem deveria explicar-se. Sempre ataca às jovens
damas que vêm a esta casa?
— Atacar?
— Se considere sortudo que estava exausta da viagem — disse ela tão
arrogante como pôde —. Senão, meu punho teria terminado em sua barriga.
Exatamente igual ao amigo do senhor Woodward.
Ele baixou os pés no tapete.
— Estou vendo — podia ver que não lhe acreditava —. É interessante que
se preocupe tanto com meu comportamento, e entretanto o seu fica impune.
— Não é o mesmo. Você é uma mulher.
— Ah, já sei. E que diferença há?
Ele parecia incômodo.
— Sabe exatamente o que quero dizer.
— Não sei o que quer dizer.
— Digo que vai voltar a Nova Iorque!
— E eu digo que não!
— Não depende do que você diga.
Isso era mais pura verdade do que ela podia suportar, e pensou
rapidamente.
— Quer se livrar de mim rápido, e pôr fim a esta ridícula tutela?
— Mais do que possa imaginar.
— Então me deixe ficar em Risen Glory.
— Perdão, mas não captei a relação.
Ela tratou de falar de forma tranquila.
— Há vários cavalheiros que desejam se casar comigo. Só preciso de umas
poucas semanas para me decidir.
Seu rosto se escureceu.
— Pode se decidir já.
— Como? foram três anos confusos e esta é a decisão mais importante de
minha vida. Devo pensar com cuidado, e preciso ter a minha gente a meu
redor. Senão, não acredito que possa me decidir, e nenhum dos dois quer isso
— a explicação era simples, mas pôs toda a sinceridade nela.
Ele franziu mais o cenho e caminhou até a chaminé.
— Para mim é impossível te imaginar como uma esposa leal.
Ela tampouco podia se imaginar, mas de todos os modos seu comentário a
ofendeu.
— Não sei por que não — recordou a imagem de Lilith Shelton afirmando
sua opinião sobre os homens e o matrimônio. — O matrimônio é o que as
mulheres procuram, não? — Revirou os olhos da mesma maneira que tinha
visto sua antiga companheira de classe fazer tantas vezes. — Um marido para
cuidar de você, comprar bonitos vestidos, e jóias para seu aniversário. Que
mais uma mulher poderia desejar na vida?
Os olhos de Cain se tornaram frios.
— Três anos atrás quando era meu cavalariço, era um incômodo, mas era
forte e valente. Essa Kit Weston não teria se vendido por jóias e vestidos.
— Seu tutor não tinha obrigado a Kit Weston a participar de uma Academia
dedicada a transformá-la em uma esposa.
Ela tinha feito sua observação. Ele reagiu com um encolher de ombros e se
apoiou no suporte.
— Tudo isso é passado.
— Esse passado me moldou no que sou agora — respirou profundamente
—. Decidi me casar, mas não quero me equivocar na escolha. Preciso de
tempo, e eu gostaria de passá-lo aqui.
Ele a observou.
— Esses homens jovens... — sua voz foi baixando até converter-se em um
sussurro perturbador —. Você os beijou como me beijou?
Ela precisou de toda sua determinação para não afastar os olhos.
— Estava cansada da viagem. E eles são muito cavalheiros para me
pressionar do modo que você o fez.
— Então são uns tontos.
Ela se perguntou o que quereria dizer com isso. Ele se afastou da lareira.
— Muito bem. Te dou um mês, mas se nesse tempo não se decidir, voltará a
Nova Iorque, com marido ou sem. E outra — ele assinalou do vestíbulo com a
cabeça —. Essa mulher louca tem que ir. Deixa-a que descanse um dia, e a
leva à ferrovia. Eu me encarrego de compensá-la.
— Não! Não posso.
— Sim, sim pode.
— Prometi.
— Esse é seu problema.
Ele parecia tão inflexível. O que poderia dizer para lhe convencer?
— Não posso ficar aqui sem uma dama de companhia.
— É um pouco tarde para se preocupar com sua reputação.
— Possivelmente para você, mas não para mim.
— Não acredito que seja uma dama de companhia correta. Logo que ela
comece a falar com os vizinhos, compreenderão que está mais louca que uma
cabra.
Kit saiu ardentemente em sua defesa.
— Ela não está louca!
— Pois me enganou completamente.
— Ela é só um pouco... diferente.
— Mais que um pouco — Cain a olhou desconfiadamente. — Por que tem
essa idéia que sou o General Lee?
— Eu... poderia ter mencionado algo por engano.
— Você lhe disse que eu era o General Lee?
— Não, claro que não. Ela tinha medo de te conhecer, e eu simplesmente
estava tratando de lhe levantar o ânimo. Nunca pensei que levasse a sério —
Kit lhe explicou o que tinha acontecido quando foi ào quarto de Miss Dolly.
— E agora espera que eu participe desta charada?
— Não terá que fazer muito — assinalou Kit razoavelmente —. Ela faz a
maior parte da conversa.
— Isso não é suficiente.
— Deverá sê-lo — odiava lhe suplicar, e as palavras quase se agarravam
em sua garganta —. Por favor. Não tem nenhum lugar onde ir.
— Maldição, Kit! Não a quero aqui.
— Tampouco me quer, e entretanto vai permitir que fique. Que diferença faz
uma pessoa a mais?
— Uma grande diferença — sua expressão se voltou ardilosa —. Você me
pede muito, mas não está disposta a dar nada em troca.
— Exercitarei seus cavalos — disse ela rapidamente.
— Eu estava pensando em algo um pouco mais pessoal.
Ela engoliu em seco.
— Costurarei sua roupa.
— Foi mais imaginativa faz três anos. E certamente não era tão... experiente
como agora. Recorda a noite que me propôs ser minha amante?
Ela deslizou a ponta da língua sobre os ressecados lábios.
— Estava desesperada.
— Quão desesperada está agora?
— Esta conversa é inadequada — ela conseguiu responder em um tom tão
altivo como o de Elvira Templeton.
— Tão imprópria como o beijo desta tarde.
Ele se aproximou mais e sua voz foi se convertendo em um sussurro.
Durante um momento pensou que ia beijá-la outra vez. Ao invés disso seus
lábios fizeram uma careta zombadora.
— Miss Dolly pode ficar por agora. Pensarei mais a frente como poderá me
recompensar.
Enquanto ele deixava a sala, ela olhou com atenção a porta e tratou de
decidir se tinha saído ganhando ou perdendo.
Essa noite Cain ficou imóvel na escuridão, com o braço apoiado detrás da
cabeça e olhando atentamente o teto. Que tipo de jogo tinha estado jogando
com ela esta noite? Ou foi ela que tinha estado jogando com ele?
Seu beijo dessa tarde tinha deixado claro que ela não era uma inocente, mas
tampouco parecia tão vulgar como a carta do advogado fazia acreditar. Mas
não estava seguro. Por agora, simplesmente esperaria e a vigiaria.
Em sua mente viu uma boca como uma rosa, com os lábios como pétalas
suaves, e sentiu uma onda espessa e quente de desejo.
Uma coisa sim estava clara. A época em que a considerava uma menina
tinha ficado para a história.
9
Kit estava de pé. Colocou uma calça de montaria cor cáqui que teria
escandalizado a Elsbeth, e uma camisa masculina por cima da regata enfeitada
de babados. Não gostava das mangas largas, mas se não cobrisse os braços
logo ficariam marrons igual a um pão doce de manteiga, se exposto ao sol.
Consolou-se comprovando quão fina era a malha, como a de sua roupa
interior, de modo que não lhe provocaria muito calor.
Colocou as abas da camisa dentro da calça e abotoou a curta fileira de
cômodos botões da parte da frente. Enquanto fitava as botas, desfrutou do
suave tato do couro que se ajustava a seus pés e seus tornozelos. Eram as
melhores botas de montar que tinha tido, e estava impaciente para provar.
Fez-se uma trança longa que deixou cair pelas costas. Umas mechas lhe
frisavam nas têmporas, diante dos diminutos brincos de prata em suas orelhas.
Para se proteger do sol, tinha comprado um chapéu de feltro negro masculino,
com um fino cordão de couro para prender sob o queixo.
Quando terminou de se vestir, virou-se para estudar com o cenho franzido
sua imagem no espelho móvel de corpo inteiro. Apesar de suas roupas
masculinas, ninguém poderia confundi-la com um rapaz. O fino material da
camisa perfilava seus seios com mais precisão do que tinha previsto, e o fino
corte das calças de montar aderia femininamente a seus quadris.
Mas o que importava? Planejava usar essa roupa pouco ortodoxa só quando
cavalgasse por Risen Glory. Quando fosse a outro local, usaria seu novo traje
de montar, não importava quanto o detestasse. Gemeu quando pensou que teria
que montar igual a uma amazona, algo que só tinha feito em suas visitas
ocasionais ao Central Park. Como o odiava. Montar assim lhe roubava a
sensação de poder que ela adorava e, pelo contrário, lhe provocava uma
difícil sensação de desequilíbrio.
Saiu da casa silenciosamente, renunciando ao café da manhã e uma
conversa matutina com Sophronia. Sua velha amiga tinha ido vê-la na noite
anterior. Embora Sophronia escutasse educadamente as histórias que Kit lhe
tinha contado, ela pouco falou de sua própria vida. Quando Kit a pressionou
em busca de detalhes, disse-lhe que poderia perguntar alguma fofoca sobre ela
na vizinhança que não lhe diriam nada. Só quando Kit lhe perguntou por
Magnus Owen apareceu a antiga Sophronia, altiva e arrogante.
Sophronia sempre tinha sido um enigma para ela, agora mais ainda. Não
eram só as mudanças externas, seus bonitos vestidos e seu bom aspecto.
Parecia que sua presença incomodava a Sophronia. Possivelmente o
sentimento tinha estado sempre aí, mas Kit era muito jovem para notá-lo. O
que o fazia inclusive mais enigmática era que debaixo desse ressentimento, Kit
via a força antiga e familiar do amor de Sophronia.
Cheirou com delicadeza o ar, enquanto caminhava pelo pátio de trás da
casa. Cheirava exatamente como lembrava, a terra fértil e esterco fresco. Até
percebeu o débil aroma de mofeta, não totalmente desagradável a certa
distância. Merlín saiu para recebê-la. Acariciou-lhe atrás das orelhas e jogou
um pedaço de madeira para que ele fosse buscar.
Os cavalos ainda não estavam no pasto, de modo que se dirigiu às quadras,
um edifício novo erguido no lugar onde os ianques tinham destruído o anterior.
Os saltos de suas botas ecoavam no chão de pedra, tão limpos como quando
Kit se ocupava de fazê-lo.
Havia dez estábulos, quatro dos quais estavam atualmente ocupados, dois
com cavalos de tiro. Inspecionou os outros cavalos e descartou um
imediatamente, uma velha égua alazã que evidentemente era amável mas não
tinha brio. Seria boa para arreios ou um cavaleiro tímido, o que não era o caso
de Kit.
O outro cavalo entretanto a emocionou. Era um cavalo castrado negro como
a noite, com uma chama branca entre os olhos. Era grande e forte, esbelto, e
seus olhos a olhavam vivos e alertas.
Acariciou-lhe com a mão o pescoço comprido e elegante.
— Como te chama, menino? — o animal relinchou suavemente e moveu sua
potente cabeça.
Kit sorriu.
— Tenho a impressão de que vamos ser bons amigos.
A porta se abriu e se virou para ver entrar um menino de onze ou doze anos.
— É a senhorita Kit?
— Sim. E você quem é?
— Eu sou Samuel. O Major me disse que se a senhorita viesse aos
estábulos hoje, lhe dissese que ele quer que você monte a Lady.
Kit olhou desconfiadamente para a velha égua alazã.
— Lady?
— Sim, senhora.
— Sinto muito, Samuel — acariciou a juba sedosa do cavalo castrado. —
Selaremos este em seu lugar.
— Esse é Tentação, senhora. E o Major foi muito claro nisto. Disse que
deixe Tentação nos estábulos e monte a Lady. E também disse que se deixasse
que saisse dos estábulos com Tentação, me arrancará a pele em tiras, e você
terá que viver com isso sobre sua consciência.
Kit compreendeu a descarada manipulação de Cain. Duvidava que pudesse
levar a cabo essa ameaça de ferir Samuel, mas ainda tinha o escuro coração de
um ianque, e não podia ter certeza de tudo. Olhou ansiosa para Tentação.
Nunca um cavalo tinha tido um nome tão apropriado.
— Sela a Lady — suspirou Kit. — Falarei com o senhor Cain.
Como suspeitava, Lady estava mais interessada em pastar que em galopar.
Kit de imediato deixou que a égua passasse do trote e se dedicou a observar as
mudanças que se produziram ao seu redor.
Demoliu-se tudo salvo uns poucos barracos de escravos. Isso era parte da
antiga Risen Glory que não gostava de relembrar, e se alegrou de que tivessem
desaparecido. Os barracos que tinham deixado em pé tinham sido pintados e
restaurados. Cada um tinha seu próprio jardim, e as flores cresciam ao redor
da entrada. Viu uns meninos brincando na sombra das mesmas árvores que ela
tinha brincado, quando menina.
Quando chegou na beira do primeiro campo plantado, desmontou e se
agachou para inspecioná-lo. As plantas novas de algodão estavam cobertas
por botões apertados. Uma lagartixa deslizou perto de suas botas, e sorriu. As
lagartixas e os sapos, junto com os passarinhos selvagens se alimentavam das
larvas que podiam ser tão destrutivas para os novelos de algodão. Era muito
cedo para dizer, mas parecia que Cain teria uma boa colheita. Sentiu uma
mescla de orgulho e ira. Deveria ser sua colheita, não dele.
Enquanto se endireitava para olhar ao seu redor reconheceu também um
golpe de medo. Era muito mais próspero do que tinha imaginado. E se não
tivesse dinheiro suficiente em seu fundo fiduciário para comprar a plantação?
De algum modo precisava olhar os livros—caixa. Rechaçou a horrível
possibilidade que ele não estivesse disposto a vender.
Com grande rapidez chegou a Lady, que mordiscava uns trevos tenros, e
agarrou rapidamente a brida que não se incomodou em segurar. Subiu a um
toco para montar na cadeira e se dirigiu até o lago onde havia nadado tantos
verões felizes. Estava tal e como recordava, com suas águas cristalinas, sua
terra limpa e o velho salgueiro. Prometeu voltar para tomar um banho quando
tivesse certeza que não seria incomodada.
Dirigiu-se para o pequeno cemitério onde sua mãe e seus avós estavam
enterrados e fez uma pausa diante da grade de ferro. Só faltava o corpo de seu
pai, enterrado em uma fossa comum no cemitério de Hardin County,
Tennessee, não longe da Igreja de Shiloh. Rosemary Weston estava no canto
mais afastado da grade.
Kit girou à égua bruscamente para o sudeste da propriedade, onde estava o
novo moinho têxtil do qual Brandon Parsell lhe tinha falado.
Quando chegou a uma clareira entre as árvores, viu uma égua castanha
amarrada a um lado e pensou que devia ser Vândalo, o cavalo do qual Samuel
lhe havia falado enquanto selava Lady. O cavalo castrado era também um
animal estupendo, mas não tinha comparação com Apolo. Recordou o que
Magnus disse uma vez sobre Cain.
