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Comicidade e riso.

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"Id~ somos filhos de


'o capote' de Gógol", afirmou
COMICIDADE
Dostoiévski. Qual o significado
dessa obra para que tal colocação
se justifique? Na tentativa de
resposta, poder-se-ia dizer que
se trata de uma narrativa
ERISO
fantástica de uma personagem
ao mesmo tempo trágica e
ridiculamente engraçada; e,
ainda, da coexistência de dois
gêneros considerados
incomparáveis, do ponto de vista
dos valores estéticos, até a Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e
modernidade. Homero Freitas de Andrade
Na análise do cômico, Propp
recusa qualquer definição
abstrata ou o enquadramento
deste gênero como problema
estético ou filosófico . A partir
da coleta e da sistematizacão
de um material totalmente'
heterogêneo, e servindo-se do
métodoindutivo,oAutor procura
compreender a natureza do
cômico, a psicologia do riso e
sua percepção.
UnP .. UNIVERSIDADE POTIGUAR
BIBLIOTECA CAMPUS 111
I
Editor
Nelson dos Aei s
Preparação de texto
Ivany Picasso Batist a
Revisão
Lui za Elena Lu chini
Arte
Sumário
Ediçã o de arte (m iolo)
Milton Takeda
Coordenação gráfic a
Jo rge Qkura
Composição/Diagram aç ão em vídeo
Carla Narvaes Alcei
Eliana Apa rec ida Fern andes Santos
Capa
Ary Normanha
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. -." .' . : , • ... .
Prefácio ~ _ 5
Nota dos tradutores ., 11
Nota dos editores soviéticos _ 13
1. Um pouco de metodologia ~~_~ _ 15
O riso de zombaria
2. Os diferentes aspectos do riso e o riso
Tftulo orig ina l Prob/iémi Komisma i smiekha de zombaria _ 27
© 1976 Iskusst vo , Moscou
3) Quem ri e quem não ri _ 31
4. O cômico na natureza ._ _ 37
ISBN 85 08 04085 7 5. Observações iniciais _ 41
6. A natureza física do homem _ 45
7. A comicidade da semelhança _ 55
1992
Todos os d ireitos reservad os 8. A comicidade das diferenças _ 59
Editora Át ica S.A.
Rua Barão de Igua pe, 110 - CEP 01507 9. O homem com aparência de animal _ 66
Tel .: PAB X (011) 278·9322 - Cai xa Post al 8656 10. O homem-coisa _ 73
End. Telegrãfic o " Bom liv ro" - Fax: (011) 277-4146
São Paul o (SP) 11. A ridicularização das profissõ es _ 79
12. A paródia 84
13. O exagero cômico 88
14. O malogro da vontade 93
15. O fazer algu ém de bobo 99 Prefácio
16. Os alogismos 107
(1"7:' A mentira 115
18. Os instrumentos ling üísticos da comlcldade .c, 119
19. Os caracteres côm icos - 134
20. Um no papel do outro . Muito barulho -
por nada 144
Outros tipos de riso
21. O riso bom 151
22. O riso maldoso. O riso cínico 159
23. O riso alegre 162
24. O riso ritual 164 Boris Schna iderma n
25. O riso imode rado 166
Este livro de V. I. Propp (1895-1970), que nos traz tantos ele-
26. Considerações finais . Complementações mentos de reflexão e nos põe em conta to com todo um universo
e conclusões 170 de cultura com fronteiras bem diferentes das nossas, é, ao mesmo
27. Problemas de domínio da técnica artíst ica _ 184 tempo , uma obra marcada pelas circunstâncias em que foi escrita.
Muito s leitore s, provave lmente, se sentirão repelidos por certas refe-
Bibliografia 212
rências a "es téticas burguesas" , pelas citações freqüentes de Lênin
ou pela declaração explícita de que a "arma do riso" deveria ser
colocada "a serviço do comun ismo " . Depoi s dos últimos aconteci-
mentos, com o fim da própria União So viética, tais expressões soa m
como algo simplesmente pré-diluviano.
Que fazer neste caso? Numa nota prévia à segunda edição
russa das Raizes históricas do conto de magia de Propp I , que saiu
depois do início da glasnost, a folclori sta V. I. Ieriômina , respo nsá-
vel pela publicação, escreveu: "Os redatores se esforç aram para tra -
tar com O máxím o de escrúpulo o texto da primeira edição : uns
poucos e insignificantes cortes foram feitos unicamente naquelas
partes do livro que eram um tribu to à época em que a pesquisa veio

I V. 1. Propp , Istorltch eskie K árnt volchébnoiskázki , Ed. da Universidade de l eni n-


grado . 1986 . A primeira edição é de 1946.
6 CO\ Il CIOA DE E RISO PREFÁCIO

à luz" . Sem dúvida alguma, esses cortes tornam a leitura mais sim- a União Soviética uma campanha contra os " desvios ideológicos",
ples e agradável, mas te rá o editor o direito de inte rfe rir assim no o ucosmopolitismo" etc., e que fo i o sinal para o endurecimento
texto? Ademais, às vezes, to rna-se difícil precisar o limite entr e do regime, uma volta ao clima que se vivera durante os Processos
uma interferência externa, de coação , e as convicções do próprio de Mosc ou da décad a de 30. A gra nde rnit óloga Olga Freidenberg
autor. Por isto mesmo, na presente edição, os editores e a tradu- conta em seu diário (publicad o em inglês) e provavelmente inédito
tora seguiram o critério de acompanhar passo a passo o original. em russo) que, em 1948, ocorreu uma sessão no Depart amento de
Na minha opinião , deve ser este o caminho em relação a todo Filologia daqu ela Universida de, na qua l alguns dos nomes glori osos
um acervo riquíssimo de obras teó ricas, produzidas em pleno stali- dos estudos soviéticos de linguagem fo ram atacados pelos seus " er-
nismo. Se um Rom an J akobson pôde, graças à residência no exte- ros", isto depois de uma ca mpanha implacável pela impr ensa. Se
rior, ficar livre dessas injunções, elas estão presentes nos trabalhos houve quem se portasse com dignidad e, como foi o caso de Victor
de Mikhai l Bakhtin, V íctor Jírmún skí, Boris Eichenbau m, V. V. Jirmúnski, se Boris Tornach évski sofreu então uma síncope, O mesmo
Vinogradov, Victor Chkl óvski, S. M . Eisen stein e ta ntos outros. acontecendo com o fc lclorista Aza dóvski , qu e foi retirad o de maca ,
Em cada caso, cabe ao leitor separar o joio do trigo e saber apre- Propp , depois de co ntinuame nte agredido, "perdeu o senso de digni-
ciar a obra, embora ela traga a marca da época em que foi elaborada. dade que ele defendera po r tanto tem po" .
Esta posição to rna-se ainda mais adequada, a meu ver, em Torna-se difícil reconstituir o qu e rea lmente aco nteceu co m
relação a Propp, pois se trata de um pensad or ma rxista. Co nforme ele, mas a crise mor al que viveu pod e ser co nstatada até pelo tom
já tive ocasião de frisar', ele ficou muito marcado po r um du plo de seus escritos. Se até 1946 há neles muitas vezes uma a rgumenta-
estigma: pertencia ao grupo de estudiosos que constituíram o assim ção marxista em nível elevado", a partir daí passam a aparecer, apa-
chamado Formalismo Russo e, ao mesmo tempo, tin ha muita liga- rentemente , pobres concessões a um ambiente corrom pido e servil.
ção com os trabalhos de N. I. Ma rr, lingüista qu e pressupunha E o mesmo tom persiste depois que se iniciou o "degelo" do período
uma vinculação muito estreita entre o estádio de desenvol vimento de Khru schóv.
da socieda de e as formas que assumiam a lingua e as demais mod a- É impressionante que, em meio ao so mbrio e terrível da vida
lidad es de vida cultural. Por mais estranho que pareça hoje, as dis- russa, e sofrendo na pele as vicissitudes da épo ca, ele se tenha dedi -
cussões entre ma rristas e antimarristas foram encerradas em 1950, cado ao estudo do riso e do cômi co. Assim como Mikhail Bak htin
-com a publicaçã o de do is traba lhos assinados pelo próp rio Stálin, soube erguer - em pleno terror stalinista , quando sofria persegui-
depois dos quais o marrismo passou a ser mais um tabu e os marris- ções tremendas - um verdadeiro hino à alegria, à soltura, com o
tas caíram em desgraça. seu estudo sobre o "mundo do riso" na Idade Média e no Renasci-
Nessa época, porém, a situação de Propp j á era muito precá- mento , visto at ravés da obra de Rabe lais", Propp se deb ruça sobre
ria. Depo is da interd ição pura e simples do Formalismo Russo, os os mesmos pro blemas, embora com espírito bem diferente .
seus integrantes continuaram participando da vida intelectual, Sendo essencialmente um etnólogo e um lógico (pelo meno s
embora impedidos de publicar textos teóricos, a não ser quando rene- no modo de agrupar os dados e argum entar) , ele conduz a sua pes-
gava m o que haviam realizado. Uns se dedicaram a edições de obras qui sa no sentido de estabelecer uma tipolo gia do cô mico , na ba se
clássicas, o utros pude ram prosseguir na atividade d idática , embora de mat eriai s fornecidos pela litera tura e pelo folclore, mas também
sob severo co ntrole. V. I. P ropp continu ou então exercendo o seu com um balan ço critico do qu e já se escreveu so bre esse tema . A pr e-
cargo de professor da Universid ade de Lenin grado .
No entanto , provações maio res lhe estava m reservad as. Depois
) Incluído no livro organizado por Elliou Mossman e traduzido pelo organizador e
que, em agosto de 1946, o dirige nte politico A. A. Jd an ov apresen- por Margaret Wettlin, The correspondence of Boris Pasternak & Diga Freidenberg,
tou ao Partido um informe em que atacava a orientação "liberal" 1910-1954 . San Diego/ New York /London, edição de Harcou rt Brace Jovanovich,
de duas revistas de cultura de Leningrado, desencadeou-se em tod a 1983.
4 Um exemplo disso pode ser encontrado em meu prefácio citado na nota 2.
5 Tradução brasileira de Vara Frateschi Vieira a Mikhail Bakhtin, A cultura p opu lar
2 Prefácio de Boris Schnaiderman a V. I. Propp • .Morf ologia do conto maravilhoso. na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Franço ís Rabetals, São Paulo .
tradução de Ja sna Pa ra vich Sarh a n. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984. Hucitec, 1987.
COMJCIDADE E RISO PREfÁCIO

senta ndo um quadro abrangente, ele não no s dá, po rém, um estu do R ózanov? já se tenha voltado contra esta leitura , definid a por ele
exaustivo. Sua vasta erudição não o desviou de algun s parãm etros como ingênua, apesar de plenamente consagrada, e Vladímir Nabo-
claramente traçados. Os seus materiais são principalmente russos, kov, em seu livro sobre G ógol", também te nha esgrimido contra ela
mas há também um emprego sistemá tico de fontes alemãs (aliás, (a propósito de O cap ote, escreveu: " Dêem-me o leitor criativo;
P ropp já tinh a sido pro fessor de alemã o e em sua bibliogra fia apa- esta é uma históri a par a ele" ). Ma s, rea lista ou não , fundador ou
recem estudos sobre a língua alemã , mesmo nos períodos em que não da "esco la natural" russa, G ógol continua desafiando o leitor,
se dedicava intensamente ao folclore russo). e os fla shes que Pro pp no s dá de sua obra trazem , sem dúvida ,
H á certo or gulho de pesqu isador em suas afirmações de que uma contribuição valiosa. Veja-se, por exemplo , a seguinte observa-
partiu de elementos conc retos e não de abstrações, co mo fizeram ção : "G ógol não foi apenas um mestre do humorismo , mas ta mbém
outros teóricos. E, ao mesmo tempo , torna-se fascinante este seu um grande teórico, embora sejam raros os casos em que expõe suas
apego aos da do s empí ricos. Chega a tratar da "terrível e to tal abs- teorias" (p . 116), apo iada a seguir em vários exem plos. É interessa n-
tração" e dos " filosofemas mortos" , encontr ad iços principalmente tíssimo , também, o que nos diz sobre os seus cadernos de notas.
nas fontes alemãs que ele consultou, e isso traz inevitavelmente à Não são menos penetrantes suas observações (p . 203-4) sobre
lembrança a contraposição que Mefistófeles faz , no Fausto de Goe- as correções feitas po r Ostróvski na peça de um dram aturgo menor,
the, entre a verde árvore da vida e o cinzento da teoria. E está cer- e que a transformaram numa comédia interessante, apenas por meio
tamente de acordo com a afirmação de Propp , na discussão com de alterações estilisticas .
L évi-Str auss, no senti do de que este partia de pressup ostos teóricos,
Outras afi rmações do autor dão margem a muita controvérsia.
enquanto ele trabalhava sempre com a empiria" .
Pa rece muit o estra nha a sua observação (p . 35) de que o riso e o
Esta funda mentação nos exemplos concretos permite-lhe mui-
cômico estariam "totalmente ausentes" da literatura russa antiga .
tas vezes trazer mais clareza à discussão de certos conceitos de áreas
É inter essante observar qu e, no mesmo ano da publi cação deste
dificilmente delimitáveis. É o caso , entre outro s, do qu e escreveu
livro , apareceu uma obra importante, "O mundo do riso " na Rús-
sobre a diferença entre com icidade e humor (capít ulo 21) .
sia antiga, de D. S. Likhatchó v e A . M. P ânt chenko ", na qual se
Sua fa miliarida de com a bibliografia alemã percebe-se facil-
estuda esse tema, na base de um conceito bakhtiniano que se encon -
mente na abordagem qu e fa z desse tem a na obra dos gra ndes filóso-
fos. Às vezes, até para defender determinad as posições de mom ento, tra no livro sobr e Rab elais e a cultura popular na Idade Média e
em fun ção de fato s do cotidiano ru sso, vai buscar sua fu nd amenta- no Renascimento , dando-se muitos exemplos neste sentido . Em
ção em Kant , H egel ou Goet he. Assim , ele gasta muit as pág inas 1984, os mesmo s auto res publicaram , em colaboração com N . V.
para defender o humor tout court, contra os que a firma va m que Pcn irko , uma ampliação do livro 10, com o acréscimo de uma coletâ-
todo riso deveria ser dirigido para uma finalidad e social. Sem dúvida, nea de textos cõmicos da Rús sia ant iga. Seria um a resposta àquelas
neste caso, suf!. posição é perfeitamente correta, mas parece estra- afi rma ções de Propp?
nho que fosse necessário gastar tanta vela com defunto tão precário . Outras asserções, embora não derivem diretamente de imposi-
Em tod o caso , o tom elevado permit iu a Pr opp dirigir alguma s far- ções políticas, resultam claramente do clima que se criou na Rússia
pas, muito discretas e quase dissimuladas, contra a burocracia, perto no período stalinista. Assim, com freqüência aparece um moralismo
do final do livro , e isto, depois de lemb rar que o próp rio Lênin se que soa estra nho no Ocidente, como a a firmação , no final do ca pí-
divertia com os palhaços.
É sem dúvida enr iquecedora a leitu ra que ele faz de mui tas 7 V. V. R ózano v, o Gógole [Sobre G ógol], republicado em fac-símile por Prideaux
obras literá rias. Assim , os textos de G ógo l são interpretados mais P resé, Letch \Vorth, Herts, 1970.
8 Vladimir Nab okov, Nikolai Gogol, Norfo lk, Connecticut, New Directions Books,
de uma vez em função do cômic o e do riso . Ele o vê' como um 1944.
escritor essencialmente realista , embora num livro de 1906 V. V. 9 O. S. Líkhatcb óv e A. M. Pântchcnko , "Smiekhovoi mir" dríévniei Russí, Lenin-
grado, Ed. Naúka (Ciência), 1976.
10 o. S. Likha tch óv, A . M. Pântchenko e N . V. Ponirko , Smiekh v dr íêvnie í Russi
6 A resposta de Propp a L évi-St rau ss está incluída no livro citado na nota 2. [O riso na Rússia anti ga], Leningrado, Ed. Na úka, 1984 .
10 COM IC IO ADE E RI SO

tulo 22, de que o cômico ligado à ma ldade " não tem nada em
comum com a arte" . Neste caso, como fica o famoso conto Max
e Mo ritz de Wilhelm Busch, citado antes pelo autor, sem nenhu ma
ressalva neste sentido? E o mesmo tipo de moralismo faz com que
afirme no capitulo 25 ser difícil, hoje em dia, "perceber Rabelais
de modo tota lmente positivo".
Muitas outras afirmaçôes do livro me parecem completamente
discutiveis, particularmente a sua abordagem da par ódi a (capitulo Nota dos tradutores
12), que é vista sempre por ele como uma obra qu e rebaixa o tom
daquela qu e é parodi ada. Ora, neste caso, o que dizer de Doutor
Fausto de Thomas Mann, que é claramente a par ódia trágica de
uma tr agédia li ?
Apesar de tudo isso, trata-se de um livro importante e que
no s fazia falta. Se a sua Morfologia do conto maravilhoso deu mar-
gem , na décad a de 1960, a uma vasta discussão no Ocid ente , e que
repercutiu em no sso meio; se alguns conhecem, em traduções oci-
dentais, as Raizes históricas dos contos de magia; se Édipo à luz
do folclore e As transformações dos contos de magia já existem tam-
bém em português 12, falta ainda conhecer melhor o con junto da
obra deste importante teórico. Na Rússia, os seus tra balhos só come-
çaram a sair do ostracismo a partir de fins da década de 1960. E
isto certa mente explica o atraso com que estão sendo divulgado s
no Ocidente. A presente tradução baseia-se no texto original em russo de
V. I. Prop p Probliémi Komisma i smiekha (Moscou, Ed . Iskusstvo,
1976) e conto u com a colabo ração dos seguintes alunos do C urso
de Esp ecialização em Russo da Fac uldade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: Áurea Maria
Corsi, Jaqu eline Ram os, Lenina Pomera nz, Paula C. Lapo lla, Lucy
Eiko Sonoki, José Rob erto M. da Silva, Luiz Baggio Neto .
O sistema ut ilizado para a transliteração de nomes e palavras
russos obedece às regras gerais de pronúncia da língua original.
Não se optou pelo sistema de transliteração intern acion al, uma vez
que muitas dessas palavras, nomes principalmente, já possuem uma
for ma co nsagrada em portu guês por outras traduções do russo.
A trad ução das passagens citadas pelo Autor é da responsabi-
lidad e do s tradutores, exceção feita aos casos em que as obras rus-
11 No prefácio à seleção de textos de Oswald de Andrade, da coleção "Nossos Clás-
sicos", Rio de Janeiro , Agir, 1967, Haroldo de Campos trata da paródia em sua sas em questão já tenham sido traduzidas para o português. Quando
acepção etimológica de "canto paralelo" e não apenas no sentido de imitação isso ocorre, as indicações bibliográficas correspondente s são forne-
burlesca.
cidas em notas.
12 V . I. Propp, Édipo à luz do f olclore, Porto Alegre, Mercado Aberto; e V . I.
Pro pp, "As transformações dos contos de magia" , in Dionísio de Oliveira Toledo, Finalmente, as notas dos tradutores encontram-se numeradas,
org , Teoria do literatura fo rmatistas russos, Porto Alegre, Globo, 1973.
-s- ao passo que as do Autor são assinaladas por asteriscos.
Nota dos editores soviéticos

Vladim ir Iákov levitch Propp (29/ 4/1895-22/8 / 1970), famoso


filólogo soviético, lecionou na Universidade de Leningrado de 1938
até o final de sua vida. Os tra balhos mais importan tes de V. I.
Propp são dedicados ao s problemas de teoria e história do folclore.
Em obras como Morfologia do conto maravilhoso I (1928, 2. ed .
1969) e As raizes históricas dos contos maravilhosos (1946) ele estu-
dou a estrutura, a gênese e as primeiras eta pas da história do legado
indo -europe u referente ao con to maravilhoso . A Morfologia do
conto maravilhoso , que abria perspectivas amplas na análise desse
gênero e, em geral. da arte narrativa, adiantou-se muito às indaga -
ções análogas realizadas no Ocidente e constituiu o ponto de par-
tida para uma no va orientação no estudo do folclo re narrativo. São
da autoria de Propp também as pesquisas histórico-comparativas
fundame nta is sob re as bilinase, o folclore ritual e outros aspecto s
do gênero folclór ico (O epos heróico russo, 1955, 2. ed. 1958; Fes-
tas agrárias russas, 1963, e outros). V. I. Propp interessou-se tam -
bém pela aná lise do folclore especificament e literário enquanto arte
e pelas particularidad es de sua relação com a realidade.

1 Ex iste tradução brasileira, de Jasna P . Sarha n, publicada pela Ed. Forense Uni -
ver si tária.
2 Ca ntos épicos russos , em geral so bre as gestas dos boganri, heróis tradicion ais do
folcl o re russo .
14 COMICIDADE E RISO

Este novo trabalho de Propp sobre o cormco, que levamos


agora ao conhecimento dos leitores, constitui a última obra, em
muitos aspectos inacabada, da produção do Autor. Ele concentra
aqui sua atenção sobre a definição da especificidade do cômico ,
1
da psicologia do riso e a percepção do cômico. Um pouco de metodologia
É preciso levar em conta que V. I. Propp desenvolve sua aná-
lise baseado em grande quantidade de material literário e folclórico
próximo do âmbito de seus interesses, sem atribuir uma atenção
especial à categoria do cômico enquanto categoria filosófica estética.
Mesmo assim, o editor achou necessário publicar o último trabalho
desse eminente filólogo soviético. O prob lema do cômico ta l como
ele se apresenta hoje em dia à luz da estética rnarxista-Ieninista exige
um estudo ulterior e articulado, para o qual esta obra de Propp
parece-nos fornecer uma contribuição fundamental.

À primeira vista, um levantamento sumário das teorias corren-


tes sobre a comicidade oferece um quadro não muito satisfatório.
Involuntariamente surge a questão : é realmente necessária uma teo-
ria? Hou ve muitas teo rias. Vale a pena acrescentar mais uma às
inúmeras já existentes? Quem sabe ta l teoria não passe de um jogo
do intelecto , uma esco lástica morta, um filoso fema inútil para a
vida? À primeira vista, o ceticismo pareceria ter certo fundamento.
Com efeito , grandes humoristas e satiricos saíram-se muito bem sem
qualquer teoria. Dispensam-na também hum oristas profissionais
contempo râneos, escrito res, hom ens de teatro, de cinema, de teatro
de variedades, de circo. Entretanto , isto ainda não significa que a
teoria não seja necessária. A teoria é necessária em qualquer campo
do conhecimento humano. Nenhuma ciência pode dispensá-la em
nossos dias. A teoria tem antes de mais nada uma importância cog-
noscitiva e o conhecimento dela co nstitui, de um modo geral, um
dos elementos da concepção científica do mundo.
A falha primeira e fundamental de todas as teorias existentes
(particularmente as alemãs) é sua terrível e total abstração. Criam-
se teorias sem qualquer relação com a realidade. Na maioria dos
casos elas realmente representam filosofemas mortos, e, além do
mais, expostas de forma tão complexa que às vezes torna-se sim-
16 COMICID ADE E RISO UM POU CO DE METODOLOGIA 17

plesmente impossível entendê-las. Esses trabalhos não passam de como o maior dos humorista s e satíricos de todos os tempos, dei-
meros raciocínios , onde às vezes em páginas inteiras ou em algu- xando bem para trá s todos os demais mestres russos e não russos.
mas dezena s delas não se apresenta fato algum . Os fatos são rara- Por isso o leitor não deve surpreender-se com o fato de tantos exem-
mente introduzidos, apenas como ilust raçõ es das teorias abstratas plos terem sido extraidos das obras de Gógol . Mas não nos limita-
que estão sendo exposta s; e, além disso, escolhem-se fatos que pare- mos a Gógol. Foi necessário examinar a obra de uma série de outros
cem confirmar as teses apresentadas; porém , sobre os fato s que não escritores do pa ssado e do presente . Atraiu-nos também a cria ção
as confirmam, guarda-se silêncio, os autores nem sequ er os notam. popular, o folclor e. Em alguns casos , o humor do folclore envolve
Devemos resolver a questão da s relações entre a teoria e os alguma s par ticularidades especificas que o distinguem do humor
fatos de modo diferen te do que tem sido feito até aqui. Sua base dos escritores profi ssionais. Com maior freqüência , entretanto , é
deve ser um estudo sério e imparcial dos fato s e não elucubrações justamente a arte popular qu e oferece um material evidente e signi-
abstratas, por mais interes santes e atraentes que eles venham a ser ficati vo que não pode de modo algum ser ignorado.
enquanto tais . Para resolver o problema da comicidade não podemos nos
Em qualquer pesquisa, o método pode ter uma importãncia limitar à obra dos clássicos e aos melhore s exemplo s do folclore.
decisiva. Na história de nosso argumento, o método, na maioria Foi necessário conhecer a produção corrente da s revista s humorísti-
absoluta do s casos, consistia em definir a priori a natureza do cas e satíricas, incluindo-se os folhetin s publicados em jornais. As
cômico no quadro dos sistemas filosófico s a que se atinham seus revistas e a imprensa refletem a vida cotidiana, que , como a arte,
autores . Estes partiam de algumas hipó teses para as quais colhiam está dentro do âmbi to de nossa atenta pesquisa . Foi indispen sável I
exemplos, que deveriam ilustrar e demonstrar as próprias hipóteses. levar em consideração não apenas as obras estritamente literárias
I
Este é o método dedutivo. Ele é possível e se ju stifica nos casos como também o circo, o teatro de variedades, a comédia cinemato-
em que os fatos são insuficientes, em que são poucos por sua natu- gráfica e as conversas ouvidas em diferentes lugares...
reza, quando não se pode observá-los diretamente e quando não Um teórico experiente perceb erá de imediato que não dividi-
são passíveis de explicação por outro caminho. mos os fato s em fatos referentes e não referentes à estética .
Mas há outro método que não par te de hipóteses, e sim de Utilizamos o material reunido tal como ele se apresenta: a rela-
um cuidadoso estudo comparativo e de uma análise do s fatos para ção entre os fenôm enos da estética e os fenômenos da vida foi exa-
chegar a conclusões apoiadas nos próprios fatos. Este é o método minada posteriormente, após o estudo do material.
indutivo. A maioria das ciências contemporâneas não pode ser cons- O método da pesqui sa indutiva , baseado na elaboração dos
truida apenas com base na formulação de hipóteses. Onde os fatos fatos, permite evitar a ab stração e suas conseqü ências, tão caracte-
o permitem, deve-se adotar o método indutivo. Somente ele per- rísticas da maioria das estéticas do século XIX e início do XX . O
mite um estabelecimento confiável de verdades . probl ema dos diferentes aspectos do riso e de como seja possível
Ante s de tudo, foi necessário, sem desprezar nada, sem reali- realmente classificá-los será colocado mais adiante (veja-se a segunda
zar qualquer seleção , reun ir e sistematizar o material. parte do livro) .
Foi necessário levar em conta tudo aquilo que provoca o riso É bastante evidente a impo ssibilidade de apres entar neste livro
ou o sorriso, tudo o que, ainda que remotamente, se relaciona ao todo o material examinado , mas isso nem sequer é necessário. As
domínio da comi cidad e. categorias resultantes podem ser ilustradas apenas por exemplos
O presente trabalho é basicamente um trabalho de ciência da escolhidos. No que diz respeito à exposição , o método a seguir será
literatura. Por isso, em primeiro lugar estudou-se a ob ra de escrito- semelhante aos que foram adotados por outrem, mas no que se
res. Começamos o estudo com as mais conhecidas e talentosas refere à essência da pesquisa ele é completamente diferente. São os
expressões do humor e da cornicidade, mas também tivemo s qu e exemplos que mo stram quai s fato s e quais categorias de fato s levam
levar em consideração manifes tações menore s e de pouco sucesso. a uma determinada conclu são.
Foram estudados sobretudo os clássicos russos. As obras de Gógol A abstração não é o único defeito das teorias existentes. Há
revelaram-se um grande tesouro. Gógol surgiu aos nossos olhos outras falha s que é preciso esclarecer para que possam ser evitadas.
UI CO\IIC IDAU lO E RISO
UM PO UCO DE METOOO LOGIA 19

Uma delas co nsiste no fato de qu e os principias básicos tomad os modo como são elaboradas, são trágicas por seu conteúdo. Um exem-
como verdadeiros pelos autores precedentes cont inuam sendo acei- plo disso são o Diário de um louco- ou O capote' de Gógo l.
tos como verdadeiros sem serem submetidos a nenhuma verificação. A contraposição do cô mico ao trágico e ao sublime não revela
Um desses principios é a jus taposição de cômico, trágico e sublime, a natureza da eomicidade em sua especificid ade, sendo que é este
sendo que as conclusôes obtidas a partir do estu do do trágico ou jus tam ente o nosso objetivo. Tentaremos dar uma definição da comi-
do sublime são aplicadas inversamente ao cômico, como que com cidade sem nos preocuparmos com o trágico ou com o sublime,
sinal trocado . mas procurando compreender e defi nir o cômico enquanto tal. Nos
Para Aristóteles era natural, ao tratar da defi nição da essência casos em que, por uma razão ou outra, o côm ico tiver relação com
da comédia, partir da tragédia como seu oposto, pois, na prát ica e o trágico , isso será levado em consideração, mas não será este °
na consciência dos ant igos gregos, justamente a tragédia tinha um nosso ponto de partida.
significado prioritário. Quando , porém, esta contraposição conti - A falta de con ceituação da especificidade do cômico con stitui
nua a ser levada adiante nas estét icas dos séculos X IX-XX , ela se o outro defeito, por assim dizer quase constante da maioria dos tra-
revela morta e abstrata. Para a estética do idealismo romântico era tados. Diz-se, por exemplo , que são cômico s os defeitos das pes-
natural fundamentar qualquer teoria estética no sublime e no belo soas. Claro está, contudo, que esses defeitos podem ser ou não ser
e opor-lhe o cômico como algo ba ixo e contrário ao sublime. Con- absolutamente cômicos. Deve ainda ser estabelecido em que condi-
tra essa interpretação já se insurgira Belínski, que, conforme vimos, ções e em que casos quai s defeitos serão ou não ridicu los. A exigên-
tivera ocasião de mostrar, com o exemplo de G ógol, a grande impor- cia pode ser generalizada, dizendo-se: diante de qualquer fato ou
tância que justamente o cômico pod e vir a ter na arte e na vida caso que suscite o riso, o pesquisado r deve, a cada vez, co locar-se
social. Porém, essa intuição de Belínski não foi retom ada por outros; a q uestão do caráter específico ou não específico do fenômeno em
continuou-se a acreditar no fato de que o cômico se opõe ao ele- exame, e de suas causas . Em alguns casos esse problema foi co lo-
vado e ao trágico como um principio sem necessidade de demo nstra- cado também no passado, mas não na grande maioria das vezes.
ção . Dúvida s quanto à verdade desta contraposição já haviam sido Já foi referi do ante riormente o exemplo de definições do cômico
expressas pela estét ica positivista alem ã do século XIX. Assim, Vol- que se demonstraram dema siado amplas: elas abarcam também
kelt escrevia: "O cômico é examinado no âmbito da estética, segundo fenômenos que nada têm a ver com o cômico . Filósofos dos mais
um pont o de vista co mpletamente diferente daqu ele do tr ágico" ; importantes incorreram nesse erro. Assim, po r exemplo, Scho pen-
"O cômico não é absolutamente um elemento oposto ao trágico, hauer afi rmava que o riso surge quando, de repente, descobrimos
embora não possa ser inserido na mesma série de fenômenos aos que os objetos reais do mundo à nossa volta não co rrespon dem ao s
qu ais perten ce ta mbém o trágico I...] Se existe algo oposto ao conceitos e às representações que deles fazemo s. Ele tinha em ment e,
cômico, é o não-cômico, o sério" (55, 341, 343)'. Ele diz o mesmo é cla ro , caso s em que esta falt a de correspondência provocava real-
do sublime. Esta idéia, que out ros também expressaram, é sem mente o riso. Deixa de dizer, porém, que nem sempre essa falta de
dúvida correta e profíc ua. O cô mico deve ser estudado , antes de correspondência é cô~ica : quando , por exemp lo , um cientista rea-
mais nada , por si e enquanto tal. Em que , de fato , as divertidas liza uma descob erta que mu da completame nte a idéia que tem de
novelas de Boccaccio, ou A carruagem de Gógo l, ou Sobrenome cava- seu objeto de estudo s, quando ele se dá conta do erro em que incor -
lar' de Tchékhov são o co ntrário do tr ágico? Elas simplesmente nada rera até então, a descoberta desse equívoco (a " falta de correspon-
têm a ver com o trágico , estão fora de seu domínio. E mais ainda: dência entre o mundo à nossa vo lta e os concei tos que temo s de le")
há casos de obras que, apesar de cômicas pelo estilo e pelo localiza-se fora do domínio do cômico. Não recorreremos a outros
exemplos. Disso decorre para nós um postulado metodológico : em
. Aqui e adiante o primeiro número entre parênteses corresponde à obra citada na
bibliografia final, o algarismo romano , quando houver, indica o volume da obra 2 Trad uç ão brnsilci m (Ind ireta ) em Contos russos, S ão Paulo, Edigrar. s.d. p. 3 1.52 .
em questão, e os últimos números, as páginas. (Co l. Prin u u c-, cl n Conto Univ r..rsal . I X) .
1 Há tradução brasileira de Tatiana Belinky em Contos da velha Rússia. Rio de 3 11:\ lr"d tl ~·.l n hrll\ikUll (urdirctu ) de" Vinldu \ 11(' MUI .lI" \ ('111 () U\ 'rtl ti.' /111/\11 d o\
Janeiro, Edições de Ouro. 1966. p. 117· 22. (' 01110 \ '11\'''' H:tu dI" 1.U\ 1"111l. I d l ~ l' t' ,I.' I hu n , , 11 11 1' , Mil
2U CO:<.IlCIDADI E RISO UM pouco DE \lETODOLOGJA 21

cada casa isolado é preciso esta belecer a especificida de do cô mico, - alto e baixo - surge no,século X IX. Nas poética s da que le século
é preciso verificar em que grau e em que condições um mesmo fenô- afirma-se com freqüência que nem todo o âmbito do cômico repre-
meno possui. sempre ou não. os traços da comicidade. senta obrigatoriamente algo de baixo. mas que é como se ele tivesse
Há outros defeitos ainda contra os quais é preciso se precaver, dois aspectos : um deles relacionado com o domínio da estética,
para não rep'ti.los. Analisando os trabalhos sobre estética , é possí- entendida como a ciência do belo, e o outro, que fica fora do domí-
vel verificar que eles são perpassados pela idéia de que o cômico se nio da estética e do belo e se apresenta como algo de muito baixo.
baseia na COntradição entre forma e con teúdo. O problem a da forma Definições teóricas daquilo que se entende po r "cô mico bai-
e do conteúdo ta mbém deve ser coloca do , mas isso só pod e ser resol- xo" não cost uma haver. mas quando existem são muito insatisfató -
vido depo is do estudo de fato do material e não antes. Uma vez a na- rias. Um dos defensores dessa teori a fo i Kirchmann. Ele divide
lisado o material, será necessário voltar a este problema e encontrar todo o domínio do cômico em "cô mico-fino" e "cômico-grosseiro".
uma saída para aquela confusão tão característica das estéticas de A co micidade, segundo sua teoria, tem sempre como causa alguma
no ssos dias. Somente à luz de materiais concretos e não com base ação insensata ou absurda. "Se o absurdo co mparece em grau ele-
em construções apriorísticas será possível decidir se realmente existe vado [ ] entã o o cômico é grosse iro, se o absur do for menos explí-
a lgum tipo de contr ad ição na base do cômico . E, caso se descubra cito [ ] então o cômico é fino " (50, 11 , 46-7).
que assim é. Se deverá então estabelecer se essa contradição que existe O caráter ilógico e a inconsistência de tal defi nição são mais
se dá entre forma e conteúdo ou em outra coisa qualquer. do que patentes. Em lugar de distinções precisas é dada uma grada-
Até agora falamos principalmente de um único problema, ou ção indefinida.
seja, da definição da essência da comicidade. Pois bem , este pro- Mais freqüentemente a natureza da comicidade "grosseira"
blema é fundamenta l, mas não é de modo algum o único . H á mui- não é nem sequer definida. Em lugar da definição são dados tão -
tos outros prob lemas ligados à questão do riso e da comicidade. somente exemplos. Assim, Volkelt reconduz a esse conceito tudo o
Por enquanto, começaremos por destacar e analisar um deles, por- que está ligado ao corpo humano e às suas tendências naturais. "A
que nos parece indispensável verificar a própria metodologia antes gula, a bebedeira , o suor, a expectoração, a er uctaç ão [.. .] tudo
de nos ap rof~ndarmos no exam e do mate ria l. aq uilo que se refere à expulsão da urina e da s fezes" etc. Ele não
Trata-se da teoria, ainda não abordada aqui mas muito impor- reflete sobre em que casos tudo isso é cômico ou n ão. Tal cornici-
ta nte , dos dOis aspectos diversos e opostos da comicidade. dade - pensa Volkelt - é seto r prefere ncial da literatu ra po pular,
Muita s estéticas bur guesas a firmam que existem doi s aspectos embora se enco ntre também em outros escrito res. Shak espeare, por
de comicida de: a comicidade de ordem superior e a de ordem inferior. exemplo , é muito rico neste tipo de cornicidade: "De uma maneira
Na definição do cô mico figuram exclusivamente conceitos nega- geral, Shak espea re, mais do qu e qualq uer outro poeta , reú ne uma
tivos: o côrnic-, é algo baixo. insignificante, infinitamente pequeno, dissolução an ima lesca a uma licenciosidade repleta de hUnlor" (55,
material. é o co rpo . é a letra, é a forma, é a falta de idéias. é a apa- 1, 409-10). Do outro lado estão as comédias finas requi ntadas, rebus-
rência em sua falta de correspondência, é a contradição. é o con- cadas. Como exemp lo de comédias do tipo ele se refere à peça de
tras te, é o COnflito , é a oposição ao sub lime, ao elevado , ao idea l, Scribe, Um copo de água, onde se entusiasma pelo diálogo refi nado
ao espiritual etc. etc. A escolha dos epitetos negativos que envolvem e espirituoso entre o duque Bolingbro ke e a du quesa de Mar lbor-
o co nceito de cô mico, a oposição do cômico e do sublime, do ele- ou gh . Uma comi cidade desse tipo não suscita um riso vulgar, mas
vado , do belo , do ideal etc., expressa -certa atitude negat iva para um sorriso sutil.
com o riso e para com o cômico em geral e até certo desprezo. Tal Outros teóricos estabelecem as formas do "cômico-baixo" e
atitude depreCiativa manifesta-se muito claramente em filósofos idea- remetem a este aspecto da com icidade todos os tipos de farsa, de
~mo Schopen hauc r, Hegel, Vischer e out ros. pa lhaçada , de espetáculo circense etc. Em seu livro de co ntos humo-
! A<lI/i nã o se trata ainda da teo ria dos do is aspec tos do côm ico: rísticos. Leacock escreve: "Não se trata de um riso paroxístico pro-
, ~. rata-se t40-sQmente de uma atitude negativa para co m a co rnici- vocado pelas caretas de um pa lhaço salpicado de fari nha ou sujo
" d; de'J 1 era l, enquanto tal. A teoria dos dois aspect os do cômico de fuligem que se apresenta no palco de um miserável teatro de
U~I POUCO DE MET ODOLOGIA 2.l
11 COMICIDADE E RISO

var ieda des , mas de um humorismo rea lmen te gra nde, que ilum ina Isso porém não é tudo. Na teo ria dos do is aspectos da comici-
e eleva nossa literatura, no melhor dos casos uma vez, ou no máximo dade, a "fin a" e a "vulgar", entra também uma diferenciação
duas vezes a cada século". Ao s tipos de comicidade "v ulgar", "bai- soc ial. O aspecto ref inado da co micida de existe para as pessoas cul-
xa" ou " exterior" atribuem-se, na maioria dos casos , elementos tas, para os ari stocratas de espírito e de o rigem. O segundo as pecto
burlescos como narizes vermelhos, barrigas grandes, contor ções ver- é reservado à plebe , ao vulgo, à multidão. E . Beyer escreve: " O
bais, bri gas e pelejas, vigarices etc. cõ mico-ba ixo é adeq ua do ao teatro popular (Volk sstücke), onde
Será qu e pode mos nos ater a essa teo ria, po demos co meçar os conceitos de decência , de decoro e de co m por ta mento civilizado
por aí para organizar e estudar nosso material? Não partiremos dessa possuem limites mais a mplos" (42, 1, 106). Referind o-se à demasiado
teoria, pois teríamos que descartar como "cômico-baixo" uma parte ampla difusão do "cô mico-baixo" ele escreve que "isso é sabido
significativa do patrimônio de nossos clássicos . Se examinarmos com por todos aqueles que co nhecem a literatura popular" e reporta-se
atenção as comé dias clássicas reconhecidas como "e levadas" , verifi- aos livros populares alemães, ao teatro popular de marionetes , a
ca remos facilmente que os elementos de far sa permeiam to das. As alguns co ntos mar avilhosos etc . (42, 1, 409).
comédias de Ar istófanes têm um forte conteúdo politico, ma s é pre- A firmações desse tipo não são raras nas estéticas alemãs e isso
ciso, ao nosso ver, remetê-Ias ao domínio da comicidade "baixa", é sinto má tico . O desprezo pelos bufões, pelos atores do teatro de
"vulgar", ou co mo se costuma dizer às vezes, "exterior". Para ser- feira, pelos clowns e os palhaços e, em gera l, por q ua lquer tipo de
mos rigorosos, porém, será necessário co locar nessa mesma catego- alegria desenfreada é o desprezo pelas font es e pelas fo rmas popula-
ria tam bém Moliere, Gó gol e, afi na l, to dos os clássicos. Qu and o res de riso. Pú chkin , po r exemplo , co m porta-se de mod o co m pleta -
ao beijar a mão de Maria An t ónovna, Bóbtchin ski e D óbtchinski' mente diferente a esse respeito . "O drama surgiu na praça e tornou-
batem a ca beça de um na do ou tro, de qu e tipo de co micida de se
se um divertimento popular" - dizia, sem o menor desprezo por
trata, alta ou baixa? Examinando-se o caso com cuidado, ver-se-á
esse divertimento de rua. O car áter particular do hum o rismo pop u-
q ue a ob ra de G ógol encontra-se tod a ela impreg na da de co mici-
lar foi not ad o ta mbém por Tchernichévski, sem a meno r at itude
dade "baixa" ou "vulgar". Os contemporâneos de G ógol, por
depreciativa, porém:
sinal, acusavam-no justamente de ser trivial, não co mpreendendo
a imp ort ân cia de seu humor. Esse gênero de acusações pod e ser o verdadeiro reino da farsa - diz ele - é o divertimento, por exe rn-
encontrado ta m bém mai s recentemente. Hou ve estudiosos c histo- pio, nessas representa ções de feira. Mas os grandes escritores não
riado res da literatur a que se escandalizavam com as vulgaridades desprezam a farsa: em Rabelals ela domina absoluta e em Cervantes
nós a encontramos com extrema freqüência (34, 11 , 187).
de Gógol. Entre esses, L Mandelstam, que escreveu um volumoso
ensa io so bre o estilo gogo liano . Ele acha , por exemplo , que as qua- Ninguém poderá negar a existên cia de brincad eiras de ma u
lidades a rtisticas de O casamento teriam ga nho muito se Gógo l gosto , de farsas triviais, de anedotas equívocas, de variedades vazias
tivesse tirado. as seguintes expressões, que ele refere textualmente: e de burlas idiot as. Ma s a vulga ridade é enco ntra da em tod os os
"Mas, você não tem uma gota de juízo? Por acaso endoidou? Diga- seto res da produção literári a . Mal nos aprofundamo s na análise
me, por favor, se você não é um po rco depois de tudo isso?" do material , logo veri ficamos a absol ut a imposs ibi lida de de sub divi-
"Essas palavras", escreve Mandelstam, "são dirigidas a um dir o cômico em vulgar e elevado . Durante nosso estudo não levare-
público de espetácu los de feira". Gógol, segundo o pr o fessor , deve- mos em consideração essa teoria, sendo que, após o exame dos fatos,
ria ter exp urgado suas o bras de "semelhant es excessos" (26, 53). no entanto, será indispensável entrar no mérito da questão do valor
Ao bem-educado pro fessor incomoda també m a sortida qu antidade artístico e moral ou, ao co ntrário, do caráter nocivo de algumas
de xinga mentos enco nt ra dos em Gó go l. formas de co micidade . Esse problema é extremamente atual e exige
um a solução ar ticul ada e fundamentada . Do po nto de vista metodo-
4 Personagens de O inspetor geral, de N. Gógo l. Há tradução brasileira (indireta) lógico, para nós é necessário procurar resolver esse problema tam-
de Augusto Boal e Gia nfra ncesco Guarnieri publicada pela Ed. Brasiliense (São
Paulo. 1966) e depois pela Abril Cultural (São Paulo , 1976. Col. Teatro Vivo) . bém, co mo o utros importantes, a pós o exa me do s fatos .
24 COMICIDADE E RISO

Uma das questões mais difíceis e controver sas da estética é jus-


tamente a do caráter estético ou extra-estético da comicidade . Esse
problema aparece freqüentemente ligado ao das formas "baixas",
"primárias" ou " exteriores" da comicidade e ao das forma s "de
ordem mais elevada". As assim chamadas formas " exteriores" ou
"baixas" de comicidade não são habitu almente consideradas como
pertencentes ao domínio da estética. Trata-se, por assim dizer, de
uma categoria extra-estética. A falsidade de tal teoria torna- se logo
evidente se lembrarmos Aristófanes ou os trechos dos clássicos que
têm caráter de farsa . Categoria extra-estética é considerado também
qualqu er tipo de riso que não se origine de obras de arte . Isto talvez
até pode ser verdadeiro. Porém, conform e já tivemos ocasião de dizer,
qualquer estética que se afaste da vida terá inevitavelmente um cará-
ter abstrato e inadequado aos fins de um verdadeiro conhecimento.
Em muit os casos, para diferenciar a categoria estética (" supe-
oRISO DE ZOMBARIA
rior ") da categoria cômica e extra-estética ("inferior "), cria-se uma
term inologia diversa. No prim eiro caso fala-se de "cômico" e no
segundo de "ridículo" . Nós não faremos esta distinção; são os fatos,
na verdade, que devem nos mostrar se esta divisão é legítima ou
não. Nós reunimos sob a única denominação e conceito de "comici-
dade" tanto o " cômico" quanto o " ridículo" s. Ambos os termos,
por enquanto , significarão a mesma coisa. Isso não quer dizer que
a comicidade seja algo completamente não difercnçado .(Í)iferentes
aspecto s de comicidade levam a diferentes tipo s de riso e nisso, prin -
cipalmente, será concentrada nossa atenção)

5 A trad ução do s termos russos orientou -se no seguinte sentido: kom ism foi sempre tra-
duzido por "comicidade"; kom itcheskoe por " cômico" (adj . ou subst.) e smechnoe
por " engraçado" , " ridículo " ou "risível" e, como pede o autor, às vezes por "cômi-
co" . conforme exigência do contexto . A acepção do termo " ridículo" não é necessa-
riamente pejorativa : significa apenas "que suscita o riso" .
2
Os diferentes aspectos
do riso e o riso de zombaria

Fora m apresenta das no capítulo precedente as classificações


propostas pela maior parte das estéticas e poéticas. Para nós é ina-
ceitável que ainda seja necessário buscar no vos e o utros caminhos
de sistematização . Partimos do fato de que o c"_mico e o riso não
são ai o de abstrato. O hom em n . ão é possível estudar o Pl pblema
<:l? da comicidade fora dapsico\Qgia do riso e da p-"r~pção do côm ico.
Por isso começamos por colocar o problema dos d iferentes tipos
de riso. Pod e-se perguntar : cert as formas de comicidade não.esta-
riam ligadas a certos aspect os do riso2-Por isso é preciso ver e deci-
Ir qu ant os aspectos do riso pod em ser estabelecido s de um mod o
geral, e quais deles são mais importantes que o utros para os nossos
objetivos.
Esta qu estão já foi colocada na bib liografia à nossa disposi-
ção . A tentativa mais completa e interessante de enumeração do s
diferentes aspectos do riso foi realizada não por filóso fos ou psicó-
logos, mas pelo teórico historiador soviético da comédia cinema to -
gráfica R. Iurêniev, que escreve:
\ o riso pode ser alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo,

~
soberbo e cordia l, indulgent e e insinuante, dep recia tivo e tímido , aml-
gável e hosti l, Irônico e sincero, sarcást ico e Ingênuo. terno e gros-
seiro, significativo e gratu ito, triunfante e justificativo, despudorado
28 COMJCIDA DE E RISO
OS DIFERENTES ASPECTO!; DO RISO E o RISO DE ZOMHARIA 29

e emba raça do. Pode-se ainda aumentar esta lista : divertido, mel ancó- Se obse rva rmos o quadro de Repin qu e represent a os cossac os de
lico. nervoso , histérico, gozador, fi sio lógi co, ani malesco. Pode ser
até um riso tétrico! (41, 8). Za po r ójie escre vendo uma ca rta ao sultã o turco, veremos co mo é
gra nde a varieda de de nu anças de riso expressa pelo pintor - desde
Esta lista é interessante po r sua riqueza, seu colorido e sua vita- a risada ruidosa e fragorosa até o esga r ma ldoso e o sorriso sut il
lidad e. Ela não foi obt ida a par tir de elucub ra ç ões a bstratas , ma s qu e ma l se percebe. Porém , é fácil co mpreende r q ue to dos os cos -
de uma o bservação efetiva. O autor desenvolve em seguida suas sacos represent ad os po r Repin riem um único tipo de riso , precisa-
observações e mostra q ue cgt()sa~pectos do riso li ~en­ mente o [ iso escarnecedor de zombaria . )
tes..i!t1t udes do ser huma!!9, e como elas constituem um dos princi- A focali zação deste pr ime iro e para nós importantíssimo tipo
pais objetos das comédias. 9QStaríamos, pri ncipalmente , de sub li- de riso leva-nos à exigência de um est udo ulterio r e ma is detalhado.
nhar que, em seu estudo consagrado ao filme cô mico soviético. o De acordo com que princípio estabelecer subcategorias? O ma terial
a utor inicia exatamente com perguntas sobre os aspectos do ris . demonstra que o método mais funcional é o de ordenar o pró pr io
Esta q uestão revelou -se mui to importante para ele. Ela é importante material de acordo co m as causas q ue suscitam o riso . Fa lando mais
também para os nos sos objetivos . Par a Iurêniev, a questào dos simplesmente, é preciso estabelecer do que , em essência, riem as pes-
aspectos do riso é importante porque vários deles são característicos soas e o que exa tamente é ridículo para elas . Em poucas pa lavras,
dos diferentes a spectos das tramas das comédias. Para nós, é outra podemos sistematizar o material co nforme o objeto da de rrisão.
coisa qu e impo rta. Devemos reso lver a q uestão de sa ber se determ i- (Aq ui verem os qu e é possível rir do hom em em qu ase to das as
nados aspectos do riso estão liga dos a determinados aspectos do suas ma nifestações . Exceção feita ao domínio dos sofrimentos, coisa
êimico ou não) que Aristóteles já hav ia notad o . Podem ser ridículos o aspecto da
A lista de lurêni ev é bastant e detalhad a mas não é co mpleta. pessoa, seu ro sto , sua silhueta, seus mo vimen tos. Podem ser cô mi-
Falta em sua catalogação aquele aspecto do riso que, de aco rdo com cos os racio cínios em qu e a pessoa a par enta po uco senso co mum ;
os resu ltados de nossa pesquisa, surge co mo impo rta ntíssimo para um cam po especial de escá rni o é co nstit uído pelo ca ráter do homem ,
a com preensão das obras literári as, isto é, o riso de zo m baria. P ara pelo âmbito de sua vida moral, de suas asp irações, de seus desejos
dizer a verdade, este tipo de riso é con siderado mais tarde, mas não e de seus objetivos. Pode ser rid iculo o qu e o homem diz, como
apa rece na lista . Desen volvend o a id éia de qu e os di ferentes aspec- manifestação daqu elas ca racterísticas que não era m notadas enqu ant o
tos de riso co rres po nde m aos difer ente s tip os de relações humanas, ele permanecia ca lado . Em poucas palavras, tan to a vida fisica
o autor escreve: " As relações recíprocas entre as pessoas q ue surgem q uant o a vida mor al e int electu al do ho mem pod em tornar-se objeto
duran te o riso , ligadas ao riso , sào di ferentes: as pessoas zom bam, de riso .)
ridiculariza m, de sfazem [.. . J" Desse modo , a zo mba ria é colocada Na arte temos exat amente o mesmo : na s o bras humor ísticas
em primeiro luga r e essa ob ser vação é para nós mu ito valiosa . de q ua lquer gênero o homem nos é mo str a do naqu eles aspectos
Já Lessing, em Dramaturgia de Ham burgo, havi a dito: "Rir qu e são o bjeto de zombaria também na vida. Às vezes é ba stante
e zombar são coisas bem diferent es" . Nós co meça remos pelo estudo simp les mo stra r o ser human o ta l qu al ele é, re presentá-lo ou apre-
da derrisão ), Não co mpletaremos nem classificarem os o elenco de sentá- lo ; mas isto nem sempr e é o bastante. É pre ciso desco brir o
l urêniev. Ent re todos os possíveis aspectos do riso nós escolh ere- qu e é engraçado e para isso existem alguns procediment os determi-
mos ape nas um, para co meçar , e este será o riso de zombaria. Ju s- na dos qu e devem ser estudados. Esses pro cedimen tos são os mes-
tamente este e , co nforme foi visto, apenas este aspec to do riso está mos na vida e na arte. Às vezes é o próprio indivíduo q ue reve la
perm an entem en te ligado à esfe ra do cõ mico . Basta no ta r, por exem- invo lun ta ria ment e os lados comicos e sua na ur eza, de suas ações;
plo, que tod o o vasto campo da sátira ba seia-se no riso de zo mba- o utras, ao co nt rá rio, quem o faz prõ:QõSita lme nte é qu em zomoa.
ria . E é exatamente este tipo de riso o qu e mai s se encontra na vida .) Aquele q ue zom ba compcna-se da mesma maneira ta nto na vida
como naarte. Existem pr ocedi men to s espec ia rs pa ra mo strar o que
I Na tradu ção . "derrisâo" , " ridicularizaçâ o' ", "escárn io " ou "riso de zombar ia" é~ lo na aparência , nas idéi as ou nas atitudes de um indivíduo .
serão ut ilizado s co mo sinôn imos do lermo russo osmi éivanie, C lassificar em função dos o bjetos de escárnio é ao mesmo tempo
30 COM ICIOA DE E RI SO

classificar em função dos procedimentos artísticos com os quais se


suscita o riso. A figura do homem, suas idéias, suas aspirações são
ridicularizadas de modos diferentes . Existem, além disso, meios
comuns para diferentes objetos de derrisão como , por exemplo , a
3
paródia. Os meios de derrisão dividem-se assim em mais específicos
e mais gera is. A poss ibilidade e a necessidade de urna classificação
Quem ri e quem não ri
desse tipo já fo ram reconhecidas pelos cientistas soviéticos, embora
elas ainda não tenham sido rea lmente emp reendidas.
São muito evidente s - escreve lu. Bóriev - a legit imid ade e a neces-
sidade de se clas sif icarem os recursos artfsticos da elaboração das
comédias a partir do materia l oferecido pela vida (12, 317).

o riso ocorre em pr esença de duas grandezas: de um objeto


ridicu lo e dc um sujeito qu e ri - ou seja. do homem .g i-pensado:
res dos.séculosXlX e XX , -"ia .de regra, ..estudavam um aspecto d'2,
problema ou o outro . O obj eto cômico era est udado nas obras de
estética, o sujeito que ri, nas de psicologia. Entretanto, a comici-
dade não se define nem com um nem com outro isol adamente, mas
com a ação de dados objet ivos no hom em . Escreve u-se mais de
urna vez nos tratados de estética sobre a importãncia do fator psico-
lógico . "É impossível co mpreender a essência do cômico sem exa-
minar a psicologia do sentido cômico, do sentido do humor", afirma
M . Kagan (22, I, 4). O mesmo declara N. Hartmann: "A comici..
dade no sentido estritamente estético não pode existir sem õhutfibr
~o s~j eito "]I6, _6.o7) . --=---------
, O surgimento do riso co nstitui um processo em que devem ser
estu dadas to da s as condições e as ca usas que o pro voca m. Segundo ~

Bergson o riso o o rre uase cojnaprccisâo de uma lei da nature-


za : ele acçgtece.sempre.que.. hLuma _~à"'par'i:iSso ._O-::erfo e ta l
afirmaç ão é bem..e.vident"-'--jJode-se dar a ca usa do riso. porém é
possível existirem pessoas que não riem e que é iIDPõSSível-fãZcrrir:
-
A cÍificuldade '-stá n ofãtõ' <leque -;;---:n-e"'x"'o-'-=-en=-t'"r-e- o-'-=o lijêiõCôiiiico e

---
a pessoa que ri não é obrigató ~io nem natural. Cá;õ"õde uITif i-;-
outro_não _rL---..
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32 CO :>.IlC JDAD[ [ RISO Q UEM RI E QUEM NÃO RI 33

A causa disso pode residir em condições de ordem histórica, disso , Vassíli Vassilievitch não deixava escapar a oportunidade de
social , nacional e pessoal. Cada época e cada povo po ssui seu pró- aludir até mesmo aos presentes, o que provocava uma hilaridade
prio e específico sent ido de humor e de cômico, que às vezes é especial dos ouvintes " (32, 78). É um certo tipo mui to difundido
I
incompreensível e inace ssível em outras épocas . " Contar a história de contador de histórias - galhofeiro e engraçado. I
I
do riso seria extremamente interessante" , escrevia A. I. Hertzen, Na Moscou de meados do século passado, era muito famoso
Mas não é esta a nossa tarefa . Nós nos limitaremos, como já foi o artista, escritor e narrador Ivan Fiódorovitch Gorbunóv , que a
dito, a materiais dos séculos XIX e XX . qualquer hora podia improvisar pequenas cenas da vida moscovita
Assumindo o problema da diferenciação histórica e dedicando- de tal modo que os pre sente s morriam de rir , deleitando-se com a
nos apenas ao s séculos XIX e XX, não podemos deixar de falar precisão de suas observações e com a fidelidade de suas imitações.
da existência de diversidades nacionais historicamente determinadas. Alguns artista s tinham um talento especial para a comicidadc.
Pode-se dizer que o riso francês distingue-se pelo refinamento e Bastava K. Variamov abrir a porta e entrar em cena que o público
pelo espírito (Anatole France), o alemão , por um certo peso (as já ria alegremente, sem que ele precisasse abrir a boca. O mesmo
comédias de Hauptmann), o inglê s, pela zombaria ora bonachona acontecia com O arti sta do povo da URSS, Igor Ilinski .
ora cáustica (Dickens, Bernard Shaw) , o russo , pelo amargor e o A presença de uma veia humorística é um dos sinai s de talento
sarcasmo (Griboiédov , Gógol, Saltikóv-Schedrin). De resto, essas natural. Pelas reminiscências de Górki sobre Tolst ói sabemos como
observações não têm importância científica , embora estudos desse riam juntos Tolstói, Górki e Tchékhov. Quando chegou a Nice em
tipo não sejam desprovidos de interesse. visita a Tchékhov o professor Maksim Kovaliév ski, eles, sent-ados
É evidente que no âmbito de cada cultura nacional diferentes à mesa de um restaurante , riam tanto que atraíam para si a atenção
camadas sociais pos suir ão um sentido diferente de humor e dIferen· de todos os presentes.
-.
tes melOS para expres sa- o. .r- - - - - - - - - - - - - - -- O que demonstram os exemplos citados? Eles ilu stram a ob ser-
No âmbito doSIiffittes citados , é imprescindível considerar, vação de que lhá pessoas nas quais a comicidade inerente à vida esti-
principalmente, as diferenciações de caráter individual. mula infalivelmente uma reação de riso . A capacidade para essa rea-
Todos , provavelmente, puderam observar que há pessoas ou ção é no conjunto um fenômeno de ordem positiva; é uma manifes-
grupos de pessoas propensas ao riso e outras que não o são. Vamos ta ção de amor à vida e de alegria de viver. Porém, existem pessoa s
nos limitar a alguns exemplos indicativos. que não são propensas ao riso. As causa s disso podem ser várias .
São propensos ao riso os jovens e menos propensos os velhos, Se o riso é um dos sinais do talento próprio do homem , se as pes-
embora, é preciso dizer , jovens macambúzios e velhotes e velhotas soas dotadas e geralmente normais são capazes de rir, a incapaci-
alegres não con stituam absolutamente uma raridade. As mocinhas dade de rir , às vezes, pode ser explicada como sinal de obtusidade
ado lescentes, quando juntas, riem muito e se divertem por moti- e de insen sibilidade. As pessoas incapazes de rir são deficientes sob
vos, ao que parece, insignificantes. todos os aspectosi Será que podem rir a personagem tchekhoviana
Humoristas natos, pessoas dotadas de espírito 'e propensas Prichibéiev, ou o homem no estojo , Bielikov , ou o coronel Skalo-
ao riso existem em todas as classes sociais . Não só eles próprios zub? Eles são ridículos, nó s rimos deles, mas , se os imagi narmos
sabem rir , mas também divertir os outros . Eis como os irmãos Soko- vivos, é claro qu.e essas pessoas são incapazes de rir. \Ao que parece,
lov descrevem Vassíli Vassílievitch Bogdanov, estaroste paroquial há algumas profissões que privam pessoas medíocres da capacidade
de uma aldeia da região de Bielozersk: "Homem pequeno, arrui- de rir. Em particular, profissões que investem o hom em de alguma
vado, passado do s trinta, um tanto tolo de aspecto, mas que esconde parcela de poder. Pertencem a essa categoria os funcion ários e peda-
sob essa aparência uma grande presença de espírito e picardia . Vive gogo s à antigaj "No arquivo da cidade conservou-se até agora o
dando piscadelas e zombando". Ele conbecia bem a vida e os segre- retrato de Ugrium-Burtcheiev. É um homem de estatura media na,
dos do clero rural e o demonstrava nas histórias que contava, de de rosto lenhoso que evidentemente nunca foi iluminado por um
modo que os ouvintes entendiam por si as alusões implícitas . " Além sorriso " - assim Saltikóv-Schedrin pinta um dos govern adores
34 COMICIDADE E RISO QUEM RI E QUEM NÃO RI 3S

em suas Histórias de uma cidade. Porém, Ugri um-B urtcheiev não ser, assim como pelo mesmo motivo não é dado à arte, como lhe
é um caráter único , mas um tipo . "São criaturas hermetica mente diz Mo zart: "Gê nio e crime - duas coisas incompatív eis".
fecha das por todos os lados" - assim Saltikóv-Schedrin defi ne l Porém, a inca acidade de r:ir pode ser determinada também
semelhantes pessoas. Infelizmente, "aguelastes" como esses (isto é, por causas diferentes, aliás completamente opost as .
pessoas incapazes de rir) são enco ntrados com freqüência no mu ndo Há uma categoria de pessoa s profundas e sérias que não riem,
dos pedagogos . O fato pode ser totalmente explicado pela dific ul- não por insensibilidade interior, mas, ao contrário , pela natureza
dade da profissão, pela contínua tensão nervosa etc., mas a causa elevada de seu espírito ou de seus pen samentos, Em suas reminiscên-
não reside apenas nisso, e sim numa organização psíquica específica cias so bre o pintor A . I. Ivanov, Turguêniev conta o seguinte: "A
que no trabalho do pedagogo se ma nifesta de modo particularmente literatura e a política não o interessavam: ele se ocupava de ques-
c1aro)Não foi à toa que Tchékhov para o seu homem no estojo esco- tões relativas à arte, à moral, à filosofi a. Uma vez alguém lhe trouxe
lheu um pedagogo . No ensaio O pedante, Belínski escreve: "Sim, um caderninho de caricaturas de sucesso ; Ivano v examinou-as demo-
quero fazer necessariame nte do meu pedante um professor de letras" . radamente, e, de repente, levantand o a cabeça, disse: 'Cristo nunca
(A os pro fessores incapazes de compreender e de partilhar o riso riu'. Nessa época, Ivanov estava terminando seu quadro A aparição
sadio das crianças, àqueles que não entendem as brincadeira s, que de Cristo ao povo" . Turguêniev não diz a quem eram dedicadas
nunca sabem sorrir e dar uma risada, seria recomendável mudar as ca ricaturas. Mas, de qualquer modo , elas cont radiziam tod o
de profissão aqu ele mundo de profunda moralidade , de estado de espírito ele-
(A incapacidade de rir pode ser sinal não ~penas de obtusidade, vado que cercava Ivanov . O ãmbito da religião e o do riso excluem -
mas também de devassidão~ Recorde-se aqUI Mo zart e S".!,en de se reciprocamente. Da antiga literatura russa escrita o elemento do
P úchkin. riso e do cômico está totalmente ausente. O riso na igreja durante
o serviço religioso seria considerado sacrilégio . Entretanto, deve-se
Mozart fazer a ressalva de que o riso e a alegria não são incomp atíveis com
Toque algo de Mozart para nós!
O velho toca uma ária de Oon Giovann i; Mozart dá uma gargalhada.
todas as religiões; essa inco mpatibilidade é caracterí stica da ascéti ca
Salieri
religião cristã, mas não daquelas da Antiguida de , com suas satur-
E você ainda ri? nais e ritos dioni síacos. Independentemente da igreja , o povo cele-
Mozart brava suas velhas e alegres fest as de origem pa gã - as festas na tali-
Ah, Salieri! nas, a Mâs tienitsav, a noite de São João e outras. Vagavam pelo
E você, não ri?
país ban dos de alegres skomorôkhi-, o povo contava histór ias liber-
se ttert
Não . tinas e cantava canções sacrílegas. Se é impossível imaginar Cristo
Não rio quando um pintor imprestável rindo, é muito fácil, ao co ntrário, imaginar o diabo rindo. As sim
Borra a madona de Rafael, Goethe represe nto u Mefistófeles. O riso dele é cínico, mas po ssui
Não rio quando um bufão miserá vel
um profundo ca ráter filosófico, e a figura de Mefistófeles prop or-
Difa ma Alighieri com uma paródia.
Saia, velho!
ciona ao leitor um enorme prazer e um deleite estético.
Mozart \!.'rosseguindo as ob servações sobre as pessoas qu e não riem
Espere: tome . ou não são dadas ao riso, é fácil notar que não rir ão aqu elas total-
Beba à minha saúde. mente envolvidas por alguma paixão ou arroubo , ou imersas em
O velho sai.
reflexões complexas e profundas. Por que é ass im, deveremos expli-
O Mo zart de P úchk in, genial e cheio de jovialidade, é capaz
de ser alegre e de rir; ele pode até mesmo achar divertida a paródia
I Per.iodo de festas que precedem a Quaresma e a Pásco a ortodoxas e que correspo n-
de uma obra sua. Já o invejoso , frio e egoísta assassino Salieri é deriam ao Carnaval.
incap az de rir justamente por causa da profunda devassidão de seu 2 Na Rússia amiga, m úsicos-can tores, co mediantes ambulantes.
36 COMJClDADE E RI SO

car, e é possível fazê-Io)!Ostá claro também que o riso é incompatí-


vel com uma grande e autêntica dor . Do mesmo modo, o riso torna-
se impossível quando percebemos no próximo um sofrimento verda-
4
deiro. E se apesar disso alguém ri, sentimos indignação , esse riso
atesta ria a mon struosidade moral de quem ri)
Essas observaçõ es preliminares não resolvem os problemas
o cômico na natureza
da psico logia do riso, mas apenas servem para colocá-lo s. A solu-
ção pod erá ser dad a quando se estudar a cau sa que estimula o riso
e se examinarem os processos psicol ógicos que con stituem sua
essência.

Com eçaremos no ssa pesquisa examinando tudo aquilo que


nun ca pode ser objeto de riso . Isso nos ajudãrá logo a estabelecer
o .que não pode ter qu alquer co notação de co micidade. É -fácil-per-
ceber que, no gera l, a natureza que no s cerca não pod e ser ridículã .
,Não existem florestas, campos, montanhas, m ares ou flores, ervas,
gramíneas etc . que seja m rid ículo ~
Isso já foi observado faz tempo e é pouco provável que des-
perte dú vidas. Bergso n escreve: "Uma paisagem pode ser bela,
atraente, majestosa, sem graça ou abominável; mas nunca será ris í-'
vel" . E atri bui a si próp rio esta descoberta : "Admiro-me de co mo
um fato tão importante em toda a sua simplicidade jamais tenha
cha mado a atenção dos pensad or es" (9, 7) . Entretanto, este pensa-
mento tinha sido expresso repetidas vezes. Qua se cinqüenta anos
antes de Bergson, Tchernich évski ' , por exemp lo , já o expressa ra :
"Na natureza inorgânica e vegeta l não há lugar para o cômi co " .
Devemos ate ntar para o fato de que Tchernichévski não fala
da natureza em geral, mas apenas da natureza inorgânica e vegetal;
ele não fala do reino animal. \piferentement e do s objetos e dos
fenômenos de natureza inorgãnica e vegeta l, o animal pode ser rid í-

I Nikola i Gav n lovitch Tcheml cb évski (1828-1889). Escritor populi sta russo, co labo-
rador da revista O Contemporâneo , famoso por seu romance Que fazer? , escrito
na prisão (1863) .
38 CO ~IIC IDA D E E RISO
o CO M ICO N A NAT UREZ A 39

culo ) Tchernichévski explica isso com o fato de q ue os anima is Aqui torna-se necessário colocar uma questão : em que co nsiste
pod ém ser parecidos com os homens. "N ós rimos dos animais", a diferença específica entre a natureza inorgânica e o homem? Pode -
diz ele, "porque eles nos lembram os homens e seus movimentos" . se dar uma resposta exata :\E' hom em se distingue da natureza inorgã-
Isso, sem dú vida, é verd ade . O mais ridícu lo de todos os an imais é nica pela presença nele de um pri ncipio esp iritual, en ten de ndo com
o macaco: ele, ma is do q ue todos, lembra o homem. Extre mamente este termo o intelecto, a vontade e as emoções~Assim, através de
ridículos por sua aparência e jeito de andar são, por exemplo, os
um caminho puramente lógico , chegamos à hipótese de q ue o eômico
pingüins. Não foi à toa que Anatole France intitulou um de seus está sempre ligado de algum modo justamente com a esfera esp iri-
romances satíricos de A ilha dos pingüins . Outros animais são risí-
tual da vida do homemjÀ primeira vista isto pode parecer duvidoso .
veis porque nos lembram quando não a fo rma, a expressão dos ros-
De fato, o homem freqüent emente é ridícu lo por seu aspecto exte -
tos humanos. Os olhos saltados de uma rã , a testa franzid a de rugas
rior (a calvície etc.). No entanto , os fatos demonstram que isto não
de um filhot e de cac ho rr o, as orelhas salientes e os dentes arrega-
é realmente assim.
nhados do morcego fazem-nos sorrir. Para alguns animais a seme-
As ob ser vaçõ es apresentadas permitem introduzir um reparo
lhan ça co m o homem pod e ser reforçada por meío de adestramento .
nas observações a respeito da comi cidade dos animais. {A comici-
Os cacho rros que dançam sempre encantam as crianças. A co rnici-
dade dos animais é reforçada se os vestirmos com roupas humanas: dade no ãmbito da vida intelectual é possível apenas pa ra b homem,
calças, sa iotes ou chapéus. O ur so na flore sta, procurando seu ali- ma s a co micida de nas manifestações de vida emocional e volitiva é
mento, não é de per si rídícu lo. Mas um ur so que é conduzido pelas pos sível ta mbém no mundo dos a nima is)Desse mod o , se de repente
aldeias e que imita os meninos roubando ervilhas, ou as moças se um cão enorme e forte se põe a fugir de um gato pequeno e valente,
empoando e passando bat om, provoca o riso . O humor de obras que se vo lta contra ele por estar sendo perseguido, isto provoca o
co mo o romance de E. T . A. Hoffmann, A filosofia cotidiana do riso porque lembra uma situação possível também entre os homens.
gato Murr , baseia-se no fato de que o escritor-artista através dos Isso demonstra, entre outras coisas, que a afirmação de certos
hábitos do an imal via o hom em. Em to do s os casos aprese nt ados , filósofos de qu e os a nima is seria m rid ícu los por se u au tom ati smo
a seme lhança entre o hom em e o anima l é bem imediata e dire ta . é nitidamente incorreta. Afi rmações como esta co nstituem a transfe-
Mas o pensamento expresso por Tchernichévski mantém a sua vali- rência da teor ia de Berg son para o mundo dos anima is.
dade também nos caso s em que a seme lha nça é remota e indireta . (Que a comicidade se ligue necessariamente à vida espiritual
Por que são ridículas as girafas? À primeira vista não se parecem do hom em , serve-nos po r enq ua nto de hip ó tese preliminar.)
com as pessoas. Porém, o aspecto de pau -de-vira r-t ripa, o pescoço Daí , surge a qu estão : será que as coisas pod em ser ridícu las?
comprido e estreito são possíveis também no homem. Essas caracte- À primeira vista, ao que parece, as coisas não podem absolutamente
rísticas lembram-nos vagamen te o homem, e isso já basta para des- ser ridículas. Alguns pensad or es tam bém fizeram essa observação.
pertar nosso senso de ridículo. Difícil dizer po r qu e é rid ículo, por Desse mod o , Kirchmann , po r exemplo , acha que na ba se do cô mico
exemplo, um gatinho que caminha lentamente para seu alvo, com existe sempre uma ação absurda qualquer. Mas, co mo as coisas não
o rabo espe tado par a cima. M as também aq ui se esco nde algo de podem prat ica r ações, é imp ossível que seja m ridículas. Ele escreve:
humano, que nó s não co nseguimos definir de imedia to . \ "Uma vez que o côm ico só pode se desenvo lver a partir de ações
Exige a lgum reparo a afirmação de Tchernichévski de q ue o 'absurdas, torna-se evidente que as coisas inanimadas não podem
reino vegetal não pode suscitar o riso. No conjunto isso é verdade. ser ridículas' ) Para q ue uma coisa se torne ridícula, segundo Kir-
Mas, se arrancarmos um rábano e ele repentinamente nos lembrar chmann, o homem, co m o auxílio da fantasia, deve tra nsform á-la
co m seu perfil um rosto huma no , surge então a pos sib ilida de de rir. em criatura viva. "As coisas inanimadas só podem provocar o riso
Tais exceçõe s não desmentem, mas confirmam a exatidão da teoria. q uando a fa ntasia lhes dá vida e persona lida de" (50, li, 44). É fácil
_ \. Po.r e!lquanto, de t u d~ o .que foi dito , é possível tirar a conclu- convencer -se de que isso não é verdade. Uma coisa pode se revelar
sao pr elim in ar de que .9 conuc osempre, direta ou indiretamente, ridícula no ca so de ter sido feita pelo homem, e se o hom em que a
está ligado aohomem . A natureza inorgânica não po e ser rid ícula-c; fez, involuntariamente, refletiu nela algum defeito de sua pr ópria
porque não tem nada em comum com o ·homem. ) natureza: um móvel absurdo , chapéus ou roupas insólito s podem
40 COMICIDADE E RISO

suscita r o riso . Isso ocorre por que nela fica gravado o gosto de seu
criador, o qual não coincide com o nosso . Assim, também o ridí-
culo da s coisas está ligado necessa riamente a alguma mani festação
da atividade espiritu al do home m .
5
O qu e vale para as coisas, vale ta mbém para as obras de arqui-
tetura . Há teó ricos que negam tot alme nte a possibilidad e do cõmico
Observações iniciais
na arquitetura (57, 28). As pessoa s simples não pensam assim. Eis
uma conversa ouv ida no campo:
- Menino , onde você mora?
- Lá, atrás do bosque, tem uma casinha ridícula, é nela que
nós moramos.
A casa era baixinha, extremamente absurda em suas propor-
ções. Havia nela a marca de um construt or-artesão desajeitado . É
possível lembrar aqu i a casa de Sobakévitch:
Era evidente que, ao construi-Ia, o arquiteto tinha lutado constantemente
com o gosto do dono. O arquiteto era pedante e queria a simetria, °
dono, a comodidade, e por isso, como dava para ver, tapara de um lado
todas as janelas que a iluminavam e no lugar delas abrira uma só,
pequena, provavelmente necessária para uma escura despensa. Também
°
o frontão não coincidiu com o me io da casa, por mais que arquiteto
se empenhasse, porque o dono mandara tirar uma co luna lateral, e por
isso fica ram não quatro, como fora estabelecido, mas apenas três 2.
"O homem expressa de modo muito diferençado as emoções
que lhe são suscitadas pelas impressões do mundo exterior .jô uando
À observação de que somente o homem ou aquilo que o lem- nos assustamos, estremecemos ; de medo, nós empalidecemos e
bra podem ser ridículos, devemos acrescentar mais uma: apenas o começamos a tremer; quando se desconcerta, o homem enrubesce,
homem pode rir. Já Aristóteles o notara. "De todos os seres vivos baixa os olhos; de sur presa , ao cont rário , ele arregala os olhos e
somente ao homem é dado rir" - diz ele em seu tratado sobre a ergue os braços. Nós choramos de dor e cho ra mos ta mbém quando
alma (IIl , capo lO) . Essa idéia tem sido repetida inúm eras vezes. Bran- comovido s. (Mas do qu e o homem ri? Ri do que é ridícu lo , dire-
des, por exemplo, expressou-a muito clara e categoricamente: "So- mos. Existem, certamente, outras causas também, mas esta é a
mente o homem ri e somente de alguma coisa de humano " (43, 278). mais comum e natural ) No entanto, a afirmação de que "o homem
'-for que somente o homem pode rir, nós não vamos explicar ri do ridículo" é uma tautologia que não esclarece nada. São neces-
detalhadam ent e agora . O anim al pode alegrar -se, regozijar- se, até sárias aqui explicações mais detalhadas.
mesmo manifestar sua alegria com bastante impetuo sidade, mas ele Antes de tenta r dar e funda mentar essas explicações, vamos
não pode rir. Para rir é preciso saber ver o ridículo ; em outros casos nos deter em dois ou três casos e fazer alguma s observações preli -
é preciso atribuir às ações algum valor mor al (a comicidade da ava- minares, procurando ser o mais exatos possível.
reza, da cova rdia etc.). Finalmente, pa ra apreciar um trocadilho T omemos o seguinte exemplo . Um orado r faz um discur so.
ou uma anedota, é preciso realizar alguma operação mental. De Para nós não importa se ele é um professor fazendo uma conferên-
tudo isso os a nimais não são capazes, e todas as tentati vas (dos apre- cia, um líder social falando nu m comício , um professor explicando
ciadores dos cães, por exemplo) de demon strar o contrário estão a lição , ou outro qualquer. O homem fala com animação , gesticula
de ant emão condenadas ao fracasso )
e procura ser convincente. De repente, po usa-lhe no nariz uma
mosca . Ele a espanta . Mas, a mosca insiste. Ele a espanta de no vo.
2 Trecho de Almas mortas de G ógol. Finalmente, na terceira vez, ele a apanha, examina-a po r um ins-
42 COMICIDAD E E RISO OB SERVAÇÕES IN ICIA IS 43

ta nte e depois a joga fora . Neste momento, o efeito do discurso dor não era sério, sólido, consistente ou pro fundo o basta nte para
estará anulado, todos os ouvintes começarão a rir. arrebatar realmente os ouvintes. Caso co ntrário, eles não ririam
Tome mos out ro caso. No conto de Gógol sobre eomo Ivan todo s juntos, ou apenas sorririam, simpatizando com o célebre eru-
Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch briga ram, Ivan Nikíforovitch chega dito ou com o político fam oso e perdoando-lhe o pequeno revés.
ao tribunal co m uma queixa co ntra Ivan Ivánovitch, mas entala-se Aqui não perdoam o revés. O episódio da mosca revelou algum
nas portas de tào gordo que é, ele não consegue se mover nem para defeito oculto nas ações ou na natureza do orador.
frente nem para trás. Então, um dos funcionários pressiona-lhe a Na história de Gógol o caso já é diferente, mas na essência é
barriga com o joelho e o empurra para trás, depois disso abrem a parecido com o primeiro. Ivan Nikíforovitch quer atravessar a porta,
out ra metade da porta e Ivan Nikíforovitch entra. mas seu própri o corpo o impede: ele é gordo demais. vontade
Terceiro caso. Imaginemos um circo . Aparece um palhaço. do homem é atingida por circunstâncias de caráter absolutamente
Está vestido co mo alguém da cidade , usando calças normais, mas exterior. Nesse momento, quando de repente se verifica que a cir-
que lhe caem mal, paletó, chapéu, botinas demasiadamente grandes. cunstância exterior é mais fo rte que O desejo da pessoa, o especta-
No rosto, o sorriso largo de alguém satisfeito consigo mesmo . Traz dor ou o leitor desanda a rir) Ele vê somente o corpo de Ivan Nikí-
no ombro algo estranho, que a um olhar mais atento revela-se uma forov itch, todo o resto é momentaneamente esquecido. Se no pri-
cancela de jardim. No meio da arena, ele pousa com cuidado a can- meiro caso frustra-se uma inte nção intelectual, neste é frust rada
cela no chão, limpa diligentemente os pés, depois abre a cancela, uma intenção da vontade.
passa através dela e cuidadosamente ele torna a fech á-la. Tendo Em Gógol, o riso é exteriormente provocado pelo fato de Ivan
feito tudo isso , volta a colocar a cancela no ombro e vai embora.
Nikífo rovitch se entalar na porta, mas esse riso foi preparado pelo
O público todo ri e ap laude demorada mente .
anda mento da narrativa e é parte orgâ nica dela. Ivan Nikíforov itch
O que aconteceu e o que têm em comum estes três casos?
vai ao tribunal não com a finalidade de denunciar algum crime trá-
No primeiro caso , de início os presentes ouvem atentamente
gico que exige punição. Ele vai movido por um " impulso" falso e
o orador. Mas qua ndo aparece a mosca ~tenção dos ouvintes se
calunioso contra seu ex-amigo . Esse "impulso" trai a total insigni-
dispersa, mais precisamente, se desloco/ Eles já não ouvem o ora-
ficância e mesquinhez de suas intenções. Nem mesmo sua corpulên-
dor, mas olham para ele. ~ atenção se tran sfere de um fen ômeno
de ordem espiritual para um fenô meno de ordem físico/Na percep- cia é fortuita : ele é gordo por causa de seu modo preguiçoso de
viver, de sua gulodice . A explosão do riso oc orre no instante em
ção dos ouvintes o conteúdo do discurso, um princípio espiritu al,
é obscurecido por aquilo que o orador faz com a mosca, isto é, por que, por vontade do autor, o leitor não vê o homem como um todo,
um fenômeno de ordem física, e é deslocado . Este deslocamento, mas apenas sua natureza física.
ou obscurecimento , ocorre de modo inesperado, mas ao mesmo No primeiro caso, a intenção anulada pelo orador possuía até
tempo é preparado ainda que muito imperceptivelment e. Na cons- eerto ponto um caráter elevado . Em G ógol, as intenções do homem
ciência verifica-se uma espécie de salto . Porém, o salto é uma mani- são mesquinhas. É isso que determina o caráter satírico do riso
festação súbita no exterior de um processo, que inadvertidamente gogoliano.
se preparava no interior.\No caso em questão, os ouvintes já vinham No terceiro caso , também temos em certo sentido uma inten-
sendo prepar ad os por alguns porm enor es, alguns detalhes pouco ção da vontade, mas esta não implica qualqu er revés. O homem
perceptíveis, de modo a predispô-los ao riso , mas ainda insuficien- atravessa livremente a cancela. Então, onde está a co micidade?
tes para provocá-lo. O orador gesticula enfaticamente, e essa gesti- Embora atravessar a cancela nâo requeira um esfo rço especial da
culação já é cô mica, porque demonstra que ele tenta convence r os mente ou da vontade, isso na vida é um ato sensato e indispensável.
ouvintes não tanto com a força de seus argumentos quanto com a Para entrar num jardim ou num quintal, é preciso atravessar a can-
força de seu convencimento pessoal. O episódio com a mosca remata cela. Mas nesta palhaçada, o ato , de per si racional, é insensato .
a explosão que vinha se preparandoj Existe aqui tudo o que neste caso é possível na vida: limpar os pés,
Mas esse repentino obscurecimento , ou deslocamento, não é abrir cuidadosa mente a cancela, atravessá-Ia e fechá-Ia eom cuidado,
a única condição do riso. O riso demonstra que o discurso do ora- mas não existe o principal: não existe a cancela como entrada ou
44 COMiClDA DE E RISO

passagem real, existe apenas a aparência de tudo isso, apenas a


forma. Falta a cerca através da qual a cancela permitiria passar.
Aqui não ocorre nenhum obscurecimento, porque não há nada
para encobr ir. Por trás da manifestação de vida do corpo existe
6
apenas o vazio.
Limitemo-nos por enquanto a esses casos. Eles pertencem a
A natureza física
diferentes séries de fatos . Porém, ao mesmo tempo, eles mostram
que tais séries diferentes escondem um princípio único , que entre
do homem
elas pode-se encontrar algo de comum . No entanto, é possível esta-
belecer que o riso nesses três casos surgia da manifestação repen-
tina de defeitos ocultos e de início totalmente imperceptíveis. \Daí,
pode-se concluir que o riso é a punição que nos dá a natureza por
um defeito qualquer oculto ao homem, defeito que se nos revela
repentinament~
Nesses tres casos os defeitos se revelam de modo semelhante:
por meio de um deslocamento instintivo ou intencional da atenção
das ações interiores para as formas exteriores de sua manifestação,
as quais revelam esse defeito e o tornam evidente para todos.
Po r ora, afirma mos tudo isso a títu lo de hipótese que num
exame posterior pode ser corroborada ou exposta co m precisão e
adendos. Essa hipótese surgiu como conclu são do exame de um lSe é verdade que nós rimos quando as ma nifestações exterio-
grande número de fato s, mas par a fins de clareza e de sistematici- res e físicas das ações e das aspirações dos homens encobrem seu
dade de exposição foi oportuno antecipá-Ia. Uma definição, muito sentido e sua significação interior e se apresentam como triviais ou
preliminar e por enquanto também hipotética, precisa ser feita desde mesquinhas, é preciso então começar por examinar os casos mais
já : nem todo s os defeitos provocam o riso, somente os mesquinho s. simples deste princípio físico j
Os vícios não podem em caso algum ser objeto de comédias: eles O caso mais simples ocorr e quando quem ri vê na pessoa,
são atributo de alguns tipos de tragédias. Aqui, podem ser toma- antes de mais nada, seu ser físico, ou seja, no sentido literal do
dos como exemplo o Boris Godun áv de P úchkin, ou Ricardo /lI termo , seu corpo.
de Shakespeare, Essa observação já foi feita por Aristóteles e essas É sabido por todos que os gorduchos cost umam parecer ridícu-
mesmas idéias foram expressas por outros pensadores. "A comici- los. Antes, porém, de tentar dar uma explicação para este fato , é
dade repousa nas fraquezas e nas misérias humanas" , diz Hartmann preciso ver em quais circunstâncias isso é ou não verdade. Bergson
(1 6, 610), por exemplo . diz; " É cômica qualquer manife stação do aspecto fisico da persona-
Essas reflexões e observações preliminares nos ajudarão a anali- lidade, quando o problema diz respeito a seu aspecto espiritual'P
sar aquele enorme e variado material ligado ao estudo do riso e da (9, 5l) .\É fácil convencer-se de que não é abso lutamente isso, que
comicida de, e nos permitirão encontrar as constantes nele contidas. nem todas as manifestações da natureza física da pessoa são engra-
çadas, mesmo quando revelam certas facetas espirituaiS. Existem
gordos que não fazem rir. Balzac, por exemplo, era homem de con-
siderável obesidade. Só que seu poder interior, sua força espiritual
são tão evidentes, desde o primeiro olhar a toda a 'sua figura, que
sua corpu lência não nos pa rece ridícula. Há uma escultura de Rodin
que representa Balzac nu, com uma barriga enorme e pernas finas.
46 COMIC1DADE E RISO A NATU REZA Flsl CA DO UOM EM 41

É uma figur a deformada, mas não suscita o riso. É realizada com nente. A obes idade de Ivan Nikíforovitch torna-se repentina mente
talent o incomum: o escultor rompe co m a trad ição qu e vem desde visível ao leitor qu and o ele esba rra num obs tác ulo - na porta,
a Ant iguida de até a estética do século XV III, que exigia da escultura, co mo já foi visto ante rio rmente . Tc hitc hikov e Manilov, embora
antes de mais nada, a representação da beleza do corpo huma no. não sejam muito gordos. mesmo assim não conseguem passar pela
Rodin expressa a força espirit ual e a beleza interior de um porta juntos: sua gor dura como que se mult iplica por dois. Cada
homem de corpo deformado. Entre os escritores e os poetas russos, um deles cede o passo ao outro e nenhum dos dois quer entrar pri-
por exemplo, destacavam-se pela corpulência Gontcharóv e Apúkhtin, meiro. Bóbtchinski e Dóbtchinski também têm sua barriguinha.
mas isto não os tornava ridículos. Quando o principio espirit ua l pre- Cabe lembrar, a propósito, Piotr Petróvitch Petukh , que Tchítchi-
valece sobre o físico. não ocorre o riso . Mas o riso não aparece nem kov, ao entrar em sua propriedade, vê na água, onde, junto com
no caso oposto, quando nossa atenção é atraída inteiramente pelo os mujiques, está entretido em puxar a rede: "I...] um homem cuja
aspecto físico do homem, sem na da de espiritual que a retenha. Este altura era quase igua l à largura, completamente redondo, como
caso ocorre. por exemplo. quando um obeso vai ao médico, se con- uma melancia . Devido a sua gordura ele não conseguiria jamais ir
sultar. A obesidade, em sentido restrito, é uma doença ou uma ano- até o fundo" '. "Ah, como ele é gordo!", exclama Ag áfia Tíkho-
malia . Um gordo que sofre com sua doença não é ridículo de modo novna ao ver Ia ítchnitsa- , em O casamento, de G ógol.
algum. O riso. neste caso. é impossível, pois o aspecto exterior é per- Uma das particularidades do estilo de Gógol está no uso de
cebido fora de qualquer relação com a natureza espiritual do doente. certo modo comedido dos procedimentos da comicidade. Os gordos
A cornicidade, portanto, não está nem na natureza física nem na natu- de G ógol não são muito gordos, mas não é por isso que o efeito
reza espiritual do doente. Ela se enco ntra numa correlação das duas, côm ico diminui - ao con trário, ele se intensifica .
onde a natur eza física põe a nu os defeitos da natu reza espiritua l. T udo o que se disse do cõmico da obesidad e vale ta mbém
Os gordos são ridículos quand o seu aspecto, na percepção de quem para a impressão que, em certas condições, pode produzir o corpo
olha para eles. como que expressa a sua essência. Como. na verdade, humano nu. Que condições são essas?
é raro que encontremos gordos na antecâmara dos médicos e é igual- Por si só o cor po human o nu nada tem de ridíc ulo . Q uando
mente raro que os obesos nos impressionem principalmente por sua as fo rmas são harmoniosas ele pode ser belíssimo, como demons-
força espiritual, para o homem médio comum e normal os go rdos tram toda a escultura antiga e a enor me qua ntidade de obras de
da vida cotidiana são tidos como cômicos enquanto tais. O riso arte. Assim como não é engraçado um corpo gordo na antecâmara
aumenta se depararmos, de repente e inesperadamente, com um gor- de um médico , igualmente não é um corpo nu na mesa de opera-
dão, e, ao contrário, os gordos que já conhecemos e que encontra- ções ou so b o estetoscópi o . Basta porém que um hom em desnudo
mos todo dia não nos fazem rir. ou mesmo um homem em cujo tr aje haj a algo de err ado apareça
Nos primeiros anos da revo lução os papes, os burgueses, os no meio de pessoas co rretamente vestidas, e que não pensam em
prop rietários de terra e os policiais era m sempre represent ados po r seu próprio co rpo, que logo surge a poss ibilida de do riso . A causa
gordos. A obesidade representava a insignificância de quem se do riso aqui é a mesma que nos casos precedentesóç princípio físico
achava pa i espi ritua l, de quem se con sidera va acima de to dos os que ob~curece o 'p~incípio espiri~ua ll
outros. Neste caso o efeito cômico é usado para fins satíricos: uma Piotr Petr óvítch Petukh e retratado por Gógol não apenas
barriga ava nta ja da decorrente de uma vida preg uiçosa e fo rte às como gordo, mas tam bém desnudo. Avistando a carruagem de
custas daqueles que tinham qu e passar fome e trabalhar para os Tchítchikov ele sai da água "com uma das mãos em pa la, e a outra
outros_(O prazer do riso é inte nsificado pelo fato de qu e esse para- mais abaixo, co mo a Vênus de Medici, emergindo do banho" 3.
sitismo chego u ao fim . O riso é uma arma de dest ruição: ele des-
trói a falsa a utoridade e a falsa grandeza daqueles que são submeti- I Almas mortas . Trad. de T atian a Belink y. São Paulo. Ab ril Cultural, 1972. p. 350.
Esta passagem encontra-se ligeiramente modificada na tradução publicada, motivo
dos ao escárnio)
pelo qual a citação foi traduzida a partir do texto de Propp.
Por outro lado, a sátira pode ter um outro caráter, menos vis- 2 Literalmente. "om elete".
toso e evidente. A galeria dos gordos gogolianos é bastante impo- ) A lmas morlas, cit ., p. 351.
48 COMICIDADE E RISO A NA TUREZA F1S lCA DO HOMEM 49

Conforme o caso, G ógol mostra também outros de seus persona- Um amigo alcança-o na margem . De repente o anzo l engancha e é
gens sem qualquer roupa. Sempre, porém , em cada situação , com preciso despir -se e ent rar na água . Afa star a inglesa é impo ssível,
o senso da medida e o tato que lhe são própri os. Ele nu nca chega visto que ela não compreende o russo e não vai embora.
à pornografia, que n âo seria absolutamente engraçada. Engraçada
Griabov tirou as botas, as calças, tirou a roupa de baixo e ficou em
é a semi-ind ecência . Quando Tchitchikov, de manhã cedo , acorda
trajes de Adão.
na casa de Koróbotchka, de quem é hóspede, "pela fresta da port a - Ê preciso refrescar-se um pouco - disse ele, batendo-se
espiou um rosto de mulher, que se escondeu incon tinenti, porque nas costelas. - Diga-me, por favor, Fi6dor Andréitch, por que será
Tchít chikov, na ãnsia de dormir melhor, havia tir ado do corpo que todo verão me sai essa irritação no peito?
toda a roupa' '4 . - Pois entre na água ou cubra-se com alguma coisa! Animal!
Tamb ém Ivan Nikiforovitch tira to da a rou pa, devido ao - Se ao menos ela se confundisse um pouco, a velhaca ! -
disse Griabov, entrando na água e fazendo o slnal-da-cruz.
grande calo r, e nesse estado senta-se no quarto sombreado pelas
- Brr... Como é fria a água...
venezianas. " Desculpe-me por estar ao natural diante do senhor" ,
diz ele a Ivan Ivánovitch que está entrando , mas Ivan Iván ovitch Não vamos nos demorar naqueles casos em que são descritas
I'
não se perturba e responde: "Não faz mal". pessoas gordas, altas, ou, muito pelo contrário , baixas e miúdas e
Nozdrió v xinga seu cunhado de "fetink " ; e G ógol, a respeito sobre por que elas fazem rir. Os dois procedimentos podem se aco -
dessa passagem, fornece a seguinte nota: " 'Fetink' é uma palavra plar. Assim o comprido e seco tio Mitiai parece um campanário
ofensiva para um homem, provém da letra a, co nsiderada por enquanto a barriga do pequeno e atarracado tio Miniai parece um
alguns indecente ". samovar. Num sarau na casa do governador todo s os hóspedes divi-
Pode-se reparar aqui que a comicidade de G ógo l só raramente dem-se em magro s e gordo s. Os gordos é que têm sucesso. Tch itchi-
se explica por uma causa única, enquanto, na maioria dos casos , kov sente simpatia justamente pelos gordos e é a eles que se junta .
ela tem sempre mais do que uma , ao mesmo tempo . Assim, neste \ Uma ate nção mais circunstanciada é exigida pela comicida de
caso, a nota de Gógol é uma paródia da s notas erud ita s, próprias não apenas do corpo humano enquanto tal, mas de certas ações e
dos artigos cientificas . Desse mesmo procedimento vale-se também funçõe s corpora is. Na literatura satírica e humorística, o primeiro
Kozmá Prutk óv, Entre seus " aforismos militares" há um que diz: lugar é ocupado pela comida. Do ponto de vista teó rico a comici-
A Europa inteira se admira dade da comida se explica do mesmo modo qu e todos os casos pre-
do tamanhão do chapéu do general. cedentcs. jo ato de comer nada tem de cômico em si, mas passa a
O aforismo remete a uma not a que diz não haver ali nada ser cômico nas mesmas circunstâncias em que passam a sê-lo os
digno de nota mas que , "quanto à rima errada, que seja enviada outros objetos da comicida de, com base nas con sideraçôes já feitas.
ao procurador militar para que ele mesmo procure outra " . Gógol não perde ocasiã o para descrever a mesa, que po r isso mesmo
Outros exemplos como esse de semi-indecência poderiam ser se apresenta cop iosa e farta. Os pratos e as iguarias são descritos
repo rtado s em grande número . Vale a pena lembrar aqu i mais uma às vezes de relance, às vezes bem deta lhada mente . Muito freqüente -
cena de O inspetor geral, omitida por Gógol. A mu lher do subofi- mente a com ida caracteriza os comen sais. Afanássi lvánovitch e
cial queixa-se a Khlestakó v de que o prefeito mandou chicoteá-Ia. Pu lkhéria Ivánovna comem não apenas nas hor as estabe lecidas,
"Se o senhor não acredita, benfeitor, eu lhe mostro as marcas." E mas a qualquer hora do dia e da noite. Após o ca fé comem foga-
ele responde: "Não precisa, mãezinha. Mesmo sem isso eu acredito" . ças com toucinho, bolin hos com sementes de papoula, cogumelos
À luz do que foi dito pode-se apreciar a mestria de Tchékho v na salmoura; uma hora antes do almoço Afanássi Ivánovitch bebe
em seu conto A filha de Albion . O proprietário Griabov está pes- um copo de vodca acompanhando-o com cogumelos, peixinhos secos
cand o na companhia de uma inglesa, governanta de seus filhos. e assim por diante. Tudo isso, como os outro s prato s ucranianos
ou não , caracteriza a economia da casa, a maneira de vida, a confi-
4 Ibidem. p. 57. guração espiritual dos próprios dono s.
50 COMIClD ADE E RISO A NATUREZA FfsICA DO HOMEM 51

Em Almas mortas Tchítchikov almoça com tod os os prop rietá- um exemplo típico de urna fo rma cômica de bebede ira . Gógol, ent re-
rios e co m ca da um de ma neira diferente. Na casa de Sobakévitch tanto , zomba com gos to tam bém das fo rma s ma is pesadas dessa co n-
co nversa-se so bre cada pra to. São servidos à mesa os seguintes pra- diçào . Cocheiro s experimentados levam para casa seus do nos embria-
to s: sopa de couve, niânia, ou seja, estô mago de bode recheado de gados e sabem, com uma mão, segura r as rédeas e com a outra,
papa de tr igo sa rraceno, miolo e perninhas, lom bo de bo de com virada para trás, sustentar os pas sageiros . Em A carr uagem lemos:
po lenta, foga ças, cada urna grande corno um prato, peru recheado
Tche rtokútsk i, apesar de to do seu aristocratismo , fazia reverências
de ovos, arr oz, figadi nho s e " só Deus sa be o qu e m ais, q ue se po u- tão profun das e desviando tant o a cabeça dentro da carruagem onde
sava como uma pedra no estô mago" . To do o repas to ca racteriza estava sentado que, ao chegar em casa, tinha duas bardanas penou-
o sólido Sobakévitch. Já na casa do avoado Noz d rióv, a comida é radas em suas orel has.
ru im e os vinhos azedos, enq uanto na casa de Koró botc hka as to r-
( Como em certo s casos pod e ser ridículo o co rpo hu man o, da
tas são feitas com muita mestria . Até mesmo na casa de P liúc hkin
mesma forma são qua se sem pre ridículas as fu nções fisiológicas invo-
algo é o ferecido a Tc hítchikov; chá com bo lac has mofadas e um
luntárias desse mesmo corpo )De Tc hítchikov diz-se: "Em seus modos
lico r co m uma mosca dentro , o que se coa du na plenamen te com o
de senho r ele tinh a algo de solido e assoava o na riz de maneira ext re-
" caráter do do no da casa. O esto uva mento de Khlestakóv se ma ni-
mam ent e ba rulhenta" . " O litígio" começa com arrotos prolonga dos
festa na s suas palavras depois do almoço, na insti tu ição de car i-
e soluços do pro tago nista . Em suas anotações sobre Gógol, Aksákov
dade : "Eu gosto de comer. Por acaso nào se vive justam ent e par a
co nta como isso era recebido pelos ouvint es na inter pretação na tu-
colher as flores do prazer?" O tím ido Ivan Fiódorovitch Ch po nka
ra lista e mesmo assim ar tística feita pelo próprio G ógol.
é mostrado de ma neira diferente: aind a ra pazote, na sala de a ula ,
Em I van Fi ádorovitch Chponka, Vass ilissa Kac hpárovna lem-
co mendo uma panqueca de manteiga, esco ndido at rás de um livro ,
bra a Chpo nka sua infância, qu ando ele, com seu com porta mento
até o professor descob ri-lo. Talvez nenh um ou tro escri tor ten ha
infantil, lhe sujara a ro upa. Urna da s propri edad es físicas do homem
sabido descrever apetít e e iguarias corno o fez Gógol. Basta lem-
está em seu cheiro específico . O cheiro qu e em ite Pé truchka o aco m-
brar corno , em O inspetor geral, Óssip e depo is seu patrão expre s-
panha pelo relato inteiro em A lmas mortas. A co micidade do cheiro
sam seu eno rme apet ite e corno Gógol fa la do apet ite do s proprietá-
é usada tam bém em o utros episó dios . Ao beija r a mão de Frodúlia
rios de meia- tigela em Almas mo rtas. Quando Ko ró botchka chega
Ivâno vna, Tc hítc hikov tem o portunida de de notar "que as mão s
na cidad e co m seu estranho carro "o pastelão de frango e o paste-
ti nh am sido lavadas co m sa lmo ura de pepinos".
lão de pepinos despontavam para fora" .
O uso de perfumes por parte das senho ras pode ser apro vei-
Bom gar fo , co nvicto e coerente é Piotr Pe tróvitch Petukh.
tado pa ra fins cô mico s e satíricos, quando eles expr imem demasiado
Para ele co mida e iguar ias são o único co nte údo da vida . Entre os
claram ent e as intenções dessas mesmas senhora s. "As sen ho ras
escrito res russos q ue descreveram co micam ente a comida , podemos aq ui o envo lveram como uma esple ndorosa guir landa e carregara m
lembrar Tchék hov e seu conto "Sereia " , onde um secretário des-
consigo inte ira s nuvens de efl úvios de tod a sorte: uma cheir ava a
creve os diferentes pratos com tamanho ap etite qu e nin guém con se- rosas , de outra depreendia-se prim avera e vio letas , urna terceira
gue trabal har.
estava co mp letamente im pregn ada de resedá: Tchítchikov levanta va
\ Com motivações um pouco diferentes das da com icida de do apenas o nar iz e fa rejava. " Ana logamen te , diz-se de um a lind a
comer na sce a comicidade da bebida e da embriaguez . A embria- senho ra : " Jas mins adejaram pelo cômodo in teirinho " .
guez só é engraçada q uando não é total. Não são engraçados os Já co m os homens o caso é out ro , especial mente q uando se tr ata
bêbados, ma s os "alto s" . A em briaguez que chega ao vício nun ca de fun cionários públicos: um funcioná rio da chancelaria e seu aju-
pod e ser ridícu la) dante "com o bafo de sua boca difund iram um cheiro tão for te q ue
Khlestakóv q ue volta de um lau to jantar sem lembrar ond e o escritório inteiro transformou-se po r um moment o numa taberna" .
esteve e repete com prazer a pal avra no va para ele " laba rdan " 5 é Tod os esses exem plos co nstit uem uma categoria de mani festa-

.5 Labarda n = bacalhau. ._
ções e não há necessidade que nos demo rem os em cada um deles,
em particular. Unr _ UNIVERSIDAJ)F: POTlGUAR
BIBLIOTECA CAMPUS m
I
A NATUREZA rlsrCA no HOM EM 53
52 CO~lIClDA DE E RISO

No que se refere à co micidade suscitada em certos casos pelo são feitas especialmente para isso ou nossos narizes não valem mais
co rpo hu man o , é preciso notar que algumas personagens de G ógol nada.. ." "E apesar do nariz de Ivan Nikíforovitch ser um tanto pare-
se preocupam além da medida com seu aspecto . O leitor presencia cido com uma ameixa, ela (ou seja, Agáfia Fedo sséevna - V. P. )
repetidamente a cena de Tchitchikov qu e faz a barba: "Após um o agarrou justamente pelo nariz e o arrastou atrás de si, como um
curto sono vespertino ele ordenou que lhe trouxessem o necessário cacho rrinho ." Lembra r O nariz de um homem coloca-o numa posi-
para barbear-se e durante um tempo extremamente longo ficou ção ridícula, suscita a zombaria . "Ei, você, narigão", diz de si pró-
ensa boando as bochech as, estican do- as no inter ior da boca com a prio o prefeito . "Seu nariz também é horrível" , diz uma senhora
língua". G ógol repara, de leve, que a Tchitchikov agra da seu queixo, a respeito de Tc hitchikov . Em O casamento encontra mos um elogio
perfeitam ente redondo . Vemo s também co mo Tchítchikov ap erta do nariz:
a barriga cheia com uma fivela, prende os suspensórios , dá o nó - E os cabelos dele como são?
na gravata e borrifa-se com água de co lô nia. Algumas outras perso- - São bonitos.
nagens de G ógol demonstram os mesmos cuidad os. Khlestak óv pr e- - E o nariz?
- EI... o nariz també m é bonito; tudo no devido lugar.
fere passar fome a vender suas calças elegantes. Alguns noivos de
O casament o preocup am -se de modo especia l co m suas ro upas . Este HEI... " deixa entender que Kotchkáriev está mentindo
"P or favor, benzinho, limpe um pouco aqui" . diz T ev ákin , entrando aqui e que o nariz, na verdade, não é tão bo nito assim, mas está
na casa de Agá fia Tik honovna . Ele se preocupa consta nte mente apenas " em seu devido lugar". A figura do guar da em O capote é
que em sua jaq ueta não haja um grão qualqu er de po eira. cô mica graças à menção de seu nariz: "Apalpo u só um minutinho
Uma das par ticularida des desses exemp los é que os fenô me- a bota e tirou de lá uma tabaqueira com rapé para aliviar seu nariz
nos negativos nunca são descritos com todos os detalhes e até o fim, que já havia congelado seis vezes na vida" .
pois isso já não seria mais cômico . O escritor-artista como que adi- Em A avenida N iévski", o sapateiro H offm ann , bêbado, qu er
vinha com o seu instinto este limite da arte. A presença desse limite cortar o nariz de Schiller. No conto "O nariz" este procedimento
é característica da literatura principalmente dos séculos X IX e XX, é colocado na base da história. O nari z pod e deixar seu luga r e ir
enquanto isso não ocorre com a literatura dos séculos precedentes passear pela avenida Niévski como se fosse um conselheiro de Estado .
(Rab elais) e do folclor e. Mas não é um conselheiro de Estado . É um nariz.
"". O rosto humano pode ser cômi co de muit as man eira s. Os olho s O mundo como engano, como alguém que é levado pelo nariz,
não podem ser ridículos - eles são o espelho da alma. Olhos ma us, pode virar-se do lado cômico para seu lado tr ágico. O Diário de
como expressão de certa alma, não são ridículos, mas suscitam um um louco termina com o grito da alma do infeliz louco Popríschin ,
sentido de hostilidade. Olho s pequeno s e suínos podem ser engraça- para qu em a vida é ap enas tormento , para qu em não há lugar na
dos. Na verda de o engraçado aqui não seriam os olhos, mas a ausên- terra e a quem só perseguem . Mas este grito trágico conclui-se com
cia de expressão neles. Engra çados pod em ser os olho s untuosos: uma risadin ha do lou co. " Vocês sabem qu e o bei de Argel tem uma
"Os olho s dele são untuosos até a náusea, parece que passaram verruga bem embaixo do nariz?" Os procedimentos são os mesmos
neles óleo de ricino " (Tchékhov, Sem lugar). .", do s outros caso s em que se cria o efeito cômico , mas o limite indis-
pensável pa ra que se crie este efeito aq ui não é respeitad o de propó-
Ao co ntrário , o nariz, enquanto expressão de funções pura-
sito e o riso de G ógol se transforma diante de nossos olho s em seu
mente físicas, torna-se freqüent ement e objeto e fa tor de zombaria.
reverso trágico . Mas desse reverso trágico do riso de Gógol falare-
Nas expressõe s popul ares "fazê-lo po r baixo do nariz", "deixá-lo
mo s mais adiante.
com um palmo de nariz" , "m ostrar o nariz", tem o significado
Em outros escritores russos a referência ao nariz para criar
de enganar, enga belar. G ógo l faz disso uso ab undante. "Você viu
uma impressão cômica e satírica se enc ontr a mu ito mais rara-
com que na riz comprido ele sa iu? " pergunt a Kotchk ári ev a Podko-
mente. Em Esbo ços da província ("O pr im eiro conto do escr iba ")
léssin a respeito de Tevákin em O casamento. " Eu, reconheço, não
entendo como as mulheres conseguem nos levar pelo nariz com
tanta habilid ade, como se fosse a alça da cha leira: ou as mão s delas 6 Trad. de Arlete O. Cavaliere. São Paulo . Livraria Escrita. 1981.
54 COMICIDADE E RISO

Sa ltikóv-Sc hed rin conta como um médico de distri to se prepara


para " seccionar" um a foga do e pede ajuda aos cam po neses . Na
verdade ele só que r ganhar alguma coisa para si e despachá-los:
" Você, aí, Grichuk ha , vê se segura o defunto pelo na riz, para eu
7
cortar mais fácil" . O mujiqu e, aterr orizad o , pede para ser liberad o .
" Bem, posso liberá-lo , claro, mas traga-me alguma coi sa em troca. " A comicidade
Nas esta mpas popu lares as figuras côm icas (Petruchka) são
freqüentemen te representadas com um enorme nariz avermelhado. da semelhança
No teatro de Petruchka um cachorro agarra-o de repente pelo nariz
e com isso a peça termina.
Nas estampas populares que se refer em à invasão e à expulsão
de Napoleão ele é representado sentado na poltrona com um grande
.. nariz, e a legenda diz o seguinte:
Embora tenha chegado em casa desca lço e desnudo
Não deixou assim mesmo de ser o narigudo

Um nariz enorme se encontra muito freqüentemente nas estam-


pas popu lares e nas tchast úchk as t:
Tenho uma mulher muito linda
Sob o nariz é em poada
Por todo o resto ela pinga (27, 322).
A s observações feitas até aqui nos permitem resolver a questão
Bigodes e barbas, quand o se so brep õem aos ou tros traços do colocada por Pascal em seus Pensam entos (Pensées): "Por que duas
. . . ---;--
rosto propriam ente espirituais, pod em ser eles também alvo de zo m- pessoas que se parecem, ao serem VIstas ju ntas, SUSCItam em nos o
baria. Barba é apelido jocoso de com erciante s e boiardos. riso pelo fato de se assemelhare m?" Ao respo nder a essa pergunta,
an es de mais nada , e como em outro s casos de dificuldade teór ica,
Não, não - diz Agáfia Tikhonovna do noivo Qu e lhe propõe a casa-
menteira. - Ele tem barba e quando for come r tudo esco rrerá pela temo s que nos colocar a seguinte questão: "É sempre isso que ocor re?
barba, Não, não , não quero. Em que co ndições a semelhança é cômica e em quais não o é?"
A semelha nça nem sempre é côm ica . Os pa is de gêmeos não
A boca pod e provoca r o riso quan do exprime sentimentos
acharão cômica sua semelhança. Da mesma forma gêmeos que se
recônd itos hostis ou quan do o homem perd e o controle sobre ela .
assemelham não parecerão côm icos àqueles que os vêem todos os
dias e que estão acos tumados a eles. (Disso decorre que a com ici-
dad e da semelhança se determi na em função de ca usas particulares
que nem sempre ocorre m . tObservando mais atentamente, a seme-
lhança poderá ser cômica ou não pelas mesm as causas pelas qua is
nó s, em geral , rimos. Já vimos que o riso é provocado pela repen·
tina descoberta de algum defeito oculto . Quando este defei to não
existe o u quando nós não o identificamos, não rimos) E, neste caso ,
onde está o defeito? A premissa incon sciente de no ssa avaliação
do homem, de nossa apreciação e de no ssa estima por ele reside
' Tipo de refrão próprio da poesia popular oral. Versa sobre argumento jocoso ou no fa to de qu e cada homem é uma individualidad e irrepetível. O
lírico e e contado sobre um determinado mo tivo musical.
caráter da personal idade se exprime no ro sto , no s movi mentos, em
56 COMICIOA DE E RISO
A COMICIOAO E DA SEMEI.HA NÇA 57

su a maneira de port ar-se. Ao descobrirmos de repent e que duas pes- de Os tróvs ki. Sua comi cidade não se baseia apenas na semelhança,
soas são absolutamente idênticas em seu aspecto físico , co ncluímos mas igua lme nte no contraste. A com icida de aumenta à medida que
incon scientemente que elas são idênticas também em seu aspecto figuras absoluta ment e parecidas começam a bri gar e a xingar-se.
espiritual, isto é, não possuem diferenças individuais interiores. É Bóbtchinski e Dóbtchinski brigam freq üentemente um co m o o utro .
justament e a descob erta deste defeito qu e nos leva a rir. Os pais Eles se chocam inclusive fisicam ent e. Co ngra tula ndo-se com Anna
de gêmeos nã o riem por que eles sa bem distinguir perfeitamente A ndréievna "ambos se aproximam ao mesmo tempo e se chocam
cada um dos filhos , mesmo sendo externamente idênticos . Para co m a testa". Duas senho ras em A lmas mortas bri gam o tempo
eles cada um é uma individuali dade irrepetível. As o utras pesso as
todo . O exemp lo mais evidente de antago nistas co mpleta mente seme -
que os vêem todos os dias não riem porque o riso não nasce apenas
lha ntes ent re si são Ivan Iván ovitch e Ivan Nikíforov itch. Apesar
da presen a eJle~i tos..mas de sua repentin a e inesfJerada desco-
de suas diferenças , eles são co mpleta mente idênticos. A cabeça de
berta . Pode ser qu e aqu elas mesmas pessoas tenh am rid o deles a
~ . - ' . Iva n Iv ánovitch parece-se co m um rab anete co m o ra bicho para
pnmeira vez que os VIram; agora acostumaram-se e nao nem mais.
baixo, enq ua nto a de Ivan Nikiforovitch tem o ra bicho par a cima.
Porém, a semelhança entre gêmeos é apenas um caso particular,
Ivan Iván ovitch barbeia-se duas vezes por semana e Ivan Nik íforo -
aliás relativamente raro , de comicidade suscitada pela se melhança . A
vitch um a vez só ; Ivan Ivánovitch tem olhos expressivos co r de
semelhança pod e fazer rir nos casos mais diversos. Enco ntramos exem-
plos em Gógol. "Um dos proc edim entos da coméd ia clássica é a repe- tabaco; Ivan Nikífo rov itc h, am ar elos, e assim po r diante. Só que
tição" - diz Bergson. Seria mais exato falar não de repetição , mas esses pon tos de diferença só co nt ribue m para refo rçar a semelhança
de duplicação. Um exemplo clássico são Bóbtchinski e Dóbtchinski . fundamental. Às vezes a duplicação não se dá na superfície, mas é
Os atores que representaram pela primeira vez O insp etor geral não latente. Isso ocorre com Ann a Andr éievna e Maria Antónovna.
entenderam a int enção de Gógol e procuraram torná- los cômicos Embora diferentes pela idade e pelo fa to de uma ser a mãe e a outra
em si, representando-os sujos, descabelados, monstruosos, levando ser a filh a , elas são, entretanto , co mpletamente idênticas. Se Khles-
G ógol ao desespero, uma vez que na sua concepção ele os via "ra- takóv vai-se embora a mãe diz: "Ah , como ele é agradável!" e a
zoavelmente limpos, gordinhos e co m os ca belos decentemente pen - filha : " Ah , é um amo r !" , mas a di fer ença de palavras é com pleta-
teados" . ~A co micida de está na semelhança , não em algo ma is>, mente irrelevante. "Ah, que surpresa!" , exclama a mãe, e, depois
Peq uenas diferença s co ntribuem para reforçar as semelha nças . (com uma entoação um pouco diferent e) , a filha. Como as outras
Bóbtc hinski e Dóbtchinski não são em absoluto o único caso perso nagens an álogas, elas só fazem é brigar entre si.
de dup licação de personagens. O utro caso é o do tio Mitiai e do tio Este procedimento é bastante conhecido dos bons pa lhaços:
Miniai, Temístocles e Alcides, filhos de Manilov, a senhora simples- eles se apresenta m em du pla , numa certa med ida sã o idênt icos e
mente agra dáve l e a senhora agradáve l sob todos os po ntos de vista . em outra são diferentes, mas só brigam, se xingam e até se agarram
Nessa mesma categoria devem ser compreendido s padre Car po e padre por bo bagens.
Po licarpo, que, confo rme esperam os herd eiros, enterrar ão P liúchkin. No folclore russo exemplo clássico de personagens dup los (do-
Outros escritores servem-se mais raramente deste procedimento . brados) são os irmãos Fomá e Eremá, ambos desajeitados, absur-
Na co média de Ostróv ski O bon it ão' destacam- se dois desocupados , dos, desocupado s; sobre eles foram feitos inúmeros con tos e can-
Pierre e George. "S ão dois boas-vidas que não terminaram os estu- ções sa tíricas. As aventur as de ambos terminam semp re co m eles
do s, par ecidos como duas gotas de água." O mesmo se dá na comé- morrendo a fogad os.
dia Os trapaceiros 2, Nedonóskov e Nedoróstkov, "jovens vestidos A semelhança oculta ou manifesta pode est ende r-se nã o a
na última moda" . Somente em certa m edida podem part icipar dessa duas mas a mais pessoas. Isso oco rre com os noivo s de O casamen-
categoria Stchastlivtsev e Niestcha slivtsev na comédia A floresta 3, to. Eles parecem ser todos di ferentes, mas est ão unidos pelas suas
idênticas aspirações .
I [Kra.ssavets M uchtch ina ). Uma vez que um a qu ádrupla repetição o u semelhança trans-
2 [ChÚlnikl]. fo rmar-se-ia em puro esq uematisrno, destruindo com isso qualquer
) L ies, no original.
possível eomicidade, estas personagens manifestam seu caráter côm ico
~II CO/I.1IClDAD E E RI SO

agind o tod as ao mesmo tempo . Devem ser lembrad as aqui as seis


filhas do príncipe Tri gonkhóvski na com édia Os males da int eligên-
cia', que se atira m to das j untas sobre Repetilov, quando este não
ac redita qu e Tchá tski tenh a ficad o louco. Elas grita m em coro : " Me-
8
siê Repetilov, mas o qu e o senhor está dizendo? Co mo pod e dizer
isso?", de tal forma que ele fecha os ouvidos e acredita logo em
A comicidade
tudo o qu e convém que acredite.
Em Gógol pod e oco rre r a semelha nça de duas gerações: dos
das diferenças
pai s e dos filhos. Bób tchin ski narra com o se deu o enco ntro ent re
o dono da taverna e o inspetor gera l. "A mulh er dele (do dono da
taverna - V. P .) dera à luz três semanas antes e este menino assa-
nhado será, co mo O pai, o dono da taverna."
Kotchká riev tenta convencer Podkoléssin a casar-se, seduzin-
do-o com a idéia, por exemplo, de qu e ele terá seis filhos "que se
parecerào co ntigo co mo duas gotas de água" . O diálogo co ntinua
da seguinte maneira:
- Pois sim , mas eles não passa rão de mo leq ues , vão estragar
tudo, vão desarruma r meus papéis .
- Deixe-os, eles serão todos iguaizinhos a você, ar é que está
a be leza .
- Mas é rea lmen te en gra çad o, que o diabo o leve : um bolinho Nós esclarecemos por que e em que casos a semelhança pode
desses, um filhotezin ho de sses , e parecido com você . ser cõmica . Ma s a exp licação ainda não está completa .
- Co mo não é eng raçado? - É engr aça do, e co mo . A semelhança dos gêmeos na vida , a semelhança da s persona -
- Então, vamos?
gens duplicadas ou plurinominais nas obras literá rias constit uem
- Vamos .
ao mesmo tempo a sua dessem elhança de to das as outras pessoas.
Podkoléssin consente em casar-se. Tal observação pod e ser generali zad a e expre ssa do seguinte modo:
Aq ui pode-se acrescentar que\qualquer repetição de qualquer alo toda arlicularidaIle...Qu-estranh eza_qu e disti ngue um a pessoa do
espiritual priva este alo de seu caráter criativo ou de qualquer car áter meioque a circunda -pode-to rn á-la -rid ícula .
significativo em geral . Reduz sua importância e por isso mesmo pode Qua l a causa disto ?
torná-lo ridículoJ O profe ssor ou o conferencista qu e de ano em ano Chegamos aqui a um dos casos mais comp lexos e dificeis na
repete sua aula com as mesmas brincadeiras, com as mesmas expres- explicação do cõmic? ~ l?e A ~ist?teles até h oj ~ os..est.ud iosos -~e-est~­
sões, com a mesma mímica e com a mesma entoaçào , torna-se ridí- tica repetem que o disfor me e comico, mas nao_exphcam e.não.d efi-
culo aos o lhos dos estudantes, se eles percebem o que se passa. nem que tipo de deformidade é risível.e_quaLnãO-é) (O disfor me é o
"É a décima oitava vez que isso se passa co migo . e sempre opo SlÕ do subl i m~) Nada que seja sublime pod e s~r ridículo , ridícula
de mod o quase idêntico. " É ass im que Je vá kin se qu eixa em O é a transgressão dISSO. O hom em pOSSUI certo mstmto do devido, do
casamento do insucesso de sua intermediação matrimonial. que ele considera norma. Essas normas referem-se tanto ao aspecto
exterior do homem quanto à norma da vida moral e int electual. O
ideal de beleza exterior, ao que par ece, define-se co mo necessidade
da natureza. É exteriormente bela a pessoa de com pleição proporcio-
nal e harm oniosa, ou seja, de compleição qu e correspo nde aos atribu-
" Gore 0 1 um á. famosa peça satírica de A . S. Griboiedov (1795- 1829). tos da saúde hum an a - de força, de agilidade, de destreza. de capa-
60 CO."UCIDADE E RISO A COMICIDADE DA S DIFEREI'ÇAS 61

cidade para uma atividade completa. Têm razão Iurêniev e muitos Nas revoluções sociais pode tornar-se cô mico o que pertence
outros quand o afirmam que " ~vocam o riso.as faítasde.corresnon- irremediavelmente ao passado e não correspon de às novas normas
d ência, que revelam desvios da norma" . O homem determina instinti- criadas pela ordem ou regime social que venceu. Marx notou isso .
Vãmente esta norma em relação apenas a si mesmo. O pescoço longo O pensamento de Marx a esse respeito é freqüentemente citado ,
e as pernas compridas da girafa são de total utilidade para a girafa: sendo exposto do seguinte modo : " Rindo, a humanidade separa-se
ajud am-na a alcançar as folhas das palmeiras e das árvores altas. de seu passado" . Marx nunca disse tais palavras e semelhante fór-
Porém, o pescoço longo no homem é defeito: revela alguma debili- mula é uma detu rpação simplificada de seu pensamento. Eis exata-
dade do organismo, representa alguma transgressão da norma. Já mente as palavras de Mar x:
sabemos que cômicos justamente são os defeitos, mas so mente aque- A história age a fundo e atravessa várias fases quando leva à sepu t-
les cuja existência e aspecto não nos ofe ndam e não nos revoltem, e tura uma forma antiquada de vida. A última fase de sua forma histó-
ao mesmo tempo não suscitem piedade e compaixão. Desse modo, rica universal é a sua comédia. Aos deuses da Grécia, Que já tinham
um co rcunda só provoca o riso numa pessoa moralmente imatura. - em forma de tragédia - sido feridos de morte no Prometeu ecor-
rentado de Esquilo, coube uma segunda vez - em forma de comédia
O mesmo é válido, por exemplo, para as manifestações fisicas da - morrer nos Diálogos de Luciano. Por que a marcha da história é
velhice ou da doença. Portanto, nem toda deformidade é cômica. A assim? Isso é necessário para Que a humanidade se separe alegre-
limitação aristotélica continua verda deira nos dias de hoje. mente de seu passado (2, 418).
Os casos citados baseiam-se na transgressão de normas de
Essas palavras definem a lei e a racionalid ade histórica ("para
ordem biológica . É o caso de todos os defeitos fisicos dos quais se quê"). A mor te dos heróis que deram sua vida na luta pela ju stiça
tratou nos capítulos precedentes. Mas em certas circunstâncias pode
histórica é uma morte trágica. Esta é a primeira fase. Não é rindo
se tornar cômica a transgressão de normas de ordem pública, social que a hum anidade se desliga de seu passado. Quando a luta termina,
e política . os restos do passado no presente estão sujeitos à ridicularização .
Há norm as de conduta social qu e se definem em oposição Porém, o trágico e o cômico não se dividem mecanicamente.
àquilo que se reconhece como inadmissível e inaceitável. Essas nor- As sobrevivências do passado no presente nem sempre são cômicas
mas são diferentes para diferentes épocas, diferentes povos e ambien- de per si. São sempre cômi cas as sobrevivências religio sas? Por elas
tes sociais diversos. Toda coletiv idade, não só as grandes como o certamente nem sempre, mas com os meios artísticos da comédia
povo no todo, mas também coletividades menores ou pequenas elas podem ser representadas satiricamente . Quanto mais forte e
- os habitantes de uma cidade , de um lugarejo, de uma aldeia, até séria é essa sobrevivência (a influência estética sobre os crentes atra-
mesmo os alunos de uma classe - possuem algum código não escrito vés da música e da pintura), mais difícil é sua repr esentação em ter-
que abarca tanto os ideais morais como os exteriores e aos quais mo s satíricos; quanto mais banal é essa sobrevivência (a velhota
todo s seguem espontaneamente . A transgressão desse código não que considera pecado os vôos espaciais), mais fácil é a criaçã o da
escrito é ao mesmo tempo a transgressão de certos ideais co letivos sátira. Nem todas as sobrevivências são desse tipo. Muitas delas
ou normas de vida, ou seja , é percebid a como defeito , e a desco- dizem respeito não tanto à competência do satírico , quanto à do
berta dele, como também nos outros casos, suscita o riso . Que essa promotor. Mas, na maioria dos casos, o satírico e o promotor podem
transgressão, essa falta de correspondência ou contradição , suscite se ajudar reciprocamente.
o riso já foi observado há tempo . Assim, escreve Z. Podskálski: A comicidade nos casos apresentados baseia-se na divergência
entre as normas de do is modos sociais de vida do povo, historica-
A contradição social cômica fundamental (nas sociedades classistas
mente determinados.
- a contradição de classe) é ainda seguida de uma contradição
onde os caracteres e as ações dos homens encontram-se em co n- Porém, a comicidade pode ter co mo causa diferenças não ape-
traste com o ideal geral da dignidade humana, elaborada pelo desen- nas socia is, mas de costumes, por exemplo, entre do is povos diferen-
volvimento da sociedade e derivado das regras básicas de toda co n- tes numa mesma época. Se todo povo possui suas próprias normas
vivência humana (30, 14). exteriores e interiores de vida, elaboradas no decorrer do desenvoI-
61 COMICIDADE E RISO A COMICIDADE DAS DIFEREN ÇAS 6.3

vimen ta de sua cult ura, será cômica a manifestação de tud o aq uilo por exemplo, os feitios dos chapéus femi ninos. Outrora usavam cha-
que não corres po nde a essas normas. É por causa disso que os péus enormes. Eram adornados co m penas de avestruz, prendiam
estrangeiros, tão freqüentemente, parecem ridículos . Eles parecem neles colibris, papagaios empalhados ou o utros pássaros vistosos.
cômicos apenas quando se destacam e se diferenciam por suas estra- Nos chapéus eram fixadas flores artificiais, frutas e bagas - cere-
nhezas daq ueles do lugar para onde vieram . ~nto mais ressa lta - ja s de vidro ou cachos de uva. Essas modas pen etravam no campo,
das as dl fJ;renças,
0 - . ~
ma is pro vável é a co micidade. As pessoa s inexpe-
_
e a isso se refere a segui nte tchast úchka:
nen es e mgen uas parecerao ndl culo s o costume ou os gestos dos
A moça de Petersburgo
estrangeiros, estranhos para os nossos ouvidos os so ns de sua fala Parece um quadro pintado.
quando falam a língua materna, ou a pronúncia incrível quando se O chapéu - como uma horta ,
põem a estropiar a língua russa. Faz dela uma senhorita .
Em O inspetor geral>, G uibner é engraçado não só por sua
AssimJ é cômica não só a última moda, mas em.geral.qual -
obtusidade, mas por ser um alemão no meio de russos. Tem a ver
,. com isso ta mbé m a sua língua presa . Em A avenida N iévski os ale-
mães são ridic ularizados na figura de Schiller. " Schill er era um ale-
qu er roupa extravagante que destaque o homem de seu meio. Do
mesmo modo que se ri das modas novas, ao contrário, são ridícu-
las as roupas fo ra de moda que às vezes as velha s vestem de acordo
mão perfeito, no sentido com pleto da palav ra" - e segue -se a des-
com o uso de seu tempo. Púchkin descreve com humor bonachão
cr ição de Sch ille r, q ue em nada se par ece co m os russos. No folclore
essa preferência pelo s tempos de antanho na cena da festa em O
é possível encontrar anedotas referentes aos vizinhos não russos.
Essas anedotas , ao cont rário, poss uem um caráter benévolo e de
negro de Pedro, o Grande: "As senhoras de idade procuravam astu-
tamente aliar o vestuário moderno às velhas modas perseguidas: as
modo algum refletem qu alquer hostilidad e. O mesmo po de-se dizer
das numerosas chacotas , zombarias e adágios endereçados aos habi- toucas lembravam os chapeuzinhos de marta da tzarina Natália Kirí-
tantes dos lugarejos e cida des vizinhas . Eis alguns exe mplos: "Os lovna, as saias-balão e as mantilhas pouco se diferençavam do
do / lago/ Lad oga enxotara m o lúcio que chocava os ovos "; "Os sa ra fã e da ducheg r éika">. Em compensação, Púchkin descreve as
starorussos comeram o cavalo e escreveram a Nóvgorod para que novas modas dos tempos de Pedro com evidente simpa tia . Os tr a-
lhes mandassem mais"; "Os de Tvier são comenabos " ; "Os de jes daq uela época revelavam a or ientação po lítica : a tendênc ia par a
Kachin são ag uapâ es (pas sam a pão e ág ua)" . Um co nju nto mu ito o velho tem po dos boiardos, ou pa ra as inovações de Pedro.
interessante de expressões deste tipo , com preciosos comentários A pr edil eção cômica tanto pelas modas novas, como também
históri cos, pode ser encontrado nos tr ab alh os de Dal'. a tendê ncia ao antigo são apresentadas po r Gógol na descrição de
I, Mas podem ser cômicas não apenas as pessoas de uma comu- alguns tra jes femininos no bai le do gove rna dor em Almas mo rtas.
nidade diferente, grande ou pequena, ma s também a s daq uela mesma Descritas as modas mais recentes, Gógo! exclama: "Não, isto aqui
à qu al pert encem , se se disting uem dos outros clarame nt e em algo . não é uma província, isto é uma capital, é a própria Paris!" Mas