O Major dá de presente seus cavalos e seus livros antes de poder estar
muito apegado a eles. É sua forma de ser.
Rodeou as árvores e ficou surpreendida ante a vista do moinho. O Sul tinha
sido sempre o primeiro fornecedor de algodão da Inglaterra, para ser
processado e tecido. Nos anos posteriores à guerra, tinham aparecido um
punhado de moinhos que recolhiam o algodão e o convertiam em fio. Em
seguida, podiam enviar à Inglaterra carretéis de algodão compactos para ser
tecidos, em lugar das volumosas balas de algodão virgem, proporcionando um
valor mil vezes superior pela mesma tonelagem. Era uma excelente ideia. Kit
só desejou que não tivesse chegado à Risen Glory.
Ontem à noite Kit tinha interrogado a Sophronia sobre o moinho de Cain e
se inteirou que não tinha teares para tecê-lo. Só o convertia em fio. Tomava o
algodão, limpava-o, carpia-o para convertê-lo em fibra, e logo o trançava em
carretéis de linho.
Era um edifício de tijolo retangular com uma altura de dois pisos e muitas
janelas. Um pouco menor que outros moinhos têxteis da Nova Inglaterra que
tinha visto na beira do Rio Merrimack, mas parecia enorme e ameaçador em
Risen Glory. Complicaria muito as coisas.
Chegavam-lhe as marteladas e as vozes dos trabalhadores. Três homens
trabalhavam no telhado, enquanto outro com as costas cheias de cicatrizes
subia pela escada colocada debaixo.
Todos estavam sem camisa. Quando um deles se endireitou, fixou-se nos
músculos que lhe esticavam as costas. Embora ainda estivesse longe, o
reconheceu. aproximou-se mais ao edifício e desmontou.
Um homem corpulento que estava empurrando um carrinho de mão a viu e
deu uma cotovelada ao que estava a seu lado. Os dois ficaram imóveis
olhando-a com atenção. Pouco a pouco, os sons dentro do moinho foram
diminuindo enquanto todos apareciam às janelas a olhar a jovem dama vestida
com roupa de menino.
Cain estava consciente do súbito silêncio e olhou para baixo de seu lugar
no telhado. A princípio viu somente o topo de um chapéu plano, mas não
precisava ver o rosto que havia debaixo para reconhecer seu visitante. Um
olhar ao magro corpo tão claramente feminino dentro dessa camisa branca e
essas calças de montar cáqui que moldavam umas estupendas pernas,
disseram-lhe tudo que precisava saber.
Se levantou e desceu as escadas. Quando chegou abaixo, virou-se para Kit,
a estudando. Deus, como era linda.
Kit notou suas bochechas se ruborizarem de vergonha. Deveria ter colocado
o irritante traje de montar que odiava. Em vez de repreendê-la, como tinha
imaginado, Caín parecia apreciar seu aspecto. Tremia-lhe o canto da boca.
— Pode pôr essas calças, mas é obvio que já não parece um menino de
estábulo.
Seu bom humor a chateou.
— Para.
— O que?
— De sorrir.
— Não me permite sorrir?
— Não de mim. É ridículo. Não sorri a ninguém. Nasceu com a cara
carrancuda.
— Tentarei lembrar isso — ele a agarrou pelo braço e se dirigiu com ela à
porta do moinho —. Vem. Te mostrarei.
Embora o edifício estivesse quase construído, o motor de vapor que
impulsionaria a maquinaria era a única equipe instalada. Cain lhe descreveu o
jogo de eixos e polias, mas ela não podia concentrar-se. Ele deveria ter
vestido a camisa.
Cain a apresentou a um homem ruivo de meia idade chamado Jacob Childs,
vindo de um moinho de Providence, na Nova Inglaterra. Pela primeira vez,
soube que Cain tinha feito várias viagens ao norte nos últimos anos para
visitar os moinhos têxteis. Se irritou que não tivesse tido um momento para ir
visitá-la na Academia, e o disse.
— Eu não pensei — disse ele.
— Você é um tutor horrível.
— Não vou discutir isso com você.
— A senhora Templeton poderia ter estado me maltratando, e você não
saberia.
— Não acredito. Você teria se defendido. Isso não me preocupava.
Ela viu seu orgulho pelo moinho, mas enquanto saíam, não pôde encontrar
palavras de elogio.
— Eu gostaria de falar de Tentação.
Cain parecia distraído. Ela olhou para baixo para ver o que ele olhava, e
compreendeu que suas curvas eram mais evidentes à luz do sol do que tinham
sido dentro do moinho. Isso porque a sombra delineava seu corpo como um
dedo acusatório até Lady que estava arrancando tranquilamente um botão de
ouro.
— Essa égua é quase tão velha como Miss Dolly. Quero montar Tentação.
Cain teve que se obrigar a olhar em seu rosto.
— Pode ser que Lady seja velha, mas é adequada para uma mulher.
— Montei em cavalos como Tentação desde que tinha oito anos.
— Sinto muito Kit, mas esse cavalo é difícil, inclusive para mim.
— Não estamos falando de você, — disse ela despreocupada. — Estamos
falando de alguém que sabe como montar.
Cain parecia mais divertido que zangado.
— Acredita nisso?
— Quer que o prove? Você montando a Vândalo e eu a Tentação. Saímos da
porta junto ao celeiro, rodeamos o lago dos Arces, e voltamos de novo aqui.
— Não vai conseguir me atormentar.
— Oh, não pretendo lhe atormentar — lhe dedicou um sedoso sorriso —.
Estou te desafiando.
— Você gosta de viver perigosamente, não, Katharine Louise?
— É a única maneira.
— De acordo. Vejamos o que pode fazer.
Tinha aceito a corrida. Aplaudiu mentalmente enquanto ele agarrava a
camisa e a colocava. Enquanto a fechava, dava ordens aos trabalhadores que
seguiam de pé, olhando-os embevecidos. Depois pegou um chapéu velho de
aspecto confortável e o pôs.
— Te Vejo nos estábulos — caminhou até a seu cavalo, montou e partiu sem
esperá-la.
Lady estava ansiosa por voltar para a aveia que a esperava, e fizeram o
caminho de volta um pouco mais rápido, mas de toda forma chegaram bem
depois de Cain. Tentação já estava selado, e Cain verificava a correia da
cilha. Kit desmontou e entregou a brida de Lady a Samuel. Assim que se
aproximou de Tentação lhe acariciou o focinho com a mão.
— Preparada? — disse Cain de repente.
— Preparada.
Ele a ajudou a subir e ela se balançou na cadeira. Quando Tentação sentiu
seu peso, começou a fazer cambalhotas esquivas, e necessitou toda sua
habilidade para mantê-lo sob controle. Quando o cavalo finalmente se
tranquilizou, Cain montou em Vândalo.
Enquanto caminhava pelo quintal, Kit se sentiu empolgada pela sensação de
poder debaixo dela, e mal podia resistir a sair em disparada. Deteve-se a
contragosto quando alcançou a porta do celeiro.
— O primeiro que chegar ao moinho, ganha — disse a Cain.
Ele usou o polegar para levantar a aba do chapéu.
— Não acredito que isso seja correto.
— O que quer dizer? — Kit precisava fazer o correto. Queria competir com
ele em algo que o tamanho e a força não lhe fosse vantagem. A cavalo, as
diferenças entre um homem e uma mulher desapareciam.
— Exatamente o que já disse.
— O Herói de Missionary Ridge está assustado por perder para uma
mulher na frente de seus homens?
Cain entrecerrou os olhos ligeiramente diante do sol da manhã.
— Não preciso provar nada, e você não vai me atormentar.
— Por que vieste então, a não ser para fazer uma corrida?
— Você estava blefando. Queria ver se falava a sério.
Ela colocou as mãos no pomo da cela e sorriu.
— Não estava blefando. Falava de fatos.
— Falar é fácil, Katharine Louise. Vejamos o que pode fazer com um
cavalo.
Antes de que ela pudesse lhe responder, ele se pôs a cavalgar. Observou
como punha a Vândalo em um fácil meio galope.
Montava muito bem para um homem tão grande, sensível, como se fosse
uma extensão do cavalo. Reconheceu que era tão bom cavaleiro como ela.
Outro argumento para apontar contra ele.
Ela se apoiou sobre o brilhante pescoço negro de Tentação.
— Bom, menino. Vamos mostrar o que podemos fazer.
Tentação era tudo o que esperava. A princípio, ficou ao lado de Vândalo e
o manteve ao meio galope, mas quando notou que o cavalo podia correr mais,
ficou claramente a frente. Viraram pelos campos plantados e entraram em um
prado aberto. Sua cavalgada se converteu em um feroz galope, e enquanto
sentia a força do animal debaixo dela, todo o resto desapareceu.
Não havia um ontem nem um manhã, nem um homem de olhos frios cinzas e
crueis, nenhum beijo inexplicável. Só havia um magnífico animal que era parte
dela.
Viu uma sebe mais a frente. Com uma pressão de seus joelhos, virou o
cavalo para ele. Quando chegaram mais perto, ela se inclinou mais para a
frente da cela, mantendo os joelhos fixos em seus flancos. Sentiu uma tremenda
onda de poder quando Tentação saltou facilmente a barreira.
A contragosto o levou a uma clareira e o girou. Por agora, já tinha feito
suficiente. Se pressionasse mais o cavalo, era possível que Cain a acusasse de
temerária, e não ia lhe dar uma desculpa para impedir que voltasse a montar
esse cavalo.
Ele a esperava no inicio do prado. Chegou junto dele e limpou o suor do
rosto com a manga da camisa.
A sela dele rangeu um pouco quando se moveu.
— Isso foi uma autêntica demonstração.
Ela permaneceu silenciosa, esperando seu veredicto.
— Montou dessa maneira desde que está em Nova Iorque? — perguntou
ele.
— Isso não chamaria montar.
Com um puxão nas rédeas, ele girou Vândalo para os estábulos.
— Amanhã, vai ter umas dores infernais.
Era isso tudo o que tinha a dizer? Olhou suas costas, apertou os calcanhares
contra os flancos de Tentação e o alcançou.
— E bem?
— E bem o que?
— Vai me deixar montar este cavalo, ou não?
— Não vejo por que não. Enquanto for essa amazona, poderá montá-lo.
Ela sorriu e resistiu ao impulso de virar Tentação de novo para o prado
para outro galope.
Chegou ao pátio antes que Cain desmontasse e deu a Samuel a brida.
— Te esmere em refrescá-lo — disse ao jovem —. E lhe ponha uma manta.
Cavalgou intensamente.
Cain chegou a tempo de ouvir suas ordens.
— Samuel é um menino de estábulo tão bom como você o foi — sorriu e
desmontou — Mas não está nem a metade de atraente que você nessas calças.
***
Durante dois anos e meio, Sophronia tinha estado castigando Magnus Owen
por se interpor entre ela e Baron Cain. A porta do quarto que ele usava como
escritório, balançou ao abrir-se.
— Me disseram que queria me ver — disse ele. — Aconteceu algo?
Os anos que tinha sido capataz dos trabalhos realizados em Risen Glory
tinham produzido mudanças nele. Os músculos que se delineavam por debaixo
de sua camisa bege e a calça marrom escuro parecia forte e resistente, e
provocava uma tensão nervosa do que carecia antes. Seu rosto ainda era
jovem, mas como sempre acontecia quando estava frente de Sophronia, uma
sutil linha de tensão marcava fortemente seus traços.
— Não aconteceu nada, Magnus — respondeu Sophronia, com aquele ar de
superioridade. — Só quero que você vá a cidade mais tarde e traga uns
suprimentos pra mim.
Ela não se levantou da poltrona enquanto lhe entregava a lista. Queria que
ele se aproximasse.
— Me fez vir dos campos para que seja seu menino de recados? — agitou a
lista —. por que não manda o Jim para isto?
— Não pensei nele — respondeu ela, perversamente contente de poder
incomodá-lo — Além disso, Jim está limpando as janelas.
Magnus apertou a mandíbula.
— E suponho que limpar as janelas é mais importante para você que colher
o algodão que sustenta esta plantação.
— Mas bem, tem uma elevada opinião de si mesmo, não é isso, Magnus
Owen? — levantou-se da cadeira. — Crê que esta plantação entrará em
colapso só porque o capataz está fora dos campos durante alguns minutos?
Uma pequena veia começou a pulsar em sua têmpora. Ele colocou a mão
calosa e áspera na cadeira.
— Precisa tomar um pouco de ar, mulher, pois está ficando desagradável.
Alguém vai ter que te apertar os parafusos ou vai se colocar em autênticos
problemas.
— E acredita que esse alguém vai ser você? — levantou o queixo e
começou a caminhar em direção ao corredor.
Magnus geralmente de natureza gentil e tranqüila, estendeu a mão e a
agarrou pelo braço. Ela deu um pequeno grito quando ele a puxou, e fechou a
porta de repente.
— Assim mesmo — ele falou arrastando as palavras, com aquela cadência
doce, de sons líquidos que o levavam à sua infância. — É obvio que estou
disposto a manter o bem-estar entre nós, os negros.
Seus dourados olhos faiscaram com ira por sua brincadeira, sentiu-se
aprisionada contra a porta por seu comprido corpo.
— Me deixa sair! — deu-lhe um empurrão no peito, mas embora os dois
fossem da mesma altura, ele era muito mais forte e era como tentar derrubar
um carvalho com um sopro de brisa.
— Magnus, me deixe sair!
Possivelmente ele não ouviu o tom de pânico em sua súplica, ou
possivelmente o tinha pressionado muito frequentemente. Em lugar de liberá-
la, colou seus ombros à porta. O calor de seu corpo lhe queimava através da
saia.
— A senhorita Sophronia pensa e atua como se fosse branca, acredita que
amanhã vai despertar e vai ser branca. Assim não terá que voltar a falar com
os negros outra vez, exceto para lhes dar ordens.
Ela virou a cabeça e fechou os olhos com força, tratando de isolar-se de
seu desprezo, mas Magnus não tinha acabado com ela. Sua voz se suavizou,
mas as palavras não feriam menos.
— Se a senhorita Sophronia fosse branca, não teria que se preocupar que
nenhum homem negro quisesse casar-se com ela e ter seus filhos. Nem teria
que se preocupar que um homem negro possa sentar-se a seu lado e agarrar a
sua mão quando se sentir sozinha, ou a abrace quando for velha. Não, a
senhorita Sophronia não deveria se preocupar com nada disso. Ela é muito
fina para tudo isso. Ela é muito branca para tudo isso!
— Já basta! — Sophronia tampou os ouvidos com as mãos tentando não
ouvir essas palavras cruéis.
Ele retrocedeu para liberá-la, mas ela não pôde se mover. Estava
congelada, com as costas rígidas e as mãos nos ouvidos. As lágrimas
incontroláveis desciam por suas bochechas.
Com um gemido surdo, Magnus agarrou esse corpo rígido em seus braços e
começou a acariciá-la e a cantarolar em seu ouvido.