U
Tod o povo e tod a época têm costumes pr óp rios e normas pr óprias logo observa: "Apenas aqui e ali surgia alguma touca inédita no
de conduta exterio r. mundo ou até mesmo alguma pluma quase de pavão, contrariando
Ao mesmo tempo, essas normas podem mudar às vezes, e todas as modas, ao gosto da portadora":'. Mais forte ainda é a sátira
mudam bem rapidamente. De início, as mudanças devem ser consi- dos trajes da alta sociedade em A avenida Niévski: "E que mangas
deradas como transgressões de um co mportamento co mum e provo- de vestido você encontra na avenida Niévski! Ai, que encanto! Elas
cam o riso. Esta é a razão pela qual suscitam o riso as modas visto- par ecem um pouco com dois balões de ar, como se uma dama de
sas e insólitas. É muito fácil apresentar a histó ria da moda de
maneira satírica . No âmbito de uma mesma geração pode m mudar, 3 Em A doma de espadas. Trad. de Boris Schnaider man . São Paulo , Max Limonad,
198 1. p. 15. As explicações que seguem foram retiradasdesta edição : sarafã = ves-
tido comp rido que se usava co m uma blusa de mangas largas; duchegreíka
I Op. de casaco fo rrado de algodão .
2 Em A avenida N i êvski, clr., p. 36. '" Almas mortas, cít ., capo VIII. p. 195.
64 COMICIDADE E RISO A COM lC1DADE DAS DIFERENÇAS · 65

repente pudesse elevar-se no ar, caso não estivesse amparada pelo contrariam nossas noções de ha rmoni a e de proporção, as quais são
cavalheiro" '. Exemplos em que a pessoa (e junto com ela a classe a racionais do ponto de vista da s leis gerais da natureza . Neste sen-
que pertence) caracteriza-se pelo traje são muitos em Gógol. Po de- tido, têm razão os teóri cos que, a começar de Aristóteles, afirma-
se recordar aqui ao menos o fraq ue cor de mirtilo ou " cor de fumaça ra m a identidad e entre o cômico e o disfo rme.
com chamas de Navarino" que Tchítchikov encomenda para si. Isso esclarece por que são ridículas as deformações do s ro stos
Do mesmo mod o que são ridículas as moda s ou as roup as anti- hum anos nos espelhos curvos. Narizes exagerado s e proeminentes,
quadas, tamb ém é ridículo O vestuário dos estra ngeiros. Assim, até bochechas extremamente gorduchas, enor mes orelhas de ab ano,
hoj e na Inglaterra os corretores da bolsa de valores usam chapéu- uma expressão do rosto com pletamente inusitad a, sobretudo quando
coco . Mas, se esses ingleses de chapéu-coco na cabeça aparecessem ri de modo qu e a boca chegue até as orelhas - tudo isso constitui
hoje na avenida Niévski, eles far iam rir. Este caso mostra muit o cla- uma deformid ade que suscita o riso como também os outros tipos
ramente que um vestuário insólito suscita ~iâ-o não pelo fato de de deformidade e desprop orção.
ser insólito , mas porqu e esse insólito revela uma falta de correspon-
,. dência com as noções inconscientes sobre a vulnerabilidade qu e esse
vestu ário expressa. Se falta isso , uma roupa esquisita , insólita, estra -
nha, não nos faz ri r. Desse mod o, é possível ver em nossas ruas visi-
tantes da Índia e de outros países em seus magnífico s e vistosos tra-
jes nacionais. É o caso, por exemplo, dos longos vestidos de seda
das mulheres hind us - eles suscitam o encanto e a admiração geral.
Os casos apresentados nos explicam por que e em que circuns-
tâncias uma diferença é percebida como elemento cõmico. Nos últi-
mos exemplos citados tratava-se de uma diferença provocad a pelo
compo rtamento da própri a pessoa . Porém , em essência, esses casos
não se distinguem daqueles em que as diferenças se devem não a
pessoas, mas à natureza. A correspo ndência geral de car áter bioló-
gico foi definida acima. As diferen ças biológicas individuais são ridí-
culas quando percebidas como deformidad es qu e transgridem a
harm on ia da natureza. Já se falou, acima, dos gordos. Neste caso
um defeito físico era cômico porque atrás dele reconh ecia-se um
defeito de outra ord em. Entreta nto, os defeitos físicos são também
de outro gênero . As crianças e as pessoas ingênua s em geral consi-
deram ridículos os defeitos físicos de qualquer gênero , tais como
gra ndes pint as peludas, olhos estrábicos ou saltados, lá bios caídos,
papo grand e, boca torta, nari zes vermelhos ou azulados etc. Por
qu e são ridículos os calvos, os qu e têm pernas curt as ou, ao contrá -
rio, os pernalongas? Esses defeitos não revelam nenhuma imperfei-
ção pessoal int erior. Eles constituem uma deformid ade natural e

5 A avenida Niévski, cit. , p. 6.


6 Almas mortas, cit . Alusão à batalha de Navarino no Pelopo neso (1827), onde a
esquadra anglo-russa-francesa derr oto u a turco-egípcia. O choque desencad eou a
guerra russo -turca.
o H O,\lEM CO M A PAR ~ NCI A DE A N I MAL 67

lembram qualidades análogas do ser humano) Chamar uma pessoa


9 com o nome de um animal qualquer é a forma mais difundida de
injúria cômica tanto na vida como nas obras literárias. Porco , asno ,

o homem com aparência came lo, gralha, cobra etc. são xingamentos co muns que suscitam
o riso do s espectadores. SãC\ possíveis aqui associações as mais diver-
sas e insólita s. " Um médic o zeloso é como um pelica no" , "Todo
de animal almofadinha é como uma lavadeira" são alguns afo rismos de Koz má
Prutkó v. "Somente por causa das crianças eu mantenho este tri-
tão" - diz em Tchékho v um proprietário de terras sobre a gove r-
nanta inglesa (A filha de Albion). "Mulheres aut ênticas hoj e em
dia não existem , mas , com o perdão de Deus, somente lavadeiras
e anchovas" , diz-se no conto No pensionato de Tchékho v. A com-
paração com animais é cômica apenas quando serve para desvendar
" um defeito qualquer. Onde isso não ocorre, a comp ar ação não só
""
não é ofen siva, mas pode até servir co mo manifestação de elog io
ou de afeto . Na poesia popu lar o falcão brilhante é símbolo do
jo vem bom, o cuco da moça saudosa . Uma mulher jovem, infeli z
no casamento, quer se trans formar num pássaro e so b essa aparên-
cia voar de volta para casa etc. Na vida cotidiana tratamentos
como "gatinha" , "canarinha" , "coelhinha" e outro s servem como
Examinamos até agora aqueles caso s em que a com icidade expressôes de afeto.
surge do confronto de algumas qualidades interiores do espírito ou Como em outros caso s, sobretudo em Gó go l encontramos
da alma do homem com as formas exteriores de sua manifestação, um material rico e variado. A partic ular idad e do estilo gogoliano
sendo que essa com paração era tal de modo a pôr a nu as qualida- neste caso reside no fato de que as pessoas não são nunca represen-
des negativas da pessoa representada ou observada. Confrontaram- tadas em forma de animais (como acontece, por exemplo, na fábu -
se alguns dados interio res e exterio res próprios de uma mesma pes- la), mas somente os que os lembram em suas forma s variadas asse-
soa. Mas é possível também uma comparação de caráter diferente: melham-se a eles.
o objeto de confronto é tomad o do mundo circunstante . Na litera- Representar um homem de modo que em seu aspecto humano
tura humorística e satírica , assim como nas artes figurativas, o se desenhe a imagem de um animal é um procedimento utilizado
IiÕmem. na ma ioria das vezes, é compa raoo a am ma is O-li a o bjetos, do modo mais con seqüente na descrição de Sobakévitch, que é com-
e essa co mparação [ovoca o riso. É fácil notar que a aproximação parado a um urso': "Quando Tchítchikov olhou de esguelha para
do homem co m animais, o u a co mparação entre eles, nem sempre Sobakévitch , este pareceu-lhe extremamente com um urso de tama-
suscita o riso , mas apena s em determinadas condições . Há animais nho médio" . Ele é desajeitado, anda com os pés virados par a den-
cuja aparência. o u aspecto exterior , faze m-nos lembrar certas quali- tro , usa um fraq ue marrom e se cham a Mikhail Semiônovitch 2.
dades negativas dos homens. Por isso a representação de uma pes- Porém, não ele apenas, mas todo o mobiliário que o circunda
soa com o aspec to de porco, macaco, gralha o u urso indica as qua- i possui algo ursino : "Tudo (.. .] tinha uma estranha semelhança com
lidades negativas correspondentes do homem. A similitude com ani-
mais aos quais não são atribuídas qualidades negativas (a águia, o I 1 Em A/m as mortas, cito O nome da perso nagem, ainda que compar ada a um urso ,
falcão, o cisne , o rouxinol) não provoca o riso . Daí a co nclusão remete à palavra sobaka (cachorro ).
2 Nas fábulas e con tos populares russos os animais geralmente recebem nom e e patro-
de que para \as co mparações humorísticas e satíricas são úteis ape- nímico próprios. O urso aparece freqüentemente com o no me de Mikhail (Micha,
nas os animais a que se atribuem certas qualidades negat ivas que Michka) Semi ônovirch.
68 COMICIOADE E RISO o HO\.1EM COM APARtN CI A DE AN IMAL 69

o pró prio do no da casa". " Num canto ficava uma escrivaninha deles, Ob rugai, em vez de um beijo, dá um a lamb ida na boca de
barriguda de nog ueira, sobre quatro pern as deselegantes - um ver- Tc hítchikov. (A hu mani zação dos animais às vezes é levada ao
dadeiro urso". , absurdo , e esse absurdo refo rça o efe ito c ômico. j No Diário de um
Em Ivan Fi âdorovitch Chponka, Vassilissa Kachp árovna quer louco a inverossimilhança justifica-se pelo fato de que o mu ndo é
casar seu sobrinho . Ele se vê em sonho já casado, e o sonho toma mostrado através do prisma das percepções de um ma luco: "Li tam-
a forma de pesadelo. "É estranho para ele: não sabe como se apro- bém nos jornais acerca de duas vacas que entraram numa loja e
ximar dela, o que dizer-lhe, e nota que ela tem uma cara de gan - pediram para si uma libra de chá" 10. A correspondência entre os
50." Em seguida ele "vê outra esposa, também com cara de gan - doi s cães, Medj i e Fidel, é apresentada como verdadeiramente real
50". Mais freqüente mente, a semelhança com um animal ocorre e tendo lugar na realidade. Ela con siste numa sátira aos representan-
de passagem, o que não diminui a cornicidade, mas, ao co ntrário, tes das classes superiores e ao círculo de seus interesses. Esse meio
reforça-a. Em a inspelor geral, Khlestakóv imagina-se em trajes Popríschin não pode at ingir, embora o deseje ardentemente. São
da capital aparecendo na casa de vizinhos provincianos e mandando ridicularizados não apenas os defeitos sociais, mas também os senti-
I" seu criado avisá-los: " Ivan Alie ksâ ndrovitch Khlestakóv deseja ser mentos autenticame nte humanos co mo, po r exem plo, ° amor: "Ah,
~: recebido" . "Esses pobres diabos provincianos aí não sabem nem minha querida, como é evidente a aproxi mação da primavera! Bate-
ao menos o que quer dizer ' deseja ser receb ido'. Quando algum me ° coração, como se esperasse alguma coisa" 11. Estas palavras
rico fazendei ro faz uma visita, esses ursos vão se esconder no quar- têm um sentido poético, mas na interpretação canina adquirem
to. ,,' Na cena da gabolice" Khlesta kóv diz: "E lá o escrevente de um matiz completamente diferente. O fato de Gógol alte rnar a
cartas, tremenda rata zana , com a pena só tr. .. tr. .. foi escrevendo" . sátira social com a sátira individual-psicológica não atenua o sen-
Por outro lado, o governador tem a segui nte opinião sobre Khlesta- tido satírico de sua obra , aliás, pelo contrário: uma sátira social
kóv: "I.. .1 mas ele vem vestin do fraq ue. Parece uma mosca de asa contínua, sem estratos puramente cômicos , criaria mo noto nia e ten-
torta" >. Na ca rta de Khlesta kóv a T riáp itchkin lemo s: "O diretor denciosidade didática e causaria tédio no leitor.
do hospital , um certo Zemlianika , é um verdadeiro porco enfeita- Na sátira e na humo rística soviét icas a co mparação co m ani-
do! " ; "E m primeiro lugar vem o gove rnador: ele é mais imbecil mais raramente é encon trada. Aparece co m mais freqüência nas
do que um capão na engorda' :", artes figurativas. Várias revistas satíricas possuem o u possuíam títu-
Em todos esses casos a pessoa é rebaixad a ao nível do anima l. los pinça dos do mundo an imal. Nomes como Beguemot, Nossorog,
Mas em G ógo l enco nt ra-se também o caso op osto : o a nimal se Krokodil, 10J, Iorch, Juk , Komar, ass á, Sk orpion, Chmiel, Moskit,
hum a niza. Os cães de Koróbotchka põem-se a latir em todos os dia - Krissodáv c muito s outros t - . Em cada um dos casos é po ssível expli-
pasões possíveis, e Gógol descreve isso como um co ncerto no qual ca r por que foi escolhido este ou aquele nom e.
se destacam sobr etudo as vozes de temo r 7 • Os cães de Noz drióv O animal desemp enha um papel especial na s fáb ulas e nos con-
co mpo rtam-se de modo familiar com as pessoas: "To dos eles, arre- tos mar avilhosos popular es. Recorrend o às fábu las de Krilov U , é
bitando as caudas, qu e os caça dores ente ndidos em cães cha ma m de possível ver que ali o animal às vezes suscita o riso e às vezes não .
lemes, dispararam ao encontro dos visitantes e puseram-se a cum- Em fá bulas como a lobo e o cordeiro, a leão e o ralo, a lobo
primentá-los" ' . Esse cump riment o consiste no fato de que "Uma
dezena deles co locou as patas nos ombros de No zdrióv" '. Um
10 Niko lai G ógol , Diário de um louco, cít ., p. 33. Os contos desta coletânea não
foram traduzidos diretamente do russo e apresentam prob lemas de tradução . A
J Em O inspet or geral , cit., p. 45. referência serve ao leitor para dar uma pálida idéia do o riginal gogolia no . No
4 Ibidem, ato 111 , cena VI. entanto . quando citado , só nos remeteremo s a ele se o trecho se prestar à exempli-
S Ibidem. p. 89 . ficação exigida .
6 Ibidem. p. 166 e 163 , respectivamente . 11 Op . cir., p. 40 .1.
7 Alm as mortos, cit. , p. 52-3. 12 Em português, hipopó tamo, rinoceronte, crocod ilo , ou riço . acerina, besouro , per-
8 Ibidem, p. 88. nilo ngo , vespa , esco rpião , zangão , mosquito. mala -ratos .
9 Ibidem, p. 88. lJ Fabulista russo (1768- 1844).
70 coxtn JI);\IJ E E R ISO o 1I0 MEM COM AP A~NCIA DE ANIMAL 71

no canil e em tod a uma série de outras os animais n ão são ridículo s. é popu lar, mas possui origem literária. No folclore ru sso existem ape-
, Uma característica específica da fábula é o alegorismo .vAtra v és dos nas do is desses contos maravilhosos. É a história de lorch lórchovitch
animais subentendem-se os homensqPortanto, o alegorisfno enquanto e a da raposa-confessora . Ambos os contos maravilhosos não têm
tal não assegura o risoJ>orérn, se Iomarmos as fábu las 'A macaca e or igem folclórica. A história de Iorch é do século XVII e representa
os óculos, A rã e o boi, O quarteto e vária s outras, ficaremos propen- uma sátira cortante ao pro cesso judiciário moscovita de então e o
sos ao riso . Na figura da macaca buliço sa , da rã inchada de arrogân- conto maravilhoso sobre a rapo sa-confessara é uma sátira ao clero .
cia, nas figuras simplórias da macaca, do asno, da cabra e do urso Ambos passaram da literatura ao folclore ' .
é fácil para nós reconhecer as pessoas com todos os seus defeitos. É Nos casos em que o povo pret ende retratar o mun do satirica-
verdade, também nas fábu las O lobo e o cordeiro, O leão e o rato mente, ele não recorre às imagens de animais. Os contos maravilho -
etc. os defeitos a parecem. Mas no primei ro caso aparecem os defei- sos satíricos são conto s sobre papes, sobre proprietários de terras,
tos terríveis, no segundo os mesqu inhos. O lobo que devora o cor - e não sobre animais.
deiro inocent e não é cômico , ma s odio so. Não perseguem objetivos satíricos nem de travestimento . Para
(É diferent e a correlação entre seres humanos e animais no os festejo s natalinos, e em parte também para a Máslenitsa, pessoas
conto ma ravilhoso. Difundiu-se amplamente a idéia de que nos con - fan tas iavam-se de anima is, usavam máscaras e peles de bicho s - de
tos mar avilhoso s através dos animais subentendem-se os homens, urso , de cegonha, arremedavam a cabra. Vestidas de animai s, faziam
como ocor re na fábula ' ) Tal idéia é sem dúvida err ônea. Diferent e- micagens e os espectadores pouco exigentes estouravam de rir. O
.., ment e da fá bula , no conto maravilhoso o alegor ismo é completa- pescoço comprido da cegonha, o jeito canhestro do urso, os ba lidos
ment e est ra nho . No s conto s maravilhosos os costumes dos bicho s, das cab ras, tudo isso provocava nos presentes alegres risadas. Este
a diferença de seus ca racteres lemb ram os homens, e por isso fazem é um tipo diferente de riso, que examinaremo s mais adiante. Mesmo
sorrir, mas as figur as dos animais não representam as figuras dos se aqui há zombaria, esta é tot almente ino cente , bon achona.
seres hum anos em geral , como ocorre na fábu la . Os contos maravi- Nesses casos o anima l é representado pelo hom em. Mas com O
lhosos sobre a nimais en quanto gênero não perseguem objetivos satí- mesmo efeito é po ssível o contrário: nisto se baseia a comicidade dos
ricos , nã o se presta m para fins de zombaria. Os protagonistas não animais amestrados . Elefantes que lambuzam de espuma de sabão a
person ificam os defeitos humano s. No conto maravilho so a atit ude cara do domador para barbeá-lo, ursos que andam de bicicleta, cachor-
em relação aos anima is pod e ser afet uosa.jêles são chamados de rinhos que dançam sobre duas pernas ou uivam ao som de bandolins,
modo carinhoso e com dimi nutivos: " lebre zinha ", "galinho " , como faz a Kachtanka !" de Tchékhov. A percepção cômica dos ani-
"our icinho ", "cabritinho " , e assim por diante . Até mesmo a astuta mais encontra-se já na Grécia Antiga. Aristófanes intitulou algumas
raposa é chamada de "raposinha-irmãzinha" .(A person agem nega- de suas comédias com nomes de animai s: A s aves, A s vespas, As rãs.
tiva do cont o mara vilhoso, o lobo, pode ser objeto de zomba ria , Nelas, em vez de pessoas, são animais que atuam, e até hoje isso
ma s nesse caso ela não é pro vocada pela figura do animal (a figura diverte os espectadores. Vê-se a que ponto são vitais os princípios uti-
do lobo nã o é cômica), mas pela trama) Se, por exemplo, num lizados por Ar istófanes pelo conto maravilhoso de Saltikó v-Schedrin
conto maravilh oso so bre o lobo e a raposa, o lobo bobão , seguindo A águia-mecenas. Ali, a águia arranja par a si um paraíso de proprie-
o conselho pérfido da raposa, en fia o rabo num buraco do gelo de tários de terras, obrigando todos os pássaro s a servi-la : "Os frango s-
mod o que este co ngela e quando o atacam arranca o próprio rabo, d 'água e mergulhões for maram uma ban da de música, os papagaios
fugindo sem ele, o cômico aí não é a figu ra do lobo , ma s a ação , foram nomeados trovadores, à gralha de flan co branco por ser la dra
a trama. Sobre a co micidade da ação tratar emos mais adiante.
Os cont os ma ravilhosos populares sobre an imais não perseguem
• C f. V. P _A d ri áno va-Peretz, Ótcherk i po ístárií satintcheskoi literotúrí X VII viek a
objetivos satíricos. Nos casos em que isso ocorre, o conto mar avilhoso [Ensaios de história da literatura sauríca do século X VII]. Mosco u-Leningrado ,
AN SSSP . 1937. p. 124-224.
14 Existe tradução brasileira de Boris Schnaiderman em O beijo e outras histórias.
• C r., por exemplo: V. P . Anikin, R ússkie naródnie skdzki [Contos maravilhosos São Pa ulo, Círculo do Livro , s. d . p. 39-60; e em A s três irmãs - Contos. São
populares russos]. Moscou. Urchnicdguiz , 1959. p. 67. Pa ulo , Abr il Cult ura l, 1982. p. 177-98.
72 COMICIDA DE E RISO

confiaram as chaves do tesouro, a coruja e o mocho foram obriga-


dos a voar de noite para fazer a ronda" . Com os pássaros cria-se
até uma academia de ciências, mas todo esse intento acaba dando 10
em nada, pois todos investem um contra o outro e tudo vem abaixo.
Saltikóv-Schedrin em seus contos maravilhosos recorre repetidas
vezes às figuras de animais (o gobião sábio, a lebre altru ísta, a
o homem-coisa
vobla seca e outros). Todos esses são contos maravil hoso s-alegorias
e sátiras, e nisso reside a diferença deles em relação aos contos mara-
vilho sos popular es . Aprox imar alg un s aspecto s da obra de
Saltikóv-Schedrin do folclore é um equívoco. Mas, em comp ensa-
ção, ela tem ponto s em comum com os co ntos maravilhosos-novelas
satíricos do século XVII. No Idüio contemporâneo há uma cena inti-
,....
'
tulada "O gobião desdito so, ou um Drama no tr ibunal popu lar de
Káchin" (cap . XXIV), que lembra muito a Novela sobre Iorch Iár-
chovitch, f ilho de Schetínnik ov (ou A demanda da Carpa contra a
, ,. A cerina).
,
,. Os. materiais citados são suficientes para mostrar em que con-
siste a comicida de a partir da comparação do homem com animais.

lA
representação do homem como co isa é cômica pelas mes-
mas razões e nas mesmas condições em que é cômica sua representa-
ção em vestes de animaI.) "Gralhas de cauda curta", "barretes",
"cogumelos de pouca pança" - co m essas e outras palavras o
governa dor xinga Bóbtchinski e D óbtch inski ' . Animais (gralhas) e
coisas (barretes, cogumelos) são nomeado s aqui ao mesmo tempo .
Em Talentos e admiradores, de Ostróv ski, o velho artis ta
Narokov fala do empresário: "E le é uma árvore que temos aqui,
uma árvore, um carvalho, uma besta". "Poste!" 2 , diz no conto
de Tchékhov o pai da noiva à sua esposa quando ela, para aben-
çoar os jovens, na pressa, ao invés do ícone, tira da parede o retrato
do escritor Lajétchnikov .
Insultos e comparações de todo tipo são geralmente mUito colo-
ridos tanto na vida como na s obras literárias. As comadres de Wind-
sor chamam Falstaff de "abóbora aguada " . Na comédia de Ostróvski
A verdade vai bem, a fe licidade melhor ainda, Filitsat a diz do comer -
ciante que é totalmente submisso à mãe: " Balalaica sem cordas",
definindo à perfeição sua 'natureza.
Geralmente, um caráter pode ser bem definido através da com-
paração com uma coisa. Tchékhov tem um conto intitulado "Um

I Personagens de O inspet or geral, de N. G ógol, cito


2 No original russo: frade-de-pedra , fra d épio, espécie de marco de pedra.
74 COMICIOADE E RISO o HOMEM-COISA 7S

tronco intelectual". "Vosso caráter é semelhante à groselha azeda" ciosa . Em Almas mortas, um vendedor de sbitien ': é descrito como
- escreve Tc h ékhov à Mizínova; e sobre si mesmo a Suvórin: "Não " um samovar de cobre vermelho e com um rosto tão vermelho quanto o
tenho um caráter, mas uma bucha" . Expressões brincalhonas desse samovar , de modo que de longe se poderia pensar que à janela esti-
tipo encontram-se freqüentemente nas cartas de Tchékhov ao irmão vessem dois samovares, se um deles não tivesse uma barba negra como
Aleksandr : "Não seja um par de calças, venha"; "Numa palavra, azeviche" . Grigóri Grigórievitch em Ivan Fiodorovitch Chponka é
você é um botão ". Muito expressivas são algumas com parações de representado do seguinte modo: "Grigóri Grigórievitch recostou-se
Kozmá P rut k óv: "Eu compararei sem hesitar um velho que passeia na cama e parecia um enorme colchão deitado sobre o outro" . É inte-
a uma clepsidra". Como sempre, são particularme nte coloridos os ressante comparar com essa a representação de um homem, feita por
exemplos aná logos em Gógol. "Seu torrada queimada", " burro como Saltik óv-Schedrin em Idilio contemporâneo: " Era um homem de uns
uma porta" - é assim que no conto O nariz' a mulher do barbeiro cinqüenta anos extraordinariamente ágil e perfe itamente oval. Como
xinga o marido. "Parece que viu passa rinho verde, seu pedaço de se ele todo fosse constituído de vários ovais ligados entre si por um
pau" - fala Po dkoléssin de Kotchkáriev em O casamento, e ele mesmo fio, posto em movimento por um mecanismo oculto . No meio ficava o
acrescenta : " Não passa de um sapato de mulher, não é gente" . oval básico - a barriga , e quando ele começava a se mexer, os ovais
,- . " Que diretor é ele? É uma rolha e não um diretor, uma sim- e ovaizinhos restantes tamb ém se punham em movimento" . Esta des-
."'. ples rolha dessas que servem para tapar garrafas" - assim em Diá-
rio de um louco" refere-se Popríschin ao chefe.
crição, num certo sentido, serve de ilustração à teoria de Bergson.
" Nós rimos" , diz Bergson, "toda vez que uma pessoa prod uz em nós
Um rosto hu mano, repres entado at ravés de um objeto , perd e a impressão que uma coisa produz" . Mas este mesmo exemplo revela
o sentido. " Era uma cara dessas que em sociedade cha mam de foci- tam bém a insuficiência da teoria de Bergson. A representação do ser
nho de cãntaro" (Almas mortas, capo VI). No Diário de um louco humano atra vés de uma coisa nem sempre é cômica como afirma Berg-
o rosto do chefe de seção parec e um frasco de farmácia . A boca son, mas somente quando a coisa é intrinsecamente comparável à pes-
de Ivan Ivánov itch é meio parecida com a letra (jitsa >, Ivan Nik ífo- soa e expressa algum defeito seu. Na descrição de Saltik óv-Schedrin
rovitc h tem um nariz semelhante a uma ameixa madura. vemos só uma coisa que já perdeu sua ligação com o homem, e po r
Em to dos esses casos, como é comum em Gógol, é como se não isso, no fundo, já não prod uz uma impressão cômica.
houvesse sátira social. O caráter social define-se no todo da narrat iva. Se as pessoas gordas são descritas através de almofadas, bar-
Mas a representação do rosto por meio de um objeto também é possí- ris, colchões, a magreza suscita outra s associações: " Um magr ela
vel como sátira política direta. Na época de Luís XVIII, a representa- é algo semelha nte a uma escova de dentes" (G ógol) . Do magricela
ção de seu rosto sob a forma de uma pêra madur a - assim eram Jevákin Kotch kár iev diz: "É como uma bol sinha da qual tiramos
representadas suas bochechas flácidas e o rosto que se estreitava na o ta baco". A velhota em Chponka é caracterizad a do seguinte
parte superior - circulou amplamente nas revistas satíricas francesas. modo : "Nesse ínterim entrou a velhota, miud inha, a própria cafe-
Porém não apenas o rosto, toda a figura humana descrita atra - teira de touca". O ser humano pode ser ridículo também em seus
vés do mund o das coisas pode se tornar cômica. "Agafia Fedosséevna mov imento s: "Aqui vai pa ra vocês mais um sinal: quan do anda,
tinha na cabeça uma touca, três verrugas no nariz e um roupão cor ele sempre agita os braço s. Já o falecido assessor loca l Denis Pet ró -
de café com flores amarelinhas. Todo seu talhe parecia um barril, e vitch, sempre que calhava de vê-lo por detrás, dizia : ' Olhem, olhem,
por isso encontrar sua cintura era tão difícil como enxergar o próprio lá vai o moinho de vento' " (Gó gol) .
nariz sem um espelho. Suas perna s eram curtinhas, moldadas à ima- Em Gógo ! é possível encontrar comparações muito estranhas,
gem de duas almofadas ." Apesar da fofura e da rotundid ade do mas extremamente adequadas. Chponka sonha com sua futura
talhe, Ag áfia Fedosséevna é representada como mulher muito ambi- mulher, mas ele não consegue capt ar seus traços: "E de repente ele
sonhou que a mu lher não era absolutamente um ser humano, mas
3 Em O nariz & A tem vet vingança. T rad. de Arlete Cavalíere. São Pa ulo, Max uma espécie de tecido de lã". É característico que em Gógol essas
Limonad, 1986. p. 15. aproximações a parentemente inverossímeis sejam feitas através da
4 O p. cit., p. 45.
5 Última letra do eslavo eclesiástico e do russo ant igo, com a grafia semelhante ao
V do alfabeto lat ino e o som de I. 6 Bebida quente consu mida antigam ente na Rússia , à ba se de especiarias e mel.
76 COMICIDADE E RISO o HOMEM·COISA 17

descrição de um sonho (Chponka, O retrato) ou da s alucinações de em abstrato , as pessoas muito gordas ou muito magras, vestidas
um louco ou de um doente (A avenida Niévski, Diário de um louco). de modo insólito ou semelhantes a moinhos de vento , a samo vares
De modo que se esse mundo ilusório é representado como real, o ou a porcos, enquanto pessoas poderiam ser extremamente respeitá-
mundo real em Gó gol assume às vezes um caráter de absoluta inve- veis . Um raciocínio desses estará correto para a vida real, mas não
rossimilhança. Essa mistura de dois planos no exemplo citado é para as obras de arte onde essas características exteriores atestam
empregada para fins cômico s, mas em G ógol ela adquire com muita a deficiência da s figur as representadas pelo autor. Reside aí o pro-
freqüência um caráter trágico, como em O capote', onde Akáki Aká- fundo sentido satírico deste tipo de comicidade.
kievitch se transforma em fantasma . É possível que exista alguma rela- , Se um homem imóve l é representa"do corno coisa: ? homem
ção com isso no fato de que em Gógol não só as pessoas se asseme- em movimento é representado como aut ômatoà A prop ósito , nova-
lham às coisas, mas também as coisas se humanizam. Lembram-se mente, podemos citar uma consideração de Bergson: "Poses, gestos
a propósito as portas que rangem na s casas dos proprietário s de ter- e movimentos do corpo humano são ridículos na medida em que o
ras dos tempo s de antanho : "Não posso dizer por que elas cantavam: referido cor po desperta em nó s a repre sent ação de uma simples
,.. mas é extraordinário que toda porta tivesse uma voz própria: a porta máquina" . Tal consideração é equivocada. O coração bate e os pul-
." que dava para o quarto cantava no mais agudo soprano; a porta da
sala de jantar rouquejava com voz de baixo; mas a que ficava na
mões respiram com a precisão de um mecanismo, mas isso não é ridí-
culo , Não são absolutamente ridículas, e estão mais para terríveis,
entrada emitia um som estranho, tremulante e ao mesmo tempo lamu- as convulsões perfeitamente rítmicas de um epiléptico . Um autômato
riento, tanto que, ao escutá-la com atenção, acabava-se ouvindo em movimento pode não ser ridículo, mas terrível. Na galeria de
muito claramente: 'Meu Deus, que frio' " . Outro exemplo semelhante Pedro, o Grande, que antigamente ficava no Museu de Etnografia,
é o realejo de Nozdrióv com um pífaro muito vivo que não quer se havia uma figura sentada do monarca com o rosto de cera e com
aquietar de jeito nenhum, e continua assobiando soz inho quando os um mecanismo oculto no int erior. Quando os visitantes da galeria
outros já não tocam. O chiado do relógio na casa de Koróbotchka paravam diante dessa figura, um funcionário pressionava um pedal
lembra a Tchítchikov o sibilar da serpente, " mas olhando para cima, e Pedro erguia-se em toda a sua estatura. Isso provocava tamanho
tranqüilizou- se, pois percebeu que era o relógio de parede que estava pavor e susto que acabaram suspendendo a apresentação.
com vontade de bater horas" 8. O homem-mecanismo não é sempre ridículo, mas somente nas
~ comicidade aumenta se a coisa se assemelha não com o ser mesmas condições em que uma coisa é ridícula . Um dos governado-
humano em geral , mas com uma pessoa determinada .) Na horta de res de História de uma cidade é descrito assim : " A pa ssionalidade
Koróbotchka as ár vor es frutíferas tinham sido coberta s com redes fora riscad a do número de elementos que compunham sua natureza,
para protegê-las contra as gralhas e outros pássaros. "Com a mesma
e substituída pela inflexibilidade que fun cionava com a regulari-
finalidade , estavam ali erigidos diverso s espantalhos em hastes com-
dade do mais preciso mecanismo" . Neste caso a representação de
pridas e de braços abertos; um deles ostentava a touca da própria
um homem sob o aspecto de um mecani smo é ridícula porque revela
patroa. " 9
sua natureza íntima.
Em todos os casos citados examinou -se a aparência do homem.
Tudo o que foi dito serve para evidenciar aquele aspecto espe-
A aparência expressa a essência das pessoas representadas. Em
cífico de comicidade qu e é próprio do teatro de marionetes. A
Gógol , Tchítchikov, Sobakévitch, Nozdri óv, Pliúchkin e todos os
marionete em si é uma coisa. Mas no teatro ela é uma coisa que se
outros criados como imagens visuais vivas não são apenas retratos ,
mexe, por trás da qual se pressupõe uma alma humana que na rea-
mas tipo s que vemo s como seres vivos ; são representantes de catego-
lidade não existe. O princípio do teatro de marionetes reside na
rias sociais e psicológicas dos homens daqu ela época. Raciocinando
automati zação de movimentos que imitam , e por isso mesmo paro-
diam , os movimento s humanos.
7 Traduzido por Vinícius de Moraes em O livro de bolso dos contos russos, cit., Por essa razão , no teatro de marionetes propriamente dito é
p. 56-80.
S Almas mortas, cit., p. 54. impossível repr esentar as trag édias hum anas. É verdade que houve
9 Ibidem, p. 57. tentativas neste sentido . Goethe, por exemplo, no romance Os anos
711 COM IC IOADE E RISO

de peregrinação de Wilhelm Meister, descreve um teatro de mario-


netes em que era m representadas cenas bíblicas (o duelo ent re Davi
e Go lias, por exemplo ). Tais cenas, como diríamos hoje, criavam
uma impressào de grotesco, mas sem perseguir objetivos cômicos .
11
Na cena do teatro de marionetes levavam o Fausto , e Goethe
assistia a espetáculos desse tipo , que nào tendiam à cornicidade, pre-
A ridicularização
tendiam antes estim ular um certo horror não desprov ido de prazer
e ao mesmo tempo a satisfação pelo triunfo da virtude e pela puni-
das profissões
ção do vício. Para o homem atual a tragédia num palco de teatro
de marionetes já não seria possível, seria fruída apenas como cô mica.
Um punhal cravado no peito do adversário no teatro de marionetes
provoca ape nas o riso do espectador de hoje. É impossível imagi-
nar Obraztsóv ou Derní énn í!? em seus teatros de marionetes , apre-
sentando tragédias de Racine, de Shakespeare ou de quem qu er que
seja. O teatro pop ular russo de marionetes é sempre e so mente
cômico, e cô mico não por acaso, mas deliberadamente. A co mici-
dadc do teatro popular de marionetes, porém, não é suscitada ape-
nas pelo automa tismo dos mo vimentos, mas também pela trama,
pelo decorrer da ação. As ações das marionetes são mecânicas. Os
bonecos trocam entre si pauladas na cabeça com a precisão de um
mecanismo . No efeito côm ico suscitado pelas marionetes baseia-se Tendo examinado o homem do pont o de vista de seu aspecto
um dos contos maravilhosos de Salt ik óv-Sch edrin - Os pequenos exterior, devemo s examiná- lo no que se refere à sua atividade .
titereteiros. Nele é descrito um titereteiro que faz bonec os e os uti- ( Algumas profissões podem ser representadas satiricamente. Nesses
liza imediatamente em suas apresentações. Uma das marionetes casos a atividade é representada apen as do ponto de vista de suas
representa um assessor de colegiado que aceita propina. "Apoiou manifestações exteriores, privando-se de sentido com isso o seu con-
uma das mão s no quadril, enfiou a outra no bolso das calças como te údo .jOs mais evidentes exemplo s disso podem-se encontrar em
se colocasse algo ali. Cruzou as perna s [.. . J" Outra figura é a de Gógo l. Assim é descrit o Akáki Akákievitch Bachmátchkin I Ele é
um mujique "que lhe traz uma recomp ensa" : "De dentro de seu um copista, sendo qu e o próprio processo da cópia, independente-
paletó sobressaíam galinhas, gansos, patos, perus, leitões, e de um mente do sentido e do conteúdo do texto, ab sorve toda a sua aten-
dos bolsos despon tava até mesmo uma vaca inteira" . A vaca muge . ção . O leitor só o vê desse prisma. A partir disso ele causa pena e
O assesso r atira-se sob re o mujique e num instante se apossa de ao mesmo tempo é ridículo. O mesmo princípio de representação se
tudo . Obri ga-o até a tirar as meias e os I âp ti " e encont ra escondido aplica qu ando se descreve o trabalho não de um a única pessoa,
ali o dinh eiro . mas o da repartição tod a : "O barulh o das penas era gra nde e pare-
Aquilo que na vida real não é absolutamente cõmico - a exa- cia que algumas carroças cheias de ramagem atr avessavam uma flo-
ção dos camponeses - torna-se risível no palco de teatro de mario- resta coberta por quat ro palmo s de folha s secas". Neste caso Gógol
netes, cujos instrumentos são utilizados com finalidades satíricas. acrescenta uma hipérb ole, coisa que, falando no geral, não é carac-
terística de seu estilo cõmico.\ A tarefa de representar uma at ividade
10 Serg uei V. Obrazts ôv, diretor russo , fundador em Moscou ( 193 1) do Teatro Estatal
qualquer do pon to de vista cô mico ou satírico é mais fácil se essa
de Marionetes e autor de espetáculos , livros e artigos sobre o assunto . levgu i éni S. .mesrna atividade em si não requer uma tensão mental especial, e
Demi énni, ator e diretor. é um do s fundado res do teatro soviético de marionetes
com sede em Leningrado.
1I Tipo de calçado de fibra de tilia usado pelos camponeses pobres. I Personagem do como O capote, cit.
80 COMICIDADE E RISO A RlD ICU LARIZAÇÃO DA S PROFISSÓES 81

tod a a atenção se dirige apenas às suas formas exteriores. As sim, menal, à russa, atado com um leve cordão, amarrado com n6 instan-
por exemplo, é representado o barbeiro Ivan Iákovlievitch no conto tâneo, cortado à tesoura, e, um momento depois, tudo Já se encon-
trava na sege5.
O nariz. Ali descreve-se minuciosam ente como ele faz a barba do
major Kovalióv. É descrito todo o processo do bar bear, sendo que Um trabalho que inclua ainda que uma parte insignificante de
se mostra o prazer que tal processo causa tanto no barb eiro como criatividade não pode ser representado de modo cômico enquanto tal.
no freguês: " Kova lióv sentou-se, Ivan Iákovlievitch co briu-o com De acordo com isso é representado o alfaiate Petróvitch no conto O
um guardanapo e, num instante, co m o auxílio do pincel, transfor- capote. É um excelente artesão, e Gógol nos mostra, apelando à comi-
mou toda a sua barba e parte das boc hechas num creme semelhante cidade, não tanto o seu trabalho, quanto sua personalidade e figura ,
ao que é servido nas festas de aniversário dos comercíames"> , Segue- além de alguns traços exteriores da profissão que são específicos dos
se a descrição de co mo o major não permite que lhe seja tocado o alfaiates: "Akáki Akákievitch compreendeu a necessidade de levar o
nariz recém-r eadquirido e de como Ivan I áko vlievitch, apesar de seu capote ao alfaiate Petróvitch, que se achava instalado no quarto
ser "a té difícil barbear sem segurar o órgão do o lfato" J, supera pavimento de uma escada de serviço e que, apesar de zarolho e enge-
..
~:
tod os os obstác ulos e barbeia com sucesso até o fim.
Há algumas pro fissões que são especialmente popul ares na lite-
lhado, consertava com certa habilidade calças e fraques de funcioná-
rios e mesmo de civis, sob a condição, bem entendido , de que estivesse
em abstenção alcoólica' " . A personagem é ridícula quando , co m os
ratura humorística e nas artes fig urativas. A pro fissão de cozi nheiro
pés descalços cruzados, senta sobre a mesa e mostra ao leitor o enorme
é uma delas, qu e se liga com o que já dissemos antes sobre comida.
dedão do pé; ele não consegue enfiar o fio na agulha, pois no dia ante-
A repre senta ção dessa profi ssão é feita em tons de uma comicidade
rior, na expressão da mulher, "este diabo zarolho estava com a lampa-
um tanto laud ativa. Em A carruagem é descrito o trabalho do cozi-
rina cheia"'. Mas quando , solicitamente, entrega a Akáki Akákievitch
nheiro de um general, em O capote aparece a descrição de como o capote costurado à perfeição embrulhado num lenço, ele já não é
cozinha certa dona-de-casa: ridículo, mas atrai para si a simpatia do leitor.
Encontrou a porta do alfaiate aberta, e isso porque sua honrada O trabalho do alfaiate não é nem um pou co apr eciad o pelos
esposa, no ato de fritar não sei que peixe, tinha deixado esca par campo neses qu e reconhecem apenas o trabalho físico bruto da terra.
uma fumaça t ão espessa que se tornava Impossível distinguir mesmo O campon ês tem consideração pela força física. Por isso a figura
as barata s do aposen to ", descarn ada e leve do alfaiate fraco é alvo de: zombaria em todo o
Nos casos em que a atividade tem por base a penas o aspecto folclore europeu . É tão leve que o vento leva. Os lobos o perseguem,
físico, ela não pode ser privada de sentido por conta de seu conteúdo. mas ele é veloz e ágil e se p õe a salvo em cima de uma árvore .
A atenção concentrada no processo da atividade leva, nesses casos , Mesmo com todos os seus defeitos ele é engenhoso e às vezes é repre -
sentado como corajoso. Quan do os lobos so bem um em cima do
à descrição da extraordinária técnica e do excepcional virtuosis-
o utro para alcançá- lo na árvo re, ele grita: "0 de baixo vai co nse-
I· mo em sua execução. Como no caso já lembrado do barbeiro Ivan
guir mais do que to dos". O lobo da base se assusta, sai correndo
lák ovlievitch . Como também, por exemp lo, no do vendedor de teci-
e tod a a pirâmide de lobos desmorona. O conto maravilhoso dos
do s na segunda parte de Almas mortas. Ele se agita com pra zer, Grimm O alfaiate valente pert ence ao rol dos cont os mar avilhosos
apoiando-se com ambas as mão s no balcão. Joga com destreza uma mais populares e preferid os dessa coletãnca . Existe a estampa de
peça de tecido na mesa e aproxima o pano do nariz de Tchítchikov. um lub ôk 8 russo "De co mo um alfaiate proce deu com os diabos,
o preço foi combinado, embora fosse com pritlx, como afirmava o
comerciante. O corte foi destacado por meio de um ágil rasgão exe· •~ S O presente trecho na tradução brasileira (op . cit., p. 414) apresenta algumas peque-
curado com ambas as mãos, embrulhado em papel com rapidez feno- 1 nas diferenças em relação à variante original citada po r Propp , que no entanto n ão
comprometem a validade do exemplo.
6 O capote , ch., p. 6 1.
2 O nariz, cit., p . 41. •
c 7 Ibidem, p. 62.
3 Ibidem, p. 42. 8 Antiga estampa russa em xilografia, com motivos populares, geralmente aco mpanhada
.. O capot e. cit., p . 61. de texto s explicativos .
82 COMICIOA DE E RISO A RtDICULAR IZAÇA o DAS PROFISSÕES 83

lutou à sua maneira, loto u a isbá de ouro e deu cabo de todos eles". seja, são mo strados por meio de ma nifestaçôes da própria profissão,
Na parte inferior da ilustração há um conto maravilhoso em versos exter iores ou repetidas co ntinuame nte (ba lé), em G ógol o que se ridi -
so bre como o alfaiate venceu os diabinhos. Aí não existe propria- culariza é a rotina da arte médica. No conto O nariz, podemos lem-
mente uma sátira da profi ssão. A comicidade surge do contraste brar o médico ao qual recorre o major, mostra ndo- lhe o luga r co m-
entre a debilidade física do alfaiate e sua engenhosidade e sagaci- pletamente plano onde ficava o nariz, e a quem ele aconselha:
dad e, que lhe substi tuem a for ça . "Lave com mais freqüência com água fria" 10.
Uma das figuras pr eferidas pelos escritores sat íricos do mundo Tolstó i, que não gostava de médico s, representa a arte médica
inteiro é a figur a do médico, sobretudo no teatro popular e nas pri- em algumas obras (a doença de Natacha em Guerra e paz , A mo rte
meiras comédias européias. O doutor juntamente com Arlequim e de Ivan l/itch etc.) co mo cha rlatanismo, cuja finalidade é embolsa r
Pantalone era uma das figuras permanentes da com media dell'arte discretamente o honorário que lhes confiam. A comicidade dessas
italiana. Os pacientes ignorantes daqueles tempos enxergavam ape- descrições é involuntária. To lstói não pretendia dar a isso uma repre-
nas os procedimentos e os atos exteriores do médico , mas não viam sentação cômica, mas é o que ocorre à sua revelia.
.:1 . e não entendiam o sentido deles, não acreditavam nele.
No dram a popular O tza r M aksímilian o médico apresenta-se
Gógol tratou com desen voltura também a pro fissão de profes-
sor. To rno u-se proverbial o pro fessor de história de O inspetor geral,
aos espectado res da seguinte maneira: que, discorrend o sobre Alexan dre Magno, deixou- se arrebatar de
,"" tal modo que " Desceu correndo da sua mesa e começou a bater
., [..·1
Eu curo com arte,
furiosamente com as 'carteiras no ch ão"!", G ógol também não se
Dos mortos o sangue tiro [...] esqueceu dos cientistas . A partir da conversa de duas senhoras em
Arranco dentes, esca rafuncho olhos, A lmas mortas, Gógo l mostra como nas ciências de uma hipótese
Mando para o outro mundo [...] aca nha da, recheada dep ois até a inveross imilhança, nascem falsas
verda des que de uma cáte dra se espa lham pelo mundo. Gógol ridi-
Esse médico trata os velhos com pancadas. prescreve-lhes uma
cularizou também o ambiente dos cientistas. anotando com precisão
alimentação à base de estrume etc. Existem lubki , nos quais é repre-
alguns de seus aspectos negativos. "Triste fatalida de servir no setor
sentado "o médico holandês e bom boticário". Ele é elogia do por-
do ensino . Todos se metem. Todos querem mostrar que ta mbém
que transforma os velhos em jo vens.
II No teat ro de Petruchka? o médico aparece todo vestido de
são inteli gente s' v'? - diz Luk á Lukitch Khlopov, inspeto r de esco-
las, no primeiro ato de O inspetor geral.
preto , com óculos enormes. Petruchka bate na cabeça do doutor.
( Pelo exposto , vê-se que ~ mod o de ridicu lari zar as profissões
A figura cômica do médico é encontrada repetidas vezes em Mo-
não se diferencia em princípio da ridicularização de outros aspecto s
liêre (O médico volante, Médico à f orça, O doe nte im aginário).
quaisquer da vida hum an a
No M édico à f orça, Sgana relle, ob rigado a repre sentar um médico ,
É significativo que G ógol, bem como outros escritores satíricos
recorre a tod a espécie de rnani gân cia, recheada de pa lavras latinas.
russos, não tenha em par te alguma abordado o trab alho do campo-
Em O doente imaginário, o médico arranca com perícia o dinheiro
nês da lavour a. O trabalho pesado do campo nês servo de gleba, obser-
do doente hipocondrí aco. A co média termina com um balé no qual
vado ainda que apen as do ponto de vista dos atos exterio res, nâ o
dançam oito enfermeiros com clister, seis farmacêutico s, um padi o-
pode ser encarado como cômico por uma pessoa de bom senso.
leiro e oito cirurgiões.
Os modos com que se obtém o efeito cômico são bastante evi-
dentes e não demandam esclarecimentos teóricos.
O humor de Gógol poss ui outro caráter. Se em Mo liere os
médicos andam em trajes especiais, com enormes clisteres etc., ou
10 O nariz, cit., p. 37.
11 Op. cit., p. 16. O original russo traz "com a cadeira no chão" .
9 Espécie de polichinelo do teat ro de bo necos russo. 12 Ibidem, p. 17. No original russo : "Deu s nos livre de servir no seto r da ciência" .
A PARÓDIA 8S

,
rior daquilo que é submetido à parod ização. E possível, a rigor, paro-
12 diar tudo: os movimentos e as ações de uma pessoa. seus gestos, o
andar, a mímica, a fala, os hábitos de sua profissão e o jargão profis-
sional; é possível parodiar não só uma pessoa, mas também o que é
A paródia criado por ela no campo do mundo material. A paródia tende a
demonstrar que por trás das formas exteriores de uma manifestação
espiritual não há nada, que por trás delas existe o vazio.)A imitação
dos movimentos graciosos de uma amazona de circo por um palhaço
sempre provoca o riso: há toda a aparência de elegância e de grac iosí-
dade, mas a elegância em si não há. o que existe é o contrário disso ,
a falta de desenvoltura. (nesse modo, a paródia representa um meio
de desvendamento da inconsistência interior do que é parodiado! A
paródia do palhaço, no entanto, revela não o vazio do que é parod iado,
'..
i'
mas a ausência nele das características positivas que imita.
Eis como Tchékhov no conto A noite antes do julgamento
passa uma receita, que bem pode ser considerada como uma paró-
dia. A receita é escrita por um ho mem que, pernoitando numa esta-
ção de posta ao lado de uma bela mulher adoentada, faz-se passar
por médico e como tal a examina. A receita é a seguinte:
Realm ente, os casos expostos até agora podem ser considera- Rp.
dos como par ód ia latente. Sic transit 0,05
Gloria mundl 1,0
Todos sabem o que é paródia, mas definir cientificamente e com
Aqu ee dest lll atee 0,1
precisão sua essência não é tão simples. Eis como a define Bóriev uma colher de mesa de duas em duas horas
em seu livro dedicado ao cômico: PI a sra. Siélova
Dr. Záitsev.
( A paródia consiste num exagero cômico na Imitação, numa reprodu ção
exageradamente irônica das peculiaridades caracterlstlcas Individuais É dada aqu i toda a aparência de uma receita com todos os
da forma deste ou daquele fenômen o que revela sua comicidade e reduz
seu con te údo (12, 20S). \
seus dados exteriores . Há a fórm ula sacramental Rp . (isto é, recipe,
tome), há denominações latinas e núm eros fra cio nários que indicam
(Se refletirmos sobre essa definição, veremos que ela se baseia a qu antidade e as proporções, existe a dose, está dito que é necessá-
numa tautologia. "A paródia consiste num exagero cõmico [...] que rio diluir o remédio em água destilada e quan to tom ar, a parece indi-
revela a comicidade. ti Mas, em que consiste propriamente a comici- cado também para quem a receita foi prescrita e quem a prescreveu;
dade, o que suscita o riso, não é dito . A paródia é considerada como só está faltando o principal, ou seja, em que consiste o conteúdo
um exagero das peculiaridades individuais. Entretanto, a paródia nem da receita, não há indicação de remédios. As palavras latinas não
sempre contém um exagero. O exagero é próprio da caricatura. não mencio nam um remédio . mas consti tuem um ditado latino : Sic tran-
da paródia. Diz-se que a paródia abarca as peculiaridades individuais. sit - assim passa, gloria m undi - a glória do mundo.
Nossas observaçôes não o confirmam. Podem ser paro diados também Se existe realmente paródia aqu i, ela está no fa to de que são
os fenõmenos negativos de ordem social.) Para resolver esta questão, repetidos ou citados jtraços exteriores do fenômeno na ausência de
examinaremos alguns materiais e daí tiraremos nossas conclusões. conte údo interior) Como já sabemos, reside justamente nisso a essên-
(A paródia consiste na imitação das características exteriores de cia daqu ele aspec to da comicidade que ora estudamos. No caso
um fenõmeno qualquer de vida (das maneiras de uma pessoa, dos pro- em questão, a comicidade é reforçada pela continuação do conto ;
cedimentos artísticos etc .), de modo a ocultar ou negar o sentido inte- o autor da receita vai ao tribunal por acusação de bigamia, e a
86 COM IC lD ADE E RISO A PARÓDI A 37

mulher que ele examinou como médico é esposa do promotor que Nesses casos parodia-se, na verdade, o estilo ind ividual de um escritor,
conduzirá O processo , e isso será esclareci do . O ditado Sic transit .. . mas esse estilo individual é por outro lado a manifestação de uma cor-
revela-se extremamente oportuno para o autor da receita, cujo rente determinada à qual pertence o escritor e justamente essa corrente
sobrenome , Z áitsev I , foi escolhido a dedo por Tch ékhov, assim é ridicularizada do ponto de vista da estética de uma nova tendência ' .
como o sobrenome da doe nte - sra . Siélova ' . São ridicular izados também os defeitos da litera tur a em curso.
Porém. quem sabe, este caso não seja característico? Tome- ( A paród ia é um do s instrumento s mais poderoso s de sátira
mos o utro: o professor explica a lição , ges ticulando animadamente . social:pxemplos mu ito evidentes disso são fo rneci dos pelo folclore.
Um dos alunos foi posto de castigo e está perto da lous a às costas No fo lclore mundial e no ru sso existe uma quantidade de paródias
do pro fessor e de fre nte para a classe. Às costas do pro fessor ele da missa, da catequese , das orações.
repete todos os seus gestos: como o pro fessor ele agita os braços
I
(A pa ró dia é cõmica somente quando revela a fragilidade inte-
e repete sua mímica , acertando -a às mil maravilhas, pois conh ece rior do que é parodiad o )
muito bem o professor e to das as expr essões de seu ros to . Os alu- Da par ódi a é preci so distin guir a utilização para objet ivos sat i-
nos deixarão de o uvir o professor. irão o lhar apenas para o traqui- ricos de fo rmas de obras co mumente co nhecidas, dirigida não con-
"
nas pert o da lou sa, que o pa rodia. O a luno , repetindo todos os tra os autores dessas o bras, mas co ntra fenô menos de caráter soci o-
movi men tos exte riores do professor, priva de co nteúdo a sua fala. político. Assim , por exem plo, " Um mon umento" de Púc hki n ou
Neste caso a pa ród ia reside na repetição dos traços exteriores do "Canção de ninar" de Li érrnon tov não podem ser ridicularizados .
fenõ meno que aos olhos do s pr esent es encobrem seu sent ido . Este Em 1905 eram divulgadas muitas sátiras variadas , que na for ma
caso difere do precedent e pelo fa to de que no último serve de ins- imitavam Púchkin ou Liérmont o v. Mas não eram sátiras de ambos,
trumento de paródi a o movimento, mas a essê ncia não muda . e reside nisto sua diferença das par ódi as literári as. Na revista Sig-
Na comédia cinematográfica inglesa As aventuras de M r. Pitkin
nal de 1905 foi publicado um so neto que co meçava assim:
no hospital ! um artista travestido de enfermeira penetr a no hospital.
Para esconder que é homem , ele imita com muita habilidade o anda r Ca rrasco, não proc ures o favor popular! 4
feminino . Ele anda de saltos altos e rebola com certo exagero. Os espec- O soneto é precedido da dedicatória: " Dedicado a Trepo v"
tado res vêem sua figura por trás e explodem num a gargalhada geral. (Trepo v era governador -geral de Petersbu rgo com poderes extraordi-
Nos diversos cursos de poética fala-se com muita freqüência de nário s). Contra ele, e não contra Púchkin, é dirigida a sátira. O poema
paródias literá rias e são dada s as respectivas definições. O apar~.i­ de N. Chebuiev "Ao jornalista " (sobre o mot ivo de "Ein Gleiches' P)
menta de uma paródia em literat ura demo nstra que a corrente literária
fala da falsa pro messa de liberdade de expr essão-, no manifesto do
parodiada começa a ser superada. Mas a paródia literária é apenas
Czar e adverte os jornalistas para que não acreditem nele.
um caso par ticular de paródia. Paródias literárias já existiam na Anti-
guidade: A guerra dos ratos e das rãs é uma paródia da Iliada. Sobre Espera um pouco,
o quant o era difundida a paród ia literár ia na Idade. Média: escreve Tu també m ficarás!... (27, 403)
minuciosamente M. Bakhtin (7, 34). Kozmá P rutkóv ridiculariza a pai- (Esses casos não representam em si uma paródia . De preferência.
xão pelo colorido espanhol em voga na poesia russa da década de 40. é possível chamá-los de travestimentos, entendendo com isso a utiliza-
Um mestre insuperável da paródia foi Tch ékhov ". Realista con- ção de uma forma liter ária já acabada para fins diferentes daqueles
victo Tchékhov parod ia o estilo romântico arrebatado de Victor que o autor tinha em vista. O travestimento persegue sempre objeti-
Hugo, O fantástico de Júlio Verne, parodia os rom ances policiais etc. vos de comicida de, e muit o freqüentemente é utilizado com objetivos
sat íricoo,
I Formado a partir de záiats, lebre.
2 Formado a partir do verbo siest' (comer), no passado .
J O título indicado por Propp não está co rreio. The square peg, filme realizado em : Cf. P. Bcrkov, / z istorii nisskoi parodií XV///-XX vv. (Da história da paródia russa
1958 por Jo hn P. Carstairs e protag onizado por Norman Wisdom, recebeu na URSS nos séculos XVI/·Xx. J Voprossi L íteraturi (Questões de Literaw raJ. 5 : 220-68, 19;7.
o titulo Mr. Pitkin na retaguarda do inimigo . 4 Paró dia do primeiro verso do po ema de Púch kin "Po étu" [Ao poeta ], que diz :
• CLt por exemplo: As ilhas volantes, O fósforo sueco, Mil e uma paixões, O que se " Poeta! não procures o fav o r po pular" .
encontra sempre nos romances ele. 5 Poema de Goethe. considerado o mode lo máximo da lírica alemã.
o EXAG ERO CO M ICO 89

da s e deixam de existi r.(A c~ricat u ra de fe nômeno~ de o r~em fí~ica

13 (um nari z gra nde, um a barnga avantajada, a ca lv ície) na o se dife-


rencia em nada da caricatura de fenôm eno s de ordem espiritual,
da caricat ura dos caracteres . A representação cômica, caricatural,
o exagero cômico de um ca ráter está em tomar um a particularidade qualquer 'da pes-
soa e em representá-la co mo única, o u seja, em exager á-la )
A melhor definição da essência da car icatura foi dada por Pú ch-
kin. G ógol in forma a respeito : "Ele sempre me dizia que nenhu m
escritor tinha revelado ainda o dom de saber pô r a nu a trivialidade
da vida de modo tão evidente, de saber descrever com tal fo rça o
hom em comum de mod o que todos aq ueles detalh es que esca pam
ao s olhos surgissem claramente à vista de todos". P úchkin antecipou
aqui, com genia lida de , o que mais tarde afi rmaram os filósofos pro-
fiss iona is. A formulação de Bergson reza: "A arte do caricaturista
co nsiste em captar um pormenor, às vezes imperceptível, e torná-lo
evidente a todos através da am pliação de suas dimensôes" (9, 28).
A definição dad a aqui é uma definição no sentido restrito da
palavra. No sentido mais am plo, tal procedim ento , como a represen-
tação de uma pessoa através de um animal o u de uma coi sa, a res-
peito do qu e já tra ta mos antes, e ta mbém tod os os tipo s de par ódia
À paródi a estào intimamen te ligado s os diversos procedimen- pode m ser enquadrados no domínio da caricatura .
tos do exage ro . Algun s teóricos conferem a esses pro cedim entos Não daremos exemplos de caricatura. Basta abrir qualquer revista
um significado excepcio nal e decisivo . satírica para verificar a verdad e da definição puchkiniana sobre a essên-
~ " A qu estã o do exagero cômico - afirma Z . P ~d s k ál~ki - é cia da caricatura f A car icatura sempre deforma um pou co (e às vezes
a qu estão-cha ve pa ra caracterizar tanto as representaçoes da Imagem de mod o substancial) o qu e é representad o! Por isso Belinski conside-
cômica quan to a situaçã o cômica " (30, 19). lu . Bóri ev expressa rava que as figuras gogolianas em O inspetor geral e em A lmas mor-
um pensame nto semelhante: "Na sátira, o exagero e a ênfase co ns- tas não são absolutam ente caricaturas. São figuras verdadeira s, pinça-
tituem a manifestação de uma lei mais geral: a defo rmação tenden- das diretamente da vida . Bclínski refere-se de modo negativo à carica-
cio sa do material da vida, que serve para revelar o vício mais essen- tura enquanto tal. Entretanto, em sua referência negativa à caricatura,
cia l entre os fenôm eno s dig no s de ridicular iza ção satírica" (12 , Belínski tem razão apenas nos casos em que perante nós a caricatura
363). N. H artrnann afirma muito catego ricamente : " A comicidade é grosse ira, gratuita e por isso não artística.
tem semp re a ver com o exagero " (16, 646). Essas definiçôes são Pú chkin também se referiu negativam ente à ca ricatura , mas
co rretas, mas não suficientes. O exage ro é cô mico apenas quando por motivos diferentes daqu eles de Belínski. Lemb remo s o apareci -
desnud a um defeito . Se este não existe , o exagero já não se enqua- ment o de Oni éguin ' no baile do s Larin: " O excêntrico, ao ser admi-
dra no domínio da co micidade. É po ssível demo nstr á-lo através do tido no banquete, já esta va irritad o" . Nada lhe agra dava ali. "Ficou
exame das três for~as fundame ntais de exagero : a caricat ura, a amuado" e jurava vingar-se de Liênski por ter insistido no convite.
hipé rbole e o grotesco) .
A essê ncia da ca ricat ura foi reiteradamente defi nida de mod o Dar, celebrando de antemão ,
Pôs-se a traçar no íntimo
co nvincente e correto. To ma-se um po rmenor, um detalhe; esse deta-
A ca ricatura de todos os comensais.
lhe é exagerado de modo a atrair para si uma ate nção exclusiva,
enquanto todas as demais caracteristicas de quem ou daqui lo que
é submetido à caricaturizaç ão a partir desse momento são cancela- I Personagem principal do romance em versos tevgu éni Oni êgu ín de A. S . Púch kin .
, :. \ li o EX AGERO CÓMICO 91
so COM IClOA DE E RI SO .1 \.

,
A caricaturização desmerecida de algo é um ato amoral. j. Ele é tão gor do qu e anda com di ficuld ad e. Sua cabeça é como
l d .
Pú ch kin descr eve o ba ile dos La rin, zo mbando benevolam ent e, um ca ldeirã o de cerveja. No banquete ele agarra e uma so vez
mas sem deformar a verdade a nível de caricatura. todo um cisne ou uma rosca inteira de pão e os abocanha. A hipér-
Outro tipo de exagero é a hipérbole. \A hipér bole, na rea li- bole aqui tem objetivos satíricos.
dade, é uma variedade da caricatura. Na caricatura oco rre o exa- Da literatura do século XIX a hip érbo le vai desaparecendo aos
gero de um porme nor, na hipérbole, do todo. A hipérbole é rid í- pou cos. Ela é utilizada ãs vezes na pilhéria. G ógol, por exemplo , não
cula somente quando ressalta as características negativas e não as a emprega com objetivos diretamente satíricos. Seu estilo é demasia-
po sitiva s) Isso é evídente sobretudo no epos pop ular. damente realista par a isso, mas de vez em quando ele a utiliza para
No epos primevo de vários povos o exagero é um dos instru- reforçar a comic idade: " Ivan Nikíforovitch usa calças largas com pre-
mentos da hero iza ção. Eis como é descrito um herói no epo s iacuto : gas tão amplas que, se as inflasse, seria possivel aloj ar nelas todo o
"O talh e da cint ura dele tinha cinco braças'. Era co rpulento de seis pátio com os celeiros e as construçõe s"; "O escrevente comia de uma
braças nos ombros. Três braças tinham as coxas roliças" . só vez nove pastelões e guardava o décimo no bolso" .
No epos russo não é hiperbolizado o aspecto exterior, mas a De vez em quando encontra-se hipérbole na prosa ornamental
força do herói, que se manifesta na hora da batalha . lliá Múromiets de Gógol como, por exem plo , na descri ção do rio Dniepr: " Raro
sozinho, brandindo a clava ou pegando pelos pés um tártaro que ele é o pássaro que voa até o meio dele" - mas aqui esse procedimento
brande como uma arma, derrota todo o exército inimigo. Aqui o exa- não represent a um êxito artístico de G ógol,
gero possui uma nuança de humorismo, mas não visa objetivos de A hip érbole - tanto heroizante como depreciativa - ressurge
comicidade. Um humor ainda mais forte é encontrado na descrição na poética de Maiakóvski, onde há inúmeros exemplos.
de como Vassíli Busláievitch recruta uma tropa para si. P ara escolher (O grau mais elevado.e extre ~o do exag:ro .éo grotesco . Sobre
os mais dignos, ele coloca no pátio uma tina de vinho de quarenta o grotesco existe uma bibliografia ba stante slgmflcatlv a: e ha ten;a-
barris e uma taça de um balde' e meio . São admitidos na tropa somente tiva s muito complexas (desloca mento de pla nos) de definir sua essen-
aqueles que conseguem beber a taça de um único trago . Além disso, cia . Essa comp lexida de não se ju stifi ca ab so lutame nte. (No gro tesco
junto da tina está o próp rio Vass ílí Busláievitch com um enorme olmo . o exagero ati nge tais dim ensões que aq uilo que é aumentado já se
Aqueles que desejam ingressar em sua tropa devem agüentar uma pan- transforma em monstruoso. Ele extrapola comp letamente os limites
cada desse olmo na cabeça. E valentões para isso não faltam. da rea lidade e penetra no do mínio do fa ntásti co . P or isso o grotesco
A força so bre natural do her ói posit ivo pod e suscitar um sor- delimita -se já com o terrível. Uma defin ição correta e simples do
riso de aprovaçã o , mas essa figura não leva ao riso. grotesco é dada por B óriev: "O grotesco é a form a suprema do exa-
É diferent e o exagero uti lizado na descrição da s personagens gero e da ênfase cômica. É o exagero que confere um caráter fan-
negativas. O gigantesco e desajeitado antagonista do herói, q ue ron ca tástico a um a determinada imagem ou obra" (12,22). A . S. Buch-
tão forte que a terra treme ou que se empa nturra, co locando na min considera q ue o exagero não é obrigatório . Sua definição : " O
boca de uma só vez todo um cisne ou uma rosca inteira de pão , cons- grotesco é uma construção artificial e fantástica de combinações
titui uma amostra de hiperbolização satírica. No epos russo a hiper- que não são encontradas na natureza e na sociedade' } 14, 50).
bol ízacão é empregada para descrever os inimigos e serve como ins- O Iimitc entre a simples hip ér bol e e o grotesco é co nvencio na l.
tru mento de deprec iaçã o. Assim, po r exemp lo, na bilina sobre Alio- Desse modo , a su pracita da descrição do herói no epos iacut o
cha e Tu gá rin, este último é descri to hiperbolicam ente como um é em igu al medida hiper bólica e grotesca . A voracidade de Tu gár in
mon stro que senta num festim ao lad o de Vladímir: pode igua lment e ser definida como grotesca. Na literatura eur opéia
Tem de altura Tugárin três braças, típico e totalmente grot esco é o romance de Rab elais Garg ântua e
De ombro a ombro outra braça, Pantagru el com a descriçã o de excessos hip erbolizad os de todos os
Entre os olhos uma flecha em brasa. tipo s.

2 No original, sájen , antiga medida linear russa correspondente a 2,134 m. • Um dos livros mais ricos em material K. F. Fl õgel, Die Geschicnte des Grotesk-
é

) Antiga medida para líquidos. correspondente a 12,3 litros. K amischen (há várias ediçõe s: 1788. 1862. 19 14).
-,

o grotesc~ é .a for ma de ~omici dade preferida pela arte popu-


lar desde a A ntiguida de, As mascaras da comédia grega an tiga são
grotes~as . O descomedimento violento na comé dia contra põe-se ao
comed irnemo e ao ma jestoso na tr agédia .
14
Porém , o exagero não é a característica única do grotesco . O
grotesco nos faz sair dos limites de um mu ndo rea lmente possível.
o malogro da vontade
Assim, o con to de Gógol O nariz co nstitui pela trama um caso de
gro tesco: um na riz passeia livremente pela avenida Niévski. A par-
nr do momento em que Akáki Akákievitch, no co nto O capote, se
transforma em fantasma, a narrativa adqui re um caráter grotesco.
\ O grotesco é cõmico qua ndo, como tudo o que é cõmico
encobre o princípio espiritua l e revela os defeitos. Ele se torna terr í-
vel qu ando o princípio espirit ua l se a nula no homem . É por isso
qu.e podem ser terrivelmente cômicas as representações de Ioucos.)
Ha um quadro atribuído a Chevtc henko que repr esenta uma qua -
dnl h~ num manicõmio. Alguns homens de branco, co m go rros de
dorrnír na cabeça, apa rentando aleg ria e fazendo gestos amplos
d ~n çam uma quadrilha na passagem ent re as camas. Esse qu adr~
distingue-se pelo grau elevado de artisticidade e expressividade e
causa uma impressão de horror.
Fina'?,ent e, também o que é intencionalmente terr ível pod e At é agora o discurso versou sobre as fig uras cô micas c alguns
ter um carater de grotesco fora do domínio do cõmico. A essa cat e- inst ru mentos com o a uxílio dos quais a figura po de ser represen-
ga na, por exempl o, pertencem A terrtvel vingança e as últimas pági- tada num a perspectiva cô mica. Mais adiante o discurso versará
nas do conto de Gógo l Vii, onde um caixão na igreja se alça e voa sobre algumas situa ções , tramas e ações cõmi cas. Esta mos entrando
pelo ar. num ca mpo de estudos novo e muito amplo. Existem tramas cõmi-
No campo da pintura a titulo de exemplo de grotesco terrível cas na dramaturgia, no cinema, no circo e no teatro de variedades;
é possível apont ar as gravuras de Goya, onde são retratado s , o ra sobre elas sustenta-se uma vasta e va riada literatura humorística e
com desen hos fantásticos ora co m dese nhos naturalistas, os horro- sat irica, além de uma parte considerável do folclo re narrativo.
res do terro r nap oleõn ico na Espa nha rebelde. Não há qualquer esperança de exaurir o mat erial disponível,
\ ~ grotesco é possí.vel apenas na ar te e impo ssível na vida. Sua quant o mais de elencar, ainda que po r aproximação, os caso s enco n-
condição stne quo non e uma certa relação estética co m 05 horrores tra dos com ma ior freq üência. Mas ta mbém não é necessário. Basta
representados )Os horrores da guerra, fot ografados para fins docu- citar exemplos claro s e significativos para ver do que se trata.
mentais, não têm e não pode m ter ca ráter de grotesco. Quando às pessoas acontecem pequenos reveses, quand o elas
de repent e ap anham uma chuva forte, ou deixam cair seus pacotes ,
ou o vento carrega o chapéu, o u tropeçam e cae m, os presentes riem.
Esse riso é um tant o cru el. Seu car áter depend e do grau da
desgraça , e aqui pessoas diferent es vão ter reações diferentes. Lá,
onde uns vão rir, o utro vai co rrer para ajudar. São po ssíveis tam-
bém ambas as co isas ao mes mo tempo: é po ssível rir e ajudar conco-
mitantemente. O humor ista canadense Leacock achava semelhante
riso geralmente inadmissível. Ele dava o seguinte exemp lo: um pat i-
94 CO.\ IlCIOAn E E RISO O MALOGRO DA VONTADE 95

nada r dura nte uma exibição de patinação artística af un da no gelo. Um caso clássico do malogro da vontade é a queda de Bóbt-
De fato, o caso em si não é rid icul o porq ue af unda r no gelo traz chinski junto da porta no segundo ato de O inspetor geral. Bóbt chinski
risco de vida . Mas, a despeito do que possa afirma r Leacock, até quer escutar o que vão conversar o governador e Khlestakóv. Porém,
um caso co mo este pode revelar-se risível. Em As aventuras do Sr. ele se apóia com demasiada força à port a, a porta se abre de repente.
Pick wick , Dickens co nta com o o Sr. Pickwick, patinando no gelo " Bóbtchinski voa para o palco junto com a port a" - assim descreve
de um lago gelado, desaparece de repente . À superf icie fica ape- GógoI. A tentativa fracassou.
nas o seu chap éu . Po rém, nada de terrível aco ntece. O molh ad o e Em alguns casos a pessoa é como se não fosse culpada de seus
assustado Sr. Pickwick, resfolegando com dificuldade, surge à ton a reveses. Mas é apenas o que parece. De fato , o revés é provocado jus-
d'água, acompan ham-no à casa e o ajudam a se aquece r e a se recu- tamente por uma falha de previsão e de espírito de observação , pela
perar. Não aco nteceu nenhuma desgraça. Nesses casos, as pessoas incapacidade de orientar-se na situação, o que leva ao riso indepen-
se depara m com algo desagradável pelo qua l não esperavam e que dente mente das intenções. O desejo de to mar um banho não é de
altera o curso tranqüilo de suas vidas. (Acontece um inesperado modo algum ridículo. No caso do filme de Chaplin a comicidade é
malogro de uma vontade humana devido a moti vos perfeitamen te reforçada pelo realce da fisiologia (as palmadas na barriga) e pela
". casuais e imprevistos. Nem toda frustração de propós itos é cômica. ótima disposição que então será interromp ida. Não obsta nte, o espec-
O naufrágio de iniciativas grandes ou heróicas não é cô mico , mas tado r ri bem instintiva mente. No caso da qued a de Bóbtchinsk.i temos
trágico . Será cô mico um revés nas co isas miúdas do dia-a-dia do tam bém imprevidência e obtusidade . Bóbtchinsk.i não calculava que
homem , pro vocado por circunstâncias igualmente banais.) a porta não fosse agüentar. Mas ao mesmo tempo neste caso o revés
Esse princípio é utilizado co m freqüência no cinema, sendo revela claramente toda a falta de hon estidade das intenções secretas
que nesses casos geralmente é destacada a presença de determina- de Bóbtchinski. O caso é duplamente cõmico. B óbtchinski é pun ido
das aspi rações ou desejos. As pessoas se vão a pé ou de co ndução, tanto por sua imprevidência como pela intenção de bisbilhotar.
ou se distraem, e querem, fazem ou empreendem algo , mas um obs- (Nos casos citados o ma logro é pro vocado por causas que se
tácu lo inesperado interrompe todos os seus planos. enco ntram fora da pessoa, mas ao mesmo tempo também por cau-
Num do s filmes de Chaplin, o herói junto co m um a moça tão sas puramente interiores, inerentes à pessoa. O malogro da vontade
pobre como ele con strói no subúrbio da cidade um barraco de cai. pode se verificar ainda po r causas puramente interiores. O mais
xote s e tábuas. De manhã, de ceroulas e com uma toalha a tiracolo exato é que as causas interiores constituem a base, e as exteriores
dan do palmadas na barriga, ele sa i de casa para tomar banh o . Perto serviria m de fundo ou de pretexto para sua ma nifestação fora .
da casa passa um córrego que forma ali uma pequena represa. Há Entra aqui a revelação da distração hum ana sobre a qual existem
ta mbém uma peq uena ponte . Ele, correndo, joga-se na ág ua, mas inúmeras anedo tas. Usa ndo uma expressão um tanto paradoxa l, é
o riacho é muito raso . Ferido e mo lhado , mancando, ele retorna possível dizer que a distração é conseqüência de alguma concentra-
ao barraco. Aqui o riso não destrói a simpatia pelo homenzinho sim- ção. Entrega ndo-se com exclusividade a um pensam ent o ou preocu-
ples que suporta reveses por toda parte. O caso é cô mico e triste pação, a pessoa não presta atenção em seus atos, executa-os auto-
ao mesmo tempo , ca racterística esta própria dos filmes de Cha plin. maticamente, o que leva às conseqüências mais inesperadas. É conhe-
( Comicidade sem qualquer mescla de tri steza , ant es a té com cida de todos a distração dos professores. Tal distração decorre do
uma certa parcela de alegria maldo sa, ocorre nos caso s em que a fato de que os homens de ciência, mergulhados totalmente em seus
pessoa é guiada não por pequenas coi sas do dia-a-dia , mas por pensamentos, não reparam no que acontece ao seu redor. Isso , sem
impulsos e tendências egoístas e mesquinhas; o revés, provocado dúvida, é um defei to, e subconscientemente é o que provoca o riso~
por circunstâncias externas, revela nesses casos a mesquinhez de Pode-se lembrar, a propósito , da a nedota qu e aco nteceu pouco
intenções, a mediocridade da pessoa e possui um caráter de punição ant es da revolução com o professor universit ário Ivan I. Lapchin,
merecida. A comi cidade é refor çada, se esse malo gro acontece pop ular no meio estudantil pela bond ade, grand e especialista em
brusca e inesperadamente para os protagonistas, ou para os especta- filosofi a e psicologia. Ele fora enviado a Viena para um cong resso .
dor es e leitores.) De manhã, em Viena , no hotel , querend o vesti, o traj e de gala, as
96 CO:"II CI DADE E RISO o MALOGRO DA VO~T AD E 97

calças de antemão bem passadas, que, à noite , como estava lem- se aos homens apenas com palavrões, e muito sortidos, mas a peça
brado, ele pendurara na cabece ira da cama, descobriu que as calças acaba com ela se casando .
não estavam ali. A criadagem jurava inocência e teve origem um Na co média de Ostróvski Os lobos e as ovelhas o rico grão-
contratempo . Terminado o congresso , o professor voltou a Pet ers- senhor e celibatário conv icto Lini áiev cai na rede da rapinante aven-
burgo , chegou em casa tarde da noit e e foi dormi r imediatamente. tureira A nfissa, que o obriga a corte já-la : ela se pendura no pes-
Ao acordar de manhã, ele viu suas calças recém-passadas pendura- coço dele fechand o os olhos no momento em qu e alguém entra na
da s na ca beceira da ca ma . Foi enviado ao hotel um telegrama de sala. Liniáiev, quase chorando, admite entre lágrimas que, agora,
desculpas. va i se casa r. Temos um caso semelha nte no scherzo dr am ático de
Na vida, casos semelhantes são bastante habituais, mas na lite- Tc hék hov O urso.
ratura de ficção são pouco usados, pois o riso que eles suscitam, O misógino rematado , que ostenta seu desprezo pelo sexo
apesar de agradáve l, é um tanto superficial. feminino, acaba fazendo já no primeiro encontro uma declaração
Em G ógol os casos de distr ação ocorrem com mais freqüência à mu lher , à qua l ele se dirigia como credor e a que m desafia para
do que em outros escritores. Em suas obras eles sempre revelam a um duelo com o objetivo de matá-Ia .
mesquinhez, e às vezes também a sordidez da preocupação qu e co n- O malogro da vonta de no caso do cha péu do prefeito mani-
duz à distração. festa-se externamente num certo automatismo de movimentos.
O prefeito que r pôr o chapéu, ma s ao invés dele pega sua Aqui a palavra "maquinalmente" assinala com muita precisão o
embalagem de papel ão . Isso acontece porq ue ele estava todo entre- essencial. Po rém, o auto matismo é possível não só nos movimentos,
gue à preocupação de como melhor enganar o inspeto r geral. Neste mas também em muitas outras esferas da vida e das ações humanas.
caso o próprio governador percebe seu erro , joga furioso a caixa Desse modo, uma das esferas de manifestação do automatismo é o
no chão, e o espectador ri. automa tismo do discurso . Devido à pressa, ao açodamento, à agita-
Nas primei ras obras de Gógol casos semelhantes não têm um ção ou à preocupação, a pessoa não diz o que pretendia e por isso
caráter tão evidente de sátira social e referem-se mais ao domínio provoca o riso. Os exemplos são numerosos. Seguem-se alguns pin-
da psicologia huma na em geral. Também o desmascar amento dá-se çados em Gógol.
de modo diferente. A pessoa não se dá conta do próprio erro, mas Das ordens do pre feito: "Que cada um pegue na mâo uma
o espectador ou o observador logo o vê e antegoza a confusão inevi- rua [.. .] o diabo que pegue, uma rua - uma vassoura! e varra toda
tá vel. No conto Ivan Fiódorovitch Chponka e sua tia há o seguinte a rua que vai dar na estalagem, e que varra direitinho! " 1
episódio : Vassilissa Kachpárovna qu er casar Chponka e son ha com Encontramos este mesmo procedimento em Tchékhov no conto
netos, embora o casamento seja ainda coisa muito remota. A gralha. Nele, um escrivão milita r encontra seu of icial na compa-
nhia de mulheres de conduta airosa: ele fica assusta do e perde o
Muitas vezes, ao fazer algum doce, o que geralmente nunca deixava
a cargo da cozinheira, ela se desligava e imaginava que a seu pé dom da fala. Em lugar de dizer: "Dado o serviço militar obrigató-
estava um netinho pedindo um bocado, daí, distraidamente estendia rio", ele fala: "Dado o militiço servilitar obrigatório ... Dado o ser-
para ele a mão com o melhor pedaço, e o cachorro do quintal, apro - vilitar obrigatório... o obrigatiço militório":
veltando-se, abocanhava o apetitoso pedaço e, ao rnasttçá-to ruldo- Nos casos citados(o malogro da vontade é resultado de alguma
samente, t irava-a de seu devaneio, depois do que sempre acabava inf erioridade oculta na p essoa, que de repente se revela e acaba sus-
apanhando com o atiçador.
cita ndo o riso. Numa certa medida a culpada desses defeitos é a

~
distra ção está longe de ser a ca usa única do malogro da von- pr óp ria pessoa)
tade. m muitas comédias o homem é obrigado a agir contra sua Po rém, o riso pode ser suscita do também po r defeitos dos
von t de porque as circunstâncias se mostram mais fortes do que ele. quais o próprio homem não é absoluta mente culpa do, mas qu e do
Mas a força da s circun stâncias atesta a debilidad e e a incon stân cia
daqueles que se deixam vencer por essas mesmas circunstâ ncias .I .' I Na tradução brasileira de O insp etor geral (cit. , p. 29), adaptada para o palco,
Na comédia de Shakespeare M uito barulho po r nada Beatriz refere- ,• este recurso é desprezado .
.'
'Jlf CO.\IIC JD,\DE [R ISO

ponto de vista de uma racionalidad e superio r na natureza sào de


qua lquer modo indesejáveis.
São def eitos de caráter físico ou psico lógico, com o, po r exem-
15
plo , a surdez, a miopia , pro blemas na fa la etc . Tais defeito s levam
a diversos reveses e mal-entendidos. O fazer alguém de bobo
Tch ékhov tem um co nt o : um ho me m qu er fazer uma decla ra-
ção de amo r, mas é assaltado po r um ata que de so luços e por causa
disso n ão con segue nada .
Em literatura esse procedimento é relativamente raro . A pro-
pósito lemb ramos o príncipe T ugo úkho vski- em Os males da inteli-
gência. A condessa-avó tenta falar com ele sobre Tchátski, mas isso
é impossível, o prí ncipe não o uve e responde ape na s por mugido s
' .. inarticulados.
A mesma função da sur dez pode ocasionar um mal-ent endido .
Em O casamento:
Jevákin. Permit a-me de minha pa rte pergunt ar t ambé m com qu em
tenho a honr a de falar?
Ivan Pávlovit ch . Com o exec utor ofic ial, Ivan Pávlovit ch rattcr mtt sa ê.
Jevákin (que nã o ouv iu bem ). Sim, eu também ac abei de fazer um
lanche. ( Em todos os caso s apresentados a ca usa do riso é ineren te às
características daqu ele q ue é ob jeto do ríso . O revés é provocado
No fo lclore existem ane dotas famosa s so bre ca sais ou velho-
por ele mesmo . At ua uma úni ca pessoa . Mas o revés ou o malogro
tes que, po r o uvir mal, incor rem em diverso s mal-ent endidos. Defei-
da vo ntade po de ser intencionalmente suscitado por o utrem; nesses
to s psicofí sicos podem tornar-se ridículos não só por si, mas tam-
casos agem du as pessoas . P ara indicar ações desse tip o existe na lín-
bém por desd obramento s in esperados.
gua russa um a palavra ~ito expr essiva , intrad uzível em o utras lín-
No rep ertório ru sso de con to s mar avilh osos existem anedo ta s
guas - odurátchivanie' . )
sobre as três mo ças gagas que na apre sentação ao fut uro noivo e Na literatur a (satirica e hum orística o ato de fazer a lguém de)
sua famíli a devem, a co nselho da mãe, se calar. Ma s elas não se \bo bo é mui to.co mum., A presençã' de du as personagens possibili ta
co ntêm e revelam seu defeito, de modo q ue os pretendent es fogem O desenvolvimen to de um con flito , de uma luta , de um a mt rrga.
delas. O mesmo acontece co m a no iva míop e . Ela finge ter a vista Cada uma dessas person agens pod e ter a seu redor um grupo de
muito bo a - nota uma agu lha na soleira que fora colocada previa- adeptos ou de pa rceiro s. A luta pode ser tra vada entre pe rso nage ns
ment e ali, mas depo is, du ran te a refeição , bate num gato qu e centrais positivas e negativas, ou entre du as figu ras negativas. Se
pu lar a em cima da mesa , e esse gat o era a man teigueira. no s casos precedentes a comicidade é provocada por impressões
repent ina s e inesperadas, o procedimento do odurdtchivanie po de
co nstituir a ba se de comédias em m uitos atos e de narrativas mais

I A palavra em russo, que também dá lÍtu lo ao capítulo, é a substantivação do verbo


odur átchi vat' (deixar alguém com cara de bobo , engabelar) . Por aproximação se
poderia tradu zir por enganaçâo, logro, engabelo, que não aba rcam o sentido da
palavra no or iginal. A vítima de odurátchivanie manifesta no ato sua própria imbe-
2 Sobrenome formado a partir do ad jet ivo tugoúkhi í, duro de ouvido . cilidade (durák = bobo, imbecil). Em virtud e disso, optou-se po r manter a palavra
3 Literalmente, "omelete" , " fritada de ovos". russa sempre que necessário para a devi da~ compreensão do texto.
100 COMJCID ADE E RISO o FA ZER ALGU ÉM DE BOBO 101

ou menos longas. A vítima de od ur átchivanie pod e torn ar -se tal cena final. E bastante clara ta mbém é a ap licação desse proce di-
por sua própria culpa. O antag onista vale-se de algum defeito ou ment o em O casamento; em Os j ogadores ele é evidente. A criação
descuido da person agem para desma scar á-la para o escá rnio geral. desta comédia, desprovida da sátira socia l qu e tan ta profundidade
Há casos , entreta nto , em que aque le que é feito de bo bo parece não confe re a O inspetor geral, pode ser explicada pelo fato de ela cons-
ser culpado, embora to dos riam dele. tituir um simp les caso clássico de procedimento cômico do tipo "o
Analisando as tramas das comé dias é possível estabelece r que trapaceiro tra paceado" . Um trapaceiro profissional é ludibriado
o fazer alguém de bobo constitui um dos sustentáculos fundamen- por trapaceiros mais espertos do que ele.
tais. Isso domina no teatro popular de marionetes, no teatro de É possível mostrar que sobre o princípio do odurátchivanie
Petruchka, que não te m medo de ningué m e vence a todos. É ampla- baseiam-se também muitas comédias de Ostróvski. Assim, na comé -
mente difundido na commedia dell'arte italiana e nas antigas co mé- dia Gente que combina com a gente um tratante bem-apessoado , o
dias clássicas da Europa Ocidenta l. É enco ntrado nas comé dias de comerciante Samson Sílitch Bolchóv, para enga nar seus credores,
Shakespeare. Do ponto de vista dr amático o odu rátchivanie repre- declara-se insolvente. Ele passa seus bens par a o nome do genro.
senta um procedimento muito pro veito so . Não é à toa que nos gran- Mas O genro mo stra-se mais tratante ainda que Bolchóv, permite
-, que trancafiem o sogro na prisão, e usufrui a seu bel-prazer dos
des comediógrafos russos - em G ógol e Ostróvski - há um extraor-
dinário interesse pela assim chamada comédia de intriga. Gógo! par- bens dele . O destino de Bolchóv seria trágico, não fosse traçado
ticipou ativamente da tradução de uma comédia de Giovanni Giraud, por sua própria culpa. Bolchóv é um enga nador enga nado. Aq ui,
O preceptor em situação embaraçosa . Ostróvsk i traduziu comédias feito de bobo por sua própria culpa, ele é um herói negativo . Porém,
de Shakes peare, Go ldoni, intermezzi de Cervantes . T udo isso não na mesma situação pod e cair também um herói po sitivo ao se ver
possuía nenhuma relação co m a vida russa, mas o que os atraía era em meio a pessoas que lhe são o pos tas por caráter, cos tumes e co n-
a maestria da técnica teatral. vicções . Co nsiste nisso a intriga da comédia Os m ales da inteligên-
Se estuda rmos sistematicamente a co mpos ição das co médias cio. Chega ndo a Mo sco u cheio de ideais e co m um amo r no co ra-
de Moliêre, será possivel esta belecer qu e algumas de las se baseiam ção, Tchátski 'vê desmor on arem tod as as suas ilusõ es . " A ssim, eu
no principio que estamos examinando aqui. Isso é muit o evidente, me recuperei plenamente !" - exclama ele no final da comédia .
po r exemplo, na co média George Dandin, ou o marido enganado , Uma personagem positiva foi feita de bob a , mas não fo ram revela-
ond e a espos a-cortesã e seus parentes embromavam o bondoso, dos os seus defeitos e sim os daqu eles que a enganara m.
mas mediocre campo nês, que por ambi ção quis se casar com a filha Iría mos muito longe, se quiséssemos aprofundar a análise da s
de um nobre proprietá rio de ter ras. As últimas palavras desta comé- intri gas das comédias russas. O odur âtchivanie não é o único tipo
dia, " Tu l'a s vo ulu, Geo rge Da ndin! " ("Tu quiseste isso , Geo rge de trama, mas é o tip o fundam ental .
Dand in! "), to rnaram-se um ditado não só na França, como no Outro do mínio no qual o fazer alguém de bobo constitui o
mu ndo inteiro. Nela, o princípio do odurátchiv anie é perfeitamente sustentác ulo prin cipal da trama é o do folclor e cõ mico e na rrativo .
claro , mas em fo rma latente ele está na base de quase to das as com é- Este compreende todas as anedot as populares, fac écias , Schw ãnke,
dias de Mo líere. Em termos gerais, o odur âtchivanie const itui um fa bliaux ), assim co mo os cont o s maravilho so s de animais e os satí-
dos fundamentos não somente da comé dia antiga, mas ta mbém da ricos. De aco rdo com a fo rma e o tipo de a plicação desse princípio,
seria possível sistematizar um repertório das tramas dos contos mara-
mais tardia . Ele está na base de O simplório de Fonvízin: a senhora
Pr ostakova vê fracassare m todas as suas iniciativas. So bre o mesmo vilhosos, separando-os numa catego ria especial. Ta l sistematização
poderia servir de base par a um índice cíentífico das tra mas, mas
princípio funda menta m-se todas as comédias de Gógo l. Em O inspe-
aqui não é o lugar para nos ocupar mos disso . É indispensável ape -
tor geral, o prefeito revela-se um bob o , sendo ele próprio O culpado .
"Vejam, vejam todos! Todo o mun do! Toda a crista ndade ! Vejam
todos como o governador foi feito de besta!" - exclama ele na J O termo refere-se a um gênero literário da Idade Média, de origem italiana. Consis-
tia num conto humorístico curto com um final espirituoso . Na Alemanha difundiu-
se com o nome de Schwiinke e penetrou na Rússia em meados do século XVII,
2 Op . cit., p. 169. sendo denominado fatsétsia (facécia).
102 COMICIDADE E RISO o FAZER ALGUÉM DE BOBO 103

nas salientar que nos contos maravilhosos os moralmente absolvi- cn mmoso. É o divertido artista de sua arte. Ele consegue roubar
dos são, sempre e sem qualquer exceção , o espertalhão e o gozador, os ovos de baixo da ave, mas usa sua arte apenas para engabelar o
e toda a simpatia do ou vinte ou do leitor está do lado deles, e não patrão. Conhecendo sua arte e para pô-lo à prova, o patrão propõ e-
do lado do enganado . Fazer alguém de bobo é o principa l procedi- lhe tarefas que a seu ver são inexeqüíveis. O ladrão rouba de noite
mento da sátira folclórica. o lençol sobre o qual do rmem o patrão e sua mulher; rouba do está-
Nos contos maravilhosos de an imais dos povos da Europa o bulo seu potro preferido; enganando todo s os guardas, ele rouba
principal herói é a rapo sa astuciosa . Outro s povos pod em ter outro até mesmo "o precepto r do K érjenie ts"> , ou o padre, mete-o num
animal que, necessariamente, é considerado ladino, como o corvo, saco e o pendura nos portões.
O macaco, a marta etc. Há também ladrões de outro tipo . São os soldados que rou-
Nos contos maravilhoso s russo s sobre a raposa, a narrativa bam as velhota s comerciantes . A vendedora vai levando manteiga
reduz-se ao fato de que a rapo sa engana todo s a seu redor. Ela ao mercado . Os soldados estão em dois. Um deles detém a mulher
rouba o peixe da carroça do mujique, fingindo-se de morta. Acon- e põe-se a tagarelar com ela, enquanto o out ro rouba a manteiga
selha o lobo a enfiar o rabo num buraco do gelo par a pescar os pei- da carroça . A mulher se dá conta do furto somente apó s chegar
xes. O rabo congela, o mujique mat a o lobo. Caindo num fosso ao mercado. Os enganadores são soldados que a serviço do czar
com outros animais, ela convence o urso a comer as próprias entra- suportam durante anos rigoro sas privações, a enganada é uma
nhas. O urso rasga sua barriga e morre, a raposa o devora e escapa mulher rica e estúpida , uma vendedora do mercado. O povo acha
do fosso . Nós não vamos elencar toda s as marotices da raposa. Cer- que os soldados é que estão certos.
tamente existem contos maravilhosos nos quais a enganada ou casti- O utro grupo de contos mar avilhosos é o dos conto s sobre os
gada é a própria raposa. A raposa intima o galo a confessar-lhe seu bu fões.
pecado principal - a poligamia. O galo desce, a raposa o agarra e Um deles é o conto maravilhoso sobre um bu fão que engabe-
leva embora. O galo promete à raposa torná-la uma prosvirnia" e lava outros sete. O bufão fala, por exemplo , que ele tem um chi-
levá-Ia ao banquete do bispo . A ra posa o solta, ele voa para uma cote-que-dá-vida, que ressuscita os mortos. Tendo combinado antes
árvore e caçoa dela. Esse conto maravilhoso, como já lembramos,
com a esposa , ele finge brigar com ela, dar-lh e uma facada - na
tem origem literária, e não fo lclórica, e remonta ao século XVII.
realidad e ele fura uma bexiga cheia de sangue previamente escon-
Mas o principio do odurátchivanie se confirma, o fazer alguém de dida - , depois dá -lhe chicotadas e ela ressuscita. Dai, vende o chi-
bobo aqui é até redob rado. cote por muito dinheiro . O comprador mata a própria mulher e
tenta ressuscitá-la a chicotadas. O tratant e caçoa dele. O conto mara-
O papel de embusteiro pod e ser desempenhado não só pela
vilhoso consiste numa série de peças semelhantes . Os inimigos ten-
raposa, mas também por outros animais, como o gato que todos
tam vingar-se dele e eliminá-lo, mas em vão - ele sempre consegue
temem, ou o galo que nada teme e com seu canto incute medo aos
escapar impune.
animais mais fortes .
Contos maravilhosos como esses representam para o homem
Esses contos maravilhosos não são propriamente cômico ~ no
atual um certo mistério. O riso surge aqui cínico e como que despro-
sentido estrito da palav ra : eles não pro vocam gargalhadas. Mas são
vido de sentido . Mas o fo lclore tem suas próprias leis: o ouvinte
permeados por um humor popular incont estável. O ouvinte perma- não as relaciona com a realidade; trata-se de um conto maravilho so ,
nece do lado do enganado r não porque o povo ap rove o engodo, não de histó rias verídicas. O vencedor tem razão só pelo fato de ven-
mas porque o enganado é bobo , medíocre, pouco esperto e merece cer, e este gênero de conto não se condói nem um pouco dos crédu-
ser enganado . los bobalhões que são vítimas de peça pregada pelo bufão . Esses
Baseiam-se no principio do odurátchivanie as tram as do contos maravilhosos assumem facilmente o caráter de sátira so cial.
imenso ciclo de contos maravilhosos sobre os ladrões espertos. O
ladrão desses contos não é absolutamente representado como um
s Referência a um afluente do Volga, às margens do qual viviam os Velhos Crentes.
seguidores do cisma religioso ocorrido na Rússia a partir das re formas executadas
4 Mulher que faz hóstias. pelo patriarca Nikon na segunda metade do século XVII.

I UIlP - UNI VERSWADE POTIG UAR


RIR I In T ~ r li. r 1\ ruI O I I C' I TT
I
104 Cü M IC IDA DE E RISO O FA ZE R AL<;UEM DE 8 0 BO lOS

Os enga nados são o pape ou o patrão e o enganador é o peão da por exemplo, consistia em arranjar um caldo de estrume de cavalo,
roça. O peão arruína e até mata o pope, estropia e corta em pedaci- depois ir bater à porta ou à janela de um dos camponeses e, quando
nhos os seus filhos, deson ra-lhe a mulher e a filha ou atira a mulher o dono da casa punha a cabeça para fora, o rapaz molhava uma
no precipício - e tudo isso sem a menor piedade, porque no fol- vassoura no caldo e a esfregava na cara do dono [.. .].... Ou ent ão,
clore o povo não sente nenhuma compaixão para com os próprios atravancavam os portões de tal modo que se tornava imposs ível
inimigos, sejam estes os tártaros do epos , os franceses das canções abri-los, despejavam do tel hado água na chaminé ou tapavam-na
históricas sobre Napoleão ou os proprietários de terras e os papes com feno e gelo de modo que o fogão come çava a fum egar e ass im
dos co ntos maravilhosos . por diante. Este costume é mu ito antigo e é po ssível que tenha
Nos co ntos maravilhosos do tipo de O tolo, de Púchkin, o tra- desempenhado algum papel na origem da comédia ática antiga. Ori-
ba lhador engabela não só o pape, o patrão, mas até os próprios gem ritual possuem ainda as brincadeiras de abril, mu ito difundi-
diabos. Aliás, a rigor, o pape ele não engana . Ele é contratado e o das antigamente, quando não se podia deixar de pregar peças na s
pagamento é o direito de dar três piparotes no pape. E o pape leva pessoa s e depois rir delas.
os piparotes . O inespe rado consiste ape nas na força desses piparo- É indispensável mencionar a propósito as brincad eiras e as
" tes - o pape é castigado por sua sovi nice . peças, às vezes cruéis, pregadas em pessoas absolutame nte inocen-
Na fo rma como o odu rátchivanie é aplicado no folclo re do tes e às vezes até muito boas, mas que, não obstante , suscitam o
conto maravilhoso, ele não é um procedimento muito apropriado riso. Um exem plo típíco e expressivo é Max e Moritz de Wilhelrn
para a sátira. Sua aplicação mostra uma atitude negativa do narra- Busch. Max e Moritz serram uma pequena ponte por onde deve
do r para com aquele que foi feito de bobo , mas sobre as cau sas passar o a lfa iate , e se regozijam qua ndo ele cai na água; enchem
dessa atitude podem-se fazer ape nas suposições : o próprio narrador de pólvora o cachimbo do professor, chegando a chamuscar grave-
não acha necessário estender-se sobre o assunto . Tais causas são mente seu rosto etc. A alegria maldosa que em outros tipos de
evidentes somente nos casos em que aquele que foi feito de bo bo é humor ma l se nota aparece aq ui sem disfarces. Por isso este tipo
odioso ao povo pela posição socia l qu e ocupa. Porém, aqui não de humor não é atraente; mas é próprio da natureza humana, que
existe propriamente uma sátira no sentido exato da palavra. nem sempre tende ao bem . O leitor, sem querer , so lidariza-se com
Góg ol age de modo diferente nos casos em qu e utiliza tal pro- Max c Moritz em todos os seus aprontas. Para isso co ntribui o fato
cedimento em suas obras narrativas. Ele revela claramente, ainda de qu e a vítima da s brin cadeiras pertence à classe dos burg ueses a le-
que de modo breve, o caráter negativo do tipo represent ado . O pro- mãe s cheios de si, obtusos e limitados, qu e, embo ra tra balhem
cedimento , qu e constitui o sustentác ulo da comédia de intriga , apa - hon estam ent e (o alfaiate, o padeiro , o pro fesso r), vivem no mundo
rece muito raramente na arte narrativa de Gógol, e quando aparece, sufocante e bolorento da pequ ena burguesia alemã , e têm seu sos-
está ligad o ao folcl ore. É po ssível indi car o conto "A noite de sego perturbado pelas peças qu e os ga rotos tr avessos lhes pregam .
maio", onde rap azes zomba m do chefe: atiram-lhe um a pedra na Mas em seguida, mesmo depoi s de cast igada por eles, a vítima rec u-
janela, cantam embaixo dela canções escandalosas e zombeteiras, pera o sosseg o perdido .
mas qu an do ele qu er agarrar o respo nsável, qu em lhe ca i nas mãos Na lingua inglesa brincadeiras desse gênero recebem a deno mi-
é a própria cunhada. Essa s brincadeiras têm um caráter de vingança : nação de practical jokes . Po uco em voga entre nós , elas enco ntra m
o chefe é odioso po rq ue abusa de seu poder, assoberba o trab alh o ampla aceitação no mo do de vida dos a mericanos pela incapacidade
com imposições ar bitrárias . Tem ainda out ras cu lpas . "O chefe é que têm de se divertirem de maneira mais inteligente. O escritor cana-
zaro lho , mas em compensação seu único olho é facínora e pode dense Leacock em seus Contos humorísticos fala de um desses brín-
enxergar de longe uma colona bo nitinha." Gógol era um excelente ca lh ões, que, tendo chegado a uma pensão, "ora coloca breu na
etnógrafo e sabia muito bem que semelhantes travessuras eram per- sopa de tomate, ora passa cera ou espeta alfinetes no s assentos"
mitid as outrora nas festas de Natal, em que os rapazes acertava m
contas com os que lhes eram antipáticos, e sobretudo com as auto- . cr.V. Pro pp, Rússkie agr ámie prdzdniki (Festas agrárias russas} . Leningrado. 1963.
ridades locais da geração mais velha. "Uma dessas brincadeiras, p. 122. e bibliog rafia anexa.

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106 COM ICIDADE E RISO

e assim por diante. Era considerado espirituoso também encher um


travesseiro de espinhos ou esconder na botina do vizinho uma cobra
viva. O tal brincalhão "uma noite estendeu uma corda de través
no corredor e fez soar o gongo, chamando os hóspedes para o jan-
16
tar. Um velhote, na pressa, quebrou a perna. Nós quase morremos
de rir" . Pela última frase dá para ver que Leacock condena profun-
Os alogismos
damente esse tipo de humor. No entanto, a conclusão que ele tira,
de que o humor só pode ser bom, é sem dúvida alguma errada . Aque-
les que estudaram nos ginásios estaduais poderiam provavelmente
contar muita co isa sobre as peças que os alunos pregavam em alguns
professores. Por outro lado, os culpados dessas travess uras eram ,
no fundo , os próprios profe ssores, já que não sabiam lidar com as
crianças. Para a guerra entre professores e alunos contribuía todo
o sistema escolar daqueles anos. Peças do tipo são explicáveis como
reação natural de a nimação , de vivacidade, de desprezo pela obtusi-
dade e pela injustiça , pelo tédio e pela amora lidade de toda espécie
no meio pedagógico, co isas que não escapavam aos estudantes pers-
picazes. Os professores dos quais gostava m e que respeitavam nunca
eram vítimas dessas brincadeiras.
Atualmente nossa avaliação mor al de semelhantes procedimen-
tos não co incide sempre com a que lhe fazem as vítimas de odurá-
l Ao lado do fracasso daquilo que se deseja ~or causas. ext~r~as
ou internas, há casos em qu e o Fracasso se deve a falta de inteligên-
tchivanie. Nos casos contados por Leacoc k, os brincalhões são detes- cia . A estultice, a incapacidade mais elementar de observar correta-
táveis para nós porque os que for am feitos de bobos so frem misé- mente , de ligar causas e efeitos , desperta o riso. )
rias sem ter culpa nenhuma. Entretanto , nos casos em que na vida ( Nas obras literárias, assim como na vida, o alogismo pode ter
ou na literatura os Feitos de bo bos são pessoas ou tipos desagradá- dupla natureza; os homens dizem coisas absurdas o u realizam ações
veis para nós, perigosos ou negativos de um modo geral, nossa ten- insensatas. Porém, olhando-se com maior atenção, ver-se-á que tal
dência é simpatizar com os brincalhões. Muito interessante so b este subdivisão tem importância apenas aparente. Ambos os casos podem
aspecto é o co nto O prêmio, de N. Chevtsov (36). Um marid o diz ser reduzidos a um só. No primeiro estamos diante de uma concentra-
brincando à mulher e à sogra qu e ganhou cinco mil rublos. No iní- ção errada de idéias que se expressam em palavras e estas palavras
cio ele lamenta a brincadeira, mas bem depressa a mulher , a sogra fazem rir. No segundo, uma conclusão errada que não se expressa
e outros parentes demonstram tamanha cobiça, que so mente então por palavras, mas se manifesta em ações que são motivo de riso )
ele abre os olhos sob re o caráter de seus familiares. O alogismo pode ser manifesto ou latente. No primeiro caso
o alogisrno é cô mico em si mesmo para aqueles que vêem ou sentem
sua manifestação . No segundo caso exige um desmascaramento e
o riso surge no momento desse desnudamento. Para o sujeito agente
o desmascaramento intervém habitualmente somente quando ele
sente as conseqüências de sua estupidez na próp ria pele. Para o
observador, o espectado r ou o leitor, o desmascararnento de um alo-
gismo esco ndido pode ocorrer graças a uma tirada espirituosa e ines-
perada do interlocutor, que com sua resposta manifes ta a inconsis-
tência do juízo de quem age.
108 CO ~Il C I DA DE E RISO OS Al OGISMOS 109

Na vida o alogisrno é, quem sabe, a forma mais co mum de Esta co ndição não existe, por exemplo, qu ando um cient ista
co micidade. A incapacida de de ju ntar uma con seq üência co m suas comete um erro de cálculo ou um médico faz um diagnóstico errado.
causas é muito difundida e se encontra mais freqüentemente do que Erros como estes não são cômicos porque não constituem um alo-
se imagina . Vale a pena reco rda r a qui as palavras já cita das de gismo mecânico .
Tchernichévski: "A estupidez é o ob je to pri ncipa l de nossa zomba- Não nos orientaremos aqui para uma sistematização rigorosa,
ria, a maior fonte do côm ico" . Há outros estudiosos também que porque, neste caso , ela não elucida a essência da questão, mas trata-
sublinham a import ância da estup idez pa ra a defi nição da essência remos a penas de algu ns exemplos significativos de caráter diverso.
da comicidade. Kant achava q ue tudo o que suscita uma sonora Em Gógol esse aspecto de comicidade encontra-se com bastante
risada "deve ser algo contrário à razão" . Jean Paul, junta mente freqüência . Koróbotchka, já disposta a ceder a Tchitchiko v as a lmas
com outros esclarecimentos, define o cômico como "a lgo de infini- mortas, observa timidamente: "Nunca se sabe, às vezes podem ser
tamente insensato percebido sensorialmente" . Dobroliubov conside- aproveitados em alguma coisa, na economia rural [.. .]" 1, esgotando
rava a estupidez das personagens a propriedade fundamental da com isso a paciê ncia de Tchitchikov. Pode-se notar q ue muitas perso-
comédia. Se o prefeito e Khlestakóv tivessem sido mais inteligentes , nagens gogolianas - Khlestakóv , Bóbtchinski, Dóbtchinski, Nozdrióv ,
" não teria existido a comédia: UA comédia [... ] leva ao fracasso as Koróbotchka e outras - não conseguem j untar du as palavras qu e
tentati vas do individuo de escapar às dificulda des que crio u e susten- façam sentido e relatar um fato com o minimo de lógica . Bóbtchinski,
to u po r sua própria estupidez ". D. Niko láiev acha qu e Dobroliu bov ao contar como viu Khlestak óv pela primeira vez, introduz na história
está equivocado, aqui, e que não se trata de estupidez biológica, Rastakóvski e Ko r óbkin , e um certo Potchetchuev, que tem "treme-
mas sim do fa to de o prefeito ser um tip o socialmente negat ivo . deira na barriga" e descreve em particulares onde e como encontrou
Só que a estupidez é um meio para suscitar o riso e Gógo l escreveu Dóbtchin ski ("perto do boteco on de vendem bolinhos") que nada tem
um a comédia e não um tratado . A estupidez e a nocividade social a ver com o assunto. Ele j unt a toda uma cadeia de ded uções pelas
não se excluem uma à outra: a estupidez é um meio para desmasca- quais se deveria ver com clareza que o recém-chegado não é um inspe-
rar a nocividade. Vulis escreveu a este propósito que, "em essên- tor. O relato de Bóbtchinski sobre a chegada de Khlestak óv é um
cia, uma risada alegre e espirituosa é uma defesa original contra o mode lo de desconexão e de falta de bom senso . Ele não sabe distin-
tolo , um fator socia l que supera aqueles erros e vício s aparente- guir o que é mais importante. De uma maneira geral, o rumo dos
mente secundários mas que, caso se tornassem uma norma, seriam raciocínios das personagens gogolianas é o mais inesperado possível.
uma verdad eira desgraça " . É claro qu e uma estupidez total seria uma Duas senhoras pensam qu e as almas mortas significam que Tchitchikov
desgraça , mas Góg ol luta não co ntra a estup idez, ma s co nt ra aq uele tem em mente ra ptar a filha do governa dor ; o oficial do correio está
sistema social q ue cria prefeitos co mo Anto n Antónovitch e fun cio- convencido de que Tchitchikov é o capitão Ko péikin e só mais tarde
ná rios e filhos' de prop rietário s como Khlestakóv: sua estup idez é lembra-se de que Kopéikin é um inválido sem um braço e sem uma
um meio cômico-sa tírico de derrisão. perna , enqua nto Tchitchikov é saudá vel. O alogismo surge com evi-
A ma nifes tação do alogismo submete-se às me smas leis pró - dência tod a especial quando é aplicad o como tentativa de justificar
prias às outras manifestações do côm ico. N . Hartmann assim escreve ações não completamente irrepreensíveis.
na Estética: "Não é a simples ignorância que é cômica, mas aquela Do mesmo tipo são as pa lavra s do pre feito a propósito da
qu e ainda não fo i de monstra da". Isso, po rém, não é verdade. Uma viúva do subo ficial: "ela se chicoteou a si mesma" , ou as palavras
igno r ância oc ulta, aind a não no tada por ningu ém, não pod e ser do juiz em O inspetor geral, que cheira sem pre a vod ca, coisa que
cômica.(O riso surge no momento em que a ignorância oculta se ele tenta explicar dizendo que "quan do era criança a ama o havia
manifesta repentinamente nas palavras ou nas ações do tolo, isto é, machu cado e desde então cheirava sempre a vodca". Quando, no
torna-se evidente para todos, enco ntrando sua expressão em fo rmas conto sobre a disputa entre Ivan Iv ánovitch e Ivan Nik íforovitch,
perceptiveis senso rialmente!J É possível dar-se ta mbém o ut ra defini- uma camponesa leva ao ar livre para ventilar não apenas as bomba-
ção: pode-se entender o alogismo cômico como um mecanismo de
pensamento que prevalece sobre seu conteú do . 1 Almas mortas, cit . , p . 65.
OS A LOGIS MOS 111
110 CO~I CIDADE E RISO

chas cor nanq uim de Ivan Nikiforovitch e outros trapos, como ta m- A ca pac idade de da r resp ostas desse ti po é um dos aspectos da a rgú-
bém a espingarda, trata-se de um caso típico de alogismo de ações, cia. É am plamente conhecida a anedota da vida de Bern a rd Shaw,
baseado numa concl usão subconsciente por analogia . que se con sidera realmente ocorrida. Ele teria recebido uma carta
Ás velhas ridículas das coméd ias atribui-se freqüent emente a estu- com O seguinte teor:
pidez. Na comédia de Ostr óvski A verdade é boa, mas a felicidade é Eu sou a mulher mais bonita da Inglaterra, o senhor é o homem mais
melhor, Mavra Tarássovna fala do seguinte modo de um homem qu e intelig ente. Acho que deveríamos ter um filho.
acredita morto, mas que, ao contrário, lhe dizem estar vivo :
Ao que seguiu a resposta:
Não pode ab solutamente estar vivo, porque já são vinte anos que
E que tal se nosso rebento herdasse a minha beleza e a vossa lnte li -
faço oferendas para a paz de sua alma : por acaso dá para agüent ar
uma coisa .dessas? gência?

Embora a lógica ensin e que as co nclusões tiradas po r a na logia Semelhante, embo ra um po uco difere nte , é a anedo ta que se
não têm valor de con hecimento , na vida encontram- se muitas vezes enco ntra na revist a Ciência e Vida (1966, n. 3).
raciocínios dessa natureza. A criança pensa antes de mais nada por Uma lady indignada:
a na logias e só mu ito mais tarde aprende a refletir sobre os fen ôrne- _ Pois fique sabendo que se eu fosse sua mulher eu colocaria veneno
nos qu e estào à sua vo lta. Eis um exemplo: a vovó dá salada par a em seu caf é da manhã !
o netinho comer e tempera-a com óleo . O menino pergunta: O gentleman :
_ Se eu fosse seu mar ido, beberia esse veneno com prazer!
- Vovó, você vai me temperar com óleo também?
Em seu livro De do is a cinco Tchukóvs ki reuniu material sobre O alogi smo como procedimento artificial para induzir a co mi-
a criatividade verbal das crianças. Não menos interessante seria reco - cidade é particularmente freqüe nte no folclo re, o nde , po de-se di zer,
lher fatos relacio nados co m a lógica in fantil. Mas aqu ilo que na ele funcio na como sistema .
lógica das crianças é prova de suas primeiras e ingênuas indagações A partir da Idade Média e da época da Ren ascença e do
mentais, de suas tentativas de ligar um fenômeno com outro e de Humanismo , quando na Europa inteira começou-se a publicar co le-
orientar-se no mundo , na lógica do s adultos torna-se apenas um tâ neas ée fabltaux. f drti", facécias e Schw ân ke, que , em parte, entra-
engano ridiculo. vam na lite ratura clássica (Chaucer , Boccaccio), até as expedições
Os alogismo s enco nt ram ampla ap licaçào nos sketches dos (cientificas) qu e, mesmo hoje em dia, reúne m um material extr ema -
palh aços. Bo ris Viátk in entrav a no picad eiro com sua cadelinha mente rico, este tipo de folclore cont inua a viver c se revela imortal.
Maniúnctchka, segurando-a com uma corda curta e grossa, fato que No Or iente surgiu a figura de Nas rieddin, homem alegre e arguto,
pro vocava imediatamente uma a legre risad a dos espectado res. Este q ue finge ser um simp lório . Esta figu ra espalh ou -se em todos os
exemplo parece confirmar diretamente a teoria de Hegel: "Cômico paises do Ori ent e Médio e pe rmaneceu viva até hoje . Nem tod o fol-
I...] pode tornar-se qu alquer co ntra ste I...] do fim e do s meios". clo re é igualmente cô mico e espirituoso , mas aqui podem ser enco n-
Uma co rdona é um meio absoluta mente inadequ ado para conduzir tradas verdadeiras jóias.
um cachorrinho. O co ntraste entre meio c finalidade suscita o riso. Deter -nos-ernos brevemente no folclore rus so. A qu antidad e
Em tod os os casos desse gênero o a logismo fica, por assim dizer, de diferentes co ntos sobre tolos , bobos ou simpló rios é extraordina-
na superfície e se revela sozinho ao espectador, ao ouvinte ou ao lei- riamente grande . Isso aco ntece, porém, não porque na vida existam
tor por meio de ações o u palavras claramente to las. M as o alogismo muitos to los e o povo que ira zombar deles, mas porque a estultice
pode estar também escondido e ser completamente imperceptivel à evidente o u disfarçada suscit a um riso saudável e saboroso . Este
primeira vista. Apenas alguns o notam e o desmascaram com alguma riso zomba dos tolos , mas não podemos conco rdar com a opinião
tirada que revela de repente a estultice e suscita o riso .
Tiradas do gêner o exigem espirito de o bservação e tal en to . e a designação de um tipo de co nto humoristico curto, que
2 Jan (do polonês zur/ )
Elas são a resposta de um espírito arguto à manifestação da tolice. se desenvolveu na Rússia no século XVII.
112 COMIC lO ADE E RISO OS A LOG1SMOS 113

de alguns estudiosos que acham que estes conto s teriam uma deter- eles têm pena. Esta compaixã o os leva a ações de todo insensatas.
minada função satírica e perseguiriam o obje tivo de uma luta ativa Neste caso o cavalo é magro e acabado . "Que ta l, pensa consigo
contra a estupidez. Existem alguns tipo s de folclore mágico onde mesmo Iv ánu chka , se o cavalo tem quatro patas e a mesa também,
os heróis são os tolo s. Um deles é centrado nos habitantes de urna ela pode nos alcançar so zinha!" Pega a mesa e a co loca na estrada .
localidade qualquer. Na Grécia Antiga eram os habitantes de Abdera, Mais adiante dá toda a comida para os corvos comerem, põe todas
os abderitas ; os alemães acham que os habitantes da Suábia, os as panelas sobre os troncos das árvores para que não sintam frio
suevos, são pouco espertos. O livro popular sobre os sete suevos é etc. Os irmãos o enchem de pancadas.
um dos mais divertidos desse gênero. Sobre esses livros o jo vem Este conto é muito interessante por diversas razões. O bobo
Engels escrevia : vê o mundo distorcido, tira conclu sõe s erradas e com isso os ouvin -
Este espírito, esta naturalidade de desenho e de execução, este
tes se divertem. Mas as suas moti vações internas são as melhores
humor bonachão, que acompanha sempre o escárnio mordaz, para possíveis. Tod os lhe despertam compaixão e está pronto a sacrifi-
que se não torne por demais maldoso, a extraordinária comicidade car tudo o que tem; por isso mesmo ele suscita simpatia. Este tolo
das situações - tudo isso, para dizer a verdade, é capaz de colocar. é melhor do que muitos sábios.
'. se acima de grande parte de nossa literatura (3, 26, 35).