— Vamos lá, vamos lá, garota. Está bem. Sinto muito que te fiz chorar. A
última coisa que eu quero é te machucar. Vamos, tudo estará bem.
Gradualmente a tensão foi abandonando seu corpo e durante um momento se
apoiou contra ele. Era tão sólido. Tão seguro.
Seguro? O pensamento era estúpido. Soltou-se e o enfrentou, orgulhosa,
apesar das lágrimas que não podia impedir de cair.
— Não tem nenhum direito de me falar assim. Não me conhece, Magnus
Owen. Só acredita que me conhece.
Mas Magnus tinha seu próprio orgulho.
— Sei que só tem sorrisos para qualquer homem branco que cruza em seu
caminho, mas não esbanja nenhum olhar nos homens negros.
— O que pode me oferecer um homem negro? — disse ela ferozmente —. O
homem negro não conseguiu nenhum poder. À minha mãe, minha avó, e às suas
mães antes delas... os homens negros as amaram. Mas quando o homem branco
batia na porta de noite, nenhum só desses homens negros puderam impedir que
as levassem. Nenhum desses homens negros pôde impedir que vendessem seus
filhos e os levassem para longe. A única coisa que podiam fazer era manter-se
à margem e olhar como amarravam a mulher que amavam ao poste e a
açoitavam até lhes deixar as costas ensanguentadas. Não me fale de homens
negros!
Magnus deu um passo para ela, mas quando ela se afastou, andou até a
janela em seu lugar.
— Tudo é diferente agora — disse suavemente —. A guerra acabou. Nunca
mais será presa. Somos livres. As coisas mudaram. Podemos votar.
— É um tonto, Magnus. Acredita que porque os brancos lhe disseram que
pode votar, as coisas serão diferentes? Isso não quer dizer nada.
— Sim quer dizer algo. Agora é uma cidadã americana, as leis deste país te
protegem.
— Protegem! — as costas de Sophronia se esticaram com desprezo. — Não
há nenhum amparo para uma mulher negra, só o que ela mesma consiga.
— Vendendo seu corpo ao primeiro homem branco rico que aparece? Essa
é sua maneira?
Ela se virou para ele, açoitando-o com sua língua.
— Me diga o que mais pode oferecer a uma mulher negra. Os homens
usaram nossos corpos durante séculos e o único que conseguimos em troca é
uma prole de filhos aos quais não podíamos proteger. Bem, eu quero mais que
isso, e vou conseguir, vou ter uma casa, vestidos e boa comida. Assim estarei
segura!
Ele se estremeceu.
— Não acredita que essa é outra classe de escravidão? Pensa conseguir sua
segurança dessa maneira?
Os olhos da Sophronia não duvidaram.
— Não seria escravidão se eu escolher o senhor e colocar as condições. E
sabe o que mais? Já teria conseguido se não tivesse sido por você.
— Cain não ia te dar o que queria.
— Está errado. Ele teria dado o que eu pedisse se você não o tivesse
batido.
Magnus pôs a mão sobre o respaldo do sofá de damasco rosa.
— Não há nenhum homem no mundo ao que respeite mais que a ele.
Salvou-me a vida, e faria qualquer coisa que me pedisse. É justo, honesto e
todos os que trabalham para ele sabem. Não pede a ninguém que faça o que
pode fazer ele mesmo. Os homens lhe admiram por isso, e eu também. Mas é
um homem duro com as mulheres, Sophronia. Nenhuma lhe chegou dentro.
— Ele me queria, Magnus. Se não nos tivesse interrompido essa noite,
teria-me dado o que lhe houvesse pedido.
Magnus se aproximou dela e tocou seu ombro. Ela retrocedeu
instintivamente embora seu tato fosse estranhamente consolador.
— E o que teria acontecido?— Perguntou Magnus — Teria podido
esconder esse calafrio que percorre seu corpo, cada vez que um homem te toca
o braço? Embora ele seja rico e branco, teria podido esquecer que também é
um homem?
Isso golpeava diretamente em seus pesadelos. Deu a volta e às cegas se
dirigiu até o escritório. Quando estava segura que sua voz não a delataria e
colocando sua expressão mais fria o olhou.
— Tenho trabalho para fazer. Se não puder me trazer estes mantimentos,
enviarei o Jim em seu lugar.
Ela pensou que não lhe responderia, mas finalmente ele encolheu os
ombros.
— Te trarei esses mantimentos — e sem mais, deu a volta e a deixou
sozinha.
Sophronia olhou para ele e por um momento sentiu vontade de segui-lo. A
sensação desapareceu. Magnus Owen podia ser o capataz da plantação, mas
ainda continuava sendo um homem negro e nunca poderia protegê-la.
10
Kit sentia todos os músculos do corpo doloridos, enquanto descia as
escadas na manhã seguinte. Em contraste com as calças do dia anterior, usava
um vestido de musselina de cor Violeta clara, e um delicado xale branco ao
redor dos ombros. Nas mãos, levava um chapéu de palha.
Miss Dolly a esperava pacientemente junto à porta da rua.
— Bom, ainda não está correta. Suba mais essa luva, querida e arrume bem
a saia.
Kit fez o que lhe pedia sem deixar de sorrir.
— Você realmente está bonita.
— Oh, obrigada, querida. Procuro ter um aspecto agradável, mas não é tão
fácil como antes. Já não tenho a juventude a meu favor, já sabe. Mas olhe para
você. Nem um só homem desta congregação será capaz de pensar como um
cavalheiro esta manhã quando te vir com esse aspecto de bolo de açúcar, e
mais, quererão te devorar.
— Sinto-me faminto só olhando-a — disse uma preguiçosa voz a suas
costas.
Kit colocou o chapéu de palha na cabeça, deixando as fitas soltas.
Cain estava apoiado no batente da porta da biblioteca. Estava vestido com
uma gravata cinza pérola, com calças e colete preto. Completava seu traje
elegante um laço bordô com pequenas linhas claras sobre sua camisa branca.
Seus olhos estudaram sua vestimenta tão formal.
— Onde vai?
— À igreja, certamente.
— À igreja! Não lhe convidamos a nos acompanhar!
Miss Dolly ficou com a mão na boca.
— Katharine Louise Weston! Estou escandalizada! Em que está pensando
para falar com o General de forma tão descortês? Eu lhe pedi que nos
acompanhe. Você deverá perdoá-la, General. Ela montou muito a cavalo ontem
e não pôde andar ao levantar-se da cama esta manhã, por isso está zangada.
— Entendo-o perfeitamente — a alegria de seus olhos fazia sua expressão
amigavelmente suspeita.
Kit continuou amarrando as fitas do chapéu.
— Não estou zangada — estava nervosa com seu olhar esmagador e não era
capaz de amarrar as fitas.
— Será melhor que você faça o laço antes que arranque as fitas, Miss
Calhoun.
— É obvio General — Miss Dolly estalou a língua olhando para Kit.
— Vejamos, querida. Erga o queixo e me permita.
Kit mansamente deixou que Miss Dolly ajudasse, enquanto Cain as olhava
divertido. Finalmente fez o laço corretamente e se encaminharam para subir na
carruagem.
Kit esperou que Cain tivesse ajudado Miss Dolly a subir antes de se dirigir
a ele.
— Aposto que é a primeira vez que põe um pé na igreja desde que está
aqui. Por que não fica em casa?
— Esta vez não. Não perderia esta sua reunião com a boa gente de
Rutherford por nada do mundo.
***
Cain sabia que estava se comportando mal, mas não lhe importava. Durante
semanas esteve mantendo-se afastado dela. Pelo que sabia, era o único homem
solteiro da comunidade que não dançava na sua água. Agora era o momento de
ter umas palavras. Não tinha levado Verônica ali para submetê-la a grosseria
de Kit.
Nem à sua própria.
Mas agora não lhe preocupava isso.
— Abre a porta.
Enquanto golpeava a porta com os nódulos, sabia que estava cometendo um
erro, subindo atrás dela. Mas se deixava que lhe desafiasse agora, perderia
qualquer possibilidade de mantê-la sob controle.
Disse-se que era por seu próprio bem. Ela era obstinada e tenaz, um perigo
para si mesma. Gostasse ou não, era seu tutor, o que significava que tinha a
responsabilidade de guiá-la.
Mas não se sentia como um tutor, sentia-se como um homem que está
perdendo um combate consigo mesmo.
— Vá embora!
Ele agarrou a maçaneta e entrou no quarto.
Ela estava apoiada na janela, os últimos raios de sol refletidos em seu
delicioso rosto na sombra. Era uma criatura selvagem, formosa e o tentava
além da razão.
Quando se virou, ele ficou congelado no lugar. Ela tinha desabotoado o
vestido, e as mangas caíam pelos ombros de modo que podia ver os círculos
suaves de seus seios visíveis por cima de sua camisa intima. Sua boca secou.
Ela não tratou de segurar o corpete como uma moça modesta deveria.
Em vez disso deu-lhe um olhar ardente.
— Saia do meu quarto. Não tem nenhum direito de entrar aqui.
Pensou na carta de Hamilton Woodward onde a acusava de ter seduzido um
de seus sócios. Quando Cain a recebeu, não tinha nenhuma razão para não
acreditar, mas agora a conhecia melhor. Tinha certeza que o que Kit lhe havia
dito de que tinha batido no bastardo, era realmente verdade. Só queria ter
certeza de que também evitou as atenções de Parsell.
— Não quero ser desobedecido — a olhou nos olhos.
— Então ladre suas ordens a outra pessoa.
— Tome cuidado, Kit. Já esquentei esse traseiro com umas palmadas uma
vez e não me incomodaria fazê-lo de novo.
Em vez de se afastar dele, ela teve o descaramento de dar um passo à
frente. A mão picava, e se encontrou de repente imaginando exatamente o
aspecto desse traseiro, nu debaixo de sua palma. Então se imaginou deslizando
a mão ao redor dessa curva... sem lhe machucar, desfrutaria com isso.
— Se quer saber o que se sente ao ter uma faca enfiada em sua barriga,
então ianque, faço-o.
Ele quase riu. Ultrapassava-a em mais de quarenta e cinco quilos, e
entretanto o pequeno gato montês tranquilamente o desafiava.
— Esqueceu algo — disse ele — É minha meia-irmã. Eu tomo as decisões
a seu respeito e você me obedece. Entendeu?
— Oh, entendi muito bem, ianque. Entendi que é um maldito asno arrogante!
Agora fora de meu quarto.
Quando apontou com um dedo para a porta, a tira de sua regata deslizou do
ombro oposto. A fina malha ficou enganchada no bico de seu seio, ficou por
um segundos enganchado nesse bico doce durante um momento, e então caiu
expondo inteiro o mamilo vermelho-escuro.
Kit o viu baixar o olhar um momento antes de sentir a corrente de ar frio
sobre sua carne. Olhou para baixo e conteve o fôlego. Agarrou a frente da
camisa e puxou para cima.
Os olhos de Cain estavam pálidos, da cor da fumaça, e sua voz se tornou
rouca.
— Eu gosto mais da outra forma.
À velocidade do raio, a batalha entre eles se transferiu a um novo cenário.
Sentiu os dedos trêmulos com a malha de sua camisa enquanto ele se
aproximava. Todos seus instintos de sobrevivência gritavam que abandonasse
o quarto, mas algo mais forte a impedia de mover-se.
Ele passou a seu lado e ficou detrás dela, lhe acariciando a curva do
pescoço com o polegar.
— É tão condenadamente bela, — sussurrou. — Agarrou as alças de sua
camisa e calmamente as pôs em seu lugar.
A pele picava.
— Não deveria...
— Eu sei.
Ele se inclinou para baixo e lhe jogou o cabelo para trás. Seu fôlego lhe
fazia cócegas na pele da clavícula.
— Não o faça... eu não gosto...
Ele suavemente mordeu a carne de seu pescoço.
— Mentirosa.
Ela fechou os olhos e permitiu que a apertasse contra seu peito. Sentiu o
ponto frio, úmido em seu pescoço onde sua língua havia tocado em sua carne.
Suas mãos subiram por suas costelas e logo, incrivelmente sobre seus
seios. Sua pele se tornou quente e fria ao mesmo tempo. Tremeu enquanto a
acariciava por cima da camisa, estremeceu pelo bem que se sentia e pela
loucura de lhe permitir tal intimidade.
— Desejei fazer isto desde que voltou — sussurrou ele.
Ela fez um som suave, desamparado quando ele colocou as mãos no interior
de seu vestido, no interior de sua camisa... e a tocou.
Não havia sentido nada tão bom em sua vida como essas mãos calosas em
seus seios, arqueou-se contra ele. Lhe acariciou os mamilos e ela gemeu.
Nesse momento bateram à porta.
Ela conteve o fôlego e se separou dele, subindo rapidamente o sutiã.
— Quem é? — ladrou Cain impacientemente.
Abriu a porta quase tirando-a das dobradiças.
Sophronia estava de pé do outro lado, com as maçãs do rosto pálidas em
alarme.
— O que você está fazendo em seu quarto?
A sobrancelha de Cain subiu.
— Isso é entre Kit e eu.
Os olhos ambarinos de Sophronia olharam o estado desalinhado de Kit e
suas mãos se converteram em punhos sobre a saia de seu vestido, mordeu o
lábio inferior tratando de calar todas as palavras que não queria dizer diante
dele.
— O senhor Parsell está em baixo — disse finalmente. A malha de sua saia
rangia entre seus punhos — Traz um livro para te emprestar. Deixei-o no salão
com a senhora Gamble.
Kit tinha os dedos rígidos agarrando firmemente seu sutiã. Devagar os
relaxou e assentiu a Sophronia. Então se dirigiu a Cain com tanta serenidade
como pôde conseguir.
— Pode convidar ao senhor Parsell a unir-se a nós para o jantar? Sophronia
pode me ajudar a terminar de me vestir. Descerei em poucos minutos.
Seus olhos se enfrentaram, os tempestuosos violetas chocando-se com o
cinza invernal. Quem era o ganhador e quem o perdedor na batalha que tinham
começado? Nenhum sabia. Não havia nenhuma solução, nenhuma catarse
curativa. Em seu lugar seu antagonismo fluía inclusive mais poderosamente
que antes.
Cain saiu sem uma palavra, mas sua expressão indicava claramente que não
tinha terminado com ela.
— Não diga uma palavra! — Kit começou a tirar o vestido rasgando uma
costura com sua estupidez. Como tinha podido deixá-lo que a tocasse assim?
Por que não o empurrou para longe? — Necessito o vestido do final do guarda
roupa. Esse de musselina.
Sophronia não se moveu, de modo que Kit o tirou do guarda-roupa e o
jogou sobre a cama.
— O que te ocorreu? — suspirou Sophronia — Kit Weston, te eduquei para
que não convide a seu dormitório um homem que não é seu marido.
Kit se incomodou.
— Eu não o havia convidado!
— E aposto que tampouco lhe ordenou que saisse.
— Equivoca-te. Estava zangado comigo porque queria que descesse para
jantar com ele e a senhora Gamble, e eu me neguei.
Sophronia assinalou com o dedo o vestido sobre a cama.