Na Rússia, considerados pouco espertos, sabe-se lá por que,


O mesmo, porém, não pode ser dito do conto O bobo inte-
graI. A mãe diz ao filho: "Você deveria ir, meu filho, se enfronhar
são os habitantes do velho distrito de Pochekhõnie na província de nas pessoas, para ver se você consegue ficar mais esperto" . Ele
Iaroslavl. É possível porém que esta fama não lhes venha do folclore, passa por dois mujiques que moem ervilhas e começa a se esfregar
mas do livro de V. Berezáiski Anedotas sobre os antigos habitantes neles. Eles enchem-no de pancadas. A mãe lhe ensina: "Que Deus
de Pochekhôn ie, acompanhadas de um divertido dicionário (I 798). lhe ajude, gente boa! Deus lhe dê bastante, que não dê para levar" .
Em nenhuma coletãnea de contos popu lares russos há habitantes de O tolo encon tra um enterro e pronuncia o augúrio que a mãe lhe
Pochekhõnie, nem deles se fala. O núcleo dessas histórias de simpló- ensinou. Batem nele novamente. Outro ensinamento da mãe, que
rios reduz-se a relatos de ações tolas. Tais simplórios semeiam sal, lhe dissera para desejar "vigília e incenso ", ele o pronuncia num
tentam tirar leite das galinhas, levam a luz em sacos, fazem o cavalo casamento (vigília ~ velório), e batem nele de novo . Este conto é
entrar na colhera, em lugar de ajo uj á-la devidamente no pescoço muito popular e conhecido em muit as variantes. O bobo deste conto
dele, pulam dentro das calças, serram o galho sobre o qual estão sen- é servil, benevolente e desejoso de satisfazer atodos, Mas está sem-
tados e assim por diante. Eles compram uma espingarda na feira, pre atrasa do, aplica o passado ao presente, e, apesar de ser presta-
car regam-na para ver como ela atira e um deles olha no cano - para tivo, desperta a cólera de todos e recebe somente panca das. A este
ver como sai a bala. Tudo isso refere-se àquela série de casos que conto refere-se Lênin quando quer caracterizar aqueles .que não
mais acima chamamo s de alogismos de ação . sabem se orientar no presente, e, deixando-se guiar por aquilo que
Nos casos que analisamos , a estupidez é um fenôme no, por já passo u, fazem tudo erra do .
assim dizer, coletivo. Ela abarca tod os os habitantes de uma locali- Outro exemplo. Uma moç a vai ao rio lavar uma vassoura. Na
dade ou alguns indivíduos ao mesmo tempo. Outros tipos de con- margem fica a aldeia onde mora o noivo. Ela imagina que dá à luz
tos pop ulares dizem respeito às ações tolas de uma única persona- um filho que vai andar no gelo, cai no rio e se afoga. A moça começa
gem. Uma camponesa piedosa , mas tola, está sentada na carroça e a chorar alto e a lamentar-se. Chegam o pai, a mãe, o av ô, a avó e
coloca sobre os joe lhos parte da carga , para aliviar o esforço do outros que, ao ouvir O relato, começam eles também a chorar alto.
cavalo. Contos como este podem ser reconduzidos às anedot as pop u- Ao escutar a choradeira, o noivo vai até o local e, tomando conheci-
lares. Mas há enredo s mais desenvolvidos. mento do ocorrido, resolve ir embora para ver se enco ntra alguém
Num dos co ntos os irmãos mandam o bobo fazer compras no mundo mais tolo que sua noiva - e habitualmente o encontra.
na cidade. "I v ánuchka comprou de tudo : uma mesa, colhere s, xíca- Muitos enredos de contos sobre tolo s contê m também o motivo
ras e sal; encheu o carro com cada tipo de coisa. " Até aqui, tudo da tolice. Os contos sobre tolos são inseparáveis do s contos sobre
bem. Mas os bobos dos conto s populares têm uma característica: os espertalhões astuciosos. Uma velha perdeu o filho . Um soldado
114 COM ICI DA DE E RISO

que se faz chamar de "Nico, do além" insiste em passar a noite


com ela. Ele se encarrega de levar ao falecido , no outro mundo,
uma camisa, pano e uma série de provisões. A velha acredita nele
e o solda do carrega consigo os presentes para o filho .
17
Um outro fenômeno é constit uído por Jo ão - bob o, protago-
nista de contos de magia. Ele é bobo apenas no começo: senta-se
A mentira
na estufa", " na fuligem e nas cinzas" , e todo s riem dele. Justa-
mente o bobo, entretanto . revela-se mais esperto que seus irmãos e
realiza diferentes empresas heróico-m ágicas. Nisto reside uma filoso-
fia toda especial. No herói do s co ntos de magia existe o que mais
importa: a beleza espiritual e a for ça moral.
Mesmo os contos sobre os tolos, porém, têm sua própria filoso-
fia. Os tolos, no final das contas, suscitam a simpat ia e a compreen-
', . são dos ouvintes. O bobo dos contos russos tem qualidades morais
e isto é mais important e que aquilo que se chama inteligência.

o estudo das condiçôes em que a impressão de comicidade


pode originar-se do alogismo e da tolice nos ajudará a resolver um
outro problema: por que e em que condições é cômica a mentira dos
homens? Para responder a esta pergunta é preciso ter em mente que
( existem, por assim dizer, dois tipos de mentira cô mica. No primeiro,
o impostor procura enganar o interlocutor, fazendo passar a mentira
por verdade) Temos um exemplo disso na cena das mentiras de Khles-
ta k óv em O inspetor geral.(No s.egund().JipiLoj-'!'l'O~!ºr_n!iS'_~e..PE0..:..
p ~e2 enganar quemo ouve, poi s sua finalidade é outra: ele pretende
d~ertir A esse tipo pertencem, por exemplo, os contos de M ünchhau-
sen e, em geral, qualquer gênero de balelas divertidas.
Examinemo s o primeiro caso . mentira enganadora nem sem-
pre é cômica. Para sê-lo , tal como os outros vícios humanos, ela
deve ser de pequena monta e não levar a conseqüências trágicas.
Além disso ela deve ser desmascarada. A que não o for não pode
ser côm ica
Ao se contar uma mentira há sempre alguém que a conta e
alguém que a ouve. Em alguns casos o desmascararnento e o reconhe-
cimento da mentira dizem respeito apenas ao ouvinte e não ao irnpos-
tor, que continua na plena certeza de que seu engano vingou. Neste
3 A estufa russa tem uma prateleira, no alto, própria para as pessoas se deitarem. caso os que estão à sua volta ouvem-no com prazer e alegram-se com
116 COMIC lDADE E RISO A :>tENTIRA 117

o fat o de ele pensar qu e to dos acreditam nele, quando, na verda de, Mas há algo mais. A co micidade da mentira de Khlestak óv não se
o s ou vintes descobriram sua mentira. A co micidade de uma situação encon tra apenas no autodesmascaramento involuntário. Gógol prosse-
como esta não se descarrega de repente, ela pode perdurar alguns gue: "Mentir significa dizer uma mentira co m um to m tão próximo
minutos, mas não provo ca o estrondo do riso. O imposto r faz papel da verdade, tão natural, tão ingênuo co mo se pode apenas contar
de bobo , mas ele não o percebe e permanece sem punição . No segundo uma verdade - e justamente nisso está todo o côm ico da mentira"
caso a situação tem como que um prolongamento . Algum ouvinte (fragmento de uma carta escrita pelo auto r após a primeira represe n-
faz uma intervenção que desmascara imediatamente o mentiroso e tação de O inspetor geral). Co m isso Gógo l define a essência especí-
isso provoca (o u pod e pr ovocar ) um surto de riso em tod os os presen- fica da comicidade da mentira.( Uma mentira interesseira, segundo
tes. Neste caso o impostor é desmascarado e sua menti ra é punida. G ógol, não é engraçada . Quanto mais interesseira, tanto menos engra-
O riso acontece no momento do desrnascararn cnto , quando o oc ulto çada. Po r isso , o grau máximo da comicidade de uma mentira é ao
de repente se torna manifesto , tal como ocorre também em outros mesmo tempo a mentira completamente gratuita graças à qual, porém,
casos de comicida de. Vam os da r apenas alguns exemp los. o mentiroso se desmascara (" revela a si próprio, tal qual ele é")J
Na cena das gabolices de Khle stak óv, os o uvintes são de duas Cas o est a últ ima co ndição seja satisfe ita (semp re porém qu e
espécies. Uns estão no palco, como o prefeito e seus co mpadres. não sejam previstas sérias co nseq üências), pod e ser cômica tamb ém
Eles estão prontos a acreditar, por isso a mentira do impo stor para uma Q1ep.1![~jºt.~ress~eira. Ass im, So bakévitch afirma sem pestane-
eles não é engraçada. Se aquilo qu e ele diz fo r verdade , esta ver- jar qu e são vivos os camponeses mor tos vendidos por ele. O prefeito
It
"
dad e será perigosa par a eles. Os demais o uvintes são o público que expõe ao falso inspeto r como ele cuida da administração da cidade .
ass iste ao espetáculo. Para eles a mentira de Khlest a kó v é pa tente Kotc hkáriev mente aos noivos qu ant o a Agáfia T íkho novna e a
e por isso mesmo engraçada . As menti ras de Khlestakóv des masca- Ag áfia Tí khonovna qua nto ao s no ivos , livra ndo-se deles desse
ram-se sozi nhas, devido a seu absurdo, mas ao mesm o tempo des- modo e co nquistando o campo de bata lha.
mascaram tamb ém o impo sto r. Urna melancia de setece ntos rublos, Em todo s esses cas os o mentiro so não é desm ascarado ao s
uma sopa chegando diretamente de P aris, trinta e cinco mil entrega- olhos das per son agens q ue tom am parte na ação. Isso é especifico
dores e coisas desse estilo são engraçadas não apenas devido a seu da s ob ras de arte . O narr ado r o u o dr amaturgo desmascar am o
absurdo, mas também porq ue deste modo Khlestakóv mostra q uem mentiroso diant e do espectado r no teatro ou do leitor.
é de fat o , revelando sua ident idade. Ao mesmo tip o de men tirosos Na vida ocorre mais freqüentemente o utra coisa: o mentiroso
pertence também No zdrióv, com seu s relatos de cavalos de capa é desmascarado e se riem dele em sua própria presença . O riso surge
de lã azul e co r-de-rosa que teriam estado em sua cadeira. A lém no mo mento do desmascar am ent o. Casos seme lhantes podem oco r-
disso , tanto um quanto o outro mentem automaticamente po rque, rer ta mbém nas ob ras de ar te. Um exemplo pod e ser o conto de Leão
uma vez que co meça m, não conseg uem mais parar. As sim é um To lstói sobre o menino qu e havia comi do escondido um a a meixa. À
dos namorados de Agá fia Tík honov na , em O casame nto, q ue foi pergunta do pai sobre quem tinh a comido a ameixa ele cala, negand o
recusado porqu e, como diz dele a casa me nteira Fiokl a, " qualquer com isso sua culpa. O pai diz que quem tiver comido a amei xa com
cois a que ele diz é mentira, isso dá pra ver logo de cara" . o caroço, morrerá. Então o menino exclama: "M as o caroço, eu cus-
Gógol não foi apenas um mestre do hum orismo, mas ta mbém pi" . To dos dão risada, mas o menino chora . Casos co mo este dificil-
um grande teórico, embora sejam raros o s casos em que expõe suas mente necessitam de explicações teóricas. É mais difícil explicar a comi-
teorias. Fa lando de Khlestakóv , Gógol escreve que ele, "ao contar cidade de contos como as aventur as do bar ão de Münchhausen. Scho -
uma mentira, revela a si próprio nela, tal qual ele é". Estas palavras penhauer o s reconduz à sua teoria da "ev idente falta de co rrespon-
são mais exatas do qu e mu itas lon gas reflexões de estudiosos de esté- dência entre o que se pode ver e o que se pod e pensar" . O que é visí-
tica. O impostor, expressando a si próprio, manifesta sua natureza, vel são os cont os do bar ão , aqu ilo qu e acontece. O que é pensáve l é
tornando a todos evidente sua impostura, mas não se apercebe disso , a con sciência de sua impossibilidade. Essa falta de correspondê ncia,
assim co mo acredito que os outros também não percebam. Tudo isso diz Scho penhauer, é que suscita o riso. Nós já sabemo s , entretanto,
pode ser definido como um caso particular de uma lei geral do cômico . que nem sempre uma falta de correspo ndência desse tipo é cômica
118 CO.\UCIDADE E RISO

18
em si, mas, no qu e consiste propriamen te a com icidade , Schope-
nha uer não é capaz de explicar. O riso suscitado pelos relatos do
barão de Münchh ausen não perte nce ao tipo do riso de zombaria.
As ment iras de Khlestak óv permitem ver o lado negativo do impos-
to r, através do desma scaramento; as de Münchhausen , ao cont rário,
suscitam a simpatia para com o pro tago nista, graças a seu ca ráter
Os instrumentos lingüísticos
engenhoso. A co micidade de Münchhau sen pertence à comicidade
das personagens (car acteres) de que tere mos ocasião de falar ma is
da comicidade
adiante. Mas aq ui não se tra ta ape na s disso . Não é apenas o tipo de
Münchha usen qu e é engra çado: seus con tos tam bém o são . A maio-
ria das balelas contadas por ele tem sua o rigem no folclore . Nelas o
herói surpreende os ouvi ntes por sua capacida de de enco nt rar uma
saíd a nas situaçõ es mais críticas. M ünch hausen, por exemplo, relata
'1 ter saído de um pàntano pu xando-se pelos cabelos e diz isso co m
toda a serieda de (aqui confirma-se mais uma vez a teoria de G ógol),
Algo de par ecido enco ntra-se no conto maravilhoso russo . Um home m
está afu nd ado num pãntano até o pescoço . Conta-se em seguida que
um pato constrói o ninho na cabe ça dele e bota os ovo s no ninho .
Vem um lobo e come os ovos. O narrador eruola o rabo do lob o
em seu braço e o assusta aos gritos. O lob o assustado at ira-se para °
Uma vez disposto material de acordo com as causas que sus-
a frente e o arranca do pântano . citam o riso , o que em últim a instância significa estudar os instrum en-
Existem porém invencio nices de outra o rdem : nelas nào há tos da co micidade, temos agora que ampliar o círculo de nossas obser-
nem so rte nem achados; co nta-se, po r exemplo, de rios de leite e vações e ocuparmo-nos do s instrumentos que se encon tram na língua .
de mar gen s de gela tina , de eno rme s legumes crescido s na ho rta , de É bast an te evidente que se trata de um campo enorme que exi-
saltos atr avessa ndo o mar rumo ao o utro mu ndo etc. A men tira , giria pesq uisas especiais. Como no s outros ca sos, porém , no s limita-
nesses casos , n ão tem em vista fins satíricos ou de desmascaramento . remo s a materiais relacionados, particularmente significativos. A lín-
Não é o mentiro so quem interessa ao na rrador ou ao o uvinte . O gua não é cô mica por si só m as porque reflete alguns traços da vida
q ue interessa aq ui é a histó ria. A história (a fábula) está co nstruída espiritual de qu em fala, a imperfeição de seu raciocínio. Já vimos
sobre um alogismo perfeita mente evidente e manifesto e isto , junta- anter iorme nte como o alogismo se manifesta no s modos de expressão.
mente com o utras causas, é mais do que suficie nte para despertar A língu a co nst itui um arsena l muito rico de instrumentos de
no o uvint e um so rr iso de alegria e um riso de sat isfação. co micidade e de zombaria. Vamos examinar rapi damente os mais
importantes . Deles fazem parteos trocadilhos (ou calernbures), os
paradoxos e as tiradas I de todo tipo, a eles relacio nadas , bem como
algu ma s formas de iro nia. A lém disso, todas as questões de tipo lin-
güístico exigem um estudo cuidadoso e especial.
So bre os trocadilho s há muita coisa esc rita. Na s estéticas ale-
mãs eles aparecem sob a denomi naçã o de Wilz . Entreta nto , o termo
alemão tem alca nce ma is vasto q ue o russo kalambur, proveniente

I Trad uzimos por " tira da" o termo russo ostrotá, litera lmente "agu deza", "argú-
cia" , ou seja. Je bon mo! dos franceses. Por extensão , também, "chiste", •'pilhéria" .
12:0 COMICIDAD E E RISO OS INSTRUMENTOS L1NGOISTICOS DA COMICIOA DE III

do francês calembour. Co m a pa lavra Witz entende-se argúcia em mente, a definição reduz-se à compreensão do calembur como o
gera l. O calemb ur , por sua vez, repr esenta um caso part icular de uso do sentido próprio de uma palavra, em lugar de seu sentido figu-
argúcia. rado. Esta co mpreensão, porém, não é aceita por alg uns teóricos.
Apesa r da existência de bibliogra fia cons iderável, não podemos "O limit e ent re significado pr óprio e figurado das palavras é con -
dizer que o conceito de calembur tenha sido explicado completamente. venciona i e móvel" , diz Schérbina (37, 28). Segundo ele, é difici l
lbergost, em seu livro sobre o cômico , traz dele cinco defini- aceitar "a contraposição do significado pr óp rio e do figurado" das
çôes diferentes. Desde ent ão saíra m trabalhos especia is sobre a argú - pa lavras , como funda mento do calembur (37, 29). Ele critica V. V.
cia e sobre o calembur (Kuno Vischer, Freud, Jo lles), e obras gerais Vinogridov , que, em seu artigo sobre Gógol, vale-se ju stam ente
em que são dadas igualm ente defi niçôes desse conceito . Não elenca- desta çontraposiçâo .
remos essas definições , mas nos deteremos apenas nas soviéticas (O fato de que o limite entre significado próprio e figurado
mais recente s. Eis a definição da da por Bóriev: " O calembur é um (transposto) nem sempre é nítido é verdade, mas este não é um
jogo de palavras. O calembur é um dos tipos de argúc ia . É uma argumento dec isivo cont ra a defi nição cost umeira do calem b~.
argúcia que nas ce do emprego de instrumentos propriamente lingüís- Em nossa op inião ta l defi nição é válida e resiste à prova do mate-
ticos" (13, 225). Esta definiçã o provém de uma elaboração insufi- rial. Do po nto de vista de noss a teoria do cômico , essa defi nição
ciente do probl ema. É fácil notar que o que se dá aqui é mais uma do calemb ur permite explicá -lo. Existem pa lavras que poss uem dois
característica que uma definição . O co nceito de calembur é recondu- ou mais significados. Alguns significados têm um sentido amplo,
zido ao mais geral de argúcia; isso é correto , mas o próprio conceito de certo modo geral, abstrato, e outro s o têm mais restrito , concre-
de. argúci a permanece sem explicação, tal como o conceito de calem-
to, a plicado . Este últim o costuma ser defin ido, de mod o nã o muito
bur. O calembur surge do empr ego de meios prop riamente lingüísti-
feliz, com o significado " literal" da palavra.tO calembur, ou jogo
cos , mas de qua is deles se trata não fica mos sabendo .
de pal av r~ oco rre quando um interlocut or co mpreende a pal a~
Schérbina ac ha qu e a carac terística funda mental do calembur
em seu sentido amplo o u geral e o outro subst itui esse significado
é a naturalidad e e a clareza da intenção . Os tr aços ma is gera is do
por aquele mais restrito ou literal; com isso ele suscita o risã:-na
calernbur, segundo ele, seriam os seguintes: "O princípio do con -
medida em que anula o argu;;;ento do interlocutor e mostra sua
traste, a naturalidade e clar eza da intençã o, a agudeza e sinceridade
inconsistência. Do ponto de vista de nossa teoria do cômico a com i-
da pr óp ria idéia" , (37, 25). Esta de fini ção é demasiad o háb il par a
pod er ser aceita . cidade do j";go de palavras se diferencia, em prí ncípio, de todos os
Tudo isso nos ob riga, antes de passar para a aná lise do mate- outros aspecto s da comicidade, mas dela const itu i apenas um caso
rial, a definir o que nó s entendemos por calembur. particulav(Analogamen te ao fato de que a impressão cômica, no s
Além das obras teóricas existem também os dicionário s em outro s caso s, ocorre devido à transferência do ato espiritual da at i-
que o conceito de calembur é definido com simplicida de e sem rebu s- vidade humana para as formas externas de sua manifestação , assim
cam entos. No Dicionário da lingua russa? de S. 1. Ójegov encontra- no calembur o riso é despertado quando em nossa consciência o sig-
se a seguinte defini ção : "O calembur é uma brincad eira basead a nificado mais gera l da palavra passa a ser substituído pelo signifi-
no emprego cômico de palavras semelha ntes quant o ao som, mas cado exterior, " literal" .)
diferentes quanto ao significado" . (O calembur pode ocorrer involunt ariam enty ma s po de ta m-
No Dicionário de palavras estrangeiras ) de 1. V. Liók hin e F. bém ser criado de pro pó sito e, neste caso, requer um talento parti-
N. Petróv pode-se ler: "O calembur é um jogo de pa lavras, baseado cular. Daremos dois ou três exemplos sem fazer deles uma aná lise
em sua semelhança fõnica e na dife rença de sentido " . Aqui não é dito teórica, nem tentar class ific á-los, Os tipos de calembur são numero-
tudo, mas a idéia básica aparece claramente expressa. Essencial- sos e variados.
Co nversação ouvida casualmente:
2 IS/ovar rússko vo iaziká ). - Isto, o que é?
3 (S/o ver inostrdnn íkh s/avi. - Caviar de taverna.
122 COMICIDA DE E RISO OS INSTRUMENTOS lI NGü lSTICOS DA COMICIDADE us

- Hum ... E desde q uando as abobrinhas dão caviar?" te óricos e estudiosos têm visto o calembur como algo negativo e
O filho de um jornalista diz do própri o pai: mesmo depreciativo . Assi m, o filóso fo Kuno Fischer diz que ao
- Dizem que meu pai tem a pena ligeira. calembu r " falta o órgão do respeito" . Hccker acha que o calembur
Quando o pa i compra uma máquina de escrever ele perg unta : carece da participação no sent ido moral. Mesmo Goethe afirma
- E agora vão dizer que papai tem uma máq uina ligeira ? em seus afo rismos: "Ser espirituoso não é absolutamente uma arte
No livro de Sretênski (33) mostra-se como as crianças reprodu- se não sentes respeito por coisa alguma".
zem e interpretam a conversação dos adultos: "O papai vai atrás O calembur, conforme indicam os materiais que reunimos,
de qualquer rabo de saia" e "mamãe agora serra ele todo día" ". não pode ser, entretanto, nem moral nem imoral em si mesmo :
No dito: "você vê o mundo com óculos cor-de-rosa" a pala- tudo del'en<k,dQ rnodoçomo. ele.é empregado , 'do alvo que ele visa.,
vra "óculos" é usada em sentido figurado e não provoca o riso. õeãie"'mbur diri gido contra os aspectos e.gativos da vida torna-se
Caso, porém, se diga : "você vê o mundo com um pincenê cor-de- ~ m a arma de sátira afiada.e. precisa , --
rosa", isso soará cômico pelos motivos expostos há pouco. Ciíã=Se req üentemente o episódio acontecido com Maiakóvski
A capacidade de encontrar e de aplicar rapidamente o sentido que, de fa to , é muito significativo.
estrito e concretamente literal da palavra e de sub stituir por ele o Uma vez, antes da Revolução, durante uma apresentação
mais amplo e geral que está na mente do interlocutor constitui um públi ca do poeta, um ou vinte levantou-se e saiu em sinal de protesto .
tipo de argúcia . A argúcia requer certo talento . Tc hernichévski Maiak óvski interrompeu sua leitura e disse:
define a argúcia como sendo uma aprox imação rápida e inesperada - Quem é aquele que está saindo da fila?
de dois objetos. Essa capacidade requer esperteza . Sabe-se que Byron A expressão "que está saindo da fila" significa "que se sobres-
foi muito espirit uoso. Numa car ta a T ho mas Moore dat ada de 28
sai" , "q ue é melhor do que os outros" . Porém, na intervenção de
de abril de 1821 ele assim escreve : "Lady Noe l esteve de fato grave-
Maiakó vski, a palavra " fila" é usada no sentido próprio e restrito
mente doente, mas, console-se, ago ra ela está de no vo gravemente
do ter mo: a fila de cadei ras de um auditório. O calemb ur cost uma
bem" (6, 203).
aniquilar, demolir o argumento do interlocutor. A pessoa que saiu
Um jovem aluno dirige-se ao Centro de Serviços e diz: "Titia,
durante a apresentação não havia dito nada, mas seu gesto preten-
faça minha liçã o de casa" (Krokodil, 3D/ V, 1965). Em to dos esses
dia ser de rep ulsa em relação a Maia kóvski. Cha ma ndo a a tenção
casos , o calembur não tem a fina lida de de expo r nenhum defeito ,
lj apenas uma_ brincadeira inocente. l Se examinarmos, porém, com pa ra a forma exterio r dessa ho stilida de , Mai a kóvsk i demoliu seu
atenção cada cas o isôlado , veremos que os defeitos existem, embora sentido intrínseco. Ficou realça da a vacuida de int erior e insignificân-
LpOUCO perceptí veis à !,rim eira _yjs~Assim, no troca dilho de Byron cia do oposito r . Para tanto contribuiu a ironia contida no juízo de
"La dy Noel está de no vo gravemente bem" existe uma alusão ao Maiakóvski , lou vand o-o com as palavras ("aquele que está saindo
caráter agressivo dessa senhora, que, por sinal, era a sogra do pró- da fila" ) e atr ibuiu-lhes o significado oposto. Após esperar do is
prio Byron. .cornicidade e a inten çãosat írica su ç,en!..~~ljg ªs desse ) ou três segundos , Maiakó vski acrescentou : "foi fazer a barba" ,
calembur são claras, mesmo sem co mentário .T dando-lhe o golpe de misericórdia por co loca r em evidê ncia certo
\ Além de brinçadeira inocent e e b~ -h u mo rada, o calembur 1 defeito exterior de seu adversário (não estava barbeado), que repen-
pode torna r-se uma a rma afiada e extre ma mente:-efíciente j Co mo tinamente se torn a patente a todos e reforça a ava liação negativa.
outros aspectos do uso de zom ba ria , ele é ca paz de "podar" uma "Nem todos os generais são cheios (polni) por nat ureza"
pessoa. Se for dirigido cont ra algo qu e não merece o escárnio ele é (Ko zrn á Prut kóv). Este calembur de Kozmá Prutk óv baseia-se no
des locado e adq uire um caráter ofe nsivo. Po r este motivo alguns fato de que po ln i general , de aco rdo com os gra us da hiera rquia
militar czarista, indicava o grau máximo de general. Só que po lni
também significa "gordo", e a substituição de um conceito por
.. O trocadilho baseia-se na palavra kabatchók , que significa ao mesmo tempo " ta-
verna" e "abob rinha" , outro adquire um matiz cômico e satírico : o leitor imagina imedia-
5 O verbo "serrar", em russo pili t', também significa "repreender continuamente". tamente um general czarista gordo, imponente e cheio de si.

,
124 CO~ICID A DE E RISO OS INST RUMENTOS L1NGüI STICOS DA COMICIOADE I2S

o emp rego do jogo de pa lavra s ou a compree nsão literal do a falar coisas sem nexo e o general lhe diz: " Pare ! Q ualqu er to lice
significado da s pa lavras para fin alidad es satíricas enco ntra-se fre- tem seu decoro" . Em casos como este os paradoxos são involuntá-
qüentemente no folclore. Quase inteiramente nisso se baseiam os rios. Os paradoxos intencionais levam a rir se a contraposição é ines-
episó dios do livro popul a r alemão sob re Till Eulenspiegel onde perad a. Eles constituem um dos tipos da pilh éria: " Ele tem um
encontramos, ao mesmo tempo, o logro do patrão. Assi m, a ordem gra nde futuro na s costas" . Este paradoxo exp rime derrisã o e os
de "engraxar a carruagem" é executada pelo empregado de forma paradoxos desse tipo podem ter um a função satírica. Encont ramos
completa mente literal. Til! recobre de go rdura não apenas os eixos, um exemp lo deles em A história de uma cidade de Saltikóv-Sche-
mas ta mbém o assento de seda onde irá senta r o amo. No folclo re drin (no capítulo "Guerra para a instrução" ): "Neste mesmo tempo,
russo também encontram-se motivos semelhantes, embora eles não como de brincadeira, esto urou a revolução na França e ficou claro
para todo s que a 'instrução' só é útil quando ela não tem um cará-
co nstituam um ciclo, como ocorreu na Alemanha.
ter ínstru ído ' " .
Pr óximo dos trocadilhos situam-se os pa radoxos, isto é, aque-
Próxima do paradoxo está a iron ia. Sua defi nição não ap re-
las sente nças em que o predica do co ntradiz o sujeito, ou a defi ni-
senta mu itas dificuldad es. Se no par ad oxo co nceitos que se excluem
ção o qu e está pa ra ser definid o . Exemp lo : " Todos os int eligentes mutuamente são reunidos apesar de sua incompat ibilidade, na iro-
,t
são tolos e apenas os tolos são inteligentes" . À primeira vista tais n~XjlIeSSa,se..c.om-''-S.Jl-ªlavraULm conce ito I)111S se subentende (sem
sentenças par ecem despro vidas de sentido, mas certo sentido pode ~xpressá.:lº or lli!!.l\Yras) um outro , cont rá rio . Em alav ras di z:se
ser acha do . Às vezes pode- se ter a imp ressão de que o paradoxo algo po sitivo, pretendendo, ao cont r ário, expressa r.algo nega tivo ,
encerra pensamentos muito sutis. Oscar Wilde, por exemplo, era ~QJ:O:Q!lç f ' ·-dito. A ironIarevela assim alegoricame~s
mestre nisso. Seu artigo Sobre a decadência da mentira é permeado defeito aquele (ou daquilo) de ue se fa la. Ela co nstitui um do
pelo paradoxo de que cada verdade é mentirosa , e qu e apenas a aspectos da zomb ar ia .e nisto está sua comicida de .
mentira é verdadeira. O quanto às vezes são próximos paradoxos e O fa to de o defeito vir a ser definido por meio da qu alid ad e
tro c1d ilhos apar~ce no exempl o seguinte: . qu e se lhe opõe , coloca em evidê ncia /:!ealça o p ~p ri o defe ito A
- To do s dizem que Cha rles é um terrível hipoco ndríaco . Mas t iro n.!.a é particularmente exp~iva naJingua em fa lada qua ndo
o que significa isto , de fat o? faz uso de um a pa rtic ular entoação escarne cedo ra .
- Hipocon dr íaco é o homem qu e se sente bem somente quando A s formas da ironia, na vida como na literatura, ~ ão muito
se sente mal. ,variadas. Daremos aqui apenas algun s exem plos. Casos clássicos '
So b a forma de parado xo podem ser exp ressos também pensa- dela pod em ser encontrados em Gógol. Na nov ela sobre a di sputa
men:o s sarcásticos e de escárn io , como o de Talleyra nd : 'IA línguª- de Ivan Ivánovitch com Ivan Nikíforovitch assim é descrita a praça
'nos.édada p ara esconder nossos pensam cn tost'. Z de Mír gorod e suas poças: " Poça ext raordiná ria! Uma daqu elas
Há paradox os involuntá rios, cuja comicida de se baseia nalgum qu e você nunca viu! Ela toma quase que a praça inteira. Belíssima
alogismo implícito. poça!" É típico aqui o to m exclamativo, próprio da ironia. Ela é,
co ntu do , suficie nte mente clara mesmo sem esta ent onação. Em A
No conto de T ch ékh ov, Uma tola, ou o capitão aposentado,
avenida Niévski de G ógol encontra-se esta frase: "às vezes atraves-
um ca pitão aposen tado chama a casamenteira . O qu e ele necessita
sa m-na rnuj iques apre ssados pa ra o trabalh o, com as botas tão suj as
é uma esposa que não seja bonita, nem rica nem sábia mas sim de ca l que nem o ca na l Ekaterínski, conhecido po r sua limp eza,
tola. "Um a tola o amará, o respeitará e saberá co m quem está seria capaz de Iimp á-las":".
lidando ." "Tolas há muitas" - responde a casamenteira. UMas Uma ironi a zombadora pod e ser enco ntrada freqüentemente
to das elas são to las inteligentes I...] cada tola tem seu tino. O senhor nas cart as de Tch ékhov, Eis um exemp lo: "Nossa obra em prol dos
que r uma qu e seja to la, tola? "
Um paradoxo parecido com esse aparece num outro co nto de
6 Está implícito aqui o jogo com os dois significados do termo pros vescb êníe, que
Tch ékhov, A filh a do conselheiro de comércio. Um genera l e um quer dizer, ao mesmo tempo . "instrução" e "iluminismo" .
co nselheiro de co mércio estão bebendo j untos. O conselheiro co meça 7 Op. cir., p. 4 .
OS IN STRUM ENTOS L1No ü l sTl COS DA COM IC I DADE 127
126 COM IC IOAD E E RI SO

esfo meados prossegue admirave lme nte; em Voronej ja nt am os em a velha Anf issa Tík honovna na co média de Ostr óvski Lobos e ove-
casa do governador e cada noite fomos ao teatro" . lhas , que não consegue nunca explicar nada e se exprime apenas
Já a utilização satírica da ironia verifica-se muito no folclore. com as palavras "bem, depois .. . eu, depois ... " ou "ora, depois .. .
No diálogo "O patrão e Afonka", o patrão interroga um muj ique bastante depois" etc. A isto corresponde a esqualidez e a pobreza
do discurso que caracterizam os falantes. O discurso , nestes casos,
sobre sua alde ia:
é completamente articulado e coeso, mas totalmente desp rovido de
Patr~o . Como é, são ricos meus mujique s? conteúdo .
Afonka . Ricos, senhor! Há um machad o a cada sete quintais e mesmo "No verão há muitas mo scas, senhorita", diz Chponka, que
assim sem cabo .
a titia deixou a sós com uma senhorita com a qual ela q uer que ele
Neste tom continua o diálogo inteiro . Afonka zomba do patrão se case.
e o faz de bobo. No folclore russo há várias cenas como esta. Fin- " Um número eno rme", responde a senhorita e já não conse -
gindo dizer que "está tudo bem" o servo faz com que o patrão saiba guem dizer mais nada.
que ele se encontra em extrema mis éria",
Em todos os casos que reportamos de calembur, paradoxo e
, Uma cena semelhante desenrola-se em O casamento entre
Ag áfia Tíkhonovna e Podkoléssin, a quem Kotchkáriev quer casar.
ironia, a comicidade depende em igual medida tanto dos meios pro- Nenhum do s dois sabe o que dizer. A conversa limita- se a frases
priamente lingüísticos__ quanto da_ quilo que eles exprimem. ..J P o rém, como: "E a senhora, qual é a flor de que mais gosta?"; "Quem
para as fina lidades cômicas pode ser uti lizada ta mbém a lingua sabe como será o verão?" etc. Mas Agáfia Tíkhonovna fica muito
enquanto tal, ou seja, sua estrutura fônica. Isso significa que a co mi- satisfeita com o encontro: "Como é agradável falar com ele"; "Eu
cidade se rea liza desviando- se a atenção do conteúdo do discurso bem q ue gostaria de ouvi-lo por mais tempo" .
para as for mas exte rio res de sua expressão . Com isso a língua per de Na literatura soviética este procedimento de caracterização é
o significado. É preciso, a esse respeito, mencionar aquele fenô- utilizad o co m efeito cer teiro por IIf e Petr óv no ro ma nce As doze
meno que se poderia chamar o " pro cedimento da fisiologização " cadeiras (cap . X II) . Ali é descri ta uma moci nha que se co nsidera
do discur so ; ele consiste no fato de que o discu rso de que m fala é irresistível e se cha ma I ólotchka-lindoiéd ka ". Seu vocabulário co n-
apresen tad o co mo q ue desprovido de sentido e con stituído apenas siste em apenas trinta palavras e expressões que se aplicam nos casos
de sons, partículas ou palavras desarticuladas. Em si, só este fenô- mais variados da existência.
meno de extrema pob reza do discurso não é cômico , mas junto com Entre essas palavras e expressões usadas a torto e a direito , a
out ros pro cedim entos reforç a a co micida de da desc rição de per son a- propósito ou sem propósito, estão: "engrosse", "oh, oh" , "céle-
gens isoladas. A perda de sentido do di scu rso rea liza-se intensifi- bre" , °sombriamente", "não me ensine a viver" , "imagine!" , "suas
cando a atenção so bre o processo , a expensas de seu co nteúdo . costas estão todas brancas" , e outras.
Na peça O inspetor geral o médico de dist rito Khri stian Iván o- O oposto deste fenô meno é a eloqüência vazia, em que a
vitch Gibner responde com um mugido a to das as pa lavras q ue lhe pobreza de conteúdo se esconde não na falta de palavras, mas em
são dirigidas ("E mite um so m em parte parecido co m a letra j e seu excesso , on de o pensam ent o afunda. Eis co mo G ógol descreve
em parte com a letra i ô"} , porque não conhece o russo. De Akáki a eloqüência de Ivan Iv ánovit ch : " Meu Deus, co mo fa la ! Esta sen -
Ak ákievitch, Gógol diz: "É preciso saber que Akáki Akákievitch sação só pode ser comparada àquela de fazer cafuné ou de fazer
se expre ssa principalmente por me io de preposições, advérbios e, cócegas com um dedo na planta do pé" . Aqui, o processo do dis-
enfim, co m partículas que decidida mente não têm nenhu m significa- curso prod uz, pa ra q uem fa la e q uem o uve, um prazer fisiológico
do" . Uma língua estropiada caracteriza o falante . Podemos lembrar que prescinde do conteúdo .
A eloqüência do trapaceiro Utechitel em Os jogadores serve
de co rtina de fumaça para esconder sua sa fadeza .
• Cf. A . N. Afan assiev, Co ntos populares russos (Nar6dnie rússkie skázkll . v. 111.
1940 (1957) , n. 414; veja-se também o co mentário de P. N . Berko v em seu livro
O drama popular russo dos séculos X VIII-XX [Rússkaia norodnaia drama XVlIJ-XX
8 Literalmente : pi nhcirinho-comedor-de-gente.
l'ekóvJ. Mosco u. 1953, p. 317-8.
1211 COMICIDA DE E RISO os INSTRUMENTOS LINGüíSTICOS DA COMICIOADE 12'.1

Ao domínio da comicidade realizada atr avés de meios lingüísti- Também a língua do sábio pode ser parodiada. Em Os frutos
cos pertenc~ aquela que surge do em prego dos mais vari ados ja rgões da instru ção Tol stói parodia um professor qu e , utilizan do uma lin-
~ro~~~sl~nals ou.de casta. Nestes casos a comicidade não é apenas gua gem rebu scad a e culta , justifica o espiritismo. No conto de Tch é-
h~g~ lsl1ca . Ela e. acompanhada, m uitas vezes, por aq uele tipo que kho v Ivan M atv i éitch , um co nhecido cient ista ru sso dita um artigo
ja v.~os no ca p ítulo onde tratamos da com icidade das diferenças . a seu secretá rio: " A essência está no fa to de que, vírg ula ... de que
Um discurso estranho ou insólito distingue uma pesso a das outras, algumas, como dizer, fo rmas básicas.. . escreveu? as formas são
tal como o fazem uma roupa esquisita ou um jeito todo especial etc. determinadas unicamente pela essência mesma daqueles princípios. ..
A língua ou o jargão de uma casta, do po nto de vista de qu em não vírgula. .. que encontram nelas sua própria expressào e somente
pertence a ela, soa co mo um conjunto de palavras incompreensíveis nelas podem se encarnar". O secretário deste cientista é um rapaz
e desprovidas de sentido e, às vezes (nas comé dias), elas são real- nobre e simples, que, porém, conta com tanto interesse como se
ment e despro vidas de sentido . Um pro cedimento deste gênero tem caçam tarânt ula s e qu alqu er outro caso de sua própria vida , que o
fr?qüentemente um mati z satírico . Ele já se encontra nos primeiro s estudioso esquece qu e está ditando: a vida é mai s inte ressante e
cl ássicos da dr am aturgia européia . A s alegres comadres de Windsor mais importante que a ciência que o sábio representa.
de Shakespeare, começa com a cena em que um juiz de paz e um No conto de Tchékhov Um matrimô nio com general (refe ito
pad re se queixam um ao outro de Fal staff, e o j uiz se expressa ma is tar de como um sketch para o palco com o nome de O mat ri-
num a língu a jurídico-cartorial, rech eando a fala com term os jur ídi- mônio) , um general convidado para as núpcias resulta nào ser gene-
c~s dos quais nem ele mesmo sabe o significado e que usa a esmo . ral coisa alguma, mas marinheiro aposentado de nome Revunov-
la o padre traduz to dos os acontecime ntos em concei tos religiosos Kar aúl ov. Ele ens urdece os convida do s com as lemb ranças dos tem-
e se expressa no jargão correspondente. pos em qu e era comandante . O conto é salpicado de termos espe-
Moliere descreve às vezes os médicos e os obriga a adotar ciais incompreensíveis para os presentes, do tipo "escotas de mes-
uma língua incompreensível cheia de palavras latinas, co mo no caso tra" , "a driças", "braços" , " troc hes" , " mantes". O título "Um
do fals,o médico, um ca mpo nês disfar çad o de doutor, que de medi- matrimônio com general" foi atribuído pelo editor ao conto que
ema nao ente nde ab solutament e nad a (Médico à força) . P or trás Tchékhov havia chamado " Uma pequena chantagem".
d.e seu latim "doutoral" esconde-se o vazio, a ignorância da medi- Ãêb micidade da tecnologia profissiona l, à s vezes correspo nde ,
ema . Uma da s mais brilhantes pa ródias da literatu ra russa da lin- em alguns casos , a comicidade involuntária da terminologia cientí-
guagem burocrática é a denúncia qu e o Ivan Iv áno vitch de Gógol fica. Os estud iosos que reparam apenas no sentido das palavras nã o
apresenta a o tribunal do distrito de Mírgorod contra Ivan Nikífo ro- notam o som dela s. Em compensação, todos os outros qu e não
~i~ch : a sintaxe e o estilo cartorial alternam-se aqui com as palavras entendem seu sentido reparam apenas no som. Com isso as pala-
Injun o.sas que ele acrescenta e revelam todo o aspecto intrigante e vra s tornam -se ridículas. Também os erros de língua pod em ser
mesquinho do cará ter de Ivan Nikíforovitch . cômicos , se eles desnUdam um defeito do pe nsamenlo, Nesse caso
Uma out ra ace pção tem a crõnica de T ch ékh o v Muita pape- e1es se aproxima m do s alogismo s. " Qu em sou eu, se me olha r de
lada (ou Pesquisa no arquivo). Aqui não se trata da rid icularização fora? Um solitário... Um sinônimo qualquer, e mais nada" - diz
de uma pessoa , ma s da correspondênci a entre o stdrosta? da aldeia de si o capitão ap osent ad o do sketch de Tchékhov Uma laia ou o
o pres ~dent e da. administraçã o distrita l do zemstvo '0, o delegad~ capitão aposentado. Outros er ro s são cômicos qu ando expõe m a
~e ~oJ~c~a , o m édico do zemst vo , o mestre-escola e o inspetor das gro sseria e a fa lta de cultura de qu em fala . Na peça hu morística
m sti t urç ões esco lare s particulares so bre o fecha mento da escola de Ríklin São todos gente conhecida lemos: ,,~ você visse que na tu-
devido à escarlatina. Este esboço é um a sátira da burocracia . Como reza morta tenho lá em casa: um limão ~ rem id o , ovos dietético s
o pr óprio Tchékh ov era médico e se oc upava de escolas rurais, e fruta seca" .
podemos crer que tudo aqui é real e verdadeiro. ri ãmb ito da comi cidade conseguida graças a meios lingüístico s
é bastan te rico e variado . Ao tocar a questão da comicidade de pala -
- ? •
9 Stdrosta: "ancião". lambem usado co m o sentido de "o chefe do grupo". vras isoladas não é possível deixar de falar em no mes prQPnos que
10 Zem stvo: conselho autônomo local com certos direitos próprios, na Rússia czarista. os auto res de com édias e de obras cõmicas dão a suas personagens.
130 COMICIDADE E RISO os INSTR UMENT OS LINGü íST ICOS DA COM ICIDADE 131

Mestre na escolha desses nomes era Shakespea re, mas ele se Koró botchka, OU Piot r P et r óvitc h Pet ukh , Iva n Ko lessó!? etc. Gógol
vale desse procedim ent o ra ramente e com cuidado. Assim , na comé- tem também personagens com nom e de comidas como Ivan P ávlo -
dia A megera dom ada há um enca na dor bêbado que se chama Chrís- vitch laítchnitsa ou A rtémii Filíppov itch Zemlianika 18. Às vezes os
tofer Sly. Sly, que significa " esperto " , " astu to ". Em outras comé- nomes lemb ram as coisas apenas por asson ân cia , e por isso mesmo
dias há nom es como Shallow (prato), Simp le (simples, bobo), Star- sua comicidade sai fortalecida. Deste tipo são os nomes dos servos
veling (morto de fome, esquelético) etc. Na comédia russa do século da gleba como Koróv ii Kirp itch , Neuvajai-Korito ' ? e outros . Fina l-
XVIII o princípio é apli cado com coerência por Fonvízin na comé- ment e, a comicidade de certos nomes se baseia no acúmulo de sons
dia O menor de idade. Temos assim: Tarás Skotínin , a senhora Pros- idênticos, principalmente de consoantes . O conj unto de sons é
tak ova, Kutéikin, Tsifírkín, Vralhman 11. São engr açados apenas cômico em si, indepe nde do significa do qu e possa ter e torna os
os nomes dos tipos negati vos porque assim seus defeitos são refor ça- nom es ridículos. Assim é, por exemplo, Tartarin de Ta rascon, de
do s. Os nomes do s protagonista s po sitivos (P rávdin , Starodum, Alphonse Dau det, ou Mr. Pickwick, de Díckens. Em G ógol, nomes
Milon , em O menor de idade, e Dobrollubovt ? em O brigadeiro) assim são muito freqü entes: Akáki Akákievitch Bachmatchkin ,
não são ridículos . Gógol vale-se desses nom es de man eira sóbria e Pável Ivánovitch Tchítchikov, Fiódor Andréevi tch Liüliukov etc.
cautelosa. Em Chponka, o pr o fessor de gra mátic a se chama Nikí- As per sonagens duplas são chamadas de modo quase idênti co :
Bóbtchiski e Dóbtchinski, Ivan Iv ánovit ch e Iva n Nikíforov itch,
for Timoféev itc h Deepritch ástie!". Em Góg ol, às vezes, alude-se
Kifa Mokíevitch e Móki Kífo vitch . Em Gógol é freqüente no s
ao caráter por meio do nom e, co mo faz Fonvízin. Nomes como
I Khlestakóv, Skvo zník-Dmukhá novs ki, Derjim orda, Sobakévitch,
nomes a repetiç ão do patronímico . O pr efeit o chama-se Anto n
II Antónovitch e sua filha Maria Antónovna . Os sons do s nom es e
Manílov'" e outros deixam de certo modo entrever o caráter de
dos patronímicos podem refleti r-se também nos sobrenomes: Piot r
qu em os tem . Assim como no sobrenome Rastakóvs ki a sílaba ras Petróvitch Petukh . O aspecto fon ético do s nomes é sublinhado pelo
é assimilada como um prefixo qu e refor ça o significado (Tak óvski - uso de termos estrangeiros ou muito raros em russo. Assim temo s:
Rastak óvski). Igualment e ridículo, embo ra ap enas per ceptível, é o Baltazar Baltazárovitch Jevákin, em O casamento . Em A lmas mor-
sobrenome da mulh er do coronel, Pelaguéia Grigórievna P odtó tchi- tas: " Apareceu ainda certo Sisói P afnútievitch e Macdo nald Kárlo-
na" (O nariz). A cõmicidade do contraste sur ge quando uma perso- vitch" (Almas mortas, cap oVIII ). O efeito cômi co do s sobre nomes
nagem negati va tem um nom e que , ao contrário , exprime alguma estrangeiro s surge sobretudo quando eles são difí ceis de serem pro-
qualid ade po sítiga . Em Os j ogadores um do s trapaceiros leva o nunciados em ru sso, como po r exemplo os so bre no mes poloneses,
nome de Ute ch ítelni!". Outro tipo de nomes cômicos é aquele que georgianos ou ingleses. Entre os que participar am do baile do pr e-
se relaciona com an imai s e, principalmente, coisas. Os motivos que feito são lemb rados " o príncipe georgiano Tchipkhai khilidzev, o
explicam este tipo de comicida de são os mesmo s de que já falamo s francês Coucou , Per khern óvski, Berebendóvski" (cap. VIII). Em
em capítulos a nteriores. É possível encontrar os nomes mai s inespe- O id üio contemporâneo de Sa ltik óv-Schedr in ap arece o sobrenome
rados. Em Shakespear e há personagens que se cha mam Flauta, Kchepchitsiulski. Em Tch ékh ov, no conto A filha de Albion é des-
Cotovelo, Tras eiro , Espuma do Vinho etc. G ógol recorre a este pro- crita uma inglesa imperturbável que continua tranqüilamente a pes-
cedim ento muito freqüentemente . Lembramos apenas nomes como car sem reparar no pa tr ã o que entr a nu na água pa ra soltar um
anzol que havia ficado pr eso . "E sabe como se chama? Wilka
II Respectivamente: skotina = animal; prostak = simplório; kutü' = farrear ; tsifir =
Tchárl zovna Tfais! Pudera.. . Nem sequer dá para pronunciar !" Os
aritmética; vrat' = mentir. nom es cômicos são um pro cedimento estilístico auxiliar que se aplica
12 Respectivamente: pravda = verdade; stári = velho + dumat = pensar; dob rotiu- para reforçar o efeito cômico da situação , do caráte r ou da tr ama .
bo v = que ama bem.
13 Gerú ndio .
14 Respectivamente: de chlestát ' = chicote ar; de skvozniák = sopro de ar; de dier- 17 Respectivamente: caixinha, galo, roda .
j át' = segurar + m orda = forças; de sobaka = cão; de manit ' = at rair. 18 Respectivamente: omelete, moran go .

I
15 De podtotchit' = afiar , afunilar, enf raq uecer. 19 "Tijolo de vaca" - embora tenh a o som de um pat ron ímico; e " Não respeitar
16 Consolador. o cocho ".
132 COMICIDADE E RISO OS INSTRUME NTOS L1NGuíST ICOS DA COMICIOAD E IJJ

Em G ógol não é difícil enco nt ra r catálogos int eiro s de nom es de ntro de nosso ãmb ito .'Sua língua é parte ext remamente essencial
em qu e o autor se vale ao mesmo te mpo de tod as as possibilid ad es de sua co micidad7' O gra u de seu ta lento não se define apenas pelos
que um nome pode ofer ecer para suscitar efe itos cômicos. Esses "proced imentos" que usa, mas também por sua língua. Assim, a
catá logos são inseridos no conto apenas com essa finalidad e. Na genialidade de Gógol não reside apenas no fato de ele ser um mes-
no vela sobre a bri ga entre Ivan Ivá nov itch e Ivan Nikíforovitch são tre do cômico, mas tam bém no fat o de possui r a língua qu e ele pos-
lembrad os os no mes de tod os os hóspedes do gove rnador e, entre sui - melh or dizend o - , o estilo lingüístico que suscit a no leitor
eles, Tarás Tarássovi tch, Evpl A kínfovitch, Etíkhi Etíkhievitch, uma contínua sensação de admiração . Uma frase de Gógol pode
Elevféri Elevférievitc h e outros. Em O capote proc ur a-se escolh er ser reconhecida sem erro. Seu est ilo distingue -se além do mais por
o nome do recém-nascido consultando o calendário dos santos. uma extrema naturalidade, dese nvolt ura e simp licida de. Gógol não
Num mesmo dia recorrem: Móki, Sóss i e Khoz da z át, no outro: Tri- tem pressa que o leitor ria. Este é seu jeito de contar, mas nas comé-
f íli , Dula e Vara khássi. A parturiente prefere que o recém-nascido dias não há relat o nenhum. São as personagens qu e fa lam. Se elas
se cham e como o pai, de mod o qu e lhe é dad o o nome de Aká ki. tivessem que se expressar numa língua pálida e incolor, a comédia
Em Almas mortas são dados os nomes do s amigos de Nozdr íóv, perder ia qua lquer possibilid ad e de efeito (força de açã o). As perso-
" entre os quais está o do cap itão de cavalaria do esta do -ma ior Potse- nagens deve m fa lar a língua qu e lhes é caracteristica e se expressar
luiev e o do tenente Kuvch ínnikcv-''. Uma atenção toda especial é de for ma sugestiva ". Querendo defi nir com pou cas palavras em
dada por Góg ol à lista de alma s adquiridas por Tc h ítchikov . Na que consiste a sugestividade de uma língua, diremos que as maiores
cida de, a ntes da reali zação da aquisição, Tchítchik ov corre os olhos exigências são o colorido e a expressivi da de. É sabido que a intelli-
gentsiaô na vida cotidiana se expressa, via de regra, de modo bas-
pela lista e fica extasi ado com os nomes. Na enumeração desses
ta nte inco lor. Isto se deve ao fato de qu e a pessoa culta pensa por
nom es treslou cados pod e-se até ca pta r uma certa ritmicidad e.
categorias abstratas e se expressa de aco rdo com elas. P elo cont rá-
Em Tchékhov os nomes estão relacionados com as característi-
rio, a camada média, até pouco tempo atrás, tal como as pessoas
cas e a pos ição social de seus don os, por exemplo: o esposo Epa rni-
simples que realizam um trabalho físico , muitas vezes se expressa
no nd Maksímov itch Aplombov, o capitão de segundo gra u Revunov-
de forma figurada e expressiva. Seu discurso caracteriza-se por ima-
Ka ra úlov, a parteira Zmeiúkhina, o mercador Plevkóv , o dono de
gens visuais. Podemos chamar convencionalmente de "popular"
tavern a Samop liú iev, os donos de terra Ga diu kin e Chilo khvostov,
este seu discurso e o humorista conseguirá seu objetivo so mente
o empresário Indiukov, os hóspedes não convidados, mas com exce-
quando tiver se apro priado de to das as particularidades e sutilezas
lente ap etite, Dro biskulov e Prekrasnovku ssov e outros?'. deste discurso . Nas comédias dos séculos X IX-XX a parecem pr edo-
Todo escritor tem também nesse campo seu estilo próprio . A minantemente pessoas simples e os autores souberam escutar sua fala.
comicidade dos nomes não tem sempre a mesma origem, mas pode Além de Gógol, Ostróvski ta mbém foi mestre em reproduzir a
ser basicamente reconduzida às catego rias do cômico que examina- fala sa borosa e colorid a das pessoas simples. E is aq ui dois exemp los .
mos anteriormente . Habitualmente os nomes são apenas um ele- Lá onde uma falante sem cor diria: "Ele não é par para você", a
mento acessório, não o fundamental para o efeito cômico. O instru- velhinha de Ostróvsk i diz: "Ele não serve para dan çar a quadri lha
mento básico é a descrição dos protagonistas, da trama, dos co nfli- com você ". Quando o marido qu er afastar a mulher do quarto, ele
tos etc . b conj unt o dos meios aqui expostos está relacionado com não diz "saía da porta", mas "pra fora da porteira!" . Examinando
o estilo lingüístico de um escritor! O est udo do estilo pr óprio a um estes dois casos é fácil perceber que a expressão incolor opera por
escritor, mesmo quando se trata de um escritor-humo rista) não está conceitos, enquanto a colorida procede por imagens visuais.
Limitar-nos-emos a estes breves reparos. Aq uilo qu e nos inte-
20 Respectivamente : potstelui = beijo; kuvchin = jarra. ressava era dar realce à expressividade da língua, enquanto fator
21 Respectivamente: do francês aplomb = postura desenvolta, pose; de revun = cho- imp or tante da comicidade.
rão e karaut = sentinela; de zmei á = serpente; de p íe vok = cusparada; de samo =
auto e 'píiunut' = cuspir; de gadiuka = víbora; de chilo = sovela e khvost =
cauda; de indiuk = peru; de drobít ' = esmagar e skula = maçã do rosto; de 22 Do russo iarko que também significa "vivo " "vívido" "brilhante" " incomum"
pekrasn í = belíssimo e vkus ::::to gosto. 23 Hoje em dia usa-se o termo para indicar os intelectuais, em geral. ' .
OS CARACTERES CÔMICOS 135

19 da grosseria, Nozdrióv do desregra mento, Pli úchkin da avarez a e


assim por diante.
O exagero , porém , não é a única condição para a comicidade
de um caráter. Aristóteles não disse ape nas que na comédia as pro-
Os caracteres cômicos priedades negativas são exageradas, mas também que este exagero
requer limites certos e uma medida também certa. As qualidades
negativas não podem chegar à obj eção ; elas não podem suscitar
sofrimento no espectador - diz ele - e, acrescentaríamos nós,
elas não devem provocar repugnãncia ou desgosto. Só os pequenos
defeitos são cômicos. Cômicos podem ser os covardes na vida de
cada dia (mas não na guerra), os fanfarrões, os cap acho s, os bajula-
dores, os malandrinhos, os pedantes e os formalistas de toda espé-
cie, os unhas-de-fome e os esganados, os vaido sos e os convencidos,
os velhos e as velhas que pretendem passar por joven s, as esposas
despóticas e os maridos submissos etc. etc .
Continuando por esse caminho seria necessário compor todo
um catá logo dos defeitos hum anos e ilustrá-los com exemplos retira-
dos da literatura. Tentativas dessa natureza , já tivemos ocasião de
ver, foram feitas. Vícios e defeitos levados à dimensão de paixões
funestas , ao contrário, não são objeto da comédia, mas da tragédia. -
Passemos agora a outro grande dom ínio da comi cidade, ou Por sinal, o limite nem sempre é nítido . Dom Ju an representado por
seja, aos caracteres cômicos. Mo líere como sendo cômico morre tragicamente. A linha divisória
É preciso considerar de imediato que, a propósito , em sentido entre a viciosidade que' constitui o nó da tragédia e os defeitos, que
estrito, caractere s cômicos em si não existem. Qualq uer tra ço de cará- são possíveis na comédia, não pode ser estabe lecida logicamente:
ter negativo pode ser representado comicamente graças aos mesmos quem o decide é o talento e a sensibilidade do escritor. Uma mesma
meios com os qua is se cria, em geral, o efeito cômico. Quais serão propriedade pode se tornar cômica se for amp liada moderadamente.
então os meios fundamentais para descrever caracteres cômicos? Se, ao contrá rio, for levada à dimensão do vício, tor nar-se-á trágica.
Já Aristóteles dizia que a comédia repres enta as pessoas " pio- Isso pode ser notado comparando, por exemplo , dois avarentos: Pli-
res do que elas são" . Em outras palavras, para criar caracteres cômi- úchkin de Almas mortas de G ógol e o barão de O cavaleiro avaro
cos é necessário certo exagero. Exa minando os carac teres cômicos de Púchkin . A avareza do barão atinge dimensões gra ndiosas:
da literatura russa do século XIX, não é difícil verificar qu e eles
são constr uídos de acordo com o princípio da carica tura. A carica- Ó que não se submete a mi m?
o aqUi, qu al dem o poderoso, pos so reger o m undo.
tur a, como já vimos, consiste em to mar -se qualquer parti cularidade
e aum entá-l a até que ela se torne visível para todos. Na descrição Além da avareza, há no barão sombria filosofi a do poder do
/
dos caracteres cômicos se escolhe uma propriedade negativa do cará- ouro e a consciência de seu próprio poderio potenci al sobre o mun-
ter e se amplifica , permitindo com isso qu e a atenção principal do do . Ele tem uma extraordinária ambi ção e é, além disso , um grande
leito r ou do espectador seja dirigida a ela. Hegel defin e a caricatura celerado . Sua avareza é um vício ligado a crim es terr íveis. É um
de um caráter nos seguintes termo s: "Na caricat ura, um dado traço usurário qu e leva as vítima s ao desespero e à ruína. Remexendo
é extrao rdinariamente aumenta do e se apresenta como algo caracte- em mo edas de ouro particularmente preciosas . o bar ào rememora
rístico levado ao excesso" . com quais meios ele as obt eve:
Com este critério são constr uídas as personagens cômic as de Sim, se o sangu e, as lágr im as e o suor ,
G ógol . Manilov representa a encarnação da melosidad e, Soba kévitch Vertidos por tudo ql}~i está,
136 COMICIDA DE E RISO OS CARACTERES CÔMICOS 131