— Então para que quer isso?
— Brandon está aqui de modo que mudei de opinião.
— Por isso vais pôr esse vestido? Para o senhor Parsell?
A pergunta de Sophronia a pegou despreparada. Para quem queria colocar
esse vestido?
— Certamente é para o Brandon e para a senhora Gamble. Não quero
parecer uma tola diante dela.
Os rígidos principios de Sophronia se adoçaram quase imperceptivelmente.
— Pode mentir para mim, Kit Weston, mas não a ti mesma, se assegure bem
que não está fazendo isto para o Major.
— Não seja ridícula.
— Deixe isso para a senhora Gamble, querida — Sophronia foi até a cama
e agarrou o vestido de musselina. Ao mesmo tempo repetiu as palavras que
Magnus lhe havia dito só umas semanas antes —. Ele é um homem duro com as
mulheres. Há algo frio como o gelo em seu interior. Qualquer mulher que
conseguir derreter esse gelo, terminará com um mau caso de congelamento.
Passou o vestido pela cabeça de Kit.
— Não é necessário que me diga tudo isso.
— Quando um homem como ele vê uma mulher formosa, só vê um corpo
que lhe dará prazer. Se uma mulher o compreender, como espero seja o caso
da senhora Gamble, pode lhe usar para o mesmo fim e não haverá sentimentos
dolorosos mais tarde. Mas se uma mulher é tola o bastante para se apaixonar,
só pode acabar com o coração destroçado.
— Isso não tem nada a ver comigo.
— Não? — Sophronia lhe abotoou o vestido — A razão pela qual brigam
tanto é porque os dois são iguais.
— Eu não sou como ele! Você mais que ninguém sabe quanto o odeio.
Possui o que mais quero nesta vida. Risen Glory. É onde pertenço. Morrerei
antes de permitir que fique, vou casar—me com Brandon Parsell, Sophronia. E
logo que possa, comprarei de novo esta plantação.
Sophronia começou a lhe escovar o cabelo.
— E acredita que o Major tem vontade de vender?
— Oh, ele venderá, com certeza. É só questão de tempo.
Sophronia começou a trançar seu cabelo, mas Kit sacudiu a cabeça. Usaria-
o solto esta noite, com apenas os pentes de prata para prender. Tudo nela
devia ser tão diferente de Verônica Gamble como fosse possível.
— Não pode ter certeza que ele venderá — disse Sophronia.
Kit não lhe confessou suas saídas noturnas a estudar os livros de
contabilidade, nem suas muitas horas somando e subtraindo quantidades. Não
lhe tinha levado muito tempo para descobrir que Cain havia extrapolado com
os gastos. Risen Glory e seu moinho podiam estar por um fio. O menor
contratempo podia fazer com que tudo viesse abaixo.
Kit não sabia muito sobre moinhos, mas sabia sobre algodão. Sabia sobre
inesperadas chuvas de granizo, sobre furacões e secas, sobre insetos que
comiam as cápsulas até não deixar nada. No que ao algodão concernia, o
desastre ia vir mais cedo ou mais tarde, e quando ocorresse, ela estaria
preparada. Então compraria a plantação a um preço justo.
Sophronia estava olhando-a atentamente, sacudindo a cabeça.
— O que acontece?
— Realmente vais usar esse vestido para o jantar?
— Não é maravilhoso?
— É adequado para uma festa, mas não para um jantar em casa.
Kit sorriu.
— Eu sei.
O vestido tinha sido tão extravagantemente caro que Elsbeth tinha
protestado. Tinham discutido, e lhe havia dito que podia comprar vários mais
modestos pelo preço desse. Além disso era muito vistoso, disse-lhe, tão
incrivelmente formoso que ainda a mulher mais recatada — que não era o caso
de Kit — chamaria muitíssimo a atenção, e isso ficava mal visto em uma
jovem dama.
Tais sutilezas não tinham feito Kit mudar de ideia. Ela só sabia que era
glorioso, e queria tê-lo.
A sobressaia do vestido era uma nuvem de organdy drapeada, que ondeava
sobre o cetim branco bordado com fios de prata. Umas contas de cristal
minúsculas cobriam o sutiã, brilhante como a neve da noite sob um céu
estrelado de inverno. Mais contas adornavam a saia até a prega.
O decote era baixo, caindo elegantemente dos ombros. Deu uma olhada
para baixo e viu que os topos de seus seios expostos ainda estavam rosadas
pelas mãos de Cain. Afastou o olhar e fitou o colar que combinava com o
vestido, uma gargantilha de contas de cristal que pareciam bolinhas de gelo
fundindo-se em sua pele.
O ar ao seu redor parecia ranger quando se movia. Calçou sapatilhas de
cetim com salto redondo, que já tinha usado na festa de Templeton. Eram cor
de casca de ovo, em vez do branco brilhante do vestido, mas não lhe importou.
— Não se preocupe Sophronia. Tudo vai ficar bem — lhe deu um beijo
rápido na bochecha e caminhou para abaixo, com o vestido brilhando ao redor
como uma nuvem cristalina de gelo e neve.
***
O rosto liso de Verônica não denunciou seus pensamentos quando Kit entrou
no salão.
De modo que a gatinha tinha decidido brigar. Não lhe surpreendia.
O vestido era extravagantemente inoportuno para a ocasião e incrivelmente
maravilhoso. O branco virginal era um marco perfeito para a intensa beleza da
moça. O senhor Parsell que tão descaradamente tinha aparecido para o jantar,
parecia aturdido pela aparição. Baron parecia uma nuvem de tempestade.
Pobre homem. Teria sido melhor que a tivesse deixado com seu vestido
sujo e enrugado.
Verônica se perguntou o que teria ocorrido entre eles lá em cima no quarto.
O rosto de Kit parecia ruborizado e Verônica observou uma pequena marca
vermelha em seu pescoço. Não tinham feito amor, disso tinha certeza. Cain
ainda tinha o aspecto de uma besta a ponto de saltar.
Verônica se sentou ao lado de Cain durante o jantar, com Kit do outro lado
da mesa e Brandon a seu lado. A comida estava deliciosa: Jambalaya
acompanhada por empada de ostras cobertas de molho curry de pepino,
bolacha de ervilhas verdes condimentadas com hortelã, e de sobremesa, um
delicioso bolo de cereja. Verônica tinha certeza de que foi a única que
desfrutou da comida.
Foi excessivamente atenta com Baron durante todo o jantar. Inclinava-se
para ele e lhe contava histórias divertidas. Colocava a mão ligeiramente sobre
seu braço e o apertava de vez em quando com deliberada intimidade.
Ele dedicou sua total atenção. Se não estivesse a par do que ocorria, teria
pensado que ele não estava consciente das risadas apagadas que chegavam do
outro lado da mesa.
Depois do jantar, Cain sugeriu que tomassem brandy no salão junto às
mulheres em lugar de na mesa. Brandon assentiu com mais impaciência que
cortesia. Como durante todo o jantar.
Cain mal tinha podido esconder seu aborrecimento pela presença de
Brandon, enquanto Brandon não tinha podido evitar ocultar seu desprezo por
Cain.
No salão, Verônica tomou deliberadamente assento no sofá junto a Kit,
embora sabia que a garota lhe havia tomado antipatia. Kit foi amável, e
bastante divertida quando começaram a conversar. Tinha lido muito por ser tão
jovem, e quando Verônica lhe disse que lhe emprestaria um escandaloso livro
de Gustave Flaubert que acabava de ler, Brandon lhe dirigiu um olhar de total
desaprovação.
— Não aprova que Kit leia Madame Bovary, senhor Parsell? Então
possivelmente seja melhor que fique em minha estante no momento.
Cain olhou para Brandon com diversão.
— Vamos, senhor Parsell, com certeza você não tem a mente tão estreita
para se opor que uma jovem e inteligente dama melhore seu intelecto. Ou sim
o é, Parsell?
— Certamente que não o é — disse Kit com muita precipitação — O senhor
Parsell é um dos homens mais progressistas que conheço.
Verônica sorriu. Sem dúvida uma noite realmente divertida.
***
O relógio marcava meia-noite quando Kit ouviu Cain entrar em seu quarto.
No sábado teria que deixar Risen Glory. Era um golpe tão doloroso, tão
inesperado, e não sabia como resolver. Desta vez não havia nenhum prazo
como seus três anos na Academia. Ele tinha ganhado. Finalmente a tinha
vencido.
A raiva e a impotência superavam com acréscimo sua dor. Desejava
vingança. Queria destruir algo que fosse importante para ele, destruí-lo como
ele acabava de destruí-la.
Mas não havia nada que lhe importasse, nem sequer Risen Glory. Não tinha
deixado Magnus aos cuidados da plantação enquanto ele terminava seu moinho
de algodão?
O moinho... De repente se deteve. O moinho era importante para ele, mais
importante que a plantação, porque era somente dele.
O diabinho da raiva e a dor lhe sussurravam o que tinha que fazer. Tão
simples. Tão perfeito.Tão cruel.
Mas não tanto como o que lhe tinha feito.
Procurou as sapatilhas que tinha usado antes e as segurou para sair do
quarto com os pés descalços. Furtivamente, desceu pelos corredores
superiores, pelas escadas dos fundos e saiu pela parte de trás.
A noite era clara e a lua iluminava suavemente o caminho. Colocou as
sapatilhas, avançando pela linha das árvores que rodeavam o pátio e se dirigiu
para as dependências mais distantes da casa.
Dentro do armazém estava escuro. Colocou a mão no bolso do vestido e
tirou o pedaço de vela e os fósforos que tinha pego na cozinha. Quando
acendeu a vela, viu o que queria e o agarrou.
Inclusive meio cheia, a lata de querosene era pesada. Não podia arriscasse
a selar um cavalo, de maneira que teria que levá-lo a pé mais de três
quilômetros. Enrolou um trapo ao redor da asa para não machucar a palma da
mão e se afastou do abrigo.
A profunda quietude da noite da Carolina amplificava o som do querosene
golpeando contra a lata, seguindo o ritmo de seus passos durante todo o escuro
trajeto que percorreu até chegar ao moinho. As lágrimas lhe escorregavam
pelas bochechas. Ele sabia o que Risen Glory significava para ela.
Quanto devia odiá-la para afastá-la dessa maneira.
Amava só três coisas na vida: Sophronia, Elsbeth, e Risen Glory.
Toda sua vida tinha estado marcada por pessoas que a queriam separar
desta plantação. O que planejava fazer era errado, mas ela era assim.
Por que tantas pessoas a odiavam? Cain, sua madrasta. Inclusive seu pai
não se preocupou o suficiente em defendê-la.
Errado. Errado. Errado. O tamborilar do querosene contra a lata lhe dizia
que parasse. Em vez de escutar, agarrou-se a seu desespero. Olho por olho,
dente por dente. Um sonho por outro sonho.
Não havia nada que roubar dentro do moinho, o edifício estava aberto.
Subiu arrastando a lata até o segundo andar. Com a anágua, pegou a serragem
que havia no chão e o amontoou na base de uma viga de madeira. As paredes
exteriores eram de tijolo, mas um bom fogo destruiria o telhado e as paredes
internas.
Errado. Errado. Errado.
Limpou as lágrimas com a manga do vestido e jogou no chão o querosene.
Com um soluço de agonia, riscou um fósforo, e se afastou.
O fogo iniciou com uma rápida e ruidosa explosão, e começou a propagar-
se. Grandes labaredas já açoitavam a viga de madeira. Esta era a vingança que
a consolaria quando abandonasse Risen Glory.
Mas a destruição que tinha iniciado a horrorizou. Era feio e odioso. Só
demonstrava que ela também podia infligir dor a Cain.
Agarrou um saco de estopa vazio e começou a golpear as chamas, mas o
fogo estava muito intenso. Uma chuva de faíscas caiu sobre ela.
Os pulmões queimavam. Tropeçou descendo as escadas, abrindo a boca
para poder respirar. Assim que desceu, caiu.
Nuvens de fumaça a seguiram. A prega de seu vestido de musselina
começou a arder lentamente. Afogava-se e, engatinhando, se dirigiu à porta
enquanto as brasas queimavam suas mãos.
O grande sino de Risen Glory começou a soar ao mesmo tempo que o ar
limpo golpeava seu rosto, incorporou-se e tropeçou nas árvores.
***
Querida Elsbeth.
Sua carta me fez sorrir. Estou muito feliz por Você. Seu Edward parece
perfeito, o marido adequado para voê. Sei que será a noiva mais formosa de
Nova Iorque. Oxalá pudesse te ver.
Estou assombrada pelo perto que sua imaginação está da verdade na
proposta de matrimônio do Baron. Foi como imaginou, até no vestido da
formatura.
Perdoe-me pela carta tão curta, mas tenho ainda centenas de coisas que
fazer esta tarde.
Todo meu amor Kit P.D: Não se preocupe pela Verguenza da Eva. A
senhora Templeton mentiu.
Kit era tão infeliz como Cain. Seu corpo uma vez despertado, não queria
voltar a dormir. Eróticas e estranhas fantasias a incomodavam. Encontrou o
livro de Walt Whitman Folhas de erva, que Cain lhe tinha dado fazia muito
tempo.
Naquele momento os poemas a tinham confundido. Agora a deixavam nua.
Nunca tinha lido uma poesia assim, com esses versos cheios de imagens que
deixavam seu corpo ardendo: Pensamentos amorosos, suco de amor, aroma
de amor, amor complacente, trepadeiras amorosas, e seiva de trepadeira.
Braços e mãos amorosos, lábios de amor, fálica porção do amor, seios do
amor, ventres espremidos e aderidos uns com outros pelo amor…
Morria de vontade que a tocasse. Se encontrava assim todas as tardes
subindo a seu dormitório com tempo, para tomar banhos úmidos e vestir-se
para o jantar com seus vestidos mais atrativos. Sua roupa começou a lhe
parecer muito chata. Cortou uma dúzia de diminutos botões de prata do sutiã
de seu vestido de seda em tom canela, de modo que o decote ficasse aberto no
meio dos seus seios. Depois pôs um colar de contas de cristal. Substituiu o
cinto de um vestido de manhã amarelo pálido por uma larga sianinha de tafetá
vermelho e azul. Calçava sapatilhas em rosa brilhante com um vestido de cor
tangerina, e era incapaz de resistir e colocar umas fitas brancas nas mangas.
Estava embaraçosamente encantadora. Sophronia dizia que se comportava
como um pavão estendendo sua cauda para atrair a seu companheiro.
Mas Cain não parecia se dar conta.
***
Verônica Gamble chegou de visita uma chuvosa segunda-feira à tarde,
quase três meses depois do casamento. Kit tinha se oferecido para procurar no
sotão empoeirado um conjunto de porcelana que ninguém encontrava, e de
novo seu aspecto deixava muito a desejar.
Além de trocar algumas palavras educadas quando se encontravam na
igreja ou na cidade, Kit não tinha estado com Verônica desde aquele
desastroso jantar. Tinha-lhe enviado uma atenta nota de agradecimento pelo
formoso livro, Madame Bovary, que tinha sido seu presente de casamento…
um presente do mais inoportuno, tinha descoberto Kit, depois de devorar cada
palavra. Verônica a fascinava, mas também se sentia ameaçada pela fria
beleza e a confiança em si mesma da mulher madura.