Jorrassem do seio da terra de repente, eu sei) nunca se referem a estas palavras. Por que será? Quem sabe
Seria um novo dilúvio - eu afogado Gógol, que acab ou de nos mostrar o esquálido quadro da vida socia l
Nas ent ranhas das rochas Que tão bem conheço.
da velha cidade, sede do governo da província, se contradiga aqui e
Contr ariamente ao barão, Pliú chkin é mesquinho. G ógo l não qu eira passar por cima de suas próprias afinnaçôes? Claro que não.
lhe atribui outras propriedades, além da ava reza. É um tr ibuto para Este não é um erro de Gógol, ma s um seu principio : apesar de todos
o exage ro cômico na descrição de um ca rá ter. Pliúchkin não tem os seus aspectos negativos, os homens de Gógol são vivos. "Estas
nenhuma filosofia , nenhum desejo de po der nem ambição, não pessoas são más por educação e por ignorância, não por natureza",
acumula ouro, mas produtos da agricultura, não junta objetos pre- diz dos heróis gogolianos Belínski (8, V, 359). Uma imagem atenuada
ciosos, mas co isas inútei s: sob os andaimes recolhe so las usadas, reduz o nível caricatural e to rna verossímeis os tipos representados .
pregos enferrujados , cacos de cerâmica . Sua aparência coaduna-se Mesmo esta atenuação requer, por sua vez, um sentido da medida,
com isso . À primeira vista Tch ítchik ov to ma-o pela gove rn anta, tal como o exagero cômico . Os aspectos positivos das personagens
mas depois descob re que a governanta se barbeia, mesmo que rara- cômicas são muito pou co lembrados por Gó gol e qu ando isso ocorre
mente, "porque o queixo inteiro , co m a parte inferior da bochecha é sempre de passage m. Soba kévitch é um ótimo patrão e seus campo-
par eciam um a almofada de fio de arame , com a qual se escova m neses pro speram ; O jeito de Manilov não é desagrad ável; Pliúchkin
os cavalos nas estalagens" . Tudo isso provoca o riso, mas a figura era diferente, outrora. Koróbotchka repr esenta uma mistur a de tra-
de P liúc h kin não é de todo cômica. Repa ra ndo-se nele mai s de per to ços de caráter: mantidos juntos principalment e por seu jeito estaba-
veremos que, é verdade, ele não perpetra crimes sangrentos, mas nado e por sua avidez, mas não só por isso. A técnica pela qual ela
seus camponeses se encontram em terríveis condições de miséria. nos é apresentad a difer e bastante daquela com qu e são esboçados os
Não há telhad o nas isb ás, da s casas despon tam apenas paus e esta - outros proprietários rurais de A lmas mortas.
cas, as janelas são fechadas com trapos e as pessoas se dispersaram G ógo l não elabora as qualidad es positiva s das persona gens
de tant a fome e não reto rna m. Ent re todas as person agens de G ógol, negativas, po is com isso lhes tiraria a comicidade. Há porém uma
Pliúchkin é, quem sabe, a menos cô mica e a mais mísera. Mas exceção: trata-se da obra Proprietários rurais à moda antiga.
Góg ol possui o sentido da medida . Se tivesse ido um pouco mais Se Pliúchkin representa , por assim dizer, o limit e inferior da
além, esta figura teria deixado de ser cômica. co micí dade , além da qual enco ntramos a aversão . Afanássi Iv áno-
É interessante notar que às vezes Gógo l atenua o quadro ca ri- vitch e Pulk éria Iváno vna representam como que o superior, acima
catural das figuras hum anas que ele mesmo desenhou . Assim, Piot r do qual começa o idílio . .
Petróvitch Pe tukh é descrito como um co milão. Esta é sua car acte - Esta representação de cert a forma abrandad a das personagens
rística fund am ental. Ma s ele é ho spit aleiro , o qu e, embora não alte- negativas não é característica apenas de Gógol. Fámussov, por exem-
rando suas características negativas, constitui para elas um fundo plo, é o tipo do nobre russo de 'Moscou do começo do século XIX,
de vida autêntico e veross ímil. Isto vale ta mbém para algun s prot a- mas de per si não seria, quem sabe, um celerado ; por isso literaria-
go nistas de A lmas mortas. Eis o qu e escreve Gógol a respeit o dos mente ele convence e sua figura nos parece verdadeira e cheia de vida.
funcionários que moram na capital da região, que ele tão cruel e Naqueles casos em que, ao contrário , não se vê nenhuma qualidade
justamente ridicularizou: " Para dize r a verdade, eram todos gente positiva na descrição. trata-se de figuras artisticamente menos convin-
boa, viviam tranqüilamente e tratavam-se como amigos, e suas con- centes que as descritas com traços mais leves. É o caso, por exemplo ,
versas tinham a marca de certa simplicidade e intimidade" . Um de Skalozub que representa, por assim dizer, como que uma amostra
po uco mais ad iante Gógol continua: "Mas em gera l eles era m boas quimicamente pura da caricatura. São assim muitas das personagens
pessoas, cheios de espírito hospitaleiro e quem ficasse para comer de Saltikó v-Schedrin . Trata-se de caricat uras mu ito vívidas, mas ape-
e passasse uma noite com eles jogando whist já se tornaria, de certo sar disso unilaterais. Existe mais uma condição, mais uma possibili-
modo , seu íntimo". O mesmo escreve Khlestakóv em sua carta a dade de reforça r a comicida de de um caráter. Na comédia todas as
Tri ápitchk in sobre os moradores da cida de. Após ter descrito comi - personagens estão sempre envolvidas numa trama e nos grandes escri-
camente todas as personagens, ele acrescenta: "Porém são gente tores justamente ela pode servir como instrumento para delinear o
hospit aleira e bo nac hona ". Os histori adores da litera tura (pe lo qu e caráter. O Khlesta kóv de Gógo l não é apena s um a perso nagem de
IJlI COl\lI ClDADE E R iSO
os CARACTERES CÔMICOS 139

uma comédia de intrigas, mas também um caráter o u tipo psicoló gico tivas tornava esses mesm os caracteres existencialment e vero ssím eis,
esboç ado muito vivida mente e bastante defin ido, assim co mo o gover- ma s isso nã o mudava a essência.
nador e as demais persopagens. O mesmo vale, de mod o bastante evi- Ent retanto , ao obse rva rmos a vida , tal co mo as obras literá-
dente, tam bém para O casamento, o nde a ação funda-s e na co ntrapo- rias de tal ent o , veremos que existem per son agens cô micas q ue não
sição de dois caracteres : o fraco , abúlico e indeciso Podkoléssin e o parecem ter car acte rísticas nega tivas, mas nã o deixam por isso de
enérgico e empreendedo r Kot chk áriev. Enredo e caráter, neste caso, ser cô micas. Rimos delas mas temos, mesmo ass im, um sentimento
constituem um tod o coeso . de simpat ia . Em pou cas palavras, existem personagens cô micas não
" Esta porém nào é uma propriedad e necessária da comi cidad e, somente negativas mas positivas também .
mas a característica de um grande talent o. Pod e-se ob servar que em O que acontece u? Por aca so isto nã o contradiz nossa teoria
Mol íere, por exemplo , não existe esta unid ad e. Bergson reparou de de qu e o riso nasce do desnudamento de qu alidad es negati vas? Ou,
passagem q ue nas obras de Moliere há sempre um caráter cômico no quem sa be, se tr ata aqui de um outro tipo de riso , de um riso que
centro e que, freq üent emente, os títulos de suas comédia s definem o não zo mba ? À primeira vista pode parecer que os tip os positivos nào
caráter do protagonista. Com efeito, títulos como O avarento, O misan- podem ser negativ os nem do ponto de vista do as pecto teóri co nem
da pr átic a artís tica. Em Fonvízin todas as person agen s estão clara-
t, tropo provam-no clarament e. Ou tras coméd ias têm po r título os
mente sepa ra das em posi tivas e negati vas. Em O inspetor geral não
nomes das personagens principai s, ma s estes nomes tomaram-se pro -
verbiais po r terem encarna do a lgumas qu alidades negat ívas. Tartu fo existe seq uer uma person agem po sitiva . Em Ost r óvski a maioria
é simulado e grosse iro, Dom Ju an um dissolut o, o bur guês fidalgo do s protagonistas é negati va . Existem. na verd ad e, co merciant es
um ambicioso , o doen te imaginário um hipocondríaco e assim por qu e no fim da co média retomam o bom caminho e ela chega àq uela
diant e. Deste ponto de vista as comédias de Moliere são típicas co mé- feliz co nclusão à qu al asp iram as personagens o primidas e co m elas
dias de caráter e não comédias de intri ga. A divisão em com édias de os espectadores. Por ém , a solução nesses casos é de certa forma
intriga c co médias de caráter nào é, entretanto , correta, visto que em inespe rada e nào brota propriamente do caráter destas personagens
todas as comédias há intriga s e caracteres, se entendermos por intriga negativa s. Na co média A pobreza não é vicio o dé spota fam iliar
a ação baseada em um con flito q ualquer. Toda a q uestão está em Go rd iei Tortsóv diz, no fim: "Agora sou outra pessoa " e dá sua
saber em q ue relação estão intriga e caráter dos protagonistas . Em filha em casa mento ao vendedor a q uem a nte s era ho st il, rea lizando
Gógol o nexo é completa mente orgânico e enrai zado. Nem sempre o co m isso a expect ativa dos jo vens apaixo nados . No momento em
mesmo ocorre em Moliêre. 'Belínski havia j ustamente notad o que as que o tipo negativo se tr ansfo rm a em pos itivo significa q ue chego u
tra mas de Moliere são ba stante unifo rmes. A intriga habitu almente a ho ra de termi nar.
con siste no co ntras te entre o protagonista e um casal de namorados, De q ual q uer man eira, a person agem cô mica positiva ou o cará-
a cuja união se opõe a personagem negativa que dá o nome à comé- ter cô mico positivo são possíve is.
dia . Eles a enganam e coroam assim seu sonho. Só que quem a engana P ara reso lver esta questão é preciso ter em mente que na vida
por eles, qu e não sabem, não querem o u não podem fazê-lo sozinhos, não existem pessoas a bso luta mente negat ivas nem pessoas absol uta -
são os servos , astu to s, malandros e embrulhões, sobre cujas ações men te positivas. Mesmo nos criminosos inveterados pode ha ver
funda- se toda a trama . O engano, como um do s meios para atin gir escon didos, no fundo, embriões de hum a nida de e vice-versa: pes-
o efeito cômico, já foi precedentement e examinado . As persona gens soas com pletame nte co rret as despertam muitas vezes em nós uma
negativas são derrot adas na intriga e, ao mesmo tempo , revelam de antipatia instintiva , especialment e se elas têm tendência a dar lições
modo v~sível e expressivo todas as propriedades de seu caráterI de moral. Ca da ser humano é produto da s mais variadas car acterí s-
Nao da remos aqui lista s de ca racteres cô micos na literatu ra ticas ta nto positivas q ua nto nega tivas, em prop orções diferentes .
russa ou euro péia oci denta l. O que nos interessa é um a tip ologia A ga leria dos tipos cõ micos é basta nte diferençada . Há, por
geral e os princípios que se encontram em seu fundamento . exemplo , pessoas q ue, t ão logo surgem , nos põem de bo m humor.
O pro blema dos caracteres c ômicos, po rém, está lon ge de ter Uma das q ua lidades positivas .qu e suscita imediatam ente o sor riso
sido completa me nte resolvido. Todos os ti pos exa minados até agora e uma boa disposição é certa dose de ot imis mo, unido a uma ale-
eram negativos. Um pequ eno, mínimo acrésci mo de qualida des posi - gria .c um contentamento ha bituais, q ue conta gia a todos. Essas pes -
140 COMICIDA DE E RISO os CARACTERES COMICOS 141

soas nunca são tristes, têm sempre uma excelente disposição de espí- tais, mas da precariedade e da insuficiência dessas mesmas qualida-
rito, são bon achonas, contentam-se com pouco e, não tendo nada des. Esta insuficiência se manifesta no modo pelo qua l estes tipos
de particular em vista, bastam-se com o que têm no momento. Este se comporta m, descobrindo a mesquinhez e a preocupação exclu-
tipo de pessoa pode ser côm ico quase independente da presença nele siva por si próprios, e provoca um sur to de riso quando emerge
de qualquer defeito moral. Hegel ac hava que uma " inq uebran tável repentinamente em toda a sua evidê ncia .
confiança em si mesmo" fosse uma propriedade importantíssima Ao falar do tipo dos otimistas cômicos, não podemos deixar
da personagem cômica. Freqüentemente trata-se apenas de um riso de lemb ra r Falstaff. Ele é significativamente mais complexo que aque-
de alegria, que teremos ocasião de analisar mais adiante. Mas o riso les pa lhaços simp lórios que conseguem fazer rir e divert ir os especta-
suscitado por essas personagens não se explica apenas por isso . Nelas dores . À diferença daq uelas perso nagens côm icas que enca rnam
o que nos alegra é o otimismo, mas é justamente ele que suscita o algu ma qua lidade qualquer (Sobakévitch), o tipo ao qual pertence
riso. Como também ocorre nos outros casos, o otimismo em si não Falstaff reúne em si um gran de nú mero de diferentes qualidad es, e
faz rir. Basta ler os Estudos sobre o otimismo de Miétchnikov para é ju stamente isso que cons titui sua vitalidade e sua verdade . Uma
certificar-se. Um otimismo convicto constitui uma filosofia de vida de suas qualidades mais importantes é a fé inaba lável em si mesmo
~ue amad urece apes ar das graves contrariedades que encontra. Um e a impe rturbab ilidade nas desgraças que lhe acontecem. Apesar de
otimismo desse tipo é a conseqüência de certa força de caráter e não tudo ele está sempre de bem com a vida e alegre. Shakespeare gos-
faz rir. É fácil nota r que o otimismo engraçado é aq uele que se funda tava muito deste tipo e o reproduziu duas vezes, no Henrique I V
sobre princípios bem difere ntes, ou melhor, não se funda sobre nada . (primeira e segunda parte) e em As alegres comadres de Windsor.
É o otimismo que ajuda a viver muito facilmente. Ele, por assim Falstaff é um caráter negativo , mas as propriedades negativas,
dizer, está fechado em si mesmo , tem um caráter extremamente sub- nesse caso, são atribuídas àquele tipo de pessoa com alegria de viver
jetivo e individual. Seu elemento são as pequenas coisas da vida coti- que nunca desanima e que por si só já predispõe ao riso . Por esse
diana, é útil e agradável e suscita em nós um sorriso involuntário. motivo o tipo de Falstaff alcança um colorido e uma expressividade
Ao mesmo tempo , porém, tal auto -satisfação bonach ona e ta l ale- únicos no gênero . Na literatura sob re Shakespeare enco ntram-se fre-
gria de viver ingênua é também qualidade muito superficial e precá- qüentes definições da figura de Falstaff. A melhor delas é a de
ria. Não deixa de ser uma fraq ueza . E tão logo se descobre de repente P úchk in, que era entusiasta dele. Em suas conversações à mesa (ta-
esta fraq ueza, e ela é castigada , eis que irrompe o riso. Esta alegria ble-talks) ele diz: "É possível que em nenhu m outro lugar o gênio
bonachona e satisfe ita de tudo o que há no mundo (e, portanto, a mplíssimo de Shakespea re tenh a se expressa do com tan ta varieda de
inclusive de si própria) predispõe ao riso, mas ainda não basta para como em Falstaff, cujos vícios, um ligado ao outro, compõem uma
suscitá-lo. Os palhaços talentosos às vezes se dão conta disso: entram cadeia divertida e monstruosa, semelhante a uma antiga bacanal.
no picadeiro brilhando de satisfação. Karand ách, por exemplo, entrava Ana lisando o caráter de Fa lstaff vemos que seu traço principal é a
no picadeiro com o chapéu e a vassoura, muito satisfeito de si como gula; jovem, é provável que tenha sido em primeiro lugar um vulgar
se fosse ao seu próprio casamento . Boris Viátkin aparecia asso biando e grosseiro cor tejador de mulheres; agora, por ém , que já passou dos
alegremente ou em altos brados, emp urrando seu lulu para a frente. cinq üenta , engordou e parece envelhecido , a gula e o vinho ganhar am
Esta alegria bon achon a e sat isfeita serve de fundo ao s males inespe- de Vênus . Em segundo lugar, ele é um patife, mas, tend o passado
rados que virão em seguida e que caem por cima desses simplórios sua vida com jovens avoados, exposto sempre à zombaria e às peças
suscitando não tanto o sorriso quanto uma risada fragorosa. Este que eles lhe pregavam, dissimula a própria miséria sob uma ousadia
tipo é sem dúvida cômico mesmo em si só, independente daquilo gozadora e elusiva. É a dulador por hábit o e po r cálculo. Falstaff não
que lhe acontece. As desgraças que lhe acontece m só fazem acentuar é absoluta mente um tol o , ao contrário , ele tem alguns hábitos de
a comicída de já existente no própri o tipo . Mais freqüe ntemente trata- quem freqüentou também a boa sociedade. Não possui nenh uma
se de um alogismo que irá de encontro a uma vergonhosa derrota, regra . É fraco como uma mul herzinha e necessita de um bom vinho
mas isso nem sempre é obrigatório. espanhol (lhe sack) , de um repasto substancial e de dinheiro para
Chegamo s assim à conclusão de que a com icidade do s caracte- suas amantes. Para co nsegui-los está disposto a tudo , conquanto não
res deste tipo não surge da presença de qualidades positivas enquanto corra sério perigo". A isso podemos acrescentar que Falstaff às vezes
OS CA RACT ERES CÔMICOS 14J
142 CO.\II CIDADE E R ISO

confunde seus adversários com tiradas espmtuosas: em outras, ao Não há necessidade de se entrar em detalhes. É suficiente lem-
contrário, é derrotado e obrigado a passar por vexames, como con- brar qu e na arte da comédia clássica existe um tip o de servo alegre
vém a um caráter cômico. Ameaçam derreter sua go rdura. Em As e astuto que é, ao mesmo tempo , cô mico c positivo . De forma um
alegres comadres de Windsor ele escreve cartas de amo r a duas senho- tanto diferente, este tipo aparece não apenas nas comédias, mas
ras casadas , ao mesmo tempo. Só que não logra êxito : as mu lheres também nos romances picarescos. O herói desses romances - um
permanecem fiéis aos respectivos maridos. Na primeira vez ele se servo, um vagabundo, um soldado - engana seu patrão e sai-se
esconde no cesto da roupa suja que é jogado na água co m ele dentro; bem, sempre, nas situações difíceis. À diferença dos servos das
na segunda , procura fugir disfarçado de mulher gorda, mas o apa- co médias de Moli êre, ele luta a seu favo r co ntra os patrões e co ntra
nh am e batem nele. É um argumento folclóri co, mas Fals taff é um os poderosos desse mundo . Esta luta adquire o caráter de lura social
tipo exclusivamente shakespeariano. É ao mesmo tempo cômico e e por isso os romances picarescos se aproximam dos conto s popu la-
satírico e se aprox ima do modelo de Rabelais. res sobre os bufões. Os caracteres, nestes casos , fundem-se com a
Púchkin, ao escrever sobre Falstaff, contrapõe Shakespeare a int riga que, substa ncialmente, reduz-se a um logro .
Moliere , Os caracteres de Moliere são unilaterais. HEm Mo liere o O país onde no século XV I surgiu o romance picar esco cõ mico
hipócrita corteja a mulher do próprio benfeitor, faz endo o hipócrita; (Lazarillo de Tormes, 1554), e o nde ele teve seu desenvolvimento, é
toma conta da propriedade de seu benfeitor, fazendo o hipócrita; pede a Espanha. Na mesma Espanh a foram criadas as figura s de Dom
um copo de ág ua , fazendo o hipócrita ." Isto se liga ao q ue foi dito Quixote e Sancho Pança. Sobre Dom Quixote escreveu -se muití ssimo,
antes, sobre a unilateralidade das caricaturas. Shakespeare é sempre em muitas estéticas e histórias da literatura, de modo que podemos
variado e representa como que a culminação na criação tanto de figu- ser breves e não repetir o que já foi dito . O que nos interessa é o pro-
ras vitais e côm icas quanto de enredos nitidamente cô micos . blema da comicidade das perso nagens positivas. Os tipos dessas perso-
O otimismo existencial não é a única qualidade positiva q ue nagens são variados, como são variados os tipos humanos. Pela
pode ser tratada de modo cõmico. Uma outra é a engenhosidade e a nobreza de suas aspiraç ões e pela elevação de suas con sideraç ões,
esperteza, a capacidade de adap tar-se à vida e de orienta r-se em qual- Dom Qu ixote é figura que sobressai positivamente . Porém é ridiculo ,
qu er dificuldade enco ntra ndo uma sa ída . Destas qu alidades são dota - devido à comp leta incapacidade de adaptar -se à vida . Deste pon to
das algumas person agens da coméd ia q ue co nseguem safar-se dos de vista ele é dia metra lmente o posto àq ueles pilan tras e espertos qu e
antagonistas. Os antagonistas são sempre tipos negativos e por isso são bem-sucedidos na vida e lutam vitoriosamente para o seu proveito
a personagem sabida que os engana adquire um caráter ao mesmo e o proveito daq ueles a qu em são fiéis. Do m Q uixote não é côm ico
tempo positivo e cômico. Uma das varie dades desse tipo são os ser- por suas qualidades positivas, m as pelas negat ivas. São essas qualida-
vos astutos das antigas comédias italianas e francesas. Pertencem a des e não sua nobreza que o tornaram conhecido no mundo inteiro.
esta categor ia, por exemplo, o T ru ffa ldino da comédia de Goldo ni Todas as prin cipais aventuras de Dom Q uixote são de nat ureza cõmica.
Arlequim, servidor de dois amos e o Figa ro de O barbeiro de Sevilha Para a co micida de do romance co ntribui tam bém a figura de Sanc ho
de Deaumarchais. Na tragédia nós simpatizamos com o derr o tad o, P ança . A nobreza confere a todas as aventura s de Dom Q uixote um
na co média, co m quem ga nha . Na co média a vitó ria dá prazer ao caráter não apena s cõmico, mas de profundo valor. Esta co mbinação
espectador mesmo quando esta é obtida com meios de luta não pro- é ún ica em toda a literatura universal. A co micidade adquire aq ui
priamente irrepreensíveis, conquanto eles sejam engenhosos, astutos em última instância um caráter trágico.
e atestem o caráter alegre de quem os usa. Estes servos astutos são Nós nos limitamos a essas poucas observações. Poder-s e-ia
encontrados em mu itíssima s comédias de Molie re. Em Moliêre temos, ainda fa lar do Sr. Pickwick e de outra s personage ns de Dickens,
habitualmente, personagens que pertencem a duas gerações : os jovens de Charlie Chaplin e das personagens comoventes que ele criou,
e os velhos . Os mais velhos são representados po r tipos negat ivos da figura do bom soldado Chveik, criado por Tchapek, e de mui -
(O avarento, Tartufo, O misant ropo), os ma is jovens, por tipos posi- tos outros. O discurso porém nos levaria lo nge demais. Para nó s
tivos. Os jovens querem amar e casar-se, os velhos procuram impedi - era impo rtante estabelecer por que e em quais casos são cômicas
los. Os servos do s jovens, alegres e astutos, levam-nos a ga nhar do s as personagens positivas e, em traços gerais, baseado s nos exem-
velhos, que são derrotados juntamente com seus vícios. plos que apresentamos, isto foi feito .
UM NO PAPEl 00 OUT RO. MUlTO BA RULHO POR NA DA 145

, ,,,*,"
noivo era o hom em ideal, ou pelo menos honesto e bom , e d epois
ele co mete uma açã o ba ixa, desonesta, vergonhosa, nisso não há
rea lmente nad a de cômico. Um a expecta tiva frust rada não levou
~ ,l/II;~
Um lJ. papel do.eutrô;
y
ao riso.
A teoria de Kant precisa ap enas de um repa ro : o riso surge

Muita barull1mp~nada somente quando a expectativa frustrada não leva a conseqüências


sérias ou trágicas. A teoria de Kant não contradiz absolutamente
aq uilo que foi dito nos cap ítulos precedentes. Se considerarmos com
atençào esta teoria descobriremo s que sua essência se reduz a um
certo desmascaramento, O pensamento de Kant admite uma amplia-
ção e pode ser expresso da seguinte for ma : "nós rimos quando espe-
ramos q ue haja alguma coisa, mas na realidade não há nad a" . Este
"alguma coisa" é uma pessoa que é tornada por algo de importante.
de significat ivo, de positivo . O "nada" é aquilo em que ela real-
mente se transforma. Sobre isso está fundado o enredo de O inspe-
tor geral. "Extraordinário, senhores! O funcionário que toma mos
por inspetor, não era inspetor!" Os funcionários, a começar pelo
prefeito, pensam qu e Khlesta kóv é uma person agem importante,
um general, que trata de igual para igual com min istros c embaixado-
Em Kant há um pensamento formulado da seguinte maneira: res quando, de repente, descobre-se que não é plenipotenciário e nem
"O riso é o efeito (que deriva) de um fracasso repentino de uma sequer uma personalidade, mas um "fajuto" e um " aproveitador" .
intensa expectativa". Esta frase é citada muitas vezes, sempre em sen- Observ a ndo-se com atenção ver-se-á que o enredo de A Imas mo rtas
tido crítico. Jean Pau l expressou sua crítica de modo leve e delicad o: baseia-se no mesmo princíp io. Tchít chik ov é tomado por um ricaço,
" A nova definição kantiana do cômico, de aco rdo com a qual o por um milionário, todo s ficam encantados com ele, enquanto não
cômico co nsiste no repentino fracasso de uma expectativa. o ferece passa de um aventureiro, um impo stor que enga nou a todos. As pala-
muit os mot ivos de discussão " , Mais decidido , Schopenhauer, que vras da mulh er de Koróbki n em O inspeto r geral: "É isso mesmo,
se opõe tanto a Kant quanto a Jean Paul. assim escreve: liA teoria uma vergonha nunca vista" podem ser aplicadas , em igual medida ,
do cômico de Kant e Jea n Paul é conhecida , Co nsidero supérfluo tanto a O inspetor geral quanto a A lmas mortas. D. P , N iko l áiev
apo ntar seus erros" . Ele acha que quem tentar aplicar essa teoria está certo quando escreve: " Justamente o fato de querer parecer
aos fatos passa imediatamente a convencer-se de sua inconsistência. quem não é cria a possibilidade do riso" (29, 56). Vulis é ainda
Outros autores manifestaram-se da mesma maneira sob re o assunto. mais explícito: 'Isso e nada disso' é - quem sabe - o esquema
H

Apesar disso tudo, um exame comparativo dos fatos mostra mais geral de qualquer manifestação cômica". O mesmo conceito é
que a teoria de Kant não está errada, embo ra ela requeira alguns expresso por lurêniev: "Os acontecimentos não se desenrolam como
reparos e compleme ntações, Não é exato que o riso sobrevé m após se esperava e quem ganha não é quem se esperava" (40, 97).
"urna intensa ex pectativa" . O riso pode surgir de modo co mpleta- Este pr incípio é conh ecido há muito e foi chamad o de qüipro-
mente inesperado . O que mais importa, porém, não é isso . Uma quó, o que significa "um em lugar do outro" . Sobre ele baseia-se o
expectati va que não dá em nada, da qu al fala Kant, pode ser côm ica motivo , extremamente comum nas antigas comédias, do disfarce, da
ou não . Kant não definiu o caráter especifico do cômico , ação em luga r de outrem, onde um é troca do por outro. E nas ações
Em que cond ições uma espera frustrada suscita o riso e em costumam acompanhar o engan o. Em O inspetor geral Khlesta k óv

-:
quais não? Se, por exemplo, uma moça casou- se achando que o torna-se impostor sem querer, mas isto não muda a essência da coisa .

/
146 CO ~tl C ID A D E E RISO )
)
UM NO PAPEL DO OUTRO . MUITO BARUL HO POR NA DA 147

Na comédia clássica antiga o impostor engana intencional- irmã de Tchékhov, a respeito dele: "Nunca esquecerei quanto Anto n
mente o antagonista . Esta forma de impostura pode ser conside- P ávlov itch me fez sofr er, ao regressar de trem de Moscou. Viajava
rada um caso particular de engod o.
co nosco no mesmo trem o professo r Storojenko, que fora meu pro-
Daremos ap enas dois ou três exemplos. Em O anfitrião de
fessor e que me examinara quando eu freqü entava os Cursos Supe-
Moliere, o deus J úpiter apaixona -se pela mulher do chefe tebano
Anfitrião, Alemena. Enquanto Anfitrião está na guerra, Júpiter riores V. I. Guerié. Disse isso a Anton, suplicando-lhe que pa rasse
vai pro curá-Ia, assumindo o aspecto do marido dela. Quan do o de brincar. Mas ele deu de inventar, de prop ósito, um montão de
marido volta da guerra, o engano é descoberto. Júpiter procura con- coisas absurdas, que me faziam estremecer. De repente começou a
solar Anfitrião, dizendo-lhe que seu rival fora um deus e que dela relatar, em voz alta, que servira como cozinheiro em casa de certa
nascerá um filho . Hércules. A situação em si poderia não ser c ômica: co ndessa, que preparara na cozinha um sem-número de pratos e
pode se considerar de diversas maneiras a usurpação dos direitos como os patrões o achavam um ótimo cozinheiro e o louvavam por
conjugais. Tod a a ação, porém, não se desenrola na realidad e, mas isso, O violoncelista M. P. Semachko, que viajav a conosco, topava
na fant asia . O deus é obrigado a ir embora, fez um papelão, triun fa a parada, fingindo, por sua vez, ser um mordomo que prestava ser-
a verdade, triunfa o marid o, tudo acaba bem. viço em casa de alguns senhores. Eles contavam um ao outro casos
Em A décima segunda noit e, de Shakespeare, os prot agonis- extraordinários que lhes teriam aco ntecido, durante suas atividades"
tas, gêmeos indistinguíveis por sua semelhança. são irmão e irmã. (35, 87). Também na vida de G ógol há uma po rção de casos assim.
A irmã se disfarça de homem e este é o inicio de muitíssimos equí- O princípio "alguém no lugar de outrem" pode ser expresso
vocos que provocam um riso geral na platéia. de forma ainda mais geral por "uma coisa no lugar de outra". A
O princíp io do qüiproquó ocorre principalmente na velha isto aproxima-se bastant e o fenõmeno que pode ser formulado breve-
comédia clássica da Euro pa Ocidenta l, mas se enco nt ra tamb ém mente como "o vazio em lugar do suposto conteúdo" . Este princípio
na literatura russa. Ass im, em A senhorita camp onesa , de Púchkin, está muito próximo daquele que expressou Shakespeare quando cha-
uma senho rita de província se disfarça de camponesa, e engana mo u uma de suas comédias Muito barulho por nada. Não examina-
desse jeito o filho de um proprietá rio vizinho. O equívoco se escla-
remos aqui o entrecho dessa comédia complicada , porque poderia
rece em seguida e tudo acaba em casamento.
nos desviar de nosso rum o. O princípio de Mu ito barulho por nada
O enredo onde alguém se faz passar por outrem, suscitando
desaparece na comédia de nosso tempo, justamente porque. em nossa
com isso o riso , é bastante difundido em todas as literaturas, mesmo
na soviética, e poderíamos dar muitos exemplos. Um emaranhado vida, este fato raramente se verifica. Ele ocorre quando acontece
de equívocos dessa natureza é a trama da comédia de Zóschenko um clamor extraord inário motivado por causas insignificantes. Sobre-
Uma bolsa de tela grossa. Sobre o mesmo principio fund a-se a comi- nome cavalar de Tchékhov é um exemplo do caso . Este mesmo prin -
cidade da impostura. Em As doze cadeiras de llf e Petrov, Ostap cípio está na base de algumas comédias cinematográficas. Naq uela
Bender faz-se passar por um grande enxadrista, embora de xadrez ele intitulada Trinta e três, um dentista descobre que um paciente não
não entenda patavina. Em O vitela de ouro, o carro de Ostap Ben- possui trinta e dois dentes. como todos, mas trinta e três.
der e de sua companheira é tomado pelo carro em pole position de O fato torna-se conhecido, o homem se torna c élebre, sobre o
uma corrida de automóveis e em todo lugar recebe hon rarias e presen- assunto escrevem-se teses de doutoramento , um museu reserva sua
tes. Ostap vale-se disso, astutamente, para se fazer passar por cam- caveira, recebem-no em todo lugar com deferência, querem hospedá-
peão , até que se descobre o embuste e o carro tem que sumi r depressa lo etc. A comédia sofre de algum exagero , mas a situação básica é
de cena. Nos casos aqui apresentados o impostor faz-se passar por realmente cômica.
alguém superior e mais important e do que ele é na realidade . A história termina assim: seu dente estraga, tem-se que extraí-
É possível, po rém, em caso contrário , que uma pessoa se faça lo e descobre-se que sobre uma única raiz havia duas c úspides, Isso
tomar por alguém inferior a ela. é o que normalmente oco rre na realidade e, conseqüentemente. o
Algu ns grandes humoristas russos gostavam de encenar misti- homem sempre tivera apenas trinta e dois dentes. como todos. e não
ficações deste gênero . Eis o que cont a Maria Pavlovna Tchékhova , trinta e três.
148 COMIClDAD E E RISO

Estes enredos prestam-se mais a serem classificados como fan-


tásticos que como realistas. Encontram-se freqüentemente nos contos
de fada. Em sua forma mais pura o princípio do "muito barulho por
nada" encontra-se, provavelmente, em alguns contos de caráter cumu -
lativo. Lembremos mais um deles, o de A jovem piedosa: Uma jovem
vai ao rio lavar roupa. Na outra margem está a aldeia onde mora seu
namorado. Isso leva a jovem a essas considerações: "Ficarei noiva
naquela aldeia, terei um filho. O filho irá passear sobre o gelo e, ainda
com doze anos incompletos, morrerá afogado pelo fato de o gelo se
quebrar e ele afundar". Pensando isso ela começa a chorar. Chega
a avó que também começa a chorar. Depois chega o vovô e todos
juntos começam a lamentar-se. O namorado (ou outra personagem),
após saber do que se trata, vai pelo mundo afora, para ver se encon-
tra alguém mais tolo do que sua namorada, E costuma encontrá- lo.
Aqui o contraste entre a inconsistência da causa e a confusão
OUTROS TIPOS DE RISO
que é ocasionada serve para pôr em evidência a estupidez da namo-
rada. Este contraste é cômico em si, não sendo indispensável subli-
nhar a tolice da moça. No conto Um ovo quebrado rompe-se um
ovo, o avô conta para a avó e esta se põe a chorar. A notícia do ovo
quebrado corre a aldeia e nasce um baru lhão dos diabos. O avô
chora, a vovó grita, a galinha cacareja, o portão range, e os gansos
grasnam, o sacristão toca os sinos, o pape rasga os livros. Acaba com )
a aldeia sendo destruída pelo fogo.
Às vezes, na verdade, o fuá se deve ao fato de que não se trata
de um simples ovo , mas sim de um ovo de ouro. Isto porém não
muda a essência da questão. Alguns teóricos pôem casos desta espé-
cie em relação com a bolha que vai inchando, inchando até estou-
rar com fragor. A comparação vem muito a propósito e expressa
metaforicamente a essência da questão .
I

I'
21
o riso bom

Por enquanto só temo s ana lisado um único tipo de riso : O


que encerra dentro de si, declara do o u velado , um matiz de zomba-
ria, suscitado por alguns defeito s daquil o ou de qu em se ri. É o
tipo de riso mais difundido que se encontra freqüentemente na vida
e na arte. É claro que não existe apenas ele e que, ant es de tirar
concl usões so bre a natureza do riso e da comicidade em geral, é
necessário , quando poss ível, exam inar todos o s tipos de riso.
É igualmente evide nte , porém. que nào se ri apenas po rque
se desco bre defeito s em quem está a nossa vo lta, mas também por
outros motivos que cabe, portanto , estabelecer. Há pouco demo s
o elenco dos tipo s de riso levant ados por P . Iu rêniev, Ele é rico e
interessante, mas um tanto desorgan izado e sem finalidades cientifi -
cas. Não existe lá tentati va de classificação.
Partindo-se de observações de ordem puramente quantitativa ,
podemos afirma r que o riso de zo mbaria é o mais freqüente . que
é o tipo funda mental de riso humano e que tod os os outros tipos
enco ntram-se muito mais rarament e. Do po nto de vista da lóg ica
for ma l pode-se chegar racion almente à conclusão de que há duas
gran des subdivisões de riso, ou dois gêneros. Um contém a derr i-
são, o outro não. A subdivisão é ao mesmo tempo uma classifica-
ção , conforme a presença ou não de um fator. No caso dado ela
IS2 COMICIDADE E RISO O RISO 00:>.1 l IS3í
I
é correta não ap ena s formalm ente, mas tamb ém substancialmente. Na maioria dos atores as charges suscitam sorrisos e brincadeiras. Só
A mesma subdivisão aparece também em algumas estéticas. Lessing tia Kati a (é assim que os leningradenses chamavam a Ekaterina P. Kort-
cháguina-Alexándrovskaiaf secava as lágrimas, com um lenço.
escreve na Dram atu rgia de H am burgo : " Riso e irrisão não são
ab solutamente a mesma coisa" . Deve-se porém acrescent ar que J " Não pode ser" , pensei, "será que ela se ofendeu ?"
Mas ela me puxou pela manga e, soluçando, disse-me:
uma delimitação nít ida e precisa não existe , que há casos por assim "Não repare, querido. A nós o espectador nos conhece enquanto
dizer intermediário s, de transição, e é a eles que devemos dirigir estam os no palco, enqua nto estamos vivos. Ele precisa de desenhos ,
de fotog rafias para lembrar da gente. Desenhe-nos, querido. Claro,
nossa atenção, agora. seria melhor se não fossem charges. Mas, deixa para lá, se você não
( Vimos há pouco qu e o riso é possível apenas quando os defei- sabe nos retr at ar como realmente somos !" (21, 22).
to s de qu em se ri não adquirem o aspecto de vícios e não pro vocam
Aqui a charge amigável limita com a carica tura . Verdade ira
repulsão . O problema, conseqüentemente, é um problema de grada- cordialidade nela não pode haver , é claro, embora o autor tenha
ção. Pod e acontecer, por exemplo, que os defeitos sejam tão irrele- as melhores das intenções. Neste sentido o caso não é típico .
vantes a pon to de suscitar em nós não O riso, mas o sorriso . O Na maioria dos casos o riso bom é acompanhado justamente
defeito pode ser próprio de uma pessoa a q uem amamos e a precia- por um sent ido de afetuosa cord ialidade. Gra ndes mestres do humo-
mos bastante ou por qu em sentimos simpatia. No quadro gera l de rismo cord ial e de sua encar nação literária e artística foram Púchkin,
uma avaliação positiva e da a provação, um pequeno defeito não Dickens, Tchékhov e, em parte, Tolstói. Não iremos aprese ntar
provoca condenação, mas pode, ao contrá rio , reforçar um senti- aqui exemplos dentro da ordem da história literária , mas escolhe-
mento de afeto e simpatia. A pessoas assim perdoamos facilmente mos alguns casos significativos.
suas falhas . Esta é a base psicológica do riso bom. É desse tipo de Todos sabem que as cria nças são engraçadas na infâ ncia, até
riso qu e vamos tratar agora) a adol escência. Perceberam-no e expressaram -no arti sticamente
A diferença dos elemento s de sarcasmo e de pra zer maldo so grandes escritores como Leão Tolstói e - em outras formas
existentes no riso de zombaria, nós lidamos aqui Com um tipo de - Tchékhov. Tolst ói não é certamente um hum orista e não tem
humor atenuado e inofensivo. "Somente o termo ' humor' '', diz como obj etivo provocar o riso do leitor, mas sa be suscitar nele um
Vulis, " pode ser empregado quando o auto r está do lado do objeto sorriso involuntário, um sorriso de simpatia e de aprovação . As
de riso" . O conceito de " humor" I foi freqüentemente definido por crianças em Tchékhov são dos tipos mais variados. Alguns deles
diferentes estéticas. (Em sentido lato podemos entender por humor a são esboça dos tragicamente, como é o caso de Vanka Jukov , que
capacidade de perceber e criar o cômico.)Mas neste caso se trata de foí dado a um sapate iro par a aprender o ofício e que escreve para
out ra coisa.(" 'Cômico' e 'humor' '', escreve N. Hartmann , " estão sua casa na aldeia conta ndo todas as suas amarguras. Estes desgos-
naturalmente ligado s entre si, mas não coincidem de maneira alguma, tos são descritos em linguagem infantil e ingênua, e é por isso mesmo
mesmo que form almen te sejam pa ralelos" J(O hum or é aquela dispo- que é também um po uco cômica , mas o conteúdo da carta choca
sição de espírito que em nossas relações com os outro s, pela mani- o leitor devido à terrível verda de que contém. De caráter tota lmente
diverso é o conto Criançada' ; ond e são descritas crianças que j ogam
festação exterior de pequenos defeitos, nos deixa ent rever uma natu-
víspo ra. Eis como é descrita uma delas, o pequ eno Gricha: "É um
reza internam ente positiva. Este tip o de humor nasce de uma inclina-
menino pequeno de nove anos, cabelo cortado, deixando nu a a
ção benevolente.]
cabeça, faces recho nchudas e gordos lábios de negro" ' . Uma out ra,
O riso bom pode se mani festar com os mais diversos matizes.
Um deles é o qu e chamamos de "charge amigável". Para dizer a
verdade, os qu e são visados por ela nem sempre ficam satisfeitos. 2 Ekaterina P . Kor tchaguina-Alexándrovskaia (1874-1951). Artista de teatro muito
po pular na década de 30, especialment e representando pa péis de mulher de meia-
Iósif lguin conta um caso interessante: idad e, simples e do povo.
3 Tradução brasileira de Bcri s Schna ider rnan. A dama do cachorrinho e outros con-
tos. São Pa ulo , Max Limon ad, 1985. p . 83-9.
I Ou "humorismo" . 4 Ibidem , p , 84
154 COMI CIDA DE E RISO o RISO BOr.l 155

menor , é assim descrita: "Aliocha, pimpolho rechonchudo, que lem- o outro, tod os os homens que amou. Ela como qu e não possui inte-
bra uma bol a, fica bufando e fun gando e arreg ala os olho s para resses próprio s, mas ad ere sempre aos de qu em ama. Enqu anto
as cartas". Só qu e Tchékhov não descreve apenas a aparência das esposa de um empresá rio tea tral, ajuda o marido e repete todas as
cria nças, mas penetra sut ilmente em sua psicologia e em seu cará ter. opiniões dele. Depois qu e ele morre, casa-se com o gerente de um
O aspecto, neste caso, não encobre sua natureza, mas revela-a e é depósito de madeira e, de novo, ajuda o marido. A coisa mais impor-
uma natu reza qu e não suscita em nós desaprovação , mas nos leva tante para ela na vida ago ra são as ta rifas. " Tinha os mesmos pen-
a sorrir. Isso se refere também aos defeitos. As crianças descritas samentos que o marido. "? Sua terceira devoção é para com um vete-
por Tchékhov não são ideais. Gricha jo ga exclusivamente por rinário e, então, mais do qu e po r qua lquer outra coisa no mun do,
dinheiro. "Ao ganhar, agarr a o dinheiro com sofreguidão e o esconde interessa -se pelo gado. Qua ndo o veterinár io vai-se para sempre e é
imediat amente no bolso ."> Sua irmã, Ania, não joga por dinh eiro, preciso que ela se separe dele, ela fica completamente só . Agora
mas pelo gosto de ganhar dos outros e so fre qu ando ganha alguém " não tinha mais opiniões" . Qua ndo , porém, depois de muitos anos,
que não seja ela. O menor de tod os, Aliocha , gosta de incid entes . o veterinár io volta ao povoado, ela transfere to do o seu amor ao
"À primeira vista, parece fleumático, mas é boa bisca , no fundo. " 6 filho dele de nove anos: ajuda -o a preparar as lições, toma conta
Ado ra qu ando sai uma briga . Do ponto de vista de uma rígida peda- dele e o mima, e agora ela partilha das idéias do menino sobre as
gogia, isto não é absolutamente o ideal. Representante desse tipo fábulas qu e mandam ele ler na escola e sobre a gramáti ca latina .
de pedagogia é, ao contrário, Vássia, estudante do 5? ano . Entrando Quem é Queridinha? É uma figura positiva ou negativa? E
na sala de jantar, ele pensa consigo mesmo : "É uma indignidade ! qual é o tipo de riso de Tchékhov aqui? Pelo nível de sua vida inte-
[... ] como se pode dar dinheiro a cria nças? Como se pode lhes per- lectual, pela tota l falta de ind epend ência nos juízos sobre a vida ela
mitir jo gos de aza r? Bela pedagog ia ! Uma indignidade!" 7 Logo , mereceria a derrisão. Porém, ao mesmo tempo qu e manifesta a
porém, ele também junta-se aos jogadores. Dele Tchékh ov ri de incapacidad e de qualquer juí zo independente , ela dá mostras de
um riso diferente das out ras crianças . Dessa forma aparece diante tamanha força de amor e de ternu ra feminina , tama nha capacidade
de nós a natureza do riso bom, daquel e hum or ate nuado de qu e de renunciar compl etamente a si mesma, tamanho desinteresse, que
Tchékhov foi um mestre todo especial. suas qu alidades negativas emp alidecem diant e desta abso lut a e con-
É possível, à luz do que foi exposto, decidir po r que as crian- tínua capacidade de amar pro fund a e sinceramente. É no tável que,
ças, justamente por serem crian ças, são tanta s vezes engraçadas? quando foi escrita, a Queridinha'" não foi entendida. U. I. Go rbu-
Vimos que o riso surge quando deparamos com manifestações exte- n óv-Po ssado v!' escreveu a Tchékhov em 24/ 11/ 1899 que "Oúchetch-
riores de vida espiritual, que escondem interio rmente uma substâ n- ka é algo completamente gogo liano" (sic! V. P .). À luz do que dis-
cia que lhes é inad equada . Ao considera rmos as crianças, o que semos antes quant o a Gógol, temos que rejeitar totalmente este juízo.
salta aos olho s é ju stamente a vividez da forma exterior . Quanto Leão Tolstói gost ou muito deste conto. Sua filha Tatiana Lvovna
mais colorida a forma, tanto mais forte é a comicidade qu e involun- escrevia a Tchékhov em 30/3 / 1892: "Vossa queridin ha é um encanto
tariamente nasce dela, mas as formas exterio res aqui nã o escondem [... ] papai leu-a quat ro vezes seguidas em voz alta e diz que dela
a substância inte rior. Ao contrário, colocam-na em evidência. Ela tiro u muit a sabedoria". Po rém, mesmo gosta ndo do conto, o pró-
constitui a própria substâ ncia da natureza infantil. Aqui não existe prio Tolstói não entendeu a idéia de Tché khov. Em 1905 ele escre-
desarmonia, pelo contrário, trat a-se de harmo nia e esta int egridad e veu uma nota sobre este conto, dizendo qu e o ideal de Tchékhov
nos alegra. Out ro exemplo clássico de humor bom é Queridinha ", era a mulh er evoluída qu e tr aba lhasse para o bem da socieda de e
ainda de Tchékhov. A queridinha é uma moça que perd e, um apó s que Tchékhov tinh a querido zombar da po bre queridinha, que não
, correspo ndia a esse ideal. Fica , ao contr ário, bastante claro qu e o
5 Ibidem , p. 84.
6 Ibidem, p. 84 . 9 Ibidem, p. 298 .
7 Ibidem , p. 87 . 10 Em russo, Dúchetchka .
(I; Trad ução bra sileira de Boris Schn aiderman, em A dama do cachorrinho e outros 11 Urb a n Ivano vitch Go rb un óv-Possad ov (1864-1940). pedagogo e pu blicista russo ,
contos, cit., p. 293-306. diretor da editora Posrednik, fundada por Le ão Tol stói.
156 COMJCJDAOE E RISO o RISO BOM 157

ideal da igualdade dos dir eitos e a figura de queridi nha, qu e é de tud e de Hegel diante do riso e da sátira. Mas ele não é o único . A
tot al abnegação , não se excluem um ao outro e que Tc hé khov, com mesma idéia fo i sustenta da nada meno s que por Goet he. Numa con-
traços leves de hu mor , poe tizou esta figura deliciosam ent e feminina . versa com o cha nceler Müller ele disse: "Só pode ser hum orista
Tc hék hov, pelo contrário, não am ava muito as mulheres eruditas. aq uele qu e não tem co nsciência ou responsabilidad e" ; "Wieland,
No conto A meia vermelha ele descreve uma jovem esposa qu e, sem por exempl o, tinh a hum or ismo porque era cético e os céticos não
repa rar mui to nas regras de po nt uação e de ortogra fia , escreve uma levam rea lmente nad a a sério"; "Quem olha pa ra a vida seriamente
lo nga carta. O mari do vê esta ca rta e cha ma-lhe a ate nção so bre não pod e ser um humorista " .
os erros e sobre sua ignor ância. A mu lher chora de ma nsinho e o Podemos respeitar a postura profundamente séria do gran de
marido se arrepende de sua repreensão e lembra-se de to das as qua- Goethe dia nte da vida, e dia nte de suas obrigaçôes. Púchkin, no
lidades da mulher , tão afeiçoada, tão amorosa e bondosa, com fundo, também era profundamente sério e muito bom , mas sabia
quem é tão fácil e tão bonito viver. " Lembrou-se ele dia nte disso rir com gosto:
de como costumam ser pesadas as mulheres inte ligentes, como elas Liênski e Diga estão jogando xad rez12
são exigentes, severas e intransigentes [... ] Ao diabo co m elas! Com E U ênski, enquanto de amo res morre
as simp lesinhas vive-se melhor e mais tranqü ilamente." Come com o peão sua próp ria torre.
Há estudiosos que negam a poss ibilidade de um riso bom. A comicidade da distr ação já foi explicada antes. Só que neste
Bergson, po r exemplo, diz: " Aquilo qu e é cômico , para que sua caso não cai na teoria qu e acabamos de expo r. E por quê? Po rque
ação plena se man ifeste, requer como que uma rápi da a nestesia do o erro de Liênski não nasce de pequenas o u mesqu inh as preocupa-
coração. Isso qu er dizer que só se pode rir tornand o-se, ao menos ções ou imp ulsos, mas se trata justam ente do co ntrário:
por um moment o , cruel e insensível às desgraças alheias . Esta a fir-
mação é verda deira ap enas quanto ao riso de zomba ria, ligado à Ah, ele amava como em nossos anos
J á não se ama; como uma
co micida de dos defeitos hum an os, mas é falsa qu ant o ao s outros t resloucada alm a de poet a
tipos de riso . Outros a firmaram exata mente o contrário : " Pa receu- Ai nda é con denada a amar 13.
me sempre" , escreve o escritor cana dense Leacock, "que o verda-
A profund idad e e a força do amor - eis o que leva aq ui a
deiro humor, po r sua própria nat ureza, não pod e ser mau nem cruel.
distração e isso é realçado por P úchkin. O bom humor de Púc hkin
Eu não tenho di ficuldad e em a dm itir que em cada um de nó s existe
revela-se de forma bastan te cla ra se comp ararmos a descrição do
uma alegria ma ldosa , primordial e diabólica, que não custa nada
baile dos L árin com o do governa dor de A lmas m ortas. Ambos os
para apa recer, se a alguém pr óximo de nó s acontece uma desgraça .
ba iles são descritos de for ma humorística, ambos suscita m o riso ,
É um sentimento de certa forma inseparável da natureza huma na,
mas o riso é diferente. " P ulinhos, saltinhos e bigode s" não imp e-
como o pecad o original. O que há pa ra rir, faça m o favor de dizer-
dem Pú chk in de amar aquela nobreza de província que co nstit ui o
me, se um tr an seun te - especialmente se for gordo e importan te
fun do do s acontecimentos do romance, enquanto o baile do gover-
- de repente escorrega sobre uma casca de banana e se esparra ma nado r descrito por G ógo l revela toda a miséri a e toda a esqua lidez
no chão? Pois para nós é engraça do ". "Como a maioria dos da vida da burocrac ia de uma capital de pro vincia sob o regime do
hom ens", escreve mais adiant e, " acho qu e o humor deve ser, antes czar Nicolau. A importâ ncia do riso bom era co mpreendida inclusive
de ma is nad a, benigno e não crue l" (23, 199,201). Ambos os pon - po r Góg ol, cujo riso tem um caráter totalmente diverso do riso de
tos de vista são errados e unilaterais. Respondendo a Bergson pode- Pú ch kin. " Só uma alma profundam ente boa pode rir de um riso
se dizer que o riso bom que não requer nenhu ma "anestesia do cora- bom e radiante" , escreve ele num art igo a respeito da montagem
ção" é possível, mas Leacock tam po uco está certo ao ac ha r que o
riso bom é o ún ico po ssível e moralmente just ificado . A afi rmação
12 Personage ns do romance de Pú chkin em versos Eugênio Oneguín (Jevguêni Oni é-
de que o riso é amoral pode levar a uma postura negat iva em rela- guinl, ca po IV, estrofe XXVI.
ção ao riso to ut courl . Essa era, por sinal , conforme vimos, a ati- u Jevguêni Oniéguin, cap o lI , estrofe xx.
ISS COMJCIDAUE E RISO

de O inspetor geral. Em Proprietários rurais à moda antiga Gógol


chega muito perto daquil o que defin imos aqui como o riso bom.
Bel ínski assim escreve a este respeito: "Vocês riem deste amor bona- 22
chão , conso lidado pela força do háb ito e transformado depois em
hábito, mas seu riso é alegre e benevo lente , nele nada há de mal-
doso ou de ofen sivo " . Jean Paul, teórico da comicidade, poucos
o riso maldoso.
anos após publicar sua Propedê utica à estética. escreveu um breve
arti go intitu lado "O valor do humori smo", em que diz que o humo-
O riso cínico
rismo ajuda a viver: "Após ter lido e guardado um livro humorís-
tico, nào odiarás o mundo c nem a ti mesmo". E quem escreve isso
é o autor de muitas obras humorísticas nas quais quis expressar a
alegria de viver.
Tudo isso caracteriza a natureza do riso bom entre os outros
tipos de riso, seja m eles inspirados por defeitos que indu zem à zom-
baria, sejam-no não por defeitos humanos. mas por out ras causas
e desprovidos, portanto, de qualquer intenção derr is ória .

A explicação do riso bom ajud a a compreender e a definir seu


oposto : o riso mau . No riso bom , os pequenos defeitos daque les
que nós amamos só embaçam seus lados positivos e atraentes. Se
esses defeitos existem. nós os desculpamos de bom grado . No riso
mau os defeitos, às vezes mesmo só aparentes, imaginados ou inven-
tados, são aumentados , inflados , alimentando assim os sentimentos
maldosos, ru ins e a maledicência . ~risº._em.geral~rierrLaU2's­
soas que não acreditam em nenhum i !TIP' ul ~ nobre, que vêem em
todo lugar a falsidade e a hipocr isia, os misantropo _qu, -!!!!Q..com-
preendem como por trás das man ifestações exteriores.das boas aǧes
haja realmente algüffiãrouvável motivação. Nessas motivaçõe s eles
não acreditam. Os homen s generosos ou dotados de uma sensibili-
dade superior são para eles uns tolo s ou uns idealistas sentimentais
que só merecem escárnio. À diferença dos ou tro s tipos de riso vis-
tos até agora, este nào está ligado nem direta nem indiretamente à
comicidade. Este riso não suscita simpatia.
Deste riso riem muitas vezes mulheres desilud idas pela vida
ou que se consideram infelizes, mesmo se nem sempre esta infelici-
dade tem um fundamento . Este riso é pseudot rágico, às vezes tragi -
cômico . Embora este gênero de riso não surja da comícidade, ele
pode ser por si só obj eto de riso por aqu ele mesmo princípio pelo
o RISO M ALDOSO. O RISO cl NICO 161
160 COM IC ID AIJE E RISO

qual podem sê-lo , em gera l, os defeito s hum ano s. Ju stam eni e este a um riso que tem as características do cinismo . Mesmo o simples
gênero de riso é ridiculari zad o por Tehékhov em seu scher zo tea- riso que zomba não está despr ovido de um mati z de maldade, mas
tral O urso . A heroína da peça. uma viúva que chora o marido, não passa de mati z. Aqui trata-se de coisa bem diferente: ri-se dos
fechou-se em casa e odeia e despreza o mundo inteiro e, em particu- doentes ou dos velhos que não conseguem levantar-se ou fazem-no
lar, os hom ens. A comicidade reside no fato de qu e toda esta misan- com dificuldade; ri-se quando um cego vai bater contra um poste de
tropia é fingida e que atrás dela não há nenhum sentimento verda - luz, quando a lguém se machuca, ou quand o é vítima de um grande
deiro . Em sua casa irrompe um credor e nasce um con flito . Entre sofrimento (a perda de um ser amado); ri-se pelo repentino apareci -
eles or igina-se uma discussão so bre a fidelida de no a mo r. mento de uma dor física, e assim por diante. Este gênero de riso já
o vimos, em pa rte, nas histór ias dos bu fões. O cinismo dessas histó-
Ela: Permita-me, então , quem é, na sua opinião, fiel e cons tante no rias é atenuado pelo fato de qu e; nos contos maravilhosos, os aconte-
amor? Não vai me dizer que é o homem!
cimentos são percebidos pelo ouvinte como invenção e não entram
Ele : Sim , senhora, o homem!
Ela: O homem! (com um riso m ald oso) O homem fiel e constante no
em correlação com a vida real. Além disso , o bufão cruel do conto
amor!... na maioria das vezes zomba do pop e ou do patrão, que. no imaginá-
rio popular. não merecem nunca a menor compaixão.
A rubrica "com um riso maldoso" encontra-se mais uma vez Pior ainda é quando se recorre a um riso dessa natureza no
neste scherzo. A dona da casa ag rada ao hóspede c ele o declara cinema. coisa que costuma acontecer em algumas comédias america-
para ela: nas. Assim, na comédia Quanto mais quente melhor I. aparece , por
Ele : A senhora... me agrada. exemplo, um band o de 'criminosos qu e irr ompe num a ga ragem de
El a (co m um riso m aldoso): Eu lhe agrado ! Agora diz que lhe agrado! carros, enco sta à pa rede todos os operá rios e acaba com todos eles
(mos tra ndo-lhe a porta) Pode sair! num instante, com a metralhado ra. Isso costuma ser considerado
O conflito termina com um longo beijo e com um amoroso cômico, mas casos desse tipo já nada têm em comum com a arte.
pedido de casamento .
Te hék hov zombou de um riso desse gênero, mas na vida ele
é extremamente penoso porque não contagia ninguém c é patrimô-
nio exclusivo de quem se abando na a ele para recrudescer as feri-
das de sua própria a lma . Este tipo de riso pod e tornar-se objeto
de tratamento cô mico , mas por si só ele permanece fora do âmbito
da co micida de , Psicol ogicamente o riso maldoso aproxima-se do
riso cínico. Um e outro originam-se de sentimentos ruins e maldo-
sos, mas sua substâ ncia é pro fundament e diferen te. O riso maldoso
está ligado a defeitos falsos e o riso cínico prende-se ao prazer pela
desgraça alheia .
Vimos, há pouco, que, devido à distração , à falta de atenção
ou à incapaci dade de adaptar-se a uma situação qualquer ou a orien-
tar-se nela, mas muitas vezes também por acaso, acontecem peque-
nos reveses que fazem rir a quem os assiste. O limite entre as peque-
nas desgraças, que fazem rir quem as presencia, e as grandes, que já
não provocam o riso, não pode ser estabelecido sobre bases lógicas.
Ele só é percebido pelo sentido mor al. A desgraça dos outros, não 1 Trata-se de Some /ike ir ho t, filme de 1959. dirigido por Billy Wilder e famoso
import a se pequena o u grande, e a infelicidade alheia podem levar por ter no papel principal Marilyn Monroe. Na União Soviética recebeu o título
um ser human o árido, incapaz de ente nder o so frimento dos outros, de N o j azz só há mulheres.
o RiSO A LEGRE 163

23 pessoas que sabem conservar esta dispo sição até o fim da vida.
Desse riso sabe m rir pesso as alegres por natu reza, boas , dispostas
ao humo rismo . Demo nstrar a vantagem e a utilidade geral e mesmo

o nso alegre social desse tipo de riso saudáve l significa arrombar uma porta
abe rta. Com O do mínio da estét ica ele só tem relação na medida
em que pode ser representado artisticamente .
Há estudiosos de estética que dividem o riso em subjetivo e obje-
tivo. É muito difícil aqui estabelecer delimitações, mas, se esta subdi-
visão for correta, qualquer riso de alegria poderá ser recondu zido
ao riso subjetivo. Isso não significa que um riso deste tipo não tenha
causas objet ivas. Kant chama a este riso "jogo de forças vitais" . Ele
elimina qua lquer emoção nega tiva e a torna impossível, ele apaga
a có lera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças vitais, o
desejo de viver e de tomar parte na vida . Tudo isso é suficiente-
mente claro e não necessita de explicações especiais.

Os tipos de riso vistos até agora estavam todos direta o u indi-


reta mente ligados a a lgum defeito , verda deiro ou suposto , grande
o u pequeno das pessoas que suscitavam o riso . Existem outra s cate-
go rias de riso que, em termos filo só fico s, são estranhas a qualquer
defeito humano, não têm com eles nenhuma relação . Estes tipo s
de riso não são pro vocado s pela comicidade, não estão ligados a
ela e cons tituem uma questão de caráter mais psico lógico que esté-
tico . Eles podem se tornar objeto de riso ou de zo mba ria, mas em
si não cont êm nen hum mot ivo de derrisão : por não estarem ligados
co m a questão da co micidade, podemo s tratá-los bastante sucinta-
men te. Ant es de tudo , com ecemos pelo riso alegre, muita s vezes sem
nenhu ma causa precisa e que pode o riginar-se do s pretextos mais
insigni ficantes: o riso alegre e vivificador. "O riso sem causa é o
melhor riso do mundo " , diz T urg u êniev na novela Ásia. Tchékhov
escreve a Suvó rin: " Chego u Na tacha Lin tváreva , que você co nhece,
e trouxe do sul sua a legria de viver e sua risad a boa" .
O primei ro sorriso de um recém -nascid o alegra não apena s a
mãe, mas todos os que estão a seu redor. Tão logo ele tenha cres-
cido um pou co , O pequeno sorri pa ra qu alquer manifestação signifi-
cativa de vida qu e lhe agrade, seja ela uma árvore de Natal, um
brinqued o no vo o u go tas de chuva que lhe caem em cima . Existem
o RISO RITUAL 165

deus do reino dos infernos, rap ta sua filha Perséfone. A deusa sai

24 à busca da filha, mas não consegue encontrá-Ia, fecha-se em sua


próp ria dor e pára de rir. Devido à dor da deusa da fecundidade
interromp e-se na terra o crescime nto das ervas e do s cereais. A serva
o riso ritual l amba faz um gesto obsceno e com isso a deusa ri. Com o riso da
deusa a natureza volta a viver e sobre a terra retorna a primavera .
Este é um do s episódios do mito .
Existem muitas provas do fato de que o pensamento humano
da Anti guidade não estabelecia diferenças ent re a ferti lidade da terra
e a dos seres vivos . A terra era concebida como um organi smo femi-
nino e a colheita como a concl usão de uma gravidez. As procissões
fálicas da Anti guidade despertavam o riso e a alegria gerais, e este
riso, com tudo aqu ilo que ele suscita e que a ele está ligado, devia
influen ciar a co lheita . Certos estudiosos e historiadores da litera-
tura fazem remontar a estas procissões as origens da coméd ia.
As concepções sobre a força vivificadora do riso podem ser
encontradas não apenas na Antiguidade, mas tam bém em mitos pri-
mitivos referentes à idéia de fertilidade. Os antigos iacutos veneravam
a deusa dos nascimentos Iekhsit. Esta deusa visita as mulheres que
estão para dar à luz e as ajuda no momento do part o rindo alto.
O fato de que o riso eleva a capacidade de viver e as forças
Junto a alguns povos o riso antigamente era obrigatório nas cerimô -
vitais já foi observa do há tempos. Na aurora da cultura huma na o
nias de iniciação, quando sobrevinha a maturidade sexual, e acompa-
riso fazia parte, como momento o brigatório, de alguns ritos .
Aos olhos do homem de hoj e um riso intencional e artificial nhava o momento do novo nascimento simbó lico do iniciado. O riso
é um riso falso que merece repro vação. Mas nem sempre ele fo i propiciava a ressurreição dos mort os, Na Idade Média era difundido
visto assim. Em alguns casos o riso era o brigatório, assim co mo o assim chamado "riso pascal": nos países cató lico s, durante o rito
em outros era obrigató rio o choro, independente do fato de o sujeito religioso de preparação da Páscoa o sacerdote alegrava os paroquia-
sentir o u não dor. Uma análise particularizada deste tipo de riso nos com brincade iras indecentes a fim de fazê-los rir. A religião da
não cabe em nosso estudo, tanto mais que ele já fo i estudado ' , divindade qu e morre e que ressurge é, em seu fundamento , uma reli-
Nós analisam os os materiais dos séculos XIX-XX, mas para a com- gião agrícola: a ressurreição da divindade significa a ressurreição
preensão de alguns deles é indispensável uma projeção no passado . para uma nova vida de toda a natureza , após o sono invernal. Para
Durante certo períod o ao riso fo i atribuída a capacidade não a ressurreição da natureza contribuem as festas desenf readas durante
apenas de elevar as "forças vitais" , mas de despertá-Ias. Atribui-se as quais são per mitidas licenciosidades de toda espécie.
ao riso a capacidade de suscitar a vida , no sentido mais literal desta No folclore dos conto s maravilhosos, a figura da filha do rei
palavra, tanto no que se refere aos seres humanos quanto à natu- de cujo sorriso saem flo res é o contraponto dessas representações .
reza vegetal. A este respeito é muito interessante o mito grego antigo Aquilo que agora é uma metáfo ra poética antigamente era motivo
de Dern éte r e P ers éfon e. Deméter é a deusa da fertilidade. Hades, de festas: o sorriso da deusa da agricultura devolve à terra mo rta
uma nova vida , As brincadeiras de abril , qu e devem despertar o
• Cf. v . I. Propp, O riso ritual no folclore (a respeito do conto da Sisuda), tradu-
riso e que se fazem somente em abril, na primavera, quando toda
zido no Brasil com o nome de Édipo à luz do folclore, Mercado Aberto [Ritual i a nature za flore sce, chegaram até nossos dias. É o último elo de
smekh v fotkl áre (Po povodu skazki e Nesmeiane) . Ed. Utchônie Zapiski LGU, um antigo e difundido ritual ligado ao riso.
1939. n. 46 (com bibliografia anexaj]; cf. também V. I. Propp, Festas agrárias ru s- Bastam estes reduzidos mat eriais para explicar alguns tipo s
sas (cap. VI "O riso e a morte" , p. 68-105), cit . [Russkie agrámíe pr ázdníki, dr.
(cap. VI "Smert ' í Smekh")). de riso ainda não examinados .
o RISO l ~lO ()ERAOO 167

25 soas se abandonavam a cornilan ças e bebedeiras desenfreadas e aos


tipos mais diversos de divertimento. Era obrigatório rir e ria-se muito
e desbragadamente. Este tipo de riso penetrou cedo na literatura da

o riso imoderado I
Europa Ocidental. Rabelais foi seu repre sentant e mais significa tivo.
Na literatura russa da Idade Média estas festas não encontraram, ao
contrário, nenhuma expressão e isso devido ao fato de esse tipo de lite-
ratura ter tido sempre exteriormente um caráter clerical. O verdadeiro
domínio de Rabelais é o do riso desbragado e sem limites. Agora nos
é dificil perceber Rabelais de maneira totalmente positiva, mas a finali-
dade da ciência é justamente explicar e compreender, além de avaliar.
Pautados em Bakhtin podemos chamar a este riso de riso rabelaisia-
no. Ele é acompanhado de voracidade e outros tipos de dissolução .
Nós agora condenamos a voracidade e por isto O riso rabclaisiano nos
parece estranho. A condenação, porém, não tem apenas um caráter
psicológico, mas tamb ém social. Ela é característica daquel a camada
de pessoas que sabem o que significa um bom apetite, mas que não
sabem e nunca souberam o que é uma fome longa e terrível. Pois jus-
tamente a uma fome prolongada e à subalimenta ção eram condenados
os cam poneses de todos os países europeus, especialmente na Idade
Média e nos séculos sucessivos. Do ponto de vista destas camadas
Até agora falamos do riso como de algo invariável (úni co)
sociais, comer e beber à saciedade, até empanturrar-se a ponto de per-
no qu e diz respeilo a seu grau de intensidade. Ent reta nto o riso tem
der os sentidos, sem respeitar limites de espécie alguma, não apenas
gradações que vão desde o sorriso fra co até o estouro fragoroso
não era inco nveniente, mas era até considerado uma coisa boa . A essa
de uma risada desenfreada. Já tivemos ocasião de notar, também,
com ilança todos se entregavam em co njunto e publicamente nos dias
uma certa reserva na aplicação do s instrumento s da comicidadc .
das grandes festas, que eram acompa nhadas de um riso alto e exultante.
Falando de G ógol pudemos observar como uma da s ma nifestações
Porém este riso não zomba nem satiriza, é de um gênero completa-
da força e do talento da sua cornicída de consiste numa certa ccono-
mente diferente: trata-se de um riso alto, saudável, pleno de satisfação .
mia e senso da medida . A presença de limites - desta econo mia e
Nenhuma das teorias da cornicidade, de Aristóteles até nossos cursos
senso da medid a - dentro do s quais um fato pode ser percebido
de estética, toma em consideração este gênero de riso. Ele expressa a
co mo cômico, enquanto o ir além interrom peria o riso , é um ponto
alegria animal de sua pró pria natureza fisiológica.
de chegada da cultura e da literatura mundia is. Contudo , nem sem-
Não é po r acaso que esta alegria toda se dê ape nas em deter-
pre e nem em todo lugar tem sido respeitado este tipo de reserva.
minados períodos , e, em particu lar, no so lstício de inverno e no
Se hoj e nos encanta a presença de certos limites, outrora o Carnava l. É a permanência das fest as rituais agrárias primitivas,
que fascinava era a ausência de fronteiras, a total entrega de si
que vimo s no capítulo precedente, cujo desenrolar-se devia aj udar
àquilo que habitualmente se considera ilícito e inadmissível e qu e a natureza a despertar para uma nova vida e para um renascime nto .
co stuma suscitar urna grande risada. Nas estétic as burguesas este Na Alta Idade Média o Ano-novo costumava ser festejado no
gênero de riso é classificado entre 'o s mais " baixos". É o riso das dia do equ inócio da primavera. Com o deslocamento da s festas do
praças, dos bufões, é o riso das festa s e das diversões populares. Ano-novo para setembro e mais tarde para janeiro , fizeram coincidir
A estas festas e diversõe s liga- se principalmente a M dslenitsa a alegria festiva de março , na Rússia, co m a M dslenitsa, e na Europa
dos russos e o Ca rnav al da Europa Ocidental. Nesses dias as pes- Oriental com o Carnaval. Esta é a origem do hábit o gera l de se entre-
gar aos prazeres da gu la na véspera da Qu ar esma. A isto é necessário
1 Também: "desenfreado" , " desbragado", "dissoluto" , Do russo rasg útn í, acrescentar que antigamente existia a crença que dizia : "O que você
168 COMrClDADE E RISO O RISO l ~l O [) E R A DO 169
j

faz no primeiro dia do ano, o fará o ano inteiro". É a assim cha- I lais nota-se hab itualmente a predominãncia extraordinária do pri n-
mada "magia do primeiro dia", con tra a qual já se insurgira João cípio material-corpóreo da vida: das image ns do corpo em si, da
Crisóstomo em Bizâncio . Em seus termos "OS cristãos acreditam que.
se passam a lua nova deste mês (ou seja, de jan eiro - V. P.) na abun-
I
I
com ida , da bebida, do defecar, da vida sexual" (7, 48).
Sabemos agora por que é assim. Mas a origem deste tipo de riso
dância e na alegria, assim será o ano inteiro ". Esta crença já havia não explica sua permanência e dur ação no ã mbito popu lar. Suas bases
sido esquecida, mas os hábitos a ela ligados haviam perma necido na histórico-etnográficas haviam sido esquecidas há muito : as festas
medida em que respond iam às exigências do povo. haviam permanecido não porque lhes era atribuída alguma influência
Em seu livro sobre Rabelais, M . M . Ba khtin demonstrou de sobre a colheita, mas porq ue constituíam uma válvula de escape para
fo rma convi ncente que as image ns de Rabelais, bem como seu estilo a alegria de viver. Porém outras causas também contribuíram para uma
e o conteúdo de sua obra. se enraízam nas festas populares. quando tão longa permanência. A Iicenciosídade e o riso ligados às festas eram
as pessoas se aba ndonavam a uma alegria desenfreada. um modo de expressar o protesto contra a moral ascética opressiva e
A gula não é O único fator do riso rabelaisiano , baseado no a falta de liberdade impostas pela igreja, e contra todo o conjunto
folclore. Falam os há pou co da comicidade que é determ inada por da estrutura social da Idade Média feudal. Não é por acaso que no
certa dose de indecência . Aq uilo que na literatura russa clássica é folclore russo os conto s maravilhosos desse gênero têm como tema
apresentado de forma velada , no fo lclore, em Ra belais e em certa principal os papes, como já observara Belinski. Bakhtin assim se
parte da literatura medieval da Euro pa Ocidental , não apenas é expressa: "Todo um mundo invisivel de formas e manifesta ções de
dado ab ertamente, mas é, propositadament e, sublinhado e ampliado . escárnio se contrapunha à cultura oficial e séria (por sua tipologia)
da Idade Média clerical e feudal" (7, 6, 92); "O riso, rejeitado pela
Há categorias de contos populares que nunca verão a luz. São os
Idade Média do culto e da visão de mundo o ficial, torno u-se um ninho
assim chamados "contos secretos". A fa n ássiev publicou alguns
não oficial, mas quase legal sob o telhado de toda festa" . " Compreen-
deles anonimamente na Suíça.
diam que atrás do riso não se escondia nunca a violência, que o riso
Na fa mosa coletâ nea de Kirc ha Dan ilov há alegres peças de
não levanta fogueiras, que a hipocrisia e o engano nunca riem mas
atores ambulantes que não serão nun ca publicadas. Os especialistas
vestem uma máscara de seriedade, que o riso não erige dogmas e não
as conhecem pelo manuscrito e pela edição critica que não foi libe-
pode ser autoritário, que o riso não significa medo, mas a consciência
rada para a venda. BeIínski as con hecia por tê-Ias ouvido recitar e da força [...] Por isto, instintivamente, não acreditava m na seriedade
delas escreve a G ógol, de Salzbrunn: " Sobre quem o povo russo e confiavam no riso das festividades" (7, 107).
escreve histórias ousadas? Sobre o pope, a mulh er do pope, a filha Todos esses fenômenos colocaram num beco sem saída os estu-
do pope e o empregado do pape" . diosos burgueses de estética que os consideraram com o maior des-
Durante as festas populares, Nat al, Máslenitsa, Pe ntecostes e prezo, sem co nseguir entendê-los. T ento u explicá-los. entre outros,
São João, as pessoa s entregavam-se à licenciosidade. A liberd ade Volkelt, o qual diz, basicame nte , qu e, rind o da indecência, nós nos
admitida nesses periodos ta mbém tinha um a origem mágico-ritu al, libertamos do principio animal. Esta tese prové m clar am ente da teo-
como a desmedida no comer. Pensava-se que uma atividade sexual ria de Ari stóteles da catarse, enquanto pur ificação e relaxamento
mais intensa contri buísse para a fertilidade da terra. A ter ra é con- da tensão, com que ele explica a ação que é exercida sobre nós pela
cebida como uma mãe que pare, a aragem e a semeadura são asso- tragé dia. A teo ria da tragédia é aplicada mecan ica ment e à co mici-
ciadas ao modo como nascem os seres vivos. Na etnog rafia co nhe- dade, J á procuramos explicar todos os principias de comicidade
cem-se fatos análogos e não há portanto necessidade de apresentá- ligados a uma atenção especial dada ao corpo humano e já vimos
los e repeti-los. Desde as antigas festas dionisíacas e das sat urnais , ta mbém o exagero cô mico , ou seja , a hipérb ole. A hipérbole, apli-
até as festas populares européias que sobreviveram par cialmente I cada à fisiologia da vida huma na, tem, conforme vimos , profundas
em nossos dias, desenrola-se um a ún ica linha de desenvolvimento. raízes rituais. Em algumas camadas sociais e numa determinada
A licenciosidade é acompanhada pelo riso e pela alegria aos quais época, esta hipérbole ap licada aos fenôme no s da fisiologia reforça
era atribuído um poder mágico sobre a natureza: do riso flo resce o riso. despertando no homem a alegria de sua natureza corpórea;
a terr a. Este aspecto de riso é enco ntrado também em Rabelais, em outras camadas sociais, ao contrário, e em outras épocas, este
sobre o qual M . M . Bakhtin escreve o seguinte: "Na ob ra de Rabe- exagero dos principias fisiológicos já não desperta riso algum.
CONSIDE RAÇÕES FINAIS. CmlPLEYlENTAÇÕES E COl'\CI.USÕES 171

de comicidade, embo ra pos sam ser descritas e representadas artisti-

26 camente. De sta forma é representada a cócega no con hecido romance


de Grimmelshau sen Simplicissimu s, cuja açào se desenro la durante
a Guerra do s Trinta Anos. Os soldados submetem um camponês à
Considerações finais . tort ura da cócega, a fim de arrancar dele a indica ção do lugar onde
estavam escondidas suas economias.
Complementações e Evidentemente o s po ssívei s aspecto s do riso, analisados do
ponto de vista de sua caracterização psicológica , estão longe de serem
conclusões esgo tados . Os aspectos que examinamos dão apena s uma idéia
muito aproximada, isso porque, para o fim que temo s em mente,
nào teria sentido um elenco completo de todos os pos síveis aspec-
to s e variedades do riso. Para nó s são importante s o s aspecto s de
riso ligados, direta ou indiretamente, ao problema da comicidade
e, nesse caso, não há neces sidade de uma lista preparada emp iríca-
mente , mas é suficiente estabelecer algumas categorias fundamentai s.
Dos materiais que analisamos é possível que o aspecto de riso
mais estritamente ligado à com icidade seja aque le que chamamos
de riso de zombaria. É justamente o tipo de riso que mai s se encon-
tra na vida e na arte, e está sempre ligado à comicidade. E isto é
compreensível. A comicidade co stuma estar associada ao desnuda-
o material que analisamos está longe de ser o que teria sido mento de defeitos, manifestos ou secretos , daquele ou daquilo que
necessário examinar. Porém, é preciso colocar o ponto-final em algum suscita o riso. Isso nem sempre é evident e, mas pod e ser sempre
lugar e o lugar bom é aquele onde começa a esboçar-se a possi bili- mo strado com precisão . Daí decorre que existe apena s um gênero
dade de repetição e a part ir do qual é poss ível tirar algumas con clu- de riso e que sua multiplicidade não pa ssa da multiplicidade de
sões com certa margem de segurança ou pelo menos de probabilidade. seus aspecto s e de suas variantes. Esses aspectos pod em ser defini-
À luz do material apr esentado pode mos responder agora a do s e classificado s de maneira diferente . Nós escolhemos classificá-
uma série de questões , difíc eis de serem respo ndidas ante s. lo s segundo as formas da comicidade, o que coincide com sua clas-
Uma das mais importantes é: quantos gêneros o u quantos sificação em termo s de cau sas do riso . Esta dispo sição , juntamente
aspectos de com icidade e de riso podem ser esta belecidos ao todo? com o est udo de cada uma dessas forma s , levou-nos a concluir que
At é agora foram destacados seis aspectos diferentes de riso, a natureza delas é sempre essencia lmente a mesma , e que, conseqüen-
defini dos basicamente de aco rdo com sua caracterização psicológ ica. temen te, é po ssível uma única teoria da comicidade.
Todos esses aspectos de riso sào po ssí veis enquanto categorias esté- Isso foi percebido confusamente por estudiosos de diferentes
ticas e -extra-est éticas. tendências, que, entretanto, elaboraram suas definiçõ es partindo
Poderíamos aumenta r o número de aspecto s do riso. Os fisio- de pressuposto s exclusivamente teóricos o u ab strato s . N ós, ao con-
logistas e os médicos conhecem, por exemplo , o riso histérico . U m trário, partimo s do est udo do s fato s e este estudo demonstrou ju sta-
caso desse tipo de riso é descrito magistralmente por Tchékhov em mente, de no sso ponto de vista, o que há de cor reto e de inco rreto
sua no vela O duelo. Tchékhov pôd e fazê-lo por ser, além de gra nde nas definições existentes so bre a natureza da comic idade. .É disso
escritor, também excelente médico . Um fenômeno puramente fisio- que se deve tratar agora .
lógico é também o riso provocado pela s cócegas. Esses doi s aspec- N ão entraremos em polêmicas pormenorizadas. Qualquer
to s de riso co nstituem apena s cat egorias extra-estéticas, ou seja, pol êmica é estéril se não con tribuir construtivamente para a de ter-
não podem ser usadas como recursos artístico s para suscitar o efeito minação da verdade a partir de prin cipia s diferentes daqu eles utili-
172 Cü:\.lIC IDA DE E RISO
CONSIDERAÇÓES FINAIS. Cm. IPLBIENTAÇÓES E CO:-lCLUSÕES 113

zados nas obras colocad as em discussão. Para tanto é indispensável


Não iremos nos demorar em outras fo rmulações baseadas na
passa r rap idamente em resenha as definições da comicidade que
a plicação do conceito de contra dição . Há estu diosos, por exemplo,
foram dadas até agora: a critica dos defeitos ou dos erros ajudará que definem a natureza do cômico mediante a contraposição do
a evitá-los. O que se pode e não se pode aceita r das teorias expos- ideal e do real, do elevado e do rebaixado, do grande e do pequeno
tas no primeiro capítulo? e assim por diante. Essas contraposições não explicam a essência
A grande maioria dos estudiosos afirma que a comicidade da comic idade . Já tivemos ocasião de ver qu e o cõmico é o oposto
decorre de uma con tradição entre forma e co nteúdo , aparência e não do elevado ou do ideal, mas do sério; se alguém derruba os
essência etc. As formulações são bastante variadas, mas isso não ovos que quebr aram ou se Ivan Nikiforovitch não co nsegue passar
muda a natureza do pro blema. Esse pont o de vista foi expresso nos pela porta por ser go rdo, esses casos não apontam ao elevado ou
primórdios da estética, mas continua, até hoje, a ser repetido . Afi- ao trágico, mas encontram-se fora de seu domínio.
nai, é verdadeiro ou não? Será que a cont radição não se encontra não no interior do
Na introdução tivemos ocasião de expressar, de uma maneira ob jeto do riso, mas no interior do sujeito? Do individuo qu e ri?
generalizada, nossas dúvidas quanto à validade dessa teoria. Por sinal, Esta hip ótese pode ser rejeitad a sem necessidade de demonstrações
as mesmas dúvidas era m partilhadas por alguns estudiosos do pas- especiais. É verd ade, existem casos em que se ri de si pró prio, O
sado . Volkelt, en p assant, deixou escapar a seguinte frase: " As regras qu e implica que a pessoa se desdob re, to rna ndo-se ao mesmo temp o
da unidade de forma e conteúdo valem também para o cômico". sujeito e objeto do riso, mas isso continua não explicando a natu-
Para resolver corretamente esse problema é necessário estabele- reza da contradição que estaria suscitando o riso. Isso significa que
cer onde e no que se verifica essa contradição. Se ela for encontrada não existe cont radição no objeto da co micidade, trata-se de uma
no interior das obras de arte, literárias ou figurativas, então esta teo- obra de ar te ou de um acontecimento da vida. Ela não existe igual-
ria estará certamente errada e será absolutamente inaceitável. Com mente no sujeito do riso . Não é daí que nasce o riso .
efeito: onde está a contradição entre fo rma e conteúdo em O inspetor Existe porém uma contradição de outra ordem , uma contradi-
geral de Gógol ou nas comédias de Shakespeare, Moliere, Goldoni e ção que não reside nem no sujeito nem no objeto do riso , mas sim
muitos outros, ou num conto humorístico qualquer? Muito pelo con- numa de suas relações recíprocas; ou melho r, a contradição suscita-
trário, em todos esses casos nós temos uma correspondência plena dora do riso é a contra dição entre algo que, por um lado, encontra-
de forma e de conteúdo. Aqu ilo que Gógol queria dizer em O inspe- se no sujeito que ri, no homem que dá risada, e, por outro lado ,
tor geral ("conteúdo" , "substância") só podia ser dito na forma dessa naquilo qu e está em frente dele e que se man ifesta no mundo qu e
comédia ("forma", "aparência"). Quanto mais talentoso for um escri- está à volta dele, no objeto de seu riso.
tor, tanto mais compacta será a unidade de forma e conteúdo. "For- A idéia de Vischer, de que " o cômico é um conceito correlati-
ma" e "conteúdo " são conceitos que se aplicam principalmente às vo" , é correta, na medida em que não venha a ser procurada no
obras de arte, enquanto os conceitos de "aparência" e "substância" interior do objeto ou no sujeito do riso, mas em sua relação reei-
são mais amplos e são aplicados ao universo dos fenômenos e dos p roca. Partindo-se desse conceito de contradição, a primeira co ndi-
objetos que nos envolvem na vida cotidiana. ção para a co micidade e para o riso que ela suscita co nsistirá no
Esta teoria, errônea para as obras de arte, seria por acaso cor- fato de qu e quem ri tem algumas concepções do qu e seria ju sto ,
reta para a vida real, não refletida na arte? Para verificar se isso moral, correto ou , antes, um certo instinto completamente incons-
ciente daquilo que, do ponto de vista das exigências morais ou
oco rre realmente, tomemos uma circunstância qualquer da vida
mesmo simplesmente de uma natureza humana sadia, é considerado
em que os homens costumam rir. Um homem carrega um cartucho
com ovos , o cartucho rasga-se, os ovos escorregam e se transfor-
ju sto e conveniente . Nessas exigências nada há de sublime ou de
majesto so, trata-se a penas do instinto do que é certo . Isso explica
mam numa omelete melequenta. Todos dào risada. Como este, há
por que as pessoas que não têm convicções mo rais, as pessoas frias,
uma série de o utros exemplos. Onde está, nesse caso, a substância?
áridas, obtusas, não conseguem rir.
Onde está a aparência, e no que consiste a contradição? Essa teoria
A segunda condição par a que surja o riso é observar que no
não serve nem sequer para explicar o cômico na vida.
mundo à nossa volta existe algo que contradiz esse sentido do certo
174 COMJCIlM OE E RISO CONSIDERAÇÕES FINA IS. COMPLEMENTAÇÕES F. CONC!.USó ES 175

que está dentro de nós e não lhe co rres po nde. Em pou cas palavras, em que condições nasce o riso, de estabelecer com maio r exatidão
o riso nasce da obse rvação de algun s defeito s no mundo em qu e o e articulação a característica das cond ições da comicidade.
homem vive e atua. O estudo dos fatos mostra que o riso que zomba nasce sem-
A co ntradição entre esses dois principias é a co ndiçã o funda- pre do desmascaramento de defeito s da vida interior, espiritual,
mentai, o alicerce para o nascimento da comicidade e do riso que do homem. Esses defe itos referem-se ao ãmbito dos principias
dela se produ z. morais, dos imp ulsos da vontade e da s operações inte lectu ais. Em
Disso decorre que estavam certos aqueles estudiosos que afirma- muitos casos os defeito s são visíveis por si sós e não têm necessi-
vam que o c ômico é determin ado pela presença de algo baixo, menor, dade de ser desmascar ad os. Assim , as pequenas intri gas, o marido
defeituoso. O estudo desses defeito s most ra que eles se redu zem sem- acachapado pela mulher, uma mentira manifesta , a estupidez evi-
pre, ou são reduzidos , em última análise, a faltas de ordem mo ral dente ou o absurdo de um juízo qualquer são cômicos por si. Eles,
ou espiritual: de emoções, de consistência moral, de sentimento, de por assim dizer, se desmascaram soz inhos . Na maioria dos casos .
vontade ou de operações intelect uais. Os defeitos de ordem f ísica são porém, não é isso o que acontece. Os defeito s estão escondidos e
vistos ou como indício de defeitos interiores o u como alteração daque- precisam ser desmascarado s. A arte ou o ta lento do cômico , do
las leis das proporções , percebidas por nós como convenientes , do humorista e do satírico estão justamente em mostrar o objeto de
ponto de vista das leis da natureza humana . riso em seu aspecto externo, de modo a revelar sua insuficiência inte-
rior ou sua inconsistência. O riso é suscitado por certa dedução
Co nforme vimos, a firmações desse gênero foram repetid as mui-
incon sciente que parte do visível para chegar ao que se esconde atrás
tas vezes desde Aristóteles até hoje. Ibergorst chegou a compilar um
desta aparência . Ta l ded ução pode mesmo chega r à conclusão de
cat álogo de todos os defeitos hum ano s qu e suscita m o riso, e embora
que atrás desta aparência não há conteúdo nenhum , que ela esconde
tal elenco nada explique por si só, nad a pode ser-lhe o bjetado: empi-
o vazio . O riso surge qu ando a esta descoberta se chega de repente
ricamente está tudo certo , apesar de não haver ainda nenhuma teoria.
e de modo inesperado, quando ela tem o caráter de uma descoberta
"Nenhuma perfeição jamais suscita o riso" , diz Brandes.
primordial c não de uma ob servação cotidiana c quando ela adquire
Tudo isso ainda não é suficiente para explicar em que cond i- o caráter de um desmascaramento mais ou meno s repentino. Pode-
ções aquela contradição é cômica. A contradição entre minhas con- mos expressar a fórmula geral da teoria do cô mico nestes termos:
cepções daqu ilo que esta ria certo e aqu ilo que eu vejo na rea lidad e nós rimos quando em nossa consciência os princípio s positivos do
pode suscitar não o riso , mas uma reação completamente diferente. hom em são obscurecidos pela descoberta repentina de defei tos ocul-
A cada passo temos oport unidade de ver uma série de defeitos tos, que se revelam por trás do invólucro dos dados físicos, exterio-
humanos, mas esses defeitos podem não nos induzir ao riso e sim res. À descobert a de defeito s int eriores pode-se chegar por diferen-
nos deixar profundamente tristes, perturbar-nos , suscitar nossa raiva, tes meios. Os principais deles já foram enumerados e não há neces-
absolutamente incompatível com o riso . sidade de repeti- los aq ui. Faze ndo um ba lanço podemos dizer que
Tivemos ocasião de repetir que o riso surge apenas quando a variedade de form as de manifestação do c ômico obedece a uma
os defeito s são de pequ ena monta e nã o alcança m aquele grau de única lei comum a toda s as formas de riso de zombaria, e é justa-
culpa o u de depravação que suscita riam den tro de nós repu gnãn- mente esta lei que nós temo s que esclarecer. Ela é evidente, por
cias ou o máximo de perturbação e de indignação . Não existe aqui exemplo , nos casos em que o objeto de riso são os defeito s físicos .
um limite exato, ele depende da mentalidad e de quem ri o u de quem Observando-se mais de perto verifica-se que, quando se ri de defei-
não ri. J á foi falado ant es sobre tudo isso e não nos parece haver tos físicos , na verdade está -se rindo de defeito s de or dem espiritua l.
necessidad e de repetição . À primeira vista pode parecer que esses defeitos físicos não tenham
Isso também não consegue definir ainda a essência específica obrigatoriamente que se referir a defeit os morais ou interiores, de
da co micidade. Tod o dia presenciamos um gran de número de de fei- uma maneira geral. Mas isso são apenas co nsiderações de ordem
tos , grandes e pequenos, no entanto , é raro a gente rir. Isso nos lógica . Um defeito exterior é per cebido de forma puramente instin-
co loca diante do problema de definir co m mais precisão quando e tiva com o sinal de insuficiência interior. Um defeito exterior em si
'" CO.\ flC IDA Il E E RISO
CONSIDERAÇOES FINA IS. COMPl EMENTAÇCE S E CO ~C l USOES 177

mesmo não é eng raçado, da mesma fo _ ,


interior. O riso surge qua ndo o d f . rm a q~e n ~o o e um defeito mas também em sentido mais geral, ou seja, quando aquilo que co n-
sinal, co mo signo de uma' f" ~A C
lt? exterior e percebido como sideramos superior se revela, ao co ntrário , inferior. So bre isto
. insu icren cia ou de " .
Exammando-se as obras de arte não ' ' . . um vazro mtenor. baseiam-se tod os os qüiproq uó s: to ma-se um viajante por um inspe-
ou o pintor atribui os defeit f'" e d iffcil no ta r qu e o escrito r tor gera l, um trat ante por um milio ná rio; Ostap Bend er I faz-se pas-
reprovar do po nto de vista;:s ;SICOS,ãquelas figuras que ele qu er sar por cr aque de xadrez embora nem sequer co nheça os lances e
O defe í o ra . o u murno, o u social assim po r diante.
5 e erro s que são revelados por esse . ~ .
de or dem mora l no se nt ido I d me ro sao, em gera l, Em to dos esses cas os tratou-se não apenas de fato res de o rdem
o
outra ordem porém que se damP b o term o . Existe m defeitos de mor al, ma s também de carac terísticas da vontad e. A exist ência de
, • esco rem com o .
e que suscitam o riso. mesmo pr ocedim ento uma vontade forte é considerada , em si, co mo um bem bastante
Numa pessoa nor mal e saud áv I - . apreciado, Os defeitos da esfera da vo nta de podem ter um caráter
do q ue é j usto m or alm ente . e nao existe apenas o instint o dup lo e por um lado a vontade pod e ser fraca (o hom em que é ca pa-
, mas exi st e também
de regras exteriores, naturais e de . uma certa percepçào cho da mu lher) ou, por outro , ela pod e estar dirigid a para objeti-
que há alguma harm onia nas i. duma man eira geral, a sensação de vos ínfimos e mesquinho s. Nes te último caso temos a manifestação
de vista dessas leis). A infra ão d a natureza e do acas o (do pont o particular de am o ralismo miúdo . O riso nasce quando a vo ntade
defe ito que suscita o riso J ' di essas regra s e sem ída como um passa a ser de re pente menosprezada e derrotad a e qu ando essa der-
, a tssernos que a gt f ' 'do rota se torna visível a todos através de sua projeção exterior. A natu -
qualquer defcito moral mas d 'd ' ra a e fi ícula não por
. h ' eVI o a SUa despropo · p . reza da co micidade aqui é a mesm a que foi descrita anteriormente .
tIO am raz ão aqueles estudí rçao. or ISSO
ligado ao disforme. O que '~s~SI qu e ha firma vam q~e o cômico está Ao dizer que a comicidade é possível apenas quando é a vida
algum desperta r o r iso Os e o e armoruoso nao pode de jeito espiritual do homem que se mani festa, nós temo s que examinar as
riso, ta l com o os dcfeit~s ext~~~:S~';;' ~efellos :s~irit uais .s~scitam o condições em que a vida intelectual do homem pode se revelar cõmica.
saber demonstrar uns através dos a er combl.na:los arustlcamenre, Nó s apreciamo s a inteligê ncia assim co mo repro vamos sua fra-
vado da co micidade e pro voc Outros, cO,nstlt Ul O grau mais ele- queza o u sua insuficiência . Erros de o peraçõe s mentais, como a estu-
a um surto de n so . pidez, to rna m-se cô micos quando se manifestam inesperadamente
Vendo a desa rmo nia o u a defor id d '
cebe-as de forma co mpletament' ~I a, ~ exten o r, ° hom em per- em seu aspecto exterior. O erro de um raciocínio, que se manifesta
tos mais profundo s e importa ~ mv~ u~lafla como in.dices de defei- exterio rmente , co mo que apaga da co nsciência, da percepção ou
n do instint o de quem ri tod as as outras qualida des da pessoa de
fria isso pod e ser reconsiderad es. pos uma reflex ão posterior e
POderá refl etir depo is e caso aO , ~as. o ~omem que ri não refle te. quem se ri. Mesmo as pessoas inteligentes podem dizer o u fazer
trado errô nea, a co~ i~ i da d p~lm eJra_Jm p res são tiver se demon s- bob agen s. A inteligência qu e elas têm não as po upa do riso de
O . e e o mo terao desap ar ecid o o utrem, porque no momento em que dizem o u fazem uma boba gem
f1S0 co mo reação ocorre u d . .
na vida ou na arte. q an o esses defe itos aparecem sua inte ligência não é levad a em conta, O a logismo desnuda a si
mesmo tanto devido à evidente e indiscutível incoerência das argu-
O fat o de qu e tam bém a comicid d d . .
na ma nifcstaçã o de defeitos h ~ e o car ater esta baseada mentaçõ es o u das conclusõ es quanto às ações absurdas que são sua
não requer demon strações es u~a.nos e com~Jetamentc evidente e conseqüência . O folclore de cada povo est á repleto de ações de tolos
quando se manifesta exterior~~~:I~ Um car~ter_ se torna cômic o que realizam os atos mais impensados , causas do riso de todos.
enquanto não a co nhecemos ' . assa avahaçao de uma pessoa, Men os evidente é que a comicidade de ca rá ter verbal se baseia
co nhecendo ' ' e espontaneamente posit iva: não a nos mesmo s princípio s do s outros tipos de cornicida de, mas isso
, nos esperamos o u su om
características posi tivas. Estas ex p . os ~ue ela tenh a algumas ta mbé m já foi visto antes e não há necessidade de ser repetido .
co brimo-Ia de repente ' pen p.ectau vas nao se co ncretizam. Des- Estam os longe de ter examina do tod os os casos po ssíveis de
. sarnas que fosse . manifestação da comicidade na vida e nas obras de arte, porém
nos enganamos a seu respeito O uma pessoa dIferente,
alguém por aquilo que não é . _ mesmo oco rre qu ando to ma mos
, na o apenas do POnto de vista moral, I Personagem do rom ance satí rico As doze cadeiras. de Il f e Petr óv.
17M CO MICIDAD E E RISO
CONSIDERAÇÕES FIN AIS, COMP LE1> lENTAÇÔ ES E CONCLUSÚE.'5 179

co meça a esboçar-se uma tendência geral e aos po ucos vai ap are-


cendo um a lei. E preciso ressal tar a inda q ue, na verdade , as mani- ment e. Esta circunstã ncia já foi notada há muito tem po e formulada
festações do cô mico não estão separa das umas das o utras: as sepa - repetida me nte . " O riso é o efeit o (que provém) de um a súbita tra ns-
ram os aq ui para maior cla reza de exposição, mas elas estão estr ita - fo rmação de uma espera tensa em nada " (Kant ); "O riso surge [... ]
mente ligada s entre si, de tal forma que muitas vezes não é poss ível da repentin a percepção da não correspondência entr e o co nceito e a
dizer a q ue aspecto da comicidade se refere um ou ou tro caso parti- réplica (tirad a)" (Schopenhauer). Ao defi nir a essência da piada,
cular. Eles se refe rem ao mesmo tempo a vários aspectos. Quando, Tchernichévski escreve: "Sua essência é [... ) a inesperada e rápida
po r exemplo, numa anedota po pul ar conta-se que um to lo serra o aproximação de do is objetos qu e por sua na tureza pertencem a duas
gal ho sobre o qual está sentado e não escuta o aviso de uma pessoa esfera s conceituais diferentes".
que está passando e logo em seguida cai ao chão ou na água , temos Uma vez reali zada a descoberta ou a ob servação que resultou
uma manifestação de alogismo com o conseqüente rebaixamento no riso repentino, sua repetição não mais o suscita. Claro que ao
da vontade. Iva n Nik íforovitch faz rir não apenas porque é gordo, ver uma bo a co média feita com talento, pela segunda vez ou mesmo
mas po rqu e apresenta q ueixa nu m tribunal por um motivo comple- mais, nós daremos risada na segunda e na ter ceira vez. Ma s será
tamente ba nal e insign ificante. O conto de T ch ékhov Sob renome um riso fraco , tranq üilo, um riso con sigo próprio . Não será um
cavalar é cômico po rque são cô micas a dis tração e a fa lta de memó- surto ou uma eclosão co mo na primeira vez. Esse riso fraco e tran-
ria , mas, ao mesmo tempo, po rq ue ele está construído segundo o qü ilo co ntém um acré scimo de satisfação estética por aq uilo q ue
princíp io " muito barulho po r nada " . Q ua nto mais ta lentoso o escri- se desenro la no pa lco o u na tela. Um riso como esse só pode ser
tor , tanto mais co mplexos e variados são os motivo s de sua obra. suscita do por uma boa co média de auto r de tal ento. Uma far sa
Co mo já tivem os ocasião de mostrar, G ógol foi , pelo qu e nos inte- ruim o u um vaudevi lle q ue nos fizera m rir da pri meira vez, pela
ressa, o mestre absoluto da literatur a mund ial. sur presa das situações cô micas ou das tiradas, não resistem a uma
Aos po ucos vai se co nfigurando uma certa regula rida de geral segunda vez e pr o vocam o tédio.
que perm eia to dos os as pectos do riso de zombar ia e da comicida de O inesperado leva a outra propriedade do riso : ele é de curt a
a ele relacio nada. Nã o iremos extrai r uma fór mu la geral desta regu- du raçã o. A fo rma original do riso e seu surg ir repentino , um raio
la ridade, uma vez que q ualq uer fórm ula restrin ge a natureza do qu e passa co m a mesma velocidade com qu e veio. Uma comédia
fenômeno em qu estão e não mostra toda a riqueza e a variedade pod e ser lon ga , mas o riso não pod e durar inint erru ptamente dura nte
de for mas em qu e ele se ma nifesta, po r apag ar as nuança s. Não cinco atos. Uma bo a comédia teatral o u cinema tog rá fica é acompa-
esgot amo s todos os casos poss íveis porq ue isso teria acarreta do nh ad a po r surtos de riso perió dic os , ma is ou men os fr eqüe ntes, ma s
uma ampliação excessiva do tr ab alh o e tê-lo-ia tornado pesado sem não po r um riso contínuo . (Não há moldu ras o u limites q ue indi-
faz ê-lo, nem por isso , mais co nvince nte . O pr obl em a pode ser resol- quem quanto pode dura r o riso .) Se ele for prolon gad o será sempre
vido pela escolha de outros exemp los, a ser am pliada e co mplemen- a so ma de vários surtos . Assim, po r exemp lo, podemos rir um
tada por q uem q uer qu e se interesse por essa q uestão . É , ao invés, minuto o u doi s, repetindo co m vár ias entoações um a mesma pala-
ind ispensável co nside rar ainda algum as particular idad es. vra engraçada o u espirit uosa, ou uma tolice, o u uma tira da , mas
Em todos os casos q ue ap resentamos, a desco berta dos defeitos isso não pode durar muito . (Às vezes o riso po de prolongar-se e fo r-
das pessoas q ue estã o à nossa volta c outras descobertas semelhantes talecer-se a tal ponto que a pessoa perd e o eq uilíbr io e "esborracha-
só levam ao riso qu and o são inesperadas. Esta é uma das leis da comi- se de tanto rir" no sentido literal do termo . Há que m ro le no chão
cida de em geral. Uma piada no s faz rir por seu fim espirituoso ines- por ca usa do riso . Qua nto tempo é possível rir de um riso natural
perado. Porém a mesma piada , ou vida pela segun da , pela terceira depend e das caracteri sticas ind ividuais de cada um , ma s um riso des-
ou pela q uarta vez, já não suscita o riso porque não existe ma is a sur- ses não pod e dura r muito.) Em O casamento há uma cena em qu e
presa . O surt o de riso é como um sobressalto . Nas o bras de arte ver- Kotc hk áriev ri longamente da casamenteira q ue ele fez de boba .
bais este sobressalto pode ser até certo po nto preparado; às vezes espe- Os bons atores mu dam o caráter do riso , rindo a ma is não poder,
ramos O que vai acontecer, mas o riso , mesmo assim , eclode abrupta- ora mai s alto, ora mai s fino, ora mai s baixo, em diferentes tonalida-
des . Este riso co ntamina os ouvintes e os bons atores adivinham
CONSIDERAÇÕES FINAIS. COr.IPLEMENTAÇOES E CONCLUSOES 181
180 COMICIOADE E RISO

qu ando é pr eciso pa rar. É só o ato r excede r-se nem qu e seja um Segundo nosso pon to de vista, na base desse prazer não está
pouquinho , exagerar na representação , rir um segundo a mais, que um sentimento farisaico, mas ainda aquele mesmo instinto de justiça
os espectadores já param de rir, e se o ator insiste eles passam a que possui, ao contrário, um caráter profundamente moral. Vendo
esperar com alguma impaciência que a coisa acabe. que o ma l é desnudado e ao mesmo tempo rebaixado e pun ido , senti-
O riso não pode prolongar-se muito, ao contrário, o sorriso sim. mos por isso mesmo satisfação e prazer. Nesse sentimento existe tam-
A teoria que for mul amos dá a possi bilidade de reso lver ainda bém um elemento de malvadeza, mas a malvadeza é ao mesmo tempo
alguns problemas particulares ligados à ques tão do riso . M uito se um sentido de justiça triunfante. Foram dadas para isso também
escreveu, por exemplo, sobre de onde vem o prazer provocado pelo outras explicações. Graças ao riso se experimenta um certo alivio de
riso. De aco rdo com os dados de qu e dispomos, os dois aspectos fun- tensão e justamente a este alívio se deveria a satisfação. É o ponto
damentais do riso, o de zombaria e o de alegria, devem ser explica- de vista de Volkelt: "A libertação da tensão constitui ao mesmo tempo
dos de modo diferente. No riso de zombaria a Pessoa co mpa ra invo- um alívio". A teoria tem certa dose de fundamento somente para aq ue-
luntar iamente aq uele que ri consigo próprio e parte do pressuposto les casos em q ue o final.cômico é esperado e quando ele é preparado
de não possuir os defeitos do ou tro. Esta explicação foi dada por art ificialmente, como, por exemplo, pelo dese nro lar-se da trama
Ho bbes, pela primeira vez, qua ndo procurava a causa do prazer do numa coméd ia ou por uma anedota das quais esperamos o final esp í-
cô mico na percepção de nossa superioridade sobre os defeitos da pes- rituoso com certa tensão. Porém já sabemos que o riso , via de regra,
soa de quem se ri. Além de Ho bb es, outros se referiram a isso, e surge repentinament e e que, mesm o quand o es peramos um
esse ponto de vista foi expresso por Tchemichévski com grande cla- final cômico de antemão, ele se realiza sempre co mo que de súbito.
reza: "Rindo de um to lo [... J eu pareço a mim mesmo muito supe- Todas essas explicaçõ es - o· sentido de superioridade, a satís-
rior a ele. O cômico desperta em nós o sentimento do nosso valor". fação moral, o alivio da tensão"": dão co nta apenas pa rcialment e
Um dos componentes do sentimento de satisfação co nsiste no do problema, não chegam até o fundo da qu estão . P ara um melhor
fato de que "eu não sou como você" . Ri o sábio do tolo : se quem esclarecimento é preciso considerar não apenas o riso de zombaria,
ri é o tolo, é porque nesse momento ele se considera mais inteligente mas também os outros tipos e entre eles, em primeiro lugar, o riso
do q ue aquele de qu em ri. Isso diz respeito tam bém a o utras más qua- de alegria. Esse tipo de riso constitui uma reação fisiológica a um a
lidades que suspeitamos nos outros, mas que não admitimos para nós. transbordante sensação de alegria para com o próprio ser. Este riso,
Isso foi ob servado por alguns estu diosos que, por sina l, já cha ma ram em si mesmo , não está ligado a fat ores de ca ráte r moral. No riso
de "farisaico" esse sentido de superioridade. Por exemplo , De Groos de zombaria o que nos dá prazer é uma vitória de caráter moral,
escreveu: " Cada coisa cômica suscita em nós o agradável sentido fari- enq ua nto no riso de alegria trata-se de uma vitória das fo rças vitais
saico de que não somos o mesmo que este homem" . Nessa satisfação, e da alegria de viver. Muito fr eq üentement e estes dois aspectos se
porém, nada há de farisaico. Ela se baseia, antes, no reconhecimento fund em . Q uem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri. O riso moral,
da necessidade de qu e no mun do existem alguns princípios positivo s
ou seja , o riso co mum e saudável do homem normal, é o signo da
de caráter moral ou outro, que alguém pode não ter, mas eu tenho.
vitó ria daq uilo qu e ele co nside ra ju sto .
Este prazer desaparece tão logo nós passam os a ser o o bjeto de riso .
Um do s pontos particular es da teoria do cô mico está no car á-
As palavras qu e o pre feito dirige ao s espectadores na última cena de
ter co ntagia nte do riso . Como explica r essa pro priedade que o riso
O inspetor geral: "Do que vocês estão rindo? De si próprios!" ime-
tem de contagiar?
diatamente destroem qua lquer efeito de conúcidade. A lgo de serne-
Co nfo rme já tivemos ocasião de mostrar, nós rimos no
Ihan te aco ntece na cena da leitura da carta de Khlesta kó v. Ela é lida
momento em que transferimo s nossa inteligência ou nossa atenção
em voz alta e passa de mão em mão. A carta parece engraça da a
to dos os que a lêem, até q uan do ela não os toca pessoal mente. Ao dos fenô me nos de ca rá ter espiritual par a as fo rmas exterio res de
ler a carta, o encarregado do correio de repente se atrapalha: "Ah, sua manifestação, sendo que nós achamos que essas formas revelam
aqui ele está falando coisas desagradáveis sobre mim também" . Mas os defeitos daqueles que nós olhamos ou observamos. O riso é um
a carta continua a ser lida e agora é a hora de o encarregado do cor- sina l so noro desse deslocamento de atenção. Tão logo esse sinal é
reio ser colocado na berlinda. percebido por o utras pessoas, elas tamb ém des loca m seu olhar e
1112 COMICIO ADE E RISO CONSIDERAÇÕES FINAIS. COMPLEMENTAÇõES E CONCLUSÕES 183

de repente vêem aq uilo que não viam e começam a rir. Contagian- o contrato. Ele ab and on a a profi ssão de humo rista e se torn a co-
tcs porém são apena s os risos de zombaria e de alegria. Este último proprietário de uma funerária. A partir desse mom ento ele volta a
a nuncia sempre um certo sentimento coletivo que une os hom ens. ser jovial e seu mundo familiar restabelece-se imediatamente.
O riso cínico, ao contrário, é um riso individual e expressa aquele O humorista sobre quem escreve O'Henr y não devia ter lá
triunfo de um único hom em que não correspo nde ao instinto moral grande ta lento . Mas, quando um escrito r em plena força de suas
da coletividade, mas a ele se opõe . Este tipo de riso suscita repulsa qualidades e de sua genialidade é condenad o a repr esentar du rante
e indignação e não possui a proprieda de de contagiar. Ele não per- toda a sua vida o avesso da vida e, com isso, provocar o riso, sua
tence ao dom ínio do cômico. O riso como que estabelece a inferio- genialidade se transforma num destin o trágic o . Foi justam ente isso
ridade hum ana e conseqüentemente a social de quem se torna ob jeto o que con stituiu a tragédia de Gó gol, enquanto hom em e enquanto
de riso . O riso faz visível a tod os um defeito escondido . artista. No sétimo capítulo de Almas mo rtas ele, pensand o em si
Se o riso alegra, eleva as forças vitais, se ele marca a derrot a mesmo , fala do destino amargo do escritor, qu e fez subir à tona
de tud o o que consideramo s insignificant e, como explicar que os "todo o terrí vel e atordoant e limo daquelas minúci as qu e embru-
hum oristas e os satíricos são, mu itas vezes, em sua vida, bem o con - lham nossa vida , toda a profundidade de personalidades frias, frag-
trá rio de pessoas alegres, destacand o-se pela misantropia e por seu mentadas, cot idianas, qu e pulu lam em nosso cam inho nessa ter ra,
caráter sombrio ? " É sabido por todos", escreve Belínski no artigo às vezes tr iste e amargo, e com a grave forç a de seu impla cável
"As ob ras de Derjávin" , "que os gra ndes cômicos são, em sua buril, ousou colocá-Ias incisiva e claramente diant e dos olhos de
maioria, pessoas irritadiças e inclinadas à hipocondria, e que o sor- todo mu ndo !" A tragédia de Gógol estava no fato de que ele amava
riso quase nun ca aparece nos lábios daqueles que con seguem fazer profundamente aquela Rússia que ridicul arizava . Belínski, a propó-
com que os outros riam até as lágrim as". Esta opinião de Belínski sito da comédia de Giboiedov Os males da inteligência, foi extrema-
não é sempre incondicionalmente válida, mas, em muitos caso s, ela mente penetrante: "Cada ser humano tem dua s faculdades de visão",
é verdadeira e a própria possibilidade de o humorista ser triste diz ele, " uma, física , para a qual é acessível ape nas a evidência exte-
requer uma explicação . rior, e uma outra, espiritual, que penetra na evidência interior,
O riso de zombaria nasce do desnudamento repentino de defei- como necessidad e que brota da natureza da idéia" . Rindo, nos
tos. Ele é possível como uma explosão e é de curta dura ção. Depois olhamos - par a utilizar a expre ssão de Belínski - " com a vista
de rir, o hom em volta a seu estado normal. O riso contínuo e inin- física" , olhamos o mundo do ponto de vista exterior. Após ter
terrupto é impo ssível. Mas, se o riso é uma reação aos defeitos olhado para o mundo de seu lado exterior e físico, quem ri passa
humanos, pode -se supor que o riso de um humorista seja contínuo, depo is a olh ar normalmente para o lado interior da s coisas, isto é,
na medida em que ele vê na vida apenas mesquin hez e abjeção e, para o aspecto n ão cômico, ele, por assim dizer, desloca o olhar.
por isso mesmo, o risível. Uma vez admitida em particularidade, a Quando, ap ós ter criado suas obras de carne e sangue, aplicando a
capacidade de ver e de represent ar com expressividade todo o mal elas toda a força de seu gênio e de seu talento côm ico , G ógol quis
da vida não permeia o homem por inteiro; embo ra seja pesado deslocar o olhar para trás para representar um mundo onde não
para quem é condenado a isso, ainda não constitui uma tragéd ia. existissem apenas os Tchítchiko v e os Khlestak óv, não conseguiu
As provações de um humorista , qu e se tornou durante certo tempo mais fazê-lo . Nisto reside, em gra nde parte, a tra gédia de G ógol.
profi ssion al do humorismo , são descritas de maneira muito viva Ele teria podido exclamar, como o prefeito: " Eu não vejo nada :
por O'Henry em seu cont o Confissões de um humorista. Um homem vejo apenas focinhos de porco em lugar de rostos e nada mais".
alegre e espirituoso por natureza torna-se humo rista profissional.
Ele fecha um cont rato de um ano com uma editora . Ao s po ucos,
a necessidade de rir e de ser espirituoso sempre e em qua lquer lugar
e de fornecer as páginas combina das passa a ser para ele um tor-
mento. Ele perde sua alegria, a mulh er sente medo dele, os filhos
o evitam. Seu talento esgota-se rap idamente e o edito r nào renova
PROBLEMAS DE DmflN IO DA TÉCNICA ARTíSTICA ISS

27
das causas da inadequação encontra-se no "esquecimento daquelas
leis, procedimentos, meios e instrumentos graças aos quais os mestres
da arte cômica levam seus espectadores ao riso" (41, 29).
Uma da s causas que entres nós dific ultam o desenvolvimen to
Problemas de domínio da sátira reside em alguns pressupostos teóricos pelo s quais, às vezes,
se pauta m os autores, os editores, os redato res, os diretores, os crí-
da técnica artística tico s e os resenhistas . Um desses pressupostos engana dores é a teo-
ria do s dois as pectos do cômico . Em particu lar, so bre essa teoria,
falamos anterior mente, só qu e ela fo i vista co m relação a pro ble-
mas de teoria da estética e de sua meto dologia; agora é preciso co n-
siderá-Ia à luz da atualidade.
A teo ria dos dois aspectos do cô mico teve, entre nó s, uma
difusão ext remame nte amp la . Em pa rte ela so freu a lterações em
comparação com a estética do século X IX, em pa rte ela conserva
ainda a interpretação burg uesa dessa questão.
Lembremo s brevemente que na estética burguesa esta teoria
afirma a presença de alguns aspectos "superiores" de co micidade,
incluídos no conceito de belo e pertencentes ao âmbito da estética, e
aspecto s " inferiores" , que se apresentam como palhaçadas grosseiras
Em no ssa pesquisa ocupamo-nos da observação da essência e vazias para o entretenimento das massas incultas. Este aspecto do
da comici dade e de suas formas, sendo que ela teve, basica mente, cômico estaria fora do domíni o do belo e da preocupação da estética .
um caráter teórico . Po de parecer, à primeira vista , que para no ssa Hoje essa teoria modi ficou -se. É considerado aspecto superior
vida corrente não haja necessidade de uma teoria do cô mico . Pois da co micidade o satírico e o riso que ele suscita. O riso provocado
bem, isso não é verdade. Qualquer teo ria co rreta não tcm apenas por este gênero de comicidade é um riso ideologicame nte significa-
um valor teórico de co nhecimento, mas também um significado prá- tivo, valioso e necessário. Mas existe também um o utro tipo de comi-
tico , ap licado . cidad e, o tipo hum orístico , independente da sát ira . O riso qu e surge
A literatura humorística e satírica, as co médias teatrais e cine- deste tipo de co micidade não tem uma orientação social, é um riso
matográficas, o teatro de variedades e o circo são muito procura- sem idéias, exterior , natural, bufo , um riso de ordem inferior.
dos e muito populares em nosso país: eles goza m do favo r do público Segundo esta teoria a sátira e o humor seriam fenômen os diferentes
porque neles são representados satirica mente os defeito s qu e ainda e freqüenteme nte co ntrastantes entre si.
so brevivem em nossa vida e em no sso s cost umes; a arte ajuda a É verdade que o riso pode ser satírico e não satírico , mas toda s
superá-los . as o utras afirmaçõe s desta teo ria estão erradas .
Um dos req uisitos básicos de todos os gênero s artísticos contem- O primeiro erro está no fato de se considerar a sátira e o humo -
porâneos encontra-se na unidade dos princípios ideal e artístico. Não rismo como separado s, co mo baseados em aspectos diferentes da comi-
é possivel con hecer-se uma idealidade elevada separa da de uma alta cidade, enq uanto um estudo sistemá tico da com icida de, seja em obras
qualidade artística, e vice-versa, embo ra na prática esta unidade nem de caráte r satírico ou não, leva à conclusão de que os procedimentos
sempre seja observada. Entre a s causas deste fato está a tendê ncia do cômico são, em ambos os casos, perfeitamente idê nticos.
em descuidar do lado prop riamente artístico das obras, seu polimento Essa teoria empobrece os instrume ntos da sátira. Os partidá-
e seu acabamento . No âmbito da comédia isto significa não compreen- rio s da teo ria dos doi s aspectos da co micidade incorrem num erro
der as leis específicas da comicidade e não estar, portanto, em condi- lógico ba stante elementar quando não disti nguem o fim dos meios.
ções de valer-se delas . R. Iurêniev está certo ao considerar que uma O des nudamento satírico é o fim , enquanto o con junt o dos procedi-
186 COMICIDADE E RISO PROBLEMAS DE DOMiN IO DA TÉCNICA ARTl snCA 187

mentos necessários à comicidade constitui o meio, os instrumentos d ia e revelar o caráte r das personagens [...] Lembre mos, por exemplo,
gra ças aos quais se alcança o objetivo. A esse respeito é muito sutil a q ueda de D6btchin ski e 8 6btc hinski no momento em que prefeito °
e Khlestak6v têm sua primeira co nversa no salão ".
o titu lo do livro de D. Nicoláiev O riso - arma da sátira (1962).
Se substituirmos a palavra riso pela palavra cômico O sentido não A afirmação de que aquilo que é cômico a nível elementar
mud a , mas se tor na mais preciso . serve para aprofundar a comicidade dificilmente encontrará muitos
A comicidade é o meio, a sátira é o fim. A comicidade pode sub- defensores. Po der-se-ia aqu i falar ante s de ref orço do que de apro-
sistir fora da sátira, mas a sátira não pode existir fora da comicidade. fundamento. Em seus compromissos, Bóriev vai ainda mais além.
Outro erro dos teóricos dessa tendência está na afirmação de Ele qualifica tam bém como "cômico natural" e "cômico social"
que o riso assim chamado simples, habitual e não satírico é um riso aos dois aspectos da comicidade. Mas , inesperadamente, ocorre-lhe
desprovido de significado social. Um do s rep resentantes dessa ten- reparar o seguinte: "As caretas engraçadas do macaco e o compor-
dência é J . Bóriev, em cujo livro há uma nítida separação entre os tamento divertido de um filho te não pertencem ao cômico-natural".
doi s aspectos da comicidade. Ele separa os doi s conceitos de "cômi- Neles há sempre "algo de conteúdo social". No que con siste exata -
co" e de "ridículo" . Esse tipo de divisão já havia sido feito por mente o conteúdo social das caretas do macaco ficamo s sem saber.
Hegel e por out ros: B óriev apenas introduz nessa divisão o conceito Bóriev tenta definir do que o leitor tem e não tem que dar risada .
de 'Social, de público. O cômíco teria significado social, seria um Está absolutamente certo qu ando escreve: H A literatura soviética
conceito estético capaz de ter valor pedagógico . O engraçado (o risi- precisa daq uele riso que refo rça nossas instit uições soviéticas criti-
vel), ao contrário , seria uma categoria extra-estética , uma catego ria, cando os defeitos e extir pando os vícios" . Aq ui, porém, faltou dizer
por assim dizer, nat ura l ou elementar, sem impor tância educativa algo extre mamente impo rta nte e essencial, ou seja, que a sátira deve
ou social. Não passaria de uma " palhaçada de feira , farsa , bufona- ser cômica , engraçada . Uma sátira que não provoque o riso não
da ... ", " seria o riso mais primitivo". Contudo, aco mpanhando a cumpre sua função social, porque não suscita a necessária reação
argumentação de Bóriev, descob rimos que ele é o brigado a fazer do leitor e do ouvinte. Se isso for assim, devem ser estudados aten-
toda uma série de reservas que acabam , fundamentalmente, por esva- tamente os instrumento s de obtenção do efeito cômico. Nenhuma
ziar sua próp ria teoria. Assim, com relação àquilo q ue ele cha ma ·teoria da sátira é possível fora de um a teor ia do cômico que o con-
de riso elementar, é obrigado a admitir que " este aspecto de riso sidere seu instrumento essencial.
quase não tem mati z social". Ora, dizendo que " quase não tem", O estudo dos dois aspectos do cômico é habi tualmente acom-
quer dizer q ue, até certo ponto e em certos casos, ele o tem. O con- panhad o pelo estudo da comicidade estética e extra -estética. Nem
ceito de " quase" não é um conceito científi co . .Se, ao contrário, o todos os estudio sos, po rém, apóiam esta teoria . Ao ponto de vista
aspecto " inferio r" da comicidade pod e ter e tem uma conotação de Bóriev op õe-se o de Lim ántov, que escreve: " O cômico na arte
social então é necessário investigar até qu e medida e em quais con- é o reflexo do cômico na vida" . E Bóriev: " A ar te da comédia está
dições deste tipo de comicidade o mat iz social existe ou não existe. baseada no cômico cont ido na vida". O fato de qu e o riso não se
Falou-se em palhaçadas. Bóriev exprime uma opinião negativa quanto relacione, na vida, ao domín io da estética é for malmente verdadeiro.
a elas, mas logo em seguida faz uma ressalva: " No circo soviético Mas a estética que se afasta artificialmente da vida terá inevitavel-
a palhaçada to rna-se uma arma de desnudamento satírico". Aqu i mente aquele caráter abstr ato de que falamos antes . Em outros ter-
fica expresso aq uilo que deveria estar na base do juízo, ou seja: a mos, a idéia precedente pod e ser expressa da seguinte maneira : se,
palhaçada (e com ela também os ou tros aspecto s da com icidade "in- digamos, uma pessoa estiver carrega ndo um saquinho de maçãs e
ferior" ou " superficial") é um meio e o desmascarament o é um fim. de repente cair e as maçãs rolarem por todo lado, isso será engra-
Bóriev não pode sequer negar a presença de elemento s de farsa (isto
é, de aspecto s " inferiores" de comicidade) em obras de gra nde qua- • Assim está escrito : D óbtchin ski e Bóbtchinski, embora tod os os qu e viram ou leram
lidade artística. Sobre isso é assim que ele se expressa: O inspetor gerol saibam Que quem espiona e cai é apenas Bóbtchinski. A queda
de ambos ao mesmo tempo seria pouco válida artistica mente. A referência à q ueda
Os arti stas utilizam-se muito freqüentemente de uma comicidade de D ôbtchín skl e de Bóbtchinski é repetida no artigo "O cômico e os meios ar tísti -
elem ent ar para aprofundar e aguçar a situaçã o fundamental da comé- cos de sua expressão" (lI, 307).
188 COMICIDA DE E RISO
PROBLEMAS DE DOM fNI O DA TECNICA ARTíSTICA 1811

çado . Mas, se o mesmo acontecer no palco ou num filme, isso já As alegres comadres de Windsor, A décima segunda noite, Muito
dirá respeito à estética. E neste caso o episódio já não será engra- barulho por nada e, no fim , irão lhe parecer reacion árias todas as
çado, mas cômico, e de uma com icidade "inferior" . "s uperficial" suas comédias e as de muitos outros clássicos.
e "sem conteúdo ideo lógico". A idéia de que uma comédia divertida seja nociva e inaceitável
Agora. se quem cai é, digamos , um burocrata ou um pope, ou e que, conseqüentemente, a sátira e o humor sejam conceitos opo s-
um outro personagem negativo, o fato já suscita uma forma superior tos encont ra opo sição , hoje em dia , não apenas po r parte de muitos
de riso , é um riso de desmascaramento e ideológico . Os exemplos de teóricos , mas também dos que se ocupam, na prática. da arte cômica
que tratamos em alguns aspectos se diferenciam, em outros coincidem. (diretores de cinema ou teatro, arti stas etc .). Já Belínski, em seu
O fato (o acontecimento) é idêntico em todos os casos, e os casos se artigo "A divisão da poesia em gêneros e aspectos" , dizia que na
diferenciam pelo contexto em que o fato se realiza ou pela maneira base da sátira "deve encontrar-se o humor muito profundo" . Mais
em qu e ele é apresentado. Para resolver a questão da natureza da incisivamente ainda ele se expressou num outro artigo: "Significado
cornicidade, o que importa em primeiro lugar é o acontecimento e o geral do termo literatura" . O humor é "um instrumento extrema-
uso que dele é feito terem um significado secundár io. mente poderoso do espírito de negação, qu e destr ói o velho e pre -
As idéias exposta s por Bó riev são comun s a outro s estudiosos. para o novo " (8, v, 645). Está sem dúvida correto Elsberg quando
O engraçado (r idicu lo, risível) é um aspecto artístico de po uca escreve: "Já não tem mais sentido a teoria que opõe a sátira ao riso,
monta . o aspecto realmente valioso é o cômico . " O ridículo se torna ou sentimento do cõmico. As diferentes manifestações do cõm ico e
cômico justamente quando ele é preenchido por um conteúdo toda a gama de seus matizes sempre obedecem, na sátira, às tarefas
social" . diz Simántov. "Além do cômico-elementar existe na reali- funda me ntais que ela tem de desmascara r" (39, 282). No livro No
dade também um outro tipo, o cômico-social, que é a manifestação laboratório do riso, Vulis coloca-se com argumentações convince ntes
das cont radições da realid ad e, mas trata-se de contradições de cará- decidida mente contra a oposição sátira / humo rismo: "É difícil ju stifi-
ter socia l. Ele atinge pro cessos profundos qu e oco rre m na socie- car uma delimitação tão brusca e categórica entre sátira e humoris-
da de humana" , escreve D. Niko láiev. P ois bem, essa co nsideração mo" . Um de seus argumentos é o seguinte: "Por mais importante que
passo u a fazer parte dos manuais. Tentando esclarecer a questão seja a diferença entre um simples piadista e um satírico, a técnica
do desenvolvim ento da co média, G. Abramóvitch assim se expressa: com a qual o riso é produzido se desenvolve segundo um esquema
"as co médias podem fundamentar-se ora numa comicidade superfi- quase idêntico" . A palavra "esquema" pode não ser aqui completa-
cial, ora numa temática social" (4, 330). A nosso ver , tem ática mente oportuna, mas a argumentação é certamente correta.
social e a ass im chama da comicida de superficial não são excluden- Não encontra sustentação também a idéia qu e nega significado
tes, e isso pode ser visto nos exemplos da comédia clássica russa. social ao simples riso de alegria qu e é desprovido de malícia. Nas con-
De um a maneira geral, podemo s dizer qu e nos estudos soviéti- dições de nossa realidade o riso comum de a legria, em particu lar o
cos de estética existe a tendência de separar a sátira do humorismo. riso coletivo , tem um significado social indiscutível. É indispensável
De acordo com essa teoria, sátira e humorismo representam aspec- tomar a defesa de todos os aspectos da alegria imediata - do teatr o
tos diferent es de comicida de , com significado socia l diferent e. As popul ar , do circo , do teatro de var ieda des, do cinema , dos palhaços
comédias des providas de sátira po dem at é ser qualificadas de reacio - e das palhaçada s. Os palhaços, qu e levam a rir cordial e alegremente
nárias. No mesmo manual Abramóv itch escreve: "A criação de uma multidão de milhares de pessoas de mod o qu e elas saiam do circo
uma comédia que seja apenas divertida costuma servir a grupos rea- divertidas e satisfeitas, cum prem uma função social bem definida e
cionário s de escritores como instrumento para distrair os espectado- útil, que pode estar ou não ligada ao tema do desmascaramento. Pelas
res dos problema s essenciais da vida social e para privar a própria memó rias de Górki sabemos que ap reciava bastante a arte dos palh a-
comédia do palhas ideal e mo ra l que lhe é próprio" (4, 300) . Se ços. Em Lon dres , Lênin e Górki fora m juntos a um espetáculo demo-
após ter lido estas linhas um estudante quiser refletir seriamente crá tico de music hall. Górki escreve: "Olhando as fantasias dos
sobre seu sign ificado e levá-lo às últimas cons eqü ências, terá que clowns , Vladímir Ilitch ria com gosto de um riso contagíante, enquanto
incluir no rol das obras reacionárias comé dias de Shake speare como todo o resto o deixava indiferente" (I, 515).
PROBLEMAS DE DO\1fNIO DA T~CN ICA ARTlsT ICA 1111
190 COMICIDA DE E RISO

o riso de alegria, mesmo que não se oriente para o satírico, humorística, parece-me uma enorme hipocrisia ' !". Nós dizemos isso
é muito útil e necessário socialmente porque desperta a alegria de não par a negar o valor das comédias de conteúdo ideológico, mas
para justificar "a arma do riso " e colocá-la a serviço do comunismo.
viver, cria o bom humor e com isso eleva o tônus da vida. A . V.
Negar teoricamente o valor da comicidade enqua nto tal coloca
Lun atch árski escrevia em 1920:
em posição difícil não apenas os artistas , mas tam bém os diretores
Ouço rir freqüentemente. Vivemos num país fria -e esfomeado, há pouco e para lisa sua possibilidade de criação.
tempo feito em pedaços por nossos inimigos, mas mesmo assim ouço
rir: vejo rostos risonhos pelas ruas, ouço como ri a multi dão dos operá- Est ou profunda me nte co nvencido - esc revia N. Ak ímov - de que
rios e dos soldados do Exército Verme lho ass istindo a espe táculos ale- nossos es tudiosos de teoria d a arte colocara m-se num beco sem
gres ou a um filme divertido. Ouvi gargalhar também no tront, a atç u- saída co m os problemas da comédia a tal ponto que. mesmo se nas-
mas verstas do local onde o sang ue era derramado. Isso demo nstra cessem hoje uma cen te na de talentos côm icos , eles não teriam
que em nós existe uma grande reserva de vitalidade pois o riso é indi- nenh uma possibilidade de chegar até os espec tadores (...] através
cio de vital idade. Aliás, o riso não é apenas indicio de vitalidade, ele é daquela mul tid ão toda de erudi tos que permanece ao redor do berço
a própria vitalidade (...) O riso é o indício da vitória. da arte (5, 357).