Enquanto Lucy servia dois copos de limonada gelados e um prato de
sanduíches de pepino, Kit comparou melancolicamente o traje de corte
elegante cor bolacha de Verônica com seu próprio vestido de algodão, sujo e
enrugado.
Não era lógico que seu marido mostrasse um evidente prazer na companhia
de Verônica? Não era a primeira vez, que se encontrou questionando se todas
suas reuniões se desenvolviam em público. A ideia de que pudessem estar se
vendo em particular, doía-lhe.
— E como se encontra a vida de casada? — perguntou Verônica, depois de
trocar cumprimentos e de que Kit comeu quatro sanduíches de pepino, por um
da outra mulher.
— Comparado com o quê?
A risada de Verônica tilintou pela sala como campainhas de cristal.
— É sem dúvida a mulher mais refrescante deste condado, decididamente
tedioso.
— Se é tão tedioso, por que continua aqui?
Verônica tocou o camafeu preso ao pescoço.
— Vim aqui para curar meu espírito. Suponho que soa algo melodramático
para alguém tão jovem como você, mas amei muito meu marido, e sua morte
não foi fácil de aceitar. No entanto, eu estou achando que o tédio é um inimigo
tão poderoso como a dor. Quando se está acostumada à companhia de um
homem fascinante, não é fácil estar sozinha.
Kit não tinha certeza de como responder, especialmente porque via algo
calculado por trás de suas palavras, uma impressão que Verônica rapidamente
constatou.
— Mas basta! Tenho certeza de que não te interessa passar a tarde
escutando as sensíveis reflexões de uma viúva solitária, sobretudo quando sua
vida é tão jovem e romântica.
— Estou me adaptando, como qualquer outra recém-casada, — respondeu
Kit com cuidado.
— Que resposta tão convencional e correta. Você me decepciona. Eu teria
esperado que você me dissesse com sua franqueza habitual, para me meter
com a minha vida, mas com certeza você vai me dizer antes de eu sair. Porque
eu vim com o único propósito de me intrometer nas intimidades desse seu
casamento tão interessante.
—Sinceramente, senhora Gamble — disse Kit fracamente. — Não posso
imaginar porque iria você fazer isso.
— Porque os mistérios humanos tornam a vida mais divertida. E agora,
encontro um diante do meu nariz — Verônica se deu um toquinho na bochecha
com uma unha ovalada — Por que, pergunto-me, o casal mais atraente da
Carolina do Sul, parece estar em conflito?
— Senhora Gamble, eu...
— Por que raramente se olham nos olhos em público? Por que raramente se
tocam de forma casual, como os amantes o fazem?
— Realmente, não acredito...
— Certamente, essa é a pergunta mais interessante, pois faz com que me
pergunte se realmente são amantes.
Kit tratou de dizer algo, mas Verônica, parou-a no ato com um preguiçoso
movimento com a mão.
— Economize qualquer dramatismo até que tenha ouvido atentamente tudo o
que tenho que te dizer. Provavelmente descubra que estou te fazendo um favor.
Kit liberava uma pequena e silenciosa batalha interior, a prudência de uma
parte, a curiosidade de outra.
— Continue — disse ela, tão descaradamente como pôde.
Verônica continuou — Há algo que não está bem com este casal. O marido
tem um aspecto faminto, que um homem satisfeito não deveria ter. Enquanto a
esposa... Ah, a esposa! É inclusive mais interessante que o marido. O olha
quando ele não se dá conta, observando seu corpo da maneira mais
escandalosa, lhe acariciando com o olhar. É o mais desconcertante. O homem
é viril, a esposa sensual e entretanto, juraria que não dormen juntos.
Dito isto, Verônica esperou satisfeita a resposta. Kit sentiu como se a
tivesse deixado nua. Era humilhante. Mas...
— Você veio aqui com um propósito, senhora Gamble. Eu gostaria de saber
qual é.
Verônica parecia assombrada.
— Mas, não é evidente? Não pode ser tão ingênua para não saber que estou
interessada em seu marido — inclinou a cabeça. — Estou aqui para te dar um
ultimato. Se não fizer uso dele, é obvio que o farei eu.
Kit se encontrou quase tranquila.
— Veio aqui para me prevenir que planeja se deitar com meu marido?
— Só se você não o quiser, querida — Verônica agarrou sua limonada e
deu um delicado gole. — Apesar do que possa pensar, tenho um tremendo
carinho por você desde que te conheci. Você me lembra muito a mim na sua
idade, embora eu soubesse esconder melhor meus sentimentos. De todas as
formas, esse carinho pode chegar até aqui, e no final será melhor para seu
matrimônio que eu compartilhe a cama de seu marido, em lugar de alguma
pícara intrigante que tratará de se interpor permanentemente entre os dois.
Até esse momento, ela tinha estado falando em tom leve, mas agora seus
olhos verdes a olhavam de forma inflexível, como pequenas esmeraldas
polidas.
— Me acredite quando te digo isto, querida. Por alguma razão que não
consigo entender, abandonou seu marido maduro para a coleta, e é só questão
de tempo antes que alguém decida pegá-lo. E essa, pretendo ser eu.
Kit sabia que teria que se levantar e sair indignada do salão, mas havia algo
na franqueza de Verônica Gamble que ativava a parte dela que não tinha
paciência com as dissimulações. Esta mulher conhecia as respostas a quão
segredos Kit só podia vislumbrar.
Conseguiu manter o rosto inexpressivo.
— Para seguir com a conversa, suponha que o que disse é certo. Suponha...
que eu não tenho... não tenho interesse em meu marido. Ou suponha, outra vez
para seguir com a conversa, que é meu marido quem não tem nenhum interesse
em mim... — suas bochechas avermelharam, mas estava determinada a seguir
— Como me sugere que eu consiga... consiga interessá-lo?
— Seduzindo-o, certamente.
Houve um silêncio longo e doloroso.
— E como — perguntou Kit friamente — poderia fazer isso?
Verônica o pensou durante um instante.
— Uma mulher seduz a um homem seguindo seus instintos, sem pensar em
nenhum momento se o que faz está bem ou mau. Um vestido sedutor, gestos
sedutores, uma boa vontade para lhe atormentar com promessas por vir. É uma
mulher inteligente, Kit. Tenho certeza que se lhe propuser isso, encontrará uma
maneira. Só lembre disto. O orgulho não tem vez no quarto. É um lugar só para
dar, não para brigar. Compreende-me?
Kit assentiu rigidamente.
Após ter conseguido o objetivo de sua visita, Verônica recolheu suas luvas
e a bolsa, e ficou de pé.
— Agora você pode se aplicar rapidamente a suas lições, pois não te darei
muito mais tempo. Já teve o suficiente.
E saiu da sala.
Um momento mais tarde, quando estava já dentro de seu landó, Verônica
sorriu para si mesma. Como Francis teria apreciado esta tarde. Não muito
frequentemente a vida te dá a oportunidade para se fazer de Fada Madrinha, e
tinha que admitir que o tinha feito de forma impecável.
Enquanto se recostava no assento forrado de couro, levantou ligeiramente
uma sobrancelha. Agora devia decidir se cumpria ou não sua ameaça.
***
Kit finalmente teve a desculpa para fazer o que estava há muito tempo
querendo fazer. O jantar foi uma tortura, pior pelo fato de que Cain parecia
estar determinado a prolongá-lo. Falou do moinho e lhe perguntou sua opinião
sobre o que o mercado de algodão podia lhes proporcionar este ano. Como
sempre quando falavam desse tema, ele a escutava atentamente.
Homem horrível. Era tão condenadamente bonito, que tinha problemas para
tirar os olhos dele, e por que tinha que se mostrar tão encantado com Miss
Dolly?
Fugiu para seu quarto logo que foi possível. Durante uns minutos caminhou
inquieta de um lado para outro. Finalmente se despiu, colocou uma camisola
de algodão desbotado e se sentou à penteadeira para se pentear diante do
espelho. Estava penteando em uma suave nuvem de cabelos tão escuros quanto
a meia-noite, quando escutou Cain subir para seu quarto.
Seu reflexo lhe mostrava um rosto pálido, pouco natural, beliscou as
bochechas, tirou os brincos de labradorita e colocou outros de pérolas.
Depois, aplicou-se um leve toque de jasmim no pescoço.
Quando se sentiu satisfeita, tirou a camisola desbotada e colocou outra de
seda preta, presente de casamento de Elsbeth, deslizou como carícia por seu
corpo nu. A camisola era elegantemente singela, com manga curta solta, e o
sutiã cruzado ficava tão baixo, que mal cobria os seios destacando os
mamilos. A saia se aderia a seu corpo em compridas e suaves dobras, que
marcavam perfeitamente a curva de seus quadris e das pernas quando se
movia. Sobre a camisola, o robe, feito inteiramente de seda negra transparente.
Com dedos trêmulos, fechou o único pequeno botão à altura do pescoço.
Através da seda, sua pele brilhava como a luz da lua no inverno, e quando
andava, o robe se abria, algo que tinha certeza, Elsbeth não tinha se dado conta
quando lhe comprou o presente. A camisola mais curta, agarrava-se a seu
corpo como uma segunda pele, destacando seus seios, aderindo-se ao delicado
contorno de seu umbigo, e de forma mais sedutora, ao pequeno montículo mais
abaixo.
Saiu de seu quarto, com os pés descalços andando silenciosamente através
da sala que comunicava entre seus quartos. Quando chegou à porta de seu
dormitório, quase perdeu a coragem. Antes que mudasse de ideia, bateu com
os nós dos dedos na porta.
— Entre.
Ele estava com as mangas da camisa dobrada, sentado na cadeira junto à
janela, olhando um monte de papeis. Levantou o olhar e quando observou
como estava vestida, seus olhos se escureceram para um cinza profundo. Ela
caminhou devagar até ele, com a cabeça e os ombros erguidos, e o coração
martelando no peito.
— O que quer?
Não havia nem sinal do homem agradável do jantar. Parecia cansado,
receoso e hostil. Outra vez se perguntou por que teria perdido o interesse nela.
Porque já não lhe atraía? Se isso era assim, estava a ponto de sofrer uma
terrível humilhação.
Poderia ter inventado uma desculpa... um corte em um dedo que deveria ser
analisado, lhe pedir um livro emprestado... mas ele certamente já conheceria
essas ciladas. Levantou o queixo e o olhou nos olhos.
— Quero fazer amor contigo.
Ela olhou como sua boca se curvava de maneira estranha em uma pequena e
zombeteira careta.
— Minha bela esposa. Tão direta — seus olhos olharam seu corpo, tão
claramente definido contra a seda. — Deixa que eu seja igualmente franco. Por
quê?
Esta não era a forma que ela o tinha imaginado. Ela tinha esperado que lhe
abrisse os braços e pegasse...
— Estamos... estamos casados. Não é justo que durmamos separados.
— Eu sei — assinalou com a cabeça a cama. — É só um convencionalismo
social, não é isso?
— Não exatamente.
— Então o quê?
Um ligeiro brilho de transpiração se reuniu no meio de suas costas.
— Eu só quero... — muito tarde compreendeu que não podia fazê-lo —
Esqueça-o.
Virou-se para a porta.
— Esquece o que acabo de dizer. Era uma idéia estúpida — estendeu a mão
para agarrar maçaneta da porta, só para sentir a mão dele sobre a sua.
— Você desiste facilmente?
Ela desejou nunca ter começado isto e nem sequer poderia culpar Verônica
Gamble pelo seu comportamento. Queria prová-lo, tocá-lo, experimentar o
mistério do ato do amor outra vez. Verônica lhe tinha dado somente a
desculpa.
Compreendeu que ele se afastava, e se virou para vê-lo apoiar-se no
suporte da chaminé.
— Vamos — disse ele. — Espero que comece.
— Comece o que?
— Um homem não pode funcionar quando o ordenam. Sinto muito, mas
deverá despertar meu interesse.
Se ela tivesse baixado o olhar, teria comprovado que já tinha despertado
seu interesse, mas estava muito ocupada tratando de reprimir a estranha
confusão de sensações que sentia em seu interior.
— Não sei como fazê-lo.
Ele apoiou os ombros contra o suporte e cruzou os tornozelos de forma
preguiçosa.
— Experimenta. Sou todo teu.
Ela não podia suportar sua brincadeira.Com um nó na garganta, saiu da
porta.
—Mudei que ideia.
— Covarde — disse ele suavemente.
Deu a volta a tempo de ver a brincadeira desaparecer de sua expressão e
algo mais tomar seu lugar, uma mescla de sedução e desafio.
— Te desafio, Kit Weston.
Uma batida selvagem repercutiu profundamente dentro dela. Siga seus
instintos, tinha-lhe aconselhado Verônica. Mas como saberia o que fazer?
Ele levantou uma sobrancelha, em silencioso reconhecimento de seu dilema
e a invadiu uma sensação de coragem que desafiava toda lógica. Devagar, ela
levou os dedos ao único botão que mantinha o robe fechado. O robe deslizou
ao chão em uma cascata de seda negra.
Seus olhos absorveram seu corpo.
— Você nunca foi capaz de recusar um desafio, verdade? — disse ele com
voz rouca.
Sua boca se curvou em um sorriso. Caminhou até ele devagar, sentindo uma
súbita onda de autoconfiança. Enquanto se movia, balançava mais os quadris
de maneira que a fina saia da camisola se tornasse mais reveladora, parou
diante dele e olhou com atenção dentro das fumegantes profundidades de seus
olhos. Sem baixar o olhar, levantou as mãos e lhe tocou ligeiramente os
ombros.
Ela sentiu sua tensão debaixo dos dedos, e lhe deu uma sensação de poder
que nunca tinha imaginado ter em sua presença, ficou nas pontas dos pés e
pressionou seus lábios contra o pulsar na base de sua garganta.
Ele gemeu suavemente e enterrou a cara em seu cabelo, mas mantinha os
braços caídos. O entusiasmo ante sua desacostumada passividade, a fez
estremecer-se. Ela separou seus lábios e tocou esse lugar com a ponta da
língua, até que sentiu seu pulsar mais e mais rápido.
Ávida por obter mais dele, desabotoou-lhe os botões da camisa. Uma vez
aberta, empurrou o tecido para os lados, passando seus dedos sobre o pelo de
seu peito e beijando um plano e duro mamilo, que tinha ficado exposto.
Com um som estrangulado ele a agarrou em seus braços e apertou seu corpo
contra ele. Mas agora o jogo era seu, e ela o faria jogar segundo suas regras.
Com uma suave risada, de mulher má, afastou-se docemente de seu lado e
caminhou para trás, através do quarto.
Levantando os olhos para ele, umedeceu os lábios com a ponta da língua.
Então, deslizou as palmas de suas mãos sobre suas costelas, cintura e a curva
de seus quadris em uma ação provocante e deliberada.
As narinas flamejaram. Ela escutou seu fôlego acelerado.