Não vamos ficar especulando aqui sobre que tipo de riso , se Essas observações, porém, são pouco eficazes junto aos parti-
"elementar", "exterior" , "baixo" ou , ao co ntrário , "estético" , dários de uma divisão rigorosa entre a sátira e o humorismo. Assim,
"su perior" . era o riso dos combatentes a poucas verstas do fro nt . no prefácio do editor a uma coletãnea de conto s do hum orista turco
Aziz Nessin lê-se: "Os contos de Az iz Nessin são divertidos, argu-
Provavelmente tratava-se do riso "elementar" . "Quem alegra, inte-
tos e, o que é mais importante, permeados de espírito cívico e agu-
gra" , diz o provérbio 1 e poderíamos apresentar toda uma série de
damente social" (28, 2). O sucesso desse escritor explica-se " sobre-
ditos como este", tudo por sua modern idade e atuali dad e". Mas, se a atua lidade , a
O riso é importante como arma de luta, mas é também neces- modernidade c o espírito cívico estão em primeiro lugar, se isto é
sário enquanto tal como manifestação de alegria de viver qu e esti- o que mais importa e o que mais vale, o que vale menos? Menos
mula as forças vitais. " O que se to rno u rid ículo não pode ser peri- importante, pelo visto , é o fato de que ele seja "di vertido" e "argu-
goso" (Voltaire). " To rna r algo rid ículo significa ferir o próprio to ", isto é, a co micidade e seus meios artísticos.
nervo da vida" (Lunatch árski), " Um bom riso cura a alma" (G ór- Os aut ores desse prefácio expressam uma idéia bastant e difusa,
ki). "Se um homem não compreende as brincadeiras - adeus! E ou seja, que numa obra de arte haja algo de "mais importante" ,
sabem, não pode ser realmente inteligente, mesmo que seja um tendo em vista com isso todo O conjunto do co nteúdo ideológico,
poço de sabedo ria" (T ch ékhov) . e algo de "menos importante" , ou seja, as técnicas c a forma artís-
Ígor lIínski expressa-se de modo ba stante perempt óri o sobre tica. Para nós, ao contrário, nem um nem outro são mais importan-
o riso com ou sem conteúdo ideológico . Ele não os co ntrapõe , nem tes tomados separadamente, mas o é um elevado teor artistico encar-
rebai xa o hu mo rismo por conta da sátira. " A comédia educa à dig- nado num elevado projeto ideal. Uma obra artisticamente fraca
nidade o homem soviético. " Essas palavras ele as escreve em negrito . ou sem valor artístico não contribui para a dif usão e o reforço das
E afi rma explicitamente, de maneira clara e inequívoca, os direitos idéias que nela estão expressas. Isso só oco rre com uma genuína
da gra nde comédia civil. Só que, de mod o igualmente díreto e ine- obra de arte . A capaci dade de con vencer artistica mente é uma das
quívoco, ele diz: "S ão necessárias todas as formas e aspectos do primeiras co ndições para convencer ideol ogicamente . Quanto mais
cômico, todos os gêneros de co média" , "criticar O vaude ville por- elevado o nível artístico, tan to mais for te a ação de suas idéi as ?. .
que ele é 'leve' , repreender a brincadeira porque ela não co ntém Não é suficiente criticar uma obra por não ter saído bem, em
nenhuma impo rta nte lição de vida , combate r o humor de uma obra geral. O teórico especialista é obrigado a apontar pelo menos algu-

• lgor Illnski , artista popular da U RSS. "Com a arma do riso", Pravda, 5 jul. 1%4 .
I Em russo "Kto luidéi vesselit, la tavô vies sviet stoit" .
2 Oadjetivo russo idéini. literalmeme "d e idéia" . pode significar ideal ou ideológico.
• Vide V . Dal. Pro vérbios do pov o russo [Posló l-'itsi rússko vo naróda) . 1957. Em
Na traduçào procuramos respeitar a acepção indicada pelo contexto.
particular. veja-se a seção "Riso. brincadeira, alegria" . p. 867·7 1.
lV2 COM ICIDADE E RISO P R O B L E ~1 A S DE DOM lNIO DA T ÉCNICA ART fsT ICA 193

mas ralhas específicas, para que, na medida do possível, não se repi- dade. O mesmo pode-se dizer de muitos escritores estrangeiros,
tam. É isso o que pretendemos fazer. Muitos enganos de satíricos e como, por exemplo, O' Henry . Ao contrário, alguns escritores con-
de humoristas provêm do fato de eles não entenderem ou não conhe- temporãneos, no afã de procurar o efeito cômico e os meios para
cerem o cômico e sua técnica. Ilustraremos esta situação com alguns realizá-lo, recorrem à repetição ; só que, com isso, em lugar de refor-
exemplos. çar o efe ito, o enfraquecem e diminuem ao mesmo tempo também
Já dissemos que o riso tem O caráter de uma explo são , não a mordacidade satírica. Para tornar concreta esta afirmação, dare-
podendo port ant o prolongar-se. Já roi mostrado q uais processos mos tão-somente um exemplo. No livro já citado do humorista turco
intervêm , durante o riso, na consciência ou na percepção de quem Aziz Nessin existe um conto com o título "Uma história médica".
ri. Para quem ri, o riso surge de repente, embora possa ser prepa- Um tio do escritor, descrito corno rico e avarento, começa a sentir
rado de algum modo. Já roi explicad o, Finalmente, por que um dores de barriga, mas não sabe dizer exatamente onde . Um conhe-
fenômeno capaz de suscitar o riso da primeira vez não O consiga cido recomenda-lhe um professor extraor dinário, capaz de fazer
mais numa segunda. Desses princípios deco rre uma série de normas milagres. O professor explica que o doente sofre de úlcera estoma-
de natureza artística. cal. A operação revela não existir úlcera nenhuma. "Assim mesmo
Uma delas é a exigência da brevidade. - ele diz (o doutor - V. P.) - , é preciso justificar meus honorá-
Pode ser verificado que um dos erros mais comuns cometidos rios. O trabalho não pode ser desperd içado! - E extirpa meio estô -
pelos aut ores de peças humorí sticas está justamente na extensão de mago ao titio." Até esse momento o conto não ocupou mais de
suas obras. O fato de que o humo r não é compatível co m a prolixi- duas páginas. Ele é autenticamente cô mico: seu co nteúdo ideológico
dade já foi apontado há tempos e continua a sê-lo, por criticas e é uma sátira ao serviço médico privado nos países burgueses e à
teóricos da estética. Jean Paul escreve em sua Estética: liA brevi- ganância dos médicos ignorantes - nada há a ser objetado: o ser-
dade é o corpo e a alma da argúcia, o u melhor, identifica-se com viço médico pago se apresenta como pernicioso e se presta a abusos .
ela" . O mesmo dizem os estudiosos modernos de estética, soviéti- Bastaria agora inventar um final cômico e inesperado e o co nto esta-
cos ou nào: "Na sátira a brevidade não é tanto a irmã do talento 3 ria terminado. Mas o auto r não pensa assim. O episódio da opera-
quanto o próprio talento, sua essência e, em qualquer caso , sua con- ção errada repete-se ainda nov e vezes, a saber:
dição sine quo non ": "A força do conto humorístico está, por sinal, 1) o médico sucessivo diagnostica erro neamente doença de rins e
em seu laconismo. Ele deve ser co mprimido, como a mol a de gati- um rim é retirado ;
lho [.. .1 A verbosidade é o mal de nossa literatur a humorística. 2) retiram-lhe os calos;
Aliás, não apenas da humorística" (44, 26). 3) o intestino cego apresenta uma inflamação, sendo portanto retirado;
O caráter prolixo reside, po r sinal, no fato de o mesmo proce- 4) o médico seguinte extirpa-lhe parte do intestino, tendo diagnosti-
dimento ou o mesmo episódio cô mico serem repetidos várias vezes cado uma oclusão intestinal;
em diferentes variantes. Já tivemos ocasião de averiguar por que 5) são-lhe extirpadas as amigdalas;
uma piada é engra çada apenas da primeira vez e já não da segunda. 6) o endocrinologista castra-o pela metade;
Nicolai Har tmann assim se manifesta sobre o assunto: " Se [.. .1 o 7) todos os pêlos do corpo são -lhe cortados, inclusive os cilios;
ponto culmina nte é ultrapassado, a comicídade se esgota . Não se 8) todos os dentes são-lhe arrancados.
pode, portanto, demorar nesse ponto . Não se pode admitir nova- Cada uma dessas operações é descrita do mesmo modo, em
mente a ação de um escorregão , quando ele já ocorreu uma vez" expressões exatamente idênticas. O leitor cansa-se rapidamente e
(16, 364). Os contos satiricos popu lares são sempre curtos e engraça- já não acha mais graça no enredo do conto ; quem sabe possa sent ir-
dos . Um mestre do conto humorístico breve roi T ch ékhov e em se inclinado a rir de seu autor. Só agora é que chega o final cômico :
todo s os volum es de suas obras não há um único caso de prolixi-
9) o doente viaja a Paris e um médico francês descob re a verdadeira
causa da doença: na garganta do paciente enta lou-se uma cerda
3 Referência a uma famosa frase de A . P. Tch ékhov. da escova de dentes. A cerda é retirada e o doente sara.
194 COMIClDADE E RISO
P R O B LE ~1 A S DE DOMINIO DA TEC NICA ARTi sTI CA 195

Além do defeito funda mental - as repe tições e a prolixi- estariam elas infringindo as normas da brevidad e? Para respo nder
dade -, neste conto há ou tras infrações às normas da comicidade, a esta perg unta é preciso observar com atenção a composição e a
mas delas tratarem os mais adiante. " Uma insist ência excessiva estr utu ra dessas obra s. Ver-se-á que as obras dramáticas, de um
na comicidade, uma vez qu e foi obtida, anula-a" , observa , a esse lado , e as obras narrativas, de outro, se constroem de modo dife-
respeito, Nikolai Hartmann . rente. As obras narrativas extensas não contêm nenhuma intriga
É engraçado qu ando os estrangeiros estropiam nossa língua. cômica . Um dos prin cípios composicionais de tais ob ras consiste
Mas, qu and o vai-se esticando o assunto por algumas páginas (e há no fato de qu e o herói desloca -se, viaja, dá voltas. Este princípio
uma porção de casos) , dá vontade de jogar o livro nalgum canto . é conhecido há muito em toda a litera tura mund ial. Pode ser encon-
A propósito , ingleses, alemães, franceses e outros estropiam o russo trado , por exemplo, em Apuleio, no Asno de ouro. Du rante as via-
de modo diferente . Os autores freqüentemente não o sabem e obri- gens do protagonista acontecem as aventuras mais variadas. O cará-
gam sem dó nem piedade os estrangeiros a malt ratar o russo durant e ter da s avent ura s representadas pode variar conforme a época, a
páginas e páginas de modo que o leitor em lugar de rir fica com raiva. cultura po pular do país, o anto r, o tipo de suas aspirações e seu
Podemos apontar aqui, entre ou tros, O erro cometido às vezes talento . Sobre o mesmo princípio básico é possível a mais ampla
por professores de línguas estrangeiras que, no pro cesso do ensino, variedade. Esse tipo de composição dá a possibilidade de organizar
despejam sobre os alunos um sem-número de a nedotas e pilhérias. os episódios cômicos, que são curtos. Os episód ios podem não ter
Uma ou duas brincadeiras avivam as horas de estudo e despertam a um fio condut or nem estarem ligados entre si e sua seqüência pode
atenção já cansada. Mas, quand o conta r piadas se torna um sistema, ser altera da.
não apenas o aluno custa a entender , mas aca ba se cansando mais Na Baixa Idade Média alemã surgiram livros populares sobre
do que se cansava com a gramática. Contar duas ou três piadas em as aventura s de TiU Eulenspiegel e sobre os feitos dos sete suevos.
seguida é possível e até útil, mas contar dez ou quinze já não dá. Na sua base estão temas folclóricos diversos reunidos juntos. O mesmo
. Aquil o qu e se falou quanto à prosa vale também para o teatro. vale, em grande parte , também para as aventuras de Münchhausen.
E impo ssível conservar o especta dor rindo por muito tempo , é neces- E, no estado puro , esse princípio compo sicional está também na
sário variar a gama dos sentimentos que nele são suscitados. base de Dom Quixote.
Isso se refere tanto à comédia cinematográfica quanto à tea- Nas viagen s do pro tagonista se baseia também a composição
tral. É possível manter longamente o sorriso do espectador, nu nca de A lmas mortas. No que se refere ao período soviético estão den-
o riso. Quanto a isso Iurêniev afirma: tro do gênero os do is romances de Ilf e Petróv, As doze cadeiras e
O bezerro de ouro. A desconexão e o caráter casua l do s episódios
o espectado r cansa de rir o tempo tod o. Para poder rlr de novo ele e de sua seqüência não excluem a unidade interna da obra como
deve de vez em quando experimen tar out ros sentim ento s: pena , raiva,
com paixão, apreensão , curios idade ou medo. Depois disso ele está tal, qu e pode realizar-se de maneiras bastante diversas. Po r mais
de novo pro nto para rir, alegrar-se, espai recer (40, 227). diferen tes que sejam esses rom ances, permanece sempre a brevidade
dos episódios cômicos que fazem par te de sua estr utura .
Pod eríamos recomendar para os ensaios de teoria da comédia
Deve-se dizer, entretanto, que as obras em si não podem ser
nas escolas de teatr o ou para os seminári os com escritores principian-
demasiado longas. Almas mortas não é uma ob ra longa e não há
tes que se a nalisasse, a par tir desse ponto de vista, uma comédia de
uma única página que canse o leito r. Sobre o genial Dom Quixote
Ostróvski (ou de outro autor) e qu e se definisse o grau de seu valor
já não se pode dizer O mesmo . O leitor médio contempo râneo, via
artístico. Aqu ilo que se postula aqui, baseand o-se em considerações
de regra, chegando à segunda metade do livro, a ba ndona-o. Os con-
teór icas, Ostróvski e outros grandes dramatu rgos o sa biam e o com-
preendiam por int uição. tempo râ neos de Cerva ntes tinh am mais paciência e tempo livre do
que nós. De certa prolixidade sofre m também os romances de Ilf e
A brevidad e da narrativa não é, contudo, uma norma absolu- Petróv .
ta. Ela o é apenas para os contos , as anedotas e as peças humorísti- Um o utro princípio sobre o qual podem const ruir-se roman-
cas. Existem extensas obras narrativas de caráter humo rístico . Não ces cômicos ou hum orísticos é a disposição da ação no tem po.
1\16 CmflClDADE E RISO
PROBLEMAS DE DOMíNIO DA TÊCNICA ARTíSTICA 197

Quando a narrativa se baseia nas viagens do protagonista, o tempo, vida. Nelas a ação não se desenvolve mas se desenrola e elas podem
é claro, também aparece, mas ele não constitui o eixo que seria deter- ter minar a qualquer momen to . TiII Eulenspiegel ter mina com a
minado pelo curso da narr ativa. A compos ição baseada no tempo morte do protago nista . O próprio Dom Quixote morre também
dá-se nos romances de caráter biográfico, nas narrativas sobre a sereno e apaz iguado . O clube Pickwick dispersa-se. Em A lmas mor-
vida da personagem, como ela se desenvolveu e o que se passou. tas, Tchítchikov parte sem ter alcançado seu objetivo e sem ser des-
São desse tipo, por exemplo, os romances picarescos espanhóis mascarado até o fim por ninguém. Algumas vezes os autores, anima-
como o Lazarillo de Tormes e outros. O conteúdo desses romances dos com o sucesso de suas ob ras, publicam sua contin uação. Após
versa so bre a história de um servo que muda várias vezes de patrão As aventuras de Tom Sawyer apa recem As aventuras de Hu ckleberry
e os faz a todos de bo bos. Aqui também o protagonista, mudando Finn, Tom Sawyer no estrangeiro, Tom Sawyer detetive. IIf e Petróv
de patrão, pode transferir-se de uma cidade a outra. Durante a via-
após deixar morrer Ostap Bender em As doze cadeiras (do que se
gem e nas tavernas acontecem-lhe uma série de aventuras e contra-
arrependeram depois) ressuscitaram-no num novo romance, O bezerro
tempos, dos quais o herói consegue safar-se, mas não são esses deslo-
de ouro .
camentos episódicos que constituem o eixo do romance. Um romance
cômico característico desse gênero é o alemão Simplicissimus, de Nesse aspecto a técnica das obras de narrativa de caráter humo-
Grimmelshausen , que narra a vida e os feitos de um soldado na rístico e a das obras dramáticas - onde é necessário o entrecho , o
época da Guerra dos Trinta Anos. O livro de Jaroslav Hachek As contraste, o desenvolvimento narrativo da trama e seu desenlace
aventuras do bravo soldado Chveik é um exemplo brilhante contem- - diferenciam-se em princípio. Se numa obra narrativa deste último
porãneo desse tipo de romance. A co micidade dessas obras não está tipo é possível variar a ordem dos episódios, é absolutamente impos-
baseada apenas nos episódios cômicos, mas também no tipo de pro- sível, numa boa comédia, mudar a sucessão dos atos. Com sua
tagonista principal. Ele representa o caráter do homem do povo que genial penetração, Gógol, a partir de dois episódios que lhe co ntara
nunca se deixa abater, sempre grandemente cético diante das conven- P úc hkin, fez, de um, uma obra narrativa e, do outro, uma comédia.
ções socia is em que vive como agudo observador: é através dos olhos Em Almas mortas Tchitchikov viaja para diferentes lugares, e isso
dele que o autor representa o mund o. é bom para uma narrativa, enquanto em O inspetor geral toda a
Tamb ém o romance de Mark Twain As aventuras de Tom ação oco rre no mesmo lugar, desenvolve-se depressa e leva a um
Sawyer é construído sobre uma série de episódios. desenlace - o desmascaramento completo do impostor involuntário
Podem existir romances cômicos e satíricos de co nteúdo histó- e da estupidez daqueles que nele acreditaram. A composição é tipi-
rico ou pseudo-histórico, como o livro de Saltik óv-Schedrin Hist ô: camente dramá tico-teatral.
ria de uma cidade. Essa diferença fica razoavelmente clara . O que não o fica sufi-
Aliás, os princípio s da disposição dos episódios, conforme as cientemente é, ao contrário, o problema da técnica à qual tende (ou
etapas do deslocamento dos protagonistas ou conforme o tempo, deveria , para ser arti stica) a comédia cinematográ fica. Será que ela
não se excluem um ao outro. Um exemplo genial de fusão desses pertence ao gênero estritamente dramático ou ao gênero da adapta-
dois princípios é o livro de Dickens Memórias póstumas do Pick- ção cinematográfica das narrativas? Esse é um problema que inte-
wick Club. Suas personagens viajam , mas realizam longas parada s ressa aos diretores de cinema. Alguns acham que para uma comédia
durante as quais incorrem em diversas aventuras que, às vezes, cinematográfica é necessário um argumento bem construído, outros
assumem o caráter de inserções de co mplexas intrigas amorosas, O negam. Ao primeiro grupo pertence lurêniev que escreve: "A
que se concluem satisfatoriamente com o casamento. ausência de um enredo bem delineado coloca gra ndes dificuldad es
Desse modo, embora sejam possíveis não apenas narrativas para o especialista, o diretor, o ator" ; "A co nvicção de alguns come-
humorísticas breves, mas também longas. elas são sempre constituí- diógrafos (isto é, auto res de comédias cinematográficas - V. P.)
das de uma cadeia de episódios breves, exteriormente ligados entre
de que não seja indispensável um enredo unitário e dramático, isto
si. Essas obras não possuem nem nó 4 nem linha de ação desenvol-
é, de ação , está profundamente errada" (40, 245-6). Em nosso ponto
de vista, Iurêniev aqui está equivocado . Ele transfere para a co mé-
4 Do russo zaviaska: "nó da aç ão". dia cinematográfica os princípios da comédia especificamen te tea-
19H CO.\ll CIDADE E RISO
PROBLEMAS DE Om.IiN IO DA TÊCN ICA A RTísTICA 199

traI. Ninguém irá negar que na tela são possíveis comédias com netes , O caráter marionetístico das personagens não é incompatível
um enredo claramente desenvolvido e articulado. Mas as po ss ibilida~ com os tipos desse rom ance. Cont udo , o espetáculo empobrece o
des do cinema são mais amplas que as do teatro. No palco , onde o romance , não o substitui e não reproduz toda a amplidão do enredo
número de atos ou quadros é limitado , onde os lugares e as cenas e a sutileza dos autores.
são repetido s, a exigência de um enredo fechado e compacto é Ao continuar o estudo das grandes narrativas cômicas, temos
imprescindível. Para o cinema, ao contrário, onde podem ser mos- que levar em consideração aquilo que constitui seu conteúdo , além
trados numa seqüência rápida os mais diferentes lugares de ação _ dos episódios engraçados. Quando o relato tem um caráter pura-
desde os cômodos mais apertados até os cumes de montanhas cober- mente fantást ico (Münchhausen), seu conteúdo prin cipal e seu obje-
tos de nuvens e as paisagens de todo s os países do mundo -, onde tivo devem ser o entretenimento. Já as grandes obras realistas têm
é possível colocar um após o outro uma longa série de episódio s um caráter diferente. O estilo realista permite a possibilidade de criar
sugestivos, variados, previsíveis e inesperados, onde se pode mos- amplos qua dros que realçam a realidad e, tal como ela é vista pelo
tra r uma ação de qualquer duração e complexidade, a presença de autor. Os romances picarescos espanhóis refletem bem a vida real
um enredo bem amarrado não constitui uma lei estética, como não da Espanha do século XVII. O Simplicissimus pode servir como
o constitui também para as grandes obras de narrativa humorística. fonte para o estudo dos costumes e da vida da Europa Central no
Uma vantagem do cinema sobre o teatro , que não pode ser subesti- tempo da Guerra dos Trinta Ano s. Diz a epígrafe ao romance: "Gos-
mada, está na possibilidade de amp los quadro s de ação e de amb ien- tei de dizer a verdade, através do riso", que, por sua vez, é a trans-
tação . O espectador de uma comédi a cinematográfica não exige posição do dito latino: "ridendo dicere vcrum" (rindo, dizer a verda-
uma lógica abso lutamente rigorosa, nem a exige o caráter cômico de), que remonta a uma sátira de Horácio.
da ação. O espectador quer ver, quer rir e pensar naquilo que viu É desnecessário dizer que Gógol, ao criar Almas mo rtas, tin ha
e em suas exigências instintivas ele está certo . Pod e-se transpor diante de si a mesma tarefa. Isso posto, é preciso entretanto ter
para o cinema obras como Dom Quixote ou O bezerro de ouro, em mente que o cômico não permite esboçar um quadro completo
mas a tent ativa de transpô-Ias para o palco não pode ser bem-suce- da vida: um grande romance cômico mostra sempre os defe itos e
dida . A ópera de Massenet ou o balé de Minkus "Dom Quixote" não os aspecto s positivos , po is estes não costumam ser cômicos .
são constituídos só por alguns episódios e não apenas não dão Os matizes cômicos dessas obras são sempre e somen te de tom satí-
nenhuma idéia da obra genial de Cervantes, mas, ao contrário , a rico. Explicam-se assim os ataques que Gógol sofreu em seu tempo .
deformam, mesmo que possam ser apreciadas a música e a coreo- Ao referírmo-nos a problemas de técnica artística, é indispen-
grafia. O romance transformou-se em pretexto para uma arte de sável considerar um deles de que até agora não tra tamos . Ele con-
outro tipo e de outro gênero. Ao contrário, a realização e o sucesso
de comédias cinematográficas como Volga- Volga>, ond e os contor-
siste no fato de existirem do is estilos fundamentais de narrativa
cômica ou de representação dramática: o estilo fantástico e o estilo I
I
nos do enredo são tomados de forma bastante amp la, mostram cla- realista. As definições são con vencionais: num caso, admite-se na
ramente que entre os princípios da comédia teatral e da comédia narrativa a alteração das leis da natureza, no outro, não . Estes são
cinematográfica existe uma grande diferença e que não é possível os critérios externos da distinção .
aplicar mecanicamente os princípios de um gênero a outro. Ambos os estilos têm direito de existir. No fantástico fundam-
Já o teatro de marionetes ocupa um lugar intermediário entre se, por exemplo , os contos da Vlgtlias numa granja perto de
os dois gêneros . As possibilidade s cênicas do teatro de mario netes Dikanka, cujos argumen tos são retirados do folclore ucran iano .
são mais amplas do que as do teatro de atores, mas mais restritas A exceção é con stit uída pelo conto completamente realist a I van
que as do cinema . O bezerro de ouro, que teria sido impossível Fiódorovitch Chponka e sua tia. Em Mirgorod já prevalece o estilo
transpor para o palco, teve, ao contrário , sucesso no teatro de mario- realista (Proprietários de terra à moda antiga , Como brigaram
, Ivan Ivánovitch e Ivan Nikiforovit ch) e, mais tarde , ao escrever
5 Volga-Volga : comédia musical produzida em 1938, dirigida po r um co labo rador O inspetor geral e Almas mortas, G ógo l torna-se um dos fundado-
de Serguei Eisenstein. res do realismo russo .
200 COMICIDADE E RISO PROBLEMAS DE DOMIN IQ DA TÉCN ICA ARTíSTiCA 201

Um auto r é livre de escolher um ou outro estilo de narração . de tod o tipo . Daremos um único exemplo . G. Rílin escreveu um
É possível mistu rá-los? Este é um do s pro blemas ma is difíceis da conto completamente realista intitulado Por favor . Seu protagonista
estética aplicada . O estudo dos clássicos nos mostra que. em princí- é N. N ., o que, para um conto humorístico . não é uma escolha feliz,
pio, isso é possível. Um exemp lo é O nariz, sempre de G ógol, Entre- pois já repre senta uma certa abstração da realidade e não se pre sta
tanto, observando como são relatados os fatos, verificamos que a à leitu ra, especialmente em voz alta. Tendo em vista o que foí dito
exposição, desde o começo , é de caráter misto e o leito r não espera anteriormente a respeito dos nomes humorísticos. N. N. não é um
nada de diferente. O barbeiro Ivan Iák ovlievitch , descrito de for ma nome cô mico. Mas isto não é tud o . N. N. está indo para o campo,
completament e realista, tomando seu café da manh ã encontra de para uma temporada. Dali a pouco lê-se: " N. N. tro peçou umas
repent e um nari z dentro de um pãozinho recém-saído do forno . A duas vezes. Tendo percebido isso, a lua nova saiu de trás dos topos
partir daí tudo começa. O estilo é definido imediatamente. das árvores e iluminou o atalho por onde andava". A repentina
Mestre da comicidade fantástica. que, ao mesmo tempo, tem contaminação do plan o realista pelo fantástico mat a qualquer comi-
um caráter completamente realista , foi Saltikóv-Schedrin. Basta refe- cidade. Aind a por cima , há , inclusive, um deslize sintático. Na frase
rir aqui seus Contos maravilhosos e. num outro plano , a Histó ria "a lua iluminou o atalho por onde andava", o leitor pode entender
de uma cidade. O caráter fantástico da comicidade combina-se com que a lua é quem andava, e não N. N. , coisa que. obviamente , o
o tom completamente realista da narrativa e o leitor percebe isso autor não tinha em mente.
logo . A mistura de fantástico e realista constitui aqui o estilo pri- Outro erro que se encontra freqüentemente é a incapacidade
mordial da narrativa. de se manter dentro dos limites das hipérboles cômicas. Nenhum tra-
Na literatura alemã o mestre da mistura dos dois planos foi
tado de estética ou poética poderia prescrever dentro de quais limi-
Hoffmann. tes sejam ou não possíveis e admissíveis os excessos deste gênero.
Em que casos pode-se con siderar artística a comb inação de
É questão de talento, de faro, de senso de med ida . Não é absoluta-
fantástico e realista e em quais não?
mente a mesma coisa tratar de comicid ade realista ou de comicidade
Ela é ar tística quando constitui o principio primordial de uma
fantástica . Nas obras fantásticas as hipérbol es pod em ser de propor-
narrativa e o leitor o percebe claramente, desde as primeiras linhas.
ções descomunai s, e elas passam a ter, então, um caráter grotesco .
Ca madas realistas são plenamente plausíveis e artística s também
em obras fantást icas, como aco ntece po r exemp lo nas Vigilias de
G ógol, Inadmissível, do ponto de vista artístico , será a relação
Nisto se baseia a comicidade de Rabelais. No estilo realista, ao con-
trário, a comicidade nasce apenas no caso em que o objeto da narra- I
inversa: não é possíve l, de repente, numa obra iniciada como abso- tiva, mesmo se exagerado, é potencialmente pos sível. Quando se
ultrapassa o limite, a com icida de desaparece. Qualquer leitor mini-
{
lutamente realista e assim percebida pelo leitor, inserir particulares
fantásticos e incríveis que alteram o estilo. Essas inserções, de
acordo com os satíricos, deveriam reforçar a com icidade, enquanto
mamente avisado perceberá imediatamente o caráter for çado. Como
exemplo pode- se tomar o conto de Nessin que já foi lembrado , I
para os leitores elas se apresentam como absurdas, que atrapalham
a comicidad e com seu caráter evidentemente forçado e artificial.
Por isso não é possível no decorrer da obra mudar inesperada-
mente o estilo e ob rigar o leito r a refazer sua perc epção primordial.
Uma história médica. O doente sente uma dor no inte stino e é sub-
metido a uma série de operações absurdas. Finalmente encontra
em Paris um méd ico que lhe extrai da garga nta uma cerda da
escova de dente e o cura: a dor de tantos anos no intestino desapa-
I
Este salto é possível nas obras trágicas, mas não nas cômicas. Vii , rece. O co nto inteiro consiste na enumeração de muitas operações
O capote, O retrato começam num tom realista, mas depo is o lei- inúteis que visariam ridicularizar o baixo nível da arte da medicina .
tor é deslocado para um mundo irreal (Akáki Ak ák ievitch se trans- O fecho do con to deveria provocar o riso devido a seu caráter ines-
fo rma em fantasma) e abre-se-lhe , à frente, o lado trágico e terrí- perad o . Mas este final não é engraçad o devido a seu caráter tot al-
vel da narrativa. Nas obras cômicas de Góg ol não há transiçôes mente absurdo . Não é preciso ser médico para saber que uma cerda
como essa. Nas obras humorísticas uma mistura desse tipo reduz a engasgada na garga nta não pode ser a causa de um a dor de barriga
comicidade e pode mesmo chegar a anulá-la. Os satíricos , ao contrá- que dur a a nos a fio . Os abs urdos funcionam e sã o engraçado s nos
rio, querendo que o leitor ria, introduzem em seus conto s absurdos conto s do barão de Münch hausen , mas são deslo cados nos contos
202 COMICIDADE E RISO
PROBLEMAS DE DOMIN IO DA TtCN ICA ARTISTl CA 203

de caráter realista. Neles se apresenta como validade algo qu e não Eis como se inicia o quarto capítulo de A lmas mortas: "Che-
seria sequer potencialmente possivel. Além do mais, tr ata-se aq ui de gado à taverna, Tchitchikov mandou parar por dois motivos: pri-
um alogisrno, mas um alogismo que não é da personage m e sim do meiro, para deixar descansar os cavalos e, segundo, para ele mesmo
autor e é por isso que este se torna ridículo, contra sua vontade: os lambiscar alguma coisa e recuperar as forças". Esta é a linguagem
casos apresentados pelo autor são completamente impossíveis na rea- do autor. Nada há aqui de ridículo . A fala é simples, natural, prática.
lidade e por isso mesmo não suscitam o riso nem são artísticos. Outro "Mas que mulherengo aquele Kuvchin ikov , se você visse! Fui
exemplo de exagero não logrado é o conto de Mar k Twain "Como com ele a quase todos os bailes . Uma delas estava tão despida, plu-
fui redator de um jornal agrícola" . O jorn al é redigido por a lguém mas e paet ês, só o diab o sa be o que ela vestia . Eu mal tenho temp o
que de agricultura não entende absoluta mente nada. Pensa que os de pensar 'c om os diabos !' e já o danado do Kuvchínikov está sen-
nab os dão em árvores, que o guan o é um pássaro , que a abóbora é tado do lado dela e a está cantando em francês .. . A isso ele cha ma
uma espécie de laranja, que os patos ficam no cio etc. etc. O livro 'aproveitar-se do moran guinho" .. . É assim que se expressa Noz-
está repleto de absu rdos dessa natureza . O acúmulo de semelhantes drióv, ao encontrar casualmente Tchítchikov na taverna.
tolices em poucas páginas cansa o leitor e não provoca o riso. A inten- Conclui-se disso que o discur so do autor não deve precipitar-
ção satírica desvenda-se no final. Quando repreendem o redator do se à pr ocura da risada do leitor.
jornal por sua igno rânc ia no assunto, ele responde: " [.. .] eu trabalho Pego um livro qualque r de contos humorístícos que tenho à
há quatorze anos como redator e esta é a primeira vez que eu ouço mão. Um deles começa assim : " Iniciemos pela suposição . Supo-
que é preciso saber alguma coisa para ser redator de um jornal". O nhamos que esta história atípica, por assim dizer, um caso que acon-
final não deixa de ser espirituoso, mas não consegue salvar o conto teceu por acaso, tenha se passado na cidade X" . Esta é a voz do
em seu todo pela falta de artisticidade que consistiu na incapacidade autor, que quer a todo custo que o leitor ria imediata mente. As
de compreender os limites dos exageros cômicos . expressões intencionalmente estropiadas , entretanto, não fazem rir
Erros semelhantes são cometidos também por certos humoris- de ma neira nenh uma, po is o leitor percebe logo que todo esse
tas soviéticos . BeIínski escreveu repetidas vezes so bre a naturalidade começo é art ificial e forçado. Além disso, o a utor ap ressa-se em
e a verossimilhança, enquanto condi ções necessárias para a comici- justifica r o fato de ser atípico o que irá co ntar, e isso fica por
da de. Esta exigência, porém, nem sempre é observada . Em IIf c demais evidente: ele mesmo admite que sua história não é típica,
Petróv encontramos duas agências funerárias concorrentes chamadas antes que seja m o leitor e o crí tico a fazê-lo. Disso tudo tra nspa-
"Ninfa " e "Pedimos o obséquio". Esses nomes não são percebidos rece uma esperança secreta: se o autor disser que sua história não
como cômicos por serem totalmente inverossímeis e potencialmente é típica, quem sabe o leitor ache o contrário.
impossíveis. Pode ser lembrado, a propósito , qu e, em Leningrad o, Não é este o lugar para recomendações . Os exemplos dad os
na rua Marat, já na época soviética, existiu durante alguns anos uma mostra m qu e o discur so do a uto r deve ser simples e na tural. Ele
agência funerária chamada "Eternidade". A vida sabe criar casos pode ser espirituoso e levar a so rrir, mas deve ser contido , sem que-
que nenhum autor saberia inventar à sua mesa de trabalho ; é pr eciso rer apressar-se, desde as primeiras linhas, a obter o efe ito cômico.
ape nas saber olhar para essa mesma vida e saber reproduzi-Ia . A fala da s perso nage ns, no enta nto, deve ser expr essiva e colorida
Estas observações nos conduzem aos pro blemas da linguagem. e variar de acordo com o tipo de cada uma delas. Pod e-se dar tam-
Escreve u-se já tanto sob re os problemas da lingu age m que pode- bém outro conse lho: é necessário submeter o que se escreveu a uma
mos nos per mit ir o máxi mo de brevidade. reelaboração e a uma revisâo radicais, no que se refere à linguagem.
Quando alguém torna a contar uma comédia qua lquer ou O dramaturgo Nieviéjin, abatido pelo insucesso de suas peças , pediu
uma peça humorística "com as suas palavras" percebe que elas não a aju da de Ostróvski e deu- lhe para corrigir a comédia Coisas velhas
resultam cômicas. Na arte verbal, portanto, a palavra não é um de modo novo. Ostróvski não mexeu no roteiro de Nievi éjin , nem
invó lucro, mas consti tui um único todo com o conjun to da obra. nas personagens, nem na seqüência da ação. A comé dia, então, não
Nas obras de narrativa é preciso separar dois âmbitos : a linguagem era tão má assim. Porém , Ost róvski realizou um grande tra ba lho
do a utor e a linguagem das personagens. no que dizia respeito à lingu agem do texto ; não há uma página
PROBLEMAS DE OOMíNIO DA TÉC/'Iõ ICA ARTls TICA 20S
204 CO:<.IICIOADE E RISO

do~ e inventados pelo próprio autor. Mesmo sendo assim, eles foram
sequer do texto original que não contenha a marca de suas corre-
ções de língu a ou de suas sutis reelaborações de estilo. Sob a pena criados de aco rdo com o modelo de nomes e sob renomes ouvidos
de Ostróvski a peça adq uiriu um a no va qua lida de: tornou-se viva, que existem realmente nas línguas russa e ucraniana. Pequenos exa-
na tu ral e teatral. Cada pe rsonagem expr essa-se numa linguagem pró- ~c ros não mudam a essência , mas reforçam a comicidade. Certos
pria. correspondente a sua camada social e a seu caráte r. Para to r - autores, ao contrário, inventam por completo nomes sem graça
nar cômico o discurso de uma personagem é preciso saber como nenhuma, embora tenham alguns traços aparentemente cômicos .
as pessoas fala m na realidade, e para descobri-lo é preciso estudar Plcs não são engraçados porque são impossíve is, destroem o espírito
longam ente a va riedade da língua po pular , sa ber o uv i-Ia co m at en- da língua russa.
ção. Os cade rnos de anotações de G ógo l mostram co m qu anta insis- Belínski era um crítico extraordinário, mas não possuía o
tência ele observava a vida e a fala das pessoas de todas as cama- rutcnto de escr itor. H á um esboço dele de nome O pedante, cujo
das sociais e como ele anotava tudo o que lhe parecia importante protagonista tem o sobrenome de Kart ófelirr". Isso é engraçado por-
e interessante enquanto escritor e, em particular, os nomes das coi - que a denominação de alguém por meio de algo comestível é cômica
sas. As anotações eram feitas sem nenhuma ordem. mas isso não Jlela; razões q ue já foram expostas (veja-se em G ógol, Iaüchnitsa,
importa. Há ano tações sobre transações comerciais e so bre o mer- Zemlianlka ; os sobrenomes Víchnia, Slivo? e o utros) . O sobrenome
cado, sobre os ajustes "com todos os xingamentos" , encon tram-se esco lhido po r Belinski po rém não é côm ico , po rqu e ele se baseia
os nomes das árvores e de tod o tipo de madeira, há um elenco de lia denominação botânica do tubérculo, e não na popular. O nome
lojas de artesanato, e anotações sobre as expressões usadas nos "Jo.:artóchkin" seria engraçado .
jogos de baralho, são enumeradas as denominações campo nesas Esse erro é semelhante ao co metido por Dobroliubov ao cha-
para ind icar as diferentes partes da isbá , há anotados no mes de nmr de Lilienchvager uma de suas personagens. Já vimos em que
cachorros e termos para indicar seu jeito de anda r e suas qu alid a- ocasi ão podem ser engraçados os sobrenomes estrangeiros. Só que
des, está escrito tudo o que possa se referir à caça com cachorros , este sobrenome não é possível em nenhuma língua, ele é forçado,
há no mes de d iferent es pratos, estão elencados nom es qu e indic am artificia l e não tem graça nenhuma (Lt1ia [lírio] + o nome da fami-
os gritos e as vozes de pássaros e animais, e assim por diante . Não lia . Schwager significa marido da filha , ou da irmã) .
é necessário relatar aqui tudo o que G ógol anotara para não esq ue- Podem-se considerar engraçados sobrenomes como Semaforov,
cer. Não tomava nota apenas dos nomes de co isas, mas descrevia Unitasov, Av óskin, Pagan ínskf e outros do gênero? Há neles elemen-
festas e ritos , transcrevia os nomes de todos os graus da administra- los de co micidade, não há dúvida, mas eles são a nula dos pela artifi-
ção , da assistência pública, anotava as propinas recebidas pelos pro- cia lidadc, pela antiesteticida de e pela invero ssimilh an ça d os nom es.
curadores, governa dores e assi m por diante. Essas anotações mos- Assim, o sobrenome Paganínski poderia ser cômico pela repetição
tram como cost umava trabal har G ógol, A vida e o qu e há nela de que ele apresenta de vogais e consoantes. Porém, devido ao fato de
colorido, de vivo e de engraçado não pode ser inventada à mesa ele provir do sobrenome Paganini , perde toda graça; no sobrenome
de trabalho. A fonte primeira da comicidade é a própria vida . É o ita liano comum Paganini não há nada que soe engraçado para um
que os autores muitas vezes não sabem e não compreendem e disso, ouvido russo. Além do mais, os sobrenomes russos não derivam dos
do artificial, é que derivam tantos erros, que diminuem o efeito itnlianos. É possível que o autor pensasse na associação com a raiz
cômico e artístico . IJo1-:ânj 9, mas a associação não ocorre por razões de caráter ortográfico.
Pode-se verificar isso por meio de um exemplo pequeno, mas Em As doze cadeiras de Ilf e Petr óv temos uma parteira ,
muito sintomático: por meio dos nomes que os autores dão a suas Medusa Go rgoner. Este nome é emprestado da mitologia antiga,
personagens. Já tivemos ocasião de ver quais são os princípios de
criação dos nomes cômicos . A quanto foi dito é preciso acrescentar
f. De kartofet , batata (kart6chka, popul armente).
que a exigência de verossimilhança, co mo uma das condições da
7 Respectivam ente : omelete, morang o , cereja, ameixa.
co micidade , este nde -se tam bém aos nom es. Não é im por ta nte saber 11 Respectivame nte: de senta/ ar = semáforo; de unitaz = wa tcr-closet: de avóska =
se aqueles so breno mes estran hos qu e Gógol atribuia a suas perso na- sacola de rede para co mpras; de Paganini.
gens existiam de fato . É possível qu e algu ns deles te nham sido cria- ~ "Referente à sujeira", " ruim", e também "pagão".
206 COM[CIDADE E RISO PROBLEMAS DE DOMIN IO DA TÊCN ICA ARTl sT JCA 201

mas é remanejado. Para perceber sua co micidade é necessário saber tanto menor será seu efe ito , enquanto arte e enquanto idéia. Em vez
(ou ler na enciclop édia mitológica) que as górgones são figuras femi- disso, muitos autores sublinham de propósito a tendência, co m
ninas míticas assustado ras, cujo aspect o e olhar eram terríveis a medo de que os culpem de falta de idéia. Muitas vezes a responsabi-
ponto de mat ar. Medusa é uma dessas g órgones. Ao at ribuir a uma lidade pelo erro não é deles, mas de algumas posições errôneas da
personagem o nom e de Medu sa e o so brenome de Gor goner, os atual teo ria do cômico qu e exigem a presença da ideologia, mesmo
autores mostraram que conh ecem a mitologia. Só que o leitor não à custa de um baixo nível artístico, co nforme foi dito anteriormente .
é obrigado a co nhecê- Ia. O acréscimo do sufixo judeu-alemão -er A lição de mo ral fica bem na fábula (embora as fábu las a dispensem,
ao a ntigo nom e grego não é engraçado por causa de sua to ta l a rbi- muitas vezes), mas não cabe em nenhum gênero humorístico. So bre
trariedade e antinaturalidade (cf., ao co ntrário, a parteira Zmieiúk i- isso já havia falado Belínski ao previnir os escritores contra o dida-
na lO de Tch ékhov). Ap esar da ap ar ent e imposs ibilidade e inverossi - tismo . L. F. Erchóv, ao co ntrário, afirma que para o leito r "é útil
milhança dos no mes de G ógol, não há entre eles nenh um que seja abrir os olhos sobre as causas que dão origem aos fenômenos negati-
forçado. vos" (20, 197). Isto é necessário para os leitores de artigos de jornal
A tudo o que foi dito po demos acresce ntar ainda o seguinte: ou de ensaios sérios, mas não o é absolutamente para o leito r de tex-
o cômico só é bem-sucedido se ele consegue observar o u simular a tos artísticos e, mais ainda, humorísticos. Nada temos que julga r
mais completa seriedade e uma total imparcialidade em relação diante do leitor, é preciso apenas que as coisas lhe sejam mostradas
àquilo que está contando. Se qu em está contando uma piada come- e as deduç ões serão tiradas por ele mesmo, se o quadro apresentado
çar a rir sem esperar o riso de seus o uvintes, eles já não rirão mais tiver sido claro e verdadeiro. J uízos de qualquer gênero rebaixam o
- a não ser po r mera co rtesia. Isso vale não apenas para o relato nível artístico e a acessibilidade das obras. G . Ríklin tem um belís-
o ral, mas também para a narrativa escrita. O autor que estive r co m simo conto cha ma do A velha Sek letéia. A protagonista cômica desse
vonta de de rir, não deverá satisfazê-Ia logo . Ele deve atua r através conto é uma velha maldosa, fofoq ueira, que respalda qualquer tipo
do objeto de seu relato e não procurar transmitir-nos seu estado de profecia e de absurdo. A figura é nítida e engraça da e os fatos
de ânimo o bjetivo . Isso esfria o leitor e às vezes chega até a irritá- comunicados de forma viva são verossímeis e co nvincentes. A mal-
lo . Tch ékho v deu o seguinte co nselho à escritora Avílova, que escre- dade desse tipo de pessoa é bastante evidente. Mas de repente o aut or
via co ntos sentimentais: "Quanto mais sentimental a situação , tanto escreve: "S eria leviano pensar que a velha Sekletéia já não tivesse
mais friamente deve-se escrever. Aí o resultado será mais sentimen- um auditório de pessoas que acredit assem nela e qu e caíssem em sua
ta l. Não é necessário açucarar demasiado" . Isso vale ta mbém para rede co mo as mosca s nas teias de aranha, a não ser um o u o utro
os autores de obras humorísticas. É preciso escrever " friamente" , jove m meio atrasado " . Esta o bservação do autor encontra-se no
meio do relato e estraga a co micidade; esta não é linguagem humo -
para usar o termo de T ch ékhov. Caso co ntrário , se estará destruindo
rística, mas sim a de um artigo de jornal. Não deve ser o autor a
uma das regras básicas do riso psico lógico : a risada surge inespera-
dizer isso, mas o próprio leitor, ao ler o conto . E o diria , se o auto r
damente , embo ra o inesperado po ssa ser preparado com arte. Os
não tivesse tomado seu lugar. O leito r não gosta que lhe ensinem, e
satíricos desajeitados, ao co ntrário , com eçam logo com uma lingua-
ele quer co mpreender sozinho. E as intervenções no meio da narra-
gem afetada para mostrar que não estão escrevendo um simples
tiva são fruto da teoria e nada mais.
relato , mas algo humorístico, e isso não deve ser feito .
Há , porém, o utros erros que destroem a co micidade. Por
A imparci alida de exterior do au tor em relação ao conteúdo
exemp lo, há temas que não se prestam absolut amente a serem trata-
do relato deve expressar-se também de o utra maneira: uma o bra
dos como côm icos . Não se podem representar com icamente assassi-
satírica tem sempre uma tendência; quanto mais pro fundamente e
natos, vícios, crimes de diferente natureza o u a deterioração moral
quanto mais co mpletamente essa tendência for mantida oc ulta, tanto
e fisica. Pode-se rir dos fasc istas quando eles levam para uma aldeia
melhor e com maior prazer estético ela será entendida e apreciada . ocupada um cami nhão carregado de ba lalaicas para vendê -Ias aos
E por o utro lado: quanto mais fortemente essa tendência aparecer, russos ou trocá-las com proveito (cf. o conto de Zóschenko : Bom
dia, senhores). Mas a ninguém passa pela cabeça rir deles quando
10 De zmeíá = serpente. matam as pesso as nos campos de concentração .
208 COMICIDA DE E RISO PROBLEMAS DE DOMIN IO DA TI:: CNICA ART ISTlCA 209

Nem sempre, porém, os auto res se dão conta do limite entre errado é o tipo de interpretação e de avaliação que eles dão deste
o que pode e o que não pode ser eng raça do. Ass im, por exemplo , fat o . A teoria do cômico mo str a que os grandes defeitos não podem
a morte de Ostáp em As doze cadeiras nada tem de engraçado. ser nunca objeto de representação cômica . Isso é visível, mesmo sem
A passagem do cômico ao repulsivo é feita às vezes de propó- teoria nenhuma . Os crimes de Estado, a traição da P átria, os deli-
sito, para realçar o mascaramento . Assim fez repetidamente tos graves pertencem à jurisdição da procuradoria do Est ado e da
Sa ltik óv-Schedrin em Os senhores Golovlióv. Ele estava visando polícia criminal e não à comédia ou à sátira.
criar um sentimento de repulsão e, nesses momentos, sua obra nada A teoria apresentada pelo s autores referidos está errada num
tem de cômico . Quando se pensou em transpor esse romance para o outro aspecto também: na avaliação social dos defeitos miúdos. Ela
cinema , porém, isso resultou extrema mente difícil. Iurêniev escreve pa rte do pr essuposto de qu e existem dois tipos de defeitos: os
a este respeito : "Na literatura russa, a sátira de M. E. Saltikóv-Sche - socialmente daninhos e os socialmente inofensivos. Existe certa
drin extravasa os limites da comédia. No filme lúduchka Golovtiov, dose de verda de nisso, sem dú vida . Quando, por exemplo , um mae s-
Gardin! ' não suscita o riso, mas é abjeto e terrível". Só que Iúduchka tro, após ter inclinado delicadamen te o corpo, se atira sobre a
é assim, mesmo no romance . A saída para além das fronte iras do orquestra de punhos cerrados para mostrar que naquele momento
cômico é intencional e con sciente em Saltikóv-Schedrin. O problema é preciso toca r fortissimo , ou se dir ige a ela co m a palm a da mão
dos temas ainda apresenta outro aspecto e, em muitos casos, tere- para mostrar que naquele outro momento é preciso toca r pi ú piano
mo s que tomar a defesa dos autores contra uma maioria de críticos (coisa que, por sina l, os mú sicos já sabem) , se ele diri gir não ap e-
e teóricos. nas com o corpo e com as mãos, mas também com a cabeça
O fato de o riso (o riso satírico , pelo menos) nasce r dos defei- - desarrumando a cabeleira - , ele não sus peita que está sendo ridí-
tos humanos tem sido afirmado de for ma diferente por muitos teóri- culo. Aqui há assunto para uma charge amigável, mas não para
cos, e isso não suscita objeções. A essência da sátira é a derrisão uma sátira. O defeito, neste caso , é comp letamente inofensivo .
dos defe ito s do s homens. Isso tudo é claro e indisc utível. As discus- En tretanto, tão logo tentamos separar rea lment e as faltas noci -
sôcs começam quando é preciso decidi r quais os defe itos que devem vas das inócuas verificamo s que entramos num beco sem saída e
tornar-se objeto de sá tira. M uitos teóricos afi rma m que an tes de nos convencemos da im possi bilidade de fazê-lo.
mais nada devem sê-lo os defeitos grandes. Esses mesmos teóricos As palavras de Gurálnik - "Nós ainda não temos uma grande
acusam os autores contemporâneos de escolher ''temas mesquinhos" . sátira" - não se justificam se olharmos para a sátira do período
"Nós não temos ainda uma grande sátira", escreve G urá lnik ". De da Guerra Civil e da Segunda Guerra Mundial e nos lembrarmos
acordo com Erch óv'", os colaboradores de Krokodil " têm demons- do s nomes de Dem ian Biédni e de Vladímir Maiakóvski.
trado uma inclinação para os temas mesquinhos , para o mundozi- Essas acu sa ções caem por terra. Em 1927, Maiakóvski escrevia:
nho burgu ês mofad o e não têm ab or dado as gra ndes qu estôes
Quero
sociais ". Da mesma forma expressa-se Nicoláiev: " Demasiado fre- estouros
qüentemente na base dos contos e mesmo dos romances satíricos de riso de canhões
encontram-se conflitos mesquinhos e insignificantes, sem amplo inte- e sobre eles
resse social" . *n uma teia de bandeira vermelha 12.

Formalmente, os autores dessas acusações têm razão : entre Maiakóvski sabia, mais do que ninguém, chicotear os inimi-
nós zomba-se principalmente dos defeitos mesquinhos . O que está gos internos e externos, a guarda branca e a contra-revo lução .
Durante a segunda guerra pátria a sátira mostrou-se uma ativa
1I Vladímir R. Gardin (1877-1965) fo i ator do referido filme, rodado em 1934 e diri- aliada pa ra a vitó ria sobre o hitlerismo . Hoje em dia basta abrir
gido por Ale ksandr V. Iva n óvski (1881-1968). qua lquer núm ero de Krokodil, de Pravda ou de outros jorn ais pa ra
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••• D. Nicoláiev, O riso - arma da sátira, p. 16. publicado em 1927 na revista satírica Buzot íor,
210 CO MICIDADE E RISO - PROB LEMAS DE DOMÍN IO DA TÉCNICA ARTíSTICA 211

ver lá car icaturas ferinas e arg utas . Não há por que dizer que não se representam nã o são realmente típicos de nossa vida e de nossa
temos uma gra nde sátira. organi zação social. Mas isso não significa que eles não devam ser
Poré m, ao lad o deste tipo de sát ira é necessário outro , diri- represent ado s ou de que nã o devam ser combatidos. A idéia de que
gido à crítica de nosso comportamen to cotidiano e de nossos defei- um caso isolado ou poucos casos não repr esentam ainda um mal
tos pessoais. social, e que eles só adquirem caráter negati vo na medida em que
Maiakóvski, que com tanta mestria fustigou os intervencionis- começam a difundir-se, é profundamente errada e pernici osa. Cada
tas, soube tam bém dirigir sua zombaria contra os defeitos dos hábi- caso exige ser atacado e combatido, sem esperar que a doença se tran s-
tos soviéticos na época da con str ução pacífica do socialismo. Essa forme em epidemia, torn ando-se, portanto, " típica" .
construção já não era impedida nem por guerras nem por exércitos Disso decorr e, portanto , que a acusaç ão de ate r-se a tema s
ou canhões: seus inimigos eram os milhares de insignificantes que , mesquinhos não é passível de crítica, nem do po nt o de vista da teo -
à primeira vista , ninguém nota, mas que, em seu conjunto , se não ria do cômico nem do da moral social. O de feito nã o está nisso ,
fo rem bar rados a tempo, podem brecar o curso dessa construção e está em como esses temas são tratado s do ponto de vista da arte e
preju dicá -la seriame nte. da verda de.
Ele criou o conceito de "miudezas enormes" e fustigo u-as com A qui vale a pena nota r, a propósito , que a sát ira enqua nto tal
a mesma impiedade que dirig iu contra os intervencionistas. Um muitas vezes não cura nem corr ige aqueles contra os quais ela é diri-
exemplo dessa sua sátira combativa é a comédia O percevejo . gida. Se assim fosse, pa ra a cura, digamos, do alcoo lismo, ou da
Nas convenções de nossa realidade, ao lado do s defeit os indivi- marginalidade, bastari a reunir os portadore s dessas mazelas , levá-
duais há os de ordem social e fica realmente impossível traçar uma los para um teatro ou cinema e mo strar-lh es uma comédia contra a
linha de separação entre os dois. "O especulador, o baj ulador, o fofo - bebedeira ou a desocup ação , esperando que saíssem de lá sóbrios e
queiro e o calun iador , o atravessa dor e o covarde , o briguento e o bem-edu cados. Isso porém não ocorre. No qu e, entã o, está o signi-
preguiçoso , o bêbado e o depravado estão entrando gradativamente ficado da sáti ra? A sátira age sobre a vontade daqueles que perma-
na jurisdição da sátira" (40, 18). M. Levítin, em seu livro O que é necem indiferentes diante desses vícios , ou qu e fingem nã o vê-los,
mais engraçado (1966), assim fala de si próprio : "O autor fustiga, ou que são con descendentes , ou mesmo que não sabem realmente
implacável, tudo o qu e perturba nosso vitorio so caminho para frente nada sobre eles. Ela levanta e mobiliza a vontade de lutar, cria ou
e zomba de defeitos como a avidez , a inveja, o exibicionismo, o ser- reforça a reação de condenação , de inadmissibilidade, de não com -
vilismo , o egoísmo". Mesmo assim, esta lista não esgota a temá tica pactuação com os fenômenos representa dos e, por isso mesmo , con-
do livro . Se fizermos um estudo sistemático de nossa literatura humo- tribui pa ra intensificar a lut a p ara removê-los e err adicá-los.
rística e satí rica, e elaborarmos uma lista, um catá logo de tu do aquilo
de que se zomba (não iremos fazer isso, aq ui), e se refletirmos sobre 'I
cada uma dessas falhas , resultará perfeitame nte eviden te a exigência
de combatê-las. Não se pode admi tir e é preciso combater de todas
as maneiras todos os tipos de degeneração mora l, o alcoolismo, a :1
desfaçatez, a vagab undagem, a crueldade para com o próximo e para
I
com suas exigências, o formalismo e o burocratismo de todo tipo, o
baixo nível do trab alho em todos os campos de atividade, desde os !

trabalhadores mais modestos até os de grau mais elevado, que come-


tem atos repreensíveis em postos de respon sabilidade . Falhas dessa
natu reza e outras semelhantes podem tornar -se obje to de sátira e
todo s esses temas são de ordem social.
Freqüentemente repreendem- se os autores por representar em
fenômenos atípicos. É bastant e evidente que muitos dos vícios que
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Verificam-se, então, vári
modalidades de riso em situa
básicas e recorrentes, com
riso de zombaria, o riso ale
o riso cínico, o riso ritual etc
Entretanto, numa classificaç
mais geral, merece destaquE
riso de zombaria pela funçã
que exerce na obra de arte.
Apesar de suas variantes
riso de zombaria advém
essencialmente do
desnudamento de um efeito
moral por uma contradição,
como o sinal do triunfo de
que julgamos correto. Há, p
outro lado, o riso cínico: a
expressão do triunfo do indiví
em contraposição ao riso ai
advindo da alegria transbord
E com o próprio ser e que
representa um sentimento a
compartilhado.
De qualquer modo, a
singularidade da pesquisa d
Propp está na relevância da
especificidade do cômico e
características, na negação
teoria dos seus aspectos" a
e "baixo" e na discordância
sua contraposição ao trágicc
sublime.
Propp foiprofessor de aler
e folclore em Leningrado de!
1932. Por concordar com a
valorização da imanência do
texto, ao lado dos formalista
sua obra foi estigmatizada n
período estalinista. No entan
sua contribuição para a nov,
crítica soviética e mesmo pa
outras correntes, como o
..prn.ao . "--0
~Ilngr"f
estruturalismo, é reconhecid
re l , 216 -1630 de imediato por todos os
estudiosos do folclore e da
literatura.

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