Devagar, seguiu deslizando suas mãos acima e abaixo pela parte da frente
de seu corpo. As coxas... as costelas... Uma mulher seduz a um homem
seguindo seus instintos, sem pensar em nenhum momento se o que faz está
certo ou errado. Pegou os seios nas mãos.
Uma surda exclamação saiu dos lábios de Cain. A palavra era
impronunciável, mas ele a disse de uma maneira tão aduladora que a fez
parecer um elogio.
Agora confiante de seu poder, deslocou-se para que a cama ficasse entre
eles. Levantou a camisola e subiu ao colchão. Com um movimento de cabeça,
seu cabelo caiu para frente sobre seu ombro. Ela sorriu, com um sorriso que
tinha sido transmitido por Eva e deixou que sua manga caísse para baixo sobre
seu braço. Debaixo do véu de cabelo, encontrava-se exposto um seio nu.
Cain sentiu todo seu autocontrole posto a prova, para não se precipitar à
cama e devorá-la como ela queria ser devorada.
Jurou-se a si mesmo que isto não ocorreria, mas agora era incapaz de
conter-se. Ela era dele.
Mas ela não tinha terminado ainda. De joelhos na cama, a saia de sua
camisola se enrugava em seus joelhos, e jogou com seu cabelo, de modo que
as sedosas mechas negras como o azeviche pareciam aproximar-se e afastar-se
sobre seu seio, como um erótico jogo de esconde-esconde.
O último fio que segurava seu autocontrole se rompeu. Devia tocá-la ou
morreria. Chegou a beira da cama, estendeu sua mão cheia de cicatrizes, e
empurrou a escura cortina de cabelo detrás de seu ombro. Contemplou
fixamente o seio perfeitamente formado, com seu mamilo rígido.
— Aprende rápido — disse com a voz rouca.
Tentou tocar-lhe, mas outra vez ela o evitou, deslizou-se para trás apoiando
nos travesseiros, descansando sobre um cotovelo, com a saia de seda negra de
sua camisola solta através de suas coxas.
— Está com muita roupa — sussurrou ela.
Seu lábio inferior tremeu. Com movimentos ágeis, desabotoou as mangas de
sua camisa e tirou a roupa. O olhou se despir. Seu coração esmurrando com
um ritmo selvagem, selvagem.
Finalmente, estava a sua frente, ferozmente nu.
— Agora, quem está com muita roupa? — murmurou ele.
Ele se ajoelhou na cama e colocou a mão sobre seu joelho, sob a prega de
sua camisola. Mas ela sentia que a camisola o excitava, e não se surpreendeu
quando não a tirou. Em troca, deslizou a mão sob o suave tecido e a moveu ao
longo da parte interna da coxa, até que encontrou o que andava procurando.
Tocou-a levemente uma vez, e depois outra, e outra, entrando mais.
Agora foi ela quem gemeu. Quando arqueou as costas, a seda negra se
moveu, deixando livre o outro seio. Ele baixou a cabeça para reclamar com a
boca um deles, e depois o outro. Redobrou as carícias em seus seios e sob sua
camisola, eram mais do que pôde suportar. Com um gemido que chegava das
profundidades de sua alma, desfez-se sob suas carícias.
Poderiam ter passado segundos ou horas. Antes que voltasse a si, ele estava
deitado a seu lado, olhando-a atentamente. Quando ela abriu os olhos, ele
aproximou o rosto e beijou seus lábios.
— Fogo e mel — sussurrou ele.
Ela o olhou de maneira inquisidora, mas ele só riu e a beijou outra vez. Ela
devolvia sua paixão com as mãos.
Sua boca viajou a seus seios. Finalmente ele levantou a camisola por cima
de sua cintura e seguiu adiante por seu estômago.
Ela percebeu o que ia ocorrer antes de sentir a carícia de seus lábios na
suave pele do interior de sua coxa. No inicio, pensou que devia estar
equivocada. A ideia era muito espantosa. Certamente tinha se confundido. Não
podia ser... Ele não podia...
Mas o fez. E ela pensou que morreria do prazer que lhe dava.
Quando acabou, sentiu-se como se não pudesse voltar a ser a mesma outra
vez. Ele a abraçou, e acariciou seu cabelo, envolvendo preguiçosamente os
cachos ao redor de seu dedo, dando tempo para se recuperar. Finalmente,
quando já não pôde esperar mais, apertou-se contra ela.
Ela colocou as palmas das mãos em seu peito e o empurrou.
Agora a pergunta estava em seus olhos quando ele se recostou contra os
travesseiros, e ela ficou de joelhos a seu lado. Ele a olhou cruzar os braços
timidamente, agarrar a prega da camisola e tirá-la por cima da cabeça.
Ele olhou sua beleza nua só um segundo antes que ela ficasse sobre ele. A
cortina de seu cabelo caiu entre eles quando tomou sua cabeça entre suas
pequenas e fortes mãos.
Explorou sua boca vigorosamente. Era audaciosamente feminina utilizando
a língua, tomando e saqueando, para ter prazer e devolvê-lo em abundância.
Então acariciou o resto, beijando cicatrizes e músculos; sua dura
masculinidade, até criar entre eles uma sensação única. Estavam juntos,
elevavam-se juntos... e depois se dissolviam juntos.
Ao longo da noite, despertaram várias vezes para fazer amor, dormindo
depois com seus corpos ainda unidos. Às vezes falavam do prazer de seus
corpos, mas nunca, nenhuma só vez, mencionaram os assuntos que os
separavam. Inclusive na intimidade, estabeleciam limites que não se podiam
cruzar.
Pode me tocar aqui... pode me tocar lá... Oh, sim, Oh, sim e ali... Mas não
espere mais. Não espere que a luz do dia traga uma mudança em mim. Não
haverá nenhuma mudança. Só poderia me fazer dano... Tome-me... Me
Destrua... Te darei meu corpo, mas não me atreverei a entregar mais, a pedir
mais.
Pela manhã, Cain grunhiu quando ela amassou o periódico que queria ler. E
Kit lhe repreendeu por pôr uma cadeira em seu caminho.
As barreiras do dia estavam erguidas.
18
Sophronia se decidiu antes do Natal. James Spence a acompanhou pelo
caminho que levava a Rutherford e lhe mostrou a escritura de uma casa em
Charleston em seu nome.
— É uma casinha de estuque grafite pintada em cor rosa, senhorita
Sophronia, com uma figueira na parte frontal e uma grade coberta, e na parte
de trás tem glicínias.
Ela agarrou a escritura, estudou-a com cuidado e lhe disse que iria com ele.
Enquanto contemplava fixamente pela janela da cozinha os campos inativos
de Risen Glory esse triste e úmido dia de inverno, recordou-se que já tinha
vinte e quatro anos. Não teria uma outra oportunidade assim, talvez nunca.
James Spence poderia lhe dar tudo o que sempre tinha querido. Ele a tratava
bem e era bonito para um branco. Cuidaria bem dela, e em troca, ela se
encarregaria dele. Não seria tão diferente do que fazia agora... exceto que teria
que dormir com ele.
Sentiu um calafrio e se perguntou que diferencia havia. Já não era uma
virgem. A casa de Charleston seria sua, era o que importava, e finalmente
estaria segura. Além disso, era hora de deixar Risen Glory. Entre o Magnus,
Kit, e o Major, a deixariam louca se tivesse que permanecer muito mais tempo
ali.
Magnus a olhava com esses suaves olhos castanhos. Odiava a compaixão
que via neles, mas às vezes se encontrava sonhando acordada com aquela
tarde de domingo, quando a beijou na horta. Queria esquecer esse beijo, mas
não podia. Não tinha tratado de tocá-la outra vez, nem sequer na noite que Kit
e o Major se casaram e ela tinha dormido em sua casa. Por que não
desaparecia e a deixava em paz?
Desejava que todos desaparecessem, inclusive Kit. Desde que tinha voltado
para a cama do Major, havia algo frenético nela. Precipitava-se de uma coisa
a outra, sem tempo para pensar. Pela manhã quando Sophronia ia ao galinheiro
recolher os ovos, via-a à distancia, montando Tentação como se a vida
dependesse disso, saltando sobre obstáculos muito altos, levando o cavalo ao
limite. Inclusive montava no frio ou chuva. Era como se temesse que a terra
desaparecesse durante a noite, enquanto o Major e ela estavam no quarto
grande no andar de cima.
Durante o dia, o ar entre eles cintilava com tensão. Sophronia não tinha
ouvido Kit falar uma só palavra com ele em semanas, e quando o Major se
dirigia a ela, o fazia com uma voz fria como o gelo. De qualquer modo, ela ao
menos parecia tentá-lo. Ele tinha proposto fazer um caminho para o moinho
pela zona oeste, onde só havia ervas daninhas, todo mundo menos Kit podia
ver que era uma zona estéril e o caminho economizaria vários quilômetros
para chegar ao moinho.
Essa manhã, Sophronia tinha temido que se atacassem a golpes. Durante
semanas o Major tinha pedido a Kit que deixasse de montar Tentação dessa
maneira tão temerária. Finalmente ele se irritou, e a tinha proibido de montar
Tentação de qualquer maneira. Kit tinha partido chamando—o de tudo e
ameaçando-o com coisas que nenhuma mulher deveria saber, menos ainda
dizer. Ele tinha ficado quieto como uma estátua, sem dizer uma palavra,
simplesmente olhando-a com essa expressão gelada que enviava calafrios à
coluna vertebral de Sophronia.
Mas não importava como as coisas fossem entre eles durante o dia, quando
chegava a noite, a porta do grande dormitório se fechava e não se abria até a
manhã seguinte.
Pela janela, Sophronia viu Kit vestida com essas vergonhosas calças para
caminhada. Os músculos do estômago se esticaram com temor. Não podia
prorrogar mais. Tinha a mala preparada e o senhor Spence estaria esperando-a
no cruzamento do caminho em menos de uma hora.
Não tinha contado a ninguém os seus planos, embora acreditasse que
Magnus suspeitava de algo. Tinha-a olhado de forma estranha enquanto tomava
o café da manhã na cozinha essa manhã. Às vezes tinha a sensação de que
podia ler a mente.
Estava feliz que ele tinha ido pra Rutherford para que não estivesse ali
quando partisse. Embora uma parte de si quisesse voltar a ver esse rosto
formoso e amável pela última vez.
Deixou o avental no gancho junto à pia, onde tinha pendurado seus aventais
desde menina. Depois passeou pela casa, despedindo-se dela.
Uma rajada de ar frio acompanhou Kit quando entrou pela porta.
— Este vento gela os ossos. Vou fazer sopa de peixe para jantar esta noite.
Sophronia esqueceu que isso já não seria sua responsabilidade.
— São quase cinco — a repreendeu. — Se queria sopa de peixe, deveria
ter dito isso antes. Patsy já fez uma boa fritada de abobrinhas.
Kit tirou a jaqueta de lã e a deixou com irritação no cabide junto à porta.
— Tenho certeza que não se importará que acrescente sopa de peixe ao
menu — começou a subir as escadas em largas passadas.
— As pessoas desta casa agradeceriam que sorrisse de vez em quando.
Kit fez uma pausa e olhou para Sophronia.
— O que você que quer dizer?
— Quero dizer que faz um tempo que você está mal-humorada, e parece que
está contagiando. Inclusive conseguiu discutir com Patsy.
Não era a primeira vez que Sophronia repreendia Kit por seu
comportamento, mas hoje Kit não podia reunir energia para rebatê-la.
Ultimamente se sentia nervosa e apática, não exatamente doente, mas tampouco
bem. Suspirou com cansaço.
— Se Patsy não quiser sopa de peixe no menu desta noite, eu farei amanhã.
— Você mesma deveria lhe dizer isso.
— Por quê?
— Porque eu não estarei aqui.
— Oh? E aonde vai?
Sophronia duvidou. Kit tinha perguntado com inocência.
— Vamos ao salão por um momento para que possamos falar.
Kit a olhou com curiosidade e a seguiu para o salão. Lá dentro, sentou-se
no sofá.
— Aconteceu algo?
Sophronia permaneceu de pé.
— Eu... eu vou a Charleston.
— Podia havê-lo dito antes. Preciso comprar umas coisas. Poderia te
acompanhar.
— Não, não é uma viagem para fazer compras. — Sophronia colocou as
mãos na frente de sua saia de lã marrom. — Eu... vou partir para sempre. Não
voltarei mais para Risen Glory.
Kit a olhou de forma perplexa.
— Não voltará? Claro que voltará. Vive aqui.
— James Spence comprou uma casa pra mim.
Kit enrugou a testa.
— Por que ele faria isso? Vai ser sua ama de chaves? Sophronia, como
pode pensar em nos abandonar assim?
Sophronia negou com a cabeça.
— Não vou ser sua ama de chaves, vou ser sua amante.
Kit agarrou o braço do sofá.
— Não acredito. Você nunca faria algo tão horrível.
Sophronia levantou o queixo rapidamente.
— Não te atreva a me julgar!
— Mas é que não está certo! O que está dizendo é simplesmente horrível.
Como pode sequer considerar algo assim?
— Farei o que tiver que fazer — disse teimosamente Sophronia.
— Não deve fazer!
— Para você é fácil dizer. Mas alguma vez pensou que eu gostaria de ter as
coisas que você tem... uma casa, bonitos vestidos, poder despertar pela manhã
sabendo que ninguém pode me fazer mal?
— Mas aqui ninguém pode te fazer mal. Faz mais de três anos que terminou
a guerra, e após isso ninguém te incomodou.
— Isso é porque todo mundo supunha que estava compartilhando a cama de
seu marido. — ao ver o olhar afiado de Kit, acrescentou — Não o fiz. Mas só
Magnus sabe. — As linhas esculpidas de seu rosto se tornaram amargas. —
Agora que está casada, tudo é diferente. É só questão de tempo que alguém
fale que estou livre para me perseguir. É a maneira como uma mulher negra
vive se não tem um homem branco protegendo-a. Não posso seguir vivendo
assim.
— Mas, e Magnus? — discutiu Kit. — É um bom homem. Qualquer um com
olhos pode ver que te ama. E não importa quanto negue, sei que você também
sente algo por ele. Como pode lhe fazer isto?
Sophronia esticou os lábios em uma linha fina.
— Tenho que pensar só em mim.
Kit se levantou de um salto do sofá.
— Não vejo onde está a maravilha de ter um homem branco te cuidando.
Quando foi escrava, meu pai que cuidava de você, e olhe o que te aconteceu.
Provavelmente o senhor Spence tampouco possa te proteger, como aconteceu
com meu pai. Ao melhor, olhará para outro lado, como ele fez. Pensou nisso,
Sophronia? Pensou?
— Seu pai não me protegeu! — gritou Sophronia. — Não o fez, entende?
Não só não o fez, como também me entregava de noite a seus amigos.
Kit sentiu uma dor aguda nas paredes do estômago.
Agora que a verdade foi dita, Sophronia não pôde se deter.
— Às vezes deixava que jogassem o jogo de dados. Outras vezes, uma
corrida de cavalos. Eu era o prêmio pelo qual competiam.
Kit correu até Sophronia e a agarrou em seus braços.
— Sinto muito. Oh, sinto-o tanto, tanto.
Sophronia tornou-se rígida sob suas mãos. Kit a acariciou, conteve suas
lágrimas, murmurou desculpas por algo que não tinha culpa, e tratou de
encontrar a coragem para convencer Sophronia de que não abandonasse a
única casa em que sempre tinha vivido.
— Não deixe que o que ocorreu arruíne o resto de sua vida. Foi horrível,
mas ocorreu faz já muito tempo. É jovem. Muitas escravas...
— Não me fale de escravas! — Sophronia se soltou dela com uma
expressão feroz. — Faz o favor de não me falar de escravas! Você não sabe
nada disso! — Inspirou profundamente. — Ele também era meu pai!
Kit ficou gelada. Lentamente, moveu de um lado a outro a cabeça.
— Não, não é verdade. Está mentindo. Inclusive ele não entregaria assim a
sua própria filha. Maldita seja! Maldita seja por mentir!
Sophronia não se acovardou.
— Sou sua filha, igual a você. Deitou-se com minha mãe quando não era
mais que uma moça. Esteve com ela até que se inteirou de que estava grávida.
Então a atirou aos barracões dos escravos, como se fosse lixo. A princípio,
quando seus amigos vinham atrás de mim, eu pensava que talvez tinha
esquecido que era sua filha. Mas não o tinha esquecido. Simplesmente não lhe
importava. O sangue não tinha nenhum significado para ele, porque eu não era
humana. Era só mais uma escrava de sua propriedade.
O rosto de Kit ficou cinzento. Não podia se mover. Não podia falar.
Agora que já tinha contado seu segredo, Sophronia finalmente se acalmou.
— Estou feliz que minha mãe morreu antes que isso começasse. Era uma
mulher forte, mas ver o que estava me acontecendo a teria destroçado. —
Sophronia estendeu a mão e tocou a bochecha imóvel de Kit. — Somos irmãs,
Kit. — disse suavemente. — Alguma vez se deu conta? Nunca sentiu esse laço
que nos une tão forte que não podíamos ficar separadas? Desde o começo,
sempre foi assim. Sua mãe morreu quando você nasceu e se supunha que minha
mãe tinha que te criar, mas não gostava de te tocar, pelo que lhe tinha
acontecido. Assim, eu que cuidei de você. Uma menina criando outra menina.
Lembra de dormir em meu colo quando eu tinha quatro ou cinco anos.
Colocava você a meu lado na cozinha quando trabalhava e brincava de
bonecas com você à noite. E então, minha mãe morreu e você tornou-se tudo o
que eu tinha na vida. Por isso nunca saí de Risen Glory, nem sequer quando foi
a Nova Iorque. Tinha que me assegurar de que estava bem. Mas quando voltou,
havia se transformado em uma pessoa diferente, era parte de um mundo ao
qual eu nunca pertencerei. Estava ciumenta, e também assustada. Tem que me
perdoar pelo que vou fazer, Kit, mas você tem um lugar no mundo, e já é hora
que eu trate de procurar o meu.
Deu um abraço rápido em Kit e partiu.
Não muito tempo depois, Cain encontrou Kit ali. Ela estava ainda de pé no
centro do salão. Tinha os músculos rígidos e as mãos apertadas em punhos.
— Onde diabos está todo o... Kit? O que aconteceu?
Em um instante estava a seu lado. Ela se sentiu como se a tivessem tirado
de um transe. Apoiou-se contra ele, afogando-se com um soluço. Ele a agarrou
em seus braços e a levou ao sofá.
— Me diga o que aconteceu.
Sentia-se bem com os braços ao seu redor. Nunca a tinha abraçado assim...
protetoramente, sem vestígio de paixão. Começou a chorar.
— Sophronia partiu, vai para Charleston para ser... para ser a amante de
James Spence.
Cain jurou suavemente.
— Magnus sabe?
— Eu... eu acredito que não. — Tentou tomar fôlego. — Também me disse
que... Sophronia é minha irmã.
— Sua irmã?
— É filha de Garrett Weston, como eu.
Ele acariciou seu queixo com o polegar.
— Viveste no Sul toda sua vida. A pele de Sophronia é clara.
— Não entende. — Apertou a mandíbula e tratou de cuspir as palavras
através de suas lágrimas. — Meu pai a entregava a seus amigos durante a
noite. Ele sabia que era sua filha, sua própria carne e seu próprio sangue, mas
a entregava igual... Oh, por amor de Deus...
Cain ficou pálido. Ele chegou mais perto e descansou sua bochecha contra
o topo de sua cabeça enquanto ela chorava. Aos poucos, ela lhe disse os
detalhes da história. Quando ele terminou, apertou-a mais e deixou repousar
sua bochecha contra o cocuruto dela enquanto chorava. Gradualmente, lhe
contou os detalhes da história. Quando terminou, Cain falou brutalmente.
— Espero que esteja queimando no inferno.
Agora que tinha contado tudo, Kit compreendeu o que devia fazer, soltou-se
e ficou de pé de um salto.
— Tenho que detê-la. Não posso permitir que passe por isso.
— Sophronia é uma mulher livre. — Ele a lembrou suavemente. — Se ela
quiser ir com Spence, não há nada que você possa fazer.
— É minha irmã! A amo, e não vou permitir que faça isto!
Antes que Cain pudesse detê-la, saiu do salão apressadamente.
Cain suspirou enquanto se levantava do sofá. Kit estava ferida, e como ele
sabia muito bem, isso poderia levar ao desastre.
Fora, Kit se escondeu entre as árvores perto da entrada da casa. Seus
dentes batiam castanholas enquanto se acocorava nas sombras frias e úmidas,
esperando que Cain saísse. Logo apareceu, como ela sabia que faria. O viu
descer os degraus olhando para o caminho. Ao não vê-la, amaldiçoou, e se
virou para os estábulos.
Logo que o perdeu de vista, Kit correu até a casa indo para o armário de
armas na biblioteca. Não esperava muitos problemas de James Spence, mas
como não tinha a menor intenção de deixar que Sophronia se fosse com ele,
precisava de uma arma para adicionar peso aos seus argumentos.
***
Kit olhou fixamente com uma mescla de alegria e atordoamento. Cain tinha
razão. Mas só porque tinha razão nisto não significava que tivesse razão em
tudo.
Tinham ocorrido muitas coisas e seus sentimentos por Sophronia, por Risen
Glory e por Cain giravam dentro de si. Saiu para pegar Tentação no estábulo,
mas lembrou que Cain lhe tinha ordenado que não montasse o cavalo. Uma
pequena voz lhe disse que só podia culpar a si mesma pela imprudência, mas
se negou a escutá-la. Tinha que resolver isto com ele.
Caminhou com passo majestoso de volta à casa e encontrou Lucy cortando
batatas.
— Onde está o senhor Cain?
— Ouvi-o subir faz alguns minutos.
Kit saiu apressada para o vestíbulo e subiu as escadas. Abriu de um puxão
a porta do dormitório.
Cain estava junto à mesa recolhendo alguns papéis que tinha deixado ali na
noite anterior. Virou-se para ela com expressão zombadora. Viu o quão agitada
estava e levantou uma sobrancelha.
— E bem?
Sabia o que estava lhe perguntando. Romperia a regra não escrita entre
eles? A regra que dizia que este dormitório era o único lugar onde não
discutiam, o único lugar que estava destinado para outras coisas, algo tão
importante para ambos como o ar que respiravam.
Ela não podia romper essa regra. Somente aqui se desvanecia sua
inquietação. Somente aqui se sentia... não feliz... mas de algum modo
adequada.
— Venha aqui — disse ele.
Dirigiu-se para ele, mas não se esqueceu de seu ressentimento por
Tentação. Não se esqueceu de seu medo de que ele ainda colocasse um
caminho para o moinho através de suas terras. Não se esqueceu de sua
prepotência e de sua obstinação. Ela deixava tudo isso ferver em seu interior
enquanto se entregava a relações sexuais que estavam se tornando cada dia
menos satisfatórias e mais necessárias.
Na manhã seguinte, nem sequer a felicidade de Sophronia e Magnus pôde
impedir que Cain e Kit se falassem furiosamente. Converteu-se em uma rotina,
quanto mais apaixonada era a noite, pior se tratavam no dia seguinte.
Não espere que a luz do dia cause uma mudança em mim... te darei meu
corpo, mas não, não se atreva a pedir mais.
Enquanto Kit observava Magnus e Sophronia movendo-se em um ditoso
atordoamento durante a semana seguinte preparando suas bodas, encontrou-se
desejando que Cain e ela pudessem ter também um final feliz. Mas o único
final feliz que poderia imaginar para eles consistia em que Cain partisse logo,
deixando-a só em Risen Glory. E isso não parecia correto absolutamente.
***
O bebê nasceu em Julho, quase quatro anos depois daquela tarde quente em
que Kit chegou a Nova Iorque para matar Baron Cain. O bebê era uma menina,
com cabelo loiro como o de seu pai e surpreendentes olhos violetas, rodeados
por diminutas e negras sobrancelhas. Kit lhe colocou o nome de Elizabeth e a
chamava Beth.
O parto foi longo, mas o nascimento foi sem qualquer complicações.
Sophronia permaneceu a seu lado até o final, enquanto Miss Dolly revoava
pela casa, afastando todo mundo de seu caminho e transformando três de seus
lenços em tiras. Mais tarde os primeiros visitantes de Kit foram os Rawlins e
Mary Cogdell, que pareciam pateticamente aliviados, ao ver que o matrimônio
com Cain tinha produzido finalmente um bebê, embora tivesse demorado doze
meses em chegar.
Kit passou o resto do verão recuperando as forças e profundamente
apaixonada por sua filha. Beth era uma menina doce e tranquila, mais feliz
quando estava nos braços de sua mãe. De noite, quando despertava para que a
alimentassem, Kit podia agasalhá-la perto dela na cama, onde as duas
dormiam até o amanhecer... Beth contente com o doce e leitoso peito de sua
mãe e Kit cheia de amor por este precioso bebê, que era um presente que Deus
tinha entregue quando mais o necessitava.
Verônica lhe escrevia cartas regularmente e de vez em quando ia de visita
desde Charleston. Um profundo carinho cresceu entre as duas mulheres.
Verônica ainda falava de forma escandalosa sobre seu desejo de fazer amor
com Cain, mas Kit agora reconhecia suas declarações como um intento pouco
sutil, de estimular os ciúmes de Kit e manter vivo os sentimentos por seu
marido. Como se necessitasse algo mais para lhe recordar o amor que sentia
por seu marido.
Com os segredos do passado varridos, a relação de Kit com Sophronia
ficou mais profunda. As duas ainda brigavam como sempre, mas agora
Sophronia falava livremente e Kit estava mais à vontade em sua presença. As
vezes, no entanto, Kit sentia o coração doer quando via o rosto de Sophronia
suavizar-se com um amor profundo e constante ao notar o olhar de Magnus.
Sua força e bondade tinham colocado os últimos restos dos fantasmas de
Sophronia no passado.
Magnus compreendia a necessidade de Kit em falar de Cain, e pelas noites
enquanto se sentavam na varanda, ele lhe contava tudo o que sabia sobre o
passado de seu marido: Sua infância, os anos de vagar, sua valentia durante a
guerra. Ela absorvia tudo.
No inicio de Setembro se encontrou com energias renovadas e um
conhecimento mais profundo de si mesma. Verônica lhe havia dito uma vez que
devia determinar que coisas na vida eram temporárias e quais eternas.
Enquanto montava pelos campos de Risen Glory, por fim entendeu o que
Verônica queria dizer. Já era hora de procurar seu marido.
Desgraçadamente, comprovou que era mas fácil na teoria que na prática. O
advogado que dirigia os assuntos de Cain sabia que tinha estado em Natchez,
mas após isso não tinha tido notícias dele. Kit ficou sabendo que os lucros da
venda do moinho de algodão tinham permanecido intactos em um banco de
Charleston. Por alguma razão, tinha partido praticamente pobre.
Perguntou ao longo de todo o Mississipi. As pessoas lembravam dele, mas
ninguém parecia saber onde tinha ido.
Na metade de outubro, quando Verônica chegou de Charleston para lhe
fazer uma visita, Kit estava desesperada.
— Perguntei por toda parte, mas ninguém sabe onde está.
— Está no Texas, Kit. Em uma cidade chamada San Carlos.
— Sabia onde estava todo este tempo e não me disse nada? Como pôde
fazer isso?
Verônica ignorou o humor de Kit e tomou um gole de chá.
— Na realidade, querida, nunca me perguntou.
— Não acreditei que tivesse que fazê-lo!
— Irrita-se que tenha me escrito e não a você.
Kit queria esbofeteá-la, mas como de costume, Verônica tinha razão.
—Tenho certeza que esteve escrevendo todo tipo de mensagens sedutoras.
Verônica sorriu.
— Desgraçadamente não. Era sua maneira de manter-se em contato contigo.
Sabia que se algo acontecesse eu o diria.
Kit se sentiu doente.
— Ele sabe sobre Beth, mas nem sequer assim voltará.
Verônica suspirou.
— Não, Kit, ele não sabe sobre ela, e não estou certa de ter feito o correto
ao não lhe contar, mas decidi que não era eu que tinha que dar a notícia, que
não devia compartilhar. Não suportaria vê-los mais feridos do que já estão.
Sua ira estava esquecida e Kit pressionou Verônica.
— Por favor, me diga tudo o que sabe.
— Os primeiros meses se deslocava em embarcações fluviais e vivia do
que ganhava nas mesas de pôquer. Logo partiu ao Texas e trabalhou como
guarda armado em uma das linhas de diligências. Um trabalho detestável, em
minha opinião. Durante algum tempo ganhou. E agora está dirigindo um
palácio de jogo em San Carlos.
Kit sentia uma forte dor enquanto escutava. Os velhos padrões de conduta
da vida de Cain estavam se repetindo.
Estava indo à deriva.
21
Kit chegou ao Texas na segunda semana de novembro. Foi uma viagem
longa, que se tornou ainda mais árdua pelo fato de que não viajava sozinha.
O deserto do Texas foi uma surpresa para ela. Era tão diferente da Carolina
do Sul... pastagens planas do interior leste do Texas e cidades mais inóspitas e
longínquas, onde as sinuosas árvores cresciam em rochas irregulares e as
árvores copadas corriam de um lado a outro através do áspero e montanhoso
terreno. Disseram-lhe que os rios transbordavam quando chovia, levando-se
às vezes rebanhos inteiros de gado, e que no verão, o sol aquecia a terra até
ficar endurecida e rachada. Ainda assim, havia algo nessa terra que era
atraente. Possivelmente o desafio proposto.
Quanto mais se aproximava de San Carlos, mais insegura se sentia do que
tinha feito. Agora tinha responsabilidades preciosas, e entretanto, tinha
abandonado seu conforto familiar para procurar um homem que nunca havia
dito que a amava.
Quando subia os degraus de madeira que levavam ao palácio do jogo “A
Rosa Amarela”, seu estômago se embrulhou em nós apertados e dolorosos.
Apenas tinha podido comer durante dias, e esta manhã, nem os apetitosos
aromas que subiam da cozinha próxima do Hotel Ranchers tinham sido
capazes de tentá-la. Tinha perdido tempo enquanto se vestia, arrumando o
cabelo de uma forma, e depois de outra, mudando de vestido várias vezes e
procurando botões ou ganchos desabotoados que pudessem ter sido
negligenciados.
Finalmente, tinha decidido usar o vestido cinzento com renda rosa. Era o
mesmo vestido que tinha usado em sua volta a Risen Glory.
Tinha colocado o chapéu que fazia conjunto e cobria o rosto com um véu.
Reconfortou-a um pouco a ilusão de que estava recomeçando de novo. Mas o
vestido agora se ajustava de forma diferente, mais ajustado no busto, como
aviso de que tudo tinha mudado.
Sua mão enluvada tremia ligeiramente quando alcançou a porta que
conduzia ao bar. Parou um momento, puxou e entrou.
Tinha ouvido que a Rosa Amarela era o melhor e mais caro dos salões de
San Carlos. Tinha papel pintado em vermelho e ouro, e um abajur de aranha. A
barra de mogno, com acabamento de forma florida, percorria a longitude da
sala, e atrás estava pendurado um retrato de uma mulher deitada nua, com
cachos dourados e uma rosa amarela presa entre os dentes. Tinham-na pintado
contra um mapa do Texas, de modo que o alto de sua cabeça descansava perto
da Texarkana e os pés se ondulavam com o passar do Rio Grande. O retrato
deu a Kit um renovado golpe de coragem. A mulher lhe lembrava Verônica.
Ainda não era meio-dia, e havia poucos homens sentados. Um por um,
deixaram de falar e se viraram para estudá-la. Embora não pudessem ver suas
feições claramente, seu vestido e seu comportamento indicavam que não era
uma mulher que pertencesse ao salão, embora este fosse o elegante Rosa
Amarela.
O barman pigarreou nervosamente.
— Posso ajudá-la, Senhora?
— Eu gostaria de ver Baron Cain.
Ele jogou uma vacilante olhada para as escadas da parte superior e logo ao
copo que estava limpando.
— Não há ninguém aqui com esse nome.
Kit passou a sua frente e começou a subir as escadas.
O homem correu ao seu redor.
— Não! Você não pode subir aí!
— Olhe para mim — Kit não diminui o passo — E se não quiser que eu
invada o quarto errado, talvez deva me dizer exatamente onde posso encontrar
o senhor Cain.
O barman era um homem gigante, com um peito de barril e braços como
dois presuntos. Estava acostumado a tratar com vaqueiros bêbados e bandidos
armados que procuravam fazer uma reputação, mas estava indefeso ante uma
mulher que, evidentemente, era uma dama.
— Último quarto à esquerda. — murmurou — Vou ter sérios problemas.
— Obrigada.
Kit subiu as escadas como uma rainha, com os ombros para atrás e a cabeça
erguida. Esperava que nenhum dos homens que a olhavam pudesse adivinhar
quão assustada estava.
***
Cain apontou alguns dos lugares mais interessantes de San Carlos enquanto
andavam pela calçada desigual de madeira. Mantinha sua mão apertando a
dela colocada em seu cotovelo, mas suas respostas distraídas logo deixaram
evidente que seus pensamentos estavam em outro lugar. Contente com o
simples feito de tê-la junto a si, calou-se.
Miss Dolly estava esperando no quarto que Kit tinha alugado. Riu como
uma colegial quando Cain a agarrou e a abraçou. Depois, com um rápido e
preocupado olhar a Kit, partiu para visitar a loja geral ao outro lado da rua e
fazer algumas compras para seus queridos e grisalhos meninos.
Quando a porta se fechou atrás dela, Kit se virou para Cain. Estava pálida e
nervosa.
— Que acontece? — perguntou ele.
— Tenho uma... uma espécie de presente para você.
— Um presente? Mas eu não tenho nada para você.
— Isso não é... exatamente verdade. — disse ela com indecisão.
Perplexo, a observou escapulir por uma segunda porta que levava a um
quarto contíguo. Quando voltou, trazia um pequeno vulto branco nos braços.
Aproximou-se dele devagar, com uma expressão tão cheia de súplica que
quase lhe rompeu o coração. E então o vulto se moveu.
— Tem uma filha. — disse em voz baixa. — Seu nome é Elizabeth, mas eu a
chamo Beth. Beth Cain.
Ele olhou para baixo, a um diminuto rosto em forma de coração. Tudo nela
era delicado e estava perfeitamente formado. Tinha um penugem de cabelo
loiro claro, pequenas sobrancelhas escuras, e um nariz minúsculo. Sentiu uma
pontada aguda no intestino. Tinha ajudado a criar algo tão perfeito? E então o
coração bocejou e agitou suas pálpebras rosadas até abrí-las, e em um
segundo perdeu seu coração por um par de olhos violetas.
Kit viu como isto ocorria entre eles de forma imediata e sentiu que nada em
sua vida poderia ser alguma vez tão doce como este momento. Afastou a manta
de modo que ele pudesse ver o resto dela. Então lhe ofereceu a menina.
Cain a contemplou com ar vacilante.
— Vamos. — sorriu meigamente. — Pegue-a.
Ele tomou o bebê em seu peito, suas grandes mãos quase abrangiam o
pequeno corpo. Beth se moveu e virou a cabeça para olhar o novo estranho
que a estava segurando.
— Olá, Coração — disse em um sussurro.
***
Cain e Kit passaram o resto da tarde brincando com sua filha. Kit a despiu
para que assim seu pai pudesse lhe contar os dedos das mãos e dos pés.
Beth realizou todos os seus truques como uma campeã: Sorrindo com os
ruídos graciosos que lhe dirigiam, tratando de agarrar os grandes dedos que
estavam a seu alcance, e fazendo sons de bebê feliz quando seu pai soprava
em sua barriga.
Miss Dolly lhes fez uma breve visita, e quando viu que tudo ia bem,
desapareceu no outro quarto e se deitou para tirar sua própria sesta. A vida era
peculiar, pensou, quando estava a ponto de dormir, mas também era
interessante. Agora tinha à pequena e doce Elizabeth em quem pensar. Era
indubitavelmente sua responsabilidade. Depois de tudo, apenas podia contar
com Katharine Louise para assegurar-se que a menina recebesse a instrução
necessária para ser uma grande dama. Havia tanto que fazer. Sua cabeça
começou a dar voltas como um pião. Era uma tragédia, certamente, o que
estava ocorrendo na Câmara do Tribunal de Appomattox, mas provavelmente
fosse o melhor para todos.
Agora estava muito ocupada para se preocupar com o resultado da guerra...
No outro quarto, Beth começou finalmente a inquietar-se. Quando franziu a
boca e deu um grito de protesto para sua mãe, Cain pareceu alarmado.
— O que aconteceu?
— Está faminta. Me esqueci de alimentá-la.
Agarrou Beth da cama onde tinha estado deitada, e a levou a uma cadeira
perto da janela. Quando se sentou, Beth virou a cabeça e começou a acariciar
a malha cinzenta que cobria o seio de sua mãe. Quando não ocorreu nada de
forma imediata, ficou mais frenética.
Kit a contemplou, entendendo sua necessidade, mas, de repente, se sentiu
tímida por realizar este ato tão íntimo frente a seu marido.
Cain estava deitado no outro lado da cama, as olhando. Viu a angústia de
sua filha e intuía a timidez de Kit. Lentamente ficou de pé e se aproximou
delas. Estendeu a mão e tocou Kit na bochecha. Logo desceu para a fileira de
botões cinza de sua garganta. Calmamente a afrouxou com os dedos para expor
uma fila de botões rosa pérola que havia por baixo. Desabotoou-os e afastou o
vestido.
A fita azul de sua camisa íntima se soltou com um único puxão. Ele viu os
filetes de lágrimas nas bochechas e se inclinou para beijá-las. Em seguida
abriu a camisa de modo que sua filha pudesse se alimentar.
Beth se agarrou ferozmente com sua diminuta boca. Cain riu e beijou as
gordinhas dobras de seu pescoço. Logo virou a cabeça e seus lábios tocaram o
seio doce e cheio que a alimentava. Quando os dedos de Kit se enrolaram em
seu cabelo, ele soube finalmente que tinha um lar e que nada sobre a terra o
faria abandoná-lo.
***
Ainda havia promessas que deviam ser seladas entre eles. Essa noite, com
Beth agasalhada segura na cama onde Miss Dolly poderia cuidar dela, saíram
a cavalo para uma caminhada ao norte da cidade.
Enquanto montavam, falaram dos meses perdidos entre si, no inicío somente
dos acontecimentos e logo depois de seus sentimentos.
Falavam em voz baixa, às vezes na metade de uma frase, terminavam
frequentemente os pensamentos um do outro. Cain falou de sua culpa por
abandoná-la, afligido agora que sabia que estava grávida. Kit falou da forma
como tinha utilizado Risen Glory como uma brecha para mantê-los
separados.Compartilhar sua culpabilidade deveria ter sido difícil, mas não
foi.
Nem tampouco o foi o perdão mútuo.
Hesitante no começo e logo com mais entusiasmo, Cain lhe falou de um
pedaço de terra que tinha visto ao Leste, perto de Dallas.
— Como se sentiria se construísse outro moinho de algodão? O algodão vai
se converter em um grande cultivo no Texas, maior que em qualquer outro
estado do Sul. E Dallas parece um bom lugar para criar uma família. — a
olhou fixamente. — Ou talvez queira voltar para a Carolina do Sul e construir
ali outro moinho. Também estará bem para mim.
Kit sorriu.
— Eu gosto do Texas. Parece o lugar adequado para nós. Uma terra nova e
uma vida nova.
Durante algum tempo montaram silenciosamente satisfeitos. Finalmente,
Cain falou.
— Não me disse quem comprou Risen Glory. Dez dólares o acre. Ainda
não posso acreditar que o vendesse por isso.
— É um homem especial — o olhou maliciosamente. — Pode ser que se
lembre. Magnus Owen.
Cain jogou a cabeça para atrás e riu.
— Magnus tem Risen Glory e Sophronia tem seu fundo fiduciário.
— Simplesmente parecia o certo.
— Muito certo.
As sombras profundas e frias da noite, os envolveram quando entraram no
pequeno e deserto cânion. Cain amarrou os cavalos a um salgueiro negro, tirou
seu saco de dormir de trás da sela, e agarrou a mão de Kit. Levou-a à beira de
um pequeno rio que serpenteava através do chão do cânion. A lua os olhava,
uma redonda e brilhante esfera que logo os banharia com sua luz prateada.
Olhou para ela. Levava um chapéu de aba plana e uma de suas camisas de
flanela sobre as calças de montar cor bege.
— Não parece muito distinta de quando te fiz descer de meu muro. Exceto
que agora ninguém poderia te confundir com um menino.
Seus olhos se deslocaram para seus seios, visíveis inclusive sob sua
enorme camisa e ela o deleitou com seu rubor. Alisou o saco de dormir, tirou-
lhe o chapéu e depois tirou o seu, e deixou ambos na beira do rio.
Tocou os pequenos brincos de prata que ela tinha nos lóbulos das orelhas e
depois seu cabelo, enrolado em um grosso coque à altura da nuca.
— Quero soltar seu cabelo.
Seus lábios se curvaram lhe dando permissão docemente.
Tirou os grampos um a um e os pôs cuidadosamente no interior de seu
próprio chapéu. Quando a brilhante nuvem de cabelo caiu finalmente livre, ele
o agarrou em suas mãos e o levou suavemente aos lábios.
— Deus querido, como senti sua falta.
Ela pôs os braços ao seu redor e ergueu a vista para olhá-lo fixamente.
— Isto não vai ser um matrimônio de conto de fadas, verdade, querido?
Ele sorriu suavemente.
— Não vejo como. Somos tão irascíveis como teimosos. Vamos discutir.
— Te importará muito?
— Não o quereria de outra maneira.
Ela pressionou a bochecha em seu peito.
— Os príncipes dos contos de fadas sempre me pareceram aborrecidos.
— Minha rosa selvagem das profundezas do bosque. Nossa vida em comum
nunca será rotina.
— Do que me chamou?
— Nada — silenciou a pergunta com seus lábios — Nada absolutamente.
O beijo que começou calmamente, cresceu até que ambos ardessem em
chamas. Cain colocou os dedos em seu cabelo e sustentou sua cabeça entre as
mãos.
— Se dispa para mim, fará isso, querida? — gemeu suavemente — Sonhei
com isto durante muito tempo.
Ela soube em seguida como devia fazer para lhe dar maior prazer.
Lançando-lhe um sorriso aberto brincalhão, tirou as botas e as meias,
depois as calças. Ele gemeu quando a longa aba da camisa de flanela caiu,
recatadamente por cima de seus quadris. Ela estendeu a mão para ele, tirou
seus calções brancos, e os deixou cair junto a ela.
— Não tenho nada debaixo desta camisa.
Mal podia se controlar para não saltar em cima dela e abraçá-la.
— É uma mulher perversa, senhora Cain.
Sua mão se deslocou ao botão superior da camisa.
— Está a ponto de descobrir quão perversa sou, senhor Cain.
Nunca se desabotoaram uns botões tão lentamente. Era como se cada um
deles só pudesse ser desabotoado com o mais lento dos movimentos. Inclusive
quando a camisa estava finalmente desabotoada, o tecido pesado a mantinha
colada na frente.
— Vou contar até dez — disse com voz rouca.
— Conta tudo o que precisar, ianque. Isso não deixará as coisas mais fáceis
— com um sorriso diabólico, tirou a camisa lentamente, milímetro por
milímetro, até que finalmente ficou nua em sua frente.
— Não me lembrava muito — ele murmurou com força — Como você é
linda. Vem aqui meu amor.
Ela correu para ele através do solo gelado. Só quando o alcançou se
perguntou se ainda seria capaz de agradá-lo. E se ter tido um bebê a tivesse
mudado?
Ele agarrou sua mão e a puxou para ele, calmamente, tocou seus seios mais
cheios entre as mãos.
— Seu corpo está diferente — ela assentiu com a cabeça.
— Estou um pouco assustada.
— Está, meu amor? — Levantou seu queixo e roçou a boca com a sua. —
Prefiro morrer antes de te machucar.
Seus lábios eram suaves.
— Não é isso. Eu tenho medo... de não ser capaz de te agradar.
— Talvez eu não seja capaz de te agradar, — sussurrou ele calmamente.
— Tolo — murmurou ela.
— Tola — sussurrou ele como resposta.
Sorriram e se beijaram até que não suportaram a barreira da roupa entre
eles. Tiraram um ao outro o que ficava, e quando os beijos se tornaram mais
profundos, caíram sobre o saco de dormir.
Um farrapo de nuvem deslizou sobre a lua, enchendo de sombras móveis as
antigas paredes do cânion, mas os amantes não se deram conta. Nuvens, luas,
cânions, um bebê com rosto de coração, uma anciã com aroma de hortelã...
Tudo deixou de existir. Nesse momento, seu mundo era pequeno, formado
unicamente por um homem e uma mulher, juntos por fim.
FIM